GOUGUENHEIM, S. Aristote au Mont Saint-Michel : les racines grecques
de l’Europe chrétienne, Paris: Seuil, 2008, 277p. Ana Rieger Schmidt* _______________________________ _______________ ____________________________ ____________ Sylvain Gouguenheim quer combater a “opinião comum” segundo a qual o ocidente tem uma “dívida” em relação ao Islã. Sabe-se bem que a Europa medieval recebeu uma parte importantíssima dos textos gregos graças à tradução (e também à leitura e aos comentários) feitos do grego para o árabe, em um primeiro momento, e em seguida do árabe para o latim, num processo de “transmissão de saberes” da Grécia para Bizâncio (para o siríaco e depois para o árabe) e em seguida para a Europa latina, chamado de translatio studiorum . Contrariamente, o autor procura mostrar que o saber científico e filosófico grego transitou minimamente pelo mundo árabo-muçulmano antes de chegar à Europa latina que, por sua vez, se apropriou diretamente da herança dos antigos. O livro ultrapassa claramente a pura expressão de d e argumentos históricos e leva a França a conhecer uma das mais vivas polêmicas intelectuais dos últimos anos. 1 Podemos
identificar
no
texto
de
Gouguenheim
três
bases
de
argumentação: a) a presença de elementos de continuidade do saber antigo no ocidente medieval; b) a existência de traduções feitas diretamente do grego para o latim já no século XII (antes das traduções feitas a partir do árabe) e c) a helenização superficial do mundo árabo-muçulmano. Como método, vemos i) o uso estratégico da noção de civilização para cunhar as identidades da Europa e do Islã, o que lhe permite compará-las (e opô-las); ii) a distinção entre cultura e religião islâmica de um lado, e o saber escrito em árabe de outro. Em diversos momentos o autor insiste sobre a distinção entre a sociedade muçulmana (Islã), a *
Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne. Cf., nesse volume de Translatio , a resenha de Philippe Büttgen, Alain de Libera, Marwan Rashed, Irène Rosier-Catach (dir.), Les Grecs, les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie savante , Paris: Fayard, 2009, escrito em resposta ao livro de Gouguenheim.
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religião muçulmana (islã) e os sábios de língua árabe, afirmando ainda que o saber produzido por um punhado de intelectuais não reflete o progresso científico e humano de uma civilização (p. 22). Seu objetivo é o de isolar os eruditos de língua árabe de seu contexto muçulmano, para, assim, poder enfraquecer o “argumento da dívida” da Europa em relação ao Islã. Para facilitar sua tarefa, Sylvain Gouguenheim declara curiosamente que seu estudo tratará da primeira parte da Idade Média, aquela que se estende do século VI ao século XII – deixando de fora justamente os séculos XIII e XIV (essenciais para a compreensão da translatio studiorum!), alegando que os “fatos já estão muito bem estabelecidos para que valha a pena retomá-los” (p. 12) . Em segundo lugar, ele apresenta uma verdadeira caricatura da posição atualmente defendida pelos pesquisadores, reduzindo-a à afirmação de que o mundo árabo-muçulmano é o único responsável pela transmissão da totalidade do saber e racionalismo gregos ao ocidente, opondo um “Islã esclarecido, refinado e espiritual a um ocidente brutal, guerreiro e conquistador” (p. 17), um “Islã do Iluminismo” à “idade das trevas” cristã (p. 12) – ao ponto de identificar um “etnocentrismo oriental”!
Um elo direto entre Bizâncio e Europa Segundo o autor, contrariamente às ideias vinculadas ao cliché “idade das trevas”, a Europa medieval não presenciou uma ruptura radical com a antiguidade. Gouguenheim defende uma permanência do interesse e curiosidade pelo saber grego no ocidente. Estudos recentes apontariam para uma série de elementos de continuidade, ainda que em meios isolados: a presença de núcleos helenófonos (em grande parte formados por refugiados cristãos das conquistas árabes) sobretudo em Roma, na Sicília e no sul da Itália (mas também na Catalunha e Irlanda), entre os séculos VII e XI. Estes núcleos teriam se tornado centros de difusão da cultura grega na Europa latina, cujos arquivos revelam manuscritos de medicina, gramáticas gregas e comentários ao Organon de Aristóteles (p. 41). O autor discorre ainda sobre os esforços de tradução de uma série de textos científicos e filosóficos realizados por eruditos como !"#$%'()!
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Hunayn ibn Ishaq (tratados médicos), Tiago de Veneza (quase totalidade da obra de Aristóteles), Burgundio de Pisa (direito, matemática e filosofia), e ainda Herman de Carinthie e Abelardo de Bath. Adicione-se a isso a importante biblioteca de Latrão, alimentada por uma sucessão de papas, a qual tem um papel capital na conservação de manuscritos gregos de todas as disciplinas. “Paradoxalmente, conclui Gouguenheim, o Islã transmitiu em um primeiro momento a cultura grega ao ocidente ao provocar o exílio daqueles que recusavam a sua dominação” (p. 34). Teríamos aí um elo duradouro com Bizâncio, oásis da herança grega, que motivará uma série de “renascenças” medievais. Nessa “prosperidade do humanismo cristão”, vemos o acordo entre a fé cristã e o saber antigo, revelando o cristianismo como uma religião naturalmente amiga da razão. O segundo capítulo é dedicado às traduções de textos gregos para o árabe por intermédio do siríaco feitas pelos cristãos orientais a partir do século IV. Gouguenheim insiste sobre o fato que as províncias do império bizantino, responsáveis pela preservação da cultura grega, não faziam parte do mundo muçulmano, mas eram majoritariamente siríacas e cristãs. Mesmo à medida em que o árabe era imposto como língua administrativa nos territórios conquistados e os cristãos foram lentamente se arabizando, isso não implicou a sua conversão ao islã. O siríaco (língua derivada do aramaico, falada na região de Edessa) era a língua dos cristãos dos impérios persa e bizantino. Próxima do hebreu e do árabe, essa língua – e seu povo – serão os intermediários essenciais na transmissão árabe do saber grego. Sem as traduções siríacas os eruditos árabes não teriam tido acesso ao pensamento antigo: Al-Farabi, Avicena e Averróis, denuncia Gouguenheim, nunca aprenderam o grego (note-se que a mesma crítica não é feita aos filósofos latinos, tais como Tomás de Aquino, que muito menos o conheciam!). No processo das traduções dos textos gregos para o árabe, esses mesmos cristãos se viram obrigados a cunhar a quase totalidade do vocabulário científico, até então praticamente inexistente na língua árabe. O protagonista do terceiro capítulo (que está aliás na origem do título do !"#$%'()!
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livro mas representa o capítulo mais curto: apenas 20 páginas) é Tiago de Veneza, personalidade supostamente ignorada pelos historiadores, ainda que conhecida pelos filósofos graças ao trabalho de Lorenzo Minio-Paluello, coordenador das edições do Aristoteles Latinus. Clérigo italiano, ele teria vivido em Constantinopla para depois trabalhar no scriptorium da abadia do MonteSaint-Michel. Ali, em pleno século XII, ele teria traduzido (de 1127 a 1150) a quase totalidade das obras de Aristóteles diretamente do grego para o latim décadas antes que as traduções a partir do árabe tivessem sido feitas em Toledo. Até então conhecia-se apenas parte do Organon – a logica vetus – traduzida por Boécio no século V; lembrando-se que a Europa descobre somente no século XIII, através das traduções feitas a partir do grego por Guilherme de Moerbeke, os tratados políticos e morais de Aristóteles ( Política e Ética a Nicômaco) – segundo
Gouguenheim
ignorados
pelo
mundo
muçulmano
por
serem
incompatíveis com o Corão (p. 104). Devemos a Tiago de Veneza a primeira tradução integral dos Segundos
Analíticos (cerca de 1128), dos tratados De Anima e De memoria, de grande parte dos Parva naturalia, das Refutações Sofísticas , da Física (cerca de 1140), dos Tópicos, do De longitudine et brevitate vitae , De generatione et corruptione , dos livros II e III da Ética a Nicômaco (Ethica vetus) e da Metafísica (ainda que apenas os livros I-IV tenham sido conservados). A circulação dessas traduções teria sido enorme: encontramos cópias no norte da França, na Inglaterra e na Alemanha. Mais de cem de manuscritos da
Física de Aristóteles são difundidos por toda a Europa, principalmente na França e na Inglaterra; encontramos três manuscritos da Metafisica no século XII (encontrados em Avranches, Bolonha e Oxford) e mais 39 do século XIII; encontramos ainda o impressionante número de 289 cópias dos Segundos
Analíticos feitas apenas no século XIII. A abadia do Monte-Saint-Michel é, assim, o lar de um dos ateliês de cópia mais ativos do ocidente, abrindo uma via de acesso direto ao saber grego. Gouguenheim confunde, todavia, a presença de manuscritos em um local com a sua respectiva produção. Nada o autoriza a concluir que Tiago de Veneza tenha !"#$%'()!
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efetivamente vivido na dita abadia...
O filtro islâmico O restante do livro se concentra sobre a incompatibilidade entre o pensamento grego e o mundo islâmico, este último incapaz de absorver o primeiro. A visão de Gouguenheim vai de encontro à visão segundo a qual o Islã medieval, ávido de conhecimento, teria acolhido o saber antigo e em resultado se transformado positivamente. O núcleo da sua argumentação consiste na ideia de que a Grécia representava um mundo completamente estrangeiro ao Islã, seja por razões políticas (as disputas com o Império Bizantino), religiosas (conflito com o Corão) e mesmo linguísticas. Segundo o autor, o mundo muçulmano teria se interessado somente pela parte do saber grego que não apresenta tensão com os princípios do Corão. Isso quer dizer que os textos lógicos e matemáticos foram rapidamente difundidos; por outro lado, os textos astronômicos e filosóficos (como a Física e a Metafísica de Aristóteles, cujo argumento do primeiro motor ia de encontro à astronomia, ou melhor, à astrologia muçulmana) passaram por um verdadeiro “filtro” – qualquer
acolhimento
por
parte
de
Al-Farabi,
Avicena
ou
Averróis
representando uma exceção. O pensamento muçulmano, intimamente ligado ao Corão, se mostra de um modo geral incompatível com a “razão grega”; o que podemos chamar hoje de “racionalismo” não teria, para o autor, correspondente no Islã medieval (p. 165). O conflito filosofia-religião é sempre apresentado como um problema exclusivamente islâmico, como se houvesse um casamento perfeito entre cristianismo e Aristóteles... Gouguenheim insiste ainda sobre a impossibilidade de traduzir, sem perdas significativas, um texto de uma língua indo-europeia em uma língua semítica, já que elas não compartilham a mesma estrutura. Não basta, para que uma tradução seja considerada fiel, a mera transposição dos sentidos de cada palavra, mas a transferência de uma “estrutura de pensamento” (p. 136). Enquanto a língua árabe se presta bem à poesia, as línguas indo-europeias são as mais apropriadas para a expressão filosófica. Desta forma, Gouguenheim procura !"#$%'()!
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invalidar o processo de transmissão textual e cultural para o ocidente questionando o valor das traduções árabes. O resultado de todas estas barreiras está na helenização limitada do Islã: este teria se “helenizado” tanto quando o ocidente teria se “islamizado” (p. 164).
A noção identitária de civilização Em seu capítulo final, Gouguenheim demonstra claramente os juízos de valor que alimentaram a polêmica ao redor do livro. O mediterrâneo medieval é apresentado como o encontro de duas civilizações com identidades conflitantes: de um lado, o Islã expansionista, violento e desinteressado pelas culturas alheias; de outro, a Europa cristã, pacífica e acolhedora. Vemos sobretudo nestes dois últimos capítulos uma característica recorrente do discurso de Gouguenheim (e grande alvo de críticas): o essencialismo. Mesmo que ele identifique o essencialismo e seu consequente anacronismo como os maiores perigos da pesquisa historiográfica (p. 168), o “cristianismo” e o “islã” são sistematicamente apresentados como entidades históricas coerentes, unas e imutáveis – e, bem entendido, necessariamente opostas. A identidade de uma civilização seria constituída pelo “amálgama entre aquilo que ela produziu, aquilo que ela recebeu e aquilo que ela aceitou (ou refusou) do exterior” (p. 195). Ao introduzir as ideias de continuidade e descontinuidade de civilizações, Gouguenheim pode apresentar a ideia de origem, de raízes de uma civilização, para finalmente concluir que as raízes da Europa cristã se encontra na Grécia antiga, em detrimento das trocas com o mundo árabo-muçulmano – “a Europa teria seguido um caminho idêntico mesmo na ausência de todo contato com o mundo islâmico” (p. 198-199).
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