O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase: Eliade revisitado Pedro Peixoto Ferreira Ferrei ra 2003
XAMANISMO COMO TÉCNICA DO ÊXTASE
xamanismo, escrita pelo historiador das religiões romeno Mircea Eliade. "Apesar das numerosas reservas que atualmente se fazem a esta imponente obra", aponta lucidamente Bernard S. D'Anglure, "ela permanece a melhor introdução ao xamanismo, no tocante tanto aos temas abordados quanto à diversidade de tradições culturais descritas" (1996:506). Partamos, assim, de Eliade, e ve jamo jamoss como, como, logo logo no início de sua obra, ele define o xamanismo:
A
tualmente existe à disposição uma pletor pletoraa de obras obras sobre sobre o xaman xamanism ismo, o, algumas com enfoque antropológico, outras com enfoque histórico, outras com enfoque ficcional e outras ainda (certamente a maior parte) com um enfoque místico que poder poderíam íamos os chama chamarr de 1 new age . É preciso deixar claro que é o prim primei eiro ro enfo enfoqu que, e, o "Uma primeira deantropológico, que profinição desse fenômeno duz a maior parte do complexo, e possivelmente a material sobre o qual os menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase " outros enfoques se sus3 tentam, sendo a (p.16) literatura new age aquela que mais tende a Apesar de a distorcer este material influência desta definiem benefício de ideoloção de xamanismo ter 2 sido mais explícita nas gias do momento . Mas pesqui uisa sass de cunh cunhoo histó históri rico co (cf. (cf.Su Sull lliv ivan an,, sendo o material antropológico muito vasto, pesq heterogêneo e especializado, creio ser prefe- 1988) e fenomenológico (cf.Ripinsky-Naxon, rível iniciarmos nossa investigação com uma 1993), ela também pode ser percebida em pesquisas as antrop antropol ológi ógica cass e etno etnogr gráfi áfica cass de obra clássica de enfoque histórico mas cujo pesquis alcance conceitual foi sentido mesmo dentro outras orientações, que mesmo quando não da antropologia. Trata-se de O Xamanismo e fazem referência direta à obra de Eliade adoas técnicas arcaicas do êxtase (1998 [1951]), tam o conceito de técnicas do êxtase para das experiências xamânicas talvez a mais influente obra até hoje sobre tratar (cf.Langdon, 1992 e 1996). O motivo da ausência de referências explícitas a Eliade por 1 parte parte dos antrop antropólo ólogos gos e etnól etnólogo ogoss é de fácil fácil Existem outros enfoques ainda pouco explorados compreensão: Eliade é famoso por nunca ter mas bastante promissores para par a pesquisas sobre o xamanismo, como o médico (cf.Achterberg, neurológico (cf.Sell, 1996).
1996)
eo
2
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Para uma visão crítica desta literatura, cf.Atkinson (1992:315), Vitebsky ( 2001a, 2001 b) e Ott (2001).
Exceto quando indicado, todas as referências pertencem a Eliade, 1998. 1
pesq pesqui uisa sado do o xama xamani nismo smo fora fora das das bibli bibliot otec ecas as mudou nos últimos cinco séculos5 de pesquie, principalmente, por ter distorcido informa- sas sobre o xamanismo, foi "o olhar dos ções para que se encaixassem em seu projeto pesq pesqui uisa sado dores res"" (Narby (Narby e Hux Huxle ley, y, 2001:8). puris purista ta e esse essenc ncial ialis ista ta de desc descob obrir rir "o verda verda-Assim não podemos, a princípio, falar de 4 deiro xamanismo Siberiano" . No entanto "xamanismo" a não ser como um "tipo-ideal" como explicar a ampla influência (mesmo construído a partir de muitos estudos particuque anônima) de sua definição de xamanismo lares de casos particulares e ainda em como técnica do êxtase? process processoo de formação. formação. Falar de xamanismo é uma atividade Mas se a análise comparativa de prácontroversa, pois a idéia de que exista um ticas xamânicas de uma grande quantidade de "xamanismo" em geral independente dos tribos diferentes não nos oferece mais do que "xamãs" particulares é apenas uma ficção um "tipo-ideal", isso não nos impede de usar metodológica. Cada sociedade tem seus pró- esta tipologia como recurso interpretativo. É prio prioss ritua rituais is de inic inicia iaçã çãoo ao xam xamanism anismo, o, e preciso preciso apenas apenas atentar atentar para que a forma "xamesmo dentro de uma mesma sociedade es- manismo" nunca deixe de se informar sobre sobre tes rituais podem variar de acordo com o as singularidades da matéria dos xamãs, nuncaso. Além disso, atualmente já se sabe que a ca se torne um molde acabado que então só palavr palavraa "xa "xamã mã", ", apes apesar ar de design designar ar a pesso pessoa, a, reduziria esta matéria a uma forma pré6 propriedade da não indica exatamente uma propriedade estabelecida . E não é isso que deveria ocor pess pessoa oa mas mas sim sim uma uma qualidade dela, um porer com qualquer (bom) conceito? É verdade der que ela adquire e que ela pode também que não existe um xamanismo em geral, ape perder perder;; não é algo algo que se é e sim algo que se nas xamãs particulares. Mas a descoberta de tem ou que se pode. Por último, é preciso não um traço comum a todos os xamãs conhecise esquecer da máxima epistemológica a dos e capaz de dar conta de suas produção de conhecimento influencia no singularidades certamente pode dar origem a próprio conhecimento produzido, sintetizada um conceito de xamanismo. O conceito eliano slogan "saber é poder": o olhar que cada antropólogo antropólogo em cada época e contexto lançou deano de "xamanismo como técnica do êxtase" tem tido uma boa aceitação na antroa cada xamã certamente influenciou aquilo pologi pologia, a, apesar apesar dos proble problemas mas de seu que ele viu. Jeremy Narby e Francis Huxley 7 mostram isso muito bem na coletânea criador , pelo simples fato de que ele dá conShamans Through Time: 500 Years on the ta do fenômeno e é capaz de se deixar Path to Knowledge : se há alguma coisa que informar por cada nova descoberta feita so bre bre o fenôme fenômeno no.. Ele Ele se diss dissem emin inou ou pois pois 5
A coletânea traz 64 trechos de textos-chave sobre xamanismo, sendo o primeiro de 1535 – quando quan do o cris tianismo estigmatizava o xamanismo como demoníaco e os pesquisadores que o levassem levasse m a sério como pecadores – e o último último de 2000 – quando quan do o xamanismo já é tratado como uma forma específica de produção de conhecimento ao lado da ciência.
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Segundo Eliade, o "xamanismo strictu sensu " era "um fenômeno religioso religioso siberiano e centro -asiático" (p.16), e portanto todos os outros xamanismos do mundo seriam seriam variações mais ou menos desvirtuadas deste ideal. Porém, como nota o antropólogo Piers Vitebsky, "[h]avia vários tipos de 'xamãs' [na Sibéria e na Mongólia], inclusive no seio de uma mesma sociedade, e até no mesmo acampamento. [...] A idéia do xamã puro ou ideal, tal como apresentada por Eliade, torna-se cada vez mais difícil de sustentar em qualquer pesquisa nesta ne sta região social soci al e ecologicamente ecologicam ente divers ificada." (2001a:34-5) Críti Críticas cas calorosas ca lorosas ao trabalho trab alho de Eliade podem ser encontradas em Lewis ( 1993), apesar deste autor já ter anteriormente considerado o seu trabalho "convincente" (cf. 1971:26).
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Sobre a problemática do hilemorfismo na Antropologia, cf.Viveiros de Castro, 2002:114-5.
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Minha atribuição a Eliade da "paternidade" do conceito de xamanismo como técnica do êxtase se deve à influência influência de seu livro ( 1998) , mas não deve ofuscar esforços anteriores a nteriores não vinculados especificamente ao xamanismo de compreensão das técnicas do êxtase (e.g., James, 1902; Weber, 1963). 2
conseguiu captar, mesmo que por vias equivocadas, uma característica fundamental do fenômeno, a saber: a capacidade do xamã de controlar tecnicamente o êxtase seu e alheio. Quanto mais se conhece os xamãs mais se percebe que é justamente isso que os 8 caracteriza . Suas viagens para os mundos espirituais, seus transes, suas canções, seus mitos, seus rituais de cura, adivinhação, propiciação etc., apesar de todas as singularidades contextuais, podem ser definidos como diferentes formas de operar um transporte para a dimensão préindividual das relações com o objetivo de transformálas de acordo com as necessidades (como quem consegue dirigir seu próprio sonho, só que tornando-o realidade).
XAMANISMO " STR I CTU SE NSU "
A
compreensão adequada da influente definição eliadeana de xamanismo como técnica do êxtase depende do conhecimento do contexto em que foi apresentada. Eliade escreveu em uma época em que a compreensão do xamanismo "se aprofundava" (cf. Narby e Huxley, 2001), e temos motivos para crer que a sua mistura peculiar (e muitas vezes prejudicial) de dispersão documental e concentração conceitual contribuiu enormemente para este aprofundamento. Tratava-se, num primeiro momento, de um esforço explícito pela defi-
nição daquilo que ele chamou de "xamanismo stricto sensu": "um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático" (p.16). Além das implicações etimológicas (a palavra "xamã" deriva do tungue, idioma dos Evencos, da Sibéria), o autor argumentava que a "vida mágico-religiosa" dos povos siberianos e centro-asiáticos gira em torno do xamanismo, pois "em toda essa região, onde a experiência extática é considerada a experiência religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase" (p.16). Mas se a definição eliadeana do xamanismo partia de um xamanismo geográfica e historicamente específico, em seguida ela se transforma numa espécie de "tipo-ideal" encontrado em diferentes graus de "pureza" 9 por todo o mundo e caracterizado por aquilo que ele denominou de "as técnicas do êxta10 se" . E é partindo deste recorte que, logo no início do livro, ele clama por uma distinção entre o "xamanismo stricto sensu" e a enorme variedade de termos "análogos" que 9
"Visto que esse fenômeno mágico-religioso se manifestou em sua forma mais completa na Ásia central e setentrional, tomaremos como exemplo típico o xamã dessas regiões. [...] [E]sse xamanismo da Sibéria e da Ásia central tem o mérito de se apresentar como uma estrutura na qual certos elementos que existem difusos no resto do mundo [...] já se revelam, na zona em questão, integrados numa ideologia particular que valida técnicas específicas." (p. 18). 10
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Para reiterações desta definição, cf. p. 10, 20, 84, 115, 127, 166, 208, 214-5, 226, 240, 244, 264, 287, 293, 329-30, 527, 534, 542, 547, 550. Como evidência da persistência desta mesma definição no pensamento de Eliade, temos o livro Zalmoxis, The Vanishing God , publicado em 1970 (quase vinte anos após O Xamanismo...), onde, tratando do xamanismo na Grécia, ele afirma: " The shaman is above all an ecstatic ." (Eliade, 1972:41).
Em uma abrangente pesquisa, Larry G. Peters e Douglas Price-Williams afirmam que "[q]uase todos que es creveram sobre o tema apontam o êxtase como o ingrediente inescapável do xamanismo", sendo "o elemento comum em todos estes relatos o fato de o xamã […] manter o controle de seu êxtase" ( 1980:3989). Um exemplo de confirmação etnográfica explícita das teses eliadeanas no xamanismo sul-americano pode ser encontrado em Lins ( 1985). 3
abundam na literatura especializada e que, a seu ver, só prejudica a compreensão do "fenômeno xamânico em si" (p. 15):
um estudo sistemático da obra para perceber que esta confusão terminológica jamais se esclarece – pelo contrário, se complica, sua 12 terminologia variando indefinidamente . Ainda mais lamentável é o fato de que esta "indefinição" provoca contradições notáveis na própria argumentação de Eliade em favor do "xamanismo stricto sensu" e contra suas variações "desvirtuadas", "degradadas" e "decadentes", como quando ele afirma que, dada a "trans-historicidade" e a "completa reversibilidade" do "sagrado", "nenhuma
"Se por 'xamã' se entender qualquer mago, feiticeiro, medicine-man ou extático [a tradução para o português acrescenta ainda "curandeiro" e "pajé"] encontrado ao longo da história das religiões e da etnologia religiosa, chegar-se-á a uma noção ao mesmo tempo extremamente complexa e imprecisa, cuja utilidade é difícil perceber, visto já dispormos dos termos 'mago' e 'feiticeiro' para exprimir noções tão díspares quanto aproximativas como as de 'magia' ou 'mística primitiva'." (p. 15) "Magia e magos há praticamente em todo o mundo, ao passo que o xamanismo aponta para uma 'especialidade' mágica específica [...] : o 'domínio do fogo', o vôo mágico etc. Por isso, embora o xamã tenha, entre outras qualidades, a de mago, não é qualquer mago que pode ser qualificado de xamã. A mesma precisão se impõe a propósito das curas xamânicas: todo medicine-man cura, mas o xamã emprega um método que lhe é exclusivo. As técnicas xamânicas do êxtase, por sua vez, não esgotam todas as variedades da experiência extática registradas na história das religiões e na etnologia religiosa; não se pode, portanto, considerar qualquer extático como um xamã: este é o especialista em um transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascensões celestes ou descensões infernais." (p. 17)
Sendo, portanto, as "técnicas do êxtase" o elemento distintivo deste "fenômeno xamânico em si"/"xamanismo stricto sensu", nada mais indicado do que iniciar nossa pesquisa a partir do uso que o historiador das religiões faz daquele termo. No entanto, de bruçando sobre o seu uso do termo "êxtase", nos deparamos de imediato com um excesso de definições conflitantes e nada sistemáticas que acaba por comprometer o poder analítico do tipo-ideal proposto. Não mais do que três páginas após afirmar que "não se pode [...] considerar qualquer extático como um xamã", por exemplo, Eliade transforma em sinônimos "xamã" e "extático", "experiência 11 xamânica" e "experiência extática" . E basta 11
"Os xamãs [...] têm acesso a uma zona do sagrado inacessível aos outros membros da comunidade. Suas experiências extáticas [...] exercem [...] poderosa in fluência sobre a estratificação da ideologia religiosa [...]. Porém, [...] a ideologia, a mitologia e os ritos das populações árticas, siberianas e asiáticas [...] são [...]
anteriores ao xamanismo [...] , [...] são produto da experiência religiosa geral, e não de determinada classe de seres privilegiados, os extáticos. Ao contrário, [...] observa-se freqüentemente o esforço da experiência xamânica (isto é, extática) para expressar-se por intermédio de uma ideologia que nem sempre lhe é favorável." (p.19-20). 12
Para exemplos das mais variadas ocasiões em que Eliade emprega como sinônimos de xamã termos que ele explicitamente distinguiu dele, cf.: curandeiro (pp.34, 36, 41, 46, 71, 103, 122, 145, 202-3, 208, 211, 310, 313, 330, 332, 339, 348, 354-5, 357, 361, 371, 378, 380-2, 386, 396-9, 406, 422, 491, 512-3, 532); extático (pp.20, 409, 422, 424, 431, 433, 442, 446, 485, 492); feiticeiro (pp.34, 36, 46, 73-4, 104, 111, 120, 163, 177, 182, 202-4, 208, 278, 329-30, 333, 350, 356, 359, 360, 363, 381, 384-5, 389, 395-7, 399, 400, 402, 404-7, 419, 421, 425, 427, 431, 465, 476, 480-1, 485-7, 490-2, 494, 502-3, 512, 514-5, 518-20, 527, 532, 534, 545); mago (pp.16-7, 34, 41, 62, 65, 67, 86, 105, 107, 111, 122, 134, 148, 156, 163, 188, 205, 210-1, 256, 329, 333, 356, 380, 382, 395-6, 405, 409, 415-6, 419-20, 437, 443-7, 450-1, 461, 465, 485, 488, 495, 515, 517, 522, 541, 544, 545, 548); medicine-man (pp.16-7, 36, 46, 62-8, 74, 84, 101, 106, 128, 134, 148-9, 153-4, 156-60, 162, 164, 204, 260, 332, 348, 350, 353, 364, 369, 374-5, 381, 393, 3956, 406, 518, 527, 531, 548, 551); pajé (pp.101-2, 111, 356-7, 360). E a lista de termos usados por Eliade como possíveis análogos para "xamanismo" ainda inclui: adivinho; alquimista; brâmane; carpideira; doutor; exorcista; fada; faquir; ferreiro; guru; herói; ilusionista; imperador; inspirado; iogue; médico; médium; místico; necromante; poeta; possuído; profeta; psico pompo; purificador; rei; sábio; sacerdote; santo; soberano ; taoísta; vidente; além de dezenas de termos nativos (como angakok, pawang, machi, etc.). Ao
longo do livro, Eliade não se preocupa em distinguir as vezes em que tais termos são usados como sinônimos de xamanismo daquelas em que eles têm a função de destacá-lo como fenômeno sui gene ris , o que acaba comprometendo a própria definição inicial do "xamanismo stricto sensu ". 4
'forma' é exemplo de degradacismo". Além disso, Eliade ção e decomposição, nenhuma nunca dissimulou a sua busca 'história' é definitiva", ou que por um xamanismo "ideal", e "não há a menor probabilida para isso empregou uma imde de se encontrar, em parte pressionante quantidade de alguma do mundo ou da histólivros e artigos, principalmenria, um fenômeno religioso te sobre o xamanismo 'puro' e perfeitamente 'origiasiático. Por isso, quando dinal', [...] pois a 'história' zia "xamanismo em si", ele se ocorreu em todos os lugares, referia menos às práticas ritumodificando, refundindo, enais do xamã em seu contexto riquecendo ou empobrecendo social particular e mais a uma as concepções religiosas, as "simbologia do êxtase", criações mitológicas, os ritos, cristalizada naquilo que ele chamou de "ideologia xamâas técnicas do êxtase" (p. 24). nica". Talvez pudéssemos Mas é inútil insistir na dizer que os principais méridemonstração das inconsistos de sua pesquisa foram tências terminológicas da definição eliadeana de "xadois: (1) organizar e sinteti13 zar a enorme quantidade de manismo stricto sensu" , pesquisas disponíveis até envisto que a perspectiva da tão sobre xamanismo, dando história das religiões parece mesmo não a presentar como problema esta maleabilidade início a uma nova fase no estudo do fenômeconceitual. Pelo contrário, ela parece apoiar- no; e (2) propor uma terminologia unificada, se nela, transformando-a mesmo na essência mesmo sem tê-la desenvolvido plenamente, composta pelas noções de "xamanismo 14 do próprio "fenômeno religioso" , o que stricto sensu" e, principalmente, "técnicas do explica o seu muitas vezes alegado "misti- êxtase". Não se trata aqui, portanto, de criticar a ambição de Eliade por uma definição do 13 Esta empresa poderia mesmo constituir-se em uma "fenômeno xamânico em si" a partir de conoutra pesquisa, dada a freqüência e a impunidade com ceitos obscuros e pouco atentos à realidade que os termos propostos por Eliade deslizam sobre etnográfica (isto já foi feito a contento pela suas próprias definições. Ver, por exemplo (e são 15 inúmeros os exemplos), a afirmação de que " Tal xaantropologia ). Pelo contrário, partimos da manismo stricto sensu não está restrito à Ásia central constatação de que esta definição de xamae setentrional"(p.18; itálico no original) apenas duas páginas após a máxima "O xamanismo stricto sensu é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático" (p.16; itálico no original). Ao final da leitura, acaba sendo impossível encontrar este "xamanismo stricto sensu " senão na forma de um ideal que está, para parafrasear Merleau-Ponty, "em toda parte e em parte alguma". 14
Um exemplo disto pode ser encontrado em outro historiador das religiões, Lawrence E. Sullivan, quando ele apoia a maleabilidade do conceito de "sagrado" numa certa "multivocalidade da vida simbólica": "In using the term "sacred" we do not wish to overdetermine its meaning too rashly, because it epitomizes the multivocality of symbolic life." (1988:699 nota 65). O problema não reside, é bom dizer, na "multivocalidade" em si, mas sim no recurso a ela como licensa para a falta de rigor conceitual.
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Em um curto comentário publicado no periódico Man , Ioan M. Lewis apresenta críticas contundentes ao "purismo" eliadeano, cujo emprego do termo "xamã" lhe parece, na verdade, "impuro". Segundo Lewis, "qualquer um que cuide de consultar as fontes primárias de Eliade" perceberá que "todas as características equivocadamente segregadas por Eliade em termos pseudo-evolucionistas" (principalmente a "possessão") estão presentes no xamanismo Tungue. Lewis se diz surpreendido com "a fortíssima e enganadora influência de Eliade na maneira como antropólogos sociais conceitualizam e pensam sobre o xamanismo", e com "a persistência extraordinária das deturpações de Eliade entre antropólogos modernos" ( 1993:361).
nismo ("xamanismo=técnica do êxtase") se aplica com enorme propriedade às mais di16 versas manifestações do fenômeno , sendo nosso objetivo, na verdade, retomá-la a partir de uma revisão crítica da própria noção de "técnica do êxtase", tarefa esta que não foi realizada nem por Eliade e nem por mais ninguém – o que me parece surpreendente, visto que, tudo leva a crer, uma das princi pais causas da confusão terminológica que assola os estudos de fenômenos classificados como "religiosos" e que finda por comprometer a sua aplicação para além de um misticismo nebuloso é justamente a ausência de uma maior preocupação com o rigor conceitual.
AS TÉCNICAS "ARCAICAS "
A
homem profano de antes da 'escolha' em um técnico do sagrado. É claro que essa experiência de ordem extática é sempre [...] seguida por uma instrução teórica e prática a cargo dos velhos mestres, mas não deixa por isso de ser decisiva, pois é ela que modifica radicalmente o sta tus religioso da pessoa 'escolhida'. [...] [T]odas as experiências extáticas que decidem a vocação do futuro xamã comportam o esquema tradicional das cerimônias de iniciação: sofrimento, morte e ressurreição. [...] Certos sofrimentos físicos serão traduzidos com precisão numa forma de morte (sim bólica) iniciática, como por exemplo no despedaçamento do corpo do candidato (=doente), experiência extática [...]. [...] Quanto ao conteúdo dessas experiências extáticas iniciais, embora seja bastante rico, quase sempre comporta um ou vários dos seguintes temas: despedaçamento do corpo seguido pela renovação dos órgãos internos e das vísceras, ascensão ao Céu e diálogo com os deuses ou os espíritos; descida aos Infernos e contato com os espíritos e as almas dos xamãs mortos; revelações diversas de ordem religiosa e xamânica (segredos do ofício)."(p.49-50)
pesar da abundância de definições que Eliade oferece para o êxtase ao longo de O Xamanismo... , em nenhum lugar encontramos uma síntese com pleta que englobe todas elas. Mas algumas destas definições "parciais" são particularmente eloqüentes, como quando, considerando a "doença-iniciação" dos xamãs, Eliade afirma: "As doenças, os sonhos e os êxtases mais ou menos patogênicos são [...] meios de acesso à condição de xamã. Às vezes, essas experiências singulares significam apenas uma 'escolha' [...]. Mas quase sem pre as doenças, os sonhos e os êxtases constituem em si uma iniciação, ou seja, conseguem transformar o
16
Antropólogos e etnólogos utilizam (timidamente, é verdade) a noção de "êxtase" para interpretar as su as experiências de campo (cf. Lins, 1985; Müller, 1990:178; Wright, 1998:85, 89-90; Reichel-Dolmatoff, 1997:123, 129, 134). Textos didáticos e reflexivos, como os capítulos introdutórios de E. Jean Matteson Langdon às coletâneas de artigos Portals of Power: Shamanism in South America (1992) e Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas (1996), incorporam o êxta se como traço importante do fenômeno e como possibilidade investigativa. Outros exemplos de autores que, em diferentes áreas, empregaram a noção de "êxtase" em seus estudos sobre xamanismo, são: Pike (1958), Lewis ( 1971), Bongard-Levin e Grantovsky (1977), Flaherty ( 1992), Ripinsky-Naxon (1993), Sullivan ( 1988), König ( 1998) e Vitebsky ( 2001a).
Temos aqui uma série de elementos constitutivos do êxtase enquanto experiência iniciática. Em primeiro lugar, a forte relação entre "doença", "sonho" e "êxtase". Esta relação, retomada diversas vezes ao longo da obra, se baseia no fato de que, no xamanismo, a doença está diretamente ligada à 17 "perda da alma" e o sonho é, em si, uma 18 "viagem da alma" . Assim, sendo o êxtase 17
Sobre o xamanismo asiático, por exemplo, Eliade afirma: "Se o tratamento xamânico exige êxtase, é justamente porque a doença é concebida como uma alteração ou uma alienação da alma." (p. 244). Ver também p.20, 49, 76, 233, 243, 332, 335, 337, 359-60, 382, 478, 320, 406, 484-5. Violação de "tabus", introdução de "objetos patogênicos" no corpo e "pos sessão por espírito" também são muito citadas como causas pa ra as doenças, em diferentes culturas. Mas permanece o postulado de que a "concepção de doença [...] do xamanismo propriamente dito" é a "fuga da alma" (p.406). 18
"É em sonhos que se atinge a vida sagrada por excelência e que se restabelecem relações diretas com os deuses, os espíritos e as almas dos antepassados. É sempre nos sonhos que o tempo histórico é abolido, recuperando-se o tempo mítico, o que possibilita ao futuro xamã assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se contemporâneo tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais. [...] É sempre em sonhos que se recebem as regras iniciáticas (regimes, 6
diversas vezes descrito como um "abandono 19 do corpo pela alma" , temos que "doença" e "sonho" podem ser vistos como "experiên20 cias extáticas" . Mas mais importante é a relação estabelecida entre "êxtase" e "mor21 te" , que introduz a temática do "esquema 22 tradicional das cerimônias de iniciação" . tabus etc.) e que se fica sabendo quais os objetos n ecessários à cura xamânica." (p.123). Tratando das "tribos das Montanhas Rochosas da América do Norte", Eliade afirma que "o poder xamânico também pode s er herdado, mas é sempre através de uma experiência extática (sonho) que se faz a transmissão" (p.35). Ver também p.4, 26, 32, 49, 76, 132, 137, 256, 298. 19
"Quando é chamado para um tratamento, o xamã tremyugan começa a tocar tambor e guitarra até cair em êxtase. Abandonando o corpo, sua alma entra nos Infernos e começa a procurar a alma do doente." (p.248). Ver também p.17, 208, 226, 264, 270, 275, 283, 287, 362, 434-5, 451, 509, 520. Para exemplos deste mesmo fenômeno, só que descrito como "sair de si mesmo", cf. p. 251, 497-8, 506. 20
Tratando do xamanismo norte-americano, Eliade afirma: "A alma deixa o corpo durante o sono; quando alguém é acordado bruscamente, pode morrer. Nunca se deve acordar um xamã em sobressalto." (p. 332). 21
A relação entre "êxtase" e "morte" é tão estreita que Eliade chega muitas vezes a tratá-los como sinônimos, como no seguinte trecho: " O êxtase é apenas a experiência concreta da morte ritual ou, em outras palavras, da superação da condição humana, profana. E [...] o xamã é capaz de obter essa " morte" por todos os tipos de meios, desde os narcóticos e o tambor até a "possessão" por espíritos." (p. 115). Ver também p.77, 103, 115, 433, 506, 509, 517, 520, 523, 534, 552-3.
Eliade constata que, para além das diversas variações nas formas de recrutamento, iniciação e outorga de poderes xamânicos encontradas nas diferentes manifestações culturais do xamanismo (às quais ele dedica a maior parte dos quatro primeiros capítulos de seu livro), é na experiência extática da morte ritual que reside a essência do processo iniciático. O "despedaçamento do corpo" do candidato, sua "descida ao Inferno" e as "revelações" aí obtidas são as etapas de uma "morte ritual" que, no xamanismo, constitui a essência mesmo da iniciação nas "técnicas do êxtase". Isso porque é a experiência da morte ritual que irá revelar ao xamã: ( 1) a forma como seu corpo é mutilado, devorado e renovado pelos espíritos ("desmembramento"); 23 (2) o itinerário perigoso e cheio de "pontes" 24 e "passagens perigosas" que a alma humana deve percorrer em seu caminho para o "mundo dos mortos" ("descida ao Inferno"); e (3) a instrução do xamã, por parte dos espíritos e deuses ("revelações"), nas técnicas que permitirão não apenas a sua própria ressurreição mas, principalmente, a repetição da viagem sempre que necessário: as "técnicas do êxtase". A experiência "extático-mórbida iniciática" do xamã (caracterizadas pela doença e pelos sonhos extáticos, entre outros) é, portanto, essencialmente didática. Mas o "conhecimento" alcançado nesta experiência não fica restrito ao ambiente do próprio xamanismo, sendo posteriormente incorporado
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"Quanto ao conteúdo dessas experiências extáticas iniciais, embora seja bastante rico, quase sempre com porta um ou vários dos seguintes temas: despedaçamento do corpo seguido pela renovação dos órgãos internos e das vísceras, ascensão ao Céu e diálogo com os deuses ou os espíritos; descida aos Infernos e contato com os espíritos e as almas dos xamãs mortos; revelações diversas de ordem religiosa e xamânica (segredos do ofício)."(p. 50). "Percebe-se que o êxtase iniciático segue à risca certos temas exemplares: o noviço encontra diversas figuras divinas [...] antes de ser conduzido por seus guias -animais ao Centro do Mundo, no topo da Montanha Cósmica, onde se encontram a Árvore do Mundo e o Senhor Universal; recebe da Árvore e do próprio Senhor a madeira para fabricar o seu tambor; seres semidemoníacos revelam-lhe a natureza e o tratamento de todas
as doenças; finalmente, outros seres demoníacos co rtam-lhe o corpo em pedaços, que são cozidos e trocados por órgãos melhores."(p. 59). 23
"A Ponte, na verdade, não é apenas passagem dos mortos; é também [...] caminho dos extáticos" (p. 433). "Os xamãs, assim como os mortos, precisam atravessar uma ponte durante sua viagem aos Infernos." (p.523). Ver também p. 434-5. 24
"Assim como a morte, o êxtase implica uma "mutação", que o mito traduz plasticamente por uma passagem perigosa." (p. 523). Eliade dedica uma parte do décimo terceiro capítulo de seu livro ao tema "A ponte e a 'passagem difícil'" (p. 523-7).
na mitologia, nos rituais e naquilo que Eliade 25 chamou de "geografia funerária" :
Aqui nós encontramos, relacionados, termos freqüentemente usados por Eliade "É graças à sua capacidade de viajar para os para definir o êxtase, como: o "abandono do mundos sobrenaturais e de ver os seres s obre-humanos corpo pela alma"26; a "descida aos Infer(deuses, demônios, espíritos dos mortos etc.) que o xamã pôde contribuir de maneira decisiva para o conhecimento da morte. É provável que grande número de características da 'geografia funerária' e que certo número de temas da mitologia da morte sejam resultado das experiências extáticas dos xamãs. As paisagens que o xamã avista e as personagens que encontra em suas viagens extáticas para o além são minuciosamente descritas por ele mesmo, durante ou após o transe. O mundo desconhecido e terrificante da morte toma forma, organiza-se segundo tipos específicos; acaba ganhando estrutura e, com o tempo, torna-se familiar e aceitável. [...] Aos poucos, o mundo dos mortos vai-se tornando cognoscível, e a própria morte acaba assumindo o valor de rito de passagem para um modo de ser espiritual." (p.552-3)
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26
O conhecimento adquirido pelo xamã em suas experiências extático-mórbidas seria, assim, numa espécie de autopoese escatológica, a própria matéria prima da qual seriam compostos os mitos e as crenças relativas à morte. Mas dentre as habilidades xamânicas tornadas possíveis por estas experiências de "morte ritual", uma é de especial interesse para nós. Trata-se da "psicopompia", e sua relevância reside no fato de que ela apresenta, em forma condensada, os principais elementos daquilo que Eliade denominou "as técnicas do êxtase": "O xamã é curandeiro e psicopompo porque conhece as técnicas do êxtase, isto é, porque sua alma pode abandonar impunemente o corpo e vagar por enormes distâncias, entrar nos Infernos e subir ao Céu. Ele conhece, por experiência extática pessoal, os itinerários das regiões extraterrenas. Pode descer aos Infernos e subir ao Céu porque já esteve lá. O risco de perder-se nessas regiões proibidas é sempre gra nde, mas, santificado pela iniciação e munido de seus espíritos guardiões, o xamã é o único ser humano que pode correr esse risco e aventurar-se numa geografia mística. [...] É [...] graças a essa capacidade extática que o xamã [...] conhece o itinerário e, além disso, é capaz de controlar e conduzir 'almas', sejam elas de pessoas ou de animais." (p.208-9) 25
Além de "funerária", esta "geografia" também é chamada por Eliade de "mística" e "mítica". Para exemplos, cf. p.208, 231, 427, 482.
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nos" ; a "ascensão ao Céu" ; o conhecimento dos "itinerários das regiões extraterrenas" (da "geografia mítica"); e a 29 "condução de almas" ("psicopompia" pro priamente dita). Segundo Eliade, para ser capaz de conduzir uma alma ao seu destino final, o "xamã-psicopompo" precisa: ( 1) ser capaz de abandonar "impunemente" (ou seja, sem morte definitiva) o próprio corpo e assim assumir a forma espiritual da alma que deve conduzir; (2) ser capaz de orientar seu vôo
Cf. p.17, 208, 226, 264, 270, 275, 283, 287, 362, 434-5, 451, 509, 520. 27
"Quando o manang-chefe [xamã dos dayaks da costa] cai, os presentes jogam uma coberta sobre ele e esperam pelo resultado de sua viagem extática, pois assim que entra em êxtase o manang desce aos Infe rnos para procurar a alma do doente." (p. 383). Para outros exemplos do "êxtase" como "descida aos Infe rnos", cf.p.17, 283, 417, 549. Em diversas tradições esta descida é descrita como um "mergulho ao fundo do mar", mas Eliade trata ambas como análogas, como quando diz que "o xamã iacuto é acompanhado em suas viagens extáticas por uma ave aquática [...] que simboliza justamente a imersão no mar, ou seja, uma descida aos Infernos" (p.263). Para outros exemplos de "êxtase" como "mergulho", cf. p. 275, 283, 325, 341. 28
Descrevendo uma sessão de cura dos iacutos, Eliade afirma, a respeito dos saltos do xamã, cuja altura "às vezes chega a ser de quatro pés": "Trata-se, evidentemente, de uma "ascensão" extática ao Céu." (p.259). Para outros exemplos de "êxtase" como "ascensão ao Céu", "ascensão celeste", "ascensão mística" ou "subida às nuvens", cf. p. 17, 68, 157, 251, 259 nota 24, 270, 283, 360, 411, 455, 486, 489-90, 498, 527, 534. 29
"Ao contrário do que ocorre no cristianismo [...], os povos que se declaram "xamanistas" atribuem importância considerável às experiências extáticas de seus xamãs; tais experiências lhes dizem respeito de modo pessoal e imediato, pois são os xamãs, por meio de seus transes, que os curam, que acompanham seus mortos ao "Reino das Trevas" e servem de mediadores entre eles e os seus deuses, celestes ou infernais, grandes ou pequenos." (p.20) 8
para cima ("Céu") ou para baixo ("Inferno"), de acordo com as necessidades; ( 3) ter acesso 30 ao "além" , ou aos "mundos sobrenaturais", e assim transpor a "passagem difícil" que tradicionalmente prende a alma do morto recente ao mundo dos vivos, causando os mais variados problemas; e (4) conhecer a "geografia mítica" de forma a conduzir a alma, sem transtornos, para o seu destino adequado. Sendo estes os elementos básicos da psicopompia, e sendo a psicopompia uma possível aplicação das técnicas do êxtase, é apenas lógico que possamos tomá-los como uma lista de técnicas do êxtase. Note-se que o êxtase não é apanágio dos xamãs, sendo as "técnicas" do êxtase aquilo que os distingue 31 dos "demais extáticos" . A centralidade das "técnicas xamânicas" para esta visão do xamanismo pode ser confirmada pela sua permanência nos estudos de Lawrence E. Sullivan (1988) sobre o "xamanismo sulamericano como técnica do êxtase". Sullivan consegue ir muito além de Eliade naquilo que ele chamou de "total hermeneutics of the religious condition of mankind" (Sullivan, 32 1988:16) , certamente por ter se beneficiado pelos "criticismos recentes e inovações das ciências culturais, especialmente a antropo1988:15), logia" (Sullivan, mas principalmente por empregar, na dimensão
temporal, um esquema tripartido (primórdios, cosmos e apocalipse), em lugar do "dualismo trágico" eliadeano entre o "tempo histórico" e o "tempo mítico". No sétimo capítulo de Icanchu's 33 Drum , dedicado aos "especialistas", Sullivan (1988) apresenta o xamanismo como sendo aquela especialidade religiosa cuja legitimação se baseia na "experiência extática", classificando o xamã, portanto, como 34 "ecstatic specialist" . Afirmando, como Eliade o havia feito em relação aos povos Siberianos (cf. p.16), uma certa "ubiqüidade e importância central na América do Sul" da "experiência extática" (Sullivan, 1988:387), Sullivan dedica pouquíssimo espaço às duas outras "bases de autoridade religiosa" ("possessão" e "cânone"), evidenciando ainda mais a importância da noção de "êxtase" para a 35 sua visão do xamanismo . Para explicitar esta importância, cabe citar aqui o parágrafo introdutório à seção dedicada ao xamanismo ("ecstatic specialists"): "During ecstasy, the human soul leaves the body. Sickness or accident may provoke ecstatic experiences. The soul may stray from the body during dream or because of a fright, a fit of anger, a sneeze, or a cough. Evildoers may seduce the soul out of the body or drive it away. Ecstatic specialists learn to control the passage of the soul out of the body. Using
30
Tratando das " viagens extáticas ao além" realizadas pelo xamã indonésio "para acompanhar as almas dos mortos aos Infernos ou para procurar as almas dos doentes raptadas por demônios ou espíritos", Eliade define o "além" como: "terra dos mortos e terra dos espíritos" (p.390). Para outros exemplos de "êxtase" como "viagem ao além", cf. p. 32, 91, 114, 165, 251, 275, 283, 327, 417, 453-4, 506, 552. 31
Tratando das " ideologias e técnicas mágicas ou extáticas [...] da religião indo-européia", Eliade cita que "havia magias e técnicas de êxtase alheias à estrutura "xamânica", como por exemplo, a magia dos guerreiros e as técnicas de êxtase ligadas às Grande Deusas Mães e à mística agrícola, que nada tinham de xamânicas." (p.413). 32
Segundo Sullivan, "[h]ermeneutics is the willingness to treat the attempt at interpretation as a peculiarly instructive cultural process affected by both the subject and object of understanding." ( 1988:16)
33
Talvez o melhor do potencial hermenêutico do aparato conceitual eliadeano, quando enriquecido com dados etnográficos recentes e liberto de boa parte de seu confuso misticismo. 34
"The peculiar nature of the shaman's ecstasy causes these elements to cohere as a whole. Techniques of ecstasy transform the shaman's entire existence into that of a free spirit; that is, the shaman gains concrete experience of the primordial world. [...] The shaman practices ecstatic transformation in order to recognize the changing spiritual world in all its apparent shapes: song, sound, smoke, consumptions; penetrating arrows, stones, and darts; the hot light of the crystals, fire, and feathered wings; the dark inner spaces of animal bodies."(Sullivan, 1988:461) 35
Aproximadamente 8 páginas são reservadas à "pos sessão", ao "cânone", ao "contrato"/"consenso" e aos "procedimentos parlamentares", contra as mais de 70 páginas dedicadas aos "especialistas do êxt ase ". 9
special techniques, their souls exit the body at will for various purposes. The shaman is the most important and well-known ecstatic specialist in South America. A general practitioner of the arts of the soul, the shaman not only controls the ecstasy of his or her own soul but specializes in the knowledge and care of the souls of others. Shamanic ecstasies serve the souls of the community. This service requires wide knowledge of spiritual life: the nature of the soul, the times of transition or crisis at which the soul moves, and the contained spaces (body, cosmic realms, ritual spaces) in and through which the soul effects its passages." (Sullivan, 1988:390)
É importante perceber que, para Sullivan (assim como para Eliade no caso do xamanismo siberiano), o xamã não é o único "ecstatic specialist", mas apenas "o mais im portante e bem conhecido [...] na América do Sul", e que portanto o que o caracteriza não é o êxtase em si, mas sim a sua especialização "no conhecimento e cuidado das almas dos 36 outros", i.e., seu meta-êxtase .
INICIAÇÃO E TRANSFERÊNCIA TECNOLÓGICA
D
a lista de técnicas do êxtase que derivamos das considerações de Eliade sobre a psicopompia, um tema mere37 ce atenção especial: a "passagem perigosa" . Como já vimos, o êxtase, o "abandono do corpo pela alma", além de ser comparável ao "sonho" e à "doença", é essencialmente uma experiência de "quase-morte" – a morte sendo alcançada quando o doente não resiste à doença, ou quando o sonhador não mais acorda do sonho. E vimos também que esta 36
"It is true that authority based upon ecstatic knowledge is not the exclusive prerogative of the shaman and that other specialists base their skills on the experience of ecstasy. However, these other types of ecstatic specialists do not become meta-ecstatics, do not use t heir ecstasy to specialize in the knowledge and practice of ecstasy itself as it applies to the general theory of spirits." (Sullivan, 1988:460) 37
"Os xamãs, assim como os mortos, precisam atravessar uma ponte durante sua viagem aos Infernos. Assim como a morte, o êxtase implica uma 'mutação', que o mito traduz plasticamente por uma passagem perigosa." (p.523).
"experiência extática iniciática" da "morte ritual" é reversível, sendo justamente o "controle modulativo" sobre esta reversibilidade que denominamos "técnicas do êxtase". Mas o que diferencia qualquer doença, qualquer sonho, enfim, qualquer êxtase, daquele que 38 chamamos de "êxtase xamânico" ? Já sabemos que esta diferença é essencialmente técnica, mas resta compreender porque tais conhecimentos técnicos são acessíveis apenas aos xamãs, e não aos demais extáticos. Dizer que a técnica é acessível apenas ao xamã pois é o acesso à técnica que o define não basta, pois trata a técnica do êxtase como uma técnica entre outras, o que não faz sentido se queremos dar crédito aos próprios xamãs quando afirmam que foram os xamãs míticos que deram origem a todas as técnicas (inclusive àquelas da civilização Ociden39 tal) . É preciso ir em busca daquilo que faz da técnica xamânica esta espécie de "técnica das técnicas". Assim, faz-se necessário notar que: para que haja xamanismo é necessária uma "ruptura" muito específica, denominada normalmente de "passagem difícil", "perigosa" ou "estreita", que constitui um verdadeiro 40 "límen" , para além do qual apenas espíritos podem ir, e de onde apenas xamãs podem retornar. "A passagem por um espaço que está sempre a fechar-se e por uma ponte estreita como um fio de cabelo, o cão infernal, o apaziguamento da divindade irritada, tudo isso reaparece como leitmotiv tanto nos relatos iniciáticos quanto nos de viagens místicas ao 'além'. Em ambos os casos ocorre a mesma ruptura no nível ontológico: trata-se de provas destinadas a confirmar que aquele que emp reende tal feito superou a condição humana, ou seja, que é comparável aos 'espíritos' (imagem que revela uma mutação de ordem ontológica: ter acesso ao mundo dos 'espíritos'); pois 38
O termo "êxtase xamânico" é diversas vezes em pregado por Eliade como contraste às outras possíveis manifestações extáticas. Para exemplos, cf. p . 250, 254, 423, 434, 443, 517, 550-1. O termo "transe xamânico", como vimos, representa recurso semelhante. 39
Sobre isso, cf.Ferreira ( 2003).
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Este termo, que tomo emprestado de Turner ( 1974, 1977), não faz parte do vocabulário de Eliade. 10
se não fosse um 'espírito' o xamã nunca poderia trans por passagem tão estre ita."(p. 327-8)
contemplação, dança, sexo etc.). Não se trata de algo que ficou para trás, como uma espécie de "queda do paraíso", mas sim de uma forma específica de vivenciar qualquer situação: uma atenção ao horizonte último da percepção, para além do qual se perdem os limites do corpo individuado. A forma como cada xamã aprende a controlar este processo varia bastante entre diferentes contextos, mas pode ser tipificada a partir de alguns traços comuns. Dentre eles, tem especial interesse para nós a experiência de despedaçamento do corpo e de renovação dos órgãos, sofrida pelo candidato e operada normalmente por espíritos e deuses. Entre os siberianos esta experiência se dá de uma maneira especialmente eloqüente. Xamãs iacutos contam, por exemplo, que o candidato a xamã fica "de três a sete dias [...] quase sem respirar, como um morto, num local iso41 lado" (p.52). Durante este tempo, "os membros do candidato são destacados e se parados com um gancho de ferro, os ossos são limpos, a carne raspada, os líquidos do corpo são jogados fora e os olhos são arran-
A noção de "ruptura" indica, portanto, uma passagem "difícil", "estreita" e "perigosa" que acarreta uma "mutação", uma "transformação" que corresponde a uma "iniciação". Em outras palavras, a "morte ritual" constitui o "rito de iniciação ao xamanismo" justamente por representar uma "ruptura" muito especial do neófito com o mundo humano/profano: uma "ruptura didática", em ocasião da qual uma "tecnologia espiritual/sagrada" é revelada. Assim como o conceito de xamanismo, a idéia de uma "iniciação ao xamanismo" é fruto de uma análise comparativa de rituais de iniciação às vezes muito diversos. Existem sociedades onde esta iniciação é bastante complexa e institucionalizada, ao passo que em muitas outras ela praticamente inexiste enquanto ritual organizado. O que se pode dizer é que existem experiências comuns a todos aqueles que se tornaram xamãs (i.e., adquiriram o poder do xamanismo) mesmo quando elas não se formalizam em rituais socialmente prescritos. Tais experiências, que assumem formas distintas em cada contexto, consistem, de modo geral, nos primeiros contatos controlados do 41 É preciso saber interpretar uma afirmação como iniciando com o mundo sobrenatural, no qual ele assimila as suas técnicas do êxtase. A- esta. "Morrer" tem muitos sentidos além do fisiológico prender as técnicas do êxtase é aprender a (mesmo na fisiologia, existem várias mortes), e geo que caracteriza uma morte ritual é a controlar o perigoso processo de ruptura ru- ralmente experiência extática. Afinal, a morte definitiva é apemo à dimensão pré-individual da realidade. nas um êxtase sem volta (o sono eterno). Quanto aos Esta dimensão é normalmente experienciada "três a sete dias", apesar de possíveis, podem não se em situações-limite (nascimento, traumas, referir de forma alguma ao nosso calendário ou à rupturas existenciais, experiências próximas nossa forma usual de contar o tempo (veremos adiante exemplos de êxtases iniciáticos que duram "anos"). da morte e a própria morte), mas também No êxtase estamos naquilo que chamamos de tempo pode estar presente em qualquer outro mo- mítico, onde horas podem durar meses, dias ou segunmento da vida (sonho, devaneio, meditação, dos (e vice-versa). 11
cados das órbitas. Depois Outro relato siberiano dessa operação, todos os osde iniciação ao xamanismo sos são reunidos e ligados que mistura desmembramento e metalurgia fala de com ferro." (p.52) Trata-se de Dyukhade, cuja experiência uma intensa renovação corpoextática foi provocada por ral! Observa-se especial uma doença (varicela) que o atenção aos ossos (que são deixou inconsciente por três separados da carne, limpados dias ("quase morto, a ponto e reconectados com ferro), de quase o enterrarem no tertraço comum encontrado em quase todas as tradições xaceiro dia"; p.55). Dyukhade mânicas do mundo e disse que o "Grande Senhor provavelmente ligado à perdo Mundo Subterrâneo" o cepção de que, depois da mandou "seguir a via de todas decomposição do corpo, são as doenças" com dois compa42 nheiros e guias espíritosapenas os ossos que restam . animais (um arminho e um A importância do ferro para rato). Neste caminho, ficando os xamãs siberianos também "louco", Dyukhade encontra pode ser associada a uma tenespíritos "canibais" como, dência geral dos xamãs de entre outros, o "Povo da Vaassimilarem em seus êxtases aqueles objetos e materiais que gozam de ríola" (que "Cortaram-me o coração e atiramais prestígio social e garantem poder a seus ram-no para um caldeirão de água fervente"), possuidores (as vestimentas xamânicas sibe- o "Senhor da Minha Loucura", o "Senhor da rianas são, via de regra, ornadas com objetos Confusão" e o "Senhor da Estupidez", de de metal). Mas não devemos concluir daí que forma que passa a conhecer "o caminho para se trata apenas de um valor cultural superes- as várias doenças do homem". Logo em setrutural. A metalurgia tem, de fato, a guida ele passa sete dias enfeitiçado pelas especificidade de trazer à tona o processo de pedras que se abrem, uma-a-uma, contandoindividuação da matéria, de torná-lo esteti- lhe "como podiam ser usadas pela humanidade". Por fim, ele passa por uma abertura em camente acessível (cf.Deleuze:1979). uma pedra e se depara com um "homem nu" que "avivava o fogo com um fole". 42
Entre os esquimós, por exemplo, umas das etapas da iniciação ao xamanismo consiste na visão, pelo neófito, de seu próprio esqueleto: "Essa experiência exige um longo esforço de ascese física e de contem plação mental cujo objetivo é a obtenção da capacidade de ver-se como esqueleto . [...] 'Embora nenhum xamã consiga explicar como nem por quê, é capaz de, graças ao poder que seu corpo recebe do sobrenatural, despojar seu corpo da carne e do sangue, de tal maneira que só fiquem os ossos. Deve então denominar todas as partes de seu corpo, mencionar cada osso pelo nome [...]. Ao contemplar-se assim, nu e completamente despojado da carne e do sangue perecíveis e efêmeros, ele se consagra [...] à sua gran de missão, através dessa parte de seu corpo que está destinada a resistir mais à ação do sol, do vento e do tempo'." (p.81) Para um exemplo amazônico do papel dos ossos no xamanismo ( Baniwa ), cf.Wright (1998:213). Para uma consideração conceitual relevante da relação entre a carne e o osso, cf.Deleuze ( 2000).
"Quando [o homem nu] me viu, trouxe um par de tenazes do tamanho de uma tenda e agarroume. Pegou na minha cabeça e cortou-a, e a seguir cortou o meu corpo em pequenos bocados e pô-los num caldeirão, onde os ferveu durante três anos. Em seguida, colocou-me numa bigorna e bateu na minha cabeça com um martelo e mergulhou-a em água gelada, para a temperar. Tirou do fogo o caldeirão onde tinha fervido o meu corpo e despejou o conteúdo noutro recipiente. Neste momento, já todos os meus músculos estavam separados dos ossos. Eis -me aqui, a falar convosco num estado de espírito normal, e nem consigo dizer em quantos bocados foi dividido o meu corpo. Mas nós, xamãs, temos vários ossos e mús culos extra. Eu vi que eram três as partes que eu tinha, duas para músculos e uma para ossos. Quando todos os meus ossos foram separados da carne, o ferreiro disseme: 'A tua medula transformou-se num rio', e no interior da cabana eu vi realmente um rio com os meus
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ossos a flutuarem. E disse o ferreiro: 'Olha, lá vão os teus ossos rio abaixo!', e começou a tirá-los da água com as tenazes. Depois de todos os meus ossos terem sido puxados para as margens, o ferreiro reuniu-os, e recobriram-se de carne, e o meu corpo voltou a ter a aparência que tivera. Todavia, a minha cabeça continuava separada. Parecia um crânio esfolado. O ferreiro revestiu-o de carne e juntou-o ao tronco. Voltei a ter a minha anterior forma humana. Furou-me as orelhas com o seu dedo de ferro e disse-me: 'Conseguirás ouvir e compreender a fala das plantas'. Depois disto, encontrei-me numa montanha e, logo a seguir, acordei na minha própria tenda. Ao pé de mim, muito preocu pados, estavam sentados o meu pai e a minha mãe." (Vitebsky, 2001a:60-1)
houve uma transferência de técnicas corporais do ferreiro mítico para Dyukhade. Eliade, que apresenta o mesmo relato em seu livro, revela que quando o ferreiro mítico joga a cabeça de Dyukhade em uma panela com água gelada "para temperar", ele o faz para ensinar-lhe que "quando o xamã for chamado para tratar de alguém, se a água estiver quente demais, será inútil recorrer às capacidades de xamã, pois o homem já estará perdido; se a água estiver morna, ele estará doente, mas ficará curado; a água fria é característica de um homem são" (p. 58). Com isso vemos duas coisas: ( 1) Dyukhade iria se curar, pois a água estava gelada; (2) a sensação da temperatura da água em sua cabeça se torna uma técnica de diagnóstico transferida 43 diretamente para o corpo do iniciando . Outra contribuição de Eliade a este relato se refere à parte em que a cabeça, última parte do corpo ainda deslocada, é colocada no lugar. Além de revesti-la de carne e juntá-la ao tronco, o ferreiro mítico "[f]orjou sua cabeça e mostrou-lhe como ler as letras que estão dentro" (p.58). Trata-se provavelmente de um conhecimento secreto gravado pelo ferreiro
O "homem nu", espécie de ferreiro mítico, despedaça o corpo de Dyukhade, tra balha laboriosamente as suas partes e então as encaixa novamente em seus devidos lugares com pequenas e importantes modificações. O que ocorre aqui é literalmente um processo de transferência tecnológica entre o ferreiro mítico e o corpo do iniciando, onde este se encontra em uma espécie de êxtase contemplativo. Nota-se nitidamente uma distinção entre o tratamento reservado à cabeça de Dyukhade, que é arrancada, cortada e trabalhada na bigorna, e ao resto de seu corpo, que é despedaçado e dissolvido em água fervente. Além disso, notase também uma atenção à distinção quantita- 43 Outro exemplo de transferência corporal de técnicas tiva e qualitativa entre seus ossos e seus diagnósticas automáticas pode ser encontrado no semúsculos. A explicação para tudo isso não guinte relato de Orlando Villas Bôas sobre a iniciação pode ser simples e superficial e deve levar xamânica de Sapaim ( Xing u): "Para terminar a cerio mamaé [espírito] [...] aspirou fortemente a em conta elementos tão heterogêneos da ex- mônia, cigarrilha e lançou a fumaça num dos próprios braços periência quanto os seus aspectos físicos, e em seguida no outro. Dentro de um deles, alguma biológicos e psicosociais. O que ocorre com coisa estava se mexendo. Sapaim olhou e percebeu o seu corpo enquanto ele o vê sendo despe- esse movimento. O mamaé explicou: [...] _'Isto que daçado e trabalhado pelo ferreiro mítico? você está vendo, quando é no braço direito, é sinal de o doente não vai morrer. Quando é no braço esComo se dá o investimento de desejo nas que querdo, o doente morre. [...] Onde você quer que eu diferentes partes do corpo e nas transforma- ponha essa força?' [...] Sapaim respon deu: [...] _'Em ções operadas pelo ferreiro mítico (e como meu ombro.' [...] Daí ficou acertado que um doente este investimento se reflete na experiência de tratado por Sapaim, se nele provocasse um movimento Dyukhade)? Quais são as relações de poder no ombro direito, era sinal de que não morreria; se o envolvidas em cada um dos objetos e proces- movimento fosse no esquerdo, fatalmente o doente morreria." ( 2000:64-5) Evidentemente, em uma sociesos envolvidos nesta viagem? Seria dade que leva a sério o trabalho do xamã, técnicas necessário muito mais material do que dis- como estas representam considerável poder político. pomos para responder a estas questões. O Rituais xamânicos são dispendiosos e envolvem toda a que podemos dizer com certeza é que o pro- comunidade. Decidir quando não vale mais a pena cesso de desmembramento, transformação e tentar salvar a vida de uma pessoa é uma decisão emocional e técnica, mas também política e econômica. remontagem do corpo do iniciando é uma Sobre a dimensão política do xamanismo xingüense, experiência extática, e que nesta experiência cf.Müller (1990:138-45) e Bastos ( 1985). 13
mítico dentro do crânio de Dyukhade e que, um relato de iniciação australiano em que o como a técnica térmica já citada, o auxiliará xamã conta que foi atacado por um velho em seu novo ofício. Por fim, além de "furar" curandeiro que lhe atirou algumas pedras as orelhas de Dyukhade a fim de que este atnongara (cristais que os xamãs possuem possa compreender a fala das plantas, Eliade dentro do corpo e que lhes dão poder): nos conta que o ferreiro mítico também "Algumas das pedras o atingiram no peito, "[t]rocou seus olhos e por isso, quando atua outras lhe atravessaram a cabeça de uma orelha à outra como xamã, ele não enxerga com os olhos e o mataram. Depois, o velho tirou todos os seus órfísicos, mas com esses olhos místicos" (p. 58). gãos internos – intestino, fígado, coração e pulmões – O ferreiro mítico, em poucas palavras, pegou e deixou-o estirado no chão a noite toda. Voltou no um corpo humano doente e o transformou em dia seguinte, olhou para ele e, depois de colocar outras um corpo sobrehumano capaz de curar. Tra- pedras atnongara dentro de seu corpo, de seus braços ta-se literalmente de uma transferência e de suas pernas, cobriu-o de folhas; em seguida cantou sobre seu corpo até que este ficasse inchado. tecnológica, "a técnica e a teoria subjacente a Encheu-o então de órgãos novos, depositou nele mu iessa técnica, transmitidas através da inicia- tas outras pedras atnongara, deu-lhe tapinhas na ção" (p.26- 7). Toda a violência deste cabeça, que o reanimaram e o fizeram ficar em pé de processo enfatiza a ruptura da experiência, um salto. Então o velho medicine-man deu-lhe água beber e carne para comer, com p edras atnongara . como se para enfatizar que o nascimento do para Quando ele acordou, não sabia onde estava." (p. 64-5) corpo do xamã exige a morte daquele do iniciando. Como bem notou Sullivan, "[o] corpo Outro exemplo relevante é o ritual de do xamã é parte de sua tecnologia" ( 1988:418) iniciação ao xamanismo dos dayaks Uma variação deste processo de (Bornéu), que comporta três cerimônias difetransferência tecnológica corporal dos espíri- rentes das quais a segunda nos interessa mais tos ao iniciando é a introdução, de novos diretamente: órgãos ou objetos dentro do corpo do iniciando/xamã. Já vimos isso no caso do ferro "Depois de uma noite de encantamentos, os usado para religar os ossos do corpo des- velhos manangs conduzem o neófito até um aposento membrado do iniciando iacuto e no caso da isolado por cortinas. 'Ali, segundo afirmam, cortamtroca dos olhos de Dyukhade. Vejamos agora lhe a cabeça e retiram-lhe o cérebro, que, depois de 14
mos citar aqui o devoramento de seu corpo por espíritos responsáveis por determinadas doenças, com o objetivo de torná-lo imune a elas e capaz de curá-las tanto em si mesmo quanto nos outros. Alguns relatos de rituais iniciáticos de xamãs iacutos, por exemplo, contam que, após a retirada da alma do candidato de seu corpo por uma espécie de mestre-animal mítico (" Ave-de-Rapina Mãe"):
lavado, é reposto no lugar, a fim de dar ao candidato uma inteligência límpida para poder penetrar os mistérios dos maus espíritos e das doenças; em seguida, introduzem ouro em seus olhos, a fim de dar-lhe uma visão suficientemente penetrante para ver a alma onde quer que ela possa encontrar-se perdida, a errar. Im plantam-lhe ganchos dentados nas pontas dos dedos para torna-lo capaz de capturar a alma e prende-la com força; finalmente, varam-lhe o coração com uma flecha para torna-lo compassivo e cheio de simpatia pelos que estão doentes e sofrem'." (p. 75)
Muitos exemplos desta introdução de "[A ave mítica] [t]oma-lhe a alma, leva-a paobjetos e de novos órgãos no corpo do inici45 44 ra o Inferno e deixa-a amadurecer sobre o galho de ando/xamã poderiam ser apresentados aqui . um abeto negro. Quando a alma atinge a maturidade, a Trata-se de um traço comum e generalizado ave volta à terra, corta o corpo do candidato em pedadas iniciações ao xamanismo. O importante é cinhos e os distribui entre os maus espíritos das notar que todas estas modificações corporais doenças e da morte. Cada um dos espíritos devora a operadas pelos espíritos e mestres rituais têm parte do corpo que lhe cabe, cujo efeito é conferir ao o principal objetivo de transferir, para o cor- futuro xamã a faculdade de curar as doenças corres pondentes. Depois de terem devorado o corpo todo, os po do iniciando, tecnologias terapêuticas maus espíritos se afastam. A Ave-Mãe recoloca os eficazes. A ênfase nesta transferência corpo- ossos no lugar, e o candidato acorda como se de um ral deve nos alertar para o fato de que não se sono profundo." (p.52-3) trata de um aprendizado abstrato, ou mesmo fruto de esforço consciente. O neófito não O êxtase iniciático já é evidente na deve apenas decorar fórmulas ou imitar téc- idéia de separação entre a alma do candidato nicas. Neste caso estamos lidando com a xamã, que passa por um processo de matutransformações muito profundas da vida, ração como se fosse uma cria da ave mítica tanto conscientes como inconscientes. Na (ou mesmo um ovo?), e o seu corpo, que é maior parte das vezes o iniciando não escolhe despedaçado e distribuído para os "maus esas técnicas que quer assimilar. Elas simples- píritos das doenças e da morte". O importante mente lhe são introduzidas no corpo e aqui é perceber que neste caso a transferência passam a funcionar para ele, como um idio- de tecnologia terapêutica dos espíritos ao ma nos é introduzido sem que possamos candidato se dá através do devoramento de escolher e passa a funcionar em nós. Mas diferentes partes de seu corpo por espíritos além da troca/limpeza/transformação de ór- correspondentes a cada doença específica. gãos e da introdução de novos órgãos e Como uma vacina que torna o organismo objetos no corpo, muitos outros meios são imune à doença através da contaminação ainda empregados pelos mestres espirituais controlada dele, os espíritos tornam o futuro para transferir ao neófito as suas técnicas terapêuticas do êxtase. Dentre elas, podería- 45 Vale lembrar que o que Eliade chama de "Inferno" dificilmente corresponde, para o xamã, àquilo que normalmente entendemos pelo mesmo termo. A facilidade com que Eliade coloria seu material com sua própria religiosidade já é bem conhecida. Narby e Huxley, por exemplo, não hesitam em afirmar que Eliade "queria que o xamã fosse para o céu", "priorizava os 'vôos celestiais' em detrimento dos 'infernais'" e que suas distinções entre êxtase e possessão "tinham mais a ver com suas crenças religiosas do que com os fatos" ( 2001:75, 76). Tudo isso é verdade, mas não deve nos impedir de aproveitar o lado positivo das descobertas de Eliade.
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No xamanismo sul-americano, a introdução de farpas, lascas (de pedra ou madeira) e espinhos no corpo do neófito com a função de lhe servir como armas e recursos terapêuticos também é uma constan te. Entre os Desana , por exemplo o xamã-mestre introduz lascas e espinhos mágicos no antebraço dos futuros xamãs, com o objetivo de armá-los para suas futuras batalhas com inimigos. "Estas farpas podem ser atiradas em uma pessoa, independentemente da distância, com um movimento violento do braço" (Reichel-Dolmatoff, 1997:130). 1
xamã imune às doenças que provocam (e mãs míticos47 e até mesmo seus familiares. capaz de curá-las) através do consumo con- Nesta nova individuação, percebemos que o 46 trolado de seu corpo . Não se trata de um horizonte de acontecimentos já não se encon banquete caótico. Os pedaços são distribuí- tra mais tão nitidamente delimitado, dos sob a supervisão da ave mítica e "[c]ada misturando suas relações com os espíritos, um dos espíritos devora a parte do corpo que com o seu corpo e com os membros de sua lhe cabe". O fim do êxtase iniciático se dá família. O limite não está ausente, é claro; ele com a recomposição do corpo do novo xamã apenas se tornou menos nítido, na medida em pela ave mítica, dando especial ênfase aos que já não o vemos tão facilmente de uma ossos. Acordar do sono profundo é retornar perspectiva transcendente. Já vimos que o do êxtase. Ser capaz de retornar do êxtase é sacrifício do corpo do iniciando é condição já ser portador de determinadas técnicas do para a produção do corpo sobrehumano do êxtase. xamã. No entanto, vemos agora que este saEm outro exemplo de ritual iniciático crifício não é nem apenas imaginário e nem iacuto, os iniciandos são literalmente "cho- restrito ao seu corpo biológico. As transforcados" em um ovo cósmico pela ave mítica: mações corporais que ocorrem na iniciação ao xamanismo podem muito bem exigir "Quando a alma sai do ovo, a Ave-Mãe a en- transformações corporais em outras pessoas, trega para ser instruída a uma diaba-xamã que só tem ou mesmo a morte delas. um olho, um braço e um osso. Esta nina a alma do O importante aqui é perceber que é futuro xamã num berço de ferro e o alimenta com sangue coagulado. Surgem em seguida três 'diabos' parte central da transferência tecnológica negros que lhe cortam o corpo em pedaços, enfiam-lhe operada no corpo do xamã em seu êxtase uma lança na cabeça e jogam nacos de carne em dife- iniciático uma certa "ruptura" ou "passagem rentes direções, à guisa de oferendas. Três outros perigosa", onde um limite será traçado e algo 'diabos' cortam-lhe a mandíbula, um pedaço para cada do antigo estado ficará de fora do novo estadoença que ele deverá curar. Se porventura faltar um do. Já vimos que algumas técnicas de osso no cômputo final, um membro de sua família diagnóstico transmitidas aos xamãs pelos deverá morrer para substituí-lo. Pode acontecer de morrerem até nove parentes." (p. 53-4) mestres espirituais lhe conferem grande poder, na medida em que lhe permitem afirmar, A morte corporal do candidato em com uma autoridade análoga à que conferiêxtase é um devir-xamã, e o horizonte de mos a nossos médicos, se ainda vale a pena acontecimentos deste devir é justamente o investir na cura de uma pessoa. Vemos agora ovo da ave mítica. Mas como cada individu- que este poder também se estende à necessiação completada reinicia o processo, assim dade ritual de sacrificar a vida de que sai do ovo o candidato (na forma de al- determinadas pessoas, uma autoridade que, ma) já se encontra em outro processo de na nossa sociedade, é exclusiva do Estado. O individuação, agora envolvendo a sua relação fato de que sociedades indígenas são, nas com o seu corpo mediada por espíritos, xa- palavras de Pierre Clastres (2003 [1973]), contra o Estado, não quer dizer que não tenham leis, códigos, costumes, moral e ética. Muito 46 Outro exemplo, uma variação do relato apresentado pelo contrário, a diferença é que tudo isso acima: "Segundo outra informação de iacutos, os maus não está situado em um patamar superior, espíritos levam a alma do futuro xamã para o Inferno e transcendente, acima das relações sociais lá a encerram numa casa durante três anos [...]. É ali como um molde, mas sim no meio delas, no que o xamã passa pela iniciação: cortam-lhe a cabeça corpo de seus membros, continuamente em e a deixam de lado (pois o candidato deve ver com os contato modulativo com suas pulsões. próprios olhos o seu desmembramento); em seguida, cortam-no em pedacinhos, que são distribuídos aos espíritos das diversas doenças. Só com essa condição o xamã adquire o poder de curar. Seus ossos são então recobertos de nova carne, e em certos cas os dão-lhe também sangue novo." (p.53)
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Já não é necessário dizer que o que Eliade chama de "diaba-xamã" ou "diabos" provavelmente não pode ser entendido à luz da mitologia cristã. 16
É em "êxtase" que o xamã atravessa a "ponte perigosa", axis mundi ("abertura central" que corresponde ao "Centro do Mundo") que conecta os diferentes níveis verticais do cosmos. Estes diferentes níveis, como se viu, não eram separados no "tempo mítico" (quando humanos e animais, morte e vida, cosmos e caos ainda não eram distintos), sendo esta "ruptura" ("queda") causada por algum acontecimento catastrófico mítico que inaugura o tempo profano e que dá origem também à morte e ao fluxo das almas dos mortos pelo axis mundi. Vimos que a iniciação xamânica consiste principalmente em uma experiência extático-mórbida (uma nova "ruptura", só que agora no sentido inverso), que coloca o xamã em contato direto com o "tempo mítico", aonde lhe é revelada a tecnologia do sagrado que lhe permitirá colocar em prática as "técnicas do êxtase". O xamã morreu, subiu pelo caminho dos mortos (axis mundi ), acessou o "tempo mítico", aprendeu a "geografia mítica", a "fisiologia extática" (cf.Sullivan, 1988:418- 20), a "genealogia mítica" (deuses e espíritos), enfim, toda a "tecnologia xamânica" (as técnicas do êxtase, dentre as quais uma das mais importantes é a 48 capacidade de reverter o próprio êxtase ), e assim se tornou um híbrido (homem/espírito, vivo/morto, humano/animal, etc.), hierofania antropomórfica capaz de simultaneamente sair de seu corpo e viajar pelos diferentes níveis do cosmos, e de colocar estes diferentes níveis do cosmos em contato com o mundo humano através do retorno ao seu corpo. A XI S MUNDI
(TRANSVERSALIDADE DIAGRAMÁTICA) importante notar que a noção de "ruptura/passagem" deriva de uma cosmologia bastante específica, que se apoia princi palmente sobre dois aspectos: ( 1) a concep-
É 48
"One of the most important techniques learned during apprenticeship is the ability to return from ecstasy and seclusion. Control over ecstasy demands proof that one can bring the episode to an end."(Sullivan, 1988:404).
ção de um cosmos múltiplo, composto de níveis e perspectivas; e (2) a existência de um "centro" no cosmos onde a comunicação 49 entre estes níveis e perspectivas é possível . Vejamos, então, uma passagem aonde Eliade relaciona a "técnica xamânica por excelência" com aquilo que ele chamou de "estrutura do Universo": "A técnica xamânica por excelência consiste na passagem de uma região cósmica para outra, da Terra para o Céu ou da Terra para o Inferno. O xamã conhece o mistério da ruptura de níveis. Essa comunicação entre as zonas cósmicas é possível graças à própria estrutura do Universo. Isso porque, como veremos a seguir, este é concebido em três níveis – Céu, Terra e Inferno – interligados por um eixo central. O simbolismo pelo qual se expressam o vínculo e a comunicação entre as três zonas cósmicas é bastante complexo e nem sempre isento de contradições: [...] há três grandes regiões cósmicas, que podem ser atravessadas sucessivamente porque se encontram ligadas por um eixo central. Esse eixo passa por uma 'abertura', um 'buraco'; é por ele que os deuses descem à terra e os mortos vão para as regiões subterrâneas; é tam bém por ele que a alma do xamã em êxtase pode subir voando ou descer quando de suas viagens ce lestes ou infernais."(p. 287)
A "estrutura do Universo" consiste, portanto, em "níveis" ou "zonas cósmicas" (que Eliade enumera em três e rotula como 50 "Céu", "Terra" e "Inferno" ) que são "interligadas" por um "eixo central". E é por este 51 "eixo central" , na forma de "abertura" ou
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A importância desta cosmologia para o xamanismo em geral parece fora de questão, como atesta a sua reiteração (mesmo que em termos ligeiramente diferentes) por Langdon em ocasião da apresentação das características necessárias a "uma nova perspectiva na definição do xamanismo". Ela fala de um "universo em múltiplos níveis, onde a realidade visível supõe sempre uma outra invisível" e de um "princípio geral de energia que unifica o universo" (Langdon, 1996:27). 50
Como já vimos, seria preciso aqui submeter estas classificações a uma "crítica etnológica rigorosa", visto que "céu" e "inferno" nos parecem rótulos limitados para lidar com a riqueza cosmológica dos êxtases xamânicos. 51
Eliade usa ainda, entre outros, "Centro do Mundo", "eixo cósmico", "Eixo do Mundo" e "axis mundi" para 17
"buraco", que os última instância, em 55 deuses, os mortos e qualquer forma . os xamãs "atravesEliade dedica todo o sam" as três "zonas oitavo capítulo de cósmicas", e que a seu livro ( Xamanis"comunicação" entre mo e Cosmologia) ao elas se torna possítema, e ainda o retovel. As técnicas do 56 ma diversas vezes , êxtase seriam então, tamanha é a sua imcomo que uma "tec portância e nologia das rupturas complexidade. Mas, de níveis ontológi perguntemos novacos", e o xamã, um mente, se o universo "técnico midiático possui um "centro", e cósmico". Mas se o ele pode estar em universo possui um qualquer lugar, onde centro, onde está ele? estará e por que estaEstamos aqui ria em qualquer tratando daquilo que lugar? E visto ser o Eliade chama de "centro" que liga os "Simbolismo do 52 diferentes níveis cósmicos, e o xamã o único Centro" , que extrapola o domínio do xamaque pode acessá-lo à vontade através das nismo e é retomado em praticamente todas as técnicas do êxtase, poderíamos ainda acressuas obras, visto que representa a própria centar: Qual é a relação do xamã com este 53 "essência" da religião . O "centro" pode se processo? Para responder a estas questões, 54 manifestar das mais variadas formas e, em faz-se necessário conhecer a noção eliadeana de "hierofania", que sintetiza aquilo que o autor denominou "dialética do sagrado" e
se referir à mesma noção de "eixo central". Darei preferência ao termo " axis mundi". 52
"O simbolismo do 'centro' não é necessariamente uma idéia cosmológica. Na origem, é 'centro' – po ssível sede de uma ruptura de níveis – qualquer espaço sagrado, isto é, qualquer espaço que seja marcado por uma hierofania e que manifeste realidades [...] não pertencentes ao nosso mundo, provenientes de outro lugar, especialmente do Céu. Chegou-se à idéia de 'centro' através da vivência de locais sagrados, im pregnados de uma presença transumana: nesse ponto preciso alguma coisa de cima (ou de baixo) manifes tou-se. Mais tarde, imaginou-se que a própria manifestação do sagrado, em si, implicava uma ruptura de níveis."(p.287-8). 53
Refiro-me aqui à função do " centro" como "ligação" entre os diferentes " níveis cósmicos", separados em ocasião da "criação do mundo", e à provável origem latina do termo : re-ligare. 54
Alguns dos exemplos citados por Eliade são: "Árvore Cósmica", "Árvore do Mundo" (ou simplesmente "árvore", ou "bétula"), "Montanha Cósmica", "Montanha Central" (ou simplesmente "montanha"), "Ponte de Cinvat" (ou simplesmente "ponte"), "Pilar do Mun-
do" (ou simplesmente "pilar"), "topo do mundo", "ápice", "tambor", "altar", "mastro", "corda", "cipó", "escada", "corrente de flechas", "cavalo" "barco" e "arco-íris". "Todas essas imagens simbólicas da ligação entre Céu e Terra não passam de variantes [...] do Axis Mun di ." (p.533; itálico no original). 55
Eliade faz tipificações como "plano macrocósmico" ("Árvore, Montanha, Pilar etc.") e "plano microcósmico" ("pilar central da habitação ou [...] abertura superior da tenda") (p. 293) para falar das diversas manifestações do axis mundi, mas não deixa dúvidas de que "qualquer fragmento do Cosmos pode originar uma hierofania, em conformidade com a dialética do sagrado" (p.127). É interessante notar que Durkheim também defende de "qualquer coisa pode ser sagrada" (1964:37), sendo o seu maior inconveniente a redução do sagrado à " idéia do sagrado" (1964:40), fazendo assim da relação sa grado/profano uma relação lógica e intelectual (mesmo que " obscura"), uma "representação" em vez de uma "experiência". 56
E.g. p.59, 142, 196, 199, 220, 252, 399, 433, 440-1.
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ilumina o processo de "singularização" do xamã: "De fato, as hierofanias mais elementares nada mais são que uma separação radical, de valor ontológico, entre um objeto qualquer e a zona cósmica circundante: uma pedra, uma árvore, um lugar, justamente porque se revelam sagrados, por terem sido de algum modo 'escolhidos' como receptáculo de uma manifestação do sagrado, separam-se ontologicamente das outras pedras, das outras árvores e dos outros lugares e situam-se num plano diferente, sobrenatural. [...] Agora importa observar a simetria existente entre, de um lado a singularização pela eleição, pela 'escolha', daqueles que vivenciam o sagrado com uma intensidade que não é a mesma do restante da comunidade, daqueles que de certo modo encarnam esse sagrado, já que o vivem intensamente, ou melhor, 'são vividos' pela 'forma' religiosa que os escolheu (deus, espírito, antepassado etc.)." (p. 46-7)
imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar [...], escada [...], mo ntanha, árvore, cipós etc.; ( d ) em torno desse eixo cósmico estende-se o 'Mundo' ('nosso mu ndo') – logo, o eixo encontra-se 'ao meio', no 'umbigo da Terra', é o Centro do Mundo." (Eliade, 1995:38)
Axis mundi,
portanto, é o "eixo do mundo", o "Centro do Mundo", que por sua vez corresponde ao "centro do Universo", e o "sistema do Mundo", "estrutura do Universo", é o pressuposto e a base para a sua existência. Temos, assim, a idéia de "verticalidade": diferentes níveis, cuja sustentação/comunicação se dá por uma coluna central. Além disso, como vimos, esta coluna/eixo central pode estar em qualquer pedaço do mundo (inclusive em uma pessoa), bastando apenas que nele haja uma "manifestação do sagrado" (uma O "centro", portanto, é "centro" por- "hierofania"). que nele "o sagrado se manifestou", e o xamã TEMPO M ÍTICO, M ETAMORFOSE representa o caso de uma "hierofania antroE CRIAÇÃO pomórfica", uma "manifestação do sagrado" na forma de pessoa. É notável a ausência de uma definição explícita para o sagrado, não etomando agora o nosso trajeto até o só em Eliade, mas na maioria dos pesquisaconceito de axis mundi poderemos dores de "fenômenos religiosos" (cf. traçá-lo, através da noção de "hieroSullivan, 1988:699 nota 65). Por hora, basta fania", até a experiência de "ruptura". É a perceber a importância do "Simbolismo do experiência de "ruptura" da "morte ritual", Centro", na forma de um "eixo do mundo essencialmente "extática", que provoca a hierofânico" (axis mundi), para a compreen- "hierofania antropomórfica" própria ao xasão da experiência do êxtase xamânico. manismo. E é no conceito de "tempo mítico" que Eliade encontra a mais justa definição Como vimos, esta "coluna universal [...] que liga e sustenta o Céu e a Terra, e cuja base se para a experiência hierofânica/extática do encontra cravada no mundo de baixo" é o xamã. Será oportuno abordar esta noção a ponto específico do cosmos aonde a experi- partir da experiência xamânica de metamorência extática é realizada. Caminho dos fose, dada a "intensidade mística", mortos, poderíamos dizer que o conhecimen- dificilmente imaginada pela "mentalidade to de seu funcionamento corresponde à moderna, dessacralizada", presente nas "relações do xamã (como, aliás, do 'homem própria tecnologia do êxtase: primitivo' em geral) com os animais" (p.497):
R
"Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade do mu ndo habitável espalha-se à volta dela. Temos, pois, de considerar uma seqüência de concepções religiosas e imagens cosmológicas que são solidárias e se articulam num 'sistema', ao qual se pode chamar de 'sistema do Mundo' das sociedades tradicionais: ( a ) um lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade do espaço; (b ) essa rotura é simbolizada por uma 'abertura', pela qual se tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra [...]; (c) a comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo número de
"Para o homem primitivo, vestir a pele de um animal caçado eqüivalia a transformar-se nesse animal, a sentir-se transformado em animal. [...] Há razões para crer que essa transformação mágica acarretava uma 'saída de si mesmo' que se traduzia, com grande freqüência, por uma experiência extática. Ao se imitar o passo de um animal ou vestir sua pele, assumia-se um modo de ser sobre-humano. Não se tratava de regressão para uma 'vida animal' pura: o animal com o qual era feita a identificação já era portador de uma mitologia; na verdade, ele era um animal
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mítico, Ancestral ou Demiurgo. [...] Ao se esquecerem as limitações e as falsas medidas humanas, era possível encontrar – desde que se soubesse imitar convenientemente os costumes dos animais (andar, respiração, voz etc.) – uma nova dimensão da vida: espontaneidade, liberdade, 'simpatia' com todos os ritmos cósmicos e, portanto, bem-aventurança e imo rtalidade." (p.497-8)
Assim, vemos que "vestir a pele de um animal" "eqüivale" a "transformar-se nesse animal", "experiência extática" capaz de conduzir a "uma nova dimensão da vida". E seria justamente esta "nova dimensão da vida", alcançada paradoxalmente pela "morte ritual" do êxtase, que corresponderia à experiência do "tempo mítico". Esta relação, já implícita na natureza "mítica"/"ancestral" do animal-modelo da transformação, é explicitamente estabelecida por Eliade em diversas ocasiões, como quando trata do simbolismo ornitológico da psicopompia: "Os pássaros são psicopompos. Tornar-se pássaro ou ser acompanhado por um deles indica a capacidade de, ainda em vida, empreender a viagem extática para o Céu e o além. [...] Imitar as vozes dos animais, utilizar essa linguagem secreta durante a sessão é também sinal de que o xamã pode circular impunemente nos lugares aos quais só os mortos ou os deuses têm acesso. [...] Em numerosas tradições, a amizade com os animais e a compreensão da linguagem deles constituem síndromes paradisíacas. No princípio, ou seja, nos tempos míticos, o homem vivia em paz com os animais e compreendia sua língua. Foi só depois de uma catástrofe primordial, comparável à 'queda' da tradição bíblica, que o homem se tornou o que é hoje: mortal, sexuado, obrigado a trabalhar para alimentar-se e em conflito com os animais. Ao preparar-se para o êxtase, e durante o êxtase, o xamã suprime a condição humana atual e reencontra provisoriamente a situação inicial. A amizade com os animais, o conhecimento de sua língua, a transformação em animal são todos sinais de que o xamã recobrou a situação 'paradisíaca' perdida na aurora dos tempos." (p.118-9)
Temos aqui, portanto, o contraste entre a situação "paradisíaca" do "tempo mítico", quando "o homem vivia em paz com os 57 animais e compreendia sua língua" , e uma 57
Eliade fala também de uma certa "solidariedade mística entre o homem e o animal, nota dominante da religião dos paleocaçadores. Devido a essa solidarie-
"catástrofe primordial" que gera a "condição humana atual". Temos também que é o xamã, 58 através de técnicas de metamorfose , que transcende esta condição, recobrando a "situação "paradisíaca" perdida na aurora dos tempos". Como já vimos em relação à psico pompia, a tecnologia do êxtase consiste basicamente no conhecimento da "geografia mítica" (saber o "itinerário"), da sua ligação com o "mundo humano" (saber onde está o "centro") e das relações entre corpo e alma (saber como "sair de si mesmo"). Mas como acabamos de ver, a experiência extática de "passar", pelo "centro", para outro "nível cósmico", não consiste apenas num deslocamento espacial. É por isso que Eliade fala, por um lado, de uma "catástrofe primordial", e por outro, de uma "nova dimensão da vida", onde se encontram "espontaneidade, liberdade, "simpatia" com todos os ritmos cósmicos e, portanto, bem-aventurança e imortalidade" (p.498). A noção de "verticalidade" deve ser compreendida aqui menos em sua dimensão espacial e mais, como queria o próprio Eliade, em sua dimensão "existencial". Se, como já vimos, o axis mundi é o "centro do Universo" porque foi neste ponto que "o sagrado se manifestou", é preciso não perder de vista também que "a cada nova manifestação" o sagrado "retoma sua tendência primeira de revelar-se total e plenamente" (p.9). Assim, quando Eliade afirma que, no "êxtase do sonho", o "tempo histórico é abolido", o "tempo mítico" "recuperado", e o xamã pode "assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se contemporâneo tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais" (p.123), ele apenas confirma que toda "hierofania" ("até a mais elementar") dade, certos seres humanos são capazes de transformar-se em animais, de compreender a língua deles ou de compartilhar sua presciência e seus podere s ocultos."(p.113). 58
"Sempre que consegue participar do modo de se r dos animais, o xamã reabilita de certa forma a situação que existia in illo tempore , nos tempos míticos, quando a ruptura entre o homem e o mundo animal ainda não tinha sido consumada."(p.113). 20
corresponde, em última instância, à própria cosmogonia. A experiência ritual do "tempo mítico", portanto, não é "temporal", assim como a experiência extática do deslocamento vertical no axis mundi não é "espacial". Am bas as experiências coincidem, na verdade, com o contexto mítico primordial em que tanto "tempo" como "espaço" foram "criados", e passaram a existir na forma como nós os conhecemos. "Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do 'princípio'. [...] Seja qual for o tipo de ritual, [...] ele se desenvolve não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do espaço profano), mas também num 'tem po sagrado', 'era uma vez' (in illo tempore, ab origine ), ou seja, quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por um deus, um ancestral, ou um herói."(p. 28-9)
Mas se o "tempo mítico" é o "tempo da criação", e assim precede as próprias ex periências humanas de tempo e espaço, é lícito perguntar: o que existia antes da criação?; como se deu a criação?; e por que ela se deu? A noção de "queda", onipresente na obra de Eliade, corresponde ao momento crítico do mito cosmogônico em que "algo dá errado": algum tabu é violado, alguma lei é ignorada, ou alguma divindade é ofendida. Trata-se, na terminologia de Sullivan, da "catástrofe" que marca a passagem do "caos primordial" para o "cosmos", e poderia ser visto como o contexto "liminar" aonde "o sagrado se manifesta" "paradoxalmente" pelo seu próprio recolhimento para fora do alcance do mundo profano assim criado. O paradoxo aqui reside no fato de que morte e vida, criação e destruição, são opostos que se geram mutuamente por um impulso criativo comum, que antecede a oposição mas que só se manifesta com ela. Assim, antes da criação não pode existir nada a não ser o próprio ato criativo em si, eternamente em processo; a criação se dá, paradoxalmente, pela interrupção deste ato criativo primordial; e esta interrupção já estava implícita no próprio ato, na medida em que é apenas na criação que o ato criativo se manifesta.
Traçando mais uma vez o nosso trajeto até a noção de "ruptura" ("ruptura no nível ontológico", "rotura na homogeneidade do espaço", "passagem difícil", "perigosa" ou "estreita", "límen" que acarreta uma "mutação"/"transformação"/"iniciação"), mas comparando-a agora com a noção de " Queda", um ponto importante se evidencia. Como vimos, uma "ruptura" é condição necessária ao xamanismo: experiência extáticomórbida iniciática que provoca o rompimento das relações do neófito com o mundo humano/profano e ao mesmo tempo o coloca em contato com o mundo espiritual/sagrado (hierofania antropomórfica). Mas vimos também que uma "ruptura" é condição necessária igualmente ao cosmos: catástrofe que provoca o rompimento das comunicações fáceis entre o mundo humano e o mundo espiritual ("Queda") e ao mesmo tempo "cria", tanto a existência profana quanto a única forma de superá-la (hierofanias em geral). Assim, fazendo coincidir (paradoxalmente) a experiência de criador e de criatura no "tem po mítico" das hierofanias, a tecnologia xamânica das rupturas de níveis ontológicos (i.e, as técnicas do êxtase) pode finalmente ser compreendida como um agenciamento humano concreto e histórico que, no entanto, manifesta uma "qualidade de ser", um "modo de existência" trans-histórico, pois que transversal (e não transcendente) às suas categorias de tempo e espaço profanos.
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