Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Departamento de História
Memorial
2004
Sumário
1. Apresentação............ Apresentação......................... ........................... ........................... ........................... ........................... ....................3 .......3 2. Rio, família, primário.................. primário............................... ........................... ........................... ........................... ................7 ..7
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3. Lisboa em 66, o liceu em tempos de ditadura.................. ditadura............................... .............17 17 4. Paris em 74, Nanterre, e início da vida universitária.......... universitária.....................3 ...........33 3 5. Lisboa em 75, a revolução portuguesa e o curso de História......38 História......38 6. De volta ao Brasil, São Paulo em 78............................ 78......................................... ...................51 ......51 7. PUC em 83, e os sete anos na rede oficial de ensino....................55 ensino....................55 8. Cubatão em 88, quinze anos na Escola Técnica Federal..............68 Federal..............68 9. USP em 95, o início da pós-graduação....................... pós-graduação.................................... ....................73 .......73 10. CEFET em 2000, ensino em cursos superiores e publicações...82 publicações...82
1. Apre Aprese sent ntaç ação ão
Já se disse que não se deve julgar ninguém por aquilo que pensa de si próprio. Estamos sempre entre aquilo que fomos e aquilo que serrem se emos os e, dific ificililm men entte, po pode derríamo íamoss ter ter a pe perc rceepç pção ão de co com mo nos transformamos. Enfim, não podemos ser bons juízes de nós mesmos. Mas todos têm uma história. Assim, este Memorial pretende ser, essencialmente, uma apresentação de trajetória e um painel de atividades. Cheguei ao que poderíamos chamar de “vida consciente” em meados dos anos 70: alguns anos depois de 68, mas antes da ascensão de Reagan e Thatcher; depois dos Beatles, mas antes dos punks; a tempo de ver Pelé brilhar brilhar na Copa do México, e antes de Maradona; Maradona; quinze anos depois da pílula pílula e dez anos antes da epidemia epidemia da Aids. Se tivesse ficado no Brasil, teria teria Médic Mé dicii pel pelaa frent frente, e, ma mass esta estava va em Port Portug ugal al:: o 25 de abril abril de desp sper erto touu a primavera dos meus dezessete anos. Tive sorte. Eis o balanço resumido: tenho 47 anos, entre os nove e os vinte e um, vivi fora do Brasil, em Portugal e na França e, nesse período, fiz o último ano do primário, todos os meus estudos secundários, e os primeiros anos de faculdade. À exceção do primário e da graduação, quando de volta ao Brasil, sempre estudei em instituições públicas. Sou professor de História há vinte anos, bacharelado e licenciatura pela PUC de São Paulo, e doutorado,
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3. Lisboa em 66, o liceu em tempos de ditadura.................. ditadura............................... .............17 17 4. Paris em 74, Nanterre, e início da vida universitária.......... universitária.....................3 ...........33 3 5. Lisboa em 75, a revolução portuguesa e o curso de História......38 História......38 6. De volta ao Brasil, São Paulo em 78............................ 78......................................... ...................51 ......51 7. PUC em 83, e os sete anos na rede oficial de ensino....................55 ensino....................55 8. Cubatão em 88, quinze anos na Escola Técnica Federal..............68 Federal..............68 9. USP em 95, o início da pós-graduação....................... pós-graduação.................................... ....................73 .......73 10. CEFET em 2000, ensino em cursos superiores e publicações...82 publicações...82
1. Apre Aprese sent ntaç ação ão
Já se disse que não se deve julgar ninguém por aquilo que pensa de si próprio. Estamos sempre entre aquilo que fomos e aquilo que serrem se emos os e, dific ificililm men entte, po pode derríamo íamoss ter ter a pe perc rceepç pção ão de co com mo nos transformamos. Enfim, não podemos ser bons juízes de nós mesmos. Mas todos têm uma história. Assim, este Memorial pretende ser, essencialmente, uma apresentação de trajetória e um painel de atividades. Cheguei ao que poderíamos chamar de “vida consciente” em meados dos anos 70: alguns anos depois de 68, mas antes da ascensão de Reagan e Thatcher; depois dos Beatles, mas antes dos punks; a tempo de ver Pelé brilhar brilhar na Copa do México, e antes de Maradona; Maradona; quinze anos depois da pílula pílula e dez anos antes da epidemia epidemia da Aids. Se tivesse ficado no Brasil, teria teria Médic Mé dicii pel pelaa frent frente, e, ma mass esta estava va em Port Portug ugal al:: o 25 de abril abril de desp sper erto touu a primavera dos meus dezessete anos. Tive sorte. Eis o balanço resumido: tenho 47 anos, entre os nove e os vinte e um, vivi fora do Brasil, em Portugal e na França e, nesse período, fiz o último ano do primário, todos os meus estudos secundários, e os primeiros anos de faculdade. À exceção do primário e da graduação, quando de volta ao Brasil, sempre estudei em instituições públicas. Sou professor de História há vinte anos, bacharelado e licenciatura pela PUC de São Paulo, e doutorado,
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em História, pela USP. Nem meus pais, nem os pais deles freqüentaram fa facu culd ldad ades es.. Sou Sou o ún únic icoo de minh minhaa fa famí míliliaa qu quee comp comple leto touu um umaa ed educa ucaçã çãoo superior. Durante sete anos fui professor de História no ensino médio da Rede Oficial de Ensino do Estado de São Paulo, na capital. Trabalho, desde 1988, no CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica), a antiga Escola Técnica Federal de São Paulo, onde ingressei através de concurso público, e sou professor efetivo com dedicação exclusiva. Ensinei, nos últimos quatro anos, no curso superior de Tecnologia do Turismo. Tenho uma filha, de uma relação amorosa anterior, hoje com 13 anos, que vive comigo. Nunca me casei, nem diante da Igreja, nem diante do Estado. Mantenho, no entanto, uma união estável há seis anos. Que mais dizer? Nasci no Rio, estudei em Portugal e voltei sozinho para o Brasil, com vinte e um anos, para viver em São Paulo. Gosto de pensar que sou carioca, paulista, mas, também, lisboeta. Preservo as três identidades, sem renegar nenhuma. Sou levemente estrábico, não como carne, fumante em tratamento, esforçado corredor, motociclista incorrigível, amador em
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irremediavelmente, ateu. Não precisei de uma “pitada de candomblé” para me sentir próximo próximo do povo brasileiro. brasileiro. Neto de italianos, aprendi aprendi a viver a intensidade da vida nos prazeres mais simples. Fui educado em um ambiente afrancesado, nos valores, e anglófilo, nos costumes. Cheguei à vida adulta sofrendo forte influência política de exilados argentinos, mas voltei sozinho ao país em que nasci, por uma opção consciente. Nunca duvidei nem me arrependi desta escolha. Acho que uma parte do meu coração será para sempre português, mas pertenço a duas culturas, unidas pela mesma língua, paradoxalmente, tão próximas, e tão diferentes. A vida me fez filho das duas, e nunca considerei nece ne cess ssár ário io ren enun unci ciar ar a um umaa de dela las. s. Sou, Sou, po porrtant tanto, o, bras brasilileeiro, iro, mas as,, internacionalista.
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A franqueza exige dizer que, ainda jovem, me uni à causa do socialismo. Essa escolha militante não foi incomum entre os da minha geração, por muitas e variadas razões, que serão adiante exploradas. Embora de extração social privilegiada no Brasil, porque filho da classe média assalariada, funcionários públicos de uma burocracia que se profissionalizava, em um Brasil que crescia e se urbanizava, minha vida foi atropelada na madrugada de um, hoje, longínquo 25 de Abril, em Lisboa, nos idos de 1974. Nasceu, então, uma fé de que o improvável era possível. Decidi unir o meu destino à luta do movimento dos trabalhadores. Como tantos outros, e após tantos outros, os anos me levaram a inocência. O tempo é inexorável, e a experiência é implacável. Nem as ilusões que não queremos perder, permanecem intactas. Esse compromisso, contudo, mesmo quando assumiu formas diferenciadas, nunca diminuiu. Até hoje, aquela esperança do 25 de Abril permanece viva, ainda que a espera seja longa. Como sentenciou Hobsbawm com a máxima simplicidade, ao encerrar sua autobiografia: “o mundo não vai melhorar sozinho ”.
Cheguei ao marxismo na resistência à ditadura de Marcelo Caetano, em Portugal, e sendo estrangeiro, me senti irresistivelmente atraído pelo internacionalismo. Associei-me aos “troskos”, uma das tendências mais críticas. Nos últimos trinta anos, a paixão desse marxismo de juventude foi sendo polida, corrigida, talvez, ou qualificada, sob muitas e variadas influências que, adiante, serão apresentadas, porém, permaneceu. Muitos, presumivelmente, considerarão minhas idéias radicais. Alguns dos que conviveram ao meu lado admitiram, no entanto, que me apreciavam, justamente, por tentar ser um homem razoável, cooperativo, e até sensato, considerando-se as preferências políticas. Agrada-me acreditar que os dois juízos não são incompatíveis. Escrever este Memorial, me coloca em uma situação ingrata, porque obriga a uma narrativa do que fiz, e do que a vida me fez, que obedece a critérios muito diferentes de tudo que já tive escrever. Sou avesso às confissões intimistas. Em suma, tema e forma do Memorial, ambos, me são
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desconfortáveis. Não vou mentir: não creio que a humildade seja uma das minhas qualidades. Por isso mesmo, sempre temi a exposição da subjetividade porque envolve se aventurar em terreno minado. Portanto, como ensina a sabedoria popular, “quem avisa não é traidor...” O memorial que se segue foi redigido utilizando como critério de periodização a ênfase nos momentos de ruptura, de descontinuidade, de fratura. Resumindo e, como em todo resumo, sendo brutal: toda vida possui as suas mudanças de rumos decisivas, os grandes divisores de águas que podem decorrer de decisões voluntárias, ou de circunstâncias que nos escapam, impostas pela força dos acontecimentos que nos cercam, mas, dificilmente, podemos ter a percepção plena de seu sentido, a não ser, talvez, retrospectivamente. Interagimos com os outros, permanentemente, e não permancemos imunes à força de pressão do mundo, e do tempo em que vivemos. Essas condições estão tão amalgamadas, quase sempre, que o esforço de descobrir o fio, de umas e de outras, será sempre uma obra de ourivesaria subjetiva. Mas acredito que são esses momentos de crise e a forma como os superamos que, em grande medida, explicam as pessoas em que nos tornamos. Não me furtarei, portanto, a comentar as circunstâncias dolorosas de conflito que oferecem sentido a uma vida. Minha trajetória escolar e acadêmica será apresentada seguindo as oscilações de meu percurso profissional e militante. Afinal, dos últimos vinte e oito anos, passei quinze estudando em três países e em quatro Universidades: Paris X/Nanterre, Clássica de Lisboa, PUC/SP e USP. Um memorial supõe a exposição de um candidato e de sua obra. Mas, o que dizer de alguém que não possui uma obra? Meus focos de interesse e pesquisa são Teoria e Contemporânea e, colateralmente, Relações Internacionais. A última parte de minha tese de doutorado sai em livro, este primeiro semestre de 2003, sob o título de “As Esquinas Perigosas da História”, uma pesquisa na área da Teoria da História, sobre o significado do
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conceito de revolução política e revolução social, na tradição marxista, e os critérios de periodização das revoluções do século XX. As três primeiras partes ainda precisam ser editadas, em função do excesso de notas que correspondem às necessidades acadêmicas, mas que, no papel, seriam excessivas para um público mais amplo. Tenho algo em torno de vinte textos, entre capítulos de livros e ensaios, publicados em livros organizados por outros colegas, como Armando Boito da Unicamp, e Jorge Almeida da UFBA, e, sobretudo, em revistas como a Crítica Marxista, Margem Esquerda, Novos Rumos, Outubro, Lutas Sociais, e na Argentina, a revista Herramienta. Em uma palavra, sou
assíduo colaborador das revistas teórico-acadêmicas de inspiração marxista. Contribuo, regularmente, com a revista de teoria da instituição na qual trabalho, a Sinergia , uma publicação semestral do CEFET de São Paulo, que já acolheu quatro dos meus trabalhos. Apresentei, também, artigos para a revista História Hoje, da Anpuh, e Diálogos , da Universidade de Maringá. Os artigos já publicaos em papel, estão disponíveis, também, em um site que mantenho na internet, no endereço, www.arcary.cjb.net Acredito, todavia, que somos mais, e mais complexos que nossa produção científica: temos uma história profissional e intelectual, um caminho humano e político, um rumo pessoal e social. Por isso, não silenciarei acerca de mim. Nas páginas que se seguem, não me esconderei como uma sombra por trás da apresentação do meu trabalho. Serão expostas as condições históricas e biográficas que pressionaram e condicionaram a formação de um pensamento e de uma prática que só elas podem explicar. Por último, ter chegado até aqui, e concorrer a uma vaga na Universidade Federal do Rio de Janeiro, só foi possível graças à colaboração direta ou indireta de muitas pessoas. Não sei se cabem agradecimentos em um memorial, mas como devo falar sobre o que fiz em minha vida acadêmica e profissional, me parece inconcebível silenciar sobre as dívidas que carrego comigo. Não me fiz sozinho.
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Nesta apresentação é impossível citar todas essas influências teóricas, exemplos de caráter, lições de vida e inspirações políticas, recolhidas durante muitos anos. Ao longo do texto, as referências serão oportunamente apresentadas. Mas não posso deixar de dizer que, tudo o que fiz, foi produto de um ambiente e de um tempo. E, sobretudo, de muita gente, de ações e frustrações, de uma luta que foi minha, mas também de outros, engajados em um combate de inconformados que sempre se renova e recomeça, na capacidade de crítica que não há de se perder. Essas e esses, uma gente que não teme a aventura de descobrir sempre uma nova esperança, dispensarão a citação, porque já sabem. 2. Rio, família, primário.
Ensina a sabedoria popular que as aparências iludem. Um mal entendido persistente, de vinte e cinco anos, me atribui a nacionalidade portuguesa. Meu sotaque tem um indisfarçável acento lusitano porque vivi em Portugal a adolescência. Mas nem eu, nem os meus pais somos portugueses. Nasci no dia 13 de novembro de 1956, em Copacabana, cidade do Rio de Janeiro. Sou filho de Aldo Emmanuel Arcary e Zina Arcary. A família de meu pai chegou no Brasil no início da década de 90 do século XIX. Italianos, meus bisavós, Didimo e Libera Arcari, já estavam casados quando cruzaram o Atlântico e deixaram a pequena aldeia nos arredores de Mântua, na fronteira entre a Lombardia e o Vêneto. Outros cinco Arcari’s vieram para São Paulo. Diz a memória familiar que meu avô nasceu no navio. Quando foi registrado, o i italiano foi grafado como y, por razões que desconheço, e assim ficou. Esse é o nome, com a grafia errada que a vida assimilou, que deixei, também, para minha filha. Fixaram-se no vale do Itajaí, no interior de Santa Catarina entre Brusque e Gaspar, como colonos. Meu pai nasceu na cidade portuária e centro pesqueiro de Itajaí em 1922, o mais novo de três filhos, quando meu avô já tinha aberto um pequeno negócio de secos e molhados e, ao lado, um
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bilhar. Visitando a cidade há poucos anos, descobri que ele foi getulista de primeira hora: está no centro da foto de um comício da Aliança Liberal, exposta no Museu de Itajaí. A irmã de meu pai contraiu tuberculose na adolescência e, a partir daí, todas as energias e recursos da família se esgotaram, para reunir as condições para o tratamento longo e caríssimo em Campos de Jordão, no interior de São Paulo. Foi em vão. Meu pai não completou sequer os estudos secundários. Meu avô inscreveu o filho mais novo na Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Florianópolis, quando ele tinha somente quatorze anos. A idade teve que ser alterada, com a cumplicidade do Cartório, porque a Marinha não aceitava ninguém tão jovem. Foi uma punição, porque meu pai era um guri indisciplinado que roubava frutas nos quintais dos vizinhos. Orgulhoso, ele só voltou a Itajaí para casar, mais de quinze anos depois, em 1952. Nessa época, pleno Estado Novo, a Marinha era, sem exageros, um dos piores destinos que um adolescente podia ter no Brasil. O regime interno disciplinar era, para dizer o mínimo, fascista e pós-escravista. Meu pai sobreviveu a esse martírio por doze anos, e permaneceu como marinheiro até 1948. A única compensação foi que esses anos embarcados durante período de guerra, contaram em dobro para a aposentadoria. Na Marinha, ele sofreu as privações mais indignas e descobriu, impiedosamente, o preconceito de classe, mas conheceu, também, a literatura de esquerda. Nunca foi politicamente ativo, porém aderiu a uma visão igualitarista do mundo. Manteve a identidade socialista até o fim. Aprendeu, também, para garantir a sobrevivência, aquele que seria o ofício de sua vida. Virou jogador de cartas. O pôker foi como uma vocação. Alfabetizado e inteligente, se fez autodidata. Tinha uma capacidade assombrosa de memorização instantânea. Quando abandonou a Marinha, fixou-se no Rio, e foi viver em uma hospedaria na Lapa. Só podia depender de si próprio. Desde muito jovem, era consciente de que o mundo podia ser impiedoso e não alimentava ilusões. Vivia do jogo e, com muita freqüência,
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ganhava. Mas pouco, porque só tinha acesso a mesas de apostas baixas. Homem de fino trato, divertido e elegante, se fez amigo da boêmia carioca, (de quem recebeu a alcunha de Comandante Catarino por ser de Santa Catarina), da “Cavalaria Aérea da Marinha”. O título conquistado na malandragem o acompanhou até o fim. Nessa época, o Rio fervilhava de emigrantes que chegavam de todas as partes do mundo. A maioria era espanhola e portuguesa. Alguns trabalhavam como garçons. E havia muitas recepções oficiais e grandes bailes para as autoridades e a alta sociedade. Amigo dos garçons, companheiros de hospedaria, meu pai passou a freqüentar esses ambientes. Entrava pela cozinha, e como tinha “boa aparência”, ou seja, era branco e educado, passava desapercebido. Conheceu minha mãe em um banquete do Itamaraty, em homenagem ao Rei da Suécia que visitava o Brasil, e se apaixonaram. Pertenciam a meios sociais e culturais muito distantes. Entretanto, conta a memória familiar que o Rio de então, mais do que a capital, era onde batia o coração de um Brasil cheio de esperanças, em rápido processo de urbanização. Essa era a percepção que eles tinham. Sou filho desse encontro insólito. Minha mãe nasceu no Rio de Janeiro, em 1925, filha de Ely Montarroyos e de Antonio Braga Teixeira Leite. Ambas as famílias remontam a várias gerações no Brasil e são, presumivelmente, resultado das mais diversas miscigenações. O avô de minha mãe, Eliseu Montarroyos, foi o único membro da família que teve notoriedade pública. Nasceu no Maranhão, foi coronel do Exército e fervoroso republicano, um dos divulgadores pioneiros do positivismo no Brasil. Personagem misterioso, visitou a minha infância pelas histórias que ouvia de minha avó. Parece que era vinculado a Floriano Peixoto. Alguns anos depois da revolução de 1891, recebeu como sinecura um posto na Embaixada em Paris. Comprou uma impressionante “maison bourgeoise” em Carrière-sur-la-Seine, nos arredores de Paris, onde posteriormente vivi, quando estudava em Nanterre. Tenho muitas dúvidas se era um “jacobino”, como alguns interpretaram a ala florianista. No entanto,
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pelo menos com a família, foi de uma radicalidade intransigente e, digamos, pouco republicana. Viajou com a mulher e dez filhos, mas depois de uma breve estadia, talvez por crise de inadaptação, todos retornaram ao Brasil, à exceção de minha avó. Já o coronel deixou de ter contacto com a família, desresponsabilizou-se materialmente dos filhos, e nunca mais voltou. Casou de novo com uma francesa e viveu, como se dizia na família, em bigamia, e desse amor nasceu o meu tio Toutou. Minha avó, talvez porque fosse a filha mais nova, foi a única poupada e permaneceu alguns anos com o pai. Gaúcha de nascimento teve a oportunidade de uma juventude abastada e uma educação francesa, e conviveu alguns anos com o meio-irmão, com quem sempre foi muito unida. Mas quando voltou para o Brasil, fez um casamento infeliz. Depois que todos os filhos casaram, abandonou a perspectiva de uma velhice confortável e separou-se, mais que uma façanha, uma odisséia, para as mulheres de sua geração. Viveu até o fim de seus dias como uma mulher independente, sobrevivendo de seu humilde trabalho de costura, com uma simplicidade e dignidade exemplar. Era de confissão espírita, religião que minha mãe também adotou. Com ela aprendi canções populares como o “Frére Jacques” e o “Sur le pont d’Avignon”, os rudimentos do francês, e tudo o mais que faz um homem se olhar no espelho de manhã para fazer a barba sem sentir vergonha e culpa, e que não cabe em palavras. Não guardou da vida um grão de amargura. Foi a mulher mais delicada que conheci em toda minha vida. Meu avô materno era dono de um armazém no Cais do Porto do Rio. Os Teixeira Leite eram uma família de proprietários rurais do Sul de Minas e da região de Vassouras, na Serra do Rio, que chegou a enriquecer em meados do XIX, com direito até a título aristocrático, daqueles que o Império não se fazia rogado em distribuir, para inventar uma tradição e legitimar uma fortuna construída “à bala e chicote”. Depois mergulharam, ao longo de duas gerações, em uma decadência improdutiva e perderam tudo.
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Meu avô nunca progrediu nos negócios. Viveram em um bairro dos subúrbios da zona norte do Rio, a Piedade, e as viagens se restringiam à visita de parentes em São Francisco de Xavier, nada mais que algumas estações de trem mais próximas do centro. Há meio século atrás, para a esmagadora maioria das pessoas e, também, para a minha família, o mundo a que tinham acesso, tanto no sentido geográfico quanto cultural, era muito pequeno. Apesar desses limites, conseguiu oferecer uma educação de qualidade aos três filhos. Minha mãe e sua irmã completaram o ensino secundário em escola particular, uma conquista para os meios pequeno-burgueses cariocas de então. Entretanto tiveram de começar a trabalhar aos dezoito anos, porque era preciso garantir os estudos para meu tio, que foi ser oficial do Exército, uma das carreiras mais ambicionadas pela classe média proprietária. Familiarizada com o francês, que aprendeu em casa, minha mãe foi professora primária, mas logo prestou um concurso e ingressou no Itamaraty, na condição de oficial de chancelaria, o “baixo clero” do Ministério, função que exerceu a vida inteira, até a aposentadoria em 1989. Abraçou uma visão de mundo liberal e avançada nos costumes, mas, essencialmente, apolítica. Foi sempre uma lutadora. E uma das pioneiras de sua geração: quando a relação com meu pai chegou a um ponto sem saída, em 1966, porque os projetos de vida eram incompatíveis, não hesitou em assumir a separação. Conseguiu uma transferência para Lisboa, e embarcou “com a cara e a coragem”, e com dois filhos para criar sozinha. Desde então, acreditou em mim, quando até eu mesmo duvidei, e isso diz tudo. Os anos 50 foram uma década de ascensão social para minha família. Mudança para a Zona Sul, compra de apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal em Copacabana, telefone, geladeira, televisão, Ford Falcon, empregada doméstica, título de clube, terapia freudiana, e até operação plástica. Em uma palavra: o pacote de consumo inteiro da nova classe média assalariada de funcionários públicos em cargos de confiança. Minha mãe fez uma carreira fulminante no Itamaraty: esteve na
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Colômbia durante a revolução de Gaitán, serviu um ano na ONU em Nova York, e chegou à posição de secretária do Ministro dos Negócios Estrangeiros no Governo Jango. Trabalhou quarenta anos no Itamaraty, mas depois de 1964, sempre em posições discretas na burocracia de Embaixada, em Lisboa, e de Consulado, em Barcelona. O posto mais alto a que teve acesso foi o de vice-cônsul em Barcelona, ademais, uma substituição de alguns meses... Meu pai foi trabalhar na Polícia federal como investigador, por força de um “pistolão”, articulado por minha mãe. Durante a crise da posse de Café Filho, se alinhou ao lado dos que estavam com o marechal Lott, e se posicionou com a ala antigolpista, em uma área de influência do Partido Comunista. Mas não se engajou. Usufruía alegremente o recém conquistado bem-estar econômico. Sua nova respeitabilidade social abriu portas e, assim, conseguiu acesso a um outro meio social para o carteado. Era instável, mas continuava ganhando muito mais do que perdendo, e gastando muito mais do que ganhava. Foi nesse ambiente que nasci. O Rio da minha infância era a Capital do Brasil, e ainda não tinha perdido a condição de centro político e cultural mais importante do país. Dizem os censos que o Brasil de 1956 ainda era um país esmagadoramente rural, e com uma ocupação territorial essencialmente costeira, ainda que em rápido processo de expansão de fronteiras agrícolas para o Centro-Oeste Norte e de industrialização, no que viriam a ser as grandes regiões metropolitanas. Para quem viveu na zona sul do Rio nesses anos, a infância já era uma vida de cidade: não subi em árvores, nunca colhi uma fruta no pé, e somente aos oito anos andei a cavalo em uma colônia de férias. E, se bem me lembro, era um cavalo cego de um olho e muito velho. Copacabana já era verticalizada, com edifícios de mais de dez andares, intenso trânsito de automóveis, multidões nas ruas, bancas de jornal e revistas em cada esquina. Mas nada comparável ao formigueiro de mais de meio milhão de pessoas de hoje. Tinha uma febril atividade comercial na
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Avenida Copacabana durante o dia, e, à noite, era o pólo da vida boêmia e artística da cidade, que meus pais freqüentavam. Enfim, sou filho da vida e da cultura urbana. Naqueles dias, para o olhar de um menino, Copacabana era sobretudo a praia de todos os dias de manhã, o picolé chicabon do carroceiro que também vendia a cobiçada jujuba , e a sessão de Tom e Jerry no cine Metro aos domingos de manhã. Em uma palavra, era divertido. E o encontro com os garotos da rua, brancos, negros e mulatos, filhos de advogados, médicos ou funcionários públicos, mas também os filhos dos porteiros e domésticas. Era uma brincadeira entre iguais: trocávamos figurinhas, íamos pular muros de obras ou jogar bola de gude. O valor de cada um não se media pela riqueza dos pais. Ninguém tinha ainda bicicleta, e quando elas começaram a aparecer, as Calói e as Monarks, uns emprestavam aos outros. Entretanto, mesmo criança, não podia ignorar o racismo. Nasci em um tempo de esperança e de mobilidade social ascendente, mas, para os que vinham do meio social da classe média baixa carioca, se a sociedade multirracial era, incomparavelmente, menos segregada que nos dia de hoje - pelo menos na infância - porque podíamos brincar nas ruas, era muito claro que não éramos, de fato, iguais: na escola particular não havia meninos e meninas negras. A dissimulação do preconceito era epidérmica. Devo admitir que minha família nuclear era racista, discretamente, como era de bom tom em círculos progressistas. Já a família “ampliada” era menos cuidadosa e, em eventos comemorativos, ouvi expressões discriminatórias, que se evitavam no apartamento de meus pais: crioula, negão, etc... A pigmentação da pele, a cor dos olhos e dos cabelos, ou a morfologia dos lábios e do nariz, me pareceram, sempre, critérios ridículos e, fundamentalmente, infames para a discriminação das pessoas. A igualdade mais fundamental da condição humana é que somos diferentes. Desde jovem reconheci, em grande medida intuitivamente, que a maioria das
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necessidades mais intensamente sentidas são iguais, mas os seres humanos são diversos. Tenho sangue O positivo, pernas tortas, inabilidade com as mãos, fortes vertigens, excelente ouvido e olfato e, dizem, uma voz melodiosa, mas não creio que essas características me diminuam ou engrandeçam – tanto como a pele morena, o nariz avantajado, os cabelos crespos, os olhos castanhos ou o queixo pequeno - e, portanto, associem ou discriminem de outros, por semelhança ou estranhamento. Em uma palavra, não reconheço a existência de raças, a não ser como uma construção cultural e histórica. Sou estrábico e tenho uma hipermetropia que me deixou com menos de 20% de capacidade de visão no olho esquerda desde criança, mesmo tendo usado o tapa-olho “de pirata” durante anos. Quis a sorte que a vista direita fosse saudável. Fui para a pré-escola aos três anos, naquele tempo, uma idade precoce. Minhas lembranças mais remotas datam desse período. Era muito tímido, reservado e ultracontido, e só com o tempo aprendi a disciplinar a insegurança. Divirto-me recordando uma atividade esdrúxula: no intervalo, tínhamos no pátio uma imensa quantidade de pneus para empurrar. Nunca entendi o valor pedagógico desse jogo. Não vendo quase nada do lado esquerdo, cedo descobri que perdia facilmente o equilíbrio. Na minha lembrança, passei um bom tempo sendo derrubado e caindo. Do Primário, me lembro que cantávamos o hino nacional todos os dias, alternando às vezes com o hino da República ou da bandeira, alinhados em formação militar, porém não havia educação religiosa. Cadernos e cadernos de caligrafia, tabuada decorada, muitos deveres e, claro, os afluentes do Amazonas. Não tive dificuldades em incorporar os critérios que a Escola impunha, até mesmo o contrário, me sentia confortável em um ambiente previsível. Fui um bom aluno. Devo confessar que não me lembro de nenhum dos professores desse período, só da memorização da tabuada. As amizades do primário no Rio se perderam com a minha mudança, e nos desencontramos para sempre.
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Somos dois irmãos: eu sou o mais velho. Embora a diferença de idade fosse mínima, pouco mais do que um ano, nunca fomos próximos, embora tenhamos respeito e confiança mútua. Creio que nossa falta de intimidade se poderia explicar como diferenças de personalidade. Desde cedo, preferi guardar para mim mesmo meus sentimentos e construí um mundo próprio de interesses que me poupou das intensas turbulências emocionais de minha família. Sobrevivi, razoavelmente ileso e intacto, à separação de meus pais ou, pelo menos, essa foi a percepção que construí para mim mesmo. Meu irmão sofreu as seqüelas de uma infância adoentada, de uma juventude incompreendida, e de uma adolescência ressentida. Nunca superou um relacionamento, ao mesmo tempo, magoado e perturbado com a mãe. Em nossa educação, sempre se valorizou o conhecimento e as oportunidades de acesso à cultura, ou seja, os estudos. Não fomos filhos de intelectuais, mas havia livros, revistas e jornais na casa da nossa infância. Não tivemos educação religiosa, portanto, nunca fui batizado. Também nunca senti inclinações místicas. Enquanto o casamento de meus pais não desmoronou, havia alguma “joie de vivre”, e até uma sensação de confiança de que o futuro seria melhor. Não venho, portanto, de uma educação espartana, não conheci o que se costuma chamar uma pobreza austera, nem sequer a insegurança material. Mas não seria justo, se não acrescentasse que havia uma ética de honradez em casa. Embora distantes, consumidos pelos afazeres da vida material, meus pais deixavam bem claro que nós tínhamos, também, responsabilidades. Durante a semana, de segunda a sexta, quem cuidava dos dois garotos era uma empregada doméstica, a Pedrina, que morava em São Gonçalo. Era com ela que íamos para a praia e fazíamos as refeições, e ela era, de alguma maneira, uma janela para um mundo que nós não conhecíamos: era negra, e a família vivia em São Gonçalo. Nunca vi uma favela de perto antes de sair do Brasil, nunca entrei na Central do Brasil para
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ir de trem para a Zona Norte, ou seja, meu mundo infantil tinha como fronteira o túnel e acabava no centro da cidade onde ficava a Cinelândia e o Itamaraty. O que me surpreendeu e, por isso, sempre guardei como lembrança, foi a Pedrina comentar que, na sua casa, eram tão pobres que não se comia galinha nem no domingo. Nessa época, dormíamos antes das 21 horas e não assistíamos a telejornais e, mesmo a televisão, que só chegou quando eu tinha uns quatro ou cinco anos, era controladíssima, para os padrões atuais: só me lembro do seriado do Batman. A percepção do que ocorria no Brasil era muito remota, e só parcialmente captada nas entrelinhas das conversas dos adultos. Recordo-me somente de uma referência política direta, um comentário crítico de meu pai a respeito da intervenção de tropas norteamericanas no Vietnam, que terminava com o invariável - você acha que isso está certo?- e nada mais. Meu pai nunca escondeu dos filhos que ganhava dinheiro no jogo de cartas. Mas havia algo de cavalheiresco naquela figura alta e magra, sedutora e divertida, sempre às voltas com projetos lunáticos de enriquecimento, que enfureciam e enlouqueciam minha mãe, meio quixotesco até, mas que, curiosamente, sempre insistia em fazer o elogio da perseverança das pessoas que lutavam duramente pela sobrevivência. Na malandragem, tinha feito da astúcia a sua arma, mas não queria essa vida para os filhos. Ensinou-me que, quem não sabe contra quem luta, não pode vencer, com uma imagem divertida: “quando, em uma mesa de pôker, você não sabe quem é o otário que vai ser depenado, é porque o otário é você, e os outros já sabem”. Minha mãe proibiu terminantemente que os filhos participassem de jogos de azar. Ao que me lembre, essa foi a minha principal interdição infantil. Até hoje nunca assisti uma corrida de cavalos, não aposto em loterias e só compro rifas por solidariedade, e com total desinteresse. O impacto da revolução cubana atraiu também a minha mãe, e pode-se dizer que cresci em um ambiente vagamente socialista, que se acentuou depois de 64.
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Mas o mais importante da minha infância pode ser resumido em um episódio. Eu era ainda um menino e não podia ter mais do que nove anos. E meu pai era ausente, sempre ocupadíssimo, entre trabalhos e jogatinas. Mas naquela manhã, um daqueles dias luminosos que o Rio tem, tínhamos saído juntos, talvez para tomar um picolé e fazer compras para o almoço. Quando voltávamos para o apartamento, felizes da vida, vimos aquela cena insólita. Dois guris estavam engalfinhados em uma luta feroz. Um deles era um garoto que meu pai já tinha visto brincando comigo, e o outro, um rapaz mais velho e imensamente maior. O menino estava apanhando para chuchu. Brigavam por causa de umas bolas de gude que o grandalhão queria tirar do moleque. Eu queria ir para casa, mas meu pai segurava a minha mão com força. E então, à queima roupa, ele me disparou aquela fatídica pergunta: você não vai fazer nada? Foi ali que fui colocado pela primeira vez diante de um dilema moral. Porque a escolha era entre o ruim e o muito ruim. Ou eu não reagia, prostrado pelo medo, e seria julgado por meu pai como um covarde, ou intercedia a favor de meu amigo, e, provavelmente, apanhava uma surra. Foi assim que aprendi a primeira lição ética de minha vida. Daquelas que não se esquece. Em uma luta entre desiguais, a indiferença é sempre a cumplicidade com o mais forte. Mais tarde aprendi que não é simples a diferença entre o certo e o errado, mas isso não nos absolve de nada.
3. Lisboa em 66, liceu, ditadura salazarista, guerra e militância.
Quando cursava a quarta série, minha mãe decidiu se separar e resolveu colocar, literalmente, um oceano de distância entre ela meu pai. As circunstâncias no Itamaraty tinham mudado da noite para o dia, depois de 64. As oportunidades dependiam de aceitar uma mudança para Brasília ou para o exterior. Não sei se ela achou que Brasília seria perto demais, mas o certo é que fomos para Lisboa.
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Foi um alívio, porque as brigas dentro de casa tinham se tornado uma rotina apocalíptica. Tinha então 9 anos, e só voltei a encontrar meu pai aos 21, quando voltei sozinho para o Brasil em 1978. Lisboa era uma cidade muito diferente do Rio, até porque tinha quatro estações muito demarcadas e, mais importante, uma delas era o inverno. Salazar ainda estava vivo, e o país já sangrava os custos econômicos e sociais da guerra colonial. O Rio era uma cidade incomparavelmente mais alegre, mas como minha casa tinha uma atmosfera pesada, o sossego de uma Lisboa provinciana e o ambiente familiar renovado foram imensamente confortáveis. Viajamos em agosto, no meio do ano letivo, e retomei do início o antigo quarto ano do primário no final de setembro, no Colégio Pestalozzi, uma escola particular um pouco especial, onde estudavam muitos filhos de presos políticos do salazarismo. Lucinda era a diretora do Colégio e professora do quarto ano, uma senhora de mais de cinqüenta anos, e imensamente mais velha que as minhas professoras na Escola Brasileira da Criança, em Ipanema. Alertou minha mãe que o exame de admissão ao Liceu era muito difícil e que existia uma defasagem de aprendizado, pela diferença dos programas escolares. Seria impossível, legalmente, prestar o exame somente com a metade do quarto ano cursado, ainda mais vindo do estrangeiro. Evidentemente, ela estava certa. Perdi meio ano com a mudança, mas a recompensa foi grande. Enfrentei, em 67, o exame de acesso sem dificuldades e conquistei matrícula em um dos dois principais liceus masculinos de Lisboa, o Pedro Nunes. Minha adaptação foi rápida e bem sucedida. Descobri, depois de voltar ao Brasil, que a imagem do país, entre nós, não tinha muita correspondência com a realidade da Lisboa em que vivi. Embora atrasado para padrões europeus, e amordaçado por décadas de ditadura obscurantista, Portugal não era uma nação camponesa. Creio que uma definição apropriada do meio social em que estávamos inseridos, os círculos de classe média “ilustrada”, seria dizer que eram afrancesados na formação cultural, e anglófilos no comportamento: o universalismo iluminista e a vivacidade da “joie de vivre” gaulesa, mas sem a
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afetação parisiense, e os modos e costumes que se deveria exigir de damas e gentlemen, mas sem o senso de humor inglês. Em uma palavra, eram formais, mas não eram solenes. Esperava-se que um adolescente tivesse curiosidade e afinco intelectual nos estudos, e fibra, autodisciplina e contenção emocional como comportamento. Para mim foi fácil, mas para meu irmão, uma tragédia. Ele era intensidade sentimental à flor da pele, e se sentiu um peixe fora do aquário, ou pior, enjaulado. Quis a ironia da vida que fosse eu a voltar para o Brasil, e ele a ficar até hoje em Portugal, onde os seus dois filhos nasceram. Não havia liceus mistos. Nessa época, em Portugal, os filhos de todas as classes sociais estudavam o secundário em escolas públicas: entre meus colegas tive, por exemplo, um dos herdeiros do Banco Homem de Mello, que a revolução depois nacionalizou. A maioria esmagadora das escolas particulares era confessional. E as poucas que não eram, atraíam os repetentes crônicos, mas endinheirados, e não tinham prestígio. Sei que as modernas correntes pedagógicas condenam o ensino conteudístico e as arcaicas práticas do decoreba que minha geração ainda conheceu, e têm boas razões, com as quais, em geral, concordo. Mas não posso me queixar da educação secundária que conheci em Lisboa. Em Portugal, o ensino nas escolas públicas, nessa época, estava ainda impregnado de uma vaga influência religiosa no conteúdo, embora fosse laico na forma, por força da tradição republicana anticlerical. Mas se o ensino de Ciências, em geral, classificações e taxonomias, era obsoleto, o de humanidades era satisfatório. Foi uma fase do que poderíamos chamar de amadurecimento pós-infantil, mas muito diferente do que experimenta a minha filha nos dias de hoje, por exemplo. A televisão foi muito menos significativa e, talvez por isso, a erotização era mais tardia. Além das aulas, o que fazíamos? O futebol era onipresente para os garotos. Além disso, era filatelista, e me deslumbrava com os selos de países exóticos, sempre os mais impressionantes, como os do Qatar. Procurava no mapa a localização, para fazer uma organização por continentes. Virei um craque de geografia inútil. Dessa fase, me recordo do
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espanto quando descobri os selos de milhões de marcos da Alemanha durante Weimar. Lembro-me da ansiedade quando segurei um deles, pela primeira vez, e fui perguntar à minha mãe, se poderia ser realmente tão valioso!!! A descoberta da inflação foi uma amarga decepção. Lia muito Júlio Verne, descobri o xadrez e o ping-pong, que praticava todos os dias. E construí uma primeira grande amizade, que cultivo à distância até hoje, com Pedro Martins Rodrigues, filho de Chico Martins, comunista, dissidente pró-Pequim do PCP, ex-braço direito de Álvaro Cunhal, respeitado na China e na Europa, um dos mais famosos presos políticos do salazarismo. Fui acompanhá-lo uma vez, em uma vista ao pai, à revelia de minha mãe, em uma visita à prisão de Caxias, a Bastilha do Regime ditatorial, onde, felizmente, não me deixaram entrar. Aos treze anos, descobri que havia prisões, e homens nelas encarcerados pelas suas idéias. A ideologia imperialista era martelada desde o primário, e me recordo que esse orgulho não estava somente nos livros, mas nas ruas. Muitos de meus colegas tinham familiares espalhados pelas colônias. Todos aprendiam que viviam na metrópole de um grande império, multi-continental, que se estendia da Europa, à África e Ásia. Mas não me lembro de alguma vez ter sido discriminado como brasileiro. Éramos muito poucos, e a atitude em relação ao Brasil, sobretudo depois da exibição das primeiras novelas, como Gabriela e o Casarão, era de simpatia e curiosidade. A disciplina nos Liceus era semimilitar, em todos os terrenos e em todos os aspectos. A escala de avaliação era de 0 a 20, e os alunos que tivessem uma média trimestral, em todas as disciplinas, igual ou superior a 15 valores, iam para o quadro de honra, um destaque socialmente muito valorizado. Dominava uma ideologia de meritocracia, que era um dos valores que o regime tentava se apropriar como sua razão de ser. Os principais jornais diários publicavam os alunos que estavam no quadro de honra no Pedro Nunes, no Camões, no Padre Antônio Vieira, etc... Os Liceus eram poucos e, comparativamente às Escolas Estaduais de São Paulo, muito grandes, com vários milhares de alunos.
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Fui quase sempre aluno do “quadro de honra”, sem maiores esforços, um mínimo de disciplina antes das provas. Compensava notas regulares em matemática, que nunca me interessou senão como um jogo, com notas altas em língua portuguesa, história, geografia, francês e inglês. Nasci com bom ouvido, embora nunca tenha estudado música seriamente. Participei do canto coral do Liceu Pedro Nunes: era contralto e depois um barítono afinado, quando a voz mudou. Apresentávamo-nos com alguma regularidade entoando, sobretudo, por incrível que pareça, espirituais negros norte-americanos, porque nosso professor era açoriano, e a presença e influência cultural dos militares americanos era grande no arquipélago, mas também canções de natal e um ou outro canto alentejano. Aprendi a ler pautas, mas depois esqueci tudo. Cantar em um coral foi uma das experiências coletivas de maior intensidade emocional que conheci. A música
nos envolvia e nos conduzia, da melancolia ao êxtase. Quando fiz
quatorze anos, como grande parte dos jovens no início dos anos 70, comecei sozinho a arriscar algumas posições no violão, um hobby que guardei, mas nunca fui senão um aprendiz, uma frustração que ficou. Quando passei para o que hoje corresponde à sétima série, fui escolhido, junto a outros quarenta colegas para um projeto piloto. O Reitor do Liceu, um homem ilustrado e querido pelos alunos, tinha decidido juntar os melhores estudantes em uma mesma turma, e fazer uma experiência pedagógica diferente. Era um desses projetos piloto que valorizavam turmas homogêneas, mas pouco claro: tínhamos uma carga horária maior, de manhã e à tarde, e uma grade de disciplinas mais variada. Os pais estavam muito orgulhosos. Mas o fiasco foi completo. Entre outras razões porque o reitor se afastou, e o vice-reitor do Pedro Nunes era um aprendiz de Mussolini, um mini-tirano. Nesse ano começou a ser organizado um movimento estudantil secundarista com atividades de denúncia da guerra. Organizado por João Carlos Espada, que depois vim a conhecer, e hoje é um dos principais jornalistas do Expresso, a Veja local, a agitação de resistência à ditadura era rigorosamente clandestina: os panfletos eram deixados nos banheiros e ponto. A bandeira principal dos “comunicados”, como se diz em Portugal, era “Nem mais
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um só soldado para as Colônias”. Mas a minha turma era ainda muito jovem para compreender plenamente o drama de um país de dez milhões de habitantes, que insistia em manter Forças Armadas de 150.000 homens, um serviço militar de quatro anos, dos quais pelo menos dois em África, e uma estatística de um morto e um mutilado para cada três soldados que embarcavam para a Guiné, Angola e Moçambique. A guerra parecia muito distante. Uma distância que os anos seguintes foram reduzindo. Mas podíamos entender com facilidade que ficávamos na escola o dobro do tempo dos outros, tínhamos obrigações e deveres desproporcionalmente maiores e. promovidos à condição de cobaias pelo mérito, nos sentíamos no direito de reclamar dos professores mais obtusos. Não posso ser injusto: tínhamos, por exemplo, entre outros extraordinários mestres, o afamado poeta Antonio Gedeão, como professor. A gota d’água foi, como é comum ocorrer, uma arbitrariedade trivial: a proibição da participação de nossa turma no campeonato de futebol, porque coincidia com o horário das aulas extra. Foi assim que participei da primeira greve de minha vida. Bom, não há porque exagerar, foi só uma greve de silêncio, e algumas recusas de entrar na sala de alguns professores especialmente carrascos. Mas duraram três longos dias, e pareceu aos nossos olhos juvenis, algo como a “revolta do gueto de Varsóvia”. A fúria repressiva foi imediata e ameaças de expulsões estavam no ar. O Vice-Reitor, que era quem cuidava dos assuntos disciplinares, estava possesso. Uma reunião de pais foi convocada e, como vários entre eles eram pessoas muito influentes, o presidente da Radio Difusão Nacional, por exemplo, decidiu-se por algo brando: a turma foi dissolvida. Mas aí começaram as complicações para mim. Como eu não tinha um pai presente, e tomado por um atrevimento que, mesmo considerando a idade, só a força da mobilização poderia explicar, decidi não entregar a convocatória à minha mãe e, junto com um outro colega, Luís Quintaneiro, este órfão de pai, fomos nós mesmos à reunião, desafiar o Vice-Reitor. Até hoje me lembro do primeiro ato de insubordinação de minha vida. Gaguejamos, mas sem perder a dignidade. Foi um escândalo.
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Na seqüência, como precisavam de um bode expiatório, e como fui porta-voz dos meus colegas, fui acusado, junto com Luís, de ter quebrado intencionalmente o vidro de uma janela do corredor de acesso ao laboratório de Ciências. Insinuaram, também, para nossas mães, que seríamos responsáveis pela distribuição dos comunicados “subversivos”, o que era hilário. Fui convidado a mudar de Liceu no final do ano letivo, uma solução que evitava a expulsão, e permitia matrícula em outra Escola. As acusações, por suposto, eram falsas e não fui recriminado por minha mãe, que ficou apenas um pouco aborrecida pela minha arrogância de não ter compartilhado tudo que estava acontecendo, mas manteve-se incondicionalmente solidária. Na época, acho que senti até um olhar, da parte dela, de alguma maneira, mais altivo, por uns tempos. Foi o meu batismo político, por assim dizer. Discutindo depois em casa, aprendi uma lição: há sempre mais de uma maneira de fazer a coisa que se considera certa e, havendo escolha, só os tolos escolhem, por impulso, a mais perigosa. A experiência no Liceu Pedro Nunes tinha sido uma lição contundente. O que um jovem de quatorze anos podia saber sobre a ditadura salazarista era pouco ou quase nada, mas a partir daquela expulsão negociada, ficou claro para mim que o país estava dividido, irreconciliavelmente, entre os que apoiavam, e os que se opunham à ditadura e à guerra, e eu já sabia quem era a minha turma. Tinha terminado o que, na época, correspondia ao Ginásio no Brasil. Foi sem tristezas que, aos quinze anos, fui para o D.Pedro V, um dos primeiros Liceus mistos de Lisboa. Na época, me senti como saindo de um filme em preto e branco, e entrando em um filme a cores. No D.Pedro V, um liceu menos central, dirigido a uma clientela mais plebéia e popular, a educação continuava sendo um ensino dependente dos velhos manuais. Mas não havia a constelação de eruditos e famosos, que faziam do Pedro Nunes e do Camões, os dois mais respeitados liceus de Lisboa, onde se preparavam os filhos das classes proprietárias e da alta classe média para a Universidade. Os velhos compêndios tinham as assinaturas
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dos mestres que cruzávamos pelos corredores e que, eventualmente, nos davam aulas. A verdade é que já estavam muito idosos para motivarem adolescentes. Acredito até que devem ter sido excelentes professores, mas tínhamos um problema de comunicação insuperável. Depois de 68, havia entre os da minha idade, e os professores da velha guarda, mais do que um abismo geracional, o que poderíamos tentar descrever como... um abismo cultural. Simplesmente não podíamos compartilhar os mesmos critérios sobre praticamente nada. Felizmente, para mim, havia no Pedro V uma nova geração de professores, jovens saídos da universidade depois de 68, com inquietações culturais contemporâneas, engajados na preparação das aulas, e que estimulavam a reflexão crítica dos alunos. Mais informais, inconformados com o regime ditatorial e com a guerra colonial, se aproximavam dos alunos, ainda que com muitos cuidados. Tudo era suspeito, potencialmente. Entre eles, me recordo com afeição especial da professora de filosofia, Olga Pombo, à época, jovem de vinte e tantos anos, uma inteligência excepcional, pelo rigor e clareza de exposição, pela capacidade de mostrar a atualidade de textos escritos há séculos, e sobretudo por um raro sentido de justiça. Foi mais do que um ponto de apoio, uma inspiração. Casou com um dos meus contemporâneos, rompendo um casamento tradicional, depois do 25 de Abril, o que revela um pouco do espírito não conformista da época. Os dois são, atualmente, professores de filosofia na Universidade Clássica. Somos amigos pessoais até hoje. O que correspondia ao colégio, no Brasil, era somente o sexto e sétimo ano em Portugal. Até o quinto era uma grade curricular igual para todos, e também havia alternativas como clássico e científico. De quebra, com a passagem para o sexto ano secundário me livrei da matemática, e devo confessar que não senti saudades. A descoberta de interesse pela física só surgiu muito mais tarde, quando passei a ser um infalível leitor de todos e cada um dos livros de Carl Sagan. Fiz a opção por um formato de humanidades e línguas. Lembrome que as aulas de Português, Francês e Inglês, além de História e Filosofia eram, em geral, muito interessantes. Simultaneamente, me matriculei no Instituto
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Italiano, porque tinha muita facilidade para os idiomas, e porque alimentava uma relação sentimental com a terra dos antepassados de meu pai. Estudei um ano, mas depois parei quando fui para França. Praticava basquete, embora fosse apenas sofrível como jogador, mas em função da estatura alta, consegui ser selecionado para jogar pelo Benfica, um dos clubes importantes de Lisboa. Minha relação com os esportes, no entanto, sempre foi ambígua, porque não tinha inclinações competitivas. As circunstâncias também não ajudavam muito. O companheiro português de minha mãe, Jaime D`Almeida, com quem construí amizade íntima e perene até hoje, era fanático pelo Sporting, por causa do ciclismo, em geral, e do grande corredor Joaquim Agostinho, em especial. Ao estar longe de meu pai, não descobri na juventude a relação mágica de identidade do torcedor com seu time. Faço um parêntesis. Ao voltar para o Brasil compreendi que era meio suspeito de afetação não ter um time de futebol, então decidi que precisava de um critério para fazer uma escolha. Um velho amigo me recomendou o Flamengo: sendo carioca, não torcer pelo Flamengo era ter medo de ser feliz, mas não era razoável, já que vivia em São Paulo. Sendo esquerdista, poderia escolher o Corínthians, o time mais popular, mas nunca me convenci. O fator étnico seria impróprio, por considerações políticas, e torcer pela Lusa parecia artificial. Elegi a disciplina geográfica, e como sou morador das Perdizes, aderi ao Palmeiras. Receio que minhas escolhas foram sempre excessivamente racionais. Dos sete anos de Liceu guardei o que se convencionava chamar uma “base cultural”. Aprendi solidamente três idiomas, francês, inglês e castelhano, e tentei o alemão como optativa, mas fracassei, porque a professora e a língua me pareceram, ambos, impenetráveis. Estudei os clássicos da filosofia durante os últimos três anos, fui apresentado a Bacon, Descartes, Locke, Hobbes, Rousseau, Voltaire, e até Freud. Durante um ano li os Lusíadas, capítulo por capítulo, com interpretação em sala de aula, e no francês, líamos e interpretávamos Rabelais e Moliére. Mais importante, descobri aos treze anos minha paixão pela História. Tive a minha fase “egiptóloga”: fiz um trabalho apresentando cada um dos faraós das vinte e sete dinastias, recheado de
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desenhos que copiavam nos mínimos detalhes máscaras funerárias do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, que possuía um acervo considerável e passou a ser um dos meus endereços favoritos. Nos anos do Liceu adquiri alguns hábitos da disciplina do trabalho intelectual, e criei novas rotinas. Como ler jornal diário; carregar sempre um livro para ler no metrô e “autocarro”; antes de dormir, ler sempre algumas páginas de romance, porque a literatura ainda foi, para a minha geração, a porta de entrada para uma perspectiva estética, e até ética do mundo (muito Dostoiévski, trágico e perturbador, algum Ferreira de Castro, brutalmente realista, Jorge Amado, épico e brasileiríssimo, entre as preferências), às vezes sacrificando horas de sono; fazer anotações do que considerava significativo; dividir um problema em partes; ir do mais simples ao mais complexo; ao elaborar um texto, construir um projeto de trabalho e detalhar os objetivos, sem pular as etapas e procurando cercar o tema por diferentes ângulos; nunca tomar a palavra sem um plano do que se vai dizer e, portanto, sempre desconfiar do improviso; estar sempre disponível para a necessidade de conceitos e generalizações, sem desprezar que, quanto mais concreta a análise, isto é, mais próxima do objeto, mais riqueza de informação ela exige. E depois, em um processo que exigiu mais tempo de assimilação, o mais importante: perder o temor de fazer perguntas a quem sabe mais, em público ou em privado, mas sem ficar prisioneiro do medo simétrico de formular hipóteses alternativas por conta própria; e, também, admitir o erro, aceitar os limites, reconhecer a autoridade tanto do conhecimento como da experiência, sem confundir uma com a outra. Em uma palavra: estou convencido que, freqüentemente, se subestimam as qualidades do que foi o ensino dos anos 60 e 70, e as condições em que se ajudavam a desenvolver habilidades e competências, como hoje se diz. Minha vida foi atropelada, nesse momento, pelo 25 de Abril. Em fevereiro de 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro “Portugal e o Futuro”. Foi um marco porque, pela primeira vez, uma voz do mais alto comando das Forças Armadas, ex-comandante em chefe do Exército na Guiné-Bissau,
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desafiava o principal tabu da ditadura, admitindo publicamente que era impossível uma solução militar para o problema colonial. Spínola, no seu livro, defendia que o regime tomasse a iniciativa política de um projeto de descolonização inspirado no modelo inglês do pós-guerra. Para surpresa de todos, o Governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro, o que sinalizava que as divisões dentro do bloco de forças de sustentação do regime eram muito maiores do que parecia. O que nós não sabíamos então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média do Exército e da Marinha já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA, que vieram a estar à frente do 25 de abril. A repercussão do livro foi imensa, inclusive entre os jovens da minha geração que sabiam que, quem não conseguisse as notas mínimas de acesso, ou fracassasse nos exames, iria imediatamente para a “tropa”, assim que completasse o sétimo ano. Sendo brasileiro, esse problema não estava colocado para mim, mas me era impossível desconhecê-lo, porque atingia todos os meus amigos. Tive a mais comum das iniciações no movimento estudantil pós 68, debaixo de um regime ditatorial, ou seja, só fazíamos disparates inúteis. Mas adorávamos nossas destemidas aventuras. Minha primeira passeata foi quando Franco condenou Garmendia e Otaegui, dois militantes da ETA, à morte no garrote. Em solidariedade, nos concentramos, não mais do que cem secundaristas, na Avenida Alexandre Herculano, esquina com a Avenida da Liberdade, em pleno centro da cidade, e destruímos á pedrada a imensa vitrine de vidro da loja da Ibéria. Creio que ainda não se usavam esses vidros grossos e até blindados de hoje. Foi glorioso desafiar as duas ditaduras com as mesmas pedras, e não há palavras para descrever a excitação moral e a euforia juvenil que tomou conta de nós. Em minutos, estávamos cercados pela polícia, que sempre sabia quando e aonde iam ser as passeatas, porque o movimento estudantil era vigiadíssimo, e estava infiltrado. Invariavelmente, alguns dos nossos eram presos, para serem soltos no dia seguinte. Isso era incômodo, porque envolvia uma convocação dos pais, a informação da lista dos presos era repassada ao reitor de cada liceu, mas todos tínhamos a certeza que os riscos valiam a pena. A
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recompensa, uma sensação de plenitude e orgulho, era incrível. Nossa ousadia só perdia para nossa ingenuidade. No início de 73 iniciei, ao lado de algumas centenas de outros estudantes, uma militância no MAEESL (Movimento associativo dos estudantes do ensino secundário de Lisboa), onde atuavam duas correntes, a juventude do PC pró-soviético e uma corrente maoísta pró-albanesa. Os socialistas de Mário Soares inexistiam. Simpatizava com a audácia e coragem dos maoístas, como nas ações contra a guerra, passeatas nas principais avenidas, duramente reprimidas. Mas na apreciação do que deveria ser a atividade dentro dos liceus, estava mais próximo do pessoal da Reforma, assim conhecidos pela sua palavra de ordem central, abaixo a reforma de ensino de Veiga Simão, então, Ministro da Educação. Tendo amigos do tempo do primário nas duas correntes, fiquei independente, e não me alinhei com nenhuma. Constituí, ao lado de meus amigos no D.Pedro V um grupo próprio que publicava um boletim chamado “Luta”. Não tínhamos contacto com nenhuma organização política. Devorávamos, sozinhos, os livros básicos de introdução ao pensamento socialista: Manifesto Comunista , de Marx e Engels, e o capítulo Socialismo Utópico e Socialismo Científico , do Anti-Duhring , de Engels, entre outros. Éramos completamente autodidatas em marxismo. Nessa época, tive o primeiro contacto com a obra de Leon Trotsky, através de “A Revolução Traída”, que não fui capaz de compreender plenamente, mas que me impressionou. Lembro até hoje a livraria em que o achei, o que não era fácil em Lisboa. E fiquei completamente seduzido e fascinado por um pequeno livro de Mandel, “Dez perguntas e dez respostas sobre a história do Partido Comunista da URSS”, que relatava de forma muito mais simples as condições históricas e o processo político que conduziu à supremacia do estalinismo. Era-me apresentada uma bandeira socialista sem manchas, e isso foi o bastante. Por quê a militância? Não tinha ressentimentos sociais e não era especialmente inconformado. Não me recordo de ter sido um revoltado, como se diz. Não tinha me alienado das necessidades sociais dos jovens de minha
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geração, freqüentava os bailinhos e ensaiava, como seria natural, uma aproximação sexual com as garotas. Talvez tenha me sentido convocado porque era muito jovem, intensamente motivado pela necessidade inadiável de mudar o mundo. Talvez porque ansiava, ardentemente, pelas liberdades democráticas que nunca tinha usufruído nem no Brasil, nem em Portugal. A luta contra a ditadura me parecia, simplesmente, um imperativo moral incontornável. Já antes do 25 de abril havia assimilado a Revolução de Outubro como uma referência, mas não alimentava simpatia pela gerontocracia soviética, e desprezava a forma ditatorial dos regimes que se reivindicavam socialistas. Resumo da ópera: cheguei ao marxismo por uma das suas tendências mais minoritárias e mais críticas. Aos dezesseis anos já me definia como comunista, mas minha simpatia era pela Quarta Internacional, embora não tivesse, nessa época, senão uma apreciação romântica de que o socialismo deveria significar com mais igualdade, mais liberdade. Presumia, também, que o socialismo que eu queria, não existia ainda em nenhum país. Tampouco tinha qualquer contacto orgânico. Havia no ar um descontentamento profundo e, depois da revolta derrotada de Caldas da Rainha, evidências inequívocas de divisões no Exército. Mas, mesmo os mais otimistas entre nós, tinham dúvidas se a radicalização política não era algo restrito ao movimento estudantil, e setores ilustrados das classes média urbanas, como em 1962 e 68, sem que ainda tivesse atingido as camadas mais massivas do povo. Também temíamos que a derrota nas Caldas tivesse destruído a ala militar de oposição, e abortado um desmoronamento “endógeno” do regime, por assim dizer. E, sobretudo, suspeitávamos de Spínola, desconfiados de que pretendia somente uma nova política colonial, mas continuava apoiando a perspectiva de uma sobrevida para a ditadura. Mas sabíamos, ou melhor, acreditávamos, porque queríamos acreditar, que os dias de Caetano estavam contados. Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. É muito difícil prever como e porque as grandes multidões populares, urbanas ou rurais, que aceitaram com
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passividade e resignação situações tirânicas durante décadas, depois se colocam em movimento, e despertam com fúria para a arena política, em busca de uma solução coletiva para as suas reivindicações. Não sabíamos que os tempos históricos são lentos, porque a sociedade humana se estrutura em torno às imensas resistências e ao profundo conservadorismo das massas. Só sob o impacto de terríveis circunstâncias, as multidões acordam do estado de apatia política, e descobrem a força irresistível da sua mobilização coletiva. As revoluções são uma exceção e, quase sempre, uma surpresa histórica. A ditadura instaurada por Salazar no final dos anos vinte atravessou mais de quarenta anos e foi além do seu criador, mas acabou abrindo o mais radicalizado processo revolucionário na Europa depois da derrota da República na Guerra Civil Espanhola em 1939. Com o 25 de Abril, nasci uma segunda vez, como se diz, diante de grandes vendavais históricos que carregam vidas por caminhos antes sequer imaginados. E como a revolução portuguesa mudou e marcou tão severamente o destino de quem escreve, é necessário, em primeiro lugar, recordar que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de uma insurreição. O que existiu de extraordinário na revolução dos cravos não foi o colapso da ditadura na madrugada do 25 de Abril, embora tenha sido espetacular, mas a entrada em cena de milhões de pessoas, em sua maioria trabalhadores e jovens, como protagonistas do ato revolucionário na sua seqüência. A História está cheia de exemplos de quarteladas e golpes palacianos que triunfaram, apesar da indiferença e apatia popular, assim como, inversamente, de autênticas revoluções populares que foram derrotadas, antes de terem reunido forças para a insurreição. São fenômenos históricos de natureza muito diferente. Mas, sendo diferentes, estão às vezes associados. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde depois irá entrar o vento da revolução que estava, até então, contido: foi assim, entre inúmeros outros exemplos, que se iniciou a revolução portuguesa em 74, com a insurreição militar
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dirigida por Otelo Saraiva de Carvalho à frente do MFA. No espaço de poucos dias, centenas de milhares de pessoas já tinham saído às ruas, abrindo a cena para os outros atos da revolução, em especial o “verão vermelho” de 1975. Se o regime salazarista poderia ou não ter conseguido uma reforma por cima, uma “revolução passiva”, nos termos de Gramsci, para resolver a sua crise, evitando o furacão revolucionário que levou grande parte da classe dominante a abandonar o país em pânico em 1975, considerando que tudo estava perdido é um tema de história contra-factual. Esse foi justamente o alerta de Spínola, mas a maioria das classes proprietárias tinha tantos interesses em África, e a obtusidade e inércia política da ditadura era tal, que a sua voz dissidente, mais do que ajudar o regime a mudar de estratégia, ajudou a fortalecer a iniciativa da média oficialidade, de que não havia outro caminho senão o levante. Nem desconfiavam, todavia, porque isso ninguém poderia saber, que a fraqueza do governo Marcelo Caetano era de tão grande magnitude, que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Tampouco suspeitavam que pela porta aberta pela revolução anti-imperialista nas colônias, iria entrar a revolução social na metrópole. Talvez surpreenda a caracterização de revolução social e, portanto, uma clarificação é conveniente. Se o 25 de Abril, em si, foi uma revolução política, sua percepção não deve ser reduzida aos seus resultados mais imediatos, a queda do regime de Marcelo Caetano. Foi o ato inaugural de um processo político de radicalização popular incomparavelmente mais profundo, em que alternativas muito diferentes à integração à Comunidade Européia, e a consolidação de um regime democrático liberal, estavam em disputa. Nesse terreno, não há porque ficar refém de armadilhas esquemáticas. O que foi, aconteceu porque era necessário, mas estava longe de ser inexorável. Esta dialética entre mudança por via de revoluções ou por via de reformas, deve ser considerada, em toda a sua dimensão. As revoluções pioneiras, têm conseqüências reformistas nos países retardatários. As tropas de Napoleão foram abolindo relações sociais arcaicas e privilégios feudais no norte da Itália e pela Europa Central. A abolição da escravidão no Brasil, a mais séria
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das mudanças nas relações de propriedade, e porque não, nas relações sociais de nossa história, foi conquistada, mesmo considerando a dupla pressão do movimento abolicionista nas cidades, e dos quilombos como forma de resistência dos escravos, por vias reformistas. Mas não pode ser entendida, se desarticulada da vitória democrática-radical contra o escravismo, que custou à nação americana, meio milhão de mortos nos campos de batalha revolucionária da Guerra Civil. Muitas revoluções políticas, antes e depois, também tiveram conseqüências econômico-sociais. Historicamente, sabemos que as passagens de um regime a outro podem se dar por vias reformistas ou por vias revolucionárias. No século XX, entretanto, de forma freqüente, ao contrário do XIX, mesmo as mudanças de regime político, que não afetam a natureza social do Estado, têm exigido revoluções políticas, com uma regularidade histórica interessante. Depois do processo em Portugal, revoluções políticas derrubaram regimes tirânicos, para citar alguns, no Irã do Xá Reza Palevi, Argentina de Bignone, Filipinas de Marcos, Haiti de Baby Doc, Paraguai de Stroessner, Indonésia de Suharto, e mais recentemente, no Zaire de Mobutu e na Yugoslávia de Milosevic. Em todos essas circunstâncias, encontraremos regimes que lançaram a nação a desafios e projetos que estavam muito além de suas forças, e sucumbiram de forma fulminante diante da mobilização popular e da divisão nas classes proprietárias e nas FFAA. Mas depois da revolução portuguesa e, sobretudo, depois da guerra no Vietnam, nunca mais triunfou qualquer revolução que tenha ido além dos limites do capitalismo. Naqueles anos decisivos, uma tendência histórica foi invertida. À época estávamos, evidentemente, muito longe de compreendê-lo. Quando começou o ano de 1974, tinha dezessete anos e estava diante de escolhas muito importantes e hesitava. Na minha cabeça de adolescente a referência de profissão ainda era o Itamaraty, onde afinal minha mãe trabalhava. Não tinha, é claro, nenhuma simpatia pelo Governo Brasileiro de então, mas compreendia, sob a influência de minha mãe, que a diplomacia servia ao País e não, estritamente, ao Governo em Brasília. Aliás, apesar de minha adaptação bem sucedida ao país, nunca tinha perdido a minha identidade como brasileiro,
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embora, naquela época, fossemos muito poucos em Portugal. Esse processo não ocorreu com meu irmão mais novo. O que, aliás, é comum em jovens que ficaram muito tempo no exterior e depois se sentem desenraizadas. Eu sabia muito bem qual era minha identidade nacional, aliás a situação não me permitia ter ligeireza sobre o tema, entre outras razões, porque sentia o pânico que se apoderava de meus amigos mais próximos com a proximidade do alistamento militar, sofrimento do qual estava poupado. Decidi me apresentar para o exame final do secundário, o Baccalauréat, no Consulado Francês. Prestei, simultaneamente, o exame de língua inglesa no British Council de Lisboa, onde era oferecido um curso igual ao que no Brasil é da responsabilidade da Cultura Inglesa, e tirei o Lower Certificate, emitido pela University of Cambridge. Fui aprovado no Bac, e terminei em Junho de 1974, dois meses depois da queda da ditadura, o ensino secundário, com médias que me garantiam acesso direto à Universidade Clássica de Lisboa. Deveria ficar e acompanhar o processo revolucionário, abandonando a perspectiva de um curso superior em França, ou partir? Com direito às duas matrículas, viajei no final de Agosto para Paris. Essa decisão se demonstrou depois efêmera. Olhando para trás, acho que a inércia venceu. Hesitei muito entre a História e a Sociologia, e acabei me decidindo pela segunda. Mas havia, naquelas circunstâncias, outras escolhas, mais sérias, e que envolviam a relação futura com o compromisso político. Não queria tomar uma decisão prematura. 4. Paris em 74, Nanterre e início da vida universitária.
Mas, por que Paris e por que Nanterre? Talvez desse um brilho de coerência a este Memorial, mas não foi por causa de 68, embora o mito do Quartier Latin já fosse unânime na minha geração. Paris, claro, era Paris, um dos centros do mundo, incomparavelmente maior que Lisboa em tudo, e eu tinha dezessete anos, era fluente em francês, e me parecia uma boa idéia viver uma experiência independente.
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Conhecia a cidade de uma passagem rápida de poucos dias, uns cinco anos antes com a família, uma daquelas viagens em excursão em que não se conhece ninguém do país, além do guia, e as pessoas da própria excursão. Mas, se tinha ficado maravilhado com a beleza dos monumentos porque, como a maioria dos jovens, entre as artes, era mais sensível à magnitude da arquitetura, do que à sutileza da pintura, temia as relações com meu tio-avô Toutou, e tinha boas razões para isso. Ele vinha de uma tragédia pessoal pela morte recente do seu único filho, três anos mais velho do que eu, vítima de uma doença raríssima de paralisia progressiva. Já idoso, a dor da perda e, de alguma maneira, a culpa, o dilaceravam. Bebia sem limites, até enrolar a língua. O ambiente familiar prometia ser difícil. Mas minha mãe era amicíssima de meu tio-avô, uma entusiasta de um curso superior na França, melhor ainda se fosse em Paris, para ela, a capital cultural do mundo. Pessoalmente, não me lembro de ter vibrado muito, mas acreditei que seria o melhor. Devo fazer um parêntesis porque devo uma explicação. Era, em grande medida, não mais do que um menino, não tinha a menor idéia do que seria uma vida materialmente independente, e nem me passava pela cabeça que a luta pela sobrevivência poderia se transformar em uma experiência impiedosa. A mudança não foi fácil, porque era um plano anterior ao 25 de Abril que continuei abraçando, mas em defasagem com meus sentimentos políticos e pessoais. O coração ficou para trás. Já a escolha de Nanterre resultou de um acidente geográfico, porque a casa da família, em Carriére-sur-la-seine, era próxima da cidade universitária que fica a poucas estações de metrô RER (inter-municipal). Paris era uma embriaguês, é claro. Pode-se imaginar a minha excitação, pela primeira vez longe de minha mãe, embora em casa de familiares, vivendo quase sozinho em um apartamento no andar de cima da “grand maison” , com até uma entrada própria. A vertigem da liberdade. Em novembro de 74 fiz dezoito anos, já cursando o primeiro trimestre. Foi o início da vida adulta. Mas ainda não era independente. Recebia
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uma mesada maternal, embora “liliputeana” para os critérios da alta classe média brasileira dos dias de hoje. O suficiente para poder almoçar no restaurante universitário, pagar os transportes e comprar alguns livros, mas nada além disso. Assistia às aulas de manhã, e passava as tardes na biblioteca todos os dias. Não creio que houvesse muitos outros brasileiros em Nanterre, naquele tempo. Pelo menos não conheci nenhum. Por isso, adquiri o hábito de passar semanalmente pela Cité Universitaire, para dar um pulo na Maison du Brésil e na Casa de Portugal, onde tinha algumas relações, e até uma ou duas amizades. Mas era uma vida solitária. Tentava compensar o isolamento lendo muito. Escolhi a sociologia, embora não tivesse muito claro o que era, e quais as suas fronteiras porque, como muitos outros antes e depois de mim, gostava de história e marxismo. Qualquer curso superior me permitiria depois prestar o exame de acesso ao Instituto Rio Branco, e como à época, já dominava com grande fluência três idiomas, francês, inglês e espanhol, parecia ser compatível com a etapa posterior de meus planos. Era uma solução de compromisso que unia o útil ao agradável. De Lisboa tinha trazido o contato de Michael Löwy, à época já estabelecido como professor universitário. Uma carta de Francisco Louçã, amigo do movimento dos liceus um ano mais velho, e hoje prestigiado economista e deputado nacional em Portugal, apresentava as minhas “credenciais” políticas, que eram ridículas, como é óbvio. Michael me recebeu com imensa consideração. Foi, de longe, a influência intelectual mais significativa de minha estadia parisiense: era brasileiro, marxista, e aos meus olhos um erudito, logo uma referência e tanto. Conheci o seu livro Método dialético e Teoria Política , um trabalho de epistemologia e, em semanas, tinha-
o decorado de trás para diante. Fui convidado a me integrar em um organismo da LCR francesa, a seção da Quarta Internacional, então imensamente menos fracionada do que hoje. Reuníamo-nos semanalmente, e eu esperava a
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semana inteira aquela reunião como um bálsamo, porque me sentia razoavelmente desorientado na faculdade. Não havia um só francês, éramos quase todos brasileiros, e uns poucos portugueses que ainda não tinham voltado, logo falávamos português. Mas a distância geracional que me separava de todos era enorme. Naqueles dias, a diferença de alguns anos não era um elemento secundário. Exilados, eram todos muito mais maduros do que eu, logo a integração social foi mínima, nada além da cortesia entre camaradas. Mas não poupava o paciente Michael, pedindo ao final das reuniões indicações e, se bem me lembro, exibindo os meus limitados progressos de leitura. Através dele, descobri Lucien Goldman, que tinha sido orientador de Michael, e o Luckás, de História e consciência de classe . Nossa atividade militante se resumia à elaboração em mimeógrafo, divulgação e venda de um jornal mensal chamado Combate, dirigido à comunidade de trabalhadores portugueses. Devo confessar que minha colaboração era modesta, e estava resumida à venda. Essa atividade estava longe de ser eletrizante: como eram difíceis aquelas vendas! Quem conseguiu vender literatura socialista, de conteúdo radicalmente igualitarista e perspectiva revolucionária, para a emigração portuguesa no banlieu de Paris, vende qualquer coisa. Sem falsa modéstia, o caminho da militância me ensinou, ao longo dos anos, tudo o que há para saber sobre vendas. Matriculei-me em Antropologia política da América Latina, Ciências do Homem e Literatura, Economia I, Grandes correntes do pensamento sociológico, Introdução à Sociologia Política, Conformismo e violência na ideologia camponesa, Estatística aplicada à realização de pesquisas de opinião, Introdução aos problemas e métodos da Sociologia, Aspectos Fundamentais da Sociologia, e Inglês aplicado à sociologia.
Lia os textos das disciplinas e devorava literatura marxista, de variadas origens, começando a me familiarizar com as polêmicas teóricas que alimentavam as diferenças políticas. Nessa época, a corrente mais influente, de longe, era a estruturalista, e Lire le Capital de Althusser era, como hoje se diz, básico. O “corte epistemológico” entre o jovem Marx e o Marx
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maduro, e a interpretação do marxismo como ciência da transformação revolucionária do capitalismo era um abecedário para a maioria dos estudantes de esquerda, embora uma novidade para mim, que chegava de um país onde nunca conheci um professor sequer que, alguma vez, tivesse comentado algo que fosse sobre Marx. Os professores de Nanterre, em especial os que se situavam na periferia cultural do PCF, e não eram poucos, tinham essa clara preferência teórica. Quanto aos “soixantehuitard’s”, uma parte considerável, entre os mais jovens, era mais crítica, em geral. Nunca me agradou a caracterização do projeto igualitarista como “socialismo científico”. Eu não era senão um noviço, mas nunca fui “convertido”, ou pelo menos, ofereci resistência. Uma apreciação muito crítica em relação á URSS e ao “socialismo realmente existente”, me protegiam de tanta certeza “científica”. A influência durante anos, não, décadas, de uma inclinação economicista, determinista ou objetivista na maioria do marxismo a que tinha acesso, não passou, todavia, em vão. O processo de 1989/91 e suas conseqüências abriram uma crise tão profunda em todas as convicções juvenis que me libertou do que permanecia da costela “fatalista”. Talvez hoje seja um pouco difícil compreender a adesão que o estruturalismo obteve no interior do marxismo dos anos 60 e 70. Não era, por suposto, mais do mesmo “robusto otimismo” do marxismo da II Internacional, inspirado na noção de progresso tão típico do início do século XX, e apoiado em um fortalecimento orgânico crescente dos movimentos operários, e nas conquistas parciais ao longo de décadas. O problema não era somente explicar as espantosas melhorias no padrão de vida, suficientemente claras nos anos 60, mas compreender porque não tinham acontecido novas crises “explosivas” como 29. O contexto histórico-político era muito distinto, também, da trágica década de trinta, quando Walter Benjamin escreveu a sua perturbadora Teses sobre a História, embora a crescente influência e autoridade de Marcuse, trouxesse um renovado interesse pela Escola de Frankfurt.
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Décadas de crescimento sustentado e pacto social tinham estabilizado regimes democrático-liberais, e generalizado em grande parte da Europa, à exceção da Península Ibérica e da Grécia, sistemas de seguridade social e relações trabalhistas que denominamos como Welfare State. Um retorno à economia e aos fundamentos “graníticos” do marxismo n’O Capital era um atalho conveniente. Era um terreno, com certeza, mais seguro. Lia o Tratado de Economia Marxista, por sugestão de Michael Löwy, e tentava
compreender. No aproveitamento escolar, apresentei uns três ou quatro seminários, e não fiz feio. A maioria dos professores era jovem e predominava um ambiente informal, mas, curiosamente, só me aproximei, pessoalmente, do mais velho entre todos, Ângelo Arroyo, uns cinqüenta anos, chileno, ativo no Governo Allende, militante do MAPU, exilado, responsável pela disciplina de Antropologia da América Latina. Muito alto, extremamente bem disposto, e uma personalidade irresistível. Tinha aquela dignidade e elegância de caráter que parece natural em quem sempre olhou a vida com coragem, um senso de humor próximo do inglês, implacável e corrosivo, e o dom da profissão, sabia ensinar. A relação afetuosa foi mútua e decorreu da participação em sala de aula. Aliás, era uma das poucas aulas em que me sentia confortável para pedir a palavra. À época, se bem me recordo, meu formalismo era ainda maior que hoje. A aula era um laboratório de introdução à história da América Latina e nela descobri um mundo. Só tinha estudado, até então, história do Brasil no longínquo primário de Ipanema. O Professor Arroyo procedia a uma leitura minuciosa do texto indicado e depois desenvolvia cada uma das hipóteses, idéia por idéia, rigorosa e sistematicamente. Foi com ele que, pela primeira vez, discuti o que foi o peronismo, o varguismo, as explicações do subdesenvolvimento e, sobretudo, as causas do golpe de Pinochet e as razões da derrota. Ele fazia uma brincadeira que me diverte até hoje: dizia que devíamos aprender a pensar como os alemães, mas agir como os franceses, mas nunca o inverso. Aprendi muito com ele.
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5. Lisboa em 75, a Universidade e a revolução portuguesa.
Voltei para Lisboa em 1975 por uma única razão: depois da derrota da tentativa de golpe de Spínola no 28 de setembro de 74, quando apelou à maioria silenciosa e fracassou, estava convencido que a revolução não só continuava viva, mas que os grandes acontecimentos estavam ainda por acontecer e queria fazer parte. Não fui decepcionado. Já havia abandonado o plano juvenil de uma profissionalização no Itamaraty, me matriculei no curso de Direito, porque parecia mais coerente, em função da paixão política, então irreprimível. Não tive maiores dificuldades de conseguir uma vaga, em função das médias do secundário. Mas foi uma experiência efêmera. Fui expulso antes do final do ano letivo. A Faculdade de Direito da Universidade Clássica era um dos centros políticos mais intensos da Academia de Lisboa, e tinha história, afinal por ela tinham passado tanto Marcello Caetano, como Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal, respectivamente, os secretários dos três partidos mais influentes no pós 25 de Abril, o Popular Democrático, de centro-direita, o Socialista e o Comunista. Mas quem dominava o movimento estudantil era o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), uma corrente maoísta ultra-sectária, que tinha evoluído da radicalização de um setor da juventude católica. Ironia da história, à sua frente, como principal porta-voz na faculdade, se destacava o atual Primeiro-Ministro de Portugal, conhecido sumariamente, como o Barroso. Adotavam a bizarra orientação de Pequim à época do chamado “bando dos quatro”, uma das interpretações campistas da relação de forças no interior do Sistema Internacional de Estados, baseada em uma divisão entre os “Mundos”: o Primeiro Mundo seriam os imperialismos, em especial as duas superpotências, os EUA e a URSS; o Segundo, os países socialistas, em especial a China e a Albânia; e o Terceiro Mundo, a periferia subdesenvolvida. Defendiam, por suposto, a necessidade da aliança entre o Segundo e o
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Terceiro Mundo. Acreditavam que o PCP era social-fascista, um instrumento do social imperialismo russo, e nas circunstâncias de Portugal, em que a tarefa prioritária da revolução, na sua apreciação, deveria ser a defesa da “independência nacional”, o maior e mais sinistro perigo contra-revolucionário. Em conseqüência, apoiaram, sem hesitações, a candidatura de Ramalho Eanes á Presidência em 1976, o candidato da estabilização do regime democrático liberal. Depois do 25 de Abril, alguns professores e funcionários da Faculdade, incontroversamente associados à repressão do regime salazarista, tinham sido expulsos em Assembléia de alunos, mas também de professores. Denominou-se essa reforma “administrativa”, curiosamente, de saneamento dos fascistas. Um ano depois do 25 de Abril, o MRPP estava dedicado a uma nova campanha de expulsões, mas agora dos “sociais-fascistas”. A direita “silenciosa”, que nunca tinha deixado de ser uma corrente de opinião significativa, embora minoritária, na Faculdade de Direito, os apoiava discretamente. Revanchista, se deliciava com a expulsão dos comunistas, menos de um ano depois do afastamento de suas lideranças históricas. As acusações eram uma farsa tão mesquinha e risível que, sinceramente, já nem me lembro dos pretextos. Os testemunhos foram despudoradamente manipulados, enfim, todo o processo era infame. Mas as paixões políticas estavam exasperadas, a tal ponto, que era possível forçar uma votação massiva. Durante a assembléia em que o tema era a expulsão de uns sete estudantes da JCP, que mal se podiam fazer ouvir, não sei aonde encontrei a coragem e me atrevi a pedir a palavra, e defendê-los. Nunca tinha feito uma intervenção pública diante de centenas de pessoas. Quase desmaiei. Foi o bastante para que fosse expulso, sumariamente, junto com eles, acusado de trotskista, cúmplice dos sociais fascistas, e “trânsfuga” brasileiro, o que me deixou desconcertado. Os maoístas eram pomposos nos insultos. Demorei a superar a memória do terrorismo paranóico e da intransigência brutal daquela assembléia. Tive pesadelos recorrentes. Descobri a força do ódio, e odiei com todas as minhas forças pela primeira vez. Não
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fossem as leituras dos anos anteriores, e uma formação intelectual geral, que me obrigavam a racionalizar e relativizar o episódio, poderia ter rompido com uma perspectiva de esquerda ali mesmo, diante da truculência estalinista mais vil. Vendo aquela atrocidade, fiquei me perguntando que monstruosidades aquelas concepções não poderiam cometer, se alguma vez estivessem no poder. Aprendi que o compromisso com a igualdade é indivisível da defesa da liberdade. Claro que a decisão da assembléia não poderia ter força legal, já que as acusações eram absurdas, e se resumiam, ao fim e ao cabo, ao direito de exercer ou não a liberdade de opiniões. De qualquer forma, minha carreira
de
advogado
acabou
antes
de
ter
começado.
Olhando
retrospectivamente, receio que não teria sido muito prometedora. Meu temperamento desaconselhava o caminho da promotoria, nunca tive a mínima inclinação para a acusação, demasiados escrúpulos para a defesa, e não escolheria o caminho de ditar sentenças, me falta o rigor sóbrio que se espera de um juiz. Mas não tenho do que me queixar. Essa reviravolta inesperada me ensinou uma lição: sendo possível, não é prudente aceitar a luta no terreno e na hora que o inimigo deseja. Mais importante, me abriu o caminho para o que se costuma chamar uma vocação, a História. Decidi, também, que queria ser professor, e a partir dessa decisão, não hesitei mais. Um novo projeto estratégico estava se desenhando e me tranqüilizei. Minha transferência foi aceita sem dificuldades administrativas, mas perdi mais um ano e, finalmente, só iniciei o curso no ano letivo de 76/77. Freqüentei dois anos antes de minha transferência para São Paulo. Entretanto, o verão quente de 1975 se aproximava. Entre a volta de Paris e a vinda para o Brasil em 78, militei no movimento estudantil. Fui preso, pela primeira vez na vida, no 11 de Março de 1975, quando Spínola ensaiou o seu segundo golpe de Estado. Estava à frente de uma passeata estudantil. O susto foi grande, mas nada mais. No dia seguinte já estava solto.
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A quartelada fracassou estrepitosamente, e resultou em uma radicalização do processo, que passou pela nacionalização dos bancos e dos principais monopólios. Assim se conseguiu evitar que uma parte das divisas se evaporasse. Muitas empresas passaram a ser controladas por comissões de trabalhadores e a aceleração da reforma agrária, sobretudo no Alentejo, levou à formação das Unidades Coletivas de Produção. Embriões de poder popular também germinavam nos bairros, nas escolas, e sobretudo, nos quartéis. Nesse período foram definidas as condições da independência das colônias africanas. Entre março e julho, a maioria da burguesia portuguesa fugiu do país. Um chiste: semanas depois do fracassado 11 de março, um português que tinha propriedades no Brasil e em Portugal, e que havia recorrido à minha mãe na Embaixada para conseguir a equivalência escolar dos documentos dos filhos, procura a minha mãe, novamente, para lhe oferecer, por um aluguel simbólico, a sua residência, uma bela vivenda ou sobrado em Alvalade, bairro de elite, porque assim teria a certeza de que os comunistas não iriam ocupar. A casa, considerando a média das residências em Lisboa, em geral muito velhas, sem aquecimento e pequenas, era incrível e ficava na rua onde morava o Marcello Caetano, antes de fugir. Foi assim que saí da “maison bourgeiose” de Paris e acabei indo morar em um amplo e moderno sobrado de três salas, cinco quartos, jardim e garagem, um padrão de residência muito acima do que o salário do Itamaraty poderia alguma vez permitir. Tínhamos sofrido anos a fio as noites glaciais de inverno, em apartamentos sem calefação central. Não me dei mal. Minha mãe, é claro, aceitou, e me lembro dela feliz da vida, brincando que não sabia que “as revoluções permitiam uma distribuição de renda tão rápida”... A crise revolucionária aberta depois da derrota da contrarevolução em 11 de Março permaneceu até o 25 de novembro de 1975: foram seis meses que tiveram a intensidade de vários anos para quem os viveu. Milhões de pessoas estavam convencidas que o país estava em transição para algum tipo de socialismo, em especial a base comunista, ou seja, a corrente de
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massas senão mais numerosa, a mais organizada em Lisboa. Nesses meses, militei pela primeira vez na vida ao lado de trabalhadores, e descobri a força moral da solidariedade, e a intensidade dos instintos de classe que mobilizam para a ação coletiva. Uma pressão dessa natureza não era fácil de resistir. Mas nem quando participei em cima de um tanque de guerra, no verão de 75, de uma passeata de mais de cinco mil soldados com o rosto coberto por lenços, como os bandidos dos filmes de cowboys, gritando “viva a revolução socialista”, sob a convocação dos SUV (Soldados Unidos Venceremos), uma organização semi-sindical que existiu durante poucos meses, cheguei a me iludir, o que exige uma explicação. Não tínhamos a menor idéia, evidentemente, do que poderia vir a ocorrer, mas sabíamos, os que nos alinhávamos com a Quarta Internacional, que aquela transição estava indo para qualquer direção, menos para o socialismo. O que não diminuía a exaltação, só aumentava a ansiedade. Derrotado Spínola e seu projeto neocolonial, que só tinha sustentação nas mesmas famílias e grupos que tinham preservado Caetano até ao colapso, o país estava dividido, irreconciliavelmente, e ninguém sabia para onde iria pender a roda da história. A esquerda, ou seja, as forças políticas, de longe, majoritárias, e com as únicas com autoridade moral na direção dos Governos Provisórios, se dividiu em três campos. Os dois mais influentes, e de fato os únicos que contavam, eram dirigidos respectivamente pelo PCP, partido majoritário na classe operária, no campesinato pobre do Alentejo, e na população plebéia do Sul do País, e pelo PS, partido dos trabalhadores de serviços, dos operários mais moderados, e da esmagadora maioria das classes médias. O terceiro campo, de extrema-esquerda, era o único que defendia a necessidade da revolução socialista, e o mínimo que se pode dizer para descrevê-lo é que era acéfalo. O impacto de suas iniciativas políticas decorria da capacidade de mobilização, que manteve durante uns três anos,
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desproporcionalmente maior que a real implantação social. Tinha influência, embora minoritária, entre os jovens operários e estudantes, não possuía direção homogênea, mas contava com a liderança carismática de alguns oficiais da FFAA, como Otelo Saraiva de Carvalho. O PCP apoiou incondicionalmente o III, o IV e o V Governo Provisório, defendendo Vasco Gonçalves quase até o fim. Apoiava-se em uma corrente de opinião majoritária entre os oficiais que compunham o Conselho da Revolução, o organismo mais alto do MFA que exercia, de fato, uma tutela sobre todos os Governos desde o 25 de abril. Defendiam um projeto nacionalista semi-autárquico, porque pretendiam, ao mesmo
tempo,
reconhecer a independência das colônias, mas salvaguardando os interesses portugueses, que não eram poucos, preservando a condição de semimetrópole interlocutora entre a África e a Europa. Queriam também uma negociação com a Comunidade Européia, e não eram hostis a uma integração, mas exigiam uma negociação sem anexação econômica, conscientes das defasagens estruturais que diferenciavam a frágil economia portuguesa do gigantismo financeiro e industrial da França e da Alemanha. Flertavam, portanto, com o movimento dos não-alinhados, o que era especialmente irritativo para a embaixada americana. Apoiavam-se nas impressionantes mobilizações de massas, embora freassem a auto-organização, sempre que possível, em especial nos quartéis. Havia um desconforto do Governo, MFA e PC com a ação direta que questionava a propriedade privada dos grandes monopólios, bancos e latifúndios do Alentejo, mas o processo tinha uma dinâmica anticapitalista independente que ninguém conseguia controlar até o fim. Afinal, como defender a propriedade dos cúmplices golpistas de Spínola? O Partido Socialista de Mário Soares tinha o apoio da Europa e dos EUA, e queriam consolidar um regime democrático liberal estável, e enterrar a qualquer custo, e o mais rápido possível, a experiência de dualidade de poderes que se disseminava. A carta da integração na Comunidade Européia, e a promessa de estender para os portugueses as condições para
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um padrão de vida semelhante ao dos europeus, que uma parte significativa da população conhecia pela importância econômica dos emigrantes na frágil economia do país, era seu trunfo mais importante. A Igreja católica se somou a esta frente que tinha em Soares a voz, na força de aparato do PPD, em sua maioria, os quadros do salazarismo reciclado, suas pernas e músculos, e nos Cardeais e Bispos a sua autoridade moral. Não faltou também o dinheiro para convocar às ruas multidões dispostas a proteger o país do perigo da “comunização” totalitária, em defesa das liberdades democráticas. O terceiro campo mal conseguia se fazer expressar de forma independente, tal era a fragilidade de sua organização. A maioria das lideranças, na verdade, não conseguia diferenciar-se do projeto do PCP. As organizações da extrema esquerda além de extremamente frágeis, embora quantitativamente até numerosas, estavam divididas, e tendiam a ser satélites do Governo Vasco Gonçalves. Não tinham nem jornal próprio - só depois do 25 de novembro chegou a existir, efemeramente, um diário que traduzisse a defesa do poder popular. Os trotskistas eram uma esquerda revolucionária muito jovem, quase imberbe. Mas, muitas vezes, a experiência é mais forte do que os discursos. Uma parcela significativa das massas socialistas e comunistas olhava com simpatia a idéia de disseminar por todo o país as comissões de trabalhadores das fábricas ocupadas depois que os patrões fugiram, ou das Unidades coletivas de produção, como embriões de uma democracia participativa e anticapitalista. Em uma palavra, não era nada fácil. Aquele que escreve, viveu os seis meses mais intensos e emocionantes de sua vida, angustiado pensando que a derrota era só uma questão de tempo. Talvez, por isso, mesmo tendo uma personalidade radicalmente cética, não tenha sentido a devastadora desmoralização que foi se impondo após 77/78. Éramos tão jovens, que acreditávamos que a vida nos daria uma segunda chance. Estávamos errados. As derrotas históricas exigem, no mínimo, o intervalo de uma geração para que suas seqüelas possam ser superadas.
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Depois de novembro de 75, com a destruição da dualidade de poderes nas FFAA, em grande medida sem que se pudesse perceber ainda o terrível alcance da derrota, o processo assumiu uma dinâmica lenta, mas irreversível, apesar de algumas reviravoltas, de estabilização de um regime democrático liberal. Fui eleito pra a Associação de Estudantes da Faculdade de Letr Le tras as de Lisb Lisboa, oa, na seqü seqüênc ência ia para para a dire direto tori riaa da RIA RIA (Reu (Reuni nião ão inte interracademia) e depois para a executiva nacional pró-UNEP (União Nacional dos estudan est udantes tes Portug Portugues ueses) es).. Foi uma ascensão ascensão “mete “meteóri órica” ca”.. Nessa Nessa con condiç dição, ão, participei dos principais episódios da revolução portuguesa com um “olhar interno”, uma perspectiva de quem vivia os acontecimentos como protagonista, mesmo que a partir de uma posição marginal, já que o papel do movimento estudantil foi, essencialmente, secundário. Acho que devo intercalar uma nota, digamos, historiográfica. Hobsbawm Hobsbawm sugeriu sugeriu nos Ensaios sobre a História, que um teste de força para qualquer historiador verificar a sua maturidade metodológica, seria utilizar o recurso recurso da história história contra-factual, contra-factual, o famoso “e se...”, aos processos processos em que o seu tempo de vida permitiu algum tipo de envolvimento pessoal, e conferir se seria capaz do distanciamento crítico de suas próprias paixões. O que para ele e sua geração foi a Guerra civil espanhola, a luta cont contra ra o na nazi zi-f -fas asci cism smoo ou a Segu Segund ndaa Gu Guer erra ra Mu Mund ndia ial,l, foi foi pa para ra mim, mim, a revolução portuguesa. As proporções relativas desses eventos não permitem comparação. A derrota do nazi-fascismo exigiu dezenas de milhões de mortos e definiu a história do século. Já a derrota da revolução portuguesa, porque houve uma revolução depois do 25 de abril, e ela foi derrotada, deixou feridas irrele irrelevant vantes. es. E a integr integraçã açãoo pos poster terior ior na Com Comuni unidade dade Econôm Econômica ica,, com o acesso aos fundos estruturais, bancados generosamente pela Alemanha e França, para absorver as tensões sociais pós-salazaristas e pós-franquistas, permitiu uma impressionante modernização nos anos 80 e 90. Sendo estrangeiro, e tendo um acentuado sotaque brasileiro, que me esforçava ao máximo para disfarçar, não podia passar completamente
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desapercebido. Orador nas assembléias da Academia, não demorou muito para que minha mãe fosse alertada pelo Cônsul Geral em Lisboa, um amigo, que minha atividade já tinha sido percebida pelos agentes da polícia brasileira que acompanhavam a presença de centenas de exilados brasileiros. Presumo que alguns dos muitos brasileiros que conviviam na Cidade Universitária fossem, na verdade, informantes. Não lhes dava muita atenção. Aliás, um dos procedimentos que eram respeitados pelos ativistas de todas as correntes, era evitar estrangeiros que não fossem apresentados por alguma fonte segura. Meu contato com a colônia era feito através de uma amizade que ficou para toda a vida, Enio Bucchioni, um dos sobreviventes do estádio de Santiago, no Chile, depois um dos editores da Revista Versus. As condições que motivaram a remoção de minha mãe para Copenhaga, em 1976, um dos piores postos de serviço para brasileiros, pelo frio e pela língua língua,, nunca foram explícitas, explícitas, mas não ficamos com dúvidas. dúvidas. Eu e meu irmão, irmão, no ent entant anto, o, dec decidi idimos mos ficar. ficar. Entret Entretant anto, o, con contac tactos tos de “velhos “velhos carnavais” no Itamaraty, em Brasília, permitiram uma missão de alguns meses em Roma e, depois, uma nova remoção para o consulado de Barcelona, uma cidade relativamente próxima de Lisboa, o que atenuou a separação. Foi a partir de 1976 que meus estudos retomaram a normalidade. O curso de História era de quatro anos, não se utilizava o sistema de créditos, e as disciplinas eram anuais. Durante os dois anos seguintes freqüentei as aulas e cumpri as atividades de metade do curso. O sistema de exames, que dominava a Universidade antes do 25 de abril, foi substituído pela avaliação na forma de exposições orais sobre determinado tema e os autores sugeridos, e a apresentação individual de uma monografia ao final do curso. As oito disciplinas que cursei foram: História da Antiguidade Antiguidade clássica, História das Civilizações Pré-Clássicas , Introdução á Epistemologia das Ciências Sociais , Introdução ao Estudo do Portugal Atual , Sociologia e
, Introdu polít política ica,, Histór História ia Econôm Econômica ica e socia social l , Antropologia Antropologia Cultural Introdução ção à História, Metodologia e Crítica . Todo o curso estava sendo reformulado, em
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função das mudanças trazidas pelo 25 de Abril, com a volta dos professores que tinham passado muitos anos no exílio. com o Tive a oportunidade oportunidade de ser aluno dos professores professores Jorge Cust Cu stód ódio io,, Da Dani niel el Perdi Perdigã gão, o, Vict Victor or do doss Sant Santos os Go Gonça nçalv lves, es, José José Ma Manu nuel el Baginha, Fernando Madureira, Zaluar Nunes Basílio, e Cláudio Torres, entre outros. O ambiente da Faculdade de Letras e do Departamento de História era o oposto da Faculdade de Direito e isso, com certeza, pesou na minha adap ad apta taçã ção: o: resp respir irava ava-s -see liber liberda dade, de, e o resp respei eito to a todas todas as po posi siçõ ções es era era irredutível. A maioria dos professores não era politicamente ativa, mas se situavam próximos às posições do PCP. Já entre os alunos, ainda de extração social elevada, as opiniões eram mais divididas e até erráticas, mas uma maioria relativa olhava com simpatia a social democracia, e a juventude do PC tinha, se me recordo bem, em torno de seiscentos filiados que cotizavam, sobre um total de 5.000 estudantes matriculados, isso sem contar os que votavam. Ainda assim, uma corrente próxima de 20% tinha simpatia pelas posiçõ pos ições es revoluc revolucioná ionária rias. s. Entre Entre 77/ 77/78 78 fui repres represent entant antee discent discentee jun junto to ao conselho diretivo da Faculdade. A variedade de posições teórico-metodológicas era, talvez, maior do que em Nanterre, embora todos os marxistas se sentissem inspirados pelas posições estruturalistas. A exceção era o Prof. Doutor Cláudio Torres, com com qu quem em de dese senv nvol olvi vi um umaa rela relaçã çãoo ma mais is próx próxim ima, a, e reco reconh nhec ecid idoo ho hoje je,, internacionalmente, como um dos principais especialistas na presença islâmica na Península e em Portugal. Seu curso de Introdução à História, apesar de ser considerado como “instrumental”, foi importante porque ofereceu uma visão sint sintét étic icaa e comp compar arat ativ ivaa de algum algumas as da dass ma mais is impor importa tant ntes es po polê lêmi mica cass na historiografia. A vida cultural no Campus da Cidade Universitária era um mundo. As atividades culturais eram as mais variadas. Creio que foi nesses dois anos que consolidei de forma mais madura o que se poderia definir como um rumo intelectual. Afinal já tinha quase vinte anos, e nunca tinha trabalhado para para garant garantir ir a min minha ha própri própriaa sobreviv sobrevivênc ência. ia. Tomei Tomei consciê consciênci nciaa de min minha ha
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situação privilegiada, e da condição transitória de minha localização como estudante universitário. Passei a estudar horas sem medida, madrugadas em claro, com um furor juvenil que, hoje, me parece inconcebível. A nova legislação para estrangeiros, votada na Assembléia da República como parte do processo geral de retrocesso da revolução, também me pressionou. Não era draconiana, mas tornava a permanência de estudantes muito mais controlada. Lisboa tinha recebido de braços abertos gente de todos os lugares, e com os mais diferentes estatutos jurídicos, nos primeiros dezoito meses depois do 25 de Abril. Era uma das cidades mais livres do mundo. Mas a roda agora estava girando na direção contrária. Minha presença em Portugal passou a exigir apresentação semestral junto à polícia para renovação do visto. Uma legislação específica, recém negociada, regulamentava a situação dos portugueses no Brasil, e estabelecia o critério da reciprocidade, definindo o direito de permanência, a partir de cinco anos de residência ininterrupta. Mas não era retroativa, ou seja, o período de 66 a 74 não poderia ser considerado. Ocorre que a minha estadia em França tinha sido recente, e eu teria que cumprir ainda quase dois anos para ter esse novo visto. Foi no verão de 1978 que comecei a considerar a possibilidade de voltar para o Brasil, ainda antes da conclusão do curso. Entretanto, iniciei minhas primeiras experiências no campo do ensino. Meus compromissos de militância me colocaram a responsabilidade de orientar algumas aulas de formação. O curso básico que passei a organizar incluía o estudo do Manifesto Comunista , de Marx e Engels, o capítulo Socialismo Utópico e Socialismo Científico , do Anti-Duhring , de Engels, e o Programa de Transição e as Teses da Revolução Permanente , de Leon
Trotsky. Mais tarde, também realizei outros cursos que abordaram a interpretação materialista histórica a partir d’ A Ideologia Alemã e as Teses sobre Feuerbach , de Karl Marx, assim como as principais obras de Lênin ( O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo ; Que Fazer?; O Estado e a Revolução; Teses de Abril ).
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Entre 76 e 78, associado a um pequeno círculo de amigos, me dediquei, com poucas ilusões, a um grupo de estudos sobre O Capital . Era inevitável, entre jovens marxistas com ambições intelectuais, sentir a obrigação teórica de ter que enfrentar o “livro”. Em geral, receio que não fomos bem sucedidos. Adorávamos ir saltando o texto, descobrindo pequenos tesouros nas notas de roda-pé, como a maioria, imagino, dos que amam a História, e tentaram ler O Capital sem uma orientação apropriada. E discutíamos, como discutíamos, sempre desordenadamente. Era caótico. Algumas coisas se aproveitaram, apesar de tudo. Mas já estava divorciado de qualquer ilusão economicista, depois de ver, ao vivo e a cores, as classes sociais, no turbilhão da revolução, conduzidas pelas forças políticas hegemônicas, agirem inúmeras vezes contra os seus interesses mais imediatos. O mundo era mais complexo que qualquer interpretação simplificada dos interesses econômicos de classe, sem as inúmeras mediações das lutas políticas, ideológicas, e culturais. Sendo essas as minhas inclinações, até que as reuniões para ler O Capital me foram úteis, porque, pela primeira vez, comecei a trabalhar com as categorias econômicas mais seriamente. Uma última influência merece ser registrada. A força da revolução também politizou a vida privada, em especial, entre os jovens. As reivindicações feministas conquistaram uma audiência forte em uma Lisboa em que, pela primeira vez em décadas, a Igreja já não atraía os jovens. Nos últimos anos em Lisboa, 76/78, depois da transferência de minha mãe, a casa de Alvalade se transformou em uma mistura de residência dos Arcary’s, república de estudantes e referência de brasileiros exilados. Experimentávamos um modo de vida socialmente diferenciado, em que todas as questões do cotidiano geravam discussões e práticas coletivas. As tarefas da casa passaram a ser organizadas de acordo com um estrito e igualitário plano semanal. Também tive, em conseqüência, acesso à literatura sobre a opressão de gênero. A iniciação foi feita lendo Simone de Beauvoir e Evelyn Reed.
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Ao todo, fiquei doze anos fora. Durante essa estadia, viajei menos do que gostaria, mas nas férias, andando de trem, mas, mais freqüentemente, de carona em caminhão, conheci algumas cidades e capitais, em estadias que variaram de dias a poucas semanas: além de Paris, estive em Madrid, Sevilha, Granada, Córdoba, Barcelona, Bordéus, Milão, Roma, Bruxelas, Londres, Amsterdã e Copenhaga. Mas nunca me arrependi de ter vivido os últimos vinte e cinco anos em São Paulo. Em agosto de 78, vim para o Brasil com uma passagem de ida e volta, presenteada por meu pai. Não sabia ao certo, quando embarquei, se iria me fixar ou não. Pela segunda vez, mudava de país sozinho. Minha mãe só voltou ao Brasil em 1989, onze anos depois, para se aposentar, e meu irmão nunca voltou. Fez uma visita, pela primeira vez, em 1996. Não cheguei a usar aquela passagem de volta.
6. São Paulo em 78, as greves do ABC, a reconstrução da UNE e a fundação do PT.
Em novembro de 1978 completei vinte e dois anos, e achei que já estava mais do que na hora de começar a vida adulta a sério, isto é, de forma independente. Minha mãe preferia, por suposto, que eu ficasse, e completasse os estudos antes de voltar. Lisboa era próxima de Barcelona, e sempre nos víamos umas três ou até quatro vezes por ano. Estava disposta a continuar me apoiando, mas isso não parecia justo. Em Portugal, sendo estrangeiro, conseguir um emprego não seria fácil. Mas, o que acabou sendo decisivo na decisão de ficar, foi o ambiente social que encontrei em São Paulo. Respirava-se esperança e tudo parecia estar por ser feito, enquanto em Lisboa, depois da derrota, tudo parecia perdido. Em contraste, a atmosfera de desmoralização social e pessoal de onde eu vinha, era desoladora e sufocante. Serviu para aprender que todo mundo
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deveria ter direito a quinze minutos de autopiedade por dia, desde que dedicasse, ao menos, o dobro do tempo para rir de si mesmo. À excepção do afamado humor judaico, quase uma escola literária, nunca conheci uma gente tão autoirônica quanto os lisboetas. Não era, contudo, um meio especialmente animador. Desisti de voltar, e nunca me arrependi. Não via o meu pai desde criança. Isso me pareceu, também, uma boa razão para ficar, e tentar descobrir quem era, afinal, aquele homem distante, e até misterioso, que só conhecia de fotos. Não tive dificuldades de reconhecê-lo no aeroporto do Galeão na manhã do dia 28 de agosto. Ele também não teve dúvidas. Começamos bem. Na verdade, a partir daí, meu pai foi o mais íntimo e mais querido de todos os amigos que a vida me deu. Convivemos muito próximos durante dezessete anos. Essa relação se manteve inabalável, enquanto ele viveu. Fiquei, contudo, menos de um mês no Rio e, em seguida, vim para São Paulo, que passou a ser a minha cidade, nos últimos vinte e cinco anos. A família ficou dispersa em quatro cidades, dividida em três países. Nos cinco anos seguintes, entre 1978 e 1983, assumi responsabilidades que nunca teriam sido possíveis em Lisboa, mas não desenvolvi estudos formais. Estudei História do Brasil porque queria entender o meu país: li o Populismo na política Brasileira de Francisco Weffort, a Crise do Sistema Colonial de Fernando Novaes, e História Econômica do Brasil , de Caio
Prado Júnior. Não há muito que dizer de minha vida acadêmica e profissional nesse período. Realizei o sonho de todo jovem atraído pelas idéias revolucionárias: fui profissional político. À diferença da Lisboa nos anos da revolução, quando a extrema juventude me condenava a viver a política à margem, na periferia das esferas em que tudo se decidia, em São Paulo, estava aberta a possibilidade de viver um processo histórico de reorganização social e política desde o seu início, por dentro, como protagonista. Na verdade, tive muita sorte. Escolhi, sem saber, uma data historicamente decisiva para voltar. Tivesse ficado em Lisboa mais uns dois ou
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três anos, nunca poderia ter tido a participação social e política que a vida no Brasil acabou me proporcionando. Já tinha estabelecido contactos com exilados brasileiros em Lisboa. Encontrei no Brasil uma organização clandestina, a Liga Operária – responsável pelo lançamento público da Convergência Socialista - com quem tinha grande identidade, e que se relacionava, por sua vez, com a minoria latino-americana da Quarta Internacional, uma corrente dirigida pela seção argentina. O debate se concentrava, naquele momento, no balanço da linha de construção de organizações armadas, que tinha sido defendida pelo centro europeu, e encontrado na Argentina uma trincheira de resistência. Viviam-se os anos de crise e agonia do regime militar. A atmosfera política era de uma intensidade incrível. A Lei de anistia foi votada em 79, e os exilados começaram a voltar. A transição lenta e gradual da ditadura em direção a um regime democrático-liberal prosseguia, não obstante as crises constantes, provocadas pela entrada em cena de novos sujeitos sociais, em especial, algumas categorias mais organizadas da classe trabalhadora urbana: metalúrgicos, bancários e professores na primeira linha. O movimento estudantil ocupava, também, um lugar politicamente mais significativo que seu peso social, expressando o mal estar das classes médias com o Governo Figueiredo. Ampliavam-se, os espaços semilegais para a atuação da esquerda. A liderança de Lula se afirmava no ABC, e a perspectiva de construir um partido de esquerda legal, que já nasceria como um partido de massas, permitindo a confluência das mais diferentes correntes, parecia uma experiência única e prometedora. Não queria perder a chance de viver todo esse processo. A Convergência era uma organização de jovens, alguns poucos trabalhadores, e uma maioria de estudantes. Os mais experientes não tinham ainda completado trinta anos. Fui extraordinariamente bem recebido. Escrevi artigos, boletins, viajei pelo Brasil e por alguns países da América Latina. Como tive direito ao passaporte diplomático até os vinte e cinco anos, não podia ser revistado. Esse estatuto jurídico era muito útil. Conheci a Caracas, Bogotá e Buenos Aires.
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Mas além da integração política, precisava de uma localização social. Tentei a transferência e matrícula na USP, mas ela me foi negada. Um acordo diplomático entre o Brasil e Portugal garantia a equivalência de estudos, mas
recebi
como
resposta
que a
Universidade
estaria,
transitoriamente, não reconhecendo os documentos da Universidade Clássica de Lisboa, em função das circunstâncias da revolução. Não havia nada a fazer, senão iniciar um processo judicial. Mas eu não conhecia advogados na cidade, na verdade quase não tinha relações, e não queria recorrer à ajuda econômica de minha mãe, e considerei que não valia a pena. Foi, portanto, um alívio, quando a PUC reconheceu os meus papéis e me aceitou. O ambiente cultural, a atmosfera política e a atitude humana no Departamento de História foram incomparavelmente mais receptivos. Mas, como na maioria das transferências, os planos de ensino eram muito díspares, não havia correspondência entre as disciplinas. Os meus dois anos de Lisboa tiveram equivalência, em créditos, a pouco mais de um semestre. De qualquer forma, me resignei, mas decidi deixar a matrícula para o início de 1979, porque já tinha perdido oito semanas de aulas. Entretanto, saí à procura de um emprego. Em menos de duas semanas fui contratado como professor de inglês, em função do meu diploma do British Council. Fiquei como temporário, ou ACT, na rede oficial de ensino, em uma Escola Estadual na Vila Santa Catarina, próxima ao aeroporto de Congonhas, até o fim do ano de 78. Foi trabalhando na Rede Pública, que recebi os meu primeiros salários na vida. No início de 1979, para minha completa surpresa, consegui aulas de História, sem dificuldades, em uma escola particular em Osasco, no Parque Continental, o Colégio Pinheiro Machado. Havia imensa escassez de professores formados, e não era difícil conseguir aulas, desde que se estivesse matriculado, e a escola tivesse crédito junto à delegacia de ensino. Minha sorte foi que meus papéis de Universidades européias impressionavam. Lecionava vinte e quatro aulas em sala, e o salário permitia uma sobrevivência independente.
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Em conjunto com alguns amigos aluguei uma casa na Vila Campesina, em Osasco, e me estabeleci. Era uma mudança e tanto, de Alvalade, um bairro sofisticado de Lisboa, para Osasco. Mas estava maravilhado com o Brasil. Considerava espantoso ter conseguido resolver todos os aspectos básicos da vida, em menos de seis meses. Tudo me agradava: as imensas possibilidades de integração social, as relações calorosas e informais com as pessoas, a esperança de que os tempos da ditadura estavam se esgotando. O reencontro com meu país de origem foi uma descoberta feliz. Era um país por fazer. Nos cinco anos seguintes vivi como em um turbilhão. A primeira decisão foi trancar a matrícula na PUC. Alguma das atividades precisava ser sacrificada. Era impossível conciliar o trabalho com os estudos e a militância. Em Osasco colaborava com a oposição metalúrgica liderada por Zé Pedro, mas também tinha relações próximas com Henos Amorina, presidente do sindicato, que se aproximava dos metalúrgicos de São Bernardo, e estava disposto a realizar uma campanha salarial “pra valer”. Participei, no intervalo das aulas, da greve de duas semanas no ABC em abril de 79. Na seqüência, fui convidado a ajudar na organização do Congresso de reconstrução da UNE, em Salvador. Depois de Salvador, passei a ter dedicação integral ao movimento estudantil. Me demiti do Colégio Pinheiro Machado. Mesmo sem assistir a uma aula sequer, cheguei como delegado aos Congressos da UNE em Piracicaba de 1980 e 1981, o que não era incomum. Participei de uma chapa pra a diretoria da UNE, Mobilização Estudantil, como candidato a vicepresidente, em 1981, quando as eleições ainda eram diretas, vencida pela chapa de Aldo Rebelo, atual deputado federal. Em 1982, ano das primeiras eleições diretas para governador, vivi no Rio de Janeiro, durante um ano. 7. A PUC em 83, e os sete anos de experiência na Rede Estadual de Ensino.
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Voltei para São Paulo e retomei os estudos da graduação na PUC, em 1983, desta vez, decidido a concluí-los. Era a quarta vez que começava de novo. Desta vez fui até o fim, ufa! Só interrompi os estudos durante o segundo semestre de 1986, quando vivi em Belém do Pará, e aproveitei para conhecer um pouco da Amazônia. Viajei em função de uma situação de emergência, que exigia a minha presença, e que não podia declinar. Como toda grande mudança, esta também resultava de uma crise. A fascinação com o militantismo de tempo integral tinha se esgotado. Mantinha as convicções, mas estava convencido a procurar uma inserção social que garantisse independência da vida política. A experiência de militante profissional, na estrutura de direção de uma organização centralizada, já não satisfazia minha curiosidade e inquietação intelectual. Além disso, talvez seja apropriado agregar que a luta de idéias nos círculos revolucionários, pequenos ou grandes, tem uma intensidade inconcebível, para quem não viveu a exasperação das controvérsias na esquerda. A eficácia da centralização é imensa, mas a cultura política que se constrói nessas circunstâncias tem, necessariamente, uma tensão sectária, pela força centrípeta de coesão. Exige e impõe uma enorme dedicação e disposição de entrega, e estabelece limites. Estava exausto, e precisava de “oxigênio puro”, uma atmosfera intelectual inspiradora. Crescia, também, o mal-estar com o meu próprio autodidatismo. Entrei em ruptura com o hiper-ativismo do meio social em que estava integrado e, acima de tudo, com o voluntarismo praticista. Ansiava estudar de novo, seriamente. Decidi procurar um quadro organizado de pressão e orientação de leituras e produção de textos, e já tinha consciência que, pelo menos no Brasil, a academia seria a única alternativa. De todas as Universidades que tinha freqüentado, até então, a PUC foi aquela em que me sentia mais confortável. Entre 1983 e 1988, completei a graduação e a licenciatura em História. Passava os dias entre as aulas e a biblioteca do prédio novo. Entrava nas primeiras horas da manhã, e ficava até o pôr do sol. Claro que os tempos de movimento estudantil, tinham passado para
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mim. Almoçava no “bandejão”, e só saía na hora de ir para as aulas nos bairros periféricos, para lá do Jaçanã. Ensinava somente às noites, mas todas as noites. Durante os cinco anos da graduação trabalhei, ininterruptamente, no ensino público, e assumi um compromisso com a causa da educação. Minhas lembranças mais fortes dos primeiros anos na PUC evocam o encantamento com a volta às aulas, e o reencontro com as agradáveis rotinas de ler e escrever, além das discussões em sala de aula, em que não tinha que me preocupar em ganhar votações. Estava saturado da aspereza das polêmicas políticas. Foi um alívio. Seria injusto não registrar agora que devo muito aos professores que encontrei no Prédio velho que cercava o Pátio da Cruz. Ainda no primeiro semestre, aprendi o significado da humildade necessária que o trabalho intelectual supõe, e exige. Tomei consciência da dimensão de minha ignorância e, mais de uma vez desde então, me angustiei pensando quantas vidas seriam necessárias para poder aproveitar os tesouros guardados nos livros de uma biblioteca. Aprendi que nada de novo poderá surgir da perda da memória. Todos temos nossos limites, mas nos apoiamos nos ombros de gigantes que nos antecederam e, quando podemos enxergar além, é porque nos elevamos sobre novas realidades e novos desafios, apoiados em ensinamentos que nos deixaram. O conhecimento é sempre um processo social, logo, coletivo, mas histórico, portanto, transitório. Compreendi que minha condição de, digamos, estudioso do marxismo, era completamente insuficiente para garantir um bom aproveitamento em um curso de História. Professores pacientes me ajudaram a discernir que, embora alguns marxistas tivessem escrito bons livros de História, uma identidade teórica não era, em si, garantia de nada. E pode até ser, quando doutrinária, um estorvo. O meu ponto de partida nos estudos teórico-metodológicos foi a releitura, agora, rigorosa e atenta, dos textos de interpretação histórica mais conhecidos de Marx, A luta de classes em França , O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e A Guerra civil em França, escritos em um nível de análise mais
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concreto que a maioria de sua obra dedicada à crítica da economia política. Sabia que não encontraria, em Marx, nada sequer próximo a uma Teoria Geral sobre a Concepção Materialista da História. A maioria dos escritos deixados por Marx fora elaborada em sucessivas redações e, como é amplamente conhecido, produzidos na forma de anotações e rascunhos, que resultaram na publicação da Contribuição à Crítica da Economia Política e, posteriormente, no primeiro livro d’O Capital , todos em um
nível de abstração muito elevado. Engels compreendeu a lacuna e tentou desenvolver a nova abordagem teórica no Anti-Duhring , e n o s e u Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, e nos mais conhecidos, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, e A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada, entre outras, mas o próprio desenvolvimento da História
como Ciência, colocava novas questões e estabelecia os limites das obras dos fundadores. Não foi por outra razão que o problema atraiu a segunda geração, e Plekanov, Kautsky, Mehring, entre outros, voltaram à questão do materialismo histórico, ensaiando uma abordagem teórica de vários temas inexplorados. Discutia-se o lugar do indivíduo na História, o que seria a necessidade histórica, quais seriam as forças de impulso mais gerais do processo histórico, o lugar da tendência ao desenvolvimento das forças produtivas, e o papel da luta de classes, assim como a polêmica primazia das relações de produção na construção de explicações sobre os outros aspectos que compõem a realidade social. Na seqüência, cheguei à leitura dos trabalhos de Bukharin e Preobrajensky, Teoria do Materialismo Histórico, um tratado de divulgação severamente criticado por Gramsci, e de Leon Trotsky, História da Revolução Russa, um exemplo de aplicação da teoria a um processo histórico ainda em
curso. Qual era o universo de minhas preocupações? Estava colocado diante da crítica que reduzia o marxismo a uma teleologia exaltada do progresso como sentido da história, uma nova versão finalista, e angustiado com o tema do determinismo econômico ou do determinismo tecnológico, mesmo
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quando eram introduzidas as mediações e considerados os matizes que os situavam como condicionamentos em última instância. Sinto-me na necessidade de apresentar este roteiro de dúvidas intelectuais, mesmo correndo o risco de ser aborrecido, porque foi, mais ou menos na época da graduação, que me coloquei perante um dos grandes problemas da polêmica marxista: a discussão do lugar das categorias e conceitos em articulação com as transformações históricas, e a pesquisa empírica. As categorias e conceitos não deveriam também ser interpretados como históricos e, portanto, instrumentais? Esta questão de método foi decisiva na formação de quem escreve, e recordá-la remete à necessidade de revisão permanente da teoria, e me foi sugerida em discussões com as professora Zilda Gricoli Yokoi e Ilana Blaj, assim como nas leituras de Concepção dialética da História de Antonio Gramsci, Capitalismo Tardio de Ernest Mandel, Método de interpretação da História Argentina de Nahuel Moreno, El Partido Bolchevique de Pierre Broué, entre muitos
outros. Qual era o problema? Não foi em vão que tantos marxistas insistiram sobre a complexidade infinita da realidade diante dos esquemas. Toda a história do marxismo consistiu em sucessivas superações de esquemas que, mesmo tendo sido os melhores possíveis em um momento dado, a mudança da realidade histórica obrigou a revisar. Marx e seus seguidores mais talentosos não foram nunca guardiões de catecismos, mas os primeiros a advertir que as velhas idéias, que não correspondiam à realidade presente, tinham se tornado inadequadas. Para não ser cansativo, me limitarei a três exemplos mais clássicos: o prognóstico de Marx sobre a probabilidade da revolução na Inglaterra, na França ou na Alemanha; o debate sobre o substitucionismo, a propósito dos sujeitos sociais das revoluções, e a elaboração de Lenin sobre a natureza do Estado soviético. Se aceitarmos como premissa que a história resolve algumas discussões, o século XX demonstrou, de forma incontestável, que não existiu a possibilidade de iniciar uma transição ao socialismo em um só país, ou até
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mesmo, em um subcontinente, enquanto o capitalismo manteve o controle sobre o mercado mundial, ou seja, o domínio político sobre as economias mais desenvolvidas. Todos os regimes que resultaram de revoluções sociais, e que foram além da regulação mercantil e da propriedade privada, mesmo quando realizaram façanhas sociais, geraram implacáveis ditaduras de partido único, com suas espantosas aberrações burocráticas. Na sua polêmica contra Bakunin, Marx tinha, portanto, muita razão em assinalar que o socialismo teria que partir do nivel das forças produtivas alcançado pelo capitalismo inglês, e não do atraso da Mir, a comuna rural russa. Uma sociedade que ambicionasse a distribuição mais igualitária da riqueza, precisaria se apoiar na abundância material, e não poderia depender somente das necessidades éticas de mais justiça social. O dirigente anarquista se equivocava quando defendeu, contra eles, que o proletariado não cumpriria papel algum, e vaticinava que o campesinato russo seria o sujeito social da revolucão, apoiandose nessas formas primitivas de propriedade coletiva, embrionárias, em sua opinião, de uma nova sociabilidade comunitária. Mas Marx errou, também, quando, no prognóstico, confundiu maturidade para a transição ao socialismo, com iminência de uma etapa revolucionária. Não obstante, nos começos do século XX, o mesmo esquema teórico de Marx se transformou, nas mãos do marxismo “ortodoxo” de Kautsky, em uma hipótese estéril. O dirigente social-democrata alemão se negou a confrontar o esquema marxiano com o peculiar processo de desenvolvimento do capitalismo russo, e com os ensinamentos da revolução de 1905. Prisioneiro da elaboração anterior, não podia considerar a possibilidade do proletariado encabeçar a revolução social em um país de maioria camponesa, e esgrimiu, escolásticamente, contra Lenin, os argumentos que, em um outro marco histórico, Marx tinha lançado contra Bakunin. A História revelou para o marxismo que seria mais probable e, também, mais fácil a vitória de uma revolução social anti-capitalista ou, de resto, qualquer revolução, fosse qual fosse o seu programa e natureza de sua direção, em países atrasados, do que nos países centrais, ainda que
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incomparablemente mais difícil um processo de transição para o socialismo, ou qualquer transição pós-capitalista, inspirada em criterios igualitaristas. Lenin, por sua vez, que tinha previsto contra Plekanov, e também, contra Kautsky, a possibilidade de um papel revolucionário do campesinato, tampouco ficou para sempre agarrado ao esquema da “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, uma das razões de suas ásperas diferenças com Trotsky, antes de 1917. Ao iniciar-se a revolução de 1917, girou contra os velhos bolcheviques que permaneciam fiéis a esse esquema. Nas Teses de Abril colocou que essa “ditadura” já tinha se realizado, não como um regime independente, mas como un duplo poder que, em função da influência de sua maioria moderada entre a maioria camponesa, deixava o governo, socialmente, nas mãos da burguesia e, políticamente, nas de Kerensky. Admitia a necessidade de revisão teórica face a novas realidades. Depois de Outubro, Lenin definirá o novo regime político de “ditadura do proletariado” com muitas e variadas categorias contraditórias: como “Estado operário” quando define a classe dirigente; como “Estado operário e camponês” quando polemiza contra a militarização dos sindicatos; como “Estado burguês dirigido pelos bolcheviques” quando queria sublinhar a contradição entre o aparelho do Estado e a política do partido; como “Estado socialista” quando menciona a aplicação do programa; como “Estado operário com graves deformações burocráticas” quando inicia seu último combate contra o nascente estalinismo. Estes exemplos estão longe de esgotar a lista. Um inventário minucioso das Obras Completas revelaria, com segurança, muitas outras definicões. Essa variedade de definições deixava subentendido, portanto, que a forma de ditadura de um único partido correspondia a uma situação excepcional de guerra civil e isolamento internacional, e a necessidade não deveria ser transformada em virtude, nem muito menos em modelo. Mas a história seguiu um outro caminho. A decepcionante brutalidade repressiva de todos os regimes que surgiram de revoluções socialistas no século XX, muito além das necesidades conjunturais dos primeiros anos, parecia dar razão à ironia dos
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jovens de Praga que pixaram nos muros, depois da invasão de 1968, “se Lenin fosse tcheco estaria preso”. A grande virtude do método de Lenin, inclusive por contraste com certa rigidez conceitual de Trotsky, seria esse “empirismo saudável”, na realidade, algo diametralmente oposto. A rigor, não seria sequer empirismo, strictu sensu, porque poucos terão produzido e revisado tantos os conceitos e as definições, como Lenin. O que o movia era uma infatigável preocupação com a realidade, de uma permanente correção das categorias e esquemas teóricos em confrontação com os acontecimentos. Muito longe do empirismo daqueles que dão voltas sem fim, sem arriscar definicões, mas mais longe ainda da escolástica de sectários que vivem citando seus clássicos, a obra de Lenin foi um exemplo do esforço de trabalhar, dialécticamente, os limites da teoria. Poder-se-ia, é certo, argumentar que o esforço de conceituação seria sempre prisioneiro de um certo esquematismo, e que a realidade é sempre mais complexa do que todos os esforços de caracterização. Num certo sentido esse argumento é válido. Mas todo trabalho teórico de buscar regularidades e construir modelos, ou identificar padrões e classificá-los, corre esse risco. O empirismo, o erro simétrico a uma excessiva conceituação, me parece, no entanto, um perigo mais grave. É da natureza da discussão teórica a produção de conceitos e idéias como instrumentos de interpretação da realidade, o que supõe a necessidade das comparações e das generalizações. Claro que o grande risco como, aliás, em outros terrenos, é a tendência à obtusidade, dito de outra forma, a mania de contrair “matrimônio indissolúvel” com as idéias. Assim caminhavam as minhas reflexões nos anos de PUC. Tinha descoberto o perigo do doutrinarismo, e procurava, por dentro da própria tradição, uma outra identidade teórico-metodológica. Mas não devo deixar uma visão distorcida. Não lia, evidentemente, só teoria marxista. Foi um período de apresentação exaustiva à discussão historiográfica brasileira e estrangeira. Os conceitos de “cultura material” de Braudel, em especial, abrangendo, por exemplo, a história das ferramentas e do vestuário, das migrações e das sazonalidades, das flutuações dos climas e da mudança das rotas de comércio, da produção e
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consumo das bebidas e dos alimentos, e de “mentalidade”, compreendida como a dimensão dos costumes e crenças, que operavam na regulação das relações sociais na mesma proporção que a coerção político-militar dos Estados, me pareceram de grande utilidade teórica. A noção de Braudel de que “as mentalidades são prisões de longa duração”, surgia como uma perspectiva enriquecedora da compreensão que Marx tinha exposto sobre “a terrível e estúpida lentidão dos ritmos históricos”, ou seja, o fenômeno das permanências nos hábitos culturais, longe de todo o determinismo vulgarizado. Ao longo dos anos, e na medida em que foram publicados, passei a ser um gratificado leitor de Braudel, da Gramática das Civilizações, que uso até hoje nas aulas de História da Cultura no CEFET, até o
seu amplo painel sobre a transição histórica nos três volumes de Civilização Material, Economia e Capitalismo.
Nunca fui hostil aos historiadores das diversas gerações da escola dos Annales, que começavam a ser discutidos, na diversidade e pluralidade de suas aproximações, e ganhavam receptividade. Traziam os enfoques da geografia, da demografia, da psicologia social, da antropologia, e até da lingüística, para a história, ampliando o campo da interdisciplinaridade no método, e sugerindo novas fontes como material de investigação e novos horizontes de interpretação. No entanto, mais importante, talvez, ocorria uma renovação das temáticas, uma ampliação da pauta dos fenômenos a serem estudados como significativos, sensíveis à nova agenda cultural que o período pós-68 abriu para toda uma geração, como o lugar das identidades sexuais, de gênero ou de raça, e outras, que se expressaram na grande produção de trabalhos, que respondem pelo que ficou conhecido como a História da Vida Privada. Na opinião de quem escreve, alguns ex-abruptos polêmicos, de então, foram pouco produtivos. A heterogênea corrente da História das Mentalidades colocava menos em questão os limites metodológicos da História Econômica e da História Política, do que ampliava a dimensão dos temas da História Social, abrindo um novo campo de investigação e pesquisa, até então,
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negligenciado ou diminuído. Por outro lado, era previsível que as posições mais influenciadas pelo indeterminismo pós-modernista não poderiam ser senão um excesso intelectual passageiro. Por outro lado, já conhecia a escola de Frankfurt e a esquerda freudiana desde Portugal, porque a iniciação na esquerda da maioria da minha geração passava por Walter Benjamim, Marcuse, e por Willhem Reich, mas foi durante a graduação que descobri, com muita satisfação, o Freud de Totem e Tabu , O futuro de uma Ilusão e, mais importante, O mal estar na civilização. Lia
como distração, tudo o que era publicado de Carl Sagan e Stephen Jay Gould, interessado em literatura científica. Tive nessa época, também, alguns embaraços triviais. Em 87, um episódio imprevisível me deixou inquieto. Uma reportagem da revista Veja, dedicada ao tema das tendências internas do PT, citava o meu nome, e me denunciava como um agitador com experiência internacional, o que era, além de estapafúrdio, diretamente ridículo. Mas, como meus antecedentes militantes eram desconhecidos na PUC, e os tempos de ditadura não eram ainda muito distantes, a matéria poderia me deixar em uma situação constrangedora. Devo deixar registrado que a reação de todos os professores foi impecável. Alguns foram especialmente solidários, confirmando minha apreciação sobre a qualidade moral daquele corpo docente. Infelizmente, não posso dizer o mesmo das repercussões dessa denúncia no ambiente da Quarta Delegacia de ensino, onde trabalhava. Não cheguei a viver, na PUC, o ambiente da vida estudantil. Não tinha tempo a perder, e minha vida pessoal era austera, para os padrões da época, e estava, essencialmente, divorciada do meio acadêmico, e se restringia ao convívio com um círculo restrito de amizades. A maioria dos meus colegas era mais jovem e, como freqüentava o matutino e vespertino, não me recordo que muitos trabalhassem. Nesses anos, eram poucos os professores que organizavam seminários preparados pelos próprios alunos, e ainda mais raros os que faziam a avaliação com provas ou exames. As aulas eram, em sua maioria, aulas expositivas de apresentação dos temas e da discussão historiográfica. O nível e
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rigor intelectual dos professores eram elevados Escrevi várias dezenas de trabalhos, uns mais bem sucedidos que outros, mas receio que um pouco pretensiosos. Foram, no entanto, generosos com meus textos, e terminei a graduação com notas melhores do que, presumivelmente, mereceria. Entre os professores da graduação me recordo do fabuloso senso de humor de Modesto Florenzano que, nas aulas de História Moderna, me introduziu à leitura sistemática de Cristopher Hill, Edward Thompson e Eric Hobsbawm, enfim, a historiografia marxista inglesa. Não posso deixar de citar, de novo, Ilana Blaj, que já não está entre nós, um exemplo como professora, e uma das pessoas mais adoráveis que conheci, e que me orientou nos estudos sobre o Brasil colonial, uma das lacunas imperdoáveis da minha formação. Devo a Vera Lúcia Vieira um semestre inesquecível sobre o fascinante século XVI, a aurora da modernidade e a descoberta de O Moderno Sistema Mundial , de Immanuel Wallerstein, um dos livros que, possivelmente,
mais me influenciou no método: a preocupação simultânea de construir a análise a partir da contextualização internacional, situando cada país no interior das relações de forças do Sistema Mundial de Estados em formação, sem deixar de considerar as lutas de classes, em toda a sua terrível complexidade de alinhamentos e rupturas de frações, blocos e frentes, em ininterruptas disputas de hegemonia. Foi nas aulas de História da América de Francis Rocha, que cativava a todos pela sua simpatia, que me familiarizei pela primeira vez com a revolução mexicana, e superei uma visão que poderia ser criticada como “russificada” da história das revoluções do século XX, conseguindo encarar o estudo de uma revolução com um espírito de análise desapaixonada que se deve esperar de um historiador. Hollien Gonçalves Bezerra e Elias Tomé Saliba foram os meus professores de Teoria, ambos portadores daquela erudição que transforma teorias muitas vezes complexas, em idéias contextualizadas historicamente, e donos de uma elegância e leveza de caráter, que me levou a duvidar se eles viviam no mesmo mundo que eu. Lúcio Flávio de Almeida e Euclides Marchi,
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incansavelmente educados, foram meus professores de EPB e de Brasil, e devo a eles meus progressos na compreensão do processo histórico e da historiografia brasileira, além de serem referências intelectuais. Mas foi Zilda Gricoli Yokoi quem teve nesses anos a maior influência sobre mim, possivelmente, sem o saber. Creio que não seria injusto dizer que foi de alguma maneira, uma dessas relações em que as duas pessoas se escolhem, embora não pudesse ser uma relação entre iguais. O estatuto diferenciado de professora e estudante já era para mim, prisioneiro dos formalismos da educação lusitana, motivo suficiente de um distanciamento. Mas me recordo até hoje da alegria quando a encontrava, sempre com Ilana Blaj ao seu lado, nas assembléias de professores do Estado, solidária com a luta pela educação pública. Não devo esconder a minha preocupação, se pedia a palavra para defender uma proposta ou outra, me perguntando se não a decepcionaria. Não poderíamos ser, todavia, mais diferentes em temperamento. Da minha parte, a atração se explicava pela admiração: o exemplo de suas aulas me salvou, mais de uma vez, de ser um professor chato e verborrágico. Desde então, os anos só fizeram reforçar a mútua confiança. Sete anos depois da formatura, voltamos a trabalhar juntos durante a orientação do doutorado. Devo admitir que era duro estudar de dia e ensinar à noite, além da militância sindical que passei a desenvolver na Apeoesp, o sindicato dos professores. Era uma rotina severa, e que exigia muita disciplina, mas estava contente comigo mesmo. Ao longo dos anos 80 fiz meu aprendizado como professor. Depois da desprofissionalização política precisava de um emprego. Não podia mais recorrer à família para me sustentar. Tinha vinte e sete anos e uma carteira de trabalho, constrangedoramente, quase vazia. Não tive nenhuma dúvida que o trabalho mais conveniente seria o de professor na Rede Pública Estadual, porque não podia depender da insegurança da rede privada. Tinha que pagar aluguel e a PUC que, felizmente, não era cara como hoje.
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Nessa época, o sistema de contagem de pontos vigorava à maneira antiga, ou seja, era o “velho oeste”, uma selvageria completa, e a procura de aulas tinha que ser feita escola por escola. Tinha trabalhado um semestre em 78, mas quase não tinha pontos. Criei um sistema que minimizava, mas não suprimia, as visitas pelo labirinto de ruas de bairros que eu desconhecia até no nome: escolhi a zona norte, devo confessar, um erro político idiota de localização, fui até a Secretaria da Educação e copiei todos os telefones das mais de cento e vinte escolas. O mês era julho de 83. Estávamos, portanto, na metade do ano letivo. Sabia que não tinha chance alguma procurando aulas, diretamente, nas delegacias de ensino. Ainda mais sendo estudante, sem o bacharelado, nem a licenciatura. Passei algumas semanas telefonando de uma central da Telesp, com dezenas e dezenas de fichas nas mãos: naqueles anos, junto com toda a torcida do Palmeiras, não tinha telefone doméstico. Depois de muitas visitas, encontrei vinte e quatro aulas no noturno da EEPSG Gustavo Barroso, no Jardim Brasil, que passou a ser a minha sede, e onde fiquei até 1990. Lecionei em outras oito outras escolas da Zona Norte para completar horário, entre elas, algumas das mais importantes, como a EESG Padre Antônio Vieira, em Santana, a EESG Augusto Graco, na Vila Gustavo e a EESG Guttemberg, no Parque Edu Chaves. As condições de ensino na rede estadual eram terríveis, uma situação pior do que a que tinha conhecido em 1978 porque, além do espantoso baixo nível, o autoritarismo das direções e das delegacias permanecia, em grande medida, intacto, mesmo depois do fim da ditadura, como se o dispositivo burocrático tivesse uma força de inércia própria. A intensidade da luta sindical ajudava a polarizar ainda mais o conflito com o aparelho das delegacias de ensino. Mais importante, mo entanto, era o pano de fundo permanente de uma horrorosa pobreza dos lugares, dos alunos e suas famílias, uma miséria material e cultural que parecia estar sempre se agravando. Foi nos confins da zona norte que encontrei o Brasil profundo, e olhei nos olhos as privações e humilhações diárias do povo brasileiro. Quem passou por essa escola, não pode esquecer. Sempre ensinei no noturno para alunos adolescentes, ou jovens adultos. Não saberia dizer em que tipo de professor eu estava me
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transformando, mas posso dizer que tipo não queria ser. Em primeiro lugar, queria dar aulas, portanto, o arranjo indigno de quem estabelecia cumplicidades infames com os alunos para não fazerem nada me parecia desprezível. Não queria ser, também, como alguns dos meus colegas, em geral mais velhos, que compensavam suas inseguranças ou debilidades de formação, com uma intimidade populista com os alunos, confessando as suas vidas e esperando o recíproco dos estudantes, e confundindo, portanto, autoridade e autoritarismo. Tentavam, por essa via, supostamente, camuflar as relações de poder inerentes à divisão de papéis em uma instituição escolar, ou diminuir as suas responsabilidades, o que surgia aos meus olhos como algo impróprio e inconveniente. Mas, por outro lado, não queria ser incompreensível e inatingível. Não posso saber em que medida fui bem sucedido. Uma vez fui surpreendido por uma aluna que, querendo me agradar, tentou me elogiar dizendo que eu falava muito bonito, da maneira que estava escrito nos livros, mas que muitos não entendiam grande coisa. Entrei em pânico pedagógico e acendi um alerta vermelho. Passei a ter muito mais cuidado com as palavras. Por último, devo lembrar que o primeiro semestre de 1984 foram os meses das Diretas, um divisor de águas para todos que os viveram, um período de intensa mobilização social e política em toda a sociedade e, também, na PUC. Pela primeira vez, depois de 1964, oito milhões de pessoas, de norte a sul, algo próximo a 20% da população economicamente ativa, se mobilizavam em torno a uma campanha política. Foi um terremoto. A motivação política entusiasmava centenas de milhares, que se engajaram, a partir de então, em uma militância ativa. Dentro dos limites impostos a alguém que trabalhava e estudava, entre 84 e 89 tive uma participação intensa no movimento sindical, que me levou a ser secretário-geral da CUT-Regional de São Paulo durante o ano de 1985. Em 1987, no V Encontro Nacional, fui eleito para a Direção Nacional do PT (Partido dos Trabalhadores). Concluí, no início de 1988, o bacharelado e a licenciatura em História na PUC e, em seguida, prestei o concurso público para professor de
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História na Escola Técnica Federal de São Paulo. Na ocasião, não tive muitas condições para me preparar. Foi, portanto, uma imensa alegria descobrir, em Junho de 88, que tinha sido aprovado. 8. Cubatão em 88, início de uma experiência de doze anos no ensino técnico e tecnológico: o CEFET/São Paulo.
Entre 90 e 95, minha vida passou por mudanças de todos os tipos, algumas maravilhosas, e outras não tanto, mas todas qualitativas. Nem é preciso lembrar que o contexto político histórico não foi fácil, e fui intensamente afetado tanto no plano pessoal, quanto no teórico-político. A embriaguês de 1989 sucedeu a terrível ressaca de 90, tanto nacional, com a eleição de Collor, quanto internacional, na medida em que ia se tornando mais claro que, a dinâmica do processo aberto, depois das revoluções antiburocráticas no Leste e, na seqüência, na própria URSS, ia na direção da restauração capitalista. Os anos noventa, em geral, foram muito difíceis para quem sente o coração bater do lado esquerdo do peito, mas a sua primeira metade foi especialmente desoladora. Devo confessar, no entanto, que, quando vi na televisão os mineiros romenos em greve geral, cercando Ceausescu em Bucareste, a revolução de “veludo” tomar conta de Praga, a cidade que ficou na memória de minha geração pela invasão dos tanques soviéticos, e, finalmente, a queda do muro em Berlim, minha reação foi, ao mesmo tempo, de perplexidade, mas de contido entusiasmo. Minhas reservas mentais aconselhavam à prudência e à moderação, mas a avalanche era impressionante. Menos de três anos depois, no entanto, já estava claro que a derrubada dos regimes burocrático-ditatorais, não teria como conseqüência uma inflexão
dos elementos
restauracionistas introduzidos, lentamente,
pela
Perestroika de Gorbatchev, mas a sua aceleração. Se o desmoronamento foi provocado, de fato, pela colossal mobilização de milhões de pessoas, no que poderia ser analisado como uma vaga revolucionária que foi se estendendo para além das fronteiras, em efeito dominó, destacando-se o protagonismo dos setores
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de trabalhadores mais organizados, a luta de resistência ao crescente empobrecimento e acentuada desigualdade social, da segunda parte dos anos oitenta foi, politicamente, acéfala. Caíram os restauracionistas moderados, para entrarem os extremistas. Era difícil acreditar que um processo de mudança estrutural tão profundo, com a restauração de uma economia mercantil, e a transferência e concentração de propriedade e renda, em escala antes nunca vista, poderia ser tão rápido. Tampouco se poderia prever que a espantosa regressão econômica, em especial na Rússia, em grande medida comparável ao efeito destrutivo de uma guerra, poderia ser realizada e enquadrada, tendo como sustentação e legitimação política, uma base social de apoio alargada, aglutinada em torno de um discurso e de um projeto nacionalista. As três principais mudanças que afetaram o meu pequeno destino pessoal, enquanto esse maremoto atingia o mundo, foram: o nascimento de minha filha em 1991, uma imensa responsabilidade, intensamente desejada, embora – em função do efeito brutal do ajuste imposto por Collor ao funcionalismo federal - em circunstâncias cada vez mais difíceis de subsistência; o início de minha experiência docente no ensino técnico integrado; e a eleição para a Executiva Nacional do PT, que correspondeu a uma agudização da luta política, e resultaria em uma separação do PT em 1992. Ainda em agosto, comecei a lecionar na unidade descentralizada da Escola Técnica Federal, em Cubatão. Não era fácil. Tinha aulas três dias por semana, às sete horas da manhã, o que me obrigava a levantar às cinco da madrugada, noite fechada mesmo nos trópicos, para chegar no Terminal Jabaquara a tempo de não perder o ônibus das seis horas. Não fosse o bastante, mantinha as aulas na rede estadual, sempre no período noturno. Ainda não confessei que sempre fui um dorminhoco inveterado. Durante um semestre mantive o ritmo, mas o sofrimento físico era exaustivo. O contrato era ainda temporário, e ganhávamos muito menos do que os efetivos. Apesar de aprovado no concurso, minha efetivação só ocorreu em Dezembro de 89.
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Trabalhei Trabalhei em Cubatão três anos, e só em março de 1993 consegui a transferência para a unidade central de São Paulo. A Federal, como é conhecida, era uma instituição, em tudo e por tudo, muito diferente das escolas estaduais. Nos últimos anos na rede do Estado, tinha participado de um projeto piloto para o ensino noturno, em que uma experiência alternativa foi ensaiada para procurar elevar o aproveitamento dos alunos do antigo segundo grau. Professores motivados tinham estado à frente do projeto, e posso testemunhar que fizeram esforços inenarráveis para oferecer, no limite dos recursos materiais disponíveis, o melhor de si. Mas, na Federal, encontrei uma clientela completamente diferenciada. Embora oriundos dos extratos baixos e até plebeus das classes médi mé dias as,, os estu estuda dant ntes es tinh tinham am pa pass ssad adoo prec precoc ocem emen ente te pe pelo lo funi funill de um umaa impl implac acáve ávell sele seleçã ção, o, ao triu triunf nfar ar em um ves vestitibu bulilinh nhoo de terr terrív ível el repu reputa tação ção.. Comp Co mpro rove vei,i, en entã tão, o, o qu quee pod podee pa pare rece cerr um umaa ob obvi vied edade ade,, ma mass nã nãoo é: qu quee a qualidade de ensino depende tanto da disposição dos alunos quanto da atitude dos professores. Trabalhávamos duro, nesses anos, porque a unidade de Cubatão estava em implantação, e todos queriam que a imagem da Escola correspondesse ao prestígio da de São Paulo. Nesse ínterim, apresentei um projeto de pesquisa, na seleção da pós-graduação da USP, ao Professor Dr.Osvaldo Coggiola, e fui aceito como estudante do mestrado. Pensava estudar as circunstâncias, comparativamente origi originai nais, s, de fo form rmaç ação ão do PT no Bras Brasilil,, seus seus vínc víncul ulos os simu simultltân âneos eos com com as comunidades de base, com o movimento sindical, e com a esquerda de inspiração marxista. Quis a vida que a primeira tentativa de pesquisa, quase como um fado que se repetia de minha história escolar pregressa, estivesse condenada ao fracasso. Durante alguns anos sentia o coração apertado de dor, sempre que algum compromisso me trazia de volta à cidade universitária. Como consolação, lemb lembra rava va qu quee os am amer eric ican anos os tê têm m um umaa expr express essão ão po popul pular ar ins inspi pira rado dora ra:: “the “the postman always rings twice”, que se poderia traduzir, livremente, como “o carteiro sempre bate à porta duas vezes”. Um amigo de infância cunhou uma frase que
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sempr sem pree me ajud ajudou ou diant diantee do doss pe perc rcal alço çoss que que,, imag imagin ino, o, são inexo inexorá ráve veis is em qualquer vida: “todo mundo tem direito a quinze minutos de autopiedade por dia, desde que dedique, depois, o dobro do tempo para rir de si próprio”. Não havia nada a fazer, senão levantar a poeira e dar a volta por cima. Segui em frente. Tentava me confortar, recordando que seria simplesmente impossível compatibilizar o mestrado com as aulas, a militância e minhas novas obrigações familiares, e não podia hesitar diante das prioridades. De qualquer fo form rma, a, ou outr tros os aca acaba bara ram m de dese senvo nvolv lven endo do o tema tema,, aind aindaa qu quee real realça çand ndoo um umaa perspectiva um pouco diferente. Mas não se perdeu grande coisa. Aproveitei bem, de qualquer forma, minha primeira e efêmera tentativa na USP. Freqüentei dois cursos, um orientado pelo próprio Professor Coggiola, sobre o Mundo do trabalho, e as mudanças nas relações sociais, e outro do Professor Francisco Weffort, na Ciências Sociais, de teoria política, a partir da leitura dos clássicos, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau. Chegou o ano de 1992, e com ele a mobilização nacional contra Collor, oito anos depois das Diretas. Foi a maior luta política dos anos 90, e acabou sendo o marco de ruptura da colaboração com o PT. Minha presença na Executiva Nacional me colocou sobre os ombros o peso da responsabilidade de ser um dos porta-vozes da campanha desde o I Congresso Nacional de dezembro de 199 991. 1. De Dedi diqu quei ei,, prat raticam icameent nte, e, um an anoo a es esssa ca cam mpa panh nhaa e a se seus us desdobramentos, entre eles, a abertura de um processo de unificação de algumas organizações que resultou na constituição do PSTU. Correspondeu a esse período de grande turbulência, uma experiência nova e enriquecedora em um campo inexplorado, o jornalismo político, como editor responsável de jornal semanal, com todas as tarefas possíveis e imaginárias que vêm com o cargo, entre elas uma rotina de produção acelerada de textos. Aprendi a utilizar, ainda que de forma rudimentar, o computador. Nunca tinha escrevinhado tanto, em toda a vida, algo próximo a um milhão de caracteres, em um ano. Entretanto, prosseguia minha experiência como professor do ensino técnico integrado, e tive a honra, em três oportunidades, de ser escolhido
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paraninfo da formatura das turmas. Não vou esconder que fiquei muito orgulhoso. Nunca Nu nca acred acredititei ei qu quee ma mais is do qu quee um te terç rçoo do doss aluno alunoss tives tivesse se,, real realme ment nte, e, interesse em História, em uma instituição que, até no nome, deixava claro que estava dedicada à formação de alunos em um curso de segundo grau, com terminalidade técnica. Olhando para trás, enquanto redijo este memorial, não há como não destacar o que foi o mais importante nesses anos. As conseqüências do processo
de
restauração
na
esquerda
mundial,
e
no
Brasil,
foram
inco income mens nsur uráve áveis is:: de dese serç rçõe ões, s, mime mimetitizaç zações ões,, rupt ruptur uras as que ge gera ravam vam nov novas as rupturas, fragmentação, e desmoralização. O marxismo dos primeiros anos da década de 90, quando foi “meia noite no fim do século”, me apropriando do título do romance de Vitor Serge, era um campo minado de mortos, feridos feridos e mutantes mutantes por todos os lados. Devo confessar, outra vez, que minhas expectativas, no início do processo, eram razoavelmente otimistas. Esperava, ingenuamente, que um processo de reagrupamento na esquerda poderia ser desbloqueado, mais ou menos rapidamente, com novos realinhamentos e unificações, antes impossíveis. Mas, assim como a restauração veio para ficar, e nenhum movimento social mais significativo, no Leste europeu, foi capaz de oferecer uma alternativa à onda de privatizações privatizações e assalto assalto dos gangsteres das máfias ao Estado, Estado, também, no Brasil, Brasil, a crise da esquerda foi devastadora. Não fiquei imune, nesse contexto de dispersão, e comecei a ter uma percepção mais clara da radicalidade das transformações que estavam ocor ocorre rend ndo, o, e qu quee exig exigia iam, m, an ante tess de tu tudo do,, um umaa refle eflexã xãoo séri séria, a, teór teóric icaa e programátic programática. a. Muitas perguntas perguntas chaves estavam estavam no ar exigindo respostas respostas novas: qual era a natureza da derrota que estávamos assistindo? Tratava-se de uma derrota histórica ou não? Teria ocorrido uma mudança de época, como a que se configurou com a revolução russa, ou uma transição de etapa política, uma nova configuração da relação de forças no interior do Sistema Mundial de Estados, como o pós-1945? O socialismo continuava sendo uma alternativa civilizatória
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superior ao capitalismo? Que balanço retirar da experiência de mais de setenta anos de existência da URSS? Qual a diferença entre estatização e socialização? Um tema de pesquisa mais ambicioso que o primeiro começava a se delinear, ao mesmo tempo, que um “acerto de contas” teórico não podia mais ser adiado. Era chegada a hora de outra virada. 9. A USP em 95 e o doutorado.
Comecei a freqüentar dois cursos de pós-graduação no primeiro semestre de 1995, na condição de aluno especial e, em meados do ano, apresentei um novo projeto para a seleção, desta vez, aos cuidados da Professora Doutora Zilda Márcia Gricoli Yokoi, da área de História Social. Já se intitulava “As esquinas perigosas da História”, e tinha como delimitação de tema um estudo das noções de temporalidade, e os critérios de periodização históricos cruzados com as datações políticas, na tradição marxista. Tratava-se de uma questão próxima da Teoria da História, mas que podia ser aceita em uma linha de investigação das representações políticas. Fiquei eufórico quando fui aceito. Nos cinco anos seguintes, a preparação do trabalho consumiu, praticamente, quase todo o meu tempo. Estava preocupado com o tema desde o início dos anos noventa, e já tinha percorrido grande parte da bibliografia disponível, mas agora tinha um plano de trabalho
para
cumprir.
Parece
apropriado,
portanto,
apresentar
mais
detalhadamente a questão. Não existia diletantismo intelectual na escolha do tema: queria revisitar os critérios de classificação de épocas e etapas porque queria conferir, em que medida e com que escalas comparativas, poderíamos classificar as mudanças de 1989/91. Meus reflexos intelectuais me empurravam no caminho de procurar no passado a chave de entendimento e perspectiva histórica. Não ignorava a curiosa coincidência de auto-engano que, quase sem exceções, tinha vitimado grande parte do marxismo clássico. O próprio Marx tinha anunciado a abertura de uma época de revolução social em 1848, mas o período histórico da segunda metade do século XIX tinha sido de espantoso
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progresso capitalista e razoável prosperidade social e estabilidade política. Bernstein tinha analisado o surgimento do moderno imperialismo, como a abertura de uma época histórica de paz e crescimento sustentado, mas o que veio na seqüência foi a I Grande Guerra e depois o cataclismo de 29. Uma parcela do marxismo, depois de 89/91, reunida no que ficou conhecido como a defesa da Terceira Via, anunciava que, com a globalização, e com os oito anos de crescimento ininterrupto da economia americana, estaria se abrindo uma nova Renascença histórica do capitalismo, um novo boom como o pós-1945. Como periodizar o início de uma época histórica, sem confundi-la com uma mudança de etapa política? Como caracterizar as etapas, as situações? Que regularidades poderiam ser encontradas no estudo comparativo das revoluções do século XX, tanto nas crises revolucionárias nos países centrais, como nos periféricos? E, entre todos esses critérios, como compreender a crise revolucionária, essa temporalidade única? A crise revolucionária deve ser entendida, em primeiro lugar, despida de todos os juízos intempestivos e preconceitos culturais que a cercam. Recorremos a ela como uma categoria de periodização histórico-política: uma temporalidade, uma noção instrumental que busca identificar um momento chave da transformação social. Enuncio o problema: existem elementos de regularidade nas condições que favorecem a transformação econômica, social e política? A mudança social conhece, entre os seus mecanismos internos de impulsão, o momento da crise. Um encontro de tempos históricos desiguais, uma encruzilhada de forças sociais em conflito, em um tempo político único, de unidade e ruptura, de conservação e superação. A crise revolucionária é sempre fugaz e efêmera, porque a manifestação dos sujeitos sociais antes represados e contidos, enfim, livres e independentes, tenciona de forma quase intolerável os limites de todas as classes em luta. Ela se manifesta como um abismo decisivo de luta entre o que foi e o que será. As possibilidades estão sempre em aberto: a revolução desperta a contra-revolução, e vice-versa, de forma inapelável. Isso porque, em algumas circunstâncias excepcionais, as sociedades humanas fazem escolhas que serão decisivas para toda uma fase
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histórica de longa duração, escolhas de uma gravidade quase insuportável. Escolhas irreversíveis, escolhas que são uma fratura no tempo. Escolhas que pelo seu impulso, estabelecem um novo quadro geral no qual se desenvolverão as formas das relações sociais no período seguinte. Esses momentos encerram possibilidades que não se repetirão tão cedo. Mas, também, perigos que não poderão ser iludidos. As crises revolucionárias são as esquinas perigosas da História.
A pesquisa tinha o objetivo de construir uma análise histórica da elaboração e sucessivas reformulações dos conceitos de época, etapa, situação e crise revolucionária tal como foram pensados em uma parte da tradição marxista. Ou seja, ela apresentava como argumento a defesa da idéia de que os critérios de periodização histórica são indivisíveis dos critérios de periodização política, e vice-versa, em uma época em que as lutas de classes se afirmam como a principal força motriz do devir social. O que nos remetia, necessariamente, à discussão das premissas histórico-metodológicas da classificação de períodos, fases, etapas, situações e conjunturas, em uma palavra, os fundamentos de uma teoria dos tempos históricos e suas articulações com os tempos político-sociais. Receio, ainda hoje, que a maioria dos historiadores acharão o tema muito filosófico, os filósofos, por sua vez, muito político, e os cientistas políticos, muito histórico. O estudo das temporalidades nos critérios de classificação do marxismo remete, também, inevitavelmente, às grandes concepções históricas sobre o tempo e suas medidas. Sempre foi assim, mesmo antes da História se constituir como ciência: as teleologias religiosas foram ciosas de estabelecer os seus critérios, como instrumentos definidores de sentido para a condição humana. Inúmeros seriam os exemplos: o eterno retorno oriental, como medida de punição ou recompensa; o tempo de provação e espera do judaico-cristianismo, como ante-sala do combate final entre o bem e o mal, o Armagedon; o tempo hegeliano do progresso, como aventura da realização do Espírito. Ou seja, se a Humanidade sempre precisou de escalas de quantificação,
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procurou, também, critérios de explicação para as medidas do tempo. Mas o Tempo é, em uma dimensão histórica, vivido como uma experiência subjetiva. Os marxistas também atribuem qualidades ao tempo: em uma palavra, como igualitaristas, antes de mais nada, eles fazem seu um projeto político que tem pressa, porque sabem que, na escala das longas durações da transformação histórica, todas as revoluções ocorreram, de alguma maneira, demasiado tarde, tão grande a herança e a dívida da injustiça. Mesmo quando as revoluções foram prematuras. Mas compreendem, também, que a terrível lentidão dos ritmos de transformação histórica repousa em processos que não dependem somente da vontade. Não obstante, a percepção dos ritmos desiguais, amálgamas contraditórios do arcaico e do moderno, do atraso e da vanguarda, não remete somente à análise das determinações econômico-sociais, mas exige a mediação das incertezas da luta política. A dúvida perturbadora permanecia, no entanto, me tencionando: existiria algo de uma teleologia laica nos critérios de periodização do marxismo? As referências das temporalidades que balizam qualquer pesquisa são muitas e remetem à compreensão de muitas variáveis, em níveis diferentes de abstração: as medidas, os movimentos, as proporções, e os sentidos de fenômenos que se desenvolvem de forma contraditória, desigual e simultânea. Minha ambição era escrever um trabalho que pudesse estabelecer qual era o “estado do debate” sobre o tema, recuperando tanto a literatura dos clássicos, como as contribuições mais recentes, e sugerir uma maior clarificação dos conceitos, reatualizando-os. Mas não pude usufruir muito da alegria do reingresso em 1995, porque no dia 5 de Julho, meu pai foi internado em um Hospital, com um quadro grave de pneumonia e insuficiência respiratória, e veio a falecer quarenta dias depois. Eu era o único parente, além de minha mãe, de quem ele estava separado desde 66. Fui para o Rio de Janeiro para acompanhá-lo. Desde 91, ele tinha sido diagnosticado como soropositivo do vírus da Aids. Morreu aos 72 anos, um ano antes da descoberta do coquetel de medicamentos que permitiu elevar a expectativa de vida dos soropositivos.
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Consciente da fragilidade de sua saúde, tinha tido a precaução de comprar um plano se saúde no nome dele. Mas, quando a Clínica enviou o relatório em que constava o diagnóstico de soropositivo, o Plano de saúde recusou a autorização da internação. Foi o início de uma luta jurídica apocalíptica, que durou mais de três anos, e consumiu uma quantidade imensa de tempo, além de dinheiro. Cada dia de internação na UTI custava quase R$10.000,00, uma verdadeira fortuna, para quem tinha um salário mensal que correspondia a 10% desse valor. A conta final ficava próxima dos R$300.000,00, uma soma impagável. A luta contra o Plano de Saúde me levou a uma peregrinação pelo mundo das ONG’s vinculadas à solidariedade com a Aids, e a “epopéia” nos tribunais, à descoberta dos labirintos da Justiça no Brasil. Guardo, até hoje, uma emoção que não cabe em palavras, quando me recordo da força humana que recebi das famílias e organizações que encabeçaram a resistência naqueles anos. De volta a São Paulo, voltei às aulas, tanto na USP quanto na Federal, e às leituras. Creio que é apropriado esclarecer que, como não podia prescindir do trabalho para a sobrevivência, não fui bolsista. Durante os cinco anos de permanência no programa de pós-graduação trabalhei, ininterruptamente, como professor de dedicação exclusiva na Escola Técnica Federal de São Paulo, que, em 1998, foi transformada pelo MEC em CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica), com vinte aulas em sala, e mais doze dedicadas às reuniões e tarefas administrativas. Cumpri as disciplinas do Mestrado até meados de 1996. A freqüência às aulas e a preparação dos seminários consumia uma quantidade considerável de tempo, e me exigiu dedicação durante três semestres. Com o Professor Doutor Emir Sader fiz a disciplina Modelos Hegemônicos na América Latina .
Este curso realizou um estudo comparativo dos processos de
permanência/mudança na América Latina no Século XX, em particular, México, Bolívia, Cuba, Chile e Argentina com ênfase, na observação das situações revolucionárias: o México da década de 10, a Bolívia no início dos anos 50, a revolução cubana, o Chile sob o Governo Allende, e a Argentina no período que precedeu o golpe de 76. Como a minha pesquisa tinha o foco no tema da crise
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revolucionária, foi excepcionalmente útil como um painel riquíssimo da conturbada história latino-americana, com suas especificidades e afinidades. No trabalho de aproveitamento, sob o título “Castañeda e o fim das utopias”, elaborei uma resenha crítica do livro “Utopia desarmada” de Jorge Castañeda. Assisti às aulas do Professor Doutor Wilson Barbosa, no curso Aspectos de metodologia da pesquisa histórica e social , que discutia a metodologia de pesquisa, mas tinha como fio condutor a discussão das grandes teorias da história. Esse curso realizou uma apresentação de diferentes problemas metodológicos e das distintas correntes filosófico-históricas. Na medida em que o tema do meu trabalho era a espinhosa questão da história da evolução de conceitos e critérios de periodização na obra de diferentes autores (em especial, o marxismo do início do século XX), a disciplina teve importância chave como aprendizado da necessidade da delimitação do tema, e das enormes dificuldades da sua historicização. Além da formação teórica geral estimulada pela disciplina, o trabalho de aproveitamento foi fundamental. Sob o título “Lukács, o lugar do sujeito na teoria da História do Marxismo”, o seminário permitiu a reflexão e o enfrentamento de algumas questões decisivas de debate no materialismo histórico estimulados pelo curso: determinações objetivas, causalidades subjetivas, progressão/regressão no processo histórico, historicidade das leis históricas, classe e consciência de classe. A disciplina permitiu ainda o amadurecimento do aprendizado do rigor do trabalho científico: o lugar que ocupam as fontes na produção da pesquisa, a importância do ponto de vista do historiador ao trabalhar com as fontes e colocar as hipóteses preliminares, a complexidade que subjaz o exercício de verificação, do que decorre a necessidade da busca de explicações. No segundo semestre de 1995, também com o Professor Doutor Wilson Barbosa fiz a disciplina História econômica do Brasil atual: 19301985. Apesar da distância entre a minha temática, e a questão central da
disciplina, apresentação de distintas interpretações de diferentes autores sobre a história econômica do Brasil entre os anos 30 e os anos 80, o contato com os temas da história econômica foi inspirador. Por outro lado, como a disciplina visou
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apresentar um painel com variadas leituras das relações econômico-sociais e dos processos políticos e, sobretudo, perceber a singularidade do Brasil e do seu desenvolvimento, o papel do Estado, as relações determinadas pelo seu lugar na economia e política mundial, pode-se afirmar que foi essencial para a minha formação. O trabalho apresentado sob o título “84, o ano chave da década”, desenvolvia uma análise sobre a crise econômica precipitada pela moratória mexicana de 82, a recessão aberta pela maxidesvalorização decretada por Delfim, e o deslocamento das relações de forças que culminaram no processo de lutas das Diretas. Com a minha orientadora, Professora Zilda Gricoli Yokoi, freqüentei o curso Igrejas e camponeses na América Latina: Brasil/Peru . A reflexão sobre a natureza do trabalho histórico, questão ético-metodológica chave, permitiu não somente enriquecimento teórico geral, como o recorte do tema da pesquisa por um novo ângulo. Ganhei, por assim dizer, familiaridade com a idéia que a história é feita da simultaneidade de temporalidades descontínuas e, portanto, compreendi a centralidade do conceito do tempo, das acelerações e desacelerações históricas. A disciplina significou para a pesquisa uma inflexão nova de caminhos, e um estímulo de leituras de trabalhos teóricos que ajudaram a reformular completamente o projeto inicial. O trabalho de aproveitamento foi apresentado como uma reflexão sobre a teoria da história, o conceito de coodeterminação em E.Thompson e o de autodeterminação em Perry Anderson, um diálogo polêmico sobre o lugar da consciência e da vontade na teoria do materialismo histórico. Inspirado no debate de Thompson com Althusser, “Miséria da Teoria” e na resposta de Anderson “Teoria, Política e História” foi feita uma reflexão chave para o futuro da pesquisa. Já no primeiro semestre de 1996 cursei a disciplina História econômica: historiografia, métodos e técnicas , com a Profa. Dra. Vera Lucia
Amaral Ferlini. Refletir sobre as contraditórias relações entre os processos de natureza econômica e os processos políticos foi a principal contribuição desta disciplina que procurou introduzir os estudantes na especificidade da pesquisa em história econômica. Contribuiu assim para ampliar o meu repertório de referências
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teóricas, em particular o acesso à escola de inspiração ao mesmo tempo braudeliana e marxista de I.Wallerstein e à obra de G.Arrigui. Não pude acompanhar as aulas de uma disciplina em que tinha me matriculado com o Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, mas, posteriormente, no segundo semestre de 1999, freqüentei, sem estar matriculado, um curso do Professor Rui Fausto na Ciências Políticas, dedicado ao estudo das obras de Bernstein e Kautsky e aos debates na II Internacional da virada para o século XX. Não posso deixar de mencionar a participação em dezenas seminários de orientação de pesquisa sob a supervisão da profª. Zilda Grícoli Iokoi, com um grupo de trabalho de colegas mestrandos e doutorandos, nos quais foi feita a discussão crítica dos relatórios, dissertações e teses em elaboração pelos colegas. Durante os cinco anos, essas reuniões foram insubstituíveis para o amadurecimento da tese. Foi, também, através da Professora Zilda Yokoi que tive a primeira oportunidade de uma atividade docente em cursos superiores. No primeiro semestre de 1996, colaborei em um curso de Extensão em Ciências Sociais, Pós-graduação Latu Sensu, “Globalização e América Latina: um estudo comparado Brasil – Argentina”, na Fundação Santo André, onde fiquei responsável por cinco conferências, como professor convidado. Ao longo desses anos tive a oportunidade de publicação de três ensaios: “Viva Marx” in 150 anos de Manifesto Comunista , organizado por Jorge Almeida, São Paulo, Ed. Xamã, 1998, em que ofereci como argumento a idéia que defende que o Manifesto foi um desses raros textos que inicia uma revolução teórica e inspira um novo paradigma científico, além de apresentar uma nova teoria política, delimitando ao mesmo tempo com o estatismo hegeliano e com o anti-estatismo utópico; “É preciso arrancar alegria ao futuro” in Lutas Sociais nº 5, Revista do Programa de Estudos Pós Graduandos em Ciências Sociais da PUCSP, São Paulo, NIEL, 1998, desenvolvi uma análise comparativa entre as estratégias políticas das correntes hegemônicas de esquerda nos anos 90, e no início dos anos sessenta, construindo um paralelo entre a evolução do PT e do PCB; finalmente, em “Cinco anotações provocativas sobre a urgência de um
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debate” in Outubro nº 3, Revista dos Instituto de Estudos Socialistas, São Paulo, Xamã, maio de 1999, construí um balanço da esquerda brasileira, que remetia à experiência histórica do SPD alemão do início do século. Realizei palestras na Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal do Paraná sobre o tema “O conceito de época revolucionária no Manifesto” em março e abril de 1998, e uma palestra na História da Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre o tema “A crise revolucionária em Portugal: do 11 de março a 25 de novembro de 75” em abril de 1998. Nas eleições de 1994, como já tinha acontecido em 89, integrei a coordenação nacional da candidatura Lula, e me apresentei pela primeira vez como figura pública em um processo eleitoral, como candidato a deputado estadual pelo PSTU. Não tive êxito, obtive pouco menos de 10.000 votos. Não foi maior o sucesso nas eleições de 1996: me apresentei candidato para a Prefeitura de São Paulo e, em 1998, encerrei minhas participações eleitorais, concorrendo a uma vaga de deputado federal. Compreendi, depois dessas três experiências, que me faltavam as qualidades para esse desafio e, como na vida também é preciso saber recuar, desisti. A ironia foi que, independente do cargo, alcancei sempre um resultado muito semelhante, mais 9.500 e menos de 10.000 votos. Em 1997, me aproximei do próspero mundo editorial de livros didáticos, na modesta condição de parecerista de um livro para a Editora Moderna. Mas não tinha tempo para me permitir o luxo da dispersão, e a experiência foi breve e única. E, em 1998, fui eleito pelos meus colegas coordenador da área de sociedade e cultura do CEFET. Realizei o exame de qualificação do mestrado em Junho de 1999, com a presença na banca dos Professores Doutores Jorge Grespan e Fernando Hadadd, alem da minha orientadora, e fui promovido para um doutorado direto, um dos dias mais felizes da minha vida. Em dezembro de 1999, realizei o exame de qualificação do doutorado. Finalmente, no dia 6 de novembro de 2000, pouco antes da virada do século e do milênio, defendi a tese, tendo na banca os mesmos professores, e de fora da USP, os Professores Doutores Ricardo
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Antunes, da UNICAMP, e Lúcio Flávio de Almeida, da PUC/ São Paulo. Meu trabalho foi aprovado, com grau dez, distinção e louvor, e a publicação foi recomendada. 10. CEFET em 2000, docente de cursos superiores, publicações e novos projetos de pesquisa.
Embora tenha estado trabalhando com o ensino de história desde 1983, há mais de vinte anos, nunca tive vínculo com o ensino superior até 2000. O ensino superior privado nunca me interessou, em função da altíssima rotatividade, e o público, em São Paulo, em História, se reduz à USP. Tive, contudo, ao longo dos anos, inúmeras participações em muitas dezenas de mesas e debates em universidades, por todo o país, inclusive na História da UFRJ, convidado para uma comunicação, em 1998, quando dos vinte e cinco anos da revolução dos cravos portuguesa. À parte essas colaborações ocasionais em encontros regionais de História ou simpósios temáticos, fui professor convidado do programa de pós-graduação latu sensu da fundação Santo André em 1996, por um semestre. Mas, foi no primeiro semestre de 2000 que iniciei uma experiência consistente como professor no curso superior de Tecnologia do Turismo do CEFET, que estava sendo implantado, e fiquei responsável pela estruturação dos planos de ensino de cinco disciplinas: História da Cultura I e II, História Aplicada ao Turismo I e II e a optativa, Relações Internacionais. Foi um trabalho árduo, mas interessante e criativo, que ia muito além da rotina de organizar um plano de ensino para as disciplinas do ensino médio, enquadradas, necessariamente, pelas exigências impostas pelas matrizes curriculares determinadas pelo MEC, e centradas no desenvolvimento de habilidades e competências. Mantenho esta atividade docente nos últimos três anos e meio. Tive a primeira participação em uma banca de Exame de Qualificação de Mestrado na PUC-SP, em 11 de dezembro de 2000, um mês depois de defendida a tese. Fui convidado pelo Prof. Dr. Lúcio Flávio, para
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colaborar na apreciação e orientação do relatório de seu orientando Heder de Sousa. Na seqüência, participei, também, da banca de defesa da Dissertação de Mestrado, “A greve dos petroleiros de 1995”, em 26 de março de 2001. Em 20 de fevereiro de 2002, fui convidado para a banca de defesa de Tese de Doutorado de Rui Gomes Braga Neto, “A Nostalgia do Fordismo, elementos para a crítica da Teoria francesa da regulação”, orientando da Prof. Dra. Ângela Maria Tude de Sousa, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas—UNICAMP-SP. Em Março de 2003 participei, pela primeira vez, em uma banca de contratação docente na UNIOESTE, em Marechal Rondon, no Paraná. Devo acrescentar que foi trabalho duro: vinte e dois candidatos para duas vagas, ufa!!! Encerrado o doutorado, pude dedicar mais tempo à redação de artigos e ensaios. Uma adaptação de um capítulo da Tese de doutorado foi aceita pela revista eletrônica Urutágua do Centro de documentação Maurício Tragtenberg da Universidade Estadual de Maringá, disponível no sítio www.urutagua.edu, em Novembro de 2001. Sob o título Quatro Critérios para a classificação das Revoluções do Século XX: o debate Trotsky/Preobrajensky dos anos vinte, o trabalho tinha como foco a análise de variados processos
revolucionários e os perigos de uma aproximação exageradamente russificada nas comparações, alerta metodológico sugerido de forma pioneira por Preobrajensky, em uma troca de correspondência, pouco conhecida, com Leon Trotsky. Em dezembro de 2001 publiquei na Revista eletrônica Inter Alia: Arte e Idéias no Mundo digital, www.interalia.cjb.net, o ensaio A polêmica sobre a “ausência” do proletariado e as cinco vagas da revolução no século XX, editada
pelo Professor Doutor Marcelo Guimarães Lima, da Universidade de Illinois, onde apresento o tema do substitucionismo social nas revoluções dos países agrários, e a emergência de outros sujeitos sociais, como os camponeses, as populações indígenas, as massas empobrecidas das cidades, e as novas classes médias assalariadas urbanas, além do protagonismo dos movimentos estudantis depois de 1968. Em Abril de 2001, participei de um Colóquio Internacional sobre os 130 anos da Comuna de Paris promovido pelo CEMARX, no IFCH da Unicamp,
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onde fiz uma comunicação. No segundo semestre, com apoio da Fapesp, foi publicado um livro organizado pelo Professor Armando Boito A comuna de Paris na História , pela editora Xamã e Edunicamp. Nele foi incluído um capítulo que
resultou do desenvolvimento da minha palestra, sob o título, um pouco longo, A Comuna de Paris e a teoria da revolução em Marx: do balanço na “Guerra civil em França” às conclusões de Engels no “Testamento” de 1895. O centro desse
trabalho foi um esforço de conectar os elementos do balanço de Marx, no calor da derrota da Comuna, em 1871, com as indicações posteriores de estratégia política, que Engels sugeriu no Prefácio de 1895, que ficou conhecido como o seu Testamento. Em novembro de 2001, participei do II Colóquio Marx/Engels do Cemarx da Unicamp. Minha comunicação resultou no capítulo A concepção marxista da História e a centralidade do conceito de época revolucionária: revisão de uma polêmica teórica, do livro organizado, também, pelo
Professor Armando Boito, Marxismo e Ciências Humanas, editado novamente pela Xamã e Edunicamp, com financiamento Fapesp, que saiu no segundo semestre de 2003. Inspirado em uma hipótese que remete à tese de doutoramento, este texto desenvolve uma revisão dos argumentos que diferentes historiadores sugerem para a compreensão das revoluções do século XX, em alternativa às noções marxistas. Publiquei em Fevereiro de 2002, o ensaio Teoria das ondas longas Kondratiev e a recessão mundial: contra-ofensiva imperialista e estratégia de recolonização na Revista da ANDES Universidade e Sociedade, número 26,
onde apresentava as idéias fundamentais da Teoria das ondas longas, como uma sugestiva hipótese interdisciplinar de fusão da economia e da história, e desenvolvia como argumento que poderíamos estar no final da fase recessiva do quarto grande ciclo da história econômica do capitalismo, e problematizava as condições necessárias para uma nova vaga de crescimento sustentado da economia mundial. A polêmica sobre as aptidões revolucionários do proletariado
saiu na Marxismo Vivo 5, em Maio de 2002, e depois foi publicada em inglês e
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castelhano. Esse artigo desenvolve uma crítica ao livro de Jacob Gorender, Marxismo sem Utopia, em que o veterano historiador marxista reavalia o lugar do
proletariado na luta anticapitalista. O ensaio estabelece um diálogo com a principal tese do livro, a natureza ontologicamente reformista do combate proletário, criticando o perigo de uma análise historicamente indiferenciada da mobilização dos trabalhadores assalariados, e da classe operária industrial, em diferentes países e distintos processos. Em outubro de 2002, foram publicados três ensaios: Controvérsias marxistas sobre o papel do indivíduo na História saiu na Crítica Marxista, 15, editada pela Boitempo. Trata-se de uma análise crítica da
elaboração clássica de Plekhanov sobre o tema do lugar das grandes personalidades no processo histórico, que me parecia uma abordagem objetivista insuficiente. O ensaio polemiza também com a posição de Deutscher, e apresenta uma hipótese desenvolvida, originalmente, pelo historiador norte americano George Novack. O assassinato de Rosa Luxemburgo à luz da História , saiu na Sinergia Revista do CEFET/S.P. número 5, e consiste em uma contextualização
das condições que precederam o seqüestro e fuzilamento de Karl Liebcknecht e Rosa Luxemburgo em janeiro de 1918, e uma breve apresentação de sua trajetória intelectual. Por último, Kautsky e as origens históricos do centrismo na esquerda , foi publicado na Revista Outubro 7 , editada pela Xamã, e faz uma
reinterpretação das divisões na social-democracia alemã e internacional do início do século XX, defendendo que não existiram somente duas correntes, mas três tendências históricas nos debates que precederam a revolução russa de 1917, originando os três campos em que se dividiu, posteriormente, o marxismo. O ensaio Quando foi meia noite no século: o significado das transformações de 1989/91 na ex-URSS, foi aceito pela Revista do CEFET/S.P, Sinergia, Número 6. As perguntas fundamentais, que o artigo invoca, remetem à
natureza da mudança precipitada na situação internacional pela restauração capitalista na URSS. No texto, se identifica que duas hipóteses fundamentais, ou dois grandes campos de debate se definem em relação ao tema do período da
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globalização. Teria ocorrido uma virada estrutural nos inícios dos anos 90, uma mudança de época histórica do capitalismo, uma terceira Era? Seriam as transformações da última década do século XX um processo semelhante àquele que abriu o período do Imperialismo, no final do XIX? Ou vivemos um processo de outra natureza, uma passagem de etapa política, uma nova configuração da relação de forças no Sistema Mundial de Estados? O capitalismo teria superado as suas tendências intrínsecas à crise? Já o ensaio Partidocracia contemporânea e limites da Democracia Liberal foi publicado pela Revista do NEILS da PUC/SP Lutas Sociais .
Exploro neste trabalho a questão da fragilidade, mas também da permanência dos regimes democráticos na América Latina, relacionadas com a crise econômica posterior aos ajustes neoliberais. Observo que, há vinte anos, a economia capitalista brasileira parou de crescer, ou cresceu por espasmos, em um ritmo muito pequeno, e constato um paradoxo. Nesse marco dramático, tanto a América Latina, quanto o Brasil, viveram o intervalo de democracia liberal mais longo de sua história republicana - vinte anos de eleições sucessivas - mesmo considerando-se que inúmeros presidentes eleitos não completaram os seus mandatos. Retomo uma análise histórica sobre a relação entre as liberdades democráticas e os regimes democrático-liberais, a partir da revolução francesa de 1789, para destacar que, embora a gênese tenha sido simultânea, a linhagem de direitos teria tido um curso diferenciado. Sugiro, finalmente, como tema de pesquisa uma análise comparativa entre as circunstâncias que levaram à queda de Allende, no Chile de 1973, e a atual campanha pela derrubada de Chávez na Venezuela. No ano passado, publiquei dois artigos de análise comparativa das condições históricas da supremacia americana no Sistema mundial de Estados antes e depois de 1989, e que remetiam á guerra no Iraque, um na Folha de História, editado em Porto Alegre, um raro jornal especializado em história de circulação em bancas, embora restrita ao Rio Grande do Sul, e outro
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pela revista Sinergia 7, do CEFET/SP, sob o título, “A ganância do capital não despreza a incerteza da luta de classes: a hora da guerra ”.
O ensaio “Cinco Polêmicas sobre os prognósticos d’O Capital e o balanço da história ” saiu na Herramienta 24, ano VIII, Buenos Aires,
Primavera/Verano 2003/2004, e foi aceito também pela revista Novos Rumos 42, do Instituto Astrogildo Pereira, ainda no prelo. Evoca os prognósticos de Marx em O Capital sobre as crises do capitalismo, e considera quais são as contratendências e “forças de atrito” que neutralizaram, na segunda metade do século XX, a precipitação de novas crises depressivas agudas como a de 1929. Este artigo resultou de uma pesquisa que permitiu produzir, também, o texto “O capitalismo pode conhecer uma morte natural? Anotações sobre um prognóstico marxista de crise final ”, aceito para publicação pela Margem Esquerda 3, revista
editada pela Boitempo, em São Paulo, e prevista para sair em abril de 2004. “Seria o marxismo um cientificismo economicista?”, foi apresentado para a revista Diálogos , publicada pelo Departamento de História da Universidade Estadual de
Maringá, Paraná, e está, também, no prelo. São três ensaios que têm um fio condutor que remete á discussão da Teoria da História, em especial, as relações entre a força de pressão das leis econômicas, operando como tendências, e a intensidade dos fatores político-sociais que, freqüentemente, mediam, matizam ou mesmo contrariam as primeiras. Colaborei com uma entrevista para o livro sobre “O PT e a esquerda”, organizado por Felipe Demier para a Bomtexto, do Rio de Janeiro, e publicado em dezembro de 2003. “O 25 de abril faz trinta anos ”, é um artigo publicado pela revista Mundo, editada por Demétrio Magnoli, José Arbex e Jaime Brenner, autores de livros didáticos de geografia e história. Finalmente, As Esquinas perigosas da História, São Paulo, Xamã, 2004, corresponde à quarta e última parte de minha tese de doutorado.
Originalmente, em formato acadêmico, eram quatro partes, divididas, cada uma, em três capítulos. Na versão em papel. Desdobrei as conclusões em dez capítulos - além de uma introdução - em torno de vinte e poucas páginas cada, editados com subtítulos para facilitar a leitura.
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Espero conseguir, finalmente, acabar até o final do ano, a preparação de uma versão, em linguagem, dimensão e forma não acadêmica, de pelo menos mais uma parte d’ As Esquinas Perigosas da História, minha tese de doutoramento. Já tenho mais da metade da terceira revisada, mas trata-se de um trabalho de edição demorado e hercúleo, de um texto que tem mais de um milhão e meio de caracteres, que realizo de forma intermitente, e receio que com alguma dificuldade. As mãos tremem um pouco na hora de cortar. Não posso deixar de mencionar que estive presente nos Simpósios Nacionais da ANPUH de Belo Horizonte em 1997, Florianópolis, em 1999, Niterói em 2001, e João Pessoa, em 2003, quando apresentei, respectivamente, as comunicações, Estado Monárquico e crise da democracia na querela da II Internacional: a ruptura entre Rosa Luxemburgo e Kautsky sobre a reivindicação de República contra o Regime Monárquico, e Pertinência do conceito de recolonização e teoria o Imperialismo, associado ao grupo de trabalho
sobre História dos Partidos e Movimentos de Esquerda, coordenado pelos Prof. Dr. Ricardo Figueiredo de Castro (UFRJ) e Marcelo Ridenti da Unicamp. Assumi também um papel na organização do III Colóquio Marx/Engels do Cemarx da Unicamp, no segundo semestre de 2003, e acabei de entregar meu texto, “ A invenção de uma esquerda internacionalista para o novo século, à luz dos dilemas do marxismo alemão e russo de há cem anos atrás” para publicação em livro
organizado por Caio Navarro de Toledo. Tenho uma história de colaboração em conselhos de Revistas. Entre 1985 e 1990 fiz parte do primeiro Conselho editorial da Revista Teoria e debate, editada pelo PT, da qual depois me desliguei. Sou membro fundador do Conselho editorial da Revista Crítica Marxista, do CEMARX da Unicamp, da Revista Lutas sociais do NEILS do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP, e da Revista Outubro. Sou membro do conselho Político do Jornal Brasil de Fato, semanário nacional editado desde 2003. Entre meus novos projetos, para o próximo ano, está a organização de um livro, o primeiro em que serei o articulador das colaborações, sobre os trinta anos da revolução portuguesa, a ser publicado simultaneamente
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em Lisboa e aqui, uma parceria luso-brasileira de edição. Estive em Portugal em Janeiro passado e consegui a adesão de vários colegas, entre eles, Fernando Rosas, da história na Universidade Nova de Lisboa, Francisco Louçã da economia da Universidade de Lisboa, para esta iniciativa. Motivado pelo significado estratégico para o Brasil de uma possível adesão ao ALCA (Acordo de Livre Comércio das Américas), em 2005, estou preparando um trabalho que pretende explorar como foco uma periodização e abordagem histórica das várias etapas e fases das relações de domínio colonial e semi-colonial, considerando suas transformações nos últimos dois séculos. A linha de pesquisa de História Contemporânea, e de Relações Internacionais, confesso, continua entre os meus interesses. Nos últimos anos fui, eventualmente, entrevistado ou convidado a elaborar artigos em jornais e revistas não especializados da imprensa: (1) “ALCA no centro do debate”, artigo publicado no Jornal ExtraClasse, do CEPERS, sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul em 2002; (2) Entrevista na Revista semanal francesa Le Nouvel Observateur, número 1982, de 31 de outubro de 2002; (3) “A segunda Independência e a catástrofe que se aproxima”, in Revista do Sinpeem, Sindicato dos professores e educadores no Ensino Municipal de São Paulo, setembro de 1998; (4) Entrevista na Revista Isto É, 14/08/95, “Deve haver indenização para mortos por guerrilheiros?”. Por último, antes de concluir, devo acrescentar que, a partir de meados dos anos 90, sobretudo, venho realizando palestras e participado de debates em sindicatos e universidades que, afortunadamente, já me levaram a quase todos os Estados do Brasil. Tenho recebido convites, em função do que poderia definir como a minha dupla condição de intelectual e de militante de esquerda, e da disposição de ajudar em atividades de divulgação de campanhas políticas como, por exemplo, a campanha contra o ALCA. A atividade permanente de conferencista tem sido um insubstituível aprendizado para minha atividade docente. Tive, também, a alegria de ser convidado em algumas oportunidades pelo MST (Movimento dos
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trabalhadores rurais Sem Terra), para apresentar palestras em suas atividades de formação, em assentamentos e acampamentos. No dossiê que vai anexado a este Memorial, se encontrarão certificados que documentam a participação em mesasredondas e debates, nos últimos anos. Devo confessar, no entanto, que por desorganização ou por embaraço, não tomei sempre o cuidado de recolher todos os certificados, especialmente as atividades em meios não acadêmicos. Tive receio de tornar a leitura de um inventário extenso, mais aborrecido do que já deve ser, por isso, remeto para os certificados que acompanham este Memorial. Na lista abaixo, estão dez colaborações significativas: 1) Palestra “ALCA em uma perspectiva histórica: relações coloniais e neocoloniais dos EUA com a América Latina” em debate organizado pelo
Sindicato dos artistas no Teatro Denoy de Oliveira, dia 23 de Maio de 2002. (2)
Apresentação de comunicação sobre a “ALCA em uma perspectiva
histórica: relações coloniais e neocoloniais dos EUA com a América Latina” em
debate no Teatro Clara Nunes de Diadema, com estudantes do período noturno das Escolas Estaduais, organizado pela APEOESP, dia 27 de Março de 2002 (3) Apresentação de palestra “As relações trabalhistas no Brasil em uma perspectiva histórica”, no Congresso dos Trabalhadores da Previdência de Sergipe, dias 15, 16 e 17 de fevereiro de 2002. (4) Organização da oficina “ A ausência do proletariado e os novos sujeitos sociais da resistência anti-capitalista ”, organizada pelo IES (Instituto de
Estudos Socialistas) e pelo Instituto José Luís e Rosa Sundermann) no II FSM (Fórum social Mundial) de Porto Alegre, no dia 1 de fevereiro de 2002. (5) Participação na coordenação da Mesa do Seminário “Socialismo e o desafio de novas relações sociais” , no Auditório Araújo Viana, organizado
pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), no II FSM de Porto Alegre, dia 3 de fevereiro de 2002. (6) “ A ALCA e a necessidade de um movimento continental contra a Recolonização, estudo comparativo das Relações Internacionais da América Latina com os EUA nos anos 80 e 90 ”, apresentada no Seminário