Livro didático e saber escolar 1810-1910
COLEÇÃO HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Circe Bittencourt
Livro didático e saber escolar 1810-1910
Copyright © 2008 by Circe Bittencourt COORDENADORA DA COLEÇÃO
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Ana Maria de Oliveira Galvão (UFMG); Carlos Eduardo Vieira (UFPR); José Gonçalves Gondra (UERJ); Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE); Luciano Mendes de Faria Filho - Editor (UFMG); Rosa Fátima de Sousa (UNESP-Araraquara) CAPA
Alberto Bittencourt EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Eduardo Costa de Queiroz (Saitec Editoração) REVISÃO
Tucha (Saitec Editoração) Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da editora.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bittencourt, Circe Livro didático e saber escolar (1810-1910) / Circe Bittencourt. — Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2008. — (História da Educação) Bibliografia. ISBN 978-85-7526-358-7 1. Educação - Brasil - História 2. Educação e Estado - Brasil 3. Livros didáticos - Avaliação 4. Livros didáticos - Brasil 5. Livros didáticos - História 6. Política e educação I. Título. II. Série. 08-09004
CDD-371.320981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Livros didáticos : Educação 371.320981
Agradecimentos
Esta história do livro didático é resultado da tese de doutorado cuja defesa ocorre u no início de 1993, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, de São Paulo. A elaboração de uma tese possui sempre uma história na qual vários personagens participam direta ou indiretamente e, esta não foi diferente. Foi permeada de muitos encontros que se transformaram em amizades. O apoio financeiro concedido pela bolsa do CNPq foi essencial para a pesquisa em Paris, onde contei com a acolhida do professor Fréderic Mauro, que me recebeu no Institut des Hautes Études de 1’Amérique Latine, possibilitando contatos com pesquisadores e arquivos. Na Sorbonne, o apoio constante e a amizade de Katia de Queiroz Mattoso foram fundamentais para o delineamento da pesquisa. O caloroso entusiasmo pelo trabalho e as sugestões bibliográficas e metodológicas do professor Jean Glénisson permitiram o encaminhamento do trabalho na França e posteriormente no Brasil. Agradeço a André Chervel pelas importantes contribuições iniciadas no Institut National de Recherche Pédadogique de Paris e continuadas quando de sua estadia na USP. Também no INRP, a colaboração de Alain Choppin foi fundamental para as descobertas do mundo editorial dos livros didáticos. Meus agradecimentos se estendem a amigos e colegas da Faculdade de Educação da USP e, em especial, os do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada. No decorrer da pesquisa, ficam ainda comigo muitos dos momentos de conversas e das sugestões que tive da professora Elza Nadai, com quem compartilhei a vida docente e de pesquisadora durante seus últimos dez anos de trabalho. No Departamento de História da USP, contei com o apoio fundamental de amigas que me apoiaram novamente na realização de um trabalho educacional. De forma especial, agradeço à Sylvia Basseto, leitora crítica, que compartilhou as angústias e dúvidas que permearam a construção desta pesquisa e à Raquel Glezer, que mais uma vez acreditou e confiou no trabalho, incentivando e enriquecendo-o em todos os momentos.
E agradeço aos editores, especialmente a Luciano Mendes de Faria Filho, a possibilidade de tornar este trabalho disponível depois de tantos anos passados de sua elaboração. O tema – a história do livro didático brasileiro – era ainda pouco explorado e ainda em momento inicial de reconhecimento como objeto de pesquisa na história da educação. Embora muito tenha sido debatido e produzido sobre os livros escolares, creio que esta publicação ainda possa oferecer contribuições mesmo com as ressalvas de que os referenciais aqui apresentados são ainda do final da década de 1980 e início da década de 1990. Assim, esta publicação mantém o texto quase que em sua integralidade e espero que possibilite reflexões sobre a escola em suas múltiplas dimensões e problemas.
Sumário
Prefácio ................................................................................................................ ................................................................................................................ 9 Introdução .......................................................................................................... 13
1ª Parte – Literatura escolar e Estado ............................................. 21 Capítulo I – Livro didático e construção do saber escolar .................................... 23 Concepções e projetos de redação do livro didático ....................................... 24 Concepções iluministas do livro didático ................................................................ 24 Planos de redação dos livros escolares..................................................................... 30 Livros didáticos e concepções de ensino ........................................................ 33 Instrução para quem? ............................................................................................... 33 Livros de leitura e ensino elementar ......................................................................... 42 Livros e compêndios para o ensino secundário ....................................................... 48 Vigilância e controle da produção didática ..................................................... 53 Legislação sobre os livros escolares .......................................................................... 53 Vigilância dos Conselhos de Instrução .................................................................... 56 Capítulo II – Estado e editoras: confecção e difusão da produção didática ........... 63 Editoras e poder institucional ........................................................................ 64 Nascimento das editoras de livros didáticos............................................................ 64 Editoras nas províncias ............................................................................................ 75 Comercialização do livro didático ................................................................. 81 A “carne” da produção de livros .............................................................................. 81 Estratégias de produção e venda .............................................................................. 83 Divulgação oficial da literatura escolar ........................................................... 88 Política de distribuição de livros ............................................................................... 88 Bibliotecas escolares e exposições pedagógicas ........................................................ 90
2ª Parte – Livro didático e disciplina escolar ................................. 95 Capítulo III – Livros did didáá ticos e ensino: da História Sagrada à História Profana ....... 97 A História nos programas curriculares: constituiç ão de uma disciplina .......... 99 constitu ição História nos programas curriculares do ensino secundário ................................... 99 História nas escolas elementares e profissionais .................................................... 107 Da História Sagrada à História Profana ....................................................... 112 História Sagrada nos livros didáticos .................................................................... 112 Moral profana e livros de Instrução Cívica ........................................................... 116
Confrontos na produção didática: História Universal ou História da Civilização? ............................................................................................. 120 O predomínio dos franceses na História Universal ............................................... 120 Divergências entre os autores de História da Civilização ...................................... 125 Capítulo IV – História do Brasil nos livros didáticos .......................................... 135 Autores e compêndios de História do Brasil ................................................. 136 Militares e História nacional................................................................................... 136 Os sócios do IHGB e a História oficial do Brasil ................................................... 141 Expansão da produção .......................................................................................... 143 Temas e periodização da História do Brasil .................................................. 147 Cronologia e “heróis nacionais” ............................................................................ 147 “Nacionalismos” .................................................................................................... 150 A noção de tempo e espaço nas obras do cônego Fernandes Pinheiro e de João Ribeiro ......................................................................................... ......................................................................................... 154 O tempo sagrado na obra do cônego .................................................................... 156 As temporalidades da História do Brasil de João Ribeiro ..................................... 159
3ª Parte – Usos do livro didático ................................................. 165 Capítulo V – Livros didáticos e professores ....................................................... 167 Mestres normalistas ou leigos? ..................................................................... 168 Primeiras Escolas Normais .................................................................................... 168 Condições de trabalho dos “mestres de primeiras letras” .................................... 171 Mestres e livros ....................................................................................................... 175 Professores secundários: leitores e escritores ............................................... 178 Professores dos liceus ............................................................................................. 178 Professores-autores ................................................................................................ 181 Diálogos dos autores com os docentes ......................................................... 183 Metodologias do ensino ......................................................................................... 183 A imagem do professor e da escola nas obras didáticas ....................................... 186 0 1 9 1 0 1 8 1 –
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Capítulo VI – Livros didáticos nas salas de aula ................................................. 191 Métodos pedagógicos e formas de leitura ..................................................... 193 Exercícios e conceitos de aprendizagem ................................................................. 193 Ilustrações e aprendizagem .................................................................................... 196 A “memorização” no processo de aprendizagem .................................................. 203 Salas de aula e práticas de leitura .................................................................. 207 Imposições de normas de leitura ........................................................................... 207 Ler e escrever ........................................................................................................... 210 Transgressões ......................................................................................................... 215 Algumas considerações finais ...................................................................... 217 Referências Referências ....................................................................................................... 223
Prefácio
Sob uma aparente banalidade e uma familiaridade enganadora, o manual escolar é um objeto complexo. Trata-se de um produto cultural cujas funções são plurais 1: instrumento iniciático da leitura, vetor lingüístico, ideológico e cultural, suporte – durante muito tempo privilegiado – do conteúdo educativo, instrumento de ensino e de aprendizagem comum à maioria das disciplinas. Mas é também um objeto manufaturado, amplamente divulgado em todo o mundo, cuja produção e difusão se inscrevem em uma lógica industrial e comercial. A história do livro e da edição escolares foi durante muito tempo negligenciada pelos pesquisadores apesar do papel que, pelo menos há dois séculos, tem-se atribuído aos manuais na formação das mentalidades coletivas, e apesar do peso econômico representado por esse setor da atividade editorial. Foi apenas na década de 1960, mas, sobretudo, a partir da década de 1980 que se manifestou um interesse crescente por esse campo de pesquisa em vários países, dentre os quais os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão e a França figuram como precursores. No entanto a multiplicidade das abordagens possíveis faz com que os estudos históricos – assim como os que não o são – focalizem em geral um ou outro aspecto particular do manual: dessa forma, a produção científica mundial aparece muito heterogênea e consiste, essencialmente, em artigos isolados, o que torna ainda mais difícil delimitá-la. Se retomarmos a categorização proposta pelo teórico alemão Peter Weinbrenner, a maioria dos estudos destinados à história do manual escolar interessa-se, com efeito, apenas pelo próprio produto, e de modo mais particular pelo seu conteúdo – sempre textual, às vezes iconográfico e excepcionalmente paratextual; aqueles que se interess am 1
Cf. LEBRUN, Monique (Dir.). Le manuel scolaire : un outil à multiples facettes. Québec: Presses de l’Université du Québec, 2006. 356 p.
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pelas diversas etapas do processo que faz com que o manual chegue definitivamente às mãos dos alunos são ainda menos numerosos; aqueles, enfim, que tratam, sob uma perspectiva histórica, da questão do uso dos manuais e de sua recepção são, de longe, os mais raros.2 Quanto às monografias que apresentam sínteses históricas nacionais, se jam elas fruto de um trabalho coletivo ou resultantes dos esforços de um pesquisador isolado, são ainda hoje raras em todo o mundo e, em geral, incompletas. No começo da década 1990, enquanto a questão da qualidade dos livros didáticos colocava-se com particular acuidade no Brasil, suscitando abundante literatura no campo didático, a história do livro escolar permanecia uma área quase inexplorada. 3 A produção histórica resumia-se, essencialmente, a algumas passagens nas obras destinadas à história geral do livro no Brasil e a um pequeno número de estudos que aborda vam, de maneira fragmentária e quase sempre alusiva, as recentes evoluções dos manuais escolares de uma dada disciplina. Em 1993, a historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt defende, na Universidade de São Paulo, a tese intitulada Livro Didático e Conhecimento Histórico: uma história do saber escolar – a primeira tese de doutorado que fez da história do livro escolar brasileiro seu objeto de estudo. É também, ainda hoje, um dos raros trabalhos de síntese jamais realizados no mundo sobre a história do livro escolar e, com certeza, um dos mais completos e bem-sucedidos. Circe Bittencourt adota uma perspectiva ao mesmo tempo diacrônica e holística: ela se dedica a estudar o conjunto dos processos que interagem na concepção, elaboração, produção, difusão, utilizações e recepção dos manuais escolares de história, e também dos manuais de leitura, destinados ao ensino primário e secundário a partir da emergência de uma literatura escolar nacional no Brasil. Dizer que se trata de uma reflexão sobre o papel que teve o livro didático na construção do saber escolar e na constituição de uma identidade nacional, como o título poderia deixar pensar, seria por demais redutor.
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A autora tem o cuidado de restituir as diferentes evoluções em seus contextos políticos, sociais, culturais, mas também econômicos, não deixando de articular a parte do nacional àquela das diversas influências estrangeiras, francesa principalmente, que se exerceram nos campos epistemológico, didático ou editorial. O estudo se organiza em torno de três grandes temáticas: o papel do Estado na constituição de uma literatura escolar nacional, a emergência da história como disciplina escolar constitutiva da nação e, enfim, as utilizações do livro escolar. Quatro observações merecem ser feitas para esclarecer o leitor sobre as principais contribuições desta obra. Cf. WEINBRENNER, Peter. Kategorien und Methoden für die Analysewirtschafts – und sozialwissenschaftlicher Lehr – und Lernmittel. Internationale Schulbuchforschung. Zeitschrift des Georg-Eckert Instituts, v. 8, n. 3, p. 321-337, 1986.
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Cf. GALZERANI, M. Carolina et al . Que sabemos sobre livro didático : catálogo analítico. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1989. 234 p. Trinta ocorrências (mas, na verdade, 25 títulos) de um total de 426 estão indexadas na rubrica “História do livro didático”.
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Sublinhamos, primeiramente, a importância que Circe Bittencourt atribuiu ao contexto político e institucional no qual se constituiu a literatura escolar brasileira: é com uma análise detalhada das evoluções da política do livro escolar no Brasil, dos projetos abortados, dos debates de idéias e também das efetivas realizações, que ela inicia seu livro. A autora faz uma obra pioneira no Brasil ao considerar, com razão, que são os contextos legislativo e regulamentar que, além de definirem os conteúdos ou os métodos de ensino e as modalidades práticas de sua implantação, condicionam tanto a existência e a estrutura de um setor editorial privado quanto as estratégias das empresas e a natureza de suas produções. Como os conteúdos dos manuais de história do Brasil, que constituem uma produção editorial necessariamente original, e também aqueles dos manuais de leitura que prolongam seu discurso contribuíram para forjar a identidade da nação? A segunda parte da obra aborda, essencialmente, a relação entre a história da disciplina e dos manuais escolares e, de modo mais preciso, a constituição da história do Brasil como disciplina autônoma, ao mesmo tempo laica e nacional. Se a problemática em si não era verdadeiramente nova, 4 a análise à qual se entrega Circe Bittencourt para o Brasil era inédita. A autora, que se apóia em um corpus documental de mais de quarenta manuais publicados no Brasil entre 1831 e 1910, interessa-se, sobretudo, pelos autores e pelas evoluções ligados à temática, aos “heróis” nacionais e à concepção do tempo e do espaço históricos. Notamos, em terceiro lugar, o interesse atribuído aos usos do livro escolar: como os manuais, cujas condições de produção e de difusão já haviam sido previamente estudadas, foram utilizados pelos professores e pelos alunos, tanto na sala de aula quanto fora dela? Uma questão difícil, pois os “rastros” são tênues, mas uma questão tão essencial para Circe Bittencourt, detentora de grande experiência de ensino, que ela lhe reserva a terceira e última parte do livro, intitulada Usos do livro didático . Essa é uma iniciativa inovadora, e só podemos lamentar que ainda hoje a questão dos usos permaneça, na maior parte das vezes, negligenciada pelos pesquisadores que se interessam pelos manuais escolares antigos. Trata-se, no entanto, de uma questão incontornável, pois ela é constitutiva do livro escolar que, como qualquer instrumento, só existe pelo uso que dele se faz ou que dele se espera. A última observação diz respeito às fontes: uma pesquisa com tal envergadura jamais havia sido realizada no Brasil e, na ausência de estudos nacionais aos quais se referir, a autora tomou o cuidado de consultar a literatura científica estrangeira. Mas, para dar conta da situação local, teve de recorrer essencialmente a fontes primárias, manuais, revistas pedagógicas, relatórios administrativos, textos legislativos e regulamentares, catálogos de editores, contratos ou correspondência de autores, etc., cuja Cf., por exemplo, KOULOURI, Christina. Dimensions idéologiques de l’historicité en Grèce (1834-1914 ): les manuels scolaires d’histoire et de géographie . Frankfurt am Main; Bern; New York; Paris: Peter Lang, 1988. 612 p ( Studien zur Geschichte Südosteuropas , p. 7).
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simples localização demandou tempo e tenacidade, 5 pois, quando não haviam desaparecido, esses conjuntos documentários – as coleções dos manuais em primeiro lugar –, eram em geral lacunares ou estavam dispersos e raramente catalogados. Esta pesquisa contribuiu, dessa forma, para evidenciar a necessidade de se constituírem no Brasil grandes instrumentos de trabalho que fizessem o levantamento sistemático do patrimônio educativo nacional e favorecessem análises científicas. Hoje, o Brasil é um dos países onde as pesquisas em história da educação e principalmente as pesquisas que abordam a história do livro e da edição escolares são as mais dinâmicas. Circe Bittencourt é responsável, há vários anos, pela coordenação do programa “Livres”. Esse programa, que visa reunir ampla documentação sobre a produção escolar nacional, conseguiu desenvolver, em especial, um banco de dados que repertoria o conjunto dos manuais escolares publicados no Brasil desde 1810, data da instalação da Impressão Régia até os nossos dias, para todas as disciplinas e todos os níveis de ensino. Consultável on-line , esse instrumento de pesquisa, desenvolvido em parceria com o programa francês “Emmanuelle”, resulta de uma estreita colaboração firmada entre várias universidades dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso do Sul e Paraná.6 O livro que o leitor tem em mãos é, simplesmente, o ato fundador da pesquisa sobre o manual escolar no Brasil. Alain Chopin, Paris, 11 de junho de 2007.7
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“A organização do acervo de livros didáticos correspondeu a um trabalho semelhante ao do arqueólogo, buscando os objetos escondidos em diferentes ‘sítios’” (p. 11 da versão original da tese).
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Disponível em: http://paje.fe.usp.br/estrutura/livres/index.htm.
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Traduzido do francês por Cristina Moerbeck Casadei Pietraróia.
Introdução
Neste trabalho, aborda-se a história do livro didático no processo de constituição do ensino escolar brasileiro no decorrer do século XIX e primeiros anos do século XX. A proposta é pensar o livro didático de forma ampla, acompanhando os movimentos que vão da sua concepção à sua utilização em sala de aula. É uma reflexão sobre o papel do livro didático na construção do saber escolar que, por sua natureza, deve necessariamente ser considerado em um conjunto mais geral no qual aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos se articulam, conferindo-lhe dimensão específica. Livros escolares circulam aos milhões diariamente pelas mãos de professores e alunos. Editoras divulgam novos títulos e reeditam os mais vendidos, dando ao livro didático proeminência na indústria cultural. A literatura escolar é o produto de maior vendagem no quadro atual das editoras nacionais. O livro didático é assunto polêmico, pois gera posições radicais entre professores, alunos e pesquisadores dos problemas educacionais. Os principais consumidores de livros didáticos, professores e alunos, divergem na avaliação do papel exercido por ele na vida escolar. Para uma parcela de professores, o livro didático é considerado um obstáculo ao aprendizado, instrumento de trabalho a ser descartado em sala de aula. Para outros, ele é material fundamental ao qual o curso é totalmente subordinado. Na prática, o livro didático tem sido utilizado pelo professor, independentemente de seu uso em sala de aula, para preparação de “suas aulas” em todos os níveis da escolarização, quer para fazer o planejamento do ano letivo, quer para sistematizar os conteúdos escolares, ou simplesmente como referencial na elaboração de exercícios ou questionários. A escolha do livro a ser adquirido pelo governo para as escolas tem sido, nos últimos anos, outro aspecto polêmico e controverso, assim como todo o processo de avaliação que o MEC tem realizado por intermédio do PNLD e, mais recentemente, do PNLEM.
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Entre os alunos, podemos observar avaliações divergentes sobre o livro didático. Parte deles considera o livro como organizador da “matéria”, garantindo o conteúdo a ser estudado para as provas. Para outros, é apenas um material didático dentre outros. O mesmo ocorre com os pais que exercem vigilância para se ter alguma garantia sobre a eficiência e exercer algum tipo de controle sobre os conteúdos escolares fornecidos aos filhos. O livro didático e sua história inserem-se, assim, em uma complexa teia de relações e de representações. O uso permanente do livro a partir das primeiras escolas do século XIX, integrado ou não a métodos denominados “tradicionais” de ensino, foi o ponto de partida para a análise deste material didático aparentemente simples de se identificar, mas de difícil definição. O livro didático foi se constituindo como problema a ser desvendado, surgindo constantes indagações sobre a prática escolar que temos vivenciado na nossa história escolar. A natureza complexa do objeto explica o interesse que o livro didático tem despertado nos diversos domínios de pesquisa. É uma mercadoria, um produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização pertencente aos interesses do mercado, mas é, também, um depositário dos diversos conteúdos educacionais, suporte privilegiado para recuperar os conhecimentos e técnicas consideradas fundamentais por uma sociedade em determinada época. Além disso, ele é um instrumento pedagógico “inscrito em uma longa tradição, inseparável tanto na sua elaboração como na sua utilização das estruturas, dos métodos e das condições do ensino de seu tempo” (CHOPPIN, 1980, p. 1-25). E, sem dúvida, o livro didático é também um veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura.
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Tais características fazem com que o livro didático seja objeto de pesquisas divergentes. É alvo de críticas contundentes ou de estudos que proclamam sua existência como fundamental no processo de ensino das escolas. Criticada ou elogiada, a obra didática tem se constituído em tema com enfoques variados, em que se destaca uma linha que privilegia avaliações de seus diversos conteúdos. Nos estudos mais críticos prevalecem análises dos seus aspectos ideológicos, e apenas recentemente têm surgido trabalhos que cuidam das questões políticas que envolvem a produção, divulgação e uso dessa literatura didática. 8 As divergências no tratamento do tema me levaram, em uma primeira instância, a considerar a possibilidade de conhecê-lo com mais profundidade, acompanhando-o em uma trajetória mais longa, buscando sua gênese. No Brasil, poucos estudos tratam da história do livro didático. Em alguns casos aparecem como introduções para outros temas ou surgem como fonte para estudos da evolução de conceitos em trabalhos sobre a história de uma determinada disciplina. 9 8
Entre outras obras, cito FREITAG (1989) e OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMENY (1984).
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Cf. levantamento feito na publicação do Catálogo analítico Que sabemos sobre o livro didático, realizada por pesquisadores da Unicamp em 1989.
Com a preocupação de alcançar uma dimensão mais ampla do significado do livro didático procurei situá-lo no contexto da história do livro. Nos estudos brasileiros destaca-se a obra de Halewell O livro no Brasil (1985), que resgatou a vida dos editores e sua produção. O livro escolar é nele apresentado em vários momentos, sendo possível visualizar a importância do material no conjunto editorial, desde os primórdios da imprensa nacional. A produção didática surgiu também em uma importante história do livro na França, a Histoire de l’édition française organizada por Roger Chartier e HenriJean Martin (1982-1985). Nela o livro didático apareceu em dois capítulos: o primeiro é referente ao Antigo Regime francês associado ao ensino religioso, e o outro é dedicado ao século XIX, com o desenvolvimento da escola laica e obrigatória. 10 Os organizadores da obra traçaram propostas importantes para a pesquisa histórica do livro impresso, produto cultural por excelência da sociedade moderna. Destacaram a importância do livro como um elemento de diferenciação entre os grupos sociais, não apenas entre as classes sociais, entre dominantes e dominados, mas também indicador de oposições nas próprias elites. Com base nessa formulação, colocaram a questão sobre as variações do ato de ler e a necessidade de se realizar a história da leitura. Fazer a história da leitura implica rever o problema do livro e seu caráter ambíguo. Proposto, em geral, para cimentar a uniformidade de pensamento, divulgar determinadas crenças, inculcar normas, regras de procedimento e valores, o livro pode também criar as diferenças porque a leitura que se faz nele ou dele nunca é única. A leitura de um livro é ato contraditório, e estudar seu uso é fundamental para o historiador compreender a dimensão desse objeto cultural. Tais elementos se tornaram importantes para esta pesquisa, que passou a ser definida pela inserção do livro escolar na história da cultura, associando-o à constituição de uma sociedade letrada, procurando determinar claramente seus consumidores. Nesse sentido foram sugestivas as obras de Carlo Ginzburg (1987) e de Mikhail Bakthin (1987) que têm por objeto a história da cultura popular se inter-relacionando ou se afastando da cultura burguesa, à medida que o mundo da leitura e da escrita se expandiam na sociedade moderna. Seus trabalhos forneceram contribuições importantes para a busca de indícios sobre a circularidade da cultura, dos problemas que envolvem a tradição oral típica das sociedades pré-capitalistas, na constituição de um saber que pretende se comunicar por signos impressos em livros. Essa opção de encaminhamento foi reforçada pelos trabalhos de Jean Glénisson (1985) sobre o mundo da leitura infantil e da juventude e os de Leonardo Arroyo, Marisa Lajolo e Regina Zilbermann. Procurei inscrever o tema no conjunto das reflexões da produção cultural, especialmente a literária, situando o livro didático na história cultural, mas de modo a apresentar suas peculiaridades na história educacional, estabelecendo seus vínculos com a escola.
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Nesta obra os capítulos referentes aos livros didáticos são os de Dominique Julia, “Livres de classe et usages pédagogiques”, t. 2: Le livre trionphant (1660-1830), p. 468-497, e o de Alain Choppin, “Le livre scolaire”, t. 4: Le livre concurrancé, 1900-1950, p. 280-305.
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O espaço escolar está associado intrinsecamente à construção do livro didático considerando que a escola é, fundamentalmente, uma instituição contraditória onde dominação e conflitos convivem no quotidiano de alunos e professores desde sua criação pelo Estado Nacional. A análise da escola nesta pesquisa é concebida sob perspectiva de um espaço contraditório, um lugar de produção de conhecimento, e não apenas mera instância criada pelo Estado para transmitir e reproduzir sua ideologia. Sob essa ótica, buscamos aprofundar as leituras das teorias de Michael Apple e Yvor Goodson sobre a relação entre educação e sociedade, procurando avançar na compreensão dos conceitos de hegemonia, contradição e resistência na instituição escol ar. A escola, lugar onde o conhecimento é produzido e transmitido, além de ser o espaço da reprodutividade da divisão de trabalho, liga-se aos questionamentos sobre qual conhecimento ela produz efetivamente. Procurei, dessa maneira, investigar o conhecimento como capital cultural, verificando sua disseminação em determinado momento da nossa história escolar (APPLE, 1989; GOODSON , 1983). Essa preocupação me levou a considerar o livro didático abrangendo aspectos epistemológicos que envolvem sua construção. Situei o livro didático discutindo o pro blema da elaboração dos conteúdos e métodos das diferentes disciplinas escolares e que são ligados a uma imagem de pedagogia. O estudo deste objeto nos levou à reflexão sobre os conceitos de disciplina e conteúdo do ensino escolar, visto que geralmente se aceita a idéia que os conteúdos das disciplinas escolares são meras “vulgarizações” do saber denominado erudito, cabendo aos pedagogos criar metodologias para que as ciências possam ser assimiladas por um público jovem.
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O livro didático e sua história somaram-se aos problemas do saber escolar cuja essência busco definir. Essa reflexão é necessária uma vez que, frequentemente, o conteúdo dos manuais é confundido com o saber escolar por excelência. Trata-se de um conhecimento concebido como científico, ou criado com certo rigor em centros considerados academicamente como tal e que é proposto de acordo com regras determinadas pelo poder constituído ou por instituições próximas a ele, construindo-se, dessa forma, o saber a ser ensinado difundido pelas disciplinas escolares distribuídas pelos programas e currículos escolares. O saber a ser ensinado transforma-se em saber ensinado na sala de aula, onde o professor é elemento fundamental tanto na interpretação que fornece a esse conhecimento proposto como nos métodos que utiliza em sua transmissão, com os meios de comunicação que dispõe. Finalmente, para a configuração integral do saber escolar, temos o saber apreendido , ou seja, o conhecimento incorporado e utilizado pelos alunos de acordo com a vivência de cada um deles, das condições sociais e das relações estabelecidas no espaço escolar. A articulação entre saber acadêmico e o saber escolar não tem sido abordada em pesquisas sobre a história das disciplinas, embora tais questões sejam eventualmente introduzidas sem maiores aprofundamentos e apresentadas com dados pouco sistematizados.
Em proposta mais contundente, André Chervel (1988) contribuiu para uma refle xão sobre as possibilidades de uma pesquisa sobre a história das disciplinas escolares de maneira a abrangê-las em toda sua complexidade. Nossa proposta é abordar a constituição do saber específico construído pela disciplina escolar incluindo a análise do uso que seus diversos agentes fazem dela. Partindo das reflexões de Chervel, preocupamonos em estabelecer dialeticamente o elo entre a escola e sua vida interna com o saber oriundo de fora, trazido por alunos e professores. Acreditamos que uma história do livro didático referenciada fundamentalmente na escola auxilia a compreensão do mo vimento pelo qual é criado um saber escolar, percebendo-se com clareza os limites de intervenção de professores e alunos no processo de produção desse conhecimento e questionando qual a liberdade do aluno na apreensão e no uso dele (C HERVEL, 1988). Para vincular o livro didático às questões epistemológicas e situá-lo na prática educacional, promovendo uma leitura de seus conteúdos e métodos, optei por uma única disciplina, tendo recaído a escolha sobre a História, visto que nela se realizou minha formação acadêmica e experiência profissional. Para o estabelecimento de uma periodização, os critérios desviaram-se dos poucos trabalhos sobre a história do livro didático existentes entre nós, especialmente o de Guy de Hollanda, autor de um estudo sobre a bibliografia didática de História entre 1931 e 1956, fundamentado exclusivamente nas reformas dos programas de ensino, privilegiando as ações do Estado (HOLLANDA, 1957). Embora as reformas dos programas se constituam, efetivamente, em marcos importantes para a elaboração dos livros didáticos, busquei verificar outros agentes que intervieram na construção e nas mudanças dos livros escolares, pois nem sempre tais reformas transformaram substancialmente sua natureza e seus conteúdos. O tema foi localizado, então, a partir do período de instalação das primeiras escolas públicas pelo Estado Nacional na década de 1810 do século XIX até 1910, por considerá-lo elucidativo quanto à dimensão que a ele atribuo. A pesquisa inicia-se no período no qual foi possível resgatar a origem dos manuais editados em gráficas brasileiras, perpassando rapidamente pelos livros, em sua maioria traduções, da Impressão Régia, e centrando-se no momento de efetivação da produção nas décadas de 1860 a 1880 do século XIX, quando o ensino primário começou a ser ampliado em meio às questões políticas e sociais. Fechamos a periodização nas primeiras décadas do regime republicano quando, ao lado das medidas educacionais que, aparentemente, forjavam novos projetos para a escola, as empresas editoriais puderam fazer do livro didático a sua principal fonte de renda, o que significava estar ele incorporado como objeto necessário e indispensável no cotidiano escolar. Esse período de cem anos, aproximadamente, correspondeu à fase da constituição do saber escolar em uma sociedade brasileira escravagista que se transformava, chegando ao advento do trabalho livre e da nova concepção de cidadania. Assim, a escolha do período compreendido entre a primeira década do século XIX e os primeiros vinte anos do século XX se fez no sentido de perscrutar as transformações sofridas por esse material de ensino e o saber por ele construído, a partir do momento
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da constituição do Estado Moderno Nacional até o período da construção do regime republicano que, segundo vários estudos sobre educação, tem sido considerado como um dos marcos da história brasileira em todos seus aspectos. Para estudar essa história um problema complexo se apresentou: a documentação. Um aspecto importante sobre a documentação refere-se à dificuldade para a constituição do corpus documental, uma vez que o livro didático é, neste trabalho, objeto de pesquisa e seu principal documento. Uma das primeiras dificuldades se refere à diversidade da produção, com um intenso fracionamento do sistema escolar em seus diversos níveis e a multiplicação das disciplinas. Outro aspecto é a sua característica de produto a ser consumido em tempo breve, de acordo com os ritmos das reformas curriculares, criando um paradoxo: possuí uma grande tiragem de exemplares desde seu início, mas estes são pouco preservados, sendo raramente encontrados em locais adequados, e na maior parte das vezes, estão em péssimo estado de conservação. Trata-se de um material disperso e vários desafios devem ser enfrentados, tanto para conseguir localizá-lo, como para ter acesso a ele. Sendo uma espécie de produção marginal, o livro escolar não foi e nem tem sido depositado em bibliotecas públicas de forma sistemática. Alguns exemplares brasileiros do século XIX puderam ser encontrados nas seções de livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Biblioteca Municipal “Mário de Andrade”, de São Paulo, e em bibliotecas da Universidade de São Paulo que receberam acervos doados, como a Biblioteca “Paulo Bourroul” e “Macedo Soares” pertencentes à Biblioteca da Faculdade de Educação da USP. Outros exemplares foram comprados em sebos ou doados por pessoas amigas que colaboraram na tarefa de coleta. A maior parte, entretanto, do corpus documental foi obtida na Bibliothèque Nationale de France, pois um número significativo de manuais escolares brasileiros foi impresso na França e, de acordo com sua legislação sobre o depôt legal , encontram-se preservados naquela instituição. Devo frisar também que nela foi possível encontrar os livros em suas várias edições, dado relevante no sentido de definir o período de uso da obra e identificar sua aceitação perante o público.
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A organização do acervo de livros didáticos correspondeu a um trabalho semelhante ao do arqueólogo, buscando os objetos escondidos em diferentes “sítios”, que definirão as várias leituras. Os livros encontrados na Bibliothèque de Paris por razões da obrigatoriedade do depôt pouco dizem sobre seus leitores, mas com eles podemos acompanhar suas edições. Livros obtidos por doações de antigos alunos, professores ou encontrados em bibliotecas particulares fornecem indícios sobre possíveis form as de consumo e de leitura, pelos traços de uso neles existentes. Para reconstituir o sentido amplo do objeto, conforme os objetivos enunciados, foi necessário considerar as relações estabelecidas em três pólos: o texto, o objeto que lhe serve de suporte e a prática que dele se apodera. Dessa forma, a proposta de elaborar a história do livro didático constituiu-se como desafio, tanto na organização do corpus , quanto na forma de tratamento da documentação, visto que foi concebida como problema a ser desvendado em toda sua
complexidade, envolvendo-a em contextos abrangentes, associados ao espaço escolar e a seu público leitor. Para cumprir tal propósito, pelo tipo específico de documentação, fez-se necessário distinguir as várias leituras do material. Considerando-o como objeto da indústria cultural, o livro foi pesquisado pela documentação existente nos arquivos de editoras, sempre com dificuldades, vigiada pelos proprietários que restringem o acesso ao conjunto do acervo. Os almanaques publicados pelas editoras e seus catálogos foram fontes importantes para obter dados quantitativos, informações sobre métodos de vendagens e divulgação das obras. Para elucidar a relação entre o livro didático e escola foram feitas leituras paralelas dos programas escolares propostos pelo Estado, pela Igreja ou demais instituições particulares que se encarregaram da organização educacional do período. Os textos dos programas foram acompanhados da leitura sobre legislação, acrescida dos pareceres e relatórios de autoridades vinculadas à educação, somadas à literatura pedagógica então produzida. Para resgatar o uso do livro pela sociedade da época e suas transformações, buscamos informações em romances e biografias, sobretudo nos memorialistas com suas recordações da vida escolar. Para completar o quadro das complexas representações sociais sobre o papel do livro e do mundo letrado, recorremos primordialmente à “fala” do próprio livro didático sobre tais questões. O trabalho foi dividido em três partes, as quais foram subdivididas em seis capítulos. Iniciamos pela vinculação entre livro didático e a organização educacional do Estado Nacional, recuperando as formas como o poder instituído concebia o livro e o saber escolar. Trata-se de uma análise dos projetos sobre o livro escolar e o papel que deveria desempenhar, segundo os pressupostos oficiais e de intelectuais preocupados com a questão educacional. Considerando o público para o qual o livro escolar foi produzido, pudemos acompanhar como o saber proposto para eles se alterou no decorrer do processo de transformações sociais decorrentes da urbanização, imigração e com o estabelecimento de novas relações com a introdução da mão-de-obra livre. Nesse sentido, foram verificadas as mudanças que ocorreram na instituição escolar ainda em construção, sem marcos definidos, onde se alternavam discursos e projetos legislativos, veiculando uma educação para todos, obrigatória e gratuita, e uma prática elitista, como provaram vários estudos e os dados estatísticos da época. No processo de constituição do ensino público, foram considerados os confrontos oriundos da laicização da educação, as imbricações entre o saber da escola elementar e da secundária, além das questões existentes entre escola pública e privada. O mundo editorial faz parte da problemática do segundo capítulo, desvendando suas relações com o poder político. A preocupação foi questionar as razões aparentemente ambíguas do Estado, que exerceu uma constante vigilância sobre o material, mas que sempre concedeu e favoreceu sua produção por empresários particulares. Nesse contexto o livro didático foi abordado também como mercadoria, como objeto da indústria cultural ligada a interesses econômicos particulares, que aperfeiçoaram técnicas de fabricação, difusão e comercialização.
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A segunda parte do trabalho corresponde à investigação do processo da constituição do saber escolar pela obra didática, tendo optado pela disciplina de História para desvendar esse processo. Autores de História Sagrada, Geral e do Brasil são os principais protagonistas dessa parte do trabalho na qual o objetivo era entender o trabalho de criação de um texto didático. Preocupou-me, inicialmente, a relação com os programas curriculares e como tais propostas foram transpostas para a obra escolar. Foram situados autores e programas articulados ao lugar ou aos lugares, onde era produzido o chamado saber erudito. Esses dados se tornaram relevantes ao acompanhar como autores de História fizeram interpretações desses programas, ao reelaborarem temas e conceitos baseados nos mesmos conteúdos propostos e, em princípio, todos voltados para a configuração de uma identidade nacional para as gerações em formação. A terceira parte aborda as questões que envolveram a utilização da literatura didática pelos professores e alunos. Foram apresentadas algumas questões sobre a formação dos professores e a precariedade de instituições criadas para tal fim, buscando conhecer o papel que o livro didático desempenhou na construção do saber dos mestres das escolas primárias e lentes dos cursos secundários. Foram relacionadas as concepções oficiais de livro didático às formas de consumo de que foi objeto e preocupei-me e m identificar como os autores estabeleceram “diálogos” com os professores no sentido de direcionar os métodos de leitura desse material pedagógico. Em seguida, foi realizada outra leitura dos livros didáticos, analisando o discurso pedagógico que eles portam, incluindo ilustrações e exercícios, para identificar as formas pelas quais alunos e professores liam e usavam o livro didático na sala de aula. Empreendemos o resgate das concepções de aprendizagem com o objetivo de averiguar o papel que o livro didático exerceu na constituição do saber escolar em suas articulações com as formas de transmissão tradicionais da sociedade da época. Este capítulo foi permeado pelos problemas que envolveram a constituição de uma sociedade letrada, tendo como ponto de referência a importância que a escrita e a leitura tendiam a desempenhar na sociedade do século XIX e início do XX, quando os meios de comunicação de massa atuais não estavam disponíveis. 0 1 9 1 0 1 8 1 –
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