Giovanni Alves
Dimensões da Precarização do Trabalho Ensaios de Sociologia do Trabalho
Projeto Editorial Praxis A Condição de Proletariedade: A precariedade do trabalho no capitalismo global Giovanni Alves Dilemas da globalização: O Brasil e a mundialização do capital Francisco Luiz Corsi (Org.) Dimensões da Crise do Capitalismo Global Giovanni Alves (Org.) Dimensões da reestruturação produtiva: Ensaios de sociologia do trabalho Giovanni Alves Economia, Sociedade e Relações Internacionais: Perspectivas do Capitalismo Global Giovanni Alves (Org.) Lukács e o Século XXI: Trabalho, Estranhamento e Capitalismo Manipulatório Giovanni Alves Tela crítica - A Metodologia Giovanni Alves Teoria da Dependência e Desenvolvimento do Capitalismo na América Latina Adrián Sotelo Valencia
SÉRIE TELA CRÍTICA Análise Crítica dos filmes: Uma odisséia no espaço - v. 14 A agenda - v. 15 A classe operária vai ao paraíso - v. 13 À Nós a Liberdade - v. 03 A Terra Treme - v. 04 Beleza Americana - v. 07 Eles não usam black-tie - v. 10 Ladrões de Bicicleta - v. 05 Laranja mecanica - v. 17 Metrópolis - v. 02 Meu Tio - v. 18 Morte de um caixeiro viajante - v. 19 O adversário - v. 20 O Corte - v. 11 O invasor - v. 21 O que você faria? - v. 12 O sucesso a qualquer preço - v. 22 Pão e Rosas - v. 09 Salário do Medo - v. 06 Segunda-Feira ao Sol - v. 08 Tempos Modernos - v. 01 Vinhas da Ira - v. 16
Trabalho e cinema: O mundo do trabalho através do cinema vol 1, 2 e 3 Giovanni Alves Trabalho e Capitalismo Global - O Mundo do Trabalho Através do Cinema de Animação Cláudio Pinto Trabalho, Educação e Reprodução Social Eraldo Leme Batista e Henrique Novaes
Conheça o Projeto Editorial Praxis: www.canal6editora.com.br Pedidos pelo e-mail
[email protected]
Giovanni Alves
Dimensões da Precarização do Trabalho Ensaios de Sociologia do Trabalho
Projeto Editorial Praxis
1ª edição 2013 Bauru, SP
Copyright do Autor, 2013 Coordenador do Projeto Editorial Praxis
Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO Prof. Dr. Jorge Machado – USP Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE
A979d
Alves, Giovanni Dimensões da Precarização do Trabalho: Ensaios de Sociologia do Trabalho / Giovanni Alves. – Bauru: Canal 6, 2013. 240 p. ; 23 cm. (Projeto Editorial Praxis) ISBN 978-85-7917-223-6 1. Trabalho. 2. Precarização. 3. Sociologia do Trabalho. 4. Brasil. I. Alves, Giovanni. II. Título. CDD: 331.0981
Projeto Editorial Praxis Free Press is Underground Press www.canal6editora.com.br Impresso no Brasil/Printed in Brazil 2012
SUMÁRIO
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 PARTE 1 - O sistema do capital no século XXI Capítulo 1 Maquinofatura: A nova forma social da produção do capital na era do capitalismo manipulatório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Capítulo 2 Crise de valorização e desmedida do capital: A natureza da crise estrutural do capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Capítulo 3 A condição de proletariedade Por uma analítica existencial da classe do proletariado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 PARTE 2 - A precarização estrutural do trabalho Capítulo 4 O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem-que-trabalha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
5
Capítulo 5 Produção do capital e a degradação da pessoa humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 Capítulo 6 Precarização do trabalho e saúde do trabalhador no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Capítulo 7 A precarização do trabalho no Brasil na década de 2000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Capítulo 8 Trabalho docente e precarização do homem-que-trabalha . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 PARTE 3 - O enigma do precariado Capítulo 9 O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital . . . . . . . . . 195 Capítulo 10 Capitalismo global, proletariedade e os limites da indignação . . . . . . . . . . . . . . . 219 Capítulo 11 A Educação do precariado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
6
APRESENTAÇÃO
O livro “Dimensões da Precarização do Trabalho – Ensaios de Sociologia do Trabalho” compõe, com outros dois livros - “Dimensões da Globalização: O capital e suas contradições” (2001) e “Dimensões da Reestruturação Produtiva” (2007) - um amplo panorama crítico da civilização do capital na primeira década do século XXI. Este livro é composto por um conjunto de ensaios que expõe uma nova abordagem da precarização estrutural do trabalho. Primeiro, por situá-la no interior da nova temporalidade histórica do capital caracterizada pela vigência de uma nova forma social de produção do capital, que nós denominamos de “maquinofatura”; e pelos constrangimentos da crise estrutural de valorização do capital (é o que discutimos, por exemplo, no capítulo 2). Deste modo, a precarização estrutural do trabalho é um elemento compositivo da totalidade concreto do sistema mundial do capital e suas contradições. Segundo, destacamos um aspecto da precarização do trabalho: a precarização do homem-que-trabalha que expõe uma nova dimensão de degradação do homem como ser genérico nas condições da crise estrutural do capital. O adoecimento laboral em suas múltiplas manifestações sócio-epidemiológicas é expressão da precarização do homem-que-trabalha. O tema da saúde do trabalhador, ou melhor, da saúde do homem-que-trabalha, é o tema da crise do trabalho vivo que caracteriza a ordem burguesa hipertardia. Mais do que nunca, torna-se necessário salientar esta nova forma de precarização do trabalho que perpassa as experiências vividas de trabalhadores e tra-
7
balhadoras na sua vida cotidiana e que diz respeito a estrutura da própria práxis humana. A desefetivação do ser genérico do homem implica a corrosão da capacidade humana de “negação da negação”. É a forma radical de dominação do capital como sistema sociometabólico. Este é um livro de ensaios críticos que provocam o leitor com um conjunto de novos conceitos que criamos para expressar as novas condições da produção e reprodução social do capital. Torna-se fundamental ir além dos autores, inclusive do próprio Marx; ir além no sentido de “aufhebung”, isto é, superar/conservando, criando e reinventando categorias capazes de dar visibilidade conceitual às múltiplas determinações da forma concreta de ser do mundo do capital em sua etapa hipertardia. O marxismo fossiliza-se na medida em que adormecemos com os autores (Marx, Gramsci, Lukács e Meszáros) e caímos num sono dogmático. Mais do que nunca, os intelectuais radicais são intimados a ter imaginação dialética rompendo com o mentalidade dogmática e sectária que caracterizou o marxismo no século XX. Neste livro de ensaios críticos apresentamos os conceitos de maquinofatura, precarização do homem-que-trabalha, nova precariedade salarial, experiências expectantes; crise do trabalho vivo como redução do trabalho vivo a força de trabalho e suas manifestações contingentes: crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de autoreferência pessoal; dessubjetivação de classe, “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha, condição de proletariedade (categoria exposta por nós, pela primeira vez, no livro homônimo publicado em 2009), trabalho ideológico e a redefinição dos conceitos de crise estrutural de valorização e conceito de precariado. Enfim, apresentamos, a título ensaístico, um sistema categorial novo para tratar do novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI. Mas os novos conceitos são elementos de provocação heurística, categorizações propositadamente precárias no sentido de que exigem lapidações criticas necessárias e recorrentes; os novos conceitos são recursos heurísticos que utilizamos para clarear novos problemas que emergem com a temporalidade histórica da crise estrutural do capital. O próprio conceito de crise estrutural do capital é redefinido para que possamos situar de modo radical a verdadeira tarefa epistemológica e política do século XXI: o resgate integral do pensamento critico e radical capaz de criar as condições sociometabólicas para a “negação da negação”. Hic Rhodus, hic salta!
8
Finalmente, é importante salientar que o problema da precarização do homem-que-trabalha é o problema do estranhamento no capitalismo global, isto é, o problema do completo esvaziamento dos indivíduos universalmente desenvolvidos cujas relações sociais, enquanto relações que lhe são próprias e comuns, se contrapoēm a eles como potências independentes (o fetichismo social). Na verdade, o capitalismo global explicita à exaustão hoje, o problema do estranhamento que contém em seu cerne a candente contradição entre a universalidade da alienação dos indivíduos para consigo mesmo e para com os outros (o fetichismo social) e a universalidade e a generalidade das suas relações, capacidades e faculdades que tornam possível esta individualidade (processo civilizatório). A solução necessária e urgente é o controle social da sociedade pelos produtores organizados, isto é, a democratização radical da sociedade.
Giovanni Alves Marília, 22 de fevereiro de 2013
9
PARTE I
O SISTEMA DO CAPITAL NO SÉCULO XXI
Capítulo 1
Maquinofatura A nova forma social da produção do capital na era do capitalismo manipulatório
A
o tratar da produção da mais-valia relativa no capítulo 13 da Seção IV do livro I de O Capital, Karl Marx nos apresenta as formas sociais da produção do capital: manufatura e grande indústria. Podemos considerá-las formas sócio-históricas no interior das quais se desenvolve o modo de produção capitalista. Entretanto, manufatura e grande indústria não são apenas categorias críticas da economia política do capital, mas categorias sociológicas que implicam um determinado modo de controle sociometabólico que emerge com a civilização moderna do capital. Cada forma social de produção do capital exposta por Karl Marx corresponde a um modo de subsunção da força de trabalho ao capital adequado ao modo de produção de mais-valia propriamente dito, que, por conseguinte, diz respeito a uma determinada dialética histórica do metabolismo social. Por exemplo: enquanto a subsunção formal do trabalho ao capital corresponde à manufatura, a subsunção real do trabalho ao capital corresponde à grande indústria. Na verdade, é com a grande indústria que emerge o modo de produção capitalista propriamente dito. Para ir além da mera crítica da economia política, desvelando em seu interior as dimensões sociológicas propriamente ditas do movimento do capital, deve-se apreender, em suas múltiplas determinações, o padrão sociometabólico que diz respeito a cada modo de produção de mais-valia ou modo de subsunção da força de trabalho ao capital.
13
A lógica histórica de Marx exposta em O Capital é uma lógica dialética, o que significa que o desenvolvimento das formas sociais no interior das quais ocorre a produção do capital não é meramente linear e contínua. O que Marx expõe na Seção IV de O Capital não são apenas etapas da produção do capital, onde, por exemplo, a grande indústria se seguiria à manufatura de forma literalmente contínua e consecutiva. Sob a grande indústria, embora a manufatura não esteja mais posta como forma predominante da produção social do capital, ela está pressuposta – como pressuposto negado. A rigor, no plano lógico (e ontológico), a grande indústria contém a manufatura como pressuposto negado. Ou ainda: a grande indústria conserva a manufatura num patamar superior. Desse modo, Marx utiliza na Seção IV do Livro 1 de O Capital um conjunto de pares dialéticos que explicam o desenvolvimento histórico da civilização moderna do capital. Por exemplo, mais-valia absoluta e mais-valia relativa; subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital; manufatura e grande indústria. Enquanto pares dialéticos, eles incorporam em seu movimento a lógica categorial das determinações reflexivas da sintaxe dialética (posição e pressuposição) (FAUSTO, 1989). Portanto, podemos apreender, no plano da essência, o movimento contraditório da produção do capital a partir das categorias de modo de produção capitalista e formas históricas de produção social do capital, constituída pela manufatura, grande indústria e, como iremos sugerir, maquinofatura, com seus respectivos modos de controle do metabolismo social. Tratar dos modos de controle do metabolismo social significa investigar, por um lado, as relações sociais de produção do homem com a Natureza, isto é, do homem com outros homens e do homem consigo mesmo; e, por outro lado, investigar a relação do homem com a técnica como elemento mediador ineliminável dessa relação homem-natureza.
1. Trabalho como metabolismo social Diz Marx, logo no início do capítulo 13 do livro I de O Capital: “O revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho” (MARX, 1996).
14
Nessa pequena e interessante passagem, Marx salienta os “pontos de partida” dos revolucionamentos do modo de produção capitalista. Trata-se de uma colocação ontológica da forma de ser da produção social do capital. Como Marx e Engels salientaram no “Manifesto Comunista”, de 1848, o modo de produção capitalista é caracterizado pelo constante revolucionamento das condições de produção social que, por conseguinte, revoluciona a sociedade. Dizem eles: “A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” (MARX e ENGELS, 1998). A ânsia de revolucionar o modo de produção do capital é um traço ontogenético da burguesia como classe social. Como os próprios autores observam, numa passagem anterior, “a própria burguesia é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circulação”. Ou ainda: “A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário” (MARX e ENGELS, 1998). A burguesia como persona do capital revoluciona o modo de produção e de circulação, isto é, “os instrumentos de produção, e por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”. Ao dizer “todas as relações sociais”, Marx e Engels salientam que o revolucionamento do modo de produção capitalista significa revolucionar a totalidade social, isto é, o modo de controle do metabolismo social. Desse modo, as categorias manufatura e grande indústria não implicam apenas o revolucionamento do modo de produção de mercadorias propriamente dito, mas sim o revolucionamento do modo de controle do metabolismo social. O que significa que têm um caráter radicalmente sociológico na medida em que, ao revolucionar o modo de produção propriamente dito, o capital revoluciona também as relações sociais do homem com a Natureza – tanto natureza como natura naturans (“natureza criando”, natureza como atividade vital dos homens mediada pelas relações sociais do homem com outros homens e do homem consigo mesmo); ou natureza como natura naturata (“natureza criada”, natureza como “corpo inorgânico do homem”, como diria Marx). Noutros termos, diríamos que, ao revolucionar o modo de produção propriamente dito, o capital revoluciona o processo de trabalho, que, como observa Marx no capítulo 5 da Seção III do livro 1 de O Capital, é “um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza.”. Nesse caso, Natureza é, para Marx,
15
matéria natural como uma força natural. A própria corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão do homem – isto é, o homem em si e para si – pertencem às forças naturais que o homem tem que por em movimento a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Nos Manuscritos de 1844, Marx observou: “O homem vive da natureza, significa: a natureza é o seu corpo, com o qual tem que permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interligada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interligada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (MARX, 2004). Portanto, ao dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, Marx quer nos dizer que o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza externa a ele como matéria natural, isto é, o objeto e seus meios de trabalho; e entre o homem e a Natureza interna a ele, a natureza que o constitui como homem – sua vida física e mental que permitem que ele exerça uma atividade orientada a um fim; tendo em vista que o homem é um animal social, a vida física e mental do homem implica, por conseguinte, um processo metabólico entre o homem e si mesmo, isto é, o homem e outros homens e o homem consigo mesmo (o que expõe, desse modo, o caráter sociometabólico do trabalho como atividade vital). Na medida em que a vida física e mental do homem-que-trabalha está interligada com a Natureza externa e interna – tal como a descrevemos acima – o revolucionamento das formas de produção social, isto é, formas de produção de mais-valia, significam também o revolucionamento radical das instâncias de reprodução social. Em O Capital, Marx diz: “Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza [o jovem Marx diria: “sua vida física e mental”-GA]. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio” (MARX, 2004). Desse modo, a categoria trabalho não diz respeito apenas à produção propriamente dita, isto é, o local da exploração ou produção de mais-valia: o local de trabalho propriamente dito. Ela implica a própria atividade vital ou processo entre o homem e a Natureza, compreendida como (1) a matéria natural que ele se apropria para dar-lhe uma forma útil para sua própria vida e (2) a sua própria vida física e mental (corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão), elementos postos não apenas no interior do território da produção propriamente dita (por exemplo, a fábrica, a loja ou o escritório), mas também nas instâncias da reprodução social.
16
O trabalho como um processo metabólico entre o homem e a Natureza implica regulação e controle social historicamente determinados. O modo de produção capitalista é um modo de organização do processo de trabalho, isto é, um modo de regulação e controle social desse processo metabólico entre o homem e a Natureza caracterizado pelo trabalho alienado/estranhado [Entfremdung Arbeit]. Ao revolucionar o modo de produção capitalista, o capital revoluciona os elementos do processo de trabalho que são (1) a atividade orientada a um fim – no caso do modo de produção capitalista, a atividade vital estranhada, tendo em vista que ela possui um telos estranhado; (2) seu objeto e (3) seus meios técnicos (ou tecnológicos) que aparecem como capital propriamente dito ou condições objetivas alienadas do processo de produção de mais-valia. A sociedade do capital ou sociedade moderna é a sociedade do trabalho alienado/estranhado. A organização social das atividades humanas, seus objetos e meios, isto é, o modo de controle do metabolismo social, incorporam o caráter do trabalho alienado. Na medida em que a atividade vital do homem ou a produção da sua vida física e mental imprescindível para a produção da mais-valia relativa implicam instâncias sociais que operam, por exemplo, no território do consumo e lazer, o revolucionamento do modo de produção implica cada vez mais o revolucionamento do modo de vida, isto é, o revolucionamento de todas as relações sociais (o Marx de 1844 diria: o revolucionamento da “vida do gênero” [Gattungsleben] na sua forma abstrata e alienada; diz ele: "A vida mesma aparece só como meio de vida” – eis o verdadeiro sentido do trabalho assalariado).
Modo de Produção
Modo de Vida
Essa é uma característica ontológica da sociedade moderna do capital como sociedade do trabalho alienado. Ao revolucionar o modo de produção, revoluciona cada vez mais as condições sociais. Portanto, as categorias de manufatura e grande indústria são categorias sociológicas que contêm, em si e para si, um modo de vida social (o comunista Antonio Gramsci, em Americanismo e fordismo, explicitou, com vigor genial, as derivações ontometodológicas da constatação marxiana: trabalho e vida estão interligados) (GRAMISCI, 1984).
17
Portanto, o desenvolvimento do processo de produção do capital é o movimento de explicitação sucessiva da interligação entre vida e produção de valor. É a afirmação candente do processo de trabalho como um processo entre o homem e a Natureza – Natureza que não se reduz à matéria natural – objetos e meios, mas cada vez mais, Natureza que incorpora a vida física e mental do homem-que-trabalha. O que significa dizer que o capital em processo implica cada vez mais a dimensão da atividade vital no processo de produção de valor. Aprofunda-se, na ótica do Marx de 1844, a alienação da vida do gênero. Eis, portanto, o sentido do conceito de maquinofatura como terceira forma social da produção do capital. É o que veremos a seguir.
2. Manufatura e grande indústria Marx diz no início do capítulo 13 do livro I de O Capital: “O revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho” (MARX, 1986). O ponto de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista na manufatura é a força de trabalho. O ponto de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista na grande indústria é o meio de trabalho. Portanto, a cada forma social da produção do capital (manufatura e grande indústria) corresponde um “ponto de partida” desse revolucionamento do modo de produção capitalista com implicações estruturais nas relações sociais de produção da vida social salientadas acima (homem-natureza/homem-técnica). Na manufatura, foi o revolucionamento da força de trabalho que caracterizou o desenvolvimento daquela forma social de produção do capital. Por exemplo, o capital em processo criou, por meio da expropriação dos camponeses, a massa de força de trabalho a disposição das manufaturas em ascensão no século XVIII. Por outro lado, a manufatura incorporou a divisão do trabalho no processo produtivo, degradando as habilidades artesanais da força de trabalho, isto é, sua relação com o instrumento de trabalho herdado do modo de produção anterior. Desse modo, o capital criou a força de trabalho como mercadoria que nas condições da manufatura apareceu como trabalhador parcelar. Em vez de intervir em todas as etapas da produção de mercadoria, o operário manufatureiro é obrigado a intervir apenas numa parte do processo de trabalho.
18
O trabalhador parcelar é alienado do seu ofício e, por conseguinte, do seu espaço domiciliar de produção. Na medida em que concentrou no território da manufatura a força de trabalho alienada de seus meios de produção, a manufatura reordenou o espaço da produção como espaço de cooperação e território do controle despótico do capital. Antes, o camponês e o artesão exerciam o trabalho cotidiano e seu ofício no espaço da gleba e da oficina domiciliar, respectivamente. Com a manufatura, que concentra numa mesma dimensão territorial, a massa de operários, a lógica do capital subsume formalmente o trabalhador assalariado por meio do controle da força de trabalho como mercadoria. O trabalho vivo é reconfigurado no novo espaço territorial da produção do capital como trabalhador coletivo constituído por um complexo de trabalhadores parcelares. A reordenação territorial do espaço do trabalho acompanha a instauração da divisão manufatureira do trabalho que aliena o operário artesanal do seu ofício. Nos primeiros séculos do capitalismo moderno, a manufatura tornou-se o novo espaço-tempo do modo de produção capitalista em ascensão. Mas o trabalhador assalariado está subsumido apenas formalmente ao capital na medida em que preserva habilidades manuais oriundas do ofício artesanal. Ele ainda mantém uma relação efetiva com o meio de trabalho, embora tenha se tornado trabalhador parcelar. Foi nas condições históricas da manufatura capitalista que se instaurou a problemática moderna do adoecimento laboral. Por exemplo, foi nessa época que o médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714) criou a Medicina Ocupacional. Foi o seu livro sobre doenças ocupacionais intitulado De Morbis Artificum Diatriba (Doenças do Trabalho) que relacionava os riscos à saúde ocasionados por produtos químicos, poeira, metais e outros agentes encontrados por operários em 52 ocupações, que se tornou um dos trabalhos pioneiros e base da medicina ocupacional. Portanto, a produção do capital em ascensão histórica significou a produção de corpos-mentes doentes. O que significa que o revolucionamento da força de trabalho como ponto de partida da manufatura significou a degradação da vida física e mental do homem-que-trabalha. Com a manufatura, alterou radicalmente o espaço-tempo da produção de mercadorias, alterando a relação tempo de trabalho/tempo de vida dos trabalhadores assalariados. A produção do capital sob as condições do predomínio da mais-valia absoluta significou que as jornadas de trabalho eram extensas. Portanto, a concentração territorial, divisão manufatureira do trabalho e redução do tempo de vida a tempo de trabalho eram elementos compositivos do revolucionamento da força de trabalho sob a manufatura que visavam aumentar
19
o controle da força de trabalho com a finalidade de extrair mais-valia absoluta. O princípio da manufatura que se incorporou na lógica de desenvolvimento capitalista é o princípio do controle laboral por meio da reorganização territorial (o capital constitui o trabalhador coletivo), reorganização das habilidades manuais (o capital constitui um novo nexo psicofísico do trabalho) e reordenamento do tempo de vida reduzindo-o a tempo de trabalho. Entretanto, o “modelo manufatureiro” não alterou radicalmente a relação homem-técnica. O homem ainda dominava a técnica. O meio de trabalho era meio de trabalho no sentido do instrumento apreclar, extensão do homem. Por outro lado, a subsunção formal do trabalho ao capital significava que a produção de mais-valia absoluta restringia-se aos locais das manufaturas e a relação-capital não se tornara totalidade social. É importante salientar que o princípio da cooperação e manufatura – o revolucionamento da força de trabalho – é um elemento compositivo da ontologia da produção do capital. Mesmo com a grande indústria, cujo princípio é o revolucionamento do meio de trabalho, o princípio da divisão do trabalho e manufatura repõe-se no sentido da subsunção formal do trabalho vivo à lógica territorial do capital. Ao ser negado pela grande indústria, a manufatura apenas elevou-se a um estágio superior de desenvolvimento. Com a grande indústria, a produção do capital repõe o controle laboral integrando-o ao sistema de máquinas. Na grande indústria, o ponto de partida do revolucionamento é o meio de trabalho, ou seja, a técnica como tecnologia. É um momento de subsunção real do trabalho vivo ao capital como trabalho morto que se impõe ao homem-que-trabalha. Ao alterar radicalmente a relação homem-técnica, instaurando a forma-tecnologia, a grande indústria alterou a relação homem-Natureza, na medida em que, com o sistema de máquinas-ferramentas, aboliram-se as habilidades artesanais do operário, transformando-o num mero apêndice da maquinaria. Na verdade, a grande indústria desnudou o trabalhador assalariado. Tal como a manufatura, ela revolucionou a força de trabalho a partir do revolucionamento do meio de trabalho. Ao revolucionar o meio de trabalho, a grande indústria revolucionou a atividade vital do homem. Ao ser revolucionado, o meio de trabalho (o instrumento) se interverte em máquina-ferramenta e o homem interverte-se em mero apêndice do sistema de máquinas. A posição do homem como apêndice da máquina significou a vigência do adoecimento do corpo na epidemiologia laboral. A corporalidade viva torna-se apêndice da maquinaria. A máquina impõe uma racionalização da produção e
20
do trabalho (o taylorismo é expressão suprema do princípio ideológico da grande indústria). Apesar disso, como diz Gramsci, “o operário continua ´infelizmente´ homem, e inclusive, ele, durante o trabalho, pensa demais...” (GRAMSCI, 1984). A racionalização taylorista absorve o corpo, mas não a mente. O sistema de máquinas consome o homem como força natural – corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão. Ao contrário da manufatura, a técnica de produção da grande indústria expande-se para a totalidade social, imprimindo a sua marca na reprodução social. A modernidade do capital torna-se modernidade-máquina. O sistema de máquina coloniza a vida social, alterando a percepção espaço-tempo do homem moderno. Nas condições históricas da grande indústria instaura-se com plenitude a disputa tempo do trabalho estranhado versus “tempo livre”. A produção em massa impõe consumo de massa. O “tempo livre” interverte-se em tempo de consumo e lazer. Por isso, nas condições da produção da mais-valia relativa, a luta pela redução da jornada de trabalho tornou-se eixo político da luta de classes, inclusive no plano da consciência de classe contingente. Torna-se mais perceptível que o tempo é campo de desenvolvimento humano, como diria Marx; e, mais ainda, campo de disputa do capital. Tempo de vida e tempo de trabalho tornam-se equações fundantes do movimento do ser social da modernidade do capital.
3. A Maquinofatura Sob as condições da terceira modernidade do capital, constitui-se, como desdobramento da própria grande indústria, a terceira forma de produção do capital, que denominamos “maquinofatura”, onde a dialética homem-técnica e homem-natureza é revolucionada num patamar superior. O ponto de partida da maquinofatura não é o revolucionamento da força de trabalho (como na manufatura), nem o revolucionamento da técnica (como na grande indústria), mas sim o revolucionamento do homem-e-da-técnica, ou o revolucionamento da própria relação homem-técnica.
21
Formas de desenvolvimento do capital Manufatura
Força de Trabalho (Homem)
Grande Indústria
Meio de Trabalho (Técnica)
Maquinofatura
Homem + Técnica
Com a maquinofatura, é a relação homem-técnica que se coloca como ponto de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista. Na verdade, com a grande indústria, o homem incorporou-se à técnica como tecnologia. É o sentido da apendicização do homem como trabalho vivo à maquinaria. Trabalho morto subsume trabalho vivo. Apesar disso, o operário continua “infelizmente” homem. O homem é extensão problemática do sistema de máquinas. Ele, durante o trabalho, pensa. Incapaz de impedir que o homem-apêndice pense, o capital-máquina visa constituir um novo nexo psicofísico e metabolismo social que permita a constituição de homens com pensamentos mais conformistas. Portanto, com a maquinofatura, constitui-se o homo tecnologicus (eis o sentido do conceito de ciberhominização). O termo “maquinofatura” que utilizamos não diz respeito ao conceito utilizado, por exemplo, por Raphael Kaplinski,1 que o considera meramente um modelo de organização industrial; por outro lado, outros autores se aproximaram do sentido do conceito de maquinofatura tal como o utilizamos, como, por exemplo, Ruy Fausto, com o conceito de “pós-grande indústria” (FAUSTO, 1989); Francisco Tei1
Raphael Kaplinsky no texto "Industrial restructuring in LDCs: the role of information technology", apresentado no Seminário internacional "Padrões Tecnológicos e Processo de Trabalho - Comparações internacionais", Convênio USP/BID, São Paulo, em maio de 1989, fala da transição de um modelo organizacional do tipo "maquinofatura" para um modelo de tipo "sistemofatura"; nessa transição, mais que uma mera transformação da base técnica, de eletromecânica para micro-eletrônica, verificam-se mudanças organizacionais internas e externas à empresa. A alteração nos padrões de organização da produção vem associada à mudança das relações industriais e à tendência à cooperação no plano das relações interempresariais.
22
xeira, com “cooperação complexa” (TEIXEIRA e FREDERICO, 2008) e Fernando Haddad, com “super-grande indústria” (HADDAD, 1997). Na verdade, utilizamos o termo “maquinofatura” tendo em vista a junção das palavras “máquina” e “manufatura”. Com a maquinofatura, a forma-manufatura repõe-se no interior do sistema de máquinas. Tal como na manufatura, o ponto de partida do revolucionamento do modo de produção capitalista na maquinofatura é a força de trabalho. Entretanto, não apenas força de trabalho como mercadoria, mas a força de trabalho-subsumida-ao-sistema-de-máquinas. Isto é, trabalho vivo reduzida a força de trabalho nas condições históricas do capitalismo manipulatório. Desse modo, a maquinofatura, como a manufatura e a grande indústria, na ótica marxiana, não seria apenas um “modelo” de organização da produção de mercadorias, mas principalmente um modo de controle estranhado do metabolismo social. É uma forma de produção social no interior da qual ocorreria o desenvolvimento da produção do capital. A maquinofatura coloca um novo ponto de partida para o revolucionamento do modo de produção capitalista. Ela conclui o ciclo dialético de evolução da produção do capital composto pela manufatura – grande indústria – maquinofatura (no plano categorial expressaria a tese – antítese – síntese). O surgimento da maquinofatura nos últimos trinta anos de desenvolvimento do capitalismo histórico decorreu de processos histórico de luta de classes e de mutações técnicas no processo de acumulação capitalista com a III Revolução Industrial e suas revoluções tecnológicas (ALVES, 2011). A maquinofatura implica tanto processos históricos de dessubjetivação de classe, quanto processos de desenvolvimento da nova base técnica informacional no capitalismo global. Na medida em que o capitalismo tardio constitui uma nova base técnica para a grande indústria, com o aparecimento da máquina informacional (o que denominamos como “pós-máquina”), põem-se os elementos de “negação” da grande indústria no interior da própria grande indústria (ALVES, 2002). Com a maquinofatura, surgiu um novo momento de produção do capital onde se coloca a necessidade candente de revolucionar o metabolismo social da produção do capital, implicando, desse modo, alterar a relação social homem-Natureza, visando reconstitui-la e reordená-la de acordo com a base técnica adequada ao novo patamar de acumulação do capital. A maquinofatura repõe a subsunção formal no interior da subsunção real do homem ao capital. Desse modo, é nas condições da terceira modernidade do capital que a nova base técnica exige um novo metabolismo social capaz de promover
23
um novo patamar de acumulação capitalista sob as condições críticas da crise estrutural do capital. Se a grande indústria negou o processo de trabalho na medida em que o meio de trabalho tornou-se ferramenta e o homem tornou-se mero apêndice da máquina, com a maquinofatura repõe-se – num plano virtual – a máquina como instrumento e o homem como vigia da máquina. Na verdade, tendo em vista que se trata de reposição meramente virtual, isto é, posição de possibilidades contraditórias contidas na nova base técnica, o novo homem que surge como “homem tecnológico” é um feixe de contradições reais (o virtual é um modo de ser do real efetivamente contraditório). Com a maquinofatura repõe-se o processo de trabalho abolido pela grande indústria. Entretanto, os termos do processo de trabalho (ato teleológico, meio e objeto) que eram postos na manufatura sofreram alterações qualitativamente novas com a maquinofatura. Por exemplo, o ato teleológico na maquinofatura continua tendo uma teleologia alienada, mas a dimensão manipulatória esvaziou-o do sentido estranhado (é a “consciência feliz” de Herbert Marcuse); o meio de trabalho na maquinofatura repõe-se como instrumento e não apenas como ferramenta que desloca o telos do homem (a maquina informacional é a “pós-máquina”); entretanto, ele aparece apenas como instrumento virtual, tendo em vista que o sistema de máquinas-ferramentas continua posto como horizonte teleológico da atividade vital. É a vigência da terceira forma de produção do capital (a maquinofatura) que explica, por exemplo, a presença enquanto momento predominante da reestruturação produtiva do capital, da “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha e das novas formas de estranhamento que dilaceram o núcleo humano-genérico. Nesse caso, o capital atinge seu limite radical, isto é, o capital atinge a sua própria raiz, o homem, ou melhor, as relações sociais no sentido da constituição/deformação do sujeito histórico como homem-que-trabalha.
Maquinofatura ------- “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha [novas formas de estranhamento social]
O toyotismo como ideologia orgânica da produção de mercadorias surgiu no seio da maquinofatura, na medida em que a “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelo capital tornou-se seu nexo essencial (ALVES, 2011). O capita-
24
lismo manipulatório inaugura a era da maquinofatura como derivação lógica (e ontológica) da grande indústria. Ao mesmo tempo, a epidemiologia laboral nas condições históricas da maquinofatura caracteriza-se pelo predomínio do adoecimento da mente, na medida em que o que está sob tensão é (como na manufatura) o homem integral. Entretanto, enquanto na manufatura o que está posto é o homem como força de trabalho, na maquinofatura o que está posto em questão é o homem como trabalho vivo. Nas condições do capitalismo manipulatório opera-se de modo radical a redução do trabalho vivo à força de trabalho (ALVES, 2009). Desse modo, a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria, um traço do capitalismo moderno, assume dimensões qualitativamente novas. Ao mesmo tempo, a tensão trabalho estranhado versus lazer não se põe mais como na grande indústria, tendo em vista que o próprio lazer é erodido na medida em que a produção do capital torna-se totalidade social. O lazer torna-se meramente um momento da subjetivação estranhada do capital que antes só ocorria no tempo de trabalho. Lazer é consumo. Lazer é entretenimento. Na era do hiperconsumismo e dos valores-fetiche, que caracterizam o capitalismo manipulatório, o estranhamento alarga-se para esferas do lazer e consumo. Portanto, o que se coloca como campo de disputa do capital com a terceira forma de produção social do capital, a maquinofatura, é a disputa pela subjetividade no sentido radical. Coloca-se como problemática central do nosso tempo o problema da práxis humana capaz de fazer história ou ir além da pré-história humana caracterizada pelas sociedades de classes. O “homem tecnológico” é o homem rendido à manipulação/“captura” da subjetividade pelo capital, cuja disputa íntima o dilacera (o que explica o surto de adoecimentos mentais no mundo do trabalho). Põem-se, nessa etapa de desenvolvimento da maquinofatura, processos ideológicos de dessubjetivação de classe e a corrosão radical do ser genérico do homem (o sociometabolismo da barbárie). Instaurou-se, desse modo, a crise da pessoa humana em sua dimensão radical. Coloca-se como questão estratégica da emancipação humana a centralidade da formação da classe e a necessidade do controle social.
25
Capítulo 2
Crise de valorização e precarização estrutural do trabalho
A
nova e profunda crise do capitalismo global em seu “núcleo orgânico” (União Europeia, EUA e Japão), a partir da crise financeira de 2008, explicitou a instabilidade estrutural do sistema mundial do capital, imerso, há pelo menos trinta anos, em candentes contradições orgânicas. Nosso objetivo neste capítulo é expor a precarização do trabalho como condição histórico-estrutural de desenvolvimento do próprio capitalismo global. Por isso, deve-se considerar o conceito de precarização estrutural do trabalho como conceito crucial para explicar a natureza da precarização do trabalho hoje. Desse modo, as ocorrências de precarização do trabalho não asignificam meras falhas contingentes da regulação social e política do trabalho, mas sim da necessidade estrutural do sistema mundial produtor de mercadoria em sua etapa de crise estrutural de valorização. Na medida em que a crise estrutural do capital como crise de valorização colocou a precarização do trabalho como elemento estrutural de sua fenomenologia social e traço indelével da nova temporalidade histórica do capital, tornou-se necessário explicar a verdadeira natureza da crise estrutural de valorização. Partimos do princípio de que presenciamos hoje sob o capitalismo global uma crise estrutural de valorização do capital que pode ser explicada pela teoria da “lei”
27
tendencial de queda da taxa média de lucro originalmente exposta por Karl Marx no Livro III de O Capital – Crítica da Economia Política.1 Nossa hipótese é que é a vigência do movimento contratendencial à queda da taxa média de lucros no plano do sistema mundial do capital, dada pelo aumento da composição orgânica do capital, que explica, pelo menos nos “trinta anos perversos” de capitalismo global (1980-2010), a fenomenologia do mundo do capital no plano histórico-mundial: “globalização” como mundialização do capital, reestruturação produtiva do capital como precarização estrutural do trabalho e financeirização da riqueza capitalista. Estas são efetivamente contratendenciais à queda da taxa média de lucros que caracterizou a crise capitalista, pelo menos de 1973-1987 (conforme o gráfico 1). Gráfico 1 - Taxa Média de Lucro e Composição Orgânica do Capital
Setores produtivos (EUA) - (1948-2009)
Taxa Média de Lucro
Composição Orgânica do Capital
Fonte: CARCHEDI, Guglielmo. Behind the Crisis - Marx's Dialectics of Value and Knowledge, Brill, 2011. 1
Não nos interessa tratar aqui das controvérsias marxistas sobre a utilização clássica da teoria da “lei” tendencial de queda da taxa média de lucro proposta por Marx para explicar a crise do capital nas condições históricas do capitalismo global. Indicamos alguns autores importantes para discutir esta candente questão como Michael A. Lebowitz (“Marx´s falling rate of profit: a dialetical view”, The Canadian Journal of Economics. 9, 1976, p.248-9); Anwar Shaik (Valor, Acumulación y crisis – Ensayos de economia política, Buenos Aires: ediciones ryr, 2006); Manuel Castells (A teoria marxista das crises econômicas e as transformações do capitalismo, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979); Chris Harman (Zombie Capitalism – Global crisis and the relevance of Marx, Chicago: Bookmarks publication, 2009) e Guglielmo Carchedi (Behind the Crisis - Marx's Dialectics of Value and Knowledge, Brill, 2011).
28
Embora a “grande crise” de 1973-1975 possa ser considerada uma crise de lucratividade, o mesmo não ocorreu, por exemplo, com os ciclos de crises do capitalismo global (1986-1987, 1996-2001 e 2008-2011). Pelo contrário, após a crise primordial de meados da década de 1970, a primeira recessão mundial após a Segunda Guerra Mundial, impulsionou-se como movimento contratendencial à queda da taxa média de lucros no plano do sistema mundial do capital os seguintes fenômenos sócio-históricos: (1) a mundialização do capital e abertura de novos mercados capitalistas, (2) o complexo de reestruturação produtiva e a ofensiva do capital na produção, instaurando a era de precarização estrutural do trabalho e (3) financeirização da riqueza capitalista com a hegemonia do capital financeiro. Essa profunda reestruturação capitalista que caracterizou os “trinta anos perversos” contribuiu no final da década de 1980 para a recuperação relativa da taxa média de lucratividade das corporações globais (como verificamos no Gráfico 1 acima). Portanto, foi o movimento das contratendencias à “grande crise” de meados da década de 1970 que nos projetou para a nova temporalidade histórica do capital – o capitalismo global – no interior do qual o ciclo de crises capitalistas assumiria nova feição. Nesse caso, no período de 1987-2007, a crise de valorização não se traduziu efetivamente numa crise de lucratividade, embora, numa perspectiva de longa duração, houvesse a tendência declinante da taxa média de lucro. Nesse período de mundialização financeira, o que se constata é a crise do investimento produtivo tendo em vista que, apesar da taxa média de lucro não cair ou ter crescido em termos relativos, ela mantém-se aquém das necessidades de valorização da massa de capital-dinheiro acumulada nas gloriosas décadas de ofensiva do capital na produção.
29
Gráfico 2 - Poupança e Investimento Global
(Todos os países capitalistas - Porcentagem do PNB Mundial) - (1970-2004)
Investimento
Poupança
Fonte: TERRONES, Marco; CARDARELLI, Roberto, “Global Imbalances, A Saving and Investment Perspective”, World Economic Outlook, International Monetary Fund, 2005.
Na verdade, a política neoliberal de desregulamentação e inovações financeiras impulsionadas no decorrer da década de 1980 nos países capitalistas centrais sedimentou o terreno institucional propício para que, na década seguinte, uma parte considerável da extraordinária massa de mais-valia acumulada fosse canalizada, não para o investimento produtivo (D-M-D´´), mas sim para o mercado financeiro (D-D´), circuito de valorização fictícia capaz de oferecer taxas médias de lucro mais atraentes do que aquelas auferidas com o investimento na produção de mercadorias. Inaugurou-se o período da mundialização financeira. A pletora de investimentos em “capital fictício” contribuiu para a financeirização da riqueza capitalista e a hegemonia do capital financeiro. Essa nova dinâmica de acumulação do capitalismo global ocorrida a partir da década de 1990 deu origem ao capitalismo das “bolhas financeiras” com sua instabilidade estrutural. Desse modo, as crises capitalistas tornaram-se predominantemente crises financeiras com impactos na esfera produtiva e comercial. É claro que o investimento produtivo não deixou de ocorrer no período de 1990-2004, tendo em vista que a produção de valor é a lei suprema do capital (vide
30
Gráfico 2 acima). Entretanto, percebe-se uma queda vigorosa do investimento produtivo e da poupança global. Nesse processo contratendencial, a precarização do trabalho contribuiu para que a extração de mais-valia absoluta e relativa assumisse dimensões absolutamente inéditas, explicitando a vigência plena da formação do valor. A partir da década de 1990, ocorreu a alta persistente da taxa média de lucro das corporações globais. Entretanto, com a candente financeirização da riqueza capitalista modificou-se a natureza do lucro capitalista, tendo em vista o crescimento da taxa média do lucro não operacional (o “lucro fictício”) no balanço contábil das holdings. Desse modo, na medida em que o capital pôs em movimento contratendências que impediram a queda da lucratividade média (como atesta o gráfico 1); por outro lado, canalizou a maior parte da massa hipertrofiada de capital-dinheiro disponível para a valorização fictícia (o que explicaria a afirmação do “capitalismo das bolhas financeiras” a partir da década de 1990). Os “trinta anos perversos” de capitalismo global (1980-2010), principalmente no período de 1987-2007, com o estouro das “bolhas financeiras” expuseram, com intensidade candente, a dinâmica instável e incerta do processo de acumulação de capital na virada para o século XXI. Enfim, a vitória do capital nos “trinta anos perversos” caracterizada pela ofensiva do capital na produção e a vigência da superexploração da força de trabalho no plano do capitalismo mundial (VALECIA, 2012) tornou-se uma vitória de Pirro: a crise estrutural de valorização e a financeirização da riqueza capitalista fizeram com que a imensa massa de capital-dinheiro acumulada por conta da superexploração da força de trabalho e as políticas neoliberais de precarização do trabalho fosse canalizada não para investimentos produtivos, mas sim para investimentos no mercado financeiro, aumentando a instabilidade crônica do sistema produtor de mercadorias. Portanto, a dimensão paradoxal da crise estrutural de valorização é a seguinte: mesmo com a intensificação da precarização do trabalho em escala global, com o crescimento absoluto da taxa de exploração da força de trabalho, a massa exacerbada de capital-dinheiro acumulada pelos loci de capital concentrado não encontra um nível de valorização adequado ao patamar histórico de desenvolvimento do capitalismo tardio. Nesse caso, a macroestrutura da financeirização se fortalece por ser a única alternativa sustentável, na ótica do capital hegemônico, para a valorização do valor.
31
A “lei” tendencial de queda da taxa média de lucro não se trata propriamente de uma “lei” com caráter determinístico e inexorável (como as leis da natureza exterior), mas sim, de uma determinação tendencial no sentido dialético, que implica, em si e para si, contratendências históricas (o que observamos no capitalismo global). Na verdade, a “fórmula matemática” da composição orgânica do capital utilizada por Marx (C/V) não tinha o objetivo de apreender a dialética histórica do sistema produtor de mercadorias com seus paroxismos categoriais. A lógica do desenvolvimento histórico – e a lei da queda da taxa média de lucros descoberta por Marx, é uma “lei tendencial” ou “lei” histórica – é absolutamente irredutível a fórmulas lógico-matemáticas. O próprio Marx teve cuidado em não utilizar sua teoria para “predizer” o desenvolvimento do capitalismo histórico, como proclama a vulgata marxista. As leis da economia capitalista expostas por Marx possuem efetivamente um caráter histórico-dialético, ou seja, são leis históricas postas intrinsecamente como “determinações tendenciais”. É nesse sentido que iremos apreender a “lei” da queda da taxa média de lucros. Portanto, é importante salientar que tendências e contratendências constituem em si e para si o movimento concreto crítico de valorização do capital nas condições do capitalismo histórico hipertardio. A própria operação transversal da “lei” tendencial de queda da taxa média de lucro exposta acima demonstra a dialética entre tendências e contratendências que expõe, pelo avesso, a própria validade da lei geral. A taxa média de lucro não cai, mas o lucro torna-se predominantemente “lucro fictício”. Portanto, não se trata de proclamar a estagnação e o colapso do sistema produtor de mercadoria por conta da irremediável queda da taxa média de lucro decorrente do aumento da composição orgânica do capital, mas sim de apreender a nova forma de ser da dinâmica crítica (e contraditória) da acumulação do capital nas condições de sua crise estrutural. Trata-se de redefinir, desse modo, o conceito de “crise”, apreendendo-o, na ótica do “sujeito automático” capital, como forma de ser (ou determinação da existência) do desenvolvimento contraditório do sistema do trabalho abstrato “afetado de negação”. Por outro lado, a exposição da composição orgânica do capital, como sendo uma relação definida em termos de valor (o que a distingue da composição técnica do capital), coloca outro problema metodológico crucial, isto é, como calcular e expressar em termos quantitativos o valor de categorias econômicas que não são propriamente categorias econômicas, mas sim formas de ser e determinações da existência impregnadas de temporalidade histórica?
32
Portanto, o que pretendemos é esboçar algumas ideias para caracterizar, numa ótica dialética, um aspecto fundamental (e fundante) da crise estrutural do capital, isto é, apreende-la como sendo, não crise de formação do valor, mas sim crise de valorização (produção/realização) do valor – a rigor, crise de valorização produtiva. Desse modo, o problema não está na formação do valor; pelo contrário, na era da precarização estrutural do trabalho a produção do valor assumiu dimensões alucinantes; o problema está na realização efetiva do valor acumulado, o que explica a financeirização da riqueza capitalista e a ânsia por novos mercados por meio da produção destrutiva e a obsolescência planejada dos produto-mercadorias. Como salientou David Harvey, a ânsia do capital é vender.
1. Crise de valorização e crise de deformação do sujeito histórico Desse modo, podemos caracterizar a crise estrutural do capital no plano mundial como sendo crise de valorização produtiva (produção/realização) de valor, que se expressa, cada vez mais, de modo paradoxal, como crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata. Não se trata, desse modo, de uma crise de formação do valor, mas sim crise de valorização produtiva do valor no nível adequado à imensa massa de capital-dinheiro acumulado nas últimas décadas por conta do crescimento exacerbado da produtividade do trabalho no contexto da reestruturação produtiva e revoluções tecnológicas. Na verdade, o valor se forma, mas não consegue se realizar efetivamente nas condições históricas do capitalismo global. Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capital, além de ser crise de valorização de valor, é crise de (de)formação do sujeito histórico de classe (não iremos tratar dessa dimensão essencial no presente ensaio). Embora não iremos tratar neste momento dessa dimensão essencial da crise estrutural do capital, seria interessante observar que consideramos como crise de (de)formação do sujeito de classe, determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem que trabalha. Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade burguesa hipertardia, o fetichismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social tendem a impregnar as relações humano-sociais, colocando
33
obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da classe social do proletariado. Distinguimos “formas constitutivas” e “formas derivadas” do valor. Por exemplo, as categorias trabalho abstrato e exploração são categorias pertinentes do trabalho produtor de valor, sendo, desse modo, “formas constitutivas” do valor. Elas constituem, portanto, a forma-valor que impregna o trabalho produtivo no modo de produção capitalista. Entretanto, na medida em que se desenvolve, a forma-valor tende a se disseminar por instâncias não produtivas do modo de produção capitalista. Por isso, o trabalho abstrato e a exploração aparecem como “formas derivadas” do valor nas instâncias do trabalho “improdutivo” interior ou exterior à produção do capital. Enquanto formas derivadas do valor, trabalho abstrato e exploração são meramente “formas fictícias” que não contribuem objetivamente para a formação do valor e muito menos para a sua valorização. Mas é importante salientar que, mesmo imbuídas de “ficticidade”, eles têm, no plano existencial, a mesma eficácia ontológica das formas constitutivas do valor; o que significa que a distinção “formas constitutivas”, vinculadas às instancias produtivas, e “formas derivadas”, que possuem uma dimensão meramente fictícia na ótica do processo efetivo de formação do valor, é uma distinção relevante apenas para entendermos a dinâmica da acumulação do capital, sendo irrelevante para aferir a dinâmica da vida social e a efetividade da luta de classes (por exemplo, o trabalhador público, afetado pelo trabalho abstrato e a exploração do capital, embora não produza valor, é tão capaz de desenvolver cum grano salis, a consciência de classe, quanto o operário industrial explorado e subsumido à lógica efetiva do trabalho abstrato produtor de valor). Deste modo, o capitalismo global como capitalismo manipulatório nas condições da vigência plena do fetichismo da mercadoria expõe uma contradição crucial entre, por um lado, a universalização da condição de proletariedade e, por outro lado, a obstaculização efetiva da consciência de classe de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho.2
2
No capítulo 4 deste livro iremos expor o novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha”, tratando de alguns elementos do que consideramos como sendo a crise de (de)formação do sujeito histórico de classe. Para isso utilizamos o conceito de “dessubjetivação” de classe inscrito no movimento de precarização estrutural do trabalho.
34
Formas de ser da crise estrutural do capital Crise de Valorização do Capital (crise de realização do valor)
Crise de (De)formação do Sujeito histórico de classe (crise de civilização)
Ao tratarmos da crise de valorização, expomos, como salientamos acima “determinações tendenciais” que se articulam com “contratendências históricas”. Essa sintaxe da dialética histórica evita reduzir “determinações tendenciais” a “leis” históricas inexoráveis que agem de forma mecânica e determinística às costas dos sujeitos humano-sociais. Por exemplo, a crise de formação do sujeito histórico de classe, uma das dimensões históricas da crise estrutural do capital, é, por um lado, uma determinação tendencial inscrita na nova temporalidade crítica do capital; e por outro lado, ela própria é contratendência histórica efetiva à vigência plena da crise de valorização do capital. Enquanto tendência contrária, ela não abole a vigência histórica da determinação tendencial, mas altera, em sua essência, a efetividade contingente dessa determinação tendencial que se impõe à sociedade produtora de mercadorias em sua fase global. Por exemplo, na medida em que a crise do sujeito histórico de classe, o sujeito histórico efetivo capaz de pôr obstáculos à voracidade do capital, contribui para o aumento da taxa de exploração da força de trabalho, ela cria, em termos relativos novas possibilidades de investimento produtivo que propiciam, mesmo que aquém das necessidades sistêmicas de produção de mais-valia, uma rentabilidade do capital acumulado. Essas duas dimensões intrinsecamente contraditórias da crise estrutural do capital – por um lado, crise de valorização (produção/realização) do valor e por outro lado, crise de (de)formação do sujeito de classe – tendem a alargar a temporalidade histórica da “crise de civilização” do mundo do capital. É claro que a irremediável crise de valorização nas condições históricas da crise do sujeito histórico de classe não conduz ao colapso da modernização do
35
capital em escala global. Pelo contrário, a incapacidade da “negação da negação” pelo sujeito histórico de classe tende a alongar a temporalidade crítica da civilização do capital, exacerbando a produção do valor, em termos absolutos, tanto em sua forma constitutiva, quanto em sua forma derivada, e colocando maiores desafios para a formação da consciência de classe necessária (a constituição de novos nichos de modernização capitalista como China e Índia, por exemplo, são expressões históricas desse processo de alongamento da temporalidade crítica da civilização burguesa). Na verdade, o que está em questão é a capacidade histórica do movimento do proletariado como classe em dar respostas efetivas, no plano histórico-mundial, às novas condições objetivas da luta de classes no capitalismo global. No movimento da dialética histórica, ao lado das circunstâncias objetivas, legadas e transmitidas pelo passado, com as causalidades necessárias dadas pela dinâmica da acumulação de capital com as contradições inerentes ao sistema produtor de mercadorias, existem os “acidentes” intrínsecos ao curso geral do desenvolvimento histórico. Como observou Marx a Kugelmann, “a história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida apenas nas condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis”. E prossegue: “Seria, por outro lado, coisa muito mística se os ‘acidentes’ não desempenhassem papel algum. Esses acidentes mesmos caem naturalmente no curso geral do desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes. Mas a aceleração e a demora são muito dependentes de tais ‘acidentes’, que incluem o ‘acidente’ do caráter daqueles que de início ficam à frente do movimento” (MARX, 1986).
2. O capitalismo global A partir da crise capitalista de meados da década de 1970, a primeira recessão generalizada da economia mundial após 1945, o sistema mundial do capital acelerou seu processo de reestruturação orgânica. Nos últimos trinta anos, desenvolveu-se, de modo desigual e combinado, nas mais diversas instâncias da vida social, uma intensa reestruturação capitalista com impactos diruptivos no mundo social do trabalho. Constitui-se uma nova etapa do capitalismo histórico: o “capitalismo global”, o espaço-tempo de produção do capital adequado à dinâmica crítica da acumulação de valor no plano mundial.
36
O que denominamos de “capitalismo global” é o capitalismo histórico da fase da financeirização da riqueza capitalista. É o capitalismo das bolhas especulativas e da instabilidade sistêmica que tem caracterizado o sistema mundial produtor de mercadorias nas últimas décadas. O capitalismo global é o capitalismo da mundialização do capital e do complexo da reestruturação produtiva, com a nova divisão internacional do trabalho e o poder global das corporações transnacionais. O capitalismo global é o novo capitalismo flexível, em que se dissemina o espírito do toyotismo como nova ideologia orgânica da produção de mercadorias. Difunde-se o novo e precário mundo do trabalho (ALVES, 2011). O capitalismo global é o capitalismo do neoliberalismo e da vigência hegemônica do mercado, cujas crises sistêmicas recorrentes criaram condições históricas para o surgimento, nos elos mais fracos do imperialismo na América Latina, experiências pós-neoliberais contra-hegemônicas (Venezuela, Bolívia e Equador). Enfim, o capitalismo global é o capitalismo do sociometabolismo da barbárie e das novas formas de irracionalismo e estranhamento social. Os trinta anos de capitalismo global (1980-2010) foram marcados por crises financeiras de grande amplitude que abalaram o velho sistema produtor de mercadorias. Embora a crise financeira de 2008 tenha sido uma das maiores crises financeiras do capitalismo global, ela, com certeza, não será a ultima. Pelo contrário, a natureza do capitalismo global é caracterizada pela instabilidade crônica, estrutural e sistêmica. Na verdade, as crises financeiras recorrentes do “capitalismo das bolhas” expressam um sistema mundial clivado de contradições orgânicas derivadas dos impasses da formação do valor, como iremos salientar adiante (CORSI, 2010). As crises financeiras recorrentes fazem com que o sistema mundial se reestruture e se expanda às custas da perda do lastro civilizatório construído durante o capitalismo do “Welfare State”. Imerso em candentes contradições sociais, diante de uma dinâmica de acumulação de riqueza abstrata tão volátil, quanto incerta e insustentável, o capitalismo global explicita cada vez mais que é incapaz de realizar as promessas de bem-estar social e emprego decente para bilhões de homens e mulheres assalariados. Pelo contrário, diante da crise, o capital, em sua forma financeira e com sua personificação tecnoburocrática global (o FMI), como o deus Moloch, exige hoje sacrifícios perpétuos e irresgatáveis das gerações futuras. Os desdobramentos da crise irão expor com mais candência, no plano da objetividade social, a natureza íntima da civilização do capital imersa em sua crise
37
estrutural. Na verdade, as contingências sombrias do movimento real do sistema mundial produtor de valor, constatadas nas últimas décadas de capitalismo global, expressam, de fato, a persistência de crise de fundo: a crise estrutural do capital. Entretanto, ao invés de prenunciar a catástrofe final do capitalismo mundial, a crise estrutural do capital prenuncia tão somente uma nova dinâmica sócio-reprodutiva do sistema produtor de mercadorias baseado na produção crítica de valor, isto é, sob as condições históricas de uma crise estrutural de valorização. É a crise estrutural do capital que impulsiona o processo de mundialização produtiva e financeira do capital. Com a crise estrutural, o sistema produtor de mercadorias se expande de forma exacerbada e cresce de modo irregular, recorrente e instável (hoje, por exemplo, conduzido pelos polos mais ativos e dinâmicos de acumulação de valor: os ditos “países emergentes”, como a China, Índia e Brasil). Enquanto o centro dinâmico capitalista – União Europeia, EUA e Japão – “apodrecem” com sua tara financeirizada (como atesta a crise financeira de 2008 que atingiu de modo voraz os EUA, Japão e União Europeia), a periferia industrializada emergente alimenta a última esperança (ou ilusão) da acumulação de riqueza abstrata sob as condições de uma valorização problemática do capital em escala mundial (eis o segredo do milagre chinês).
3. O significado de “crise estrutural do capital” A crise estrutural do capital não significa a estagnação e colapso da economia capitalista mundial, mas sim incapacidade do sistema produtor de mercadorias realizar suas promessas civilizatórias. Tornou-se lugar comum identificar crise com estagnação, mas, sob a ótica do capital, “crise” significa tão somente riscos e oportunidades históricas para reestruturações sistêmicas visando à expansão alucinada da forma-valor. De fato, o capitalismo expande-se e se renova, no plano fenomênico, através de suas crises. Em sua etapa de crise estrutural, ele tende a aparecer como um sistema mundial imerso em contradições sociais candentes. Marx observou que o capital é a própria “contradição viva”. Apesar de estar em crise estrutural, ele, ao mesmo tempo, se expande como sistema mundial produtor de mercadorias. Embora esteja em fase de decadência histórica, a ordem burguesa é capaz de iludir com promessas de liberdade e igualdade.
38
Entretanto, na época do capitalismo global, caracterizada pelas múltiplas crises financeiras – pois essa é a forma de crise capitalista predominante sob a mundialização do capital – o sistema mundial do capital amplia e intensifica a produção de fetichismos sociais, agudizando a alienação e o estranhamento de homens e mulheres que trabalham. Apesar da renúncia que importantes autores e pesquisadores sociais fizeram da utilização de conceitos como “classe social”, “proletariado” ou mesmo “capitalismo”, pois para muitos deles nada existe para além desse modo de organizar a produção social (o capitalismo), o que percebemos, pelo contrário, é a ampliação, num patamar universal, do que denominamos de “condição de proletariedade” e de vigência plena do modo de produção de mercadorias (ALVES, 2009). Devido à intensificação dos fetichismos sociais, ativados pela aguda manipulação do capitalismo tardio, a “condição de proletariedade” não se traduz efetivamente em consciência de classe necessária. O que significa que não se constitui, ou se constitui de modo limitado, o sujeito histórico de classe capaz de dar resposta efetiva à miséria da ordem burguesa. Para além de uma ótica economicista, a crise do capital em sua fase de decadência histórica é, de fato, hoje, a “crise de civilização” que se expressa com vigor na degradação do metabolismo social homem-natureza: seja a natureza humana expressa no cataclismo social, com seus milhões de trabalhadores precários e a massa de desempregados sem perspectivas de futuro digno e vítimas do adoecimento físico e mental; seja a natureza natural com o cataclismo climático marcado pelo aquecimento global e deriva climática. No livro Para Além do Capital, István Mészáros observa que a novidade que experimentamos hoje é que a crise do capital que atinge nosso tempo histórico é fundamentalmente uma crise estrutural. A longa citação torna-se necessária tendo em vista a importância de salientar na ótica de Meszáros as características candentes da crise estrutural do capital. Disse ele: A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais: (1) seu carâter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc. (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de
39
países (corno foram todas as principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente-, em lugar de limitada e cíclica, como foram rodas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na "administração da crise" e no "deslocamento" mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia. Seria extremamente tolo negar que tal maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maquinaria existente esteja sendo posta em jogo com frequência crescente e com eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se aprofunda. (MÉSZÁROS, 2002:795-796) Eis, portanto, segundo Meszáros, as características modais da crise estrutural do capital que se desdobra nas últimas décadas (c.1974-2010): caráter universal, alcance global, temporalidade extensa e modo rastejante. O capitalismo global com seus traços salientados acima (financeirização, acumulação flexível, neoliberalismo, sociometabolismo da barbárie) constitui-se como forma histórica determinada da modernidade burguesa no bojo dessa crise do capital. Entretanto, para além dessas formas de manifestações modais da crise estrutural do capital, buscaremos salientar nesse ensaio uma das suas dimensões categóricas cruciais: a “crise da valorização produtiva do valor”.
4. Crise de valorização do capital As transfigurações estruturais ocorridas no processo de acumulação de valor por conta do desenvolvimento sócio-histórico do capitalismo põem homens e mulheres diante de novas (e determinadas) condições objetivas no interior da
40
qual eles fazem a história. Na virada pela o século XXI, a vigência plena da grande indústria com a predominância da mais-valia relativa tende a instaurar um campo ampliado – intenso e extenso – de candentes “contradições vivas” do interior do sistema mundial produtor de mercadorias. Na medida em que a categoria do trabalho abstrato é posta com mais intensidade e amplitude no interior do movimento do capital, disseminando-se, desse modo, não apenas como forma constitutiva do valor, mas também, e principalmente, como forma derivada do valor, ele – o trabalho abstrato – tende a ser “afetadas de negação” no interior de sua própria afirmação plena, transtornando, em si e para si, o próprio sistema produtor de mercadoria. Na verdade, a efetiva crítica da economia política se expressa com a crise estrutural do capital, uma crise universal, global, extensa e rastejante que expõe, no plano do valor, os limites da própria relação-capital. É sob a crise estrutural do capital que a solidez categorial do modo de produção capitalista, exposta por Marx na sua obra magna (O Capital), tende a se desmanchar no ar; ou melhor, tende a se transfigurar no ar, tendo em vista que, por exemplo, a categoria de trabalho abstrato, categoria constitutiva do sistema do capital, é negada – ou posta pelo avesso – no interior do próprio capitalismo. Na medida em que o trabalho abstrato tende a se disseminar como forma derivada e restringir-se como forma constitutiva de valor, manifesta-se, em si, o sentido da transfiguração categorial. Desse modo, afirma-se a “ficticidade” do valor, em que o capital financeiro, ou o capital fictício, é sua expressão material. De fato, existe um movimento de desefetivação persistente do valor no interior de sua plena afirmação como modus regulandi do metabolismo social. Eis o sentido espectral da crise do valor ou crise de valorização produtiva exposta no bojo da crise estrutural do capital. No Livro III de O Capital, Karl Marx nos expôs, como resultado do desenvolvimento categorial do modo de produção capitalista, a “lei” tendencial da queda da taxa média de lucros por conta do crescimento da composição orgânica do capital. É a manifestação plena da “negação do sistema no interior do próprio sistema”, como diria Ruy Fausto (1988). Ora, o capitalismo possui, como determinação tendencial, a negação de seus próprios fundamentos categoriais. Estamos diante de um aparente paradoxo, ou melhor, candente contradição, tendo em vista que, o que a “lei” tendencial exposta por Marx explicita é que, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais decresce a
41
taxa média de lucros. Isto é, o capitalismo, na medida em que afirma cada vez mais suas determinações categoriais, mais tende a se negar em si e para si. Eis como Manuel Castells descreve, em 1979, o “mecanismo” de surgimento da crise capitalista. Essa longa citação torna-se necessária pela clareza do autor em expor aquilo que salientamos acima: a crise do capitalismo decorre de seu próprio sucesso como modo de extração de mais-valia. É a incapacidade para realizar suas mercadorias ou produzir valor a partir da imensa coleção de mercadorias acumulada como riqueza abstrata, que transtorna o modo de produção capitalista. Eis o sentido da crise de superprodução crônica que se abate sobre o modo de produção capitalista. Diz ele: O descenso das taxas de lucros origina um excedente de capital, porque o crescimento do capital acumulado, graças à crescente extração de mais-valia, encontra cada vez menos possibilidades de investimentos que conduzam a uma rentabilidade adequada. Disto reviva um descenso do investimento produtivo que provoca uma diminuição de emprego e a consequente redução dos salários pagados pelo capital. Ao diminuir os salários, cai, paralelamente, a procura, provocando uma crise na venda das mercadorias previamente armazenadas. Produz-se, assim, uma crise de superprodução, já que a capacidade produtiva não pode ser absorvida pela procura solvente existente, resultado das restrições à procura derivada do descenso dos investimentos. A incapacidade para realizar suas mercadorias faz com que o capital detenha sua produção, generalizando-se a paralisação e a depressão dos mercados. Dado que a produção capitalista somente está interessada na criação de valores de uso na medida em que sejam o suporte de valores de troca, a economia somente se reativará quando a paralisação em massa originar salários muito baixos, quando a falência de muitas empresas tiver desvalorizado o capital fixo e quando o Estado intervier ou se produzir um acontecimento inesperado (uma guerra, por exemplo) que incremente substancialmente os mercados e permita o investimento rentável de capital. (CASTELS, 1979) (o grifo é nosso).
42
Mas essa determinação tendencial – a queda da taxa média de lucros em virtude do desenvolvimento da acumulação capitalista voltada para a obtenção do próprio lucro – convive no seu íntimo com contratendências históricas que alteram, em si e para si, a sua dinâmica efetiva. São as tendências contrárias que devem ser explicitadas no processo de desenvolvimento crítico do sistema produtor de mercadorias.
5. Dimensões contratendenciais ao aumento da composição orgânica do capital Nos últimos trinta anos de capitalismo global (1980-2010), a mundialização do capital, a nova divisão internacional do trabalho, o neoliberalismo e a financeirização da riqueza capitalista, ou ainda o surgimento da China e o protagonismo dos novos mercados no Sudeste Asiático são algumas das principais contratendências históricas à “lei” tendencial de queda da taxa média de lucros.
1. Novos mercados A obsessão pela abertura de novos mercados, um dos traços cruciais do capitalismo global, é uma tendência contrária à crise de superprodução crônica, visando, desse modo, criar demanda efetiva para as mercadorias armazenadas. Desse modo, a crise estrutural do capital é composta por um complexo de tendências e contratendências intrinsecamente contraditórias que dilaceram as possibilidades concretas históricas de desenvolvimento do capitalismo como processo civilizatório. O movimento de afirmação e negação da produção e realização do valor contido nas mercadorias se acelera com a contradição candente entre o desenvolvimento das capacidades produtivas do sistema produtor de mercadorias em virtude das notáveis mudanças tecnológicas ocorridas com a III Revolução; e a incapacidade relativa para realizar suas mercadorias em virtude do nível de procura solvente existente. Por isso, criar novos mercados tornou-se tarefa crucial para o sistema produtor de mercadorias. Nos últimos trinta anos, disseminaram-se novas estratégias de criação de mercados, como, por exemplo, a expansão do comércio e as políticas de abertura
43
comercial, a obsoletização planejada das mercadorias (o que István Meszáros iria salientar como sendo a vigência da “taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias”), e inclusive, os processos de privatização de empresas públicas (MÉSZÁROS, 2002).
Contratendências ao aumento da composição orgânica do capital Criação de novos mercados
Financeirização
Precarização estrutural do trabalho
2. Inovações financeiras As inovações financeiras e a financeirização da riqueza capitalista não deixam de serem estratégias contrárias à crise de superprodução crônica, no plano da valorização fictícia. Na medida em que a forma-mercadoria encontra-se interditada pela crise de superprodução crônica, busca-se a realização de valor desprezando-se a criação de valores de uso como suporte de valores de troca. Isto é, impõe-se com vigor a fórmula D-D’, desprezando-se o termo intermédio M. É claro que se trata de uma estratégia de valorização fictícia que visa não apenas contornar a paralisação e depressão dos mercados, mas constituir um novo modo efetivo de valorização capaz de superar, no plano da ficticidade, a crise de valorização à altura das necessidades sistêmicas da produção do capital em escala global. Torna-se necessário, com a crise estrutural do capital, a constituição de um “capitalismo fictício” capaz de dar resposta às necessidades estruturais de produção e realização de valor à altura da massa de capital-dinheiro acumulado por conta da crescente extração de mais-valia ocorrida em decorrência da precariza-
44
ção estrutural do trabalho como um dos traços compositivos da própria crise estrutural do capital. A crise do capitalismo global é a crise orgânica que decorre da acumulação demasiada de capital-dinheiro que não encontra rentabilidade adequada nas condições do sistema produtor de mercadoria. Portanto, é a crise do valor que, ao não se realizar através de seu suporte material (a mercadoria como valor de uso), encontra-se intimamente transtornado pelas contradições do sistema produtor de mercadoria. Por isso, cria um mundo fictício à sua imagem e semelhança (o que explica a disseminação das formas derivadas de valor, formas fictícias de realização do valor-trabalho).
3. A precarização estrutural do trabalho Pode-se considerar o processo de precarização estrutural do trabalho que caracteriza o capitalismo global como uma contratendência à queda da taxa média de lucro, visando, desse modo, aumentar a taxa de exploração da força de trabalho (nesse sentido, Meszáros observa a vigência da equalização das taxas de exploração em escala global) (2002). Entretanto, o aumento da taxa de exploração só conseguirá reverter, em termos relativos, a tendência de descenso da taxa média de lucro quando aumentar com maior rapidez que a composição orgânica do capital. Na verdade, à medida que se eleva a composição orgânica do capital, a taxa de lucro se torna progressivamente menos sensível a variações na taxa de mais-valia. O que significa que a precarização estrutural do trabalho, embora seja condição necessária para se contrapor às tendências críticas de produção e realização do valor, não é condição suficiente, tendo em vista a elevação tendencial da composição orgânica do capital. Além disso, o incremento da taxa de mais-valia é uma variável da luta de classe (o que explica outra determinação tendencial da crise estrutural do capital: a tendência à (de)formação do sujeito histórico de classe). Na verdade, a necessidade de criação de novos mercados por meio de múltiplos dispositivos reais ou fictícios, no plano da efetividade da produção e realização do valor, coloca-se como necessidade crucial do capital em sua etapa de crise estrutural. Os limites do capital são a sua própria dimensão crítica, o que significa que, superar a crise estrutural implicaria ir além de si próprio.
45
Portanto, a dimensão crítica torna-se um novo modo de ser do sistema produtor de mercadoria no interior do qual se deve constituir a forma social adequada ao desenvolvimento dessas contradições sistêmicas insolúveis.
6. A dialética entre “trabalho morto” e “trabalho vivo” e o aumento da composição orgânica do capital A crise de valorização produtiva do capital, isto é, crise de produção/realização da mais-valia extraída com a exploração da força de trabalho, se origina da tendência de aumento da composição orgânica do capital, que é a relação entre o trabalho morto (c) ou capital constante, e o trabalho vivo (v) ou capital variável, relação definida em termos de valor. É o que Marx expos no Livro III de O Capital ao compor a fórmula para o cálculo da composição orgânica do capital é c/v. Marx conclui que o aumento da composição orgânica do capital (Q) conduz ao decrescimento, em longo prazo, da taxa média de lucro. Primeiro, ele observa que a taxa de lucro é calculada como p’ = s/c+v. Depois, divide ambos os termos por v, para encontrar as funções da taxa de lucro. Isto é, ele conclui que p’ (taxa de lucro) é função direta de e (a taxa de mais-valia) e função inversa de c/v (composição orgânica do capital). Isto é, para um nível determinado de e, p’ variará em função da evolução de c/v; ou ainda, quanto maior seja Q, maior será o descenso de p’. Desse modo, apesar do crescimento da massa de mais-valia (s) produzida pelo capitalismo, em virtude da precarização estrutural do trabalho, a relação entre o valor investido (c/v) e a mais-valia obtida (e) será cada vez menos favorável para o capitalista (a fórmula da taxa de mais-valia (e) é s/v, onde s é a massa de mais-valia e v é o capital variável). Entretanto, a lógica histórica não é uma lógica matemática. Ela implica a dialética histórica entre tendências e contratendências. Por isso, como salientamos acima, surgem alguns traços reativos ou contratendências à deterioração do crescimento da taxa média de lucro sob o capitalismo global que se incorporam como modo de ser da nova dinâmica de desenvolvimento capitalista em escala global. Por exemplo, a obsessão por novos mercados é a principal delas, além é claro da precarização estrutural da força de trabalho). Na verdade, embora não estejam inscritas na fórmula matemática c/v, as contratendências são tão importantes quanto as tendências para caracterizar a direção efetiva do movimento histórico do capital.
46
Sob o capitalismo global, o “trabalho vivo” que aparece como força de trabalho como mercadoria, única fonte de valor, cresceu, em termos absolutos, por conta dos novos territórios de produção do capital abertos com a deslocalização industrial, a nova divisão internacional do trabalho e a mundialização produtiva. Nos últimos trinta anos, cresceu indiscutivelmente a massa de mais-valia produzida pelo capitalismo. Por exemplo, a inserção do Sudeste Asiático, Leste Europeu e Rússia (com destaque para a China) no circuito de produção industrial do capital aumentou em escala global, o trabalho vivo na composição orgânica do capital, isto é, um contingente de trabalho vivo que produz valor com baixos salários, o que explica de certo modo o crescimento do capital acumulado graças à extração de mais-valia. Tendência: Aumento Absoluto do Trabalho Vivo com Precarização estrutural do trabalho: descenso do valor da força de trabalho Problema: limite histórico-moral dada pela luta de classes Tendência: Crescimento do Trabalho Morto e investimento em capital constante com aumento da produtividade no setor I, com descenso no valor do capital constante Problema: A natureza do novo capital constante (novas máquinas e trabalho imaterial)
Entretanto, cresceu, na mesma medida, a presença do “trabalho morto” (máquinas, edifícios, matéria-prima etc.) na produção industrial global. A concorrência capitalista, que conduz à concentração e à formação de monopólios, obriga cada capitalista a tentar superar seus rivais introduzindo meios de produção tecnologicamente mais avançados que lhes permitem reduzir os custos de produção e incrementar os lucros. A partir da recessão de meados da década de 1970, cresceu a concorrência capitalismo no plano do mercado mundial. Impulsionaram-se revoluções tecnológicas no seio do sistema produtor de mercadorias. Nos últimos trinta anos presenciamos, pelo menos, duas revoluções tecnológicas no bojo da III Revolução Industrial (a revolução informática e a revolução informacional, que constituiu o ciberespaço) (ALVES, 2011). As corporações monopolistas chegaram a eliminar setores atrasados que possuem uma composição orgânica baixa com o objetivo de substituí-los por outros com composição orgânica mais elevada. Na verdade, as grandes empresas que or-
47
ganizam os circuitos da valorização do capital em escala global promoveram nos últimos trinta anos um rápido crescimento dos investimentos em capital constante. Apenas as grandes empresas têm a capacidade financeira de acelerar o processo de obsolescência do capital fixo, acelerando a taxa de rotação do capital constante. Nas condições das revoluções tecnológicas que ocorrem sob o capitalismo global, o desenvolvimento das forças produtivas implicou investimentos diretos e indiretos cada vez mais caros. Busca-se reduzir o valor contido no “trabalho morto” por conta do aumento da produtividade do trabalho no setor I, o setor de bens de produção. Entretanto, a natureza do novo capital constante (capital fixo + capital circulante) que emerge com as revoluções tecnológicas do capitalismo global, isto é, as novas máquinas complexas e os novos materiais permeados de “trabalho imaterial” transfiguram efetivamente o cálculo da produtividade do trabalho no setor I, tendo em vista a desmedida do valor, tornando, por conseguinte, mais lenta a redução do valor contido no “trabalho morto” (iremos tratar disso mais adiante na seção “Crise do trabalho morto, trabalho imaterial e desmedida do capital”). O que significa que, apesar do aumento da aceleração da taxa de rotação do capital constante, o descenso do valor das novas máquinas e os novos materiais (o capital constante) é mais lento do que o descenso do valor da força de trabalho (capital variável). Ao mesmo tempo, a queda do valor da força de trabalho (v) que ocorre por meio da precarização estrutural do trabalho encontra um limite histórico-moral dado pela luta de classes e a correlação de forças entre capital e trabalho. Desse modo, no processo de acumulação do capital em escala global, a vigência da determinação tendencial do aumento relativo da composição orgânica do capital em termos de valor pressiona efetivamente para baixo a taxa média de lucro no plano do mercado mundial. Entretanto, no plano do movimento histórico, é importante observar que toda determinação tendencial implica um complexo de contratendências históricas que possuem a mesma legalidade ontológica da determinação tendencial propriamente dita. Isto é, as tendências contrárias, como observa Manuel Castells, “não são meros fatores de demora dentro do necessário e inexorável processo de destruição catastrófica da economia capitalista” (CASTELLS, 1979). Pelo contrário, as determinações tendenciais ao aumento da composição orgânica do capital e a do descenso da taxa de lucro e suas contratendências históricas compõem a “totalidade concreta” do capitalismo histórico em sua etapa de crise estrutural do capital.
48
A crise de valorização do capital, isto é, de produção e realização do valor nas condições históricas do capitalismo global não proclama o colapso do modo de produção capitalista, mas sim a constituição de uma nova dinâmica de desenvolvimento do capitalismo histórico, o capitalismo global, que se caracteriza pela instabilidade sistêmica do ciclo da economia capitalista em escala global.
7. As metamorfoses do trabalho vivo Sob o capitalismo global, ampliou-se, no plano histórico-universal, a condição de proletariedade, isto é, a condição existencial de homens e mulheres que estão subsumidos ao metabolismo social estranhado e fetichizado do capital. Eles compõem a classe dos trabalhadores assalariados empregados e desempregados subordinados às experiências vividas e percebidas de subalternidade, acaso e contingência, inseguranças e descontrole existencial, incomunicabilidade e corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento, risco e periculosidade, invisibilidade social e migrabilidade, experimentação e manipulação, prosaísmo e desencantamento (ALVES, 2009). Um contingente amplo e crescente da "classe" do proletariado compõe o mundo social do “trabalho vivo” que não produz valor, embora uma parte dele seja imprescindível à produção de valor (é o caso, por exemplo, dos trabalhadores assalariados “improdutivos” interiores à produção do capital, isto é, empregados vinculados às atividades de circulação e distribuição das mercadorias; ou mesmo, os trabalhadores assalariados vinculados ao setor de comércio e finanças, importantes setores “improdutivos” do capitalismo global vinculados à realização do valor). Por outro lado, por conta das necessidades de reprodução social do sistema do capital, temos o crescimento dos trabalhadores assalariados “improdutivos” exteriores à produção do capital, os trabalhadores públicos, subsumidos ao Estado político do capital. Tanto trabalhadores assalariados empregados ou desempregados, operários e empregados produtivos ou improdutivos, interiores ou exteriores à produção do capital (como os trabalhadores públicos), estão imersos na condição de proletariedade por conta da sua inserção no metabolismo social total estranhado do mundo do capital. O capitalismo global como sistema mundial produtor de mercadorias é o capitalismo da hiperindustrialização universal. Por conta das contratendências
49
históricas à crise de valorização, exacerbou-se nas últimas décadas (1980-2010) a presença da grande indústria na vida social, aumentando, em termos absolutos, o contingente do trabalho vivo inserido na produção de valor. Os trabalhadores assalariados empregados que produzem mais-valia são os operários e empregados ligados a atividades industriais, sejam elas da indústria propriamente dita ou da indústria de serviços (incluindo, por exemplo, a educação e saúde privatizados). Independentemente da forma material da produção de mercadorias – valores de uso tangíveis ou intangíveis, como entretenimento, educação ou saúde – o capital extrai mais-valia da força de trabalho da indústria ou serviços privados. Entretanto, apesar da expansão da grande indústria capitalista, presenciamos hoje a crise do trabalho abstrato, isto é, a crise do trabalho que produz valor, no sentido de que o crescimento em demasia do capital acumulado, graças à crescente extração de mais-valia, encontra, nas condições do capitalismo global, cada vez menos possibilidade de rentabilidade adequada tendo em vista as necessidades sistêmicas de acumulação de riqueza abstrata. É o que salientamos como sendo a crise da formação do valor, no sentido de produção e realização do valor nas condições da crise de superprodução/sobreacumulação e crise de subconsumo. Na verdade, a crise de valorização do capital nas condições da hiperindustrialização capitalista em escala global trata-se de um paradoxo crucial do nosso tempo histórico. Apesar do crescimento do capital acumulado, por conta do crescimento da extração da mais-valia em escala global, presenciamos hoje, nos últimos trinta anos, uma crise crônica do capitalismo mundial, incapaz de garantir crescimento sustentável e preservação dos direitos sociais do mundo do trabalho. Como salientamos acima, a massa de capital-dinheiro acumulado por conta do crescimento da taxa de exploração em virtude da precarização estrutural do trabalho não consegue se realizar de forma adequada no âmbito da produção de mercadorias. O que significa menos possibilidades de investimentos produtivos que conduzam a uma rentabilidade adequada. A vigência da financeirização da riqueza capitalista exprime a deriva íntima do trabalho produtor de valor. O que significa que uma parcela significativa do capital-dinheiro tende a se reproduzir adotando formas fictícias de valorização. Constitui-se assim o “capitalismo fictício” no qual não há lugar, não apenas para o trabalho concreto (o que explica o crescimento do desemprego em massa), mas também para o trabalho abstrato produtor de valor (o que explica a queda, em termos relativos, dos investimentos produtivos). Na verdade, o que tende a se dis-
50
seminar são formas derivadas de valor, com o trabalho abstrato assumindo uma feição fictícia. Mas a crise do trabalho abstrato e suas derivações reflexivas (a precarização estrutural do trabalho e a financeirização da riqueza capitalista) é, paradoxalmente, expressão candente da vigência plena da mais-valia relativa. O capitalismo da grande indústria é o capitalismo da mais-valia relativa que contém, em si e para si, a determinação tendencial do aumento da composição orgânica do capital e o descenso da taxa média de lucro em escala global (com as implicações contratendências históricas salientadas acima). Tanto na indústria propriamente dita, quanto nos serviços capitalistas, ocorreu nos últimos trinta anos a substituição paulatina de “trabalho vivo” por “trabalho morto”. É flagrante o aumento da produtividade do trabalho nos setores produtivos da economia capitalista, seja nas indústrias quanto nos serviços que incorporam cada vez mais a lógica da mais-valia relativa. Na medida em que se elimina “trabalho vivo” produtor de valor, corrói-se a base constitutiva do valor. Reduzem-se as formas constitutivas de valor, apesar de ampliarem-se as formas derivadas de valor (por exemplo, a lógica do trabalho abstrato tende a impregnar as atividades “improdutivas” do capital, inclusive a administração pública, além de permear a vida cotidiana). De modo obsessivo, o discurso do produtivismo capitalista visa reduzir o contingente da força humana de trabalho; isto é, produzir mais, com menos operários ou empregados, substituindo-se assim capital variável por capital fixo. Sob o capitalismo global, caracterizado pela instabilidade sistêmica das crises financeiras, a dinâmica cíclica das crises do capital impulsiona processos de reestruturação capitalista, em que cada capitalista individual tende a expelir mais “trabalho vivo” da produção de mercadorias, a título de redução de custos, e a incorporar, cada vez mais, “trabalho morto”. Cria-se, desse modo, não apenas um “exercito industrial de reserva”, mas sim, um imenso contingente de proletários sobrantes, incapazes de serem absorvidos pela indústria capitalista intensiva em capital. A dinâmica de acumulação do capitalismo global exacerba o caráter da produção redundante da força de trabalho como mercadoria que aparece como “superpopulação relativa” de homens e mulheres supérfluos que se incorporam em atividades “improdutivas” na ótica do valor (o que explica a difusão global das múltiplas atividades de comércio – formais ou informais, lícitos ou ilícitos). A modernidade tardia do capital é irremediavelmente “improdutiva” na ótica do valor. É claro que uma parte das atividades “improdutivas” são interiores à pro-
51
dução do valor, contribuindo desse modo para resolver o problema da realização (o que explica a transferência de uma crescente proporção do capital do processo produtivo às atividades de venda). Entretanto, cresce o contingente de trabalhadores proletários serviçais, formais ou informais, exteriores à produção do capital, que vivem à custa da massa de mais-valia social. Podemos dizer que nos últimos trinta anos de capitalismo global (1980-2010), cresceu indiscutivelmente o contingente de trabalhadores assalariados em escala global. É o que salientamos como sendo a presença da condição de proletariedade universal e global. Entretanto, apesar do crescimento da “classe” do proletariado, ocorreu a redução relativa, embora não absoluta, do contingente de trabalhadores assalariados produtivos empregados na produção de valor. Isto é, no conjunto da “classe” dos trabalhadores assalariados em escala global reduziu-se, em termos relativos, a participação de operários e empregados inseridos na produção de valor, isto é, trabalhadores assalariados produtivos. Isso pode ser explicado pela intensificação da concorrência capitalista no mercado mundial e, por conseguinte, a aceleração das inovações tecnológico-organizacionais na produção de mercadorias com o aumento exponencial da produtividade do trabalho que contribuíram para a redução relativa da participação de trabalhadores assalariados produtivos no conjunto do proletariado global. Nesse sentido, cresceu, em termos absolutos, a extração de mais-valia ou a taxa de exploração da força de trabalho na grande indústria capitalista. O desenvolvimento da precarização estrutural do trabalho com a vigência plena da mais-valia relativa no bojo do crescimento absoluto do contingente de trabalhadores assalariado produtivos (por exemplo, as novas fronteiras de expansão industrial na China e Índia) – mesmo que eles tenham se reduzido em termos proporcionais no conjunto da “classe” do proletariado global – levaram ao crescimento da extração de mais-valia no interior do sistema produtor de mercadoria. O crescimento em demasia da extração da mais-valia é que explica o crescimento do capital acumulado ou massa de capital-dinheiro sedento de valorização. Entretanto, como explicamos acima, a crise de valorização ou crise de formação do valor, isto é, crise de produção e realização do valor, faz com que a massa de capital-dinheiro acumulada pelas corporações monopolistas encontre cada vez menos possibilidade de rentabilidade adequada nas condições do capitalismo global. Por isso, surgem contratendências históricas que permitem a constituição de uma nova dinâmica de desenvolvimento do capitalismo histórico.
52
Essa contradição crucial do capitalismo global pode ser apreendida de outro modo. Por exemplo, a produção de valor cresceu em termos absolutos, mas reduziu-se em termos relativos, ou seja, ela está aquém das necessidades sistêmicas cumulativas de valorização da massa de capital-dinheiro acumulada pelas corporações industriais globais. Por exemplo, uma massa "x" de capital-dinheiro investido na produção requer uma extração "y" de mais-valia. Ora, nas últimas décadas, "x" cresceu absoluta e relativamente; enquanto "y" só cresceu absolutamente (o que explica a interversão, no plano fenomênico, da mais-valia relativa em mais-valia absoluta). O que significa que a extração de valor cresceu numa progressão aritmética, enquanto as necessidades sistêmicas de valorização da massa de capital-dinheiro cresceram numa progressão geométrica, o que explica a vigência do “lucro fictício” como categoria capaz de explicar a necessidade sistêmica irrealizada. Desse modo, constituiu-se uma “fenda” de instabilidade financeira de onde surgem recorrentes “bolhas especulativas” que marcam a dinâmica de acumulação de valor fictício no capitalismo global. Eis, portanto, um traço estrutural que irá marcar o capitalismo mundial no século XXI, apesar das tentativas de regulação política por meio das intervenções estatais cada vez mais incisivas (a explosão da dívida pública nos países capitalistas centrais, depois da crise de 2008, mostra que a crise de valorização tende, cada vez mais, a devorar como o velho Moloch, o “fundo público”, parcela da massa de mais-valia social capturada pelo Estado político, mas agora, re-apropriada pelo capital privado para sanar sua crônica insensatez financeira). Incongruências da Valorização do Capital
Mais-valia Necessária Mais-valia Real
53
8. Crise do “trabalho morto”, trabalho imaterial e desmedida do capital O sistema produtor de mercadorias está objetivamente “afetado de negação”, não apenas por conta da redução do “trabalho vivo” na produção do capital e do problema de realização da mais-valia extraída, mas também devido à própria natureza do “trabalho morto” constituído no bojo das novas revoluções tecnológicas do capital, que incorpora, cada vez mais em sua produção, um tipo de trabalho concreto que possui uma natureza recalcitrante à lógica do trabalho abstrato: o trabalho imaterial e o retorno do saber-fazer na produção. Por isso, surge a “desmedida do capital”, que ocorre devido à absorção, pelo sistema de produção, de elementos compositivos recalcitrantes à lógica da escassez e a quantificação intrínseca à lei do valor, como o trabalho imaterial. Nos últimos trinta anos, o sistema produtor de mercadorias foi atingido por candentes contradições intrínsecas à própria forma-mercadoria. Vamos expor nesta seção do capítulo uma nova percepção da crise de valorização, não apenas a partir da ótica da composição orgânica do capital (como consta no Livro III de O Capital de Karl Marx), mas sim a partir da perspectiva da forma-mercadoria (segundo o Livro I dessa obra marxiana). Na célula-mater da sociedade burguesa (a mercadoria) está contida a virtualidade das suas crises incisivas, sejam elas crises cíclicas, crise orgânica ou crise estrutural. Na medida em que atinge seu pleno desenvolvimento sócio-histórico, sob a terceira modernidade do capital, a forma-mercadoria explicita, ampla e intensamente, suas determinidades negativas. Na verdade, o sistema sócio-metabólico do capital tende a ser “afetado de negações” no interior do próprio capitalismo. A crise estrutural do capital, como crise de valorização produtiva do capital, expõe, num sentido radical, os dilaceramentos intrínsecos à forma-mercadoria, ou seja, a aguda contradição entre valor de troca (valor econômico) e valor de uso (valor humano). A intensificação (e nova amplitude) da crise da forma-mercadoria, sob as condições históricas da crise estrutural do capital, ocorre em virtude da crise estrutural do trabalho abstrato, o trabalho produtor de valor, fundamento do valor de troca. Alucinada pelo desmanche de seu fundamento (o valor, em virtude da crise do trabalho abstrato), a forma-mercadoria se transfigura, perdendo tendencialmente o seu estatuto mediativo na formula geral do capital (D-M-D’). Em seu lugar, se
54
põe a fórmula espúria D-D’, explicitação da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata, estigma da financeirização, que representa, nessa nossa perspectiva crítica, sintoma da crise da forma-mercadoria e crise do trabalho abstrato. Uma de nossas hipóteses é que o trabalho imaterial é a explicitação – ou é mais um elemento de manifestação contingente – da crise do trabalho abstrato, não apenas no sentido da crise do “trabalho vivo” (que é mercadoria-força de trabalho); mas também da crise do “trabalho morto”, no sentido da desmedida do capital que transtorna a “medida” efetiva da produtividade do trabalho que promove a desvalorização do capital constante, uma das contratendências históricas ao aumento da composição orgânica do capital que pressiona a queda da taxa média da taxa de lucros é a desvalorização do capital constante. A presença do trabalho imaterial, como uma forma de trabalho concreto recalcitrante ao movimento de abstração do valor que permite a medida efetiva da valorização, é mais um traço crucial de “negação do capitalismo no interior do próprio capitalismo” e que atinge o sistema sócio-metabólico do capital em sua etapa de crise estrutural. É um dos elementos de negatividade que tende a desmanchar a forma-mercadoria no sentido da sua desmedida. Destacaríamos como duas determinações cruciais da crise do trabalho abstrato, (1) a dinâmica estrutural intrínseca à produção do capital, que percorre a passagem da manufatura para a grande indústria e a própria temporalidade da grande indústria, isto é, a substituição progressiva de “trabalho vivo” por “trabalho morto”, a passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, que salientamos acima; e (2) a constituição de um “novo saber” do trabalho concreto nas instâncias dinâmicas de produção do capital, resistente às determinações do trabalho abstrato. Esse novo saber, o trabalho imaterial, decorre do próprio desenvolvimento da nova base técnica do sistema produtor de mercadorias, das novas máquinas complexas que constituem o arcabouço da produção social. Por um lado, “trabalho vivo” reduzido a “trabalho morto”; por outro lado, “trabalho morto” inteligente (as novas máquinas complexas) tendencialmente recalcitrante à medida do valor. Embora tão necessário às novas condições de produção social, o “novo saber” tende a não agregar, na produção do capital, valor de troca (valor econômico). Apesar do trabalho imaterial estar subsumido à máquina como forma social do capital, ele por suas qualidades intrínsecas de forma material não consegue produzir trabalho abstrato, além de estar aquém (ou além) da lógica da produtividade do capital. A natureza deste “novo saber” que impregna o processo de
55
trabalho das novas máquinas capitalistas tende a negar, em si, a ordem material do trabalho abstrato, pois é, em si, irredutível à quantificação pelo tempo de trabalho. O que significa que o “novo saber” não é passível de ser precificado; e ainda é incapaz de ser formalizado, e portanto, transformado em “máquina”, como ocorre, por exemplo, com o conhecimento que, formalizado, se interverte em máquina (o que coloca limites irremediáveis ao incremento da produtividade no setor I da economia capitalista, o setor de bens de produção). Na verdade, o trabalho imaterial tende a ser um nexo “estranho”, sempre tensionado, na ordem produtiva do capital. Isso não significa que o “novo saber” não está integrado – ou não é parte compositiva – da produção do capital. Pelo contrário, ele é sim, parte do capital, regido pela sua lógica. Mas o capital está diante de seu próprio limite intrínseco: a natureza do “trabalho vivo”, a sua dimensão anímica, indispensável para a produção de máquinas complexas. Na medida em que o “novo saber” assume um papel estratégico na produção do capital constante, constituído cada vez mais pelo “trabalho morto” inteligente – diga-se de passagem, “inteligência artificial” – abre-se um campo de luta, de tensão pela formalização do “trabalho vivo” criador do “trabalho morto”, pela “captura” da subjetividade da força de trabalho como trabalho vivo, trabalho vivo reduzido, mas indispensável (e ineliminável) à produção do capital, com a tentativa perpétua de formalização do trabalho vivo ou do trabalho imaterial, adequando-o à materialidade do trabalho abstrato. O que explica, portanto, a busca recorrente de novas formas de gestão de pessoas nos locais de trabalho. O processo de produção do capital, que é o processo de produção do trabalho abstrato, fundamento da forma-mercadoria, percorre a transição da manufatura para a grande indústria. Como salientamos, é um processo de substituição de “trabalho vivo” pelo “trabalho morto”. Ele contém em seu bojo a apropriação pelo capital do saber tácito do mundo do trabalho vivo, e sua transformação (ou formalização) em conhecimento, que através da ciência, é transformado em tecnologia, forma social da técnica. A máquina é expressão desta cristalização do saber em conhecimento fetichizado. O “trabalho vivo” se defronta com a máquina como uma coisa estranha a si próprio, quando ela é, na verdade, a cristalização de um conhecimento apropriado pelo capital, de um saber tácito formalizado e que se transfigura em capital fixo. Esse movimento de abstração do “trabalho vivo” em “trabalho morto” é o desenvolvimento do sistema de máquinas.
56
Como salientamos, a máquina é a expressão suprema do trabalho abstrato (a máquina é, em si, um ente abstrato par excellence). Entretanto, ao negar o “trabalho vivo”, a máquina tende a negar a própria fonte de valor, a força de trabalho. Desse modo, o trabalho abstrato ao surgir em sua plenitude é negado pelo seu próprio movimento. A lei do valor tende a ser abolida ao surgir. Como um organismo vivo, começa a morrer ao nascer. O surgimento da máquina expressa o ápice de desenvolvimento contraditório da produção de mercadorias. Mas é importante acompanhar o próprio desenvolvimento do sistema de máquinas. As novas máquinas complexas, capital fixo “inteligente”, tendem a repor, nas condições da crise estrutural (sendo elas o fator tecnológico desta própria crise estrutural), o “trabalho vivo” negado tendencialmente pelo próprio movimento da subsunção real do trabalho ao capital. Entretanto, o trabalho vivo que se põe, em sua forma concreta, como trabalho imaterial, repõe um “novo saber”, não mais o saber artesanal, tendo em vista que o saber artesanal pertencia a um estágio menos desenvolvido das forças produtivas do trabalho social, mas o saber imaterial, produto de (inter)subjetividades complexas, tensionalmente integrada à lógica do capital (inclusive parte dele), irredutível às medidas abstratas e impassível à formalização visando à produtividade do trabalho. Sob a grande indústria, a formalização do saber em conhecimento compunha o mote da educação técnica, que adestrava homens e mulheres à linha de produção, ao seu posto de trabalho, quase como máquinas vivas, logo substituídas por capital fixo. O segundo momento, de “crise da grande indústria”, que prenuncia, na acepção de Ruy Fausto, a “pós-grande indústria”, é o momento de emergência do novo saber das (inter)subjetividades complexas que são obrigadas a lidar com as novas máquinas, inclusive máquinas que exigem afetos e envolvimento; um novo saber resistente à mera formalização abstrata (que tanto alimentou a lógica do trabalho abstrato em sua odisseia mecânico-industrial). Desse modo, é que podemos dizer que temos hoje a crise da educação técnica como mero adestramento profissional. Enfim, o que observamos não é um mero retorno do saber artesanal, até porque o “novo saber” inscrito no trabalho imaterial – não podemos esquecer – é parte compositiva do trabalhador coletivo do capital, isto é, da máquina capitalista. O “novo saber” não é exterior à implicação do trabalho abstrato, sendo ele próprio expressão da subsunção real do trabalho ao capital. Mas, o que buscamos salientar é que ele é uma interioridade tensa, convulsionada pela sua própria natureza, que
57
abre, hoje, nos locais de trabalho, dos eixos dinâmicos de acumulação de valor, um campo de luta de classes. O trabalho imaterial como trabalho concreto expressa, enquanto elemento compositivo do trabalhador coletivo do capital e, portanto, subsumido à lógica do valor, o pleno desenvolvimento da materialidade contraditória do trabalho abstrato. O trabalho imaterial e seu “novo saber” nascem dessa contradição intrínseca à forma-máquina, a contradição entre forma material como técnica e forma social como capital. Em seu momento mais desenvolvido, a contradição essencial da relação-capital se explicita, paradoxalmente, na reprodução do “trabalho vivo” como “novo saber”, trabalho imaterial que compõe, ao lado de outros elementos, a manifestação explícita da crise do trabalho abstrato.
58
Capítulo 3
A condição de proletariedade Por uma analítica existencial da classe do proletariado
A
analítica existencial do proletariado a partir do conceito de “condição de proletariedade” pode ser considerada a base categorial-objetiva para construirmos, na perspectiva dialético-materialista, uma teoria da classe social do proletariado que consiga, por um lado, romper com as incrustações positivistas que impregnam as elaborações sociológicas (e marxistas) do conceito de classe social e, por outro lado, salientar a centralidade ontológica do processo de formação do sujeito histórico de classe capaz de promover a práxis emancipatória no século XXI. Entretanto, nosso objetivo, neste capítulo de livro, é mais modesto, isto é, pretendemos tão somente esclarecer o significado da categoria de condição de proletariedade e sua distinção do conceito de classe social do proletariado. Para nós, enquanto “classe” diz respeito ao sujeito histórico capaz de ação social e política, em si e para si (e para além de si), capaz de “negação da negação” da alienação em suas múltiplas determinações; a “condição de proletariedade” designa a condição existencial objetiva historicamente constituída pelo modo de produção do capital e no interior da qual pode (ou não) se constituir o sujeito histórico de classe. A condição de proletariedade é uma categoria social descritiva dos atributos existenciais das individualidades pessoais de “classe” subsumidas ao modo de produção capitalista. Estar imerso na condição existencial de proletariedade não significa necessariamente pertencer à classe social do proletariado. Nesse caso, são apenas proletários, homens e mulheres da “multidão” ou homens e mulheres do “povo” que pertencem à “classe” do proletariado (com aspas). A multidão e o
59
povo designam as individualidades pessoais imersas na condição de proletariedade que expressa o ser-aí (dasein) de homens e mulheres reduzidos objetivamente à condição de alienação e estranhamento social. A multidão e o povo se constituem como classe no sentido pleno do conceito quando se indignam, resistem individual ou coletivamente, ou ainda, se organizam e lutam, em si e para si, como sujeito histórico de classe capaz de mudança social contra a condição de proletariedade. A constituição do “em-si” e “para-si” da classe percorre um longo (e complexo) continuum que vai da contingência à necessidade histórica. O conceito de “classe social” é um dos mais cruciais conceitos para a explicação crítico-ontológica da práxis humano-social na sociedade burguesa. Existe uma densa, rica e controversa elaboração teórico-analítica do conceito de classe social nas ciências sociais e principalmente no marxismo do século XX (SILVA, 2009; GIDDENS e HELD, 1982; ESTANQUE, 1997). Entretanto, não temos a mínima pretensão de expor, neste ensaio, os desdobramentos sinuosos desse instigante debate marxista (ou sociológico). Nas várias elaborações do conceito de “classe social” entre os marxistas no século XX, perpassa a candente tensão entre estruturas e condições objetivas, por um lado; e sujeitos, ações coletivas e identidades, por outro. Por um lado, alguns marxistas estruturalistas (ALTHUSSER e BALIBAR, 1973; POUL, 1975; COHEN, 1978) salientam as condições objetivas para descrever as classes sociais reduzidas a “lugares” ou “posições” nas estruturas de produção historicamente determinados. As classes sociais seriam produzidas, dum ponto de vista altamente abstrato, pela estrutura e pela dinâmica dos modos de produção. Para eles, é a organização social da produção a principal instância que determina os lugares estruturais “vazios” a serem preenchidos e ocupados pela posição dos agentes sociais, vistos como simples portadores desses lugares ou funções resultantes da estrutura de classes. Na verdade, os agentes sociais surgem como efeitos da “determinação estrutural de classes”. Nesse caso, o conceito de classes sociais tem um tratamento meramente descritivo, que pode ser aplicado a outros modos de produção (pode-se referir assim a estrutura de classes na Antiguidade ou na Idade Média, por exemplo). Nessa perspectiva, o conceito de “classe social” do proletariado perde sua dimensão histórico-categorial intrínseca à modernidade do capital e sua vinculação ontológica à constituição efetiva do sujeito histórico capaz de “negação da negação”. Mesmo autores como Erik Olin Wright (1985, 1998) e inclusive Bourdieu (1979,1980), apesar de serem críticos do marxismo estruturalista, procurando desenvolver uma análise do conceito de classe em termos mul-
60
tidimensionais e níveis diferenciados, mas complementares de análise, não conseguem ir além do procedimento descritivo e fatorialista da classe posta como um datum sociológico. Por outro lado, outros autores marxistas, como E.P. Thompson (1982) e Antonio Gramsci (1974), ou ainda Eric Hobsbawn (2003) e Robert Brenner (1998) tendem a salientar que a determinação mais relevante na configuração das classes sociais não seria a estrutura de classes, mas sim os processos históricos, as práticas culturais, as sociabilidades, experiências e lutas vividas pelos agentes sociais nos locais de trabalho e cotidiano. Essas determinações históricas, sociais, politicas e culturais seriam decisivas na formação de classe, com o desenvolvimento da consciência de classe, a organização e mobilização de classe. Nesse caso, o conceito de classe social não seria um datum sociológico, mas como observou Thompson, “um fenômeno histórico, algo que de fato ocorre nas relações humanas” (THOMPSON, 1982). Para nós, “classe social” não é uma categoria descritiva, mas sim o que denominamos de categoria-espectral no sentido de categoria social como forma de ser ou determinação da existência capaz de expressar o devir histórico-coletivo de individualidades pessoais subsumidas na condição de proletariedade. Nesse caso, a categoria “classe social” implica uma densa articulação entre objetividade e subjetividade que não se reduz a meros “lugares”, “posições” determinados por “fatores” econômicos, políticos ou ideológicos. Na ótica dialética (e ontológica), o conceito de classe social e consciência de classe expressam, em si e para si, a interconexão essencial entre liberdade e necessidade, teleologia e causalidade, objetividade e subjetividade do homem que trabalha, sendo, deste modo, ao lado do conceito de práxis, um dos mais importantes conceitos das ciências sociais capaz de explicar a mudança histórica. Renegá-lo, como fazem hoje, é abdicar da lucidez necessária para apreender o movimento do real.
1. Exploração e Estranhamento Num primeiro momento, é importante salientar a distinção crucial, no legado marxiano, entre teoria do estranhamento e teoria da exploração, destacando que o conceito de classe social do proletariado que iremos apresentar, a partir do conceito de condição de proletariedade, tem como base teórico-metodológica a teoria do estranhamento cujos princípios fundamentais foram expostos por Karl Marx nos
61
“Manuscritos de Paris”, de 1844. Essas distinções categoriais – teoria do estranhamento/teoria da exploração, “classe” do proletariado (com aspas) e a classe social do proletariado e o conceito de condição de proletariedade – são elementos categoriais importantes para construirmos uma teoria da classe social do proletariado capaz de ir além do viés estrutural-positivista. Pode-se dividir, a título meramente heurístico, a teoria de Marx e sua crítica do capital, pelo menos em duas construções teórico-analíticas fundamentais: teoria da exploração e teoria do estranhamento.
Teoria da exploração Valor/Mais-valia (trabalho produtivo/trabalho improdutivo) “em-si”
Teoria do estranhamento Relações sociais/práxis histórica (sujeito/objeto) “para-si”
A teoria da exploração é o complexo categorial que explica a dinâmica estrutural de produção e acumulação de valor, telos (ou finalidade intrínseca) do sistema de controle sociometabólico do capital. Para explicar a produção do capital, Marx explicitou em seus textos as categorias de mais-valia, trabalho abstrato/trabalho concreto, trabalho produtivo/trabalho improdutivo, dentre outras. A teoria da exploração é exposta por Karl Marx no decorrer da critica da economia política, alcançando na obra O Capital (1867) seu ápice de desenvolvimento científico. A teoria do estranhamento é o complexo categorial que explica a desefetivação do ser genérico do homem que trabalha a partir das relações sociais/práxis histórica, constitutivas do trabalho estranhado e da vida social estranhada subjacente à produção do capital (relações sociais entre sujeito/objeto mediadas pelas relações sociais sujeito/sujeito). Os elementos primordiais da teoria do estranhamento estão expostos nas obras de juventude de Marx, com destaque para os “Manuscritos de Paris” (1844). Mesmo em O Capital, de 1867, a discussão sobre o fetiche da mercadoria e seu segredo remete à teoria do estranhamento, na medida em que Marx explica, a partir da forma-mercadoria, uma determinada forma de consciência social estranhada (na verdade, a teoria do fetichismo é um desdobramento teórico-categorial interno da própria teoria do estranhamento nas condições do capitalismo histórico). Portanto, enquanto a teoria da exploração trata do “em-si” e da dimensão estrutural e, portanto, das leis tendenciais históricas do modo de produção capitalis-
62
ta, a teoria do estranhamento trata do “para-si” e do conteúdo material da práxis histórica (as relações sociais). É importante salientar que a divisão entre teoria da exploração e teoria do estranhamento é meramente heurística, tendo em vista que a exploração sempre pressupõe estranhamento (ou trabalho estranhado) e o trabalho estranhado, sob o modo de produção capitalista, pressupõe exploração.
2. A condição de proletariedade A condição de proletariedade é o elemento fundante (e fundamental) do trabalho estranhado: só há trabalho estranhado ou trabalho assalariado porque há proletários ou homens e mulheres imersas numa condição histórico-existencial de proletariedade, obrigados, pela necessidade de sobrevivência, a se submeterem às condições da exploração capitalista. Mas pode-se dizer também que só há proletários porque há trabalho estranhado como modo de produção de mercadorias baseado na exploração da força de trabalho. A condição de proletariedade é produzida (e reproduzida) pelo modo de trabalho (e vida) capitalista. Nesse caso, o trabalho estranhado (ou trabalho assalariado) aparece como o modo de ser da expropriação como alienação sistêmica ou alienação reiterativa do sistema sociometabólico do capital. A condição de proletariedade é produzida pelo ato histórico de alienação primordial (a assim dita “acumulação primitiva”), reposta historicamente pelo desenvolvimento capitalista, isto é, reproduzida pela alienação sistêmica, que aparece sob a forma do trabalho estranhado. Por isso, é interessante dissecarmos as dimensões do trabalho estranhado e vida social estranhada para apreendermos, desse modo, o metabolismo social da condição histórico-existencial de proletariedade. No Terceiro Manuscrito intitulado “Trabalho Estranhado” (Entfremdung Arbeit) dos “Manuscritos de Paris” ou “Manuscritos econômico-filosóficos” (de 1844), Karl Marx desvela os elementos que constituem, em si e para si, o que chamamos de condição de proletariedade. Na verdade, Marx expôs a natureza do trabalho estranhado e suas derivações sócio-reprodutivas (o estranhamento social). Nesse texto, ele não trata somente da produção social, mas também de elementos da reprodução social, expondo assim o metabolismo social da própria condição de proletariedade.
63
Primeiro, Marx se posiciona na perspectiva na totalidade social. Ele não desvincula trabalho e vida; para homens e mulheres imersos na condição de proletariedade, trabalho é vida e vida é trabalho. Inclusive, o trabalho estranhado, no tocante às suas derivações sistêmicas, envolve também aqueles que não estão vinculados direta ou indiretamente à produção do capital propriamente dito (na mesma medida em que, na sociedade do fetichismo, a forma-mercadoria impregna os produtos-objetos que não são mercadorias propriamente ditas). Karl Marx trata de um sistema social baseado no trabalho estranhado cuja vida social é estranhada em suas múltiplas manifestações vitais. O que significa que a condição de proletariedade é uma condição universal, no sentido de dizer respeito a uma condição ontológica do homem proletário subsumido ao trabalho estranhado, fundamento orgânico do processo de modernização do capital –, que tende a se universalizar, pois o modo de produção do capital tem como uma de suas características ontológicas, a expansidade e universalidade em si e para si, Enfim, o processo de efetivação da condição de proletariedade no sentido de sua universalização acompanha o movimento voraz do capital como “sujeito automático” que constitui a modernidade-mundo. Ao tratar do trabalho estranhado, em 1844, Karl Marx colocou os primeiros rudimentos da sua crítica da sociedade burguesa. Naquela época, Marx ainda não tinha desenvolvido sua teoria crítica do capital, faltando-lhe maior clareza sobre os nexos categoriais constitutivos do modo de produção capitalista e da dinâmica da acumulação de capital. Entretanto, consideramos que o jovem Marx colocou diante de si o eixo estruturante de sua intervenção crítico-intelectual que ele iria aprimorar no decorrer dos anos por meio de sua crítica da economia política. O conceito de trabalho estranhado, base estruturante da vida estranhada, se delineia no decorrer da apresentação que o jovem Marx faz dessa totalidade concreta do mundo burguês. São perceptíveis os nexos essenciais entre produção e reprodução social, trabalho e vida cotidiana, objetividade e subjetividade do homem que trabalha. Eles compõem uma totalidade na qual está imerso o individuo social de classe. Estamos diante de uma arquitetura categorial complexa daquilo que denominamos de “condição de proletariedade”, construto teórico-analítico que busca apreender as implicações objetivas e subjetivas da perda (ou da negação) do homem como ser genérico no sistema do capital. Para Marx, o trabalho estranhado possui múltiplas dimensões que se desvelam na medida em que ele discorre dialeticamente, no Terceiro Manuscrito, sobre as in-
64
terconexões causais obnubiladas pela perspectiva da economia política (ele salienta os polos aparentemente antípodas – pobreza e riqueza e trabalho e vida social). O trabalho estranhado ou trabalho assalariado é uma forma histórica do trabalho humano-social. A base fundante (e fundamental) de toda forma histórica de trabalho é o trabalho como categoria ontológica do ser social. O trabalho como categoria ontológica do ser social é o pressuposto negado (mas efetivo) do trabalho estranhado e do trabalho capitalista como forma histórica particular-concreta de trabalho. Nesse caso, o “trabalho estranhado” existiu em formas sociais pré-capitalistas (como o trabalho escravo ou o trabalho servil). Mas o trabalho capitalista (ou trabalho assalariado) é uma forma histórica mais desenvolvida, capaz, portanto, de explicar as formas pretéritas de trabalho e estranhamento social (LUKÁCS, 1981). A condição de proletariedade se desenvolve com o trabalho estranhado capitalista. Ela emerge com a modernidade do capital, tornando-se condição universal das individualidades de classe despossuídas da propriedade dos meios de produção da vida social. A condição de proletariedade se caracteriza, portanto, pelos elementos compositivos da relação-capital no plano das individualidades alienadas ou “trabalhadores livres”. Homens e mulheres imersos na condição de proletariedade são individualidades sociais que não possuem a propriedade e/ou a posse (e, portanto, o controle) das condições de produção da vida social. É a partir dessa condição sócio-estrutural alienada que podemos derivar as múltiplas atribuições existenciais da proletariedade moderna ou condição de proletariedade.
Condição de proletariedade
Trabalho estranhado (trabalho assalariado)
Processo de proletarização relação-capital (expropriação – subalternidade) (individualidade pessoal – individualidade de classe)
65
A ideia de “condição” é dada quase como um “destino”. O que significa que cada um de nós nasce numa determinada condição histórico-existencial transmitida de geração em geração. A condição de proletariedade é a condição histórico-existencial da modernização do capital que se caracteriza pela alienação/expropriação irremediável do homem que trabalha das condições objetivas e subjetivas da produção da vida social. Essa expropriação (ou alienação) irremediável é o que tem caracterizado a história do Ocidente desde o século XVI, com destaque para a expropriação de camponeses, pequenos artesãos e comerciantes atingidos pelo processo de proletarização. O conceito de proletarização significa o processo de expropriação/despossessão objetiva (e subjetiva) dos meios de produção da vida social. A perda da propriedade pessoal e a imersão na condição de proletariedade, que os constitui como individualidades de classe, é o processo de proletarização. A proletarização joga homens e mulheres expropriados no mundo social da “classe” do proletariado (ainda não caracterizados enquanto classe social em-si ou para-si). Nesse caso, ocorre a passagem da individualidade pessoal, marcada pelo domínio imediato de meios (e instrumentos) de produção da vida social e comunitária, para a individualidade de classe, marcada pela expropriação dos meios (e instrumentos) de produção da vida e subalternização diante das condições objetivas (e subjetivas) da produção do capital (o que não significa que a dimensão pessoal da individualidade humana seja abolida, mas é apenas sobredeterminada, constituindo-se o que denominamos individualidade pessoal de classe) (ALVES, 2009). Desse modo, o homem proletário é o homem imerso na relação-capital que implica, por um lado, expropriação (a alienação do objeto constituindo diante de si, o poder da propriedade privada); e por outro lado, subalternidade.1 A passagem categórica da individualidade pessoal para a individualidade de classe significa a submersão na vida contingente e a imersão no acaso. Na verdade, o processo de proletarização que marca a ocidentalização do mundo constituiu um novo tipo humano, o homem submetido às coisas ou ao poder das coisas, como diria Marx.
1
A alienação da atividade ou do processo de trabalho, sendo deste modo, no plano da reprodução social o homem proletário, um ser subalterno às objetivações sociais – classe social, ideologia, Estado político, salário. Assim, o proletário como individuo de classe está imerso na subalternidade dada pela divisão hierárquica do trabalho, e na contingência e acaso, dada pelas relações de mercado.
66
Enfim, o homem alienado ou homem desefetivado como sujeito é o homem moderno, homem burguês, dividido em si e clivado de contradições diante do mundo social reificado. Trata-se de uma condição histórico-existencial, e não uma condição ontológica do homem como ser jogado no mundo e destinado à morte, como supõe algumas correntes filosóficas que elevam a condição de proletariedade a uma condição ontológica do homem. Desse modo, o existencialismo ateu, com sua metafísica da angústia, expressa, na verdade, os traços históricos do pleno sentimento da alienação capitalista. Portanto, é do processo social de proletarização, processo originário e sistêmico do metabolismo social do capital, que emerge a condição de existência (des) humana da civilização do capital, a “condição de proletariedade”, caracterizada por uma série de atributos histórico-existenciais que se disseminam pela sociedade burguesa: subalternidade, acaso e contingência, insegurança e descontrole existencial, incomunicabilidade, corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento. Podemos destacar ainda outros traços histórico-existenciais como risco e periculosidade, invisibilidade social, experimentação e manipulação, prosaísmo e desencantamento, credulidade e fé, plasticidade, resignação.2
2
Por exemplo: é o prosaísmo da vida burguesa que impele as individualidades pessoais de classe a se projetarem em “fantasias heroicas” que tende a elevá-las, sob determinadas circunstâncias, acima da pseudoconcreticidade da vida cotidiana; é a plasticidade no plano ocupacional e territorial que caracteriza as camadas pobres do proletariado nos movimentos de realização/desrealização laboral e nas diferentes formas de trabalho concreto e seus conteúdos políticos, espaciais e as respectivas dinâmicas territoriais dos conflitos e disputas (THOMAZ JUNIOR, 2012).
67
Atributos existenciais da proletariedade Subalternidade Acaso e Contingência Insegurança e descontrole existencial Incomunicabilidade Corrosão do caráter Deriva pessoal e sofrimento Risco e periculosidade Invisibilidade social Experimentação e manipulação Prosaísmo e desencantamento Credulidade e Fé Plasticidade Resignação
Tais atributos existenciais da “condição de proletariedade” permeiam as múltiplas relações sociais, direta ou indiretamente ligadas à produção/reprodução social do sistema do capital. Elas se tornam atributos existenciais da vida burguesa atingindo, por derivação e difusão, a cotidianidade de proletários e não proletários propriamente ditos. O ser “proletariado”, no sentido fraco da palavra, diz respeito a uma condição objetiva de existência (ou “condição de proletariedade”), cujos atributos existenciais tendem a tornarem-se, sob a sociedade burguesa, atributos universais das individualidades pessoais de classe. O ser proletariado pode dizer respeito também a uma classe social no sentido pleno de sujeito histórico-coletivo, com maior ou menor efetivação (o que exige outras mediações concretas como instituições sociais, políticas ou culturais capazes de produzir um tipo específico de consciência social: a consciência de classe).
68
3. O conceito de “classe social” A condição de proletariedade, condição histórico-particular que surge com a modernidade do capital (e que se amplia e expande-se nos últimos séculos), põe a possibilidade objetiva da “classe social” como categoria sociológica, classe social como sujeito histórico-coletivo. O conceito de classe social, com o “proletariado” constituindo a classe social por excelência, é um dos conceitos sociológicos da maior relevância epistemológica. Na verdade, é um conceito científico indispensável para a episteme da emancipação social (o que explica o desprezo que as ideologias liberais e pós-modernas, ideologias conservadoras da ordem do capital, têm com o conceito de classe social). A rigor, a classe social do proletariado é a classe social por excelência porque só ela, e não a burguesia, tem a possibilidade concreta – e tão somente a possibilidade – de promover a “negação da negação”, isto é, a negação da condição de proletariedade por meio da constituição processual da consciência de classe e luta de classe (classe social no sentido de sujeito histórico capaz de transformação histórica efetiva). Assim, o “proletariado” é a classe social por excelência porque é a única “classe” capaz de, sob determinadas condições, ir além da condição de proletariedade, negando, desse modo, a relação-capital. Na verdade, capital e trabalho assalariado são determinações reflexivas da relação-capital e não meros “polos” da relação social fundamental e fundante da modernidade burguesa. É importante lembrar que o léxico dialético não utiliza o termo “polos”, mas, sim, “determinações reflexivas”, contraditórias e antagônicas, cujo movimento efetivo do real pode conduzir (ou não) à superação (Aufhebung) da relação social antagônica. Nesse caso, a rigor, a abolição da relação-capital pressupõe não apenas a abolição do capital, mas também a abolição/emancipação da sua determinação reflexiva: o trabalho assalariado. A condição de proletariedade põe apenas a possibilidade objetiva da “classe social”, mas quem a constitui efetivamente, no sentido da classe em si e para si, é a luta de classe, isto é, o movimento social da “classe” mediado pelas instituições políticas e culturais capazes de propiciar, por meio de processos de subjetivação radical e organização social, política e cultural, a formação da consciência de classe. Existe um largo espectro de formas de ser da consciência de classe em sua processualidade sócio-histórica, um continuum complexo de formas de consciência
69
social que percorre as dimensões da pré-contingência ou ainda as dimensões da contingência e necessidade, isto é, do “em-si” e do “para-si” da classe. Como salientamos acima, buscamos elaborar, a partir de Marx (e não segundo Marx), uma teoria do proletariado como sujeito histórico coletivo, tomando como ponto de partida, a teoria do estranhamento3 e não a teoria da exploração, como tem sido comumente tratada pela tradição marxista (o que pressupõe salientar a ideia de formação da classe como sujeito histórico-coletivo). Obviamente, não desprezamos a teoria da exploração tendo em vista que ela constitui a base material-objetiva da própria condição de proletariedade. Entretanto, na medida em que a teoria do estranhamento diz respeito ao processo de (de)formação do sujeito humano como ser genérico, ela torna-se o elemento categorial capaz de explicar a constituição da classe social do proletariado como sujeito histórico capaz de “negação da negação”. Além disso, ao dizermos que elaboramos uma teoria do proletariado “a partir de” Marx e não “segundo Marx” (como supõe uma leitura imanente de O Capital, por exemplo) significa que algumas afirmações podem não estar de acordo literalmente com Marx, tendo em vista que o objeto categorial visado por Marx no século XIX não é o objeto categorial que visamos no século XXI. Na medida em que o capitalismo (e o proletariado) visado por Marx é (e não é) o capitalismo (e o proletariado) visado por nós, uma teoria do proletariado segundo Marx não seria uma teoria científica. Na verdade, segundo o método dialético, todo conceito (como o de “proletariado”) é uma categoria, ou seja, é uma forma de ser e modo de existência historicamente determinada. Tornou-se corriqueiro na tradição marxista, ao discutir-se o conceito de proletariado, tratar-se, de imediato, da questão do “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”, como se o problema da classe do proletariado pudesse ser resolvido a partir desta distinção sócio-estrutural. Desse modo, tende-se a reduzir proletariado aos “trabalhadores produtivos” (na verdade, esta é a visão marxiana historica3
A teoria do estranhamento é uma teoria da negação/afirmação do sujeito humano-social. É por isso, uma teoria da práxis que se distingue, em seu estatuto epistemológico, da teoria da exploração, como teoria das estruturas (ou mecanismos) do movimento do capital (uma teoria da classe do proletariado a partir da teoria da exploração seria meramente a teoria de uma “classe em inércia” – o que é uma contradição em termos. A rigor, “classe em inércia” é a própria “negação” da categoria de classe social como fato onto-epistemológico inovador da modernidade do capital) (para uma teoria das classes – como “classe em inércia” – vide Fausto, 1986).
70
mente determinada). Mas o pior é que se presume também, sem questionamentos, que o proletariado como sujeito histórico-coletivo, ou seja, como “classe social” no sentido legítimo da expressão categorial, é um dado sociológico-estrutural ligado a uma posição objetiva na divisão social do trabalho. Por isso, imagina-se que é suficiente identificar, segundo a ótica da teoria da exploração, os atributos estruturais da classe do proletariado. Consideramos que essa mudança de enfoque analítico (tratar da classe do proletariado a partir da teoria do estranhamento) contribui para expor em nossos dias aspectos novos do significado de “proletariado” segundo as condições do capitalismo desenvolvido no século XX. Por exemplo, segundo a ótica dialético-materialista (e histórica) que apresentamos, a título de hipótese, proletariado aparece como “classe” (com aspas), no sentido de condição de proletariedade; e como classe, no sentido de “classe em si/classe para si” (enfim, proletariado como classe pressupõe algum grau de consciência de classe). A categoria de proletariado como classe, ou seja, como sujeito histórico-coletivo, é radicalmente uma construção histórica da mais alta relevância e não um mero dado sociológico-estrutural. Isto é, o proletariado (como classe) não nasce feito, mas se faz no devir histórico, fazendo-se e desfazendo-se; tornando-se visível e invisível, dependendo das condições históricas específicas. Entendemos que o conceito de classe social tem uma importância fundamental no materialismo histórico, sendo o ponto de partida da própria critica da economia política. Entretanto, nem Marx nem Engels formularam de maneira sistemática o conceito de classe social. É a materialidade intensamente social e agudamente contraditória do modo de produção capitalista que constitui ontologicamente a categoria em si de classe social. A descoberta do “proletariado” na década de 1840 significou para Marx e Engels a descoberta do “movimento real que supera o estado de coisas atual” (como afirmam na “Ideologia Alemã”). Eles observaram que a “própria classe é um produto da burguesia”. Desse modo, “classe” é uma categoria distintiva da sociedade burguesa. Podemos dizer que nas sociedades pré-capitalistas não havia propriamente “classes sociais”, mas grupos de status, ordens, e múltiplas gradações de categoriais sociais. Embora Marx afirme a existência de uma divisão fundamental de classes em todas as formas de sociedade que sucederam as antigas comunidades tribais, divisão fundamental de classe baseada na relação direta entre proprietários das condições de produção e os produtores diretos, que segundo ele (n’O Capital) “revela o
71
segredo mais íntimo, o fundamento oculto de todo edifício social” (MARX, 1986), consideramos que o significado pleno de “classe” só aparece na sociedade burguesa, e que tem no proletariado não apenas uma das classes fundamentais, mas a classe social propriamente dita que expressa como potentia o sentido ontológico da “classe” como sujeito histórico. Deste modo, podemos distinguir duas acepções de “classe”: Primeiro, existe uma acepção sociológica de “classe” que distingue na sociedade capitalista duas classes fundamentais em função da divisão social do trabalho: a classe dos trabalhadores assalariados e a classe da burguesia. Classe, nesse sentido, possui um significado funcional-estrutural (funcional para o capital), como aparece nesta passagem do livro “Miséria da Filosofia” (de Karl Marx, de 1847). Diz ele: As condições econômicas transformaram, em primeiro lugar, a massa do povo em trabalhadores. A dominação do capital sobre os trabalhadores criou a situação comum e os interesses comuns desta classe. Assim, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas não ainda uma classe para si mesma. Na luta, da qual indicamos apenas algumas fases, essa massa se une e forma uma classe para si. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe (MARX, 1985, p. 124). Em síntese, por um lado, os capitalistas ou os proprietários das condições de produção, e por outro lado, os trabalhadores assalariados, trabalhadores subalternos, os produtores diretos (ou indiretos, no caso de sociedades de classe mais complexas) alienados do controle da produção social da vida constituem as “classes” fundamentais da sociedade burguesa. Nesse sentido, “classe” possui um significado mais sociológico propriamente. Ainda nesta acepção descritiva de classe social, temos a categoria intermediaria de “classe média” que no decorrer do capitalismo tende não apenas a crescer numericamente, mas a adquirir feições próprias no decorrer de cada estágio de desenvolvimento histórico do sistema do capital. A utilização do termo “classe média” possui outro estatuto teórico-analítico: é mais uma categoria da estratificação social do que propriamente da estrutura de classes, embora, como iremos verificar adiante, a estratificação social exerce sua efetividade categorial no processo de constituição da classe “para si”.
72
Segundo, temos a acepção dialético-materialista, onde classe não é apenas um mero conjunto socioestatístico inserido numa determinada posição objetiva da divisão social do trabalho, ou seja, “classe para o capital”, mas sim uma coletividade organizada de produtores ou trabalhadores subalternos alienados das condições de produção que possui uma determinada forma de consciência social: a consciência de classe (“classe para si”, isto é, classe com interesses de classe). Enfim, a forma de ser da classe social, na ótica dialético-materialista, pressupõe não apenas uma posição objetiva na divisão social do trabalho, mas uma determinada forma de consciência social, a consciência de classe capaz de transformar em-si e para-si aquela coletividade particular-concreta de trabalhadores proletários em sujeito histórico real (a classe do proletariado), cujo movimento social e político tende a “negar” o estado de coisas atual. Essa é a acepção efetiva (e original) da categoria de “classe social” na ótica marxiana. Dizer “proletário” ou mesmo “proletariado” não significa efetivamente dizer “classe do proletariado”. O homem proletário ou o proletariado em si está apenas subsumido à condição de proletariedade, matéria social como categoria histórica. Nesse caso, o que iremos denominar de “condição de proletariedade” possui apenas a potentia e não o acto da categoria de classe social (o que não é pouca coisa). Uma de nossas teses é que, na perspectiva dialética-materialista, a rigor, só há efetivamente classe se houver consciência de classe. A categoria de “classe social” é uma das categorias fundamentais da sociologia critica. Mais uma vez, salientamos que ela não se reduz a mera estatística social de posições funcional-estruturais. A efetivação categorial da classe pressupõe não apenas uma materialidade objetiva ou posição na divisão social de trabalho e antagonismo estrutural de interesses de classe, mas sim materialidade subjetiva ou experiência de classe e consciência de classe. Desse modo, apenas a classe em-si e para-si constitui efetivamente a classe social como categoria histórica. Ao dizermos classe em-si e para-si dizemos a constituição de um sujeito histórico com determinado grau de consciência de classe contingente ou necessária. A constituição do sujeito de classe é processual, percorrendo uma gradação progressiva (ou regressiva) que vai da consciência de classe contingente, classe em-si, momento estrutural da percepção e do entendimento das individualidades de classe, à consciência de classe necessária, classe para-si, momento histórico-político da experiência de classe que tende a se generalizar (MÉSZÁROS, 2008).
73
Pode-se inclusive conceber, nesse processo histórico, outro momento da consciência social, a consciência de classe para-além-de-si, que diz respeito à dimensão da genericidade humana para além da divisão da sociedade em classe. Na verdade, a consciência de classe propriamente dita ou consciência de classe necessária, se traduz na superação do momento econômico-corporativo pelo momento ético-político (embora, é claro, o momento da percepção de classe nos seus mais diversos graus de percepção, ou a consciência de classe contingente, seja efetivamente consciência de classe in fieri). O movimento da consciência social como consciência de classe (que no plano epistemológico implica a passagem da consciência ingênua para a consciência critica) é um momento de catarse das individualidades pessoais de classe em-si para-si que ocorre a partir das suas experiências vividas e experiências percebidas de classe (como condição objetiva dada), experiências cotidianas mediadas por instituições (ou movimentos) culturais ou políticas capazes de ir além da pseudo-concreticidade (na acepção de Karel Kosik) (KOSIK, 1978). A consciência de classe capaz de constituir a nova forma de ser da coletividade de produtores sociais (a classe em-si e para-si), que é a classe social propriamente dita, sujeito histórico capaz de lutar pelos interesses de classe na cena sindical, política e social, emerge de uma condição material (e situação objetiva) historicamente dada e socialmente constituída pelo modo de produção capitalista. No caso da classe do proletariado, a condição material (e situação objetiva) historicamente dada que constitui ontologicamente a classe social, no sentido da forma de ser da classe, é o que temos denominado condição de proletariedade. Esta condição objetiva dada é a matriz sócio-estrutural da formação da classe social como sujeito histórico da modernidade do capital.
4. “Classe” e classe do proletariado Utilizamos “classe” (com aspas), para salientar o caráter meramente potencial do conceito ou categoria como forma de ser. A “classe” do proletariado, constituída por homens e mulheres que estão imersos na condição de proletariedade, não é, a rigor, a classe do proletariado que pressupõe como elemento constitutivo, fundante e fundamental, a consciência de classe em-si e para-si. Na verdade, a categoria de “classe social” é uma categoria-espectral no sentido de categoria que se desvela no
74
movimento efetivo do real histórico, não sendo, portanto, uma categoria dada de imediato (por exemplo, Marx e Engels dizem na abertura clássica do “Manifesto Comunista” de 1848: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”. Nesse caso, “espectro do comunismo” significa o movimento potencialmente efetivo em processo de constituição capaz de negar o statu quo) A classe social como categoria-espectral não apenas se constitui historicamente (e cotidianamente), como pode se desconstituir, desaparecendo efetivamente enquanto classe, tornando-se meramente “classe” do proletariado. Portanto, a rigor, podemos dizer que existem individualidades pessoais de “classe” (com aspas), homens e mulheres jogados no mundo social do capital, despossuídos, subalternos e imersos na contingência de vida e no acaso do mercado; e individualidade pessoais de classe, homens e mulheres em processo de subjetivação de classe, sujeitos em constituição por meio de processos histórico-sociais, que buscam dar respostas organizativas, associativas e políticas aos constrangimentos da ordem sócio-metabólica do capital a partir de seus interesses objetivos de classe. Segundo, o elemento de expropriação que constitui (e marca) a condição de proletariedade, precisa ser mais bem qualificado. A princípio, ao dizermos “expropriação”, queremos ressaltar a perda/alienação da propriedade e controle dos meios objetivos e subjetivos de produção da vida social. É o processo de proletarização que constitui a condição de proletariedade e, por conseguinte, a “classe” do proletariado.
5. A problemática dos proletários de “classe média” É importante salientar situações de “classe” que estão numa situação intermediária. O que significa que a expropriação é mediada por situações de posse às mais diversas. Isto é importante para o entendimento das situações de “classe intermediária” (ou de “classe média”), onde a proletarização não está posta efetivamente, mas tão-somente pressuposta em diversos graus (uma teoria das posses torna-se essencial para o entendimento dos obstáculos efetivos à consciência de classe e a constituição da classe do proletariado). Por exemplo, há situações de grupos sociais ou estratos de trabalhadores que embora não sejam proprietários dos meios de produção, têm a posse dos meios ou instrumentos de produção da vida social. Este dado objetivo provoca um “des-
75
locamento” no processo de subjetivação de classe, colocando obstáculos efetivos (ou virtuais) à constituição da consciência de classe proletária e, portanto, da sua identificação com a classe do proletariado.
Deslocamento e obstaculização da consciência de classe do proletariado Funções do capital
Pequena Propriedade
Competências profissionais
Posse de bens de distinção social
O deslocamento/obstaculização do processo de subjetivação de classe atinge (1) os trabalhadores da “pequeno-burguesia” clássica. Por exemplo, pequenos camponeses, comerciantes e artesãos, que embora tenham a propriedade formal dos meios de produção, com o capitalismo monopolista e a vigência do capital-concentrado, perderam efetivamente o controle real dos meios de produção da vida social, encontrando-se, deste modo, subalternos à dinâmica do mercado oligopolizado. A posse dos meios de produção lhes permite identidade social no plano ideológico com os proprietários capitalistas. O deslocamento/obstaculização do processo de subjetivação de classe atinge também a (2) “nova pequeno-burguesia” (utilizando o conceito de Nicos Poulantzas) ou ainda a “nova classe média”, trabalhadores de “colarinho branco” que surgem com o desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial e a complexificação da divisão social do trabalho. Embora não tenham a propriedade dos meios de produção (como a pequena burguesia clássica), eles têm a posse de prerrogativas de controle (e gestão) da produção e reprodução social (eles detêm a função do capital);
76
isto é, embora sejam trabalhadores assalariados, inseridos na cadeia superior da divisão hierárquica do trabalho, têm a posse de prerrogativas de mando/gerência ou chefia e/ou posse de habilidades técnico-instrumentais e competências profissionais que garantem para eles altos rendimentos monetários, status e prestigio na ordem social do capital (o que lhes permite ter a posse de bens de distinção social). No caso dos estratos técnico-especializados ou trabalhadores assalariados de “classe média” propriamente ditos, que têm maior qualificação/competência profissional, tendem a incorporar, como suposto “capital humano”, a posse de atributos de status e prestigio da ordem burguesa. Nesse caso, a posse como obstáculo à constituição da consciência de classe e, portanto, obstáculo à constituição da classe do proletariado, pode assumir um caráter simbólico-instrumental, atingindo parcelas amplas do proletariado das indústrias e dos serviços. A dimensão simbólica da posse é dada não apenas pelas habilidades técnico/ cognitivas, mas, também, no limite, pela posse de bens de distinção social que conferem status e prestigio a quem o possui. Na medida em que o mundo social do capital é uma “imensa coleção de mercadorias” constituídas em sua maior parte como mercadorias de distinção, artigos de marca, bens moveis e imóveis de ostentação ou de luxo que exercem um efeito ideológico sobre a consciência social, a posse de bens contribui também para o efeito de deslocamento/obstaculização do processo de subjetivação de classe. No século XX, o desenvolvimento da produção de mais-valia relativa permitiu que uma parcela ampla do proletariado organizado conquistasse maior participação na riqueza social produzida. Após a Segunda Guerra Mundial, constituiu-se a sociedade de consumo de massa, com a “classe” do proletariado tendo acesso ampliado a mercadorias e serviços do mundo burguês. Cresceu o contingente do proletariado implicado na ordem simbólica da ideologia pequeno-burguesa, onde a posse das coisas tende a ocultar a condição de proletariedade, e por conseguinte, tende a obstaculizar, sob determinadas condições, a constituição da classe do proletariado. A disseminação do fetichismo da mercadoria no bojo do capitalismo industrial, marcado pela produção ampliada de riqueza social, é uma intensa “força gravitacional” que desloca o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, colocando amplos contingentes do mundo do trabalho despossuído no horizonte simbólico da ordem burguesa. Na verdade, o desenvolvimento do capitalismo industrial no século XX, com a sociedade de consumo de massa, criou uma aguda contradição entre a condição
77
de proletariedade, condição universal de homens subalternos à dinâmica sociometabólica do capital e alienados do controle da vida social, e situações de consciência social impregnadas da ideologia pequeno-burguesa sob o estigma da posse como obstáculo decisivo à constituição efetiva da classe do proletariado (posse de poder e posse de dinheiro). A luta suprema do capital é impedir o surgimento da classe do proletariado, a classe capaz de negar o estado de coisas existentes, caracterizado pela alienação do controle social (o problema do fetichismo). Efetivar a negação da condição de proletariedade significa assumir as rédeas do controle social impregnado pela lógica da valorização do valor e do mercado. Trabalhadores “por conta própria” e trabalhadores “autônomos”, aparentemente são proprietários dos meios de produção. Por isso, não são considerados “proletários” no sentido estrito da palavra. Entretanto, a propriedade nominal dos meios de produção não impede que eles estejam subordinados à ordem sócio-metabólica do capital e suas personificações estranhadas (trabalho exterior, Estado e mercado). Nas condições do capitalismo monopolista, eles não têm o controle da produção social. Em alguma medida, estão imersos na condição de proletariedade, embora a situação de proprietários lhe seja atribuída. Nesse caso, a rigor, a “propriedade” se interverte em “posse”, tendo em vista que, mesmo como “proprietários”, possuem uma relação de subalternidade com o grande capital oligopólico, não tendo, portanto, o controle do mercado que os submete. Por outro lado, diante do “corpo social” de despossuídos do controle social aparece o capital em geral, constituído pela oligopolização capitalista e seus agentes executivos (as personas do capital). Assim, podem-se distinguir modos de efetivação do proletariado. Ao dizermos “classe” do proletariado dizemos individualidades pessoais de classe imersas na “condição de proletariedade”. O proletariado como classe social pressupõe o movimento de classe em si/classe para si (ou para além-de-si) e, por conseguinte, o movimento da consciência de classe (a consciência de classe é uma forma de consciência crítica, que assume uma forma contingente e forma necessária). Em síntese, podemos dizer que: A “classe” do proletariado e a “classe” da burguesia são os pólos de classe fundamentais do modo de produção capitalista. O primeiro pólo social são os trabalhadores assalariados, expropriados/alienados dos meios de produção da vida. O segundo pólo social são os capitalistas, grandes proprietários dos meios de produ-
78
ção que acumulam riqueza através da mobilização (e exploração) dos trabalhadores assalariados. Mas encontramos na sociedade burguesa um conjunto de “situações intermediárias/excêntricas”: Primeiro, a “classe” de pequenos e médios proprietários que obtém recursos por meio da exploração (de trabalhadores assalariados) e que compõem uma pequeno-burguesia proprietária. É uma “classe média” proprietária de estirpe tradicional. Segundo, é importante discriminar, a categoria de “nova classe média”, trabalhadores assalariados de “colarinho branco”/personas do capital, construção categorial sociologicamente exótica tendo em vista que implica o cruzamento de referentes da estrutura de classes/divisão social do trabalho e elementos da estratificação social (status, prestigio e renda) com derivações específicas no plano da consciência social (quase-impossibilidade de consciência de classe). E por fim, a categoria de lumpen-proletariado, estrato/sedimento da “classe” do proletariado “desligado” das possibilidades de mobilidade social e consciência de classe por conta da imersão extrema na “condição de proletariedade”. Podemos dizer, a título de considerações finais que, na medida em que o capital amplia e intensifica a “condição de proletariedade”, as formas de fetichismos sociais impedem (e colocam obstáculos significativos) à consciência de classe. A luta política de classe é a luta para superar os fetiches como obstáculos sociais. O estudo das múltiplas formas de fetichismo social torna-se importante na elaboração de estratégias de formação de classe, no sentido de sujeito histórico coletivo, único agente social moderno capaz de transformação social na era da modernidade do capital, no interior da condição proletária universal (o que exige levar em consideração o complexo de situações concretas de proletariedade). Finalmente, buscamos salientar a necessidade ontológica da formação da classe conduzida por uma instância/processo político-teleológico “exterior” à dinâmica da pseudo-concreticidade no qual estão imersos os proletários como “classe”.
79
PARTE II
A PRECARIZAÇÃO ESTRUTURAL DO TRABALHO
Capítulo 4
O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem-que-trabalha
“Você não é seu emprego.”David Fincher, Fight Club, 1999
N
osso objetivo é apresentar algumas reflexões críticas sobre a morfologia social do trabalho que emerge a partir dos novos locais de trabalho reestruturados. Desse modo, buscaremos identificar o novo caráter da precarização do trabalho que surge com a nova precariedade salarial vigente no capitalismo global. Salientamos a precarização do trabalho não apenas na dimensão do trabalho enquanto força de trabalho como mercadoria, mas sim a precarização do trabalho na dimensão do homem-que-trabalha (o homem não enquanto pertencimento de gênero, mas sim enquanto ser humano-genérico capaz de dar respostas ao movimento do capital). Enfim, neste capítulo redefiniremos o conceito de precarização do trabalho enquanto experiência humana de individualidades pessoais de classe num determinado contexto histórico-concreto: o contexto histórico do capitalismo manipulatório. A literatura sociológica que discute as metamorfoses do mundo do trabalho tem tratado a precarização do trabalho como sendo o movimento de desconstrução da relação salarial constituída no período histórico do capitalismo do pós-guerra. Assim, ela teria um sentido objetivo de perda da razão social do trabalho por conta de mudanças na ordem salarial que implicariam a perda (ou corrosão) de direitos do trabalho. Nesse caso, a precarização do trabalho seria entendida como o desmonte de formas reguladas de exploração da força de trabalho como mercadoria. A vigência do novo capitalismo flexível, com o surgimento de novas
83
modalidades de contratação salarial, desregulação da jornada de trabalho e instauração de novos modos da remuneração flexível, seriam consideradas formas de precarização da força de trabalho. Neste ensaio tentaremos redefinir o conceito de precarização do trabalho a partir da redefinição do significado do conceito de força-de-trabalho como mercadoria e trabalho vivo. Isto é, as individualidades pessoais de classe, homens e mulheres que trabalham, podem ser apreendidas tanto como mera (1) força-de-trabalho como mercadoria; ou como (2) trabalho vivo no sentido de ser humano-genérico. Ao utilizar a expressão “homem-que-trabalha”, Lukács salienta a cisão histórico-ontológica que constitui as individualidades pessoais de classe. No capitalismo, o trabalhador assalariado é, por um lado, força-de-trabalho como mercadoria; e por outro lado, ser humano-genérico (o que denominamos “trabalho vivo”, na medida em que o homem, na perspectiva ontológica, é um animal que se fez homem através do trabalho). Desse modo, a precarização do trabalho que ocorre hoje, sob o capitalismo global, seria não apenas “precarização do trabalho” no sentido de precarização da mera força-de-trabalho como mercadoria; mas seria também “precarização do homem-que-trabalha”, no sentido de desefetivação do homem como ser genérico. O que significa que o novo metabolismo social do trabalho implica não apenas tratar de novas formas de consumo da força-de-trabalho como mercadoria, mas sim novos modos de (des)constituição do ser genérico do homem. A nova redefinição categorial do conceito de precarização do trabalho contribuirá para expor novas dimensões das metamorfoses sociais do mundo do trabalho, salientando, nesse caso, a dimensão da barbárie social contida no processo de precarização do trabalho nas condições da crise estrutural do capital.
Dimensões da Precarização do Trabalho Precarização do trabalho: trabalho vivo = força-de-trabalho como mercadoria Precarização do homem-que-trabalha: trabalho vivo = ser humano-genérico
A nova precariedade salarial, ao alterar a dinâmica da troca metabólica entre o espaço-tempo de vida e espaço-tempo de trabalho, em virtude da “desmedida” da jornada de trabalho, corrói o espaço-tempo de formação de sujeitos humano-gené-
84
ricos, aprofundando, desse modo, a autoalienação do homem-que-trabalha. Nesse caso, transfigura-se a cotidianidade de homens e mulheres que trabalham com a redução da vida pessoal a mero trabalho assalariado (o que trataremos mais adiante como sendo a redução do trabalho vivo à força-de-trabalho como mercadoria). Por outro lado, a incerteza e instabilidade das novas modalidades de contratação salarial e a vigência da remuneração flexível alteram, do mesmo modo, a troca metabólica entre o homem e os outros homens (a dimensão da sociabilidade); e entre o homem e si-próprio (a dimensão da autorreferência pessoal). Desse modo, a precarização do trabalho e a precarização do homem-que-trabalha implicam a abertura de uma tríplice crise da subjetividade humana: a crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de autorreferência pessoal. A ideia de “crise” implica riscos e oportunidades de respostas (ou resistências) capazes de obstaculizar o movimento do capital como sujeito abstrato. É importante salientar que o processo de “precarização do trabalho” decorre da crise estrutural do capital, que pode ser tratada tanto como (1) processo de crise da valorização do valor, o que explica, desse modo, o complexo reestruturativo da produção do capital e a precarização estrutural do trabalho no capitalismo global, visando constituir novas condições para a exploração da força de trabalho assalariado; e a vigência da financeirização da riqueza capitalista com a presença hegemônica do capital especulativo-parasitário; quanto (2) processo crítico de (de)formação humano-social (crise do humano), com a incapacidade do sistema do capital em realizar as promessas civilizatórias contidas no desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social.
1. A nova morfologia social do trabalho A partir do processo reestruturativo do capitalismo global emerge uma nova precariedade salarial que implica uma nova morfologia social do trabalho. Altera-se o modo de ser do trabalho assalariado nas empresas reestruturadas. O traço principal da nova condição salarial é seu caráter flexível. Na verdade, após um turbilhão de inovações tecnológico-organizacionais nas últimas décadas, a nova empresa capitalista aproxima-se daquilo que os teóricos europeus do mundo do trabalho, no começo da década de 1990, descreviam como sendo a empresa flexível, fluida e difusa (BIHR, 1998).
85
O termo “flexível” tornou-se caracterização predominante do novo empreendimento capitalista nas últimas décadas do século XX. “Flexibilidade” e “Flexibilização” tornaram-se palavras para descrever as novas tendências do trabalho no século XXI (TOFFLER, 1985; BOYER, 1988). David Harvey caracteriza o novo regime de acumulação capitalista como sendo o regime da “acumulação flexível” (HARVEY, 1992). Para Richard Sennett, o novo capitalismo é um capitalismo flexível (SENNETT, 1999, 2006). Sob a era da mundialização do capital, a partir da Quarta Revolução Tecnológica, caracterizada pela revolução informacional (ALVES, 2007), e com a ofensiva neoliberal, que caracterizou as últimas décadas do século XX, a categoria da “flexibilidade” se desdobrou e adquiriu múltiplas determinações no interior do processo de trabalho capitalista, assumindo, desse modo, novas proporções, intensidade e amplitude. A flexibilidade torna-se, no sentido geral, um atributo da própria organização social da produção, assumindo uma série de particularizações concretas, com múltiplas (e ricas) determinações. Por exemplo, Salerno salienta oito dimensões da flexibilidade – a flexibilidade estratégica, flexibilidade de gama, de volume, de adaptação sazonal, de adaptação a falhas, de adaptação a erros de previsão, flexibilidade social intraempresa e flexibilidade social extraempresa (SALERNO, 1995). Entretanto, é a flexibilidade da força de trabalho, isto é, a flexibilidade relativa à legislação e regulamentação social e sindical, que continua sendo estratégica para a acumulação do capital. Por exemplo, um aspecto muito discutido é o que diz respeito à flexibilidade nos contratos de trabalho, ou seja, a possibilidade de variar o emprego (volume), os salários, horários e o local de realização do trabalho dentro e fora da empresa (por exemplo, mudança de linha dentro de uma fábrica, ou mesmo mudança entre fábricas). Ou ainda, aquela relativa aos regulamentos internos, à representação sindical interna, ao sistema de remuneração e a recompensas etc. (SALERNO, 1995). Portanto, a flexibilidade da força de trabalho expressa a necessidade imperiosa de o capital subsumir, ou ainda, submeter e subordinar, o trabalho assalariado à lógica da valorização, através da perpétua sublevação da produção (e reprodução) de mercadorias, inclusive, e principalmente, da força de trabalho. É por isso que a “acumulação flexível” se apoia, principalmente, na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho e ainda, dos produtos e padrões de consumo. É a flexibilidade do trabalho, compreendida como sendo a plena capacidade de o capital tornar domável, complacente e submissa à força de trabalho, que irá caracte-
86
rizar o “momento predominante” do complexo de reestruturação produtiva. É por isso que o debate sobre a flexibilidade é vinculado às características atribuídas ao chamado “modelo japonês” ou, mais precisamente, como salientaremos, ao modo “toyotista” de organização e gestão da produção (ALVES, 2000, 2007). Na verdade, o trabalho flexível impõe-se como principal característica do novo e precário mundo do trabalho. O que nos interessa salientar são os impactos do trabalho flexível sobre a cotidianidade do homem-que-trabalha. É o foco sobre as experiências pessoais das individualidades pessoais de classe que expõe a dimensão da precarização do homem-que-trabalha. Enfim, torna-se importante descrever e analisar as alterações do metabolismo social do trabalho nas condições do capitalismo flexível. Nesse caso, operários e empregados do novo mundo do trabalho reestruturado encontram-se diante de uma condição salarial determinada (e determinante), no sentido de modo de organização e regulação do trabalho assalariado, que possui, em breves traços, as seguintes características: 1. A presença ostensiva de um complexo de máquinas informacionais nos locais de trabalho reestruturados e na vida cotidiana dos jovens operários e empregados. Os ambientes de trabalho reestruturados são compostos por um sistema de máquinas flexíveis, de natureza informacional, isto é, máquinas inteligentes incorporadas a redes digitais que exigem dos novos operadores habilidades técnico-comportamentais. Por isso, mais do que nunca se tornam visíveis alterações no perfil educacional dos novos empregados nas grandes empresas da indústria ou serviços. O novo arcabouço tecnológico exige uma força de trabalho compatível com as exigências operacionais do novo maquinário. O discurso da competência implica novas capacidades operativas advindas das novas rotinas do trabalho flexível. Máquinas flexíveis exigem homens e mulheres flexíveis em sua capacidade de intervenção na produção. É o princípio toyotista da “autonomização”, isto é, operadores capazes de intervir no processo de produção visando resolver problemas ou dar palpites para otimizá-lo. Segundo analistas sociais, uma das características da “geração Y”, constituída por jovens nascidos na “era da Internet”, contemporâneos da revolução digital e que na década de 2000 entram no mercado de trabalho, é a facilidade e uso constante de mídias informacionais. Dizem os autores que os jovens da “geração digital” são especialistas em lidar com tecnologias, usam mídias sociais com facilidade, sabem trabalhar em rede e estão sempre conectados (TAPSCOTT, 2010).
87
2. Ao lado do novo arcabouço tecnológico de cariz informacional, tanto nas instâncias do consumo quanto da produção, temos a presença nos locais de trabalho reestruturados, de novos métodos de gestão e organização da produção visando adaptar homens e mulheres às novas rotinas do trabalho. Sob o novo capitalismo vive-se a “era da gestão das pessoas”. Com o espírito do toyotismo, o discurso da organização do trabalho incorpora um novo léxico: trabalhadores assalariados, operários ou empregados tornam-se “colaboradores”. Deve-se esvaziar o discurso do conflito ou luta de classes. Exige-se dos jovens “colaboradores” atitudes proativas e propositivas capazes de torná-los membros da equipe de trabalho que visa cumprir metas. A ideia de gestão de pessoas implica disseminar valores, sonhos, expectativas e aspirações que emulem o trabalho flexível. Não se trata apenas de administrar recursos humanos, mas sim de manipular talentos humanos, no sentido de cultivar o envolvimento de cada um com os ideais (e ideias) da empresa. A nova empresa capitalista busca, portanto, homens idealistas, no sentido mediano da palavra. Por isso, a ânsia pela juventude que trabalha, tendo em vista que os jovens operários e empregados têm uma plasticidade adequada às novas habilidades emocionais (e comportamentais) do novo mundo do trabalho. 3. Os locais de trabalho reestruturados expõem a intensa transfiguração do trabalhador coletivo do capital. A nova empresa exige novos operários e empregados. Por isso, o downsizing possui um sentido de renovar as capacidades anímicas da acumulação de capital nos locais de trabalho. O processo de reestruturação produtiva é não apenas um processo de inovação tecnológico-organizacional, mas também um processo de reestruturação geracional dos coletivos de trabalho nas empresas. A mudança geracional dos coletivos de trabalho ocorre por meio de demissões ou, como se mostrou menos traumático, o incentivo a aposentadorias ou demissões voluntárias (os denominados PDV’s – Programas de Demissões Voluntárias). Os PDV’s tornaram-se práticas recorrentes como instrumento de renovação administrada dos coletivos de trabalho. Um dos traços marcantes dos coletivos de trabalho reestruturados na indústria e serviços é a mudança geracional com a presença ampla de jovens empregados contratados, por exemplo, no decorrer da década de 2000. No caso do Brasil, após a onda reestruturativa da década de 1990, renovam-se os coletivos laborais nas grandes empresas reestruturadas. Eles não apenas se renovam, mas se diversificam internamente no tocante às formas de implicações contratuais. Operários ou empregados estáveis convivem, lado a lado,
88
com operários ou empregados temporários e precários. Na verdade, altera-se o modo de ser do trabalhador assalariado e seu nexo psicofísico com a produção do capital, ampliando-se, como inovação sociometabólica do capital, a “captura” da subjetividade do trabalho pelos valores empresariais (ALVES, 2008). Portanto, o novo habitat do trabalho flexível que emerge na década de 2000 é uma construção sócio-institucional. Ele diz respeito não apenas a mutações tecnológico-organizacionais das empresas capitalistas no cenário da terceira revolução industrial e mundialização do capital; mas também a alterações nas relações de trabalho operadas pelo Estado neoliberal.
Metabolismo social do novo (e precário) mundo do trabalho A nova precariedade salarial no Brasil (década de 2000) Complexo de máquinas informacionais A rede digital permeando trabalho, cotidiano e consumo (geração y) Novos métodos de gestão e organização do trabalho (espírito do toyotismo e “captura” da subjetividade da força de trabalho) Coletivos geracionais híbridos do trabalho reestruturado Planos de demissão voluntária e downsizing Novas relações flexíveis de trabalho novas formas de contratação, remuneração salarial e jornada de trabalho
Portanto, além do novo arcabouço técnico-organizacional do capital, com suas novas máquinas informacionais, novos métodos de gestão de pessoas e novos locais de trabalho reestruturados com seu novo perfil etário-geracional, temos alterações das relações de trabalho que contribuíram para mudanças substantivas no metabolismo social do trabalho; isto é, os novos operários e empregados dos locais de trabalho reestruturados prostram-se diante da nova condição salarial que incorpora a adoção da remuneração flexível (PLR), jornada de trabalho flexível (banco de horas), contrato de trabalho flexível (contrato por tempo determinado e tempo parcial, além da terceirização). As novas relações flexíveis de trabalho promovem mudanças significativas no metabolismo social do trabalho tendo em vista que alteram a relação “tempo de vida/tempo de trabalho” e alteram os espectros da sociabilidade e autorreferên-
89
cia pessoal, elementos compositivos essenciais do processo de formação do sujeito humano-genêrico. São as relações flexíveis do trabalho que instauram a nova condição salarial que põem novas determinações no processo de precarização do homem que trabalha.
A nova condição salarial e a precarização do homem-que-trabalha O complexo de novas determinações da condição salarial salientados acima altera um dos traços candentes da cotidianidade laboral: a relação tempo de vida/ tempo de trabalho. Enfim, constitui-se uma nova estrutura da vida cotidiana de homens e mulheres que trabalham. Por exemplo, a flexibilização da jornada de trabalho por meio do banco de horas coloca o operário ou empregado como “homem inteiro”, à disposição da dinâmica laboral do capital. Como observam Capela, Neto e Marques, “o empregador pode sobre-explorar sua força de trabalho nos momentos de alta produção, sem remunerar o trabalhador, compensando com folgas as horas trabalhadas em excesso nos momentos de baixa produção” (CAPELAS, NETO e MARQUES, 2010). Desse modo, o tempo de vida é colonizado, mais ainda, pelo tempo de trabalho. A adoção da remuneração flexível (PLR), além de contribuir para pulverizar as negociações no âmbito da empresa, enfraquecendo o poder de barganha dos trabalhadores, condiciona a remuneração do trabalhador ao seu desempenho e ao da empresa. Como observam ainda Capela, Neto e Marques, “o trabalhador passou a confundir o interesse da firma com o seu, o que permitiu que sua força de trabalho sofresse maior exploração” (CAPELAS, NETO e MARQUES, 2010). Na verdade, a adoção de remuneração flexível justifica, no plano legal, a busca de cumprimento de metas, condição necessária para a obtenção de melhor desempenho das empresas. Torna-se um importante campo de investigação sociológica a natureza da reverberação das novas implicações salariais discriminadas acima (tempo de vida subsumido a tempo de trabalho e pressão para cumprimento de metas) sobre a vida cotidiana dos novos empregados e operários. O aumento significativo dos problemas psicossociais e de saúde do trabalhador na década de 2000 no Brasil tem um nexo causal com a nova precariedade do trabalho descrita acima. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão será a segunda causa da incapacidade para o trabalho até 2020. Atualmente, segundo dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), os
90
transtornos mentais e de comportamento ocupam o terceiro lugar em número de benefícios concedidos. Numa reportagem do Jornal do Brasil de 14 de novembro de 2012 intitulada “Mais exploração, Mais doenças mentais”, os transtornos mentais, como as depressões, têm sido uma das principais causas de afastamento do trabalho no Brasil. Diz a reportagem: Em 2011, a Previdência Social concedeu mais de 15 mil aposentadorias por invalidez a trabalhadores vítimas de adoecimento mental. Já os auxílios-doença concedidos por causa de quadros depressivos chegaram a 82 mil em todo o país. “Fiquei alguns dias afastado, tomei remédios e fiz sessões de terapia, o que amenizou um pouco os sintomas da depressão”, conta João, supervisor de uma central de telemarketing em São Paulo. Segundo ele, um fator determinante para sua melhora foi a mudança nas relações em seu ambiente de trabalho. “Minha chefe não nos via como ser humano e, sim, como número para atingir as metas a qualquer custo. Isso mudou quando ela foi substituída por alguém mais compreensível, mais humano”, descreve.
Depressão e transtornos depressivos recorrentes - Brasil - (em mil) 83 82 81
2009 2010
80
2011
79 78 77
Fonte: Anuário Estatístico Previdência Social (2012)
91
O jovem operário e empregado do novo (e precário) mundo do trabalho encontra um novo arcabouço legal de contratos de trabalho flexível que expõe a exacerbação da intermitência da contingência salarial. Por exemplo, no Brasil, as medidas de flexibilização das relações de trabalho na década de 1990 levaram à criação do contrato de trabalho por tempo determinado, contrato de trabalho por tempo parcial, além da lei da terceirização, colocando um menu de opções flexíveis para a exploração da força de trabalho. Assim, crescem nos locais de trabalho das grandes empresas formas instáveis do salariato, isto é, novas modalidades especiais de contrato de trabalho na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), com mudanças no plano dos direitos e na forma de contratação do trabalho. Esse novo e precário mundo do trabalho no Brasil, que se amplia no decorrer da década de 2000, é perceptível nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas que foram transfigurados com a inserção de operários e empregados subsumidos às novas condições salariais descritas acima no tocante à remuneração salarial, jornada de trabalho e alguns deles vinculados a novas modalidades especiais de contrato de trabalho na CLT (com implicações, é claro, no plano da negociação coletiva de cada categoria assalariada). Além disso, como destacamos, os jovens operários e empregados estão subsumidos aos novos padrões de produção, organização do trabalho e métodos de gestão e da própria perspectiva de carreira e de inserção no mercado de trabalho, em virtude do desemprego aberto que, embora na década de 2000 tenha observado uma curva descendente, mantém-se em patamares elevados nas metrópoles, principalmente entre os jovens (a taxa de desemprego entre os jovens elevou-se de 11,9% para 17,0% entre 1992 e 2007) (OIT, 2009). Desse modo, surge um novo trabalhador coletivo nas grandes empresas da indústria e dos serviços, caracterizando a nova precariedade salarial com implicações no metabolismo social do trabalho e, portanto, na vida cotidiana de homens e mulheres que trabalham. Sob a ótica do mercado do trabalho, a nova precariedade salarial se apresenta com a proliferação de trajetórias laborais intermitentes no núcleo moderno do salariato no Brasil. Por conta da flexibilização das relações de trabalho, amplia-se a presença do “trabalhador precário” nos coletivos laborais no Brasil, uma experiência de precariedade que não diz respeito tão somente ao vínculo empregatício (trabalho-emprego), mas também às relações de sociabilidade (trabalho-vida), como observamos no tocante às alterações da forma de remuneração e jornada de trabalho. O que coloca a necessidade de uma nova percepção da ideia de precariedade (e
92
precarização) ainda vinculada à relação trabalho-emprego. E pior: uma relação trabalho-emprego caracterizada apenas pela quantidade (e não pela qualidade) dos empregos formais criados no mercado de trabalho.
2. Nova morfologia social do trabalho A vigência das relações de trabalho flexíveis instaura uma nova condição salarial caracterizada pela mudança abrupta da relação tempo de vida/tempo de trabalho (jornada de trabalho flexível); relação tempo presente/tempo futuro com a ascensão das incertezas pessoais (novas formas de contratação flexível) e estratégias de envolvimento do self (remuneração flexível). Esse novo metabolismo social do trabalho transfigura a troca metabólica entre o homem e outros homens (relações sociais de trabalho e sociabilidade) e entre o homem e ele mesmo (autoestima e autorreferência pessoal).
Nova troca sociometabólica do capital Tempo de vida – tempo de trabalho (Jornada de trabalho flexível) Tempo presente – tempo futuro (Novas formas de contratação salarial) Novas estratégias de envolvimento do self (Remuneração flexível)
Podemos identificar alguns traços cruciais da nova morfologia social do trabalho que surge sob o capitalismo global. Eles constituem um processo de conformação do sujeito humano que trabalha, caracterizado pela quebra dos coletivos de trabalho, captura da subjetividade do homem que trabalha e redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria. Portanto, podemos caracterizar a nova morfologia social do trabalho por dinâmicas psicossociais que implicam a dessub-
93
jetivação de classe, “captura” da subjetividade do trabalhador assalariado e redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria.
2.1. Dessubjetivação de classe Os processos de dessubjetivação de classe implicam dinâmicas sociais, políticas, ideológicas e culturais que levam à dissolução de “coletivos do trabalho” impregnados da memória pública da luta de classe. Eles são produtos de ofensivas do capital na produção, como, por exemplo, os intensos processos de reestruturação produtiva que ocorreram nas grandes empresas capitalistas, principalmente a partir de meados da década de 1970; ou na política, com as experiências históricas de derrotas sindicais e políticas da classe operária nos últimos trinta anos. Por exemplo, as derrotas eleitorais que levaram à eleição de Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979 e Ronald Reagan nos EUA, em 1980; ou, no caso da América Latina, os golpes militares que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970, como a derrubada do governo socialista de Salvador Allende no Chile, em 1973; ou ainda, no caso do Brasil em 1989, a derrota eleitoral da Frente Brasil Popular e a eleição do candidato Fernando Collor de Melo, que implementou políticas neoliberais. Enfim, derrotas históricas do trabalho no processo de luta de classes levaram, como resultado irremediável, a intensos processos sociais de dessubjetivação de classe.
Ao mesmo tempo, a ofensiva do capital significou a vigência da ideologia do individualismo na vida social. Desvalorizam-se práticas coletivistas e os ideais de solidarismo coletivo nos quais se baseavam os sindicatos e os partidos do trabalho e disseminam-se na cultura cotidiana, influenciada pela mídia, publicidade e consumo, os ideais de bem-estar individual, interesse pelo corpo e os valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro. É nesse mesmo contexto histórico-cultural que ocorre a degradação da política, no sentido clássico, e a corrosão dos espaços públicos enquanto campo de formação da consciência de classe contingente e necessária, e portanto do em-si e para si da classe social como sujeito histórico. Nos últimos trinta anos, o neoliberalismo tornou-se a forma histórica dominante dos processos de dessubjetivação de classe no capitalismo global. No contexto histórico da economia, política e cultura neoliberal, buscou-se restringir e eliminar o desenvolvimento da consciência de 94
classe e da luta de classes. No habitat da consciência social, a consciência de classe é uma espécie em extinção. Nos locais de trabalho reestruturados, salienta-se a presença da individualização das relações de trabalho e a descoletivização das relações salariais. A crise do Direito do Trabalho, que se interverte em Direito Civil, é um exemplo da individualização e descoletivização das relações de trabalho na sociedade salarial. É importante salientar que os processos de dessubjetivação de classe implicam desmontes de coletivos laborais como traço intrínseco das dinâmicas reestruturativas do capital nas últimas décadas. O desmonte de coletivos de trabalho constituídos por operários e empregados vinculados ao ethos da solidariedade de classe é o desmonte da memória pública de organização e luta de classe. Os novos coletivos laborais constituídos por jovens operários e empregados tendem a destilar o ethos do individualismo que impregna a sociedade civil neoliberal. O processo de dessubjetivação de classe é produto da destruição do passado. Como observou Eric Hobsbawn, “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX”. Na verdade, a reestruturação capitalista, ocorrida no bojo da crise estrutural do capital, operou a destruição do passado implodindo os locis de memória coletiva – e diga-se de passagem: coletivos sociais constituídos no decorrer das lutas de classes do tempo passado. Prossegue Hobsbawn: “Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época e que vivem” (HOBSBAWN, 1995). Por isso, a luta contra o capital é a luta contra o esquecimento. No capitalismo global, o coletivo de trabalho é reconstituído segundo o espírito do toyotismo, cuja regulação salarial é baseada na “captura” da subjetividade do homem que trabalha, com a constituição das equipes de trabalho, a adoção da remuneração flexível e a perseguição de metas de trabalho. Cada dispositivo organizacional da gestão toyotista possui um sentido de dessubjetivação das individualidades pessoais de classe. Na verdade, trata-se de uma operação contínua de “quebra” da subjetividade de classe, para que possa “envolve-la” nos requisitos do novo produtivismo e, desse modo, operar a “redução” do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria. Por exemplo, a adoção da lean production ou “empresa enxuta” significa a obnubilação do “trabalhador social” no plano da consciência contingente de operários e empregados por meio da reestruturação do “trabalhador coletivo” do capital.
95
A fragmentação da classe dos trabalhadores assalariados, no sentido da fragilização (ou flexibilização) dos laços contratuais, opera um processo de dessolidarização com impactos diruptivos na formação da consciência de classe contingente e necessária. A lógica da “redução de custos”, que atinge principalmente os recursos da força de trabalho, é, na verdade, uma forma de produção artificial da escassez que possui um significado simbólico: constranger (e emular) a força de trabalho. Com a adoção da remuneração flexível ligada ao plano de metas, o trabalhador assalariado torna-se “carrasco de si mesmo”. A quebra da autoestima como pessoa humana e a “administração pelo medo” estilhaçam a “personalidade autônoma” do trabalho vivo, “reconstruindo-se” uma individualidade pessoal mais susceptível às demandas sistêmicas do capital. A corrosão da “personalidade pessoal” leva à construção de “personalidades-simulacro”, tipos de personalidades mais particulares, imersas no particularismo estranhado de mercado. Desmontam-se os nexos sociometabólicos do sujeito coletivo de classe para que possa se reconstituir (ou reordenar) as novas formas de consentimento espúrio nos locais de trabalho reestruturados. Por isso, a dessubjetivação de classe como alfa e ômega do novo metabolismo social do trabalho nas empresas reestruturadas é o pressuposto essencial dos novos métodos de gestão baseados no “espírito do toyotismo”.
2.2. “Captura” da subjetividade do homem-que-trabalha A “captura” da subjetividade é a “captura” da intersubjetividade e das relações sociais constitutivas do ser genérico do homem. É ela que explica o movimento de dissolução de coletivos de trabalho e reconstrução de novos coletivos/equipes ditos “colaborativos” com as ideias da empresa. Ao desconstruir/reconstituir “coletivos de trabalho”, o capital opera um movimento de “captura” da subjetividade. Nesse movimento, reencontramos o homem social, o trabalhador coletivo como criação do capital. Ao dizermos “subjetividade”, ocultamos, no plano discursivo, uma verdade essencial: a subjetividade é intrinsecamente intersubjetiva. O homem é acima de tudo uma individualidade social. Portanto, o discurso da “subjetividade” em si tende a ocultar uma dimensão profunda dessa “captura”. Isto é, ela não é apenas controle/manipulação das instâncias psíquicas do sujeito burguês, do homem que trabalha, apreendido como uma mônoda social, mas a corrosão/inversão/perver-
96
são do ser genérico do homem como ser social. Não podemos conceber o sujeito humano sem as teias de relações sociais nas quais ele está inserido. É importante destacar que, ao dizermos “captura” da subjetividade, colocamos “captura” entre aspas para salientar o caráter problemático (e virtual) da operação de “captura”, ou seja, a captura não ocorre, de fato, como o termo poderia supor. Estamos lidando com uma operação de produção de consentimento ou unidade orgânica entre pensamento e ação que não se desenvolve de modo perene, sem resistências e lutas cotidianas. Enfim, o processo de “captura” da subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração pelo “olhar”, mas nas instâncias sócio-reprodutivas, com a pletora de valores-fetiches e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-consciência/inconsciência do psiquismo humano (ALVES, 2007). Por outro lado, o processo de “captura” da subjetividade do trabalho como inovação sociometabólica tende a dilacerar (e estressar) não apenas a dimensão física da corporalidade viva da força de trabalho, mas sua dimensão psíquica e espiritual, que se manifesta por sintomas psicossomáticos. O toyotismo é a administração by stress, pois busca realizar o impossível: a unidade orgânica entre o núcleo humano, matriz da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalho como atividade significativa, e a relação-capital que preserva a dimensão do trabalho estranhado e os mecanismos de controle do trabalho vivo. Na sociedade burguesa, como observou Marx e Engels, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante que constitui seus aparatos de dominação hegemônica pela manipulação midiática das instâncias pré-conscientes e inconscientes do psiquismo humano. O capitalismo manipulatório levou à exaustão os recursos de manipulação das instâncias intrapsíquicas do homem, pelas quais se constituem os consentimentos espúrios à dominação do capital nas “sociedades democráticas”. O sociometabolismo do capital ocorre por meio do tráfico de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que incidem sobre as instâncias intrapsíquicas. Na medida em que o toyotismo se baseia em atitudes e comportamentos proativos, a construção do novo homem produtivo utiliza, com intensidade e amplitude, estratégias de subjetivação que implicam a manipulação incisiva da mente e do corpo por conteúdos ocultos e semiocultos das instâncias intrapsíquicas.
97
Ao privilegiar habilidades cognitivo-comportamentais, o método toyota é obrigado a imiscuir-se, como as estratégias de marketing, nas instâncias do psiquismo humano. Controlar atitudes comportamentais tornou-se a meta dos treinamentos empresariais, mobilizando valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que atuam nas frequências intrapsíquicas do inconsciente e do pré-consciente. Os consentimentos espúrios que compõem a hegemonia social do toyotista têm na emulação pelo medo um dos afetos regressivos da alma humana um dos seus elementos cruciais. Aliás, o sociometabolismo da barbárie é uma “fábrica do medo” que, enquanto afeto regressivo que atua na instância do pré-consciente e do inconsciente, torna-se a “moeda de troca” dos consentimentos espúrios das individualidades de classe. A função estrutural da barbárie social é a produção simbólica do medo como afeto regressivo da alma humana. A produção do capital é também produção (e negação) de subjetividades humanas. O sociometabolismo do capital é constituído por processo de subjetivação que formam as individualidades de classe. Os tipos humanos, que a sociedade burguesa produz, forma e deforma, têm impressa, em si, na mente e no corpo, a marca do fetichismo da mercadoria. A individualidade de classe, na medida em que é a negação da individualidade pessoal, tenciona ao limite de sua própria negação, a subjetividade humana. É por isso que a história social e cultural da psicanálise foi marcada no século XX pelo problema do narcisismo (do ego ao self1) (ZARETSKY, 2006). Na verdade, a subjetividade humana imersa no metabolismo social do capital é uma “subjetividade em desefetivação”, estressada pelas teias da manipulação social. Essa condição histórica da práxis social em sociedades do fetichismo da mercadoria coloca imensos desafios à “negação da negação”. O fetichismo da mercadoria e a pletora de fetichismos sociais que se constituem a partir dele colocam constrangimentos cruciais à produção da subjetividade humana nas sociedades mercantis complexas. Entretanto, o capital como sistema de controle do metabolismo social, e “até o presente, de longe a mais poderosa estrutura ‘totalizadora’ de controle do metabolismo social que surgiu no curso da história humana” (MÉSZÁROS, 2002), instaura processos de subjetivação intrincavelmente paradoxais e contraditórios.
1
Si mesmo (ing. self ) é um termo que tem uma longa história na psicologia. William James, em seu livro intitulado Psychology: The briefer course, de 1892, distingue entre o "eu" (ego), como a instância interna conhecedora (I as knower), e o "si mesmo" (self ), como o conhecimento que o indivíduo tem sobre si próprio (self as known).
98
Ao mesmo tempo em que, por meio do desenvolvimento das forças produtivas sociais, o capital amplia a capacidade humana, isto é, o “espaço reservado pra alma e pra inteligência no templo da natureza” (SHAKESPEARE, 1988),2 ele tende a obstaculizar, dilacerar e limitar o desenvolvimento da personalidade humano-genérica, pela manipulação incisiva dos seus traços ontologicamente fundantes e fundamentais, como a linguagem e a capacidade simbólica do homem. No plano da linguagem, é indiscutível a intensificação da manipulação que surge a partir do novo complexo de reestruturação produtiva, com o surgimento do imperialismo simbólico e novos léxicos que habitam o universo locucional das individualidades de classe. Além do aspecto ideopolítico, a utilização dos novos vocábulos no mundo do trabalho tem uma função psicossocial. Com Gramsci, diríamos que o “novo terreno ideológico” que nasce com o toyotismo é também uma nova “atitude psicológica” que “alimenta a afirmação da “aparência” das superestruturas” (GRAMSCI, 1984b). A troca do nome de operários ou empregados por “colaboradores” não é inocente; Ohno chamava as empresas fornecedoras de “empresas colaboradoras”, ocultando a relação de poder contido na relação capital hegemon do capital concentrado com os pequenos e médios capitais (OHNO, 1997). A mudança do universo léxico-locucional no mundo do trabalho deve ser analisada a partir das mudanças que ocorreram para que a sociedade contemporânea passasse a usar este tipo de símbolo para falar de si mesma. Além de ser produto de uma práxis estranhada, é resposta a um fracasso que não podemos desconsiderar. A saturação de signos e imagens no sistema de controle sociometabólico do capital coloca novos pressupostos materiais para a construção dos nexos psicofísicos do homem produtivo. Os processos de subjetivação (e dessubjetivação) ocorrem por meio de signos e imagens. Os conteúdos manipulatórios têm que assumir a forma de signos e imagens para instaurar os tráficos intrapsíquicos. Por isso, os valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que constituem as inovações sociometabólicas e compõem o nexo psicofísico do homem produtivo do sistema toyota de produção, assumem a forma de signos e imagens. Elas atuam como
2
Disse-nos William Shakespeare, por meio de seu personagem Laertes, em Hamlet: “Pois a natureza não nos faz crescer apenas em forças e tamanho. À medida que este templo se amplia, se amplia dentro dele o espaço reservado pra alma e pra inteligência.” (Shakespeare, 1988)
99
imagens de consumo e consumo de imagens e signos. Nesse caso, a imagem está ocupando o lugar de um discurso ideológico. Na instância do consumo, lócus crucial do processo de subjetivação, a manipulação através da imagem de marca, por exemplo, é uma nova forma de fetichismo que se dissemina à exaustão. Observa Otília Arantes: (...) o próprio ato de consumir se apresenta sob a aparência de um gesto cultural legitimador, na forma de bens simbólicos – como se disse à exaustão: de imagens ou de simulacros. É a forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-publicitária. O que se consome é um estilo de vida e nada escapa a essa imaterialização que tomou conta do social... a cultura tornou-se peça central na máquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora. (ARANTES, 1998 apud FONTENELLE, 2002). É importante salientar que, no caso do fordismo, o nexo psicofísico era constituído, segundo Gramsci, pela ideologia puritana e pela repressão sexual. No caso do toyotismo, o nexo psicofísico se constitui pela disseminação dos valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado e pela liberação dos instintos, ao mesmo tempo em que preserva a disciplina da vida industrial (o que é um poderoso agente estressor). Talvez o estressamento da corporalidade viva seja estratégia defensiva das individualidades de classe cindidas à exaustão pelos novos processos de subjetivação do capital. O discurso da “subjetividade” tende a ocultar a dimensão profunda da “captura”: a desefetivação do ser genérico do homem. Isto é, a “captura” da subjetividade não é apenas controle/manipulação das instâncias psíquicas do sujeito burguês, apreendido como mônoda social, mas corrosão/inversão/perversão do ser genérico do homem. Não podemos conceber o sujeito sem a teia de relações sociais nas quais ele está inserido. Como salientamos acima, a “captura” da subjetividade é a “captura” da intersubjetividade, das relações sociais constitutivas do ser genérico do homem. O que explica, portanto, o movimento levado a cabo pelo capital, de dissolução de coletivos e reconstituição de novos coletivos/equipes colaborativos com as ideias da empresa. O Eu não é sujeito, mas é constituído sujeito por meio de uma relação constitutiva com o Eu-Outro. Eis o princípio de uma análise materialista da subjetivida-
100
de-intersubjetividade. O que significa que as relações sociais são imprescindíveis para a constituição do sujeito que trabalha, já que para se constituir precisa ser o outro de si mesmo. Por isso, o homem-que-trabalha é uma individualidade intrinsecamente social. O homem enquanto ser genérico se constitui por meio de um processo de reconhecimento do outro enquanto eu alheio nas relações sociais, e o reconhecimento do outro enquanto eu próprio, na conversão das relações interpsicológicas em relações intrapsicológicas. Nessa conversão, que não é mera reprodução, mas reconstituição de todo o processo envolvido, há o reconhecimento do eu alheio e do eu próprio e, também, o conhecimento enquanto autoconhecimento e o conhecimento do outro enquanto diferente de mim. Mas, o sujeito humano é constituído pelas significações culturais. Porém, a significação é a própria ação. O que significa que ela não existe em si, mas a partir do momento em que os sujeitos entram em relação e passam a significar, ou seja, só existe significação quando significa para o sujeito e o sujeito penetra no mundo das significações quando é reconhecido pelo outro. A relação do sujeito com o outro sujeito sempre é mediada. Dois sujeitos só entram em relação por um terceiro elemento, que é o elemento semiótico. O que significa que a relação social não é composta apenas de dois elementos (o eu e o outro), mas implica o terceiro elemento mediativo: o elemento semiótico.
EU
Elemento Semiótico
OUTRO
Estamos tratando de um processo intrinsecamente social. Porém, o conhecimento não é só reconhecimento. O ato de conhecer pressupõe a experiência e a imaginação, o mundo do imaginário e do possível diferente do mundo real, mas que está estreitamente relacionado com a realidade social. É nessa perspectiva que o homem-que-trabalha, o sujeito humano ou a individualidade social, não se localiza na ordem do biológico, mas é constituído e é constituinte de relações sociais mediadas pelo elemento semiótico. É interessante o que diz Molon nesta longa citação:
101
Pensar o homem como um agregado de relações sociais implica considerar o sujeito em uma perspectiva da polissemia, pensar na dinâmica, na tensão, na dialética, na estabilidade instável, na semelhança diferente. A conversão das relações sociais no sujeito social se faz por meio da diferenciação: o lugar de onde o sujeito fala, olha, sente, faz, etc. é sempre diferente e partilhado. Essa diferença acontece na linguagem, em um processo semiótico em que a linguagem é polissêmica. Neste sentido, o sujeito não é um mero signo, ele exige o reconhecimento do outro para se constituir enquanto sujeito em um processo de relação dialética. Ele é um ser significante, é um ser que tem o que dizer, fazer, pensar, sentir, tem consciência do que está acontecendo, reflete todos os eventos da vida humana. O sujeito constituído pelas conexões, relações interfuncionais, interconexões funcionais que acontecem na consciência e que conferem as diferenças entre os sujeitos (MOLON, 2003). Desse modo, ao tratarmos da subjetividade e da sua “captura” devemos pressupor a intersubjetividade e sua (re)constituição por meio de relações sociais mediadas pela linguagem. No processo da subjetivação/intersubjetivação conduzido pelas novas estratégias empresariais, a manipulação da linguagem e do elemento semiótico torna-se fundamental, na medida em que ela é um dos elementos cruciais da “captura” da subjetividade-intersubjetividade. Desse modo, a “captura” da subjetividade-intersubjetividade é não apenas um processo de escolhas morais mediadas pelos valores-fetiches que produzem consentimentos espúrios, mas pode ser considerado também um processo intrinsecamente semiótico, na medida em que o que determina a especificidade do sujeito humano são as interconexões que se realizam na consciência pelas mediações semióticas que manifestam diferentes dimensões do sujeito, entre elas: a afetividade, o inconsciente, a cognição, o semiótico, o simbólico, a vontade, a estética, a imaginação, e etc. Este é o “campo imaterial” onde se disputa a subjetividade do trabalho vivo produtor de valor no capitalismo global. O homem-que-trabalha, a individualidade de classe como trabalho vivo, o sujeito constituído e constituinte nas e pelas relações sociais, é o sujeito que se relaciona na e pela linguagem no campo das intersubjetividades. É por isso que as grandes empresas e suas estratégias de negócios e de produção visam a manipular
102
a subjetividade-intersubjetividade por meio da (re)constituição simbólica e material dos coletivos de trabalho. Na medida em que o sujeito é uma unidade múltipla, que se realiza na relação Eu-Outro, sendo constituído e constituinte do processo sócio-histórico e a subjetividade é a interface desse processo, o foco das estratégias empresariais tende cada vez mais a ser a disputa pelo intangível, ou seja, a manipulação do estofo intangível das relações sociais constitutivas (e constituintes) do sujeito humano.
A dinâmica sociometabólica do trabalho estranhado dessubjetivação de classe “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha redução do trabalho vivo a força de trabalho
3.2. Redução do trabalho vivo a força de trabalho A apreensão do significado da “redução” do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria implica compreendermos o significado do homem-que-trabalha como individualidade pessoal de classe. Essa nova categoria que apresentamos aqui – individualidade pessoal de classe – é constituída pelo trabalho vivo e pela força de trabalho: (1) O trabalho vivo é a dimensão do gênero vivo, que segundo Marx, está presente na pessoa, “na medida em que [ela] se relaciona consigo mesma como com um ser [Wesen] universal e por isto livre.” A dimensão do “gênero vivo” é produto do processo civilizatório do trabalho como atividade vital (por isso a denominamos de “trabalho vivo”, em contraposição ao “trabalho morto”, categoria negativa da construção categorial marxiana). Essa dimensão humano-genérica da individualidade pessoal é principium movens da socialidade humano-genérica. (2) A força de trabalho é a capacidade física e espiritual da corporalidade viva em realizar trabalho útil, aumentando, por conseguinte, o valor dos produtos. É importante salientar que a “divisão” da individualidade pessoal em trabalho vivo e força de trabalho é uma distinção meramente heurística que nos ajuda a apreender o processo de degradação do ser genérico do homem como pessoa sob o capitalismo global.
103
Individualidade pessoal/Individualidade de classe
Trabalho vivo
Força de trabalho como mercadoria
O homem como pessoa humana ou ser genérico é uma personalidade integral. Na medida em que a força de trabalho torna-se mercadoria – um dos pressupostos essenciais para a extração da mais-valia – ocorre uma cisão no “espaço interior” da individualidade pessoal. Explicita-se uma “divisão interior” que caracterizamos acima. Na verdade, o homem proletário como individualidade de classe é um homem clivado entre “trabalho vivo” e “força de trabalho como mercadoria”. De um lado, o “núcleo humano” da pessoa (ou seu gênero vivo ou a vida do gênero) e, de outro, a “força de trabalho como mercadoria”, voz interior das disposições sistêmicas do capital. Como “coisa exterior” no âmago do “espaço interior” da pessoa humana, é a força de trabalho como mercadoria que conduz as individualidades de classe. É essa bipartição da personalidade integral do homem proletário que possibilita as operações de manipulação/“captura” da subjetividade do trabalho pelo capital. Uma observação: a cisão primordial da pessoa humana é produto histórico da civilização do capital, com sua acumulação dita primitiva, e não um traço ontológico (ou biológico) da natureza humana. A clivagem primordial do homem proletário é a “brecha” por onde opera o processo de subsunção ideal do trabalho ao capital, que é a subsunção do “espaço interior” da pessoa às disposições sistêmicas do capital. Por exemplo, o trabalhador por conta própria é, a rigor, trabalhador assalariado, na medida em que está subsumido ao capital, não no sentido formal ou real, mas, sim, ideal. Ele possui um patrão: é “patrão de si mesmo”, o patrão está dentro de si. Eis a subsunção ideal do trabalho ao capital. A “redução” da pessoa humana à força de trabalho como mercadoria por meio da redução do tempo de vida a tempo de trabalho estranhado é um dos elementos compositivos do novo metabolismo social do trabalho nas empresas reestrutura-
104
das. A colonização do tempo de vida pelo “mundo sistêmico” possui uma função orgânica no metabolismo social do capital: fragilizar a capacidade de resistência à voracidade do capital. Por isso, Karl Marx, em 1867, no pequeno opúsculo intitulado “Salário, Preço e Lucro”, salientou, como bandeira estratégica da luta dos trabalhadores assalariados, a redução da jornada de trabalho. Para Marx, “o tempo é o campo de desenvolvimento humano”. Desse modo, a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria, ou a redução da pessoa humana à mera força de trabalho, é uma operação que reduz ou corrói o campo de desenvolvimento humano-genérico. Na ótica marxiana, o comunismo é a sociedade do tempo livre, em que o trabalho heterônomo se reduz drasticamente, embora não seja eliminado. Na verdade, ele tende cada vez mais a ocupar um pequeno espaço na vida pessoal das individualidades humanas.
3. “Vida reduzida” e estranhamento Nas condições do capitalismo global, a extensão do trabalho abstrato pela vida social, com as formas derivadas de valor, promovem o fenômeno da “vida reduzida”. Na medida em que o homem-que-trabalha dedica a maior parte do seu tempo de vida à luta pela existência e à fruição consumista desenfreada, ele não se desenvolve como ser humano-genérico. Enfim, torna-se presa da “vida reduzida” que caracteriza as sociedades burguesas hipertardias. A “vida reduzida” é antípoda à “vida plena de sentido” que o homem que trabalha é incapaz de ter no sistema social do capital. Com a vida reduzida, o capital avassala a possibilidade de desenvolvimento humano-pessoal dos indivíduos sociais, na medida em que ocupa o tempo de vida das pessoas com a lógica do trabalho estranhado e a lógica da mercadoria e do consumismo desenfreado. A “vida reduzida” produz homens imersos em atitudes (e comportamentos) “particularistas”, construídos (e incentivados) pelas instituições (e valores) sociais vigentes. Por isso, as condições de existência social que surgem do metabolismo social do trabalho reestruturado no capitalismo global contribuem para a exacerbação do fenômeno do “estranhamento” na sociedade burguesa.
105
Na “Ontologia do ser social”, Lukács decompõe o trabalho ou o pôr teleológico, definido como fenômeno originário e o principium movens da vida social, em dois movimentos distintos. Primeiro, a objetivação (die Vergenstandlichung), que é o processo de produção do objeto [o] pelo sujeito [s]; e o segundo, a exteriorização (die Entausserung), que é o processo de retorno do objeto [o] sobre o sujeito [s] que o criou. Esse “retorno” é a base do processo civilizatório. [s]
[o] [objetivação] [o]
[s] [exteriorização]
[s]’ X [exteriorização da interioridade] “espaço interior” do indivíduo O homem é um animal que se fez homem por meio do trabalho, principalmente como exteriorização, no sentido da resposta às novas condições sócio-ontológicas criadas pelo “novo” que é o objeto criado (o ser social se distingue do ser orgânico e do ser inorgânico por ser, ele próprio, a reiteração do novo). Enfim, o objeto criado sempre desafia o homem como sujeito. O trabalho, vale dizer, segundo Lukács, vai se tornar o modelo da práxis social, com a dialética do trabalho sendo utilizada, cum grano salis, para entender a práxis do homem nas atividades sócio-reprodutivas. Mas o homem é “um ser que dá resposta”, salienta o Lukács. O que significa que a exteriorização é, de certo modo, exteriorização da interioridade ou explicitação da personalidade do ser genérico do homem, que pode ser exteriorização da personalidade humano-genérica (o que vai depender do meio social, isto é, das relações sociais de produção da vida). No modo de produção do capital, a exteriorização da interioridade tende a inverter-se em subsunção do homem ou do sujeito [s] ao objeto [o], que aparece, nesse caso, como “coisa”. A interversão do objeto [o] em “coisa” [c] é produto
106
histórico de um determinado modo de controle do metabolismo social, com suas instituições e valores sociais estranhados. Enquanto modo de controle estranhado baseado na propriedade privada dos meios de produção da vida e na divisão hierárquica do trabalho, o capital aparece como a “coisa” ou objetos/objetivações, isto é, instituições sociais estranhadas ou valores-fetiches, que tendem a “reduzir”, por exemplo, o homem-que-trabalha (ou o trabalho vivo) à mera força de trabalho para a reiteração do sistema. A “vida reduzida” é, portanto, resultado de um modo de controle do metabolismo social. Institui-se, desse modo, um sistema social que não contribui para a explicitação (ou formação) de uma interioridade humana, no sentido de um ser genérico capaz de ir além do objeto dado, capaz de transcender as condições degradantes da sua hominidade humana. Na sociedade burguesa busca-se suprimir o sujeito humano no sentido de ser genérico, racional e consciente, capaz da “negação da negação”. Não interessa formar homens com capacidade crítica, mas apenas força de trabalho ou indivíduos reduzidos a sua mera particularidade, incapazes de escolhas radicais. Enfim, eis a natureza do estranhamento social. O que possibilita o fenômeno do estranhamento social é a possível divergência entre os dois momentos no interior do mesmo ato: o momento da objetivação/ exteriorização e o momento da exteriorização da interioridade (ou o momento da escolha pessoal), que sob condições sócio-históricas do mundo do capital tende a negar o homem. Isto é, o espaço de autonomia da subjetividade e, por conseguinte, a realização do ser genérico do homem pode ser tendencialmente suprimido pelas exigências da produção e reprodução social. Mas o fato da “exteriorização da interioridade” ocorrer sob situações idênticas (o mundo do capital e as exigências estranhadas da produção e reprodução social) não significa que as reações subjetivas ou escolhas pessoais sejam as mesmas. Enfim, se o homem, segundo Lukács, é um ser que dá respostas, a resposta é mediada, em si, pela dialética entre particularidade social e singularidade pessoal de classe. Por isso, por exemplo, sob a situação idêntica da exploração no local de trabalho, alguns adoecem e outros não; ou ainda, uns escolhem revoltar-se, e outros, não (o que vai depender da dialética entre particularidade social e singularidade pessoal de classe). Nicolas Tertulian observa: “O campo da alienação/estranhamento se situa no ‘espaço interior’ do indivíduo como uma contradição vivida entre (1) a aspiração
107
por uma autodeterminação da personalidade e a multiplicidade das suas qualidades e (2) das suas atividades que visam à reprodução de um todo estranho”. Na ótica lukácsiana, diante da distorção entre objetivação/exteriorização e exteriorização da sua interioridade (ou “espaço interior” do indivíduo), entre a autoexpressão de sua personalidade e o comportamento do indivíduo como agente da reprodução social, existem escolhas pessoais irremediáveis, mediadas pela particularidade social que se traduzem, ou na aceitação do statu quo social, com bloqueios e rechaçamentos da autoexpressão da personalidade; ou em atos de resistência e de oposição ativa (desde reações individuais contingentes até reações coletivas de caráter sindical ou político). Na medida em que a distorção entre objetivação/exteriorização e exteriorização da sua interioridade (ou “espaço interior” do indivíduo) – que é o problema do estranhamento social – torna-se o problema crucial da ordem burguesa, o capital busca investir cada vez mais na manipulação do “espaço interior” dos indivíduos, construindo, desse modo, os consentimentos espúrios. Na verdade, é no campo da “exteriorização da interioridade” – ou das escolhas pessoais por meio de valores-fetiches e suas imagens de valor – que opera a “captura” da subjetividade e da intersubjetividade do homem que trabalha. A manipulação social se dá principalmente por meio da produção recorrente de indivíduos reduzidos à mera particularidade, capazes de aceitarem os valores-fetiches, reiterando a ordem das coisas e a vida reduzida.
4. Precarização do homem-que-trabalha e crise do trabalho vivo A dinâmica histórica posta pelo novo metabolismo social do trabalho com a nova precariedade salarial instaura o que podemos denominar de “crise do trabalho vivo”. Ela se compõe do seguinte complexo de crises que decorrem do processo de precarização do homem que trabalha: (1) crise da vida pessoal, (2) crise de sociabilidade e (3) crise de autorreferência humano-pessoal.
108
Formas da crise do trabalho vivo
Crise da vida pessoal
Crise de sociabilidade
Crise de autorreferência humano-pessoal
Tornam-se necessárias investigações capazes de apreender as múltiplas determinações concretas dessas crises do trabalho vivo que dilaceram a subjetividade e a intersubjetividade do homem-que-trabalha. Elas compõem o todo orgânico da deriva civilizacional que caracteriza a desefetivação do ser genérico do homem nas condições históricas da barbárie social. Nosso objetivo, a título de conclusão, é apenas indicar o significado de cada uma delas.
1. Crise da vida pessoal É a crise do homem com seu espaço de vida, isto é, o tempo de vida como campo de desenvolvimento humano. Ela decorre do processo de redução do trabalho vivo à força de trabalho de trabalho como mercadoria. A redução do tempo de vida a tempo de trabalho estranhado é uma operação cotidiana de despersonalização do homem ou de perversão/inversão do “núcleo humano” em “núcleo animal”. Nos “Manuscritos econômico-filosófico” (1844), Marx observa: “... o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar; quando muito ainda, habitação, adornos, etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano animal”. Eis o significado essencial do que podemos denominar de barbárie social.
109
2. Crise de sociabilidade É a crise do homem com outros homens e o dilaceramento dos laços sociais que constituem a sociabilidade humano-genérica. Na medida em que se esvaziam os espaços de reconhecimento do outro enquanto eu alheio nas relações sociais (espaço de sociação), e os espaços de reconhecimento do outro enquanto eu próprio (espaços do self), corróem-se os espaços de vida humano-genérica. A fragmentação dos coletivos de trabalho (e de vida) por conta da “modernidade líquida” (BAUMAN, 2000), deterioram os laços sociais que tecem os espaços de sociação e os espaços do self. O novo metabolismo social do trabalho sob o capitalismo flexível, ao disseminar a insegurança (e incerteza) de contratos de trabalho flexíveis, obstaculiza a tessitura de espaços de sociação como lugares de partilha de experiências coletivas. Na verdade, o mundo do capitalismo global se tornou mais dinâmico e as mudanças de emprego, ou mesmo de carreira durante a vida se tornam cada vez mais comuns. O mercado se torna mutável como antes nunca visto, impregnando-se com a lógica do espaço-tempo do capital financeiro, passando cada vez mais a se pensar no curto e curtíssimo prazo. Esse novo metabolismo social da ordem burguesa se reflete na carreira e no emprego do trabalho assalariado. Como observa Sennet, os empreendimentos capitalistas se caracterizam pela "força dos laços fracos", o emprego passa a ser de curto prazo, há uma falta de perspectiva de compromisso duradouro com a empresa gerando assim uma certa falta de lealdade institucional. Os empregados tendem a ficar "negociáveis" assim que descobrem que não podem contar com a empresa. Na verdade, o fenômeno da “corrosão do caráter”, salientada por Sennet, é subproduto da crise de sociabilidade como redução dos espaços de sociação e espaços do self como eixos orgânicos da formação da personalidade humana (SENNET, 1998).
3. Crise de autorreferência pessoal É a crise do homem consigo mesmo na medida em que ocorre a corrosão da sua autoestima pessoal. Sob a nova ordem salarial, deve-se “quebrar” a autoestima do “trabalho vivo” como pessoa humana, reduzindo-o à mera “força de trabalho” comprometida com os ideais do capital. É o que podemos denominar de despersonalização do homem que trabalha. É a redução da pessoa àquilo que o filósofo Martin Heidegger (em “Ser e Tempo”) denomina de das Man (segundo ele, das
110
Man esquece-se de sua liberdade de escolha no mundo das possibilidades e passa a viver no "É", as propriedades que o mundo lhe atribui. "É", no conformismo da massa, mais uma "ovelha no rebanho"). Desse modo, a corrosão da autoestima é a redução do “núcleo humano-genérico” às disposições valorativas do capital. É uma forma de estranhamento que dilacera (ou desefetiva) o ser genérico do homem. É o sentido do estranhamento como alienação da vida do gênero como vida da individualidade pessoal intervertida em individualidade de classe. A crise de autorreferência pessoal decorre da intensificação da manipulação/ “captura” da subjetividade da pessoa que trabalho pelo capital. Primeiro, reduz o homem como ser genérico à força de trabalho como mercadoria. Segundo, ameaça, no plano imaginário, simbólico e real, as individualidades de classe com a demissão de sua força de força de trabalho. É um mote ideológico para constranger a autoestima e abrir no “espaço interior” da subjetividade humana, “brechas” para a emulação paradoxal de operários e empregados implicados no trabalho estranhado.
111
Capítulo 5
Produção do capital, afirmação e negação da pessoa humana
N
osso objetivo é apresentar algumas notas críticas sobre os impactos sociometabólicos da nova forma de produção do capital – a maquinofatura – apresentada no capítulo 1 deste livro. Trata-se de apreender na perspectiva dialética as características essenciais do mundo social do capital nas condições históricas do capitalismo global em sua etapa de crise estrutural. É importante situar o significado candente dois fenômenos sociais da precarização do homem-que-trabalha no bojo do movimento contraditório do capital em processo. É a categoria social de maquinofatura que é capaz de explicar a vigência do espírito do toyotismo nas práticas sociometabólicas do capital e a predominância do sociometabolismo da barbárie explicitado no processo de precarização do homem-que-trabalha. A degradação da pessoa humana – elemento categorial que buscamos resgatar numa perspectiva radical – tornou-se hoje, em pleno século XXI, um traço essencial da dinâmica sociometabólica do capital.1 O capitalismo global, a nova etapa histórica de desenvolvimento do modo de produção capitalista, com sua dinâmica de acumulação flexível e regime de acumulação predominantemente financeirizado, constituiu nos últimos trinta anos (1980-2010) – os “trinta anos perversos" – o que denominamos de sociometabolismo da barbárie, caracterizado pela precarização estrutural do trabalho numa 1
Este ensaio é uma versão adaptada do texto intitulado “Maquinofatura – breve nota teórica sobre a nova forma de produção do capital na era do capitalismo manipulatório”, publicado no livro “Trabalho e sociabilidade – Perspectivas do capitalismo global” (Editora Praxis, 2012).
113
dimensão ampliada e intensa. Desemprego e trabalho precário ampliam-se na medida em que as economias capitalistas não conseguem absorver o contingente imenso de força de trabalho disponível para a produção social, principalmente nas condições de crise financeira. Nas condições de crescimento do emprego por conta da retomada da economia, a qualidade dos postos de trabalho não corresponde ao trabalho digno e seguro. Na verdade, amplia-se o trabalho precário por conta da flexibilização da legislação trabalhista e a redução dos direitos dos trabalhadores. Nos países capitalistas centrais, os programas de ajustes neoliberais exigidos pelos mercados financeiros significam cortes em direitos históricos das classes trabalhadoras no núcleo orgânico do sistema mundial do capital. Numa perspectiva histórica, observamos a redução e não a ampliação de direitos sociais, apesar da crescente produção e acumulação de riqueza numa escala inédita no plano mundial. Pelo contrário, como se constata por indicadores sociais, aumentou nas últimas décadas nos países da OCDE a concentração de renda e a desigualdade social nos países capitalistas mais desenvolvidos. Na verdade, não se trata de mera contingência da nova dinâmica capitalista capaz de ser corrigida por políticas sociais compensatórias, mas sim um traço estrutural do capitalismo global cuja superação efetiva exige alterações radicais no modo de controle do sociometabolismo impossível de ocorrer nas condições de dominação politica do capital financeiro. O capital financeiro tornou-se fração hegemônica da dinâmica de acumulação capitalista não por acaso, mas sim em virtude de contradições materiais do processo de valorização do valor e da dinâmica da luta de classes, em que a derrota sindical e política do trabalho organizado, principalmente na década de 1970, fortaleceu, numa situação de crise estrutural, as frações conservadoras capazes de promover um processo radical de reestruturação capitalista visando restaurar novos patamares de acumulação de valor (o que se verificou na década de 1980 com a construção da hegemonia politica neoliberal no interior da ordem burguesa mundial). A partir da década de 1980 e nos últimos trinta anos de desenvolvimento do capitalismo mundial, consolidou-se a incrustação dos interesses das finanças na morfologia social da ordem burguesa, esvaziando, desde modo, a plataforma política de forças sociais-democratas ou socialistas imbuídas de teleologia política voltada para a preservação do Estado de Bem-Estar Social nos moldes da economia capitalista baseada na hegemonia do capital produtivo (o que explica a crise da
114
socialdemocracia europeia nas últimas décadas, cada vez mais identificada com o ideário neoliberal). O próprio capital produtivo incorporou-se às novas finanças. O novo metabolismo social que se constitui na era de hegemonia do capital financeiro possui como traço característico o processo de desefetivação das individualidades pessoais de classe. Esse processo de desefetivação do ser genérico do homem – como diria Marx nos “Manuscritos econômico-filosóficos” – é o estranhamento, que se caracteriza pelo desmonte da pessoa humana como sujeito humano-genérico capaz de “negação da negação”. O maior desafio histórico nos tempos de barbárie social é criar estratégias politico-coletivas de defesa e afirmação da pessoa humana. Sob a crise estrutural do capital tornou-se mais explícita a incompatibilidade entre o desenvolvimento da pessoa humana e capitalismo. Deve-se entender capitalismo como modo de organização da produção social e modo de controle do metabolismo social. Ele se constituiu historicamente em sua forma industrial há pouco mais de dois séculos e assumindo hoje uma dimensão planetária. O capitalismo tornou-se hoje um padrão civilizatório global que está cada vez explicitando seus limites.
1. Atributos da pessoa humana A pessoa humana caracteriza-se por 3 atributos fundantes e fundamentais: (1) individualidade; (2) subjetividade e (3) alteridade. Vejamos como o movimento do capital enquanto disseminação do trabalho estranhado nas condições de sua crise estrutural corrói os atributos ontogenético da pessoa humana:
Individualidade A individualidade se constitui na medida em que o homem como espécie humana se apresenta como ser-em-si. A individualidade humana é uma construção histórica. É produto do processo civilizatório como processo de individuação e desenvolvimento histórico do ser humano-genérico que constituiu indivíduos concretos, prenhes de unicidade que afirma a singularidade do homem singular. O homem como indivíduo pessoal é único. Na verdade, cada individualidade humana preserva em si uma biografia social e um acervo de experiências singu-
115
lares que constituem sua identidade humano-pessoal. Cada individualidade humana conserva em si e para si uma história de vida/história do trabalho. Desse modo, é parte do processo de individuação como processo de desenvolvimento humano-genérico a elaboração da memória individual e memória coletiva, plasmada no sonho como “experiência expectante” (o que denominamos como sendo a capacidade de expectativas, aspirações e utopias pessoais e coletivas). Na etapa mais desenvolvida do processo civilizatório, que se caracteriza pelo estágio avançado de redução das barreiras naturais, o em-si único e singular do indivíduo social é constituído pelo caráter e pela personalidade das individualidades pessoais de classe. O homem em-si tem uma natureza humana intrinsecamente social, histórico-pessoal e idiossincrática que, enquanto individualidade pessoal e nas condições do capitalismo histórico, se manifesta como individualidade pessoal de classe. Na sociedade do capital, que tende a reduzir individualidade pessoal à individualidade de classe, a individualidade humana degrada-se em puro individualismo. Ao reduzir-se a mero particularismo pessoal, a dimensão pessoal do homem amesquinha-se. Com a presentificação crônica que caracteriza a “temporalidade inevitavelmente reativa e retroativa” do capital (MÉSZÁROS), perdem-se os laços pessoais com a memória pública e individual e oblitera-se a dimensão do sonho como transcendência do hic et nunc. Nas condições do processo civilizatório estranhado do capital, o indivíduo pessoal reduz-se ao indivíduo-mônoda que basta a si próprio. Na medida em que o capitalismo neoliberal coloca na ordem do dia a supremacia do mercado, incrementando a concorrência e os valores da competitividade, corrói-se o lastro das individualidades pessoais, massificando-as e apagando do horizonte de sua autopercepção a dimensão da unicidade que caracteriza a “singularidade do homem singular” (LUKÁCS). Esse é um elemento de desvalorização/despersonalização humano-genérica. Ao mesmo tempo, o capitalismo flexível corrói o caráter das individualidades pessoais com impactos na dimensão moral (o que Richard Sennet denominou a “corrosão do caráter”). A vida liquida (Bauman), vida nua (Agamben) ou o que denominamos de vida reduzida, são expressões da degradação da individualidade pessoal do homem nas condições históricas do capitalismo global. Esse estranhamento atinge o “em-si" da pessoa humana, isto é, a base ineliminável para a formação de sujeitos pessoais de classe capazes de “negação da negação”. O resgate da individualidade humanosocial e a reconstituição de sua unicidade histórico-biográfica (memória e utopia
116
social) são elementos fundamentais para a afirmação dos demais aspectos da pessoa humana: subjetividade e alteridade.
Subjetividade A subjetividade representa o ser-para-si-mesmo do homem. É próprio da pessoa humana dispor de sua “natureza” humana caracterizada pela dimensão anímica, racional e social. Essa disposição de Si é o que caracteriza a subjetividade do homem-que-trabalha, o modo de ser sujeito que realiza efetivamente sua individualidade pessoal, manifestando-se como singularidade pessoal. Dispor-se da própria vida pessoal no espaço-tempo do Dasein (Ser-aí) ou território da existência pessoal, sendo capaz de “negação da negação”, é o que caracteriza como sujeito as individualidades pessoais. Na sociedade do capital, que desenraiza a pessoa humana do em-si social (a individualidade humana), a corrosão da subjetividade ou a deficiência do homem como sujeito pessoal capaz de “negação da negação” torna-se irremediável. Por isso, a subjetividade (mente e corpo) como instância efetiva da hominidade humano-genérica é uma construção problemática na ordem sociometabólica do capital. Não existe para-si sem em-si. Com a corrosão da subjetividade, o homem torna-se incapaz de dispor de si e de sua natureza humana. Aliena-se de Si próprio e perde o controle de sua vida pessoal. A “captura" da subjetividade do homem-que-trabalha pelos valores-fetiche do capital no capitalismo global é um aspecto da corrosão da capacidade subjetiva do homem flexível que se dobra às injunções da ordem do capital. Na medida em que não se afirma como ser-para-si-mesmo, o espectro de homem torna-se ser-paraoutrem, o Outro estranhado abstrato e fetichizado (o Capital). Nesse caso, ocorre um processo de desterritorialização subjetiva do homem que, alienado do seu território de existência autêntica, onde se afirmaria como ser em-si-para-si, projeta-se noutro território: o território da existência inautêntica das implicações subjetivas fetichizadas do capital.
Alteridade A alteridade se expressa pela dimensão de ser-com-o-outro que caracteriza a pessoa humana. É somente na relação-com-alguém (o Outro) que se é efetiva-
117
mente pessoa humana. Essa qualidade de altericidade (a qualidade de ser através do Outro) é que caracteriza as individualidades pessoais como sujeitos humanogenéricos, explicita o ser social de homens e mulheres que trabalham. É o homem como zoon politikon no sentido pleno, animal politico (ou social), elemento pressuposto do desenvolvimento dos outros atributos da pessoa humana: individualidade e subjetividade. É na instancia da alteridade que se põem, como elemento ontologicamente constitutivo e historicamente determinado, as relações sociais e humanas. O reconhecimento do Outro é condição sine qua non para a constituição da pessoa humana como individualidade e sujeito capaz de dispor de si e intervir na sociedade. A experiência da pessoa humana como alteridade implica relacionar-se efetivamente com o Outro como diferença, apreendendo-o não como meio para fins egoísticos, nem o reduzindo a seus papéis sociais. Na sociedade do capital, a experiência da alteridade, o Outro-como-Próximo-de-Si, torna-se deveras problemática tendo em vista que as individualidades pessoais são intrinsecamente individualidades pessoais de classe. O adjetivo nega o substantivo. A “classe” social subsume a pessoa humana: eis o significado de classe como condição de proletariedade. Com a “sociedade de massa”, as redes sociais propiciam a intensificação dos contatos sociais. Entretanto, o que prolifera são simulacros de Outros. Na medida em que multiplicam-se os contatos sociais, esvaziam-se as verdadeiras relações sociais humanas. O Outro-como-Próximo-de-si implica necessariamente interação social, sociabilidade e territórios de existência autêntica prenhes de relações sociais humanas (que se distinguem, por exemplo, das relações humanas instrumentais). Na sociedade do capital, existe a escassez de Outros-como-próximos-de-si. Entretanto, o que se impõe pelo modo de controle estranhado do metabolismo social, isto é, o capital, é a corrosão da alteridade humana na medida em que, diante da desefetivação do Outro-como-Próximo-de-Si e da exacerbação particularista do Si, desaparece efetivamente o polo reflexivo da individualidade pessoal. Perguntemos: sob o capitalismo global, como se põem hoje os modos de estranhamento que contribuem para a corrosão da pessoa humana e portanto para a degradação da individualidade social, a desefetivação do sujeito humano-genérico e a invisibilidade do Outro-como-Próximo-de-Si?
118
2. Territórios da existência inautêntica e “consciência intranquila” Em Salário, Preço e Lucro (1864), Karl Marx afirmou: “o tempo é o campo de desenvolvimento humano". Nesse caso, o “humano" trata-se da pessoa humana. O filósofo alemão salienta isso no contexto da discussão sobre a importância da luta pela redução da jornada de trabalho. Para ele, nas condições de vigência da maisvalia relativa, a luta pela redução da jornada de trabalho assumiu uma centralidade social e política na medida em que contribuiu para evitar que o capital em processo, na medida em que reduz tempo de vida a tempo de trabalho, exacerbasse o fenômeno do estranhamento e, portanto, obstaculizasse efetivamente o desenvolvimento de homens e mulheres capazes de “negação da negação”. Trata-se da luta pela preservação/constituição dos territórios da existência autêntica, trincheiras sociometabólicas contra a voracidade do capital que degrada o homem-que-trabalha. Portanto, a questão do controle e organização do tempo de vida em funções do desenvolvimento de carecimentos pessoais é a questãochave para a preservação do sujeito histórico. Numa perspectiva histórica, tivemos no decorrer do século XX, na etapa de ascensão histórica do capital, a significativa redução da jornada de trabalho nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Foi deveras uma conquista política da luta de classes que permitiu fortalecer o polo organizado do trabalho em sua luta contra o capital. Na medida em que se reduziu a jornada de trabalho, sob pressão da legislação trabalhista e da organização sindical e política do trabalho, constituiu-se um espaço-tempo liberado do labor. É o território do tempo livre, campo de possibilidade da existência autêntica. Entretanto, o tempo livre incorporou, em si, como processo de reprodução social do capital e espaço de realização da mais-valia relativa, a forma social do mundo das mercadorias, replicando no território do tempo livre, esfera do lazer e consumo, a lógica da alienação. Desse modo, o fenômeno da alienação/estranhamento que ameaça o desenvolvimento humano nas condições do capitalismo global vincula-se não apenas à dimensão da produção e organização do processo de trabalho, mas também à dimensão do consumo e lazer, onde reside o tempo do não-trabalho propriamente dito. Portanto, o tempo de vida liberado, espaço-tempo liberado do labor, interverteu-se em espaço-tempo de consumo estranhado. A lógica da produção da mais-
119
valia relativa e as contradições do desenvolvimento do capital no plano do mercado mundial (crise de valorização/superprodução/sobreacumulação) continham, em si e para si, o desenvolvimento intenso e ampliado do mundo das mercadorias sob a vigência da grande indústria. A modernidade como “imensa coleção de mercadorias” (MARX), mercadorias obcecadas pela sua realização enquanto valor de troca, significou a exacerbação do poder da ideologia e da manipulação social. A intrusão da mercadoria no campo de desenvolvimento humano reduziu as possibilidades de territorialização da existência autêntica, tendo em vista a disseminação do fetichismo da mercadoria e a corrosão dos atributos da pessoa humana. Na verdade, a constituição da sociedade de consumo de massa ressignificou o problema da organização do tempo de vida ou tempo liberado do trabalho alienado. A mera redução da jornada de trabalho não significa mais, em si e para si, campo de desenvolvimento humano. Pelo contrário, na medida em que se instaurou a sociedade de consumo de massa e a produção torna-se totalidade social, o tempo de liberação do labor tornou-se um campo contraditório de desenvolvimento humano e territorialização da existência autêntica. É claro que a afirmação marxiana de que o tempo é o campo do desenvolvimento humano mantém sua validade ontológica. Entretanto, a centralidade política da redução da jornada de trabalho precisa ser melhor qualificada na perspectiva da reconstituição de territórios da existência autênticas para além da lógica da mercadoria. A forma-mercadoria e a dialética do valor de uso/valor de troca constitui um campo contraditório de desenvolvimento humano caracterizado pela afirmação e negação da pessoa humana. A reconstituição de territórios de existência autêntica significa operar a superação/conservação da forma-mercadoria na perspectiva do controle social (a democratização radical da vida cotidiana). Ela não é possível nos parâmetros sociometabólicos do capital. Entretanto, deve-se salientar que os territórios de existência inautêntica que constituem o mundo social do capital estão clivados de densas contradições entre o metabolismo social do capital mediado pela forma-mercadoria, por um lado, e as individualidades pessoais e suas possibilidades ampliadas de desenvolvimento humano-genérico, por outro lado. O fenômeno do estranhamento é caracterizado pela candente contradição entre desenvolvimento da capacidade humana de redução das barreiras naturais com o desenvolvimento da produtividade do trabalho social; e as relações sociais do capital baseadas na propriedade/apropriação privada e divisão social hierárquica do trabalho. Na verdade, é a relação-capital
120
que interverte riqueza em miséria e poder em impotência diante das forças sociais estranhadas que invertem/pervertem o desenvolvimento humano-genérico. Portanto, o traço constitutivo do território de existência inautêntica é o próprio capital como contradição viva. Não se trata, desse modo, da inautenticidade muda e passiva, mas sim da inautenticidade inquieta e indignada que caracteriza a “consciência intranquila” do proletariado tardio.
3. Produção do capital, vida reduzida e corrosão da pessoa humana Na etapa do capitalismo histórico do pós-Segunda Guerra Mundial, os denominados “trinta anos gloriosos" do desenvolvimento capitalista, disseminou-se nos locais de trabalho e na vida social o trabalho estranhado/alienado de cariz fordista-taylorista (de baixa densidade fetichizada) e o modo de vida baseado no consumo fetichizado. Proliferou-se, pelo menos para o conjunto da classe trabalhadora organizada, coberta pelo Welfare State e pelo American way of life, a “consciência tranquila". O trabalho fordista-taylorista possuía pouca densidade fetichista na medida em que o controle capitalista no local de trabalho era bastante visível e expressamente insatisfatório. A presença do despotismo de chefias e a monotonia e rotina da linha de produção expunham a dimensão estranhada da dominação do capital. A loucura da organização do trabalho capitalista era compensada pelas contrapartidas salariais da ordem do consumo fetichizado. No plano da ideologia da sociedade industrial, aceitava-se a ordem burguesa, na medida em que fruía-se com deleite prazeroso o consumo fetichista de mercadorias. Disseminaram-se como templos do consumo fetichizado, os shopping centers no cenário da urbanidade burguesa. O consenso socialdemocrata construiu-se na troca tácita entre insatisfação no trabalho e satisfação no consumo e lazer fetichizado. Na etapa do capitalismo global, o fetichismo da mercadoria desdobrou-se em múltiplas formas sociais de fetichismos. Por exemplo, com a crise da organização do trabalho capitalista na metade da década de 1970, o fetichismo do trabalho estranhado/alienado repõe-se sob a forma do trabalho pós-fordista de feição toyotista. Nesse caso, o capital alterou o modo de implicação subjetiva na organização do trabalho, articulando inovações no modo de gestão e na base tecnológica do
121
sistema de produção de mercadorias. Com o espírito do toyotismo (ALVES, 2011), exacerbou-se o poder da ideologia visando recompor o consentimento da força de trabalho e trabalho vivo às injunções do capital em processo. trabalho. A produção toyotista imiscuiu-se na vida social. Sob a vigência plena do capitalismo manipulatório, trabalho e consumo estranhado tornaram-se densamente fetichizados. Ao mesmo tempo, a crise da socialdemocracia e dos arranjos políticos e sociais do Welfare State sob a ofensiva neoliberal ampliaram a precariedade salarial e a legitimação social da ordem burguesa pelo consumo de massa. A crise da “classe média” ou crise da socialdemocracia no núcleo orgânico do sistema do capital interverteu a “consciência tranquila” em “consciência intranquila”. A intranquilidade ou sentimento de indignação dos proletários pós-modernos derivou da agudização das contradições sociais no capitalismo global no plano do sociometabolismo. Na verdade, o processo de precarização do homemque-trabalha desdobra-se no bojo dos territórios de existência inautêntica. A “vida reduzida” e a corrosão da pessoa humana nas instâncias da individualidade, subjetividade e alteridade ativam um campo problemático e contraditório no plano do metabolismo social. O mundo social do trabalho nas condições do capitalismo global é inseguro e intranquilo. As individualidades pessoais de classe sob a condição de proletariedade são obrigadas a dar respostas sob pena de irem à ruina. Por isso, agudiza-se a tensão entre classe social e pessoa humana numa dimensão ampliada. Ela perpassa as mais diversas camadas sociais da “classe” do proletariado, inclusive os que denominamos de proletários de “classe média” que vivem posições contraditórias na estratificação social e estrutra de classe. A ideia da corrosão da pessoa humana por meio da “vida reduzida” baseia-se efetivamente no processo de redução do tempo de vida a tempo de trabalho. Temos, desse modo, a escassez do tempo para-si e a deriva do Self. Eis um aspecto fundamental da precarização do homem-que-trabalha que pode ser expressa na formulação da diminuição da composição orgânica do ser genérico do homem, determinada pela relação tempo de vida /tempo de trabalho. Na verdade, o processo de modernização é o processo de constituição do tempo de vida em territórios de existência inautêntica e a redução do tempo de vida em tempo de trabalho estranhado e fetichizado. O trabalho estranhado fetichizado é o trabalho dominado intransparente e perverso que ocupa o tempo de vida. Com a sociedade em rede, ele flui nos interstícios sociais. É o trabalho abstrato fictício que invade o território da existência inautêntica colonizada pelo consumo fetichizado.
122
Na medida em que sob o capitalismo fordista o consumo fetichizado ocupou o tempo de vida e lazer, criaram-se as condições sociometabólicas para que o tempo de vida esvaziado de conteúdo se tornasse tempo de trabalho estranhado e fetichizado nas condições do capitalismo toyotista. Portanto, antes de ser reduzida a trabalho abstrato fictício, a vida foi esvaziada de conteúdo efetivamente humano pelo consumo fetichista. Com o capitalismo global, o fetichismo da mercadoria com sua carga manipulatória penetrou na produção, ampliando os territórios da existência inautêntica. O toyotismo como ideologia da produção de mercadorias contém em si uma dimensão fetichista de alta intensidade visando à “captura" da subjetividade do trabalho pelo capital. Por isso, o trabalho toyotizado é trabalho estranhado densamente fetichizado no sentido de ocultar, com sutileza, a exploração e dominação do capital envolvendo objetivamente com seus dispositivos linguístico-organizacionais o trabalhador assalariado e o homem-que-trabalha. Ao mesmo tempo, a derrocada do compromisso fordista-keynesiano e a crise da sociedade de consumo (crise da “classe média”), com a persistência do consumo densamente fetichizado devido à exacerbação da manipulação com a crise do capital, ampliaram e intensificaram a carga de estranhamento, fazendo surgir a “consciência intranquila” que caracteriza o proletariado pós-moderno. É ela que permite recompor de forma contraditória a classe do proletariado com demandas radicais.
123
Capítulo 6
Precarização do trabalho e saúde do trabalhador no Brasil
N
osso objetivo neste capítulo é apresentar, num primeiro momento, alguns elementos teórico-críticos sobre o problema da saúde do trabalhador no contexto histórico do capitalismo global. Depois, num segundo momento, iremos tratar da precarização do trabalho no Brasil, salientando o corte histórico ocorrido na década de 1990, cujas mutações estruturais alteraram o metabolismo social do trabalho no Brasil. É importante destacar o sentido ruptural e a singularidade crucial da década de 1990 para que possamos redefinir o tratamento do tema saúde do trabalhador no Brasil. Em primeiro lugar, cabe salientar que o tema da saúde do trabalhador não é apenas mais um tema do mundo do trabalho. Na verdade, ele é o tema crucial que expõe – na medida em que construirmos ferramentas teórico-metodológicas efetivas – a miséria humana sob as condições da exploração do capital em sua etapa de crise estrutural. A discussão crítica da saúde do trabalhador não pode ser deixada apenas a cargo de médicos e especialistas de plantão, proprietários do saber competente, atribuição ideológica que lhes confere o poder de ocultar as raízes sociais do adoecimento do homem que trabalha. A tese inicial que buscaremos salientar é que, cada vez mais, sob a nova dinâmica do capitalismo global, tornam-se incompatíveis o modo de produção capitalista e a saúde do trabalhador. Muitas vezes, as políticas de saúde do trabalhador possuem meramente um caráter assistencial ou paliativo. Enfim, não se vai até as raízes do problema do adoecimento do homem que trabalha. Ocultam-se e dis-
125
simulam-se as causas essenciais das doenças do trabalho que assumem, cada vez mais, caráter atípico. Tergiversa-se e inclusive frauda-se com a omissão de peritos médicos diante de condições degradantes que são tratadas como irremediáveis, na medida em que dizem respeito a uma ordem sociometabólica que se considera natural. Tenho salientado nos meus últimos escritos (ALVES, 2007, 2009) que o traço essencial do capitalismo global é a precarização do trabalho em sua dimensão radical – radical no sentido de ir até as raízes; e a raiz é o próprio homem que trabalha. Uma das principais manifestações da precarização do trabalho no capitalismo global é adoecimento da subjetividade do trabalho vivo sob as condições da ordem salarial. Muitas vezes quando se trata do tema da precarização do trabalho se faz referência ao salário e emprego ou ainda às condições de trabalho etc. Entretanto, considero que a manifestação candente da precarização do trabalho em nossos dias ocorre através das ocorrências de adoecimentos e doenças do trabalho, expressão candente do esmagamento da subjetividade humana pelo capital, a negação do sujeito humano-genérico pelos constrangimentos da ordem burguesa. A desefetivação do ser genérico do trabalhador assalariado – operário, empregado ou trabalhador público – explicita-se através da manifestação de adoecimentos e doenças do trabalho que atingem o corpo e a mente de homens e mulheres proletários que se submetem às relações sociais de trabalho capitalista, relações sociais caracterizadas em seu âmago pela subalternidade estrutural do trabalho ao capital. Ao dizermos “subjetividade do trabalhador assalariado” dizemos corpo e mente do homem que trabalha. Na medida em que o processo de produção capitalista sob a mundialização do capital intensifica a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, tende a proliferar múltiplas formas de degradação da saúde do trabalhador nos mais diversos ramos de atividade da vida social cada vez mais constrangidos pelos parâmetros da valorização do valor.
1. O espectro do adoecimento invisível Da indústria aos serviços – inclusive os serviços públicos de educação e saúde, por exemplo – manifestam-se, com mais ou menos intensidade e amplitude, resistências pessoais à loucura do trabalho alienado. Na medida em que prolifera
126
a morbidez do trabalho capitalista, ocultam-se as raízes perversas do adoecimento do homem que trabalha. A sociedade burguesa é a sociedade do fetichismo que oculta as origens dos produtos da vida social, isto é, o trabalho humano e as relações sociais nos quais estão implicados homens e mulheres em suas atividades de trabalho cotidiano. Os mecanismos de poder ocultam e dissimulam o clamor cotidiano de homens e mulheres dilacerados em sua subjetividade humana não apenas pelas condições de trabalho – como se a miséria humana no capitalismo se reduzisse ao local de trabalho – mas pelas relações sociais de produção e reprodução social estranhadas. Enfim, o adoecimento e as doenças do trabalhador assalariados são expressões singulares candentes da miséria humana no sentido das relações sociais ou resistências pessoais – consciente ou inconsciente – à degradação do núcleo humano-genérico das individualidades pessoais de classe. Os mecanismos da ideologia das doenças do trabalho são múltiplos, Um deles é a subnotificação ou notificações insuficientes. Depois, a dissimulação do nexo causal não apenas com respeito ao trabalho propriamente dito, mas com respeito às relações sociais onde estão inseridos homens e mulheres proletários assalariados. Na verdade, não é o trabalho como atividade profissional ou atividade laborativa propriamente dita que faz adoecer o homem que trabalha, mas sim o capital como relação social estranhada. Primeiro, oculta-se a dimensão social da miséria humana que o adoecimento e as doenças do trabalho explicitam. Oculta-se o nexo causal efetivo entre o trabalho da doença e a doença do trabalho. Depois, culpabiliza-se a vítima pela sua desgraça humana. Eis a dupla perversidade da ordem burguesa: ocultar e imputar culpa às vítimas. A ideologia da doença do trabalho é enquadrada como caso clínico e não como produto social do mundo dessocializado do capital. A doença do trabalho – ou melhor, doença no trabalho – torna-se objeto de peritos médicos que são verdadeiros ideólogos da ordem burguesa instruídos para negar os laços sociais alienados da morbidade do trabalho capitalista. Ora, mais do que o acidente de trabalho propriamente dito, a doença do trabalho (ou doença no trabalho) é o produto efetivo da alienação como desefetivação do ser genérico do homem. Deter-se tão-somente na fenomenologia do acidente de trabalho típico ou de trajeto é permanecer na antessala do complexo de precarização do trabalho que avassala hoje homens e mulheres que trabalham. A alienação capitalista não é um mero acidente, mas sim um traço estrutural das relações sociais capitalistas de produção. Por isso, é impróprio considerar o adoecimento do homem que trabalha como uma mera manifestação de “acidente de trabalho”.
127
2. O fetiche da doença Sob o modo de produção capitalista, o homem se nega como homem no interior do processo de produção do capital. É a prova cabal de que ele está alienado não apenas do produto de sua atividade produtiva ou do processo de trabalho em si e para si, mas está alienado dos outros e de si próprio, ou seja, alienado de seu corpo e de sua mente. Da doença do fetiche passamos para o fetiche da doença. O homem que trabalha perde o controle de seu corpo e de sua mente – e por conseguinte de sua doença. Na medida em que se desenvolve o sistema mundial do capital e avança o fetichismo social em suas várias manifestações sociais, as doenças do/no trabalho se transfiguram de acordo com a nova dinâmica do capital sob sua crise estrutural. Nos últimos trinta anos têm proliferado os adoecimentos atípicos do trabalho. Como salientamos acima, a atipicidade da morbidez do trabalho capitalista ocorre no plano da aparência do sistema social do capital que oculta e dissimula as raízes sociais dos adoecimentos laborais. O cognominado atípico é, em sua essência, o típico que se impõe pelas novas condições do capitalismo flexível. O fetichismo social tende a obnubilar formas candentes de desefetivação humano-genérica que ocorrem no plano da mente e não apenas do corpo do homem que trabalha. Os parâmetros de aferição da epidemiologia positivista estão cada vez mais ultrapassados pela nova dinâmica patogênica do capital. O incremento da “captura” da subjetividade do homem que trabalha pelo capital, o traço marcante da produção de mercadorias sob o capitalismo global, dilacera não apenas o corpo – cabeça, tronco e membros – mas a mente. Entretanto, as estatísticas sociais das ditas “doenças do trabalho” tendem a manifestar apenas o adoecimento do corpo e não os adoecimentos (e transtornos) da mente. Enfim, a nova dinâmica patogênica do capital demonstra que o sistema de aferição epidemiológico dos adoecimentos do homem que trabalha está ultrapassado no sentido técnico-categorial. Para Karl Marx, o trabalho estranhado/alienado é o trabalho que desefetiva o homem que trabalha. Diz ele que, sob o modo de produção capitalista, “esta realização efetiva do trabalho aparece como desefetivação do trabalhador”. O filósofo alemão utiliza a palavra “Entwirklichung” para “desefetivação” (o verbo “Entwirklichen” significa “privar de realidade e/ou de efetividade”). Assim, desefetivação em alemão – que é o próprio sentido de “precarização” – significa perda do sentido de realidade. É a loucura do trabalhador (MARX, 2004).
128
Portanto, o adoecimento (e transtornos) da mente do homem que trabalha – adoecimento oculto e silencioso – é a última fronteira da alienação humana, que nega – no sentido de obliterar – a própria capacidade humana de dar resposta à miséria social no qual ele está inserido como trabalhador assalariado. É a negação do sujeito humano em sua forma extrema. É claro que, depois do adoecimento mental, só temos a morte como desefetivação e negação absoluta do ser humano (ora, os casos de suicídios entre trabalhadores assalariados explicitam a derivação mórbida da condição humana sob o metabolismo social do capital). Em 1846, no manuscrito “Sobre o suicídio”, Marx observava sobre o suicídio o mesmo que pode ser dito hoje sobre o adoecimento no trabalho. Diz ele que, na sociedade burguesa, “o suicídio não é, de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. O que é contra a natureza não acontece. Ao contrário, está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios...” (MARX, 2006). O silêncio (e preconceito) sobre adoecimentos mentais no mundo do trabalho é deveras sintomático. É a fetichização do adoecimento em sua forma magistral. Primeiro, torna-se difícil conceber nexo causal entre doença mental e trabalho, pois a mente – mais do que o corpo – é reduto oculto da fenomenologia laboral. Mas, ao alugar a força de trabalho, o capital implica na sua relação social estranhada não apenas a capacidade física do homem que trabalha, mas também – e hoje, principalmente – a capacidade psíquica. Cada vez mais, o processo de trabalho como processo de valorização do valor incorpora uma base técnica complexa que implica (ou “captura”) as disposições mentais do homem que trabalha. Constitui-se assim, sob o toyotismo, um novo nexo psicofísico qualitativamente novo que altera a morfologia psicogênica da relação-capital. O adoecimento mental diferentemente do mero acidente de trabalho que lesiona o corpo do operário ou empregado mantém vínculos inelimináveis com a singularidade do homem singular que trabalha. Ela está na raiz da própria identidade humano-genérica. A mente humana com as instâncias psíquicas da consciência, inconsciência e pré-consciência é a matriz da integralidade humano-genérica. Por isso, no mundo do capital que se caracteriza pela cisão íntima do homem, a mente tende a se dilacerar. Dilacera-se, como salientamos acima, a própria capacidade do homem de dar resposta efetiva à sua condição existencial (como observou Lukács, “o homem é um ser que dá resposta” – se ele torna-se incapaz de responder, não seria a doença sintoma/resposta liminar desta incapacidade desefetivadora?).
129
3. A nova vigência de Sade O homem burguês é um homem esquizoide, dividido entre trabalho e vida, individualidade de classe e individualidade pessoal. Por um lado, a lógica do capital se reproduz acirrando a tensão constante entre vida pessoal e trabalho assalariado. Existe uma luta surda que dilacera o homem que trabalha entre seus interesses pessoais marcados pela sociabilidade familiar e seu desenvolvimento humano-genérico e os interesses profissionais propriamente ditos. Essa luta íntima que dilacera a subjetividade do homem que trabalha se expressa, por exemplo, na luta pela organização do tempo de vida e tempo de trabalho. Sob o capitalismo global, cada vez mais, tempo de vida se reduz a tempo de trabalho. Na maioria das categorias assalariadas, as jornadas de trabalho têm excedido a norma legal em virtude da nova lógica de organização do trabalho baseado no cumprimento de metas e intensificação das atividades laborais. Aliás, a extensão das jornadas de trabalho é uma derivação compositiva do incremento da “captura” da subjetividade do homem que trabalha nas condições do capitalismo flexível. É a dimensão exacerbada da lógica do trabalho abstrato que se expande sob o mundo vivido de homens e mulheres. Ora, o espaço do lar é avassalado pelas pré-ocupações do trabalho capitalista. Leva-se trabalho para casa e o trabalho estranhado, que coloniza corpo e mente do homem que trabalha, coloniza sua vida pessoal. O avassalamento íntimo da subjetividade humana – corpo e mente –, requerida à exaustão pelas demandas do trabalho alienado, contribui para os quadros atípicos de doenças do trabalho. Por outro lado, não é apenas a vida pessoal que se reduz a trabalho estranhado – trabalho para outrem e não para si como atividade produtiva humana significativa – mas é o próprio trabalho como meio de subsistência necessário na sociedade do trabalho assalariado que se impõe como condição sine qua non para a satisfação íntima de individualidades pessoais de classe que cultivam expectativas, sonhos e utopias de mercado. O espectro da servidão voluntária ou da autoperversidade sádica que se satisfaz com sua própria desefetivação humano-genérica tende a proliferar na ordem burguesa tardia (a nova vigência de Sade – com referência ao Marquês de Sade – é a explicitação de que hoje, o homem burguês é, antes de tudo, um perverso – isto é, ele se satisfaz com sua própria alienação) (ROUDINESCO, 2007). Na verdade, o capitalismo neoliberal é uma usina de carecimentos estranhados. A necessidade de consumo se interverte em consumismo instigado pelas teias
130
dos aparatos midiáticos da manipulação cotidiana. Consome-se não por necessidade, mas sim para satisfazer carecimentos estranhados. Na medida em que o tempo de vida se reduz a tempo de trabalho e, diga-se de passagem, trabalho estranhado, trabalho-para-outrem, a vida se resume – no plano da reprodução social – a sustentar os requerimentos sociometabólicos da sociedade do trabalho abstrato. Por exemplo, alguns segmentos da classe-que-vive-do-trabalho, como os trabalhadores de “classe média”, tornam-se presas fáceis do fetichismo da mercadoria. Sob a era neoliberal, os cantos de sereia das mercadorias, verdadeiras marcas de status e prestígio social, tornam-se altissonantes, resgatando, de forma perversa, a autoestima pessoal de homens e mulheres dilaceradas nos locais de trabalho reestruturados. Ora, o despotismo fabril e os novos modos de gestão toyotista de “captura” da subjetividade baseados no management by stress visam, de certo modo, a reduzir a autoestima de operários e empregados para torná-los dóceis – no corpo e na mente – às imposições de metas do novo produtivismo. O “efeito colateral” previsível – e quase óbvio – do trabalho capitalista reestruturado é a constituição do que Elizabeth Roudinesco denominou de “estado depressivo” que assola hoje a civilização do capital e o complexo de adoecimento e doenças do trabalho, principalmente da mente do homem que trabalha (ROUDINESCO, 2000). O capital cria em cada um de nós os carecimentos estranhados que contribuem para sua própria reprodução espúria. Talvez seja essa a verdadeira dimensão da barbárie social. Sob o capitalismo neoliberal, existe uma afinidade eletiva sinistra entre a disseminação de espaços da mercadoria (que se confundem com espaços de sociabilidade), como shopping centers e a explosão de venda das drogas lícitas e ilícitas que visam preencher o vazio existencial de individualidades pessoais colonizadas pelos requerimentos íntimos do trabalho estranhado. Enfim, é impossível ter uma vida plena de sentido na sociedade do trabalho abstrato – o trabalho sem sentido. Nessas condições sociometabólicas da produção da vida social, a possibilidade do adoecimento do homem que trabalha está sempre presente. Aliás, como salientou Marx acima (com respeito ao suicídio), isto é parte da natureza da nossa sociedade. É um dado ineliminável que constrange irremediavelmente a saúde do trabalhador. Aliás, como conceber efetivamente a saúde do trabalhador – corpo e mente – na ordem sociometabólica do capital, principalmente sob as condições do capitalismo flexível.
131
4. Ajuste Neoliberal, Reestruturação Produtiva e nova dinâmica do capitalismo global no Brasil: A singularidade dos anos 1990 Ao tratarmos do mundo do trabalho, é imprescindível salientar a singularidade crucial da década de 1990 no Brasil, a década da precarização do trabalho em sua forma extrema. Sob a dita “década neoliberal” o complexo do trabalho no Brasil foi atingido por um processo diruptivo de reestruturação produtiva na indústria, serviços e inclusive administração pública, que alterou o perfil do trabalhador coletivo no País. Na verdade, temos no começa da década de 1990 o que podemos considerar o terceiro processo de reorganização do capitalismo industrial no Brasil, que, num primeiro momento, assume a forma diruptiva da reestruturação/ desestruturação produtiva com impactos candentes na estrutura de classes sociais e morfologia social do trabalho. A primeira reorganização do capitalismo industrial ocorreu na década de 1930 sob o governo Vargas; com a industrialização pesada e o desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil nas décadas de 1950/1960, ocorre a segunda reorganização capitalista no País, quando se constituíram os pilares da nossa modernidade salarial. A terceira reorganização do capitalismo industrial no Brasil emerge com o ajuste neoliberal e a reestruturação produtiva na década de 1990. Ocorre um processo de precarização do trabalho e a constituição, na década de 2000, de uma nova precariedade salarial, que incorpora os traços do capitalismo flexível. A partir da década de 1990, ocorre o aumento contundente do desemprego aberto e trabalho precário nas metrópoles. Temos uma alteração significativa da dinâmica do mercado de trabalho e da luta sindical (e política) dos trabalhadores organizados. Alteram-se, do mesmo modo, as experiências vividas e experiências percebidas dos trabalhadores assalariados nos locais de trabalho reestruturados. O “dilúvio neoliberal” (Atilio Boron) ou ainda, “a desertificação neoliberal” (Ricardo Antunes) ocorrida na década de 1990 – expressões utilizadas por importantes autores das ciências sociais na América Latina – dividiram a história do trabalho no Brasil moderno em dois períodos históricos delimitados: antes e depois de 1990 (ou ainda A.C ou D.C – antes e depois de Collor) (ANTUNES, 2005). Nessa “década de chumbo”, a década de 1990, os locais de trabalho passaram por transformações significativas no tocante à base tecnológica e à gestão e organização do trabalho. Temos a dita “reestruturação produtiva do capital”. Com a
132
abrupta liberalização comercial, alterou-se o padrão da concorrência capitalista no País. Empresas privadas faliram ou sofreram fusão ou incorporação com outras empresas. Cadeias produtivas foram destruídas e empresas relocalizadas (como ocorreu, por exemplo, na indústria de calçados e inclusive indústrias têxteis) como forma de obter vantagens competitivas no mercado interno. O desemprego de massa cresce nas metrópoles. A mancha da precarização do trabalho assume dimensões sociais inéditas. Com o programa de desestatização dos governos Collor e Cardoso, importantes empresas estatais são privatizadas. Foram dissolvidos coletivos de trabalho e surgiu uma nova empresa capitalista reestruturada. Por um lado, ocorre a fragmentação da classe trabalhadora organizada em sindicatos em virtude da nova morfologia social do trabalho por conta da empresa capitalista fluida, flexível e difusa (ou enxuta), com a terceirização (e inclusive a quarteirização) de atividades produtivas alterando a organização da produção do capital. Por outro lado, surgem novos coletivos de trabalhadores assalariados vinculados aos novos empreendimentos capitalistas emergentes nas áreas privatizadas. O que se convencionou chamar de reestruturação produtiva foi esse “cardápio de mudanças sociais que afetavam os assim chamados ‘chãos-de-fábrica’, neles alterando a forma tecnológica e organizacional de produzir as estratégias de gerenciar as relações de trabalho e de negociar o consentimento em face dos novos padrões de produção, e atingindo o próprio perfil dos trabalhadores” (GUIMARÃES, 2004). Mas, a ideia de reestruturação produtiva implica dimensões para além do espaço micro-organizacional e o que estava além dele, isto é, as novas formas de controle patrimonial (no bojo de um processo intenso de fusão e aquisições que se desencadeava com a abertura econômica e a integração da produção local a padrões competitivos internacionais); para estratégias de competição interfirmas; para os novos encadeamentos produtivos delas resultantes, na busca de metas de qualidade e produtividade. Ou seja, o que convencionamos denominar de complexo de reestruturação produtiva articula processos micro-organizacionais com dinâmicas macroeconômicas (mercados de ativos, mercados de produtos e mercados de trabalho – internos e externos) (CARLEIAL e VALLE, 1997). É nesse contexto sócio-histórico que se desenvolve a “flexibilização” e o “enxugamento”, palavras mágicas no ideário gerencial, que transfiguram os locais de trabalho e os espaços-tempo da produção de mercadorias, constituindo um novo trabalhador coletivo. Observa com propriedade Guimarães:
133
Enxugamento, encolhimento de efetivos, exteriorização de processos produtivos, mas também de trabalhadores, terceirização, foram práticas que emergiram com força nesse momento, introduzindo um novo léxico e uma nova gramática, que tentavam dar conta da alteração profunda, então em curso, na maneira de incorporar o trabalho: no seu volume, na sua natureza, nas suas relações sociais que o estruturavam, nas institucionalidades que o regulavam (GUIMARÃES, 2004). Mas não é apenas a reestruturação produtiva que altera a dinâmica do sindicalismo de classe no País na década de 1990. Por um lado, o Plano Real em 1994, ao promover a estabilização monetária, altera sobremaneira os cenários da mobilização (e negociação) sindical lastreadas antes no cenário hiperinflacionário. O sindicalismo organizado, principalmente na indústria e serviços financeiros (como bancos) é obrigado a enfrentar o estreitamento da base de organização sindical e os novos padrões de negociação coletiva. Por outro lado, acirra-se a ofensiva ideológica do capital. A queda do muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da URSS, em 1991, alimentam o discurso da globalização e o debacle da utopia socialista. O discurso midiático imbuído da ideologia neoliberal colocou o mercado como referente das ações sociais. Substitui-se o ideal coletivo, tão caro ao sindicalismo e à luta dos trabalhadores assalariados, pelos valores do individualismo de mercado. Toda uma geração de jovens operários e empregados que se inserem na vida adulta e no mercado de trabalho na década de 1990 tendem a incorporar expectativas, sonhos e utopias de mercado. Nesse contexto de intensa manipulação midiática do capital, a perspectiva de classe é diluída pelo discurso da colaboração com o capital. Difunde-se a ideologia do sindicalismo propositivo. A crise do sindicalismo (e do partido de classe) contribui para estratégias sindicais neocorporativas sedimentadas num pragmatismo de resultados. Na verdade, a crise da consciência da classe é mais um elemento da precarização do trabalho. O movimento voraz do capital corrói a consciência de classe, contribuindo, desse modo, para a fragmentação/invisibilização da classe do trabalho. Além da reestruturação produtiva, estabilização monetária e ofensiva ideológica do capital, a década de 1990 no Brasil é caracterizada pelo crescimento medíocre da economia brasileira. O péssimo desempenho da economia capitalista no Brasil nessa década contribuiu, é claro, para agravar a precarização do trabalho em virtude do crescimento do desemprego abertos nas grandes metrópoles no País. As
134
políticas neoliberais que privilegiam o capital financeiro e as adversidades da economia global que, em 1995 conhece a primeira crise da globalização, contribuíram sobremaneira para o desempenho medíocre da economia brasileira no período. Se nos anos 1980, considerados a “década perdida”, tivemos uma taxa média anual de crescimento do PIB em 3%, nos anos 1990 o crescimento anual médio do País atingiu apenas 1,7% (até 1999) (POCHMANN, 2001). Na medida em que o PIB não cresce ou cresce muito pouco, a economia não absorve força de trabalho em busca do primeiro emprego. Assim, reestruturação produtiva, com o enxugamento de coletivos de trabalho em setores estratégicos da economia brasileira, e o crescimento incerto do PIB, que impede a absorção de jovens proletários nos locais de trabalho, criou um cenário hostil (e perverso) para o muni do trabalho. Apesar do controle da inflação por meio do Plano Real, em 1994, o Brasil continuou apresentado a pior distribuição de renda do mundo industrializado. O “choque de capitalismo” da década de 1990 tendeu a concentrar mais ainda a riqueza social e a tornar mais precário o mundo do trabalho no Brasil. Por exemplo, segundo dados do IBGE, na década de 1990, cresceram a distância salarial entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres. Em 1992 a diferença entre o pico e a base da pirâmide nacional de rendimentos era de cerca de treze salários mínimos. Em 1999, chegou a aproximadamente dezessete. O “choque de capitalismo” na década de 1990 significou a corrosão paulatina dos rendimentos médios do trabalho. Mesmo na década de 2000, não se conseguiu recuperar as perdas do salário médio real ocorridas na década neoliberal. O processo de reestruturação produtiva das grandes empresas, com as inovações tecnológicas e organizacionais, visou desmontar os nichos organizados da modernidade salarial no País. Tornou-se perceptível no decorrer da década neoliberal, o continuum de degradação do mundo do trabalho no País. A sensação de perda contínua no emprego, salário e condições de trabalho imprimiu a sua marca em contingentes massivos da PEA (População Economicamente Ativa), mesmo nos breves momentos de recuperação da economia brasileira. A degradação candente do mundo do trabalho contribuiu sobremaneira para aprofundar o cenário de barbárie social. Os altos (e crescentes) índices de criminalidade nos centros metropolitanos atestam não apenas a falência do Estado brasileiro, objeto de devassa das políticas neoliberais, como o resultado cumulativo de um modo de produção social que se tornou não apenas incapaz de absorver contingentes massivos da força de trabalho, como demonstrou ser voraz em degradar
135
emprego, salário e condições de trabalho de contingentes importantes do mundo do trabalho organizado (POCHMANN, 2001). Se por um lado é perceptível a linha contínua de degradação do mundo do trabalho que buscamos caracterizar como sendo constituído pelo processo de precarização do trabalho e pela constituição da nova precariedade salarial, por outro lado as políticas neoliberais contribuíram para a constituição de um cenário propicio para os negócios capitalistas no País (ALVES, 2000). Na ótica do capital, a “era neoliberal” constituiu um sistema progressivo de novas sinergias para a valorização capitalista, principalmente em sua forma fictícia (como atesta a alta rentabilidade dos bancos nos últimos quinze anos). A noção de nova precariedade salarial ou de nova condição salarial pode ser apreendida através da disseminação nos locais de trabalho das grandes empresas das formas instáveis do salariato, isto é, das novas modalidades especiais de contrato de trabalho na CLT, com mudanças no plano dos direitos e na forma de contratação do trabalho e na organização da jornada de trabalho; de alterações qualitativamente novas nas estratégias de gerenciar as relações de trabalho e de negociar o consentimento em face aos novos padrões de produção e da própria perspectiva de carreira e de inserção no mercado de trabalho, em virtude do crescimento do desemprego aberto (DIEESE, 2002). A noção de precariedade tende a perder, nessa nova configuração do sistema capitalista, seu caráter atípico e torna-se um nexo institucional, e, portanto, típico, da própria implicação assalariada nas condições do novo regime de acumulação flexível. Essa nova precariedade salarial do capitalismo flexível que emerge no Brasil no decorrer da era neoliberal constitui-se no bojo de um processo de precarização do trabalho. A título de pressuposto investigativo, podemos caracterizar como principais traços da transformação da objetividade (e subjetividade) do mundo do trabalho organizado no Brasil nas décadas de 1990 e 2000, em sua dimensão sócio-estrutural, (1) o desenvolvimento sistêmico de um novo complexo de reestruturação produtiva e (2) a emergência de um novo (e precário) mundo do trabalho, constituído por um trabalhador coletivo de feição heteróclita em sua dimensão contratual e com um perfil de trabalhadores assalariados imersos em novos padrões de produção nos locais de trabalho. O uso da força de trabalho é caracterizado por novos ativos de qualificação (escolaridade formal, treinamento nos processos produtivos, “casamento com as plantas” etc.) e perspectivas/expectativas diferenciadas de carreiras e mobilidade social.
136
Enfim, a década de 1990 marcou um corte histórico na forma de ser do trabalho no Brasil. Acelerou-se o tempo histórico do capital nos projetando noutra dimensão da precarização do trabalho no Brasil. Aquelas décadas pré-neoliberalismo estão tão distantes que parecem a pré-história do trabalho no Brasil. Por outro lado, o devido distanciamento histórico em 2010 nos permite apreender a década de 1990 hoje como uma “década de transição” para uma nova precariedade do trabalho no Brasil que iria se constituir na década de 2000. O “terremoto neoliberal” na economia, sociedade e cultura abriu uma nova temporalidade histórica do capitalismo brasileiro. Surgem novos problemas oriundos da forma de ser da exploração da força de trabalho nas condições da mundialização do capital. É no interior desta perspectiva histórica que se coloca a necessidade de apreendermos a novidade histórica dos modos de adoecimento do trabalhador assalariado, isto é, a nova fenomenologia dos acidentes do trabalho principalmente no tocante aos casos atípicos (o que não está visível nas estatísticas sociais). Na medida em que se altera a totalidade concreta do desenvolvimento capitalista no País, incorporam-se novas determinações do problema da alienação do trabalho, isto é, alteram-se os modos de desefetivação do ser genérico do homem que trabalha. Por isso, cabe verificar as novas nuances do adoecimento do trabalho decorrentes do incremento da captura da subjetividade do homem que trabalha. Ocorrem alterações silenciosas e sutis nos modos de alienação laboral. O foco analítico da saúde do trabalhador não pode se deter apenas nos adoecimentos do corpo – como explicitam as estatísticas sociais de acidentes de trabalho, mas sim, cada vez mais nos adoecimentos da mente, invisíveis, ocultos, prescritos pelo ardil de peritos. No século XXI, os candentes acidentes do trabalho não atingem apenas corpo, mas a mente. Portanto, altera-se o paradigma epidemiológico do adoecer laboral. A crítica do capital deve abordar as novas determinações da alienação que queimam por dentro o homem que trabalha. No setor de calçados e vestuário no Brasil, cujo complexo laboral se concentra em PME (Pequenos e Médias Empresas), mescla-se o arcaísmo do adoecer do corpo com a sutileza perversa do adoecer da mente. Talvez nossas ferramentas de pesquisa sociológica (e epidemiológica) não estejam dando visibilidade suficiente às dilacerações da alma que expressam a desefetivação humano-genérica nos locais de trabalho e no lar de operários e operárias – enfim, nas relações sociais do homem que trabalha. Muitas vezes, a estatística social dos acidentes de trabalho oculta mais do que desvela. Ela se circunscreve a um campo de investigação – o local de trabalho e seu
137
trajeto – que não contém exclusivamente as dimensões da alienação totalizante e totalitária do capital. A alienação nasce do trabalho assalariado e se dissemina pela vida social do trabalhador assalariado. Ela é multiplicada pelas relações sociais impregnadas do metabolismo social do capital. Na verdade, como aferir em números o que muitas vezes é indizível em tabelas e gráficos? Além do limite metodológico, temos o limite histórico-temporal – só o largo prazo é capaz de expor a novidade histórica da exploração. Por isso, pesquisas que utilizam longas séries estatísticas dizem mais que aquelas que se reduzem a alguns anos, que não mostram a singularidade do momento presente. Enfim, rastrear a nova miséria do capital não é tarefa fácil.
138
Capítulo 7
A precarização do trabalho no Brasil na década de 2000
N
a década de 1990, os ajustes neoliberais contribuíram efetivamente para inserir o Brasil na nova ordem capitalista global, cuja temporalidade histórica é caracterizada pela constituição do novo (e precário) mundo do trabalho. As políticas neoliberais e o novo complexo de reestruturação produtiva do capital promoveram alterações significativas de amplo espectro na objetividade e subjetividade do mundo do trabalho no Brasil. Na década de 2000, delineou-se com maior clareza o que consideramos a “nova precariedade salarial”, isto é, as novas condições de exploração da força de trabalho que emergem nas empresas reestruturadas. A nova precariedade salarial que emerge como consequência sócio-histórica da precarização do trabalho que ocorreu na década de 1990 sob o impacto dos ajustes neoliberais e do processo de reestruturação produtiva baseia-se no modo de regulação salarial que incorpora formas de contratação flexível, gestão e organização da força de trabalho sob o espírito do toyotismo e nova base técnica informacional da produção com impactos na qualificação sócio-profissional. A nova precariedade salarial alterou não apenas a morfologia do trabalho, mas provocou o surgimento de um novo metabolismo laboral com impactos na vida cotidiana do homem-que-trabalha (ALVES, 2011).
139
1. A temporalidade histórica neoliberal no Brasil A liberalização comercial ocorrida no começo da década de 1990 teve impactos no padrão de concorrência intercapitalista, obrigando as empresas a aprofundarem a reestruturação produtiva visando adaptar-se às novas condições da concorrência internacional. Desse modo, cresceu, na primeira metade dessa década, a adoção da terceirização e downsizing nas grandes empresas. Essa ofensiva do capital na produção teve impactos diruptivos no mundo do trabalho organizado. A recessão profunda provocada pelos ajustes neoliberais e a política de controle da inflação (1990-1993) contribuíram para a explosão do desemprego aberto e o crescimento da informalidade no mercado de trabalho das regiões metropolitanas no País. No governo Collor (1990-1992) e depois, no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), o Programa Nacional de Desestatização alterou a propriedade patrimonial de grandes empresas estatais por meio de privatizações. Ao mesmo tempo, ocorreram fusões e aquisições em empresas nos vários setores da economia. Muitas empresas públicas e empresas privadas adotaram Programas de Demissão Voluntária visando enxugar sua força de trabalho, incentivando demissões de operários e empregados e implodindo coletivos de trabalho por meio de terceirizações; grandes empresas adotaram novos modos de gestão e organização da produção, introduziram novas tecnologias informacionais e deslocalizaram plantas industriais para regiões de baixos salários e sem poder sindical (GUIMARÃES, 2004; LEITE e ARAÚJO, 2009). Com o Plano Real em 1994, ocorreu a estabilização monetária. A inflação reduziu-se drasticamente. Por exemplo, em 1994, o País cresceu 5,4% sob os influxos do choque de estabilização monetária do Plano Real. A partir de 1995, o crescimento do PIB decresceu até 1997 quando tem um crescimento de 3,38%. A instabilidade crescente do cenário global em virtude da crise financeira na Ásia e Rússia derrubou a “nova economia” brasileira em 1998 só se reerguendo no ano 2000, por conta do choque de desvalorização cambial. De 2001 a 2003, sob o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, a economia brasileira obtém taxas medíocres de crescimento do PIB num cenário de profunda crise social por conta do alto índice de desemprego metropolitano e informalidade no mercado de trabalho.
140
Tabela 1 – Taxa anual de crescimento do PIB (%) 1994-2008 Ano 94 95 96 PIB 5,33 4,42 2,15
97 98 99 00 3,38 0,04 0,25 4,31
01 1,31
02 2,66
03 1,15
04 5,71
05 3,16
06 3,97
07 08 5,67 5,08
Fonte: IPEA/DATA
Na longa “década neoliberal”, não apenas o comportamento do PIB foi oscilante, mas a economia brasileira tendeu a estagnação. O desempenho do modelo de desenvolvimento neoliberal foi bastante inferior ao padrão de acumulação do período desenvolvimentista tanto em termos de crescimento do PIB quanto do PIB per capita. A chamada “década perdida” de 1980 teve um desempenho melhor que a década neoliberal – a década de 1990. A razão para esse desempenho reside fundamentalmente no ritmo lento da acumulação de capital. A Formação Bruta de Capital Fixo, que tinha alcançado a média anual de 23,1% do PIB na década de 1970, tendeu a cair nas décadas seguintes, atingindo 18,55%, na de 1980, e 15,05%, na de 1990. Entre a crise do Real em 1999, e 2004, essa taxa caiu para 14,07% (PAULANI, 2008; ALVES e CORSI, 2010; FILGUEIRAS e GONÇALVES, 2007). Tabela 2 – Crescimento real acumulado do PIB
Década
PIB Crescimento acumulado ao longo da década (%)
PIB per capita Crescimento acumulado Ao longo da década (%)
1950 1960 1970 1980 1990
99,03 80,33 131,26 33,47 19,04
47,87 35,51 76,17 10,13 1,57
Fonte: Paulani, 2008, p. 76
141
2. Macroeconomia do trabalho no Brasil na década neoliberal Na década de 1990, sob a vigência das políticas neoliberais e crise da economia brasileira, ocorreu uma das mais profundas e amplas reestruturações capitalistas no Brasil. A ofensiva do capital na produção adquiriu um cariz sistêmico. A precarização do trabalho caracterizou-se pela demissão incentivada, terceirização e degradação das condições de trabalho, salário e redução de benefícios e direitos trabalhistas. Ela atingiu grandes empresas do setor privado e setor público, principalmente naquelas de maior organização sindical. O cenário de estagnação da economia brasileira e reestruturação produtiva com precarização do trabalho contribuiu para que o desemprego aberto e a informalidade explodisse nas regiões metropolitanas do País (GUIMARÃES, 2009). Por isso, no período histórico de “desertificação neoliberal”, muitos autores salientaram o “desmonte” do trabalho ou a “regressão” do trabalho no Brasil (ANTUNES, 2004; DE OLIVEIRA, 1999; POCHMANN, 1999). Ao mesmo tempo, a partir de 1990, a integração do Brasil na mundialização do capital, contribuiu para a disseminação sistêmica dos elementos do novo padrão de acumulação flexível de cariz toyotista. É o que salientamos alhures como sendo o “toyotismo sistêmico” adotado nos pólos mais dinâmicos de acumulação capitalista no País (ALVES, 2000). A adoção da empresa flexível, com recurso a terceirização, contratos de trabalho flexíveis, gestão toyotista, inovações tecnológicas e organizacionais alteraram os locais de trabalho reestruturados. A reestruturação produtiva com precarização do trabalho, que atingiu o núcleo estável do proletariado brasileiro, e o crescimento medíocre da economia nacional, ampliaram a informalidade no mercado de trabalho que ultrapassou, na década de 1990, 50% da força de trabalho urbano no Brasil. A informalidade é um dos traços histórico-estruturais do mercado de trabalho urbano no Brasil com sua massa de marginalizada social não organizada e sem acesso a direitos trabalhistas. Portanto, as políticas neoliberais de contenção do crescimento da economia num cenário internacional de crise financeira e a intensa reestruturação produtiva com precarização do trabalho, contribuíram não apenas para o crescimento do desemprego de massa nas regiões metropolitanas, mas para a constituição do novo e precário mundo do trabalho adequado às novas condições da acumulação flexível do capital na década de 2000 (ALVES, 2000).
142
A precarização social do trabalho ou precarização do estatuto salarial propriamente dito atingiu, com intensidade e amplitude, na década de 1990, o núcleo “estável” dos trabalhadores assalariados brasileiros nas grandes empresas, onde a ofensiva do capital na produção por meio da reestruturação produtiva foi bastante intensa e onde se concentrava o contingente de operários e empregados organizados e com maior poder de barganha sindical. Nesses setores do proletariado brasileiro, ocorreu aquilo que Robert Castel denominou de corrosão da “condição salarial” (CASTEL, 1995). A reestruturação produtiva no bojo das políticas neoliberais ocasionou mudanças irreversíveis na condição salarial de importantes categorias de assalariados organizados. Por exemplo, nessa década, a categoria dos bancários perdeu a metade de seus postos de trabalho e os metalúrgicos do ABC paulista tiveram uma redução drástica nos seus quadros operários (CARDOSO, 2000). Portanto, a crise capitalista no Brasil e as novas condições da acumulação flexível alteraram, na década de 1990, a dinâmica da precariedade salarial, alargando-a e diversificando-a. A deriva salarial, que caracterizou historicamente a maior parte do proletariado brasileiro imersa na precariedade salarial estrutural, alargou-se, atingindo, naquela década, parcelas dos trabalhadores cujo estatuto salarial “estável” lhes concedia trabalho por tempo indeterminado e acesso aos direitos trabalhistas inscritos na CLT (Consolidação da Lei Trabalhista) (CARDOSO, 2010). A ofensiva do capital na produção que caracterizou a reestruturação produtiva nas condições históricas da acumulação flexível atingiu a condição salarial propriamente dita, isto é, o estatuto salarial constituído na etapa de ascensão histórica do capitalismo com o compromisso fordista-keynesiano. Ela alterou o modo de ser do salariato “estável” constituindo o que denominamos “nova precariedade salarial”, provocando, desse modo, a queda de qualidade do emprego no núcleo “estável” do proletariado. Na verdade, na medida em que as empresas “enxugam” o contingente de força de trabalho estável, incorporam (e ampliam, em termos relativos) o contingente de trabalhadores precários. A nova precariedade salarial, que emergiu nas empresas reestruturadas no decorrer da década de 1990, alterou a morfologia social do trabalho e, por conseguinte, o sociometabolismo laboral de amplos contingentes de trabalhadores assalariados estáveis nas empresas públicas e privadas no Brasil. Tornou-se comum a insegurança no emprego não apenas nas categorias do setor privado, mas também do setor público, com os Programas de Demissão Voluntária (PDV´s) e perdas de benefícios sociais. Na verdade, a reestruturação produtiva com precarização do trabalho significou a passagem para um novo padrão de exploração da força de
143
trabalho baseado no trabalho flexível, o que se verificaria com vigor na década de 2000 (ALVES, 2011). Ao mesmo tempo, a precarização do trabalho não se reduziu tão somente à precarização da condição salarial, salientada por sociólogos e economistas do trabalho na década de 1990 (a década da regressão do trabalho, como salientou Márcio Pochmann). A precarização do trabalho na década de 2000, apesar da melhoria dos indicadores do mercado de trabalho, a partir de 2003, tendeu a assumir novas formas com aquilo que denominamos “precarização do homem-que-trabalha”, isto é, a corrosão da vida pessoal e da saúde do trabalhador – inclusive daqueles com estatuto salarial “estável”. Desse modo, a precarização do trabalho implicou não apenas mudanças diruptivas no modo de exploração da força de trabalho, mas alterações no metabolismo social do trabalho com impactos na dinâmica da reprodução social do trabalho vivo (ALVES, VIZZACCARO-AMARAL e MOTA, 2011). A precarização do homem-que-trabalha atinge tanto gerações mais velhas de operários e empregados, portadores da experiência da precarização do trabalho que ocorreu na década de 1990, quanto novas gerações de operários e empregados que se inseriram nos locais de trabalho reestruturados na década de 2000. Ela é um elemento compositivo da nova precariedade salarial, que surge com o trabalho flexível. A nova precariedade salarial que caracteriza o mercado de trabalho organizado na década de 2000 no Brasil, tende a comprometer as expectativas de realização pessoal de camadas de trabalhadores assalariados mais qualificados (“classe média” assalariada). Portanto, a reestruturação produtiva com precarização do trabalho que ocorreu na década de 1990, e que deu origem à nova precariedade salarial, disseminada na década de 2000, fez emergir novos ambientes de trabalho reestruturados do capitalismo flexível, provocando alterações significativas na experiência do emprego assalariado e nas condições de trabalho dos operários e empregados “estáveis”, com consequências perversas na vida pessoal de homens e mulheres que trabalham. Depois do “dilúvio neoliberal”, surgiu o novo “continente do labor” caracterizado pela nova precariedade salarial (ANTUNES, 2011).
144
3. O conceito de nova precariedade salarial Na temporalidade histórica do capitalismo global, com a ofensiva das políticas neoliberais, põe-se como traço estrutural do sistema mundial do capital a precarização estrutural do trabalho (MÉSZÁROS, 2009). Nos países capitalistas centrais, uma série de autores tem salientado a ampliação da precariedade salarial nas condições do capitalismo global (BOYER, 1986; BECK, 2000; BIHR, 1998). No Brasil, apesar do crescimento do emprego por tempo indeterminado e a redução da taxa de informalidade a partir de 2003, a precariedade salarial se manifestou pelo aumento, em termos absolutos e relativos, da presença de “trabalhadores periféricos” inseridos em relações de trabalho precárias. Mas, como iremos ver adiante, a nova precariedade salarial no Brasil se manifesta não apenas pelo aumento da contratação flexível, mas pela adoção nos locais de trabalho reestruturados, da flexibilização da jornada de trabalho e flexibilização da remuneração salarial. Desse modo, os novos ambientes de trabalho que emergem nas empresas reestruturadas na década de 2000 constituem-se sob a nova morfologia social do trabalho flexível. O trabalho precário e a informalidade social caracterizaram historicamente o mercado de trabalho no Brasil com seu amplo contingente de trabalhadores urbanos e rurais pobres sem proteção social em contraste com o contingente de operários e empregados assalariados urbanos inseridos no mercado de trabalho formal com vínculo empregatício por tempo indeterminado e cobertos pela legislação trabalhista. Com a nova precariedade salarial, o núcleo formal do mercado de trabalho deparou-se com novas opções de modalidades flexíveis de contratação laboral para as empresas. Apesar das contratações atípicas serem pouco expressivas no mercado de trabalho formal no Brasil, elas aumentaram nas últimas décadas nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas. Portanto, em termos relativos e absolutos, cresceu a presença de trabalhadores assalariados precários “formalizados” nos locais de trabalho reestruturados (GUIMARÃES, HIRATA E SUGITA, 2010; DRUCK E FRANCO, 2007). O que significa que a condição de precariedade laboral no núcleo formal do mercado de trabalho formal se alargou em termos relativos e absolutos, de modo heteróclito, embora tenha se reduzido, ao mesmo tempo, na década de 2000, a informalidade laboral por conta do crescimento do emprego com carteira assinada. O crescimento das modalidades de contratação atípicas no Brasil na década de 2000 aponta para aquilo que Robert Castel denominou de corrosão da condição salarial (CASTEL, 1995). É claro que, como iremos verificar adiante, as contrata-
145
ções atípicas possuem – em termos quantitativos – pouca expressividade no conjunto do mercado de trabalho formal no Brasil, que se expandiu na década de 2000 por meio do crescimento dos contratos de trabalho por tempo indeterminado. Entretanto, a precariedade do emprego no Brasil na década de 2000 tende a ser ocultada, por um lado, pelo alto índice de rotatividade da força de trabalho tendo em vista a demissão imotivada; e por outro lado, pela invisibilidade sócio-estatística de amplo espectro da precariedade contratual do mundo do trabalho que ocorre por meio das relações de emprego disfarçada (contratação como pessoa jurídica – PJ, cooperativas de contratação de trabalho, trabalho estágio, “autônomos”, trabalho em domicílio e teletrabalho etc.). Mas a nova precariedade salarial implica não apenas a precariedade do emprego – a presença de modalidades atípicas de contratação salarial – mas também, a precariedade do trabalho no sentido da “precarização do homem-que-trabalha” (ALVES, VIZZACCARO-AMARAL E MOTA, 2011). Nesse caso, trata-se do desgaste mental do trabalho dominado, que atinge tantos os contingentes “estáveis”, com emprego por tempo indeterminado, e, portanto, cobertos pela legislação trabalhista; quanto contingentes de trabalhadores assalariados “precários” do mercado de trabalho (SELIGMANN-SILVA, 1994). Na literatura sociológica europeia tem-se discutido muito a precariedade no emprego caracterizada pelo “bad jobs” ou “poor jobs”, situação laboral que se opõe ao contrato de trabalho tradicional que assegura um trabalho a tempo inteiro, com duração indeterminada e com proteção social. Trata-se, desse modo, do trabalho precário (ou emprego precário) propriamente dito, que se caracteriza pela insegurança no emprego, perda de benefícios sociais, salários baixos e descontinuidade nos tempos de trabalho. Como observa Sá, “o trabalho precário se caracteriza pela instabilidade (impossibilidade de programar o futuro – situação dos jovens que ficam até mais tarde em casa dos pais); à incapacidade econômica (impossibilidade de fazer face aos ‘riscos sociais’ e de assegurar as despesas econômicas do cotidiano – o surgimento dos ‘novos pobres’); e à alteração dos ritmos de vida (alteração nos horários de trabalho e da relação entre trabalho/desemprego)” (SÁ, 2010). Na década de 2000, constatou-se nas grandes empresas no Brasil, o crescimento da clivagem nos estatutos salariais da força de trabalho empregada. Os espaços reestruturados da organização capitalista no Brasil tornaram-se cada vez mais espaços híbridos no tocante à contratação salarial formal. O surgimento de novas modalidades de contratação colocou um leque de consumo de força de trabalho que se distingue dos contratos por tempo indeterminado. Embora a modalidade
146
de contrato por tempo indeterminado ainda seja a maioria, cresceram relativamente nos últimos vinte anos os contratos por tempo determinado nas empresas (KREIN, 2007). Desse modo, a flexibilização da legislação trabalhista contribuiu para dar um menu de opções novas de exploração da força de trabalho visando incentivar novas contratações e combater a informalidade e o desemprego, traço estrutural da formação social brasileira (como observou a carta Social do CESIT de 2010, as formas de contratação verificáveis na RAIS – Relação Anual de Informações Sociais – no Brasil, ampliaram-se de 1 em 1989, para 9 modalidades em 2008) (BALTAR et alii, 2010). Portanto, a nova precariedade salarial no Brasil caracteriza-se pela presença, nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas, tanto de trabalhadores assalariados “estáveis”, quanto de trabalhadores assalariados “precários”. Constitui-se, desse modo, um trabalhador coletivo do capital híbrido e heteróclito no plano contratual (por exemplo, o fenômeno da terceirização, que atinge tanto setor privado quanto setor público no Brasil, e que cresceu na década de 2000, contribuiu para a clivagem salarial entre trabalhadores assalariados “precários” e “estáveis”) (LIMA, 2007; DRUCK e FRANCO, 2007). Os trabalhadores assalariados precários estão mais expostos que os “estáveis” a acidentes de trabalho e insegurança na saúde; por outro lado, os trabalhadores assalariados “estáveis” estão mais expostos à pressão do trabalho dominado e à presença de exército de reserva que a qualquer momento pode ocupar seu lugar (como salientamos acima, a taxa de rotatividade da mão de obra no Brasil cresceu na década de 2000). Portanto, as duas características da nova precariedade salarial são, de um lado, a intermitência dos precários e, de outro lado, a ameaça da redundância para os estáveis.
4. A nova morfologia social do trabalho no Brasil na década de 2000 Operários e empregados do novo (e precário) mundo do trabalho reestruturado no Brasil que emerge na década de 2000 encontram-se diante da condição salarial do trabalho flexível (a nova precariedade salarial), caracterizada pelos seguintes elementos sociomorfológicos presentes nos novos locais de trabalho reestruturados:
147
1. O novo arcabouço tecnológico-informacional Temos a presença ostensiva de um complexo de máquinas informacionais nos locais de trabalho reestruturados e na vida cotidiana dos jovens operários e empregados. Os novos ambientes de trabalho reestruturados são compostos por um sistema de máquinas flexíveis, de natureza informacional, isto é, máquinas inteligentes incorporadas a redes digitais, que exigem dos novos operadores habilidades técnico-comportamentais. Por isso, mais do que nunca, tornam-se visíveis as alterações no perfil educacional dos novos empregados nas grandes empresas da indústria ou serviços. O novo arcabouço tecnológico exige uma força de trabalho compatível com as exigências operacionais do novo maquinário. O discurso da competência implica novas capacidades operativas advindas das novas rotinas do trabalho flexível. Máquinas flexíveis exigem homens e mulheres flexíveis em suas capacidades de intervenção na produção. Na verdade, os novos locais de trabalho reestruturados da década de 2000 vivem sob o espírito do toyotismo (ALVES, 2011). A capacidade de intervenção dos operadores na produção é o princípio toyotista da “autonomização”, isto é, operários e empregados capazes de intervir no processo de produção visando resolver problemas ou dar palpites para otimizá-los. Segundo analistas sociais, uma das características da “geração Y”, constituída por jovens nascidos na “era da Internet”, contemporâneos da revolução digital e que na década de 2000 entram no mercado de trabalho, é a facilidade e uso constante de mídias informacionais. Dizem os autores que os jovens da “geração digital” são especialistas em lidar com tecnologias, usam mídias sociais com facilidade, sabem trabalhar em rede e estão sempre conectados (TAPSCOTT, 2010). Os novos operários e empregados que se inserem nos locais de trabalho reestruturados na década de 2000 são a primeira geração do mundo do trabalho advinda da era da Internet. Eles tendem a não estranhar o uso das novas tecnologias microeletrônicas. Pelo contrário, a incorporam com mais facilidade que as gerações passadas.
2. O espírito do toyotismo Ao lado do novo arcabouço tecnológico de cariz informacional, tanto nas instâncias do consumo quanto da produção, temos a presença nos locais de trabalho reestruturados de novos métodos de gestão e organização da produção visando
148
adaptar homens e mulheres às novas rotinas do trabalho. Sob o novo capitalismo vive-se a “era da gestão das pessoas”. Sob o espírito do toyotismo, o discurso da organização do trabalho incorpora um novo léxico: trabalhadores assalariados, operários ou empregados tornam-se “colaboradores”. Os novos operários e empregados cresceram num ambiente ideológico cujo universo locucional está esvaziado do discurso do conflito ou luta de classes (o que demonstra o contraste, como remos ver mais adiante nas entrevistas, entre os novos – e velhos – operários e empregados). A cisão geracional é muita mais intensa (e presente) do que noutras épocas de mudanças etárias nos ambientes de trabalho. Nas condições do espírito do toyotismo incorporado pelos discursos da gestão empresarial, exigem-se dos jovens “colaboradores” atitudes proativas e propositivas, capazes de torná-los membros da equipe de trabalho que visa cumprir metas. A ideia de gestão de pessoas implica disseminar valores, sonhos, expectativas e aspirações que emulem o trabalho flexível. No capitalismo flexível, não se trata apenas de administrar recursos humanos, mas sim de manipular talentos humanos, no sentido de cultivar o envolvimento de cada um com os ideais (e ideias) da empresa. A nova empresa capitalista busca, portanto, homens idealistas, no sentido mediano da palavra. Por isso, a ânsia pela juventude que trabalha, tendo em vista que os jovens operários e empregados, tem uma plasticidade adequada às novas habilidades emocionais (e comportamentais) do novo mundo do trabalho.
3. A renovação geracional dos coletivos de trabalho Os locais de trabalho reestruturados na década de 2000 expõem a intensa transfiguração do trabalhador coletivo do capital. A nova empresa exige novos operários e empregados, não necessariamente no sentido etário da palavra “novos”. A prática do downsizing pelo capital possui um sentido de renovar as capacidades anímicas da acumulação de capital nos locais de trabalho. O processo de reestruturação produtiva é não apenas um processo de inovação tecnológico-organizacional, mas também um processo de reestruturação geracional dos coletivos de trabalho nas empresas. A mudança geracional dos coletivos de trabalho ocorre por meio de demissões ou, como se mostrou menos traumático, o incentivo a aposentadorias ou demissões voluntárias (os denominados PDV’s – Programas de Demissões Voluntárias).
149
Na década de 1990, as categorias de metalúrgicos e bancários sofreram um marcante enxugamento de trabalho vivo. Ocorreu um processo de liofilização organizacional do trabalhador coletivo do capital. Mas ocorreu também uma renovação dos coletivos laborais nas grandes empresas reestruturadas no Brasil. Desse modo, os locais de trabalho assumem uma feição híbrida, tanto na dimensão geracional quanto no aspecto contratual. Assim, um dos traços marcantes dos coletivos de trabalho reestruturados na indústria e serviços é a presença ampla de jovens empregados contratados no decorrer da década de 2000 que convivem lado a lado com os velhos operários e empregados “sobreviventes” da reestruturação produtiva do capital (os PDV’s tornaram-se práticas recorrentes como instrumento de renovação administrada dos coletivos de trabalho). Por outro lado, os coletivos de trabalho não apenas se renovam, mas se diversificam internamente no tocante às formas de implicações contratuais. Operários ou empregados estáveis convivem, lado a lado, com operários ou empregados temporários e precários. Na verdade, altera-se o modo de ser do trabalhador assalariado e seu nexo psicofísico com a produção do capital, ampliando-se, como inovação sócio-metabólica do capital, a “captura” da subjetividade do trabalho pelos valores empresariais (ALVES, 2011).
4. As novas relações de trabalho flexíveis Além do novo arcabouço técnico-organizacional do capital, com suas novas máquinas informacionais, novos métodos de gestão de pessoas e os novos locais de trabalho reestruturados com seu novo perfil etário-geracional, temos alterações das relações de trabalho no Brasil que contribuíram para mudanças substantivas no metabolismo social do trabalho. Esse é o aspecto significativo da nova morfologia do trabalho na década de 2000 no Brasil. O novo habitat do trabalho flexível que emerge na década de 2000 é uma construção sócio-institucional. Ele diz respeito não apenas a mutações tecnológico-organizacionais das empresas capitalistas no cenário da terceira revolução industrial e mundialização do capital; mas também a alterações nas relações de trabalho operadas pelo Estado neoliberal. No decorrer da década de 1990, implementaram-se políticas de flexibilização das relações de trabalho no Brasil que constituíram as novas condições de exploração da força de trabalho no País. Na verdade, o ar-
150
cabouço legal de regulação das relações de trabalho sedimenta as tendências de desenvolvimento do novo capitalismo. Quadro 1 - Morfologia social do novo (e precário) mundo do trabalho A nova precariedade salarial (década de 2000)
Complexo de máquinas informacionais A rede digital permeando trabalho, cotidiano e consumo (geração y) Novos métodos de gestão e organização do trabalho (espírito do toyotismo e “captura” da subjetividade da força de trabalho) Coletivos geracionais híbridos do trabalho reestruturado Planos de demissão voluntária e downsizing Novas relações flexíveis de trabalho novas forma de contratação, remuneração salarial e jornada de trabalho
Podemos expor, como traços significativos das novas relações de trabalho flexível que compõem a condição salarial que se impõem sobre os novos operários e empregados contratados na década de 2000, os seguintes elementos compositivos: 1. Remuneração flexível (PLR) 2. Jornada de trabalho flexível (banco de horas) 3. Contrato de trabalho flexível (contrato por tempo determinado/tempo parcial, terceirização etc.). Na verdade, o complexo de novas determinações da condição salarial salientados acima altera a um dos traços candentes da cotidianidade laboral: a relação tempo de vida/tempo de trabalho. Enfim, constitui-se uma nova estrutura da vida cotidiana de homens e mulheres que trabalham.
4.1 Banco de horas: A flexibilização da jornada de trabalho A flexibilização da jornada de trabalho mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho tornou-se possível com a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Artigo 7º, inciso XIII que diz que são direitos dos tra-
151
balhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. O banco de horas é o sistema pelo qual a empresa poderá flexibilizar a jornada de trabalho, diminuindo ou aumentando a jornada durante um período de baixa ou alta na produção, mediante a compensação dessas horas em outro período, sem redução do salário no período de redução, bem como não será devido pagamento das horas aumentadas. Segundo as empresas, esse sistema evita as demissões nos períodos de baixa produção e evita o pagamento da extraordinariedade das horas excedidas, em períodos de alta produção. A compensação deve ocorrer no prazo do acordo, que poderá ocorrer dentro de um ano. O banco de horas foi regulamentado pela Lei nº 9.601/98 que alterou o parágrafo 2º acrescentou o parágrafo 3º no artigo 59. da CLT e o Decreto nº 2.490/98 e Medida Provisória 2.164-41 de 24/08/2001 – DOU (Diário Oficial da União), de 27/08/2001. A flexibilização da jornada de trabalho por meio do banco de horas coloca o operário ou empregado como “homem inteiro” à disposição da dinâmica laboral do capital. Como observam Capela, Neto e Marques, “o empregador pode sobre-explorar sua força de trabalho nos momentos de alta produção, sem remunerar o trabalhador, compensando com folgas as horas trabalhadas em excesso nos momentos de baixa produção” (CAPELAS, NETO e MARQUES, 2010). Desse modo, o tempo de vida é colonizado, mais ainda pelo tempo de trabalho.
4. 2 PLR: A flexibilização da remuneração salarial A adoção da remuneração flexível (PLR), além de contribuir para pulverizar as negociações no âmbito da empresa, enfraquecendo o poder de barganha dos trabalhadores, condiciona a remuneração do trabalhador ao seu desempenho e ao da empresa. Como observam ainda Capela, Neto e Marques, “o trabalhador passou a confundir o interesse da firma com o seu, o que permitiu que sua força de trabalho sofresse maior exploração” (CAPELAS, NETO e MARQUES, 2010). Na verdade, a adoção de remuneração flexível justifica, no plano legal a busca de cumprimento de metas, condição necessária para a obtenção de melhor desempenho das empresas.
152
Torna-se um importante campo de investigação sociológica a natureza da reverberação das novas implicações salariais discriminadas acima (tempo de vida subsumido a tempo de trabalho e pressão para cumprimento de metas) sobre a vida cotidiana dos novos empregados e operários. O aumento significativo dos problemas psicossociais e de saúde do trabalhador na década de 2000 tem um nexo causal com a nova precariedade do trabalho descrita acima.
4.3 A flexibilização do contrato de trabalho Os operários e empregados do novo (e precário) mundo do trabalho encontram um novo arcabouço legal de contratos de trabalho flexível que colocam à disposição das empresas um leque de modalidades de contratações atípicas. As medidas de flexibilização das relações de trabalho no Brasil na década de 1990 levaram à criação do contrato de trabalho por tempo determinado,1 contrato de trabalho por tempo parcial,2 além da lei da terceirização, colocando um menu de opções flexíveis para a exploração da força de trabalho. Assim, cresceram nos locais de trabalho das empresas privadas ou públicas formas instáveis do salariato, isto é, novas modalidades especiais de contrato de trabalho na CLT (Consolidação
1
Contrato de trabalho por prazo determinado é forma de contratação realizada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, através da qual as partes firmam antecipadamente a data de início e término do pacto laboral. Tem como fundamento legal a Lei nº 9.601, de 21 de janeiro de 1998, regulamentada pelo Decreto nº 2.490, de 04 de fevereiro de 1998. O contrato pode ser prorrogado inúmeras vezes, desde que a soma de todos os prazos não ultrapasse dois anos, sem que ele se torne por prazo indeterminado. A adoção do contrato de trabalho por tempo/prazo determinado tem algumas condicionalidades, como o número de trabalhadores assim contratados deve ser inferior a 50% da média mensal dos que foram admitidos no estabelecimento por tempo indeterminado, nos últimos seis meses anteriores à publicação da lei (22.01.98) e a lei deverá gerar, obrigatoriamente, aumento de postos de trabalho.
2
Contrato de trabalho em regime de tempo parcial (“part-time job contract” ou “part-time job agreement”, como é conhecido na Europa) aquele cuja duração não exceda a vinte e cinco horas semanais. Tem como fundamento legal a Medida Provisória 2.164-41 de 24/08/2001DOU 27/08/2001, que acrescentou o artigo 58-A na CLT. No caso dos contratos novos, basta simplesmente contratar, com salário proporcional à sua jornada, em relação aos empregados que cumprem, na mesma função, tempo integral. No caso dos contratos já existentes, para os atuais empregados, a adoção do regime de tempo parcial será feita mediante opção manifestada perante a empresa, na forma prevista em instrumento decorrente de negociação coletiva.
153
das Leis Trabalhistas) ou no serviço público, com mudanças no plano dos direitos e na forma de contratação do trabalho. Em seu estudo (de 2003), Chahad observa que, no começo da década de 2000, cerca de 68% das empresas no Brasil utilizavam uma ou mais modalidades especiais de contrato consagrados na CLT (vide Quadro 2 abaixo) ou subcontratação (56%), o contrato temporário (21%) e contrato de trabalho por prazo determinado (10%) são as formas mais utilizadas (CHAHAD e CACCIAMALI, 2003). Um detalhe interessante: embora empresas de qualquer tamanho utilizem algumas formas dessas modalidades de contrato, é na grande empresa que ocorrem em maiores proporções a utilização dos contratos flexíveis. Constata-se também que são as empresas do setor de serviço as que utilizam mais as modalidades especiais de contrato de trabalho flexível (72%), seguidas pelas empresas do setor industrial (70%). Quadro 2 - Modalidades Especiais de Contrato de Trabalho – Brasil
Jornada de Trabalho em tempo parcial (até 25 horas semanais) Contrato de trabalho por prazo determinado e banco de horas (Lei no. 9601/98) Trabalho temporário (Lei no. 6019/74) Trabalho por projeto ou por tarefa Contrato por teletrabalho Terceirização (Lei no. 6019/74) Cooperativa de trabalho (Lei no. 5764/71) Suspensão temporária do contrato de trabalho – bolsa qualificação (lay-off ) Fonte: Chahad e Cacciamali (2003)
Na verdade, os pilares sociojurídicos para a nova feição do mercado de trabalho flexível com a introdução de modalidades especiais de contrato de trabalho inscritas na CLT, criados na década de 1990, contribuíram para a flexibilização das relações de emprego, ampliando uma das características da nova precariedade salarial no Brasil: a intermitência salarial. Em seu interessante estudo “Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil (1990-2005)”, José Dari Krein acompanha a constituição da nova precariedade salarial sob a “década neoliberal”, com o surgimento das novas formas atípicas de contratação no Brasil. Constata-se que hoje nós temos uma série de alterações na legislação trabalhista que ofereceu às empresas várias opções para
154
flexibilizar a contratação da força de trabalho. Krein observa que as formas atípicas de contratação no Brasil podem ser classificadas em cinco grupos: 1. As formas clássicas e históricas do caso brasileiro são aquelas modalidades de contratações atípicas destinadas à substituição eventual ou provisória de trabalho e as contratações de trabalho sazonais (o contrato de safra, o contrato temporário via agência de emprego e contrato por projeto ou por tarefa). 2. As formas introduzidas a partir de 1990 no bojo de uma concepção de “estimular” a contratação por meio de uma redução de custos e da ampliação das facilidades de despedir (contrato temporário, o do primeiro emprego e o parcial). 3. Contratos atípicos visando facilitar a inserção de grupos com maior vulnerabilidade no mercado de trabalho (“contrato aprendiz” e o do primeiro emprego para jovens; e contratos de trabalho aos portadores de deficiência física). 4. Contratos de trabalho destinado a prevenir possíveis passivos trabalhistas no futuro, tais como o trabalho voluntário. 5. As modalidades de contratações atípicas de servidores públicos não efetivos, demissíveis e os contratados por tempo determinado. Depois, como componente da contratação flexível no Brasil salienta-se o aspecto da flexibilidade no rompimento do contrato de emprego e – o mais importante – as relações de emprego disfarçadas, que se disseminam, por exemplo, com contratação como pessoa jurídica (PJ), as cooperativas de contratação de trabalho (as cooperativas de mão de obra), o trabalho estágio, os “autônomos”, o trabalho em domicílio e o teletrabalho. Finalmente, é importante salientar que a contratação flexível no Brasil se apresentou, de forma mais candente, com a terceirização em suas diversas modalidades (José Dari Krein trata da terceirização como mecanismo de rebaixamento salarial e dos benefícios trabalhistas, a terceirização como relação de emprego triangular, a terceirização expressa na informalidade e a terceirização como expressão de serviço especializado). Entretanto, é importante observar que o modo de ser da nova precariedade salarial nos países capitalistas mais desenvolvidos – como, por exemplo, União Europeia – se distingue do modo de ser da nova precariedade salarial no Brasil.
155
Enquanto nos países capitalistas centrais, na década de 2000, cresceu a quantidade de trabalhadores assalariados precários em situações de emprego atípicas,3 no Brasil da década de 2000, por outro lado, as modalidades de contratação atípicas são pouco expressivas. Segundo a Carta Social do CESIT (2011), o que tendeu a prevalecer no mercado formal da década de 2000 no Brasil foi a contratação por tempo indeterminado que se aproxima do contrato padrão firmado historicamente no período após a Segunda Guerra Mundial (trabalho em tempo integral, com um único empregador, relativa estabilidade e remuneração fixa e mensal, tendo relação com o tempo de permanência no emprego e a formação profissional e dando – em tese – uma perspectiva de carreira e segurança). O crescimento do emprego formal e a modalidade de contratação-padrão com a ampliação da contratação por tempo indeterminado no Brasil ocupa, em 2010, 95% do total dos empregados formais. Trata-se, portanto, de uma situação contrária àquela da década de 1990 quando ocorreu a “regressão do trabalho” no Brasil. Por exemplo, na década neoliberal, o contrato por prazo indeterminado regrediu (-1,1%) e cresceu a contratação atípica e a informalidade. Entretanto, é inegável que a contratação flexível no Brasil cresceu na década de 2000. Por exemplo, segundo Dari Krein, entre 1995 e 2005 o crescimento da contratação atípica é de 158,6% e o emprego temporário,4 por exemplo, cresceu 3
Na União Europeia, em 2010, cerca de 14,4% dos trabalhadores assalariados possui vínculos de trabalho precário. Entretanto, Espanha, Polônia e Portugal estão acima da média europeia, com valores do índice de precariedade laboral acima de 20% (MATOS, DOMINGOS E KUMAR, 2011; STANDING, 2011).
4
Contrato de trabalho temporário é uma forma de contratação que se apresenta como alternativa econômica, para as empresas que venham a necessitar de mão de obra para complementar o trabalho de seus funcionários e em situações excepcionais de serviço, a fim de atender uma necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente (trabalhador efetivo), como por exemplo, férias, licença maternidade, licença saúde etc. e para atender acréscimo extraordinário de serviço, como "picos de venda" ou de "produção", tarefas especiais não regulares, lançamentos de produtos, campanhas promocionais etc. Este tipo de contratação possibilita redução do trabalho administrativo, rápida adaptação às alterações do mercado e maior flexibilidade na mobilização e desmobilização da força de trabalho necessária. O contrato de trabalho temporário (prestação de serviço temporário) é firmado entre uma empresa de trabalho temporário e a empresa tomadora dos serviços. Logo, a empresa tomadora dos serviços não mantém vínculo de emprego com o trabalhador temporário, isto porque, o contrato de trabalho é celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o trabalhador. O fundamento legal do trabalho temporário é a Lei 6.019 de 03 de janeiro de 1974. Decreto nº 73.841. Pela lei, o trabalhador temporário não pode ganhar
156
60% nos últimos dez anos. Entretanto, segundo os analistas do CESIT, ela é pouco expressiva no mercado de trabalho. Por exemplo, em 2008, os dados da RAIS, acusavam 684.177 contratos temporários contra 30.547.223 contratos por prazo indeterminado (a constatação do CESIT provém da análise da evolução dos vínculos de empregos no Brasil de 1989 a 2008 utilizando a RAIS). É provável que as contratações atípicas não sejam tão inexpressivas como indicam os dados da RAIS, que abrange apenas contratos temporários. Encontram-se ocultos, nesse caso, a dimensão da nova precariedade salarial abrangida pelas relações de emprego disfarçadas, que se disseminam, por exemplo, com as contratações como pessoa jurídica (PJ), as cooperativas de contratação de trabalho (as cooperativas de mão de obra), o trabalho estágio, os “autônomos”, o trabalho em domicílio e o teletrabalho. Além disso, é importante ponderar que a alta taxa de rotatividade da força de trabalho que caracteriza a dinâmica do mercado de trabalho no Brasil tende a alterar o significado do crescimento dos contratos de trabalho por tempo indeterminado na década de 2000. Apesar da positividade do crescimento da taxa de formalidade no mercado de trabalho no Brasil no período, reduzindo a informalidade, não se alterou de modo substantivo a flexibilidade estrutural da contratação da força de trabalho no Brasil. O crescimento de contratos por prazo indeterminado na década de 2000, com o aumento da taxa de formalidade no mercado de trabalho, ocorreu no bojo – como reconhecem os próprios pesquisadores do CESIT – da “liberdade do empregador romper o vínculo de emprego sem precisar justificar”. Assim, na década de 2000 no Brasil, ao lado do crescimento do emprego formal, cresceu, ao mesmo tempo, a rotatividade da mão de obra (segundo o DIEESE, ela cresceu cerca de 8% na década de 2000). Diz o CESIT: “Por exemplo, em 2009, no meio da crise, o saldo foi a criação de 995 mil formais, sendo que foram desligados 15,2 milhões de trabalhadores e contratados 16,2 milhões, em um total de 33 milhões de empregados registrados na RAIS. Portanto, o fluxo de despedidos e contratados continuou extremamente elevado em todo o período elevado.” menos do que o trabalhador efetivo que ele está substituindo. Não há limite de contratações, desde que sejam atendidas as exigências descritas acima. de 13 de março de 1974. Instrução Normativa nº 3 de 22/04/2.004. A contratação de mão de obra temporária se dá através das empresas de trabalho temporário, que deverão estar devidamente registradas no Departamento de Mão de obra do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, tendo como principal responsabilidade, remunerar e assistir seus trabalhadores temporários no que tange aos direitos estabelecidos em lei.
157
Desse modo, o contrato por tempo indeterminado, pelo menos para uma larga parcela de trabalhadores assalariados, tende a não permitir a construção de vínculos duradouros entre empregador e empresa – principalmente na agropecuária, construção civil e comércio. Segundo o estudo do DIEESE, “Movimentação Contratual no Mercado de Trabalho Formal e Rotatividade no Brasil”, a taxa média de rotatividade da mão de obra brasileira entre 2007 e 2009 foi de aproximadamente 36%, considerando-se apenas os desligamentos promovidos por iniciativa da empresa. O estudo apontou que cerca de 2/3 dos vínculos empregatícios são desfeitos antes de atingirem um ano de trabalho. Os desligamentos com menos de 6 meses de duração superaram 40% do total deles em cada ano, sem que metade atingisse três meses de duração. Quase 80% dos desligamentos tiveram menos de dois anos duração. Apesar do fluxo de despedidos e contratados ter se alterado nas grandes empresas reestruturadas da indústria e serviços financeiros, polos dinâmicos da economia brasileira, em comparação com a década de 1990, a taxa de rotatividade do trabalho ainda é elevada. Ao mesmo tempo, observou-se, nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas, o crescimento relativo de operários e empregados vinculados a modalidades de contratação atípicas não visíveis na estatística da RAIS. Como observam os pesquisadores do CESIT, “o não crescimento da contratação temporária não eliminou a possibilidade de ampliação de outras formas de contratação que não são captadas pela RAIS, a terceirização, a contratação como pessoa jurídica, o trabalho estágio, as cooperativas de mão de obra.” Na década de 2000, observamos no Brasil o crescimento do setor de serviços que, de certo modo, oculta o crescimento da nova precariedade salarial, expressa, por exemplo, no crescimento de modalidades de trabalho precário que disfarçam o vínculo empregatício, como a contratação como pessoa jurídica (PJ), e principalmente no crescimento da terceirização, que aumentou em termos absolutos, apesar de ter diminuído em termos relativos na década de 2000, comparando-se com a década de 1990 (na década de 2000, a terceirização mudou de perfil atingindo não apenas a atividade-meio, mas a atividade-fim, atingindo, desse modo, o núcleo central da organização empresarial). As modalidades de contratação atípicas ou trabalho precário que disfarçam relações de emprego assalariado são invisíveis nas estatísticas sociais. Elas representam a fragilização dos vínculos empregatícios de longa duração, um dos traços do emprego padrão que o capitalismo global flexibiliza no bojo da nova precariedade salarial. Portanto, a aparente dinâmica do crescimento de contratos de
158
emprego por tempo indeterminado e a formalização do mercado do trabalho na década de 2000 tendem a ocultar a intermitência e redundância salarial no Brasil. Portanto, a nova precariedade salarial que se afirma na década de 2000 é caracterizada pela constituição de um trabalhador coletivo ou complexo vivo do trabalho social mais complexificado, fragmentado e heterogeneizado. É nos novos locais de trabalho das empresas reestruturadas que podemos encontrar, por um lado, gerações mais velhas de operários e empregados sobreviventes da reestruturação produtiva e portadores da experiência da precarização do trabalho, e, por outro lado, jovens trabalhadores imersos em novas práticas de trabalho e modalidades de contratação salarial de cariz flexível, portadores da experiência da nova precariedade laboral. Na década de 2000 explicitaram-se com maior vigor as tendências de desenvolvimento do mundo do trabalho constatadas, dez anos antes, por Antunes, que observou: “Complexificou-se, fragmentou-se e heterogeneizou-se ainda mais a classe-que-vive-do-trabalho. Pode-se constatar, portanto, de um lado, um efetivo processo de intelectualização do trabalho manual. De outro, e em sentido radicalmente inverso, uma desqualificação e mesmo subproletarização intensificadas, presentes no trabalho precário, informal, temporário, parcial, subcontratado etc. Se é possível dizer que a primeira tendência – a intelectualização do trabalho manual – é, em tese, mais coerente e compatível com o enorme avanço tecnológico, a segunda – a desqualificação – mostra-se também plenamente sintonizada com o modo de produção capitalista, em sua lógica destrutiva e com sua taxa de uso decrescente de bens e serviços” (ANTUNES, 1997). Portanto, a nova precariedade salarial no Brasil caracteriza-se, nesse caso, por um tipo particular de intermitência e redundância salarial, oculta pela formalização do contrato por prazo indeterminado. Na verdade, a nova precariedade salarial que instaura a condição salarial de cariz flexível no Brasil articula crescimento da formalidade no mercado de trabalho (com expansão dos contratos de trabalho padrão e vigência do leque de modalidades atípicas de contratação); com características estruturais do mercado de trabalho no Brasil, como, por exemplo, excedente estrutural de força de trabalho; persistência da informalidade e trabalho por conta própria (que colocam no mercado de trabalho uma larga oferta de força de trabalho à disposição para ser explorada pelo capital); e legislação trabalhista que facilita o rompimento do contrato de trabalho.
159
5. Qualidade de vida e a nova experiência do emprego assalariado formal O novo e precário mundo do trabalho que se amplia no decorrer da década de 2000 no Brasil é perceptível nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas, locais de trabalho transfigurados com a inserção de novas gerações de operários e empregados subsumidos às condições salariais de cariz flexível, caracterizados pelos novos padrões de produção e organização do trabalho flexível e métodos de gestão de cariz toyotista. Por um lado, a nova precariedade salarial altera a forma de ser da remuneração salarial e da jornada de trabalho. Por outro lado, ela insere nos locais de trabalho reestruturados das grandes empresas um contingente de novos operários e empregados vinculados às novas modalidades especiais de contrato de trabalho inscritas CLT (com implicações, é claro, no plano da negociação coletiva de cada categoria assalariada). É claro que a maioria expressiva dos operários e empregados possui vínculos salariais “estáveis”. Entretanto, os “estáveis” se encontram cercados – ou sitiados – por um contingente de trabalhadores assalariados precários, com trajetórias laborais intermitentes (e inseguras), apesar de formalizadas, no plano contratual. Ao mesmo tempo, os “estáveis” encontram-se pressionados, pelo menos no plano do imaginário social, pela ameaça da demissão imotivada que contribui ainda para as altas taxas de rotatividade da força de trabalho no Brasil. Portanto, a experiência do emprego assalariado no Brasil da década de 2000 caracteriza-se, por um lado, pela ampliação da contingência no plano contratual (a contingência do emprego atípico ou a contingência do emprego estável à deriva pela rotatividade da força de trabalho); e por outro lado, pela presença da redundância da força de trabalho em virtude de seu excedente historicamente estrutural no Brasil. Ao mesmo tempo, last but not least, o fenômeno do desemprego, que expressa em si, com candência inaudita, a experiência de classe da contingência e redundância salarial, embora tenha observado na década de 2000 uma curva descendente, mantém-se em patamares elevados nas metrópoles no Brasil, principalmente entre os jovens que têm dificuldade no primeiro emprego. O desemprego como elemento compositivo irremediável da nova precariedade salarial tende a alterar, para as gerações mais jovens de operários e empregados, a perspectiva de carreira e
160
de inserção no mercado de trabalho (a taxa de desemprego entre os jovens elevou-se de 11,9% para 17,0% entre 1992 e 2007) (OIT, 2009). A experiência do emprego assalariado que emerge na década de 2000 e que se caracteriza pela vigência da flexibilização das relações de trabalho, como salientamos acima, no plano da contratação flexível, jornada de trabalho e remuneração salarial, não diz respeito, é claro, tão-somente à natureza do vínculo empregatício (trabalho-emprego), mas também às relações de sociabilidade (trabalho-vida), com as candentes alterações da forma de remuneração salarial e jornada de trabalho que alteram a dinâmica sociometabólica. O que coloca a necessidade de uma nova percepção da ideia de precariedade (e precarização) ainda vinculadas nos estudos da sociologia e economia do trabalho tão somente à relação trabalho-emprego. E pior: uma relação trabalho-emprego caracterizada apenas pela quantidade (e não pela qualidade) dos empregos formais criados no mercado de trabalho. Na ótica da macroeconomia do trabalho, a qualidade do emprego assalariado vincula-se tão somente à formalização contratual (empregos com carteira assinada). Desse modo, numa percepção imediata, de 2003 a 2010 aumentou a qualidade do vínculo empregatício no Brasil, tendo em vista que, segundo o IBGE, o percentual dos trabalhadores assalariado com carteira assinada em relação ao total de ocupados passou de 44,7% em 2009 para 46,3% em 2010 (em 2003 eram 39,7%) – um crescimento de 6,6%. É claro que o emprego assalariado com carteira assinada garante ao operário ou empregado uma série de direitos trabalhistas indispensáveis e necessários, mas não suficientes para lhe garantir a qualidade de vida do homem-que-trabalha. Enfim, a qualidade do emprego, como salientamos acima, não pode ser aferida tão-somente pela natureza do vínculo contratual (formal ou informal ou mesmo, estável ou temporário), mas deve-se observar, principalmente, a dinâmica do vínculo sociometabólico proporcionado pelo trabalho, isto é, a relação trabalho-vida inscrita naquela experiência de emprego assalariado. A constituição da nova precariedade salarial no Brasil é um elemento compositivo do novo patamar de desenvolvimento da acumulação capitalista no País. Ela amplia-se no bojo do novo capitalismo brasileiro nas condições de acumulação flexível. É importante apreender como o novo regime de acumulação flexível que se desenvolve com a mundialização do capital altera a configuração do mercado de trabalho e o modo de organizar a empresa capitalista (é o que veremos a seguir, ao tratarmos do trabalho flexível e a liofilização organizacional da empresa capitalista).
161
Ao mesmo tempo, a nova morfologia social do trabalho possui uma dimensão sociometabólica que diz respeito à nova dinâmica trabalho-vida, como salientamos acima. Por isso, torna-se importante repor, a partir da perspectiva sociometabólica, a discussão da nova precariedade salarial, salientando as consequências pessoais do capitalismo flexível no que diz respeito ao surgimento de novas formas de alienação-estranhamento do homem-que-trabalha. Finalmente, as mudanças sociais provocadas pelo regime de acumulação flexível colocam a necessidade de nova percepção teórico-metodológica do objeto de investigação (a nova precariedade salarial) e a apreensão das dimensões da precariedade laboral e do processo estrutural de precarização do trabalho – é o que discutiremos mais adiante no excurso teórico-metodológico.
6. Trabalho flexível e o sentido da liofilização organizacional No seu livro A condição pós-moderna, David Harvey descreve (como expomos abaixo no Quadro 2) a estrutura do mercado de trabalho em condições de acumulação flexível. Observamos, por um lado, a constituição de um contingente restrito de novos operários e empregados ligados aos conglomerados industriais e de serviços, com estatuto salarial formal. É o “grupo central” de operários e empregados em tempo integral, vinculado ao mercado de trabalho primário, gozando de maior segurança no emprego, boas perspectivas de promoção e reciclagem e outras vantagens indiretas. Esse grupo deve atender às expectativas de ser adaptável e flexível (o que Harvey designa de “flexibilidade funcional"), sendo “alvo” das práticas gerenciais de cariz toyotista voltadas para a “captura” da subjetividade. Por exemplo, é o caso dos operários horistas das montadoras de veículos ou bancários dos conglomerados financeiros privados ou públicos, com contrato de trabalho formal, por tempo indeterminado. Esse “grupo central” de trabalhadores assalariados foi “enxuto” nas últimas décadas por conta da reestruturação produtiva do capital, principalmente nos bancos, como observamos acima.
162
Quadro 3 - Estrutura do Mercado de Trabalho em Condições de Acumulação Flexível
(Extraído de Harvey, 1992)
Por outro lado, com a liofilização organizacional do trabalho, ampliaram-se os “grupos periféricos” do mercado de trabalho formal constituído, por um lado, pelos operários e empregados em tempo integral, mas com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, com menos acesso a oportunidades de carreira e com uma alta taxa de rotatividade (eles possuem o que Harvey denomina de “flexibilidade numérica”); e, por outro lado, por um contingente do proletariado industrial e de serviços mais precário, constituídos por operários e empregados contratados por tempo determinado, temporários, subcontratados, empregados
163
em tempo parcial, empregados casuais, tendo ainda menos segurança de emprego do que o primeiro grupo periférico ligado ao mercado de trabalho secundário. O crescimento exacerbado da terceirização na indústria e serviços contribuiu para a constituição ampliada desse “grupo periférico” do precário mundo do trabalho. O crescimento das empresas de trabalhos temporários e de trabalhadores domésticos, além dos trabalhadores “autônomos”, demonstra a inserção crescente desse contingente massivo dos “grupos periféricos” constituído, em sua maioria, por jovens, homens e mulheres, no mercado de trabalho de forma precária, vendendo sua força de trabalho para indústria, bancos e comércio por tempo parcial e determinado. Desse modo, por um lado, o trabalho flexível, num primeiro momento, expõe o “enxugamento” do “núcleo central” do trabalhador coletivo do capital, constituído por trabalhadores assalariados estáveis caracterizados pela flexibilidade funcional. Isto é, exige-se deles habilidades (e competências) técnico-comportamentais adequadas aos novos parâmetros da produção do capital. Eles devem incorporar o “espírito do toyotismo” e submeter-se às metas de produção e trabalho em equipe. A flexibilidade funcional implica a flexibilização da sua remuneração salarial, vinculando-os ao princípio do desemprenho, e a flexibilização da jornada de trabalho por meio do banco de horas. Por outro lado, o trabalho flexível oculta (e invisibiliza) o amplo “núcleo periférico” do trabalhador coletivo do capital, constituído por trabalhadores assalariados precários no sentido de seu estatuto contratual. Na verdade, os “grupos periféricos” possuem uma diversidade de condições salariais caracterizadas pela flexibilidade numérica: ou compõem cadeias produtivas de subcontratação, ampliadas com a liofilização organizacional (a desidratação do “núcleo central” da produção de mercadorias), com grande quantidade de força de trabalho, e/ou são facilmente “descartáveis” na medida em que executam trabalho temporário, por tempo determinado ou tempo parcial. O novo complexo de reestruturação produtiva do capital constitui nas grandes empresas com sua cadeia ampliada de subcontratação um novo trabalhador coletivo do capital de feição heteróclito, liofilizado e altamente produtivo, inserido em locais de trabalho compostos por novos ativos de qualificação (escolaridade formal, treinamento nos processo produtivos, “casamento com as plantas” etc.) e perspectivas/expectativas diferenciadas de carreiras e mobilidade social. Ao utilizarmos o termo “liofilizado” fazemos referência à noção de “liofilização organizacional”, utilizado por Ricardo Antunes no livro Sentidos do Trabalho
164
(Antunes incorpora a expressão criada por Juan José Castilho) (CASTILLO, 1996). Diz Antunes, referindo-se à “década neoliberal” no Brasil: Foi nos anos 1990, que a reestruturação produtiva do capital desenvolveu-se intensamente em nosso país, através da implantação de vários receituários oriundos da acumulação flexível e do ideário japonês, com a intensificação da “lean production”, do sistema Just-in-time, kanban, do processo de qualidade total, das formas de subcontratação e de terceirização da força de trabalho, daquilo que, segundo Juan José Castillo, vimos denominando como liofilização organizacional. (ANTUNES, 1999) “Liofilizar” é um modo altamente sofisticado de desidratação de produtos perecíveis visando a sua preservação. Ao serem “liofilizados”, os produtos são desidratados – perdem água – e embora não encolham necessariamente, pesam menos. Nesse caso, por analogia, a liofilização organizacional do trabalho implica a redução/fragmentação de coletivos do trabalho nas grandes empresas por meio da terceirização e a constituição de cadeias ampliadas de subcontratação onde se inserem um precário mundo do trabalho. Desse modo, ao invés de meramente encolher, como supõe a ideia da “lean production”, na verdade, o mundo do trabalho “pesa menos” – ou, por analogia, está desidratado – no sentido de que seus coletivos organizados foram fragmentados na cadeia ampliada de subcontratação. De certo modo, a ideia de “liofilização organizacional do trabalho” desmitifica a ideia de “produção enxuta”. Na verdade, o capital “enxuga” apenas a grande empresa, a empresa-mãe, mas no plano da cadeia produtiva de subcontratação e nas condições de socialização ampliada da produção social, amplia-se o novo (e precário) mundo de trabalhadores assalariados subsumidos à condição de proletariedade.
7. O sociometabolismo da nova precariedade salarial A nova precariedade salarial ou a nova morfologia social do trabalho nas condições do regime de acumulação flexível (como diria David Harvey) implicou o surgimento do novo sociometabolismo laboral. Por exemplo, Richard Sennet no
165
livro A corrosão do caráter – as consequências pessoais do capitalismo flexível, mapeou aspectos do novo metabolismo social que surgiu com a natureza flexível do novo capitalismo. Ele se detém, num primeiro momento, nos impactos do capitalismo flexível no caráter pessoal dos indivíduos. O trabalho flexível, segundo ele, aliena as pessoas do sentido da experiência vivida por meio de narrativas pessoais lineares, como ocorria, por exemplo, sob o capitalismo fordista, (que ele identifica com o trabalho burocratizado e rotinizado) (SENNET, 1999; ver também SENNET, 2006). Para Sennet, a nova condição salarial alterou o metabolismo social, isto é, o sentido da experiência humana para as novas gerações de trabalhadores assalariados que se tornam incapazes de construírem “uma história cumulativa baseada no uso disciplinado do tempo com expectativas em longo prazo” ou ainda, uma “narrativa linear de vida sustentada na experiência”. Sennet salienta mudanças significativas no plano dos laços de afinidade com outros (amigos e a própria família) e no plano da autorreferência pessoal e a construção de uma narrativa pessoal de vida e trabalho. Utilizando o recurso metodológico de história de vidas, Sennet salienta as clivagens geracionais provocadas pelo capitalismo flexível. Por exemplo, Enrico, trabalhador fordista, apesar de ter o seu trabalho burocratizado e rotinizado, conseguiu construir uma história cumulativa baseada no uso disciplinado do tempo com expectativas em longo prazo. Ao contrário, para Rico – filho de Enrico – trabalhador flexível, as relações de trabalho e os laços de afinidade com os outros não se processam no longo prazo, em decorrência de uma dinâmica de incertezas e de mudanças constantes de emprego e de moradia que impossibilitam os indivíduos de conhecer os vizinhos, fazer amigos e manter laços com a própria família. Diante das mudanças no mundo do trabalho, Sennet nos interroga: “Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações duráveis?” (SENNET, 1999:27). Portanto, a condição salarial de cariz flexível ou a nova precariedade salarial tende a provocar mudanças significativas no sentido da experiência humana e, desse modo, no metabolismo social do trabalho como totalidade social. Ocorre a alteração das relações sociais humanas, que se tornam voláteis e líquidas, como diria Zygmunt Bauman. Na verdade, a “vida liquida” decorre da operação sociometabólica provocada pela nova precariedade salarial de cariz flexível (BAUMAN, 2001). Um detalhe: as reflexões de Sennet e Bauman visam à corrosão do emprego estável que ocorre nos países capitalistas centrais, onde o aumento da precariedade
166
laboral significou a redução dos contratos de trabalho padrão disseminados logo após a Segunda Guerra Mundial no bojo da ascensão histórica do capitalismo fordista-keynesiano. No caso do Brasil, temos a particularidade da ampliação na década de 2000 dos contratos de trabalho por tempo indeterminado no mercado de trabalho formal, embora tenha ocorrido o crescimento relativo das contratações atípicas e dos trabalhos precários que disfarçam relações de vínculo empregatício. Entretanto, o crescimento da formalização do mercado de trabalho e o predomínio dos contratos de trabalho por tempo indeterminado não significam experiências de emprego estável e segura tendo em vista a vigência da demissão imotivada. Por isso, o espectro da incerteza e da mudança de emprego é um traço estrutural da dinâmica laboral no Brasil, mesmo no mercado de trabalho formal. É importante salientar que a corrosão do caráter que ocorre com o capitalismo flexível não deriva apenas dos vínculos de emprego flexíveis. Existe outra deriva salarial que decorre da nova dinâmica da jornada de trabalho e modo de remuneração salarial. Desse modo, com o capitalismo flexível, opera-se a redução do tempo de vida a tempo de trabalho. É o que podemos denominar “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital (ALVES, 2011). O tempo é o campo do desenvolvimento do sujeito humano e, portanto, da subjetividade humano-genérica. Na medida em que o tempo de vida se reduz a tempo de trabalho estranhado, tende a operar-se o processo de desefetivação humano-genérica do sujeito humano. Por exemplo, em estudo feito por pesquisadores britânicos, observou-se que trabalhar demais não aumenta só o cansaço, mas também o risco de desenvolver depressão (M. VIRTANEN, S. A. STANSFELD, R. FUHRER, J. E. FERRIE, M. KIVIMÄKI, 2012). Nas últimas décadas, o trabalhar demais disseminou-se com o capitalismo flexível. Na medida em que os novos métodos de gestão do trabalho flexível provocam o envolvimento estimulado de operários e empregados em longas jornadas de trabalho (overtime worked) – em sua maioria, trabalho estranhado, opera-se efetivamente a “captura” da subjetividade do trabalho vivo pelo capital e constitui-se o que denominamos de fenômeno da “vida reduzida” com implicações sociometabólicas (crise da vida pessoal, crise da sociabilidade e crise de autorreferência pessoal) (ALVES, VIZZACCARO-AMARAL e MOTA, 2011). Em seu livro, Sennet contrasta o trabalho fordista, burocrático, rotinizado e com uso disciplinado do tempo, com o trabalho flexível, incerto e inconstante com relação aos laços de emprego e moradia. Na verdade, o que ele denomina de
167
“corrosão do caráter” ocorreu na medida em que o trabalho capitalista incorporou a incerteza e inconstância do trabalho flexível. Ao invés de abolir a rotina do trabalho, o trabalho flexível constituiu a nova rotinização laboral que repõe, sob o patamar da experiência salarial desterritorializada, as clivagens sociais do trabalho capitalista de cariz estranhado, isto é, (1) trabalho insatisfatório, esvaziado de conteúdo; (2) remuneração salarial insuficiente com respeito às expectativas de satisfação dos carecimentos sociais; e (3) despotismo laboral de cariz autorreflexivo (ao invés da chefia autocrática da linha de montagem acoplada a esteira mecânica do trabalho fordista-taylorista, temos o despotismo autorreflexivo nos locais de trabalho, com o trabalho toyotista instaurando equipes de trabalho onde o operário ou empregado torna-se “patrão de si mesmo”) (ANTUNES, 1999). Portanto, o trabalho flexível capitalista alterou o sentido da experiência salarial na medida em que transtornou as duas dimensões essenciais do ser genérico do homem como sujeito humano: (1) a dimensão territorial dos vínculos trabalho-vida e (2) a dimensão dos laços afetivos com o outro e laços de autorreferência pessoal (o território intangível do self). Ao mesmo tempo, a desterritorialização humano-genérica que ocorreu com a nova precariedade salarial que se constitui com o capitalismo flexível surgiu nas condições da sociedade burguesa sob a dominância plena do fetichismo da mercadoria (MARX, 1985). O que significa que a experiência de corrosão do caráter do capitalismo flexível se distingue efetivamente de outras experiências históricas de desterritorialização humana que caracterizaram o mal-estar da modernidade do capital. A passagem da “ordem tradicional” para a “ordem moderna”, ou aquilo que Ferdinand Tönnies observou como a passagem da comunidade (Gemeinschaft) à sociedade (Gesellschaft), provocou mudanças substanciais no plano da experiência histórica (TÖNNIES, 1947). Na verdade, o capitalismo flexível só levou às últimas consequências tendências contidas no interior do desenvolvimento do capitalismo histórico, com a ordem burguesa sendo caracterizada como aquela ordem social em que tudo que é sólido se desmancha no ar (MARX e ENGELS, 2002). Enfim, o que Richard Sennet descreve, de modo obliquo, é a precarização do homem-que-trabalha como expressão do sociometabolismo característico da nova precariedade salarial.
168
8. Excursos teórico-metodológicos
Dimensões da nova precariedade salarial A nova precariedade salarial ou condição salarial instaurada pela vigência do trabalho flexível implicou não apenas a maior presença de modalidades atípicas de contratação nos locais de trabalho reestruturados no Brasil, mas implicou também alterações na jornada de trabalho e nas formas de remuneração salarial visando flexibilizá-las. Como elementos compositivos da nova precariedade salarial, podemos salientar ainda alterações no arcabouço tecnológico nos locais de trabalho com impactos no perfil sócio-profissional de operários e empregados; e mudanças na forma de gestão da força do trabalho com a vigência do “espírito do toyotismo” (ALVES, 2011). A nova precariedade salarial trata, portanto, de mudanças nos pilares da relação salarial que produzem impactos significativos no metabolismo social do trabalho organizado. Essas mudanças estruturais atingem empresas mais dinâmicas e sua rede de subcontratação com consequências na totalidade social. Elas adquirem visibilidade nos locais de trabalho das empresas e em sua cadeia produtiva, que se reorganiza em função da nova logística de produção baseada na lógica organizacional do toyotismo (terceirização, just-in-time e kanban são apenas alguns aspectos que mostram que as mudanças organizacionais transcendem os locais de trabalho e atingem a cadeia produtiva). A nova precariedade salarial como objeto de investigação pode ser tratada, no plano lógico-expositivo, por exemplo, a partir da perspectiva da (1) macroeconomia do trabalho, (2) morfologia do trabalho e (3) metabolismo social do trabalho. Trata-se de determinações sociais da totalidade concreta do complexo vivo do trabalho que articula locais de trabalho, empresas e cadeias produtivas e suas inter-relações com o todo social. A discriminação das perspectivas acima traduz, no plano expositivo, o movimento dialético do objeto de investigação, que vai do universal ao particular, ou ainda, das determinações sociais mais abstratas às mais concretas.
169
Perspectivas analíticas da nova precariedade salarial
Macroeconomia do Trabalho Precariedade salarial Morfologia social do Trabalho Precarização do homem-que-trabalha Metabolismo social do Trabalho
A perspectiva da morfologia social do trabalho implica apresentar, no plano descritivo, as mutações sociais do trabalho no plano da organização do trabalho, processo de trabalho, tecnologia e relações sociais de trabalho, visando apreender as metamorfoses sócio-laborais ocorridas no mundo do trabalho ou ainda, no setor, cadeia produtiva, empresa e locais de trabalho. Trata-se, portanto, da abordagem sociológica propriamente dita do objeto de investigação que mapeia, no plano da dimensão espaço-temporal, as transformações produtivas do objeto de investigação. É na perspectiva da morfologia social do trabalho que se põe o conceito de trabalho flexível e as dimensões das reestruturações produtivas do capital com suas inovações organizacionais, tecnológicas e sociometabólicas. A perspectiva do metabolismo social do trabalho significa expor os impactos das mutações laborais na vida cotidiana das individualidades pessoais de classe e nas relações sociais e humanas do trabalhador assalariado, tratando, desse modo, da dimensão da saúde do homem-que-trabalha. A dimensão do metabolismo social do trabalho nos permite apreender novas dimensões da precarização do trabalho ocultas nas abordagens da macroeconomia do trabalho e da morfologia social do trabalho. É importante salientar que a dimensão da saúde do trabalhador não se restringe tão-somente aos nexos epidemiológicos propriamente dito entre situações de trabalho e adoecimentos laborais, mas diz respeito ao metabolismo social no interior da qual estão inseridos as individualidades pessoais de classe. O que sig-
170
nifica deslocar a investigação da saúde do trabalhador do binômio saúde versus adoecimentos com nexos em situações de trabalho (um campo propriamente dito dos profissionais da Saúde), para o binômio saúde versus desequilíbrios no modo de controle sociometabólico com consequências na organização da vida pessoal, colocando-se, desse modo, o problema sociológico da alienação/estranhamento e da vida plena de sentido (o adoecimento do homem-que-trabalha decorre da dialética entre a singularidade do homem singular e o modo desequilibrado de controle do metabolismo social constituído historicamente pelo capital em seu processo de desenvolvimento contraditório). Portanto, o conceito de “precarização do homem-que-trabalha” se põe no plano do metabolismo social do trabalho. O que coloca a necessidade de utilizarmos técnicas de investigação etnográficas propriamente ditas (história oral e histórias narrativas), capazes de apreender a dialética entre singular, particular e universal e o território das experiências pessoais de classe em suas formas de consciência social em processo. No capitalismo flexível, o caráter global das mudanças sociais do trabalho implica adotarmos um enfoque metodológico capaz de ir além das metamorfoses dos locais de trabalho, empresas e cadeias produtivas reestruturadas, visando apreender não apenas o trabalhador assalariado inserido na organização laboral (a força de trabalho como mercadoria ou ainda, a força de trabalho como sujeito de direitos), mas apreender os rastros ocultos do trabalhador assalariado como trabalho vivo ou homem-que-trabalha inserido na vida cotidiana, com a organização do binômio tempo de vida-tempo de trabalho e as múltiplas dimensões da vida social e relações de sociabilidade. No Brasil, a maioria dos estudos sobre precarização do trabalho tendem a salientar apenas a precarização social do trabalho como degradação da condição salarial da força de trabalho como mercadoria e como sujeito de direitos que constitui uma nova precariedade salarial: a precariedade salarial do trabalho flexível. Desse modo, ocultam-se dimensões da desefetivação do homem-que-trabalha como ser humano-genérico em virtude da reorganização do modo estranhado de controle do sociometabolismo do capital instaurado pelas novas condições de exploração/espoliação da força de trabalho como trabalho propiciadas pelo modo de acumulação flexível. Desse modo, o enfoque crítico do metabolismo social do trabalho implica tratar de dimensões da precarização do trabalho desprezados pelas investigações sociológicas propriamente ditas, resgatando assim o que denomina-
171
mos precarização do homem-que-trabalha (ALVES, VIZZACCARO-AMARAL, MOTA, 2011). As dimensões da macroeconomia do trabalho, morfologia social do trabalho e metabolismo social do trabalho constituem níveis de exposição do objeto de investigação cujo movimento concreto implica em expor, em si e para si, a dialética do universal, particular e singular, onde a dimensão sociometabólica do processo aparece como a particularidade concreta, unidade na diversidade e síntese de múltiplas determinações em processo (MARX, 1986). Como observou Georg Lukács, “o movimento do singular ao universal, ou vice-versa, está sempre mediado pelo particular; é um membro real de mediação tanto na realidade objetiva quanto no pensamento que reflete de modo aproximadamente adequado essa realidade” (LUKÁCS, 1970).
Dimensões da precarização estrutural do trabalho A precarização estrutural do trabalho é um traço essencial da dinâmica histórica do sistema do capital em sua etapa de crise estrutural (MESZÁROS, 2009). Ele diz respeito ao processo social de novo tipo que assume, por um lado, a dimensão da precarização das condições salariais propriamente dita e a constituição da nova precariedade salarial, e, por outro lado, a dimensão da precarização do homem-que-trabalha ou a precarização da vida social. Na verdade, condição precária implica vida precária (LE BLANC, 2007). Enfim, precarização das condições salariais e precarização do homem-que-trabalha que se expressa no declínio da dita “classe média” nos países capitalistas mais desenvolvidos (ESTANQUE, 2012). Por outro lado, a precarização estrutural do trabalho constitui historicamente a nova precariedade salarial, isto é, a condição salarial historicamente determinada pelo modo de regulação flexível da acumulação do capital com implicações no processo de trabalho, organização tecnológica e gestão da produção do capital e reprodução social da força de trabalho como mercadoria e como trabalho vivo (HARVEY, 1992).
172
nova precariedade salarial
Precarização estrutural do trabalho
Precarização do homem-que-trabalha
Nas condições da crise estrutural do capital, presenciamos a metamorfose da condição salarial com as mudanças estruturais que caracterizaram a crise do capitalismo fordista-keynesiano. Constituiu-se, desse modo, a “nova precariedade salarial” ou novo modo de regulação histórica da condição salarial, com impactos significativos no metabolismo social. Assim como o processo de precarização estrutural do trabalho originou um novo tipo de “trabalhador assalariado”, a precarização do homem-que-trabalha originou um novo tipo de homem como ser social (homens e mulheres que trabalham). Desse modo, colocam-se, com vigor, clivagens geracionais no seio da “classe” do proletariado. Por exemplo, o tema “trabalho e juventude” tornou-se tema de interesse candente nas pesquisas laborais, tendo em vista a metamorfose da condição salarial que coloca a necessidade de investigações, por um lado, das clivagens geracionais nos locais de trabalho de empresas reestruturadas, e, por outro lado, a explanação do novo perfil de jovens empregados no novo e precário mundo do trabalho. Das novas condições salariais vigentes com o trabalho flexível surgem novas temáticas das investigações sociológicas que remetem às dimensões do metabolismo social em questão.
173
Capítulo 8
Trabalho docente e precarização do homem-que-trabalha
O
vídeo-documentário “Professoras de Marília”, de Giovanni Alves (Práxis vídeo, 2012)1 apresenta um conjunto de depoimentos das trabalhadoras da educação pública municipal que discutem, por um lado, suas condições de trabalho e o drama de adoecimentos de mulheres trabalhadoras. Por outro lado, as professoras de Marília expressam orgulho e amor pela profissão. Eis a “contradição viva” do trabalho assalariado das professoras de Marília, mulheres trabalhadoras imersas naquilo que denominamos “precarização do homem-que-trabalha”. É interessante que as professoras de Marília não discutem salário ou plano de carreira profissional, mas sim condições de trabalho e seus impactos na vida pessoal, desvelando uma dimensão da precarização do trabalho que oculta a desefetivação do ser genérico do homem. Utilizamos o conceito de “precarização do homem-que-trabalha” ao tratar de relatos de mulheres trabalhadoras. O conceito de homem-que-trabalha, expressão
1
O vídeo-documentário “Professoras de Marília”, de Giovanni Alves (Práxis vídeo, 40 min) vincula-se ao projeto CineTrabalho, que teve o apoio da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Marília (SP). , O projeto CineTrabalho visa dar visibilidade ao mundo do trabalho, pois no mundo fetichizado do capital, o mundo do trabalho é invisível. Deste modo, o vídeo-documentário visa abrir uma reflexão crítica sobre a condição de proletariedade de professoras da rede municipal de educação infantil e ensino fundamental da cidade de Marília (SP). O vídeo-documentário “Professoras de Marília” está disponível para visualização no canal de vídeo CineTrabalho (https://vimeo.com/ channels/cinetrabalho).
175
utilizada por Georg Lukács, diz respeito ao homem como ser genérico da espécie humana, incluindo, portanto, homens e mulheres. Desse modo, não se trata de homem no sentido de gênero, em contraposição, por exemplo, a mulher. O que significa que o conceito resgata uma dimensão essencial da espécie humana vista na perspectiva da genericidade. Apesar da dominação masculina (BORDIEU, 2009), homens e mulheres pertencem à espécie humana sob o domínio do capital. A precarização do homem-que-trabalha diz respeito, portanto, a homens e mulheres trabalhadores subsumidas às relações sociais de produção capitalista. Apesar do mesmo pertencimento humano-genérico, homens e mulheres se distinguem na implicação subjetiva com o trabalho estranhado. Por isso, exploração da força de trabalho em sua dimensão concreta implica a determinação de gênero. A particularidade de gênero na relação-capital é importante. Na verdade, a implicação de gênero é constituída pela relação-capital. No mundo social do capital, mulheres trabalhadoras não são apenas exploradas, mas oprimidas pela condição de gênero. Temos salientado neste livro que a precarização do trabalho possui duas dimensões essenciais que se complementam: (1) A precarização salarial, que diz respeito, por um lado, à precarização das condições salariais propriamente ditas (contrato, remuneração e jornada de trabalho) e, por outro lado, à precarização das condições de trabalho por conta das mudanças na organização da produção com a implantação do novo arcabouço tecnológico informacional e novo método de gestão de cariz flexível que contribui para a intensificação das rotinas de trabalho e reforça o controle e envolvimento do trabalho vivo no processo produtivo do capital. A precarização salarial diz respeito à morfologia social do trabalho flexível e suas consequências na força de trabalho como trabalho vivo; (2) A precarização do homem-que-trabalha, que diz respeito à precarização do ser genérico do homem por conta das novas condições salariais de exploração/espoliação da força de trabalho. Nesse caso, a precarização do homem-que-trabalha ocorre no plano da subjetividade humana, reverberando-se em desequilíbrios metabólicos das individualidades pessoais de classe que conduzem, no limite, no caso de singularidades pessoais, às situações de adoecimentos. É importante salientar que a diferenciação entre “precarização salarial” e “precarização do homem-que-trabalha” é
176
tão-somente uma divisão heurística (a precarização salarial tende a ocultar a precarização do homem-que-trabalha). Como salientamos no capítulo 4, a nova morfologia social do trabalho flexível, a nova precariedade salarial que emerge com o capitalismo global, caracteriza-se por dinâmicas psicossociais que implicam a (1) dessubjetivação de classe, (2) a “captura” da subjetividade do trabalhador assalariado e (3) redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria. Portanto, o novo trabalho flexível e suas formas de controle laboral, na medida em que desmontam formas contratuais seguras, alteram formas de remuneração salarial convencional e transtornam jornadas de trabalho previsíveis, conduzem não apenas à precarização salarial, mas principalmente à precarização do homem-que-trabalha; isto é, a nova morfologia social do trabalho flexível tem um impacto diruptivo no metabolismo social do homem-que-trabalha, atingindo irremediavelmente a vida cotidiana de homens e mulheres trabalhadores, disseminando sentimentos de inseguranças e descontrole pessoal. Desse modo, o conceito de “precarização do homem-que-trabalha” salienta as consequências pessoais do capitalismo flexível. Consideramos como o impacto crucial da nova morfologia do trabalho alienado aquilo que denominamos de “redução do tempo de vida a tempo de trabalho”, isto é, a invasão da vida pessoal pelos requerimentos da atividade produtiva do capital. Esse é o verdadeiro sentido do estranhamento sob o modo de controle do metabolismo social do capital. Nas condições de vigência do espírito do toyotismo, ideologia predominante do trabalho flexível, com a produção tornando-se totalidade social, o trabalho estranhado assume um caráter invasivo, corroendo a estrutura familiar e impregnando a vida pessoal com formas derivadas do trabalho abstrato (é o que analisei, por exemplo, no livro Trabalho e Subjetividade – O espirito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório) (ALVES, 2011). A vigência do espírito do toyotismo instaura uma nova condição existencial caracterizada pela mudança abrupta da relação tempo de vida/tempo de trabalho (jornada de trabalho flexível); relação tempo presente/tempo futuro com a ascensão das incertezas pessoais (novas formas de contratação flexível) e estratégias de envolvimento do self (remuneração flexível). Esse novo metabolismo social do trabalho transfigura a troca metabólica entre o homem e outros homens (relações sociais de trabalho e sociabilidade) e entre o homem e ele mesmo (autoestima e autorreferência pessoal). Instaura-se, deste modo, o que denominamos de crise do
177
trabalho vivo, caracterizada pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de autorrefêrencia pessoal. Trabalho assalariado é trabalho estranhado, o que significa que ele implica, mesmo sob as condições da precariedade regulada, isto é, o “trabalho decente” ou trabalho com direitos (como é o caso, por exemplo, do trabalho das professoras de Marília), formas de precarização do homem-que-trabalho que atinge a dimensão da pessoa humana, corroendo fundamentalmente o desenvolvimento humano. Deste modo, não se trata apenas da degradação do trabalhador assalariado, mas sim degradação do homem-que-trabalha, isto é, a degradação do ser genérico do homem (o que é uma característica essencial da barbárie social). Assim, com a precarização do homem-que-trabalha, o que se desvaloriza não é apenas a força de trabalho como mercadoria, mas sim, o trabalho vivo como atributo ontológico do ser humano. Em “Salário, preço e lucro”, Karl Marx afirmou que “o tempo é o campo de desenvolvimento humano”. Por isso, redução do tempo de vida a tempo de trabalho, no caso do trabalho capitalista ou trabalho estranhado, é uma das principais características do estranhamento da vida social. Parafraseando Karl Marx, que salientou que a acumulação capitalista implica aumento da composição orgânica do capital dada pela equação capital constante/capital variável, podemos dizer que a acumulação do capital em sua etapa de crise estrutural significa, ao mesmo tempo, a redução da composição orgânica do ser genérico do homem dada pela equação tempo de vida/tempo de trabalho estranhado. Na época do capitalismo manipulatório, o trabalho estranhado invade a vida social, corroendo a delimitação entre “tempo de trabalho necessário” e “tempo disponível”. Na verdade, o próprio lazer torna-se extensão do trabalho estranhado enquanto trabalho abstrato. Na medida em que presenciamos a crise estrutural de valorização do capital e a exacerbação da produtividade do trabalho, o trabalho abstrato exaspera-se, tornando-se “afetado de negação”. Como nos observa Francisco de Oliveira, “avassalada pela Terceira Revolução Industrial, ou molecular-digital, em combinação com o movimento da mundialização do capital, a produtividade do trabalho dá um salto mortal em direção à plenitude do trabalho abstrato” (OLIVEIRA, 2003). Ao ser “afetado de negação”, o trabalho abstrato expele formas derivadas (e fictícias) de valor que colonizam, de modo intenso e ampliado, dimensões da vida humana. A lógica do valor (ou a lógica do produtivismo) perpassa não apenas a produção de mercadorias, mas as instâncias do consumo e da reprodução social. O “espírito do toyotismo” torna-se o veículo das formas derivadas de valor que im-
178
pregnam a vida social. De repente, a linha de produção não está apenas na fábrica ou no escritório, mas também na repartição pública, escola ou no recôndito do lar estranhamente familiar. Portanto, trabalho estranhado e valor (como produto do trabalho abstrato) impregnam as múltiplas atividades vitais do homem. A condição de proletariedade não é apenas uma condição operária, no sentido clássico da palavra, mas sim, a condição existencial de individualidades pessoais de classe cativa da lógica do valor com seus impactos sociometabólicos. Esse é o sentido da modernização capitalista que, sob o capitalismo global, assumiu dimensões intensas e ampliadas nos “trinta anos perversos” (1980-2010).
1. O trabalho ideológico No texto “As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”, redigido por Georg Lukács no início de 1968, o filosofo marxista húngaro observou que “o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do trabalho é uma de suas características ontológicas; disso resulta que, ao se constituir, o trabalho chama à vida produtos sociais de ordem mais elevada”. E salienta ele: “Talvez a mais impor tante dessas diferenciações seja a crescente autonomização das atividades preparatórias, ou seja, a separação – sempre relativa – que, no próprio trabalho concreto, tem lugar entre o conhecimento, por um lado, e, por outro, as finalidades e os meios.” [o grifo é nosso] Na verdade, com o desenvolvimento da divisão social do trabalho, processo que torna a sociedade cada vez mais social, temos o aperfeiçoamento e diferenciação da divisão do trabalho numa escala ampliada, ocorrendo não apenas a separação de campos autônomos de conhecimento (por exemplo, a matemática, a geometria, a física, a química, etc. eram originariamente partes, momentos desse processo preparatório do trabalho), mas surgindo uma nova modalidade de trabalho humano; ou seja, o trabalho humano não trata apenas de elaborar fragmentos da natureza de acordo com finalidades humanas, mas ao contrário, como diz Lukács, “um homem (ou vários homens) é induzido a realizar algumas posições teleológicas segundo um modo pré-determinado” [o grifo é nosso]. Portanto, surge o que denominamos “trabalho ideológico”, uma modalidade de trabalho humano constituído, em seu momento predominante [übergreifendes Moment], por posições teleológicas secundárias, isto é, ação social que visa induzir
179
um homem (ou vários homens) a realizar algumas posições teleológicas segundo um modo pré-determinado, encontrando, deste modo, meios que garantam a unitariedade finalística por mais que possa ser diferenciada a sua divisão do trabalho. Como observou Lukács, no mesmo momento em que surgiu a divisão do trabalho; e mesmo posteriormente, essas novas posições teleológicas tornam-se “um meio indispensável em todo trabalho que se funda sobre a divisão do trabalho”. Lukács observa que essa nova forma de posição teleológica se manifestava originariamente, por exemplo, na caça, portanto mesmo antes que o trabalho houvesse atingido sua explicitação plena e intensiva. Com a diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica (as posições teleológicas secundárias) torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de ideologia; e ao mesmo tempo, sua função social autonomiza-se do próprio trabalho produtivo (o trabalho que produz valores de uso), tornando-se atividades sociais ou “profissões” imprescindíveis à reprodução social. A natureza do “trabalho ideológico” incorpora como sua base espiritual-estruturante, a ideologia como posição teleológica secundária, isto é, a ação dos homens sobre outros homens, sobre suas consciências, para pôr em movimento posições teleológicas desses mesmos homens, seja no sentido de conservar, seja no sentido de transformar a realidade existente. Com o “recuo dos limites naturais” que caracteriza o processo civilizatório, isto é, com a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução dos homens e um processo de reprodução cada vez mais nitidamente social, crescem as modalidades de “trabalho ideológico” na esfera da reprodução social e inclusive da própria produção social. Vejamos por exemplo, a importância da gestão como meio capaz de garantir a unitariedade finalística na preparação e execução do trabalho produtivo. Com a maquinofatura, a nova forma social da produção do capital no século XXI, o “trabalho ideológico”, a ação dos homens sobre os próprios homens tornou-se imprescindível não apenas para a reprodução social, mas também para a organização da produção de mercadorias. Por exemplo, o espírito do toyotismo implicou a formação de agentes sociais internos e externos à produção do capital, verdadeiros “profissionais” da manipulação, capazes de exercer uma ação sobre outros homens visando estimular o engajamento nas equipes de trabalho e consecução das metas de produção. Para isto, mobilizam-se sistemas de signos adequados para a “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha. Essa ação social orientada à transformação de outros homens visando
180
ao “engajamento estimulado” na produção do capital é o trabalho da gestão e controle, uma modalidade de “trabalho ideológico” cada vez mais imprescindível na produção do capital. Portanto, a natureza do “trabalho ideológico” implica ação do homem sobre outros homens, caracterizando hoje o traço essencial e momento predominante de uma série de trabalhos humanos e ocupações profissionais que constituem o mundo do trabalho. Temos, por exemplo, o trabalho do professor, o trabalho do vendedor, o trabalho do médico, o trabalho do assistente social, e inclusive o trabalho do juiz etc., modalidades profissionais do “trabalho ideológico” que constitui a “sociedades de serviços”. O trabalho ideológico como trabalho concreto se distingue do trabalho produtivo, embora hoje o trabalho produtivo esteja cada vez mais impregnado do trabalho ideológico, tendo em vista que se tornou fundamental na produção, não apenas a ação dos homens sobre os objetos de trabalho, mas a ação dos homens sobre outros homens (no caso da produção de mercadorias, temos a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital). Mesmo o trabalho do bancário e o trabalho do comerciário, por exemplo, exigem cada vez mais a incorporação do “trabalho ideológico” como ação do homem sobre outros homens capaz de garantir a eficácia nos resultados da produção.
Formas do trabalho concreto humano Trabalho produtivo Produz valores de uso e transforma a natureza
Trabalho ideológico Age sobre outros homens Pôr teleológico predominante
Pôr teleológico predominante
Posição teleológica secundária
Posição teleológica primária
É importante esclarecer que o conceito de trabalho produtivo que utilizamos aqui está numa perspectiva sócio-ontológica: trabalho produtivo é o trabalho que se distingue do trabalho ideológico e diz respeito, nesse caso, à forma material da
181
atividade laborativa e não propriamente à sua forma social, isto é, trabalho produtivo na perspectiva sócio-ontológica é o trabalho concreto que produz valores de uso. Por outro lado, na perspectiva sócio-histórica, sob o modo de produção capitalista, o trabalho produtivo é identificado como sendo todo trabalho que se troca por capital para produzir mais-valia, não importando sua forma material; isso porque, como verificamos acima, atividades profissionais que têm como base espiritual-estruturante o trabalho ideológico – como por exemplo o trabalho do professor – podem ser consideradas, sob determinadas condições, trabalho produtivo, na medida em que produzam mais-valia. A concepção empirista de trabalho humano tende a reduzi-lo meramente a trabalho produtivo, isto é, o trabalho voltado para a transformação da natureza pelo homem. De Bacon a Marx, as definições de trabalho põem em destaque a transformação da natureza pelo homem. Diz Georges Friedman: “A transformação da natureza é orientada para uma finalidade essencial: o seu domínio pelo homem, seu “senhor e possuidor” (Descartes), a assimilação da sua matéria (transformada em objetos e depois em produtos) para servir a necessidades humanas.” Em Karl Marx, o conceito empirista de trabalho aparece quando ele diz mais ou menos textualmente a propósito do processo de transformação dos objetos em produtos do trabalho: “O processo se extingue no produto, isto é, num valor de uso, matéria natural assimilada às necessidades humanas por uma mudança de forma.” (MARX, 1996) Entretanto, Marx não possui apenas um conceito empirista de trabalho, isto é, ele não reduz o conceito de trabalho humano tão somente a trabalho produtivo – no sentido de trabalho que produz valores de uso. Por exemplo, o trabalho do professor, trabalho que age sobre outros homens no processo de ensino-aprendizagem, é também trabalho humano com uma qualidade essencial: trabalho ideológico. Ao mesmo tempo, Marx concebe que o trabalho que não produz valores de uso, como o “trabalho ideológico” do professor, possa se tornar trabalho produtivo (no sentido de trabalho que se troca por capital para produzir mais-valia). Diz Marx: Uma cantora que canta como um pássaro é uma trabalhadora improdutiva. Na medida em que vende o seu canto é uma assalariada ou uma comerciante. Porém, a mesma cantora contratada por um empresário que a põe a cantar para ganhar dinheiro, é uma trabalhadora produtiva, pois produz diretamente capital. Um mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante o
182
seu trabalho, o dinheiro do empresário da instituição que trafica conhecimento é um trabalhador produtivo. (MARX, 1985) Portanto, o trabalho produtivo no sentido de trabalho concreto que produz valores de uso é formado predominantemente por posições teleológicas primárias, com o homem criando um novo objeto e, ao mesmo tempo, se reconhecendo como sujeito frente ao objeto por ele criado, dando início ao próprio processo de exteriorização. Neste sentido, o trabalho produtivo não só cria um novo ser como cria a si mesmo como ente humano genérico. Por outro ado, numa perspectiva sócio-ontológica, podemos conceber historicamente o trabalho humano para além da concepção empirista que o reduz a trabalho produtivo como trabalho que produz objetos de uso. A atividade social caracterizada pelo agir sobre os próprios homens, sobre suas consciências, para pôr em movimento posições teleológicas desses mesmos homens, seja no sentido de conservar, seja no sentido de transformar a realidade existente, também é trabalho humano: é o que denominamos de “trabalho ideológico”, o trabalho que tem como base espiritual-estruturante posições teleológicas secundárias que articulam, por meio da ideologia, as funções da reprodução dos indivíduos e da sociabilidade. Enquanto a posição teleológica primária que caracteriza a natureza do trabalho produtivo trata do intercâmbio com a natureza, a posição teleológica secundária que caracteriza a natureza do “trabalho ideológico” diz respeito à influência sobre as posições teleológicas de outros homens, pondo em movimento homens, forças etc.; o que significa que a posição teleológica não pode jamais ter um caráter puramente ideal. Nas posições teleológicas secundárias – e aqui convém esclarecer que o fato de serem secundárias significa atos fundados, derivados do trabalho produtivo propriamente dito, essenciais para a reprodução social e, portanto, de modo nenhum menos importantes – o objeto da posição do fim é o homem, suas relações, suas ideias, seus sentimentos, sua vontade, suas aptidões. Assim, o “trabalho ideológico”, no sentido lukácsiano, trata-se de um campo “qualitativamente mais oscilante, ‘doce’, imprevisível, significando que, na ação dos homens sobre outros homens, a resistência e a imprevisibilidade das reações do próprio homem ampliam o grau de dificuldade do conhecimento em relação à dificuldade do conhecimento da objetividade natural, típica das posições do trabalho. É importante salientar que todo trabalho humano – trabalho produtivo (no sentido de trabalho que produz objetos de uso) ou trabalho ideológico (no sentido de trabalho que age sobre outros homens) – é formado por posições teleológicas
183
(Lukacs): posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias. O ato de pôr consciente que caracteriza o trabalho humano como modelo de práxis social implica tanto posições teleológicas primárias quanto posições teleológicas secundárias, elementos pressupostos do processo que vão marcar o homem como espécie diferenciada. Entretanto, o trabalho ideológico é o trabalho humano que se caracteriza pela predominância da posição teleológica secundária, a ação do homem sobre outros homens que se utiliza de uma cadeia de mediações cada vez mais articuladas. O trabalho ideológico, como trabalho de mediação, implica a utilização de um tipo particular de elemento mediador: o signo. O psicólogo soviético Lev Vygotsky observou que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta mas, fundamentalmente, uma relação mediada. Ele distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os instrumentos e os signos. O instrumento é um elemento interposto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza pelo homem. O instrumento é o elemento mediador do trabalho como transformação da natureza pelo homem. Enquanto os instrumentos são elementos externos ao indivíduo, voltados para fora dele e cuja função é provocar mudanças nos objetos e controlar processos da natureza, o signo – o outro elemento mediador da relação do homem com a natureza – são orientados para o próprio sujeito, para dentro do indivíduo; dirigem-se ao controle de ações psicológicas, seja do próprio indivíduo, seja de outras pessoas. Os signos, chamados por Vygotsky de “instrumentos psicológicos”, são ferramentas que auxiliam nos processos psicológicos e não nas ações concretas, como os instrumentos. O trabalho como categoria ontológica fundante (e fundamental) do ser social é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em movimento séries causais; ele implica tanto instrumentos quanto signos, elementos de mediação das posições teleológicas compositivas do processo de trabalho (posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias). Todo trabalho humano, inclusive o trabalho ideológico, implica a articulação de instrumentos e signos. Entretanto, no caso do trabalho ideológico, os signos tornam-se essenciais para a realização da posição teleológica secundária: a ação sobre outros homens. Na medida em que se desenvolve o modo de produção capitalista, principalmente sob a forma social da maquinofatura, constitui-se a “sociedade de serviços” e amplia-se, deste modo, a escala dos conflitos sociais. Ao dizermos “serviços”, fazemos referência a uma forma de trabalho humano que normalmente não cria
184
valores de uso que se materializam em um objeto, mas são úteis apenas como atividade, ou seja, sua utilidade cessa de existir quando o trabalho termina – dentre essas atividades temos o trabalho do médico, do professor, do escriturário, do militar, do artista. Marx descreve: “(...) serviço não é em geral mais do que uma expressão para o valor de uso particular do trabalho, na medida em que este não é útil como coisa mas como atividade” (MARX, 1985). Essas atividades prenhes de trabalho ideológico envolvem, em sua grande maioria, atributos imanentemente humanos, como é o caso do saber do médico e do professor, da criatividade do designer, entre outros. Esses atributos característicos do trabalho ideológico são próprios da práxis humana e o diferenciam enquanto ser genérico (MARX, 2004). As atividades de serviços vêm conquistando crescente importância no processo de valorização do capital. Um dos elementos que nos demonstra esse fato é a crescente participação do emprego nessa atividade. Já na década de 1950, o emprego nesse setor ultrapassava os 50% nos EUA (CASTELLS, 1999). No Brasil, guardadas as especificidades regionais, a mesma tendência se observa: em 1982 o percentual de pessoal ocupado em serviços era de 59,1% e em dezembro de 2002 já atingia 71,1% (IBGE, 2006). O trabalho ideológico constitui hoje amplamente a esfera dos serviços, com destaque para as ocupações profissionais vinculadas à reprodução e controle social. O trabalho ideológico representa a natureza material de diversas ocupações profissionais no interior da divisão social do trabalho. Por exemplo, ele caracteriza o trabalho de formação e informação (professores e jornalistas), o trabalho de regulação e normatividade (juízes e policiais), o trabalho de convencimento (publicitários), o trabalho do cuidado (médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais) etc. O conjunto de profissões do mundo do trabalho que representam hoje o trabalho ideológico sob o modo de produção capitalista está impregnado de alienação/ estranhamento. Primeiro, elas são exercidas como meio de vida no quadro social do sistema de necessidades e incorporam a lógica do trabalho assalariado, isto é, trabalho heterônomo. Depois, com a ampliação dos conflitos sociais e a necessidade de controle social, o conjunto de profissões que representam o trabalho ideológico torna-se um campo através do qual os homens tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta. Finalmente, enquanto modalidades de trabalho assalariado no setor privado ou setor público, elas são regidas pela lógica do trabalho abstrato, subsumindo-se diretamente ou por derivação aos parâmetros de produtividade.
185
Na verdade, nas sociedades capitalistas, sociedades de classes sociais com interesses antagônicos, o trabalho ideológico assume, cada vez mais, caráter manipulatório. Nesse caso, a ideologia aparece como recurso sistêmico de controle/manipulação social (é o sentido negativo de ideologia como falsa consciência). Portanto, na medida em que a forma material do trabalho ideológico se impregna da forma social da produção do capital, as modalidades de trabalho ideológico incorporam diretamente ou por derivação o sentido do trabalho capitalista como trabalho estranhado (por isso, o problema da precarização do trabalho de categorias assalariadas dos serviços e da administração pública). A sociedade do capital sob o capitalismo manipulatório aparece cada vez mais como “sociedade dos serviços”, tendo em vista que os serviços, principalmente aqueles que têm como base espiritual-estruturante o “trabalho ideológico”, são formas materiais adequadas para o exercício da manipulação que, como posição teleológica secundária socialmente condicionada pelos interesses da reprodução social do sistema do capital (nas áreas do consumo, lazer e inclusive, política), torna-se traço essencial do metabolismo social da modernidade burguesa. Com o capitalismo global, todas as formas de trabalho humano impregnam-se diretamente ou por derivação, da forma social do trabalho estranhado, não importando se o trabalho humano concreto é, no plano da forma material, “trabalho produtivo” ou “trabalho ideológico”, ou ainda, no plano da forma social, se é “trabalho produtivo” ou “trabalho improdutivo”. O que é relevante na perspectiva da ontologia do ser social é a vigência do trabalho estranhado como forma social de subsunção do trabalho vivo à lógica do trabalho abstrato. Por isso, o trabalho ideológico hoje assume a forma de trabalho ideológico impregnado de alienação/ estranhamento ou ainda trabalho ideológico como forma de trabalho abstrato. O trabalho ideológico das profissões vocacionadas exige do homem-que-trabalha cuidado, abnegação e doação (como, por exemplo, o trabalho do formador ou o trabalho assistencial). Entretanto, na sociedade do capital em sua etapa de crise estrutural, o trabalho ideológico impregna-se da lógica do trabalho estranhado. Na medida em que a forma material do trabalho ideológico impregna-se da forma social do capital, caracterizada pelo trabalho estranhado, constitui-se uma implicação subjetiva de natureza perversa. Por um lado, temos, por exemplo, o “trabalho ideológico” como trabalho do cuidador ou trabalho do formador, que, pela sua própria natureza material, envolve a pessoa humana que trabalha, pois implica em cuidar de outras pessoas com dedicação e doação pessoal, como é o caso do trabalho do formador; ou ainda
186
do trabalho de outras profissões como médicos, enfermeiros e assistentes sociais. Entretanto, por outro lado, na medida em que a lógica do capital impregna a relação laboral das profissões vocacionadas, o “trabalho ideológico” impregnado de estranhamento, desefetiva o ser genérico do homem, “intoxicando” a vida pessoal, reduzindo tempo de vida a tempo de trabalho estranhado, corroendo o campo de desenvolvimento humano. É por isso que constatamos hoje entre profissionais do “trabalho ideológico”, a crescente ocorrência da síndrome de “burn-out” nas situações de adoecimentos. O termo “burn-out” que quer dizer “combustão completa”, caracteriza-se pelo esgotamento emocional, despersonalização e baixa realização pessoal. Essa forma de adoecimento dissemina-se, por exemplo, não apenas entre trabalhadores da educação, mas entre todas as categorias profissionais assalariadas que exercem o “trabalho ideológico”, isto é, a modalidade de trabalho humano que implica por completo a subjetividade humana na medida em que possui como base espiritual-estruturante a ação do homem sobre outros homens. Uma das características cruciais do “trabalho ideológico” como trabalho humano concreto é implicar, de modo radical, a subjetividade do homem-que-trabalha com sua atividade laboral. Na medida em que o capital incorpora, de modo amplo, na lógica do trabalho abstrato, as mais diversas modalidades de ocupações profissionais dos serviços – educação, saúde, justiça, segurança pública etc. – dissemina-se, ampla e intensamente, o fenômeno social do estranhamento expressa na precarização do homem-que-trabalha. A disseminação do toyotismo como ideologia orgânica da gestão capitalista e a presença do espírito do toyotismo na gestão do processo de trabalho de amplas camadas assalariadas, não apenas do mundo da produção, mas também dos serviços e administração pública, contribuem efetivamente para a afirmação da perversidade como característica do ethos da gestão capitalista do trabalho humano. A rigor, a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, nexo essencial do toyotismo, é um modo perverso de implicação humana estranhada, pois, ao mesmo tempo em que envolve emocional e afetivamente o trabalhador assalariado com o conteúdo material da atividade laboral, o desefetiva radicalmente como ser humano-genérico na medida em que impõe os parâmetros do trabalho abstrato. Ao mesmo tempo em que o trabalhador assalariado da indústria, serviços e administração pública são envolvidos subjetivamente com o trabalho concreto (inclusive no plano linguístico-locucional ao serem tratados como “colaboradores”),
187
eles são desefetivados como ser humano-genérico na medida em que reduzem seu tempo de vida a tempo de trabalho abstrato. Esse processo de estranhamento assume dimensões radicalmente perversas no caso das modalidades de trabalho ideológico onde a matéria social do trabalho concreto é a ação do homem sobre outros homens (o que significa que o modo de gestão estranhada aparece como “manipulação reflexiva”, a forma de manipulação da subjetividade do homem-que-trabalha nas condições do capitalismo global, o capitalismo flexível sob hegemonia do espírito do toyotismo).
2. Tempo de vida e tempo de trabalho O problema da “invasão” do tempo de vida pessoal pelo tempo de trabalho abstrato que impregna a atividade laboral é o principal problema do estranhamento nas ocupações profissionais que possuem a natureza material do “trabalho ideológico”. Primeiro, a natureza material do “trabalho ideológico”, caracterizada pelo “trabalho imaterial” das profissões vocacionadas ou atividades laborais que envolvem a subjetividade humana por completo, na medida em que sua base espiritual-estruturante é a ação do homem sobre outros homens, contribui, em si e para si, para a permeabilidade entre tempo de trabalho e tempo de vida. Na medida em que o “trabalho ideológico” impregna-se da lógica do trabalho abstrato, trabalho heterônomo alienado ou trabalho humano subordinado constitui-se efetivamente a “invasão” (ou redução) do tempo de vida pessoal (o tempo-para-si) em tempo de trabalho estranhado (ou tempo-para-outro). Nesse caso, ao invés de o trabalhador assalariado tornar-se “patrão de si mesmo”, com suposta margem de “autonomia” (ou “autonomação”, no léxico toyotista), ele torna-se irremediavelmente, por conta da manipulação reflexiva, “carrasco de si mesmo”. Por exemplo, a implicação perversa do “trabalho ideológico”, modalidade de trabalho humano concreto que caracteriza as atividades laborais responsáveis pela reprodução social, é bastante visível no caso do trabalho de formação dos professores e professoras como profissionais imersas em sua “criação pedagógica”. Primeiro, o trabalho das professoras é “trabalho ideológico”, que, em si mesmo, possui uma dimensão invasiva tendo em vista que o artífice (ou profissional) não distin-
188
gue trabalho de vida e vida de trabalho. Enfim, o profissional encontra satisfação (perversa) na implicação criativa do “trabalho ideológico”. Entretanto, o problema não reside na “implicação criativa” do binômio trabalho-vida/vida-trabalho, mas sim na impregnação do trabalho ideológico (o trabalho da ação do homem sobre outros homens), pela lógica do trabalho abstrato, com sua dimensão desumana e alienada: trabalho-para-outro e trabalho subordinado à lógica do capital com suas personificações estranhadas (mercado e Estado político). O trabalho estranhado encontra no trabalho ideológico, o veículo ideal para invadir espaços vitais dos artífices ou profissionais alienados do século XXI. A série de depoimentos das professoras de Marília exposta no vídeo-documentário, trabalhadoras públicas da educação, dá visibilidade à dimensão de perversidade do “trabalho criativo” com implicação estranhada. Por um lado, elas executam um trabalho de amor e dedicação profissional; mas, por outro lado, o trabalho pedagógico torna-se um fardo com o peso das cobranças e outras mazelas da sociedade burguesa em sua etapa de barbárie social que desefetivam o sentido do ofício de professora (por exemplo, o peso da responsabilidade das professoras, obrigadas a assumir a tarefa da família). Nesse caso, trabalho estranhado e estranhamento social com a crise da instituição familiar, dilaceram o “trabalho criativo” das professoras. Na verdade, a crise da família burguesa impede que a dedicação profissional das professoras torne-se efetivamente “trabalho criativo” com dimensão emancipatória. O mundo do trabalho estranhado sob a barbárie social avassala a vida familiar (por exemplo, pais sem tempo para si e sem tempo para filhos); e, por conseguinte, a crise da família burguesa avassala o trabalho das professoras, que incorporam em sua profissão o fardo de serem pai e mãe. O fardo perverso da “polivalência” social não compensa a desvalorização social da profissão e a dimensão do trabalho estranhado invadindo suas vidas pessoais com as múltiplas tarefas que se estendem nos finais de semanas. Essa é a caracterização do trabalho alienado das trabalhadoras públicas da educação, implicado numa relação perversa entre trabalho ideológico com amor pelo ofício e trabalho estranhado com cobranças por desempenho e produtividade e falta de democracia nas decisões do processo de trabalho. Ao mesmo tempo, o estranhamento social ampliado que caracteriza a sociedade burguesa em sua fase de barbárie social impregna a atividade profissional da “criação pedagógica” na medida em que elas assumem responsabilidades por
189
tarefas de formação moral, tarefas próprias da instância familiar. E o pior: exercem uma profissão com baixa valorização social e reconhecimento salarial. O filósofo Friedrich Nietzsche no livro Humano demasiado humano disse que quem não dedica 2/3 do seu tempo de vida para si é um escravo. Diz ele: “Todos os homens se dividem, em todos os tempos e hoje também, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito” (NIETZSCHE, 1983). De fato, na sociedade do capital, todos nós somos “escravos assalariados” imersos na condição de proletariedade. Essa condição de escravidão assalariada que pertencia no passado à classe operária da indústria, o proletariado industrial do século XIX, hoje se dissemina cada vez mais pela sociedade burguesa, implicando não apenas operários, mas empregados e profissionais “criativos” subordinados à lógica do trabalho abstrato sob o espírito do toyotismo. A precarização da “classe média” oculta a ampliação da condição de proletariedade e a explicitação da precarização do homem-que-trabalha como traço indelével da barbárie social do capital. Por isso, trabalhadores assalariados do setor privado ou empregados do setor público são verdadeiros “escravos assalariados”, pois cada vez mais não têm tempo-para-si, mas apenas tempo-para-o-Outro-estranhado, que pode ser o capitalista ou entidades impessoais como o Mercado ou o Estado político como “ente público”. Eis a expressão da deseftivação do ser genérico do homem. O adoecimento é a expressão suprema da precarização do homem-que-trabalha, tornando-se elemento compositivo de sua desrealização humana e pessoal. Entretanto, o adoecimento pessoal é apenas a situação-limite do estranhamento que perpassa hoje a sociedade burguesa, sociedade doente devido ao desequilíbrio estrutural entre Homem e Natureza provocada pela propriedade privada e a divisão social hierárquica do trabalho. Em 1898, V. I. Lênin no seu artigo “Sobre as greves”, observou: “Mas quando os operários levantam juntos as suas reivindicações e se negam a submeter-se a quem tem a bolsa de ouro, deixam então de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer a um punhado de parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas” (LÊNIN, 1979). [o grifo é nosso] Naquela época, a classe operária era a portadora da condição de proletariedade que hoje, assume dimensão universal entre trabalhadores assalariados da indústria, serviços e administração pública.
190
A greve e o movimento operário eram formas sociais de luta contra a escravidão assalariada, luta por direitos capazes de permitir aos trabalhadores viver como pessoas humanas. A dessubjetivação de classe que esvazia a luta coletiva contra a escravidão assalariada aprofunda a precarização do homem-que-trabalha e a desefetivação da pessoa humana como sujeito histórico capaz de “negação da negação”.
191
PARTE III
O ENIGMA DO PRECARIADO
Capítulo 9
O enigma do precariato e a nova temporalidade histórica do capital
N
a medida em que incorpora o fetichismo da mercadoria como elemento compositivo do seu modo estranhado de controle do metabolismo social, o capital permeia o mundo social com enigmas e mistificações que nos provocam. Por isso a necessidade da consciência crítica capaz de apreender, com radicalidade dialética, processos sociais que surgem na nova temporalidade histórica do capital. Na verdade, no decorrer dos “trinta anos perversos de capitalismo global” (19802010), o neopositivismo e o pós-modernismo debilitaram a consciência crítica dos intelectuais, principalmente nos países capitalistas mais desenvolvidos, onde o poder da ideologia tendeu a ser maior, impedindo, deste modo, a percepção clara do significado radical de enigmas que permeiam o capitalismo global. Um deles é o enigma do precariado, a nova camada social da classe do proletariado que se manifesta hoje, com intensidade e amplitude, nos países capitalistas centrais. Deve-se entender primeiro o precariado como sendo uma camada social da classe do proletariado tardio. Trata-se, portanto, de uma camada social e não de uma classe social, como alguns autores parecem sugerir; por exemplo, Guy Standing, autor de The precariat – The new dangerous class (Bloomsbury Academic, 2011). O surgimento e ampliação do precariado nos países capitalistas mais desenvolvidos (União Europeia, EUA e Japão) explicita a universalidade da condição de proletariedade como condição existencial de homens e mulheres que vivem sob a ordem burguesa tardia.
195
1. A condição de proletariedade A condição de proletariedade designa a condição existencial objetiva historicamente constituída pelo modo de produção capitalista no interior da qual pode (ou não) se desenvolver o sujeito histórico de classe. A condição de proletariedade é uma categoria social descritiva dos atributos existenciais das individualidades pessoais de “classe” subsumidas ao modo de produção de mercadorias. A condição de proletariedade é caracterizada por uma série de atributos histórico-existenciais que se disseminam pela sociedade burguesa: subalternidade, acaso e contingência, insegurança e descontrole existencial, incomunicabilidade, corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento. Podemos destacar ainda outros traços histórico-existenciais como risco e periculosidade, invisibilidade social, experimentação e manipulação, prosaísmo e desencantamento (ALVES, 2009). Estar imerso na condição existencial de proletariedade não significa necessariamente pertencer à classe social do proletariado, mas apenas ser proletário, ou seja, homem e mulher da “multidão” que pertence à “classe” do proletariado (com aspas). A “multidão” designa o contingente de individualidades pessoais imersas na condição de proletariedade. A “multidão” expressa o ser-aí (dasein) de homens e mulheres reduzidos objetivamente à condição de alienação/estranhamento social. A “multidão” se constitui como classe “em-si” ou “para si” quando se organiza, resiste e luta, em si e para si, como sujeito histórico de classe capaz de mudança social contra a condição de proletariedade. A constituição do “em-si” e “para-si” da classe percorre um longo (e complexo) continuum que vai da contingência à necessidade histórica. Além de dar visibilidade candente à condição de proletariedade como condição existencial universal no mundo social do capital em sua fase de crise estrutural, o surgimento e ampliação do precariado expõe a verdadeira natureza da crise estrutural do capital, isto é, a contradição radical entre desenvolvimento das forças produtivas e irrealização estrutural das promessas civilizatórias do capital. O que significa que o precariado é a expressão social suprema do fenômeno do “estranhamento” (na acepção de Georg Lukács). Para o filósofo húngaro, o “estranhamento” ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho ou o desenvolvimento da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais não propiciam o desenvolvimento da personalidade humana, mas sim,
196
pelo contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da manipulação de alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio (LUKÁCS, 1981).
2. O precariado O precariado é a “multidão” da era do capitalismo pós-moderno que incomoda as classes dominantes do Primeiro Mundo. Com a crise do capitalismo global, a “multidão” do precariado irrompe com intensidade e amplitude na semiperiferia do núcleo orgânico do sistema mundial do capital (por exemplo, Portugal, Espanha, Itália e Grécia), onde se explicitam com vigor as contradições mais candentes da ordem burguesa. Na verdade, poderíamos dizer que em países como Portugal e Espanha encontramos os casos mais extremos de manifestação social do precariado na década de 2000. Por exemplo, a manifestação da “geração à rasca” ocorrida em Lisboa em 12 de março de 2011, reuniu cerca de 300 000 jovens, homens e mulheres protestando contra a precariedade social. A manifestação da “geração à rasca” nos idos de março de 2011 tornou-se um momento exemplar, fugaz e precioso, de desvelamento da “multidão” do precariado português. Assim, em Portugal, ao mesmo tempo em que aumentou, na década de 2000, o contingente de jovens altamente escolarizados, cresceu, pari pasu, a camada social de trabalhadores precários. Em 2010, cerca de 54,6% dos trabalhadores assalariados na faixa etária dos 15 a 24 anos possuíam vínculo laboral precário, isto é, contratos de trabalho a termo, trabalho temporário ou ainda “falsos” recibos verdes, uma modalidade de contratação laboral como “autônomo”, só que sem nenhum direito trabalhista. A “flexibilização” do emprego nesses países da semiperiferia europeia visou reduzir os custos do fator trabalho, o que é visível nas diferenças de rendimento entre trabalhadores sob contrato permanente, não permanente e temporário. A crise financeira de 2008 e as políticas de austeridade neoliberal só aceleraram o declínio da “classe média” assalariada, expondo a proletariedade extrema de jovens-adultos homens e mulheres inseridos na nova precariedade salarial. O precariado é constituído pela camada social de trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados, desempregados ou possuindo vínculos trabalhos precários. Ele se distingue de outras camadas sociais da “classe” do proletariado como, por exemplo, a camada social dos trabalhadores assalariados “estáveis”, em sua maioria organizada em sindicato ou organizações profissionais e que tem acesso
197
a benefícios e direitos trabalhistas, além de perspectiva de carreira profissional e consumo. O precariado se distingue também da camada social dos trabalhadores assalariados precários de baixa escolaridade e pouca qualificação profissional que caracterizou amplamente o proletariado industrial e de serviços no século XX. Finalmente, podemos dizer que o precariado se distingue também da camada social dos trabalhadores assalariados adultos com mais de 40 anos, com alta qualificação profissional, desempregados ou inseridos em vínculos de trabalho precários. Deste modo, a camada social do precariado possui uma delimitação precisa, isto é, são constituídos por jovens-adultos na faixa etária dos 20-40 anos, altamente escolarizados e “pobres” na acepção convencional, isto é, objetivamente inseridos em estatutos salariais precários. Portanto, eles são jovens-adultos, cultos e pobres: eis os traços distintivos dos homens e mulheres assalariados que constituem a camada social do precariado. Por serem jovens-adultos altamente escolarizados, eles possuem uma carga de expectativas, aspirações e sonhos de realização profissional e vida plena de sentido. Preferimos utilizar o conceito de “precariado” ao invés do conceito de “infoproletários” para caracterizar a nova camada social do proletariado tardio que se amplia nas condições da precarização estrutural do trabalho que caracteriza o capitalismo global. Consideramos que o termo “infoproletários” possui viés tecnologista na medida em que tende a demarcar (pelo prefixo “info-”) a inserção de classe do novo (e precário) mundo do trabalho pela organização tecnológica do trabalho. Ao contrário, preferimos demarcar as novas camadas proletárias pelas relações de trabalho baseadas em contratos salariais precários. As novas relações de trabalho que surgem no capitalismo global sob a vigência do trabalho flexível, caracterizam-se por formas de contratos salariais precários, modos de remuneração e jornada de trabalho flexíveis que alteram o metabolismo social dos trabalhadores assalariados. É o sociometabolismo do trabalho precário de cariz flexível que constitui a natureza da nova camada social do proletariado: o precariado. Na medida em que os “precários” são filhos da “classe média”, vindo, em sua maioria, de ambientes familiares cujos pais eram ou são trabalhadores assalariados estáveis do setor público ou privado, ativos ou aposentados; ou mesmo profissionais liberais e pequenos proprietários, o precariado expressa, em si e para si, a crise e decomposição da “classe média” considerada outrora, lastro social e político do capitalismo social-democrata. Por outro lado, enquanto filhos da “classe média”, o precariado encontra-se “protegido” das intempéries da precariedade
198
salarial, constituindo a “geração casinha dos pais”, como diz a canção “Parva Que Eu Sou”, dos Diolinda (“Se já tenho tudo, para quê querer mais?”). O que significa que muitos dos “precários” vivem até os 30 ou 40 anos na casa dos pais tendo em vista que, em sua maioria, não possuem autonomia financeira para terem sua casa própria e constituir família (“Filhos, maridos, estou sempre a adiar”, como diz a canção). Ao serem amparados pelos pais, os ditos “precários” são beneficiários da “sociedade-providência”. Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, “sociedade-providência” é uma forma de capital relacional constituído pelas redes de relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança. Utilizando dados do European Social Survey de 2008, Boaventura de Sousa Santos observa que, de 110 inquiridos em Portugal que estavam desempregados e ativamente à procura de emprego, 62% tinham nos salários dos outros membros do agregado ou noutros rendimentos familiares a sua fonte de subsistência, contra 22% que viviam do subsídio de desemprego, 10% de pensões e 5% de outras prestações sociais (SANTOS, 2011). Na medida em que são a “geração casinha dos pais”, os “precários” não conseguem completar o ciclo de socialização da vida adulta tendo em vista que mantêm laços de dependência familiares. A incompletude da socialização adulta dos “jovens-adultos flexíveis”, com o prolongamento do tempo de juventude, tende a ter implicações sociais, culturais e psicológicas sobre o modo de ser/estar “precário”. Na verdade, a perda da cidadania salarial fordista para amplos contingentes do mundo do trabalho sob o capitalismo global significou talvez a última etapa do processo de erosão do ideal de família burguesa constituído no pós-guerra. A erosão do ideal de família “Papai Sabe Tudo” (Fathers Knows Best), família de “classe média” retratada na série homônima de TV norte-americana dos anos 1950, onde o homem era o provedor em torno do qual se organizava o núcleo familiar, começou efetivamente na década de 1960 com a entrada da mulher no mercado de trabalho. Ao tornar-se provedora, a mulher passou a disputar com o homem o papel hegemônico no espaço do lar. Mais tarde, com a expansão do precariado e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho estável dos jovens-adultos filhos de “classe média”, aprofundou-se a crise do modelo familiar originário da civilização burguesa fordista. Na medida em que são trabalhadores assalariados precários, isto é, não têm acesso à cidadania salarial, ou seja, aos benefícios e direitos trabalhistas que caracterizaram o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra, os “precários” encon-
199
tram-se deslocados objetivamente – embora não subjetivamente – do horizonte de expectativas criado pela “miragem” social-democrata, isto é, a ideologia política sedimentada na ideia de conciliar capitalismo e bem-estar social. O precariado vive a experiência do mal-estar da pós-modernidade (BAUMAN, 2005). Primeiro, a socialização pela educação como capital humano incutiu-lhe um horizonte de expectativas baseado na obtenção do diploma de curso superior, construção de carreira profissional a partir de emprego estável, com um rol de benefícios e direitos trabalhistas. Inclusive, a passagem para a vida adulta era alcançada com a obtenção do estatuto salarial formalizado pelo Estado social-democrata que garantia direitos trabalhistas e identidade de cidadania social e política. Portanto, a equação social que legitimava a democracia social burguesa no pós-guerra nos polos mais desenvolvidos do sistema mundial do capital era baseada era constituída pelo trinômio (1) educação superior (2) emprego/carreira profissional e, last but not the least, (3) consumo como ethos consumista.
3. A subjetivação de vínculo mercantil Interessa-nos salientar como um aspecto importante da consciência social do precariado: a subjetivação de vínculo mercantil. O precariado representa, em si e para si, a condição de “sujeitos monetários sem dinheiro”. O que significa que, no plano da consciência de classe contingente, a “multidão” do precariato tende a possuir uma consciência liberal – à esquerda ou à direita. Um detalhe: segmentos minoritários da camada social do precariado podem tornar-se, nas condições da crise estrutural do capital, esteios do “fascismo social”. Na medida em que a “multidão” do precariato encontra dificuldades objetivas para constituir o em-si da classe, tendo em vista que lhes falta organização sindical capaz de representá-los nas instâncias políticas do sistema, diluindo portanto seu poder de barganha no plano corporativo, a própria classe social do proletariado tende a se enfraquecer no plano social da luta de classes. Nas condições da metrópole capitalista, as dificuldades de passagem da “multidão” para “classe social” tornam-se candentes. Portanto, a ampliação da camada social do precariado nos países do capitalismo mais desenvolvido hoje é sintoma do debilitamento radical da classe social do proletariado como sujeito histórico capaz de “negação da negação”. Por isso, a organização social e política do precariado constitui hoje tarefa
200
fundamental para a formação da classe e luta de classes nas condições de crise do capitalismo global em seus polos mais desenvolvidos. O caráter de subjetivação mercantil que caracteriza a camada social do precariado, com seus vínculos atávicos com a formação ideológica da “classe média”, permite-lhes serem considerados efetivamente “sujeitos monetários sem dinheiro”. Por um lado, têm a perspectiva da boa vida, que só o dinheiro pode permitir; por outro lado, não possuem capacidade aquisitiva suficiente capaz para realizar o ethos consumista disseminado na sociedade burguesa. Portanto, são demasiadamente suscetíveis à frustração com todas as implicações que isso possa acarretar. A “consciência tranquila” que caracterizou a “classe média” assalariada ou pequeno-burguesa do capitalismo fordista-keynesiano, interverte-se, no caso do precariado, na “consciência intranquila” de jovens-adultos frustrados com o sistema social da ordem burguesa neoliberal que não os reconhece como “cidadãos salariais”. Na verdade, o crescimento da camada social do precariato nas condições da crise estrutural do capital expõe, de modo particular, a crise de reprodução social do capitalismo global no seu polo mais desenvolvido. É importante salientar que a crise estrutural do capital não se reduz à crise do modo de produção/acumulação de capital, mas significa também, e principalmente, crise estrutural do modo de controle estranhado do metabolismo social do capital, isto é, crise de sociabilidade que expõe os rompimentos dos laços de socialização constituído em cima das expectativas e sentidos da ação dos indivíduos sociais. Portanto, o que a ampliação da camada social do precariato nos países capitalistas mais desenvolvidos explicitou com vigor é que a crise capitalista é uma crise do capitalismo como horizonte de reprodução social, ou ainda, crise dos valores-fetiches que constituíram a ordem burguesa fordista-keunesiana. A ampliação da camada social do precariado expõe, deste modo, rupturas na estrutura ideológica (e política) de reprodução social da ordem burguesa. Constitui-se um horizonte de percepção crítica da ordem do capital que abala a coesão social que caracterizou as sociedades do Welfare State. O precariado como a “classe perigosa” que inquieta a ordem burguesa expõe, a seu modo, o horror da proletariedade que caracterizou outrora o surgimento do capitalismo industrial (com a diferença de que, por exemplo, o proletariado industrial de origem agrária que viveu a Primeira Revolução Industrial não expressou sentimento de frustração ou indignação diante do “moinho satânico” do capitalismo industrial com seu factory system, o que ocorre hoje com o precariado).
201
Entretanto, por outro lado, o surgimento da camada social do precariado, a “classe perigosa” na acepção de Guy Standing, repõe, noutro patamar sociometabólico, a efetividade do fetichismo da mercadoria. No plano contingente, o precariado possui afinidades eletivas com a nova ordem do capitalismo manipulatório. Diante das rupturas (ou rachaduras) do metabolismo social da ordem burguesa tardia, surgem novos mecanismos de manipulação e reposição de “experiências expectantes” e valores-fetiches capazes de permitir a reprodução do capital em escala global. A crise de reprodução social é o momento histórico de afirmação de novos valores-fetiches, sonhos e expectativas de mercado capazes de ressignificar o controle estranhado do metabolismo social do capital. Deste modo, sob o capitalismo manipulatório com sua “sociedade em rede” dissemina, numa proporção inaudita na história humana, o tráfico de sonhos e expectativas de mercados capazes de criar um novo horizonte de realização pessoal estranhado. Nos “trinta anos perversos” de capitalismo global (1980-2010), com a nova temporalidade histórica do capital, ocorreu a troca espúria dos sonhos coletivos e utopias sociais que caracterizaram o movimento juvenil da contracultura nos anos 1960 no período de crise do fordismo-taylorismo, pelas utopias pessoais, expectativas e valores-fetiches de mercado disseminados pela ordem burguesa neoliberal. Nos locais de trabalho, a ideologia do taylorismo-fordismo deu lugar ao espírito do toyotismo como nova implicação subjetiva da manipulação do capital (manipulação de cariz efetivamente moral tendo em vista que se trata de elaborar implicações consensuais mediadas por valores – os valores-fetiches). Nas condições do capitalismo global, a garantia do emprego interverteu-se na mera empregabilidade. O precariado vive na era do neodarwinismo, ideologia tardo-burguesa que instiga, no plano social, o espírito de concorrência individual. A palavra de ordem no mundo neoliberal é competitividade. É pela concorrência no mercado que o homem burguês tardio, como autoempreendedor, se afirma como individualidade pessoal de classe. Entretanto, o surgimento e afirmação dos valores-fetiches de mercado, que ocorreu sob o capitalismo global, com a hegemonia social do espírito do toyotismo, não derivou apenas do debacle do movimento social e político da contracultura com suas utopias coletivas ou derrota dos movimentos radicais de contestação da ordem burguesa nas lutas de classes dos anos 1960 e 1970, mas sim da crise estrutural do capital com a falência do modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento capitalista e a erosão das promessas de realização pessoal das individua-
202
lidades de classe por meio da equação educação-como-capital-humano, emprego-como-carreira-profissional e consumo-como-ethos-consumista. Com a crise profunda da civilização burguesa fordista-keynesiana, colocou-se a necessidade sistêmica, no plano ideológico, de restaurar a eficácia do fetichismo da mercadoria. Deste modo, ocorreu a reposição do fetichismo da mercadoria e seu segredo. O espírito do toyotismo, que dissecamos no livro Trabalho e Subjetividade (ALVES, 2011), tornou-se hegemônico nos corações e mentes da geração do precariado. A geração Y tendeu a incorporar, em sua maioria, os valores-fetiches do individualismo liberal. O poder da ideologia assumiu proporções inauditas na ordem burguesa tardia operando, principalmente no espectro moral-intelectual. É na frequência da moralidade (Sittlichkeit) que o capital como modo de controle do metabolismo social estranhado opera os consentimentos espúrios à ordem burguesa global (o que não significa que não haja reações contra-hegemônicas como, por exemplo, os movimentos sociais do precariado que, mesmo com seus limites ideológicos irremediáveis, buscam criticar, de modo coletivo, a ordem da precariedade salarial). Nas condições da reposição do fetiche salarial, o discurso da empregabilidade e competividade é disseminado. Na medida em que, no plano da consciência social contingente, a “geração precária” possui uma consciência liberal, tendo em vista que são plenamente “sujeitos monetários” que habitam a metrópole com seus templos de consumismo, a manipulação intensiva e extensiva na “sociedade em rede” e a própria condição salarial com seus vínculos empregatícios intermitentes tornam-se obstáculos à formação em-si e para-si da classe social do proletariado. Deste modo, o precariado tornou-se alvo privilegiado da manipulação insana e sútil que visa reciclar expectavas frustradas de carreira profissional. Os trabalhadores precários de “classe média”, a “multidão” do precariado, é tendencialmente mais susceptíveis à manipulação do espírito do toyotismo. Eles nasceram na era da globalização neoliberal incorporando como horizonte de conduta moral os valores da concorrência de mercado. Na medida em que são “sujeitos-mercadoria” da sociedade de serviços, o que explica a ideologia do autoempreendedorismo, e não propriamente “sujeitos-que-produzem-mercadorias”, no sentido dos proletários das sociedades industriais clássicas, o fetiche da mercadoria tende a aderir à sua consciência de classe contingente. O homo precarius como “sujeitos monetários” tem aderido a si, o fetiche da mercadoria com toda sua carga de intransparência social. Na ótica da “multidão” do precariado, o ideal da boa vida que expressa o
203
carecimento íntimo de vida plena de sentido aparece não como projeto social de construção política, mas sim como construção individualista. Portanto, eis um primeiro elemento do enigma do precariado: ele expõe o apodrecimento da ordem burguesa social-democrata. Com a crise estrutural do capital, o movimento de fetichização da ordem burguesa assumiu dimensões qualitativamente novas. Na medida em que surgem “rachaduras” no edifício da ordem burguesa, colocam-se com vigor, ao mesmo tempo, novos modos de implicação manipulatório no interior da própria subjetivação de cariz mercantil que caracterizou a formação do homem burguês. Nessas condições de socialização mercantil complexa, como salientamos acima, o poder da ideologia torna-se efetivamente voraz. A crise da forma-mercadoria é, ao mesmo tempo, a necessidade da sua (re) afirmação como forma social no interior da qual ocorre não apenas o desenvolvimento da produção/acumulação do capital, mas também o desenvolvimento do próprio metabolismo social como horizonte de possibilidades efetivas da práxis humana. A reafirmação da forma-mercadoria a partir de sua crise estrutural reforça, por exemplo, a ideologia liberal da presentificação histórica do capitalismo, isto é, a perspectiva da economia política do homem burguês. Nessa ótica liberal que impregna o pensamento burguês hegemônico, não existe nada para além (ou antes) do capitalismo; inclusive o capitalismo tende a ser identificado com a ideia de mercado e, por derivação simbólica, com os ideias de liberdade individual.
4. Precariado, carência de futuridade e temporalidade decapitada do capital Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o que diz o livro dos Genesis do capital. Essa é a perspectiva epistemológica e moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica do capitalismo tal como operava a economia política é a versão clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariato sob o capitalismo manipulatório. Como observou o filósofo Henri Bérgson no começo do século XX, “nós praticamente só percebemos o passado” com o “presente puro sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”. O que significa que o “presente puro” não
204
existe; ele é apenas “o passado consumindo o futuro”. O que Bérgson descreve, sem o saber, é a ontologia da temporalidade do capital, onde o passado, com sua inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances de uma ordem futura qualitativamente diferente. Na verdade, para I. Mészáros a temporalidade do capital é uma “temporalidades decapitada”, isto é, temporalidade restauradora, “a paralisante temporalidade restauradora do capital”, tendente a construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante. Deste modo, a temporalidade do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta, mas sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro de verdade que já se abre à frente (MESZÁROS, 2008). No caso dos “precários”, eles têm a percepção clara da temporalidade fechada do capital, percepção estranhada de perda do futuro que os projeta, no plano da contingencia, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, na sua consciência contingente, incorporam a presentificação histórica do capitalismo posta pela consciência liberal. Na verdade, a consciência liberal só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da “paralisante temporalidade restauradora do capital”. Nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multidão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital como sociometabolismo estranhado. A “carência de futuridade” expressa por muitos jovens-adultos “precários” no documentário “Precários inflexíveis” (Praxis video, 2012) expressa, com vigor, um elemento de desefetivação do ser genérico do homem, ou seja, uma das principais características do fenômeno do estranhamento.1 Um jovem trabalhador precário português de 26 anos observou: “O problema para mim essencial é não conseguir planejar meu futuro. Não consigo ter noção daqui a três meses que é que eu vou estar a fazer; daqui a três meses que dinheiro que eu vou ter no banco; quais são minhas perspectivas de emprego; se posso ou não ter filhos; se posso ou não morar com alguém. Acho que este é o principal problema da precariedade, além dos vínculos laborais precários, dos baixos salários, etc.; com eles vem sempre esse futuro que nos estão a tirar e 1
O vídeo “Precários inflexíveis”, de Giovanni Alves (Práxis vídeo, 2011) encontra-se disponível para visualização no canal de vídeos CineTrabalho (www.vimeo.com/canalcinetrabalho).
205
além de todos outros direitos laborais...”. E conclui: “Ser precário é acordar de manhã e não saber se o dia que nos espera vai ser ainda pior que o anterior.” Esse depoimento do jovem trabalhador precário português é um depoimento paradigmático da condição de proletariedade do precariado em Portugal hoje. Ele expressa o que é comum aos demais depoimentos de trabalhadores precários exibidos no decorrer do documentário: a ansiedade perante o futuro. Não se trata apenas de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários, falta de direitos laborais), mas sim trata-se de um problema existencial que corrói a individualidade pessoal. Na verdade, a precariedade interdita a vida pessoal do sujeito de classe (“se posso ou não ter filhos” ou “se posso ou não morar com alguém”). É a alienação/estranhamento na sua dimensão radical. Para a camada social do precariado, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados que não conseguem se inserir na cidadania salarial construída pelo Estado de Bem-estar social, o principal problema da precariedade é “esse futuro que nos estão a tirar”. Essa percepção de futuro hipotecado é um traço recorrente no discurso de indignação de jovens adultos-adultos que construíram sua individualidade pessoal de classe baseada na perspectiva da carreira e perspectiva de consumo. Educação, emprego/carreira e consumo foi a implicação subjetiva da juventude construída pelo capitalismo europeu de bem-estar social e reproduzida nas últimas décadas pelo discurso social-democrata. Na verdade, o capitalismo manipulatório que se constituiu nos “trinta anos perversos” se baseou na seguinte implicação paradoxal: Por um lado, o discurso de compatilização entre capitalismo liberal, democracia representativa e Estado de bem-estar social. Construiu-se, a partir daí, a utopia educacional da juventude baseada na ideia do capital humano onde a alta escolaridade seria o lastro do emprego-padrão por tempo indeterminado, perspectiva de carreira profissional e o ethos do consumismo. É o ideal da boa vida no interior da ordem burguesa, onde se renuncia a utopia da emancipação social pela utopia dos pequenos sonhos individuais de carreira e consumo. A cultura neoliberal disseminou nos “trinta anos perversos” de capitalismo global os valores-fetiche do individualismo possessivo. Essa perspectiva ideológica do capitalismo mais desenvolvido envolveu em sua larga maioria, a “classe média” assalariada, lastro político dos partidos socialistas e sociais-democratas. Por outro lado, ao lado do discurso ideológico social-democrata, a partir da década de 1980, ocorreu, sob pressão da acumulação capitalista predominantemente financeirizada, a corrosão persistente do Estado-Providência. Desde a dé-
206
cada de 1980, no núcleo orgânico do capitalismo global (EUA e União Europeia), governos conservadores e neoliberais (e inclusive, governos socialistas e social-democratas) passaram a adotar políticas de cariz neoliberal que contribuíram para a corrosão do Estado social. De modo lento e persistente, amplia-se a mancha de precariedade laboral sob a vigência da flexibilidade laboral. Instaurou-se a era da precarização estrutural do trabalho, com a disseminação de várias modalidades do trabalho precário ao lado do desemprego de massa que atinge principalmente a juventude trabalhadora europeia. Nos “trinta anos perversos” de crises financeiras persistentes do capitalismo global, aprofundou-se, principalmente entre a geração nascida na década de 1980 e que na década de 2000 busca realizar seu sonho de cidadania salarial, a frustração com as promessas sociais-democratas. Entretanto, a implicação paradoxal do capitalismo social-democrata agudizou-se na mesma medida em que aumentou a capacidade de manipulação ideológica e ilusionismo político da ordem burguesa hipertardia. Na era de precarização estrutural do trabalho, as jovens gerações de proletários de “classe média” que constituem o precariado vivem sob o fogo cruzado do capitalismo manipulatório. No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a carência de futuridade Torna-se cada vez mais claro na percepção da consciência de classe contingente que o capitalismo global hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo aquilo que a ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não encontraram um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema inclui-los como força de trabalho produtiva. Por exemplo, num dos depoimentos contidos no documentário “Precários inflexíveis”, um jovem de 28 anos reconhece que é “explorado por um sistema pelo qual eu posso contribuir muito mais do que ele me permite contribuir”. Eis a confissão da frustração irremediável do jovem precário: o sistema do capital não lhe permite contribuir na medida em que ele é capaz de contribuir. É a inversão radical estranhada do ideal da sociedade socialista cujo lema, de acordo com Karl Marx no Programa de Gotha, seria “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Na verdade, a carência de futuridade do precariado é a projeção no plano da consciência de classe contingente, da carência do comunismo posto hoje, mais do que nunca, como necessidade histórica civilizacional. No livro Para além do capital, István Meszários, um dos críticos radicais da perspectiva ideologia social-democrata, observou o seguinte: “A inalterável temporalidade histórica do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode haver futuro
207
num sentido significativo da expressão, pois o único ´futuro´ admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito'". Portanto, é sob as condições da crise estrutural do capital que se explicita com vigor um dos traços candentes da ordem burguesa e uma particularidade radical da nossa época histórica que se distingue de outras épocas do capitalismo histórico: a interdição persistente da futuridade. Quando o sistema do capital não consegue “incluir” em seus parâmetros sociorreprodutivos trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados de acordo com as prescrições e proscrições da ordem burguesa, há algo de podre no reino da Dinamarca. O espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é expressão do apodrecimento da ordem burguesa.
5. A composição orgânica do ser genérico do homem A “carência de futuridade” expressa pelos jovens-adultos “precários” expõe uma dimensão essencial da ordem burguesa hipertardia: a desefetivação persistente do ser genérico do homem. Eis uma das principais características do fenômeno do estranhamento. Nossa hipótese é que, sob a nova ordem burguesa tardia, diminuiu a composição orgânica do ser genérico do homem na mesma medida em que aumentou a composição orgânica do capital. Esse é um aspecto candente do sociometabolismo da barbárie que tratamos em artigos anteriores. O conceito de “composição orgânica do ser genérico do homem”, parafraseando às avessas a categoria de composição orgânica do capital de Marx em O Capital, nos obriga a refletir sobre o caráter do homem como ser genérico numa perspectiva histórico-materialista. Nas condições da era de barbárie social somos intimados a resgatar, no plano do pensamento radical, o sentido do humano. Nos “Manuscritos de Paris”, o jovem Karl Marx elaborou a categoria de “ser genérico” do homem a partir da percepção da própria negação da genericidade humana pelo fenômeno do estranhamento ou desefetivação humano-genérica. Na ótica dialético-materialista, o homem se afirma no interior de sua própria negação concreta. Nas condições de desefetivação humano-genérica é que se tornaram perceptíveis os traços essenciais da genericidade humana em desefetivação. A reflexão marxiana de “ser genérico” do homem se põe na contraposição, tão frequente em sua obra, entre o homem e o animal. Deste modo, segundo Marx,
208
apenas o homem é um “ente genérico” em contraposição ao animal como exemplar de uma espécie, de alguma speciei. Por outro lado, o homem é um “ente genérico”, cuja atividade vital é radicalmente diversa da atividade vital do animal. O caráter específico do homem, ou o caráter genérico da espécie humana, é a atividade consciente livre. Os animais não conseguem satisfazer suas necessidades senão por meio de sua própria atividade. Entretanto, a atividade dos animais se orienta exclusivamente a consumir objetos de sua necessidade, isto é, ela coincide imediatamente com a satisfação ativa da necessidade dada: coincide imediatamente com a satisfação ativa da necessidade dada. A atividade vital dos demais animais é, neste sentido, uma atividade vital limitada, dependente em relação aos motivos biológicos. O animal converte em objeto de sua atividade e de sua vida apenas uma parte relativamente pequena, e mais ou menos delimitada, dos objetos da natureza, isto é, aqueles objetos cujas propriedades físicas, químicas, etc. satisfazem suas necessidades constantes, herdadas, constitutivas de sua natureza específica. Tanto a “meta” de sua atividade (os objetos de suas necessidades), quanto os componentes simples desta atividade, as “capacidades” elementares do animal, estão determinados, dados com sua vida e são, no essencial, imutáveis; por isso, é limitado o número de conexões e correlações naturais que o animal consegue aproveitar para sua conduta, inseri-las em sua própria atividade: “o lugar do animal, seu caráter, seu modo de vida etc.”, são para eles “imediatamente inatos”. Deste modo, o que distingue o homem do animal, na perspectiva histórico-ontológica, é uma específica atividade vital que constitui sua própria essência: o trabalho, pressuposto natural eterno da vida humana. Como observa Marx nas “Notas sobre James Mill (1844)”: “É possível distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, por tudo o que se queira. Mas, eles mesmos, os homens, começam a diferenciar-se dos demais animais na medida em que começam a produzir seus meios de vida, seus alimentos; este passo está condicionado pela sua organização somática. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem indiretamente sua própria vida material” (MARX, 1988). O trabalho enquanto elaboração do mundo objetual é que afirma o homem realmente como ser genérico. O trabalho é a relação histórica real do homem com a natureza que determina, ao mesmo tempo, a relação recíproca entre os homens, isto é, a totalidade inteira da vida humana. O trabalho é a atividade vital que, ao contrário da atividade vital dos animais, orienta a satisfação das necessidades não diretamente, mas só por meio de mediações como o trabalho vivo que precede o
209
uso do objeto e o possibilita; e a mediação como meio de trabalho ou ferramenta que o homem coloca entre ele e o objeto de sua necessidade. Enquanto a formação dos meios de produção dos demais animais, isto é, seus órgãos, percorre o caminho da evolução biológica no decorrer de milhões e milhões de anos, o homem constrói ele mesmo seus instrumentos de produção, cada vez mais complexos na forma de objetos independentes (como diria Benjamin Franklin, citado por Marx, o homem é um “toolmaking animal”). Portanto, a categoria sócio-ontológica do trabalho como atividade especificamente humana pressupõe processos de externalização/objetivação e apropriação. Por outro lado, a apropriação, tanto no sentido da assimilação/transmissão das características do gênero por meio da socialização emancipada, quanto no sentido da intervenção prática, poder unificado dos vários indivíduos ou ainda, o “controle consciente e planejado de homens livremente socializados”, pressupõe o problema do controle social do intercambio metabólico entre homem e natureza. Na verdade, nas condições da sociedade do fetichismo da mercadoria, quando o estranhamento assume dimensões radicais, coloca-se hoje, mais do que nunca, o problema do controle social como a necessidade da autotranscendência positiva da alienação. No sistema do capital, o processo de objetivação/apropriação se põe como processo de estranhamento, ou seja, modo de controle social estranhado composto por determinadas mediações de segunda ordem que, com seu círculo vicioso, obliteram a apropriação livre e consciente das objetivações humano-genéricas em si e para si. Istvan Meszáros expõe como conjunto de mediações de segunda ordem do sistema do capital a família nuclear, os meios alienados de produção e suas personificações; o dinheiro; os objetivos fetichistas da produção; o trabalho, estruturalmente separado da possibilidade de controle; as variedades de formação do estado do capital no cenário global e o incontrolável mercado mundial. Deste modo, o sistema do capital com todas as suas mediações de segunda ordem tende a corroer o caráter da atividade vital do homem que o distingue dos animais, obliterando o traço especificamente humano do homem como animal: a atividade consciente livre capaz de se apropriar do mundo objetual elaborado pelo poder social unificado. Nessa perspectiva radical, o estranhamento é um modo de “animalização” do homem. Entretanto, o homem animalizado ainda continua sendo homem, pois a animalização humana é decorrente apenas de relações sociais que organizam a produção/apropriação social que impedem seu desenvolvimento humano-genérico. A animalidade dos animais decorre de barreiras espe-
210
cificamente biológicas, enquanto a “animalização” do homem ou barbárie social decorre das relações sociais historicamente determinadas que organizam a produção e apropriação das objetivações sociais. A barbárie social na perspectiva de larga temporalidade histórica tende a corroer, no plano da consciência contingente, aquilo que Lev Vygotski denominou “funções psicológicas superiores especificamente humanas”, isto é, a capacidade de planejamento, memória voluntária, imaginação etc. Esses processos mentais construídos no decorrer da evolução histórico-cultural da humanidade são considerados sofisticados e “superiores”, porque se referem a mecanismos intencionais, ações conscientemente controladas, processos voluntários que dão aos indivíduo a possibilidade de independência em relação às características do momento e espaço presente (VYGOTSKY, 2005). Na verdade, o fenômeno inédito do estranhamento em sua dimensão planetária como ocorre na nova temporalidade histórica do capitalismo global intervém, em longo prazo, no processo de mediação que caracteriza a relação do homem com o mundo, com si mesmo e com os outros homens. Deste modo, na ordem do capital, o homem não está apenas alienado do instrumento, que tem a função de regular as ações sobre os objetos, mas está à mercê da manipulação do signo, que regula as ações sobre o psiquismo das pessoas. (Por exemplo, os valores-fetiche são expressão suprema do signo estranhado que se impõem, no plano subliminar, sobre o psiquismo das pessoas.) É o que se verifica, por exemplo, no capitalismo histórico em sua etapa hipertardia, o capitalismo global, quando o estranhamento assumiu dimensões ampliadas. Portanto, a “ansiedade perante o futuro”, expressão utilizada por uma trabalhadora precária portuguesa de 25 anos no documentário “Precário inflexíveis”, para exprimir o sentimento de precariedade, pode ser considerada sintoma da corrosão da atividade vital humano-genérica na medida em que apenas o homem possui a percepção do tempo-futuro. O animal está imerso na “temporalidade vazia” dada pelo círculo biológico da ordem natural. Ao contrário, o homem amplia o círculo de suas mediações e apropria-se do espaço-tempo constituídos pelos objetos elaborados pela sua atividade vital mediada. Essa mesma jovem trabalhadora precária expressou o ser/estar precário com estas palavras: “É tu não saberes o que é que te vai acontecer amanhã. É a incerteza absoluta – em termos de trabalho, as tuas competências, os teus rendimentos. É não puderes fazer compromisso nenhum.” Nesse mesmo documentário, outra trabalhadora precária de 42 anos, ao ser indagada o que é ser/estar precário, afir-
211
mou: “Ser precário é isso: é ter um futuro continuamente hipotecado; ser precário é viver mesmo o dia a dia, mesmo o dia a dia, quase hora-a-hora. Ser precário é a impossibilidade de fazer um plano e de ter a certeza relativa que eu vou poder concretiza-lo.” Esses vários depoimentos sobre a experiência da precariedade em Portugal expressam o binômio: “ansiedade perante o futuro” e “presentificação crônica”. Nossa hipótese é que, além de representar sintoma da desefetivação humano-genérica em virtude do estranhamento em sua forma ampliada, expressa o rompimento no plano da consciência contingente do precariado europeu (no caso em Portugal), das condições da possibilidade da história real. Aquilo que Eric Hobsbawn constatou como um fenômeno lúgubre da nossa temporalidade histórica (“a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas”) expressa, como salientou István Meszáros, o resultado do modo reativo e retroativo de funcionamento do capital. Essa espécie de “presente contínuo” conduz ao desmanche de uma dimensão crucial do ser genérico do homem: o horizonte de expectativas de crescimento pessoal. Como nos dizia Heráclito: “A qualidade comum a toda alma é o fato de crescer”. Reinhardt Kosseleck observou: “Esperança e recordação, ou mais genericamente, expectativa e experiência – pois a expectativa abarca mais que a esperança, e a experiência é mais profunda que a recordação – são constitutivas, ao mesmo tempo, da história e de seu conhecimento, e certamente o fazem mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã” (KOSSELECK, 2009). O aparecimento do precariado e sua ampliação nas condições do capitalismo global indicam rupturas radicais no plano da consciência de classe contingente entre esperança e recordação, expectativa e experiência, que exigem a reinvenção de mecanismos sociais que vinculem nossas experiências com o passado público da luta de classe. Por outro lado, a hipoteca do futuro não é apenas um elemento de esvaziamento da perspectiva de realização pessoal na ordem burguesa desorganizada, com a frustração das promessas da cidania salarial fordista-keynesiana, baseada na educação, emprego e consumo, mas é principalmente um sintoma candente da expropriação radical promovida pelo capital e suas mediações de segunda ordem, do conteúdo humano-genérico das individualidades pessoais num estágio tardio de desenvolvimento civilizatório, quando as possibilidades concretas de riqueza humana são obliteradas pelas misérias da “presentificação crônica”. Como diz o
212
poeta Manoel de Barros, “Tem mais presença em mim, o que me falta”. É que ocorre hoje com os jovens adultos altamente escolarizados do precariado, cujo potencial acumulado de genericidade não consegue se desenvolver nas condições férreas da modernidade hipertardia do capital. Como diria Heráclito: “Viver de morte, morrer de vida”. No sistema da produção destrutiva, o precariado com seu potencial de riqueza humana morre de vida. Eis o sentido pleno do conceito de estranhamento que, de acordo com Lukács, ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho ou da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais, prodigiosamente desenvolvidos no século XX, não propiciaram o desenvolvimento da personalidade humana, mas sim, pelo contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da concentração do poder social estranhado e da manipulação de alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio. Talvez o drama humano do precariado seja a própria síntese pós-moderna da tragédia grotesca do capitalismo histórico inscrita desde as suas origens primordiais. A diferença é que o proletariado industrial do século XIX não possuía o potencial de riqueza humano-genérica que possui hoje os jovens-adultos escolarizados. Como contradição viva, o capital expõe nas misérias do presente, a riqueza do possível. Na medida em que são indivíduos histórico-mundiais, os jovens-adultos precários vivem a experiência contraditória da alienação radical: os pés enterrados na lama e os olhos perscrutando as estrelas.
6. Carecimentos radicais do precariado No vídeo-documentário “Precários inflexíveis”, de Giovanni Alves (Práxis vídeo, 2012)2 tornou-se recorrente nos depoimentos de jovens trabalhadores precários, o sentimento de ansiedade perante o futuro. Como observou uma trabalhadora precária: “Ser precário é isso: é ter um futuro continuamente hipotecado; ser precário é viver o mesmo dia a dia quase hora-a-hora. Ser precário é a impossibilidade de fazer um plano e de ter a certeza relativa que eu vou poder concretiza-lo”. Essa é uma percepção candente de jovens altamente escolarizados que tiveram seus sonhos de inserção salarial frustrados pela nova dinâmica do capitalismo
2
Disponível para visualização no canal de vídeo CineTrabalho (www.vimeo.com/cinetrabalho).
213
global. Eles constituem o “precariado”, a nova camada social do proletariado que cresceu nos países capitalistas mais desenvolvidos nos “trinta anos perversos” de capitalismo global. O crescimento da precariedade laboral, caracterizada pelo desemprego e trabalho precário atinge principalmente milhões de jovens-adultos com alta escolaridade que percebem que seus certificados e diplomas são pouco mais que bilhetes de loterias, vivendo, deste modo, o que Guy Standing em seu livro The Precariat, salientou como sendo “frustração de status”. Na verdade, existe hoje, mais do que nunca, o perigo de uma bolha educacional global, como milhões de estudantes tentando sobreviver com o fardo de enormes dívidas. Enfim, o precariado vive em situação de insegurança social e econômica, sem identidades ocupacionais, entrando e saindo de empregos, constantemente preocupado com os seus rendimentos, habitação e muito mais. Em 28 de outubro de 2011 foi lançado nos EUA o filme de ficção-científica “In Time”, de Andrew Niccol (no Brasil intitulou-se “O Preço do Amanhã” e em Portugal, “Sem Tempo”). Nicoll foi o roteirista de “O Show de Truman” (1998) e dirigiu também “Gattaca” (1997), “S1mOne” (2002) e “Senhor das Armas” (2005). Niccol é um roteirista e diretor crítico do nosso tempo histórico, criando fábulas distópicas da ordem insana do capital. No mundo social de “In Time”, os cientistas conseguiram descobrir uma forma de destruir o gene do envelhecimento, tornando o tempo a principal moeda de troca para sobreviver e também obter lucros. O tempo virou moeda. As pessoas param de envelhecer aos 25 anos. Entretanto, após alcançarem os 25 anos, possuem apenas mais um ano de vida, a não ser que tenha dinheiro para pagar pelo tempo extra. Os ricos conseguem "ganhar" décadas de uma só vez, podendo até se tornar imortais. Os outros têm de pedir esmolas, pegar emprestado ou roubar mais horas para chegar vivo até o final do dia. O filme “In Time” é uma metáfora distópica da nova temporalidade histórica do capital. De certo modo, é um filme visionário do precariado (o filme foi lançado no alvorecer dos protestos de ruas nos EUA com o movimento “Occupy”, e na União Europeia, com os Indignados espanhóis). Na verdade, a camada social mais “intranquila” da classe social do proletariado possui carecimentos radicais que são incapazes de serem satisfeitos no interior da ordem burguesa hipertardia. Por exemplo, o carecimento de uma vida plena de sentido que aparece fetichizado, no plano da consciência contingente, no sonho da vida para o consumo. Por isso, uma parcela significativa de jovens precários são nostálgicos do fordismo-keynesianismo.
214
Entretanto, a luta de classe do precariado atinge hoje, o cerne da democracia burguesa cativa da ordem sociometabolica do capital. Para ampla parecla da juventude europeia, a desilusão com as instituições apodrecidas da democracia liberal tornou-se candentes no berço histórico das instituições democrático-burguesas. Por isso, nos países capitalistas centrais, o precariado e sua insatisfação social cresceram nas últimas decadas, assumindo uma visibilidade social expressa, por exemplo, no plano do pensamento, no conceito de precariado. Utilizamos o conceito de “carecimentos radicais”, de acordo com a filósofa hungara Agnes Heller que os definiu como “os carecimentos que se formam nas sociedades fundadas em relações de subordinação e de dominio, mas que não podem ser satisfeitos quando se esta no interior delas. São carecimentos cuja satisfação só é possível com a superação dessa sociedade” (HELLER, 1985). Por exemplo, o carecimento radical da verdadeira democracia (“democracia real ya!”), reivindicado pelos Indignados espanhóis, é incapaz de ser satisfeito no interior das sociedades de mercado; ou ainda o carecimento radical da “boa vida” ou vida plena de sentido no interior do sistema social do capitalismo manipulatório é um sonho impossível de ser realizado. Agnes Heller elaborou a discussão sobre os “carecimentos radicais” em meados da década de 1970. Naquela época, o capitalismo global ainda não se desenvolvera o suficiente para explicitar suas candentes contradições objetivas. Apesar da grande crise, a ilusão social-democrata persistia por conta da manipulação intensa e ampliada do poder da ideologia. Por exemplo, para amplas parcelas da juventude trabalhadora de “classe média” reforçou-se, no momento imediato de descenso histórico do capital, a ilusão da compatibilidade entre capitalismo e bem-estar social ou ainda, compatibilidade entre realização pessoal e profissional baseado no ethos de consumo, por um lado, e preservação da ordem de mercado e democracia burguesa, pelo outro lado. Entretanto, no decorrer dos “trinta anos perversos” de capitalismo global (1980-2010), a ilusão social-democrata mesclada com tonalidades neoliberais naufragou nas contradições candentes da ordem burguesa hipertardia. Quase vinte anos depois da debacle da experiência do “socialismo real”, em 1989, tivemos a debacle do projeto reformista da social-democracia europeia que, na crise de 2011, naufragou irremediavelmente como promessa civilizatória efetiva. No cenário de barbárie social, o pêndulo político perverso da ordem burguesa hipertardia continua oscilando entre a direita conservadora e a social-democracia neoliberal que respalda hoje, com tonalidades cor-de-rosa, as políticas de austeridade monetaris-
215
ta (o caso francês, com o socialista François Hollande sucedendo a conservador Nicolas Sarkozy é paradigmático; enfim, como diria Lampedusa, “É preciso que tudo mude para tudo ficar na mesma”). Na verdade, a crise da democracia representativa burguesa europeia é a crise radical dos “intelectuais orgânicos” da classe social do proletariado. Além disso, é a crise do pensamento crítico europeu adormecido em seu sono dogmático por décadas de manipulação por meio da ideologia do neopositivismo e ideologia do pós-modernismo. O Velho Mundo clivado pelas contradições candentes do capitalismo global não consegue operar a “negação da negação”, no plano político-concreto. Apesar disso, tornou-se claro, no plano da consciência contingente de amplas camadas sociais do proletariado europeu, o sentimento de “frustração de status” decorrente da quebra sistematica de expectativas dos jovens trabalhadores, principalmente da “classe média” altamente escolarizada e com uma multiplicidade de anseios e sonhos de realização profissionais, obrigados a contentar-se com empregos precários e estatutos salariais atípicos. Enfim, a ordem da financeirização da riqueza capitalista em sua etapa de crise estrutural, com o desempenho mediocre das economias de mercado na geração de emprego e redução das desigualdades sociais, corroi não apenas o Estado social, mas a própria democracia burguesa e os ideais de consumo e inclusão social. Na verdade, o surgimento da camada social do precariado é a prova histórica viva da falencia da ordem social burguesa baseada nos ideais de emprego com direitos sociais, inclusão social com consumo e Estado social com democracia representativa. Em seu livro The Precariat, Guy Standig descreve o que denominamos de condição de proletariedade da nova camada social do proletariado que se ampliou nas últimas décadas. É uma parcela de jovens-adultos cujos pais pertencem à camada estável da sociedade salarial, mas os filhos encontram-se alienados e sem perspectivas de inclusão na ordem salarial burguesa. Deste modo, o precariato é produto da crise de mobilidade social da ordem burguesa. Por exemplo, pela primeira vez na história europeia moderna, uma parcela significativa da geração de filhos de trabalhadores assalariados estáveis não conseguirá manter, pelo menos, o padrão de vida dos país. Entretanto, Guy Standing não considera o precariado como sendo parte da classe social do proletariado. Pelo contrário, para ele o precariado é a “nova classe perigosa”. Talvez o suposto perigo do precariato salientado por Guy Standing decorra dos seus carecimentos radicais que, incapazes de serem absorvidos pela ordem burguesa baseado em relações de subordinação e de domínio podem dar
216
origem a ações coletivas irracionais, como aquelas que ocorreram nos riots de Londres em 2011; mas também podem se expressar em movimentos de massa como o movimento Occupy ou dos Indignados de Madri e Lisboa. Enfim, pode-se dizer que, com a crise europeia, existe um “espectro” que ronda a Europa: o espectro do precariado. Os sociólogos da ordem burguesa não conseguiram identificar na massa de jovens proletários altamente escolarizados, mas frustrados em suas pretensões salariais, um pertencimento de classe capaz de “negar” a ordem burguesa. Pode-se dizer que o precariado repõe o sentido do proletariado como classe social negativa, na acepção do jovem Marx. É claro que o Marx de 1843 tinha em mente os proletários industriais do factory system cujo movimento social radical insurgia-se contra a ordem industrial-burguesa emergente. Para o jovem Marx o proletariado era a “classe negativa” por excelência: os que não têm propriedade, obrigados então a trabalhar, os que já são uma classe em dissolução e em transição constante (o negativo em ato), aqueles que não têm esperança no progresso burguês e por isso mesmo os que radicalmente podem recusar o seu papel de suporte do sistema. Entretanto, em 1843, o jovem Marx não tinha descoberto ainda a categoria de mais-valia relativa. A luta de classes, a organização sindical e política da classe trabalhadora e a capacidade de acumulação do capitalismo industrial em sua fase de ascensão histórica, que permitiram ao sistema produtor de mercadorias elevar salários reais da classe trabalhadora organizada sem prejudicar o nível de acumulação do capital, contribuiram para a redistribuição das riquezas sociais produzidas entre parcelas da classe trabalhadora organizada, permitindo a construção da sociedade burguesa de direitos sociais. Naquelas condições históricas, o proletariado organizado, constituido em sua maioria por trabalhadores assalariados “estaveis”, abdicou, nos polos mais desenvolvidos da ordem burguesa, da perspectiva de “negação” do capitalismo. De fato, a ilusão socialdemocrata tinha um lastro na materialidade de classe. Entretanto, na etapa de crise estrutural e descendencia histórica do capital, o sistema mundial produtor de mercadorias não conseguiu manter as promessas civilizatorios de sua época de ascensão historica. A crise da social-democracia ocultou a crise estrutural do capital. Por isso, ressurgiu com vigor, com o protagonismo social da camada social do precariado, o conceito de proletariado como “classe negativa”. Entretanto, não se trata mais do proletariado industrial de meados do século XIX, alienado do ideal de produção, mas sim do precariado como camada do vasto mundo social do proletariado, alienado do ideal de consumo.
217
Guy Standing observa (e com razão) que o precariado não é a velha classe trabalhadora. Entretanto, isto não quer dizer que seja uma nova classe social. Como poderiam ser uma nova classe social se não ocorreu nenhuma mudança dos parâmetros estruturais do modo de produção? É claro que eles não se identificam subjetivamente, no plano da contingencia, com outras camadas sociais da classe do proletaroiado (os “estáveis” e os antigos precários de baixa qualificação). Mas não podemos subestimar a dinâmica da luta de classes e esquecer que as dificuldades de formação da consciencia de classe na camada social do precariado decorrem da fragmentação social provocada pela dinâmica do capitalismo manipulatório, principalmente no núcleo orgânico do capitalismo global. Nos “trinta anos perversos” de capitalismo global, o precariado tornou-se alvo do individualismo consumista de massa que caracterizou as sociedades burguesas mais desenvolvidas. Ao mesmo tempo, o precariado representa a nova camada social que expressa em si e para si as contradições qualitativamente novas da ordem burguesa do capitalismo global. Sob determinadas condições históricas, a identidade com a classe social do proletariado, em si e para si, é adquirida por eles, na medida em que se aproximam, no processo de luta de classe, das outras camadas de trabalhadores assalariados organizados ou não, em sua luta anticapitalista contra as misérias do mundo burgues (por exemplo, a manifestação dos operários mineiros espanhois, a Marcha de Madri em 11 de julho de 2012) que teve a solidariedade e apoio do M15M, os indignados espanhóis, expressa a aliança política possível e necessária entre camadas sociais do proletariado, permitindo vislumbrar, na atividade prático-sensivel da luta de classe, o sentido de classe social do proletariado como classe consciente de sua negatividade). Na medida em que os sociologos da ordem burguesa não conseguem identificar a natureza radical das contradições da ordem buguesa na nova temporalidade histórica do capital, não conseguem decifrar o enigma do precariado.
218
Capítulo 10
Capitalismo global, proletariedade e os limites da indignação
A
verdadeira crise do nosso tempo histórico não é a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histórico de classe, isto é, ser humano-genérico capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. É importante salientar que crise não significa morte do sujeito histórico de classe, muito menos sua supressão irremediável, mas tão somente a explicitação plena da ameaça insuportável à perspectiva de futuro, risco de desefetivação plena do ser genérico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histórica para a formação da consciência de classe e, portanto, para a emergência da classe social de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e estão imersos na condição de proletariedade. A crise é o momento em que se explicita, em sua dramaticidade histórica (e diriamos hoje, midiática), a "alienação" como um poder "insuportável", isto é, um poder contra o qual homens e mulheres enquanto individualidades pessoais e sob determinadas condições se insurgem ou se indignam, na medida em que se torna perceptivel, mesmo no plano da consciência contingente de classe, a sua condição de proletariedade. Na “Ideologia Alemã”, de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels, conseguiram apreender, com genialidade visionária, o que se torna hoje cada vez mais perceptível no capitalismo global do século XXI: a constituição de uma massa da humanidade como massa totalmente "destituída de propriedade" e que se encontra, ao
219
mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura existente de fato. Para Marx e Engels, a explicitação plena da condição de proletariedade – e que está na raiz dos movimentos de jovens precários no mundo do capitalismo mais desenvolvido – pressupõe um alto grau desenvolvimento das forças produtivas, que segundo eles “contém simultaneamente uma verdadeira existência humana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens”. E salientam: “Apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da massa ‘destituída de propriedade’ se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais” (MARX e ENGELS, 1985). Deste modo, sob as condições históricas da crise do sujeito de classe se coloca a oportunidade radical de sua afirmação objetiva e subjetiva, seja enquanto massa “destituída de propriedade”, seja enquanto indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais” (não é desprezivel o papel da Internet com seus blogs alternativos e redes sociais – como facebook e twetter – na construção das individualidades histórico-mundiais). Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capital não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Crise estrutural do capital não significa estagnação e colapso da economia capitalista mundial. Apesar da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor e modo estranhado de metabolismo social tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentado, por exemplo, na passagem para o século XXI, índices exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático). Apesar da crise financeira e crise das dívidas soberanas nos EUA e União Europeia, em 2008 e 2011, é provável que, em curto ou médio prazo, as economias norte-americanas e europeias possam retomar, a duras custas, o crescimento do PIB. Entretanto, percebe-se cada vez mais que o crescimento do PIB não se traduz em bem-estar social. Pelo contrário, nas últimas décadas, aumentou nos países ricos a precariedade do trabalho, a contenção dos gastos públicos, corte de direitos sociais e a corrosão do Estado-Providência. Portanto, torna-se visível, cada vez mais, a incapacidade estrutural do capital como modo de controle estranhado do
220
metabolismo social e sistema produtor de mercadorias, em realizar suas promessas civilizatórias de desenvolvimento e bem-estar social, inclusive no núcleo orgânico mais desenvolvido do capitalismo histórico. Portanto, o sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito à incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sociotécnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no polo desenvolvido do capitalismo global. Esse é mais um elemento compositivo do esgotamento histórico de um modo de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho. Na verdade, a crise estrutural do capital possui as caracteristicas de uma “síndrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. Como salientou Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, “a crise consiste no fato que o velho morre e o novo não pode nascer: nesse interregno verificam-se os mais variados fenômenos mórbidos”. Esse interregno histórico com fenômenos sociais mórbidos caracteriza a temporalidade histórica da barbárie social. A “condição crítica” da síndrome do capital é a convergência histórica de um conjunto de crescentes contradições sociometabólicas do sistema mundial do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A principal delas diz respeito à contradição capital-trabalho, na medida em que é por meio do trabalho que o sociometabolismo do capital vincula os seres humanos à natureza. O movimento crítico do capital exacerbou, no plano do sistema mundial, a superpopulação relativa que aparece como a massa da humanidade imersa na condição de proletariedade. Constituiu-se no plano histórico-mundial a multidão de proletários. O desemprego e o trabalho precário assumiram no mercado mundial, que inclui hoje o Leste Europeu, Sudeste Asiático e China – dimensões inauditas. Na verdade, a aguda elevação da produtividade do trabalho em virtude do processo cumulativo do progresso técnico explodiu a materialidade do valor-trabalho, uma “implosão” contínua e permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do capitalismo global. A transfiguração do valor-trabalho é uma das dimensões da crise de valorização do capital. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma parte da força de trabalho tornou-se irrelevante para o sistema do capital. Esse contingente de
221
“sobra humana” irrelevante para o sistema do capital foi denominado por José Nun um dos teóricos da CEPAL, de “massa marginal”; e por Robert Kurz, “sujeitos monetários sem dinheiro”. A crise de valorização do valor é a verdadeira raiz da precarização estrutural do trabalho e ampliação persistente da precariedade social do trabalho no plano histórico-mundial. Em 1863, nos “Grundrisse”, Karl Marx conseguiu apreender o traço radical do nosso tempo histórico, ao observar que, sob o capitalismo, “o tempo é tudo, o homem já não é nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”. Na verdade, as “massas marginais”, os “sujeitos monetários sem dinheiro” ou ainda os “homem-carcaças”, representam a massa da humanidade “destituída de propriedade”, que estão se insurgindo hoje nos riots dos bairros pobres de Londres ou nos movimentos sociais do precariado indignado que ocupa as praças de Lisboa e Madri. Enfim, a crescente redundância do trabalho vivo é a “ponta do iceberg” do sistema de metabolismo social baseado na precariedade social do trabalho que expõe cada vez mais seus limites estruturais, demonstrando ser incapaz de conter a riqueza humana produzida pelo processo civilizatório humano-genérico. Deste modo, podemos caracterizar o caráter radical da crise estrutural do capital como sendo, por um lado, no plano da objetividade social, (1) crise de valorização (produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata; e por outro lado, no plano da subjetividade social, (2) crise de (de)formação do sujeito histórico de classe. A crise de (de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem-que-trabalha. A precarização do trabalho não se resume à precarização social do trabalho ou precarização dos direitos sociais do trabalho de homens e mulheres proletários. Ela implica também a precarização do homem-que-trabalha, isto é, a precarização do homem como ser humano-genérico (o que explica a pandemia de depressão e transtornos psicológicos dos homens e mulheres que vivem do trabalho). Com o capitalismo global, a manipulação, ou a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, assume proporções inéditas e inauditas, contribuindo para a corrosão político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do proletariado. Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social, que tendem a impregnar as relações humano-sociais,
222
colocando obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da classe social do proletariado. Por um lado, o processo de dessocialização do proletariado (ou dessubjetivação de classe), com impactos perversos na consciência de classe e, por outro lado, o poder da ideologia no bojo do capitalismo manipulatório com a intensificação do fetichismo da mercadoria devido à vigência do mercado na estruturação social, compõem um cenário qualitativamente novo de riscos de desefetivação do homem como ser capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. Deste modo, a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se como barbárie social, uma nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo.
1. Multidão de proletários Nos primórdios do século XXI, torna-se cada vez mais visível, numa perspectiva histórico-mundial, o que Karl Marx e Friedrich Engels salientaram na “Ideologia Alemã”, como sendo a grande massa da humanidade “destituída de propriedade” que está em contradição (e não apenas em contraste) com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe, portanto, um grande aumento da força produtiva e um grau elevado do seu desenvolvimento. É por isso que, nas condições do capitalismo global e da crise estrutural do capital, coloca-se, objetivamente, de modo mais pleno, a necessidade histórica do comunismo como condição irremediável da emancipação de indivíduos histórico-mundiais de sua alienação radical das condições da vida social. A grande massa da humanidade "destituída de propriedade" é constituída hoje pela multidão de proletários. Como diz o lema do movimento social “Occupy” nos EUA, we are the 99%. No plano categorial, a grande massa da humanidade alienada do controle social representa hoje a “classe” social do proletariado: “classe” com aspas tendo em vista que, apesar de estarem subsumidos à condição de proletariedade, só tornam-se efetivamente classe social – sem aspas – na medida em que aparecem, com maior ou menor efetividade, como sujeito histórico em si/para si. Portanto, no sentido radical, “proletário” é o homem ou mulher destituído da propriedade dos meios de produção da vida social, isto é, alienados do controle
223
social e imersos na condição existencial de proletariedade e não apenas o pauper ou trabalhadores assalariados miseráveis com ampla prole. Por exemplo, o conceito de proletariado inclui não apenas as camadas sociais de trabalhadores assalariados operários e empregados que exercem atividades manuais, mas também camadas médias assalariadas com qualificação profissional e status e prestígio social inseridos em posições contraditórias de “classe” (o que denominamos de “proletários de classe média”). Deste modo, a crise da “classe média” que ocorre no capitalismo global expressa tão somente hoje, no plano contingente, a ampliação e explicitação da condição de proletariedade das camadas médias assalariadas (o que não significa que tenham se tornado membros da classe social do proletariado, tendo em vista os obstáculos efetivos à constituição da consciência de classe nos segmentos médios do proletariado).
2. Precariado, capitalismo manipulatório e segmentações intergeracionais O crescimento das novas camadas médias de jovens proletários assalariados altamente escolarizados, desempregados ou inseridos em contratos de trabalho atípicos ou precários, compõem hoje, nos países capitalistas mais desenvolvidos, o precariado, expressão suprema, no plano histórico-mundial, da explicitação universal da condição de proletariedade. O precariado é a camada social do proletariado que representa hoje a contradição candente do capital em sua etapa de crise estrutural. De fato, os jovens proletários carregam, em si, inscritos no seu ser, como estigma geracional, as desmedidas negativas do sistema produtor de mercadorias, que, por um lado, destitui homens e mulheres de propriedade e controle da vida social, e, por outro lado, ao mesmo tempo, acumula e concentra imensa riqueza e cultura. A explicitação da camada social do precariado e sua condição de proletariedade ocorrem, pari passu, com o incremento da manipulação que nega, no plano da percepção e do entendimento dos indivíduos históricos mundiais, a autoconsciência de classe. A invisibilidade social da natureza de classe do precariado é o processo ideológico supremo do capitalismo manipulatório. Na medida em que se ampliam as contradições vivas do capital, impulsiona-se com intensidade a desefetivação humano-genérica, isto é, a precarização dos sentidos humanos capazes
224
de “negação da negação”. Um dos alvos privilegiados da manipulação social são, hoje, os jovens proletários altamente escolarizados, que carregam em si e para si a contradição suprema do capital em sua fase de crise estrutural. A problemática geracional dos jovens proletários diz respeito não apenas a delimitações etárias, mas ao modo de controle do metabolismo social do novo proletariado hipertardio nas condições do capitalismo manipulatório com seu complexo de obstáculos efetivos à constituição da consciência de classe e, portanto, à constituição da classe social do proletariado como sujeito histórico efetivo capaz de “negação da negação”. Nos países do capitalismo central, a temporalidade histórica dos “trinta anos perversos” (1980-2010) provocou cortes geracionais significativos no plano sociometabólico da “classe” do proletariado. Aceleração da mudança tecnológica na produção e no consumo, reação política neoconservadora e precariedade laboral com implosão dos laços de solidariedade de classe, projetaram as novas gerações de homens e mulheres proletários noutra dimensão sócio-histórica. A nova dinâmica sociometabólica do capital provocou segmentações inter-geracionais caracterizadas por clivagens na experiência vivida e experiência percebida de formações etárias da classe trabalhadora. Na verdade, o novo modo de controle sociometabólico do capital operou fraturas salientes na experiência do tempo social. Eric Hobsbawn no livro A era dos extremos observou o fenômeno da “presentificação crônica”. Diz ele: “A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.” (HOBSBAWN, 2001). Por exemplo, as mutações sociometabolicas no seio do jovem proletariado é perceptível no movimento estudantil dos países capitalistas mais desenvolvidos cuja tradição da contestação social não é reconhecida hoje pelos próprios estudantes. A falta de informação e de diálogo com gerações anteriores é hoje característica comum a movimentos estudantis de todo o mundo. Os fenomenos sociais da destruição do passado, presentificação crônica e falta de informação e de diálogo com gerações anteriores, isto é, alienação do passado público da época em que vivem, que se torna mais perceptível com vigor, por exemplo, nas experiências dos movimentos estudantis, constituem expressões candentes do novo modo de controle sociometabolico do capital baseado na pre-
225
carização dos sentidos humanos capazes de “negação da negação”. Trata-se de um modo de dessubjetivação de classe que opera a obstaculização à formação da consciência de classe e por conseguintes, da própria classe social do proletariado como sujeito histórico efetivo capaz de “negação da negação”.
3. Precariado e o “Paradoxo de Ícaro” Nos primórdios do século XXI, o novo (e precário) mundo do trabalho é constituído pelo amplo contingente de “jovens-adultos flexíveis”, conceito utilizado por Renan Araújo para denominar o contingente dos novos trabalhadores assalariados de 25 a 29 anos de idade, altamente escolarizados, que ingressam nos novos locais de trabalho reestruturados na década de 2000 (ARAÚJO, 2012). No plano da consciência contingente de classe, os jovens-adultos flexíveis (ou melhor, jovens-adultos toyotizados), empregados ou desempregados, estáveis ou precários, vivem o “paradoxo de Ícaro”. Por um lado, temos os jovens trabalhadores assalariados com empregos estáveis, que se sentem insatisfeitos com a pressão do ambiente do trabalho flexível e suas contrapartidas salariais; sentem-se frustrados com a carreira profissional e inquietos com a insegurança laboral caracterizada pela pressão do capital pelo cumprimento de metas e desempenho (o ideal de ganhar a vida para perdê-la repõe-se no patamar do toyotismo). Como observa Renan Araújo, (...) após anos de dedicação aos estudos e de profissionalização permanente, para a maioria a profecia não se cumpriu. Assim, deparamo-nos com engenheiros apertando parafusos, operários formados em Administração de Empresas operando torno CNC e outros que, mesmo tendo cursado Ciências da Informática, passam o dia clicando em softwares que, previamente programados, esvaziam o conteúdo do trabalho, deixando-o sem sentido, repetitivo e enfadonho. Por todos os ângulos em que se observa, a fábrica aqui pesquisada representa o mundo contraditório da promessa e da negação (ARAÚJO, 2012).
226
Por outro lado, temos os jovens trabalhadores assalariados desempregados ou com trabalho precário, insatisfeitos com a exclusão do universo do emprego estável, alienados, deste modo, da “cidadania salarial” e do que ela representa: primeiro, expectativa de consumo e capacidade aquisitiva para tornar-se “cidadão do mundo das mercadorias”; segundo, alienados da carreira profissional com perspectiva de futuridade (eles sentem profunda angústia pela desrealização do valor corporificado na sua força de trabalho como mercadoria e no reconhecimento de seu talento singular); terceiro, incapacidade de organização da vida pessoal, tendo em vista que o emprego intermitente os impede efetivamente de constituir família e ter seu território de desenvolvimento humano-pessoal.
Cidadania salarial Consumo Carreira Família
Na medida em que a nova geração de trabalhadores assalariados altamente escolarizados, estáveis ou precários, nasceram “órfãos” das utopias coletivas do sindicalismo de classe e desvinculados da militância política socialista, tornaram-se mais dispostos à concertação social, com atitudes proativas de cariz liberal. Eles foram formados no horizonte ideológico do mercado, tornando-se, deste modo, pré-dispostos ideologicamente a colaborarem com o capital. Por isso, os jovens-adultos flexíveis são pessoas humanas com um acervo de sonhos, expectativas e utopias de mercado avantajadas, mas irremediavelmente frustradas pela dinâmica férrea da relação-capital que perpetua a precariedade laboral quase como “destino”. A ambiguidade e ambivalência do precariado diante dos valores burgueses são marcas pessoais indeléveis dos jovens-adultos imersos no paradoxo de Ícaro.
227
Os sentimentos de ansiedades e frustração se traduzem na imagem mitológica da derrelição de Ícaro.1 Na era do precariado temos a clara percepção de que a “captura” da subjetividade do trabalho ao capital não apenas “captura” para controlar, mas “captura” também para expropriar/espoliar o talento singular da nova geração de trabalhadores assalariados altamente escolarizados. Na medida em que o desenvolvimento do processo de acumulação do capital ocorre pari pasu ao processo de desenvolvimento civilizatório como pressuposto negado, ele explicita a operação de espoliação de riqueza intangível dos novos talentos humanos empregados na produção do capital. Deste modo, temos como características fulcrais do desenvolvimento civilizatório do capital em sua etapa de crise estrutural, espoliação e desperdício. A relação-capital não desenvolve (e nem pode desenvolver), de forma integral, as possibilidades criativas da nova força de trabalho complexa. Trata-se de desperdício do talento humano singular de um segmento da força de trabalho como trabalho vivo altamente qualificada no plano da competência profissional, cuja frustração decorre da irrealização dos sonhos e expectativas da carreira profissional e desperdício existencial de suas possibilidades humano-genéricas. Essas novas gerações de proletários vivem à exaustão, a disjunção pessoa-classe que caracteriza o modo de controle sociometabólico do capital. O binômio espoliação-desperdício e a disjunção pessoa-classe se traduzem no sentimento de frustração existencial caracterizada por um vida vazia de sentido (no capítulo 4, utilizamos o conceito de “vida reduzida”). Essa é a problemática do estranhamento, fenômeno social que assume hoje dimensões cruciais sob o capitalismo global. Para Georg Lukács, ele ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho ou o desenvolvimento da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais não significam o desenvolvimento da personalidade humana, mas pelo contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da manipulação de alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio.
1
Na mitologia grega, o jovem Ícaro, filho de Dedalus, alimentou o sonho de escapar da ilha de Creta utilizando asas construídas por seu pai. Dédalo fabricou asas que colocou com cera aos seus ombros e aos do filho. Em seguida, ambos levantaram voo. Antes de partir, Dédalo recomendou a Ícaro que não voasse nem muito baixo nem muito alto. Ícaro, porém, orgulhoso, não deu ouvido aos conselhos do pai e elevou nos ares, aproximando-se tanto do Sol que a cera derreteu e o imprudente caiu no mar (GRIMAL, 1951).
228
No capitalismo global, os jovens proletários altamente escolarizados, empregados ou desempregados, estáveis ou precários, tornaram-se hoje objetos privilegiados de “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, sendo expostos de modo candente à manipulação pelo capital no plano das “experiências expectantes”, isto é, experiências que organizam (ou manipulam) anseios, expectativas e utopias pessoais.
O Paradoxo de Ícaro binômio “espoliação – desperdício”
disjunção “pessoa – classe social” (vida reduzida - frustração existencial) Estranhamento
4. Precariado, capitalismo manipulatório e alienação O traço estrutural do capitalismo global é a manipulação da subjetividade do homem-que-trabalha. Por isso, o capitalismo global, ou seja, o capitalismo histórico na fase de crise estrutural do capital é essencialmente capitalismo manipulatório. A exacerbação do poder da ideologia e a dimensão manipulatória do capital decorrem da própria natureza da dinâmica de acumulação capitalista. No século XX, a produção de mais-valia relativa e o aumento da produtividade do trabalho assumiram dimensões alucinadas. Com o fordismo-taylorismo, a produção em massa colocou a necessidade candente da realização da massa de mais-valia acumulada. Vender as mercadorias produzidas pela grande indústria tornou-se a obsessão crucial do capital. Por isso, impõe-se a centralidade da manipulação, não apenas do trabalhador assalariado na produção, mas do trabalhador assalariado como consumidor na esfera do mercado. Tornou-se necessário manipular à exaustão a subjetividade do trabalhador assalariado como produtor e consumidor.
229
É claro que, desde as suas origens históricas, o capitalismo industrial buscou realizar, por meio da venda das mercadorias, a mais-valia extraída nas fábricas. Para isso, constituiu-se, como necessidade íntima do capital em processo, o mercado mundial. Mas, na medida em que desenvolveu a grande indústria, a necessidade de realização da massa de mais-valia relativa extraída na produção do capital, a venda dos produtos-mercadorias no mercado mundial, tornou-se uma estranha obsessão que delineou, cada vez mais, o sociometabolismo do capital. O mandamento supremo do capital como “sujeito automático” de autovalorização do valor é acumular, acumular e acumular. Com a grande indústria e a produção da mais-valia relativa, para que o capital possa “acumular, acumular e acumular”, tornou-se, mais do que nunca, imperativo, “vender, vender e vender”. A ânsia da vendabilidade universal elevou-se à enésima potência com a produção em massa e a constituição plena do mercado mundial no sentido da intromissão da forma-mercadoria na vida cotidiana da sociedade burguesa. A vigência da produção da mais-valia relativa colocou como pressuposto da realização do valor o imperativo da venda no centro dinâmico da vida social. A ampliação do círculo da vendabilidade universal significou no século XX o domínio crucial do fetichismo da mercadoria no plano das relações humanas e sociais. David Harvey, em seu livro O enigma do capital, observou que a obsessão do capital é saber onde aplicar o excedente de capital-dinheiro. É a volúpia do excedente disponível para valorização que caracterizará o metabolismo social do capital no século XX. A obsessão do possuidor da massa de capital-dinheiro imprimirá a sua marca na dinâmica social. Na verdade, os fenômenos históricos cruciais do século passado (imperialismo e globalismo, ou ainda, a hipertrofia do sistema de crédito e financeirização da riqueza capitalista) originaram-se da volúpia de vendabilidade universal, tendo em vista a realização da massa crescente de mais-valia relativa extraída na produção do capital. O desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho no século XX, com a vigência da lógica produtivista do taylorismo, fordismo e toyotismo, significou a elevação da ânsia de realização da massa de mais-valia à enésima potência. Deste modo, a obsessão pelo consumo oculta, não apenas obsessão pela absorção do excedente, como salientou Harvey, mas obsessão pela realização do valor nas condições do mercado mundial constrangido pela crise de valorização. Portanto, a contradição suprema do capitalismo histórico não é apenas produzir mercadorias, mas sim, realizar o valor contido nelas nas condições críticas do mercado mundial. That´s the problem! Por isso, as estratégias orgânicas do capital
230
no século XX buscaram administrar a contradição crucial da forma-valor. Uma das principais estratégias do sistema do capital foi adotar a acumulação flexível com o “espírito do toyotismo”, aumentar a produtividade do trabalho por meio das inovações tecnológicas e acelerar o circuito de valorização do valor (produção, circulação e consumo), afirmando-se o que István Meszáros denominou “lei tendencial de decrescimento da utilização do valor de uso”, expressão da obsolescência planejada dos produtos-mercadorias. O impacto colateral da aceleração do circuito de valorização do valor na mercadoria-força de trabalho é a produção do desemprego de massa e o desperdício de talento humano singular. No caso da “mercadoria das mercadorias” (capital-dinheiro), a aceleração do circuito de valorização do valor fictício produziu a hipertrofia do sistema de crédito e a financeirização da riqueza capitalista.
Devaneios da forma-mercadoria Manipulação da produção Acumulação flexível “espírito do toyotismo” e a espoliação da inteligência humana aumento da produtividade do trabalho (inovações tecnológicas) aceleração do circuito de valorização do valor (produção, circulação e consumo) Manipulação do consumo “lei tendencial de decrescimento da utilização do valor de uso” (obsolescência planejada)
Efeitos colaterais: desemprego e precariedade laboral Aceleração do circuito de valorização fictícia hipertrofia do sistema de crédito e financeirização da riqueza capitalista
231
A manipulação do consumo tornou-se parte compositiva da totalidade social do capitalismo manipulatório com impactos diretos no metabolismo social da sociedade burguesa e na subjetividade do homem-que-trabalha. Na verdade, a manipulação da produção que caracteriza a grande indústria desdobra-se em produção da manipulação no plano da totalidade social. Com a “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha, alterou-se o sentido da alienação capitalista. Podemos traduzir de modo lógico-dialético a passagem para a nova alienação capitalista do seguinte modo: trabalhador assalariado é consumidor, onde o “é” acusa um juízo de devir (Trabalhador assalariado “torna-se”/interverte-se em consumidor). A alienação incorpora não apenas a dimensão da produção, mas o espaço do consumo como nova determinação do ser social. Produção é Consumo. Consumo é Produção. A manipulação perpassa as instâncias inelimináveis do ser social. A vigência da manipulação sistêmica põe efetivamente o problema do estranhamento. Portanto, sob o capitalismo global, o problema da alienação é reposto, de forma ampla e candente, com o problema do estranhamento. Um mundo pleno de mercadorias é, segundo Georg Lukács, um mundo pleno de manipulação, que penetra não apenas os poros da produção, mas também do consumo e da reprodução social. Por um lado, com a elevação do padrão de vida e consumo da classe trabalhadora no século XX, a percepção da exploração capitalista e o problema da alienação no sentido originário tendem a se esmaecer; por outro lado, põe-se, de modo incisivo, segundo Lukács, o problema do estranhamento propriamente dito, que, para ele, é o problema da vida plena de sentido (o psicanalista austriaco Viktor Frankl salienta que o problema crucial do nosso tempo é o problema da busca de sentido da vida) (FRANKL, 2008). Em 1968, Georg Lukács observou que a mudança estrutural no caráter da alienação colocou, de forma candente, no auge do capitalismo afluente (o capitalismo fordista-keynesiano), novas exigências no plano da luta de classes; ou ainda, novas exigências no plano da consciência contingente de classe, expressas pela nova geração de trabalhadores assalariados altamente escolarizados. Por exemplo, os jovens-adultos flexíveis ou jovens-adultos toyotizados formados no bojo dos “trinta anos perversos” do capitalismo global, cresceram no interior do mundo de mercadorias plenamente desenvolvido, possuindo, deste modo, carecimentos distintos dos carecimentos da geração anterior de trabalhadores assalariados. Nesta longa citação de Lukács ele trata, de modo interessante, do problema da nova alienação capitalista. Diz ele:
232
A luta de classes no tempo da mais-valia absoluta estava voltada para a criação das condições objetivas indispensáveis a uma vida deste género. Hoje, com uma semana de cinco dias e um salário adequado, podem já existir as condições indispensáveis para uma vida cheia de sentido. Mas surge um novo problema: aquela manipulação que vai da compra do cigarro às eleições presidenciais ergue uma barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e uma vida rica de sentido. Com efeito, a manipulação do consumo não consiste, como se pretende oficialmente, no fato de querer informar exaustivamente os consumidores sobre qual é o melhor frigorífico ou a melhor lâmina de barbear; o que está em jogo é a questão do controle da consciência. Dou apenas um exemplo, o ‘tipo’ Gauloises: apresenta-se um homem de aspecto ativo e másculo, que se distingue porque fuma os cigarros Gauloises. Ou ainda, vejo numa foto de publicidade, não sei se de um sabonete ou de um creme de barbear, um jovem assediado por, duas belas garotas por causa da atração erótica que determinado perfume exerce sobre elas (LUKÁCS, 1985). Lukács adota uma perspectiva histórico-ontológica que faz a conexão íntima entre mais-valia relativa e manipulação, no sentido de que a exploração pela mais-valia relativa propiciou ao contingente organizado da classe trabalhadora, semana de cinco dias e salário adequado, isto é, condições objetivas indispensáveis para uma vida cheia de sentido. Segundo ele, o proletariado estável possui hoje, objetivamente, condições materiais para uma vida digna que, entretanto, não se realiza, por conta da manipulação social que impregna a vida burguesa, contribuindo, deste modo, para a precarização do homem-que-trabalha. O capitalismo da grande indústria de produção em massa tende, nas palavras dele, a erguer, no interior desses indivíduos, “uma barreira entre a sua existência e uma vida rica de sentido”. Diz ele que a fruição da vida é reduzida ao gozo do consumo alienado. A ânsia fugaz pelo consumo de mercadoria é incapaz de dar um sentido à vida. Eis o sentido do estranhamento na ótica lukacsiana: o descompasso entre a existência dos indivíduos e uma vida plena de sentido. Portanto, para Lukács, o problema do estranhamento diz respeito em grande medida à questão do controle da consciência, alvo-chave da manipulação do consumo visando à venda das mercadorias e a realização da mais-valia. A manipula-
233
ção se ergue no interior dos indivíduos, cuja ânsia pelo consumo é instilada pelos aparatos de marketing e propaganda, como uma finalidade em si mesma. Diz ele: Por causa desta manipulação, o operário, o homem-que-trabalha, é afastado do problema de como poderia transformar seu tempo livre em otium, porque o consumo lhe é instilado sob a forma de uma superabundância de vida com finalidade em si mesma, assim como na jornada de trabalho de doze horas a vida era ditatorialmente dominada pelo trabalho (LUKÁCS, 1985). A perspectiva de Lukács dada acima na entrevista de 1968 diz respeito à produção capitalista fordista-taylorista, quando o controle da consciencia de classe, inclusive na construção do consentimento à produção rígida da linha de montagem acoplada à esteira mecanica, tinha no consumo, pelo menos para a classe operária organizada, seu lastro de legitimidade. O compromisso fordista-keynesiano, que caracterizou nos países capitalistas centrais os “trinta anos dourados” do capitalismo histórico do século XX (1945-1975) era baseado na capacidade histórica do capital em promover a “cidadania do consumo” em torno do ideal do emprego digno. A própria formação das individualidades pessoais de classe ocorria com a construção de expectativas, anseios e utopias da carreira profissional (teoria do capital humano) e a implementação de economia de inserção laboral capaz de permitir a obtenção de capacidade aquisitiva, não apenas para satisfazer as necessidades básicas, mas os carecimentos sociais do admirável mundo novo das mercadorias. Nas condições da sociedade industrial afluente do pós-guerra, a fruição da vida pelos trabalhadores assalariados estáveis era reduzida ao gozo do consumo de mercadorias. Eles fruiam sua vida pessoal como individualidade de classe por meio do sistema de bem-estar social baseado no paradigma do consumo de massa. A “consciência tranquila” do trabalhador assalariado estável obstaculizava a autopercepção consciente da alienação (MARCUSE, 1985). O trabalhador assalariado estável não se sentia insatisfeito no consumo, mas sim, no processo de produção, tendo em vista a implicação paradoxal do fordismo-taylorismo com a linha de montagem acoplada à esteira mecânica (eis a raiz da crise da organização do trabalho taylorista-fordista). A partir de meados da década de 1970, com a temporalidade histórica da crise estrutural do capital, ocorreu a implosão do compromisso fordista-keynesiano baseado no crescimento com indexação de salários à produtividade. Com a crise da globalização e as políticas de austeridade neoliberal, explicitou-se com vigor a crise do Estado de Bem-estar social e a crise do emprego com a ampliação da precariedade salarial no “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital (União
234
Europeia, EUA e Japão). Corroi-se, passo a passo, o lastro de compatibilidade entre capitalismo e bem-estar social. Por exemplo, uma parcela ampla de jovens trabalhadores assalariados altamente escolarizados não consegue inserir-se de modo digno no mercado de trabalho, sendo excluídos da cidadania salarial. O desemprego juvenil é superior a 20% em 18 países da União Europeia hoje (2013). Ao mesmo tempo, intensificou-se e ampliou-se, de modo exacerbado, a manipulação da vida social, tanto no consumo, quanto na produção de mercadorias, com a vigência do “espírito do toyotismo” (ALVES, 2011). Podemos caracterizar a experiência da autoconsciência da alienação e insatisfação nas duas camadas sociais do proletariado tardio (proletariado estável e proletariado precário) do seguinte modo: O proletariado estável vive o sentimento de estranhamento de modo intransparente e ambivalente, tendo em vista que a lógica de gestão da empresa toyotista assume dimensão radicalmente perversa. Enquanto a empresa fordista-taylorista instaurou a “implicação paradoxal” no processo de trabalho (LIPIETZ, 1991) com o taylorismo abrindo um fosso entre o assalariado executante e sua própria atividade, fazendo, deste modo, que o operário ou empregado fique menos envolvido na luta pela produtividade e pela qualidade dos produtos; a empresa toyotista instaurou uma “implicação perversa”, onde, em nome da produtividade, da adaptação às novas tecnologias e da pesquisa de qualidade total (o defeito-zero), o sujeito que trabalha se engaja efetivamente (e afetivamente) no processo de trabalho, fornecendo um trabalho mais rico e mais complexo, reduzindo tempo de vida a tempo de trabalho, autogratificando-se com sua própria desefetivação humano-genérica. Deste modo, por um lado, a empresa toyotista imputou aos trabalhadores assalariados estáveis cumprimento de metas desumanas, pressionando-os continuamente por mais produtividade; e por outro lado, criou mecanismos de cooptação e engajamento estimulado visando “capturar” a subjetividade do sujeito que trabalha por meio da construção dos consentimentos espúrios. O “trabalho em equipe” e a redução drástica das chefias intermediárias na organização toyotizada tornaram o trabalhador assalariado chefia de si mesmo que culpabiliza a si mesmo ou culpabiliza seus companheiros de equipe de trabalho pelo não cumprimento de metas de produção. A “implicação perversa” da organização toyotista produziu a carga pesada de ansiedade e depressão que dilaceram hoje o ser humano-genérico. Eis o sentido da precarização do homem-que-trabalha. Por outro lado, o proletariado precário experimenta o sentimento de insatisfação e autoconsciência da alienação como perda da cidadnia salarial e frustra-
235
ção com a irrealização profissional. Nesse caso, existe uma sutil distinção categorial entre “alienação” e “estranhamento”. No plano da consciência contingente, o “precário” sente-se alienado da condição de “cidadania do consumo” e, portanto, alienado de si mesmo como consumidor ou individualidade de classe constituida no interior do mundo das mercadorias. Nesse sentido, a “alienação” no sentido categorial tem uma intensa carga de insatisfação e deriva pessoal. A carga de ansiedade, depressão e frustração compõe um quadro de desrealização íntima, em si e para si, que deriva da precariedade salarial no mundo das mercadorias. Por um lado, os proletários estáveis têm condições objetivas para uma vida digna, mas não consegue tê-la, tendo em vista o trabalho dominado (a fruição perversa não está apenas no consumo, mas também no trabalho flexível). Por outro lado, os proletários precários sentem-se afligidos por não terem condições objetivas para uma vida digna. Eles representam a “nova pobreza” do capitalismo global de cariz neoliberal. No plano contingente, anseiam (e lutam) pela “cidadania salarial” nos marcos da ordem da mercadoria. Entretanto, as condições de luta e organização sindical, no plano do em-si da classe, são adversas para eles.
5. A “consciencia intranquila” O círculo do estranhamento/alienação (alienação do consumo/estranhamento do trabalho) implode a “consciência tranquila” observada por Herbert Marcuse na época do capitalismo afluente ou capitalismo fordista-keynesiano. Nas condições de crise do capitalismo global, surgiu a “consciencia intranquila” do proletariado tardio. Por exemplo, o movimento social dos “indignados” na União Europeia e nos EUA, o precariado que ocupa as ruas das cidades do “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital, são apenas a “ponta do iceberg” da consciencia intranquila do proletariado tardio hoje. A “consciencia intranquila” dos precários “indignados” do século XXI se distingue radicalmente, por exemplo, da “consciência intranquila” dos proletários da Primeira Revolução Industrial que enfrentaram a experiência vivida do “factory system” inseridos em modos de sociabilidades tradicionais e valores de cunho comunitário (THOMPSON, 1982). Os proletários precários pós-modernos cresceram no interior da ordem social da mercadoria constrangidos pelo poder da ideologia. Eles sentem-se no plano da consciência contingente como “mercado-
236
rias” vivas. É o que explica a incapacidade dos precários indignados traduzirem o sentimento de indignação numa perspectiva crítica para além da ordem burguesa. Na verdade, a indignação do precariato é a indignação reativa com a frustração das expectativas, anseios e utopias de mercado cultivadas nos “trinta anos dourados” de capitalismo afluente. Ela se diferencia da frustração dos sonhos, expectativas e utopias das gerações de trabalhadores assalariados de origem rural que nos primórdios do capitalismo industrial compartilhavam utopias comunitárias ligadas à terra. Por isso, insatisfeitos com o system factory, ansiavam tornar-se “produtores autônomos” e voltar à pequena propriedade rural. Na medida em que o capitalismo global não conseguiu repor a perspectiva de emprego digno para todos, os jovens “precários” alienados do sonho do emprego estável são manipulados com o ideal da empregabilidade que constrói a identidade do “trabalho autônomo” ou “trabalho por conta própria de segunda geração” (como diria Sergio Bologna). Deste modo, a “intranquilidade da descartabilidade” se interverte na “intranquilidade da fluidez” que expõe a sua condição de proletariedade.
237
Capítulo 11
A educação do precariado
“Os meus sonhos foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito, ah, eu nem acredito.” Cazuza
O
termo “precariado” possui significados bastante controversos. Por um lado, Ruy Braga em seu novo livro A política do precariado (Boitempo, 2012) considera o precariado como sendo o “proletariado precarizado”. Por outro lado, Guy Standing no livro The precariat (Bloomsbury, 2010) não considera o precariado como proletariado, mas sim uma nova classe – “the new dangerous class”. Eu tenho utilizado o conceito de “precariado” com uma significação sociológica bem específica. Primeiro, ele não constitui uma nova classe social, mas sim uma nova camada da classe social do proletariado. No século XXI, o proletariado como “classe” social amplia-se e diversifica-se, cada vez mais, no plano sociológico. Na medida em que se desenvolve o modo de produção capitalista e dissemina-se a lógica do trabalho abstrato pela vida social, universaliza-se a condição de proletariedade. Depois, o precariado não pode ser meramente identificado como “proletariado precarizado”, pois considerá-lo assim significa perder a especificidade da categoria social de precariado. Na verdade, precariado diz respeito a uma nova camada da classe social do proletariado constituída especificamente por jovens-adultos altamente escolarizados imersos em relações de trabalho e emprego precário. Portanto, o conceito de precariado implica o cruzamento das determinações de ordem geracional, educacional e salarial. A nova camada da classe do proletariado – o precariado –, que se explicita nas condições históricas do capitalismo global, se distingue de outras camadas sociais
239
precárias do proletariado. Por isso não podemos meramente reduzi-lo a “proletariado precarizado” (por exemplo, os trabalhadores precários de baixa qualificação profissional e os trabalhadores precários adultos acima dos 36 anos). Como salientamos nos capítulos anteriores, a nova camada social do precariado se vincula historicamente à etapa de crise estrutural do capital e a hegemonia do capitalismo financeiro. Ele se manifesta socialmente com vigor nas economias capitalistas mais desenvolvidas, onde a contradição radical entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção assume dimensões amplas e intensas. O “precariado” é, em si e para si, expressão de classe do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social descartabilizadas pelas relações sociais de produção capitalista. Neste caso, aplica-se o que István Mészáros caracterizou como “produção destrutiva” e a taxa de utilização decrescente do valor de uso. O precariado é expressão do sistema social da produção do desperdício generalizado: desperdiça-se a futuridade de jovens altamente escolarizados, penhorando suas perspectivas de carreira e mobilidade social (uma manifestação em Lisboa no dia 13 de dezembro de 2012 intitulou-se “Não penhorem as nossas vidas”). Enfim, o capital em sua dimensão exacerbada no plano do mercado mundial “queima” trabalho vivo altamente qualificado incapaz de ser absorvido pelo modo de produção de mercadorias. Como salientamos alhures, o precariado é o sintoma perverso das contradições radicais da ordem burguesa hipertardia: a perda da futuridade e a frustração das promessas civilizatórias ampliam-se com a vigência da financeirização da riqueza capitalista e a hegemonia do capital financeiro. A ideia de futuridade é crucial para delimitarmos a camada social do precariato. É uma camada social caracterizada especificamente pela frustração com suas expectativas de carreira profissional e realização salarial. Por exemplo, a experiência do precariado torna-se efetivamente visível hoje no polo mais desenvolvido da ordem burguesa: a União Europeia. O Estado social europeu construiu-se disseminando o sonho de realização profissional no bojo da ordem social-democrata do capital. Educação, emprego e consumo eram o trinômio da realização humana. Abandonou-se, deste modo, a utopia social para além do capitalismo como modo de produção de mercadorias e exploração do homem pelo homem. A crise europeia hoje não é apenas a crise da economia do Euro, mas sim crise radical da ideologia da concertação entre capitalismo e bem-estar social. Portanto, o conceito de precariado que propomos é constituído pelas seguintes determinações histórico-concretas: (1) constituição de um sistema universitário de graduação e pós-graduação que se ampliou exponencialmente nas últimas dé-
240
cadas, e que produz hoje, a cada ano, um imenso contingente de jovens-adultos licenciados altamente escolarizados imersos em sonhos, expectativas e anseios de carreira e realização profissional; (2) instauração do novo (e precário) mundo do trabalho sob a dinâmica do capitalismo global predominantemente financeirizado, capitalismo sem crescimento, incapaz de absorver o contingente de licenciados à altura de suas perspectivas profissionais, levando-os, portanto a se inserirem em relações precárias de emprego e trabalho; e finalmente, (3) o poder da ideologia e a vigência do capitalismo manipulatório com a disseminação dos valores-fetiches, sonhos e expectativas de mercado, com sua pletora de ilusões sociais (a ilusão da carreira profissional, empregabilidade e mobilidade social; e depois a ilusão do capitalismo predominantemente financeiro capaz de compatibilizar hoje o incompatível, isto é, compatibilizar economia de mercado nas condições da mundialização financeira com bem-estar social numa sociedade democrática de direitos).
Determinações histórico-concretas do precariado Universalização do sistema universitário de graduação e pós-graduação (alta escolarização da força de trabalho juvenil) Constituição do novo (e precário) mundo do trabalho (a vigência do capitalismo flexível) Capitalismo manipulatório, poder da ideologia e ilusionismo social (valores-fetiches, sonhos e expectativas de mercado)
É o cruzamento particular dessa constelação histórico-social que se efetiva no interior do capitalismo do século XXI, produzindo a nova camada social do proletariado denominada precariado: jovens-adultos altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho e emprego precários. Na década de 2000 no Brasil, uma série de jovens trabalhadores e trabalhadoras altamente escolarizados incorpora-se em relações salariais que, apesar de formalizadas, são precárias no sentido de terem baixa remuneração, alta rotatividade e falta de perspectivas de carreira – sem falar nos contratos atípicos de trabalho subnotificados nas estatísticas sociais (estágios, trabalho temporário, PJ, coopera-
241
tivas de trabalho etc.). Nesse período, constituiu-se a nova precariedade salarial engendrada pelo capitalismo flexível que surgiu no País com a reorganização do capitalismo brasileiro na década de 2000. No plano do metabolismo social, a nova condição salarial produz precocemente, na camada de jovens proletários altamente escolarizados imersos na nova precariedade social, estresse e transtornos mentais por conta da nova dinâmica do capitalismo flexível com sua carga de pressão, ansiedade e frustração. Entretanto, no Brasil, a experiência de classe do precariado ainda é residual se compararmos, por exemplo, com a União Europeia, onde existem movimentos sociais organizados para expressar as demandas sociais e políticas da nova camada social do proletariado (por exemplo, em Portugal, os “Precários Inflexíveis” ou mesmo na Espanha, o Movimento 15M são expressões do precariado organizado). A camada social do precariado em si e para si ainda é invisível no Brasil, tendo em vista que não encontram expressão organizada em movimentos sociais ou sindicais, capazes de incorporá-los como sujeitos de classe com suas especificidades sociais.
1. O precariado no Brasil As universidades públicas e privadas, que formam, todo ano, milhares e milhares de novos trabalhadores assalariados dispostos a se inserirem no novo mercado de trabalho e nos novos locais de trabalho reestruturados são incubadoras do precariado. Em dez anos, o Brasil mais que dobrou o número de concluintes na educação superior (segundo dados do Censo da Educação Superior, de 2001 a 2011, o crescimento de universitários no País foi de 110%). Por outro lado, no decorrer da década de 2000, o desemprego aumentou significativamente entre aqueles com mais de 11 anos de estudos (36,82% em 2002, 39,84% em 2003; 43,16% em 2004; 46,19% em 2005; 47,81% em 2006; 50,70% em 2007; 52,92 em 2008; e 56,46% em 2009, segundo dados do IBGE/PME), com um leve decrescimento entre aqueles de 18 a 24 anos (1,5% entre 2002 e 2009) e um pequeno crescimento entre aqueles de 25 a 49 anos (2,4% entre 2002 e 2009).
242
Desemprego entre aqueles com mais de 11 anos de estudos Brasil 60 50 40 30 20 10 0 2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Fonte: IBGE
Não nos interessa discutir a natureza dos maiores índices de desemprego entre os jovens ou entre as pessoas que possuem oito anos ou mais de estudos. O que buscamos salientar é que, mesmo com o crescimento do PIB ocorrido na década de 2000, a partir de 2003, não se alterou de forma significativa a precariedade salarial entre os trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados. O vídeo-documentário “Galera”, de Giovanni Alves (Projeto CineTrabalho/ Práxis vídeo, 2012),1 com produção de Mateus Bortoleto Rodrigues, Artur Gondo e Felipe Resina de Campos, trata da perspectiva de futuro de jovens formandos. É um pequeno registro audiovisual dos sonhos, aspirações, expectativas e perspectivas de trabalho de jovens universitários no último ano do curso de graduação na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP (Campus de Marília). Esse documentário é o registro singelo das perspectivas da juventude nas condições de crise do mercado de trabalho no capitalismo global. Os jovens estudantes aparecem como sonhadores, ansiosos e pragmáticos, expressando-se, algumas vezes, com humor, sua condição existencial de proletariedade. “Galera” significa grupo de pessoas, amigos, cambada ou turma, mas significa também um tipo de navio movido a remos. O jogo de palavras do título do documentário “Galera” sugere que, navegando no “mar neoliberal”, os jovens formados que sonham com o sucesso profissional são obrigados “a remar” com um esforço insano, como se estivessem em alto-mar, numa galera. Como diz um deles: “[Está] cada vez está mais difícil o mercado de trabalho”. E prossegue comentando suas 1
Disponível para visualização no canal de vídeo CineTrabalho (www.vimeo.com/cinetrabalho).
243
perspectivas de trabalho: “Quem sabe, tentar a pós-graduação, porque hoje, com o diploma, não é igual há trinta anos, [quando] você tinha mais chance; era uma pessoa mais seleta que hoje. [Hoje] é seleta, mas não é tanto. Hoje em dia é preciso fazer uma pós-graduação, uma especialização; hoje o mercado leva você a essas especializações que demandam muito sempre da pessoa”. Na verdade, a maioria dos jovens coloca a necessidade de fazer especialização ou aprimoramento – como eles dizem. Enfim, uma pós-graduação é capaz de lhes garantir a dita “empregabilidade”: “Para ter um bom emprego, você precisa estar se atualizando, continuar se aprimorando, para ter uma boa oportunidade”. Mas a escolha do aprimoramento continuado ou cursos de especialização e pós-graduação tornou-se a versão atual do alongamento da escolarização, não apenas como a alternativa mais recorrente dos jovens diante do desemprego, mas como necessidades de qualificar-se melhor para acesso a certos postos de trabalho melhor remunerados, que não são para todos. Enfim, a universidade continua tendo a função de manter por mais tempo a população jovem afastada do escasso mercado de trabalho (a teoria da escola parking), retardando a entrada dos estudantes na vida ativa. Entretanto, tem-se, ao mesmo tempo, a percepção da desvalorização do diploma de graduação, que exige mais tempo de estudo para capacitar-se e melhor se inserir no mercado de trabalho. A tendência que se impõe é que se produzam cérebros para exercerem trabalhos simples e rotineiros em atividades de emprego e trabalho precário (como, por exemplo, os call centers). Apesar disso, os jovens profissionais continuam acalentando o sonho da realização profissional. No livro A política do precariado, Ruy Braga encontra nos operadores de telemarketing, o exemplo do “precariado pós-fordista periférico”! Para ele, os teleoperadores resumem todas as tendências importantes do mercado de trabalho no país na última década: formalização, baixos salários, terceirização, significativo aumento do assalariamento feminino, incorporação de jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da taxa de rotatividade do trabalho etc. Eles são uma espécie de retrato do “precariado pós-fordista” em condições sociais periféricas (BRAGA, 2012). No pequeno documentário “Galera”, uma saída individual apontada pelos jovens universitários no último ano de graduação para driblar a queda no “precariado” é prestar concurso público. De modo pragmático, um deles afirma categoricamente: “Arrumar concurso público para ganhar dinheiro e depois área acadêmica”. Entretanto, a inserção no setor público não é para todos, principalmente nas condições históricas de hegemonia do capitalismo neoliberal.
244
Deste modo, a educação do precariado é movida a sonhos de realização profissional e, quiçá, ascensão social. Diz um dos jovens universitários no vídeo “Galera”: “Os planos de carreira são muito restritos, muitos precários”. E arremata logo a seguir: “De certa maneira, nós precisamos ter um horizonte para poder caminhar”. Mais adiante, uma jovem que cursa o último ano do curso de pedagogia diz: “Espero ter uma casinha e tudo mais... porque só sendo uma professora universitária para ganhar bem”. Entretanto, o sonho de ser professora universitária torna-se difícil de ser realizado quando se pondera as dificuldades do presente de precariedade salarial. Diz ela: “... mas para chegar lá, vai ser bem complicado. Ter que dar aula integral, dar seis, sete aula aulas, de manhã; vai lá, dobra, faz de tarde, vai para a Faculdade à noite; na madrugada você pesquisa.” Sonhadora, afirma: “Mas acho que estou disposta a correr isso porque eu acredito, eu acredito que as coisas possam mudar com as pessoas que sejam preocupadas com a mudança da educação...”. A dialética entre o “feijão e o sonho”, sonho contingente do proletariado de uma vida boa, está expressa na afirmação de outro estudante: “Nós ficamos entre a esperança e a noção de realidade que não é muito boa”. Mais do que nunca, tem-se a percepção da irremediável proletariedade. Um estudante de ciências sociais afirma que vai ser professor de ensino médio como ele diz, “mais por mim do que por uma questão monetária”. E arremata: “Já me convenci de que vou ser um pobre feliz”. No Brasil, capitalismo hipertardio com modernidade insólita (como um ornitorrinco, nos diria Chico de Oliveira), o “descompasso” entre educação e mercado de trabalho vem de longa data. Por exemplo, em 1982, José Reginaldo Prandi constatava no livro Os favoritos degradados a existência, naquela época, de um contingente de jovens com ocupação estranha à formação universitária; jovens formandos com inserção ocupacional que, diz ele, “corrói a anteriormente sólida base dos projetos de vida individuais e familiares das classes médias urbanas órfãs do milagre brasileiro” (PRANDI, 1982). Prandi os denomina de “favoritos degradados”. Naquela época, há cerca de trinta anos, o Brasil amargava a “crise do milagre”, com a estagnação da economia que prosseguiria por quase duas décadas. Embora nos últimos vinte anos (1990-2012), a economia brasileira tenha se reestruturado e reorganizado de acordo com os parâmetros neoliberais, tendo retomado um crescimento no bojo da liquidez do capitalismo global da década de 2000, o fenômeno dos “favoritos degradados” assume hoje outras dimensões. Não se trata apenas de fazer a economia brasileira crescer. Valéria Matos observa:
245
Se nos anos 1980 era perceptível a adoção de estratégias individuais como graduação em dois cursos complementares, desempenho acadêmico diferenciado e realização de estágios diversos, na tentativa de reparar a qualidade do ensino e, sobretudo, de evitar o desemprego, o que se verifica a partir dos anos 1990, é o deslocamento de tais estratégias para os cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, com o intuito de obter vantagens competitivas que auxiliam na evitação do desemprego (MATOS, 2011). Entretanto, em trinta anos de capitalismo global, a condição de proletariedade adquiriu maior percepção entre jovens profissionais que têm consciência da mudança de status que passam profissões outrora profissões liberais (médicos ou advogados, por exemplo) e que hoje é visível o processo de proletarização e precarização das condições de trabalho. Na verdade, a promessa de mobilidade social se interverteu na ideologia de resignação à proletariedade flexível, o que explica, de certo modo, atitudes de pragmatismo que visam tão somente se adequar (para sobreviver) às exigências do capitalismo perverso. Utilizo o adjetivo “perverso” não apenas de modo impressionista. O lado perverso do capitalismo global significa que, ao mesmo tempo em que desefetiva o ser humano-genérico da individualidade de classe, o sistema do capital provoca a autogratificação pessoal delas. No capitalismo perverso, a experiência do estranhamento é uma experiência gratificante – perversamente gratificante. Por outro lado, o capitalismo global é um capitalismo cínico, no sentido de que se torna incapaz de validar as promessas civilizatórias da vida digna, apesar de proclamá-las amplamente, ao mesmo tempo em que cultiva o ideal da “vida fluída” que carrega o estigma da incerteza sob o esteio da flexibilidade. Enfim, o capitalismo global é capitalismo manipulatório, que quebra, no plano da subjetividade, as possibilidades de estratégia coletiva e acirra as estratégias individuais de sobrevivência na “selva” do mercado. Falta à galera uma perspectiva do coletivo em movimento. Como o precariado é constituído por jovens altamente escolarizados, o peso da ansiedade é maior, tendo em vista que, quanto mais escolarizados, mais expectativas de “boa vida” alimentam. Talvez não se trate propriamente de expectativas ou anseios pessoais, mas sim da aceitação das estratégias de mobilização subjetiva para competências específicas alicerçadas mais em atitudes e habilidades comportamentais do que técnicas, sobretudo sob o “espírito do toyotismo”, no qual se
246
faz imperiosa a necessidade de desenvolver aptidões como capacidade de resolver problemas, de se relacionar em trabalho em grupo, criatividade, comunicação, improviso e adaptabilidade. Na verdade, a “captura” da subjetividade começa no percurso de escolarização superior e na própria dinâmica de organização pedagógica dos cursos superiores que produzem “mentes ansiosas” adequadas ao estilo de vida “just-in-time”. A educação do precariado torna imprescindível para dar sentido à ação instrumental na pseudo-concreticidade da vida cotidiana de jovens proletários sonhadores, ansiosos e pragmáticos, que o mantra do capital humano se perpetue, não mais validando a aquisição do emprego por toda a vida, mas sim a capacidade de empregabilidade em trajetórias ocupacionais intermitentes, liminarmente precárias.
247
Referências
ARANTES, Otília (1998) Urbanismo em fim de linha: e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônika. São Paulo: Edusp. ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne, Lire le Capital, Paris, Maspero, 1973. ALVES, Giovanni (2011) Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo editorial. _____. (2000) O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo Editorial. _____. (2009) A condição de proletariedade. Bauru: Editora Praxis. _____. (1999) Trabalho e mundialização do capital – A nova degradação do trabalho no capitalismo global. Londrina: Editora Práxis. _____. (2007) Dimensões da Reestruturação Produtiva – Ensaios de sociologia do trabalho. Bauru: Editora Praxis. _____. (2002) “Ciberespaço e fetichismo”, In: Dialética do Ciberespaço: Trabalho, Tecnologia e Política no Capitalismo Global. Bauru: Editora Praxis. ALVES, Giovanni; VIZZACCARO-AMARAL, André Luiz; MOTA, Daniel Pestana (2011) Trabalho e Saúde – A precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI. São Paulo: LTr. ALVES, Giovanni; CORSI, Francisco Luiz. “Precarização do trabalho e nova precariedade salarial no Brasil na década de 2000 – Da Tessitura da Redundância à Inter-
249
mitência da Contingência Salarial”. In: TOLEDO, Enrique de la Garza; NEFFA, Julio César (2010) Trabajo y Modelos Productivos en América Latina. Argentina, Brasil, Colombia, México, y Venezuela luego de las crisis del modo de desarrollo neoliberal. Buenos Aires: CLACSO. ANTUNES, Ricardo (1995) Adeus Ao Trabalho? – Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Editora Cortez. _____. (1999) Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo editorial. _____. (2004) A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. São Paulo: Autores Associados. _____. (2005) O caracol e sua concha – ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Editora Boitempo. _____. (2011) O Continente do Labor. São Paulo: Boitempo editorial. ARAÚJO, Renan (2012) O Novo Perfil Metalúrgico do ABC – Um estudo sobre o trabalho e o modo de vida “Just-in-time” do metalúrgico jovem-adulto flexível (19922008). Campo Morão: Editora FECILCAM. BAKTIN, Mikhail (2001) O freudismo. São Paulo: Editora Perspectiva. BIHR, Alain (1998) Da Grande Noite à Alternativa (O Movimento Operário em Crise). São Paulo: Editora Boitempo. BAUDRILLARD, Jean (2007) A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70. BALTAR, Paulo et alii (2010) “Trabalho no Governo Lula: Uma reflexão sobre a recente experiência brasileira”, Carta Social e do Trabalho, No. 12, out-dez 2010, Campinas: CESIT. BAUMAN, Zygmunt (2001) Modernidade liquida. Rio de Janeiro: Zahar Editora. _____. (2005) O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro: Zahar Editora. BRAGA, Ruy (2012) A política do precariado – do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo editorial. BECK, Ulrich (2000) Um nuevo mundo feliz – La precariedad del trabajo em La era de la globalización. Barcelona: Paidós. BOYER, Robert (1986) La Fléxibilité du travail en Europe. Paris: Ed. La Découverte. BOURDIEU, Pierre (1979) La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit.
250
_____. (1980) Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980. _____. (2009) A dominação masculina. São Paulo: Bertrand Brasil. BRENNER, Johanna (1998) “Work Relations and the Formation of Class Consciousness” in E.O. Wright (org.) The Debate on Classes: 184-190, London: Verso. CASTELLS, M (1999) A sociedade em rede. Volume 1. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra. CAPELAS, Estela; NETO, Miguel Huertas; MARQUES, Rosa Maria (2010) “Relações de Trabalho e Flexibilização”. In: MARQUES, Rosa Maria; FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen (Org.) O Brasil sob a nova ordem – A economia brasileira contemporânea: Uma análise dos governos Collor a Lula. São Paulo: Editora Saraiva. CARLEIAL, Liana; VALLE, Rogério (1997). Reestruturação produtiva e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Hucitec/ABET. CARDOSO, Adalberto (2000) Trabalhar, verbo transitivo: destinos profissionais dos deserdados da indústria automobilística. Rio de Janeiro: Editora FGV. _____. (2010) A construção da sociedade do trabalho no Brasil – Uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV. CASTEL, Robert (1995) As metamorfoses da questão social – Uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Editora Vozes. CASTILLO, Juan J. (1996) Sociologia del Trabajo. Madrid: CIS. CHAHAD, José Paulo Zeetano; CACCIAMALI, Maria Cristina (Org.) (2003) Mercado de Trabalho no Brasil – novas práticas trabalhistas, negociações coletivas e direitos fundamentais no trabalho. São Paulo: LTr. CASTELLS, Manuel (1979) A teoria marxista das crises econômicas e as transformações do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. CHESNAIS, François (1996) A mundialização do capital. São Paulo: Editora Xamã. CHESNAIS, François (Org.) (1998) A mundialização financeira – gênese, custos e riscos. São Paulo: Editora Xamã. _____. (2005) A finança mundializada – raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. São Paulo: Editora Boitempo. COHEN, G.A., Karl Marx´s Theory of History. A Defense, New Jersey: Princeton University Press, 1978.
251
COSTA, Gilmaísa Macedo da (2006) “Lukács e a ideologia como categoria ontológica da vida social”, Revista Urutágua, n.9, Maringá: UEM. DRUCK, Graça; FRANCO, Tânia (Org.) (2007) A Perda da Razão Social do Trabalho – terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo. ESTANQUE, Elísio (1997) Classes e Desigualdades Sociais em Portugal – um estudo comparativo. Porto: Edições Afrontamento. ESTANQUE, Elísio (2012) A classe média: ascensão e declínio. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. FAUSTO, Ruy (1986) Marx – Lógica e Política. São Paulo: Editora brasiliense. _____. (1988) Marx, Lógica & Política, v. 2. São Paulo: Editora Brasiliense. FAUSTO, Ruy (1989) “A Pós-grande indústria nos Grundrisse (e para além deles)”, In: Lua Nova, Novembro de 1989, n. 19. São Paulo: Cedec. FILGUEIRAS, L.; GONÇALVES, R. (2007) A economia política do governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto. FREUD, Sigmund (2006) “O Inconsciente”. In: Obras Psicológicas de Sigmundo Freud – Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. São Paulo: Editora Imago. FRANKL, Viktor E. (2008) Um sentido para a vida. Aparecida: Idéias e Letras. FOUCAULT, Michel (1994) Dits et Écrits, v. 4. Paris: Gallimard. FONTENELLE, Isleide Arruda (2002) O Nome da Marca – McDonald’s, fetichismo e cultura descartável. São Paulo: Editora Boitempo. GRAMSCI, Antonio (1984) Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. _____. (1974) Obras Escolhidas, I e II. Lisboa: Estampa. _____. (1984b) Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. GARCIA-ROZA, Luis Alfredo (2004) Freud e o inconsciente. São Paulo: Jorge Zahar Editores. GIDDENS, Anthony; HELD, David (1982) Classes, Power, and Conflict – Classical and contemporary Debates. London: MacMillan. GORZ, André (2005) O Imaterial. São Paulo: Editora Annablume.
252
_____. (1986) O Capital – Crítica da Economia Política, v. III, São Paulo: Abril Cultural. GUIMARÃES, Nadya Araujo (2004) Caminhos Cruzados – Estratégias de empresas e trajetórias de trabalhadores. São Paulo: Editora 34. _____. (2009) Desemprego, uma construção social. Belo Horizonte: Editora Argvmentvm. GUIMARÃES, Nadya; HIRATA, Helena; SUGITA, Kurumi (Org.) (2010) Trabalho flexível, empregos precários? Uma comparação Brasil, França e Japão. São Paulo: EDUSP. GRIMAL, Pierre (1951) Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Editora Betrand Brasil S/A. HOBSBAWN, Eric (2001) A Era dos Extremos. São Paulo: Editora Paz e Terra. _____. (2003) “Class Consciouness in History” in L.M. Alcoff e E. Mendieta (org.), Identities: Race, Class, Gender and Nationality, Oxford: Blackwell, 2003. HOLZ, Hans Heinz; KOFLER, Leo; ABENDROTH, Wolfgang (1969) Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. HADDAD, Fernando (1997) “Trabalho e classes sociais”, Tempo Social, São Paulo: USP. HELLER, Agnes (1985) Teoria de las necesidades en Marx. Barcelona: ediciones península. HARVEY, David (1990) Los limites del capitalismo y la teoria marxista. México: Fondo de Cultura Econômica. _____. (1992) Condição pós-moderna – Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola. _____. (2004) O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola. IANNI, Octavio (1992) A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. IPEADATA – www.ipea.gov.br JAMESON, Frederic (1988) Pós-modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Ática. KAPLINSKY, Raphael (1989) “Industrial restructuring in LDCs: the role of information technology”, Seminário internacional “Padrões Tecnológicos e Processo de
253
Trabalho - Comparações internacionais”. São Paulo: Convênio USP/BID. KOSIK, Karel. (1978) Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. KOSSELECK, Reinhardt (2009) Futuro Passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto. KREIN, José Dari (2007) Tendências Recentes nas Relações de Emprego no Brasil. 1990-2005. Tese de Doutorado. IE/UNICAMP. LACAN, Jacques (1999) Seminário – livro 05 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. LUKÁCS, Georg (1981). Ontologia Dell’essere Sociale. Roma: Editori Riuniti. LE BLANC, Guillaume (2007) Viés ordinaires, viés précaires. Paris: Seil. LEITE, Márcia de Paula; ARAUJO, Ângela Maria Carneiro (Org.) (2009) O trabalho reconfigurado. São Paulo: Annablume. LÊNIN, V.I. (1979) Sobre os Sindicatos. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas. LUKÁCS, Georg (1970) Introdução a uma Estética Marxista – Sobre a Particularidade como Categoria da Estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. _____. (1981) Ontologia Dell’essere Sociale. Roma: Editori Riuniti. LIPIETZ, Alain (1991) Audácia – Uma alternativa para o século 21. São Paulo: Editora Nobel. LIMA, Jacob Carlos (Org.) (2007) Ligações Perigosas – Trabalho flexível e Trabalho Associado, São Paulo: Annablume. MATTOSO, Jorge (1995) A Desordem do Trabalho. Campinas: Editora Scritta. MOLLON, Phil (2005) O Inconsciente – Conceitos de Psicanálise. São Paulo: Viver (Mente e cérebro). MORAES, Eliana (2002) O Corpo Impossível. São Paulo: Iluminuras / Fapesp. MENEGAT, Marildo (2003) Depois do fim do mundo – A crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: FAPERJ/Relume Dumará. _____. (2006) O olho da barbárie. São Paulo: Editora Expressão Popular. MATOS, Valéria (2011) Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho. São Paulo: Editora Xamã.
254
MARX, Karl (1996) O Capital – Crítica da Economia Política. v. I. São Paulo: Abril Cultural. _____. (1985) Capítulo VI, Inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Moraes, 1985. _____. (2004) Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo editorial. _____. (1986) O 18 Brumário de Luis Bonaparte e Cartas a Kugelman. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. _____. (1985) Miséria da Filosofia. São Paulo: Global editora. _____. (1987) Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Global Editora. _____. (1985) Capítulo VI Inédito de O Capital – Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Editora Moraes. _____. (1983) Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Editora Martins Fontes. _____. (2006) Sobre o suicídio. São Paulo: Editora Boitempo. _____. (1988) “Extractos de lectura de Marx em 1844 – James Mill”, Karl Marx – Friedrich Engels, Obra, v. 5. Barcelona: Critica Grupo Editorial Grijalbo. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (1998) Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo editorial. _____. (1985) A Ideologia Alemã (Feuerbach) MATOS, José Nuno; DOMINGOS, Nuno; KUMAR, Rahul (Org.) (2011) Precários em Portugal – entre a fábrica e o “call center”. Lisboa: Le Monde Diplomatique. MARCUSE, Herbert (1985) A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores. MÉSZÁROS, István (2009) A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo. _____. (2002) Para além do capital – Rumo a uma teoria da transição. Campinas/São Paulo: Editora da UNICAMP/Boitempo Editorial, 2002. _____. (2008) Filosofia, Ideologia e Ciência Social – ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Editora Boitempo. _____. (2003) O século XXI: socialismo ou barbárie. São Paulo. Boitempo.
255
NIETZSCHE, Friedrich (1983) “Humano, demasiadamente humano”, Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. NETTO, José Paulo (1981) Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora de Ciências Humanas OLIVEIRA, Francisco de et al. (1999) “Apocalypse Now: O ‘Coração das Trevas’ do Neoliberalismo”. In: DE OLIVEIRA, Francisco e Comin, Alvaro (orgs.) Os Cavaleiros do Antiapocalipse. Trabalho e Política na indústria automobilística. São Paulo: Entrelinhas/Cebrap. OLIVEIRA, Francisco de (2003) Crítica à razão dualista/O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo editorial. OHNO, Taiichi (1997) O Sistema Toyota de Produção – Além da produção em Larga Escala. São Paulo, Editora Bookman. POCHMANN, Marcio (2001) O emprego na globalização – A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Editora Boitempo. PRANDI, José Reginaldo (1982) Os favoritos degradados- ensino superior e profissões de nível universitário no Brasil hoje. São Paulo: Edições Loyola. PAULANI, L.M. (2008) Brasil delivery. São Paulo: Boitempo. POCHMANN, Marcio (1999) O trabalho sob fogo cruzado: exclusão, desemprego e precarização no final do século. São Paulo: Contexto. _____. (2001). O emprego na globalização: A nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo editorial. POULANTZAS, Nicos (1975) Classes in Contemporary Capitalism. London: NLB. ROUDINESCO, Elizabeth (2007) A parte obscura de nós mesmos – Uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Editora Zahar Editores. _____. (2000) Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel (1998) Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. SENNET, Richard (1998) A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro: Editora Record. SHAKESPEARE, William (1988) Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: LP&M Editora. SILVEIRA, Paulo; DORAY, Bernard (Org.) (1989) Elementos para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo: Editora Vértice.
256
SÁ, Teresa (2010) “Precariedade” e “trabalho precário” – conseqüências sociais da precarização laboral. In Configurações, 7 junho de 2010, CICS, Universidade do Minho. SANTOS, Boaventura de Sousa (2011) Portugal – Ensaio contra a autoflagelação. Coimbra: Almedina. SENNETT, Richard (1999) A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Editora Record. _____. (2006) A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record. SELIGMANN-SILVA, Edith (1994) Desgaste mental no trabalho dominado. São Paulo: Cortez Editora/UFRJ Editora. STANDING, Guy (2011) The Precariat – The new dangerous class. London: Bloomsbury. SILVA, Manoel Carlos (2009) Classes sociais: condição objetiva, identidade e acção coletiva. Ribeirão: Edições Húmus. TAPSCOTT, Don (1999) Geração Digital – A crescente e irreversível ascensão da geração Net. São Paulo: Makron. TEIXEIRA, Francisco; FREDERICO, Celso (2008) Marx no Século XXI. São Paulo: Cortês. THOMAZ JUNIOR, Antonio (2012) “Sinal dos tempos do Capital: Irreformabilidade e Emancipação!”, Textos do CGET, UNESP. Presidente Prudente: Mimeo. THOMPSON, E. P. (1982) The Making of the English Working Class. Harmondsworth, Middlesex: Penguin. VASAPOLLO, Luciano (2005) O trabalho atípico e a precariedade. São Paulo: Expressão Popular. VIRTANEN, M; STANSFELD, S.A; FUHRER, R; FERRIE, J.E; KIVIMÄKI, M. (2012) “Overtime Work as a Predictor of Major Depressive Episode: A 5-Year Follow-Up of the Whitehall II Study”. PLoS ONE 7(1): e30719. doi:10.1371/journal.pone.0030719 VYGOSTSKI, L. S. (2005) A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. WRIGHT, Eric Olin (1985) Classes. London, New York: Verso. ZARETSKY, Eli (2006) Segredos da alma – Uma história sociocultural da psicanálise. São Paulo: Editora Cultrix. ZIZEK, Slavoj (2003) “Fétichisme et subjetivation interpassive”, Actuel Marx, No. 34. Paris: Presses Universitaires de France (PUF).
257
Sobre o livro Formato 15,5 x 23 cm Tipologia Minion Pro (textos) Helvetica Neue LT Std (títulos) Papel Pólem 80g/m2 (miolo) Supremo 250g/m2 (capa) Projeto Gráfico Canal 6 Editora www.canal6.com.br Diagramação Erika Canal Wolke Revisão Júlia De Lucca