A releitura da esfera pública sob as lentes da liberdade grega: política performativa, pluralismo e mundo comum na obra de Hannah Arendt1 2 Maximiliano Vieira Franco de Godoy
Resumo: A despeito do crescente interesse por Hannah Arendt, seus argumentos sobre a liberdade e a esfera pública ainda possuem aspectos pouco explorados pela teoria política no Brasil. O presente trabalho se concentra na obra A condição humana, recorrendo paralelamente a Sobre a revolução e a alguns ensaios e entrevistas, para descrever, buscar as fontes e reconstituir a operacionalização pela autora dos principais conceitos de sua avaliação histórica e normativa da esfera pública. Engajando-se na crítica da fusão entre o público e o privado no contexto da sociedade de massas, Arendt propõe retomar os valores republicanos clássicos da liberdade e da excelência sob a luz da construção plural de um mundo comum – este que constitui ao mesmo tempo o produto e a garantia de continuidade da esfera pública. Este trabalho demonstra que a guarda do mundo comum e a demarcação de fronteiras entre as esferas pública e privada estão no cerne da resposta institucional que se abre a partir das análises da autora sobre a degradação dos espaços de ação política.
Palavras-chave: Hannah Arendt. Esfera pública. Liberdade. Mundo Republicanismo. Interesses. Esfera social. Pluralismo. Excelência. Arete.
comum.
Ação.
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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação “Lato Sensu” da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para conclusão do curso de Especialização em Filosofia e Teoria do Direito. Membros da banca examinadora: Prof. Dr. Leonardo Goulart Pimenta (orientador); Prof. Me. Damiane Rita Maria Gomes Pimenta. Defesa em 27/10/2016.
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Agradeço aos membros da banca examinadora pelos comentários e sugestões feitos e já implementados na forma presente, cujas incorreções, omissões ou imprecisões que tenham persistido são da alçada exclusiva deste autor do Trabalho de Conclusão de Curso. Os termos e as pequenas expressões reproduzidas entre aspas a partir de obra referenciada representam tradução nossa.
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Abstract: Despite the growing interest in Hannah Arendt's work, some aspects of her arguments on freedom and the public sphere remain unexplored by political theory in Brazil. This paper makes use of The Human Condition, with a side focus on the book On Revolution and on some essays and interviews, in order to describe the key concepts of Arendt's historical and normative assessment of the public sphere, examining how the author operationalizes them and which their sources are. Getting involved in the critical approach of the overlapping between the public and the private in the context of mass society, Arendt proposes the retrieval of the classical republican values of freedom and excellence in the light of the plural construction of a common world – which is understood at the same time as the product and the guarantee of continuity of the public sphere. This article argues that the preservation of the common world and the setting of boundaries between the public and private spheres are at the heart of the institutional response that opens up from Arendt's analyses on the degradation of political action spaces.
Keywords: Hannah Arendt. Public sphere. Freedom. Common world. Action. Republicanism. Interests. Social sphere. Pluralism. Excellence. Arete.
Sumário Introdução.............................................................................................................................................3 1.Esfera pública, liberdade e esfera “social”.......................................................................................5 2.As fronteiras entre as esferas pública e privada...............................................................................6 3.Interesses e busca por excelência na perspectiva da política performativa....................................10 4.A liberdade grega e suas exigências de pluralismo e igualdade política........................................14 5.Esvaziamento do mundo comum e possíveis garantias em face da esfera “social”.......................18 Conclusão...........................................................................................................................................20 Referências.........................................................................................................................................23
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Introdução Na teoria política, é bastante conhecida a distinção entre a esfera pública e a administração pública, sendo Jürgen Habermas autor de um dos estudos de maior repercussão sobre o assunto: Mudança estrutural da esfera pública, de 1961. A grande obra de Hannah Arendt, A condição humana, precede em três anos àquele estudo3 e debruça-se em desenvolvimentos de grande fôlego que se tornaram referência básica na matéria. Em comum, ambos os autores reverenciam as grandes inovações trazidas por Karl Marx para tal estudo, ao mesmo tempo em que não se furtam a tomarem os distanciamentos necessários, o que é feito mais profunda e explicitamente por Arendt do que pelo Habermas daquele início de carreira acadêmica. A peculiaridade da investigação arendtiana é a vigorosa recuperação dos valores e da consciência política da Grécia Antiga para formular uma abordagem bastante original sobre os percalços da esfera pública ao longo da história ocidental, desde a decadência do Império Romano e a instalação do feudalismo medieval até o welfare state no século XX. Entre os temas de destaque os quais procurei inserir na parte mais substancial do meu esforço interpretativo encontram-se a visão grega da política como o campo de realização da excelência humana (seção 3), o pressuposto pluralista não apenas da esfera pública mas de uma ampla fenomenologia do conhecimento e da vida em sociedade (seção 4), e a figura do mundo comum como o locus da ação em conjunto e como o estoque de conteúdos duráveis sem os quais não pode haver uma esfera pública (seção 5). Na cena política atual, no Brasil e no mundo, há tantos acontecimentos alarmantes sucedendo-se diariamente que a chance de parar a leitura do noticiário, recuar um pouco e “refletir sobre o que estamos fazendo” é uma proposta tentadora (ARENDT, 2005a, p. 13). Mas nenhuma reflexão pode ser feita isoladamente da experiência pessoal (ARENDT, 2003, p. 19), de modo que eu não poderia iniciar este trabalho sem ao menos uma breve menção a toda a violência física e simbólica e ao acirramento de divisões ideológicas, culturais e partidárias que se estão desenrolando em eventos que vão desde a guerra síria e o terror fundamentalista, até as ofensivas disputas verbais nas eleições norte-americanas, a violência mútua entre populações afrodescendentes e a polícia também nos Estados Unidos, os choques que se têm verificado pela intensa imigração árabe e africana para a Europa, além do processo de impeachment da presidente brasileira, que vem acompanhado de rupturas indeléveis entre os grupos políticos e pouca clareza de ambos os lados quanto aos aspectos constitucionais envolvidos. Diante de tanta violência na política, e tantos sinais de disputas irreconciliáveis dentro de cada comunidade política, soa até como mera ingenuidade uma proposta de voltar os olhos e os corações para o republicanismo clássico e para a pureza de seus valores de liberdade pública e de igualdade política. Será que a excelência revelada nos discursos e ações empreendidos na esfera pública pode retomar sua centralidade, sendo esta dependente de “as pessoas estarem com as outras e não a favor 3
No seu estudo de 1961, Habermas incorpora sem retoques as exposições arendtianas sobre a vida pública na polis grega e sobre o moderno surgimento da esfera social, em prejuízo do modelo clássico de relações entre as esferas pública e privada (HABERMAS, 2003, p. 15-17, 33-34).
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nem contra elas – ou seja, na pura companhia humana” (in sheer human togetherness)? Essa é uma pergunta sem resposta, ou que só poderá ser respondida retrospectivamente, como toda narrativa que faz contato com a imprevisibilidade da ação humana (ARENDT, 2005a, p. 190-192). De todo modo, meu singelo reconhecimento de que refletir sobre esses assuntos vale a pena, mais ainda quando compartilhado cada vez mais pelo público leitor em geral e por uma crescente literatura de comentários acadêmicos, já implica que não se trata de valores absolutamente perdidos para o Século XXI, mas talvez substitutos necessários para um clima geral que mistura apatia, raiva, impotência, sectarismo, cizânia racial e religiosa. Os temas da liberdade e da esfera pública são explorados por Hannah Arendt com grande originalidade e suas conclusões, além de se desenvolverem coerentemente ao longo de mais de 40 anos publicando regularmente os seus escritos, possuem atualidade mesmo ao tratar de pautas bastante específicas do momento em que ela escrevia. Não menos atrativo na obra da autora, ela possui um estilo capaz de abordar explícita e gradativamente um amplo leque de referências, sem exigir do leitor uma erudição prévia em relação aos temas e autores. Isso não significa que a linguagem adotada abra mão do repertório consagrado nos meios acadêmicos para dar lugar a uma linguagem de fácil acesso. A clareza está nas técnicas de exposição e na fraseologia que envolve e causa impacto, enquanto no nível terminológico encontram-se neologismos, resgates de conceitos de origem clássica e contrastes linguísticos inovadores. Nas próximas seções do trabalho, faço inicialmente uma apresentação elementar dos modelos de diferenciação entre as esferas pública e privada, do conceito de liberdade vinculado à ação no espaço público e do contraste entre o conceito grego de liberdade pública e a esfera “social” do estado-nação e da sociedade de massas (seção 1); em seguida, no intuito de elucidar um pouco mais a visão de Arendt sobre as fronteiras entre o público e o privado, passo a uma exposição de cunho exploratório sobre as polêmicas da falta de liberdade na esfera privada e da neutralização do peso dos interesses materiais na política, sobre a autonomia recíproca da política e da economia, e sobre a questão distributiva envolvendo a propriedade privada, atingindo um campo argumentativo da obra arendtiana que exemplifica sua linha de abordagem quanto à possibilidade de responder – por meio de instituições políticas e constitucionais – às consequências deletérias da esfera “social” (seção 2). Nesse sentido, a visão da política como o campo performático de realização da excelência humana não esgota a compreensão crítica de Arendt sobre os dilemas da história contemporânea. Se, na seção 3, tomo por objeto a excelência ou o virtuosismo público (arete, em grego) – que regia a polis sob o signo da busca pela distinção, do desejo de imortalidade, da espontaneidade e tempestividade da ação, e da paixão por exibir publicamente as próprias ações e por participar diretamente dos assuntos públicos –, nas seções 4 e 5 os temas do pluralismo e do mundo comum trazem à tona o papel de movimentos de institucionalização para a reconstituição das fronteiras entre o público e o privado. A dupla exigência normativa de autonomia e de autocontenção da esfera pública é contemplada por funções políticas externas que visam à conservação do mundo comum.
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Toda a construção teórica arendtiana tem por pano de fundo a avaliação crítica das práticas políticas contemporâneas. As investigações empreendidas aqui sobre a reflexão política da autora parecem indicar que a participação republicana, no contexto do estado democrático de direito, se beneficia da separação de poderes e da multiplicação de guardiões dos valores constitucionais, em contraposição à onipotência da representação de interesses e ao espectro cesarista do líder plebiscitário.
1.Esfera pública, liberdade e esfera “social” Em sua obra magna de 1958, A condição humana, Arendt dedica o importante Capítulo II à comparação dos modelos de diferenciação entre as esferas pública e privada por ela identificados na polis da Grécia Antiga e nos estados-nações da contemporaneidade (ARENDT, 2005a, p. 31-88). Ao longo da obra, percebe-se que tal comparação não se revela um empreendimento abstrato, oriundo da simples curiosidade histórica, mas sim o veículo de uma forte crítica às concepções políticas da sociedade de massas. Para uma breve contextualização, Arendt delineou, nessa construção teórica sobre a polis grega, o conceito de liberdade vinculado à ação no espaço público que tão amplamente as tendências contemporâneas do republicanismo buscam reavivar. Em obras posteriores a A condição humana, foi desenvolvida ainda mais a pertinência de se retornar à experiência política grega para a formulação de uma visão republicana adequada às dificuldades da política contemporânea. Nesse esforço, a autora traz a lume o evento moderno das revoluções como a chave de compreensão para a atual relevância das concepções republicanas clássicas (ARENDT, 2006a, 2006b). Sem avançar para essa fase subsequente da pesquisa teórica arendtiana, retomarei os mais básicos elementos da abordagem crítica de Arendt acerca do percurso histórico das formas políticas ocidentais. Nesse sentido, destaco na abordagem da autora o contraste entre o conceito grego de liberdade pública e a nova “esfera social” que surge no contexto do estado-nação e da sociedade de massas. Tal contraste, assim busco demonstrar, é o aspecto central de sua investigação sobre as fronteiras entre as esferas pública e privada ao longo da história política ocidental. Com esse objetivo, não é demais reforçar que o Capítulo II de A condição humana, cuja importância eu mencionei ao início, tem sua centralidade na obra arendtiana corroborada pela incorporação em texto integral a The portable Hannah Arendt, coletânea organizada por Peter Baehr (ARENDT, 2003, p. 182-230). Sem que se diminua essa relevância, há notórias linhas de continuidade entre esse texto e os escritos que cronologicamente o precedem. Para ser mais específico, percebe-se que a argumentação da autora sobre a formação do estado nacional e da sociedade de massas, como elementos de um contínuo declínio da esfera pública no mundo ocidental, tem sua construção original na terceira parte de Origens do totalitarismo, escrita e revisada entre 1947 e 1955 (TSAO, 2002; ARENDT, 2012). Não cabe, no âmbito deste estudo, uma exposição com detalhes do conceito de “massas” que Arendt vê realizar-se em toda sua plenitude nos movimentos totalitários europeus surgidos no
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entreguerras. Assim, apenas registro que a publicação de A condição humana, em 1958, está inserida nessa linha de investigação da autora que ganhou corpo no início dos anos 1950. Como peculiaridade em relação a suas pesquisas anteriores sobre o totalitarismo, o enfoque transita então para o desenvolvimento de alguns aspectos relacionados ao núcleo da formação acadêmica de Arendt – a filosofia grega clássica e a filosofia cristã medieval – e a suas mais fortes preferências literárias – a literatura poética da Grécia Antiga, pela qual se apaixonou na juventude.4 O eixo de minha investigação reside nas questões arendtianas das fronteiras entre as esferas pública e privada, e da crítica ao declínio moderno da esfera pública. Reforço que a abordagem adotada centra-se no esclarecimento da perspectiva grega assumida pela autora em A condição humana. Nessa tarefa, cuja relativa amplitude não implica em qualquer pretensão de exaurir a ampla originalidade e erudição do aludido espectro de questões presentes na obra, pontuo o que identifiquei como sua ideia-chave: a contraposição à “esfera social” feita a partir de um conceito de liberdade pública que pressupõe pluralismo, igualdade política e um mundo comum. Vale frisar que as formulações de Arendt quanto à “esfera social” e seus efeitos deletérios sobre a esfera pública posicionam-se com destaque entre as grandes polêmicas surgidas ao longo de sua obra. Portanto, ressalvo desde já que as limitações do meu estágio na pesquisa acarretaram certo grau de sumariedade na apresentação, a qual, pela simples insuficiência dos esforços de síntese que pude empreender até o momento, precisou passar ao largo de uma explanação minuciosa acerca do rico debate sobre o ponto na literatura de comentários à obra arendtiana (VILLA, 2000). Para ser bem claro, a comparação entre os tipos de correlação entre o público e o privado no modelo ateniense e no mundo moderno resulta para a autora em um angustiante diagnóstico sobre o estado atual da liberdade em sua essência republicana. Nessa linha, após uma avaliação inicial da abordagem de Arendt sobre a diferenciação entre as esferas pública e privada, busco descrever o conceito de liberdade que se vislumbra como o substrato do mencionado diagnóstico. Com essa opção de discorrer primeiramente sobre o diagnóstico de desenvolvimentos históricos e somente depois trazer à tona as questões conceituais envolvidas, fica atendida uma preocupação geral do pensamento arendtiano, que é não impor o peso de definições rígidas sobre a reflexão.
2.As fronteiras entre as esferas pública e privada Assim, vejamos que – diferentemente da concepção do Estado e da sociedade em sua versão moderna, que nasce com as monarquias absolutistas europeias e se desenvolve com os estadosnações – a perspectiva grega sobre a polis se funda em uma separação radical entre as esferas pública e privada. Enquanto avaliamos correntemente nossas instituições políticas da modernidade em função da sua capacidade de regular e gerir a produção e a distribuição de riquezas (ARENDT, 2005a, p. 37-38, 50, 78-79, 2006a, p. 154), os gregos da antiguidade clássica percebiam o espaço de sua atuação política de forma destacada de todo e qualquer aspecto da vida econômica. O mesmo ocorre em relação aos aspectos não econômicos presentes na experiência do lar grego, tais como a 4
Sobre as predileções de leitura não acadêmica na juventude da autora, está publicada a transcrição de uma interessante entrevista à televisão alemã em que o tema é abordado (ARENDT, 2003, p. 3-22, 2008, p. 31-53).
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reprodução das condições orgânicas de vida e a educação dos jovens. Dessa forma, os espaços da atividade produtiva e comercial, e da vida familiar, ficavam afastados física e simbolicamente dos espaços da vida pública (ARENDT, 2005a, p. 46, 82-83, 2006a, p. 117). Se, por um lado, decorre logicamente de tal afastamento uma sólida barreira à penetração dos imperativos mercantis e das hierarquias de parentesco nas interações do espaço público, por outro lado, o preço dessa integridade é que o homem tendencialmente livre e incorruptível da polis está autorizado a reproduzir em seu lar as relações despóticas que se esperavam das interações de um chefe de família com as mulheres, escravos e jovens (ARENDT, 2005a, p. 36, 44, 141). Sem deixar de fazer alusão à clara injustiça dessa situação, tanto na Grécia Antiga como na experiência escravista norte-americana (ARENDT, 2005a, p. 42, 2006b, p. 60-61), a omissão de Arendt em desenvolver um argumento consequente em desfavor da falta de liberdade na esfera privada deu margem a justificadas críticas na recepção acadêmica de sua obra (BENHABIB, 1993, p. 104-105; PITKIN, 1981, p. 346-347; WELLMER, 2000, p. 232-233; YOUNG, 2012, p. 198). Mesmo sem explorar na bibliografia secundária um balanço mais apurado sobre os motivos e a (im)precisão desse polêmico aspecto da obra arendtiana, o pressuposto republicano que se revela na argumentação da autora é essencial para a investigação acerca de seu pensamento político, particularmente em relação ao uso que faz dos conceitos de liberdade pública e de mundo comum. O pressuposto republicano em questão é a redescoberta da noção de que um bom sistema de governo precisa encontrar meios para neutralizar o peso dos interesses materiais na política. O retorno a essa noção da antiguidade clássica ganha seu impulso nas pesquisas de Arendt sobre a atuação dos cidadãos gregos na esfera pública, tão animadas pela correlata redescoberta da experiência humana elementar da política como um fim em si mesmo. Em contraste radical com nosso tempo, as atividades dos gregos na esfera pública estavam calcadas em uma busca exclusivamente política por excelência, reconhecimento e “imortalidade” – experiência que não encontraria atalhos por via das atividades humanas em outras esferas, como o labor, a reflexão teórica ou a violência. O tema da excelência humana na política, visto sob o ângulo da autocompreensão grega sobre a polis, faz demonstrar com bastante clareza a validade de retomar a separação radical entre as esferas pública e privada para fins de uma avaliação crítica das atuais práticas políticas. Nesse intuito, Arendt confronta a imersão do cidadão da polis em sua atividade pública com a apatia política das democracias de massas e, como conclusão crítica, postula um contundente diagnóstico republicano da política contemporânea. Tal diagnóstico tem por sua tese central a purificação da esfera pública de todo assunto de natureza privada, dentre os quais os interesses materiais dos indivíduos. Mais que isso, a esfera pública arendtiana é também purificada dos assuntos de natureza social, como se a
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justiça social e o desenvolvimento econômico não fossem “questões políticas de primeira grandeza” (ARENDT, 2005a, p. 11, 2006a, p. 232).5 Em seções específicas, abordo mais adiante as noções de busca exclusivamente política por excelência e de devoramento da esfera pública pela “esfera social”, ambas as noções presentes no eixo central de argumentação em A condição humana. Com essa abordagem, delineio aspectos do republicanismo arendtiano que fundamentam sua polêmica defesa da despolitização do “social” e da esfera privada. Particularmente, destaco como aportes a essa fundamentação a primazia normativa do público como o espaço da liberdade (seções 3 e 4) e a preocupação com a colonização do público como causa de esvaziamento do mundo comum (seção 5). Por outro lado, vale frisar que essa formulação teórica de uma esfera pública purificada não pode ser tomada como uma simples rejeição da relevância política do desenvolvimento econômico ou das preocupações com a igualdade material. Por ora, é suficiente relembrar algumas das sutilezas da visão da autora sobre a interface entre política e economia, ressaltando que a prevalência desta em detrimento daquela é objeto de uma crítica organicamente atrelada à defesa da autonomia recíproca de ambas as esferas. Com a exposição a seguir de tais sutilezas, friso a íntima correlação, no conjunto teórico arendtiano, entre a criticada imunização da esfera privada às exigências de igualdade e liberdade, e a imunização da esfera pública aos efeitos deletérios do interesse material. Isso servirá para descartar o caminho de simplesmente relevar as arraigadas opiniões de Arendt nessa temática dos problemas sociais e econômicos, como se fosse possível isolá-las do conjunto da obra.6 Aquelas exigências de igualdade e liberdade, como repisarei na seção 4, estão pressupostas no conceito forte de esfera pública empregado pela autora e, com o postulado da autonomia recíproca entre o público e o privado, elas não se deveriam estender às questões econômicas, sociais e da vida familiar – ou, ao menos, não deveriam ali prevalecer. Por outro lado, a imunização da esfera privada contra a interferência dos princípios e do direcionamento pela esfera pública se insere em um diagnóstico mais amplo da modernidade. Insere-se, assim, na resposta a um problema mais grave que a invasão do privado pelo público, qual seja, o surgimento de uma terceira esfera que destrói a linha divisória entre o público e o privado e permite a “vitória do animal laborans”, rebaixando a ação humana em público à mera satisfação de vaidades (ARENDT, 2005a, p. 326-327). 5
Uma forte crítica à visão de Arendt sobre as clivagens entre política e interesses, e entre política e questões sociais, aponta que “traçar as fronteiras” entre o que deve ou não ser o assunto de cada esfera já constitui por si só uma questão política (WELLMER, 2000, p. 232-237). Tal crítica está amparada particularmente na obra Sobre a revolução, enquanto a presente pesquisa traz os elementos de uma interpretação mais ampla.
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Essa tentativa de “colocar entre parêntesis” a visão da autora sobre as questões sociais, aproveitando as linhas mais democráticas de sua concepção sobre a política, é criticada pela pretensão de remover o pilar da ontologia política arendtiana: a dicotomia entre necessidade e liberdade (CHRISTODOULIDIS; SCHAAP, 2012, p. 108-109). Uma forma desse “colocar entre parêntesis” que, de certo modo, não se esquiva de uma abordagem integral do pensamento da autora é a estratégia de aproveitar seus insights mais profundos sobre a natureza igualitária da política e da liberdade como ferramentas para enfrentar seus argumentos mais elitistas e até reacionários, cujo reflexo mais perfeito estaria na “visão inteiramente negativa de Arendt sobre a política como busca por justiça social” (BRUNKHORST, 2000, p. 178, 196, tradução nossa).
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A terceira esfera é a “esfera social”, que revela, na vida prática, a elevação da atividade do labor e das preocupações com o seu aperfeiçoamento para acima não apenas das preocupações com o brilho e a excelência na política, mas para acima também das preocupações de privacidade que demarcam a esfera privada. Nesse sentido, pode-se dizer que a primazia da economia na era moderna – considerado o econômico nesse nível mais automatizado e mais impessoal que reflete a atividade conceituada por Arendt como o “labor”7 – é o que desperta a retomada pela autora de um modelo da antiguidade para a crítica da vida política e social contemporânea. O paradigma recuperado da polis grega consiste na radical distinção entre o público e o privado. Concluindo meu raciocínio, a autonomia recíproca entre as esferas pública e privada, e particularmente entre a política e a economia, é uma proposta normativa da autora que busca reverter o predomínio do animal laborans que logrou se perfazer com a ascensão da esfera social. Para levar a efeito uma crítica consequente a esse predomínio, Arendt entendeu que não poderia contrapor à invasão da economia sobre a política uma troca de polos em que a esfera pública “tomasse as rédeas da economia” ou assumisse posições outras nesse gênero. Tal inversão não teria o condão de restabelecer a linha divisória entre o público e o privado, mas apenas representaria uma variação pouco original no histórico de fortalecimento da esfera social. Alguns aspectos mais pontuais e mais concretos da visão de Arendt sobre a interface entre economia e política podem acrescentar alguma luz a esse elemento polêmico de seu diagnóstico da modernidade que, conforme mencionei, não merece ser colocado à parte como um “erro perdoável” ou como um “exagero retórico” da autora, separável do conjunto de sua argumentação. Um desses aspectos, que abordarei brevemente, encontra exemplo na temática da distribuição da propriedade privada, explorada de forma particularmente interessante em duas publicações: uma de 1958 (A condição humana) e outra de 1970 (Reflexões sobre política e revolução, título da entrevista incluída em Crises da república). Dessa forma, Arendt descreve em relação à propriedade privada uma linha de continuidade entre os países capitalistas e socialistas quanto à expropriação dos meios de produção e dos direitos subjetivos em geral – abrangendo desde os direitos sindicais, trabalhistas e sociais, até o direito à intimidade do lar. Com uma percepção penetrante, a autora ressalta que o marco histórico (ou “evento”) da expropriação da Igreja Católica pelos reformistas foi o ponto de partida para a expropriação dos camponeses e para um processo crescente de expropriação, tendente à “expropriação total” e ao sacrifício dos elementos básicos de um mundo comum durável (ARENDT, 2013, p. 182-185, 2005a, p. 76-78, 263-269). A salvaguarda contra a expropriação total reside nas instituições jurídicas e governamentais que refreiam o automatismo das forças econômicas. O modelo para tais instituições residiria, nas 7
Fiz opção pela terminologia da tradução original de A condição humana, datada de 1981, a despeito da opinião de parte da literatura brasileira por uma tradução alternativa do inglês labor para o português trabalho, vertendo work para o português obra, que é a opção de Adriano Correia, em tradução com revisão de Theresa Calvet de Magalhães (ARENDT, 2005b, p. 196). Por outro lado, a tradução original que utilizei precisou frequentemente ser confrontada com o texto em inglês (ARENDT, 1998), em razão de certa inconsistência na tradução desses conceitos. Alguns exemplos dessa inconsistência trazem acentuada dificuldade de compreensão (ARENDT, 2005a, p. 57).
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indicações da autora, no welfare state ou Estado de bem-estar social construído em países como a Suécia. Caberia assim a busca de um equilíbrio entre os processos expansivos da produção e as garantias sustentadas pelo poder estatal e pelas leis, de forma que a violação da esfera privada fosse contida em todos os níveis – desde violações mais brandas como altas cargas tributárias e pressão inflacionária, até outras mais severas como a vigilância sobre a vida privada e a simples negação do direito de propriedade (ARENDT, 2013, p. 182-185). Portanto, percebe-se a autêntica preocupação da autora com a formatação de instituições que – para atingir o objetivo republicano da manutenção de um mundo comum estável, que é o requisito indispensável para a permanência de uma esfera pública ativa – não apenas sustentem a integridade da esfera privada, mas também, para tanto, garantam na sociedade de massas um grau suficiente de justiça distributiva. Com efeito, para Arendt o alvo de preocupações propriamente políticas deve ser menos a distribuição da riqueza do que a distribuição de propriedade, que para ela são conceitos bem distintos. Na sociedade de massas, contudo, uma justa distribuição de propriedade envolveria a reconstituição de uma classe de trabalhadores à qual se garantem alguns direitos subjetivos com efeitos sobre a renda, dentre os quais os direitos de “negociação coletiva, greve, segurodesemprego, seguridade social” e de organizar sindicatos e partidos (ARENDT, 2013, p. 184-185, 2005a, p. 71).
3.Interesses e busca por excelência na perspectiva da política performativa A recepção da obra arendtiana no meio acadêmico é marcada por uma série de dualismos e potenciais contradições internas, muito em razão da complexidade dos temas abordados em suas reflexões, mas também devido a uma estratégia argumentativa que jamais sacrificou as intuições do bom senso e a imediatidade do diálogo mental com sua audiência em nome da rigidez conceitual ou de uma consistência monolítica da obra (EUBEN, 2000, p. 163). Entre os comentários com as mais amplas perspectivas do impacto de Hannah Arendt na literatura política, encontram-se delineados os principais dualismos que separam as diferentes interpretações de sua obra: elitismo e igualitarismo, heroísmo e deliberação, fontes gregas e agostinianas, recepções heideggerianas e habermasianas, correntes performativas e constitucionalistas, e assim por diante (BRUNKHORST, 2000; EUBEN, 2000; WALDRON, 2000; WELLMER, 2000). Para discorrer sobre a perspectiva agonística ou performativa existente na obra de Arendt, é válido iniciar com o crucial alerta de Jeremy Waldron, para quem a autora não pode ser entendida unilateralmente sob esse ângulo da política do extraordinário, como se sua afinidade com os temas da fundação revolucionária e da ação espontânea permitisse descartar toda a sua preocupação com a estruturação de quadros de referência e instituições formais que possam dar lugar à ação política regular. Essa preocupação reflete a compreensão da atividade política não como “meramente tentar impressionar uns aos outros na qualidade de dramatis personae”, mas também como “dialogar uns com os outros com vistas à ação em concerto” e com responsabilidade perante uma constituição (WALDRON, 2000, p. 202-203, 209).
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Ainda assim, a perspectiva performativa da política tem um papel relevante na fundamentação arendtiana dos afastamentos recíprocos entre o público e o privado, inerentes a seu conceito de liberdade. Minha investigação certamente contribui para repudiar qualquer sinal de indiferença da autora para com as estruturas e os procedimentos formais da esfera pública, dada a ênfase que concedo às soluções institucionais para o problema de deterioração do mundo comum. Mas nesta seção eu transito pelas questões da política como campo da expressão pessoal, do virtuosismo em feitos e discursos, e da demonstração da excelência sob os holofotes públicos. Tais questões permitem colocar em pauta um modelo de esfera pública apto a neutralizar o peso dos interesses materiais na política, substituindo-os pela motivação exclusivamente política. Esse modelo tem por base a experiência grega pré-filosófica, com referências aos historiadores e dramaturgos da geração anterior a Platão, especialmente Heródoto, Tucídides e Sófocles, bem como à poesia mais antiga, de Homero e Hesíodo. Para confirmar a forte influência dessa literatura no pensamento de Arendt, veja-se o fecho de Sobre a revolução com as palavras de Sófocles sobre a única coisa que faria a vida valer a pena: os feitos e palavras que, emanados na polis, podiam “conferir brilho à vida” (ARENDT, 2006b, p. 273). O brilho, a glória ou a excelência (arete para os gregos) são atributos de quem age na esfera pública – e, nesse sentido, o discurso nada mais é que a forma essencialmente política da ação. Sem a existência de um espaço público “onde tudo e todos são vistos e ouvidos por outros”, e onde as pessoas podem mostrar aos pares a performance de seus feitos e palavras, inexistiria assim também a busca pela distinção. Sem esse espaço e sem essa motivação, a excelência em sua qualidade original, como experimentada na antiguidade clássica, perderia a sua condição de possibilidade (ARENDT, 2005a, p. 58-59, 87). No ensaio O que é liberdade?, Arendt frisa que o objeto do seu título não pode ser bem compreendido sem o retorno às tradições pré-filosóficas da antiguidade. Por se tratar de conceito de origem exclusivamente política, a liberdade não foi incorporada no nascente pensamento filosófico, desde Parmênides e Platão. Se a filosofia era então fundada com a proposta de oferecer uma alternativa à vida na polis, voltando-se para a contemplação e a dialética, logo não se poderia mesmo esperar que o mundo político da retórica e dos “grandes feitos e eventos” fosse por ela retratado com a profundidade atingida apenas no legado literário da historiografia e da poesia (ARENDT, 2006a, p. 156, 163-165). Além das fontes para uma narrativa essencialmente política da história grega que são os escritos de Heródoto e Tucídides, a autocompreensão da vida na esfera pública está fortemente presente na poesia épica de Homero e nas tragédias de Sófocles. Na Ilíada é ressaltado, por exemplo, que o estatuto heroico de Aquiles reside simplesmente, no idioma original, em ser “um dizedor de palavras e um fazedor de feitos”.8 Aqui, dizer palavras não está relacionado à capacidade biológica para a fala, nem tampouco à comunicação no sentido de troca de informações e de expressão do pensamento, mas relaciona-se, segundo Arendt, à espontaneidade do ato de “encontrar as palavras 8
A tradução literal sugerida por Arendt para esse verso da Ilíada (Livro 9, linha 443) é a mesma feita por J. F. Dobson (1919).
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adequadas no momento certo” e de “emitir grandes palavras em resposta a rudes golpes” (ARENDT, 2005a, p. 34-35). Nas Histórias de Heródoto, a natureza humana dos deuses seria uma característica distintiva da cultura grega por oposição aos persas. Por outro lado, essa concepção implica que também o ser humano comunga da natureza divina, tendo a “capacidade de feitos imortais” – isto é, a capacidade de realizar em público atos e discursos que passam a integrar o mundo comum e que assim estendem sua durabilidade para além do tempo de vida do indivíduo. Na visão política grega, percebida também em reflexões pré-socráticas como as de Heráclito, a qualidade que destaca o ser humano em relação aos outros animais é “preferir a fama imortal” à satisfação com o prazer das coisas mortais (ARENDT, 2005a, p. 27-28). O desejo de imortalidade, a seu turno, exige um mundo compartilhado de coisas duráveis que servem à construção da memória dos “grandes feitos e palavras”. Toda pretensão à imortalidade se funda na confiança em um dom de lembrar cujo suporte é o mundo comum fabricado pelos artistas, escritores, arquitetos, escultores – e também pelos legisladores e magistrados, se eu bem interpreto a autora nesse ponto. Com efeito, a Declaração de Independência dos Estados Unidos é para Arendt o melhor exemplo de uma peça de escrita que representa “um dos raros momentos na história em que o poder da ação é grande o suficiente para erigir o seu próprio monumento” (ARENDT, 2005a, p. 183, 187, 2006b, p. 122). A nova ideia condensada pela Declaração de Independência é o repúdio à monarquia como princípio, e não como simples instrumento da rebelião contra um monarca em particular. Esse repúdio não estava entre as causas da revolução, mas é somente com o desenrolar desta que ele toma forma – e isso se verifica tanto na Revolução Americana como na Revolução Francesa. No caso dos Estados Unidos, a experiência de participação do homem comum na vida pública imprimiu o princípio republicano na Declaração de Independência e no longo processo constituinte que se sucedeu. A rejeição do modelo monárquico associa-se a uma nova configuração para o conceito de tirania, cujo sentido é modificado para responder à própria experiência revolucionária. Nesse contexto histórico, os revolucionários de Arendt são pessoas cuja dedicação a grandes e violentas rupturas institucionais não deve ser compreendida como sacrifício em nome de ideais previamente formulados, mas sim como uma manifestação de seu “amor à liberdade pública e à felicidade pública”. Esse amor é em grande parte independente da sofisticação intelectual daqueles ideais que se formavam em círculos literários e que, com o deflagrar das revoluções, pretenderam servir de orientação ao impulso transformador. Tendo diante de si essa penetrante visão sobre as motivações revolucionárias na América do Norte, Arendt debruça-se sobre a forma como a efetiva experiência da liberdade pública, vivenciada após o pontapé inicial da ruptura, operou uma transformação do conceito em voga de tirania (ARENDT, 2006b, p. 120-127). A experiência de agir na esfera pública não só “erigiu o seu próprio monumento” com a Declaração de Independência, mas também trouxe para a sua própria proteção uma nova perspectiva sobre a tipificação de práticas tirânicas. Acerca do primeiro aspecto, esse caráter
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monumental da Declaração de Independência, das constituições estaduais e dos primeiros documentos constitucionais da federação tinha as funções correlatas de conferir imortalidade aos feitos revolucionários (ao fornecer um suporte material para a memória sobre eles) e de reservar no mundo comum um lugar para se exibirem novos feitos e palavras e para se exercitar a liberdade pública mesmo após o término da revolução. Quanto ao segundo aspecto, e exploro aqui o interessante raciocínio de Arendt ao comparar as concepções de política segundo as correspondentes definições do mau governo, a experiência pública consubstanciada naqueles documentos tinha em seu seio um conceito de tirania que mirava a vedação de acesso à esfera pública e de participação nos assuntos públicos. Distintamente, o conceito formulado no Antigo Regime – sob a idêntica terminologia da contraposição entre “despotismo” e “felicidade pública”, como sublinha a autora – se preocupava apenas com a dimensão da indesejável prevalência dos interesses privados do governante sobre os interesses privados e o bem-estar dos governados (ARENDT, 2006b, p. 116-121). Na visão política que prevaleceu do fim da antiguidade até o Século XVIII, governar é um encargo laborioso em prol do bem comum, que se define pelos interesses em comum oriundos da esfera privada de cada indivíduo. Assim, a busca do bem comum não se traduz na formação de uma esfera pública, mas na atribuição a um governante do encargo desapaixonado de zelar pela felicidade privada de cada um (ARENDT, 2005a, p. 44, 2006b, p. 119). Com essas indicações, já é possível perceber claramente a distinção entre o modelo de plena identidade entre os interesses materiais e as motivações da atividade política, equivalência essa reforçada pelo surgimento moderno da esfera social e do estado-nação, e, de outro lado, o modelo clássico da paixão política por agir e ser visto em ação. Ainda que não esteja entre os objetivos de minha atual pesquisa uma perquirição completa das graves consequências de não se buscar a neutralização do peso dos interesses materiais na vida pública, não há como deixar de mencionar os argumentos cortantes de Arendt contra o sistema de partidos da democracia de massas. As tendências autocráticas, oligárquicas e até totalitárias são enfatizadas como características perigosas dos partidos políticos nas democracias multipartidárias europeias. Tais tendências se devem justamente aos obstáculos que tais estruturas impõem à penetração da ação e da opinião na arena política, pois se afirmam como mecanismos de representação de interesses, sem espaços para a participação direta (ARENDT, 2006b, p. 260-262). Mais grave: se um bom sistema de freios e contrapesos, em conjunto com a consolidação do direito de propriedade e das liberdades civis, são adequados para resguardar uma república moderna contra a tirania pessoal dos governantes em exercício, nada podem oferecer contra o tipo de corrupção que procede da esfera social em direção à esfera pública. Somente a visibilidade e a transparência de uma esfera pública bem delimitada e fortemente ativa é que podem expurgar as interferências indevidas de interesses materiais. Somente a recuperação da consciência política clássica sobre a liberdade pública – e, portanto, da busca de excelência inerente ao âmbito performativo da liberdade – é que pode neutralizar o horizonte corrupto das pretensões partidárias à suficiência da representação de interesses (ARENDT, 2006b, p. 243-245).
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4.A liberdade grega e suas exigências de pluralismo e igualdade política Para retomar a contraposição arendtiana entre o conceito grego de liberdade pública e a moderna “esfera social”, destacando a forma como esse argumento se insere na compreensão do papel político da construção de um mundo comum, é preciso antes delinear – como pretendo fazer nesta seção do trabalho – os pressupostos de pluralismo e igualdade política incutidos naquele conceito. Assim, busco descrever seu conceito de liberdade com um enfoque peculiar, tendo em consideração o pathos angustiante com que a autora aborda a perda de fronteiras entre as esferas pública e privada. Nesse enfoque, enfatizo que os princípios republicanos de pluralismo e igualdade, na modulação específica dada pelas obras em estudo, estabelecem a fundamentação normativa para atribuir relevância política não apenas à construção e guarda do mundo comum, mas também ao parcelamento deste para a reserva de lugares com destinação exclusiva a determinadas atividades humanas. Sem dúvidas, a perspectiva republicana de Hannah Arendt interessa-se particularmente por um espaço exclusivo para a ação livre entre iguais. O que não significa que atividades como a produção econômica, a reflexão acadêmica, a divulgação jornalística, as intervenções criativas em diversas áreas das artes e do empreendedorismo, e ainda a atividade jurisdicional deixem de exigir da mesma forma os seus respectivos espaços exclusivos. Mesmo se esta investigação não explora com mais detalhes o componente das funções políticas externas que perpassam algumas dessas atividades (ARENDT, 2006a, p. 255-259), pelo menos o simples fato de evitar a contraprodutiva mesclagem de princípios já justifica a defesa de espaços exclusivos onde essas atividades se desenvolvam sem ameaçar os princípios republicanos da esfera política. O conceito forte, e até exclusivista, com que Arendt apreende o fenômeno da esfera pública traz consigo uma distinção rigorosa para com a esfera privada e um critério bastante exigente para se medir o grau de ativismo público existente em dada comunidade política. Altos percentuais de comparecimento às urnas e de filiação a partidos de massa, por exemplo, não seriam em si um sinal de dinamismo da esfera pública, mas apenas um indicativo de que as pessoas estão buscando a representação de seus interesses particulares nas funções governamentais da “esfera social”. Em outras palavras, o estado apático na vida pública dos cidadãos em nada seria modificado pelo acréscimo em índices de efetivo exercício do direito de voto, se este não se altera em sua natureza de mecanismo da representação de interesses em senso estrito. O republicanismo arendtiano se constrói sobre a experiência arquetípica da felicidade humana vivenciada em uma busca pessoal de excelência na política – entendida essa busca em sua absoluta independência em relação aos interesses materiais inerentes ao labor e ao consumo, e também em relação a princípios inerentes a outros campos de atividade. Entre esses princípios externos à política republicana encontram-se, além dos interesses privados, diversas facetas da experiência humana que povoam a ampla reflexão crítica da autora, tais como a compaixão, a caridade cristã, as
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pretensões à dominação, o uso da violência e, inclusive, o amor à verdade que orienta os campos acadêmico, jornalístico e jurisdicional. Quanto a estes últimos campos, ilustram bem o que mencionei como as funções políticas externas que garantem a permanência do mundo comum e a segmentação física e simbólica do acesso a ele pelas variadas atividades humanas. Como espaços de expertise marcados pelo compromisso institucional com a busca da verdade e com os rigores da precisão técnica, esses campos incitam em seus protagonistas uma vocação para proteger os alicerces e as delimitações internas do mundo comum. Sendo campos de especialistas, seus integrantes se orientam para questões não políticas. Assumindo contudo o papel de guardiões do mundo comum, colocam-se diretamente encarregados tanto da demarcação das fronteiras entre o espaço da política e os demais espaços sociais e privados, como também da filtragem de acesso da radicalidade inovadora da ação (e dos processos incontroláveis que esta deflagra) sobre os eventuais fluxos de renovação do quadro de referências da comunidade política. Antes de analisar mais detidamente os percalços de apagamento do mundo comum no contexto moderno da “esfera social”, faço então uma recuperação da concepção de liberdade pública sob o ângulo do ambiente de pluralismo e isonomia em que ela floresce. Para ser bem preciso, considero que Hannah Arendt, na visão própria acerca da ação livre que ela fornece em sua obra, apresenta uma concepção de liberdade cujos pressupostos mais amplos são a esfera pública plural, igualitária e autônoma em relação a outras esferas, e o mundo compartilhado de objetos físicos, lugares, patrimônio artístico e literário, referências mentais, esquemas retóricos e linguísticos. Para buscar essa caracterização do conceito de liberdade, a principal fonte é o livro A condição humana, mas também alguns desenvolvimentos posteriores feitos pela autora em Sobre a revolução e nos ensaios reunidos em Entre o passado e o futuro (ARENDT, 2005a, 2006a, 2006b). Considerando a liberdade em sua acepção como uma qualidade da ação na esfera pública, Arendt aponta que a atividade econômica era, na Grécia Antiga, hierarquicamente inferior à atividade política. Todas as atividades de reprodução econômica e biológica do lar privado eram vistas como uma etapa da qual o ser humano precisava se desvencilhar para chegar à esfera política. Dito de outro modo, a concepção grega de liberdade tinha a esfera política como o único espaço possível para alguém ser livre. Por oposição, a esfera privada era o espaço de confronto com as necessidades, a serem vencidas mediante força e violência, aplicadas inclusive contra os escravos que se dedicavam ao labor diário, ou, de maneira mais geral, contra os elementos da natureza utilizados na fabricação dos bens materiais (ARENDT, 2005a, p. 40, 152). A impossibilidade de ser livre na esfera privada decorreria não apenas de nela se exigirem práticas relacionadas à violência e ao uso da força, mas também do fato de ali haver incontestável desigualdade. Certamente, o exercício da liberdade pressupunha entre os gregos essa existência dos “desiguais”, i.e., das mulheres e escravos que deveriam dedicar-se exclusivamente às atividades produtivas, mercantis e de conservação do lar. Arendt destaca, inclusive, que essas pessoas excluídas da esfera pública constituíam a maioria da população das cidades-estado. Sob o ponto de vista dos cidadãos do sexo masculino, cabia-lhes saber transitar entre seu despótico reino privado –
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onde determinavam com força hierárquica a execução das atividades de reprodução da vida familiar – e o espaço isento de comando que era a esfera pública (ARENDT, 2005a, p. 42, 2006a, p. 105). Colocando a questão nos termos da deliberada exclusão da cidadania de alguns, não se trata de um preço que, na percepção de Arendt, o ser humano deveria estar disposto a pagar para ter um espaço disponível à performance política. Devo ressaltar, nesse sentido, que a injustiça da escravidão nas cidades-estado gregas e no primeiro período da independência estadunidense é uma constatação presente na obra da autora. Por outro lado, essa constatação não se insere em uma crítica suficientemente clara das relações de dominação na esfera privada 9 e talvez seja possível afirmar que Arendt aceitaria, sim, o preço das formas mais brandas de dominação no âmbito da família, da escola e da administração empresarial e estatal – já que o princípio hierárquico que a autora identifica nessas esferas é indissociável de algum grau de dominação, implicitamente tido por inofensivo, desde que as atividades ali desenvolvidas não interfiram nem pretendam obter ascendência sobre a esfera política. Mesmo sem uma resposta conclusiva para esse dilema da interpretação de sua obra, não é necessário nenhum esforço especulativo para se afirmar que a ideia de primazia da esfera pública – decorrente de somente nela haver pleno potencial para a liberdade – é fundamental para a reconstrução de uma visão arendtiana acerca do papel republicano de esferas vizinhas que exercem funções complementares de estabilização, filtragem de acesso e definição de fronteiras para as atividades políticas. Antes de suscitar esse ponto na parte final do trabalho, quando desenvolvo a possibilidade de conter a deterioração do mundo comum por meio de garantias externas para as estruturas e os procedimentos formais da esfera pública, a presente investigação fixa neste momento a fundamentação da prioridade normativa da esfera pública: qual seja, a perspectiva da liberdade como uma qualidade da ação em condições plurais e igualitárias que só podem ser encontradas na esfera pública. A singularidade de cada ser humano e a pluralidade da vida em comum são, para Arendt, a condição suficiente (conditio per quam) da esfera política. Em outras palavras, a ação, que é “a atividade política por excelência”, não pode sequer ser imaginada sem a “constante presença de outros”, no plural. Diferentemente do labor, que é a atividade central da esfera privada e da economia, na ação a convivência não decorre de compulsões biológicas, mas de fatores externos à dimensão natural do ser humano. A individualidade e o pluralismo se manifestam apenas nessa convivência em que algum fator criado pelas mãos e intelecto do ser humano – e previamente
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Ver este estudo sobre Direito e política em Hannah Arendt, em que a autora, no bojo de sua crítica à abordagem arendtiana da questão social, aponta que o diagnóstico sobre o fracasso da Revolução Francesa não deveria ignorar que a busca pela libertação de relações opressivas no campo econômico está mais para um valioso “fator desencadeador da ação política” do que para um dispensável fator de rebaixamento da política à mera administração dos assuntos privados (TORRES, 2013, p. 179-180). Certamente, o mesmo raciocínio aplicar-se-ia à busca pela libertação em outras questões que perpassam a esfera privada, como a emancipação feminina e a luta contra discriminação racial e religiosa. O campo fértil da produção teórica contemporânea sobre democracia participativa traz uma interessante exemplificação, partindo da crítica feminista à ética universalista, da analogia entre a opressão econômica e a de gênero (YOUNG, 2012, p. 199).
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incorporado ao mundo exterior – permite uma interação artificialmente igualitária (ARENDT, 2005a, p. 15-17, 39-40). Assim, ainda que as necessidades naturais possam frequentemente colocar os seres humanos uns ao lado dos outros na labuta de sua reprodução como espécie, somente a liberdade da ação política é que rompe com o efeito nivelador das necessidades naturais, dando lugar a outro tipo de igualdade. Rompendo com a uniformidade de condutas que é o objeto de cálculo das ciências comportamentais, a experiência política da liberdade se destaca pela imprevisibilidade necessariamente resultante da interação comunicativa entre pessoas que reconhecem a todo momento, olhando para si e para os demais, a individualidade irredutível de suas identidades. O ambiente de relações simétricas em que se dá esse reconhecimento mútuo pressupõe algum fator “mundano” a igualar os desiguais no próprio curso da interação (ARENDT, 2005a, p. 50-51, 224227). Para que nessa interação os envolvidos sejam pares agindo livremente em condições de igualdade política, não basta todavia um fator igualador generalizado (como a forma dinheiro, que se coloca como o denominador comum da satisfação de toda e qualquer necessidade natural), pois, nas interações próprias da esfera pública, a singularidade do indivíduo deve se expor à singularidade dos demais. Nesse sentido, as tentativas de inserir na esfera pública uma moeda universal como o dinheiro, a admiração ou status social, ou a força hierárquica acabam destruindo, com seu efeito uniformizador de comportamentos, a possibilidade desse contato entre as singularidades. O mundo comum de objetos físicos, lugares, memórias e esquemas mentais é destruído como realidade compartilhada quando se ignora sua relação umbilical com a pluralidade de perspectivas. Sem pluralismo não há mundo comum e sem este não há esfera pública (ARENDT, 2005a, p. 66-68, 2005c, p. 175). O ambiente plural e isonômico é de importância tão alta para a consciência política antiga que isonomia é o termo utilizado em Heródoto para a forma de governo tipicamente grega, isenta de comando e de submissão. A valorização dessa forma de governo não se baseia em seu grau de adequação à natureza humana, fundando-se antes no recurso a “uma instituição artificial, a polis”, cujas leis igualam as pessoas ao trazerem-nas para seu espaço como cidadãos. Essa instituição resulta, a bem dizer, do esforço deliberado do ser humano para criar um mundo comum e um espaço para as atividades públicas exercidas diante de uma pluralidade de pares (ARENDT, 2005a, p. 4142, 2006b, p. 20-21). Mudando o foco do ambiente para o teor da ação, há nesta um duplo aspecto que, na consciência política grega e romana, impossibilitaria atalhos solipsistas para a liberdade. Diferentemente da tradição aristocrática formada no mundo ocidental a partir da reconfiguração da política como fabricação no pensamento de Platão, a concepção política da polis e a da República Romana têm o “iniciar” e o “realizar” (archein e prattein), ou o “dar movimento” e o “conduzir” (agere e gerere), como dois aspectos indissociáveis da ação. Desse modo, a definição corrente na antiguidade
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clássica traduz ao mesmo tempo a essência coletiva da ação 10 e a impossibilidade de hierarquizar a relação política entre quem lidera e quem realiza. Se a liberdade é uma qualidade da ação em público no sentido exposto, então o governante solitário nunca é livre. Tanto maior seu autodomínio sobre as próprias paixões e sua fria expertise técnica – i.e., sua capacidade de externar a vontade de poder e sua habilidade em moldar os negócios humanos segundo ideias que previamente definiu –, tanto mais seguramente destruídos resultam o pluralismo e a possibilidade de um mundo comum. A dinâmica desapaixonada da transmissão assimétrica de conhecimento do comandante ao comandado é a via mais segura para o integral repúdio à “interdependência original da ação”, ou à dependência mútua do iniciador e do realizador. Os papéis estanques de idealização e execução, que encaram a política como um processo fabril de projetos de governo, minam justamente a pluralidade de perspectivas criadora da possibilidade de formação do mundo comum e da esfera pública (ARENDT, 2005a, p. 202-203, 237-239).
5.Esvaziamento do mundo comum e possíveis garantias em face da esfera “social” Em uma entrevista concedida em 1964 e disponível em vídeo, o interlocutor tenta induzir Arendt a definir “mundo”, esse conceito bastante utilizado em sua obra. Na primeira tentativa, ela apenas concorda com a resposta antecipada pelo entrevistador, sem dar grande importância à curiosidade dele: “um espaço para a política”. Em um segundo momento, Arendt rejeita essa definição e propõe outra, “em um sentido muito mais amplo, como o espaço em que as coisas se tornam públicas, como o espaço em que se vive […], em que todos os tipos de coisas aparecem” (ARENDT, 2003, p. 16-19). Entre as “coisas que aparecem” estão não só objetos físicos, lugares e obras de arte, mas também quadros de referências mentais que englobam conceitos, valores, memórias, esquemas retóricos e linguísticos etc. Com efeito, todos esses objetos duráveis passam a integrar o próprio espaço que possibilitou seu surgimento, confundindo-se ambos no conceito de mundo comum empregado por Arendt. Na conhecida metáfora da autora, que revela a operacionalização do conceito em uma reflexão republicana, o mundo comum é uma mesa que ao mesmo tempo separa e une as pessoas
10 Hannah Arendt utiliza a expressão “agir em concerto” – uma alusão a Edmund Burke, em cujas palavras “os homens não podem agir com eficácia se não agirem em concerto” – para se referir a essa característica coletiva da ação na esfera pública (ARENDT, 2005a, p. 256, 2012, p. 698), sendo perceptível o grande zelo em evitar noções de subjetividade coletiva em sua peculiar descrição republicana da ideia de comunidade política. Esse é um fato corriqueiramente anotado pela literatura de comentários, seja em tom de crítica – em razão, por exemplo, de Arendt não ter explorado a realidade do conceito de povo como sujeito da democracia (DISCH, 2011, p. 366) e de não ter diferenciado a simples intersubjetividade do ponto de vista da reflexividade de um sujeito coletivo (LINDAHL, 2006, p. 899) – ou em uma linha de interpretação que adere a esse zelo, de modo, por exemplo, a reafirmá-lo na tese da incompatibilidade entre a política performativa e a sua institucionalização como forma coletiva (KRUKS, 2006, p. 487).
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reunidas ao redor dela (ARENDT, 2005a, p. 62), de modo que a pluralidade de indivíduos singulares não se perde em nenhum tipo de uniformização enquanto estes estão a agir em concerto.11 Mas o mundo comum não é algo dado nem tem garantias perfeitamente seguras de continuidade. Para certas experiências humanas, a ausência de mundo (worldlessness) é até uma pré-condição sem a qual não haveria, por exemplo, a beleza do amor ou da amizade. 12 Não obstante, a experiência da performance em público, ínsita à política em seu sentido mais elevado da busca por excelência e imortalidade, é impossível sem alguma perspectiva realista de permanência do ambiente mundano. E é por essa razão que a atividade do labor – que se orienta para a satisfação de necessidades cíclicas e infindáveis, e que é indiferente para a durabilidade de coisas que afinal se destinam ao exaurimento de si naquele processo de satisfação – é tida como um perigo para a atividade política quando sobre esta ganha ascendência. O polêmico alarmismo de Arendt em relação à esfera “social” deve-se justamente a essa primazia do labor, de consequências deletérias sobre a liberdade e sobre seu pressuposto do mundo comum. Não é apenas por sua indiferença com a durabilidade das coisas que o labor provoca o apagamento do mundo comum, mas também pela absoluta incompatibilidade entre o pluralismo de perspectivas sobre o mundo e a uniformidade comportamental resultante do confronto com necessidades. Na sociedade de massas, cuja forma política é o estado-nação e cuja autocompreensão é a de uma família ampliada, cada perspectiva individual sobre o mundo é apenas o “prolongamento da perspectiva do vizinho”. A experiência singular, enclausurada ao nível de sua própria subjetividade, não é sequer capaz de tangenciar a realidade do mundo, que só se expõe, para Arendt, pela coincidência entre variedade de perspectivas e identidade do objeto (ARENDT, 2005a, p. 3738, 67). A uniformização de perspectivas é o problema básico imposto pela autocompreensão privatista da coletividade política. Todavia, o outro pressuposto para a apreensão da realidade do mundo também é abalado pela configuração política da sociedade de massas. Assim, ainda que se coloque à parte a questão da deterioração do pluralismo, outro problema inafastável é a perda da identidade do objeto, no momento em que a falta de compromisso com a verdade factual se generaliza e atinge um ponto de ruptura – particularmente, no momento em que a mentira política, inofensiva em outras circunstâncias, passa a utilizar técnicas publicitárias e mídia de massa para oferecer ao conjunto dos cidadãos uma imagem substituta da realidade (ARENDT, 2006a, p. 247-249, 2013, p. 17).13
11 Em uma vertente de pesquisas sobre a concepção de mundo comum na obra de Arendt, destaca-se uma tese de doutorado que conseguiu construir uma perspectiva bastante abrangente sobre a trajetória dessa concepção ao longo da obra da autora, com especial aprofundamento sobre o tema tal como apresentado em Origens do totalitarismo, A condição humana e A vida do espírito (ALVES NETO, 2007). 12 A tradução brasileira original de A condição humana utiliza termos variados para worldlessness: “natureza extraterrena” (do amor); “qualidade não-mundana” ou “caráter extramundano” (da caridade cristã); “negação do mundo”; “completa ausência do mundo”; “isolamento em relação ao mundo” (ARENDT, 2005a, p. 61, 63, 64, 87, 127, 131). Encontram-se ainda outras traduções, por exemplo, na entrevista a Günter Gaus: “amundano” (ou “no mundano”, em espanhol) para worldless; e “amundanidade” para worldlessness (ou “ausencia de mundo”, em espanhol) (ARENDT, 2008, p. 47, 50).
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Nessas condições modernas, a derrocada da política republicana – i.e., da política centrada nos feitos e palavras externados em uma esfera pública de cidadãos igualmente livres – significa não apenas a expulsão de certos princípios da esfera de atividades políticas (especialmente o pluralismo e a excelência), mas também, como consequência mais profunda, o esvaziamento de conteúdos e a retração generalizada do mundo comum. Em contrapartida, as análises de Arendt sobre a separação de poderes e o sistema de freios e contrapesos – que mereceriam estudo minucioso em um projeto mais amplo que o presente – permitem vislumbrar arranjos institucionais compatíveis com um possível refluxo dos avanços colonizatórios da esfera “social”, ante uma nova relevância política atribuída às atividades extrapolíticas de (1) construção e guarda do mundo comum, e (2) parcelamento deste para a reserva de lugares com destinação exclusiva a determinadas atividades humanas. Quanto ao primeiro aspecto, não é demais reforçar a benfazeja instrumentalidade política que Arendt atribui à criatividade do homo faber, responsável pela produção do mundo de coisas duráveis que é o lugar e o assunto da ação na esfera pública (particularmente, a memória dos “grandes feitos e palavras”14 encontra-se entre os mais importantes assuntos da esfera pública) (ARENDT, 2005a, p. 187). O homo faber, que representa a faceta das capacidades humanas relativa à fabricação e transformação das coisas, está presente no mundo contemporâneo nas pessoas dos artistas – incluindo escritores, arquitetos, escultores – e dos artífices institucionais, termo que sugiro para abarcar as funções especializadas dos magistrados, legisladores e gestores públicos. De modo geral, essas atividades acessórias da esfera pública não servem apenas à mencionada estabilização do mundo compartilhado, mas abrangem aquele segundo aspecto que é a filtragem de acesso e definição de fronteiras para as atividades políticas, de modo a resguardá-las contra a interferência direta de questões e princípios próprios da esfera privada e das esferas de busca da verdade, como tipicamente o são a comunidade acadêmica e a imprensa. Esses dois aspectos das “funções politicamente relevantes desempenhadas de fora do âmbito político” oferecem, em minha leitura, garantias externas para que as estruturas e os procedimentos formais da esfera pública se sustentem com integridade de princípios orientadores e com o necessário grau de permanência temporal, trazendo com isso a possibilidade de reverter a deterioração do mundo comum (ARENDT, 2006a, p. 255-258).
Conclusão A perceptível ascensão do interesse acadêmico pela obra de Hannah Arendt ainda não permite uma afirmação segura de que os principais conceitos do seu pensamento sobre a liberdade e a esfera pública já se tenham consolidado como patrimônio comum da teoria política produzida no Brasil. Para contribuir a essa sedimentação em curso, o presente estudo debruçou-se em um conjunto de 13 Acerca do ensaio Verdade e política (1967), incluído na coletânea Entre o passado e o futuro em sua edição aumentada (1968), há um comentário recente com interessantes sugestões sobre a função da verdade factual na concepção política arendtiana (DIAS, 2014, p. 111-115). 14 A ação tem a “capacidade de produzir histórias e tornar-se histórica”; com efeito, o “único produto” da ação é a “história que [aqueles que agem] vivem e encenam” (ARENDT, 2005a, p. 187, 337).
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escritos bastante representativos dos argumentos basilares do pensamento da autora, concentrandose fortemente na obra A condição humana e enfocando também o livro Sobre a Revolução, além de entrevistas e ensaios. Com recurso a esse significativo recorte de suas obras, foi realizada uma investigação exploratória sobre a avaliação histórica e normativa que Arendt desenvolveu acerca da esfera pública e do modelo político republicano. Descartando o objetivo de delinear uma acomodação sistemática dos múltiplos aspectos desse diagnóstico, este estudo buscou retratar os argumentos sociológicos e humanísticos, o apelo a valores clássicos e o potencial teórico dos argumentos centrais ali presentes. Partindo da temática seminal da diferenciação entre o público e o privado, colocou-se em destaque o esforço original da autora para trazer essa temática tão comum da filosofia política para o contexto da sociedade de massas. Nesse sentido, foi possível verificar que Arendt, ao se engajar na crítica à moderna reunificação do público e do privado, elaborou uma original combinação entre, de um lado, os valores republicanos clássicos da liberdade pública e da excelência, e, de outro, uma abordagem fenomenológica preocupada com o pluralismo, com a singularidade irredutível dos seres humanos e com a construção de um mundo comum sem garantias dadas para sua própria estabilidade e permanência. Percorrendo esse eixo que pode ser descrito sem exageros como a espinha dorsal do pensamento político arendtiano, o presente estudo trouxe contribuições para a investigação das fontes e da inserção teórica dos principais conceitos colocados em movimento pela autora. Trouxe, ainda, indicações sobre como esse instrumental teórico, que Arendt reorganiza de forma inovadora, faz se abrirem novas possibilidades de resposta a seu diagnóstico de colonização da esfera pública por uma esfera “social” que, na conhecida definição da autora, ignora as fronteiras entre o público e o privado. Tal resposta para a problemática subjacente de como permitir a reativação e a densificação da esfera pública, surpreendentemente, está calcada em instituições e atividades extrapolíticas. Nessa linha, certas instituições extrapolíticas – entre as quais aquelas encarregadas de funções jurisdicionais – são responsáveis por tarefas fundamentalmente políticas, quais sejam, a tarefa de demarcação dos espaços exclusivos das esferas pública e privada, e a tarefa de guarda do mundo comum, este que constitui ao mesmo tempo o produto e a garantia de continuidade da esfera pública. Nos limites inerentes a uma proposta exploratória como a estabelecida neste trabalho, não se procedeu aqui a um estudo descritivo da resposta institucional à degradação dos espaços de ação política. Após iniciar a investigação com uma ênfase na recuperação arendtiana da primazia da liberdade pública e da excelência política como um fim em si, tomaram o centro da pesquisa os problemas da não interferência de assuntos da economia e da família nas atividades políticas, e de uma inversa proteção – repleta de sutilezas e polêmicas em potencial – das atividades econômicas e domésticas em geral contra as pretensões expansivas dos princípios republicanos.
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Passando da perspectiva interna da esfera pública, apresentada em sua faceta puramente performativa, para a perspectiva externa de sua institucionalização ou rotinização, este estudo pôde desenvolver alguns aspectos daquela necessidade de autocontenção do público e de seus princípios orientadores. Assumindo esse ponto de vista externo, vem à tona o imperativo arendtiano de deslocar o exercício de algumas funções políticas para fora da esfera pública. Contribuem para a apreensão teórica desse imperativo a formulação de Arendt dos conceitos de liberdade pública, pluralismo, mundo comum e funções políticas externas. Nesse sentido, a liberdade, entendida como uma qualidade da ação em público, tem por pressuposto uma esfera pública plural e igualitária. A seu turno, a igualdade política é uma condição artificial que se mantém apenas por tanto tempo quanto o indivíduo singular desejar se submeter à visibilidade pelos demais. É por meio dessa aceitação pública da igualdade política que se ganha acesso à transformação coletiva do mundo comum. Na era da sociedade de massas, a substituição da igualdade política pela uniformidade “social” tem por consequência a retração e esvaziamento do mundo comum. As funções políticas externas relacionadas à conservação do mundo comum se apresentam então como uma resposta a esse diagnóstico do tempo. Desempenhadas através de atividades extrapolíticas especializadas, como as do poder jurisdicional, tais funções têm um papel essencial na tentativa de recuperar a autonomia da esfera pública e a estabilidade e permanência de seus objetos, recuperando assim também a orientação da ação política pela excelência e pela busca da imortalidade. A tarefa de conservação do mundo comum significa nada menos que impor à política a barreira imutável da verdade. O encontro paradoxal da imutabilidade dos objetos físicos e simbólicos do mundo com a criatividade radical da ação humana é um fenômeno que perpassa tanto as atividades performáticas da esfera política como seu diálogo institucional com algumas esferas que a cercam – o judiciário, a imprensa, a comunidade acadêmica. Certamente, trata-se de um tema para o qual Arendt ofereceu uma contribuição inestimável e em cujos desdobramentos sobre os problemas da fundação constitucional e da temporalidade paradoxal da política se coloca uma interessante via para o aprofundamento das presentes conclusões. Por fim, se a obra arendtiana traz em sua vívida argumentação as ferramentas para a crítica de múltiplos aspectos do estado democrático de direito – considerado em sua forma herdada da Revolução Francesa e dos modelos de representação de interesses –, não traz contudo o desenvolvimento em detalhe do funcionamento concreto e dos arranjos constitucionais próprios a experiências políticas que conferem substância a essa crítica, particularmente as do Senado da antiga República Romana e das federações de conselhos participativos, onipresentes nas revoluções modernas. Ambos esses institutos são figuras centrais para a aplicação da imaginação arendtiana a uma crítica reconstrutiva do estado democrático de direito, merecendo por certo atenção destacada em futuros estudos.
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