Ciência e Dialé tica em Aristóteles
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Oswaldo Porchat Pereira
Ciência e Dia l é tica em Arist óteles
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Dados Internacionais de Cataloga ção na Publicação (CIP) (Câmara Brasilei ra do Livro, SP , Brasil) Pereira, Oswaldo Porchat Ciência e dialética em Aristóteles / Oswaldo Porchat Pereira – São Paulo: Editora UNESP, 2001. (Coleção Biblioteca de Filosofia)
Bibliografia. ISBN 85-7139-340-0 1. Aristóteles 2. Ciência 3. Dialética I. Título
01-0853
CDD-185
Índice para cat álogo sistemático: 1. Aristóteles: Obras filos óficas 185
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Apresentação da Coleção Biblioteca de Filosofia
No correr dosúltimos vinte anos, vimos crescer no Brasil a pro dução de trabalhos emfilosofia, bem como o interesse – de natureza profissional ou não – despertado pela filosofia em um novoúpblico leitor. Do lado universit ário, esse crescimento decorreu, sem úvida, d da expansão dos cursos de p ós-graduação em filosofia, provocando pesquisas srcinais e rigorosas nos mais diversos campos sófilo ficos. No entanto, emsua maiorparte esses tra balhos permanecemignorados ou são de difícil acesso, poisãso teses acad êmicas cujos exemplares ficamà disposição apenas nas bibliotecas universit árias, mesmo porquea maioria deseus autores são jovens e ã no são procurados pelo mercado editorial. Disso resulta que bons trabalhos acabam sendo do conhecimento de poucos.Do lado dos leitores universitários, aumentou a procura desses trabalhos porque constituem um acervo bibliográfico nacional precioso para o prosseguimento das pesquisas acadêmicas. Do lado dos leitoresãno-especialistas, a demanda por textos de filosofia tamb ém cresceu, possivelmente ocasionada pelas dificuldades práticas e teóricas do tempo presente, que vive a crise dos projetos de emancipa ção, da racionalidade moderna e dos valo5
res éticos e políticos, fazendo surgir o interesse renovado pelos frutos da reflexão filosófica. Bib liote ca d e Filoso fia pretende, na medida do poss ível, responder tantoà necessidade de dar a conhecer a produ ção universitária em filosofia como ao interesse dos leitores pelas quest ões filosóficas. Por isso, as publica resultados de pesquições se destinam a divulgar os sas de jovens estudiosos, mas tamb ém trabalhos que, entre os especialistas, ã so hoje clássicos da filosofia no Brasil e que, escrito s como teses, jamais haviam sido editados. Esta coleção, publicando trabalhos dos mais jovens e dos mais velhos, busca dar visibilidade ao que Antonio Candido (referindo-se à literatura brasileira) chama de “um sistema de obras ”, capaz de suscitar debate, constituir refer ência bibliogr áfica nacional para os pesquisadores e despertar novas questões com que vá alimentando uma tradição filosófica no Brasil, al ém de ampliar, com outros leitores, o interesse pela filosofia esuas enigmáticas questões. Que, afinal, são as de todos, pois, como escr eveu Merleau-Ponty, oófil sofo é simplesmente aquele que desperta e fala, e que, para isso, precisa ser um pouco mais e um pouco menos humano.
6
para Ieda, Patr í cia, Ana e Julia
7
Sum ário
Apresentação Prefácio
15
21
Introdução
25
I O saber científico
35
1 A noção de ciência 3 5 1.1 A ciência, a causa e o necess ário 3 5 1.2 A ciência e a categoria da rela ção 4 4 1.3 A ciência e a alma 47 1.4 Os outros usos do termo “ciência” 5 2 2 A ciência que se tem 5 4 2.1 A noção de ciência, a opini ão comum e a realidade cient ífica 5 4 2.2 As coisas celestes e aência ci humana 5 7 2.3 O paradigma matem ático 59 2.4 Aristóteles e a concep ção platônica de ciência 6 4 9
3 Ciência e silogismo demonstrativo67 3.1 A demonstra ção ou silogismo cient ífico 67 3.2 O silogismo e as matem áticas 7 0 3.3 O silogismo cient ífico e o conhecimento do“que” 7 4 3.4 Das condi ções de possibilidade da demonstra ção 7 6
II O saber anterior
79
1 As premissas da demonstra ção 79 1.1 Natureza das premissas cient íficas 79 1.2 Justifica ção de suas notas caracter ísticas 81 1.3 O conhecimento dos princ ípios, outra forma de êcincia 8 1 2 Ciência e verdade 8 3 83 2.1 O ser e o verdadeiro, no pensamento e nas coisas 2.2 A inteligência e as coisas simples 87
2.3 A verdade, fun ção da razão humana 88 2.4 A ciência, sempre verdadeira 8 9 3 O “que” e o porquê 9 1 3.1 As premissas, como causas 91 3.2 Silogismos do“que” e silogismos do porqu ê 93 3.3 Aratio cognoscendi e a ratioessend i 97 3.4 As ciências do“que” 9 8 4 Do que se conhece mais e antes1 00 4.1 Anterioridade e conhecimentoépr vio 1 0 0 4.2 Maior cognoscibilidade das premissas 101 4.3 A aporia do conhecimento absoluto1 04 4.4 A noção de anterioridade 10 5 4.5 Compara ção entreMetaf ísica e Categorias , 12 108 4.6 A anterioridade segundo a êess ncia e a natureza 1 11 4.7 O caminho humano do conhecimento: investi gação e ciência 5 Os indemonstr áveis 125 5.1 A noção de princípio 1 2 5 5.2 A indemonstrabilidade dos princ ípios 1 26 10
117
5.3 Um falso dilema: regressão ao infinito ou demonstra ção hipotética 1 2 8 5.4 A teoria da demonstra ção circular 133
III Do demonstrado ao indemonstrável
13 7
1 O “por si” e o acidente 1 3 8 1.1 As múltiplas acepções de “por si” e de acidente 1 3 8 1.2 O“por si” e a essência; opr óprio
143
1.3 O “por si”, o acidente e a ci ência 1 4 6 1.4 O necess ário que a ci ência não conhece 1 48 2 A “catolicidade” da ciência 1 5 2 2.1 O 1 5 2 2.2 O universal e aêci ncia 15 3 2.3 Universalidadee sujeito primeiro 1 5 4 2.4 Acepções diferentes de“universal” 1 5 6 2.5 Objeções e respostas 161 2.6 Superioridadeda demonstração universal 164 2.7 O universalcientífico e a percep ção sensível 1 6 9 3 A falsa“catolicidade” 1 7 2 3.1 Um primeiro errocontra a universalidade 1 7 2 3.2 O segundo erro 1 7 3 3.3 O terceiro erro 1 7 5 3.4 Verdadeira ci ência e saber aparente177 4 O freqüente 178 4.1 Pode haverciência dofreq üente ? 178 4.2 O acidente, ofreq üente e a matéria 181 4.3 Duas acepções de“possível” 1 8 2 4.4 A necessidade hipotética 18 5 4.5 Ofreq üente e o devir cíclico 1 86 4.6 Ofreq üente , objeto de ci ência 187 4.7 O que “no mais das vezes” ocorre e o que“muitas vezes” acontece 1 8 9
11
5 Da necessidade, nas premissas da ci 192 ência 5.1 Ainda o “por si” e o necessário 1 9 2 5.2 Prova-se anatureza necess ária das premissas 193 5.3 Necessidadeontológica e necessidade do ju ízo 1 9 5 196
5.4 Sobre amultiplicidade de causas
6 Da indemonstrabilidade dos princ ípios 19 8 6.1 Proposições primeiras e cadeias de atribui ções 19 8 6.2 Do caráter finito das cadeias: primeira prova “lógica” 2 0 0 6.3 Segundaprova“lógica” 2 03 6.4 A prova analítica 20 5 6.5 A existência dos princ ípios e a análise da demonstra ção 20 7 6.6 Finidadeda ciência e finidade do real 2 0 8
IV A multiplicação do saber
211
1 Os gêneros da demonstra ção 211 1.1 A noção de gênero científico 2 1 1 1.2 A“passagem” proibida 2 1 2 1.3 A“passagem” permitida, uma contradi ção aparente 2 16 1.4 A física matemática e a doutrina da “passagem” 2 1 9 2 Os princípios próprios 22 3 2.1 Gêneros e princípios 2 23 2.2 Teses,hipóteses e defini ções 2 25 2.3 As formasde conhecimentoprévio 2 2 8 2.4 Solução de uma falsa aporia230 3 Os axiomas ou princ ípios comuns 234 3.1 O terceiroelemento da de monstração 2 3 4 3.2 “Comuns” e axiomas, dial ética e ciência do ser 2 3 6 3.3 Os axiomase o silogismo demonstrativo2 4 0 3.4 Os axiomas matem áticos,e a filosofia primeira2 4 4 a matem universal ática 4 A unidade imposs ível do saber 2 50 4.1 Argumentos“lógicos” e argumentos anal íticos 2 5 0 12
4.2 As categorias do ser e os gêneros científicos 2 5 2 4.3 Um paralelo com o platonismo2 5 5 4.4 A dialética, os“comuns” e a sofística 2 5 9 4.5 As“questões científicas” e o “a-científico” 2 6 0 4.6 sobre Novosoargumentos dial éticos: número de princ ípios 2 6 3 5 A divisão das ciências 26 9 5.1 As ciências, as partes da alma e as coisas 269 5.2 Ação, produção e conting ência 2 72 5.3 Os elementos ótericos das ci ências práticas epoi é ticas
273
5.4 O homem, a conting ência e os limites da cientificidade2 7 6
V Definição e demonstra ção
27 9
1 Do que sepergunta e sabe 28 1 1.1 Quatro perguntas que se fazem 281 1.2 A ambig üidade das express ões aristotélicas 283 1.3 Ser em sentido absoluto e ser algo 2 85 1.4 A categoria da ess ência e as ess ências das categorias288 1.5 Perguntar pelo ser, perguntar sobre causa a 291 1.6 Aporias sobre o termo ém dio 2 9 4 1.7 O sentido da discuss ão preambular 297 2 Aporias sobre a defini ção 30 0 2.1 O que se demonstra, o que se define 300 2.2 O silogismo da defini ção 3 0 5 2.3 Definições nominais e conhecimento daüididade q 3 10 3 Demonstração e definições 3 13 3.1 Considera ções preliminares 313 3.2 O silogismo“lógico” do “o que é” 3 1 6 3.3 A busca do“o que é” e o silogismo cient ífico 3 2 0 3.4 A demonstra ção, caminho para a defini ção 325 3.5 Confirma-se e complementa-se a doutrina 329 3.6 As várias espécies de defini ção 3 31 13
3.7 Ciência, conhecimento de ess ências 334 3.8 Termina a exposi ncia 335 ção sobre a doutrina daêci
VI A apreensão dos princípios
337
1 O problema 337 1.1 Recapitula ção 337 1.2 Um conhecimento anterior ao dos princ ípios? 33 9 1.3 Sensação, “experiência” e apreensão dos universais 344 1.4 A indução dos princípios 347 1.5 Indução ou inteligência dos princ ípios? 35 1 2 OsTópicos e a dialética 355 2.1 A dialética e as“ciências filosóficas” 3 5 5 2.2 Caracter ísticas gerais da arte dial ética 359 2.3 Estrutura e conte údo dosTópicos 361 2.4 OsTópicos e a metodologia da defini ção 36 9 2.5 A dialética e a“visão” dos princípios 3 7 0 3 A solução 374 3.1 Um método dialético nos tratados 3 7 4 3.2 A dialética e osAnal íticos
37 8
3.3 Indução e método dialético 3 8 4 3.4 Indução dialética e“visão” dos princípios 3 8 7
Conclusão
39 5
1.1 A “ciência lógica” e o sistema aristot élico 3 9 5 1.2 A doutrina da ci ência e a problem ática do critério 4 0 0
Referências bibliogr áficas
41 1
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Apresentação
Depois de ter lido o pref ácio que Oswaldo Porchat Pereira escreveu para a primeira edição desta sua obra, terminada á mais h de trinta anos mas somente agora publicada, ãonvia qualquer motivo para esta minha apresenta ção. A parte hagiogr áfica, vamos dizer assim, áj estava ali desenvolvida, contando inclusive como nossa longa e profunda amizade se entrela çou com a fabrica ção deste livro. No que respeita a seu conteúdo, obviamente não tenho competência para examin á-lo no seu por menor, pois, embora leitor ass íduo de Aristóteles, não participo do grupo de helenistas capaz de ver novidades numa obra que tem sido lida e repensada por mai s de dois mil anos. Sou apenas consumidor de coment ários especializados. Mas como não queria estar ausente da festa desta publica ção, imaginei que poderia escrever sobre o que este trabalho nos ensinou á lpelos anos 70. Não estaria assim sugerindo uma pista, dentr e muitas, para ajudar o leitor na dura tarefa de digerir este livro? Ne m mesmo isso se justificaria, entretanto, se o próprio Porchat inclu ísse em sua apresentação os tópicos vistos por ele como os mais relevantes de seu trabalho, ele mesmo desbastandocaminho o do leitor . Fiz-lhe ent ão duas sugestões: 1) que trocasse o nome de pref ácio por posf ácio, porquanto estava apresentando um texto á pronto; j 2) que ele mesmo indicasse as linhas que lhe aparecessem as mais interessantes maiseinovadoras. 15
Apresentação
Porchat me olhou muito concentrado e me espondeu: r “Vou considerar muito seriamente esta sua sugest ão”. Somente o fato de lev á-la em contaáj era auspicioso, pois de costume recusa-se a mudar uma írgula v do texto que lhe aparece acabado. Lembra-me que Victor Goldschmidt lhe propusera picar o livro em vários artigos que facilmente poderiamãoent ser publicados em revistas francesas. Obviamente isso nunca aconteceu. Admir o essa capacidade de fechar, caracter ística de suas aulas e de seus escritos, mas às vezes desconfio que nela se escondam resqu ícios de seu dogmatismo. Costumo brincar dizendo que Porchat, de todos ós,né o mais dogmático, com aúnica diferen ça que escreve dogmaticamente para, em seguida, juntar às suas proposi ções o operador“Aparece que”. Dias depois ele me deu resposta a esperada: Se os autores escrevem prefáciosàs edições subseqüentes de uma“obraá jpublicada, por que não posso escrever um pref ácio a um textoáj escrito?”. De minha parte, continuo a pensar que um ápref cio a uma segunda edi ção toma o livro sob novo aspecto, inclusive para dizer, qua ndoé o caso, que nada foi mudado. Obviamente, no que respeita ao con teúdo do texto, depois de muitas gentilezas, acabou me confessan do que ã no havia nada a mudar. Fez-me, porém, uma proposta inesperada: “Se você continua querendo lembrar os aspectos relevanteslivro do para nossa discussão daqueles anos, posso eu mesmo escrever-lhe um roteiro facilitando sua tarefa. Posso resumir a discuss ão que tivemos outro dia”. Fiquei encantado com a solu ção e de imediato imaginei a molecagem de introduzir em meu pr óprio texto o roteiro do autor. Praticaria uma boa trai ção. No extraordin ário prefácio escrito para o livro de Flávio Josefo, A guerra dos jud eus, Pierre Vidal-Naquet mostra como esse historiador, embora profundamente judeu, assume aparentemente uma posição pró-romana, pois ó s assim, acreditava ele, seria possível conciliar os interesses de seu povo diante da invencibilidade, naquele momento, da maquinaria das õlegi es de Roma.É nesse sentido que falar numatradição pode ter bom uso, pois em pol ítica nem 16
Ciência e Dial é tica em Ar ist óteles
tudo pode estar claro, sobrando contudo aos traido res a responsabilidade de ter ouãno acertado quando se mete m a pescar em águas turvas. Não seria o caso de imit á-lo? Se inicialmente traio a confian ça de Porchat, que, depois do susto, por ém, entrou nabrincadeira, não é porque ele deve ser oprimeiro a indicar os pontos relevantes de uma obra que deixou rolar anos na gaveta? Mas nessa boa ção,trai antes de tudo o queaparece é o próprio Porchat, do qualãno poderia fazer melhor retrato se n ão me ocultasse atr ás de um texto, que ele somente daria para unspoucos amigos. Eis o texto e seu autor. Ciência e d ial é tica em A rist óteles
• Uma análise longa e exaustiva da estrutura e conte údo dosSegundos Anal í ticos.
• Estudo aprofundado da çã noo aristotélica deepist é m e, fazendo-nos remontar a seus elementos e a suas condi ções de possibilidade. Mostrando como, ao contr ário do que por muito tempo se disse, Aristóteles valorizou de modo todo espec ial o saber matem ático, que tomou como paradigma em suaálise an da cientificidade. ãoSas matemáticas que revelam a Arist epist é m e. óteles a natureza da • Ciência, saber demonstrativo. A natureza dos silogismos da ên-ci cia. A natureza das premissas cient íficas. A noção de princípio e a indemonstrabilidade dos princ ípios. As noções de “por si” e de “universal”, de “freqüente”(h ôs ep ìt ò pol ý), de necessário”. m et ábasis (passagem • A noção de gênero científico e o problema da de um gênero a outro). A doutrina da m et ábasis e a naturezaparticular da ífsica matemática. A quest ão da divisão das ciências. • Todas essas questões são estudadas nos quatros primeiros cap ítulos, mostrando-se como se inter -relacionam e mutuamente se explicam. Como compõem uma doutrina coerente da ci ência e se concatenam entre si de modo rig oroso. O que áhde srcinal nesse estudo não são os tópicos abordados, mas precisamente a reconstrução da estrutura da teoria aristot élica da ciência e sua“lógica” 17
Apresentação
interna, tal como ela se desenvolve no livro ISdos egun d os Ana í lticos. Contra os estudos que preferiram apontar pretensas ü ambig idades, aporias e hesita ções na doutrina aristot élica da ciência. • O cap.5é uma análise do livro II dessa obra, tem por conte údo a importante no ção de defini ção e sua relação com o saber demonstrativo. Mostra-se como o livroéIIcomplemento indispens ável do primeiro, como a teoria da defini ção, que ele dif ícil e laboriosamente desenvolve nos seus dez primeiros capítulos, é um estudo aprofundado da tem q ididade no quadro do ática da ess ência e da ü conhecimento epist êmico. Aqui, por certo, um segundo ponto original da tese, uma vez que os estudiosos da problem ática da ciência aristotélica se tinham antes preocupado com real çar as inegáveis dificuldades do texto, sem lograr refazer os passos “lógicos” de sua estrutura Sedos gun ção e sem apreender a unidade profunda dos Anal í ticos. • O cap. 6, que trata da apreens ão dos princ ípios, e a Conclus ão constituem a parte crucial da tese e nt co êm sua contribui ção mais importante para a compreens ão da filosofia aristot élica. Estuda-se aqui a relação entre a teoria analítica da ciência e a dialética aristotélica, a que o fil ósofo consagra seus Tópicos , por muito tempo a parte menos estudada do Órganon . Sobre o pano de fundo da S egun d os Ana í lticos , o seuúltimo e ãto teoria da ci ência exposta nos discutido capítulo (An al. Post. II,19 ), iluminado pela compara ção com osTópicos e outras passagens sobre a édial tica,é objeto de uma nova interpreta ção.
Mostra-se a complementaridade entreDial a é tica e a Anal í tica . Como a primeira se constitui como proped êuticaà ciência, pratica um método preliminar de argumenta ção contraditória e crítica, que não se constrói sobre ave rdad e, mas se move no terreno daopinião e laboriosamente prepara o terreno para a apreensão dos princípios das ciências, princípios pelos quais as ci ências principiam. Trata-se, na dialética, da etapa ascendente do processo de conhecimen to, de natureza indutiva, indo do particular ao universal, do é mais que conhecido 18
Ciência e Dial é tica em Ar ist óteles
para nós e está mais próximo à sensação e à observação ao que delas está mais distanciado, ao que em si mesmo é mais cognoscível. Pela simplicidade de seus objetos, as matem áticas dispensavam a argumentação dialética. Mas, para que algo mais ou menos aproximado à cientificidade matem ática se alcance nos outros dom ínios, o processo de investigação dialética se faz imprescind ível, ele é chamado a desempenhar uma função tanto mais importante quanto mais complexo o objeto investigado, quanto maior a dist ância entre nosso“conhecimento” comum das coisas e a realidade delas em si mesmas, quanto maior o risco de nos enredarmos nas artimanh as dol ógos .
• O esforço todo da dialética – ela cumpre tamb ém a função do que hoje chamamos de p “pesquisa cient ífica” – é precisamente o de ermitir que a maior cognoscibil idade segundo a natureza e a êess ncia se transforme numa cognoscibilidade tamb é m para n ós , vencendo a“espontaneidade do estadode servidão do espírito humano”. A dialética não engendra a intui ção dos princípios, ela a torna possível. A intuição delesé o “ponto de inflex ão em que se consuma a inversão crucial do processo de conhecimento ”, quando termina a etapa ascendente, investigativa, prospectiva e heur ística e pode, então, ter começo a etapa descendente, demonstrativa e dedutiva, em que a ciência exibe sua estrutura l que reproduz a estruógica turação causal pela qual o real mesmo se articula. • A elucidação das relações entre teoria do conhecimento cient ífico e a dialética permite que se lance uma luz diferente sobre os tratados vários que comp õem o co rpu s a ristotel icum. Eles não se apresentam como cadeias silog ísticas dedutivas, o que neles Arist óteles habitualmente nos expõe são “os meandros de sua investigação (dialética) em marcha, o lento tatear do trabalho preliminar de pesquisa”, os argumentos deávria natureza, mais ou menos conclusivos, por vezes entre si contradit órios, de que lançou mão para estabelecer seus princ o como um ípios e premissas. Mostra-se ãent grande número de estudiosos e comentadores, porque ão compren enderam a complementaridade entre dial ética e ciência, se vêem 19
Apresentação
obrigados a postular oposi ções desnecess árias entre a teoria daênci cia e a prática da ciência em Aristóteles. Aqui também se torna óbvio quão impertinente e err ôneo é querer traduzir emlinguagem formal (moderna ou mesmo silog ística) a seqüência dos argumentos aristotélicos nos diferentes tratados: a investiga ção dialética, m se serve aqui e ali de racioc mesmo se elatamb é ínios dedutivos, é demasiado complexa e rica, permite-se toda sorte de expedientes, usa livremente de argumentos entre si contradit órios, explora opiniões, avança induções de variada natureza, ela é tudomenos uma seqüência dedutiva que pode ser“formalizada”. Depois desse roteiro, publicadoçgra as a uma boa trai ção, só cabe a palavra direta do pr óprio Porchat. São Paulo, janeiro de 2001 Jos é Arthu r Giann otti
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Prefácio
Este livro foi minha tese de doutoramento no Departam ento de Filosofia naUSP em 1967. Por v árias razões não foi possível publicála naquelaépoca. Posteriormente, fui adiando a publica ção, por falta de tempo e de disposi ção para uma revis ão completa do texto. Felizmente para mim, há alguns poucos anos, meu amigo e ex-aluno Ricardo Terra, então chefe do Departamento de Filosofia, tom ou a iniciativa de fazer digitar o texto inteiro e presenteou-me comdiso quete respectivo. Isso tornou finalmente poss ível a revisão. As modificações que fiz se restringiram, no entanto , a algumas pequenas passagens e a detalhes menores. Porque me pareceuãoque havia n por que alterar os pontos fundamentais de minhaálise an e interpreta ção em face da bibliografia mais recente sobre a problem ática da ciência e da dialética em Aristóteles, tomei a decis ão de manter quase intacta a redação primitiva. E, por falta de ânimo para tanto, nem mesmo procedià atualização da bibliografiaàeindicação de meus acordos ou desacordoscom os trabalhos mais recentes. Entend i que tais modificações não trariam nenhum acr éscimo substancial. Por isso mesmo, quer parecer-me que se justifica a publi cação do livro na sua vers ão srcinal. Mas cabe aos eventuais leitores, ãona mim, o julgamento definitivo sobre a quest ão. MarilenaChaui propôs-me gentilmente que o livro aparecesse na excelente cole ção Bib lioteca d e Filosofia , que ela dirige. Aceitei com pra21
Prefácio
zer o seu convite e lhe sou muito agradecido. Trinta êseanos tr depois de ser escrita, minha tese é, finalmente, publicada. Quero, nesta ocasi ão, lembrar a mem ória de meus saudosos mestres Livio Teixeira eVictor Goldschmidt . Fui aluno deLivio Teixeira em 1956, naUSP,quando eu completava meu bacharelad o em Letras Clássicas. Desde essa ocasi ão, passei a admirar seu rigor e compet ência como historiador da filosofia moderna. Suas esquisas p sobre o pensamento de Descartes e Espinosa se tornaram marcos importantes da bibliografia brasileira nessa área. Mas admir áveis também eram sua honestidade intelectual e sua extraordin ária modéstia. Embora tenha sido seu aluno somente naquele ano, suaflu in ência foi decisiva para a definição de meu campo de trabalho. Foi Livio Teixeira quem primeiro me incentivou a orientar para o estudo da filosofia grega. Apoiou minha decis ão de estudar -me filosofia na Fran ça e de trabalhar com Victor Goldschmidt, cuja obra admirava e utilizava emseus cursossobre Platão. Quando voltei mais tarde ao Brasil, convidou-me para ser seu assistente no Departamento de Filosofia USP da e encarregou-me dos cursos sobre o pensamento antigo. Acompanhou sempreinterescom se e carinho meus trabalhos. A Victor Goldschmidt, com quem estudei em Rennes e Paris durante quatro anos, devo minha forma ção de historiador da filosofia. Ensinou-me a laboriosa arte da historiografia, a metodologia rigor osa na leitura dos ó filsofos e de suas obras. Foi ele que me orientou explicitamente para o estudo da rela ção entre dialética e conhecimento em Aristóteles. Se eu tiver acaso conseguido algum resultado érios e mais significativo nesta minh a pesquisa, eu o devo ao ém todo goldschmidteano. Goldschmidt me propo rcionou tamb ém o exemplo not ável da dedicação de um mestre a seus estudantes. Tive a oportunidade de revê-lo posteriormente algumas vezes, porãocasi o de outras viagens at morte prematura. à França. Uma grande amizade uniu-nos é sua Quero tamb ém lembrar aqui o nome do Prof. George Henri Aubreton. Foi meuprofessor no curso de Letras Clássicas, incentivou-me muito ao estudo da l e da literatura grega. Se pude fazer estudos íngua 22
Ciência e Dial é tica em Arist óteles
na França, foi porque Aubreton para á me l enviou, tendo conseguido para mim uma bolsa do governo franc ês. Aceitou de boa vontade que eu mudasse deárea e substitu ísse aos estudos de grego o da filosofia antiga. Continuou sempre a encorajar -me. Guardo tamb ém dele uma grata recorda ção. O velho mestre Alexandre Correiadeu-melivreacessoà sua excelente biblioteca de textos gregos e latinos,éna poca em que eu preparava meu doutoramento. Durante quase um ano, üentei freq diariamente sua casa e pude ter acesso a fontes queãno poderia consultar naquele tempo em outro lugar . A importância disso para minha pesquisa foi muito grande.É de toda justiça que eu o lembre aqui. Meu amigo Jos é Arthur Giannotti desempenh ou um papel muito importante em meus estudos. Foi ele que me convenceu a ir primeir o para Rennes e n ão para Paris, a fim deque eu pudesse estudar com Victor Goldschmidt. Foi ele que me levou à casa do grande historiador, de quem sefizera amigo e aquem me recomendara. Nesse mesmo dia se decidiu meu destino intelectual. Goldschmidt aceitou a sugestão, que Giannotti na hora lhe fez, de tomar -me sob sua orienta ção. E o mestre persuadiu-me adesistir daóps-graduação em língua e literatura grega e a dedicar-me por inteir o, desde aquele mesmo momento, unicamenteà filosofia. Tenho, pois, raz ões de sobra para ser muito grato a Giannotti. Tenhoprivil o égio de usufruir at é hoje de sua amizade leale carinhosa, embora ele nunca menha te perdoado po r eu ter mais tarde abandonado a filosofia grega cl ássica. A Ricardo Terra, como já indiquei, devo a possibilidade que tive de retomar minha tese para revis ão e publicação. E a insist ência amiga para que eu ofizesse. Sem sua iniciativa e seu encorajamento, o texto ficaria in édito, pois, em verdade, áeutinha j desistido de public á-lo. Mais não é precisodizer. A digitação do texto, com centenas de palavras e çõ cita es em grego, foi uma fa çanha de Marisa Lopes. Ela a isso consagrou um ano inteiro, por puro amor a Arist óteles. Não sei comoagradecer-lhe. Como também não sei como agradecer a Roberto Bolzani, diletoaluno ex- e 23
Prefácio
bom amigo, que supervisionou toda a digitação das palavras gregas e se encarregou incansavelmente de adaptar à nova paginação do livro as dezenas de refer ências cruzadas contidas nas notas, que remetem a passagens anteriores doópr prio texto. Porque revi todas essas efer rências uma a uma, pude dar-me conta de ãqu o extraordinário foi o seu trabalho, levado a cabo com grande propriedade. The last, but n ot the le ast , quero agradece r a Ieda, minha mulher. A seu continuado apoio, dedica ção, amor e carinho eu devo tudo quanto possa ter feito de bom nestes últimos quarenta anos. São Paulo, 8 de setembro de 2000 Osw ald o Porchat Pereira
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Introdução
Tanto já se disse e escreveu sobre aência ci em Arist óteles que poderíamos recear ser acusados de temeridade por termossagrado con todo um longo trabalho a uma tem ática sobre a qual amplamente dissertam quantas obras se dedicam a uma exposi ção geral do pensamento aristotélico. E ninguém desconhece que a intensa renova ção dos estudos aristot élicos nasúltimas décadas, em todo o mundo, tem-nos brindado com obras de inegável valor, nas quais se abordam, com profundidade, problemas direta ou indiretamente relacionadosdoucom a trina aristot élica da ciência. Porque se poderia, por isso mesmo, estranhar que tenhamos a pretens a quest ão de trazer algo de novo sobre ão e que nela insistamos ãot demoradamente, compreender -se-á que julguemos justificada uma sucinta explana ção sobre o empreendimento a que nos lan çamos. Nosso intuito inicial era o de redigir uma pesquisa sobre ética a dial de Aristóteles, conforme nossugerira V. Goldschmidt, qua ndo terminamos, em Rennes, nossa licen ça de filosofia. Mostrara-nos o ilustre historiador como se fazia necess ário um estudo aprofundado dos Tópicos, revalorizando a dial ética aristot élica e redescobrindo a significa ção 25
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que o filósofo lhe conferira e que a tradi ção historiográfica, com rara exceção, sistematicamente desprezara. Com efeito, coubera a Le Blond, em 1939, com sua bela obra sobre ógica a l e o método científico de Arist óteles,1 despertar a aten ção para a import ância da dial ética dentro da metodologia aristot élica. E, anos mais tarde, E. Weil insistira2 na urgência com que se impunharevis a ão de uma concep ção tradicionalmente errônea das relações entre a tópica e a analítica. 3 Aubenque não publicara ainda a sua obra, na qual, estu dando o problema aristotélico do ser, ocupar-se-ia longamente em comparar a dialética e a ontologia. Tudo á indicava, j por ém, que a dial ética aristot élica viria a atrair, proximamente, a atenção dos especialistas, conforme se evidenciaria com a realização, em 1963, do terceiro Symposium Aristotelicum , dedicado, precipuamente, ao estudoTdos picos , e com ó 4 a recente publica O curso de nossas pesquição da obra de De Pater. sas desviou-nos, entretanto, da inten ção srcinal; de fato, empreendendo a reda ção de um primeiro cap ítulo para a obra que nos propuséramos escrever, nele procuramos examinar a concep ção aristotélica da ciência, porque se nos afigurava útil e, mesmo, imprescind ível determinar,com exatid ão, um conceito ao qual, precisamen te, ter íamos sempre de contrapo r, em expondo a doutrin a do filósofo, a noção de dialética. Aconteceu, por ém, que esse estudo preliminar adquiriu dia p rio ri fixado. E o mensões bem maiores que as que lheínhamos t surgimento de dificuldades de interpreta ção concernentesà própria noção de ciência que n ão tínhamos previsto, a necessidade, em que nos vimos, de resolver questões que se nos afiguraram obscuras, assim como a de recusar solu ções que, para elas, se haviam formulado e que nos pareceram insatisfat órias ou francamente inaceit áveis, levaramnos, finalmente, a querer con substanciar , neste trabalho, osesultar dos a que julgamos ter chegado, no que respeita a uma tal problem á-
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Le Blond,Logique et m é thode chez Aristote , 1939. Weil, “La place de la logique dans la pens ée aristotélicienne”, 1951. Aubenque, Le probl ème de l ’être chez Arist ote, 1962. De Pater, Les Topiques d ’Aristote et la d ialectique plat onicienn e , 1965.
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tica, oferecendo-os agora à crítica construtiva dos especialistas. Seja-nos lícito dizer que a aceitaremos com humildade, por sermos o primeiro a reconhecer nossas falhas e lacunas. Planejáramos escrever um livro sobre a dial ética de Aristóteles, cujo primeiro cap ci Acabamos, no entanto, ítulo versaria sobre aência. escrevendo umlivro sobre a ciência, cujoúltimo capítulo trata, mais particularmente, da dial ética. Não se creia, por ém, que nos ocupamos, aqui, de toda a doutrina aristot élica da ciência. Ao contrário, muitas são as questões que deixamos propositalmente de lado ou que rapidamente tratamos, como, por exemplo, o importante problema do sistema aristot élico das ciências, que não abordamos sen ão na exata medida em que isso pode contribuir para melhor esclarecerçã ao no 5 de ciência, que precipuamente nos importava. Por isso mesmo, concentramos particularmente nossa çã aten o sobre os Segun dos Ana l í ticos, cujo objeto se sabe ser a defini ção e a análise do conhecimento cient ífico. Trata-se de um texto, por certo,ícil, dif que não entrega seus segredos a uma primeira leitura, o que explicar á, talvez, que tenha sido, até hoje, ã t o mal compreendido. E, entretanto, se se lhe busca desvendar a ordem interna que o estrutura, mediante uma leitura repetida , atenta e rigorosa, descobre-se, em verdade, como cremos ê-lotmostrado, um texto ordenado e coerente, que ão vem n macular nenhuma contradição interna, cumprindo adequadamente o objetivo que o filósofo lhe traçou e oferecendo-nos uma doutrina unit ária do saber científico. Ao contrário de A. Mansion, nele n ão encontramos os sinais de uma composi ção atormentada nem a manifesta ção de hesitações de doutrina;6 por outro lado, os doislivros que comp õem o tratado pareceram-nos harmonizar -se plenamente, sem qu e pud éssemos II, mais do que um descobrir, na doutrina da defini ção exposta no livro complemento do estudo da demonstra ção que o livroI desenvolve, que 7
a este não se contrapõe nem o corrige, como se tem pretendido. No 5 Cf.,adiante, cap.IV, § 5: “A divisão das ciências”. 6 Cf.A. Mansion,Introduction àla phy sique aristo é t licienne , 1946, p.12-3. 7 Conforme, adiante, detalhadamenteveremos, no cap.V.
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artigo áj referido,8 Weil julgava desej ável, para uma compreensão correta das rela ções entre a dial ética e a anal ítica, uma reinterpreta ção dos Anal í ticos : ficaremos satisfeitos se tivermos podido contribuir para que se cumpra, ao menos em parte, um tal voto. Mas, se osSegund os Ana l íticos foram o objeto primeiro de nosso esforço de interpretação, ver-se-á que, muito ao invés de a eles nos restringirmos, fomos buscar, naobra inteira do fil ósofo, os elementos que pudessem vir a confirmar ou a co ntra d izer a doutrina que, naquele tratado, encontramos explicitada. O que significa deixar manifesto que, no que respeita à questão controversa da unidade e coerência ou incoerência e contradição da doutrina aristot élica da ciência, não partimosde nenhumpressuposto nem formu lamos hipóteses iniciais que devesse verificar nossa pesquisa; moveu-nos , ãtosomente, a inten ção de deixar-nos guiar pelospróprios textos do fil ósofo, buscando reapreender seu movimento próprio e refazer os caminhos do pensamento que neles se exprimira. No que se refere às questões de cronologia e data ção das obras de Aristóteles, seguindo o exemplo de V. Goldschmidt, em sua obra consagrada ao estudo da estrutura e m étodo dialético nos diálogos de Platão,9 nós as ignoramos resolutamen te, recusando-no s a dissolver , no tempo da êgnese, as dificuldades da doutrina. Como afirmou, com razão, Aubenque:“na ausência de crit érios externos, um m étodo cronológico fundado sobre aincompatibilidade dos textos e cuja fecundidade se ap óia, assim, sobre os insucessos da compreens ão, corre, a cada instante, o risco de preferir às razões de compreender os pretex10 tos de não compreender ”. Não nos pareceu correto, com efeito, diante de contradi ções aparentes queãno buscamos dissi mular e de dificuldades de interpreta ção que não minimizamos, postular, como meio eficaz para san á-las, uma evolu ção qualquer da doutrina aristot élica, atribuindo-lhe momentosdiferentes aos quais faríamoscorresponde r 8 Cf., acima, n.2. 9 Goldschmidt, Les dia logues de Platon , 19632, p.X. 10 Cf.Aubenque,Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.12.
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os textos que pareciam contradizer-se.Felizmente, aliás, a moda “jaegeriana” de interpreta ção vemsendopouco a pouco aban donada, n ão tendo contribu ído pouco para seu insucesso o desacordo generalizado, entre seus seguidores, quanto aosécrit rios de datação das obras do filósofo e desuas partes, assim como no que concerne pretensos aos resultados que o m étodo genético deveria ter propiciado para a compreensão do pensamento de Arist óteles. Recortados os textos de diferentes maneiras, ao sabor dos caprichosimagina da ção dos intérpretes, não mais se conseguiu do que converter toda a obra num imenso mosaico de textos justapostos, que nenhuma medita ção filosófica poderia mais vivificar. Assim, A. Mansion descobria, Segundos nos Anal í ticos , “restos de reda ções de datas diversas, representado o pensamento do autor em fases de elabora ção também diversas, eadaptados de maneira por vezes bastante insuficien te ao plano de conjunto no 11 qual ele os fez entrar ”. Mas não privilegiamos, tamb ém, com açodamento, aquelas “contradições” nem nos apressamos a denunciar incoer ências; renunciamos, desse modo, ao que se nos afig urava, antes, um expediente de simplificação e de facilidade. ãNo quisemos aco imar, sem mais, de inconseqüente, o pensador que, a justo ítulo, t se orgulhava de ter sido o primeiro a estudarétcnica e metodicamente a arte deraciocinar.12 Tampouco julgamos válido abandonar o plano de an álise“lógica” do sistema filosófico, para ir buscar, num plano psicol ógico, como propõe Le Blond,“na falta da unidadeógica, l a unidade viva desse sistema”.13 Antes de apontar as“incongruências” do aristotelismo, em geral, e da concep ção aristotélica da ciência, em particu lar, antes de falar em contradi ção e em ambig üidades e de para elas forjar explica ções imaginosas, quisemos esfor çar-nos por reconstituir a ordem da s razões e os mecanismosógicos l própriosà obra. Não que buscássemos a coerência a qualquer pre ço ou que nostenhamos aventurado, recot licienne , 1946, p.13 11 Cf.A. Mansion,Introduction àla phy sique aristo é b 12 Cf. Ref. Sof. 34, 183b16 seg., part. 184 1-3. thode ..., 1939, p.XX. 13 Cf. Le Blond, Logique et m é
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lhendo elementos tirado s de todos os tratados doófil sofo, a uma ísntese coerente, mas artificial, desses dados, tentando “uma concilia ção 14 do inconciliável”. Um método que se pretenda rigorosoãno se alimenta de preconceitos nem sabe o que vai encontrar: desco bre. Mas procuramos situar-nos, em rela ção ao texto, do ponto de vista do seu próprio autor , encontrando em sua mesma obra os elementos que nos permitissem êl -la com a sua leitura, julg á-la a partir de seu mesmo ponto de vista crítico sobre ela, tendo ahumildade necess ária para levar a ésrio o que ele levou a ério, s 15 sabedores de que se ãno mede a coerência de um sistema por uma teoria da contradi ção que se lhe imponha do exterio r. Fiéis ao método que o filósofo preconiza, não nos apressamos a conciliar os textos e somente ap s insistir em percorrer as aporias é que empreendemos trabalharóde resolv ê-las. Entendendo que “as asserções de um sistema não podem ter como causas, ao mesmotempo próximas e adequadas, senão razões, e razões conhecidas do fil ósofo 16 e alegadas por ele ”, tudo fizemos paraãno separar as teses propostas pelo filósofo do movimento depensamento que a elas conduziu e do método que presidiu a esse movimento. Mas, assim fazendo, aconteceu-nos ver as aporias pouco pouco a resolver-see as apar ências de contradição explicar-se, dissipando-a. Aconteceu -nos, tamb ém, descobrir que muitas dificuldades provinham mais da leitura interpree tação com que a tradi ção e os autores gravaram os textos que da ó-pr pria natureza destes, na sua “ingenuidade ”. Tendopreferido a atitude mais humilde do disc ípulo que se disp õe pacientemente a compreender antes de formular qualquerízo ju crítico, temos a pretens ão de ter sido premiados por nossa obstina todo sem ção em apegar-nos a umém 14 Como teme Mansion que aconteça com os que não colocam o problema da cronologia das t licienne , 1946, p.4-5. àla phy sique é obras disse de Arist A. óMansion, óteles. aCf. 15 Como Owens, prop sito doIntroduction método apropriado paraaristo interpretar Aristóteles: “It requires taking seriously what Aristotle himself took seriously ”. Cf. Owens,The Doctrin e of Being in the Aristotelian “Metaphysics ”, 1951, p.11. 16 Goldschmidt, V., “Temps historique et temps logique dans l’interprétation des syst èmes philosophiques ”, inActes du XI ème Congr ès Intern ational d e Philoso phie , v.XII, 1953, p.8.
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preconceitos; com efeito, a doutrina aristot élica da ciência apareceunos, finalmente, contra a opini ão da imensa maioria dos autores acreditados, perfeitamente coerente e provida de ineg ável unidad e , rica na sua complexidade e“moderna” na sua problem ática e em muitas de suas soluções, dessa“modernidade” que freqüentes vezes atribuem aos tempos de hoje os que ignoram a óhist ria dos tempos passados. E ãon tememos, por isso mesmo, dizer o contr ário do que se tem dito e aceito, sempre que nos pareceuisso a ser convidados pelos mesmos textos que líamos, como exig ência desua inteligibilidade. Uma objeção mais séria poderia ser -nos feita: a de termos limitado o nosso estudo aos textos aristot élicos sobre a doutrina daêci ncia, sem que tenhamos tentado estudar como oófil sofo põe em prática essa doutrina, nos seus tratados cient íficos. Ora,é, por certo, nossa convicção a de que tal estudo se imp õe como condi ção absolutamente imprescind ível para que se atinja uma compreensão plena e fecunda dos próprios textos doutrin ários. Mas julgamos justificada a nossa empresa por uma tripla raz pr filósofo conão: primeiramente, porque oóprio sagrou todo um tratado, razoavelment e ordenado e acaba do,à definição e explicita ção de sua concep ção da ciência,autorizand o-nosipso facto a considerá-la, num primeiro momento, em si mesma, com o objeto privilegiado de uma parte de sua obra. Em gundo se lugar,porqueãno nos parece poss ível proceder a um estudo sobre a prática científica, relacionando-a com os textos da teoria, se o mesmo sentido mais imediato destes se nos oculta, sob a facilidade aparente das f dogórmulas máticas banalizadas pela sua repeti ção, cuja significa ção profunda, porém, se busca reviver no emaranhado das controv érsias da interpretação historiogr áfica. Finalmente, teremos a oportunidade de mostrar, neste trabalho, como a oposi ção que o filósofo decididamente estabelece entre a ci ência e a investiga ção e pesquisa dever á obrigar-nos aum mínimo de cuidadosas precau ções, no estudo dos tratados cient íficos, para que uma interpreta ção incorreta do m étodo de exposi ção não nos venha, precisamente, induzir em erro quanto à concepção aristotélica da cientificidade. De qualquer modo, é evidente que nosso estudoãon 31
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tem maior pretens ão que a de contribuir para esclarecer um aspecto determinado do pensamento aristot élico, ainda que ãno se lhe possa negar,à noção de ciência, um papel fundamental na economia inter na do sistema. Resta-nos ainda fazer algumas observa ções de caráter geral. No pla no de nossa exposi que respeita ao ção, foi-nos ele imposto peloó-pr prio desenvolvimento da pesquisa, isto é, pelo nosso esforço de explicitação da mesma doutrina doófil sofo, sem que te nhamos recorrido a uma id simples leitura deixa rá manifesto como éia preliminar. A as questões se vão engendrando espontaneamente, a partir dos textos estudados, de maneira a progressivamente desenhar o esquema em que vêm inserir-se as respostas que exigem e media nte o qual seáhde articular,por consegu inte, tamb ém o mesmo discurso que as estuda. Por outro lado, no que concerne à bibliografia utilizada, ver-se-á que, se são numerosas as cita ções e referências aos autoresàes obras mais importantes da historiografia aristot élica contempor ânea, muitos títulos deixaram de ser mencionados,sobretudo de artigos publicados em revistas especializad as, por ter-nos sido imposs ível o acesso a tais escritos. De qualquer modo, na medida empudemos que informar -nos sobre o seu conte údo,é nossa cren ça a de que sua leituraãonviria afetar os resultados a que chegamos. Mas ativemo-nos sempre e preferencialmente, como se impunha, ao estudo e an álise dos pr ópriostextos do filósofo. Para tanto, servimo17 nos da recente reedi ção doCorpus empreendida por Gigon e, sobre18 tudo, das edi ções críticas de Ross e das que se fizeram na Collection d es Universit é s d e Fran ce . E não precisar íamos dizer quanto nosúfoi til 19 o excelenteInd ex Aristote licus , de Bonitz. 17 Aris totelis Opera ex recensione Immanuelis Bekkeri edidit Academia Regia Borussica, editio altera quam curavitOlof Gigon, Berolini apud W. de Gruyter et Socios, MCMLX. tica e Retórica), seja 18 Seja nacoleção daScriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis (Tópicos, Polí nas excelentes edi ções acompanhadas de textos e coment ários, igualmente da Clarendon Press de OxfordAnal ( íticos, F ísica, Da Alm a, Parva Na turalia e Metaf ísica ). Para todas essas obras, nossas refer ências remetem a essas edi ções, salvo indica ções em contrário. 19 Bonitz, Ind ex Aristotelic us , 19552.
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Se consultamos as melhores tradu ções estrangeiras que estavam a nosso dispor– e com as quais nem sempre concordamos, como á se ver nas inúmeras notas em que as discutimos –, preferimos, no entanto, sempre que nos foi preciso citar os textos, propor a nossaópr pria tradução, na ausência de boas tradu ções em português para a grande maioria das obras de Arist óteles. O que exigiu deóns um não pequeno esforço, dada a inexist ência de uma linguagem filos ófica técnica em nossa ílngua. Procuramos dar às nossas tradu ções o máximo possível de literalidade, temendo a infidelidade ao pensamento do filósofo, vício de que n ão nos parecem livrar – se muitas das tradu ções estrangeiras, dentre as mais reputadas, na medid a em que se permitem a introdução de noções e significa ções totalmente estranhas ao universo espiritual da Grécia antiga e do aristotelis mo, em particular. Nesse sentido, não nos inibiu o temor de inovar e decidid amente inovamos, quando nos pareceu poder, assim, salvaguardar melho r o sentido originário do texto grego. No que se refer eàs citações de autores estrangeiros, adotamos a norma de traduzi-los , sempre que os ácit vamos no corpo de nosso texto, e de manter aíngua l srcinal, ao citá-los nas notas. E somente nestas, tamb ém, seus nomes compareceram. Receamos que se nos censure o elevado úmero n denotas , freqüentes e extensas. Masãn o cremos pud éssemos proceder de outra maneira e confessamos ter dado às nossas notas import ância não menor que ao próprio texto. S ão elas de vária natureza, contendo desde as inevitáveis citações e referências, quest ões filológicas e pequenas explicações complementares,éatlongas explana ções e discuss ões polêmicas, em que se expõe o detalhe das argumenta ções que justificam certas posições que assumimos e cuja presen ça, no corpo do texto, poderia tornar enfadonha e pesada a sua leitura. Defeitos,áali s, que nem sempre teremos conseguido evitar.
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I O saber cient í fico
1 A no
ção de ci ência
1.1 A ciência, a causa e o necessário
“Julgamos conhecer cientificamente (cada coisa, de modo absoluto e ãno, à maneira sof ística, por acidente, quando julgamos conhecer a causa pela qual a coisa é, que elaé a sua causa e que não pode essa coisa serde outra maneira ( ”.1 Tal é a noção famosa de conhecimento cient ífico que osSegund os An alí ticos formulam, quase em seu mesmoício, in 2 e a cuja elucidação e explicitação pode, de certo modo, dizer -se que a totalidadedo tratado se consagra.Noção que comentadores e autores incansavelmente citaram, repetiram e discutiram atrav és dos séculos, tentando, com maior ou menor sucesso, compreend ê-la e explicá-la em todo seu alb 1 Seg. Ana l. I, 2, 71 9-12. 2 Precede-a, com efeito, apenas um capítulo introdutório, que, como logo veremos, trata da existência de conhecimentos pr évios a todo e qualquer aprendizado ou ensinamento dianoético.
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cance e significado.Por ela entendemos, ent ão, que, em sentido absoluto, só há conhecimento cient ífico de uma coisa quando a conhecemos através do nexoque a une a suacausa, ao mesmo tempo que apreendemos sua impossibilidade de ser de outra maneir a, isto é, sua necessidade. Com efeito, “uma vez queé impossível ser de outra maneira aquilo de que áhciência, em sentido absoluto, ser á necessário o queé conhecido segundo a êci ncia demonstrativa ”.3 Causalidade e necessidade, eisí,apor conseguinte, os doistraços fundamentais que caracterizam êancia, ci tal como osSegundos Anal í ticos a concebem. Porque, seãno se dá a presença conjunta de ambos, queé o que permite qualificar um conhecimento como científico,4 será apenas acidental, diz-nos o nosso texto, a pretensa ên- ci cia que se tiver proposto, acidentalà maneira sofística; não que a ausência do conhecimento da causa ou o car áter não-necessário do objeto tornem sofístico o conhecimento que dele se proponha: o procedimento que se denuncia como sof seria,ãto-somente, a preístico tensão de ser ou de fazer -se passar por ência, ci por parte de conhecimento 5 que não possua aquelas qualidades que a definem. Entretanto,é preciso, desdeáj, acrescentar que ã no se estudam nosSegund os An al íticos as noções de causa ou de necessidade. No que concerneà primeira delas, somenteFí asica e a Metaf ísica nos oferece6 rão uma doutrina da causalidade; vários textos,entretanto, nos p ró-
3 Seg. Anal . I, 4, 73a21-23. Cf., tamb ém, 33, 88b31-2:“... a ciênciaé universal e procede por conexões necessárias, e o necess ário não pode ser de outra maneira ”. 4 Não tendo razão, portanto, Le Blond, ao fazer da verdade a caracter ística primeira e mais Logique et m é thode ..., 1939, p.57). Se geral do saber cient ífico, em Arist óteles (cf. Le Blond, a ciência aristot élicaé, como veremos, sempre verdadeira, ocorre, entretant o, que, pelo mesmo fato de partilhar da verdade com outras disposi ções cognitivas da alma humana,ãn o pode definir-se nem caracterizar -se primordialmente por ela. Ref. Sof. 1, 165a21), cujos argumen5 A sofística, de fato, ãno é senão um saber aparente (cf. tos se constroem, sobretudo, em torno do acidenteMet. (cf. E, 2, 1026b15 seg.), istoé, do n freqüente (cf. ibidem, 27-33). tudo, ali o ão-necess ário nem É, antes ás, pela inten ( ), pelo não buscar o saber real, mas apenas a apar êde ncia de conhecer, que çã difere o sofista do fil ósofo (cf.Met. , 2, 1004b22 seg.). 6 Os dois textos fundamentais de Arist óteles sobre a causalidadeãso o livro II daF ísica e o Metaf sica livro A da í , a que se acrescentar ão as importantes indica ções do cap. 1 do livro I do tratado Das partes dos anim ais .
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priosAnal íticos ou em outras obras doófil sofo, vêm sempre confi rmarnos aquela identifica ção do verdadeiro conhecimento cient ífico com 7 a apreens A ausência de uma fundamenão da determina ção causal. tação física ou metaf ísica da noção de causa utilizada pelos Segundos Anal í ticos não nos estorvar á, entretanto, como poderemos observar em
acompanhando a marcha do tratado, a compreens ão formal de como
, ina ciência aristot élica se constitui em conhecimento da causalidade dependentemente da significa ção última que o fil ósofo lhe atribua. E, à medida que o tratado progride e que a defini ção de ciência se aprofunda, muito se explicita, aqui e ali, como veremos, sobre aquela noção, conforme o imp õem as circunst âncias e as necessidades do momento. Lembrar-se-nosá, por exemplo, queá hsempre uma causa, que é idênticaà própria coisa que se investiga ou é distinta dela, e que é o8 mesmo conhecer o queé uma coisa e conhecer a causa de ela ser; esclarecer-se-nosá que, se há várias maneiras de nos interrogarmos sobre as coisas (sobre o fato de que é, sobre o porquê, sobre se a coi9 sa é, sobre o queé ela), a verdadeé que, em todas as pesquisas ou-in dagações que fazemos, o que sempre buscamos é se há um termo m édio () ou causa, ou, ent ão, qualé ele:“pois a causaé o termo médio e, em todas as pesquisas, é o que se investiga ”.10 Sabemos, por outro lado, pela doutrina do livro II Fí da 11 que aMetaf ísica relembra e resica, toma,12 que “as causas se dizem em quatro sentidos ”, como matéria, a a a b 7 Cf. Seg. Ana l. II, 11, 94 20; I, 13, 78 25-6;Fís. I, 1, com., 184 10 seg.;Met. E, 1, 1025 6-7; K, b a 7, 106336-7; A, 1, 98124 seg. Se n ão fazem esses textos men ção expressa da necessidade, mas ã t o-somente da causalidade, na caracteriza ção do conhecimento cient ífico,é que as duas problem áticas são, de fato, insepar áveis. Assim, em Fís. II, 9, esclarece-se o problema da necessidade nos objetosísicos, f em rela ção com os problemas pr ópriosà causalidade física. a 8 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93 4-6. Atente-se, por ém, em quea universalidade da determina ção causal, que esta passagemõpe em relevo, não implica, no aristotelismo, como poderia parecer,um determinismo absoluto , nem confere inteligibilida de plena a todoser,isso gra ças concep o aristot lica de acidente e do acaso (cf. Met. E, cap. 2-3, F e s. II, cap. 4-6). í à çã é b 9 Cf. Seg. Ana l. II, 1, com., 89 23 seg. a 10 Seg. Ana l. II, 2, 906-7. 11 Cf. F ís. II, 3, 194b23 seg. 12 Cf. Met. A, 3, 983a26 seg.; cf., tamb ém, Seg. Ana l. II, 11, 94a21-3.
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como qüididade, como princ ípio do movimento e como fim;é natural, então, que nos ocorra perguntar a qual ou quais desses sentidos respeita a causalidade cient ífica. OsSegund os Ana l íticos ignorar ão a pergunta até um de seusúltimos (e mais difíceis) capítulos, para finalmente responderem que é por13todas aquelas esp écies de causas que provamos nossas conclus ões. Mas é certo que não abordam o fundo do problema e tal omiss a em que a ão se justifica, na mesma medid complexa quest ão das significa ções múltiplas da causa ultrapassa, de muito, o dom ínio da teoria estrita daência, ci a que se at ém o tratado. Também a necessidade de que o objeto cient ífico, em Arist óteles, se reveste, apenas ser á elucidada, nosAnal íticos , de modo suficientemente aprofundado e adequado ao reconhecimento de sua presen ça e função na constitui o de um conhecimento que mere o nome de çasuas científico, sem que, çã entretanto, se perscrutem todas as implicações e sem que se abordem sua significa ção última e sua problem ática física e metaf ísica. Porque a necessidade do objeto cient ífico, negativamente determinada como um é, por certo, uma necessidade de ordem ontol ógica: nenhuma ú dvida pode subsistir a esse respeito, em face do importante texto epistemol ógico em que aÉtica Nico ma qu é ia explicitamente retoma açã noo que osSegund os Anal í ticos propõem de ciência e melhor a esclarece: “Com efeito, todos entendemos que o que conhecemos cientificamente n ão pode ser de outra maneira O ...cientificamente conhec ível, portanto, necessariamenteé”.14 Donde a característica de eternidade, que se ãno dissocia da necessidade ontol ógica:“É eterno, portanto, pois as coisas que ã so necessariamente, em sentido absoluto, s eternas; ão, todas, 15 ora, as coisas eternasão s não-geradas e imperec íveis”. Porque não pode ser de outra maneira, o necess ário, então, é sempre e, porque Seg. Ana l.
a
F sica
13 (cf. Cf. II, 7, 198 a II, 11, 9424-5 e todo o cap ítulo. A í ísico. 22 seg.), a prop f repete explicitamente tal doutrina ósito do conhecimento b 14 Ét. Nic. VI, 3, 1139 19-23. Nuncaé demais salientar a extraordin ária importância do livro VI da Ética para o conhecimento da epistemologia aristot élica. 15 Ibidem,l. 23-4. Reconhecendo, embora, oaspecto ns i ólito da express ão, preferimos traduzir porn ão-gerado , ao invés de servir-nos de uma per ífrase.
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sempreé, nem vem a ser nem parece. Eãoné outra a constante doutrina das obras que o fil f ósofo consagrouà ciência das coisasísicas. Não nos diz, com efeito, o tratado Gera dação e do Perecim ento que“o que necessariamenteé, também, ao mesmo tempo,sempreé, pois não é possível que não seja o que tem e ncessariamente edser, de modo que, se é necessariamente,é eterno e, seé eterno,é necessariamente ”?16 Do mesmo modo, o tratado do Cé u empenha-se longamente em provar que “tudo que sempreé é absolutamente imperec ível. De modo semelhante,é não-gerado”,17 para mostrar que“nem se gerou o C éu inteiro nem lheé possível perecer, como alguns dele dizem, mas é um e eterno, não tendo princ ípio e fim de sua dura ção toda, mas conten18 do e compreendendo em si o tempo infinito ”. Não era preciso, entretanto, recorrer aos outros escritos de Aristóteles: são os mesmos Segund os Ana l í ticos que assim interpretam, istoé, como uma necessidade ontol pria ógica, aquela necessidadeópr ao objeto da ci se define. Pois, ência por que esta, como vimos, neles mostrando o car áter eterno das conclus ões que a ciência estabelece, ainda acrescentam: “Não há, portanto, demonstra ção nem ciência, em sentido absoluto, das coisas perec íveis”.19 E mostram, igualmente, que, das coisas perec íveis, também não há definição.20 Aliás, dizer que o objeto da ciência é o , o que não pode ser de outra maneira, assim determinando-o negativamente, em vez de dizer simplesmente queé o eterno, o que sempre é, em inalterável identidade consigo mesmo,é opô-lo a uma outra esfera do real, que se exclui ipso facto da ciência, ou seja, àquelas coisas todas que, verdadeiras embora e reais (), são contingentes, istoé, podem, precisamente, ser b 16 Ger. e Per.II, 11, 337 35-338b2. 17 C é u , I, 12, 281b 25-6. Após ter definido, em I, 11, os termos “gerado” e “não-gerado”, “perecível” e “não-perecível”, o tratado doC é u demonstra, no capítulo seguinte, utilizando aquelas defini u. ções, a eternidade doéC b 18 C é u, II, 1, com., 283 26-9. 19 Seg. Ana l. I, 8, 75b24-25; v. todo o cap ítulo. Não é, entretanto, diretamente a partir da noção de necessidade que Arist óteles demonstra, aqui, a eternidade do objeto ícient fico, mas a partir de suauniversalidade, que adiante estudaremos. 20 Cf., ibidem, l. 30 seg.
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de outra maneira, E é evidente que não pode haver ciência a respeito dessas coisas, insistem os Anal íticos : pois seria fazê-las incapazes de ser de outra maneira, quand o elas podem ser 22 de outra maneira. Torna-se-nos, pois,ácil f compreender como pode
a Metaf ísica declarar que ãno pode haver defini ção nem demonstra ção (não pode haver, portanto, ciência) das essências ou substâncias () sensíveis individuais,23 “porque têm matéria, cuja natureza é tal que ela pode tanto ser comoãno ser; eis por que ã s o perecíveis suas determina ções individuais ”.24 Parece, ent ão, consumar -se a ruptura entre duas diferentes esferas do real, a da conting ência e a da eternidade necess ária, cuja oposi ção o filósofo freqüentemente nos relembra: “uns dentre os seres, com efeito, são divinos e eternos, outros podem tanto ser como ão ser n ( ”;25 e, explicitando a rela ção entre a mat éria e a con tingência:“Como mat gero que éria, ent ão, é causa para os seres que seam é capaz de ser e de ãonser; umas coisas, com efeito, necessariamente ão, s como as eternas, outras necessariamente ão sãno ... .Mas algumasãso capazes de ser e deãonser, o que, precisamen te,é o que se pode gerar e perecer; pois isso ora é, ora não é. Donde, necessariamente, haver gera26 ção e perecimento para o que pode serãoe ser n ”. 21 Cf. Seg. Ana l. I, 33, 88b32-3. Sobre asávrias acepções deem Aristóteles, cf.Prim. Anal. I, 13 e consultem-se as preciosas refer ências de BonitzIndex ( , p. 239a30 seg.). b 22 Cf. Seg. Ana l. I, 33, 8833-5. 23 Aceitamos integralmenteas razões de Aubenque para preferir o termo ess ência a subst ância , na tradução de: “Nous éviterons ce dernier vocable [subent.: substance] pour deux raisons:1) Historiquement, le latinsubstantia est la transcription du grec et n’a été utilisé que tardivementet incorrectementpour traduire(Cicéron emploie encore en ce sens essentia );2) Philosoph iquem ent, l’idée que suggère l’étymologie de substance convient seulement à ce qu’Aristote déclare n’être qu’un des sens du mot, celui où ce mot désigne, sur le plan‘linguistique’, le sujet de l’attribution et, sur le plan physique, le substrat du changement, mais non à celui où désigne ‘la forme et la configuration de chaque être ’ (, 8, 1017 b23)” (Aubenque, Le probl ème de l ’être... , 1962, p.136, n.2). b29-31. 24 Met. Z, 15, 1039 25 Ger. Anim . II, 1, 731b24-5. a 26 Ger. e Per. II, 9, 335 32-b5. Mas recorde-se que Arist óteles concebe, para os seres eternos que se movem, uma mat éria tópica (), matéria, não para a geração e o perecimento, mas b b tão-somente para a transla Met. H, 1, 1042 5-6; 4, 1044 7-8;, ção de um lugar a outro, cf. b 2, 106924-6.
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Mas que razões impedem o n ão-necessário de ser cientificamente conhecido? É que ascoisas contingentes, responde-n os Arist óteles, as que podem ser de outra maneira, uma vez fora de nosso campo de percepção, oculta-se-nos, tamb ém, se ainda ãso ou não.27 Pois a permanente possibilidade de perecimento das coisas perec íveis faz que, quando se subtraem à nossa percep ção atual, se convertam, para os que dela teriam ci ência, em objetos despidos de qualquer evid ência, porquenão mais se sabe se algo de real ainda corresponde aos discur 28 sos que na alma se preservam. Ora, “não pode ... a ciência ora ser ciência, ora ignor ância”.29 Mas, pelo contr ário, talé, precisamente, o 30 caráter daopini ão (), à qual cabe conhecer o contingente, cuja mutabilidade acarreta que venham a ser ora verdadeiros, ora falsos, a mesma opini e o mesmo racioc lheconcernem; precariedade ãocerto, ínio que esta que, por quantosízos, ju porque concernem ãonacompanha ao que não pode ser de outra maneira, por isso mesmo s ão eternamen31 te verdadeiros ou falsos. E, se também os Segund os Ana l íticos opõem à ciência a opinião, em salientando o seu car áter infirme ( ),32 também eles a fazem tal em conseq üência da natureza do objeto que, 33 embora verdadeiro e real, pode, entretanto, ser de outra maneira. Distinção que o próprio sentir comum sem dificuldade confirma, pois “ninguém julga opinar (), mas ter ciência, quando julga impossível ser de outra maneira; mas, quando julga que a coisa é assim, sem que nada, entretanto, impe ça que, também, de outro modo seja, julga então opinar, estimando que a um objeto tal respeita ani ãopi o, ao necessário, a ciência”.34 É certo que aÉtica Nico ma qu é ia pareceria,à primeira vista, contradizer uma tal doutrina, ao dizer -nos que a opi27 28 29 30 31 32 33 34
b Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139 21-2. a Cf. Met. Z, 15, 1040 2-4. Ibidem, 1039b32-3. b Cf. ibidem, 1039b33-1040a1; Ét. Nic. V, 5, 1140 27 etc. b Cf. Met. 10, 105113-7. a Cf. Seg. Anal ., I, 33, 89 5-6. b Cf. ibidem, 88 32 seg. Ibidem, 89a6-10.
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nião, que se divide segundo o falso eo verdadeiro“parece dizer respeito a todas as coisas ã eonmenosàs eternas eàs impossíveis que às 35 que de nós dependem ”. Mas osSegun d os Ana l íticos esclarecem plenamente a aparente dificuldade: é que se podem apreender objetos que, em si mesmos,ãso necessários e se podem conhecer eles como verdadeiros, seja apreendendo-os em sua mesma necessidade – deles, então, haverá ciência– seja, sem que como necess ários se apreendam – e haverá deles, tão-somente, opini ão.36 Não há problema, pois, em pôr-se que é possível opinar sobre tudo que se sabe,37 se se tem bem presente ao pensamento queãno podem ser totalmente id ênticos os objetos da opini ão e da ciência, ainda que possam dizer -se os mesmos num sentido semelhante ao em que assim se dizem os objetos da opinião falsa e da opini ão verdadeira, quando, dizendo respeito ambas a uma mesma coisa, ãno se confundem eles, entretanto, quanto à sua 38 qüididade, que o discurso exprime. Poderá haver, ent ão, de uma mesma coisa, em homens diferentes,ência ci num, opini ão noutro; masé absolutament e impossível que se dêem ambassimultaneam ente num mesmo homem, áj que este teriade apreender, ao mesmo tempo, a 39 mesma coisa, como incapaz e como capaz de ser outra de maneira. Não se esquecer á de que o não-contingente não é a única significação do necessário no vocabulário filosófico de Aristóteles. De fato, o livro da Metaf ísica , ao estudar o verbete “necessário”,40 mostra-nos que a necessidade ora diz respeito às condições sem as quais um bem 41 não se realiza (necessidade, por exemplo, da respira ção para a vida), 35 36 37 38 39 40
b Ét. Nic. III, 4, 1111 31-3. a Cf. Seg. Anal ., I, 33, 89 16 seg. Cf. ibidem, l. 12-3. Cf. ibidem, l. 23 seg. Cf. ibidem, l. 38 seg. Cf. M et . , 5. Os três sentidos básicos do termo, aí indicados, são retomados em , 7, b
1072 Aceitamos adistinguir, proposta Ross, em seu sentidos coment çãonesse ário de a , 5,11-3. não tendo raz ão Letotalmente Blond, aointerpreta ícap tulo,por cinco diferentes thode... , 1939, p.84 e n.4). “necessário” (cf. Le Blond,Logique et m é a 41 Cf. Met . , 5, com., 1015 20-6.É a necessidade queFa ética ( ), ísica chama de hipot necessidade representada pela causa material dos seres naturais,ual sem ãnoase q dá a forb a ma, cf.F ís . II, 9 (todo o cap ítulo); cf., tamb ém, Part. Anim . I, 1, 639 24-5; 642 1 seg.
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ora ao queé compulsório eà compulsão (por exemplo, o queõpe obstáculo e estorva o impulso natural e a inten ção deliberada),42 ora ao 43 , ao que não pode ser de outra maneira. Mas estaé a noção de necessidade, observa oófil sofo, da qual, de al44 gum modo, derivam as duas primeiras: uma coisa faz ou sofre o necessário, enquanto compulsório, quando não lhe é possível ( prio, istoé, quando não pode agir ) agir segundo o impulsoópr diferentemente do que age, em virtude da atua ção do agente que a compele; e quando vida ou bem, tamb ém, não são possíveis sem certas condições (), estas dir -se-ão necessárias e tal causa, uma forma de necessidade. Ora, é diretamente ao terceiro e principal sentido, ao queãno pode ser de outra maneira, que esse texto Metaf daísica explicitamente refere a necessidade da demonstra ção científica.45 E mostra o fil ósofo como se dividem as coisas quanto à causa de sua necessidade: certas coisas, com efeito, devem sua necessidade a uma causa outra que não elas próprias, enquanto outrasáhque, não possuindo uma causa tal,ãso, ao contr ário, elas pr óprias, a causa da necessidade 46 de outras coisas. E conclui que o necess ário, em seu sentido primeiro e fundamental (), é o simples ( ), ao qual não é, com efeito, possível ser de muitas maneiras nem, portanto, sofrer mutação alguma; se há seres eternos e im óveis, tal há de ser, então, a sua
natureza.47 E não nos mostra, com efeito, a áan lise do devir levada a cabo pelo livroI da F ísica ser evidente que “tudo que devém é sempre 48 composto( )”? Eis, assim, o absolutamente necess ário, o que não é contingente, bem definido, agora, em sua mesma positividade. Eis também, esclarecida a natureza dobjeto o a que a êcincia, emúltima análise, se refere. 42 43 44 45 46 47 48
a Cf. Met . , 5, 1015 26-33. Cf. ibidem, l. 33 seg. Cf. ibidem, 1015a35-b6. Cf. ibidem, 1015b6 seg. Cf. ibidem, l. 9-11. Cf. ibidem, 1015b11-5. b Fí s. I, 7, 190 11.
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1.2 A ciência e a categoria da rela ção
Vimos, assim, de modo adequado a nosso estudo, como a doutrina aristotélica da ciência a define, nosSegun dos Ana l íticos e na Ética Nicomaqu ia sobretudo, como o conhecimento de um objeto que é ontologicamente se descreve como necess ário: a ciênciaé d o ser , e do ser necessário, eterno. Não nos estranhar á, pois, que Arist óteles coloque a ci ência entre os relativos ( ), istoé, que a diga pertencente à categoria da rela ção.49 Pois se dizem relativas, com efeito, “aquelas coisas que, aquilo, precisamente, que ão,sse dizem ser de outras coisas ou, de algum modo, em rela ção a outra coisa( )”.50 Assim, o ser do relativo seãno dissocia de sua rela ção a algo de outro, o qual será, por isso mesmo, um elemento necess ário na definição daquele.51 Doutrina que, aplicada Categorià ciência, significa, como as as expressamente o dizem, que “a ciência diz-se ci ência do cientifica52 mente conhec ível”, que“a ciência diz-se aquilo mesmo, precisamente, queé, do cientificamente conhec ível”.53 E que o ser da ciência implica, como elemento indispens ável que integra sua mesma definição e essência, a refer ência ao, ao cientificamente conhec ível: nem foi outra coisa o que, desde a defini ção inicial de ci ência proposta nos Segund os Anal í ticos , que vimos comentan do, estivemos a mostr ar. Um esclarecimento, contudo, imp õe-se: com efeito, dentre as propriedades que os caracterizam, distinguem-se, tamb ém, os relativos pela recipro cidade de sua rela ção aos seus correlativos (tamb ém estes dizem-se relativos àqueles: o dobroé relativoà metade e a metade, ao 54 dobro, o dobro é dobro da metade e a metade, metade do dobro ) e pela b a b 49 Cf. Tóp. IV, 4, 124 19; VI, 6, 145 13-8;Met. , 15, 1021 6 etc. a 50 Cat. 7, 6 36-7. O cap ítulo 7 dasCategorias é inteiramente dedicado, como se sabe, à categoria da rela ção. Cf., tamb ém, Met. , 15. a 51 Cf. Tóp. VI, 4, 142 28-31. b 52 Cat. 7, 6 34. Do mesmo modo, dir-se-á o cientificamente conhecível cientificamente conhecível para a ciência (cf. ibidem, l. 34-5). 53 Cat. 10, 11b28-9. 54 Cf.Cat. 7, 6b28 seg.
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sua simultaneidade com seuscorrelativos, que daquelaimeir pr a propriedade decorre (porqueáhuma mútua correlação e o ser dos relativos não se dissocia da rela ção, a inexistência ou supress ão de um dos termos da rela ção implica a inexist ência ou a supress ão do outro: n ão 55 havendo dobro,ão nhá metade e vice-versa ). Ora, conquanto seja um relativo, não possui tais propriedades aêci ncia, não caracterizandose, de fato, pelareciprocidade e pela simultaneidade asçõ rela es entre a ciência e o cientificamente conhec ível, ou entre o pensamento e o pensável, entre a medida e o mensurável: “o mensurável, e cientificamente conhecível e o pensável dizem-se relativos pelo fato de uma outra coisa diz er-se em rela ção a eles; de fato, o pens ável significa que dele há pensamento, mas n ão é o pensamento relativo àquilo de que é pensamento (pois se teria dito duas veze s a mesma coisa); de modo semelhante, tamb ém a vistaé vista de algo, n ão daquilo de queé vista (ainda que seja, por certo, verdade dizer isto), mas é relativaà cor ou a alguma outra coisa dessa natureza ”.56 À primeira vista, confuso e, mesmo, contradit ório, esse texto daMetaf ísica merece um exame mais atento. Indica-nos ele, em primeir o lugar, que a rela ção existente entre a ciência e seu objeto (o mesmo é válido dizer do pensamento, da percep ção etc., masé o caso particular daência ci que, aqui, nos interessa), se elaé constitutiva da êcincia, não o é do cientificamen te
conhecido.É-o da ciência: com efeito, se, de um modo geral,ser o do relativo consiste no “estar numa certa rela ção com alguma coisa ”,57 é certo queé plenamente essa a natureza daência, ci queée se define pelo objeto necess ário que conhece. Mas, enquanto, pararelativos, os em geral, ocorre que a rela ção que os determinaé simultaneamente constitutiva de ambos os seus termos, cujo ser por ela ópria pr se delimita e estabelece, quer oófil sofo frisar que o mesmoãn o ocorre com as formas várias de conhecimento , entre as quais a êcincia. Aqui, a relação é unilateral, de um certo modo, namedida em que o objeto 55 Cf. Cat. 7, 7b15 seg. a 56 Cf. Met. , 15, 1021 29-b2. a 57 Tóp. VI, 4, 142 29.
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conhecido se p õe como independente da mesma rela ção de conhecimento, de queé termo;sendo , então, de um ser que lheãno é conferido por uma ci ência eventual que lhe diga respeito, é-lhe acidental, ao cientificamente conhec ível, ser conhecido pela ciência. Não se definindo por ela, o objeto da ci ência não se lhe dirá, portanto, relativo; ou melhor, se assim se diz, é apenas para significa r-se que a ci ência lheé 58 relativa, sem que com isso se exprima a sua natureza dele. Mas, por isso mesmo, n ão se determinar á a ciência, dizendo-a relativa ao cientificamente conhec ível, isto é, não se definirá ela pela sua rela ção ao conhecível como ta l ; com efeito, raciocina Arist óteles, se o indica que dele h á ciência, definir a ci ência por sua rela ção a ele, enquanto tal, seria incorrer na tautologia de ê-la diz relativaàquilo de que há ciência. Por certo, nenhuma inverdade se profere,assim se se fala, mas porque a natureza pr ópria do objeto se escamoteia, é a mesma natureza da ci ência que seobscurece. E, sobretudo, assim exprimir se é indevidamente tomar como reciproc áveis e simultâneos,à semelhança dos relativos em geral, aência ci e seu objeto. Diss éramos, acima, que a definição de ciência teria necessariamente de incluir a 59 relação ao compreende-se, agora, que ãoné a menção abstrata de que há um cientificamente conhec ível que nela deve figurar mas, sim, sua caracteriza ção adequada, isto é, a sua explica ção como o , o que não pode ser de outra maneira. Manifesta-se-nos, ent ão, que o que nos traz diante dos olhos a linguagem difícil e insólita da categoria aristot élica da relação nada menos é que o problema magno do primado da coisa conhecida, que por um realismo epistemol ógico, entre outras coisas, se define. Se pudesse pairar dúvida sobre a correção da interpreta ção proposta para aquele texto daMetaf ísica dirimi-la-ia o compar á-lo com a passagem bem mais
58 mente, Quandoque o filéó,sofo diz, então, que “o cientificamente ível é aquilo mesmo, relativamente ao oposto, à ciência; poisconhec o cientificamente conhec ívelprecisase diz b cientificamente conhec ível para algo, para a ciência” (Cat. 10, 1129-31), há que entenderse que se tratado conhec ível unicam ente enquan to lhe diz respeito a ci ência , interpreta ção, aliás, que o próprio texto sugere. 59 Cf.,acima,n.52e 53 destecapítulo.
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explícita em que as Categorias também aludem ao car átersu i generis da relação entre e : “Não parece verdadeiro haver de todos os relativos uma simultaneidade de natureza; parecer -nos-á, com efeito, que o cientificamente conhec ível é anteriorà ciência, pois, na maior parte das vezes,é em havendo previamente as coisas que adquirimos as êcincias: de fato, em poucos casos, ou em nenhum,- ver se-á surgir uma ciência simultânea ao conhecível. Além disso, o conhecível, uma vez destruído, suprime consigo aência, ci mas a ci ência não suprime consigo o conhec ível, pois, em não havendo conhec ível, não há ciência– de nada mais, comefeito, seriaêci ncia– mas nada impede que, não havendo ciência, haja conhecível ... . Além disso, destruído o animal, n ão há ciência, masé possível haver muitos dentre os conhec íveis”.60 Não se poderia dizer de modo mais manifesto que o conhecível é , para além e antes de qualquer êcincia que possa conhecê-lo. Trata-se, obviamente, no texto em quest ão, de um uso extremamente lato da no ção de ciência, abrangendo o conhecimento do que dev -se, e que ãno se diria excepcional na liném e pode destruir 61 guagem do fil ósofo; mas o que, aqui, nos importa é que, com toda a clareza desejável, se exprime a absoluta e incondicional primazia do objeto científico sobre a ci ência, transposta em termos de anterioridade temporal: preexiste à ciência o seu objeto. 1.3 A ci ência e a a lma
Uma outra lição, porém, traz-nos, tamb ém, o texto em quest ão, que é de conveniência vivamente real çar. Com efeito, como umargumento a mais em favor da anterioridade do conhecido, sup õe uma imaginária destrui ção do reino animal, que acarretaria a supress ão de toda ciência, sem que nada viesse afetar boa parteconhec do ível, isto é, todos os seres celestes e, no mun do sublunar, por exemplo, o reino todo das coisas inanimadas. Ora, assim colocar o problema é, como 60 Cat. 7, 7b22-35. 61 Cf., adiante, IV, 1.4 (istoé: cap. IV,§ 1, seção 4).
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bem se compreende, não apenas insistir no primado do conhec ível mas, ainda mais, descrever literalmentecia ência como um atributo do ser animado: vive aência ci da vida do ser vivo e desaparece com ela. E parece-nos, com efeito, que ãonpoderia ser de outra maneira, pois, a partir do momento em que se reconhece a absoluta anterioridade e primazia do objeto, como o faz Aristóteles, era necess ário entender a ciência como um atributo do animal humano. Eóosofo fil é extremamente claro a esse respeito: aêci ncia está na alma, como em seu sujeito,62 a ciência é um estado ou“hábito” (),63 portanto, uma qualidade da alma humana, “hábito” e não simples disposi ção (), em virtude de seu car áter duradouro e estável, que se não perde se grande mudan ça não ocorre, provocada por doen ça ou fato semelhan64
Categorias , não são as diferentesê65 te. E, ainda segundo as ncia ci s particulares sen ão qualidades, cuja posse nos faz tais ou quais. É, também, como uma que aÉtica Nicoma qu é ia caracteriza aêci ncia, como 66 um estado ou“hábito” capaz de demonstrar; e como uma concepção ou juízo () que diz respeito aos universaisàse coisas que 67 são, necessariamente. É de fato a ci ência uma espécie de ( )68 e é sob esse prisma desuas rela ções com as outras fun ções do pensamento, em geral, que a estudar á o livroIII do tratadoDa Alma : o pensar (), com efeito, consiste, de um lado, na representa ção ou ima-
62 Cf. Cat. 2, 1b1-2. 63 Cf. Cat. 8, 8b29. Os dois sentidos principais do termo , em Aristóteles (um certo ato do que tem e do queé tido ou uma disposi ção (), segundo a qual o que est á “disposto” está bem ou mal“disposto”, cf. Met. , 20, 1022b4-14 (o capítulo inteiro)), prendemse, como nota Bonitz (cf. Index , p. 260b31 seg.), respectivamente, aos sentidos transitivo e intransitivo de. No primeiro sentido, a diz-se segundo a categoria do “ter” () a (cf.Cat. 4, 2 23); no segundo, que o termo latino habitus traduz bem,é a uma espécie da qualidade (cf.Cat. 8, 8b26-7), um estado ou “hábito”. 64 Cf. Cat. 8, 8b27-32. Aristóteles que freq üentemente usae como sinônimos, dá aqui uma maior precis uma disposi ão aos dois termos, entendendo por ção mais duradoura e est ável. 65 Cf. ibidem, 11a32 seg. b 66 Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139 31-2. b 67 Cf. ibidem, 6, 1140 31-2. b 68 Cf. Fís. V, 4, 227 13-4.
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ginação (), de outro, na concep ção () e esta diferencia-se em ci ência, opinião, prudência e seus contr ários.69 Descrevendo a ciência como um“hábito”, mostra-nos, tamb ém a Ética como a ciência, juntamente com a intelig ência (), integra a sabedoria (),70 que é a virtude () da parte científica ( ), a qual constitui, por sua vez, uma subdivis ão da parte racional da alma 71 humana. Ora, dizer que a sabedoria (que inclui a ci ência)é a virtude da parte cient ífica da almaé significar que ela é o melhor estado ou “hábito” dessa parte da alma, dizendo respeito à função () que lheé própria.72 É verdade que a ópr pria noção da parte cient ífica da alma está calcada sobre a natureza do objeto de que ela se ocupa; com efeito, se as duas partesda alma racional, a cient ífica e a calculadora( ) assim se chamam, por elas contemplamos, de um é porque lado, aqueles seres queãos tais que n ão podem os seus princ ípios ser de outra maneira ( ), de outro, as coisas contingentes ( ), por isso mesmo suscet íveis de ser objeto de deliberação ou cálculo;73 como explica Arist óteles, a divisão entre as partes da alma acompanhaunivocamente e corr esponde às diferenças genéricas entre as coisas, á que j se deve o conhecimento que possuem 74 a “uma certa semelhan ça e parentesco ” com aquilo que conhecem. b 69 Cf. Da Alma III, 4, 427 24-6. 70 Cf. Ét. Nic. VI, 7, 1141a18-9;b2-3. Poderia estranhar-se que aÉtica contivesse textos epistemológicos tão importantes sobre a no ção de ciência e a de sabedoriaóte rica; mas n ão se esqueça de que não somente o livro VI estuda taisçõ no es, tendo em vista precisar as relações entre o saber te órico () e o saber pr ático ou prudência () mas, também, a própria noção de felicidade, supremo Bem do homem, tal como Ética a define (ato da alma a segundo a melhor e mais completa virt ude (I, 7, 1098 16-7)), implica, finalmente, a consideração da vida contemplativa ouórica te (cf. X, 7-9), vida de intelig ência e de ci ência. b 71 Cf. Ét. Nic. VI, 11, 1143 14-7, onde Arist óteles, resumindo toda a discuss ão precedente, op õe sabedoria e prud e, de cada uma das subdivis ência como virtudes, respectivament ões da parte racional da alma humana. Sobre a divis ão da alma numa parte racional e numa parte irraa a cional, cf.Ét. Nic. I, 13, 110226 seg.; sobre as divis 5 ões da alma racional, cf. VI, 1, 1139 seg. O estudo acurado dessas diferentes partes dee suas fun ções faz-se, obviamente, no tratado Da Alma (livros II e III). 72 Cf. Ét. Nic. VI, 1, 1139a16-7. Sobre a no ( ), cf. II, 5-6. ção de virtude a 73 Cf. Ét. Nic. VI, 1, 1139 6 seg. 74 Cf. ibidem, l. 8-11.
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Mas, por outro lado, enquanto estado“ou hábito”, a ciência oé de al75 76 guma coisa, istoé, precisamente, da alma humana: qualidade da alma, a ciênciaé modo de ser do homem, por cujo interm édio se relaciona este de um certo modo com ser es de uma certa natureza, os que não podem ser de outra maneira,çgra as a uma certa familiaridade que lhe é natural e que torna, assim, o conhecimento poss ível. Donde a ambigüidade de uma express ão como “aquilo por cujo intermédio conhecemos ”, que pode significar, seja êancia, ci seja a pr ópria alma.77 Nem podia ser outra, de fato, a doutrina aris totélica da ciência, a partir do momento em que uma perspectiva decididamente realista instaurara o primado absoluto do objeto, reconhecendo como anterior e indiferente a todo conhecimento ev entual que dele se ocupa, um mundo-real-que-est de que os homens fazemos parte. Ser á-ade í efundo á, então, sobre esse pano das coisas que se apreender á e descreverá a mesma natureza do conhecimento, necessariam ente secund ária do ponto de vista ontológico que, de início, se privilegia. Mero comportamento dos homens em face das coisas, em que pesa à sua excelsa dignidade, aêci ncia, como todas as formas de conhecimento, pressupõe necessariamente as coisasos e homens. Vis ão ingênua do mundo?É, em todo o caso, a doutrina aristot élica da ciência. Ser entre os seres do mundo, a ci ência que Aristóteles conhece não é constitutiva da coisa conhecida, mas, tamb ém ela, uma“coisa”, que se oferece, igualmente,à reflexão do filósofo. Fundadas razões teve Cassirer de excluir de seu estudo sobre o pro blema do conhecimento, juntamente com Arist óteles, todo o pensamento grego, cuja unidade, desse ponto de vista, parece-nos indiscut ível.78 E é com toda 75 Cf. Cat. 7, 6b5. b 76 Cf. Tóp. IV, 4, 124 33-4:“a ciência diz-se do cientificamente conhec ível, mas o estado e a disposição, não do cientificamente conhec ível, mas da alma”. a 77 Cf. Da Alma II, 2, 414 5-6. 78 Com exceção, por certo, do movimentoético, c em que se poderia ser tentadopressentir a um precursor da modernidade. Por outro lado, numa filosofia como aãde o, depois Plat dos modernos estudos que se lhe êmt consagrado, a interpreta ção realista parece irrecus ável: o platonismoé um realismo das Formas ou ess ências.
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razão que observa que “em Aristóteles, a teoria do conhecimento ãon é mais que uma parte de sua psicologia ”:79 ter-lhe-ia o filósofo dado integralmente razão, poisé ele mesmo quem nos remete, nos Segundos Anal í ticos , para o estudo das rela ções entre o pensamento, a intui-
ção, a ciência, a sabedoria etc., à Física (istoé, ao tratado daAlma ) e à 80 der, sem ú dvida, por que recusa Ética. Torna-se bemáfcil compreen 81 Aristóteles chamarà ciência medida das coisas.Nós assim chamamos,à ciência eà percepção, para significar que por elas conhecemos as coisas (assim como chamamos medida, em sentido estrito, àquilo 82 por cujo interm édio conhecemos a quantidade). Na realidade, ci ência e percep ção são, antes, coisas medidas do que medidas das coisas; com elas ocorre algo de semelhante ao que nos acontece quando vem alguém medir-nos, em aplicand o sobre nós a medida de umôcvado: detendo sobre o conheci mento a primazia que sabemos, ão as s coisas que medem e que delas conhecemos, ãosos próprios seres a medida da ciência dos homens. Torna-se, então, plenamente manifesto como, dos dois ólospa que vimos ter a ciência refer ência necess ária, que com algum ineg ável anacronismo, agora mais doque nunca evidente, denominamos sujeito e objeto, entender-seá pelo primeiroãto-somente o homem real, essa essência ou subst ncia privilegiada, de cuja alma êancia ci é propriedade; por razões óâbvias, compete seu estudo à psicologia, istoé, à física aristot élica.Quanto ao que vimos ser o objeto da ência, ci o necessário e a causa, seu mesmo car áter físico e ontológico converte-os em tema da mesma ci ência física e da ciência do ser.Resta-lhe,à ciência,
79 Cf.Cassirer, El problema del conocimiento en la filosofía y en la ciencia m oderna s , I, p.56. Sobre as razões pelas quais o autorãno inclui, em sua obra, um estudo da filosofia antiga, v. p.26 seg., em sua Introdu ção. b7-9. Sobre as raz 80 Cf. Seg. Ana l. I, 33, 89 ões pelas quais é ao físico que cabe o estudo da alma, a a cf.Da Alma , I, 1, 402 4 seg.; 403 3-19. Por outro lado, quanto às razões de ocupar-se É atica da ciência, v., acima, n.70 deste cap ítulo. a a 81 Cf. Met. I, 1, 1053 31 seg.; 1057 7-12. b 82 Cf. Met. I, 1, 1052 20.
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umaúltima dimens ão – e é dela que se ocupam, propriamente, osSegund os Anal í ticos –, a de sua organiza ção e estrutura ção internas como saber constitu ído. Também será esse, então, o objeto privilegiado de nossa reflexão. Mas, acompanhando, naquele tratado, os passos da doutrina, veremos que, se a refer ência ao sujeito, istoé, ao homem como suporte do conhecimentoà eciência como um seu mo do de ser, está praticamente ausente, considerações de ordem metafísica, concernentes ao ser do conhec ível, revelar-se-ão imprescindíveis e o filósofo terá freqüentemente de delas lan çar mão para informar diferentes momentos de seu estudo sobre o saber cient ífico. 1.4 Os outros usos do term o “ciência ”
Entendemos, pois, que terêci nciaé conhecer como se determina causalmente o ser necess ário. Antes de passar mos a explorar , com o filósofo, conformeà exposição dosSegund os Ana l íticos , os desenvolvimentos todos que tal çã noo implica, apressemo-nos em deixar assente que nenhum outro texto de Arist óteles repudia nem desmente essa conceituação do conhecimento cient ífico e que nenhum ind ício possuímos de que o fil ósofo tenha abandonado ãot rigorosa concep ção do saber. Matiz á-la-á, por certo, com freq üência– em escritos outros que não osAnal íticos 83 –, mas o necessário ontológico e sua causalidade permanecerão sempre o ponto último de refer ência objetiva, em fun84 ção do qual a ci ência se constitui e define. É certo, por outro lado, que um texto bem conhecido do livro da Metaf ísica formulará o que, à primeira vista, poderia parecer como uma outra çãono de ciência:“e, com efeito, há ciência de cada coisa quando lhe conhecemos a 83 Senão de passagem e sem maior explica ção ou discuss ão, cf.Seg. Ana l. I, 30; II, 12,a8-19 96 etc. 84 Segundo a interpretação que temos por certa e apoiada nos textos ari stotélicos, mesmo quando, como em grandeún mero de textos ocorre, dizse a ci ência do necess ário e do freqüente ( ), cf., além dos textos citados na nota ant erior,Met. E, 2, 1027a20-1; a b K, 8, 10654-6;Ger. e Per. II, 6, 3334 seg. etc. Sobre o problema de como conciliar com no çãoa de necessidade a de , falaremos oportunamente.
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qüididade( )”;85 veremos, contudo, oportunamente, que se trata de noção que coincide objetivamente com a que vimos comentando, considerada, apenas, a partir de outro prisma. Finalmente, não se nos oponha, como objeção, que Aristóteles se serve, por vezes, de uma terminologia menos precisa e que emprega, por exemplo, o termo(ciência) num sentido extremamente lato, ora chamando de ciência aos conhecimentos emp íricos de astronomia náutica e opondoàs ciências matemáticas as ciências“sensoriais”,86 87 ora falando da ci ou opondo ência que move as m ãos do carpinteiro 88 a ciência do senhor à ciência do escravo, ora usando simplesmente, de modo indiscriminado, uma pela outra, as express ões e 89 (arte): com efeito, em nenhum desses casos subsiste uma qualquer ambigüidade quantoà significação visada nem possibilidade qualquer de atribuir-se ao autor uma refer ência ao saber científico stricto se ns u . De um modo geral, ent ão, sejam quais forem as dificuldades de interpreta ção, reais ouaparentes, que surjam, ao depararmos, no interior da obra aristotélica, com conceitos e problemas que correspondem a no ções e atitudes que modernamente se dizem científicas, mormente em face de toda a concep ção moderna de ciência experimental e de investiga ção científica, há que buscar-se a solu ção e a compreensão de cada situa ção e dificuldade dentro dos mesmos esquemas aristot élicos e segundo a sua concep ção de ciência, se tememos a infidelidade ao pensamento doófil sofo e o anacronismo.
b 85 Met. Z, 6, 1031 6-7. Cremos perfeitamente aceit ável o emprego do vocábulo “qüididade”, já consagrado, ali ás, pelos aristotelistas, para traduziro de Aristóteles. b 86 Cf. Seg. Ana l. I, 13, 78 34-79a16 e a excelente nota de Ross, ad locum. Cf.ém, tamb a expressão (ciências dos sensíveis), em Da Alma II, 5, 417b26-7. b 87 Cf. Ger. An im . I, 22, 730 16. b 88 Cf. Pol. I, 7, 125520 seg. 89 Ver os múltiplos exemplos coligidos por Bonitz,Index cf. , p. 279b57 seg. Outro problema, entretanto, seria o de mostrar como a sistematiza ção do conhecimento leva Arist ótelesà tentativa de penetrar as écnicas t de cientificidade a que corresponde, precisamente, a notica , cf., por exemplo, Met. , 2, 1046b3. ção de ciênciapoi é
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2 A ci ência que se te m 2.1 A no ção de ciência, a opini ão comum e a realida de cient í fica
Os Segund os Anal íticos definiram o conhecimento cient ífico. Mas como certific ar-nos da corre ção ou incorre ção de tal defini ção? Quando dizemos que temos conhecimento cient ífico de uma coisa ao conhecer o processo causal que engendra a e a sua impossibilidade de ser de outra maneira, estaremos simplesmente explicitando a significação que visamos, ao proferir ? Descreve-se, acaso, um conhecimento científico ideal independentemente de sua concretização atual entre os reais conhecimentos dos homensdae pr ópria possibilidade de sua efetiva constitui ção? Teríamos, então, diante de nós, um modelo abstrato que se tentar á imitar nas lides cotidianas dos homens de ciência, um conhecimento desej ado e buscado,ãno uma 90 ciência possu ída. Ora,é preciso dizer que uma tal perspectiva é totalmente estranha ao aristotelismo, em geral, à sua e maneira pr ópria de compreender a natureza do conhecimento qualquer , em particular: assim como a sua Ética não nos prescreve ideais abstratos, queãse o n “encarnam” ao nível do concreto humano, nem a imitação de modelos inatingíveis que a vida da pol is não verifica, mas está, toda ela, impregnada do que se poderia, sem d qualificar, como um reaúvida, lismo moral , sua doutrina do conhecimento cient ífico– os Anal íticos nolo mostrarão – constrói-se, igualmente, sobre umaêci ncia que á j faz parte das realidades humanas, porque conquista que se alcan e que çou muitoscultivam. Em outras palavras, pa ra Arist óteles, a ci ênciaé, antes de tudo, umfato . Porque elaé uma realidade de nosso mundo humano e pode, por isso mesmo tornar -se, em seu mesmo ser , um objeto para nossa medita ção, é-nos poss ível, nos Segund os An al íticos, após defini-la, comprovar a corre ção da defini ção proposta pelo seu acordo com Le probl è me de l ’être ..., 1962, 90 É o que aconteceria se, como pretende Aubenque (cf. Aubenque, p.322 e seg.), somente a teologia fosse ci aos olhos de Arist ência, óteles, uma ciência, além do mais, que o fil ósofo teria mostrado in útil e, sobretudo, inalcan çável.
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a opinião geral e pela fidelidade com que descreva o estado dos que efetivamente possuem a ci ência:“É evidente, por certo, que tal coisa éo conhecer cientificamente, pois os que ãonconhecem cientificamente assim como os que conhecem cientificamente julgam, os primeiros, que eles próprios se encontram nesse estado; que os conhecem cientificamente, porém, nele tamb ém se encontram, de modo que é impossível ser de outra maneira aquilo de que, em sentido absoluto, h ”.91 á ciência Confirma, assim, a validade de defini ção proposta, em primeiro lugar, a opinião universal, reconhecida na mesma coincid ência de pontos de vista com que definem ência, ci não somente os que, efetivamente, a possuem, mas, tamb ém, quantos, ainda queãno possuindo um real conhecimento cient ífico, têm a pretensão de possuí-lo; e não provém tal pretensão senão do fato de que ju lgam conformar-seàquela definição o “estado” de alma em que se encontram ( ).92 Porque, ent ão, a significa ção conferidaà mesma express ão com que designam seu “estado” os que obtiveram conhecimentos de uma certa natureza seêvconsagrada pelo uso comumvulgar e , o acordogeneralizado das opini ões servir-nos-á de argumento: apelamos para a Opinião, para saber o que é a Ciência.93 b Segund 91 Seg. Anal . I, 2, 71 12-6. Essa é uma das raras passagens em que os os Ana l íticos se referemà ciência enquanto estado ou “hábito” da alma; fazem-no, aqui, indiretamente, mas, b explicitamente, em II, 19, 100 5 seg. 92 Como exemplo dos que, não possuindo um real conhecimento cient ífico, têm, entretanto, a pretensão de possuí-lo e partilham da opini ão correta sobre o que seja conhecer cientificamente, poder íamos, provavelmente, lembrar os partid ários do“mecanicismo” na interpretação dos fenômenos naturais, refutados naF ísica (cf. II, 8, todo o capítulo). Mas Aristóteles, no texto dosAnal íticos , parece ter em vista, ãno apenas os“cientistas”, mas quantos julgam conhecer um fato qualqu er de modo cient ífico por crer conhec ê-lo como necessário e incapaz de ser de outra maneira, desse modo evidenciando a significa ção universalmente conferida a . 93 Caberia a um estudo sobrea dialética aristot élica pôr em relevo a exata fun ção da Opinião e as razões profundas de sua efic ácia no processo de aquisi ção da verdade. Lembre-se que é, também, graças ao levantamentoàeanálise das opini ões comuns que se chega a estabelecer, nos dois primeirosítulos cap daMetaf ísica , “qual a natureza daência ci procurada ” (Met. A, 2, 983a21) e a concluir, primeiro, que a sabedoria é “ciência que diz respeito a certos princ ía pios e causas ” (ibidem, 1, 982 2) e, em seguida, que ela é “ciência teórica dos primeiros prinb cípios e causas 9-10). ” (ibidem, 982
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Mas, se não dispensou o fil ósofo o recursoà opinião comum, não se contenta, por certo, em assimoceder pr , para validar a defini ção de ciência que propôs. O textoacima transcrito é sobremaneira expl ícito: se podemos definir, com seguran ça, o conhecimento cient ífico e, partindo de uma tal no ção de ciência, sobre ela edificar nossa doutrina, em analisando suas implica ções e conseq üências, não é senão porque os que se reconhecem possuidores deência ci possuem, de fato, um conhecimento cuja natureza é aquela mesma que descrevemos ao formular a defini ção que propusemos. ãNo apenas crêem eles que tal coisaé a ciência, istoé, um conhecimento do necess ário, pelas suas determina , tam b é m, a sua ci ência , também nesse“estações causais; tal é do” se encontram ( ). Ciência éfato que está aí a nosso alcance, com aquelas mesmas caracter ísticas que discriminamos. É um certo ser do homem em nosso mundo, que podemos tomar como objeto de nossa reflexão e cuja presen ça sempre permite que, em a refazendo, confirmemos a indu ção que nos levouà definição formulada. A doutrina aristotélica da ci ência assume, assim, em seu mesmo ponto de partida, pode dizer -se, uma significa ção e um fato primeiros: a significação de e o fato de que há no mundo dos homens. Mercê de tais conhecimentos pr évios, que o teórico da ciência pode obter porque tem a seu dispor conhecimentosíficos cientáj constituídos, pode ele empenhar-se em descrever por menorizadamente a natureza e as condi ções de possibilidade daquilo que é, antes de tudo, uma realidade indiscut ível. Porque a ciênciaé , ele pode saber o que ela é, “pois o que não é, ninguém sabe o queé”.94 Nesse sentido, não parece que Robin se equivoque, ao sugerir, sob um certo prisma, um paralelo entre o procedimento aristotélico e o empreendimento 95 kantiano. Se era preciso que insist íssemos em todos esses pontos, b 94 Seg. Ana l. II, 7, 92 5-6.
95 Cf. Robin, Aristote . 1944, p.60: Au fond, Aristote a procédé, semble-t-il, de laêm me manière que Kant, quoique avec une“intention diff érente: Kant se demandait en effet quelle est la portée et quelles sont les conditions du savoir; Aristote étermi en n de lesconditions absolues et les moyens propes à le réaliser universellement; tous les deux ont pens é cependant que constructif chez le second, devrait prendre pour base ce travail,critique chez le premier, une jàco nstitué e”. scienced é
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cos dar é que os estudiosos do aristotelismotumam ênfase unicamente às notas distintivas do conhecimento cient ífico, em Arist óteles, negligenciando, no entanto, o que, a nosso ver, é tão importante quanto a noção mesma de ciência, istoé, aquelas razões que o filósofo explicitamente invoca para validar a defini ção estabelecida. 2.2 As coisas celestes e a ciência huma na
Mas, se assimé, cabe-nos perguntar onde encontrou o ófil sofo essa ciência constituída sobre a qual se exerceu suaeflex r ão nosSegundos Anal í ticos , modelo real que orientou seu estudo “do estado” científico. Em outras palavras, onde encontrou ele seres necess ários, conhecidos em suas determina ções causais e na sua mesma impossibilidade de ser de outra maneira? A essa pergunta, já se deu como resposta que o conhecimento das revolu ções dos astros e dos fen ômenos celestes“oferece, visivelmente, ao Arist óteles dos‘Analíticos’, o tipo 96 ideal da ci ência”. E, com efeito, n ão invoca o filósofo, noTratad o do Cé u , como suficiente para convencer -nos, o testemunho concorde da percepção sensível, que nos assegura, consoante a tradição de uns a outros transmitida,ãno ter sofrido mudan ça alguma, em todo o tempo passado, nem o conjunto inteiro do éu cexterior nem nenhuma de suas partes pr óprias?97 Não nos diz, também, a Metaf ísica , ao refutar a doutrina protag órica do homem-medida, que é absurdo, ainda que as coisas que nos cercam estejam em permanente mudan ça e em si mesmas nunca permane çam, delas partir para construir nossos ízosju sobre a Verdade?98 Ao contrário, “é preciso, com efeito, perseguir a verdade, partindo das coisas que estão sempre no mesmo estado ãeon efetuam nenhuma mudan ça. Tais são as coisas celestes: estas, de fato, não aparecem, ora com tais caracteres, uma utra o vez, com caracteres diferentes, mas sempre id ênticas e sem participar de nenhuma mu96 Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.79. b 97 Cf. C é u I, 3, 27011-6. a 98 Cf. Met. K, 6, 1063 10-3.
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dança”.99 Não-gerados e imperec íveis são, com efeito, o primeiroéu C e suas partes, com os astros que ele n brilham, os elementos de que es100 tes se comp õem e sua mesma natureza: eles nos oferecem oespetáculo visível do divino.101 Como se mostrou recentemente, o aristotelismo conhece uma como teolo gia astral, em que “os astros-deuses tomam... o lugar das Id éias platônicas” e que se torna“o único fundamento poss ível de uma teologia científica”.102 Mas parecerá, então, que o conhecimento do éCu não somente fundamentar á a teologia aristotélica mas, também, conforme parecem indicar os textos que referimos, a própria doutrina dos Anal í ticos , fornecendo, destarte, o prot ótipo da ciência sobre que se exercer á a reflexão analítica. Não é, entretanto, o que ocorre. uma E bela passagem do Tratado da s Partes dos Animais propõe-nos convincentesõraz para que isso ãon ocorra:103 é que, por excelsas e divin as que sejamesas ess ências naturais que, sem gera ção nem perecimento, s ão por toda a eternidade, por maior que seja o deleite que nos proporciona a contempla ção e o estudo das coisas celestes, devemos reconhecer queãest o demasiado longe de nós e que nossa sede de saber encontra, na percep ção sensível que delas temos, bem poucas evidências em que apoiar nosso conhecimento; por isso mesmo, contrabalan ça, em certa medida, à filosofia das coisas divinas aquela ência, ci mais exata e mais extensa, das
coisas que, mais pr óximas de nós, têm, também, maior afinidade com nossa natureza. Perspectivaópr pria de uma obra de biologia, por certo, mas suficientemente esclarecedor a para mostrar -nos que ãno pode
Metaf í sica e da 99 Ibidem, 1, 13-7. O livro K, o cmo se sabe, re sume partes de o utros livros da Fí sica ; assim, a passagem em quest ão retoma a argumenta ção deMet. , 5, 1010a25-32. a u III, 1, com., 298 100 Cf. C é 24-27, onde Arist óteles recapitula assuntos discutidos nos dois livros precedentes. a a 101 Cf. Met. E, 1, 1026 18;Fís. II, 4, 196 33-4. 102 Cf. Aubenque,Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.337. Sob re o tema da teologia astral, v. a bibliografia selecionada por esse autor, especialmente Festugi re, La r v lation d Herm s Trism giste, é é ’ è é è 1949, p.217 seg. Leia-se, tamb ém, a excelente nota de Le Blond, em seu coment ário ao liArist vro I do Tratad o das Parte s dos Animais , ad 644a25, nota n.138 ( ote philosophe de la vie... , 1945, p.181-3). b 103 Cf. Part. Anim . I, 5, com., 644 22 seg.
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o filósofo tomar nosso escasso conhecimento dos seres celestes como o paradigma constitu ído da ciência. Não desistiu, por isso, o ófilsofo de obter, na medida doque creu aos humanos poss ível, o conhecimento científico do mundo supralunar Trata e o do do C é u constitui o fruto magnífico desse seuempreendimento, explicando-no s qualé a estrutura e a ordem das coisas do Universo e por éque este tal comoé, necessariamen te. Mas n ão o faz sem reconhecer as grandes aporias que o conhecimento de tais objetos freq üentemente envolve e limita r-seá, por vezes, a tentar dizer o que aparece como verdadeiro ( ) porque crê ser indício, antes de pudor que de temeridade, o contentar -se, em tal mat éria, de alguns pequenos e felizes resultados, quando seé impelido pela sede da filosofia ( 104 ). De qualquer modo, ã no será nessa difícil, laboriosa e limi105 tada ciência de seresão t distantes, que o filósofo procura construir e alcançar, enriquecendo, mas, sobretudo, corrigindo os magrosresul106 tados das pesquisas de seus antecessores, que ele vai encontrar a realidade cient ífica de que precisa, para formular sua doutr ina da êci n107 cia, e a cuja exist ência vimos osSegund os An al íticos fazer refer ência. E, de fato, nenhuma alus ão especial se faz ao conhecimento das coi108 I daquele tratado. sas celestes em todo o livro 2.3 O paradigma m atem ático
Onde encontr ar, então, junto ao mundo que nos rca, ce uma êcincia constituída pelos homens, que corresponda à definição que prob u . II, 12, com., 291 104 Cf. C é 24-8. Cf.Part. Anim . I, 5, 644b26-7: . a 105 Cf. Cé u, II, 12, 29215-7. 106 E, com efeito, o tratado do C é u se constrói em refutando os pitag óricos e Anaximandro, Anaxágoras e Emp édocles, os atomistas e Plat ão etc. 107 Cf., acima, I, 2.1. 108 Além de alguns poucos exemplos tirados da astronomia (os silogismos sobre çãoaecintila a
proximidade dos planetas e sobre a esfericidade aumento de luminosidade da lua I, (em 13), a refer ência à freq üência dos eclipses de lua (emead I,o8, finem ), o livro I dos Segund os Analí ticos aludeà astronomia, como a uma dentre as árias v ciências ífsico-matem áticas Ó ( tica, Mecânica etc.), nas quais se distinguir á entre o conhecimento do “que” e o do porquê (cf. I, 13, 78b34 seg.), ou como a uma ência ci que, tal qual a aritm ética e ageometria, demon stra a b partir de axiomas comuns e de princ ípios próprios (cf. I, 10, 76 11).
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pusemos, precisamente, porque, em refletindo sobre elaconteme plando-a, pudemos obter a defini ção que procurávamos? Ora, um exame sum ário dosSegund os Anal íticos permite-nos facilmente responder:nas m ate m áticas . Com efeito, a quase totalidade dos exemplos utiticos tomam-se das I dosSegund os Ana l í lizados ao longo de todo o livro 109 matemáticas e ci ências afins; é ao procedimento habitual dos arit110 méticos e geômetras que o fil ósofo sempre se refere; é ao vocabulário técnico das matem áticas existentes que a doutrina aristot élica da ciência toma os voc ábulos que serão seus próprios termosétcnicos;111 são as matemáticas e as ci ências afins que se tomam explicitamente como exemplos deêci ncias;112 em suma, a Ciência que o tratado descreve e caracteriza é um saber constru ído m ore geo m etrico com o rigor, a exatidão e a necessidade que o ófilsofo reconhece nas ci ências matemáticas. Escritos algumasécadas d mais tarde mas como resultado, também, de compila Elementos d e Geomeções anteriores (sabe-se que tria se escreveram e conheceram anterior mente a Arist óteles113 ), os Elementos de Euclidester-se-ão inspirado da doutrina aristot élica da ciência, segundo os Anal í ticos , e darão aos princ ípios da geometria um tratamento intimamente aparentado à teoria aristotélica dos princípios da ciência.114 Assim, seé verdade não ter fornecido Arist óteles nenhuma contribui ção direta aparente para o progresso do pensamento 109 Cf.,por exemplo, Seg. Ana l. I, 1, 2, 4, 5, 7, 9, 10 etc. b b 110 Cf.,por exemplo, Seg. Ana l. I, 7, 75b7-8; 10, 76 4 seg.; II, 7, 92 15-6 etc. 111 Tais como “hipótese”, “axioma” etc. Mas lembre-se que, tamb ém, os termos técnicos da silogística geral de Arist óteles êtm uma prov ávelorigem matemática, cf. Ross, Aristotle , 19565, b p. 33;Prior and Posterior Analy tics, notaad Prim. Anal. I, 1, 2416 etc. 112 Por exemplo, emSeg. Ana l. I, cap. 7, 9, 10, 12, 13 etc. 113 A tradição unânime atribui a Hip ócrates de Chio a primeira reda ção deElementos (cf. Rey, L’ apog é e de la science technique grecque..., 1948, p.86), ainda na segunda metade do sV. éculo Os exemplos geométricos utilizados por Aristóteles dever-se-iam aos Elementos de Theudios de Magnésia (cf.id ., ibid ., p.178, n.1). Sobre o estado dos estudos matem átiLes philosophes g é om è tres de la Gr è ce..., cos, anteriormente a Arist óteles, consulte-se Milhaud, 19342; Heath,A History of Greek Math ematics, 1965. 114 A esse respeito, v. Robin,Aristote , 1944, p.60 seg; Ross, Aristotle ’ s Prior and Posterior Ana ly tics , Introductio n, p. 52, 56seg.; Brunschvicg, Les é tapes de la ph ilosophie math é matique, 1947, cap.VI:“La géométrie euclidienne ”, p.84-98; Rey, L ’ apog é e de la s cience techni que grecque... , 1948, 1, IV, p.181-94: “Euclide, Aristote et Platon ”.
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matemático, diferentemen te do que ocorreu com tantas outras ên-ci cias que criou, impulsionou ou para as quais contribuiu decisivamente, não deixa de ser verdadeira, por um lado, a afirma ção de que“poucos pensadores contribu f ófica da íram tanto como ele para a teoriailos natureza da matem ática”115 nem, por outro, de ser manifesto –eéo que, fundamentalmente, aqui nos interessa– que a medita ção aristotélica sobre a natureza do conhecimento cient ífico se exerceu, sobretudo, sobre o exemplo das ci ências matemáticas já constituídas na época do filósofo. Não terminara com o platonismo o papel estimulante desempenhado pelo desenvolvimento dessas ências ci sobre o pensamento filos ófico grego: vemo-las atuantes no mesmo cerne da doutrina aristot élica.116 Donde uma constata ção que, antes de tudo, se nos imp õe: é no estudo do pensamento matem ático de seu tempo que Arist óteles crê, sobretudo, encontrar o conhecimento pela causa de seres ánecess rios; ou melhor,é porque as disciplinas matem áticas que se designam como constituem um tal conhecimento, que pudemos definir a , nos termos em que o fazem os Anal í ticos . E, com efeito, õ pe sempre Aristóteles os objetos matemáticos entre os, os seres eternos, tanto quanto as coisas celestes. ãoNnos diz aÉtica que não se delibera sobre as coisas eternas, “como, por exemplo, sobre o universo e sobre a incomensurabilidade da diagonal e do lado” do quadrado?117 Do mesmomodo, falar-nos-á a Fí sica dacomensurabi lidade da diagonal e do lado, como de umão-ser n fora do tempo, isto é, que sempre não é, por opor-se a algo que sem preé, a um ser eterno, ou seja, 118 à incomensurabilidade. Também o fato de ter umtriângulo seus apontar-se-á como um atributo eterno do ângulos iguais a dois retos 115 Ross, Aristotle ’ s Prior a nd Posterior Ana ly tics , Introduction, p.59. 116 Segundo a interpretação de Goldschmidt (curso in édito sobre“Le système d’Aristote”, 1958-1959, que nos foi generosamente transmit ido por M. Lucien Stephan, p.67-8), as matemáticas não são paradigmas somente para a Anal ítica aristot élica, mas tamb ém para a sua metafísica, ciência do ser enquanto ser. a 117 Cf. Ét. Nic. III, 3, 1112 21-3. b a 118 Cf. F ís. IV, 12, 22123 seg., particularmente 222 3-7.
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119 triângulo, de uma eternidade que, por certo, tem uma causa e pode ser demonstrada,ájque se não confunde ser eterno com ser princ ípio 120 (), como quisera Dem ócrito: coisas há, com efeito, que, a neces121 sidade queêm, t devem-na a uma outra causa; e o necessário e o eter122 no, como sabemos, implicam-se reciprocamente . A rejeição aristot élica, definitiva e integral, de qualquer substancialidade ou essencialidade dos seres matem pol às vezesásáticos, levada a efeito na grandeêmica, pera,contra os platônicos que ocupa dois livros inteirosMetaf da ísica ( e ), por recusar que possa haver seres matem áticos“separados”,123 nem, por isso, osprivou de ser: deles diremos que “são de alguma maneira” ( ) e, por isso, não são, em sentido absoluto ( ); 124 com efeito, dizemos“ser” ( ) em muitos sentidos. Preserva-
se, assim, gra das significa ças à doutrina da pluralidade ções do ser, isto 125 é, graças à doutrina das categorias, o status ontológico dos objetos matemáticos. Pois ã no se dirá, apenas dos seres “separados”, que eles s ão, dos que ãso por simesmos e absolutamente, mas tamb ém dos que, não sendo“separados”, são afecções e atributos daqueles e deles se dizem.126 Ocupando-se, ent minada categoria de ser, isto ão, de uma deter 119 Cf. Met. , 30, 1025a32-3. b 120 Cf. Ger. Ani m . II, 6, 742 17 seg., particularmente l. 26-29; cf., tamb ém, no mesmo sentido, a
b
Fí s. VIII, 1, 25232- 5. 121 Cf. Met. , 5, 1015b9-10.
122 Cf., acima, I, 1.1 e n.16. 123 , cf.Met. M, 2, 1077b12-4 (o cap. 2 de M destinou-se precisamentemostrar, a contra o platonismo matem ático, que se não podem considerar os objetos matem áticos comoindependentes das ess ências ou subst âncias sensíveis e separadas delas: só a a é “separada” (), não o é nenhuma das outras categorias Met. (cf. Z, 1, 1028 334). A matemática é ciência, portanto, que diz respei to a seres n ( , ão separados a b cf. Met . E, 1, 1026 14-5; K, 1, 1059 13). O queé preciso dizer é que o matemático“separa” () seus objetos, pois “são separáveis pelo pensamento” (cf.F ís. II, 2, 193b33-4;Met. a M, 3, 1078 21-3: o aritm ético e o geômetra“separam” o que não está “separado”). Assim, se não são “separados” os seres de que se ocupam as matem áticas, pode dizer-se, no entanto, que elas os consideram “enquanto separados ” ( , cf.Met. E, 1, 1026a9-10). b 124 Met. M, 2, 1077 16-7. 125 Sobre as categorias como diferentes significações do ser, cf.Met . , 7, 1017a22 seg.; Z, 1, com., 1028a10 seg.;Tóp. I, 9 (todo o cap ítulo) etc. a 126 Cf. Met. Z, 1, 1028 18 seg. Ser á verdadeiro, portanto, dizer que “nos ão-separáveis” – e, entre eles, os objetos matem áticos– s ão, cf.Met. M, 3, 1077b31-4.
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127 é, da quantidade, nela conhecendo seres necess ários e eternos, cuja causalidade apreende, a matem áticaé plenamente; em meditando sobre ela, é-nos possível definir e descrever a ciência.128
b19 seg. A geometria, ent 127 Cf. Met. K, 4, 1061 p ão, por exemplo, estudar á os atributos que ertencemàs coisas sensíveis “enquanto comprimentos e enquanto planos ” (cf. Met. M, 3, 1078a8-9). 128 Não compreendemos, ent Le probl è me de l ’êtr e..., ão, como possa Aubenque (cf. Aubenque, 1962, p.239) falar do car áter “fictício” do objeto das matem áticas, de uma fic ção que lhes permitiria“imitar” o objeto da teologia e, assim, “paradoxalmente”, ser ciências; e o mesb mo texto, ali ar-se F( ís. II, 2, 193 23-194a12) nega expliciás, em que o autor pretende apoi b tamente (cf. 19335) que qualquer falsidade resulte“separa da ção” a que procede o conhecimento matemático. A interpretação de Aubenque, além disso, não leva em conta a doutrina precisa dos seres matem da ísica nem áticos que Arist óteles formula no livro MMetaf analisa a significa ção última da doutrina dos Segundos An al í ticos sobre a ci ência e do uso paradigmático do saber matem ático; parece-nos, ali ás, que, se Aubenque pode sustentar que, para Arist óteles, só a teologiaé ciência (cf. ibidem, p.322 seg.) e, entretanto, uma ên- ci cia imposs ível para o homem, de uma impossibilidade que é constatada e justificada de tal modo que“cette justification de’impossibilit l é de la théologie devient paradoxalement le substitut de la théologie elle-même” (ibidem, p.487), foi porque, em última análise, não Segund os Ana l í ticos nem apoiou nela sua interlevou na devida considera ção a doutrina dos pretação da doutrina aristot élica. S. Mansion, por seu lado, critica Arist óteles por sua “confusion du plan de la pens ée avec celui de laéralité”, uma confusão do lógico e do real que é “sous-jacente à toute sa conception de la nécessité” (cf. Mansion, Le jugemen t d ’ existence ..., 1946, p.85), exemplificando com o fato de o fil sofo dado“comme exemples óter de choses n é cessaires et é ternelles des conclusions de émonstrations d math ématiquesà côté de substances incorruptibles ” (ibidem, p.86). Ora, mas a partir do mome nto em que os objetos matemáticos“são de alguma maneira ”, porque dizemos“ser” em muitos sentidos, as conclusões matemáticas exprimem realmente “coisas necess árias e eternas ”: tais são a doutrina aristot élica dos seres matem áticos e a doutrina mesma das categorias. E a leitura dos capítulos daMetaf ísica em que Arist óteles combate a concep ção platônica dos seres matem áticos de modo nenhum nos leva, como pretende a autora (cf. ibidem, p.252), “regarder a les passages où il parle de’élternité et de ’limmobilité des choses m ême que le math ématicien étudie, comme d’importance fort secondaire” nem a tomar tais passagens como“des réminiscences de’enseignement l re çu jadisà l’Académie dont il n ’a pas su se d éfaire, mais qui ne sont pasélies aux principes qu ’il professe”. S. Mansion, entretanto, entendera, desde o início (cf. ibidem, p.62-5), que necessidade a caracter ística da ci ência se estabelece, nos Analí ticos , no plano de liga ção entre conceitos e subordina a tal interpreta ção sua compreens ão dos textos em que aparecem os exemplos matem áticos. Ora, todo o nosso coment ário da no ção de ciência proposta pelosAnal íticos teve, precisamente, em mira dar ênfase ao caráter ontológico do necess ário científico. Outro problema, por ém – e este, extremamenteério s e complexo– seria o de mostrar como a necessidade ontol ógica dos objetos matem áticos se concilia com a sua condi ção de afecções quantitativas das ess ências ífsicas individuais, submissas ao devir e, portanto, perec íveis: caberia a um amploestudosobre o sistema aristotélico das ciências (e sobre as rela ções entre o necess ário e o devir, em Arist óteles) colocar com precisão e resolver este problema. De qualquer modo, doutrina a aristot élicaé bastante precisa para que n ão nos enganemos: os objetos matem áticoss ão, de um ser necess ário e eterno. E, em conseq üência disso, as matem áticas são, plenamente,êci ncias.
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Restar-nos-ia responder a uma obje ção que pretendesse apoia r-se no texto acima referido Metaf da ísica , segundo o qual deve pa rtir-se na busca da verdade, das coisas que, como as celestes, nunca são de outra maneira e ã no, das coisas em fluxo e mudan ça,129 para contestar toda interpretação que não veja na teologia astral o paradigma aristotélico da ciência. Mas, como se depreende facilmente da leitura do contexto e, igualmente, da passagem do livro que, em verdade, 130 aquela outra apenas retoma, o que aqui se pretende é apenas censurar quantos estendem a todo universo observa ções que fizeram sobre um pequeno número de coisas sens íveis, por certo, em permanente mudança; pois eles n ão vêem que“a região do sensível que nos cerca é a única que se perpetua no perecimen to e na gera ção, mas ela nem mesmoé, por assim dizer, uma parte do Todo ”, de modo que teria sido mais justo absolver nosso mundo sens ível, por causa do mundo celeste, que condenar o mundo celeste, por causa desta m ínima parte do universo. A preocupa ção do filósofo, portanto, ãno é a de fornecer um paradigma para a doutrina da ci mas a de recusar que se tome o ência, mundo sublunar como paradigma do universo e indicar que é na necessidade desteúltimo que se encontrar á a verdade da conting ência do primeiro e o fundamento do nhecimento co de que ela é suscetível. Mas em nada isto obsta a que as matem áticas, ciência que os homens conseguiram , nos revelem a natureza daência ci e nos sejam cau ção de que a ciênciaé humanamente poss ível. 2.4 Arist óteles e a concepção plat ônica da ciência
Esclarecida a no ção de conhecimento cient ífico e uma vez explicado como pudemos obt ê-la, antes de descrevermos sob que forma tal conheciment o se nos apresenta, permitamo-nos constatar a invers ão total de perspectiva operada pela teoria aristot élica da ciência em relação à doutrina platônica.É verdade, comoáj se sublinhou com ina 129 Cf. Met. K, 6, 1063 13-17, citado acima, n.99. a 130 Cf. Met. , 5, 101025-32; cf., acima, n.99.
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sistência, que a concep ção de ciência, em Arist óteles, guardou tra ços fundamentais da ci ência, segundo Plat ão, e que a presen ça do legado platônicoé de uma irrecus ável evidência.131 Afinal, não diz a ciência, em Platão, respeito ao ser eãono conhece como é?132 Não concerne ela ao queé sempre a si mesmoêid ntico?133 Pois como se atribuiria o ser ao 134 que não está nunca no mesmo estado? Mas somente o queé é realmente cognosc ível.135 E Platão distinguira entre o que absolutamente é ( ) e é, por isso, absolutamente conhecível ( ), o que não é e é, por isso mesmo, incognosc ível e o que pode ser e não ser, intermedi ário entre o que é e o que n ão é, conhecível, portanto, por algo intermedi ário entre a ci ência e a ignor ância, istoé, pre136 cisamente, pela opini ão (). Já vira, também ele, na ciência e na opinião, faculdades ( ) da alma eáj distinguira 137 as faculdades da alma segundo a natureza dos objetos de que se ocupam. Já recusara que pudesse a mesma coisa ser objeto deãopini o e de ci ência.138 E classificara a ci ência entre as coisas que ão,s por natureza, d e outra coisa, 139 istoé, que a algoãos relativas: a Ciência em sié ciência do Objeto em si, qualquer que ele seja, assim como uma ci particular e determiência 140 nada oé de um objeto particular e determinado. Entretanto, apesar 131 Cf. Zeller, Die P hilosoph ie der Griechen, 19637, II, 2, p.161 seg.; 312-3 etc.; Man sion,Le ju gement d ’ existence c hez A ristote , 1946, p.11seg.: a autora afirma mesmo “que Plus encore que Platon, Aristote insiste sur les caract ères de nécessité, d’éternité et d’immutabilité de la science” (ibidem, p.12). 132 Cf. Rep. V, 478a. 133 Cf. ibidem, 479e: . 134 Cf. Cr át. 439e. 135 Cf. Rep. V, 477a. 136 Cf.Rep. V, 477ab. Também, noTeeteto, Sócrates examinar á e refutar á as hipóteses de Teeteto b que definem a ci ência como opini ão verdadeira (cf.Teet ., 187 -201c )ou como opini ão verdadeira acompanhada de raz ão (cf.Teet., 201c-210b). 137 Cf. Rep. V, 477c-e. E o Timeu falar-nos-á do parentesco existente entre os racioc ínios e os objetos a que eles concernem: os que concernem ao permanente e aoé que firme são firmes e inabal áveis, os que concernem ao que é cópia daquele outro objeto ser ão apenas verossímeis, proporcionalmente à verdade dos primeiros, cf. Tim. , 29bc. 138 Cf. Rep. V, 478a. 139 Cf. Rep. IV, 438b: ’ 140 Cf. ibidem, 438cd.
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de todos esses pontos de aproxima ção ou, até mesmo, de coincid ência entre o aristotelismo e oplatonismo, uma mudança radical se consumara com a rejei ção da doutrina das Formas, que nosbriga o a conferir a frases e express ões que permanece ram inalteradas e a doutrinas análogas, que elas exprimem, uma significa ção radicalmente diferente:é que o objeto do saber é, no aristotelismo, totalmente outro, o universoísico f e o Céu tendo ocupado o lugar deixado vago pe141 las Idéias em queãno mais se acredita. Ora, um dos resultados aparentemente mais paradoxais dessa transforma ção doutrin áriaé o novo estatuto das ci ências matemáticas, no aristotelismo. Ningu ém ignora, por certo, o interesse de Plat ão pelas matem áticas, cujo estudo tanto se desenvolveu, sob seu impulso, na Academia. E aRe p ública 142 longamente se estende sobre essas ciências privilegiadas para a formação e educação dos guardiões do Estado, que ãso as matemáticas, cuja função não é outra senão a de elevar a parte mais nobre 143 da almaà contemplação do mais excelente de todos os seres. E somente a homens nelas versados pode revelar -se a faculdade dial ética, 144 para a qual qualquer outro caminho é impossível. Mas, se issoé verdade, não é menos verdade, tamb ém, que, para Plat ão, tais ciências não são senão o prelúdio de umaária que só a dialética executa,145 porque só ela tenta metodicamente apreender o que é, em si 146 mesma, cada coisa. As matemáticas, se apreendem algo do ser, conhecem-no como em sonho, incapazes de v à luz do dia.147 Se ê-lo lhes chamamos, ent ão, ciências, não é senão em obediência ao uso comum, mas outra devia, de fato, ser a sua denomina ção, mais obscura que a deêci ncia:148 s óa dial é tica realm ente é ciência , porque óselaé
141 142 143 144 145 146 147 148
Cf.,acima,I, 2.2 e n.102. Cf. Rep. VI, 522b-31c. Cf. ibidem, 532c. Cf. ibidem, 533a. Cf. Rep. VII, 531d-2b. Cf. ibidem, 533b. Cf. ibidem, 533bc. Cf. ibidem, 533d.
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capaz de ir ao princ ípio.149 Ora, recusada pelo aristotelismo a doutrina do Bem e das éIdias“separadas ”, disperso agora o Ser segundoá-a t bua das Categorias, ocupando-se de uma esfera do real que plenamente apreendem e conhecem, ão snão mais as matem áticas disciplinas que indevidamente usurpam o nome de ciência sem possuírem real cientificidade; ao contr ário,de pleno direito, podemos, como vimos, interrogar-nos sobre o que é a ciência, tomando-as por paradigma. Donde podemos dizer, sem hesita ção, que assistimos, no aristotelismo, a uma revaloriza ção radical do conhecimento matem ático.150
3 Ci ência e silog ismo d emonstra tivo 3.1 A demonstra ção ou silogismo cient í fico
Exposta a no ção de conhecimento cient ífico e comprovada a sua correção e validade,ãvo osSegund os Ana l íticos explicar-no s, agora, sob que forma tal conhecimento se nos apresenta: “Se também há, então, uma outra maneira de conhecer cientificamente, di-lo-emos mais- tar de; mas afirmamos conhecer, também, através da demonstração (’ ). Chamo de demonstra ção o silogismo cient ífico (chamo, por outro lado, de cient ífico aquele em virtude do qual, porêt-lo, conhecemos cientificamente ”.151 Que nos revela esse texto e que conseq üências ele implica, ou parece implicar? De início, parece-nos dar a entender que se operar á uma restrição provisória em nosso campo de estudo: limitar -nos-íamos, por ora, apenas ao estudo da ci ência demonstrativa, ressalvando embora a possibilidade de haver outra forma de conhecimento cie ntífico, de que deve149 Cf. ibidem, 533cd. Assim, o homem que busca pela dia él tica chegarà essência de cada coisa e não pára até que apreende, pela mesma intelig ência, o que o Bem é, em si mesmo, atinge o próprio termo do intelig ível, cf. ibidem, 532ab. 150 Tudo isso supõe que o aristotelismo reconhe ça, então, a plena autonomia dasências ci matemáticas. Como adiante veremos, tal é, precisamente, a doutrina aristot élica e o estudo desse tema ainda uma vez confirmar á a interpreta ção que, aqui, propusemos. b 151 Seg. Ana l. I, 2, 71 16-9.
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ríamos falar oportunamente. Logo veremos, entretanto, que conheo cimento apodítico, o que se obtém mediante o silogismo cient ífico, não é apenas uma entre outras formas deência; ci em verdade, o decurso do texto aristot élico mostrar-nosá que a limita ção de quepartimosé apenas aparente e que, em sentidoópr prio, nenhuma outra forma há de ciência que não a demonstrativa. Temos, então, que oinstrumento do conhecimento cient íficoé uma espécie de silogismo que chamaremos demonstra ção, silogismo este cuja cientificidade se manifesta no mesmo fato de identifica r-se sua posse (“por tê-lo”: ) com o conhecimento cient ífico. Não é a ciência o silogismo demonstrativo mas ele é o meio instrumental 152 de sua efetiva ção, é o discurso de que ela sempre se acompanha. E não somenteé o discurso silogístico o seu instrumento mas constitui, também, uma forma de discurso em cuja mesma estrutura ção vamos encontrar transcritas asçõ rela es causais e necess árias que a êcincia conhece. OsPrimeiros Ana l íticos tinham-nos definido o silogismo: “Silogismoé discurso() em que, postas certas coisas, algo de diferente das coisas estabelecidas necessariamente resulta fato do de elas 153 serem”. Como tal definição de silogismo o mostra, esse discurso que caminha do que é previamente posto para algo de novo e diferente apresenta as duas caracter ísticas da causalidade e necessidade, por que vimos definir-se a ciência: no silogismo, chega-se a algo novo porque certas outras coisas foram postas e em resultad o delas, como necess ária conseq üência. Ocorre, por ém, que se n ão confundem esta causalidade e esta necessidade internas do silogismo qualquer co m a causalidade e a necessidade cient í ficas. Com efeito, ao falar de demonstra ção ousilogism o cient ífico, imp licitam ente já pressupomos que silogismos h á que não demonstram e esta é, de fato, a doutrina constante de Aristóteles nosPrimeiros e nosSegun d os Ana l íticos . E já no mesmo início dosAnal íticos , distinguia-se o silogismo, em geral, do b b 152 Cf. Se g. Ana l.II, 19, 100 10;Ét. Nic. VI, 6, 1140 33. b Tóp. I, 1, 153 Prim. Ana l. I, 1, 2418-20. A mesma defini ção também nosTópicos se encontra, cf. 100a25-7.
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silogismo demonstrativo, insistindo-se na identidade da forma ís- silog tica, quer se trate, ou ão,nde demonstra ção.154 Mais adiante, explicitase claramente a rela ção entre o silogismo e a demonstra ção, que não é senão um caso particular daquele: “Com efeito, a demonstra ção é um determinado silogismo, mas nem todo silogismo é demonstração”.155 Em nada difere esta doutrina do que encontramos em outra parte do Órganon , istoé, nosTópicos.156 E também osSegund os Anal íticos confir157 mam-na explicitamente. Temos, assim, que demonstração ou silogismo cient íficoé aquele silogismo cuja causalidade e necessidade internas se ajustamà expressão da causalidade e necessidade que a ciência estuda. Dentro da silog ística geral, diz respeito à ciência, portanto, umaúnica região bem determinada. E a passagemdosPrimeiros aosSegund os Ana l íticos é a passagem do estudo daquelaística silog geral ao de uma silog ística particu lar,queà ciência serve de instrumento (o que não impede que ambos os tratados reunidos constituam um todo cujo escopo geral, confor me as mesmas palavras iniciadas dos Prim eiros An al í ti158 cos indicam,é o estudo da demonstra ção ). Tenhamos, pois, por 159 aceita, a especificidade da silog ística demonstrativa. 154 Cf.Prim. Ana l. I, 24a22-b15, onde Arist óteles distingue as premissas do silogismo demonstrativo das do silogismo dial ético, acrescentando que em nada importa tal diferen ça para a produção dos respectivos silogismos. 155 Prim. Ana l. I, 4, 25b30-1. E como vimos (cf. anota anterior), os Primeiros Ana l í ticos distinguem, como duas diferentes esp écies de silogismos, o demonstrativo edial o ético. 156 Em T óp . I, 1, com efeito, Arist óteles distingue como esp écies () do silogismo a demonstração, o silogismo dial ético, o silogismo íer stico e o paralogismo em mat éria científica.É extremamenteútil a comparação entre esse texto e o cap. 1 do livro IPrimeiros dos Anal í ticos : ambos, de fato, definem de modo êntico id o silogismo ambos e estabelecem uma distinção entre demonstra ção e silogismo dial ético;é apenas diferente o intuito com que o fazem, osPrimeiros Ana l íticos tendo em vista o silogismo em geral, de que v ão minuciosamente ocupar-se, osTópi cos tendo em mira a determina ção do silogismo dial ético, a cujo estudo o tratado sedestina (cf.Tóp. I, 1, 100a21-4). b a 157 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 71 23-5. Algumas linhas mais adiant e, em 72 9-11, distinguir-seá a premissa dialética da demonstrativa. a 158 Cf. Prim. Ana l. I, 1, 24 10-1. 159 Se nela insistimos,é que se minimizou freq üentemente a significa ção desse fato. Reconhec êlo, entretanto, sem tentar atenuar a distin ção que o filósofo claramente faz entre demonstração e silogismo,é levar a sério a contraposi ção que osAnal íticos e os Tópi cos , como vimos, estabelecem entre silogismo édial tico e silogismo demonstrativo (cf., acima, n.154-7)
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3.2 O silogismo e as matem áticas
Poderíamos, entretanto, perguntar onde encontra ó osofo fil fundamento para a afirma ção de queé mediante a posse de uma certa forma do silogismo, dita silogismo cient ífico ou demonstração, que se obtém a ciência. Nenhum argumento é invocado, naquele texto, para e, reconhecendo-se toda uma esfera daística silog que n ão respeitaà ciência, caminhar para a valorização do silogismo dial ético. Com efeito, nem sempre se reconheceu a significa ção do silogismo dial ético, preferindo-se, às vezes, n ão insistir no car áter particular do silogismo demonstrativo; recusa-se, ent Anal í ticos e vêem-se, nos dois tratados que ão, a unidade dos os compõem, momentos diferentes do pensamento aristot élico. Tal foi a posi ção de, entre outros, N. Maier e F. Solmsen, para os quais o racioc ínio dialético dosTópi cos representava uma primeira fase daólgica aristotélica; mas, enquanto Maier cria ter Arist óteles daí evoluído para adescoberta do silogismo, em geral, ó posteriormente s formulando a teoria do Segundos An al í ticos silogismo cient ífico, pretendia F. Solmsen, em sentido inverso, que os precediam osPrimeiros no tempo e na doutrina eque o fil ósofo, tendo primeiramente formulado uma doutrina daêci ncia, somente mais tarde teria constitu ído uma teoria geral do silogismo. Leia-se a exposi ção sucinta e cr ítica dessas duas interpreta ções e uma discussão pormenorizada e pertinente das rela ções entre osPrimeiros e osSegund os Anal íticos em Ross,Aristotle ’ s Prior a nd Posterior An aly tics, Introduction, p.6-23. Ou ãent o, reconhecendose embora a import ância da dialética dentro da doutrina aristot élica, nega-se, contudo, o emprego do silogismo pela dial ética; assim, Le Blond, concluindo, com Maier, a partir do fato de não aparecer o termonos livros II a VII dos Tópicos , pelo caráter tardio dos livros I e VIII, em que ele aparece, e pelo desconhecimen to do silogismo por parte da dialética aristotélica, crê que “le syllogisme, en tant que tel, ne constitue pas um proc édé thode... , p.30). Em importante charactéristique de la m éthode dialectique ” (cf.Logique et m é artigo publicado em 1951, E. Weil apontou, como uma das para o desprezo hist õesraz órico dosTópi cos de Aristóteles, a insist dos estudiosos numa concep errônea das reência çãodans lações entre a dialética e a analítica (cf. Weil, “La place de la logique la pensée aristotélicienne”, 1951, p.283-315); n ão somente o autor afirma a srcem dialética do silogismo, mas entende tamb ém que a descoberta do silogismo demonstrativo ãonlevou à substituição da dialética por uma novaécnica t nem ao abandono do silogismo édial tico. Le(cf. probl è me de l ’être ..., 1962, p.256, n.5), retomou Posteriormente, entretanto, Aubenque a posição de Maier e, aceitando embora a possibilidade de um ogismo sil ãno-demonstrativo, crê que a ordem do racioc ínio dialéticoé opostaà ordem natural do silogismo. Mais recentemente, De Pater dedicou toda umaàobra descrição e à análise dosTópicos aristotélicos (cf. De Pater,Les Topiques d ’ Aristote et la dia lectique plat onicienn e, 1965), estudoésrio e pioneiro nesse dom sões ínio; não julgamos, por ém, dever acompanhar o autor nas suas conclu sobre o silogismo dial ético, enquanto pretende que, tendo apalavra“silogismo” muitos sentidos, o silogismo ópico t e o anal ítico representam duas esp écies diferentes do silogismo que não possuem uma forma comum mas que apresentam, ambas – e eis o que constituiria a essência do silogismo – apenas, uma rela ção de necessidade entre premissas e conclusão (cf., ibidem, p.70-2 e, part., n.31). ãNo cabe, porém, nos limites deste estudo, uma investigação sobre o método dialético de Aristóteles e sobre sua utiliza ção do raciocínio silogístico.
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corroborar ou provaraquela asser ção, donde parecer-nos ílcito inferir que, também aqui, foi ocomportamento efetivo dasêci ncias existentes que permitiu, uma vez tomado como objeto de reflex ão e exame, se desvendasse seu modoópr prio de opera ção. Vimos, há pouco, terem sido as matem ci já constiáticas o exemplo privilegiado de ência tuída sobre que se exerceu a reflex ão aristotélica: estaremos, ent ão, pretendendo que as matem áticas se nos revelam como uma forma de conhecimento que constr ói silogisticamente suas infer ências e que a análise da demonstra ção matemáticaé, para o filósofo, a garantia daquela afirma ção? Não se trataria de uma interpreta ção passível de ser facilmente desmentida por quantos estudos êm tprocurado mostrar 160 a srcem biológica daólgica aristot élica? Eis, entretanto, que o pr óprio filósofo vem textualmente declarar -nos, ao argumentar sobre a maior cientificidade da primeira figura do silogismo:“De fato, as ciências matemáticas por meio dela produzem suas demonstra ções, como, por exemplo, a aritm ética, a geometria e aótica e, por assim dizer, quantas disciplinas empreendem ainvestiga ção do porquê”.161 E, por outro lado, algumas passagens, nos Anal í ticos e naMetaf í sica , contêm exemplos sugestivos que nos ajudam a compreender como Aristóteles terá entendido a constru ção silogística do raciocínio ma162 temático. Tomemos, ent ão, um desses exemplos, o do teorema que prova serem iguais a dois retosâos ngulos do tri ângulo.163 Seja o triângulo ABC. Les é tapes de la philosophie math é matique, 1947, 160 Tal é, por exemplo, a posi ção de Brunschvicg (cf. p.72 seg.). O autor pr ocura mostrar, com efeito, que o sistema silogdos tr ístico ês termos e das três proposi ções “constitue une sorte de vie organique, qui estèparall le à l’existence des choses et qui donne le moyem ’end comprendre la gen èse” (p.79). Le Blond partilha igualmente essa hipótese, e para ele, é também a biologia que serve de guia para aógica l de Arist óteles: os exemplos matem áticos e o vocabul ário de que oófil sofo se serve nos Anal í ticos testemunhariam apeLogique et m é thode ..., 1939, p.71-2). nas de sua pr ópria ilusão a esse respeito (Cf. Le Blond, a 161 Seg. Ana l.I, 14, 7918-21. a 162 Cf., por exemplo, Seg. Ana l. I, 1, 71a19 seg.; II, 11, 94 28 seg.;Met. , 9, 1051a21 seg.; M, b 10, 108634-6. 163 Cf. Met. , 9, 1051a21 seg. Ross (cf. nota ad locum ), em cujo coment ário e interpreta ção do raciocínio aristot élico nos apoiamos, julga prov ável que Aristóteles tenha conhecido a proposição sobre a igualdade dos ângulos do triângulo a dois retos emsua forma euclidiana
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A construção geométrica, prolongandoBC até D e traçando CE paralelamente aBA é obra do pensamento em ato do ôge metra que, efetuando a necess ária “divisão” () do espaço geométrico e das figuras, faz passar,também ao ato, o que era, até agora, simples potencialidade geom étrica (). Mas, uma vez efetuada a“divisão”, a inferência silogísticaé imediatamente poss ível e a prova torna-se evidente. De fato, de proposi ções conhecidas, por teorema anterior,sobre osângulos formados por secante a duas paralelas, tomadas como premissas maiores, conclu ímos silogisticamente queãos iguais os ângulos CAB e ACE, assim como osângulosABC e ECD. Aplicando, agora, o princ quantidades iguais ípio de que as somas de ão siguais, temos que a soma dos ângulos do triângulo (CAB + ABC + BCA) é igual à soma dos ângulos em torno do pontoC (ACE + ECD + BCA, ângulo comumàs duas somas), enquanto somas de ângulos iguais. Concluído mais este silogismo, podemos agora construi r o silogismo (é a proposição I, 32 de Euclides). Mas Rossãn o leva em conta, em seu coment ário, o caráter silogístico da demonstra ção, que mostramos ser importante, aos olhos deóArist teles. Por outro lado, devemos reconhecer que a efetiva valida ção de nossa reconstrução do silogismo aristot élico sobre a igualdade da soma dos ângulos do tri ângulo a dois retos, que a seguir propomos, exigiria todo um desenvolvimento sobre a doutrinaétlica aristo doum , enquanto o mesmo que ser , domesmo e doigual (cf., particularmente, Met. , 2; I, 2 e 3). Esclarecer-se-ia, ent ão, como se pode dizer que, sequantidade a a é igual à quantidadeb , ena e b são uma só e a mesma quantidade, a quantidade aé tão sob um certo prisma a quantidadeb , Mas um tal estudo iria beméal m do escopo deste livro.
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final da cadeia demonstrativa, tomando como premissa maior uma proposição anteriormente conhecida (sobre a igualdadeâdos ngulos em torno de um ponto a dois retos) e, como menor, a conclus ão do silogismo que acabamos de demonstrar: Toda soma dos ângulos em torno de um ponto é um ângulo de dois retos. Toda soma dos ângulos de um tri ânguloé uma soma dosângulos em torno deum ponto. Toda soma dos ângulos de um triângulo é um ângulo de dois retos. Manifesta-se, assim, que, aos olhos de óArist teles, seé importante
“a significa ção da intuição da construção para a compreens ão da prova”,164 o queé essencial na demonstra ção geométrica – o queé realmente demonstrativo – é a cadeia silogística que levaà conclusão final, em introduzindo a sua causa óxima: pr “Por que são osângulos do triângulo iguais a dois retos? Porqueângulos os em torno de um ponto são iguais a dois retos ”.165 É fundamental compreender este ponto para dissipar confus ões que concernemà questão da relação entre o raciocínio matemático e a silogística,em Arist óteles . Com efeito, tr ês problemas h á que são totalmente distintos e se ãondevem misturar: o da gênese histórica do silogismo e de sua descoberta, por Arist óteles, o da doutrina aristot élica sobre a demonstra ção matemática e, por fim, o da eventual corre ção ou incorreção da interpreta ção silogística do raciocínio matemático. Ora, quaisquer que tenham sido os caminhos que conduziram o fil ósofo ao silogismo– quer tenha ele nascido da reflex ão aristotélica sobre as discuss ões dialéticas de que a Academia e o pr óprio Liceu foram o constante teatro u ode sua cr ítica aos processos ólgicos da argumenta ção platônica (sobretudo, ao émtodo 164 Como se exprime Ross (cf. notaad 9, 1051a32-3), que a í vê uma antecipação da doutrina kantiana da natureza sint ética do procedimento matem ático. 165 Met. 9, 1051a24-5.
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da divis ão dicotômica166 ), quer das pr áticas e ét cnicas classificadoras da investiga ção biológica que a Academia á conhecia j e que Arist óteles, 167 como se sabe, grandemente impulsionou, quer de qualquer outra srcem – e seja qual for a aptid ão ou inaptid ão do silogismo para trans168 crever as infer outro ências da geometria que Arist óteles conheceu, problema – e este é o que aqui nos interessa– é o de saber como Aristóteles interpretou o racioc ínio matemático. Ora, vimos que os textos do filósofo são meridianamente claros: a seus olhos, o exame dos processos de pensamento utilizados pelas êcincias constituídas,isto é , pelas ma temáticas , revela-nos a natureza silog ística do discurso científico, o elemento doutrinal mais uma vezerigindose sobre a consideração do “fato” científico. Tal é a interpretação aristotélica e tal é o prisma sob o qual, explicitamente, Arist óteles elabora osSegund os Ana l íticos .
3.3 O silogism o cient í fico e o conhecimento d o “que”
Se o discurso cient ífico assume, ent ão, a forma da demonstra ção silogística,é natural queencontremos a terminologia silog ísticaper166 Veja-se, por exemplo, a crítica do método platônico da divisão, emPrim . Anal. I, 31, onde a
silogismo imp otente ” (46 32). Segundo Maier, a srcem Arist como um óteles o caracteriza “precisamente, do silogismo aristot élico deve-se, à sua crítica do método platônico da divisão (cf. Maier, Die Sy llogistik d es Aristotele s , 1900, II, 2, p.77). 167 Leiam-se as páginas que Bourgey consagra à “observação biológica” no seu excelente livro intituladoObservation et exp é rience c hez Ar istote , 1955, p.83 seg., a nosso ver, uma das melhores obras da historiografia aristot élica contempor ânea. Cf., tamb ém, Reymond,Histoire des sciences exactes et na turelles da ns l ’ Antiquit é gr é co-romaine , 1955, è1re Partie, Chap.er,1§ 7: “Aristote et l’école péripatéticienne. Les sciences naturelles ”, p.74-5. Sobre os “esquemas biológicos” utilizados por Arist óteles na constitui ção dos“quadros” de sua doutrina, cf. Le Blond,Logique et m é thode... , 1939, p.346-70. Por outro lado, no que concerne a uma á- prov vel influência das étcnicas classificadoras ligadas ao emprego daãdivis o, na Academia, sobre a metodologia aristotélica, v. a“Notice” de A. Diès, que precede sua tradu ção do Políti co, de Platão, na Collection des Universit s de France ( Les Belles Lettres , p.XXVI seg.) e é “ ” que contém o texto e a tradu ção da famosa passagem doômico c Epícrates sobre a dilig ência classificadora dos jovens acad êmicos. 168 Já Hamelin criticava Arist óteles por ãno ter reconhecido, “pu isque les essences math é matiques sont singuli è res ”, que“les ma th é matiques é chappent a u sy llogisme ” (cf. Hamelin, Le syst è me 2 rev. d ’ Aristote , 1931 , p.181).
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manentemente presente na doutrina dos Anal í ticos sobre a ciência: teremos de haver -nos necessariamente com premissas e conclus ões, com termos m édios, com as êtrs figuras. Por isso mesmo, lembrar-nosá o filósofo, desde o in ício, que proposi ção é uma ou outra das partes da contradição, afirmando ou negando um predicado de um sujeito, algo de algo ( ou ).169 Compreendemos, também, que o resultado do conhecimento cient , ífico se nos dar á, necessariamente sob a forma de conclus ões dos silogismos ou de cadeias de silogismos (em que tamb silogismos as coném servem como premissas de novos clusões de silogismos anteriores) e, portanto, sob formauma de atribuição: provamos cientificamen te que talpredicado pertence (ou ão)n a tal sujeito, provamos sempre algo de algo éatrav s do termo m édio.170 171 E, uma vez queé sempre a ciência relativa ao ser que ela conhece, a atribuição que a conclusão exprime não é senão a expressão, por sua vez, deque algo é : “toda demonstra ção prova algo de algo, ou seja, que é ou que não é” ( ).172 Nesse sentido, diremos que toda demonstra ção exprime o conhecimento cient ífico de um“que 173 é” ( ), elaé sempre do“que” (). O que facilmente se com169 Cf. Seg. Anal . I, 2, 72a8-14, onde se retoma a doutrinaPrim de . Ana l. I, 1, 24a16 seg. e deDa In t ., cap. 5 e 6. Seguimos Colli (Cf. Organon, Introduzione, traduzione e note de G. Colli, Torino, Einaudi, p.893-6), na sua bem fundamentada correção dode Seg. Anal . I, 2, 72a8-9 em, assim como, quando prefere, contra Ross,çã a oli do códice a, a , em a11, ao invés de dos outros c ódices. A passagem inteira de 72 814 torna-se, assim, perfeitamente concatenada e compreens ível. 170 Cf. Seg. Ana l. II, 4, 91a14-5:“com efeito, o silogismo prova algo de algo atrav és do termo médio”. 171 Cf., acima, I, 1.2. b 172 Seg. Ana l. II, 3, 90 33-4. b Segun173 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b14-5; 3, 90 38-91a2. Aristóteles, que, no in ício do livro II dos dos Anal í ticos (cf. II, 1, todo o cap ítulo), distingue entre a pergunta sobre“oque” () e a pergunta sobre se algo é ( ), em sentido absoluto, interpreta, no cap ítulo seguinte, essa distinção como uma distinção entre o“que” ou “se é”, em parte ( ) e o“que” ou “se é”, em sentido absoluto (), isto é, entre o fato de algoser algo ( ) e o b fato de algoser , simplesmente (cf. II, 2, 89 36 seg.). Voltaremos longamente a esses textos no cap. V, ao falarmos da rel ação entre a demonstra ção e a defini ção. Quantoà tradução de, nos casos em quest ão, em que a part ícula se emprega, por vezes, substantivada, como termo técnico, julgamos prefer ível a tradução literal (“que”), apesar de sua insólita aparência. Mas não menos insólita era, naílngua grega, a maneira por que Aristóteles
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provará, observando-se como constrói suas demonstrações, por 174 exemplo, a geometria. 3.4. Das condições de possibilidade da demonstração
Se chegamos, então, ao conhecimento científico através do silogismo demonstrativo, se o que se conhece cientificamente se exprime como conclus ão desse silogismo e se esse silogismoãondifere 175 formalmente, como vimos, de nenhum outro, é natural que o filósofo se interrogue, agora, sobre que condi ções se devem preencher para que um silogismo seja demonstrativo, ist oé, para que, exprimindo um conhecimento causal do necess ário, seja oefetivo instrumento do saber cient ífico. Quais ãso, por conseguinte, as condi ções de possibilidade da demonstra ção e, portanto, daêci ncia? Antes deacompanharmos o filósofo nesse novo passo, lembremos, no entanto, a quest ão preliminar que ele levantara, antes mesmo de abordar o estudo do conhecimento cient ífico, com as pr óprias palavras iniciais dos Segundos Anal í ticos , ao observar que, em todaesfera a diano ética, istoé, onde quer que o conhecimento se exer ça pelo pensamento eãn o, pela sensibilidade, aprendizado ou transmiss efetuam ão de conhecimento sempre se a partir de um conhecimentoévio pr que já se possuía.176 Que assim se a utilizava, forjando seu vocabul ário filosófico. Em assim procedendo, evitamos dois inconvenientes, em um dos quais teríamos forçosamente de cai r, em caso contr ário: seja o de empregar per ífrases, que variariam, necessariamente, naçã tradu o de cada passagem e que diriam muito mais (ou muito menos...) do que disse ósofo, o fil seja o de utilizar um voc ábulo Observat ion et expé rience como“fato”, por exemplo (de que se servem Bourgey (cf. Bourgey, chez Aristote , 1955, p.103; cf., entretanto, p.105), S. Mansion Le jugement d ’ existence ..., (cf. 1946, p.163, por exemplo), Robin (cf. “Sur la conception aristot élicienne de la causalit é”, in La pens é e hell é nique des srcines àÉpicure, 1942, p.425) etc.; ora, ão somente n tal voc ábulo tem, em nossasínguas l modernas, acep ções que emnada correspondem ao aristotélico, como, também, ele se presta mal a traduzir a idéia aristotélica de que“algo é algo” ou de que “algoé, simplesmente ”. Além disso, passagensáh, nos textos, em que a tradu ção “fato” seria absolutamente insustent ável. 174 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b16; cf., tamb ém, I, 10,a33-6;b8-11 etc. 175 Cf.,acima,I, 3.1 e n.154. a b 176 Cf. Seg. Ana l. I, 1, com., 71 1-2 e todo o cap ítulo; cf., tamb ém, Ét. Nic. VI, 3, 1139 26-7:“Todo ensinamento parte do que é previamente conhecido, como dizemos, étamb m, nos Anal íticos”. V., acima, n.2.
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passam as coisas, uma simples verifica ção indutiva poder á facilmente comprová-lo, pois, quer se trate das matem áticas ou de cada uma das outras ci ências e artes, quer dos silogismos ou çõ indu es dialéticas, quer dos exemplos ou entimemas ret óricos, vê-se que os racioc ínios 177 todos, sejam eles silog partem sempre de algo ísticos ou indutivos, 178 que já se conhece: é de algo conhecido que para algo de novo caminha o conhecimento , na esfe ra d iano é tica. 179 O exemplo mesmo das ciências matemáticas, que o texto ao lado dos outrosefere, r deixanos cientes de que tamb ém os conhecimentos que nos oferecem as ciências constituídas se desenvolvem numa progress ão em que o pensamento disco rre do que se conhece ao que se torna, a partir í, da conhecido. Sob esse prisma, a pergunta que á pouco h formul ávamos sobre as condi ções de possibilidade da demonstra ção científica poder á, então, reformular -se: queconhecimento anterior é necessário para que se construa um silogismo cient ífico? E, visto que se constr ói o silogismo sobre suas premissas: de que natureza ão as s proposi ções cujo prévio conhecimento nos torna possível erigir sobre elas a demonstração silogística? Propõe-se o filósofo a responder-nos; acompanhemo-lo, então, nesse seu passo.
177 E toda convicção que em nós se produz prov ém sempre ou do silogismo ou da indu ção, cf. b Prim. Ana l . II, 23, 68b13-4;Ét. Nic. VI, 3, 1139 26-8. Atente-se, por outro lado, em que a tico , ao lado do silogismo (cf. indução se diz, nosTópicos, uma das formas do racioc íniodial é Tóp. I, 12, o cap Segund os Anal í ticos não na apresentam como uma ítulo todo), enquanto os forma do racioc ínio científico. a 178 Cf. Seg. Ana l. I, 1, 71 2-11. 179 Precisão esta que, como veremos na ocasi ão devida,é extremamente importante.
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II O saber anterior
1 As premissas d a d emonstra ção 1.1 Natureza das premissas cient í ficas
“Se conhecer cientificamente é, pois, como estabelecemos, também é necessário que a ci verência demonstrativa parta de premissas dadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas, anteriores causas e da conclusão; pois, assim, tamb ém os princípios () serão apropriadosà coisa demonstrada. Com efeito,haverá silogismo mesmo sem essas condi ções, mas não haverá demonstração, pois ele ãno pro1 duzirá ciência”. Esse textoé fundamental para a teoria aristot élica da ciência e nenhum exagero áhem dizer que todoo primeiro livro dos Segund os Ana l í ticos se estrutura em comentando-o; como mui corretamente se observou, o ófil sofo“consagra, praticamente, o resto do tratado a justificar cada uma dessas notas propostas moco as caracter ísb 1 Seg. Ana l. I, 2, 71 19-25.
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ticas da verdadeira demonstra ção”.2 Haveremos, pois, óns também, de longamente coment á-lo. Das linhas acima transcritas uma coisa imediatamente resulta: é que o estudo das condi ções sine q uibu s non do conhecimento cient ífico nos conduz diretamente ao exame da natureza particular das premissas do silogismo cient ífico. Como era de espe rar,3 ser -nos-á preciso buscar na natureza especial das premissas científicas a raz ão da mesma especificidade do racioc ínio demonstrativo; ã eoné de outro modo, á ali s, que também osTópicos estabelecem, de in ício, a distin ção entre a de4 monstra ção e o racioc ínio dial ético, caracterizando-os, a primeira, por repousar em premissas verdadeiras e primeiras (ou em premissas que se concluíram de premissas verdadeiras e primeiras), o segundo, por fundar-se em premissas aceitas ( ).5 Idêntico critério também Prim eiros Ana l í ticos estabelecem, denpresideà distinção inicial que os tro das premissas silog ísticas, entre premissas demonstrativas e premis6 sas dial éticas, sobre que se estruturamsilogismos os correspondentes. thode ..., 1939, p.74. Acrescenta,épor 2 Le Blond, Logique et m é m, o autor: “Nous ne le suivrons pas servilement, mais il nous semble qu ’on peut grouper tous ces caractères de la démonstration, autour de deux conditions essentielles: la d doit partir de émonstration propositions vraies, , et elle doit se faire par la cause, ’”. A nosso ver, entretanto, nada justifica (cf., acima, cap. I, n.4), que seprivilegie, assim, a caracter ística de “verdade”; o temor de seguir“servilmente” Aristóteles e a recusa em acompanhar o pr ogresso metódico do raciocínio do filósofo são, em nosso entender, os principais respon sáveis por ter escapado a Le Blond a unidade coerente da doutrina aristotélica da ciência. 3 Cf., acima, I, 3.4. 4 Cf. Tóp. I, 1, 100a27 seg.; cf., tamb ém, acima, cap. I., n.156. 5 Julgamos preferível traduzir o termo por proposi ção “aceita”, rejeitando uma interprea tação freqüente, que o traduz por 30:“pre“provável”, “verossímil” etc. Assim, Tricot, ad 100 misses probables ”; Régis, L ’ opinion selon Aristote , 1935, p.83-6, 140 etc.): “propositions probables ”; Le BlondLogique ( et m é thode ..., 1939, p.9 seg.): “probable ”; AubenqueLe( problème de l’être..., 1962, p.258): “thèses probables ”. A defini ção do termo peloópr prio Arist óteles ( , b cf.Tóp. I, 1, 100 21-3) mostra-nos, com efeito, que sua significa ção primeira e fundamental diz respeito ao que ( ), parece (=é o parecer de, a opini é aceito ão de) a todos, ou à maioria etc. Mais aceit áveisafiguram-se-nos astraduções de Pickard-Cambridge The(Work s of Aristotle , Oxford Univ. Press, vol.Topic I, a a nd De Sophist icis Ele nchis a, by W. A. PickardOrganon ), respectivamente, ad Tóp . I, 1, 100 Cambridge) e de Colli (Aristotle, 30:“opinions that
are generally accepted ” e “elementi fondati sull ’opinione”. Cremos não ser de pouca importância a tradu ção exata do termo para a correta interpreta ção da dialética aristot élica, a qual, precisamente, se ocupa do silogismo dial ético, istoé, do silogismo que parte de . 6 Cf. Prim. Ana l. I, 1, 24a22-b3.
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1.2 Justifica ção de suas notas caracterí sticas
A seqüência imediata do texto aristot élico7 é uma primeira justificação daquelas notas caracter ísticas e um primeiro esclarecimen to sobre seu significado: “É preciso, portanto, que elas sejam verdadeiras, porque não é possível conhecer o não-ser, por exemplo,que a diagonal é comensur ável. Que se parta de premissas primeiras, indemonstráveis, porque[subent.: de outro modo] não se conhecer á cientificamente, em não se tendo demonstra ção delas; poisconhecer cientificament e, não por acidente, as coisas de que h á demonstra ção é ter a demonstra ção. É preciso que sejam causas, mais conhecidas eriores: ante causas, por que é quando conhecemos a causa que conhecemos cientificamente; também anteriores, uma vez que ão causas; s epreviamente conheci das, não apenas da segunda maneira, pela compreens ão, mas, tamb ém, por 8 conhecer-se que a coisa é. ‘Anteriores’ e ‘mais conhecidas’ dizem-se em dois sentidos: com efeito, ãno são idênticos o anterior por natureza ( ) e o anterior para nós ( ) nem o mais conhecido([subent.: por natureza]) e o maisconhecido por nós ( ). Chamo anteriores e mais conhecidas para n ós às coisas mais pr óximas da sensação, anteriores e mais conhecidas em absoluto (), às mais afastadas. As mais universais são as maisafastadas, as individuais, as mais pr e opõemóximas; se umasàs outras. Partir de premissas primeiras ( ) é partir de princípios apropriados: identifico, de fato, premissa primeira e princípio (). Um princípio de demonstração é uma proposição imediata(, imediataé aquela a que n ão há outra anterior.” 1.3 O conhecimento dos princí pios, outra forma de ciência
Antes de estudarmos em detalhe todas essas noções, atentemos em que agora se patenteia para ósnque o conhecimento pr évio a todo 7 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 71b25 seg. 8 Aristóteles refere-se às duas formas deconhecimentoépr vio que distinguira em Seg. Ana l. I, 1, 71a11-7: conhecimento da significa ção de um termo e conhecimento de queé algo ( ).
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saber diano ético9 assume, na esfera daêci ncia, o car áter de um conhecimento anterior de proposi ções de determinada natureza, premissas primeiras dos silogismos demons trativos, que o nosso texto chama de princípios da demonstra ção e que diz indemonstr áveis. Compreenderemos, então, que o conhecimento desses indemonstr áveis iniciais a partir dos quais o silogismo demonstrativo se constr ói constitui aquela outra maneira de conhecer cientificamen te ( ) a cuja eventual existência vimos o fil ósofo fazer alusão, opondo-aà demonstração.10 E, como dir á explicitamente, um pouco depois: “Nós afirmamos que nem toda ci ênciaé demonstrativa, mas que a das premissas imediatasé indemonstrável”.11 Temos, assim, dentro da mesma esfera científica, um uso lato do termo , designando tanto o conhecimento se obt demonstra aquele outro, por este, ém porcomo çã ao que que vemos, exigido sua condi çãoocomo sine q ua non , das premissas primeiras, que n ão se demonstram. Conv ém, entretanto, esclarecer que esse uso mais amplo do termoãn o é o mais rigoroso e que Aristóteles, no mais das vezes, prefereeservar r tal apela ção ao conhecimento demonstrativo, claramente distinguindo entre o conhecimento causal do mediato e a apreens ão do imediato, negando, por conseguinte, que possa haver “ciência” das premissas primeiras ou princípios, os quais, por serem “mais conhecidos que as demonstra-
ções” e porque “toda ciência se acompanha de discurso” ( ’ ), dir-se-ão conhecidos, n ão pela ciência (), mas pela intelig ência (): “haverá inteligência dos princ ípios”.12 Em sentido estrito, ent ão, diremos que todaêci nciaé demonstrativa e que o conhecimento cient íficoé sempre um conhecimento discursivo, sob forma de silogismo ou cadeia desilogismos que, a partir de premis9 Cf., acima,I, 3.4e n.176 a 179. 10 Cf., acima, I, 3.1 e n.151. b
Ana l . I, 3, 7218-20. 11 Seg. b 12 Cf. apassagem final dos Anal íticos , i.é, Seg. Ana l. II, 19, 100 5-17; cf., tamb ém, Ét. Nic. VI, a 6, todo o capítulo, particularmente 1141 7-8: . Julgamos preferível traduzir por “inteligência” a traduzi-lo por“intelecto” ou “intuição”, por crermos mais áf cil unificar sob aquele termo as diferentes signifi cações que definem a expressão grega nos diversos textos em que oósofo fil a emprega.
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sas primeiras ou princ ípios previamente conhecidos pela intelig ência, obtém conclusões exprimindo um necessário, que é o seu objeto. Quanto ao uso lato do termo “ciência”, abrangendo tamb ém o conhecimento dos princ e atribui a denomiípios, podemos dizer que ele lh nação de ciênciaeminenti æc au sa: o conhecimento dos princ ípios será ciência porque anterior e superior ao conhecimentoífico, cientque nele encontra o seu fundamento.
Ciência e verda de 2.1 O ser e o verdad eiro, no pensam ento e nas coisas
[subent.: as premissas] sejamver“É preciso, portanto, que elas dadeiras, porque ãno é possível conhecer o não-ser, por exemplo, que a diagonalé comensur ável”.13 Nada mais acrescenta Arist óteles para justificar o fato de ter incluído a verdade como uma dasnotas características das premissas cient íficas nem, tampouco, encontraremos, no restante dos Segun dos An al í ticos , uma doutrina qualquer da verdade científica; oúltimo capítulo do tratado lembrar-nos-á, simplesmente, como algo sobre queãno pode pairar d úvida, que, dentre os estados ou“hábitos” que concernem ao pensamento e com que çalcan amos a verdade, enquanto unstambém comportam a falsidade, como a opinião e o cálculo, outros h á que são sempre verdadeiros:“são sempre verdadeiras ciência e intelig ência”.14 Ora, não nos será difícil descobrir por que isto ocorre e por que a doutrina analítica da ciência não aborda a problem ática da verdade. Com efeito, aoensinar-nos aMetaf ísica que o ser ( ), tomado em absoluto (), se diz em muitos sentidos ( ), inclui, entre eles, ao lado do ser por si ( ’) e do ser por acidente ( ), do ser em ato ( ) e em potência (), também o ser, como verdadeiro ( ), a que faz corresponder o ãno-ser, b 13 Seg. Ana l. I, 2, 71 25-6. b 14 Seg. Ana l. II, 19, 100 7-8.
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como falsidade( ).15 Assim, de modo semelhante nas afirmações e nas negações, ao afirmarmos que óScratesémúsico ou ao dizermos queé“não-músico”, estamos tamb ém dizendo que isso é verdade, do mesmo modo como, ao declararmos queãn o é a diagonal comensurável com o lado, estamos tamb ém dizendo que há falsidade em atribuir-lhe a comensurabilida de.16 E, como nos explicar ão 4 a 10, o ser, como verdadeiro, e oão-ser n , como falsidade, dependem de uma composi ção () e de uma separação () do lado das coisas ( ), ambos compartilhando dos mem17 bros de uma contradição: o verdadeiro afirma ondeáhcomposição, nega onde h ju respecá separação, enquanto o falso concerne aos ízos tivamente contradit órios. Assim,“está com a verdade o que julga que o separado está separado e que o composto est á composto, incorreu em falsidade aquele cujo estado [subent.: do pensamento] é contrá18 rio ao das coisas ”. A verdade e a falsidadeãn o se encontram, ent ão, nas coisas ( ) mas no pensamento ( ), o que nos permite dizerque o ser, como verdade, est á numa combinação () do pensamento eé, deste, uma afecção (),19 o juízo a b a 15 Cf. Met. E, 2, com., 1026 33-5; 4, 1027 18-9;, 7, 1017a31-2; K, 8, 1065 21. Como nota, a com razão, Aubenque, designa, em E, 2, 1026 33, o“ser enquanto ser ”, de Le probl è me de que o capítulo precedente fizera o objeto da filosofia primeira (cf. Aubenque, l ’être ..., 1962, p.164, n.2). 16 Cf. Met. , 7, 1017a32-5. 17 Cf. Met. E, 4, 1027b18-23;, 10, 1051b1 seg. Não cremos que Aubenque tenha raz ão (cf. b Aubenque, Le probl ème de l ’être..., 1962, p.165 seg.), quando interpreta , em 1051 2-3, ’ , como se Aristóteles, aqui ao contrário de como procedeu em E, 4, falasse de uma verdade, on ível a das coisas. Ainda que o autor procure mostrar, no que tem ã raz o, que nenhuma contradi ção real existe entre os dois textos, nem mesmo nos parece, entretanto, que haja contradi ção aparente: a seq üência do texto, b b em , 10, e as express ões análogasàs de 10512-3, em E, 4, 102721-2 ( ), indicam claramente, a nosso ver, que ão cogita n Arist óteles de nenhuma “verdade ontológica” ou “pré-predicativa”, mas explica simplesment e que a verdade e a falsidade dizem respeito a íju zos que retratam a composi ção e a divisão objetivas, ao ín vel das coisas. Cf., adiante, n.19 e 31. b 18 Met. , 10, 1051 3-5. a 19 Cf. Met. E, 4, 1027b29-31; 34-1028 1; K, 8, 1065a21-3. Atente-se em que o text o de E, 4 não exclui, pelo fato de a isso não fazer alusão, que a essa combina ção no pensamento corresponda uma composi ção nas coisas. Ali ás, a seqüência do texto mostra-o, com clareza.
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verdadeiro, imitando, pela sua mesma estruturação interna, a composição ou separação das próprias coisas. Mas, porque afec ção do pensamento,“o ser, nesse sentido,é um ser outro que ãno as coisas que, em sentido próprio, são ( )”,20 isto é, outro que não 21 o ser das categorias. O ser, como verdadeiro, não é mais que um desdobramento, na alma do homem, do ser propriamente dito; se, sob esse prisma, diz respeito, em última análise, tanto como o ser por acidente, ao“restante gênero do ser”, ao serpor si das categorias, em si mesmo não constitui, porém, alguma natureza de ser“exterior”.22 “Verdadeiro é dizer ... que o ser é, que o não ser não é”.23 Por isso mesmo, porque, como nos diz 10,“não é, com efeito, por julgarmos, com verdade, queés pálido, que tués pálido mas, por seres p álido, 24
estamos na verdade, ao êdiz -lo”, quando Aristóteles, nesse mesmo capítulo ao introduzir o ser, como verdadeiro, apresenta-o como , como “ser, no sentido dominante”,25 se não queremos 26 tomar essas palavras como simples glosa ao texto a ser suprimida, deveremos interpretar esse “no sentido dominante ” como“no sentido mais próprio”, “no sentido mais comum ” em que se usa a express ão: b 20 Met. , 4, 1027 31. 21 Cf. Met. , 7, 1017a22-4:“Dizem-se ser por si ( ’) quantas coisas se significam pe-
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23 24
25 26
las figuras da atribui ); com efeito, quantas se dizem elas,n-ta ção ( tas são as significa ções de‘ser’ ()”. Para uma outra interpreta ção do último membro Le probl è me de l ’être ..., 1962, p.170 e n.3. dessa frase, cf. Aubenque, Cf. Met . E, 4, 1027b33-1028a2. Por esse motivo, o ser, como verdadeiro (assim como, por razões outras, o ser por acidente)ãn o será estudado pela ci ência do ser enquanto ser, cf. a a ibidem, 1028 2-4; K, 8, 1065 23-4. b Met. , 7, 1011 26-7. b Met. , 10, 1051 6-9. De modo que, como nos explicamCategorias as , (cf.Cat. 12, 14b1122), seé certo que uma rela ção de recíproca implicação se estabelece entre o real e o discurso verdadeiro que lhe concerne (por exemplo:á se umh homem,é verdadeiro o discurso que diz haver um homem e, se tal discurso é verdadeiro,áhum homem),é certo, tamb ém, que há uma anterioridade natur al do ser sobre o discurso verdadeiro, a qual podemos, inclusive, descrever em termos de causalidade: “de algum modo, manifesta-se a coisa como causa de ser verdadeirodiscurso o ” (ibidem, l. 19-20), enquanto, de nenhum modo, é o discurso verdadei ro causa de a coisa ser. b Cf. Met. , 10, 1051 1-2. ComoquerRoss, cf. notaad locum .
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Aristóteles estaria, simples mente, a dizer-nos que, dos m últiplos sentidos de“ser”, o que nosé mais imediato e comum e, sob esse ponto de vista, o mais próprio é aquele em que se toma uma frase como “Sócratesé músico” como expressão de que issoé verdade , anteriormente a qualquer especula ção sobre a significa ção metafísica da proposição atributiva. Nenhuma contradi ção haveria, ent ão, entre aquela afirmação e a de 4, em que vimos o ser , como verdadeiro, dizer -se outro que não os seres, “em sentido próprio”, isto é, aqui: em sentido primeiro, fundamental do ponto de vista de uma filosofia do ser; trata-se, apena s, do uso, em sentido diferente, de um mesmo-ter mo, que comporta, efetivamente, diferentes significa ções.27 Nem estaria Aristóteles a chamar ao ser, como verdadeiro,“de ser, por excelência” nem a cogitar de uma “verdade ontológica”, de um ser, como “abertura ao discurso humano que o desvela ”.28
27 Da mesma família lingüística que (o que tem autoridade, senhor, mestre, soberano), o advérbio , na linguagem aristot élica, aplicadoà significação de um termo, “ipsam propriam as primariam alicuius vocabuli notionem, proprium ac peculiare alicuius notionis nomen significat ” (Bonitz,Index , p. 416a56 seg.). Assim,designa apenas o uso próprio da expressão em oposição a seu sentido metaf órico, ao seu uso , istoé, não um sentido ontol ógica ou epistemologicamente primeiro mas, simplesmente, o sentido literal, cf. Tóp. IV, 2, 123a33-7 (o gênero atribui-seàs espécies em b
sentido próserem prio e n metáfora); VI, 2, 139em 2 seg. (os ótermos defini corão, pordevem çãometareta, para claros, empregar-se sentido prio pr e nde ão,uma em sentido a b a fórico); 140 7, 13, 16; VIII, 3, 158 11-2; Ref. Sof. 4, 166 16. Entretanto, ao falar das acepções de natureza (por exemplo, emMet. , 4, 1015a14), de necessário (por exemplo, emMet. , 5, 1015b12), ao dizer-nos que o atoé anteriorà potência (cf. Met. , 8, 1050b6), Aristóteles refere-se ao sentido“dominante”, próprio, primeiro, fundamental desses voc ábulos, enquanto significam o que é primeiro e fundamental no mesmo real, tal como o ófilsofo o concebe. Ora, quer parecer-nos que, quando Arist óteles fala, emMet. , 10, 1051b1-2, do ser,como verdadeiro, como , ele usa o termo numa acepção paralelaàquela em que o emprega nos primeiros textos acima citados: não, propriamente, para designar o uso literal oposto a um usoórico metaf do termo, mas, antes, o uso comum, em oposi ção a uma significa ção mais elaborada, um sentido mais literal e imediato em oposi ção, por exemplo, a umasignificação filosófica. É, aliás, a interpretação que, também, parece sugerir Jaeger para passagem, a em quest ão, deMet. e que Ross rejeita (cf. nota ad locum ). Julgamos, com efeito, que uma tal leitura suprime toda a dificuldade do texto, sem corrigi-lo, mantendo ao mesmo tempo sua coer ência interna e sua concord ância comMet. , 4. 28 Cf. Aubenque,Le probl ème de l ’être..., 1962, p.168-9.
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2.2 A in teligência e as coisas simples
Coisas há, entretanto, como as coisas simples ( ) e as qüididades, das quais, porque nelas ãonhá composição (são e, nelas, 29 nã),o nem consiste o ser reunido, o-ser, n num estar ãna separado mesmo senum podeestar dizer que estejao , istoé, no 30 pensamento discursiv o, a verdade quelhes concerne; não se dirá, portanto, que verdade e falsidade í sea encontram como no caso pre31 cedente: já que não é o mesmo oser, tamb ém não será a mesma a verdade e o verdadeiro, aqui, será, tão-somente, um, uma apreensão pela inteligência, queé um entrar em contato ( ) com 32 a coisa; não se formulará, a seu respeito, um juízo afirmativo (), masdir-se-á a coisa numasimples enuncia ção ().33 Do mesmo modo, a falsidade ser á, para tais coisas, algo de diferente ou, melhor, não haverá propriamente falsidade nem possibilidade de estar-se enganado a respeito delas, mas, apenas, ignor ância (), um não entrar em contato com a coisa, um ãonapreendê-la pela inteligência ( ).34 De qualquer modo, tamb ém para as qüididades e para os simples,é ainda o ser propriamente dito que serepete na alma do homem. E sabemos que “assemelham-se os discu rsos verb17-21. Cf. Met. , 10, 1051 b Cf. Met. , 4, 102727-8. Cf. Met. , 10, 1051b21-2. Le probl ème Cf. ibidem,l. 22-24; 31-2;1052a1. Ao contr ário do que pretende Aubenque (cf. d e l ’être... , 1962, p.170), n ão corrige, aqui, Arist óteles“la théorie du livre selon laquelle il n’y aurait vérité ou erreur que àl où il n’y a composition et division”. Ocorre, simplesmente que o livro não aborda o problema da verdade e falsidade nos simples e qüididades, limitando-se a dizer que, no que lhesrespeita, nem mesmo na se encontra a verdade (cf., acima, n.30), deixando ao livro a explicação de que compete ao apreender tais coisas e ser, portanto, o lugar sua de verdade. Masãno viu a maioria dos autores que Arist óteles opõe à o , de 1051a32, 1052a1. A comparaDa Alma III, 6,é, a propósito deste ponto, extremamente elucidativa: ção desses textos com a intelec o ( ) dos indivisíveis () ocorre nas coisas a cujo respeitoãno há “ çã falsidade; naquelas em queáhtanto falsidade como verdade, á hj á uma combinação de a noemas como a formar uma unidade ” (430 26-8). 33 Cf. Met. , 10, 1051b24-5. b a 34 Cf. Met. , 10, 1051 25-8; 1052 1-3.
29 30 31 32
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dadeiros a como ãso as coisas”.35 Compreendemos, ent ão, por que pode o filósofo usar da linguagem da verdade para falar das pr óprias 36 coisas, dizendo, por exemplo, dosprimeiros que se deram à filosofia, que eles buscavam “a verdade e a natureza dos seres ”37 e aprovando que se chameà filosofia“ciência da verdade ”:38 pois “como cada coisa é em relação ao ser, assim tamb ém é ela, em rela ção à verdade”.39 2.3 A verdad e, fun ção da raz ão human a
Por outro lado, uma vez que chamamos virtudes de aqueles estados ou“hábitos” ()40 que permitem aos seres o perfeitocumprimento de sua tarefa ou fun ção () própria,41 havemos de chamar virtude, no homem, o estado ou “hábito” segundo o qual elerealiza aquele ato da alma conforme à razão, em que consiste a fun ção que lhe é absolutamenteópria. pr 42 Mas, em que consiste essa tarefa ópria pr da razão humana ou, para servir -nos da linguagem aristot élica, qual a ta43 refa da parte racional da alma do homem? Responde-nos o fil ósofo: “De ambas as parteséno ticas a fun ção é a verdade. Portanto,‘hos ábitos’ ou estados segundo os quais cada uma delas mais alcan çar a verdade serão as virtudes de uma e outra ”.44 Em outras palavras, o homem, enquanto razão, tem na verdade a suaçã fun o, na posse dela, a sua virtude. 35 Da Int. 9, 19a33. Em verdade, o texto diz respeito aos futuros contingentes: a indetermina ção das proposi ções quantoà sua verdade ou falsidade reflete, apenas, uma indetermina ção real das próprias coisas. 36 Cf. Bonitz, Index , p. 31a39 seg.:“Quoniamin eo cernitur, ut cogitatio concinat cum natura rerum [...], nominis usus modo ad et , modo ad cognitionem et scientiam vergit ”. V. as numerosas refer ências coligidas por Bonitz. a 37 Fís. I, 8, 191 24-5. 38 Cf. Met. , 1, 993b19-20. 39 Ibidem, l. 30-31. NoTeeteto , de Plat ão, também Sócrates leva o jovem Teeteto a admitir que, se não se atinge a ess ência (), também se não atinge a verdade eãno se pode, portanto, ter ciência, cf.Teet., 186c. 40 Sobre a noção de, cf., acima, cap. I, n.63 e 64. a 41 Cf. Ét. Nic. II, 5, com., 1106 14 seg. a 42 Cf. Ét. Nic. I, 7, 1098 7 seg. a 43 Cf. Ét. Nic. VI, 1, 1139 5 seg. Cf., tamb ém, acima, cap. I, n.71. b 44 Ét. Nic. VI, 1, 113912-3.
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2.4 A ciência, sempre verdadeira
Sob esse prisma,é-nos lícito, pois, dizer que estudar o queãso arte, ciência, prud ência, sabedoria, intelig ência,é estudar aquela s virtudes“por meio das quais a alma humana, afirmando ou negando, á est na verdade ”.45 Ciênciaé a disposi ção ou estado por que a alma humana possui a verdade, sob forma demonstrativa.ãPois o é ela n conhecimento efetivo, mediante a demonstra ção silogística, do ser necess ário, a partir de sua determina ção causal? Dos seres que comportam a composição e a divisão, diz-nos o livro uns sempre estão compostos e a separação é, neles, impossível, outros estão sempre divididos e nunca poderão compor-se, outros, enfim,áhque comportam ambos os contrários, a composi ção e a separação; ora, forçoso é, então, para os que assim podem ) uma e outra coisa, que sejam ora verdadeiros, ora falsos, a mesma opinião e o mesmo discurso que lhes 47 concernem; mas, para os seres em que essa conting ência se não encontra, para os queãno podem ser de outra maneira ( ), serão sempre verdadeiros ou sempre falsos os discursos que lhes respeitam. Apreens ão real de uma composi ção ou divisão eternas, 48 a ciência, tanto como a intelig ência,é, então, sempre verdadeira. É a “separação” eterna entre a diagonal e a comensurabilidade com o lado do quadrado que ela apreende conhecer “porque não é possível o não-ser, por exemplo, que a diagonal é comensurável”.49 “Repetindo”, então, na alma, desde as suas premissas, o ser “exterior”, parti50 rá necessariamente aêci ncia de premissas verdadeiras. Pelas raz ões que vimos e não por alguma necessidade interna da silog ística, pois sabemos ser poss ível obter silogisticamente conclusões verdadeiras, 45 46 47 48 49 50
Ibidem, 3, 1139b15. Cf. Met. , 10, 1051b9-17. Cf.,acima,I, 1.1 e n.27a 31. b Cf. Seg. Ana l. II, 19, 100 7-8. b Seg. Ana l. I, 2, 7125-6; cf., acima, II, 2.1 e n.13. Veremos, entretanto, mais adian te, que a verdade dos primeiros princ ípios da ciência diz respeito, não à composição e à divisão, mas à outra forma de verdade,à apreensão de (cf., acima, II, 2.2 e n.29 a 33).
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51 também, de premissas falsas. E é a presença necessária daquela verdade que o filósofo tem em mente, quando opõe as premissas do silogismo cient íficoàs do dial ético:52 a premissa cient ífica assume, de modo definido ( ), uma das partes da contradi ção; assume-a
o que demonstra eãno interroga o interlocuto r, como o dial ético, que, por isso mesmo, partir á de uma ou de outra de duas proposi ções contraditórias:53 é que a demonstra ção científica concerne sempre à ver54 dade, não à opinião. E o filósofo poderá, mesmo, dizer que“como se dispõe a ciência, assim tamb ém o verdadeiro”.55 Desdobramento efetivo do real na alma segundo as suas mesmas articula ções, a ciência se confunde, formalmente, com o seu mesmo objeto, ela é a sua presença no homem: como “a almaé, de um certo modo, todos os se56 res”, “a ciência em atoé idênticaà coisa”.57 Compreendemo s, então, que não há como não convir em que é um “próprio” da ciência, enquanto tal, o ãno poder despersuadi-la o dis58 curso. Trata-se, por certo, antes de tudo, do discurso interior, daquele que, segundo o S ócrates doTeeteto , “a própria alma consigo mesma discorre sobre as coisas que examina ”,59 porque, como diz Arist óteles, “não é ao discurso exterior que concerne a demonstra ção, mas ao que está na alma, áj queé assim, tamb ém, com o silogismo ”.60 Os textos tornaram-nos, assim, evidente que a problem ática da verdade concerne, no aristotelismo, em última análise,à ciência da alma. Pois, dentro de sua perspectiva realista, a verdade ão é sen n ão repetição “formal”, no homem, do ser“exterior”; inclinado natural51 52 53 54 55 56
Cf. Prim . Ana l. II, cap. 2-4. Cf., acima, II, 1.1 e n.5 e 6. a a a a Cf. Seg. Anal. I, 2, 72 9-11;Prim. An al. I, 1, 24 22-b3; Tóp. I, 1, 100 27 seg.; Ref. Sof. 11, 172 15 seg. a b Cf. Prim. Ana l. II, 16, 6535-7;Seg. Anal . I, 19, 8118-23 etc. b Ret. I, 7, 1364 9. b Da Alma III, 8, 431 21. a
a
57 tro Ibidem, com.,aristot 431 1-2; cf. 4, à noção de“próprio” (), um dos quapr aed7, icabilia élicos, cf.T430 I, 4, Quanto 102a18 seg. óp.2-9. b a b b 58 Cf. Tóp. V, 4, 13336-1343; 2, 13015-8;Seg. Ana l. I, 2, 72 3-4:“se é preciso que o que conhece cientificamente, em sentido absoluto, n ser despersuadido ). ão possa ” ( 59 Teet., 189e. b 60 Seg. Ana l. I, 10, 76 24-5.
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61 menteà verdade, o homem alcança-o, por exemplo, na êcincia: caberá à análise da faculdade intelectiva do homem mostrar como isso se dá.62 Mas,à teoria anal ítica da ciência, que se ocupa da estrutura interna do discurso demonstrativo, bastar á lembrar que o conheci-
mento científicoé sempre necessariamente verdadeiro.
3 O “qu e” e o porqu
ê
3.1 As premissas, como causas
Além de verdadeiras, ãso as premissas causas da conclus ão do silogismo científico, o queé imediatamente manifesto pela pr ópria no conhecimento cient conhecemos a ção de ífico,“porque causa que conhecemos cientificamente certo que, em qualquer ”.63 éÉquando silogismo corretamente constru ído, são as premissas causa material, isto é, a causa“a partir de que ” ( ) da conclus ão,64 e não o serão menos, portanto, no silogismo demons trativo. E, em qualquer silogismo, também, uma vez que, “com efeito, o silogismoprova algode algo através 65 do termo m édio” e que“de um modo geral, comefeito, dizemos que não haverá jamais silogismo algum, atribuindo uma coisa a outra, se não se toma algum termoém dio que, de algum modo, se relacione com uma e outra pela atribui ção”,66 é o termo médio, contido nas premissas, causa da conclus ão. É semprepor ele queé necessário provar67 e, se algo se conclui que n ão tenha sidoprovado por termos m édios,é sempre ainda poss ível perguntar o porquê ( ) de tal conclus ão.68 Provaremos assim, por exemplo, numsilogismo afirmativo, queA
61 62 63 64 65 66 67 68
a Cf. Ret. I, 1, 1355 15-6. Cf. Da Alma III, 4 seg. b Seg. Ana l. I, 2, 71 30-1. b a Cf. Met. , 2, 1013 20-1;F ís. II, 3, 195 18-9. a Seg. Ana l. II, 4, 9114-5. a Prim. Ana l. I, 23, 41 2-4. a Cf. Seg. Ana l. II, 6, 92 10. Cf. Seg. Ana l. II, 5, 91b37-9.
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pertence aC por pertencer aB e este, aC; e poderemos, eventualmente, igualmente provar queA pertence aB e B, a C, através de outros termos m édios,69 destarte construindo uma cadeia silog ística em que as premissas de um silogismoão s conclusões de silogismos anteriores. Por outro lado, por ém, sabemosáj que nem todo silogismo é científico e que a demonstração é apenas uma espécie particular do 70 silogismo; porque a ci ência apreende, pela determina ção causal, o ser necessário, exige-se, para a cientificidade do silogismo, que caua salidade que lhe é própria recubra e exprima, ent ão, a causalidade real que a ciência conhece. Em sentido absoluto, diremos, agora, portanto, que“a causaé o termo médio”,71 podendo este exprimir, assim, os diversos prismas sob que se pode abordarcausalidade a que engendra uma coisa: as causas todas de uma coisa poder ão exprimir-se pelo termo médio.72 Porque a causalidade interna do silogismo transcreve, b 69 Cf. Seg. Ana l. I, 19, com., 81 10 seg. 70 Cf., acima,I, 3.1. 71 Seg. Ana l. II, 2, 90a6-7. E, como diz Fil in lis An aly tica ópono (cf. Ioannis Philoponi,Aristote Posteriora Comm entar ia (Commentaria in Aristotelem Gr æca edita consilio et auctoritate Academiæ Regiæ Borussicæ, vol. XIII, Pars II, ed. Adolphus Busse), Proemium, p. 334, l. 4):
. a 72 Cf. Seg. Ana l. II, 11, com., 94 20-4. Para exemplos de silogismos concernentes cada a uma
das causas, leia-se todo o cap ítulo. Em verdade, ãno usa Aristóteles o termo para designar a causa material (o termo,ás, alinão aparece em todoOrganon o ), mas falar á, em seu lugar, de ’ (l. 21-2:“aquilo que, se algumas coisasãso, é necessário que seja ”); e o exemplo dado é o de um silogismo matem ático em que se prova que o ângulo inscrito num semic írculo (C)é um ângulo reto (A), tomando, por termo m édio (B), a metade de dois ret os (cf. ibidem, l. 28 seg.). Ora,F í asica (cf.F ís. II, 9, 200a15 seg.), comparando a necessidade no racioc ínio matemáticoà necessidade que comporta o devir natural das coisasísicas, f opõe as premissas matem áticasà causalidade material no devir físico, precisamente, por isto, porque, nas matem áticas, de serem aspremissas, engendrase necessariamente a conclus ão, enquanto, no devir ísico, f a causalidade hipot ética da matéria não necessita o fim, mas é por este necessitada: em outras palavras, num silogismo físico, jamais se poderia utilizar, na premissa, a causalidade material;ãoo que é de nestranhar, se se recorda que“como matéria ...é causa para os seres que se geram o que é capaz a u, de ser e de n ão ser” (Ger. e Per. II, 9, 33532-3), que“a matériaé causa do ser e ãno ser” (Cé b I, 12, 283 4-5), istoé, da conting ência. Propõe, então, Santo Tom ás (cf.S. Thom æAquinatis in Aristotelis libro s Peri H erm eneias et Posteriorum Ana lyticorum Expositio , Marietti, in Post. Anal. II, 1, IX, n.494), que se interprete o de Seg. Ana l. II, 11, 94a212, à luz do exemplo matem ático proposto, no sentido daquela materialidade intelig ível (
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na demonstra ção, a causalidade“externa” das coisas, o fato de que a demonstração se faz pela causa ãno independe do valor objetivo das 73 premissas, como estranhamente se pretendeu. 3.2 Silogismos do “que” e silog ismos do porquê
A nítida distinção entre aquelas duas causalidades, assim como sua coincidência no silogismo cient ífico, são realçadas pela distin ção que o filósofo introduz, no interior do domínio científico, entre os silogismos do “que” () e os do porquê (), pois “há diferença entre conhecer ‘o que’ e o porqu ê”.74 Aristóteles considera dois casos distintos: um primeiro, quando os conhecimentos do” e do por“que quê dizem respeito ao dom ncia; o outro, quanínio de uma mesma êci do eles são considerados por diferentesêci ncias.75 No que concerne à esfera de uma única ciência, duasãso as possibilidades aventadas de ocorrer apenas um silogismo “de que”. Tem-se aprimeira“se não procede o silogismo porpremissas imediata s (’) (não se assume, com efeito, a primeira causa, mas êancia ci do porqu ê concerneà pri-
) de que fala o ó filsofo em três passagens daMetaf ísica (cf.Met. , 10, 1036a9-12; 11, a
a
, 6, 104533-36), ainda que sem maiores precis 1037 4-5;mais respeito. ões a seu entanto, prov uma transposi o, para ono ável que Aristóteles esteja apenas oferecendo çãCremos, domínio matemático, da oposi ção matéria/forma, mostrando, ent ão, como, ao contr ário da materialidadeífsica, a materialidade matem ática, necess ária e eterna, pode, exprimindose nas premissas do silogismo matem ático, necessitar a conclus ão. Quantoà interpretação de Ross, em seu coment ário aSeg. Anal . II, 11, vendo naquela express ão, antes, uma refeb rênciaà definição de silogismo dada em Ana l. Prim . I, 1, 24 18-20, ela parece-nos bem menos satisfat ória. thode ..., 1939, p.74. Pretende o autor que óoprio 73 Cf. Le Blond,Logique et m é pr Aristóteles teria, implicitamente, reconhecido,Seg. em Anal . I, 2, 71b13-6 a possibilidade de racioc ínios científicos falsos! Entendemos, entretanto, que sua interpreta ção daquela passagemé absolutamente inaceit ável e que esta não pode ser compreendida sen ão como, acima, a compreendemos, cf. acima, I. 2.1 e n.92. a 74 Seg. Anal . I, 13, com., 78 22. , que traduzimos simplesmente por “conhecer”, é aqui usado, como veremos, num sentido mais lato, incluindo,ém, tamb um conhecimento como o do simples“que”, que não é rigorosamente cient ífico. Sobre a tradu ção de por “que” (conhecer-sequ e algoé), cf., acima, I, 3.3 e n.173. a 75 Cf.,respectivamente,Seg. Ana l. I, 13, 78 22-b34 e 78b34-79a16.
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meira causa ( ))”.76 O que significa, então, que, constituído o edifício científico mediante uma cadeia silog ística demonstrativa (na qual as conclus ões dos silogismos que seãov obtendo passam a figurar como premissas para novosgismos), silo cada um de seus elos, istoé, cada um dos silogismo s que a comp õem – e não apenas o silogismo inicial – contém uma premissa imediata, em que se exprime a causalidade ópr xima da coisa a demonstrar; em outras palavras, não basta, para possuir-se um aut êntico silogismo do porquê, que o racioc ínio explicite um processo causal de que resulte o fato expresso na conclus ão masé, também, preciso que se exprima como termo médio a causa mais pr óxima ao efeito em questão, istoé, a sua 77 causaprim eir a. Donde podermo s compreender estar oósofo fil a implicitamente dizer-nos (ainda que, por enquanto,ão n no-lo explique suficientemente) que a expans ão do conhecimento cient ífico mediante a construção de novos silogismos implica a continuada introdu ção de novos prin cí pios , seé certo que o que Arist óteles chama de premissas imediatas são as premissas primeiras ou princ ípios.78 76 Ibidem, 78a24-6: ’ ). 77 Se se considera, a partir do efeito, a ésrie ascendente das causas constitutivas do processo que o engendra. A express , comoé sabido, designa, na linguagem aristot ão élica, tanto Fí s. I,em a causa mais remota e,anesse sentido, primeira de umaa coisa (vejam-se exemplos 1, 184a13;Meteor. I, 2, 339 24;Met. , 3, 983a25-26;, 1, 1003 31) como a causa maisópr xima, b Fí s. II, primeira em sentido inverso, a partir do efeito (como, por exemplo, em3, 194 20;Ger. b a Anim. IV, 1, 7656 etc.). No texto que comentamos Seg. ( Anal . I, 13, 7825-6), designa obviamente, como todos reconhecem, a causa óxima: pr Aristóteles imagina um silogismo como o seguinte:“H pertence a E. E pertence a S. H pertence a ” Ora, S. se“E pertence a S ” tiver sido provada por silogismo anterio r, seria necess ário que“H pertence a ”Efosse uma premissa imediata para que se tratasse de umêaut ntico silogismo do porqu ê; se, ao contr ário, porém, estaúltima premissa tamb médio (Z, por exemém se demonstra mediante um outro termo plo:“H pertence a Z. Z pertence a E. pertence H a”E ), aquele primeiro silogismo, ainda que partindo de premissas verdadeiras e exprimindo um processo causal verdadeiro, ão o n explicita segundo as suas articula ções imediatas e, nesse sentido, ão énexpressão científica de um conhecimento do porqu ê, omitida Z, causa pr óxima de H. a 78 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 725-7; acima, II, 1.2. Como veremos, no cap. IV (cf., adiante, IV, 4.6 e n.287 seg.), o ú nmero de princípios da ciência não é muito inferior ao das conclus ões que ela obtém e, por outro lado, aoún mero de termos m édios que uma cadeia silog ística assume correspondem outros tantos princ ípios da demonstra ção, nos quais se exprimem as causalidades imediata s (cf., adiante, IV, 4.6 e n.304 a 309 e 319).
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Mas, num segundo sentido da express ão, dizemos queáhsilogismo do “que”,79 quando, ainda queproceda o silogism o por premissas imediatas (ou melhor, ainda que uma de suas premissas seja imed iata), não se produz ele pela causa , istoé, não é a causa que lhe serve de termo médio, mas o efeito, por serem causa e efeito reciproc áveis e o efeito, mais conhecido: nada impede, de fato, que talçaconte a e que, sendo mais conhecido o queãno é causa, por este se construa a demonstração, provando-se a causa pelo efeito. Seja, por exemplo, o seguinte raciocínio: designemos“planetas” por C, “não cintilar” por B e “estar próximo” por A e sejamA e B reciprocáveis, isto é, pode-se, indistinA a B (o que não cintila est tamente, atribuir á próximo) ou B a A (o que está próximo não cintila). É perfeitamente possível que a nãocintilação dos planetas nos seja mais conhecida que sua proximidade – e é mesmo natural que isso ocorra – de modo que construiremos, mais facilmente, o seguinte silogismo: A pertence aB (o que não cintila está próximo) B pertence aC (os planetas n ão cintilam) A pertence aC (os planetas est ão próximos)
Ora, ainda que tal silogismo proceda a partirpremissas de verdadeiras e que sua premissa maior, obtida da percep ção ou por indu ção, seja uma premissa imediata, ainda que seja verdadeira sua conclus ão e que se tenha ela obtido no interio r de um dom ínio científico determinado, não reproduz sua causalidade interna a causalidade real as d coisas; seu termo m édio (B, a não-cintilação) não é a causa da proximidade dos planetas mas, ao contr ário,é o efeito dessa proximidade: é porque estão próximos que os planetas não cintilam. Isto significa que somente este outro silogismo: B pertence aA (o que está próximo não cintila) A pertence aC (os planetas est ão próximos) B pertence aC (os planetas n ão cintilam) 79 Cf. Seg. Ana l. I, 13, 78a26 seg.
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é realmente um silogismo da causa ou do por quê (), exprimindo por seu termo m édio a causa real que engendra“oque” expresso em sua conclusão; quanto ao primeiro, procedent e não pela causa, mas pelo “que” (tendo como termo médio o menor cujo“que é” o verdadeiro silogismo da causa conclui),ãno é ele senão um silogismo do “que”.80 Se pudemos exemplificar um caso em que, dada a reciprocabilidade entre causa e efeito, era-nos ácilf construir o silogismo da causa,é preciso reconhecer que, quando tal reciprocabilidade n ão ocor81 re eé o que não é causa ( ) o mais conhecido, só nos é possível um silogismo do “que”, cuja causalidade ignoramos. E temos, também, uma“demonstração” do “que” e não do porquê, quando o 82 termo médio de que dispomosé exterior aos extremos, como num silogismo emCamestres , que provasse, por exemplo, que paredes C) ( não respiram B ( ) por não serem animaisA(= termo médio). Com efeito, se a negação do médio (o fato de não serem animais as paredes) fosse a causa real de elasãon respirarem, dever íamos, inversamente, ter na animalidade de algo a causa de sua respira ção, o queé falso, se há animais que n ão respiram, porque desprovidos de pulmões. A e B não são reciprocáveis e o silogismo não manifesta a causa real de sua 83 conclusão, entretanto, verdadeira.
80 A distinção aristotélica, emSeg. Ana l. I, 13, entre silogismo do “que” e silogismo do porquê não colide com sua doutrina de que toda demonstra ção é sempre do“que” (cf., acima, I, 3.3 e n.172 e 173): o silogismo cient íficoé o que prova um“que” mediante um“porquê”, dizendo-se, por isso, silogismo do porqu ê. Para outros exemplos aristot élicos de silogismos a do “que” opostos a silogismos do porqu ê, cf.Seg. Ana l. II, 13, com., 9835-b24. E, como diz Aristóteles,“se não é possível [subent.:às coisas em quest ão no exemplo dado] serem causas uma da outra[...]; se, portanto, a demonstra ção pela causaé do porquê ( ), a que não se faz pela causa, do ‘que’ ”, quem se serve da última não conhece o porqu ê da coisa (cf. ibidem, 98b16-21). b 81 Cf.Seg. Anal . I, 13, 78 11-3. 82 Cf. ibidem, l. 13seg. 83 Aristóteles assimila, ainda, a esses racioc ínios certas argumenta ções hiperbólicas, em que se atribui um fato a uma cf. Anal . “causa” distante e que ãno é, realmente, explicativa, Seg. I, 13, 78b28-31.
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3.3 A r atio cognoscend ie a ra tio essend i
A análise dos exemplos e explica ções aristotélicas sobre a diferença entre os silogismos do porqu ê e do “que” deixa-nos, então, mani84
festo que, nesse segundo sentido em quetomam se tais express ões, ele só o silogismo do porqu ê é realmente cient ífico, porque somente 85 está amoldadoà representa ção da causalidade real das coisas. Nele, unicamente, “a razão lógica coincide com a causa real, a ratio cognoscendi com a ratio essend i ”86 e, somente a seu respeito, é possível dizer“queé a própria vida da rela ção causal que Arist óteles quis representar pelo silogismo ”.87 E isto, porqueé “um raciocínio objetivo, que nada mais faz do que imitar os silogismos da natureza ”.88 Se a maioria dos autores relembra a distin ção aristotélica entre aquelas duas espécies de silogismos, ocorre, entretanto, que n algo que ão acentuam se nos afigura extremamente importante para correta a compre ens ão da teoria aristot élica da ciência:é a preocupação do filósofo em mostrar-nos, mediante uma grande diversida de de casos eexemplos, a possibilidade de abordaremse as questões pertinentes ao dom ínio científico por raciocínios que, embora corretos e constru ídos sobre premissas verdadeiras e, mesmo, necess árias, não constituem raciocínios verdadeiramente cient íficos, istoé, não nos proporcionam efetiva ciência daquilo que, por eles, se est á conhecendo. Não se trata, apenas, de mais um exemplo de como o uso do silogismo transcende, de muito, a esfera do racioc ínio estritamente cient ífico mas, sobretudo, de compreender certos processos de conhecimento nos quais se efetua umaabordagem pré-científica do objeto daêci ncia. Isso ocorre, vimos o filósofo dizer-nos, quando aquilo qu e nosé mais conhecidoãno 84 Cf., acima, II, 3.2e n.79. 85 É óbvio, com efeito, que também no primeiro sentido acima descrit o (cf. II, 3.2 e n.76 a 78), o silogismo dito do que n o se amolda propriamente express o de causalidade real por “ ” ã à ã omitir a rela ção de causalidade pr óxima. 86 Moreau, Aris tote et son École, 1962, p.53. lé ments prin cipau x de la repr é sentation , 1962, p.199-200. 87 Hamelin,Essai sur les é thode ..., 1939, p.105. 88 Le Blond,Logique et m é
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é a causa do fato em estudo. Ora, óosofo fil explica-nos que tal é o processo natural de ocorrerem as coisas, nosso processo de investiga ção principiando sempre, ou quase sempre, pelo conhecimento “que do” para, em seguida, indagarmos de seu êporqu ;89 o que está, de qualquer modo, excluído é que se possa ter umconhecimento do orqu p ê anterior ao da coisa que por ele se conhece: “investigamos o porqu ê, tendo o ‘que’; por vezes, tamb ém, tornam-se eles, ao mesmo tempo, evidentes, mas de nenhum modo é possível conhecer o porquê anteriormen90 te ao‘que’”. Ao encontrarmos, por ém, o porquê e a causa,é-nos, então, possível, construir o silogismo do porquê, o qual, demonstrando o “que”, exprime a ciência que, agora, possu ímos. Mas os silogismos do “que” não caracterizam, assim, sen ão a etapa pré-científica do conhecimento, quando aêci ncia, ainda que em processo de constitui ção, n ão se constituiu a ind a . A validade de seu uso, por certo, n discuão se te, ainda que lhes falte cientificidade; instrumentos eventuais de um conhecimento que fazem progredir, os silogismos do “que” são momentos de uma pesquisa destinada a alcan çar e possuir elementos que venham, finalmente, a permitir a construção de um silogismo ou cadeia silogística, onde a causalidade interna do racioc ínio espose, de fato, a causalidade real. 3.4 A s ci ências do “que”
Pode, acaso, haver êcincias que não conheçam o porquê das coisas de que se ocupam? Arist óteles considera, com efeito, o caso em que o“que” e o porquê são objetos de diferentesêci ncias.91 Mas, após tudo quanto pudemos compreender sobre o conhecimen to da causa pela ciência, como admitir a possibilidade de que se limite uma ên- ci cia ao mero conhecimento do“que”? Consideremos os exemplos aduzidos pelo fil ósofo, que concernem, todos, às partes matem áticas b b 89 Cf. Seg. Anal . II, 1, 89 29-31; 2, 89 39-90a1. a 90 Seg. Ana l. II, 8, 9317-9. b 91 Cf. Seg. Anal . I, 13, 78 34 seg.
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da física, istoé, à física matemática. Trata-se de conhecimentos que se subordinam a conhecimentos de outra ordem e mais exatos, de explicações concernen tes a fatosempiricamente constat áveis, mas que têm seus fundamentos nasêci ncias matemáticas.É o caso das questões de ótica em relação à geometria, das de mec ânica em relação à estereometria, das de harm ônica em relação à aritmética, das de astronomia em rela ção, ainda,à estereometria. E considera, tamb ém, o filósofo uma terceira esp écie de ciência,92 que está para cada ciência física matem ci matem ática como esta para aência ática correspondente e que não vai além do relacionamento emp írico dos fatos que se descobriram; assim, o conhecimento emp írico do arco-íris está para a ótica matemática como esta para a geometria,astronomia a ánutica se subordinaà astronomia matem ática como estaà geometria sólida, uma harmônica empírica relaciona-se com a harm ônica matemática 93 como esta com a aritm ética etc. Enquanto a ci ência matemática pura estuda as propriedades gerais do úmero, n linhas, óslidos, separadamente dos corposísicos; f enquanto a“terceira ciência” apenas coleciona e relaciona os fatos emp íricos, a ci ência ífsica matemática explica esses fatos, recorrendo às razões que a primeira lhe fornece: seus raciocínios tomam, assim, das matem áticas, suas premissas maiores, indo buscar suas menores nasências ci da terceira esp écie. Ora,é óbvio que estas últimas, lidando exclusivamente com“que o ”, constatando apenasqu e tal fato segue ou é atributo de tal outro, somente em sentido extremamente lato seãodir ciências,94 já que, porque não fornecem explica ções causais, seus processos e racioc ínios nada êtm de efetivamente cient ífico: elas conhecem o“que” de que as ciências físicas matem áticas correspondentesãod o porquê. Mas tamb ém estas, recebendo dasêci ncias matem áticas suas premissas fundamentais, dir se-ão meros conhecimentos do “que”, em relação a um porquê que as 92 Cf. ibidem, 78b38-79a2; 10-3. 93 Consulte-se a boa nota de Ross (a d 78b34-79a16), onde propõe o autor uma solução satisfatória para asdificuldades dessa passagem, que integralmente aceitamos. 94 Cf., acima, I, 1.4, sobre o emprego lato do termo.
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95 matemáticas estudam. Não se pode,por certo, delas dizer, como das outras, que elasãno determinam causalmente suas conclus ões e que não procedem de maneira rigorosamente cient ífica; mas porque se servem de premissas demonstr áveis cujas demonstrações não contêm,
não remontamà causalidadeúltima dos fatos que suas conclus ões exprimem. Talé o caso de todas as demonstra ções levadas a cabo por ciências como aótica, mecânica etc.; de fato, uma vez que as proposições que tomam das matem áticas só nestas recebem suafundamentação última, não se pode dizer dos silogismo s daquelas ci ências que possuam integralmente o porqu ê do que demonstram. As ci ências 96 matemáticas são, assim, anteriores e mais exatas do que elas e, em sentido absolutamente rigoroso,ó sse dirá que estasúltimas constituem conhecimentos cient íficos se associadas aos mesmos fundamentos matemáticos de que dependem.
4 Do que se conhece ma is e an tes 4.1 An teriorid ad e e conhecimento pr é vio
Uma íntima interdepend ência liga três das caracter ísticas que vimos qualificar as premissas da demonstra causalidação, a saber: de, sua anterioridade e sua maior cognoscibilidade. É o sua que o próprio filósofo claramente exprime: “É preciso que sejam causas, mais conhecidas e anteriores: causas, porque ...; tamb ém anteriores, uma vez que são causas; e previamente conhecidas, n da segunda maneira, ão apenas 95 Como veremos no cap. IV (cf., adiante, IV, 1.3), não há contradição entre a interpreta ção aristotélica das ci ências ífsicas matemáticas e a sua doutrina dos “gêneros” científicos e da impossível de um a outro. a 96 Cf. Seg. Ana l. I, 27, com., 87 31-4: dizem-se mais exatas e superiores ências ci que, como a aritmética, não se ocupam do substrato sico, f relativamente s que dele se ocupam, como í à a harmônica; assim como tamb ém se dizem anteriores e mais exatas ências ci que conhecem o“que” e o porquê, como a harm ônica matemática, relativamente às que, como a harmônica empírica, não conhecem sen ão o “que”. Acompanhamos Zabarella e Ross, no que concerneà interpreta ção das l. 31-3, cf. Ross, nota ad locum .
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pela compreens ão, mas, tamb ém, por conhecer -se que a coisa é. ‘Anteriores’ () e ‘mais conhecidas’ () dizem-se em dois sentidos: com efeito,ão nsão idênticos o anterior por natureza ( ) nem o mais conhe ) e o anterior para n ós ( cido ([subent.: por natureza]) e o mais conhecido para nós ( ). Chamo anteriores e mais conhecidas para ós n às coisas mais pr óximas da sensação, anteriores e mais conhecidas em absoluto(), às mais afastadas. As mais universais ( ) são as mais afastadas, as individuais ( ’ ), as mais próximas; e opõem-se umasàs outras”.97 Esta passagemé absolutamente fundamental para a compreens ão do sentido profundo da ci ência aristotélica e a intelig ência correta de sua significa ção permitir-nosá dissipar bom ú nmero de mal-entendidos que se srcinaram de sua má interpretação. Não é dos menores ind ícios de sua import ância o fato de que, recentemente, es lhe tenha, a toda a sua última parte, recusado a autenticidade, tomando-a como uma interpola ção.98 4.2 Maior cognoscibilidade das premissas
Já estudamos quanto concerne à função causal das premissas; estudemo-las agora do ponto de vista de sua anterioridade e de sua maior cognoscibilidade. Constatem os, de início, que, se o texto n ão nos explica no que consiste a anterioridade, ele a faz, no entanto , ad locum ) e 97 Seg. Ana l. I, 2, 71b29-72a5. De acordo com as interpreta ções de Ross, Colli (cf., S. Mansion (cf. Le juge ment d ’ existence ..., p.139), temos por menos aceit áveis as traduções The Wo rk s of Aristotle , Oxford Univ. Press, vol. I, que, de 72a4-5, propõem G. R. G. Mure (cf. Ana ly tica Posteriora , by Mure, ad locum : “the most universal causes are furthest from sense and particular causes are nearest to sense”), Tricot (cf., ad loc um : “les causes plus Le probl è me de l ’être..., 1939, p.62, n.1); universelles..., etc. ”) e Aubenque (cf. ãonse trata de uma oposição entre causas universaiscausas e particulares mas, simplesmente, entre coisas mais universais e coisas mais óximas pr dos sentidos. Por outro lado, estranha-nos, tamb bém, que Aubenque traduza, em 71 31-2,por “antérieures aussi du point de vue de la connaissance ” (cf. ibidem, p.55), tradu ção que, porque ãno literal, prejulga da interpretação a conferir-se ao texto. 98 É o que fez Aubenque (cf. Le probl ème de l ’être..., 1939, p.62, n.1). Discutiremos sua inter pretação nas páginas que seguem.
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decorrente da causalidade: é porque são causas que as premissas ãos anteriores e, como nos diz uma outra passagemSegun dos d os Ana l íticos : “a causa, com efeito, é anterioràquilo de queé causa”.99 Indica-nos, também, o texto que as premissasãso previamente conhecidas (), istoé, seu conhecimento precede, no tempo, o conhecimento do que por elas se conhece, ou seja, das conclus ões; nem poderia, parece óbvio, ser de outra maneira, pois, se se constrói o silogismo sobre suas premissas para engendr ar a conclus ão, como poderia ele consti tuir-se, senão fossem aquelas previamente conhecidas? Dizer, então, que o silogismo científico parte de premissas previamente conhecidas é apenas lembrar o queá jnos expusera o filósofo100 a respeito, não somente da ciência, mas de todo conhecimento dianoético, mostrando-nos que se caminha para algo de novo sempre a partir dealgo que previamente se conhece, constituindose a numa progressão. E distinguira o filósofo duas formas de conhecimento pr évio,101 que agora retoma, a prop ósito das premissas científicas: o conhecimento pr évio necessário ou respeita ao , 102 ou é mera “que”, ao de uma coisa, ao fato de que elaé compreensão de uma significa ção (“o queé a coisa enunciada? ”); ou é ambas ascoisas: assumir-se-á, por exemplo,“que de toda coisa ou a afirma ção ou a nega ção é verdadeira ”,103 assumir -se-á, do triângulo, que significa tal e tal coisa, assumi r-seão ambas as coisas da unidade, ). Ora, o conhecié(
o qu e significa e que ela
b 99 Seg. Ana l. II, 16, 98 17. 100 Cf., acima, I, 3.4. 101 Cf.Seg. Ana l. I, 1, 71a11-7; cf., tamb ém, acima, n. 8 deste cap ítulo. 102 Traduzimos literalmente em Seg. Ana l. I, 1, 71a12, 14, 16, assim como em 2,b33, 71 deixando para o momento adequado (v. cap. IV), a discuss ão da exata interpreta ção a conferir-se a essas passagens, a qual envolve algumas dificuldades.óFica bvio, de qualquer modo, nos textos em quest ão, que se trata de uma oposi ção entre o conhecimen to do verdadeiro e real, enquanto ta is, e a simples compreens ão do significado de certos termos, enquanto distinto de qualquer conhecimento da verdade edade realida coisa definida. Cf., também, acima, cap. I, n.173, sobre a tradu ção de por“que”. 103 O exemplo, à primeira vista desconcertante, do conhecimento de “que umé” (cf.Seg. Anal . I, 1, 71a13-4) será por nós discutido ao abordarmos, no cap. IV, o estudo dos axiomas ou princípios comuns.
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mento das premissas da demonstra ção tem, precisamente, essa dupla natureza: ã no se trata apenas da segunda modalidade de conh ecimento apontada, de uma compreensão de significa ções mas, também, do conhecimento de“que a coisaé” ( ), de que é real o que a premissa exprime. Mas não se refere nosso texto unicamente ao conhecimento é- pr vio das premissas mas, também, a um maior conhecimento delas: elas precisam ser mais conhecidas ( ). Como dirá o filósofo um pouco mais adiante:“Uma vez queé preciso crer em e conhecer a coisa mediante o fato de ter -se esse silogismo que chamamos de demonstração e que há tal silogismo pelo fato de tais e tais coisas, de que ele parte, serem, é necessário, não somente conhecer previamente as premissas primeiras, todas ou algumas, mas, também, conhecê-las mais”;104 se não se conhecem elas mais do que a conclusão, teremos uma ci ência meramente acidental, confirma-nos a Ética Nicoma qu é ia.105 E por que raz ão deverão as premissas ser mais conhecidas, se ãno em razão de sua mesma fun ção causal?“Sempre, com efeito,à causa pela qual(’) pertence cada coisa a outra , pertence-lhe aquela mais: aquilo que, por exemplo, é causa de que amemos uma coisa nosé mais caro”.106 Por conseguinte, se o conhecimento que temos das conclus ões se deve ao que temos das premissas, se naquelas cremos por causa destas, havemos de conhecer e crer 107 mais nestas. Por serem causas eram as premissas anteriores, por serem causas ser ão, também, mais conhecidas: nem se concebe que se possa dizer conhecid o pela causa um efeito que se conhece mais que a própria causa por cujo interm édio se conhece ele como efeito. 104 Seg. Ana l. I, 2, 72a25-9. Como observa, com raz ão, Ross (cf. notaa d 72a28), a (todas ou algumas), a l. 28, refere-se à possibilidade, estudada por Arist óteles em I, 1, 71 1721, de inferir-se a conclus ão científica no mesmo momento em que se descobre e formula a menor do silogismo. cronoÉ óbvio que, nesse caso, não se poderia falar de anterioridade l ógica da premissa menor. b 105 Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139 33-5. a 106 Seg. Ana l. I, 2, 7229-30. 107 Cf. ibidem, l. 30-2.
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4.3 A aporia do conhecimento absoluto
Parecer-nos-ia tudo razoave lmente claro se ã no tivesse introdu108 zido o filósofo logo a seguir, como vimos, a distinção entre duas diferentes acep ções de“anterior” e “mais conhecido ” e não nos tivesse explicado que as coisas que, pa ra n ós , são anteriores e mais conhecidas, istoé, as que est ão mais próximas da sensação, opõem-se e são outras que ãno aquelas queãso anteriores e mais conhecidas em sentido absoluto e por natu reza , istoé, as mais universais e afastadas da sensação. Ora, a anterioridade da causalida de real que as premissas da demonstra ção científica exprimemãno pode, obviamente,ãonser uma anterioridade em sentido absoluto e por natureza, como, por exemplo, a da interposi ção da terra, relativamente ao eclipse lunar, que é 109 seu efeito. Também há de ser, por outro lado, em sen tido absoluto e por natureza a maior cognoscibilidade que daquela causalidade vimos decorrer. Nemé por outra raz ão, aliás, nós o sabemos,110 senão porque exprime a causalidade real das coisas, que chamaóArist teles ao silogismo cient ífico“silogismo do porqu ê”. Parece-nos, ent ão, tornar-se evidente que não é das coisas que nosãso mais conhecidas e que, para n ci uma demonstra ós, são anteriores, que parte aência: ção que partisse das coisas mais conhecidas e anteriores, para ós –né o 111
próprio Arist óteles quem no-lo diz –, não poderia dizer-se, em sentido absoluto, uma demonstra ção. Mas, por outro lado, como pretender que temos ciência, sede fato partimos do que, para n ós, é mais conhecido e anterior? Como conhecer mais, conforme às exigências do conhecimento científico, o (porquê) que o (“que”), se conhecemos sempre o“que” antes do porquê, se partimos sempre do “que” para investigar o porqu ê,112 se, em suma,é sempre o“que” que 108 Cf., acima, II,4.1. b 109 Cf. Seg. Ana l. II, 16, 98 16 seg. N ão será científico, pois, provar-se, pelo eclipse, a interposi ção da terra. 110 Cf., acima,II, 3.3. b 111 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72 31-2. 112 Cf., acima, II, 3.3 e n.89 e 90.
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é anterior e mais conhecido? E, ainda mais, como conhecer previamente, 113 pela ciência, as premissas e a causa, se, de fato , conhecemos, sempre, previamente, a conclus ão e o causado? Mas o que significa, ãent o, dizer que as premissas cient íficas são, por natureza e em absoluto, mais conhecidas e anteriores, se ãono são para nós? Tratar-se-ia, acaso,de uma“cognoscibilidade em si queãn o seriacognoscibilid ade para ninguém”,114 “postaa pr iorifora de toda refer ência ao conhecimento hu115 mano”? Mas issoseria reconhecer , nessa id éia de umcognoscível que 116 não é conhecido dos homens, uma ciência que não é humanamente possível.117 Mostramos, no entanto, que essaãn o é a perspectiva aristot élica sobre aêci ncia;118 cuidemos, pois, de resolver nossa aporia. 4.4 A no
o de anteriorida de
çã
Comecemos, ent ão, por examinar, mais de perto, óapria pr noção de anterioridade. Em dois textos aborda Aristóteles, de modo mais completo, os diferentes sentidos de anterior ( ), a saber:Met. , 11 eCat. 12. Segundo o primeiro desses textos, quatro ão ass acepções 113 Cf., acima,II. 4.2. 114 ComoquerAubenque(cf.Le probl ème de l ’être..., 1939, p.65), para quem a srcinalidade da Segund os Ana l í ticos , consistiria, precisamente, nessa teoria da ci ência demonstrativa, nos em si
id de(cf. umibidem, conhecimento , independentemente daópr pria possibilidade humana de éia obt ê-lo p.67). 115 Cf. ibidem, p.54. 116 E pode, com efeito, traduzir-se tanto por “mais conhecível” como por“mais Dictionnaire conhecido”, assim como, por“conhecível” ou “conhecido”, cf. Bailly, A., Grec-Fran çai s , 19506, verb. . b Seg. Ana l. I, 2, 71 117 E Aubenque, aliás, crê que a passagem de 33-72a5, distinguindo, a propósito das premissas daêci ncia, as duas acep ções de“anterior” e “mais conhecido ”, torna impossível o próprio racioc ínio silogístico, razão pela qual a rejeita: “Ce passage, qui rompt d’ailleurs ’lenchaînement des id ées, nous para ît être une interpolati on. Car, loin’édclairer la théorie du syllogisme, il en compromet singulièrement l’application: pour que le syllogisme soit humai nement possible, il faut que les émisses pr soient plus connues, non seulement en soi maispou r n ou s , que la conclusion. Or, on sait que’une l au moins des prémisses doitêtre plus universelle que la conclusion, ce qui, ’aprèds la doctrine ci-dessus, la rendrait moins connue pour nous que la conclusion. On ne voit donc pas’int l érêt qu’aurait ici Aristoteà insister sur une distinction qui r à l’impuissance lesèrgles de éduit la démonstration ” (cf.Le probl ème de l ’être..., 1939, p.62, n.1). 118 Cf., acima, I, 2.1.
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119 em que se toma o termo: num primeiro sentido, diz-seior anter o que está mais próximo de algum princípio ou começo, determinado absoluta () ou relativamente, no que respeita, por exem plo, ao lugar , 120 ou ao tempo, ou ao movimento , ou ao poder, ou à ordem; num se121 gundo sentido, o queé anterior segundo oconhecimento ( ) considera-se, tamb ( ), ém, como absolutamente anterior devendo, no entanto, dist inguir-se entre o anterior segundo o discurso ( ) e o anterior segundo a sensa ): ção ( são anteriores segundo o discurso os universais e, segundoçã ao, sensa as coisas individuais; mas tamb ém o acidenteé anterior ao todo, segundo o discurso, por exemplo, úsico m e homem m úsico: de fato, ãno pode este ser, como um todo, sem as suas partes, ainda ã que o posn 122
sa haver músico sem alguém que o seja; numterceiro sentido, dizem-se anteriores as afec ções das coisas anteriores e, em quarto lu123 gar, temos, finalmente, a anterioridade seg undo a natureza e a essência ( ), que concerneàquelas coisas que podem ser sem outras, masãno estas sem aquelas; e como se diz “ser” em muitos sentidos, respeita essa anterioridade primeiramente ao substrato ou sujeito ( ) – eis por queé anterior a essência () –; em segundo u l gar, à potência e à entel é quia: 124 segundo a potência serão anteriores a parte ao todo, mat aériaà essência; segundo a enteléquia, ser-lhes-ão posteriores. E concluiAristóteles:“De um certo modo, então, todas as coisas que sedizem anteriores e posteriores assim se dizem segundo essa última acepção”.125 b Cf. Met. , 11, com., 1018 9-30. Cf. ibidem, l. 14-9. Cf. ibidem, l. 30-7. Cf. ibidem, 37-1019a1. Cf. ibidem, 1019a2-14. No mais das vezes, usa Aristóteles como sin , designando o ato, isto ônimose é, a perfei ção acabada de algo em oposi ção à mera potência ( ); casos ocorrem, entretanto, em que“videtur Ar. ab distinguere, ut actionem, qua quid ex possibilitate ad plenam et perfectam perducitur essentiam , ipsam hanc perfectionem significet” (Bonitz,Index , p. 253b39-42; vejam-se as passagens indicadas pelo autor). a 125 Met. , 11, 1019 11-2.
119 120 121 122 123 124
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Consideremos, por sua vez, a lista das acep ções de“anterior” que nos fornece o cap. 12 das Categorias . Começam asCategorias por dize126 rem que“anterior” se toma em quatro sentidos, os quais, como veremos, não recobremexatamente aqueles quat ro que vimosdistin127 Metaf í sica : em primeiro lugar guir o texto da e como sentido dominante (), temos a anterioridade segundo o tempo; num se128 gundo sentido, diremos anterior o que seãon reciproca segundo a seqüência do ser ( ) e Aristóteles exemplifica com a anterioridade do um, em rela ção ao dois: se dois ãso, segue-se ( ), imediatamente, que um é, mas não é necessário, se umé, que dois sejam;m e terceirolugar129 , temos o anterior segundo a ordem ( ): é o caso, nas ci ências matemáticas, dos elementos ( ), em relação às proposições geométricas ( ),130 das letras, na gram ática, em rela ção às sílabas, dos preâmbulos, nos discursos, relativamente à exposição: num quarto sentido,131 por fim, aceita-se como naturalmente anterior o que é melhor e mais digno de honra. Mas um quinto outro sentido de “an132 terior”, continua o filósofo, parece dever acrescentar-se a esses quatro: com efeito, dentre as coisas que se reciprocam segund o a seqüência do ser, o que, de algum modo, é causa do ser de outra coisa dir-se-á, a justo íttulo, naturalmente anterior; á,hevidentemente, ca-
sos em que assim se passam as coisas, como na rela ção entre o fato de um homemser e o discurso verdadeiro que lhe corresponde: com efeito, se um homemé , é verdadeiro o discurso emque dizemos que um homemée, inversamente, se um taldiscursoé verdadeiro, um homemé : e, por certo, denenhum modo é o discurso verdadeiro causa a 126 Cf. Cat. 12, com., 14 6. 127 Cf. ibidem, l. 26-9. 128 Cf. ibidem, l. 29-35. a
b
129 Cf. ibidem, 14 35- 3. 130 Sobre o uso matemático do termoe o emprego de(literalmente: figuras geométricas) para designar as proposições geométricas, cf.Met. , 3, 998a25-7 e as ad locum . notas de Ross, 131 Cf.Cat. 12, 14b3-8. 132 Cf. ibidem, l. 10 seg.
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de uma coisaser, masé a coisa que, de algum modo, se manifesta como 133 causa de ser verdadeiro o discurso. “Em cinco sentidos, portanto, 134 dir-se-á uma coisa anterior a outra ”. 4.5 Co mpa ra ção entre Metafísica e Categorias , 12
Se comparamos esses dois textos, Categorias o das e o daMetaf ísica , impõem-se-nos, imediatamente, algumas reflex ões. Em primeiro lugar,observamos que a anterioridade temporal, de uma certa maneira, privilegiada nas Categorias e apresentada como o sentido “dominante” de “anterior”, aparece, no texto da Metaf í sica , relegada a um lugar secundário, como um dos exemplos, apenas, em que algo se diz anterior, pela sua maior proximi dade de algum princ ípio ou começo; e vimos, também, o filósofo dizer135 que tal acepção de anterioridade, assim como as que imediatamente se lhe seguem , se reduzem, de algum modo,àquele sentido último que aMetaf ísica privilegia como fundamental, a anterioridade segundo a natureza e a ência. ess Também se podem incluir, por um lado, naquela primeira e lata acep ção de“anterior” reconhecida pelo texto da Metaf í sica , o terceiro e o quarto sentido que asCategorias distinguem, a anterioridade segundordem ao e a anterioridade do melhor e mais digno deonra. h Quanto à anterioridade segundo o conhecimento , que não está propriamente presente na lista proposta pelas Categorias, 136 vimos como nela se demora o texto de, 11 e a distin ção que estabelece entre a anterioridade segundo o discurso ea anterioridade segundo a sensa ção: por esta conhecemos, antes, as coisas individuais, por aquele, os universais, e pela 133 134 135 136
Cf., acima, n. 24 deste capítulo. Cat. 12, 14b22-3.
Cf.,acima,II, 4.4 e n.125. Crê Ross que a anteriorida de segundo a ordem, de que falam Categorias as , exemplific ando com a anterioridade das premissas cient íficas, nas demonstra ções, das letras, na gram ática, e dospreâmbulos, nos discursos, “answers roughly ” à anterioridade segundo o conhecimento, emMet. , 11 (cf. com. introdut ório aMet. , 11). Mas o próprio exemplo do preâmbulo no discurso parece mostrar queCategorias as têm em vista a ordena ção interna e relativa das partes de um todo, sem qualquerêrefer ncia diretaà questão do conhecimento.
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sensação são-nos, portanto, tamb ém, as coisas individuais mais conhecidas, enquanto, do ponto de vista do discurso, ão oss universais que se caracterizam pela sua maior cognoscibilidade, á que j não se poderia dissociar o maior conhecimento da anterioridade segundo o conhecimento. Ora, seria grande a tenta aquela mesção de ver, aqui, ma distinção de que nos falavam os Segund os An al í ticos, 137 ao opor o anterior e mais conhecido por natureza e em sentido absoluto, é, isto as coisas mais afastadas da sensa ção, os universais, ao anterior e mais conhecido para n ós, o que está mais próximo da sensação, as coisas individuais; e como a anterioridade em sentido absoluto e por natureza corresponde, obviamente, ao que aMetaf ísica chama de“anterioridade segundo a natureza e a ess ência”,138 distinguiríamos, então, entre um conhecimento anterior segundo o discurso que coincidiria com a própria anterioridade natural e essencial, caracter izando a apreensão das premissas cient íficas, e um conhecimento anterior segundo a sensação, que osAnal íticos nos mostraram ser o conhecimento “para nós” das coisas. Entretanto, ãonapenas aos universais concerne o conhecimento segundo o discurso e o mesmo exemplo, que nos propõe, da anterioridade do conhecimento do acidenter (po exemplo, de “músico”), em relação ao conhecimento do todo“homem ( músi139 co”), nos mostra n ão ser necessário que a anterioridade segundo o discurso corresponda à anterioridade absoluta segundo a natureza e 140 a essência, embora isso muitas vezes tenha lugar; também o livro da Metaf í sica vem esclarecer-nos, ao dizer que “nem todas as coisas que são anteriores segundo o discurso ão tamb s ém anteriores segundo a essência. Com efeito, são anteriores segundo a ess ência quantas coisas, das outras separadas ( ), sobrepassam-nas quanto ao 137 Cf., acima, IV, 1.1 e IV, 3.3. 138 Cf., acima, IV, 4.4n.123. e 139 Cf., acima, IV, 4.4n.121. e 140 Assim, o ato é anteriorà potência segundo o discurso e segundo êancia; ess segundo o tempo, é-o num sentido, n ão o é, em outro (cf.Met . , 8, 1049b10-1; o acabadoé anterior ao inacabado, o imperec ível, ao perecível, por natureza, segundo o discurso e quanto ao tempo (cf.F ís . VIII, 9, 265a22-4) etc.
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ser; por outro lado, as coisas ãosanteriores segundo discurso o àquelas cujas defini ções se comp õem de suas defini ções. Pois, se as afec ções () não são à parte, relativamente às essências, como, por exemplo, um móvel ou um branco, branco é anterior a homem branco, segundo o discurso, masãno segundo a ess ência: não pode ele, de fato, ser em separado, mas é, sempre, conjuntamente com o composto (chamo de composto () o homem branco), donde ser manifesto que nem o queresulta da elimina ção ( ) é anterior nem o que resulta da adi ) é posterior; com efeito, dizção ( se ‘homem branco ’ por adição a ‘branco’”.141 Fica, então, evidente, que a anterioridade do conhecimento das premissasciêda ncia, se constitui uma anterioridade de conhecimento segundo o discurso – e é natural que assim seja, uma vez que se acompanhadiscurso de toda ciência142 e não se obtém ela pela sensa ção143 –, configura, entretanto, um caso particular da anterioridade segundo discurso, o aquele em que tal anterioridade se ajusta à expressão do anterior segundo a ess ência e a natureza. Mas isso equivale a dizer que discurso o dos homens não se adapta imediatamente à ordem das coisas e que a adequa ção de nossa linguagem ao realão né espontânea: o conhecimento do ser segundo suas articula ções próprias deverá estabelecer-se, então, freqüentemente, mediante uma invers ão da mesma ordem espont ânea com que a linguagem se articula. E oóprio pr filósofo nos deixou expl ícito, ao afirmar a depend ência de todas as acep ções de anterioridade em relação à anterioridade segundo a êess ncia, que tamb ém a anterioridade segundo o conhecimento ãoné a fundamental, na mesma medida, 144 em que, de um modo ou de outro, se subordina àquela outra.
141 142 143 144
b Met. , 2, 1077 1-11. b Cf. Seg. Ana l. II, 19, 100 10. Cf. Seg. Ana l. I, 31 (todo o cap ítulo). a A afirmação desta subordina 11-2)é bastante expl ção (cf.Met. , 11, 1019 ícita e n ão deixa qualquer margem deúdvida quanto à correta interpreta ção a conferir-se ao texto. Por isso mesmo, b não se pode interpretar o que dizósofo, o fil em 1018 30-1,que “num outro sentido, o anterior segundo o conhec imento[subent.: se diz] como anterior, tamb ém, em sentido absoluto ”
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4.6 A anterioridad e segund o a essência e a natureza Metaf Consideremos, pois, a anterioridade que o texto da ísica claramente privilegia, a anterioridade segundo aêess ncia e a natureza
( ). Principia Aristóteles por dizer-nos que são anteriores a outras as coisas que podem ser semúltimas, estas mas ãno 145 estas sem aquelas. Dada, porém, a multiplicidade de sentidos de “ser”, impõem-se considera ções mais detalhadas: a anterioridade primeira e mais fundamental diz respeito ao sujeito ou substrato ( ) – “eis por que a ess ênciaé anterior; ”146 nem dizia outra coisa 147 o texto de Met. , que citamos, ao mostrar como as coisas “separadas” sobrepassam quanto ao ser ) as suas afecções. As ( sim, a anterioridade segundo a natureza e a êess ncia diz-se, em primeiro lugar, da anterioridade da ópria pr essência em rela ção às demais categorias; e ã no nos explica, de fato, o livro da Metaf í sica que todas as outras coisas se dizem seres ( ), por serem atributos quantitaLe probl ème de l ’êtr e..., 1939, p.47), pre( ), como o faz Aubenque (cf. tendendo que“c’est là le sens de ’lexpression lorsqu ’elle est employée absolument”. Ora, b o filósofo, tendo estabelecido, nas linhas anteriores (cf. 1018 9 seg.), que a anterioridade do que está mais perto de algum princ ípio oué natural eem sentido absoluto (quanto ao lugar, ao movimento, ao tempo, por ex.: a anterioridade da raguer de ó Tr ia em rela ção às guerras Médicas) oué relativa a algo ou a algu ém (nesse sentido, por exemplo, o queáest mais perto de nós, no tempo, se dir á anterior), diz, em seguida, ao expor uma outra acep ção de m o anterior segundo o conhecimento se diz absolutamente anterior “anterior”, quetamb é e n ão, que, quando algo se diz, em sentido absoluto,erior, ant tal anterioridade é sempre a do conhecimento. E, na mesma medida em que a anterioridade segundo o conhecimento, quer diga respeito à sensação quer ao discurso, pode entender-se, conforme à perspectiva sob que se considere o conhecimento efetivo, como uma anterioridade natura l, nada impede, por certo, que o que é anterior segundo o conhecimento, num ou noutr o sentido, se diga absolutamente anterior; mas nada impede, tamb ém, que, do ponto de vista daciência, istoé, de um conhecimento que apreende a ordem por que o real causalmente -se arti Segundos An al í ticos , o conhecimento cient cula, se oponha, como nos ífico, como um conhecimento anterior segundo a natureza em e sentido absoluto, ao conhecimento que parte da percepção sensível. Cf., por outro lado, no que concerne às várias significa ções de, Bonitz,Index , p. 76b39 seg. 145 Cf. Met. , 11, 1019a3-4: ; cf. também, acima, II, 4.4 en.123. a 146 Met. , 11, 1019 5-6. 147 Cf.,acima, n.141.
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tivos, qualidades, afec ções etc. das ess ências?148 Que nenhuma delas é separada ( ), mas só o é a essência149 e que, porque cada uma delaé, em virtud e da essência,150 “o que, primariamente é e é, não algo, 151 mas é em sentido absoluto ( ), será a essência”? Por isso mesmo, a defini ção de cada um dos atributos dever á conter, como sua parte 152 integrante, a defini substrato. Se tal ção da essência que lhe serve de ess e a natureza, em seu sené, assim, a anterioridade segundo aência tido mais fundamental,ãonnos esque çamos, por outro lado, que uma das acepções do ser op õe ao ser em potência o ser em ato ou enteléquia:153 relembra-a nosso texto deMet. para dizer-nos que, sempre segundo o sentido fundamental “anterior de ”, umas coisas idrse-ão primeiras segundo a pot ência, outras, segundo a entel équia;154 o que, evidentemente,ãno obsta a que, em sentido absoluto, a anterioridade segun do a natureza e a ess ência respeiteà anterioridade segundo a entel équia, na mesma medida da anterioridade absoluta do ato em relação à potência, não apenas dos seres eternos e imperec íveis, que não comportam pot ência, em rela ção aos perecíveis, que por 155 ela se caracterizam (anterioridade esta que define os seres necessários como seres primeiros,“pois, se estes não fossem, nada seria”156 ), mas anterioridade, tamb ém, no mundo do devir , da forma e 157 da essência, isto é, da causa final, em rela ção à matéria, queé poa Cf. Met. , 1, 1028 18-20. Cf. ibidem, l. 33-4. Cf. ibidem, l. 29-30. ibidem, l. 30-1. Cf. ibid ., l. 35-6. Cf. Met. , 7, 1017a35 seg.;, 2, 1026b1-2;, 1, 1045b33 seg. Cf. acima, II, 4.4 e n.124. Cf. Met. , 8, 1050b6 seg. Todo o cap ítulo concerneà anterioridade do ato em rela ção à potência. 156 Cf., ibidem, l. 19. 157 (essência) designando, aqui, a mesmaüqididade ( ), a forma () de sica conclui, uma coisa; com efeito, o estudo sobreêancia ess a que procede o livro da Metaf í finalmente, que a causa pela qual aatm éria é alguma coisa definida é a forma e“istoé a esb sência” (Met. , 17, 1041 8-9); e a formaãno é senão a mesma q üididade:“chamo de forma à b qüididade de cada coisaà esua essência primeira ” (Met. , 7, 10321-2). E não esqueçamos
148 149 150 151 152 153 154 155
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tência,158 já que “as coisas posteriores segundo o devir ão santeriores segundo a forma e a ess ência” ( ),159 doutrina, aliás, que o filósofo freqüentemente relembrou e utilizou ao longosua de obra.160 Encontra-se a anterioridade segundo a essência na lista das acepções de“anterior ” que nos prop õem asCategorias ? Ora, parece-nos que a segunda acep Categorias , a anterioridade do ção distinguida nas que se não reciproca com outra coisa segundo a seq üência do ser,161 pode assimilar -se, sem maioresdificuldades, à anterioridade segundo a essência, que vimos entendida, de um modo geral, como a anterioridade do que pode ser sem outra co isa, enquanto o inverso ãno ocorre. Mas asCategorias tinham, tamb ém, distinguido uma quinta acepção, a anterioridade da causa em rela ção ao causado, dentre as coisas que se reciprocam segundo a seq üência do ser:162 é que, malgrado a reciproca ção existente entre a coisa ediscurso o verdadeiro sobre ela, não se pode não considerar a coisa como an terior, namesma medida em que o é, de algum modo, causa de que seja verdadeiro discurso. O estudo dos silogismos do “que” e do porquê já nos familiarizou com o caso de efeitocausa e reciproc áveis, que se podem provar um pelo outro;163 ora, o fato de que ume outro possam tomar -se como termos médios de silogismos ã no significa, obviamente, que a relação causal seja, enquanto tal, reciproc ável: não podem ser causa que a q üididade se diz, num sentido primeiro e absoluto, da categoriaêda ncia, essmas das a a outras coisas, tamb ém, num sentido segundo,Met. cf. Z, 4, 1030 29-32; 5, 1031 7-14; nesse a sentido, falaremos, tamb ém, da essência () de uma esfera ouírculo c (cf.Cé u I, 9, 278 24) e aplicaremos o vocabul ário da essênciaàs outras categorias, na medida em que, “separando-as”, as“essencializamos concerne ” em pensamento: falaremos, por exemplo, no que à categoria da quantidade, do que é por si ( ) segundo a ess ência (’ ), como a linha, e do que éo, enquanto afec ção ou disposi ção da essência, como o muito e o pouco, Met. , 13, 1020a17 seg.). o comprido e o curto etc. (cf. a 158 Cf. Met. , 8, 10514 seg. a
159 Ibidem, 1051 4-5. 160 Cf., por exemplo, Fis. VIII, 7, 261a14; Ger. An im . II, 6, 742a20-2;Met. , 8, 989a15-6;, 2, 1077a26-7 etc. 161 Cf.,acima,II, 4.4 e n.128. 162 Cf.,acima,II, 4.4 e n.132. 163 Cf., acima, I , 3.2e n.78e 79.
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um do outro “ea causa, com efeito, é anterioràquilo de queé causa”;164 se definimo s um e outro, tornar -seá evidentemente essa anterioridade da causa, porque a defini ção do efeito mencionar á a causa, mostrando queé por ela que o efeito se conhece, enqu anto o inverso, por cer to, não ocorrerá, se formularmos a defini ção da causa.165 Mas, de ser e conhecer-se o efeito pela ca usa, enquanto nem é nem se conhece a causa,enqua nto causa , pelo efeito, resulta, em verdade,rela uma ção assim étrica entre causa e efeito, que ãoné obliterada pela reciprocabilidade constatada: nesse sentido, a anterioridade da quinta acep ção reduz-seà da segunda,166 ao mostrar-nos a reflexão sobre a rela ção causal que, em última análise, há uma não-reciprocabilidade fundamental: emseu mesmo ser, a causa é, sem o efeito, n ão este, sem aquela; a anterioridade da causa é sempre, portanto, uma anterioridade segundo êna ess cia e a natureza. Inversamente, podemos, tamb ém, dizer que a anterioridade segundo a ess ênciaé uma anterioridade causal: diz respeito à causalidade da ess ência, enquanto substrato das suas determina ções, e à causalidade da forma, enquanto causa final da potencialidade da 167 matéria. E não é difícil ver como a anterioridade absoluta da causa e da essência se acompanha de uma maior cognoscibilidade em sentido absoluto. Para um conhecimento absoluto, que apreende o ser segundo a sua própria ordenação e articulação, há de ser mais conhecível o que pode ser sem outras coisas, isto é, a causa, osubstrato, a essência, que, por isso mesmo, sem as outras se conhecem; e menos 164 Cf. Seg. Ana l. II, 16 (todo o cap ítulo), part. 98b16 seg. 165 Cf. ibidem,l. 22-4. Cf., também, Met. , 2, 982b2-4:“os princípios e as causasãso o que há de mais conhecível cientificamente ( ) (com efeito, por eles e a partir deles as outras coisas se conhecem, mas ão n eles pelas coisas que deles dependem) ”. 166 É o que não vê Ross, que julga redut ível a anterioridade da causa, tão-somente, ao sentido mais geral de“anterior” exposto emMet. , 11, istoé, ao de anterioridade segundo a maior proximidade de um certocomeço ou princípio (cf. sua nota introdut ória a Met. , 11). É curioso,por outro al do, que Le Bl ond n ão dê à noção de anterioridade a aten ção que ela merece no estudo da teoria aristot élica da demonstra ção e só se interesse pela anterioridade temLogique et m é thode ..., 1939, p.101). poral das causasãn o simultâneas com seus efeitos (cf. b 167 Sobrea causalidade da essência e da forma, cf., por exemplo, Met. , 17, 1041 7 seg.; 27-8: “isto [subent.: a forma] é a essência de cada coisa (pois isto é a causa primeira de seu ser) ”; a , 8, 10514 seg.;et passim .
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conhecíveis, os efeitos, determinações, atributos, porque,ãn o sendo senão por aqueles, por eles, tamb ém, em sentido absoluto, seãohde conhecer. Mas isso equivale, ent ão, a dizer que o conhecimento absolutamente anteriorãn o é senão o desdobramento, no plano doconhecimento, da anterioridade segundo aência ess e a natureza. Quanto ao anterior paraón s, por sua vez,ãon pode ser sen ão o queé, para n ós, mais conhecível – e, por isso mesmo, conhecido. A comparação entre os dois textos concernentes à noção de anterioridade, o deMet. , 11 e o deCat. 12 parece, assim, mostra r -nos, ainda que as duas listas de acep ções de“anterior” não se recubram exatamente, uma ineg ável concordância de doutrina; ou, antes, a doutrina dasCategorias sobre a anterioridade configurase como uma for ma menos elaborada da mesma doutrina que encontramos na Metaf í sica . Umaúnica discrep na ância, entretanto, mais aparente,verdade, do que real, aindaãn o eliminamos: o fato de as Categorias dizerem a anterioridade temporal o sentido primeiro e “dominante” () de“anterior”.168 Com efeito, se isso significasse que “anterior”, em sentido primeiro e absolutamente fundamental, se diz segundo o tempo,ãno haveria comoãno constatar uma flagrante contradição na doutrina, dificilmente redut ível. Por outro lado, se recordarmos a doutrina aristot élica do movimento, facilmente verificaremos que conceder a primaziaà anterioridade temporal equivale a antepor o movimento (de que o tempo é número169) ao ser; a potência (o movimento, que o tempo mede, quia do queé em poé “a entel é 170 tência, enquanto tal ” ) ao ato; a matéria, enfim,à forma eà essência; ora, não vemos como isso se conciliaria com todaa doutrina aristotélica do ser e da ess m, desaparece, ência. Toda a dificuldade,épor 171 se lembrarmos que não designam 168 Cf.,acima,II, 4.4 e n.127. b b b 169 Cf. Fís. IV, 11, 219 1-2; 220a24-25; 12, 220 9-10 etc. E, como diz Fí s. VIII, 1, 251 28:“o tempo ). éum a certa afec ção do movimento ” ( a 170 F ís. III, 1, 201 10-11;b4-5 etc. 171 Cf., acima, n.27 deste capítulo e nossa discuss ão sobre o verdadeiro, como , em II, 2.1.
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necessariamente o que é absolutamente primeiro e fundamental mas, também, o sentido mais literal e maisóprio: pr dizer, ent ão, que o sentido “dominante ” de anterior respeita ao tempoé apenas lembrar que o tempoé o “número do movimento segundo o anterior e o posterior ”,172 que“antes”, “anterior” são expressões que designam, primitivamente, uma rela ção temporal; em suma, a primazia da anterioridade temporalé meramenteling üística. 173 Curiosamente, ent ão, a própria noção de“anterior” a si própria se aplica, segundo as diferentes çõ acep es que comporta: do ponto de vista da g do discurso humano, da ênese constituição das significações no tempo,é anterior a anterioridade temporal;é, por outro lado, essencial e absolutamente anterior a noção de anterioridade essencial e em sentido absoluto. Assim interpretados os textos,à luz de outros do próprio filósofo, desaparecem a ambigüidade e a contradição aparente e readquire a doutrina uma satisfatória e coerente unidade, sem que tenhamos de recorrer a so174 luções mais engenhosas... b 172 Fís. IV, 11, 219 2. 173 Pois nem mesm o se pode dizer que a anteriorid ade segundo o temp o seja primeira, do po nto de vista da ci ência física e do movimento: na medida em que a continuidade do tempo, na física aristotélica, segue a continuidade do movimento e esta, a da grandeza, “o anterior e o posterior no lugarão s primeiros. E oãso, aí, pela posi ção; mas uma vez queáh, na grandeza, o anteriore o posterior,é necessário que, também, no movimento, haja o anterior e o posterior, poranalogia com aquel es. Mas, tamb ém, no tempo, ent ão, há o anterior e o a posterior, por seguirem sempre umo outro” (F ís. IV, 11, 21914-9). 174 Como nos parece ser a elegante solução que propõe Aubenque para o problema da anterioridade, em Arist sofo possam, a nosso ver, fundament óteles, sem que os textos doófil á-la. Com efeito, para esse aut or, se olivro da Metaf ísica parece omitir aanterioridade cronológica,é porque tal sentido de “anterior” está implícito“dès qu’on parle d’avant et d’ apr ès ” (cf.Le probl ème de l ’être ..., 1939, p.47); a anterioridade segundo o conhecimento reduzir -seia forçosamente à temporal porque todo conhecimento se desenvolve no tempo e, se Aristóteles pareceopor, às vezes,a anterioridade ól gica à temporal, não significaria isto que a anterioridadeólgica não é, também, uma anterioridade temporal, mas apenas que o tempo da defini ção lógica difere do tempo daêgnese; de qualquer modo, por ém, ainda que o discurso humano se esforce por inverter este tal invers último, ão tem necessariamente de desenrolar-se “dans un temps qui n’est autre que celui des choses ” (cf. ibidem, p.48); quantoà anterioridade segundo a natureza eess aência, que n ão é outra senão a ordem da causalidade,“qui suppose, au moinsà titre de schème, la succession dans le temps ” (ibidem), entende o autor que“le primat de ’lessence lui-même n’est que le primat de la considération de’essence l ”, a anterioridade dependendo sempre, de qualquer maneira que
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4.7 O caminho humano do conhecimento: investiga ção e ciência
Se talé a conceitua ção aristotélica da anterioridade, como resolveremos, agora, as aporias que a oposição entre o anterior e o mais conhecido em sentido absoluto e por natureza, de um lado, e o anterior e o mais conhecido paraós, n de outro, salientada peloófil sofo ao falar da anterioridade e da maior cognoscibilidade das premissas cien175 tíficas, parecia implicar? Se não nos fossem ainda suficientes, para apontar o caminho da solu ção buscada, as indica ções implícitas que nos forneceu a discuss ão sobre a noção de“anterior” e que poderiam oferecer-nos a doutrina dos silogism os do“que” e do porquê, interpretada, agora, à luz daquela mesma discuss ão, um texto extremamente elucidativo deMet. vem explicar-nos, com toda a clareza desejável, o pensamento do filósofo. Com efeito, estabelecendo queestudo o da essência () deve começar pelo exame das ess ências sensíveis (já que se concorda, geralmente, em que algumas dasas cois sens íveis se aborde o problema, do modo de conside ra ção, “c’està dire deco nna issance”: tal prioridade exprimiria apenas a obriga ção de o discurso humano come çar pela essência “s’il veut savoir de quoi il parle ”; como, entretanto,“l’ordre de la connaissance, acte humain qui se déroule dans le temps, est lui-m ême un ordrec hr onologique” (ibidem, p.49), Arist óteles, ao opor o mais conhecido em si e por natureza aoerior ant e mais conhecido para ós,nestaria opondo dois modos de conhecimento, um de direito e outro de fato, introduzindo a srci em si
nal concep de um conhecimento de qualquer refer conhecimento çãoibidem, ência aocoincidiria humano (cf. p.54), para o qual ,ofora ontologicamente primeiro com o primeiramente conhecido (cf. ibidem, p.67). ãoNé de admirar que, com uma tal interpretação da anterioridade aristot élica, possa Aubenque atribuir a Arist óteles uma filosofia profundamente pessimista quanto ao alcance do conhecimento humano: jungido sempre à perspectiva de seu conhecimento “de fato”, devendo sempre partir das coisas que lhe ãos mais conhecidas, nunca lograria o homem situar -se na perspectiva do éque anterior segundo a essência, por onde deveria, entretanto, come çar, para ter uma verdadeiraência; ci e a pr ópria metaf ísica aristot élica, essencialmente apor ética, seria uma “metafísica inacabada ”, por ser uma“metafísica do inacabamento ” (cf. ibidem, p.505). Ora, toda nossaáan lise da noção aristotélica de anterioridade mostra ser insustent ável a interpretação de Aubenque, ao privilegiar, como faz, a anterioridade cronol ógica; por outro lado, as aporias concernentes à oposição das duas ordens deconhecimento recebem, nos textos aristot élicos, como a seguir veremos, uma solu ção plenamente satisfat ória e...“otimista”: não esqueçamos, aliás, que pudemos mostrar ser a teoria aristot élica da ci ência um estudo ótericode uma reali dad e de fato (cf., acima, I,2.1). E nada indica, nos textosódo sofo, fil que ele tenha jamais descrido da capacidade humana de elevar-se é aat Ciência das coisas. 175 Cf., acima, II, 4.3.
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são essências), continua Arist óteles:“É, de fato, vantajoso avan çar em direção do mais conhec ível. Pois é assim que, para todos, se produz o aprendizado, por meio das coisas menos conhec íveis por natureza, em direção das mais conhec aes, íveis; e esta é a tarefa– assim como, nasçõ ela é a de, a partir do queé bom para cada um, tornar o que é total176 mente bom bom para cada um –, do mesmo modo, aqui, partindo do queé, para si mesmo, mais conhec ível, tornar o que é conhecível, por natureza, conhecido, para ”.177siO queé mais conhecido e primeiro para cada um, freq üentes vezes, por certo, é apenas medianamente conhecido e pouco ou nada tem a ver com o real; ainda assim, é sempre a partir do que conhecemos, ainda que mal conhe çamos, e através desses conhecimentos, que tentaremos conhecer absolutamente o conhecível.178 O texto, extremamente claro, indica-nos o caminho a percorrer quando se busca o conhecimento coisas das segundo a mesma cognoscibili dade fundada em sua ess ência e natureza; tal caminho não é senão o mais natural epressupõe o reconhecimento de que a cognoscibilidade de uma coisa, em sentido absoluto, ãno se reflete no conhecimento espont âneo por que ela nos é primeiramente acess ível: porque as coisas mais conhec íveis, imediatamente, para nós e as, por natureza, mais conhec íveis não são as mesmas,é que devemos, se queremos conhecer verdadeiramente as coisas, caminhar desde o que para nós é mais claro at é o queé mais claro em virtude de sua mesma natureza: temos necessariamente de partir do éque mais conhec ível 179 segundo a sensa ção. Da sensação dependem nossas primeira s cerb 176 Cf., também, Ét. Nic. V, 1, 1129 4-6, sobre os bens que os homens pedem em suas çõora es: tão-somente os bens exteriores, quando deveriam pediras que coisas boas, em sentido absoluto, fossem tamb ém boas para si. 177 Met. , 3, 1029b3-8. (cf.,acima, n.116 deste cap ítulo) pode traduzir-se tanto por “conhecível” como por“conhecido” e não vemos como possa tornar-se otexto inteligível sem lançar mão dessa possibilidade de dupla interpreta ção. b 178 Cf. Met. , 3, 10298-12. 179 Cf. F ís. I, 1, 184a16 seg. O texto apresenta, entretanto, uma certa dificuldade para a- inter pretação, ao afirmar(cf. l. 23-5) que o conhecimento que vai da sensação ao queé mais conhecível por natureza caminha das coisas universais () para as particulares (’ ). Dentre as múltiplas interpretações que se têm proposto, cremos ser a melhor a
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tezas eé das coisas individuais, que por ela con hecemos, que prov êm 180 os universais. Podemos, mesmo, dizer que“sem ter a sensação, absolutamente nada se poderia aprender nem compreender ”,181 já que os inteligíveis se encontram nas formas sensíveis.182 Metaf í sica opõe, com bastante nitidez, a ordem Mas, se o texto da da investigação e da pesquisaà ordem do real edo verdadeiro saber , mostra-nos, tamb ar conheém, o escopo final que nos propomos: torn cido de nós o absolutamente conhecível, transfo rma r a sua maior cognoscibilidade segundo a natureza e a essê ncia numa maior cognoscibilidad e para n ós ; superar , portanto, a barr eira que espontaneamente se ergue entre o conhecimento humano e a ordem por que o real, empr ósiprio, se ordena, de modo a permitir, destarte, à perspectiva do conhecimento humano assumir, por assim dizer, a mesma perspectiva pr óprias das coisas. Eis, então, que a doutrina dos Anal í ticos plenamente se esclarece e se resolvem suas aparentes aporias à luz do ensinamento novo:áh ciência quando o conhecimento humano super a a suaespontaneidade para situar-se na perspectiva nova de uma absoluta coincid ência com a mesma ordem do ser. Porque o mais conhecido, para ós, agon ra, uma vez operada“invers a ão” que torna a ci ência possível, é o mais conhecível em si e por natureza, por isso podemos falar do “mais co-
nhecido por natureza e em sentido absoluto ”, como caracter ística das premissas cient íficas. Epodemos dizer,igualmente, quea anterioridade absoluta segundo a ess também, agoência e a causa se tornou, ra, uma anterioridade paraós. n À progressão natural do saberàeorde Aubenque (cf. Le probl ème de l ’être..., 1939, p.209-10), explicando a passagem por referência “à l’usage courant, populaire etép joratif, du mot qui n’a pas ici le sens de l’universel aristot élicien, mais édsigne une sorte de perception confuse, syncr étique et qui n’est générale que parce qu ’elle est indistincte ”. b 180 Cf., Ét. Nic. VI, 11, 1143 4-5. a 181 Da Alma III, 8, 432 7-8. E a mesmaconstrução do edifício científico dependeãto estreitamente da sensa ção que osAnal íticos dão como manifesto ( ) que a supress ão de um Seg. Ana l I, dos sentidos implicaria o desaparecimento de uma ciência correspondente, cf. a 18, com., 81 38 seg. a 182 Cf. Da Alma III, 8, 432 4-5.
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dem genética do conhecimento a partir das sensa ções, em dire ção dos universais e no sentido de um afastamento cada vez maior daquelas, substitui-se, com aciência, a ordem de um saber descende nte, inversa daquela, seguindo as mesmas articula ções do ser, passando do mais universal ao menos universal, do anterior ao posterior segundo a natureza, apreendidos como tais. Por outro lado, a cognoscibilidade maior do anterior por natureza, que passa ao ato no conhecimento científico, define-se, portanto, como potencialidade, relativam ente a um conhecimento humano eventual, isto é, à ciência que os homens a seu respeito venham a constituir: a cognoscibilidade em si é em o referência a um saber absoluto que o homem atinge com a ciência, 183 contrariamente ao que se sustentou. E, do ponto de vista do saber científico uma vez constitu ído,é válido dizer que as premissas ãospreviamente conhecidas, que o porquê se conhece anteriormente“que ao ”, que o conhecimento caminha da causa ao causado: é que não mais nos referimosà gênese espont ânea e natural do conhecimento, mas à ordenação interna do novo saber que edificamos, esposando a ordem das coisas, tendo cumprido o programa quetexto o de nos indicava. Nem era outra, também, a doutrina aristotélica, ao expor, nos Tópicos , como se proceder á à busca dialética da defini ção: com efeito, um dos tópicos que ensejam a cr ítica de uma defini ção dada184 consiste em verificar se acaso ãno se formulou ela“por meio de termos anteriores e mais conhecidos ”. Pois, áj que a defini ção se formula para fins de conhecimento e que, “como nas demonstra ções”, é a partir do que é anterior e mais conhecido que se con hece e ã no, a partir de ter183 Cf. Aubenque,Le probl ème de l ’être..., 1939, p.54, 65, 67; acima , II, 4.3 e n.114 seg.; II,.64e Aristotle ’ s Prior a nd Posten.174. Não é, também, aceitável, então, a interpreta ção de Ross (cf. rior Analytics, Introduction, p.54), ao pretender ue qse dir ão as premissas do silogismo científico“mais conhecidas ” unicamente no sentido de serem mais intelig íveis, ainda que nos sejam“less familiar ”: se assim fosse, oconhecimento cient ífico, enquanto tal,ãno nos seria efetivamente dado. Nem énos possível concordarcom L. Brunschvicg (cf. L’expé rience hum aine et la causalit é phy sique, 1949, p.150-1), quando, dizendo haver , em Arist óteles,“un renversement entre l’ordre e la connaissance et’ordre l de ’lêtre”, parece fazer do discurso cient ífico demonstrativo uma mera exposi ção didática do sistema de conhecimentos constitu ído. 184 Cf. Tóp. VI, 4, 141a26 seg.
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mos quaisquer , torna-se manifesta a incorr eção da definição que não preencher tais requisitos. E relembra oófil sofo os dois sentidos em que se pode dizer algo anterior e mais conhecido (ou posterior e menos conhecido): em sentido absoluto ( ) e para nós (); em sentido absoluto, por exemplo,ãso anteriores e mais conhecidos o ponto que a linha, a linha que o plano, o plano que oóslido, assim como a unidadeé mais conhecida que oúnmero, sendo o princ ípio de todo número, e a letra oé mais que a sílaba. Algumas vezes, ocorre, entretanto, continua o texto, precisamente o contr ário e são-nos, de fato, mais conhecidos, do ponto de vista da percep ção sensível, mais do que todos o ó slido, o plano, mais do que a linha, a linha, mais do que o ponto; a maioria dos homens, áali s, conhece previamente coisas dessa natureza, enquanto a invers ão dessa ordem espont ânea do 185 conhecer exige uma intelig Do ponto ência penetrante e excepcional. de vista científico, impõe-se essa invers ão, ainda que reconhe çamos ser preciso, talvez, d iante d os que são incapa zes de conhecer dessa maneira , formular a definição por meio dos termos que lhesãso, a eles, mais conhecidos; em aten ção a eles, definiremos, ent ão, o ponto, a linha, o plano, como limites, respectivamente, da linha, do plano, ólido, do s definindo o anterio r pelo posterior. É que, sempre, no princ ípio, são mais conhecidas as coisas sens íveis, operando-se aquela inversão à 186 medida que o pensamento se torn a mais exato e rigoroso. Mais uma vez, por este texto, de cujo sentido geral em nada difere aquele outro 187 de Met. que acima examinamos, confirma-se a unidade da doutrina: não se nos dá, de início, a adequa ção do nosso saber ao real, mas
185 Cf. ibid ., 141b13-4. a 186 Cf. Tóp. VI, 4, 15 seg.; 142 2-4. 187 Ao contrário do que pretende AubenqueLe (cf. probl è me de l ’être ..., 1939, p.64-5), para quem, T picos enquanto, nos ó , o acessoà ordem dainteligibilidade emési apenas uma penetra ção de espírito e de exerc ício, “à mesure que la pens ée d’Aristote se développe, il semble bien que la perspective de cette coincidence [subent.: entre o que é mais conhecido para óns e o que é mais conhecido em sentido absoluto] soit de plus en plus diff érée”; o livro da Metaf í sica faria, ent ão, dessa n ão-coincid ência uma“servidão permanente do conhecimento humano”, a que nem mesmo o fil ósofo pode escapar, a cognoscibilidade em si nandotor se, finalmente, uma cognoscibilidade para ningu ém. Ora, cremos ter podido mostrar que,
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ela é, antes, o fruto de um laborioso esfor ço que precede a constituição do conhecimento cient ífico. E esta passagem do mais obscuro, ainda que mais manifesto, em dire ção do queé claro e mais conhecido segundo o discurso ( ), como diz Aristóteles a pro188 pósito da busca e estabelecimento de uma çã defini o para a alma, fazse no sentido da manifesta ção da causa: dever á a definição procurada conter a causa e manifest á-la. Não teremos dificuldade, ali ás, em integrar, nestes novosresultados que alcan çamos, o queanteriormente dissemos sobre os silogismos do “que” e do porquê:189 operandose a inversão científica, aos silogismos do“que” da fase anteriorà ciência substituem-se os silogismos do porqu ê, em que aratio esse nd i coincide com raa tio co gnosc end i e em que, por conseguinte, o anterior e mais conhec ível em sentido absoluto se tornou premissa silogística, 190 porque, tamb ém, agora, anterior e mais conhecido para ós.n Se compreendemos, exatamente, este ponto, torna-se evidente, então, que não se confundem, absolutame nte, noaristotelism o, ciên-
se é evidente que a dist ância entre o que nos é imediata e espontaneamente conhec ível e o que oé , em sentido absoluto, é uma“servidão do esp írito humano ”, nenhum texto aristot élico (e o de, menos do que qualquer outro) no-la descreve como“uma servidão permanente”; ao contrário, todos os textos convergem para apont á-la como uma servid ão apenas inicial que o homem efetivamente supera pela posseêda ncia. ci E a leitura de trata dos como Faísica e a a tica , que partem dessaão-coincid n ência e dessa dist ância (cf.F s. I, 1, 184 16 seg.; t. Nic. I, É í É b 4, 10951 seg.), mostra-nos como eles êm ta pretensão de tê-las definitivamente vencido, ao menos no que concerne a certos problemas funda mentais de seus dom ínios respectivos. a 188 Cf. Da Alma II, 2, com., 413 11 seg. Note-se a equival ência que Arist óteles estabelece, neste texto, entre o maisconhecido segundo odiscurso e o maisconhecido segundo anatureza e a essência. 189 Cf., acima, II,3.2 en.78 seg.; II,3.3. 190 Porque não compreendeu ter Arist de transformar óteles reconhecido a possibilidade real se o mais conhec ível segundo a natureza e em sentido absoluto em mais conhecível, tamSeg. Ana l . I, bém, para nós, Aubenque rejeita, como prov ável interpolação, a passagem de b a 2, 71 33-72 5 (cf., acima, n.117 deste cap ítulo), porque todo silogismo ter á, forçosamente, uma, ao menos, de suas premissas mais universa l que a conclus ão e, portanto, menos conhecível quanto à sensação e, conseq üentemente,“para nós”. Se o ilustreautor tivesse razão, Aristóteles deveria condenar-nos, pura simplesmente e ,à impossibilidade de conhecer silogisticamente, uma vez que, reiteradas vezes, afirma queçã a oindu () é mais conhecível segundo a sensação e mais manifesta, paraós, n do que o silogismo, porque caminha porquecaminha das coisas individuais para universais, as das coisas conhecid as para a a b Tóp. VIII, 1, 156 as desconhecidas, cf. 4-7; I, 12, 105 13-9;Prim . Ana l. II, 23, 68 35-7.
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cia e investiga ção ou pesquisa“científica”. Só é ciência o conhecimento que, porque se ajustou integralmente às articulações do real,é posse efetiva dele pela nossa alma; naêci ncia, a ordem do racioc ínio “deve exprimir a pr ópria ordem da natureza, traduzir asçõ rela es profundas que unem ou explicam os seres, em outras palavras, fundar -se sobre as rela ções íntimas de causalidade ”.191 Mas, por issomesmo, enquanto essa coincid ência absoluta seãno tiver, ainda, dado, enquanto estiver o homem a caminhar desde o que élhe imediatamente anterior e mais conhecido, em busca do conhecimento segundo aência ess e a natureza, enquanto investiga e pesquisa, portanto, n ão h áciência , ainda;percorremos, apenas, um dom í nio pr é -cient í fico que fazemos propedêutico ao saber cient ífico que buscamos. ãNo é lícito, então, dizer que“a ciência comporta dois momentos: a pesquisa e a prova ”,192 pois entendemos plenamente por que, para Arist óteles, só a “prova” é ciência. Muito menos, ainda, é válido opor aosAnal íticos e à sua“teoria da ciência rígida e altiva, que exclui as conjecturasãeondá lugar senão à demonstra ção apodítica, que pretende descer da causa ao efeito e estabelecer-se no intelig ível absoluto, que se dá como perfeitamente universal e impessoal ”, um outro Arist óteles que, nos tratados, teria desenvolvido uma outra concep ção sobre a natureza do saber,“um Aristóteles muito menos rigoroso, infinitamente mais male ável que aquele que freq dominante üentemente se imagina, segundo a teoria 193 nos Anal íticos ”, um pensador que tateia e que pesquisa. Não é porrience chez Aristote, 1955, p.102-3. 191 Bourgey,Observation et exp é 192 Mansion,Le jugement d ’existence..., 1946, p.168. thode ..., 1939, Introduction, p.XXII-XXIII. Tamb 193 Cf. Le Blond, Logique et m é ém Bourgey (cf. Observation et exp é rience ..., 1955, p.110-3)êcr encontrar, nos grandes tratados cient íficos e nas obras filos óficas de Arist óteles, uma imagem bastante diferente do saber humano, em relação àquela que nos ãdo osSegund os Anal íticos . Os trabalhos debiologia, sobretudo, revelariam esta nova concepção do saber, nascida das lides daópria pr pesquisa, privilegiando a observa ção e a experi ência, servindo-se heuristicamente deóhip teses de trabalho,ãno
tendo o filósofo,porém, tido tempo para explicitar sua nova perspectiva da ci no plaência no teórico. Ora, pudemos mostrar comoão n se trata de uma nova perspectiva do saber humano nem de umanova concep ção da ciência,mas, ãto-somente, do esfor ço humano que prepara a possefinal da êcincia, da pesquisa preliminar que possibilitar á a “inversão” científica, o saber rigoroso constitu ído more geometrico permanecendo sempre, porque é o único a coincidir com a ordem dasóprias pr coisas, o modelo definitivo do conhecimento ífico. cient
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que osAnal íticos “descrevem a ci ência acabada, que desce das causas aos efeitos e coincide absolutamente com o dinamis mo das coisas ”,194 uma ciência em que n ão há lugar para o m étodo, enquanto pesquisa, que se lhe oporá, como se se tratasse de uma outra orienta ção doutrinal e de uma dualidade de inspira ção, a prática aristotélica da ciência, sua teoria do m étodo de“invenção” da ciência, seu trabalho de investiga ção “científica”;195 não há, em Aristóteles, como se pretendeu,196 dois personagens que se devem ntrapor, co o Plat ônico e o Asclepíada. O que h á, simplesmente,é a oposição que o filósofo conscientemente estabelece e proclama entreência ci e pesquisa, entre o saber acabado, constituído em movimento descendente do mais universal ao mais particular, do mais cognosc ível, por natureza e em absoluto, ao menos cognoscível, da causa ao causado e, de outro lado, o trabalho preliminar de investiga ção que segue o caminho exatamente inverso e cujo sucesso dever á permitir a constituição da ciência.197 Mas, se assimé, não há como estranhar que coexistam com os textos dosSegund os A nal íticos , que nos fixam osâcnones do saber científico, os textos em que nos exp õe o filósofo o seu método de pesquisa pr é-científica e os em que opratica, permitindo-nos acompanhar sua investiga ção em marcha. Eis, assim, ent ão, que, mais uma vez, podemos assistir ao triunfo da unidade coerente do dogma, corretamente int erpretado, sobresatend ências“divisionistas ” de intérpretes eminentes...
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thode ...,1939, p.105. Le Blond,Logique et m é Cf. ibid ., p. 105-6, 186-7, 435 etc. Cf. Gomperz, Th., Pensad ores Griegos , Guaranis, 1952, tomo III, cap. IV e VII. Não é difícil constatar quanto uma tal concepção do saber mant ém e preserva da concepção platônica da ciência: para Platão, com efeito, o saber cient ífico, em sentido rigoroso, constitui-se, apenas, no movimento descendente posterior à visão da essência, objeto e Les dia resultado do movimento ascendente da investiga ção dialética, cf. Goldschmidt, V., 2 logues de Platon , 1963, p.9. Como diz, comãraz o, Aubenque (cf. Le probl è me de l ’être ..., 1939, p.62):“Aristote conservera l’ideal platonicien ’d un savoir descendant, qui va du simple au complexe, du clair au confu s, de’universal l au particulier ”.
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5 Os ind emonstr áveis 5.1 A no ção de princ í pio
“Que se parta de premissas primeiras( ), indemonstráveis ( ), porque[subent.: de outro modo]ãno se conhecerá cientificamente, emão n se tendo demonstra ção delas;pois conhecer cientificamente, ãonpor acidente, as coisas de que á demonstra h ção é ter a demonstra ção ... Partir de premissas primeiras é partir de princípios apropriados ( ): identifico, de fato, premissa primeira e princípio (). Um princípio de demonstração é uma proposição imediata(), imediataé aquela a que n ão há outra anterior”.198 Com essas duasúltimas notas que caracterizam as premissas da demonstração, o serem primeiras e imediatas, introduziu-se, por fim, a noção de p r in c íp io , absolutamente fundamental para a teoria aristotélica da ciência. Sabedores de que o conhecimento cient ífico, como todo conhecimento na esfera diano ética, parte de algo que previamente se conhece, viemos paulatinamente estudando a natureza desses conhecimentos anteriore s, no que serefere ao silogismo demonstrativo, compreendendo que o que cientificamente se conhece e demonstra conhece-se e demonstra-se a partir de premissas verdadeiras, que exprimem a causalidade realconclus da ão obtida e queãso anteriores e mais conhecidas em sentid o absoluto, segundo a natureza e a essência. Explica-nos agora oófil sofo que as premissasábsicas do raciocínio científico deverão também – como condição para que realmente o sejam para um deter minado ramo do saber, a ele apropriadas – distinguir-se por um caráterprim eir o e imediato , istoé, por prescindirem de qualquer premissa anterior que as justifique ou fundamente. Por isso mesmo, dir-se-ão prin cípios , porque por elas principia m as demonstrações. Conhecem-se, ent ão, os princípios antes e mais do que as outras premissas e conclus ões, já que por eles essas todas se conheb 198 Seg. Ana l. I, 2, 71 26-72a8.
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199 cem, que lhesãso posteriores; há de crer-se mais neles do que em tudo que deles depende, o que ãonseria possível se não os conhecêssemos ou não estivéssemos, em rela ção a eles, numa disposi ção ainda melhor do que se os conhec êssemos.200 E compreende-se como
ia afirmar que, seãn possa aÉtica Nico ma qu é o se conhecem os princ ípios e não se crêem eles mais que as conclus ões, ter-se-á uma ciência 201 meramente acidental. Já que as causas se dizem em tantas acep ções quantas as de “princípio”202 e visto que se manifestou a anterioridade segundo a ess ência das premissas cient íficas como uma anteriori203 dade causal, o caráter imediato dessas proposi ções absolutamente anteriores que ã so os princípios não exprime, então, senão o caráter imediato da causalidade que engendra efeitos os que aência ci demons204 tra: os princ ípios concernemàs causas primeiras do demonstrado.
5.2 A ind emonstrabili da de dos princ í pios
Enquanto premissas primeiras e imediatas, a que nenhuma outra é anterior, os princ ípios são, por isso mesmo, indemonstr áveis . Fosse um princípio demonstrável, já que o conhecimento do demonstr ável é a 205 demonstra e ção, haveria a proposi ção queé primeira eabsolutament a
Cf. Seg. Ana l. I, 2, 7230-2. Cf. ibid ., l. 32-4. b Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139 34-5. Pois “todas as causas s ão princ ípios”, sendo comum a todos os princ ípios o serem aquele priMet. , 1, 1013a16-19; cf., tammeiro ponto a partir de que algo é, devém ou se conhece, cf. a a bém, Met. , 1, 982a1-3; 2, 982 5; b2-4; 9-10;Fís . I, 1, 184 10-6 etc. 203 Cf., acima, II, 4.6 e n.161 seg. 204 Sobre a noção de causa primeira ( ) cf., acima, n. 77 deste cap ítulo. Se todos os princ ípios, ent ão, exprimem causas primeiras , no sentido de causas pr óximas , alguns dentre eles– os primeiros princ ípios das ciências, sobre os quais se constroem seus silogismos iniciais– exprimir ão causaspr im eiras , também no outro sentido da express ão, no de causa última e fundamental . 199 200 201 202
Seg. Ana l.
b
a
b
205 maiores Cf. I,çõ2, 71que 28-9; 3, 909-10. Observe-se que oófil sofo sem indica es, não72 há25-6; outroII, conhecimento poss ível do demonstr ávelassume, senão a demonstração. Mas não seria, entretanto, poss ível uma outra forma de conhecimento do demonstrável, por exemplo, a definição, sem que fosse necess ário efetuar a demonstra ção? – eis um problema a queó so livro II dosSegund os Ana l íticos trará resposta, como veremos, ao estudar, no cap. V, as rela ções entre defini ção e demonstra ção.
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anterior de ser conhecida por demonstra ção, istoé, de ser posterior e segunda, relativamente às mesmas premissas a partir de que se demonstraria, o queé, manifestamente, contradit ório: porque primeiros e imediatos, os princ ípios são indemonstráveis.206 Repousa, pois, a demonstração sobre os indemonstráveis e neles se funda, a demonstrabilid ade doobjeto cient ífico exigindo, como condi ção de sua possibilidade, a indemonstrabilidade de premissas últimas, de que a demonstração decorre.“Com efeito, haverá silogismo mesmo sem essas condições, mas não haverá demonstração, pois ele n ão produzirá ciência”.207 Já mostramos, aliás, como o conhecimento dos indemonstráveis, isto é, dos princípios da ciência, constitui aquela outra maneira de conhecer a que o ófilsofo fazia alusão, dizendo-a, 208
também, científica, num emprego mais lato do termo E “ciência”.esp dá-nos Aristóteles209 uma indica ção preliminar de diferentes écies de princípios, deixando para cap ítulos posteriores seu estudo sistem ático:210 distingue os axiomas e as teses e subdivide estas últimas em definições e hipóteses, que define e elucida com exemplos. A eles voltaremos, nomomento adequado. Atentemos, por outro lado, em que n ão nos pro vou aind a o filósofo a existência de princ ípios indemonstr áveis para a ciência; de fato, afirmando haver,dentre as premiss as cient íficas, certas proposi ções que são absolutamente primeiras e que denominou “princípios”, fez-nos 206 Não vemos, contrariamente a AubenqueLe (cf. probl è me de l ’être ..., 1962, p.54-5), nenhum paradoxo no texto aristot élico deSeg. Anal . I, 2, 71b26-9. O filósofo não nos diz, de nenhum modo, que“as premissasãso primeiras, se be m que ind emonstráveis ” nem que“elas são também primeiras, porque indemonstr áveis”, mas, simplesmente, que, porqu e prim eira s, elas s ão indemonstr áveis . Aubenque, coerente com sua interpreta ção, a nosso ver inaceit ável, privilegia, então, a caracterização negativa dos princípios pela sua indemonstrabilidade (cf. ibidem, p.55, n.5), nela vendo a inten ção do filósofo de exprimir a“impotência do discurso humano”, ao invés de considerar preliminarmente, como parece impor-se, a identificação de princípio e de proposi ção imediata,absolutamente anterior , caracteriza ção, esta, absolutamente positiva da çã noo de princípio. 207 Seg. An al. I, 2, 71b23-5. 208 Cf., acima,II, 1.3. a 209 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 72 14-24. 210 Cf. Seg. Ana l. I, cap. 10 e 11.
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ver, apenas, que a noção de proposição primeira implica indemonstrabilidade. Exemplificou com o que ocorre as ci nências matem áticas, em que podemos surpreender ouso de axiomas, teses, defini ções e hipóteses, a partir dos quais se constr ói o edifício científico. Mas não está ainda demonstrado que a êcincia exija como condi ção de possibilidade tais proposições primeiras, absolutamente anteriores e imediatas. Eé, também, o próprio Aristóteles quem faz quest ão de ressaltar o fato de n ão ser universalmente reconhecida a exist ência dos princípios indemonstr áveis: nem todos pensam, com efeito, que haja uma forma cientificamenteávlida de conhecer outra que ãno a demonstração e o filósofo consagraà crítica desse modo de conceber o conhecimento um cap ítulo inteiro dos Segun d os An al í ticos. 211 5.3 Um fa lso dilema: regressão ao infinito ou demonstra ção hipoté tica
Duas diferentes manifesta ções dessa atitude em face da ência ci são por ele consideradas: de um lado, á os h que recusam a possibilidade 212 de qualquer êcincia absoluta, de outro, osque, aceitando-a embora, sustentam, no entanto, que toda proposi ção é demonstrável, acolhendo, destarte, como poss ível e válida, a demonstra ção circular.213 Ambas acepções têm em comumo reduzirem unicamente à demons214 tração o processo cient ífico do conhecimento e, por isso mesmo, serão uma e outra objeto daítica cr aristot élica.215 Os primeiros, assumindo que não é possível conhecer cientificamente se não pela de211 212 213 214 215
Isto é, I, 3. b Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72 5-15. Cf. ibidem, l. 6-7; 15-8; 25 seg. Cf. ibidem, l. 15-6. Na medida em que Aristóteles sustenta exigir a êcincia demonstrativa umconhecimento preliminar,“uma disposi ção ainda melhor do que se conhec êssemos cientificamente ” (cf., acima, II, 5.1 e n.200), conhecimento este que, porque alicerce indispens ável do edifício científico, com mais forte raz ão, ainda, num sentido mais lato do termo, seádir , também, ciência (cf., acima, II, 1.3). É o desconhecimento dessa “ciência” que Aristóteles condena nas críticas que estamos a consider ar.
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monstra ção,216 sustentam, ent ão, que somos envolvidos numa regressão ao infinito ( ): se o conhecimento científico de uma coisa sefunda no conhecimento de premissas anteriores a partir das quais aquela se demonstra,oseconhecimento científico destas premissas exige que tamb ém elas se demonstrem a partir de outras que lhes ser ão, por sua vez, anteriores e assim por diante, nosso propósito de fundar cientificamente o conhecimento esbarra, então, no óbice que representa uma indefinida e contínua regressão à busca de uma anterioridade inesgot ável. Pois, se não há premissas primeiras, a mesma impossibilidade de percorrer uma é- s 217 ria infinita– o que Aristóteles, de bom grado, lhes concede – torna impossível que se conheçam realmente as proposi ções posteriores pelas anteriores. Introduzir-se-ão, acaso, premissas primeiras ou princípios, desse modo detendo-se a regress ão estéril? Mas, se somente a demonstração é conhecimento científico, introduzir o não demonstrável é apelar ao incognosc ível, do ponto de vista científico; ora, se não é possível conhecer as proposições primeiras,é manifesto que, em sentido pr óprio ou absoluto, nenhum conhecimento cient ífico poderá haver daquelas proposi ções todas que por esses princ ípios se conhecerem e tiverem neles fundada a própria cognoscibilidade. O conhecimento delas ser hipot é tico, 218 tená, forçosamente, meramente do, comoúnico fundamento, princ ípios assumidos masãno comprovados. Nossos filósofos e Aristóteles estão, portanto, de acordo, sobre um ponto particularmente importante, isto é, sobre o fato de que a ausência de premissas primeiras e indemonstr áveis torna impossível a própria ciência demonstrativa, no sen tido absoluto em que a definimos. Eis-nos, assim, diante da grave aporia doçocome do conhecimento, deparando com a impossibilidade aparente de possuir um conhecimento que parece á ter j sempre come çado. Supondo todo co216 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72b7 seg. Lemos, com Mure e Tricot, , a l. 8, queé a lição da maiocontra , Bekker e Ross: ria dos manuscritos; . 217 Cf. ibidem, l. 10: . 218 Cf. ibidem, l. 15: .
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nhecimento diano ético conhecimentos pr évios – doutrina que vimos ser a do próprio Aristóteles219 – pareceria a ci ência permanecer irremediavelmente suspensa a srcens inapreens íveis e o que se conhece e demonstra, eternamente afetado pela precariedade insuper ável de um princípio indefinidame nte recuado. Diante de uma tal aporia, que ameaça definitivamente inquinar umaência ci que se pretenda absoluta, não se hesitou, ent ão, em abandonar a pretens ão ao absoluto e em denunciar a precariedade do conhecimentoífico, cientde fato mas, também, de direito; manifestada, com efeito, a impossibilidade ógi- l ca de um fundamento último para o conhecimento,ó nos s resta partir de hipóteses que, sem demonstra ção, aceitaremos como verdadeiras, delas deduzindo as conseq üências que implicam:ãno saberia ir além a ciência dos homens e todo conhecimentoãonseria senão hipotético. Ora, Aristóteles recusa liminarmente essa solu ção e, enfrentando decididamente a aporia, mant ém os direitos da ci ência absoluta: nciaé demonstrativa, mas “Nós, porém, afirmamos que nem todaêci que a das premissas imediatas é indemonstrável (e que isto é necessário,é manifesto; com efeito, se é necessário conhecer as premissas anteriores e de que parte a demonstra ção e se, num certo momento, surgem as premissas imediatas, estas são, necessariamente, indemonstr mamos haver , áveis) – tais coisas, pois,assim dizemos e afir não apenas ciência, mas tamb ém um certo princ ípio de ciência( 220 ), pelo qual conhecemos as defini ções”. Como se vê, se bem 219 Cf., acima, I, 3.4. 220 Seg. Ana l. I, 3, 72b18-25. Preferimos tra duzir, a l.22,[lit.:“erguem-se”, “levantamse”, “permanecem imóveis”, “detêm-se”] por uma expressão como “surgem”, que, de algum modo, sugere esse significado literal (indicando aexistência de uma barreira, precisamente representada pelas premissas imediatas, que õ se e como imp termo necess ário da regress ão em busca da anterioridade), a servir -nos das per ífrases de que lan çam mão, ad locum
habitualmente, ostruths tradutor es (cf., Mure, mustque, “and since the end in immediate queexemplo, acompanha Tricot).:Observe-se, porregress outro lado, ”, tradu ção por se Aristóteles parece aceitar a denomina ção de“ciência” para designar oconhecimento dos princípios (cf. l. 18-20), em verdade, logo substitui -lhe a express ão “princípio de ciência” ( ), assim chamando o que, em outros textos denomina “inteligência” (), cf., acima, II, 1.3 e n.12: aência ci dos princ ípiosé um princípio de ciência.
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que Aristóteles ainda ã no proponha uma prova da exist ência dos princípios indemonstr áveis,221 ei-lo que, aceitando haver incompatibilidade entre a ci ência absoluta e a redu ção de todo conhecimento, na esfera cient í fica, ao que se obt é m por demonstra çã o, op õ e, enfaticamente, aos pensador es que critica, a exist ência de um“princípio de ciência” que conhece, em sentido absolutosem e demonstração, as proposi ções primeiras com que necessariamente deparamos, se empreendemos a caminhada regressiv a a partir do demonstrandum 222 em direção do que lheé anterior e causa; sabedores de que á h uma 223 ciência, em sentido pr óprio e absoluto, afirmamos, também, agora, queé falso dizer que o conhecimento cient ífico sempre áj começou: ele começa com proposições primeiras e imediatas, isto é, com os 224 Antes de acompanharmos o filósofo nas considera ções que dedica à crítica dos que aceitam como cient ífica a circularidade na demonstração, atentemos em que sua rejei ção explícita de uma concep ção do conhecimento cient ífico que o considera meramente hipot ético a nenhum momento significa a exclus ão do uso de hip óteses nas pesquisas e investiga ções que constituem o que o ófilsofo considera, como vimos,225 uma etapa proped êuticaà verdadeira ci ência. Mas, porque, quando Aristóteles fala de ciência, em sentido absoluto, refere-se, como sabemos,à plenitude alcan çada de um saber constitu ído e or221 Essa prova, que estudaremos no cap. III, ó s será proposta emSeg. Ana l. I, 22. 222 A polêmica aristotélica contra os que negam a existência e a possibilidade de uma ência ci absoluta, em condenando o conhecimento a uma busca indefinida de seus ípios, princ ea firmeza da solu ção contrária que lhes op õe o filósofo constituem, a nosso ver, argumentos decisivos contra a interpreta Le probl è me de l ’être ..., 1962, p.214-9), para ção de Aubenque (cf. quem a ciência dos princ ípios seria tida, por Arist óteles, como imposs ível. É curioso que Aubenque não considere o importante textoSeg. de Anal . I, 3, que aqui comentamos, e nem sequer o mencione. 223 Cf., acima, I, 2.1. 224 fera Como conciliar poréõm, esta afirma a doutrina que todo conhecimento, na esção com diano e conhecimentos anteriores (cf., de acima, I, 3.4)? Veremos, no cap.VI, ética,, sup como a dificuldade, mais aparente que real, facilmente se remove. 225 Cf., acima, II, .7 4 e n.191seg. Tal etapa, como veremos no cap .VI, pertence à esfera de competência da dial ética, cujo estudo mostraria a import ância da função heurística e eminentemente dialética do silogismo hipot ético.
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ganizado sob a forma de uma dedu ção que se amoldaà ordem de articulação das próprias coisas,ãno pode haver lugar, obviamente, numa tal ciência, para racioc ínios hipotéticos: com efeito, aquela concep ção rigorosa de ciência elimina, de antem ão, a possibilidade de vir a nela inserir-se um saber prec ário qualquer empenhado, ainda, em busca de sua comprovação. E não poderia o fil ósofo ter sido mais expl ícito: se não temos sen ão hipóteses, não há verdadeira ci ência e, se apenas fosse possível um saber fundado em hipóteses, a ciência seria imposs ível. Salta, assim, aos olhos a oposição fundamental entre o aristotelismo e as concep ções dominantes na êcincia moderna ou, melhor, na filosofia da ci ência moderna. Não se confunda, no entanto, a oposição meramente terminol ógica com a metaf ísica: não se opõem à essência do pensamento aristot élico sobre a ciência os que, ainda que chamando de cient íficos as hip óteses e osresultados de seus trabalhos de pesquisa tidos como provis órios, admitem, no entanto, a possibilidade– ou alimentam aesperan ça – de tornar-se, um dia, definitiva a ciência dos homens e de vir a adequar-se, com exatid ão, ao mundo das coisas: sua diverg ência com o filósofo, sob o ponto de vista em questão, encontra-se,ãto-somente, no uso mais lato do ter mo“ciência”, associado a uma maior prud ência na considera ção dos resultados alcançados, que vemjustificar a precariedade secularmente demonstrada das concep ções científicas do passado. Mas a verdadeira oposição metafísicaà concepção aristotélica da ciência parte, ao contrário, de quantos negam a possibilidade da constitui ção de uma ciência absoluta, de uma “coincidência” final entre o pensamento científico e as coisas. Porque, dos primeiros, pode dizer -se que continuam 226 a perseguir o ideal de umaência ci aristot élica.
226 Como parece ser, por exemplo, o caso da teoria da relati vidade de Einstein. E Br éhier já observava (cf. H istoire de la philosophie, 1955, t. II, 4, p.1073) que, buscando expri mir as leis físicas independenteme nte de todoponto de vistaparticular de umobservador qualquer , “il semble en effet que, dans ses lignes énégrales, la théorie de la relativit é de Einstein aille dans le sens d ’une épistémologie réaliste”.
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5.4 A teoria d a d emonstra ção circular
Terão razão Aristóteles e os pensadores que, acima, vimos por ele criticados, ao pretenderem incompat íveis uma ciência absoluta e o fato de só a demonstração poder reivindicar cientificidade?ãoNse evitarão, facilmente, todas as dificuldades com que, á pouco, h nos depar ávamos, afirmando que nada impede que se afirme a demonstrabilidade de todas as proposi ções? Por que n ão aceitar a possibilidade de se demonstrarem as proposi ções circularmente, istoé, umas pelas ou227 tras? A teoria da demonstra ção circularé assim, a segunda atitude em face da ci ência demonstrativa que oófil sofo estuda e critica, também ela caracterizada pelo desconhecimento daçã no o de princípios indemonstr áveis. Três argumentos ser ão aduzidos contra ela. Em primeiro lugar,228 uma demonstra ção circularé incompatível com a anterioridade e maior cognoscibilidade das premissas em o à conçãrela clusão. De fato, se a possibilidade da demonstra ção circular significa a possibilidade de demonstrarem-se as proposi ções umas pelas outras, portanto, sua equival ência funcional na demonstra ção, como conciliar isto com o fato de que a no ção de anterioridade (assim como a de maior cognoscibilidade) exclui toda equival ência real?“Poisé impossível que as mesmas coisas sejam, ao mesmo tempo, anteriores e pos229
teriores, umas em rela ção às outras”. Há, é verdade, um sentido em que se pode dizer que isso ocorre, se considerarmos que umas coisas se dizem anteriores e mais conhecidas em sentido abso luto, outras somente para nós, distinção a que nos habituou a utiliza ção do mé230 todo indutivo. Nada impedir á, então, que certas coisas se digam, ao mesmo tempo, anteriores e posteriores, umas em rela ção às outras, já que assim se dir ão em diferentes sentidos: as coisas anteriores, em absoluto, ser ão posteriores, paraóns, e vice-versa. Nesse preciso sen227 228 229 230
b Cf. Seg. Anal . I, 3, 72 17-8. Cf. ibidem, l. 25-32. Ibidem, l. 27-8. a Cf. ibidem, l. 29-30; cf., também, Tóp. VIII, 1, 156a4-7; I, 12, 105 13-9;Prim . Ana l. II, 23, b 68 35-7. V., acima, n.190 deste ícap tulo.
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tido, nada nos impede falar em complementaridade e circularidade no processo“demonstrativo ”: podemos efetuar nossa prova a partir das coisas que ãso anteriores e mais conhecidas para ós,ndelas concluindo proposições que o são em sentido absoluto, assim como poderemos efetuar silogismos em sentido inverso, conc luindo o que era mais conhecido para n ós: não era outra a distin ção entre os silogismos do a fil “que” e do porquê.231 Nem por isso, vamos conceder nossos ósofos que todas as proposi ções são demonstr áveis, tomando os silogismos do “que” por silogismos cient íficos, em desrespeito à nossa definição de ciência, em sentido absoluto. O que devemos, antes, dizer é que a demonstração que parte do mais conhecidoapenas para n ós não é demonstração, em sentido estrito. A demonstra ção científica exclui absolutament e a circularidade no conhecimento, ain d a que o pro cesso total do conhecimento possa constituir-se de modo circular, na medida em que as coisas mais conhecidas para ós, n de que partimos para empreender a etapa ascendente e proped êuticaà ciência, se possam demonstrar pelo racioc ci ínio dedutivo, descendente, na mesma ência. 232 Por outro lado, a demonstra ção circular reduz-se a afirmar que, se uma coisaé, elaé, istoé, a afirmar que, se a proposi ção A é válida e verdadeira, ela é válida e verdadeira:“assim,é fácil provar todas as coisas”.233 Com efeito, consideremos as êtrs proposições A, B e C:234 se B se segue deA, necessariamente, C e , de B, então, de A segue-se, necessariamente,C. Ora, seA e B são tais queB se segue deA e A, de B (e nisso consiste o ícrculo a que aludimos),A pode substituir-se a C na seqüência de proposi ções que acima consideramos e, em lugar de “A implicaB, B implicaC, portantoA implicaC”, teremos“A implica B, B implicaA, portantoA implicaA”. E pouco importa que tenhamos considerado apenasêtr s proposições, pois chegar íamos ao mesmo resultado para um ú nmero maior de proposi ções consideradas. 231 232 233 234
Cf., acima, II,4.7 en.189e 190. b Cf. Seg. Ana l . I, 3, 72 32-73a6. a Ibidem, 73 6. a d 72b32-73 a6),, a l. 35, deve traduzir-se por Como observa, com razão, Ross (cf. nota “proposições” e não, por“termos”.
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Como vemos, o segundo argumento de Arist óteles contra os partid ários da demonstra ção circular, que sustentam seremtodas as proposições demonstr áveis, em sentido estrito, consiste em mostrar que eles reduzem o racioc ínio demonstrativoà afirmação de uma identidade, convertendo o racioc ínio científico numa mera tautologia; donde ficar-nos manifesto qu e o filósofo recusa toda concep ção que não veja no silogismo demonstrativo um instrumento de progresso do conhe cimento:é algo de novo e diferente que se conclui do fato de as pre235 missas serem. Um terceiro argumento é aduzido pelo fil ósofo,236 este de caráter mais técnico e fundado na teoria do silogismo. Com efeito, para que haja uma prova circular perfeita (uma provaãe, o, n uma demonstração, em sentido estrito), é preciso que se possa tomar a conclus ão juntamente com as proposi ções conversas de cada uma das premissas para, assim, conc luir, em cada um dos casos, a ou tra premissa (por A é C – a partir de“todo B é C” e “todo exemplo, provaremos que todo A é B” – e, igualmente, que todo B é C (tomando como premissas “todo A é C” e “todo B é A”) e que todo A é B (tomando como premissas“todo C é B” e “todo A é C”). Ora, além de uma tal circularidade perfeita ós encontrar-se na primeira figura silog ística,237 ela pressupõe, como condi ção sine qua non de sua possibil idade, a total conv ertibilidade dos termosA, B e C;238 mas, dentre os objetos poss íveis de demons239 tração, apenas pr osóprios () gozam dessa total convertibilidade e eles 235 A mais radical das oposições separa, pois, Arist óteles do moderno positivismo cient ífico. Assim, para um autor como Ayer, por exemplo, o conhecimento necessário é tautológico e todo conhecimento“factual”, em que se incluem todas as “verdades” da ciência,é meraLangage, v é rit é et logique , 1956, p.97 seg.). mente hipot ético (cf. Ayer, a 236 Cf. Seg. Ana l . I, 3, 73 6-20. 237 Cf. ibid ., l. 11-16, onde Arist óteles nos remete à sua teoria do silogismo, mais precisamente, aPrim . Ana l. II, caps. 5-7. 238 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 73a16-7; cf., tamb ém, Prim. An al. II, 5, 57b32-58a15. a 239 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 736-7. O“próprio”, que se subdivide em “próprio” em sentido estrito e definição, juntamente com oêgnero e o acidente, constituem os “predicáveis” da lógica aristotélica, istoé, as diversas modalidades de predicado que se podem atr ibuir a um sujeito, consideradas do ponto de vista da reciprocabilidade funcional, na çãatribui o, entre sujeito e predicado; o“próprio” é o predicado que, embora n ão indicando a qüididade,
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são, relativamente, pouco freq üentes nas demonstra ções.É vã, portanto, a tentativa de reduzir a cientificidade à demonstrabilidade, postulando a universal demonstrabilidade de toda proposi ção, pelo recurso à demonstra ção circular.240
É-nos extremamente dif ícil reconhecer a identidade dos pensadores acima criticados. Sugeriu-se que certos seguidores de ócrates Xen terão proposto a tese da demonstra ção circular,241 enquanto alguns julgam que a primeira crítica se dirige contra os Antist ênicos;242 os argumentos invocados est ão, entretanto, longe de ser decisivos. Seja como for e quaisquer que tenham sido os pensadores queóArist teles critica, deixa o fil ósofo bem manifesta a grande import ância que confere à sua refutação. Pois o que tinham posto em xeque era a pr ópria possibilidade de um saber huma no apossar-se da mesma ordem das coisas. Aristóteles expôs-nos as linhas gerais de sua doutrina dos indemonstráveis. Falta-nos ainda, porém, a prova real dessa indemonstrabilidade, a compreens ão das razões profundas por que a êcincia demonstrativa repousa necessariamente sobre proposi ções primeiras que se não podem demonstrar. Percorramos, ent ão, com o filósofo, a longa caminhada que nessa dire ção empreende, analisando a natureza da coisa demonstrada e, nessa mesm a an álise, buscando o porqu ê de seus indemonstr áveis princípios.
pertence unicamente ao sujeito, com o qual pode reciprocarse na atribui ção, cf.Tóp . I, 4, a b 101b17 seg.; 5, 102 18 seg.; 8, 103 7-12. 240 Cf. Seg. Anal . I, 3, 73a16-20. 241 É a opinião de Cherniss, in Aristotle ’ s Criticism of P lato and the Academy , 1944, I, p.68 apud ( Ross, notaad Seg. Ana l. I, 3, 72b5-6). 242 Como pensa Maier, opinião mencionada e aceita por Ross, em sua mesma nota a d Seg. Anal. I, 3, 72b5-6. Os argumentos de Maier, que se baseiam,ás, aliem razões puramente b ad Met. , 3, 1005 extrínsecas, são resumidos por Ross em nota 2-5.
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III Do demonstrado ao indemonstrável
“Uma vez queé impossível ser de outra maneira aquilo de que há ciência, em sentido absoluto,áser necessário o queé conhecido segundo a ciência demonstrativa; ora, é demonstrativa aquela que temos por ter a demonstra ção. A demonstração é, portanto, um silogismo que parte de premissas necess árias”.1 Antes, porém, de o filósofo mostrar como a necessidade da coisa demonstrada pressup õe, assim, a necessidade das premissas a partir das quais ela demonstra, se principia ele por explicar-nos certas no ncia, sobre ções básicas de sua teoria daêci as quais repousar á, aliás, a própria prova finalda indemonstrabilidade das premissas primeiras. Consideremos,ãent o, o que se entende por atributos de uma totalidade ( ), “por si” (’) e uni2 versal (). Descobriremos que as conclusões que a ciência demonstra se apresentam sob a forma de proposi ções que atribuem um predicado a“todo sujeito”, “por si” e “universalmente”. Porque são essas as propriedades da coisa demon strada e porque sob essa a 1 Seg. Ana l. I, 4, 73 21-4. 2 Cf. ibidem, l. 24-7.
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forma se configura a necessidade do cientificamente conhecido, poderemos, ent ão, descobrir que tamb ém não são outras as propriedades das premissas do conhecimento cient ífico.
1 O “por si ” e o acid ente 1.1 As m últiplas acep ções de “por si” e de acidente
Quatro diferentes acepções do “por si” (’) distingue 4 Aristóteles nos Segund os An al í ticos.3 Em primeiro lugar, diz-se“por si”, istoé, diz-se pertencer a uma coisa, por si, quanto lhe pertence “no o que é” ( );5 em outras palavras, pertencem a algo, por si , os elementos que integram sua q e que se exprimem, por conseguinüididade te, no discurso que diz o que é a coisa, portanto, na sua defini ção.6 Assim, a linha pertence aoâtri ngulo,por si, e igualmente, o ponto, à linha, por fazerem parte, respectivamente, das defini ções do triângulo e da linha. Diremos, do mesmo modo, uma vez que “animal” pertence ao discurso que nos diz o que é Cálias, que animal é um atributo deáClias, 3 Cf. ibidem, 73a34-b24. Compare-se com este texto a lista dos diferentes sentidos ’ de a que nos fornece Met. , 18, 102224 seg., a qual coincide com a Segund dos os Anal íticos em suas linhas gerais, ainda que menos completa e elaborada. 4 Cf. Seg. Anal . I, 4, 73a34-7. 5 Seguindo oexemplode Aubenque (cf.,por exemplo,Le probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.171), traduzimos literalmente a express ão Cremos, com efeito, que, assim traduzindo, melhor se evidencia o sentido primeiro da express ão, conformeà explicação do próprio Aristóteles, nosTópi cos : “Digamos atrib uir-se no ‘ o que é ’ ( ) todas aquelas coisas que é apropriado da r em resposta, quand o se é interrogado sobre o que é ( ) o sujeito em questão; como, no caso do homem, quando seé interrogado sobre o que eleé ,é apropriad o dizer que é a um animal ” (Tóp. I, 5, 102 32-5). 6 E, com efeito, entende-se por definição (, ) o discurso do“o que é” ( , cf. Seg. Ana l. II, 10, 93b29), que mostrao que éa coisa ( , cf.Seg. Ana l. b II, 3, 91a1), que é conhecimento de alguma ess 16; 30), o discurso, ência (cf. ibidem, 90 a enfim, da qüididade ( , cf. Met. Z, 5, 103112), “dis curso que sig nifica a b qüididade ” ( , cf.Tóp. I, 5, 101 38),“discurso q ue mostra a q üididade a da coisa ” ( , cf.Tóp. VII, 3, 153 15-6). Sobre a diferen ça entre e , ainda que, freq üentes vezes, se usem como sin ônimos, cf. Bonitz, b a Index , p. 763 ad Met. , 4, 1030 47 seg.; Ross, nota 29.
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por si, istoé, que Cáliasé, por si, um animal ( ’).7
Nesta primeira acep ção, vê-se, então, que se diz pertencer a uma coisa,por si , aquilo que a coisa é por si, na medida em que ela “é” cada um dos elementos que comp õem sua mesma defini ção. 8 Num segundo sentido, dizem-se“por si” quantos atributos ãso tais que os mesmos sujeitos de que ãosatributos são elementos dos por discursos que os definem; o curvo e o reto ãosatributos da linha, si (do mesmo modo como o par eímpar o , o primo eo composto etc., pertencem ao n úmero,por si ), pois pertencendo à linha como atributos, definem-se por discursos de que a mesma linha é elemento:dirse-á, por exemplo, que reta é a linha tal e tal, assim como se dir á que par é o número com tais e tais propriedades. Como se pode obser var, ocorre com esta segunda acep ção de “por si”, uma como invers ão do primeiro significado da express ão, que não tem, aliás, merecido a atenção de autores e comentadores, apesar de sua import ância para a teoria aristotélica da demonstra ção científica; de fato, se todo elemento da definição se diz pertencer por si (primeira acep à coisa definida, ção), o atributo em cuja defini ção seu mesmo sujeito comparece – ao qual, portanto, pertence esse sujeito, por si , naquele primeiro sentido – dizse, também, pertencer-lhe,por si (segunda acep ção). Um exemplo esclarecerá melhor a quest ão: paré um atributo deúnmero,por si , como
há pouco vimos, nosegundo sentido desta express ão: é atributo de número e inclui“número” em sua definição. Mas, por isso mesmo, porque“número” pertenceà definição de par, dizemos que tamb ém o número pertence ao par,p or si , segundo o primeiro sentido que explicitamos. Fica, ent ão, evidente, que, se perte nce uma coisa a outra,por si , no segundo sentido, tamb ém há que pertencer,por si, esta últimaà primeira, no primeiro sentido (ainda que o inverso ão nseja, obviamente, verdadeiro; o fato de uma coisa ser elemento ü qididade da de outra não significa, necessariamente, que seja um sujeito de que a outraé atributo). 7 Cf. Met. , 18, 1022a27-9. 8 Cf. Seg. Anal . I, 4, 73a37-b3.
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Ao que não se diz“por si” em nenhum dos dois sentidos indicados, aos atributos que se ãonatribuem a uma coisa de nenhuma dessas duas maneiras, chama Arist óteles de acidentes ( ).9 Músico ou branco, por exemplo,ão s atributos acidentais do animal: não pertencemà definição de animal nem ocorre“animal” em suas definições. Por outro lado, infere-se, do texto, estarmos em presen ça de uma classifica ção exaustiva dos atributos, conforme mais adiante, aliás, se dirá literalmente:“Com efeito, todo atributo pertence ou desse modo [subent.: por si], ou por acidente ( )... ”.10 Considera, ainda, Arist que algoé dito óteles dois outros casos em 11 “por si”. Assim, diz-se “por si”, num terceiro sentido, o que se não diz de algum outro sujeito. Assim, por exemplo, enquanto o caminhante é
caminhante e oum branco, sendo uma outra coisa“(a essência )e dizendo-se de outro branco, sujeito (por exemplo: homem), () e quanto significa um ‘isto’ ( ),12 sem ser outra coisa,ãso o que, precisamente,ãso”.13 “Por si”, designa, então, nesse sentido, as essências individuais e suas üididades: q “por exemplo, á Cliasé, por si, Cálias, e a ü qididade de á Clias”.14 E diremos“que é a qüididade de cada coisa aquilo que ela sepor dizsi ”.15 Porque todas as outras categorias que n ão a da essência dela são determinações e afecções e lhes é a essência o sujeito aque se atribuem e perten cem, incapazes de dele separar-se, nenhuma delas por si .16 Pelo mesmo é, então, naturalmente Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b4-5. b Seg. Ana l. I, 6, 74 11-2. Cf. Seg. Anal . I, 4, 73b5-10. O ou “isto” − tal é a tradução literal deque preferimos servir -nos, seguindo, mais uma vez, o exemplo de Aubenque (cf. Le probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.171et passim ; cf., também, acima, n.5 deste cap ítulo)− designa, na linguagem filos ófica técnica de Arist óteles, habitualmente, as ess ências individuais (v. os textos referidos por Bonitz,Index , 544b37 seg.); uma vez, porém, que é segundo a forma ( ) que se diz a matéria um “isto” (cf. Da Alma , II, 1, 412a8-9; Met. , 17, 1041b8-9), refere-se, por vezes, o à própria forma, cf.Met. , 8, 1017b25-6;, 1, 1042a28-9;, 7, 1049a35. 13 Seg. Ana l. I, 4, 73b7-8; cf., tamb ém, 22, 83a24-32. a 14 Met. , 18, 102226-7. ad locum . 15 Met. , 4, 1029b13-4. Seguimos açã li o e a interpreta ção de Ross, cf. nota a 16 Cf. Met. , 1, 102818-29. 9 10 11 12
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motivo, emsentido primeiro e absoluto , somente a prop ósito das ess ên17 cias se falar á em qüididade e, portanto, em defini ção. Por outro lado,é evidente que, neste sentido forte de “por si”, a oposição do “por si” ao acidental se reveste de uma significa ção totalmente outra:“Às coisas que se n ão dizem, então, de um sujeito chamo ‘por si’ (’), às que se dizem de um sujeito, acidentes ( )”.18 Como se pode imediatamente verificar, a no ção de acidente ganha, aqui, um significado extremamente amplo: designando quanto pertence às outras categorias queãona da essência, passa a recobrir, tamb ém, os mesmos atributos que,á hpouco,19 se diziam “por si”, no segundo sentido da express ão, por pertencerem a sujeitos que comparecem como membros dos discurso s que os definem. E, basta lembrar, com efeito, a no ção de “acidente por si” ( ’), freqüentes vezes utilizada por Arist óteles20 e explicitamente oposta, na Metaf í sica , ao simples acidente: “Diz-se, tam b é m, acidente num outro sentido, a saber: quanto pertence a cada coisa, por si, sem estar em sua ess ência como, por exemplo, para o triângulo, ter os ângulos igua is a d ois retos”.21 Se, por sua vez, comparar mos a terceira e a primeira acep ção
de “por si”, torna-se patente que essa amplaçã no o de acidente acima introduzida n ão compreende, integralmente, “os por si”, conforme ao primeiro sentido da expressão. Com efeito, enquanto a terceira acep tão-somente, categoria ess concerne a ção respeita, àçã ência,em primeira aos elementos da defini o ou da qda üididade, qualquer categoria, na significação segunda e mais geral que reconhece a 22 Metaf í sica poder conferir -se a tais termos. E, se a linha,que pertence a 17 Cf. Met. , 4, 1030a29-30; 5 (todo o cap 1-2; 7 seg.). ítulo, particularmente, 1031 b 18 Seg. Anal . I, 4, 738-10; Tricot, lamentavelmente, traduz ’ (l. 9) por“attributs par soi”, embora Arist óteles tenha acabado de explicar que se trata das ências ess individuais: é tanto maior o contra-senso na medida em queãso inconcebíveis “les attributs qui ne sont pas affirm és d’un sujet” (cf.ad locum ). Cf., também, Met. , 4, 1007a31-3.
19 Cf., acima, n.8 deste capítulo. b 20 Cf., por exemplo, Seg. Ana l. I, 6, 75a18-9; 7, 75 1; 22, 83b19-20;F ís. I, 3, 186b18-20; II, 2, 193b27-8 etc. a 21 Met. , 30, 1025 30-2. a Met. 22 Cf. , 4, 1030a17 seg.; 5, 1031 7-11. E porque, num sentido segundo, se falar á em qüididade e defini em u I, 9, ção, também, nas outras categorias (vejam-se exemplos C é
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ao triângulo,por si , no primeiro sentido, se dir á, tanto quanto seu sujeito, um acidente, conforme ao terceiro, ocorre, por outro lado, que “animal”, pertencendo a áClias,por si , também, no primeiro sentido, de nenhum modo, por certo, h dizer-se um acident e de C á se álias, por ser Cálias uma ess ência e por participar “animal” de sua definição: o que equivale a dizer que ossentidos primeiro e terceiro de“por si”, de algum modo, parcialmente se recobrem. 23 Num quarto eúltimo sentido, dir-se-á “por si” aquilo que a algum evento sobrevém, em virtude do pr óprio evento ( ’), designando-se, ent ão, por“acidente” quanto não lhe sobrevém dessa maneira. Assim, di r-se-á que foi mero acidente ter relampejad o quando alguém caminhava e ãno, que sobreveio o relampejar ao caminhar, por si : não foipor caminhar algu ém que relampejou; mas, se morre o animal a que se corta a garganta, visto que morre do corte e m e virtude dele,dir-se-á que sobreveio a morte ao corte, por si . Como se v ê, o “por si”, nesta sua outra acep ção, concerneà relação de causalidade que une 24 dois eventos e um ao outro subordina.
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Ét. Nic. II, 6, 11086-7 (qüididade da virtude) 278 2-3 (qüididades da esfera e doírculo), c etc. (textos estes que Aubenque, curiosa mente, ignora, ao pretender que aüqididade concerne unicamente à categoria da ess ência (cf.Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.462, n.1)), compreendemos que, tamb ém, se possa dizer de quantas coisas lhes pertencem,ãque o, s por si, suas respectivas üididades: q “Dizem-se ser por si quan tas coisas se significam pelas figura s da atribui ção” (Met. , 7, 1017a22-4). 23 Cf. Seg. Anal . I, 4, 73b10-6. 24 Com efeito, os exemplos de que Aristóteles se serve mostram claramente, como viu Ross (cf. notaad locum ), que não se trata, propriamente, de uma conex ão entre sujeito e atributo, mas da rela ção causal entre dois eventos, que exprime a preposi ção . Por outro lado, a reflexividade das express ões ’ e ’ respeita ao evento a que outro sobrev ém como efeito e n ão, a esteúltimo, como erroneamente interpretam Colli e Tricot, em suas traduções respectivas desta passagem; seu erro torna-se patente, se se considera o exempelo plo das linhasb14-6: porque ocorre a morte em virtude do corte da garganta,ém tamb corte da garganta ( ). Também não é certo, como pretende Mure (cf. nota ad locum , reproduzida po r Tricot), que esta noção de“por si” inclua a iner ência daspropriedades matem áticas a seu sujeito; tais propriedades constituem , pelo contr ário, atributos ’, no segundo sentido da express ão, acima definido.
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1.2 O “por si ” e a ess ência ; o próprio
Tais são as diferentes acep ções de’. Interessam todas elas, igualmente,à ciência? Em verdade, ã no considera o filósofo, no domínio do cientificamente conhec ível, em sentido absoluto, senão as duas primeiras:25 em ciência, o que se diz “por si” ou pertence à qüididade eà definição do sujeito (primeira acep ção) ou lhe pertence o sujeitoà definição e à qüididade (segunda acep ção). Num ou noutro caso, pertence o“por si” necessariamente ao sujeito: “não lhes é 26 possível, com efeito, não pertencer... ”. Pois não pode, por certo, ãno pertencer ao sujeito quanto faz parte do discurso que diz o que é: ele não pode a linha ã no pertencer ao tri ângulo nem o ponto,ãno pertencerà linha. Mas ã no pode, tamb ém, não pertencer ao sujeitoatributo o cuja definição o inclui. Com efeito, se faz par te o sujeito daüqididade do atributo, n ser sem aquele; ora, uma uni ão pode este, por certo, ão tão íntima e essencial se n ão explica senão pelo fato de pertencer o atributo ao sujeito segundo a ess ência (’) ou qüididade deste,27 “segundo a essência e segundo a forma ” (’ 28 29 ), por ele próprio, sujeito ( ’), em virtude de sua mesma natureza. Como explicitar sofo, perá, um pouco mais adiante, o ófil tence a um sujeito, por si , o que lhe pertence “enquanto tal ”, “enquanto ele próprio” ( ): “‘Por si’ (’) e ‘enquanto tal’ ( ) são a mesma coisa, como, por exemplo, ao ... triângulo, enquanto tri ângulo ( ), pertencem dois retos (e o tri ângulo, com efeito,é, 30 por si, igual a dois retos) ”. Mas, se assimé, não pode, também, o 25 26 27 28 29 30
a Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b16 seg.; cf., tamb 11-7. ém, 6, 74b7-10; 22, 84 b Seg. Ana l. I, 4, 73 18-9: ; cf., também, 6, 74b6-7. a Cf. Seg. Anal . II, 13, 97 13. Cf. cap. II, n.157. a Cf. Seg. Ana l. I, 33, 8920. Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b18. Ibidem, l.28-32. E, nesta passagem, exemplifica tamb ém o filósofo esta mesma identidade entre o’ e o , no que concerneà primeira acepção de “por si”. Divergimos, assim, da interpreta ção de Ross (cf. notaad locum ), quando pretende que aquela identificação entre as duas express ões restringe o sentido de’, tal como previamente se definira. Por outro lado, cumpre observar que usooétcnico da express ão ’,
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na linguagemaristotélica, envolve um curioso problema de interpreta ção, não apenas doutrinário, mas também gramatical. Com efeito, dizer que A pertence a B ’ (p or si) pareceria,à primeira vista, dever entender-se como afirma ção de que A, em virtude de sua própria natureza, pertence a B, referindo-se, destarte, ao sujeito gramatical reflexividade a marcada pelo pronome. E n ão desmente, por certo, tal interpreta ção a doutrina, pois, conforme quanto se viu acima, é certo queé da natureza do que se diz “por si” pertencer a seu sujeito. Masãno esqueçamos que, do ponto de vista gramatical, essa interpreta ção não se impõe necessariamente. Com efeito, como explica J. Humbert (cf.Synta xe grec que , 1954,§ 94, p.62):“Le pronom érfléchi renvoieà la personne qui , aux y eux de ce lui qui pa rle, domine la ph ra se ou laproposition .Cette personne en est souvent sujet le gramm atical; mais elle peut aussi y remplir les fonctions de compl ément, direct ou indirect ”. Donde ser-nos lícito também interpretar uma frase como “A pertence a B ’”, referindo a B, isto é, ao complementogramatical (e sujeitoreal do atributo A) a reflexividade pronominal. No mesmo sentido entender íamos todas as passagens em que ocorrem constru ções semelhantes. Ora, se uma e outra interpreta ções são aceitáveis, do ponto de vista da sintaxe, não o são menos, em verdade, do ponto de vista da dout rina; de fato, quant o vimos do por si fez-nos compreender que, se A pertence a B’, tanto se pode dizer queé da natureza de A pertencer a B como que é da natureza de B que A lhe perten ça, já que A decorre necessariamente da q de B: A pertence a por B, si próprio, A, e em virtude üididade do próprio B,por “si ” (ele) próprio, B.É como se a ambig üidade gramatical se amoldasse satisfatoriamente às exigências da doutrina, a qual nos prop õe a concepção de uma uni ão tão íntima entre atributo e sujeito que suas naturezas se exigem írec proca e essencialmente. Ocorre, entretanto, que numeros os textos dofilósofo são de molde a dissipar qualquer dúvida sobre o sentido primeiro que confere à atribuição ’de um predicado a um sujeito; com efeito, passagens como asPrim. de Ana l. II, 20, 66b22-3 ( B ’ ); Met. , 1, com., 1003a21-2 ( ’); 2, 1004b12-3 ( ’ ); , 30, 1025a31 ( ’) etc., indicam-nos, com precis ão, que Aristóteles entende a reflexividade do pronome como voltada para o complemento gramatical, éisto , para o sujeito real do atributo. Aliás, ao identificar o’ e o (veja-se o texto referido no íin cio desta nota), mostrando-nos que ter soma a dosângulos igual a dois retos é atributo’do triângulo porque o tri ângulo,enquanto tri ângulo , tem tal atributo,deixa-nos manifesto que interpreta a reflexividade daquela express ão em referência primeira, sempre, ao sujeito real, coincida ele ouãn o com o sujeito gra matical. Vemos, ent ão, como se h ão de interpretar fórmulas substantivas tais como“os p or s i ” ( ’), “os atributospor si ” ( ’ ), “os acidentes p or s i ” ( ’ ) (cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b24-5; 6, 74b6-7; 75a18-9; 7, 75b1; cf., também, os textos acima referidos, n.20 deste capítulo), assim como constru ções como esta:“os universais pertencem por si, mas os acidentes, não por si” ( ’ ’, cf. Met. , 9, 1017b35-1018a1; cf., tamb ém, , 5, 1031b22-3 etc.). Com efeito, a reflexividade marcada pelo pronome pareceria, à primeira vista, ter necessariamente de respeitar ao termo que imediatamente o antecede, em cada um desses exemplos, devido à mesma inexistência de outro termoexplícito a que pudesse concer nir. Nada impede, por m, que, conhecendo agora o sentido exato conferido pelo fil ósofo à express ão ’ e aénatureza de seu emprego sint ático, compreendamos constitu írem as fórmulas e frases acima transcritas express ões de uma linguagem filos ófica técnica que se não mais interpretarão de modo meramente gramatical. Assim,“os acidentespor si ‘ou’ atributospor si ” são aqueles atributos ou acidentes que pertencem a seus sujeitos por “si” (eles) próprios,
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sujeito dispensar seu atributo: ão pode n o tri ângulo não ser igual a dois retos, não podem não pertencer ao n úmero os atributos opostos( ), tomados disjuntivamente, par íou mpar, assim comoãno 31 podem não pertencerà linha o reto ou o curvo. Decorrendo, ent ão, da mesma qüididade de seu sujeito, ain da que dela ãno faça parte,32 tal atributopor si aparece-nos como uma propriedade necess ária daquilo de queé atributo, tanto quantoé necessário o que se diz“por si”, por fazer parte da mesmaüididade. q E, se recordamos que Tos óp i co s definiam o p r óp r io () como “aquilo que não indica a qüididade, mas pertence unicamente à coisa e com ela se reciproca na atribuição”33 − por exemplo, animado ( ) é pr óprio de animal34
isto é, em virtude da natureza dos mesmos sujeitos. Do mesmo modo, “os universais pertencempor si ...”, isto é, pertencem a seus sujeitos por em decor“si” (eles) próprios, rência da natureza dos sujeitos. Esclarecidos esses pontos, conceder-nosá que traduzamos sistematicamente ’ porpor si , como express ão técnica da linguagem filos ófica aristotélica,mesmo naqu elas constru ções em que seu uso, em portugu ês, seria, de um ponto de vista estritamente gramatical, inaceit ável. Com isso, evitamos o inconveniente, a nosso ver, mais grave, de obrigar -nos a propor diferentes tradu ções, conformeàs variações do uso sintático da express ão na língua grega, mais tolerante quenossa. a Se preferimos, por outro lado, tal tradu ção literal de’ a expressões como“atributo essencial ” ou algo semelhante,é que relutamos em introduzir, na tradu ção, conteúdos semânticos não contidos na express ão srcinal. E não nos esqueçamos, também, de que não era, finalmente, menos insólito dizer, em grego, ’ (por exemplo, emSeg. Ana l. I, 4, 73b24-25) do que oé, em português, a expressão “os por si ”. 31 Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b18-24. Contra a eventual obje ção de que o n úmero, por exemplo, de que são atributos“por si” o par e oímpar, podendo ser parímpar, e não é necessariamente par nem necessariamente ímpar, explica Arist óteles que, de qualquer modo, é necessária a atribuição de um dos dois membros da disjun ção; o mesmo se dir á para quantos pares ou grupos de atributos dividem exaustivamente − e esseé o caso dospor si que, aqui, se têm em vista− a extensão do sujeito considerado. 32 Cf., acima,III, 1.1 e n.21: não estar na ess ência (), dela não fazer parte, entende-se, aqui, obviamente, no sentido de ãno pertencerà qüididade, cf., acima, n.157 do cap.II. Esse texto deMet. , 30 é, aliás, decisivo contra a interpretação da qüididade ( ) proposta por Aubenque (cf. Aubenque , Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.460-72), para quem o atributopor si pertenceà qüididade e“le est donc bien ce que la chose était avant’adjonction l des attribut s accidentels, mais aussi ce ’elle quest apr ès l’avènement des attributs par soi,’est c à dire de ces attributs qui finissent par tre reconnus comme ê appartenantà l’essence (par exemple, la sagesse de Socrate, la richesse de Cr ésus, ou la proprieté des angles d’un triangle d’être égaux à deux droits)” (ibidem, p.465-6). 33 Tóp. I, 5, 102a18-9. Cf., acima, n.239 do cap.II. a 34 Cf. Tóp. V, 6, 136 12.
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e, portanto, não só pertence unicamente a animal mas, tamb ém, se algoé animal,é animado, tanto como, se é animado,é animal−, compreendemos que possa dizer-se umpr óprio o atributopor si , ainda que não se possa assim considerar, em sentido estrito, “todo acidentepor si ” tomado isoladamente (par, por exemplo, pertence a n por si , úmero, mas nem todo número é par); ocorre, porém, que, considerados em conjunto, ospor si (como par eímpar) que, membros de uma mesma divisão genérica, dividem exaustivamente a extens ão de um sujeito, poderão dizer-se pertencer ao sujeito como seus pr óprios , já que são com ele convert íveis.35 Poderemos dizer que par ou ímpar são pr óprios de número, do mesmo modo como acima dissemos que lhe pertencem necessariamente; e Arist óteles se referir á, em Met. , à paridade e à imparidade, à comensurabilidadeàeigualdade etc., como a afec ções pr óprias ( ) do número, enquanto ú nmero.36
1.3 O “por si ”, o aciden te e a ci ência
Mas, se exige a naturezapor dosi que ele perten ça necessariamente a seu sujeito, não ocorre o mesmo, por certo, com o acidente . Com efeito, não pertencendoà qüididade de seu sujeito nem dela dependendo, não fazendo parte da defini ção do sujeito nem o tendo como elemento de sua ópr pria defini ção, “o acidente pod e n ão perten cer ”37 ao sujeito:definir-se-á, mesmo, o acidente por esse fato de poder perten38 cer, ou n ão, ao sujeito. E, porque podem n ão pertencer, não são os 35 Cf. Seg. Ana l. I, 22, 84a24: . Não se veja contradi ção entre essa descri ção dos ’, objetos da ciência demonstrativa, comopr óprios , e o argumento que, acima, vimos oposto aos partidários da demonstra ção circular (cf. II, 5.4 e n.237 a 240), basea do no fato de serem os pr ópr ios , relativamente, pouco freq üentes nas demonstra ções: é que o filósofo, aí, se limitara a considerar cada predicado a ser demonstrado, isoladamente e por si mesmo, e n ão, como um dentre os membros de uma mesma divis ão genérica, que, em conjunto, pertencem, necessariament e, ao sujeito, com que se reciprocam na atribui ção. b b a 36 Cf. Met. , 2, 100410 seg.; cf., tamb ém, Part. Anim . I, 1, 6395; Met. , 3, 10787; Da Alma I, 1, 402a9 etc. a 37 Seg. Ana l. I, 6, 75 20-1. b 38 Cf. Tóp. I, 5, 1024 seg.;F ís. I, 3, 186b18-20; cf., tamb ém, Met. , 10, 1059a2-3 etc. Veja-se a doutrina geral do acidente, em Met. , 2-3; cf., tamb ém, , 30.
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acidentes necess ários.39 Por outrolado, estamos, obviamente, em pre40 sença de uma classifica ção exaustiva, como á assinalamos: j o que não é por si é acidente e vice-versa. Resulta,ão, ent de tudo isso, claramente, que,“uma vez que pertence necessariamente, em cada gênero, quanto pertence por si e a cada sujeito enquanto tal, as é manifesto que demonstrações científicas concernem ao que pertence por ”si... .41 E, pela mesma raz ão, de quantoãno pertencepor si não pode haver êcincia 42 demonstrativa: porque a ci ênciaé do necessário,43 n ão h áciênci a d o acidente − talé a constante e conhecida doutrina aristot élica.44 Mas, ocupando-se do que se“diz por si ”, conforme às duas primeiras acep ções que encontramos para a express ão, diz respeito, ent ão, a ciência a quanto pertenceà definição e à qüididade dos sujeito s que estuda e a quanto pertence necessari amente a um sujeito etem o como elemento de sua própria qüididade e defini ção. O necess ário que a ci ência conhece apresenta-se-nos, assim, como um por si , ao mesmo tempo que constatamos que o problema da defini ção não é alheioà problemática da coisa 45 demonstrada. Quantoà terceira acep ção de ’, conformeà qual se dizem 46 “por si” as essências e suasüqididades, cabeà ciência do ser enquanto ser dela ocupar -se, se a quest ão do ser se reduz, em última análise, 47 à problemática de ess ência.
39 Cf. Seg. Ana l. I, 6, 74b12; 75a31; F ís. VIII, 5, 256b9-10; Met. , 8, 1065a24-5 etc. Mais exatamente, diremos que o acidente é o que nemé necessário nem freqüente, nem sempre nem “no mais das vezes”, cf. Met. , 8, 1064b32-1065a3; , 2, 1026b31-3. Sobre o sentido preciso desta caracteriza do ção do acidente, falaremos adiante, ao tratarmos “freqüente” ( ). 40 Cf., acima,III, 1.1 e n.10. a 41 Seg. Ana l. I, 6, 75 28-30. 42 Cf. ibidem, l. 18-20. 43 Pois vimos queé como conhecimento causal do necess ário que ela se define, cf., acima, I, 1.1. a b 44 Cf., por exemplo, Met. , 2, 102719-20;, 8, 106417-8; 30-1, etc. 45 Caberá ao livro II dosSegund os Ana l íticos estudar a precisa rela ção entre a defini ção e a demonstração, cf., adiante, nosso cap.V. 46 Cf., acima,III, 1.1 e n.11 a 17. 47 Cf. Met. , 1, 1028b2-7.
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1.4 O necessário que a ciência n ão conhece
Mas, que coisa diremos do quarto sentido que reconhecemos naquela express ão?48 Por que não pertenceriaà ciência, em geral, ocupar-se do que se diz“por si”, porque evento que aoutro se subordina por um liame causal e de tal modo, que, se tem lugar este outro, ãon pode aquele não segui-lo, áj que lhe sobrev ém a ele, por ele pr óprio? Não é, acaso, necess ário, que morra o animal a que se cortagargana ta e que, portanto, ao corte, por causaem e virtude do mesmo corte, a morte sobrevenha? Mas ã no se está, então, em presença de efeito necessário que, por sua causa, se conhece e se conhece, portanto , cientificamente? Ora,ãno reconhece o fil ósofo cientificidade, como vimos, senão ao que se diz“por si” na primeira e segunda das acep ções que distinguimos. Não nos será difícil, entretanto, perceber por que ele assim procede e compreend ê-lo nos será, sobretudo, da m áxima importância. Porque teremos aclarado um ponto nevr álgico da teoria aristotélica da ci ência, deixando manifesta sua irredut ível oposição às concepções da ciência que prevaleceram no mundo moderno. Com efeito, o que significaria reconhecer cientificidade a do conhecimento do“por si” no quarto eúltimo sentido enumerado? É fácil ver que issoequivaleria, simplesment e, a afirmar que, tomando-se A, segue-o necessariamendois eventosA e B, seé verdade que, dado te B, em virtude de e por causa A de , conhecer essa lei de produ ção do evento B ser á conhecê-lo cientificamente. Ora, fosse essa a concep ção aristotélica do objeto cient ífico e teríamos de confessar que, sob, ao menos, esse aspecto, ela se distanciar ia, menos do que se tem pretendido, das teorias daêci ncia moderna. ãNo se ignora, por certo , a substituição progressiva, ocorrida em amplas esferas do pensamento científico contemporâneo, da noção de causa pela de um certo tipo de
relacionamento entre dois eventos, nem a moderna introdu o do cálculo dasprobabilidades em substitui ção à idéia de ligação çã neces48 Cf., acima, III, 1.1 e n.23 e 24.
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sária. Cremos, entretanto, ser ícito l pretender que haveria um ponto essencial de contato entre a concep ção aristotélica e as modernas, se as mesmas rela ções entre fatos se considerassem, igualmente, por uma e outras, objetos de êcincia e se as diverg ências respeitassem, antes,
à interpretação conferida ao“determinismo” dos fatos. Ora, o que se pode facilmente mostrar é que a ciência aristotélica, tomada em sentido estrito, deve, coerentemente, excluir, de seu dom ínio, toda uma numerosa classe de rela ções causais e necess árias que a ci ência moderna tomou por seu leg ítimo objeto e a queãno recusou a dimens ão da cientificidade. E, de fato, tudo se esclarece do ponto vista de aristot élico, se atentamos em sua exata doutrina da necessidade daecausalidade. Seá h algo que Arist óteles deixa absolutamente claro em suaálise an da noção de causa,é a universalidade das determina ções causais: de tudo há uma causa e, sem causa, nada ocorre, podendo a causa identifica r49 se, ou não, com a pr ópria natureza da coisa. Não escapam, assim,à esfera da causalidade as mesmas determina ções acidentais que adv ém a um sujeito, ainda que pudessem ãonsobrevir-lhe: por elas,emúltima análise, a mat ériaé respons ável,50 “cuja naturezaé tal que ela pode tanto ser como ãno ser”.51 O que acontece, entretanto, é que“das coisas que são ou devêm por acidente, tamb ém a causaé por acidente ”.52 Ou, mesmo, mais precisamente, é acidente o que é produzido por uma causa tamb ém acidental. Pois, por que ãraz o pode o acidenteãno pertencer a seu sujeito, istoé, de onde tira ele oseu caráter de não-necessidade senão do fato de que n ão decorre da natureza do sujeito a que sobrev ém? Há, por certo, atributos que pertencem necessariamente a seus sujeitos unicamente em lugares e momentos determinados: são aqueles que exige a natureza do sujeito, em deter minadas rela ções de lugar ou tempo, e que, por isso mesmo , tamb ém se dirão, em sen49 50 51 52
Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a4-6; cf., acima, cap. I, n.8. Cf. Met. , 2, 1027a13-5. b a Met. , 15, 1039 29-30. Cf.Ger. e Per. II, 9, 335 32-b5. a Met. , 2, 10277-8.
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tido próprio, atributos“por si”.53 Mas, se a natureza do sujeito ãno exige, de nenhum modo e em nenhuma circunst ância, suas determinações acidentais, por que lhe sobrev êm elas se n ão porque se produz, entre a causalidadeópr pria ao sujeito e uma causalidade exterio r, uma interferência que a ordem natural das coisas permitiu, mas ão nexigia, e que, de direito, era, por isso mesmo, imprevis ível? A tempestade que arrasta para Égina uma embarca ção e aí faz chegar o homem que para ál não se dirigia pode exemplif icar-nos a produ ção causal− e necessária − de um acidente (ir a Égina é, para o homem em questão, um acidente), dada a rec íproca interfer ência de duascausalidades (a da tempestade e a da inten ção humana) que nada obrigava a com54 por-se. E não concebeu o fil ósofo um universo rigidamente determinado onde se produzissem por necessidade as mesmas interfer ências das diferentesésries causais que o percorrem; ao contr ário, reivindica, ao menos para nossomundo sublunar , inclusive a exist ência da 55 sorte e do acaso, portanto, de causalidades meramente acidentais, reconhecendo“uma iniciativa na natureza inconsciente an à que áloga 56 ele concede ao homem ”. Segundo essa perspectiva, nada impede,ão, ent que um resultado acidental se deva a toda uma érie s de eventos necessariamente encadeados segundo rela ções causais que o engendram e um ao outro subordinam: o homem que saiu de casa e pereceu nas mãos dos inimigos que o espreitavam sofreu o que, dadas as circunst âncias, teria necessariamente de ocorrer -lhe, ao sair de casa; e ter á saído como necessária conseqüência do fato de ter sede, por sua vez necessariamente causada por ter -se alimentado de comida condimentada. Se pudéssemos, indefinidam ente, assim remontar de efeito a causa, tudo, por certo, seria necess fil depenário. Mas eis que nos sustenta oósofo 53 Cf. Met. , 30, 1025a21 seg. e a excelente notade Ross,ad locum . A ascensão e o pôr dos corpos celestes seriam exemplos desses atributos necess ários que pertencem a seus sujeitos unicamente em determinados lugares ou momentos. 54 Cf. Met. , 30, 1025a25-30. b 55 Cf. F ís. II, 4-6, esp. 5, 196 24 seg. a ad Met. , 2, 1027 56 Ross, Aristotle ’ s Metaphy sics I, p. 363 (em nota 29).
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derem tais processos de um princ ípio, além do qual não é possível remontar: seja, no caso presente, a ingest ão dos alimentos condimentados a quenada, podemos supor , obrigava, nas circunst âncias presentes, o sujeito que consideramos. Por acidente, portanto, inicia ele toda uma série causal que, instaurada inelutavelmente pelo evento que a principia, com ele compartilha, entretanto, sua mesma acidentalidade srcin ária. Diremos, ent ão, queé um acidente para tal homem o mesmo fato,por exemplo, de morrer nas mãos dos inimigos que o espera57 vam. Todos osefeitos produzido s pela ingest ão de alimentos idr-seão, assim, segui-la, por si , no quarto sentido que acima distinguimos: ão n serão, menos, acidentes, em sentido absoluto, relativamente ao sujeito que, em má hora, decidiu alimenta r-se. Tamb ém o exemplo da morte 58 produzida pelo corte da garganta do animal assim há de interpretarse: o cortar-se-lhe a garganta é acidente que lhe sobrev ém por interferência de causalidade que lhe é estranha: os efeitos que, por si , necessariamente o acomp anham ser-lhe-ão, ao animal, por isso mesmo, 59 em sentido absoluto, acidentais. Porque tais“por si”, assim, finalmente, se integram no dom ínio da acidentalidade, delesãno se ocupará a ciência aristotélica. Ainda que possamos conhecer como se relacionam causal e necessariamente eventos de tal natureza,ãon“previa” sua produção a ordem de necessidade ontol ógica que a ci ência se dá como objeto. Esta últimapercorre as ésries causais que a natureza das coisas, por si, engendra ãno, e aquelas que a interfer ência fortuita deésries causais ocasionalmente pode engendrar. Ora, não nosé difícil verificar como foi, pr ecisamente, contra essa restri ção do âmbito da causalidade cient ífica que se pronunciou a ciência moderna; em linguagem aristot élica, é-nos, mesmo, ílcito pretender que aêci ncia moderna encontrou um dos fun57 Cf. Met. , 3, 1027b1-6 (e todo o cap tulo, consagrado ao estudo da causalidade acidental). í 58 Cf., acima,III, 1.1 e n.23 e 24. 59 Isto é, no sentido de acidente que corresponde às acepções primeira e segunda de “por si”. E o tratado da Gera ção dos Anima is falará, a propósito de eventos dessa natureza, em “necessário, por acidente” ( , cf. Ger. An im . IV, 3, 767b14-5), sem que tenhamos, como vemos, por que estranhar uma tal express ão.
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damentos de seu extraordin ário progresso na extens ão do“por si” científico ao quarto sentido aristot élico da expressão: se o necessário que aeste concerne pode assimilar -seà necessidade do compuls ório e da compuls ão,60 a introdução do moderno método experimental como fonte de conhecimentos cient íficos representa a instaura ção da “violência científica” que, arrancando as coisas à sua ordem natural, impõe-lhes as condições que fazem interferir com sua causalidade 61 própria a causalidade da pr áxis humana.
2 A “catolicidade
” d a ciência
2.1 O
Antes, mesmo, de definir o “por si”, explicara-nos Arist óteles o que se deve entender por atributo de uma totalidade, atributo “de todo sujeito” ( ).62 Tomemos o exemplo de“animal”, que se diz de todo homem; significa isto que, se é verdadeiro dizer, de determinado ser, que é um homem,é, também, verdadeiro dizer que é animal: ao queé atributo de uma totalidade,ãonlheé possível pertencer a tal instância individual do sujeito, mas ão,na tal outra, nem pertencer em tal momento, masãno, em tal outro. Nas mesmas obje ções que levantamos, quando queremos impugnar uma atribui ção a uma dada totalidade, encontramos ind ício suficiente de que é exatamente isso o que entendemos por atributo “de todo sujeito ”; argumentamos, com efeito, com os casos emque a atribui ção não é válida, ou com os momen60 Necessidadeque vimos ser concernenteà atuação do que vem estorvar o impulso natural ou a intenção deliberada, cf., acima, I, 1.1 e n.42. 61 Não ignoramos, por certo, o papel da “experiência” nas investigações que o filósofo empreendeu em matéria física e biológica, a que consagrou Bourgey seu belo estudo rience chez Aris tote , 1955); cf., tamb thode ..., (Observation et exp é ém, Le Blond,Logique et m é 1939, p.222-51. Mas, em Arist óteles, tal“experiência” nunca se destina sen ão a melhor pôr em relevo o comportamento “natural” e “habitual” dos objetos que se estudam, isto é, a melhor manifestar que atributos decorrem dos sujeitos, por si, segundo a ordena ção própria das coisas que o mundo oferece à nossa contempla ção. 62 Cf. Seg. An al. I, 4, 73a27 seg.
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tos em que ela é falsa.63 Em outras palavras, diremos que um atributo pertence a uma totalidade, se e somente se ele pertence a qualquer membro da totalidade que se considere e em qualquer momento em que ele se considere. E,entretanto, ã no basta, ainda, que se afirme o atributo de toda a extens ão do sujeito para que se esteja em presen ça de umuniversal aristotélico. Vejamos, ent ão, o que entende o ófilsofo por , em sua doutrina da êci ncia.64 2.2 O u niversal e a ci ência
Explica-nos Arist óteles que tal designa ção se aplica ao que “pertence a todo sujeito ( ), por si (’) e enquanto tal( 66 )”.65 E, como se identificam, como sabemos, o “por si” e o “enquanto tal”, vemos que ouniversal não é, para o filósofo, senão o por si considerado do ponto devista da extens ão. Se, com efeito, pertence o universal a todo sujeito, isto é, a uma totalidade gen érica dada, não é senão pelo fato mesmode que, por pertencer ao sujeito por si , necessariamen te lhe pertence:“É manifesto, portanto, que quanto é universal pertencenecessariamenteàs coisas”.67 Por isso mesmo, “dizemos ser universal o que é sempre ( ) e em toda parte”:68 “isto, com efeito,é o universal, o que se aplica a todo sujeito e sempre ”,69 a 70
eternidade ã no sendo, mais uma vez,ãsen o o corol ário da necessidade. Decorre, assim, a universalidade, tal como a concebe o filósofo, da essencialidade da rela ção entre o sujeito considerado e o que dele se b 63 Cf. ibidem, l. 32-4; cf., também, Prim. An al. I, 1, 24 28-30:“Dizemos atribuir-se uma coisa a todo sujeito( ), quando nenhum caso se pode tomar do sujeito de que aqu ela não se diga”. 64 Já que, como veremos,se diz, também, em outros sentidos. b b 65 Seg. Ana l. I, 4, 73 26-7. Cf.Met. , 9, 1017 35:“Com efeito , os universais pertence m p or si ”. 66 Cf., acima,III, 1.2 e n.30. 67 Seg. Ana l. I, 4, 73b27-8. Com efeito, vimos, acima, que “por o si” pertence necessariamen-
te ao sujeito, cf. acima, III, 1.2 e n.26. E, como disse Hartm ann, distingue Arist no óteles, (cf. N. “universal”, um duplo sentido: um sentido quantitativo e um sentido modal Hartmann,Arist óteles y el problema del concepto , 1964, p.15-6). b 68 Seg. Ana l. I, 31, 87 32-3. a 69 Seg. Ana l. II, 12, 96 15. 70 Cf., acima,I, 1, 1 e n.19 seg.
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diz: o ’ fundamenta o e converte-se, desse modo, num . Se a atribuição à totalidade permanece, pois, um componente fundamental da no ção de universalidade (que um mesmo predicado seja verdadeiro de muitas coisas, eis a condi ção sem a qual 71
não há ), pode, entretanto, dizer -se, de um ponto de vista lógico, ser a compreens ão que fundamenta a extens ão. De um ponto de vista ontológico, por outro lado, integrando aüqididade (primeiro sentido de“por si”) ou dela decorrendo (segundo sentido de “por si”), o universal não é senão o aspecto quantitativo de que “opor si” se reveste para um sujeito que se individua numa multiplicidade de manifestações numericamente distintas, que “enforma” sua mesma qüididade: o universal pertence ao sujeito “segundo a forma” (’).72 E, porque sabemos“que as demonstrações científicas concernem ao que pertence por ”,73sidesvenda-se-nos, ent ão, o exato sentido das declara ções aristotélicas, nos textos tantas vezes repetidas e eternamente comentadas, de que “a ciênciaé conhecer o universal”,74 “a ciênciaé universal e procede por conex ões necessárias”,75 “a ciência de todas as coisas é universal”76 etc. 2.3 Universalid ad e e sujeito prim eiro
Atentemos, por outro lado, em que, para falar-se de universal , em sentido estrito, é preciso que se esteja em presen ça de um sujeitoprimeiro : “o universal pertence ao sujeito, quando eleovar se prde um caso particular qualquer do sujeito e, deste, como sujeito primeiro ”.77 Que entenderemos , exatamente, por esta afirma ção? Tomemos o exemplo 78 da soma deângulos igual a dois retos.É possível, por certo, provar 71 Cf. Seg. Anal . I, 11, 77a6-7. 72 Cf. Seg. Anal . I, 5, 74a31. 73 Seg. Ana l. I, 6, 75a29-30, cf., acima, III, 1.3 e n.41. b
74 Seg. Ana l. I, 31, 87 b38-9. 75 Seg. Ana l. I, 33, 88 31. 76 Met. , 6, 1003a14-5. Cf., também, Da Alma II, 5, 417b22-3; Met. , 1, 1059b26; , 9, b 1086b5-6; Ét. Nic. VI, 6, com., 1140 31 etc. b 77 Seg. Ana l. I, 4, 7332-33. Cf., tamb ém, 5, 74a12-3. 78 Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b33 seg.
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de uma figura que a soma de seus ângulos equivale a dois retos, mas não, de qualquer figura tomada ao acaso: o quadrado é uma figura, mas não é igual adois retosa soma de seusângulos; porque n ão se trata, então, de um atributo , em relação à figura, não se trata, obviamente, de uma atribui ção universal. Consideremos, agora, o exemplo do tri ângulo isóscele:é certo que, qualquer que seja oâtri ngulo isóscele particular que se considere, poderemos, sempre, provar que a soma de seus ângulosé igual a dois retos e teremos plenamente configurado um caso em que o atributotence per a todo sujeito. ãoN é difícil, porém, compreender que uma tal demonstra ção não constitui, em sentido estrito, a demonstra ção científica de uma atribui ção por si e universal . Pois, para qualquerâtri ngulo que se tome, seja ou ãon isóscele, a mesma prova pode efetuar -se, o que mostra queãoné por ser isóscele que o triângulo isóscele tem seusângulos iguais a dois retos: se quisermos exprimir -nos com rigor , nem mesmo diremos que aquele atributo lhe pertence por si , a universalidade em quest ão sendo de maior extens ão ( ).79 Em verdade, o atributo pertence ao isóscele, enquanto tri ângulo, e não, enquanto is óscele:80 é anterior o triângulo ao isóscele,é o triângulo o sujeito primeiro da proprieda81 de considerada. E, com efeito, se se aplica o processo da e 82 se “eliminam”, progressivamente, as determina se se ções do objeto, toma, por exemplo, um tri ângulo isóscele de bronze cuja soma dos ângulos se mostra igual a dois retos, reconheceremos que, uma vez “eliminado” o ser ele de bronze, ãno pertence menos aquele atributo ao triângulo isóscele que remanesce; mas ele ãno pertence menos, também, ao triângulo que resta, se o ser is óscele se“elimina”. Não 79 80 81 82
Cf. ibidem, 74a2-3. Cf. Seg. Ana l. I, 24, 85b12-3. Cf. Seg. Ana l. I, 4, 73b38-9. Cf. Seg. Anal . I, 5, 74a37 seg. O termo , “eliminação” antes que “abstração”, designa, precisamente, o processo pelo qual “subtraímos”, às coisas, tais ou quais de seus atributos reais, para consider á-las, unicamente, sob determinados aspectos, que se o- t mam como objeto de estudo. A respeito da utiliza ção de tal processo pelas matem áticas, a u III, 1, 299 cf. Met. , 3, 1061a28 seg.;Do C é 15-7;Da Alma I, 1, 403b14-5 etc.
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pode, entretanto, remontar mais alto o processo de “eliminação”; se se “eliminam” figura ou limite, é certo que se ãno tem mais aquele atributo, mas tais n ão são as primeiras determina ções com que isso ocorre: “eliminado” o triângulo, áj não mais pertence a qualquer figura limitada a propriedade de ter a soma de seus ângulos igual a dois retos e torna-se evidente que seãno deve sen ão à triangularidade a presen ça de tal atributo nas determinações inicialmente consideradas. É do triângulo, portanto, que se far á a demonstra ção universal, enquanto sujeito primei83 ro. Mas, se uma outra pr opriedade se considera, como, por exemplo, a equival ência da soma dos ângulos externos a quatro retos, poderemos mostrar que, se o tri ângulo isóscele a possui porque tri ângulo, não é este, no entanto, o sujeito primeiro, pois possui tal propriedade por ser 84 figura retil ínea: sobre estaar-sef á, então, a demonstra ção universal. 2.4 Acepções diferentes de“universal ”
Estudando as noções de , ’ e , podemos, então, verificar que as conclus ões que a ciência demonstra ãho de formular-se comoproposições que atribuam um predica do a um sujeito, universalmente e por si , pelo mesmo fato de exprimirem um conhecimento de atributo necess ário. E, como nossa ci ência constitui umfato de nosso mundo, quepudemos definir porque o pudemos surpreender em sua mesma realidade e tomar como obje to de nosso estudo,85 compreendemos tamb ém que a pr ópria contempla ção das ciências a nosso alcance á no-las j revela como conheciment o de univer83 Cf. Seg. Anal . I, 5, 74b2-4; 4, 73b39-74a2. Em Seg. Anal . II, 17, 99a32 seg., Aristóteles, tomando o exemplo de um atributo qu e pertence a umêgnero, por si , pertencendo-lhe, portanto, a todas as esp écies (assim, a e às espécies de), precisará que admite o uso do termo“universal” para designar, num caso como esse, o predicado que ãoserecipron universalmente , a cada uma das ca com um sujeito (dizendo, portanto, que B pertence, , “com esp cies as quais, tomadas uma a uma,) obviamente, chamanãonse reciproca), do,éent ão,dede universal primeiro ” ( ao mesmo predicado, enquanto, reciprocando-se com as esp écies de, tomadas em conjunto, diz-se pertencer-lhes (ea), universalmente. 84 Cf. Seg. Anal . I, 24, 85b38-86a2. 85 Cf., acima, I, 2.1.
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sais:“a ciênciaé dos universais; isso é evidente a partir das demonstrações e das defini ções”.86 É pela primeira figura do silogismo,ás, alique as vemos, na maior parte das vezes, construir suas demonstra ções.87 Não esqueçamos, porém, que, nos mesmos textos dos Segundos Anal í ticos , que concernem cnico de à doutrina da ci ência, o sentidot é que vimos estudando − atributo necess ário epor si , que per-
tence a todo sujeito − não é o único que confere Arist óteles ao termo. E tampouco o emprega o fil ósofo nessa acepção na maioria de seus escritos. Assim, com efeito, a doutrina geralsilog de ística, nosPrimeiros Ana l í ticos , distingue entre a proposi ção universal (), a particular e a indefinida, definindo como universal aquela em que se atribui o predicado a todo (ou a nenhum) sujeito88 ou, em outras palavras, a que contém um predicado , conforme, acima, definimos esta express ( ) universais , entendem-se, tamb ão.89 E por termos ém, 90 ao longo desse tratado, quantos predicados se atribuem, pura e simplesmente, , assim como se denominam universais os silogismos de conclus ões universais , nesse sentido da express ão.91 Mostra, então, o estudo geral do silogismo que,universal sem , nem mesmo pode 92 haver silogismo. E a essa ampla acep ção derefere-se, tamb ém, o conhecido texto dos Segund os An al í ticos que nos diz ã no haver termo médio, portanto,ãno haver demonstra ção, se não há universal. 93 Mas, se tal uso de“universal”, herdado, como se sabe, pela l ógica clássica e incorporado à sua terminologia habitual, concerne, dire86 Met. , 10, 1086b33-4. 87 Cf. Seg. Ana l. I, 14, todo o cap ítulo. a 88 Cf. Prim . Ana l. I, 1, 24 16-7. No mesmo sentido, cf., tamb ém, II, 26, 69b2; T óp. VIII, 1, a b 156 28, 30; 11 etc. 89 Cf., acima, III, 2.1. Considere-se, também, a expressão (estar uma coisa em outra como num todo), que Arist a óteles emprega como equivalente“atrib Prim. Ana l. buir-se uma coisa a toda ( ) uma outra coisa”, cf. I, 1, 2426-8; cf. Seg. Ana l. I, 15,pa ssim . 90 Cf., por exemplo, Prim. An al. I, 4, 26a18, 31; 26b1; 5, 27a2, 23, 26, 28, 29, 30; 6, 28a17; b5, a a 16, 31; 7, 2923; 8, 306 etc. 91 Cf., por exemplo, Prim . Ana l. I, 23, 40b18; II, 8, 59b26 etc. b a 92 Cf. Prim. Ana l. I, 24, part. 41 22-6;Tóp. VIII, 14, 164 9-11. a 93 Cf. Seg. Ana l. I, 11, 777-8.
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tamente,à estrutura do ju ízo e ao que se convencionou chamar de sua quantidade, vamos encontrar, entretanto, o mesmo termo aplicado, na terminologia aristot élica,às próprias“coisas”. Assim, com efeito, esclarece-nos uma importante passagem do tratado Interpreta da ção que
“umas, dentre as coisas( ) são universais (), outras, individuais ( ’) − chamo de universal o que se atribui naturalmente a muitas coisas, de individual o que se não atribui; por exemplo, homem faz parte dos universais, Cálias, dos individuais fil em distinguir ”.94 E, no mesmo texto, empenha-se oósofo 95 claramente entre a atribui ção universal− por exemplo, “branco pertence a todo homem ” (ou “todo homemé branco”) − e o universal homem, que pode aparecer numa proposi ção não universal− assim,por exemplo, nas proposi ções indefinidas“homem é branco”, “homem não é branco”. Como se vê, “universal”, aplicadoàs “coisas”, designa um certo todo ( ), quecompreende uma pluralidade, por atribuir se naturalmente a cada um de seus membros “pore serem todos eles, 96 cada um de per si, uma única coisa”: homem, cavalo, deusãso, todos, seres animados ( ). Dizendo, assim, respeito,a totalidades naturais que configuram uma unidade gen érica, correspondem os universais ao que o tratado das Categorias denominava ess ências seg un d a s ( ), isto é, às formas ou espécies () e aos gêne97
ros (),
embora não devamos esquecer que, tal como ocorre com
a 94 Da Int. 7, com., 17 38-b1. Cf., tamb ém, Ger. An im . IV, 3, 768a13; b13-5; 769b13 etc. Veja-se b a mesma defini Met. , 13, 1038 11-2, em que o universal se ção de universal proposta em a diz, também, comum ( ); cf., também, Met. , 4, 10001; Part . Anim . I, 4, 644a27-8. Poderia parecer que, definido como “o que se atribui naturalmente a muitas coisas ”, tal universal respeitasse, antes, à mesma estrutura da proposi ção atributiva, que às próprias coisas; masé óbvio entender Aristóteles que a proposi ção em que o universal se diz dos individuais nada mais faz que exprimir óapria pr realidadeuniversal constituinte das coisas individuais: o universal é “coisa”. 95 Cf. Da Int. 7, 17b1 seg. 96 Cf. Met. , 26, 1023b29-32. 97 Cf. Cat. 5, 2a14 seg. Atente-se em que o fato de poderem atribuir -se as ess ências segundas às essências primeiras e, mais propriamente, de se lhe atribu írem como aquilo que o indivíduo, por si, é(o é a qüididade, cf.Met. , 7, 1032b1-2; acima, cap.II, n.157; e o indivíduo é, por si , ele próprio e sua qüididade, cf.Met. , 18, 1022a26-7; acima, III,1.1 e n.14) ou como um elemento de suaüididade q (oé o elemento primeiro da defini ção
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a definição e a qüididade,98 também é possível estender as noções de gênero e espécieàs outras categorias queãona de essência.99 Os mecanismos psicol ógicos que levam ao surgimento, em nossa alma, das afecções que correspondem a tais universais são descritos pelo fil ósofo no famoso último cap ítulo dosSegund os Anal íticos,100 designando por indu ção () esse processo de conhecimento que obt ém os uni101 versais a partir dos individuais, que a sensação apreende. Recordemos, por outro lado, que a êpol mica dirigida contra o platonismo acuo sará, sobretudo, de ter convertidouniversais os em Formas ou Id éias 102 separadas, pecado em que ócrates S n ão incidira: converteu-se o a b e significa o“o queé”, a essência, cf.Tóp. VI, 1, 139 28-31; 5, 142 27-9; 143a17-9;Met. , b a a por si , àquilo de 28, 10244-5;, 7, 10334-5;, 3, 105430-1 etc., pertencendo, portanto,
Segunque é gênero) aproxima bastante esta acep ção de“universal” daquela outra, que os dos Anal í ticos nos propuseram, cf., acima, III, 2.2 e n.65. Por outro lado,etanto, entr acon-
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tecerá que, na medida em que o fil ósofo passar da simples an álise do discurso e do estudo introdutório das Categorias para a constituição de uma teoria do serou da essência, o emprego de a que aqui nos referimos, sofrer á uma restrição (cf.Met. , 13, todo o capítulo): se a essência é o “isto” e a forma, se o ser das coisas individuais lhes é conferido pela sua mesmaüqididade e por seu, não mais diremosuniversal o , mas, tão-somente, o gênero (), elemento comum que se diz de uma multiplicidade Segund os Anal í ticos , onde se op de . A mesma doutrina reaparece nos õe ao genérico o , como ’e , cf. Seg. Ana l. II, 13, 97b28-31. Cf., acima,III, 1.1 e n.22. b Cf., por exemplo, Tóp. IV, 1, 120 36, onde se mostra que esp écie e gênero devem pertencer ncia, ou da qualidade, ou a da rela à mesma categoria, seja ela a da êess ção. b Cf. Seg. Anal . II, 19, 99 34-100a5 (cf., tamb ém, Met. , 1, 980a27 seg.). Tais afec ções são os a b 6-7, 16; 2. “un iversais, enqua nto se d ão na alma , nela ‘aquietam-se ’, ‘fixam-se ’”, cf.,ibidem, 100 a Esses imagens (), na alma (cf.Da Int. I, 16 7-8) dosuniversais , são o que mais corresponde, no aristotelismo, à noção deconceito , introduzida pela lógica posterior.É o que não viu Hartmann, o qual tem raz ão, entretanto, em recusar validade a quantas interpretações, como as de Prantl (cf. Prantl, Gesc hichte d er Logik in Abendlande , 1955, Erster Band, p.135, 210 seg.) Die u Zeller o ( Philosophie der Griechen , 1963, II, 2, p.204 seg.), emprestam a Arist óteles, anacronicamente, uma doutrina do Arist óteles y el P roblema del Concepto , 1964, p.23 seg.) e emão conceito (cf. Hartmann, n admitir que se traduzam por“conceito” termos como , , , , , , , etc. (cf. ibidem, p.13 seg.). b b a b Cf. Seg. Ana l. I, 1, 71a6-9; 18, 81 6 seg.; II, 19, 100 4-5;Tóp. I, 12, 105 13-14; 18, 108 101; acima, II, 4.7 e n.180 a 182 etc. Cf. tamb ém o texto, acima citado (cf. II, 4.1 e n.97), de b Seg. Ana l. I, 2, 71 29-72a5, que opõe às coisas universais as individuais, as mais pr óximas da sensação e, por isso, anteriores e mais conhecidas para ós. n Cf. Met. , 6, 987b1-10;, 4, 1078b30-4.
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num , a unidade que se diz deuma multiplici103 dade numa unidade que se fez subsistir “ao lado da ” multiplicidade. Ora, taisuniversais − e quantos, em outras categor ias queãno a da essência, se lhes podem assemelhar−, aparecendo como sujeitos
quantificados universalmente nas proposi ções, por isso mesmo, ditas 104 universais, serão os sujeitos necess ários das proposi ções científicas, em que se atribui o predicado ao sujeito, por si e universalmente, e em que constitui o predicado um universal , no sentido é t cnico da 105 expressão, que estudamos acima:predicadosuniversais de sujeitos universais , assim h ão de formular-se as proposi ções da ciência. Como, por outro lado, o atributo universal é verdadeiro de um sujeito primei106 ro, podem osSegund os Ana l íticos dizer-nos que “o universalé sujeito primeiro ”;107 do mesmo modo,áj que o atributo universal pertence a seu sujeito, por si e enquanto tal e que “aquilo a que algo pertence por sié, para si pr óprio, causa[subent.: dessa atribui ção]”, dir-se-á que “é causa, portanto, o universal ”:108 com efeito, por quepertence o atributo ao sujeito universal senão por ser este aquilo, mesmo, que é, ou 109 seja: sua mesma ess ência? Dizer que aêci nciaé do universal assume, assim,à luz destes novos textos, uma significa ção bem mais ampla, na mesma medida em que universalidade e causalidade, sob tal prisma, de algum modo, se recobrem. Ao que tudo indica, então, se se levam em conta as diferen ças de 110 significa ção que encerra “ouniversal” aristotélico, seja ao longo dos a 103 Cf. Seg. Ana l. I, 11, com., 77 5-7. O texto das linhas 5-9 acha-se, evidentemente fora de ad locum ) julga dever situ seu lugar e Ross (cf. nota á-lo no cap. 22, ap ós 82a32-5. Somos, b entretanto, de opini ão que seu lugar naturalé no cap. 24, após 85 22, onde Aristóteles repele a interpreta ção platônica dos universais. 104 Cf., acima, n.88 deste capítulo. 105 Cf., acima,III, 2.2 e n.65. 106 Cf., acima, III, 2.3. 107 Cf. Seg. Ana l. I, 24, 85b25-6. 108 Cf. ibidem, l. 24-6. 109 Cf., acima, III, 2.2 e n.74 a 76. 110 Que não abordamos, todas, aqui. Lembr emos, apenas, que oófil sofo diz o silogismo mais universal que a demonstra car, ã t o-somente, a sua maior extens ção, para signifi ão, a demonstração sendo um caso particular do silogismo, Prim cf.. Anal. I, 4, 25b29-31; acima, I,
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diversos tratados que comp õem oÓrganon seja no mesmo interior da doutrina analítica da ci ência, aclara-se bastante a teoria, queósofo o fil propôs, da universalidade cient ífica. Manifestada e explicada a pluralidade dos sentidos, vizinhos, mas n que pode descobrir a invesão coincidentes, tigação acurada, orientando-se pela indica ções do pr óprio fil ósofo, ensejase a leitura rigorosa, que fazsaparecer de as “contradições” de que tantos bons autoresãonsouberamdesenredar -se.111 2.5 Objeções e respostas
Exposta sua doutrina da universalidadeífica, cientnão terá dificuldade o filósofo em responderàs objeções especiosas que tendem a valorizar a demonstração particular ( ), como se fora melhor 112 113 () que a universal. Por um lado, com efeito, pretende-se que, sendo melhor aquela demonstra ção que faz conhecer mais e conhecendo-se mais uma coisa quando se conhece ela por si e ãno, por outra, ser á melhor a demonstra ção particular , que provaque o pr óprio sujeito tem tal atributoãeo,naquela que prova que tal outra coisa tem, o como ocorre com a universal: ãonconhecemos, acaso, melhorúosico m
universais certos argumentos dial 3.1 e n.155; e que, freq üentemente, designa como éticos de caráter geral que se podem produzir em apoio de determinada conclus ão a ser provada, ainda que se reconhe ça não dizerem, especificamente, respeito à matéria particular em questão e não constituírem, por isso mesmo, uma demonstra ção científica, cf.F ís. III, 5, a 204a34; VIII, 8, 264 21; Ger. An im . II, 8, 748a7-8 etc. 111 É, assim, que Hamelin (cf. Le sys t è m e d ’ Aristote , 1931, p.236-41) julga encontrar, no pensamento de Arist óteles, uma luta entre duas tend ências opostas,privilegiando,respectivamente, os pontos de vista de extensão e da compreens ão, exprimindo uma dualidade de inspiração “qui jette’incertitude l et’obscurit l science é sur sa conception de la ” (cf. ibidem, p.236). Do mesmo modo, Le Blond Logique (cf. et m é thode ..., 1939, p.75 seg.) encontra, no aristotelismo, duas perspectivas conflitantes sobre o universal, uma certa obscuridade a respeito do papel do universal na ciência (cf. ibidem, p.83) e, mesmo,“une dualité fondamentale dans la conception de la science, qui trouveécho un dans les oscillations d’Aristote à propos des notions d ’universel, de nécessaire et de cause” (ibidem, p.106). Reconheça-se, por outro lado, que coube a Mansion Le (cf.jugement d ’ existence ..., p.94107), malgrado a perspectiva “crítica” em que a autora se coloca, dar um bom pass o para o esclarecimento da quest ão douniversal aristotélico. 112 Cf. Seg. Ana l. I, 24 (todo o cap ítulo). 113 Cf. ibidem, 85a21-31.
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Corisco, quando conhecemos que o indivíduo Coriscoé músico, do que, quando sabemos que homem o (universal) é músico? A demonstração universal provaria sempre que a outra coisa ãque o aonpróprio sujeito considerado pertence o atributo em questão: a soma dosângulos igual a dois retos prova-se que pertence aoóis scele, não enquan114 to isóscele, mas porque é triângulo e como tri ângulo. Por outro lado, se é certo que n a das coisas inão é o universal uma realidade separad 115 dividuais, não se deve convir em que peca a demonstra ção universal por fazer nascer a opini e ão de que há tal universal separado induzir-nos, pois, em erro? Assim, atribuir a igualdade a dois retos ao triângulo e não, ao isóscele levará à suposição de que há um triângulo em si , separado e distinto dosângulos tri particulares. Evidentemente melhor será, então, a demonstra ção que diz respeito ao que realmente ée que não nos engana, isto é, a particular. Tais argumentos são, obviamente, especiosos. E, respondendo ao primeiro deles, replica oósofo fil 116 que, se um atributo como a igualdade dosângulos a dois retos pertence aoâtri ngulo isóscele, não porque isóscele, mas porque triângulo, quem conhece, apenas, ter o isóscele tal propriedade, ignorando, épor m, sua atribui ção universal ao triângulo, conhece menos, em verdade, o sujeito, enquanto tal, da atribuição. No que concerne, por outro lado, à segundo objeção, segundo a qual ãno se poderia conciliar com a rejei ção do essencialismo platônico dos“universais” separados uma doutrina da demonstra ção universal que parece postul á-los, ou ao menos, sugeri-los, levando-nos a tratar os universais como realidades sepa radas, ao mesmo tempo que esse mesmo estatutolhes é por nós recusado, responde-lhe o fil ó117 sofo que o universal, tal como o concebe,ãno é menos que certas coisas particulares− ao contrário,éainda mais do que elas −, as quais se caracterizam, antes, por serem perec íveis (), enquanto 114 115 116 117
Cf. ibid ., a31-b3. Cf., acima, III, 2.4 e n.102 e 103. Cf. Seg. Ana l. I, 24, 85b4-15. Cf. Seg. Anal . I, 24, 85b15-22.
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as coisas imperecíveis () se encontram nosuniversais. Pois, decorrendo da q üididade, integrando-a ou confundindo-se com ela, conforme à acepção em que o tomemos, o universal, aquilo que“é sempre e em toda parte ”,118 segue a eternidade do, para o qual 119 não há devir: a ciência do universal é-o do ser imperec ível. Mas reconhecer a realidade universal do a nenhum momento implica − , diz o filósofo120 − a solução platônica ou platonizante dos universais separados:“pois não é necessário haver Idéias ou uma Unidade separada da Multiplicidade, para haver demonstra ção”,121 se a unidade que a demonstra ção significa e que se diz de muitas coisas não é mais que a unidade real e, ao mesmo tempo, formal da 122 multiplicidad e de coisas particulares que a mat éria individua. Se o platonismo julgou ver,nas ciências, um argumento decisivo e uma confirmação importante da doutrina das Id éias,123 a preocupação aristotélica é, aqui, como bem vemos, a de insistir em que n ão “platoniza”: entre umempirismo inconseq üente e a doutrina das Formas, busca o fil ósofo em sua teoria da ess ência a solução correta do problema da universalidade cient ífica. Não é responsável a demons-
118 Cf. Seg. Anal . I, 31, 87b32; acima, III, 2.2 e n.68. b 119 Cf.Met. Z, 8, 1033 5 seg. E, se se relembra que o é a mesma qüididade e ess ência (cf. b Met. Z, 7, 1032b1-2; 17, 1041 7-9; acima, II, n.157; III, n.97),êv-se, claramente, que a realidade do universal aristot élico decorre da mesma realidade do , princípio formal e de unidade das coisas particulares. Desse modo, à imperecibilidade dos universais, que concernemàs qüididades eàs formas, op õe-se a realidade menor das coisas particulares, sujeitasà geração e ao perecimento, em nosso mu ndo sublunar. 120 Cf.Seg. Ana l. I, 24, 85b18-9. a 121 Seg. Anal . I, 11, com., 77 5-6; cf., acima, n.103 deste cap ítulo, para o que respeita ao lugar Segund os Anal í ticos. exato desta passagem, nos a b Met. , 8, 1034 122 Sobre a individua ção pela mat éria, cf., entre outros textos, 5-8; 10, 1035 30a 1; , 8, 107433-6 etc. 123 Cf. Met. , 9, 990b11-3, onde Aristóteles se refere aos argumentos tirados das ciências ( ), em favor da teoria das Idéias; veja-se, também, a exposição de três desses argumentos por Alexandre defrod A ísio, reproduzida por Ross, em notaad 990b11-5. Ross remete-nos, com raz ão, a textos plat ônicos como o deRep. V, Rep. 479a-80a. Podemos, tamb ém, invocar, no mesmo sentido, a importante passagem de VII, 521c seg., sobre as ciências adequadasà formação do filósofo, porque se revelam manifestamente (525b), impelindo a alma para a regi ão superior das coisasem si (cf. 525d).
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tração científica pela defeituosa interpreta ção metafísica que se lheád: 124 é-o o ouvinte, o que a tem e sobre ela reflete, mas ãona compreen125 de e se deixa seduzir pela sereia da Academia. 2.6 Superioridade da demonstra ção universal
Assim respondendo às objeções que se poderiam levantar contra o valor e sentido da demonstra ção universal, demora-se, ainda, o fi126 lósofo em toda uma ésrie de argumento s em seu favor. Argumen127 tará, em primeirolugar, mostrando que, sendo o universal sujeito primeiro e, portanto, causa, visto que demonstra ção é o silogismo que mostra a causa e o porqu ê, é superior a demonstra ção universal. Também a comparação com a causalidade final ser á instrutiva para com128 preender-sea superioridad e da demonstra ção universal. Com efeito, se nos interrog amos sobre a causa final de um ato qualquer, prosseguimos nossa investiga ção até chegarmos a algo queãno mais se faz em vista de e por causa de outra coisa; assim, se perguntamos por que alguém veio e ficamos sabendo que foi para receber um dinh eiro, de novo perguntaremos por que veio receber o dinheiro e, sabedores de que o fez para pagar uma d e que, por sua vez, a paga para não ser ívida injusto para com outrem, se nenhuma outra causa mais á para h que isso se faça, teremos, ent ( ) por que veio ão, em conhecendo o fim o homem em quest ão, o máximo de conhecimento sobre o porquê de sua vinda. O mesmo ocorrendo com a investiga ção de todas as outras 124 ‘ , cf. Seg. Ana l. I, 24, 85b21-2. 125 Poderia conjecturar -se, apartir deSeg. Ana l. I, 24, 85a20, ter-se formulado, efetivamente, ainda em vida do fil ósofo, a acusação de “platonismo” contra a sua teoria da demonstração universal. E o queé, sobremaneira, curioso é que, apesar do esfor ço que faz o fil ósofo testemunho − e os textos que comentamos trazem disso um bom − para esconjurar toda possibilidade de conferir-se uma tal interpretação à sua doutrina, não se livrou da má compreensão dos estudiosos: fato, que se insiste” em é com “freq üência, “descobrir ” no aristotelismo, “oposi ção” e, mesmo, contradi çãode ” entre o “platonismo da doutrina da Metaf í sica . ciência e a teoria da ess ência proposta pela 126 Cf.Seg. Anal . I, 24, 85b23-86a30. b 127 Cf. ibidem, 85 23-7; acima, III, 2.4 e n.107 109. a b 128 Cf. ibidem, 85 27-86a3.
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modalidades de causa, teremos, analogamente,áoximo m de conhecimento sobre um fato investigado, quando conhecermos que algo se atribui a um sujeito,ãon por ser este outra coisa, masãto-somente por ser ele próprio. Eé esteúltimo momento( ) de nossa pesquisa queé o seu fim ( ) e limite ( ).129 Ora, a demonstração universal, porque, precisamente, nos mostra que determinado sujeito tem, por si mesmo, talatributo (assim, o is óscele tem seusângulos externos iguais a quatro retos por que triângulo e tem-nos o tri ângulo porque figura retil o ínea, mas a figura os tem, por si mesma, eéela sujeito da conclus ão que se demonstra), por isso mesmo, fornece-nos o conhecimento m áximo sobre a presença de tal atributo num sujei130 to, nisso evidenciando a sua superioridade. Um terceiro argumento tirar-se-á de tender a demonstra ção, na medida em que se torna mais e mais particular, para as coisas individuais, infinitassua emilimitada dispersão, quando sabemos que “enquanto ilimitadas,ãno são as coisas conhec íveis mas, enquanto são limitadas, ãso conhecíveis”.131 Porque o individual, como nos diz, tamb ém, a Ret órica, 132 “é ilimitado e não é conhecível”. Por isso mesmo, ent ão, são as coisas conhec íveis antes enquanto universais que enquanto particulares; antes, assim, enquanto se limitam pelos universais que lhes conferem a verdadeira individualidade.133 Donde serem as coisas universais mais demonstráveis e ser a demonstração universal mais demonstra ção, 134 portanto, superi or. Em quarto lugar,se a demonstra ção que nos faz, também, conhecer outra coisa,ém al da queé, propriamente, demonstrada,é preferível, a demonstração universalé preferível, pois quem conhece o universal conhece, tamb ém, o particular, mas o inverso ãon b 129 Cf. ibidem, 85 29-30. 130 Cf. ibidem, I, 24, 86a3-10. 131 Ibidem, l. 5-6. b32-3. 132 Ret. I, 2, 1356 133 Como diz Aubenque (cf.Le probl ème de l ’être..., p.209):“si l’on entend par individuel ce qui est parfaitement édterminé, alors c’est l’universel qui poss édera la vraie individualit é”. É o que permite dizer o ’, cf.Seg. Ana l. II, 13, 97b28-31; acima, n.97 deste cap ítulo. 134 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a10-3.
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135 ocorre. Por outro lado, a demonstração mais exata (e a única queé cientificament e válida) sendo a que parte de um princípio, será mais exata a que se serve, em seus silogismos, demos ter m édios mais próximos do princípio, ou seja, a que co é mais universal (se se tem em nta
que a maior proximidade do princ ípio correspondeà maior universalidade). Mas alguns desses argumentos − é o próprio filósofo quem no-lo diz136 − são apenas“lógicos” (). Por argumentar“logicamente” () − em oposição a uma argumenta ção que procede“analiticamente” (),137 “a partir do que já foi estabelecido” ( )138 − entende Aristóteles, como os vários exemplos em que 139 aquela express ão aparece o mostram, argumentar de modo meramente verbal ou mediante proposi ções de caráter geral, nem especificamente apropriadas à matéria em discuss ão nem particularmente concernentes ao êgnero preciso de que nos ocupamos. Pois tal modo de proceder, que ãno se pode chamar de cient ífico, serve-se, freq üentes vezes, de elementos comuns ( ) a vários objetos e, assim, cons trói, verbalmente, seus argumentos, permanecendo âmbito no de um discurso (, donde ) que, embora visando determinado objeto, não se lhe ajustou ainda, movendo-se na esfera vaga do geral e do comum, istoé, do “abstrato”.140 Enquanto propedêutica a um conhecimento adequado e tomada como mera via de acesso ao saber 135 Cf. ibidem, l. 13-21. 136 Cf. ibidem, l. 23. Não o são o primeiro (85b23-7, cf. acima, n.127 deste capítulo) e o quarto (86a10-3, cf., acima, n.134 deste cap ítulo). a b 137 Cf. ibidem, I, 22, 847-8; 2. 138 Cf. ibidem, I, 32, a19-30. Uma argumenta ção , como a própria expressão o indica, serve-se,ãto-somente, de proposi ção já obtidas e estabelecidas pelo estud o em curso, adequadas, por conseguinte, ao objeto em estudo e diretamente a ele apropriada s. b Em Ger. An im . II, 8, 747 27-8, Aristóteles opõe a demonstração à que procede a partir dos princípios apropriados ( ). b Fí s. 139 Além dos textos citados nas notas anteriores, cf.III, 5, 204 4 seg.;Met. , 4, 1080a10; b , 1, 108721 etc. 140 Cf. Ger. Anim . II, 8, 747b28-30, que assim caracteriza a demonstra ção “lógica”: “Digo-a lógica () por isto que, quanto mais universal, mais afastada est á dos princípios apropriados”. Sobre este uso de“universal”, cf., acima, n.110 deste cap ítulo.
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efetivo, essa modalidade de argumenta ção é própriaà dialética e, neste 141 preciso sentido, raciocinar Ora, é raciocinar dialeticamente. é importante constatar que a mesma teoria aristot élica da ciência não desdenhou do emprego desses racioc ínios dial éticos, queêvm preparar nossa aquiesc ência ao argumento mais exato e diretamente apropriado ao objeto em estudo, refor çar nossa persuas ão, orientar-nos para a plena inteligência dele. Passemos, por ém, a uma prova mais precisa e exata, que nos trará o máximo de evidência da superioridade da demonstra ção universal.142 Com efeito, bastar-nosá retomar um dos argumentos ão n“lógi143 cos” há pouco resumidos. Pois a demonstra ção universal, concluindo uma proposi ção universal (por exemplo, que todoângulo tri tem seus ângulos iguais a dois retos) demonstra, ipso facto , uma proposição anterior à conclusão eventual de uma demonstra ção particular (que concluísse, por exemplo, pertencer aquela propriedade ao tri ângulo 141 Como diz Simplício (in Phys. , 476, 25-9,apud Aubenque,Le probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.115, n.4), raciocinar é raciocinar Cabe, com efeito, à dialética abordar tecnicamente as questões, por meio de argumentos que concernemàs determinações comuns dos objetos, cf. Ref. Sof. 11, 172a29-b1. Se assimé, freqüentemente será correto traduzir“” por “dialético”. Ocorre, entretanto, que, aos olhos de Arist óteles, se a argumenta ção “lógica”, movendo-se na esfera vaga e abstrata do discurso sobre os “comuns” ou constituindo-se de modo puramente verbal, se pode, pertinentement e, empregar para preparartornar e poss ível a aquisição de um saber real, é, por outro lado, conden ável, por razões óbvias, a permanência definitiva nessa esfera de abstração, quando não se cuida de apropriar o discurso à natureza específica de cada objeto que se estuda e se tem pretens a ão de propor como saber efetivo o queãonpudera ser mais que um instrumento de pesquisa. Compreende-se facilmente, ent ão, que uma tal maneira de proceder se dirá, antes, sofística que dialética (cf.Ref. Sof. 11, 171b6 seg.) e que aquela express ão se usará, segundo esse outro prisma, com um sentido nitidamente pejorativo, designando, por vezes, criticamente, éos todos m e procedimena b tos dos platônicos, cf.Ger. e Per. I, 2, 31611; Met. , 3, 100521-2 ( ); , 1, 1069a27-8; , 1, 1087b20; Ét. Eud. I, 8, 1217b21 ( ) etc. Não é sem importância salientar que, por seãno ter compreendido a distin ção entre o uso dial ético e o sofístico da argumentação , tem-se, com demasiada freq ncia, incorrido em üê graves contra-sen sos a respeito da fun ção, alcance e valor da dial ética aristotélica. 142 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a22-9. a 143 O de Seg. Anal . I, 24, 86 10-3 (cf., acima, n.134 deste cap ítulo). Como observa, com raz ão, a Ross (cf. notaa d I, 24, 8622-9), não se trata, nestaúltima passagem, de um novo argumento, mas da retomada eexplicita ção do de 86a10-3.
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144 isóscele). Essa anterioridade do universal ao particular, anterioridade segundo a forma e a ess ência,145 revelando-nos a mesma causa por que se atribui por sio predicado a cada um dossujeitos particulares que ouniversal comp reende, explica que, m e tendo a proposi-
) a propoção universal e anterior, tenhamos, em potência ( 146 sição posterior, que provaria a demonstra ção particular: sabendo que pertence a todo tri ângulo uma soma deângulos igual a dois retos, também sabemos, potencialmente, que tal propriedade pertence, por exemplo, ao tri o ocorre ângulo isóscele. O inverso, entretanto,ãn e o que possui a demonstra ção particular não tem conhecimento do universal, nem em pot ência nem em ato ( ).147 A superioridade da demonstração universal torna-se-nos manifesta, ao mesmo tempo que se nos patenteia ãonser a passagem do conhecimento universal ao particular mais do que a explicitação e a efetivação das potencialidades do primeiro. E o particular que se - tor na assim conhecido conhece-se, em reconhecendo-s e nele o universal que se possu ía.148 Não que a ciência universal se deva dizer mera144 Cf., acima,III, 2.3. Cf. também Seg. Ana l. I, 2, 72a3-4 e, acima, II, 4.1. 145 Cf., acima,III, 2.2 e n.72. 146 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a23-5. Entendendo, como Ross (cf. nota ad 86a22-29), que, a l. 23-4, e não designam as premissas maior e menor de um silogismo, mas concernem, respectivamente, à demonstração universal eà particular, julgamos estar Aristóteles a comparar, do ponto de vista da anterioridade, tanto relativa como absoluta, as conclusões de uma e outra demonstra ção e não, as suas premissas. 147 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a28-9. 148 Cf. Seg. Ana l. I, 1, 71a17 seg., onde o fil ósofo, buscando mostrar a possibilidade de coincidir, no tempo, a infer ência da conclus ão com a descoberta e formula ção da premissa menor, explica como o conhecimento do universal cont ém, de algum modo ( ) o conhecimento do particular que, no entanto, em ato e em sentido absolut o, ãno se conhece ainda. E vê, na distinção entre essas duasmaneiras de conhecer, a solu ção da aporia famosa do Menão, sobre a aparenteimpossibilidade de se adquiriremconhecimentos: não se pode buscar conhecer nem o que se conhece nem o queãse o conhece, n o que se conhece porqueájse conhece, o que seãonconhece porque, sem conhecer -se, como saber o que se deve buscar? Tem-sese ou onse tem conhecimento, mas ãprogride. ãonse come ça a conhecer e, no conhecer, tampouco Ora, com a distinçã o entre o conhecimento universal e o conhecimento part icular, o primeiro contendo potencialment e o segundo, o segundo atualizando um conhecimento que, de algum modo, portanto,á jse possuía a respeito do mesmo particular que, agora, em sentido absoluto, se conhece, á Aristódteles a aporia por resolvida: nenhum absurdo resulta de que, ao mesmo tempo, se çaconhe e se
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mente potencial; mas tamb ém ela só conheceem a to , enquanto, pre149 cisamente, conhece o universal num particular que considera. Ainda em favor da demonstra ção universal, pode dizer-se que, enquanto ela se caracteriza pela sua inteligibilidade, a demonstra ção particular tende para um conhecimento que, em si mesmo considerado, se aproxima gradualmente de ju ízos fundados na mera percep ção sensível.150 2.7 O u niversal cient í fico e a percepção sensí vel
Se talé a natureza do universal cient ífico, imediatamente compreendemos que“não é possível conhecer cientificamente através da sensação”.151 Esta apreende sempre, necessariamente, “um isto” ( ), 152 aqui e agora, ou seja: uma coisa individual determinada quanto ao lugar e ao tempo; por isso mesmo, ão n pode ela atingir o universal que, compreendendo uma totalidade, ãonsofre tais limita ções, masé sem153 pre e em toda parte.Manifestamente, ent ão, porque são universais as demonstra ções e se não percebem pela sensa ção os universais,ãno poderá haver conhecimento cient ífico, portanto demonstrativo, atra154 vés de sensa ção. Eis por que haveria, ainda, que buscaruma demonstração, mesmo se fora poss ível perceber pela sensação que o tri ângulo 155 tem seusângulos iguais a dois retos. E, ainda que presenci ássemos ignore o que se aprende, uma vez que não é sob o mesmo aspecto que se ignora e se conhece; cf.Seg. Ana l. I, 1, 71b6-7. 149 Cf. Met. , 10, 1087a10 seg. Aristóteles, aí, distingue, claramente, entre o conhecimento universal potencial e indetermin ado e o conhecimento atual do universal num definido que se considera. Contrariament e a Ross (cf. nota ad 1087a13), não vemos contradi ção entre essa passagem e a teoriaSegund dos os Anal íticos sobre a universalidade da ência; ci não b Da Alma II, 5, 417 a contradiz tampouco o texto do 22-3 sobre a ci ência atual dos universais, que nada impede se interprete, tamb ém, no sentido de um conhecimento em ato do b universalno particular que a alma considera. Cf., tamb ém, Fís. VII, 3, 247 4-7. 150 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a29-30. b 151 Cf. Seg. Ana l. I, 31, com., 87 28. 152 Cf. ibidem, l. 29-30. Mas lembre-se que pode, igualmente, designar o ópr prio (cf., acima, n.12 deste cap ítulo). 153 Cf. ibidem, l. 30-3. 154 Cf. ibidem, l. 33-5. 155 Cf. ibidem, l. 35-7.
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a produção causal de um fato, tal como o eclipse da lua, que nossa ciência demonstra; ainda que sobre a lua estiv éssemos e ívssemos interpor-se a terra e privar -se a lua de sua luz,ãonrepresentaria a simples percepção desse fato bruto um conhecimento da çã rela o causal: saberíamos haver, naquelemomento, um eclipse, desconhecer íamos o porquê e a causa; ã no nos sendo dada uma percep ção sensível da relação universal entre a interposi ção da terra e a priva ção de luz da lua, não perceberíamos que a priva ção de luz da lua“pertence” universal156 menteà interposi ção da terra. É certo, por outro lado, que uma repetida ocorrência do mesmo fen ômeno, uma percep ção repetida da interposição da terra seguida de priva ção da luz lunar permitiriam que buscássemos o universal e se nos tornasse este evidente, a partir de uma multiplicidade de casos particulares, ensejando-n os, assim, a 157 construção da demonstra ção do eclipse: conhecendo-se, agora, que a privação de luz“pertence” à interposi ção da terra,por si , temos, nesta última, a causa real e, por conseguinte, o ter mo médio do silogismo demonstrativo. Desse modo,então, onde quer que se tenha algo que 158 não coincide com sua causa e dela se distingue, é a demonstração universal mais valiosa que a sensa ção ou que o mesmo conhecimento 159 intelectivo: ouniversalé valioso porque indica a causa e torna a demonstração possível. 156 Cf. ibidem, 87b39-88a2. 157 Cf. ibidem, 88 a2-5. Assim, o (que ocorre muitas vezes), pelo fato mesmo de sua repeti ção, permite-nos apreend ê-lo universalmente , istoé, conhecer, gra ças à percepção renovada, uma rela ção causal e essencial constitutiva do óprio pr fato e, portanto, eternamente presente, quando, segundo uma lei invari ável de repetição, o fato se reproduz. Incorre Le Blond, nosso a ver, em erro de interpreta ção, quando confunde, em nosso texto, uma tal com o (freqüente, “no mais das vezes”), aquilo que, embora ãno se dê necessariamente, quase sempre e na maior parte das vezes ocorre; tal confus ribuir uma certa obscuridade ao pensamenão leva o autor a at to aristotélico, no que concerne ao papel doniversal u na êci ncia (cf.Logique et m é thode ..., Abordaremos, nas p idêque seguem, no . Seg. áginas ção de 158 1939, Sobre p.81-3). ofato dehaver sempre uma causa, ntica à própriaa coisa oudistinta dela, cf. a Anal. II, 8, 93 5-6. 159 , Seg. Ana l. I, 31, 88a5-6. Por outro lado, é-nos inaceitável a interpretação que Le Blond prop õe dessa passagem, segundo a qual designaria, aqui, simplesmente, o geral, cujo conhecimento, permitido pela repeti ção re-
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A problematização necessária de certos fen ômenos e a longa investigação que precede a apreens ão de suas causas e a possibilidade de sua demonstração decorrem, por vezes, de uma falha na sensação.160 Fosse outra a nossa percep ção do fenômeno, não teríamos, em muitos casos, necessidade de investigar; n conhec ão que êssemos pelo simples fato, por exemplo , de ver, mas,a partir d o fato dever, já tería161 mos o universal. s- v É o que aconteceria, para dar um exemplo, íse semos os poros de um espe lho ardente e a passagem da luz atrav és deles: ser-nos-ia, imediatamente, evidenteporqu o ê de ele queimar pois, embora percebendo, separadamente, apenas um caso singular, também compreenderíamos, ao mesmo tempo, que um fen ômeno 162 idêntico se passa em todos os casos, dispensando-se qualquer processo continuado de investiga ção para a apreens ão das relações causais em jogo. Uma simples varia ção imaginativa, estendendo-se tanto à reminiscência de eventuais casos semelhantes no passado , como à consideração dos simplesmente poss íveis, revela-nos, de imediato, a partir de umaúnica experiência perceptual, o car áter universal das relações que nela se particularizam. Eis, também, porque pode Aristóteles, nas primeirasápginas do livroII dos Segun dos Ana l íticos , sustentar, sem contradi ção real com oque nos explicou,áhpouco, a propósito de um eclipse que se percebesse óda pria pr lua, que, sem que fosse preciso investigar o fato e o porqu ê, tudo nos seria, imediatamente, evidente, a partir da percep ção atual do eclipse: a partir da percepção, embora não pela percepção, produzir-se-ia o conhecimento do 163 universal e da causa. Tínhamos, por certo, raz ão ao dizer, acima, que não havia percep ção da relação universal e causal e supusemos, como condição do conhecimento universa l, a repeti ção de idênticas percepLogique novada do fen ômeno, se converteria em uma via para a apreens ão da necessidade (cf. et m é thode ..., 1939, p.80-2). Ora, nenhuma há, ao contr ão raz ário, como vimos, para que ãon se interprete, aqui, o universal, em sentido rigoroso; cf., entret anto, adiante, III, 4.7. 160 Cf. Seg. Anal. I, 31, 88a11 seg. 161 Cf. ibidem, l. 13-4. 162 Cf. ibidem, l. 14-7. 163 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a24-30.
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ções do mesmo fato; o que, ago ra, se acrescenta é que, nesses casos privilegiados em que o termoém dio é objeto concomitante da percepção sensível, não é absolutamente indispens ável a repetição real, cujas 164 funções pode adequadamente suprir a mera varia ção imaginativa. 3 A falsa
“catolicidade ”
3.1 Um primeiro erro contra a u niversalida de
Não se contenta Arist -nos sua teoria da óteles de expor “catolicidade ” da ciência mas consagra, ainda, todo umítulo cap dosAnal íticos 165 ao estudo dos erros em que, por motivos contingentes, pode incidir o conhecimento humano, ao tentar constituir-se como ciência, istoé, como conhecimento efetivo do . Adverte-nos, mesmo, o fil ósofo sobre a ocorr ência freqüente de tais erros, que nos levamtomar a por científica uma demonstra ção, sem que, no entanto, se prove a con166 clusão universalmente e de um sujeito primeiro. Três são as moda167 lidades de erro que se passam em revista. Ocorre a primeira delas, Seg. Ana l. I, 31, 164 Se a interpretação que propusemos resolve a contradi ção aparente entre b a 87 39 seg. e II, 2, 90 24 seg., a prop ósito da percep ção e conhecimento universal do eclipse por um observador situado na lua, na medida em que se toma o segundo texto, à luz do a11 seg.), que explicara Arist livro I (cf. 88 óteles em outra passagem do mesmo cap. 31 do como uma análise mais aprofundada da quest ão abordada pelo primeiro, assimãon entende, por exemplo, Le Blond (cf. Logique et m é thode ..., 1939, p.81, n.4), para quem a segunda passagem“paraît contredire ouvertement le épr cédent et cela montre, une fois de plus, qu’Aristote n’a guère de souci d’accorder ses déclarations entre elles ”. Bourgey, Observation et exp é rience chez Aris tote , 1955, p. 107-8), reconhecendo embopor sua vez (cf. ra não haver sen ão uma contradi ção meramente aparente,êcrque se trata de umadescrição de “attitudes différentes, susceptibles’une l et l’autre de se rencontrer chez ’homme l suivant les dispositions du moment ” (ibidem, p.107) e interpreta o segundo texto, recorrendoà doutrina aristot élica da percep ção, através da sensação, dos universais como homem, animal, etc. (cf. Seg. Ana l. II, 19, 100a16-b1). Mas não cremos deva confundir-se a percepção da universalidade gen rela o universal, a partir da érica com a descoberta de umaçã
percepção. sensível do termo médio. 165 Seg. Anal I, 5. 166 Cf. ibidem, 74a4-6. 167 Cf. ibidem, l. 6-8e 16-7.Com Ross(cf. notaa d l. 6-13), suprimimos , a l. 8, e entendemos ’, a l. 7-8, como“espécie” e não, como objeto singular. Para b um idêntico uso de’, cf.Seg. Ana l. II, 13, 97 28-31 e acima, n.97 deste cap ítulo,
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quando não dispomos de sujeito genericamen te mais elevado a que atribuir determinada propriedade e mos, cre por isso, que ela pertence universalmente a uma determinadaéesp cie:é como se todos os trisceles e, por desconheângulos que pud éssemos conhecer fossemóis cermos outras esp écies do triângulo, não dispuséssemos da no ção de triângulo, enquanto diferente e genericamente mais elevada que de a isóscele; advir-nos-ia, provavelmente,ãent o, tomar a soma dos ângulos igual a dois retos como um atributo universalângulo do tri isóscele. A limitação que nos seria imposta pela eventualidade de ãose concren tizar no real sen ão uma das esp écies de um êgnero, dificultando-nos, destarte, o conhecimento da universalidade genseria respons érica, ável pelo surgimento deum conhecimento pretensamente cient ífico, mas, em verdade, enganoso e deficiente.ão N nos desconcerte o fato de o filósofo ter tirado seu exemplo de uma ência ci matemática, em que a hipótese considerada nos parece absur da: o que áhde extremamente importante, na passagem que examinamos, é o reconhecimento, por Aristóteles, da exist ência possível de condições objetivas, no mundo exterior, que ensejem e favore çam uma interpreta ção defeituosa do real. A escolha do exemplo matem ático quer , apenas, re açl ar, em abordando um caso extremo, a inautenticidade do conhecimento que os fatos mal interpretados podem, ocasionalment e, impingir-nos como ciência. Qualquer que fosse o dom ínio em que tal eventualidade se produzisse, o conhecimento que julgar íamos ter obtido seriaãto falso como a falsa ci ência matemática que resultaria de sermos levados, em não dispondo de equil áteros e escalenos, a admitir a igualdade a dois retos como umatributo universal do tri ângulo isóscele. 3.2 O segun do erro
A segunda modalidade de erro tem lugar168 quando, havendo embora um êgnero superior, concretizado em m esp últiplas écies, a que ad finem . Habitualmente, a express ão designa, como se sabe,coisa a individual, cf. Bonitz, b Index , p. 225 61 seg.
168 Cf. Seg. Ana l. I, 5, 74a8-9 e 17-32.
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referir universalmente um atributo ou, em outras palavras, havendo, embora, diferentes esp écies de um mesmo êgnero que se poderiam reconhecer como tais, a aus ência de um termo comum que as designe dificulta e impede a apreens ão de sua unidade gen érica e, por conseguinte, o conhecimento das propriedades universais do g Dáênero. nos Aristóteles, como exemplo, o processo hist órico da formação da teoria matemática das proporções: anteriormente provava-se a A:B = C:D, então A:C = B:D) para as linhas, alternância dos termos (se números, sólidos e tempos e seãno tinha uma demonstra ção universal única, entretanto poss ível; a deficiência da terminologia matem ática, que não permitia se considerassem essas diferentes entidades matemáticas no que lhes é comum, istoé, no serem quantidades,ãon espelhava sen ão a mesma inexist ência de uma teoria ge ral da propor169 possibilitou a sução. Mas a recente constitui ção de uma tal teoria peração das antigas dificuldades e o advento de uma demonstra ção realmente universal, substituindo à universalidade num érica a universalidade científica, segundo a ess ência. Propõe-nos o texto, como bem se pode ver, uma esclarecedora ilustração de como considera o filósofo o devir hist órico do conhecimento cient ífico: o real matem ático, como qualquer outro,ãno se entrega de umaósvez ao homem, mas se lhe entrega, ao longo do tempo hist órico, como coroamento dos esforços que preparam sua efetiva aquisi ção científica. Gerações ou séculos pode demandar a caminhada proped êuticaà ciência, tal como Aristóteles a concebe, antes que se lhe obtenha o termo programado. E a constitui ção de uma linguagem cient ífica acompanhapari pa ssu a própria constitui ção da ciência, de que é um requisito indispensável. Por outro lado, a análise da modalidade de erro que estamos n-co siderando permite ao fil ósofo insistir, comênfase, na distin ção entre uma universalidade meramente num érica e a universalidade realmente científica: assim como seãonatingia o verdadeiro universal, enquanto se demonstrava separadamente a altern ância dos termos para li169 Cf. ibidem, 74a23: . Refere-se Aristóteles à teoria geral das proElementos de Euclides. porções formulada por Eudo xo e exposta no livro V dos
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nhas, números, sólidos e tempos, do mesmo modo, se se prova, seja por demonstrações diferentes, seja, inclusive, por um ó tipo s de demonstração, mas separadamente, que osângulos tri isóscele, escaleno e equilátero têm seusângulos iguais a dois retos, “não se conhece, ainda, que o tri ângulo tem seusângulos iguais a dois retos, sen ão à maneira sofística, nem[subent.: se conhece] doâtri ngulo, universalmente, ainda mesmo que n ão haja nenhum outro tri ângulo al ém desses”.170 E é manifesta a raz ão pela qual n ão estaremos, ainda, em presença de uma demonstra ção científica: pois não se conhece que o triângulo tem tal atributo, enquanto triângulo, nem mesmo que todo tri ângulo o tem “sen ão de um ponto de vista num érico (’)”, não se conhecendo que todo tri ângulo o tem segundo a forma ( ’).171 Não poderia o fil ósofo ter sido mais enf ático na condenação da pretens ão indevidaà cientificidade, por parte de um conhecimento que se limita a conhecer uma universalidade meramente numérica: ainda que saibamos que pertence tal ou qual atributo a todo sujeito e ainda que possamos demonstrar essa propriedade de todas as espécies do sujeito em questão, será um procedimento sofístico e inaceit ável a tentativa de erigir em ciência um tal conhecimento, que n ão atinge a universalidade segundo aência ess e a forma. Contra os arremedos sof ísticos da verdadeiraêci ncia, há que manterse firmemente a distin ção entre o e o 172 3.3 O t erceiro erro
Uma terceira forma de erro é, enfim, considerada peloófil sofo:173 é quando se toma como todo, numa demonstra ção, o que do todoé, apenas, uma parte.É o que ocorrerá, por exemplo, se, tomando-se retas perpendiculares a uma terceira e provando-se que elas n ão se a d l. 29),’ 170 Seg. Ana l. I, 5, 74a27-30. Lemos, com Ross (cf. nota , ao invés da leitura comum dos ó cdices . 171 Cf. ibidem, l. 30-2. 172 Cf., acima, III, 2.1 e III, 2.2. 173 Cf. Seg. Anal . I, 5, 74a9-16.
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encontram e ãso, por conseguinte, paralelas, entender -se que se trata de uma demonstra ção universal e que oparalelismo decorre de serem as retas perpendiculares. Ora, pode demonstrar -se queãso paralelas todas as retas que, secantes a uma terceira, sobre ela determinam o, com as perângulos correspondentes iguais; que isso ocorra,ãent pendiculares n ão é senão um exemplo desse fato geral. É erro análogo ao que ocorreria, se, considerando -se apenas o tri ângulo isóscele, se entendesse que a propriedade de terângulos os iguais a dois retos decorresse do fato de ser ele ó isscele e não, do fato de ser tri ângulo. E o erro em questão difere daquela primeira modalidade que acima 174 consideramos, porque não dispúnhamos, ent ão, senão de uma das espécies, enquanto, podendo, aqui, dispor de todas elas, ão considen ramos senão uma. Como se êv, provém o erro, nesta terceira modalidade, de se considerarem indispens áveis à demonstração todas as determinações do sujeito considerado. Uma real dificuldade em distinguir os atributos gen éricos dos espec íficos surge da pr ópria trama rica do real e da multiplicidade de suas manifesta ções que não vêm facilitar o trabalho de an álise exigido para que se deslindem a verdadeira natureza dos fatos que se querem estudar e os efetivos relacionamentos que os subordinam a suas causas reais. A considera ção preferencial e indevida de apenas uma das esp écies de um gênero, introduzindo uma causana demonstra por as“falsa ção, converte-a, sim dizer, em esp écie única, de” modo a interdizer-nos a apreens ão da universalidad e. Enquanto as duas primeiras formas de erro tinham de comum o fato de, nelas, considerar -se a totalidade num érica efetiva 175 consiste, por sua vez, a terdo sujeito da propriedade em estudo, ceira modalidade de erro, quanto à universalidade, em nem mesmo considerar-se a totalidade aque o atributo realmente pertence. Mas, num caso ou noutro, peca-se, sempre,ntra co a“catolicidade ”. 174 Cf., acima,III, 3.1 e n.167. 175 Com efeito, mesmo se o gênero-sujeito tem apenas uma esp écie, como ocorre na primeira modalidade de erro estudada, ãoné falso dizer-se que a demonstra ção falsamente universal, que toma a espécie como sujeito primeiro, demonstra sobre a totalidade real do gênero.
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3.4 Verdadeira ciência e saber aparente
Não será ocioso insistir na extrema import ância dessas considerações que vimos expender oófil sofo a propósito dos erros que espreitam o espírito humano, quando se lan ça à busca176da universalidade científica. E a mesma den úncia de sua freq üência faz-nos suspeitar de que não é irrelevante para a exata compreens ão da doutrina aristotélica da ciência uma atenta reflexão sobre o capítulo que Aristóteles lhes consagra. Ora, o primeiro ensinamento que de tal estudo, imediatamente, se retira é a nítida distinção estabelecida entre a verdadeira Ci ência e a apar ência ilusória de conhecimento científico em que podem os homens inadvertidamente compra zer-se. Conhecedores, embora, da teoria do universal cient ífico, nem por isso estamos protegidos e imunizados contra as sedu ções das falsas universalidades. Não somente não se desvenda o real sen ão aos poucos e graças a um movimento progressivo que se desenvolve no tempo histórico, mas pode, tamb ém, o mesmo progresso na constitui ção do saber brindar-nos com enganosas evid ências. A reflexão aristotélica sobre as tr ês modalidades de erro quantoà universalidade da demonstração deixa-nos patentes as vicissitudes por que pode passar, e numa fase avançada de seu desenvolvimento, o processo de aquisi ção do conhecimento cient ífico, segundo a concep ção do filósofo; não apenas não tem o homem uma intui ção direta e espont ânea da ordena ção por que o real se estrutura, mas os próprios resultados que, finalmente, alcança e que se lhe afiguram como cient íficos, mesmo segundo uma concepção correta da ci ência, não podem, sem mais, presumir-se garantidos contra eventuais deforma ções imputáveis aos fatores de ordem contingente pr ópriosàs condições de sua elabora ção. Não se preocupou, aqui, o fil ósofo− nem era a ocasi ão para isso− com proceder a uma investiga ção detalhada sobre a natureza e o mecanismo real dos diversosóbices capazes de impedir a efetivação de um conhecimento 176 Cf., acima, III, 3.1 e n.166.
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verdadeiramente científico e de contribuir para que um conhecimento falso ouimperfeito assuma, indevidamente, uma apar ência de ciência; interessou-lhe,ãto-somente, indicar, com o mínimo de necessária precis ão, a existência de certas condi ções objetivas ou subjetivas de natureza a favorecer aceita a ção de uma falsauniversalidade. O que Arist óteles ainda ãno nos diz, entretanto, é comoassegurarnos, de modo rigoroso eãn o mais sujeitoà necessidade de reformulações oportunas, de que teremos, por fim, obtido um real conhecimento do universal. Se as vicissitudes da“ciência” humana nos advertem, uma vez superadas, sobre a possibilidade de um conhecimento apenas aparentemente cient ífico, que condi ções teremos para deci dir, sem risco de erro, queãno é meramente subjetiva a nossa ência ci e que, de fato, de ter posse do real? Eis o problema fundamental rit do é- c rio, aestamos que vamos de retornar for çosamente. Mas áj podemos perceber que a den úncia dos erros e ilus ões da falsa“ciência” é muito mais que a banal constata ção de que a“ciência” dos homens se enganou e pode enganar-se, com uma certa freq üência. O problema que se coloca é o de saber se disp õem os homensde elementos para sustentar que não poderá jamais o discurso despersuadir conhecimen tos que formularem. Para crer, com razão, que sua ciência é algo mais do que sua convicção de ter ciência.
4 O freq üente 4.1 Pode ha ver ci ência do freqüente?
Vimos Aristóteles condenar como insuficiente, do ponto de vista científico, todo conhecimento que, conhecendo, embora, pertencer um atributoà totalidade de um sujeito ( ), não no apreende segundo a ess ência e a forma. Se com tanta insist ência, porém, repete o filósofo sua exigência de um saber cient ífico rigoroso e recusa qualificar como cient ífico quanto conhecimentoãno preencha todos aqueles requisitos com tanto empenho enumerados, torna-se-nos 178
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imperioso perguntar como haver ão de interpretar-seos diversos textos em que nos aparece a êcincia, não apenas como um saber do necessário e universal, mas, tamb ém, como conhecimento do queãno ocorre senão na maior parte das vezes ( ), isto é, do freqüente ? Diz-nos, com efeito,Metaf a ísica que“toda ciênciaé ou do eter-
no ( ) ou do freqüente ( )”.177 E os mesmos Segund os Ana l í ticos , que encerram a rigorosa doutrina da ci que ência vimos estudando, ao expor-nos que não pode haver ci ência demonstrativa de quanto provém da sorte ( ),178 como procedem, senão argumentando com o fato de ãonser necess árionem freq üente o que da sorte procede? acrescentam: E “Ora, a demonstra ção concerne a uma dessas duas coisas ”.179 Premissas e conclus ão do silogismo científico serão, de fato, umas e outra, ou necess ou freq árias üentes, a 180 conclusão acompanhandonatureza a das premissas. E os princípios imediatos deuma demonstração do freqüente serão, igualmente, fre181 qüentes. Também o acidente ser á caracterizado pela Metaf í sica, não somente por oposição ao necessário, mas, também, ao freqüente: é aquilo que, pertencendo a um sujeito, nem lhe perten ce por necessi182 nem na ma ior pa rte das vezes. dade, entretanto, Será um acidente, por exemplo, o frio, durante a can ícula, em que o tempo quente e seco é freqüente.183 Natural é, pois, que nos ocorra perguntar como pode a teoria aristotélica da ciência, sem incorrer em contradi ção, reservar um lugar para o , mediante o que, à primeira vista, se configura como uma estranha concess ão ao mundo da conting ência? Pois o que é “no mais das vezes ”, não sendosempre nemnecessariamente,não 177 Met. , 2, 1027a20-1; cf., tamb ém, , 8, 1065a4-5, que repete, literalmente , a mesma afirmação. 178 Cf. Seg. Ana l. I, 30 (todo o cap ítulo). b 179 Ibidem, 87 21-2. 180 Cf. ibidem,l. 22-5. Cf., também, no mesmo sentido,Ret. I, 2, 1357a27-30. a 181 Cf. Seg. Ana l. II, 12, 96 8-19. a 182 Cf. Met. , 30, 102514-6;, 2, 1026b31-3; , 8, 1065a1-3; acima, n.39 deste cap ítulo. 183 Cf. Met. , 2, 1026b33-5.
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pode, também, ser d e outra ma neira ? Mas sabemos que o ão é objeto de opinião e não, de ciência, uma vez que se n concebe uma ci ência que possa transformar -se, pela instabilida de de seu objeto, capaz de ser e deãn o ser, em conhecimento fals o e igno184
rância. Compreenderemos, por certo, sem dificuldade , que a no ção de vem permitir ao conhecimento ísico f de nosso mundo sublunar185 transformar-se em ciência, se recordamos a pol êmica aristotélica contra os que postulam uma necessidade absoluta para os 186 eventos naturais, sua teoria do acaso natural( ),187 sua constante doutrina de que “todas as coisas que seproduzem naturalmente produzem-se ou sempre da mesma mane ira ou na maior parte 188 das vezes( )”. E não nos adverte o tratado das Par tes dos Animais sobre a impossibilidade de reduzir ao eterno a necessi dade das 189 demonstrações que concernem ao que se produz naturalmente? Se a noção de se destina, ent ão, ao que tudo indica, a de algum modo salvar, contra Plat ão, o devir para a êcincia, não nos será, também, necessário confessar,entretanto, queo filósofo o consegue ao preço de uma contradi ção ou, ao menos,de uma grande obscuridade? E os silogismos de uma tal ência ci da natureza pareceriam assimilar-se aos entimemas ret óricos, a maioria dos quais concernem ao simples freqüente ( );190 o que é o “provável” () da 191
retórica senão o que se ent produz dasdessa vezes? Compreendemos, ão, quenasemaior possaparte ter falado “estranha n o ção d e ”, em Aristóteles,192 que se tenha tomado a
“curiosa noção de ”,193 “como uma das significa ções que, 184 Cf., acima, I, 1,1 e n.25 seg. b 185 Para a distinção, tornada famosa, entresublunar o e o supralunar,Meteor. cf. I, 3, 340 6-7; a 4, 34230. 186 Cf. F ís. II, 8-9. 187 Que Aristóteles expõe, juntamente com o problema da sorte ( ), emF ís. II, 4-6. b b b 188 Ger. e Per.II, 6, 333 4-6; cf., tamb ém, F s. II, 5, com., 196 10-1; 8, 198 34-6 etc. í b 189 Cf. Part. Anim . I, 1, 63930 seg. a 190 Cf. Ret. I, 2, 1357 30-2. a 191 Cf. ibidem, l. 34; Prim. Ana l. II, 27, com., 70 2-6. 192 Cf. Hamelin, Le sys t ème d ’ Aristote , 1931, p.126. 193 Cf. Le Blond, Logique et M é thode ..., 1939, p.79.
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obscuramente, o universal aristot élico assume, evidenciando a profunda hesitação do filósofo sobre o papel da repeti ção, da enumera ção na 194 constitui ção da ciência”, que o leva, malgrado a rigorosa doutrina dosAnal íticos , a conceder que “a ciência não consiste somente em penetrar raz ões necess árias”.195 E fica-nos claro, tamb ém, como se pode dizer que as fronteiras entre a e a permanecem mal definidas, no aristotelismo, encontrando-se, no fato de a distin ção estabelecida peloófil sofo entre o necess ário e o contingente dizer, também, respeito ao objeto material, “a fonte das obscuridades que sua doutrina encerra ”.196 Busquemos, no entanto, antes de postular o caráter insolúvel da aporia, examinar mais de perto o aristotélico. Porque nada nos garante que a aporia ão seja n mais aparente que real, se é certo que a mesma men ção, nosSegund os An al tií cos , do freqüente, ao lado do necess ário, como objeto deêcincia, pode, também, sugerir-nos que n ão viu, nisso, o filósofo uma dificuldade qualquer de ordem doutrin ária. Todo problema consiste, precisamente, em esclarecer qual a exata natureza das es entre a necessidaçõrela de, a contingência e a“freqüência”, no pensamento de Arist óteles. 4.2 O acident e, o freqüentee a ma é t ria
Ora, ao tratar da questão do ser, como acidente, expõe-nos a
Metaf í sica197 que, como alguns seres ãossempre e necessariamente e
outros são, não necessariamente nem sempre, mas na maior parte das vezes ( ), “este é o princípio e esta, a causa de haver acidente”,198 já que dizemos acidente o queãn o é sempre nem no mais das vezes. Que haja acidentes, ent ão, não é mais do que uma conseqüência necessária de nem tudo ser ou devir de modo necess ário e sempre, mas de a maioria, mesmo, das coisas, no mundo que nos cer194 Cf. ibidem, p.83. 195 Cf. ibidem, p.80. 196 Cf.S. Mansion, Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.123. 197 Cf. Met. , 2, 1026b7 seg. 198 Ibidem, l. 30-1.
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199 ca, dar-se apenas Se atentamos bem no que nos diz o texto, percebemos, pois, que o acidente é opostoconjuntamente ao necessário e ao freq üente, istoé, que se associa o freq üente ao necessário, quando se considera a ocorr ência de eventos fortuitos. Por ou-
tro lado, não se invoca, como explica ção do acidente, uma mera ausência de necessidade, mas uma substitui ção do freqüente ao necessário, no que diz respeito m do devir. à maioria das coisas no undo Se “freqüente” e acidente ocupam complementar mente o lugar deixado vago pela aus ência do necess ário e do eterno, vemos, tamb ém, que é a “freqüência”, por assimdizer, que“faz as vezes” de uma necessi200 dade que n ão se verifica. E a seq üência do texto vai esclarecer-nos que a matériaé a causa de assim substituir-sefreq a üênciaà necessidade e de surgir, por conseguinte, o acidente. á conhec J íamos a mat éria como capaz de ser e de ãonser,201 mas nosso texto descreve-laá, agora, como“capaz de ser de outra maneira que ãoncomoé no mais das vezes ”.202 Assim, o poder-ser-de-outra-maneirada matéria, por que se caracteriza a conting o ência, vem, em nosso texto, explicaracidentee n ão propria men te, o freq üente : poder ser de outra maneira é poder ser diferente do freq üente, explicando, ãno por que ocorre o freqüente, mas por queãno é senão freqüente e não é sempre que ocorre. 4.3 Duas acepções de “possí vel”
Se, num certo sentido, portanto, é correto dizer que o“freqüente”, pelo fato, mesmo, deãno ser necessário, é somente umposs ível , não no diremos no mesmo sentido em que o dizemos dos eventos acidentais, por que a mat éria é responsável. Distinção de sentidos que se impõe e que osPrim eiros An al íticos nos propõem explicitamente, ao 199 Cf. ibidem, 1027a8-13. 200 Cf. Met. , 2, 1027a13-5. 201 Cf., acima, I, 1.1 e n.26. E, como dizMet. , 7, 1032a20-2:“Todas as coisas que se produzem ou pela natureza ou pela arte êmt matéria; de fato, cada umadelasé capaz tanto de ser como de não ser e istoé a matéria em cada uma ”. 202 Met. , 2, 1027a14-5: .
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mostrar-nos203 que se diz(ser possível) em duas acepções, o (literalmente, poss o ível ) designando, segundo a primeira 204 delas, o que se dá na maior parte das vezes ( ), ao falhar o necessário ( ), como, para o homem, o encanecer, o crescer ou o deperecer e, em geral, o que pertence naturalmente a uma coisa( );205 e, num segundo sentido,206 designando “o indeterminado(), o queé capaz de ser tanto assim como n ão assim”, como, por exemplo, para um animal, o caminhar ou o haver um terremoto, quando caminha, e, em geral, o que provém do acaso, ã no sendo mais natural que tal fato ocorra n ão,e o seu contrário. E acrescenta o texto queãno há ciência e silogismo demonstrativo dos poss íveis indeterminados, dada a instabilidade do termo médio, enquanto osáhdos possíveis naturais, sobre que se pro207 duzem argumentos e pesquisas. Como podemos, imediatamente, verificar, confirmam-se os resultados de nossa análise, de há pouco, do texto daMetaf ísica . Acidente− aqui identificado aos resultados indeterminados que prov ém do acaso208 − e freqüente explicam-se como duas significações distintas e inconfundíveis do p os s ív el ( )209 e torna-se-nos manifesto que, aos olhos de Arist óteles,n ão se confun de o freq üente com o contin gente , o que pode ser de outra maneira ( ), o que é capaz de ser e de não ser 203 Cf. Prim. Ana l. I, 13, 32b4 seg. 204 Cf. ibidem, l. 5-10. 205 Cf. ibidem, l. 7-8; cf. também 3, 25b14-5. 206 Cf. Prim. An al. I, 13, 32b10-3. 207 Cf. ibidem, l. 18 seg. 208 É freqüente esta identifica ção, atribuindo-se ao acaso tudo quanto ão énnecessário nem b freqüente, cf.Seg. Ana l. I, 30, 87b20-1;Ger. e Per.II, 6, 333 6-7. Mas, em sentido rigoroso, explica-nos aF ísica que só se falará em sorte e acaso, quando a natureza ên− ou a intelig a cia − opera segundo uma causalidade acidentalF(cf. ís. II, 6, 1985-7), istoé, quando algo b se dá teleologicamente, por acidente,Fcf. 18 seg. etc.). Quanís. II, 5, 196b21 seg.; 8, 199 F s.
( í II, to a entre sorte ) e acaso ), veja-se todo o cap 6 de amplo, à diferençembora ítulo lembrando que Arist óteles també(m usa, com frequ ência, em sentido englobando os eventos naturais que se devem ao acaso. 209 Em Prim . Ana l. I, 3, Aristóteles estendera, ainda mais amplamente, o uso de , na medida em que, tamb ém, o mesmo necess ário () podelegitimamente dizer se poss ível , cf. 25a37 seg.
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( ).210 O freqüente é o que provém da , um necess ário falho, por certo, mas ãonmenos que um necess ário estorvado e impedido. É a demonstração, por isso, que lhe diz respeito e não, a ó l gica da conting ência, com suas premissas e conclus ões
“problemáticas”.211
212 O tratado da Interpreta ção já distinguira, dentre as coisas queão n são nem devêm por necessidade, as que se produzem ocasion almente (e sobre as quaisãno é mais verdadeira a afirma ção antecipada que a negação) e aquelas que, preferencialmente e no mais das vezes ( ), se produzem numa determinada dire ção, ainda que lhes seja possível ocorrer em sentido contrário. Tais são, como sabemos, os se213 res da natureza, que, em si mesmos,têm um certo princ ípio o qual,
por um contínuo movimento, os conduz a um fim ( ) determinado: a partir de um tal princ ípio, neles temlugar, não, por certo, a consecução invariável de um mesmo resultado, nem um resultado ocasional, mas um tender a um mesmo fim, se não sobrevém algum impedimento ( ).214 E, com efeito,“nos seres físicos, as 210 Com efeito, se , de acordo com a maioria dos autores , entendemospor contingente oque pode ser de outra maneira ( ), não podemos dizer contingente o freqüente, pelas raz , que engloba o freões que vimos. Eis porque traduzimos qüente e o fortuito e indeterminado, por “possível” e não, por“contingente”, como quase todos (por exemplo: Ross, Colli, Tricot etc.) traduzem, ao que cremos,ãpor o ter n devidamente apreendido a exata natureza do aristotélico. Eis, tamb ém, por que n ão podemos aceitar a engenhosa interpreta ção de Régis (cf.L ’ opinion selon Aristote , 1935, p.93 seg.), para quem“l’ est formellement le contingent pour Aristote ” (ibidem, p.95) eé objeto próprio da opini ão (cf. ibidem, p.106),ãon ocupando-se dele aência ci senão na medida em que oábio, s intencionalmente, o considera sob um “aspect partiel, incomplet, qui ramène l’ à l’ par une sorte d’abstraction” (ibidem, p.105). 211 Como nota Ross (cf. nota a d Prim. Ana l. I, 13, 32b4-22), “it should be noted that the distinction[subent.: entre as duas acep ções de ] plays no part in his general doctrine of the logic ofcontingency, as it is developed in chs. 13-22 ”, istoé: todo o estudo do silogismo problem ático não concerne aoposs ível , enquantofreq üente . 212 Cf. Da Int. 9, 19a18-22. 213 Cf., acima,III, 4.1 e n.188. b b 214 Cf. Fís. II, 8, 199 15-8. Cf., tamb 23-5. O finalismo da f aristot ém,Part. Anim . I, 1, 641 ísica élica configura-se, assim, como uma recusa do determinismo da necessidade absoluta , reconhecendo uma tend ência ao fim que, bem sucedida “no mais das vezes ”, também é, por vezes, obstada pela interfer ência de causalidades acidentais e estranhas ao processo natural.
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coisas se passam sempre da mesma maneira, se n ão sobrevém algum impedimento”.215 Nem se falará em acidente ou acaso, quando se 216 produzem as coisas sempre ou no mais das vezes. 4.4 A necessidade hipoté tica
E de onde prov ém aquele impedimento, sen ão da matéria, capaz de ser e de não ser?É que sua indetermina ção () permite que princípios e causas estranhas venham efetivamente estorvar o processo natural do devir e perec er, levando as coisas a se compor tarem de modo contrário à natureza ( ).217 Mas, por outro lado, não se deve a regularidade com que atingem seu termo fi218
nal os processos naturais coisa: eé“a dos seão à ess ência de cada res naturais o ser desen uma determinada maneira esta natué causa reza() de cada coisa ”.219 Em substitui ção à necessidade absoluta dos seres eternos, o mundo ísico f sublunar exibe uma outra forma de necessidade, a necessidade hipot ética ( ),220 necessidade da matéria ou causa material, enquanto condi ção sem cuja indispensável cooperação não chega a bom termo o deviratural n nem se concretiza a presen ça atuante da forma. Assim como ocorre no dom ínio da técnica e dahumana− para que haja, por exemplo, uma casa, necessitam-se telh as e tijolos, sem os quais haverá casa, ainda que ão n não seja em virtude deles que tenha lugar im, of an ão ser como matéria221 − assim, também, nos seres e eventosísicos, f ainda que n ão necessite ao fim a mat éria, o fim necessita a mat éria: tais e tais coisas hão de, necessariamente, dar -se, para que o fim tenha lugar e, se ão n 215 216 217 218 219 220
b Fí s. II, 8, 199 25-6.
Cf. ibidem, l. 24-5. a Cf. Ger. Ani m . IV, 10, 778 4-9. Cf. Ger. e Per.II, 6, 333b7 seg. ibidem, l. 16-8. Cf. F ís. II, 9, 200a14 (veja-se o capítulo todo);Part. Anim . I, 1, 635b23 seg.É a forma de necessidade a que aludia Arist óteles emMet. , 5, 1015a20-6, cf., acima, I, 1, 1e n.41. a 221 Cf. F ís. II, 9, 20024 seg.;Part. Anim . I, 1, 639b25-30.
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222 advém ele por elas, tampouco sem elas. O , visto sob tal prisma, não é senão o testemunho da atua ção, no mundo ífsico, dessa outra forma de necessidade.
4.5 O freqüentee o devir c í clico
Mas, se a mat éria aristotélica, como a doTimeu, 223 não se deixa persuadir inteir amente, como explicar, ent ão, que não leve a melhor e que a forma e o fim prevale çam, em que peseà má vontade daquela? Em outras palavras, como seádque, malgrado a eventualidade, sempre presente, de a necessidade material opor impedimento eficaz aos processos da natureza, se comportem os seres naturais, , da mesma maneira?É que o Céu é um Todo único224 e que a completação do Céu todo, envolvendo o tempo inteiro e a infinidade, 225 é uma dura ção imortal e divina, a que, tamb ém, se suspendem o ser e a vida de todos os seres que seãon situam além de seu movimento mais exter ior.226 Por isso mesmo, a necessidade encadeia o devir e o movimento, os quais, no mundo sublunar, irão imitar, sob a forma de uma cíclica e necessária repetição, que devem ao fato de, em última análise, decorrerem da revolu ção eterna e circular do éCu, a perma227 nência do eterno, que lhes falta. E essa gera ção circular,nós a temos manifesta, seja nas transforma ções com que os elementos seãov uns aos outros, reciprocamente, produzin do, segundo uma ordem constante, seja na infinda repeti ção das coisas individuais, engendrandose, continuamente, na identidade espec ífica das manifesta ções distin228 tas das mesmas formas, que a mat éria individua. Assim integrado 222 Cf. F ís. II, 9, 200a30-b4; Part. Anim . I, 1, 640a2-8. 223 Cf. Tim. , 48a. Mas, tamb ém noTimeu , a Inteligência domina a Necessidade, persuadindoibidem ). É imposs a a conduzira ma ior parte das coisas no sentido do melhor (cf. ível deixar de reconhecer que essa passagem écont m, em germe, a doutrina aristot élica do . u I, 9 (todo o capítulo). 224 Cf. C é 225 Cf. ibidem, 279a25-8. 226 Cf. ibidem, l. 28-30. b a 227 Cf. Ger. e Per. II, 10 (o capítulo todo), part. 336 31 seg.; 11 (o cap ítulo todo), part. 338 14 b b seg.; cf., tamb ém, I, 3, 31733 seg.;C é u II, 3, (o cap ítulo todo);Seg. Ana l. II, 12, 9538 seg. b 228 Cf. Ger. e Per. II, 11, 338 5 seg.
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na harmonia da unidade celeste,áest assegurado o mundo da gera ção contra os desmandos da mat éria: poderá esta, ocasionalment e, interferir de modo a obstar os proces sos naturais, masãn o lheé dado impedir que se passem as coisas, sen , ão sempre, ao menos da mesma maneira. 4.6 O freqüente, objeto d e ci ência
Se tais são a natureza e o sentido do aristotélico, se ele é o substituto do necess ário, para omundo sublunar , exprimindo a manifesta ção da forma e da ess ência, numa regularidade que procede da ordem imut ável, necessária e eterna do éCu, não é difícil reconhecer que, ao propor essa outra çã noo, não renunciou Arist ótelesà sua concepção de ciência, que osAnal íticos descrevem. Matizou-aão-sot 229 mente, ao precisar qual a natureza do conhecim ento ajustado à expressão da causalidade operante numa natur eza em devir . Trata-se, por certo, de uma degrada ção da necessidade cient ífica, segundo m u a forma de conhecimentoque lhe é , entretan to, plenam ente assimil ável , correspondendo a uma degrada ção objetiva da necessidade ontol ógica, que com esta, por ém, permanece indissoluvelmente solid ária. Amolda-se o conhecimento à natureza do objeto; nem poder íamos conceber, no aristotelismo, que as coisas pudessem passar-se de outra maia − e nado homem, mais neira. Como nos dizÉatica Nico ma qu é ainda que no devirísico, f está ausente a necessidade absoluta −, devemos contentar-nos, se falamos de coisas apenas freqüentes e partimos de premissasfreq üentes , com ter, somente, con clusões dessa mesma 230 natureza. “Poisé próprio do homemcultivado buscar a exatid ão, em 231 cada gênero, tanto quanto a natureza da coisa o admite ”. Não falaremos, ent aão, em incorre ção ou obscuridade e, ainda menos, em contr dição, a propósito da doutrina aristot élica do freq üente, nem estranharemos a no os parti cularmente curiosa, compreendendo ção ou a acharem 229 Cf., acima, I, 1.4 e n.83 e 84. 230 Cf. Ét. Nic. I, 3, 1094b21-2. 231 Ibidem, l. 23-5.
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as razões de haver uma ci ência do freqüente e por que podem os Analí ticos apenas mencion á-la, centrando, embora, seu estudo a an nálise do conhecimento necess ário: é que o guarda vínculos bem definidos com a esfera da necessidade. Aparece-nos, também, claramente, como se poder á dizer científica a apreensão do , ao mesmo tempo que se recusa cientificidade ao conhecimento do mero : é que se apreende, num caso, o que pertence segundo a forma e a natureza, ainda que ãonsempre, enquanto, no outro, a atribuição à totalidade não se explica nemcausalmente se conhece. E, de mod o que poderia parecer, à primeira vista, paradoxal, com a noção de“freqüente”, mais uma vez, patenteia-se o primado da compreens ão sobre a extens ão,232 lá mesmo onde alguns pretenderam, precipitadamente, descobrir algo como um certo triunfo, no pensamento aristot élico, de uma concep ção “extensivista ” da ciência.233 Mas “não se pronunciam corretamente, nem indicam a necessidade do porquê”, diz-nos Arist óteles,234 “aqueles que dizem que‘as coisas se produzem sempre assim ’ e estimam que esseé, nelas, o princípio”, como se a simples descri ção da ocorrência de sempre pudesse fazer as vezes de explicação científica. É óbvio, por outro lado, que, assim como mesmo as coisas necessárias e universais podem ser, eventualmente, objeto de simples ão opini e não, de ciência, se n ão se apreende, ao apreend ê-las, a sua necessida235 de pr também o freq ópria, üente dir-seá apreendido por mera opini ão, se não se conhece ele segundo a formaaepartir das reais determinações causais que o produzem. E, sobre um talüfreq ente, construir áa 236 retórica os seus entimemase a dialética, os seus silogismos. Como 232 Cf., acima, III, 2.2. 233 É o caso, por exemplo, de Hamelin Le (cf.sy st ème d ’ Aristote , 1931, p.126) e, sobretudo, de thode ..., 1939, p.79), queê v Le Blond (cf.Logique et m é manifestar-se na no ção de “l’importance de la répétition, de l’universalité au sens précis du mot, , dans l’objet de la science ”. b
234 Ger. Anim . II, 6, 74217-20. A sequ ência do texto mostra ser Dem ócrito quem Arist óteles, aqui, particularmente, visa. 235 Cf., acima, I, 1.1 e n.35 a 39. 236 Cf., acima, III,4.1 e n.190 e 191. Como o filósofo nos diz emPrim . Ana l. II, 27, 70a3-4: “o provável () é uma premissa aceita ()”; sobre a noção de , v., acima, cap. II, n.5.
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ocorre no dom ínio da universalidade,ãno se confundir á a freqüência, segundo o n úmero, com a freq üência, segundo a ess ência e a forma. E muitos textos de Arist óteles poderão, por certo, citar-se, em que o 237 assim se emprega, em sentido frouxo. 4.7 O que “no ma is da s vezes ” ocorre e o que “muitas vezes” a contece
Por fim, permitamo-nos estabe lecer que se ãno deve, em momento algum, confundir o com certos fatos que invariavelmente se repetem segundo uma lei rigorosa e eterna, em se repetindo circunstâncias determinadas, os quais designa Arist óteles como (lit.: que se produzem muitas vezes), num texto particularmente famoso dos Segun d os Ana l í ticos, 238 cuja má interpretação tem sido, a nosso ver, causa de reais contra-sensos sobre a doutrina dofreq üente , em Aristóteles.239 Nele, diz-nos o fil ósofo: “Quanto às demonstrações e conhecimentoscientíficos dos fatos que se produzem muitas vezes, como os do eclipse daé lua, evidente que, enquanto o são [subent.: enquantoãso demonstração e conhecimento] de um tal evento ( ’),240 são eternos; mas enquanto ã no são b11-2;Pol. IV, 4, 1291 b9-10;Ret. II, 5, 1382 b5-6; 19, 237 Como, por exemplo, emTóp. II, 6, 112 1392b22-33 etc. 238 Cf. Seg. Ana l. I, 8, 75b33-6. Cf., tamb ém, I, 31, 88a3: 239 Assim é que Régis afirma (cf. L ’ opinion selon Aristote , p. 104, n.3: “Le est ici synonyme de , car de même que ce dernier indique l d ’existence ’une nature, de m ême le ”. Também S. Mansion (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.91-2, 120-3), embora critique a interpreta ção que Régis propõe do aristotélico, entende a repetição constante de um evento, exemplificada pelo eclipse, como uma das significa ções de . E Le Blond, comentando um outro texto dosSegund os Anal íticos , em que o exemplo do eclipse reaparece (cf.Seg. Ana l. I, 31, 87b39 seg.) e onde usa Aristóteles, analogamente, a express ão , julga igualmente tratar -se de um caso de , o que o leva a achar o texto embaraçante... e a explicá-lo com alguma confusão (cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.81-2 e n.1 a p.82; acima, n.157 deste cap ítulo). 240 Lendo, com Ross, Waitz e alguns códices, contra Bekker , Mure, Tricote outrosócdices, em b Seg. Ana l. I, 8, 75 34: ’e não ’Com efeito, como se haveria de interpretar a afirma ção de que“Quantoàs demonstra ções e conhecimentos cient íficos dos fatos que se produzem muitas vezes, como os do eclipse da lua, é evidente que, enquantoãso tais (’), são eternos; mas, enquantoãonsão eternos, ãso particulares ”, sem entend ê-la
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eternos, ã so particulares. Tal como no caso eclipse, do assim, tamb ém, nos outros casos ”. Ora,é patente que seãno trata de um fato que ocorra “na maior parte das vezes de em ”: se o eclipse da lua se repetequando vez, é, por certo, bem pouco freq üente a interposi ção da terra que priva a luz da lua, se se compara mco toda a dura ção do tempo em que tal evento não ocorre. Por outro lado, na mesma medida em que çãoade no “freqüen241 te” designa, como sabemos, uma necessidade falha e impedida, que permite o surgimento do acidente,çgra as à deficiência do concurso da causalidade material, é absolutamente manifesto que um tal não pode dizer-se um : pois, dada a interposi ção da terra,é impensável que o eclipse se não produza ou que se pro duza, tão-somente, no mais das vezes; a interposi ção da terra, por sua vez, produz-semu itas veze s (), consoante a ordem e o movimento circular do C éu. Basta, porém, para que a leitura do texto se aclare, que recorde242 mos ter Arist dentre os atributos“por si”, aqueóteles distinguido les que, necessariamente pertencendo a seus sujeitos, pertencem-lhes unicamente, em determinadas circunst âncias de lugar e tempo. Ora, não somente o eclipse como todoss oeventos, em geral, que resultam das múltiplas interfer ências dasórbitas celestes e das rela ções temporárias e localizadas que, entre os corpos celestes, necessariamente , então, se estabelecem, constituem outros tantos exemplos desses “por si” que o movimento eterno doéu C faz ciclicamente repetir -se, segundo uma necessidade rigorosa. O conhecimento causal de sua produ243 ção se dirá, por isso mesmo, ciência e ciência eterna e universal, ainda que um tal conhecimen to, na medida em queãn o concerneàs como o reconhecimento de uma certa primazia do conhecimento sobre o objeto conhecido? Os conhecimentos cient íficos tirariam sua eternidade de sua mesma natureza de conhecimentos científicos, malgrado não serem eternos seus objetos! O que, no aristotelismo,é, obviamente, absurdo. 241 Cf., acima, III, 4.3. 242 Em Met. , 30, 1025a21 seg., cf., acima, III, 1.4 e n.53. 243 Não esqueçamos, aliás, que Aristóteles se serviu do mesmo exemplo da repeti ção do eclipse para mostrar -nos como se poderia, daercep p ção repetida, passar ao universal , cf. b Seg. Ana l. I, 31, 87 39 seg.; acima, III , 2.7 e n.156 a 159.
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propriedades permanentes de um ser, mas a propriedades relativas e possuídas em circunst âncias particularmente determinadas, ãonse 244 diga, sob esse prisma, universaleterno, e mas, sim,particular . Assim dirimidas as dúvidas sobre a noção de “freqüente” e afastado o temorde, eventualmente, depararmos com uma contradi ção ou inconsistência na doutrina aristot élica da ciência, podemos, agora, tendo aprofundado o conhecimen to da coisa demonstrada e de suas características, empreender, como promet êramos, a prova de queãon são outras as propriedades das premissas da demonstra ção.245 Uma 244 O que a nenhum momento significa, porém, obviamente, que o ófil sofo assimile o conhecimento de tais eventos ao quarto sentido“de por si” que, acima, o vimos distinguir (cf., acima, III, 1.1 e n.23; III, 1.4), designando uma çã rela o causal ecircunstancialmen te necessária que unedois eventos, subordinan do um ao outro:é que, nesse caso, trata-se do mero fruto de uma causalidade acidental e fortuita, porta nto, contingente. Por outro lado, podem, a nosso ver, assimilar-se a essa esp écie particular de“por si” de que nos ocupamos conexões entre fatos como aquelas a que se efere r oó filsofo no texto,à primeira vista razoavelmente dif de , 2, 1027a20 seg. ícil e que tem sido diversamente comentado, Met. Nele, tendo estabelecido que a ência ci não se ocupa do acidente mas, somente, do necessário e do freqüente e exemplificando esteúltimo com o fato de serútil o hidromel, na maior parte das vezes, a quem se encontra em estrado febril, continua rist teles:“mas óA não poderá [subent.: a ciência] dizer o que constitui uma exce ção a isso, quando não ocorre a coisa, por exemplo: ‘na lua nova’; com efeito,‘na lua nova’ também é sempre ou na maior parte das vezes; mas o acidente é o que constitui exce ção a esses casos” (l. 246). Julgamos inaceit a d l. 25), para essa ável a interpretação proposta por Ross (cf. nota passagem, que ele particularmente valoriza:“for it is perhaps the only place in which Aristotle implies the view that there is nothing which is objectively accidental. There are events which present themselves as accident s, i. e., as unintelligible exceptions, but if we knew more about them we should know that they obey laws of their own. Elsewhere Aristotle speaks as if there were events which are sheer exceptions and below the level of knowledge; here he admits that they are merely beyond our present knowledge ”. Ora, nada, na passagem em quest ão, nos sugere que tenha Arist óteles proposto, como pretende Ross, uma outra concep ção de acidente queãon a que sempre encontramos longo ao de sua obra, recusando a no ção de acidentalidade objetiva e reduzindo o chamado acidente a uma deficiência de nossos conhecimentos; o que nos explicaóosofo, fil em nosso texto, é que, porque não há ciência do acidente,ãno pode ela determinar e conhecer uma com o“lei da acidentalidade ”, segundo a qual se produziriam os acidentes que contrariam üente: o freq se acaso pudéssemos conhecer uma ordem ou lei conforme à qual eventos regulares e freqüentes deixam de verificar-se, n ão estar í am os, realmente, em face de acidentes, mas de eventos necessária ou freq üentemente produzidos, em circunst âncias determinadas, em virtude da interferência regular de umanova causalidade (no caso em quest ão, uma fase da lua). O acidente propriamente dito é um “possível” indeterminado (cf.Prim. Ana l. I, 13, 32b10-3; Met. , 2, 1027a7-8). cf., acima, III, 4.3 e n.206), cuja causalidade étamb m é acidental (cf. 245 Cf., acima, a introdução ao cap. III.
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vez estabelecido esse ponto, estaremos, finalmente, em condições de provar a existência necessária de princípios indemonstr áveis para a demonstração científica.
5 Da necessidad e, nas premissas d a ci ência 5.1. Aind a o “por si ” e o necessário
Descobrimos, nas ápginas precedentes, como e por que onheco cimento da coisa demonstrada se exprime sob ma a forde proposi ções em que o predicado se atribui ao sujeito, por si e universalmente, ao mesmo tempo que se nos patenteou ãonser outra a necessidade das conclusões científicas senão a necessidade daquela atribui ção universal epor si . Cumpre-nos, agora, mostrar que essa mesma necessidade do “por si” caracteriza, tamb ém, as mesmas premissas por que o objeto científico se demonstra e, tamb ém, portanto, os mesmos princ ípios 246 imediatos da demonstra ção que temos, com oófil sofo, pressuposto. Tal é o objeto de todo um cap ítulo dosSegund os An al íticos,247 que dá, as248 sim, cumprimentoum a programa anteriormente enunciado. Principia, ent ão, o filósofo:“Se a ciência demonstrativa procede, pois, de princ ípios necessários (o que cientificamente se conhece ão n pode, com efeito, ser deoutra maneira), se os atributos por si são ne, é manifesto que proceder cessáriosàs coisas ... á de premissasde tal 249 natureza o silogismo demonstrativo ”. Poderia estranha r -nos,à primeira vista, que comece oósofo fil por uma tal afirma ção, uma vez que, desejando, precisamente, mostrar oácar ter necess ário das premissas, parece tom á-lo, de início, como aceito para, em seguida, sobre tal fundamento, estabelecer que, porque necess rárias, hão elas de formula se como atribui ções por si . Não se duvida, por certo, de que a necessi246 247 248 249
Cf., acima, II, 5.1 e II, 5.2. Cf. Seg. Ana l. I, 6. Desde Seg. Ana l. I, 4, 73a21-4, cf., acima, a introdu ção ao cap. III. b Seg. Anal . I, 6, 745-11.
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dade implique “opor si” e seja por ele implicada, como desde á muito h 250 sabemos. Mas, por isso mesmo, percebe-se que, naquela declaração inicial, não faz mais o fil ósofo que, antecipando os resultados da demonstração que nos vai, na seq üência do texto, propor, recordar que, se se prova a necessidade das premissas do racioc ínio científico − e ela se provar á a partir da mesma impossibilidade de ser de outra maneira a coisa demonstrada cientificamente e conhecida −, não há como negaràs premissas aquela mesma caracter ística de“por si” que sabemos possuir as conclus ões: determina ções correlatas, o necess ário e o “por si” são, também aqui, indissociáveis. Mas teremos, primeiro, de provar que ãso as premissas, de fato, necess árias e o faremos, partindo da necessidade conhecida das conclus ões científicas.251 5.2 Prova-se a natureza necessária das premissas
Desdobra-se a prova em ários v argumentos. Em primeir o lugar252 , consideremos que, se é real a possibilidade de construir silogismos, sem demonstra ção, a partir de premissas verdadeiras , não é, no entanto, possível, se partimos de premissas necessárias, efetuar um silogismo que não demonstre,ájque a conclus ão obtida compartilhar á da necessidade das premissas em que assenta. Com efeito, como seáexplicitar 253
mais adiante,assim como, das premissas verdadeiras, ése obt sempre uma conclusão verdadeira, assim, tamb ém, se o termo m médio é necessário (seA pertence, necessariamente, Ba e B, a C), também será necessária a conclus ão (A pertencerá, necessariamente,Ca); e, se não é necessária a conclus ão, também não será necessário o termo m édio. É fácil ver que o argumento, simplesmente dial ético, não prova rigorosamente o ponto em quest ão: mostrando-nos que premissas necessárias levam a conclus ões necessárias, nem por isso nos torna, imediatamente, evident e que oinverso tamb ém ocorre e que anecessidade 250 251 252 253
Cf., acima, III, 1.2. Cf. Seg. Ana l. I, 6, 74b13-15. Lemos, com Ross, , a l. 15. Cf. ibidem, l. 15-8. Cf. ibidem, 75a4-11.
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da conclus ão implique a nece ssidade das pr emissas. O argu mento serve, apenas, para pôr-nos diante de silogismos que reconhecemos como demonst rativos , aovermos engendrar -se conclus ões necess árias como as que, por defini ção, sabemos resultar de toda demonstra ção, a partir de 254
premissas daquela mesma natureza. E nada parece impedir que se prove uma conclusão necess dio não necess ária por um termoém ário, assim como pode uma conclus ão verdadeira provar -se a partir de premissas que 255 não o são. 256 Um segundo argumento trar-nos-á, ao menos, um ind ício ou sinal () da necessidade obrigat ória das premissas. Com efeito, ao argumentar contra os que pretendem ter feito uma demonstração, julgamos ser objeção suficiente contra sua pretens ão o fato de podermos invocar o car áter não necessário das premissas sobre que constroem seus silogismos, porque estejamo s convencidos de sua falta de necessidade ou, mesmo, simple smente, para argumentar. Tamb ém dialético,257 o argumento apela para aéid ia aceita de demonstra ção e para a sua espont ânea compreens ão, por parte de todos. Se o que as premissas dizem podeão n ser, como pretender que é necessário e que está cientificamente provado o que nelas se fundamenta? Nosso comum procedimentoáj patenteia a tolice dos que julg am bastar, para que se formulem corretamente os princ ípios, que se utilizem premis258 sas tão-somente verdadeirasaceitas. e 259 Vamos, porém, ao argumento principal. Quando uma demonstração é possível, sabemos que não a tem quem ãno conhece o porqu ê da conclusão. Ora, dados tr ês termosA, B e C, seA pertence, necessariamente, aC e B é o termo médio do silogismo que obt ém tal conclu-
Cf. Seg. Ana l. I, 6, 75a1-4. Cf. ibidem, l. 3-4; Prim. Ana l. II, cap. 2-4. Cf. Seg. Ana l. I, 6, 74b18 seg. Pois o raciocínio fundado em indício ou sinal ( ) é um entimema retórico (cf.Ret. I, 2, 1357a31-2: “dizem-se entimemas os racioc ínios que procedem de‘prováveis’ e de a sinais”) e a retórica é uma como ramifica ção da dialética (cf. ibidem, 1356 25-6),é a sua a 1). “contraparte” (cf. ibidem, 1, com., 1354 258 Cf. Seg. Ana l. I, 6, 74b21-6. 259 Cf. ibidem, l. 26-32.
254 255 256 257
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são, o caráter eventualmenteãno necessário deB deixaria inexplicada a necessidade da conclus ão. Pois, seB não é necessário, não poderemos provar sen ão o fato de queA pertence aC; nem poderá a necessidade da conclus ão explicar-se causalmente pela cont ingência dotermo médio. Somente um termo médio necessário pode, portanto, “mediar” entre o maior e o menor de uma conclus ão científica. Decisivo e concludente, este argumento serve-se, como vemos,çõ deesno que a doutrina daêci ncia, previamente, á estabelecera: j a fun ção cau260 sal do termo médio e a noção de silogismo da causa real. 261 Um último argumento, também dialético, vem corroborar o que acabamos de demon strar.Com efeito, ã no há como recusar que ã no tinha anteriormente conhecimento quem, possuindo embora o mesmo argumento que anteriormente possu ía e tendo-se preservado no ser, tanto quanto o objeto de seuetenso pr conhecimento, dele ão ntem conhecimento agora. Ora, mas é o que forçosamente ocorreria, sese pudesse provar uma conclus ão científica, portanto necess ária, a partir de premissas n ão necessárias, istoé, de um termo médio contingente. De fato, implicando a conting ência a possibilidade do pereci262 mento, se perecesse o termoém dio e se preservassem tantoobjeto o como quem pretensamente o conhecia e continua possuir a o mesmo argumento, por certoãn o teria ele conhecimento: ãono tinha, portanto, anteriormente. Seãno perecesse o m ecer, a édio, mas pudesse per mesma situa ção poderia ocorrer, uma situa ção de não-conhecimento. 5.3 Necessidade ontológica e necessidade do juí zo
São, portanto, necess árias as premissas todas do conhecimento científico, necessário é o termo médio do silogismo científico.263 E 260 Cf., acima,II, 3.1a II, 3.3.Trata-se, pois, deum argumento , cf., acima, III, 2.6 e n.138. 261 Cf. Seg. Ana l. I, 6, 74b32-9. 262 Cf. Ger. e Per. II, 9, 335b4-5: . a 263 Cf. Seg. Ana l. I, 6, 75 12-4. Se n ão se tem, ent ão, um conhecimento fundado em premissas necessárias, nem se conhecer á por qu e a conclusão é necessária nemqu e ela oé, mas ou
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podemos, finalmente, co ncluir, que,“uma vez que pertence necessariamente em cadaêgnero quantopertencepor si e a cada sujeito, enquanto tal,é manifesto que as demonstra ções científicas concernem ao que pertencepor si e procedem de premissas de uma tal nature264
za”. “É preciso, portanto, que o termo ém dio pertença ao terceiro termo, por ele próprio (’), e o primeiro termo, ao médio”.265 Atentemos, por outro lado, em que se reafirma, uma vez mais, com ênfase, a constante doutrina do fil ósofo que define uma concep ção 266 ontol ógica da necessidade: o mesmo argumento que, por último, utilizou, considerando as absurdas conseq üências que resultariam, para uma pretensaêci ncia cujas premissasãonfossem necess árias, do perecimento poss ível de seu termo médio, de novo, plenamente, evidencia que não cogita o filósofo de uma mera necessidade do ju ízo científico e que a necessidade caracter ística da ci ência não é estabelecida, nos Anal í ticos , unicamente, no plano das liga ções entre 267 conceitos. Decalcada sobre anecessidade ontol ógica, a necessidade das premissas e da conclus ão do silogismo demonstrativoãoné mais que um desdobrar -se da primeira na alma humanaãeo,numa outra acepção do necess ário aristot élico.268 5.4 Sobre a multiplicidade de causas
Conhecidas as caracter ísticas próprias das premissas cient íficas, torna-se-nos poss ível melhor precisar nossa compreensão da causase crerá, indevidamente, ter um tal conhecimento (julgando-se necess árias premissas que não o são), ou nem mesmo se crer á que as premissas são necessárias, conhecendo-se, simplesmente oqu e da conclusão (através de termos médios) ou o seupor qu ê(a partir de ibid ., l. 14-7 (em que princípios imediatos), ãno, porém, no que respeita à necessidade, cf. acompanhamos a interpreta ção de Ross, cf. nota ad l. 12-7. 264 Ibidem, l. 28-31. a 265 Seg. Anal . I, 6, 75 35-7. 266 Cf., acima, I, 1.1 e n.13 seg. 267 Como pretende S. Mansion, cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.63 seg. Por isso mesmo, sua maneira de criticar as teses de J. Chevalier La notio (in n du n é cessai re chez Aris tote et chez ses pr é dé cesseurs, pa rticuli è rement chez Platon, 1915) ã no nos parece pertinente. 268 Como crê, também, S. Mansion, cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.68 seg. Sobre as diversas acepções de “necessário”, em Aristóteles, cf., acima, I, 1.1 e n.13 seg.
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lidade científica numa questão a que confere o fil ósofo relevo particular, qual seja a que concer neà eventual possibi lidade de haver, ou ão,n 269 em sentid o estrito , múltiplas causas para um mesmo efeito. SuponhaA pertença, imediatamente,Bae a C e que perten mos, assim, que çam estes, respectivamente,Dae E: B será, então, causa deA pertencer a D, assim comoC será causa deA pertencer aE. Nesse caso, ã no haveria, obviamente, conver tibilidade entre efeito e causa, pois,é certo se que, dada a causaB( ou C), segue-se o efeitoA(), dado, entretanto, o efeito, não haveriam de estar necessariamente presen tes todas as suas causas, mas uma ou outra delas, ão-somente. t Ora, em verdade, te270 mos, aí, uma impossibilidade.Com efeito, se a ci ência, como sabemos, prova proposi ções universais e por si e se se relaciona, identicamente, o termo médio com os outros dois termos, um todo ( ), é a causaacha que o efeito segue universalmente e com que seessencialmente ligado: seé causa de perderem as árvores suas folhas a coagula ção de sua umidade, é preciso que haja coagula ção, se umaárvore perde suas folhas e, se h á coagulação naárvore, ela perder á suas folhas. Se a de271 monstração se faz, realmente, por si e não, por sinal ou por acidente, em sentid o não se pode, portanto, admitir uma pluralidade de causas, 272 estrito , para um mesmo efeitodeterminado. Os casos em que pareceria haver mais de uma causa para um mesmo efeito explicar -seão pela existência de homonímia, ou pela especifica ção de um termo médio genérico, ou pela exist ência de relações analógicas entre 273 as coisas. Do mesmo modo, um mesmo termo édio m poderá provar b 269 Cf. Seg. Ana l. II, 16, 98 25 seg. 270 Cf. ibidem,l. 32-8.Acompanhamos,para essa p assagem, ainterpreta ção de Ross, cf. nota ad locum. a 271 Cf. Seg. Ana l. II, 17, com., 99 1 seg. Como nota Ross (cf. sua introdu ção ao comentário do capítulo), retoma-se a questão de II, 16, 98b25-8 e dá-se-lhe um tratamento mais completo. 272 Pela mesma razão, seé possível haver diferentes demonstrações de uma mesma proposição (cf.Seg. Anal . I, 29, todo o cap ítulo), não se trata de uma pluralidade de demonstrações científicas, em sentido estrito. 273 Cf. Seg. Ana l. II, 17, 99a6 seg. Também aqui, acompanhamos, em suas linhas gera is, a interpretação de Ross (cf. sua introdu ção ao capítulo em questão).
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diferentes conclusões, se se tratar de problemas especificamente distintos, mas genericamente êid nticos.274
6 Da indemo nstrabili dad e dos princ í pios 6.1 Proposições primeiras e cadeias de atribuições
Conhecendo, ent ão, que n ão basta partir das premissas mais aceitas possíveis, se não se quer raciocinar apenas dialeticamente ( ), 275 mas se visa, cientificamente, a verdade, e sabedores de que todas as proposições constitu ídas pela ci ência, não menos as premissas que as conclusões, são necessárias e cont êm predicados que se dizem de seus sujeitos,por si , estamos, agora, em condi ções de provar a exist ência de proposições primeiras ou princí pios , istoé, de proposi ções imediatas, absolutamente anteriores, portanto, indemonstr áveis.276 Consideremos, então,277 um termo C, tal que não pertença a nenhum outro e queB lhe pertença diretamente, sem nenhum termo intermedi ário. QueE pertença, do mesmo modo,Fae F, a B. Pode, acaso, uma tal ésrie de predicadosBFE ..., a partir de um sujeito primeiro C, estender-se, ao infinito, nessa dire ção ascendente ( )? E, se tomamos, igualmente, um termoA, tal que nada se lhe atribui,por si , mas que, sem intermedi ário, pertence diretamente a H, e se pertence, do mesmo modo, H a G, G a B, acaso pode uma tal A, estendersérie de sujeitosHGB ..., a partir de um atributo dado se, ao infinito, nessa direção descendente ( )? Finalmente, se A pertence aC e B é termo médio entre eles, suponhamos haver outros termos médios entreA e B, outros, ainda, entre aqueles. É, acaso, possível, haver uma série infinita desses termos m édios? a 274 Cf. Seg. Ana l. II, 15, 98 24-9. b 275 Cf. Seg. Ana l. I, 19, 8118-23; cf., acima, III, 5.2 e n.258. Segund os Anal í ticos que 276 Cf., acima, II, 5.1 e II, 5.2. É nos capítulos 19-22 do livro I dos Aristóteles, finalmente, prova haver princ ípios e premissas primeiras do conhecimento científico. 277 Cf. Seg. Ana l. I, 19, 81b30 seg.
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Ora, é fácil ver278 que formular uma tal questão equivale, precisamente, a perguntar, não somente se se podem estender indefinidamente as demonstra ções (como nos dois primeiros casos), mas, também, se há demonstra ção para toda proposi ção ou se há, ao contrário, termos que, reciprocamente, se limitam, um deles dizendo-se do outro, sem termo m édio: em outras palavras, seáhproposições imediatas e prim eiras . As mesmas quest ões também podem, obviamen279 te, formular-se, a prop ósito de silogismos e premissas negativas. E concernem, ãt o-somente, a termos que seãno reciprocam na atri280 buição, a não ser de modo meramente acidental; por exemplo, se A se atribui aB, no sentido próprio de atribuição ( ), mas a atribuição de B a A é acidental ( ). 281
Principia Aristóteles por estabelecer que é, evidentemente, impossível haver, entre dois termos, um número infinito de termos médios, se a cadeia de atribui ções é limitada nos dois sentidos, ascendente e descendente. Com efeito, se se atribui A a F, mas são infinitos em número os termos médios (que representaremos por B) através dos quais se prova essa atribui A, ção, será necessário, partindo-se de percorrer, no sentido descendente ABF, uma série infinita de termos, antes de chegarmos a F, assim como deveremos, igualmente, percor F, uma série infinita de termos, no sentido ascenrer, se partimos de denteFBA, antes de chegarmosAa. Ora, seé impossível percorrer uma série infinita e uma vez que pressupusemos poder atribuir -seA a F, a cadeia dos termos m édiosé, necessariamente, limitada.
278 Ibidem, 82a6-8. 279 Cf. ibidem, l. 9-14. 280 Cf. ibidem, l. 15-20. Se, ao contrário, sujeito e predicado ãso convertíveis e se reciprocam na atribuição, sem que possa privilegiar-se um dos sentidos da atribui ção sobre o outro, a quest ão da eventual extens ão indefinida da demonstra ção não se coloca,áj que não há, numa prova absolutamente circula r, sujeito nem predicado primeiro nem último. Mas sabemos, tamb l demonstração circularé ém, que, em sentido estrito, uma ta impossível (cf., acima, II, 5.4). Quanto às noções de atribuição acidental e atribui ção em a sentido próprio, cf. a passagem de Seg. Ana l. I, 22, 83 1 seg., que comentaremos adiante. 281 Cf. Seg. Ana l. I, 20 (todo o cap ítulo, que resumimos, aqui, sucintamente).
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Mostra, em seguida, o fil ósofo que, seé limitada, nos dois sentidos, a cadeia de atribui ções numa demonstra ção afirmativa, ser á, tam282 bém, limitada a cadeia de atribui ções numa demonstra ção negativa. A prova faz-se, tomando-se silogismos de conclusões negativas nasêtr s figuras do silogismo e mostrando-se que a introdu ção de um termo médio entre os termos de uma proposi ção negativa requer, sempre, a introdução de uma proposi ção afirmativa: se oúnmero de proposi ções afirmativasé limitado, tamb ém o será o número das negativas. 6.2 Do car áter finito das cad eias: prim eira p rova “lógica”
Estabelecidos esses pontos, passa oófil sofo à demonstração de que em ambos os sentidos, uma cadeia decom proposi es afiré finita, 283 çõ mativas. Come provas de ça por argumentar “logicamente ”,284 285 natureza dialética. A primeira delas mostra, de início, serem em número limitado os predicados que se atribuem“no o queé”:286 eles o são, necessariamente, se é possível definir uma coisa e conhecer sua qüididade, áj que uma série infinita de elementosão n se poderia percorrer. Como, por ém, é preciso, igualmente, mostrar que, tamb ém, não podem ser em ú nmero infinito osatributos que pertencem a uma coisa, ainda queãno fazendo parte de suaüididade, q trat ar-se-á o as sunto de modo mais geral, universalmente ( ).287 288 Uma primeira considera ção preliminar examina a natureza da proposição atributiva, distinguindo três tipos de asserção, a que correspondem, respectivamente, proposi ções como: 1. o branco cami282 Cf. Seg. Ana l. I, 21 (todo o cap ítulo). Dispensamo-nos de reproduzir o detalhe das provas concernentes aos silogismos negativos de cada uma das figuras. 283 Cf. Seg. Ana l. I, 22 (todo o cap ítulo). 284 , cf.Seg. Ana l. I, 21,ad finem , 82b35; 22, 84a7; 84b2. Sobre o sentido da express ão, cf., acima, III, 2.6 e n.136 seg. b 285 Cf. Seg. Ana l. I, 22, com., 82 37-83b31. b a 286 Cf. ibidem, 82 37-83 1. Sobre as rela ções entre“o queé” e a definição, cf., acima, III, 1.1 e n.4 a 6. 287 Cf. ibidem, 83a1. 288 Cf. ibidem, l. 1-23.
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nha, o músicoé branco; 2. o branco é madeira, aquilo grande é madeira; 3. a madeiraé grande, o homem caminha. Ora, diferem bastante esta última modalidade de asser ção e as duas primeiras; com efeito, ao dizer“o brancoé madeira” ou “aquilo grandeé madeira”, não se tomam branco ou grande como sujeitos reais de madeira, mas indicase ser madeira aquilo de que branco ou ande gr ãso acidentes. Do mesmo modo, dizendo“o músico é branco”, indica-se que um e outro termo exprimem acidentes concomitantes de um substrato comum, homem, implicitamente considerado, isto é, queé branco o homem, de que músicoé acidente. Se dizemos, por ém, “a madeiraé branca”, a madeiraé realmente o sujeito que veio a ser branco, ãonsendo outra coisa senão, precisamente, madeira ou uma esp écie de madeira. Somente uma atribui em sentido abção como esta se dir á atribui çãoo,do soluto (), enquanto as outras duas (atribui çã sujeito a seu acidente ou atribui ção de um acidente a outro aciden te) se dir ão atribui çõ es, n ã o em sentido absoluto, mas por acidente ( ).289 Não concernem, obviamente, as demonstra ções científicas senão às atribuições em sentido próprio e absoluto, um predicadoúnico dizendo-se, nelas, de um único sujeito, por pertencer-lhe no“o queé” ou por atribuir-se-lhe segundo algumas das ou290 291 tras categorias. Distinguimos, assim, entre os predicados que significam a essência, significando o queé, precisamente, o sujeito ( ) ou o que ele, parcialmente, é ( ), e os que não significam a ess ência, mas se dizem, sempre, de um sujeito utro, o que não “é”, precisamente, seu predicado, nem uma particulariza ção deste 292 último, istoé: os acidentes, no sentido amplo do termo.Em outras palavras, a atribuição em sentido próprio e não por acidente inclui tanto a atribui ção substantiva como a atribui ção adjetiva. 289 Cf. ibidem, l. 14-8. Não se confundirá, então, a atribuição de um acidente a um sujeito real, queé atribuição em sentido pr óprio, com a atribui ção acidental. 290 Cf. ibidem, l. 18-23. 291 Cf. ibidem, l. 24-35. 292 Cf., acima, III, 1.1 e n.18 a 21.
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Fixadas essas preliminares, vai Arist óteles mostrar, por fim, que uma cadeia de atribui ções é limitada nos dois sentidos, descendente e ascendente, tendo seus limites, respectivamente, na coisa individual 293 e num gênero categorial. Mas mistura, ao mesmo tempo, com esse tema, a prova da impossibilidade de qualquer atribui ção recíproca: pudessem as coisas atribuir-se, umasàs outras, reciprocamente e teríamos algo como umírculo c de atribui ções, em que se ãno poderiam distinguir um ponto de partida e um pontochegada, de constituindo, de algum modo, uma cadeia infinita de atribui ções.294 Ora, não podem duas coisas se r, uma da outra, “qualidade” nem pode haver“qualidade ” de “qualidade”,295 donde a impossibilidade de uma atribui ção recíproca;dir-se-á, com verdade, uma coisa de outra, mas não se atribuir uma á verdadeiramente à outra, indistintamente, 296 em sentido próprio. Com efeito, (a) uma alternativa seria que se atribuíssem as coisas, umaà outra, como ess ência ( ), pondose o sujeito comoêgnero ou diferen ça do próprio predicado. Ora,á jse 297 mostrou que são limitados− e necessariamente, em ambos os sentidos− os elementos no “o queé”: é sempre possível definir as essências e o pensamento n ão pode percorrer umaésrie infinita. Mas, ãno somente por ensejar uma cadeia infin ita de atribui ções e, assim, impedir a formula ção de definições, é impossível a atribuição recíproca no “o que é”; ela oé, também, porque se se atribuem reciprocamente, as coisas, umaà outra, como êgneros, por exemplo, resulta absurdamente que se converte uma coisa em especifica ção de si própria ( a 293 Cf. Seg. Ana l. I, 22, 83 36-b17. Como se tem unanimemente reconhecido, a argumenta ção é extraordinariamente difícil e obscura, impondo-se uma interpretação meramente conjectural. Acompanhamos, com pequena modifica ção, a interpretação geral de Ross, em sua introdu ção ao comentário do capítulo. 294 Cf., entretanto,acima,n.280destecapítulo. 295 Cf. Seg. Ana l. I, 22, 83a36-9. (“qüididade”), a l. 36-7, designa um atributo, em a d l. 36-8), remetendo-nos, com raz qualquer categoria , como observa Ross (cf. nota ão, ao que diz Aristóteles sobre as diferentes acep ções de, em Met. , 14, 1020a13-8. 296 Cf. Seg. Anal . I, 22, 83a39-b10. b b 297 Remete-nos Aristóteles (cf. ibidem, 83 1-2) ao que dissera noíin cio do capítulo, cf. 82 3783; acima, n.286 deste cap ítulo.
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299 ).298 Por outro lado, (b) uma segunda alternativa seria que
se atribuíssem as coisas, uma à outra, reciprocamente, como qualidades ou segundo alguma outra das categorias adjetivas; comoas tod essas determina ções, porém, são acidentes da ess ência a que, enquanto tais, se atribuem, aquela outra atribui ção seria meramente acidental.300 O que significa, obviamente, serem limitada s, no sentido descendente, as cadeias de atribui ções adjetivas,á jque êtm, nas ess ências, seus sujeitos últimos. Mas, tamb ém, não podem ser ilimitadas as cadeias de atribuições, no sentido ascendente.301 Com efeito, tudo quanto se atribui a uma coisa pertence a um dos g categoriais êneros e é, sempre, limitada aérie s de predicados que se podem constituir em A, na cada uma das categorias (se tomamos, como primeiro sujeito, categoriaK e se podemos, portanto, dizer que K pertence aA, a série AK (tanto como a é srie KA), constituída por quantos termos intermediários medeiam a atribui ção deK a A, limitada nos dois sentidos,ãon 302 pode conter , comosabemos, um número infinito de elementos); por 303 outro lado, são em número limitado osêgneros dascategorias. 6.3 Segund a prova “lógica”
Tendo, assim, recorrido, à sua teoria geral da atribui ção304 e à doutrina das categorias, para construir uma primeira dial prova ética de que é finita a cadeia de atribui ções, empreende o filósofo uma segunda 305 prova, também “lógica”, retomando tema queájdesenvolvera, ao 298 Cf. ibidem, 83b9-10. 299 Cf. ibidem, l. 10-2. a 300 Conforme expôs Aristóteles em sua considera 1 seg.; cf., acima, n.288 ção preliminar de 83 e 289 deste cap ítulo. 301 Cf. Seg. Anal . I, 22, 83b12-7. 302 Cf., acima, III, 6.1 e n.281. 303 Cf. Seg. Anal . I , 22, 83b15-6: , donde a impossibilidade de umaçã cadeia infinita de atributos pertencentes diferent esmero categorias. outro lado, a declara o explícita de que os êgneros categoriais ãso a em nú limitadoPor é importante, dada a constante varia ção do número das categorias mencionadas nos diferentes textos Index , p. 378a49 seg.). que a elas se referem (v. Bonitz, 304 Que é resumida, em suas linhas gerais, Seg. em Ana l. I, 22, 83b17-31. b a 305 Cf. ibidem, 83 32-84 6.
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polemizar contra os que recusam a possibilidade de uma ência ci ab306 soluta. Se há demonstração daquelas atribui ções, argumenta o filósofo, a que se podem formular atribui ções anteriores e seãno é possível estar, em relação às coisas demonstr áveis, em melhor estado do que o conhecimento,ãno havendo conhecimento delas sem demonstração;307 se tais coisas, ent ão, nos são conhecidas atrav és de tais outras, não poderemos conhec ê-las cientificamente, sem conhecermos essas outras que lhes ãosanteriores e a partir das quais elas se demonstram, se, também, não estamos, em rela ção a tais antecedentes, em estado melhor do que o conh ecer. Assim sendo, a possibilidade de conhecer alguma coisa, por demonstra ção, de modo absoluto− de possuir, portanto, um conhecimento que ã no seja meramente hipotético −, dependendo de conhecimento de certas premissas, exigir á, forçosamente, a limita ção da cadeia das atribui ções intermedi árias que contém os termos médios através dos quais a conclus ão final se demonstra. Pois, se for ilimitad a a cadeia e senão se detiver ela numa proposição primeira, será sempre possível tomar um termo médio mais elevado e todas as proposi ções da cadeia ser ão demonstráveis. Mas, porqueé impossível percorrer uma série infinita, ã no se conhecerão por demonstra ção as coisas demonstr áveis e, não havendo melhor estado em rela ção a elas que o de conhecer, nada se conhecer á cientificamente por demonstra ção, em sentido absoluto, mas,ãtosomente, por hip ótese. Necessário é, então, que se limite a cadeia de atribuições por uma proposi ção primeira, que se conhecer á, portanto, sob formaãno demonstrativa. Convincente e bem estruturada, ão n se fundamenta, entretanto, a prova nas propriedadesópria da prcoisa científica, por nós já estabelecidas, mas, argumentando de modo geral, Aristóteles procede por uma redu ção ao absurdo:308 uma vez que se aceita haver, em sentido absoluto, ência ci demonstrativa, acei306 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72b5-15; acima, II, 5.3. 307 Cf., acima,cap.II, n.205. 308 A redu ção ao absurdo ou “silogismo do impossível” ( ), uma espécie do silogismo hipot ético (cf.Prim. Ana l. I, 23, 40b25-6),é uma forma de racioc ínio
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tar-se-á existirem premissas primeiras para a demonstra ção, pois, em caso contr ário, nenhuma proposi ção poderia demonstra r-se, em sentido absoluto, como pode mostrar-se. 6.4 A pro va an al í tica
Percorridas as provas “lógicas”, ser-nos-á, agora, poss ível, raciocinandoanaliticamente (), tornar, rapidamente, manifesta a impossibilidade de haver, nasências ci demonstrativas − objeto real de nosso estudo−, uma cadeia infinita de predicados, quer no sen309 tido ascendente, quer no sentido descendente. Para tanto, bastanos recordar que “a demonstração concerne a quantos atribu tos pertencemàs coisas, por si ”310 e que se dizem os atributos“por si” em dois sentidos311 : a) os que figuram no“o que é” das coisas e se exprimem, portanto, como elementos de suasçõ defini es (a multiplicidade e o divisível, por exemplo, que figuram na definição de número) e b) aqueles cujos mesmos sujeitos lhes pertencem, no “o que é”, isto é, aqueles em cujas defini ções comparecem os mesmos sujeitos de que são atributos (como, por exemplo, parímpar, e atributos de ú nmero, que figura como elemento de suas defini ções). Ora, em nenhum desses sentidos poder á constituir-se uma cadeia infinita de atribu i312
. Com efeito, uma tal cadeia é imposs ível, com ções “por si“”por predicados si”, no segundo sentido: se se atribui, por exemplo ímpar a número, um outro predicado aímpar e, assim, por diante, isto significa que haver á um atributo deímpar tal queímpar inferiorà demonstração, afirmativa ou negativa (cf.Seg. Ana l. I, 26, todo o capítulo), e, como todo silogismo hipot ético, concerne ao m étodo dialético (cf.Tóp. I, 18, 108b7-8; 129). Sobre a estrutura ção silogística do“silogismo do impossível” nas diferentes figuras do silogismo, cf.Prim. An al. II, 11-4. 309 Cf. Seg. Anal . I, 22, 84a7-11. 310 Ibidem, l. 11-2; cf., acima, III, 1.3 e n.41 e 42. 311 Cf. Seg. Anal . I, 22, 84a12-7; cf., tamb ém, I, 4, 73a34 seg.; acima, III, 1.1. Arist óteles não retoma, obviamente, em nossa passagem (84a12-7), das quatro acepções de “por si” a distinguidas em I, 4, sen ão as duas que mostrarainteressarà ciência, cf. I, 4, 73 16 seg.; acima, III, 1.2. 312 Cf. Seg. Ana l. I, 22, 84a17 seg.
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figurará em sua qüididade, fato análogo repetindo-se com os termos subsequentes da série, tomados dois a dois. Mas, seé assim, uma vez que“número” pertenceà definição de ímpar, que este pertence à definição de seu atributo“por si” imediato e assim, sucessivamente, cada membro da série pertencerá à definição primeira, pertencendoà definição e qüididade de todos os membros daésrie, os quais se dirão, em sentido próprio, seus atributos: pertencemlhe todos como atributos e pertence-lhes ele a todos, “o que no é”, em perfeita convertibilidade. Ocorrerá, então, se a série é infinita, que um termo infinitamente distanciado do sujeito primeiro conter á, em sua qüididade, desde aquele, todos os infinitos termos que antecedem. o poss í vel que àqüididad e de uma única coisa p erten çam infiniOra,se n ão é tas dete rm ina ções , não pode a s érie ser infinita e haver á de limitar-se, também no sentido ascendente, a cadeia de atribui ções de que tomamos “número” por sujeito primeiro. 313 Não é menos finita elimitada uma cadeia de atribui ções constituída por predicados “por si” no primeiro sentido, pelos que pertencem ao “o que é” de seus sujeitos: tamb ém, aqui, a definição se tornaria imposs ível. Se são, sempre,“por si”, então, os predicados de que a demonstração se ocupa e se ãno podem eles, pelas raz ões expostas, ser em número infinito, limita-seéarie s de proposi ções demonstr áveis no sentido ascendente, limitando-se, tamb ém, por conseguinte, no 314 sentido descendente. E, com efeito, a limita ção da cadeia de atribuições “por si”, numa ou noutra das significa ções dessa express ão, devendo-se, como vimos, à impossibilidade de asüqididades conterem um número infinito de elementos, pouco importa, em verdade, que consideremos umasérie ascendente ou umaésrie descendente, isto é, que consideremos a cadeia de atribui ções, começando por um sujeito primeiro ou por um predicado último: ambas asésries são necessariamente, limitadas − e por idêntica razão. Por outro lado, porque limitadas num e noutro extremo, as cadeias de atribui ções tampouco 313 Cf. ibidem, l. 25-6. 314 Cf. ibidem, l. 26-8.
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Ciência e Dial é tica em Ar ist óteles 315 comportarão, conformeáj estabelecemos, um número infinito de 316 termos médios entre dois de seus termos.
6.5 A existência dos princ í pios e a an álise da d emonstra ção
Eis, então, que, por fim, obtivemos a prova desde á muito h buscada:s ão finitas a s cad eias d emonstrativas que levamàs conclus ões da 317 ciência; o que eq üivale a provar a existência deprincípios () para as demonstra ções, istoé, de proposições primeiras e imediatas, absolutamente anteriores, por isso mesmo indemonstr áveis,318 de onde partem, sempre, as demonstra ções; proposições que exprimem, num intervalo ( ) imediato e indivis ível,319 causalidades imediatas, e que se configuram como elementos ( ) da demonstração.320 Porque nenhum termo émdio vem, nelas, interpor-se entreedicado pr 321 e sujeito e o próprio sujeitoé, imediatamente e por si mesmo, causa de que lhe perten ça o predicado, diremos que a atribui ção (ou nãoatribuição) tem lugar “atomicamente” ()322 e falaremos da indivisibilidade e da unidade de tais proposi ções: “premissa una, em sentido absoluto, é a imediata ”.323 E, como nas outras coisas, tamb ém aqui, o princ ípio é algo simples( ), a unidade no silogismo sendo a premissa imediata, naência ci e na demonstra ção a inteligên325 cia ( ),324 que tais premissas apreende.
315 316 317 318 319
Cf. Seg. Anal . I, 20; acima, III, 6.1 e n.281. Cf. Seg. Anal . I, 22, 84a29-30. Cf. ibid ., l. 30 seg.; cf., tamb ém, I, 19, 82a6-8; acima, III, 6.1 en.278. Cf., acima, II, 5.1 e II, 5.2. a d Prim. An al. I, 15, Cf. Seg. Ana l. I, 22, 84a35; 23, 84b14. Como observa Ross (cf. nota a 35 12), a express ão (distância, intervalo) relaciona-se , provavelmente, com uma representação diagramática do silogismo. 320 E o n úmero de tais “elementos” corresponde ao número de termos médios de que se b serve a cadeia desilogismos demonstra tivos, cf. Seg. Ana l. I, 23, 84 21-2; adiante, IV, 4.6
n.304 cf., tamb ém, acima, II, 3.2 e n.78. 321 eCf. ibid .,al.309; 19 seg. a 322 Cf. Seg. Anal . I, 15, 7933-6. 323 Cf. Seg. Anal . I, 23, 84b35-7. 324 Cf. ibidem, 84b37-85a1. 325 Cf., acima, II,1.3 e n.12.
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Se, ao inv és, porém, de considerarmos os corol ários que se podem tirar de nossa prova “analítica”, sobre ela, de novo, por um momento, nos debru çamos, perguntando-nos como se constr ói, verificamos 326 que ela procede , a partir de resultado j á estabelecido por nosso estudo sobre a natureza daência, ci a saber: que aência ci prova atribuições “por si”, a partir de premissas da mesma natureza. E, se dizemos que uma tal prova procede analiticamente ( ), não é senão pelo mesmo fato de que ela se estrutura de modo adequado à natureza do assunto estudado, isto é, conforma-se aos resultados da a n álise da demonstra ção científica, que o filósofo empreende, nesta segunda parte dos escritos que designa como 327 Por outro lado,é preciso dizer que, com a prova final da exist ência dos princípios indemonstr áveis da ciência, essaan lise chega a seu ponto á culminante, permitindo-nos estabelecer, definitivamente, as condições absolutamente indispens áveis e necessárias da possibilidade de um conhecimento demonstrativo. Tendo, deíin cio, apreendido, ao menos parcialmente, a natureza da ci ência, em refletindo sobre o “comportamento ” das ciências áj constitu ídas,328 empreendemos longa caminhada regressiva, que nos levoudo d emonstrad o ao ind emonstr ável , das propriedades da coisa conhecid a pela ci ênciaàs características próprias do saber anterior quedemonstra a ção científica requer. Plenamente sabedores, por fim, de que h ípios, resta-nos, ent á princ ão, melhor precisar sua natureza e conhecer suas diferentes modalidades . 6.6 Finid ad e da ci ência e finid ad e do real
Antes, porém, de encetarmos essa outra parte de no sso estudo, permitamo-nos umaúltima observação, sobre o princ ípio último de 326 Cf., acima, III, 2.6 e n.137 e 138. a 327 Interpretação, esta, que é, também, a de Mure (cf. nota ad Seg. Ana l. I, 22, 84 18). Analogamente, uma argumenta ção apropriada ao objeto em estudo dir-seá proceder, em ísica, f “fisicamente ” b (, cf.F ís. III, 5, 204b10; C é u III, 1, 298 18; Met. , 10, 1066b26 etc.), em geometria “geometricamente” (, cf. T óp. VIII, 11, 161a35) e assim por diante. 328 Cf., acima, I, 2.1.
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que lança mão o filósofo para concluir sua prova anal ítica da indemonstrabilidade das premissas da demonstra ção. Relembrando, como vimos, a relação entre as atribuições “por si” e as qüididades de predicados e sujeitos das proposi ções científicas, Aristóteles propõe, como fundamento prec ípuo de sua demonstra ção, a impossibilidade de conterem as q üididades um número infinito de elementos, isto é, a limitação das determina ções essenciais, que é a mesma garantia da possibilidade das defini ções.329 Ora, isto não é somente a reafirma ção de que se modela o discurso cient ífico pelo cientificamente conhec ível mas, tamb ém e sobretudo, a explicita ção de que a finidade da demonstração científica é reflexo especular da finidade do real que ela apreende e manifesta. E, com efeito , um dos sentidos em que se limite diz () é, precisamente, o de ess ência e qüididade: limite de nosso conhecimento das coisas, é-o a qüididade, porque limite das mesmas coisas,330 por meio do qual se unifica afinita in dispers ar.331 ão do particul
329 Cf., acima, III, 6.4. Não entendemos, pois, como Ross (veja-se seu coment ário aSeg. Ana l. I, 22,Aristotle ’ s Prior an d Poste rior Ana ly tics , p. 580), que o nervo da argumenta ção resida na mera aceita ção de que sempreé possível definir uma qüididade e de que um ú nmero infinito de elementos naüqididade tornaria a defini ção impossível (ainda que Aristóteles a lance mão, também, deste argumento, por redu ção ao absurdo, em 84 26). Ao contrário, se é sempre possível definir as coisas, é porque são sempre finitas as qüididades e não a podem caber, numaüqididadeúnica, infinitas determina ções, cf. ibidem, 84 21-2. a 330 Cf. Met. , 17, 10228-10. 331 Cf. Seg. Anal . I, 24, 86a3-7.
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IV A multiplica ção do saber
1 Os g êneros da demonstra ção 1.1 A no ção de g ênero cient í fico
Ao provar que as demonstrações científicas concernem aopor si e partem depremissas dessa natureza, “uma vez que pertence necessariamente , em cad a g ênero, quanto pertence por si e a cada sujeito, en1 quanto tal ”, introduzira Arist óteles, ainda que de passagem, uma das mais importantes no ncia, que os cap ções de sua teoria daêci ítulos seguintes, explicitamente, tematizam: açãno o degênero científico, que iremos descobrir intimamente relacionad a com a doutrina dos princípios da demonstra ção, cuja natureza e modalidades nos propomos, agora, estudar . E, por meio dessaoçã n o, nada menos se exprime, como veremos, que a famosa concepção aristotélica do car áter“regional” das ciências particulares, relativamente à esfera de todo o real. 1 Seg. Anal . I, 6, 75a28-9 (somos nós que grifamos); cf., acima,I,II5.3 e n.264.
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1.2 A “passagem ” pro ibid a
Ora, a exist ência de uma tal limita ção “regional”, que vem, assim, circunscrever os sistemas de proposi ções científicas, diretamente resulta daquela mesma prova que oósofo fil empreendeu. Pois, se ééverdade que, em toda demonstra dio ção, “é preciso ...que o termo m pertença ao terceiro termo, por ele pr óprio, e o primeiro termo, ao médio”,2 é-nos lícito, também, dizer, que“não é possível, por conseguinte, demo nstrar, passando de um ênero g a outro, a proposi ção geométrica, por exemplo, por meio da aritm ética”.3 E, com efeito, ao longo de toda uma demonstra ção, nada mais fazemos, como sabemos, senão percorrer a ésrie bem articulada causalmente e encadeada das propriedades que pertencem a um sujeito primeiro, por si , com o qual, 4 em sua totalidade, plenamente se convertem. Em referência a um tal sujeito genérico, diremos, ent ão, ser necess ário que perten ça o termo 5 médio à mesma família genérica () que os extremos, como também, poderemos dizer que “provêm, necessariamente, do mesmo gênero os extremos e os termos édios m ”.6 Chamando, assim, deêgnero () “o sujeito (), cujas afecções () e acidentes por si a demonstra ção prova ”,7 reconhece Arist óteles a presen ça de três elementos em toda demonstra ção: “um é a coisa demonstrada, a conclusão (isto é: o que pertence a algum gênero, por si ); um outro, os axiomas (axiomas são as proposições a partir das quais ( )8 2 Seg. Anal . I, 6, 75a35-7; cf., acima, III, 5.3 e n.265. a 3 Seg. Anal . I, 7, com., 75 38-9. E, com efeito, o conte údo desta proposi ção inicial do cap.7 liga-se, por um (l. 38) ao queacaba de provar o cap ítulo anterior, sobre a necessidade de exprimirem atribui ções por si as premissas da demonstra ção. 4 Cf., por exemplo, acima,III,6.4. 5 Cf. Seg. Ana l. I, 9, 76a8-9. 6 Cf. Seg. Ana l. I, 7, 75b10-1. E diremos, tamb ém, que as proposi ções demonstradas e seus princípios são homog êneos (), cf.Seg. Ana l. I, 28, 87b4. 7 Seg. Anal . I, 7, 75a42-b2. Sobre a no ção “de acidente por ”si, cf., acima, III, 1.1 e n.20 e 21; quanto ao uso de ’ (ou , simplesmente), como sin ônimo de ’ , cf. Bonitz,Index , p.557a8 seg. 8 Discutiremos, oportunamente, o sentido a conferir-seà expressão (lit.:“a partir das quais”), aplicadaàs proposições axiomáticas.
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Ciência e Dial é tica em Ar ist óteles
[subent.: se demonstra] ); em terceiro lugar,o gênero”,9 definindo a unidade de uma ci ência, precisame nte, pela unidade de seuênerog sujeito, istoé, de“todas aquelas coisas que se comp õem dos elementos primeiros e que delesãso partes ou afecções dessas partes,por 10
si”. É assim que, por exemplo, “a demonstração aritmética possui, sempre, o gênero a que a demonstra ção concerne e, de modo semelhante, as outrasêci ncias”,11 a aritmética ocupando-se do ú nmero (e 12 da medida), a geometria, da grandeza (e dos pontos linhas), e cada uma das ci ências, enfim, de seuênero g próprio. Sob esse prisma, pois, chamaremos de ci ência o conhecimento demonstrati vo das propriedades que tem, por si, umênero. g Ora, conceituar , dessa maneira,os gêneros-sujeitos das êcincias equivale, obviamente, a excluir toda pa ssagem da demonstra ção de um 13 gênero a outro, toda Se são diferentes, com 9 Seg. Ana l. I, 7, 75a40-2; cf., tamb ém, 10, 76b11-6;Met. , 2, 997a19-21. a 10 Seg. Ana l. I, 28, com., 8738-9. Cf., tamb ém, Met. , 4, 1055a31-2: . b 11 Seg. Ana l . I, 7, 75 7-8. b b b 12 Cf. Seg. Anal . I, 10, 76 3-5; 76a34-6; 7, 75 3-6; 32, 88 28-9. Sobre a unidade, como princ íTóp. I, 18, 108b26-7; pio do número, e o ponto, como princ ípio da linha, cf., por exemplo, VI, 4, 141b5-9. Quanto ao termo“grandeza” (), emprega-o a terminologia matemática de Aristóteles em vários sentidos, ora de modo gen érico, compreendendo linhas, superfícies e corpos (volume); ora assim designando, ão-somente, t os corpos, ora, mais raramente, como o sentido de comprimentos ou linhas (vejam-seêrefer ncias em Bonitz, Index , p.449a28 seg.). Se a geometria, ent ão, tem, por gênero próprio, a grandeza, isto entender-se-á de modo restrito, com refer ência ao terceiro sentido mencionado, ou de modo amplo, segundo o primeiro dentre eles, conforme se tomem geometria e estereometria (geometria óslida) por duas ciências distintas (como emSeg. Ana l. I, 13, 78b37-8), ou não (como emSeg. Ana l. I, 9, 76a23-4). 13 Cf. Seg. Anal . I, 7, com., 75a38: ; 75b8-11; 9, a 76 22-3: ’ ’ . Por outro lado, nada tem a ver com esta doutrina daincomunicabilid ade dos gêneros, na demonstra ção, o texto deC é u , I, 1, 268a30-b1: ’ , a qual se refere, simplesmente, ao car e de achar-se áter de grandeza perfeita dos corpos à impossibilidade uma dimensão que lhes falte, como nos casos da linha e da super f a exist ície; ência de uma quarta dimensão permitiria que se passasse do corpo para um outro ênero g (i.é: a grandeza de quatro dimensões), assim como se passa da superf ície para o corpo e da linha para a superfície. Taldiz respeito, parece, aoprocesso“psicológico” de conhecimento das grandezas segundo a sua crescente complexidade tanto quanto à sua ordem progressiva de constru ção a partir das grandezas mais simplesão, e nevidentemente, aos processos demonstrativos. A nota Tricot de ,ad locum , é simplesmente contradit ória.
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efeito, os gêneros de duas ciências, comoé, para Aristóteles, o caso da aritmética e da geometria, ãno é possível aplicar a demonstração aritmética aos atributos das grandezas geom étricas... a menos que as grandezas sejamún meros.14 Pela mesma raz ão, não poderá a geometria15 provar que a ci contr ência dos ários é uma só16 nem que o pro17 duto de dois cubos é um cubo. E, também, não provará a geometria, relativamenteàs linhas, atributo qualquer que lhes ãonpertença enquanto linhas e ãno mostrará, pois, que a linha reta é a mais bela das linhas ou que é contrária ao círculo, áj que não pertencem tais atributos às linhas em virtude de seu êgnero próprio ( ), mas em virtude de algo que lhes é comum com outrosêgneros.18 Enfim, “não é possível passar de um gênero para outro êgnero, a não ser por acidente, como por exemplo, da cor para a figura ”,19 um atributo geom étrico não podendo atribu ir-seà corpor si . Mas, se extremos e termos 20 médios não se atribuempor si , são acidentes. Não se poderia ser mais claro quanto à particulariza ção do saber científico, que nos surge, assim, naturalmente “multiplicado” pelos diferentes êgneros que o ser, como tal, comporta e confor me aos quais 14 Cf., Seg. Anal . I, 7, 75b3-6.“A menos que as grandezas sejam números” – o que, manifestamente, não ocorre, para Arist óteles –, os gêneros geométrico e aritmético não se iden-
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tificam. O texto tem, como oda t que probabilidade, sentido pol visa a doutrina êmico matemática da escola plat ônica fazia derivarum as grandezas ideaise das éias-n Id úmeros, a ad locum . cf. Met. A, 9, 99210-19 e a excelente nota de Ross, Cf. Seg. Anal . I, 7, 75b12-4. Incumbindo tal tarefa à filosofia primeira; leia-se, comefeito,Met. , 4 (todo o capítulo), onde se mostra que a contrariedadeé a diferença máxima no interior de um gênero. Donde, imediatament e, decorre que os contr ários são objeto de umaóse mesma ciência, aquela que se ocupa dosêgneros de que eles constituem osólos p da diferença máxima. Que é uma só a ciência dos contr ários é, por outro lado, doutrina constantemente reafirIndex , p.247a13 seg.). mada pelo filósofo (vejam-se os textos indicados por Bonitz, b Ross parece ter razão (cf. nota adSeg. Anal . I, 7, 7513), quando diz que o texto seefere r à proposição aritmética segundo a qual o produ to de dois únmeros cúbicos é um número cúbico e não, ao problema geom étrico ou estereom étrico da construção de um cubo de volume equivalente ao dobro do volume de um cubo dado, como interpreta Tricot, a d locum. Cf. Seg. Anal . I, 7, 75b17-20. a Met . , 7, 1057 26-8. Cf. Seg. Anal . I, 7, 75b11-2.
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se estrutura e se nos manifesta. Metaf E aísica , apontando como tema da sabedoria o ser enquanto ser ( ),21 opõe, efetivamente, a um tal saber universal, que constitui a filosofia primeira, ências as ciparticulares ( ),22 como as ciências matemáticas, que, recortando ) do ser, consideram ( ) uma parte ( -lhe as propriedades:23 todas elas, circunscrevendo ( ) um certo ser e um 24 certo gênero, deles se ocupam. Do mesmo modo, descrevendo, nas Refuta ções Sofí sticas e naRetórica , o dom ínio universal da dial ética e da retórica, opõe o filósofo, aos“comuns” () de que essas disciplinas se 25 ocupam, osêgneros definidos ópr prios a cada sabe r particular. Porque, assim,“proibiu” a na demonstração, mereceu Aristóteles, comoé sabido, a condenação severa de quantos viram, nessa doutrina, um entrave fatal que teria, por longos éculos s – tantos quantos foram aqueles em que o pensamento aristot élico ou, melhor, o aristotelismo medieval, exerceu, bre so os esp íritos, um influxo preponderante –, emperrado odesenvolvimento do pensamento científico e obstado ao surgimento de uma f matemática. Estaé, ísica por certo, uma das opini ões mais difundidas e um dos ju ízos mais comuns dentre o que se ouveê,ecomumente, l sobre a matematiza ção moderna do conhecimentoísico. f Eé, mesmo, um dos mais reputados conhecedores contempor âneos do aristotelismo quem escreve,
mais uma vez repetindo o lugar-comum da historiografia cient ífica: “não é duvidoso que a influ ência persistente de Arist óteles retardará a aparição de uma ífsica matemática, o próprio tipo da‘confusão dos gêneros’”.26 Será correta uma tal aprecia ção sobre o pensamento do filósofo? Ora, parece-nos absolutamente evidente que uma leitura mais atenta dos textos aristot élicos impõe a tais julgamentos um flaa b a 21 Cf. Met. , 1, com., 1003 21-3; 31-2; E, 1, com., 1025 3-4; 1026a23-32; 4, 1028 3-4;, 3, b b com., 106031-32; 10614-6. 22 Cf. Met. , 1, 1003a22. 23 Cf., ibidem, 1. 23-6. 24 Cf. Met. , 1, 1025b7-9. a b 25 Cf. Ref. Sof. 11, 172a11 seg.;Ret. I, 1, com., 1354 1-3; 1355b8-9; 2, com., 1355 25-34. 26 Aubenque, Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.217, n.1.
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27 grante desmentido. Aprofundemos, ent ão, um pouco mais, a doutrina da “passagem” ().
1.3 A “passagem ” permitida, uma contradç i ão aparente
E, com efeito, se é certo que não podemos passar, na demonstração, de um gênero para outro, da í não resulta, entretanto, que a passagem de uma ci ência para outra seja absolutamente imposs ível. E o próprio filósofo, após ter afirmado que cada demonstra ção científica possui seu próprio gênero, a que a demonstra ção concerne,28 continua:“É, por conseguinte, necess ário que o gênero seja idêntico, ou de modo absoluto(), ou de um certo modo(), se a demonstração deve passar(, subent.: de uma êcincia a outra) ”.29 Para exemplificar ciências diferentes que, se não de modo absoluto, ao menos, de um certo modo, concernem ao mesmo ênero, g indica-nos o filósofo que tal fato ocorre com aquelas ências ci cuja demonstra ção se estende aos objetos de outras, por lhes serem estas subordinadas em virtude da mesma subordina das ção de seus objetos aos objetos primeiras: nesse sentido,ão, s de alguma maneira, êid nticos os gêneros-sujeitos de que se ocupam, respectivamente, ótica e geometria, harmônica e aritm ética etc.30 E já tivemos, com efeito, a ocasi ão de referir-nos a essa questão, quando, ao estudar os silogismos“do que” e do porquê, mostramos como as ci ências matemáticas fornecem a fundamentação última e o porqu ê definitivosàquelas outras ci ências que se lhes subordinam, por irem nelas buscar premissas para suas próprias demonstra ções, destarte intimamente associando-se às ciên31 cias mais exatas em que assentam sua ópria pr cientificidade. Assim, 27 Encontramos, no entanto, num excelente opúsculo de divulga ção geral, da autoria de Paul Grenet, intitulado Aristote ou la r aison san s d é mesure , 1962, uma vis ão mais justa do problema 28 29 30 31
em questão: ler-se-á, com proveito, seu cap ítulo III (p.40-73), consagrado às Matemáticas. Cf., acima, IV, 1.2 e n.11. b Seg. Ana l. I, 7, 75 8-9. Cf. Seg. Anal . I, 7, 75b14-7. Cf., acima, II, 3.4.
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ao aplicar-se, por exemplo, a demonst ração geométricaàs questões de ótica, diremos que, nu m certo se ntid o , permanecemos no interior de um mesmo gênero – o gênero próprio da geometria–, na medida em que não pode a demonstra ção geométrica aplicadaà ótica provar, das linhas que considera, propriedades que ãonlhes perten çam enquanto 32 linhas, extremos e termosém dios devendo provir do mesmo ênero. g 33 Ora, uma contradi ção, ao menos aparente, parece, no entanto, opor essa doutrina às explica ções que Arist óteles aduz, um pouco mais adiante. Com efeito, mostrando que um conhecimento cient ífico determinado procede de princ ípios próprios e que, se tamb ém o termo médio pertence a seu sujeito, por si , é necessário que o m édio perten34 ça à mesma fam ília genérica, continua o filósofo:“Se isso não se dá, será como se demonstram as proposi ções de harmônica pela aritm ética”.35 Neste caso, com efeito, ainda que as propos çi ões se provem de maneira semelhante às da aritmética, ocorre uma diferen ça: é que uma ciência prova o“que”, enquanto o porqu ê é provado pela ci ência superior, a que concernem, por si, asafecções que se demonstram: “o 36 gênero-sujeito é diferente ”. Poderá, então, concluir que“a demonstração não se aplica a um outro êgnero, a não ser do modo como se disse aplicarem-se as demonstra ções geométricasàs mecânicas eóticas e as aritm éticas,às harmônicas”.37 Mas como não convir, ent ão, em que, contrariamente ao que,á h pouco, expusera, sobre uma certa perman ência do mesmo gênero, nessas modalidades de demonstra ções matemáticas aplicadas aos eventos ífsicos, o filósofo parece, agora,reconhecer, nesses mesmos casos, uma exce ção à regra geral da impossibilidade de uma de um gênero a outro? N ão somente não nos é, imediatamente, manifesto, se estamos, afinal, ou ão, n em presen ça de gêneros idênticos b
32 33 34 35 36 37
Cf. Seg. Ana l . I, 7, 7517. Cf., ibidem, l. 10-1; acima, IV, 1.2 e n.6. Cf. Seg. Ana l. I, 9, 76a4-9. Ibidem, l. 9-10: ’ ’ Cf. ibidem, l. 10-3. Ibidem, l. 22-5.
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ou distintos, como, tamb ém, admitindo que se opere, efetivamente, uma , surge-nos o problema de torn á-la inteligível no interior do sistema doutrin ário, já que vimos decorrer sua impossibilidade teórica das mesmas caracter ísticas próprias da demonstra ção científica.38 Não nos bastaria, por certo,mitar-nos li à constatação de que o filósofo prevê uma“exceção” para sua doutrina. Nem nos bastar á, também, afirmar, simplesmente, que, “de fato, a ótica não é uma ciência distinta da geometria, nem a harm ônica, da aritmética; aótica e a harmônica são, simplesmente, aplica ções da 39 geometria e da aritm ética, respectivamente ”. Com efeito, todo o problema consiste em justificar,em face da doutrina da , a própria possibilidade de uma tal “aplicação” das propriedadespor si dos gêneros matemáticos a gêneros aparentemente distintos; por outro lado, os textos aristot élicos que, até aqui, temos comentado, em nada nos conduzem a tomar mec ânica,ótica, astronomia etc., como ciências que se confundem com asências ci matemáticas correspondentes. Tampouco ser á correto pretender que se trata, ão-somente, t de uma diferen ça de pontos de vista entre as ências ci em quest ão e que, enquanto“as matemáticas puras estudam as formas, fazendo abstração do sujeito que lhesádexistência” e fornecendo as demonstra ções causais e essenciais, “ao contrário, as ciências que lhes ãso subordinadas estudam o sujeito, a mat éria à qual essas formas matem áticas são inerentes”, observando os fenômenos de que essa matéria é substrato e recorrendo, para explic á-los,às demonstrações matemáticas, fornecendo, destarte, o conhecimento“do que”, cujo porquê é 40 conhecido pelas êcincias superiores. De fato, seé lícito afirmar, em propondo uma tal interpreta ção, que“isso pode fazer-se sem violar o princípio de homogeneidade , uma vez que aspropriedades demo nstradas são de natureza matem ática”,41 não é menos verdade que se 38 39 40 41
Cf., acima, IV, 1.2. Ross, Aristotle , p.46. Cf.S. Mansion,Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.145-6. Ibidem, p.146.
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interpreta mal, desse modo, a doutrina aristot élica do e do . 42 Com efeito, vimos que o mero colecionamento emp írico dos fatos observados, a mera descri ção, por exemplo, dos fen ômenos celestes que constitui a astronomiaáutica, n somente se dir á ciência em sentido extremamente lato, a designa ção deciência do “que” reservandose, propriamente, para a astronomia matem ática que, fundamentando suas premissas menores na observa ção,43 constrói suas demonstra ções recorrendoàs proposições que toma de empr éstimoà geometria ouà estereometria e utiliza como seusóprios pr princípios; a oposi ção fundamental não se estabelece, pois, entre o emp írico e o matemático, mas entre o conheciment o ma tem ático dos fa tos f í sicos e o conhecimento matem ático pu ro . Não compreender, assim, o problema em foco, desconhecendo que o ófil sofo estabelece a hierarquia, ãonentre dois, mas entre três diferentes conhecimentos (a saber: o f empírico, o fíísico sico matemático e o matemático puro)– e é preciso dizer que quase ninguém assim compreendeu44 – é imputar, de algum modo, a Aristóteles, uma como ju sta p os i ção ambígua de duas formas diferentes de conhecimentos “científicos”, distribuídas, respectivamente, entre as partes matem áticas e as partes ísicas f de certasências, ci sem que se possa, devidamente, aclarar sua doutrina e compreender -lhe a intenção. 1.4 A f í sica m atem ática e a doutrina d a “passagem ”
Mas como, então, haveremos nós de aclará-la? Ora, o primeiro ponto a estabelecer e deixar isento de toda d concerne ao pleno úvida reconheciment o, pelofilósofo, da exist ência de ciências físicas mate42 Cf., acima, II, 3.4. 43 Cf., também, Prim. Ana l. I, 30, 46a17 seg., onde Arist óteles distingue a experi ência () astronômica da ciência astronômica e afirma dependerem de uma apreens ão suficiente dos fenômenos as demonstra ções da astronomia. b 44 Ross (cf. nota ad Seg. Ana l. I, 13, 78 34-79a16), viu corretamente a quest ão. Seu coment ário baseia-se na obra de Heath, intitulada Mat hema tics in Aristotle , 1949, citada no fim da referida nota.
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máticas, istoé, de ciênciasf ísicas de que a demonstra ção matemática fazpa rte in tegr ante. Se não bastara quanto á vimos j e discutimos a esse propósito, convencer-nos-ão os Segund os Ana l íticos , de modo ainda mais explícito; com efeito, mostrando que um conhecimento meramente empírico do arco-íris está para aótica, como esta para a geometria, acrescenta Arist óteles:“Pois cabe ao ífsico conhecer o‘que’, o porquê, ao ótico, ao que oé, simplesmente, ou ao que o é, conforme ao conhecimento matem ático”.45 Em outras palavras, óotico, enquantoé, simplesmente, um “físico”, um observador e conhecedor da ômeno empiricamente , conhecerá o arco-íris como um mero fen constatável, possuidor de tais ou quais propriedades; mas, enquanto se diz, em sentido rigorosamente cient ífico, ótico, ele constituirá a ciência matemática do arco-íris. Enquanto meramente “empírica”, a ótica conhece, assim, os eventos naturais, inating íveis para a ciência matemática pura, que ela pr ópria, enquantoótica matemática, istoé, enquanto equipada com a raz ão geométrica, explica segundo as suas reais determina ci asções causais. Do mesmo modo, a verdadeira ência tronômica é ciência que, a meio caminho entre a geometria (ou a estereometria) pura e a astronomia emp írica dos navegantes, conhece, matematicamente, fen ômenos celestes. Digamos, ent ão, sem temor de avan çar temeridades, que, segundo o pensamento aristot f conhecem, tamb élico, tais partes da ísica ém, as propriedades matem áticas de seus objetos. Masçou amos, uma vez mais, o próprio filósofo, que nos diz, num texto importante de sua Fí sica : “... é preciso considerar em que difere o matem ático do ífsico (pois, com efeito, os corpos naturais possuem planosformas e sólidas, comprimentos e pontos, a cujo respeito matem o ático investiga). Além disso, se a astronomia é diferente ou seé parte da ífsica; de fato, é absurdo que seja da compet ência do ífsico conhecer o que é o sol ou a lua, mas que ã no o seja conhecer nenhum de seus acidentes por si, e entre outras raz ões, pelo fato de que os que falam sobre a natureza a 45 Seg. Ana l. I, 13, 79 11-3.
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(), também falam, manifestamente, sobre a figura da lua e do sol e, naturalmente, tamb ém, sobre se são esféricos, ou não, a terra e o cosmo. Ora, também o matemático lida com essas coisas, masãno enquanto cada uma delas é limite de um corpo natural, nem considera ele os acidentes, enquanto ãoosde tais seres. Eis por que os separa (); com efeito, são separáveis () do movimento, pelo pensamento, e nenhum inconveniente nenhuma falsidade resulá, h ta de sua separa ção ... .Mostram-no, tamb ém, as partes maisísicas f das matemáticas, como a ótica, a harm ônica e a astronomia; elas comportam-se, com efeito, em sentido inve rso, de um certo modo, ao da geometria. Pois a geometria investiga sobre a linha ísica, fmas n ão, enquanto ífsica; aótica, por outro lado, investiga a linha matem ática, mas não, enquanto matem ática e, sim, enquantoísica f ”.46 Como se vê, ao mesmo tempo que reconhece, claramente, ser absurdo pretender -se quea Física não conheça as propriedades matemáticas dos corpos naturais, estabelece nosso texto“as quepartes mais ífsicas das matem áticas” consideram as grandezas matem áticas “enquantoífsicas”, istoé, não asseparam – como asmatemáticas puras –, mas tomam-nas o c mo determina ções quantitativas dos seres naturais e, como tais, as conhecem e utilizam em suas demonstra ções. Uma tal apresenta ção da questão não pode, obviamente, querer significar senão que “a astronomia (como aótica e a harmônica), embora habitualmente computada como um ramo especialmente físico da matemática, é realmente um ramo da física”.47 E se, desse modo, uma vez mais se delineia, com grande clareza, o estatuto das ciências físicas matemáticas dentro do sistema aristot élico das ciências, tamb ém se apontam os fundamentos da matematiza ção do mundo físico: é a própria natureza dos mesmos seres matem áticos – tal como o filósofo os concebe– que explica a possibilidade de um estudo matemático dos fenômenos físicos. Com efeito, o mesmo fato de não terem os seres matem áticos uma realidade“separada”, mas de, b 46 F ís. II, 2, 193 23-194a12. 47 Ross, nota ad Fís. II, 194a7-12.
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tão-somente, constitu írem propriedades das coisas ísicas f que a“se48 paração” matemática faz passar ao ato, permitindo, destarte, a constituição de uma ciência que, em si mesmos, os considera, torna também possível “uma extensão da explicação matemática aos objetos físicos ou naturais, na medida em que a quantidade os afeta ”.49 As partes matem áticas daífsica permitem-nos, ent ão, reintegrar no mundo físico sua“verdade” matemática, que as matem áticas puras, isoladamente, conheceram. Mas não haverá, também, maior dificuldade em conciliar essa perspectiva com a doutrina da . É que, mesmo quando utilizadas pelas ci ências físicas, as demonstra ções matemáticas permanecem, sempre, de algum modo, no interior de seus êneros g próprios, uma vez que, ainda que diretamente referidos aos objetos f não ísicos, se lhes aplicam os racioc medida ínios matemáticos senão na mesma em que são aqueles, por sua pr ópria natureza, matematicamente determinados. Assim, por exemplo, óatica não deixa, por um só momento, de considerar as linhas geom étricas, muito embora as considere como linhas geom étricas“físicas”. E, por outro lado, numoutro sentido,é manifesto que nosé lícito falar de mudança de gênero: o raciocínio ótico passa das propriedades das grandezas lineares por si mesmas consideradasàs propriedades da luz e dos raios luminosos que a vista percebe. O que a doutrina da exclui, por ém, é que possa uma ci ência particular , caracterizada edefinida por talou qual gênero determinado, deixar de a ele referir -se e passar para outro ênero, g no curso de seu processo demonstrativo. Neste sentido, ão há,nentão, como falar de exce s que se possa ção para essa regra, nem entendemo argüir esse aspecto da doutrina de menos claro ou menos coerente. 48 Os seres matemáticos, com efeito, presentes“materialmente” (, cf. Met. , 3, a
1078 28-31) nas coisas sens nelas têm, assim, uma realidade meramente íveis,çõ constituindo-lhes as determina es materiais intelig a , cf. Met. potencial, , 10, íveis, a 1036 9-12. 49 Grenet, Aristote , 1962, p.70. Mas erra outor, a a nosso ver, ao pretender (cf. ibidem, p.71) que as ciências como aótica, mecânica, harmônica etc. ã so consideradas, por Arist óteles, partes das matem áticas.
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Se assimé, somente a desatenção aos textos do filósofo explica que se lhe possa imputarualquer q responsabilidade pela longa hiber nação da ífsica matem ática até a sua moderna “descoberta”. Nem pudera ele ter ignorado os estudos que, em seu tempo, nesse campo se fizeram: os trabalhos da Academia, a atividade cient ífica de seus condiscípulos, as investiga ções astronômicas de um Eudoxo, de um Calipo, ... de um Arist óteles!50 Mas, também, não nos escapará que, para a doutrina aristot élica, aquele que parece ser o problema central de toda epistemologia moderna, o da adapta ção permanente das matemáticasà experiência,51 não constituía, realmente, uma fonte de aporias: resolvia-o, sem maiores dificuldades, sua ópria pr concepção dos objetos matemáticos. Toda a agudeza moderna e, sobretudo, contemporânea, daquela quest ão, para o problema do conhecimento,ter-se-á manifestado, entre outras õraz es, a partir do momento em que se julgou não mais poder aceitar-se, como uma explica ção válida da matematiza ção do mundo ífsico, a doutrina aristot élica da “separação”.
2 Os princ í pios pr óprios
2.1 G êneros e princí pios
Vimos, acima, que toda ciência possui um êgnero próprio a que concerne todo o seuprocesso demonstrati vo e cujas afecções () 52 ou atributospor si ela prova, nas conclus ões de seus silogismos. Se toda demonstra g ção se exerce, assim, no interior de um ênero-sujeito e se tudo quanto se demonstra, em última análise, a ele se refere e lhe pertencepor si , é igualmenteóbvio que também lhe são concernentes as mesmas proposi ções primeiras e indemonstr áveis, por onde sabe50 Cf. Met. , 8 (sobre os princípios dos movimentos eternos) e aselucidativas notas de Ross, em coment ário a esse capítulo. 51 Cf. Piaget, Introduction àl’Épistem ologie Gé né tique , 1950, tome I, p.53. 52 Cf., acima, IV, 1.2.
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mos principiar toda demonstra ção,53 cuja necessidade“per-se-idade e ”, 54 igualmente,á jestabelecemos. Em outras palavras: aquelas proposições sobr e o gênero que são primeiras e indemonstr áveis constituem os princípios primeiros de umaência ci demonstrativa. Compreendemos, pios, em cad a gênero, aquelas coisas d e que assim, que, chamando de í “princ n ão é poss í vel provar que s ão ( )”,55 possa o filósofo chamar os mesmos gêneros próprios de princípios próprios ( ) das ciências, tomando o únmero e grandeza, por exemplo, como princ ípios 56 próprios, respectivamente , daaritmética e da geometria.E nenhuma incompatibilidadeáh, por certo, entre chamar-se de princ ípiosàs premissas imediatas da demonstra ção57 e dizer princípios os próprios gêneros, istoé, os sujeitos reais de cujas naturezas ão vas ciências inferir as propriedades que, por si , lhes pertencem. Com efeito , se, enquanto se constitui mediante uma cadeia de silogismos demonstrativos, tem a ci ência seus princ ípios nasprimeiras premissas por onde a cadeia principia, não é menos evidente que, enquanto tais silogismos reproduzem a pr ópria ordenação real das coisas, os princípios-proposições não são mais que a transcri ção, no discurso, dos princípios reais de que derivam seu ser os atributos reais que ên-a ci 58 cia, por eles e apartir deles, conhece. Pois “é comum a todos os 53 Cf., acima, III, 6, onde se provou a existência de princípios indemonstr áveis. 54 Cf., acima, III, 5. a 55 Seg. Ana l. I, 10, com. 76 31-2. Não vemos por que dizer, com Aubenque (cf. Aubenque, Le pr obl è me de l ’êtr e..., 1962, p.55, n.5), que uma tal defini ção negativa do princ ípio exprime, antes de tudo,“l’impuissance du discours humain ”. A indemonstrabilidade dos princ ípios não é mais que a contraparte de sua natureza de proposi ções primeiras e imediatas (cf., acima, II, 5.2), exprimindo, no discurso, a natureza dos êneros-sujeitos; g nesse sentido, não é válido dizer que a defini ção de princípios se constitui por via negativa. 56 Cf. Seg. Ana l. I, 32, 88b27-9. E distinguir-seão, assim, dentre os princ ípios próprios, as primeiras premissas imediatas, umaóspara cada gênero (cf.Seg. Ana l. I, 32 88b20-1), elementos absolutament e primeiros dosêgneros a que concernem as demonstra ções (cf. b Seg. Ana l. I, 6, 74 24-5), istoé, as mesmas defini ções dos gêneros-sujeitos (cf. Ross, nota b
ad Seg. Anal . I, 32, 889-9). 57 Cf., por exemplo, Seg. Ana l . I, 2, 72a7. Logique et m é thode ..., 1939, p.112), 58 Não se deve, pois, dizer, como Le Blond (cf. Le Blond, que “il semble que ce soit plut ôt aux existants[...]qu’Aristote applique plus proprement le terme de principes ”. Nem vemos por que conceder a Mansion Le(cf. jugement d ’ existence... , 1946, p.137),
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princípios ser o elemento primeiro a partir de que algo é, devém ou é conhecido”.59 Patenteia-se-nos, tamb ém, então, por que, desde o princ ípio dos Segun d os An al í ticos , identificava Arist óteles premissas primeiras e princípios apropriados ( )60 e em que sentido afirmava, ap ós enumerar as notas caracter ísticas das premissas da demonstra ção, que “assim, também, os princípios serão apropriadosà coisa demonstrada”.61 E é-nos, agora, permitido concluir que “é manifesto que se ãno pode demonstrar cada coisa ãsen o a partir dos princ ípios de cada uma, se pertence o demonstrado a seu sujeito, enquanto ”.62tal 2.2 Teses, hipóteses e definições
Ora, Aristóteles já nos dera, após enumerar e justificar as notas características das premissas da demonstra ção, uma indica ção preliminar sobre as modalidades de princ ípios, que se podem reconhecer 63 em uso nas ci ências matem áticas: opusera aoaxioma (), princípio que tem necessariamente de possuir quem quer que deva conhecer e aprender o que quer qu e seja , a tese (), princ ípio indemonstr ável mas cujo conhecimentoévio pr não se impõe como condi ção necessária ao conhecimento de uma coisaqualquer , istoé, princípio próprio e não comum, como o axioma, caracterizando-se por sua especificidade e por ser pertinente a umêgnero determinado. E subdividira as teses, distinguind o entreahip ótese (), tese que assume uma qualquer das partes de uma contradi ção,64 “pondo” que algoé ou que não é, que haja, da parte de Aristóteles,“un certain abus de langage à déclarer que le genre est un principe” e que “À strictement parler, le principe est la proposition qui concerne le genre et non le genre lui-m ême”. 59 Met. , 1, 1013a17-9. 60 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 72a5-6; acima, II, 1.2 e n.7.ãNo nos parece, como a Ross (cf. nota ad a
61 62 63 64
apropriados
72 5-7), Arist passagem, por princ tanto os prinótelesosentenda, ípios c ípios próque prios como axiomasnesta ou princ ípios comuns. b Cf. Seg. Anal . I, 2, 7122-3; acima, II, 1.1 e n.1. b Seg. Anal . I, 9, com., 75 37-8. a Cf. Seg. Anal . I, 2, 7214-24; acima, II, 5.2 e n.209 e 210. Lendo, com Ross e Colli, , em Seg. Anal . I, 2, 72a19, em lugar de.
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formulando-se, portanto, apofanticamente, numa proposi ção,65 e a defini ção (), a qual, ainda queãn o se formulando assim, é uma tese (): “com efeito, o aritmético ‘põe’ () que unidadeé o indivisível segundo a quantidade; mas não é uma hipótese, pois o que
é a unidade e a unidade ser ãonsão a mesma coisa ”.66 O que se exige, no que concerneàs definições,é, tão-somente, a sua compreens ão, já que não assumem elas o ser ou oão n ser de coisa alguma, como o fazem as hip óteses, que se encontram nas premissas a partir e das quais 67 as conclus ões se engendram. Em verdade, temos íaum uso técnico dos termos“tese” e “hipótese”, que não coincide com a significa ção que eles habitualmente assumem na linguagem aristot élica comum. Pois o fil ósofo costuma chamar de“hipóteses” todas aquelas proposi ções, independentemente de serem ou ã no demonstradas, que se assumem para que algo se 68 demonstre: é hipótese, assim o que , o que sesubp õe, como 65 A (proposição) definira-se, precisame nte, como uma ou outra daspartes de uma contradição, cf.Seg. Ana l. I, 2, 72a8-9; acima, I, 3.3 e n.169. 66 Seg. Anal . I, 2, 72a21-4; cf. II, 7, 92b10-1: “o que é o homem e o homem sersão coisas diferentes Interpreta da ção (cf.Da Int. 5, com. ”. E como, expressamente, estabelece o tratado 17a8 seg.), todo discurso enunciativo, éisto , apofântico, quer seja afirmativo, quer negativo, não prescinde absolutamente do verbo e,assim, portanto,“o discurso que define o homem, se n ão se lhe acrescente ‘é’, ‘será’, ‘foi’ ou algo semelhante,ãno é ainda um discurso enunciativo o sencoloca, para a ” (ibidem, l. 11-2), donde, imediatamente, decorre ãque definição tomada em si mesma, problema o da verdade ou falsidade (cf. ibidem,a2-3). 4, 17 67 Cf. Seg. Anal . I, 10, 76b35-9. 68 Cf. Bonitz, Index , p.796b59 seg.:“logiceeæ sunt propositiones, sive demonstratae sive non demonstrat æ, quibus positis aliquid demonstratur ”. Comotextos exemplificativo s b b desse uso amplo, cf. Seg. Anal . I, 3, 7215 (v. acima, II, 5.3 e n.218); Ét. Eud . VII, 2, 123530; Cé u I, 7, 274a34; II, 4, 287b5 etc.; é óbvio, por outro lado, que uma tal significação nos a Met. , 9, 1086 permite falar de hip óteses falsas, cf., por exemplo, 15-6. Prende-se, também, a essa significa ção geral de“hipótese” a noção de silogismo hipot ético ( ), cf. Prim. An al. I, 44 (todo o capítulo). Em artigo intitulado “Noção de análise e de hip ótese na filosofia de Arist óteles” (in Re vista d a Faculd ad e de Filosofia e Letras de S. Bento , 1931, mar ço, p.15-40), Alexandre Correia distingue (cf. p.28) ês sentidos tr do termo “hipótese”, em Aristóteles: o sentidoétcnico de princ ípio de uma ciência particular, o sentido comum, de srcem platônica e matemática, queé o da generalidade dos textos aristotélicos, e um sentido geral, conforme ao qual seria sinônimo de , enquanto princ ípio de conhecimento. Mas, a nosso ver, o texto Met. de, 1, 1013a146, com que A. Correa pretende documentar esse terceiro sentido, explica-nos, apenas, que se pode dizer, tamb ém, princípio () aquele primeiro elemento a partir de que uma coisa
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fundamento, a uma argumenta ção. Nem era muito dessemelhante o uso platônico habitual desse voc ábulo69 que, tomando o termo ao vocabulário matemático,70 por ele designava a proposi ção que, provisoriamente, se admite, para proceder ao exame das conseqüências que dela resultam, a êid ntico exame procedendo-se com sua contraditória: e outro não era, como se sabe, o m étodo que a um Sócrates jovem propusera o velho Parmênides para a prática de exercícios dialéticos.71 Consagrando, ent ão, uma nova significa ção para o vocábulo, em reconhecendo que, mercê das exigências próprias da ci ência, suas hipóteses possuem caracter ísticas especiais que, nitidamente, as distinguem das hip óteses comuns, os Segund os Ana l í ticos insistir ão na diferença entre as hipóteses, em sentido absoluto, de que pa rte a ciência, e as hip ótesesad homine m , aquelas proposi ções, por exemplo, que, embora demonstr áveis, não são demonstradas, mas assumi72 das pelo mestre perante um disc ípulo que a elas assente. Tampouco o vocábulo “tese”, por sua vez, designa habitualmente o fundamento indemonstrável da demonstração, mas emprega-se, antes, num sentido bastante amplo, aproximadamente êntico id ao sentido amplo de “hipótese”, istoé, significando quanto se“põe” () como fundamento de argumenta ção.73 se conhece, como, por exemplo, as óhip teses das demonstra ções; em outras palavras: no sentido comum do termo, as hip óteses, em sendo ponto de partida de um conhecimento (para nós ou em sentido absoluto), dir-seão, enquanto tais, princ ípios. 69 Cf., por ex., Tim ., 53d; Fed. , 94a-b; 100a-b; 101d; Parm. , 128d; 136a-c; Fedro , 236b; Sof. , 244c; Prot. , 361b; Rep. VI, 510c etc. 70 Cf. Men. , 86e seg. 71 Cf. Parm. , 135e seg. 72 Cf. Seg. Ana l. I, 10, 76b27-30. Por outro lado, o fil ósofo chama de postulado ( )a proposição demonstr ável que se não demonstra, mas para a qual se postula assentimeno to do discípulo, quando este último não tem opinião sobre a matéria ou tem opinião contrária, cf. ibidem, l. 30-4. 73 Cf. Bonitz, Index , p.327b18 seg., sobre a correspond ência dos vários usos decom os T picos t eses de . Nos ó , Aristóteles chamava de as concepções paradoxais de ófilsofos reputados ou, simplesmente, osíju zos que se sustentam em desacordo com as opini ões comumente aceitas, donde constitu írem todas as teses problemas dial éticos (ainda que nem todo problema constitua uma tese, uma vez que á problemas h sobre os quaisãonse b tem opinião definida), cf. Tóp. I, 11, 10419 seg. Mas, assim definindo tese , estava o fil ósofo
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2.3 As forma s de conhecimento pr é vio
Por outro lado, ao re tomar o exame das diversas modalidades de 74 princípios, Aristóteles o faz em termos que, imediatamente, no s remetemà primitiva distin ção que estabelecera entre as árias v formas 75 de conhecimento pr évio a um saber dianoético, quando distinguira entre o conhecimento preliminar do “que” (por exemplo, do princ ípio do terceiro exclu ído), o conhecimento preliminar da significa ção (por exemplo: o queé triângulo) e o prévio conhecimento de ambas as coisas conjugado (por exemplo,conhecimento o de qu e a unidade é e da significação de “unidade”). Percebemos, imediatamente, agora, que a defini ção, em simesma considerada, correspon de ao conhecimento prévio da significação, para o qual apenas a compreens ão se 76
exige, assim como corresponde a hip tese a um conhecimento épr vio do “que é”. Ora, acrescenta-nos,óagora, o fil ósofo: “Assume-se, pois, o que significam os elementos primeiros eque os destes prov êm; quantoao ‘que é’, é necessário assumi-lo para os princ ípios, prová-lo, porém, para as outras coisas; por exemplo, assumi r o queé unidade ou o que são o reto e o tri ângulo, mas assumir que a unidade e a grandeza são, prová-lo, para as outras coisas ”.77 Assim,78 dentre o queé próprio () a cada ciência, distingue Arist óteles, aqui, entre princípios – como, por exemplo,a unidade, para a aritm ética; o ponto e a linha, para a geometria –, dos quais se assumem “o ser e ser tal coisa ” ( )79 e cujos atributospor si a ciência considera, e, de outro lado, estas mesmasçõafec es por si, 80 cuja significa ção é preconsciente de inovar a terminologia, afastando-se da habitual, em que se diziam teses todos os problemas dial éticos, istoé, quantas proposi ções se tomam por objeto de uma interrogação contradit ória, para fins de exame e discuss ão dialética, independentemente de se conformarem, ouãn o, às opiniões aceitas, ou dehaver, ou não, quem as sustente, cf. b ibidem, 104 34-105a2. 74 Em Seg. Ana l. I, 10. 75 Cf., acima, II, 4.2 e n.101 a 103. 76 Cf. Seg. Anal . I, 1, 71a13. a 77 Seg. Ana l. I, 10, 76 32-6. b 78 Cf. ibidem, 3 seg. 79 Cf. ibidem, l. 6. 80 Cf. ibidem, l. 6-11; 15-6.
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viamente assumida nas defini ções que nos proporcionam a compreensão dos termos, mas cujo “queé” é demonstrado e ãno, assumido por hipótese.É o caso, por exemplo, do par edoímpar, do quadrado e do cubo, para a aritm ética, do irracional, da deflex ão ou da“declinação” ou, ainda, do reto e do tri 81 para a geometria: nesses casos, como em ângulo, 81 Cf. ibidem, 76 a35-6. Com efeito, é doutrina constante de Aristóteles que o geômetra assume, previamente, apenas significa a ção de “triângulo”, mas prova que o tri ânguloé, isto é, que configura uma certa propriedade das linhas geom étricas (cf., além do texto b b indicado,Seg. Ana l. I, 1, 71a14-5; II, 7, 92 15-6; 10, 93 31-2). Tem toda raz ão S. Mansion (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.165, n.31) em ãonconcordar com Mure quando este, em notaa d Seg. I, 1, 71a14, reconhecendo que Arist óteles afirma explicitamente que do triângulo só se assumirá previamente a defini ção, diz, entretanto:“Elsewhereas a rule appears as oneof the subjects of which the geometer assumes the meaning and being and demonstrates properties; here it seems to be instanced as a property, of which only the meaning is assumed . E Mure atribui, ent lhe parece ser, no texto em ão, o que questão, uma outra maneira” de caracterizar o tri ângulo, considerando-o apenas como uma propriedade das linhas geom étricas, ao caráter preliminar do primeiro cap ítulo dos Segundos An al í ticos , julgando provável que Aristóteles esteja tão-somente recorrendo, embora sem explicita ção, à distinção entre assunção tácita e assunção explícita de que o b sujeitoé, consoante o texto de Seg. Ana l. I, 10, 76 16 seg. Tal interpreta ção levará Mure a b Seg. Ana l. II, 7, 9215-6, de modo extremamente artificial, entender um texto como o de traduzindo ’ [subent.: o triângulo] por “but th at it is possessed of so me attribute h e prove s ”; sua interpretação é, aliás, aceita, sem discuss ão, por Le Blond (cf. Logique et m é thode ..., 1939, p.116, n.1; 182 e n.1), mas S. Mansion reclamaloc (cf. . cit .) referências mais precisas, que ãonencontra, para “oelsew here ” de Mure. Ross, por ém, que Seg. Ana l. I, 1, 71a14-5 (cf. comenta, quase com palavrasêid nticasàs de Mure, o texto de a a nota ad 1.14), julga encontrar (cf. nota ad 10, 76 34-5), no texto de 4, 73 34-7, istoé, na passagem em que o fil ósofo define o primeiro sentido de “por si” (’, cf., acima, III, 1.1 e n.4), uma indica ção de que poderia o tri ângulo propor-se como um exemplo ed , de sujeitos primeiros assumidos pela geometria. Ora, verdade, em o fato de aparepor si , por ser um elecer o triângulo, nesse texto, como sujeito a que pertence a linha, mento de sua defini ção, a nenhum momento obriga que se considere ele como um princípio primeiro da êcincia geométrica; com efeito, basta atentarmos para o segundo sentido de “por si”, que o filósofo, logo em seguida, define (cf., acima, III, 1.1 e n.8), para verifipor si , no segundo sentido, uma vez carmos que quantos atributos pertencem a uma coisa que pertencem seus sujeitos a suas mesmas defini ções, explicitar-se-ão, nestas, como sujeitos a que se dir ão pertencerpor si , no primeiro sentido, os mesmos sujeitos reais de que são atributos. Ora, a interpreta ção de Ross obrig á-lo-ia, por coer ência com sua posi ção, a converter todos esses atributos “por si” (no segundo sentido) em sujeitos pri meiros da ciência, tal como fez com o tri ângulo, o queé, evidentemente, absurdo. Tampouco estraa nharemos, ent ão, que o tri ângulo apare ça, emSeg. Ana l. II, 2, 90 13 (texto que Ross poderia ter sido tentado a invocar emfavor de sua interpreta ção), como um sujeito ( ) sobre o qual se pergunta, como sobre a terra, o sol, a lua ou a noite, se é, em ele sentido absoluto ( ); de fato, o próprio exemplo da noite, que,como diz com acerto
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todos os semelhantes, principia o matem ático por definir tais termos, para, em seguida, mostrar que lhes correspondem entes reais, ções afec por si dos gêneros que estuda. E podemos dizer “que haverá, portanto, demonstração do ‘que é’, o que, precisamente, fazem, tamb ém, as ciências, atualmente. Comefeito, o geômetra assume o que significa o triângulo, mas prova que é” ele .82 Nada impede, por ém, que possam as ciências omitir algumas dessas assun ções iniciais, ãno assumindo, explicitament e, por exemplo, que o gêneroé, quando istoé manifesto, como no caso do frio e do quente ,en ão assumindo, tamb ém, as signi83 ficações das afec ções a serem demonstradas, se elas ão evidentes. s 2.4 Solu ção de uma falsa a poria
Alguns textos aristotélicos poderiam,é certo, parecer-nos,à primeira vista, embara çantes, em face dessa subdivis ão dos princípios próprios ou teses em hip óteses e definições. Com efeito, n ão nos diz o filósofo, nos mesmos Segund os Ana l í ticos , que“os princípios das demonstrações são definições, das quais se mostrou anteriormente que não haverá demonstra ções”,84 sem nenhuma refer ência aparenteàs hipóteses? E, quando, na Metaf í sica , se compara aêgnese do silogismo com a geração em geral (natural, art ística ou espontânea), é o mesmo discurso da q üididade85 que se toma como princ ípio do conhecimento:“Por conseguinte,como nos silogismos, a essência () Le jugement d ’ existence ...,1946, p.164), Arist S. Mansion (cf. óteles jamais poderia considerar uma essência, quando a seq üência do mesmo textoêv, no eclipse, um atributo, demonstra, suficientement e, que aquela pergunta sobre“se o é” se põe a respeito de uma coisa qualquer , sujeito ouatributo, independenteme nte da categoriaa que perten ça e de sua situação de anterioridade ou posterioridade, numa determinada esfera do real-e, por tanto, na ci ência correspondente. 82 Seg. Ana l. II, 7, 92b15-18. A tradução de Tricot, que segue a de Mure, é, como nota, com razão, S. Mansion, totalmente inaceit ável (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.165, n.31). b ad Seg. Anal . II, 7, 92 Veja-se, também, em Ross (cf. nota 16), a contesta ção da interpretação de Mure. 83 Cf. Seg. Anal . I, 10, 76b16-20. 84 Seg. Anal . II, 3, 90b24. 85 Sobre a definição como discurso daüqididade, cf., acima, cap.III, n.6.
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é o princípio () de todas as coisas; de fato, do ‘o queé’ provêm os silogismos,íatêm início as gera ções”.86 Também o elogio de Sócrates, por ter sido o primeiro a procurar, sistematicamen te, defini ções universais, parece vir confirmar o mesmo privilégio da definição: “Aquele [subent.: Sócrates], porém, como era razo ável, buscava o ‘o queé’, pois buscava construir silogismos e‘ooqueé’ é o princípio dos silogismos ....Duas, com efeito,ãso as coisas que se atribuiriam, com justiça, a Sócrates: os argumentos indutivos e oém todo de definir universalmente; ambas estas coisas, com efeito, concernem ao princípio da ciência”.87 Se todos esses textos, por ém, privilegiam a defini ção como princ ípio da ciência, sem nenhuma refer ência explícitaà presença das hipóteses, ocorre, por outro lado, que, tendo definido o íprinc pio como premissa imediata da demonstra ção e chamado de 88 cada uma das partes da contradi ção, Aristóteles mostrou-nos que entende como proposi ções que assumem uma das partes da contradição tão-somente as hip óteses,89 com as quais ãno confunde as definições:90 sob esse prisma, pareceria, ent ão, que são, desta vez, as definições que têm seu caráter de princípio científico obscurecido. Mas não é difícil ver que se trata de uma falsa aporia. Com efeito, se lemos, atentamente, o texto em que descreve ósofo o filde que modo nos são previamente conhecidas ( ) as premissas da demonstra ção científica,91 verificamos que, dizendo serem as premissas anteriormente conhecidas tanto do ponto de vista da compreensão quanto do ponto de vista do “que é”, indica-nos Arist óteles,ipso facto , ter em vista premissas primeiras ou prin cípios que se formulam como proposições queconjugam o “o queé” e o “que é”, istoé, que se apresentam sob a forma deóhip teses e defini ções fusionadas , assumindo, por exemplo, que os gêneros-sujeitoss ão as suas respectivas 86 87 88 89 90 91
Met. , 9, 1034a30-2. Met. , 4, 1078b23-30.
Cf. Seg. Ana l. I, 2, 72a7 seg.; acima, II, 5.1 en.198; I, 3.3 e n.169. b Cf., acima, IV, 2.2 e n.64 e 65. Cf., também, Seg. Ana l I, 19, com., 81 10 seg. Cf., acima,IV, 2.2 e n.66 e 67. Cf. Seg. Anal . I, 2, 71b31-3; acima, II, 4.2 e n.97; 100 a 103.
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qüididades. Se, em si mesmas con sideradas,ãso as definições meros discursos significativos do“o que é”, desprovidos de valor apofântico,92 às definições que as ci ências utilizam como princ ípios vêm sempre associar-se as ó hip teses que assumem o ser daquelas mesmas coisas cujoser tal coisa as defini c iamente ções exprimem; porisso mesmo,ontrar ao que ocorre com as defini ções das afecções por si, cujo“que é” não 93 assume a ci convertem-se tais defini ência, mas demonstra, ções em teses , no sentido forte do termo. Quanto àquelas outras, como as definições de triângulo, par eímpar, quadrado e cubo etc., desempe nham elas papel bem mais modesto,ãn o se constituindo princ ípios da demonstração; nada mais são que uma explicita ção, por certo conveniente e, por vezes, mesmo necess ária, da mesma linguagem que a demonstração emprega:é útil, por exemplo, nas matem áticas, conhecer previamente, com exatid ão, a significação a conferir-seàqueles termos há pouco mencionados, antes de empreg á-los nos silogismos que vão provar e“construir” as realidades matem áticas que eles designam.94 Tais defini ar-se-ão, então, subsidiariamente, ções nominais utiliz ao lado dos princ ípios, quando seu uso se fizer necess ário, por razões de mera comodidade ou de exposi ção didática. Compreende-se, pois, que se possa dizer serem çõ defin i es os princípios da ciência, sem que nos venha causar aporia a êaus ncia de referência explícitaàs hipóteses:é que Aristóteles se refere aosprimeiros princípios, onde n ão se justap õem as hipótesesàs definições, mas 95 com estas se fundem; do mesmo modo, entendemos que se definam todos os princípios como proposi ções, assumindo, sempre, portanto, 92 Sobre a distinção que Arist óteles estabelece entre as fun ções significativa e apof ântica ou judicativa da linguagem, cf. Aubenque, Le probl ème de l ’être..., 1962, p.106 seg. 93 Cf., acima, IV, 2.3. 94 Cf. S. Mansion,Le jugement d ’existence ..., 1946, p.204, n.158. 95 Embora, também, se sirvam as êcincias de hip óteses que não correspondem diretamente a definições, comoé o caso de todas as proposi ções imediatas outras queãno os primeiros princípios; sobre a exist ência de um elevadoúnmero de tais proposi ções, imprescind íveis ao progresso da demonstração, cf., adiante, IV, 4.6 e n.304 a 309.áAli s, já o mesmo fato de haver princ ípios negativos (cf.Seg. Ana l. I, 15 (todo o cap ítulo); 23, 84b28-31 etc.) pareceria bastar para evidenciar a exist ência de hipóteses não conjugadas com defini ções.
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uma das partes da contradi ção: é que as mesmas defini ções se assumem como predicados de seus definienda . Dizendo, ent ão, por exemplo, que“a unidadeé o indivisível segundo a quantidade”, assume-se, ao mesmo tempo, que a unidade e o que é a unidade: tese a inicial, priné cípio da ciência aritmética, reúne em si mesma, intencionalmente, defini ção e hip ótese . Exprime-se, assim, na unidade de ó um discurso, s a unidade do mesmo pensamento que faz, ao mesmo tempo, evidentes, o“o queé” e “se é”.96 E não nos estranhar á, portanto, que se refira aMetaf ísica às ciências que assumem, como hip ótese, o“o queé”97 para, dele partindo, demonstrar os atributos dos êneros g a que concernem.98 Os mesmosSegund os An al íticos poderão dizer-nos:“Todas as demonstra ções, manifestamente,õem p como hip óteses e assumem o ‘o que é’”.99 E não parece, finalmente, sen ão muito natural que, assim, seja. A demonstração científica, com efeito, apresentou-se-nos como um encadeamento de proposi ções necessárias epor si a partir de proposi ções primeiras dessa mesma natureza, absolutamente anteriores e indemonstráveis, em que o predicado se diz, imediatamente, do sujeito, num intervalo indivisível,100 sem que nenhum termo m édio venha interpor-se entreo predicado e um sujeito que é, por si mesmo e imediatamente, causa de que o predicado dele se diga. E porque se processam todas as demonstra ções noâmbito interno deêgneros de96 Cf. Met. , 1, 1025b17-8. 97 Cf. ibid ., l. 11-2: . 98 Cf. ibid ., l. 10-4. O texto op õe, às disciplinas propriamente cient íficas e mais exatas, outras que, procedendo mais“frouxamente”, fazem evidente, em indicando-o à simples percepção, o queé o gênero a que concernem e de cuj as propriedades se ocupam; Alexandre de Afrodísio (apud Ross, cf. notaad l. 11) aponta, como exemplo de tais disciplinas, a a medicina. Cf., tamb ém, K, 7, 1064 4 seg. b 99 Seg. Ana l. II, 3, 90 31-2: ’ Assim, as matem áticas assumem, simplesmente,“o queé” do ímpar, mas põem, ibid ., l. 32-3. Em fun como hipótese, o“o queaos unidade, o geral é” datextos ão da interpreta que cremos impor-se que cf. vimos comentando, çjulgamos dever çã traduzir , no texto acima, pelo sentido forte de “pôr como hipótese”, conformeà definição técnica de hip ótese, emSeg. Anal . I, 2, 72a20; para um usosemelhante de , cf. II, 9, 93b23-5. 100 Cf., acima, III, 6.5 e n.317 a 325.
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101 terminados, a estes h ão, também, de respeitar as primeiras premissas imediatas das demonstra ções,102 que outras n ão serão, então, senão as defini ções-princípios, conjugadas com as hip óteses correspondentes, que atribuem aos êgneros-sujeitos, que afirmam ser , suas
mesmas qüididades. Tomando, desse modo, “ooqueé” por princípio, as demonstrações científicas percorrerão as séries limitadas de quantos atributos pertencem, por si , aos sujeitos gen éricos, por decorrerem de suas naturezas ou essências, que as definições iniciais explicitaram. Se, por outro lado, recor damos as duas acep ções de“por si” que concernemà ciência,103 patenteia-se-nos, logo, que se dir ão “por si” os predicados das premissas primeiras, no prim eiro sentido distinguido pelo fil ósofo, istoé, como elementos das üqididades dos 104 sujeitos a que se atribuem. Por outro lado, as afec ções por si dos gêneros que os silogismos daência ci demonstram, intimamente ligadasà natureza de seus sujeitos, da qual decorrem, configuram os atributos por si no segundo sentido, tendo seus mesmos sujeitos presentes em suas defini ções.105
3 Os axio ma s ou princ í pios comuns
3.1 O terceiro elemento da demonstra ção
Se o saber cient ífico se nos apresenta, como vimos, “multiplicado” segundo diferentes êcincias, que correspondem aêneros g distintos, cujas propriedades por si elas demonstram, a partir de princ ípios 101 102 103 104
Cf., acima, IV, 1.2. Cf., acima, IV, 2.1. Cf., acima, III, 1.2. O que, obviamente, não significa que n ão venha a ciência a utilizar tamb ém, como premissas, defini ções de afecções por si anteriormente demonstradas, isto é, proposições em que se dirão os predicados de seus sujeitos, por si , nopr im eiro sentido, como elementos da qüididade. 105 O estudo preciso das relações entre a defini ção e a demonstra ção, que Aristóteles empreende no Livro II dosSegundos An al íticos (cf., adiante, cap.V), esclarecer á, totalmente, o ponto em quest ão.
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próprios explicitados como defini ções e hipóteses, um terceiro elemento aparece, entretanto, nas demonstra ções, ao lado do êgnero e da coisa demonstrada, constitu ído pelos axiomas ( ),106 pelos )107 ou, “axiomas chamados de comuns” ( mais simplesmente,“princípios comuns” ( )108 , isto é, por aquelas proposições “chamadas de axiomas, nas matem áticas”,109 106 107 108 109
Cf. Seg. Ana l. I, 7, 75a40-42; acima, IV, 1.2 e n.9. b Seg. Ana l. I, 10, 76 14. Seguimos a maneira de traduzir de Colli ad locum (cf. ), quepreferimos. Cf. Seg. Anal . I, 32, 88a36. Cf. Met. , 3, 1005a20. Mais uma vez, temos um claro ind ício de como as matemáticas constituíram o suporte da reflex ão aristotélica sobre a ci ência, que delas confessadamente retira os mesmos termos écnicos t com que designa os elementos da demonstra ção científica. Observe-se, por ém, que essa significa ção de princípio comumàs ciências, tomado de empréstimo à linguagem matem ática, não é a única que possui o termo no vocaTópi cos atestam um uso dial bulário da ól gica aristotélica. Com efeito, os ético do vocábulo, conexo com o do verbo , quando significa“crer justo”, “conveniente”, portanto “exigir”, “reclamar o assentimento ” do interlocutor ao que se lhe prop õe, à nossa, a a cf., T óp.VIII, 3, 159 7; 13, 1633 etc. Nesse sentido, é, praticamente, sin ônimo de pet (cf. o usoétcnico desse verbo, designando ai ção de princ ípi o ou de contr ários , em T óp. VIII, 13, 162b31, 34; 163a14, 23; Ref. Sof. 5, 167a37; 27, 181a15 etc.).Axioma era, então, no vocabul ário dialético, a premissa do silogismo, enquanto se solicit ava para ela o assentimento do inter locutor, a fim de provar e concluir, í, adaprópria tese, cf.Tóp. VIII, 1, 156a23-24: ; 3, 159a4; Ref. Sof. 24, 179b14; axioma era, pois, no sentido etimol ógico do termo, um pos tu la d o. Tal uso dial ético, provavelmente originário, terá sido tomadoà linguagem dial ética, pelas matem áticas, para designar seus princ ípios comuns, cuja aceita ção inicial se postula. E Arist óteles, que conhe-
ceu e fez uso, como vimos, da acep do voc bulo, ter-lhe- também conferido, ção dial ética seguindo o exemplo das matem áticas, uma significa çãoá mais ét cnica áe limitada nos Segundos Anal í ticos , para designar exclusivamente os princ ad Prim. ípios comuns. Colli (cf. nota a Anal. II, 11, 62 12-17), que cr ê, com razão, a nosso ver , dever buscar -se no emprego dial ético do termo “axioma” a srcem última da significação técnica que lhe empresta a teoria aristotélica da ciência, não faz, no entanto, nenhuma men ção do emprego matem ático do termo, que nos parece ter mediado entre a primitiva significa ção dialética e a noção Prim aristotélica de princ ípio comum universal. Por outro lado, o fato de oseiros Ana l íticos a utilizarem em II, 11, 62 11-17,, ao lado do verbo, na sua primeira acep ção dialética, não invalida nossa tese daquela media ção nem testemunha,a nosso ver, de nenhuma evolu ção interna daólgica aristot élica, como pretende Colli. Quanto aoávoc bulo [lit.:postu la d o], que osTópicos ignoram e osSegund os Ana l íticos introduzem (cf. I, 10, 76b30-34; acima, n.72 deste cap ítulo), aplicado antesà esfera do ensino queà da ciência propriamente dita, ele guarda de algum modo o primitivo senti do dialético de “axioma”, já que designa a proposi ção para que se pede a aceita ção do estudante, ainda que não tenha opini ão a respeito ou tenha, mesmo, opini ão contrária. Somente em Euclides, parece, passa a significar, paralelamenteà expressão , certo tipo de pressuposi Prior an d Posterior Analy tics , Introduction , p.57. ções básicas da ci ência, cf. Ross,
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“opiniões comuns” ( )110 que a Metaf ísica também designa como“princípios demonstrativos ” )111 ou “princípios silogísticos” ( ).112 Porque comuns, tais princípios podem, ent ão, ser idênticos nas diferentes demonstra ções.113 Ocorre, com efeito, que “dentre as proposi ções que se utilizam nas ciências demonstrativas, umas ão pr s óprias() a cada ci ência, outras são comuns ( )”.114 Como exemplos de princ ípios comuns, apontanos Aristóteles o de n ão-contradição (“não ser possível afirmar e negar 115 ao mesmo tempo ”), o do terceiro exclu ído (“de toda coisa a afirma ção ou a nega çãoé verdadeira ”)116 e o princípio“dos restos iguais ” (“se se subtraem quantidades iguais de quantidades iguais, ão iguais s os restos ”).117 Mas indica-nos, tamb ém, por alus ão, ainda que sem formul á-los, a exis118 tência de outros princ ípios da mesmanatureza. 3.2 “Comuns ” e axio ma s, dialé tica e ciência d o ser
Em verdade,“todas as disciplinas servem-se, tamb ém, de certos 119 elementos comuns ”, que “seguem” os e são tais que nada impede se conhe çam eles, em desconhecendo-se tal ou qual arte, qual a necessariamente se desconhece, entretanto, se elesãonse conhecem.120 Numerosos ãso esses elementos que se dizem, identicamente, de todas as coisas e, quais as nega es, n o constituem uma natureza ou um gênerodeterminad o.121 Eis,çõ tambéãm, por que se torna possível 110 111 112 113 114 115
116 117 118 119 120 121
Cf. Met. , 2, 996b28; 997a21. Cf., ibidem, 996b26. Cf. Met. , 3, 1005b7. Cf. Seg. Anal . I, 7, 75b2-3. a Seg. Anal . I, 10, 76 37-8. a Cf. Seg. Ana l. I, 11, 77 10;Met. , 2, 996b30 (“é impossível ser e não ser, ao mesmo tempo ”); b para uma formula 34ção mais completa do princ ípio, cf.Met. , 3, 1005b19-22; K, 5, 1061 1062a2. b Cf. Seg. Ana l. I, 11, 77a22, 30; 32, 88 1; 1, 71a13-4;Met. , 2, 996b29; , 7, 1011b24. a b a Cf. Seg. Ana l. I, 10, 7641; 20-1; 11, 77 30-1;Met. , 4, 1061b19-20. a Cf. Seg. Ana l. I, 11, 7731: ; cf., também, Met. , 2, 996b30-1. a Ref. Sof. 11, 172 29-30. Cf. ibidem, l. 25-7. Cf. ibidem, l. 36-8.
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o surgimento de umaécnica t geral, n ão demonstrativa, de examinar sobre todas as coisas, independentemente de conhecimentos espec í122 123 124 ficos, a peir ástica ou crítica, que é parte da dialética. Ora, dentre tais, dá-se o nome de“axiomas” àqueles que, revestindo o caráter de princ , possuir-se, ípios silogísticos, dever ão, necessariamente 125 para que se estude o que quer que seja, proposi ções que são, por si mes126 mas, necess proposiárias e quese devem, necessariamente, aceitar, 127 princípios ções primeiras a partir das quais () se demonstra, imprescind íveis, portanto, ao processamento de toda demonstração.128 “Todas as ciências demonstrativas servem-se dos axiomas ”,129 “todos deles se servem ”,130 são eles as“opiniões comuns a partir das quais todos demonstram ”.131 Condições de toda e qualquer demonstra ção, “pertencem, com efeito, a todos os seres eãno, particularmente , a um gênero determinado, separadamente dos outros. E todos deles se servem porque pertencem ao ser enquanto ser e cada ênero g é”.132 O que equivale a dizer que“pertencem a todas as coisas, enquanto elas ão (pois s istoé o 133 que lhesé comum)”. Conhecer um axiomaé, portanto, conhecer uma propriedad e do ser enquanto ser, conhecer, de uma proprie dade 122 Cf. ibidem, 172a39-b1; 9, 170a38-9. 123 Cf. ibidem, 11, 172a21 seg. 124 Cf. ibidem, 171b4-6; 8, 169b25; 34, 183a39-b1. E, graças aos“comuns”, organizando os seus t ópi cos (, cf.Tóp. I, 18, 108b33 etc.), pode a dial ética “raciocinar silogisticamente sobre todo problema proposto, a partir de premissas aceitas ” (T óp.I, 1, 100a19-20). a 125 Cf. Seg. Anal . I, 2, 7216-8. Tal car áter universal falta, precisamente, às teses ou princ ípios próprios, cf. ibidem, l. 14-6; aci ma, IV, 2.2 e n.63.ê-se, V por outro lado, queãon podemos concordar com Hamelin, quando toma a express ão como mero sinônimo de , cf.Le syst ème d ’ Aristote , 1931, p.247. 126 Cf. Seg. Anal . I, 10, 76b23-4. 127 Cf. ibidem, l. 14-5. 128 Cf. Met. , 2, 997a19-21: “[...] se é certo que toda ciência demonstrativa considera, a respeito de um certo sujeito, os atributos por si, a partir das õopini es comuns”. 129 Ibidem, l. 10-1. 130 Met. , 3, 1005a23-4. 131 Met. , 2, 996b28-9; cf., tamb ém, 1, 995b8; Seg. Ana l. I, 1, 77a27-8. a 132 Met. , 3, 100522-5. 133 Ibidem, l. 27-8.
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do ser enquanto ser,que ela é( ).134 E seu mesmo caráter comum e universal, que os faz de todosnhecidos, co explica que ãonprecise a ciência assumir, explicitamente, a significa ção dos axiomas que 135 utiliza e cujo“que é” assume: o que cada um deles significa nos é sempre claro e as diferentes disciplinas os utilizam como princ ípios 136 familiares. É óbvio, então, que não serão os axiomas objeto de inda137 gação de nenhuma êcincia particular e que cabe seu estudo à ciência do filósofo, que considera os atributos por si e os mais firmes prin138 cípios dos seres enquanto seres. Se não coubera ao fil ósofo estudar os axiomas, a quem mais caberia, se ã eles o o que s h á de mais universal 139 e os princípios de todas as coisas? Advirta-se, entretanto, que, se os axiomas são comunsàs diferen( ’ tes ciências, sua aplica d analogicamente ção a cada uma delasá-se ),140 isto é, de modo limitado e proporcional, na exata medida do que é útil () e suficiente () para cada sujeito genérico.141 Assim, o princ ípio “dos restos iguais ”, permanecendoformalmente idêntico, poder á formular-se com diferent e conteúdo ma134 Cf. Seg. Anal . I, 1, 71a14-5. Compreendemos, assim, que, porque os xiomas a exprimem propriedades que pertencem ao serenquanto ser, possa o fil ósofo falar de seu“que é”, como a respeito de qualquer outro atributo, sem queecisemos pr estranhar suas expressões, cf., acima, cap.II, n.103 (sobre a tradu ção de por “que é”, cf., acima, cap.I, n.173). Assim, n ão podemos aceitar a afirma ção de S. Mansion de que, “quand Aristote parle de l’existence du principe du tiers exclu, cela ne peut ègu re s’entendre que de sa ad verité, de sa valeur ” (Le jugement d ’ existence... , 1946, p.137). Tampouco Ross (cf. nota Seg. Ana l. I, 1, 71a11-7) atenta em que o “que é” dos princípios comuns se diz em sentido próprio, referindo-se a uma propriedade do ser. 135 Cf. Seg. Ana l. I, 10, 76b20-1. 136 Cf. Met. , 2, 997a3-5. a 137 Cf. Met. , 3, 1005 29 seg. Se osísicos f pretenderam deles ocupar-se, acrescenta Arist óteles, foi porque imaginaram que suaêci ncia e investiga ção dizia respeito a toda a natureza e a todo o ser. 138 Cf. ibidem, l. 21-2;1005b5 seg. Sobre a êcincia do ser enquant o ser, cf. os textos indicados acima, n.21 deste cap ítulo. 139 Cf. Met. , 2, 997a12-5. 140 Cf. Seg. Anal . I, 10, 76a38-9. 141 Cf. ibidem, l. 39-40, 42; 11, 77a23-5;Met. , 3, 1005a23-7. E, desse modo,ãn o se estende a demonstração além do gênero a que respeita e n ão se transgride, pois, a doutrina do caráter “regional” das ciências, cf., acima, IV, 1.2.
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terial, ao aplicar-se, por exemplo, às grandezas geom étricas e aos n úmeros da aritm ética;142 também, a demonstra ção pelo absurdo assumirá, de maneira adequada ao ênero g a que se estiver aplicando, o princípio do terceiro exclu ído143 e, do mesmo modo,naturalmente,“cada ciência particular ád, do princípio da contradi ção, a expressão que se adaptaà matéria que ela estuda, sem inquietar -se por saber se ele se aplica a outros dom ínios”.144 De qualquer modo, constituem os os liames por que se co145 municam, umas com as outras, todas asências, ci cuja multiplicidade e diversidade gen érica não as reduz, ent ão, à condição de compartimentos absolutamente estanques de um saber irremediavelmente fragmentado, que as condenaria a um isolamento ão intranspon t ível quanto, efetivamente,incompreensível. E não somente entre si se comunicam, mas por meio deles comunicam-se “também com todas elas a dialética e alguma ci ência universal que tentasse provar‘coos muns’, como, por exemplo, que de toda coisa a afirma ção ou a negação é verdadeira, ou queãos iguais os restos de quantidades iguais, ou outros da mesma natureza ”.146 O que não significa, por certo, que a filosofia primeira seja capaz de efetivamente demonstrar, por exemplo, os grandes princ ípios universais da ãno-contradição e do terceiro excluído, cujo estudo vimos ser de sua compet ência.147 Imediatos e indemonstráveis, os axiomas o são, como todos os princ ípios,148 e, se alguns reclamaram uma demonstra ção para o mesmo princ ípio de 149 não-contradição, o mais sólido () de todos os princ ípios, a cujo propósito o enganoé impossível, princípio an-hipotético e o Cf. Seg. Anal . I, 10, 76a41-b2. Cf. Seg. Anal . I, 11, 77a22-5. S. Mansion,Le jugement d ’existence ..., 1946, p.149. Cf. Seg. Ana l. I, 11, 77a26-7: . Ibid ., l. 19-31. Tentaremos explicar, nas áginas p que seguem, como pode a mesma ência ci universal do ser, que considera o princ ípio do terceiro excluso, ocupar-se, tamb ém, de um axioma eminentemente matem ático, como o“dos restos iguais ”. 147 Vejam-se as referências indicadas acima, n.137 a 139 desteítulo. cap 148 Cf., acima, II, 5.1, II,5.2 e todo o parágrafo II, 6. 149 Cf. Met. , 4, 1006a5 seg. 142 143 144 145 146
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mais conhecido de todos, cuja posse é necessária para a compreens ão 150 de não importa qual dentre os seres, princípio natural, tamb ém de 151 todos os outros axiomas, não o fizeram senão por falta de instrução (): “pois é falta de instrução desconhecer de que coi152
sas se deve e de que coisas ão nse deve buscar demonstra ção”. O que nos propõe o livro daMetaf ísica é, antes, então, uma elucida ção dos dois grandes axiomas daãn o-contradição e do terceiro exclu ído, que se acompanha da refuta ção de quantas doutrinas pretendem, inutilmente, recusar sua aceita ção.153 3.3 Os a xioma s e o silogismo demonstra tivo
Assim conhecida a natureza dos axiomas, cumpre, agora, interrogarmo-nos sobre a exata fun ção que tais“princípios demonstrativos” ou “princípios silogísticos”154 desempenham no processo demonstrativo: figuram eles, acaso, como premissas, nos silogismos científicos, tal como seádcom os princ ípios próprios?É questão que divide os especialistas, uns optando por uma osta resp negativa a essa pergunta, vendo nos axiomas ão-somente t “princípios em virtude dos quais a conclus ão decorre das premissas ”,155 isto é, princípios gerais que ordenam o racioc am, efetiínio demonstrativo, sem que deleçfa vamente parte; outros, ao contrário, afirmando156a possibilid ade de as ciências utilizarem os axiomas como premissas. 150 Cf. Met. , 3, 1005,b11-5. 151 Cf. ibidem, l. 33-4. 152 Met. , 4, 1006a6-8. 153 Donde areferência a uma ci tentasse provar , por exemplo, o princ ência universal que ípio do a terceiro excluso, cf., acima, n.146. Como diz Rossad (cf. Seg. nota Ana l . I, 11, 77 29-31:“Such an attempt would be an metaphysicalempt, att conceived after the manner of’sPlato dialectic to deduce hypotheses from an unhypothetical first principle. A. calls it an attempt, for there can be no proof, in thestrict sense, of the axioms, since they are ”. Estranhamente, Aubenque interpreta aquela passagem como se Arist teles afirmasse que a dial tica tenta óLe probl ème de l ’être..., 1962, é p.257. demonstrar os princ ípios comuns a todas as ências, ci cf. 154 Cf., acima, IV,3.1. 155 Tricot, notaadSeg. Ana l. I, 7, 75a41-2. 156 Assim, S.Mansion (cf.,Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.147-9), Ross e, com alguma a d Seg. Anal . I, 7, 75a41-2). Idêntica posição hesitação, Mure (cf. suas respectivas notas
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Encontra-se a raz ão fundamental das dificuldades que ensejam essa divergência de interpreta ções em certas imprecis ões da linguagem aristot élica e, particularmente, no uso que fazósofo o fil da expres157 são (lit.: dos quais, a partir dos quais), aplicada aos axiomas. Com efeito, usando, de modo geral,preposi a ção para referir-seàs proposições a partir da s quais se constitui um silogismo, isto é, às suas 158 premissas, e indicando tamb ém desse modo, portanto, a proveni ência da coisa demonstrada de seus princ ípios próprios, istoé, das premissas constitu ídas pelas hip óteses e defini ções srcinais de cada demonstração (“é evidente que ãno é possível demonstrar cada coisa, em sentidoabsoluto, senão a pa rtir do s princípios de cada uma( )”159 ), Aristóteles descreve também os axiomas, em alguns textos, como as proposi ções se processa a demonstra ao gênero ção.160 E o filósofo chega, mesmo, a opor os axiomas 161 próprio (ao qual,imediatamente, concern em, como sabemos, os princípios próprios), a que respeita ( ) a demonstração, descrevendo os elementos da demonstração, gênero, afec ções demonstradas e axiomas,162 respectivamente, como 163 E dirá, opondo diretamente princ ípios próprios e comuns: “Os princípios são de duas esp écies:a pa rtir dos quais ( ) e a respeito
Le probl ème dea l ’êtr e..., 1962, parece assumir Aubenque p.132, que, no entanto, interpreta de modo curioso(cf. os textos de 75 41-2 e 10, 76b14, nelesn.2) vendo afirmar-se a existência, ao lado dos axiomas comuns, de axiomas pr óprios a cada ciência! 157 Cf., acima, n.8 deste cap ítulo. 158 Como, por exemplo, emSeg. Anal . I, 2, 71b20; 72a27; 3, 72b21-6; 4, 73a24-5; 6, 74b10; 75a30; 32, 88a25, 26, 27 etc. 159 Seg . Ana l.I, 9, 76a14-5 (o grifoé nosso); cf., tamb ém, 3, 72b14; 6, 74b5; 9, 75b37, 38; 76a5, 7 etc. 160 Assim, emSeg. Ana l. I, 7, 75a39-b2, quando se enumeram os êtrs elementos de toda demonstração (cf., acima, IV, 1.2 e n.9), conclus a ão, os axiomas e o êgnero, definem-se os axiomas como“as proposições a partir das quais[subent.: se demonstra] ”, cf. 75a42: b ’ ; na passagem, paralela a esta, de 10, 76 11-6, em que se retoma a indicação dos elementos da demonstra ção, dizem-se os axiomas “as proposições primeiras a partir das quais[subent.: a ci ência] demonstra ”, cf. l. 14-5: . a Cf., também, ibidem, l. 22; 11, 77 27-8;Met. , 1, 995b8; 2, 996b28-9; 997a20-1. 161 Cf., acima, IV, 2.1. 162 Cf., acima, IV, 1.2 e n.9. 163 Seg. Anal . I, 10, 76b22; cf., tamb ém, 11, 77a27-8.
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do qual ( ); os princípiosa partir dos q uais são, então, comuns, os
princípiosa respeito d os qua issão próprios como por exemplo úmero, n 164 grandeza”. Ocorre, entretanto, que, nos mesmosítulos cap dosSegun d os Ana lí ticos em que assim se exprime, serve-se oófil sofo de outras expres-
sões que podem ajudar -nos a esclarecer as dificuldades que apontamos. Assim, falando da existência de diferentes gêneros de seres, diz-nos que determinadas propriedades pertencem ão somente t a tal gênero, tais outras, a tal outro, “com os quais ( ’ ) elas se provam mediante os princípios comuns ( ).165 E, referindo-se a certas propriedades matem áticas que se provam a partir deoutras conclusões já alcançadas:“demonstram-se median teos princípios comuns ( ) e a partir das proposições demonstradas( )”,166 aplicando assim a preposição às premissas silogísticas não-axiomáticas de onde decorrem as conclus ões, enquanto, precisamente algumas linhas abaixo, se dizem os axiomas 167 proposições primeirasa partir de que ( ) a ciência demonstra. Como se vê, é fluido o estilo da linguagem aristot élica e, no caso em questão, não bastam considera ções de ordem ling üística e a inspeção do uso das preposi ções para fazer luz sobre a fun ção dos princípios comuns nos silogismos demonstrativos. Felizmente, por ém, Aristóteles exprime-se com clareza, ao menos, sobre o uso dos dois grandes princ ípios de não-contradição e do terceiro exclu ído. Explicanos, do primeiro, que eleãno é assumido por nenhuma demonstração,168 a menos que, eventualmente se pretenda, por qualquer ão, raz ter uma conclus ão que estabele ça, explicitamente, que tal predicado se afirma de tal sujeito e dele ãonse pode negar, caso excepcional, por certo, e que se ãno encontrará nos procedimentos cient íficos. Em outras palavras, o princ ípio de não-contradição, princípio de todos os 164 165 166 167 168
Seg. Anal . I, 32, 88b27-9 (os grifos ã so nossos).
Ibidem, l. 3 (os grifos são nossos). b Seg. Anal . I, 10, 76 10-1.
Ibidem, l. 14-5. Cf. Seg. Anal . I, 11, 77a10-21.
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169 outros axiomas, não atua como premissa, nos silogismos daênci cia, mas constitui uma esp écie de cânon regulado r, que preside ao processamento de todos os silogismos, os quais de acordo com ele se estruturam: nesse sentido dir -se-á queé princípiod e acord o com o qua l 170
sobre a qua l se constr se demonstra, masão, n premissa ói o silogismo. E a Metaf ísica , mostrando como pode “prova r -se” tal princípio por via de refutação (),171 bastando, para isso, que se obtenha do interlocutor, que o nega, que signifique alguma isa co “para si mesmo e para outrem ”,172 desvenda-nos, ao mesmo tempo, como o princ ípio de não-contradição “subtende” a significativid ade do discursohumano, sem a qualãno há, manifestamente, linguagem nem comunica ção 173 entre os homens. Quanto ao princ ípio do terceiro exclu ído, assume-o sempre a demonstra ção pelo absurdo, utilizando-o embora, por vezes, apenas na exata medida do suficiente para o gênero em questão.174 No que respeita, finalmente, aos axiomas matem áticos, como o princípio“d os restos iguais ”, não somente sabemos que “tais axiomas ... são freqüentemente usados como premissas, em Euclides (e, sem d úvida, eram usados na geometria pré-euclidiana que Arist óteles conhe169 Cf., acima, IV, 3.2 e n.151. 170 Como diz Ross (cf. nota a d Seg. Ana l. I, 7, 75a41-2), que julga“rather misleading of A. to describe them[subent.: os axiomas] as the ”, “the proper function of the more general (non-quantitative) axioms ... is to serve as that not from which, but according to which, argument proceeds ”. 171 Cf. Met. , 4, 1006a11 seg.: cf., acima,V, I 3.2 e n.153. 172 Cf. ibidem, l. 21. Metaf í sica , por Aubenque, Le 173 Leia-se o brilhantecomentário dessa passagem da in probl ème d e l ’être..., 1962, p.124 seg. 174 Cf. Seg. Ana l. I, 11, 77a22-4. Em verdade, o princ ípio do terceiro exclu ído não se utiliza como premissa, no silogismo do absurdo ou“do impossível”, que é uma espécie do silogismo hipot a ético, cf., acima, cap.III, n.308. Com efeito,demonstra ção pelo absurdo compõe-se de um silogismo, que prova uma conclus ão manifestamente falsa, e de uma inferência , que, assumindo o princ ípio do terceiro exclu ído (“de toda coisa a afirmação ou a nega ção é verdadeira”) comohip ótese (não necessariamente explicitada, de in cio), conclui, da falsidade manifesta da conclus silogismo constru do, a verdade ão doera daí contradit ória de uma de suas premissas (a outra reconhecida, ídesde ício,o como in manifestamente verdadeira), necessariamente falsa, por engendrar conclus ão falsa. Sobre o mecanismo da redu ção ao absurdo, cf.Prim . Ana l. I, 23, 41a22 seg.; 44, 50a16-38. Por outro lado, pelas raz ração pelo abões que, acima, vimos (cf., cap.III, n.308), a demonst surdo não se dirá, em sentido absoluto, um racioc ínio científico.
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ceu)”,175 o que já nos permitiria inferir queé como premissas que Aristóteles os considera, como, tamb ém, um texto, ao menos, dos Primeiro s Ana l í ticos dá-nos exemplo de teorema cuja demonstra ção utiliza, precisamente, o axioma“dos restos iguais”, aplicado aângulos, 176 como uma de suas premissas. Por outro lado, no que concerne a outros axiomas gerais,ãn o-matemáticos, que as êcincias possam, eventualmente , utilizar ,177 nada nos impede desupor que venham a atuar como premissas dos silogismos cient íficos. Em face de tal doutrina, cumpre-nos,ão, ent interpretar a expres178 são , aplicada aos axiomas de modo vago e amb íguo, num sentido forçosamente bastante amplo: as proposi ções axiomáticasa partir das quais a demonstra ção se processaãso aqueles princ ípios gerais a que se conforma o racioc ínio demonstrativo (ou det erminadas formas particulares de demonstra ção), assim como aqueles princ ípios comuns às ciências, com o auxílio dos quais, formulados de modo adequado a cadaênero g cient ífico e utilizados como premissas, ao lado dos princípios próprios, constroem-se as demonstra ções particulares de cada ci ência.179
3.4 Os axiomas matem áticos, a m atemática un iversal e a filosofia p rim eira
Um último e importante pormenor exige, ainda, nossa aten ção. É que a descri ção da significa ção e função geral dos axiomas, que viemos 175 Ross, nota ad Seg. Anal . I, 7, 75a41-2; cf., tamb ém, notaad 2, 72a17-8. OsElementos de Euclides chamar ão tais axiomas, comuns às ciências matemáticas, de“concepções comuns” ( ), entre as quais se encontrar á, precisamente, o princ ípio “dos resPrior an d Posterior Ana lytics , tos iguais”, tantas vezes mencionado por Arist óteles, cf. Ross, Introduction , p.56-57. 176 Cf. Prim. An al. I, 24, 41b13-22. 177 Cf., acima, IV, 3.1 e n.118. 178 Cf., acima, IV, 3.3 e n.157 seg. 179 Donde ser preferível dar da expressão uma tradução literal e igualmente vaga, como “a partir dos quais ”, que não prejulga da interpreta ção a propor-se em cada caso espec ífico. É o que não soube fazer, por exemplo, Mure, que traduz,ósapconfessada hesita ção (cf. notaa d Seg. Ana l. I, 7, 75a41-2), (l. 42) por“axioms which are
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acompanhando, nasápginas precedentes,ósé rigorosamenteávlida, obviamente, dos grandes princ ípios ontológicos e, sobretudo, do princípio de não-contradição, de que os outros dependem. Pois n ão se poderá, por certo, dizer dos axiomas matem áticos, princípios comuns tão-somenteàs diferentes êcincias matem princípios áticas,180 que são 181 de que todos ou todasas ci ências demonstrativas se servemou que são imprescind íveis ao processamento de toda e qualquer demonstração,182 mesmo não-matemática. Nem diremos que, por interm édio 183 deles, todas asências ci se comunicam,já que servem de liame, apenas, entre as diferentesêci ncias matemáticas. Mas n ão vemos, também, por que estranhar que, ao tratarem dos princ ípios comuns, os 184 Segund os Analí ticos mencionem os axiomas matem áticos, ao lado dos grandes princ ípios metafísicos,185 já que o tratado fundamenta, no b premisses of demonstration ”, tradução que repete na passagem paralela de 10, 76 14. Essaé, também, a interpreta ção gramatical que parece impor -se a S. Mansion, ainda que a autora considere corretamente a fun ção dos axiomas na demonstra ção aristotélica, cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.147 e n.61. 180 Assim, o princípio “dos restos iguais” é comum à aritmética, à geometria etc., cf.Seg. Anal. I, 10, 76a41-b2; acima, IV, 3.2 e n.142. Exprime, com efeito, uma proprieda de comum a todas as quantidades, mas a matem ática serve-se de tais princ ípios comuns de modo particular ( ), considerando-os apenas em rela ção a uma parte de sua mat éria própria que separadamente considera, linhas, ângulos, números ou outroêgnero de quanb tidade, cf.Met. , 4, com., 1061 17 seg.
181 182 183 184 185
Cf., acima, IV, 3.2 e n.129 e 130. Cf., acima, IV, 3.2 e n.128. Cf., acima, IV, 3.2 e n.145. Vejam-se os textos acima indicados, n.117 deste capítulo. Como acontece com Ross, por exemplo,que não se lembra de invocar o textoMet. de , 4, b 1061 17 seg. (cf., acima, n.180 deste ícap tulo) e escreve: “he [subent.: Arist óteles] should have recognized the distinction between the axioms that are applicable to all things that are, and those thar are applicable only to quantities, i.e. thetosubject-matter of arithmetic and geometry” (Aristotle ’ s Prior and Posterio r Ana ly tics , Introduction, p.58-9). Ora,ãn o somente o filósofo os distingue, como vimos, como tamb ém a nenhum momento incorre na confusão de atribuir aos princ ípios comuns das matem áticas as caracter ísticas univ ersais que reconhece nos grandes axiomas metaf ísicos. Nem se poder á utilizarvalidamente , como argumento em contr ário, o fato de Arist óteles não crer necess ário precisar, ao tratar dos axiomas e dos “comuns”, que freqüentemente não concerne sua descri ção senão aos axiomaspor excel ência , que se aplicam a todos os seres e se utilizam em todas ências, as ci sem restrições. Nesse sentido, ali ás, exprime-se o fil ósofo com clareza, emSeg. Ana l. I, 2, 72a16-18, quando, ao chamar de axioma o íprinc pio cuja posse é necessária ao aprendizado do que quer que seja, acrescenta: “há, com efeito, algumas proposi ções dessa natureza; pois é,
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modelo oferecido pelasmatemáticas, seu estudo sobre a ci ência186 e que tudo nos leva a crer que a mesma no ção de axioma comum a todas as ciências se elaborou numa reflex ão sobre os princípios comuns das matemáticas, a que o próprio termo se tomou de 187
empréstimo. Uma dificuldade, por ém, nos surge, se nos interrogamos sobre a natureza da ci ência a que compete o estudo dos princ ípios matemáticos comuns. Vimos, com efeito, que cabe à ciência do ser enquanto ser ocupar-se dos grandes axiomas metaf ísicos, áj que exprimem propriedades que pertencem a todos os seres, enquanto simplesmente ão.188 s Mas poderia acaso caber tamb ém à filosofia o estudo de princ ípios que 189 exprimem propriedades que ãonsão comuns sen ão às quantidades? Assim como a aritmética estuda as propriedades do úmero n enquan190 to número e a geometria, as propriedades das quantidades cont í191 nuas enquanto tais,não deveremos dizer que estudo o dos axiomas matemáticos competeàquela matemática universal ( ) de que faz menção a Metaf ísica , opondo-aà geometria, por exemplo, à eastronomia, porque se ocupam, cada uma destas, de um ênero g e natureza determinados, enquanto concerne ao que é, a todas, comum a matemática universal?192 E, com efeito, demonstram os matem áticos sobretudo, a proposi mos dar esse nome ções dessa natureza que costuma ”, mostrando, assim, que utiliza, preferencialmente, o termo matem ático “axioma” para designar, n ão os princípios comuns das matem áticas, mas, antes, os grandes princ ípios universais. Em verdade, a única dificuldadeésria da doutrina aristot élica dos axiomas matem áticos ocorre em um texto do livro KdaMetaf ísica , que adiante comentaremos. 186 Como estabelecemosacima,cf. I,2.3. 187 Cf., acima, n.109 deste capítulo. 188 Cf., acima, IV, 3.2 e n.132 a 139. 189 Cf., acima, n.180 deste capítulo. 190 Cf. Met. , 2, 1004b10-3. 191 Cf. Met. , 4, 1061a28-b2. 192 Cf. Met. , 1, 1026a26-7. Pertencem estas linhas a umcontexto (cf.ibid ., l. 23 seg.) em que, interrogando-se sobre se a filosofia primeira é universal ou concerne a um certo gênero e natureza determinados, Arist coisas, óteles mostra como pode ela ser ambas as tomando por paradigma, precisamente, a matem ática universal, a qual,ocupando-se, embora, de um objeto determinado (por exemplo, a propor ção), legisla para oconjunto das ciências matem áticas, cf. V. Goldschmidt, cursoédito in sobre“Le système d’Aristote”, 1958-59, p.67, 68; acima, cap.I, n.116.
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193 certas proposi que concernem, igualmente, a granções universais, dezas e números, mas n ão, por certo, enquantoêm t grandeza ou ãso 194 divisíveis; assim, a teoria geral da propor ção ( ) de Eudoxo demonstra universalmente, para linhas, números, sólidos e tempos,
a alternância dos termos que, primitivamente, era objeto de demonstrações particulares separadas e distintas para cada um desses êneros g 195 da quantidade. Os princ ípios comunsaplicam-se analogicam ente, isto é, proporcionalmente ( ’ ) às diferentes ciências;196 ora, princípios matem áticos que se aplicam proporcionalmente às diferentes ciências matem áticas não deveriam, acaso, ser estudados por uma ciência que cont ém uma teoria geral da propor ção? Uma ci ência matemática“comum” não deverá ocupar-se de princ ípios que, como “odos 197 restos iguais ”, por exemplo, dizem respeito pr a óum prio da quantidade? Se todas essas raz ões nos parecem bastante plaus íveis, um texto de Met. propõe-nos, entretanto, solu ção bem diferente e, aparentemente, ao menos, desconcertante. Com efeito, diz-nos ofilósofo: “Uma vez que o matem ático se serve dos princ ípios de modo particular (), caberá à filosofia primeira considerar tamb ém os seus princí199 pios”.198 Pois, áj que a matem sempre aplica um ática, continua ele, princípio, como“dos restos iguais ” tão-somente a uma parte de sua matéria própria, que separadamente considera, linhas, ângulos, números ou outro êgnero de quantidade, “mas não enquanto seres ”,200 competirá o estudo de tais princípios à filosofia, que não investiga sobre as coisas particulares, enquanto cada uma delas tem ou tal qual atributo,“mas considera oser, enquanto cada uma de tais coisas é”.201 Ora, parecer-nosá que, por isso mesmo, porqueãonse ocupa sen ão 193 194 195 196 197 198 199 200 201
Cf. Met. , 2, 1077a9-10. Cf. Met. , 3, 1077b17-20. Cf. Seg. Anal . I, 5, 74a17 seg.; acima, III, 3.2. Cf. Seg. Ana l. I, 10, 76a38-9; acima, IV, 3.2 e n.140 seg. O igual () é, com efeito, umpr ópr io da quantidade, cf.Cat. 6, 6a26-7. b Met. , 4, com., 1061 17-9. Cf. ibidem, l. 19 seg. Ibidem, l. 24: ’ Ibidem, l. 26-7.
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do que pertenc e ao ser enquanto ser, deverá a ciência do serocuparão n 202 se do que pertence, ão-somente, t à quantidade enquanto quantidade. No entanto, sem escamotear a dificuldade do problema, cremos ser útil aqui recorrer a certos textos da mesma Metaf í sica , que não se têm invocado para onosso problema. Com efeito,ése certo que a concepção de uma ciência matemática universal “ecomum” prenuncia a constituição de uma teoria geral da quantidade e que podemos lamentar não nos tenha Arist óteles deixado indica ções mais numerosas sobre a matemática universal nem nos tenha precisado como se situariam, em relação a uma tal ciência, os axiomas que exprimem propriedades comuns às quantidades,ãno é menos verdade que axiopr óprio mas como o“dos restos iguais ”, ainda que concernentes a um da quantidade, como o igual( ), não concernem menos a um atributo do Um,ájque a este pertencem e dele ãosafecções o Mesmo, 203 o Semelhante e o Igual. Ora, “o Ser ( ) e o Um ( ) são idênticos e são uma só natureza, por implicarem um o outro ”,204 de modo 205 que há tantas esp écies de Um quantasãos as do Ser e ambos se di206 zem em igual ú nmero de sentidos, o Um possuindo uma natureza 207 definida e distinta emcada uma das categorias. Aliás, “que o Ser e o Um significam, de algum modo, a mesma coisa é evidente, pelo fato de o Um corresponder, em igual número de sentidos,às categorias e de não residir em nenhuma ”.208 Por isso mesmo, compete à mesma ciência do filósofo, que estuda o Ser enquanto Ser e os seus atributos por si,209 conhecer o que ã so 202 É o que leva S. Mansion (cf.Le jugement d ’ existence... , 1946, p.149, n.68) a dizer:“la philosophie premi ère ne doit s’occuper que du principe de contradiction et des principes équivalents. L’axiome: ne devrait pas, sous cette forme, être objet de la métaphysique, puisqu’il se restreintà la catégorie de la quantité. Aristote ne ’a l pas vu, parce qu’il croit que c’est un principe analogique (cf. Met . , 4, 1061b20-7)”. a 203 Cf. Met. I, 3, 1054 29-32. b 204 Met. , 2, 100322-4; cf., tamb ém, , 4, 1061a15-8. b 205 Cf. Met. , 2, 100333-4. 206 Cf. Met. , 2, 1053b25. 207 Cf. ibidem, l. 25 seg. 208 Ibidem, 1054a13-5. a 209 Cf. Met. , 1, com., 1003 21-2; acima, n.21 deste cap ítulo.
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as afecções () por si do Um enquanto Um (porqueêid nticasàs do 210 Ser enquanto Ser) e seus acidentes. E não haverá, então, por que estranharmos que a filosofia primeira estude as osi prop ções “chamadas 211 de axiomas, nas matem áticas”, se elas, todas, como os axiomas da igualdade, respeitam às propriedades que pertencem ao Um,a nmedida em que ele assume determinada natureza gen na categoria érica, da quantidade, e se tais propriedades correspondem, analogicamente, às que pertencem ao Um, nas outras categorias. Sob esse prisma, o texto de, que, acima, nos embara çava212 poderá tornar-se inteligível: a filosofia primeira ocupar-se-á do axioma“dos restos iguais ” porque ele exprime quanto pertence, em comum, aos seres matem áticos, enquantoêtm, por atributo, o Igual, afec ção por si do Um enquanto Um (e, portanto, do Ser enquanto Ser), na categoria da quantidade, correspondendo, analogicamente, a çõ afec es como o Mesmo e oSeme213 lhante, nas categorias daêess ncia e da qualidade. Não nos escape, entretanto, que, se a explic çã a o que conjecturamos, recorrendoà doutrina aristot élica do Um, nos parece capaz de çlan ar alguma luz sobre uma ãotdifícil aporia,é preciso tamb ém confessar que ainda permanece obscura a quest ão concernenteàs precisas rela ções entre as ci ências que se ocupam respectivamente do Um enquanto Um (istoé, do Um enquanto princ ípio universal coextensivo ao Ser enquan214 to Ser ), do Um enquanto princ ípio da quantidade em geral e do Um enquanto princ ípio do número; noutras palavras, entreêancia ci do filósofo, a matem ática universal e a aritm ética, ciência do número.215 É forçoso, porém, reconhecer que os textos do ósofo fil deixam insatisfeita nossa curiosidade. b Cf. Met. , 2, 1003b34 seg., part. 1004 5-8. a Met. , 3, 100520; acima, IV, 3.1 e n.109. Cf., acima,n.198a 202destecapítulo. Cf. Met. , 15, 1021a11-2:“com efeito, ãso idênticas() as coisas cuja ess ênciaé uma; semelhantes ( ), aquelas cuja qualidade é uma; iguais ( ), aquelas cuja quantidade é uma”. b 214 Cf. Met. , 2, 1053 20-1:“pois o Ser e o Um são os m ais u niversais d e todos os predic ad os ”. 215 Cf., acima, IV, 1.2 e n.12.
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4 A un idad e imposs í vel do sab er 4.1 Argum entos “lógicos” e argumento s an alí ticos
O estudo da no o de princípio e a considera çãencaminham-nos, ção da natureza dos diferentes princ naturalmente, para o estudo ípios de uma das questões mais fundamentais que interessamà teoria aristotélica da ci ência, cuja solu ção, aliás, é formulada de modo sucinto, mas com toda a clareza desej ável, nos Segund os Ana l íticos : referimonos ao problema da possibilidade, ouão, n de uma Ciência suprema que conheça todas as coisas e, portanto, da unidade eventual de todo o saber cient ífico. Nesse sentido, o estudo dos êneros g cient íficos e dos princípios próprios, assim como a própria doutrina da aplicação 216 analógica dos princ já nos deixavam, de algum modo, ípios comuns, antever a conclus ão aristotélica de que“é impossível que tenham os mesmos princ ípios todos os silogismos ”,217 a cuja explicitação e fun218 damentação um capítulo inteiro se consagra. E, como veremos, a impossibilidade de princ ípios idênticos não é mais do que a expressão da unidade imposs ível do saber científico. Dois grupos de argumentos introduz o fil ósofo para justificar aquela sua conclusão, que diz procederem, respectivamente,
“logicamente ” () e a partir do que já foi estabelecido ( ).219 O primeiro argumento“lógico”,220 opondo a existência reconhecida de silogismos falsos à dos verdadeiros, mostra ser imediatamente evidente, porque prov êm de premissas verdadeiras os silogismos verdadeiros e, de premissas falsas, os falsos, ão serem n os mesmos os princ ípios de todos os silogismos.ãNo é objeção válida a de que também se podem obter conclus ões verdadeiras a partir de 216 Cf., acima,V, I 3.2 e n.140 seg. a 217 Se g. Ana l.I, 32, com., 88 18-9. 218 Se g. Ana l.I, 32, precisamente. 219 Cf.Seg. Anal . I, 32, 88a19 e 31, respectivamente. Sobreoposi a ção entre esses dois processos de argumenta ção, cf., acima, III, 2.6 e n.136 seg. 220 Cf.ibid ., l. 19-26.
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221 premissas falsas, pois isso só pode ocorrer uma vez numa cadeia silogística, áj que serão, necessariamente, falsos os termos édios m que se assumirem para provar, por sua vez, as falsas premissas, uma falsidade não podendo concluir-se sen ão a partir de premissas igualmen222 te falsas. O segundo argumento “lógico”223 lembra apenas que nem mesmo as premissas dos silogismos falsos podemuniversalmenser te idênticas, áj que há falsidades contradit órias e incompat íveis entre si, como, por exemplo, que justi ça é injustiça e queé covardia, ou que o igualé maior eé menor etc. Um e outro argumento, como êse , funv damentam-se em raz ões gerais aplicáveis a toda silogística e não somente não concernem especificamente à esfera cient ífica, mas ãso-lhe também estranhos,áj que a ciência exclui, por defini ção, o falso.224 Em verdade, são os dois argumentos constru ídos 225 que, particularmente, nos interessam. Lembra-nos o primeiro deles que os princ ípios de muitos de nossos conhecimentos cient íficos, isto é, os princípios de muitos dos silogismos ou cadeias de silogismos verdadeiros que possuímos, são genericamente diferentes, que pontos e unidades, por exemplo, se ãonajustam uns aos outros, estasúltimas 226 não possuindo posi ção, possuindo-a aqueles. Qualquer tentativa de aplicação dos princípios de um ê gnero a outro levar-nos-ia, necessariamente, a inseri-los, como termosém dios ou maiores ou menores,
nos silogismos do outro êgnero, operando umaque sabemos exclu ída da demonstra ção científica.227 Se são genericamente diferentes os princ ncias e não se provam ípios próprios das diferentesêci 221 Cf. ibidem, l. 20. Sobre as diferentes ocorr ências, nas três figuras, de silogismos que Prim. provam conclus ões verdadeiras a partir de premissas falsas, cf.An al. II, cap.2-4. 222 Trata-se de um argumento frac o, como diz Ross (cf.notaad Seg. Anal. I, 32, 88a19-26), pois “not both the premisses of a false conclusion need to be false, so that there may be a considerable admixture of true propositions with false in a chain of reasoning . ” 223 Cf.Seg. Ana l. I, 32, 88a27-30. Três outros argumentos dial éticos são introduzidos posterib ormente, em 88 2-8, a que nos referiremos mais adiante. 224 Cf., acima, II, 2.1. 225 Cf. Seg. Anal . I, 32, 88a30-6. 226 Cf., ibidem, l. 33-4; cf., também, 27, 87a36, onde se caracterizam, respectivamente, a unidade e o ponto, como e . 227 Cf., acima, IV, 1.2 e n.13 seg.
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as conclus ões de uma pelos princ ípios de outra, tamb ém não serão os princípios comuns que constituir ão premissas a partir das quais se 228 possa tudo demonstrar, eis o que nos diz o segundo argumento. É 229 que, se toda demonstra a todas ção se serve dos princ ípios comuns as ciências, nem por isso subsiste, menos, a diferen ça irredutível entre os gêneros:“com efeito, os êgneros dos seres ãso diferentes e tais atributos pertencem às quantidades, tais outros às qualidades unicamente, com as quais se provam mediante osnc pri ípios comuns”.230 4.2 As categorias do ser e os gêneros cientí ficos
A argumentação aristotélica, nessas linhas, merece-nos uma especial aten neros g e sua ção. Pois, para exemplificar a diversidade êdos irredutibilidade, introduz ofilósofo, como vemos, ascategorias da qualidade e da quantidade, destarte mostrando que sua doutrina dos gêneros da demonstração encontra seu fundamento último na plurivalência semântica doser , ou melhor, na dispers ão insuper ável do ser em múltiplos gêneros supremos – as categoriasãso os Gêneros do 231 Ser –, que se exprime nas suas significa ções múltiplas. Já nos dizia, aliás, a Metaf ísica : “dizem-se diferentes quanto ao gênero ( é diferente e que seãno resolvem ) as coisas cujo sujeito primeiro uma na outra, nem ambas numa mesma coisa, ... e quantas coisas se dizem segundo uma diferente figura de categoria do ser (pois uns dentre os seres significam ‘o queé’, outros, uma qualidade ...; com efeito, nem se resolvem elas umas nas outras nem em alguma única coisa ”.232 228 Cf. Seg. Anal . I, 32, 88a36-b3. 229 Cf., acima, IV, 3.2 e n.129 a 131. ad locum ): 230 Seg. Anal . I, 32, 88b1-3. Nossa tradu ção concorda com as de Mure e Tricot (cf. compreendemos a dos diferentesêneros g categoriais l. 2, como os atributos e não, como os princípios próprios de gêneros que se subordinam a uma ou outra das ad locum ). conforme interpreta dea6; Ross Colli (cf. b b Alma II,çã Seg. Ana l. II, 13, 96 231 categorias, Cf. F ís. I, 6, 189 23-4;àDa 1,o412 cf.,etamb ém, 19; Da Alma a I, 1, 402a23-4; 5, 411 13-20;Met. , 8, 1065b15; , 2, 1089b28. Sobre as categorias, como diferentes significa , n.125. ções do ser,cf., acima, cap.I b a 232 Met. 28, 1024 9-16. E, como nota Ross (cf. nota ad Fí s. I, 6, 189 14):“The categories are the onlyproper, the only that are not”; cf., tamb ém, sua notaad M et. , 6, 1016b33. ,
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A doutrina das categorias constitui-se, assim, em prova derradeira de que“não estão, com efeito, todas as coisas num único gênero.”233 Porque se conhece haver princ ípios comuns a todos os seres, proposições comuns a todas as disciplinas cient íficas, poderia surgir a tentação de construir -se um saber supremo e universale qu englobasse todas as ciências, inferindo progressivamente a partir daqueles princípios (ou dealguns dentre eles), tomados como premissas primeiras, todas as proposi ções que cada uma dasências ci demonstra. Mas constituir, destarte, umaêci ncia única seria, necessariamente, o mesmo que postular umêgneroúnico de todos os seres (toda ência ci demonstra as afecções de um gênero-sujeito e toda demonstra ção desenvol234 ve-se no interior de um mesmo gênero ), isto é, tomar o Ser como gênero supremo de tudo que é. Ora, a dispers ão do ser nas categorias torna impratic ável e carente de cientificidade qualquer tentativa nesse sentido, mostrando-nos que “ser não é a essência de coisaalguma, pois não é um gênero o ser”,235 que “não é possível, nem ao um nem ao ser, ser umêgneroúnico dos seres ”,236 enfim, que“os gêneros dos seres são diferentes ”.237 Com semelhante argumenta ção mostrara o filósofo, naMetaf ísica , a impossibilidade de umaêci ncia demonstra238 tiva dos princ ípios comuns: uma tal demonstra ção suporia um gênero-sujeito comum para todas as coisas, á que j se servem todas as demonstrações dos axiomas. O que não significa, obviamente, que se restrinja ú omero n de ciências ao de categorias, uma vez que não são menos irredutíveis, uns aos outros, os gêneros diversos que se constituem no interior de cadaênero g categorial. 233 Ref. Sof. 11, 172a13-4. 234 Cf., acima, IV, 1.2. E, co mo sabemos, a unida de de umaêci ncia se define, precisamente, pela a unidade de seuêgnero-sujeito, cf. Seg. Anal . I, 28, com., 87 38; acima, IV, 1.2 e n.9 10. e b 235 Seg. Anal . II, 7, 9213-4. 236 Met. , 3, 998b22. 237 Seg. Anal . I, 32, 88b1-2; acima, IV, 4.1 e n.230. 238 Cf. Met. , 2, 997a2-11. Em verdade, o texto coloca tal quest ão como uma aporia, interrogando-se sobre a possibilidade de haver umaêci ncia dos axiomas, se a constitui ção de uma demonstra ção implicaria a postula ção de um gênero comum para todas as coisas. Resolverá o filósofo a aporia, comosabemos, mostrando-nos como cabe à ciência do ser elucidá-los, ainda que lhe n ão seja possível demonstrá-los, cf., acima, IV, 3.2 e n.147 seg.
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Se assimé, compreende-se, tamb ém, que o mesmo fato de haver princípios próprios e de n ão poderem demonstrar -se as coisassenão a 239 partir dos princ ípios de cada uma,o mesmo fato de ser princ ípio primeiro, em cada demonstra ção, o queé primeiro no êgnero a que a de240 monstra mostram aimpossibilidade da demonstra ção concerne ção dos princ ípios próprios.241 Porquepr in cípios em seus êgneros respectivos, como se poderiam demonstrar senão a partir de princ ípios mais elevados, istoé, mais universais e anteriores, os quais, çosamente, for haveriam de ser, ent ão, os princípios de uma ci ência superior e anterior, ciência por excelência e dominante ( ),242 a que todas as outras se subordinariam e de que, em verdade, fariam tegrante, parte inên-ci cia, tamb ém, portanto, doênero g supremo de todas as coisas? Mas talé, precisamente, o saber único e universal que sabemos inexistente e com o qual, de nenhum modo, pode, se ent ncia aristot ão, confundir aêci élica 243 do ser enquanto ser, a filosofia primeir a.
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b Cf. Seg. Ana l. I, 9, com., 75 37-8; 13-5; acima, IV, 2.1 e n.62. b Cf. Seg. Ana l. I, 6, 7424-5; acima, n.56 deste cap ítulo. Cf. Seg. Ana l. I, 9, 7a16 seg. Cf. ibidem, l. 18. Assim não entende, entretanto, bomúmero n de int érpretes. Eáj Santo Tomás resumia o texto de Seg. Ana l. I, 9, 76a16-22 com as seguintes palavras: “Non est uniuscuiusque scientiæ demonstrare principia sua propria: haec enim possunt probari per communium
omnia principia, quae ut sibi propria considerat philosop hia prima, seu metaphysica. Ergo philosophia prima, quae considerat principia communia, ex quibus probantur principia immediata aliarum scientiarum, his omnibus scientiisæ pr eminet” (In Post. Ana l. I, 1, XVII, Syn., ed. cit.). Tal era, também, a interpretação de Filópono (cf. S. Mansion,Le ju gem ent d ’ existence... , p.143-144, n.42), que acompanharam Zabarella e Trendelenburg (cf. Tricot, notaa d 76a18). Contra uma tal violenta ção do texto, interpretado como se apenas significasse queão n podem os princ ípios próprios ser demonstrados pela mesma ciência de que são princípios, sendo-o, no entanto, pela metaf ísica, levantam-se, com toda razão, Ross (cf. notaad 76a16-18), mostrando ser irreconcili ável a interpretação de Zabarella com o que Aristóteles diz, e S. Mansion (cf.loc. cit. ), ao dizer, contra os que afirmam haver uma êci ncia demonstrativa dos princ ípios próprios das ci ências particulares:“Mais l’intention du Stagirite estépr cisément de montrer qu ’une telle science’existe n pas, puisque les principes propres ne sont pas susceptibles de d émonstration. L’interprétation de Saint Thomas estdoncà rejeter: la philosophie première ne fournit pas la preuve de ces principes et leur carac èt re indémontrable n’est pas seulement relatif à la science dans laquelle ils sont principes. Aristote ne croit pas que la met áphysique doive s’immiscer dans le domaine de chaque science ”. Mure, por sua vez (cf. notaa d 76a18), compreendendo corretamente que “Aristotle must surely mean that there is no
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4.3 Um par alelo com o platonismo
O paralelo com o platonismo imp õe-se, aqui, eé sumamente instrutivo. Com efeito, a ícr tica platônica dirigida contra asêci ncias particulares, tanto quanto a afirmação da superioridade do método dialético, que o fil ósofo platônico utiliza, fundamenta-se, precisamente, no fato de que os que se ocupam de geometria, de aritm ética e de disciplina s dessa natureza assumem o par oímpar, e as figuras, asêstr espécies deângulos e coisas an álogas, como se as conhecessem“dee, las fazendo hipóteses (), estimam, ainda, que nenhuma razão têm a dar( ), nem a si mesmos nem aos outros, sobre elas, comocoisas a todo homem manifestas ”.244 Porque incapazes de explicar -se sobre elas,todas essas disciplinas servem-se das hip óteses sem toc á-las245 e, delas partindo, percorrem246 lhes as conseq üências, incapazes, entretanto, de elevar -se acima das 247 hipóteses e de remontar ao princ ípio. Por isso mesmo, porque, ainda que atinjam algo do ser, conhecem, somente como em sonho, o ser que 248 lhes não é possível ver à luz do dia, não poderão considerar-se, realmente, ciências, se tomam como princ ípio o que não conhecem e tecem de desconhecido suas conclus ões e suas proposi ções intermédias.249 Por outro lado, em contraposi ção a elas, o método dialético, rejeitando sucessivamente asóhip teses,250 “fazendo das hipóteses, não princípios, mas realmente hip óteses”, utiliza-as como degraus e pontos de apoio para el evar-se até o an-hipotético e ir ao such dominant science ”, crê, no entanto, queáh , no texto, uma clara refer ênciaà metafísica e que, por isso mesmo, a rela ção entre a metafísica e a ciência é deixada na obscuridade. Citando-o, acrescenta Le Bl ond (cf. Logique et m é thode ..., 1939, p.118 e n.2): “Nous nous retrouvons ici en ésence pr de’embarras l d’Aristote sur la nature de la métaphysique et de sa relation aux sciences ”. c 244 Rep.VI, 510 . 245 Cf. Rep. VII, 533c. 246 Cf. Rep. VI, 510cd. 247 Cf. ibidem, 511a. 248 Cf. Rep. VII, 533bc. 249 Cf. ibidem, 533c. 250 Cf. ibidem, 533cd.
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princípio de tudo, para somente ent ão, em tendo-o atingido, descer de conseqüência em conseqüência, passando de Id éia em Idéia251 e apreendendo, assim, a raz ão da essência de cada coisa.252 Por isso mesmo, só a dialéticaé verdadeiramenteêci ncia,às outras disciplinas 253
não cabendo, de direito, sen ão uma denomina ção mais obscura; ela 254 é o coroamento de todas as disciplinas. Ora, se a dial ética platônica assim empreende a fundamenta ção das ciências particulares e a legitimação de seus princípios, em Aristóteles, ao contr ário, nenhuma ciência suprema recebe tais funções em herança. Toda aargumentação aristotélica insiste, como vimos, em mostrar a irredutibilidade dos êneros g próprios e, por conseguinte, a impossibilidad e de um saber uno que oscompreenda e a seus princípios. Donde a autonomia de que gozam asências ci parti255 culares, no aristotelismo, em oposição à dependência que guardam suas congêneres platônicas em relação à dialética que as justifica. E não se concebe, porcerto, uma tal autonomia como uma debilidade qualquer de ordem epistemol ógica, como se as ci ências particulares exigissem, de direito, uma fundamenta ção externa que se sabe, épor m, 256 imposs ível; é que a inexist ência de uma tal fundamenta ção não nas inquina de precariedade nem desqualifica . É verdade que aMetaf ísica , ao descrever o recorte do ser operado pelas ciências particulares, opondo-as, assim, considera à ciretomar ência que 257 o ser enquanto ser e suas propriedades, parece , aproxima258 damente, as mesmas palavras com que o livro R aepVI ública d expunha Cf. Rep. VI, 511bc. Cf. Rep. VII, 534b. Cf. ibidem, 533d. Cf. ibidem, 534e. Cf., acima, I, 2.4 e n.150, onde aludíamos à revalorização das ciências matemáticas que opera a concep ção aristotélica da ciência. 256 Como interpreta, indevidamente, Aubenque (cf. Le probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.216-9),
251 252 253 254 255
a
que, entendendo corretamente ter Arist teles excluído, emSeg. Ana l. I, 9, 76 16 seg., a possibilidade de umaêci ncia universal óque conhecesse e demonstrasse os íprinc pios das ciências particulares, diz, entretanto, de uma talêci ncia: “elle est impossible, quoique elle soit la plus haute, la plus util e, la plus indispensable des sciences ” (ibidem, p.219). 257 Cf., acima, IV, 1.2 e n.21 a 24. 258 Cf. Rep. VI, 510cd; acima, n.244 deste cap ítulo.
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a insufici ência das ci ências que assentam suas demonstra ções em meras hipóteses, de que estimam não ter de dar razão ( ): “Mas todas essas ” – escreve Aristóteles–, “circunscrevendo um certo ser e um certo gênero, dele se ocupam, mas ãno, do ser, em sentido absoluto, nem enquanto ser; nem produzem nenhuma raz‘o que ão do é’ ( ) mas, dele procedendo, umas tornando-o evidenteà percepção sensível, outras assumindo, como hipótese, o‘o queé’, demonstram assim, de modo mais necess ário ou mais frouxo, os atributos por si do ênero g a que conce rnem. Eis porque é manifesto que ã no há demonstração da essência nem do‘o que é’, a partir de uma tal indu ção (), mas algum outro modo de mostrar. De modo semelhante, nada dize m, também, sobre se o g ênero de que se ocupam é ou não é ( ), por caber ao mesmo pensamento() tornar evidente o‘o que é’ e se é”.259 Ora, se se interpreta o texto à luz de quantos outros viemos,éat agora, comentando, é preciso dizer que a retomada das express ões de que Platão se serve, naquela passagemRep daública , ou o emprego de construções semelhantes encobrem, em verdade, uma mudan ça radical de perspectiva. Quer mostrar oófil sofo que não consideram as ci ências particulares as causas e os princ ípios gerais dos seres enquanto seres, ainda que elas digam respeito a causas e princ ípios.260 O fato de circunscreverem parte do ser-se e de determinado s gêque ne- os ros não as conduz a ocupar doocuparem-se ser enquantode ser, uma vez mesmos“o queé” e ser de seus pr óprios gêneros são, para elas, ãtosomente, os pontos de partida de que procedem, assumidos concomi261 tantemente, por obra de um mesmo pensamento, como princípios 259 Met. , 1, 1025b7-18. A aproxima Rep. VI (cf. nota anterior) foi ção entre esse texto e o de efetuada pela prim eira vez, a nosso conhecimento, por V. Goldschmidt“Le (cf.système d’Aristote” 1958-59, curso in édito, p.53 seg.; acima, cap.I, n.116). Mas o eminente historiador atribuià passagem aristot élica em quest ão a mesma perspectivaícr tica do texto da b
ública,, 1, nocom., que n o soubemos acompanh Cf., tamb 1063 36 seg. b ã1025 á-lo. ém, Met. , 7, com., 260 Rep Cf. Met. 3-7, passagem que precede imediatamente a que acima traduzimos, à qual se referea nota anterior. 261 Cf. Met. , 1, 1025b17-8. Talúnica, que apreende, ao mesmo tempo,üaididade q e o ser, não difere, obviamente, da intelig ência (), a que sabemos competir aapreensão dos princípios, cf., acima, II, 1.3e n.12; II, 5.3 e n.219 e 220; III , 6.5 e n.324 e 325.
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262 primeiros, em que hip ótese e definição se conjugam, fusionadas, sem que nenhum discurso anterior tenha vindo “produzir razão” do 263 “o queé” ou dizer algo sobre“ose é” dos gêneros. É que as hipóteses da ciência aristot élica, bem ao contr ário de suas hom ônimas pla-
tônicas, nada êtm a ver com um conhecimento meramente hipot ético, conforme ao sentido comum do termo;264 pois, exprimindo o conhecimento absolutamente necess ário de princípios indemons265 266 tráveis, por si só fazem éf , sem que nenhuma outra proposi ção lhes seja anter ior.267 Converteu-se, assim, o que constitu ía o motivo de uma crítica severa, no platonismo, em express ão de independência e autodetermina ção... Indissociavelmente associada à inteligência que apreende seus princ ípios, cada ci ência particularád, integralmente, conta de seu objeto. E aêci ncia do ser, que se ãno imiscui no domínio das outras ci ências nem tenta sequer provar os seus princ ípios 268 próprios (delas), consagrar-seá ao estudodo ser enquantosere dos 262 Cf., acima,IV, 2.4 e n.91 seg. Otexto refere-se,tamb ém, a “ciências” mais“frouxas”, que mostram, simplesmente, à nossa percepção os gêneros de que se ocupam e constr óem, destarte, empiricamente, as suas defini t em comum com as êcincias ções iniciais: elasêm stricto sensu o partirem de um “o queé” que não demonstram. 263 E o texto fala, no entanto (cf. ibidem, l. 15-6), de uma indução () que leva à apreensão do “o que é” e permite um outro modo de mostrá-lo ( ). Sobre osignificado e alcance desse processo epag ógico, veja-se adiante, nosso a
cap.VI. Atente-se, por outro lado, em que passagem, a paralela a esta,Met. de , 7, 1064711 está construída de modo a parecer significar queindu a ção em questão é, tão-somente, o terem-se passado em revista diferentes esp écies de ciências particulares,para ver-se como procedem em rela ção ao “o que é”; ora, não somente uma tal interpreta ção é extremamente insatisfat ória, mas elaé, também, impossível, em , 1. 264 Cf., acima, IV, 2.2. 265 Como, aolongo denosso presente estudo,temos insistenteme nte mostrado. 266 Cf. Tóp. I, 1, 100,a30-b21: “São verdadeiras e primeiras as premissas que, ão por n meio de outras, mas por si mesmas fazeméf(’ ) (não se deve, com efeito, nos princípios científicos, investigar o porqu ê, masé preciso que cada um dos princ ípios seja, ele próprio, por si mesmo, digno deéf ())”. 267 Cf., acima, II,5.1. 268 Como diz, com razão, Ross (cf. notaa d Seg. Anal . I, 9, 76a16-8):“in theMethaphy sic sno attempt is made to prove the of the sciences ”. O que se poderia, entretanto,tentar mostraré como a ci ência do ser enquanto ser justifica o saber ícient ficoem geral e enquanto ta l , ao desvendar a natur eza da ess ência e das outras categorias a que se subordinam êne- os g Met. , por exemplo) a significa ros científicos particulares e ao estudar e precisar (em ção ontológica da defini ção.
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atributos que, enquanto tal, lhe pertencem, sem que sua real unive rsalidade se deva ou possa entender como a de um saber uno das- par ticularidades de todas e de cada uma dasõregi es ontológicas. 4.4 A dial é tica, os “comuns ” e a s ofí stica
Se assim se passam as coisas, ácilf nosé, então, compreender por que deve Arist óteles desqualificar todas as tentativas de construir um conhecimento pretensamente cient ífico a partir de proposi ções de caráter geral ou dos“comuns” () de que se serve a dialética.269 Pois, se a demonstra ção se faz do que pertence ao sujeito, por si , a partir dos seus princ ípios próprios, ainda que uma prova seóie apem premissas verdadeiras, indemonstr áveis e imediatas, não é isso bastante para que tenhamos um conhecimento ícient fico.270 Ocorrem, com efei271 to, demonstra ções dessa natureza, como a da quadratura do írculo, c 272 por Bris ão, nas quais os argumentos se constroem sobre elementos comuns, queãno apenas pertencem ao sujeito em ãquest o mas tamb ém a outros, o que, evidentemente, conflita com a norma da unidade é- gen rica de cada demonstra ção: não se prova odemonstrado enquanto per tence ao seuêgnero,por si , mas por acidente. Por isso mesmo, “o modo pelo qual Bris ão efetuava a quadratura, mesmo se a quadratura ír- do c culo se efetua, porque, no entanto , se não conforma ao objeto ( ), por esse motivoé sofístico”.273 Pois um dos sentidos em que se diz sof ístico um raciocínio é, precisamente, este, o de um silogismo que, embor a se não conforme ao m étodo de cada disciplina, 274 aparenta, entre tanto, conformar -se-lhe: parecendo conformar-se ao 269 270 271 272
Cf., acima, IV, 3.2. b Cf. Seg. Ana l. I, 9, com., 75 37-40. Cf. ibidem, l. 40 seg. a Cf., também, Ref. Sof. 11, 171b16-8; 172a2-7; cf., tamb ém, F s. I, 2, 18514-7. Segundo a í Ana l. I, 9, 76 Math ematics , vol.1, p.223-5, apud Mure, nota ad Seg. Heath Greek ( 3), Bris ão terse-ia servido, para a quadratura do írculo, c de um princ ípio geral tal como: “Coisas que ãso, respectivame nte, maiores e menores que as mesmas coisasão s iguais umasàs outras”. 273 Ref. Sof. 11, 171b16-8. 274 Cf. ibidem, l. 11-2; 19-20.
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objeto (), sem que isso realmente ocorra, ele é enganador e injusto, portanto, erístico.275 Como se percebe, ã no é o recurso dial ético aos elementos comuns que configura o racioc ínio sofístico, mas sua utilização indevida, como se se ajustassem, especificamente, a um objeto particular determinado; em outras palavras, é sofístico o argumento dialético que se quiser fazer passar por cient ífico: não se substitui a dial er-se em sof éticaà ciência, sem convert ística e mera apar ência 276 de sabedoria. 4.5 As “quest ões cient í ficas ” e o “a-cient í fico”
Por outro lado, o confinamento necess ário das ciências particulares a suas esferas ópr prias, que a discuss ão sobre a impossibilidade de um saber uno de todas as coisas, nas suas particularidades, veio apenas confirmar , permite aofilósofo precisar,com exatid ão, a extensão e a natureza das quest ões e problemas que se poder ão considerar pertinentesà ciência, istoé, a cada ciência, e que, nesse sentido, se dirão cient íficos. 277 Com efeito, se é possível identificar “questão silogística” ( ) e “proposição de contradição” ( ),278 e, visto que são proposições, em cada ciência, aquelas premissas de que partem os silogismo s que a ela respeitam, poder-seci de“questão científica” á falar, na esfera de cada ência, 275 Cf. ibidem, l. 20-2. 276 O que n ão impede que o uso adequa do dos pela dialética possa contribuir, instrumentalmente, para uma progressiva aproxima ção do objeto e prepare, destarte, o conhecimento científico, como veremos no cap.VI. a 277 Cf. Seg. Ana l. I, 12, com., 77 36 seg. 278 Explica-se, sem dificuldade,a expressão pela definição habitual decomo uma das partes da contradi ção, cf., acima, I, 3.3 e n.169. Por outro lado, a mesma constru ção da expressão e sua identificação a “questão silogística” dizem, obviamente, respeito ao sentido dialético srcin ário de , designando o que algu ém propõe (), na discussão, à aceitação do interlocutor. Arist óteles distingue, nos Tópi cos , entre a proposição e o problema dial ético, que constitui, propriamente, a interroga ção contraditória (A é, ou não, B?), cf.Tóp. I, 4, 101b28 seg.; 10 e 11. Mas é uma distinção que o filósofo nem sempre mantém, tendo, aliás, reconhecido que se pode transformar toda proposi ção em b problema, cf. ibidem, 4, 101 35-6. Observe-se o uso dial ético deem Tóp.I, 10, a b 104a5; VIII, 11, 161 29; 14, 164 4; Ref. Sof. 17, 176b6; Prim. An al. I, 32, 47a15 etc.
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( ), a propósito das premissas sobre que se constrói o silogismo apropriado ( ). Em outras palavras, a eventual cientificidade de uma quest ão (“A é B?” ou “A não é B?”) repousa na possibilidade de um dos dois membros da contradi ção (“A é B” ou “A não é B”) servir de premissa para silogismo de uma ci determiência 279 nada e por essa possibilidade, ão-somente, t se mede e se define. Há, destarte, quest ões que se dirão, por exemplo, m édicas ou geométricas, se a partir delas se podem provar conclus ões a que medicina e geometria, respectivamente, concernem. Nem toda quest ão interessará, então, ao geômetra enquanto ge ômetra, o qual, por ém, deverá “dar razão” ( ) das que entendem com a sua ciência, a partir dos princ ípios e conclus ões geométricas,embora lhe n ão caib a , enquanto ge ômetra,“dar razão” dos princ ípios.280 Nem é toda pergunta que se faz a cadaásbio nem a todas deverá cada um deles, interroga279 Nenhuma contradição opõe a noção de“questão científica”, tal como a caracterizapassaa gem deSeg. Ana l. I, 12 que comentamos e a afirma ção feita pelo ófilsofo, algumas linhas antes a (cf. 11, 77 33-4), por in úmeros outros textos confir mada (cf., acima, II, 2.4 e n.52 e 53), de que não interroga o que demonstra, ao contr ário do dial ético, nemé interrogativa, mas categórica, a proposi ção demonstrativa.“A questão científica” não é senão a pergunta que enseja a “resposta cient ífica”, istoé, a formulação categórica das premissas demonstrativas. 280 Cf. Seg. Ana l. I, 12, 77b5-6. E assim comoãno cumpre ao ge ômetra a discuss ão contra os que negam ou põem em dúvida os princípios de sua ciência nem resolve a geometria tal espécie de obje ções, escapa, de modo semelhante, à competência do ífsico, enquanto tal, discutir, por exemplo, a tesede que tudo est a ótese á em repouso, por ela contradizer hip fundamental da física que diz ser a naturezaprincípio de movimento, cf.F ís. VIII, 3, 253a32-b6; I, 2, 184b25 seg. A discussão sobre os princípios concerne, então, “a outra ad ciência comum a todas” (ibidem, 185a2-3). Os comentadores gregos (cf. Ross, nota locum ) viram, com raz ão, nessas palavras, uma alus ão à dialética, com que todas asências ci a se comunicam (cf. Seg. Ana l. I, 11, 77 29; acima, IV, 3.2 e n.146)àequal compete, como veremos no cap.VI, não, obviamente, a tarefa de demonstrar os princ ípios das ciências– sabemo-los indemonstr áveis –, mas a de preparar a sua aquisi ção; discordamos, pois, totalmente, de Ross, quando julga haver, na passagem emquest ão, uma refer ência prováincompet ência para o estudo dos princ vel à filosofia do ser, cuja ípios próprios procuramos estabelecer nasápginas precedentes; nem nos parece importante seu argumento de que a dialética aristotélica não é uma ciência, já que vimos o filósofo servir-se, por vezes, do termo em sentido extremamente lato, cf., acima, I,1.4. Por outro lado, se a dialética prepara a intelig ência dos princ ípios próprios, a ciência propriamente dita deles principia e o ásbio, em cada ciência, conhecendo a verdade, imediata e indemonstr ável, de suas hipóteses e defini ções iniciais, instaura-se no saber que delas decorre, atendo-se aos limites estritos definidos pela naturezaêdo nero g de que se ocupa, sem ter por que ocuparse, enquanto geômetra, ífsico ou astrônomo, com qualquer discuss ão ou argumento con-
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do, responder .281 Evidentemente, tamb ém não se refuta o ge ômetra ou outro sábio qualquer, senão por acidente, com argumentos estranhos 282 à sua ciência particular; nem se discute geometria entre osãno-geômetras: o mau argume nto ser-lhes-ia, necessariamente, indiscern ível.283 Donde a possibilidade de definir,relativamente a cada ci partiência cular, o“a-científico” (o “a-geométrico”, por exemplo, em geometria) e, correlativamente , umaignorância () específica em cada dom ínio 284 (a ignor ância, por exemplo, no dom ínio geom étrico). Mas noções como a de “a-geométrico” (e a dacorrespondente) ãso forçosamente ambíguas: com efeito, dir-seá “a-geométrica” tanto a proposi ção ou silogismo estranho à ciência geométrica (por exemplo: uma proposi ção ou silogismo aritm ético) como, tamb ém, tudo quanto é má geometria (e que, num certo sentido, portanto, poder á dizer-se, tamb ém, “geométrico”, por não ser estranho ao dom ínio dageometria), por queo seja materialmente– se se utilizam roposi p ções que contradizem as verdades 285 geométricas – ou formalmente – se, ainda que a partir de premissas 286 geométricas, se constr ói, não um silogismo, mas um paralogismo. cernente aos mesmos princ ípios de que parte: umatal discuss ão, anterior à ciência, dela, por isso mesmo, n ão faz parte. Eis, tamb ém, porque nos parece inaceit ável a interpretação que dá Aubenque (cf.Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.422-3) do texto, acima mencionaa do, deF ís . I, 2, 185 2-3, pretendendo que Arist óteles aí reafirma aquilo que, na opini ão do autor, o princ geral os princípios da cercle ciência,vicieux segundo ípio o qual “constitui toute science, dans ’incapacit l de sua é odoutrina ù elle estsobre de d émontrer sans ses propres principes, les tient d science ant ’une érieure” (ibidem, p.422), que seria a ontologia. 281 Cf. Seg. Ana l. I, 12, 77b6-9. Nem lhes caber á, tampouco, resolver quantas falsidades se lhes apresentam, mas, t quantas provierem de uma demonstra ão-somente, ção incorreta, a partir dos princ ípios de suas respectivasências, ci cf.F ís. I, 2, 185a14-5. 282 Cf. Seg. Ana l. I, 12, 77b11-2. 283 Cf. Seg. Ana l. I, 12, 77b12-4. Mas uma coisaé afirmar a incapacidade, no ignorante em geometria, de discutir quest ões geométricas, outra coisa seria desconhecer sua capacidade dialética de criticar, do ponto de vista dos , a argumentação desenvolvida pelo competente e pelo ásbio, no domínio de suaespecialidade. Tal capacidade, tamb ém os Ref. Sof. 11, 172a23 seg. Sobre a distin ignorantes êtm-na sempre, cf. ção a fazer-se entre a refutação própria à ciência e a refuta ção dialética, cf.Ref. Sof. 9 (todo o capítulo). 284 Cf. Seg. Ana l. I, 12, 77b16 seg. Segundos An al í ticos (I, 16 e 17) ao estudo 285 Aristóteles consagra dois cap ítulos inteiros dos dessa espécie de. 286 Recorde-se, entretanto, que, emTóp. I, 1, 101a5-17, o filósofo também designara como pa ralogis m o ( ) na esfera cient ífica o silogismo correto constru ído sobre pre-
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4.6 Novos argum entos d ial é ticos: sobre o número de princ í pios
Tendo analisado os argumentos com que mostra Aristóteles, a partir do que já fora previamente estabelecido ( ), ser impossível que todos os silogismos tenham os mesmos princípios,287 porque são eles suficientemente demonstrativos, seria dispens ável 288 deter-nos nos êtrs argumentos que se seguem, de natureza dial ética, se neles não se levantassem problemas cuja solu ção interessa a uma boa compreensão da teoria aristot élica da ciência e se não tivessem sido objeto de interpreta ções extremamente discut íveis. É a seguinte a argumenta ção aristotélica: a) os princ ípios não são muito menos numerosos que as conclus ões, uma vez queãso proposições e as proposições se constituem por adjun ção ou interpolação de termo ( );289 b) as conclusões são infinitas em número, os termos ( ) são limitados;290 c) dos princípios, uns
são por necessidade, outrosãso “possíveis” ().291 “Examinando-se, então, a questão, desse modo,é impossível que os princípios sejam os mesmos, em úmero n limitado, quando as conclus ões são 292 em número infinito”. Consideremos, ent ão, o primeiro desses argumentos. Diz-nos ele, de modo sucinto, que a progress ão de uma cadeia silog ística, fazendo-se por adjun ção ou interpola ção de novos termos, introduz continuamente novos princ ípios, cujo número, destarte, n ão é muito menor que o das conclus ões que, por eles, se ãovobtendo. Que o argume nto seja dialético, istoé, formuladoe dizendo respeito, ãno especificamenteà demonstração, masà silog ística, e m gera l, mostra-o a mesma refer ênciaà constituição de novas premissas por interposi ção missas falsas, dando, como exemplo, as que poderiam resultar, em geometria, de um traçado geométrico incorreto. 287 288 289 290 291 292
Cf., acima, n.b23-8; 25 seg. Ana IV l. ,I,4.1 Cf. Seg. 32,e 88 cf., tamb ém, acima, n.223 deste cap ítulo. b Cf. Seg. Ana l. I, 32, 883-6. Cf. ibidem, l. 6-7. Cf. ibidem, l. 7-8. Ibidem, l. 9-10.
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293 de termos; com efeito, referindo-se, especificamente, à ciência demonstrativa, outro texto dos Segund os Ana l í ticos diz-nos, explicita294 mente: “Expande-se, não por termos intermedi ários, mas poradjunção295 ... e lateralmente... ”.296 E, de fato, se os silogismos cient íficos
do porquê não são mais que o desdobramento, no pensamento e no 297 discurso, das articula ções causais do ópr prio real, uma interpola ção de termos significaria a introdu ção de novas causas das conclus ões obtidas, que a ci ência teria omitido, o que é, por definição, absurdo. Por outro lado, estudando asçõ rela es entre os ú nmeros de termos, premissas e conclus ões, nos silogismos ecadeias silog ísticas, osPri298 meiros An al í ticos tinham mostrado como a adjun ção de um novo termo numa cadeia silog ística implica o surgimento de novas conclus ões 299 em número inferior de uma unidade ao úmero n de termos anterior. O mesmo sucede, continuava Arist oóteles, se o novo termo se intr 300 duz por interpola ção. E concluíra o filósofo: “Por conseguinte, as 293 Assim, dado o silogismo “A pertence a B, B pertence a C, A pertence a C”, interpõe-se, por exemplo, um quarto ter mo D, no intervalo BC, ída resultando duas novas proposi ções “B pertence a D” e “D pertence a C ”, donde a conclus ão “B pertence a C”, que era premissa do primeiro silogismo. a 294 Seg. Anal . I, 12, 78 14-6. 295 Ibidem, l. 14-5: Istoé, dado o silogismo“A pertence a B, B pertence a C, A pertence a C”, pode a demonstra ção silogística progredir linearmente, pela adjun ção de uma nova proposi ção “C pertence a D ”, ensejando novas conclus ões (“B pertence a D ”, “A pertence a D ”; e assim por diante, com a adjun ção de novas proposi ções “D pertence a E ” etc. É curioso que considere Arist óteles, para exemplificar a progress ão científica por adjunção de novos termos, uma ésrie descendente de sujeitos BCDE..., a partir de um atributo dado A, que constitui, em verdade, o inverso de uma cadeiaística silog científica propriamente dita, em que, a partir deum sujeito primeiro S, se constitui umasérie ascendente de atributos P... EDCBA... 296 Ibidem, l. 16: Prova-se, por exemplo, que C e E pertencem ao sujeito A pelos termos médios B e D, respectivamente, constituindo-se silogismos “colaterais”. 297 Cf., acima, II, 3.3. 298 Cf. Prim. An al. I, 25, 42b16-23. 299 Assim, por exemplo, dado o silogismo “A pertence a B, B pertence a C, A pertence a C” (em que há, obviamente, duas premissas tr ê es termos), se acrescentamos um novo termo D e formulamos, então, a nova premissa“C pertence a D”, é possível obter duas novas conclusões e somenteduas : “A pertence a D” e “B pertence a D ”. O acréscimo de umquinto termo E implicar á tr ês novas conclus ões (o número de termos anterior tendo aumentado paraquatro ) etc. 300 Cf. Prim. An al. I, 25, 42b23-5.
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conclusões serão muito mais numerosas que os ter mos e que as premissas”.301 À primeira vista, poderá parecer-nos, então, desconcertante que tenha Arist óteles afirmado, na passagem dos Segundos Anal í ticos que estamos comentando, não serem os princípios dos silogismos, em geral, muito menos numeroso s que as conclus ões, por serem proposi ções, formuladas gra ças à adjunção ouà interpolação de 302 novos termos, desmentindoliteralmente os resultados a que conduzira a análise da estrutura da cadeia silog ística empreendida pelos Pri303 meiros An al í ticos. Parece-nos, no entanto, que a contradi ção aparentemente insuper ável se atenua, ao indagarmos dos intentos específicos que o filósofo persegue, em cada um dos dois contextos: com efeito, enquanto sua inten ção, nosPrimeiro s An al íticos , é a de mostrar as relações numéricas entre premissas e termos, de um lado, e conclus ões, de outro, numa cadeia silog ística, evidenciando o aumento progressivo da diferen ça entre os respectivosúmeros, n à medida que a cadeia se expande, sua preocupa ção maior, no texto dos Segun dos Ana l í ticos , é, ao contrário, como sabemos, a de provar a impossibilidade de todos os silogismos constru írem-se sobre os mesmos princ ípios, donde a suaênfase no n úmero, progressivamente crescente, de princ ípios necessários para a expans ão da cadeia silog ística: ao contr ário do que se poderiapretender,é limitado o número de conclus ões possíveis a partir de um ú nmero determinado de premissas dadas, novas conclusões somente obtendo-se se novas premissas ão acrescentadas, s por adjunção ou interpola ção de termos; e, nesse sentido, se se considera que o número de conclus ões guarda uma rela ção numérica constante com o número de premissas e que adiferença entre os números respectivos de premissas e conclus ões, para uma cadeiarelativamente pequena, tamb ém é, forçosamente, pouco elevada, compreende-se que
301 Ibidem, l. 25-6. 302 Cf., acima, n.289 deste capítulo. b 303 E, por isso mesmo, fala Ross (cf. notaad Seg. Ana l. I, 32, 88 3-7) de uma“careless remark ”, b a que opõe, precisamente, o texto de Prim. Ana l. I, 25, 4216-26:“one is tempted to say that if A. had already known the rule which he states the in Prio r An aly ticshe would hardly have written as he does here, and that An . Pr.I, 25 must be later than the present chapter ”.
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Aristóteles se tenha permitido afirmar que“os princípios não são muito menos numerosos que as conclus ões”. Se, ao invés de considerarmos o car áter geral do argumento, aplicável à silogística geral, detemo-nos, por ém, na sua aplica ção possível à demonstração científica,é-nos dado reconhecer que ele retoma e explicita um ponto importante para a compreens ão de como se constrói a inferência silogística demonstrativa. Com efeito, compreendemos que, formulados os princ ípios primeiros da êcincia, nem por isso se torna possível a inferência continuada e ininterrupta de quantos atributos pertencem ao sujeito égen rico,por si , de que a ci ência se ocupa. Ao contr ário, a mesma natureza da demonstra ção silogística exige que novas proposi ções imediatas e primeiras se formulem a cada 304
passo, uma vez que o únmero de conclus podem obter de ões que selimitado. um número dado de princípios é necessariamente Novos princípios têm de continuamente introduzir-se, istoé, proposições absolutamente imediatas e anteriores, indemonstr áveis, nas quais termo 305 médio algum pode vir mediar entre predicado e sujeito, proposições que exprimem as rela ções entre as afec ções e atributos a demonstrar e os áj demonstrados. Reconhe çamos, ali ás, que tal doutrina, ainda que não tenha sido explicitamente desenvolvida e estudada pelo ósofo fil na sua explana ção sobre os princ ípios, quando se demorou ma is particularmente sobre as quest ões concernentes aos princ ípios primeiros de cada gênero, definições e hipóteses iniciais da demonstra ção, constitui, no entanto, um corol ário imediato daquela mesma prova da existência de princípios indemonstr áveis para a demonstração, que 306 acima comentamos. Pois afirmar o car nmero deteráter finito do ú 307 mos médios numa cadeia de atribui ções, afirmar, portanto, que, se se demonstraP de S, há um número finiton de termos ...DEFGH ...
304 305 306 307
Cf., acima,II, 3.2 e n.77 e 78. Cf., acima,III, 6.5 e n.321. Cf., acima, III, 6.1. A limitação da cadeia de atribui ções nos dois sentidos, ascendente e descendente, tem, como conseq n infinito de termosédios, m üência necessária, a impossibilidade de um úmero cf., acima, III , 6.1 e n.281; III, 6.4 e n.315 e 316.
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intermediários entreS e P, equivale a deixar imediatamente impl ícito S ... DEFGH ... P, os n +1 que, dada a série cientificamente ordenada intervalos ...DE, EF, FG, GH ..., sendo indivis íveis (já que consideramos a totalidade dos n termos médios que medeiam entre S e P, segundo a mesma ordem com que oreal causalmente se articula), ãohnecessariamente de corresponder a outros tantos princ ípios da demonstração em quest ão: conhecemos as atribui ções respectivas de D,... E, F, G ..., respecti...E, F, G, H, ... aS, pelas suas causas imediatas 308 vamente. Nesse sentido,é-nos lícito dizer que, se a êci ncia tem um princípio absolutamente primeiro e absoluto, ela deve, também, continuamente “recomeçar”, para poder continuar a inferir, do conhecimen309 to assumido de seu ênero, g as propriedades que, por si , lhe pertencem. O segundo dentre os êtr s novosargumentos“lógicos” por último 310 introduzidos opunha o número infinito das conclus ões ao número limitado de termos. Expresso de modo extremamente sucinto, o argumento não é de inteligência imediata, mas Arist óteles parece sig311 nificar que, se fossem êidnticos os princ ípios de todos os silogismos, 308 Assim, por exemplo, provaremos que G pertence a S porque G perten ce a F (proposi ção imediata, que atribui Gà sua causa próxima) e F pertence a S (conclusão de silogismo anterior da cadeia). E, assim, a cada um dos termos édios m que se utilizam(como F, por exemplo), corresponde um novo princ ípio da cadeia demonstrativa (como, por exemplo,
“G pertence a F”). 309 E nenhum texto aristotélico encontrar-seá que contradiga tal doutrina sobre oúmero n de princípios, em que pese a Le Blond (cf. Logiqu e et m é thode ..., 1939, p.115-20), que julga encontrar, na obra de Arist óteles, duas diferentes posi ções quanto ao ú nmero de princ ípios da ciência, afirmando-o ora elevado, ora pequeno; nesta, como em muitas outras questões, o ilustre autor est á sempre disposto a interpretar qualquer dificuldade que se lhe anteponha, na interpreta ção dos textos aristot élicos, como indício dum eterno conflito, no pensamento do fil ósofo, entre diferentes inspira ções e tendências que Aristóteles não terá sabido concilia r. Assim, concebe ndo a ci ência, ora como uma longa cadeia de deduções silogísticas, ora como uma investiga ção experimental permanente, Arist óteles ora teria julgado necess ários poucos princ ípios, ora teria crido haver precis ão de princípios em grande n úmero, conforme ao progresso da pesquisa experimental. Em verdade, todos os textos que Le Blond cita, que afir mariam serem em pequeno úmero n os princ ípios das b a b a ciências (por exemplo:Seg. Ana l . II, 19, 1002; I, 25, 8634-37; 5; 27, 8731 etc.), nada dizem nem sequer sugerem a esse respeito! b 310 Cf. Seg. An al . I, 32, 88 6-7; acima, n.290 deste cap ítulo. b 311 Seguimos, literalmente, a interpretação de Ross (cf. nota ad Seg. Ana l . I, 32, 88 3-7), a que nada temos aopor.
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312 o número limitado de princ ípios − e, portanto, de termos − de que dispomos e gra ças aos quais obtivemos as conclus ões já demonstradas deveria servir, tamb ém, para demonstrar todas as futuras conclusões que vi ecer, em ú nmero ilimitado. Mas éssemos a estabel é absurdo
pretender que umúnmero limitado de termos possam combinar-se de Primeimodo a formar infinitos novos silogismos, como mostraram os ros Ana l í ticos. 313 Identifica-se, facilmente, o car áter dialético do argumento, seja porque ele se fundamenta, ão na n doutrina daêci ncia, mas na teoria geral da silog ística, seja pela pr ópria afirmação do número infinito de conclus ões, uma vez que reconhecemos a impossibilidade 314 do prosseguimento indefinido da cadeia demonstrativa. Quanto ao argumento segundo o qual ãonpodem ser os mesmos os princípios de todos ossilogismos por serem necess ários uns princípios e outros, possíveis (),315 seu caráter amplo e geral transcende, evidentem ente, a esfera da ciência, em que ãno tem lugar 316 a contingência. Haveria outra s maneiras de entender -se a afirma ção de que ãso os mesmos os princ ípios de todos os silogismos que ãonessa que acima consideramos e que se nosrevelou inaceit ável? Seria, por certo, ridículo () dizer que os princ ípios são os mesmos no sentido de que são os mesmos os princ ncias particulares, ípios de cada uma dasêci áj que estaríamos reconhecendo, simplesmente, que os diferentes princípios das ciências são a si mesmos id ênticos.317 E também seria demasiado ingênuo ( ) pretender que os princípios são os mesmos, no sentido de que a demonstra ção de uma conclus ão qualb Prim. An al. I, 25, 42 Superior de uma unidade aonúmero de premissas, cf. 6-7. Cf., acima, n.298 a 300 deste capítulo. Cf., acima, III, 6.4. b Cf. Seg. Ana l . I, 32, 88 7-8; acima, n.291 deste cap ítulo. Empregado em sentido simples, por oposição ao necessário, designa sempre o contingente, o que pode ser de out ra maneira, conforme ao segundo sentido do termo, distinguido pelo ófilsofo, nosSegundos An al íticos , cf., acima, III, 4.3. De qualquer modo, a mesma oposição entre o necess ário e o freqüente (primeiro sentido de ) serviria igualmente, no texto de I, 32, ao prop ósito de Aristóteles. b 317 Cf. Seg. Ana l . I, 32, 88 10-5.
312 313 314 315 316
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quer exigiria o concurso de todos os princ ípios:318 manifestamente, não é o que ocorre nasmatem áticas nem pode isso verificar-se na á-an lise dos silogismos demonstrativos, onde o surgimento de uma nova 319 conclusão exige a introdu Também ção de nova proposi ção imediata. não se poderá pretender queãso os princípios primeiros, as primeiras proposições imediatas, queãso os mesmos para todas as demonstrações,320 pois não há mais que um único princ ípio primeiro para cada ê- g 321 nero. E, se se tentasse, ainda, contornar a dificuldade, pretendendo-se que os princ ípios são genericamente os mesmos ( ), ainda que diferentes para cada ência, ci 322 mais uma vez lembrar íamos a diferen ça genérica entre os princípios das demonstra ções concernentes aêgneros diferentes. Todosesses novos argumentos alinhados peloósofil fo revelam-nos amplamente sua insist ência em premunir-se contra toda e qualquer tentativa de atenuar a doutrina insuper da ável dispersão do saber cient ífico em múltiplas ciências que nenhum saber uno poderá englobar: recusando, como vimosúno ltimo argumento, uma qualquerentre todas as coisas, Arist óteles leva ao extremo limite sua oposi ção à unidade do ser e, por conseguinte, do saber que no-lo decifra.
5 A d ivis ão das ci ências 5.1 As ciências, as partes da alma e as coisas
A doutrina aristot élica dos g êneros e dos princ ípios, que longamente estudamos nas p precedentes, mostrou-nos imposa áginas sibilidade de uma êcinciaúnica de todas as coisas, desvendando-nos 318 319 320 321 322
Cf. ibidem, l. 15-20. Cf. ibidem, l. 19-20: . Cf. ibidem, l. 20-1. Cf., acima, n.56 deste capítulo. Cf. Seg. Anal . I, 32, 88b21 seg. Sobre a possibilidade de Arist óteles visar aqui, diretamenAristotle ’ s Criticism of P lato and the Academy , New York, te, Espeusipo, cf. H. Cherniss, Russell, 1944, I, p.73, apud Ross,ad 88b9-29.
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o quadro de um saber necessariamente diversif icado, que se multiplica segundo as“regiões” e os gêneros em que o mesmo serse divide. Se nossas primeiras considera ções sobre a no ção de ciência áj nos tinham revelado, nesse“estado” privilegiado da alma, um car áter eminentemente relativo, porãn o poder dissociar-se daência ci a refer ência a seu 323 mesmo objeto, por que ela se define, o estudo dos gêneros da demonstração veio retratar-nos, com mais precis ão, essa relatividade e necessária dependência, ao mostrar-nos a unidade de cadaciência 324 determinada pela unidade de seu g ao mesmo temênero-sujeito, po que se nos manifestava ãonser a diversidade dasências ci mais que o reflexo especular das diferen ças genéricas inscritas na natureza das 325 próprias coisas: a própria impossibilidade da , na demons tração, de um gênero a outro surge, sob esse prisma, como a “projeção” dessa irredutibilidade ontol ógica fundamental sobre o discurso da ciência. Se assim é, uma divisão e sistematização das ciências, no aristotelismo ã no pode, obviamente, fundar-se sen ão na própria natureza do objeto. É nesse sentido, ent ão, que há de interpretar-se a famosa tripartição das ciências em teóricas (), práticas () e produtivas oupoi é ticas (), de que nos falam á vrios textos de Arist óteles.326 É verdade que uma passagem de Met. , 1 − um dos textos mais importantes para o estudo do sistema das ciências− parece explicar aquela tripla divis ão por uma divis ão correspondente das faculdades intelectivas; com efeito, argumentando para mostrar que aísica f é uma ciência teórica, prova o texto que aelnão é prática nempoi é tica , acrescentando: “por conseguinte, se todo pensamento() é prático oupoi é tico ou teórico, a ífsica será uma ciên323 Cf., acima, I, 1.2. 324 Cf., acima, IV, 1.2 e n.9 e 10. 325 Cf., acima, IV, 4.2. a 326 Cf. Met. , 1, 1025b18 seg.;, 7, 1064a10 seg.;Tóp. VI, 6, 145a15-6; VIII, 1, 157 10-1;Ét. a Ni c. VI, 2, 1139 27-8 etc. Se essa divis ão tripartite ocorre nas passagens dogm áticas em que trata o filósofo do sistema das ci ências, vários textos há, entretanto, que opõem, à ciência eà inteligência teórica, tão-somente a intelig ência e a ciência prática, cf.Met. , 1, 993b20-1;Da Alma I, 3, 407a23-5 etc.
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cia teórica”.327 Não se esqueça, porém, de que as divisões da alma intelectiva se fundamentam naópr pria natureza dos objetos que conhecem, com queêtm “semelhança e parentesco ”.328 E já os Tópicos exemplificavam a regra geral segundo a qual “diferen as ças” () que especificam as coisas relativas ão stambém relativas, com as “diferenças” da ciência: esta diz-seóte rica, prática epoié tica e, em cada um desses casos, significa-se uma rela ção, a ciência sendo te órica, práti329 ca oupoié tica dea lguma coisa( ). Como se vê, a mesma triparti ção se determina pela rela cada uma dasêtr s ção aos objetos respectivos de partes. Por outro lado, se consideramos as subdivis ões do grupo das ciências teóricas − o único dos três grupos de ciências que o filósofo examina com precis ão330 −, patenteia-se-nos, com clareza ainda maior, que física, matemática e teologia se distinguem, precisamente, pela natureza distinta de seus objetos: enquanto ísica a f concerne aos seres separados, mas não imóveis ( ’ ), a matemática ocupa-se de seres imóveis, mas não separados ( )e a filosofia primeira ou teologia diz respeito aos seres, ao mesmo tempo, separados eóim veis ( ).331 Tínhamos, aliás, visto, acima, como se opunha aêci ncia 327 Met. , 1, 1025b25-6. 328 Ét. Nic . VI, 1, 1139a6 seg.; acima, I, 1.3 n.72 a74. Cf., também, Mure, Aristotle , 1964, p.129 seg. 329 Cf. Tóp. VI, 6, 145a13-8. 330 Vejam-se ostextos acimacitados, n.326 deste cap ítulo. Quantoàs ciências práticas, um b texto daÉtica a Eud emo (cf. I, 8, 1218 14-5) aponta, como êci ncia dominante, cujo objeto é o fim supremo para o homem, aquela que sesubdivide em pol ítica, econômica e prudência, respectivamente concernentes à cidade,à família e ao indivíduo; como observa Goldschmidt (cf.“Le système d’Aristote”, 1958-59, p.14; v., acima, cap.I,n.116), esse texto se inspira, manifestamente, de Ét. Nic . VI, 8. EmÉt. Nic. I, 2 (veja-se todo o cap ítulo), ao mesmo tempo que se afirma o car áter arquitetônico e dominante da pol ítica, ciência do bem supremo, agregam-se-lhes, como disciplinas subordinadas, égia, estrat econôb
poi ticas
mica retórica, cf. pormenorizadamente, ibidem, 1094 3. Por outro doética, conjunto dasse étcnicas ão tratoue Arist óteles, sen ãlado, o da po a que poderia é talvez, n acrescentar a ret órica, enquanto elaãno se considera na sua subordina ção à política, mas em si mesma. 331 Cf. Met. , 1, 1026a13-6. Aceitamos, com Ross (cf. nota a d l. 14) e, praticamente, com a quase totalidade ods comentadores e aut ores modernos,a emenda de Schwleger, corri-
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do ser enquanto ser às ciências particulares, que recortam partes do 332 ser e delas, particularmente, se ocupam. 5.2 A ção, produ ção e contingência
Se, à primeira vista, pareceãn o oferecer-nos maior dificu ldade a compreensão do critério que presideàs divisões e subdivis ões do sis333 tema aristot élico do saber e se, do mesmo modo, nos é imediata a inteligência das diferen ças entre as tr ês ciências teóricas que o fil ósofo reconhece, for çoso é que nos interroguemos sobre como justificar a cientificidad e conferidaàs disciplinas pr áticas epoi é ticas . Com efeito, a Ética Nico m aqu é ia é bastante expl ícita ao mostrar que o pensamento prático e opoi é tico , que também ela opõe ao pensamento te órico,334 concernem ao domínio da contingência: “Ao que pode ser de outra maneira ( ) pertence, também, o queé produzido () e o que é feito (), mas são coisas diferentes a produção () e a ação () ... Por conseguinte, também o estado ou disposi ção () prática acompanhada de raz ão é diferente gindo, a l. 14, a lição unânime dos códigos, , por ; contra , cf. Décarie, L’ objet de la m é taphy sique se lon Aristote , 1961, p.137, n.3. Quanto ao fato de apenas referir-se Aristóteles a algumas partes da matem ática ( , cf. l. 14), parece-nos razoável a explicação de Ross (cf. notaa d l. 9), vendo, a í, uma alusão à distinção entre a matemática pura e as“pa rt es f ísicas da ma tem ática ”, comoótica, astronomia etc. Sobre a rt es f í sicas da m atem ática ”, “separação” matemática, cf., acima, n.123 do cap.I; sobre “paas IV, 1.3. 332 Não nos cabe discutir, aqui, como aência ci do ser enquanto ser acaba, finalmente, por confundir-se com a teologia,à primeira vista uma ci ência particular, como aísica f ea matemática. Como diz Arist óteles (cf.Met. , 1, 1026b29-32), se h á uma essência imóvel, a ciência que dela se ocupa é a filosofia primeira “e universal porque primeira ” (ibidem, l. 301), cabendo-lhe o estudo do ser enquanto ser. Lembremos, apenas, como o problema do ser se converte, emMet. , no problema da ess ência (cf.Met. , 1, 1028b2-7). 333 Não abordamos, neste par ágrafo, o problema do sistema aristot élico do conhecimento e a questão correlata da divis ão das ciências senão na exatamedida do suficiente para mos−
−
trar, como relacionam e comoestudo se conciliam com adaquelas doutrinaquest aristot An se al í ticos da ciêsucintamente, ncia, nosSegundos . O melhor a respeito õeséélica ,a nosso conhecimento, o desenvolvime nto por Goldschmidt, em curso proferido em 19581959, na Universidade de Rennes (cf., acima, n.116 do cap.I). Cf., tamb ém, Zeller,Die Philosophie d er Griechen II, 1963, 2, p.176 seg.; Hamelin, Le sys t è me d ’Aristote , 1931, p.81 seg. a 334 Cf. Ét. Nic . VI, 2, 1139 27-8.
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do estado ou disposi ção produtiva acompanhada de raz ão”.335 Por outro lado, como nenhuma arte éou cnica t ( ) há que não seja uma produtiva acompanhada da raz ão, assim como não há alguma dessa natureza queãno seja uma, é idêntica a arte ouétcnica a um estado ou disposi o verdação produtiva acompanhada de ãraz deira.336 Se, consideramos, por sua vez, as partes da alma racional, vemos que ao conhecimento das coisas necessárias corresponde a parte cient ífica ( ), que tem na sabedoria ( ) sua virtude, enquanto ao conhecimento das coisas contingentes corresponde a partecalculadora ( ) ou opinativa ( ), cuja 337 virtude é a sabedoria pr ática ou prudência (). E, na qualidade de“estado ou disposi ção prática verdadeira acompanhada de razão, concernenteàs coisas boas e m ás para o homem ”,338 a não é ciência, uma vez que o objeto daçã ao é contingente339 e que a 340 ação concerne sempre às coisas singulares; por outro lado, a tarefa principal do homem prudente ( ) é a boa delibera ção, “mas ninguém delibera sobre as coisas que n ser de outra maneira ão podem ”.341 5.3 Os elementos teóricos das ciências p r áticas e poiéticas
Mas, se assimé, em que sentido pode oófil sofo falar-nos deci ências práticas e de ci ticas ? Parece-nos que o caminho para a ênciaspoié a 335 Ét. Nic. VI, 4, com., 1140 1-5. A produção distingue-se da çã a o, por exemplo, na medida em que o fim ( ) da produção é diferente dela pr ópria e se encontra na coisa produzib da, enquanto a çã a o boa () é, ela própria, seu próprio fim, cf. ibidem, 5, 1140 6-7. a 336 Cf. ibidem, 4, 1140 6 seg. E falar, portanto, de ciência “poiética” eqüivale a fazer a cientificidade penetrar no dom ínio da própria . b 337 Cf. Ét. Nic. VI, 1, 1139a6 seg.; 11, 1143b14-7 (e acima, cap.I, n.71); 5, 1140 24 seg.; 7, a 114116-20. 338 Ibidem, 5, 1140b4-6. 339 Cf. ibidem, l. 2-3. Por certo, aprudência também não é arte, pois são diferentes os êgneros da ação e da produção (cf. ibidem, l. 3-4) e oproblema moralãno se coloca, imediata-
mente, para as artes, em si mesmas moralmente indiferentes, cf. ibidem, l. 22-4. De qualquer modo, por ém, uma vez que, na produ ção, também se persegue um fim (ainda que não seja imanenteà atividade produtiva), comanda ao intelecto poi é tico o intelecto queé a 36 seg. “em vista de algo” ( ) e prático, cf. ibidem, 2, 1139 a 340 Cf. ibidem, 7, 1141b16; VI, 8, 1142 23-5; cf., tamb ém, III, 1, 1110b6-7. b a 341 Ét. Nic. VI, 7, 114110-1; cf., tamb ém, 1, 113912-4.
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solução da aporia deve principiar pela considera ção dos textos em que opõe o filósofo os fins que elas perseguem àquele que visa o saberóte rico:“com efeito, o fim da êci ncia teórica é a verdade, o fim da ci ência prática, a ação (); e, de fato, mesmo se eles examinam como se comportam as coisas, os homens ápr ticos não consideram o eterno, mas o queé relativo e moment âneo”.342 E, mostrando que a Pol ítica, suprema e arquitetônica, é a ciência do Bem Supremo para o homem,343 a Ética Nic oma qu é ia aponta-nos, tamb ém, como fim ( ) da 344 ciência política,“não o conhecimento, mas açã ao”. Nem é por outra razão que o estudo de uma talêci ncia nada encerra de útil ou proveitoso para o homem jovem, naturalmente inclinado a seguir suas paixões;345 inexperiente nasçõ a es da vida, tamb ém não pode ele ser um bom ouvinte deçõ lies de Política, cujos argumentos êmt seu ponto 346 de partida naquelas çõ a es e a elas concernem. Alguns capítulos adiante, aÉtica testemunhar á de si própria nestes termos: “Uma vez, pois, que o presente tratado ãontem em vista a contempla ção (), como os outros (não é, com efeito, para saber o que é a virtude que indagamos, mas para que nos tornemos bons, uma vez que, de outro modo, nenhuma utilidade haveria nele), é necessário examinar o que concerneàs ações e como devemos pratic á-las”.347 Ora, se se lêem esses textos com aten njunto dos ção, a luz que projetam sobre o co escritoséticos e políticos de Aristóteles permite-nos ila ções que poderão ajudar-nos a compreender a qu estão, que nos preocupa, da cientificidade do saber ápr tico epoi é tico . Pois não se trata, em verdade, de recusar a presen ça de elementos te óricos nas ciências da prática e da produção: a especulação sobre o Bem Supremo, no livro I da II, ou toda a Ética , ou a que concerneà natureza da virtude, no livro reflexão sobre anatureza do Estado e sobre as constitui ções políticas, 342 343 344 345 346 347
Met. , 1, 993b20-3; lemos, com Ross, a l. 22: ’ .
Cf. Ét. Nic ., I, 3, 1094a18 seg. Ibidem., 1095a5-6. Cf. ibidem, l. 4 seg. Cf. ibidem, l. 2-4. b Ét. Nic. II, 2, com., 1103 26-30.
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na Política , para tomar alguns poucos exemplos, constituem suficiente evidência do caráter tamb é m te órico de tais ci ências. Nem constitui objeção contra o que avan çamos o fato de o pr óprio filósofo ter-nos, desde o início daÉtica , prevenido de que seãon pode buscar a mesma 348
exatidão em todos os discursos e de que, porque“é próprio do homem cultivado buscar a exatid ão, em cada êgnero, tanto quanto a natureza da coisa o admite ”,349 é preciso, no que concerne aos objetos de que aPolítica se ocupa, contentar -se em mostrar a verdade “de maneira grosseira e esquem ática ( )”.350 Pois a mesma 351 passagem, ao lembrar a grande diversidade de opini ões e as divergências a respeito das “coisas belas e justas, sobre que a Pol ítica indaga”, diversidade e diverg ências estas de tal monta que fazem tais coisas “parecer ser apenas por conven ção, mas não por natureza”, implicitamente áj reconhece– e o restante do tratado o confirmar á amplamente− que se prop õe a Política estudar, algo que é, por natu reza . Não surpreender á, por certo, um comportamento necess ário de seu objeto, mas,ãto-somente,freq üente ( ) e é preciso que nos contentemos, se falamos de coisas apenas freq üentes e partimos de premissasfreq üentes , em ter conclus ões que compartilham essa mesma 352 natureza; o freq üente , porém − já o sabemos353 −, não se alinha ao lado da conting ência, masé, antes, uma necessidade estorvada e impedida. Em outras palavras, digamos ueqa complexidade do univer so das ações humanas e a interven ção constante e poderosa da contingência, que, mais do que no mundo ífsico, nele se ád continuamente, não obstam a que, com a exatid ão que a mat éria comporta, venha dele ocupar-se umaciência que o estudar á “teoricamente ”. E algo de an álogo deveria poder diz er-se a propósito do saber que concerne à produção e à técnica. 348 349 350 351 352 353
b Cf. Ét. Nic. I, 3, com., 1094 11 seg. b Ét. Nic. I, 3, 109423-5. Cf. ibidem, l. 19-21. Cf. ibidem, l. 14 seg. Cf. ibidem, l. 21-2; acima, III, 4.6 e n.230. Cf., acima, III, 4.6.
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5.4 O homem, a contin gência e os limit es da cientificidad e
E, entretanto, malgrado seus ineg áveis elementos teóricos, ciências práticas epoi é ticas não se dirão teóricas.É, que, contrariamente ao saber em que seãno visa se não o mesmo saber, com posse do objeto que se nos dá à alma e se contempla, as ências ci pr áticas epoi é ticas se adquirem para a produ a o a que, de algum modo, insção e para a çã trumentalmente, se subordinam; dada a relativa precariedade de seus objetos, em que apenasãonsucumbe a necessidade ante a conting ência, em que a freq üência e a const ância com dificuldade se divisam, sob a interferência continuada de causalidades acidentais, por isso mesmo, não nos interessam taisêci ncias pela sua pr ópria cientificidade , isto é, em virtude de sua“teoricidade”, mas ao contrário, enquanto requisitos indispens a oe áveis à nossa inserção feliz no mundo da çã da produção efetivas, nesse dom ínio da conting ênciaem que emp reendemos a ções singulares e produ zimos coisas singula res , em condi ções e cir354 cunstâncias particulares e determinadas. Se o saber cient ífico prático e p oi é tico respeita à contingência, não é, então, porque, sob qualquer prisma que seja, possa a conting ência tornar-se objeto de ciência– uma tal eventualidade exclui-se por defini ção –, mas porque o freq üente que tal saber conhece seão n busca conhecer seãno para 355
freq üência implica melhor enfrentar a conting ência que a mesma
e para homem inserir -se melhor nela. E, destarte, é subordinado o ao , o universal aoparticular, a ci ência à ação e à produção, istoé, às condições de vida. Resta, de qualquer modo, que 354 E, desse modo, os silogismos que concernemàs ações a praticarsilogismos ( pr áticos ) utilia zam, como premissa maior, a mesma defini ção do Bem Supremo (cf. 31Ét. Nic. VI, 12, 1144 3) ou um princ ípio geral a ela subordinado, portanto, uma proposi ção estudada e conhecida pela Ciência da ação humana, masãvo buscar suas premissas menores, que exprimem os pontos de aplica ção daqueles princ ípios, nos resultados de uma delibera ção opinativa que julga e discerne as coisas particula res, na esfera da conting ência, cf.Da Alma III, 2, b 434a16 seg.;Ét. Nic. VII, 3, 1146 35 seg.; cf., tamb ém, Aubenque,La pru dence chez Aristote , loc. cit ., p.139, n.3) estabelece, com ãraz 1963, p.139-43. Aubenque (cf. o, a analogia entre o “silogismo da ação” e o “silogismo da produção”, que se pode reconstituir a partir de Das Parte s dos Anim ais . alguns textos aristot élicos daMetaf ísica e do tratado 355 Cf., acima, III, 4.2.
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ciências da ação e da produção com ação e produção se não confun356 dem, obviamente; mas possuindo-as, pode o homem aristot élico, agindo e produzindo, trabalhar de pautar sua vida pelo conhecimento do que sempre ou no mais das vezes é, até o extremo limite em que ainda não triunfa o que sempre pode ser deoutra maneira. Com as noções de ciência prática e de ci ênciapoi é tica , estendeu assim, o ó filsofo, até o extremo limite do que lhe per mita a coer ência sistemática da doutrina, a no ção de ciência, recuperando para a cientificidade aqueles mesmos dom ínios da ét cnica e da arte que o platonismo ão tseve357 ramente desqualificara.
356 Mas também não acompanharemos Zeller , quandopretende que atriparti ção das ciências ticas concerne, tamb em teóricas, práticas epoi é ém, à filosofia e que se pode, por conseguinte, falar de filosofiasápr ticas e de filosofias poi é ticas , cf.Die Phi losophi e der Griechen , 1963, II, 2, p.177-8, n.5. 357 Como nota Goldschmidt (cf. “Le système d’Aristote”, 1958-59, curso in édito, p.17), há, no platonismo, uma constante “condenação” das técnicas, sempre contrapostas à filosofia e à moral, enquanto a oposi ção entre ciências teóricas e práticas, pode dizer-se que, de algum modo, remonta a Plat ão. O livro VII daRep ública exclui, como se sabe, doúnmero dos estudos capazes de atrair alma a do devir para o ser, juntamente com aágin stica e a música, as técnicas artesanais ( ), cf.Rep. VII, 521c2b; e tem, quase sempre, em Platão, um sentido nitidamente pejorativo, cf. os exemplos coligidos por E. de la lan gue philosophique et religieuse de Platon des Places,Lexique in , t. XIV das Œuvres Complètes de Platon, Collection des Universit és de France, Paris, “Les Belles Lettres ”, 1964, 1ère partie, p.97, v..
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V Definição e demonstração
O exame dos principais temas estudados pelo livro I do s Segundos Analíticos possibilitou-nos, nos cap ítulos precedentes, a compreensão do processo demonstrativo operado pela ci ência a partir de primeiros princ ípios indemonstráveis, em que definições e hipóteses conjugadas e fusionadas assumem, ao mesmo tempo, o ser e a qüididade de gêneros-sujeitos cujas afecções “por si” se vão demonstrar; pudemos, destarte, compreender em que sentido as definições são princípios, para a ci ência demonstrativa aristot élica. Por outro lado, desde o mom ento em que, pela primeira vez, abordamos a noção de “por si”, verificando como as duas acep ções de “por si” que interessam à ciência dizem respeito a definições e qüididades, pudemos constatar os estreitos v ínculos entre as problemáticas respectivas da defini ção e da demonstra ção.1 E a prova analítica decisiva da existência de princípios indemonstráveis para a demonstração valeu-se, precisamente, dessas acep ções de “por si” para, em seguida estabelecer , argumentando coma finidade das 1 Cf., acima, III, 1.3 e n.45.
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qüididades, o car áter necessariamente finito das cadeias silog ísticas demonstrativas.2 Ao mesmo tempo, porém, que assim se referiaà definibilidade da coisa demonstrada, recusava-nosóosofo fil que se pudesse ela conhecer sem demonstra çã o: 3 “ pois conhecer cientificamente, ãno por acidente, as coisas de que h á demonstra ção é ter a demonstração”.4 Compreendemos, então, que boa parte do livro II dos Segundos Analíticos tenha por escopo esclarecer de vez a questão das relações entre definição e demonstração;5 e a julgar pelas palavras com que o ófilsofo porá termoà discussão, não resta dúvida de que crê seu intento devidamente alcan çado: “É, então, manifesto, a partir do que ficou dito, como áhdemonstração do ‘o queé’ e como não há e de que coisas áhe de que coisas ãno há; ainda, em quantos sentidos se diz‘definição’ e como ela mostra o ‘o que é’ e como não mostra e de que coisashá e de que coisas, não; além disso, como ela se relaciona com a demonstra ção e de que modoé possível e de que modo não é possível havê-las [subent.: definição e demonstração] de uma mesma coisa”.6 Se se adverte, então, em que os dois cap ítulos seguintes se podem, de algum modo, considerar como um ap êndice a essa discussão7 e que todo o resto do tratado 8 se consagra, em boa parte, a indicações de diversa natureza a respeito da organização e “tratamento ” prévios das
“questões científicas” que precedem a dedu ção demonstrativa, para culminar, finalmente,nas famosasconsiderações sobre a aquisi ção 9 dos princípios das ciências, com que o tratado se termina,tornase-nos manifesto que o segundo livro dos Segundos Analíticos é 2 3 4 5
Cf., acima, III, 6.4. Cf. Seg. Ana l. I, 22, 83b34-5; acima, III, 6.3 e n.307. Seg. Ana l. I, 2, 71b28-9; cf., acima, II, 5.2 e n.205. Seg. Ana l. II, cap.1-10, emboraãno se formule claramente a Tal é, com efeito, o objeto de a questão senão nas primeiras linhas do cap.3, cf. 90 38-b3. a
Ana l. II, 10, 9414-9. 6 Seg. Seg. Anal . II, cap.11 e 12. Um íind 7 cio externo de sua liga ção à discuss ão precedente ver-se-á no fato de que Arist óteles principia o cap.13, em referindo-se, globalmente, ao que vem antes, a como a um estudo das rela ções entre a defini ção e a demonstra ção, cf. 13, com., 96 20-2. 8 Seg. Ana l. II, cap.13 seg. 9 Cf. Seg. Ana l. II, 19.
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complemento indispens ável do primeiro, toda a sua primeira parte estruturando-se como um tratado das relações entre a defini ção e o 10 silogismo demonstrativo. Pouco importa, em verdade, que o estilo de sua composição ou a natureza dos exemplos – de natureza antes física ou biol ógica que matem ática– com que ilustra os problemas que aborda possam fazer-nos supor que tenha sido, srcinariamente, uma 11 obra separada.
1 Do que se pergun ta e sab e 1.1 Quatro perguntas que se fazem
Principia o livro segundo dos Segun d os Ana l í ticos por dizer-nos que “As coisas que investigamos são iguais, em n úmero,às que conhecemos”. Ora, nós investigamos quatro coisas: o“que (), o porquê (), se a co isa é( ), o que é( )”.12 Investigar o “que” é indagar, introduzindo uma pluralidade de mos, ter 13 se tal coisaé isto ou aquilo ( ), istoé, se tem, ou não, tal ou qual atributo, como por exemplo se o sol se eclipsa ou não ( ).14 E, descobrindoqu e () se eclipsa, n ão mais indagamos, assim como, se desde o in ício soubéssemosqu e () se eclipsa, não se se eclipsa teríamos, obviamente, investigado ( ). Nem por isso está finda a investiga ção, descoberto o: pois, conhecendo qu e o sol se eclipsa, investigamos, agora, por qu e se eclipsa ( ), assim 10 Mas é, sobretudo, nosT ópicos (livro VI) e emMet. que se encontrará um estudo mais aprofundado sobre a natureza da defini ção propriamente dita. 11 Como pretende Ross, cf.Aristotle ’ s Prio r a nd Posterior Ana lytics , Introduction, p.75. b 12 Seg. Ana l. II, 1, com., 89 23-5. Ross êv, nestas linhas iniciais do livro II, um come ço abrupto (cf.Prior and Posterio r Ana ly tics , Introduction, p.75), sem que note tentativa alguma de relacioná-lo com o livro precedente. Acontece,épor m, que a relação entre o conte údo dos dois livros aparecer á rapidamente, à medida que se desenvolve a argumenta ção preliminar, mostrando a ineg ável complementaridade das duas partes dos Segund os Ana líticos. 13 Cf. Seg. Ana l. II, 1, 89b25-6: . Seguimos, com Tricot , Mure, Ross e Colli (cf., ad locum ), a interpreta respectivamente, ção tradicional de Santo Tom ás, Pacius e Zabarella. 14 Cf. ibidem, l. 25 seg.Sobre o conhecimentodo“que” pela demonstra ção, cf., acima, I, 3.3 e n.172 e 173; nesta última nota, justificamos nossa tradu ção de por “que”.
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como, sabendo qu e a terra treme, investigamos por que treme, fazendo sucederà descoberta do “que” () a investiga ção de porquê (). Mas não se investigam todas as coisas dessa maneira: com efeito, perguntamos,às vezes, simplesmente, se uma coisaé , ou não ( ), se um centauro ou um deus é como, por exemplo, , ouse n ão é ; e o que perguntamos, aqui, é se a coisaé, ou não, em sentido absoluto ( ), e não, por exemplo, seé, ou não, branca.15 Encontrando, então, para tal quest ão, uma resposta afirmativa “conhecendo e que a coisaé ( ), investigamoso que ela é ( ), como, por exemplo, então, o queé deus ou o que é homem”.16 “Essas são, portanto, e nesse número as coisas que investigamos e que, em descobrindo, sabemos ”.17 Assim enumera o filósofo, como se vê, as questões que, habitualmente, se formulam a respeito das coisas, em geral, para as quais procuramos as respostas que, encontradas, interpretamos,ãcom o, raz como um nosso saber sobre aquelas. E grupa os quatro tipos de- per guntas em dois pares, cujos respectivos membros relaciona, de maneira análoga: assimé que opõe ao grupo das quest ões sobre o“que” e o porquê o par constitu ído pelas perguntas sobre se é a coisa eo que é ela. 15 Cf. ibidem,l. 31-3. Evitamos, cuidadosamente,servir-nos do verb o“existir” e do vocabulário da existência, em geral, na tradu ção e comentário desta, como de outraspassagens da obra aristot élica. Em verdade, ãno é difícil verificar como a dif ícil problemática que o Segundos A nal í ticos , respeita, filósofo está em vias de formular, no princ ípio do livro II dos em última análise,à multiplicidade de significa ções de, donde a inconveni ência da introdução de um vocabul ário não-aristotélico que dificultaria, em suprimindo parcialmente o suporte“lingüístico” das questões que o filósofo aborda, a pr ópria compreensão do que se discute e analisa. Por outro lado, se se reconhece que “existência” se pode tomar em diferentes sentidos e que os problemas filosóficos que estes implicam freqüentemente não poderiam, sem evidente anacronismo, transferir-se para filosofia a grega, justifica-se plenamente nossa precau ção, que a maioria dos tradutores e autores parece não crer necess ária. O interessante estudo que S. Mansion dedicaízo ao de ju existência, em Arist óteles (cf.Le jugement d ’ existence c hez Ar istote , 1946, part. p.169 seg.) tem, como pressuposto básico e não discutido, o de que se interpretar ão passagens como a 89b31-3 pelo vocabul ário da exist ência; na medida, entret anto, em que se pretender, com isso significar– como é o caso da autora– uma distinção qualquer entre ess ência e existência, é Gilson quem v ê corretamente o problema, ao mostr á-lo completamente estraL ’être et l ’ essence , 1948, cap.II, p.46-77). nho à filosofia aristot élica (cf. Gilson, b 16 Seg. Anal . II, 1,8934-5. b 17 Seg. Ana l. II, 2, com., 89 36-7.
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E, explicando-nos que é, sempre, no sentido de um ou outro desses dois grupos de quest ões que se orienta toda a investiga ção, mostranos que sucede, sempre, à descoberta de uma resposta afirmativa para a primeira quest ão de cada grupo a investiga ção sobre a quest ão restante;à descoberta do“que” segue-se a investiga ção do porquê, do mesmo modo como se segue,à descoberta do“se é”, a investigação do “o queé”, segundo um esquema de correspond ência e sucess ão que se poderia assim representar: 1º grupo – “que” 2º grupo – “se é ”
→ →
porquê o queé
Observemos, mais de perto, osexemplos de cada uma dessas questões que o texto nos fornece e as indica ções bastante sum árias que mais insinua que explicita, sobre como interpret á-los. Vemos, ent ão, que os exemplos da quest ão sobre o“que” respeitamà atribuição de um predicado a um sujeito (investigamosdescobrimos e qu e o sol se eclipsa,qu e a terra treme) e que a pergunta sobre o porqu ê indagapor qu e pertence tal atributo a tal sujeito por por qu e ( qu e se eclipsa o sol, treme a terra), qual a raz ão da atribui ção previamente estabelecida. Os exemplos de segundo grupo (deus, centauro, homem), por sua vez, parecem indicar-nos que as questões que nele se grupam concernem a essências (reais ou fict ícias) sobre cuja realidade ou irrealidade nos interrogamo s para, em seguida, uma vez conhecida sua eventual realidade, indagarmos de sua defini ção.18 E indagar sobre a realidade de tais coisas, explica-nos oófil sofo,é indagar sobre se u ser, em sentido absoluto () e não, como na questão sobre o “que”, perguntar sobre a possibilidade de atribuir -se ao sujeito tal ou qual predicado. 1.2 A ambig üidade das expressões aristoté licas
Se melhor atentamos, por nas expressões de que se serve o ém, filósofo, percebemo s uma certa flutua ção no uso das part ículas com 18 Uma vez que a defini ção é o discurso do “o que é”, cf. Seg. Ana l. II, 10, 93b29; acima, cap.III, n.6.
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que designa as diferentes esp écies de questões. Com efeito, ao expor que a pergunta sobre o“se é” ( ) se deve entender no sentido absoluto deopõe-na a uma pergunta sobre se a coisa é, ou não, branca ( ),19 destarte utilizando a partícula (se) para introduzir uma quest ão concernenteà eventual atribuição de um predicado (branco) a um sujeito, o que á pouco h caracterizara como 20 uma indagação sobre o () (“que”). E, por outro lado, o conhecimento da resposta afirmativa à pergunta sobre“se o é” (se um centauro 21 ou um deusé ) exprime-se, logo em seguida, como um conhecer “que é” ( ). Tratar-se-ia, acaso, de uma imprecisão da linguagem aristotélica, tanto maissignificativa quanto é certo que“as fra ses e , em si mesmas, ã no sugerem a distin ção entre a posse de um atributo por um sujeito e a exist ência de um sujeito”?22 Não esSegund os Ana l í ticos se servia da exqueçamos, ainda, que o livro I dos pressão , não somente a propósito da atribuição de um predicado a um sujeito nas conclus ões silogísticas23 mas, também, para designar o conte údo do conhecimento assumido pelasóhip teses iniciais da ci ência, em oposi ção à mera compreens ão da significa ção dos termos:“assume-se, pois, o que significam os elementos primeiros e os que destes prov ém; quanto ao“que é”, é necessário assumilo para os princípios, prová-lo, porém, para as outras coisas; por exemplo, assumir oaque ou ozque o reto o triângué a unidade lo, masassumir que unidade e a grande a ãso,ãso prov á-lo,epara as outras coisas”.24 E não se distinguia entre assumir“que o é” e assumiro 25 ser ( ), simplesmente, de alguma coisa, sem refer ência ao problema da atribuição, destarte identificando-se o ao que vimos Cf. Seg. Ana l. II, 1, 89b33; acima, V, 2.1 e n.15. Cf. ibidem, l. 25 seg. Cf, ibidem, l. 34. Ross, Aristotle’s Prior and Posterior Analy tics , p.610 (com. a II, 1). E estima o autor que “Naturally enough, then, the distinctions become blurred in the next chapter ” (ibidem). Le Blond, no entanto, queãonvê a dificuldade , fala-nos das “fermes définitions du chapitre Ier”, cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.181, n.1, ad finem . 23 Cf, acima, II, 3.2, sobre a distinção entre os silogismos do “que” e do porquê. 24 Seg. Ana l. I, 10, 76a32-6; acima, IV,2.3 e n.77; cf.,tamb ém, 1, 71a11-7; 2,71b31-3 etc. 25 Cf. Seg. Ana l. I, 10, 76b5-6; 2, 72a18-20 etc.; acima, IV, 2.2 e IV, 2.3.
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o livroII designar como resposta à pergunta sobre o . Veremos, entretanto, pela seq üência do texto aristot élico, que nem se trata de um descuido na express ão nem de pormenor es sem maior significa ção. 1.3 Ser em sent ido absoluto e ser algo 26 Aristóteles consagra, com efeito, todocap o ítulo seguinte à análise das diferentes esp écies de quest ões a cuja descri ção sumária acaba de proceder. Reproduzamos, então, a primeira parte do texto, objeto de interpretações controvertidas e que,à primeira vista, se nos afigura de intelig ência dificultosa:
Essas são, portanto, e nesse ú nmero as coisas que investigamos e que, em descobrindo, sabemos. Ora, quando investi gamos o“que” ou o “se é”, em sentido absoluto ( ), investigamos, então, se há ou se não há, para isso, um termo m édio (); por outro lado, quando, tendo conhecido o“que” ou “se é”, em parte( ) ou em sentido absoluto(), investigamos, por sua vez, o porqu ê ou o “o que é” ( ), investigamos, então, qual é o médio ( “eclip). Digo o“que é” em parte e em sentido absoluto. Em parte: sa-se a lua? ” ou “cresce?”; com efeito, se uma coisa é algo ou se ãno é algo ( ) , eis o que em tais perguntas investigamos. Em sentido absoluto: se a lua, ou a noite, é ou não ( ). Ocorre, portanto, que, em todas as investiga ções, investigamos ou seáhum termo médio ou qualé o termo médio. Pois a causaé o termo médio ( ) e, em todas as pesquisas, é o que se investiga: “Eclip sa-se?” “Há uma causa ouãn o?” Em seguida, conhecendo que h iná uma, vestigamos, então, qualé ela. Com efeito,a causa de uma coisa se r, ã no isto ou aquilo mas, em sentido absoluto, aência ess ( ’ ) ou de ser, n ão em sentido absoluto, mas algo (), dentre os atributos é o termo médio. Digo em por si ou por acidente, sentido absoluto o sujeito tri ( ), como a lua, terra, sol ouângulo; digo algo() o eclipse, a igualdade e a desigualdade, seáest no meio ou não. De fato, em todos esses casos, é manifesto que são idênticos o“o que é” ( ) e por que é ( ). “O que é eclipse?” “Uma privação da luz da lua pela terra interposta ”. “Por que oeclipseé?” ou “por 27
que se eclipsa a lua? ” “Por faltar-lhe a luz, devido à terra interposta ”. 26 Seg. Ana l. II, 2. b 27 Seg. Anal . II, 2, com., 89 36-90a18. Certos detalhes importantes da tradu ção serão por nós discutidos,à medida que comentarmos e apr ofundarmos o estudo do texto. Este encerra,
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Se comparamos essa passagem com o que nos diz cap oítulo precedente, ao grupar, duas a duas, as quatro perguntas que reconh ece ser possível formular sobre as coisas, constatamos que elas são reinterpretadas e reagrupadas sob novosécrit rios. Com efeito, distinguindo dois grupos de quest ões, um constituído pelas indagações sobre o“que” () e o porquê (), outro constitu ído pelas quest ões sobre o “se é” ( ) e o “o queé” ( ), expusera-nos o fil ósofo28 como toda pesquisa segue sempre uma ou outra dessas duas linhas de investigação, ora perguntando sobre o pertencer ou ão ntal atributo a tal sujeito para indagar, em seguida, pelo porqu ê dessa atribui ção, ora perguntando sobre o ser, em sentido absoluto, de determinada coisa para indagar , em seguida, oqueé ela (as segundas perguntas de ambos os grupos implicando, manifestamen te, que as primeiras tenham recebido, uma e outra, resposta afirmativa). Agora, porém, não mais se contrapõem, umaà outra, as express ões e , mas a distin ção opera-se entre o ou em sentido absoluto (correspondendo ao primitivo ) e o ou em p arte (correspondendo ao primitivo ).29 Em outras palavras, quer se pergunt e sobre se pertence um atributo a um sujeito (se “pertence”, por exemplo, oeclipseà lua, istoé, em verdade, algumas dificuldades de interpreta ção, que têm desconcertado alguns bons intérpretes. Assim Le Blond, que lhe consagra todo um par ágrafo (“Ambiguités sur le sens de ’ê l tre”, cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.168-84) de um cap ítulo cujo íttulo não é menos sugestivo (“Les Apories fondamentales”), crê nele encontrar, antes de tudo, a marca de uma hesita ção do filósofo quantoàs funções do verboser e uma ambig üidade de posições da qual decorreriam contradi ções ou, ao menos, oscila ções na teoria aristot élica da ciência, paralelamente a um entrela çamento pouco claro das órmulas f empregadas e a uma escolha, talvez desatenta, dos exemplos que as ilustram. Mure, porvez sua(cf. nota ad 89b37), julga toda a passagem “obscurely worked ” e Ross, crendo que as distin ções que o capítulo primeiro estabelecera se embaralham no segundo, adverte o leitor de que n ão se esqueça “that A. is makinghis vocabulary as he goes, and has not succeeded in making it as clear-cut as might be wished ”, cf. com. aSeg. Ana l. II, 1; quantoàs considerações em torno dochama-as o ilustre comentador de “perplexing statement ”, cf. com. a II, 2. Buscaremos delimi tar as dificuldades do texto e mostrar com o, a nosso ver, Arist óteles plenamente as soluciona. 28 Cf., acima, V, 1.1. 29 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 89b37-90a5. Ross (cf. notaa d 89b39) tenta manter, de algum modo, a distinção inicial entre as duas expressões: “ further characterizes ... further characterizes ...”, mas não vemos como tal ponto de vista possa
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se a lua se eclipsa, ou se a terraá,est ou não, no meio), quer se pergunte sobre se determinada coisa (a lua, ou ângulo, o tri ou a noite) éou não, a indaga ção concerne, sempre , ao ser, residindo a diferen ça em que, no primeiro caso,é tão-somente sobre“parte” do ser de uma coisa que es pergunta, ao inv és de a pergunta concernir, como no segundo, ao ser absoluto dacoisa. E, num e nout ro caso, falar-seá do “que” ou do“se é”, indistintamente, negligenciando-se a distin ção inicial entre as duas expressões, meramente esquem ática, e corrigindo-se uma aparente im30 precisão que, em verdade, apenas antecipava o que agora se explicita. No primeiro caso, pergunta-se sobre se a coisa é isto o u aquilo ( ), se ela éalgo (), se ela “é” tal ou qual atributo por si ou por acidente (por exemplo , se a lua“é” o eclipse,em pa rte , ou se o triângulo“é”, em pa rte , uma soma de ângulos igual a dois retos); no segune pergunta-se sobre se é do, toma-se um ele ou não, não algo (), masa sua mes ma ess ência ().31 A indagação concerne sempre 32 ao ser eser, para umacoisa, é ser a ess ência ou ser algo, istoé, ser em sentido absoluto ou seus diferentes atributos. “ser”, parcialmente, um de sustentar-se, em face das explicações e exemplos de Arist óteles; por outro lado, aquelas expressões reaparecem, alguns cap ítulos mais adiante, empregadas, de novo, em perfeita a sinonímia, cf. 8, 93 19-20. 30 Cf., acima,V, 1.2 e n.19 a 22. Por isso mesmo, v ê-se que não há por que estranhar que diferentes textos do livro II dos Segund os Ana l í ticos (cf., acima, ibidem e n.23 a 25) se tenham servido da express ão , indistintamente, a prop ósito de uma conclus ão silogística, provando um predica do de um sujeito, ou referindo -seà assunção de um princ ípio cient ífico. 31 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a3-5; 9-14.Entendemos a l. 10, como predicativo de (l. 9) e não como sujeito desse verbo, contrariamente , portanto, ao queparece ser a interpretação de Ross, cf. Prior an d Posterior Ana lytics , p.611 (no resumo que precede o comentário ao capítulo). Tampouco nos parece aceit ável a interpretação de Tricot (cf. notaa d locum ), que parece julgar tratar -se de uma express ão adverbial. A tradu ção de Colli (cf. a d locum ), entendendo, como n ós, a sintaxe do texto, prop õe uma interpreta ção que se aproxima sensivelmente da nossa: “In realt à, la causa del fato che un ogge to sia, non gi àun qualcosa o un qua lcos ’ altro, ma ass olutam ente, cioèuna sostanza , oppure... ”. Quanto ao uso de como sinônimo de qüididade, cf., acima, cap.II, n.157. 32 E eis, então, de que modo interpreta Arist óteles o sentido“existencial” do ser. Como disse, com grande penetra ção, Aubenque (cf. Le problè me de l ’être..., 1962, p.170, n.2): “Lorsque’êltre se ditabsolument ... c’est-à-dire sans pr édicat, il comporte une attribution implicite, qui est celle de’essence: l que se interprete être, c’est être une essence ”. Por isso mesmo, nada justifica a problem ática aristot élica do ser pelo vocabul ário da exist ência: ao anacronismo manifesto vem somar-se um risco grave de completo falseamento da doutrina. Cf. acima, n.15 deste capítulo.
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“Pois não é a mesma coisa ser algo e ser, em sentido absoluto ”,33 assim como, tamb ém, “não é, com efeito, a mesma coisa ão nser algo e, em sen34 tido absoluto,ãonser”. E d izer que um a coisaé algoé atribu ir-lhe, no sentido am plo do te rm o, 35 um acidente: “Com efeito, ‘isto ser aquilo ’ significa )’”.36 ‘sobrevir aquilo a isto ’, como acidente( 1.4 A categoria da essê ncia e as essê ncias das categorias 37 Parecer-nos-á, à primeira vista, como se observou, que se trata, tão-somente, da oposi ção entre perguntas que concernem à essência ou substância e perguntas que concernem a atributos dasências, ess portanto,às outras categorias, na medida em“oque que primariamente é e é, não algo (), mas é em sentido absoluto(), será a es38
sência”. Pois não ignoramos que“ser” “significa, de um lado,‘oo que é’ e ‘isto’ ( ); de outro, a qualidade ou quantidade ou cada uma das outras coisas que, assim, se atribuem ( )”.39 E sabemosque quanto pertence a es sas outras categ oriasãno se dizser senão porqueé ou qualidade ou quantidade ou alguma outraçã afec o d a essência.40 A essência é substrato ou sujeito ( ) para as outras categorias, donde a sua anterioridade absoluta emçã rela oa 41 elas; enquanto nenhuma das outras categorias é, naturalmente, por si,42 dir-se-ão “por si” as essências individuais e suas üididades, q uma essência individual dizendo-se, por si, elaópr pria e sua qüididade.43 Lembremos, poroutro lado,que osmesmos exemplos (deus, homem) com que o fil ósofo ilustrava, desde o princ ípio do livroII dosSegundos 33 Ref. Sof. 5, 167a2. 34 Ibidem, l. 4. 35 Isto é, no sentido em que se designa por acidente tamb ém o atributo“por si” , cf.Met. , 30, 1025a30-2; acima, III, 1.1 e n.18 a 21. 36 Met. , 7, 1017a12-3. 37 Cf. S. Mansion,Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.163. 38 39 40 41 42 43
Met.
a
, 1,l. 1028 Ibidem, 11-3.30-1.
Cf. ibidem, l. 18-20. Cf. Met. , 11, 1019a5-6; , 1, 1028a32 seg.; cf. tamb ém, acima, II, 4.6 en.145 seg. Cf. Met. , 1, 1028a22-3. Cf., acima,III, 1.1 e n.11 seg.
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Anal í ticos , as coisas a cujo respeito se formulam as perguntas sobre o
“se é, em sentido absoluto ” e sobre o“o queé” já pareciam indicar que tais quest ões respeitam apenas a ess ências.44 E, com efeito, perguntar pelo “o que é” é perguntar pela defini ção45 e, em sentido primeiro e absoluto,46somente se falar á em definições e qüididades a prop ósito das essências. 47 Ocorre, porém, que, ao distinguir posteriormente, como vimos, o ser algo e o ser,em sentid o absoluto, d o sujei to , propõe-nos Arist óteles como exemplos desujeitos cujo ser , em sentido absoluto, é objeto de nossa indaga ção e conhecimento, ãno apenas essências individuais, como a lua, o sol e a terra mas, tamb ém, um atributo matemático, 48 como o triângulo, e algo, como a noite, que seãn o pode, manifestamente, tomar como uma essência.49 Além disso, tendo proposto o eclipse, explicitamente, como exemplo “de algo” que pertenceà lua e 50 que esta, portanto,em p arte , “é”, não somente formula o fil ósofo, algumas linhas abaixo, ainda a respeito o eclipse, d a quest ão sobre o 51 “o queé”, mas considera, tamb ém, como perguntas equivalentes, “por queéo eclipse?” e “por que se eclipsa a lua? ”,52 istoé, uma pergunta em que se toma o eclipse omo c sujeito e outra, em que elese propõe como “algo” de outro sujeito.
44 45 46 47 48 49
Cf., acima, V, 1.1 e n.18. Cf., acima, ibidem; cap.III, n.6. Cf. Met. , 4, 1030a29-30;b4-6; 5 (todo o cap ítulo); acima, III, 1.1 e n.17. Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a5; 12-3. Sobre o triângulo, como afec ção “por si” da linha, cf., acima, cap.IV, n.81. Cf. S. Mansion, Le jugement d ’ existence... , 1946, p.164: “il paraît toutà fait invraisemblab le qu’il [subent.: Aristóteles] ait jamais consid éré la nuit comme une substance, ’d autant plus qu’il range ’léclipse parmi les attributs, à côté de l’égalité et de ’linégalité”. Ross, por sua vez (cf. notaad Seg. Ana l. II, 2, 90a5), julga surpreendente a men ção da noite,“where we should expect only substances to be in A.’s mind”. E não é, por certo, explica ção das mais satisfatórias dizer (cf. com. introdut ório a II, 2) que“the questions and , which in ch. 1 referred to substances, have in ch. 2 come to refer so much more to attributes and events that the former referen ce has almost receded from’sA. mind, though traces of it still remain”. 50 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a13. 51 Cf. ibidem, l.15. Também em 8, 93a21 seg., o eclipse aparecer á como exemplo de ser cujos “se é” e “o que é” são objeto de nossa investiga ção. 52 Cf. ibidem, 2, 90a16-7.
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Haveria, por certo, que estranhar tais exemplos, com que ilustra Aristóteles a problem ática que desenvolve, seãonnos recordássemos de que a mesma teoria aristot élica da essência nos ensina que, num segundo sentido,é possível falar de qüididades e de defini ções, tam53
bém a propósito de outras categorias que ora, não ãona da essência; 54 é qüididade de uma coisa sen ão aquilo que ela, por si própria,é, donde ser manifesto que colocar a respeito de um ser qualquer ,n ão importa em que categoria, o problema da üididade q eq üivale a consider á-lopor si , tal como uma ess ência, em sentido absoluto. E a possibilidade de assim proceder,é preciso reconhec ê-lo, está imediatamente inscrita na mesma formula ção geral da doutrina das categorias: com efeito, embora constituindo afecções da essência, não são as categorias adjetivas, menos que a ess ência, gêneros supremos do ser55 e o mesmo fato de serem inexoravelmente irredut íveis, umas às outras e, tam56 bém, à essência, explica que possa o ófil sofo ter-nos dito que“se dizem ser por si quantas coisas se significam pelas figuras çã dao”atribui .57 Porque são as diferentes significa ções do ser,é sempre possível em si mesmos consider á-las, nelas discriminando sujeitos a cujo respeito formularemos quest ões e respostas sobre“ose é” e sobre o“o queé”.58 E, retomando o mesmo esquema queõop e a categoria substantiva às adjetivas, oporemos, no âmbito interno de cada uma destas últimas, utilizando o mesmo vocabul ário da essência, essências a atributos ou afecções das ess ências, ao mesmo tempo que, identificando ência ess e qüididade, n ão hesitarem os em falar , por exemplo, da ess ência de uma 59 esfera ou de umírculo. c Se tal doutrina recordamos, compreendemos, 53 54 55 56 57
Cf., acima, III,1.1 e n.22. Cf. Met. , 4, 1029b13-4. Cf., acima, IV, 4.2 e n.231. Cf., acima, IV, 4.2 e n.232. Met. , 7, 1017a22-4; cf., acima, cap.II , n.21; III, n.22. E n ão se esqueça que “ser, em sentido absoluto” ( ) designa, por vezes, em Arist óteles, o ser enquanto ser, a
’das diferentes categorias, Met. um de sentidos o ser cf. , 2, com., 102633 éb15 seg.; , cujos 8, com., 1064 seg. 58 Cf. Tóp. I, 9, 103b27 seg., onde Arist óteles mostra, com exemplos, como significar “o que o é” é significar ora a ess ência, ora a qualidade, ora a quantidade, ora uma qualquer das outras categorias. a u I, 9, 278 59 Cf. C é 2-3.
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então, finalmente, que o que nos explica, em última an álise, Aristóteles, no início do livro II dosSeg un d os Ana l íticos , é que, ao interrogarmo-nos sobre uma coisa qualquer , duas linhas deinvestigação se nos apresentam: indagar do seu, em ser sentido absoluto, per guntando se elaée tomando-a, portanto, como um sujeito – e ser, em sentido absoluto, sob esse prisma, significa,ão, ent ser uma ess ência ou uma qualidade ou uma quantidade... e, mais precisamente,suser a a qüididade ou ess ência , numa qualquer das categorias do – ou serent ão, se não se trata de ess ências, no sentido primeiro da express ão, indagar se pertence a coisa, ou ão,n a tal outro sujeito: a indaga ção respeita, neste caso, a uma “parte” do ser desteúltimo. Se a uma ou outra dessas perguntas seádresposta afirmativa, indagaremos, por sua vez, - res pectivamente, daüqididade do sujeito ou do porqu ê da atribuição. 1.5 Perguntar pelo ser, perguntar sobre a causa
Pergunta-se sempre sobre ser, o mas pergunta-se sempre, tam60 bém, sobre a causa. Com efeito, vimos que o filósofo, reunindo as questões que previamente distinguira como concernentes, respectivamente, ao “que” e ao“se é, em sentido absoluto ”, interpreta-as, uma e outra, como uma seja, indaga se há, aou nçã termo médio ção sobre para ão,o um ( ) para a coisa, portanto, atribui de um predicado a um sujeito, seja para o fato de a coisa, em sentido absoluto, ser. E, de modo semelhante, interpretan do em termos de causalidade as duas restantes quest ões, aquelas que respeitam ao porqu ê e ao“o queé”, respectivamente, vimo-lo dizer-nos61 que tais perguntasãno mais fazem que indagar qual o termo ém dio implicado pela s respostas afirmativasàs duas quest ões primeiras.“Ocorre, portanto, que, em todas as investigações, investigamos ou seáhum termo médio ou qualé o termo médio. Pois a causa é o termo médio e, em todas as pesquisas, é 60 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 89b37-8; acima, V, 1.3 e n.27. 61 Cf. ibidem, 89b38-90al; acima, V, 1.3 e n.27.
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o que se investiga ”.62 Era-nosóbvio, por certo, nem precisava Aristóteles advertir-nos, que, aopassar da meraconstata ção da presença de um atributo num sujeito ( ) a uma pesquisa sobre o porqu ê dessa atribuição (), indagávamos sobre a causa. Em verdade, porém, confere o filósofo à sua interpreta ção causal da pesquisa qualquer uma dimensão muito mais ampla:ãn o apenas a busca expressa do porqu ê, mas toda indaga ção sobre um ser implica uma indaga ção sobre a causa, eis a lição que o filósofo nos ministra. Pergun tar se a lua se eclipsa equivale, ent ão, a perguntar seáhuma causa para que se eclipsa, assim comoperguntar, simplesmente, sea luaé, em sentido absoluto, equivale a indagar se á uma h causa para que, em sentido absoluto, luaa 63 seja. E, quando se sabe que á tais h causas e se conhece, pois, ser algo o ou o ser, em sentido absoluto, de umaisa, co as perguntas pelo por qu ê da atribui ção e pelo“o queé” da coisa êvm, tão-somente, demandar que se identifiquem as causas cuja presen ça se reconheceu epelas quais, implicitamente,á jse perguntara: indaga-se qual aquela causa por que se eclipsa a lua ou qual a causa por que a lua, em sentido absoluto, é. Para mostrar que as diferentes perguntas significam, todas, uma pesquisa da causa ou “médio”, argumenta Arist óteles64 com o exemplo dos casos em que o“termo médio” pode ser objeto dapercepção sensível: somente ocorre, nesses casos, uma investigação sobre o“se
é” ou sobre o porqu ê, se aquela percep ção nos falta. Assim, se estiv éssemos na lua e tivéssemos a percepção da interposição da terra e, conseguinteme nte, do eclipse,ãno indagaríamos, por certo, se se produz o eclipse ou por que ele se produz, mas íamos ter imediatamente, a partir da mesma percep ção, embora não por ela, o conhecimento do 65 universal e da causa.
62 Ibidem, 90a5-7. Concordamos plenamente com S. Mansion, quandoarejeit (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.31, n.66) a tradu ção de Robin:“le moyen terme est cause ” (l. 6-7), car le but d Aristote dans ce chapitre est de montrer que la recherche scientifique est une “ ’ recherche du moyen terme, parce quest une poursuite de la cause, et non’inverse pas l ”. ’elle 63 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a7 seg. 64 Cf. ibidem, l. 24-30. 65 Cf., acima, III, 2.7 e n.163 e 164.
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É ainda com o eclipse– e com o exemplo an álogo da harmonia– que o filósofo exemplifica a identidade entre as quest ões concernentes ao porquê e à definição: “De fato, em todos esses casos, é manifesto que são idênticos o‘o que é’ e por queé”.66 Pois, em verdade, se respondemosà pergunta sobre o porqu ê do eclipse “(por queéo eclipse?” ou “por que se eclipsa a lua? ”), dizendo que ele ocorre, por faltar luzà lua, em razão da interposição da terra, em nada difere esta resposta, quanto ao seu conte údo, da defini ção que propomos do eclipse, quando se nos pergunta o que é ele e o dizemos“uma privação da luz da lua pela terra interposta ”.67 De modo semelhante, dizemos que harmoniaé “uma razão numérica entre o agudo e o grave ” e respondemos, se nos pergun tam por que se harmonizam o agudo e o grave, que eles se harmonizam por tere m, entre si, uma raz ão numérica.68 Como vemos, n ão mais se trata,ãto-somente, de mostrar que as perguntas sobre o porqu ê de uma atribui ção ou sobre o“o queé” de uma coisa são, uma e outra, equivalentes a uma indaga ção sobre a natureza de uma causa cuja presença já se reconhecera ao atribuir tal predicado a tal sujeito ou ao afirmar, simplesmente, que, em sentido absoluto, tal coisa determinada é; mas o que tamb ém nos mostram os exemplos e o que nos diz o filósofo é que há total identidade entre perguntar pela causa e pedir a defini ção. E, como explicitar á mais adiante,69 conhecer o“o queé” e conhecer o porqu ê são a mesma coisa, tanto no que concerne às coisas tomadas em sentido absoluto quant o no que respeita às coisas que se consideram enquanto possuem tal ou qual determina ção, istoé, enquantoãso, em pa rte, algo . O que significa, então, que perguntar pelo porqu ê de pertencer tal atributotal a sujeito equivale a indagar d a q üidid ad e do atributo, isto é , a pergunta r por sua d efinição. Em outras palavras, é idêntica a resposta que se á àdpergunta sobre a causa de tal ou qual atributo ser , tomado em sentido absoluto, àquela 66 67 68 69
a Seg. Anal . II, 2, 90 14-5; cf., acima, V, 1.3 e n.27.
Cf. Seg. An al . II, 2, 90a15-8; acima, V, 1.3 e n.27. Cf. ibidem, l. 18 seg. Cf. ibidem, l. 31-4.
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que se formula quando nos perguntam por que pertence ele, como atributo, a seu sujeito. “Por que há eclipse?”, “por que eclipse‘pertence’ à lua?”, “o queé eclipse? ” são três perguntas para uma ó resposta. s 1.6 A porias sobre o term o m é dio
Aonde quer conduzir-nos toda essa análise aristot élica? Não nos apressemos em dizê-lo, mas voltemos, uma vez ainda, ao texto que 70 comentamos e consideremos novamente as palavras com que nos expõe o filósofo como e porque interpretar causalmente toda indagação sobreas coisas. V emos, com efeito, que n ão fala Arist óteles somente de “causa” () mas, também, de (“médio”, “termo médio”) e podemos constatar que, ao longode todo o texto, parecem aqueles termos usar -se, um pelo outro, em perfeita correspond ência. Nenhuma dúvida alimenta a quase unanimidade dos autores e comentadores: trata-se do termoédio m do silogismo demonstrativo. Exprimir-se-ia, aqui, ent ão, com toda a clareza poss ível, a analogia 71 aristotélica entre o silogismo e a opera ção causal; tratar-se-ia de uma repetição da doutrina do livro I, seg undo a qual o termoém dio representa a causa real no silogismo científico,72 da “coincidência no silogismo do entre a causa e o termo émdio”.73 Teria mostrado o filósofo, pois, claramente, que, concebendo toda pesquisa como uma indagação sobrea causa, concebe-a ipso facto como busca de um termo médio para a constitui tivo; poderção de um silogismo demonstra se-ia dizer que“O médio-causa fornece a resposta a todos os problemas e permite que se construa a demonstra ção”.74 Masé fácil ver que uma tal interpreta ção, ainda que pare ça imporse à primeira vista,ãno pode aceitar-se sem maiores precis ões. Não há, b 70 Isto é: Seg. Ana l. II, 2, com., 89 36-90a18; cf., acima, V, 1.3 e n.27. e hel é nique... , 71 Cf. Robin, L., “Sur la conception aristot élicienne de la causalit é”, in La pens é 1942, p.425. thode... , 1939, p.149. 72 Cf. Le Blond,Logique et m é 73 S. Mansion, Le jugement d ’existence..., 1946, p.31. 74 Ibidem, p.168.
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por certo, sombra alguma deúdvida quanto ao fato de concernir diretamenteà preparação dos silogismos demonstrativos daência ci a pesquisa que, estabelecendo previamente perten cer tal atributo a tal sujeito, istoé, estabelecendo o“que”, o ser“algo” do sujeito, indaga sobre o porqu ê dessa atribui ção. Tal porqu ê ou causa, uma vez descoberto, permite, como desde há muito sabemos,75 a formulação do silogismo cient ífico do ou do porquê, onde o termo médio exprime a causa real do ão se exprime. Sob esse que se prova ena conclus prisma, compreende-se, imediatamente, que o fil possa dizerósofo nos, tomando, por exemplo, o caso do eclipse , que perguntar se a lua se eclipsaé indagar se h dio para a demonsá uma causa ou termo ém tração de que ela se eclipsa e que, por outro lado, uma vez conhecendo-se que ela se eclipsa, perguntar por que isso ocorre é indagar da natureza da causa, istoé, pedir que semanifeste qual aquele termo médio pressuposto cujo conhecimento permitir á a construção do silogismo demonstrativo do eclipse da –lua e tal termo m édio é, como vimos, a interposição da terra. As dificuldades surgem, épor m, quando Aristóteles interpreta, de modo á an logo, a outra linha de pesquisa que distinguira, aquela que procede de uma interroga ção sobre o“se é, em absoluto ” para, em seguida, diante de uma resposta afirmativa, - per guntar, então, pelo“o queé” da coisa.É que se não contenta o fil ósofo em fornecer uma interpreta pesquisa, cuja aceição causal dessa linha de tação, aliás, não vemos por que seria dificultosa,ése certo que a defi76 nição e a qüididade exprimem uma das significa ções da causalidade. Mas descreve, tamb a um termo médio ém, tal causalidade como de (): “com efeito, a causa de uma coisa ser , não isto ou aquilo, mas, em sentido absoluto, a essência ... é o termo médio”,77 parecendo, destarte, referir -se a uma eventual demonstra ção de que um sujeito (lua, centauro, tri ângulo ou eclipse) é , em sentido absoluto, mediante 75 Cf., acima, II, 3.3. 76 Um dos quatro sentidos em que se diz “causa” sendo “a forma e o paradigma, istoé, o a b discurso da ü qididade”, cf.Met. , 2, 1013 26-7;Fís. II, 3, 194 26-7; cf., tamb ém, Seg. Anal . II, 11, 94a21 etc. 77 Seg. Anal . II, 2, 90a9-11; cf., acima, V, 1.3 e n.27.
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um silogismo cujo termo m édio não seria outro que não o “o que é” do próprio sujeito,áj que perguntar pelo “o queé” é, também, pergun78 tar pelo termo m édio e que não diferem o“o queé” de uma coisa e o porquê de ela ser.79 Naturalé, então, que se tenha falado de silogismos que provam a“existência” pela essência, de uma prova de “existência” do eclipse, por exemplo, em que o termo médio seria sua mesma qüididade;80 e que se tenha afirmado, então, haver, na ciência aristotélica, pelo menos dois tipos de demonstra ção, uma concernente do ao próprio ser às propriedades’do sujeito, outra respeitan 81 do sujeito. Mas não estranharemos, tamb ém, que, por não ver-se como poderia estaúltima forma de demonstra ção aplicar-se a uma essência, como a lua ou o homem, á que j não há, nestes casos, uma dualidade de termos entre osquais possa inter por-se um termo m édio, se tenha tomado, no texto emquestão, como um mero sinônimo de(causa), omitindo-se, assim, qualquer refer ência a 82 um raciocínio silogístico. E, de fato, é inegável que não nos dá Aristóteles exemplo algum que nos venha ajudar a compreender como se poderia demonstrar o ser de umsujeito, em absoluto, por sua qüididade, tratando-se de uma ess ência, uma vez que somente con83 sidera, explicitamente, os exemplos do eclipse e da harmonia, os 78 79 80 81
Cf. ibidem, 89a38-90al; acima, V, 1.3 e n.27; V, 1.5 e n.61. Cf. ibidem, 90a14 seg.; 31-5; acima , V, 1.3 e n.27; ,V1.5 e n.66 a 69. Cf.S. Mansion,Le jugement d ’existence... , 1946, p.171. Cf. ibidem, p.172. Para a autora em questão, o primeiro tipo de demonstra ção não se aplicaria a algo como oeclipse porque, embora este seja uma determina ção de um astro, por si , não podendo, portanto, como a lua, n ão constitui uma propriedade de seu sujeito, deduzir-se de sua ess ência; donde a necessidade de recorrer atipo um diferente de demonstração e a um outro termoém dio que n ão a qüididade de seu sujeito: aópria pr qüididade do eclipse (cf. ibidem,p.171). O que ã no viu a autora, entretanto, é que Aristóteles estende a noção de“por si” a atributos que pertencem necessariamente a seus sujeitos, unicamente em circunst lugar, e o eclipse constituindo, precis amente, um exemâncias determinadas de tempo plo típico desses que a ciência conhece, cf., acima, III, 1.4 e n.53; III, 4.7. 82 Cf. Ross, com. a Seg. Ana l. II, 2,Aristotle ’ s Prior and Posterior Ana ly tics , p.611-2. E tal éa nica solu o que encontra o au t or , que confessa sua perplexidade, para explicar a descriú çã ção aristotélica da pesquisa qualquer (incluindo, portanto, tamb ém, a que indaga da qüididade de uma ess ência) como uma busca do 83 Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a15-23; acima, V,1.5 e n.67 e 68. S. ansion, M ainda assi m, julga, entretanto, que“il est sûr qu’Aristote a en vue de tels objets [subent.: os que não são
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quais, suscet íveis embora de serem considerados como sujeitos absolutos, não são, em verdade, ess ências, mas determina ções de essências. Como solucionar, ent ão, a aporia? 1.7 O sentido da discuss ão preambular
Ora, quer parecer-nos que toda a controv érsia instaurada em torno dos dois cap II dos Segun d os Ana l í ticos repousa ítulos iniciais do livro sobre um ívcio de método fundamental: com efeito, aoésinv de tomarse a análise a que eles procedem das quest ões propostas pelas pesquisas, em geral, como uma primeira aproxima ção e abordagem do assunto, preparando uma discuss ão posterior, interpreta-se ela como um todo acabado e perfeito, coroado por conclus ões dogmáticas e definitivas. Porque assim se faz, é a mesma estrutura de todo o livro II do tratado que se sacrifica, na medida em que ãose estn á preocupado com apreender as linhas de çfor a segundo as quais toda sua argumenta ção se articula. Ora, seãno atentamos nos ind ícios que o próprio filósofo nos oferece da unidade de seu texto e se, ao mesmo tempo, nos esquecemos de quecostuma construir progressivame nte os problemas e aprofundar-lhes as dificuldades, antes de brindar-nos com as suas soluções definitivas, experimentaremo s, por certo, grande dificuldade para a compreens ão de como se opera a passagem dos dois primeiros e difíceis capítulosà discussão, que os segue, das rela ções entre a definição e a demonstra ção, explicitamente proposta, desde oício in do terceiro capítulo, nos seguintes termos:“Que, por conseguinte, todas as coisas investigadas ão investiga s ção do termo m édio,é evidente; digamos, agora, como se mostra ‘o oqueé’, qual o modo de sua redução () e o queé e de que coisas há definição, percorrendo primeiro as aporias que respeitam essas a quest ões. Seja princ ípio das coisas que ãvo ser ditas aquele que, precisamente, é o mais apropriado às discussões que seguem. Colocar-se-á, com efeito, esta aporia:é, inerentesa outra coisa, isto é, as essências] en construisant sa éth orie”, cf. Le jugement d ’ existence... , 1946, p.172, n.60.
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acaso, possível conhecer a mesma coisa, e sob o mesmo aspecto, por definição e por demonstra ção, oué impossível?”.84 Tratar-se-ia, realmente, de uma passagem abrupta de um assunto a outro, de “um novo problema que se tem em vista, que ãonmais concerneà busca do termo médio?”.85 Ora, Aristóteles acabara de afirmar a identidade entre o é” “o que e o porquê de uma coisa qualquer e, analisando os exemplos de atributos como o eclipse ou a harmonia, mostrara que a pesquisa de suas qüididadesé equivalente dios para suas respecà busca dos termos ém tivas demonstra ções, donde a possibilidade reconhecidaconhecer de objetos de tal natureza tanto por demonstra ção como por defini ção. Se tais exemplos fossem suscet íveis de generalização e se se pudesse, sem mais, dizer o mesmode todo e qualquer sujeito defin ível –que também das essências, portanto – poderíamos, por certo, afirmar todo e qualquer processo de investiga ção de qüididadeé redutível a uma pesquisa de termoém dio, istoé, das premissas de uma demonstração cuja conclus ão não exprimiria outra coisa sen ão o ser, em absoluto, do sujeito, declarando que, em sentido absoluto, eleé . Mas como não ver, ent ão, que as linhas acima citadas constituem, em-ver dade, uma problematiza ção deste tema, na medida em que indagam da validade daquela generaliza e da reção e perguntam pela liceidad dução (),86 aceita co mo um d ad o evidente , no caso do eclipse e da harmonia, de toda defini çã o a uma demonstra çã o, de toda “mostração” do “o queé” a uma manifesta ção de termo médio?“Que a a 84 Seg. Ana l. II, 3, com., 90 35-b3. E anuncia-se, assim, a problem ática que, em 10, 94 14-9, se considerar á solucionada, cf., acima, a introdu ção ao cap.V e n.5 e 6. Em desacordo com Le jugement d ’ existence... , 1946, p.176), cremos, com Tricot (cf. ad locum ) e S. Mansion (cf. Ross (cf. notaa d 3, 90b1), que se não deve traduzir (90b1) por“discussões precedentes ” mas, sim, por“discussões que seguem”, conforme ao uso habitual de expressões como essa pelo fil ósofo, cf. Bonitz,Index , p.306a 48 seg. Le jugement d ’ existence... , 1946, p.176, n.67. 85 Como crê S. Mansion, cf. 86 (assim como) designa, freqüentemente, em Aristóteles, o processoólgico de remontar a um princ analdaquilo ípio explicativo anterior, mediante um exameítico que se pretende explicar, empregando-se, praticamente, em sinon ímia com(e ), cf. Bonitz,Index , p.42a4 seg. e 44a20-25.
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todas as coisas investigadas ão investiga s ção do termo m édio” tornarase evidente, tamb ém no que concerne à busca da qüididade, em consultando-se os exemplos que se privilegiar am; o problema com que deparamosé agora, então, diz-nos o fil ósofo, o de confirmar ouãno, ou, pelo menos, o de precisar melhor a natureza e o sentido dessa primeira “evidência”. Que se não trata de uma“evidência” definitiva e que se não podem universalizar, de in ício, as conclusões alcançadas manifesta-se no pr óprio caráter aporético da discuss ão que se vai iniciar sobre as rela ções entre definição e demonstração, istoé, sobre a natureza dos vínculos que ligam as duas linhas de pesquisa que se distinguiram e os seus respectivos resultad os. Definir e demonstrar, conhecer o“o queé” e conhecer a coisa pela sua causa num silogismo demonstrativo, ãso acaso processos an logos ou idênticos de conhecimento? E, se o ãso, são-o sempre ouáqual a extens ão e o alcance de sua identifica ção possível? Vemos, assim, que uma só e mesma problem ática se delineia desde os capítulos iniciais do livro II dos Segund os An al í ticos , cujo estudo ocupará todos os capítulos e cuja solução se não propõe dogmaticamente, como uma an álise superficial poderia etender pr ,á j nas primeiras páginas: não são os dois primeiros cap ítulos senão um levantamento preliminar e proped êutico das quest ões que se vão discutir. E compreendemos, ent ão, que a intelig ência de seu mesmo conte údo só se obtém, quando buscamos apreender a unidade do movimento de pensamento que se articula ao longo dos diferentes cap ítulos; porque o fizemos, escapamos ao risco de enveredar por çõ solu es de facilidade ou de interpretar todo oício in do tratado como a defini ção de uma doutrinaacabada, que se revelaria, ás,alipreconceituosa em rela ção ao resto da obra e contradit ória em face das conclus ões que se irão, posteriormente, descobr ir.87 87 Como ocorre com S. Mansion (cf. Le jugement d ’ existence... , 1946, p.162 seg.), queãno percebe o caráter meramente proped êutico dos capítulos 1 e 2 do livro II dos Segundos Anal í ticos e procura deles extrair toda uma teoria dasçõ rela es entre o conheciment o causal em geral (incluindo o conheciment o da ü qididade, isto to pela definição) é, o conhecimen
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2 Ap orias sobre a d efini
ção
2.1 O que se demonstra , o que se define
Comecemos, então, com o filósofo, percorrendo primeiro as 88
aporias que respeitam a essas quest vir a examinar mais ões,separa tarde, finalmente, “quais dessas coisas dizem corretamente e quais, incorretamente”.89 Consideremos, emprimeiro lugar, seé possível definir as coisas de que áh demonstra ção.90 Perguntar-nos-emos, em seguida, sobre a possibilidade de demonstrar as coisas que se definem91 para indagar, num terceiro momento, e hásalgumas coisas, ao menos, que podem, ao mesmo tempo, ser objetode definição e de demonstração.92 Comporta, acaso, defini ção tudo que se demonstra? Ora, basta considerar a exist ência de silogismos negativos ou particulares (todos os da segunda figuraãos negativos, nenhum dos da terceiraé univere o silogismo demonstrativo. Ora, ãonsomente a autora toma, assim, como solucionadas, aquelas questões, precisamente, queãvo ser estudadas nos cap ítulos seguintes, como também, propondo uma interpreta ção doutrinária do que n ão é senão um debate preliminar, condena-se a prejulgarodos t os resultados posteriores daálise an aristot élica da problemática em questão, em função das teses dogmáticas que, desde o início, atribui ao filósofo, sem que este, em nenhum momento,áali s, explicitamente as formule. Assim é que, acusando os comentadores antigos ã de o ter n compreendido a articula ção das partes do tratado, cr ê S. Mansion (cf. ibidem, p.173-6) poder mostrar o encadeamento daséias id entre os dois primeiros cap ítulos e os oito seguintes, interpretando como um “silogismo da essência” (isto é: como uma demonstração que conclui, de algum modo, o queuma coisa é e sua natureza) o mesmo“silogismo da existência” a que julga fazer alusão o filósofo no cap.2 (cf., acima, V, 1.6 e n.80 e 81); provando-se “exist a ência” de uma coisa (do eclipse, por exemplo), mediante a sua üididade, q tomada como termo ém dio, estarse-ia provando, tamb ém, paradoxalmente, uma como defini ção da coisa, pois ãno se trataria da prova de uma exist ência concreta, mas da “existência de um ser como natureza ”. E, entretanto, a pr ópria autoraé, de algum modo, obrigada aconfessar o car áter temerário de sua interpreta ção: “or, bien qu’Aristote ne dise mot de ce passage ou, si l’on veut, de cette identification du syllogisme’existence de l par’essence l au syllogisme de ’essence, l Ana ly tiques Second s en donnent une claire un faisceau ’indices d trouv és dans les textes des confirmation” (ibidem, p.174). Em verdade, esses “indícios” que Mansion descobreãso bem pouco convincentes... 88 Seg. Ana l. II, 3, 90a37-8: a 89 Seg. Ana l. II, 8, com., 93 l-2. b 90 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 903-19. 91 Cf. ibidem, l. 19-27. 92 Cf. ibidem, 90b27-91a6.
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sal), para ver queáhcoisas que se provam masão n podem definir-se: com efeito,é aceito que a defini ção respeita ao“o queé” e todo“o que é” é universal e afirmativo, donde a impossibilidade de definir -se o 93 que, naqueles silogismos se conclui. Se consideramos, entretanto, 94 apenas os silogismos afirmativos da primeira figura, constatamos, também, que não pode haver defini ção de tudo que, neles, se prova: como haveria defini ngulo a soma de seus ção, por exemplo, de ter oâtri ângulos igual a dois retos? Eé fácil dar a razão () por que isto ocorre; com efeito, se conhecer cientificamente o demonstr ável é ter a demonstração, não haverá definição daquelas coisas que, como no exemplo acima, se demonstram pela primeira figura, uma vez que, se definição houvesse, delas ter íamos conhecimento pela defini ção, an-
tes de ter a demonstra impede que defini demonsção,âjneas. á que nada ção eno tração não sejam simult Um terceiro argumento, mesmo sentido, construiremo s por simples indu ção; de fato,é suficiente para persuadir-nos recordar que nunca conhecemosributos at “por si” ou acidentes atrav és de definições.95 Finalmente, toda defini ção é conhecimento de alguma ess ência () e não são, evidentemente, ess ên96 cias as coisas que se demonstram. “Que não há, portanto, defini ção de tudo de que tamb ém há demonstração é evidente”.97 Não há dúvida de que todos esses argumentos são de natureza dialética e de que n ão mais fazem que agu çar as aporias para que se buscam as soluções. Assim, n ão se considerar á como realmentepertinente a uma discuss ão sobre as rela ções entre a demonstra ção ciena 93 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b3-7; cf., tamb 26-9. ém, I, 14, 79 94 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b7-13. 95 Cf. ibidem, l. 13-16. Entende Ross (cf. nota ad l. 7-17) que , a l. 15-6, deve compreender-se,ãn o como“acidentes ”, mas como uma designa ção daquelas propriedades, como o eclipse, que, ainda que não pertencentes a seus sujeitos,por si , “follow upon interaction between the subject and something”.else Ocorre, entretanto, que nada impede se tenha Arist óteles estendido, num argumento simplesmenteético, dial tal com fez, ali ás, em seu primeiro argumento (cf., acima, n.93 deste ítulo), cap além dos limites da demonstração estrita. 96 Cf. ibidem., l. 16-7. 97 Ibidem, l. 18-9.
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tífica e a defini ção o argumento que se fundamenta nos silogismos da segunda e terceira figuras, invocando oácar ter negativo ouparticular de suas conclus ões: com efeito, visto que é com os silogismos da primeira figura que asêci ncias constroem suas demonstra ções,98 o argumento prova apenas que pode haver silogismo sem que a defini ção seja possível, mas não, que haja demonstra ção. Quantoà afirmação de que se não pode conhecer por defini ção a coisa demonstr ável, por que isso implicaria a possibilidade de conhec ê-la sem demonstra ção, quando o conhecimento cient ífico do demonstr ável é a demonstração, tratase de um argumento que, se definitivamente concludente, não apenas provaria“que não há definição de tudo de que tamb ém há demonstração”, mas teria bem maior alcance, obrigando-nos desde á a aceij tar a total impossibilidade de um mesmo objeto ser conhecido, ao mesmo tempo, pelas duas formas de conhecimento de que nos ocupamos; em verdade, ao inv és de examinar-se a possibilidade de uma outra forma de conhecimento da coisa demonstr ável, declara-se, peremptoriamente, que um demonstr ável só se conhece cientificamente em demonstrando-o e converte-se, destarte , em argumento uma mera afirma ção dogmática.99 Também é manifestamente dial ético, por sua mesma natureza, o argumento indutivo que recorda os processos mediante os quais costumamos conhecer os atributos“por si” e acidentais.100 Quanto aoúltimo argumento, ele toma num sentido vago e impreciso a no ção de que introduz.101 Tomemos, agora, como elemento de referência, as coisas que se definem; podem elas, acaso, demonstra r-se?102 Consideremos, ainda 103 uma vez, o argumento de que,áhpouco, nos servimos: se conhe98 Cf., acima, I, 3.2 e n.161. 99 Cf., acima, II, 5.2 e n.205. 100 Por ser a indução, como sabemos, um racioc ínio eminentemente dialético, cf., acima, cap.I, n.177. 101 Uma vez que nem mesmo fica claro se se toma em referênciaà categoria substantiva, ou como sinônimo de qüididade, na categoria da ess ência ou nas mesmas categorias adjetivas, cf., acima, cap.II, n.157. 102 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b19 seg. 103 Cf. ibidem, l. 19-24.
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cer o demonstr ável é ter a demonstra ção, já que,“com efeito, de uma coisa una, enquanto una, á uma h ciência una ”,104 se houvesse demonstração do que se conhece por defini ção, teríamos conhecido, sem demonstração e pela defini ção, o demonstr ável, o que é absurdo; assim, a retomada da argumenta seu caráter ção não testemunha sen ão de105 geral a que, acima, alud íamos. Um segundo argumento lembrarnos-á que, ao menos para certas coisas, h á definições que são indemonstráveis; sabemos, com efeito, que são definições os princí106 pios das demonstra fossem os ções, como se provou anteriormente: princípios demonstráveis e teríamos princípios de princípios, numa regressão infinita. Como seêv, retém-se explicitamente a doutrina do livro I sobre a indemonstrabilidade das defini ções-princípios e utiliza-se ela como argumento para mostrar que, se ãonsão acaso absolutamente estranhos, umao outro,os camposrespectivos da def inição e da demonstra ção, é certo, ao menos, que ãse o podem n inteiramente recobrir , sendo,portanto , doutrina asse nte, sobr e a qual n ão ma is se volta no estudo das rela ções entre a defini ção e a demonstra ção, que o domínio do demonstr ável não se estende aos princ ípios da demonstração.107 Manifesta-se-nos, por isso mesmo, que seá ter de conciliar tal doutrinaáj afirmada com a á an lise da causalidade pressuposta por toda indagação, onde pareceu descobrir-se a presen ça de umsilogístico, mesmo naqueles casos em que a interroga ção dizia respeito à busca da 108 definição e da qüididade. 104 Seg. Ana l. II, 3, 90b20-1. 105 Cf. ibidem, l. 24-7. 106 Cf., acima, IV, 2.4. 107 O livroII dosSegund os Anal íticos não reabre, portanto, a discuss ão sobre o car áter demonstr ável Le probl ou indemonstr ável dos princípios, como estranhamente pretende Aubenque (cf. ème d e l ’êtr e..., 1939, p.482), para quem “l’insistance d’Aristote à poser ce problème montre qu’il ne se satisfaisait pas ais ément de cette obscurit é inévitable des principes et que son idéal restait celui ’dune intelligibili té absolue”. É que o eminente aristotelista, como sabemos (cf., acima, cap.II, n.114, 117, 144, 174, 187 e 206), ou julgencontrar, na oposi ção aristotélica entre o“mais conhecido em absoluto ” e o “mais conhecido para óns”, assim como na doutrinada indemonstrabilidad e, uma tematiza ção da impossibilidade de uma ciência humana. 108 Cf., acima, V, 1.6.
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Haverá algumas coisas, ao menos, que possam tanto ser definidas 109 como demonstradas? Em verdade,ãno pode haver demonstra ção do que é objeto de defini ção. Em primeirolugar, porque a defini ção é do “o que é” e da essência () e “todas as demonstrações, manifestamente, põem como hipótese e assumem o‘o que é’”, como as matemáticas, que assumem, por exemplo, o que é a unidade e o queé ímpar, não sendo diferente,áali s, o procedimento das outras ências. ci 110 Em segundolugar,111 “toda demonstra ção prova algo de algo, ou seja, 112 que é ou que não é”, toda demonstra ção prova um“que”, enquanto, na defini n ção, não se atribui um de seus elementos ao outro, ão se atribui, por exemplo, animal aípede b nem bípede a animal, na defi113 nição do homem.Finalmente, é coisa diferente mostrar“oo queé” e mostrar o “queé”; ora, a defini ção mostrao que éuma coisa, enquanto a demonstração mostraqu e algoéde algo, ouque n ão é . E a demonstração de algodiferenteé uma demonstra ção diferente, a menos que ambas as demonstra ções se relacionem como parte e todo, como, por exemplo, a prova da igualdade dos ângulos do isóscele a dois retos, se se fez a prova para o â tri ngulo, em geral. Mas talãn o é a relação entre o “o que é” e o “que é”, nenhum dos quais é parte () do outro. Como se pode observar, oósofo fil busca elementos para sua argumentação dialética, uma vez mais, na doutri na da ci ência desenvolvida no livroI do tratado, invocando o procedimento da ência ci demonstrativa ao assumir seus princípios, ou o caráter de suas conclus ões, ou a subordinação do particular ao universal, na demonstra ção. E os argumentos que, desse modo, constr ói, parecem, todos eles, desmentir os resultados a que chegara, por exemplo, aálise an da indaga ção sobre o eclipse, quando se crera poder estabelecer a redu ção da investiga109 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b28 seg. b 110 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90 30-3; acima, IV, 2.4 e n.99. Em verdade, como sabemos (cf., acima, IV, 2.3 e n.80 e 81),ãn o obsta a que se demonstrem o par oeímpar, o quadrado e o cubo etc. matem assumirem previamente suas defini donde ser maniáticos ções;entre festooofato caráde teros meramente dial ético do argumento, queãn o distingue o tratamento científico dos princ ípios e o das afec ções “por si” dos gêneros da demonstra ção. 111 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b33-8. 112 Ibidem, l. 33-4; cf., acima, I, 3.3 e n.171 seg. 113 Cf. ibidem, 90b38-91a6.
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ção sobre a qüididade e a defini ção à busca de um termo m édio para 114 a demonstração. Como resolver a aporia, á que j todos os argumentos que alinhamos, tendo mostrado que ão hná demonstração de tudo de que há definição, nem defini ção de tudo de que áhdemonstração, nem possibilidade alguma de definir e demonstrar a mesma coisa, parecem tornar manifesta a írec proca exterioridade dos dom ínios respec115 tivos de uma e outra forma de conhecimento? 2.2 O silogismo da defini ção
Após um tal tratamento diaporem ático 116 da quest ão das relações entre definição e demonstração, que consistiu, sobretudo, numa exaustiva compara o entre asnaturezas respectivas da defini ção e da conclusã o cientíçã fica ou, simplesmente, silog ística, consideremos 117 agora, dialeticamente ainda, malgrado os resultados da etapa precedente de nossa argumenta ção, a eventual possibilidade de construir-se um silogismo demonstrativo da defini ção, isto é, da qüididade ou essência.118 Ora, “o silogismo prova algo de algo através do termo médio”;119 mas o “o que é” é um p r óp r io 120 e se atribui 114 Cf., acima, V, 1.6. a
115 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 917-11. a 116 Cf. Seg . Anal . II, 4, com., 91 12: . Não significam essas palavras, como observa, comão, raz Ross (cf. nota ad locum ), que a parte aporem ática da discussão esteja terminada, Arist óteles pretendendo dizer “so much for thesedoubts ”. Como dizem osTópi cos , a dialéticaé útil “para as ciências filos óficas, porque, sendo capazes de percorrer as aporias ( ) em ambos os sentidos, perceberemos, mais facilmente, em cada caso, o verdadeiro e o falso ” (T óp.I, 2, 101a34-6); nesse sentido, cada raciocínio dialético apresenta-se, ent ão, como umaporema (), istoé, um silogismo dialético de contradi ção (cf.Tóp. VIII, 11, 162a17-8). Sobre o racioc ínio “diaporemático”, leia-se a comunicação apresentada por Aubenque ao“Symposium Aristotelicum de Louvain” (1960), subordinada ao t “Sur la notion aristot ítulo élicienne d’aporie”, inAristote et les problè mes de m é thode , 1961, p.3-19. Seg. Anal .
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Cf. Cf. Seg. Ana l. II, II, cap.4-7. 4, 91a12-4. Ibidem, l. 14-5. O pr ópr io subdivide-se empr ópr io em sentido estrito edefini ção, tendo sempre a mesma extensão que seu sujeito, com o qual se reciprocaatribui na ção, cf.Tóp. I, 4, 101b19-23; 5, 102a18 seg.; acima, cap.II, n.239.
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no “o queé”,121 donde a necess ária reciprocabilidade, na atribui ção, 122 de todos esses termos: com efeito, se se conclui a defini ção, queé um p r óp r io , num silogismo (sejaA a definição de C, provada pelo silogismo“A pertence aB, B pertence aC, A pertence aC”) serão pr óprios , uns dos outros, os termos do silogism B, oA ( será pr óprio de B e 123 A é pr óprio de C), manifestamente de C, donde poder concluir-se que ;
e, por outro lado,124 somente se efetuar á a prova de que se atribui o A se atribui no“o queé” de C predicado no“o queé” do sujeito (de que e de que, portanto, sendo um pr óprio, é, também, a defini ção deC), se a mesma relação existir entre os ter mos das premissas (isto é, seA perB, universalmente, de C, no tencer a todoB, no“o queé”, e se se disser “o queé”). Mas, se as premissas assim exprimem, ã ent o, os“o queé” 125 de seus sujeitos, já se exprimem, tamb ém, o“o queé” e a qüididade do que se quer definir C ( ) mediante o termo médio (B pertence aC, como o“o queé” e qüididade), isto é, jáse assum e, na premissa, a d efinição do menor, que se pretendia demonstrar como conclusão. Seja, por exemplo, o silogismo que conclui ser a alma um ú nmero que a si próprio se move,126 porque a almaé a causa de sua pr ópria vida e a causa de sua própria vidaé um número que se move a si pr óprio: será verdadeira a 121 Cf. Seg. Ana l. II, 4, 91a15-6. Cf.Tóp. I, 5, 102a32-5:“Digamos atribui r-se no‘o queé’ todas aquelas coisas que interrogado sobre o que é apropriado dar em resposta, quandoé se éo sujeito em quest como, no caso do homem, quando éseinterrogado sobre o que ele ão; que é, é apropriado dizer é um animal”. Dizendo, então, que o“o queé” se atribui no“o que é”, quer Aristóteles significar que aüqididade de uma coisaé – e ela oé, por excelência – o que se responde quando seé interrogado sobre o que éa coisa. E é precisamente o Tóp. I, atribuir-se no“o queé” que distingue a defini ção dospr ópr ios em sentido estrito, cf. 4, 101b19-23. As interpreta ções de Colli, Mure, Ross e rTicot (cf.,ad locum ) da passagem em questão (Seg. Ana l. II, 4, 91a15-6) parecem-nos bastante insatisfat órias. 122 Cf. ibidem, l. 16: ’ 123 Cf. ibidem, l. 16-8. Se A e B não fossempr ópr ios de B e C, respectivamente, poderia concluir-se que Apertence a C, mas ãno se provaria queé pr ópr io de C, poisnada justifica ria que se afirmasse a reciprocabilidade entre os dois termos. 124 Cf. ibidem, l. 18 seg. 125 Cf. Seg. Ana l. II, 4, 91a24-6. 126 Cf. ibidem, l.35 seg. O mes mo se diria, evid entemente, p ara um silogismo que prete ndesse provar uma defini l. etc. A defini nmeção do homem (cf. ibidem, 26-32) ção da alma como ú ro que a si pr óprio se move, proposta por Xen ócrates,é formulada aqui a meroíttulo de b Da Alma (cf. I, 4, 408 exemplo e Arist óteles a refuta no tratado 32 seg.), onde a considera a mais irracional ( ) de quantas defini ções da alma se propuseram.
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conclusão, mas não se terá escapadoà peti ção d e princ ípio ( ), se se pretende considerar tal silogismo como uma demonstração da defini ção da alma: assume-se, na premissa, ainda que sob expressão diferente, a mesma üididade q que se pretende, em seguida, obter, por via demonstr ativa, na conclus ão. A análise do pretenso silogismo da defini ção mostra-nos, assim, o seuácar ter falacioso e sof ístico.127 Caberia, então, concluir silogisticamente a defini ção, à maneira platônica, pelo método que procede por divis ões ( 128 )? Mas a análise das figuras do silogismo a que procedeu se nos Prim eiro s Ana l íticos já mostrara que a “divisão” platônica é um “silogismo impotente ”,129 uma vez que nenhuma necessidade caracteriza o resultado que se obt ém a partir do que se assume, como éo 130 próprio da conclus ão silogística. Por outro lado, ainda que se chegue a um resultado verdadeiro, que o homem, por exemplo, é animal caminhante, n esses termos exão se mostra que o todo formado por prime o “o que é” ou a qüididade, mas também isto se assume, no método platônico.131 E o que impede, al ém disso, num tal processo, que se acrescente, subtraia ou omita um elemento da ess ência?132 Defeito que se poderia, porcerto, obviar, em tomando consecutivamente, no processo de divis t ão, segundo a ordem adequada,ão-so133 mente os elementos da ess ência, sem omitir nenhum; mas, seé possível chegar, desse modo, ao conhecimento da definição,134 não se trata, por certo, de uma demonstra ção silogística: também o que induz ( ) mostra algo, sem que, no entanto, demonstre.135 O método da divisão não é, em suma, um m étodo demonstrativo. b b 127 Sobre a falácia da peti ção de princípio, cf.Ref. Sof. 5, 167a36-9; 6, 168 22-6; 7, 169 12-7; 27 (todo o capítulo) etc. b 128 Cf. Seg. Ana l. II, 5, com., 91 12-3 e todo o cap ítulo. 129 Cf. Prim . Ana l. I, 31, 46a33 e todo o cap ítulo. 130 Cf. Seg. Ana l. II, 5, 91b14-20. 131 Cf. ibidem, l. 20-6.
132 Cf. ibidem, l. 26-7. 133 Cf. Seg. Ana l. II, 5, 91b28 seg. b 134 Em Seg. Ana l. II, 13, 96 25 seg., Arist óteles se estender á longamente sobre o uso dial ético do método da divisão na“caça” à definição. Também II, 14 tratar á do uso da divis ão para a correta prepara ção preliminar do“material” da demonstração científica. 135 Cf. Seg. Ana l. II, 5, 91b34-5; 15.
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Seria acaso poss ível, então, proceder por hip ótese ( ),136 assumindo, como premissa maio r, que a ü qididadeé o pr óprio constituído dos elementos no“o queé” e, como premissa menor, que tais e tais termos ãso osúnicos a figurar no “o queé”, constituindo seu todo um pr óprio , para daí concluir, então, que esse todoé a qüididade da coisa em quest ão? OsTópicos tinham mostrado, ali ás, como se constituía, desse modo, um silogismo da defini ção.137 Mas não é difícil ver que, também aqui, se incorre em peti ção de princípio,138 uma vez que, ao dizer que o todo composto de tais e tais termos é próprio à coisa e se constitui de todos os elementos do seu “o queé”, estamos, por isso mesmo, afirmando,ao formular tal premissa menor, que temos a definição da coisa; e, se podemos prova r, na conclus ão, que esse todoé a definição, não é senão porque já aceitáramos que ele se estrutura a 136 Cf. Seg. Ana l. II, 6, com., 92 6 seg. 137 Cf. Tóp. VII, 3, com., 153a6-26. 138 Cf. Seg. Ana l. II, 6, 92a9-10. Restaria perguntar, entretanto, por que chamaóArist teles de um tal silogismo da defini ção. Recordemos que o silogismo (cf. a a Prim. Ana l. I, 23, 41 37-41; 44, 50 16-28 etc.)é mais que um simples silogism o; como diz a Bonitz (cf.Index , p.79718-21):“hypothetica dicitur demonstratio æ qunon recta pergit a propositionibus ad id quod colligi debet, sed quae, ut efficiat quod vult, alia quaedam praeter ipsas propositiones [petit], ut sibi concedantur ”. Com efeito, no silogismo , não se conclui silogisticamente a proposi ção que se tem em vista pr ovar, mas
uma outra que se lhe substitui, tendo-se antes convencionado, entretanto, que a verdade desta última implica a verdade da primeira. Assim, se se quer provar que ãonhá uma ciência única de todos os contr ários, assume-se previamente – e eis ah ip ótese que dá o nome ao silogismo (cf., acima, cap.IV, n.68) – que, se não há uma faculdadeúnica para todos os contr ários, também não há uma ciênciaúnica; prova-se, ent ão, silogisticamente que não há uma faculdadeúnica e tem-se,ipso facto , por provado queãno há uma ciência Seg. Ana l. II, 6, 92a6-10, teríamos, única, em virtude da hip ótese assumida. No texto de então, algo como oque segue: assume-se, como h ip ótese , a definição de defini ção, istoé, que o pr ópr io constituído dos elementos que figuram no “o que é” é a definição; prova-se, pr ópr io e em seguida, que, para uma determinada coisa, tais e tais ermos t constituem um a totalidade do que se diz no “o queé”; dá-se, então, por provado, em virtude da hip ótese assumida, que tal da defini é a definição da coisa. O que a prova ção descrita nesse último Tóp. VII, 3, cf. a nota anterior) acrescenta, entretanto, ao silogismo texto (assim como no de hipotético descrito nosPrimeiros Ana l íticos é a construção silogística com que se tenta estruturar aquela parte do racioc ínio hipotético, precisamente, que Prim os eiros An al íticos consideram n confronão-silogística, istoé, a inferência da conclus ão final a que se chega, tando a conclus ão que se prova silogisticamente com a hip ótese inicial.
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como a defini ção e corresponde à definição de defini ção. Além disso,139 assim como n ão se introduz, como premissa de um silogismo, a definição de silogismo, ãno se deverá introduzir, num silogismo que pretende provar a defini ção, a definição de definição. OsTópicos não nos 140 haviam proposto uma demonstra ção da defini ção mas, ãto-somente, 141 como corretamente se observou, um processo dial ético para fazerse aceitar, pelo interlocutor, uma defini ção previamente constru ída. E ainda há petição de princ ípio, se se constr ói uma outra esp écie de prova , utilizando, desta vez, oótpico do contrário:142 com efeito, assumindo que a qüididade de um contrário é o contrário da qüididade de seu contrário, poderemos, por certo, concluir, se a qüididade do malé o divisível, que o indivisível é a qüididade do bem, uma vez que bem e indivis ível são, respectivamente, os contr ários de mal e divisível; mas não é menosóbvio que, ao formular a premissa menor, isto é, a definição do mal, contr ário do bem,áj estamos, de algum modo, assumindo a mesma defini ção e qüididade do bem, que pretendemos demon strar.
139 Cf. Seg. Ana l. II, 6, 92a11-9. 140 Em VII, 3, cf., acima, n.137 deste capítulo. 141 Cf.Cherniss,Criticism of P lato and the Academy , 1944, I, p.34, n.28, apud Ross, nota ad Seg. a Anal. II, 6, 92 6-9. Erroneamente, ent ão, a nosso ver, pretende A. Mansion (cf.“L’srcine thode , du syllogisme et laéth orie de la science chez Aristote ”, inAris tote et les probl èmes de m é 1961, p.57-81) que o texto Tde óp. VII, 3, acima citado (cf. n.137 deste capítulo) representa uma fase do pensamento aristot élico em que o fil ósofo, não mais aceitando o m étodo platônico da divisão como suficiente, cr ê encontrar no silogismo um instrumento eficaz para obter– e demonstrar– definições, inclusive no pr óprio domínio científico (cf. ibidem, p.64-70). Os Segund os Anal í ticos representariam, ent ão, a terceira ú e ltima fase (a primeira corresponderia à aceitação do método da divis ão, a segunda,à doutrina da demonstra ção silogística das defini ções, que osTópi cos conteriam) da evolu ção da doutrina do fil ósofo, nesse terreno, na qual monstra tion syllogistiq ue de la d é finition “la critique des cond itions d ’une d é montre que celle-ci est im possib le en pr incipe ” (ibidem, p.80). Ocorre, entretanto, que os argumentos que A. Mansion alinha contraCherniss, a prop ósito de T óp.VII, 3, procurando mostrar que esse texto ãno tem somente em vista os racioc ínios dialéticos, nada êtm de convincente. 142 Cf. Seg. Ana l. II, 6, 92a20 seg.; cf., tamb ém, Tóp. VII, 3, 153a26 seg. Cremos que se deva explicar o fato de o filósofo chamar de uma tal prova, tirada do tópico do contrário, de modo análogo ao de que acima nos servimos (cf. n.138 deste cap ítulo), a propósito do silogismo da defini ção que utiliza a defini ção de definição como premissa.
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2.3 Definições nominais e conhecimento da qüididade
Uma longa ésrie de argumentos parece, assim, mostrar-nos a impossibilidade de demonstrar uma defini ção. Por isso mesmo, cabe perguntar:“De que modo, ent ão, o que define mostrar á a essência ou ‘o queé’?”.143 Mas, se a defini ção não se obtém por demonstra ção, isto é, como conclus ão necessária engendrada a partir de premissas previamente aceitas,144 tampouco poder á obter-se ela por uma indu ção, através da evid ência dos casos particulares, uma vez que açãindu o não prova o“o queé”, mas“queé ou que não é”, que tudoé assim por nada 145 ser de outra maneira. Ora,“persuadimo-nos de todas as coisas ou através de silogismos ou partir a de uma indu ção”.146 Que outro recurso restará, então, ao que define? N ão será pela percepção, por certo, nem apontando com o dedoque se mostrar á o “o queé”.147 E, levando suas aporiaséat as últimas conseq üências, Arist óteles vai pôr em dúvida a mesma possibilidade de conhecer-se realmente algo por definição, isto é, de conhecer-se, em sentido estrito, a qüididade de alguma coisa. Com efeito, como á de h mostrar-se o“o 148 que é”, se é necessário ao que conhece o que é o homem, ou qualquer outra coisa, conh ecer, também, que eleé ( )? “Pois o que não é, ninguém sabe o queé”:149 se proferimos express ão que desig
na umaser fictício, ( nome,“mas ), conhecemos, por “bode-cervo certo, significa çãcomo o do discurso ou”do é impossível conhecer o queé o bode-cervo ( ’ )”,150 pela simples raz ão de que ele não é. A mera significatividade do discurso nada indica, pois, sobre o ser do que se sign ifica e, portanto, a possibilidade de defini ções que são puramente nominaisãno garante 143 144 145 146 147 148 149 150
a Seg. Ana l. II, 7, com., 92 34-5.
Cf. ibidem, l. 35-7. Cf. ibidem, l. 37-92b1. Prim. Ana l. II, 23, 68b13-4; cf. tamb ém Ét. Nic. VI, 3, 1139b26-8. b Cf. Seg. Ana l. II, 7, 921-3. Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b4 seg. Ibidem, l. 5-6. Ibidem, l. 7-8.
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o conhecimento do“o queé” das coisas definidas;ãn o se conhecerão qüididades, não se falará em qüididades, sem que se conhe ça que as coisas que se definem s ão: o “o queé” é o que algoé . Enquanto mero discurso significativo,ãno tem a definição valor apofântico, nada dizendo sobre se a coisa definida é ou não é.151 Mas justamente porque pretende a defini ção ser algo mais doque uma simples defini ção nominalé que se coloca o problema de saber comoacrescenta se árà pura explicitação de uma significa ção um conhecimento deüq ididade, que, conforme vemos, parece dever acompanhar -se de um conhecimento de outra natureza, de um conhecimento do “que é” ( ). Se se deve, porém, mostraro que é a coisa equ e elaé , como se haver á isso de 152 fazer por um mesmo discurso?Definição e demonstra ção mostram, cada uma, uma ó s coisa, mas o“o que é” e o “que é” são coisas diferentes:“o queé o homem e o homem serãso coisas diferentes ”.153 Em segundo lugar, recordemos, tamb ém, que“dizemos ser necessário provar-se atrav és de demonstração tudo que algoé, se não se tratar da ess ência. Ora, ser ãno é a essência de coisa alguma, pois ãon é um gênero o ser. Haver á, portanto, demonstra ção do ‘que é’, o que, precisamente, fazem, tamb ém, as ciências, atualmente. Com efeito, o geômetra assume o que significa oângulo, tri mas prova que ele é. Que coisa mostrar á, pois, o que define, seãn o o queé o triângulo? Alguém, portanto, conhecendo, por uma defini ção, o queé, não conhecerá que 154 é. Mas istoé impossível”. Porque o ser das coisas se nos manifes ta, assim, como objeto de demonstra ção, conforme nos revela o mesmo 151 Cf., acima, cap.IV, n.66;IV, 2.4 e n.92. 152 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b8-11. 153 Ibidem, l. 10-1. Note-se que, seAristóteles ilustra, aqui, a distin ção entre o“o que é” e o tal exemplo como uma “que é”, com o exemplo do homem, nada nos autoriza a interpretar indicação implícita de que o“que é” do homem possa ser provado por uma demonstração, paralelamente ao conhecimento de seu “o queé”, mediante uma defini ção. Contra, Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.179. cf. S. Mansion, ad l. 12-5), que o sentido de toda 154 Seg. Ana l. II, 7, 92b12-8. Entendemos, com Ross (cf. nota a passagem exige que se leia, a l. 13: , em lugar da lição dos manuscritos, aceita pela maioria dos tradutores e autores. Por outro lado,çã aotradu que Tricot propõe de , a l. 13:“à l’exception de la seule substance ”, é absoluta-
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procedimento das êcincias, onde defini ção e demonstra ção parecem, destarte, plenamente distingu ir-se e dissociar -se,155 compreendemo s que não cabeà definição, mas tão-somenteà demonstração, mostrar que uma coisaé: a definição mediante a qual conhecemos oqueé o triângulo não nos faz conhecer que ele é! Eis-nos, então, mergulhados, parece, em grave aporia. ãoNnos persuadem, com efeito, todos esses argume ntos de que os que definem não provam nem mostram“oque é” das mesmas coisas que definem?156 Definir-seà a circunfer ência como uma linhaüeq idistante do centro; mas, ainda que haja algo üidistante eq do centro, por que a coisa assim definida é? E por que tal coisa é a circunfer ência? Poder-se-ia, também, dizer queé o oricalco, seãno nos informam as defini ções seé poss í vel () o definido nem se é aquilo de que pretendem ser definições, donde o podermos, sempre, perguntar ainda pelo êporqu . Tudo parece condenar, assim, a pretensão de conhecerem-se, mediante defini ções, as qüididades das coisas. E porque única a alternativa que se coloca é a de ou mostrarem as defini ções o “o queé” ou serem meras explicitações dos significados dos nomes,157 se não concernem ao“o queé”, serão meramente nominais. Deveremos concluir, então, que a defini ção é “discurso que significa a mesma coisa 158 que um nome”, o que nos levar á, no entanto, a conseq üências absurdas: pois, em primeiro lugar , haver á definições tanto das coisas que não são essências, como das quesimplesmente n ão s ão, já queé pos160 sível significar também os não-seres;159 em segundolugar, a redumente inaceit ável, como mostra S. Mansion, cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.179-80, n.88. Quanto ao car áter não genérico do ser, cf., acima, IV, 4.2. 155 Mas note-se que Aristóteles ilustra o“que é”, objeto dedemonstração, com o exemplo do triângulo, istoé, de uma afecção por si do gênero geométrico, cf., acima, IV, 2.3 e n.81 e 82. O caráter dialético do argumentoé, assim, ressaltado pelo fato de ãonfazer menção o filósofo das defini ções-princípios, onde se assume conjuntamente“que o é” e o “o queé”, cf., acima, IV, 2.4. 156 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b19 seg. 157 Cf. ibidem, l. 26-7. 158 Seg. Ana l. II, 7, 92b27-8. 159 Cf. ibidem, l. 28-30. 160 Cf. ibidem, l. 30-2.
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ção da definição à simples explicita ção de uma significa ção nominal converterá todos os discursos em defini ções, uma vez que ser á sempre possível dar nome a qualquer discurso: todos conversaremos definições, aIl ía d a será uma definição! Finalmente, nenhuma demonstração demonstrará que tal nome tem tal significado: tamb ém as definições serão, pois, incapazes, de mostr á-lo.161 Percorrendo as aporias que se nos deparam, ao tentarmos precisar as rela ções entre a defini ção e a demonstra ção, não somente se nos manifestou que defini ção e silogismo não são a mesma coisa, como, 162 também, que não há definição e silogismo de uma mesma coisa. Mas o aprofundar as dificuldades levou-no s, ainda, a bem mais estranho resultado, pois nos parece, agora, que açã defini o nada demonstra nem mostra e que o conhecimento do “o queé” se não obtém nem por definição nem por demonstra ção.163 O domínio da defini ção pareceu-nos restringir-se, com efeito, ao da linguagem e do discurso em que seãon atinge o que as coisas, por si pr óprias, são: todas as definições são nominais. Mas, por isso mesmo, transforma-se a defini ção num instrumento ineficaz e, portanto, absurdo de conhecimento: dissociada do ser, ela n ão maisé senão o fruto de uma decis ão arbitrária que faz artificialment e corresponder -se um nome eum discurso, nada impedindo que se fa ça ela confundircom um discursoqualquer.
3 Demonstra ção e defini ções 3.1 Considerações preliminares
É chegado, então, o momento derecome ça r e de, em retomando nossas análises, examinar “quais dessas coisas se dizem corretamen161 Cf. ibidem,l. 32-4. Asignificação dos nomes, como a dos discursos em geral, é meramena te convencional ( ), cf.Da Int. 2, com., 1619; 4 (todo o cap ítulo), donde não ser uma definição meramente nominal mais do que a explicita ção de uma significação convencionalmente atribu ída a um nome. 162 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b35-6. 163 Cf. ibidem, l. 37-8.
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te e quais, incorretamente ”,164 para saber de que modoá hdemonstração e definição do“o queé”, seé que há. Tal exame exigir á de nós uma reflex ão atenta e uma cuidadosa aten ção ao detalhe do texto aristotélico, objeto de inumer áveis e controvertidas interpretações, no mais das vezes francamente err emos mostrar. ôneas, como procurar Uma vez que, como dissemos, é idêntico conhecer o que é e conhecer a causa de‘se é’ (a razão dissoé que há alguma causa e esta é idêntica à coisa ou distinta e, se for distinta, a coisaáser ou demonstrável ou indemonstrável ( )) – se é, então, distinta eé possível fazer a demonstração, é necessário que ela seja o termo ém dio e quese fa ça a pro va na primeira fig ura : com efeito, o que se prova é universal e afirmativo. Uma modalidade será, então, a que há pouco se examinou ( ), provar-se mediantealgum outro“o que é”. De fato,é necessário que o termo m édio dos‘o queé’ seja um“o queé” e o dospr óprios , umpr óprio. Por conseguinte, provar-seá uma,não se provará a outra dasüqididades da mesma coisa. Que esta modalidade, pois, não será demonstração já se disse, anteriormente; mas é um silogismo “lógico” do “o que é” ( ). Digamos, porém, de que maneiraé possível [subent.: uma demonstra ção], retomando a questão desde o princ ípio.165
166 Como se vê, Aristóteles principia por relembrar que identificou, 167 no começo do livro II, o conhecimento do “o queé” ao conhecimento da causa por que alguma coisa o é, dispondo-se agora a explicar aãraz e o alcance deassim proceder . Encontra essa raz ão no fato de sempre haver uma causa para uma coisa dada, que se identifica ãoou à prnó168 pria coisa. Deixando de lado o primeiro membro desta alternativa,
a 164 Seg. Ana l. II, 8, com., 93 1-2; acima, V,2.1 e n.89. S. Mansion considera “bastante obscuro” (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.183) o texto do ícap tulo 8; cremos, no entanto, que as obscuridades que nele encontra se devem antes à linha errônea de interpretação que
procuraremos Seg. Anacomo l. II, 8, 165 adota, 93a3-16. mostrar. 166 Cf. ibidem, l. 3: a 167 Cf. Seg Ana l . II, 2, 90 14-5; 31-4; acima, V, 1.5. 168 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a5-6: . Cf. também, acima, III,1.4 e n.49.
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o filósofo não coloca o problema da demonstra ção senão para o segundo membro, isto é, para os casos em que algo se distingue da causa por queé: deixa, pois, de lad o, toda e qua lquer refer ência a u m conh ecimento d emonstrativo , no que respeita às essências ou subst âncias e aquanto se lhes po de assim ilar (e não se estende tampouco em mostrar por que se identificam aqui“o queé” e causa, áj que é imediatamente evidente que, coincidindo a coisa a e causa, necessariamente coincidir ão o “o que é” e a causa de a cois a ser, “oo queé” não sendo senão o que a coisa é). Por outro lado , quando a coisa e sua causa ãoncoincidem, distingue o fil ósofo os casos que compo rtam e os queãno comportam demonstração;169 se a demonstra ção é possível, prova-se a coisa pela sua 169 Cf. ibidem, l. 6: O que o texto aristotélico nos diz, com extrema concisão, é que, conforme o caso, pode ouãn o um atributo serdemonstrado: ele ãno o pode, seé acidental e contingente, ele o pode, se constitui uma propr iedade de seu sujeitopor si (cf., acima, III,1.3); e o fato de os acidentes serem causalmente determinados não implica sua demonstrabilidade, uma vez que sua causalidade tamb ém é acidental (cf., acima, III,1.4 e n.52). Ross (cf. seu com. intr. ao cap.II, 8)êvcorretamente esse momento do texto, mas n ão entende como nós a sintaxe das l. 5-6:“the reason is that there is a cause, either identical with the thing or different from it, and if different, either demonstrable or indemonstrable ” (cf. seu resumo do texto de II,8,ad locum ), obrigandose, então (cf. notaa d 93a6), a atribuir a Arist óteles um estilo frouxo, uma vez que, obviamente, não se refere o filósofo à demonstrabilidade ou indemonstrabilidade da causa, mas à sua utilização ou não como termo médio de demonstra ção que conclui aquilo de que é causa. Por outro lado,ãno é possível admitir, com Mure (cf. ad locum ) e S. Mansion (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.183), que Arist óteles esteja a dizer demonstr ável ou indemonstrável a essência, quando não se confunde a coisa com sua causa á (ali s, para esta última autora, tal express ão aristotélica significaria, apenas, que se coloca naqueles casos o problema da demonstrabilidade da êess ncia, uma vez que teria o ófil sofo afirmab do, pouco depois (em II, 9, 93 26-27), que“il y a toujours démonstration de ’lessence quand la cause est distincte de ’objet l ”, cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.186 e n.114). b Em verdade, n ão somente o texto de 93 26-27 não tem, como veremos, essa significa ção, mas também o capítulo 8é insofismavelmente claro, ao negar definitivamente a possibilidade de qualquer demonstração do “o que é”, cf. 93b16-17, 19.É curioso notar que a parece remontar a Fil ópono a srcem daquela interpreta ção errônea de II, 8, 93 5-6: com efeito, entendera o grande comentador grego estar Arist óteles a dizer queé possível uma demonstração da definição, se “o que é” é causa, e que a raz ão e causa de haver uma tal demonstração é haver uma certa defini ção, a defini ção fo rm al ( ) das coisas, suscetível de ser tomada como termo médio de umsilogismo demonstra tivo que concluiria adefini ção material ( ) das mesmas; a defini ção propriamente dita seria a que reúne uma e outra (a defini ção formal e a material) e assim,ãon coincidindo a causa (definição formal) com a defini ção real e completa, haveria uma defini ção demonstrável (a material) euma indemonstrável (a formal), utilizada como termo médio (cf.Philoponi
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causa expressa pelo termo émdio de um silogismo da primeira fig u170 ra, uma vez que o que se provaé algo universal e afirmativo. Se isto ocorre, perguntar o que é a coisa demonstrada, perguntar por sua definição, equivaler dio do silogismo á, então, a perguntar pelo termoém que a demonstra, isto é, pela sua causa. E que a busca da defini ção coincide com a busca do termo m édio do silogismo demonstrativo éo que se assume, aqui, para mostr á-lo, um pouco adiante: “Digamos, porém, de que maneira é possível [subent.: conhecer a essência por demonstração], retomando a quest ão desde o princípio”.171 Pois toda a questão consiste em mostrar de que modo se pode, malgrado as dificuldades reconhecidas , obtera definição através do silogismo que demonstra que a coisa é. 3.2 O silog ism o “l ógico” d o “o que é ”
E, com efeito, á h uma maneira de obter a defini ção por silogismo que há pouco ()172 se abandonou por inaceit ável, quando se provou irrefutavelmente, em capítulo anterior, que a pretensa demonstração do“o queé” não é mais do que uma peti ção de princípio, assumindo-se como termo émdio, nas premissas , a mesma ü qididade que se quer demonstrar na conclus ão:173 desdobra-se, indevidamente, a in Aristote lis Analy tica Co mm entaria , p.364-5). Ora, uma leitura atent a do cap.8 é suficiente
para mostrar-nos que nada justifica uma tal interpreta ção, a qual torna contradit ória e ininteligível, aliás, toda a seqüência do texto. 170 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a6-9. Sobre a cientificidade da primeira figura, cf., acima, I, 3.2 e n.161; sobre a universalidade do objeto cient ífico, cf. III, 2.2, part. n.74 a76. Quantoà afirmação de que o demonstrado é afirmativo, ela parece ter em vista ão-somente t o problema da definição, cujas relações com a demonstra ção Aristóteles se empenha, no momento, em precisar, uma vez que aência ci aristotélica não parece excluir os silogismos negativos, cf., acima, cap.IV, n.95; mas todo “o que é”, com efeito,é universal e afirmatib vo, cf. Seg. Ana l. II, 3, 904; acima, V, 2.1 e n.93. 171 Seg. Ana l. II, 8, 93a15-6. 172 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a9-10: ... 173 Cf. Seg. Ana l. II, 4, todo o cap Ross (cf. ítulo; acima, V, 2.2 e n.116 a 127. Como observa nota ad Seg. Ana l. II, 8, 93a9-16),, a l. 10, n ão se refere ao que imediatamente o precede, mas ao que dizia “há pouco” o cap.4; e, de fato, nas linhas 6-9, ão n se referia Arist óteles a uma demonstra ção do“o queé”, masà demonstração científica, pela causa expressa no
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termo médio, de umapropriedade“por si” distinta de sua causa. Comouma tal demonstração enseja a apreens ão da qüididade da coisa demonstrada é o que Aristóteles se proa põe mostrar, mais adiante, a partir de16: 93 entretanto, se a demonstra ção pode, assim, propiciar uma defini ção, diz-nos o ófilsofo,nad a tem isso a ve r com aquela falsa demonstração estudada no cap.4, a qual, porque peti ção de princípio, encerrava uma insuper ável falácia, não sendo senão uma demonstração “lógica”. Não entende, assim, entretanto, Filópono (cf.Philopo ni in Aristote lis Ana lytica Comm entaria , p.365), que,á jtendo interpretaSeg. do a passagem precedente ( Anal . II, 8, 93a3-9) como uma indica ção da possibilidade de demonstrar-se adefinição material pela forma l (cf., acima, n.169 deste cap ítulo), julga que a modalidade de demonstra ção “lógica” do “o queé” a que o filósofo se refere, a partir de l. 9, respeita às linhas imediatamente anterior es e que o de l. 10 a elas, pois, remete a o leitor. Tal interpreta 16 ção leva, naturalmente, ent ão, a tomar toda a passagem de 93 seg. (na qual, pondo termo a odas t as aporias levantadas, procuraósofo o fil mostrar como, apesar de n ão haver demonstra ção da essência, serve a demonstra ção científica, no entanto, à constituição de uma defini ção correta) como uma explica ção sobre como se constr ói a demonstração da essência! Com isso, compromete-se, definitiva e irremediavelmente, toda e qualquer possibilidade de interpreta ção correta e coerente do cap ítulo, ao mesmo tempo que se sacrificam a compreens ão e a intelig ência dos resultados finais da profunda e laboriosa an álise, empreendida por Arist óteles, das rela ções entre a defini ção e a ciência demonstrativa. Infelizm ente, um n úmero razoável de bons autores seguiu, com maior ou menor fidelidade, a interpreta ção de Filópono. Assimé que Robin (cf.“Sur la conception aristotélicienne de la causalit e hell é nique , 1942, p.456 seg.), distinguindo é”, in La pens é entre umaess ência fo rm al e umaess ência material , respectivamente termoédio m e conclusão do silogismo“lógico” da essência, entende que, em II, 8,“Aristote explique qu’il y a une façon ded é montrer l ’ essence sans cercle vicieux, en la d émontrant au moyen’une d autre chose, qui est encore une essence ” (ibidem, p.456– os grifos são nossos). Le Blond, por sua vez, apóia-se explicitamente em Fil ópono para explicar o silogismo do “o queé”, nele também distinguindo entredefini a ção material que se exprime na conclus ão e adefini ção formal que se formula como termo ém dio, cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.150, n.2 e 4; interpreta 93a14-15, como se estivesse Arist óteles a dizer que, embora n ão possa ser demonstrada,“cependant ’lessence est connue gr âce à un syllogisme logique” (ibidem, p.156); explica os silogismos “lógicos” do eclipse e do trov ão, segundo aquela distin ção entre as definições material e formal (cf. ibidem, p.157-8); e, finalmente, porque, como Filópono, interpreta todo o cap ítulo 8 como umadiscussão sobre o silogismo do “o que é”, identifica o silogismo da ess ência e o científico! Com efeito, diz-nos o ilustre autor: “Il semble donc que ce syllogisme dit logique etésent pr é comme artificielérpond en réalité à la description du syllogisme strictement scientifique ” (ibidem, p.163). E, se a doutrina toda se complica e embaralha, resta a Le Blond, como recurso derradei ro, imputar toda a culpa a Aristóteles: embaraçou-se o filósofo com a doutrina da defini ção, cuja constituição não conseguiu, finalmente, explicar (cf. ibidem, p.156);ãonconseguiu tampouco esclarecer as rela ções entre a defini ção e a demonstra ção, senão em aparência e ao pre ço de um equívoco, demonstrando sua hesitação e as graves confus ões em que incorreu (cf. ibidem,àp.166-7); inspirado porconceitos doutrinas contr e inconcili veis,chapitres não soube Arist árias óteles escapar ambigüidade de seus nem poupar leur caract “à tous áces ère singulièrement embarrass é” (cf. ibidem, p.167-8)! Tamb ém S. Mansion se orienta fundamentalmente segundo a mesma linha de interpreta ção e considera toda a passagem de 93 a 16 seg. como uma descri ção da construção do silogismo da essência (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.186 seg.); reconhecendo queóteles Arist não formula, nessa parte do
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174 qüididade da coisa, provando-se, ent ão, uma qüididade pela outra, uma definição e um “o que é” por outra definição e outro “o que é”, embora a doutrina do fil ósofo nos ensine que“não é possível haver muitas defini ções da mesma coisa ”,175 se é a definição o discurso da
por si, 177 e se,“para qüididade,176 istoé, daquilo que uma coisa se diz, cada um dos seres, umósé o ser aquilo que precisamente é”.178 Uma texto, os silogismos do trov ão e do eclipse como silogismos daência, ess mas como silogismos científicos do porqu ê (cf. ibidem, p.189-90), acresce nta entretanto: “Cela ne doitcependant pas faire illusion.Tout le chapitre est consacr é à expliquer comment on peut âtirbun syllogisme de l’essence. C’est donc que les syllogismes esquiss és par Aristote sontéquivalentsà des syllogismes de’essence l ” (ibidem, p.190); por outro lado, o silogismo “lógico” da essência escaparia, gra ças à distinção entre as duas defini ções, formal e material, “àtoutes les objections accumul é es contre la d é monstrabilit é de l’essence” (cf. ibidem, p.19 1); tratar -se-ia, em verdade, de uma demonstra ção que não difere sen ão pela forma da demonstra ção científica da“existência” pela ess a que teria oófil sofo aludido no princ do livro II (cf.,cima, a V, 1.6 e n.80 ência ípio e 81) e que“est au fond analogue à une démonstration de propri été essentielle ” (cf. ibidem, p.191-2), isto é, à demonstra ção científica das propriedades “por si” de um sujeito! Evitando, então, o perigo de tornar-se uma peti ção de princípio (cf. ibidem, p.193), o silogismo da essência constituiria uma segunda forma de demonstra sofo nosSeção reconhecida peloófil gundos Anal í ticos , ao lado do silogismo cient ífico comum do“porquê” (cf. ibidem, p.33-4; 199); e o fil ósofo ter-lhes-ia acrescentado,áali s, umaterceira forma, que combina as duas a precedentes e que ele teria expostoSeg. em Anal . II, 17, 99 23 seg. (cf. ibidem, p.34-5; 199201), descreve ndo-a como umduplo silogismo, o primeiro correspondendo a silogismo um da essência, o segundo, a um silogismo simples do porqu ê; acontece, por ém, que a correta interpreta ção destaúltima passagem é bem outra, cf. o resumo, interpreta ção e coment ário de Ross,ad locum , com que estamos de completo acordo. Mais recentemen te, A. Mansion, analisando e explicando Seg. Ana l. II, 8 (cf. orie de la science chez “L’srcine du syllogisme et laéth thode , 1961, p.73-7), compreende corretamente Aristote”, inArist ote et les probl èmes de m é que Arist óteles afasta, de modo definitivo, nesse ítulo, cap o silogismo e a demonstra ção como meios de estabelecer uma defini ção; entretanto, tamb ém este autor não alcança o sentido profundo do cap ítulo e julga, como os outros, tratar -se de um estudo sobre a possibilid ade de reservar-se, naêci ncia, um certo lugar ainda que limitado para o silogismo daêess ncia: tais silogismos poderiam, “dans certains cas favorables et bien étermin d és, servirà compléter et à eclaircir la d éfinition d’une essence édjà connue par ailleurs ” (ibidem, p.76-7). 174 Cf. Seg. Anal . II, 8, 93a12-2. Aubenque, que tamb ém não apreende o fim visado peloófil sofo em II, 8, neleêvtão-somente uma teoria da demonstra ção da essência, que demonstra a essência, desdobrando-a graças a uma intervenção da dialética que “épouse le redoublement ind éfini par lequel la quiddit é s’efforce de se pr écéder elle-même pour se fonder, toujours antérieure à elle-même, cause et principe d’elle-même, et pourtant incapable, parce est toujours autre’elle-m qu ême, de se ressaisir dans son impossible ’elle unit é” (Le probl de l ’êtr e..., 1962, p.483). ème qu 175 Tóp. VI, 5, 142b35; cf., tamb ém, 14, 151b16-7; 151a32-4. 176 Cf., acima, cap.III, n.6. 177 Cf., acima,III, 1.1 e n.15. 178 Tóp. VI, 4, 141a35.
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tal demonstra ção da ess ência não é, pois, demonstra ção verdadeira mas, tão-somente, um silogismo “lógico” do “o queé”,179 istoé, um silogismo meramente“verbal”, que não é demonstrativo, mas dial ético, quando não sofístico.180 É como se,querendo construir silogistica mente, a definição do trovão, por exemplo, se constru ísse o seguinte silogismo: A extinção do fogo nas nuvens é ruído nas nuvens. O trovão é extinção do fogo nas nuvens. O trovão é ruído nas nuvens.
179 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a15. 180 Sobre o sentido aristotélico de , cf., acima, III, 2.6 e n.136 seg. A argumenta ção conforme intenpesquisa uso, “lógica” serrepresente á dialética ou ística, ção que preside é, conforme umsof mero momento deàuma proped êuticaaà seu ciência ouisto pretenda, pelo contr ário, fazer as vezes da demonstra ção científica, cf., acima, cap.III, n.141. A demonstração “lógica” do “o que é”, que encerra, como vimos, uma peti ção de princípio, também comporta, ent ão, um e outro uso, dial ético ou sofístico,assumindo, nesteúltimo caso, um sentido francamente pejorativo. N pois, com Robin, ão concordamos, quando pretende que o silogismo “lógico” é assim chamado porque indica a ess ência ou q üididade de um fato e porque“l’essence ou laquiddit é , c’est en effet pour Aristote une cause logique, ’cest-à-dire dont la causalit é réside en ce qu’elle est leou la notion de e hell é nique , la chose”, cf.“Sur la conception aristot élicienne de la causalit é”, in La pens é 1942, p.465; porque uma demonstra ção da “substância” é impossível, sem petição de princípio, separa-se a forma ouüqididade e toma-se ela como termoém dio (cf. ibidem). No seuAristote , publicado posteriormente, o autor formula uma explica ção diferente da razão pela qual Aristóteles fala em silogismo“lógico”: “C’est que, dans le vocabulaire d’Aristote, le terme dont il s’agit désigne une certaine façon, abstraite et générale, d’envisager les choses. Or, la chose qui est iciquestion en est sans doute une essence, une nature simple, uneéralité indivisible, ’cest à dire individuellle; mais,’autre d part, au lieu de la traiter comme telle, nous’avons, l pour notre usage, édcomposée artificiellement , d’une façon toute abstraite et contrairement à la vérité de sa nature” (Robin, Aristote , 1944, p.47). Aubenque, por outro do, la que êv na longa e trabalhosa discuss ão sobre a Segundos An al í ticos , uma reapossibilidade da demonstra ção da definição, no livro II dos bertura do debate sobre a demonstrabilidade ou indemonstrabilidade dos princípios (cf., acima, n.107 deste cap ítulo), entende o silogismo “lógico” como uma interven ção residual da dialética, traduzindo, numa repeti ção infinita da quest ão, a impotência do discurso humano, cf. Le probl ème de l ’êt re ..., 1962, p.483. Ora, não somente a questão da indemonstrabilidade ãno é, de novo, retomada, porque definitivamente esta belecida no livro I (cf., acima, V, 2.1 e n.105 a 107), como, tamb ém, ao que logo veremos, não é à dialética, masà própria ciência, que comete o fil ósofo a tarefa do conhecimento das essências dos atributos, atrav é s da demonstra ção, ainda que as ess ências não possam, propriamente, demonstrar-se.
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Obtemos, assim, uma defini ção (“O trovão é ruído nas nuvens”) queé conclusão de uma demonstra ção do“o queé”,181 mas áj sabemos o que pensar de tais “demonstrações”; e basta atentar na verdadeira definição do trovão (“ruído do fogo que se extingue nas nuvens ”182) para melhor compreendermos toda a impropriedade do “silogismo lógico”, que artificialmente decomp õe a qüididade para parcialmente demonstrá-la. O mesmo dir íamos para um silogismo que, como o seguinte, tentasse demonstrar“o queé” do eclipse: A interposição da terra [subent.: entre o Sol e a lua] é privação da luz da lua. O eclipseé interposição da terra. O eclipseé privação da luz da lua. Com efeito, a defini ção correta do eclipse é “privação da luz da lua 183 pela terra interposta ”. 3.3 A bu sca d o “o que é ” e o silogism o científico
Retomemos, então, tais exemplos (trov ão e eclipse) e vejamos de que modo nos ser á possível, sem incidir n o v ício de raciocínio que denu nciamos , obter suas defini ções corretas, gra ças a uma demonstra ção, ainda que isso possa, agora, parecer -nos empreendimento temer rio ou, mesámos, mo, contradit ório, em face ed tudo quanto vimos. Comece por ém, 184 por uma observação preliminar: sabemos, com efeito, queé possuindo o “que” que indagamos do porqu ê e embora o“que” e o por185 quê se nos tornem, por vezes, simultaneamente evidentes, não pode 186 o conhecimento do porqu ê ser anterior ao do “que”, já que isso equia Cf. Seg. Ana l. II, 10, 94 7-9. Ibidem, l. 5. Cf. Seg. Ana l. II, 2, 90a16. Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a16 seg. Sobre a possibilidade de conhecerem-se premissa e termo m édio ao mesmo tempo que se infere a conclus ão, cf., acima, cap.II, n.104. a 186 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93 16-9; cf., acima, II, 3.3 e n.88 e 89, quando se opera, ém, apor “inversão científica”, pode cons truir-se, então, o silogismo do porqu ê, concluindo cientificamente
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valeria a conhecer-se a produção de um fato por sua causa, em desco187 nhecendo-se a mesma realidade do fato; ora, de modo semelhante, não se compreende que possa haver conhecimento deüqididade sem conhecer-se que acoisaé, “pois é impossível conhecer o que é, ignorando seé”.188 E não há como não reconhecer a validade e ocaráter correto da argumenta ção com que h á pouco recus ávamos a uma definição meramente nominal a possibilid ade de erigir -se em conhecimento da qüididade.189 Mas há duas maneiras de conhecer se uma coisa é: seja por acidente, seja em tendo algo daópr pria coisa ( ão é um certo ruído nas );190 assim, se temos que o trov nuvens, ou que o eclipse é uma certa priva ção de luz, ou que o homem é um certo animal ou que aópr pria alma a si pr ópria se move,ájtemos 191 algo da própria coisa por cujaüqididade perguntamos e tal indagao “que” do qual se partira na investiga ção preliminarà aquisição do conhecimento cient ífico, cf., acima, III, 4.7 n.189 e e 190. 187 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a19-20. 188 Ibidem, l. 20. 189 Cf., acima, V, 2.3.Como se vê, a solução final para o problema das rela ções entre a definição e a demonstra ção reconhece a validade definitiva de parte da argumenta ção dialética que a precede, convertendo-a em verdadeiro estudo sobre defini a ção. 190 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a21 seg. 191 Tais exemplos (cf. Seg. Anal . II, 8, 93a22-4), como diz Arist óteles, referem-se obviamente a casos em que se conhece“possui e ” algo da própria coisa cujaüqididade se busca eãno, a conhecimentos meramente acidentais, como pretendem Tricot (cf. sua o e nota, çãtradu ad locum ) e Mure (cf. sua tradu ção, ad locum ), que se vêem obrigados, para justificar sua interpretação, a inverter a ordem dos membros da frase srcinal, em II, 8, 93a21-2; a crítica que lhes faz S.Mansion (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.184, n.105) é, pois, totalmente pertinente. Santo Tom ás (cf.In Po st. Ana l. II, l. VII, n.475) ád, como exemplo de conhecimento acidental “do que”, a percepção de um animal em movimento cuja velocidade nos faz supor que se trate de uma lebre; o exemplo parece-nos bastante adequado ao texto aristot élico: conhece-se um acidente da coisa, mas nada se apreende “o que do é” e nem mesmo se pode dizer que se apr eende realmente o seu “que é”. Por outro lado, os exemplos da alma e do homem, que Arist óteles formula na passagem que explicamos, ao lado dos exemplos do trov ão e do eclipse, servem apenas para ilustrarros outcasos, éal m dos concernentes a atributos “por si” cientificamente demonstr áveis, em que o processo de estabelecimento da defini ção igualmente parte de um certo conhecimento, ainda que imperfeito, da üqididade, que se associa ao mesmo conhecimento doé”; e nenhuma “que razão há, portanto, para interpret á-los como indica ções da possibilidade de conheceremse as defini ções do homem ou da alma gra ças a um processo demonstrativo. Por isso mesmo, cremos inaceit ável a interpretação de Le Blond quando, reco nhecendo queArist óteles
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ção se torna maisácil, f á j que, na mesma medida em que sabemos que a coisaé, relaciona-se nosso conhecimento com seu “o queé”.192 Por isso mesmo, necessariamente ocorre que nenhumaçã rela o tem com o “o queé” nosso conhecimento acidental de que certas coisas ão, jás que nem mesmo sabemos propriamente que elas ão,se investigar o que é uma coisa que se ãno sabe seré nada investi gar.193 Consideremos, ent ão, um caso no qual conhecemos que uma coisa é, em já possuindo algo de seu“o que é” e tomemos por exemplo o 194 conhecimento do eclipse, chamando o eclipse de A, lua a de C, a interposição da terra de B. Nesse caso, per guntar se A pertence ou ãon a C, istoé, se a lua se eclipsa ou ã no, é investigar se há ou não uma causa real para esse fato, um termo édio m que o demonstre, é perguntar se Bé ou não (ainda que desconhe çamos ser a interposi ção da terra a causa do eclipse). O que queremos mostrar é que assim indagar equivale a indagar se h á uma “razão” () do eclipse: se há, direnão desenvolve os silogismos do homem e da alma (os quais, porque concernentes a essências ou subst âncias, de que artificialmente dissociaram a forma e a matéria, proporcionari am, segundo o autor, os únicos exemplos adequados de silogismos thode ..., 1939, p.165), julga encontrar “lógicos”, cf.Logique et m é í a amanifesta ção da imperfeição da doutrina:“Les rapports entre laédfinition et la d émonstration ne sont donc tirés au clair qu’en apparence... et l’embarras d’Aristote se révèle manifestement dans le fait qu’iléns’essaie pas de8,formuler syllogisme essence exemples àetpropos annonc au chapitre exemplelede l de’’homme lde l de’essence l des derniers de’âl me” (ibidem, ’essence p.166). S. Mansion, por sua vez, pretende que, ao propor, em a93 23-24, esses exemplos, Aristóteles crê possível a construção de silogismos do “o queé” a propósito de substâncias; a autora procura most rar, então, como, emMet. , 17, 1041b2 seg., o filósofo esboça um silogismo da ess ência do homem e cr ê que a leituradesse cap ítulo bastaria para evidenciar como se poderia mostrar silogisticamente o de uma essência ou substância (cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.194 seg.); pois, comparando esse text o com o Segund os Anal í ticos , “on s’aperçoit ... que le texte de la Mé taphysique cap.8 do livro II dos tempère certaines affirmations trop peu nuancées desAnaly tique s” (ibidem, p.197). Ora, Met. 17 sobre a causalidade da forma tenha em nem é certo que o texto de vista qualquer formulação silogística nem corresponderia um tal silogismo do“o queé”, de caráter necessariamente“lógico”, às preocupações de Seg. Ana l. II, 8, onde o filósofo procura, sobretudo, precisar as rela ções entre a defini ção e o silogismo cient ífico, como estamos mostrando. 192 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a27-9. 193 Cf. ibidem, l. 24-7; cf., também, 10, 93b32-5. 194 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a29 seg.
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mos também que a lua se eclipsa, que o eclipse é.195 E se descobrimos 196 uma tal raz ão, expressa em premissas imediatas, sabemos, ao mesmo tempo, o“que” e o porquê; se não são imediatas,é o “que” tãosomente que conhecemos, desconhecendo ainda o porqu ê.197 Tome198 mos o seguinte exemplo: seja C a lua, A o eclipse e Ba incapacidade de a lua projetar uma sombra, ainda que nenhum objeto ívelvis se in199 terponha entre ela e óns. Ora, se descobrimos que B pertence aC (istoé: que a lua seencontra incap az de projetar uma sombra, ainda que nenhum objeto vis ível se interponha entre ela e nós) e que Apertence a B (istoé: que tal incapacidade “é” o eclipse, que ela equivale a uma perda de luz da lua), podemos concluir silogist icamente que A pertence a C, que a lua se eclipsa. Mas, se o ” se nos tornou as“que sim manifesto conhecemos agora que á eclipse, h que áhportanto uma privação de luz da lua e nosso saber relacion a-se destarte, em alguma medida, com o“o que é” do eclipse200 –, não conhecemos ainda, em verdade, o porquê real (interposi ção da terra): nosso silogismo foi um mero silogismo do“que” e, sabendo que o eclipseé, ignoramos ainda o que eleé;201 sabemos queé uma privação de luz e conhecemos,
195 Aristóteles raciocina como se o pr óprio conhecimento de queáheclipse, do seu“que é”, se devesse obter, não por observação direta, mas por via silog ística. Tal procedimento tem, obviamente, inten ção exemplicativa. 196 Aceitando, em Seg. Ana l. II, 8, 93a36, com a maioria dos autores, a corre ção proposta por Waitz: ’ , em lugar de , cf. Tricot, notaad locum . 197 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93a35-7. 198 Cf. ibidem, l. 37 seg. 199 Aristóteles imagina a interposi ção de um corpo entre a luae a terra (como, por exemplo, nuvens, sugere Ross, cf.Prior and Posterior Analy tics , coment. introdutório a Seg. Anal. II, 8, p.631), de tal modo que a habitual produ ção da sombra dos objetos por efeito da luz lunar ãno mais ocorresse; ora, se tal interposi ção não se dá e, apesar disso, não mais ocorre a habitual produção daquelas sombras, poder íamos inferir (sempre supondo a inexist ência de observação direta, cf., acima, n.195 deste cap ítulo), a privação da luz da lua, isto é, haver um eclipse, ignorando embora sua causa real. S. Mansion, entretanto, imaginando que o fil ósofo se refere a corpo de menor dimens ão que, quando interposto entre a lua e a terra,projeta nestaúltima sua sombra, traduz diferentemente a passagem em quest ão e a torna, em verdade, incompreens ível, cf. Le jugement d ’ existence ..., p.185 (e n.109), 187. 200 Cf., acima, n.192 deste capítulo. 201 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93b2-3.
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portanto, parcialme nte a sua ü qididade; entretanto, na mesma medida em que ignoramos por que raz ão ele se produz e qual a sua causa imediata, não conhecemos ainda sua mesmaüqididade, senão de 202 modo incompleto e obscuro. Apropriando-nos desse modo, por ém, do “que”, o próximo passo de nossa investigação é pesquisar por que pertence A a C, isto é, qual a causa real dessa atribui ção ou, ainda, o que é B: a interposição da terra, a rotação da lua, a extinção de sua luz?203 Descobrindo-o, temos uma raz ão ou definição do termo maior A: “com efeito, o eclipseé uma interposição da terra”,204 isto é, uma privação da luz da lua pela terra interposta; e tornou-se-n os poss ível tal definição por termos descoberto a causa real do ecli pse e termos podido, destarte, formular o silogismo cient ífico de seu porqu ê: A (eclipse = priva ção de luz) pertence aB (interposição da terra). B (interposição da terra) pertence aC (lua). A (eclipse = privação de luz) pertence aC (lua).
Do mesmo modo, descobrindo-se “arazão” do trovão (extinção 205 do fogo nas nuvens), formularemos da seguinte maneira o silogismo científico do trovão: 202 Um texto da Metaf ísica , o de, 4, 1044b8-15,é particularmenteútil para acompreensão da análise aristotélica da demonstração científica do eclipse; com efeito, nele mostra o filósofo que, em eventos naturais como o eclipse, que ão n são essências ou subst âncias, não há causa material e a causa formal é representada pela“razão” que se exprime na fórmula definidora, isto é, no caso de eclipse: priva ção de luz. Tal defini ção, porém, diz o filósofo,é obscura ( , cf. ibidem, l. 13), seãon se lhe acrescenta a causa eficiente da privação de luz, ainterposi ção da terra. Cf., tamb ém, Da Alma , II, 2, 413a13-20. 203 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93b3-6. 204 Ibidem, l. 7. A frase cujo sentidoé claro se a inserimos convenientemente em seu contexto, como fizemos, pode entretanto, para uma leitura menos rigorosa, parecer referir-se a um silogismo“lógico” do “o queé”, de que constituiria uma das premissas: “A interposição da terraé privação da luz da lua. Oeclipseé interposição da terra. O eclipse é privação da luz da lua”. Em passagens como estas, pode islumbrar v -se uma das prov áveis causas dos contra-sensos tradicionalmen te cometidos sobrea significação do cap.8 do livro IIdos Segundos Analí ticos. 205 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93b7 seg.
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A (trovão = ruído) pertence aB (extinção do fogo). B (extinção do fogo) pertence aC (nuvens). A (trovão = ruído) pertence aC (nuvens).
E conhecendo-se, assim, a produ ção do trovão por sua causa expressa pelo termo m édio do silogismo demonstrativo, torna-se-nos possível, também, definir o trov ão: “ruído do fogo que se extingue nas 206 nuvens”. 3.4 A demonstra ção, caminho para a d efini ção
Vemos, então, como, para todas essas coisas que êmtuma causa que com elas n ão coincide e ãso demonstráveis,207 para todos os atributos, portanto, que pertencem a seus sujeitos por si , “assume-se e torna-se conhecido‘ooqueé’, de tal modo queãno se produz silogismo nem demonstra ção do‘o queé’, mas ele se torna evidente, entretanto, através de silogismo e atrav és de demonstração; de modo que nemé possível conhecer sem demonstração o ‘o queé’ da coisa de queáhum causa distinta, nemáhdemonstra ção dela, comoájdissemos em nos208 sos diaporemas ”. Assim, provando“oqueé” das propriedades por si 209 dos gêneros de que se ocupa, constitui-se tamb ém a demonstra ção 206 Seg. Ana l. II, 10, 94a5. E o termo médio B é, assim, uma “razão” () definidora do b termo maior A, cf. Seg. Anal . II, 8, 93 12; se outras causas mediadoras houver deacresB, centa o filósofo, causas, portanto, n ão imediatas de A, constituir ão elas outras tantas “razões” definidoras de A, cf. ibidem, l. 12-4. Para um outro exemplo de defini ção estabelecida gra ças ao silogismo demonstrativo, veja-se o exemplo da defini ção do gelo que Aristóteles nos prop õe emSeg. Ana l. II, 12, 95a16 seg.: chamemos áagua de C, solidificada de A e a causa, falta total de calor, de B; se constru ímos o silogismo que nos prova pertencer A a C pelo termo émdio B, torna-se-nos imediatamente poss ível definir o gelo como“água solidificada pela falta total de calor ”. Como vemos,um atribu to D define- se: um A que pertence a um C devido a um a causa B . 207 Cf., acima, V, 3.1 e n.167 a 169. 208 Seg. Ana l. II, 8, 93b16-20. Remete-nos Arist óteles ao que estabelecera em II, 4, sobre a impossibilid ade de um silogismo da defini ção, sem petição de princípio (cf., acima, V, 2.2 e n.116 a 127), e ã no aos cap.2 e 3, como pretende Ross, cf. nota a d II, 8, 93b20. Sobre a noção de “diaporema” ou raciocínio diaporemático, cf., acima, n.116 deste cap ítulo. 209 Cf., acima, I, 3.3 en.173; II, 3.2 ; IV, 2.3; V, 2.1e n.109 seg.
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em caminhoúnico para o conhecimento das üididades q desses mesmos atributos que demonstra. Com efeito, como vimos acima nos exemplos do eclipse e do trov ão, basta formular ossilogismos cient íficos que provam pertencer tais atributos a seus sujeitos atrav és de suas causas reais que os termos m exprimem, para que, mediante édios uma simples rearticula ção dos termos do silogismo, que lhes confere uma diferente disposi ção ()210 e os retoma numadiferente forma gramatical ( ),211 se obtenham asófrmulas que corretamente definem os atributos demonstrados. Entendemos, pois, de que maneiraé lícito pretender que a busca da defini ção se identifica, no processo cient ífico, com a busca do termoédio m 212 e compreendemos, também, que, embora permane ça sempre ávlido sustentar que “conhecer cientificamente o demonstr ável é ter a demonstra ção”,213 em nada isso obsta a que se construa, gra ças precisam ente àd emonstração, uma definição do demonstr ável. É que a qüididade ou forma do atributo, que o discurso da defini ção necessariamente deveprimir, ex 214 inclui tamb ém a causa que o termo ém dio exprime, sem a qual o discurso permanece 215 incompleto e obscuro; por isso mesmo, porque integra tamb ém a qüididade, pode o termo m édio dizer-se umdo termo maior.216 a Cf. Seg. Ana l. II, 10, 94 l-2; cf., adiante, n.245 deste cap ítulo. Cf. ibidem, l.12-3; cf., adiante,n.246 deste cap ítulo. Cf., acima, V, 1.5 e V, 3.1. b Cf. Seg. Ana l. I, 2, 71b28-9; 72a25-6; II, 3, 90 9-10; 21-2; acima, II, 5.2 e n.205; introdu ção ao cap.V e n.4; V, 2.1. 214 Cf., acima, cap.III, n.6. Quantoà identidade entre formaüeididade, q cf., acima, cap.II, n.157. 215 Cf. Met. H, 4, 1004b8-15 (esp.l. 1 3); n.202 destecapítulo. a b a 216 Cf. Seg. Ana l. II, 8, 93b6-7, 12; 11, 94 28-36, part. l. 34-35; 19-20; 17, 99 21-2: . E as indicações de Aristóteles (cf. ibidem, l. 23 seg. e, também, 16, com., 98a35 seg.; b32-8; acima, III, 5.4) permitem reconstruir um outro silogismo exemplificativo do estabelecimento de uma defini ção através do processo demonstrativo: “As árvores em que a seiva se coagula na ju n ção entre as folhas e os ram os têm folhas caducas. As árvores de folhas largas tê m sua seiva coagulada na jun ção entre as folhas e os ramos. As ( )? árvores de folhas lar gas t êm folhas caducas. ”. O queé, então, ter folhas caducas É o perderem asárvores de folhas largas suas folhas pela coagula ção da seiva na junção entre as folhas e os ramos. E o termo médio (coagular-se a seiva na junção etc.) manifesta-se, uma vez mais, como “raz ão” definidora do atributo demonstrado. Aristóteles considera, nas passagens em questão, um segundo silogismo que prova a caducidade das folhas da vinha e da figueira por serem elas árvores defolhas largas; como
210 211 212 213
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O silogismo demonstrativo, mostrando como se engendra o atributo, desvendando o processo causal quefaz o ser, revelaipso fa cto um elemento– a causa– que se associa ao ser do atributo e deleãn o se pode dissociar: a defini ção completa do atributo e a suaüqididade ouforma estendem-se, assim, de modo a consigo incor porar o elemento 217 causal, eficiente ou final, ouéatmesmo material, que o termo médio exprime. Por isso, dir á o filósofo que“não somenteé preciso que o discurso que define mostre ‘oque’, como faz a maioria das definições, mas que tamb ém a causa neles se contenhamanifeste e ”.218 É possível, então, conhecer a mesma coisa por defini ção e por demonstra ção, apesar de quanto se nos opunha em ácontr rio, ao aborse vê facilmente, trata-se da aplica ção do conhecimento cient ífico obtido pelo primeiro silogismoàs espécies do sujeito cujo atributo se demonstrou, utilizando-se o sujeito genérico como termo m édio e as esp écies como termo menor. De nenhum modo se configura, portanto, em II, 17, uma outra forma especial de demonstra ção, diferente de construção ordinária de um silogismo cient ífico do porquê, como pretende S. Mansion, cf.Le ju gemen t d ’ existence ..., 1946, p.33-4 e 199; n.173 deste ítulo. cap Para um estudo mais detalhado, cf. Ross, ad locum , particularm ente seu coment ário introdutório a II, 17. 217 Os exemplos do trovão e do eclipse configuram, obviamente, casos em que se constitui o silogismo demonstrati vo mediante um termo ém dio que exprime uma causa eficiente, cf. a b Met. , 17, 104123-32;, 4, 10449-15. Aristóteles consagra, por ém, todo o cap.II, 11 dosSegundos Ana l íticos a mostrar e exemplificar como qualquer das modalidades de causa pode figurar como termoém dio no silogismo e, destarte, na f definidora do atribuórmula to demonstrado, enquanto elemento que integra sua üididade. q Se a significa ção geral do capítulo é facilmente compreens (estudo das ível e seu encadeamento com o que o precede relações entre a definição e a demonstração), mais que evidente, a intelig ência de seus vários momentos oferece algumas érias s dificuldades. Assim, por exemplo, no que concerne a dio (cf. 94 24-36), parece tratar-se de uma à utilização da causa material como termoém transposi ção da oposi ção matéria-forma para o dom ínio matem ático, cf., acima, cap.II, n.72; b quanto ao emprego da causa final comomo term édio (cf. 948 seg.), n ão é fácil reconstituir a exata doutrina que oósofo fil exp õe. Cremos, por ém, que Ross (cf. seu coment ário introdut ório a II, 11) exagera as dificuldades ãoevemos n por que conjecturar que Arist óteles talvez tenha escrito o cap sua doutrina das quatro causas (cf. ibidem, p.639);ãono ítulo antes de formular seguiremos, por conseguinte, quando afirma “The que chapter looks like an early product of Aristotle’s thought, for it betrays considerable confusion ” Aristotle , 1956, p.52. a 218 Da Alma II, 2, 413 13-6. Vê-se queé toda uma doutrina da defini ção que se elabora sobre a cr dascette defini E, segundo essa doutrina, faut... totale dire... que la cause, ítica de ções correntes. et l’effet cause dans un sujet donn la“ilnotion du fait ou de la é, constituent chose” (Robin,“Sur la conception aristot élicienne de la causalit é”, inLa pens é e hell é nique , 1942, p.453). Como vimos acima (cf. III, 4.6 e n.162 a 165), anterioridade a da causa sobre o efeito exprimir-seá na definição do efeito, em que acausa dever á necessariamente comb Seg. Ana l. II, 16, 98 parecer: a interposi ção da terra figurar á na defini ção do eclipse, cf. 21-4.
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219 darmos esse problema pela vez primeira, desde que n ão se trate de duas formas concorrentes de conheci mento, mas de um processo de definição ensejado e preparado pelo mesmo racioc ínio demonstrativo. E, tendo em vista a função definitiva do termo m édio, poderá o fi-
lósofo até mesmo dizer que “todas as ciências produzem-se por meio de definição”.220 Conhecendo que nosso conhecimento primeiro dos 221 atributospor si é por via demonstrativa, reconhecemos, agora, que a demonstração é o caminho necess ário e suficiente para a constituição do discurso que define, ainda que, diretamente, estabele ça apenas 222 que tal atributo pertence a tal sujeito e que sejaávlido distinguir entre o “queé” e o “o queé”.223 Porque se associam, da maneira que estamos descrevendo, ao conhecimento do “que é”, tais definições o são em sentido pleno e ãno têm um caráter meramente nominal, mas permitem que se conjugue com a explicita ção das significações o conheci224 mento real das q üididades. Não se confundem, pois, com as definições auxiliares que, concernente s porventura aos mesmos atributos, se assumiam antes de efetuada a demonstra ção, definições nominais que tão-somente serviam para clarificar a linguagem ência da 225 ci e que desempenhavam, por isso mesmo,çã fun o meramente subsidi ária: não confundiremos, por exemplo, a defini ção nominal do triângulo que “orienta” o matemático na sua demonstra ção e a definição real do tri226
ângulo, tornada poss ível quando, tendo provado que o triânguloé, pode o matem ático conhecer, tamb ém, a sua qüididade. E nada impede, por certo, que, uma vez demonstrado tal ou qual atributo por si , isto é, uma vez provado qu e eleé , formule-se sua defini ção realpara us á-la como premissa de novos silogismos demonstrativos, assumindo-s e ela Em Seg. Ana l. II, 3, 90b1 seg.; cf., acima, V, 2.1. a Seg. Ana l. II, 17, 99 22-3. Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b13-6; acima, V, 2.1 e n.95. b Seg. Ana l. II, 3, 90 33-8; acima, V, 2.1 e n.111 e 112. b Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90 38-91a6; acima, V, 2.1 e n.113; cf., tamb ém, 7, 92b8-18; acima, V, 2.3 e n.152 a 155. 224 Cf. Seg. Ana l. II, 7, 92b4 seg.; acima, V, 2.3 e n.148 seg. 225 Cf., acima,IV, 2.3; IV, 2.4 en.94. 226 Cf., acima, IV, 2.3 e n.81 e 82. 219 220 221 222 223
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numa proposição em que os elementos que con stituem o predicado e, portanto, a q üididade do novo sujeito, dir-seão pertencer-lhepor si , na primeira acep ção que distinguira oósofo fil para essa express ão.227 Não serão somente as premissas primeiras, por conseguinte, que conterão predicadospor si nesse sentido, ao contr ário do que,à primeira vista, pudera parecer-nos.228 3.5 Confirma -se e complementa-se a doutrina
Se assimé, pode o filósofo agora concluir:“Há, de algumas coisas, uma causa que delas é distinta, ãno a há de outras. Por conseguinte, é evidente que, tamb ém dentre os‘o queé’, alguns são imediatos e princípios, dos quaisé preciso pôr como hipótese () tanto que eles ã so como o queãso, ou torn á-los manifestos de outra maneira (o que, precisamente, faz o aritm ético; com efeito, ele p õe como hipótese () tanto o queé a unidade como que elaé); por outro lado, dos queêtm um‘médio’ e dos quais h á alguma causa da essência( ) queé distinta,é possível, como dissemos, mostrá-la através da demonstra ção, ainda que ãno demonstrando ‘o queé’”.229 Após a longa discuss ão e explicação precedente da doutrina do ófil sofo, a compreens ão do texto acima nos áser bastanteáfcil. Retomando 230
a distin o de há pouco entre ascoisas que coincidem imediatam ente comçã as suas causas e as queãn o o fazem, Arist óteles distingue do mesmo modo as correspondentes q na medid a em que po ssam üididades, integrar -se no d iscur so cient í fico . E, de fato, asüq ididades das primeiras exprimem-se em proposi ções imediatas que constituem, como sabemos, os princípios primeiros das êcincias, em que hip óteses e definições fusionadas seconjugam por obrade um mesmo eúnico pensao que uma coisa mento que conhece é , apreendendo concomitantemente 227 Cf. Seg. Anal . I, 4, 73a34-7; acima, III,1.1 e n.4 a 7. 228 Cf., acima, IV, 2.4e n.103 a 105. 229 Seg. Ana l. II, 9, 93b21-8 (todo o capítulo). Para a tradução de (l. 23), (l. 25), cf., acima , IV, 2.4 e n.99. 230 De Seg. Ana l. II, 8, 93a5-6; cf., acima, V, 3.1.
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que elaé ;231 também sua indemonstrabilidade é doutrina firmada so-
bre o qual o filósofo a nenhum momento voltara mas que ao contr ário, explicitamente relembrara e mantivera, ao desenvolver sua longa argumentação dialética sobre as relações entre definição e demonstração:232 porque indemonstr áveis em sentido absoluto, não se falará em para aquelas proposi ções nem se poderá identificar, no que lhes concerne, a busca da ü qididade com a de qualquer termo médio silogístico. Tampouco se ter á duvidado, realmente, da possibilidade de obterem-se tais defini ções imediatas, quando, noãaf de compreender-secomo conciliar um conhecime nto, por defini ção, dos atributos por si , com o seuconhecimento habitua l por via demonstrativa, p ôs-sedialeticamente em dúvida a mesma possibilidade de um conhecimento qualquer por defini ção e introduziu-se a problem ática 233 das defini Nenhuma raz ções nominais. ão há, então, para pressupor uma evolução qualquer na doutrina aristot élica da defini ção, como se o livro II dos Segun dos Ana l í ticos procedesse a uma revis ão das posi ções que o livro I assumira, no que respeita à natureza das defini ções-prin234 cípios da ciência. Ao contrário, aquelas posições permaneceram intocadas e nem mesmo foram objeto de nova discuss ão, senão em aparência. Mas, no que diz respeitoàs qüididades dos atributos demonstráveis, das afecções por si dos sujeitos que aêci ncia estuda, mostrounos o filósofo como se podeefetuar licitamente a redu ção ()235 da defini ção à demonstra ção, sem demonstrar, no entanto, üididade. aq 231 232 233 234
Cf., acima, IV, 2.4. Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90b24-7; acima, V, 2.1 e n.105108. a Cf., acima, V, 2.3. Como pretende S. Mansion (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.206-11), para quem Aristóteles, tendo estabelecido, no livrodistin I, ção entre duas é sries de princípios, a que faz conhecer a“existência” (hipóteses) e a que faz conhecer a ess ência (definições) dos objetos primeiros (cf. ibidem, p.209), teria descoberto, ao longo do livro II, particular mente ao longo do cap.7, d “le caractère illusoire de laédfinition sans implication’existence ” e teria, então, tomado consciência de que “la connaissance qui està la base de toute science est une prise de contact avec la éalit r é existante” (ibidem, p.211). 235 Cf. Seg. Ana l. II, 3, 90a35-6; acima, V, 1.7.
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Mostrou-nos como todo o conhecimento cient ífico, ao mesmo tempo que demonstra pela causa, desvela, nesse mesmo pr ocesso, a 236 qüididade de demonstrado. Sob esse prisma, o livro II vem complementar a doutrina da demonstra do ção, particularmente a doutrina “por si” científico, esclarecendo-nos de modo definitivo sobre íos nculos v entre as esferas da defini ção e da demonstra ção, ao elucidar de vez a questão da definibilidade do cientificamente conhec ível.237 3.6 As v árias espé cies de definição
Concluída uma tal elucida ção, é possível agora a Aristóteles propornos uma classifica ção geral das defini ções,238 cuja perfeita intelig ência exige que se tenham corretamente apreen dido o sentido e o alcance dos capítulos precedentes. Uma primeira defini ção, diz-nos o fil ósofo,239 é a nominal, istoé, o discurso ( ) que nos explica a significa ção de 240 um nome ou de uma express ão da natureza nominal: é o caso, por exemplo, da defini ção do triângulo, anteriormente à demonstração do seu “queé”, definição meramente auxiliar de que se serve ô ometra, ge enquanto a üqididade do tri ângulo ainda ãno lheé cientificamente pos242 sível.241 Uma tal defini ção, de caráter convencional, não apreendendo o“o queé”, tem umaunidade meramente artificia l e extr ínseca.243 236 É precisamente o que o fil ósofo relembra emSeg. Anal . II, 9, 93b25-28 (cf., acima, nossa tradução dessa passagem, n.229 deste cap ítulo), donde ã no podermos compreender por que pretende S. Mansion (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.186, n.114) que Arist óteles aí afirma “qu’il y a toujours démonstration de ’lessence quand la cause est distincte de l’object”. 237 Cf., acima, a introdução ao cap.V. 238 O que é, precisamente, o objeto de Seg. Anal . II, 10. b 239 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 93 29-37. 240 Como interpreta Ross (cf. seu comentário introdutório aSeg. Ana l. II, 10), o qual, contra os comentadores gregos, n o ão vê como possa entender-se diferentemente b
Seguimos, tamb m, locum o erudito comentador ingl éad ês na supress ão do da liçde ão 93 da30-1. vulgata a l. 31, cf. nota .
241 Cf., acima,IV, 2.3; IV, 2.4 e n.94. 242 Cf., acima, n.161 deste capítulo. 243 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 93b35-7. E sob esse prisma, a pr ópria Il ía d a poderia dizer-se uma b definição de seu título, cf. 7, 92 30-2; acima, V, 2.3 e n.160.
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Uma outra defini ção de definição será “discurso que mostra por que algoé”.244 Enquanto a primeira defini ção que consideramos, a definição nominal, tinha um car áter meramente significativo, sem nada mostrar, esta segundaáser manifestamente “como uma demonstração do ‘o queé’, diferindo da demonstra ) ção pela disposição ( 245 246 dos termos”, retomados sob diferente forma gramatical ( ). É a diferença que há, por exemplo, entre dizer por que troveja e o que é o trovão,247 isto é, entre explicitar o processo causal do trov ão mediante uma demonstra ção silogística contínua ()248 que nos permite afirmar que troveja “porque o fogo se extingue nas nuvens ” 249 e, de outro lado, propondo-se sob outra forma o mesmo discurso rearticulado, exprimir, sob forma de defini ção, a qüididade inteira do fen meno: nuvens tal de“ruído do fogo ”. Umaque finiôçã o, apreendendo, graque aoextingue processonas demonstrativo ela ças se condensa, a ess ência do atributo demonstrado, é “como uma demonstração do‘o queé’“ e, sob tal prisma, éatmesmo poderia d izer-se, sem impropriedade, um“silogismo do‘o que é’”250: ela é uma verdadeira definição-silogismo.251 b 244 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 93 38 seg. a 245 Ibidem, 94 1-2: . Concordamos plenamente com Rodier (cf. Trait é d e l ’âm e II, 193,apud Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.161, n.1) quando entende , nesta passagem, no sentido de “disposição ou posição dos termos”; talé, também, a interpreta ção de Ross, cf. notaa d Seg. Ana l. II, 10, a 94 12: “arrangement of the terms ”. Contra, cf., adiante, n.251 deste cap ítulo. 246 Cf. ibidem, l. 12-13: . Como explica Aubenque, cf. Le probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.184, n.3: “désigne toute modification fa çon de l’expression verbale portant non sur le sens, mais sur lade signifier ”. a 247 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 94 3-7. 248 Como diz Mure (cf. nota a d ibidem, l. 7): “Demonstration, like a line, is continuous because its premisses are parts which are conterminous (as linked by middle terms), and there is a movement from premisses to conclusion. Definition resembles rat her the indivisible simplicity of a point ”. Para a explicitação do silogismo científico do trovão, veja-se acima, V, 3.3 e n.205. 249 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 94a6: . a 250 Como se exprime Aristóteles (cf. Seg. Ana l. II, 10, 94 12: ), ao resumir seu quadro das diferentes esp écies de definições (cf. ibidem, l. 11-14). 251 A interpretação incorreta dos cap ítulos precedentes, particularmenteSeg. de Ana l. II, 8 (cf., aciam, n.169, 173, 180, 191 deste ícap tulo) levou certoúnmero de autores, porãn o terem
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252 Em terceiro lugar, temos a conclus ão de uma demonstra ção da essência, isto é, de um silogismo “lógico” da essência, como, por exemplo, a defini ção do trovão como“ruído nas nuvens ”.253 Finalmente, temos a defini ção-princípio da ciência, definição dos“imediatos”,
que é tese indemonstrável do “o queé”.254 E, retomando asávrias defini ,255 pode ções que acaba dedistinguir o filósofo concluir:“É, então, manifesto, a partir do que ficou dito, como há demonstração do‘o queé’ e como não há, e de que coisas áh percebido a solu ção aristotélica das aporias referentes às relações entre a demonstra ção e a definição, a um completo equ ívoco na compreensão do de 94a12 (cf. nota anterior), isto é, daquela defini ção que se pode denominar defini ção-silogismo, porque condensa verdadeiramente o silogismo demonstrativo quetornou a cientificamente possível; por não no terem visto, julgaram alguns haver naquela express ão uma referência ao de Seg. Ana l. 8, 93a15, que sabemos não ter valor demonstrativo e envolver uma petição de princípio (cf., acima, V, 3.2 e n.179 seg.). Tal é a posição de, entre outros, Robin (cf.“Sur la conception aristotélicienne de la causalité”, in La pens é e hell é nique , 1942, p.461-4), para quem a defini ção que mostra por que a coisaé e é “como uma demonstração do ‘o que é’“ (cf., acima, n.244 e 245 deste capítulo) é o equivalente do silogismo “lógico” e, por tal razão, recebe essa mesma denoa minação, emSeg. Ana l. II, 10, 9412 (cf. ibidem, p.461-2); tal defini ção difere, então, do silogismo “lógico” “par la donnée () ou par le mode ()” (ibidem, p.461). E Robin entende, em 94a2, em sentido semelhante ao que temo vocábulo algumas tese, princ linhas abaixo (cf. l. 9), onde designa, como em I, 2, 72 a14-6, a ípio indemonstr ável de uma ciência (cf., acima, IV, 2.2), aquilo que é pos to , que se assume comodado (cf. ibidem, p.462 e n.2, 463): no silogismo ógico, l explica,p õe-se a “essência formal” do definido para da í deduzir-se sua“essência material ”, enquanto, na defini ção causal, outra éa , já que “elle prend pour donn ée l ’ effet produit et le rattacheà sa cause” (ibidem, thode ..., 1939, p.159-61) interpreta como Robin o p.463). Le Blond (cf.Logique et m é de 94a12 e vê, na definição completa e correta, por exemplo, do eclipse (“privação da luz da lua pela terra interposta”), o silogismo “lógico” do eclipse desarticulado e apresentado num r com único plano; e inclina-se, igualmente, a concorda Robin na interpreta ção dode 94a2. Também S. Mansion (cf. Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.205) vê, na expressão de 94a12, “le syllogisme de’essence l présenté sous forme de définition”. a 252 Cf. Seg. Ana l. II, 10, 94 7-9. Não se trata, como pretende Ross (cf. seu coment ário introdut ório a Seg. Ana l. II, 10), de um mero exemplo de defini ção nominal, istoé, do primeiro tipo de definição distinguido pelo fil ósofo em 93b30-7, uma vez que nada impede que o silog ismo “lógico” do “o queé” se acompanhe da assun ção do “que é” da coisa definida. 253 Cf., acima, V, 3.2 e n.179 a 182. 254 Cf. Seg . Ana l. II, 10, 94a9-10: . 255 Cf. ibidem, l. 11 seg. Em verdade,Aristóteles retoma apenas as êtrs últimas espécies de definição consideradas, deixando de ladodefini a ção nominal, de car áter meramente con-
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e de que coisas n ão há; ainda, em quantos sentidos se diz ‘definição’ e como ela mostra o‘o queé’ e como não mostra, e de que coisasáhe de que coisas, ã no; além disso, como ela se relaciona com a demonstração, e de que modoé possível e de que modo não é possível havêlas [subent.: defini ção e demonstra ção] de uma mesma coisa ”.256 Eis, pois, plenamente equacionado o problema das rela ções entre a demonstração e a definição. Os dois capítulos seguintes apenas complementar ão os resultados alcan çados.257 3.7 Ciê ncia, conhecimento de essê ncias
É chegado, então, o momento de relembrarmos que, estudando a concepção aristotélica de ci ência como conhecimento causal do que não pode serde outra maneira, deparamos, logo deício, in com o que 258 poderia parecer uma outra çã noo de ciência; não nos diz, com efeito, o livro da Metaf ísica que“há ciência de cada coisa quando lhe conhecemos a qüididade ( élica dos dez primeiros )”?259 Ora, toda a doutrina aristot capítulos do livro II dos Segund os Ana l í ticos , que acabamos de analisar e comentar, deixou-nos bastante claro que, contrariamente ao que se 260 pretendeu, não são estranhas as ess ênciasà ciência aristot élica. Não conformeà doutrina do conhecimento é correto, portanto, dizer que, vencional, cf., ac ima, n.161 desteap cítulo. São as mesmas tr ês espécies a que fizera alus ão b o filósofo em I, 8, 75 31-2, numa passagem que S. Mansion, tendo postulado uma evolução da doutrina aristot élica da definição, do livro I para o livroII dosSe gund os Analíticos (cf., acima, n.234 deste cap diçãao tardia, ítulo), sente-se obrigada a considerar como uma uma vez que“elle est inintelligible dans son contexte, car elle suppose connue la éth orie du syllogisme de l expos ’essence ée en II, ”8(cf.Le jugement d ’existence ..., 1946, p.210, n.177). 256 Seg. Ana l. II, 10, 94a14-9. 257 Isto é: Seg. Ana l. II, 11 e 12; cf., acima, a introdu ção ao cap.V e n.7; tamb ém n.217 deste capítulo (no que concerne a II, 11). Quanto ao cap.II, 12, ele respeita às inferências causais de eventos ãno necessários, mas apenas“freqüentes”, considerados de um ponto de vista temporal; ainda que complemente a doutrina anteriormente exposta sob um prisma não desprovido de interesse, sua liga ção com o queprecedeé, antes, extrínseca. 258 Cf., acima, I,1.4. 259 Met. , 6, 1031b6-7; cf., tamb ém, l. 20-1 e todo o cap ítulo; B, 2, 996b14 seg. 260 Cf., Robin, Aristote , 1944, p.47.
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científico desenvolvida naquele tratado, “seu objeto principal n ão é mais a defini ção ou a essência mas, antes, as propriedades deduzidas necessariamente da ess ência”.261 Muito pelo contr ário, como vimos ao longo de todo este capítulo, se a ciência parte do conhecimento da qüididade dos sujeitos gen éricos cujas propriedades deduz, todo o discurso demonstrativo há que entender-se, também, como um desvelamento da mesma natureza dos atributos demonstrados pela explicitação das relações causais que os engendram e, por conseguinte, como um processo indireto– mas nem por issomenos necess ário – da manifesta ção de suas q üididades ou ess ências. Sob esse prisma, a ciência é semp re conh ecimen to de ess ências , eis a çã li o última do fil ósofo.
3.8 Termina a exposi ção sobre a d outrin a d a ci ência
E, com isso, podemos dar por exposta a doutrina aristot élica da ciência. Os cap ítulos seguintes do livro II dos Segund os Ana l í ticos con262 sagram-se, como acima dissemos, a questões que concernem, antes, a uma fase preliminar à demonstração científica, como testemunham as mesmas palavras com queósofo o fil abre essa discuss ão, após relembrar que chegou ao fim estudo o das rela ções entre definição e a demonstra ção: “digamos, agora, como se devem buscar ( , lit.: 263
ca ar) os elementos que se atribuem no o que é’”. E boa parte da seqçüência do texto vem trazer indica ções a‘ respeito da organiza ção do “material” científico, que utilizar ão as demonstra ções. Finalmente, um último cap ítulo, que trata expressamenteaquisi da ção dos princ ípios da 264 ciência, põe fim ao tratado. Seãno cremos necess ário empreender, 261 A. Mansion, “L’srcine du syllogisme et la th éorie de la science chez Aristote ” in Aristote et les probl è mes de m é thode, 1946, p.78. Para o autor, o livro IISegundos dos An al í ticos teria apenas procedido a esfor ços, parcialmente infrutuosos, para mostrar que, em certos casos especiais, a demonstra ção ou silogismo poderia ainda ter um lugar na constitui ção efforts n ’ ont pas a bouti et e n sont rest é s de defini qüididades, ções deutiles “que cestes indications mais in embora complè tesse et saiba insuffisan au re gard d u bout poursuivi ” (ibidem, àdes p.79). 262 Cf., acima, a introdução ao cap.V e n.8. a 263 Seg. Ana l. II, 13, 96 22-3. 264 Seg. Ana l. II, 19.
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neste nosso trabalho, um estu do pormenorizado desta segunda par te do livroII, demorar-nos-emos, no entanto, numa tentativa de analisar e compreender o seu cap ítulo final, um dos mais discutidos e controvertidos dentro da obra aristot élica. A ciência instaura-se, como sabemos, com a apreens ão de seus princ ípios e os caminhos que preparam esse conhecimento anterior em quedemonstra a ção se apóia não pertencem, obviamente, à jurisdição científica; entretanto, porque quis o filósofo acrescentarà sua doutrina da ci ência essas reflex ões finais sobre o processo que nos leva a aceder à posse científica do real, seja-nos permitido tamb ém, reconhecida a import ância do assunto, acompanhá-lo no itiner ário que seguiu em seu tratado.
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VI A apreensão dos princí pios
1 O proble ma 1.1 Recapitula ção
Mostrou-nos a doutrina aristot élica da ciência a exist ência deprincí pios (), istoé, de proposições imediatas e primeiras, anteriores e mais conhecidas, necess árias epor si , proposições absolutamente indemonstr áveis por que as ciências principiam e sobre as quais constroem seus silogismos, delas partindo para demonstrar e concluir as propriedades tamb ém necessárias epor si dos gêneros particulares de 1 que se ocupam.E vimos que são princípios , não somente as proposições iniciais das cadeias silog ísticas demonstrativas, teses que conjugam e fundem defini ções e hipóteses, assumindo concomitantemente o “que é” e o “o que é”,2 mas, também, todas aquelas proposições, 1 Cf., acima, II , 5.1 e II, 5.2; III , 5 (sobre a nece ssidade das premiss as cient íficas) e III, 6 (sobre a indemonstrab ilidade dosprincípios). Sobre a çã noo de gênero cient ífico, cf., acima, IV, 1.1 seg. 2 Cf., acima, IV, 2.4 e n.95 a 98. O parágrafo IV, 2é inteiramente consagrado aos pr in cí pi os próprios.
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onde se exprimem as causalidades imediatas dos atributos demonsa trar, as quais, assumidas sucessivamen te pela ci ência, ensejam a formulação de novos silogismos e, por conseguinte, a progress ão do co4 nhecimentodemonstrati vo;3 elas encerram, como vimos, as razões () definidoras dos mesmos atributos que por elasse demonstram. De outro lado, porque unidade a de cada êcincia particular se define pela unicidade de seu sujeito gen érico,5 sabemos que, tanto quanto as propriedades expressas nas conclus ões, são todos aqueles princípios particularmente concernentes aos g das ci êneros ências que 6 os assumem eapropriados, destarte ,à coisa demonstrada. Sendo indemonstr áveis os princípios, não pode haver deles êcin7 cia, em sentido estrito, cabendo seu conhecimentoà inteligência (),8 a qual, sempre verdadeira, tal como aência, ci 9 com ela inte10 gra a Sabedoria; conhecendo, ent ão, os princípios por que a ci ência se instaura, a intelig ência dir-se-á, por isso mesmo,“princípio de ciência” ( ),11 configurando-se como a unidade da ci ência e da demonstra ção.12 E, por isso mesmo, tamb ém, diremos que os 13 princípios científicos“por si mesmos fazemé”f, já que, em vista de sua absoluta anterioridade, ãonse concebe investiga ção de seus porquês. Com efeito, porquepremissas imediat as, as proposi ções-princípios são indivisíveis e unas, exprimindo causalidades imediatas numa atribuição “atômica”, em “intervalos” indivisíveis e imediatos, sem que nenhum termo m édio venha interpor-se entre predicadoe 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
Cf., acima,IV, 4.6 e n.304 a 309; 319. Cf., acima, V, 3.4 e n.216. Cf., acima, IV, 1.2 e n.10. Cf., acima, IV, 2.1. Sobre osaxiomas ou princ ípios comuns, cujo estudo vimos competir à ciência do ser, cf., acima, IV, 3.2 e IV, 3.3. Cf., acima, II, 1.3. Cf., acima, II, 1.3 e n.12. Cf., acima, II, 2.1 e n.14. Cf., acima, I, 1.3 e n.70. Cf., acima, II, 5.3 e n.220. Cf., acima,III, 6.5 e n.324. ’ , cf. T óp.I, 1, 100b1-2; acima, cap.IV, n.266; cf., tamb ém, Prim. b Anal. II, 16, 6434-6.
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14 sujeito: nenhuma outra proposi ção lhesé anterior.15 E também vimos,16 aliás, que nenhuma ci ência suprema e anterior vem legitimar ou fundamentar os princ ípios das diferentesêcincias particulares, ao contrário do que ocorria na filosofia de Platão.
1.2 Um conhecimento an terior ao dos princ í pios?
Que caiba efetivamente ao ou inteligência a apreensão dos princípios da ci ênciaé estabelecido peloófil sofo noúltimo capítulo dos Segund os Ana l í ticos,17 uma vez terminada a exposi ção da doutrina da ciência. E as mesmas palavras iniciaiscap do ítulo dão testemunho,ãno somente de que eleé o coroamento de toda A anal ítica mas, também – é o que particularmente aqui nos interessa – de queArist teles o conó “No que sid era suficientem ente elucidativo da quest ão que agora se aborda: respeita, pois, ao silogismoàedemonstração, fica manifesto o que é cada um deles e como tem lugar; ao mesmo tempo, tamb ém, no que respeitaà ciência demonstrativa, pois é a mesmacoisa. No que respeita, porém, aos princ ípios(), como se tornam eles conhecidos e qual é a disposição ou ‘hábito’ () que os conheceé o que a partir daqui ficará evidente, uma vez propostas preliminarmente as aporias ”.18 14 15 16 17
Cf., acima, III, 6.5. Cf. Seg. Ana l. I, 2, 72a7-8; acima, II, 5.1 e n.198. Cf., acima, IV, 4.2. Isto é, em Seg. Anal . II, 19. Em verdade, o car áter geral do estudo, a que Ari stóteles aqui procede, do processo de aquisi ção dos princípios inclui tanto os princ ípios próprios como os axiomas, como observa, com raz ão, Ross, cf. seu coment ário ao capítulo. 18 Seg. Ana l. II, 19, com., 99b15-9. Que Aristóteles entende o seu capítulo final como coroamento da toda a Anal ítica fica manifesto pela sua dupla refer ência ao silogismo eà Primeiros e dosSegundos demonstração (cf. ibidem, l.15), objetos, respectivamente, dos Anal í ticos ; aliás, as mesmas palavras iniciais Primeiros dos Ana l í ticos mostram que o fil ósofo concebe ambos os tratados como dois momentos de uma ó obra, s cujo escopo final éo a estudo da demonstra Prim. An al. I, 1, com., 2410-1; ção e da ciência demonstrativa, cf. acima, I, 3.1 e n.158. No ue q concerneà identificação entre ciência demonstrativa e deb monstração (cf.Seg. Anal . II, 19, 99 17), entend er-se-á ela no sentido de que a demonstrancia sempre se acompanha e o instrução ou silogismo cient íficoé o discurso de que aêci mento necess ário de que ela seãn o pode dissociar, cf., acima, I, 3.1 e n.152 seg.. Finalmente, quanto à noção de (cf. ibidem, l. 19), cf., acima, I, 1.3 e n.63.
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Como se vê, nada vem sugerir que o problema da apreens ão dos princípios se afigure ao ó filsofo momentoso e dif ícil ou que as aporias que se dispõe a formular lhe pare çam de solução duvidosa ou por demais complexa, como entenderam ou entendem tantos érpretes int zelosos... Principia Arist óteles por relembrar a impossibilidade do conhecimento demonstrativo sem o conhecimento dos primeiro s princípios imediatos.19 A primeira dificuldade consistir á, então, conti20 nua, em determinar seo conhecimento dos imediatos é, ou não, o mesmo conhecimento demonstrativo, oué se conhecimento de outro gênero que n ão a ciência.21 Por outro lado, caber á precisar se as disposições ou“hábitos” que conhecem os princ ípios são ou não inatos, isto é, se vêm a produzir -se em nós, sem que anteriormente os possuíssemos, ou se os possu íamos latentes e deón s mesmos desconhe22 cidos. Estaúltima conjectura, áhque imediatamente rejeit á-la por absurda: aceitar o ine ísmo equivaleria a reconhecer a possibilidade de possuirmos, sem o saber mos, conhecimentos mais acurados e exatos 23 que a demonstra ção. Nem concebe o fil ósofo que se possamconhecer de modo obscuro, confuso ou apenas latente, conhecer menos , portanto, que a coisa demonstrada, aquelas premissas cujoaconhecimento devemos, precisamente, o conhecercoisa a demonstrada e o nela crer:24 princípios e causas são .25 Os princípios não nos são inatos.“Mas se nós os adquirimos, ãno os possuindo anteriormente, comoconhecer os íamos e aprender íamos se não a pa rtir de um conhecimentoépr vio? Seria impossível, com efeito, b 19 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 99 20-2. 20 Cf. ibidem, l. 22-5. 21 Não se trata, em verdade, como é óbvio, de repor em dúvida o caráter não-cient ífico, no sentido estrito da express ão, do conhecimento dos princ ípios, definitivamente estabelecido no decurso do tratado, mas, ão-somente t de preparar dialeticamente a solu ção final de 100b5 seg., quando se configurar á como Inteligência o “princípio de ciência” a que o
Seg. Anal .
22 23 24 25
b
fil já sel.referira, em I, 3, 72 24; cf., acima, II, 5.3 e n.220. b Seg. Ana Cf.ósofo II, 19, 99 25-6. Cf. ibidem, l. 26-7. Muito provavelmente, Aristóteles visa indiretamente, aqui, a teoria platônica da reminisc ência. Cf. Seg. Anal . I, 2, 72a25 seg.; acima, II, 4.2 e n.104 106; a II, 5.1 e n.199 a 201. Cf. Met. , , 2, 982b2; acima, cap.II, n.165.
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como dissemos tamb ém a propósito da demonstra ção”.26 Todo o problema para o filósofo, como vemos, consiste, uma vez recusado o ineísmo, em descrever oprocesso atrav és do qual pode instaurar-se a ciência humana, conhecendose as premissas em que ela assenta. As ciências que os homens possuem ncias pelos – e a posse de certasêci homensé uma realidade indiscut ível27 –, eles as conquistaram progressivamente no tempo hist órico28 e cada homem que se lhes dedica vem a adquiri-las, individualmente, no decurso de sua vida. Mas, porque só há ciência quando se pode, de seus princ ípios primeiros e absolutamente anteriores, come çar a deduzir as conseq üências que comportam; porque a mesma progress ão do conhecimento cient ífico exige sempre a introdu ção de novos indemonstr áveis dos quais decorrerão as novas conclusões, cumpre explicar o surgimento de todos esses indemonstr áveis na alma humana, seja para compreender a gênese da realidade cient ífica que temos diante deós, n seja para melhor iluminar o caminho que nos conduzir á a incorporar novas regi ões de seres aos dom s o fil ínios de nosso saber. Ora, recorda-no ósofo que, no 29 início de seu tratado,antes mesmo de abordar o estudo do conhecimento cient ífico e de suas condi ções depossibilidade, expusera-n os como, em toda a esfera diano ética, parte-se sempre de um conhecimento anterior, caminhando do conhecido para algo vono que se vem a co30 nhecer: os mesmos princ ípios introduziram-se, precisamente, como aquelas premissas previamente conhecidas, aqueles 31 que a demonstra ção exige. Se isso, então, ocorre, onde quer que se exerça o conhecimento pelo pensamentoãeo,npela sensibilidade,áh que convir tamb ém, diz-nos agora Arist óteles, que o próprio conhe-
b 26 Seg. Anal . II, 19, 99 28-30. 27 Cf., acima, I, 2.1. 28 Cf., por exemplo, as considerações do próprio Aristóteles sobre o processo hist órico de
constitui o da matem propor acima, cf.descoberta tamb Vejaática ções, ém III, 3.4. se, tambéçã m, no teoria livro da Metaf (cap.3-10), a descri ção III,3.2; crítica da progresísicadas siva, pelos fil ósofos, da doutrina dacausalidade. a 29 Cf. Seg. Ana l. I, 1, com., 71 1 seg. 30 Cf., acima, I, 3.4. 31 Cf. Seg. Anal . I, 2, 71b31-2; acima, II, 4.2 e n.99 a 103.
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cimento dos princípios se não efetua sem um outro conhecimento anterior que o torne possível; de fato, ele não poderia ter lugar em quem, totalmente ignorante,ãonpossuísse nenhuma disposi ção ou 32 “hábito” cognoscitiv o. O conhecimento dos princ ípios não é o princípio de nossos conhecimentos. Esse simples fato de que outros conhecimentos precedem o conhecimento dos princ ípios não teria, em si mesmo, por que dar mar gem a aporias, uma vez que se trata dos princ ípios da ciência e não, de princípios do conhec imento qualquer. Aência ci começa pelos princípios e, anteriormenteà aquisição dos princípios, não há ciência – estes dois pontos foram clara e suficientemente estabelecidos para que não tenhamos de pô-los novamente em discuss ão.33 O que parece constituir , porém, fonte de aporias é a vinculação que se tem de pressupor entre o conhecimento dos princ ípios científicos e o saber n ãocientífico que o precede e de que emerge o primeiro, vincula ção cuja irrecusabilida de o filósofo constatou em toda a esfera do pensamento, onde nenhuma irrup ção mágica vembrindar-nos com conhecimentos novos, independentemente de conhecimentos anteriores que lhes sirvam, de algum modo, de pont o de partida e de apoio. Mas é certo que se não podem conceber, entre o conhecimento dos princ ípios e o conhecimento anteri or a que ele sucede, çlaos idênticos aos que a teoria da ciência nos revelou vincular a coisa demonstrada aos mesmos indemonstr áveis princípios a partir dos quais ela se demonstra; de fato, estar íamos privando, obviamente, os princ ípios de sua mesma condição de princípios, de sua anterioridade e de seu car áter de premissas primeiras, se, por absurdo, oséssemos fiz imedia ta e dire tam ente d ecorre ntes de qualquer outro conhecimento, isto é, se os quiséssemosengendrar a partir de algo anteriormente conhecido, tal como a partirdeles se engendram os silogismos demonstra tivos: estaríamos constituindo princ ípios para os próprios princípios, o que, por definição, configura um empreendimento contradit ório. Eé-nos, b 32 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 99 31-2. 33 Cf., acima,II, 5 .3 e n.224.
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também, fácil compreender como uma tal concep ção do saber anterior ao dos princípios inquinaria a mesma ci ência de... a-cientificidade. A resposta aristotélicaàs questões ensejadas por tais aporias parece não ter satisfeito a bomúnmero de seus int érpretes. Não se disse, com efeito, que“tanto quanto a filosofia de Arist óteles é clara, quando se trata de conhecer e de explicar os objetos intermedi ários, ela é obscura quando se trata dos princ ípios das coisas e dos limites 34 do conhecimento ”? Houve, aliás, quem considerasse o conhecimen35 to dos princípios como o“ponto fraco” do aristotelismo. E um dos mais eminentes estudiosos do aristotelismo, a quem tanto se deve na retomada dos estudos sobre o fil ósofo a que nossos dias assistem, escreveu sobre o cap ítulo que nos ocupa:“é notável que, sobre um ponto dessa import ância, os desenvolvimentos de Arist óteles são bastante curtos: suas indica ções mais explícitas são constituídas pelo capítulo 19 do livro II dos Segund os Ana l í ticos: ele oferece umaíntese s duma inegável beleza, mas sua interpretação fiel e clara permanece singularmente inc ômoda”.36 Poderíamos, também, relembrar , a inter37 pretação que acima recusamos, segundo a qual o saber anterior ao conhecimento dos princ ípios de cada ci ência seria“uma especulação 38 mais alta” que as ci ências particulares,uma ciência universal que, entretanto,“é impossível, se bem que seja a mais alta, a mais útil, a mais indispens ável das ciências”;39 atribuindo, ent ão, ao a apreensão dos princípios, oúltimo capítulo dosAnal íticos não proporia senão uma“explicação residual”, sem que nada, de fato, nos garanta que os princ ípios sejam conhec íveis.40
34 Bonitz, Aristotelis Metaph ys ica , II, p.410,in 10, 1051b, nota 1,apud Le Blond,Logique et mé thode ..., 1939, p.122 e n.1. apud Le Blond, ibidem . 35 Cf. Eucken, Die Methode der arist otelischen Forschu ng , 1872, p.33, 36 Le Blond, Logique et m é thode ..., 1939, p.121. 37 De Aubenque, cf., acima, IV, 4.3e n.256. 38 Cf. Aubenque, Le probl ème de l ’être..., 1962, p.422. 39 Ibidem, p.219. 40 Cf. ibidem, p.56 e n.2.
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1.3 Sensa ção, “experiê ncia” e apreensão dos universais
Voltemos, pois, ao texto de Aristóteles e acompanhemos as indicações que nos proporciona sobre o oblema pr em debate. Se se exige, para a apreens ão dos princípios, um saberanterior,é preciso, então, diz-nos o filósofo,41 que se possua alguma faculdade ( ) com que ele se relacione, a qual, entretanto, por raz ões óbvias, não deverá ser superior em exatid ão (’) ao conhecimento dos princípios e à ciência demonstrativa. Ora, umatal faculdade pertence manifestamente a todos os animais, j possuem, com efeito, uma á que faculdade congênita de discernimento, aquela, precisamente, a que chamamos“sensação”. Em nem todos os animais, por ém, mas tãosomente em alguns,ád -se a perman ência da impress ão sensorial ( ); para aqueles animais em que tal perman ência não se
dá, em geral ou no que concerne a determinados objetos,ãno há, correspondentemente, conhecimento outro que ão an sensação atual; mas outros á hpara os quaisé possível, após a sensação, reter ain42 da algo em sua alma. Quando ocorrem muitas impress ões persistentes dessa natureza, uma diferencia ção vem a surgir, na medidaem que, para alguns animais, masãn o para outros, produz-se uma raz ão ou concepção (). Assim, a sensação dá srcem à memória () e a repetição da memória,à “experiência” () um número grande de memórias constituindo umaó “sexperiência”.43 A partir da“experiência”, “tendo-se aquietado na alma o univers al ( 44 )”, essa unidade de múltiplas coisas que nelas 45 reside identicamente, têm princípio a arte e a ci ência, a arte noâmbito do devir, a ciência noâmbito do ser. Tais “hábitos” ou disposições, b 41 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 99 32 seg. 42 Aceitamos, com Ross, a conjectura de Ueberweg:, em lugar da li ção da quase
Seg. Anal .
b
ad locum
c19, dices: , em II, 19, 9939; cf. Ross, nota . a 43 totalidade Cf. Seg. Ana dos l. II,ó 100 3 seg. 44 Ibidem, l. 6-7; cf., acima, III, 2.4 e n.100. 45 Como o contexto imediato c laramente o in dica (cf. bidem, i l.7-8), ã no se trata obviamente, malgrado a express ão (a l. 7, cf., acima, III, 2.4 e n.103), de um universal“separado”.
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então, nem são inatos, no que respeitaàs suas determinações próprias, nem procedem de outras mais cognitivas, uma vez que provêm da percepção sensível.46 Tudo se passa, diz o ófil sofo, como com um exército em fuga, ap ós uma batalha, quando, detendo-se um homem, outro deteve-se e outro, em seguida, at elecer-se a for é restab 47 mação srcinal. A natureza da alma é de molde a comportar um processo semelhante.48 E, tendo proposto essa compara ção, retoma 49 Aristóteles, para maior clareza,a explicação de há pouco: “Assim, detendo-se uma das coisas indiferenciadas ( ), produz-se pela primeira vez na alma um universal (e, com efeito, percebe-se sensorialmente o particular, mas a sensação é do universal, como, por exemplo, de homem, masão n do homem Cálias); nestes, dá-se uma nova parada, éatque se detenham os indivis íveis () e os universais, como, por exemplo, de tal animal éatanimal e, com este, 50 de modo id êntico”. O textoé, talvez, um pouco menos claro do que pretende o filósofo e exige alguma explica ção. Em verdade, verificamos que, procurand o mostrar-nos como advém à alma o conhecimento dos princ ípios científicos, relaciona-o o filósofo com a sensação, faculdade por certo inferio r e menos exata, de que todos os animais compartilham, da qual, por ém, aquele conhecimento emerge.áJvíramos, ali ás, ser doutrina aristot élica que o, absolutamente nada se poderia apreender nem “sem ter a sensa compreender ”.51 çã Demora-se, ent ão, o filósofo, em descrever-nos, de modo semelhante ao que emprega no mesmo in ício de suaMetaf ísica, 52 os mecanismos psicol ógicos mediante os quais surgem em noss a alma 46 Cf. ibidem, l. 10-1. 47 Cf. ibidem, l. 12-3. Muito se discutiu sobre a significação, a l. 13, de , cf. Colli, notaad locum ; nossa interpreta ção (“até restabelecer-se a forma ção srcinal ”) acompanha, de perto, a tradu ção de Mure (cf.ad locum ): “until the srcinal formation has been restored”. a 48 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 100 13-4. 49 Cf. ibidem, l. 14-5. a 50 Seg. Ana l. II, 19, 100 15-b3. O textoé extremamente conciso mas, ainda assim, tentamos dar à nossa tradução o máximo de literalidade possível. 51 Da Alma III, 8, 432a7-8; cf., acima, II, 4.7 e n.181. 52 Cf. Met. , 1, 980a27 seg.
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as afecções que correspondem aos universais tivos, obje que assim êmv nela“deter-se” e “aquietar-se ”.53 Tais un iversais em n ós provêm, portanto, emúltima análise, da nossa apreens ão das coisasindividuais pela sensação,54 daquelas coisas queãso, para n ós, anteriores e mais conhe55 cidas. pela sensa É certo que ãno se apreende o universal ção,56 a qual 57 apreende ãt o-somente um“isto”, aqui e agora. Mas o aparecimento da memória faz“deter-se” na alma– e a cristaliza ção do processo de repetição da memória numa (“experiência”)58 faz nela “aquietar-se” – o universal intelig ível que se encontra nas formas sensíveis:59 a permanência da impress ão sensorial, fixando emóns um particular, fixa, em verdade, algo especificamente indifer enciado e retém o elemento formal id êntico em todos os particulares queãno diferem entre si especificament e;60 já tem início, assim, um processo de universaliza ção, o que nos permite dizer, encarando sob esse prisma o funcionamento da percep ção sensível, que “a sensação é do universal”, que, percebendo o homemáC lias, eu tenho sensa ção de“ho-
53 Cf., acima,III, 2.4 e n.100. 54 Cf., acima, II, 4.7 e n.180. b 55 Cf. Seg. Anal . I, 2, 72a1-3;Met. , 11, 1018 33-4; acima, II, 1.2; II, 4.4 e n.121; II, 4.5; 4.7 II, e n.179. 56 Cf. Seg. Anal . I, 31, 87b30-1. 57 Cf. ibidem, l. 29-30; acima, III, 2.7 e n.152 a 154. 58 Cf., além deSeg. Ana l. II, 19, 100a5-6 (v. acima, n.43 deste cap ítulo), o texto deMet. , 1, 980b29-981a1: “as múltiplas‘memórias’ da mesma coisa produzem finalmente a capacidade para uma‘experiência’ singular”. 59 Cf. Da Alma III, 8, 432a4-5; acima, II, 4.7 en.182. a 60 Enquanto Ross interpreta osa que se refere o ófil sofo emSeg. Ana l. II, 19, 100 15 a b (cf. notaad locum ) como asinfim ae species , Colli (cf. nota ad 100 15- 3, onde o autor aceita a interpretação de Zabarella), Mure (cf. sua tradu ção, ad locum ) e Tricot (cf. sua tradu ção e notaad locum ) entendem-nos como os particulares sens íveis. Ora, o termo em questão é empregado por Aristóteles tanto para designar as coisas particulares que não diferem quanto à forma ou espécie ( ), cf. T óp. I, 7, 103a10-3; IV, 1, 121b15-23; a Ger. Anim . II, 7, 746 31; 8, 748a1 etc. como para designar as mesmas formas ou esp écies a últimas que n ão mais comportam nenhuma diferen ça (), cf.Seg. Ana l. I, 13, 97 28a
31; Met. da , 12, 103816 de etc.I, Embora estejamos comque, Ross, dado o contexto a de proximidade passagem 13,a97 28-31, é manifesto quer se todo traduza de umaeer qu outra maneira, o sentido geral de nosso texto ãonse altera, uma vez que o que pretende o filósofo mostraré que a fixação de um desses“indiferenciados ” na almaé a fixação do elemento formal comum a todos os sens íveis particulares através dos quais um mesmo se individua.
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mem”.61 Mecanismos semelhantes possibilitam,ãent o, a progress ão do processo que, “produzindo” na alma universais de universalidade cada vez mais extensa – formas ou esp écies, gêneros e gêneros de gêneros–, vai culminar nosêgneros supremos e indivis íveis, isto é, nas 62 categorias. Ora, quando as m últiplas noções da cedem lugar à unidade de uma ós concepção () universal e se á d, por fim, a apreens ão “consciente”, numa apercep ção unitária, da universalidade retida pela alma desde o processo“de fixação” da experiência sensível, substitui-se à “experiência” a 63 principiam arte e ciência.64 E Aristóteles conclui:“É evidente, então, que nosé necessário conhecer os elementos primeiros por meioindu da ção (); e, de fato, a sensação produz dessa maneira o universal( )”.65
1.4 A indu ção dos princ í pios
A exata interpretação destaúltima passagem requer um certo cuidado. Com efeito, n ão se trata d e identific ar o processo de aquisi ção dos elementos primeiros ou princ ípios com o processo de forma ção das noções universais a partir da sensa ção mas ãto-somented e compa r álos , mostrando que o conhecimento das proposi ções assumidas pela ciência como seus princ ípios é obtido, a partir de um conhecimento a 61 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 100 16-b1. 62 (cf. Seg. Ana l. II, 19, 100b2) designando, como mostra Ross (cf. nota ad locum ), os gêneros de máxima universalidade, “the universals par excellence, the most universal universals ”, istoé, as categorias; cf., tamb ém, G. Rodier, Trait é d e l ’Âm e, II, p.474,apud Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.117 e n.2. 63 Cf. Met. , 1, 981a5 seg.; enquanto aproduz a concep ção de que tal remédio fez bem a Cálias atingido por tal doen ça, assim como a S ócrates e a muitosoutros, considerados individualmente, aenseja a concep ção de que o remédio fez bem a todos que tinham tal constitui ção (delimitados segundo um ), quando afetados de tal doen ça, como por exemplo, aos fleum áticos ou aos biliosos, ardendo em febre, cf. ibidem, l. 7-12. Como nota Ross (cf. notaa d ibidem, 980b26), o homem ou animal quepossui apenas “experiência” age inconscientemente afetado pelo elemento êntico id nos diferentes objetos a que correspondem as v memórias que constituem, precisamente, a“experi sua ência”. árias a 64 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 1006-9. 65 Ibidem, b2-5.
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anterior fundamentado, em última análise, na sensa ção, através de um raciocínio epagógico ou indutivo que se pode assemelhar – eaque, de algum modo, est á em continuidade com – um processo indutivo mais simples que, partindo diretamente da sensa ção, leva os universais contidos nas formas sens íveis a fixar-se na alma. É evidente, ent ão, que a descrição, a que procede ú oltimo capítulo dosSegund os Anal íticos , dos mecanismos psicol ógicos que levam a uma tal “fixação” não deverá entender-se como uma descri ção de um“processo de generalização que nos confere a posse dos princ ípios”66 nem fazer-nos crer estar Arist óteles, guiado, no momento, por uma inspira ção “sensualista ”, a supor“que a sensa ção é, por si mesma, suficiente para explicar todo conhecimento dos princ ípios”:67 uma tal suposi ção aberraria manifestamente de toda adoutrina aristot élica dosSegund os Ana l íticos e de outras obras, no que concerne tanto ao conhecimentoível sens quanto ao conhecimento dos princ ípios, conforme quanto, at é agora, sobre essas questões expusemos. O que o fil ósofo quer deixar-nos claro é que, num e noutro daqueles casos, trata-se de um processo indutivo, istoé, de “uma passagem dos particulares ao universal ”,68 lembrando-nos a impossibilidade de obterem-s e os universais sem 66 Le Blond, Logique et m é thode ..., 1939, p.116; e Arist óteles, continua o aut or,“déclare que ce procès aboutità la formation, dans’âlme, desind ivisible s –, des simples , – critica com raz – – qui constituent les universels au sens plein ”. S. Mansion ão essa interpreta ção, cf.Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.142 e n.36. thode ..., 1939, p.132; segundo o autor (cf. 67 Le Blond, Logique et m é ibidem, p.132-6), toda essa primeira parte do cap.19 do livro II dos Seg. Anal . , que estamos acomentar, possui um caráter “sensualista ” dominante, que se manifestaria na apresenta ção, desde o in ício, da sensação como a faculdade dos princ ípios: estes seriam conhecidos por uma indu ção que não seria mais do que o resultado do dep ósito progressivo das pr óprias sensações, cuja acumulação e condensa ção produziria em n ós o , princípio universal espec ífico, qual um aluvi ão (si c!, cf. ibidem, p.135). 68 T óp.I, 12, 105a13-4: ; cf., acima, III, 2.4 ’ e n.101; cf., tamb ém, S. Mansion,Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.102 (e n.45), 142 (e n.34). E, como diz Ross (cf. seu coment ário introdutório aSeg. Ana l. II, 19), após lembrar que os princípios são proposições: “It would not be difficult torgue a that the formation of general concepts and the grasping of universal propositions e inseparably ar interwoven.But A. makes no attempt to show that the two processes are so interwoven; and he could hardly have dispensed with some argument to this effect if he had meant tothat say they are so interwoven. Rather he seems to describe the two processes as distinct, and alike only in being inductive”.
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indução e a impossibilidade de uma indu ção que não repouse, emúltima análise, na percep ção sensível.69 Eis por que se pode dizer que cabe à fornecer os princ ípios de cada gênero de coisas,à “experiência” astronômica fornecer, por exemplo, os princ ípios da ciência astronômica, o mesmo podendo dizer -se para qualquer outra arte 70 ou ciência; diremos, mesmo, que a falta de uma determinada sensação terá como necess ária conseqüência a supress ão de um determinado saber cient ia ensina-nos haífico.71 E também a Ética Nicoma qu é ver indu ção dos princípios universais de que partem os silogismos da ciência.72 No que respeita,liáas, aos“o queé” dos gêneros das ci ências particulares, por elas assumidos em suas defini ções-princípios, vimos também a Metaf ísica falar-nos de umandu i ção que levaà apreensão do o queé” e nos73permite um outro modo de mostr “ á-lo ( ). Sabedores de que o conhecimento anterior sobrequal o se constitui o dos princípios é um conhecimento de tipo“empírico” fundamentado na percep ção sensível, compreendemos também que a regressão necessária a um conhecimento anterior para explicar que algo de novo se conheça é uma exigência, exclusivamente, da esfera diano é tica:74 o conhecimento da coisa demonstrada exige um conhecimento anteri or,o dos princ ípios, e esteúltimo, pertencente tamb ém àquela esfera, pressup õe, por sua vez, um outro conhecimento anterior de onde possa emergir por via indutiva– talé o conhecimento de tipo“empírico”, que repousa, em última análise, sobre a apreens ão dos 69 Cf. Seg. Ana l. I, 18, 81b2-6: ’ ... ; cf., também, Ét. Nic. VI, 3, 1139b28-9. 70 Cf. Prim. Ana l. I, 30, 46a17 seg. a 71 Cf. Seg. Ana l. I, 18, com., 81 38-9. b 72 Cf. Ét. Nic. VI, 3, 113929-31:“Há princípios, portanto, dos quais parte o silogismo, dos quais não há silogismo: há portanto, indu ção”. b Met. 73 Cf. , 1, 1025 15-6; cf., acima, cap.I V, n.263; cf., tamb ém, Met. , 4, 1078b23-30, onde se elogia Sócrates por ter utilizado os argumentos indutivos em oétodo de definir universalmente, procedimentos que concernem, ambos, “ao princípio da ciência”; acima, IV, 2.4 e n.87. 74 Cf., acima, I, 3.4.
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sensíveis particulares pela sensação. Esta configura-se, assim, como o fundamento primeiro de todo saber humano, sem que nenhuma regressão a um saber anterior se çfaa necessária ou, mesmo, possa conceber-se: sem a sensa ção nada poder-se-ia aprender nem compreender.75 Mas também é óbvio, por outro lado, que não se nos explicou ainda como pode o racioc ínio indutivo produzir o conhecimento dos princípios, sem obstar ao car áter imediato e primeiro dessas proposições que, como sabemos,“por si mesmas fazemé” f 76 e “por si mesmas naturalmente se conhecem ”.77 Como entender uma êgnese 78 a partir do inferior e menos exato e cognoscitivo que não inquine dessa mesma inferioridade o que dela resulta? Como falar de anterioridade, priorida de e autonomia , a prop ósito de um conhecimento que pressupõe um conhecimento anterior e que dele depende? Por outro lado, como pretender que as defini ções-princípios possam obter-se por indução, se o que induz mostra apenas “que tudoé assim por nada ser de outra maneira; com efeito,ãonmostra o queé a coisa, mas ou que é ou que n ão é”?79 Dificuldades como essas explicam queérpretes int menos preocupados com a descob erta da unidade profunda da doutrina do que interessados no invent ário das dificuldades que ela comporta tenham julgado dispar atada aófrmula aristot élica que atribui à indução um papel fundamental na aquisi ção dos princípios da ciência e tenham invocado passagens como a que, por último, citamos, para sustentar a possibilidad e de relevar-se, nos Anal í ticos , “toda uma série de textos que tendam a fazer concluir ser a indu ção incapaz de conferir a posse desse conhecimento das ess ências, rigoroso, imperturbável, em que deve consistir a apreensão de um princ ípio”.80 a 75 Cf. Da Alma III, 8, 432 6-7; acima, VI,1.3 e n.51. Leia-se o bom estudo que Louis Bourgey consagraà importância do conhecimento sens ível em Aristóteles, na sua obra Observation et exp é rience chez Aristote, 1955, p.37-55.
T p.
b
ó I,An1, al. 76 Prim. 100 18-9; cf., tulo. b acima, n.13 deste cap 77 II, 16, 64 34-5: ’ í . a 78 Cf. Seg. Anal . II, 19, 10010-1; acima, VI, 1.3 en.46. Cf., também, acima, cap.I, n.177, onde nos referimos ao car áter não-científico da indução. a b 79 Seg. Ana l. II, 7, 9238- 1; cf., acima, V, 2.3 e n.145. 80 Le Blond, Logique et m é thode ..., 1939, p.122.
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Ciência e Dial é tica em Ar ist óteles
1.5 Ind u ção ou inteligência d os princ í pios?
E nossa aporia poderia parecer agravar -se, se consideramos a seqüência do texto,na qual, imediatamente ap ós ter apontado o papel da indução na apreens dos princípios, conclui o fil pondoterãovez ósofo, mo aosAnal íticos : “Uma que, dos estados ou ‘hábitos ’ concernentes ao pensamento com os quais apreendemos a verdade, ão uns sem-s pre verdadeiros, outros co mportam a falsidade, como, por exemplo, a opinião e o cálculo, mas ã so sempre verdadeirasêci ncia e intelig ência () e nenhum outro gênero é mais exato () que a ciência senão a inteligência; e que, de outro lado, os princ ípios das demonstrações são mais conhecidos e todaêci ncia se acompanha de discurso ( ’ ), não haverá ciência dos princípios e, uma vez que nada pode haver mais verdadeiro que a ciência senão a intelig ência, haver á inteligência dos princ ípios– eis o que resulta destas considera ções e, também, do fato de que princ ípio de demonstração não é demonstração nem, por conseguinte, é ciência princípio de ciência. Se, al ém da ciência, não possuímos nenhum outro gênero verdadeiro, a intelig ência será princípio da ci ência. E ela ser á princípio do princ ípio, enquanto a ci ência inteira guarda uma rela ção 81 semelhante com a totalidade do objeto ”. Como se pode ver, fundamenta-se a argumenta reconhecimento da maior cognoscibiliçãoa no dade dos princ ípios, que doutrina da demonstra ção, desde o in ício,82 estabelecera : porquema is conh ecid os – e mais conhecidos, como sabemos,83 em sentido absoluto –, impossível é que se efetue sua apreensão por meio de uma que comporte tanto a verdade como a falsidade, seé certo que sepode dizer, a respeito do mesmo conhecimento cuja instaura ção a apreensão dos princípios condiciona:“não pode... a ciência ora ser ci ência, ora ignor ância”.84 Excluídos, por essa raz ão, b 81 Seg. Anal . II, 19, 100 5-17. 82 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 71b20-2; 29 seg.; acima, II, 4:“Do que se conhece mais e antes ”; cf. também II, 5.1 en.199. 83 Cf., acima, II, 4.7e n.175 a 189. 84 Met. , 15, 1039b32-3. Cf., acima, I, 1.1 e n.27 a 34; II, 2.4.
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a opinião e o cálculo, porque somente êcincia e inteligência são sempre verdadeiros, áhque buscar-se entre estas a faculdade qu e conhece os princípios; ora, o mesmo car áter da maior cognoscibilidade destes exige que sejam apreendidos por uma mais exata e, por assim dizer, mais verdadeira que a ci ência, tanto mais que esta, em virtude de seu caráter discursivo (ela caminha de algo j para algo á conhecido 85 que, em decorr to anterior, vem conhecer), a ência desse conhecimen não poderia conhecer, de modo imediato, seus mesmos princ ípios; nem pode a ciência ser o princ ípio de si mesma nem fundar-se a demonstração num processo demonstrativo. Resta-nos, ão,ent reconhecer a inteligência como a faculdade superior em exatid ão e verdade, infalível por intrínseca necessidade, gra ças à qual os princípios, de modo não discursivo, se conhecem e êancia ci se instaura. Di-la-emos, corretamente, ent ão, um princ ípio dos princ ípios da ciência e, por isso mesmo, princ ípio da ciência; porque dela decorre, poder á, também, a ciência inteira comportar-se em rela ção à totalidade de seu objeto com características de verdade, certezaexatid e ão semelhantes às que qualificam a apreens ão dos princípios. Essa competência da intelig ência ou para a apreensão dos princípios já nos fora indicada por outros textosSegund dos os Anal íticos . Com efeito, ao criticar as concep ções errôneas da ciência que só reconheciam nademonstra oção um processo deconhecimento rigor so,86 já afirmava o ó filsofo“haver, n ão apenas ci ência, mas tamb ém um certo princípio de ciência ( ), pelo qual conhecemos as definições”;87 também ao distinguir ci ência e opinião ()88 e mostrar que n ão cabeà ciência o conhecimento do contingente, acrescentava Aristóteles que tamb ém não concerneà inteligência ou“ciência não-demonstrativa ” um tal conhecimento, uma vez que lhe compete 85 86 87 88
Cf., acima, I,3.4; II,1.3; cf. também Ét. Nic. VI, 6, 1140b33. Cf. Seg. Anal . I, 3 (o capítulo inteiro); acima, II, 5.3 e II, 5.4. Ibidem, 72b23-5; acima, II, 5.3 e n.220. Em Seg. Anal . I, 33, capítulo especialmente consagrado ao estudo dessa distin ção; cf., acima, I, 1.1 e n.27 seg.
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89 a apreens ão das premissas imediatas, explicando:“com efeito, chamo de intelig ência o princípio da ciência”.90 E, afirmando a simplicidade dos princípios, vimo-lo caracterizar a premissa imediata como a unidade no silogismo, o como a unidade naêci ncia e na demons-
ia confirma a doutrina, ao tração.91 E a Ética Nico m aqu é concluir , ap ós ter mostrado que ãno apreendem os princ ípios a ciência, a prud ência () ou a sabedoria ( ): “resta que a intelig ência se ocupe dos princípios ( )”.92 Ora, um mínimo de reflexão é suficiente para compreender que toda a dificuldade do problema do conhecimento dos princ ípios reside na relação a estabelecer entre o ém todoindutivo cuja importância vimos, há pouco,93 o filósofo realçar (“é necessário conhecer os ele94
mentos primeiros por meio de indu ) e a função cognitiva dain ção”ele telig ência , cuja compet ência exclusiva reconheceu, último no cap ítulo dos Seg un dos Ana l íticos , nas mesmas linhas que seguem seu pronunciamento sobre o valor heur ístico da indu ção.95 Como harmonizar a infalibilidade da intelig ência que só apreende o verdadeiro (e apreende-o de modoãn o-discursivo) e o discurso indutivo, que repousa, emúltima an álise, na percep ção sensível96 e que nos pareceu impotente para atingir , por exemplo,as definições-princípios?97 Verificamos, assim, que toda a aporia precedente sobre a dificuldade em atribuirà indução o conhecimento das proposi ções que“por si mesmas 89 90 91 92
93 94 95 96 97
Cf. ibidem, 88b33-7. Ibidem, l. 36: . Cf. Seg. Ana l. I, 23, 84b37-85a1; acima, III, 6.5 e n.324. Ét. Nic. VI, 6, 1141a7-8; cf., também, 11, 1143a35-b11. Que não seja da compet ência da a apreensão dos princípios deve entender-se no sentido de que tal apreens ão cabe apenas a uma de suaspartes, istoé, precisamente ao que, com a ci ência, constitui a a , cf. ibidem, 7, 1141 18-9, b2-3; acima, I, 1.3 e n.70. Comoexplica Aristóteles (cf. a m, ibidem, 6, 1141 1-3), não há sabedoria dos princ ípios, namedida em que competetamb é ao sábio ter, de certas coisas, um conhecimento demonstrativo. Cf., acima, VI, 1.4. b Seg. Ana l. II, 19, 100 4; cf., acima, VI, 1.3 e n.65. Cf. ibidem, 100b5-17 e, acima, n.81 deste cap ítulo. Cf., acima,VI, 1.4 e n.69. Cf., acima,VI, 1.4 e n.79.
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naturalmente se conhecem ”98 dizia, em verdade, respeito às relações entre inteligência e indução. E não tem cabimento, por certo, querer identificá-las, como se o fil ósofo estivesse a dizer -nos que a indu ção a que ele, em tal contexto, se refer e consistisse em usar a sensa ção como 99 uma intui ção racional. Tentemos, então, encontrar em outros textos do ósofo fil subsídios para uma leitura correta desse último cap ítulo dosAnal íticos , cuja doutrina sobre o conhecimento dos princ ípios sua mesma concis ão nos tornou tão problemática. Porque, com efeito,ão n temos“a impressão de passar bruscamente a um plano de pensamento totalmente ”, outro quando, no fim do cap ítulo, Aristóteles explica a fun ção do , após 100 ter exposto o papel da indu ção, nem cremos correto pretender que “é por um verdadeiro salto, que permanece in justificado, que Aristóteles passa de um ponto devista a outro ”.101 Tampouco podemos
98 Cf., acima, VI, 1.4 e n.77. 99 Tal era, com efeito, a solução de Hamelin, cf. Le syst è me d ’ Aristote , 1931, p.258-9. Em apoio à sua interpretação, invocava o autor o textodeÉt. Nic. VI, 11, 1143b5, em que o filósofo, falando da percep ção dos particulares a partir dos quai s os universais se apreendem, dela diz, “esta é inteligência” ( ’ ). Ora, se se lê atentamente todo o contexto (isto é: todo o capítulo 11 do livro VI daÉtica, o qual concerne, fundamentalmente, ao papel da intelig ência ou na moral), verifica-se, entretanto, que Arist óteles nele atribui à inteligência a função de apreendertanto os princípios primeiros e universais do processo demonstrativo quanto , através da percep ção sensível, o fato particular e contingente que se exprimir á na menor de um silogismo da ação, reconhecendo a universalidade inscrita na particularidade: nem se trata, obviamente, de uma confus ão, ent ão entre a inteligência e a sensa ção nem da redu ção da intelig ência dos princ ípios a um uso intuitivo da percepção sensível. Mas, tendo assim interpretado o pensamento aristotélico, era natural que n ão se satisfizesse Hamelin com ele: “Cette solution des probl èmes de ’linduction et de l’srcine des principes par une intuition de l ’intellecte dans la sensation est assurément trop facile ” (Le sy st èm e d ’ Aristote , 1931, p.250); e o autor conjectura que se tenha imposto ao filósofo uma tal solução “par l’état rudimentaire des méthodes d’observation et d ’expérienceà son époque” (ibidem ). 100 Como julga Le Blond, cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.136. Como acima vimos (cf. VI,1.4 e n.66 e 67), paraesse autor, as indica ções de Aristóteles, emSeg. Ana l. II, 19, sobre a função do método indutivo na apreens ão dos princípios científicos obedeceriam a uma inspiração “sensualista”; introduzindo, em seguida, o , Aristóteles teria abordado o problema de um ponto de vista radicalmente oposto e incompat ível com o primeiro. 101 Cf. Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.138. Essa dualidade de perspectivas manifestaria, então, um“mal-estar” do filósofo diante do problema e uma oposi ção entre a orientação sistemática, dogmática, de Arist óteles e as suas tend ências positivas de observador e
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aceitar que a introdu ção doconfigure uma mera solu ção d e direi to, necessária para salvar o sistema aristot élico da ciência, em virtude da ausência de uma experi ência clara da intui ção dos princípios.102 103 é mais que uma explica ção meramente residual, como se o não mais fosse que o correlato cogn itivo do princípio, “aquilo sem o que o princ ípio não pode ser conhecido, se ao menos eleé conhecível”.104 Mas não mais duvidamos de que os princípios sejam conhec íveis; falta-nos, tão somente, explicitar o modo de sua apreens ão.
2 Os Tópicose a d ial é tica 2.1 A dial é tica e as “ciências filos óficas ”
Deixemos, por um momento, de lado, a problem ática da aquisição dos princípios, tal como ela se coloca no último capítulo dosAnalí ticos e consideremos, porque a ela tamb ém se refere, uma passagem psicólogo (cf. ibidem, p.137), traduzindo um perene conflito, ainda mais radical, “entre le théoricien et la practicien, entre la logique,éla orie th abstraite de la science, et la éthode m réelle” (ibidem, p.146; cf. tamb ém, acima, II, 4.7 e n.192 seg.). 102 Cf. ibidem, p.137. a 103 Cf. Ét. Nic. VI, 6, 11417-8; acima, n.92 deste cap ítulo. 104 Aubenque, Le probl ème de l ’être..., 1962, p.56; cf., tamb ém, ibid ., n.2; acima, VI, 1.2 e n.40. O autor entende que o verbo introduz esse gênero de explicações que consiste em imputar a algoà( inteligência ou a Deus, por exemplo) determinada compet ência ou atributo, por via de exclus e, de ão e como solu ção residual , sem que se trate, propriament fornecer uma elucida ção explícita e positiva, ou de supor tal elucida ção possível (assim, por exemplo, se nenhuma outra faculdade pode ocupar -se dos princ ípios, conclu ímos que a intelig se é que pode ha ver um conhec imento hum aênciaé a faculdade que lhes corresponde, no deles ). Ocorre, entretanto, que a obra aristot élica contém exemplos do uso daquele verbo em raciocínios estruturalmente an logos, sem que tenhamos por que duvidar da possibiliá dade de uma compreens ão adequada e completa da solu ção “residual”; assim, por exemplo, Seg. Ana l.
b
em I, 33, 88e32realidades seg., Arist teles mostra-nos que cabe o conheciócontingentes à opini ão ()delas mento das verdades por poderem ocupar-se nem a ão n ciência nem a intelig ência:“resta (), por conseguinte, que a opini ão se ocupe do que é a verdadeiro ou falso, mas pode também ser de outra maneira ” (ibidem, 892-3).É-nos o exemplo tanto mais interessante porque é a competência da opini ão que se descobre por via da exclusão, excluindo-se e , cujas compet ências se introduzem como conhecidas.
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dosTópicos de Aristóteles, cuja contribui ção para a solu ção das dificuldades com que nos defrontamos haver á de revelar-se decisiva. Noí-in cio daquele tratado, com efeito, ap ós definir como seu propósito a descoberta de um método que nos permita raciocinar sobre todo o aceitas ( ), assim problema proposto a partir de premissas como defender nossas opini ões sem incidir em contradi ção,105 o filósofo, tendo distinguido asávrias espécies de silogismo e definido o silogismo dial ético, objeto principal de sua investiga ção,106 continua: “Em seguida ao que foi dito, deve dizer -se para quantas e quais coisas é útil este tratado. Eleéopara três coisas: para exerc ício, para os encontros casuais, para asências ci filosóficas. Queé útil para exerc ício é manifesto a partir do queáj foi dito; com efeito, possuindo um método, poderemos mais facilmente argumentar sobreproblema o proposto. Para os encontros casuais, porque, tendo inventariado as opiniões da maioria dos homens, por -nos-emos em rela ção com eles, apoiados, ã no em pontos de vista que lhes ão estranhos, s mas nos seus próprios, fazendo mudar o queãon nos pareçam dizer corretamente. Para as ciências filosóficas, porque, sendo capazes de percorrer as aporias em ambos os sentidos ( ), perceberemos mais facilmente, em cada caso, o verdadei ro e o falso; tamb ém no que concerneàs primeiras dentre as proposi ções que respeitam a cada
ciência. De fato,é impossível, a partir dos princípios apropriadosà ciência em questão, dizer algo sobre eles mesmos, uma vez que os princípios são primeiros dentre todas as proposi ções; masé por meio das proposi ções aceitas a respeito de cada ponto éque necessário discorrer sobre eles. Ora, esta é a tarefa própria, ou mais apropriada, à dialética, pois, de natureza perquiridora, ela possui caminho o que leva 107 aos princípios de todas as doutrinas cient íficas”. a 105 Cf. Tóp. I, 1, com., 100 18-21; acima, cap.IV, n.124. Sobre a tradu ção depor proposição aceita , cf., acima, cap.II, n.5. 106 Cf. ibidem, 100a22-101a24. Sobre a distinção entre o silogismo dial ético e o silogismo científico, cf., acima, I, 3.1 e n.154 a 157; II, 1.1 e n.4 a 6; sobre osentido e a import ância dessa distin ção, cf. cap.I, n.159. 107 Tóp.I, 2, 101a25-b4 (o capítulo inteiro).
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As duas primeiras utilidades da dialética apontadas pelo fil ósofo não nos interessam aqui especialmente, tanto menos poróser bvio que o estudo de uma técnica geral de argumenta ção constitui, ãno somente uma excelente ágin stica mental, mas tamb ém um instrumento eficaz para discutir com ores – e triunfar de– os eventuais interlocut com que deparamos nos encontros cotidianos. Mas a terceira, havemos de particularmente relev á-la. Pois, expondo-a, Arist óteles descreve-nos a dial ética como uma proped êuticaàs ciências“filosóficas” em geral, istoé, às que o são no sentido rigoroso da defini ção proposta nosAnal íticos; 108 como um método que conduz, mediante um raciocínio diaporem ático , à apreensão dos princípios científicos. E o filósofo invoca explicitamente a anterioridade absoluta dos princípios– eles não podem provar-se uns pelos outros, eles “são primeiros dentre todas as proposi ções”, conforme nos mostrara tamb ém 109 a sólida doutrina dosAnal íticos – para argumentar em favor da necessidade de discorrer sobre eles a partir de , istoé, de proposições aceitas pela opinião, que a dial ética converte empremissas 110 de seus raciocínios. Ora, tendo o cap ítulo anterior dos mesmos T ópicos explicado, a propósito das premissas da demonstra ção, que“são verdadeiras e primeiras as premissas que,ãn o por meio deoutras, mas por si mesmas fazem fé (não se deve, com efeito, nos princ ípios científicos, investigar o porquê, masé preciso que cada um dos princ ípios seja, ele pr óprio, por si mesmo, digno deé)f”,111 não vê Aristóteles contradição alguma entre esse car áter absolutamente primeiro dos princ ípios e o fato de apreenderem-se eles gra ças a uma investiga ção dialética que descreve como metodologicamente capaz deé at eles levar-nos; nem 108 Por oposição a um sentido lato e menos rigoroso em que Arist óteles também, por vezes, usa a palavracf., acima, I, 1.4. 109 Cf., acima, II,5.1 e II, 5.2; III, 6.5. 110 Cf. T óp . I, 1, 100a29-30: . Cf., tama a bém, 10, 104 8 seg.;Ref. Sof. 2, 165b3-4;Prim. Ana l. I, 1, 24b1-3; 30, 46 9-10 etc.; acima, II, 1.1 e n.4 a 6. 111 Tóp. I, 1, 100a30-b21; cf., acima , IV, 4.2 e n.266; VI, 1.1 e n.13; VI, 1.4 e n.76.
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vê qualquer dificuldade em fazer emergirconhecimento o dessas pro112 posições absoluta e infalivelmente verdadeiras a partir do uso de um método cujo ponto de partida ão,stão-somente, as opini ões, a opini ão da maioria ou, ainda, a opini ão dos sábios, de todos ou apenas de al114 guns,113 embora não se confundam opini (já que a opião e verdade nião comporta a falsidade e concerne igualmente verdadeiro ao e ao 115 falso ), embora baste ao racioc ínio dialético que algo pare ça verda116 deiro, ainda queãono seja. Não lhe parecem tampouco óbices, portanto, para a efic ácia propedêutica da argumenta ção dialética no estabelecimento das premissas categóricas da demonstra ção, que assumem de modo definido ( ) uma das partes da contradi ção e que não 117 se formulam pois interrogativamente, nem o fato de ela ser essencialmente interrogativa e poder assumir indiferentemente como premissa, qualquer dos membros da contradi ção118 nem mesmo aquela capacidade, que a dial ética exclusivamente com a ret órica comparte, 119 de provar proposi ções contraditórias.
b 112 Cf., acima, II, 2.4; cf. também Seg. Ana l. II, 19, 100 5 seg. 113 Veja-se, com efeito, a definição de em T óp.I, 1, 100b21-3; acima, cap.II, n.5. Cf. também 10, 104a8 seg.
’dos silogismosa cient 114 E Aristóteles opõe sempre, com efeito, o racioc fiínio cos à argumentação dos silogismos dial éticos, cf.Prim. Ana l. I, 30, 468-10;í II, 16, 65a35-7;Seg. Anal . I, 19, 81b18-23;Tóp. I, 14, 105b30-1. b a b 115 Cf. Seg. Ana l. I, 33, 89a2 seg.; II, 19, 100 7; Da Alma III, 3, 428 19;Met. Z, 15, 1039 31 seg.; b Ét. Nic. VI, 3, 113917-8 etc.; acima, I, 1.1 e n.30 seg.; ,VI 1.5 e n.81 seg. 116 Cf. Seg. Ana l. I, 19, 81b20-2. a 117 Cf. Prim. A nal. I, 1, 24a23-4;Seg. Ana l. I, 2, 72a10-1; 11, 77 33-4; acima, II, 2.4 e n.53. a 118 Com efeito, a proposição dialéticaé uma pergunta, cf.Tóp. I, 10, 104 8-9; a dial ética a é interrogativa ( ), cf.Ref. Sof. 11, 17217-8; a premissa dial ética é pergunta que formula uma alternativa contradit ória, cf.Prim . Ana l. I, 1, 24a24-5; a argumenta ção dialética assume indiferentemente qualquer das partes da contradi ção, cf.Seg. Ana l . I, 2, 72a9-10; acima, II, 2.4 e n.53. a 119 Cf. Ret . I, 1, 1355 29 seg. A ret órica,“faculdade de considerar o que pode em cada caso ser b persuasivo” (ibidem, 2, com., 1355 25-6),é a contraparte da dial ética (cf. ibidem l. com., a a 1354 l), é uma ramificação da dialética (cf. ibidem, 2, 1356 25-6), uma parte da dial ética, que lhe é semelhante (cf. ibidem, l. 30-1). Cf., por outro lado, em Ref. Sof. 2, 165b3-4, a definição dos raciocínios dialéticos como argumentos “silogísticos de contradi ção, a partir de premissas aceitas ”.
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2.2 Cara cter í sticas gerais d a arte dial é tica
Essa arte dial ética,à qual competeãto elevada miss ão, qual seja a de conduzir-nosà apreensão das verdades primeiras dasências, ci concebe-a o fil ósofo fundamentalmente como uma arte de argumentar criticamente, de examinar , pôr à prova, istoé, como umapeir ástica 120 ( ). Porque todas as disciplinas eências ci utilizam elementos“comuns” (), ao lado das proposi ções que lhes ãso próprias,121 através dos quais todas as êcincias umas com as outras se comunicam,122 porqueé da natureza desses “comuns” serem tais que nada impede acompanha r-se o seu conhecimento da aus ência de conhecimentos particulares e espec íficos (ainda que, desconhecidos os “co123 muns”, nenhum conhecimento particular seja poss ível), todos podem deles servir -se para examinar, criticar e refutar, mesmo na falta de conhecimentos precisos e espec íficos, quantos exibem a pretens ão 124 de possuir saber em tal ou qual ídom nio particular; em verdade, at é certo ponto, todos os ho mens examinam e sustentam teses, defendem 125 e acusam. Ocorre apenas que, “da maior parte, uns o fazem ao acaso, os outros gra ças a um costume que prov ém de uma disposi ção ou ‘hábito’”;126 ora, é evidente que se podemfazer essas mesmas coisas metodicamente por meio de uma écnica, t que as considera sob o pris127
ma da causalidade: “de fato, [subent.: todos] participam, de um modo não técnico(), dessa prática de que a dial ética se ocupa tecnicamente () e aquele que critica por meio da t écnica b a 120 Cf. Ref. Sof. 8, 169b25; 11, 171 4-6; 172a21 seg.; 34, 183 39-b1; acima, IV, 3.2 e n.122124. a Embora Arist óteles diga a“peirástica” umapa rt e da dialética, mostra-nos suficientemente que concebe a cr ítica como afu n ção fundamental daquela arte.Como diz DePater,a cr ítica “ne fonde pas une branche à part de la dialectique : elle ’identifie s avec la dialectiqu e au sens ad finem ). spécifique ” (Les Topiques d ’Aristote et la dialectique platonicienne, 1965, p.87-88, n.114, 121 Cf. Ref. Sof. 11, 172a29-30; acima, IV, 3.2 e n.119. 122 Cf. Seg. An al. I, 11, 77a26-7; acima, IV, 3.2 e n.145. 123 Cf. Ref. Sof. 11,172a23-7; acima, IV, 3.2 e n.120. 124 Cf. ibidem, l. 30-4. Cf., também, no entanto, acima, II I, 4.5 e n.280 a 283. a 125 Cf. Ret. I, 1, com., 1354 4-6. 126 Ibidem, l. 6-7. 127 Cf. ibidem, l. 8-11.
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silogística é dialético”,128 aquele que formula proposições e obje130 ções.129 Comunicando-se, destarte, com todo s os ramos do saber , precisamente porque ãno se ocupa, tal como a ret órica, de nenhum gênero delimitado, 131 exercendo sua compet ência sobre todo 132
silogismo, constituindo uma verdadeira indaga ção metódica sobre 133 as proposi ções em geral e sendo, nessa medida, capaz de compreender as artimanhas das refuta ções sofísticas e o modo de produ ção dos raciocínios reais ou aparentes, sof ísticos, dialéticos ou críticos,134 tem a dialética (como indubitavelmente a tem também a mesma sofística) a mesma universalidade que a filosofia êou ncia ci do ser: se 135 podem os dialéticos discutir sobre todas as coisas, não é se não 136 porque“é comum a todas as coisas o ”ser e porque os“comuns” de que o dialético se serve são propriedades do serenquanto ser, cujo estudo compete ao filósofo, constituindo precisamente os objetos apropriados ( ) à filosofia.137 Diremos, então, que a dialética, ocupando o mesmo dom ínio universal e comum queé o da filosofia primeira,é prova e exa m e no que respeita àquelas mesmas coisas que 138 a filosofiaconhece e que a sof ística, sabedoria meramente aparente, 139 tão-somenteap arenta conhecer , mas de fato desconhece. A dialética integra, assim, essencialmente, aquela cultura geral de quefala noso a
128 129 130 131
a
Ref. Sof. 11, 17234-6; cf., tamb ém, 17239-b1. Cf. T óp . VIII, 14, 164b2-4:
Cf. Seg. Ana l. I, 11, 77a29; acima, IV, 3.2 e n.146. b Cf. ibidem, l. 31-2; Ref. Sof. 11, 172a11 seg.;Ret. I, 1, 1355b8-9; 2, com., 1355 25 seg.; acima, IV, 1.2 e n.25. a 132 Cf. Ret. I, 1, 1355 8-9. 133 Cf. Ret. Sof. 11, 172b7-8. 134 Cf. Ref. Sof. 9, 170b8-11; 11, 172b5-8; Ret. I, 1, 1355b16-21. E, como esses dois últimos textos implicam, o dialético tem a mesma que o argumentador sofístico, dele diferindo pela inten ção () que anima sua argumenta ção; é também pela intenMet. , 2, 1004b24-5. ção que anima sua vida que o ófil sofo se distingue do sofisma, cf. a 135 Cf. Tóp. I, 1, com., 100 18-20; acima, VI, 2.1 e n.105. 136 Cf. Met. , 2, 1004b20: . 137 Cf. ibidem, l. 15-22. 138 Cf. Ref. Sof. 1, 165a21. 139 Cf. Met. , 2, 1004b25-6: . E a filosofia distingue-se da dialética, portanto, pela natureza da faculdade envolvida( ), cf. ibidem, l. 24.
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princípio doTratad o das Partes d os Anima is, 140 ao descrever -nos as duas atitudes que se encontram em face de toda especula ção e pesquisa; uma é a ciência do objeto, a outra, precisamente, uma certa : ( ), ser ca“Compete, com efeito, ao homem cultivado paz de julgar, de modopertinente, sobre a maneira correta ou incor reta por que se exprime aquele que”fala .141 Tal é, com efeito, o resultado da educação e formação cultural, o de permitir que um único homem se torne capaz de julgar ( ) de todas as coisas, em oposição à competência especializada do homem de ci que concerne ência, 142 tão-somente a um determinadoínio. dom Ora, todos esses caracteres, “universalidade, fun ção crítica, car áter formal, abertura à totalidade ”,143 vimo-los igualmente pertencentes à dialética aristot élica.144 2.3 Estru tura e conte údo dos Tópicos
Quais sejam os recursos e meios da arte dial ética e qual o modo por que ela efetivamente os utiliza para alcan çar os objetivos que colima, eis o que constitui o conteúdo precípuo dos T óp icos de Aristóteles. O tratado possui uma estrutura bem definida nas suas linhas gerais e seu livro I serve-lhe de introdu ção, enquanto asRefutações Sof ísticas constituem, por assim dizer, seu livro ú nono ltimoe e algo como um ap o por definir o escopo do tratadodise êndice. Principiand tinguir o silogismo dial lmente ocupar -se, ético, do qual vai fundamenta a Cf. Part. Anim . I, 1, com., 639 1-12. Ibidem, l. 4-6. Cf. ibidem, l. 6-10. Cf. Aubenque, Le probl ème de l ’être ..., 1962, p.285. E, como diz justamente utor: o a“On voit assez en quel sens cette conception de lare cultu constitue une r on dela sophistique éhabilitati et de la rh étorique contre les attaques platoniciennes. La fonction critique est radicalement distinguée par Aristote de la comp étence; la science supr ême des Platoniciens, dont Aristote a démontré, par ailleurs, ’limpossibilité, se voit ici détrônée au profit d’une universalit é seulement formelle; enfim le privil ège synoptique estértiré au savant pourêtre restitué à l’homme qu’aucun savoir n’enferme dans un rapport particulier à l’être” (ibidem). Aristote philosophe de la vie. Le livre premier du Trait é sur les Parties des Anim aux, 144 Já Le Blond (cf. p.128, notaad 639a4) julgara natural aproximar a , a que se refere esse trat ado, da dialética, no que Aubenque o seguiu Le (cf.probl ème de l ’êtr e..., 1962, p.286).
140 141 142 143
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das outras formas de silogismo, oófil sofo, após enumerar e explicar as utilidades da dial ética145 e afirmar o desejo de proceder de modo metódico, segundo o exemplo de outras artes j á constitu ídas, para 146 atingir o fim proposto, passa (a) ao estudo, defini ção e classificaem seguida, tenção das proposi ções e problemas dial éticos147 para, do distinguido (b) as formas de racioc ínio dialético,148 empreender (c) o estudo dos“instrumentos” () da argumentação dialética149 – tais são, em resumo, o conte údo e as divisões do livro I dosTópicos . (a) Distinguem-se, nele, assim, as proposi ções (, pontos de partida da argumenta ção, , para os quais se postul ao assentimento do interlocutor) e os problemas ( , proposições a serem provadas, objetos da indagação dialética, ), explicando-se que toda proposi ção e todo problema– e toda proposição pode“problematizar-se ” – concernem a uma definição () ou a umpr óp rio () ou a um gênero () ou a um acidente () e que toda argumentação dialética diz portanto 150 respeitoà atribuição de um desses“predicáveis” a um sujeito. De151 fine-se, em seguida, cada um deles e evidencia-se como as indagações sobre os três últimos“predicáveis” podem vir a integrar funcionalmente a indagação sobre a definição à qual se amoldam.152 Estudam-se os vários sentidos do“mesmo” (), mostrando-se como os diferentes“predicáveis” configuram outras tantas significa153 Justifica-se a classifica ções da identidade. ção das proposições e problemas segundo os quatro “predicáveis”, mostrando-se comoé 145 146 147 148 149 150 151 152
Cf. Tóp. I, 1 e 2; VI, 2.1 e n.106. Cf. T óp.I, 3 (o capítulo inteiro). Cf. Tóp. I, 4-11. Cf. Tóp. I, 12. Cf. Tóp. I, 13-8. Cf. Tóp. I, 4. Cf. Tóp. I, 5. b Cf. Tóp. I, 6, part. 102 27-35. No restante do cap ítulo (102b35-103a5), Aristóteles explica as razões para, apesar dessa redu ção possível de toda indagação à problemática da definição, não constituir-se um m étodo único de investiga ção mas, ao contr ário, seguirem-se linhas distintas de pesquisa para os diferentes “predicáveis”. 153 Cf. Tóp. I, 7.
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154 exaustiva. Relembra-se a doutrina das categorias , para indicar que as quatro formas de atribui ção apontadas se distribuem segundo as dez categorias, podendo significar qualquer uma 155 delas. Definem-se, finalmente, proposi ção dialética156 e problema dialético.157 Por outro
lado (b), reconhecem-se duas formas de racioc ínio dialético: a indu ção () e o silogismo,definindo-se e exemplificando-se a primeira, 158 de que aindaãno se falara. Os seisúltimos capítulos do livro159 I são consagrados (c) a uma explanação geral sobre os“instrumentos” () dialéticos,160 “por meio dos quais disporemos dos silogismo s em abund ância”.161 Dizendo-nos que os“instrumentos” são em número de quatro (aquisi ção de proposições, capacidade de distinguir as últiplas m significa ções de cada termo, descoberta das diferen ças, exame do semelhante),162 154 Cf. Tóp. I, 8. 155 Cf. Tóp. I, 9. 156 Cf. Tóp. I, 10. E não somente as proposi ções interrogativas aceitas () são entendidas a como proposições dialéticas (cf. ibidem, 104 8-11; acima, n.118 deste cap ítulo), como também as que são semelhantesàs aceitas , as que lhes ã so contrárias, se propostas na forma negativa, e, finalmente, quantas opini ões se conformamàs técnicas e disciplinas constituídas, cf.ibid , l. 12-5. O resto do cap ítulo consagra-se a exemplificar e justificar essa extensão da noção de proposição dialética. Sobre o sentido dial ético srcin ário do próprio termo, cf., acima, n.278 do cap.IV. 157 Cf. Tóp. I, 11. O problema é definido como“um objeto de pesquisa que contribui seja para escolher e evitar seja para averdade e o conhecimento ” (ibidem, com., 104b1-2), istoé, como uma quest ão de ordem prática ou teórica,ética ou“física”. 158 Cf. T óp.I, 12. Com efeito, definira-se o silogismo á no j primeiro capítulo do tratado, cf. a Tóp. I, 1, 10025 seg. 159 Cf. Tóp. I, 13-8. 160 Sobre os diferentes usos aristotélicos do termo , que a tradição, seguindo os comentadores gregos, tomaria para designa r o conjunto da obra “lógica” de Aristóteles, a cf. Bonitz,Index , p.52150 seg. Leiam-se, tamb ém, as considerações de De Pater (cf.Les Topiques d ’ Aristote et la D ialectique P latonicienne , 1965, p.129) sobre o uso ô plat nico do termo; nessa obra, que constitui um grande passo para o estudo da estrutura e çã significa o dos Tópi cos (cf., acima, cap.I, n.159), consagra devidamente o autor grande import ância ao estudo dos“instrumentos ” dialéticos (cf. ibidem, p.127-39; 151-62), chamando a ateno para o pouco interesse que sempre despertou nos estudiosos e para a verdadeir a çã causa desse fato: “La raison historique de ’oubli l des instruments semble être en effet que Topiques ” (ibidem, p.151). leur sens m éthodologique aéchappé aux commentateurs des a 161 T óp. I, 13, 105 21-2: ’ . 162 Cf. ibidem, l. 22-5.
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mostra-nos o fil ósofo como todos eles – e não apenas o primeiro – conduzem, de modo semelhante à formulação de proposi ções.163 Estuda, em seguida, o procedimento a seguir com cada um deles, tendo em vista os fins propostos: expõe-nos como encontr ar e classificar, mediante uma busca met ódica e ordenada, as proposi ções que se utilizarão na argumenta ção,164 mostra-nos que linhas de argumenta ção utilizar para detectar a homon ímia,165 explica-nos onde e como procederà busca das diferen ças166 e das semelhanças.167 O último capítulo diz respeito, finalmente, à utilidade e fun ção de cada um dos “instrumentos” na pesquisa dial ética.168 Assim, o exame das múltiplas significações dos termos introduz clareza na investiga ção e a garantia de que o racioc ínio se construir á “conforme ao pr óprio objeto e ã no segundo o nome ”,169 isto é, ele visa clarificar a linguagem e convert êla em instrumento adequado da pesquisa, corrigind o-lhe a ambig üi170 dade natural;mas será também um antídoto contra osparalogism os 171 que a posição adversária eventualmente nos oponha. Assegurado 172 nosso domínio sobre ados nomes, cumpre, também, investigar diferen ças e semelhan ças entre as coisas: a busca das diferen ças é útil,173 sobretudo, para a constru ção de silogismos sobre “o mesmo 163 Cf. ibidem, l. 25 seg. 164 Cf. T óp.I, 14. O filósofo recomenda, inclusi ve, que se recorraa coleções de proposições registradas por escrito, tiradas da opini ou das obras filos ão comum óficas, cf. ibidem, b 105 12-3. 165 Cf. Tóp. I, 15. 166 Cf. Tóp. I, 16. 167 Cf. Tóp. I, 17. 168 Cf. Tóp. I, 18. 169 Tóp.I, 18, 108a21: ’ . Cf, também, Ref. Sof. 11, 171b67: “Pois o que considera os‘comuns’ segundo o objeto( ) é dialético, o que o faz em aparência é sofístico”. Ref. 170 Sobre as razões dessa equivocidade inata da linguagem, cf.Sof. 1, 165a6-13. a 171 Cf. Tóp. I, 18, 108 26 seg. Poderia oópico t empregar -se, diz o fil ósofo, também para cometer paralogismos, pr ática de que se guardar á, entretanto, o dial ético, por não ser apropriada à sua arte (cf. ibidem, 33-5).E sabemos, com efeito, que não diferem a dialética e a sofística pela sua , mas pela , pela sua intenção (cf., acima, n.134 deste capítulo). 172 Cf. Ref. Sof. 1, 165a16. 173 Cf. Tóp. I, 18, 108a38 seg.
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e o outro” (capacita-nos, portanto, para a den úncia das falsas identidades) e para oconhecimento do que é cada coisa, ou seja: para a construção da definição ou discurso da ess ência de cada coisa, mediante o 174 discernimento das diferen por sua vez, a busca das ças apropriadas; semelhan ças175 permitir-nos-á a formulação de raciocínios indutivos e de silogismos hipot éticos, assim como, de modo semelhante, a construção de defini ções, graças à descoberta do elemento gen érico comum que integra o discurso do “o queé”.176 Terminada a exposição dos“instrumentos ”, anunciam-nos as últimas linhas do cap ítulo:“Os instrumentos, ent ão, por meio dos quais se produzem os silogismosãso esses; os lugares ( ) para os quais são úteis as coisas mencionadas ãosos que seguem ”.177 E, de fato, os livros seguintes dos T picos constituem um invent ário extenso, ainda ó 178 que não exaustivo, e razoavelmente ordenado dos tópicos ou“lugares” apropriados a uma investiga ção crítica sobre a atribui ção dos diferentes“predicáveis”: acidente (livros II e III),g ênero (livro IV),pr óprio (livro V),defini ção (livros VI e VII). N ão nos explicam osTópicos 179 o que se deve entender por “lugar”, mas a considera ção atenta dos exemplos inumer áveis180 que otratado fornece per mite-nos compreen174 Cf. ibidem, b4-6. Constrói-se, com efeito, a defini ção, indicando-se o êgnero e as diferenb
b
b
ças, cf. 8, 103 15-6; VI, 4,14125-7; VII, 3, 15315-8;Met. Z, 12, 103729-30 etc. 175 Cf. Tóp. I, 18, 108b7 seg. 176 Cf. ibidem, l. 19 seg. 177 Ibidem, l. 32-3. (“as coisas mencionadas ”, a l. 33), designa evidentemente os instrumentos, de que se acabou defalar. Como mostrou De Pater, estudando como se efetua a pesquisa pelos “lugares” e pelos“instrumentos ” (cf.Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.129-39), estesúltimos“sont des facult és ou des actions de recherche pour trouver ou pour multiplier les donn ées” (ibidem, p.148). 178 Como diz De Pater:“Les Topiques ne pr ésentent pas un amas de lieux, mais une éthode m dynamique,élaborée à titre d’exemple” (Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.230). Nessa obra encontramos (cf. p.170-228) um bom estudo sistem ático e geral dos “lugares” da dialética aristotélica. Re t rica
a
179 insatisfat Somenteóna II, 26, 16), definição, bem ria aliáós, do(cf. “lugar ” ou1403 tópico retencontramos órico: “aquilo uma sobrecomo que incidem muitos entimemes”. Como sabemos, Arist óteles tem a ret órica por uma ramifica ção da dialética, cf., acima, n.119 deste cap ítulo. 180 Tricot (cf. nota a d Met. A, 6, 987b32) contou 337: 103 para o acidente, 81 paraêo nero, g 69 para o próprio e 84 para as defini ções.
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der que se trata de regras para a pesquisa dos “predicáveis” extraídas da aceita ção de certas“leis” ou f órmulas de caráter geral, que a dial ética utilizará como premissas maiores de seus silogismos (as menor es, vai descobri-las, precisamente, çgra as àquelas regras que a assun ção das 181
182
maiores autoriza). Tais fórmulas gerais, assumidas como – como o ser ão, também, as premissas menores que se tiverem enco ntrado – parecem concretizar aqueles ou “comuns” de que nos 183 falam asRefuta ções Sof ísticas e cujo estudo cient ífico competeà filosofia primeira,ájque seu conhecimento sabemos concernir àquele 184 domínio universal sobre que se exerce tamb ém a dialética, mas comopeir ástica . E é esse mesmo caráter de arte de exame e prova, pelo qual a dial ética se distingue ,185 que nos explica por que a maio181 E, simplificando-se, dir-se-ão também “lugares” as mesmas“leis” ou fórmulas. A íttulo de b Tópi cos (cf.Tóp. IV, 6, 127 esclarecimento, tomemos aos 5-7) um exemplo simples de “lum, se não é sinônimo o gê nero da espé cie; com efeito, o g gar”: “Examina r, tamb é ênero atribui-sea todas as esp é cies em sinon í mia ”. Trata-se, como se ê,vde umótpico para o exame e eventual refutacie dada E, que se nos ção da atribui ção, como gênero, de um predicado dado G a umaéesp apresenta como umaregra (“examinar... se... ”) autorizada por uma proposi ção aceita de caráter geral e“legal” (“o gênero atribui-se... ”). Dispondo dessa “lei”, que nos diz serem os gêneros sin ônimos de todas as suas esp écies, por ela orientados, pesquisaremos no sentido de estabelecer a exist ência, ou não, de uma sinon ímia entre G e E; se descobrirmos,ãent o, por exemplo, queãn o há uma tal sinon ímia, formularem os esse resultado comopremissa a menor de um silogismo dial ético cuja maior ser á aquela mesma“lei”: “Todo gênero atribuise à sua espécie em sinon ímia. G não se atribuià sua (pretensa) esp écie (E) em sinon ímia. G não é gênero de sua (pretensa) esp e. écie (E)”. E refutamos, desse modo, a tese em exam A análise do exemplo dado permite-nos, por outro lado, verificar como se pode construir o silogismo dial noseiros Ana l íticos , contrariamente ético segundo os esquemas descritosPrim ao que pretende De PaterLes (cf.Topiques d ’Aristote ..., 1965, p.144 e n.345), quando á razd ão à interpreta ção de Solmsen, segundo a qual “Von bestimm ten Gese tzen des Sc hlu sses w eiss ueberhau pt d ie Topik nichts ” (Die Entw icklu ng der a ristote lischen Log ik u nd Rhetorik, Berlin, Weidmann, 1929, p.49, apud De Pater, loc. cit.); cf., acima, tamb ém, n.159 do cap ítulo I. 182 Como sabemos ser o caráter de todas as proposi ções dialéticas, cf.Tóp. I, 1, 100a20; 29-30; 10, 104a8 seg. etc.; acima, VI, 2.2 n.110. e 183 Cf. Ref. Sof. 11, 172a29 seg.; acima, VI,2.2 e n.121. 184 Cf. Met. , 2, 1004b17-26; acima, VI, 2.2 e n.128 seg.TOs ópi cos encerram, assim, “alógica da filosofia”. Faz-nos, ainda, falta um estudo que mostre, no detalhe, como os diferentes tópicos encontram sua fundamenta ção última– de que se prescinde, por certo, na ática pr da argumentação – na ciência do ser enquanto ser. Advirta-se, por outro lado, qu e os Tópi cos também contêm um certo número de ó t picos“próprios”, istoé, regras e óf rmulas probatórias de caráter mais especializado, dotadas de conte údo preciso, em oposi ção ao caráter “ontoformal” dos tópicos“comuns”: tais são os tópicos doprefer ível em Tóp. III, 1-4. 185 Cf., acima, VI, 2.2 e n.120.
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ria dos tópicos expostos no tratado a que ãodnome são “destrutivos” ( ) e não, “construtivos” ( ),186 isto é, servem para refutar as atribuições incorretas dos “predicáveis”, ainda que não sejam poucos os que servem, tamb ém, para estabelec ê-las. 187
Formulados osótpicos, o livroVIII do tratado mostra-nos como ordenar a argumenta ção e efetuar a interroga ção dialética;188 indicanos, também, como responder e como criticar uma argumenta ção 189 oposta, quando nos cabe a fun ção de interrogado. As Refuta ções Sof í sticas podem, por seu lado, consider ar-se como o livro nonoúeltimo dosTópicos , estudando como se produzem e como se podem resolver as refuta ções e demais argumentos falaciosos que empregam sofistas e quantos de algum modo seslhe podem assemelhar. É o próprio Aristóteles, com efeito, quem nos autoriza a assim incorpor á-las ao seu tratado sobre os “lugares” da argumentação; com efeito, oúltimo capítulo dasRefuta ções , após resumir o seu conte údo,190 referese ao prop ósito inicial, expresso nas primeiras linhasTódos picos 191 (o de encontrar uma faculdade de raciocinar sobre todo oblema pr proposto, a partir das proposi ções mais aceitas poss íveis pela opinião), para mostrar, em seguida,procedendoà recapitulação de todo o itiner ário seguido– trata-se, com efeito, de um resumo sucinto, mas fiel, dos diversos temas abordados nos Tópicos, aos quais se acrescenta a indica ção 192
Refuta ções) do estudo dosparalogismos (efetuado pelas
–, que o pro-
186 Sobre o sentido geral desses termos (que o filósofo repete com grande freqüência ao longo de todo o tratado, assim como os verbos correspondentes (e ) b e , cf. Tóp. II, 1, com., 108 34 seg., onde Arist óteles nos explica, tamb ém, a razão da predominância dos argumentos“destrutivos”. 187 Leiam-se as linhas finais deTóp. VII (5, 155a37-8):“Os tópicos, ent ão, graças aos quais poderemos facilmente argumentar ( ) sobre cada um dos problemas, foram, por assim dizer, suficientemente enumerados ”. O verbo(literalmente:“pôr a mão em”) tem o significado dial ético de“argumentar contra uma tese ”, donde, simplesmente, “argumentar ”; a b vejam-se exemplos em Tóp. II, 11, 115a26; V, 5, 136 6; VI, 14, 151 3 etc. EmTóp. VIII, 11, b 162a16, o silogismo dial 12; éticoé dito umepiqueirema (); cf., tamb ém, II, 4, 111 b
etc. 188 VI, Cf.14, Tóp.151 VIII,23 1-3. 189 Cf. ibidem, 4 seg. a 190 Cf. Ref. Sof. 34, com., 183 27-34. 191 Cf. Ref. Sof. 34, 183a34 seg. 192 Cf. ibidem, b8-15.
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193 grama proposto foi suficientem ente cumprido. E o filósofo manifesta a sua consci ência de ter inovado, dando ício in a uma sistematiza ção da 194 arte de raciocinar que ningu ém antes dele empreendera. É legítimo lamentar que Arist óteles não tenha levado essa siste-
matização ainda mais longe, sobretudo nos livro s centrais do tratado que expõem os diferentesótpicos numa infind ável enumeração, por vezes fastidiosa. Mas quanto expusemos da ordem interna dos Tópicos é suficiente para mostrar como eles constituem uma obra organicamente articulada e possuidora de uma estrutura razoavelmente construída e perfeitamente defin ível. Por isso mesmo, não pode valer, como argumento contra a unidade da obra a possibilidade, talvez real, de terem sido escritos posteriormente àqueles onde se enumeram os 195
tópicos os livros IVIII e e asRefuta ções Sofísticas. E seria err por ôneo, certo, querer da í inferir uma qualquer ambig üidade doutrin ária.196 Com efeito, seria muito estranho que se dispusesse Arist óteles a redigir tardiamente,ájinspirado por novas concep ções, para um trabalho antigo e portanto superado, uma introdu ção (o livro I), uma complementação (o livroVIII) e um apêndice (asRefuta ções ), em cujo final, recapitulando o conjunto da obra, se congratulasse de ter cumprido um programa e criado uma nova disciplina. Se se pudesse comprovar efetivamente o car áter tardio da composi ção de certas partes dos Tópicos , já nisso se teria ponder ável argumento a confirmar a importância doutrinária desse tratado no conjunto da obra aristot élica e no plano geral de seu sistema. De qualquer modo, se permanecemos 193 Cf. ibidem, l. 15-16: , . 194 Cf. ibidem, l. 16 seg., part. 184b1-3. thode ..., 1939, p.22, n.2; L. Bourgey, Observation et exp é rience chez 195 Cf.Le Blond,Logique et m é Aristote , p.28, n.3. Lembre-se, por outro lado, que, de um modo égeral, aceito terem sido redigidos osTópi cos anteriormenteà maioria das obras do Corpus . 196 Como pretenderam Maie r, Le Blond e Aubenque , por exemplo (cf ., acima, n.159 od cap ítulo I), a partir do fato deãno encontrar-se o termonos livros II-VII dos Tópi cos (onde se exp õem e desenvolve m, precisamente, os “lugares”), enquanto aparece nos outros (I, VIII eRefuta ções). Isso parece, ent (cf. et m é thode ..., ão, demonstrar, diz Le BlondLogique 1939, p.30), que o silogismo ãno constitui um procedimento caracter ístico do método dialético, devendo-se seu aparecimento nos livros mencionados à sua redação tardia.
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no plano da an álise interna dos Tópicos, tudo faz-nos crer que Arist óteles leva a sério a doutrina da dial ética que neles explicita e que a concebe como instrumento metodol ógico necessário e suficiente para levar a cabo a miss ão precípua que, desde o come ço, lhe confere, qual seja a de conduzir-nos ao conhecimento dos princ ípios das ci ências.197 2.4 Os Tópicose a m etodologia d a d efinição
Ora, se relembramos queãos princípios das ciências tanto asd efini ções que se assumem, conjugadas comóhip teses, nas teses iniciais por que as cadeias demonstrativas principiam quanto todas aquelas proposições imediatas cuja cont ínua introdução é exigida para o de198
senvolvimento daçõ demonstra se recordamos, tamb que esção; premissas ém,exprimem tasúltimas proposi es, porque necess que árias atributospor si,199 por isso mesmo atribuem pr ópr ios a seus respecti200 vos sujeitos e que todos os princ ípios, portanto, exprimem pr óprios ou defini ções, torna-se-no s manifesto que a argumenta ção dialética codificada nosTópicos , toda ela voltada para a problem ática da atribui201 ção dos“predicáveis”, concerne fundamentalmente à pesquisa dos princípios científicos. E todo o tratado organiza-se emçã fun o de uma pesquisa da defini ção, de modo a poder-se dizer queé “o fim principal da dial ética ...o conhecimento da ess ência e de suaófrmula, a defi202 nição”. Vimos, ali ás, que, desde o íin cio do tratado, ap ós mostrar que toda argumenta quatro“predicáveis”, ção dialética concerne a um dos Aristóteles, definindo e exemplificando cada um deles, explicava-nos como tanto a pesquisa do acidente como a do gênero e a do próprio 197 198 199 200
Como acima vimos, cf. VI, 2.1 e n.107 a 108. Cf., acima, VI, 1.1. Cf., acima, III, 5.1 a III, 5.3. Cf., acima,III, 1.2. E sabemos, aliás, que ospr pr ios se subdividem em pr pr ios em sentido ó e cap.V, n.120. ó estrito e defini ções, cf., acima, cap.II, n.239, 201 Cf., acima, VI, 2.3 e n.150. 202 De Pater, Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.90; cf., tamb ém, ibidem, p.2. Por isso mesmo, estuda e sistematiza o autor os “lugares”, expostos nosTópi cos , num capítulo a que dá o título de:“Les procédés définitionnels”, cf. ibidem, p.151 seg.
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podiam considerar -se como momentos da pesquisa sobre a defini ção;203 por outro lado, o terceiro e o quarto “instrumentos ” revelaram-se-nos, de modo expl ícito, comodiretamenteúteis para a constru ção do dis204 curso da ess E, principiando sua exposi ência de cada coisa. ção dos pr ótópicos do gênero, apresenta-os o ófil sofo, juntamente com os do prio , como“elementos dos que concernem à definição”.205 Finalmente, iniciando seu estudo sobre os t da defini ópicos ção,206 diz-nos que tem cinco partes o tratado sobre as defini ções, a primeira respeitando à validade da atribui ção de um predicado a um sujeito nomeado; a segunda,à inclusão do sujeito em seuênero g apropriado; a terceira, aoácar terpr óprio do predicado, relativamente ao sujeito; a quarta, à definição propriamente dita; a quinta, à formulação correta da defini ção. Ora, acrescenta oófil sofo, as tr ês primeiras partes í enunciadas a dizem respeito, respectivamente, aos t do acidente, do g e dopr ópr io, resópicos ênero tando-lhe apenas tratar das duas restantes. É o próprio autor dos Tópicos, assim, que nos indica ter concebido sua obra sobre argumenta a ção dialética como um tratado sobre a metodologia daçã defini o.207
2.5 A d ial é tica e a “vis ão” dos princ í pios
É chegado, então, o momento de voltarmos ao texto dos Tópicos que nos fala das diferentes utilidades do método dialético.208 Vimos como o filósofo atribuià dialética, de modo eminente, a compet ência para a aquisi ção dos princ ípios das ci ências, malgrado a precariedade reconhecida de seu ponto departida– a simples – e apesar da 203 204 205 206 207
Cf. Tóp. I, 6; acima, VI, 2.3 en.152. Cf., acima, VI,2.3 e n.173 a 176. b Cf. Tóp. IV, 1, com., 120 12-3. Cf. Tóp. VI, 1, com., 139a24 seg. Embora, por certo, como diz com raz ão De Pater, os T óp i cos não formulem toda a metodologia da defini ção e se deva, para reconstru í-la, recorrer, tamb ém, aos livros Z e H Partes dos Anima is , cf.Les da Metaf ísica , aosSegund os Ana l íticos , aoDa Alma e ao livro I das Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.233. E o mesmo autor mostra (cf. ibidem, p.79-80, n.76) como a doutrina da defini Metaf í sica não difere da que encontração exposta no livro Z da mos nosTópi cos , apesar do que, à primeira vista e a prop ósito de alguns pontos particula-
res, pareceria constituir uma diverg ência relevante. 208 Cf. Tóp. I, 2; acima, VI, 2.1 en.107.
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anterioridade absoluta por que se caracterizam as proposi ções primei209 ras e imediatas a cuja apreens ão deve conduzir-nos. Diz-nos que a dialéticaé útil para as ci ências“filosóficas” porque,“sendo capazes de percorrer as aporias ( ) em ambos os sentidos, perceberemos mais facilmente, em cada caso, o verdadeiro e o ”falso .210 O que equivale, portanto, a afirmar que o surgimento da verdade, no que respeita aos princ pr tica de um m ípios, deve surgir da á étododiaporem ático , através do qual, servindo-se de seus “instrumentos” e “lugares”, a dialética raciocina contraditoriamente, provando“sim o ” e o “não”, 211 opondo tese a tese, argumentoargumento, a buscando“demonstrar”, “no que concerne a toda tese, tanto que as coisas ão assim s como 212 que não são assim ”, transformando em problemas proposi ções aceita s em que se ap óia,213 utilizando na sua argumenta ção crítica, que prova e examina, tamb ém as mesmas opini ões professadas pelosás214 bios e filósofos e aquelas que se conformam aos resultados das dis215 ciplinas e artes descobertas. Os raciocínios dialéticos podem definir-se como argumentos “silogísticos de contradição, a partir de premissas aceitas ”,216 cuja eficácia instrumental para o conhecimento e para a filosofiaãon se dissocia daquela capacidade, que proporcionam, de uma vis ão sinóptica das conseq üências que resultam de hi217 póteses contradit órias; após um tal exame, somente“resta, com efeito, escolher corretamente uma delas ”.218 209 210 211 212 213 214 215 216
Cf., acima, VI, 2.1 e n.108 seg. a Tóp. I, 2, 101 35-6; cf., acima, VI, 2.1 e n.107.
Cf., acima, VI, 2.1 e n.118 e 119. Tóp. VIII, 14, 163a36-7; cf., tamb ém, ibidem,b7-9.
Cf. Tóp. I, 4, 101b35-6; acima, VI, 2.3 e n.150. Cf. Tóp. I, 14, 105b12 seg. Cf. Tóp. I, 10, 104a14-5; 33-7. Ref. Sof. 2, 165b3-4. EmTóp. VIII, 11, 162a16-8, Arist óteles estabelece uma distin ção entre o epiqueirema , silogismo dial ético, e oaporema , silogismo de contradi ção. Oepiqueirema é o racio-
cínio dialético que prova simplesmente uma tese, ou que refuta uma tese oposta (sobre a etimologia de, v., acima, n.187 deste cap ítulo); oaporema é o raciocínio dialético contradit ório, levando a uma aporia, na medida em que prova uma ã conclus o que contradiz aceita quer uma proposi quer uma premissa ção que resulta de um outro argumento dial ético. 217 Cf. Tóp. VIII, 14, 163b9-12. 218 Ibidem, l. 11-2.
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Como resultado de um tal procedimento, teremos, promete-nos o filósofo, uma visão mais fácil da verdade que buscamos: “perceberemos () mais facilmente, em cada caso, o verdadeiro e o 219 falso”. Se a dialética, então, não demonstra coisa alguma; se não é possível ao conhecimento científico construir-se sobreos“comuns” que a dialética utiliza e seé certo que se tornaria sof ística qualquer pretensão à cientificidade, por parte de uma argumenta ção dialética;220 se não lhe cabe, pois, fundamentar os princ ípios de que parte o conhecimento científico e, assim, legitim á-lo, porque nenhuma ci ência ou disciplina recebeu em heran ça, no aristotelismo, as çõ fun es da dial ética 221 platônica, não nos fica menos evidente, por ém, como pode contribuir a dialética para a aquisi ção dos princípios da ciência:é que elaé uma proped de argumenta êuticaà ciência, um método preliminar ção, contraditório e crítico, que laboriosamente “prepara o terreno ” para uma vi s ão posterior cujo advento ele á ter tornado possível. O conhecimento dos princ ípiosemerge da argumenta ção dialética sem serengendrado por ela, os princ ípios conhecem-segr a ças a ela , ainda que não por ela , e sua mesma indemonstrabilidade é, destarte, plenamente compatível com a utilização de um método que os busca– ou busca estabelecer as condi ções para que se êda sua apreens ão –, partindo, não de verdades indubit áveis, mas de premissas aceitas pela opini ão dos homens. Considerando os “comuns” segundo o objetoda pesquisa,222 “cercando-o” aos poucos, apropriando cada vez mais sua argumentação à natureza, que se vai descobrindo, do princ ípio buscado, escolhendo cada vez melhor suas premissas e substituindo progressivamente tópicos “próprios” ou “idéias” () aos tópicos “comuns”, 219 Cf. Ref. Sof. 11, 172a12-3: o dial ético não é ; 17-20: a dial éticaé interrogativa mas, se demonstrasse, como poderia interrogar? 220 Cf., acima, IV, 4.4. Lembremos, nesse sentido,que, seé próprio à dialética raciocinar , tal procedimento, diz-se com ãraz o, sofístico, quando, ao inv és de tomar-se como momento da pesquisa, prop õe-se como instrumento de saber efetivocient e ífico, cf., acima, cap.III, n.141. 221 Cf., acima, IV, 4.3. 222 Cf. Ref. Sof. 11, 171b6-7; acima, n.169 deste cap ítulo.
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vai o dialético, insensivelmente, produzind o uma ci ência outra queãno a dialética: uma vez encontrados os princ ípios, não mais se move na 223 dialética, mas tem instauradaêancia ci cujos princ ípios agora possui. Tal é a solução que osTópicos – e conjuntamente com eles, Retaórica – fornecem ao problema, que nos preocupa, da aquisi ção dos princ í-
pios da ciência. Perfeita e acabada em si mesma, l e coerente, ela ógica respeita, como vimos, as caracter ísticas que osAnal íticos atribuemà natureza dos princ ípios científicos. Todo nosso problema reside,ãent o, agora, em decidir da compatibilidade oueventual incompatibili dade dessa doutrina dial ética do conhecimento dos princ ípios, naquele tratado explicitada, com quantas informa ções nos prestam, sobre a mesma questão, as outras obras doósofo. fil Etratar-se-á sobretudo, de desTópicos cobrir, finalmente, se a leitura dos lança, ou não, alguma luz sobre o difícil e célebreúltimo capítulo dosAnal íticos cujo exame nos brindou 224 com tantas aporias: como conciliar, com efeito, intelig ência dos princípios, indu ção e dial ética? Deveremos apontar para uma multiplicidade de soluções divergentes e conflitante s, a testemunhar da indecis ão do filósofo e da magnitude doproblema? Ou ter á o filósofo abandonado uma primeira fase de seu pensamento – todos ou quase todos acordam em considerar os Tópicos uma obra da primeira fase –, superando-a e evoluindo para uma diferente concep ção filosófica, sob cuja inspira ção teria reelaborado toda a sua doutrina do processo de o dos prinçãaquisi cípios científicos? Em verdade, se nos é lícito desde áj antecipar nossos resultados, encontraremos que os diferentes textos exprimem, sob diferentes prismas, a unidade coeren te de uma ós doutrina em que a a 223 É como interpretamos a importante passagem deRet. I, 2, 1358 17-26, onde Arist óteles expõe como, de modo semelhante para o dia lético e para o retórico, o uso dos ó t picos “próprios” leva finalmente a argumenta ção a adentrar-se no dom ínio de uma ci ência particular e a“encontrar” seus princípios. O termo“idéias” (), para designar os ótpicos “próprios”, é introduzido algumas linhas adiante, cf.ibidem, l. 30-1. Sobre a distin ção entre tópico “comum” e tópico “próprio”, nos Tópi cos e naRet órica , leia-se obom estudo de De Pater em Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.117-27; é a esse autor, ali ás, que tomamos (cf. ibidem, p.124) a tradução de , na passagem há pouco citada, por“idéia”, em lugar da tradu ção mais freqüente “espécie”. 224 Cf., acima, VI, 1.4 e VI, 1.5.
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tópica e a anal ítica vêm encontrar seus devidos lugares. Mostrar como isso se dá, eis a tarefa final que, neste momento, nos propomos.
3 A solu ção 3.1 O m é todo dia lé tico nos trat ad os
Uma das constata ções mais imediatas, por parte de quem conhece a doutrina aristot élica da ciência, tal como a exp õem osSegundos Anal í ticos , é a de que n ão se constroem, aparentemente ao menos, em conformidade com ela, os grandes tratados de Arist óteles; com efeito, ao contrário do que poder íamos esperar, não é sob a forma de írgidas cadeias de silogismos demonstrativos, deduzindo rigorosamente suas conclus partida ões a partir de princ ípios assumidos no ponto de como verdades indubit áveis e por si mesmas conhecíveis, que se apresentam ao leitor as mais importantes obras em queóosofo fil desenvolve sua doutrina: a Física , osTra tad os Do C é u , Da Gera ção e Perecimento e Da Alma , a Metaf í sica , a Ética Nicoma qu é ia etc. Masáj sabemos que tal fato em nada representa umantradi co ção ou ambig üidade qualquer da doutrina, nem uma oposi ção, que se poderia pretender natural, entre a teoria ideal da êcincia e sua pr ática efetiva: trata-se, simples225 mente, como desde á h muito vimos, da distinção, estabelecida e proclamada pelo ófil sofo, entre ci ência e pesquisa, entre o saber alcançado e definitivamente estabelecido e o saber em constitui ção. Ora, em todos aqueles tratados,ãn o se contenta o fil ósofo com expor os resultados obtidos pelo conhecimento cient ífico, nos diferentes ramos do saber, mostrando como decorrem silogisticamente das premissas indemonstráveis, anteriores e mais conhecidas que garantem sua mesma cientificidade e sua adequa ção à ordem externa por que as coisas se articulam. Ao contr ário, o que Arist óteles sempre− ou quase sempre− nos expõe são os meandros de sua investiga ção em marcha, o lento tatear do trabalho prelim inar de pesquisa que antecede à aqui225 Cf., acima,II, 4.7 e n.190 seg.
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sição de cada uma daquelas premissas e que, por isso mesmo, prepara a emerg ência das condi ções de possibilidade do silogismo demonstrativo. E o conhecimento dos Tópicos e da concepção aristotélica da dialética permitem-nos compreender que são os procedimentos dialéticos de pesquisa que Arist óteles, assim, õpe em prática na exposição e resolu ção dos problemas espec íficos que aborda nas suas obras científicas, onde a argumenta ção se desenvolve conforme a quanto se expõe naquele tratado e onde,ão n apenas facilmente se identificam, praticamente aplicados às questões em exame, os diferentes “lugares” ou tópicos226 mas, também, pode constantement e surpreender-se a utilização do raciocínio diaporem ático que vimos constituir, por excelência, o método de que se serve a dial ética como proped êutica ao co227 nhecimento e aquisi ção dos princípios científicos. Todo um livro, aliás, da Metaf ísica , o livro , é exclusivamente diaporem ático, procedendo, em seus ários v cap ítulos, a um levantamento geral das aporias e problemas a que a investiga ção sobre o ser deverá trazer resposta, expondo-nos os argumentos que militam a favor de e contra as solu ções opostas e conflitantes; a ele refere-se óosofil 228 fo com a expressão (“n os diaporemas”). As primeiras linhas desse livroãos dedicadas a considera ções gerais sobre 229 a utilidade doém tododiaporem ático. Começam por falar-nos da necessidade de discorrer primeiramente, em face da investiga ção que se empreende, sobre as dificuldades que se devem em primeiro lugar 226 Como diz De Pater (cf.Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.79-80): “Ceux qui consid èrent les Topiques comme une étape juvénile d’Aristote, ne mentionnent pas les nombreuses applications de ce livre dans M laé taphy sique . S olmsen a signal é l’emploi des méthodes topiques dans la Physique et dans ’lÉthique. On peutétendre celaà pesque tous les autres écrits”. Em verdade, falta ainda um estudo da metodologia ristot a élica da pesquisa que mostre, em detalhe, comose processa efetivamente, nos diferentes tratados, desenvolo vimento da argumentação tópica. 227 Cf., acima, VI, 2.5 e n.210 seg. E de tal modo se confirma a doutrina dosT óp ico s nos tratados aristot (cf. élicos que se pode dizer, com C. Thurot Étud es sur Aristote , Paris, Durand, apud Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.45): p.133, “A peu près partout les principes sont dialectiquement établis ”. b a b b 228 Cf. Met. I, 2, 105310; M, 2, 107639- 1; 10, 108615-6. a 229 Cf. Met. B, 1, com., 995 24-b4. Sobre a significa ção e o emprego do m étodo“diaporemático” em Aristóteles, consulte-se, de Aubenque, “Sur la notion aristotélicienne d’aporie”, in Aristote et les probl è mes de m é thode , 1961, p.3-19.
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discutir ( ); o que implica, não apenas o inventário das opini ões que outros professaram sobre essas quest ões mas, também, a elabora ção das questões que tenham sido por acaso omitidas. Impõe-se, assim, corretamente percorrer as aporias () se queremos, superando-as, livremente caminhar (); “com efeito, a‘euporia’ subseqüenteé solução das aporias que se levantaram preliminarmente ”230 e é certo, por outro lado, que não se desatam ataduras que se desconhecem e que uma aporia no pensamento indica algo dessa mesma natureza do ladoobjeto; do enquanto aquele permanece na aporia, asseme lha-se aos que est ão atados porque, em ambos os casos, é impossível progredir − eis por que se exige o exame pr évio de todas as dificuldades, tanto mais porque investigar sem percorrer as aporias ( ) é como não saber para onde se deve caminhar; nem mesmo saber se á se se encontrou, ou não, o que se procurava. E est á, obviamente, em melhor situação para julgar quem ouviu todos os argumentos em conflito, como se fossem partes em ju231 A diaporiaé , ent ão, o caminho necessário que ízo. leva d a a poria àeuporiaporque, como nos diz Ética a Nicoma qu é ia , “com efeito, a solução da aporiaé descoberta”.232 Não é por outra razão que o exame dos grandes temas que abordam os tratados aristot élicos e a defini ção de seus objetos fundamentais são sempre precedidos pelo emprego do m étodo dialético dos 233 diaporemas. Tivemos, ali ás, a ocasi ão de ver que nem mesmo a doutrina aristot todo: com efeito, élica da ciência dispensa o uso de talém o estudo das rela ções entre a demonstração e a definição, no livroII 230 231 232 233
a Met. B, 1, 995 28-9.
Cf. ibidem, b2-4. Ét. Nic. VII, 3, 1146b7-8: . Assim, para dar apenas alguns ex emplos, os estudos, no livro III da Fí sica , sobre o infinito (cap.4-7); no livro IV, sobre o lugar (cap.1-5), oácuo v (cap.6-9) e o tempo (cap.10-14) constroem as soluções de seus problemas (definições do lugar e do tempo, prova da inexistência do vácuo) mediante uma longa argumenta ção “diaporemática”; todo o livro I do tratadoDa Alma é, por sua vez, uma extensa discuss ão crítica, segundo aquele mesmo método, das opini ões dos predecessores sobre a alma, preparando a defini ção aristotélica da mesma, que se prop õe no início do livro II, cf.Da Alma , II, 1, 412b5-6.
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dosSegund os An al íticos, desenvolve-se diaporematicamente e, portanto, 234 dialeticamente , preparando laboriosamente a çã solu o final. E é, também como procedimento exigido por esseém todo e nele inserto que recorre sempre o fil ósofoà “história” do pensamento filos ófico, fazendo comparecer ao debate dial utiético as opini ões dos predecessores, lizadas como momentos de uma argumenta ção contradit ória;235 parte dessas opini dever-se-á, após discuss ões conflitantes ão e exame, demolir 236 e abandonar, parte dever á ser conservada. Considerando quanto se disse sobre cada objeto que investigamos pelos que, antes n ós,desobre ele se debruçaram, evitaremos, tamb ém, expor-nosàs incorreções que cometeram,éal m de garantir -nos contra um tratamento inferior , de nossa parte, daqueles pontos em que porventura estejamos de rdoaco 237 com eles. Assim, antes de deter minar, por exemplo, a nature za da alma,é necessário percorrer e tomar conosco as opini ões de quantos sobre ela se pronunciaram, a fim de poder assumir quanto de correto 238 disseram e guardar -nos de incidir nos erros que cometeram. Do mesmo modo, o livro I da Metaf í sica confirma a doutrina da causalidade exposta naF ísica , “historiando” o surgimento da no ção de causa para 234 Cf., acima, V, 2:“Aporias sobre a definição”; cf. também V, 3.5 e n.232 e 233. Como ent ão mostramos, os capítulos 3-7 do livro II dos Segund os Anal íticos constituem um aprofundamento“diaporemático” do problema das rela ções entre a defini ção e a demonstração, ao qual o cap.8 virá trazer a solução definitiva. Eé o próprio Aristóteles quem explicitamente se serve da linguagem édial tica; assim, prop õe que se estude a possibilidade da redução da defini ção à demonstração, “percorrendo primeiro as aporias que respeitam a essas questões” (Seg. Anal . II, 3, 90a37-8: ; cf., acima, V, 1.7 e n.84; cf., tamb ém, Seg. Anal . II, 4, com., 91a12 e, acima, V, 2.2 e n.116); terminada a exposi ção e estudo das aporias, fala-nos óosofo fil da necessidade de retomar os resultados da an álise feita, examinando-se “quais dessas coisas se dizem corretamente a e quais, incorretamente ” (Seg. Ana l. II, 8, com., 93 1-2; acima, V, 3.1 e n.164). Recordemos, por outro lado, que tamb ém não desdenha a teoria daência ci o emprego de argumentos meramente“lógicos”, de caráter dialético, ao lado dos argumentos anal íticos, cf., acima, III, 2.6 e n.136 seg. 235 Sobre o significado dialético da “história” da filosofia em Arist óteles, leia-se o excelente artigo de Gu roult, subordinado ao ttulo “Logique, argumentation et histoire de la orie íde l ’ Argumentation philosophie échez Aristote ”, inLa Th é , p.431-49. 236 Cf. Ét. Nic. VII, 3, 1146b6-7. 237 Cf. Met. M, 1, 1076a12-5. b 238 Cf. Da Alma I, 2, com., 403 20-4. Do mesmo modo procede oósofo, fil como uma simples leitura imediatamente o mostra, na grande maioria de suas obras.
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mostrar como as aporias em que se deb ateu, desde os seusícios, in a jovem filosofia grega encontram uma feliz solução na doutrina 239 aristotélica dos quatro sentidos da causalidade. 3.2 A dial é tica e os Analíticos
Por outro lado, podemos, agora, plenamente compr eender,uma vez conhecido o caráter dialético da pesquisa que prepara o advento do saber científico, como, em verdade, toda a doutrina do silogismo demonstrativ o, pornós estudado nos cap ítulos anteriores, ao mesmo tempo que nos descrevia e analisava o seu objetoópr prio, também esclarecia de algum modo, por certo indireto ecomplementar , a mesma natureza do processo dial ético. Com efeito, dial éticos afiguramse-nos necessariamente, agora, os silogismos do”, na medida em “que que, momentos de uma pesquisa que prepara a demonstra ção e a construção dos silogismos do porqu -científica ê, caracterizam a etapa épr 240 do conhecimento; por isso mesmo, era referir -se, tamb ém, à argumentação dialética mostrar como o conhecimento do “que” precede o do porqu ê,241 surgindo a ci ência da causa posteriormente a uma investigação que parte de seus efeitos conh ecidos. E dizer, ent ão, que caminhamos das coisas mais conhecidas para n ós em dire ção das que são mais conhec íveis por n atu reza , a fim de transformar a sua maior cognoscibil idade segundo a natureza e aência ess numa maior cognoscibilidade tamb ém para n ós , operando a invers ão de perspectiva que torna a ci ência poss ível,242 também significava, ao mesmo tempoque se reconhecia a espontaneidade do estado de “servidão” do espírito a 239 Cf. Met. A, 10, com., 993 11 seg.; cf., tamb ém, todo o capítulo 7 do mesmo livro, no qual Aristóteles resume as posi ções dos filósofos anteriores, no que concerne à problemática da causa (expostas nos cap.3-6), mostrando como somente distinguiram as quatro ções acep de “causa” expostas na F ísica e como o fizeram, também, obscuramente ( , cf. 988a23; cf., também, 10, 993a13); os capítulos 8 e 9,consagra-osà discussão crítica das aporias que aquelas posi ções encerram. 240 Cf., acima, II, 3.3. b 241 Cf. Seg. Ana l. II, 1, 89b29-31; 2, 89 39-a1; 8, 93a17-9; cf., acima, ,II3.3 e n.89 e 90; II, 4.3 e n.112; V, 3.3 e n.185 186. e 242 Cf., acima, II, 4.7.
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humano243 e a distância srcinária que separa a alma dos homens da posse“formal” das articula ções por que o ser se ordena, portanto , da ciência, a atribui ção implícitaà dialética da tarefa ingente de libertarnos daquelaservidão e de preencher aquela dist ância. Pois, se lhe cabe, como arte da investiga ped ção e da pesquisa, que atua como pro êutica ao saber científico, levarà aquisição dos princípios de que eledecorre, tais princ ípios representam, por sua vez, precisamente, o ponto de inflexão em que seconsuma a invers ão do processo de conhecimento, em que asua etapa ascendente, prospectiva e heur ística cede lugar a um movimentodescendente que procede do mais universal ao mais particular, da causa ao causado, do mais cogn oscível em senti244 do absoluto ao queéomenos, por natureza. E é a essa mesma complementaridade entre os processos dial ético e demonstrativo que se refere aÉtica Nico ma qu é ia , quando, lembrando que j interrogara á se Platão sobre tal problem ática, distingue entre os discursos queêprov m dos princípios ( ) e os que remontam aos princ ípios ( ), assim como se pode correr, nos estádios, dos 245 “atlotetas” ao marco ou no sentido inverso. Também o tratadoDa Alma opõe implicitamente, ent ão, a pesquisa dial ética das defini ções e princípiosà ciência demonstrativa, ao expor-nos que “parece não apenas serútil conhecer ‘oo queé’ para o estudo das causas dos acidentes das essências, como nas matem áticas ... mas, tamb ém, inversamente, os acidentes contribuem em grande parte para que se çconhe a o ‘o que 246 é’”, já que, se formos capazes de explicar a totalidade, ou a maioria, dos atributos, conforme ao que se nos manifesta, estaremos em condições de tratar, da melhor maneira poss ível, da própria essência.247 Não é senão muito natural, ent ão, que osAnal íticos retomem, para estudá-las do ponto de vista daáan lise do silogismo, quest ões próprias 243 244 245 246 247
Cf., acima,cap.II, n.187. Cf., acima, II, 4.7 e n.190 seg. a Cf. Ét. Nic. I, 4, 1095 30-b1. b Da Alma I, 1, 402 16-22. Cf. ibidem, l. 22-5. Em seguida, relembra o filósofo (cf. l. 25 seg.) que“oque é” é o princípio de toda demonstra ção, acrescentando que defini ções de que não decorre o conheci-
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à dialética.É assim, por exemplo, que, ap ós considerar a gênese do silogismo e a solução dos problemas em cada uma desuas figuras, propõe-se o filósofo explicar como dispor sempre de silogismo s em abundância em rela ção aos problemas propostos e por que caminho assumir os princ que tamípios que concernem a cada tema, uma vez bém se impõe adquirir ade produzir silogismos eãno apenas o estudo te órico de sua forma ção.248 Falar-nos-á, de novo, da aquisição das proposi ções249 e da classifica ção das atribuições, distinguindo entre os atributos que se dizem no “o queé” e os que são pr óprios 250 ou acidentes, retomando, portanto, a doutrina ópica t dos“predicámento dos atributos, nem mesmo uma conjectura ácilf a seu respeito,“é evidente que se a
disseram, todas, dial e vazio ibidem, 4032: ético ”, cf. . Nde ão modo se trata, aqui, como poderia parecer a uma erpreta int ção precipi-
tada, de uma desqualifica ção qualquer da dial ética; pretende o fil ósofo, tão-somente, recordar que as defini ções-princípios da ciência, se apreendem realmente“o que é”, devem necessariamente tornar possível o conhecimento dos “acidentespor si ” (cf., acima, III, 1.1 e n.20 e 21) que decorrem da s qüididades de seus sujeitos; defini ções que não possuem tal caracter ística serão abstratas e meramente verbais, isto é, “lógicas”, em que o discurso n ão se apropriaà natureza da coisa defini da (cf., acima, III, 2.6 e n.136 seg.), e, por isso mesmo, poderão dizer-se “vazias” (cf. Ét. Nic. II, 7, com., 1107a28-32, onde Aristóteles nos adverte de que, nas ci ências da, uma vez que as ações humanas concernem a fatos particulares,ão n basta falar de modo universal ( ) masé, também, preciso adaptar nosso discurso a particula ridades desses fatos:“com efeito, dos argumentos que concernemàs ações, os universais são mais vazios ( , lição de alguns manuscritos, que preferimos a ), os particulares mais verdadeiros ” (ibidem, l. 29-30)); se a dial ética pode servir-se de tais defini ções “vazias” – assim como se serve, em geral, da argumenta ção “lógica” – como momentos de uma pesquisa que tende ao estabelecimento das verdadeiras defini ções do“o que é”, é certo que aquelas primeiras, por razão de sua mesma universalidade abstrata, ão podem n substituir-se às definiçõesprincípios e fazer as vezes dos princ ípios das demonstrações, sem que se converta em sofístico o proceder(cf., acima, cap.III, n.141; cf. tamb ém VI, 2.5 e n.220). Tal é, também, o caso de quantos argumentos, “universais” e “vazios” (), não procedendo dos princípios apropriados, parecem, no entanto, apropriadosà natureza dos objetos, ainda que de fato n ão o sejam, cf. Ger. Anim . II, 8, 748a7-11; do mesmo modo, diremos que os plat ônicos, introduzindo a Id éia do Bem e todas as outras, hipostasia ndo desse modo os universais a que conferem uma realidade separada, procedem em verdade , cf. Ét. Eud. I, 8, 1217b19-21. 248 Cf. Prim . Ana l. I, 26, 43a16-27, 43a24. 249 Que constitui,como vimos(cf., acima,VI, 2.3 en.159 a164), um dos“instrumentos” da pesquisa dial ética. 250 Cf. Prim. Ana l. I, 27, 43b1 seg.
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veis”;251 mostrar-nosá a função da“experiência” (por exemplo: da “experiência astron ômica”) na formula ção das proposi ções e, portanto, na 252 constitui ção dos princ ípios e remeter-nosá expressamente, para um estudo mais exato dessa problem ática, ao que exp ôs “no tratado sobre a dialética ( )”,253 isto é, aos T ópicos. Um estudo comparativo entre Prim os eiros Ana l íticos e osTópicos haveria, por certo, de mostrar como a doutrina íanal tica do silogismo resulta, em boa parte, de um reexame da argumenta ção dialética, sob o prisma dasestruturas silog ísticas. Por outro lado, no que respeitaSegun aos d os Ana l íticos e ao problema da aquisição dos princípios da ciência que neles se aborda, se o difícil último capítulo do tratado onde intelig ência e indução pareceriam digladia r-se sobre asrespectivas compet ências,254 sempre mereceu um cuidado atento de parte dos autores, ão é nmenos verdade que não se tem devidamente reconhecido que osícap tulos que imediata255 mente precedem aquela passagem final, constituindo um estudo sobre a etapa pr é-científica do conhecimento e dizendoespeito r à “organização” do material cient ífico que utilizar ão as demonstra ções,256 concernem, em boa parte, ao processo dialé tico de pesquisa.257 Assimé que, dando por resolvida a quest ão das relações entre defini ção e demonstração, estudada nos doze primeiros cap ítulos do livroII, continua o filósofo:“Digamos agora, como se devem buscar (, lit.: caçar) os elementos que se atribuem no‘o que é’”.258 E estende-se sobre 251 252 253 254 255 256 257
Cf., acima, VI, 2.3 e n.150. Cf. Prim. Ana l. I, 30, 46a17 seg.; acima, VI, 1.4 e n.70. Cf. ibidem, l. 28-30. Cf., acima,VI, 1.5 e n.93 seg. Isto é: Seg. Anal . II, 13-8. Cf., acima, V, 3.8. Le Blond, entretanto, reconheceu, a propósito deSeg. Ana l. II, 13, que os Segund os Anal í ticos se aproximam íada doutrina dos Tópicos e que aquele cap ítulo“est très proche, par son
Topiques consacrés à allure générale et par les proc édés qu’il préconise, des passages des l’étude de la d éfinition” (Logique et m é thode ..., 1939, p.145). 258 Seg. Ana l. II, 13, 96a22-3. Também em Prim . Ana l. I, 30, 46a10-3, refere-se Arist óteles a a Seg. Ana l. I, 31, 88 uma “caça” aos princípios dos silogismos; e, em 3-4, fala-nos da possibilidade de “caçar” () o universal, a partir de umapercepção repetida que vai, então, ensejar a demonstra ção, cf., acima, III, 2.7 e n.157.
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como proceder para chegar à de uma coisa a partir dos atributos que, embora de maior extens ão que o considerado, não são 259 exteriores ao seuêgnero; mostra-nos como se pode chegar ao conhecimento das propriedades das esp écies mais complexas de um 260
gênero, a partir das defini ções de suas esp écies mais simples; também longamente considera como pode aplicar-se o étodo m das divisões (), cuja incapacidade para concluir a defini ção não há 261 muito denunciara, na mesma“caça” aos elementos do “o queé”;262 e descreve-nos como se pode chegar à definição através de um processo indutivo, que considerando as semelhan ças – e não esqueçamos que o exame das semelhan ças constitui um “instrumento ” da dialética,263 cuja utilidade para a formula ção de racioc ínios indutivos os Tópicos nos 264 indicavam – e o que há de idêntico e comum entre as coisas, pouco a pouco constr ói o discurso uno que é definição,265 passando sempre dos particulares aos universais, porque é mais á f cil definir osparticu266 lares, onde as homon e evitando ímias passam menos despercebidas, nas definições uma linguagem metaf órica, á j que não se deve discutir () com metáforas.267 Também nos mostra o filósofo como utilizar o método das divisões para a pr ópria formulação dos problea 259 Cf. Seg. Ana l. II, 13, 96 20-b14.
ad locum
260 261 262 263 264 265 266
Cf. ib idem, 5. cf., Segu imos aV, interpreta Ross, cf. nota . ção deseg. Seg. Anal.l.15-2 Em II, 5, acima, 2.2 e n.128 b Cf. Seg. Ana l. II, 13, 9625 seg.; cf., acima, cap.V, n.134. Cf., acima, VI, 2.3 e n.160 a 167. Cf. Tóp. I, 18, 108b7 seg.; acima, VI, 2.3 e n.175. b Cf. Seg. Ana l. II, 13, 97 7 seg. Cf. ibidem, l. 28 seg. E, conforme explica o filósofo, assim como n ão prescindem as demonstrações de silogismos conclusivos, assim tamb ém impõe-se a clareza( ) nas definições, cf. ibidem, l. 31-2. Recordemos que um dos “instrumentos” dialéticos era a capacidade de denunciar as homon ímias, mediante a distin ção das múltiplas significa ções dos termos, cf., acima, VI, 2.3n.159 e seg.; e, falando da utilidade de um “instrumento tal ”, diziam-nos osTópi cos que ele eraútil para a clareza ( ... ) e para que se construa a o raciocínio segundo o objeto eãn o, segundo o nome, cf. Tóp. I, 18, com., 108 18-22; acima, VI, 2.3 e n.169. Por outro lado, ao expor os tópicos da defini ção, a pesquisa da eventual homonímia dos termos surge como um dos t destinados a prevenir a obscuridade da ópicos definição, cf. T óp.VI, 2, com., 139b19 seg.: , ... 267 Cf. Seg. Ana l. II, 13, 97b37-9. E também o exame de eventuais met áforas no discurso da b definição constitui, em Tóp. VI, um dos tópicos contra a obscuridade, cf. ibidem , 2, 139 32 seg.
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268 mas a serem resolvidos, ao mesmo tempo que exp õe como pode a linguagem seja auxil iar-nos seja estorvar-nos no processo da pesqui269 sa. E discute-se da possibilidade de serem ênticos id certos problemas, por terem um mesmo termo m 270 e da eventual subordinaédio,
correspondente rela ção de um problema a outro, devido a uma ção de subordinação entre seus respectivos termosédios. m 271 Finalmente, 272 aborda Arist e, ao mesóteles a quest ão da pluralidade das causas mo tempo que propõe uma solução que concilia com a doutrina da ciência a pluralidade aparente das causas imediatasum de ó s e mes273 mo efeito, mostra-nos como se organizar á a pesquisa das causas e como se ordenarão elas para a posterior demonstra ção. Um pouco antes, portanto, de propor a intelig ência oucomo o estado ou “hábito” ao qual compete a apreens ão dos princípios, demora-se o fil ósofo, como vemos, numa longa explana ção, que tamb ém aborda a etapa preparat Tópicos não óriaà constitui ção da ciência e onde o leitor dos terá dificuldade em reconhecer a presen ça da doutrina do método dialético como proped êutica ao conhecimento dos princ ípios. O que nos adverte de que ãno é lícito reduzir aoúltimo capítulo dosSegundos Anal í ticos274 o testemunho desse tratado sobre a problem ática do conhecimento dos, como muito costumeiramente se fez. E impõe-nos, também, que o leiamos – ou melhor: que o releiamos– à luz desse acordo que descobrimos entreóapica T e a Anal ítica,à luz, portanto, dos ensinamentos da doutrina aristot élica da dialética.275 a 268 Cf. Seg. Ana l. II, 14, com., 98 1-2: . No fim desse mesmo cap ítulo, refere-se Arist óteles à utilidade, para as mesmas finalidades, do m étodo analógico, cf. l. 20-4. 269 Veja-se o comentário introdut ório de Ross aSeg. Ana l. II, 14, cf.Aristotle ’ s Prior a nd Posterior Ana lytics , p.662-3; tamb ém, ibidem, p.82. a 270 Cf. Seg. Ana l. II, 15, com., 98 24-9. 271 Cf. ibidem, l. 29-34. 272 Cf. Seg. Ana l. II, 16-8. 273 Cf., acima, III, 5.4. 274 Pois sua leitura já nos foi aporia, cf., acima, todo§o1 deste capítulo. 275 É o que não conseguiu Le Blond, o qual, reconhecendo emboraáoter car dialético deSeg. Anal. II, 13 (cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.145; acima, n.257 deste cap ítulo) e estar implícita, no cap ítulo, a doutrinaótpica sobre a fun ção da dialética no conhecimento dos
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3.3 Ind u ção e m é todo d ial é tico 276 Nosso problema consistir á, então, como acima dissemos, em conciliar dial ética, indução e inteligência dos princ ípios. Comecemos por interrogar-nos sobre as relações entre o método dialético e a indução, cuja participa ção no conhecimento dos princ ípiosé afirmada tanto pelos Segund os Ana l í ticos, 277 como por outros textos dofilósofo.278 Ora, enquanto osTópicos nos apresentam, explicitamente, a indução () como uma das formas do racioc ínio dialético, ao 279 lado do silogismo, nenhum texto de Arist óteles confere cientificidade ao racioc ínio indutivo.280 E como se poderia falar em ndu i ção científica, se a indu ção parte das coisas queãosmais conhecidas para n ós,281 se caminha para as coisas descon hecidas a partir das que ão s
conhecidas da maioria dos homens, portanto, das que se conhecem pela sensa ção?282 Porque“passagem dos particulares ao universal ”, como a definem os Tópicos,283 por isso mesmo“é a indução mais persuasiva, mais clara, mais conhecida segundo a sensa ção e comumà 284 maioria dos homens ”. Aliás, se a reduzíssemos a uma formula ção silogística, teríamos um silogismo que provaria pertencer o termo maior ao m édio, atrav és do menor,285 invertendo destarte as rela ções
princ julga, entanto, que aux exigences d auque sujet “cela ’lAristote de laípios, necessit é desno principes, ... cela ne correspond s’accorde pasmal davantage avec ’affirmation ces principes sont atteints par le : comment de pareilles méthodes, tâtonnantes, provisoires, pourraient-elles conduire à une intuition infaillible, sup érieureà la science et source de la nécessité de celle-ci?” (ibidem). 276 Cf., acima, VI, 2.5 e n.224. b 277 Cf. Seg. Ana l. II, 19, 100 3-5; acima, VI, 1.3 e n.65. b 278 Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139b29-31;Met. E, 1, 1025 15-16 etc.; acima, VI, 1.4 e n.72 e 73. 279 Cf. Tóp. I, 12 (todo o cap ítulo); acima, cap.I,n.177; VI, 2.3 e n.158. 280 Cf.,acima, cap.I,n.177. 281 Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72b27-30; acima, II, 5.4 e n.230; tamb ém cap.II, n.190. Seg. Ana l. I, 2, 72a1-5, dizia o fil 282 Cf. Tóp. VIII, 1, 156a4-7. Recorde-se que, em ósofo:“Chamo anteriores e mais conhecidas para ós n às coisas mais pr óximas da sensação, anteriores e mais conhecidas em absoluto às mais afastadas. As mais universaisãso as mais afastadas, as individuais, as mais pr ”. óximas 283 Tóp. I, 12, 105a13-4; cf., acima, VI, 1.4 e n.68. 284 Ibidem, l. 16-8. b 285 Cf. Prim. An al. II, 23, 68 15 seg. Como diz Ross, cf. seu coment ário introdut ório ao capítulo, “the statement is paradoxical; it be is explained to by noticing that the terms are named with
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que se explicitam num silogismo do porqu ê. Dizendo respeito, portanto, ao momento heur ístico e ascendente do conhecimento, a indu ção 286 287 é de na tureza d ial é tica e não, científica. É verdade que são pouco numerosos, nosTópicos , os “lugares” propriamente indutivo s e que algumaspoucas passagens, somente, tratam, explicitamente, da indu ção.288 Por outro lado, Arist óteles, que nos diz provirem todas as nossas convic ções ou da indução ou do 289 silogismo, parece sempre opo r, umaà outra, essas duas formas de raciocínio. Ocorre, por ém, que, num texto importante dos Segundos Anal í ticos , não mais opõe o filósofo a indu ção ao silogismo, mas à demonstração; “aprenderemos ou por indu ção ou por demonstra ção, mas procede a demonstra ção dos universais, a indu ção, dos particulares”.290 Também a Ética Nicoma qu é ia , lembrando procederem ou por indução ou por silogismo todos os ensinamentos e dizendo ser a indução princípio também do universal, enquanto o silogismo procede 291 dos universais, parece, em verdade,ãno estar opondo a indu ção ao silogismo qualquer , mas ao demonstrativo, que deduz dos princ ípios universais as propriedades por si dos gêneros cient íficos. Ora, se atentamos em que“passagem dos particulares ao universal ” é expressão de sentido bem amplo e no fato de que Arist óteles chama de indu ção reference to the position they would occupy in a demonstrative syllogism (which is the ideal type of syllogism) ”. De fato, o que mostra o fil ósofo é que somente a indução completa poderia adequadame nte formular-se sob forma silog ística, cf. ibidem, l. 28-30; a preocupação de Arist óteles, neste cap ítulo,é menos a de estudar a real natureza daçã indu o que a de mostrar como se poderia abordar a indu ção, de um ponto de vistasilogístico. E observe-se que o“silogismo da indução” corresponde a um silogismo do “que”. 286 Alexandre de Afrod ísio tinha, pois, razão ao dizer (cf. In Top. , Wallies, 37-7 apud Le Blond,Logique et m é thode ..., 1939, p.20, n.3). 287 Como pretendem, por exemplo, Zeller (cf.Die Philosoph ie der Griechen II, 2, p.203:“Der Beweis und die Induktion sind die ...zwei Bestandtheile des wissenschaftlich en Verfahrens und die wesentlichen Gegenst ände der Methodologie ”; do mesmo modo, o grande historiador via no processo de conhecimento que remonta aos princ ípios, tanto como no que dele descende, uma das dire es do pensamento cient fico, cf. ibidem, p.240-1) e De çõ í Pater, para quem a indu ção pode tanto ser científica como dialética, cf. Les Topiques
d ’ Aristote ..., 1965, p.85.
288 289 290 291
Como observa De Pater, cf.Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.149. b Cf. Prim. An al. II, 23, 68 13-4; acima, cap.I , n.177; V, 2.3 e n.146. a b Seg. Ana l. I, 18, 8140- 1. Cf. Ét. Nic. VI, 3, 1139b26-9.
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tanto a passagem deuma multiplicidade de sensa ções a uma noção universal como a passagem deízos ju particulares a um íju zo geral,292 compreenderemos que possa oófil sofo designar por também o conju nto dos processos dial é ticos (incluindo silogismos e çõ indu es,stricto sensu ) que conduzem o pensamento em dire ção do conhecimento dos princípios, caminhando do mais partic ular para o mais universal –e a maior proximidade do princ ípio corresponde sempre a uma maior 293 universalidade –, do mais conhecido pa ra n ós ao mais conhec ível por natureza, do maisópr ximo da sensação ao que est á mais afastado dela. Nesse sentido, diremos,ão, ent que a etapa ascendente e dial é tica do conhecimentoque prepara a posse dos princ ípioséde natu reza indu tiva . Sob esse prisma a prticular , não contradizem, pois, Anal os íticos aosTópicos e não nos pareceícito, l então, afirmar que Arist óteles busca, no m éto294 do dial ético, apenas um meio de preencher as lacunas çã dao.indu Por outro lado, compreendemos tamb ém que, se a“experiência” (), que se constitui por via indutiva a partir da percep ção sensível, pode forneceràs ciências seus princ ípios,295 é porque se exprime ela sob a forma de opiniões () que, formuladas como proposi ções aceitas 296 () onde se traduz oresultado das observa ções que se fizeram, são objeto de um tratamento dial ético que as toma como ponto de partida para pô-las à prova e utilizá-las criticamente. Observa ção e 292 Cf. S. Mansion, Le jugement d ’ existence ..., 1946, p.141-2 e 102. Sobre a áprov vel origem da significação de e os diversos usos aristot élicos do termo (assim como do verbo de mesmo radical), cf. Ross, coment. introd.Prim. a An al. II, 23. 293 Cf., acima,III, 2.3 e n.135. 294 Como quer Zeller, cf. Die Philoso ph ie der Griechen, 1963, II, 2, p.245. De qualquer modo, cabe-lhe plena razão, quando afirma: “Die Eigenthumlichkeit und die Richtung des aristotelischen Systems ist durch die Verschmelzung der zwei Elemente bedingt ... des dialektisch-s pekulativen unddes empirisch-realis tischen” (ibidem, p.797). 295 Cf., acima, VI, 1.4 e n.70. E não esqueçamos que cabeà opinião () o conhecimento do contingente (cf., acima, I, 1.1 e n.30), assim como tamb ém diremos conhecidos apenas por opinião as mesmas coisas necess árias, quando ãno se apreende sua necessidade (cf., acima, I, 1.1 e n.35 e 36). 296 Lembremos que Aristóteles estende a no ção de proposição dialética às proposições que exprimem as opiniões que se conformamàs artes e disciplinas constitu ídas, istoé, as a opiniões dos que fizeram estudos em tais dom ínios, cf.Tóp ., I, 10, 104 14-5;33-7; acima, n.156 deste cap ítulo.
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argumentação destarte se conjugam para que oconhecimento dos princípios das ciências– e, também, portanto, as pr óprias ciências– possamconstituir-se. 3.4 Ind u ção dial é tica e “vis ão” d os princí pios
Resta-nos agora,ãto-somente, compreender como se relaciona o método indutivo– isto é: o método dialético de natureza indutiva– com a inteligência ou, a que vimos Arist óteles atribuir o conhe297 cimento dos princ ípios. Ora, a aporia que ãotgrave nos parecia verse-á facilmente resolvida se estabelecermos um paralelo entre últi-o mo capítulo dosAnal íticos e a passagem dos Tópicos que nos mostrou a utilidade da dial ética como proped êutica ao conhecimento cient ífiSegundos Ana lí ticos, da indu co.298 Com efeito, Arist óteles passa, nos ção à intelig ênciado mesmo mod o como , nosTópicos, faz surgirvis a ão da verdade a partir da pr ática da argumenta ção contraditória e crítica que caracteriza o m étododiaporem ático , fazemergir da prática dialética o conhecimento dos princ ípios.299 Em outras palavras: ãno pretende o filósofo que om é todo dia l é tico-indutivo , que nos leva aos princ ípios, nos 300 confira tamb ém diretamente a sua posse.E é certo que se não pode falar emgênese da inteligência dos princ ípios a partir do processo de 301
conhecimento menos exato e cognoscitivoque o filósofo designou como. Nem se pretender á, por certo, que possa uma indu ção construir diretamente uma defini ção-princípio, mostrando o que éa coisa, se um racioc ínio indutivo simples n ão vai além do “que é”.302 297 298 299 300
Cf., acima, VI, 1.5. Isto é: Tóp. I, 2, 101a34 seg.; cf., acima, VI, 2.1. Cf., acima, VI, 2.5. Le Blond lia, então, corretamente, os textos aristot élicos que deixam manifestoãno poder o método indutivo diretamente engendrarconhecime o nto dos princ ípios (cf.Logique et m thode ..., 1939, p.122 seg.; acima, VI, 1.4 e n.80); sua falha, por ém, consistiu, como é a ver, emãno saber concili estamos á-los com aqueles outros que, sem desmentir a doutri na dos primeiros, apontam no entanto o papel relevante que a çã indu o desempenha no processo de aquisi ção dos princípios da ciência. 301 Cf., acima, VI, 1.4 e n.78. 302 Cf., acima, VI, 1.4 e n.79.
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Ocorre, porém, que“como são os olhos dosmorcegos em rela ção à luz do dia, assimé também a inteligência () de nossa alma em relação às coisas que ãso, por natureza, as mais manifestas de todas ”.303 O que significa, portanto, queãn o está nas coisas, mas em óns próprios, a causa das dificuldades com que deparamos em nosso anseio 304 de conhecer: habitando os dom ínios da verdade, possu ímo-la como 305 um todo cujas partes apreender . ãonsomoscapazes de corretamente Mas, se efetuamos a ascens ão dialética e nos deixamos libertar dos entraves que nos imp õe o termos na percep ção sensível nosso ponto 306 necessário de partida, se a prática correta de um m étodo indutivo adequado nos conduz progressivamente em dire ção do queé mais universal e, em sentido absoluto, mais conhec ível, eis que pouco a pouco se constituem as condi ções necessárias e suficientes para que a luz da verdade possa brilhar e para que a parte éticano de nossa alma, 307 inteligência separada, impass ível e sem mistura, em si mesma acolha o próprio ser dos objetos investigados, coms oquais, em ato, en308 tão se identifica. A ninguém escapará a ressonância platônica de uma tal doutrina, que revive, em n ós, a lembrança da escalada libertadora empreendida pelos prisioneiros da caverna em o da çãdire luz do dia, cujo esplendorãno podem suportar quando, por vez pri303 304 305 306 307
Met. , 1, 993b9-11. Leia-se, tamb ior. ém, a passagem imediatamente anter
Cf. ibidem, l. 7-9. Cf. ibidem, l. 6-7. Cf., acima,IV, 1.3; cf. também II, 4.7 en.175 a 181. , cf. Da Alma III, 5, 430a17-8. Não abordaremos aqui, por não respeitar diretamente ao problema que nos interessa, íacildif e famosa quest ão das inteligências agente e paciente, de que se ocupa o fil ósofo nos cap.4 e 5 do livro III do tratadoDa Alma e que foi objeto de tantas êpol micas entre as escolas aristot élicas. Ler-seá, ainda com proveito, o trabalho de Hamelin, publicado por E. Barbotin, sob ítulo: o La t th é orie de l’intellecte d ’apr è s Aristote et ses commentateur s, 1953. 308 A alma é idêntica, de um certo modo, a todos os seres Da (cf.Alma III, 8, 431b21) e suas partes sensitiva e“científica” ( ) s ão seus mesmos objetos (o sens ível e o b26-8. A cincia, em pot ncia ê cientificamente conhec vel, respectivamente), , cf. ibidem, 431 í ê então, identifica-seem ato com seu objeto, cf.Da Alma III, 4, 430a3-5; 5, 430a19-20; 7, com., 431a1-2; cf., tamb ém, Met. , 7, 1072b21; 9, 1075a3-5; e a alma tem, na intelig ência, uma como “forma das formas” ( ), do mesmo modo como, na sensibilidade, uma forma dos sensíveis” ( ), cf. Da Alma III, 8, 432a2-3.
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309 meira, a deparam e por ela se ofuscam; à claridade, por ém, habituados, terminar ão por olhar e contemplar oópr prio sol, tal como é.310 E, servindo-nos ainda da terminologia plat ônica, diremos que o exerc ício do método dialético-indutivoé um despegar-se do mundo das
imagens e um caminhar para aãvis o final dasFormas, a que se de ixavam conduzir os interlocutores de boa índole pela mai êutica libertadora do Sócrates plat ônico. Terminada a ascens ão, podem agora os princ í311 pios por si óss fazer éf e por si óss naturalmente conhecer-se e, porque por eles todas as coisas se conhecem, que lhes ão posteriores, s pode a alma, por fim, propiciar -se um saber que discurso algum vir á 312 despersuadir. Nesse sentido preciso, que agora explicitamos,sem e contradizer , portanto, nenhum dos textos acima citados, dizia ósofo o fil“que nosé necessário conhecer os elementos primeiros por meio da çã indu o”,313 que “há princípios ... dos quais parte o silogismo, dos quaisãno há silogismo:áh, portanto, indu ção”.314 E compreendemos todo o processo que o filósofo tinha em mente, ao dizer -nos naMetaf ísica , referindo-se ao conhecimento do “o queé” de que as ci ências partem, assumindo-o por hipótese:“é manifesto que ãno há demonstra ção da essência nem do ‘o que é’, a partir de uma tal indu ção, mas algum outro modo de mostrar ”.315 Porque vimos como, a partir do étodo m dialético-indutivo e graças a ele, pode operar -se um salto em que outro modo surge – isto é: a intelig ência– de mostrar-se a verdade dos princ ípios; um salto, po316 rém, que n e que, no que concerne partião permanece injustificado 309 Cf. Rep. VII, 515c-516a. A aproximação entre os dois textos, o de Met. e o daRep ública , é feita, entre outros, tamb Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.84. ém por De Pater, cf. 310 Cf. Rep. VII, 516b. 311 Cf., acima, VI, 1.4 e n.76 e 77. 312 Cf. Seg. Ana l. I, 2, 72b3-4: “se é preciso que o que conhece cientificamente, em sentido absoluto, não possa ser despersuadido ”; acima, II, 2.4 e n.58. b
313 314 315 316
Seg. Ana l. II, 19, 100 3-4; acima, acima,VI, VI,1.3 1.4ee n.65. n.72. Ét. Nic. VI, 3, 1139b29-31; b Met. E, 1, 1025 14-6; acima, VI, 1.4 e n.73.
ComoquerLe Blond, cf.Logique et m é thode ..., 1939, p.122; acima, VI, 1.5 e n.101. Precisamente por n a desse“salto”, condenou-se o eminenão compreender o sentido e a naturez te autor a não compreender, também, a unidade profunda da doutrina aristot élica da
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cularmenteàs definições-princípios, istoé, aos primeiros princ ípios das ciências, permite ao discurso da argumenta ção e da indu ção ced er o lu gar a uma intui ção plena, absoluta e infal ível que não se acompanha de discurso,317 porque visão que coincide com o objeto que vê: não se transmuda o discurso em intelig ência mas suprime-se ante ela, uma vez cumprida a tarefa preliminar que lhe competia, a de assim preparar a sua mesma nega ção.318 E tem-se, ent ão, uma verdade queãno mais consiste numa combinação do pensamento diano ético a imitar a composi ção ou a separação das coisas319 mas que, para essas coisas simples ( ) e não 320 compostas ( ) que são o “o queé” e a qüididade, é tão-somente um um apreender pela intelig ência, um entrar em contato ( , ) com o objeto.321 Por isso mesmo, não está na , no pensamento discursivo , uma talverdade, mas na intelig ência, no que, entrando em contato com ointeligível ( ) e pensando-o, em dele participando, a siópr prio se pensa e se torna, assim, intelig ível, identificado com ele.322 É, então, uma intelecção de indivisíveis aquisição dos princ ípios das ciências, assim como a gravemente equivocar-se a respeito da natureza das defini ções-princípios e da defini ção, em geral, ao comentar diferentes textos thode ..., 1939, em que Aristóteles expõe a metodologia da defini ção, cf. Logique et m é e. Deuxième partie, Chap.III, § 1: “La Méthode comme recherche ”, p.270-91. Assim, por exemplo, porque algu ns textos do fil ósofo insistem no car áter difícil e laborioso da pesquisa que leva ao estabelecimento das defini ções, conclui Le Blond que elasãno podem ser obtidas por intui ção, cf. ibidem, p.272. 317 Ao contrário da ciência, se “toda ciência se acompanha de discurso ”( ’ b ), cf.Seg. Anal . II, 19, 10010; cf., também, Ét. Nic. VI, 6, 1140b33; acima, I, 3.1 e n.152. 318 Não tendo razão, pois, Le Blond, quando, mostrando com o a pesquisa da defini ção é marcha em dire ção de um ideal representado por uma intui ção verdadeiramente intelectual, acrescenta:“Idéal irréalisable d’ailleurs, que le discours ne pourrait atteindre sans thode ..., 1939, p.281). se nier lui-m ême” (Logique et m é 319 Cf., acima, III, 2.1. b 320 Cf. Met. E, 4, 1027 27-8;, 10, 1051b17-21; acima, II, 2.2; II, 2.4 e n.50. Cf. tam bém Seg. Anal.
b
...
II, 13, 961051 22-3: por serem o princ de todas as coisas adefinição e o simples”. b“ ípio 321 Cf. Met. , 10, 22 seg.; acima, II, 2,2 en.32. 322 Cf. Met. , 7, 1072b18-21; cf., tamb ém, Da Alma III, 4, 430a2 seg. Ao dizer, ent ão, emMet. b E, 4, 102727-8, que não se encontra nem mesmo na a verdade que respeita aos simples eàs qüididades (cf., acima, VI, 2.2 e n.30), est á o filósofo a opor o pensamento discursivo ao no ético e indutivo (cf., acima, cap.II, n.32), como tamb ém o faz emDa Alma
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323 que se opera, por um elemento indivis ível da alma e num tempo indivisível pensando-se o que é indivisível segundo a forma ( ),324 o “simples” ( ), que é a significação primeira e 325 fundamental da necessidade. Unidade da ci ência e da demonstra-
ção,326 a inteligência indivisível e una que pensa a qüididade pensa o queé causa da unidade formal das coisas que s ão indivis íveis do pon327 to de vista da inteligibilidade e do conhecimento. Necessário é, porém, para que as ci r-se e ências possam constitui explicitar, nos silogismos da demonstra ção, a causalidade das propriedadespor si de seus sujeitos gen éricos, que a vis ão intuitiva dos princípios se traduza no discurso, isto é, que ela se manifeste eformule nas defini ções-princípios que, fusionadas com asóhip teses correspon-
dentes, exprimem, concomitantemente,“o que é” e o “que é”, proposições em que os mesmos discursos das qüididades se fazem 328 predicados dos termos definidos. E, se “por si mesmo, todo o discursoé divisível”,329 nem por isso se pretender á que a defini ção trai a unidade da essência, se se entende que a faz una o ser press ex ão de 330 uma intelec ção indivis ível. E, se o desenvolvimento da demonstração exige, por certo, que se “divida” o discurso da üqididade, para corretamente deduzir o que dela decorre, ãonhá porque imputar a esse I, 4, 408b24 seg., ainda que, freq üentemente use e em sinonímia e fale, por exemplo, da que, ao mesmo tempo, torna evidentes“ooque é” e o “se é”, cf. Met. E, 1, 1025b17-8; acima, IV, 4.3 e n.259. Por outr o lado, n ão vemos por que falar no que concerne a esse uso de tais ter mos, em evolu ção da doutrina, como sugere Bourgey (cf. Observat ion et exp é rience ..., 1956, p.62, n.1), apoiando-se nos trabalhos de Nuyens. a 323 Cf. Da Alma III, 6, com., 430 26 seg.; acima, cap.II, n.32. b 324 Cf. ibidem, 14-5; lemos, com Ross, . 325 Cf. Met. , 5, 1015b11-2; acima, I, 1.1 e n.47. 326 Cf. Seg. Ana l. I, 23, 84b37-85a1; acima, III, 6.5 e n.324. a 327 Cf. Met. , 6, 1016b1-2; I, 1, 1052 29 seg. Sobrea indivisibilidade da forma,cf. Rodier, Trait é de l’âme, texte, trad uction, comm entaire, Paris, Leroux, 1900, II, p.474-5, apud Le Blond, Logique et m é thode ..., 1939, p.278, n.4. 328 Cf., acima, IV, 2.4. b 329 Met. , 6, 1016a34-5; cf., tamb 20: “Todo discurso tem partes”. ém, Z, 10, com., 1034 b 330 Cf. ibidem, l. 35- 1. Sobre a importante quest ão da unidade da defini ção, correlataà do definiendum , cf., sobretudo, Met. Z, 10-2; cf., tamb ém, De Pater,Les Topiques d ’ Aristote ..., 1965, p.217-20, éalm da nota n.76, a p.79.
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métodoabstrativo de que a demonstra ção tem de servir-se, uma infidelidade qualquer à unidade do princ ípio. Por outro lado, tamb ém no que concerne àqueles outros princ ípios que, sucessivamente assumidos pela ciência, ensejam a expans ão da cadeia demonstrativa de silogismos, 331 exprimindo as causalidades imed iatas dos atributos a demonstrar, porque os conhece a intelig ência mediante um ato de apercep ção imediata da relação necessária entre sujeito e predicado, falaremo s, de igual modo, de indivisibilidade e de unidade, á quej“premissa una, em 332 sentido absoluto,é a imediata”. Assim, a inteligência vem coroar, em apreendendo os princ ípios indemonstráveis, o trabalho propedêutico de natureza indutivodialética; ao mesmo tempo, instaurando na alma um saber absoluto e infalível, vem proporcionar-lhe a faculdade de percorrer, numa marcha descendente em dire ção do particular, as mesmas articula ções por que o real se ordena, levando-a a conh ecer, cientificamente agora, aquelas mesmas coisas entre as quais reconhecer á o ponto de partida do qual, em obscuramente conhecendo-o, precariamente partira para aquela investiga ção preliminar. E o processo total do conhecimento 333 cumpre desse modo o seu ciclo. E essa rápida aprecia ção da doutrina aristot élica da inteligência vem também esclarecer por queãno podia contentar-se oófil sofo, em
seus diversos tratados, com expor apenas o saber cientificamente constituído,334 lá mesmo onde o creu efetivamente constitu ído, sob aforma dos silogismos da demonstra ção, a partir da enuncia ção dos seus princípios. Pois, se a intelig ência que intui as verdades imediatas e indemonstráveis não se nos dá, como mostramos, sen ão após as laboriosas peripécias da aventura dial ética, de nada adiantaria – e a nenhum leitor– a mera leitura do discursomeque o saber se tivesse traduzido. Porque despreparado para apreender a çã inten o que o anima, 331 332 333 334
Cf., acima, VI, 1.1 e n.3; IV, 4.6 e n.304 a 309; II, 3.2 e n.78. b Seg. Ana l. I, 23, 84 36-7; cf., acima, III, 6.5 e n.317 a 323.
Cf., acima,II, 5.4 e n.229 e 230. Cf., acima, VI, 3.1.
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incapaz de, em sua alma, reviver a vida de intelig ência e ciência que 335 nele se exprime, quem as lesse ós encontraria, diante de si, órmuf las mortase vazias,cujo aprendizadolhes seria ocioso; pois“dizer os discursos que procedem daêci ncia nada significa; tamb ém, com efeito, os que se encontram nesses estados [subent.: dormindo, loucos, embriagados] dizem demonstra ções e versos de Emp édocles; e os que apenas come mas aindaãon çaram a aprender soltam os seus discursos, têm saber;é preciso, de fato, que este se integre nas suas naturezas ( 336 ), mas isto demanda tempo ”. Ora, o percurso atento dos caminhos que a dial ética trilhou em busca dos princ ípios contribui para uma tal tarefa, para que a alma doípulo disc e leitor pouco a pouco se prepare para entrar meposse de um saber, que á constituir vir um “hábito” duradouro, uma parte de siópria. pr
335 “Pois o ato da inteligência é vida” ( ), cf. Met. , 7, 1072b26-7. a 336 Ét. Nic . VII, 3, 1147 18-22.
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Conclusão
1.1 A “ci ência l ógica ” e o siste m a a ristoté lico Exposta a doutrina aristot élica da ciência, mostrou-nos nosso último capítulo como o fil ósofo concebe o processo dial ético preliminar que levaà instauração do saber científico. Uma vez mais, ficou-nos manifesto como se distinguir ão a ciência e a pesquisa“científica”, a posse acabada do saber e os camin hos que a tornam poss ível. Cabenos, agora, perguntar que lugar concede óArist teles a essa doutrina do conhecimento cient ífico, exposta nos Segund os An al í ticos , no interior de seu sistema. E a primeira coisa a recordar é que ele considera os Primeiros e osSegund os An al í ticos como um todo, cujo escopo geral éo 1 estudo da demonstra ou, melhor:a ção e da ciência demonstrativa, an álise do saber demonstrativo, que nos faz remontar a seus elementos 1 Cf., acima,I, 3.1 e n. 158; também, cap.VI, n. 18. Para um estudo pertinente das çõ rela es entre osPrimeiros e osSegundos An al íticos, cf. Ross, Prior an d Posterior Ana lyt ics , Introduction, p. 6-23.
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2 e a suas condi ções de possibilidade, como o próprio nome do tratado já o indica.3 Ora, um texto bastante expl ícito daMetaf ísica indica-nos, com precisão, a função que atribui Arist ótelesà suaAnal ítica . Com efeito,
criticando os que colocam o pro blema que respeita ao modo de acolher a verdade ao mesmo tempo queocuram pr estabelec ê-la, diz-nos o filósofo que assim procedem“por ignorância dos Anal íticos (’ ’)”: desconhecendo-os, ignoram que somente se deve abordar a problem ática científica se já se possui um conhecimento preliminar das quest ões de que se ocupam os Anal í ti4 5 cos , ao invés de proceder ao seu estudo concomitante. Mais adiante, denuncia-se análoga na indevida postula ção de uma demonstração para o mais firmede todos os princ ípios, o de não-contradição: “é ignorância, com efeito, desconhecer de que coisas se deve buscar demonstração e de que coisas seãno deve”,6 isto é, ignorar a 2 Porque oestudo da silogística demonstrativa empreendidoSegund nos os Ana l íticos é procediPrimeiros do pela silog ística geral, de que os se ocupam,é diferente o objeto da á an lise num e noutro tratado. Como diz Ross: “In the former [i.é: nosPrim eiros Ana l íticos ] it is sy llogism in general tha t Aristotle analy ses; his object is to state the nature of the propositions w hich w ill forma lly justify a certain conclusion. In the latter [i.é: nosSegundos Analí ticos] it is the d emonstrative syllogisms tha t he analy ses; his object is to state the natu re of the propositions w hich w ill not merely for ma lly justif y a certain conclusion, bu t w ill also sta te th e facts on w hich the fa ct sta ted in th e conclusion depend s for its existenc e” (Aristotle ’ s Prior and Posterior Ana ly tics , Introduction, p. 1-2). 3 Cf. Zeller, Die Philosoph ie der Griechen 1963, II, 2, p.186: “Auch der N ame der Analytik w eist darauf hin, dass es sich für Aristoteles bei der Untersuchun gen, w elche w ir zu formalen Logik rechnen w ürden, zunächst d arum handelt, die Bedingungen des w issenschftlichen Verfahrens, und näher des Bew eisv erfahrens, zu besti mm en ”. E Trendelenburg explicava-nos, referindo-se ao nome ’, que ele designa, no pr óprio Aristóteles, a obra“In quo nihil aliud est quam, quod compositum est, ad elementa tamquam ad causas redigere. Quemad modum geometræ figuras, ut cognoscantur, in simplicissimas quasque velut polygona in trigona reso lvunt: ita in analyticis cognoscendi retiones ad primas quasi formas tanquam causas revocantur” (Elementalogices aristoteleæ,
editio nona, Berolini, W. Weber, MDCCCXCII, p.47). 4 Cf. Met. , 3, 1005b2-5. Encontrar-se-ão em Ross (cf. notaad locum ) os argumentos com que Maier procura mostrar que Aristóteles visa diretamente aqui (assim como em4, 1006a5-8 e em ávrias outras passagens Metaf da ísica ), o pensamento antist ênico. Também em Met . , 3, 995a12-4, fala-nos o ófilsofo da necessidade de estar-se bem instru ído sobre o modo de acolher as verdades próprias a cada saber, paraãon incorrer-se no absurdo de buscar, ao mesmo tempo, a ciência e o seu modo pr óprio de cientificidade. 5 Cf. Met. , 4, 1006a5 seg. 6 Met. , 4, 1006a6-8.
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absoluta impossibilidade de demonstrarem-se todas as coisase-e a r gressão estéril ao infinito a quese condena o desconhecimento da indemonstrabilida de dosprinc ípios.7 E essa ignor ância é responsável8 por inumeráveis aporias em que infindavelmente se enreda e debate bom número de pensadores que, julgando haver raz ão () de todas as coisas, “buscam razão das coisas de queãn o há razão; pois um princípio de demonstra ção não é demonstra ção”.9 Mostra-nos, assim, o filósofo que atribui ao conhecimento de sua doutrina da demonstração e de toda a sua Anal ítica, em geral, um car áter eminentemente propedêutico:é imperativo metodol ógico que tal conhecimento preceda todo esfor ço de constituição de um saber cient ífico, porque garantia de que ãno nos emaranhemos em dificuldades insan áveis e em falhas grosseiras de ém todo. Esclarecida a no ção de ciência, conhecidas as condições de possibilidade do conhecimento cient ífico, resolvidas as questões que lhe respeitam, poderemos corretamente orientar os trabalhos de investiga ção preliminar de que deve resultar o estabelecimento de um saber real. Ora, vimos acima, ao expor a concep ção aristotélica da dialética, como esta disciplina, que constitui uma proped êuticaàs ciências,10 porque arte de examinar criticamente eôde r àp prova, integrava aquela que oTra tad o da s Partes do s Anima is opunhaàs ciências dos 11
objetos particulares,já que “compete, com efeito, ao homem cultivado () ser capaz de julgar , de modo pertinente, sobre a maneira correta ou incorr eta por que se exprime aquele que fala ”.12 Esclarece-se-nos manifestamente, ãent o, como aTópica e a Anal ítica − ou, mais precisamente: a arte dial ética e a doutrina do silogismo e da demonstra ção científica– representam momentos complementares dessaCultura que o filósofo opõe às competências determinadas 7 8 9 10 11 12
Cf. ibidem, 1. 8-9. Cf. Seg. Ana l. I, 3, 72b7 seg. (acima, II, 5.3); 22,b83 32 seg. (acima, III, 6.3). a Cf. Met. , 6, com., 10113 seg. Ibidem, 1. 12-3: ... . . Cf., acima, VI, 2.1 en. 108; VI, 2.5 e n.219 seg. a Cf. Part . Anim . I, 1, com., 639 1-12; acima, VI, 2.2 e n.140 a 142. Ibidem, l. 4-6.
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dos diversos saberes cient íficos, caracterizando-a por sua universalidade e por sua significa ção propedêutica. Ela compreende uma arte da argumentação crítica de que ã no pode, em geral, pre scindir, como sabemos, o esforço da instauração científica; por outro lado,torna-seóbvio, também, que se orientam os passos da investiga ção dialética pelo conhecimento da doutrina daência, ci que vem precis ar-lhes o sentido, definir-lhes as metas e indicar -lhes os limites de sua aplicabilid ade. Não estranharemos, ent ão, que aRet órica , tendo caracterizado a óret 13 14 rica como contraparte da dial ética ou como parte dela, e tendo-a descrito “como uma ramificação da dialética ... e da disciplina concernente aos caracteres, queé justo denominar pol ítica”,15 ao retomar, mais adiante, estaúltima descri ção, se exprima em termos que, à primeira vista, pareceriam deve r desconcertar -nos:“com efeito, aquilo mesmo que tamb ém tivemos a ocasi ão de dizer acimaé verdadeiro, que a retórica se compõe da ciência analítica ( ) e da ciência política concernente aoscaracteres”.16 Aproximadas as duas últimas passagens, pareceria que se nos sugere uma sinonímia entre a dialética e a“ciência analítica”; se nos faltam, no entanto, elementos para crer tenha Arist óteles pretendido incorporar o conteúdo de sua ó t pica numa Analítica Geral– assim como não se encontrará texto que, inversamente, aponte para uma subordina ção qualquer da doutrina daêci ncia a uma arte geral da Dial ética–, compreendemos, sem maior dificuldade, que oósofo fil se permite substituir, um pelooutro, os nomesdaquelas duas disciplinas, na medida em que ambos podem, por meton ímia, designar aCultura , que tem, precisamente na anal ítica e na dial ética, suas partes constitutivas fundamentais, complementares, uma da outra, à uma outra, em verdade, imprescindíveis. E, se nos é fácil reconhecer que se lhes podem agre13 14 15 16
a Cf. Ret . I, 1, com., 1354 l; acima, cap.VI, n.119. a Cf. Ret . I, 2, 135630-1; acima, cap.VI, n.119. Ibidem, l. 25-7. Ret . I, 4, 1259b8-11. Como observa, com raz ão, Robin,é tão-somente no sentido lato do termo que Aristóteles fala, aqui, deci ência analítica, cf. Robin,Aristote , 1944, n. 40.
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gar uma elucida ção dos elementos do discurso enquanto express ões da polival ência semântica do ser, assim como um estudo sobr e o ju ízo 17 e a proposi ção, como outros tantos elementos que êmv integrar naturalmente o mesmo conjunto, torna-se manifesto que a a que se refere o filósofo não é mais do que o domínio teórico e prático dos elementos a cujo estudo se consagram tratados os que constituem as diferentes partes do que a posteridade designaria com o nome de ; o homem cultivado ( ) é, correspondentemente , aquele que, nesse dom io a adquirir,então, o que poínio exercitado, ve deria chamar-se de“ciência lógica”, istoé, veio a possuir a êcincia do discurso e a conhecer a natureza do discur so da ê cincia, a dominar os recursos da argumenta ção e a compreender a natureza das ácias fala que 18 a linguagem dos homens naturalmente se presta. E, entretanto, ãno se falará, com propriedade, de “ciência lógica”, no aristotelismo. Nem atribui aoófil sofo, como se sabe, tal significa19 ção ao termo nem concebeu, tampouco, a sua “lógica” como um saber cient ífico: opondo-seà doutrina da Antiga Academia, rejeitando a divisão xenocrática das ciências em Física,Ética e Lógica,20 Aristóteles exclui aógica l de seu sistema do saberãeona faz figurar na famosa divis ão tripartite dasêci ncias em te óricas, pr áticas epoié ticas; 21 é que, nela, êv, como os comentadores greg os souberam reconhece r, 22 antes um instrumento (=) que uma parte da filosofia, um instrumento de que nos serviremos para promover o advento do saber
17 Isto é: o conteúdo dos tratados das Categorias e daInterpreta ção, respectivamente . 18 É assim que, naRet órica , Aristóteles opõe à dialética eà retórica as ciências particulares, como , , cf. Ret . I, 4, 1359b15-6. 19 Cf., acima,III, 2.6 e n.136 seg. 20 Que conhecemos por Sexto Empírico, cf.Adv. Math . VII, 16 seg. Goldschmidt tem certamente razão, quando êv, na divisão das proposi ções eméticas, ífsicas e ól gicas, propostas em Tóp . I, 14, 105b19 seg., não a expressão de um ponto de vista aristot élico, mas uma retomada, a íttulo de exemplo, da divis ão xenocrática das ciências, cf. Goldschmidt, “Le système d’Aristote”, 1958-59, p.25; acima, cap.I, n.116. 21 Cf., acima, IV, 5.1 en. 326. 22 Desde as primeiras linhas de seu comentário ao livro I dosPrim eiros Ana l íticos refere-se Alexandre de Afrodísio à polêmica sobre se se deveria considerar“la ógica” uma parte ou in Aristotele m Gr æca edita consilio et auctoritate um instrumento da filosofiaCommentaria (cf.
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científico e filos ófico, um conjunto de écnicas t que preparam o homem para sua ativ idade de conhecer . Peloseu mesmo car áter propedêutico a todas as ciências, pela sua mesma universalidade “formal” e “vazia”, que não a faz saber de um objeto determinado, n ão poderia a lógica constituir uma ci ência nem integrar a Sabedoria: ela é tão-somente o objeto de uma . E a doutrina do saber cient ífico, a que consagramos nosso estudo, nela encontra, como vimos, seu o lugar natural. 1.2 A d outrina d a ci ência e a pr oblem ática d o crit é rio
Se a análise do saber cient ífico desempenha, ent ão, a função instrumental que lhe descobrimos nosàserve para o processo de investiga deve conduzire-nos instaura dos diferentes ção que çãoorientar conhecimentos cient íficos de gêneros determinados, permitindo-nos a apreensão dos princípios de que eles necess ária e essencialmente decorrem, resta-nos agora, ão-somente, t perguntar pela efic ácia real do instrumento e pelas garantias que pode, eventu almente, proporcionar-nossua utilização atenta. Com efeito, que certeza se pode obter de que se remover ão os obstáculos que estorvam a intelig ência luminosa dos objetos de pesquisa? E, por outro lado, que ério crit haverá que possa tornar-nos evidente o sucesso da investiga ção empreendida, revelando-nos a posse obtida da ãovis procurada? O que equivale, também, a perguntar, já que o discurso da ci ência se engendra daquelas visões e intuições primeiras, sobre o critério último da Academiæ Litterarum Regiæ Borussica, Voluminis II Pars I,Ale xand ri in Aristotelis Analytico rum Priorum Librum I Commentarium , ed. Maximilianus W allies, Berolini, Typis et imprensis G. Reimeri, MDCCCLXXXIII, p.1, l. 8-10), dizendo-nos áque os antigos j sustentaram tratar -se de um instrumento (cf. ibidem, p.3, l. 9-10), opini ão que perfilha. Para referências aos outros comentadores que tamb ém assumiram esse ponto de vista, cf. Zeller, Die Philoso phi e der Griechen , 1963, II, 2, p.182, n.5. O estoicismo combater á violentame nte essa tese aristot élica do caráter instrumental daólgica, que lhe recusa um luga r no sistema do saber, e retomar á a divisão xenocrática, cf. Goldschmidt, “Le système d’Aristote”, 1958-59, curso in édito, p.22-7; no mesmo curso, o autor procede a uma sucinta exposição crítica das principais interpreta ções modernas da quest ão.
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cientificidade de quanto se nos afigurarífico cient e estruturado segundo as exigências da doutrina anal ítica da ciência. Seé correto dizer que a 23 ciência, sempre verdadeira, ãonpode ser despersuadida pelo discurso, o que nos garantir á, entretanto, contra a pretens ão indevida de atribuir uma tal natureza a conhecimentos sujeitos a uma eventual despersuasão, por parte de um discurso ítico cr que venha desvendar-lhes as insuficiências e operar sua desmistifica ção? Seé infalível a inteligência dos princípios, se eles por si ós sfazeméf,24 como assegurar-nos, entretanto, contra a falsidade das evid ências enganosas, contra os fantasmas de pretensas intui ções? Afinal, é o próprio Aristóteles que nos põe em guarda contra as ilusões da cientificidade aparente. Com efeito, vimo-lo, ao denunciar os erros contra“catolicidade a ”,25 mostrar-nos como fatores ed ordem contingente, provindos dasópr prias condições de elabora ção do processo de conhecimento, podem contribuir para que um conhecimento a que falta a universalidade ópria pr à ciência assuma as apar ências 26 da universalidade. As vicissitudes da forma ção do conhecimento científico pareceram, em verdade, advertir -nos contra uma cega confiança em que esteja o discursonossa de ci ência definitivamente a salvo de reformulações que, oportunamente, o corrijam. E, no seu mesmo início, buscavam os Segund os Anal í ticos validar a defini ção de ciência que propunham, em recorrendo à coincidência de pontos de vista entre os que efetivamente possuem um saber cient ífico e quantos, ãno o possuindo, pretendem possu í -lo, por jul gar conformar -seàquela defini ção 27 o seu“estado”, destarte testemunhandoãn o constituir a no ção correta da ci ência um ant ídoto infalível contra uma cientificidade ilusória. Nesse mesmo sentido, cabe relembrar íatica cr aristot élica contra 28 a teoria plat ônica doTimeu que explica as transforma ções mútuas dos 23 24 25 26 27 28
Cf., acima, II, 2.4 e n.58. Cf., acima, VI, 1.1 e n.13; VI, 1.4 e n.76; VI, 3.4 e n.311. Cf., acima, III, 3.1 a III, 3.3. Cf., acima, VI, 3.4. Cf., acima, I, 2.1. c d Cf. T im ., 53 c seg., part. 56 -7 .
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29 elementos, resolvendo-os emângulos tri elementares: tais pensadores, falando a respeito dos fen ômenos, propõem enunciados queãno concordam com os fen ômenos e“dissoé causa o assumirem incorretamente os primeiros princ ípios”30 e quererem tudo reduzir acertas
opiniões determinadas, às quais de tal modo se apegam que se assemelham aos que, nas discuss ões, “montam guarda em torno de suas posições”. Acontece, assim, que, crentes de que possuem prin c í pios verd adeiros , admitem qualquer conseq üência que dos princ ípios decorra: “como se algunsãno se devessem julgar pelos seus resultados e, sobretudo, pelo seu fim( ). Ora, o fim da êcinciapoi é tica é a obra produzida, o daísica f é o que, de modo sempre dominante, se manifesta fenomenicamente à percepção sensível ( 31
)”. Não se poderia melhor dizer quanto de precariedade pode insinuar-se na tarefa de apreens ão das verdades primeidogma ras das ci ências; nem melhor denunciar o tismo inco nseq üente dos que preferem renunciar à evidência da observação e da experiência para defender, a qualquer pre ço, as teses que derivam da aceita ção de certos postulados primeiro s cujaverdade julgada infal ível se não aceita pôr em dúvida. Aos olhos de Aristóteles, por ém, vê-se como o desmentido oposto pelos ô fen menosà doutrinaé indício suficiente de que se deve modestamente retomar o caminho da investiga ção e reconhecer a ãnocientificidade do que se nos afigurara cient ífico, a não-intuitividade do que nos parecera o objeto de uma intelig ência luminosa.No domínio das coisas físicas, esse modo inferior deconhecimento queé a sensação32 retoma, assim, uma nova import ância, ao converter-se em u III, 7, 306a1 seg. 29 Cf. C é a 30 Cé u III, 7, 306 7-8. Do mesmo modo, no tratado Da Gera ção e d o Perecimento , o filósofo opõe os que se familiarizam com os fenômenos e são, por isso, capazes de assumir adequadamente os princípios aos que, partindo de uma multiplicidade de discursos ( ), mas desconsiderando os fatos, pronunciam-se facilmente, ós ap um pequeno n úmero de observa ções, destarte evidenciando a diferen ça existente entre proceder “fisicamente” () e proceder“logicamente” () no exame de uma quest ão, cf.Ger . e a Per. I, 2, 316 6-11. Sobre a significa ção da argumenta ção “lógica”, cf., acima, cap.III, n.141. a 31 Cé u III, 7, 306 14-7. 32 Cf., acima, VI, 1.3.
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critério negativo de aferimento da cientif icidade de uma doutrina. Sob esse prisma, opondo, ent ão, os fenômenos ao discurso da teoria, também o tratadoDa Gera ção d os Anima is tomará decididamente o partido dos primeiros; com efeito, tendo exposto oque lhe parece ser o processo de gera que apontava a dição das abelhas ao mesmo tempo 33 ficuldade em estabelecer corretamente a verdade dos fatos, conclui 34 o filósofo, mostrando como sua descri rção se manifesta em confo midade tanto com as exig o ências do discurso da teoria quanto com que parece seros fatos da experi ência; entretanto, reconhece que tais fatos não foram ainda suficientementeapreendidos e acrescenta: “mas, se um dia forem apreendidos, dever-seá, então, confiar mais na sensação que nos discursos( ) e, 35
nos discursos, se mostrarem coisas que se acordem com os ”fen . ômenos Assim, de um modo que poderia parecer paradoxal, em face da doutrina da inteligência dos princípios que estudamos no cap ítulo precedente,36 surge-nos Aristóteles como o adversário tenaz do “logicismo”, eternamente desconfiado dos embustes do , sempre precavido contra os poss íveis desmandos da “imaginação” filosófica, sofisticamente dissimulada sob as apar ências do conhecimento intuitivo. Combatendo, na Fí sica , o argumento que pretende provar haver em ato realidades infinitas, porãn o haver limite ao nosso po37 der de pens á-las, responde o fil ósofo que“é absurdo confiar no pensamento ”,38 projetando, sem mais, nasóprias pr coisas, as figuras que ele engendra. E, nos mesmos Segund os Ana l í ticos , encontramos, junto 33 Cf. Ger. An im . III, 10 (todo o capítulo). 34 Cf. ibidem, 760b27 seg. 35 Ibidem, l. 30-3. O modelo extremo do divórcio entre a realidade e o discurso é fornecido ao filósofo pelo eleatismo que, desprezando o testemunho percep da ção sensível e julgando dever seguir unicamente o , afirma a unidade e a imobilida de do Todo, conclus ões ( que pareceriam impor-se no plano do), discurso ), mas cuja o, se se Ger. eçã Per . I, 8, consideram os fatos ( é algo vizinho da dem ência, cf.aceita 325a13 seg. 36 Cf., acima, VI, 3.4. b 37 Cf. F ís . III, 4, 203 22-30. 38 Cf. F ís . III, 8, 208a14-5: .
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aos mesmos textos que exp õem a doutrina dos princ ípios, a expressão cuidadosa dessa desconfian ça: “É difícil saber se se conhece, ou não; é difícil, com efeito, saber se conhecemos a partir dos princ ípios 39 de cada coisa, ou ãno; o queé, precisamente, o conhecer ”. Não nos teles é difícil, portanto, compreender como se possa ter dito queóArist não provou nem ainfalibilidade nem, mesmo, a possibilidade do saber que diz competir ao 40 Mas outroé, por certo, o significado de sua posi ção. E, de fato, cumpre ã no esquecer o ponto de partida da doutrina aristotélica do saber cient ífico. Vimos, com efeito, que a medita ção do filósofo sobre a natureza do conhecimento cient ífico se exerceu sobre 41 as ciências matem áticas áj constituídas em seu tempo; saber científico conseguido pelos homens, puderammatem as áticas revelar-nos a natureza dae se nos tornaram, ao mesmo tempo, cau ção de que a ci ênciaé humanamente poss ível.42 E não é de admirar que tenha sido no dom ínio matemático que o conhecimento humano se tornou, pela primeira vez, realmente epist êmico e que o saber matem ático tenha, por isso mesmo, podido oferecer-se paradigmati camente à reflexão analítica sobre a ci ência:é que as matem áticas são as mais 43 exatas dasêci ncias, na mesma medida em que ãosexatas as ci ências que não se ocupam de um substrato ( ’ ) que as que 44 se ocupam de um substrato e em que, de um modo geral, á tanto h mais exatidão quanto maior for a simplicidade das coisas a que o saber concerne, se o exato é o simples ( ).45 Por isso mesmo,é menos freqüente o paralogismo na esfera da matem ática que em outros a 39 Seg. Ana l . I, 9, 76 26-8. 40 Cf. Zeller, Die Philosoph ie der Griechen , 1963, II, 2, p. 236: “Bew iesen hat er aber freil ich w eder d ie Unfehlbarkeit noc h au ch nur d ie M öglichk eit dieses Wissens”. 41 Cf., acima, I, 2.3e n.109 a 116. 42 Cf., acima,I, 2.3e n.127 seg. a u III, 7, 306 43 Cf. C é 27-8; cf., tamb ém, Filebo , 56c seg. a 44 Cf. Seg. Ana l . I, 27, 8733-5; assim, a aritm éticaé mais exata que a harm ônica, cf., acima, II, 3.4 e n.96. 45 Cf. Met. , 3, 1078a9 seg.
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domínios,46 uma vez que as ambig üidades concernem sempre ao ter mo médio dos silogismos e os termos médios aos outros se ligam mediante rela ções que, nos silogismos matem áticos, se pod em ver,por assim dizer,pelo pensamento ( ), ao mesmo tempo que se dissimulam mais, nos discursos dial47 Desse modo, enquanto éticos. o método indutivo que pratica a argumenta ção dialética48 é chamado a desempenhar uma fun ção tanto mais importante quanto mais complexo é o objeto investigado, como nos dom ínios da ciência física e, sobretudo, nos dasêci ncias dahumana49 – nos quais, por esse mesmo motivo, corremos risco maior de deixar -nos seduzir pelas artimanhas do–, a simplicidade dos seres matem áticos dispensa a argumenta ção dialética propriamente dita, oferecendo -se, sem maiores obst áculos,ao conhecimento intuitivo , após uma indu ção relativa50 mente simplesimediata. e Uma intelig ência dos princ ípios, destarte, vem a ocorrer luminosa e infalível, numa evidência que se imp õe de modo irrecus ável. Se a matemática se constitui, ent ão, em campo privilegiado do exercício da raz ão humana, comprovando a sua compet ência para elevar-se à esfera da plena cientificidade, é inegável que a outros ramos do saber correspondem processos de investiga ção mais complexos e de variada dificuldade. Mas é inegável, também, ao contrário do que 51 se tem pretendido, que a perspectiva do ófil sofo permanece invariavelmente otimista : é que o homem habita os dom ínios da verdade, que
b 46 Cf. Seg. Ana l . I, 12, 77 27 seg. 47 ComColli,cujainterpreta ção desta passagem coincide com a nossa (cf.tradu sua ção, ad locum), fazemos sujeitos de (cf. ibidem, l. 31) as rela ções entre o termo médio e os termos maior e me nor, a que acaba de referir-se o tex to e ãno “a ambigüidade” ( ), a l. 28, como entendem Ross, Mure e Tricot (cf. suas interpreta ções, ad locum ). 48 Cf., acima, VI, 3.3. thode ..., 1939, p.281, n.1: 49 Cf. Rodier, Trait éd e l’âme II, p. 189,apud Le Blond,Logiqu e et m é “Un acte unique d ’abstraction suffità l’intellect pour d écouvrir dans un triangle sensible, les éléments nécessaires du triangle. Au contraire, lorsqu ’ il s’agit de concepts complexes, comme ceux de Physique la et de ’lÉtique, l e passage de ce qui est clair pour nouns à ce qui est clair en soi est loin ’ê dtre aussi facile ”. 50 Cf. Seg. Anal . I, 18, 81b2-5. 51 Como é o caso de Aubenque, cf., acima, II, 4.7 n.183; e cap.II, n.173, 187, 190, 206.
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ele possui como um todocujas partes ã no pode, inicialmente, corretamente apreend er,52 pela distância que espontaneamente se instaura entre o seu saber e oque é, por si mesmo e por natureza, mais conhecível.53 É que a investiga ção da verdadeé fácil e difícil, ao mes54 mo tempo; se ninguém é capaz de adequadamente atingi-la, tamb ém não podem todos falhar em rela ção a ela, mas cada um diz algo so bre a natureza das coisas e das pequenas contribui ções individuais algo grande e consider ável resulta para o seu conhecimento. Parece acontecer com a verdade, tomada como um todo e na sua generalidade o mesmo que com a porta do prov érbio, que ninguém erra.55 E se a dialética comparte com a ret órica, a capacidade de provar proposi ções 56 contraditórias e de concluir o sim e n oão, vimos também ser certo que isso contribui para que o verdadeiro e o fals o melhor se percebam.57 Suficientemente inclinados, por natureza, ao verdadeiro, no 58 mais das vezes os homens atingem a verdade, tanto mais porque, dentre as proposi ções contradit órias, as verdadeiras e as melhores ão, s sempre e em sentido absoluto, mais apropriadas aoínio racioc silog ístico 59 e mais capazes de persuas ão ( ). Desenvolvida a argumenta ção dialética, exploradas as conseq üências das teses contradit órias restará “escolher corretame nte uma delas ( 60 )”, escolha que depende de um bomnatural.“E isto
( ) concernenteà verdade, o ser capaz de escoé o bom natural lher corretamente o verdadeiro e de evitar o falso ”.61 Ora, a leitura das obras ísicas f e de ci ência“prática” do filósofo, por exemplo, informa-nos suficient emente de que ele pretende, ao menos 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61
Cf. Met. , 1, 993b6-7; acima, VI, 3.4 en.305. Cf., acima, II, 4.7. Cf. Met. , 1, com., 993a30 seg. Cf. ibidem, b4-5. Cf., acima, VI, 2.1 e n.118 e 119. Cf., acima,VI, 2.5 e n.219 seg. a Cf. Ret . I, 1, 1355 15-7. Cf. ibidem, l. 36-8. b Cf. Tóp . VIII, 14, 163 9 seg.; acima, VI, 2.5 en.218. Ibidem, l. 13-5.
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no que concerne acertos problemas fundamentais de seus dom ínios, ter levado a bom ter mo a explora ção dialética preliminar e ter sido capaz de efetuar , com correção, a escolha do verdadeiro, mediante uma visão noética dos princípios. O que significa dizer que oófil sofo creu possível, mesmo fora da esfera matemática, instaurar, gra ças ao uso do instrumental apropriado, as condi ções de possibilidade de um saber que se constitu ci exposta nos ísse segundo as exig ências da doutrina da ência Anal í ticos . No uso proped êutico de sua“lógica”, Aristóteles não viu, por certo, a garantia infal ível de um êxito absoluto, nem julgou tampouco fossem as evid ências subjetivas que acompanham pretensas as intui ções dos princ ípios imediatos crit érios irrecus áveis da posse da verdade buscada; sob esse prisma, é lícito dizer que, do mesmo modo comoãPlat o, nenhuma garantia absol uta de que, nu não nos oferece Arist ma ciróteles cunstância particular determinada, se esteja efetivamente configurando o funcionamento adequado de umério critde verdade. Mas nem por isso se persuadiu menos de que,çgra as aos trabalhos preliminares da natureza indutivo-dial ética, orientadas pela doutrina daência, ci era possível superar a servidão natural do conhecimento humano. E quis deixar-nos, n ão apenas a teoria mas, tamb ém, exemplos concretos da 62 prática dessa supera ção. Mas deixou-nos, tamb ém, advertidos de que “não se deve buscar de modo semelhante a exatid ão em todos os discursos ”,63 mas procurar adequar, em cada caso, o conhecimento à natureza da mat éria, ( ) buscar a exa“porqueé próprio do homem cultivado tidão, em cada g ênero, tanto quanto a natureza da coisa o admite ”,64 contentando-nos, por exemplo, se falamos de coisa apenas freq üentes e partimos de proposi ções freq üentes , em ter conclus ões que compar65 tilhem dessa mesma natureza. Eis, tamb ém, por que, no que concerne ao objeto daPolítica , aceitamos que se mostre a verdade somente “de 62 63 64 65
Cf., acima, cap.II, n.187. Ét. Nic. I, 3, 1094b12-3. Ibidem, l. 23-5. Cf. ibidem, 1.21-2; acima,III, 4.6 en.230; IV, 5.3 en.352.
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maneira grosseira e esquem ática”,66 assim como cremosãot descabido aceitar razões meramente persuasivas do matem ático quanto pedir 67 demonstrações ao retórico. Do mesmo modo, conhecendo que se não pode exigir o rigor matem ático nas disciplinas queãonconcernem a objetos sem mat todo matemático éria, compreenderemos que oém não se aplicaà ciência física, na medida em que cont ém matéria a na68 tureza ( ) inteira. E, em cada caso, buscaremos, sempre, chegar aos princípios da maneira que lhes for naturalmente mais apropriada.69 Mas guardar-nos-emos sempre , também, de tentar o conhecimento científico de um objeto sem o conhecimentoépr vio da maneira pela qual seãh o de acolher as verdades que lhe concernem: somente 70 a ignorância dosAnal íticos justificaria um tal empreendimento, visto queé realmente absurdo buscar umaência ci (), ao mesmo tempo que se ainda busca determinar seu modo pr óprio de cientificidade ( ).71 Por outro lado, diante de quest ões particularmente complexas, saberemos limitar -nos a dizer o que nos parece verdadeiro, julgando valer como pudor, antes que como temeridade, o zelo daquele que, impelido pela sede da filosofia, se contenta de pequenos resultados, quando se enfr entam as m áximas aporias.72 E, tendo delimitado as solu ções conformeà nossa capacidade, utiliz á73 las-emos decididamente como resultados estabelecidos. Talé a significa aristot lica da ciênção, tal a efic ácia da doutrina cia, se as aferimos pelos termosmcoque o pr óprio filósofoé as tematiza. Coerente e estruturada, conforme temos pretens a ão de havê-la apresentado, ela integra uma vis ão sistemática e unitária das coisas e do saber que as diz econhece. Indissoci ável dessa visão e da filosofia que a exprime, ela desafiou osésculos que a comentaram, utilizaram ou 66 67 68 69 70 71 72 73
b Cf. Ét. Nic . I, 3, 1094 19-21. Cf. ibidem, l. 25-7. Cf. Met. , 3, 995a14-7. Cf. Ét. Nic . I, 7, 1098b3-5. Cf., acima, VI, 1.1 e n.4. Cf. Met. , 3, 995a12-4. b u II, 12, com., 291 Cf. C é 24-9. b u II, 13, 29434-295a2. Cf. Cé
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combateram, marco primeiro dopensamento epistemológico. Ela apoiou-se, como vimos, no saber matem ático constitu ído e nutriu-se do prestígio de sua apoditicidade, interpretando-o como desvelamento da verdade e do ser. Eis por que devia oósofo fil repelir quantas doutrinas contradissessem os resultados das matem áticas e proclamar a injustiça de qualquer veleidade de recus á-los, se não se podiam recusar com raz teses que lhes eram funões mais convincentes que as óhip 74 damentos. Nem creu o fil ósofo que tais raz ões pudessem propor-se. O século XIX as prop ôs.
a 74 Cf. C é u III, 1, 299 1-6.
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