Ano XVIII - Boletim 21 - Outubro de 2008
Mestres da Literatura em debate
SUMÁRIO
MESTRES DA LITERATURA EM DEBATE PROPOSTA PEDAGÓGICA .............................................. ........................................................................... ......................................................... ...................................................... ......................................... ............... 03 Victor Hugo Adler Pereira
PGM 1 - POVOS DO BRASIL ............................................... ........................................................................... ....................................................... ....................................................... ........................................ ............ 12 Eleonora Ziller Camenietzki
PGM 2: LITERATURA E DESIGUALDADE SOCIAL .................................................. ............................................................................... ..................................................... ........................ 18 Victor Hugo Adler Pereira
PGM 3: A PALAVRA E A CANÇÃO .............................................. ........................................................................ ....................................................... ......................................................... .............................. 26 Italo Moriconi
PGM 4: O DESAFIO DO GÊNERO ................................................. ........................................................................... ....................................................... ......................................................... ................................ 32 Lúcia Facco
PGM 5: MEMÓRIAS DO CAMPO NA CIDADE...................................... CIDADE................................................................ ....................................................... ................................................ ................... 45 Fernando C. Gil
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SUMÁRIO
MESTRES DA LITERATURA EM DEBATE PROPOSTA PEDAGÓGICA .............................................. ........................................................................... ......................................................... ...................................................... ......................................... ............... 03 Victor Hugo Adler Pereira
PGM 1 - POVOS DO BRASIL ............................................... ........................................................................... ....................................................... ....................................................... ........................................ ............ 12 Eleonora Ziller Camenietzki
PGM 2: LITERATURA E DESIGUALDADE SOCIAL .................................................. ............................................................................... ..................................................... ........................ 18 Victor Hugo Adler Pereira
PGM 3: A PALAVRA E A CANÇÃO .............................................. ........................................................................ ....................................................... ......................................................... .............................. 26 Italo Moriconi
PGM 4: O DESAFIO DO GÊNERO ................................................. ........................................................................... ....................................................... ......................................................... ................................ 32 Lúcia Facco
PGM 5: MEMÓRIAS DO CAMPO NA CIDADE...................................... CIDADE................................................................ ....................................................... ................................................ ................... 45 Fernando C. Gil
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PROPOSTA PEDAGÓGICA
MESTRES DA LITERATURA EM DEBATE 1 Victor Hugo Adler Pereira2
Os escritores brasileiros caracterizados como “mestres da literatura” tiveram em comum a preocupação em se posicionar diante das questões que se colocavam para o Brasil de sua época. Ao recuperar alguns dos momentos momentos em que cada um deles teve uma participação participação mais intensa na vida pública, como intelectuais, ou algumas das obras que se tornaram referências centrais do cânone literário brasileiro, ressaltam diferentes tentativas de compreender o país, as singularidades singularidades de suas populações, populações, sua herança histórica. histórica. Nesse sentido, confirma-se o que Anto Antoni nioo Cand Candid idoo cara caract cter eriz izou ou como como um traç traçoo marc marcan ante te da li lite tera ratu tura ra no Bras Brasil il,, seu seu “empenho”. Essa utilização da literatura do país para o registro de situações que couberam, em outras latitudes, a disciplinas como a Geografia, a História ou a Antropologia, é avaliada de modos diferentes diferentes entre os críticos. Alguns deles viram aí uma imposição que enfraqueceu enfraqueceu o potencial potencial de alguns escritores, que acabaram reduzindo suas obras a documentos. A literatura, no entanto, conquistou, desde o início do século XX, um espaço de atuação que ultrapassa essa função documental da realidade. Parece-me importante, por isso, nas atividades escolares e universi universitári tárias as que envolvem envolvem a literat literatura, ura, que os educador educadores es estejam estejam atentos atentos a possíve possíveis is diferenças na abordagem “literária” de um texto e outras utilizações deste. Portanto, mesmo que se considere valiosa a tendência entre os historiadores a utilizar o texto literário como material para o conhecimento de aspectos do cotidiano ou do mundo subjetivo, que a historiografia deixou muito tempo de lado, vale colocar em questão as singularidades que foram exploradas e desenvolvidas na tradição literária, diante de outras tradições, como a da historiografia: seja na relação com os/as leitores/as; seja pelo tipo de material da experiência subjetiva ou proveniente da análise da realidade que é integrado na construção do texto. Com essas essas especifi especificid cidades ades,, esses esses diferent diferentes es tip tipos os de textos textos convidam convidam a diferen diferentes tes atitude atitudess de
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recepção e merecem estudos com procedimentos particulares. Além disso, o professor, em qualquer nível, diante das hesitações e polêmicas que cercam a definição da literatura, terá necessidade necessidade de continuamente se perguntar sobre as fronteiras entre o que vem sendo definido como literariedade e as possibilidades de uma aproximação desse objeto que não reduza seu potencial como instrumento de prazer e conhecimento. Quando Viktor Chklovski, em estudo de 1917, pretendeu distinguir a literatura da linguagem prosaica situou o efeito de “estranhamento” como principal recurso característico característico desta 3. Esse recurso consistia, no entender do pensador russo, na tentativa de desinstalar o receptor, subvertendo a percepção do mundo instalada pela rotina. A literatura constitui-se, nessa per persp spec ecti tiva va,, em um inst instru rume ment ntoo priv privil ileg egia iado do para para o conh conhec ecim imen ento to da real realid idad ade, e, na contracorrente de um conjunto de usos da linguagem comprometidos com o automatismo da percepção. E que apontam para o compromisso com idéias idéias e valores conservadores conservadores quanto à ordem social, reproduzindo sem vezo crítico relações de poder. Ainda perdura a dificuldade de chegar a uma conclusão definitiva sobre a definição do literário, como testemunham estudos de críticos de diferentes latitudes, como Luiz Costa Lima e Antoine Compagnon 4. Desses estudos, conclui-se que dois dos principais problemas em torno dos quais gravitam tentativas de definição sobre a especificidade do discurso literário são: o estatuto do ficcional, como necessidade ou como possibilidade contingente; e a apropriação da linguagem prosaica ou o distanciamento desta através de um trabalho formal apurado. Ressalta também o fato de que é relativamente recente a utilização do termo “literatura” para demarcar um conjunto mais ou menos estável de textos, pois remonta ao início do século século XIX. Mas a definição definição dos objetos circunscritos circunscritos por essa rubrica vem sendo, desde então, objeto de disputas e hesitações que envolvem autoridades autoridades e relações de poder no campo do jornalismo, do ensino e entre os próprios sujeitos envolvidos nos diversos setores do campo literário: a criação artística ou as atividades econômicas ligadas diretamente à produção, à legitimação ou à difusão do livro. Após as primeiras décadas do século XX, com a expansão da “indústria cultural”, desenvolvese a cons consci ciên ênci ciaa cada cada vez vez mais mais entr entran anha hada da do pote potenc ncia iall da cult cultur uraa na form formaç ação ão de
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comportamentos coletivos e até mesmo de novas subjetividades, como fica claro nos estudos do conjunto dos teóricos da Escola de Frankfurt e alguns de seus interlocutores, como Walter Benjamin. Este influente pensador oscilou, oscilou, em seus escritos, na avaliação das perdas e ganhos no desenvolvimento da cultura pautada pelos procedimentos industriais, ora reconhecendo a democratização da cultura que esse processo anunciava 5, ora lamentando a destruição dos recursos tradicionais de transmissão da “experiência” “experiência” humana, pela modernização 6. No Brasil, pela própria configuração da elite letrada, desde a proclamação da Independência até os dias atuais, as atividades jornalísticas dos escritores constituíram-se não somente em meio de subsistência pessoal como em condição facilitadora para a difusão das obras e a consagração pessoal. Nesse sentido, pense-se tanto na carreira de José de Alencar e Machado de Assis, no século XIX, como também na de figuras do século XX, como José Lins do Rego, Rachel Rachel de Queiro Queirozz e Carlos Carlos Drummo Drummond nd de Andrad Andrade, e, confor conforme me focal focaliza izam m com grand grandee propriedade os programas da TV Escola. Diante dessas circunstâncias, circunstâncias, considero que, para a compreensão do lugar da literatura na vida cultural brasileira, devem ser levados em conta tanto as relações dos escritores e de sua produção literária com o jornalismo, ou o cinema e a televisão, quanto os próprios limites e fronteiras que se negociam e se instituem entre a criação artística e a produção midiática. Nesse sentido, as definições de “literariedade”, em nossa cultura, podem ser desafiadas quanto ao estatuto a ser concedido à letra da canção enquadrada como MPB, Música Popular Brasileira – em que o adjetivo “popular” “popular” merece ser discutido discutido diante das tradições tradições em que se incluíram, incluíram, muitas vezes, a criação e os circuitos circuitos de recepção a que se destinou/destina. destinou/destina. Letra que muitas vezes sustenta-se e passa a ser citada, em pé de igualdade com o legado poético tradicional, como texto independente da canção a que se articulou originalmente. Um outro aspecto que se relaciona às condições específicas do meio intelectual e aos circuitos de recepção da literatura no Brasil refere-se ao modo com que se desenvolveu o regionalismo na chamad chamadaa “segun “segunda da geraçã geraçãoo mo moder derni nista sta”. ”. Intere Interessa ssante nte lembra lembrar, r, como como afirma afirma um dos entrevistados nos programas da TV Escola, que na verdade, no Nordeste do país, essa produção foi impulsionada por um desejo de se contrapor ao que era considerado um afetado
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cosmopolitismo dos escritores do Sul que se consagraram com a Semana de Arte Moderna em São Paulo. O regionalismo ganhou fôlego e se tornou sucesso de público nos anos 1930, apontando para uma expansão editorial que criou oportunidades de divulgação para novos valores na literatura. Graciliano Ramos observava esse processo que desmentia a expectativa consolidada no país de que não havia leitores para literatura, nem espaço para escritores que não se originassem no Rio ou São Paulo: Temos afinal uma esperança que não podíamos ter há dez anos. Naqueles tempos longínquos o Rio de Janeiro e São Paulo eram grandes capitais, o resto do país valia pouco. E os autores de algumas obras que surgiam timidamente, despertando a curiosidade pública, fazendo a crítica espantada arregalar os olhos, nunca imaginaram nas suas horas de otimismo e sonho, que se iam tornar de repente figuras nacionais importantes 7 . Importante considerar que essa literatura privilegiava o enfoque de um Brasil rural preservado dos surtos de modernização dos centros urbanos, justamente no momento em que se afirmava um projeto político de atualização do país que implicava a diminuição dos contrastes regionais e a construção de uma “cultura nacional” que amalgamasse as diferenças remanescentes, como observou Antonio Candido 8. O interesse do leitor urbano por essa espécie de inventário do país rural tinha relações com a implantação do projeto modernizador no regime Vargas. Mas, além disso, vale lembrar que os principais escritores regionalistas nordestinos passaram a viver na capital do país e realizaram atividades jornalísticas. Essa circunstância traz à baila o papel dessa literatura na formação de um imaginário social urbano, e com alcance nacional, sobre o Nordeste brasileiro; papel que será retomado pelo Cinema Novo. A memória será um instrumento propulsor da tarefa de trazer para o meio urbano e apresentar para a circulação nacional as representações sobre a vida rural brasileira, confrontando-as ou procurando integrá-las aos projetos nacionais em diálogo e conflito no período Vargas. Segundo considera Flora Sussekind, a consagração de Carlos Drummond de Andrade como centro do cânone poético brasileiro moderno também remete às condições particulares em que é produzida e difundida a literatura no país. Considera que Drummond garantiu a sua
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originalidade e, ao mesmo tempo, a sua comunicabilidade pela “tensão” que estabeleceu com a linguagem jornalística, incorporada à sua formação de escritor através da atividade de cronista. Flora Sussekind distingue dois tipos de poetas que se tornaram referências centrais na produção literária brasileira, o “poeta-cronista” e o “poeta-crítico”. Drummond teria sido um exemplo bem sucedido do primeiro tipo, conseguindo trazer a linguagem cotidiana e os temas cotidianos para a poesia, realizando o que ela descreveu como um “pacto de nãoestranhamento, de um modo de ver as coisas, o cotidiano, semelhante ao de qualquer leitor potencial (...) dos jornais em que trabalhou regularmente desde os anos 1920 até 1984, quando abandona o ofício de cronista 9”. Em sentido oposto, João Cabral de Melo Neto seria um “poeta-crítico”, no entender de Flora Sussekind, pois sua poesia desafiava o leitor à análise tanto do uso cotidiano da língua como da percepção corriqueira da realidade. Nesse sentido, é interessante observar, no programa da TV Escola sobre o poeta, que tal atitude não implicava uma proposta de uma relação puramente racional, “cerebral”, como costuma ser definido, com a realidade, quando se sublinha a concepção de Cabral de que palavras têm cheiro e cor. Ou seja, o aspecto sensorial deve ser a plataforma para se repensar o mundo. Curiosa também a relação de Cabral com a música, cheia de restrições; sua admiração pelo Flamenco, em contraste com sua aversão pela tradição melódica. Ironicamente, a difusão mais ampla de sua obra ocorreu pela transformação de seu auto de Natal pernambucano, Morte e Vida Severina, em musical, por Chico Buarque de Holanda. Nas atividades pedagógicas ligadas à língua e à literatura, em virtude dos rumos que a vida cultural brasileira tomou, a música popular não deve ser vista como “veículo” de divulgação da literatura ou estágio preparatório, educativo da recepção para esta. Há uma dinâmica e uma discussão que se desenvolvem no âmbito específico da criação musical, e especialmente devido ao nível de sofisticação desta no Brasil. Merece maior atenção da crítica e dos professores, entre nós, a trajetória e a produção de letristas que não alcançaram tanta visibilidade como os compositores e, principalmente, os intérpretes da MPB. Além disso, não se pode esquecer que muitas composições são reconhecidas e citadas por suas letras, o que lhes confere uma autonomia diante da canção.
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Ainda outra situação inerente à música popular e que provoca paralelos com a literatura é a agilidade com que aborda os problemas do cotidiano de modo semelhante à crônica jornalística. Essa característica da MPB conferiu-lhe uma função importante nas lutas políticas, durante a ditadura militar, e possibilita apresentar-se até hoje como um campo privilegiado de discussões sobre as transformações dos costumes nas últimas décadas, em especial sobre as relações de gênero – tema delicado e cujo tratamento está sujeito a muitos meandros na cultura do país. Na literatura, como se pode observar nos depoimentos de escritoras brasileiras na série televisiva, foi difícil furar a barreira das expectativas quanto à competência e a seriedade da produção de mulheres. A música popular, no entanto, constituiu-se, em especial nas últimas décadas, em um espaço propício para a discussão sobre a permanência das tradições patriarcais no Brasil. Num primeiro momento, eram os cantores e os compositores homens que desafiavam a divisão rígida dos papéis masculinos e femininos, seja dialogando com clichês e representações coletivas sobre o homossexualismo, seja tornando-se porta-vozes de pretensas perspectivas femininas (como fez Chico Buarque). Nas últimas décadas, cresceu o número de compositoras que trazem à cena da cultura os problemas específicos da condição feminina. A abertura que a música popular revelou para a abordagem, ainda que superficial, para as questões de gênero, como também para os problemas raciais, contrasta, ainda na atualidade, com a exigüidade da abordagem desses temas, durante muitas décadas, no teatro e na literatura brasileira. Uma dificuldade ou silenciamento que chamam a atenção quando comparados a outros grandes centros 10. De qualquer modo, desenvolvem-se no país experiências e práticas que garantem o lugar da literatura como um dos principais instrumentos modernos para ampliar os limites e potencialidades das representações sociais; e, portanto, um instrumento de ampliação das experiências comunitárias e individuais. E os depoimentos de alguns grandes escritores, como Ferreira Gullar e Lygia Fagundes Teles, deixam claro que são movidos em seu trabalho pela necessidade de escrever e pelo próprio prazer possibilitado pela linguagem literária de ampliar os limites das experiências sensíveis e da compreensão da realidade. Sabe-se que sua trajetória, assim como a de Lima Barreto ou Graciliano Ramos, encontrou percalços para a
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realização plena de suas propostas. Os desafios não impediram esses escritores de cultivar a literatura como um caminho de liberdade a servir de legado às gerações seguintes. Preservar o potencial de ampliação dos horizontes humanos que os grandes “mestres” souberam conferir à literatura, não a reduzindo a um ritual didático ou instrumento de legitimação social, é o desafio de qualquer aproximação pedagógica dela.
A série Mestres da Literatura em debate , que será apresentada no Salto para o Futuro/TV Escola (SEED/MEC) de 20 a 24 de outubro de 2008, vai debater estes temas: PGM 1 - Povos do Brasil O primeiro programa tem como objetivo principal discutir as iniciativas de alguns literatos destacados que vincularam a literatura a um projeto nacional, de construção da nação e de representações unívocas sobre o “homem” ou o “povo brasileiro”, desde a Independência e o Romantismo, e as crises subseqüentes dessas propostas que acompanharam as relativizações da concepção de identidade. PGM 2: Literatura e desigualdade social A proposta do segundo programa é discutir como a temática da exclusão e das desigualdades sociais tem sido objeto de obras literárias, tanto de escritores consagrados como também na produção ficcional e poética e de autores da literatura brasileira contemporânea.
PGM 3: A palavra e a canção
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O objetivo do terceiro programa é discutir as concepções de poesia herdadas de escritores que se tornaram referências centrais no cânone literário brasileiro a partir de meados do século XX e situar o papel assumido pelas letras da canção popular a partir dessa mesma época. PGM 4: O desafio do gênero O objetivo do quarto programa é promover a discussão sobre a transposição dos limites impostos pela condição de gênero no cotidiano para a produção cultural e suas repercussões no âmbito escolar. Serão focalizadas as iniciativas de algumas figuras que buscaram romper, por sua atuação no campo literário, os limites impostos à condição subalterna, associada ao feminino, na ordem patriarcal, como Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles. PGM 5: Memórias do campo na cidade O objetivo do quinto programa é abordar o regionalismo e de sua sobrevivência ou resignificação na literatura, a partir da perspectiva da convivência de diferentes temporalidades no meio urbano. O ponto de partida da discussão sobre a presença das áreas rurais e de sua cultura nas grandes metrópoles brasileiras será o percurso biográfico e a trajetória da obra de dois escritores que se tornaram canônicos em diferentes fases de desenvolvimento da literatura brasileira: José Lins do Rego e Guimarães Rosa.
Notas: A série Mestres da Literatura faz parte da grade de programação da TV Escola (SEED/MEC). 2
Professor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras da UERJ – pesquisador-
bolsista do Programa PROCIÊNCIA - UERJ/FAPERJ. Coordena atualmente o Doutorado em Literatura Comparada da Pós-Graduação em Letras da UERJ. Publicou estudos sobre teatro, cultura e literatura moderna e contemporânea. Consultor da série. 3
Chklovski, Viktor. “A arte como procedimento”. In: Teoria da literatura –
formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
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Veja-se, por exemplo: Compagnon, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso
comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 5
Benjamin, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In:
_______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras escolhidas, volume I. p. 165-196. 6
Benjamin, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
Opúsc. cit. p. 197-201. 7
Ramos, Graciliano. “Livros”. In:_______. Linhas Tortas. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Record, 2002. p. 102. 8
Candido, Antonio. “A revolução de 1930 e a cultura”. In: _______. A educação pela
noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 187. 9
Sussekind, Flora. “Um poeta invade a crônica”. ______. Papéis colados. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002. 10
Veja-se, por exemplo, o estudo de Severino J. Albuquerque, professor brasileiro
radicado nos EUA: Tentative transgressions: homossexuality, AIDS, and the theater in Brazil . Madison, Wisconsin (EUA): The University of Wisconsin Press, 2004.
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PROGRAMA 1
POVOS DO BRASIL Ainda a Literatura Brasileira Eleonora Ziller Camenietzki 1
Ementa: O primeiro programa tem como objetivo principal discutir as iniciativas de alguns
literatos destacados que vincularam a literatura a um projeto nacional, de construção da nação e de representações unívocas sobre o “homem” ou o “povo brasileiro”, desde a Independência e o Romantismo, e as crises subseqüentes dessas propostas que acompanharam as relativizações da concepção de identidade. O programa deverá explorar a discussão sobre as diferentes formulações de um projeto nacional que incluíam a perspectiva de definição do “homem brasileiro”, diante do reconhecimento da pluralidade de raças e culturas que convivem no país. Na biografia dos escritores priorizados no programa, José de Alencar e Mário de Andrade, dar-se-á ênfase à sua influência na vida cultural e sua participação no debate sobre a questão da identidade cultural e nacional que transcende o campo da literatura. Pretende-se apontar para a atualidade do problema quando se colocam em questão os referenciais identitários, diante de novos aportes teóricos e novas realidades históricas. — Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento. [...] Iracema curte dor, como nunca sentiu; parece que lhe exaurem a vida; mas os seios vão se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue de que se formou, esguicha. A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido ( José de Alencar ). Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu ( Mário de Andrade ).
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Para começarmos a conversa de hoje, partimos de dois momentos fortes da literatura brasileira. José de Alencar e Mário de Andrade. Pode-se dizer que suas obras representam o esforço mais consistente e persistente de construção de uma nacionalidade literária. Porém, embora “literatura brasileira” pareça ser um conceito estável, temos antes que nos perguntar se este é assim tão auto-evidente. Se formos pensar no sentido dado por Antonio Candido 2, a literatura brasileira é um empreendimento civilizatório construído ao longo do processo de formação da sociedade brasileira. Um processo que tem início com a ocupação portuguesa do nosso território e que pode ser percebido mais claramente a partir do movimento árcade, no século XVIII, quando também vai tomando forma a crescente tensão entre os interesses da coroa portuguesa e os que por aqui viviam. Candido aponta, em sua análise, para o momento histórico em que já existe a possibilidade de identificar um empenho consciente por parte dos escritores em dotar o país de uma literatura, esta configurada pela busca de universalidade e atemporalidade dos valores clássicos. Bucolismo grego em terras tropicais, uma fórmula extravagante aos olhos de hoje, mas que corresponderia a um projeto que, ao longo do tempo, vai se adensando, adensamento este que se dá com a formação de uma tradição literária local, com o surgimento das academias, maior circulação de obras e participação, ainda que incipiente, do público leitor. Pressente-se nos poetas da época um tal instinto de nacionalidade, ainda muito impreciso, que bem depois será definido por Machado de Assis, no clássico ensaio de 1873, em que o autor distingue de forma exemplar a confusão por parte da opinião da época entre a “cor local” de certas obras e o esforço verdadeiro em construir uma literatura de fato independente. Num século de acirradas polêmicas entre nativistas e europeizados, o texto machadiano surpreende pela fórmula de equilíbrio na qual sustenta a discussão. Corrigindo julgamentos extremados, reivindica o direito de todo escritor escrever sobre o que bem entender, sem que isso signifique abdicar de um debate sobre a constituição de uma tradição literária brasileira que ele vê amadurecer. Entretanto, as tensões e as exigências postas pelo modo como vai se constituindo a cultura brasileira obrigam várias gerações a oscilarem entre a busca pelo que seria uma expressão genuína de nossa sociedade e os impulsos para a sua adequação e atualização a cânones universalistas, leia-se, europeus.
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Atravessando o século XIX e XX, a representação da vida nacional esteve na ordem do dia em diversos movimentos, num impulso ora conservador e provinciano, ora crítico e reformador. Desde sempre, o nacionalismo como ideologia oficial proporcionou desastrosas experiências estéticas. Mas, que este não se confunda com a intensa busca de tantas gerações para dar forma à experiência social brasileira. Enquanto a “literatura chapa branca” tende ao desaparecimento, as obras mais significativas desta nossa tradição empenhada permanecem inquietas, produtivas e alvo de polêmicas e controvérsias. Não se trata de um debate meramente beletrista ou de disputas narcísicas entre críticos ou autores. É a interpretação do fomos e somos, de como nos vemos ou queremos ser vistos que está em jogo. A literatura e a arte nos primeiros anos do século XX inauguram não apenas novas formas de expressão artística, mas, sobretudo novas formas de pensar a realidade nacional. O descompasso entre a permanência de traços estruturais de nossa sociedade escravocrata, a herança latifundiária e a acelerada urbanização do país desafiam o projeto modernista. O acerto de contas com o passado patriarcal é iniciado, mas o esforço de construção é muito grande. As dimensões continentais do país, a ausência de instituições e o escasso público leitor transformam a atualização da vida artística nacional numa tarefa de proporções gigantescas. Mário de Andrade resolve dar conta da tarefa e se torna um incansável articulador e crítico obstinado por fixar novas referências estéticas no país. Pesquisador de grande quilate, é responsável pela formulação da política de preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural do país. Também encontramos em Oswald de Andrade um programa nacional que, na síntese de Schwarz no ensaio “Nacional por subtração”, poderia ser definido como a recuperação de um “primitivismo local que devolverá à cansada cultura européia o sentido moderno, quer dizer, livre da maceração cristã e do utilitarismo capitalista” 3. O final da década de 1950 até a segunda metade da década de 1960 marca um momento extraordinário da vida cultural brasileira, que nem mesmo a ditadura militar conseguiu silenciar imediatamente. Vinda na esteira de um poderoso surto de urbanização, artistas e intelectuais, numa sofisticada mobilização, recuperam os termos da revolta modernista das primeiras décadas do século e dão início a ousadas rupturas. O embalo desenvolvimentista de
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JK abre uma eufórica temporada de esforços para a superação do atraso nacional. A construção de Brasília, a arte concreta e neoconcreta, os suplementos literários, as bienais de arte, tudo isso traz uma experiência em perspectiva internacional, sofisticada e universitária. Ao mesmo tempo em que cresce essa experiência cada vez mais cosmopolita nos grandes centros urbanos, há uma caminhada de muitos intelectuais em sentido inverso, que irá buscar nas manifestações da cultura popular uma representação autêntica do país. O impulso democratizante gera um movimento de grandes proporções para a inclusão das mais amplas camadas da população no processo político. Desde uma genérica concepção de “povo” até as posições classistas mais radicais, intelectuais e artistas passam a assumir como sua a responsabilidade pelos destinos da nação. Projetos de alfabetização espalham-se por todo o interior do país e a UNE cria o CPC, Centro Popular de Cultura. Os analfabetos e excluídos são chamados a ocupar a frente da cena política e cultural da nação. As duas vertentes irão proporcionar uma discussão de alta voltagem. O campo divide-se entre “esteticistas” – aqueles cuja preocupação principal é a radicalidade da experimentação da linguagem – e “engajados” – os que consideram o compromisso político-revolucionário o passo mais importante a ser dado no momento –, numa época de enorme criatividade e vigor para os enfrentamentos do debate cultural. Os confrontos vinham da efervescência da vida política, das disputas de projetos para o país e de certa vitalidade de vida democrática, ainda que restrita. Animava-os a recente vitória da revolução cubana e a perspectiva de uma revolução brasileira de caráter nacional-popular. O resultado final desse processo todos nós conhecemos: o golpe militar de 1964 interrompe principalmente os canais de comunicação entre as camadas médias urbanas e o proletariado. Os estudantes universitários haviam dado início a uma experiência inédita no país, polarizaram uma quantidade significativa de intelectuais e artistas, mas não tiveram força para impedir o golpe. De lá para cá muita coisa mudou. Os pressupostos da arte engajada desapareceram, os modelos tradicionais de luta política se esgarçaram e a noção mesma de cultura está completamente comprometida pela indústria do entretenimento e da sociedade do espetáculo. Do ponto de vista da crítica e da filosofia contemporâneas, a desconstrução de
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noções clássicas de investigação do fenômeno literário, tais como autor, obra, originalidade deslocam a “correspondência romântica entre o heroísmo do indivíduo, a realização da grande obra e a redenção da coletividade, correspondência cujo valor de conhecimento e potencial de mistificação não são desprezíveis e que anima os esquemas do nacionalista” 4. A queda do muro de Berlim, em 1989, encerrou precocemente o século XX e o atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, nos colocou definitivamente no século XXI. O fechamento das fronteiras, a retórica belicista de Bush, os assassinatos de jovens suspeitos de terrorismo, a truculência da intervenção norte-americana na política internacional parecem repor temas que haviam sido esquecidos na década anterior. O nacionalismo permanece como a parte fraca do debate. Não há porque ressuscitá-lo sem os fantasmas que desembocaram na superioridade germânica dos anos da Grande Guerra. A xenofobia e o horror aos estrangeiros se fortalecem nos países europeus que querem viver protegidos da violência e da pobreza que grassam ao seu redor através do fechamento de suas fronteiras, permitindo apenas a entrada de alguns poucos imigrantes para realizarem o serviço difícil e menos digno para um europeu/norte-americano médio. Ou seja, seria o sonho de uma Europa como se fosse um megacondomínio da Barra da Tijuca encravado na cidade maravilhosa, cercado de favelas por todos os lados. Mas, se é possível concluir algo a esta altura do campeonato, pode-se dizer que nosso passado literário nos indica muito sobre o que somos hoje e o que poderemos vir a ser um dia. E traduzir esta experiência para uma parte significativa de jovens talvez ainda seja o que há de mais digno que se possa fazer com o nosso ofício. Entretanto, voltar os olhos nostalgicamente para um passado de glórias aparentes tem fôlego curto. É o presente que reinventa incessantemente o que ficou na poeira dos tempos. E para qual tradição desejamos olhar mais uma vez? Retomo as epígrafes que iniciam esse artigo. De onde quer que partamos para pensar a literatura que se forma em nossa sociedade, que ela jamais se esqueça da história de barbárie e opressão da qual é tributária.
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Notas: Professora na Faculdade de Letras/ Departamento da Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 37 Opus cit, p. 35
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PROGRAMA 2
LITERATURA E DESIGUALDADE SOCIAL A desigualdade social, a literatura e a cultura no Brasil contemporâneo Victor Hugo Adler Pereira1
Ementa:
A proposta do segundo programa é discutir como a temática da exclusão e das
desigualdades sociais tem sido objeto de obras literárias, tanto de escritores consagrados como também na produção ficcional e poética e de autores da literatura brasileira contemporânea. Pretende-se delinear e avaliar os diferentes modos com que escritores brasileiros participaram da discussão sobre a pobreza no país: suas causas, suas repercussões na vida, nos sonhos e nas perspectivas de um grande contingente da população. Entre outros ângulos do problema, pretende-se também discutir o artista como cientista social, historiador ou literato, a partir da obra de intelectuais brasileiros como Lima Barreto, assim como as relações entre a estética de Graciliano Ramos e a sua proposta de compreensão do universo dos excluídos culturalmente. A trajetória de Graciliano ensejará a discussão sobre os limites e as dificuldades de um intelectual compreender o universo de indivíduos com referências culturais muito diversas ou restritas. A partir desses referenciais do passado, e de entrevistas com escritores contemporâneos, pretende-se debater os rumos tomados pela produção literária, cinematográfica e outras vertentes da cultura, que enfocam a pobreza e as comunidades marginalizadas. A aproximação do mundo dos pobres na arte e na cultura do país é um fato marcante que acompanhou a virada do milênio no Brasil. Até mesmo a novela televisiva, constantemente criticada por construir estilizações dos ambientes populares, vem-se permitindo apresentar com menos “maquiagem”, por exemplo, o interior da casa do pobre e as ruas das favelas. Embora continue a tratar os roteiros para personagens negros de forma especial, sem conceder-lhes uma biografia, o direito à história pessoal, como observou a renomada atriz Ruth de Souza, em entrevista recente na UERJ.
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O cinema obtém prêmios no exterior ao trazer para as telas essa versão do Brasil, violento e desigual, que fascina os europeus, reforçando a perspectiva de que os antigos colonizadores merecem se manter no centro das decisões sobre a economia e a cultura dos países ditos periféricos. Um fenômeno análogo a esse tipo de relação colonizador/colonizado reproduz-se internamente no Brasil entre suas diferentes regiões, vistas como pólos culturais e econômicos ou áreas subalternas. E entre os centros urbanos e bairros privilegiados e a periferia das grandes cidades. Essas dessimetrias foram encobertas pelo trabalho ideológico levado a cabo, principalmente durante regimes ditatoriais como o Estado Novo e os governos militares, que transmitia a imagem de uma nação coesa, voltada para um mesmo projeto de “país do futuro”, que tinha vínculos de continuidade com um ideário que vinha sendo cultivado desde a independência política de Portugal e a primeira geração romântica. As crises de identidade do país que acompanharam o processo de “abertura política” trouxeram à tona as desigualdades que foram agravadas a partir do “milagre econômico” implantado pela ditadura militar, à custa do silenciamento dos movimentos sociais. No entanto, têm conseqüências até a atualidade na vida cultural brasileira o controle e o monopólio dos meios de comunicação e a cooptação de intelectuais, estratégias que garantiram a difusão de interpretações apaziguadoras sobre as desigualdades sociais e colaboraram para a consolidação de bolsões de abandono e miséria absoluta. No fim dos anos 1990, diante da continuidade da crise econômica que afetou toda a América Latina, a perspectiva de um futuro grandioso para o Brasil baseado no modelo de exclusão social se esfacelou e começaram ter maior espaço de veiculação “retratos do país” que incluíam os efeitos nefastos sobre o meio ambiente, sobre o comportamento ético e sobre as relações sociais de um direcionamento do Estado fiel ao modelo do chamado “capitalismo selvagem”. Na virada do século XX, interpretações do país pautadas no pessimismo, como no filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lançado em 1995, buscavam no passado fragilidades e sublinhavam “cacoetes” da cultura brasileira, indicando que o país sofria de problemas crônicos. Desde então, ganham prestígio as figurações do cotidiano que desmentem a
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perspectiva da “índole pacífica dos brasileiros”, reafirmada desde muito nos discursos oficiais. Transforma-se em referência central para a compreensão dos problemas da vida urbana no país a obra de Rubem Fonseca que, não por coincidência, foi alvo de uma das proibições mais rigorosas no regime militar com o livro Feliz Ano Novo, publicado em 1975. Os contos deste livro configuram um painel de relações de ódio e violência de alto a baixo na pirâmide social, como subproduto da modernização dos centros urbanos. O boliche humano que um empresário realiza com seu carro, atingindo o corpo de favelados para se distrair, no conto ironicamente intitulado “Passeio Noturno”, complementa-se com a orgia de sangue e brutalidade realizada por um grupo de bandidos pobres numa festa de “réveillon” de bacanas para se divertir no conto “Feliz Ano Novo”. Em 1997, a literatura forneceu um dos mais influentes insumos a uma “onda” de produções que privilegiava o enfoque da pobreza e dos pobres no país, de modo semelhante ao que ocorrera na década de 30 e de 60: o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins. O sucesso no Brasil e no exterior do filme de Fernando Meirelles, baseado nessa obra e lançado em 2002, foi antecedido por outros filmes de grande repercussão, como Central do Brasil , de 1998, que traziam à cena os contrastes sociais, os mecanismos de exploração e o abandono pelo Estado de um enorme contingente da população do país. Atendendo a uma demanda de público, essa “onda” de produções afetava outras áreas, como o teatro e a fotografia – em que já havia adquirido enorme destaque a produção de Sebastião Salgado. Configuravam-se nessa vertente cultural duas atitudes principais: a transformação do cotidiano do pobre em uma espécie de folclore urbano, curioso, cheio de vitalidade, simpatia e calor humano, seguindo tradições que vinham da “chanchada” cinematográfica e, ainda antes, do teatro de revista; ou a associação do espaço e dos personagens das comunidades faveladas ao marginal, ao criminoso. Essas atitudes, até hoje, às vezes se alternam e misturam num mesmo contexto, como o seriado Cidade dos Homens, apresentado na TV Globo, entre 2002 e 2005, e transformado em longa metragem, lançado em 2007. Que as manifestações culturais servem como sinal de “distinção social” os estudos de Pierre Bourdieu comprovaram. No caso brasileiro, além de as escolhas culturais ou o modo de se
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relacionar com a produção cultural indicarem a origem de classe e, portanto, o nível educacional a que os indivíduos ou grupos tiveram acesso, denota também a sua proximidade maior de uma cultura estrangeira mais valorizada. O menosprezo ou desconhecimento de traços culturais das classes populares, como se fossem de um “outro povo” ou de “outra cultura” inferior, servem para reforçar uma identidade “superior” que se diferencia da que se atribui aos oprimidos. Esse olhar sobre as classes populares as “folcloriza” e desconhece a rede de relações e de afinidades que as ligam às classes mais favorecidas, tornando-as passíveis de um tratamento semelhante ao conferido pela etnografia a povos distantes. Além desse modo de abordar o pobre, torna-se cada vez mais influente a sua caracterização como elemento perigoso (releve-se a expressão “classes perigosas” em circulação no Brasil no início do século XX para se referir às classes populares). Os contrastes nos modos de falar, de se vestir e de se comportar em público justificaram definições que se firmaram como a da “cidade partida” do jornalista Zuenir Ventura, no livro publicado em 1994 com esse título. A desigualdade social na cidade do Rio de Janeiro já revelava aspectos preocupantes nos chamados “anos dourados”, como se constata nos filmes Cinco Vezes Favela ou Rio 40 graus, clássicos do Cinema Novo. E a constatação das diferenças sociais não autoriza que se esqueça que da “outra parte” da cidade, tão próxima da que exibe os recursos mais atualizados ao mundo globalizado, vem a maioria dos prestadores de serviços que garante a qualidade de vida da população privilegiada. E que, até mesmo por interesses práticos, essa área não deveria continuar a ser tratada pelas autoridades públicas como um nicho de criminosos, que deve suscitar ações de uma guerra que abole leis preservadas mesmo diante de um povo inimigo, como o respeito às populações civis. A literatura, o teatro e o cinema, nos últimos anos, vêm apresentando sinais de reação à tendência de ver o excluído socialmente ser representado exclusiva ou principalmente com a palavra, os olhos ou as lentes de quem teve acesso a instituições de educação formal e mecanismos sociais de formação de gosto pautados pela sofisticação e pelo cosmopolitismo. Quem tem acesso às principais decisões sobre obras, como as cinematográficas, que implicam investimentos vultosos de capital? Ou o conhecimento dos meandros que possibilitam a edição e a distribuição de livros no Brasil? Ou pode promover exposições de fotos em locais
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de prestígio tal que chamem a atenção da mídia televisiva ou jornalística? A partir dessas questões, conclui-se que dificilmente o conjunto da população consegue receber produtos de cultura que veiculem a perspectiva do pobre ou de populações marginalizadas sem passar pelo filtro do gosto ou de interesses (mesmo conflitantes e contraditórios) de setores mais favorecidos da sociedade. O monopólio dos meios de produção não se dá, portanto, somente no campo da economia, dá-se também no da cultura. Tentando quebrar os monopólios da produção cultural, o escritor Ferréz, ligado ao movimento “hip-hop”, arregimenta criadores das próprias comunidades excluídas, de São Paulo, para divulgar suas perspectivas sobre a realidade, constituindo-se em uma das figuras mais destacadas da chamada “literatura marginal”. De um modo análogo, o grupo teatral Nós do Morro, sediado na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, que teve participação decisiva no elenco do filme Cidade de Deus, desenvolve atividades cinematográficas atualmente com a comunidade. Na produção cinematográfica, a pergunta sobre a legitimidade dos documentos sobre a exclusão social surgidos nessa “onda” de produções mais recentes se esboça em filmes que colocam em xeque os próprios modos de se aproximar de setores da população marginalizada. Em À Margem da Imagem (2003), por exemplo, o documentarista Evaldo Mocarzel apresenta, diante das câmeras, a negociação da equipe de filmagem com os moradores de rua sobre o cachê para o trabalho no filme e sobre o tipo de abordagem a ser dada a suas vidas. A urgência em denunciar os métodos truculentos de implantação e manutenção do tráfico de drogas e da corrupção e do arbítrio policial que acompanham essas práticas acaba por caracterizar uma espécie de cultura particular das favelas, dissociando-a dos mecanismos que a vinculam ao restante da sociedade, e contribuindo para a criminalização da pobreza. Os/As professores/as e educadores/as que atuam junto aos estudantes de comunidades faveladas ou de baixa renda necessitam estar atentos a essas figurações do pobre que corroem a sua autoestima. A criminalização do pobre ocorre, em diferentes graus, em todo o mundo, atendendo a grandes interesses internacionais de controle e intimidação das classes populares, como apontou Loïc Wacquant. Também quem ensina e educa junto aos setores da população mais aquinhoados de recursos deve se preocupar com a sua responsabilidade em desconstruir esse
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estigma e apontar para afinidades, laços culturais e relações de interdependência no conjunto da sociedade. Um escritor como Luiz Ruffato reage a essa tendência, ao construir o mundo dos operários e dos prestadores de serviço de periferia. Com isso, atualiza as questões que se colocavam, implicitamente, na prosa ficcional de Graciliano Ramos, ao construir a psicologia dos personagens de Vidas Secas (1938), dotando-lhes de uma densidade que lhes conferia a dignidade de qualquer outro personagem da grande literatura burguesa. Consagrado na mesma geração de 1930, preocupada em analisar as repercussões da questão social no país nas subjetividades, o escritor José Lins do Rego leva ao extremo as conseqüências da dessimetria social na figura trágica do seleiro José Amaro, no romance Fogo Morto (1943). A responsabilidade da literatura diante destes contrastes entre as classes sociais sugeriu algumas páginas memoráveis de Clarice Lispector, como a crônica sobre a morte do bandido Cara de Cavalo, ou a discussão sobre a legitimidade da representação da pobre balconista pelo narrador na abertura de A Hora da Estrela (1977), também de Clarice Lispector. Em outra direção, obras do escritor Ferréz, com grande repercussão, denunciam a corrosão do tecido social e das relações humanas pela pobreza endêmica em uma comunidade favelada de São Paulo, o Capão Redondo. A transformação dessa comunidade em um microcosmo, como fez Paulo Lins, com Cidade de Deus, corre o risco de retomar, sem uma atitude crítica diante de suas limitações, a tradição naturalista e, com isso, situar no bolsão territorial de pobreza o caldo de formação inevitável de indivíduos sem futuro e sem um perfil que lhes conceda o mínimo das condições da dignidade humana. Pode-se argüir, por um lado, que este é um prato feito para a continuidade de atitudes discriminatórias contra o pobre e o chamado favelado pelas classes médias e altas e para justificar a violência indiscriminada contra essas populações. Por outro lado, pode-se considerar que a apresentação crua da pobreza extrema violenta propositalmente o bom gosto e a razão dos privilegiados, servindo de contrapartida às manifestações de ódio ou desprezo, pelas classes populares, edulcoradas pela comicidade, que a literatura produz, como o romance Contra o Brasil (1998), de Diogo Mainardi. Um título revela a que veio e serve de marco a esse intrigante período da história do país, o livro de Ferréz, Manual Prático do Ódio (2003).
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Bibliografia BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução: Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: EDUSP / Porto Alegre: Zouk, 2008. _______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa. Campinas/ SP: Papirus, 1996. FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. _______. Manual Prático do ódio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. _______. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MAINARDI, Diogo. Contra o Brasil . São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PEREIRA, Victor Hugo Adler. “Dos modos de narrar o ódio presente”. In: Carvalho Filho, Silvio de Almeida, et alii. Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, Instituto de Letras UERJ, 2007. _______. Teatro e movimentos sociais: diferentes compromissos com o “real” na cena brasileira. Artcultura, vol. 7, nº 11, 2005. Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História. SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. SOUZA, Jessé (org.). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1974.
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WACQUANT, Loïc. Os cárceres da miséria. Edições Manantial, 2000. ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 1998. Nota: Professor-Adjunto de Teoria da Literatura, pesquisador do programa Prociência UERJ/FAPERJ. Coordena atualmente o Doutorado em Literatura Comparada da PósGraduação em Letras da UERJ. Publicou estudos sobre teatro, cultura e literatura moderna e contemporânea. Vem estudando as repercussões das desigualdades sociais na cultura do país. Consultor da série.
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PROGRAMA 3
PALAVRA E A CANÇÃO Condições contemporâneas do poético e da poesia no Brasil – Algumas anotações para instigar o debate Italo Moriconi 1
Ementa:
O objetivo do terceiro programa é discutir as concepções de poesia herdadas de
escritores que se tornaram referências centrais no cânone literário brasileiro a partir de meados do século XX e situar o papel assumido pelas letras da canção popular a partir dessa mesma época. Na segunda metade do século XX, a produção poética brasileira encontrou-se diante de tendências que, de um lado, aprofundavam as relações com a linguagem prosaica e o imediatismo de experiências cotidianas, herança dos primeiros modernistas; e, de outro lado, a recuperação das preocupações com o apuro formal e a singularidade da linguagem poética. Em ambas as vertentes, pode-se observar a urgência do artista em se posicionar diante do desenvolvimento das linguagens midiáticas e dos meios de comunicação – apropriando-se de seus recursos ou estabelecendo uma fronteira crítica diante deles. Paralelamente a esses embates, a música popular revelava artistas inventivos que incorporavam e renovavam a herança poética, e dialogando com a produção literária, formavam diferentes públicos e tendências internas à chamada MPB num curto espaço de tempo. Pretende-se situar o estatuto da poesia literária e daquela identificada originalmente como “letra de canção”, diante da modernização acelerada das últimas décadas, partindo das duas figuras mais representativas do que Flora Sussekind denominou de “poetacronista” e “poeta-crítico”, respectivamente Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Na sua face de arte brasileira da palavra, a poesia está, em boa parte, nas letras da música popular. Está no cordel nordestino, recitado por cantadores nas feiras e nas ruas. Está no rock dos anos 80 e no hip hop dos 90. Talvez em nenhum outro país do mundo a canção popular tenha atingido um status tão intelectual quanto no Brasil. O nosso é talvez um dos poucos
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países em que as letras da música popular são largamente empregadas no ensino básico como parte do ensino de língua e literatura. Claro que em todas as literaturas do mundo a poesia literária encontra na canção popular sua matriz inspiradora, dela retirando temas e motes. Mas cada uma do seu lado. A canção popular na cultura popular – cultura do dia-a-dia. A poesia literária na cultura escolarizada – cultura ilustrada ou erudita. Uma originalidade brasileira é que, depois da bossa nova e da MPB, a própria canção popular tem-se alimentado da literatura. Nossa canção popular tem letras de alta voltagem reflexiva e auto-reflexiva. Por isso, no ensino de língua e leitura no Brasil, esgarçaram-se as fronteiras entre cultura popular e cultura erudita. Aprendemos e ensinamos as formas da cultura popular. Ficou uma questão polêmica: estaríamos negligenciando a cultura erudita em nossas escolas? Houve liberação demais no encontro com o popular? Estamos vivendo um populismo pedagógico? Devemos voltar a priorizar os grandes poetas literários e usar menos a canção popular como texto para ensinar poesia? É um dilema com que se defronta o professor de linguagem na prática cotidiana de sua sala de aula. A liberação das fronteiras entre o popular, de um lado, e o escolarizado ou ilustrado, de outro, ocorreu sem traumas no Brasil, sem as polêmicas que marcaram o debate pós-moderno em países como Estados Unidos e França. Um dos maiores alvos de ataque por parte dos inimigos do pós-modernismo nesses países foi o que se considerou ser o perigo de diluição de valores: justamente o populismo em arte e cultura, que nega critérios críticos de mérito e qualidade. A verdade, porém, é que as fronteiras entre popular e erudito nunca chegaram a ser totalmente eliminadas, elas foram redefinidas ao longo das últimas três ou quatro décadas. Houve uma revolução pop na cultura e a pedagogia não escapou dela. Hoje em dia, para tomarmos um exemplo de outra área da criação artística, uma grande exposição de quadros de Picasso, ou de esculturas de Rodin, é um acontecimento simultaneamente educativo e pop, educação misturada a entretenimento. Uma letra de canção com valor de alta poesia é, ao mesmo tempo, educação e diversão, ilustração e entretenimento. A isso chamei de “revolução pop”, esse contínuo atravessar de fronteiras entre situações pedagógicas e situações de entretenimento. Nesse sentido, o sistema contemporâneo da mídia engloba o popular e o
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erudito numa nova configuração histórica: a comunicação eletrônica de massas é hoje sinônimo do conceito sociológico de cultura. É grande no Brasil o número de teses de mestrado e doutorado nas faculdades de Letras que dissecam as obras dos letristas de música, encarados, com toda razão, como grandes autores da literatura nacional. Do mesmo modo que existe um razoável consenso entre os profissionais da área de que os maiores poetas do século passado foram Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles, existe muito solidificada a opinião de que, depois desses grandes nomes, nas últimas quatro décadas do século 20, os poetas maiores surgidos no Brasil teriam sido Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda. Mas a gente que é mais especificamente do livro fica querendo acrescentar os nomes de Manoel de Barros, Ferreira Gullar, Hilda Hilst e Adelia Prado, para não falar de Ana Cristina Cesar e dos poetas e letristas Paulo Leminski e Cacaso. Enquanto prevaleceu com força entre os leitores de literatura a experiência da geração pósmodernista dos anos 60 e 70, que cresceu ouvindo Caetano e Chico, foi como se a letra de música tivesse roubado o lugar cultural do poema literário. Com o tempo, viu-se que a situação não era tão drástica. Se por um lado a letra de música roubara temporariamente a cena do poema literário em termos de formação do repertório cultural brasileiro, por outro, agregá-la ao patrimônio da literatura não deixava de representar um enriquecimento da cultura ilustrada ou erudita. Com a liberação das fronteiras, além de Caetano e Chico, passaram a fazer parte do panteão poético brasileiro as letras de Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Cartola e, dentre os contemporâneos, João Bosco, o próprio Gilberto Gil, entre tantos outros e outras. Integrou-se à literatura a produção de poetas-letristas, como foram Vinicius de Moraes, Torquato Neto, Cacaso e, mais atualmente, Geraldo Carneiro e Arnaldo Antunes. Letristas de rock, como Cazuza e Renato Russo, são dois nomes de poetas dos mais destacados em nosso fim de século, precocemente desaparecidos. A poesia está no ar porque a canção popular está no ar. A indistinção e até certo ponto fusão conceitual entre poesia e canção tem uma longa história em nossa cultura literária. Foi exatamente nesse ponto de confluência que começou a tradição
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poética na língua portuguesa. As medievais cantigas de amor e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa, eram letras de composições musicais, como seus nomes bem indicam – cantigas. Pois suas melodias perderam-se no tempo e as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Literatura é texto que se guarda – cito aqui de maneira oblíqua o poema “Guardar”, de Antonio Cícero, outro poeta-letrista contemporâneo. Mas a distinção conceitual também é importante. Canção é para ser cantada. Poema é para ser lido em silêncio ou falado em voz alta. Porém, todo poema pode receber melodia e virar canção. Poemas de Bandeira serviram de letras para composições de músicos eruditos brasileiros, como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. Muitos textos de diversos outros poetas foram musicados como canções de MPB ou no ritmo do rock. Inversamente, qualquer letra de música pode perder a melodia e ser posta na página, virando poema. Se o poema assim transposto de um suporte musical para o suporte livro fica melhor ou pior é uma questão sempre em aberto, que suscita discussões acaloradas. Existem aqueles que defendem a letra de música como sinônimo de poesia e ponto. Sem maiores ressalvas. Em contraposição, existem aqueles que defendem a poesia contra a letra de música, dizendo que esta jamais se sustenta como autêntica poesia de livro. No meu modo de ver, quando o poema-poema vira canção, ele ganha, porque ganha uma nova dimensão. Já a letra, quando vira poema literário, perde. A letra, sozinha, é menos da metade do valor artístico de uma canção, pois a canção é justamente aquele “a mais” que se agrega como valor adicional à mera soma de letra e melodia. Na virada para poema-na-página, não apenas se perde a melodia da letra, como também assumem novos valores alguns elementos que são cruciais na canção, mas nem tanto na poesia. É o caso dos refrões. A incidência de refrões e repetições pode ser boa de ouvir, mas às vezes é chata de ler. A poesia de livro, para ser lida, precisa mais de surpresas, a cada linha, que de repetições, embora estas também sejam fundamentais tanto na elaboração do poema em si quanto como guias e suportes para a interpretação do poema. Começamos interpretando um poema pelo levantamento das repetições: repetições sonoras, como as rimas, assonâncias e aliterações; repetições semânticas, de palavras ou expressões; repetições formais, como são as estrofes. Claro, há também poemas literários que possuem refrões, assim como muitos poemas se intitulam
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“canções” evocando o parentesco que existe entre as duas artes – a da palavra cantada e a da palavra lida ou falada. A questão pode ser encarada também do ponto de vista do criador. Todo letrista é poeta. Mas nem todo poeta é ou quer ser letrista. Em qualquer dos dois casos, o poeta letrista e o poeta literário serão ambos mais poetas quando a letra, ou o poema, conseguirem conjugar emoção a entendimento, emoção e intelecto, temperados pela necessária originalidade. Originalidade de expressão é o maior requisito para reconhecermos um talento genuíno para a poesia. Os melhores temas da poesia são tão antigos quanto o homo sapiens. O modo de falar desses temas é que pode nos trazer o brilho da novidade. Mas é possível também conquistar originalidade poética tentando encontrar uma forma verbal nova que seja adequada à expressão de algum tema próprio a um novo tempo, a uma nova modernidade. O encontro entre o moderno e o eterno seria o máximo a que a poesia deve aspirar, segundo o icônico poeta francês do século 19, Charles Baudelaire. A questão da leitura poética é a releitura. Um poema torna-se clássico, parte integrante do repertório obrigatório da cultura ilustrada, não apenas porque continuamente solicita, mas principalmente porque resiste a sucessivas releituras, tanto por parte de leitores individuais como por parte das sucessivas gerações. O poema literário é uma arte verbal vinculada ao suporte da escrita e da leitura silenciosa. A letra de música até pode sustentar-se sobre a leitura, mas sua condição de sobrevivência é ser cantada através de gerações. Já o poema literário é primordialmente um objeto intelectual, objeto de reflexão (na leitura) e de autoreflexão (na releitura): coisa mental, como gostavam de citar os poetas concretistas brasileiros. A canção é um objeto performático. Na canção, a letra é o elemento intelectual, subordinado ao performático. Já o poema literário, durante o tempo da leitura silenciosa e solitária, filtra toda a dimensão performática da vida para o processo das imagens mentais: imagens que ficam falando dentro da cabeça da gente. No entanto, o poema literário pode se desdobrar numa performance vital: sua vocalização pública, através da declamação memorizada ou da leitura em voz alta. A performance do poema é uma das atividades pedagógicas que precisam ser recuperadas pela sala de aula brasileira o mais urgentemente possível. Ela já é um fato na vivência do poético hoje em dia. Desde a época dos poetas
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marginais dos anos 70, só tem feito crescer o número de leituras públicas de poesia, espetáculos de poesia, saraus para pequenos e grandes públicos, etc. A performance ou vocalização do poema literário deve, pois, ser estimulada, tanto como prática de entretenimento ilustrado, quanto como prática de educação lúdica e divertida. Afinal de contas, escrever um poema é brincar com palavras, colocando em jogo sentimentos, afetos, observações e, no limite, profundas reflexões filosóficas e existenciais. Obs.: As reflexões acima desenvolvem tópicos trabalhados em meu livro Como e por que ler a poesia brasileira do século 20 (editora Objetiva, 2002) Nota: Escritor e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Editor-executivo da Editora da UERJ.
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PROGRAMA 4
O DESAFIO DO GÊNERO A literatura e as relações de poder entre os gêneros Lúcia Facco 1
Ementa:
O objetivo do quarto programa é promover a discussão sobre a transposição dos
limites impostos pela condição de gênero no cotidiano para a produção cultural e suas repercussões no âmbito escolar. Serão focalizadas as iniciativas de algumas figuras que buscaram romper, por sua atuação no campo literário, os limites impostos à condição subalterna, associada ao feminino, na ordem patriarcal, como Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles (que foram as duas primeiras mulheres a ingressarem na Academia Brasileira de Letras). Depois dos anos 1960, afirmou-se tanto a legitimidade do desejo da mulher, negado inclusive pela medicina, como a do desejo homossexual masculino e feminino, considerado anteriormente como desvio patológico. Um tópico de discussão, no entanto, a ser levado em conta no campo da educação, é a possibilidade de a liberação sexual ter provocado novas formas de dominação e controle dos usos do corpo por agências do poder e intensificado a exploração do sexo como mercadoria. O programa discutirá a luta pelo respeito às diferenças individuais de escritores como Caio Fernando Abreu e João Silvério Trevisan – que, como as mulheres atuantes na geração de Rachel de Queiroz, dedicaram-se também ao jornalismo. Além disso, o crescimento da produção de escritoras que enfocam o lesbianismo, renovando as perguntas sobre os modos de abordar as relações amorosas que contrariam a ordem patriarcal: que repercussões no público em geral e na formação dos jovens podem ter livros que retratam essas relações como fadadas ao fracasso? Devem as autoras e autores se sentir obrigadas/os a retratar os aspectos positivos desses modos de vida alternativos? Tais questões se tornam pertinentes diante da variedade e do contraste entre obras como a novela Duas Iguais , de Cíntia Moscovich, e os livros O último dia de outono e Lua de Prata
de Valéria Melki Busin. Antologias de novas autoras e
estudos panorâmicos, como o de Lúcia Facco – As heroínas saem do armário – vêm trazer novos elementos para o debate sobre o tema entre pesquisadores de literatura, militantes dos
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direitos civis e educadores. Atenta à importância das transformações recentes nos costumes e de sua repercussão na educação, Lúcia Facco dedicou-se, em sua tese de Doutorado, a compreender as atitudes dos professores diante do homossexualismo no cotidiano escolar. Foucault, no primeiro volume da História da sexualidade, afirma que, por volta do século XVIII, nasce uma incitação política, econômica e técnica a falar do sexo. E não tanto sob a forma de uma teoria geral da sexualidade, mas sob forma de análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas quantitativas ou causais. Deve-se falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão considerado ótimo (FOUCAULT, 1988, p. 26-27). Foucault prossegue dizendo que, no século XIX, continua a proliferação de discursos científicos sobre sexo, no intuito de regulamentá-lo. Nunca se falou tanto das mulheres como no século XIX, mas havia aí uma contradição importante: falava-se muito sobre a mulher. Mas que mulher? Com certeza não aquela que amava e se entregava fisicamente ao amor. Não a que sentia tesão, a que gozava. A mulher cantada e decantada do século XIX não pode sentir prazer, não freqüenta o espaço público. A ela é destinado o espaço privado, a casa, onde se responsabiliza pela educação dos filhos. A ela deve bastar a maternidade. O que é natural, como a pulsão sexual, passa a pertencer ao plano social, cultural e histórico. O sexo feminino passa a ter apenas a função de procriação. Feminino, pois os homens podiam procurar o sexo improdutivo com as prostitutas. Com isso, podemos perceber que o desejo heterossexual (ou a ausência dele) nas mulheres é uma construção social. E que a passividade sexual e social era fruto de uma educação conveniente, que orientava a sexualidade feminina no sentido do instinto reprodutor: o desejo da mulher se reduzirá ao desejo de ser mãe. Mais um motivo para o desejo de uma mulher por outra ser invalidado, já que não há possibilidade de reprodução.
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Contudo, há, por trás desse discurso, uma questão importante: ao aceitar as relações lésbicas, a sociedade estaria corroborando a idéia de uma possível libido feminina. Logo, reconhecer a sua existência representaria a desestabilização e o caos na ordem “natural” da heterossexualidade dominada pelo masculino. O que seria do mundo patriarcal se as mulheres dispensassem os homens de suas camas e de seu afeto, recusando a reprodução como definidora de suas identidades? Durante muito tempo, desde o início da minha vida de pesquisadora da literatura de temática homoerótica feminina contemporânea, permaneci num certo estado de perplexidade, ao perceber quão pouco esse assunto tem sido pesquisado e trabalhado no Brasil. A falta de estudos sobre o assunto teria relação com a pequena produção de uma literatura que se autodenominasse como “lésbica”? O discurso lésbico se encontra ligado ao feminista, o que é fácil de compreender. Segundo Denise Portinari (1989, p. 43), o silenciamento da lésbica faz parte de um silêncio maior que recobre todo o universo feminino. A libido feminina foi, por muito tempo, totalmente ignorada. Na reforma do Código Civil inglês, no século XIX, a pederastia permaneceu como crime. Perguntaram, então, à rainha Vitória sobre a homossexualidade feminina e ela respondeu que isso não existia. As lésbicas são ignoradas “a reboque” da concepção da mulher assexuada que “se sujeitava” ao desejo masculino, considerando o sexo somente como uma “obrigação”. Até as prostitutas eram consideradas como seres assexuados (por serem mulheres), apenas mais “bem treinados” na arte de satisfazer os homens. O nosso sistema social só aceita como positiva a categoria heteromasculina. A heterossexualidade é compulsória, por ser a única legítima. Por outro lado, os “não heterossexuais” são uma categoria negativa/opositiva em relação àquela legitimada socialmente. O heterossexual não precisa se explicar, ou sequer se identificar, pois parte-se do pressuposto de que um indivíduo que não fale nada sobre a sua sexualidade é naturalmente heterossexual.
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No campo da literatura, isto se traduz da seguinte forma: se não houver uma marca que evidencie a homossexualidade da personagem, ela será vista como heterossexual, já que é o considerado normal. Da mesma maneira, a mulher não pode ser produtora do discurso, já que não possui voz e, como ser assexuado, precisa se contentar em ser vista como objeto de desejo masculino. Durante séculos, o amor entre mulheres não passava de mais um fetiche para o prazer dos homens, sendo descrito e escrito apenas por eles. Se, como afirmou Jurandir Freire Costa (1992, p. 45-49) o homossexual masculino teve uma série de manifestações na literatura, como os personagens outsiders, subversivos de Balzac, o homossexual sensível das obras de Proust, o homossexual excêntrico de Gide, a imagem da mulher homossexual na literatura tem uma história diferente, por conta de uma questão específica. Além de ter que falar de uma sexualidade desvinculada dos fins reprodutivos, considerada “normal”, ela ainda precisa lutar pela libido feminina que sofreu, durante séculos, o silenciamento ao qual me referi anteriormente. No ano de 1928, a escritora inglesa Radclyffe Hall publicou um livro que viria a ser conhecido como a “Bíblia do lesbianismo” (HENNEGAN, 1998, p. 8): O poço da solidão. A autora mostrou a personagem lésbica como um “desvio da natureza”. Podemos dizer que a intenção de Hall, com essa personagem, foi mostrar à sociedade que as mulheres homossexuais não têm “culpa” por serem assim. É um desígnio da natureza, um “defeito de fabricação”, portanto, as pessoas não devem rejeitá-las, mas compreender o seu “desvio” e perdoá-las por terem nascido diferentes. Apesar de apresentar visão tão pouco lisonjeira, O poço da solidão foi o primeiro livro em que as mulheres homossexuais, que estavam acostumadas à não-existência, podiam se reconhecer e perceber que elas não eram tão solitárias assim em seus desejos. Havia outras como elas. O Poço da solidão foi censurado e seus exemplares foram apreendidos e queimados. O verdadeiro escândalo, nos meios literários, decorrente dessa proibição, vai reforçar a percepção da necessidade das escritoras camuflarem as relações homoeróticas em seus textos
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duplamente transgressores. A primeira transgressão se dá quando tanto a personagem, ao assumir a posição de sujeito, quanto a autora, ao escrever sobre o erotismo feminino, rompem os padrões de gênero (PINTO-BAILEY, [s.d.], p. 3), na medida em que contrariam sua atitude tradicional de passividade, assumindo as rédeas, o controle da situação, nos atos e no discurso. A segunda transgressão se dá com a presença do desejo lésbico, em si, pois ele “foge à definição aceita do ‘feminino’(...) ao não se definir em função do desejo masculino e do sistema de reprodução biológica e de transmissão de valores econômicos e ideológicos” (PINTO-BAILEY, [s.d.], p. 1). Antes disso, no Brasil, uma escritora ousou levantar a cabeça, em uma atitude de transgressão das normas vigentes. Maria Benedita Bormann, sob o pseudônimo de Délia, publicou Lésbia, no ano de 1890. Embora não haja a presença de relações homossexuais entre as personagens, esse texto pode ser visto como uma narrativa lésbica, na concepção da pesquisadora Barbara Smith (PINTO-BAILEY, [s.d.], p. 5), na medida em que ela considera como elemento caracterizador de um texto lésbico “a crítica textual das instituições heterossexuais”. A intenção de fazer esta crítica, por parte da autora, fica clara no título. Lésbia, lésbica, mulher transgressora dos códigos vigentes hoje em dia (ainda), imagine no século XIX! É a história de uma moça que sofre duas desilusões amorosas e resolve escrever. Ela vai se tornar conhecida, alcançar sucesso e independência financeira através da literatura, escrevendo sob um pseudônimo: Lésbia. E isso para a época era ousadíssimo. Uma mulher escritora? Independente? Totalmente fora dos padrões de comportamento esperados. A personagem tem apenas relacionamentos heterossexuais, mas penso que isto só ocorre, exatamente, pela necessidade de se camuflar as relações entre mulheres. Até bem pouco tempo atrás, ainda víamos, na literatura, essa necessidade de camuflagem nos textos lésbicos. Em 1993, no Brasil, a censura tentou interditar um livro de contos de autoras pouco conhecidas, dentre os quais alguns falavam sobre a homossexualidade feminina (VARGAS, 1995, p. 11). Alguns anos antes disso, tivemos Cassandra Rios, que foi considerada uma escritora de pornografia e de subliteratura, tendo muitos livros proibidos pela censura da época. Para ficar
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claro que a questão maior era contra a homossexualidade apresentada em seus textos, cito o fato de que, perseguida pela censura, presa e impedida de trabalhar, Cassandra continuou a publicar com outros pseudônimos: Clarence Rivier e Oliver Rivers, e com eles passou a produzir “romances ‘fortes’, porém com tramas envolvendo casais hetero” (MORAES e LAPEIZ, 1984, p.89). Tais romances, tão “escandalosos” quanto os outros, passaram incólumes pela censura e tiveram grande sucesso de vendagem. E um detalhe interessante é que os pseudônimos eram masculinos. Escritores homens têm o direito de escrever sobre sexo. Apesar de inúmeras obras (como Lésbia) já terem a homossexualidade em suas entrelinhas, foi somente no fim dos anos 1970 e início dos 1980 que, nos Estados Unidos, críticos e leitores passaram a considerar a possibilidade da existência de uma literatura gay e lésbica específica. Influenciados pelas mudanças sociais conquistadas pelos movimentos de emancipação dos anos 1960 (como o Black Power e a Segunda Onda do movimento feminista), outros grupos de “minorias marginalizadas” também passaram a vislumbrar a possibilidade de resistência e a de formação de seus próprios movimentos de emancipação. (SANTOS, 2002, p. 15-16). Os diferentes aspectos do homossexual explicitados na literatura ajudaram a construir, no imaginário social, a “identidade homossexual”, que só começará a ser efetivamente modificada no final da década de sessenta, especificamente após a Rebelião de Stonewall , em Nova York, no ano de 1968, quando se falou, pela primeira vez, em gay pride, em “identidade gay”. A literatura acompanha essas mudanças (ou seria acompanhada por elas?). Hoje em dia, discute-se o significado do termo “literatura gay”. Enquanto para alguns autores e críticos os termos gay e homoerótico se equivaleriam, para outros tais termos teriam significados diferenciados. “Literatura gay, propriamente dita, seria uma vertente mais contemporânea, vinculada ao processo histórico de liberação gay, de conscientização gay, seja lá como se queira chamar esse processo; em suma, seria literatura homoerótica pós-68, pós-Stonewall” (MORICONI, apud PINTO, 2003, p. 48), diz Ítalo Moriconi, em entrevista à Revista Cult .
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A literatura gay (entendendo como parte dela a literatura lésbica) exibe as marcas identitárias sem subterfúgios, pois um de seus interesses é exatamente o de afirmar a identidade gay e lésbica diante da sociedade. Por isso, ela é perturbadora. Ela evidencia a existência de pessoas que desejam viver a homossexualidade abertamente. A perturbação que a literatura gay provoca sustenta a tensão entre leitor e obra. Na verdade, o que ela quer é exatamente isso, pois o leitor não se desvencilhará de preconceitos firmemente fixados, a não ser através de uma reflexão profunda. E “é em função dessa tensão que o leitor revê seus próprios preconceitos e se dá conta da própria alteridade” (BARCELLOS, 2002, p. 30), ao perceber concepções de vida e experiências completamente diferentes das suas. Concordo com Barcellos (2002), quando afirma que a grande literatura é um instrumento poderoso para que a humanidade se conscientize a respeito de sua própria história e da possibilidade de transformá-la em uma sociedade diferente. Segundo ele (BARCELLOS, 2002), grupos que foram historicamente as maiores vítimas dos processos de marginalização e perseguição, tais como os homossexuais, os negros e os judeus, não devem abrir mão da literatura como instrumento de conscientização e resistência ao discurso do poder hegemônico. Se, por um lado, a vinculação de literatura a movimentos de militância homossexual pode fazer com que tais produções literárias sejam vistas de maneira preconceituosa tanto pelo mercado quanto pela crítica (como se a qualidade literária interessasse menos a seus autores que a ideologia política), por outro lado, temos a visão de críticos literários, como Heloisa Buarque de Hollanda, que afirma, em entrevista à Revista Cult : Hoje, a diversificação é um critério forte de mercado e pode ter sido por essa brecha que se afirmaram alguns segmentos que tinham enorme dificuldade de se fazerem ouvir. Por outro lado, acho interessante, do ponto de vista político, essa afirmação gay ou homoerótica, uma vez que essa é uma literatura de ponta, que coloca em pauta novas questões teóricas e literárias (HOLLANDA, apud PINTO, 2003, p. 48).
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Até pouco tempo, eu enxergava nesta vertente da literatura o risco de ser guetificada, ou seja, de que a sociedade visse tal produção literária apenas como de interesse para os próprios homossexuais. Hoje, contudo, posso dizer que meu olhar é bem diferente. Apropriando-me de uma definição da escritora Miriam Alves, a literatura gay não é um gueto, mas sim um quilombo. A diferença entre gueto e quilombo é simples: enquanto o primeiro é o local para onde as pessoas portadoras de algum estigma são empurradas pela sociedade, o segundo é um lugar onde os sujeitos estigmatizados se organizam para enfrentar essa sociedade que os estigmatiza. A partir dessa organização, a literatura gay vai acabar ultrapassando os muros desse “quilombo”, na medida em que vai influenciar a mudança de comportamento dos sujeitos homossexuais. Como exemplo desses “quilombos”, vimos, no final da década de 90, no Brasil, o surgimento das Edições GLS, um selo da Editora Summus, fundado por Laura Bacellar, que tem como objetivo publicar livros com temáticas que atendam aos interesses das minorias sexuais. E, mais recentemente, no dia 30 de agosto de 2008, Laura Bacellar abriu a Editora Malagueta, a primeira editora lésbica do Brasil. Hoje em dia há vários filmes e seriados de TV sobre homossexuais e voltados para o público homossexual. Proliferam os personagens homossexuais em novelas. Podemos perceber o esforço para normalizar o estigma da homossexualidade, o que incentiva o sujeito leitor/espectador a questionar determinados conceitos estabelecidos pela sociedade. Ao perceber que esses conceitos não são verdades absolutas e imutáveis, o próprio estigmatizado questionará sua classificação como “anormal”, baseada no estigma que possui. Logo, maior será a naturalidade e a espontaneidade com que ele o demonstrará. Assim, o seu grau de aceitação pelos não-estigmatizados aumentará. Mas essa tática só surtirá efeito positivo se a pessoa estiver segura de sua aceitação, se apaziguar os conflitos internos gerados por seu estigma. E é assim que a literatura “gay” ou a literatura “lésbica” vão sair do gueto. É óbvio que sob muitos aspectos este é um desenvolvimento altamente positivo, diminuindo em grande parte as antigas tensões impostas pela clandestinidade e a vergonha. Mas é
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relevante ressaltar que, freqüentemente, embutida nesta nova postura está a adoção de uma identidade também imposta de fora com suas regras preestabelecidas (FRY, MACRAE, 1983, p. 98). Há o perigo de que se institua uma forma “correta” de prática homossexual palatável para a sociedade, segundo a qual os homossexuais, nos romances e contos, tenham relacionamentos semelhantes aos heterossexuais, respeitando todas as “regras” ditadas pela moral e os bons costumes. Sejam monogâmicos, responsáveis, independentes financeiramente, possuam excelente caráter, enfim, tenham comportamento impecável, sob pena de serem considerados promíscuos, tarados, pervertidos. Não digo, com isso, que não se deve escrever sobre relacionamentos homossexuais “certinhos”. O problema é que estes sejam escritos segundo esses moldes, apenas para serem “tolerados”. É preciso que se tome cuidado para que, na tentativa de se “naturalizar” os indivíduos considerados diferentes, esta naturalização não seja condicionada aos comportamentos estereotipados desejados socialmente, do contrário, ao invés de questionarmos os preconceitos, estaremos reforçando-os. O fato é que, acompanhando esta nova identidade em fase de formação, surge um mercado homossexual e sua exploração comercial contribui para a modelagem de determinados padrões. Apesar das boas intenções, não podemos nos esquecer de que qualquer padrão apresentado será extremamente castrador e repressivo, na medida em que todos precisam se adaptar a ele. Para ser aceita/o, a/o homossexual se conforma em manter sua relação com a sociedade baseada em palavras como “aceitação” ou “tolerância”. Estes termos denotam a manutenção de uma relação desigual. Só se “tolera” ou se “aceita” algo, em princípio, passível de ser considerado “intolerável” ou “inaceitável”. De qualquer maneira, penso que é humilhante todo o esforço despendido pelo indivíduo no intuito de adaptar-se a um modelo que nem mesmo irá satisfazê-lo.
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Muitas/os homossexuais condenam a si mesmas/os a não agir naturalmente, mas sim de maneira que não choque a sociedade. Esta, na verdade, sempre tentará impor limites de aceitação aos quais a/o homossexual deverá se ajustar, caso deseje conviver em “harmonia”. Estes limites são preexistentes ao sujeito e continuarão a existir depois da sua morte. No entanto, eles vão se modificando lentamente, já que a humanidade (que é quem os cria, no final das contas) não pára de caminhar. É certo, porém, que, para que os limites se modifiquem, alargando as suas cadeias apertadas até que se rompam em algum dia, num futuro talvez muito distante, se faz necessário que as/os próprias/os homossexuais forcem essas cadeias. Caso permaneçam em uma posição de aceitação e enquadramento aos limites estabelecidos, ninguém fará nada para mudá-los. Contudo, diante da pressão social e do preconceito, é muito difícil para os homossexuais tomarem a iniciativa para a busca de mudanças na estrutura social heteronormativa. A escola, por ser um local de formação, poderia e deveria incentivar esse debate, a fim de formar uma sociedade mais solidária e menos preconceituosa. No entanto, durante a minha pesquisa para a elaboração da tese de Doutorado, chamada Era uma vez um casal diferente: a temática homossexual na educação literária infanto-juvenil , na qual trato exatamente dessa questão, especialmente após a realização de questionários com vários professores de diversos estabelecimentos de ensino, cheguei à conclusão que grande parte dos professores que desejam encarar o desafio de se envolver em assunto tão delicado não sabem como trabalhar essa questão com seus alunos. Sentem-se despreparados para isso. Além disso, constatei que a maioria dos professores prefere permanecer em silêncio diante da questão da homossexualidade. Afinal de contas, é muito confortável para a sociedade hetero-patriarcal não ser obrigada a enxergar o sofrimento da/o homossexual em seu esforço em ajustar ao que a sociedade considera como tolerável. Mais cômodo, certamente, pensar que esta/e está tendo a oportunidade de se revelar. Agradável sentir-se “boa e tolerante” por não discriminar. Será que o sujeito não-estigmatizado, tão satisfeito consigo mesmo, enxergaria com igual complacência uma menina que se vestisse e agisse como rapaz, ou o gay que flertasse com
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ele? Ou seria tolerante apenas com os homossexuais que agissem de acordo com regras de comportamento determinadas socialmente? Na verdade, tal ciclo de desvendamento funciona como um círculo vicioso. A aceitação dos limites impostos está diretamente relacionada à culpa que o sujeito estigmatizado assimila e mantém dentro de si. A certeza de que “está errado”, ou pior, de que “é anormal”, faz com que ele se conforme com a necessidade de se ajustar a todo custo. O ciclo precisa ser quebrado, tarefa que, como já disse antes, caberá ao estigmatizado. O caminho, provavelmente, está na aceitação do seu estigma, partindo de uma revisão crítica do próprio conceito de normalidade e da classificação de maioria e minoria com sentido valorativo. Neste sentido, a literatura poderá ser de grande ajuda, na medida em que pode, além de nos proporcionar prazer, estimular nossa imaginação, nos colocar diante de várias possibilidades de vivência, aprimorar nosso senso estético, dando-nos asas, liberdade e confiança para que nos aventuremos nas nossas próprias interpretações críticas. Afinal, este deve ser o papel de todo professor de literatura, formar leitores críticos, que tenham confiança em suas próprias interpretações. Um leitor confiante em seu próprio discernimento em relação aos textos literários e consciente da relatividade das “certezas” também o será em relação à vida.
Bibliografia BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo masculino: perspectivas teóricometodológicas e práticas críticas. In: Literatura e homoerotismo: uma introdução. José Luiz Foureaux de Souza Júnior (org.). São Paulo: Scortecci, 2002. p. 13-66. BORMANN, Maria Benedita Câmara. Lésbia. Florianópolis: Mulheres, 1998, 264p.
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PINTO-BAILEY, Cristina Ferreira. O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Mulheres e literatura. Rio de Janeiro, v. 7, [s.d.]. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2001. PORTINARI, Denise. O discurso da homossexualidade feminina. São Paulo: Brasiliense, 1989. 127p. SANTOS, Rick. Dessencializando queerness à procura de um corpo (textual) queer inclusivo. In: A escrita de adé: perspectivas teóricas dos estudos gays e lésbic@s no Brasil . Rick Santos e Wilton Garcia (orgs.). São Paulo: Xamã: NCC/SUNY, 2002. p. 15-22. SOMOS tod@s iguais? Escola, discriminação e educação em direitos humanos. Vera Maria Candau (coord.) Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 176p. VARGAS, Maria José Ramos. Os sentidos do silêncio: a linguagem do amor entre mulheres na literatura brasileira contemporânea . 1995. 101 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1995.
Nota: Escritora. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
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PROGRAMA 5
MEMÓRIAS DO CAMPO NA CIDADE Tensões entre o arcaico e o moderno na literatura regionalista Fernando C. Gil 1
Ementa: O
objetivo do quinto programa é abordar o regionalismo e de sua sobrevivência ou
re-significação na literatura, a partir da perspectiva da convivência de diferentes temporalidades no meio urbano. O ponto de partida da discussão sobre a presença das áreas rurais e de sua cultura nas grandes metrópoles brasileiras será o percurso biográfico e a trajetória da obra de dois escritores que se tornaram canônicos em diferentes fases de desenvolvimento da literatura brasileira: José Lins do Rego e Guimarães Rosa. Apesar da distância temporal, no lançamento de seus livros, e das diferenças no contexto que acompanharam a sua consagração, algumas de suas obras mais destacadas partem de um processo de criação semelhante: tomaram como material as experiências concretas no meio rural (no caso de José Lins, em especial as da infância; em Guimarães Rosa, além disso, a viagem e o trabalho no campo). Transformaram essas memórias da infância registradas no campo a partir do diálogo com a tradição literária, filosófica e do pensamento social de sua época – referências e informações afinadas com os grandes centros. Pretende-se enfatizar no programa essa circunstância da experiência humana na cidade, já reconhecida por Charles Baudelaire, de que a memória de outras épocas e as referências simultâneas de diferentes culturas articulam-se na construção das subjetividades. A biografia de alguns de nossos escritores e suas relações com determinados momentos de surtos de modernização do país permitiram que se transformassem em mediadores culturais, trazendo para a cidade imagens e experiências rurais, traduzindo-as para o público cultivado das cidades. Como reconheceram alguns críticos, daí adveio, por exemplo, o interesse do público urbano pela chamada “literatura regionalista” nos anos 30. No programa, tentar-se-á pensar sobre a atualidade desses processos, tendo em vista escritores que alcançaram maior divulgação nos últimos anos como Milton Hatoum ou Carrascoza.
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Quando professores, críticos e historiadores se referem à idéia de regionalismo na literatura brasileira, uma série variada e complexa de questões e problemas surge no seu horizonte. A maioria destas questões está relacionada entre si, uma puxa a outra; e muitas delas não dizem respeito apenas à literatura, mas tocam também em pontos cruciais no modo como concebemos a nossa experiência como brasileiros do ponto de vista histórico e cultural. Em razão do espaço que se tem para abordarmos o assunto, talvez se possa encaminhar o debate a partir de três questões. O objetivo não é encontrar a resposta definitiva para elas, mas orientar a nossa discussão. As questões podem ser assim formuladas: a) O que caracteriza a chamada literatura regionalista? b) A literatura regionalista modificou-se ao longo do tempo? c) A noção de literatura regionalista pressupõe uma outra noção de literatura que não seja regionalista? O que caracteriza a chamada literatura regionalista? A questão da caracterização da literatura regionalista deve ser vista por dois ângulos que têm diferenças entre si. De um lado, o âmbito do que se poderia chamar dos seus atores propriamente dito, ou seja, escritores, intelectuais, ficcionistas e poetas que, falando de um ponto específico do Brasil, reivindicavam uma especificidade, uma particularidade em relação ao mundo cultural e mesmo histórico em que se encontravam mergulhados e, por conseqüência, ao mundo simbólico que dele deriva – poesia, ficção, etc. De outro, está a crítica e a história da literatura que buscam organizar, sistematizar a ação e a produção desses atores de uma determinada perspectiva e que também não deixam de conferir um juízo de valor a isso tudo.
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Sob o ângulo da produção e dos produtores literários (dos seus atores), desde o romantismo, os nossos escritores têm a clara percepção de que o Brasil é diversificado culturalmente, e que, portanto, num certo sentido, os Brasis poderiam ser vários. Quando José de Alencar, ali pelos anos de 1870, começa a escrever O gaúcho, O tronco do ipê e O sertanejo, ele se mostra ciente de que o Brasil não é o mesmo em todos os lugares e pretende dar feição literária a essas diferenças. Pode-se dizer que a mesma intenção tem Franklin Távora, não só quando escreve os seus romances como O Cabeleira e O matuto, mas também quando propugna para o “norte” do Brasil, no próprio prefácio d’ O cabeleira, o lugar onde “abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra” (Távora, 1977, p. 10). O mesmo sentimento diferenciador pede Inglês de Sousa, naquele período, quando escreve suas narrativas subtituladas Cenas da vida do Amazonas, ou ainda no sul, quando Apolinário Porto Alegre imagina que possa estar figurando algo do “espírito do gaúcho” no seu O vaqueano. No cerne da preocupação destes ficcionistas está o propósito de representar, do ponto de vista literário, uma paisagem humana e natural local , regional, circunscrita a uma experiência histórico-social particular, seja, por assim dizer, a do sertanejo, seja a do gaúcho, a do caipira ou outra qualquer. Não somente por isso, mas também por isso, natureza, costumes, hábitos, linguagem, locais e personagens típicos tenham muita força neste tipo de representação literária. De modo imediato e com maior ou menor ímpeto programático e polêmico, e para além do próprio período romântico, o regionalismo se manifesta muitas vezes como um problema de inserção das identidades culturais das províncias, das regiões, na cena nacional. São vozes que pedem entrada nesta cena, ao mesmo passo em que querem participar como elemento de sua constituição. Já em outra perspectiva parecem se colocar a crítica e a historiografia brasileira quando se voltam para a literatura regionalista, a qual tende a ser vista, via de regra, como uma literatura menor, sem ressonância, e esteticamente precária. Vejamos como uma crítica muita inteligente e sensível como Lúcia Miguel-Pereira lidou com o assunto, ao tentar definir a noção de literatura regionalista. Diz a autora em seu Prosa de ficção: de 1870 a 1920:
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Só lhe pertencem de pleno direito as obras cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde os hábitos e os estilos de vida se diferenciem dos que imprime a civilização niveladora. Assim entendido, no início do período aqui estudado, o regionalismo se limita e se vincula ao ruralismo e ao provincialismo, tendo por principal atributo o pitoresco, o que se convencionou chamar de “cor local”. Pouco mais adiante, complementa: Esta [o que para a autora seria o “caminho normal da ficção”], de fato, parte em regra do particular para o geral, isto é, vê um homem em seu meio – ou contra o seu meio – mas vê também o homem, alguém que por suas razões mais profundas se irmana, por sobre a diversidade de expressão, aos outros seres; interessa-se pelos indivíduos especificamente, porém na medida em que se integra na humanidade. O regionalismo, ao contrário, entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence, e na medida em que se desintegra da humanidade. Visando, de preferência, ao grupo, busca nas personagens não o que encerram de pessoal e relativamente livre, mas o que as liga ao seu ambiente, isolando-as assim de todas as criaturas estranhas àquele. Sobrepõe, destarte, o particular ao geral, o local ao humano, o pitoresco ao psicológico, movido menos pelo desejo de observar costumes – porque então se confundiria com o realismo – do que pela crença, o seu tanto ingênua, de que divergências de hábitos significam divergências essenciais de feitio. É por isso fatalmente levado a conferir às exterioridades – à conduta social, à linguagem etc. –uma importância exclusiva, e a procurar ostensivamente o exótico, o estranho (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179-180). O interessante a notar na formulação de Lúcia Miguel-Pereira é o duplo movimento com que ela opera a noção de regionalismo, que é muito característico da crítica quando aborda o assunto. Ao mesmo tempo em que é um conceito que busca descrever um fenômeno literário, ele revela, de modo determinante, um juízo de valor sobre o objeto que é descrito. Talvez não fosse exagero dizer: mais juízo de valor do que compreensão analítica sobre o problema em
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foco. No caso, expressões como “cor local”, “pitoresco”, “exótico” e “estranho”, que envolveriam as formas de representação desse mundo rural/provincial, são sínteses desta literatura que é vista como uma literatura de menos. Do ponto de vista da crítica literária, talvez fosse mais produtivo se invertêssemos a equação, isto é, entendêssemos a precariedade muitas vezes existente na literatura regionalista como um problema literário a pedir exame. A literatura regionalista modificou-se ao longo do tempo? Um dos problemas centrais com que a literatura regionalista se deparou, mais especificamente na sua prosa ficcional, é como fazer falar este mundo rural, este universo não-urbano. Se pudéssemos ver em bloco o que talvez seja mais adequado chamar de narrativa rural , ou romance rural , dependendo da natureza da obra, do que romance regionalista, parece evidente que dos romances rurais de José de Alencar, de Visconde de Taunay ou de Bernardo Guimarães e das narrativas pós-românticas de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e Hugo de Carvalho Ramos, passando pelo chamado romance de 30, com Graciliano Ramos e José Lins do Rego, só para citar alguns autores desse período, até chegarmos à obra de Guimarães Rosa ou à ficção de João Ubaldo Ribeiro, com o seu Sargento Getúlio, muita água parece ter rolado sob a ponte da literatura regionalista. Entretanto, vistas as coisas retrospectivamente, quer dizer, do ponto de vista mais contemporâneo, em todos esses diversos momentos o que parece estar em pauta é como enunciar, como descrever e narrar este mundo, o que significa também como fazer falar narrador e personagens deste universo. Este universo, diga-se de passagem, nunca foi um universo moderno dominado pela convenção de vida burguesa, conforme se afigura no romance europeu ou em boa parte do romance urbano brasileiro. Nem por isso, contudo, o romance regionalista deixou de se relacionar com os âmbitos da modernidade, entre outras razões, porque os pressupostos sociais da forma romance mostram-se umbilicalmente relacionados ao mundo moderno, convulsionado pelo capital, na Europa, desde o final do século XVIII. Para darmos um exemplo desta relação do regionalismo com a modernidade e
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permanecermos ainda no aspecto da enunciação do mundo rural, podemos dizer, muito esquematicamente, que o mundo rural representado na ficção brasileira correu por quatro grandes trilhos: a) Um primeiro momento, em que forma de representação e mundo representado não se diferenciam e são instaurados pela perspectiva onívora de um narrador culto, letrado e citadino, cuja linguagem e visão de mundo configuram também a própria linguagem e visão de mundo dos personagens. A natureza destes em boa dose não se diferencia da instância narradora. Exemplos disso são os romances de José de Alencar e Bernardo Guimarães, bem como a quase totalidade da literatura regionalista romântica. b) Um segundo em que este narrador culto e citadino procura se diferenciar do mundo representado, não somente por estratégias discursivas as mais diversas (entre elas, por exemplo, comentários diretos no corpo da história, observações em nota de rodapé de página, epígrafes etc.), mas, sobretudo por fazer distinção entre o registro lingüístico de padrão culto de que faz uso e o registro “dialetal” em que se expressam os personagens oriundos do meio rural ou provincial. Ilustram esta situação as narrativas de Hugo de Carvalho Ramos e também as de Taunay, particularmente Inocência. c) Uma terceira etapa em que ambas as instâncias, a forma de representação e o mundo representado, mantêm a sua autonomia no âmbito da composição, estabelecendo uma espécie de perspectiva narrativa bifronte ou uma duplicidade de pontos de vista, sem que isso signifique o rebaixamento de uma delas ou o descompasso no andamento da composição. Os romances D. Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, e parte da obra de José Lins do Rego inserem-se nesta quadra. d) Um quarto instante pode ser detectado quando a forma de representação e o mundo representado não se diferenciam, porque o mundo rural se instaura por meio de uma voz de dentro, que o descreve e narra como se a ele organicamente estivesse vinculado. Neste âmbito se encontram, por exemplo, narrativas como as de Simões Lopes Neto, Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro.
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Dentro desta pequena e despretensiosa teoria do narrador do mundo rural apenas esboçada, um como que paradoxo deve ser apontado. Para atingir o melhor rendimento estético para a representação de uma matéria pré-burguesa, não-moderna, não-urbana, foi necessária a acumulação de técnicas e procedimentos provenientes de tradição cultural e literária vinculadas à modernidade. Ao menos parte da grandiosidade e da complexidade de figuras como Blau Nunes, de Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, Riobaldo, de Grande sertão: veredas, e do sargento Getúlio, da narrativa homônima de João Ubaldo Ribeiro, parece se dar em razão deste entrelaçamento entre matéria ficcional arcaica, não-moderna, de um lado, e, de outro, o aproveitamento de formas e técnicas ultramodernas de composição literária. A noção de literatura regionalista pressupõe uma noção de literatura que não seja regionalista? Tudo indica que sim. E aqui novamente retornamos ao modo como a crítica e a história da literatura brasileira têm compreendido a literatura regionalista. Não se trata somente da diferença de espaços representados ficcionalmente, por onde transcorrem as histórias, como a sua ambientação na cidade ou no campo. Este aspecto também está presente neste debate. Mas mais do que tudo, o que parece estar em questão, talvez se possa dizer mesmo em disputa, são as formas de legitimação do que seja o literário na esfera do campo literário. Sob este ângulo, não me parece ser de todo exagerado dizer que a noção de regionalismo e toda a carga negativa que ela tem carregado consigo ao longo de décadas tem sido emitida dos centros hegemônicos do poder cultural e literário do país (econômico também, claro), mais particularmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. O regionalismo, entendido como expressão de uma literatura periférica e da periferia, presume a centralidade de alguma outra coisa, de algum outro modo do literário se manifestar . Seria uma literatura “urbana”? uma “literatura 2
de linguagem” (auto-referencial, metaficcional)? Uma literatura de vanguarda? A sugestão que fica aqui não é a exclusão de um paradigma literário em função de outro, nem tampouco a desierarquização dos juízos críticos, como anda em moda ultimamente nos estudos literários, mas a compreensão de que a chamada literatura regionalista é faceta
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fundamental da constituição do nosso sistema literário. Esta faceta toma destaque na medida em que percebemos que tanto a formação literária brasileira, como a própria formação histórica do país talvez sejam muitas e diferentes, e o regionalismo se configura, a partir da hipótese aqui proposta, como um dos seus eixos dominantes.
Alguma bibliografia sobre o assunto ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1983. BUENO, Luis. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Ed. Unicamp, 2006. CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento” e “Revolução de 30 e a cultura”. In A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987. ______. Formação da literatura brasileira. 5 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, v. 2. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil . 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1986, v. 3 e v. 5. DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. GIL, Fernando C. O Romance da urbanização. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção: de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1973. TÁVORA, Franklin. O cabeleira. 3 ed. São Paulo: Ática, 1977.
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Notas: Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do CNPq. 1
As exceções geralmente apontadas pela crítica, em especial as obras de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa, apenas confirmam o olhar de poucos amigos que ela historicamente lança para o regionalismo. 2
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