FREUD A filosofia e os filósofos Esta obra constitui mais uma elucidação do pensamento de Freud e dos pressupostos de sua teoria psicanalítica. Ao analisar detidamente seus textos metapsicoló-
gicos, revela alguns dos fundamentos epistemológicos em que se apóiam. Com efeito, o objetivo central da obra consiste em discutir e responder a ·duas questões que sempre atormentaram o fundador da. "ciência do inconsciente": a) qual o sentido da filosofia? b) quem são os filósofos? Estamos diante de interrogações elementa· res. Mas que interessam diretamente às relações da psicanálise com a .filosofia. Curiosamente, a resposta a ·tais indagações vem sendo protelada. Ou então, mais ou menos unilateralmente dada. Neste domínio, salvo raras exceções, de parte a parte os preconceitos parecem constituir a regra. Talvez fundados na ignorância da teoria psicanalítica ou no desconhecimento do que vem a ser a filosofia. Ora, a partir do momento em que a psicanálise se tornou um capítulo do discurso filosófico, o que faremos com essa série imensa de textos em que o próprio Freud define uma atitude resolutamente crítica em relação a esse campo do saber que, por uma espécie de surpreendente reviravolta, volta a. tomar Freud e ·suas teorias .como objeto de investigação? PortantÔ, o que está _em jogo é uma pesquisa sobre a inteligibilidade dos textos metapsícológicos, em que se .esboça a relação de Freud com. a filósofia e com certos grandes fi16!-iofos. São tais questões, de efeitos teó-. ·ricos incalculáveis, que o autor discute e tenta responder. Apoiado ampl<:.mente nos textos freudi anos,
coloca os seguintes problemas-desafio: I. Em que consiste a crítica epistemológica da "concepção de mundo" filosófica? Il. Em que consiste o diagnóstico pulsional sobre a atividade filosofante apresentada por Freud? UI. Que necessidade, para a teorização freudiana, revela o recurso a sistemas filosóficos particulares? IV. Finalmente, qual o sentido da relação privilegiada que Freud instaura com Schopenhauer? Por conseguinte, o que o autor pretende mostrar, com a ajuda do próprio Freud, é que a crítica do ''consciencialismo" (filosofia baw seada na consciência) e a recusa da Weltanschauung ("visão de mundo"), vão encontrar seu fundamento no diagnóstico narcísico ; e que o limite da metapsicologia não pode encontrar sua chave senão na problemática epistemológi· ca. Assim, a inibição da análise do objeto filosófico se resolve pela ambivalência do modelo epistemológico. E é desse modo que a po· sição freudiana revela sua coerência e, ao mesmo tempo, o nervo da contradição que ela procura pensar. No entanto, a explicação psicológica se vê claramente superada pelo desafio ideológico. Com efeito, o fim da obra é situar o lugar ideológico que condiciona a teorização analítica. E isto, mediante este revelador privilegiado, que é sua relação com a filosofia. 1?. claro que o autor, escudado em Freud, tenta detectar as condições indispensáveis para que o campo psicanalítico não assuma a tarefa de justificação ideológica em que se encontra engajado. Como se fosse possível alguma ~iência poder ralar de um lugar não-ideológico. A menos que continue acreditando no dogma de sua "imaculada concepção". Hilton J apiassu
PAUL-LAURENT ASSOUN
FREUD A filosofia e os filósofos · ·
Tradução de Hilton J apiassu
Livraria Francisco Alves Editora S. A.
©
1976, Presses Uoiversitaires de France Título original: Freud: la philosophie et les philosophes
Capa : Álvaro Moreira
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Ficha catalogrãfica CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI.
Assoun, Paui-Laureot. A869f
Freud: a filosofia e os filósofos I Paul·Laurcnt Assou.n; tradução de Hilton Japiassu. - Rio de Janeiro: F. Alvet, 1978. Tradução de: Freud: la philosophie et les philosophes Blblioarafia · 1. Freud, S.igmund, 1856-1939 -
Filosofia. I. Título.
CDD CDU -
150.195201 159.964.26 Freod: 1
78-0lSS
1978
Todos os direitos para a lfngua portuguesa reservados à
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S. A. Rua Barão de Lucena, 43 Botafogo ZC·02 20.000 Rio de Janeiro, RJ
Sumário
Introdução O problema e seu desa_fio . ~ Fenomenologia da ambtvalêncla de Freud em relaçao à filosofia: o encontro com a filosofia A primeira fala A segunda fala Metodologia da pesquisa e plano
9 11 15 16 17
Primeira Parte
FREUD E A FILOSOFIA Livro Primeiro
I. A filosofia e o obstáculo consciencialista 1. A resposta freudiana à pergunta filosófica 2. A interpretação de sonhos 3. Sol>re a psicoterapia 4. O chiste 5. Deltrw e sonho na "Gradiva" de Jensen 6. O homem dos ratos 7. O interesse da p.ricanálise 8. Binswanger e Levioe 9. A s resistencias à psicanálise
10. Selbstdarstellung 11. O esboço de psicanálise
23 23
26 28 29 30 31 32 35
36 38
39
n.
A 1. 2. 3. 4.
filosofia como W eltanschauung Psicanálise e teoria da libido A recusa de Hegel: Putnam A recusa do sistema psicanalítico: Kronfeld Inibição, sínloma e angústia
5. Novas conferências sobre a psicanálise 6. O elo entre a Weltanschauung e o consciencialismo: O esboço de psicanálise 111. Metapsícologia e metafísica 1. Ciência da natureza e especulação psicanalítica: a metapsicologia 2. A gênese da metapsicologia e seu sentido
45 45 47 49 51 56
58 64 64
6S
Livro Segundo Explicação psicanalítica da filosofia IV. O sentido pulsional da filosofia como atividade individual l. A primeira estimulação da psicanálise sobre a filosofia como Spezialwissenschaft 2. A segunda fonte de estimulação
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V. O sentido pulsional da filosofia como instituição cultural · 1. A arqueologia pulsional da filosofia 2. O lugar da filosofia nas visões do mundo 3. A etiologia filosófica: o narcisismo secundário 4. Filosofia e sublimação
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Vl. A fJ.losofia como objeto paradoxal da investigação psicanalítica l. A paradoxalidade da instituição filosófica 2. A paradoxalidade do objeto filosófico: Freud e os sonhos de Descartes
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Segunda Parte FREUD E OS FILóSOFOS I. A referência filosófica em Freud 1. A referência negativa: Freud e Vaihinger 2. A referência heurística: Freud e Schelling
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3. A referência legitimadora: o conceito filosófico como antecipação do conceito psicanalítico 4. A topografia filosófica freudiana 11. Freud e Platão 1. A referência central: Além do principio de prazer: o mito do Banquete 2. O uso freudiano do conceito platônico de Eros 3. Freud e Empédocles 4. A interpretação induizante de Platão: o modelo schopenhaueriano III. Freud e Kant 1. A referência central: Além do princfpio de prazer: a subjetividade espácio-temporal e o inconsciente 2. O modelo scbopenhaueriano da interpretação antropológica 3. Inconsciente e coisa em si
IV . Freud e Scbopenhauer 1. Os sonhos e o recalque 2. O inconsciente 3. O amor 4. A morte S. O pessimismo
130 133 136 136 143 146 148 155
156 165 168
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V. O sentido da relação de Freud com Schopenhauer: o modelo ideológico da relação de Freud com a 198 filosofia t. A defasagem histórica do schopenhauerismo na Alemanha: a clivagem dos anos 1870 199 2. A problemática do naturalmente positivista como materialismo aviltante: o encontro com Freud 202 3. O manifesto da aliança da metafísica de Schopenhauer e das ciências da natureza: A vontade
205 natureza 4. As quatro teses freudianas: Freud e Von Hartna
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208
5. O sentido último do problema: o agnosticismo gnoseológico Conclusão O conceito de "replicação esquematizante" A psicanálise e sua Roma filosófica As lições teóricas: psicanálise e compreensão materialista do real
209 218 219 220 220
INTRODUÇÃO*
O PROBLEMA E SEU DESAFIO
E: corrente
considerar~se
a psicanálise como fazendo parte
do objeto filosófico: o discurso filosófico se apropriou dela, cultivando-a como um campo de significações específicas. Esforços são feitos para se pensar seus efeitos de ruptura em relação à posição de objeto tradicional. Todavia, raramente se está atento para questionar a legitinúdade dessa posição da psicanálise como objeto fi liosófico, ou sua associação a um empreendimento teórico que lhe seja estranho. Ora, é este questionamento radical que deve ser levado a efeito. Para tanto, dispomos de um referencial decisivo: a atitude teórica do próprio Freud relativamente ao campo que, no momento, por uma reviravolta profunda, toma-o por objeto tão natural, a ponto de
assimilá-lo a si sem pressuposto teórico. O que era a filosofia e quem eram os filósofos para o fundador da psicanálise? Eis a interrogação elementar, mas cujos efeitos teóricos são incalculáveis, a que nos propomos responder. · Não se trata de situar Freud relativamente ao pensamento filosófico em geral, vale dizer, de determinar a idéia que possamos nos fazer da filosofia em si, do ponto de vista psicana• Os textos de Freud são citados segundo a edição das obras compleGe.rammelte Werke, Londres. lmago Publishing Co. Ltd., I, em 18 volumes, pela abreviatura G.W., seguida do tomo e da página.
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lítico, mas de detectar positivamente a atitude teórica de Freud em relação à filosofia como realidade histórica determinada e como técnica e campo de objetos sui generis. Paradoxalmente, essa enquete fundamental foi adiada a partir do momento em que foi percebida. A história das relações de Freud com a filosofia ficou reduzida a seu aspecto anedótico, posto que não se via bem o que fazer com elas. No momento mesmo em que a psicanálise funcionava tão bem como objeto filosófico e propalava suas fecundas promessas de inteligibilidade, tal fato, violentamente polêmico - a recusa acerba que lhe dirigia seu fundador - , não podia ser pensado nem tampouco reduzido por um questionamento teórico. e por isso que ele foi abandonado a seu estatuto de fato curioso, explicável por uma conjuntura histórica, seu conteúdo só sendo percebido muito vagamente. Por conseguinte, é esse discurso freudiano sobre a filosofia que se trata de exumar (posto que foi muito bem enterrado). Mas a recuperação dessa palavra revela, por seu caráter desconcertante, o que justificou seu desconhecimento (conduzido, aliás, por motivações ideológicas mais profundas). Descobrimos aí, com efeito, um discurso ondulante, múltiplo e, finalmente, ambivalente: de um lado, Freud não possui fórmulas bastante incisivas para desautorizar a filosofia de suas pretensões de legisferar sobre a ciência psicanalítica; do outro, reconhece humildemente sua importância na "atividade de pensamento" humano. Por um lado, lança aos filósofos sarcasmos que se aproximam da caricatura e do lugar-comum; por outro, constata-se o retomo constante de referências a certos sistemas que parecem desempenhar uma função necessária na argumentação freudiana, em seus pontos decisivos. Toma-se, pois, lícito, apoiando-se na massa de fatos pertencentes a uma das duas fanu1ias de discurso, aceitar a tese de um Freud "antifilósofo" ferrenho, ou a de um Freud filósofo secreto, embora autêntico, ou então construir sobre essa contradição certo drama existencial do antifilósofo nullgré lui; ou, ainda, abandonar a questão ao estatuto de problema pessoal contingente, sobre o qual podemos adotar uma posição arbitrária, o que nos dispensa de avaliar seu sentido teórico. Ora, devemos afirmar, inicialmente, a sistematicidade dos enunciados freudianos sobre a filosofia. que se apressou em revelar uma análise também sistemática, sob a aparência de enunciados 10
variáveis. De fato - e eis o segundo ponto - . a aparência de diversidade provém da confusão de níveis do discurso freudiano sobre a filosofia. Pelo contrário, a evidenciação da estrutura de articulação dos tipos de ponto de vista revela uma notável homogeneidade das temáticas, chegando mesmo à estereotipia. Convém, pois, antes de tudo, percebermos globalmente como se anuncia o dizer freudiano sobre a filosofia, isto é, procedermos a uma espécie de fenomenologia da ambivalência que pode ser extraída do conjunto dos textos em que Freud, explicitamente, "toma posição" quanto à sua própria relação com a filosofia. Desta forma, estaremos em condições de perceber as linhas de força desse discurso. Fenomenologia da ambivalência de Freud em relação à filosofia: o encontro com a filosofia
Emst Jones, futuro biógrafo de Freud, perguntara-lhe, "certo dia, se ele havia lido muitas obras filosóficas". Freud respondeu que havia lido "muito poucas", e acrescentou: "Quando jovem, sentia-me muito fascinado pela especulação, mas afastei-me dela corajosamente"1 • Como se revelou esse "fascínio" do jovem Freud pela especulação filosófica? Um dos primeiros testemunhos encontra-se no entusiasmo pela obra de Goethe sobre A natureza, cujo fascínio panteístico levou o jovem Freud a optar por uma carreira médica que, em si mesma, muito pouco. o atraía. Com efeito, na Selbstdarstellung, escreve que a leitura do belo ensaio de Goethe sobre A natureza determinou sua decisão de inscrever-se na Faculdade de Medicina2 • Portanto, foi em 1873, pouco antes ou pouco depois de seu bacharelato*, que o contato com o ensaio de Goethe, num curso público de anatomia comparada, ministrado pelo Dr. Carl Brühl, provocou em Freud, segundo seus próprios termos, uma espécie de intuição totalizadora, que exprimia sua busca de uma "compreensão do universo" (Weltverstandnis) 3 • Não é sem importância que • O bacharelato, aqui. é tomado em seu sentido francês, de diploma conferido aos que prestam exames especiais para a conclusão do curso ·· secundário. .(N. do T.)
Freud, conforme ele mesmo confessa, tenha sentido necessidade de um estimulante especulativo para abraçar a ciência médica•. Mas é na pessoa de Franz Brentano que Freud vai encontrar a filosofia sob sua forma mais direta e mais sistemática. Inscrito na Faculdade de Viena no outono de 1873 (possui apenas dezoito anos), além de suas conferências e cursos de física, fisiologia, anatomia, química e zoologia, encontra tempo para seguir, durante o inverno de 1874-1875, cursos semanais ministrados pelo ilustre filósofo e psicólogo. Na realidade, tratase, de fato, de sessões de iniciação à reflexão filosófica e à história da filosofia. Jones fala de "reuniões de leitura": "Toda semana, observa, ele se dirige às reuniões de leitura mantidas por Brentano a fim de adquirir certas noções de filosofia"5 • Por conseguinte, é de modo inesperado, no interior da Faculdade de Medicina, bastião da ciência natural, que Freud se põe em contato com a metafísica. Este encontro tomou-se possível, de fato, pela obrigação a que ·estavam sujeitos os estudantes de medicina, desde o início do século, de seguirem uma iniciação filosófica bastante substancial, posto que era fixada em três horas por semana. Esta indicação é lembrada por Jones: "Desde 1804, os estudantes de medicina vienenses eram obrigados a seguir um curso de filosofia durante três anos" 6• Mas observa também que "essa obrigação foi suspensa a partir de 1873" 1 , vale dizer, no exato momento em que Freud ingressa na Faculdade de Viena e atinge sua maturidade intelectual. Extraordinária ironia do destino que simboliza, de certa fonna, a ambigüidade ordinária das relações de Freud com a filosofia. Integrada de pleno direito no ensino científico, nos três primeiros quartos do século, passa apenas a ser tolerada no limiar do quarto. Tributário da instituição e de suas normas culturais, Freud vai herdar essa proibição, cujos estigmas iremos encontrar nas intermináveis precauções tomadas por ele relativamente à especulação8 • Por outro lado, porém, esboça-se, a contrario, o vínculo pessoal que se estabelece entre Freud e essa filosofia, repentinamente marginalizada, que o fascina tanto mais quanto, doravante, vê-se relegada a uma semiclandestinidade. Para esse fato, dispomos de provas muito materiais: de acordo com as " pesquistas efetuadas pelo professor Victor K.raft" 11, nos arquivos da Faculdade, a fim de estabelecer "uma lista completa dos cursos 12
que teve que assistir o jovem estudante" Sigmund Freud, constata-se que ele foi particulannente assíduo a essas reuniões, institucionalmente facultativas, que se acrescentavam a um ensino científico já pesado. Tudo se passa como se Freud procurasse nelas se não um substitutivo para o espírito estreitamente positivo: pelo menos uma expatriação ( dépaysement) 10, como .i á sé revelassem, aqui uma necessidade e uma busca fundamenta1s. Ninguém duvida de que, no espírito de Freud, através desse ensino paralelo e facultativo, surja uma necessidade. Os fatos falam· por si mesmos: durante o quarto trimestre, enquanto abandona os cursos de zoologia veterinária, "continua a freqüentar os seminários de Brentano", além de seguir um curso pesado de zoologia pura e de fisiologia. No trimestre seguinte, além da zoologia prática, da anatomia e da fisiologia, "continua a freqüentar o seminário de Brentano uma vez por semana" 11 • Assim, paralelamente a um ensino científico cada vez mais especializado, e na medida em que se afirma seu gosto pela física e pela biologia12, os seminários de Brentano continuam a desempenhar sua função necessária, como uma espécie de denominador comum dos esforços variados que o impulsionam nas diversas direções científicas. A partir do verão de 1875, além desses seminários, Freud se especializa de certa forma na história da fil osofia, pois começa a freqüentar o "curso de lógica aristotélica ministrado por Brentano". No verão de 1876, entre duas estadias em Viena, no intervalo de uma viagem de estudos a Trieste, dedica parte de seu sobrecarregado tempo a "três outros cursos dados por Brentano sobre Aristóteles"13• Distinguiu-se Freud no auditório de Brentano? Em todo caso, é o nome de Freud que Brentano indica para obter a tradução de um volume de Stuart Mill - o décimo segundo das Obras completas· em alemão, traduzidas sob a direção do eminente erudito Theodor Gomperz - em substituição ao tradutor titular, Edouard Wessel, subitamente falecido; a menos que, como sugere Jones, tenha sido Breuer, amigo de Freud e médico da fam:t1ia Brentano, que lhe tenha lembrado sua existênciau. Seja como for, foi ainda a Brentano que Freud deveu seu contato direto com a ftlosofia de Stuart Mill e, indireto, com Platãol&. Foi neste círculo que Freud cultivou essa tendência à especulação, da ·qual teve que separar-se, em seguid~ conforme suas próprias palavras, corajosamente.
13
No momento em que entra em contato com Brentano, este goza de imenso prestígio. Jones diz que "a metade de Viena"18 acorria às suas conferências públicas. Tornara-se ilustre por sua tese de 1862 sobre As múltiplas significações do ser em Aristóteles e por seu ensino na Universidade de Würzbourg a panir de 1866. Quando, seis anos mais tarde, ingressa na Faculdade de Viena na categoria de privat-dozent (onde ensinará até 1895), traz consigo uma dupla reputação bem estab~ lecida de filósofo aristotélico e de psicólogo empirista, apresentando a Freud uma aliança original entre especulação e -ob• servaçãQJ- 1 •
· Em 1873, Brentano passa mesmo por uma reviravolta decisiva: abandona o sacerdócio, o que lhe vale a hostilidade das autoridades eclesiásticas e do governo, que exige sua demissão · da Universidade: é um homem contestado que chega a Viena. Essa reviravolta se deu também em sua obra, pois é em 1874 que aparecem os dois primeiros volumes de sua Psicologia do ponto de v_ista empírico19. Por conseguinte, podemos cernir o ganho filosófico obtido por Freud da iniciação de Brcntano. A pesquisa pessoal de Brentano, acoplando a exigência especulativa e a fundação de uma ciência empírica, devia encontrar aí um laboratório de ensaio para idéias em gestação já avançada. Por outro lado, sendo os seminários centrados numa tarefa pragmática de iniciação aos rudimentos filosóficos, foi neles que Freud aprendeu a ler filosryficamenJe. Esta aprendizagem da leitura filosófica foi realizada sob a forma das lektüre philosopltischer Schriftsteller. T~mos dela pelo menos um exemplo. surpreendente: Ludwig Bmswanger relata, em suas Lembranças de Sigmund Freud, ter perguntado a Freud, numa carta de fevereiro de 1925, se ele havia sido influenciado por Strauss ou Feuerbach. Em sua resposta, Freud res~nde de modo positivo: ''É verdade, em minha juventude, li David Friedrich Strauss e Feuerbach com zelo e prazer"20• Ora; é sabido que esses dois autores constituíram um dos temas desses exercícios trimestrais de "leituras de autores filosóficos" realizados nos seminários de Brentano'x. · Muito embora Freud se recuse a admitir, por uma rejeição significatiya, que a influência desses autores tenha sido durável, este fato permite-nos inscrever. O futuro de uma ·ilusão na ·corrente. ideológica que se inicia nos anos de 1840,. na Alemanha, com A vida de Jesus, .de Strauss, .e com ..4 essencio .dO.
cristianismo de Feuerbach. Ainda neste caso, Brentano foi um condutor do influxo filosófico em Freud.
A primeira fala Podemos ser levados a pensar, no entanto, que o fim dos contatos com Brentano e o engajamento de Freud nos trabalhos médico-fisiológicos estabelecem uma ruptura com a paixão especulativa. De fato, nada disso ocorreu. Dois fatos, sobretudo, atestam, nos anos 1880, a persistência do interesse filosófico. A aprendizagem da racionalidade filosófica não deixou de produzir seus frutos, posto que uns dez anos mais tarde, a fim de iniciar sua noiva na especulação, Freud pensa em redigir um A.B.C. filosófico. E o que relata Jones: "Freud permanecia grande amante de leituras, e queria partilhar esse gosto com Martha. Esperando interessá-la em seu trabalho, chegou mesmo a redigir, para ela, uma introdução geral à filo· sofia, que chamou de A.B.C. filosófico'>22. Este detalhe tem mais significação para nosso propósito do que parece atribuirlhe Jones: atesta que, paralelamente a uma carreira médica em vias de decisão, Freud preservara este zelo de leitor filosófico que havia manifestado enquanto era estudante. O que é extraordinário, sobretudo, é o fato de ter escolhido o instrumento filosófico como modo de comunicação de si com a pessoa a ele mais intimamente ligada: a inclinação filosófica de Freud pode liberar.se nos limites estreitos da comunicação privada. Enfim, tudo se passa como se Freud sentisse a necessidade de refazer, para sua noiva, o trabalho de iniciação que seu mestre Brentano realizara, para ele, uns dez anos antes. Podemos até mesmo detectar certo mecanismo de relação identificadora entre o tipo de comunicação pedagógica, que Freud inaugura nessa ocasião, e o que o ligava a Brentano. Assim, este pequeno empreendimento, cujo conteúdo permanece ignorado, Jietira sua importância do projeto mesmo. Traduz a necessidade sentida por Freud de elucidar os delineamentos de sua lógica. A escolha da forma didática está destinada a, pelo menos, levá-lo a elucidar seus próprios conceitos. No momento em que Freud, simples prático da ciência médica, não possui ainda a especificidade de seu objeto, a especulação filosófica traduz a busca de um instrumeQto conceitual de ba,se28.
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Outro lato vem àtestar essa estrutura de pensamento. Tra· ta-se de uma frase notável encontrada numa carta a Martha Bernays, de 16 de agosto de 1882: "A filosofia, que sempre imaginei como um objetivo e como um refúgio para minha velhice, cada vez mais me fascina todos os dias"24• O engajamento na prática científica parece, pois, andar junto com um crescimento contínuo da ambição especulativa. Na correspondência com Wilhelm Fliess, em plena gênese da psicanálise, iremos ainda encontrar expresso o desejo espe.,. culativo: "Alimento, na profundidade de mim mesmo, a esperança de atingir, pelo mesmo caminho, meu primeiro objetivo: a filosofia" (carta de 19 de janeiro de 1897). Freud chega mesmo a afirmar esse desejo como absolutamente originário: "Era a isso que eu aspirava antes de ter compreendido bem por que estava no mundo"2 ~. Da mesma forma, numa carta de 2 de abril de 1896, declara: "Em meus anos de juventude, só aspi· rei aos conhecimentos filosóficos e, agora, estou prestes a realizar este desejo, passando da medicina à psicologia"26• Assim, cada etapa é apresentada como o reinvestimento, incessante· mente deslocado, da finalidade filosófica da origem117• Devemos notar, não obstante, que tais fórmulas são avan· çadas sob o selo do sigilo de urna correspondência privada, num espírito também especulativo - o que justifica essas confidências e sela entre os dois homens uma verdadeira aliança nos anos 1887-190()28 , A segunda fala
:b então que surge, no discurso de Freud sobre a filosofia, essa segunda /ala que se põe a duplicar a outra como um eco invertido e contínuo. É nos textos oficiais, nos quais Freud procede a "retificações" teóricas, que ela se desenvolve de modo essencial. Na Contribuição à história do movimento psicanalítico, em 1914, declara que é à falta de "gosto pela leitura dos autores filosóficos em sua juventude"29 que se deve atribuir sua ignorância de um texto de Schopenhauer3°: como se se tratasse de anular, retrospectivamente, os enunciados anteriores, exatamente contrários. Em 1925, na Selbsdarstellung, Freud declara ter sempre "evitado cuidadosamente aproximar-se da filosofia propriamen· 16
te ditaH, ·acrescentando que "uma incapacidade constitucional facilitou·lhe bastante essa abstenção" 31 • Portanto, aqui, a incultura filosófica é reivindicada como um fato lamentável. Por outro lado, ao invés da pouca inclinação, faz decididamente apelo a uma limitação co,nstitucional. Em 1930, diante de uma solicitação a tomar posição no que diz respeito a certas questões filosóficas, Freud responde: "Os problemas filosóficos e suas formulações são tão estranhos para mim, que não sei o que dizer a respeito"32• Desta vez, apresenta-se como um estranho aos temas filosóficos. O antigo desejo parece rompido e o antigo investimento retratado. Freud parece ter-se tão "corajosamente afastado" da especulação filosófica, que até perdeu sua lembrança e não pretende mais reconhecê-la. Simultaneamente, multiplicam-se críticas e sarcasmos em relação aos filósofos33, enquanto que, por um paradoxo desconcertante, investem o discurso as referências a teorias filosóficas precisas3 f. Metodologia da pesquisa e plano
Aqui termina o enfoque fenomenológico, que manifestou suficientemente a duplicidade do discurso freudiano. Para apreendermos a lógica subjacente a essa aparente contradição, convém especificarmos o discurso global, determinando os diversos níveis da abordagem freudiana. Para realizar esse pro· jeto, o princípio metodológico absoluto deve ser a investigação exaustiva dos textos onde se situa a posição do objeto "filosofia". Essa exaustividade é exigida ao mesmo tempo extensivamente ~ pois só se pode julgar a integralidade dos textos onde algo de essencial sobre a questão torna-se significativo - e compreensivamente - porque é desenvolvendo, pela análise, a lógica da argumentação na integralidade de suas condições e de suas conseqüências, que podemos cernir o discurso total de Freud. Assim, tomarão forma, pouco a pouco, sob nossos olhos, as recorrências que, numa série de seqüências descontínuas, restabelecem as mesmas significações e esboçam uma verdadeira sistematicidade. :b uma afirmação particularmente clara de Freud que nos servirá de primeiro esquema para operarmos uma primeira dis·
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tinção operatória, relatada por Lou AndreasMSalomé em seu Journal, em 23 de fevereiro de 1913: "Falamos de sua defesa diante da filosofia pura; do sentimento por ele sentido de que, no fundo, seria preciso lutar contra a necessidade racional de uma unidade definitiva das coisas, pois ela provém de uma raiz e de hábitos altamente antropomórficos; em segundo lugar, porque ela pode ser incômoda ou perturbadora na pesquisa científica positiva individuar•as. Essa declaração, transmitida en passant como o eco de um discurso familiar a Freud - o que ele estava acostum~do a dizer da jilosofia - sintetiza admiravelmente a dupla abordagem crítica da realidade filosófica que pode ser extraída da literatura freudiana sobre o assunto: de um lado, há o obstáculo para a pesquisa científica, representado pela filosofia como tipo de relação com o real; do outro, há o diagnóstico da filosofia como "atividade" de pensamento e "forma cultural"36. ToM davia, o que não se encontra indicado nesse texto, é a presença da filosofia na argumentação freudiana, aí operando positiva e ativamente. É essa outra fala que precisa ser detectada37. Todo juízo sobre a atitude freudiana em relação à filosofia e aos filósofos deve partir daquilo que dfz Freud. Portanto, devemos reconstituir essa fala em suas modalidades complexas, em suas estatificações precisas, e manter o discurso de Freud a fim de determinar seu lugar pr6prio. Trata-se de determinar de onde ele fala situando-nos onde ele fala, e seguindo a lógica esboçada pelo discurso. É no término desse trajeto que teremos condições de responder à questão colocada nos termos mesmos que requer seu lugar ideológico.
NOTAS 1. Emst Jones, La vie et l'oeuvre de Sigmund Freud, Presses Universitaires de France, 1970, t. I, p. 32. 2. Ver Selbstdarstellung, G.W., XIV, 34; e as precisões de Jones, op. cit., t. I, p. 31-32; cf. infra, 2~ parte, cap. V. 3. Selbstdarstellung, G. W., XIV, 34.
4. Ibid. 18
5. Jones, op. cit .• t. I, p. 41. 6. lbid. 1. lbid. 8. Cf. infra, 2ª' parte. 9. Jones, op. cit., p. 40. 1O. Sobre a verdadeira significação dessa expatriação-, cf. infra, conclusão. 11. Jones, op. cit., t. I, p. 41. 12. lbid. 13. lbid., p. 42. 14. Ibid., p. 62. 15. Sobre o desenvolvimento dessa influência, ver infra, cap. Il, 2ª' parte. 16. Jones, op. cit., t. I, p. 62. 17. S~bre o sentido dessa aliança, ver infra, 2ª' parte, caps. IV e V. 18. DeveMse notar o interesse de Freud pelos filósofos conte~ tados ou marginais, de Brentano a Schopenbauer. 19. Foi por essa obra que ele marcou a psicologia associacionista bem como a fenomenologia. Freud nela encontra, entre outros, os conceitos de afeto e de representação, difundidos na psicologia inspirada também de Herbardt. 20. Ludwig Binswanger, Souvenirs sur Sigmund Freud, trad. fr., Gallimard, 1970, p. 340. 21. Cf. Maria Dorer, Historische Grundlagen der Psychoanalyse, 1932, p. 114. 22. Jones, op. cit., t. I, p. 190. 23. O instrumental metapsico16gico con~titui um longínquo herdeiro; cf. infra, cap. lll. 24. Citado por Jones. 25. Citado por Jones. 26. Citado por Jones. 27. Ver La naissance de la psychanalyse, P.U.F., 1973, pp. 143M144. 28. Ver La naissance de la psychatuzlyse. 29. G.W., X, p. 53. 30. Ver infra, cap. V, 2~ parte. 31. G.W., XIV, p. 86. 32. Ver infra, cap. I, e nota 3 para a referência, p. 41 33. Ver infra, caps. I e 11 notadamente. 34. Ver 2
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35. Ver Journal d'une année (1912-1913), trad. fr., Gallimard, 1970, p. 338. 36. Donde nosso plano para a primeira parte: a filosofia como obstáculo (Livro Primeiro, caps. I, II e 111) ; a filosofia como objeto (Livro Segundo, caps. IV, V e VI ). 37. A filosofia dos filósofos como recurso teórico (segunda parte, caps. I a V).
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PRIMEIRA PARTE
Freud ea filosofia
Livro Primeiro
A critica psicanalítica da filosofia
Capítulo I
A FD..OSOFIA E O OBSTÁCULO CONSCIENCIALISTA 1. A RESPOSTA FREUDIANA A PERGUNTA FILOSóFICA
Em que consiste o obstáculo epistêmico de que a filosofia detectá~lo, devemos, antes, discernir seu enor· me efeito: ela põe o inconscien:te fora da estado de pensar. É o "consciencialismo'' da filosofia dominante1 que f.az dela o obstáculo decisivo para a ciência psicanalítica~ e o fundamento correntemente alegado por Freud da oposição entre a filosofia e a psicanálise. Para apreendermos a gênese dessa temática, dispomos de um notável documento que mostra, no calor de uma resposta epistolar, a reação tipicamente freudiana face à interrogação filosófica e ao fundamento imediato que a justifica. Uma professora francesa de filosofia, Favez~Boutonier, tendo solicitado a Freud sua opinião sobre "questões de ordem metafísica", obte~ ve sua resposta numa breve carta datada de 11 de abril de 193()3, cujo preâmbulo estipula: "Os problemas filosóficos e suas formulações me são tão estranhos, que não sei o que dizer
é geradora? Para
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sobre eles (nichts anzufangen), nem sobre a filosofia de Spi~ noza" (a respeito da qual sua correspondente lhe havia mais especialmente interrogado). A resposta é radical: a solicitação filosófica desencadeia em Freud essa recusa e. esse silêncio. Face à exigência que o leva a tomar a palavra filosófica, apela para uma incapacidade total. Não pode nem mesmo esboçar uma resposta: declara não poder dizer a primeira palavra, não en~ contrando nada para dizer nessa linguagem. Há, aqui, uma re~ cusa de tornar~se, por mais conjuntural e oficiosamente que seja, o sujeito de um cliscurso filosófico, e de engajar o conteúdo analítico na formulação filosófica. A serenidade com que Freud recusa o convite filosófico, como se o interlocutor houvesse se enganado de pessoa, s6 faz exprimir melhor a radicalidade da recusa. Evidentemente, não se trata tanto de uma questão de "tempo", de disponibilidade ou de humor, e a ninguém podem enganar as desculpas fornecidas por Freud~. Trata~se do sintoma de um discurso impossível, por conseguinte, que não deve ser mantido. Não obstante, a seguir, encontramos uma breve resposta que, de fato, constitui apenas a explicitação da recusa precon~ ceituosa. Ela é interessante por sua forma, pois se apresenta como um encadeamento de enunciados proposicionais dispostos em sucessão. Ora, essa fonna corresponde a uma finalidade bem precisa: fomece~nos a ocasião para apreendermos o sentido da recusa de Freud em relação à demonstratividade filos6fica. Seja, pois, "o objeto filosófico" proposto em sua formulação filosófica: as relações entre o universo físico e o universo psíquico. Ao invés de lançar~se numa demonstração exaustiva das relações e ntre esses dois termos, com a ajuda de um aparelho de definições e de axiomas, Freud se contenta em partir da oposição imediata, tal como ela é dada. e em enunciar quatro proposições (Satze, segundo seus termos): 1. A não~problematicidade da existência do universo físico: "Límit o~me a dizer o seguinte: não vejo nenhuma dificuldade em admitir um universo físico ao lado do universo psíquico". 2. A necessidade de se afirmar a relação do ponto de vista psíquico: "A questão de saber em que relação eles se encontram, um em relação ao outro. s6 merece consideração quanto ao último: o psíquico". 24
3. O primado cognitivo da consciência como fundamento do privilégio do psíquico no sentido 2: "O universo físico só possui um caráter psíquico porque é conhecido por nós apenas através de uma tomada de consciência psíquica". 4. A necessidade da postulação de um substrato material da representação: "Po.- outro lado, nossas tomadas de cons~ ciência psíquica impõem-nos também a necessidade de admitir uma realidade física por detrás da vida da alma"~. Consideradas do ponto de vista filosófico, essas proposições podem ser legitimamente tidas corno truísmos: servem para eliminar, em poucas palavras, o problema da realidade do mundo exterior e o das relações da alma com o corpo que, fontes inesgotáveis da literatura filosófica, operaram inúmeras clivagens doutrinais. Para Freud, temos os dados: se "não vê dificuldades" em admiti~los, é porque não constituem problema para ele. Portanto, o que ele fornece, não é exatamente uma demonstração condensada ou fechada, nem tampouco os re-sultados de uma demonstração pelo menos possível; são "ver~ dades elementares" que constituem o que é "necessário para pensar", que ele extrai artificialmente de sua prática, para satisfazer. ao mínimo, a exigência filosófica {pois encontra-se presente) - fraco contingente, mas suficiente para o uso que o requer: tomar possível a prática científica. Eis a ''filosofia do psicanalista", que só se lembra de formulá~ la quando soli~itad~ . Sua pobreza obriga~as justamente a procurar a verdadelfa nqueza de conteúdo alhures, no vasto campo dos dados analíticos8. B por isso que essas fórmulas atingem seu objetivo ~eM cepcionando: são produzidas num elemento estranho ao discurso filos6fico_ Freud encontra nelas um meio de responder sem aceitar a questão. Lança as proposições, mas é para abandoná-las a um uso filosófico que ele faz até certo ponto independente delas, o que constitui um modo de, por antecipação, inocentá-las dele: ''Não sei se vocês poderão tirar algo dessas proposições". O que significa: compete ao filósof? de~ifra!, ~m meu dizer, uma significação filosófica que, em últl.Dla mstanc1a, só existirá para ·ele, e não para mim que o profiro. Isto implica até mesmo a recusa de comunicação com a filosofia. Freud se contenta em precisar suas questões. Em outras palavras, constitui-se, a rigor, em objeto possível da
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reflexão filosófica, mas não em diálogo com a filosofia, se entendemos por isso a busca de um espaço comum. Surge, assim, um último sobressalto; a resposta de Freud termina com uma frase lapidar: "A descoberta do inconsciente transtornou todas as posições anteriores dos problemas". É compreensível que esta frase, aparentemente enxertada arft.ficialmente no desenvolvimento anterior, venha concluí-lo com muita lógica: o que opera toda a defasagem lógica e terminológica entre filosofia e psicanálise, criando entre elas um "diálogo de surdos.., é o objeto novo que a segunda se deu por tarefa compreender e que a primeira oculta: o inconsciente. Em sua concisão, esta última fórmula é incompleta e abstrata; é até mesmo enganadora, no sentido em que não indica a especificidade do pensamento psicanalítico do inconsciente7 • Todavia, em tal discurso híbrido, não pode deixar de ser enganadora: não passa de uma generalidade abstrata, cortada de sua validação, que constituí sua substância. É verdade que há pouca coisa a se retirar disso: tais fórmulas só possuem sentido quando referidas à aprendizagem do material analítico que sua carência mesma significa. Neste sentido, Freud, que disse tão pouco, respondeu bem à indagação filosófica. A evocação do inconsciente, no final de sua resposta, confere-lhe fortemente a função de desafio no divórcio epistemológico entre filosofia e psicanálise. De fato, é essa primeira temática que nos permite aprofundar o conflito entre os dois campos. Convém, pois, seguirmos passo a passo seu encaminhamento na série contínua de textos nos quais ela se exprime. 2. A INTERPRETAÇÃO DE SONHOS• ~desde a Traumdeutung que se instaura essa temática. Em seu último capítulo, Freud procede a um verdadeiro confronto da concepção analítica com a concepção filosófica do inconsciente; de fato, porém, esta última concepção não serve de
• Para os títulos das obras de Preud, em português, utilizamos, de preferência. os d& Standard Edltlon, coleção completa das obras de Freud, editados pela IMAOO EDITORA do Rio de Janeiro. Assim, a Traumdeutung 6 traduzida em franc& por La :science des rlves. Em português, A inttrprtlaçiio de ronho3 (N. do T.)
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ponto de demarcação. Subscrevendo as palavras de Theodor Lipps, segundo as quais o inconsciente é "o problema da psicologia"s, enfatiza seu contraste com o consciencialismo da psicolo· gia dominante, defendendo a paridade do psiquico e do oonsciente e reduzindo, assim, a idéia de "processos inconscientes" a um absurdo (Widersinn). Ora, a psicanálise tem por tarefa fornecer a esses processos "a expressão adequada e bem justificada para fatos bem estabelecidos". ~ aí que o psicanalista apresentado como o aliado do médico9 face à aliança estabe· lecida entre psicólogos e filósofos sobre o fundamento consciencialista comum. Quanto à afirmação filosófica de que "o consciente constitui o caráter indispensável do psíquico", o m6dico ..só pode rechaçá-la com um sacudir de ombros" - sím· bolo da recusa especulativa e do ceticismo sadiamente científico, para Freud. Contudo, se é verdade que o consciencialismo absoluto constitui o obstáculo radical ao diálogo do filósofo com o mé-dico que, "sem diminuir seu respeito pelos filósofos", considera legitimamente que eles "não tratam do mesmo objeto e não se preocupam com a mesma coisa", o psicanalista, tomando irrecusável a existência dos processos inconscientes, vai restabelecer o diálogo impossível Paradoxalmente, foi Lipps, que Freud caracteriza como um filósofo, quem fez do inconsciente "o fundamento geral da vida psíquica"to. Freud, porém, acrescenta significativamente: "Falo, de propósito, de 'nosso inconsciente', porque o que de-nominamos com esse nome não coincide com o inconsciente dos fil6sofos, nem com o inconsciente de Lipps". "O inconsciente dos filósofos" constitui apenas "o oposto do consciente". Essa concepção negativa condena o problema filosófico do incons· ciente a uma dialética estéril "pró'' ou "contra" o inconsciente: "Que também hajam, fora dos processos conscientes, processos inconscientes, eis uma idéia severamente contestada e energicamente defendida". Com isso, Freud pretende dizer que a problemática filosófica condena o inconsciente à arbitrariedade da luta dos sistemas11 • Temos uma confirmação desse fato, situando-nos do ponto de vista da própria consciência. Paradoxalmente, o conscienciaIismo filosófico fica condenado, ao chocar-se com suas próprias e inevitáveis contradições, a engendrar o obstáculo contrário, vale dizer, a não poder mais pensar a consciência, ao qual ele 27
atribuía, sob sua forma precedente, um monopólio exorbitante. que suger~ Freud na seguinte observação: "Filósofos que havtam percebido que formações de pensamentos corretos e dotad~.s ~e uma fone coerência eram possíveis sem a ajuda da consc1cncta, esbarraram, em seguida, com a dificuldade de determinar uma função ( V errichtung) para a consciência; conceberam-na como um reflexo supérfluo dos processos psíquicos realiza~oS" 1 2 • ~m outras palavras: o desconhecimento dos proc;s~os mconsc1entes. e de su~ natureza real converte-se, pela log~ca de sua própna contradição, numa verdadeira desrealização da consciência - inferida apressadamente dos fatos contraditórios com o consciencialismo absoluto. Assim como os filósofos consciencialistas não sabiam o que fazer com o inconsciente, da mesma forma os filósofos do inconsciente não sabem o que fazer com o consciente'3 reduztdo a uma a_paren~la. lnvers~men te, a análise positiva dos processos psfqu1cos da conta, stmultaneamente, das fun ções respectiv.~s ~os diversos tipos de processos. Por conseguinte, a co~sc~encta, longe de ser surpresa, recebe a função precisa e 1~d1sp:nsável de órgão de percepção psíquica, que orienta os Investimentos em função das finalidades inconscientesu, É ~
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3. SOBRE A PSICOTERAPIA Da mesma forma, na conclusão de sua conferência Sobre a psicoterapia, pronunciada no dia 12 de dezembro de 1904 n~ Colégio Vienense dos Médicos, Freud tranqüiliza seu pú~hco, ~pavorado <:om o alto teor especulativo do conceito de mconsc1ente, co':" termos significativos: "Não temam que penetremos demastado profundamente na mais obscura filosofia. Nosso inconsciente não é absolutamente o mesmo dos fi16sofos"15: E~sa. dema~caç_ã? radical é reforçada pela evocação do conscienctahsmo fdosofico que possui, aqui, a função de inocentar a ciência do inconsciente da tentação filosófica. De fato é legítimo esse temor do principiante Freud de ver-se assimilado' p~la si~ples palavra Inconsciente, a algum obscuro rival de um~ FtlosofJa do Inconsciente. Por esta razão, a recusa dos filósofos é evocada como um argumento apologético em favor da ciência analítica: "Ademais, a maioria dos filósofos nada quer saber sobre o 'psiquismo inconsciente'". 28
4. O CHISTE Em seu estudo de 1905 sobre O chiste em suas relações com o inconsciente, Freud procede ao que ele mesmo chama de uma " digressão" sobre o obstáculo filosófico, como gerador dos "hábitos de pensamento" nocivos à compreensão de sua "teoria nova": "Sei que aquele que se encontra sob o jugo de uma boa formação filosófica escolar, ou que depende, mesmo de longe, daquilo que chamamos de um sistema filosófico, insurgese contra a hipótese de um 'inconsciente psíquico' no sentido de Lipps ou no meu"16• Assim, a filosofia aparece como forjando e mantendo a hostilidade às teorias analíticas: trata-se, .aqui, tanto da filosofia dos filósofos quanto da do público letrado, na qual os rudimentos da primeira foram inculcados. Por conseguinte, a filosofia é a colocação em forma do modo de pensar ( Denkweise) consciencialista dominante. Para derrubar esse ponto de vista dominante, Freud roga que se considere o caráter convencional e revis:ivel das definições que, longe de qualificarem essências intangíveis, remetem a um "material fenomenal", muito embora "as pessoas que combatem o inconsciente como absurdo ou impossível não tenham retirado suas impressões das fontes de onde decorre, pelo menos para mim, a necessidade de reconhecer sua existência". A argumentação de Freud é significativa: ele se recusa a opor uma tese a outra, mas remete à fonte de informações (hipóteses, sonhos, neuroses, etc.) que revela a necessidade de aderir às suas conclusões. Contudo, além disso, mostra que há uma maneira truncada de pensar o inconsciente sem pensá-lo realmente, afirmando-o como "algo susceptível de consciência", mas "no qual não havíamos pensado até então". Donde este monstro teórico que é o inconsciente consciencialista, consciente virtual, pontual e provisoriamente rejeitado aos limites imediatos da esfera da atenção-sentinela. Ai se encontram a psicologia clássica e a filosofia das "percepções insensíveis". Pelo contrário, o inconsciente exige ser pensado em sua alteridade efetiva17 ao consciente, como esse "algo que não sabemos o que é na realidade, mas que é postulado por conclusões coercitivas" 18. Enfim, a recusa filosófica do inconsciente supõe a recusa da experiência quotidiana das associações inconscientes que
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constituem a linguagem, notadamente, do sonho. Como esse mecanismo se torna possível, senão por um fundamento afetivo? E Freud conclui: "Ademais, tive a impressão de que a admissão do 'inconsciente' esbarrava essencialmente com resistências afetivas, fundadas no fato de que ninguém quer conhecer seu inconsciente, achando mais cômodo, em seguida, negar simplesmente sua possibilidade". Neste sentido, o consciencialismo filosófico fornece seu álibi racional à resistência afetiva, o que explica, em parte, sua admissão generalizada19• S. DELIRIO E SONHO NA "GRADIVA" DE IENSEN
Uma elucidação análoga surge em outro ensaio técnico: Delírio e sonho na "Gradiva" de Iensen (1907). Ao evocar a relação inconsciente que se liga, no espírito do personagem do romance, Norbert Hanold, entre um detalhe de sua infância e uma percepção atual, aproveita para justificar o emprego do termo "inconsciente" (que ainda não recebeu, nessa época, sua determinação completa, vale dizer, metapsicológica) 20• Reivindica o termo para designar essa representação ativa, que manifesta "efeitos" no exterior, sem no entanto acender a consciência, precisando que seu uso se generalizou a ponto de tomar-se "inevitável" no vocabulário da psicopatologia moderna. E então que formula o desejo de "ver esse inconsciente subtraído a todas as querelas dos filósofos e dos filósofos da natureza''21 • Fre~ recusa, pois, as argúcias terminológicas, solicitando que lhe seJa permitido usar o termo "inconsciente" para designar uma rea~ lidade experimental: "Para esses processos psíquicos que se comportam ativamente sem no entanto atingir a consciência ~o sujeito, não possuímos, até o presente, melhor termo, e nao exprimimos outra coisa com nosso inconsciente". Está claro, porém, que por detrás dessa querela de. palavras, oculta-se um confronto teórico de fundo. Com efetto, se a palavra é contestada, é porque designa, do ponto de vista consciencialista, uma contradictio in adjecto. Através desse termo, é "a existência de tal inconsciente" que é combatida como "absurda". O in-consciente é um tipo de realidade inconceitualizável desse ponto de vista, portanto, informulável. Aos olhos de Freud, essa falsa querela só pode provir do fato de os
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detratores do inconsciente "jamais terem lidado com os fenômenos psíquicos apropriados". Mas aqui se introduz uma idéia suplementar: por falta desse conhecimento experimental, a filosofia teve que consagrar, revestindo-o de uma indumentária teórica, o consciencialismo ingênuo, no qual consiste a ilusão do senso comum. Por cons~ guinte, os filósofos permaneceram "sob o jugo da experiência corrente, segundo a qual todo fenô meno psíquico, na medida em que se torna ativo e intensivo, deve, por isso mesmo, tornarse consciente". E essa aliança do senso comum e da especulação filosófica que constitui a força do consciencialismo dominante. Aliás, não é fortuito que Freud tenha escolhido esse contexto para novamente enunciar sua teoria: a escrita literária é, de certa forma, mobilizada para conferir-lhe sua linguagem e revelar a experiência viva do inconsciente, que a racionalização filosófica nega ou oculta. A conclusão do último parênteses é muito ilustrativa: "Eles (os filósofos) teriam ainda que aprender o que nosso escritor sabe muito bem: há processos psíquicos que, por mais intensivos que sejam, e qualquer que seja a energia de seus efeitos externos, permanecem, no entanto, longe da consciência". O filósofo é convidado, aqui, a instruir·se junto ao artista, grande experimentador do inconsciente. 6. O HOMEM DOS RATOS Em suas Observações sobre um caso de neurose obsessional (1909), estudo consagrado a O homem dos ratos, Freud faz uma nova alusão desse tipo. Evoçando, na parte teórica, o precioso ganho de um estudo psicológico do pensamento obsessional para o conhecimento da "natureza do consciente e do inconsciente", declara: "Seria muito desejável que os filósofos e os psicólogos, que desenvolvem por ouvir-dizer ou a partir de definições convencionais engenhosas doutrinas sobre o inconsciente, se munissem, antes, das observações concludentes tiradas dos fenômeoos'022• Assim, a ignorância do material factual con~ dena a teoria filosófica do inconsciente a uma das duas maldições do senso comum (do ouvir-dizer) e do artificialismo doutrinário. Aliás, ambas se ligam, posto que na ausência de uma investigação verdadeira dos dados, somos inevitavelmente for~ çados a manter-nos no empirismo da impressão imediata ou a 31.
construir engenhosas ficções para preencher as lacunas da observação. A única saída é o recurso ao terreno sólido onde é observável o funcionamento dos processos psíquicos inconscientes, notadamente na patologia mental. Opõem-se, aí, as "facilidades" da especulação e a ingrata tarefa do trabalho científico: "Esta tarefa é muito mais árdua que os métodos de trabalho habituais" dos filósofos. 7.
O INTERESSE DA PSICANALISE
No artigo publicado em 1913, na revista Scientia, intitulado "O interesse da psicanálise"23, Freud declara que a psicanálise obriga a filosofia a retificar o fundamento psicológico tradicional sobre o qual se construíra. Porque a filosofia se funda sobre a psicologia. Quer dizer ao mesmo tempo que a psicologia é uma parte da filosofia, enquanto esta não pode deixar de integrar suas aquisições, e que o objeto da psicologia, ciência especial, também constitui um dos objetos fundamentais reivindicados pela filosofia: o homem enquanto psique. Temos a( um círculo que conforta o consciencialismo: com efeito, a filosofia, obrigada a apoiar-se nas ·informações fornecidas por sua base psicológica, a elas assimila, por isso mesmo, o consciencialismo, enquanto que a psicologia, ao voltar-se para os princípios filosóficos, neles encontra a justificação primordial de seus postulados operatórios - consciencialistas. Correlativamente, porém, uma revolução na base psicológica não pode deixar a filosofia indiferente. Portanto, esta não pode permanecer imutável depois da revolução psicanaUtica: ''Ela não pode dispensar-se de levar em con· sideração" as contribuições psicanalíticas e, em primeiro lugar, "a exposição da atividade psíquica inconsciente". A formulação freudiana se assemelha, pois, a um ultimato: invoca a teoria psicanalítica do inconsciente como devendo colocar " necessariamente a filosofia na obrigação de declarar-se, ou pró ou contra". Ora, a posição dessa escolha brutal, sob a forma de uma alternativa, traz em si sua resolução: no terreno dos dados, a existência dos processos inconscientes impõe a adesão à demonstração analítica. Donde se dever tirar essa conseqüência fundamentai, que é a modificação de todas "as hipóteses sobre a relação entre o psíquico e o físico até que elas exprimam a nova
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consciência"24• .E a reformulação da velha problemática da união da alma e do corpo que melhor manifesta a refundição que a psicanálise propõe à filosofia. Essa refundição consiste num reajustamento da teoria ao nível de conhecimento modificado pela contribuição psicanalítica. Não se trata de dizer que a psicanálise responde à questão da alma e do corpo, cujo nível permanece filosófico. Todavia, a problemática psicanalítica do inconsciente possui efeitos modificadores, ao mesmo tempo indiretos e irrecusáveis, sobre sua formulação mesma. Tal renovação supõe, pois, que sejam desenvolvidos todos os efeitos teóricos dessa verdade fundamental de que a psicanálise é o revelador: o caráter psíquico do inconsciente. Com efeito, a revolução psicanalítica não consiste na revelação do inconsciente. "A filosofia , diz explicitamente Freud, preocupouse muitas e muitas vezes com o problema do inconsciente." Não se trata, pois, de importar uma matéria nova: o inconsciente já constitui um capítulo importante do discurso filosófico. Em contrapartida, a teoria analítica tem por efeito filosófico original o de recusar simultaneamente duas teses filosóficas opostas e complementares: de um lado, o consciencialismo, que exclui o inconsciente da vida psíquica; do outro, o transcendentalismo do Inconsciente (aqui, a maiúscula tem um sentido) que hipos· tasia o Inconsciente em entidade metafísica. Portanto, esse duplo efeito revelador ataca uma tese única: o divórcio do inconscieme e do psiquico. Tal divórcio se manifesta em duas saídas solidárias: ou realizar o inconsciente que, de estrutura predicativa do psiquismo, toma-se Sujeito, ou ater·se ao psiquismo, com a condição de excluir dele o in-consciente, como estrutura extrapsíquica, o que significa excluí-lo da psicologia, cuja aplicação imanente versa sobre os fenômenos iQtrapsfquicos. Eis, aos olhos de Freud, dois modos de se viver uma única e mesma contradição. Eis a "consciência infeliz" que os filósofos se forjaram sobre o tema do inconsciente: "Ou eles viram no 'inconsciente' um elemento místico, intangível e inapreensível, cuja relação com o psiquismo permanecia obscura, ou identificaram o psiquismo com o conscient«, e tiraram dessa definição a conclusão de que o inconsciente não era de ordem. psíquica e, por conseguinte, não podia constituir um objeto de estudo da psicologia". A filosofia do inconsciente estava, pois, condenada a fracassar
no Charibde do irracionalismo místico ou no Scylla do psicologismo consciencialista: Edouard von Hartmann e os psicólogos da Escola alemã concentram-se, de repente, como os dois destinos de uma mesma contradição que a psicanálise tem condições de revelar e de ultrapassar25• Trata-se, para Freud, de substituir as estéreis especulações sobre a natureza do inconsciente pelo problema experimental do funcionamento dos processos inconscientes, como classe determinada de fenômenos psíquicos. O verdadeiro problema é o da análise comparada das duas classes de fenômenos psíquicos: conscientes e inconscientes. O erro dos filósofos consiste em "terem-se pronunciado sobre o inconsciente sem conhecerem os fenômenos da vida psíquica inconsciente e, por conseguinte, sem suspeitarem até que ponto tais fenômenos se aproximam dos fenômenos conscientes e em que medida deles se distinguem". E: por isso que, contrariamente ao que se poderia crer, Freud não insiste, aqui, na heterogeneidade do consciente e do inconsciente, embora ob serve que possuem muita coisa "em comum". Só poderiam ser antitéticos enquanto princípios (como se pode notar em Hartmann). Enquanto tipos de fenômenos, determi~ oáveis por um conjunto de caracteres, podem apresentar traços diferentes. l sto n ão deve ser compreendido como algo que atenua a diferença entre consciente e inconsciente, mas, pelo contrário, como algo que a funda. A partir do momento em que inconsciente e consciente deixam de ser predicados universais - a este título, substantificávds em entidades, como se nota em Hartmann - , exige-se uma determinação das leis diferenciais que os rejam. Contudo, Freud prevê ainda uma maneira de negar essa contribuição, neutra1izando-a: podemos manter como "convenção" a igualdade psíquico = consciente. Em outras palavras, podemos continuar a pr<>eeder como se2 8 o consciente esgotasse o psíquico, o que é um modo de manter o discurso analítico sobre o inconsciente à distância, sem se ousar recusá-lo. Tal ficção, porém, é heuristicamente infecunda, pois só poderia traduzir um irrisório mecanismo de defesa da fHosofia consciencialista: "Se, apesar desse conhecimento, obstinamo-nos a nos manter na convenção que coloca em pé de igualdade o consciente e o psíquico e, com isso, contesta ao inconsciente todo caráter psíquico, evidentemente que não h á nenhuma objeção a levantar, a não ser que tal distinção aparece como muito
po~co prática". Portanto, ~ uma fi~ção inútil. A dificuldade que
tenamos em poupá-lo e a mfecundidade de sua negação revelam a necessidade que nos obriga a postulá-lo. . Temos aí urna última confirmação do imanentismo psicológ.tco que nos força a recusar a heterogeneidade consciente/ inconsciente. ".1:: fácil, com efeito, descrever o inconsciente e seguir os progressos de sua evolução, quando o examinamos do lado de sua relação com o consciente, com o qual possui muita coisa em comum; todavia, aproximar-se dele do lado do processo físico, parece, em contrapartida, pelo menos até o presente momento, uma tarefa absolutamente impossível." Assim, estamos condenados a só conhecer o inconsciente mediante seus efeitos psíquicos; mas, neste plano, trata-se de um postulado heuristicamente indispensável. Neste sentido, a psicanálise possui por efeito fundar definitivamente a jurisdição da psicologia sobre o estudo do inconsciente. :B exatamente esta a conclusão de Freud: "O inconsciente deve, pois, inelutavelmente, permanecer objeto da psicologia". 8. BINSWANGER E LEVINE Que o consciencialismo seja, aos olhos de Freud, um perigo até certo ponto crônico, é o que atestam, tanto quanto suas
obras, suas reações espontâneas. Temos notadamente dois exemplos: Binswaoger, filósofo antagonista da psicanálise, relata u_ma pequena frase, altamente significativa para nosso propóSito, que Freud lhe escreve num cartão-postal datado de 21 de agosto de 1917, reagindo à leitura de um de seus manuscritos: "O que você vai fazer sem o inconsciente? Ou antes, como vai se sair sem o inconsciente? Afinal, estaria preso às garras do demônio filosófico? Tranqililize-me"27. A grande tentação consciencialista é a manifestação essencial do "demônio filosófico" . Freud está obcecado por esse demônio ~ ~er exorcizado, e diagnostica seus efeitos naquilo que const~tll:l, a seus ~lhos, a rabies philosophica, enquanto doença cromca ?o ser ftlosofante. Encontramo-lo nessa suspeita endereçada a Bmswanger de uma espécie de duplo jogo sobre o t~?uleiro ~~ racionalidade filosófica e da investigação psican.alí~ca. O fi}o.sofo perma?~ce, para Freud, dominado por uma flllalidade, tãctta ou exphctta, de desembaraçar-se do incons-
ciente. Este projeto está fadado ao fracasso, porque, como ele diz, não se pode "encontrar uma saída sem o inconsciente". De uma outra forma, um episódio relatado por Jones exprime um idêntico estado de espírito. Em 1922, a Universidade de Londres havia organizado uma série de conferências sobre Os filósofos judeus: Philon, Maimônides, Spinoza, Einstein ... e Freud. Nota-se aí tentativas, numerosas nessa época, de assimilar Freud a um filósofo. No ano seguinte, Israel Levine, que havia feito a conferência sobre Freud - a partir de elementos de informação fornecidos por Jones - , publicou um livro desenvolvendo esta exposição das teses freudianas, intitulado The Un:con.rcious. Jones atribui-lhe o mérito de "primeiro filósofo a ter revelado uma perfeita compreensão dos conceitos freudianos". Isto vem mostrar que, pelo menos até essa data, todas as exposições filosóficas de suas teses haviam decepcionado Freud; dessas teses, Jones se torna o fiel intérprete28• Desta vez, Freud reage demonstrando uma agradável surpresa: "Quem é esse Israel Levine?, escreve a Jones. Nenhum livro sobre a psicanálise deu-me tanto prazer quanto seu Inconsciente". Mas a seqüência restabelece imediatamente a lei de reserva geral, como se Freud não quisesse que se inferisse qualquer adesão ao discurso filosófico sobre a psicanálise: "Se se trata de um filósofo, é uma ave rara. Quero conhecê-lo melhor" (carta de 7 de abril de 1923). Esta expressão é muito reveladora da relação de Freud com os filósofos que se preocuparam com a psicanálise: um filósofo que chega a produzir uma razoável exposição do inconsciente psicanalítico só pode ser uma "ave rara". Só pode ser a exceção para confirmar a regra. Assim, este êxito particular de um discurso filosófico sobre o incons~ ciente e a psicanálise em geral, é saudado enquanto é obtido apesar do obstáculo filosófico: a racionalidade filosófica dominante constitui mais um obstáculo que um auxílio para a inte· ligibilidade da psicanálise. Mesmo esta exceção só merece crédito, aos olhos de Freud, enquanto se esforça para ser um relatório exato.
9. AS RESISTENCJAS À PSICANA.USE Em 1925, em seu ensaio sobre As resistências à psicanálise, Freud volta a mencionar o obstáculo consciencialista que blo•36
queia as relações da psicanálise com a filosofia. De fato, ·o desacordo sobre o inconsciente tem sua origem numa divergência profunda sobre a natureza do psíquico: "O psíquico dos filósofos não era o da psicanálise"29 • Esta fórmula radícaliza as fórmulas freudianas precedentes sobre a heterogeneidade do inconsciente filosófico e do inconsciente psicanalítico. O que ele pretende designar é a posição da filosofia dominante: "Os filósofos, em sua imensa maioria, denominam 'psíquico' exclusivamente o que constitui um fenômeno consciente". Essa igualdade psíquico = consciente supõe uma coincidência dos limites do "mundo do consciente" com ''os limites (Umfang) do psíqui· co~. "Conseqüentemente, de tudo o que pode 'ultrapassar' esses limites, a filosofia consciencialista se desembaraça, atribuindo-o (" adjudicando-o", diz Freud textualmente) a causas orgânicas ou a circunstâncias paralelas do psiquismo." A crítica psicanalítica revela, pois, o vínculo do consciencialismo com as hipóteses organicistas e paralelistas; nesta perspectiva, só podem fundir-se: com efeito, uma vez que o psíquico se vê encerrado nos estreitos limites do consciente, somos forçados a interpretar as manifestações do· inconsciente como provindo de fora, de processos adjacentes. Isto nos leva a legitimar a exclusão do inconsciente da psicologia: "Em suma, a alma não possui outro conteúdo senão os fenômenos-de-consciência; a ciência da alma, a psicologia, não possui outro objeto". Desta forma, a filosofia confirma a crença do profano: "O profano não pensa de outra maneira". Donde a resistência da filosofia à psicanálise (pois é ela que se trata de explicar neste escrito) : "O que pode pensar o filósofo de uma doutrina como a psicanálise que diz que o psíquico é, antes de tudo, incons· ciente em si", senão recusá-la? Para a psicanálise, a consciência deixa de ser o princípio essencial da alma, e reduz-se a "uma qualidade que pode entrar num ato de consciência individual, como não entrar, e que, eventualmente, nada o modifica se ele permanece em estado" (de consciência). Convém notar que Freud utiliza uma formulação filosófica: de fato, trata-se de exprimir o sentido filosófico da mudança de estatuto da. consciência, que passa do estado de essência-princípio ao de qualidade-acidente, ao passo que o inconsciente é elevado ao estado de "em si" psíquico. Todavia, longe de subscrever a posição filosófica, que só iria inverter, Freud indica,
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na linguagem da posição adversa. a inversão que nela opera a problemática analítica. Na realidade, o fato de o filósofo reagir ao inconsciente como a um "não-sentido" , a uma "quimera" ou a um absurdo (Unding), de considerar o "consciente inconsciente" como uma contradictio in adjecto, segundo os termos mesmos de Freud, constitui o sinal de uma mudança de identidade do psíquico e de uma dualidade radical de racionalidades. Ainda aqui, a investigação do "material" analítico vai permitir-nos recusar esse desconhecimento: "Se o filósofo passa a ter levianamente essa certeza, é porque ignora o material cujo estudo obrigou o analista a crer na existência de atos de consciência inconscientes". Falta-lhes este capital indispensável de informações (sobre a hipnose, os sonhos, as doenças mentais) que pertence à "esfera dos fenômenos" e repousa na ob~ervaçã_o. Ora "o filósofo não conhece outra forma de observaçao senao a i~trospecção" (Selbstbeobachtung). Freud fala significati~a mente, em Para a introdução ao narcisismo (1914), de phtlosophische Intr<>spektion81 , O privilégio da introspecção é a conseqüência metodológica do postulado da transparência da consciência a si mesma. 10. SELBSTDARSTELLUNG Também na Selbstdarstellzmg contemporânea das "resis· tências" Freud evoca a concepção filosófica como obstáculo à • • tomada de consciência psicanalítica do inconsciente. Ao seguu este caminho, cuja saída lógica e experimental é a representação de "todo o psíquico'' como inconsciente, a "ele podendo vir juntar-se ou não a qualidade consciente", esbarramos com "a contradição dos filósofos, para quem 'consciente' e 'psíquico' são idênticos", e que protestavam por não poderem representar um absurdo como "o inconsciente psíquico"32• O que fazer? Trata-se de ir em frente: "Pouco importava, bastava levantar os ombros diante dessa idiossincrasia dos filósofos". Freud abandona, pois, os filósofos à extravagância de sua diferença e os remete à evidência probatória do materi~l: "As experiências relativas ao material patológico, que os filósofos ignoram, sobre a freqüência e o poder de tais inquietaçõ~s, sobre as quais nada sabíamos, mas às quais devíamos conclwr como a um fato qualquer do mundo exterior, não nos deixam esco38
lha". Assim, a coerção experimental desata a pseudonecessidade lógica e remete o flagrante delito de absurdo do lado do partido filosófico"'. Além do mais, Freud prevê duas falsas escapatórias possíveis, vale dizer, duas maneiras de se digerir os fatos permanecendo na negação do inconsciente. Tais subterfúgios se tomaram possíveis por um caráter essencial do inconsciente incessantemente reafirmado por Freud: ele é incognoscível diretamente. Podemos, pois, dispensá-lo, seja postulando, por detrás da consciência, uma segunda consciência, uma "consciência inconsciente", seja distinguindo atos psíquicos "propriamente ditos" (conscientes) de atos "psicóides" que nos possibilitariam pensar todo o material patológico sem questionar o primado dos outros. Ora, no primeiro caso, parece. que essa consciência inconsciente é, pelo menos, tão misteriosa quanto a hipótese do psíquico inconsciente, ao passo que a distinção dos dois tipos de atos psíquicos representa uma "estéril disputa de palavras". Tais paralogismos constituem o indício de que devemos curvar-nos aos dados experimentais e reconhecê-los, posto que advogam a manutenção do inconsciente psíquico. Freud conclui que "a questão da natureza em si do inconsciente não é mais criteriosa nem mais rica de perspectivas que a questão relativa à natureza do consciente". O erro filosófico consiste justamente em pretender perscrutar a natureza em si, ao invés de reconhecer este caráter que lhe é inerente de recusar todo acesso não experimental. verdade que, neste limite, a investigação metapsicológica vem substituir a impossível investigação metafísica (ver infra, cap. Ill).
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11. O ESBOÇO DE PSICANAUSE Ainda no Esboço de psicanálise, na última exposição global da psicanálise (1938), vamos encontrar a mesma problemática. O consciencialismo é novamente apresentado como a filosofia dominante: "A maioria dos filósofos, como muitos outros, proclama como um absurdo ( Widersinn) a existência de um psíquico inconsciente'l$4, Neste particular, o filósofo aparece como alguém que conforta o senso comum: "Quando falamos de consciência, sabemos imediatamente, por experiência pessoal, de que se trata". O enunciado filosófico segundo o qual "a cons-
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ciência constitui, por si só, o psíquico", teoriza essa crença imediata. Mas Freud precisa sua argumentação por considerações especiais: "Na opinião corrente, esses processos conscientes não formam séries sem lacunas e em si acabadas, de tal forma que não reste nenhuma saída senão admitir, além, processos físicos ou somáticos que acompanham o psíquico, e aos quais devemos conferir uma completude superior às séries psíquicas, pois alguns possuem processos conscientes paralelos, outros não". A démarche de Freud é interessante de ser considerada ein sua complexidade mesma: ele começa relembrando o aspecto lacunar dos processos conscientes, unanimemente reconhecido como um fato. Donde a conveniência de se inferir a necessidade de completar esse tipo de processo por processos auxiliares paralelos, de ordem somática. Mas, então, precisamos distinguit dois tipos de processos: os processos somáticos simples e os processos mistos, que comportam, além do mais, a qualidade consciente. Assim, o fator considerado principal deve ser, finalmente, mantido por auxiliar. Inversamente, esses processos somáticos aparentemente auxiliares (Parallel ou Begleit-Vorgiinge) deveriam ser naturalmente considerados como "o psíquico propriamente dito". Ora, é contra isso que "se insurgem" os filósofos. Ainda aqui, o organicismo é apresentado como o destino normal e paradoxal do consciencialismo. :f: aqui que intervém a posição psicanalítica, considerando que "os processos concomitantes assim chamados de somáticos" constituem, de fato, o próprio psíquico. Essa curiosa fórmula -:ignifica que, o que é postulado, no conscienc;ialismo, como exterioridade do psíquico - como de ordem somática - , outra coisa não é senão o que exige ser reconhecido como o próprio psíquico, a saber, o inconsciente. Este resolve a contradição que consiste simultaneamente em majorar o consciente e o somático: "Na psicologia do consciente, diz Freud, jamais saímos dessas séries lacunares. . . que dependiam ostensivamente de outra coisa". Donde a postulação de um resíduo irredutível ao psíquico: o vasto mundo dos processos somáticos, continente ao mesmo tempo excluído do psiquismo e postulado por ele. É o inconsciente psicanalítico que, ao suprimir essa situação, unifica o psíquico autenticamente. Todavia, Freud parece limitar a oposição acrescentando mais adiante: "Quanto ao que chama.mos de. 'consciente', não
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temos necessidade de caracteriZá-lo) pois identifica-se com o consciente dos filósofos e da opinião popular". "Tudo o mais, para nós, é o inconsciente." Esta formulação é enganadora, porque poderia levar-nos a r;:rer que Freud conserva o consciente filosófico para a ele acrescentar seu conceito de inconsciente. Ora, tudo o que precede atesta que, pelo contrário, somente a subversão do conceito filosófico de consciente, ou antes, da concepção da relação consciente/inconsciente, condiciona. o advento do ponto de vista psicanalítico. . Toda a enquete precedente estabeleceu a perenidade , no discurso freudiano, desde o início da conceitualização analítica até seu término, de uma tem~tica extraordinariamente homogêne~. até ~ ester~otipia: a filosofia dominante manipula um conce1to de consctente fazendo dele um obstáculo dirimente · para a psicanálise. Tudo se passa como ·se, p;:ua Freud, a estrutura de' inteligi.bilidade filosófica, pelo menos tal como ela -foi produzida historicamente, tenha-se ligado fundamentálmetite · ao consciencialismo35 • Quer dizer· que ela lhe forneceu seus títulos de nobreza teóricos. Mas quer dizer ainda que há, para Freud um "filosofismo" que é praticamente sinônimo de , antipsica: nálise.
NOTAS ' ·.
'
1. Designamos, com isso, a tese da paridade ( Gleíchstellung) do psíquico e do consciente, e a eleição da consciência como modo .exaustivo de definição do psiquismo. 2. E por isso que a filosofia, por seu conteúdo consciencialista, constitui um verdadeiro "obstáculo epistemológico" para a constituição da psicanálise como ciência do inconsciente. 3. ~sta carta, escrita em francês, foi reproduzida, vinte e c~nco anos depois, pelos cuidados da destinatária, no Bulletm de la Société jrançaise de Philosophie, de janeiro-março de 1955 (ano 49, n 1, PP- 3-4); relátório da sessão de 25 de janeiro de .1955 da Sociedade, consagrado ao tema
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4.
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6. 7. 8.
9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25.
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"Psicanálise e filosofia", da qual participaram Bachelard, Goldenson, Lacan, G. Mareei e Minhowskí. "Se me fossem concedidos o tempo e o humor, provavelmente poderia tomar claro, para vocês, meu ponto de vista." Sobre o sentido dessa teoria da subjetividade e da coisa em si, ver infra, cap. 111, 2~ parte. Donde a recusa da generalidade. Conviria também para caracterizar notadamente von Hartmann; ver infra a oposição. G.W., U-IU, pp. 614-626; cap. F, "O inconsdente e a consciência- a realidade", p. 616. Comparar com "as resistências à psicanálise", infra. Op. cit., ibid., 617. Transformando-o em princípio~ cf. von Hartmann. lbid., p. 621. Sobre esse duplo movimento, ver "O interesse da psicanálise", infra. lbid., p. 621. G.W., V, p. 24. G.W., VI, p. 184. O que nâo impede que seu acesso se faça necessariamente pelo consciente; cf. "0 interesse da psicanálise", infra. Donde seu tratamento metapsicológico: o inconsciente é esta coisa em si que devemos postular sem percebê-la; ver infra. Sobre a última ratio desse fundamento afetivo, ver a etiologia narcísica, infra, cap. V. Deve-se esperar 1915. G.W., VII, p. 74. G. W., VII, p. 445. Sobre a importância desse artigo, ver infra, caps. IV e V. G.W., VIII, p. 406. Com efeito, quando formula essa alternativa, Freud parece ter no espírito, de modo muito caracterizado, um modelo lógico historicamente determinado, o que nos permite especificar histórica e ideologicamente o sentido da polêmica freudiana contra as concepções filosóficas do inconsciente: cf. a critica do inconsciente feita por Brentano em sua Psicologüt do ponto de vista empirico (livro I, cap. 2) ~
Brentano aí argumenta contra "o bando daqueles que falam de fenômenos psíquicos inconscientes" (trad. fr., AubierMontajgne, 1944, p. 115). Entre eles, reserva um lugar especial a Edouard von Hartmann. Segundo Brentano, Hartmann sustenta que "os fenômenos inconscientes são heterogêneos aos fenômenos conscientes, diferindo deles nos pontos essenciais", a tal ponto que ele não nega que os fenômenos inconscientes sejam fenômenos psíquicos (ibid., p. 119). De fato, para Hartmann, há apenas uma umanifestação do inconsciente no espírito humano" (segundo o título da segunda parte do livro I de A filosqfia do inconsciente), mas não realidade psíquica do inconsciente. O Inconsciente se torna, nessa perspectiva, uma realidade absoluta hipostasiada; é, segundo os termos de Brentano, um "ser único, onipresente, onisciente, perfeitamente sábio", ''eterno"; é "o ser em si", o próprio Deus - "algo de místico, que não podemos tocar nem ver", diz Freud, em eco nesse texto (G.W., VIII, p. 406). Contra esse irracionalismo metafísico, e contra toda tentativa de introduzir a função de uma "consciência inconsciente", Brentano demonstra longamente que "a rejeição de toda atividade psíquica inconsciente" se impõe; e, à questão de saber se existem "atos psíquicos inconscientes" (p. 115), opõe "um não categórico" (p. 119). Assim, é von Hartmann quem fornece o protótipo da posição de um Inconsciente transpsíquico; e é Brentano quem ilustra a posição consciencialista radical, quem, segundo os termos freudianos, "identifica o psíquico com o consciente" e "retira dessa definição a conclusão de que (o inconsciente) não pode constituir um objeto de estudo da psicologia". Mas se Freud contrapõe o conteúdo das duas teses, faz seu o ponto de vista metodológico de Brentano. Não somente os argumentos de Brentano contra a concepção hartmaniana podem ser depositados no crédito da crítica freudiana, mas ainda o ponto de vista do imanentismo psicológico lhes é comum: ele se revela notadamente pelo imperativo de colocar o problema do consciente e do inconsciente no estrito nível do psiquismo e de limitá-lo no plano psicológico.
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26. O antificcionalismo é um tema essencial da polêmica freudiana; ver infra, cap. I, 2<.t parte, § 1. 27. Cf. trad. fr. dos Souvenirs, Gallimard, 1966, p. 328. 28. Jones, t. III, p. 95. 29. G.W., XIV, p. 103. 30. O mérito das filosofias do Inconsciente é o de terem denunciado essa restrição. 31. G.W., X, p. 164. 32. G.W., XIV, pp. 56-57. 33. Com efeito, o discurso de Freud postula a existência de um "partido filosófico" oposto ao "partido psicanalítico", ambos envolvidos num jogo de que o inconsciente é o desafio ( enjeu) . 34. G. W., XVII, p. 80. 35. Sobre a gênese dessa aliança, é toda a concepção freudiana mais adiante que precisa ser evocada.
CapituloU A FILOSOFIA COMO WELTANSCHAUUNG Esta primeira temática crítica logo se duplica de uma segunda, caracterizando a oposição entre filosofia e psicanálise, não mais apenas por seus objetos respectivos e suas racionalidades correlativas, mas por sua natureza epistêmica, vale dizer, pela forma de sua modalidade posicional de objeto e por sua concepção da objetividade. Esta oposição se exprime pela distinção da filosofia como concepção do mundo ( Weltanschauung) e da psicanálise como ciência da natureza (Naturwissenschaft). Ainda aqui, convém seguirmos como essa temática se instaura e se desenvolve continuamente no discurso freudiano, a fim de determinarmos como nela se esboça esta segunda figura da filosofia e como se oculta sob a primeira, ligando-se a ela.
1.
PSICANÁLISE E TEORIA DA LIBIDO
B em Psicanálise e teoria da libido (1923) que vamos encontrar a mais clara manifestação dessa oposição. Neste escrito didático1, Freud se dá por tarefa enunciar as características
4S
essenciais da psicanálise, o que não poderia ser omitido sem desconhecer sua verdadeira natureza. Ora, de modo não fortuito, reconhece como caráter final, em conclusão da primeira parte dedicada à psicanálise, sua qualidade de "Ciência empírica"2. Essa caracterização se faz por uma demarcação relativamente à filosofia: "A psicanálise não é um sistema no sentido filosófico". O que caracteriza o sistema filosófico é sua ambição de "conceber a totaHdade do mundo (das Weltganze)"; portanto, ele se pretende "acabado" uma vez por todas, de modo a não deixar "nenhum espaço para novas descobertas e pontos de vista aperfeiçoados". Donde seu ideal da dedução absoluta: trata-se de chegar à inteligibilidade absoluta partindo de "alguns conceitos fundamentais" ( Grundbegrijfe) de onde tudo se deduz rigorosamente. Ora, obtém-se, assim, uma idéia completa daquilo que a psicanálise não é. A psicanálise recusa, com efeito, por sua existência mesma, a exigência de totalização e ·de perfeição lógicas: "Ela se liga antes, aos fatos de sua esfera de trabalho, aspira a resolver os problemas mais próximos da observação, confronta-se novamente com a experiência, é sempre inacabada, sempre pronta a retificar ou a :modificar suas teorias". Enquanto tal, liga-se à família das Naturwissenschaften. Freud cita como modelos, como que para não deix.ar nenhum caráter metafórico a essa aproximação, as ciências do inorgânico: física e química. Como elas, a psicanálise "admite ... que seus mais elevados conceitos sejam mal esclarecidos", quer dizer, não sejam formal e axiomaticamente determinados ab initio. À guisa de princípios, ela se contenta com "pressupostos. . . provisórios''. Conseqüentemente, situa sua exigência de validade no jim do trabalho científico, e não no início: "aguarda uma determinação mais rigorosa (de seus princípios) de um trabalho futuro"3 • Assim, à ambição especulativa de panconceitualização, op~e-se o empirismo científico; à universalidade sistematizante, opoe-se o "particularismo" científico, limitado imediatamente a uma região determinada de fenômenos; ao fechamento do sis-. tema, opõe-se a abertura experimental. Por conseguinte, é demarcando-se em relação ao aprj.orismo filosófico, tal como ele o concebe, .que Freud define da melhor maneira possível a iden. . tidade d~ ciêpcia analítica!
2.
A RECUSA DE HEGEL: POTNAM
Essa demarcação possui dois efeitos solidários: recusar a confusão da ciência psicanalítica e da filosofia, e reputar ilegitima toda tentativa de anexação da psicanálise a um sistema especulativo. Freud percebeu logo a necessidade de formular esse imperativo. Desde os anos que precederam à Primeira Guerra Mundial, com a abertura da psicanálise a meios ideológicos diversos, configura-se o perigo de anexação como penhor imediato da glória nascente. Podemos perceber alguns sintomas bem precisos desse fato. Assim, em 1911, o Congresso Internacional de Psicanálise de Weimar é inaugurado, no dia 21 de setembro, com uma comu~ nicação de J ames J. Putnam, significativamente intitulada: A importância da filosofia no desenvolvimento futuro da psicanálise. Jones a define como uma "vibrante apologia em defesa da introdução da filosofia" na psicanálise4 • Trata-se de um episódio tanto mais interessante quanto Putnam, hegeliano convicto, publicara o primeiro artigo completo sobre a psicanálise em língua inglesa, em 1906, e participara, em 1908, da criação da Sociedade Americana de Psicanálise, da qual se toma o presidente. Isto mostra a tentação de síntese entre um sistema especulativo e a psicanálise no seio dos membros oficiais do próprio movimento psicanalítico. A controvérsia que, a este respeito, explodiu no Zentralblatt für Psychoanolyse, fundado menos de um ano antes (em outubro de 1910), mostra que este foi um dos primeiros problemas de fundo defrontados pela ciência analítica em busca de sua identidade. Mas não é só. O que Freud encontrava nessa ocasião, era a tentação especulativa sob sua forma mais acentuada: a que encarnava o sistema hegcliano, o sistema filosófico por excelência, no sentido pejorativo que lhe atribuía todo o movimento de reação cientificista que se desenvolvera vigorosamente na Alemanha depois da morte de Hegel~">. Era "seu próprio sistema hegeliano"6 que Putnam tentava enxertar na psicanálise, ou antes, ilustrar mediante as aquisições analíticas. Também é importante notar a reação globalmente desfavorável da ortodoxia do movimento. Jones precisa ( eufemisticamente) que a exortação de Putnam a aliar Freud e Hegel "não obteve uma acolhida entusiasta", e acrescenta : "A maioria den-
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tre n6s não via a né
de "nacionalismo epistêmico" levando-o a defender enciumadamente as fronteiras da jovem ciência. Trata-se, pois, ao mesmo tempo, de obter o reconhecimento das outras esferas do saber, a legalização de seu estatuto na comunidade científica, e de preservar sua independência em relação a cada uma das demais regiões do saber. Ora, a filosofia constitui, por seu imperialismo totalizante, uma ameaça particular que motiva uma vigilância e um rigor particulares. 48
~.
A RECUSA 00 SISTEMA PSICANALíTICO: KRONFELD
Também é por isso que Freud passa a desconfiar da sistematização das aquisições analíticas, sobretudo se ela se apresenta como um simples relatório. Temos aí outro perigo onde se trava o mesmo desafio - que logo Freud terá que enfrentar. Com efeito, a difusão da psicanálise dá naturalmente origem a uma abundante literatura de apresentações e de comentários. Um tipo de tais empreendimentos dá lugar a uma tomada de posição particularmente significativa de Freud. Trata-se de uma volumosa síntese de certo A . Kronfeld, surgida em dezembro de 1911, tendo por objetivo fornecer " uma exposição completa da psicanálise considerada como um conjunto organizado"9. Enquanto balanço das "teorias psicológicas freudianas'', o projeto visava a dotar as aquisições analíticas de uma perfeição sistemática que não possuíam. Desta forma, a síntese visava a aperfeiçoá-las, mediante recursos da racionalidade lógicodedutiva, tentando preencher, quando necessário, as lacunas da observação por uma conceitualização adequada. Isto culminava7 praticamente, no fechamento da psicanálise, levando-a a afastarse da gênese histórica e a Iogicizá-la em nome de um ponto de vista que Jones qualifica de "filosófico e abstrato". O que é interessante, nesse episódio, é que Freud encontrava nele, ao vivo, a tentativa de transformar a prática analítica em seu contrário (o "sistema", no sentido de Psicanálise e teoria da Ubido) 10• Vinha chocar-se, de modo exemplar, com a dupla ameaça filosófica : a esterilização técnica pela hipersistematização e a recusa abstrata por logicização. E isto, num contexto tanto mais perigoso quanto se tratava de explicar a psica· nálise em sua objetividade. Face a essa subversão especulativa do interior, Freud reage ainda de modo muito significativo. Em primeiro lugar, escreve a Karl Abraham em 14 de janeiro de 1912: "Kronfeld demonstrou pela filosofia e pelas matemáticas que tudo o que nos atormenta não existe, porque isso não pode existir. Assim, estamos agora a par. E está pregada a peça"11 • Esta reação irônica tem u m sentido preciso: a intervenção filosófica, sistematizante e logicizante, pretende, aos ollios de Freud. julgar, em nome de uma norma racional deôntica, uma investigação cien-
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tífica que se prende a um dado laboriosa e dificilmente cernido. Por isso, o prático só pode sorrir ao verificar o adeus que a jurisdição conceitual significa para seus problemas (por conseguinte, também para suas aquisições verdadeiras) e continuar seu caminho . A referência "àquilo que não pode existir" (a priori) não poderia invalidar o interesse por "aquilo que existe". Kronfeld pratica, pois, uma colocação fora de circuito da experiência, no seio da qual o analista, como todo sábio, prea segunda abordagem fundatende manter-se rigorosamente. mental que Freud exprime numa carta dirigida a S. Starcke em 25 de agosto de 1912: "Li o trabalho de Kronfeld. Ele expõe a habitual técnica filosófica. Você sabe com que segurança os filósofos se refutam entre si, após terem-se distanciado da experiência. ~ justamente isto que faz Kronfeld. Ele afirma que nossas experiências não contam; sendo assim, toma-se para ele jogo de crianças refutar nossas idéias"1ll, O caso Kronfeld possui um valor exemplar para revelar a "técnica filosófica" . A abstração do "material" experimental toma possível o êltito fácil, porém, finalmente irrisório, do malabarismo conceitual. Neste sentido, tal episódio exprime bem a atitude de Freud em relação a toda tentativa de leitura filosófica . da psicanálise como encerrando essa potencialidade, menos por ininteligibilidade do conteúdo que por derivação para um modelo teórico exógeno que trunca sua identidade. Aliás, não é por acaso que Kronfeld se vê levado a aproximar a psicanàlise de "concepções semel.bantes", como indica o ú tulo mesmo de sua obra. E çssa analogia que Freud recusa13• Tais reações exprimem uma recusa determinada sob formas variadas. ê assim que se deve compreender a reflexão que encontramos na C
.e
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Ora, tudo se passa como se, doravante, ao longo de uma cadeia de textos escalonada em toda a sua obra, Freud não tard~sse a responder à acusação lançada por Pierre J anet, por ocasião da famosa sessão de 8 de agosto de 1913 do Congresso de Medicina de Londres, onde foi consumada a ruptura entre Janet e a psicanálise: A psicanálise é antes de tudo uma filoS()/ia; e onde, cúmnlo do paradoxo, Janet propunha deixar a psicanálise "à atmosfera pacífica dos congressos de filosofia,, declarando que "talvez ela fosse interessante se fosse apresentada a filósofos", mas que "devemos absolutamente evitar transportá-la para o leito dos doentes e para as salas de hospital, cuja atmosfera não lhe serve para nada"16• E ssa negação do caráter clínico e experimental da psicanálise, e sua redução a uma especulação, ratificam tão bem as declarações de Freud, que estas parecem uma justificação incessantemente reafirmada contra essa acusação. E a partir desse momento, como que por acaso, que as afirmações de demarcação e de oposição da psicanálise e da filosofia multiplicam-se e radicalízam-se. Janet serve aqui de catalisador para a rejeição filosófica de Freud: ele traduz a acusação filosófica contra a psicanálise, mortal por sua pretensão à cientificidade, e emanando da própria filosofia, vale dizer, de um filósofo de origem que realiza um trabalho de psicologia científica. J anet produz a imagem simetricamente inversa àquela através da qual Freud pensa a psicanálise. Donde a recusa incansavelmente reiterada dessa representação. Não é unicamente para responder a Janet que Freud vai multiplicar as ressalvas. Todavia, a fórmula acusatória de Janet, resumindo toda a diatribe antipsicanalítica, serve de modelo antonímico para se pensar o estatuto da psicanálise, posto que será preciso inverter a imagem invertida por Janet a fim de se esboçar a verdadeira imagem. A filosofia serve, pois, de revelador para uma oposição profunda e global entre os dois tipos de modelos de explicação psicológica encarnados por Janet e Freud, me· diante a censura recíproca de "filosofismo".
4.
INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGOSTIA
Esta linha de pensamento vai, pois, acentuar-se na segunda parte da gênese do pensamento freudiano. ~ um texto sobre Inibição, sintoma e angústia ( 1926) que contém o enunciado mais surpr~ndente P,a recqsa da filosofia como Weltanschmlung.
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No final do capítulo 11, após considerações técnicas sobre a formação dos sintomas, surge uma brusca rejeição d7 certo tipo de especulações. De fato, é a teoria da segunda t6p1ca, tal como ela se encontra expressa em O ego e o id, que op~ra a transição: "Descrevemos aí, resume Freud, a dependência do Ego relativamente ao ld como relativamente ao Superego, sua impotência e sua propensão à angústia em face um do outro, d~ mascaramos a aparente posição de dominação que tanta dificuldade ele tem de manter,17 • Ora, essa teoria recebeu um "eco" importante, embora deformador, "na literatura psic.an~lí~ica:•: "Numerosas são as vozes que se levantam para, com msistencJa, enfatizar a fraqueza do Ego em relação ao ld, do racional contra o demoníaco em nós; e que se esforçam para fazer dessa tese a base de uma "visão do mundo" (Weltanschauung) psicanalítica". Aqui intervém a decidida recusa de Freud: "Sou h~stil à fabricação das visões do mundo; que sejam deixadas aos fll.ósofos". Podemos ver aí claramente indicados o elo entre o SIStema filosófico e a Weltanschauung, e sua simultânea rejeição. Em que consistiu a deformação aqui de~IUnciada?. Freud .a indica por sua apresentação dos fat~s: a par~tr da. teona desc?tiva de uma mecânica tópica determmada, evtdencr.ando as multiplas relações das três instâncias psíquicas, extraí~os uma te~e permitindo-nos investir, em troca, um aspecto parctal da teona de um valor sobredetenninado. Na ocorrência, no contexto de sua descrição global do jogo de ação e de reaçã? ~o aparelho psíquico entre cada um de seus elementos consti~umtes, Freud havia num determinado momento da argumentaçao, ressaltado os fa{os atestando uma dependência e uma dominação do Ego, em contraste com sua aparente supremacia, notadamente a angústia. Aqui intervém a leitura falsificado~a q~e consiste, !n~cial
mente em enfatizar os fatos para deles mfenr uma especte de
impotência de rurtureza do Ego; a seguir, em_ bipostasia~ as instâncias psíquicas para fazer delas a encarnaçao e a manifestação de princípios metapsíquicos. As~im, o Ego se torna '~o racional" e o Id "o demoníaco". Com tsso, nega-se a econom.Ja complexa do aparelho psíquico em proveito de um manique.ísmo metafísico; sobre uma tese científica, enxertou-se uma tese Ideológica e axiológica tendendo a valorizar o irracional. Const~ta se o mecanismo preciso da indução metafísica e metapstcanalítica : 1
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1 Partir de fatos estabelecidos descritivamente;
2 I Operar neles um corte seletivo e parcial a fim de 3 I Neles encontrar uma tese intuitiva à qual os fatos são estranhos, mas que eles servem para legitimar; 4 f Por esse meio, as aquisições analíticas são carreadas para uma metafísica que ajudam a patrocinar. Nasce, assim, uma Weltanschauung, intuição totalizante cujo fundamento é uma tese monolítica, obtida por isolamento e fragmentação (scotomisation) de um aspecto do material factual, superestimado porque valorizado para este fim. Neste caso particular, podemos acompanhar o deslocamento especulativo para o material conceitual e terminológico empregado. Onde Freud falava de "dependência" - termo funcional - , a leitura metafísica descobre uma "fraqueza" que se torna o sinal de certa inferioridade ontológica. Hã aí uma inflexão ao mesmo tempo insensível e decisiva. Se Freud se opõe tão firmemente a esse processo, é porque a cientificidade psicanalítica encontra-se ameaçada do interior. Contestada do exterior, no período de sua gênese, ela se vê ameaçada, a partir dos anos 1920-1925, a fragmentar-se em pequenos sistemas especulativos possuindo, em sua diversi'dade mesma, por ponto comum, pretender reconstituir em torno de uma tese única a explicação global do psiquismo, partindo das aquisições analíticas18• As aquisições freudianas servem de materiais para "bricoler" pequenos sistemas, o que cooota o termo de "fabricação", aplicado, cesse texto, às Weltanschauungen: só podemos obtê-las isolando arbitrária e abstratamente uma seqüência de fatos agrupados em torno de um princípio arbitrariamente escolhido. Trata-se de um trabalho de colagem de conceitos parciais e de fatos mutilados que servem de pretexto para generalizações errôneas19• Finalmente, essa rejeição das "visões do mundo" encontrase associada à recusa da intromissão dos fílósofos no trabalho analítico. A W eltansclzauung é postulada como a especialidade e a propriedade dos filósofos. Freud recomenda, pois, que a "deixemos a eles" e que evitemos confusões de gênero. Os filósofos são tidos por aqueles que "professam abertamente que a viagem da vida é impossível sem tal Baedecker para dar-lhe uma informação sobre todas as coisas". Encontramos af a exigência, tipicamente filosófica, aos olhos de Freud, da inteligibilidade absoluta: o caminho filosófico requer a bússola que lhe forneça uma chave universal de orientação no real. A essa exigência
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draconiana, Freud responde, como de hábito, com uma mistura de zombaria e de humildade: "Aceitemos com humildade o desprezo com que os filósofos nos medem do alto de suas exigências sublimes". Todavia, por essa firme reivindicação do relativismo do sábio, ele atinge a pretensão narcísica do filósofo20, denunciando a eternização ingênua que constitui sua expressão: "Esses mestres de vida (Lebensführer), diz sarcasticamente, envelhecem rapidamente". À guisa de consolo às feridas narcísicas do sábio, obrigado a moderar suas pretensões, Freud evoca a imagem da cascata dos sistemas em ruína, todos despojados da pretensão de eternidade, pois é assim que ele vê a história da filosofia - tropo clássico da argumentação relativista reativada para as necessidades da polêmica. Ademais, essa ambição é aproximada da pretensão religiosa: "Mesmo os mais modernos desses Baedecker constituem tentativas de substituir o velho catecismo, tão cômodo e tão completo". A palavra filosófica é, assim, assimilada à palavra religiosa por sua pretensão à absolutez do dizer. Ora, é a laboriosa atividade científica que solapa essa pretensão obrigando, segundo a forte expressão de Freud, o "aparecimento das edições revistas e corrigidas" das verdades consideradas intangíveis, como outras tantas feridas no narcisismo filosófico. Por conseguinte, intaura·se radicalmente a oposição: ao vasto olhar filosófico e aos panoramas da W eltanschauung, opõe-se o "pequeno trabalho limitado", a miopia salutar do cientista e do analista; ao facho especulativo que deve iluminar o mundo, opõe-se a tenra luz que "a ciência conseguiu, até o presente, lançar sobre os enigmas do mundo''21 ; sob o alarido com que o verbo filosófico faz ressoar o mundo, insinua-se a palavra hesitante e descontínua do cientista, comentário de um "trabalho empreendido com paciência". Mas é justamente essa luz tênue, lentamente difundida, que pode "progressivamente criar a mudança", enquanto que o fogo de artifício filosófico deixa-nos, finalmente, nas sombras. Freud conclui essa oposição semântica por uma metáfora extraordinária: a filosofia se assemelha a "este viajante que canta na obscuridade", a fim de negar sua ansiedade, mas que "nem por isso consegue ver mais claro". Neste sentido, a altitude do discurso filosófico não teria outra função senão a de expulsar as trevas do real e de impedi-las de caírem sobre o homem, ao passo que a psicanális·e leva em
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conta a angústia do real por sua palavra humilde e murmurante, embora eficaz. Essa polêmica contra a utilização da psicanálise para fins especulativos encontra, de fato, seu alimento essencial no confronto com o projeto de Otto Rank, tal como ele se exprime no início do Traumatismo do nascimento, três anos antes do presente texto: "As considerações que se seguem representam uma tentativa de utilizar os dados fornecidos pela psicanálise em vista da explicação da evolução total da humanidade" 22. Não se trataria de uma dessas formas de "psicanálise aplicada" que Freud reconhece como legítimas e necessárias? De fato, Rank tem o cuidado de precisar: "E que nos entendam bem: não se trata de uma simples aplicação da psicanálise às ciências humanas; o que nos propomos, é revelar as modificações que o pensamento psicanalítico é capaz de propor a toda a nossa concepção do homem e da história humana; esta, em última análise, outra coisa não é senão a história do desenvolvimento do espírito humano e de suas criações"23 • Portanto, a psicanálise é aqui convocada como Weltanschauung ou como associada à inteligibilidade global do real humano que, aliás, encontra-se definido em termos idealistas. Para essa "construção"24 totalizante, exige-se um princípio único e investido de uma virtude etiológica universal: trata-se precisamente do traumatismo originário. A crítica das teses de Rank - notadamente sobre a noção de angústia - , tal como é desenvolvida no capítulo X de Inibição, sintoma e angústia, alimenta-se nessa crítica fundamental esboçada anonimamente no fim do capítulo Il26• Com efeito, tal concepção, pretendendo e devendo tudo explicar, nada mais explica de determinado. Ela chega mesmo a anular "a importância etiológica das pulsões sexuais"26 : "A principal objeção, diz Freud, é que a doutrina (Lehre) de Rank se move no ar, ao invés de apoiar-se numa observação segura"21. Em contrapartida, "a psicanálise tem conclusões menos simples e menos satisfatórias'728• O que Freud recusa com uma veemência calma, é que suas análises, notadamente as de O Ego e o Id (surgidas um pouco antes da obra de Rank) tenham por isso que servido para dar crédito a tais especulações29. se faz necessária uma observação, a que conclui Inibição, sintoma e angústia, e que começa com essas palavras: "Não posso senão repetir o que de há muito já é conhecido"30 • Essa repe-
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tição, se é apresentada como não trazendo "nada de novo"31, nem por isso deixa de desempenhar uma função essencial: reiterar o enunciado analítico para desengajá-lo de suas implicações especulativas, involuntariamente contraídas a partir da solicitação de visões do mundo exógenas, e tanto mais nocivas quanto parecem aí germinar naturalmente graças à eogenhosidade especulativa. 5.
NOVAS CONFERENCIAS SOBRE A PSICANÁLISE
Não é por acaso que Freud retoma esse problema na conclusão de suas NClVas conferências sobre a psicanálise (1932). Depois da exposição das aquisições psicanalíticas globais, no momento em que parece ter soado a hora da sintese, Freud propõe a seus ouvintes fictícios82 tomarem "o audacioso elã" que irá permitir-lhes confrontar a psicanálise com a especulação, colocando a seguinte questão: "a psicanálise nos conduz a uma concepção particular do mundo? Neste caso, a qual?"33 Ao empregar esse termo de W eltansclwuung, Freud tem consciência de confrontar-se com uma forte tradição ideológica e de manejar uma " idéia especificamente alemã", reconhecendo que "toda definição que se possa dar dela parece imprecis a"~ . Ao manejar esse conceito determinado, Freud conserva essencialmente o que é por ele significado, a saber, a pretensão de totalizaçao. Define a Weltanschauung como "uma construção intelectual capaz de resolver, segundo um único princípio, todos os problemas colocados por nossa existência" e ..na qual nenhuma questão permanece aberta" (já se reconhece, aqui, o tema do texto de 1926, Inibição, sintoma e angústia); vê nela uma estrutura susceptível de fornecer o princípio de ordem universal permitindo-nos situar "num lugar determinado tudo o que pode nos interessar"; donde o finalismo latente da Weltansclwuung - sintoma narcísico. Nessas condições, a resposta é clara; aliás, já fora dada desde 1928, nos Breves escritos de psicanálise, onde Freud lançava, em conclusão, esta advertência; se é verdade que a psicanálise pode aprofundar nossa compreensão do mundo, " que não nos esqueçamos, no entanto, de que a psicanálise, sozinh~ não pode fornecer uma imagem do mundo completa" ( vollstiindiges Weltbild)ar>. Freud lembra, aqui, a natureza da psicanálise:
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"ciência especializada" (Spezialwissenschaft) ~.enquanto ."p~ico logia abissal" ou "psicologia das profundezas , ela const1t~ um ••ramo da psicologia". Encontra-se ligada à sua esfera parttcular de fenômenos e não possui este poder de gerar uma "concepção particular do mundo", "devendo conformar-se à que lhe fornece a ciência". Isto nos permite precisar a dicotomia radical da ciência e da We/tanschouung: 1) A primeira afirma a unidade como simples princípi.o regulador; a segunda a postula como princípio adquirido a parttr do momento em que é concebido; 2) A ciência se limita "à quilo que é atualmente cognoscível" e rejeita "todos os elementos estranhos" a essa esfera; a visão do mundo se antecipa especulativamente aos dados e cria "misturas" de fatos e de conceitos; 3) A ciência requer "um trabalho intelectual'' fund~do el!l " observações cuidadosamente controladas" e em "pesqu1sas ngorosameote controladas"; a "visão do mundo" parte de um conhecimento imediato, do tipo "revelação", "intuição" ou "adivinhação"; 4) A ciência se regula sobre o objeto; a visão do mundo é antropomórfica, traduz a "presunção" da subjetividade: "exigências do espírito", "necessidades da alma humana", e outras tantas palavras incompreensíveis para Freud. Por conseguinte, é apenas por metáfora qu~ . Freud P?
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disputa com a ciência "seus direitos e seus domínios", a filosofia ocupa uma posição intermediária. Como a arte, ela é relativamente inofensiva, mas é por causa de seu elitismo: "não exerce nenhuma influência direta sobre a massa" e só interessa a um pequeno número de pessoas, mesmo entre a reduzida elite, o clã dos intelectuais; "para os outros, ela é apenas compreensível". Por outro lado, porém, é essa W eltanschauung particular que "n ão se opõe à ciência", "comporta-se mesmo como uma ciência" e "trabalha, em parte, com os mesmos métodos". Ela se desloca, pois, entre os dois pólos da ciência e da especulação. Preocupada com a ciência do referente real, comporta essa exigência desenfreada de totalização que lhe faz pretender "fornecer uma imagem do mundo sem lacunas e coerente" (de uma só peça), mas cuja "inanidade'' é experimentada pelo cientista em cada "novo progresso de conhecimento". Para ilustrar pitorescamente essa Husão de totalização filosófica, Freud evoca a imagem do filósofo de Heine que, "com suas toucas de dormir e com os trapos de seu pijama, fecha os buracos do edifício universal" 36•
6.
O ELO ENTRE A WELTANSCHAUUNG E O CONSCIENCIALISMO: O ESBOÇO DE PSICANÁLISE
Uma vez explicitada essa oposição, resta-nos estabelecer como ela se articula com a primeira; em outras palavras, como, no discurso freudiano, a mesma lógica produz a oposição da filosofia e da psicanálise pelo objeto (consciente/inconsciente) e a forma (concepção do mundo/ ciência natural). E O esboço de psicanálise ( 1938), conclusão teórica da obra freudiana, que nos permite apreender essa articulação. No capítulo IV, Freud declara explicitamente: "A concepção segundo a qual o psíquico é, em si, inconsciente, permitiu-me constituir a psicologia como uma ciência da natureza, como qualquer outra"37• Isto significa do modo mais claro possível que foi a conquista de seu objeto - o inconsciente - que possibilitou à psicanálise reivindicar-se como Naturwissenschaft. Foi a unificação do objeto - como unidade fenomenal - que tornou possível a autonomia epistêmica: " Os processos com os quais se ocupa (a psicanálise) são, em si, tão incognoscíveis quanto os das outras ciências, químicas ou físicas, mas é possível
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estabelecermos as leis às quais estão submetidos, detectarmos suas relações recíprocas: e suas interdependências num vasto domínio". Assim, como toda ciência natural, a ciência dos processos inconscientes opera, por sua investigação, uma redução progressiva no incognoscível, culminando a ilhas de conhecimento efetivo38, à maneira da física e da química39• Se nos situarmos, agora, do outro lado da oposição, do lado da W eltanschauung filosófica, perceberemos o elo entre essa forma posicional de objeto e esse objeto que é o consciente. Iremos encontrar a dupla expressão do subjetivismo antropomórfico: a igualdade psíquico consciente, reproduz, do lado do objeto, racional em que consiste o subjetivismo da a igualdade real visão do mundo. f: por isso que o consciencialismo está ligado à W eltanschauung filosófica: é o modo de tomada de conhecimento especular, no objeto, da relação filosófica com o objeto, vale dizer, com o real em geral. A concepção totalizante do mundo consiste, para o sujeito cognoscente, em " tomar por um império num império", no sentido spinozista. E uma ilusão exatamente homóloga que atua na crença no primado absoluto da consciência. Portanto, é por um único e mesmo movimento que a psicanálise refuta o consciencialismo, recusa a filosofia e reivindica-se comt> ciência.
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NOTAS
L Este artigo estava, de fato, destinado ao Dictionnaire des sciences de la sexualité de Max Marcuse. 2. G.W., t. XID, p. 229. ~ o título do último artigo: "Caráter da psicanálise como ciência empírica". 3. Sobre a importância dessa idéia, ver infra, cap. IH, 1\\ parte. 4. Jones, t. li, p. 90. 5. Ver infra, cap. V, 2\l parte. 6. Jones, op. cit. 7. Trata-se de uma certa Spielrein. 8. Carta de 30 de no,vembro de 1911; d. Jones, t. li, p. 474.
S9
9. Uber die psychologtschen Tehorien Freuds und verwandten Anschauungen (Archiv für gesammte Psychologie, XXII, pp. 130-248); ver Jones, t. H, p. 128. 1O. Cf. supra, PsychaMlyse et théorie de la libido. 11. Jones, op. cit., ibid. 12. lbid. 13. Isto posto, Freud aspira que "alguém seja bastante dotado para tirar dela (da psicanálise) conclusões úteis à filosofia", observando simplesmente que, "no momento, estamos parados, e que esperamos alguma nova implusão" (carta a J ung, de 5 de julho de 1910, ver J ones, t. 11, p. 471 ) . Isto não significa que a sistematização filosófica seja possível, um dia, e que a proibição seja apenas provisória: Freud tolera simplesmente um uso filosófico futuro da psicanálise, só dizendo respeito à própria filosofia, e não pode consistir senão em tirar as lições desse uso. Mas isto supõe, evidentemente, a independência prévia da psicanálise, a partir da qual surgem efeitos filosóficos independentes dela (cf. L'intérêt de la psychanalyse). 14. G.W., X, p. 96. 15. G.W., X, p. 71. 16. Journal de psychologie normale et pathologie, março-abril de 1914, p. 67. 17. G.W., XIV, p. 122. 18. Comparar, com o desmembramento do sistema hegeliano na Alemanha de 1840, a guerra dos Diadoques que Marx evoca no início de L'idéologie allemande: "Cada um (dos críticos) isola um aspecto do sistema hegeliano e o faz voltar ao mesmo tempo contra todo o sistema e os aspectos isolados pelos outros" (Ed. Sociales, 1968, p. 43). Esbarramos, aqui, com o mecanismo "parcialização" pelo qual a ideologia trabalha a teoria. 19. No que diz respeito ao caso particular do conceito de Id, encontramos em Georg Groddeck o exemplo esclarecedor dessa utilização, como pilar de uma concepção geral do mundo. Este texto é produzido, de resto, no momento em que Freud, em relação epistolar com Groddeck desde 1917, depois em relações diretas a partir de 1920, rompeu com ele. Em 1923, O ego e o id, onde Freud atribui o termo id a Groddeck, aparece ao mesmo tempo que O livro do id, onde este sistematiza seu pensamento sobre a questão.
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Para Groddeck, o id é o "poder pelo qual somos vividos" (carta de 27 de maio de 1917); "o ld nos faz pensar, sentir, agir, ele nos vive"; ''engloba consciente e inconsciente, eu e pulsões, corpo e alma, fisiologia e psicologia" (le ça et la psychanalyse, 1920; ver La ma/adie, l' art et le symbole, Gallimard, p. 96) . Ou ainda: "O homem é vivido por algo de desconhecido. Existe nele um "ld", uma espécie de fenômeno que preside tudo o que ele faz e tudo o que lhe acontece"; "o ser humano é vivido pelo id" (Le livre du ça, 1973, 21} carta, p. 20). Percebemos o que Freud recusa nessa noção. O ld de Groddeck é um ser hipostasiado, tendo por função tudo criar e tudo explicar. O que Freud lhe recrimina, desde sua primeira carta de 5 de junho de 1917, é seu monismo, que ele caracteriza de imediato como filosófico: "Tenho medo que você não seja UJm filósofo e que tenha a tendência monista a desdenhar as belas diferenças fornecidas pela natureza, em favor das seduções da unidade; mas será que nos desembaraçamos, dessa forma, das diferenças?" ( Corr., Gallimard, 1966, p. 346). Inconscientemente, Freud reconhece aí o panteísmo monista da filosofia da natureza que, outrora, tanto o seduzira (ver o episódio goethiano). De fato, o modelo do Id groddeckiano outra coisa não é senão a substância spinozista de que os atributos são físico e psíquico. Desde 19091, Groddeck emprega o termo conjuntamente com o conceito de Deus-Natureza, vindo de Spinoza mediante Goethe. Freud se encontrava, pois, face a face, há mais de quarenta anos de distância, com o "demônio filosófico" que o fascinara. I! a ele que se dirige a recusa monista. O que não impede que Freud tolere Groddeck, introduza-o no movimento, tome-lhe emprestado nominalmente 01 termo: é só a partir de 1926 (data de nosso texto) que começa a ruptura, quando Groddeck edita sua revista L'arche. De fato, jamais houve adesão real de Groddeck à psicanálise: discípulo de B. Schweninger (1850-1924), permanecia um metafísico da psicossomática. O id groddeckiano é, como o inconsciente hartma~ niano, "o princípio comum", que explica de modo indiferenciado todos os fatos, no qual "tudo finaliza", para o qual "tudo converge", o "núcleo central" ao qual tudo vem 61
cristalizar-se (Philosophie de l'inconscient, ed. de 1877, p. 3). 20. Ver infra, cap. V, § 3, H parte. 21. Esta expressão tem uma conotação cientificista que encontramos muito cedo em Freud (infra, cap. V, 2~ parte): cf. o título da grande obra de Ernst Kaecket, Die Riitsel
der Welt. 22. Trad. fr., Payot, Advertência, p. 7: são as primeiras palavras da obra. 23. lbid. 24. E o termo empregado por Freud, G.W., XIV, p. 182. 25. Temos aí a estratégia da refutação freudiana, que consiste alternar a crítica anônima de fundo e a crítica personalizada e particularizada. 26. G.W., XIV, p. 184. 27. lbid., p. 183. 28. Ibid., p. 184. 29. Op. cit., cap. 11, p. 211, n. 1. 30. Ibid. 31. lbid. 32. As Novas conferências nunca foram pronunciadas. 33. G. W., XV, p. 170. 34. Podemos aqui suprir essa idéia e lembrar a definição que dela fornece Dilthey, que fez aceder o conceito à sua dignidade teórica; consiste, diz ele notadamente em A essência da filosofia (1911), "num complexo espiritual que compreende um conhecimento do mundo, um ideal, um sistema de regras e uma finalidade suprema" (Le Monde de l'esprit, trad. fr., Aubier-Montaigne, t. I, p. 380). Trata-se de tipos de interpretação do real e de decupagem da imagem do mundo correspondendo a outros tantos modos de estruturação da vida psíquica e de confjgurações históricas: "A religião, a arte e a filosofia, escreve Dilthey, possuem uma fonna fundamental comum" (op. cit., p. 387); eis a trilogia retomada por Freud no texto. Assim, esse conceito articula uma tríplice determinação: psicológica, historicista e vitalista. 35. G.W., XIII, p. 427. 36. Extrato do poema Die Heimkehr (1826) nas Buchlieder. A frase visa Hegel, que Freud considera como tipo mesmo da especulação no mau sentido do termo. Deve-se notar
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que, numa carta a Martha Bernays, de 25 de outubro de 1883, ele evoca seus trabalhos sobre o sistema nervoso como devendo chegar à hipótese de que haveria "verdadeiros buracos na organização do universo" ( Correspondance, Gallimard, p. 84 ). Portanto, muito cedo Freud evoca Heine em apoio a essa visão científica descontinuísta. 37. G.W., XVII, p. 80. 38. Sobre a significação profunda desse modelo de representação da relação de conhecimento, ver infra, cap. V, 2~ parte. 39. Sobre o sentido dessa aproximação, ver infra, cap. V. 2ª' parte: Brücke legou a Freud um fisicalismo que ele perpetuará à luz do confronto com a física do século XX ( cf. a carta a Einstein) .
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Capítulo DI METAPSICOLOGIA E METAF1SICA Ao excluir a especulação filosófica como seu contrário absoluto, a ciência psicanalítica esbarra, não obstante, com um problema particular: o da relação interna de sua parte empírica (fundada na observação) e de seus principias diretrizes que constituem, de certa forma, sua parte especulativa. Sendo assim, a psicanálise deve confrontar-se com a especulação filosófica que, até então, só reconhecia para demarcar-se dela. Essa parte especulativa da ciência psicanalítica outra coisa não é senão o que Freud chama de a "metapsicologia". Portanto, convém determinarmos seu sentido e seu conteúdo, e colocarmos o problema de sua relação com seu falso alterego, a metafísica. Por esse atalho, o debate com a filosofia, que parecia tão bem regulado, reintroduz-se pelo simples risco de confusão, tornado possível pelo conceito freudiano de metapsicologia. 1.
cmNCJA DA NATUREZA E ESPECULAÇÃO PSICANALITICA: A METAPSICOLOGIA
O que se encontra em questão, é o estatuto preciso desse tipo de Naturwissenschaft que é a psicanálise, aos olhos de Freud. O que lhe confere essa qualidade não poderá ser procurado do lado do caráter natural do objeto, posto que ela versa
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sobre a esfera psíquica, mas do lado do nwdo de tratamento epi$têmko do objeto. f: como objetos de conhecimento que os processos inconscientes são susceptíveis de um modo de tratamento homólogo ao modelo físico-químico. Ao mesmo tempo, porém, que postula essa assimilação, Freud convida-nos a pensar uma especificidade da racionalidade epistêm.ica própria à psicanálise. Podemos atingi-la através do problema-chave da epistemologia freudiana: o estatuto dos conceitos fundamentais (Grundbegriffe) que toda ciência natural é levada a postular para tomar possível sua investigação dos fatos. Ora, é através deles que se coloca o problema central da cientüicidade: a articulação entre a dimensão especulativa ou racional e a dimensão empírica ou factual da construção científica. I! a propósito dessa questão do estatuto heurístico dos Grundbegtitfe que se realiza o confronto da démarche psicanalitíca com a filosofia. Vemos isso claramente em As resistencias à psicanálise. Trata-se, nesse escrito, de mostrar como os motivos opostos de resistência à psicanálise se acumulam; mas também é a ocasião de se evidenciar o estatuto misto do regime epistêmico da própria psicanálise. Contra a oposição determinada da medicina, a filosofia é introduzida como um recurso legitimamente esperado: a oposição médica, fundada nos requi~ sitos empiristas, à doutrina analítica, poderia levar-nos a "pensar que a nova doutrina deveria encontrar um assentimento mais fácil entre os filósofos"1, na medida em que "estes estavam certamente acostumados a colocar conceitos abstratos em suas explicações do mundo e podiam aceitar o inacreditável impulso à extensão do domínio da psicologia, à qual a psicanálise abria o caminho". Assim, a filosofia dispõe de dois elementos que a põe em condições de ultrapassar os limites do empirismo da medicina dominante e de compreender a revolução analítica: o manejo de um instrumental conceitual abstrato, que toma possível uma ultrapassagem da imediatez factu al e a abertura de imensas perspectivas dos campos de objetos tradicionais - a primeira aquisição tornando possível a segunda. E essa estiagem da conceítualização que deveria aproximar psicanálise e filosofia. A estreiteza da concepção médica da metodologia das ciências naturais justifica a evocação da dimensão especulativa. Mas de forma alguma se deve concluir daí que a filosofia serve para corrigir ou para completar o modelo epistêrnico da NatUTwlssenschaft, o que implicaria em eliminá-lo. Com efeito, Freud
discrimina precisamente o estatuto filosófico dos Grundbegriffe do estatuto psicanalítico, introduzindo uma diferença de natu~ reza e de função entre esses dois tipos de conceitos fundamen~ tais. O Grundbegri{fe filosófico traduz a exigência de apriorismo radical: exprime, assim, o projeto de dedução universal a partir de certos "postulados" ou "pressupostos" ( Voraussetzun~ gen) . .E, essa pré-posição de princípios primeiros que a psicaná~ líse recusa. Todavia, contra a estreiteza da ciência médica empírica, que se fixa uma vez por todas na esfera dos fatos ( Tatsachen) e no mundo da percepção ( Wahrnehmungswelt), a psicanálise descobre a exigência de recorrer a conceitos globalizantes para explicar os próprios fatos. Reconhecemos, assim, a exigência que deu origem a essa realidade epistêmica original e específica que é o conceito metapsicológico. Esse texto de 1925 é interessante, porque atribui à psicanálise uma posição intermediária (Mittelstelung) entre a medicina e a filosofia, enquanto se inscreve no cruzamento do mundo das ciências da natureta e da exig2ncia especulativa. Uma confirmação negativa desse fato é a oposição da medicina e da filosofia à psicanálise: enquanto "o médico a considera como um sistema especulativo, e não pretende crer que ela repousa, como todas as outras ciências da natureza, na manipulação paciente e laboriosa dos fatos do mundo da percepção", "o filósofo, que a julga segundo o parâmetro de suas formações sistemáticas artisticamente construídas, aaedita que ela procede de pressuposições impossíveis, e censura a falta de clareza e de precisão de seus mais elevados conceitos". Con~ tudo, essa du pia censura exprime uma dupla verdade através de uma dupla recusa: é verdade que a psicanálise não poderá constituir um sistema, porque seus conceitos de base, enquanto instrumentos heurísticos, encontram-se em constante evolução, posto que só servem para informar uma investigação dos fatos. Mas não é menos verdade que a Naturwissenschaft psicanalitica deve confrontar-se resolutamente com a exigência de uma "superestrutura especulativa", sem dever incorrer na acusação de "sistema especulativo" emanando de uma cientificidade mal compreendida. Quer dizer que a psicanálise constituiria uma síntese da filosofia (por sua parte especulativa) e da ciência médica (por sua parte empírica)? Essa representação é diretamente oposta à concepção freudiana. Em primeiro lugar, a psicanálise per-
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manece fundamentalmente uma ciência da natureza; portanto, recusa, uma vez por todas, a deformação especulativa; e ao evocar os "conceitos abstratos" dos filósofos, Freud acrescenta entre parênteses: "As más línguas preferem dizer: palavras in~ determinadas"2 • Porque a abstração filosófica contém incessantemente, aos olhos de Freud, por sua tentação de emancipação dos fatos, este perigo retórico inerente à "má abstração". En~ xertada na experiência que lhe serve de referente constante, a abstração psicanalítica (a do conceito metapsicológico) possui uma função inteiramente oposta: constitui a "boa abstração", sempre revisável, posto que só obtém sua validade de sua função heurística, o que a opõe ao Grundbegrijj filosófico, dotado de uma objetividade intangível, porque imanente à sua própria racionalidade (e é nisso que consiste o "apriorismo"). O erro médico é o de confundir essas duas funções. Donde a acusação que se faz a Freud de especulatividade. Assim, é simultanea~ mente que Freud define sua especificidade por recusa da especulação e rejeição da falsa analogia com a especulação filosófica. No Esboço de psicanálise, fica comprovado que é através dos Grundbegrilfe que se realiza o estatuto epistênúco da psicanálise. A "compreensão da esfera de fenômenos naturais" com que se ocupa a psicanálise supõe a instauração de um aparelho conceitual: "Isto não pode ocorrer, pode-se ler no capítulo IV, sem novas hipóteses e sem a criação de novos conceitos"3 • Tais conceitos de base constituem ao mesmo tempo o limite da compreensão na esfera considerada e aquilo que torna possível toda a compreensão dos fenômenos particulares; quer dizer: não são puramente formais, enquanto expressão de um nec plus ultra do conhecimento, mas definem-se por sua capacidade explicativa. B neste sentido que Freud declara que eles "não devem ser desprezados como provas de nosso embaraço, mas apreciados como enriquecimentos da ciência". Os Grundbegrilfe da psicanálise são assimiláveis às noções de base postuladas por toda ciência da natureza; trata-se, pois, de "construções intelectuais suplementares" (intellektuelle Hilfskonstruktionen), ''dotadas de um valor de aproximação", portanto, susceptíveis de uma "determinação mais precisa" por "uma experiência acumulativa e seletiva". Donde a sã indeterminação desses conceitos de fundo, oposta à sobredeterminação dos conceitos filosóficos. A riqueza e à perfeição pretendidas
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destes, opõe-se a precariedade daqueles. Freud relaciona explicitamente os conceitos de base da psicanálise (cita a pulsão e a energia nervosa) com seus homólogos físico-químicos (força, massa, atração) : uns e outros só possuem valor pelos fenômenos que permitem compreender-4. Por conseguinte, Freud parece querer manter o equilíbrio entre duas posições: a que achataria a psicanálise em sua base empírica e a que implicaria uma descontinuidade entre a psicanálise e as outras ciências da natureza . Do primeiro ponto de vista, ele afirma vigorosamente a necessidade de um instrumental conceitual fundamental; do segundo, limita sua função a uma exigência geral das ciências da natureza. Ora, é aí que se situa o problema: a parte especulativa da psicanálise constitui o indício de uma especulatividade particular da psicanálise, ou só é a expressão de um requisito epistemológico? A resposta a essa questão passa pela elucidação do sentido e da natureza da metapsicologia freudiana. Percebemos em que sentido isso coecerne à filosofia : se concluirmos por uma especulatívidade da psicanálise, a metapsicologia deve aparecer como o reinvestimento de um projeto metafísico; se vinnos nela um simples aparellio conceitu~l, muda de sentido a analogia entre metapsicologia e metafísica. 2.
A GENESE DA METAPSICOLOGIA E SEU SENTIDO
Na medida em que se trata de determinar o sentido da metapsicologia para Freud, convém não partirmos do conteúdo apresentado pelo conceito sob suà última forma, a mais acabada tecnicamente, mas interrogannos sua gênese complexa a fim de detectar como se institui uma necessidade determinada que se nomeia através do conceito. Através das flutuações desse conceito, trata-se de apreender a exigência que procura significar-se. Que essa e;~Cigência seja contemporânea da fundação freucliana, é o que atesta a correspondência com Wilhelm: Fliess. Numa carta de 12 de dezembro de 1896, Freud a evoca em termos notáveis: "Meu filho ideal, meu filho-problema: a metapsicologia"5. Esses termos uaduzem um verdadeiro investi· mento afetivo de Freud em sua própria clisciplina, que materializa algo de essencial. Filho, porque já considera essa disciplina
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como aquilo que lhe é o mais intimamente ligado, como o rebento que ele abriga amorosamente. Mas filho ficticío, problemático e ideal; filho virtual de quem não sabe se vai dar à luz, nem mesmo o que ele é; filho sobre o qual pesa a suspeita de monstruosidade, mas que também contém a promessa capital de realização da psicanálise como um além que condiciona a realização de sua verdadeira identidade. Filho secreto e oculto: "Muito além dessas considerações (sobre as aquisições particulares da psicopatologia), dissimula-se meu filho ideal, meu filho-problema: a metapsicologia" - filho suspeito de ilegitimidade, mas que ele alimenta "nas profundezas" de si mesmo. Ora. na origem, a metapsicologia está identificada como a expressão de seu projeto filosófico pelo jovem Freud. Neste sentido, a medicina fornece o trampolim ao mesmo tempo que o modo de realização desviado da exigência especulativa: "Constato, escreve a Fliess em 19 de janeiro de 1897, que, pelo atalho da medicina, você atinge seu primeiro ideal que é o de compreender a fisiologia humana. Para mim, alimento nas profundezas de mim mesmo a esperança de alcançar, pelo mesmo caminho, meu primeiro objetivo: a filosofia. É a isso que eu aspirava inicialmente antes de ter bem compreendido por que estava no mundo" 6 • Aqui, uma originalidade absoluta é conferida à exigência filosófica; essa originalidade, segundo a representação que dela faz Freud, seria reinvestida na medicina, a metapsicologia constituindo uma formação de compromisso entre a finalidade e seu órgão. .S o que confirma a carta de 2 de abril de 1896, onde Freud declara: "Em meus anos de juventude, só aspirei aos conhecimentos filosóficos, e agora estou prestes a realizar esse desejo, passando da medicina à psicologia"7 • 1:: a ampliação psicológica da démarche médica (de onde nasçerá a psicanálise) que é apresentada aqui como a realização do desejo filosófico. Desta forma, Freud, antes que chegue o momento das denegações8 , apresenta-se como o filósofo défroqué (que abandona a batina) que reinveste sua crença primeira numa nova linguagem: a da ciência. A metapsicologia se inscreve, pois, no cruzamento do desejo especulativo e da prática científi~ ca. "Foi contra meu desejo, declara na mesma carta, que me tornei terapeuta"; quer dizer: só negativamente a exigência especulativa era primeira. Ora, não é fortuitamente que essa
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confissão é feita no momento de uma solicitação de Freud pedindo a seu correspondente que "prestasse atenção a certas questões metapsicológicas", vale dizer, que ouvisse sua verdadeira linguagem: a que dá corpo ao desejo especulativo recalcado. Todavia, essa libertação do desejo especulativo supõe que sejam depositadas no crédito da pesquisa psicológica as aquisições da investigação médica, dotadas, por isso mesmo, de uma forma de unificação. A ssim, a "metapsicologia" define menos um campo de objetos que indica uma dupla ambição: "Duas ambições me devoram, confia Freud a Fliess desde o dia 23 de ntaio de 1897: descobrir que forma assume a teoria do funcionamento mental, quando nela introduzimos a noção de quantidade, uma espécie de economia das forças nervosas e, em segundo lugar, tirar da psicopatologia certo proveito para a psicologia mental" 11• Portanto, é a quantificação do psiquismo que fornece a ch ave da unificação e que, subseqüentemente, possibilita-nos vincular os processos patológicos às leis de funcionamento normal do sistema psíquico, atingindo, assim, uma meta~psicologia .
O "meta", compreendido em "metapsicologia", vai pre~ cisar-se como designando o fundamento arqueológico do psiquismo, vale dizer, o inconsciente. Ê o que pode ser notado na carta de 10 de março de 1898 onde, afirmando a necessidade de completar a teoria dos sonhos por uma teoria arqueológica do in consciente, fundada na hipótese de um período pré-histórico fantasmático, Freud estabelece a oposição psico-/metapsico-lógica: "Parece~me que a explicação para a realização de um desejo proporciona uma solução psicológica, mas nenhuma solução biológica, pois é antes de tudo metapsicológica"10 • A metapsicologia constitui, pois, essa "psicologia que penetra no pano de fundo do consciente" 11• Ê exigida para conferir sua linguagem a essa transobjetividade constituída pelos processos inconscientes12• O imediato, porém, a metapsicologia é suspeita aos olhos do próprio Freud, como se fosse herdeira da suspeita relativa ao desejo especulativo cuja satisfação possibilitara. Isto assume a forma de um questionamento do termo. Se, em 1897, após o fracasso da teoria da sedução sob sua primeira forma18, Freud declara que "dá sempre mais valor a seus inícios na metapsicologia" (carta de 2 1 de setembro) 14, levanta uma
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dúvida, no ano seguinte, sobre a legitimidade do termo mesmo. E a prova está neste parênteses que surge na carta do dia 10 de março de 1898, citada mais acima: "Aliás, é preciso que você me diga seriamente, se posso atribuir à minha psicologia, que penetra no pano de fundo do consciente, o nome de meta~ psicologia" 15 • Todavia, em 1899, emprega sempre o termo para designar esta parte da ciência dos sonhos que completa as considerações factuais sobre "a orgânica sexual" e os dados clínicos ( cf. carta de 22 de setembro )15 • Convém não nos esquecermos de que tudo iss·o foi formulado no contexto de uma correspondência particular; se nos reportarmos à obra publicada de Freud, devemos constatar que, entre 1900 e 1915, o termo fica ostensivamente interditado. Aparece apenas no último capítulo da Psicopatologia da vida quotidiana. Todavia, este curto texto é valioso para nosso propósito, na medida em que confronta explicitamente a metapsicologia com a metafísica. Freud, em seu capítulo XII, propondo-se a esclarecer o sentido do recurso às mitologias e às religiões, para uma realidade supra-sensível, por uma "psicologia do inconsciente" t vai definir esta psicologia pelo ato de "traduzir a metafísica em metapsicologia"l 7 • A fim de compreendermos em que consiste essa "conversão" ( Umsetzung), convém vermos nela um processo de três tempos: - Em primeiro lugar, há o dado psíquico inconsciente : o sujeito é o lugar desse dado que, fundamentalmente, ele desconhece. Não obstante, há nm modo de conheciD,lento dessa realidade interna : é o que Freud designa como "percepção endopsíquica". Trata-se do "obscuro conhecimento" que o su~ jeito possui dos "fatores" e das relações inconscientes que o fazem agir e forjam sua identidade. - Em segundo lugar, esse obscuro conhecimento é objetivado, por projeção no mundo exterior: "reflete-se na construção de uma realidade supra-sens(ver'. Nascem, assim, as "concepções mitológicas do mundo" que "outra coisa não são senão uma psicologia projetada no mundo exterior". - Enfim, a ciência analítica intervém para "retransformar'' ( zurückwandeln) essa realidade em "psicologia do inconsciente".
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Esse processo de três tempos (psicológico, metafísico e metapsicológico) merece ser avaliado com precisão. O que é notável, é que a psicanálise, enquanto meta-psicologia, só é possível como trabalho de re-trans/ormação em relação ao trabalho prévio de transfor11UlÇão efetuado pelo próprio psiquisnw em seu elemento próprio. Portanto, o que a toma possível, é a tendência à objetivação imanente ao trabalho do psiquismo, que tende a materializar o conflito psíquico ao representá-lo a si obscuramente ( cf. primeiro tempo), em seguida, tomando-o manifesto em suas objetivações ( cf. segundo tempo), portanto, acessível a uma investigação objetiva que se denomina metapsicologia (terceiro tempo) . A metapsicologia não constitui, pois, certo ponto de vista transcendente que viria prolongar esse outro ponto de vista transcendente que é a metafísica (o que poderia levar a crer uma leitura isolada da fórmula). Constitui a forma de apreensão apropriada a esse tipo de objetivação que é o modelo de funcionamento psíquico. Em outras palavras, é porque o dado imanente tende a sublimar-se encarnando-se num artefato transcendente ( über-sinnliche Realitãt), que a metapsicologia é possível. A metafísica sofre, pois, uma redução de sua pretensão à transcendência : ela não passa da linguagem, em outro código, da mensagem psicológica. A metapsicologia é a linguagem mediadora que, ao retraduzir essa mensagem, fornece sua verdadeira significação, mas rica de suas mediações simbólicas (metafísicas). Portanto, a metafísica torna possível a metapsicologia, no sentido em que possibilita revelar, numa formação estruturada e numa linguagem determinada, o programa psíquico que passa a existir através dela enquanto objetividade. S6 que é preciso retraduzir o significado psíquico que se exprimiu uma primeira vez no significante lógico-metafísico. o que obteremos, no final do tratamento metapsicológico inicial, porém, não mais em sua versão subjetiva confusa do começo: a objetivação metafísica deve ter tornado possível a objetivação científica do dado psíquico. Todavia, enquanto ela deve integrar a mediação no primeiro grau (metafísico), não pode ser uma psicologia pura e simples, mas uma metapsicologia. Mediação no segundo grau, a metapsicologia, por um trabalho sobre a versão metafísica do dado psicológico, fornece a verdade do dado psicológico e o sentido de sua linguagem metafísica ao mesmo tempo. Linguagem no terceiro grau, a metapsicologia
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esclarece a realidade psicológica através de sua expressão metafísica ao mesmo tempo falsificadora e reveladora. Vemos em que sentido a metapsicologia passa pela metafísica, mas também em que sentido ela anula sua pretensão por isso que a absoluta fornecendo sua chave psicológica. psicologia do inconsciente é uma meta-psicologia: não se deve introduzir a transcendência nessa ciência por intermédio do "meta" que, conforme esse texto, conota o atalho pela transcendência (meta-física), mas que é, simultaneamente, resolução da transcendência como ilusão e despiste, na psicologia imanente do inconsciente. Este texto, porém, importante em si mesmo, inaugura um silêncio que perdura por uns dez anos. Tudo se passa como se o empreendimento de construir essa disciplina capital tivesse sido adiado por Freud. Ora, numa carta a Jung, datada de 12 de fevereiro de 1911, Freud anuncia bruscamente que se encontra "gestando uma grande síntese"1$, cujo plano prevê para o verão de 1911. Mas é somente no dia 15 de março que começa sua redação: eis a "Metapsicologia" propriamente dita de Freud19, vale dizer, a suma escrita com um sentimento de exaustividade e com uma rapidez que nos levam a crer que Freud havia longamente amadurecido suas aquisições em silêncio20. Tudo se passa como se Freud tivesse redigido essa série de ensaios com a consciência de uma síntese final de suas teses21• Mas não poderia tratar-se de um sistema (cf. as recusas determinadas, cap. U). :B por isso que, tanto por esse conjunto de circunstâncias quanto pela lógica da relação de Freud com sua metapsicologia, não poderemos encontrar aí uma exposição completa das generalidades metodológicas ou qualquer "introdução geral" permitindo-nos cernir a definição global de sua démarche. A disciplina fica toda presa às suas aplicações particulares. Não obstante, podemos manter o início do primeiro ensaio, Pulsões e destinos das pulsõe~ como o lugar onde Freud, introduzindo seus trabalhos, apresenta a natureza e a função da metapsicologia. Portanto, é a esse texto que convém nos dirigirmos para determinar o mais exatamente possível como, no dizer de Freud, ela se articula com a necessidade filosófica de onde se origina, em cima, e com as exigências científicas a que permite satisfazer, embaixo.
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Com tal objetivo, trata-se de reconstituir como se instauram os níveis sucessivos da metapsicologia. O primeiro tempo consiste na recusa do formalismo axiomático e na afirmação correlativa do primado da descrição dos fenômenos: "Freqüentemente ouvimos formular a exigência segundo a qual uma ciência deve ser construída sobre conceitos fundamentais claros e nitidamente definidos"23• Ora, trata -se de um requisito racional que tem relação com uma abordagem lógica no sentido formal do termo. A prática científica ( wissenscha/tliche Tatigkeit), sem infirmar essa exigência, vai adiante, no sentido em que não tem necessidade que ela seja satisfeita para funcionar e produzir seus resultados. Se nos colocamos, assim, do ponto de vista da efetividade da prática científica, constatamos que "nenhuma ciência começa com tais definições". Freud tem o cuidado de precisar que as ciências "as mais exatas" não constituem exceção, o que significa que essa ausência de termos definidos não constitui, de forma alguma, uma carência explicável pelo menor rigor de ciências determinadas. Com efeito, a exatidão positiva de uma ciência de forma alguma é proporcional à sua retidão formal. O regime da lógica científica infirma, pois, a necessidade da pré-posição de termos perfeitamente definidos, em que consiste o regime lógico~formal. Ora, essa exigência é tipicamente filosófica ( cf. o texto das Resistências à psicanálise, supra citado). Se não bá, para a ciência, começo lógico absoluto, seu ponto de partida efetivo deve provir de fora, vale dizer, da consideração dos dados: "O verdadeiro começo da atividade científica consiste, antes, na descrição dos fenômenos,. A racionalidade intervém depois, para introduzir relações: os fenômenos são, em seguida, agrupados, ordenados e inseridos em relações", segundo a démarche habitual das ciências da natureza. Todavia, desde a descrição dos fenômenos, Freud tem o cuidado de despistar o uso de instrumentos conceituais que os submetem desde o início a uma primeira elaboração - a noção mesma de Material implica a idéia de um material imediatamente submetido a um tratamento: "Desde a descrição, não podemos evitar de aplicar ao material certas idéias abstratas que extraímos um pouco de toda parte, embora não certamente da experiência inédita", ou seja, não elaborada e, de certa fonna, virginal24• Ora, essas formações conceituais abstratas, improvisadas para introduzir uma ordenação mínima no real,
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sem pretensão à objetividade mas a um uso pragmático, nem por isso constituem simples projeções; sua necessidade vai se tornando precisa à medida que progredimos na elaboração: "Tais idéias são ainda mais indispensáveis ( ... ) na elaboração da matéria-prima". Constituem, pois, o embrião dos "conceitos fundamentais da ciência", desses famosos Grundbegriffe, cuja necessidade formal havíamos recusado, enquanto pressupostos, mas que iremos reencontrar, no final do processo de Verarbeitung ou tratamento científico, como produtos. Portanto, uma vez mais, é o estatuto desses conceitos de base que é designado como o desafio essencial da metapsicologi.a; e tudo indica que sua natureza está ligada à sua função no processo de conhecimento. Eles se constituem no decorrer da laboriosa metamorfose do objeto e ganham objetividade à medida que o conhecimento conquista sua objetividade. Compreendemos sua importância: são o teste da objetivação bem sucedida. Sua perfectibilidade, freqüentemente ressaltada, funda-se na progressividade do processo gnoseológico. Donde sua pobreza inicial, que contrasta com sua riqueza de determinações final: "devem comportar, no início, certa quantidade de indeterminação". Isto legitima a confusão inicial: servimo-nos deles sem dizer claramente a que se aplicam. Não há determinação clara dos limites compreensivos: à guisa de esboço, temos apenas uma silhueta. Essa colocação metodológica entre parênteses do "conteúdo" vai reduzi-los, em última instância, a convenções; e é aí que se revela seu caráter misto e ambíguo. Podemos afirmar sua validade "colocando-nos de acordo quanto à sua significação". por um consenso convencional; ao passo que tendemos a fortalecê-los "pela referência repetida ao material da experiência". Mas essa dupla démarche evita o duplo obstáculo do convencíonalismo 2 ~ e do empirismo. Freud, com efeito, faz essa observação fundamental: o material empírico, ao qual "parecem ser tomadas de empréstimo" essas idéias fundamentais, "lhes é, na realidade, submetido". Elas possuem, pois, um papel diretriz. Mas isto supõe também que, desde a origem, a racionalidade heurística possua um caráter ativo tornando fictício o ponto de partida puramente empírico. Só que, o que determina a escolha dessas idéias diretrizes é sua riqueza expressiva em determinações empíricas; e é isto que legitima o uso de convenções sem cair no convencionalismo: "Elas possuem, pois, rigorosamente falando, o caráter de con75
venções; tudo depende do fato de não serem escolhidas arbitra~ riamente, mas determinadas em função da importância de suas relações com os materiais empíricos". O trabalho científico não consiste, pois, em passar de um dado bruto a conceitos puros, mas em racionalizar formas relacionais inicialmente percebidas "intuitivamente": "Estas relações, podemos adivinhá~las antes mesmo de conhecê-las e de demonstrá-las". Temos aí a função antecipadora da racionalidade: ":S somente depois de um exame mais aprofundado do domínio de fenômenos considerado, que podemos conc~ber mais precisamente os conceitos científicos fundamentais". Inaugura-se, então, o terceiro e último tempo da gênese meta-psico-lógica : a construção dessa espécie de axiomática concreta25 que não é outra coisa senão a metapsicologia propriamente dita. Para tanto, convém especificar os conceitos, modificando-os progressivamente para adaptá-los às exigências da pesquisa. Porque se trata de instrumentos conceituais que devem ser "utilizáveis em largas esferas e, por isso mesmo, livres de toda contradição". A não-contradição não é, pois, postulada, como na lógica formal (que constitui também o ponto de vista filosófico para Freud), mas conquistada pela instrução da objetividade. Um conceito não contraditório é tal, que não entra em contradição com um aspecto ou com uma série de aspectos do real. Eis o verdadeiro conceito metapsicológico, que se opõe ao conceito especulativo, inevitavelmente abstrato, posto que produzido para tornar possível uma totalização que supõe o nivelamento dos níveis do real e a superestima simultânea dos aspectos do real que confirmam essa totalização em detrimento dos outros. A definição metapsicológica se opõe, correlativamente, à definição filosófica pelo fato de vir em último lugar na elaboração conceitual: "é este o momento, diz Freud, de encerrá-los em definições". Embora observe que essa fixação não culmina numa absolutização: mesmo formalizados, os conceitos metapsicológicos permanecem, por definição, perfectíveis, porque vinculados ao "progresso do conhecimento", que "também não tolera rigidez nas definições". Segundo Freud, a psicanálise vai encontrar na física contemporânea27 um modelo importante: esta "ensina de modo surpreendente" que "até mesmo os conceitos fundamentais que foram fixados nas definições, vêem seu conteúdo constantemente modificado". Essa aproximação
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mostra que Freud inscreve a psicanálise no paradigma epistemológico que se estruturou no início do século XX segundo o modelo da física relativista28• Isto vem mostrar claramente que a indeterminação relativa e a revisabilidade dos conceitos fundamentais, longe de serem incompatíveis com o rigor científico, condicionam-no necessariamente. Isto confirma, enfim, que Freud concebe o recurso à superestrutura conceitual da psicanálise (da metapsicologia em seu sentido técnico estrito) como um requisito genérico das Naturwlssenachaften. Em 1915, o conceito freudiano de metapsicologia transpôs o limiar decisivo da maturação técnica. Aos olhos de Freud, ela completou sua gênese. Encontramos no ensaio sobre O inconsciente a definição técnica do conteúdo da metapsicologia, que ele vai considerar para sempre válida: "Proponho falar de apresentação metapsicológica quando conseguimos descrever um processo psíquico sob as relações dindmica, tópica e econômica"29. Mas o problema do sentido da metapsicologia, para Freud, o único a nos interessar aqui, possui uma solução menos simples, porque não formulada pelo próprio Freud. Inicialmente, podemos notar que essa definição técnica define o termo por três outros de que seria a soma, e não em si mesmo, e que ela só é dada no decorrer do desenvolvimento, a título de definição operatória. Por outro lado, Freud acrescenta que, "no estado atual de nossos conhecimentos", .csobre pontos isolados", só é possível uma descrição integral desse tipo. Mas é sobretudo o problema da filiação do primeiro conceito de metapsicologia (o da correspondência com Fliess) ao segundo (o dos ensaios de 1915 e seguintes) que é decisivo. Não se trata, aqui, de uma enquete terminológica de curiosidade, mas de uma elucidação essencial interessando à identidade te6rica da psicanálise e à sua relação com a filosofia. Com efeito, a "metapsicologia", neologismo forjado por Freud, designa uma exigência sob sua primeira forma; e quando é o mais preciso, um objeto: o meta-consciente ou inconsciente. Sob sua segunda forma, designa uma realidade epistêmica precisa de três dimensões e uma metodologia. Conquistou, pois, sua dignidade epistemológica, e, de busca requerida por um objeto a constituir, tornou-se uma técnica heurística. Ora, ao tecnicizar-se, a m.etapsicologia remeteu ao plano secundário o problema essencial de seu sentido teórico, o que parece ser o desejo mesmo
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de Freud. No entanto, tudo se passa como se seu conteúdo não esgotasse seu sentido. Sob sua primeira forma, o conceito designava ao mesmo tempo mais e menos que sob sua segunda forma: menos, porque seu conteúdo era flutuante e muito compreensivo, ao passo que o conceito técnico é bem circunscrito e fixado; mais, porque Freud nele engajava a integralidade de sua investigação, ao invés de fazer dele uma parte localizada. Para responder à questão formulada acima, tudo se passa como se a metapsicologia, originariamente vivida por Freud, como o indicam suas cartas a Fliess, como um reinvestimento do projeto filosófico originário, tivesse sido redefinida, com a emergência da prática psicanalítica (nn virada do século), e, correlativamente, tecn.icizada (como se pode notar no capítulo VII de A interpretação de sonhos8° ao texto citado de A psicopatologia da vida quotidiana) pai a converter-se, finalmente, em requisito epistemológico, o que fica consumado com os ensaios de 1915. . Precisamos notar, não obstante, como um sintoma revelador, a ausência de uma "Metapsicologia" na obra de Freud, tornada mais surpreendente pela riqueza dos escritos teóricos e sua abundante diversidade; melhor ainda, a fragilidade dos critérios permitindo catalogar os escritos particulares comó "rnetapsicológicos"31 • Isto porque, apesar de sua precisão téc~ nica inegável, o conceito opôs uma resistência secreta mas irredutível à tecnicização integral. Também é por isso que não há manifesto metapsicológico e que a própria noção não é teorizada em si mesma. Podemos, pois, nos perguntar se a palavra não serve para definir pelo menos dois tipos de realidades para Freud: uma exigência especulativa e uma técnica epistêmica (no sentido precisado acima). Não obstante, couvém distinguirmos duas questões. Que a segunda seja derivada da primeira, é um fato inegável: a homonímia é aqui decisiva. Freud inegavelmente rein~ veste seu projeto especulativo em seu interesse epistêmico". Mas de forma alguma isso põe em questão a autonomia do nível epistêmico. Quer dizer: não poderíamos reduzir a meta~ psicologia, sob sua forma elaborada, a um revestimento cientí~ fico de especulação, como uma espécie de metafísica inconfessável. A discriminação das démarches, quanto ao estatuto dos Grundbegrijje, mostrou o fundamento da heterogeneidade
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entre metafísica e metapsicologia. Eis o duplo dado do problema da metapsicologia freudiana em seu confronto com a especulação filosófica. Ela dá o espetáculo de uma construção epistêmica, lógica e geneticamente ancorada num projeto filosófico, mas que se constitui por desmembramento e, finalmente, por descontinuidade radical e motivada em relação à origem filosófica. Assim, se rompemos com a tentação de reduzir a metapsicologi.a freudiana a certo sucedâneo regressivo da metafísica, teremos também confirmado sua ambivalência, fundada na bipolaridade de seu sentido e de seu conteúdo, de sua origem e de seu acabamento. É aí, em todo caso, que se estabiliza, por assim dizer, o jronl entre psicanálise e filosofia, sobre sua primeira . vertente32 , Na metapsicologia, declaram-se, com efeito, a reivindicação de uma diferença radical e a ambigüidade de uma origem renegada e de uma tentação superada. Como pensar a possibilidade, interna ao pensamento freudiano, dessa origem especulativa ao mesmo tempo sofrida e superada, de uma metapsicologia que não pode ser uma nova metafísica, porque nasceu simultaneamente do desejo e da recusa radical da metafísica, é o que pode nos ensinar outro nível da análise. De fato, a metapsicologi.a só faz nomear essa bipolaridade e naturalizar essa contradição.
NOTA
G.W., XIV, p. 103. Op. cit., ibid. G.W., XVII, pp. 80-81. Já mencionamos a analogia fisicalista um pouco acima, na última nota do cap. II, ll!- parte. 5. Citado por Jones, t. I, p. 325. 6. lbld. 1. 2. 3. 4.
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Ver La nalssance cit Ía psychanaíyse, P.O.f ,, 1973, p. 14~, e Correspondance, carta n9 11 O, Gallimard, p. 245 ~ citado por Jones, t. I, p. 381. Ver os indicios dessa segunda palavra na introdução do presente ensaio. Citado por Jones, t. I, p. 381. a. L'esquisse d'une psychologie scientifique. La naissance de la psychanalyse, p. 218. Op. cit., ibid. Para essa idéia, ver cap. 111 (2~ parte) sobre Kant. Freud começa a pôr em dúvida a realidade da sedução e se vê sobre o caminho da teoria fantasmática (La naissance de la psychanalyse, p. 191) . Op. cit., p. 193. Op. cit., p. 218. Op. cit., p. 255. G.W., IV, p. 288. Citado por Jones, t. 11, p. 197. Trata-se do conjunto de ensaios: Pulsões e destinos das pulsões, O inconsciente, O recalque, Complementos me.. tapsicológicos sobre a teoria dos sonhos e Luto e melancolfa. Cf. as indicações de Jones (t. 11, pp. 197-198): os dois primeiros são concluídos em duas semanas, o terceiro em quinze dias e o quarto em onze. Devem ser acrescentados sete outros ensaios concluídos em agosto de 1915, como se Freud tivesse adiado a síntese. Conforme Jones, Freud "teve o sentimento de ter concluído a obra em vida" e "pensava que toda contribuição ulterior que estaria em condições de apresentar, s6 poderia ser de ordem secundária ou complementar" ( t. III, p. 303). Ademais, Freud pensava não sobreviver à guerra. O conjunto das circunstâncias, como a natureza da metapsicologia, faz com que não haja exposição global, mas um conjunto de produções; portanto, é no início do primeiro ensaio, depois em locais diversos, que encontramos generalidades heurísticas sóbrias, porém densas. G.W., X, p. 210. "Aus der reinen Erfahrung allein", diz o texto, ibUJ.
:H. Cf. a poiêmica constante de Freud contra o ficcionalismo e o convencionalismo. Cf. o papel desempenhado pelos termos primeiros. Outra expressão do fisicalismo de Freud. a . o confronto com Einstein. G.W., X, p. 281. G.W., 11-ll/, p. 513 S. Ver Le vocabulaire de psychanalyse de J . Laplanche e J. Pontalis, P.U.F., 1968, 5~ edição, 1976, p. 239. 32. Para a outra vertente, ver o final do capítulo VI. 26. 27. 28. 29. 30. 31.
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Livro segundo Explicação psicanaütJca da filo110fia Capítulo IV
O SENTIDO PULSIONAL DA FILOSOFIA COMO ATIVIDADE INDNIDUAL Já estabelecemos suficientemente em que Freud descobria, na ''necessidade racional de uma unidade definitiva das coisas" que anima a démarche filosófica, um obstáculo para a psicanálise, pois esta pretende ao estatuto de ciência da natureza autêntica, tanto por seu objeto quanto por seus métodos. Trata-se, no momento, de remontarmos ao fundamento desse obstáculo, vale dizer, de lhe assegurarmos sua ultima ratio. Encontramos aí outro motivo de defesa contra a filosofia, men· cionado por Lou Andreas-Salomé, fazendo eco à palavra de Freud: a raiz antropomórfica da necessidade agindo na filosofia1. Mas essa crítica só tem sentido se percebermos como ela se insere no conjunto da argumentação freudiana, sem o que só poderia constituir uma afirmação gratuita e superficial. Convém, antes, vermos como se faz a passagem, do nível
precedente do discurso freudiano sobre a filosofia, a este. Tudo o que foi dito anteriormente teve por efeito global afirmar a necessidade da separação estrita das fronteiras da psicanálise e da filosofia. Correlativamente, porém, coloca-se a questão de suas relações enquanto "poderes" distintos e autônomos. Se uma palavra mista (filosófico-psicanalítica), qual· quer que seja a forma que ela assuma, é, em si, impossível; se é adquirida a heterogeneidade dos lugares discursivos respecti-
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vos, isto não impede que haja um dizer psicanalitico sobre a filosofia e que, correlativamente, hajam efeitos filosóficos desse dizer psicanalítico. 1.
A PRIMEIRA ESTIMULAÇÃO DA PSICANÁLISE SOBRE A FILOSOFIA COMO SPEZIALWISSENSCHAFT
_um texto preciso exprime essa problemática; é o artigo pubhcado por Freud em 1913 na Revista di Scienza (ou Scie'!tia): "O interesse da psicanálise2 • Este artigo é um teste preciOso, posto que Freud, preocupado em definir a fecundida· de da jovem ciência e em assegurar-lhe o reconhecimento no campo do saber, esforça-se por recensear muito didaticamente seus efeitos sobre cada uma das regiões do saber. Trata-se, pois, de definir "o interesse da psicanálise"3 para cada uma das grandes .regiões do saber, em primeiro lugar para a psicologia, em segutda para "as ciências não psicológicas". :I;: nesta segunda p~rte . que, depois da ciência da linguagem e da biologia, da btstón~ da .evolução, da história da civilização, das belas-artes, da soc10logta e da pedagogia, é abordado "o interesse da psica~álise do ponto de vista filosófico" 4 • Portanto, este é o lugar Jdeal para determinar o que a psicanálise pode trazer à filosofia e sob que fo~as elas podem, salvaguardada sua diferença, entr~r em relaçoes. Sendo a filosofia lima região epistêllÚca parttcular - o que Freud chama de Spezialwissenschaft5 não devendo ser entendida como uma ciênda no sentido estrito de Naturwissenschajt, mas como todo modo de conhecimento determina~o. ~u forma de saber sem pressuposto de validade - , t~ata-s~ IDICialmente de descrever a "reação" que o "novo ennqu~tmento de saber", constituída peJa psicanálise, outra Spezzalwissenschaft, provocará sobre ela. O primeiro efeito é conhecido: quebrar o consciencialismo que .cons~tui seu fundamento psicológico. Isto já atesta qu~ a ps~canálise pretende atingir efeitos filosóficos muito precisos. Prectsamos ver de que. ponto de vista a psicanálise "interessa" à filosofia: é exclusivamente pela contribuição de conhecimento que ela representa. Não se trata, pois, de um elo íntimo e privilegiado, mas de um efeito bruto, do tributo de interesse que qualquer saber. particular deve pagar a um afluxo de co·83
nhecimento. Essa contribuição tem por efeito reconstituir a imagem do homem tradicional. O filósofo não pode construir a mesma antropologia como antes das aquisições psicanalíticas. A ciência psíquica do inconsciente, notadamente, obriga-nos a modificar a representação da relação do homem com o mundo e com seu próprio corpo. Mas isto de forma alguma deve ser considerado como o enxerto de não se sabe que concepção do mundo derivada da psicanálise e integrada na filosofia ( cf. supra, cap. li) . O efeito permanece indireto tanto quanto determinante. A psicanálise fornece seus fatos, obriga a filosofia a retificar-se, mas lhe entrega seu uso. :B por sua própria conta que ela deve tirar as lições que encerra a aquisição analítica. S6 que não pode, sem grave inconseqüência, recusar-se a levá-la em consideração. 2.
A SEGUNDA FONTE DE ESTIMULAÇÃO
Freud considera uma segunda fonte de "estimulação" da psicanálise sobre a filosofia. Desta vez, a psicanálise parece elevar suas pretensões, no sentido em que toma a filosofia mesma por objeto: "A filosofia pode ser estimulada sob uma outra relação ainda, pela psicanálise: é quando ela se toma objeto dessa última" 8 • Com efeito, a filosofia não é simplesmente um campo epistêmico, mas uma forma determinada de atividade, especialmente da "atividade de pensamento", de que o indivíduc;> é o su- . jeito. Trata-se, pois, aqui, de uma psicanálise do fzl6sofo: o discurso filosófico é submetido às leis pulsionais da individualidade que opera através dele. Trata-se, pois, de compreender quem é o jil6sofo no sentido psicanalítico. A filosofia é abordada aqui como o produto e a pertença do filósofo. O inst_rumento psicanalítico serve, então, para esclarecer o sentido dessa atividade estabelecendo os fundamentos afetivos da individualidade que exerce a função f ilosofante. Freud, porém, desde o enunciado dessa problemática, especifica a função filosófica precisando que ela possui esse caráter particular de conferir à individualidade, como instância operante, um papel decisivo: "As doutrinas e os sistemas filosóficos são a obra de um pequeno número de homens:, possuindo uma personalidade eminente"7 • :B mesmo essa sobrede84
terminação da personalidade que faz da filosofia um objeto de eleição para a enquete psicanalítica: todo sistema é marcado de uma efígie intelectual. De fato, Freud emprega o termo Auspragung, derivado do verbo auspragen, designando o fato de cunhar moeda, para designar a excelência da personalidade filosofante. Trata-se, pois, para a psicanálise, de detectar essa efígie e de interrogar o sistema à luz de sua relação com a personalidade pulsional que aí se exprime produzindo-a. Freud chama esse exercício de "uma psicografia da personalidade". Esta deve consistir numa tipologia da personalidade, que esboça em sua "grafia" um feixe orgânico de linhas de força que constitui o complexus afetivo considerado. A identidade psicográfica determina, numa unidade, "os elementos de afetividade, os complexos d ependendo dos instintos que devemos postular em cada indivíduo". Trata-se, pois, de recuperar as unidades afetivas de base e as configurações pulsionais que definem a individualidade filosofante. Essa "tópica" afetiva deve duplicar-se de uma "dinâmica" afetiva: "o estudo das transformações e dos resultados finais que decorrem dessas forças instintivas". Assim, será reconstituída a gênese instintiva que, a partir dos elementos de base e dos processos de transformação, produz a personalidade sob sua forma fixa. Trata-se, conseqüentemente, de quebrar a ilusão da obra filosófica como dado natural para ver quais os elementos afetivos que nela se fixam, quais os processos que a trabalham e, em última instância, fazem-na nascer. Bruscamente, a estrutura lógica puramente sincrôrúca é colocada em perspectiva graças à história pulsional: o que parecia um começo absoluto, revela-se um ponto de chegada. Ora, a doutrina ou o sistema filosófico é inseparável da exigência de anonimato correlativa da exigência de universalidade. Seu paradoxo reside justamente, para Freud, no contraste entre essa exigência de universalidade e de objetividade radicais, que aproxima o filósofo do cientista, e essa sobredeterminação da personalidade, que a faz semelhante ao artista e a distancia do cientista: "O papel que desempenha a personalidade do trabalhador científico, observa Freud, é incomparavelmente mais impor:tante na mosofia que em qualquer outra ciência". . Tudo se passa, pois, como se, em virtude de uma lei fundamental da lógica pulsional, a pulsão fosse tão mais determinante quanto se negava como tal. A exigência radical de
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anonimato toma-se, então, o sinal de uma individualidade pulsional tanto mais forte quanto mais tende a mascarar-se. ~ justamente isto que constitui a exemplaridade da filosofia como ilustração dessa lei pulsional. Todavia, devemos distinguir dois modos de abordagem da determinação pulsional agindo na atividade filosofante. Em primeiro lugar , podemos descrever a personalidade do filósofo produtor da obra, vale dizer, descobrir "as relações que existem entre as disposições constitucionais, os destinos de uma pessoa e as obras que essa pessoa pôde realizar em razão de uma disposição parcial". Em outras palavras, podemos mostrar como a obra e, mesmo, a disposição a produzir o tipo de obra, de que a obra particular constitui o exemplar, são deduzidas da personalidade que nela se materializa. Evidenciamos, assim, os desafios pulsionais que tendem a se exprimir na obra e encontram no modo de produção da obra sua linguagem apropriada. Neste sentido, a filosofia constitui uma "escolha de objeto cultural" a ser decifrado segundo as leis da pulsionalidade que nele se exprimem. Em segundo lugar, porém, e correlativamente, ao invés de depositar a aquisição da análise na conta da instância operante, podemos tentar esclarecer a obra mesma. Por um notável atalho, após ter deduzido "da obra do artista a personalidade íntima que se dissimula por detrás dessa obra", uma vez desvendados "os motivos subjetivos e individuais determinando a formação de doutrinas filosóficas", podemos nos servir deles, não somente para melhor compreender a obra em geral, introduzindo nela o pano de fundo pulsional, mas para nela discernir "os pontos fracos do sistema"; entendamos: as asserções que são dadas por objetivas, vale dizer, como o " resultado de uma lógica imparcial", enquanto só fazem exprimir a subjetividade das fantasias que ai tentam encarnar-se, tomando de empréstimo a vestimenta de uma pseudo-ra~ cionalidade. Esse texto revela uma imensa ambição que raramente Freud exprimiu alhures. A psicanálise não se contenta com a função de esclarecer a obra objetiva pela evidenciação de seu pano de fundo subjetivo, mas pretende discernir, no seio dos enunciados cujo conjunto constitui o sistema filosófico, os que são recusáveis, revelando os motivos subjetivos que invalidam sua pretensão à objetividade. Em outros tennos, ao revelar a 86
motivação subjetiva que constitui a "verdade" de tal enunciado com pretensão objetiva, e a particularidade pulsional de tal enunciado com pretensão universal, a análise exerce um papel seletivo sobre os enunciados de um sistema. A objetividade autêntica de um sistema filosófico seria, pois, definível como o conjunto dos enunciados que resistem vitoriosamente a esse trabalho de depuraçiio da objetividade. Mas percebemos também que, por esse segundo aspecto, a psicanálise não possui somente, como no primeiro, efeitos filosóficos, mas uma verdadeira eficácia filosófica. Ela fornece, com efeito, um verdadeiro instrumento crítico para testar a objetividade dos sistemas. Esse texto de Freud, notável por sua audácia, coloca dois problemas importantes quanto às relações entre filosofia e psicanálise. Trata-se, inicialmente, de saber se, pelo alcance dessa última pretensão, não se encontra questionado o princípio cardial da separação dos campos epistêmicos. Poderíamos inferir daí, ou que Freud chega a enfeudar, por esse atalho, a psicanálise na filosofia, conferindo-lhe o estatuto de uma espécie de "técnica auxiliar", complementar da exegética da doutrina filosófica, o instrumento analítico sendo colocado a serviço da inteligibilidade filosófica; ou então, em outro sentido, ele legitima uma verdadeira jurisdição da psicanálise sobre a filosofia, submetendo a objetividade filosófica ao juízo psicanalítico, fazendo depender a validade do enunciado filosófico da avaliação analítica. Em ambos os casos, parece encontrar-se em perigo o princípio da separação dos "poderes''. Freud previne esse contra-senso precisando que ''essa crítica mesma não constitui o assunto da psicanálise", na medida em que "a determinação psicológica de uma doutrina de forma alguma exclui a retidão científica dessa doutrina". Em outros termos, a psicanálise não pode nem pretende fazer mais que caracterizar psicologicamente uma doutrina. Quer dizer que jamais sai de seu campo. No máximo, pode reunir os elementos que permitem fundar a crítica gnoseológica, submetendo-os ao exame da crítica, sem jamais pretender participar dessa crítica mesma. Contudo, essa teoria coloca um segundo problema de fundo. A tarefa da psicanálise consistiria, segundo Freud, em "desvelar os motivos subjetivos e individuais determinando a formação de doutrinas filosóficas, que se supõe possuirem uma
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lógica imparcial, e expor à crítica os pontos fracos do sistema". Assim, podemos distinguir dois tipos de enunciados que correspondem a dois estratos do discurso filosófico : os que cumprem sua função lógica "normal" e os que, por sua origem subjetiva, desempenham uma função apenas pseudo-lógica. Discriminamos, assim, na armadura de um sistema filosófico, "os pontos fortes" - os que estão à altura de sua pretensão lógica - e "os pontos fracos" - aqueles em que se revela a marca da subjetividade deformadora sobre a objetividade lógica. Trata-se, aí, de certa forma, de "fracassos da racionalidade", que a psicanálise, com a ajuda de sua análise pulsional (notadamente psicográfica), poderia detectar. Assim, a relatividade dos interesses particulares permite fazeNe a triagem dos enunciados peudo-lógicos e lógicos. A pura logicidade de um sistema (o que nele é própria e objetivamente filosófico) seria constituída pelo conjunto dos enunciados que resistem à desqualificação, conforme o critério da origem subjetiva. Este texto apresenta o interesse de indicar a precisão da ambição freudiana quanto à investigação analítica da sistematicidade filosófica. Não se trata somente de mostrar globalmente o elo do sistema com a personalidade de que surgiu, mas de tomar operacional (mesmo que se trate apenas de um enunciado de princípio ) uma verdadeira logística pulsional possuindo, simultaneamente, efeitos de depuração lógica_ Quer isso dizer que há, para Freud uma esfera lógica pura, ou seja, uma pretensão legítima à objetividade, um mundo que a deformação das motivações subjetivas não atinge? Como entender a distinção dos "pontos fracos" e dos "pontos fortes" na tecitura lógica do sistema? :E todo o estatuto do simbólico conceitllal que se encontra aqui em jogo. Se é verdade que o fundamento pulsional exerce universalmente seus efeitos, haveria uma mediação simbólica perfeitamente "bem sucedida" na ordem do conceito? :1! a verdade mesma da filosofia como linguagem autônoma que está em jogo, aqui, na ótica analítica. Com efeito, o que constitui a filosofia enquanto tal, é a pretensão à objetividade lógica. Contra essa pretensão, a psica· nálise lembra a origem subjetiva ( pulsional) da discursividade. Conseqüentemente, o conceito adquire o sentido de linguagem simbólica que toma possíveis o tratamento do significado pulsional e sua mediatização pqr logicizoção. Ora, todo o problema é o de conceber como essa função simbólica-simbolizante se
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articula com a função lógico-normativa. Duas soluções extremas são concebíveis: a) A função simbolizante absorve a função lógica e a esvazia de toda validade. Em outras palavras, o conceito aparece como uma máscara da pulsão e não se coloca o problema de sua objetividade lógica. A racionalidade filosófica é pura· mente ilusória enquanto racionalidade. b) A função simbolizante esclarece globalmente o projeto filosófico, mas deixa a salvo sua racionalidade. Neste sentido, o conceito conserva sua objetividade imanente, sendo poupada a racionalidade filosófica. As duas funções são de certa forma justapostas, mas a origem pulsional do projeto filosófico deixa à sua expressão conceitual sua logicidade específica. A escolha entre essas duas soluções depende de uma opção fundamental quanto oo estatuto da subjetividade pulsional e às modalidades de sua simbolização. Com efeito, se afirmamos o caráter pulsional originário da discursividade (notadamente filosófica), fica solapada radicalmente a pretensão à objetividade; toda a discursividade é a racionalização, portanto, a tentativa fadada ao fracasso de objetivação da subjetividade pulsional. Como conseqüência, toda a simbólica conceitual é concebida univocamente como mediatização e ocultação da motivação pulsional. Ora, não é isso que Freud exprime nesse texto importante: ao invés da liquidação da racionalidade filosófica, de imediato invalidada por sua origem pulsional contraditória com sua racionalidade fundamental, essa racionalidade é postulada (como Spezialwissenschaft), em seguida, submetida à ausculta· ção particularizada - sistemas por sistemas - para aí discernir o que lhe pertence em sua logicidade e o que se origina nos "cotivos subjetivos" a-lógicos. Portanto, somos obrigados a postular dois destinos das motivações pulsionais: o da simbolização "bem sucedida", que chega a encarnar-se em valores lógicos (os ''pontos fortes" d os sistemas), e aquele que, na ausência de uma derivação objetai, toma a forma bastarda de um motivo pulsional grosseiramente despistado, vale dizer, de um falso conceito (são os "pontos fracos" dos sistemas) . A formulação rápida de Freud poderia levar-nos a crer que há pontos dos sistemas filosóficos que satisfazem sua ambição de "lógica imparcial", justamente porque há outras que não a satisfazem e que são individualizáveis no conjunto.
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Em última instância, isto poderia levar-nos a crer que há dois tipos de enunciados filosóficos: os "verdadeiros", que podemos consagrar em sua objetividade, e os "falsos", os que estão impregnados de subjetividade. De fato, a origem subjetiva qualifica a integralidade da démarche filosófica e, conseqüentemente, das noções filosóficas. É sobre isso que devemos pensar radicalmente em primeiro lugar, sob pena de reduzirmos a posição freudiana a certo relativismo psicologísta. Não obstante, Freud não leva essa idéia até o fim, renegando de uma vez toda objetividade racional. Embora a discursividade não seja toda ela perpassada pela subjetividade pulsional, tudo se passa como se fosse assim. O conceito não é uma forma lógica que recobre mecanicamente um motivo pulsional, como seria tentador inferirmos de uma leitura apressada. Entre a radicalidade de uma origem pulsional determinante e uma simbólica conceitual que reclama ser pensada como atuante em suas finalidades lógicas, constrói-se o lugar psicanalítico da filosofia em sua ambivalência profunda.
NOTAS
1. Ver acima, final da introdução. 2. Este artigo surgiu, pela primeira vez, no volume XIV, ano 7, de Scientía (Revue internationale de synthese scientifique), publicada em Bolonha (Williams e Norgate, Félix Alcan, Wilhelm Engelmann), pp. 240-247 (H parte) e pp. 369-384 (2~ parte). A tradução francesa, por W. Horn, apareceu no Supplément do mesmo ano (pp. 157-167 e pp. 236-251). E essa tradução que é utilizada parei almente aqui. Reproduzido nos Gesammelte W erke, t. VIII, p. 389 s. 3. "O interesse pela (an) psicanálise"... que encontram os outros domínios do saber. 4. E o segundo parágrafo do "B". 5. G.W., VIII, p. 406. 6. G. W., VIII, p. 406. 7. Op. cit., p. 407.
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Capítulo V
O SENTIDO PULSIONAL DA FILOSOFIA COMO INSTITUIÇÃO CULTURAL 1.
A ARQUEOLOGIA PULSIONAL DA FILOSOFIA
A filosofia não existe somente como atividade individual, mas se apresenta igualmente como produto da civilização e como fonna da cultura. 1:. essa segunda fisionomia que define a mosofia como objeto psicanalítico. Não é mais da filosofia dos filósofos que se trata aqui, mas da filosofia como forma de atividade específica da civilização. Essa distinção é revelada pela separação dos dois pontos de vista no artigo de Freud sobre O interesse da psicanálise. Com efeito, abordando o interesse da psicanálise do ponto de vista global, que ele designa como a "história da civilização"\ declara que, por uma "extensão de seus pontos de vista", ela "pode lançar uma luz sobre as origens de nossas grandes instituições culturais: a religião, a moralidade, o direito, a filosofia". Assim, a filosofia é abordada, aqui, como "instituição cultural" particular e expre~são da civilização. Todavia, em virtude do isomorfismo da subjetividade individual e da subjetividade genérica, essa investigação vai nos conduzir à fonte pulsional. A teoria psicanalítica da filosofia vai, pois, apresentar-se como uma contribuição a uma arqueologia pulsional da
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civilização, de que a discursividade filos6fica constitui um dos órgãos. Determinai- a origem ( U r:Jprung) da filosofia, é desvelar, sob a forma objetivamente instituída que ela afeta, os motivos (Antriebe) que determinaram sua criação. Todavia, esses motivos não são absolutamente originários: derivam de paradigmas que Freud qualifica de "situações psicológicas primitivas". A descoberta dessas estruturas de base realiza a finalidade da arqueologia puJsional da instituição cultural considerada, revelando, através delas, a origem concreta de que ela deriva. Podemos notar que, por esse caminho, progredimos na busca do fundamento pulsional, pois a filosofia deixa de estar ligada à arbitrariedade de um sujeito particular e à contingência de uma efetuação psicológica individual: a lógica fantasmática enraíza a filosofia na lógica pulsional global que age no processo de civilização. A démarche toma-se, pois, facilmente formutável. Ela se revela inicialmente por uma inovação de ponto de vista: "Ao seguir os traços (nachspuren) das situações psicológicas primitivas, de onde poderiam surgir as motivações dessas criações, a psicanálise consegue rechaçar muitas tentativas de explicação que repousavam apenas sobre visões psicológicas superficiais que ela substitui por considerações mais aprofundadas". a arqueologia das "situações psicológicas primitivas'' que é requerida. Mas são evocadas condicionalmente, não no sentido em que seriam hipotéticas, mas na medida em que são concebidas como virtualidades objetivas, ou seja, como estruturas que contêm, sob forma programada, a necessidade pulsional originária, susceptível de, em seguida, encarnar-se em diversos motivos e configurações expressivas. Em outros termos, trata-se de cernir a problemática geral que contém in nuce o esquema originário de todas as construções filosóficas particulares: o grande desafio, jamais formulado, que dá sentido a toda palavra filosófica, é o que a filosofia procura exprimir, no fundo, em todo debate particular com um objeto particular. Desta forma, estamos em condições de apreender a significação da escolha de objeto filosófico na história da civilização humana: o sentido pulsional do recurso da civilização à linguagem filosófica. Mas atenção: a teoria analítica da filosofia recusa simultaneamente o logicismo, que trata a filosofia como objetividade desencarnada, e o psicologismo, que a elucida abstratamente
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por dados psico-antropológicos, colocando de lado sua pretensão à objetividade_ Ela aborda a filosofia em sua pretensão objetivista, mas enraiz.am.Jo--a na subjetividade fantasmática onde se desabrocha contra sua vontade. Compreender psicanaliticamente a filosofia é, neste sentido, desmontar o mecanismo psíquico e pulsional que engendra a criação filosófica. Ora, isto significa procurar a função da instituição cultural no sentido definido. Essa função principal (Hauptfzmktion) consiste em "descarregar a criatura das tensões que nela são produzidas pela necessidade' 12 • Essa fórmula implica uma concepção precisa da função cultural sob seu aspecto muito geral. Devemos partir da "necessidade", vale dizer, do estado de necessidade que desempenha o papel de um verdadejro fundamento antropológico. Este estado primeiro (Bedürfnis) é concebido como gerador de tensões (Spannungen), por onde devemos entender as manifestações do estado de carência que tendem a se satisfazerem para escapar à insatisfação que elas manifestam simultaneamente. Este conceito de tensão permite-nos dar ao conceito de necessidade uma formulação energética e dinâmica. Ora, a descarga dessas tensões efetua-se segundo dois caminhos, ao mesmo tempo opostos e complementares. Ou ela se realiza pela "dominação do mundo exterior", o que significa "extrair a satisfação do mundo exterior": "Uma parte dessa tarefa pode ser realizada pela satisfação dessas necessidades, satisfação extraída do mundo exterior; para tanto, a dominação do mundo exterior é uma condição indispensável"; ou então não basta a dominação do mundo exterior: a outra parte das "tendências afetivas" (Strebungen) exige, pois, um modo específico de "alívio" de que as formações culturais superiores constituem o instrumento. Por conseguinte, a filosofia contribui, segundo seu modo específico, para satisfazer "a outra parte dessas necessidades ( - .. ) cuja realidade é regularmente incapaz de proporcionar os meios de satisfação". Sua função consiste, pois, em "afastar a influência da realidade sobre a vida emocional". Donde o princípio animista da "onipotência das idéias" que rege o primeiro modo de satisfação dessas tensões, e fornece o modelo e o núcleo comum de todas as formações psíquicas ulteriores. Convém notar, porém, que esse princípio também é derivado do "princípio ordenando que se evite o desprazer", ou "prin·
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cípio de não-desprazer" (Prinzip der Unlustvermeidung). Ele ordena que evitemos toda excitação vinda do mundo exterior ou das afeições internas, sem fazermos o atalho pela adaptação. Portanto, a filosofia é um dos modos culturais de satisfação derivados dessa modalidade do princípio de não-desprazer que não visa à adaptação ao mundo exterior. Donde seu aspecto especulativo e o estatuto mediato do dado na conceitualização filosófica que encontra, aqui, sua explicação pulsional. Freud, todavia, introduz um componente novo, acrescentando que "o princfpio ordenando que se evite o desprazer domina as ações humanas (das menschliche Tun) até que seja substituído pelo princípio mais elevado da adaptação ao mundo exterior". Introduz-se, assim, uma desigualdade entre os dois caminhos de satisfação: um seria inadequado e provisório, o outro adequado e "melhor", portanto, destinado a substituir o primeiro com o progresso da "dominação do mundo pelo homem" . O órgão dessa dominação do mundo exterior não é outro senão a ciência, encamação do princípio de adaptação. Isto se traduz pelo declínio sintomático do princípio de onipotência das idéias e pela reabilitação do dado, que reintroduz o princípio de realidade. As formações psíquicas de que faz parte a filosofia seriam, pois, tentativas intermediárias de "criar compensações para a satisfação insuficiente das necessidades". Corresponderiam, pois, a um modo de satisfação substitutivo, transitório entre o modo primitivo (animista) de que elas são o prolongamento, e a ciência que elas preparam e que as ultrapassa. Parece que Freud desenvolve aqui duas idéias distintas: ele começa fundando a especificidade da filosofia e das formações psíquicas vizinhas pela distinção de dois tipos de satisfações genericamente distintos; em seguida, ele as hierarquiza segundo a finalidade que realizam, conferindo o primado ao princípio de adaptação. Assim, o primado epistemológico da Naturwissencha/t sobre a Weltanschauung filosófica (supra, cap. 11) seria, finalmente, fundado sobre esse primado do princípio de adaptação. Mas, segundo a primeira solução, a autonomia da satisfação filosófica seria fundada, de direito, enquanto que, na segunda, se introduziria sub-repticiamente a idéia de um modo de satisfação inadequado (relativamente a um modo de satisfação científico adequado) e substitutivo (por oposição a um modo de satisfação científico apropriado). Como
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se pode notar, o desafio é grande, porque é do estatuto da filosofia que se trata e, através dela, da concepção da relação da forma cultural com seu substrato pulsional. Com efeito, a filosofia é uma resposta de certa forma endógena à exigência pulsional, pois responde à instância interna do desejo racionalizando-o. Ao excluir a resposta adaptacionista, de · certa forma fala· diretamente a linguagem da pulsão. Pelo contrário, a resposta científica, por sua própria eficácia adaptacionista, satisfaz à exigência pulsional de certa forma negando-a, recorrendo à mediação do mundo exterior, que é ex-cêntrico à pulsão mesma. Começamos a entrever que, através do estatuto da .filosofia, é toda a concepção do significante cultural da pulsão que se encontra em jogo. 2.
O LUGAR DA FILOSOFIA NAS VISõES DO MUNDO
Vamos encontrar o reflexo dessa concepção num texto contemporâneo: no capítulo 3 de Totem e tabu, Freud é levado, a propósito justamente do animismo dos primitivos, a esboçar uma teoria global das grandes expressões culturais da civilização humana. Temos aí um precioso referencial para colocar em perspectiva a filosofia que, por um paradoxo já signüicativo, não aparece com esse nome. Vamos reencontrar o princípio filogenético expresso no artigo sobre O interesse da psicanálise, segundo o qual, "com a dominação progressiva do mundo pelo homem, produz-se uma evolução de sua concepção do mundo que se afasta cada vez mais da crença primitiva em sua Onipotência e se eleva da fase animista, passando pela religião, à fase científica"3 • Esse princípio se especifica por aquilo que podemos chamar de a lei freudiana dos três estados, regendo o "modo de evolução das concepções humanas do mundo"• : "A humanidade teria, no curso dos tempos, conhecido sucessivamente três sistemas inte· lectuais, três grandes concepções do mundo: concepção animista (mitológica), concepção religiosa e concepção científica" 5 • Muito embora diga conformar-se a uma representação cor· rente, Freud a renova atribuindo-lhe um critério específico: o que determina cada uma dessas três "visões do mundo" e cada um dos "sistemas intelectuais" correspondentes, é um tipo de estruturação das "relações entre a realidade e o pensamento".
O sentido global da evolução é o descentramento dessa relação, inicialmente fixado no psiquismo, em seguida progressivamente aberto à exterioridade, portanto, à realidade do mundo exterior. Em outras palavras, o psiquismo humano se toma a si mesmo como a norma de toda realidade: esse imperialismo egocêntrico tem por correlato intelectual "uma superestima geral de todos os processos psíquicos". A história ulterior toma a forma de uma renúncia progressiva e laboriosa do psiquismo humano à sua autocracia inicial: seu reconhecimento da alteridade do não-ele (non-soi). O sintoma essencial dessa evolução é o declinio da "onipotência das idéias". A evolução da "onipotência das idéias" constitui, pois, o referencial fundamental para se compreender a passagem da "fase animista" para a "fase religiosa" e, desta, para a "fase científica": ingenuamente afirmada no primeiro tempo, descentrada nessas entidades transcendentes que são os deuses, depois Deus no segundo, ela só é vencida no terceiro: ''Na fase anímista, é a si mesmo que o homem atribui a onipotência; na fase religiosa, el~ a transferiu aos deuses, sem todavia renunciá-la seriamente, porque reservou-se o poder de influenciar os deuses de modo a fazê-los agir em conformidade com seus desejos. Na concepção científica do mundo, não há mais lugar para a onipotência do homem, que reconheceu sua pequenez e resignou-se à morte, como sub~ teu-se a todas as necessidades naturais". Este esquema permite-nos atribuir seu lugar a cada uma das grandes atividades culturais que se caracterizam por um certo momento da oposição entre o desejo c a realidade. A Religião corresponde ao segundo tipo de relação, a Ciência ao terceiro. Restam a situar os dois outros: a Arte e a Filosofia. Ora, um pouco mais adiante", Freud declara que "só há um domínio em que a onipotência das idéias se manteve até nossos dias": a arte. A arte corresponde, pois, a um~ autêntica remanescência do animismo prinútivo: "Graças à ilusão artística, este jogo produz os mesmos efeitos afetivos como se se tratasse de algo real". Sendo a arte o reinvestimento do animismo primitivo, a trilogia Arte-Religião-Ciência reproduz sincronicamente os três estados da evolução. E a Filosofia? Compreender seu sentido, é situá-Ia relativamente a esse esquema de base e explicar, simultaneamente, essa determinação primeira que é sua ausencia.
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Em primeiro lugar, como todo sistema intelectual exprimindo uma concepção do mundo, ela deve deixar-se definir em fun ção da forma particular da dialética entre o desejo e a realidade que ela fo rmula. Por outro lado, porém, ela parece exceder a definição de um sistema intelectual particular, o que justifica sua ausência do processo ternário, relativamente ao qual ela se situa, não obstante, necessariamente, posto que ele esgota a história da W e/tanschauung humana. Parece ser este o lugar diferencial da fil osofia, tal como podemos atribuir-lhe a partir das seguintes considerações : a) Sob a lei dos três estados transparece a dicotomia da concepção do mundo, caracterizável pelos dois pólos da oposição entre desejo e realidade. Donde a alternativa: ou o desejo afirma sua onipotência, como na atitude animista ressuscitada pela ilusão artística; ou então o desejo assume a limitação da realidade, como na estrutura científica. b) A religião não poderá pôr em questão este esquema binário produzindo um verdadeiro tenno mediador . De fato, Freud, ao radicalizar sua crítica da religião 7 c ao reduzi-la a uma ilusão alienante, tornará exclusiva a alternativa, admitindo apenas dois caminhos simetricamente opostos: ou liberar o desejo, pela ilusão libertadora e pelo desconhecimento lúdico da realidade; ou impor ao desejo o limite da realidade tendo em vista dontiná-la. Por conseguinte, ou a Arte, ou a Ciência8• c ) Ora, a fil osofia depende ao mesmo tempo da arte e da ciência. Porque sua estrutura relaciona! desejo-realidade vincula-se analogicamente ao mesmo tempo à estrutura artística e à estrutura científica, e cava sua diferença nesse entre-dois. Como a arte, .ela visa a uma totalização e revela sua confiança na onipotência das idéias, sustentada pela ambição de domínio global do mundo, característica do desejo; simplesmente, pelo conceito, · ela o transfere para a inteligibilidade. Mas como a ciência, ela exige que se leve em conta o real que tem por objetivo explicar. Este é o desejo filosófico - entendamos, a forma desejante que encontra sua linguagem na filosofia: tão amplo quanto o desejo poético, mas tão "realizante" quanto o humilde desejo do cientista, subordinado à lei do real. Todavia, nessa diferencialidade essencial da filosofia, discernirmos seu privilégio: por sua irredutibilidade direta a uma forma determinada do processo, ela se mostra como o revelador do processo global. Com efeito, este está inteiramente preso ao
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duplo movimento da imediação do desejo e da medi~ão túJ real. Ela contém em si a tentação do desejo integral e a exigência do real. Desta forma, ela é sua unidade sonhada. Unidade ilus6ria, porque desatada pela ciência que recusará a imediatez do desejo como .arbitrariedade. Mas unidade verdadeira, porque revelando a realzdade do desejo, que se define como a aspiração absoluta dessa unidade ilus6ria na qual indica sua ilusão. Eis a dua~idade ~ue ~ filosofi.a ma~~rializa, e em torno da qual se realiZa sua 1dent1dade ps1canalíhca. Porque ela é o duplo indício da produtividade de desejo (em sua manifestação cultural) e da necessidade do desejo.
3.
A ETIOLOGIA FILOSóFICA: O NARCISISMO SECUNDARIO
Podemos compreendê-lo examinando o estatuto do animismo, forma primária do desejo. Este constitui o obstáculo a ser ultrapassado, de que a ciência é a saída salutar. Por outro lado, porém, ele é valorizado: inicialmente, ele realiza uma ~edeição originária. Em Totem e tabu, Freud observa significa44 tivam~nt~ ~ue de tod~s esses sistemas, o animismo talvez seja o mats logxco e o mats completo, o que explica a essência do mundo, sem nada deixar na sombra'... Mas sobretudo é a origem do processo que define a civilização, de tal sorte que ele será o ~~~elo ~e to~as as formações culturais ulteriores (Arte, RelJg~ao, Fllosofta ), e não será totalmente eliminado embora eficazmente neutralizado, na ciência, "onde encontr~os ainda observa F~eud, os traços da antiga crença na onipotência"to: Neste sentido, trata-se da ultrapassagem impossível pela cultura, de sua origem pulsiooal. ' Um dos sintomas essenciais dessa recessividade é a descoberta de ~abitus animistas numa formação cultural. Ora, Freud tem o cutdado de notar a presença de resíduos animistas no comportamento filosófico. ~ assim que, em Totem e tabul1 observa que o animismo subsiste enquanto ''fundamento viv~ (portanto, sempre reatualizado) de nossa linguagem, de nossa crença e de nosso filosofar''. O Filosofar (Philosophieren) vale dizer, o ato filosófico em sua tipicidade mesma, reproduz,' pois a atitude animista. Na última das Novas confer~ncias Freud define a filosofia como "um animismo sem atos má~cos"12:
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"Nossa filosofia, é inegável, conservou certos traços essenciais do modo de pensar animista". Portanto, é quanto ao "modo de pensar" (Denkweise) que o animismo se reproduz no filosofar. A título de sintomas, ele cita "a superestima da magia verbal" e "a idéia segundo a qual nosso pensamento guia e regula os fenômenos". Assim, o verbo filosófico seria o instrumento da ambição (de fundamento mágico ) de dominar o real e de racioM nalizá-lo integralmente. Aliás, Freud caracteriza os "diversos sistemas filosóficos" como a tentativa de "descrever o mundo tal como ele se refletia no cérebro do pensador ( ... ) em geral tão distanciado do mundo" 13• Reconhecemos aí o egocentrismo característico do animismo primitivo. Contudo, esse animismo secundário que caracteriza a filosofia e que se encontra vinculado ao animismo propriamente dito, não passa de um sintoma cuja etiologia precisa, de certa forma, ser elaborada. Por detrás do animismo, é o narcisisltW fundamental do ato filosófico que se exprime. B essa noção que nos permite apreender a unidade da filosofia como operação da individualidade filosofcmte e coltW forma cultural. De fato, só podemos compreender o sentido psicanalítico da filosofia explicitando seu narcisismo originário. Ora, Freud induz constantemente a aproximação, sem tirar dela sistematicamente as conseqüências. A caracterização da filosofi a supõe, ao contrário, o desenvolvimento das implicações dessa aproximação, a partir da caracterização técnica do conceito de narcisismo. Em Sobre o TlllTcisismo: uma introdução (1914) , Freud apresenta esse fenômeno como um sobreinvestimento da libido sobre o ego, que se revela por um desequihôrio da energia libidinal: "Quanto mais uma (a libido do ego ) absorve, mais a outra (a libido de objeto) se empobrece"H. Isto implica, pois, um desenvolvimento inversamente proporcional dos dois tipos de energia líbidinal, que introduz uma contradição entre o pólo egológico e o pólo objetai da libido, em proveito do primeiro. Uma metáfora significativa ilustra essa idéia: Freud convida a que se represente "um investimento originário da libido do ego, a partir da qual ela é posteriormente transferida para os objetos, mas que, fundamentalmente, persiste e comporta-se relativamente aos investimentos de objeto como o corpo de uma bac· téria protoplásmica relativamente aos protozoários que ele emitiu". Esta é a forma "primária" do narcisismo, que se revela 99
notadamente pela crença na "onipotência das idéias" e na "força mágica das palavras". Todavia, com a segunda tópica, Freud confere toda a sua significação à forma secundária do narcisismo, definindo como contemporâneo da "introdução dos investimentos de objetos". Enquanto o. n~rcisisn;to primário supõe um estado a-objetai, fund.a?o na mdiferencJação do ego e do id, a secundarização do narCISISmo introduz uma diferenciação das instâncias: "Na origem, escreve Freud em O ego e o id, toda a libido está acumulada no ~?· en~uant?. que o ego encontra-se ainda em formação ou fraco . O 1d utJhza uma parte de sua libido para investimentos de ~bjetos erótic?s~ ao passo que o Ego reforçado procu~a apropnar-se dessa ltb1do de objeto e impor-se ao Id como ObJeto de amor. Trata-se de um meio de "dominar o id e de aprofundar suas relações com ele". Trata-se literalmente do meio, para o ego, emancipado c relativamente autônomo de fazer a corte ao id, e de dar-se em gozo a ele, substituindo-se a seus objetos naturais (eróticos) e mantendo com ele essa linguagem: "Olha, tu podes me amar, também eu sou tão semelhante ao objeto"15• O narcisismo filosófico se explicita como variedade de narcisismo secundário neste sentido preciso. . Inicialmente, compreendamos o elo, paradoxal à primeira VISta, entre a racionalização e a pulsão, caso estejamos atentos ao .fato_ de que ~ um meio de dominar a pulsão (por hiperacio~ nal1zaçao) e, stmultaneamente, de "aprofundar suas relações" com ela, segundo a expressão de Freud. Em seguida, vemos que s~ trata de um nar.cisis~o ''subtraído aos objetos". Isto SIUpõe Simultaneamente o mvcsttmento objeta] e a retratação da libido sobre o ego. E é o que explica a correlação paradoxal do primado do ego e da preocupação do real no projeto filosófico. A projeção cultural do narcisismo secundário representado pela filosofia revela que o narcisismo, longe de ser uma simples ~erversão do funcionamento psíquico, constitui-lhe uma virtualtdade permanente, reatualizada até em suas mais elevadas · instâncias. . Tam~ém é !sso que nos permite compreender a derivação da ftlosof1a relatiVamente ao animismo: os sintomas animistas do pensar e do discurso filosóficos derivam do fato de o narcisisn:to secundário (filosófico) ser "construído sobre um narcisismo primário ( animista e mágico), obscurecido por múltiplas influências"16• Compreendemos, enfim, que o narcisismo
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seja eminentemente culturalizante, posto que, secundarizado, manter simbolicamente a noção narcísica a mais originária, sob as mais desenvolvidas mediações culturais e conceituais. Finalmente, compreendemos em profundidade o sentido do consciencialismo filosófico e seu caráter prototípico de Weltanschauung (cf. H parte, cap. I e Il). O primado da consciência exprime o dogma tUZrcisico da filosofia tal como a concebe Freud. Vemos isso em Unuz dificuldade da psicanálise: é o narcisismo da humanidade que cria as resistências às três grandes descobertas: a de Copérnico, a de Darwin e a do inconsciente. Dessas três feridas narcísicas, a última é a mais cruel, pois obriga o Ego humano a renunciar o seu próprio domínio. Ora, ao aproximarmos a crítica do consciencialismo filosófico ( cap. I) da crítica da ilusão narcísica, tal como ela se exprime aqui, compreendemos que a filosofia vá buscar seu sentido nessa recusa da ferida narcisica que o inconsciente inflige ao homem, ditado por seu próprio fundamento narcísfco, e elevado ao estado
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engendra as resistências ao inconsciente. Aliada ao ego consciente, a filosofia também é derivada dele e defende, através de sua causa, seu próprio principio fundador. A fonte de i~ormação que consagra a ilusão da ·monarquia absoluta do consc1ente não é outra senão a introspecção. Esta repousa na ilusão de uma transparência da consciência a si mesma permitindo ao mesmo tempo provar, por uma pseudoexperimentação, a onisciência do consciente. Ora, a auto-observação também é, para Freud, o tipo mesmo do instrumento filosófico (que atesta a expressão "introspecção filosófica") . E é a forma narcísica comum que toma possível essa correspondência. Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud estabelece explicitamente essa filiação fazendo derivar a autoobservação do nal"cisismo, por intermédio da autocrítica. Da mesma forma, o narcisismo se afirma como princípio da Weltanschauun:g. O ideal de totalização que a subentende repousa na ambição narcísica de reconstituir a totalidade do real em virtude de um princípio antropomórfico. Ora, a filosofia é o protótipo da Weltanschauung, na medida mesma em que fornece sua linguagem ao narcisismo. Prova disso é a definição do animismo como "sistema intelectual" (Denksystem) que concebe "a totalidade do mundo como um conjunto único (einzigen Zusammenhang) a partir de um pooto"l8. A oposição entre Weltan.rchauung e Wissenscha/t pode ser reescrita segundo a oposição entre uma libido do Ego emancipada (segundo modalidades diversas) e uma libido de objeto reinvestida. Donde a "preocupação do objeto" que caracteriza a ciência, e que introd~z no cientista a consciência do limite. Inversamente, a fllosof1a, enquanto W eltanschauung. é a cristalização de um "ideal" (Idealwünsche), no qual o sujeito humano investe sua "fé" a fim de " sentir-se mais à vontade na vida" - segundo a concepção exposta na última das N()llas conferêrrciast•. Este 6 um modo, para os homens, de "situar o mais utilmente seus afetos e seus interesses••. Donde o "fundamento afetivo" da filosofia enquanto WeltW!$Chauung, enquanto "realização de moções desejantes'• ( Wunschregungen). Percebemos em que a etiologia narcísica une a dupla fisionomia da filosofia, como operação individual e como forma de cultura. Os sistemas filosóficos, enquanto produtos narcísicos (secundários), são documentos do desejo. Enquanto Welt102
anschauungen, constituem "cristalizações de desejos.,; donde "seu valor para a vida humana". Todavia, compreendemos também que seu narcisismo contenha, em germe, como possibilidade de radicalização patol6gica, ao mesmo tempo que como remédio substitutivo, a psicose. Donde a idéia freqüente. em Freud, de uma comunidade analógica de estrutura entre psicose e filosofar, a partir da matriz narcísica. Não devemos reduzir essa idéia de Freud a certa aproximação aproximativa: não se trata simplesmente de observar a analogia entre o distanciamento que implica o ato ftlosó· fico e a clivagem esquizofrênica, por exemplo. Não se trata de uma vaga aproximação caracterial, que implicaria em dizer que a escolha filosófica seria o meio de evitar uma saída psicótica para um sujeito particular; ou que a interrogação filosófica radicalizada seria a própria loucura2 o. Para dizermos algo de preciso sobre essa questão, é a matriz narcísica comum à estrutura psicótica e à função filosofante, que devemos interrogar. Instaura-se, aqui, a aproximação do pensamento filosófico com o pensar paranóico. Na análise do caso Scbreber, Freud vai encontrar a questão do sentido da especulação como síndrome tipicamente paranóica. O narcisismo radical do paranóico leva-o a construir uma trama complexa do universo "tal que possa novamente viver nele"21, mediante o trabalho delirante. A libido, liberada de seu emprego objetai, "fixa-se no ego" e é "empregada para a amplificação do ego". A multiplicação das "teorias explicativas", que implica um intenso trabalho especulativo, é exigida para dar conta daquilo que se manifesta fenomenalmente no mundo exterior desinvestido do interesse libidinal como inadequado ao desejo bipertrofiado. Trata-se de uma tentativa de racionalizar a enorme diferença entre este desejo e a realidade. Ora, significativamente, Freud, em seu ensaio de 1914 sobre o narcisismo, aproxima o mecanismo especulativo da paranóia, da "introspecção filosófica''. Com efeito. ele põe a tendência paranóica para a construção de sistemas especulativos em relação com a "autocrítica.. derivada do narcisismo. Ora. ele observa que "a Selbstkritik da consciência coincide, em seu fundamento, com a Selbstbeobachtung sobre a qual se funda'>22. Donde a drenagem da energia psíquica agindo na reflexão filosófica: "Esta mesma atividade, que assumiu a função da consciência, colocou-se, pois, a serviço da investigação interna
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(Innenforschung), que fornece à filosofia ô material de suas operações de pensamento". Assim, a apro.ximação entre paranóia e filosofia não implica a invalidação direta da objetividade filosófica: ela apenas manifesta um regime mental que apresenta um isomorfismo funcional em duas expressões distintas. 1?, neste sentido limitado que Freud declara em As resistências à psicanálise que a transferência do valor da Weltanschauung sobre o terreno do conhecimento científico só pode abrir o caminho à "psicose - individual ou co1etiva"23• Isto faz apenas conotar essa virtualidade de separação com a realidade que é o homólogo patológico do antropomorfismo natural da "concepção do mundo" enquanto tal.
4.
FILOSOFIA E SUBLIMAÇÃO
Correlativamente, encontramos atuando de modo eminente no habitus filosófico o mecanismo de idealização. R etratação do investimento direto dos objetos, ela requer uma mediação conceitual, vale dizer, uma simbo1ização de alto nível. Trata-se do ''processo. . . pelo qual (o objeto), sem que sua natureza seja alterada, é ampliado e psiquicamente elevado"2 4. A idealização vem, pois, realizar o requisito animista da "onipotência das idéias". 1?. o que pennite manter simbolicamente o narcisismo o mais originário sob a forma a mais eminentemente mediatizada. Tudo isso nos coloca em condições (e somente agora) de compreender a idéia de sublimação aplicada à filosofia . A derivação da pulsão sexual para um modo de satisfação substitutivo deixa-se compreender a partir do mecanismo de secundarização do narcisismo. Ê o que se encontra claramente indicado em O ego e o id: "A transformação da libido de objeto em libido narcísica traz evidentemente, com uma renúncia aos ,objetivos sexuais, uma dessexualização" 25 • Freud precisa mesmo que este é o "meio geral da sublimação". A derivação do objetivo está fundada na derivação da libido objetai em libido do ego. A sublimação é possível a partir do momento em que o ego realizou s_uas intrig~s e conseguiu fazer-se admitir por objeto de amor JUnto ao td. Donde o egocentrismo - no sentido de hipertrofia pulsional do ego - inerente à .personalidade filo-
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sófica: o pensamento e a subjetividade herdaram a força pulsional do id. O "amor da sabedoria" deriva da libido do ego, ela mesma originária da libido propriamente dita proveniente do pólo energético: o id conduz. E: dele que o amor do saber tira sua força secreta. É nesses termos que convém falarmos da sublimação atuando na filosofia, sob pena de chegarmos à caricatura a que o próprio Freud parece não ter escapado, quando declara, por exemplo, a Haberlin, que "a filosofia é uma das formas mais convenientes da sexualidade recalcada, e nada mais''2 6• Seu interlocutor acrescenta, não obstante.: "Parece-me, porém, que não era sua seriedade plena". Há aqui, visivelmente, a tentação freqüente em Freud de agredir o interlocutor filósofo. Mas também há o indício de uma hipotrofia da teoria da sublimação filosófica que o obriga a adiar a caracterização metapsicológica das "satisfações" que "o pensador encontra para a solução de um problema ou para a descoberta da . verdade"2 7. A fim de nos mantermos nas indicações necessárias a nosso propósito, devemos observar dois pontos fundamentais: Em primeiro lugar, a definição da sublimação que Freud reitera numa série interntioável de textos põe a ênfase ·na idéia de derivação da energia sexual para outros objetivos onde se encontra empregada. Mas é em vão, que procuraríamos aí uma resposta quanto ao próprio processo. 1?. o mecanismo cernido acima, a propósito do narcisismo, que nos perntite apreender, não somente aquilo a que isso leva, mas como isso se passa. A crítica de simp!ismo, dirigida à concepção da sublimação filosófica, por exemplo, provém do fato de não termos seguido esse caminho. Em segundo lugar, a sublimação é passível de uma constante desconfiança: parece conter a idéia, tanto mais ambígUa quanto permanece implícita, de uma desrealização dos objetivos culturais pela origem que lhe atribui a etiologia psicanalítica. Ora, é novamente o estatuto do significante cultural em sua relação com o substrato pulsional que está em questão ( cf. supra, p. 90). :e. essencial vermos que a derivação não compromete, negando-lhe a autonomia, a especificidade do fim, mas o funda verdadeiramente. Este é um modo de realização, em formas mediatas, porém adequadas, do desejo originário. Sobretudo, este desejo encontra nessas pistas.. "elevadas~· de satisfação, uma linguagem que enriquece sua essência; çm outras
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palavras, as finalidades substitutivas s6 fazem servir de meios à satisfação sexual: elas a especificam fornecendo-lhe uma linguagem nova. Assim, devemos pensar, com o caráter substitutivo, a necessidade da derivação. B por isso que Freud tanto insiste no ganho da sublimação, não como simples astúcia para fazer passar a satisfação sexual, mas como constitutivo dela. Isto supõe que o trabalho de tratamento das mediações culturais seja integrado na satisfação. Compreendemos melhor por que a teoria da sublimação é tão pouco diferenciada em Freud: o conceito de sublimação, em si mesmo, apenas designa um processo. Enquanto tal, não poderá fornecer mais que o esqueleto comum das formas culturais. 1:;. pela precedente reflexão que pudemos cernir a especificidade da sublimação filosófica. Mas somos obrigados a reconhecer que Freud aplicou com um particular rigor. à filosofia, a não-diferenciação geral das fonnas de sublimação. Não encontraremos, para a filosofia, um equivalente a O futuro de uma ilusão para a religião, ou ensaios específicos, como para a arte. Isto deve novamente ser levado em conta como sintoma da diferença filosófica. Portanto, é para essa dificuldade de ser pensada psicanaliticamente, própria da filosofia, que devemos nos orientar agora.
NOTAS B o artigo "E"; G.W., VIII, p. 414 s. lbid., p. 415. G.W., VIU, p. 416. G.W., IX, p. 108. G.W., IX, p. 96. G.W., IX, p. 111. Em O /utuTo de uma ilwão (1927) . Donde a conciliação do cientificismo de Freud com seu interesse pela teoria da arte. 9. G.W., IX, p. 96. 10. lbld.• p. 109. 1. 2. 3. 4. S. 6. 7. 8.
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11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27.
lbíd., p. 96. G.W., XV, p. 178. lbid., p. 189. G.W., X, p. 141. G.W., XIII, p. 258 G.W., X, p. 140. G.W., XII, p. 8. G. W., IX, p. 96. G.W., XV, p. 170. Percebemos aí como tais interpretações, tão freqüentes na literatura pós-freudiana, são estranhas à concepção freu· diana. G. W., VIII, p. 308. G.W., X, p. 164. G.W., XV, p. 172. G.W., X, p. 161. G.W., XIII, p. 258. Relatado por Binswanger em Souvenirs sur Sigmwul Freud; ver Parccnus, discours et Freud, Gallimard, 1970, pp. 276-277. Lembremos que a função central da sublimação contrasta com a carência de explicação metapsicol6gica: G.W., XIV, p. 438; Mal-estar na civilização, cap. 11.
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Capítulo VI A FILOSOFIA COMO OBJETO PARADOXAL DA INVESTIGAÇÃO PSICANALíTICA Esta explicação psicanalítica da filosofia, que se deixa sistematizar pela análise, como acabamos de ver, parece, não obstante, conservar uma irredutibilidade que se trata de cernir. Podemos chegar a ela reconsiderando o problema da especifíci~ dade da W eltanschauung filosófica. Com efeito, tudo se passa como se, ao abordar a questão global das concepções do mundo, Freud estivesse dividido entre a tentação de aplicar à filosofia o tratamento de certa forma normal e estereotipado próprio a qualquer tipo de concepção do mundo, vale dizer, de aplicaras características genéricas que lhe ocorrem enquanto vanedad: de W eltanschauung, e a preocupação de salvaguardar uma d1ferença que, por outro lado, é sugerida sem jamais ser ap~of~ndada. Isto se revela concretamente pelo fato de que a ma10na dos textos onde se trata da concepção do mundo filosófica fa.zê-la figur~r em listas que a incluem1 , sem que saibamo~ ~Uito bem ate que ponto o que vale do gênero vale da espec1e, e o. que caracteriza individualmente a espécie filosófica. O r,at~ ~a~tço , .que é a ausê~cia de teoria psicanalítica da filosofl~ md1V1duahzada, que seJa o equivalente, por exemplo, da teo~1a da. arte, ~onsti~~i, em sí, um sintoma daquilo que a filosofia, ObJeto pstcanahttco, l!egundo as modalidades de'3critas nos dois capítulos anteriores, dá-se como objeto paradoxal.
I?e
1.
A PARADOXALIDADE DA INSTITIJIÇÃO FILOSOFICA
O primeiro meio de explicitar esse estatuto paradoxal é o de cernir a ambigüidade da filosofia na paisagem psicanalítica das concepções do mundo, tal como ela é extraída dos textos freudianos essenciais. Em O interesse da psicanálise, a filosofia encerra, como vimos, uma lista de instituições culturais que compreende igualmente a religião, a moralidade e o direito2 • Ora, a análise, embora dizendo respeito à filosofia, em nenhum momento a toma em consideração individualmente (não é mais citada na seqüência do texto). Por outro lado, no final do texto3, e1a se inscreve na alusão do etc. que encerra uma nova lista que, desta vez, compreende "os mitos, a religião, a moralidade". Sem majorar esses elementos, podemos considerar que já traduzem um estatuto alusivo da filo sofia no discurso freudiano. O que se diz aplica-se, de pleno direito, à filosofia, mas sem que saibamos rigorosamente até que grau. Essa indeterminação mesma deve ter um sentido, nem que seja quanto à relação de Freud com o objeto filosófico. Segundo referencial: a exposição das Novas confer~ncias (cf. supra, cap. Il) . Contrariamente ao texto de Totem e tabu, onde a filosofia brilha por sua ausência, a filosofia é aqui abordada individualmente. Mas parece definir um intervalo entre a arte e a religião, que ocupa um espaço muito preponderante na exposição, rejeitando a filosofia a uma relativa marginalidade. Todavia, é com Mal-estar na civilização que a ambigüidade se torna mais patente e, por assim dizer, confessada por Freud. No capítulo UI, é aborda.da a questão da exigência da civilização representada pelas formas superiores de atividade. Em primeiro lugar, Freud afirma como característico da civilização "o preço ligado às atividades superiores" (pelas quais entende "as produções intelectuais, científicas, artísticas"') que manifesta "o papel condutor atribuído às idéias na vida dos homens". As "especulações filosóficas" são colocadas "ao lado" dos "sistemas religiosos", e abaixo deles na "escala dos valores" admitida pelos homens, levando-se em conta a importânCia do papel desempenhado (segundo a idéia das Novas c_'?nf~r~~i~). !)essas. l'roduçõ~s culturais, Freud distingue o
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que chama de as "construções ideais", que formam o legado ideológico de uma comunidade: "idéias de uma eventual perfeição do indivíduo, do povo ou de toda a humanidade, ou exigências e aspirações que se edificam sobre essa base". Em segundo lugar, Freud atribui a todas essas "manifestações culturais" um princípio comum: "o desejo de atingir dois objetivos convergentes, o útil e o agradável" , "brota de toda atividade humana". . Finalmente, num terceiro momento, ele restringe esse prinCÍplo reconhecendo que "'entre elas (na série das atividades psíquicas superiores), só as atividades científicas e artísticas podem evidenciá-lo". Por outro lado, havia reconhecido acima que "essas criações do espírito, longe de serem independentes umas das outras, ao contrário, se interpenetram estreitamente", o que "toma muito difíceis sua formulação e sua derivação psicológicas". Este texto é o mais claro no enunciado da paradoxalidade do objeto filosófico e da d ificuldade de que constitui o sinal. . A teoria psicanalí~ica. da filosofia é tomada entre a generalidade abstrata do pnmetro tempo (onde é citada indiscriminadamente com as outras atividades) e a particularidade não menos a?strata do terceiro tempo, onde ela faz parte do resíduo que, cunosamente, submete-se ao princípio geral sem que possamos elucidá-lo diretamente. D?is obst~culos. parecem explicar (negativamente) a problemátLca da fllosofta como objeto psicanalítico. Em primeiro l~g,a~, a interdependência das produções do espírito que toma difícil - e temos ai uma confissão preciosa - a individualização de uma. forma psíquica particular. Mas esta regra poupa as. formas típ1cas (arte, ciência, religião) , o que constitui um pnmeiro motivo à exceção filosófica que, como vimos refoga essa individualização. Em segundo lugar, tudo se pas; a como se a filosofia implicasse uma mediação específica das necessidades primárias ( útil e agradável), o que a toma semelhante da religião. Essa dupla exclusão constitui a paradoxalidade especial da filosofia: atipicidade e sobremediatização se encontram para descentrar a filosofia do padrão culturalli. Freud ~ levado a precisar que "não poderemos duvidar de que: as outras (manifestações culturais, entre as quais a filosofi a) correspondem a necessidades muito fortes" (muito embora não revelem imediatamente as necessidades primárias). .B 110
isto, acre~centa, ainda que tais necessidades "talvez só sejam desenvolvadas apenas numa minoria". O aspecto elitista da filos_?fla, evocado como nas Novas conferências, toma aqui o sentido de uma derrogação às necessidades genéricas. Donde se deveria induzir a distinção de duas faml1ias de necessidades ~rimárias e secundárias, de que a filosofia faria parte. ~ po; ISSO que, quando Freud fala do núcleo de necessidades, a fil(r sofia é remetida ao pano de fundo alusivo, só sendo reintr(r duzida quando se amplia a concepção da necessidade. Donde, enfim, o aparente relativismo histórico que permite a Freud não se decidir se deve ver nos sistemas filosóficos "a mais alta criação do espírito humano, ou simplesmente deploráveis divagações", e diagnosticar aí simplesmente, em confo r~ midade com um ponto de vista geral de Kulturgeschichte, o sintoma de "um elevado nível de cultura". Essa draconiana dtemativa, que suspende a filosofia entre o tudo e o nada, entre a civilização suprema e a ficção delirante, exprime bem sua ambivalência radical, que Freud neutraliza sem suprimi-la.
2.
A PARADOXALIDADE DO OBJETO FILOSóFICO: FREUD E OS SONHOS DE DESCARTES
Para julgar ao vivo a atitude de Freud face ao objeto filosófico sob sua forma mais precisa, dispomÓf de um teste precioso: é a análise dos sonhos do jovem Descartes, que ele teve ocasião de fazer em 1929, vale dizer, no momento em que s';la a~tude para com o objeto filosófico teve todo o tempo disporuvel para decantar-se, com a maturação teórica. Com efeito, no momento da redação de seu Descartes filósofo de 171áscara, um filósofo francês, Maxime Leroy, encon~ trando os famosos sonhos que ele mesmo conta como estando ligados, na origem, à sua reflexão, teve a idéia de pedir ao fundador da psicanálise, enfim. conhecido na Françae, que lhe enviasse sua interpretaçãoT. . Freud ~~ra aí uma. oportunidade para aprender ao Vlvo, a propos1to de uma séne de sonhos determinados (os de 1619) 8 que lhe fornecem um material circunscrito, a articulação entre a personalidade pulsionaJ e a personalidade filosófica. Sobre esses sonhos hiperintelectualizados, a démarche deveria consistir, segundo os princípios teóricos expostos nos capítulos
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ànter:lotes, em elaborat uma "psicografiaH do filósofo e em seguir suas manifestações no material onírico fornecido, pois Descartes parece ter relatado seus sonhos com certa riqueza de detalhes. Sendo a racionalização um mecanismo de mascaramento e de sublimação, como vimos, o que deveríamos esperar era ver Frcud procurar despistar o impacto dos complexos instintuais sob as mais mediatizadas formas da racionalização, a revelar os componentes pulsionais que atuam involuntariamente sobre o discurso manifesto. Mais genericamente, o que Freud encontrava nesse caso preciso, era a oportunidade de tomar a filosofia mesma por objeto de investigação. Este era o momento de passar da exposição dos princípios à aplicação, e de procurar, na prática da enquete particular, a resolução das dificuldades de princípio. Ora, a análise de Freud parece literalmente inibida desde o início, como o indica o texto da resposta que dirige a seu correspondente. Notemos, inicialmente, que ele sente a necessidade de fazer um pequeno histórico de suas reações ao pedido, que se revelam muito coloridas afetivamente. Já encontramos essa necessidade de situar-se relativamente à exigencia filosófica, problematizando sua relação com tal exigência, no episódio quase contemporâneo de 1930. Todavia, neste último caso, tratava-se de tomar posições filosóficas, ao passo que, na ocorrência, Freud só se dispôs a formular um diagnóstico psicanalítico. No entanto, o que se instaura é uma denegação análoga. Inicialmente, não temos uma recusa, mas um relato de sua relação com o objeto proposto. Distinguimos nele três momentos: Freud começa confiando a seu interlocutor filósofo que, ''ao tomar consciência de sua carta, pedindo-lhe para examinar alguns sonhos de Descartes, seu primeiro sentimento foi uma impressão de angústia" 9 • A razão imediatamente alegada para essa "impressão" é a dificuldade da tarefa pressentida, visto que se trata de "trabalhar sobre sonhos sem poder obter do próprio sonhador indicações sobre as relações que podem ligá-los entre si ou ligá-los com o mundo exterior". Freud acrescenta que, por essa razão, as análises de sonhos de "personagens históricos" só fornecem, em geral, um "magro resultado". Sem superestimar o valor da palavra "angústia" aqui empregada, devemos observar o contraste entre a força afetiva do termo e o conteúdo da dificuldade técnica alegada como justificação.
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Uma vez superado esse obstáculo do primeiro contato, Freud conta haver constatado, uma vez posto ao trabalho, que os resultados práticos felizmente contradisseram a lamentável impressão do início: "Em seguida, minha tarefa se revelou mais difícil do que podia esperar". Portanto, tudo se passa como se a tarefa reduzisse às suas dimensões reais o recuo do início. Enfim, entre essas duas posições extremas, o balanço é mitigado: se não corresponde ao deserto temível, não satisfaz, segundo a apreciação de Freud, às esperanças que a demanda supõe. "No entanto, conclui nesse preliminar, o fruto de minhas pesquisas sem dúvida lhe aparecerá muito menos importante do que estaria no direito de esperar." Se convém insistirmos nesse preâmbulo, que poderia muito bem ser assimilado às reservas de uso, é porque, muito mais que a expressão de uma modéstia científica banal, ele é simbólico da atitude de Freud, não mais em relação à coisa filosófica em geral, porém em relação ao objeto filosófico. O que dele é solicitado é um diagnóstico, mas emanando de um filósofo profissional, colocando em jogo um "bem filosófico" e exigindo uma deternúnação da psicanálise em relação a esse bem. Portanto, podemos legitimamente suspeitar que tal "sentimento de angústia" que Freud sente de imediato, apenas ava· liando a tarefa, posto que o apresenta a título de defesa, excede a simples dificuldade técnica de explicação. O caráter sinuoso desse processo o atesta: depois do primeiro momento de denegação - "Não poderei dar-lhe satisfação, é uma tarefa por demais difícil - , vem um temperamento de compromisso "Talvez haja algo a tentar, quero tentar"; em seguida, uma conclusão que se assemelha a uma formação de compromisso - "Certamente que isto não vai lhe satisfazer, está longe do que um filósofo pode exigir, mas é tudo o que posso fazer". Temos aí algo que se assemelha a uma lógica fantasmática. Este é o sentido da palavra freudiana sobre a filosofia destinada ao filósofo. Esse preâmbulo já constitui uma parte da resposta. Mas esta possui também um conteúdo determinado, que parte de uma consideração técnica. Freud caracteriza o tipo de sonhos que analisa aqui como uma classe especial: "Os sonhos de nosso filósofo são o que se chama de "sonhos de cima" (Triiume von oben)". Essa etiqueta tem por efeito prévio fundar o sonho filosófico como derrogando a lógica onirica em
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seu regiml! de certa forma twrmal, no sentido em que a massa dos sonhos (aquela de que se ocupa a técnica da Traumdeutung) seria dos "sonhos de baixo". Freud tem o cuidado de notar mais adiante, num parênteses, que "se deve entender esse termo no sentido psicológico, e não no sentido místico". ];; evidente que se trata de uma caracterização técnica, mas a necessidade mesma da precisão atesta que a natureza dessa classe de sonhos é, de imediato, tomada na ambivalência da caracterização técnica e da valorização implícita. Por detrás dessa metáfora de tonalidade anagógica, ocultase, não obstante, uma definição precisa, em relação com o nivel do psiquismo concemido: os "sonhos de cima" seriam "formações de idéias que poderiam ter sido criadas tanto durante o estado de vigília quanto durante o estado de sono''. E isso que explica que tais sonhos apresentem uma alternância de partes emergentes - próximas da racionalização vigl1ia - e de partes imersas: é somente nessas "certas partes" que os sonhos de cima parecem tirar "sua substância de estados de alma bastante profundos". Mas isto supõe esta enorme exceção: a censura consecutiva à supressão do estado de vigilia não se exerce plenamente. Por outro lado, temos que lidar com um tipo de simbolização particular: "Por isso, tais sonhos apresentam, na maioria das vezes, um conteúdo de forma abstrata, poética ou simbólica". Isto se revela, pois, por uma sobredeterminação simbólica do dado pulsional, que só se manifesta muito indiretamente, através de uma espessura simbólica e alegórica muito grande. Tais sonhos são ainda parcialmente regidos pelas leis da representação oriundas do "processo secundário", o "processo primário" parecendo reintroduzir-se e curtocircuitar o outro em diferentes lugares, o que cria, nesses sonhos, tipos de ilhas de sobredeterminação pulsional. Desta fonna, constatamos o que constitui a dificuldade de tratamento do sonho filosófico, variedade de "sonho de cima": ele se apresenta como o ponto de articulação entre duas lógicas opostas, diurna e noturna, secwtdária e primária. E a dificuldade que vai levantar Freud - a ausência de informações sobre os acontecimentos que condicionam o sonhador e o sonho - é derivada desta, que se apresenta em primeira aproxímação lógica. e esta mistura que deve ser bem pensada. Com efeito, tais formações de idéias poderiam muito bem ter sido criadas
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no estado de vigília quanto no de sono, e poderíamos ser tentados a falar de "devaneio". Ora, trata-se realmente de sonho - Freud emprega o termo Traum, e não Traumerei. E o que nos obriga a pensar um objeto que não é inteiramente redutível a uma categoria psicanalítica conhecida, e a produzir uma classe nova. Essa especificidade se manifesta por um fato notável: o próprio sonhador supre as lacunas da explicação do analista. No dizer de Freud, "a análise desses sonhos nos leva normalmente ao seguinte ponto: não podemos compreender o sonho; mas o sonhador - ou o paciente - sabe traduzi-lo imediatamente e sem dificuldade, de uma vez que o conteúdo do sonho é muito próximo de seu pensamento consciente". Em virtude desse caráter misto, que restabelece uma continuidade entre a vigília e o sonho, o filósofo é esse sonhador todo particular, e privilegiado, que detém em seu poder a chave de seus sonhos, pelo menos quando sonha enquanto filósofo. :S verdade que tal privilégio possui, por contrapartida, a pobreza pulsíonal do sonho, o sonhador só sendo competente na inteligibilidade de seu sonho na medida em que perdeu suas determinações pulsionais pelo intenso tratamento que o define. Por outro lado, porém, como não se trata de um simples devaneio, o privilégio consiste em utilizar a linguagem onirica sem nela engajar seu inconscielfle, pelo menos de modo decifrável, e em utilizar o código da pulsão sem se engajar diretamente, vale dizer, sem revelar suas pulsões. :S verdade que tal privilégio decai no oásis pulsiooal, vale dizer, nos lugares do sonho onde a pulsão, demasiado eficazmente mediatizada no resto da expressão onírica, tenta exprimir-se. Neste caso, o sonhador-filósofo deve abdicar sua lucidez: "Permanecem ainda certas partes do sonho a respeito das quais o sonhador não sabe o que dizer: são, justamente, as partes que pertencem ao inconsciente". E aí, em princípio, que o psicanalista deve retomar esta palavra abandonada pelo sonhador. O que ele deve significar, é o fundamento pulsional que ai se mostra e não pode ser dito: é por isso que ele as julga "as mais interessantes ( ... ) sob muitos aspectos". Ora, ocorre que, mesmo sob essa forma, o fundamento pulsional não é atingido de um modo puro, mas no seio de uma mistura; ainda aqui, o núcleo inconsciente, recoberto pelas sedimentações conscientes e pré-conscientes, só pode ser atin-
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gido pelo discurso do sonhador; em termos de segunda tópica, o id só se revela no discurso proferido pelo ego e submetido às mediações do superego. Esbarramos, aqui, no limite da análise, em suas condições ótimas : "No caso mais favorável, explicamos este inconsciente apoiando-nos nas idéias que o sonhador a ele acrescentou". Assim, quando o sonhador cessou de falar, sua palavra serve ainda para fundar ativamente a palavra analítica. Essa necessidade de atravessar a camada ideativa subordina a análise indireta do analista à análise direta do sonhador em pessoa. O problema é o de avaliar o alcance técnico dessa limitação, na aparência objetiva, que o sonho filosófico opõe à análise. Para tanto, convém nos referirmos à teoria de fundo que se encontra exposta em A interpretação de sonhos. Trata-se de estabelecer em que medida tais considerações são deduzidas da matriz de base da análise dos sonhos elaborada em 1900. Em A interpretação de sonhos, Freud aborda o problema dos elementos intelectuais que encontramos nos sonhos, no capítulo VI (VII-IX). Não se trata de um tipo de sonhos especial, mas da "atividade intelectual em sonho". A este respeito, a posição de Freud é clara: "Tudo o que nos aparece como intervenção da faculdade de juízo, no momento do sonho, não deve ser considerado como operação reflexiva do trabalho do sonho; isto faz parte do material de pensamentos do sonho, e daí passou, sob forma de estrutura já pronta, para o conteúdo manifesto do sonho" 10 • Em outros teonos, o que parece "uma operação intelectual própria do sonho" - de que o sonhador parece ser o autor - não passa da "reprodução de um pensamento do sonho", habilmente inserida no conjunto da lógica onírica. Temos, pois, aí, um efeito do processo de "elaboração secundária"; trata-se da "intervenção de nosso pensamento nor~ mal ( ... ) que impõe ao conteúdo do sonho a inteligibilidade", e " tem por efeito, cada vez que ela intervém, apagar as contradições entre os elementos disparatados do sonho e fundi-los em um conjunto coerente" 11 • Ela "comporta, observa F reud, uma atividade livre de toda coação, análoga à que se exerce no decurso de nossos devaneios"12• Por conseguinte, ela possui um papel de coesão e de criação, mas, ao mesmo tempo, de falsificação sobre o sonho: · ~submete-o a uma pri0:1eira interpretaç_ ã o e o !eva, assim, a ser
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inteiramente mal compreendido". Este é, de certa forma,, o efeito de um mecanismo orio-inário, atuando contra o conteudo inconsciente no seio da prÓpria atividade onírica. Ao mesmo tempo porém notamos que ela constitui um dos obstáculos ' , ' fundamentais da interpretação analítica. Ora, não e esse trabalho de racionalização que encontramos ativamente operando nos sonhos de Descartes? Não é a elaboração secundária que observamos de modo onipresente em seus sonhos? Aliás, é isso que funda a analogia com o devaneio: ~as ~ão ~ .só: a interpretação fornecida por Descartes na vigília, nao v1r1_3 prolong~r diretamente essa racionalização inicial da elaboraçao secundaria? Veremos até que ponto essa passagem de A interpretação de sonhos aplica-se a esse objeto: essa "função psíquica ( ... ) utiliza o que encontra de válido no material, do sonho. ~sa parte da elaboração surpreende por seu carater tendencioso. E la procede como o filósofo alemão ridicularizado pelo poeta: há falhas na estrutura do sonho; ela as corrige com aquilo que encontra. Assim retira do sonho sua aparência de absurdo e de ' " . . incoerência, e termina por fazer dele uma especte de acontecimento compreensível"13. Donde a analogia desse processo com "o trabalho de nosso pensamento de vigília": "Ela põe ordem, introduz relações, traz uma coesão inteligível conforme nossa expectativa", mas não passa de um "escamoteamento". P:- alusão à parábola do filósofo de Heine, qu~ F reu.d preza p~rttcu~ar mente, encontra-se, aqui, em situação stmbóhca:. a r~cwnahza ção filosófica fornece a ilustração-tipo da ractonahzação secundária. Face a essa hábil artimanha, F reud preconiza, em 1900, "o sábio preceito: negligenciar, como suspeita, em todos os casos, a coesão aparente do sonho, e conferir aos elementos claros e aos elementos obscuros a mesma atenção em nossas pesquisas para reencontrar o pensamento do sonho". Ora, somos forçados a constatar que estamos longe da aplicação desse yreceito de base na análise dos sonhos de Descartes. Nesta analise, ele habilita os " elementos claros", leva-nos a crer, apelando para essa necessidade técnica que é a carência de informações, na palavra do sonhador, renunciando a tirar partido dos abundantes materiais fornecidos pelos "elementos obscuros". Portanto, devemos estar conscientes de uma distâ.ncia flagrante entre a metodologia geral e a aplicação particular. Se é ver~~de que .a elaboracão secundária, eminentemente atuante no omnco
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filosófico, consiste num "remanejamento, numa medida desigual segundo as partes, que opera o pensamento parcialmente acordado", a aplicação consistiria em tirar partido dessa ..desigualdade" para desalojar o elemento pulsional, através das resistências parcialmente eficazes que ele opõe a uma racionalização de força contrária e proporcional. Ora, Freud nem mesmo esboça essa aplicação. A análise propriamente dita, de uma extrema concisão 14, quase que se reduz a uma paráfrase da interpretação de Descartes. Com efeito, a partir do momento em que foi adquirido que é "esse modo de julgar os 'sonhos de cima' ( ... ) que convém observar no caso dos sonhos de Descartes", a análise só pode dispor, doravante, da versão do sonhador, do modo como "nosso próprio filósofo os interpreta"15• Todavia, curiosamente, Freud parece nada ver aí que não seja inteiramente normal, segundo a aplicação de sua metodologia geral: "Nosso filósofo os interpreta e, conformando-nos a todas as regras da interpretação dos sonhos, devemos aceitar sua explicação; mas devemos acrescentar que não dispomos de um caminho que nos conduza além". Essa formulação não deve enganar-nos: essa comunidade de ponto de partida recobre uma diferença importante de método e de objeto entre a metodologia geral e a aplicação particular, deduúvel de tudo o que precede, antes mesmo de se constatar que a análise acaba depressa. Com efeito, o analista se serve da versão do sonhador habitual para recusá-la, finalmente, o que constitui a prova de que a análise progride, ao passo que ele fica aqui reduzido a confirmar a por isso que a análise curta começa explicação de Descartes. com essas palavras estranhas: "Confirmando sua explicação, diremos ... " Ou Freud retoma a explicação reformulando-a, por exemplo, em termos de conflito interior", ou a explicação é julgada inexata, porque insuficiente, mas recuperada sob forma de "associação de idéias que conduziria ao caminho de uma explicação exata'', para a qual somos forçados a postular arbitrariamente a presença de "uma representação sexual". Esta será, pois, a estranha análise dos sonhos cartesianos: uma repetição (apenas) desenvolvida, que consjste em enfatizar certos traços da explicação do próprio Descartes. Para além desse problema particular, é a atitude de Freud em relação à realidade filosófica que se encontra, aqui, em jogo. A ambigüidade cemida acima, da filosofia como forma
:e
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cultural, reproduz-se aqui sob a forma de um limite encontrado pelo tratamento psicanaütico de um dado circunscrito, onde se articulam a função filosofante e a realidade individual. A palavra freudiana é, aqui, estranhamente flutuante, quaisquer que sejam as reais dificuldades técnicas do problema. Vimos longamente o que a psicanálise deve dizer da filosofia. Todavia, neste ponto, podemos dizer que se estabiliza, sobre sua segunda vertente, o front entre psicanálise e filosofia. Vimos, com efeito, no fim da primeira parte, fixar-se, na metapsicologia, o limite onde a psicanálise afirma sua diferença em relação à filosofia, no ponto de articulação entre uma crítica radical e um debate íntimo. Paralelamente, tomada objeto da psicanálise, a filosofia se viu situada e explicada até o momento em que, de novo, a objetivação se choca com um limite imperativo, que parece oriundo da psicanálise e de Freud tanto quanto da resistência do objeto filosófico. Por esses dois caminhos, é um mesmo limite que parece termos atingido seguindo rigorosamente o percurso freudiano. Precisava ser seguida a trajetória dessa dupla palavra para vê-la esgotar-se. No ponto preciso em que ela termina, outra começa, a que se dirige positivamente à filosofia, não para criticá-la nem objetivá-la, mas para associá-la à obra analítica.
NOTAS 1. Ver O interesse da psicanálise e Mal-estar na civilização: 2. 3. 4.
5. 6.
esse tratamento genérico e não específico da filosofia permite-nos adiar seu tratamento específico. G.W., VIII, pp. 414-415. lbid., p. 416 (o etc. só figura na versão francesa inicial). G.W., XIV, p. 453. ~ nisso que a filosofia, por sua paradoxalidade específica, exprime prototipicamente a paradoxalidade do estatuto pulsional do significante. Deve ser Jembriida a implantação tardia da psicanálise na França. Na Selbstdarstellung, {G.W., XIV, p. 88), Freud
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examina as razões explicando que, "de todos os países eu~ ropeus, foi a França que se mostrou mais refratária à psicanálise", como observava na Contribuição à história do nwvimento psicanalítico (G.W., X, p. 72). ~somente em 1926 (três anos antes do pedido de Maxime Leroy) que se criam a Sociedade Psicanalítica de Paris e a Revue Frqnçaise de Psychanalyse. 7. t no livro de Leroy que a resposta de Freud em francês apareceu pela primeira vez; ela figura em G.W., XIV, pp. 558~5 60.
8. São os sonhos retranscritos por Leroy no tomo I (cap. VI) de seu livro, Les songes d'une nuit de Souabe, os da noite de 10~11 de novembro de 1619. 9. G .W., XIV, p. 558 s. 10. G.W., II~lii, p. 447. 11. lbid., p. 504. 12. Ibid., p. 496. 13. lbid., p.494. 14. Consjste em três parágrafos e numa frase (G.W., XIV, p. 560). 15. G.W., XIV, p. 559.
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SEGUNDA PARTE
Freud e os Fi16sofos
Capítulo I A REFEMNCIA FIT..OSóFICA EM FREUD Com efeito, a filosofia se reintroduz no discurso freudiano sob uma forma positiva: a refer~ncia. Temos aí uma unidade de base do discurso metafilosófico freudiano, dotado de caracteres bem precisos. Entendemos por isso um recurso alusivo a uma filosofia precisa, a wn momento determinado da argumentação freudiana, que surge à margem do discurso analítico que ela parece penetrar. Todavia, esses descentramentos pontuais para o discurso filosófico possui características estereotipadas: - Em primeiro lugar, a imprevisibilidade: a alusão fllosófica parece chegar a um momento inesperado; donde sua impressão de artifício enxertado, do exterior, sobre o discurso psicanalítico. - Em seguida, a rapidez: a referência filosófica parece abrir-se subitamente ao discurso analítico para, logo, fechar-se como um parênteses. - Por outro lado, a estereotipia: a introdução da referência se faz segundo modalidades retóricas sempre semelhantes. Isto nos faz prever que, por detrás de seu aspecto acidental, a referência filosófica desempenha uma função precisa. ~ Enfi.ID, a periodicidade: as referências adornam o discurso freudiano, e parecem submetidas a ciclos de manifestações, o que confirma sua necessidade secreta. Surgindo ao lado do dizer psicanalítico, elas parecem, para um leitor, exteriores
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a ele, quase fora de prop6sito. Por outro lado, porém, parecem aderir ao discurso analítico. Fortemente concisas e alusivas, parecem remeter a um conteúdo preciso: na maioria das vezes, trata-se de "teses" célebres de filósofos, extraídas sem escrúpulos de seus sistemas e convocadas para o uso da demonstração freudiana. O que Frcud aí encontra, não é, pois, a filosofia como metodologia, Weltanschauung, habitus pulsional ou forma cultural, mas a filosofia em sua acepção técnica, como conjunto de asserções agrupadas em sistemas: a filosofia dos lósofos.
fi-
A fim de cernir o sentido e a função das referências filosóficas, convém determinarmos seu ganho na argumentação freudiana. Para tanto, requer-se uma análise precisa, versando sobre os contextos particulares. Na massa de referências, podemos isolar, por uma primeira discriminação, tipos que representem de certa forma uma família ou um modo de uso. Assim, podemos apresentar uma primeira abordagem fenomenológica da referência filosófica em Freud. 1.
A REFER.:e.NCIA NEGATIVA: FREUD E VAIHINGER
Nem toda referência é positiva: encontramos um primeiro uso de uma tese filosófica como cunha, o que constitui uma espécie de transição com o registro crítico precedente (cf. caps. I-H). Mas este uso negativo possui uma positividade, posto ser requerido para formular a posição freudiana. O melhor espécime dessa classe de referências encontra-se no final do capítulo V de O futuro de uma ilusão: versa sobre A filosofia do como se de Hans Vaihinger. Encontramos aí um dos mais violentos ataques da obra de Freud contra o ilusionismo filosófico em geral. Todavia, para apreciá-lo corretamente, devemos cernir seu sentido no contexto da obra. Este capítulo é destinado a determinar "a significação psicológica das representações religiosas"1 . Freud já revogou a objetividade do fundamento racional da religião e descobriu nas pseudoprovas dos dogmas uma autodefesa da sociedade. Tratase, agora, de aprender sua verdadeira "gênese psíquica", o que culminará na tese do capítulo seguinte (VI) onde "a realização dos mais antigos desejos da humanidade" 2 será estabelecida como fundamento subjetivo. Contudo, para acabar com a ilu-
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são, devemos vencer o obstáculo fidcísta, que renuncia à objetividade para melhor ju!'ti!icar a ilusão. .f: neste momento que Freud examina duas tentativas para resolver, desse modo, o problema: o Credo quia absurdum dos Padres da Igreja, que apela para a carência de objetividade racional como motivo supra-racional de adesão ao dogma religioso; e A filosofia do como se de Waihinger, que ele apresenta como a versão moderna, rejuvenescida e sutil da primeira. Portanto, eis a filosofia implicada na obra de mistificação, de que a religião é o órgão principal. sob uma forma filosófica que o velho argumento fideista passa a ser retomado no inicio do século XX. Que tipo de processo lhe é movido aqui? Eis como Freud resume a argumentação de Vaihinger3: 1) ''Em nossa atividade de pensamento há numerosas hipóteses de que percebemos claramente a ausência de fundamento, até mesmo o absurdo. Chamamo-Ias de ficções ... " 2) "(...) mas, em virtude de inúmeras razões práticas, devemos nos comportar 'como se' acreditássemos nessas ficções" . 3) "Este seria o caso das doutrinas religiosas, dada sua importância para a manutenção das sociedades humanas." Assim, a existência generalizada de "ficções" serve para fundar uma justificação pragmática da religião. O que aqui deve ser considerado, é que a argumentação filosófica fornece seu nervus probandi ao fideísmo e o apóia num pseudo-silogismo. "Essa argumentação, diz Freud, não está muito distanciada do Credo quia absurdum." Há mesmo, num certo sentido, uma agravante, pois é a escolha de automistificação do próprio sujeito que funda a adesão. Eis o que motiva a severidade da condenação freudiana ao argumento do "como se". Tudo o que ele pretende reter, é a justificação (pseudo) racional do irracional. Essa doutrina, que se difunde e seduz - A filosofia do como se possui oito edições de 1911 a 1922 - surge providencialmente para regenerar o velho fideísmo. Assim, é o uso pernicioso da racionalidade filosófica que é denunciado aqui Nesta oportunidade, é a fLiosofia em geral que se vê imputada: "Todavia, creio que a existência do 'como se' é uma daquelas que só um filósf)fo pode afirmar. O homem cujo pensamento não é influenciaJo pelos artifícios (Künste) da filosofia, jamais poderá admiti-la". Assim, o uso pernicioso da filosofia tem seu fundamento em seu caráter artificial, de certa forma constitutivo. Contra seus malefícios, Freud
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apela para o senso comum. O processo do ficcionalismo de Vaihinger parece, pois, transformar-se num processo da ficção filosófica. O artifício do "como se" seria, portanto, o protótipo da ficção filosófica. Até o presente, seguimos Freud em sua argumentação. Mas precisamos ver sobre que se funda tal processo. Além de ser extraordinariamente condensada, a tese de Vaihinger é caricaturada. Para se compreendê-la, deve-se evocar o modelo kantiano da argumentação, que se encontra expresso na passagem da razão teórica para a razão prática. Uma vez recusada a objetividade dogmática na teoria do conhecimento, e esvaziadas as idéias transcendentais de seu conteúdo objetivo, a reviravolta consiste em restituir-lhes sua racionalidade de modo prático: graças ao uso regulador, elas encontram a eficácia, apesar da ilegitimidade do uso teórico (constitutivo). Foi este retorno, muito simplificado pelas leituras de Kant, que constituiu objeto de controvérsia na posteridade kantiana. O argumento do Ais ob enxertou-se nesse esquema. Podemos, com efeito, reescrevê-lo sob a seguinte forma: a crítica caracterizou como ficções pseudo-verdades teóricas - as idéias transcendentais; todavia, em virtude de uma necessidade prática, devemos nos comportar como se elas fossem verdadeiras. Ou antes: cremos nelas efetivamente, pelo decreto da razão prática, en· quanto só os postulados fundados na liberdade tomam possível a moralidade. Não são as ficções teóricas que se tomam verdades morais; são as verdades práticas que revelam uma ordem autônoma da razão prática. Ora, é aí que transparece a inflexão imprimida por Vaihinger a esse modelo: ele introduz uma perspectiva pragmatista no racionalismo kantiano, de onde parte, mas mudando profundamente seu sentido. Ao reduzir a idéia de "necessidade prática" à de "imperativos ético-sociais'', Freud reduz, assim, o argumento a um novo Credo quia ab.surdum. Aprendemos esse deslocamento examinando o texto de Vaihinger que Freud cita em nota, em apoio de sua refutação. Nele encontramos a distinção entre "ficções práticas" e "verdades teóricas": ''Enquanto ficções práticas, não atingimos essas construções ideativas; elas só desaparecem enquanto verdades teóricas". :e. esse "jogo de habilidades" que Freud não pode aceitar. Desta forma, sua condenação repousa numa denúncia de pragmatismo ficcionista, mas, através deste, é uma interpretação distorcida do esquema
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kantiano que se esboça, e que foi consagrada pelo próprio Vaihinger. Trata-se de UJm mal-entendido sobre a nature~ do "retomo", interpretado como um recuo ou um compro~us~o. Em outros termos é o caso de Schopenhauer que recrtmma Kant pela reintrodução fraudulenta da religião. e da t~olo~a (pela moral) no final da crítica do teísmo, contida na dialétlca transcendental. :S o que ele exprime pela par~bola .do esposo que se evade de casa e corre para o costumeiro bati: de ~~ naval, intrigando toda a noite uma atraente d~sconhectda dtsstmulada sob uma fantasia para, enfim, descobnr, na aurora, sua própria mulher sob a máscara: Kant seria o autor e a vítima do jogo de enganos (0 fundamento da mo_ral, cap. li, § 7) .. Essa alegoria ilusionista (em te~os de m~s,c~ras e de despistes) encontra-se na idéia freudiana de amftcto. Nela, Freud faz apelo ao realismo, sob sua forma mais ingênua. Deixa.ndo bruscamente o debate filos6fico, evoca um de seus filhos q~e "desde cedo se distinguiu por um acentuado senso da reahdade" e "afastava-se com um ar de desprezo" desde qu~ ap~en dia que a história que se contava, e que os outros. ouVIam com recolhimento"~. era falsa. Através dessa fábula, é ele mesmo que Freud põe em cena. Ele é essa criança inimiga de toda ilusão que coloca a seguinte questão preconceituosa: "~ verdade?", que exige um "sim'' ou um "não" e recusa todo "como se" que não é senão um ..nem sim, nem não". Donde o realismo voluntariamente simplista daquele que não quer "deixar-se" afetar po! ele. Esta é a primeira atitude negativa relativamente ao s1stema filosófico: o que Freud recusa é todo ocultamento do real que a generalidade conceitual permite realizar. A filosofia que rejeita, é a que explora o poder ilusiomsta do conceito e que, ao invés de esclarecer o real, revelando suas estruturas fundamentais, falsifica-o. :e neste sentido que faz ape~o à exterioridade do senso comum. ~ interessante notar, aqut, que, mesmo caricaturando a posição de Vaihinger, Freud, detectou indiretamente sua contradição de fundo: ao enfraquecê-la de seu conteúdo racionalista Freud· detectou sua ambivalência, mescla de criticismo e de pragmatismo, atraves de suas consequenc1as ideológicas brutas. Esse texto é significativo de vários pontos de vista: indica o critério seletivo versando sobre os sistemas filosóficos; revela a ambivalência que vai da refutação de um sistema particular )
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à desconfiança em relação à especulação enquanto virtualidade de artifícios; mostra o ganho da referência filosófica que, mesmo de uma forma negativa, atua na racionalidade freudiana e ai opera clivagens importantes, em momentos-chave da argumentação, permitindo sua progressão.
2.
A REFEUNCIA HEURJSTICA: FREUD E SCHELLTNG
Todavia, num segundo tipo de referências, podemos ver a referência fil osófica agindo direta e positivamente na demonstração freudiana. :e o caso da referência a Schelling, no estudo sobre O EstranhcY>. Procurando cernir essa noção complexa de unheimlich, Freud parte da distinção com o falso sinônimo vertraut (famili~) . A partir daí, constrói o campo semântico da noção, quer dtzer, procura a unidade das múltiplas acepções nas diversas línguas. Dessa pesquisa se extrai um fato lingüístico curioso: "O termo heimlich, entre os numerosos matizes de seu sentido, revela um que coincide com seu contrário unheimlich". Assim, introduz-se a antonímia no cerne da noção. Ora, simultaneamente, Freud detecta, na série das referências associadas aos sentidos na enumeração lexicográfica, uma citação de Schelling: "Chamamos de unheimlich, retranscreve o dicionário, tudo o que deveria permanecer oculto e que se manifesta". Freud isola essa definição filosófica. Diz ele: "Nossa atenção é solicitada por uma observação de Schelling que exprime algo de inteiramente novo sobre o conteúdo do conceito de unheimlich: seria tudo o que deveria ter permanecido um mistério, um segredo, mas que se manifesta" 6 • Freud apresenta essa descoberta como inesperada: "Certamente não esperávamos isso". Seu interesse está no fato de trazer " algo inteiramente novo" (ganz Neues). Donde seu asppecto de revelação. A definição filosófica faz ver algo de inatingível por outra via. A fenomenologia do encontro de Freud com a tese filosófica emerge espetacularmente, e sem que ele nada tenha feito para evocá-la diretamente. Ela se impõe pelo inédito que produz. Ora, essa função é preciosa onde se deve passar da evidência imediata à verdade metapsícológica. Ela sugere a inversão da realidade imediata, mediante a qual se anuncia a verdade pulsiorud. Donde seu caráter es-otérico,
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Sobre este caso particular, trata-se precisamente de ver como se opera esse processo, produzindo a expressão desenvolvida do enunciado schelleriano que chama a atenção de Freud. Ele sugere que o unheimlich constitui o modo de ser dessa realidade ontológica inteiramente particular que, ao revelar um "algo", mostra seu segredo, produzindo o invisível no visível: o estranho inquietante. Fazendo ver o oculto, manüestando o não-manifestável, ela sela a aliança do misterioso (Geheimnís) e do r evelado ( Offenbare). A impressão de estranheza é, pois, a refração subjetiva dessa dualidade ontológica num mesmo sujeito e no interior de uma mesma estrutura perceptiva. O "inquietante" nasce do limite vacilante do manifestado e do não-manlfestável, da contestação do princípio de identidade que encama essa manifestação simultânea de si (soi) e do não-si (non-soi). O que é decisivo, é a contemporaneidade absoluta, tanto no nível subjetivo quanto objetivo, dos dois momentos. Neste sentido, a fonnulação é enganadora: o unheimlich é menos o modo de revelação daquilo que "deveria ter podido permanecer oculto" que esse modo de revelação paradoxal que
revela simultaneamente sua necessidade, transgredida por essa manifestação, embora presente in absentla, de velar-se. A tese metafísica é, pois, utilizada por Freud na medida dessa riqueza de determinações que possibilita pensar. A abstração ontológica é, aqui, fecunda para se pensar, em sua globalidade, tais determinações: somente ela pode descobrir a idéia de uma manifestação vinculada a uma contramanifestação, um oculto que não seja um simples resíduo, mas a alteridade constitutiva da identidade. Por isso mesmo, ela pode explicar esse vivido de desvelamento, integrando em si a presença daquilo que, pouco antes, estava velado. Serve, assim, para designar, entre a aparição e o desaparecimento, a trans-parição ( trans-parution); entre a abertura e o fechamento, o entreaberto. Qual é, pois, o ganho psicanalítico dessa referência? Ela permite resumir e ultrapassar, ao mesmo tempo, a aquisição da pesquisa filológica, que havia mostrado a biuoivocidade do termo. A revelação metafísica, pelo discurso scbelleriano, fornece a intuição ontológica dessa duplicidade já significada no nível da linguagem, possibilitando se pensar aoalogicamente a ambivalência pu1sional. A luz metafísica vai fornecer o meio de s-e ultrapassar o nível filológico em direção à explicação
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psicanalítica. Com efeito, o que se exprime aqui é o mecanismo do rc~alque: "A rel~ção com o recalque aclar; a definição de Sch: llmg" 7 • A combmação de familiar e de incôngruo revela o feno~eno _de retorno do recalcado. A reatualização de complexos mfantts recalcados_ explica esse ~odo de ser duplo, ao mesmo tempo reconhecido e desconhecido. . Pode.-~e notar, com esse caso preciso, o papel da referên· c1a metaf1S1ca: ela fornece a síntese antecipada intuitivamente tornando possível a intelecção da verdade pulsional. Com efeito esta tem por c~racterística não poder ser atingida diretament~ pelos fatos, pOIS. a pulsão outra coisa não é senão aquilo que se mascara . mamf~stando-se. P ortanto, a intuição metafísica é um t~~mpohm abnndo o caminho da explicação psicanalítica e penmtm~o a~ coleta dos fatos. :B por isso que, tendo produzido sua exphcaçao, explorando a idéia de Schelling, Freud só tem que ~ese,n~olver suas aplicações (notadamente pelos documentos !•ter~nos). O enunciado metafísico não fornece nenhuma expltcaçao: confere-lhe a antecipação formal que será realizada pela explicação analítica. '
3.
A REFEReNC IA LEGITIMADORA: O CONCEITO FiLOSóFICO COMO ANTECIPAÇÃO DO CONCEITO PSICANALlTICO
Fermento para a pesquisa, a ferência filosófica também é uma justificação teórica de fundo. Esta família é bem alimenta?a, na ~edida em que podemos detectar, no momento da mtroduç~~ de ~cada uma das teses principais da psicanálise, uma leg1ttmaçao pela antecipação filosófica. Em outras palavras, para cada tese de base, Frcud sente a necessidade de enc~n.trar, num grande texto filosófico, um precedente (ou vanos). Tomemos o conceito de inconsciente. Muito cedo como atesta a correspondên~ia com Fliess ( cf. carta de 31 de' agosto ~e 1898), Freud designa Theodor Lipps como precursor. No fmal d~ sua obra, em O esboço de psicanálise, lembrando urna ~ez ma1! a recusa da paridade consciente psíquico, declara: Mas.nao dev~mos crer que essa concepção diferente do psíquico. seJ~ .uma mov~ção (Neuerung) que se deva reconhecer à p1acanahse. Um f1lósofo alemão, Theodor Lipps, proclamou
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vigorosamente que o psíquico era, em si, inconsciente"8 • O precedente filosófico é evocado como o verbo alto que proclama previamente a verdade que a psicanálise irá especificar. Este Lipps, em quem, quarenta anos antes, havia "encontrado (seus) próprios princípios muito claramente expostos", com uma "concordância até mesmo nos ut:talhes" 9 , é, a seus olhos, uma das " aves raras"10 : um filósofo não consciencialista ; notamos isso em Os fatos da vida da alma (1883) onde Lipps afirma os "processos inconscientes" como "o fundamento mesmo dos processos conscientes" (passagem grifada por Freud em sua leitura) 11 • Freud reconhece que "o conceito de inconsciente já se encaixava, de há muito, em vista de fazer-se receber, nas portas da psicologia". A psicanálise se apoderou do "conceito" e o fez aceder à cientificidade e à formalização mctapsicológica. Mas essa ruptura não destrói o sentido do precedente. Entre a carta a Fliess e a Abriss, constituiu-se a consciência da descontinuidade, mas o precursor filosófico ainda é nomeado. E ssa ressonância, nos dois pôlos da obra freudiana, simboliza bem a perpetuidade do apego à origem filosófica. Consideremos o complexo de :Édipo. Numa passagem de O esboço de psicanálise, no momento em que introduz o con~ ceito, evocando "a incompreensão geral do mundo literário", novamente introduz o p recedente filosófico : "No entanto, mais de um século antes do aparecimento da psicanálise, o francês Diderot havia atestado a importância do complexo de Édipo.,12• Ele se refere a uma passagem do Sobrinho de Rameau, como indica numa passagem da XXI Conferên cia sobre a psicanálise13, onde Díderot declara que, "se o pequeno selvagem fosse entregue a si mesmo, se conservasse toda a sua imbecilidade, e se reunisse à pouca razão da criança de berço a violência das paixões do homem de trinta anos, ele se voltaria contra seu pai e donniria com sua mãe... Freud vê aí, através de uma reflexão etnográfica fundada numa filosofia da civilização, uma antecipação do fenômeno edipiano. O que o tornou possível, foi a vontade de mostrar a continuidade secreta do natural e do social, mediante a criança, vestígio do estado de natureza. A imbricação da lenda edipiana no contexto de uma teoria da civilização torna possível a antecipação. Ainda aqui, F reud tem necessidade de uma palavra antecipadora que emane de um filósofo: somente ela, sustenta, é suficientemente lúcida para objetivar o conflito edipiano que
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a expressão literária não pode senão viver, embora desconhecendo sua natureza. Correlativamente, o imperativo categórico kantiano é aproximado do tabu edipiano, de que seria uma expressão sublimada. E assim que, no "Prefácio" de Totem e tabu, lê-se que o tabu não é outra coisa senão "o imperativo categórico" de Kant14 • As diferenças consistem apenas em que ele é concebido de modo inteiramente negativo, dirige-se a conteúdos diferentes e é racionalizado. Em O problema econômico do masoquismo, o imperativo categórico kantiano é apresentado como "o herdeiro do complexo de Edipo"15 , por intermédio do Superego - é o que atestam os caracteres comuns : dureza, crueldade. Portanto, o imperatjvo da razão prática se liga à instância parental. Essa transferência só se faz ao preço de sua transformação em "tabu social" (o que só poderia ser um imperativo hipotético) e de sua psicologização. Basta que registremos a mesma preocupação do elo filosófico. Da meswa forma, em as Novas confer~ncias, a célebre fórmula sobre "o céu estrelado" e a lei moral, é interpretada como a sublimação da proibição parenta! e como sua derivação para o sentimento religioso16• Assim, a teoria filosófica, ao sistematizar o vivido pulsional, permite-nos objeft tivá-la, portanto, pensá-la. Neste sentido, o Superego encontra no conceito kantiano uma encarnação que nos obriga a pensá-lo em todo o seu rigor - por mais desconhecida que seja sua origem pulsional. Na teoria dos sonhos, a antecipação filosófica é igualmente ativa. e assim que, numa série impressionante de textos, de A interpretação de sonhos às Novas confer~ncias, a definição aristotélica do sonho como "atividade da alma de quem dorme"17 é lembrada. Da mesma forma, Plotino é evocado como alguém que antecipa a fórmula de sonho como realização do desejo na TraumdeutunglB, te. Como se pode perceber, temos aí mais que uma coincidência. Esta sucessão de exemplos mostra que se trata de uma verdadeira necessidade e de um princípio: a teoria analítica encontra no precedente filosófico um eco legitimador e antecipador. E o que podemos chamar de o princípio do Vorgãnger - no sentido literal: aquele que vem antes ou que marcha adiante (termo empregado por Freud). Interrogadas isoladamente, tais referências podem ser banalizadas: podemos ver nelas apenas a expressão de uma aproximação sugerida "de pas-
sagem" e exterior à pr6pria teoria. ?ra, ~ sistemat~cidade dessa referência, por toda parte onde esta e?! JOgo ~~ mt~res,s~ teórico importante, para o Vorganger, Ja consh~ut ,o. mdiclO d~ uma função integradora e vital do referente ftlosoftco, que so pode explicar-se pela elucidação da relação ~e Fre~d com a filosofia, no ténnino da análise, mas que aqut prectsa ser reconhecida de uma vez por todas.
4.
A TOPOGRAFIA FILOSúFICA FREUDIANA
A obra freudiana está, pois, repleta de referências filosóficas. Mas podemos abarcá-la com o olhar a fim de apreender sua fisionomia de conjunto. Do ponto de vista diacrônico, podemos constatar uma continuidade entre a referência filosófica e os diversos perfodo~
do pensamento de Freud. No momento ~esm~ em queAs~o emitidas as críticas mais vivas contra a fllosofta, a referencta filosófica continua a realizar sua função. Temos aí a indicação de que essas duas junções são disjuntivas, sem contradição, no espirito de Freud. Não obstante, vemos a~arecer, c~m o. "período especulativo", inaugurado pelo Alem do prmci~zo ~~ prazer, uma retomada de vigor dessa ~unção referenc1al,. Ja ativa desde o início da obra. Por consegumte, do ponto de v1sta diacrônico, lidamos com. uma linha contínua de referências, com zonas de mais forte densidade nos momentos em que se eleva o nível especulativo. Do ponto de vista sincrônico, lidamos com uma topografia filosófica muito precisamente estruturada.. A referência,_ lo~ge de voltar-se, indiferentemente, para não Importa que direçao, possui suas linhas de força e de afinidade. Lidamos com u_ma estrutura em círculos concêntricos que, segundo o grau de Importância e a freqüência das referências, converge . para ~m núcleo central. Deste ponto de vista, temos um centro 1deológtco fácil de ser detectado: é Schopenhauer. Em torno desse centro, uma série muito diversificada compreende tanto filósofos quanto usos contextuais, como vimos no presente capítulo. Esta representação nos dita, de certa fonna, o caminho a seguir para apreender seu sentido e seu conteúdo. Tendo partid_o da periferia da galáxia filosófica freudiana, devemos progredu em direção ao centro solar através dos planetas mediadores20•
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Como cada um desses m.icrocosmos forma, por sua vez, uma unidade - um complexus de referências - , é conveniente, para apreender seu sentido, partirmos da referência mais rica em determinações, a fim de que, recorrentemente, seja esclarecido, a partir desse nócleo de sentido, o conjunto. Eis o verdadeiro caminho para a inteligibilidade da função filosófica freudiana, através dessas escolhas de objetos fundamentais (Platão, Kant, Schopenhauer) nos quais se investe o desejo especulativo freudiano e que lhe servem ao mesmo tempo de mediadores e de reveladores.
NOTAS 1. G.W., XIV, p. 346. 2. lbid., p. 352. 3. lbid., p. 351. 4. lbid. 5. G. W., XII, p. 236; publicado em lmago, em 1919. 6. lbid. 7. l bid., p. 254. 8. Trata-se de um fragmento escrito em Londres: constitui o início de uma segunda versão de O esboço de psicanálise, sendo que uma parte foi editada após a morte de Freud na lnternationaler Zeitschrift für Psychoanalyse e lmago (B XXXV, 1940, Heft I, S, 21), em seguida em Gesammelte Werke, sob o título "Some Elementary Lessons in Psycbo-analysis" ( G.W., XVII, p. 147). Este é o último texto importante e seguido, escrito por Freud, publicado aí. Encontramos no texto definitivo do Esboço : "Numerosos pensadores como, por exemplo, Th. Lipps, expressaram a mesma hipótese em termos próprios" (G.W., XVII, p. 80). 9. Carta a Fliess de 31 de agosto de 1898. 1O. Ver o episódio de Israel Levine que deu lugar a essa expressão no cap. 11. 11. Segundo Jones, t. I, p. 435-436. 134
12. G.W., XVII, p. 119. 13. G.W., XI, p. 350. :e por Goethe, que fez sua tradução francesa, que Freud diz ter tido acesso à obra de Diderot. 14. G. W., XX, p. 4. 15. G.W., XIII, p. 380. 16. G.W., XV, p. 176; ver também p. 77. 17. Traumdeutung (G.W., II-III, pp. 2-3, 102, 363): Complementos metapsicológicos sobre a teoria do sonho (G.W., X, p. 426); Vorlesungen (G.W., XI, p. 84); Novas confer~ncias ( G.W., XV, p. 16). Aristóteles também é evocado como inspirador da escol~tica no estudo sobre Leonardo da Vinci ( G.W., VIII, p. 13 1) e, através de sua teoria, do gozo artístico ( G.W., VI, p. 136). 18. G.W., II-III, p. 139 : " Já o neopl atônico Plotino dizia: 'Quando o desejo se põe em movimento, então surge a inspiração e vos apresenta o objeto em simulacro'". 19. Sobre o mesmo ponto, Hartmann é evocado como contrareferência: ":E'. o filósofo pessimista Edouard von Hartmann quem está mais distanciado de nossa teoria da realização do desejo" (G.W., ll-Ill, p. 139). Trata~se da passagem de La filosophie de l'inconscietrt (t. li, 3~ parte, cap. 3, 91;1 trad. Nolen, p. 424) onde este denuncia como ilusório o sentimento de bem-estar atribuído ao sono inconsciente; trata-se de mostrar que os prazeres-vigília são susceptíveis de reconciliar "o homem inteligente com a vida". Freud quer ver aí apenas uma cunha à sua concepção. Notemos aqui essa demarcação radical em relação a Hartmann, cujo sentido se revelará no final de nossa pesquisa (cap. V, 2~ parte ) . 20. Quanto a Nietzsche, ser-lhe-á dedicado um estudo especial: Freud e Nietzsche, seqüência do precedente estudo a aparecer na mesma coleção.
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Capitulo ll
FREUD E PLATÃO 1.
A REFEMNCIA CENTRAL: ALÉM DO PRINCIPIO DE PRAZER: O MITO DO BANQUETE
~ Platão quem constitui o primeiro grande pólo referencial da história da filosofia no discurso freudiano. Para determinar seu sentido, convém explicitannos a referência central, a que se encontra no capítulo VI de Além do princípio de prazer. Com efeito, aí Platão é evocado no cerne mesmo da construção especulativa1 empreendida nessa obra decisiva na gênese da especulação no pensamento de Freud. Este é o meio de se precisar a referência platônica que, em contrapartida, esclarece as demais, partindo do lugar onde a referência é a mais determinativa, segundo o princípio exposto acima. A primeira variável a ser introduzida é o sentido tópico da intervenção filosófica nesse local específico da argumentação freudiana e como requisito para seu uso. Ora, Platão é evocado no momento em que a análise freudiana esbarra com uma "hipótese de duas incógnitas", sob a fonna: "Se ( ... ) não pretendemos renunciar à hipótese dos instintos de morte, somos obrigados a associar-lhe, desde o início, a dos instintos de vida". Trata-se de um impasse aporético, se nos mantivermos no nível estritamente ctentifico: "O que a ciência nos ensina, relativa-
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mente ao nascimento da sexualidade, representa tão pouca coisa, que podemos comparar esse problema a trevas que nenhuma hipótese conseguiu penetrar com seu raio de luz" 2 • O discurso relativo à origem da sexualidade só pode, pois, ser levado adiante, efetuando uma mudança radical de "domínios" e de pontos de vista. Para podermos continuar a dizer algo relativamente a essa questão fundamental da origem, de· vemos deliberadamente oscilar do elemento científico ao elemento antonímico. É aí que a reflexão encontra o dizer mitológico: "É num domínio (Stelle) inteiramente diferente, escreve Freud, que encontramos uma hipótese". Quando, face à interrogação fundamental, a ciência se cala, no momento em que se deve falar a todo preço, em razão da importância do desafio, é a palavra mitológica que precisa ser solicitada. Todavia, nessas "trevas"3 , a luz trazida é imediatamente suspeita de ser uma simples miragem da imaginação: "Mas ela (esta hipótese) é de um caráter de tal forma fantasista, mais um mito que uma explicação científica, que não ousaria citá-la aqui, caso não preenchesse precisamente uma condição a que procuramos satisfazer",.. A démarche freudiana é típica: tendo esgotado o estoque propriamente científico das hipóteses susceptível de encerrar a hipótese procurada (com a condição de ter começado por aí), uma passagem ao extremo é reivindicada como necessária, portanto, legítima, embora perigosa. Esta conversão do lugar da pesquisa não é feita sem reservas: Freud está decidido a não deixar, sem sérios escrúpulos, o terreno sólido da verificação experimental. Mas o salta nwrtale'> pode ser salutar quando se trata de encontrar uma resposta para a questão da verdadeira origem: a sexualidade. Uma vez que o caráter imperativo da questão exige que não nos satisfaçamos com a resposta hesitante da ciência, a palavra mitológica desempenha uma função ao mesmo tempo vicariante e específica. Somente ela satisfaz à "condição" que se trata de encontrar: dar conta da derivação do instinto de uma " necessidade de restabelecimento de um estado anterior" - por sinal, atestado fenomenalmente pelo "material" psicanalítico. Se o discurso cientifico se cala aqui, não é por uma imperfeição própria, roas porque nada tem a dizer nesse nível da questão, que a observação nos possibilitou vislumbrar - posto que Freud reuniu elementos atestando essa
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"necessidade de restabelecimento de um estado anterior", apreendido sob uma forma ainda muito geral6 • Todavia, esse dizer mitológico tem por particularidade ser inserido num discurso filosófico: trata-se, com efeito, do mito extraído do Banquete de Platão. Freud $e refere exclusivamente ao discurso de Aríst6fanes7 • A que corresponde essa necessidade, para Freud, de atingir, pela filosofia, o legado arcaico que aí transparece? De fato , tudo se passa como se a identidade do discurso filosófico se reduzisse à sua fun ção de veículo de uma palavra originária, ao qual serviria de órgão. Este é um ponto essencial onde se decide a relação de Freud com a filosofia. Somente uma análise do mito - através da utilização e da leitura que dele faz Freud, na esp~ssura do texto filosófico que o transmite, e de seu confronto preciso com o próp~io texto filosófico - pode nos esclarecer sobre esse ponto essenctal. Aquilo a que Freud faz alusão outra coisa não é se!lão a famosa teoria que "Platão desenvolve pela boca de Anstófanes", segundo a qual a separação dos sexos seria posterior a uma unidade primitiva. Convém ainda estabelecer o que Freud retém dela, e com que finalidade a utiliza. A decupagem an~ lítica da longa citação que constitui a referência, pode servir para especificar a adesão, na aparência maciça e indiferenciada, que parece solicitar aqui. A primeira frase exprime a referência ao passado ID;ítico, vale dizer, a inscrição do que vai ser dito na temporalid~de mítica: "Outrora, a natureza humana não era o que . é hoJe: era muito diferente"s. Encontra-se enunciada aí a função primordial do mito utilizado por Freud: dizer algo sobre um estado revoluto da realidade humana, que lança a luz sobre os mecanismos que agem em profundidade sobre seu ~st~do atual. A "psicologia das profundezas" encontra na recorrenc1a que opera num "antes" alegórico, o modo simbólico de progressão na espessura da realidade presente. Esse descentramento temporal e lógico tornado possível pelo mito, é fecundo onde se trata de encontr~r o homem atual em seu fund amento arqueológico que contém sua verdade em estado de englobamento ontológico, de que sua história será o desenvolvimento filogenético9• Segue-se a indicação dessa outra natureza que contém a verdade arcaica da sexualidade humana: "A humanidade se dividia em três espécies de homens, e não em duas, como atual138
mente. Com os sexos macho e fêmea, havia um terceiro que participava dos dois. Esta espécie se chamava de Andrógino. ·.. " E m outras palavras, a referência mitológica tem por efeito revelar sob (portanto, antes) a estrutura bipolar da sexualidade (macho/ fêmea) uma estrutura tripolar (macho/fêmea/andró· gino), que constitui sua matriz genética e su.a chave secreta. A androginia, terceiro termo que encarna a diferença entre as duas estruturas (enquanto sua presença, além do macho e da fêmea especifica a sexualidade arcaica), constitui, pois, o revelador 'da distância entre o passado mítico e o presente real, onde se atesta a origem procurada. Em seguida, vem uma descrição dessa realidade and:o~ nica: "O corpo de cada um desses andróginos era de apare~cta arredondada. Possuiam em círculo o dorso e os lados; possutam quatro mãos, pernas em número igual ao das. mãos!. duas ~isi? nomias perfeitamente semelhantes ( . . . ) dms órgaos gemtats, etc.". Se Freud retranscreve essa descrição em seus detalhes pitorescos, enquanto emite certos elementos do_ discur~o de Aristófanes é porque ela desempenha uma funçao precisa no relato míti~o: materializar sensivelmente o princípio androgínico, no qual se anuncia o núcleo de sentido do ~to. A. ~es crição da individualidade legendária tem po_r efeito .exphcttar seu princípio. Na ocorrência, o caráter senstvel dommante (a rotundidade) de certa forma "esquematiza" o caráter inteligível central : a dualidade da unidade. Todavia, essa estrutura anatômica dual geral, converge para uma duplicidade particular que constitui sua condensação e seu fundamento: a duplicidade genital. e. por isso que, em sua decupagem do mito platônico, Freud omite outros termos da enumeração das partes redondas do corpo (pescoço, orelhas) para mencionar, no fim, depois das reticências, os ~'d?is ~rgãos genitais". Estes constituem, .com efe~~o, a mates;a~tzaçao da dupllcidade sexual do andrógt.llo, reumao em um um~o .ser dos dois sexos (o que Platão traduz por um detalhe anatomico que Freud omite: "Duas fisionomias opostas numa única cabeça"10). Contudo, uma vez que apresentou diferencialment;. as duas versões, passada e presente, da sexualidade, o relato m~tLco deve explicar a passagem - em sua temporalidade própna - do estado arcaico (invisível, mas determinante) ao estado presente (visível, mas engendrado por essa gênese de que o mito constitui precisamente a elucidação). Trata-se, no caso, de ex-
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plicar o processo pelo qual passamos da unidade dupla às duas unidades simples e opostas (macho e fêmea). O material expressivo da linguagem mitológica dispõe, para isso, de um esquema explicativo decisivo: em Platão, é Zeus quem desempenha esse papel de agente etiológico: "Zeus cortou os Andróginos em dois, da mesma forma como, para colocá-las em conservas, corta-se em duas as sorvas ..." :e a partir daí que a decupagem operada por Freud chega a uma espécie de transposição do mito, na aparência simplesmente retranscrito, e a uma derivação de seu eixo de significação. Em primeiro lugar, ele omite a deliberação dos deuses, tornada necessária pela agressividade dos andróginos relativamente a seu criador: não se interessa pela motivação de Zeus - encontrar um meio de reduzir sua pretensão, retirando-lhes os meios de fazer mal, sem recorrer à solução radical do extermínio - , para ir direto à operação de dissecção. Por outro lado, não fornece o relato do próprio procedimento de transformação, que Aristófanes descreve em detalhe, para ir ao efeito da transformação, que é a aspiração à reunificação das duas metades: "Feita essa divisão, cada metade deseja unir-se à sua outra metade. Quando se encontravam, enlaçavam-se com seus braços ... " Donde a perda, em cada um dos dois indivíduos, do mais elementar sentido do ser vivo: a autoconservação. É neste sen-
tido que Platão observa que as metades "se estreitavam tão fortemente que, no desejo de se refundirem, deixam-se morrer de fome e de inércia, porque nada queriam empreender uma sem a outra". :e aí que termina a retranscrição freudiana do mito platônico. Ora, no texto mesmo de Platão, o mito se prolonga e se realiza por um último episódio fundamental: Zeus, "movido de piedade diante desse espetáculo aflitivo", decide dar a essas metades uma verdadeira individualidade, restituindo~lhes uma diferenciação sexual. Com esse objetivo, "transporta os órgãos genitais para a frente", o que lhes permite reproduzirem-se, acalmar seus desejos recíprocos, em seguida, cobrir sua anatomia (entre dois acoplamentos) para proporcionar "a todos, as necessidades da existência". Convém pesar bem as conseqüências e avaliar corretamente o sentido teórico dessa formidável omissão do episódio final, na exposição freudiana. 140
Com efeito, tudo se passa como se, para Freud, a lição do mito estivesse adquirida desde o penúltimo episódio. O que significa essa cristalização da gênese mito-lógica nesse momento preciso? Por conseguinte, a lição do mito platônico parece adquirida, aos olhos de Freud, logo após a segregação do todo vivo, quando tende a reconstituir-se, e antes da emergência das individualidades sexuadas (o que toma possível a dispensa da intervenção divina). Isto deve ser relacionado com o ganho psicanalítico positivo da referência enunciada por Freud: "De-vemos, segundo a advertência (Wink) do filósofo-poeta, ousar emitir a hipótese segundo a qual a substância viva seria, animando-se, dividida numa multidão de pequenas particulas que, depois, aspiram à reunificação, sob o impulso de tendências sexuais". Observemos, com efeito, que o tema dessa hipótese é ''a substância viva" anônima, e não as individualidades sexuadas. Freud não situa sua hipótese no nível dos organismos individuais, mas do "princípio de vida", em seguida, das "partículas" vivas elementares. Se o último episódio pode ser omitido, é porque tudo já está decidido quando nascem o desejo geral da substância viva de reconstituir-se e a tensão cega que define a vida e a sexualidade, antes de encarnar-se nas individualidades orgânicas. É por isso que Freud se situa decididamente no nível elementar da matéria viva (o celular) e, mesmo, analogicamente, nos confins da matéria inanimada. O que Freud evoca, em algumas fórmulas, é uma "biogonia". "Tais tendências, nas quais se exprime, a seu modo, a afinidade química da matéria inanimada, prosseguem através do reino dos protistas e, pouco a pouco, superam as dificuldades que um meio carregado de excitações mortais opõe a seus esforços, obrigando-as a se cercarem de uma camada cortical protetora". A própria reconciliação final intervém no nível pluricelular: "Essas partículas dispersas da substância viva chegam à pluricelularidade e, finalmente, transferem esse desejo de reunião, levado ao mais alto grau de concentração, para as células germinativas". Encontramos, aqui, muito longe da ingênua teoria da bisexualidade que correntemente se atribui a Freud - justamente por não termos submetid.o à análise o sentido da referência filosófica nem tomado por uma adesão imediata a evocação do mito platônico. Lidamos, antes, com um turbilhão vital que, 141
após ter superado todas as etapas do processo firogenético, tende a cristalizar-se no nível das c.;élulas germinativas. O desejo que impele o macho para a fêmea nem mesmo é evocado no comentário freudi ano, porque ele não passa da réplica, no nível dos indivíduos sexuados, de conatus que define globalmente o movimento mesmo da vida. Em outras palavras, o desejo individual não passa da expressão, no plano dos organismos sexuados, do grande movimento de tensão que, atravessando todas as etapas do processo vital, nele vem materializar-se por intermédio das células germinativas. Por conseguinte, desde o penúltimo episódio do mito, Freud pode subsc rever a fórmula de concl usão que Platão coloca na boca de Aristófanes: "~ desse momento que data o amor inato dos homens uns pelos outros". Desta forma, podemos extrair o sentido da inflexão do mito e aquilo que Freud nele procura e encontra. O deslocamento de ênfase sobre o princípio vital, apreendido em sua impessoalidade, não é uma simples correção de detalh e: através dele se atesta um deslocamento da concepção geral das relações da individualidade humana com a universalidade cósmica. De fato, a sexualidade coloca o problema da relação do indivíduo com o princípio vital , nele e fora dele. A questão da separação dos sexos é, de certa forma, o teste desse problema: conforme lhe demos uma solução monista ou unitária, ou, ao contrário, uma solução dualista ou "separacionista", representamo-nos de modo oposto o estatuto da sexualidade e, correlativamente, a articulação em todo e mônada. Ora, em Platão, estamos diante de um ponto de vista monista bastante caracterizado, embora combinado com um ponto de vista dualista. Um elemento o revela desde o início do mito: no começo, há, além dos andróginos, indivíduos sexuados autônomos, machos e fêmeas. Portanto, o andr6gino não passa do ancestral de certos machos e fêmeas. A sexualidade possui, concomitantemente, dois modos de estruturação: monista ( androgínico ) e dualista ( unissexuado). Ou antes, o modo de estruturação monista, embora dominante, admite simultaneamente o modo dualista. Ao omitir essa determinação, Freud erige o princípio monista originário em estrutura exclusiva da sexualidade, e submete todos os indivíduos sexuados - portanto, a individualidade sexuada enquanto tal - a essa filiação andrógina unívoca.
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C omo correlativamente, ele interpreta o mito no nível vital global: a ele subordinando decididamente o po~to de vista dos organismos individuais, a originalidade da le1tur~ de F~eud consiste exatamente nessa promoção do ponto de vtsta momsta. Trata-se da estrutura primeira da sexualidade, que a intuição poético-filosófica {é Platão, co ~o. ''poeta-filósofo", quem é evocado aqui) serve para matcnahzar. Basta reconhecermos, aqui, esse requisito principal inerente à psicanálise, que a faz recorrer à especulação filosófica.
2.
O USO FREUDIANO DO CONCEITO PLATôNICO DE E ROS
Esse texto de Além do princípio de prazer constitui um importante referencial para se compreender o sentido da série das referências a P latão presentes na obra de Freud. Porque F reud mantém uma constante relação coro Platão. Desde sua adolescência, entrou em contato aprofundado com o pensamento grego, traduzindo o estudo de Stuart Mill sobre o Platão de Grote. Não é por acaso que, numa carta a M arta Bernays, datada de 28 de agosto de 1883, encontramos uma alusão ao mito platônico; evocando sua dolorosa separação de sua noiva, Freud exclama: " Não sóu mais que uma metade de ser humano, no sentido da velha fábula platônica que ~erta mente tu conheces, e quando estou desocupado, a separaçao me faz sofrer"ll. Isto vem testemunhar a notável precocidade da presença platônica nas preocupações freudianas. Desde 1905, no primeiro de seus Três ensaios sobre a sexualidade, Freud sublinhava essa "fábula poética da partilha do homem em duas partes- homem e mulher- que se esfor- . çI1 2 • Ora, com o aprofundamento especulativo dos anos 1920 a teoria platônica, de há muito familiar a Freud, vai ser reatualizada e desenvolvida. Temos aí o exemplo de um processo típico do contato com uma filosofia por parte ~e Freud: ela serve para exprimir determinado estado da concettualização psicanalítica e aprofunda-se, correlativamente, em seu desenvolvimento. Assim, uma mesma referência se apro-
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funda prógressivametite pelas stiêessivas retomadas e pelos usos que dela faz Freud, em momentos diferentes de seu pensamento. Ora, Freud descobre no conceito platônico de Eros um princípio heurístico muito preciso. E o que pode ser notado nos dois textos contemporâneos de Além do principio de prazer. No capítulo IV de Psicologia coletiva e análise do Ego (1921), a propósito de considerações sobre "sugestões e libido"18, a concepção platônica do Eros é evocada com a ajuda da con~ cepção "ampliada" da libido. Com efeito, a definição da libido como "a energia quantificável de que são constituídas, em sua diversidade mesma, as moções pulsionais", supõe uma extensão da noção restrita de amor sexual (o conceito popUlar de libido) . Ao passar de uma à outra acepção, é a unidade epistêmica do conceito que é conquistada, "todas as tendências" (Strebungen) sendo apreendidas, através de sua diversidade mesma, como "a expressão dos mesmos movimentos pulsionais". Em outras pa· lavras, pelo conceito ampliado da libido, é uma classe genérica de fenômenos que estamos em condições de pensar. Neste sentido, o Eros permite a extensão da sexualidade, que perde sua definição imediata e limitativa, não somente pelo número acrer cido dos fenômenos que ela recobre, mas pela mudança de natureza do fenômeno que isso implica. A noção poétic~/ilo sófica de Eros contém, sob a forma da unidade mitica, a antecipação simbólica da unidade de uma classe de fen6menos. Inicialmente, Freud justifica essa extensão do sentido do termo pela polissemia de seu emprego corrente. Assim, vai encontrar inscrita na linguagem mesma, essa "síntese" , desde então "plenamente justificada", à qual a psicanálise confere sua expressão científica. :e na etapa superior que intervém a justificação pelo uso filosófico. Contra a "tempestade de indig~ nação" levantada pelo emprego psicanalítico do termo, e para convencer que se trata apenas de uma "aparente inovação", Freud apela para o precedente platônico: "No entanto, a psicanálise nada criou de original com essa concepção 'ampliada' do amor. O 'Eros' do filósofo Platão revela uma perfeita coincidência, quanto à sua origem, às suas manifestações e à sua relação com o amor sexual, com a faculdade amorosa: a libido da psicanálise". Assim, o Eros platônico é a forma primeira sob a qual se dá a síntese que a psicanálise promove por seu conceito de libido: ele fornece o conceito totalizante permitindo, analogicamente, a introdução da síntese psicanalítica.
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O fato é que a entidade mítica persõnaliza unia sínte~e analógica de determinações que ultrapassa a dispersão dos aspectos de real positividade apreendidos. Possibilita a m ani~ festação d essa síntese fictícia que prepara a síntese científica. Da mesma forma, no prefácio da quarta edição dos Três ensaios ( 1920) , Freud evoca o precedente platônico em apoio da mesma tese: "No que diz respeito à extensão por nós conferida à idéia de sexualidade, extensão que nos impunha a psicanálise das crianças e daqueles que chamamos de os per~ versos, responderemos àqueles que, de sua altura, lançam um olhar de desprew sobre a psicanálise, que deveriam lembrar-se de como a idéia de uma sexualidade mais ampla coincide com o Eros do divino Platão" 14 • Assim, a verdade psicanalítica, con.. quistada pela observaçãa positiva, encontra a verdade filosófica como antecipação intuitiva. Esta tem por função elevar a dignidade teórica da psicanálise, conferir~lhe seus títulos de nobreza sugerindo seu reflexo metafísico (recusando, assim, o "desprezo" para com o discurso psicanalítico). De modo semelhante, no texto citado de Psicologia caletiva e análise da ego, Freud pretendia induzir, da recusa oposta' à libido psicanalítica, que "nem sempre os homens levam a sério seus grandes pensadores, mesmo quando lhes devotam uma grande admiração". Está presente aí o desejo de ligar o enunciado analítico ao dizer filosófico, para decuplar seu crédito. Simultaneamente, porém, é cuidadosamente recusado o contato direto com a fonte filosófica. Longe de evocar seu próprio comércio com Platão, Freud remete a especialistas, en~ carregados, no movimento psicanalítico, de elucidar e de sistematizar as aproximações. Na ocorrência, trata-se de Nachmansohn e de Pfister, que publicaram, na lnternatimude Zeitschri/t für Psychoanalyse, artigos documentados, comportando uma análise comparativa da "teoria da libido de Freud" e da "teoria do Eros em Platão" (em 1915 e 1921) 15• Isto se explica pela preocupação, onipresente e~ Freud, de receber do exterior o anúncio da analogia filosófica. Institui-se, assim, para cada grande interlocutor·filósofo, um mediador permitindo-lhe ao mesmo tempo assumir o parentesco filosófico e desembaraçar-se delel 8 • Quanto à analogia, só deve aparecer em seu próprio discurso, desempenhar sua função e desaparecer: ele deixa a outros o cuidado de aprofundá~la, por medo de um compromisso especulativo. Por isso, a referência deve ser breve, como pode145
mos notar aqui: deve atestar a necessidade da referência filosófica, sem difundir seu conteúdo num lugar que lhe permaneça estranho. O essencial já está conquistado: a idéia de Eros fornece a intuição monista de que tem necessidade a concepção extensiva da libido. Também é neste sentido que ele evoca, em As resistências à psicanálise ( 1925), "o Eros englobao te universal (allumfassendes) e conservador universal do Banquete de Platão" 1' • .B por sua universalidade que o Eros permite ultrapassar o amor sexual stricto sensu, o que levava um ao o~tro os dois sexos e visa a produzir a sensação de prazer gerutal. Desta forma, ele torna possível a ultrapassagem da concepção estreita do senso cornwn. Ainda em 1933, em Por que a guerra?, Freud declara, de passagem, serem chamados de "eróticos" esses instintos "inteiramente no sentido do Eros, no Banquete de Platão, ou de 'sexuais', com a extensão con sciente do conceito popular de sexualidade" 18 • Deriva-se, daí, a aproximação com a teoria da histeria: "Eu não sabia, escreve em Selbstdarstellung, que, ligando a histeria à sexualidade, havia remontado aos tempos mais antigos da medicina c me ligado a Platão"19• Ainda aqui, é utilizado um mediador: "Fiquei sabendo muito mais tarde, lendo um artigo de Havclock EUis". Este ponto particular é deduzido do universalismo do Eros, que também se exprime sob as formas patológicas da realidade humana. 3.
FREUD E EMPÉDOCLES
É essa busca do originário que leva Freud ao pensamento antigo: não se trata apenas de certa nostalgia metafísica resi· dual, mas de uma necessidade heurística. Trata-se, notadamente, de determinar as pulsões fundamentais que desempenham o papel de prinCípios fundadores da lógica pulsional global. Quer dizer: a metapsicologia encontra a meditação primeira sobre os princípios elementares das coisas e sobre os constituintes universais do ser. Para além de Platão, é, pois, aos pré-socráticos que se dirige a reflexão freudiana. E. significativo destacar que, em Além do princípio de prazer, Freud aproxima a busca dos instintos fundamentais da
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especulação dos "fisiólogos": "Cada um defendia tantas pulsões e 'pulsões' fundamentais' quando lhe aprazia, c jogava com elas, corno os antigos filósofos da natureza com os qua.tro el~ mentos: a água, a terra, o fogo e o ar". Porque a pstcologta fundamental dos instintos, em vias de constituição, é confrontada com o problema da origem do ser psíqui~o: cncont~a-se, pois, numa situação análoga à da Escola de ~Ile,t~· confmada entre a arbitrariedade da determinação dos pnnc1p1os e a necessidade dessa tarefa prévia a toda compreensão do mundo. Entre os pré-socráticos, Freud privilegia Empédocles de Agrigento. Em A análise finita e a análise infinita, fala longamente do filósofo de Ncikos e da Philia, que ele saúda como "urna das mais importantes e notáveis figuras da história grega da civilização"20• O que mais pare<:e fascinar Freud em Empédocles, são as " mais agudas contradições" que "seu espírito parece reunir". Mas essas múltiplas contradições convergem para a ambivalência do pesquisador (Forscher) e do pensador (Denker). Empédocles encarna a união, numa mesma personalidade, da exatidão e da paciência do pesquisador com a "ousadia fantasista" do forjador de "especulação cósmica". J:: claro que, nessa personalidade, que lhe revelou a leitura de Theodor Gomperz (de quem conhecemos o papel desempenhado no encontro de Freud com a filosofia) 21 e de Wilhelm Ca· pelle2 2, Freud vai descobrir o espelho dessa dupla determinação com cuja síntese sonha. Todavia, é para uma doutrina particular de Empédocles que se orienta o interesse da psicanálise: a doutrina segundo a qual "há dois princípios do devir na vjda do mundo, como na vida do espírito, que se·encontram num eterno combate recíproco", e que ele "chama de philia-Amor e de neikos-Combat:"· Ora, "os dois princípios fundamentais de Empédocles sao, quanto ao nome e quanto à função, o equivalente (das Gleiche) de nossas duas pulsões originárias (Urtriebe): Eros e Destruição". Ainda aqui, a teoria analítica encontra no longfnquo precedente empedocliano o reflexo de sua descoberta. Como justificar essa antecipação, sen ~o pelo _fato .de .que, através dos primeiros pensadores da realidade, sao os mshntos originários que se nomeiam? Assim, a predileção de Freud pela origem do pensar e do dizer filosóficos toma o sentido de uma referência à originalidade do dizer das pulsões de base ( Urtriebe) refratado no dizer filosófico. 147
Num segundo momento, porém, Freud insiste na distinção do pon to de vista analítico sobre este ponto preciso. Ele recusa que se chegue a "sustentar que as duas (teorias) sejam idênticas": a diferença essencial consiste no fato de uma ser uma "fantasia cósmica", ao passo que a outra "se apresenta com a pretensão de um valor biológico". Donde o obstáculo animista à equivalência absoluta das duas teses: "Não nos surpreendemos que essa teoria seja alterada por numerosos traços, pois surge depois de dois mil e quinhentos anos. Abstração feita da redução biopsíquica ( ... ) , nossos materiais de base não são mais os quatro elementos de Empédocles: a nosso ver, a vida se separou radicalmente do inanimado". Correlativamente, porém, há transferência da teoria à luz do modelo empedocliano: a "crença na mistura e na separação dos elementos materiais" converteu-se, analogicamente, em crença na "soldagem e na composição dos componentes pulsiooais". Assim, o "princípio de combate" foi reestruturado em fun ção de determinações biológicas. O "núcleo de verdade" é, pois, destinado a uma constante reatualização: "Ninguém pode prever, diz Freud, sob que vestimenta o núcleo de verdade da doutrina de Empédocles aparecerá no ponto de vista futuro". O que valoriza, do ponto de vista dos interesses psicanalíticos, a perspectiva pré-socrática, é essa exigência de originalidade radical, que faz a transição entre o dizer mítico e o dizer filosófico. 4.
A INTERPRETAÇÃO INDUIZANTE DE PLATÃO: O MODELO SCHOPENHAUERIANO
Desde já, podemos identificar a radicalização do monismo, detectado na decifração do mito do Banquete, como um sistema da mesma problemática, que nos fornece o sentido da relação .::om Platão. A interpretação freudiana do mito encontra uma chave numa hipótese precisa que ele expõe numa longa nota: "Contrariamente à opinião corrente, estou disposto a admitir que Platão havia sofrido, pelo menos indiretamente, a influência das idéias hindus" 23• Essa idéia se alimenta aqui pela analogia com uma passagem dos Upanishads, textos nos quais a sabedoria especulativa hindu foi registrada"-Z4: "Chamarei a atenção 148
para o fato de que já encontramos essa teoria nos Upanishads" . Freud faz alusão a um relato contido na Brihad-AranyakaUpanishatP. No início, era o Atman ou Si (Soi) , princípio anônimo e solitário que, não sentindo prazer, "foi tomado pelo desejo de ter um segundo" e "dividiu seu Ego em duas partes": daí " nasceram esposo e esposa". Como se vê, a concepção da unidade primitiva é aqui muito mais radical que em Platão. E através desse monismo absoluto, Freud interpreta Platão donde seu desejo de fazê-lo derivar de uma fonte hindu, em detrimento das opiniões mais difundidas. Assim, essa leitura tem por fundamento a introdução de um modelo tomado de empréstimo ao fundo oriental. Deste ponto de vista, o caso do Banquete é privilegiado, na medida em que o mito relatado por Platão provém vjsivelmente de fora e antes da tradição helênica. Por sua mediação, introduz-se uma tradição oriental de componentes complexos (da egípcia à assírio-babilônica, segundo as hipóteses), que se justapõe ao fogos ocidental e o infunde. Temos aí, muito mais que uma questão de fato e de erudição. A orientalização do mito platônico toma, em Freud, o sentido de uma concepção da filosofia a que devemos atribuir, com precisão, sua origem. É verdade que, em Moisés e o monoteísmo, Freud atribui à Grécia o "início do pensar filosófico'12•. Mas precisamente, essa predileção pelo modelo oriental atesta o movimento de regressão ao fundamento e ao originário, que já diagnosticamos no interesse peJos pré-socráticos. De onde vem, pois, essa interpretação "orientalista"? Não é uma inprovisação de Freud, mas se inscreve num paradigma bem determinado, que liga Freud a Arthur Schopenhauer. Com efeito, essa tese heterodoxa do hinduísmo de Platão encontra sua ortodoxia secreta na interpretação schopenhaueriana. Schopenhauer apresenta toda a sua filosofia como a perpetuação da sabedoria hindu. No prefácio da primeira edição de O mundo como vontade e como representação, apresenta "o benefício do conhecimento dos Vedas, desse livro cujo acesso nos foi revelado pelos Upanishads" - os mesmos sobre os quais Freud apóia sua demonstração - como uma propedêutica necessária à leitura de sua obra: "Suponha um leitor, tendo recebido as lições da antiga sabedoria hindu e as assimilado a si: então, estará, no mais alto grau, preparado para ouvir o que tenho a eosinar-lhe"27 • A filosofia schopenhaueriana se apre-
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senta, pois, como estranha à filosofia ocidental tradicional..e como um prolongamento do espírito dos Upanishads, por umfLcação em tomo do "grande e único pensamento" do Mundo como Vontade: ''Entre as afirmações isoladas que nos apresentam os Upanishads, não há uma que não resulte, como uma conseqüência facilmente detectável, do pensamento que vou expor, embora este, em contrapartida, ainda não se encontre nos Upanishads". H á algo, porém, mais preciso: Scbopenhauer cita, no mesmo local, "o divino Platão'' como precursor fundamental, portanto, como meio de acesso paralelo à mesma idéia. Da mesma forma, no livro IV ( cap. 63), evocando "a verdade filosófica" contida "nessa antiga doutrina do mais nobre e do mais velho dos povos" (hindu), declara: "Já Pitágoras e Platão a ouviam maravilhados, tomavam-na de empréstimo aos hindus, talvez aos egípcios"211• Desta forma, a mensagem de Platão é derivada da mensagem da sabedoria hindu. Tal filiação é operada especificamente a propósito do problema da realidade do mundo exterior e da coisa em si29• Assim como Kant "completa ( ... ) os hindus e Platão"ll0 , Platão completa os hindus. Ao desenvolver essa analogia, Schopeohauer é levado a aproximar a alegoria platônica da Caverna do "fundo do ensinamento dos Vedas e dos Puranas": "a doutrina da Maya", que faz do mundo sensível a ilusão de que se deve levantar o véu para se atingir o núcleo autêntico das coisas. ":S a mesma verdade ( .•. ), sob uma forma diferente", que se exprime, pois, em Platão e nos Hindus. O que os aproxima, é uma mesma "intuição geral do mundo", "expressão direta da pura a percepção", "de um modo mais mítico e poético que filosófico e preciso". Como em Freud, a linguagem mitológica, por sua aproximação mesma, atinge uma verdade fundamental, que será retomada pelo Jogos filosófico. :S essa analogia que, implicitamente, autoriza a que Freud ousa fazer em Além do princípio de prazer. A aproximação que Scbopenhauer sugere, por exemplo, entre a República e os Vedas e as Puranas, Freud a reproduz, num.a démarche paralela isomórfíca e segundo uma inspiração comum, entre o Banquete e os Upanishads. A aproximação é tanto mais tentadora, para quem adotou a visão schopenhaueriana, quanto o Banquete é um diálogo fortemente "orientalizado". Assim, a "tese" é deduzida de um modelo teórico oculto, 150
mas eficiente: a positividade da influência postulada - do ponto de vista da história efetiva das idéias - conta menos que o modelo de análise de que ela é a conseqüência. Aliás, ele reduz essa influência a uma simples virtualidade, realizada "por intermédio dos pitagóricos" (evocação clássica para toda hipótese de filiação oriental), e se atém, em último lugar, à hipótese de "uma certa simpatia intelectual, em favor da qual os mesmos encadeamentos de idéjas puderam nascer no cérebro de Platão e no espírito dos filósofos hindus". Ele reproduz, assim, a idéia schopeohaueriaoa da dupla expressão de uma mesma verdade de dupla face, Platão tendo "reconhecido" na mensagem hindu sua verdade própria: "Deve-se supor, conclui Freud, que Platão não teria adotado semelhante história, trans· mitida pela tradição oriental, e, sobretudo, não teria feito tanto caso dela, se ela não o houvesse atingido como algo de familiar e se ele não tivesse sido iluminado por sua verdade". Podemos notar o importante desafio que se trava através desse pequeno ponto de erudição: ao colocar Platão, nesse momento, em concordância com a filosofia hindu, Freud se inscreve numa linha ideológica que podemos precisar aqui. A orientalização de Platão revela uma tendência determinada a vincular a filosofia ocidental a um fundamento oriental, que corresponde a uma longa história que, em parte, se confunde com a introdução do pensamento hindu na Europa. Trata-se, ai, mais de uma moda: é um fenômeno ideológico cujo mecanismo e cujos efeitos não devem ser subestimados. O irraciona· lismo europeu e, notadamente alemão, do século XIX, encontrou nesse referencial importante o fundamento do descentramento relativamente ao racionalismo ocidental que procurava. Por conseguinte, o hinduísmo serve de arma ideológica para solapar os fundamentos racionalistas da filosofia dominante no Ocidente. O que o irracionalismo acolhe com tanto entusiasmo, é uma nova legitimidade ideológica. A este título, é um acontecimento extraordinário que, exumado dos cúmulos da história das idéias, tem notadamente por efeito revelar as afinidades secretas de Freud. Esse movimento começa a desabrochar desde o século XVII, acelera-se na segunda metade do século XVIII e floresce no início do século XIX31 • :e Anquetil-Duperroo quem trará de sua viagem uns cinqüenta Upaníshads, de que fará uma tradução latina, aparecida em Strasbourg em 1802, segundo a tra-
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duçâo persa que deles fora feita um século antes32• Mas é Schopenhauer quem irá tirar deles, imediatamente, a substância filosófica; com efeito. desde 1813, ele entra em contato com a filosofia hindu por intermédio do orientalista Friedrich Maier, que freqüentava Goethe. Ele vai encontrar nela uma confirmação e um enriquecimento de seus princípios. Esse lembrete é necessário para explicar o fascínio de Freud pelos Upanishads: estes, desabrochamento especulativo dos Vedas, constituem, com efeito, a forma primeira sob a qual, em razão da conjuntura que acaba de ser lembrada, a filosofia hindu se revelou à Europa; mas essa conjuntura aparece salutar a Schopenhauer, que edifica sobre a inspiração dos Upanishads sua sabedoria própria: declara que eles constituem "o núcleo" dos Vedas, "esse fruto da mais alta ciência e da mais elevada sabedoria humana,.33• Vê neles o evangelho regenerador do Ocidente cristão. Como prova, essa profecia estampada em O mundo: "A sabedoria hindu refluirá ainda sobre a Europa, e transformará de ponta a ponta nosso saber e nosso pensamento"34, desviado de seu curso "para uma aventura concluída com Galileu". Ora. "o sopro dos Upanishads impregna totalmente o espírito sagrado dos Y edas: não são uma formação decadente deles, mas sua realização autêntica35. E esse pressuposto que motiva a interpretação freudiana de Platão, a partir dos Upanishads. Assim, somos remetidos à análise desse referente schopenhaueriano que mediatiza a relação de Freud com Platão36 •
NOTAS 1. G. W., XIII, p. 62. 2. Op. cit., ibid. 3. Podemos detectar aqui o tema das trevas já percebido supra em As resistências à psicanálise. 4. Op. cit., ibid. 5. Sobre o sentido profundo do risco especulativo assumido, ver o resultado da análise, cap. V, 2l/o parte. 6. Op. cit., ibid.
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7. E o discurso situado nos parágrafos 189c - 19ld e que prossegue, após o relato do mito propriamente dito, até o parágrafo 193d. 8. Op. cit., ibid. 9. O recurso freudiano à mitologia retoma, pois, curiosamente, o princípio haeckeliano da recapitulação da ontogênese pela filogênese cujo uso é conhecido na concepção libidinaL 1O. Banquete, § 190a. 11. Ver Correspondance, Gallimard, p. 58; citado por Jones, t. III, pp. 314-315. 12. G.W., V, p. 34. 13. G.W., XIII, p. 99. 14. G. W., V, p. 32. 15. a. a carta de 14 de janeiro de 1921, onde Pfister anuncia sua descoberta a Freud (Corr., Gallimard, pp. 125-126). Aqui, a duplicação das referências permite sugerir uma continuidade das pesquisas que Freud patrocina sem nelas engajar seu crédito. Pfister ca.va o caminho aberto por N achmansohn, e assim se perpetua, à margem da conceitualização freudiana, a constituição de uma espécie de aval filosófico da psicanálise. 16. Sobre a posição específica que permite justificar esse duplo movimento e pensar conjuntamente essas duas teses, ver infra, cap. V, 2!!- parte. 17. G.W., XIV, p. 105. 18. G. W., XVI, p. 20. 19. G. W., XIV, p. 49. 20. G. W., XVI, p. 91. 21. Ver Os pensadores da Grécia, t. I. 22. Conforme a referência indicada pelo próprio Freud: tratase da obra aparecida em Leipzig, em 1935, Die Vorsokratiker. 23. G.W., XIII, pp. 62-63. 24. Trata-se de um conjunto de textos sânscritos, compostos a partir do século VI antes de Cristo, e representando a parte tardia da literatura védica. Nessa literatura esotérica, transmitida de mestre a discípulo, aparece a noção de Atman ou Si que lhe confere o caráter especulativo de uma meditação sobre a interioridade e sua relação com o Todo (Brahman).
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25. Trata-se de um Upanishad védico, reputado antigo: é um vasto conjunto litúrgico entrecortado de lendas, tais como a que Frcud faz alusão. 26. G. W., XVI, p. 168. 27. Le monde comme votonté et comme représentation, P.U.F., 1966, p. 5. 28. Le monde . .. , p. 449. 29. É porque demonstrou a distinção do fenômeno e da coisa em si que Kant perpetuou a tradição hindu: o Mundo como representação prepara o Mundo como vontade. 30. Le monde . .. , Apêndice: "Crítica da filosofia kantjana", parágrafo 2c:>, p. 1430. 31. Com efeito, é o médico gassendista Bemir quem trará da lndia o primeiro conhecimento dos textos sagrados hindus (1669). 32. Schopenhauer permaneceu fiel a essa tradução latina, feita segundo a versão persa estabelecida em 1656. 33. Le monde . .. , livro N, cap. 63, p. 447. 34. Le nwnde . .. , livro IV, cap. 63, p. 448. No prefácio, lemos que a revelação dos Upanishads é "a mais real vantagem que este século possui sobre o precedente" (p. 5). 35. Cf. a apreciação de Deussen: "Elas são o último fruto do desenvolvimento védico e, sem dúvida, pelo menos do ponto de vista filosófico, o mais interessante monumento da antigüidade indiana e sua realização". Paul Deussen, que estabeleceu o texto dos Upanishads, sobre o qual se apóia Freud (conforme a referência de sua própria citação), desempenha o papel de intennediário da interpre· tação schopenhaueriana) enquanto induista eminente e fundador da Sociedade Schopenbauer na Alemanha. 36. Para sermos completos sobre a presença platônica em Freud, precisamos notar este precioso empréstimo; na 9l.l das Vorlesungen, lê·se: "A psicanálise faz outra coisa senão confirmar a velha máxima de Platão) segundo a qual os bons são os que se contentam em sonhar o que os outros, os maus) executam na realidade?" ( G. W., XI, p. 147). Desde a Traumdeutung encontrávamos essa referência (G.W., 11-III, pp. 70 e 625). Trata-se, aí, de lutar contra o reflexo moralista oposto ao ensinamento da ciên· cia dos sonhos.
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Capítuloill
FREUD E KANT Na topografia filosófica de Freud, tal como a esboçamos acima, Kant constitui o segundo grande pólo referencial. Ainda aqui, o melhor método consiste em partir da referência mais determinativa para colocar em perspectiva a filosofia kantiana no horizonte freudiano. Além do princípio de prazer novamente fornece esse referencial central. No capítulo N, vemos surgir, na aparência ex abrupto, uma referência a Kant. :e uma espécie de parênteses fugidio, do tamanho apenas de um parágrafo. que se fecha logo depois que se abriu. Ele deixa o leitor filósofo insatisfeito e o leitor analista espantado e vagamente em estado de reprovação: o inconsciente do filósofo se pergunta se vale a pena evocar o grande nome de Kant para tão pouco) e o do psicanalista julga perigoso e supérfluo este excurso. Em ambos os casos, apressamo-nos em nos esquecer, numa leitura cursiva, dessa deriva intempestiva. Seu caráter desconcertante faz dela um simples jogo retórico) fadado à insignificância teórica. Ora, para avaliar corretamente sua significação, convém pesar seus termos e cernir sua função na argumentação freudiana. Tratase, com isso, de transformar o clarão filosófico que atravessa o discurso freudiano em luz sobre o sentido de uso freudiano dos filósofos. Ainda aqui, Freud parece dizer muito, ou não o suficiente. Só o contexto pode ensinar a necessidade de pensamento que impulsiona Freud para essa referência. 155
1.
A REFER~NCIA CENTRAL: ALEM DO PRINCIPIO DE PRAZER: A SUBJETIVIDADE ESPACIO·TEMPORAL E O INCONSCIENTE
Este capítulo IV é inicialmente apresentado como decididamente especulativo: "O que se segue, lê-se desde a primeira frase, é especulação. Não se deve ver, nas considerações que desenvolveremos aqui, outra coisa senão uma tentativa de perseguir até o fim uma idéia, a fim de ver, por curiosidade, até onde ela pode conduzir" 1 • Isto faz às vezes, ao mesmo tempo, de justificação e de advertência. Mas não significa que tenhamos abandonado a psicanálise propriamente dita para abordar puras ficçõ es; é à explicação metapsicológica que recorremos aqui: "A explicação psicanalítica se liga a uma constatação feita no decurso do exame de processos inconscientes, quer dizer, a consciência não representa a característica mais geral dos processos psíquicos, pois não passa de uma função particular desses processos"~. Em sua terminologia metapsicológica, ela diz que a consciência representa a função de um sistema particular que ela designa pela letra "C". Reconhecemos a crítica freudiana do consciencialismo ( cf. cap. I) . A concepção freudiana faz da consciência um dos sistemas da tópica psíquica; ela a reduz a uma função particular dos processos psíquicos. A simbolização literal "C" (sistema consciência) ou "P.C." (sistema percepçãoconsciência ) aí adquire um sentido surpreendente: a consciência, de princípio soberano, é reduzida à simples conotação de um sistema. Simultaneamente, porém, a concepção metafísica da consciência sofre um segundo ataque mortal, particulannente evidenciado por esse texto: ela é aí definida por sua funcionalidade orgânica. No espaço orgânico, o sistema "percepçãoconsciência" representa a parte do organismo em relação com o mundo exterior: "Estamos autorizados a atribuir ao sistema P.C. uma posição espacial. Esse sistema deve encontrar-se no limite que separa o exterior do interior, estar voltado para o mundo exterior e englobar todos os outros sistemas psíquicos". Cooseqüeulem t:ntt:. 6 nesses mesmos termos de funcionalidade orgânica que deve ser colocado o problema da origem da consciência. Ora, "o fato do aparecimento da consciência" deve ser inicialmente relacionado com o regime das excitações exteriores 156
que, à força de investirem incessantemente contra a superfície, teriam criado a necessidade de "um meio de proteção contra as excitações"; donde essa "estrutura ( ... ) de certa forma orgâ· nica" destinada a amortecer e a selecionar as excitações. Todavia, nos organismos muito evoluídos, como o homem, esse sistema se especifica em "órgãos dos sentidos": estes "encerram essencialmente dispositivos destinados a receber excitações específicas". Eis aí uma "proteção redobrada", cujo efeito é seriar o afluxo de excitações "de uma intensidade desmesurada", e cujo trabalho versa sobre "pequenas quantidades", "amostras" de excitações. Assim, assistimos à cristalização genética do sistema consciencial numa receptividade sensitiva&. E é aí que se realiza o encontro com Kant. Enquanto que uma leitura cursiva comprova a intervenção de Kant como um verdadeiro golpe de teatro, a decomposição da lógica do desenvolvimento freudiana já designa o sentido dessa referência. E o aparecimento da sensibilidade que justifica, aos olhos de Freud, o encontro com A estética transcendental: "Permito-me tratar superficialmente, de passagem, um tema que mereceria uma discussão muito aprofundada. Em presença de certos dados psicanalíticos que hoje em dia possuímos, é possível colocar em dúvida a proposição de Kant, segundo a qual o tempo e o espaço seriam as formas necessárias de nosso pensamento" (Denken)". . O que legit~a essa inferência é que, como vimos, a perspectiva ontogenetica, em seu resultado, engendrou a sensibilidade. Ora, Kant é evocado como o autor da grande teoria segundo a qual o espaço e o tempo regem universalmente a sensibilidade. Freud não se refere à teoria da subjetividade do espaço e do tempo (a que diz respeito à natureza do espaço e do tempo), mas à tese mais elementar segundo a qual "o tempo e o espaço seriam as formas necessárias do nosso pensamento". Assim, a recusa freudiana não é feita contra o caráter subjetivo do espaço-tempo kantiano - contra o fato de serem "formas ( ... ) de nosso pensamento", e não estruturas objetivas da realidade - , mas contra o caráter necessário e universal do espaço e do tempo, vale dizer, contra o fato de serem "formas necessárias de nosso pensamento". Em outras palavras, o que Freud contesta, na teoria kantiana, é a universalidade da estruturação espácio-temporal da sensibilidade humana. 157
Por outro lado, porém, essa refutação não pretende s~r diretamente filosófica. Consiste em lembrar "certos dados psicanalíticos" observados que solapariam, na base, a verdade kantiana, segundo o esquema refutativo exposto em «o interesse da psicanálise". Freud apóia sua rápida argumentação num dado de fundo : a atemporalidade dos processos psíquicos inconscientes. ~iz ~Le: "Experimentamos, por exemplo, que os processos ps1qwcos inconscientes são, em si, "atemporais'' (zeitlos )"5 • P ercebemos o sentido lógico desse argumento que, para refutar uma asserção que reivindica uma extensão universal, faz apelo ~ uma exceção a fim de arruinar essa pretensão à umversahdad~. Assim, para se recusar a idéia de que todo fenômeno da s~n.si bilidade humana está submetido à legislação das formas espactotemporais, basta ter reconhecido pelo menos· um fenôm.eno psíquico que a ela não esteja submetido para se recusar, t~so facto, a pretensão à universalidade. Por conseguinte, o raciocínio de Freud é o seguinte: 1) Kant sustenta que o espaço e o tempo constituem a estrutura universal do espírito humano; 2) Ora, a psicanálise nos revela pelo menos um tipo de processos psíquicos que escapa à universa~dade temporal : os processos inconscientes, que são a-temporats; . 3) Portanto, o espaço-tempo não pode pretender à umversalidade- tanto mais que, convém observar, enquanto "forma do sentido interno", e na medida em que a intuição externa é condicionada pelo sentido interno, o tempo "serve de fundamento a todas as intuições", internas (diretamente) e externas (indiretamente). Donde a radicalidade da objeção freudiana. Resta a explicitar em que consiste essa "atemporalidade". Três fórmulas muito gerais desenvolvem os aspectos desse caráter: " Quer dizer que eles (os processos psíquicos inconscientes) não estão dispostos na ordem do tempo, que o tempo. não os faz sofrer nenhuma modificação, que não podemos aphcarlhes a representação temporal" 6 • Dizer que os processos psíquicos inconscientes "não estão disp~stos ,na ordem_do tempo", é dizer que não se encontram subm~tldos a orde?açao tempor~, à sucessividade do antes e do depots: neste sentido, atemporahdade significa não-diacronicidade. Dizer que "o te~po não os faz sofrer nenhuma modificação", é dizer que eles sao, de certa forma, "eternos", se por eternidade entendemos, não uma infi~ 158
nidade de tempo, tampouco um princípio oposto à temporalidade, mas uma dimensão fora do tempo; "eterno" significa, aqui, o que é inacessível a urna modificação temporal, o que não poderia estar sujeito ao tempo nem sofrer a causalidade temporal. Neste segundo sentido, atemporalidade significa imutabilidade. F inalmente, dizer que "não podemos aplicar-lhes a representação temporal", é dizer que eles exigem uma categorização sui generis. Temos aí a conseqüência do que precede: é o sentido radical da noção de Z eit-losigkeit. Como, pois, pensar esse modo de existência emancipado do esquema de "sucessividade" que estrutura toda percepção? O tempo estrutura tão bem a percepção, que ela torna inconcebível toda realidade que não refrata. E o que Freud pretende dizer: "Estes são apenas caracteres negativos de que só podemos fazer uma idéia exata por comparação entre os processos psíquicos inconscientes e os processos psíquicos conscientes". Portanto, somos obrigados a defini-los, a contrario, por negação dos caracteres temporais. Todavia, o que cria essa situação, outra coisa não é senão a dominação do ponto de vista da consciência: "Nossa representação abstrata do tempo parece, antes, tomada de empréstimo ao modo de trabalho do sistema P.C. e corresponder à nossa autopercepção". A tese kantiana generaliza, pois, esse ponto de vista da autopercepção. Ora, esse conceito de tempo tem seu lugar no sistema P.C., é a expressão de seu "modo de trabalho" particular: é essa colonização de todo o psiquismo, por esse sistema particular, e a imposição de seu modo de trabalho a todas as regiões do psiquismo, que justifica a teoria kantiana. Notamos que, mesmo estando "bastante atentos ao que essas considerações apresentam de obscuro", por seu caráter alusivo, como observa o próprio Freud, podemos esboçar uma crítica de fundo através dessas fórmulas. T ambém notamos que o confronto com a teoria filosófica especifica negativamente a posição freudiana, que não consiste simplesmente em colocar maciçamente o inconsciente no lugar do consciente: Freud apela para a característica atemporal dos processos inconscientes como "fato polêmico" relativamente à tese da universalidade espácio~temporal, à qual a filosofia kantiana confere sua forma mais sistemática. Em outras palavras, não é "porque há inconsciente" que é refutado o consciencialísmo; é porque os processos inconscientes revelam um regime
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diferente do psiquismo, que levam a negar a universalidade do espaço~tempo. Freud chega mesmo a citar esse argumento como um "exemplo", deixando o caminho aberto a novas determinações. Importava reconstituir, do interior, a démarche freudiana, na medida em que ela nos informa sobre o interesse da teso kantiana para Freud. Este, porém, apesar de suas precauções, expõe-se a um juízo filosófico versando sobre a validade da própria referência. Tendo estabelecido as razões pelas quais refuta a concepção kantiana, trata-se de examinarmos a interpretação do conteúdo da concepção mesma que essa crítica pressupõe. Freud, como vimos, reduz a tese kantiana a esta fórmula simples: "espaço e tempo são formas necessárias de nosso pensamento". De fato, K ant define o espaço como ..uma representação necessária ( .. . ) que serve de fundamento a todas as intuições externas" 7 , e o tempo como "uma representação necessária que serve de fundamento a todas as intuições"s. E A estética transcendental só pode "conter esses dois elementos, o espaço e o tempo"9 , o que faz do espaço e do tempo as únicas formas necessárias da sensibilidade. Ademais, essa universalidade exprime a receptividade em sua finitude : "Tampouco é necessário limitar à sensibilidade do homem esse modo de intuição no espaço e no tempo. Pode acontecer que todo ser finito e pensante deva, necessariamente, ser assimilado ao homem"10. Assim, o caráter finito impõe a todo ser, enquanto é dotado deles, o espaço e o tempo como formas necessárias da percepção. Em outras palavras, a necessidade da forma espáciotemporal serve para definir a finitude. Mas aqui se coloca um problema: se Kant sustenta a tese da necessidade--universalidade do espaço e do tempo, que Freud nele reconhece, ele a liga estreitamente à tese da subjetividade espácio-temporal de que decorre. Em outros termos, a questão da natureza do espaçotempo confunde-se com a de sua necessidade: o espaço e o tempo são necessários enquanto formas subjetivas. Freud, pelo contrário, parece co!ocar entre parênteses a subjetividade, para ater-se à afirmação da necessidade; ou antes, a subjetividade parece ter mudado de sentido na interpretação da natureza do espaço-tempo kantiana. Por conseguinte, é sobre este domínio que devemos centrar nossa interrogação. O que está em jogo não é outra coisa senão a natureza das formas puras a priori da sensibilidade. Ora, $e o termo a
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priori é omitido por Freud, é simplesmente porque o considera como uma dupla estrutura psicológica, omitindo pura e simplesmente o plano transcende ntal. É essa "psicologização" da teoria kantiana que torna possível seu cnfeudamento numa teoria do "psiquismo". De "formas", o espaço e o tempo se tornam quadros de certo modo materiais do psiquismo humano. O fato de, em seguida, Freud recusar a universalidade desse quadro, vem apenas confirmar essa interpretação psícologista (de fundamento antropológico) que condiciona todo o seu projeto. Isto nos leva, pois, a repartir do espaço·tempo kantiano, tal como Freud o concebe, para elucidarmos sua natureza. Precisamos constatar que Freud não inventa o contra-senso psicológico sobre o espaço·tempo kantiano e sobre a natureza da subjetividade kantiana em geral. Este contra-senso já possui toda uma história no momento em que Freud o reitera em 1920. Ele é tão generalizado, no século XIX, que a distinção operada, decididamente, por Hermann Cohen, entre a ordem gnoseo1ógica - do transcendental e do a priori - e a ordem psicológica - do inato - , opõe-se a uma interpretação já muito sólida, por volta de 187011, que sobreviverá amplamente a essa crítica. Esse teste de Freud atesta mais que uma persistência obstinada, pois esta remete a uma tradição interpretativa precisa. Ora, foi Schopenhauer quem, no pós-kantismo imediato, chancelou sistematicamente essa inflexão antropológica da subjetividade kantiana. Podemos vê-la atuante em O mundo como vontade e como representação. No capítulo 111, intitulado "A representação intuitiva". Suas formas, derivadas do princípio de razão: o tempo e o espaço" - estes são definidos como "condições ou formas da experiência" (fórmula kantiana), mas também como "elementos comuns a toda percepção e que pertencem, igualmente, a todos os fenômenos representados"12 (fórmula já parakantiana). Com efeito, Schopenhauer tende a fazer do espaço e do tempo o duplo denominador comum das representações, que se encontram, a título de predicados universais, em cada percepção particular. Desta forma, eles de certa forma se encarnam na "materialidade" dos fenômenos psíquicos, a título de elementos comuns desses fenômenos. Conseqüentemente, enquanto Kant sempre teve o cuidado de pensar o espaço e o tempo como condições formais das representações, só podendo desempenhar esse papel com a condição de elas mesmas não serem represen161
tações propriamente ditas, Schopenhauer é levado a "rea_li~ar" o espaço e o tempo que, sem perderem sua natu!eza sub~e~tva, tornam-se representações dotadas de uma generalldade maxmra. .b o que ele confessa claramente: "Este é o motivo qu~, em minha dissertação sobre o princípio de razão, fez-me CO?Stderar o tempo e o espaço, percebidos em sua forma pura e !solados de seu conteúdo, como constituindo uma classe de representações especiais e distintas" 13• O que sustenta essa concepção, é o ineísmo psicológico e, mesmo o ''cerebralismo" da filosofia schopenhaueriana. Isto aparec~ notadamente no longo apêndice de O mundo·, . . , intitulado "Crítica da filosofia kantiana". Schopenhauer ru resume a revolucão kantiana em termos significativos: "A filosofia crítica ( .. •. ) se propõe, como principal problema, verificar ~s verdades eternas que serviam de fundamento a toda construçao dogmática· ela busca sua origem no cérebro do homem. Segundo ela, as verdades eternas são um produto de nosso cérebro, procedem das formas originais do entendimento humano, formas que ele traz em si c das quais se serve para conceber um mundo objetivo"14 • Notamos a identificação operada por Schopenhauer entre o entendimento e o cérebro, o que o leva a fazer das "formas puras a priori" produtos do cérebro 1 ~. Donde a con· cepção "organológica" da subjetivida~e: as formas espá~io temporais são 6rgãos mediante os qua1s o mundo é concebido. O subjetivismo kantiano consiste, pois, em_ estabele~er que mundo objetivo, tal como o conhecemos, nao é a co1sa em SI , pois não é outra coisa senão um "fenômeno condicionado por essas formas mesmas que residem a priori no entendimento humano, em outras palavras, no cérebro"16• Aquilo que, aos olhos de Schopenhauer, faz de A estética transcendental o grande momento de A crítica 1a razão pura e "uma obra tão preciosa, que teria bastado para imortalizar o nome de Kant" é o fato de ter estabelecido, na base, a norma' . tividade da representação. O a priori é "aquilo que, sem provrr de fora, nem por isso deixa de estar presente no intelecto", "o que pertence originariamente a esse intelecto"11• Todavia, essa originalidade outra coisa não é senão a ineidade cerebral. Dizer que "conhecimentos a priori'' e "formas originais do intelec~o" não são, no fundo, senão duas expressões de uma mesma cotsa, vale dizer, num certo sentido, sinônimos"18, é consagrar a identidade do cérebro e do intelecto. Por conseguinte, espaço e
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tempo são apenas "as formas do conhecimento do intelecto, vale dizer, o modo - determinado uma vez por todas (entendamos: em virtude da constituição do cérebro) - como ele realiza a função de conhecer" 111• O intelecto é uma "simples função" do cérebro. Uma última passagem de O mundo. . . estabelece claramente esse ponto de vista. No Suplemento do livro I, capítulo 4 • intitulado "Sobre o conhecimento a priori", Scbopenhauer comenta a idéia de Kant segundo a qual "o espaço e o tempo dependem do sujeito", dizendo que eles não são senão "as maneiras como se realiza, no cérebro, o processo da apercepção objetiva"20• Assim, designam o organon do intelecto, aquilo por meio do qual ele conhece. :e justamente essa concepção que guia implicitamente a leitura freudiana de Kant. É por isso que o espaço e o tempo são abordados a partir das considerações sobre os órgãos dos sentidos. Os sentidos sendo apenas, segundo a definição de Schopenhauer, "prolongamentos do cérebro", pelos quais "ele recebe, de fora, sob forma de sensação, a matéria de que vai se servir para elaborar a representação intuitiva"~ 1 - sendo os órgãos do sentido, segundo a idéia de Freud, "dependências" da antiga "camada cortical" permanecidas na superfície22 - , a função do espaço e do tempo é a de assegurar essa elaboração. Assim, aquilo que, para um leitor de Kant, tem de incôngruo e, mesmo, de errôneo, o elo da teoria orgânica da consciência com a filosofia transcendental, fica esclarecido quando estabelecemos, como fizemos acima, que essa indução entra perfeitamente na l6gica da filosofia schopenJUJueriana e do kantismo de Scbopenhauer. Por conseguinte, não é por simples carência de informação filosófica, como poderíamos suspeitar, mas como antagonista de Schopenhauer, que Freud se comporta aqui. .S a ele que toma de empréstimo essa perspectiva antropológica do Gemiit, vale dizer, do espírito concebido como receptividade sensível encarnada no substrato cerebral. :E. isto que explica o silêncio de Freud sobre a tese da aprioridade e da subjetividade. Porque, em tal perspectiva antropológica, a afirmação da necessidade da estruturação espáciotemporal confunde-se com a idéia de subjetividade, na medida em que designa uma necessidade constitucional que remete a uma concepção anátomo-orgânica.
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Também é esse que nos permite compreender a palavra "pensamento" na definição freudiana do espaço e do tempo como "formas necessárias de nosso pensamento". A palavra é gravemente incorreta, se lhe dermos como sinônimo a intelectualidade, pois é evidente que se trata de sensibilidade, e que a chave de A critica da razão pura é a distinção clara entre entendimento e sensibilidade, e a denúncia das anfibologias transcendentais. A palavra, porém, remete à idéia de Gemüt, introduzida por Kant desde o início de A estética transcendental, a título de elemento primeiro, definido apenas por sua função: a intuição sensível só é possível "com a condição de o objeto
afetar, de certa forma, nosso espírito" (Gem.üt). Por conseguinte, este é o fundamento antropológico sobre o qual repousa todo o conhecimento, enquanto "capacidade de receber representações"23. É enquanto Gemiit que o sujeito é capaz de ser afetado por um objeto exterior. O que caracteriza a interpretação schopenhaueriana, que Freud perpetua diretamente, é o fato de pensar toda a subjetividade a partir do prinuJdo do jun4amento psicoantropológico sobre o fundamento transcendental que, de fato, chega à absorção, por identificação, do segundo no primeiro. E a interpretação psicologista de espaço-tempo é derivada dessa concepção do espírito como Gemüt. Mas o que legitima, pelo menos parcialmente, essa interpretação, é a rocha antropológica que sustenta a concepção kantiana do conhecimento. Só que, enquanto que em Kant o acesso ao plano transcendental remete a origem antropológica ao simples estatuto de condição sine qua non no sentido próprio de condição elementar, mas não determinante - , o que explica o fato de tal rocha permanecer velada, em seguida, ultrapassada pelo fundamento transcendental, em Scbopenhauer (e, consecutivamente, em Freud), o fundamento de facto permanece decisivo e desenvolve-se com o progresso do conhecimento, assimilando a si o fundamento transcendental (de jure) e recusando até mesmo sua distinção. Conseqüentemente, o a priori não define mais um caráter formal da relação de conhecimento, porém, um caráter material de que o Gemüt é portador e produtor. A "deformação" schopenhaueriana e freudiana tem, ao menos, o mérito de lembrar essa duplicidade de fundamentos na concepção kantiana do conhecimento, e de exumar, sob o eixo transcendental, o fundo antropológico. Curiosamente, essa interpretação nos permite detectar as per-
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sistências antropológicas contidas na Dissertação de 1770, como a idéia de espírito enquanto mens. 2.
O MODELO SCHOPENHAUERIANO DA INTERPRETAÇÃO ANTROPOLóGICA
Assim, Freud interpreta Kant, através da concepção cen:. trai da subjetividade, em termos schopenhaueriano; mas tudo indica que, desde o início, ele confunde a teoria kantiana com a versão que dela dá Schopenhauer. Vemos surgir todo um conjunto de textos que retoma essa temática. Tal temática é detectada na origem da obra de Freud, no capítulo I de A interpretação de sonhos, onde ele procede a um histórico da literatura científica dedicada aos problemas do sonho24• Examinando "as estimulações e as fontes do sonho" 25 , ele chega a tratar das "excitações internas e orgânicas"26. A teoria schopenhaueriana é evocada a fim de explicar "segundo que regras as excitações orgânicas se transfonnam em representações de sonho", e como tendo sido "determinante para toda uma série de autores" 27 • Ora, o primeiro momento da explicação não é outro senão a concepção neokantiana da subjetiw vidade: "A representação do mundo (das Weltbild) se forma em nós pelo fato de nosso intelecto filtrar (umgiesst) as impressões que o atingem de fora nas formas do tempo, do espaço e da causalidade"28• Temos aí, como veremos, a fórmula desenvolvida da concepção que Freud empresta a Kant em Além do princípio de prazer. Ela reflete perfeitamente todos os deslocamentos que a ótica schopenhaueriana imprime na concepção kantiana: o tempo e o espaço, formas estéticas da subjetividade, são postas em continuidade direta com a causalidade, forma lógica; o intelecto é posto na origem das formas subjetivas; sobretudo, sua ação formadora é descrita em termos significativos: no texto freudiano, ela é expressa pelo verbo umgiessen, derivado do verbo giessen que, no sentido mais concreto, designa a ação de fundir do metal ou de moldar do gesso. B o processo demiúrgico de transformação pelo qual o intelecto modela a diversidade das impressões que o "ferem" por meio dessas estruturasórgãos que são o espaço, o tempo e a causalidade. Além disso, porém, essa definição abre o caminho a uma concepção orgânica da atividade inconsciente. As impressões 165
endógenas, insensíveis na atividade diurna, pelo fato de estarem de certa forma recobertas pelas impressões exógenas, são per~ ceptíveis na atividade psíquica noturna, vale dizer, no sonho: "As impressões emanando do interior do organismo, a partir do sistema nervo~o simpáti~u, nãu exercem mais que uma iu~ fluência inconsciente sobre nossa sensibilidade, durante o dia. Durante a noite, poréJll, quando cessou a ação atordoante das sensações diurnas, essas impressões que se impõem de dentro chamam nossa atenção". Assim, a inteligibilidade schopenhaueriana da subjetividade permite elucidar o tipo de percepção infraconsciente constituída pela percepção onírica. Uma metáfora a exprime no texto de Freud: a do murmúrio da fonte, que não percebemos de dia, mas que de repente se torna perceptível quando se extinguiram os outros ruídos, no silêncio da noite. Desta forma, na atividade de nosso sensorium, brota continuamente uma palavra difusa: é a linguagem íntima do corpo que se libera nas condições infralim.inares da vigilância. Depreendemos daí como a concepção orgânica de Schopenhauer o incita a interrogar-se sobre as formas subconscientes da p ercepção. Mas aqui intervém o terceiro e último momento da teoria: o intelecto reutiliza, em presença das sensações endógenas per~ cebidas no sonho, o instrumental de que se servia para tratar as impressões exógenas, em seu trabalho diurno - pois é o único que ele utiliza, na medida em que exprime sua nature2a. "Ora, diz Freud, como ele pode reagir a essas excitações senão exercendo sua função própria? Portanto, ele transforma as excitações em formas espácio-temporais, que se movem segundo o veio da causalidade" : ''assim nasce o sonho". Essa teoria explica a coerência que encontramos na percepção onírica. Todavia, o que mais importa, é vermos como essa teoria do sonho é deduzida da concepção da subjetividade extraída de Kant. A démarche de O mundo como vontade e como represenJação atesta claramente este fato. Partindo da proposição de base: " O mundo é minha representação"29, Freud declara: "De todos os serviços prestados por Kant à filosofia, o maior talvez seja esta descoberta ( ... ) que as formas gerais essenciais de todo objeto: tempo, espaço e causalidade, podem ser tiradas e deduzidas inteiramente do próprio sujeito, abstração feita de todo objeto''. acrescentando que é "a causalidade que forma o elo entre o tempo e o espaço". Ora, a teoria do sonho é o pro-
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longamente dessa descoberta: no próprio sonho, todo o detalhe dos fenômenos também é submetido a esse princípio (''o encadeamento das representações pela lei de causalidade") sob todas as suas formas. Diz Freud: "Se o encadeamento causal é a forma que caracteriza a vigília, cada sonho, tomndo à parte, também apresenta essa mesma conexão". Não é por acaso que a concepção psicologista chega a criar resumos fecundos para a Ciência dos sonhos. É todo o sonho que é reintroduzido na reflexão filosófica pela versão schopenhaueriana. Um detalhe de O lwmem dos lobos (1918) mostra a perenidade dessa concepção no discurso freudiano. Freud evoca, de passagem, os "esquemas filogenéticos que a criança traz ao nascer", "precipitados da história da civilização humana"ao, cujo protótipo é o complexo de :edipo. A fim de fazer compreender sua natureza e sua função, ele precisa que eles apresentam uma analogia com " as categorias filosóficas". Devemos entender por isso que são estruturas a priori, "tendo por função a classificação das impressões trazidas pela vida". Tais impressões exercem uma verdadeira jurisdição sobre o dado empírico, de tal forma que, "onde os acontecimentos vividos não se adaptem ao esquema hereditár io, sofrem um remanejamento na imaginação". Donde "a existência independente do esquema" categoria) que "subjuga a experiência individual". :B surpreendente que Freud descreva as virtudes da categoria, no sentido kantiano (legislação para o dado empírico), mas nela projetando uma interprelação antropologista (ineísta e constitucionalista) que se encontra na mesma lógica schopenbaueriana. Fato simbólico: uma das últimas linhas escritas pela mão de Freud indica sua preocupação em situar-se relativamente à concepção kantiana da subjetividade. Com efeito, em 22 de agosto de 1938, escreve: "A extensão (Raumlichkeit) pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico"st. O espaço seria, assim, constituído por projeção do aparelho psíquico, sendo uma dependência e nma derivação materializada dele. Freud acrescenta que nenhuma outra hipótese é verossímel. Aqui intervém a aproximação dessa tese com "as condições a priori do aparelho psíquico segundo Kant". A conceitualização freudiana, em sua mais avançada especulação, confiada a um caderno íntimo, forja-se, pois, por confronto com A estética transcendental. Mas isto vem confinnar ainda que esta é apreendida segundo a interpretação schopenhaueriana. A idéia-limite 167
(para além da qual nada sabemos, segundo seus próprios termos) é que "a alma é extensa": nessa versão psicologista, o aparelho psíquico herda algo da subjetividade transcendental; estas são as ultima verba de Freud sobre Kant.
3.
INCONSCIENTE E COISA EM SI
Correlativamente, porém, à tomada de postçao sobre A estética transcendental, a concepção kantiana central da subjetividade é abordada através do tema do fenômeno e da coisa em si. Este é um tema caro a Freud, com o qual entretinha seus familiares filósofos. Binswanger é testemunha. Segundo ele, Freud "pensava que, assim como Kaot postulava por detrás do fenômeno a coisa em si, da mesma forma ele postulava por detrás do consciente, que é acessível à nossa experiência, o inconsciente, que jamais pode constituir o objeto de uma experiência direta''32. A Paul Haberlin, ele pergunta, com uma ingenuidade meio fingida, se a "coisa em si" de Kant, não era o que ele, Freud, entendia por "inconsciente"33• Essa analogia selvagem desencadeou a desconfiança de Binswanger (que a declarou "filosoficamente insustentável,) e o riso de Haberlin. Mas devemos situar essa idéia na concepção global de Freud. Temos aí, com efeito, mais que um arrebatamento (boutade). Desde a gênese do conceito de metapsicologia, Freud insistia na necessidade de uma abordagem específica de inconsciente, distinta da simples abordagem psicológica versando sobre o consciente: esta constitui mesmo uma das primeiras definições da metapsicologia. Essa idéia sempre permaneceu ligada à noção de inconsciente, como se pode ver na Traumdeutung: "Sua natureza íntima nos é tão desconhecida quanto a realidade do mundo exterior , e a consciênc~a nos informa sobre ele de modo tão incompleto quanto nossos órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior"34• Portanto, vemos instaurar-se a dupla fenômenos, inconsciente coisa em si. equação consciente Mas isto não é tudo: na codificação metapsicológica do "Inconsciente", a teoria de Kant é explicitamente evocada. "A hip6tese psicanalítica da atividade psíquica inconsciente" é apresentada como "a conseqüência da correção feita por Kant em nossa concepção da percepção extema"35 • Com efeito, "Assim como Kant nos advertiu para não esquecermos o condicionamento subjetivo de nossa percepção,
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i68
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e para não identificá-la com o percebido incognoscível, da mesma fonna a psicanálise nos leva a não colocar a percepção de consciência no lugar do processo psíquico inconsciente, que é seu objeto". Desta forma, a "revolução copémica" deve realizarse também no psiquismo: "Como o físico, o psíquico não é necessariamente, na realidade, o que nos parece ser". Freud restringe essa analogia acrescentando que "a correção da percepção interna não oferece uma dificuldade tão grande quanto a da percepção externa"; em outras palavras, diz que "o objeto interior é menos incognosdvel que o mundo exterior". Convém notar que, ainda aqui, a subjetividade kantiana é pensada em termos antropológicos, como receptividade ("órgãos dos sentidos") e que, correlativamente, a analogia nos leva a pensar uma espécie de receptividade interna que se nomeia consciente e um núcleo da realidade interna incognoscível que se nomeia inconsciente. Como se pode notar, o uso de Kant parece, como o de Platão, mediatizado por um modelo tão bem assimilado, que influi na leitura filosófica: o de Scbopenhauer, que chega à distinção, na subjetividade, de uma esfera de representação e de uma esfera de supra-representatividade (que toma possível a Vontade-coisa em si em Schopenhauer). Qual o sentido preciso dessas insistentes analogias? Só a análise das manifestações do modelo scbopenhaueriano na temática freudiana pode esclarecer sistematicamente tudo o que precede. Não há convergência dos interesses especulativos freudianos ; é para a referência principal, que também é chave das diversas referências, que deve orientar-se a pesquisa.
NOTAS
1. G.W., XIII, p. 23. Sobre o sentido desse signal, ver a teoria das fronteiras, infra, cap. V, 2. lbid. 3. ti o objeto das pp. 23-27. 4. P. 27.
2~
parte.
5. P. 28.
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6. P. 28. 7. Critique de la raison pure, P.U.F., 1968, p. 56. 8. lbid., p. 61.
9. 10. 11. 12. 13.
P. 67. P. 75. Ver a Teoria da experiência de Hermann Cohen. Le monde . .. , livro I, cap. 3, op. cit., p. 29. Op. cit., pp. 29-30. 14. Op. cit., p. 527. 15. Schopenhauer está consciente ao mesmo tempo da tradução das teses kantianas que ele opera e de sua l
16. 17. 18. 19.
P. 527. P. 548. P. 549. Pp. 548-549.
20. Le monde . .. , Suplemento ao livro I, cap. 3, p. 698. 21. P. 706. 22. Além do principio de prazer, G.W., XIII, p. 27. 23. La critique de la raison pure, esthétique transcendentale, § 1, p. 53. 24. G.W., II-111, p. 1. 25. Op. cit., p. 22. 26. lbid., p. 35. 27. Ibid., p. 38. 28. lbid., p. 39. 29. Le monde . .. , livro I, cap. I, p. 25. 30. G.W., XII, p. 155. 31. Trata-se de curtíssimos fragmentos reunidos sob o título de Ergebnisse, ldeen, Probleme, G. W., XVII, p. 152. 32. Souvenirs, em Parcours, discours et Freud, p. 275. Isto se situa, ao que parece, em abril de 1913. 33. Op. cit., p. 276. 34. G.W., 11-III, pp. 617-618. 35. G.W., X, p. 270.
17()
Capítulo IV
FREUD E SCHOPBNHAUER Este referente secreto, ao qual nos remetem com insistência as alusões precedentes, deve, enfim, ser levado em consideração em si mesmo. Portanto, este capítulo deve elucidar s~nteticamente o conjunto daquilo q1ue Freud toma de empréstimo a Schopenhauer. Porque, de fato, o nome de Schopenhauer aparece com grande freqüência nos textos de Freud1 • Devemos ainda encontrar, sob essa multiplicic:Jiade de referências, a temática ao mesmo tempo múltipla e unitária que aí toma forma; vamos reconstituir o cruzamento do mundo schopenhaueriano e do mundo freudiano, discemindo os lugares precisos de sua articulação, fazendo incessantemente a ida e a volta do conteúdo da filosofia schopenhaueriana a seu funcionamento na leitura freudiana, para compreendê-la bem. Em Schopenhauer se personaliza, com efeito, a escolha de objeto filosófico freudiano: é nessa encarnação que temos o máximo de chances de objetivá-la. De fato, há um elo pessoal de Freud com Schopenhauer. Um detalhe prova, por sua incongruidade mesma, o sentido afetivo desse elo. No meio de seu estudo sobre O homem dos ratos, em plenas considerações técnicas sobre a gênese da neurose, a propósito do esquecimento seletivo de certos acontecimentos, ele sente a necessidade de precisar, numa nota, que o obsedado possui "dois tipos de saberes e de conhecimentos••, de tal sorte que conhece seus acontecimentos (no sentido em que
171.
não os esqueceu) e não os conhece (no sentido em que os desconhece). ~ então que intervém, de modo inesperado, a evocação de Schopenhauc.r, destinada a concretizar a diferença entre os dois tipos de saberes: "Os copeiros que serviam Sebo· penhauer, no albergue que tinha o hábito de freqüentar, num certo sentido o 'conheciam', numa época em que ele era desconhecido em Frankfurt e alhures, mas não o 'conheciam', no sentido que atribuímos hoje ao conhecimento de Schopenhauer"2 • Podemos duvidar da validade da comparação, mas justamente ela constitui um sintoma da presença, no espírito de Freud, de modo pré-consciente, do personagem de Schopenhauer, que só aguarda um a longínqua associação de idéias para atualizar-se. Na realidade, é "o solitário de Frankfurt" que é evocado aqui, e que, a partir de 1831, e durante uns vinte anos, conheceu uma existência e produziu uma obra quase totalmente desconhecidas . O que surpreende Freud é a dissonância entre o homem e seu tempo, entre a certeza da importância da mensagem e a incompreensão do século. Ora, essa simpatia repousa num mecanismo d e identificação notável entre "o solitário de Frankfurt" e "o solitário de Viena", o próprio Freud no período dos inícios da psicanálise., tal como ele se evoca na Selbstdarsteflung: "Durante mais de uma década depois de separar-me de Breuer, não tive nenhum discípulo. Encontrava-me completamente isolado. Em Viena, evitavam-me, o estrangeiro nada conhecia de mim"11• A oposição às autoridades intelectuais dominantes é a mesma. A s vociferações de Schopenhauer contra a Universidade e os filósofos de seu tempo, faz eco a firme recriminação de Freud, evocando, em 1925, "o comportamento dos representantes da ciência alemã", que ele qualifica, eufemisticamente, de "pouco glorioso" para seu próprio prestígio; evocando, ainda, seu "excesso de arrogância", seu " desprezo, sem consciência, pela lógica", sua "grosseirice" e seu "mau gosto no ataque"~.
Nesse filósofo maldito, Freud identifica secretamente o reflexo do pária excluído da comunidade científica, que era ele. Mas não temos aí um simples fenômeno psicológico. O que funda essa identidade, é uma analogia mais profunda entre as situações ideológicas de que Schopenhauer e Freud são os sujeitos, com mais ou menos um século de intervalo. Eles são, na representação que dela faz Freud, os profetas de uma ver· dade fundamental que, por seu conteúdo e pelas feridas que ela
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inflige ao narcisismo humanoG, estão condenados a uma espécie de maldição ideológica. ~ esse parentesco que Freud, ao longo de toda a sua vida, parece aprofundar e sistematizar. Devemos, pois, acompanhar essa revelação progressiva e a instauração, nessa evolução, da temática que a fu nda. 1.
OS SONHOS E O RECALQUE
E. através da teoria dos sonhos qoe Schopenhauer é evocado, na origem, por Freud. No histórico introdutório da Traumdeutung, é evocado várias vezes, em assuntos técnicos. Mas o que toma privilegiada a referência, é o lugar que ocupa o sonho na filosofia scbopenhaueriana, e que Freud utiliza sem conhecê-la. De fato, ele conferiu ao sonho a dignidade que o racionalismo ocidental lhe renegava. A démarche do primeiro livro de O mundo como vontade e corrw re presentação, atesta claramente esse fato. No capítulo V, insiste sobre "o íntimo parentesco que existe entre a vida e o sonho", que não são, segundo sua imagem, senão "as folhas de um livro único": "A leitura seguida dessas páginas, é o que chamamos de a vida real; mas quando passou o tempo habitual de leitura (o dia), e que chegou a hora do repouso, continuamos a folhear displicentemente o livro, abrindo-o por acaso neste ou naquele lugar ... ; mas é sempre no mesmo livro que lemos"6 • Por conseguinte, o sonho é concebido como a "leitura fragmentária" que "não faz corpo com a leitura seguida da obra toda"; mas esta é apenas uma página "um pouco mais longa que as outras" . Sonho e realidade derivam, pois, de um princípio comum: " Se nos situarmos num ponto de vista superior ao sonho e à vida, não encontraremos, em sua natureza íntima, nenhum traço que as distinga claramente, e precisamos concordar com os poetas, que a vida não passa de um longo sonho". Freud vislumbra ai o princípio da continuidade entre sonho e realidade, que ele afirma como princípio heurístico primeiro, como já indicam as primeiras linhas da Ttaumdeutung: " A técnica psicológica que permite interpretar os sonh.os" supõe que o so_oho .seja "u.m a configuração repleta de senttdo e que possamos msenr perfeitamente na continuação das atividades mentais da vigília" 7 • Deste ponto de vista, o continuísroo é, pois, precioso. S desse m?do que a coerência se introduz no sonho. Isto também se expnme 173
pela definição schopenhaueriana do sonho ,c omo uma "curta loucura". Embora lhe falte o princípio do sujeito desejante, que é o fundamento dessa "coerência incoerente,, já temos aí uma problemática utilizável, através da qual transparecem os
temas do inconsdente e da mone. Schopenbauer é o filósofo que ousa pensar o sonho, ao invés de abandoná-lo à intuição poética. Isto se toma possível, em profundidade, pela idéia do mundo como representação que unifica representação vigHia já sonho, enquanto percepção da aparência - , e o sonho propriamente dito. Mas esta é apenas a inspiração geral: Freud se liga a Schopenhauer por fórmulas isoladas&. E através do conceito de recalque que vai operar-se o verdadeiro encontro com Scbopenhauer. E aí que Freud designou o mais claramente Schopenhauer como seu genial precursor; também é aí que o confronto da metapsicologia com a metafísica revela-se o mais preciso. Este também é um episódio privilegiado para aprendermos o mecanismo da referência fHosófica através do discurso freudiano, que indica seu uso. ~ primeiro texto importante, onde Freud se explica a esse respetto ( excetuando~se o de 1911 ) , é a Contribuição à história do movimento psicanalítico ( 1914) . Citando o recalque como o primeiro dos "elementos" de base na gênese da psicanálise, Freud declara: "No que diz respeito à teoria do recalque, certamente ch eguei a ela por mim mesmo, sem que nenhuma influência, que eu saiba, me lenha aberto um caminho para ela (in ih~e Niike) 0 ; e por muito tempo mantive essa idéia por original, ate que O. R ank me mostrasse o lugar de O mundo como vontade e como representação, onde o filósofo se esforça por fornecyr uma explicação da loucura"to. Freud cita, nesse texto redigido em fevereiro de 1914, o nome de Otto Rank, que foi admitido no cenáculo, agrupado em tomo de Freud, a partir de 1902. Raok era portador de uma cultura filosófica sólida, permitindo-lhe ser um dos intercessares da filosofia junto a Freud e, sobretudo, o mediador entre Schopenhauer e Freud. Em 1914 Freud não cita a data precisa do encontro com Rank, mas J on~s diz que foi em 190611 q~e travou relações pessoais com eleU. Portanto, é o "onisCiente R ank", como Jones o chama13, quem assume a junção de revelar a Freud seu parentesco com Schopenhauer, através desse ponto p articular. Aliás, sobre isso, ele fez uma comunicação, 174
que apareceu em 191ú, no Zentralblat für Psychoanalyse und Psychotherapie ( 1, 69-71 ) , intitulada: "Schopenhauer sobre a loucura", De fato, Freud se encontrava nas pegadas do recal· que desde os primeiros trabalhos sobre a histeria ; mas só em 1915 é fixad o o estatuto metapsicológico desse conceito. Podemos, pojs, reconstittllr o processo da seguinte fonna: . a) Num pri?Ieiro momento, Freud utiliza o conceito p ara destgnar um fenomeno fund amental atestado pela observação dos fatos, em sua prática psicanalítica ( 1895-1905); b) Num segundo momento, lhe é revelada do exterior, num texto filosófico que ele ignorava, a presença de um ''equivalente" do conceito que ele havia conquistado por seus próprios meios (por volta de 1906); c) Num terceiro momento, F reud se explica sobre esse processo, num texto que tem por função uma retificação histórica ( 1914); d ) Finalmente, quase simultaneamente, ele eleva o instrumental conceitual, de que se servia há muito tempo (uns vinte anos), à dignidade de conceito metapsicológico (191 5). ~or isso, .ele estabelece sua Selbstandigkeit na conquista do concet~, prectsa~do que, sem. d.úvida alguma, chegou a ele por seu propno cammho; mas foi JUStamente seguindo esse caminho que se encontrou "nas plagas" da teoria. Retenhamos essa metáfora, que volta na pena d e F reud toda vez que ele evoca esse processo. E'. uma vez perfeitamente assegurado o direito de propriedade, que ele pode manter a analogia como uma confirmação de uma idéia adquirida por outras vias e, desta forma, como uma consagração. interessante notar que, numa carta ~e 20 de janeiro de 1911 a Karl Abraham, escrevia, a propó-
.e
Sito da
mesm~
aproximação, mas efetuada por alguém diferente
dele: "Juliusburger fez algo de muito bom com as citações tiradas de Schopenhauer, mas minha originalidade encootra·se ostensivamente em baixa" 14• Como Freud pode afirmar serenamente sua originalidade num caso, e temer por ela em outro? Trata~se, no primeiro caso, de uma falsa aparência, ou, no segundo, de um simples momento de despeito? Na realidade, tudo depende do sentido con(erido à aproximação com Schopenhauer e de sua apresentação. Juliusburger, schopenhaueriano convicto, tendia a utilizar a analogia para, de certa forma, deduzir a psicanálise do ensjnamento de seu mestre. Donde "a montagem de citações", segundo a expressão de Freud, que
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constitui o artigo por ele publicado em 19 11, no Z entralblatt für Psychanalyse und Psychotherapie, intitulado "Weiteres von Schopenhauer"1:). Tratava-se de reduzir a psicanálise a um prolongamento terapêutú:o da doutrina schopenhaueriaoa, a um schopenhaucrianismo aplicado. Ora, é justamente isso que Freud quer evitar. Temos mesmo aí uma excelente definição da falsa concepção da relação entre Freud e Schopenhauer. lsto impUcava, convém notar, em enxertar uma concepção do mundo na psicanálise, o que F reud jamais pretendeu, e neste caso, a doutrina de Schopenhauer não poderia constituir exceção. Aliás, convém notar que um importante movimento havia se formado em torno desse projeto de aliança entre a psicanálise e Schopenbauer; esse movimento era animado por Juliusburger, que se tornara um célebre psiquiatra berlinense. Como prova, temos os artigos sobre "a importância de Schopenhauer para a psiquiatria" (1912)1 6 , sobre "A psicoterapia e a filosofia de Scbopenbauer" (1914) 17> e a comunicação, em 1926, sobre "Scbopenhauer e a psicologia d o presente", na Schopenhauer-Gesellschaft18. Contra esse ecletismo, Freud afirma a descontinuidade de planos entre os "resumos intuitivos dos filósofos" e "árduas pesquisas psicanalíticas"; e não se trata de importação selvagem, para a ciência analítica, de uma teoria filosófica. O que a verdade filosófica apreende uno inluitu, deve ser conquistado pela investigação experimental, o que vem assegurar a originalidade da verdade científica: "Por isso, deveria estar pronto, e de bom grado estou, declara Freud, a renunciar toda reivindicação de prioridade nos casos, bastante freqüentes. em que as árduas. pesquisas psicanalíticas só fazem confirmar os resumos intuitivos (die intuitiv gewonnenen Einsichten) dos filósofos"111• Esse reconhecimento contém, pois, em forma de contrapartida, a reivindicação de autonomia: a descoberta de uma verdade enunciada em lugar próprio, pela filosofia, culmina numa re-criação dessa verdade. Também é neste sentido que ele observa que outros diferentes dele, que o ignoravam, "leram e relenm essa passagem (de O mundo . .. ) , sem fazer essa descoberta''. Uns dez anos mais t arde, Fr eud efetua uma nova retificação, em termos um pouco diferentes, na Selbstdarstellung (19 25) . No capítulo V, após ter evocado seus trabalhos metapsicológicos, declara : "Não gostaria que se tivesse a impres-
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são de que eu teria, nesse último período de trabalho, voltado as costas à observação paciente, e que ter-me-ia inteiramente entregue à especulação. Permaneci, antes, em contato íntimo com o material analítico, e jamais parei de trabalhar temas especiais, clínicos ou técnicos" 2-o. Assim, no momento de evocar a fil osofia, Freud antecipa sua prática experimental, e dela se precavém como o obstáculo a ser evitado: "E lá onde eu me distanciava da observação, acrescenta, evitei cu idadosamente aproximar-se da filosofia propriamente dita"21 . Ora, aqui intervém a referência a Schopenhauer: "A s amplas concordâncias da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer - ele chegou mesmo a vislumbrar o mecanismo do recalque - não se deixam reduzir ao meu conhecimento de sua doutrina. Eu li Schopenhauer muito tarde em minha vida". A aproximação dos dois textos revela a estereotipia dos enunciados explicativos. Em primeiro lugar, ele apela para a ignorância caracterizada da filosofia, pronta a apoiá-la numa ' 'incapacidade constitucional'' à inteligibilidade filosófica. Em segundo lugar, opõe à especulação filosófica " propriamente dita", o imperativo científico que incumbe à psicanálise e legitima essa ignorância; é por isso que o reconhecimento de uma contribuição filosófica pode con ciliar-se com a recusa de parentesco com a filosofia. F inalmente, ele aceita as "concordâncias" (Ubereinstimmungen) entre os dois campos, tais como lhe são revelados por uma leitura pessoal, mas tardia (apres coup), suscitada por um mediador. Se Freud cita Rank com tanta exatidão, como mediador (antes de 1920) , não é por simples reverência a um colaborador estimado, mas porque pretende manifestar a intervenção exterior que lhe revela o parentesco filosófico agindo à sua revelia. Essa exigência possui um sentido muito profundo quanto à relação de Freud com a filosofia. Na ocorrência, Rank exerce a delegação e assume a inlercessão filosóficas junto a Freud, porque é necessário um ternw para legitimar, aos olhos de Freud, o exercício da função filosófica. Isto significa que ele tem por função manifestar e remeter ao próprio Freud o eco filosófico de sua própria teoria. E permite a Frend assumi-lo e reconhecêlo publicamente, realizando a necessidade filosófica sem assumiIa pessoalmente, de forma diferente de uma determinação objetiva. Deste modo, o mediador possibilita uma satisfação desviada do objeto filosófico. Se, em seguida (em 1925), Rank não é
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mais citado, é porque se realizou a ruptura com ele22. Mas Freud continua a insistir no caráter tardio da leitura e na "incapacidade" do leitor dos filósofos, que ele é. Enfim, esses dois textos possuem em comum o fato de serem históricos: não discurso psicanalítico, mas discurso sobre a psicanálise. Eis o ponto em que a relação com a filosofia se torna objetivável. Onde, pois, encontrar, na obra de Schopenhauer, essa famosa antecipação? Em 1914, ele a localiza em O mundo ... Todavia, em Formulações sobre os princípios do funcionamento pslquko (1911), precisava a referência. Ao evocar, desde as primeiras linhas, "a introdução do processo de recalque na gênese da neurose", escreve: "Um pressentimento extraordinariamente claro dessa questão foi rapidamente designado por Otto Rank, em certo lugar da obra de Schopenhauer (O mundo como vontade e como representação, t. 2) "23. Realmente, é no capítulo 36 do livro IH que Schopenhauer, a partir da analogia entre gênio e loucura, buscando "a noção exata e precisa daquilo que distingue o louco do homem sensato", encontra o caminho dessa explicação. Com efeito, ele observa que as "divagações sempre se referem ao que está ausente ou é passado c, depois, só concernem à relação daquilo que é ausente ou passado com o prescnte"24• Ora, este passado falsificado se forja preenchendo as lacunas da memória aberrante com "ficções''. a um "passado de fantasia", mescla de fragmentos verídicos e de fabulações. Donde uma espécie de memória abstrata: "O louco ( ... ) conserva ( ... ) em sua razão o passado in abstracto" 2 G. Correlativamente, Schopenhauer esboça uma teoria do traumatismo; por exemplo, uma dor violenta que afeta o psiquismo em seguida a "acontecimentos terríveis e inesperados"; na medida em que ela se pereniza, "a memória recebe seu depósito". Mas se " essa lembrança é bastante cruel para tornar-se abso· lutamente insuportável e ultrapassar as forças do indivíduo, então a natureza, tomada de angústia, recorre à loucura como a seu último recurso; o espírito torturado rompe, por assim dizer, o fio de sua memória, preenche as lacunas com ficções ( ... ) é como quando se amputa um membro gangrenado para ser substituido por um membro artificial". Aliás, o homem normal faz uma experit!ucia análoga, que apresenta o princípio do mecanismo da loucura: "Quando um pensamento doloroso
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nos surpreende de improviso, ocorre-nos freqUentemente querermos expulsá-lo, de um modo de certa forma mecânico por uma palavra pronunciada em voz alta, por um gesto: p;etendemos, assim, nos distrair, subtrair·nos violentamente de nossa lembrança"26. Vislumbramos o que Freud pôde encontrar de interessante e, mes~o, ~e espetacular, na leitura desses textos: Schopenhauer sttua Imediatamente o mecanismo da aberração mental na r~_l~ção com o passado de doente, na constituição de uma memon~ truncada. Ademais, caracteriza a defesa que tenta ab-reagu- ao trauma e produz, reativamente, formações substitutivas. Enfim, identifica a tendência constitutiva do psjquismo em recusar toda representação investida de um afeto desagradável repelindo-a. ' ~odavia, para julgar a analogia, precisamos compreender a teona schopenhaueriana em seu devido lugar onde adquire seu verdadeiro sen.tid.o. É o que se percebe no Japítulo xxxn dos Suplementos, mtitulado "Da loucura". Resumindo sua teoria do capítulo ~~ ~o lf,vro IH, Schopenhauer a explicita por um fato de e:x;penencta: Lembremos com que repugnância pensamos nas coisas que ferem fortemente nossos interesses nosso orgulho ou nossos desejos; com que dificuldade nos de~idimos a submetê·Ias ao exame preciso e sério de nosso intelecto· com que facilidade, ao contrário, afastamo-nos delas brusca:nente ou delas nos desligamos furtivamente sem ter consciência d~sso' 021 • Essa :etra~aç~o. encontra sua origem na oposição con· fhtual dos dots pnnctptos que se partilham o espírito do homem; revela a "repugnância da vontade em deixar-lhe acontecer o que é contrário à luz do intelecto". Esta é "a brecha pela qual a loucura pode irromper no espírito"2s. Por conseguinte, o mecanjsmo da loucura só tem sentido como revelador da autonomia da vontade relativamente ao princípio intel~ctual, na medida em que ela atesta sua capacidade de contranar a ação de tal princípio. A patologia mental é a ~or~.a ext~e~a dessa subversão do princípio intelectual pelo
pnnc1p1o vohtlvo: revela o poder dos efeitos da vontade mostran~o _o prévio atest?do de veto que exerce a vontade para a adrrussao de todo objeto a ser pensado. S6 se ele satisfizer às condiç?es da vontade e da afetividade, poderá ser admitido no entendtmento: fazendo-se bem a assimilação, "a saúde do espírito não é ameaçada"; ela pode manter-se, igualmente, se
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um objeto, contrário aos interesses afetivos, conseguir, não obstante, "instaurar-se no sistema de verdades relativas à vontade e a seu interesse". Todavia, se " a operação" não é bem sucedida, "se certos acontecimentos, certos transtornos são inteira· mente subtraídos ao intelecto, porque a vontade não pode suportar seu aspecto; e se, por necessidade de um encadeamento necessário, preenchemos arbitrariamente a lacuna assim produzida, então está presente a loucura". A ficção alienante é, pois, produzida arbitrariamente para fechar o buraco imposto pela vontade ao intelecto. Schopenhauer diz elegantemente, numa fórmula que se assemelha a certas fórmul as freudianas 29, que "o intelecto renunciou sua natureza, por complacência para com a vontade". ~ por isso que, em seu seio, aparecem disfunções. Conferir à vontade esse poder terrível de veto, e à loucura "a violenta exclusão de uma coisa fora do espírito" como origem, também é confirmar a eficácia irresistível da vontade no espírito. Em outras palavras, é por ser o princípio soberano de estrutur~ão do espfrito, que a vontade é seu princípio de desestrutur~ão, como. podemos notar na loucura. Também é isso que faz o parentesco do gênio e da loucura, expressão dupla do poder da vontade, com esta diferença: no gênio, a inteligência chega a tornar-se "emancipada do serviço da vontade"30• Devemos notar, enfim, que Schopenhauer reserva um lugar, ao lado dessa teoria, para uma etiologia puramente somática, em ligação com "uma má conformação ou ( . .. ) uma desorganização parcial do cérebro"3 1. Assim, a intuição schopenhaueriana do recalque só é compreensível quando vinculada à globalidade do sistema. Mas Freud só pretende considerar seu efeito pragmático. Por uma via metafísica, Schopenhauer vislumbrou o mecanismo do recalque, o que não impede que essa derivação metafísica tenha efeitos precisos sobre a concepção do próprio conceito. Podemos nos fazer uma idéia a esse respeito referindo-nos ao artigo metapsicológico de Freud sobre O recalque. Declara que sua "essência consiste apenas no seguinte: distanciar-se e manter-se a distância do consciente". Mas o que motiva a rejeição, é a incompatibilidade da satisfação da pulsão com outras exigências. Não se trata mais de afetividade psicológica (como o orgulho), como em Schopenhauer, mas de moções pulsionais. Portanto, não se trata de um veto da vontade, porém de um retorno da pulsão versando sobre seus representantes-represen-
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tação (imagens, idéias desagradáveis), sobre a intervenção de uma jurisdição repressiva. Desapareceu a dualidade de princípios; só temos que lidar com a mecânica pulsional através de seus dois elementos (afetos e representações), que constituem suas determinações internas. ~ isto que explica que, no ensaio sobre o recalque, Freud possa declarar que "o conceito (de recalque) não pode ser formado num momento anterior às pesquisas psicanaHticas"32 • Esta fórmula deve servir para corrigir a interpretação continuísta, tornada tentadora pela insistência com que Freud estabelece a semelhança do conceito schopenhaueriano com o seu próprio. Ela dissipa a ilusão de precursor que revela toda sua aproximação com a análise. Mas isto não destrói o valor da analogia desenvolvida no confronto com os textos. O conceito de Verdriingung, concebido como dinâmica das representações, já fora pensado por Herbart e adotado pela corrente da psiquiatria alemã representada por Griesinger ou Meybert, mestre de Freud. Mas, ainda aqui, a conceitualização freudiana faz esse conceito sofrer uma profunda metamorfose. O paradoxo de Schopenhauer consiste em ter pensado de modo muito preciso esse mecanismo, a partir de pressupostos metafísicos: apesar destes ou graças a eles. Entre a descontinuidade teórica de fundo e a analogia insistente, esboça-se o complexo estatuto do precedente schopenhaueriano. 2.
O INCONSCIENTE
Em Freud, o recalque se encontra, bem entendido, estreitamente associado ao inconsciente. O que ocorre com o inconsciente em Schopenhauer? Não é por acaso que a problemática do inconsciente é ao mesmo tempo onipresente e subordinada em Schopenbauer: trata-se de um predicado universal da vonta· de, sempre ligado a ela, não sendo compreendido separadamente dela. Vemos isto no relato do processo de "objetivação da vontade", situado no livro 11 (capítulo 27) de O mundo. .. : "Assim, vimos, no grau mais baixo, a vontade nos aparecer como um impulso cego, como um esforço misterioso e surdo, distante de toda consciência imediata ( ... ) Enquanto pensamento cego e esforço inconsciente, ela se manifesta em toda a natureza orgânica"33• Assim, o inconsciente conota o caráter mais originário da vontade, impulso indeterminado que não se
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individualiza em nenhum objeto determinado, força cega que age sem objetivo determinado nem consciente; misteriosa, enquanto coisa em si, ela é a própria inconsciência. Nessa arqueologia-genealogia da vontade, a consciência é um produto tardio. Na origem, a vontade encontra-se "distanciada de toda consciência imediata". O inconsciente é sua determinação préhistórica, mas também seu caráter universal: à medida que "se eleva de grau em grau em sua objetivação", ela pennanece "absolutamente inconsciente, semelhante a uma força obscura". b somente com a emergência da individualidade humana, o mais elevado grau da "objetividade da vontade", que, "de repente, surge o mundo como representação". A vontad~ não renuncia a si mesma: simplesmente, enquanto "desenvolv1a outrora seu esforço nas trevas, com uma segurança infalível, uma vez atingindo esse grau, muniu-se de um facho de luz''34• Se ela perdeu "sua inocência original", continua sendo o motor primeiro. Por isso, a repres~ntação c?nscie.nte _está "ligada ao serviço da vontade (inconsctente) e a reahzaçao de seus propósitos"35. Nesses prolongamentos, é Edouard von Hartmann quem irá transformar o inconsciente, de predicado em sujeitaM. 3.
OAMOR
De um terceiro modo, Schopenhauer é evocado por Freud como seu grande predecessor. Trata-se da teoria da afetividade que culmina na sexualidade. Num ensaio intitulado Uma dificuldade da psicanálise (1917), Schopenhauer é evocado como "o pensador" que "preveniu os homens, com palavras de um vigor inolvidável, quanto à importância ainda subestimada de seus instintos sexuais"'37. No prefácio à quarta edição dos Três ensaios sobre a sexualidade (19 20), lemos que "o filósofo Arthur Schopenhauer, de há muito, representou para os homens até que ponto ~eus atos e suas aspirações (ihr Tun und Trachten) são detenruna-
dos pelos impulsos sexuais, no sentido habitual do termo"38• Na Selbstdarstellung (1925), Schopenhauer é evocado, entre outros, como aquele que representou "o primado da afetividade c n importância eminente da se:8:.ualidade"311•
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Em As resistências à psicanálise (1925), lê-se: "O filó· sofo Scbopenhauer havia estabelecido ( betont), com palavras de inolvidável vigor, a importância incomparável da vida sexual "40 • Tais formulações, colocadas umas ao lado das outras, revelam, uma vez mais, a extraordinária estereotipia dos enunciados freudianos. Observemos que Freud insiste, cada vez, na altura do verbo filosófico. Aqui, essa altura possui um sentido preciso: tem por efeito proclamar o poder da sexualidade por muito tempo calada, vale dizer, romper o grande silêncio. A altura do tom é, pois, proporcional à profundidade do silêncio que precedeu a proclamação e à do silêncio que lhe responde. Schopenhauer é, assim, aquele que, pela primeira vez, fez aos homens o anúncio de seu ser sexual. Portanto, é evocado como profeta cuja mensagem luminosa foi recusada, e que prova o fundamento afetivo das resistências que o gênero humano opõe a essa revelação. b o que pode ser notado, por exemplo, no enunciado do prefácio aos Três ensaios. Freud constata a resistência às aquisições psicanalíticas dizendo respeito à sexualidade, e recusa a acusação de "pansexualismo". No que se refere, porém, à tese da "importância da vida sexual em toda a atividade humana", e à violência das resistências que ela suscita, declara: "Poderíamos ficar estupefactos, se pudéssemos esquecer o poder de extravio 1 gerador de esquecimento, dos móveis afetivos". E a prova está no fato de que "todo esse mundo de leitores", que tomou conhecimento da mensagem de Schopen· hauer, ter "conseguido expulsar, a este ponto, tão impressionante advertência de seu espírito" 41 ! S por isso que se faz necessário reiterar a proclamação, apoiada em provas científicas. Desta forma, o precedente schopenhaueriano constitui essa exortação inesquecível e, no entanto esquecida, esse desperdício de verbo verídico devendo servir de lição. Por outro lado, o conceito schopenhaueriano de sexualidade tem essa vantagem, um pouco como o Eros platônico, aliás evocado ao mesmo tempo (tanto no Prefácio de 1920 quanto em As resistências à psicanálise), de ultrapassar a concepção estreita da sexuali~ dade (genital e procríativa) por uma concepção ampliada e multidimensional. Onde iremos encontrar essas "palavras de inesquecível vigor" do evangelho schopenhaueriano? Sem dúvida alguma,
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em A metafísica do amor (suplemento ao livro IV de O mundo como vontade e como representação, cap. XLIV). Ele aí se apresenta como o primeiro filósofo moderno que "não teve medo, por uma vez, de fazer seu esse tema eterno dos poetas", abandonado pela filosofia, desde Platão, e de revelar esssa "terra inexplorada", "essa paixão que desempenha, em toda a vida humana, um papel de primeira ordem"42• Tratase, pois, de elevar o amor à dignidade metafísica que toda a tradição filosófica ocidental lhe recusou. Mas ela deve apoiar-se numa física e numa fisiologia do amor; donde seu aspecto cru, que Schopenhauer reivindica quase arrogantemente, o que o leva a esboçar uma teoria da resistência fundada na sublimação: "Aliás, não posso contar com a aprovação daqueles mesmos que são dominados por essa paixão, e que procuram exprimir a violência de seus sentimentos pelas mais sublimes e etéreas imagens; minha concepção do amor lhes parecerá por demais física, demasiado material, por mais metafísica e transcendental que ela seja, no fundo". Donde, também, uma forma de pansexualismo: "Toda paixão ( ... ) qualquer que seja a aparência etérea . que ela se dê, tem sua raiz no inst.iJlto sexual, ou mesmo, não é outra coisa senão um instinto sexual mais claramente determinado, especializado ou, no sentido exato do termo, individualizado"413 • Este é o "objetivo final de quase todos os esforços dos homens", registrado pela palavra poética. Ainda aqui, porém, a intuição só adquire seu sentido no sistema global. Diz ele: "O sujeito, por si mesmo, impôs.se a mim e veio tomar lugar no conjunto de minha concepção do mundo". E isto, por intermédio do "querer-viver", especificação da Vontade: "O instinto sexual em geral ( •.. ) não é, em si, e fora de toda manifestação exterior, senão a vontade de viver""· Donde seu caráter genérico: a ligação entre dois indivíduos (o amor subjetivo) não passa de um "estratagema" pelo qual a natureza obtém seus fins"~ 5_ É no produto da união (o rebento} que se objetiva, finalmente, o querer-viver da espécie. Toda A metafísica do amor constitui o desenvolvimento desse esquema de base, permitindo que se multiplique as observações psicológicas e patológicas. Temos aí, aos olhos de Freud, a marca da fecundid ade da teoria. Mas, ainda aqui, a antecipação não deve provocar ilusão. A frase de Schopeohauer, lembrando que "toda essa teoria da metafísica do amor prende-
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se estreitamente ao conjunto de sua metafisica" 4$, deve valer, neste sentido, como advertência. Todos os fatos têm por finalidade última e inseparável, induzir conclusões metafísicas explicitamente enunciadas no final: "A indestrutibilidade da essência própria do homem" (atestada por sua perenização, pela "geração futura", para a qual ela "continua a existir") e o fato de que "a essência própria do homem reside mais na espécie que no indivíduo"47 • Ademais, o querer-viver, de que é derivada a sexualidade, tem um emprego metafísico preciso: estabelece a união da vontade, coisa em si, e do mundo fenomenal, a primeira encontrando na vida uma matéria e uma manifestação, pois nela "vê sua própria essência representada a si mesma com plena clareza". A atitude de Freud é clara: separa a teoria de seus desafios metafísicos; ou antes, ele a entrega a seu contexto metafísico, mas só emprega o que ela permite pensar do real. Dissocia aquilo que, na análise, revela-se indissociável, mas nos limites do uso psicanalítico. Tais empréstimos não criticados não constituem simples concessões. Trata-se, antes, de uma estratégia cujo sentido precisa ser encontrado.
4.
A MORTE
Pensador do amor, Schopenhauer também aparece a Freud como um grande pensador da morte. É em Além do principio de prazer, à margem do grande período especulativo de Freud, que vai aparecer esse novo tema, até eclipsar os outros. Esta é, com efeito, uma grande etapa na história do investimento, por Freud, da temática scbopenhaueriana. A fim de nos preparar para compreender o papel de Schopenhauer na conquista, por FreU
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a forma de uma digressão: o discurso freudiano se abre, se descentra pelo referente filosófico, depois continua seu caminho. Para sabermos o que ocorreu de decisivo, convém interrogarmos o contexto, segundo o método habitual. Desta vez, porém, parece que nos encontramos bem no centro da palavr.a filosófica freudiana: esta referência particular é sobredeteriDJnada ao mesmo tempo por seu lugar e por seu conteúdo. O lugar: é a primeira grande exposição da teoria da pulsão de morte, que vai tornar-se o pólo da metapsicologia freudiana. O conteúdo : é a referência de fundo a Schopenhauer, ele próprio referente filosófico central oo pensamento freucfiano. Este penúltimo capítulo de Além do princípio de prazer estabelece o final da demonstração. Uma vez "postulada" a oposição entre os "instintos do Ego" e os instintos sexuais, "os primeiros tendendo para a morte, os últimos para o prolonga· mento da vida"4ll, é sobre a questão da "morte natural" que se trava o debate. Trata-se de examinarmos a hipótese segundo a qual "tudo o que vive, deve morrer em virtude de causas intcrnas"49. Em caso de adoção dessa hipótese, teríamos um argumento em favor da contemporaoeidade dos "instintos ten~ dcndo à morte" com "a vida sobre a terra". Ora) isso dá lugar a um extraordinário vaivém entre as teorias poéticas, científicas e metafísicas. É desse modo que Freud parte da "grandiosa concepção de W. Fliess", segundo a qual a morte, como todos os fenômenos orgânicos, estaria ligada a "certas expirações, pelas quais se exprimiria a dependência das duas substâncias vivas, macho e fêmea, relativamente ao ano solar"Go. Em seguida, ele se volta sobre a distinção weissma~ niana entre germen e soma, concebida como analógica ao par instintos de morte - instintos de vida, o primeiro sendo imortal e, somente o segundo ficando submetido à morte natural. Todavia, a distinção de Weissmann, só se aplicando aos "organismos multicelulares" , a morte não passa de " uma aquisição tardia dos seres vivos''~ 1 e perde seu caráter de "propdedade original da substância viva" ou de "necessidade absoluta tendo suas razões na natureza e a essência mesma da vida" segundo o requisito freudiano. Essa restrição obriga Freud a recorrer aos resultados experimentais divergentes sobre a degenerescência dos protozoários (Woodruff) para fundar, sobre eles, a idéia da morte natural como "conclusão ( ... ) do processo vital"cs 2 • Isto permite a apro:x.imação dos dois tipos distintos com os dois
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tipos de processos (assimilação e desassimilação) distinguidos por Hering na substância viva5õ. É oo término dessa acumulação de referências que vemos surgir o nome de Schopenbauer: "Existe uma coisa que não podemos nos dissimular; consiste em que, sem que nos apercebamos, penetramos nos meandros da filosofia de Schopenhauer, para a qual a morte seria o 'resultado propriamente dito' e o objetivo da vida, ao passo que o instinto sexual representaiia a encarnação da vontade de viver" 64 • Na aparência, a referên~ cia filosófica se acrescenta a uma chuva de referências lançadas confusamente; de fato, ela desempenha uma função muito específica. Tendo panido de uma intuição poética (1 ), passado pela tese poético-científica (2), Freud recorreu a um nível científico (3 ), com Weissmann; esta tese é restríngjda pelo recurso aos fatos (4) permitindo o acesso a outra teoria científica, com Heriog (5 ); e é aí que intervém a referência a Schopenhaucr (6), que tem por efeito notável eucenar a ~.:as~.:ata de referências. Temos aí o indício de que chegamos a um termo, e de que Freud pode, eníim, retomar a palavra em seu nome, o que efetivamente faz. A referência metafísica fixa, com efeito, a hipótese metapsicológica elevando~a ao nível teórico procura· do. Ao cabo das tentativas sempre parciais de realização nos diversos níveis teóricos precedentes, cada vez reiteradas e escalonadas, a palavra metafísica encerra a navegação fornecendo à hipótese metapsicológica sua materialização: ela fornece a formulação assertiva permitindo enunciar, por sua clareza sintética, a verdade metapsicológica. Convém cernirmos bem esse mecanismo: o recurso à metafísica não tem por objetivo suprir a insuficiência da verificação científica pela virtude miraculosa da especulação liberada dos fatos, pois não tem valor probatório em si mesma, só fazendo formular o sentido da unificação procurada. Tampouco encontramo-nos diante de uma fra se vazia, porque a metafísica permite à verdade metapsicológjca tomar corpo e conquistar sua identidade. Ela une a esse fim o poder sugestivo e globalizante da intuição poética de realização que torna possh·cl ultrapassar-se a imediatez intuitiva. Correlatívamente, trata-se de determinar a contribuição da concepção schopcnhaueriana. Podemos ler em Totem e tabu ( cap. 3, § 3) : "Segundo Schopenhauer, o problema da morte se situa no limiar de toda filosofia"5 5 • Pensemos nas fórmulas de O mW1do.. . : a morte como "gênio inspirador" e "musa"
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("musagete") da filosofia. "Sem a morte, declara no livro IV, certamente não haveria filosofia" (cap. XLI) 56• Quem é evocaw do, aqui, é o metafísico da morte, aquele que Freud confessa a Lou Andreas-Salomé57, em 19 de agosto de 1919, ter lido "pela primeira vez" e sem prazer. Para compreendermos seu papel, precisamos considerar que o aparecimento do novo dualismo pulsional, em 1920, não somente modifica a natureza das pulsões, mas até mesmo a função heurística do dualismo pulsional. Depois da rápida tentação do monismo jungiano, Frcud teve que enfrentar o problema da unidade da libido confrontada com a exigência dualista. Subitamente, a oposição não é mais entre a libido e um domínio exterior à libido (as pulsões de fome), mas entre os dois modos opostos da libido: a) a afirmação da libidt> sob fonna de pulsões de vida; b) uma outra forma da libido, simétrica à precedente, mas que, paradoxalmente, visa a um certo prazer, a um além do princípio de prazer (como o atesta, notadamente, a compulsão de repetição) : são as pulsões de morte, cuja função consiste em "quebrar as relações" e em contrariar a função de ligação do Eros, que tende a "estabelecer unidades sempre maiores" e a "conservar" seus edifícios. Como conseqüência, as pulsões de morte se definem como uma fonna 11 da iibido, enquanto querer-morrer: são a afirmação da negação. Mas também significa dizer que, à dualidade objetiva de duas classes de pulsões (de autoconservação e sexuais) sucede uma dualidade principial. Isto significa que Vida e Morte são dois princípios pulsionais no sentido próprio: não diferem por seus objetos de satisfação, como. as pulsões de fome e de amor, mas por seu tipo de relação com um mesmo objeto. a o que declara Freud em As novas C(Jnferências: "Todas as moções pulsionais constituem tais uniões ou alianças dos dois tipos de pulsões"58 • Ora, a dualidade principiai querer-viver/ querer-morrer, escudada na unidade metafísica do conceito de vontade, permite~ nos pensar analogicameote essa unidade na dualidade. Sugere que é a oposição que é o essencial. Ademais, a orientação para a morte possibilita· nos pensar a morte como dimensão intrínseca da pulsão enquanto tal. A partir daí, o debate com Schopen· hauer vai ocupar o resto da reflexão de Freud, enquanto ligado a essa questão da pulsão de morte. "No início, diz ele em Mal-estar na civilizaçllo, apresentais tais concepções· com a
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única intenção de ver aonde elas conduziam; contudo, com o decorrer dos anos, de tal forma passaram a impor~se a mim, que não posso pensar de outro modo"59. Portanto, o que é evocado, é a subjugação progressiva da especulação; ora, essa imposição é, em parte, a de Schopenhauer. Não obstante, há uma real evolução dessa concepção, que se torna patente na quarta das Novas conferências, dedicada ao estudo de "A angústia e a vida intelectual". Após ter resumido, uma vez mais, sua representação da vida instíntual, Freud se precavém contra uma objeção: "Talvez vocês digam, levantando os ombros, que isso não é ciência, mas filosofia à maneira de Schopenhauer!"60. Ao que ele vai responder em dois pontos. Em primeiro lugar, afirma a legitimidade, para uma ciência, de reconhecer uma antecipação filosófica e renunciar à sua cientificidade: "Mas por que, senhoras e senhores, um pensador ousado não deveria ter vislumbrado aquilo que, em seguida, uma pesquisa detalhada, fria e laboriosa vem confirmar?''61 • Assim, a virtude do filósofo é essa ousadia que o faz proje· tar, numa intuição totalizante, aquilo que compete à investigação científica estabelecer em bases positivas. Os qualificativos são, aqui, significativos: a outra vertente da totalização filosófica é a preocupação científica com o detalhe; à embriaguez especulativa, sucede a sobriedade científica (nüchtern, "frio", significa, literalmente, "em jejum"); à facilidade das generalidades conceituais, opõe-se o labor do cientista adstrito aos fatos. A fim de melhor salvaguardar-se de toda identificação entre as duas racionalidades, ele chega mesmo a enunciar uma forma de "latidunarismo" (latidunarisme) da verdade: "E em seguida, tudo já foi dito, pelo menos uma vez, e antes de Scho· peohauer, muitos disseram algo de semelhante". Em virtude dessa lei, o cientista está condenado a falar depois. Todavia, em segundo lugar, Freud estabelece a diferença entre a concepção schopenhaueriana e a sua própria. Enquanto que, em 1920, a aproximação não é problematizada, em 1932, a tese schopenhaueriana serve de demarcação à teoria analítica: "Além disso, o que dizemos não é exatamente o que diz Schopenhauer. Não afirmamos que a morte seja o objetivo único da vida. Não negligenciamos a vida relativamente à morte". Podemos perceber que, através dessa inflexão de detalhe, revela-se uma importante divergência. Percebemos mesmo como uma
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especificação da referência filosófica pode fazer as vezes de rcvelador decisivo da evolução teórica freudiana. A mO<Üficação da leitura de Schopenbauer revela que evoluiu e modificou-se "a concepção ( ... ) dos instintos fundamentais da vida psíquica". E o que anuncia o início da IV Conferência: 1) O que se revelou a Freud, desde Além do princípio de prazer, foi que a tese da orientação da vida para a morte chegava a dcsrealizar a vida com relação à morte. Sendo a morte o essencial, a vida se torna seu acidente; sendo a morte a "verdade" da vida, esta se vê reduzida a uma aparência; 2) Com isto, fica revelado o princípio de toda a concep·
ção: um desapreço metafísico pela vida, resultado paradoxal do querer-viver, que indica e desfecho do "Mundo"; 3) Mas não se trata simplesmente de revalorizar a vida. O que Freud recusa é justamente o papel falsificador do pressuposto metafísico enquanto tal. :e a investigação analitica que exige a manutenção do dualismo pulsional, sobre o qual repou· sa toda a mecânica conflitual que rege o psiquismo. É esse obstáculo monista, inerente à metafísica, que Freud pretende denunciar aqui: a unicidade de objetivo contradizia a dualidade fundamental das pulsões. E é esse dualismo que ele reafirma como a última palavra de sua teoria das pulsões fundamentais: "admitimos duas pulsõcs fund amentais, e deixamos a cada uma seu objetivo próprio". Assim, o debate com Schopenhauer está diretamente ligado ao debate de Freud com sua própria teoria. Neste último texto, onde Schopenhauer é citado nominalmente , ' e esse debate fundamental que se encerra. 5.
O PESSIMISMO
Existe, no entanto, um último ponto de vista pelo qual Freud paga seu tributo à família ideológica de Schopenhauer : é o pessimismo, que se encontra no fundamento da concepção da civilização. Com isso, o debate com Schopenhauer revela sua verdadeira dimensão. Uma passagem da Psicologia coletiva e análise do ego permite-nos situar o encontro: no capítulo 6, evoca, para representar "como os homens se comportam em geral, uns em relação aos outros, do ponto de vista afetivo", "a célebre parábola de Schopenhauer sobre os porcos-espinhos morrendo de
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f no . 11. Trata-se de uma parábola retirada dos Parerga et Paralipomena62. Relata a trágica alternativa dos porcos-espinhos conct:nados, por um rigoroso inverno, a escolher entre morrer de fno, permanecendo isolados uns dos outros, ou ferir-se cruelmente uns aos outros com seus espinhos, aproximando-se para se protegerem do frio. O sentido da pa~á~ola co~tém toda a ética pessimista de Schopenhauer; os mdiv1duos sao naturalmente refratários aos ~ntat?s com seus semelhantes; mas como estão condenados a v~ver JUntos, devem, como os porcos-espinhos da fábula, decidir manterem-se razoavelmente afastados uns dos outros a fim de preservarem a individualidade salutar sem rompere~ totalmente um elo social infelizmente indispensável. . Freud acrescenta que essa concepção da refratariedade afe· tJ.va é confirmada pelo "testemunho da psicanálise" , que constata que "toda relação afetiva íntima, de certa duração, entre uas . p~s? as (. .. ) , deixa um depósilo de sentimentos hostis, manugave1s". O pessimismo que perpassa Mal-estar na civilização atesta esse mesmo tipo de filiação. Podemos sugeri-lo. a partir das considerações de base que ~auguram o d esen~ol v1mento de toda a concepção da civilizaçao. __!rata-se da ~scussão sobre a felicidade, que fornece a ocastao para . considerações pessimistas. Ora, essas adquirem todo seu sent~do se percebermos que não são simples lugarescomuns retór;cos, mas remetem a uma problemática precisa tendo suas raiZes na grande corrente pessimista alemã oriunda de Schopenhauer. c;ol.ocand? ~ questão fundamental : "Quais os propósitos e os obJettvos vttats revelados pela conduta dos homens? O que eles pedem à vida? A que tendem?", Freud responde: "Os homens quer.em ser e permanecer felizes". Todavia, toda a ordem ~o umverso se opõe a esse programa: "Seríamos tentados a dtze: q,ue .n.ã~Mes tá . conti~o no plano da 'Criação' que o hoJ:?em seJa feliz . Ets a formula do antiprovidencialismo radLcal. . Te~os a! a radicalidade de um pessimismo metafísico, CUJOS dots postulados são enunciados por Schopenhauer no livro ~,V d ~ O ~ndo c~mo v~n_tade e como representação (§56-59): A Vida nao admite fehctdade verdadeira"; "O sofrimento é o fundo de toda vida''84. Mas se o sofrimento é o estatuto do
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ser humano, a "felicidade" só pode ser concebida negativamente. :8 nessa lógica que Freud diz que "só o contraste é capaz de nos proporcionar um gozo intenso". Numa espécie de eco, Schopenhauer dizia: "A satisfação, a felicidade, como a chamam os homens, não é propriamente, e em sua essência, nada senão negativo; nela, nada há de positivo''66• P or conseguinte, a recusa da felicidade não se encontra fundada, em Freud, num pessimismo banal, ou nos lugarescomuns de "não há felicidade na terra". Ele remete a um círculo trágico da pulsão e da satisfação, que encontra seu modelo no esquema schopenhaueriano da necessidade e da satisfação: toda satisfação versa sobre um desejo; "ora, com a satisfação, cessa o desejo e, por conseguinte, também o goro. Portanto, a satisfação só poderá ser a liberação de uma dor, de uma necessidade". " O que chamamos de felicidade, diz Freud na mesma linha, resulta mais de uma satisfação súbita de necessidades tendo alcançado uma alta tensão, e só é possível, por natureza, sob a forma de fenômeno episódico". Esse problema da negatividade da felicidade, velho como a reflexão filosófica, não obstante é um ponto de escola ocupando seu lugar numa problemática muito localizada. Contra seu mestre Schopenhauer, von Hartmann sustenta que, se é verdade que "o prazer resulta freqüentemente da cessação ou da diminuição do sofrimento", "não é somente a cessação ou a diminuição do sofrimento" , porque certos prazeres, por mais raros que possam ser, são produzidos eles mesmosM. Essa pequena polêmica, ocasião de um cisma na posteridade de Schopenhauer, mostra sua origem. Deste ponto de vista, Freud seria um eclético, dando razão à tese de Schopenhauer, ao colocar em primeiro plano a negatividade da felicidade e o contraste, embora deixando certa positividade, com os prazeres. A dependência, porém, é mais fundamental. O que torna possível a analogia, é a concepção institual que Freud instaura no fundamento da civilização. ~ o bloqueio da Vontade, implicada na maldição imanente, condenada a sempre querer sem jamais se satisfazer, a reproduzir o desejo se. seu fracasso, que constitui o verdadeiro fund amento do pessimismo. Em Freud, é a maldição imanente da pulsão, radicalizada e internaliz;ada pela dominação da pulsão de morte, que constitui o fundamento homólogo do pessimismo. Todavia, o que em um caso deriva de um "estado de infelicidade railical", iuscrito oa estrutura do ser, depende, no
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outro, de um regime pulsional possuindo suas leis posttlVas: estrutura fortemente determinada, fatalidade também, mas não deduzida a priori. Produto da observação metapsicológica. O enorme papei desempenhado por Schopenhauer, para Freud, torna-se bem visível e resumido no final d e Uma difit:uldade da psicanálise. Aí Freud define o papel decisivo da psicanálise na modificação da imagem do homem: "Poucos homens se dão claramente conta do quanto seria uma d~marche cheia de conseqüências para a ciência e a vida, o fato de admitir a hipótese de processos psíquicos inconscientes"67• A tarefa da psicanálise é a de efetuar essa conversão radical. Mas aí, descobre a idéia da filosofia na pessoa de Schopenhauer: "Apressamo-nos a acrescentar que não foi a psicanálise que deu esse primeiro passo. Há eminentes filósofos que podem ser citados como seus precursores". Encabeçando a lista, encontrase Scbopenhauer: "Antes de tudo, o grande pensador Scbopenhauer, cuja 'vontade' inconsciente equivale aos instintos psíquicos da psicanálise". Vemos, então, que Schopenhauer desempenha o papel de associado na árdua função de evangelista devendo anunciar ao gênero hum ano que ele não é mais senhor em sua própria alma, que deve renunciar sua última ilusão. Ele serve mesmo de testa-de-ferro, como o confirma um pouco a carta enviada por Freud a Abraham, no dia 25 de março de 1917, logo depois desse artigo. Suspeitando discretamente Abraham que ele satisfazia seu narcisismo, ao fazer de Copérnico um ••colaborador'', Freud precisa: "Você tem razão de dizer que a enumeração que faço, em meu último artigo, pode dar a impressão de que reivindico meu lugar ao lado de Copérnico e de Darwin. T odavia, apesar dessa aparência, não quis renunciar essa interessante idéia, e é por isso que coloquei Schopenhauer na. frente" 68 • Esta é uma preciosa confissão a ser conservada. A aliança com Schopenhauer é um meio de desdobrar a palavra freudiana. Certamente, tem o cuidado de acrescentar, como de hábito, que "a psicanálise tem a única vantagem de não afirmar, de modo abstrato, essas duas proposições tão dolorosas ao narcisismo: a da importância psíquica da sexualidade e a da inconsciência da vida psíquica"; mas "ela fornece-lhe a prova por meio de um material". Contudo, a diferença das palavras legitima sua união numa mesma mensagem e numa mesma luta contra o narcisismo. De onde o sistema schopenllauc.çiruw rçtira esse privilégio de fornecer o selo
da aliança? Como a filosofia pode acomodar-se na concepção freudiana desses dois estatutos aparentemente tão contraditórios de palavra inimiga e palavra aliada? Esses dois problemas estão ligados. Portanto, depois da semiologia da relação com Scbopenhauer, é a uma etiologia que se deve recorrer. Em nosso entender, é aí que se encontra a chave de inteligibilidade positiva da contradição, que é o próprio lugar freudiano.
NOTAS
1. Podemos catalogar quinze referências na obra escrita de Freud (sem contarmos as alusões da correspondência). São todas retranscritas e analisadas na presente obra. 2. G.W., VII, p. 418, n. 1. Schopenhauer viveu em Frankfurt de 1831 até sua morte em 1860. 3. Cap. V ; G.W., XIV, p. 74. 4. Op. cit., p. 75. 5. Ver o fundamento narcisista da filosofia: contra o anúncio da verdade sexual, o Ideal narcísico se exprime pela resistência filosófica. 6. Le monde. .. , livro I, cap. 5, pp. 42-43. AJiás, Schopenbauer prolonga um terna caro ao romantismo alemão; cf. o mesmo tema em Lichtenberg. 7. G.W., II-III, p. 1. Esta é a primeira frase de A ciência dos sonhos, sua entrada no assunto. 8. De fato, o schopenhauerismo de Freud é sistematizado em 1915-1920. 9. Sobre o sentido essencial dessas metáforas da abordagem, ver capítulo seguinte. 10. G.W., X , p. 53. 11. André Fauconnet, que mostrou o elo entre a filosofia de Schopenhauer e Freud, num artigo surgido em 15 de dezembro de 1933, em Le Mercure de France, intitulado "Schopenhauer, precursor de Freud", estabelece por erro, a partir de um mal-entendido sobre o texto da Contribution, citado acima, a data de 1902 para o encontro de
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12. 13. 14.
15. 16. 17. 18.
19. 20. 21. 22.
23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35.
Freud e de Rank., quando ela apenas designa o início da constituição do grupo (cf. Etudes sur l'Allemagne, 1934, p. 187). Vemos também o quanto a continuidade entre Freud e Schopenhauer, sob a égide do conceito de precursor, mascara, revelando-lhe a fisionomia, o verdadeiro sentido da relação de Freud com a filosofia. Ver Jones, t. ll, cap. I, p. 9. Jones, t. n, cap. 11, p. 171. Ver Correspondance, p. 103. Ref. 1/173-174 . Em Allgemeine Zeitschrift für Psychiatrie und Gerichtliche Medizin (5. Heft) . Em lahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft (IV). Sclwpenhauer-Jahrbuch, XIV, 1927, p. 52s.; segundo Fauconnet, op. cit., p. 186. Ele se felicitava pelos sucessos obtidos "ao aprofundar o pensamento de Freud à luz dos escritos de seu genial precursor"; nota-se como o apego de Schopenhauer, como "precursor", à psicanálise, permitelhe, em contrapartida, impor-lhe como modelo - o que Freud jamais tolerou. G.W., X, p. 53. G.W., XIV, p. 85. lbid., p. 86. Em 1920-1923, notadamente com O trmlm(ltismo do nascimento. Jahrbuch für psyclwanalytische und psychopathologische Forschungen (B. 111) ; G.W., VIII, p. 230. Le monde... , pp. 247-248. P. 249. Pp. 249-250. P. 1131. P. 1132. Essa aproximação vem da metáfora antropomórfica que atravessa a psicaoáJise ( cf. notadamente O ego e o id). Op. cit., p. 246. P. 1133. G.W., X, p. 248. Le monde. .. , p. 198. P. 199. P. 201. 195
36. Em sua Filosofia do inconsciente, assistimos a uma teologia universal do Inconsciente, elevado ao papel de agente providencial e antropomórfico, •(desconhecido que escolhe, age com sabedoria" e "trabalha no interesse do fim que perseguimos". Isto é notório no início do segundo tomo, onde o Inconsciente é descrito através de sete predicados: "Não conh ece a doença", nem "a fadiga", é liberado da sensibilidade, "não hesita e jamais duvida", "nunca se engana", "não possui memória"; enfim, possui dois atributos: a "Idéia inconsciente" e a "Vontade inconsciente" (t. 11, cap. I, pp. 3- 11) . Donde o realismo metafísico: o Inconsciente bartmaniano é definido como a "realidade coletiva de que todas as atividades individuais são, não somente os produtos, mas os elementos integrantes" (t. I, introd., p. 5). :S essa posição que faz do Inconsciente hartman.iano um obstáculo para se pensar o inconsciente psíquico freudiano. Mas isto nos permite ver, através do hartmanismo que constitui seu destino, o vício inerente à concepção metafísica schopenhaueriana, bem como o privilégio relativo da metafísica de Schopenhauer que mantém uma relação com os fatos permitindo-Ule evitar a hip6stase das entidades metafísicas. 37. G.W., XII, p. 12.
38. G.W., V, p. 32. 39. G.W., XIV, p. 86. 40. G.W., XIV, p. 105. 41. G. W., V, p. 32 .. 42. Le monde. .. , p. 1287. 43 . lbid., p. 1288. 44. P. 1289. 45. P. 1290. 46. P. 13 17; A metafísica do amor é o complemento do capi47. 48. 49. 50. 51. 52.
tulo (54 do livro IV) que introduz o querer-viver, pivô da metafísica scbopenhaueriana. P. 1318. G.W., XIII, p. 46. P. 47. Pp. 47-48. Pp. 49. Pp. 50-52.
53. P. 53. 196
54. P. 53. 55. G.W., X, p. 108. 56. Le monde... , p. 1203. 57. "Escolhi agora, como alimento, o tema da morte; a ela cheguei maquinando sobre uma curiosa idéia das pulsões; e eis-me obrigado a ler tudo o que diz respeito a essa concepção, por exemplo, e pela primeira vez, Schopen~ hauer. Mas não o leio com prazer" ( Correspondance avec Lou A ndreas-Salomé, p. 126) . Po r que esse desprazer? Não poderíamos falar de aversão a Schopenhauer. Devemos evocar as circunstâncias, como o suicídio de V. Tausk que Freud evoca um pouco antes? De fato, temos aí a evocação do doloroso esforço que Freud associa ostensivamente a toda leitura filosófica, mas também do caráter doloroso das teses descobertas (comparar com Nietzsche, no momento da revelação de Sils~Maria). 58. Ver o artigo do autor, "Enquête sur le concept freudien de pulsion de morte", Actualités psychiatriques, dezembro de 1972. 59. G.W., XIV, pp. 478·479. 60. G.W., XV, p. 114. 61. P. 115. 62. G.W., XIII, p. 110. :S extraída da 2\1 parte, cap. XXXI "Gleichnisse und Parabeln ". 63. G.W., XIV, p. 434. 64. § 59, p. 408; § 56, p. 393. 65. § 58, p. 403. 66. Philosophie de l'inconscient, cap. XIII, 1'1- sessão, "Critique de la tbéorie de Scbopenhauer sur le caractere negatif du plaisir", p. 364. 67. G. W., XII, p. 11. 68. Citado por Jones, t. li, p. 241 , mas de forma mutilada.
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CapítUlo V
O SENTIDO DA RELAÇÃO DE FREUD COM SCHOPENHAUER: O MODELO IDEOLóGICO DA RELAÇÃO DE FREUD COM A FILOSOFIA Resta-nos determinar o sentido dessa relação privilegiada de Freud com Scbopenhauer. Doravante sabemos que é aí que se joga a significação da relação de Freud com a filosofia e com os filósofos. Posto ser este, com efeito, o ponto de convergência do interesse filosófico de Freud, elucidar essa escolha de objeto deve permitir~nos circunscrever o sentido da relação global que aí se materializa de modo prototípico. Também deve possibilitar-nos substituir as estéreis especulações sobre a significação que convém atribuirmos a essa relação com a coisa filosófica e essa inclinação incôngrua para um filósofo esotérico, por uma pesquisa precisa sobre o lugar e a origem dessa atitude ideológica1• Onde pensa Freud, nesses momentos em que obstinadamente liga sua palavra à de Scho~ penhauer? Onde localizarmos o ponto de articulação entre o sentido teórico da relação com Schopenhauer, feito, a seus olhos, pelo filósofo, e a conjuntura ideológica elaborada pelo "schopenhauerismo de Freud"? Pressentimos aí a existência de um paradigma preciso agindo no discurso de Freud, de que as recorrências às referências constituem os indícios insistentes. O que se trata de exumar, é esse discurso, tomado no cruzamento de feixes muito complexos de relações extraídas dos requisitos epistêmicos da psicanálise e da história das idéias em seus veios secretos. Em todo caso, este é o lugar onde 198
vamos situar a última palavra sobre o sentido da relação de Freud com a filosofia e com os filósofos. 1.
A DEFASAGEM HISTóRICA DO SCHOPENHAUERlSMO NA ALEMANHA: A CLIVAGEM DOS ANOS 1870
Para detectarmos essa verdade, impõe-se um primeiro
~
fereocial: a lembrança do estatuto de Schopenhauer no horizonte ideológico alemão. Este nasce de uma longa ignorância superada. Enquanto que sua tese sobre A quádrupla raiz do principio de razão suficreltle surge em 1813, e sua grande obra, O mundo como vontade e conw representação conhece duas edições, em 1818 e em 1844, é somente na virada do século que a obra, atingida até então por um recalque intelectual maciço, vai revelar-se a seus contemporâneos com "Os aforismas sobre a sabedoria e a vida", extraídos dos Parerga et paralipomena e, sobretudo, da terceira edição de O mundo. . , (1859). Donde o aspecto intempestivo (no sentido da unzeitmiissig nitzschiana) da obra; donde, também, sua reputação de pensamento marginal e maldito. Todavia, esse enorme intervalo de uma palavra filosófica, que esperamos não constituir um embaraço notável, deve ter uma significação precisa na história das idéias, e valer como sintoma de uma importante mutação. Donde, igualmente, sua cisão póstuma. Depois da morte de Schopenhauer ( 1860) , sob a presidência do "arquievangelista" Julius Frauenstadt, forma-se a Igreja schopenhaueriana, implantada pelo próprio mestre2 • Todavia, à margem, florescem discípulos livres8 , d estacando-se Edouard von Hartmann, que publica, em 1869, sua Filosofia do inconsciente. Esta dá lugar a uma violenta polêmica, que não passa de um fato curioso da história das idéias: constitui o indicio direto do estabelecimento de uma problemática cujo desafio de fundo é a questão das relações da ciência com a filosofia. Se é necessário remontarmos a essa problemática, é porque é sobre ela que, no final dos anos 1860, Freud parece engajar seu próprio desafio teórico. Curiosamente, é a esses debates longínquos que parece tomar de empréstimo sua linguagem. Surgindo depois do deserto metafísico que se seguira à morte de Hegel, habitado apenas por um notável desenvolvimento dos trabalhos históricos\ Hartmann ousa retomar esse 199
discurso metafísico tão radicalmente proscrito com a invasão das ciências da natureza. Mas não temos aí um retorno puro e simples. Hartmann alimenta o projeto preciso de superar a antinomia da especulação filosófica e do saber científico que se havia cristalizado com a renegação do hegelianismo na Alemanha, e do qual Schopenbauer era um apóstolo precoce. A polêmica dos anos 1870, versando, para além das querelas sobre o pessimismo, sobre esse debate epistemológico de fundo, constitui, pois, um revelador privilegiado das clivagens doutrinais precisas e comp]exas que se instauram tão bem, que Freud parece ainda preso a elas. Face à tentativa bartmaniana de superar o divórcio entre ciência e especulação, associando generosamente toda a metafísica alemã e a mais avançada ciência, esboçam-se duas atitudes opostas: a) A dos metafísicos, hegelianos ou schopenhauerianos, que denunciam a transação metafísica e o ecletismo doutrinai, representados pela reconciliação dos dois inimigos, e defendem a letra do sistema - o que vale, notadamente a Hartmann, ser excomungado definitivamente da Igreja schopenhaueriana5 • b) A dos fisiologistas positivistas e materialistas que, sem dificuldade, recusam a base pseudocientífica do sistema e o emprego ilícito de fatos para alimentar o delírio especulativo, ao passo que, simultaneamente6, cria-se uma corrente eclética para sustentar Hartmann7 • Cria-se, assim, um inventário de posições metafísica, cientificista e eclética, sendo que a primeira vitória da polêmica foi a de fixá-lo claramente. A verdadeira vitória, porém, encontra~se alhures, embora mais difícil de cernir; nesse momento, uma quarta atitude8 , mais complexa, emerge. À luz da tentativa hartmaniana, manifesta~se uma recusa da especulação, de fundamento cientificista, ligada a um interesse especifico pela metafísica específica de Sclwpenhauer. :E. essa atitude secundária, elíptica, que convém cernir, porque corre seriamente o risco de fornecer, em sua fonnulação complexa, a chave da atitude freudiana em relação à ciência e à filosofia, pela mediação de Schopenhauer. A fim de cernir essa atitude, podemos utilizar as informações fornecidas por D. Nolen, tradutor francês de von Hartmann: "Desde que a grande voz de Hegel e de Schelling deixou de se fazer ouvir, escreve em 1877, parecia que a palavra, na Alemanha, estivesse apenas com as ciências da natureza. E a
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popularidade tardia, mas relativamente restrita da escola de Schopenhauer, era devida, em parte, ao fato de afastar-se, menos que as outras, dos métodos e das conclusões da ciência positiva"9 • Por sua vez, Albert Lange, autor dessa História do materialismo (1873) que constitui a melhor síntese sobre a visão e o estado da ideologia científica nessa época, assinala, em seu tomo li, a existência de um "movimento um tanto artificial em favor da filosofia de Schopenbauer"Hl: "Deve-se destacar aqui, especialmente a acolhida apressada dos naturalistas que, achando insuficiente o materialismo, ligaram-se, em sua maioria, a uma concepção do mundo de acordo, em pontos muito importantes, com a de Kant". Assim, sob dois enunciados diferentes, é o mesmo fenômeno ideológico que, ao vivo e com a distância mínima, é atestado por dois observadores bem informados. Todavia, onde NoJen faz apenas descrever esse efeito da filosofia de Schopenhauer (afastar-se, " menos que os outros", das aqui· sições e do espírito científico), Lange esboça uma explicação preciosa para nosso propósito: o neo-kantismo de Schopenhauer aparece como substitutivo das "insuficiências" - ou da insuficiência - do materialismo. Tal é esse movimento de aliança entre o naturalisnw e a /ilosofia de Schopenhauer, aparentemente paradoxal, monstruoso, "artificial" (segundo Lange), mas fato de extraordinária importância que deve ser compreendido. Teria sido por acaso que o materialista Büchner escreveu um artigo sobre Schopenhauer, onde declara que ele "deve exercer uma poderosa influência na marcha de nosso desenvolvimento atual" 11, e que a ciência pode aí encontrar materiais úteis? Paralelamente, Ribot, na França, descobria no artigo de Challemem-Lacour sobre Schopenbauer, publicado na Revue des Deux Mondes, o princípio de seu cerebralismo, e dedicavalhe um estudo completo1:.!. Será ainda por acaso que D. F. Strauss, em A alianÇa e a nova fé, breviário de materialismo, apoia~se ao mesmo tempo em Lange e em Schopenhauer para sustentar que "o materialismo e o idealismo se interpenetram e, no fundo, formam apenas uma oposição comum ao dualismo", mesmo afirmando a necessidade de se partir do materialismo, "grau mais natural, mas também o mais elevado de nossa concepção do universo"?1 3 Esses exemplos, entre outros, atestam a instauração de um paradigma ideológico preciso.
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2.
A PROBLEMATICA DO NATURALISMO POSITIVISTA COMO MATERIALISMO AVILTANTE: O ENCONTRO COM FREUD
Trata-se de estabelecermos, agora, como Freud pôde encontrar em seu caminho esse paradigma e assimilá-lo. Porque não se trata apenas de encontrar intuitivamente seus traços no discurso freudiano, pois devemos mostrar sua necessidade e seu uso preciso. Quando Freud se inscreve no Instituto de Fisiologia, em 1876, vê-se integrado ao grupo dos fisiologistas materialistas e positivistas convictos. É interessante constatarmos que seu impacto obrigou o romantismo da Naturphilosophie do jovem estudante a converter-se em cientificismo positivo. :B sabida a sedução exercida pela concepção panteísta de Goethe sobre o jovem Freud. Ora, esse texto evoca uma natureza ditatorial "Obedecemos às suas leis, mesmo quando lhes resistimos, agimos com ela mesma, quando acreditamos desafiá-la"; inefável - porque, sem "linguagem nem discurso", ela "cria ünguas e corações a fim de sentir e de falar"; totalitária- "ela é tudo", "inteira e acabada", ''uma e sempre a mesma em sua diversidade"; sujeito de todos os predicados os mais opostos. Esse monismo se converte em estrita exigência da Naturwissenschaft, que postula a explícação fisioquíroica na ciência dos organismos. Não é por acaso que, mais tarde, insistindo na essência da psicanálise como Naturwissenschaft, Freud sempre cita a física e a química como analogia. Em seus trabalhos sobre a estrutura do sistema nervoso, é essa concepção que Freud interioriza a título de habitus científico. Emst Brücke, o primeiro mestre de Freud, não havia criado, com Du Bois-Reymond e Helmholz, esse grupo da Berliner-Gesellscbaft ( 1840-1846), animando por um verdadeiro "espi:rito de ciuzada"14 cientificista? Essa assimilação dos métodos, durante seis anos, fazia-se acompanhar, pois, de um profundo aprendizado doutrinai. Podemos considerar o texto da exposição de Du Bois·Reymond Sobre os limites do conhecimento como resumindo a forma mais avançada da ideologia científica dessa corrente, em 1872, no momento, pois, em que Freud vai encontrá-la. Aí encontramos expressas ao mesmo tempo a recusa de toda teoria filosófica e a consciência clara dos limites do conhecimento científico da naturezan. Assim, o cientificismo o mais radicalmente positivo, acomoda-
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se a uma espécie de agnosticismo grwseológico, colocando fora da alçada do conhecimento a questão da natureza da matéria. O materialismo é, aqui, uma forma espontânea da prática científica que recua diante de sua formulação doutrinai. Um pequeno fato vem atestar que Freud assimilou essa forma de materialismo: Jones conta que ele foi, "durante certo tempo, radicalmente materialista", a ponto de defender numu militari sua convicção contra seus detratores - na ocorrência, Victor Adler, o futuro líder social-democrata16• Mas ele se acomoda a um materialismo metodológico. Helmholz, que Freud designa como "um de seus ídolos", em 18831'1 define a matéria, em sua grande obra sobre A conservação da fqrça, como a abstração ou convenção científica, com a ajuda da qual ..a ciência considera os objetos do mundo exterior ( ... ) sem se preocupar com sua ação sobre outros objetos ou sobre os órgãos dos sentidos". Mas isso não é tudo: tal concepção penetra na psiquiatria da época. Assim como Brücke constrói, em suas Uções de fisiologia, uma mecânica precisa, Meynert, mestre de Freud a partir de 1883, aplica esse método em neurologia, como se pode notar em O sistema de projeção ao qual ligou seu nome18• Assim, perpetua-se a mesma cadeia ideológica na formação de Freud; através de Fecbner, é ela que irá desabrochar-se em O esboço de psicologia científica.
Por outro lado, porém, nesses anos, como vimos (cf. introdução), persiste a ambição especulativa. Como conciliar isso com o cientificismo rigoroso? Onde situar essa frase, lançada à sua noiva, em 1882, em plena aprendizagem cientificista: "Todos os dias a filosofia me fascina mais"19? O que fazer das declarações de amor à filosofia que impregnam a correspondência com Fliess (ver introdução e cap. 111)? Deveríamos falar de uma clivagem entre o Freud secreto e o Freud de seu tempo se, justamente, não tivéssemos evidenciado um modelo dessa contradição. A fim de nos prepararmos para vê-la agir em Freud, devemos desvelar a paradoxal inclinação à especulação que descobrimos por detrás dos mais convictos apóstolos cientificistas. Percebemo-la bem em Fechner. Antigo discípulo de Schelling, discípulo do Zend-AvesUr0 , acedeu a uma mecânica atomística em nome da qual, segundo a expressão de Lange, dirigiu "à filosofia uma carta de repúdio". De um panpsiquismo inicial, 203
passou a uma concepção rigorosa da quantificação da vida mental, que culmina na psicofísica. Na Selbstdarstellung, Fechner figura significativamente ao lado de Schopenhauer e de Nietzsche21 • E evocado como pensador (Denker); de fato, é essa realidade original que nasce nessa época. O Denker também é pesquisador (Forscher). Possui o sentido do positivo que o torna semelhante ao sábio, mas traz em si essa exigência especulativa que faz dele o herdeiro e a superação do Philosoph desacreditado desde Hegel. Como Herbart, é o tipo do Selbstdenker - pensador autônomo. Da mesma forma , um homem como Meynert é, como observa Jones, "muito influenciado por Kant e Schopenhauer e muito versado em filosofia" 22 • O .associacionismo de Herbart, que influencia todas essas correntes psiquiátricas, demonstrou o uso prático do kantismo. ~ o que se nota no psiquiatra Griesinger: partidário de um cerebralismo muito estrito, inimigo de toda especulação romântica, "fugia, com horror, do risco de ver-se qualificado de materialista e rejeitava a filosofia de 'materialismo banal e vazio' " 211 • Ainda aqui, o positivismo se liga a um agnosticismo que, simultaneamente impulsiona Griesinger para Schopenhauer. Com Meynert, ele serve de intermediário entre a forma ffsica e fisiológica, e a forma psicológica do modelo schopenhaueriano (combinado ao modelo herbartiano) . R econhecemos o casamento, difundido nessa geração2 \ entre a orientação filosófica neokantiana e os trabalhos científicos colocados sob o signo da psicofisiologia materialista. Isto é conforme ao uso do kantismo, cujo uso subjetivista foi mostrado por Lange na ciência do século XIX. Sobre esse fundo, a filosofia de Schopenhauer apresenta a dupla vantagem de conservar o kantismo como ponto de vista geral e de investir suas aquisições em proveito de uma concepção organicista, apoiada nos dados científicos ou por eles reinfundível ( réinfusable). A posteridade especulativa de Kant, Fichte-Schelling-Hegel, opõese sua posteridade experimental; donde a trilogia: Kant-HerbartSchopenhauer. :É compreensível que Freud, iniciando sua própria construção nesse momento, trabalhe nesse plano geral. Como diz em 1937, por ocasião da morte de Joseph PopperLynkeus, "O que podia nos fornecer a ciência da alma, nas escolas filosóficas dominantes, era verdadeiramente insignificante e inutilizável para nossos objetivos; tínhamos que desco204'
brir os métodos inéditos apropriados aos postulados teóricos"26• Todavia, nesse deserto, a filosofia de Schopenhauer constitui exceção. 3.
O MANIFESTO DA ALIANÇA DA METAFíSICA DE SCHOPENHAUER E DAS CIENCIAS DA NATUREZA: A VONTADE NA NATUREZA
De que natureza é essa síntese entre as aquisições científicas e a filosofia proposta por Schopenhauer? ~ o que podemos julgar precisamente segundo uma obra surgida em 1836, A vontade na natureza, com este eloqüente subtítulo: "Exposição das confirmações que a filosofia do autor, desde o momento de seu aparecimento, recebeu das ciências empíricas". Tratava-se, com efeito, de mostrar, num amplo panorama, como o desenvolvimento da fisiologia (animal e vegetal), da patologia, d a anatomia comparada e, mesmo, da astronomia física e do magnetismo animal2e, desenvolvia o "grande e único pensamento" de O mundo como vontade. Em 1854, surge uma nova síntese. E é justamente nessa obra desconhecida que vamos encontrar o manifesto de aliança. O naturalismo podia, com efeito, encontrar no, Prefácio de 1864, uma crítica veemente ao hegelianísmo que só podia satisfazê-lo: o autor aí se pergunta como "o insolente Hegel, escrevinhador e autor de inépcias, pôde lançar descaradamente, no mercado, as mais monstruosas fantasias e passar, assim, na Alemanha, durante trinta anos, como o maior dos filósofos"27• Tal denúncia "desses senhores da profissão filosófica" não podia deixar de dirigir-se a seus leitores cientistas. A esta fHosofia de escola, de que uma das características era a exclusão da matéria científica, ele opõe sua própria filosofia, fundada ao mesmo tempo no kantismo e nas ciências positivas. essa grande aliança que Schopenhauer propõe aos sábios. O que ele quer, é apenas comentar seu principio, descobrindo, pelo dado científico, a objetividade metafísica: "A obra, escreve, reveste uma importância particular para minha filosofia; realmente, parto dos dados puramente empíricos, das observações feitas por naturalistas que, livres de todo preconceito, seguem o fio de suas pesquisas em seu domínio próprio; e chego, aqui, diretamente ao cerne de minha metafísica"28•
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Vê-se a originalidade da atitude de Schopenhauer em relaçã~ às ciências: n~o exige do naturalista opção metafísica ~révta. A regra do JO~O requer, pelo contrário, que ele seja hvre todo preconceJt~, posto que, ao seguir o fio de suas pesqu•~as en;t seu domfnto próprio, ele deve chegar, por uma necesstdade melutável, ao cerne de sua metafísica. Não dissimuM la, é verdade, que, "ao evidenciar seus pontos comuns com as ciências da natureza", tem em vista fornecer "a verificação de conta de (seu) dogma essencial", a fim de dotá-lo de "fundamentos ~mito .mais sólidos", d.a "clareza" e da "precisão" que o tornarao umversalmente ace1to. Também está convencido de que a pesquisa científica, entregue a si mesma, está condenada a "~m materialismo tão grosseiro quanto estúpido". Mas nem por 1sso se trata de corrigir a ciência pela metafísica. Nem tampouco se t!~ta. de int~rrogar-se ~obre, as. condições de possibilidade da ctencJa, a ftm de eleva-la a dtgnidade teórica, como Kant em Os primeiros princípios da metafísica da natureza. Trata-se de restituir as ciências à sua realidade positiva bruta, para se descrever seu encontro com a verdadeira metafísica. " O objetivo da obra, diz a introdução de 1836, é o de comumcar certas confirmações que ela (a filosofia de O munM do. : . ) re.cebeu dos espíritos empíristas e sem prevenção, dos quais era Ignorada, e cuja pesquisa, orientada unicamente para o conhecimento experimental, levouMos afinal a descobrirem . doutrina definiu como sendo ' o elemento ' o que mmha metafísico que forn:ce a chav: de toda experiência"2D. Assim, Schopenhaue_r. nao se pr?p~e a contrabalançar o empirismo por uma metafts~ca que SeJa Im~ortada do exterior e exerça uma ação nor~ahva; ~el~ .contráno, ~onsidera o empirismo como a garanti.~ d? obJetiVIdade, ~xpenme~ta_l. A independência recíproca da CJencta e da metaftSlca constttut a garantia da unidade final na qual se abole o "hiato entre (os) resultados (metafísicos) e a experiência". "Minha metafísica, diz de modo muito significativo Schop~nhauer, afi~ma-se, pois, como a única a possuir uma fronteira verdadeiramente comum com as ciências físicas". PorM tanto, as ciências físicas são realmente distintas da metafísic.a, ~ambém um saber autônomo, mas se avizinham dela. Essa tdé~a .da ~"fronteira" .P~rmito:nos recusar ao mesmo tempo a ass~m1laçao e a opostçao, p01s é o ponto de contato inevitável o hmite que as ciências. da natureza atingem ."por seus próprio~ ,
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meios". Mas isto revela a orientação teleológica que as fazem "vir ao encontro" da metafísica e constituir "realmente a junção com ela". Essa "harmonia", porém, de forma alguma se faz por assimilação de viva força ao a priori metafísico: "Esse resultado não é obtido fazendo violência às ciências empíricas para dirigi-las para a metafísica". No entanto, podemos objetar que, em última instância, é uma assimilação que se verifica, pois é na conta da metafísica que são depositadas as aquisições científica s. Mas não se trata, como no modelo schellinguiano da NalurplzHosophie, de abstrair, em segredo, a metafísica das ciências da natureza, a fim de fazê-la encontrar, a priori, o que elas haviam ensinado a posteriori. De forma alguma devemos confundir os dois registros; é somente depois que "os dois domínios se encontram, e sem entendimento prévio". Se o entendimento é premeditado, como em Schelling-'1°, as ciências perdem todo valor metafísico probatório; é por isso que é essencial que as confirmações sejam "provenientes do exterior". e por esta razão que ele tem o cuidado de assinalar que elas "apareceram no decorrer dos anos, depois da publicação de (sua) obra, mas sem o menor vínculo com ela", pois constituem seu "testemunho exterior"81• Com isso, Schopenhauer tem a ambição de conseguir o casamento do sistema filosófico e do mundo: "Diferentemente dos outros, meu sistema não permanece suspenso no ar, muito acima de toda realidade e de toda experiência, mas desce até o solo firme da realidade, onde as ciências da natureza vêm assumir o espírito ávido de saber"82 • A "física" é o verdadeiro correlato da "metafísica". O fato de isto ser apenas uma forma requintada de apologética metafísica, pelos fatos, não deve levar-nos a ignorar o que podia lançar o naturalista nessa representação. Inicialmente, ela exprimia sua aspiração a subtrair-se do " materialismo grosseiro" pelo qual se sentia ameaçado, mas sem colocar em questão sua independência e seu método de observação. Ela prometia ao sábio uma grande saída especulativa, mas sem obrigá-lo a renunciar seu positivismo; este era, ao contrário, aprofundado. Ademais, seu agnosticismo tom ava-se reconhecido: "A física - portanto, a ciência da natureza pura e simplesmente - chega necessariamente, em todos os seus ramos, seguindo seus próprios caminhos, a um ponto extremo onde suas explicações pararo: é o domínio metafísico, que somente ela reconhece como seu limite intransponível, onde ela pára e,
207
doravante, deixa seu objeto à metafísícah33• "é o que de boni grado reconhecem Helrnholz ou Du Bois-Reymond. Ele formulava, assim, a metafísica do limite agindo no cientilicísmo naturalista. Um passo a mais, e alguns puderam legitimar a adoção da metafísica schopenhaueriana como "correlato" normal da física positivista. Sem chegar, contudo, a essa posição limite, era tentador pensar nesse esquema, sem subscrever diretamente o dogma da Vontade. E foi assim que surgiu esse scbopenhauerismo eclético, cuja inspiração diagnóstica ele mesmo mostrou: "O espírito do tempo amadurece e vem ao encontro de minha filosofia, e vejo, com alegria no coração, as ciências empíricas, poucos suspeitas de parcialidade, testemunharem pouco a pouco, no decurso dos anos, em favor de minha doutrina"34. Essa estranha união, proposta por um filósofo heterodoxo aos sábios, contra os "filósofos de profissão", foi efetivamente atada. Que tal movimento seja "artificial", segundo o diagnós· tico de Lange, é o que decorre da contradição em que vivia a ciência positivista3~. Tendo rompido com toda teorização suspeita de hegelianisrno, maldito a filosofia e definido sua (delas) identidade contra a filosofia, as ciências da natureza vinham encontrar, na metafísica "aberta" de Schopenhauer, amadurecida no deserto e ressurgindo ao mesmo tempo que elas triunfavam, uma espécie de réplica invertida de sua própria proble.. mática. Entre o interdito formal lançado contra a velha meta~ física, e a metafísica espontânea que chocavam secretamente, eis que se ofereceria aos sábios uma metafisica que afirmava, como condição prévia, seu próprio contrário: o real em sua positividade nua. Eis que eles eram deixados em sua casa, em sua província científica, embora lhes fosse revelada uma fronteira comum: limite ~Wo transgressível fornecendo a imagem da transgressão. Fronteira interditando e solicitando simultaneamente a passagem.
4.
AS QUATRO TESES FREUDIANAS: FREUD E VON HARTMANN
E esse modelo que Freud vai reinvestir. Isto se tornou inicialmente possível pelo desenvolvimento extraordinário do embaraço, para Schopenbauer. Enquanto que estudos de conjunto fazem uma análise alentada de sua doutrina 208
(Kuno Fischer, em l893U e Johannes Volkelt, em 1900)*1, um novo movimento se forma após a extinção da primeira geração dos discípulos. Em 1911, Paul Deussen -já vimos o interesse demonstrado por Freud a seu respeito - fundou a "Scbopenhauer-Gesselscbaft" que muito realizou para polarizar a vida intelectual de uma parte ativa da intellígentsia européia em tomo da obraas. Por conseguinte, a energia especulativa freada de Freud vai encontrar aí um caminho de escoamento perfeitamente legitimado por um modelo já antigo, combinando a rocha especulativa com a busca especulativa. Entre 1910 e 1920, notadamente, segundo as etapas já delineadas no capítulo precedente, Freud vai reinvestir plenamente, com Schopenhauer, esse modelo pré-fabricado nos anos 1870, utilizanda.o para seu uso próprio. E por isso que: 1) Freud recusa radicalmente a metafísica pura e sua pretensão de universalidade e de autononnatividade, seja por recusa, seja por um silêncio desprezível: Hegel permanece, para ele, a encarnação dessa metafísica; 2) Mas não se contenta com um cientificismo seco, pois reserva à especulação uma função necessária, seja como ele· menta integrante da ciência analítica (como metapsicologia), seja como presença fronteiriça, que atestam as referências filo-
sóficas; 3) R ecusa toda solução eclética, que seria ao mesmo tempo a morte da ciência e da filosofia: é a recusa do modelo hartmaniano; 4) Só a filosofia schopenhaueriana fornece, com a satisfação da necessidade metafísica, o antídoto positivo. Suas antecipações de conteúdos científicos (analíticos) derivam da "formação de compromisso" que ela representa3~.
5.
O SENTIDO úLTIMO DO PROBLEMA: O AGNOSTICISMO GNOSEOLOOICO
Resta a ser determinado o sentido, em última instância, dessa escolha, feita pelo naturalismo freudiano, da metafísica schopenbaueriana. Vimos tomar corpo, inegavelmente, essa aliança, baseada no fundamento do ganho positivo que ela tornava possível. Mas até isso deve ser derivado de um interesse
209
fundamental. Convém, pois, respondermos à questão decisiva: que interesse te6rico de fundo a referência a Schopenhauer permite satisfazer? A solução deve ser encontrada lá onde se d,efine a identidade do sistema referencial. Ora, no livro I de O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer a define como superação simultânea do materialismo e do idealismo, com a ajuda da aquisição kantiana. Schopenhauer contrapõe "a filosofia que parte do objeto para dele deduzir o sujeito" e "a doutrina oposta, que toma por princípio o sujeito e se esforça por tirar dele o objeto"40• ''A marcha de m~u pensamento ~e distingue toto genere dessas duas observaçoes opostas: nao pàrto, nem do sujeito nem do objeto tomados separadlllll:ente, mas do fato da representação, que serve de ponto de partida a todo conhecimento, e tem por função primitiva e essen~iat o desdobramento primitivo do sujeito e do objeto". Asstm, o "representacionismo'' oriundo de Kant, tem por efeito recusar,
como abstrações unilaterais, o materialismo, pecado contra o representante, e o idealismo, vazio do representado. O ponto de vista "representacionista" parece reconciliar a forma e o ~on teúdo, respectivamente hipostasiados pelas duas doutnnas opostas. Desse ponto de vista, é interessante a posição em relação ao materialismo: ele reconhece que "a filosofia objetiva, quando se apresenta sob a forma do materialismo puro, é, do ponto ~e vista do método, a mais conseqüente de todas, aquela CUJO desenvolvimento pode ser o mais completo" 41• T odavia, ~eu "absurdo intrínseco" consiste "em tomar como ponto de part1da um elemento objetivo" puro: "a matéria considerada in abstracto", "suprimindo ( ... ) a relação da matéria com o sujeito", do qual ela "extrai sua única re~l~~ade". Mas é um ~ment_? útil para se manifestar a impossJblhdade de u?'l~ pos1çao umlateral. Correlativamente, ele recusa o matenahsmo absoluto que "procura descobrir um estado primi~ivo e ele~en~ar da matéria" e " não se dá conta de que, ao aftnnar o ma.tS Simples objeto, afirma, pelo fato mesmo, o sujeito"42• O objetivo de Schopcnhauer é claro: ao mostrar a destruição, um no outro, do objetivismo e do subjetivismo, obriga a busca da "essência íntima do mundo como coisa em si, não mais em um dos termos extremos da representação, porém em um elemento que difere dele em todos os aspectos": a Von~
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tade.a. Mas o que o naturalismo cientificista deve descobrir aí? Qual o sentido íntimo desse recurso? Como ele se concilia com a idéia segundo a qual "o objetivo real ( ... ) de toda ciência natural é uma explicação materialista das coisas, levada tão longe quanto possível", portanto, segundo a qual "da ininteligibilidade reconhecida do materialismo resulta ( ... ) que nenhuma ciência ( ... ) está em condições de fornecer uma explicação total da realidade"?U ~ o agnosticismo que é comum às duas posições. Dizer que a ciência "não poderá penetrar até a essência íntima do mundo", só podendo fornecer "a relação entre duas representações", deve agradar aos sábios mais posi~ tivos dessa corrente que parte de Helmholz e de Du BoisReymon. Isto acarreta a destruição do idealismo e do materialismo pela descoberta de um ponto de vista superior permitindo à prática negar sua contradição fntima entre o materialismo espontâneo e a recusa do materialismo "grosseiro". Assim, o agnosticismo naturalista encontrava, na posição de Schopenhauer, a crítica ao materialismo como metafísica que possibilitava simultaneamente a importação, no buraco deixado por sua exclusão, de uma espécie de metafísica clandestina. Esta se caracteriza por sua extrema generalidade. Em suas M emórias, Binswanger faz esta observação interessante: "o que o próprio Freud chamava de filosofia ou filosófico, geralmente se assemelhava com aquilo que o leigo entende por isso, vale dizer, a pura especulação sobre as coisas últimas"4l>. Mas essa acepção elementar do conceito de metafísica vem do fato de designar, no sentido estrito, esse além da investigação científica, "tudo o que tem a pretensão de ser um conhecimento ultrapassando a experiência", segundo a definição de Schopenhauer48. Em resumo, Schopeohauer estabeleceu com o naturalismo, atacado de materialismo, a linguagem de sua contradição vivida, denunciando as dificuldades da "ciência da natureza" que, "erigida em filosofia", "apresenta-se como uma explicação materialista das coisas"; e diz que, "mal nasceu, o materialista traz em seu seio um germe de morte". ''Não há mais esperança de se atingir o ponto de chegada da ciência senão encontrando seu ponto de partida" ; mas sua validade não é posta em questão. O cientificismo pode, pois, satisfazer-se com esse neokantismo e com seu representacionismo; aliás, sobre esse ponto, é surpreendente como a argumentação schopenhaueriana se assemelha com a filosofia da representação de Reinhold, pri-
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meiro discípulo de Kant. Separada de sua saída voluntarista, ela é diretamente utilizável por esse "materialismo sem matéria". Ora, Freud vai mais longe: à utilização do modelo epistêmico de Schopenhauer, na tradição do positivismo naturalista, insere um segundo investimento, repousando na evidenciação de um registro supra-representativo : a pulsão. Donde a sobredetermínação de seu scbopenbauerismo. Ao acumular tais usos, afirma sua identidade intelectual de sábio, ao mesmo tempo que afirma sua diferença. Percebemos o alcance dessa aliança feita entre Freud e Schopenhauer; devemos, no fmal dessa longa análise, ter renunciado a ver nela apenas um acidente, explicável por certa inclinação secundária. Este filósofo, pária da filosofia dominante, simultaneamente satisfaz a desconfiança cientificista em relação à filosofia instituída, aliada tradicional do dogmatismo, e permite realizar a função especulativa fora dela mesma. Uma passagem precisa de A vontade na natureza fornece o sentido global da referência filosófica freudiana e possibilita condensar todas as aquisições da pesquisa precedente. Schopenhauer observa que a ciência da natureza se choca com um elemento "face ao qual suas investigações param, e que suas explicações pressupõem", e que ela designa, "por termos como força natural, força vital, instinto vital etc., que não têm mais sentido que X, Y ou Z"4 T. "Mas ocorre que, excepcionalmente, um pesquisador, particularmente perspicaz e atento no domínio da física, chega a lançar, secretamente, um olhar por detrás da cortina". Nessa irreconhecível declaração, reconhecemos o estatuto epistêmico do conceito rnetapsicológico. Nessa "olliadela sobre o domínio metafísico", fulgurante e íluminador, reconhecemos o sentido da referência filosófica freudiana. "A 'física' (isto é, a ciência), assim favorecida, comenta Schopenhauer, designa expressamente a fronteira que acaba de explorar como sendo o elemento de que um sistema metafísico, totalmente desconhecido dela, nesse momento, e tirando suas razões de um domínio imeirameme distinto, constituiu a essência íntima e o princípio supremo de todas as coisas; estas, para ele, não passam de fenômenos, vale dizer, representações". Temos aí a impressão extraordinária de ouvir Scbopenhauer comentar a démarche freudiana; o fato é que a referência freudiana aos filósofos, e em especial a Scbopenhauer, responde exatamente a esses requisitos. Reconhecemos ai todos os el~ mentos dos "comunicados filosóficos" de Freud: a vontade de 212
manter-se no plano fenomenal; o estabelecimento do limite, declarado; o cuidado em afirmar que o sistema visado era "to~ talmente desconhecido" e descoberto a posteriori, através da analogia; a manutenção da heterogeneidade dos domínios; e, finalmente, a legitimação do olhar "lançado, secretamente, por detrás da cortina", exatamente antes que esta caia e traga as trevas. Este é o sentido da antecipação filosófica da verdade analítica; compreendemos que ela faça parte do enunciado mesmo dessa verdade. E a consagração pelo encontro da verdade científica consigo mesma e sua alteridade metafísica. Uma metáfora de Schopenhauer exprime muito bem o que se passa: é o momento em que "os dois pesquisadores" (cientista e filósofo), após terem trabalhado longo tempo, cada um por seu lado, nas trevas subterrâneas, tais como "dois mineiros ( ... ) vindos de longe para as entranhas da terra, cavam sua galeria para o encontro um do outro", "tendo por guias apenas a bússola e o prumo", "vêem chegar esse minuto de alegria tão desejado, em que cada um ouve a batida do outro". Isto exprime muito exatamente o sentido da referência filosófica freudiana, traduzindo o eco metafísico de suas teorias antecipando e legitimando, mas eco breve e distante tanto quanto necessário. o momento, diz Schopenhauer, em que "eles reconhecem que acabam de atingir o ponto de contato tão longa e vãmente procurado entre física e metafísica, as quais, como o céu e a terra, jamais queriam encontrar-se". É essa "reconciliação" da terra científica e do céu especulativo, mas vista da terra firme, que se reatualiza em cada um dos encontros de Freud com tal filósofo e com toda a filosofia. Tudo se passa, pois, como se Freud fizesse, em sentido invertido, o trajeto de Schopenhauer. Aquilo que, visto de um lado, consagra o ''triunfo" do sistema especulativo, dotando-o de " uma prova exterior tão forte e satisfatória de sua verdade e de sua exatidão", do outro, conclui a tese científica pelo resumo especulativo, jamais fechado em sistema, portanto, sempre necessário e reatualizado. Mas não é complemento. Neste sentido, o discurso científico não tem necessidade dele. O sistema especulativo é um eco que, ao repercutir, do outro lado da fronteira, o dizer científico pela palavra filosófica, preenche-o com sua substância; e que, ao repetir, realiza.
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NOTAS
1. A explicação deve justamente dar conta do caráter esotérico da escolha de objeto filosófica freudiana. 2. É o titulo como o próprio Schopenhauer o entronizou: ver a carta de 28 de janeiro de 1854, em Schopenhauer et ses disciples, de A. Bossert, Hachette, 1920, p. 186; ele o chama também de seu "apóstolo" (carta de 19 de setembro de 1853, p. 184). Esteve associado à sua obra desde 1846, vulgarizou sua obra em suas Cartas sobre a filosofia de S chopenhauer ( 1854) desempenhando, assim, o papel que Reinhold havia desempenhado para Kant- e editou suas primeiras obras completas em 18731874. 3. O mais célebre foi F. Nietzsche, que leu o L e m onde ... em 1865; para o confronto desses dois discípulos livres de Schopenhauer, que foram Freud e Nietzsche, ver a obra a surgir depois desta, Freud et Nietz;sche, na mesma coleção. 4. Ilustrado pelos nomes de Brandis, Erdmann, Prantl, Uberweg, Zeller, K. Fischer: a historiografia é o meio de se manejar os sistemas sem confiar em nenhum, e dedicar-se à inteligibilidade filosófica. 5. Cf. notadamente O exame do evolucionismo hegeliano, de M. v. Hartmann, Conforme os princípios de Schopenhauer, de Bahnsen (1872) e A s novas cartas sobre a filosofia de Schopenhauer, de Frauenstãdt ( 1876). 6. Cf. A ciência contra a filosofia, de Stiebeling; O grito de desolação do bom senso, de J. C. Fischer; O princípio do realismo, de Kh·chmann - outros tantos títulos significativos. 7. Cf. Taubert, A filosofia contra as pretensões da ciência (1872 ). 8. Na verdade, essa quarta atitude não se situa no mesmo plano que as outras; trata-se de uma espécie de formação ideológica clandestina que passa nos discursos sem se formular distintamente enquanto tal, e sem ter necessidade de fazê-lo, pois é secretada no curso da prática. 9. Introdução da trad. fr., 1877, pp. V·VL 10. Lange, op. -cit., t. 11, pp. 2-3. 11. Citado por Lange, op. cit., t. 11, 1ti parte, cap. 11, p. 108.
214
12. A filosofia de Schopenhauer, de Ribot. 13. Citado por Lange, t. 11, 4ª' parte, cap. 111, pp. 558-559. 14. E a expressão de Jones, op. cit., t. I, p. 45. 15. Pronunciada no Congresso dos Naturalistas e Médicos
alemães de Leipzig; conforme Lange,
16. 17. 18.
19. 20.
21. 22. 2~.
24. 25.
26. 27. 28. 29. 30.
t.
Il,
2~
parte, cap.
I, p. 150 s. Para ele, os átomos e o fenômeno de consciência constituem os dois limites intransponíveis da ciência. O agnosticismo psicológico é, pois, a outra vertente do agnosticismo físico. Conforme Jones, t. I, p. 48. Ibid., p. 46; carta de 23 de outubro de 1883. Teoria segundo a qual "a reunião de diversas fontes de impressões ( ... ) terminam por atingir as células do córtex e se encontram, assim, projetadas na consciência" (Jones, t. I, p. 411). Carta de 16 de agosto de 1882 a Martha Bernays. Gustav Theodor Fechner dá um exemplo significativo de articulação entre cientificismo e especulação permitindo mostrar, de certa forma, o modelo ideológico cernido. Físico ilustre por trabalhos sobre a eletricidade, o magnetismo e a ótica versado na química orgânica e inorgânica e em fisiologia, aborda, em 1839, um período especulativo caracterizado por uma curiosa doutrina panpsíquica, tendendo a superar o dualismo do espírito e da matéria; depois do que, funda a psicofísica (1860) e a estética experimental (1876). G.W., XIV, p. 86. Jones, t. I, p. 411. lbid. , p. 413. Wilhelm Griesinger (1817-1868): é um momento importante no progresso do tratamento afetivo das doenças mentais e na concepção cerebralista como fundamento de uma etiologia positiva. Fechner morre em 1887, Brücke em 1892, Helmholz em 1894, Du Bois-Reymond em 1896. Gedenkwort de fevereiro de 1937, Minhas relações com J. Popper-Lynkeus, G.W., XVI, p. 261. Este é o plano da obra. La volonté dans la nature, P.U.F., 1969, p. 51. Préjoce de 1854, p. 41. Op. cit., p. 59. É evidente que essa representação de Schelling é simpli-
215
ficada; ver Xavier Tillette, Schelling, une philosophie en devenir, t. I, Vrio, 1970. 31. P. 61.
32. 33. 34. 35.
P. 59. P. 59-60. P. 203. E que o próprio Lange não podia levar em conta, por causa de seu subjetivismo radical.
36. Vida, obras e doutrina de Schopenhauer. 37. Schopenhauer. Sua personalidade, sua doutrina, sua fé. 38. Notadamente pela irradiação do Schopenhauer-lahrbuchGesselschaft. 39. Hartmann tem por pretensão fornecer uma síntese metafísica definitiva do Inconsciente, depositando em seu crédito todas as aquisições metafísicas as mais antigas e as aquisições científicas as mais recentes. Apresenta seu sistema como "uma síntese de Hegel e de Schopenhauer, sob a predominância decisiva do primeiro, realizada segundo a orientação da doutrina dos princípios extraídos da filosofia positiva de Schelling". Todavia, esse "monismo abstrato" pretende tomar-se "concreto" por sua fecundação ''pelo realismo das ciências da natureza moderna". Assim, esse sistema metafísico pretende estar "finalmente fundado e construído sobre a base empírica constituída pelo método indutivo das ciências modernas da natureza e do espírito". De fato, isto leva a uma mescla metafísico--científica que compromete a autonomia das ciências. O método seguido por Hartmann é apresentado como indutivo ou "ascendente", porque consiste em remontar dos efeitos às causas. Mas é, antes, anagógico, porque se trata de iniciar o leigo, que "vive na região inferior dos efeitos" (Philosophie de l'inconscienl, introd., b, p. 9), ao princípio primeiro, à causa universal de onde deriva a totalidade do real: o Inconsciente. Porque na medida em que "o todo não se deixa abarcar de um só lado", "devemos tentar o empreendimento dos dois lados ao mesmo tempo" (op. cit., p. 13). Se somente a indução pode "explicar o mundo real e demonstrar aos outros suas próprias descobertas", somente a especulação pode "atingir os últimos princípios" e "a unidade sistemática". Donde a "divisa" que se dá, e a única "conforme à necessidade do tempo": "Resultados
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especulativos obtidos pelo método das ciências indutivas''. Donde, igualmente, sua pretensão de "submeter·se ao julgamento dos sábios bem como ao dos filósofos" (p. 15) : "Considero falsa toda especulação que contradiga os dados claros da pesquisa empírica"; por outro lado, porém: "Não poderia admitir a verdade das doutrinas, das teorias que, na explicação dos fatos estabelecidos pela experiência, estão em desacordo com as conclusões rigorosas que a pura lógica inspira à especulação". O princípio é o de seu mestre Schopenbauer. Mas uma diferença considerável de método aparece se comparannos A vontade no natureza e A filosofia do inconsciente. Enquanto Schopenhauer parte dos fatos fornecidos pelas ciências a fim de extrair seus materiais metafísicos, Hartmann opera um tratamento metafísico dos fatos. Assim, procede ao que ele mesmo chama de uma "fenomenologia do inconsciente". Trata-se de partir das manifestações principais do Inconsciente, na "vida corporal" ( t. I, 1~ parte), em seguida no "espírito humano" (t. I, 2:tl parte), para remontar ao cerne do próprio Inconsciente, como "o foco central para onde convergem, tanto os raios" (introd., p. 6) quanto as expressões fenomenais parciais: aí começa a "metafísica do inconsciente" (t. li), que consiste numa verdadeira ontologia: as considerações fisiológicas - sobre a medula espinhal, os gânglios, os movimentos reflexos, o organismo- são os meios de uma "indução metafísica". };; por isso que, com o tomo li, a d~marche se inverte, ou antes, se realiza. Hartmann se situa do ponto de vista do Um-Todo de onde tudo se deduz. O modelo hartmaniano, derivado do modelo schopenhaueriano, deve também aparecer como a expressão patológica aos olhos dos naturalistas que nele vêem o meio de preservar uma positividade efetiva. 40. Livro I, cap. 7, p. 60. 41. P. 54.
42. 43. 44. 45. 46. 47.
P. 63. P. 60. P. 56. Souvenirs. Le monde . .. , li, 298. La volont~ dans ICJ TIQture, p. 62.
Conclusão
Uma vez concluído esse percurso no discurso freudiano, e caracterizado satisfatoriamente o modelo que o faz agir, podemos fazer um rápido balanço de tudo. TrataMse menos ~e recusar as aquisições dessa pesquisa que de d~tectar a umdade desse fluxo que nos conduziu de um pólo ao outro da contradição, da recusa da filosofia a seu uso. Podemos constatar até que ponto cada estratificação temática aclara a precedente: a crítica do consdendalismo (cap. I ) e a recusa da Weitanschauung (cap. 11) encontraram seu fun damento no diagnóstico narcísico ( cap. IV, V); o limite da metapsicologia ( cap. Til) e~controu sua .chave na. prob~em~t!ca epistemológica final; a ambtção da análise do objeto ftlosoftco foi resolvida pela ambivalência do modelo epistemológico (cap. V, 2<:l parte). Assim, a posição freudiana revelou sua coerência ao mesmo tempo que o nervo da contradição que procura pensar. Simultaneamente, a explicação psicológica, sempre mais ou menos dominante nos ensaios precedentes sobre as relações de Freud com a filosofia, foi claramente ultrapassada pelo desafio ideológico. Vimos, com efeito, que a atitude de Freud de forma alguma é individual ou contingente, mas remete a um modelo ideológico preciso que a faz agir e que a reatualiza, como um protótipo, segundo suas modalidades próprias. Da mesma forma, 4
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a escolha de Schopenhauer se explica por um modelo preciso, e não simplesmente por certa afinidade pessoal acidental. Posto que vimos os diversos momentos se condensarem na referência filosófica, complexo compromisso entre as diversas exigências do projeto freudiano, trata-se de precisar seu mecanismo à luz de tudo o que precede, a fim de compreendermos como se realiza essa famosa formação de compromisso pela qual a filosofia se associa à psicanálise sem nela introduzir .a tenúvel deformação especulativa. Temos aí o revelador da eficácia filosófica em Freud. Levando-se em conta o modelo cemido no capítulo V da 2~ parte, que tipo de relação precisa a metafísica pode manter com a metapsicologin? Vimo-la associada à conquista da verdade metapsicológica ( cf. notadamente o exemplo da pulsão de morte e do conceito schopenhaueriano de instinto de morte, cap. IV da 2~ parte). Para compreendennos tal processo, devemos inicialmente atribuir à metafísica o papel de determinação da verdade metapsicológica: o enunciado metapsicológico não poderá constituir a importação de uma verdade constituída no elemento metafísico. Num determinado momento da pesquisa, porém, a verdade metafísica intervém no processo de abstração tornando possível a gênese da construção metapsicológica. Se a metafísica não completa, mas precisa a metapsicologia; se não determina o conteúdo, mas desempenha uma funç ão metapsicológica, podemos dizer que a verdade metapsicológica, embora guardando uma autonomia rigorosa, deixa-se decifrar na linguagem metafísica.
O CONCEITO DE "REPLICAÇÃO ESQUEMATJZANTE" Temos aí um tipo de relação inteiramente particular: tudo se passa como se a verdade metapsicológica se replicasse em seu alterego metafísico. Encontra nele uma reprodução sem igual, graças à intuição sintetizante que ela fornece. Por essa materialização na abstração, a verdade metapsicológica se dar a pensar. Podemos falar de "replicação esquematizante" para designar esse processo pelo qual a verdade metapsicológica projeta-se numa representação que fornece um substrato intuitivo à sua abstração, representação esta que não é uma simples ilustração, mas um momento necessário de sua constituição. 219
~ por isso que a metafísica não fornece nem garantia nem modelo, mas um reflexo isomórfico. Encontramos aí o princípio do "encontro", cuja concepção expusemos no capítulo IV da 2\l parte. Essa relação especular entre psicanálise e metafísica decorre do esquema agnóstico definido.
A PSICANÁLISE E SUA ROMA FILOSOFICA Donde a estrutura em eco da linguagem metapsicológica e da linguagem metafísica, dupla palavra de que não sabemos mais qual repete a outra. Donde a mescla fundamental da filosofia, que detectamos na forma desejante que estabelece. Entre o vasto desejo artístico, preso à sua autocracia, e o humilde desejo científico, assujeitado à lei do real, a filosofia parece aspirar a uma geminação da ordem do desejo e da ordem das coisas, por sua ambição de inteligibilidade. Parece promover a união do princípio de prazer e do princípio de realidade culturais num mesmo destino. Encarnaria, pois, essa síntese esperada entre os dois pólos do confronto do desejo com a realidade. O dizer filosófico, em sua absolutez mesma, é a tentativa e a tentação da unificação da linguagem do desejo e do mundo. Entre o desejo puro, evadido do real, e o desejo desencarnado pela exigência do real, ela é essa unidade sonhada, que Freud incessantemente afinna e recusa. Através dessa imagem da filosofia, é a relação de Freud com sua própria concepção que é objetivada; é a identidade conflitual de sua problemática que ele materializa. por isto que a filosofia é o objeto de investimentos contraditórios. Aparece a Freud como a homologia, no: espaço do saber e da cultura, dessa Roma perigosa, fascinante, annnciadora de harmonia, mas carregada de ameaças; lugar do interdito e do desejo; pólo de evocação, postulada com a condição de ser apenas entrevista, do qual nos aproximamos sempre, contanto que paremos a alguns passos1 •
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AS UÇ()ES TEORTCAS: PSICANÁLISE E COMPREENSÃO MATERIALISTA DO REAL As lições teóricas de nossa pesquisa estão inscritas em sua substância mesma. Não obstante. podemos reuni~las em dois
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temas principais, aparentemente contradit6rios, mas apontando, de fato, a contradição que a pesquisa nos obriga a pensar. Em primeiro lugar, ouvimos Freud lançar uma advertência solene a toda metafísica ou visão do mundo futuro que tenderia a reivindicar a psicanálise, seja como fundamento, seja como complemento. Ao fazermos reviver essa palavra tão bem soterrada por aquelas (palavras) mesmas que fazem Freud falar
o mais abundantemente possível e se exprimem através dele, é essa recusa que fornecemos para ser pensada, como uma das mais rigorosas tarefas, ao pensamento atual. Compreendemos bem: essa confusão é menos o fato de tal corrente determinada que o efeito de um tratamento que, desde cedo, trabalhou a problemática freudiana e perenizou-se sob múltiplas formas, na aparência, opostas. Lidamos aqui com uma generalidade ideológica cuja crítica deve permitir-nos reformular muitos problemas e dissolver muitos sofismas. ~ como propedêutica a essa tarefa que vale o presente trabalho. Entendamos bem, por outro lado: não se trata, levando-se em conta essa recusa determinada de Freud, de impor a alternativa rígida: ou renunciar os projetos anteriores, em virtude do interdito do mestre, ou excomungar-se da ortodoxia freudiana. A revelação do interdito não tem por efeito esvaziar, de repente, de toda validade, tudo o que a ele não se conforma, pretendendo conformar-se. O resultado, corretamente percebido, é mais circunscrito c mais determinante
ao mesmo tempo; trata-se de desengajar a psicanálise freudiana das tarefas de justificação ideológica em que está engajada enquanto pseudônimo teórico a todas as combinações ecléticas. Na inflação ideológica, que é uma das características de nosso presente teórico, o freuclismo é um desses referentes onivalentes que servem a tudo pensar ao mesmo tempo, a fim de dispensar o pensamento materialista do real. Ao restituirmos seu lugar e seus limites a tal referente, devemos limitar seu uso e, ao menos, diminuir a desenfreada pilhagem de sentido por ele causada. Refazer Freud falar pessoalmente, não significa estar animado por uma preocupação de purismo ortodoxo, mas por uma estratégia precisa: impor à confusão ideológica das palavras sobre o objeto, os limites da primeira produção da palavra-pretexto. 8 para isso que deve servir a história das idéias, concebida, não como uma simples elucidação erudita encontrando seu fim em si mesma, mas como descoberta do modelo que faz operar o
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discurso e constitui a competência das performances discursivas observáveis. Ora, esse retorno, instruído sobre a primeira palavra, forneceu-nos o segundo ensinamento fundamental: ao remontarmos, em nossa arqueologia do discurso freudiano, à sua fonte secreta, e ao construirmos, baseados nas recorrências discursivas e na racionalidade histórica da arqueologia, o modelo que é seu motor, vimos a própria palavra freudiana retomar, sob uma forma distinta, na aparência, o uso que ela havia tão claramente denunciado. Simultaneamente, porém, vimos essa retomada defasar seu referente, e assistimos à produção de um tipo de relação com a metafísica forjado expressamente para exorcizar a contradição. Por isso, o uso freudiano da metafísica, precisamente analisado, não compromete a polêmica antimetafísica sobre a qual estava centrada sua primeira versão. O que ele faz, é revelar sua contradição indígena, que o agnosticismo serviu para denominar. ~ sobre essa contradição indígena que se enxertou a encarniçada colonização ideológica, que faz. a breve e tão densa história do freudismo. O paradoxo a ser pensado, como o lugar de Freud, é o de uma contradição que, ao mesmo tempo, serve para denunciar suas form as derivadas. f: por isso que, foi valendo-nos de Freud que vimos inst ruir-se seu processo: tudo se passa como se, no decorrer da pesquisa, testemunhando contra o pós-freudismo, tenha-se convertido em acusado. De fato, porém, não se trata de encontrarmos culpado. O que devemos fazer é cernir a problemática contraditória que constitui a identidade de uma doutrina, que se afirma opondo-se às outras e a si mesma. Por conseguinte, não é surpreendente que tenhamos tido necessidade de recorrer a Freud para manifestar as inflexões de sua problemática e para descobrir, nele mesmo, o que as tornaram indiretamente possíveis. Depois desse itinerário, deveria ser doravante impossível, de um lado, darmos crédito ao ecletismo fácil das visões do homem que, ilicitamente, fazem seu leito na psicanálise freudiana, do outro, praticarmos o freudismo e levarmos em conta suas ricas contribuições sem implicar, em sua apreciação global, a problemática na qual se apóia, e a contradição com a qual ela se explica. Desse ponto de vista, a relação com a filosofia é um teste precioso, pois ajuda a cernir a identidade teórica da
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psicanálise, denuncia seu uso empmco como objeto natural e prepara o terreno para que seja determinado seu lugar num<~ compreensão materialista do real2 •
NOTAS 1. Sobre a questão das relações de Freud com Roma, cf. Jones, t. 11, pp. 16-20. Obcecado pelo desejo de ver Roma, pára, no entanto, nas redondezas, em 1897 : "Até ali e niio mais longe, murmurava uma voz interior" (Joncs, p. 17) . Freud só irá dar uma "olhadela por detrás da cortina" em 1901. Estranha replicação do "complexo de Aníbal" em relação a Roma e à filosofia. 2. Como espécime desse funcionamento materialista da psicanálise, tal como o concebemos, ver a obra que surgirá pro~ ximamente na mesma coleção, Marx et la répétition histo-
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INTERPRETAÇÃO E IDEOLOGIAS
Paul Ricoeur