disse a sua mãe: "Um amigo, um conselheiro chegou até mim vindo de Enlil; serei, po is, seu am igo e lhe d arei c onselho s." Gilga mesh a ssim na rrou seu sonho; e a ram eira o rep etiu p ara Enkidu . E ela d isse e ntão a Enkid u: "Olho p a ra ti e ve jo que a go ra é s c om o um d eus. Por que anseias p or voltar a c orrer pe los c am p os c om a s feras do mato? Ergue-te do chão, a cama do pastor." Ele escutou com atenção suas palavras. Era um bom conselho que lhe dava. A rameira dividiu sua roupa em duas partes; com uma metade o vestiu, usando a outra pa ra si. Tom and o Enkidu pela m ão, c om o a uma c rianç a, ela o conduziu ao aprisco, para as tendas dos pastores, que se amontoaram ao seu red or pa ra v ê-lo. Eles d ep osita ram pã o à sua frente, ma s Enkidu só estava habituado ao leite que sugava dos animais selvagens. Ele se atrap alhou c om as mã os e p asmo u, sem sab er o que fazer com o p ão e o vinho fo rte. A m ulher entã o d isse: "Enkidu, c om e o p ão , é o supo rte da vida ; beb e o vinho, é o c ostume d a te rra." Enkidu e ntão c om eu a té fic ar satisfeito e bebeu do vinho forte, sete cálices. Ele ficou alegre, seu coração exultou e seu rosto se cobriu de brilho. Enkidu escovou os pêlos emaranhados de seu corpo e untou-se com óleo. Ele se transformara num homem; mas, ao vestir as roupas humanas, ficou parecendo um noivo. Ele se a rmo u p a ra c aç a r o leão , pa ra que os p astores p ud essem rep ousar à noite. Ele c a ç ou lob os e leõe s, e o s pa stores pu de ram d ormir em p az, po is Enkid u, aq uele ho m em forte e sem riva is, era seu sentinela . Ele se sentia feliz vivendo com os pastores, até que um dia, levantando o olhar, viu que um homem se aproximava. Ele disse à rameira: "Mulher, traze aqui aquele homem. Por que veio aqui? Quero sab er seu nom e." Ela foi e c ham ou o hom em , dizend o: "Senho r, ond e va is nesta fatigante jornada?" O homem respondeu, falando a Enkidu: "Gilga me sh foi pa ra o temp lo do c asam ento e nã o d eixa q ue o povo lá entre. Ele faz coisas estranhas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar dos tambores, os homens e as mulheres começam a trabalhar. Gilgamesh, o rei, está prestes a celebrar as núpcias com a Rainha do Amor, e ele ainda insiste em estar primeiro com a noiva; primeiro o rei,
de p ois o m arid o, po is assim o rde na ram os de uses d esd e a ép oc a d e seu nascimento, quando lhe foi cortado o cordão umbilical. Mas agora os tam bo res rufam p ara a e sc olha da no iva, e a c ida de g eme d e d or." Ao ouvir estas palavras, Enkidu empalideceu. "Irei à cidade cujo povo Gilgamesh domina e governa; vou desafiá-lo au-dazmente para um c om ba te e g ritarei po r Uruk: 'Vim pa ra mu da r a velha o rd em , pois sou o ma is forte d a qui.'" Enkidu ia agora na frente, a largas passadas, e a mulher o seguia. Ele entrou em Uruk, aquele grande mercado, e todo o povo se amontoou ao seu redor. Naquela rua de Uruk das poderosas muralhas, as pessoas se comprimiam e se acotovelavam e, falando dele, diziam: "Ele é a imagem de Gilgamesh." "Ele é mais baixo." "Ele é mais robusto." "Esta é a c riatura q ue se c riou to mand o leite da s feras selva ge ns. Sua força é superior à de todos os outros." Os homens se regozijavam de felicidade: "Agora Gilgamesh encontrou um rival à sua altura. Esta grande criatura, este herói de divina beleza pode enfrentar até mesmo Gilgamesh." Em Uruk o leito nupcial fora preparado, um leito digno da deusa do amor. A noiva ficou esperando seu prometido; à noite, porém, Gilga me sh levanto u-se e se dirigiu à c asa . Enkid u foi entã o p a ra a rua e bloqueou sua passagem. O poderoso Gilgamesh se aproximou e encontrou Enkidu no portão. Este esticou sua perna para impedir-lhe a entrada. Os dois então se engalfinharam como touros. Destruíram a porta da casa, e suas paredes tremeram; bufavam como dois touros trancados juntos. Os batentes da porta ficaram em pedaços e as pa red es d a c asa trem eram . Gilgam esh c urvou o joe lho, finc ou o s pé s no c hã o e, vira nd o-se, de rrub ou Enkidu. Sua fúria e ntã o se d esva neceu imediatamente. Após a queda, Enkidu disse a Gilgamesh: "Não há ninguém como tu no mundo. Ninsun, que tem a força de um boi selvagem no estábulo, foi quem te deu à luz, e agora estás acima de todos os homens. Enlil te deu a coroa, pois tua força ultrapassa a força dos hom ens." Enkidu e G ilga me sh entã o se a b ra ç a ra m, e a ssim foi selad a
sua a mizad e.
2. A jornada na floresta ENLIL da m onta nha , o p ai do s d euses, hav ia d ec reta d o o de stino de Gilgamesh. Por isso Gilgamesh teve um sonho, e Enkidu disse: "O sig nific a do d o te u sonho é o seg uinte: o pa i dos d euses te d eu um trono , reinar é o teu d estino; a vida e terna nã o é teu de stino. Por isso, nã o fique s triste , não te a torme nte s nem te deixes op rimir por c a usa disso. Ele te deu o p od er de ata r e d esa ta r, de ser as treva s e a luz d a hum anida de . Ele te deu supremacia sem paralelo sobre o povo, te garante a vitória nas ba talha s d e o nde não esc a pa m fug itivo s; o suc esso é teu na s inc ursõ es milita res e n os im pla c áv eis assaltos por ti emp ree nd id os. Ma s nã o ab uses deste poder; sê justo com teus servos no palácio; faze justiça perante Shamash." Os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas e seu coração foi tomado de angústia. Ele suspirava cheio de tristeza. Gilgamesh fitou-o nos olhos e perguntou: "Amigo, por que suspiras tão tristemente?" Enkidu ab riu a b oc a e resp ond eu: "Sinto-me frac o, me us b raç os pe rde ram sua forç a, o g rito d e d or está p reso e m m inha g argan ta e o óc io m e o prime ." Foi então que o g rand e G ilg am esh c ome ç ou a pe nsa r na Terra d os Vivos; sobre a Terra dos Cedros refletiu o senhor de Uruk. Ele disse a seu servo Enkidu : "Sob re a s láp ide s a inda não deixei imp resso o m eu nom e, c om o d ec reto u o de stino ; irei entã o à terra o nd e sã o a b atido s os c ed ros. No lugar onde estão inscritos os nomes de homens ilustres, deixarei grava do o m eu nom e; e ond e nome de homem algum foi jam ais insc rito, ma nda rei erigir um m onume nto ao s de uses. Por c ausa do ma l que existe sob re a terra , nós irem os à floresta destruir esse mal; p ois é lá que m ora o feroz gig ante Humb ab a , c ujo nom e é 'Enorm ida d e'." Ma s Enkidu susp irou tristem ente e disse: "Desc ob ri essa floresta q ua nd o c orria no m ato c om a s
feras selvage ns; ela se esten de p or dez mil légua s em to d os os sen tido s. Enlil designou Humbaba para tomar conta dela e o armou com sete horrores; Hum b ab a é um a c riatu ra hed iond a pa ra tod os os m ortais. Seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas, a própria morte. Ele guarda tão bem os cedros que consegue ouvir um novilho se mexer na selva a sessenta léguas de distânc ia. Que espé c ie de homem iria de sua próp ria vontad e pe netrar nesta terra e explorar suas profundezas? Eu te digo, a fraqueza toma conta de todo aquele que dela se aproxima: ninguém luta com Humb ab a em pé de igualda de ; ele é um grande guerreiro, um a ríete. O sentinela d a floresta jam ais dorme , Gilg am esh." Gilgamesh replicou: "E que homem pode chegar ao céu? Som ente os de uses vivem ete rnam en te na c om p anh ia do glorioso Shamash; nós, homens, temos nossos dias contados. Nossos trabalhos e emp reend ime ntos são c om o um sop ro d e v ento. Como , então, já estás c om me do ? Em bo ra seja te u senho r, irei na frente e po de rás g ritar c om seg uran ç a: 'Ava nte, não há na d a a tem er!' Se e u ca ir, de ixarei entã o um nome que fic ará p ara a po sterida de ; os hom ens dirão a meu respe ito: 'Gilga me sh c aiu lutand o c om o feroz Humb ab a.' Muito tem po de po is do nasc im ento de me u herde iro, eles estarão faland o disso e se lem b ra nd o do m eu fe ito." Enkidu tornou a fa lar co m G ilga mesh: "Oh, meu senho r, se algum dia decidires entrar naquela terra, procura primeiro o herói Sha m ash; fala c om o Deu s-Sol, po is é d ele a q uela te rra . A terra onde o c ed ro é a ba tido pe rtenc e a Sham ash." Gilgamesh tomou em seus braços um cordeiro branco, sem qua lquer mác ula, e um o utro c astanho ; ele o s seg urou c ontra o p eito e os levou à presença do sol. Carregando na mão seu cetro de prata, Gilgamesh disse ao glorioso Shamash: "Vou para aquela terra, oh, Sham ash, pa ra lá e u vo u; minha s mã os suplic a m, p rote jei minha alma e trazei-me de volta ao cais de Uruk. Eu imploro vossa proteção; permiti que os augúrios sejam propícios." Shamash, o glorioso, respondeu: "Gilg am esh, és forte, ma s que é p ara ti a Terra dos Vivo s?"
período anterior ao aparecimento da Ilíada de Homero; e é também inco m pa ravelmente m ais antigo . Tem os b oa s razões pa ra c rer que a m a ior pa rte d os po em a s de Gilgamesh já haviam sido escritos nos primeiros séculos do segundo milênio a.C. e que provavelmente já existiam numa forma bastante semelhante muitos séculos antes disso, ao passo que o texto definitivo e a ed iç ão m ais c om pleta da ep opé ia vêm d o séc ulo VII, da bibliotec a d e Assurbanipal, antiquário e último dos grandes reis do Império Assírio. Assurban ip al foi um g rand e g ene ral, o sa qu ea do r do Egito e de Susa ; ma s foi tamb ém o c omp ilad or de uma notável bibliotec a, co mp osta p or documentos relativos à história contemporânea e por hinos, poemas e textos c ientífic os e relig iosos muito m a is a ntigos. Ele no s c on ta q ue enviou seus servo s a os antig os c entros d e sa ber d e Bab ilônia, Uruk e Nip pur pa ra que pesquisassem seus arquivos e copiassem e traduzissem para o sem ítico ac ad iano da ép oc a os textos esc ritos na a ntiga língua sumé ria da Mesopotâmia. Entre esses textos, "Copiados segundo o original e cotejados no palácio de Assurbanipal, Rei do Mundo, Rei da Assíria", estav a o p oem a q ue cha ma mo s a Epo pé ia d e Gilga me sh. Não muito depois de este trabalho de cotejo ter sido concluído, a epopéia virtualmente perdeu-se e o nome do herói foi esquecido, de turpa do ou de sfigurad o até se tornar pratic am ente irrec onhec ível — até ser red esc ob erto no séc ulo p a ssad o. Esta d esc ob erta d eve u-se, em primeiro lugar, à curiosidade de dois ingleses, e depois ao trabalho de muitos estudiosos em diferentes partes do mundo, que juntaram, copiaram e traduziram as tábuas de argila onde o poema foi escrito. Esta é uma ob ra a inda em a nda mento, e a c ad a ano q ue se p assa ma is la c unas sã o p ree nc hida s; ma s o c orpo princ ipa l da ep op éia a ssíria nã o tem sido alterado em seus aspectos essenciais desde a monumental publicação do texto, Com transliteração e comentários, por Campbell Thompson, em 1928 e 1930. Mais recentemente, contudo, atingiu-se um novo estág io, e um a no va ond a d e interesse surg iu em torno d o trab alho do Professor Samuel Kramer, da Pensilvânia, cujo cotejo e tradução dos
"Oh, Shamash, ouvi-me; ouvi-me, Shamash; ouvi o que tenho a dizer dizer.. Os homens aq ui da c ida de mo rrem c om o c oraçã o o primido primido , eles mo rrem c om o d eses esespp ero ero em seus c oraç õe s. Tenho olhad o p or cima d o muro e visto visto seus seus c orpo s flutua flutua nd o n o rio, rio, e e ste será será ta m bé m o m eu fim fim . Estou certo disso, pois por mais alto que seja um homem, ele jamais atingirá atingirá os c éus, éus, e o ma ior entre entre tod os ja ma is c onseg onseg uir uirá a ba rca r a terra. terra. Por isso quero entrar naquela terra: por não ter ainda inscrito meu nome sobre as lápides, como decretou meu destino, irei à terra onde são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de varões ilus lustres tres,, deixarei deixarei grava grava do o m eu nom e; e o nde nome de home m algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses." Lágrimas esc esc orreram orreram p or seu seu rosto, osto, e e le d isse: "Ai "Ai de m im ! É longa long a a jornad a a té a Terra erra d e Hum Hum ba ba . Se e sta iniciativa e stá fad a da ao frac frac ass asso, po r qu e encheste-me, oh, Shamash, de um sôfrego desejo de empreendê-la? Como poderei ter sucesso neste empreendimento sem vossa ajuda? Se eu mo rrer na q uela terra terra , morr m orrerei erei sem sem ranc an c or; ma s, se se retorna et orna r, glorios gloriosos os serão os p resen esentes tes e louvores louv ores q ue d ed ic arei a Sha m a sh." Sha m a sh a c eitou eito u entã e ntã o o sa c rifíc fíc io d e sua sua s lág rim a s. Tal Tal c om o o hom em pied oso, oso, co mp a de c eu-se eu-se d e Gilga Gilga me sh. Esc olheu alia alia do s fortes para ajudá-lo, todos filhos de uma mesma mãe, e os posicionou nas c av ernas da m onta nha . Rec Rec rutou os ventos po d erosos erosos:: o ve nto no rte, o furac furac ão , o tem po ral e o vento gélido gélido , a tem pe stad e e o ve nto c áusti áusticc o. Como víboras, como dragões, como um fogo devastador, como uma serpente que gela o coração, como um implacável dilúvio, como o g ra nd e raio; raio ; ass assim eram eles, eles, e Gi G ilga m esh esh ex e xultou. Ele se d irigiu irigiu à forj fo rjaa e d isse : "Da "Da rei orden ord en s a os arme iro iro s; eles ele s forjarão nossas armas enquanto nós os observamos." Deu então instruções aos armeiros e os artífices sentaram-se em conferência. Eles foram ao arvoredo que ficava na campina e cortaram a madeira do salgueiro e do buxo; e forj forjaram-lhes aram-lhes ma c had os de c ento e oitenta libras libras,, e espa espa da s ma jestos estosaa s c om lâminas de c ento e v inte lib lib ra s, c om p unhos e b otõ es de tri trinta . Forj Forjaa ra m pa ra Gilg Gilg am esh esh o m a c had o "Força do s Heróis eróis" e o a rc o
de Ansha Ansha n. Gilgam Gilgam esh esh e Enkidu nkidu estav estav am arma d os, os, e o pe so da s a rm as que c a rreg av am era d e seis seiscc enta s libras libras.. O povo e os conselheiros se reuniram nas ruas e no mercado de Uruk. Atrave ssa ra m o p ortão ortã o d os sete ferrolhos ferrolhos e G ilga me sh lhes fa lou no mercado: "Eu, Gilgamesh, irei encontrar essa criatura de quem tanto se fala, cuja fama se espalhou pelo mundo. Vou derrotá-lo na floresta dos c ed ros e m ostr ostraa r a fo rç a d os filhos filhos d e Ur Uruk; o m und o inte iro sa sa b erá d iss isso. Eu me comprometo a levar a cabo este empreendimento: subir a montanha, abater o cedro e deixar para trás um nome ilustre e d urad our ou ro." Os c ons on selheiros elheiros d e Uruk Uruk e o po vo resp esp ond on d eram : "Gil "Gilgg am esh, esh, sois jovem ; voss vossa c orag em faz c om que am bic ione is de m ais; ais; ce rtam ente não sabeis o que para vós significa esta empresa. Soubemos que Humbaba não é igual aos mortais; tais são suas armas que ninguém pode vencê-lo. A floresta se estende por dez mil léguas em todos os sentidos; quem iria de sua própria vontade explorar suas profundezas? Qua nto a Humb ab a , seu rugido é c om o um a terrí terrível bo rra sc a, seu seu hálito hálito é como o fogo, suas mandíbulas a própria morte. Por que ansiais, Gil Gilga me sh, po r tal emp reend imento ? Ninguém Ninguém luta luta c om Humb a -ba e m pé de igua lda de ; ele é um a ríete." Ao ouv ir esta esta s p a lav ra s d os c ons on selhei elhe iros, os, Gilg Gilg am esh esh olhou o lhou p a ra seu a m igo e p ôs-s ôs-see a rir. ir. "Co "Com m o resp esp ond on d er a isso? Devo d izer-lhes er-lhes q ue tenho tenh o medo de Humbaba e por isso ficarei sentado em casa pelo resto de meus dias?" Gilgamesh então tornou a abrir a boca e disse para Enkidu: "Amigo, vamos para o Grande Palácio, para Egalmah, e postemos-nos diante de Ninsun, a rainha. Ninsun tem profunda sabedoria; ela nos aconselhará quanto ao caminho que devemos tomar." Dando-se as mãos, eles seguiram a Egalmah e se dirigiram à grande rainha Ninsun. Gilg Gilg am esh esh se se a p roxim oxim ou d o p alá c io, entr en trou ou e falo u a Ninsun: Ninsun: "Ni "Nins nsun, un, po r favor, esc esc utai-me utai-me ; tenho d e emp reend er um um a longa jornada à Terra erra de Humba ba ; tenho tenho d e viajar viajar por uma estr estrad ad a de sc onhecida e me ba ter numa estranha batalha. Do dia em que eu partir até o dia da minha volta, até ter chegado à floresta de cedro e destruído o mal que
Sha m a sh a b om ina , rezai rezai a Sha Sha m a sh por p or mim." Nins Ninsun un foi pa ra seu q ua rto, pô s um v esti estidd o q ue fica va b em em seu corpo, enfeitou-se com jóias para embelezar os seios e colocou uma tiara na cabeça; sua saia varria o chão. Ela dirigiu-se então ao altar do Sol, po stand o-se o-se em c ima do telhado do pa lác io; ela ela ac end eu ince ince nso nso e elevou seus b ra ç os a Sha ma sh, enq uanto a fum aç a subia a os c éus: éus: "Oh, "Oh, Sham ash, ash, por que do tastes tastes Gilga Gilga m esh, esh, me u filho, filho, de um c oraç ã o tã o inq uieto; uieto ; p or quê q uê?? Vós o inc itaste itastess, e ele a g ora e stá p reste estess a p a rtir rtir num a long a jornad a p ara a Terra erra d e Humb Humb ab a; ele vai via via jar por um um a e strad trad a desconhecida e se bater numa estranha batalha. Do dia em que ele pa rtir tir até o d ia d e sua sua volta, até q ue tenha c heg ad o à flores floresta ta d e c ed ro, mo rto Humb a b a e d estr estruí uídd o o m al que vós, vós, Sha m a sh, ab om ina is, não vos esque esque ç ais d ele; de ixai que voss vossa am a da espo espo sa , Aya, a au rora, vos lembre sempre disso, e ao final do dia entregai sua guarda à sentinela da noite, para que mal algum lhe advenha." Ninsun, a mãe de Gilga Gilga me sh, exti extingu ngu iu entã o o ince nso nso e c ha mo u Enki Enkidd u c om a seg uinte uinte exortaç exortaç ão : "P "Pod eros erosoo Enkidu, nkidu, nã o é s filh filhoo d o m eu c orpo , ma s rec eb o-te c om o fil filho a do tivo; tivo; és m eu outro outro filho, filho, co mo os be bê s ab and onad os no tem plo. Serve Serve a Gilga Gilga m esh esh c om o e stas c rianç a s servem a o tem plo e à sacerdotisa que os criou. Na presença de minhas servas, de meus sacerdotes e hierofantes, eu o declaro." Ela colocou então em torno de seu p esc esc oç o o am uleto d o jura jura me nto e d isse -lhe: "E "Eu te c onfio me u filho; filho; tra tra ze-o d e vo lta p ara m im e m seg uranç uranç a ." Trou xeram -lhes -lhes entã o as armas. Depositaram em suas mãos as grandes espadas com suas bainhas de ouro, o arco e a aljava. Gilgamesh tomou o machado em suas mã os, os, pôs o a rc o d e Ansha Ansha n e a aljav aljav a sob re o om b ro e a fivelou fivelou a espada a seu cinto; estavam armados e prontos para partir. O povo havia chegado e se apinhava ao seu redor perguntando: "Quando retornareis à cidade?" Os conselheiros abençoaram Gilgamesh e o ad ve rtir tira m: "Não "Não c onfieis onfieis d em a is em vo ssa próp ria ria fo rç a, te nd e c uidad o e poupai vossos golpes no começo da luta. O que for à frente deve proteger seu companheiro; o bom guia que conhece o caminho
protege seu amigo. Deixai que Enkidu vá na frente; ele conhece o c am inho que leva à floresta, já viu Humb ab a e é e xpe riente na ba talha. Deixai que avance primeiro pelos desfiladeiros, que fique alerta e que cuide de si mesmo. Deixai que Enkidu proteja seu amigo e que tome conta de seu companheiro, conduzindo-o em segurança através das armadilhas do percurso. Nós, conselheiros de Uruk, te confiamos nosso rei, oh, Enkidu; traze-o de volta em segurança para nós." E novamente tornara m a Gilga me sh, dizend o: "Que Sham ash vo s c onc ed a o d esejo de vo sso c ora ç ão, q ue e le pe rm ita que vejais c om vo ssos olhos o suc esso do empreendimento proposto por vossos lábios; que ele vos abra uma trilha na estrada bloqueada; que ele crie um caminho para vossos pés. Que ele abra as montanhas para a vossa passagem, que a noite vos trag a as bê nç ão s da noite, e q ue Lugulba nda , o de us que vo s protege , esteja a vo sso la do na luta p ela v itória . Que sa iais vitorioso da ba talha , como se houvésseis lutado com uma criança. Lavai vossos pés no rio de Humbaba, ao qual vos dirigis; cavai um poço à noite e tende sempre ág ua p ura e límp ida em vosso o dre. Oferec ei ág ua fria a Sha ma sh e nã o vos esque ç a is d e Lug ulba nd a." Enkidu então ab riu a bo c a e d isse: "Avante, não há nad a a teme r. Seg ue-me , pois c onhe ç o o luga r o nde v ive Humb a b a e a s trilhas po r onde ele passa. Deixa que os conselheiros retornem. Não há o que temer." Ao ouvirem isso, os conselheiros se despediram de Gilgamesh. "Ide , Gilga me sh, que vo sso d eus proteto r vos ajude e v os trag a de volta c om seg uranç a a o c ais d e Uruk." Depois de vinte léguas de viagem, eles quebraram seu jejum; depois de outras trinta, pararam para passar a noite. Caminharam c inqü enta légua s num d ia; em três d ias, ha viam p erco rrido o e q uiva lente a uma jornada de um mês e duas semanas. Eles atravessaram sete montanhas antes de chegar ao portão da floresta. Enkidu então gritou pa ra G ilgam esh: "Não te e mb renhe s na floresta ; ao a brir o p ortão , minha mã o p erde u sua forç a." Gilga mesh respo ndeu : “ Ca ro a migo, não fales c om o um c ova rde ” . Sob rep uja mo s tanto s p erigo s e viajam os tanto p ara
ac ab ar voltando ? Tu, que c arreg as a expe riênc ia de tanta s ba talhas e gue rras, fic a p erto d e m im e não terás m edo da mo rte; fic a d o m eu lad o e tua fraqueza passará, os tremores abandonarão tua mão. Preferirias, amigo, ficar para trás? Não, desceremos juntos ao coração da floresta. Deixa as ba talha s q ue estão po r vir de spe rtarem tua c orag em ; esq uec e a morte e segue-me, um homem resoluto mas prudente. Quando dois hom ens estão juntos, c ad a um se p rote ge e e sc ud a seu c om p anhe iro, e, se e les c ae m , deixam pa ra trás um nom e ilustre e d urad ouro. Juntos eles se d irig ira m à floresta e c heg a ram à m onta nha verde . Ali pararam, estupefatos, fitando imóveis a floresta. Viram a altura do cedro, examinaram o caminho que penetrava na floresta e a trilha por onde Humbaba costumava passar. O caminho era largo e fácil de percorrer. Eles contemplaram a montanha dos cedros, a morada dos deuses e o trono de Ishtar. O enorme cedro se elevava em frente à montanha; sua sombra era linda e cheia de conforto. A montanha e a clareira e ram c ob ertas pe lo verde d o ma tag al. Ali Gilgamesh cavou um poço antes do pôr-do-sol. Ele subiu a monta nha, d eitou fa rinha fina ao c hão e d isse: "Oh, monta nha, mo rad a dos deuses, trazei-me um sonho auspicioso." Os dois então deram-se as mã os e se d eitaram p ara d ormir, e o sono que flui da noite os envo lveu docemente. Gilgamesh sonhou, e à meia-noite o sono o deixou. Gilgamesh contou seu sonho ao amigo. "Enkidu, o que foi que me acordou se não foste tu? Amigo, tive um sonho. Levanta e olha o despenhadeiro da montanha. O sono enviado pelos deuses foi interrom pido . Ah, meu am igo , que sonho tive eu! Terror e c onfusão ; eu havia agarrado um touro selvagem no meio da floresta. Ele urrava e ba tia c om a pa ta no chã o, levantando uma po eira que escureceu todo o c éu. Meu b raç o fo i imo b iliza d o e m inha líng ua m ordida . Caí de joe lhos. Alguém então me refresc ou c om á gua de seu od re." Enkidu disse: "Caro amigo, o deus que procuramos nesta viagem não é nenhum touro, embora tenha uma forma misteriosa. O touro selvagem que viste é Sha ma sh, o Prote tor; qua nd o estive rm os em p erigo,
ele nos toma rá p ela m ão . Aquele que te d eu ág ua tirad a d e seu od re é Lugulbanda, teu deus protetor, aquele que zela por teu bom nome. Unidos a ele, nós dois juntos realizaremos um feito cuja fama jamais será esquecida." Gilgamesh disse: "Tive um outro sonho. Nós nos encontrávamos num desfiladeiro profundo da montanha, e perto dela éramos como minúsculas moscas de pântano. De repente a . montanha desmoronou; ela m e a tingiu e m e d errub ou. Veio então um a luz d e b rilho intoleráv el, e nela, alguém cuja beleza e graça eram superiores à beleza deste mundo . Ele me p uxou de b aixo da mo ntanha e d eu-me ág ua p ara be be r. Meu c oraç ão se sentiu c onfortad o e ele tornou a c oloca r-me de pé sob re o c hão ." Enkidu, o filho das campinas, então disse: "Desçamos a montanha e vamos conversar sobre isso." E disse a Gilgamesh, o jovem deus: "Teu sonho é bom , teu sonho é excelente; a mo ntanha que viste é Humb ab a. Agora sei com certeza que vamos pegá-lo, liquidá-lo e atirar seu corpo lá de cima, com o a montanha que c aiu sobre a planície." No d ia seg uinte , de po is d e pe rc orrer vinte lég ua s, eles q ueb raram seu jejum e, d ep ois d e m ais trinta légua s, pa raram p ara d ormir. Cav aram um p oç o a nte s d o p ôr-do -sol, e Gilga me sh sub iu a m onta nha . Ele de itou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos deuses, ma nda i um sonho p a ra Enkid u; fazei co m qu e seja um sonho au spic ioso." A mo ntan ha m oldou um sonho p ara Enkidu e e le lhe fo i enviad o; era um sonho o m inoso. Uma c huva fria p a ssav a p or cima d ele e fa zia c om que fosse obrigado a se agachar, como a cevada da montanha que se curva sob um temporal. Mas Gilgamesh ficou sentado com o queixo sobre os joelhos até que o sono, que flui para toda a humanidade, se apoderou dele. Então, à meia-noite, o sono deixou-o; ele se levantou e disse p a ra o a mig o: "Tu me c ham a ste? Por que a c ordei? Tu me toc aste? Por que me sinto a terroriza do? Será q ue algum de us nã o p assou p or nós, pois meus membros estão paralisados pelo medo? Amigo, tive um terceiro sonho, e este sonho foi absolutamente terrível. Os céus troavam
e a terra rugia d e volta ; a luz d o d ia ap a go u-se e a e sc urid ão se instalou; os raios caíam, o fogo ardia com um brilho intenso, as nuvens baixaram do c éu e d erram a ram sob re a terra um a c huva m ortal. Então o b rilho se extinguiu, o fogo se apagou, e tudo ao nosso redor havia se transformado em cinzas. Desçamos a montanha e vamos conversar sob re isto , e p ensa r sob re o q ue devem os fa zer." Depois de descerem a montanha, Gilgamesh tomou o machado em sua mã o e a ba teu o c ed ro. Quand o, a distânc ia , Humb ab a ouviu o barulho, ficou furioso e gritou: "Quem violou minha floresta e abateu o me u c ed ro?" Mas o glorioso Sham a sh g ritou pa ra eles do c éu, "Avan te, não temais!" Mas uma fraqueza se apoderara de Gilgamesh; ele fora rep entinam ente to ma do po r um sono profundo. Ele se estende u no c hão sem dizer uma só palavra, como num sonho. Enkidu tocou-o, mas ele não se levantou; Enkidu lhe falou, mas ele não respondeu. "Oh, Gilga me sh, Senho r d a planície de Kullab , o mund o v ai esc urec end o, as sombras se espalham sobre sua superfície; eis os últimos e trêmulos raios do c rep úsc ulo. Sham ash pa rtiu, sua c a be ç a inc a nde sc ente rep ousa no c olo d e sua m ãe Ninga l. O h, G ilgam esh, p or qua nto te mp o fica rás a ssim , do rmind o? Não p ermitas jam ais que tua m ãe , aq uela que te d eu à luz, seja forçad a a velar-te na praça da cidad e." Gilgamesh por fim escutou-o; ele vestiu seu peitoral, "A Voz dos Heróis", que pesava trinta siclos; ele o colocou em seu corpo como se fosse o m a is leve d os trajes. Gilgam esh esta va tota lmen te c ob erto. Sua po stura e ra sem elhante à d o touro q uan do c alc a o c hã o; seus de ntes se cerraram. "Pela vida de minha mãe Ninsun, que me deu à luz, e pela vida de me u pa i, o divino Lugulband a, que eu viva pa ra enc her minha mã e d e p asmo , c omo fazia q uand o ela me emb alava e m seu c olo." Ele tornou a repetir para Enkidu: "Pela vida de Ninsun minha mãe, que me deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, até que tenhamos lutado com este homem, se homem ele é, ou este deus, se de us ele é, a via q ue to me i pa ra c heg a r à Terra d os Vivos nã o m e leva rá de volta a Uruk."
Então Enkidu, o fiel companheiro, implorou em resposta: "Oh, meu senhor, tu não conheces este monstro e por isso não tens medo. Eu o c onheç o e e stou a terroriza do . Seu s d ente s sã o c om o a s presas d o dragão, seu semblante é como o do leão, a fúria de seu ataque se assem elha à da torrente d o dilúvio; com seu o lhar ele e sm ag a a s á rvo res da floresta e os juncos dos pântanos. Oh, meu senhor, podes prosseguir em tua incursão por este território se quiseres, mas eu retornarei à cidade. Contarei teus feitos gloriosos a tua mãe até que ela grite de júbilo: falarei então da morte que se seguiu até que ela chore de amargura." Mas Gilgamesh disse: "Ainda não estou preparado para a imolação e para o sacrifício, a barca dos mortos não descerá o rio comigo, nem tampouco será necessário que se prepare para mim a mo rtalha d e três prega s. Meu p ovo ta mb ém será po upa do da tristeza ; a pira não será a c esa em m inha c asa; m inha mo rad a não será c onsumida pelo fogo. Dá-me tua a juda hoje e te ajudarei amanhã: o q ue po derá entã o d a r erra do c om nós d ois junto s? Tod a s as c ria turas na sc ida s da carne terão um dia que tomar um lugar na barca do Oeste, e, quando ela afundar, quando a ba rca de Mag ilum afundar, elas perec erão; m as nós c ontinuarem os em frente e olha rem os este m on stro de frente . Se te u c oraç ão está to ma do de me do , jog a fo ra e sse m ed o; se há terror nele, jog a fora e sse terror. Toma o m ac had o e m tua mã o e lanç a -te a o ataq ue. Aquele que ab and ona a luta não fica em p az." Humbaba irrompeu de sua sólida casa de cedro. Enkidu então gritou: "Oh, Gilgamesh, lembra-te agora de tuas bravatas em Uruk. Avante, ataca, filho de Uruk, não há o que temer." Ao ouvir estas palavras, Gilgamesh recobrou sua coragem; ele respondeu: "Rápido, cerca o sentinela; se ele passar por ali, não deixes que fuja para a floresta, ond e a c ab ará d esa pa rec end o. Ele vestiu ap ena s o p rimeiro d e seus sete esplendores e ainda não colocou os outros seis. Vamos apanhá-lo antes que se arme." Gilgamesh resfolegou como um touro enfurecido. O sentinela da floresta virou-se ameaçadora-mente, e Gilgamesh gritou. Humbaba balançava e sacudia a cabeça,
ameaçando Gilgamesh. O olho do gigante fixara-se nele, o olho da mo rte. Gilg am esh entã o invoc ou Sham a sh c om os olhos c heios d e lág rim as: "Oh, glorioso Sha ma sh, tom ei o c am inho que m e o rden astes, mas se não me mandardes socorro como poderei escapar?" O glorioso Sham ash e sc utou sua prece e c onvoc ou o grande vento, o vento norte, o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento c áustic o. Eles c hega ram c om o d rag ões, c om o o fog o d eva stad or, c om o a serpente que gela o coração, como o implacável dilúvio, como os grandes raios. Os oito ventos se lançaram contra Humbaba, atingindo seus olhos; ele foi imobilizado, não conseguindo mover-se para a frente ou para trás. Gilgamesh gritou: "Pela vida de Ninsun, minha mãe, e do divino Lugulba nd a, meu p a i, nesta terra, na Terra dos Vivos, de sc ob ri tua morada. Vim a esta terra com meus frágeis braços e minhas pequenas arma s pa ra e nfrenta r-te, e a g ora en tra rei em tua c asa ." Ele entã o a ba teu o p rime iro ce dro; eles c ortara m seus g alhos e o s depositaram ao pé da montanha. Ao primeiro golpe do machado Humbaba explodiu de ira, mas eles foram em frente. Abateram sete cedros, cortaram e amarraram seus galhos e os depositaram ao pé da mo nta nha ; e p or sete ve zes Humb ab a lan ç ou sob re eles o b rilho de sua glória. Eles chegaram à caverna do gigante quando se extinguia o sétimo clarão. Humbaba esmurrou sua coxa em sinal de desdém. O gigante foi se aproximando como um touro nobre e selvagem que foi am arrad o na m ontanha , um g uerreiro c om os c otove los presos e ata do s por uma corda. As lágrimas corriam de seus olhos e a palidez lhe cobria o rosto. "Gilgam esh, de ixa-me fa lar. Jam a is tive uma m ã e, não , nem um pa i p a ra me c ria r. Na sc i da m onta nha , ela me c riou, e Enlil fez de mim o sentinela da floresta. Deixa-me ir, Gilgamesh, e serei teu servo; tu serás me u senho r. Tod a s as árvores da mo nta nha , que fo ram c uida d as p or mim, serão tuas. Eu as abaterei e te construirei um palácio." Ele tomou Gilgamesh pela mão e o conduziu à sua casa, e isso fez com que o coração do herói se enchesse de piedade. Ele invocou a vida celestial, a vida terrena, o próprio mundo inferior: "Oh, Enkidu, não deveria o
passarinho apanhado na armadilha retornar ao seu ninho, ou o prisioneiro p ara os b ra ç os de sua mãe ?" Enkidu respond eu: “ O m a is forte do s hom ens c a irá a nte o de stino se nã o tiver disc ernimen to” . Nam tar, o fad o m aligno , que não faz distinç ã o entre o s hom ens, dev orá-lo-á . Se o pássaro preso na armadilha retornar ao seu ninho, se o prisioneiro voltar para os braços de sua mãe, então tu, meu amigo, jamais retornarás à cidad e o nde te espera a mã e q ue te ge rou. Ele te b loqueará o ca minho da mo nta nha e to rna rá imp ossível tua p assag em . Humbaba disse: "Enkidu, isso que disseste é uma coisa má; tu, um merce nário, que d ep end es do trab alho pa ra o bte r teu pã o! Por inveja e por med o d e um riva l disseste essa s m ald a d es." Enkid u d isse: "Não ouç as o que ele diz, Gilgamesh: Humbaba tem de morrer. Mata Humbaba primeiro e seus servo s d epois." Mas G ilgam esh d isse: "Se to c armo s ne le, o brilho e o esplend or da luz serão p erturba do s; ela p erderá seu e nc anto e sua majestade; seus raios se extinguirão." Enkidu disse a Gilgamesh: "De modo algum, meu amigo. Primeiro apanhas o pássaro, e para onde entã o c orrerão os p a ssa rinhos? Pod em os de p ois proc ura r o enc a nto e a ma jestad e, enq ua nto o s pa ssarinho s c orrem a taranta d o s pe la g ram a ." Gilg am esh ouviu seu c om pa nheiro. Ele tom ou o m a c ha do em sua mã o, desemb ainhou a e spa da e ac ertou Humb ab a c om uma estoca da no p esc oç o. Seu c om p an heiro Enkidu g olpe ou-o um a seg unda ve z. Na terce ira investida Hum b ab a tom bo u. Seg uiu-se entã o um a g rand e confusão, pois este a quem eles haviam morto era o sentinela da floresta. Por dua s légua s os c ed ros estrem e c eram qu and o Enkidu a ba teu o vigia da floresta, aquele cuja voz fazia o montes Hermon e Líbano trem erem. As mo ntanhas e to da s as c olinas se ac hav am ag ora a gitad as e comovidas, pois o guarda da floresta fora morto. Eles atacaram os cedros; os sete esplendores de Humbaba se extinguiram. Eles então prosseguiram floresta adentro carregando a espada de oito talentos. Eles acharam as moradas sagradas dos Anunnaki e, enquanto Gilga m esh a ba tia a p rim eira árvore d a flo resta , Enkid u ia lim pa nd o sua s raízes até as margens do Eufrates. Eles expuseram aos deuses, a Enlil, o
corpo de Humbaba; eles beijaram o chão, deixaram cair a mortalha e apresentaram ao deus a cabeça do gigante. Ao ver a cabeça de Humbaba, Enlil gritou: "Por que fizestes isso? De agora em diante que o fog o c astigue vossos rostos, que e le c om a o pã o q ue c orneis, que be b a a água que bebeis." Enlil então tomou de volta o brilho e os sete esplendores que haviam pertencido a Humbaba: ele deu o primeiro deles ao rio, e os outros ao leã o, à p ed ra d e e xec raç ão , à m ontanha e à tem id a filha d a Rainha d o Inferno. Oh, Gilgam esh, rei e c onquista d or do b rilho te rrível, touro selva ge m que pilha a montanha, que atravessa o mar, louvado seja; e dos c orajosos a m aior glória é a d e Enki!
3. Ishtar e Gilga me sh, e a morte de Enkidu Gilgamesh lavou seus longos cabelos e limpou suas armas; jogou os c ab elos p ara trá s dos om b ros, tirou a s ro up as m anc ha da s que ve stia e troc ou-as por nova s. Ele c oloc ou seus m antos rea is e o s a justou ao c orpo . Ao v estir a c oroa , a gloriosa Ishta r elevou seu s olhos e d ivisou a b eleza de Gilgamesh. Ela disse: "Vem comigo, Gilgamesh, e sê meu consorte; infunde-me a semente de teu corpo; deixa-me ser tua mulher e serás meu marido. Arrearei para ti uma carruagem com ouro e lápis-lazúli; as rod as serão d e o uro, a s trom pa s de c ob re; em vez de m ulas, terás pa ra puxá-la os poderosos demônios da tempestade. Ao entrares em nossa casa, envolvida na fragrância do cedro, terás a soleira e o trono a beijar-te os pés. Reis, tiranos e p rínc ipe s se c urva rã o à tua presenç a ; eles te trarã o t rib utos d as m onta nha s e d as pla nícies. Tua s ove lhas d arã o à luz gêmeos e tuas cabras trigêmeos; teus burros de carga serão mais rápidos do que as mulas; nada se igualará a teu gado, e os cavalos de tua carruagem serão conhecidos em terras distantes por sua velocidade." Gilg am esh a briu a bo c a e respo nd eu à g loriosa Ishta r: “ Se v os tomar como esposa, que presentes poderei oferecer em troca”? Que vestes e perfumes poderia te dar? De bom grado dar-vos-ia pão e todo tipo de c om ida à altura de um d eus. Dar-vos-ia de be be r um vinho d igno de uma rainha. Eu ab a rrota ria v osso c eleiro d e c eva d a; m a s fazer de vó s minha esposa, isso nã o. O q ue seria de m im? Fostes pa ra vo ssos ama nte s co mo um b raseiro q ue a rde sem cham a no frio, com o um a p orta q ue não p rotege do vento cortante o u da temp estade , uma fortaleza q ue esma ga sua g uarniç ão, uma jarra q ue eneg rec e o om bro de quem a carrega, um odre que escoria e esfola a pele de seu portador, uma roc ha que c ai do pa rap eito, um a ríete vindo d o inimigo, uma sand ália que faz trop eç ar aq uele que a veste. Qual de vo ssos a ma ntes c heg astes alguma vez a amar para sempre? De qual de vossos pastores não vos
cansastes? Escutai-me enquanto conto a história de vossos amantes. Hav ia Tam mu z, o a mo r d e vo ssa juventud e; de c reta stes p or ele o c horo e a lamenta ç ão , ano ap ós ano. Ama stes o m ultic olorido ga io, ma s ainda sim de sferistes um g olpe c ontra sua asa , que b rand o-a ; ag ora, po usad o em alguma árvore d o b osque, ele cho ra 'c áp i, cá pi, minha a sa, m inha asa'. Amastes o leão de tremenda força; preparastes para ele sete armadilhas, e mais sete. Amastes o garanhão que era magnífico na batalha, e para ele decretastes o chicote, a espora e a correia; ordenastes que galopasse sete léguas todos os dias e que lhe dessem ág ua suja p a ra beb er; e para sua mãe , Silili, impusestes a s lam enta ç õe s. Amastes o pastor do rebanho; dia após dia ele vos preparava um bolo de aveia; e sacrificava cordeiros em vossa homenagem. Vós o golpeastes e o transformastes num lobo; agora seus próprios filhos o afujentam, seus próprios cães de caça o acossam, lacerando-lhe os flancos. E não amastes também Ishullanu, o jardineiro do bosque de palmeiras de vosso pai? Ele vos trazia incontáveis cestas repletas de tâmaras; todos os dias ele cobria vossa mesa. Então olhastes para ele e dissestes: 'Caro Ishullanu, vem c om igo , vam os desfruta r de tua virilid a de, ap roxima -te e tom a-me em teu s braç os, sou tua.' Ishullanu respo nd eu: 'O que estais me pedindo? Minha mãe cozinhou e eu comi; por que deveria rec orrer a alguém c omo vós pa ra obter com ida c ontaminad a e pútrida ? Pois de sde qua ndo um b iom bo de treliç a é p roteç ão sufic iente contra a geada?' Ao ouvir sua resposta lançastes contra ele um feitiço. Ele se transformou numa toupeira cega que habita as profundezas da terra , a lguém c ujos d esejos estã o sem p re a lém d e seu a lcanc e. E, se nos uníssem os, será q ue eu não rec eb eria o m esmo trata m ento d isp ensad o a todos esses que um dia am a stes? Ao ouvir esta resposta, Ishtar foi tomada de uma implacável c ólera. Ela sub iu aos c éus e c horou c onvulsiva me nte d ia nte de seu pa i, Anu, e sua mãe, Anion. E disse: "Pai, Gilgamesh c obriu-me de insultos; ele expô s tod a a minha a bom inável c onduta ; denunc iou m inhas infâmias e torpe za s." Anu a b riu a b oc a e disse: "És um pa i de d euses? Nã o disc utiste
5. O herói da Epopéia As dúvidas quanto à existência de um Gilgamesh histórico não afeta m seriam ente a nossa fruiç ão da ep op éia; ma s rec enteme nte" os estudiosos conseguiram comprovar, sem sombra de dúvida, que um hom em , um rei, cha ma do Gilga me sh, viveu e reinou em Uruk em a lg uma ép oc a da prime ira me tad e d o terc eiro m ilênio. A que stão se limita a go ra a determinar se ele viveu por volta do ano 2700 a.C. ou uns cem anos mais tarde. Foram encontrados em vasos e tijolos os nomes dos antecessores de Gilgamesh e de seus contemporâneos; ao mesmo tempo, certos documentos semi-históricos — a "Lista Dinástica Suméria", da q ual já falam os, e a c ha ma da "História de Tumm ul" — fornec em testemunhos históricos e genealógicos conflitantes. Segundo a lista dinástica, Gilgamesh foi o quinto na linha de reis que se seguiram à fundação da primeira dinastia de Uruk (após o dilúvio) e teria reinado por 126 anos; seu filho, contudo, reinou por meros trinta anos, e daí por diante os reis viveram e reinaram por períodos humanos comuns. O doc umento de Tummul, tam bém d atad o do c omeç o do segundo milênio, diz que Gilgamesh reconstruiu o santuário da deusa Ninlil em Nip p ur, dep ois da s resta uraç õe s ante riores fe itas pelo s reis d e Kish. As várias discrepâncias cronológicas são de menor importância em vista da comprovação da existência de Gilgamesh como personagem histórico: um rei que provavelmente comandou uma bem-sucedida expedição para trazer madeira das florestas do norte e que certamente foi um grande construtor. As muralhas de Uruk eram fam osa s, m as aind a nã o eram c onstruíd as c om tijolo c ozid o. Tra ta -se de um anacronismo possivelmente originado pela má compreensão de red ato res ma is mo d ernos d e um texto m ais antigo . Evocava-se a qualidade superior dos tijolos "plano-convexos" utilizados na construção das fortalezas. As escavações em Warka mostram o esplendor dos templos ainda no período do surgimento da
c om Gilg am esh, o rei, e p or isso ele d enunc iou tua a b om inável con duta , tua s infâ m ia s e torp ezas?" Ishta r a briu a b oc a e to rnou a fala r: "Pa i, da i-me o Touro d o Céu pa ra de struir Gilga me sh. Enc hei, eu v os pe ç o, G ilga me sh d e a rrog ân c ia pa ra sua próp ria d estruiç ão ; ma s, se v os rec usa rdes a me d ar o Touro d o Céu, destruirei os portões do inferno e despedaçarei seus ferrolhos; haverá confusão entre os seres que estão nas camadas superiores e os que estão nas p rofund ezas da terra . Trarei os m ortos pa ra c im a, p a ra qu e se alimentem como os vivos, e a hoste dos mortos será mais numerosa que a dos vivos." Anu disse à poderosa Ishtar: "Se eu fizer o que tu me pedes, haverá sete anos de seca por toda Uruk; o trigo só terá palha e nad a d e sem ente. Guarda ste uma qu antida de sufic iente d e g rão s pa ra as pe ssoa s e c a pim pa ra o g a d o?" Ishtar rep lic ou: "Gua rdei grão s p ara a s pe ssoa s e c ap im pa ra o ga do ; há um a q uantidad e sufic iente d e g rão s e c ap im p ara o s sete an os d e trig o sem sem ente ." Ao ouvir a resposta de Ishtar, Anu entregou-lhe o Touro do Céu para que fosse conduzido pelo cabresto até Uruk. Quando eles chegaram aos portões da cidade, o Touro dirigiu-se ao rio. Ele bufou uma vez e a te rra a b riu-se em fend as, engolindo a v ida de c em ho m ens. Ele b ufou uma seg und a ve z e m a is fend as se a brira m, levand o a v id a d e duzentos hom ens. Na te rc eira ve z nova s fend a s se ab rira m, lanç a nd o Enkidu pa ra a frente; mas ele imediatamente recuperou o equilíbrio, se esquivou e lançou-se sobre o touro agarrando-o pelos chifres. O Touro do Céu espumava em seu rosto e o escoriava com a parte mais grossa de sua cauda. Enkidu gritou para Gilgamesh: "Amigo, nós alardeamos que deixaríamos uma fama duradoura atrás de nossos nomes. Agora enfia tua e spa da entre a nuc a e os c hifres do touro." Gilga m esh foi entã o a trá s da fera, ag arrou o talo de sua c aud a, enfiou a espa da entre sua nuc a e seu c hifre e a m ato u. Dep ois d e m ata rem o Touro do Céu, eles arran c aram seu c oraç ã o e o o ferec eram a Sha m ash. Os do is irm ã os então de sc ansaram .
Mas Ishtar levantou-se e escalou a grande muralha de Uruk; ela pulou para a torre e proferiu uma maldição: "Ai de Gilgamesh, pois zom b ou d e m im ao ma tar o Touro d o C éu." Ao o uvir essa s p alav ras, Enkidu arrancou a coxa direita do touro e atirou-lhe ao rosto, dizendo: "Se p ud esse c oloc ar minhas mã o em ti, é isso q ue te fa ria, e a ç oitaria com as entranhas o teu corpo." Ishtar então conclamou sua gente, as prostitutas do templo, as jovens que cantavam e dançavam, as c ortesã s. Em torno d a c oxa do Touro d o Cé u, organizou um velório d e choro e lamentaç ão . Mas Gilgamesh reuniu todos os ferreiros e alfagemes. Eles ficaram impressionados com a imensidão dos chifres, que eram revestidos de uma camada de lápis-lazúli de duas polegadas de espessura. Cada um deles pesava quinze quilos, e em seu interior cabia o equivalente a seis medidas de óleo, que Gilgamesh ofereceu ao seu deus protetor, Lugulbanda. Mas ele levou os chifres para o palácio e os pendurou na parede. Eles então lavaram suas mãos no Eufrates, abraçaram-se e foram embora. Atravessaram as ruas de Uruk, onde os heróis haviam se reunido p a ra vê -los, e G ilgam esh virou-se p a ra as jov ens que c a ntav am e gritou: "Quem é o mais glorioso dos heróis, quem é o mais eminente en tre os ho mens?" "Gilgamesh é o m ais glorioso d os he róis, Gilga mesh é o ma is em inente entre o s hom ens." Houve entã o um ba nqu ete , e fe stejos, e o palácio encheu-se de alegria, até os heróis se deitarem, dizendo: "Descansaremos agora até o amanhecer." Quando a manhã chegou, Enkidu levantou-se e gritou para Gilgamesh: "Oh, meu irmão, que sonho tive esta noite. Anu, Enlil, Ea e o c elestial Sha ma sh se reuniram em c onselho, e Anu d isse a Enlil: 'Por terem ma tado o Touro d o Cé u e p or terem morto Humba ba , que tomava c onta da Monta nha de Ced ro , um d os do is tem de m orrer.' O g lorioso Sha m ash resp ondeu entã o a o herói Enlil: 'Foi sob tua s ord ens q ue eles ma taram Humb a ba e o Touro do Céu, será q ue Enkidu te m d e m orrer apesar de ser inocente?' Enlil virou-se bruscamente para o glorioso Shamash e disse, em fúria: 'Ousas dizer uma coisa dessas, tu que estavas
sem pre a a c om pa nhá -los c om o se fo sses um d eles!' ' Enkidu jazia estendido diante do amigo. Suas lágrimas vertiam c op iosa me nte, e ele d isse a G ilg am esh: "Oh, m eu irmã o, és tão q uerido po r mim , e eles no enta nto v ão tirar-me d e ti." Ele tornou a falar: "Devo senta r-me à e ntra da da c a sa d os mo rtos e jam a is tornar a ver c om m eus olhos o me u q uerid o irm ão ." Solitá rio e enfermo em seu leito, Enkidu a ma ldiçoa va o p ortão c om o se e le fosse d e c arne viva : "Tu, ma d eira do p ortão, inerte , insensível e a pá tic a ; viajei vinte lég uas procu rand o p or ti, até a c har o g iga ntesc o c ed ro. Não há ma de ira igua l em nossa terra . Sete nta e d ois c ôv ad os de altura e vinte quatro de largura; eixo, virola e batente perfeitos. Foste feito pelo mestre dos artesãos de Nippur; mas, ai, se eu soubesse o que ac ontec eria! Se soub esse q ue serias o ú nico b em resultante d esta aventura, teria levad o o m ac hado ao ar e te feito em ped aç os, e em teu lugar construiria aqui um portão de vime. Ai, se pelo menos tivesses chegado aqui por obra de algum futuro rei, ou se um deus te tivesse criado! Que ele apague o meu nome e o substitua pelo seu; que a maldição recaia sobre sua cabeça em vez de tombar sobre a de Enkidu." Ao primeiro brilho da alvorada, Enkidu levantou a cabeça e chorou diante do Deus-Sol; suas lágrimas corram por seu rosto ao brilho da luz solar. "Deus-Sol, eu vos imploro, a respeito daquele caçador infame, aquele caçador vil, por culpa de quem vim a receber menos que meu companheiro; fazei com que capture menos presas, tornai a caça mais escassa, fazei com que ele se enfraqueça, que receba a menor parte nas divisões entre os caçadores, que suas vítimas fujam de sua s a rm ad ilha s." Depo is de impreca r c ontra o c aç ad or até d esab afa r seu co ra ç ão , ele se voltou para a rameira. Crescera nele uma necessidade de também amaldiçoá-la. "Quanto a ti, mulher, lanço-te uma grande ma ldiçã o! Prome to-te um d estino p ara tod a a eternida de . Minha p rag a se abaterá sobre ti imediata e repentinamente. Ficarás sem teto para o
teu c om ércio, p ois nã o m ante rá s c a sa c om outra s m ulheres na ta be rna , ma s terás d e realiza r teu neg óc io e m luga res fétidos e em pe stad os p elo vôm ito d o b êb ad o. Teu p reç o será b arato ; teus pe qu eno s furtos serão lançados com desdém ao chão de tua choupana; tu te sentarás na enc ruzilhad a po eirenta do q uarteirão d os oleiros; fa rás tua c a m a à noite sobre um monte de estrume, e durante o dia tomaras teu lugar sob a som bra d a muralha. Sarça s e esp inhos rasga rão teus p és; o b êb a do e o sóbrio te golpearão o rosto e sentirás dores na boca. Que sejas despojada de tuas tintas purpúreas, pois também eu na selva com minha mulher tinha to dos os tesouros que d esejav a ." Ao ouv ir as p alav ras d e Enkidu, Sha ma sh g ritou-lhe d o c éu: "Enkidu, po r que a m aldiç oa s a m ulher, a c onc ubina que te e nsinou a c ome r pã o digno dos deuses e a beber o vinho dos reis? Ela, que colocou sobre ti um magnífico traje, não foi ela quem te deu o glorioso Gilgamesh por companheiro, e Gilgamesh, teu próprio irmão, não fez ele com que te deitasses num leito real e te rec lina sses sob re um d iva à esq uerda d e seu trono? Ele fez com que os príncipes da terra beijassem teus pés, e hoje todo o povo de Uruk chora e se lamenta por ti. Quando morreres, ele de ixará seus c a be los c resc erem p or tua c au sa ; ele vestirá a pe le de um leã o e vag uea rá p elo de serto." Ao o uvir a s pala vras do glorioso Shama sh, seu c oraç ão c olé ric o se acalmou; ele retirou a maldição e disse: "Mulher, prometo-te um outro de stino. A bo c a q ue te am aldiçoo u ago ra te a be nç oa ! Serás ad orada por reis, prínc ipes e n ob res. Em bo ra a doze m ilhas de d istâ nc ia , exerc erás forte a tra ç ão sob re um ho me m e o p erturba rás. Ele te ab rirá a s po rtas de seu tesouro e terás tudo o que desejares: lápis-lazúli, ouro e cornalina, tira do s d a sua p ilha d e te souros. Ga nha rá s um an el p ara te u d ed o e um manto. Um sacerdote de conduzirá à presença dos deuses. Por tua c ausa um a espo sa, mã e d e sete, foi aba ndo nad a." Enquanto Enkidu dormia sozinho em sua enfermidade, com o coração amargurado ele se virou para o amigo e desabafou: “Fui eu quem ab ateu o c edro, quem limp ou a floresta, quem m atou Humba ba ,
e agora olha o que me aconteceu”. Escuta, meu amigo, o sonho que tive esta noite. Os céus troavam e a terra rugia de volta; entre os dois estava eu, diante de um ser aterrador, o homem-pássaro de feições som bria s. Ele havia me esc olhid o c omo presa. Seu rosto era c om o o d e um vampiro, seus pés como as patas de um leão, suas mãos como as garras de uma águia. Ele se abateu sobre mim e suas presas agarraram minha c ab eç a; ele me ap ertou c om fo rça e me senti sufoc ar; ele entã o transformou meu corpo de tal maneira que meus braços viraram asas c ob ertas de pe nas. Ele m e olhou fixam ente e levou-me p ara o pa lác io de Irkalla, a Ra inha d as Treva s, à c asa d e o nd e ninguém que entra jam ais torna a sa ir, à estrad a sem reto rno . "Ali fic a a c asa ond e as p essoa s senta m -se no e sc uro, on de o pó é sua c om ida e o ba rro sua c arne. Elas se ve stem c om o o s p ássaros, tend o as asas como traje; elas não vêem a luz e sentam-se na escuridão. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da terra, suas coroas guardadas para sempre; vi tiranos e príncipes, todos aqueles que outrora usavam coroas reais e governavam o mundo. Aqueles que no passado haviam oc upa do o luga r de de uses c omo Anu e Enlil ag ora trab alhava m c omo servos, buscando carne assada na casa do pó e carregando carne c ozida e á gua fria tirad a d o od re. Na c asa d o p ó em que e ntrei estava m os altos sacerdotes e os acólitos, os sacerdotes do êxtase e do enc anta me nto; lá se e nc ontrav am os servid ores d o tem plo e Etana , o rei de Kish, a quem outrora a ág uia c arreg ou p ara o c éu. Tam bé m vi Sam uq an , o d eus do g ad o, e Ereshkiga l, a Ra inha do Mund o Inferior; e, ag ac ha d a em frente a ela, Belit-She ri, esc riba d os d euses e gua rdiã do livro d a mo rte. Ela e stav a lend o um a táb ua que tinha em sua s m ão s. Ela levantou a cabeça, me viu e falou: 'Quem trouxe este aqui?' Eu então acordei e parecia um homem sangrado que erra solitário por entre os juncos; alguém que foi agarrado pelo intendente e cujo coração bate dispa rad o, c heio d e a gonia e terror." Gilgamesh havia se despido; ele escutou as palavras do amigo e chorou intensamente. Ele abriu a boca e disse a Enkidu: "Quem na Uruk
das poderosas muralhas tem tamanha sabedoria? Coisas estranhas foram ditas, por que te u c oraç ão fala a ssim tão estra nha me nte? Teu sonho foi grandioso, mas terrível; devemos conservá-lo na memória apesar de seus horrores, pois ele demonstra que a miséria acaba abatendo-se sobre o homem saudável, que o fim da vida é doloroso." E Gilgamesh lamentou: "Rezarei agora aos grandes deuses, pois meu am igo teve um sonho o m inoso." O dia do sonho chegou ao fim, e Enkidu jazia enfermo. Passou um dia inteiro no leito e seu sofrimento aumentou. Enkidu disse a Gilgam esh, o amigo por quem ele abandonara sua vida no meio da natureza: "Houve época em que lutei por ti, pela água da vida, e agora eu não tenho nad a ." Enkid u p a ssou um seg undo dia n o leito e Gilga me sh velou por ele, mas a doença piorou. No terceiro dia, ele chamou Gilgamesh, ac orda nd o-o. Enkid u estav a frac o e seus olhos já n ão enxerga vam ma is de tanto chorar. Dez dias se passaram e seu sofrimento aumentava; onze, doze dias, e Enkidu continuava em seu leito de dor. Ele então c ham ou G ilga m esh e disse: "Amigo , a g rand e d eusa me am aldiçoo u e devo morrer na vergonha. Não morrerei como um homem que tomba durante a batalha; eu temia ser derrubado na luta, mas feliz é aquele que m orre luta nd o, p ois eu m orrerei na ve rg onha ." E Gilgam esh c horou po r Enkidu . Ao p rim eiro b rilho d a alvorad a ele elevou sua v oz e fa lou ao s c on selhe iros d e Uruk: "Ouvi-me , ho me ns ilustres d e Uruk, Cho ro po r Enkidu, meu am igo . Co m a s lag rima s p ung ent es d a m ulher a flita Choro po r meu irmã o. Oh, Enkid u, meu c om pa nheiro, Foste o mac had o q ue levava ao meu lad o, A força do meu b raç o, a espa da em meu cinturão, O escud o que me protegia, Um glorioso m anto , meu m ais b elo o rnam ento ;
Um de stino c ruel roub ou-o d e mim. O a sno selvag em e a g azela Que co mo p ai e mãe te c riaram, Tod as a s c riaturas d e c a ud a long a q ue te a limenta ram Cho ra m p or ti. To d a s a s c oisa s a g reste s d a s c a mp ina s e d os p a sto s, As trilha s qu e a m a va s na floresta d o s c ed ro s, Noite e dia m urmuram. Que o s ho m en s ilustre s d e Uruk, A c ida de d as po d erosas muralhas, Cho rem po r ti; Que o ded o que abe nçoa Se e sten d a p ara p ra nteá -lo. Enkidu , meu jove m irmã o, ouve , Um e c o a tra vessa t od o o p a ís Como um lamento de m ã e. Cho ra m to do s os c a minho s q ue juntos pe rc orrem os, E a s feras q ue c a ç a mo s: o urso e a hien a , O tigre e a pantera, o leop ardo c o leão, O vead o e o c ab rito mo ntes, o touro c a c orça . Os rios c uja s ma rg e ns p erc o rría m o s Cho ra m p or ti, O Ula d o Elam e o q uerido Eufrat es, De ond e tiráva mo s á gua p ara o s od res. A mo ntanha que esca lam os pa ra o Sentinela ma ta r Cho ra po r ti. Os gue rreiros d e Uruk, Cid a d e d a s p od erosa s mu ralha s, Ond e o Tou ro d o C éu foi morto, Cho ra m p or ti. Tod o o p ovo d e End u 132
sua morte e, num outro poema, o mesmo Enkidu desce vivo pela "estra da sem reto rno" pa ra tra zer de volta um tesouro p erdido. M as, ao c ontrá rio d as jornad a s de Hércules e Teseu, o s heróis greg os q ue p a rtiram em missões semelhantes, a aventura de Enkidu foi fatal; apenas um breve retorno lhe foi permitido, provavelmente na forma de um fanta sma , um a substân c ia nã o m a is c onc reta do qu e um sop ro d e b risa que , ao ser inq uirid o po r Gilgam esh respo nd eu: "Senta -te e c hora; me u corpo, que costumavas tocar e enchia teu coração de alegria, os verm es d evo ram c om o se fo sse um velho a ga salho ." Seria dem a siad o sim plista d izer q ue, enq ua nto os eg ípc ios no s fornec em uma v isã o d o c éu, os b ab ilônios no s d ão uma visão d o inferno; há, contudo, certa verdade nisso. No universo sumério-babilônico, apenas os deuses habitavam o céu. Entre os mortais, apenas um foi transportado à vida eterna, "lá longe, na foz dos nos", e ele viveu naqueles obscuros dias da época antediluviana, tal como Enoc, que "caminhou com Deus e desapareceu, pois Deus o levou". Os mortais c om uns tinham d e ir p ara "A c a sa o nd e fica m senta d os no e sc uro, onde o pó é sua comida e o barro sua carne; vestem-se como os pássaros, tendo asas como traje; por sobre o ferrolho e a porta jazem o pó e o silêncio". E uma visão deprimente de pássaros pesados, mudos e apáticos, agachados na sujeira com suas penas enlameadas. Neste mundo inferior viviam também os Anunnaki, os "Magníficos" sem nome, que, como Ereshkigal, chegaram a viver no alto entre os anjos do céu, mas que por causa de uma má ação foram de lá banidos para se tornarem os juizes do mundo inferior, quase da mesma forma como os Titã s foram b an id os po r Zeus, ou c om o suc ed eu a Lúc ifer, o a njo c aído. Na Babilônia, a alma de um homem morto era exorcizada com o seguinte encantamento: "Deixai-o ir para o sol poente, deixai que seja confiado a Nedu, o porteiro-mor do mundo inferior; que Nedu o vigie atentame nte, que sua c have c erre a fecha dura." Talve z este c ená rio nã o te nha sido sem pre tã o som b rio. Um fragmento de uma tábua suméria nos diz que a alma do justo não
Ch ora p o r ti, Enkid u. Aq ueles q ue trouxeram c erea is pa ra c onte res Choram ag ora po r ti; Que o ó leo em tua s c osta s esfreg a vam Choram ag ora po r ti; Que te enchiam o c opo de c erveja Choram ag ora po r ti; A meretriz que co m o p erfumad o ungüento te unta va La me nta -se a g ora p or ti; As mulheres do p alác io, que te d eram um a esp osa , Um g rup o seleto d e b oa s c on selheira s, La me nta m-se a go ra po r ti. E os jovens, teus irmãos, Co m o se f ossem mulheres De ca b elos c om prid os c horam p or ti. Que sono é e ste q ue em seu p od er te m antém? Esta s p erdido no e sc uro e nã o m e p od es ou vir."
Gilg am esh toc ou o c oraç ão d e Enkidu , ma s ele já n ão ba tia ; seu s olhos tam bém não tornaram a se ab rir. Gilga mesh entã o c ob riu o am igo c om um véu, c om o o noivo c ob re a noiva. E pô s-se a urrar, a de sab afa r sua fúria como um leão, como uma leoa cujos filhotes lhe foram roubados. Vagueou em torno da cama, arrancou seus cabelos e os espalhou por toda parte. Arrancou seus magníficos mantos e atirou-os ao c hão c om o se fossem ab ominaç õe s. Ao primeiro brilho da alvorada, Gilgamesh gritou: "Fiz com que te de itasses num leito rea l, te rec lina ste sob re um diva à esque rda d e m eu trono , os p rínc ipes da terra be ijaram teus p és. Fa rei co m q ue to do o p ovo de Uruk chore por ti e te cante hinos fúnebres. As pessoas alegres se c urva rão de do r; e, dep ois de de sc eres à terra , deixarei que m eu c ab elo c resç a em tua hom ena gem e errarei pelas ma tas na p ele de um leã o." De novo no dia seguinte, ao primeiro brilho da aurora, Gilgamesh se
lamentou; por sete dias e sete noites ele chorou por Enkidu, até que os vermes tomaram-lhe o corpo. Somente então Gilgamesh entregou Enkidu à terra, pois os Anunnaki, os juizes do mundo inferior, o haviam capturado. Gilgamesh então mandou proclamar um edito por todo país. Ele c onv oc av a todos os c ald eireiros, ourive s e ped reiros e o s intima va : "Fa zei uma estátua de meu amigo." A estátua foi moldada com grande quantidade de lápis-lazuli no peito e de ouro no resto do corpo. Foi então montada uma mesa de madeira de lei, e em cima dela foram colocadas uma tigela de cornalina cheia de mel e uma de lápis-lazuli c ontend o m anteiga . Gilgam esh a s oferec eu ao Sol, e, chorando , pa rtiu.
4. A busca da vida eterna Gilg am esh c horou a m a rg am ente po r seu a migo Enkid u. Ele errou pelas matas como um caçador e vagueou pelas planícies. Em sua tristeza ele gritou: "Como posso descansar, como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu coração. Isso que meu irmão é agora, o me smo serei eu q uand o m orrer. Por med o d a m orte fa rei o p ossível pa ra enc ontrar Utnap ishtim , a q uem c ham am o Long ínquo , po is ele se juntou à a ssem bléia d os de uses." Gilga m esh en tão c orreu o m und o selvag em ; vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de Utna pishtim, a q uem os d euses a c olheram a pó s O dilúvio e instala ram na terra de Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos os hom ens, os d euses c onc ed eram a vid a e terna. A noite, chegando ao desfiladeiro da montanha, Gilgamesh rezou: "Neste d esfilad eiro, há muito temp o a trá s, enc ontrei leões. Tive medo e elevei meu olhar para a lua. Eu rezei e os deuses escutaram minha prece; por isso agora, oh, Sin, deus da lua, protegei-me." Após a
oraç ão , ele se d eitou p ara d ormir, a té ser ac orda d o d e u m sonho . Ele se viu rod ea d o d e leõe s q ue se reg ozijava m d e e starem v ivo s; tom ou entã o o machado nas mãos, sacou a espada de seu cinturão e se lançou sobre eles como uma flecha disparada por um arco. Ele golpeou as feras, matou-as e dispersou-as. Finalmente Gilgamesh chegou a Mashu, as grandes montanhas que gua rd am o na sc er e o p ôr do sol e sob re a s qua is ele havia o uvido muitas história s. Seus pico s sã o g êm eo s e d a altura d as muralhas d o c éu; suas encostas descem até o mundo inferior. Os Escorpiões vigiam sua entrada. Eles são metade homem e metade dragão; sua fama inspira terror, seu olhar é mortal aos homens e o brilho tremeluzente que deles emana varre as montanhas que guardam o nascer do sol. Ao vê-los, Gilgamesh protegeu os olhos, mas apenas por alguns momentos; ele então tomou coragem e se aproximou. Vendo-o com um ar tão impávido, o Homem-Escorpião gritou para seu companheiro: "Este que ora se a proxima tem a c a rne d os de uses." Seu c om p anhe iro resp ond eu: "Ele é d ois terç os d eus, ma s um terç o ho mem ." Ele então gritou para o homem Gilgamesh, ele gritou para o filho dos deuses: "Por que fizeste tão longa jornada? Por que viajaste de tão longe, cruzando os perigosos mares? Dize-me a razão de tua vinda." Gilgamesh respondeu: "Por Enkidu, a quem muito amava. Juntos enfrentamos todos os tipos de dificuldade. Por causa dele eu vim, pois c aiu vítim a d o d estino q ue a ssola os hom ens. Chorei por ele noite e d ia e me recusava a entregar seu corpo para o funeral. Pensei que meu pranto fosse trazê-lo de volta. Desde sua partida minha vida deixou de ter sentido; por isso viajei até aqui em busca de Utnapishtim, meu pai; pois diz-se que ele se juntou aos deuses e que encontrou a vida eterna. Desejo fazer-lhe algumas perguntas com relação aos vivos e os mortos." O Homem-Escorpião abriu a boca e disse, falando a Gilgamesh: "Nenhum hom em nasc id o d e m ulher fez o que tu p ed es, nenhum mo rtal jamais entrou na montanha. Ela se estende por doze léguas de esc urid ão ; não há luz em seu interior e o c oraç ão se sente op rim ido pe las
trevas. Do nascer ao pôr do sol, não há nada além de escuridão." Gilgamesh disse: "Embora seja para mim um caminho de tristeza e dor, de gemidos e lágrimas, ainda assim devo tomá-lo. Abri o portão da montanha." E o Homem-Escorpião disse: "Vai, Gilgamesh. Permitirei que atravesses a montanha de Mashu e as elevadas cordilheiras; que teus pés te levem ao destino em segurança. O portão da montanha está aberto." Gilgamesh escutou o que o Homem-Escorpião lhe disse e seguiu, através da mo ntanha , pe la estrad a do sol até o lugar de seu na sc ente. Depois de caminhar por uma légua, a escuridão se intensificou ao seu red or, p ois nã o ha via m a is luz; ele n ão c onseg uia enxerga r nad a, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de duas léguas a esc urid ão era inten sa e nã o ha via luz; ele não c onseg uia enxerga r na d a, nem o que e stav a à frente ne m o que estav a a trá s. Dep ois d e três lég ua s a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de qua tro lég uas a e sc uridã o e ra intensa e nã o ha via luz; ele nã o c onseg uia enxerga r nad a, nem o que estava à frente nem o q ue e stav a atrás. Ao final de cinco léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não c onseg uia e nxerga r nad a, nem o q ue estava à frente nem o q ue estava atrás. Ao final d e seis lég ua s a esc uridã o e ra intensa e não h av ia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer sete léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o q ue e stav a atrás. Dep ois d e p erco rrer o ito lég uas, ele soltou um grande grito, pois a escuridão era intensa e ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de nove léguas, ele sentiu o vento norte em seu rosto, mas a esc urid ã o e ra intensa e nã o ha via luz; ele não c onseg uia enxerg ar nad a, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de dez léguas, o final estava próximo. Depois de onze léguas apareceram os primeiros raios da alvorada. Ao final de doze léguas a luz do sol enfim
refulgiu. Lá estava o jardim dos deuses; por todos os lados cresciam arbustos c a rreg a d os d e pe d ras prec iosas. Ao v ê-los, ele ime d ia tam ente se a proxim ou, pois hav ia frutas d e c ornalina p end end o d e um a p arreira, lindas de ver; folhas de lápis-lazúli cresciam em profusão por entre as frutas e eram doces ao olhar. No lugar dos espinhos e dos cardos enc ontrava m-se a s hem a tita s e a s pe d ra s raras, e ma is a á ga ta e p érolas do ma r. Sham ash viu G ilga me sh c am inhand o pelo jardim à be ira do ma r, e ele viu q ue o herói estav a vestid o c om pe les de an ima is e q ue se alime ntav a d e sua c a rne. Isto o ab orrec eu, e fa land o e le disse: "Nenhum mortal jamais tomou este caminho antes, nem tomará, enquanto os ventos soprarem por sobre os mares." E virando-se para Gilgamesh ele falou: "Jamais encontrarás a vida que procuras." Gilgamesh respondeu ao g lorioso Sham ash: "Entã o, d ep ois de e rra r e me esfalfa r pela v a stidã o selvag em , terei ainda d e d ormir e d eixar que a terra c ub ra p ara sem pre a minha cabeça? Que meus olhos fitem o sol até seu brilho ofuscá-los. Embora não seja melhor que um homem morto, ainda assim deixai-me c onte mp lar a luz do sol." Ao lad o d o m a r ela vive, a mulher do vinhed o, a fab ric a nte d e vinho . Sid uri fic a senta d a n o jardim à be ira d o m ar, c om a tig ela e o s toné is de ouro q ue o s de uses lhe d eram . Ela e stá c ob erta p or um véu e, de onde se encontra, vê Gilgamesh se aproximar, vestindo peles, com a carne dos deuses no corpo, mas com o desespero no co raç ão. Seu rosto era c om o o d e alguém que c hegou d e uma longa jornada. Ela olhou e, observando com atenção o que se passava a distância, disse para si mesma: "Trata-se sem dúvida de um criminoso; ao nde estará ind o?" E ela fec hou o po rtão c om a tranc a e pa ssou-lhe o ferrolho. Mas Gilgamesh, ao ouvir o barulho do ferrolho, lançou a c ab eç a p ara a frente e de teve a po rta c om o p é. Ele gritou p ara Siduri: "Jovem fab ric ante de vinho, por que tranc as tua p orta? O que viste q ue te fez tranc ar teu p ortão ? Queb rarei tua p orta e a rreb entarei teu p ortão , po is sou G ilgam esh, que c ap turou e m ato u o Touro d o C éu. Eu m ate i o sentinela d a floresta d e c ed ro, de rrubei Hum b ab a q ue vivia na floresta e
ma tei os leões no d esfilad eiro d a m onta nha ." Siduri en tã o d isse a ele: "Se é s o G ilga me sh q ue c a pturou e m atou o Touro do Céu, que m ato u o sentinela da floresta d e c ed ro, que de rrubo u Humb a ba q ue v ivia na floresta e m a tou o s leõe s no d esfilad eiro da montanha, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lemb ra o de alguém q ue c heg a d e uma long a jornad a? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aq ui va ga ndo p elos pa stos à p roc ura d o vento ?" Gilgamesh respondeu-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encov ad o e a ba tido ? Trag o o de sespero em m eu c oraçã o; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que caçava o asno selvagem e a pantera das campinas, meu amigo, meu irmã o m ais novo, que c ap turou e ma tou o Touro d o Céu e de rrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete d ias e sete noites, a té os ve rme s tom arem -lhe o c orpo . Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos e não consigo descansar. Mas agora, oh, jovem que prepara o vinho, já que vi tua face, não permita que eu veja a fa c e da m orte a quem ta nto tem o." Ela respondeu: "Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe de stina ram a m orte, ma s a vida eles ma ntive ram em seu p róp rio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e d ia, da nç a e sê feliz, ap rove ita e de leita -te. Veste sem p re roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tom a r as mã os e fa ze tua m ulher feliz c om teu a b raç o; po is isto ta m bé m é o d estino d o hom em."
Mas Gilgamesh disse a Siduri, a jovem: "Como posso ficar calado, como posso descansar, quando Enkidu, a quem amo, tornou-se pó, e qua ndo tam bé m p or mim a mo rte e a terra e sp eram? Vives à b eira d o oceano e vês o seu interior; dize-me, oh, jovem, como chegar a Ut-nap ishtim, o filho d e Uba ra -Tutu. O q ue p rec iso sa b er pa ra c heg a r até ele? Instruí-me , dize o q ue ten ho de fa zer. Atra ve ssa rei o Oc ea no se isto for possível; se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas." A fabricante de vinho lhe disse: "Gilgamesh, não há como atravessar o Oceano; todos os que aqui vieram, desde os dias de outrora, não c onseg uiram via jar pelo m a r. O Sol em sua glória atrave ssa o Oc ea no, ma s que m além d e Sham ash jam a is log rou ta l feito? O lug ar é p erigo so e a p assa ge m difíc il; a s á gua s da mo rte q ue p or ali c orrem são profunda s. Gilgamesh, como vais atravessar o Oceano? Quando chegares às águas da morte, o que farás? Mas, Gilgamesh, no meio da floresta encontrarás Urshanabi, o barqueiro de Ut-napishtim; com ele estão os objetos sagrados, os objetos de pedra. Ele está talhando a proa do ba rc o e m forma de serpente . Ob serva -o b em . Se for po ssível, talve z consigas atravessar as águas do Oceano com ele; se não, terás de voltar." Ao ouvir isso, Gilgamesh ficou furioso. Ele tomou o machado em uma da s mã os e sac ou o punha l de seu c inturão . Gilgam esh av anç ou furtivamente e se atirou como um dardo em cima dos apetrechos do ba rc o. Entã o voltou pa ra de ntro d a floresta e sento u-se. Ursha nab i viu o bril ho da fac a e esc utou o m ac had o, e fic ou p erplexo, po is Gilga mesh, em sua fúria, havia destroçado o equipamento da embarcação. Ursha na b i d isse a ele: "Dize-me , qua l é o te u no me? Sou Ursha na b i, o barqueiro de Utnapish-tim, o Longínquo." Ele lhe respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Urshanabi perguntou-lhe então: "Por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o d esespe ro em teu c oraç ão , e p or que te u rosto lemb ra o de alguém q ue c hega de uma longa jornad a? Sim, por que tua fa c e está queima da pelo c alor e pelo frio, e po r que cheg as aq ui vag ando pelos
pa stos à procura d o v ento?" Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar enc ova do e a ba tido ? Trag o o de sespe ro em meu c oraçã o; meu rosto lemb ra o de a lguém que c hega d e uma longa jornada e foi queima do pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e ma tou o Touro d o Cé u e d errubo u Humba ba na floresta d e c ed ro, meu am igo , alguém q ue m e e ra c aríssimo e que enfrentou m uitos p erig os a o meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; po r c au sa d o m eu irmã o, vag ueio pe las ma tas e p elos c a mp os. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em pa z? Ele virou p ó e tam bé m eu vou m orrer e ser enterrad o p a ra sem p re. Tenho me d o d a m orte; po r isso, Urshan ab i, mo stre -me o c am inho pa ra chegar até Utnapishtim. Se for possível, atravessarei as águas da morte, se nã o for, va g arei po r reg iõe s a inda m ais desola da s." Urshanabi disse a ele: "Gilgamesh, foram tuas próprias mãos que tornaram impossível tua travessia do Oceano; ao destruíres o equipamento do barco, destruíste também sua segurança." Os dois então discutiram o assunto e Gilgamesh disse: "Por que estás tão zangado comigo, Urshanabi? Pois tu mesmo atravessas o mar dia e noite; em qualquer estação tu o atravessas." "Gilgamesh, estes objetos que de struíste tinham a prop ried a d e d e levar-me p or sob re a s ág ua s d a mo rte, imp ed indo -as de toc arem em mim . Era po r esta razão que eu os preservava, mas tu os destruíste, e com eles liquidaste também as serpentes urnu. Mas vai agora à floresta, Gilgamesh, corta com teu machado cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pinta-as com betume, reforça-as com virolas e traze-as de volta para mim." Ao ouvir isso, ele foi à floresta, cortou cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pintou-as com betume, reforçou-as
com virolas e trouxe-as de volta para Urshanabi. Eles então subiram no ba rc o, Gilgam esh e Urshana bi, e o lanç aram sob re as ond as do Oc ea no. Durante três dias eles singraram o mar com velocidade, percorrendo o eq uiva lente a um a jorna da d e um m ês e q uinze d ias. Ursha nab i por fim levo u o ba rc o à s á gua s d a m orte. Ele entã o d isse p a ra Gilga me sh: "Vai em frente, pega uma das toras e empurra-a para dentro do mar, mas não encostes tua mão na água. Gilgamesh, pega uma segunda tora, uma terceira, uma quarta. Agora, Gilgamesh, pega uma quinta, uma sexta e uma sétima tora. Gilga me sh, peg a um a oitav a, uma nona e uma dé c ima tora. Gilga me sh, pe ga um a d éc ima prim e ira; peg a uma dé c ima segunda tora." Depois de empurrar para dentro d'água cento e vinte toras, Gilgamesh ficou sem nenhuma. Ele então tirou a roupa e elevou seus braços para cima para servir de mastro, e usou suas vestimentas como vela. Assim Urshanabi, o barqueiro, trouxe Gilgamesh até Utna pishtim, a q uem c ham am o Long ínquo e q ue vive em Dilmun, a leste da Mo ntan ha, no luga r po r ond e transita o sol. Som ente a ele, entre tod os os hom ens, os de uses c onc ed eram a vida e terna. Enq uanto isso , Utna p ishtim, c onfortav elmente insta lad o, ob servav a tudo a distânc ia e , de ntro d e seu c oraç ão , med itava : "Por que o b arco navega por aqui sem seu mastro e sem equipamento? Por que foram destruídas as pedras sagradas, e por que o barco não é conduzido por seu capitão? Aquele homem que chega não é um dos meus; vejo um homem c oberto c om pele de anima is. Quem é este q ue vem pela praia atrás d e Ursha nab i, pois c ertam ente que nã o é um do s m eus hom ens?" Utnapishtim então olhou para ele e disse: "Qual é o teu nome, tu que chegas vestido de pele de animais, com as bochechas famintas e o rosto abatido? Aonde vais com pressa? Por que razão fizeste uma jornada tão longa, atravessando mares cuja passagem é tão difícil? Dize-me a razão d e tua vind a ." Ele respo nde u: "Gilg am esh é me u nom e. Sou de Uruk, da c a sa de Anu." Utnapishtim então disse a ele: "Se és Gilgamesh, por que tens as fac es tão enc ova d a s e o rosto tão a ba tido? Por que trazes o d esespe ro
em teu c oraç ão, e po r que teu rosto lembra o d e alguém que c hega de uma longa jornad a? Sim, po r que tua fa c e e stá q ueim ad a p elo ca lor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?" Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar enc ova do e a ba tido ? Trag o o d esespe ro em me u co raç ão ; me u rosto lemb ra o de a lguém que c hega d e uma longa jornada e foi queima do pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e ma tou o Touro d o Cé u e d errubo u Humba ba na floresta d e c ed ro, meu am igo , alguém q ue m e e ra c a ríssimo e q ue e nfrento u muitos p erigo s ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; po r c ausa do me u irmã o, vag ueio pe las m ata s e p elos c am po s. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em pa z? Ele virou p ó e tam b ém eu vo u m orrer e ser ente rra do p ara sem p re." Gilgamesh tornou a dizer, falando a Utnapishtim: "Foi para ver Ut-nap ishtim, a q uem c ham am os o Long ínq uo, q ue fiz esta jornad a. Por isso va gu ee i pelo m und o, a travessei ta nta s c ordilheira s perigo sa s, c ruzei os m ares e m e e sfalfei via ja nd o; minhas junta s d oe m e há mu ito q ue já não sei o q ue é uma do c e n oite d e sono . Minha s roup a s se e sfarrap a ra m ante s de c heg a r à c asa d e Sid uri. Ma te i o urso e a hiena , o leã o e a pa ntera, o ve ad o e o c ab rito mo ntes, o tigre e tod os os tipo s de c a ç a , e também as pequenas criaturas dos pastos. Comi sua carne e vesti suas peles; e fo i assim q ue c hegue i ao portão d a jovem fab ric ante de vinho, que fec hou c ontra m im seu po rtão de piche e b etume . Ma s rec eb i dela instruç õe s sob re a jornad a e c heg uei então a té Ursha nab i, o b arque iro, c om que m atrave ssei as á gua s d a m orte. Oh, pa i Utnap ishtim, tu que te juntas-te à assembléia dos deuses, desejo fazer-te algumas perguntas sob re o s vivos e o s m ortos: co m o e nc ontrar a vida q ue e stou b usc and o?" Utnapishtim disse: "Não existe permanência. Acaso construímos
o da sibila caldéia descrita por Beroso. Siduri é uma figura enigmática, nunca explic ad a, ma s sua linguag em é sem elhante à de Circ e, que era filha d o sol. Circ e ha bitava uma ilha no meio d o o c ea no, onde o leste e o oeste se confundiam e onde cresciam ervas mágicas e móli. Como Circ e e seu filho Com o, Siduri é p artidá ria da "filosofia" do c om e r, beb er e ser feliz "pois isto também é o destino do homem". A imagem da carregadora de vinho ainda foi usada pelos poetas sufistas medievais, para quem ela era o símbolo da "realidade revelada". Gilgamesh foi instruído p or Sidun sob re c om o a trav essa r as ág ua s da m orte, a ssim como Ulisses foi informado por Circe do caminho para o Hades através do "rio Oceano". Mas, ao contrário de Ulisses, Gilgamesh está só e não tem um barco; tem de achar o barqueiro, e as instruções dadas por Sid uri sã o c on fusa s e p ouc o c onfiáve is. Há uma outra grand e diferenç a: emb ora e sta e xpe diçã o a c arrete a trav essia d o O c ea no e d as ág uas da morte, não é uma jornada pelo mundo inferior, nem tampouco Urshana-bi é o barqueiro dos mortos. A rota é, ainda, o caminho percorrido pelo sol toda noite até "o ponto de trânsito na foz dos rios". Para chegar até Utnapishtim, "o Longínquo", Gilgamesh tem de atravessar o mesmo Oceano que representava a última fronteira do território c onhe c ido o u c onhe cível pa ra tod os os po vos a ntigo s, greg os, semitas ou sumérios. Era uma barreira intransponível, pois se comunicava com as águas da morte e com o abismo, o "Absu", as águas que estão acima do firmamento. Até mesmo os experientes romanos temiam o Atlântic o, e a trav essia de César pa ra a Grã-Breta nha foi vista c om o um ato de ousadia quase sobre-humana, pois, ao contrário do mar Mediterrâneo, o canal da Mancha era considerado o começo do Oceano. Para o s sumé rios, o O c ea no ficav a em algum luga r pa ra além do Golfo Pérsico, e era lá também que se situava Dilmun, onde os rios desembocavam no mar. Deste modo, "a foz dos rios" correspondia exatamente às "nascentes do Oceano" dos gregos, o lugar onde fic av am os Ca m pos Elíseo s e a s ilhas a be nç oa da s de Hom ero e Hesíod o,
uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio d ura p a ra sem pre? Som ente a ninfa d a libé lula de spe -se d a la rva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe pe rma nênc ia . Com o são pa rec ido s os a d ormec idos e o s m ortos, eles são c om o um retra to d a m orte. O que e xiste en tre o servo e o senho r de po is de ambos terem cumprido seus destinos? Quando os Anunnaki, os juizes do mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe dos destinos, junto s eles dec idem a sorte d os homens. Eles d istribuem a vida e a m orte, ma s o d ia d a m orte eles nã o reve lam ." Gilgamesh então disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Olho para ti, Utnapishtim, e vejo que és igual a mim; não há nada estranho em tuas feiçõ es. Pensei que fosse enc ontra r um herói p rep arad o p a ra a b ata lha, mas aqui estás, confortavelmente refestelado. Conta-me a verdade, como foi que vieste a te juntar aos deuses e ganhaste a vida eterna?" Utna pishtim d isse a Gilga m esh: "Eu te revelarei um m istério; eu te c onta rei um seg red o dos deuses."
5. A história do dilúvio "Conheces a cidade de Shurrupak, que fica às margens do Eufra tes? A c id ad e e nvelhec eu, assim c om o o s d euses que ah m orava m. Hav ia Anu, o senho r d o firm am ento e p a i d a c id ad e; o gue rreiro Enhl, seu conselheiro; Ninurta, o ajudante; e Ennugi, que vigiava os canais. Entre eles também se encontrava Ea. Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplic ava m -se e o m undo bramia c omo um to uro selvagem . Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunid os em c onselho: 'O alvo roç o d os hum anos é intoleráve l, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então
c onc orda ra m em extermina r a ra ç a hum an a. Foi o q ue Enlil fez, ma s Ea , por causa de sua promessa, me avisou num sonho. Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando para minha casa de colmo: 'Casa de c olmo , c asa d e c olmo! Parede , oh, pa red e d a c asa d e c olmo, esc uta e reflete. Oh , homem d e Shurrupa k, filho d e Uba ra-Tutu, põ e ab aixo tu a casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da emb arca çã o q ue d everas co nstruir: que a bo ca extrem a d a nave tenha o m esmo tam anho que seu c om prim e nto, que seu c onvés seja c ob erto, tal como a a bó ba da celeste c obre o a bismo; leva então p ara o ba rco a sem ente d e to da s as c ria turas viva s.' "Qua nd o c om pree nd i, eu d isse a o m eu senho r: 'Sereis testem unha de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como explic a rei às p essoa s, à c ida de , ao s p a tria rc as?' Ea entã o a briu a b oc a e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua c ida de ; partirei em d ireç ão ao golfo pa ra m orar c om o me u senhor Ea. Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes raros e as a risc a s av es selvag ens. A noite, o c av aleiro d a tem pe stad e v os tra rá um a to rrente d e trig o.' "Ao p rim eiro b rilho d a a lvo rad a, tod a a minha fa mília se reuniu a o meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto necessário. No quinto dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da emb arca çã o e então instalei o tab uado . O b arco tinha um ac re de área e cada lado do convés media cento e vinte côvados, formando um qua d ra d o. Co nstruí a ba ixo m ais seis c onve ses, num total de sete , e div id i cada um em nove compartimentos, colocando tabiques entre eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas e arm azene i sup rim e nto s. Os c a rreg ad ores trouxeram o ó leo e m c esta s. Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na ca lafetag em, e ma is ainda foi guarda do no d epó sito p elo ca pitão da
nave . Eu ab ati novilhos p ara a minha fam ília e m a tav a d iariam ente um a ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio, vinho verde , vinho tinto, vinho b ra nc o e ó leo . Fez-se e ntão um b anq uete como os que são preparados à época dos festejos do ano-novo; eu mesmo ungi minha ca be ç a. No sétimo d ia, o ba rc o ficou p ronto. "Foi com muita d ificuldad e entã o q ue a em ba rca çã o foi lanç ad a à á gua; o lastro d o b arco foi desloca do para c ima e p ara ba ixo a té a subm ersã o d e d ois terço s d e seu c orpo . Eu c a rreg uei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo — os domesticados e os selvagens — e todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por Sha m ash já havia se e sg ota d o; e ele d isse: 'Esta noite, qua nd o o c ava leiro d a temp estad e enviar a c huva de struido ra, entra no b arco e te fecha lá dentro.' Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da temp estade ma ndou a chuva. Tudo estava pronto, a ved aç ão e a calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro, de ixand o tod o o b arco e a naveg aç ão sob seus c uida do s. "Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem negra, que era conduzida por Adad, o senhor da tempestade. Os trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e planícies, av anç av am Shul-la t e Ha nish, os a rau tos da tem p esta de . Surgiram entã o os d euses d o a b ism o; Nerga l de struiu a s ba rra gens q ue represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente, acumulando
fúria
à
medida
que
avançava
e
desabando
torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados
c om o d ilúvio; eles fugiram pa ra a pa rte m ais alta d o c éu, o firma mento de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos como covardes. Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e suave , gritou c om o se estive sse em trab a lho d e p arto: 'Ai de mim! Os d ia s de outrora estão viran do p ó, po is orde nei que se fizesse o m al; po r q ue fui exigir esta m ald a de no c on selho d os d euses? Eu imp us a s g uerras p ara a destruição dos povos, mas acaso estes povos não pertencem a mim, po is fui eu q uem os c riou? Ago ra e les flutuam no o ce a no c om o ov as d e peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno verteram lágrimas e se calaram. "Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do sétimo d ia o te mp oral vindo do sul ama inou; os m ares se a c alma ram , o dilúvio serenou. Eu olhei a fac e d o m und o e o silênc io imp erava ; toda a humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana c om o um telhad o. Eu ab ri uma jan elinha e a luz ba teu e m m eu rosto. Eu então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma monta nha, e a li o b arco enc alhou. Na m ontanha de Nisir o ba rc o fic ou preso; ficou preso e não mais se moveu. No primeiro dia ele ficou preso; no seg und o d ia fico u p reso em Nisir e não m a is se m ov eu. Um terc eiro e um q uarto d ia ele ficou p reso na m ontanha e nã o se m oveu. Um quinto e um sexto dia ele fic ou p reso na mo ntanha . Na alvorad a do sétimo d ia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma and orin ha, que voo u pa ra longe; ma s, não enc ontrand o um lugar para po usa r, reto rnou . Entã o soltei um c orvo. A ave viu que a s ág ua s hav iam abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei
vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e m urta. Q uand o o s de uses sentiram o d oc e c heiro que da li emanav a, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então, Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu, feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do sac rifício; tod os, me nos Enlil. Ele nã o se ap roxima rá d esta ofe rend a, po is sem refletir trou xe o d ilúvio; ele e ntreg ou m eu po vo à de struiç ã o.' "Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Som ente Ea c onhe c e to da s a s c oisa s.' Então Ea a briu a bo c a e fa lou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insen sa tam en te p rovo c a r este d ilúvio? Inflige a o pe c ad or o seu pec ad o, Inflige ao transgressor a sua transgressão, Pune-o leveme nte q uand o e le e sca pa r, Não exag eres no c a stigo o u ele suc umb irá; Antes um leão ho uvesse d eva sta d o a raç a hum ana Em ve z d o d ilúvio, Antes um lobo ho uvesse d eva sta do a raça hum ana Em ve z d o d ilúvio, Antes a fom e houve sse a ssolad o o mund o Em ve z d o d ilúvio. Ante s a p este hou vesse a ssola d o o mund o Em ve z d o d ilúvio.
Não fui eu q uem reve lou o seg red o d os de uses; o sá bio soube de le atravé s d e um sonho . Agora reuni-vo s em c onselho e d ec idi sob re o q ue fazer com ele.' "Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela mã o e nos fez entrar no ba rc o e ajoelhar, um d e c ad a lad o, com ele no meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado, Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me c oloc a ram a q ui pa ra vive r longe, na foz do s rios."
6. A volta Utnapishtim disse: "Quanto a ti, Gilgamesh, quem irá reunir os de uses po r tua c au sa , de ma neira a po d eres enc ontrar a v ida qu e e stás buscando? Mas, se quiseres, vem e põe-te à prova: terás apenas que lutar c ontra o sono p or seis dia s e sete noites." Ma s, enq ua nto Gilg am esh estava lá sentado, descansando sobre as ancas, uma bruma de sono, semelhante à lã macia cardada do velocino, pairou sobre ele, e Utna pishtim d isse a sua m ulher: "Olha pa ra ele a go ra, o hom em forte e poderoso que quer viver por toda a eternidade; as brumas do sono já estão pa ira nd o sob re ele." Sua mulher rep lic ou: "Toc a no hom em p ara acordá-lo, para que possa retornar em paz ao seu país, voltando pelo portão pelo qual entrou." Utnapishtim disse a sua mulher: "Todos os hom ens sã o imp ostores, até a ti e le tenta rá eng ana r; por isso, p õe -te a assar pãe s, ca da dia um, e c oloc a-os ao lad o d e sua c ab eç a; e m arca na p arede o núme ro d e d ias que ele do rmiu." Ela e ntã o se p ôs a a ssa r os pã es, ca d a d ia um, e a c oloc á -los ao lad o de c ab eç a d e Gilga mesh, ma rc ando na pa rede o número de d ias que ele vinha dormindo. Chegou o dia em que o primeiro pão estava
duro, o segundo parecia couro, o terceiro se encharcara, o bolor se formara na crosta do quarto, o quinto havia mofado, o sexto estava fresco e o sétimo ainda estava sobre as brasas. Utnapishtim então tocou em Gilgamesh e ele acordou. Gilgamesh disse a Utnapishtim, o Long ínquo: "Eu ma l havia c ome ç ad o a dormir qua nd o to c aste em m im e me acordaste." Mas Utnapishtim disse: "Conta estes pães e vê quantos dias dormiste, pois o primeiro está duro, o segundo parece couro, o terc eiro e stá e ncha rc ad o, a c rosta d o q uarto e stá em bolorad a, o q uinto está mofado, o sexto está fresco e o sétimo ainda se encontrava sobre as brasas inc and esc ente s q ua ndo toq uei em ti e te a c orde i." Gilga me sh disse: "Oh, que fa rei, Utna pishtim, pa ra onde irei? O lad rã o d a n oite já se apoderou do meu corpo, a morte habita o meu espaço; encontro a mo rte on de que r que po use m eus pé s." Utnapishtim falou então a Urshanabi, o barqueiro: "Pobre de ti, Urshanabi, de agora em diante este porto de abrigo te odeia; ele não mais te acolherá, nem tampouco terás permissão para atravessar estas águas. Vai, agora, banido destas margens. Mas este homem, a quem conduziste, trazendo-o aqui, cujo corpo está coberto de imundície e c ujos me mb ros pe rderam sua graç a e enc a nto, tendo sido de teriorado s peIo uso de peles de animais, leva-o para se banhar. Ele então lavará seus cabelos na água, deixando-os limpos como a neve; jogará fora suas peles e deixará que as águas do oceano as levem para longe. A beleza de seu corpo será então revelada. A fita que ele usa na testa fic ará c om o nova , e ele rec eb erá roup as pa ra c ob rir sua nud ez. Até que ele chegue à sua cidade de origem e até que complete sua jornada, estas roupas não darão sinal de uso e parecerão sempre novas." Assim, Urshanabi pegou Gilgamesh e levou-o para se banhar. Ele lavou seus c ab elos, de ixa nd o-os lim p os c om o a neve ; ele jogo u fora sua s pe les, que foram levada s pa ra longe pelo m ar. A be leza de seu c orpo foi revelada . A fita q ue usava na testa fico u c omo nova, e ele rec ebe u roupa s pa ra cobrir sua nudez, roupas que não dariam sinais de uso, mas pareceriam sempre novas até que ele chegasse a sua cidade de origem e sua
jornad a c heg a sse a o fim . Então Gilgamesh e Urshanabi colocaram o barco na água, em b arca ram e se p rep araram p a ra p a rtir; m as a m ulher de Utnap ishtim, o Longínquo, disse ao marido: "Gilgamesh chegou aqui exausto, está extenuado; o que darás a ele para levar de volta a seu país?" Então Utna pishtim fa lou, e Gilg am esh tomo u uma zinga em sua s mã os e trouxe o barco de volta à margem. "Gilgamesh, chegaste aqui exausto, e te extenua ste; o q ue d a rei a ti pa ra lev ares d e vo lta a teu p aís? Gilgam esh, eu te revelarei um segredo, é um mistério dos deuses que estou te revelando. Existe uma planta que cresce sob as águas; ela tem um esp inho que e speta c om o o de um a rosa . Ela va i ferir tua s mã os, m as, se conseguires pegá-la, terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude p erdida ." Ao ouvir isso, Gilgamesh abriu as comportas para que uma corrente de água doce pudesse levá-lo ao canal mais profundo. Amarrou pesadas pedras a seus pés e elas o arrastaram para baixo, até o leito d o rio. Lá ele enc ontrou a p la nta q ue c resc ia sob a á gu a. Em bo ra ela o espetasse, Gilgamesh tomou-a nas mãos. Ele então cortou as pesad as ped ra s presas a seus pés e a s ág ua s o c a rreg a ra m, atira nd o-o à margem. Gilgamesh disse para Urshanabi, o barqueiro: "Vem ver esta ma ravilhosa p lanta . Sua s virtude s p od em d evo lve r a o hom em tod a a sua forç a perdid a . Eu a leva rei à Uruk da s p od erosa s m uralhas. Lá , eu d arei a planta aos anciãos para que a comam. O nome dela será 'Os Velhos Volta ra m A Ser Joven s'. E, fina lmente , eu me sm o a c om erei e rec up erarei tod a a minha juventude pe rdida." Gilga me sh então retornou pe lo p ortão po r onde hav ia entrad o. G ilgam esh e Ursha na bi via jaram juntos. Depo is das primeiras vinte léguas, eles quebraram seu jejum; depois de mais trinta légua s, pa raram pa ra p assa r a no ite. Gilga me sh enc ontrou um p oç o de ág ua fresc a e entrou nele pa ra se banhar; mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpen te sentiu o do c e c heiro q ue em an av a d a flor. Ela sa iu da á gu a e a arrebatou; e imediatamente trocou de pele e voltou para o fundo do
poço. Gilgamesh então sentou-se e chorou. As lágrimas corriam por seu rosto e ele tomou a mão de Urshanabi: "Oh, Urshanabi, foi para isso que esfalfei minhas mãos? Foi para isto que arranquei sangue de meu coração? Nada obtive para mim, nada; mas a fera do poço agora usufrui do me u esforço . A c orrente já a rrastou a p lanta p or vinte lég ua s, levando-a de volta aos canais onde a encontrei. Eu encontrei algo prodigioso e agora o perdi. Deixemos o barco nesta margem e vamos embora." Depois de caminharem vinte léguas, eles quebraram seu jejum; dep ois d e trinta lég ua s, eles pa raram p ara p assa r a noite. Em três d ias de viagem eles haviam percorrido a pé um percurso equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias. Ao completarem a jornada, eles c heg a ram a Uruk, a c id ad e d as po de rosas mu ralhas. Gilgam esh falou a ele, a Urshanabi, o barqueiro: "Urshanabi, sobe na muralha de Uruk, inspeciona o terraço onde sua estrutura foi fundada, examina bem a alvena ria d e tijolos; vê se nã o fo ram usa dos tijolos c ozid os. Não foram os sete sábios que assentaram estas fundações? Um terço do todo é c ida de , um te rç o é jardim e um terç o é c am po , incluindo o pe ríbolo da deusa Ishta r. Esta s pa rtes e o períbo lo form am tod a a Uruk." Isto ta m bé m foi ob ra d e G ilgam esh, o rei, qu e p erc orreu a s na ç õe s do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu muitos segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o dilúvio. Pa rtiu numa long a jornad a , c a nsou -se, exauriu -se em trab alho s e, ao reto rnar, d esc a nsou e gravo u na p ed ra to d a a sua história.
7. A morte de Gilga mesh O destino decretado por Enlil da montanha, o pai dos deuses, foi cumprido: "No mundo inferior a escuridão vai mostrar-lhe uma luz: na humanidade, por todas as gerações conhecidas, ninguém legará um mo nume nto q ue se c om pa re a o d ele. Os heróis e o s sáb ios, co mo a lua
nova, têm seus períodos de ascensão e declínio. Os homens dirão: 'Quem jama is governou c om tama nha força e ta ma nho po der?' Como no m ês esc uro, no m ês d as som bra s, sem ele nã o há luz. Oh, Gilg am esh, era e ste o sign ific ad o d e teu sonho . Foi-te da d o um trono , reinar era teu destino; a vid a eterna não e ra teu d estino . Assim, não fique s triste, não te atorm entes, nem te deixes op rim ir p or ca usa d isso. Ele te d eu o p od er de ata r e d esa tar, de ser as trev as e a luz d a huma nidad e. Ele te c onc ed eu suprem ac ia sem p a ralelo sob re o pov o, vitória na s ba talhas d e ond e nã o escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste poder; se justo c om teus servos no p alá c io, faze justiça a nte a fa c e d o Sol." O rei se d eitou e nã o m ais se leva nta ra ; O Sen hor de Kulla b nã o ma is se leva nta rá; Ele venc eu o m al, ele não ma is voltará; Emb ora tivesse b ra ç os fo rte s, ele n ão ma is se leva nta rá ; Ele era sá bio e tinha u m b elo rosto , ele n ã o m ais volta rá ; Ele ad entrou a mo ntanha , ele não ma is voltará; Em seu leito f at ídic o e le jaz, ele nã o ma is se leva nta rá ; De seu divã multic olorido e le nã o m ais volta rá.
O povo da cidade, os grandes e os humildes, não estão em silêncio. Eles se lamentam em voz alta; toda a humanidade se lamenta em voz alta. O destino se cumpriu; como uma gazela apanhada num laço, como um peixe fisgado, ele jaz estirado sobre a cama. O desumano Namtar pesa sobre ele; Namtar, que não tem mão nem pé, que não bebe ág ua nem com e ca rne. Por Gilgamesh, filho de Ninsun, eles fizeram inúmeras oferendas; sua esp osa q uerid a , seu filho, sua c on c ub ina , seu s m úsic os, seu b ufão e tod os os q ue p ertenc iam à sua c a sa; seus servos, seus c a ma reiros, tod os os que viviam no palácio fizeram inúmeras oferendas a Gilgamesh, filho de Ninsun, o coração de Uruk. Eles fizeram inúmeras oferendas a Ereshkigal, a Rainha dos Mortos, e a todos os deuses do inferno. A
Namtar, que é o destino, eles fizeram oferendas. Pão para Neti, o Sen tinela d o Po rtã o; pã o p ara Ningizzida , o d eus d a serpe nte, o senhor da Arvore d a Vida ; pão tam bé m pa ra Dumuzi, o jovem pa stor, pa ra Enki e Ninki, pa ra End ukugg a e Nind ukugg a, p a ra Enmul e Ninmul, tod os eles deuses ancestrais, antepassados de Enlil. Um banquete para Shulpae, o deus dos festejos. Para Samuqan, o deus dos rebanhos, para a mãe Ninhursag e para todos os deuses da criação, para a hoste do céu, sacerdote
e
sacerdotisa
fizeram
inúmeras
oferendas
fúnebres.
Gilgamesh, o filho de Ninsun, jaz em seu túmulo. No lugar das oferendas ele o fertou o pã o, no luga r da liba ç ão ele derram ou o vinho. Naq ueles dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável, um homem sem rival que não negligenciou Enlil, seu mestre. Oh, Gilga me sh, senho r de Kullab , grand e é a tua glória.
Glossário onomástico Este glossário apresenta breves referências sobre os deuses, personagens e lugares mencionados na Epopéia. Imputava-se aos deuses, em diferentes épocas, uma grande variedade de atributos e c ara c terística s, alg umas ve zes c ontrad itórios entre si; ap en a s as que são relevantes à Epopéia de Gilgamesh são mencionadas aqui. Os poucos de uses e pe rsona ge ns q ue têm um p a pe l ma is imp ortante na história são descritos na Introdução. Nestes casos, uma referência no fim da nota remete à página que contém a descrição. As remissões a outros verbete s do Glossá rio sã o tam bé m são ind ic a da s. ADAD: Deus do clima , da c huva e d a tem pe stad e. ANUNNAKI: Em geral, deuses do mundo inferior; eram os juizes dos mortos e filhos de Anu.
ANSHAN: Um dos distritos do Elam, no sudoeste da Pérsia; era provavelmente a fonte de suprimento d e ma de ira pa ra a fa bric aç ão d e arco s. Gilga me sh te m um "arco de Ansha n". ANTUM: Con sorte d e Anu. ANU: O An sumério; pai dos deuses e deus do firmamento, o "Grande Acima". Segundo a cosmogonia suméria, havia em primeiro lugar o mar primitivo, de onde nasceu a montanha cósmica, que continha o céu, "An", e a terra, "Ki"; eles foram separados por Enlil. An então arrebatou o céu, e Enlil a terra. Anu mais tarde foi se tornando c ad a v ez ma is uma figura d e fundo ; ele teve um imp ortante te mp lo em Uruk. APSU: O Abismo; as águas primevas sob a terra; na mitologia posterior do Enuma Elish, Apsu representava mais especificamente a água doce que se mistura à água salgada do mar e a um terceiro elemento aquoso, possivelmente as nuvens, de onde foram gerados os primeiros deuses. Achava-se que as águas de Apsu eram mantidas estag na da s no m und o inferior po r um "feitiç o" de Ea, q ue a s c oloc ou sob um sono mo rtal. ARURU: Uma deusa da criação; criou Enkidu da argila à imagem de Anu. AYA: A a lvo rad a, c onsorte d o De us-Sol Sham ash. BELIT-SHERI: Escriba dos deuses do mundo inferior. DILMUN: O paraíso sumério, talvez o Golfo Pérsico, algumas vezes desc rito c om o "o luga r ond e na sc e o sol" e "A Terra dos Vivo s"; o c enário de um mito sumério da criação, e o lugar para onde Ziusudra, o herói deificado da versão suméria do dilúvio, foi levado para viver eternamente. DUMUZI: A forma suméria de Tam muz; um de us da veg eta ç ão e da fertilidade, e por isso deus do mundo inferior; também chamado de "o Pa stor" e "senho r do s oviá rios". Comp anheiro de Ning izzida "pa ra tod a a ete rnida de ", ele gua rda o po rtão do c éu. No te xto sumé rio "A Linha g em de Inanna", ele é apresentado como o marido da deusa Inanna, a
comum, que não é um especialista em assiriologia ou estudante das literaturas e da história antiga, estes textos são de difícil leitura, pois tendem a enfatizar, e não a mitigar, os defeitos e falhas do original. Cada palavra ausente ou de significado duvidoso é assinalada por chaves ou lacunas; estes sinais variam conforme a palavra entre c olche tes tenha sido inserid a p elo trad utor ou pe lo a ntig o red a tor. Além do mais, a tradução é aproximada o máximo possível da estrutura sem ítica ou sumé ria do orig inal, o q ue muito freq üente me nte dá orige m a um texto em mau vernáculo. Existem muitas e felizes exceções das quais pude me beneficiar, aproveitando-me também dos comentários que explicam as limitações e dificuldades das várias leituras. Este métod o ac ad êmico fornece ao estudante e ao espec ialista a quilo de que eles precisam, mas apresenta ao leitor comum uma página que ma is se a ssem elha a um p rob lema d e p alavras c ruza d as inac a b ad o. Por isso, ac ha m os que valia a p ena tenta r um a ve rsão q ue, sem a c resc enta r nada ao texto que não tenha sido corroborado pela autoridade acadêmica nem tampouco omitir qualquer palavra cujo significado fosse inquestionável, procuraria evitar a aparência tosca da tradução verso a verso, fornec end o ao leitor uma narra tiva simp les e d ireta . Tenho plena c onsc iênc ia d a te me rida de d e tal emp ree ndimento e da m inha g ra nde dívida p ara c om os espe c ialistas resp onsáve is pe las traduções do original em cuneiforme. Apoiei-me especialmente em Alexander Heidel, do Instituto Oriental da Universidade de Chicago, auto r de Gilg am esh Epic and Old Testam en t Parallels (seg unda ed iç ã o, 1949), e em E. A. Speiser e sua tradução publicada, entre outros textos acadianos, numa coletânea editada por J. B. Pritchard sob o título Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (segunda edição, 1955; existe agora uma terceira edição, de 1969, com material suplementar). Todas as traduções posteriores fizeram extenso uso da versã o d e Ca mp be ll Thom p son (em he xame tros ingleses) e d e sua s no ta s publicadas em 1928 e 1930. Para o material sumério, utilizei a tradução de S. N. Kra mer, pub lic a d a em Anc ient Ne a r Ea stern Texts e em seu livro
correspondente suméria de Ishtar. Segundo a lista dinástica suméria, Gilgam esh de sc endia d e "Dumuzi, um p astor". EA: O Enki sumério; deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e um dos criadores da humanidade, em relação à qual ele geralmente demonstra boa vontade. O deus principal de Eridu, onde tinha um tem plo, vivia "na s p rofund ezas". Sua linha ge m é po uc o c onhec ida , mas ele e ra provavelmente filho d e Anu. EANNA: O p eríbo lo do tem plo em Uruk co nsag ra d o a Anu e Ishta r. EGALMAH: O "Grande Palácio" em Uruk, o lar da deusa Ninsun, mã e de Gilga m esh. ENDUKUGGA: Com Nindukugga, deuses sumérios que vivem no mu nd o inferior; p ais d e Enlil. ENKIDU: Moldad o e m argila po r Aruru, deusa da c riaç ão , seg undo a ima g em e a "essênc ia d e Anu", o d eus do c éu, e d e Ninurta, o d eu s da guerra, Enkidu, o companheiro de Gilgamesh, representa o homem selvagem e natural; ele foi mais tarde considerado o protetor ou deus dos animais, e talvez tenha sido o herói de um outro ciclo de poemas. ENLIL: Deus da terra, do vento e do ar universal; essencialmente, espírito; o de us que exec uta as vo ntad es e a s funç ões de Anu. Seg und o a cosmogonia suméria, ele nasceu da união de An, o céu, com Ki, a terra. Ele separou os dois e arrebatou a terra para si. Mais tarde, supla ntou Anu co mo o d eus princ ipal. Era o d eus d a c ida d e d e Nip pu r. ENMUL: Ver Endukugga. ENNUGI: Deus d a irrig aç ã o e insp eto r d os c a na is. ENUMA ELISH: A epopéia semítica da criação que descreve a criação dos deuses, a derrota dos poderes do caos pelo jovem deus Marduk e a c riaç ão do home m a pa rtir do sang ue d e Kingu, o gue rreiro derrotado do caos. O título é tirado das primeiras palavras da epopéia "Qua ndo lá no a lto..." ERESHKIGAL: A Ra inha d o m und o inferior, d eusa c orrespo nd ente a Perséfone ; antes, era p rov ave lmente uma divinda de c eleste. Seg undo a cosmogonia suméria, ela foi raptada para o mundo inferior após a
sep araç ão do c éu e da terra. Ver p. 38. ETANA: Lendário rei pós-diluviano de Kish; na epopéia que leva o seu nom e, ele foi leva do ao c éu na s c ostas de uma ág uia. GILGAMESH: O herói da Epopéia; filho da deusa Ninsun e de um sac erdo te d e Kullab . Quinto rei d e Uruk d ep ois d o d ilúvio, fic ou fam oso como grande construtor e como juiz dos mortos. Um ciclo de poemas ép ic os foi com po sto em torno d e seu nom e. HANISH: Um arauto d ivino da temp estade e d o ma u temp o. HOMEM-ESCORPIÃO: Junto com um monstro similar do sexo feminino, é o sentinela d a m ontan ha o nde o sol se p õe ao c air da noite. E representado nos sinetes e nos entalhos em marfim como uma figura cuja parte superior do corpo é humana e a inferior animal, terminando com a cauda de um escorpião. Segundo o Eluma Elish, foi criado pelas águas primitivas para combater os deuses. HUMBABA: Ta mb ém Huwa wa ; sentinela d a floresta d e c ed ro q ue opõe resistência a Gilgamesh e é morto por ele e por Enkidu. Uma divind ad e d a na tureza, ta lve z um de us ana tólio, elam ita ou sírio. IGIGI: Coletivo p a ra d esignar os g ra nde s d eu ses do c éu. IRKALLA: Outro nom e d e Ereshkigal, a Rainha do m und o inferior. ISHTAR: A Inanna suméria; deusa do amor e da fertilidade e tam bé m d a g uerra; era c ham ad a a Rainha do Céu. Ela é filha d e Anu e pa droe ira de Uruk, ond e te m um tem plo. Ver p. 36. ISHULLANA: Jardineiro de Anu, outrora amado por Ishtar, a quem rejeitou; ela o tra nsform ou num a toup eira o u numa rã . Kl: A terra. KULLAB: Bairro de Uruk. LUGULBANDA: Terc eiro rei d a dinastia p ós-d iluvia na de Uruk; de us, pa stor e herói de um c iclo sumé rio d e p oem as; p rote tor de G ilgam esh. MAGAN: Uma região situada a oeste da Mesopotâmia, algumas vezes o Egito ou a Arábia, outras vezes a terra dos mortos, o mundo inferior. MAGILUM: Signific ad o inc erto, ta lvez "o b a rc o d os m ortos".
MAMMETUM: Deusa ancestral responsável pelos destinos. MASHU: A palavra significa "gêmeos" na língua acadiana. Uma monta nha c om d ois pico s ond e o sol se põ e a o c air da noite e d e ond e ele torna a aparecer na alvorada. Algumas vezes identificada com Líbano e Antilíbano. NAMTAR: A ruína, o destino em seu aspecto funesto, calamitoso e ma ligno; rep resentad o c om o um d emô nio d o m undo inferior e tamb ém como o mensageiro e principal ministro de Ereshkigal; um portador da peste e da doença . NEDU: Ver Neti. NERGAL: Deus do mundo inferior, algumas vezes descrito como ma rido de Ereshkiga l, ele é o tema c entral d e um p oem a ac ad iano que de sc reve seu tra slad o d o c éu p a ra o m undo inferior; d eus da prag a . NETI: A forma suméria de Nedu, o principal porteiro do mundo inferior. NINDUKUGGA: Com Endukugga, deuses ligados à paternidade, que viviam no mu nd o inferior. NINGAL: Consorte do De us-Lua e m ãe d o Sol. NINGIRSU: Uma forma mais primitiva do deus Ninurta; deus da irriga ç ão e da fertilida de . NINGIZZIDA: Tam bé m Gizzida ; um d eus d a fertilid ad e c om o título de "Senhor da Árvore da Vida"; algumas vezes é representado como uma serpente com cabeça humana; posteriormente, tornou-se o deus da s c uras e d a m ag ia; co mp anhe iro de Tam muz, ao lado de quem tomava conta do p ortão do cé u. NINHURSAG: Deusa-mãe suméria; uma dos quatro principais deuses sumérios, junto de An, Enlil e Enki; algumas vezes descrita como consorte de Enki, ela criou toda a vegetação. Seu nome significa "a Mãe"; é também chamada de "Nintu", senhora do nascimento, e Ki, a terra. NINKI: A "m ãe " de Enlil, p rova velmen te uma va riante d e Ninhursag . NINLIL: Deusa do céu, da terra e do ar, e, sob certo aspecto,
também do mundo inferior; consorte de Enlil e mãe da Lua; cultuada junto d e Enlil em Nip pur. NINSUN: Mãe d e G ilgam esh, uma de usa m enor cujo lar fic ava em Uruk; era c on hec ida p or sua sab ed oria, e era a c onsorte d e Lugulba nd a . NINURTA: Forma posterior do deus Ningirsu. Deus das nascentes e da irriga ç ã o, Ninurta era tam bé m gue rreiro e d eus da gue rra, arauto e o vento sul. Segundo um poema, ele no passado represou as águas am arga s do mun do inferior e venc eu v ários mo nstros. NISABA: Deusa d os c erea is. NISIR:
Este
nome
provavelmente
significa
"Montanha
da
Salva ç ão "; o top ônimo é a lguma s vezes ide ntific a do c om a c ordilheira Pir Oman Gudrun, ao sul da parte mais baixa de Zab, ou com o Ararat, reg ião m ontanhosa b íblic a a o no rte d o Lag o Van. PUZUR-AM URRI: O timone iro de Utna -pishtim d urante o dilúvio. SAMUQAN: Deus do ga do . SETE SÁBIOS: Os sáb ios q ue trouxeram a c iviliza ç ã o à s sete c ida d es mais antigas da Mesopotâmia. SHAMASH: O Utu sumério; o sol; para os sumérios, ele era principalmente o juiz e o legislador, com alguns atributos ligados à fertilida de. Para os sem ita s, era ta m bém um g uerreiro v itorioso, o d eus d a sabedoria, o filho de Sin e um deus "mais eminente e poderoso" que seu pa i. Sham ash e ra irmã o e m a nd o d e Ishta r. E rep resenta d o c om o serrote c om o qu al c orta sua s d ec isõe s. Nos p oem a s, o no me "Sham ash" p od e esta r se refe rindo a o d eus ou sim plesm ente ao sol. SHULLAT: Um a rauto divino d as tem pe stad es e d o m au tem po. SHULPAE: Divinda d e q ue p residia b anq uetes e festejos. SHURRUPAK: A moderna Fará, que fica vinte e nove quilômetros a noroeste d e Uruk; uma da s c id a de s ma is a ntig as d a Mesop otâ m ia e um a das cinco apontadas pelos sumérios como tendo existido antes do dilúvio. O lar d o he rói da história d o d ilúvio. SIDURI: Entidade divina que preparava o vinho e a cerveja: ela vive à be ira d o m a r (talvez no M ed iterrâne o), no jardim d o sol. Seu nom e
na língua hurriana significa "mulher jovem"; Siduri pode ser também uma forma va rian te d a d eusa Ishta r. SILILI: Mã e d o g aranhão ; talvez uma ég ua d ivina. SIN: O Nanna sumé rio, a lua. A p rinc ipa l divinda d e astra l sum éria , pa i de UtuSha ma sh, o sol, e d e Ishta r. Era filho d e Enlil e Ninlil. Seu p rinc ipal temp lo fic ava em Ur. TAMMUZ: O Dumuzi sumério; o deus moribundo da vegetação, prante a do p or Ishtar, em torno do q ua l fora m c om po stos vá rios lame ntos e ladainhas. Num poema acadiano, Ishtar desce ao mundo inferior em busca de seu jovem marido Tammuz; mas, no poema sumério no qual esta obra se baseia, é a própria Inanna a responsável pelo envio de Dumuzi ao m und o inferior, p or c a usa de seu orgulho e pa ra que servisse de pe nhor e g arantia d o retorno seg uro d a d eusa a o c éu. TOURO DO CÉU: Personificação da seca, criada por A nu para Ishtar. UBARA-TUTU: Rei de Shurrup ak e pa i d e Utna pishtim. O único rei de Kish, além de Ut-nap ishtim, a p onta do na lista d iná stic a an ted iluviana . URSHANABI: O Sursunab u d a versão ba bilônic a arca ic a. Ba rque iro de Utnapishtim, Ur-shanabi atravessa diariamente as águas da morte que dividem o jardim do sol do paraíso onde Utnapishtim vive eternamente (o Dilmun sumério). Ao aceitar Gilgamesh como passageiro, ele acaba perdendo este privilégio e decide então ac om pa nhar Gilgam esh d e volta a Uruk. URUK: A Erech bíblica, atualmente conhecida como Warka, situada ao sul da Babilônia, entre Fará {Shurrupak) e Ur. As escavações mostram que desde muito cedo Uruk já era uma cidade importante, possuindo grandes templos consagrados aos deuses Anut Ishtar. Trad ic ion alme nte, a c ida de era riva l e inimiga de Kish e ap ós o d ilúvio tornou-se a sede de uma dinastia de reis, entre os quais se incluía Gilga me sh, que foi o q uinto e o m a is fam oso d eles. UTNAPISHTIM: Utanapishtim para os antigos babilônicos, Ziusudra para os sumérios. Nos poemas sumérios, além de um rei sábio, Ziusudra
era sac erdo te d e Shurrup ak; as fonte s ac a diana s o d esc reve m c om o um c ida dã o sá bio de Shurrup ak. Ele é filho d e Ub ara -Tutu, e seu nom e é geralmente traduzido por "Aquele que viu a vida". Era o protegido do deus Ea, com a conivência de quem sobreviveu ao dilúvio na companhia de sua família e das "sementes de todas as criaturas vivas"; depois disso, foi levado pelos deuses para viver para sempre "na foz dos rios" e recebeu o epíteto de "o Longínquo"; ou, segundo as fontes suméria s, foi vive r no Dilmun, o nde na sc e o sol.
Apêndice: fontes Já indicamos as principais fontes usadas para esta versão da Epo p éia (ver pp . 73-79). Para um a relaç ão bibliog rá fic a c om pleta ba sta consultar Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, orga nizad o p or Jam es B. Pritc ha rd ; Gilga me sh e t sa lege nde , do Ca hiers du Groupe François-Thureau-Dangin; e o Reallexikon der Assyriologie. O que ora se segue é uma breve nota sobre a distribuição do material textua l entre a s diferente s tá bua s. (i) O p oe ma sumério "Gilgam esh e a Terra d os Vivo s"; texto tirad o de quatorze táb uas encontrad as em Nipp ur, de uma tábua ac hada em Kish e de mais duas de origem desconhecida, totalizando 175 versos. Tod o e ste m ate rial da ta d a prime ira m eta de do seg undo milênio e c ob re os seg uintes incide nte s: a a miza de entre o Senhor Gilga me sh e seu servo Enkidu; o de sejo d e d eixa r um no m e p a ra a po sterida d e; a súplica a Utu (Sha m ash), que d esig na forç as sob renaturais p ara ajud á -los; o armamento de Gilgamesh e Enkidu; a partida com cinqüenta companheiros; a derrubada do cedro; a fraque Journal of Near Eastern Stud ies, 28, 1958, fornec e uma v ersão lig eira mente d iferente do C onselho dos Deuses no sonho q ue Enkidu te m em seu leito de m orte. (v) Um fragmento hurrita, também vindo de Boghazköy, fornece
parte da jornada até Ut-napishtim. Ele foi publicado no Zeitschrift für Assyriologie, 35, 1923. (vi) Versões semíticas. Havia uma versão acadiana em uso no Im pé rio Hitita , e frag me ntos de la foram enc ont ra do s em Bog ha zköy; m as a mais completa de todas as versões é a assíria. Ela foi escrita originalmente em doze tábuas de seis colunas; cada tábua continha aproximadamente trezentos versos. Partes de todas as doze tábuas ainda existem ; quase to da s provêm da bibliotec a do pa lác io de Nínive e datam do século VII antes de Cristo. Baseado em material mais antigo, este texto cobre todos os incidentes da história até o retorno da busca de Utna-p ishtim . O m a teria l está dividido da seg uinte m an eira : na Tá bua I, as descrições de Gilgamesh e Enkidu, até o fim do segundo sonho de Gilgamesh
sobre
Enkidu.
A
Tábua
II,
bastante
fragmentária,
prova velme nte c ontinha o en c ontro d e G ilgam esh e Enkidu e a p rime ira menç ão à floresta d e c ed ro. A Táb ua III, tam bém ba stante frag me ntária, provavelmente continha as entrevistas de Gilgamesh
com os
c onselheiros d a c ida d e, c om Ninsun, e a exortaç ã o a Enkidu . A Táb ua IV, da qual nos chegaram apenas alguns versos, provavelmente cobria a jornad a à floresta e a c heg ad a a o p ortão . A Táb ua V co ntinha a descrição da floresta, os sonhos na montanha e provavelmente o enc ontro c om Humb a ba e seu assa ssinato . A Táb ua VI c ontinha o enc ontro d e Gilga me sh e Ishtar, a av entura d o Touro d o Cé u e o c ome ç o d a d oenç a d e Enkidu. A Tá bua VII trazia a c ontinuaç ão da doença de Enkidu, seus sonhos e sua morte. A Tábua VIII relatava os lamentos por Enkidu e provavelmente uma descrição do funeral. A Táb ua IX c ob re a jornad a d e G ilgam esh em busc a d e Utna pishtim a té o enc ontro c om Sid uri. A Táb ua X c ob re o ep isód io de Sidu ri, o e nc ontro c om Urshan ab i e Utnap ishtim. A Táb ua XI é a m ais c om pleta e m ais be m preservada de todas, com trezentas linhas. Ela descreve o Dilúvio, os testes a que Gilgamesh é submetido e seu retorno a Uruk. A recensão assíria não faz qualquer menção à morte de Gilgamesh, e a décima seg unda e últim a táb ua reco nta um ep isód io indep ende nte, uma versão
que stão p erm ane c e sem respo sta, e talvez co ntinue assim. Se c heg a ram à reg ião vind os d e um a outra pa rte, é p ossível que tenha m sido po uc os, e ta lvez nunc a sa iba mo s a o c erto a e xtensã o d e sua influênc ia na língua e na literatura loc al. Ma io d e 1972 N. K. Sa nd a rs Con tinua m a surgir da d os relac iona d os a G ilgam esh. Novos textos vêm à luz que incrementam nosso conhecimento da Epopéia e do Gilgamesh histórico, ao mesmo tempo em que trabalhos realizados sob re os textos existente s ajuda m -nos a ob ter uma c om p reen sã o m a ior das passagens difíceis. Nestes últimos anos, duas obras de especial importância foram lançadas. The Treasures of Darkness, de Thorkild Jacob-sen (New Haven e Londres, 1976), contém uma análise nova e original de toda a Epopéia à luz da visão geral que o autor tem das religiõe s da Me sop otâ m ia ; e The Evolution o f the G ilga me sh Ep ic, de J. H. Tiga y (Filad élfia, 1982), mostra -nos, po r me io d a c om pa raç ã o da s diferentes versões e da distinção das diferentes fontes — cronológicas e geográficas —, como as mudanças teológicas e políticas moldaram o poema e como esses diferentes elementos se combinaram na compilação final do texto. Novas e interessantes observações sobre o po em a po de m ser enco ntra da s em The Theo logy of Dea th, d e W. G. Lambert
(edição
de
B.
Alster,
XXVI
Rencontre
Assyriologique
Internationale, 1980), e um novo fragmento da quinta tábua foi publicado por E. von “Weiher em Baghdader Mitthei-lungen (1980, II, 90-105)”. R. A. Veenker, no Biblical Archaeologist 1981, 44/45, 199-205), se ap rofundou no signific ad o d a Planta Má gica da Juventude Rec up erada c om o um m ito à pa rte, e a p esq uisa p rosseg ue. Sou grata à Sra . Stephanie Dalley por sua ajuda com as referências bibliográficas. Setem b ro d e 1987
N. K. Sa nd ars
Agradecimentos Listar aqui todas as autoridades a quem sou grata implicaria c om pila r uma volumo sa bibliog ra fia , ma s não p osso m e e squ iva r a um a s po uc a s m enç õe s espe c ia is. Conte i co m a va liosa a jud a d o Profe ssor D. J. Wiseman, que me salvou de uma série de armadilhas; todos os erros rem a nesc ente s sã o m eus. Tenho um a e norme dívida d e g ratidã o p ara com os muitos amigos que contribuíram com críticas e sugestões, me encorajando nos diversos estágios deste trabalho. Entre eles, agradeço particularmente a Ruth Harris, Katherine Watson e a minha irmã. Acima de tudo sou grata ao Dr. E. V. Rieu por sua paciência, compreensão e estímulo . Sei bem d as muitas imp erfeiçõ es aind a c ontida s ne ste livro, m a s sem essa ajuda tão generosamente prestada elas seriam bem mais numerosas. Agradecida, reconheço minha dívida para com as seguintes pe sso as e instituiç õe s p ela pe rmissã o d e uso d e m ate rial proteg ido po r Copyright: Princeton University Press (Editores), pelas citações tiradas de Anc ient New Ea stern Texts Rela ting to the O ld Testa ment, ed itad o p or James B. Pritchard, 1950,1955,1969. Algumas passagens de minha introd uç ão são ba sea da s em exce rtos tira do s da s seg uintes trad uç õe s: The Fields of Paradise e The Good Fortune of the Dead, traduzidos por Joh n A. Wilson; Gud ea : Ensi of La ga sh, tra duzido por A. Leo Op penhe im; Enki and Ninhursag:A Paradise Myth, traduzido por S. N. Kramer; Hymn to lshta r e Pra yer of Lam enta tion to lshta r, e ta mb ém Pra yer of Ashurhanipal to the Sun-God, traduzidos por Ferris J. Stephens; A trahasis, Lambert e Milla rd ; e A Vision o f the Nethe r World, trad uzido p or E. A. Sp eiser. Sou grata d e m ane ira m a is g eral às tra duç õe s d e S. N. Krame r d e G ilgam esh and the Land of the Living e The Dea th o f G ilga m esh; e a E. A. Speiser pelas onze primeiras tábuas da recensão assíria da Epopéia de Gilgam esh, tod a s p ub lic a da s em Anc ient Nea r Eastern Texts. Dev o m uito ta mb ém a A. Heide l e à University Press of Chica g o p ela p ermissão da da
pa ra o uso de The G ilgame sh Epic a nd Old Testa m ent Parallels, Cop yrig ht 1946 e 1949, da Universidade de Chicago. Agradeço ao Dr. E. V. Rieu, pela permissão dada para que citasse trechos da sua tradução da Od isséia, Peng uin Classics, 1945, e aos ed itores da Loe b Cla ssica l Library, Harvard University, e a William Heinemann, pelas citações tiradas do Hesiod , d e H. G. Evelyn-White (1950). Agra d ec ime nto s vã o ta mbé m p a ra o Profe ssor Gwyn Joyes p ela s c ita ç õe s tira da s d a trad uç ã o d e The Ma b inog ion, realiza da po r G wyn e Thom a s Jones, na c oleç ã o Eve ryma n Library, J. M. Dent, 1949. N. K. Sandars 88
A Epopé ia de Gilga me sh Prólogo Gilgamesh, rei de Uruk
Proc lam arei ao mund o os feitos de Gilg am esh. Eis o hom em pa ra quem todas as coisas eram conhecidas; eis o rei que percorreu as nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o dilúvio. Pa rtiu numa longa jorna da , c a nsou -se, exauriu -se em trab alho s e, ao reto rnar, d esc a nsou e gravo u na p ed ra to d a a sua história. Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo pe rfeito. Sha m ash, o g lorioso sol, do tou-o d e gran de be leza ; Ada d , o rei da tempestade, deu-lhe coragem; os grandes deuses tornaram sua beleza perfeita, superior à de todos os outros seres, terrível como um enorme touro selvagem. Eles o fizeram dois terços deus e um terço homem.
Em Uruk ele co nstruiu muralha s, grand es balua rtes, e o a b enç oa d o tem plo d e Eann a, c onsag ra d o a Anu, o d eus d o firma m ento , e a Ishta r, a deusa do amor. Olhai-o ainda hoje: a parte exterior, por onde corre a c ornija , tem o b rilho do c ob re; sua p arte interior não c onhe c e riva l. Toc ai a soleira, ela é antiga. Aproximai-vos de Eanna, a morada de Ishtar, nossa senho ra do am or e d a g uerra : é inigua lável, nã o há hom em ou rei que p ossa c onstruir alg o q ue se eq uipa re. Sub i as m uralhas d e Uruk; digo , c am inhai po r c ima de las; ob serva i ate ntame nte o terraç o da funda ç ão , exam ina i o trab alho d e a lvena ria : nã o é fe ito c om tijolos c ozido s, e b em feito? O s sete sá bios lanç a ram sua s fund aç õe s.
1. A chega da de Enkidu Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não enc ontrou q uem pud esse op or-se à força d e seus b raç os. Entreta nto, os hom ens de Uruk murmurava m e m sua s c asas: "Gilg am esh toc a o sinal de alarme pa ra se d ivertir; sua arrog ânc ia, d e d ia ou d e no ite, não c onhec e limites. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva tod os, a té m esm o a s c rianç as; e, no en tanto , um rei de ve ria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu am ad o; nem a filha d o g uerreiro nem a m ulher do nob re; no enta nto, é este o p astor da c ida de , sá bio, belo e resoluto." Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu grita ram pa ra o Senhor d e Uruk, pa ra Anu, o d eus de Uruk: "Um a d eusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus b raç os. Não há pa i a q uem tenha sob ra do um filho, p ois Gilga me sh os leva tod os; e é e ste o rei, o p a stor de seu p ovo ? Sua luxúria nã o p oup a uma só virge m pa ra seu a ma do , nem a filha do guerreiro nem a mulher do nob re." Dep ois de Anu te r esc uta d o seu lam en to, os d euses g ritaram pa ra Aruru, a d eusa da c riaç ã o: "Vós o fizestes, oh, Aruru, c riai ag ora um outro igual; que seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo;
que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com coração tem p estuoso. Que eles se e nfrentem e d eixem Uruk em p a z." A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essênc ia era a m esm a d e Anu, o d eus do firma me nto. Ela m ergulhou a s mã os na á gua e tomo u um p ed aç o d e ba rro; ela o d eixou c air na selva, e a ssim fo i c riad o o nobre Enkid u. Hav ia nele virtud es d o d eus da g uerra , do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pêlos emaranhados, como os de Sam uqa n, o de us do ga do . Ele e ra inoc ente a respe ito d o hom em e nada co nhecia d o c ultivo d a terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os p oç os d e á gu a c om os a nima is d a floresta ; junto c om os reb a nhos d e animais de c aç a, ele se alegrava c om a á gua . Ma s um dia, no p oç o, ele se viu frente a frente c om um c aç ad or, p ois os anima is de c aç a haviam entrado em seu território. Por três dias eles se encontraram frente a frente, e o caçador se intimidou. Voltou para casa com sua caça e pe rma nec eu m ud o, pa ralisad o d e te rror. Seu rosto e stav a a lterad o com o o de alguém que retorna de uma longa viagem. Com o c oraç ão cheio de pasmo, ele falou a seu pai: "Pai, há um homem, diferente de todos os outros, que desce das colinas. Ele é o homem mais forte do mundo , parec e um do s imo rtais do c éu. Vagueia pelas c olinas c om os anima is selvag ens e c om e g ram a ; va gue ia p or tuas terras e d esc e a té o s po ç os d'ág ua. Tenho m ed o e não ouso d ele me ap roxima r. Ele tap a os burac os que c avo e d estrói as arma dilhas que prep aro pa ra a c aç a; ele ajuda as feras a escapar e agora elas escorregam por entre meus dedos." Seu p ai a b riu a b oc a e d isse a o c a ç a d or: "Filho , em Uruk vive Gilga me sh; ningué m jam ais o venc eu, ele é tão forte qua nto um a e strela do céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força deste selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do temp lo d o am or; retorna c om ela e de ixa que seu p od er subjugue este
homem . Da p róxim a vez que ele de sc er pa ra to ma r ág ua no p oç o, ela estará lá, nua; e quando a vir, acenando para ele, vai abraçá-la, e os animais da selva passarão a repudiá-lo." O caçador partiu para Uruk e se dirigiu a Gilgamesh, dizendo: "Um hom em diferente d e to d os os outros a nd a va gue a nd o p or nossos p a stos; ele tem a força de uma estrela do céu e tenho me do de ap roxim a r-me dele. Ele ajuda as presas a escapar e tapa e destrói as minhas armadilhas." Gilgamesh disse: "Caçador, volta, leva contigo uma rameira, uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva c ertam ente pa ssarão a rep udiá-lo." O c aç ad or então retornou, leva ndo c onsigo a ram eira. Apó s três dias de viage m, eles c hega ram ao po ç o e lá se sentaram ; a ram eira e o caçador se sentaram frente a frente e se puseram a esperar pela chegada dos animais. Por dois dias o caçador e a rameira ficaram esperando, mas no terceiro dia eles chegaram; chegaram para beber água e Enkidu estava entre eles. As pequenas criaturas selvagens reg ozijaram -se c om a á gua , e entre elas Enkid u, que c om ia gram a junto c om as g azela s e na sc e ra na s c olina s; e ela o viu, o selvag em , vind o d as dista ntes c olinas. O c a ç a dor disse à ram eira : "Lá está ele . Ago ra, mulher, desnuda teus seios, não tenhas vergonha; anda, acolhe o seu amor. Deixa que ele te veja nua, deixa que possua teu corpo. Quando ele c heg ar perto, tira tua roup a e de ita-te c om ele; ensina a o selva gem tuas artes de mulher, para que, quando venha murmurar-te palavras de amor, os animais da selva, que compartilharam sua vida nas colinas, pa ssem a rep udiá-lo." Ela nã o teve pud ores em tom á -lo e m seus b raç os, ela se d esp iu e ac olheu d e b om grad o o c orpo ávido de Enkidu. Ele se d eitou sob re ela murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da mulher. Por seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se esquecera de seu lar nas colinas; depois de satisfeito, porém, ele voltou para os animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham-se em
AE Epp op éia éia d e
Anônimo
Traduç ão de Carlos Daudt de O liveira iveira ISBN ISBN 85-336-1 389-X
de tua c heg ad a a travé s de sonhos." Entã o G ilga me sh se leva ntou p ara c onta r o sonh o q ue tivera à sua mã e, Ninsun, uma d as d eusa s de g ra nde sa ber. "Mã e, tive um sonho e sta noite. Eu me sentia muito feliz, cercado de jovens heróis, e caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento. Um meteoro, feito da mesma substânc ia d e Anu, ca iu d o c éu. Ten tei levantá -lo d o c hã o, ma s era pe sad o d em ais. Tod a a g ente d e Uruk veio vê -lo; o p ovo se em pu rrava e se acotovelava ao seu redor, e os nobres se apinhavam para beijar-lhe os pés; ele exercia sobre mim uma atração semelhante à que exerce o amor de uma mulher. Eles me ajudaram; levantei seu corpo com o auxílio d e c orreia s e trouxe-o à vo ssa presenç a, e v ós dec larastes ser ele me u irm ão ." Entã o Ninsun, que é sáb ia e b em -am a da , disse a Gilga m esh: "Esta estrela do céu que caiu como um meteoro, que tentaste levantar do chão, mas achaste muito pesada, que tentaste remover, mas que dali não arredava pé, e então trouxeste a mim; eu a criei para ti, para estimular-te c om o que c om um ag uilhão , e te sentiste a traído c om o q ue por uma mulher. Ele é um forte companheiro, alguém que ajuda o amigo nas horas de necessidade. Ele é o mais forte entre todas as criaturas selvagens; é feito da substância de Anu. Ele nasceu nos c am pos e fo i c riad o nas c olina s ag restes. Fic a rás feliz ao e nc ontrá-lo ; va is amá-lo como a uma mulher, e ele jamais te abandonará. E isto o que sig nific a teu sonho." Gilg am esh disse: "Mãe , tive um seg und o sonho. Um m a c ha d o jazia no c hã o d e Uruk da s po d erosas m uralhas; seu fo rm ato era e stra nho e a s pessoas se amontoavam ao seu redor. Eu o vi e fiquei contente. Eu me ab aixei, sentindo -me profundam ente a traído p or ele; eu o a mei c omo a uma m ulher e p assei a levá-lo c om igo , ao m eu lad o." Ninsun respo nd eu: "Aquele m ac hado que v iste, que te a traiu tão p rofundame nte c omo o amor de uma mulher, aquele é o companheiro que te envio, e ele c heg ará c om fo rç a e pujança c om o um d eus da hoste c eleste. Ele é o bravo companheiro, que salva o amigo que dele precisa." Gilgamesh
Sumário Introdução Agradecimentos A Ep Ep op éia d e Gilg Gilg am esh esh Prólogo: Gilgamesh, rei de Uruk 1. A che ga da de Enkidu nkidu 2. A jorna jornadd a n a flores f loresta ta 3. Ishta Ishta r e Gilg Gilg am esh, esh, e a mo rte d e Enki Enkidu du 4. A bu sc a da vida e terna terna 5. A his históri tó riaa d o d ilúvio ilúvio 6. A volta v olta 7. A m orte d e G ilgam esh esh Gloss Glossá rio ono m á stico Apêndice: fontes
Introdução
1. A história da Epopéia AE Epo po p éia d e G ilgam esh, esh, o fam oso oso rei de Uruk, na Mesop Mesop otâ m ia, provém de uma era totalmente esquecida até o século passado, quando os arqueólogos começaram a escavar as cidades soterradas do Ori Oriente Méd io. Até e ntão, tod a a his históri tória relativa elativa ao longo períod períod o que separa Noé de Abraão estava contida em dois dos livros menos atrae ntes, ntes, po r serem serem d e c unho g ene alóg ic o, d o Livro d o G êne sis. is. Destes Destes capítulos, apenas dois nomes são lembrados até hoje no linguajar cotidiano: o do caçador Nimrod e o da torre de Babel. O ciclo de po ema s reunido eunido s em torno torno de Gil Gilga me sh nos leva , co ntudo , de volta a o meio da quele perí períod o. Estes poemas têm direito a um lugar na literatura mundial, não apenas por precederem às epopéias homéricas em pelo menos mil e quinhentos anos, mas principalmente pela qualidade e originalidade da históri históriaa q ue na rra m. Tr Tra ta -se -se d e um a m istura istura d e p ura av entur entu ra , moralidade e tragédia. Por meio da ação estes poemas nos revelam uma preocupação bastante humana com a mortalidade, a busca do co nhecimento nhecimento e a tentativa tentativa d e esca esca pa r ao desti destino no do homem c omum. Os deuses não podem ser trágicos, pois não morrem. Se Gilgamesh não é o primeiro herói humano, é o primeiro herói trágico sobre o qual c onhec em os alguma c oisa. oisa. É aq uele co m quem m ais nos ide ntifi ntificc am os e que melhor representa o homem em busca da vida e do conhecimento, uma busca que não pode conduzi-lo senão à tragédia. Pode talvez causar alguma surpresa o fato de que algo tão antigo quanto uma história do terceiro milênio a.C. tenha ainda algum poder pa ra c om ove r e c ontinuar atraindo leitores leitores no séc séc ulo XX XX; is isto no enta nto ac ontec e. A na rrativa está está inco mp leta e p od e ser que c ontinue ontinue a ssim; ela é, porém, porém, o ma is ad mirável mirável poe ma ép ic o q ue nos c heg ou de tod o o
textos sum érios leva a história da ep op éia de volta ao terceiro milênio antes de Cristo. Já é possível agora combinar e comparar um corpo de escritos bem maior e bem mais antigo d o q ue o que tínhamo s até então .
2. A descoberta das tábuas A de sc ob erta da s táb uas rem onta à e ra he róic a da s esc ava ç ões, em meados do século XIX, quando, embora os métodos não fossem sempre tão escrupulosos nem os objetivos tão estritamente científicos c om o ho je, as dific ulda de s e até me smo os pe rigo s do em preendimento eram bem maiores, e os resultados causavam um impacto capaz de alterar p rofund am ente a p erspe c tiva intelec tual da é po c a . Em 1839, um jovem inglês, Austen Henry Layard, partiu com um amigo para uma viagem por terra até o Ceilão; mas ele se deteve por algum tempo na Mesopotâmia para fazer um reconhecimento das colinas assírias. A de mo ra d e algum as sem ana s se esten de u p or ano s, ma s po r fim Nínive e Nimrud foram escavadas; e foi de uma dessas escavações que Layard trouxe para o Museu Britânico uma grande parte de sua coleção de esculturas assírias, junto com milhares de tábuas quebradas do palácio de Nínive. Quando Layard começou a escavar em Nínive, esperava encontrar inscrições; mas a realidade, uma biblioteca soterrada contendo
toda
uma
literatura
perdida,
superou
suas
maiores
expe c tativas. Na ve rda de , a e xtensão e o valor da de sc ob erta só fo ram avaliados posteriormente, depois que as tábuas com caracteres em forma de cunha foram decifradas. Como era de esperar, algumas dessas tábuas se perderam; mas mais de vinte e cinco mil tábuas quebradas, uma quantidade enorme, foram levadas para o Museu Britâ nic o. O tra ba lho d e de c ifra ç ão foi inic iad o po r Henry Ra wlinson, na
residência oficial do governador-geral em Bagdá, onde Rawlinson oc upa va o c argo de ag ente p olític o. Antes de ir pa ra Bag dá , Rawlinson, então um oficial do exército a serviço da Companhia das índias Orientais, havia descoberto aquilo que acabaria se revelando a principal chave para a decifração do cuneiforme: uma grande insc riç ã o, a "Insc riç ão d e Dario", enc ontra da na roc ha de Behistun, pe rto de Kermanshah, na Pérsia, escrita em caracteres cuneiformes em três língua s — o p ersa , o ba b ilônic o e o elam ita arca ico s. O tra ba lho inic ia do por Rawlinson em Bagdá prosseguiu no Museu Britânico quando o orientalista retornou à Inglaterra em 1855. Logo após seu retorno, começou a publicar Cuneiform Inscriptions of Western Ásia. Em 1866, Ge orge Smith junto u-se a Ra wlinson c om o a ssisten te no t ra ba lho d e decifração das tábuas. Nesse meio tempo, Rassam, o colaborador e sucessor de Layard em Nínive, havia escavado em 1853 a parte da bibliotec a em que estava m as táb uas c om o c otejo a ssírio d a Epo pé ia de Gilga me sh. A imp ortânc ia da de sc ob erta só foi perce bida v inte an os mais tarde, quando em dezembro de 1872, num encontro da rec ém -fund a da Soc ied a de d e Arqueolog ia Bíblic a, G eo rge Smith anunciou: "Pouco tempo atrás, descobri entre as tábuas assírias no Museu Britânico um relato do dilúvio." Era a décima primeira tábua da recensão assíria da Epopéia de Gilgamesh. Logo depois desta revelaç ão , Smith public ou Chaldea n Acc ount of the Deluge , c ontend o um resumo d a narrativa d e G ilgam esh. O interesse fo i ime d iato e ge ral; ma s a p róp ria táb ua d o Dilúvio e stav a inc om pleta , e isto fe z c om que se iniciasse uma nova busca para trazer de volta mais tábuas. O Daily Teleg rap h c ontribu iu c om mil guinéus p a ra que fossem feitas ma is esc av aç õe s em Nínive. Geo rge Smith com and aria o trab alho em nome do Museu Britânico. Pouco depois de sua chegada a Nínive, Smith enc ontrou a s linhas qu e fa ltava m d a de sc riç ão d o d ilúvio. Este m ate rial era na ép oc a, e a inda é, a p arte ma is co mp leta e bem preservad a d e tod a a ep op éia. Muitas outras táb ua s foram ac had as naq uele ano e no ano seguinte, e Smith pôde reconstituir a maior parte da versão assíria
antes de sucum bir, em 1876, à do enç a e à fome , vindo a falecer perto de Alep o a os trinta e seis anos; m as já d esbrav a ra tod o um novo te rritório na á rea d os estudo s bíblic os e d a história a ntiga . Ao
publicar
o
"Dilúvio"
assírio,
Smith
afirmou
tratar-se
evidenteme nte de uma c óp ia d e uma ve rsão muito m ais antiga feita em Uruk, a Erec h d a Bíb lia, co nhec id a hoje c om o Warka. Alguns a nos a ntes, entre 1849 e 1852, W. K. Loftus, membro da Comissão de Fronteira Turco -Persa , pa ssara d ua s c urtas tem po rad as esc avand o em Wa rka, onde encontrou curiosos restos, inclusive tábuas e aquilo que hoje sab em os ser pa red es de mo saico d o te rc eiro m ilênio. Mas Warka teve de esperar até os anos vinte e trinta deste século para vir a receber mais atenção; foi quando os alemães empreenderam grandes escavações que revelaram uma longa série de construções, bem como tábuas e esc ulturas. Graç as a esse traba lho, sa be-se m uito hoje em d ia a resp eito da an tig a Uruk, d e seus tem plos e da vida de seus ha b itante s. Ainda mais importantes para a história da Epopéia de Gilgamesh foram as atividad es de uma expe diçã o a me ric ana da Universida de da Pensilvânia, co ma nda d a po r John Punnet Pete rs, que a o final do séc ulo XIX começou a trabalhar no monte de Niffer, a antiga Nippur, no sul do Iraque. Já se tinha nessa época bem mais experiência com os problemas que envolviam a esc ava ç ão de c ida de s antigas; mas ainda assim os riscos eram enormes. O primeiro período em Nippur, 1888-9, começou alegremente com a chegada de Peters e seu grupo ao sítio de escavação, depois de um galope desenfreado através dos bambuzais em cima de fogosos garanhões; mas sua última visão do monte ao final da temporada foi a de árabes hostis executando uma dança de guerra nas ruínas do acampamento. O trabalho continuou, contudo, no ano seguinte, e um total de trinta a quarenta mil tábuas foram encontradas e distribuídas entre museus na Filadélfia e Istambul. Em um pequeno grupo destas tábuas encontram-se as versões mais antiga s do c iclo de Gilgame sh na língua sumé ria. O trab alho em c am po e nos museus continua. Com a publicação das tábuas de Ur que se
encontram no Museu Britânico, novos acréscimos foram feitos ao texto c onhec ido . Foram tam bé m identific ad as táb uas em Bag dá e em o utras partes,
algumas
de
importância
histórica,
outras
diretamente
relacionadas ao texto. A dispersão deste material tem complicado o trabalho de decifração, pois, em alguns casos, metade de uma tábua importante está guardada na América e a outra em Istambul, fazendo-se necessário juntar cópias de ambas as partes para que seu c onteúd o p ossa ser co m preendido . A maioria dos textos antigos são documentos comerciais e administrativos, arquivos de negócios, listas e inventários que, embora sejam profund am ente interessante s p ara o historia do r, não o sã o p ara o leitor m éd io . A rec ente de c ifra ç ão d a esc rit a c onhe c id a c om o "lin e a r B", da Era do Bronze de Micenas e Creta, não revelou literatura alguma. Uma enorme biblioteca descoberta em Kültepe, na Anatólia Central, compõe-se integralmente de registros de transações comerciais; exce tua nd o-se um solitário te xto, qu e, além d isso, é um a m ald iç ão , não há ali nada de natureza literária. A importância das escavações em Nippur, Nínive e outros grandes centros da antiga civilização mesopotâmica é terem restaurado uma literatura de alta qualidade e de ca ráter único . A Epopéia de Gilgamesh deve ter sido bastante conhecida no segundo milênio antes de Cristo, pois encontrou-se uma versão da narrativa nos arquivos da capital imperial hitita em Boghazköy, na Anatólia, esc rita e m ac ad iano sem ític o; e fo i tam bé m tradu zida pa ra o hitita indo-europeu e para a língua hurrita. Encontraram-se partes da ep op éia em Sultantep e, no sul da Turq uia -; e um frag me nto, pe q ueno mas importante, descoberto em Megido, na Palestina, aponta para a existência de uma versão cananéia ou palestina mais moderna, o que sugere a possibilidade de os primeiros autores da Bíblia estarem familiarizados com a história. O fragmento palestino vem da tábua que descreve a morte de Enkidu. A versão que mais se aproxima deste frag me nto é a d o c onhec ido relato d e Bog hazköy. As esc av aç ões feitas
em Ra s Shamra , a a ntiga Ug arit, na c osta síria , trouxera m d e volta à vida uma literatura ép ic a indep end ente, c uja s versõe s esc ritas d a tam em sua maioria da segunda metade do segundo milênio. Esta literatura era também conhecida na capital hitita, e um de seus fragmentos refere-se a uma narrativa do dilúvio q ue p rova velmente foi deriva da da narrativa de Gilgamesh. Percebe-se, então, que as várias tradições literárias da época, incluindo as hititas, coincidiam em muitos pontos e às vezes chegavam a se misturar, e recentemente levantou-se a hipótese da provável existência de uma tradição poética egéia-micênica bem semelhante, cujos elementos teriam sobrevivido à era das trevas e rea pa rec id o na po esia hom éric a e na po esia g reg a p osterior. Tod a a questão envolvendo a data e a natureza deste indiscutível elemento asiático na mitologia e nas primeiras produções poéticas da Grécia ainda está sob discussão e se mantém envolta em incertezas. Tenha ou não c hega do ao Egeu a fa ma de Gilga mesh de Uruk — e esta é uma idéia fascinante —, não resta a menor dúvida de que o herói gozou de tanto renome quanto qualquer outro de tempos posteriores. Seu n om e to rnou-se a os pouc os tã o fam ilia r que pa ssara m a lhe imputar anedotas e outras invenções, como numa fraude popular que sobreviveu em tábuas do século VIII a.C, que provavelmente são c óp ias de um te xto m a is a ntig o. Tra ta -se d e um a c arta sup ostam ente esc rita p or Gilg am esh a um outro rei, com orde ns p ara que env iasse um a quantidade absurda de gado e metais, assim como de ouro e pedras preciosas, que serviriam à confecção de um amuleto para Enkidu, que não p esa ria m eno s d e q uinze q uilos. A a ned ota de ve ter sid o m uito be m rec eb id a , pois so breviveu em q uatro c óp ias, tod a s d e Sultante pe . O texto foi rec ente me nte tra du zido e p ublica d o p elo Dr. Oliv e r Gurney.
3. O contexto histórico As escavações arqueológicas e a decifração dos textos ensinaram-nos muito a respeito do contexto histórico e literário da Epopéia. Embora somente a última versão, a da biblioteca de Assurbanipal, tenha sobrevivido em forma relativamente completa, a imp ressão que se tem é d e que tod os os eleme ntos m ais imp ortante s da história existiam como poemas separados na literatura suméria mais antiga ; poe ma s estes que po dem ter sido , e é qua se c erto que foram , compostos e recitados oralmente muito antes de terem sido registrados em forma escrita. Embora nenhum elemento da história possa ser posterior à destruição de Nínive no século VII, uma situação típica do terceiro milênio é discernível por detrás de grande parte da ação e provavelmente proporcionou seu contexto. A tradição por trás disso remonta mais uma vez à era anterior ao aparecimento da escrita, na fronte ira e ntre a lenda e a história , um p ouc o d ep ois d o Dilúvio, qu and o os
deuses
foram
substituídos
pelos
mortais
nos
tronos
das
cidades-estados. Estamos falando da civilização suméria arcaica. Os sumários foram os primeiros habitantes da Mesopotâmia a conhecer a esc rita , e é na língua deles q ue fo ram esc ritas as ma is a ntiga s tá b ua s d e Nippur relacionadas a Gilgamesh. Eles já haviam irrigado o país e povoado o território com suas cidades antes da invasão das tribos sem ítica s no d ec orrer do terc eiro m ilênio. O s p róp rios sumé rios de vem ter sid o c onq uistad ores a e ntrar na reg ião p elo no rte e p elo leste d uran te o qua rto milênio. A influênc ia d este po v o talentoso, d em onstra da na s leis, na língua e no campo das idéias, persistiu por muito tempo após a inva sã o de seus vizinho s sem itas. Esta influênc ia te m sid o c om p ara da , e c om justiç a , à de Rom a sob re a Europ a m ed iev al. Seu idioma c ontinuou sendo utilizado na escrita, como o latim na Idade Média, por muitos séc ulos a pós a perda d e sua identida d e p olític a. Por isso, nã o rep resent a anacronismo algum o fato de encontrarmos os primeiros textos de
Gilga me sh esc ritos nesta língua "c ulta", em bo ra a ma ior pa rte d eles d ate do c om eç o d o seg undo m ilênio, ap ós a c onq uista sem ita. As escavações mostram que a civilização suméria arcaica do começo do terceiro milênio, também chamada civilização do antigo período dinástico, é posterior aos notáveis sinais de enchentes constatados em vários sítios importantes: entre eles, Shurrupak, Kish e Uruk. Estes sinais coincidem com o final do último período pré-histórico, que os arqueólogos chamam Período de Jemdet Nasr; mas não há prova s de que tenha m sid o rigo rosa me nte c ontem po râne os. Sir Leo na rd Wolley identificou em Ur uma catástrofe ainda mais antiga, mas sua extensão foi apenas local, e não há provas arqueológicas que corroborem a ocorrência de um desastre natural de proporções devastadoras; nem mesmo as mais antigas tradições sumérias fazem menção a um dilúvio de conseqüências catastróficas. Nos escritos sumérios posteriores, bem como nos antigos textos babilônicos, as enchentes e os dilúvios são enviados pelos deuses, junto com outros castigos igualmente catastróficos: a doença, a seca e a fome. Citam-se c inc o c id ad es que teriam existid o a ntes d o d ilúvio, e, pa ra ela s, "o Pod er Real descia do Céu". Após a catástrofe, "O Poder Real mais uma vez desc eu à Terra", e a s c ida des-esta d os q ue surgiram nessa é p oc a freqüentemente se punham em guerra umas contra as outras. A semi-histórica "Lista Dinástica Suméria", composta no começo do segundo milênio, mostra que Kish foi a primeira cidade a ganhar pree minênc ia ; ma s, algum temp o d ep ois, Uruk de rroto u Kish e tirou -lhe a supremacia. Estes dois Estados eram tradicionalmente rivais. Na lista dinástica, Gilgamesh consta como o quinto monarca da primeira dina stia p ós-diluviana de Uruk (ver aba ixo). A riq ue za de stas c id ad es tornav a-as alvo d e c ob iç a, uma grande tentação para as tribos semitas selvagens da Arábia e para os povos guerreiros do Elam e d as reg iõe s monta nho sas d a Pérsia , a leste. Pouc o depois da queda da dinastia de Uruk, quando os semitas se instalaram em Aga d e, no n orte, seu rei, Sa rgã o, afirmo u ter sob seu c om and o um
exército fixo de 5.400 soldados. Entre suas principais façanhas estava a destruição das muralhas de Uruk. Estas muralhas haviam se tornado proverbiais. Dizia-se "Uruk das fortes muralhas", e, tradicionalmente, fora Gilga me sh o g rand e c onstrutor. No antigo período dinástico sumério, cada cidade já tinha seus próprios templos em homenagem aos deuses. Eram construções magníficas, decoradas com mosaicos e relevos, e geralmente c om preend iam um g ra nde p átio e um santuá rio interno, tend o à s ve zes, como em Uruk, um zigurate na parte de trás. O zigurate era uma montanha sagrada em miniatura: uma antecâmara entre o Céu e a Terra , ond e os d euses p od iam c onv ersar c om os hom ens. Assim, quand o Gilgamesh evoca a deusa Ninsun, sua mãe divina, ela sobe ao topo do templo para oferecer orações e sacrifícios ao grande Deus-Sol. Os temp los eram c uida do s por um c orpo p erpé tuo de sac erdotes, em c ujas mã os, em de terminad a épo ca , cheg ou a ficar quase tod a a riqueza do Estado. Entre os sacerdotes estavam os arquivistas e os professores, os estudiosos e o s ma tem ático s. Log o no co me ç o, todo o p od er temp oral estava em suas mãos, já que eram servos do deus cujas propriedades administravam. Mais tarde, um único indivíduo passou a ser o "locatário da fazend a" ou o zelad or, até o m om ento e m q ue o "Pod er Real de sc eu do Céu", quando o poder foi secularizado, e as dinastias reais, de asp ec to a g ressivo e c om p etitivo , passara m a suc ed er-se um as à s outras. O g ra nde p restígio do s tem plos, po rém , p erma nec eu inalterad o. Uma das causas do militarismo no terceiro milênio era o fator econômico. A parte sul da Mesopotâmia até o Golfo Pérsico era, e ainda é, um território pantanoso, quente e plano, bastante produtivo quando drenado, mas, com exceção das tamareiras, absolutamente de sprovido d e m a de ira e m eta is. O que a s c ida de s riva is nec essitav am de seus vizinhos nas montanhas ia além do que a troca pacífica de me rc a do ria s po de ria fornec er. Foram c riad as c olônias de me rc a do res e entrepostos
comerciais,
mas
o
tráfego
de
caravanas
era
freq üentem ente interrom pido, e a m até ria-prima ac ab ava send o tirad a
à força de relutantes tribos da Pérsia, da Arábia ou da Capadócia. Foi assim, pois, que se estabeleceu a imemorial hostilidade entre os montanheses e os homens da planície, sentimento que serviu de tema pa ra um grupo de po ema s sumérios que de sc revem o relac ionam ento c onturba d o e ntre Uruk e Aratta , um Esta d o na s c olina s orienta is. Possuímos
documentos
históricos
com
registros
quase
c onte mp orâneo s de vá rias expe d içõe s em preend id a s durante o te rc eiro milênio p or Sargã o d e Ag ad e e Gude a d e Lag ash, para p rote ge r suas c olônias d e m erca do res e o b ter ma de ira pa ra suas con struç õe s. Ta is expedições, além disso, certamente não foram as primeiras. O cedro vinha d as mo nta nha s Ama no, no norte d a Síria e sul da Turquia, e ta lve z do Líbano e do sudeste da Pérsia. Relata-se que Sargão empreendeu uma c am pa nha v itoriosa pe los territórios do norte, e q ue seu d eus Dag on deu-lhe a "região superior" até a "Floresta de Cedros" e a "Montanha de Prata". A floresta de cedros, neste caso, é certamente Amano. Por sua vez, q uan do Gud ea , rei de La ga sh, q uis c onstruir um te m plo p ara o de us Ningirsu, "Trouxeram para Gudea o cobre de Susa, do Elam e das terras oc id enta is... trou xeram -lhe g ran de s toras d e salgue iro e éb ano , e G ude a abriu uma trilha na montanha de cedros onde ninguém jamais penetrara; ele cortou os cedros com grandes machados. Balsas de cedro, como gigantescas cobras, flutuavam rio abaixo vindas da monta nha d e c ed ro; balsas de pinho vinham d a m onta nha d e p inheiro. Em pedreiras onde ninguém jamais esteve, Gudea, o sacerdote de Ningirsu, abriu uma trilha; as pedras chegavam em grandes blocos, e chegavam também caçambas de betume e gesso das montanhas de Magda; tantos quantos os barcos que trazem aveia dos campos." Por detrás do Gudea de carne e osso podemos discernir a figura nebulosa de Gilgamesh, o grande construtor de templos e cidades, que se aventurou pelo interior das florestas trazendo de volta a preciosa ma deira do ced ro.
4. O contexto literário Sob rev ive ram da literatura sum ária c inco po em a s relac ionad os a Gilgamesh. Destes poemas, dois foram utilizados e combinados com ma terial m a is re ce nte ne sta versã o da ep op éia; são eles "Gilga me sh e a Terra dos Vivo s" e frag me ntos da "Mo rte d e G ilga m esh", q ue , c om o sab em os hoje, fazia p arte d e um texto b em ma is long o, de pe lo m enos 450 linhas. A linguagem usada aqui é muito semelhante à de um lam ento p or Ur-Nam mu , mona rc a d e Ur q ue viveu po r volta de 2100 a .C., c ujo te xto, de pa ssag em , cita o nom e d e G ilga me sh. Um o utro p oem a, enfoc a nd o "Gilga me sh e o Touro d o Cé u", está p or de trá s d os ep isód ios da recensão ninivita que descrevem o insulto à Deusa Ishtar e sua ving anç a . Um a g ra nd e p arte do po em a sumé rio "Gilg am esh, Enkidu e o Mundo Inferior" foi traduzida quase que literalmente e acrescentada à ep op éia a ssíria (Tá bu a XII) sem tenta tiva d e a d ap ta ç ã o, em bo ra seja incompatível com eventos anteriormente descritos (Tábua VII). Este ad end o, po rém , pa rec e fornec er uma alternativa ao "Sonho" e à "Morte de Enkidu", episódios colocados no centro da versão assíria. O episódio "Gilg am esh e Ag g a", a ssim c om o "A Morte d e G ilgam esh", é c onhe c ido ap ena s em sumé rio. Tra tav a -se d e um a na rra tiv a nã o m uito he róica e sem muita relação com o resto do texto, sobre disputas e um leve conflito armado envolvendo os Estados rivais de Kish e Uruk. Embora seu espírito seja típ ico de pa rte d a po esia sumé ria, fog e d em ais a o estilo d o resto da ob ra pa ra q ue p ossa ser inc luíd o num a "Epo pé ia d e G ilga m esh". Não seria surpreendente descobrir que os estudiosos e copistas de Assurbanipal o rejeitaram, embora, é claro, talvez desconhecessem sua existência. A história do Dilúvio não fazia parte do ciclo de Gilgamesh na literatura suméria; era um po em a indep ende nte q ue tinha no pa pel de Noé um he rói c ham a do Ziusud ra, nome que sig nific a "ele v iu a vida". Há também um "Dilúvio" babilônico arcaico, datando da primeira metade do seg und o m ilênio, no q ual o h erói cha ma -se Atrah asis. Neste p oem a, a
enchente é apenas a última de uma série de catástrofes enviadas para destruir a humanidade. A primeira parte da história ocupa-se de outros assuntos, incluindo a criação do homem. Já fizemos menção aqui a um fra gm ento ac ha d o em Uga -rit, na Síria. Uma versão po sterior do p oe ma de Atrahasis foi escrita no reino de Assurbanipal. É impossível dizer em que época o dilúvio foi incorporado ao ciclo de Gilgamesh, uma vez que não há informações suficientes relativas ao período babilônico antigo. Têm surgido muitas controvérsias em torno da relação existente en tre o d ilúvio d o Gê nesis e o d os esc ritores assírios, b a bilônios e sum érios. A opinião geral que se tinha até certa época, segundo a qual o relato do Gênesis seria uma versão mais refinada e recente de uma história bastante conhecida nas cidades da Babilônia, já não é mais de aceitação geral; muitos sustentam a idéia de que tenha se originado diretamente de uma história muito antiga e independente. Não é preciso abordar esta complexa controvérsia para que se possa acompanhar o relato do dilúvio tal como ele nos é narrado na décima prime ira tá bua da Epop éia de Gilga me sh. A dec ifraç ão de novos textos pode vir a esclarecer melhor toda esta questão, mas, no momento, é provável que a melhor maneira de avaliarmos o relato do Gênesis seja utilizando como pano de fundo as muitas histórias antigas de dilúvios, histórias que não estão necessariamente relacionadas à mesma catástrofe e que têm protagonistas — humanos e divinos — diferentes. E possível que nem todas as versões correntes na Mesopotâmia e no Oriente Próximo durante o terceiro milênio tenham sobrevivido até os dias de hoje. Uma mostra de que diferentes narrativas persistiram independentemente no passado está no fato de que o herói de uma versão do século III a.C. — que pode até ser de autoria de Beroso, um sacerdote helenófono da Babilônia — recebeu o nome de Xisuthros ou Sisuthros, qu e nã o p od e ser sen ão o Ziusud ra sumério, e m bora o nom e tenha d esa pa rec ido d as ve rsõe s semític a s c onhe c ida s. Fora do ciclo de Gilgamesh sobreviveram dois poemas sumérios (inco mp letos, com o d e c ostume) q ue trata m de um c erto Enmerkar, um
ante c essor de Gilga m esh no trono de Uruk; na lista diná stica sum éria, ele é o segundo nome após o dilúvio. Nos poemas de Enmerkar, o rei está em conflito com o senhor de Aratta, Estado situado a leste, nas montanhas da Pérsia. motivo da briga é comercial e parece girar em torno de uma troca do trigo de Uruk por pedras para construção e metais preciosos, ouro, prata e lápis-lazúli de Aratta. Embora o texto c onte c om a p artic ipa ç ão de arautos e g rand es gue rreiros, sua a ç ão é ainda menos heróica do que a de "Gilgamesh e Agga". Como poderia se esperar de uma obra originada em Uruk, o Estado sai sempre venc ed or em suas c ontend as c ontra Ara tta. Tam bé m herói de d ois po em a s é Lugulba nd a. Este rei é o terce iro da lista dinástica, e Gilgamesh às vezes se refere a ele como sendo seu "pai" semidivino. Lugulbanda é uma figura mais interessante do que Enmerkar e, como Gilgamesh, é um viajante. Em "Lugulbanda e Enmerkar", ele é va ssalo e p ala d ino d este último. Tam bém c om o Gilgamesh, Lugulbanda atravessa grandes montanhas e o rio Kur (isto é, o rio do mundo inferior) antes de conseguir livrar Enmerkar de seus inimigo s. Em "Lugulba nd a e o M onte Hurrum", ele é da do c om o m orto e abandonado por seus companheiros em uma outra jornada pelas montanhas, desta vez em Aratta. Por meio de piedosos sacrifícios, Lug ulba nd a o bté m a p rote ç ão do Deus-Sol; e, m ais um a ve z, tal c om o Gilgamesh em suas peregrinações pelas regiões agrestes, ele come carne de animais selvagens e plantas silvestres como se fosse um pobre caçador. Nossa epopéia parece conter uma alusão proposital a este ep isód io, q ua nd o os c onselheiros d e Gilga m esh o fazem rec orda r-se da de vo ç ão d e Lugulba nd a e o e xortam a fa zer sac rifíc ios a o sol e a "não se esquecer de Lugulbanda". E possível então que os compiladores mais rec ente s tenha m se insp ira do tam b ém n este c ic lo, além do c iclo o riginal de Gilgamesh. A
epopéia
suméria
foi
provavelmente
criada
na
fase
proto-histórica da civilização suméria arcaica, no começo do terceiro milênio. O poema, contudo, só veio a ser transcrito muitos séculos mais
tarde . Seg und o um a teo ria b astan te a c eita, estes sum érios c heg a ram à Me sop otâ m ia ante s d e 3000 a.C. Insta laram -se em sua s férteis pla níc ies, herdando a prosperidade dos habitantes originais, que, não dominando a escrita, são conhecidos apenas pela beleza de sua cerâmica e por suas ald eias d e c a b ana s c o be rtas de c olmo s e c a sa s d e tijolos sec os a o sol. Segundo uma teoria alternativa, os próprios sumérios foram os primeiros agricultores na Mesopotâmia. De qualquer maneira, o mundo descrito nas "epopéias" é bem semelhante àquele dos primeiros cinco séc ulos do terc eiro m ilênio, antes da unific aç ão do pa nteão no fim do milênio (sob a terceira dinastia de Ur) e antes da padronização e do forma lism o do seg und o m ilênio. Dentre as primeiras obras literárias sumérias, os poemas de Enmerkar parecem mais narrativas de disputa e debate argumentativo do q ue ep op éias heróic a s. Não se trad uziu a ind a o sufic iente do c iclo de Lug ulba nd a p a ra se julga r a té q ue p onto seu e stilo po d e ser co nsid erad o ép ic o e heróic o. A m a ior pa rte do s de m ais p oe ma s sumé rios sã o hinos e lamentos dirigidos aos deuses, ou que se ocupam de seus atributos e ativida d es. Conhe c em -se a lguns p oem as "ép ic os", tod os m a is ou me no s fragmentários, do período babilônico arcaico ou de períodos mais recentes, mas seus protagonistas são em geral deuses ou monstros. Gilgamesh é o único personagem humano de estatura heróica que chegou a nossos dias, embora alguns fragmentos heróicos possam ser enc ontrad os em ou tros textos literários, c om o o "Cântico d e Déb ora" no Livro d os Juizes.
escrita. Gilgamesh, contudo, também é lembrado como um juiz justo, e relatos posteriores o transformaram, como o Minos de Creta, num juiz do mundo inferior, a quem as pessoas dirigiam suas orações e que era invoc ad o através de enc anta me ntos e rituais. Um a p rec e c om eç a : "G ilgam esh, rei sup rem o, juiz dos Anunnaki." O herói é descrito no começo do poema. Ele é dois terços deus e um terço homem , pois sua m ãe e ra um a d eusa, co m o a mã e d e Aquiles. Dela Gilgamesh herdou grande beleza, força e inquietude. De seu pai herdou a mortalidade. A história tem muitos desdobramentos, mas eis sua trag éd ia: o c onflito e ntre o s d ese jos do de us e o d estino d o hom em . A mãe de Gilgamesh era uma deusa relativamente obscura, que possuía um tem plo-pa lác io e m Uruk. Na lista dinástica , seu p a i é d esc rito um ta nto m isteriosam ente c om o um "lillû", que quer dizer um "tolo" ou um demônio vampiresco, e também como um sumo sacerdote. Na versão suméria, Gilgamesh é o "sacerdote de Kullab", uma área de Uruk, mas em seus momentos de tensão ele invoca Lugulbanda chamando-o de "pai". O reinado de Lugulbanda foi o segundo antes de Gilgamesh e o terc eiro a pó s o d ilúvio. Ele era o p roteto r da c ida de e e ra c ham ad o d e deus. Lugulband a reinou p or 1200 ano s. Numa obra que existe há tanto tempo e que foi tão freqüentemente copiada e alterada, é inútil buscar precisão histórica nos eventos narrados. Exprimi a opinião de que a situação política do terc eiro m ilênio c onstitui o m ais provável pa no d e fundo d a aç ão . O fato ma is im pressiona nte é o g rau d e unida d e e spiritual enc ontra do em tod o o c ic lo — no sum ério, no b a bilônio a ntigo e no a ssírio —, unid ad e q ue se origina do caráter do herói e de uma atitude profundamente pessimista em relação ao mundo e à vida humana. A insegurança da vida na Mesopotâmia explica, pelo menos em parte, essa atitude. Havia, além disso, aquele sentimento a que Henri Frankfort deu o nome de "angústia implícita", devida ao "terror obsessivo de que forças turbulentas e misteriosas pudessem trazer a qualquer momento uma catástrofe à soc ied ad e huma na". Perceb emo s de antem ão no c aráter de G ilgam esh
uma preocup aç ão d ominante com a fama e a reputa çã o, assim c omo a revolta do homem mortal contra as leis da separação e da morte. O conflito do homem selvagem ou "natural", representado pelo personagem Enkidu, com o civilizado, representado por Gilgamesh, parece
menos
fundamental,
embora
tenha
sido
reenfatizado
rec entem ente p or pelo me nos um a utor. A história é dividida em episódios: um encontro de amigos, uma jornada pela floresta, o insulto a uma deusa caprichosa, a morte do companheiro e a busca da sabedoria ancestral e da imortalidade. Por todos eles perpassa uma mesma idéia, como no refrão do poeta medieval, "Timor mortis conturbai-me". No episódio da Floresta de Cedros, esta idéia central funciona apenas como um estímulo à am biçã o d o herói de de ixar um nome a ser lem brado ; mas ap ós a m orte de seu fiel companheiro o tema torna-se mais imperioso: "Como posso de sc an sa r de p ois q ue Enkidu , a q uem a mo , virou pó , e q uand o ta m bé m eu morrerei e serei enterrado para sempre?" No final do poema, este espírito se transforma em mofa devido às oportunidades perdidas e às esperanças desfeitas. Esta atmosfera continua até a cena final, a da morte do próprio herói, quando a ambição humana é tragada pelo destino e ac a ba por se rea lizar a travé s dos antigo s ritua is. A
causa
mesopotâmico
do jaz
pessimismo em
parte
que na
dominava
precariedade
o da
pensamento vida
nas
c ida de s-esta do s, um a vida subm etida a os c ap richo s d as enc hent es, da s sec a s e d a s a ç õe s d e um a vizinha nç a turbulenta . O d estino de stes po vo s dependia também do caráter dos deuses, que eram considerados os poderes responsáveis por tais condições. Uma vez que os deuses desempenham um papel tão importante na epopéia, é bom falarmos um pouco a respeito destas criaturas imprevisíveis e aterrorizantes. Seus nomes e principais atributos estão arrolados no Glossário (p.165), mas alguns deles, que desempenham um papel decisivo na ação, exigem po r isso um a d esc riç ão um p ouc o m ais d eta lha d a. Seu s nom es p a rec em estranhos e soam pouco familiares aos ouvidos ocidentais, e a
topografia de seu mundo é, à primeira vista, tão peculiar, que uma explicação mais pormenorizada parece se fazer necessária. O leitor pode, contudo, se assim o desejar, deixar de lado o capítulo seguinte até o momento em que se sentir propenso a conhecer mais a respeito do s princ ipa is de uses e d e sua s ha bitaç õe s no c éu o u no mund o inferior.
6. Os principais deuses da Epopéia As cidades da Mesopotâmia compartilhavam um mesmo pa nteã o, ma s os de uses nã o e ra m c ultuad os em tod a s a s pa rtes sob os mesmos nomes. Os semitas, ao invadirem a Mesopotâmia, herdaram a maioria dos deuses sumérios, mas alteraram seus nomes, a relação que mantinham entre si e muitos de seus atributos. Hoje, é impossível dizer se qualquer um desses deuses originou-se na própria Mesopotâmia, se pertence u ao pa nteão mitológico da quele estra to p op ulac ional ainda mais antigo que pode ter ocupado o território mesopotâmico antes da chegada dos sumérios; mas são os deuses destes últimos que desempenham os principais papéis em toda a epopéia; e este é um argumento a mais, se mais algum argumento fosse necessário, a favor da grande antigüidade de todos os episódios. Deuses mais recentes, c om o Marduk, de Bab ilônia, nã o são menc iona do s em Gilga me sh. Cada cidade tinha seu próprio protetor, que morava entre seus muros e zelava por sua fortuna. Anu (o An sumério) era um pai dos deuses, guardando menos identidade com Zeus do que com Urano, o Deus-Céu, que para os gregos não representava mais do que um elo anc estral na c orrente d a c riaç ão e d e c uja união c om a Terra, seg undo algum as g enealog ias, surgiram o O c eano , os rios, os ma res, os Titãs e, finalmente, Crono, o pai de Zeus. Numa reconstrução da teogonia suméria, feita pelo Professor Kramer, An foi o primogênito do mar primo rd ial. Ele era o firm am ento , as c a ma da s supe riores do c éu , e nã o o ar que sop ra sob re a terra . Como Ura no, An se uniu à Terra (a Ki suméria )
e gerou Enlil, o deus do ar. Nesta época o mundo ainda estava envolto na esc urid ão , e Enlil, o ar, vivia a prisionad o entre o teto esc uro d o c éu, uma noite sem estrelas, e a superfície da terra. Enlil gerou então a lua, Nanna (o Sin do s sem itas), que viajou num ba rc o e trouxe a luz ao s c éus de lápis-lazúli; e Nanna por sua vez gerou o sol, Utu (o Shamash dos semitas), e Inanna (a Ishtar dos semitas), a deusa do amor e da guerra. Os textos permanecem muito obscuros; um deles é a introdução ao poema sumério que trata da descida de Enkidu ao mundo inferior. Anu nesta é po ca ainda não é tã o ignorado quanto Urano, ma s tam bém já não é mais visto como o criador ativo dos deuses. Esta posição suprema foi sendo g rad ualmente usurpa da p or Enlil, e em nosso p oe ma é Enlil que profere os destinos, como sinal de sua autoridade. Mas ele, por sua vez, acabaria destronado por um novo deus, o Marduk babilônio. Enlil, que tinha Nipp ur c omo sua c ida de , era o vento e a temp estad e, o há lito e o "ve rbo" d e Anu, p ois, seg und o os hinos em seu louvor, "O espírito d o v erbo é Enlil , o e spírito d o c o raç ã o d e Anu". Enlil é o p od er em aç ã o, enq uan to Anu é o poder em essência. Ele é "o verbo que acalma os céus", mas também é "um violento dilúvio que perturba o semblante dos homens, uma torrente que destrói baluartes". Na Epopéia de Gilgamesh ele ap arec e m ais freq üente me nte sob seu a sp ec to d estrutivo ; Anu, por sua vez, é um ser remoto que vive bem longe, no firmamento, além dos portões do céu. Em um dos textos Enlil parece encorajar a jornada à Monta nha do s Ced ros, ma s tam bé m é ele q uem rep reend e G ilga me sh e Enkidu p or assa ssinar o sentinela d a floresta . Figuras igua lmente imp ortantes na Ep op éia sã o Sha m a sh, o Deus-Sol, a q uem os sumérios c ham av am Utu, e Ishta r, a b ela m as terrível deusa do amor. O sol em árabe ainda é "shams", e naquela época Sham ash era a en tid a de onisc iente e o nividente , o grand e juiz a q uem os mortais aflitos podiam apelar contra as injustiças sofridas, sabendo que seriam ouvidos. Os hinos de Nínive descrevem seus muitos atributos: "A hum anida de inte ira se reg ozija em vó s, oh, Sha ma sh, o m und o inteiro anseia por vossa luz... numa voz cavernosa, o homem fraco clama por
vós... quando está longe de sua cidade e de sua família, o menino pastor temeroso do campo aberto recorre a vós, o pastor confuso entre seus inimigos... a caravana que marcha aterrorizada, o comerciante, o ma sc ate c om seu sa c o d e p esos." Nad a esc a pa a os olhos do sol: "Guia e farol que passa constantemente sobre o mar infinito, cuja profundidade os grandes deuses do céu desconhecem; vossos raios brilhantes penetram o Abismo, e os monstros das profundezas vêem vossa luz... queimais por sobre imensuráveis extensões de terra por horas sem fim... a terra é esmagada por vosso terrível brilho." Os dois aspectos de onisciência e justiça em Shamash estão unidos na imagem da rede: "Vossa rede está estendida para apanhar o homem que cobiça" e "Vossos raios c ae m c om o um a red e sob re a terra ". Ele é tam b ém o d eu s dos orác ulos: "Atravé s d a ta ç a d o a divinho, do s fe ixes d e c ed ro, instruís o sac erdo te do orác ulo, o intérprete d e sonho s, o fe itic eiro..."; e em outro hino ele é o juiz: "Proferis diariamente os veredictos do céu e da terra; o fogo e as c ham as que vo s ac omp anham e m vossa vinda o fusc am tod as as estrelas do céu." Foi também ele quem deu a Hamurabi seu sistema de leis. Ishtar (a Inanna dos sumérios) era cultuada, junto com Anu, num grande tem plo em Uruk. Ela é a rainha d o c éu e , c om o d eusa d o a mo r e da guerra, uma personagem ambígua; "uma deusa bela e terrível", como Afrodite. A maioria dos deuses tinha um lado benigno e outro perigoso, e até mesmo Shamash podia ser terrível; mas neste poema, exceto por um só instante, vemos Ishtar somente por seu ângulo mais sombrio. Que ela sabia ser encantadora, isto mostra-nos um hino composto por volta do ano 1600 a.C. "Reverenciai a rainha das mulheres, a m aior entre tod os os d euses; o a m or e o d eleite reve stem seu c orpo ; ela e stá c heia d e a rd or, enc anto e volup tuosa aleg ria ; seus láb ios são do c es, sua b oc a é a Vida , a felic ida de atinge seu a uge q uand o ela está presente; que visão gloriosa, os véus cobrindo,seu rosto, suas graciosas formas, seus olhos cheios de brilho." Esta é a radiante deusa do amor em sua primeira aparição a Gilgamesh, mas seu aspecto logo se
tra nsforma e ela a ssume um a fac e m a is fam ilia r, o d a "senhora da s do res e d as ba talhas". É a este lad o de seu c aráter q ue lhe fo i dirigid o um hino de Ba b ilônia : "Oh, estrela d a lam enta ç ã o, fazeis c om que irm ão s na p az se ponham em luta uns contra os outros e, no entanto, inspirais uma amizade leal e perseverante. Oh, poderosa, senhora das batalhas, que de rruba mo ntanha s." Resta a p ena s m ais um d eus a d esem pe nhar um p a pe l im p ortante no p oem a; é Ea (o Enki sumé rio), o d eus d a sa b ed oria , cu jo e leme nto e ra a água doce que traz vida à terra, e cujo lar ficava em Eridu, então situa da às m arge ns d o Go lfo Pérsic o. Ele ap a rec e c om o um ser be nigno , um pacificador, mas nem sempre é um amigo confiável, pois, como tantos expoentes da sabedoria primitiva, ele se utilizava de truques e subterfúgios, sendo, ocasionalmente, um tanto malévolo. Mas aqui ele aparece como o grande "senhor da sabedoria que vive nas profund ezas". Sua orige m é ob sc ura, ma s à s ve zes é c ha m ad o d e filho de Anu, "gerado à sua própria imagem... de grande inteligência e enorme força". Ele é também, em certo grau, o criador e benfeitor da humanidade. Em c ontrap osiç ã o a o c éu e sua s d ivinda de s, enc ontra-se o m und o inferior com suas divindades sombrias. No antigo mito sumério da c ria ç ã o, a o q ual já no s referimo s, dep ois d e An ter arreb a tad o o s c éus e ter-se a po ssad o d o f irma me nto , e d ep ois d e Enlil ter arreb a tad o a terra , Ereshkigal foi levada como prêmio para o mundo inferior (ou talvez tenha sido ela a levar o mundo inferior como prêmio). O significado deste mito é obscuro, mas parte dele parece descrever um outro rapto de Perséfone. Algumas vezes se referiam a Ereshkigal como a irmã mais velha d e Ishta r, tend o ta lvez, em d ete rminad o m om ento , sido ela p róp ria uma deusa do céu que acabou tornando-se rainha do mundo inferior; ma s ela nã o ob teve o d ireito d e voltar à te rra e m tod a p rima vera. O no m e q ue o s sumé rios d ava m a o m und o inferior, "Kur", tam bé m servia
para
designar
"montanha"
e
"terra
estrangeira",
e
há
freqüentemente uma grande ambigüidade em seu uso. O mundo
inferior ficava abaixo da superfície da terra, mas acima das águas inferiores, do grande abismo. O caminho para o inferno começava "montanha adentro", mas havia muitos circunlóquios para designar o lugar em si ou o caminho que levava a ele. Falava-se da "estrada da carruagem" ou da "estrada sem retorno". Nós, contudo, não somos tão diferentes dos sumérios nesse aspecto; para prová-lo, basta comparar o número de sinônimos nos dicionários ingleses sob os verbetes "Vida" e "Morte". Aparentemente, a história do rapto (se é que houve algum) foi mais tarde esquecida ou perdeu a importância, e com isso perdeu-se também a personalidade de "Kur"; pois, como aconteceu a Hades, o sinistro d eus a c a bo u tornand o-se p ouc o m ais do q ue um lug ar esc uro e Ereshkigal desposou outros maridos. A Rainha do Mundo Inferior é um ser absolutamente aterrador, sempre descrita de maneira evasiva: "Aquela que descansa, aquela que descansa, a mãe de Ninazu, as roupas não cobrem seus sagrados ombros, o linho não cobre seus seios." Há vários poe ma s, sum érios e sem ítico s, que desc revem o m und o inferior. Às ve zes ele é cenário de alguma jornada empreendida por algum deus ou mortal. Certo p rínc ipe a ssírio, sob o p seudônim o d e "Kummu", leg ou um a terrível visão da morte e do além. É um apocalipse sombrio em que os anjos são todos demônios; onde podemos reconhecer a esfinge, o leão e o grifo, o querubim com mãos e pés humanos, ao lado de muitos monstros da im ag inaç ão que d urante m uito tem po ac ossaram a m ente humana. Eles reaparecem continuamente em sinetes de pedra, marfins e rochas, e sobreviveram através da iconografia medieval e da heráldica até os dias de hoje. Embora possam ter perdido sua força sim bólica , os mistérios que rep resenta vam são o s m esm os q ue a ind a hoje nos deixam perplexos. Pode-se sentir por toda a Epopéia de Gilgamesh a presença do mundo inferior. Já se sab e d e a ntem ão que é lá q ue terminará a jornad a do herói, por mais que lute para escapar a esse destino, pois "só os de uses vivem p ara sem pre". Enkidu sonha c om o mun do inferior an tes d e
sucumbirá e insinua a existência de um juiz a quem os virtuosos não prec isam tem er: ma s, no q ue d iz resp eito a os po em a s de Gilg am esh, o mundo inferior é aquele lugar de lamentações que Enkidu, ou seu espírito , de sc reve na Tá bua XII. A jorna d a fa z lem b ra r o último liv ro d a Odisséia, em que os pretendentes à mão de Penélope são levados, "algaraviando como morcegos que guincham e esvoaçam nas profundezas de uma misteriosa caverna quando um deles cai do teto rochoso ao soltar-se do aglomerado formado por seus companheiros. Nesta estridente algazarra de discórdia o grupo foi conduzido por Hermes, seguindo o Libertador pelos sombrios caminhos da ruína. Eles o seguiram para além da corrente do Oceano, do rochedo alvo, para além dos portões do sol e da região dos sonhos, e logo chegaram ao campo de asfódelos, onde moram as almas, os espíritos descarnados dos homens". Ao contrário do que aconteceu a Enkidu, que foi conduzido ao palácio de Ereshkigal por uma criatura com garras e ar sinistro, este grupo foi escoltado pelo "Libertador" Hermes. Fora isso, esta descrição é bastante semelhante à visão babilônica dos momentos fina is, e a té m esm o a aleg oria d os mo rc eg os foi usad a p elo au tor de um poema em homenagem a Inanna. Aparentemente, tal conc epç ão da reg ião d os mo rtos ta mb ém era fa miliar ao a utor do Sa lmo XLIX, q ue escreveu: "Eles formam um rebanho destinado ao Inferno; a morte os conduz ao pasto, e os justos os dominarão pela manhã; sua beleza será c onsumida pe lo Inferno, pa ra que não haja lugar pa ra ela." Por sua vez, o egípcio às portas da morte tinha uma modesta pretensão ao paraíso para confortá-lo e encorajá-lo em seus últimos mo me ntos. Ap ós o julga me nto e a pe sa ge m d a s alma s, o justo p od ia ter espe ranç a de entrar nos c am po s do pa raíso através de uma espé c ie d e renascimento: "Conheço os campos de colmos de Re... a altura de sua c eva da ... ela é c eifada pe los hab itantes do horizonte e pe las Alma s do Oriente." Este rena sc ime nto nã o era a p ena s p ara o ho m em e xc ep c ional ou p ara o rei, m as pa ra "milhõe s d e m ilhõe s... não há ninguém q ue nã o c onsiga c heg ar lá... qua nto à duraç ão d a vida na terra, tra ta -se d e uma
espécie de sonho. Aqueles que chegam ao Oeste é dito: 'Bem-vindo, são e salvo.'"
7. A narrativa Embora os deuses desempenhem papéis importantes em Gilgamesh — pelo menos nas últimas versões do poema —, a Epopéia parece ter sido uma obra tão secular quanto a Odisséia. Mesmo contendo elementos quase religiosos, como as lamentações pelos mortos e a s c om posiç õe s forma lizad as sob re a "Sa bed oria", nã o há indício d e q ue fo sse rec itad a em ritua is religiosos, co mo a c on tec ia c om o g ra nde p oem a b a bilônico sob re a Criaç ã o, o Enuma Elish. Gilgam esh é um a na rrativa sec ula r, dividida em ep isód ios va g am ente relac iona do s, que c ob rem os evento s m ais im po rta ntes da vida do herói. Estes poemas não atribuem a Gilgamesh um nascimento fantástico ou lendas de infância, como aquelas dos heróis folclóricos. Qua ndo a história c om eç a, ele já é um hom em m ad uro e supe ra tod os os outros em beleza, força e nos desejos insatisfeitos de sua natureza se-midivina , uma na tureza qu e nã o lhe d eixa riva is no a m or ou na g uerra; ao me smo tem po , é p ossuido r de uma energia d emo níac a que exaure seus súditos. Estes são obrigados a invocar a ajuda dos deuses, e o primeiro
episódio
descreve
como
conseguem
arranjar-lhe
um
c om pa nheiro qu e é seu o p osto. Trat a -se de Enkid u, o "homem na tural", criado entre os animais selvagens e rápido como uma gazela. Enkidu acaba sendo seduzido por uma meretriz da cidade, e a perda da inoc ênc ia rep resenta um p asso irreve rsível p a ra a do me stic a ç ão d e seu espírito selva ge m. Os anima is pa ssam a rejeitá -lo, e ele g rad ua lmente se deixa civilizar, aprendendo a vestir-se, a comer comida humana, a pastorear, a guerrear o lobo e o leão, até finalmente chegar à grande c ida de de Uruk. Ele não torna a pe nsar em sua antiga vida de libe rda de
até seus m om ento s fina is, no leito de mo rte, qua nd o é d om ina do po r um sentimento de dor e de arrependimento que faz com que amaldiçoe tod os os ed uc ad ores. Esta é a história d a "Qued a" co ntad a a o c ontrário, uma felix c ulpa de spo jad a d o d esenvolvimento trág ic o; ma s é ta mb ém uma alegoria dos estágios por meio dos quais o homem atinge a civilização, partindo da selvageria, passando pelo pastoreio, até finalmente c heg ar à vida urba na. Chego u-se a té me smo a a firma r que esta história provava que os babilônios eram evolucionistas sociais! Rec ente me nte, o Profe ssor G. S. Kirk fez uma interessante ten ta tiva d e interpretar Enkidu — seu nascimento, sua sedução e sua luta com Gilgamesh — à luz do estruturalismo de Lévi-Strauss; tendo Enkidu como sím bo lo da "na tureza" em o po siç ão a G ilgam esh c om o representa nte d a "cultura", o propósito da história seria o de mediar essas contradições e resolver a tensão entre elas. Embora esta possa ser uma das facetas do poema, não creio que seja a mais importante. Ela sugere uma identificação infundada do homem civilizado com a doença, do homem natural com a saúde e o bem-estar; ao mesmo tempo, é bastante ilusório tentar equiparar o ambiente sofisticado e letrado da Ba b ilônia do seg und o m ilênio e da Assíria do c om eç o d o p rime iro m ilênio c om o m und o sim ples d os g reg os d o tem p o d e Hom ero o u Hesíod o, isso sem falar no dos ameríndios de Lévi-Strauss. De qualquer maneira, a impressão que se tem é a de que Enkidu está longe de ser um mero "personagem-tipo". Num prefácio ao livro que contém as mais recentes trad uçõ es da s táb uas de Ur, o Professor Gad d c ham a a a tenç ão pa ra a c onve rsa do fad a do e m oribund o Enkid u c om o Deus-Sol, na q ual insinua-se que ele tivera uma vida feliz nas planícies ao lado de sua mulher, uma "mãe de sete". O Professor Gadd vê nesta história uma tragédia tripla: a do marido seduzido por encantos meretrícios que acabam por levá-lo a uma vida da qual ele logo se cansa; a do nômad e pe rdido na cidad e p ara o nde fora levad o; e, finalmente, a do "nobre selvagem" tentado por uma mulher que lhe transmite um tipo de c onhe c ime nto que só lhe tra rá infortúnios.
A grande amizade entre Gilgamesh e Enkidu, que tem início com uma luta corpo a corpo em Uruk, é o elo que liga todos os episódios da história. Até mesmo em sonho, antes de vir a conhecer Enkidu, Gilgamesh se sentia atraído por ele "como pelo amor de uma mulher". Ap ós o e nc ontro entre os d ois, Enkid u torna -se "um irm ão m ais m oç o", um "am ig o q ue rido ", emb ora o s po em as sumé rios, que não fazem nenhuma referência ao passado de Enkidu, dêem mais ênfase à relação entre servo e senhor. É Enkidu quem traz notícias sobre a misteriosa floresta de c ed ros e seu te rrível sentinela, c om q uem eles se ve rã o fa c e a fac e num enc ontro q ue é o tem a d o seg undo e pisód io. A jornada na floresta e a batalha daí resultante podem ser lidas em diferentes planos de realida de, tal c om o um a alego ria med ieval. A floresta é uma floresta de verdade, algumas vezes identificada como Amano, no norte da Síria, ou talvez Elam, no sudoeste da Pérsia; mas é também a morada de poderes sobrenaturais e o cenário de estranhas av enturas, com o a s vivida s pelos heróis c elta s e os c av ale iros me d ieva is; e é ainda a obscura floresta da alma. No primeiro nível, o histórico, a necessidade que as cidades tinham de madeira é a razão de todo o em p reen dime nto. G ilga me sh, o jovem rei de Uruk, desejava ostenta r seu poder e ambição construindo templos e grandes muralhas, como fizeram Sargã o de Aga de e G ude a de Lag ash. Mas nas mo ntanha s viviam tribos desconhecidas que opunham resistência a qualquer tentativa de remo ç ão do s c ed ros pela forç a. Era preciso lutar pa ra que a va liosa m erca do ria p ud esse ser em b arca da p ara Uruk, e na ba talha o s deuses das tribos da floresta lutavam por trás de seu próprio povo. Era, portanto, essencial recrutar contra eles um dos grandes deuses da Mesop otâm ia, usand o sua m ág ic a supe rior co ntra a má gica do inimigo. Sham ash a c ed e, em fac e d a promessa de um novo tem plo a ser erigido em sua honra, e concede sua proteção especial ao empreendimento. Entre os terrores da montanha estavam os vulcões e os terremotos. Há uma falha g eológica que atravessa a Anatólia e a Armê nia, e é p rováve l que os vulcões da área ainda estivessem ativos por volta do terceiro
milênio a .C, um fa to q ue a c resc enta interesse à ac urad a de sc riç ão de um vulcão em erupção contida num dos sonhos de Gilgamesh na Mon tanha do s Ced ros. No seg und o nível, este ep isód io é um a aventura. Dois jovens heróis pa rtem em busc a d e fam a; a m ontanha e os c ed ros, co m seu sentinela, são desafios que ultrapassam os horizontes da vida cotidiana. Eles partem armados mas sós, e sozinhos encontram o gigante Humba-ba, que foi dive rsam ente ide ntific ad o c om o um de us d o norte d a Síria, da Anatólia ou do Elam , de pe ndend o d o d estino q ue se ima gine ter tido a expe diç ão — as mo ntanh as d o no rte o u d o leste. Ele proteg e a floresta c om v ários enc anta men tos, emb ora talvez tenha havido uma c onfusão no q ue d iz respe ito a o p ortão e nca ntad o que Enkidu d everia ab rir e que ac a ba ria lhe trazend o sofrime ntos. Ma is tarde , na c onve rsa que Enkidu tem em seu leito de morte, fala-se de um portão situado em Uruk, feito com a madeira vinda da floresta. Há ainda o misterioso sono ao qual Gilgamesh sucumbe logo após ter derrubado o grande cedro; e, quando o herói finalmente descobre Humbaba nas profundezas da floresta, o giga nte qua se o m ata ao b alanç ar sua c ab eç a lanç and o-lhe um "olhar" mo rtal. A c riatura só é d om inad a c om o auxílio d e Sham ash e dos oito ve nto s. Esses eram a rma s b asta nte p od erosa s, po is foi co m eles que o d eus Ma rduk subjugo u as ág uas do c ao s prim evo na ba talha d o c ome ç o d o m undo, tal c omo ela é na rrad a no Enuma Elish. Há tam b ém um te rc eiro nível, pois Humb ab a é o "Mal". A prim eira referência que lhe é feita é simplesmente esta: "Por causa do mal que existe sobre a terra, nós iremos à floresta destruir esse mal." Gilgamesh desemp enha, então, o p ap el do ca valeiro q ue m ata o d rag ão. Os do is companheiros saem vitoriosos do conflito; apesar disso, por terem tom a d o p artido entre d ua s divinda de s, usa ndo a s arm as d e Sha m ash para destruir o protegido de Enlil, acabam incorrendo na ira do rancoroso e irascível deus da tempestade, vindo a sofrer as conseqüências disso mais tarde. Realmente, visto de determinado âng ulo, todo o e pisód io d a floresta nã o é senã o uma c ruel arma dilha d e
Enlil p a ra destruir Gilga m esh e Enkidu. A floresta é "a Terra dos Vivos", ou simplesmente "a Terra", que fica em alguma parte para além dos limites do mundo e da realidade terrestres. No m eio d essa Terra está a mo ntanha , que é ao m esm o te m po a moradia dos deuses e o mundo inferior, o lugar de onde vêm os sonhos. Mas a. floresta está também relacionada ao "Jardim do Sol", onde Gilgamesh acaba entrando numa jornada futura e onde ree nc ontra, não em sonho , ma s fac e a fac e, o g rand e Deus-Sol, po is "a Terra pertencia a Shamash". A floresta é estranhamente familiar, assim c om o seu sen tinela. "Vereis um va le sem elhante a um grand e c ana l e no me io de sse v ale um a g rand e á rvore c ujos g alhos têm p onta s ma is ve rde s do que o mais verde dos pinheiros. E sob essa árvore encontra-se uma fonte." São e sta s a s instruçõ es q ue Cynon rec eb e d o sentinela d a floresta em suas peregrinações "através do mundo e de sua imensidão", tal como nos diz um dos romances galeses do Mabinogion. Lá ele encontrou "o mais belo vale do mundo, as árvores da mesma altura, e havia um rio correndo através do vale com um caminho que seguia à sua ma rg em ". Emb ora isto seja um texto ga les do séc ulo XII, ela d esc reve o q ue G ilg am esh e Enkidu v iram ao entrar na floresta d e c ed ros: o c ed ro em frente à montanha, a clareira coberta de mato verde e a estrada la rga e fá c il d e pe rc orrer. No relato, o sentinela da floresta tinha poder sobre os animais que pa stav am a o seu redo r na cla reira ; o sentinela d a floresta d e c ed ros do poema semítico conseguia "ouvir uma novilha se mexer a sessenta léguas de distância". Humbaba é o perpétuo Monstro-Pastor, como o horrível homem da clava que Cynon ou o Cavaleiro Verde do poema setentrional encontram em suas aventuras; é uma divindade da natureza selvagem que, como as próprias florestas, os séculos não conseguem mudar. No poema sumério, contudo, ele tem ainda um asp ec to ígneo, talvez relac ion ad o a os vulc õe s. Após o episódio da floresta, concluído com aparente sucesso, vem o grande ato de glorificação de Gilgamesh, o Rei: paramentado,
com coroa e manto, quase tão belo quanto um deus, o herói lembra Ulisses depois de sua penosa aventura no mar, quando Atena dotou-o de beleza- divina. Neste momento a deusa Ishtar o vê e passa a de sejá-lo a p a ixona da m ente ; tenta sed uzi-lo c om p rom essa s tenta d oras, após o que vem uma notável passagem: a deusa é insultada por um desdenhoso mortal. Há algo aqui do orgulhoso Hipólito, ou de Picus e Circ e e m O vídio, ou d e Anq uíses, o m enino p a stor do M onte Id a, q ue no hino homérico foi, para sua desgraça, seduzido por Afrodite, pois "Aquele que se deita com uma deusa imortal perde para sempre a sua força e v igo r". Gilgam esh entã o a c usa Ishtar, lem brand o-a do miseráv el destino reservado a seus infelizes amantes do passado, um deles tendo sobrevivido como um pássaro com a asa quebrada, outro como um lobo, e um terceiro como uma toupeira cega; pois Ishtar tinha os poderes de Circe. Estes acontecimentos bem poderiam ter feito parte de uma "Meta mo rfose" bab ilônic a. A seg uir vem a m orte d o "Touro d o Cé u", um m onstro q ue personifica a seca de sete anos enviada pela deusa como castigo por ter sido rejeitad a p or Gilgam esh. Anu a p rinc ípio se rec usa a c riar o to uro; quando, porém, a enfurecida Ishtar ameaça pôr abaixo os portões do inferno e tra zer os m ortos p ara c om erem c om os vivo s, ele a qu iesc e, po is não se tra ta d e um a sim ples am ea ç a, já que , com o no s narra um outro poema, o episódio realmente se concretizou. O feito acrobático por meio do qual o touro é morto assemelha-se aos executados nas tourad as de Creta . O desastre chega através da hubris. Enkidu se recusara a atender o pedido de clemência de Humbaba e insultara Ishtar. Gilgamesh parece menos culpado desse pecado, pois ele se comovera com as súplicas de Humbaba, embora tivesse permitido, depois de terem matado o touro, que os jovens que se juntaram ao seu redor para ad mirá -lo grita ssem: "Gilga m esh é o m a is glorioso d os he róis, Gilg amesh é o mais eminente entre os homens." Por isso, a vingança divina recai primeiro sob re Enkidu. Ele é av isad o e m son ho . Vê os d eu ses reunidos em
conselho, e ouvimos retumbar a ominosa pergunta: "Por que estão reunidos os grandes deuses?" Anu declara sua imparcialidade, como convém a um personagem tão majestoso e distante: "Um dos dois tem de m orrer." Sham ash vem e m d efesa d e a m b os, ma s a c onte nda entre Sha m ash e Enlil, c om o a existen te e ntre o sol e a temp esta de , torna a irrom pe r, e Shama sh só p od e salva r um d eles, Gilga mesh, seu prote gid o: Enkidu te m de m orrer. A noite, Enkid u tem um a v isão d a m orte. Esta v isão é um a de nossas princ ipa is fontes de c onhec im ento a c erc a do que era a vida após a morte para os babilônios. Uma outra fonte é o poema sumério independente "Enkidu e o Mundo Inferior" e suas traduções acadianas, que foram incorporadas à Epopéia de Gilgamesh na décima segunda tábua da recensão ninivita. Enkidu desce vivo ao Mund o Inferior pa ra trazer de v olta um m isterioso tam b or e sua b aq ueta , talvez objetos xamanísticos, que Gilgamesh havia ali deixado cair. Apesar dos avisos, ele quebra todos os tabus e é preso, "pois o Rei do Mundo Inferior o pega"; mas um buraco é feito na crosta da terra para que e le (ou seu e spírito) p ossa reto rna r e d esc rever o q ue viu. Com a morte de Enkidu, ultrapassamos a metade da história. O companheirismo é interrompido e Gilgamesh fica só. Depois de experimentar as alegrias de uma amizade quase perfeita, ele tem de ap rend er a v iver sem ela; m as isso é exig ir dem a is. O c onhe c ime nto de que a morte é inevitável servira antes como um desafio a empreendimentos audazes e ações vitoriosas; mas agora estultifica a aç ão e traz c onsigo um novo sentime nto, o d a de rrota . O g rand e rei é, no final da s c onta s, um m ortal c om um. No me io de sta c rise e le relemb ra seus a ntep assado s, e e sp ec ia lmente Utnapishtim, que, seg und o se d izia, alca nça ra a vida eterna, passan do a integ rar a c om pa nhia do s de uses. Ele fora o sobrevivente do dilúvio, um outro Noé, a quem os deuses leva ram "p a ra vive r na fo z do s rios" e e ra c ha ma do "o Long ínquo ". Depo is disso segue-se a procura pela sabedoria ancestral, que conduz Gilgamesh aos limites da terra, como aconteceu a Ulisses em sua jornada em b usc a de Tirésia s. Esta seg und a jorna da nã o é um a
rep etiçã o d a prime ira, à Mo ntan ha d os Ced ros. Ela não p od e b a sea r-se em nenhum fato históric o; a to po grafia é sob rena tural c omo antes não o era. Nesta av entura, os pla nos espiritual e rom â ntico se funde m . Embo ra revestida de uma aparência de geografia primitiva, a paisagem é tão esp iritua l qua nto a Selva Esc ura, a M onta nha e o Abismo de Dante . Nã o se c onhe c e a té a g ora qua lq uer co rrespo nd ente sumé rio d este e p isód io; não é impossível, porém, que algo venha a ser encontrado no ciclo inéd ito d e Lugulba nda . Após uma longa peregrinação pelo mundo selvagem, vivendo c om o um c aç ad or pob re e vestindo pe les de an ima is, Gilgam esh c heg a a um desfiladeiro, onde mata leões que vê brincando sob a luz da lua. Este curto episódio é introduzido quase casualmente, mas é provável que tivesse um significado que se perdeu para nós, pois um grande número de sinetes os--tenta uma imagem em que um homem, que se ac red ita ser Gilgam esh, trav a c om ba te c om leõe s; e po r tod o o resto d a jornad a, a té c heg ar à Fonte d a Juventude, o herói veste a pe le d o leã o. O grupo heráldico com um guerreiro flanqueado por dois leões rampantes passou para a iconografia do mundo clássico, medieval e moderno e é até hoje conhecido como "o motivo de Gilgamesh". Sab em os que o leão e nc ontrad o p or Dante no sop é da mo ntanha, "Fron te erguida e louc o d e fom e", simb olizava o p ec a d o d a Sob erba , enquanto a pantera entalhada no coro de uma igreja medieval pode estar simbolizando Cristo, visto como a pantera que matou o dragão, dormiu por três dias e então refrescou o mundo com seu hálito. Mas como poderíamos compreender estas imagens, tão corriqueiras para nossos ancestrais da Idade Média, sem as pesquisas feitas pelos medievalistas com o intuito de explicá-las? Por isso, não chega a surpreende r que nã o te nhamo s hoje em dia ne nhuma pista e m relaçã o ao signific ad o real deste c om ba te c om o leão. A versão hitita d o p oem a é a única a oferecer um indício de uma possível relação especial entre os leõ es e o Deus-Lua . Do desfiladeiro onde matou os leões, Gilgamesh vai para a
montanha do sol, guardada por terríveis sentinelas, seres parte homem, pa rte d rag ão , c om c aud a d e e sc orpião . Pod e ser que o ob jetivo de ssa de sc riç ão seja o de lembrar-nos de que o hom em-esc orpião foi um do s monstros criados pelo caos no começo do mundo, segundo o Enuma Elish. A montanha aparece em vários sinetes, com o sol se pondo por trá s. Ela se situa na últim a c ordilheira do horizonte oc iden tal; a trá s de sua enorme massa pétrea, Shamash desaparece no ocaso e torna a aparecer no romper da aurora; ela é ao mesmo tempo a muralha do céu e o portão do inferno. Para os sumérios, o sol dormia à noite no seio de sua m ãe , a terra ; ma s os sem itas sustenta va m que ele c ontinuava sua jornada num barco, passando por baixo da terra e sobre as águas do mundo inferior até chegar à montanha oriental, elevando-se no céu pela m anhã , ac omp anha do de sua no iva, a aurora. Gilgam esh, em sua jornad a a trav és d a mo ntanh a Ma shu, re faz a pé o itinerário sola r; os d ois cumes da montanha representam o nascer e o pôr do sol, e o destino final d a v iag em é o jardim do Deus-Sol, que fic a na s ma rge ns do Oceano. Este jardim dos deuses não é a morada celeste, mas antes um pa raíso terrestre; é a terra da aurora, "situad a a leste, no Éd en". Ma s, ao contrário da terra de Dilmun, para onde o sobrevivente do dilúvio foi levad o p ara pa ssar a ete rnida de , este lugar fic a na m argem de c á do rio da morte. Infelizmente, o episódio chegou até nós em estado bastante fragmentário, e a narrativa das maravilhas do jardim, com seus frutos adornados de jóias, foi quase toda perdida; restou apenas o suficiente para nos fornecer um dos raros vislumbres do jardim do Éden segundo o antigo idioma semític o. Ali, ca minhand o d e m ad ruga da , o d eus do sol vê G ilgam esh d esma zelad o, co m a r de de sesp ero. Ele o rep reen de , m as Gilgamesh segue em frente, apesar de avisado de que sua busca certamente resultaria em fracasso. Numa casa à beira do mar ele enc ontra um a m ulher, Siduri, c om sua s vinhas e ad eg a s. Ela ta mb ém é c ha ma da Sa bit, que, a ntes de tornar-se um nom e p róprio, sig nific ava "tab erneira". Pod e ser que ha ja tam bé m um a relaç ã o e ntre e sse nom e e
"em direç direç ão à noite, no longínquo longínquo Oc id ente , nas sua ve s c am pina s, entre as flores da primavera". O Dilmun, como o paraíso grego, não era para os m ortai orta is c om uns. uns. U Utna tna p ishtim ishtim nã o m orreu orreu,, ma s foi esc esc olhido p a ra v ive r lá para sempre, assim como Menelau entre os heróis gregos, que foi enviado "às planícies elisias no fim do mundo para se juntar ao ruivo Rad am anto, na te rra o nde a vida é m ais fác il pa ra os homen s, onde nã o há neve , onde o vento é semp semp re suave suave e o nde nunc a c hove; onde, dia após dia, a brisa melodiosa do Vento Oeste chega do Oceano para refresc efresc a r sua sua ge nte". nte". Há Há um a de sc riçã o muito a ntig ntig a d e Dil Dilm un, esc esc rita ita numa táb ua d e Nipp Nipp ur. ur. Seg Seg undo este este reg reg istro, tro, no c om eç o d o m undo, quand o o trab trab alho alho d a c riaç ão havia ap enas co meç ad o, Di Dilmun era era um lugar onde "não se ouvia o grasnido do corvo, a ave da morte não lanç ava o g rito da morte, morte, o leão leão não devorava, o lobo lobo não lac erava erava a ovelha, a pom ba não pranteav a, não ha via via viúva viúva s, do enç as, as, velhic velhic e ou lamentação". Apesar da publicação recente de escritos inéditos, nossos textos ainda são bastante problemáticos na parte da obra que descreve o encontro de Gilgamesh com o barqueiro e a partida de ambos em viagem. Alguns sinetes mostram duas figuras humanas, que podem ser Gilgamesh e Urshanabi, navegando em um barco com proa em forma de serpente. Esta proa pode ser a explicação para a serpente menc ionad a q uando do enco ntro ntro d e G ilga mesh mesh c om o ba r-queir -queiro; mas a natureza dos "Objetos de Pedra" que Gilgamesh imprudentemente de spe d aç a p erma nec e um m istéri istério. o. Tudo Tudo o q ue p od e ser ser dito a res respe pe ito deles é que sua destruição tornou necessário o uso de varas para a propulsão do barco e que eles estavam de alguma maneira relacionados a "asas" ou a "seres ou figuras aladas", mas, no mais, "eles c onser onserva va m até o p resente esente a m aior pa rte d e seu seu m istério", tério", c om o a fir firmo u o p rofe ssor Ga d d num ens en sa io esc esc rito em 1966 1966 sob re os novo s textos texto s. O encontro de Gilgamesh com Utnapish-tim, "o Longínquo", c om eç a c om uma d aq uelas c om po siçõe s literár literáriia s sob re a "Sa be do ria ", que, tal como a exortação à vida de prazer e despreocupação
prega da po r Siduri, duri, pa rec e te r c om o o bjetivo bjetivo rec onc iliar o home m c om o seu destino na terra, embora tenha um tom pessimista. Segue-se o relato d o d ilúvio lúvio p or Ütnap Ütnap ishtim. Es Esta é a ma is b em preservad preservad a de tod as as tábuas da versão assíria, com mais de trezentos versos ainda conservados. Já fiz menção a outras versões mais antigas não relacionadas a Gilgamesh: o "Dilúvio" sumério, em que Ziusudra desempenha o papel de Noé ou Utnapishtim, e o Atrahasis babilônico. Há notáveis semelhanças entre a história narrada no Gênesis e a da tábua de Gilgamesh, mas há também diferenças surpreendentes. O Gênesis não menciona o nome da cidade, mas as outras versões apontam Shurrupak, atual Fará, uma das primeiras cidades-estados sumé ria s a c onq uis uistar uma p osi osiç ã o he ge m ônica . A narr narrativa ativa da déc ima pri primeira meira tábua c omeç a com um c onsel onselho ho realizado entre os deuses. Tais conselhos nunca pressagiavam nada de bom para os mortais, e este não foge a regra. Não é dada nenhuma explicação do motivo imediato que levou os deuses a optar pela de strui truiçç ã o da hum a nida nida de . Ele Ele de via ser ser sem sem elhante a o d o Gêne sis: is: "A "A terra estava corrupta diante de Deus, e cheia de violência", pois mais adiante no texto fala-se em "infligir ao pecador o seu pecado". Na história suméria, a narrativa do dilúvio segue-se às da criação do homem, dos vegetais e dos animais, da instituição da monarquia e do estab estab elec ime nto d a m a neira neira c orreta orreta de c ultuar os de uses uses.. Infeli Infelizzme nte, neste neste p onto o texto texto é long am ente interr interrom pido, o q ue o bliter bliterou ou o m otivo otivo da ira d os d euses euses e d e sua sua d ec isão isão d e d e strui truirr a hum a nida d e a trav trav és do dilúvio. Não deixa de ser sugestivo o fato de a última linha decifrável estar relacionada à limpeza e irrigação de riachos..Quando a história volta a ficar inteligível os deuses estão divididos, exatamente como na dé c ima p rime ira táb ua d e G ilga me sh. Conhe c ia m -se -se o utra utra s his história tória s d o dilúvio na antiga Mesopotâmia, mas a primeira referência ao evento na literatura suméria não parece ser muito anterior ao Atrahasis, obra c om po sta no antigo idioma idioma ba bilôni bilônicc o no c om eç o do segund o milêni milênio. o. Neste Neste p oem a a enc hente se se segue segue à pe stil tilênc ia, à fom e e à sec sec a, c ad a
uma de las ide ad a p ara exterminar exterminar a raç a hum ana . N Naa e diçã o d efini efinititiva va de W. G. Lambert e A. R. Millard, encontramos estes versos: Mil e duzentos anos não haviam ainda se passado Quando a terr ter r a se se es estendeu e o povo povo se se multi mul ti pli pl i cou, A terra bramia como um touro, O tumulto dos homens perturbou o deus. Enlil ouviu o barulho que faziam...
A de sc riçã o d o dilúvi dilúvioo na Táb ua III III tem tanta c oisa oisa em c omum c om a lingua lingua gem da Táb ua XI XI de Gil Gilga me sh q ue esta esta última última pa rec e ter tomado a primeira como modelo, ou melhor, deve ter se utilizado de uma rece nsão nsão p erdida erdida , c om pilad pilad a no pe ríod o ba bilôni bilônicc o méd io. No dilúvio de Gilgamesh, Ishtar e Enlil são, como sempre, os ad vog ad os da de strui truiçç ão . Is Ishtar fala, talvez talvez na qualida qualida de de de usa usa da guerra, mas é Enlil quem prevalece na escolha da tempestade como arma. Apenas Ea, em sua superior sabedoria, não se manifestou; talvez nem esti estive ve sse p resente esente . Ma s, sag sag az, c uid uid ou p ara q ue p elo m eno s um da ra ç a d os home ns sob revive revive sse. A terrível devastação estarreceu até mesmo os deuses, pois Enlil convocou para ajudá-lo não apenas os horrores da tempestade, mas também os Anunnaki, deuses do mundo inferior, cujos raios dançavam por sobre as águas em elevação. A descrição da tempestade é mais elaborada e impressionante do que a narrada no Gênesis. Para se encontrar uma linguagem comparável à descrição da nuvem negra que se aproxima vinda do horizonte, dentro da qual os trovões retumbam anunciando a aproximação do deus da tempestade, é preciso recorrer aos Salmos — "... a escuridão estava sob seus pés. E ele cavalgou um querubim e voou; sim, voou sobre as asas do vento... no clarão que resplandecia à sua frente suas espessas nuvens despejaram g ra nizo nizo e c arvõe s em b rasa rasa . E o Senho r tr trove ove jou nos c éus éu s". O mesmo mecanismo é utilizado na história bíblica: a construção
da arca, a entrada dos animais, o dilúvio, a soltura das pombas e o sacrifício; mas, enquanto o deus que "se lembrou de Noé" vive num terrível isolamento, nas versões assírias e suméria ainda estamos num mundo de divindades facciosas, atarantadas e falíveis. Há um perigo real de que os poderes do caos e da destruição escapem ao seu controle. As coisas realmente acabam indo longe demais, e os deuses fic am c hoc ad os c om o resultad o d e sua p róp ria aç ão ; ma s nad a m ostra c om m ais c lareza a d iferenç a d e ob jetivo e pe rspe c tiva d essa s história s do que sua conclusão. No lugar da promessa solene feita por Deus a Noé — "Enquanto a terra durar, a semeadura e a colheita, o frio e o c alor, o ve rã o e o inve rno, o d ia e a no ite nã o m a is c essa rã o" —, há um a repugnante descrição dos deuses a aglomerar-se como moscas em torno do sacrifício. No lugar do juramento do arco-íris, há apenas Ishtar brinca ndo c om o c olar entre o s de do s enq uanto exclama que jam ais se esq uec erá "da quele s dia s". Mas essas são a s pa lav ra s da divindad e m a is notoriamente infiel. Da mesma forma, há também uma grande diferença entre a condição de semidivindade e imortalidade que Utna pishtim , Atraha sis e Ziusud ra o btê m p ara si e sua s fa m ília s e a solene alianç a bíblic a e ntre Deus e um Noé a inda inteiram ente huma no, graç as a quem toda a humanidade pode respirar aliviada e viver sem ansiedades. A causa do mal-estar presente na psique do povo mesop otâ mico po de ser explic ad a em pa rte p or essa inseg uranç a que do minava a vida da s pe ssoa s: a inexistênc ia de uma alia nç a . A narrativa do dilúvio, todavia, é um poema independente, inserido na estrutura da Epopéia de Gilgamesh. Depois que a lemos, voltamos ao ponto onde estávamos; mas ela tende, como os outros incidentes que sobrevém no final da história, a convencer o herói da futilidade de sua busca. Apesar de tudo, porém, o herói retém uma esperança obstinada; ela deve ser esmagada e exposta como aquilo que realmente é, uma fuga. Ao ser desafiado e posto à prova, Gilgamesh não consegue sequer ficar acordado. Na Fonte da Juventude, onde recebe os trajes que não apresentam sinais de
envelhec imento , ele pe rce be a ironia do fato de me ro s be ns ma teriais terem maior duração do que o corpo; ao lado disso, a planta da Juventude Rec uperada, trazida co m tama nha dific ulda de do fundo do mar, cai brevemente em suas mãos para ser logo perdida; e assim a liç ão é a prendida pe la última vez. O texto a qui torna a ap resenta r muitas lac unas, ma s não é preciso outra explic aç ão pa ra a c ob ra que m uda de pele; ela é o símbolo da auto-renovação. Há também uma ligação lingüística entre o nome dado à planta e aquele dado à casca que envolve a cássia, "casca de cobra", ou seja, a pele descascada da cobra. Por que é que Gilgamesh não come imediatamente a planta, rec up erand o a ssim sua juventud e? Será p or ca usa d e um de sejo a ltruísta de compartilhá-la com seu povo, devolvendo aos idosos seu vigor juvenil? Será apenas mais um truque dos deuses? Não creio; nem tam po uco ac red ito q ue G ilga m esh seja vítima da imp ostura divina tod a vez que chega perto da imortalidade; penso que, em vez disso, o propósito de cada um desses incidentes é cumulativo e tem como ob jetivo m inar sua rec usa e m ac eitar o d estino huma no. Gilga me sh não estava em busca de uma eterna renovação da natureza, algo que po de ria te r ob tido c om a deusa Ishtar, nem tentava me ram ente e sc ap ar da velhic e, pa ssand o a leva r uma vida tranq üila e o c iosa, co mo a que fora concedida a Utnapishtim; ele estava muito mais interessado na imo rtalida de terrena e na s op ortunida de s que esta o ferec ia pa ra a ç õe s heróic as; busc av a um a vida de glórias na te rra sem elhante à d os d euses no céu. É preciso que a lição seja repetida para que Gilgamesh, o rei, pe rc eb a que não é d iferente do s outros home ns. Só de po is que a c ob ra volta para dentro do lago é que o herói finalmente se convence da futilidade de lutar por algo que não se pode ter, "correndo atrás do vento", como dissera-lhe Siduri. É o fim da busca. Não há mais nada a fazer a nã o ser vo ltar pa ra c asa . A volta é descrita sumariamente e deixa muita coisa inexplicada. O final da aventura é como um feitiço que se quebra; depois das
tribulações, da busca e de um prêmio quase ganho, tudo volta subitamente ao normal e nos encontramos novamente no ponto onde começamos, admirando a prosaica excelência dos muros da cidade. Tod as a s c oisa s b oa s q ue e speráv am os enc ontrar — juve ntud e, vida eterna, o amigo morto — desaparecem. Este final foi descrito como "Zombeteiro, insatisfatório, desprovido de sentido trágico ou catártico". Não concordo com essa opinião, pois é um final verdadeiro, é o que realmente acontece e, à sua maneira, é tão trágico quanto o fim de Heitor sob a s m uralha s de Tróia. O último ato, a morte de Gilgamesh, existe apenas na versão suméria. É um lamento solene; o lamento não é tanto um grito de dor individu al, m as pa rte d e um elab orad o ritua l funerário. É uma c ena igua l à revelada pela escavação do Cemitério Real em Ur, com imolações em m assa e uma m ag nífic a pa rafe rnália fúneb re: presentes, b an que tes, mantos e o pão e o vinho oferecidos pelo rei falecido aos deuses do mund o inferior no mo me nto d e sua e ntrad a na "Terra Sem Reto rno".
8. A sobrevivência do texto Esta
história
conservou-se
precariamente,
só
tendo
sido
red esc ob erta no séc ulo p assa do ; po is, qua nd o Nínive c aiu, em 614 a.C, dominada pelas forças conjuntas dos medos e babilônios, a destruição que se seguiu à sua queda foi tão completa que a cidade jamais se reergueu,
■
e
b as ruínas da capital assíria foi soterrada toda a
so
biblioteca de Assurbanipal. Os assírios nessa época não gozavam de muito prestígio entre seus vizinhos, e o profeta Naum sem dúvida falou por muitos deles em "O Fardo de Ní-nive", quando exultou com sua iminente queda: "As bigas correrão enfurecidas pelas ruas, chocar-se-ão uma s c om as outras; parec erão toc has, co rrend o c omo relâm pa go s de um lado para o outro... Nínive está devastada: quem dela se compadecerá?"
O século VII foi talvez o último momento na história do Oriente Próximo em que uma grande literatura, e uma história como a de Gilga me sh de Uruk, pô de qua se d esap arec er por com pleto . A desc riçã o do d ilúvio tornara-se m ais uma ve z um a história indep end ente, m as sua estrutura, como podemos observar na narrativa de Eusébio, citando Beroso no século III a.C, mudou surpreendentemente pouco. Foi provavelmente em Babilônia que a Epopéia sobreviveu por mais tempo em sua forma integral, e conhecem-se cópias do texto feitas após o saq ue d e Nínive ; ma s esta sob rev ivên c ia se d eu sob a forma d e um tipo especial de narrativas de viagens e aventuras, sempre presentes no mundo atemporal e sem fronteiras da lenda e do romance folclórico. Eliano, escrevendo em grego por volta do ano 200 d.C, sabia da existência de um certo Gilgamos, rei de Babilônia, e narrou a história de seu nascimento, que não é muito diferente daquela que se conta de Perseu e ta m bé m d e Ciro. Foram d ete c ta do s eleme ntos da na rra tiva na s lendas folclóricas persas da Idade Média e até em escritos de regiões mais longínquas; mas foi uma sobrevivência crepuscular. Os escritos do Oriente Próximo e do Mediterrâneo na idade clássica não acusam um c onhec imento c onc reto da existênc ia de nossa Epo pé ia. Uma das razões para esse desaparecimento pode estar nos caracteres cuneiformes com os quais a obra foi escrita. Este tipo de esc rita esta va saind o d e uso e logo se to rna ria ininteligível a os ha b ita nte s do novo mundo mediterrâneo. Talvez tenham surgido algumas versões populares em aramaico, que não sobreviveram; mas os persas, que continuaram a usar a antiga escrita, possuíam sua própria literatura, e ob viam ente tinham m uito p ouc o interesse p ela história e p elas lend a s de seus antigos inimigos. Os hebreus tinham razões ainda mais fortes para querer esquecer a Assíria, a Babilônia e tudo o que dizia respeito a tais nações, que passaram a figurar apenas em parábolas admonitórias. Além do mais, o século em que Nínive caiu foi o mesmo que viu o aparecimento de duas novas formas poéticas, o poema lírico e a ode pa ra c oral, am ba s utilizan do a e sc rita alfab ética . Mas, em bo ra a p oe sia
líric a prod uzid a na Gréc ia d o séc ulo VII seja m od erna, a literatura ép ic a daquele país ainda pertencia em parte ao mesmo mundo lendário de Gilgam esh, o rei da a ntiga Uruk. Teria sido historic a mente p ossível ao poeta da Odisséia ter escutado a história de Gilgamesh, não numa versão truncada, mas no original, pois os navios da Jônia e das ilhas já comerciavam na costa síria. Os gregos mantinham contato com os assírios em Al Mina e Tarso. É improvável, mas não impossível, que Assurbanipal tenha ouvido um contador de histórias grego recitar a Ilíad a em Nínive. É possível que ultimamente se tenha dado importância demais às aparentes semelhanças entre a mitologia dos antigos gregos e a dos povos da Ásia Ocidental. Este volume não é o lugar adequado para aprofundarmos-nos nessas discussões críticas, ao mesmo tempo fascinantes e quiméricas: seria Gilgamesh um protótipo de Ulisses, ou empunhava ele a clava de Hércules? Não é tanto uma questão de protó tip os e pa re ntesc o, m as, ante s, de uma sim ilarida de d e a tmo sferas. O mundo em que viviam os bardos gregos e os escribas assírios nos séc ulos VII e VIII era p eq ueno d em a is pa ra q ue nã o te nha hav id o a lgum contato entre eles; e as viagens comerciais dos aventureiros e mercadores gregos forneciam um cenário mais do que propício ao intercâ m bio d e história s; esp ec ialmente q uan d o o c am po pa ra isso fora preparado séculos antes pelos micênios da era do bronze, em seus c onta tos c om o po vo da Síria e, p ossivelme nte, c om os hitita s d a Anatólia. Por isso, não chega ser assim tão surpreendente que Gilgamesh, Enkidu e Humbaba pareçam viver no mesmo universo dos deuses e m ortais d os Hinos Hom éric os, da Teo gonia d e Hesíod o e d a Od isséia . Tod as esta s ob ras têm em c om um um a m esm a m ise -en-sc ène, um mundo em que deuses e semideuses se confraternizam com os homens num pequeno universo de terra conhecida, cercado pelas águas desconhecidas do Oceano e do Abismo. Estes homens ocasionalmente emergem da sombra do mito e da magia para aparecerem como seres humanos compassivos e comuns, tais como os
heróis homéricos; e, entre eles, encontramos Gilgamesh de Uruk. Os deuses babilônicos e seu universo desapareceram para ressurgir mais ta rde na s relig iões m ed iterrâne a s, espec ialm ente na s c renç a s gnós-tic a s. Os heróis também se transformaram e sobreviveram, viajando para o oeste e pa ra o leste. Muitos rec onhec em no Alexand re da Ida de Méd ia a figura de Gilgamesh, e algumas de suas aventuras podem ter sido tra nsferida s pa ra os rom anc es. Desta forma , po r trás d o g ale s Cyno n, po r trá s d e O we n e Ivain, po r trás d e Sir Ga wa in, que proc ura a Ca p ela Verde passando pela gélida floresta setentrional com seus carvalhos e suas trilhas de musgo, por trás de Dermot em sua luta com o "selvagem" na fonte (situada no caminho que leva ao país submarino), talvez se esconda a Terra dos Vivos dos sumérios, a Floresta de Cedro e a Mo nta nha de Pra ta , Ama no, Elam e Líba no. Sã o roma nc es e história s folclóricas surgidas nas cortes medievais, cujas origens passam pelo cancioneiro dos menestréis e pelas lendas célticas, remontando à Sum éria arca ic a ou ta lvez até a ntes, ao s primó rdios da a rte d e na rrar. Embora o herói sumério não seja um Ulisses mais antigo, ou um Hércules, ou um San sã o, ou um Derm ot, ou um Ga wa in, é p ossível que nen hum destes fosse tã o c eleb rad o se nã o houve sse a história d e G ilga mesh. O mundo de hoje é tão violento e imprevisível quanto o de Assurba nipa l, o rei da Assíria, o Gran de Rei, o rei do m und o, e o d e Na um da Judéia e até mesmo o de Gilgamesh, personagem histórico que, no terceiro milênio antes de Cristo, guerreou e enviou expedições pelo mundo. A única diferença é que, para nós, o "grande redemoinho do Oceano" não fica para além dos limites de um horizonte plano, mas na outra extremidade de nossos telescópios, na escuridão onde eles não podem penetrar, onde o olho e sua extensão mecânica se vêem obrigados a retornar. Nosso mundo pode ser infinitamente maior, mas ainda assim acaba num abismo, nas águas superiores e inferiores da nossa ignorância. Os mesmos demônios ficam de emboscada à nossa esp era, "o Dem ônio no relóg io", e no final de tud o retornam os ao p onto de onde saímos, como quem "partiu numa longa jornada, cansou-se,
exauriu-se em trabalhos e, ao retornar, gravou na pedra toda a sua história".
9. A linguagem da Epopéia Em obras sep arada s po r um longo p eríodo de tem po, c om o o que transcorreu entre a versão suméria da epopéia e as mais recentes versões semíticas, é natural que haja diferenças de linguagem e sentimento. Os próp rios esc ritores d a Antigüida de refe riam-se à Ep op éia como "o Ciclo de Gilgamesh", um poema em doze cantos, cada um com mais ou menos trezentos versos, inscritos em tábuas separadas. A recensão ninivita está escrita em versos rítmicos com quatro acentos por verso, enquanto a do antigo idioma babilônico apresenta versos mais curtos de dois acentos cada. Apesar das características primitivas, a repetição e o uso de epítetos padrão, sua linguagem não é de modo algum p rimitiva ou ingênua ; pelo co ntrário, é a ltam ente elab orada . Os c urtos ep ítetos homéric os sã o utilizad os c om p arc im ônia; o Deus-Sol é "glorioso" e Ninsun "sá bia ", ma s nã o invariave lme nte , e e sses ep íteto s são bem menos freqüentes do que a queles que a co mp anham o nome d e Heitor ou Ulisses. O q ue e nc ontram os em am ba s a s ve rsões, a sum éria e a semítica, é a repetição, palavra por palavra, de passagens relativamente longas de narrativa ou conversação e também de elaboradas fórmulas de saudação. Estas eram características comuns da poesia oral, que serviam para ajudar o recitador ao mesmo tempo que satisfaziam à platéia. Qualquer contador de histórias infantis sabe que sua platéia quer a repetição exata de uma passagem conhecida ou p op ular e q ue se o põe ferozme nte a qua lquer de svio, po r me nor que seja, em relaç ã o à s pala vras usa da s na primeira vez em que a história foi contada. Hoje, como no passado, exige-se do recitador e do contador de histórias a mesma exa tid ão ritualístic a . Não sabemos por quanto tempo o poema foi recitado, mas a
conservação destas palavras no texto sugere a coexistência de uma tradição oral e uma tradição escrita. Para o tradutor essas seções rep resentam um p rob lem a espe c ial, partic ularme nte q ua ndo vêm muito seguidas umas às outras sem uma forte razão emocional ou narrativa. Isto se aplica às instruções recebidas pelo caçador com referência à armadilha para a captura de Enkidu, dadas rápida e sucessivamente por seu pai, por Gilgamesh e repetidas por ele mesmo. Neste caso, c ond ensei as informa ç õe s (um rec itad or talve z a s tive sse e xp and ido c om interpola ç õe s). Mas, co m relaç ã o à s sau da ç õe s dirigida s a o h erói pe los vários personagens que encontra em seu caminho à procura de Utnapishtim e suas longas réplicas a elas, as palavras têm um efeito cumulativo; cada repetição intensifica a atmosfera de cansaço, frustra ç ã o e esforço ob stina do e de ve , por isso, ser ma ntid a . Há tam b ém momentos em que a repetição de palavras semelhantes, com pequenas variações, intensifica a tensão e conduz a um clímax, como na jornada de Gilgamesh à montanha. Isso, quando dito em voz alta, causaria uma forte impressão da passagem do tempo e do desgaste resultante d essa prova ; por isso, em bo ra m uito do efe ito se p erca c om a sim ple s leitura , op tei p or con d ensar o texto o m ínimo p ossível. Rea lmen te, expressar a passagem do tempo deve ter representado um grande desafio, e esse artifício deve ter sido criado para enfrentá-lo, pois o mesmo tipo de repetição ocorre toda vez que uma jornada tem de ser descrita. Vários do s m ec a nismo s c om uns de em be leza me nto p oé tic o foram utilizados na obra, inclusive trocadilhos, ambigüidades propositais (também encontradas na versão suméria) e ironia. Quase não se encontram alegorias no texto, mas, quando usadas, os resultados são ótimos. No conjunto, as descrições são vividas e diretas, como a do vulcão e a da tempestade que precede o dilúvio. A "poesia" foi concebida dentro daquele espírito de quem vê nos relâmpagos que surgem no h orizonte os d euses do m und o inferior a eleva r sua s toc ha s p or cima de suas cabeças. A linguagem do texto sumério é diferente em
qualidade; em parte, talvez, por estar mais próxima de um hino ou de uma liturgia. O lamento acadiano por Enkidu é mais elaborada mente expressado, mas o pranto sumério por Gilgamesh tem uma nobreza e uma força ritual que a outra versão desconhece. Já estamos de tal maneira habituados a versões literariamente mais sofisticadas dos mitos que às vezes nos sentimos tentados a enxergar intenções "poéticas" ou "literárias" onde elas não existem, interpretando exageradamente símbolos que por acaso atraíram a imaginação de escritores mais recentes e com uma consciência maior do ofício. Não é possível dizer até q ue po nto determinado efeito po ético foi obtido deliberad am ente, nem ta mp ouc o a té q ue p onto a s c om po siç õe s se libe rtaram d os antigos padrões ritualísticos. A partir do momento em que o mito se cristaliza em forma literária, está morto enquanto crença ou forma de ritual; mas é possível que, pelo menos nos estratos mais antigos do nosso material, essa mudança não tivesse ainda ocorrido de maneira completa, e por esta razão não devemos nos surpreender de encontrar incrustados em po em a s tão primitivo s c ertos frag me ntos mític os q ue p arec em grote sc os ou banais, ao mesmo tempo que, em outros momentos, defrontamos com os escombros de uma poesia que nunca chega a se desenvolver plenamente.
10. Notas sobre esta versão Esta v ersão da Epo pé ia de Gilga mesh não é um a nov a trad uçã o do original cuneiforme. Uma trabalho dessa natureza exigiria um conhecimento profundo das línguas nas quais as várias partes desta obra chegaram a nós — o sumério, o acadiano e o hitita são as principais entre elas —, e esta é uma tarefa que não creio ter competência para levar a cabo. Existem hoje em dia várias traduções acadêmicas para o inglês, o francês e o alemão, que fornecem um texto preciso e acrescido de longas notas explanatórias. Para o leitor
From the Tablets of Sumer, 1956 (reeditado na Inglaterra como History be gins a t Sume r, 1958). O im p ortante fra gm ento d e Sultantep e fo i publicado por O. R. Gurney no Journal of Cuneiform Studies de 1964, e pode ser encontrado, numa versão ligeiramente modificada, na seg und a e d içã o d e Anc ient Nea r Eastern Texts; as d em a is pa ssag en s suplementares ou variantes do texto foram tiradas de artigos especiais pub lic a d os em p eriód ic os e serão d esig nad as a d ian te, em seu c onte xto. Não segui o exemplo das demais versões, que transpuseram a Epopéia em verso, por achar que a prosa proporcionaria um meio mais flexível e direto de comunicação, particularmente nas passagens mais difíc eis; pela m esma razão , d esisti d e te nta r m an ter a d ivisão p or táb ua s. Dentro da estrutura do texto ainda há espaço para uma considerável variedade de abordagens e interpretações, como nos revela uma comparação entre as diferentes traduções existentes. Meu objetivo geral foi a inteligibilidade e, até onde os textos existentes permitiram, proporcionar uma história coerente num ritmo suave e espontâneo. Qualquer versão que tenha como objetivo unificar a narrativa precisa de senvo lver um trab alho d e c ote jo. O "Texto Pa d rã o" criad o p elos escribas de Assurbanipal no século VII era um cotejo, assim como o são todas as versões modernas. Distanciei-me do método de trabalho mais comum e utilizei as fontes sumérias lado a lado com as versões hitita e ac ad iana — não a pena s po r c ausa d e sua p reem inênc ia, e pe lo fato d e os próprios escritores acadianos terem ido buscar no Ciclo Sumério a base para a maior parte dos episódios de sua Epopéia, mas também porque elas preenchem lacunas importantes, especialmente no episódio da "Jornada na Floresta", e porque somente elas contêm o "Destino" e a "Mo rte d e G ilga me sh". Além d isso , tra ta -se d e textos d e a lta qualidade. As diferenças de detalhe entre a versão suméria e a babilônica arcaica não são maiores do que as verificadas entre as recensões de Nínive e Boghazköy, que são geralmente utilizadas em conjunto pelos tradutores modernos; e a data em que foi escrito o material sumério
ainda existente (na primeira metade do segundo milênio) é muito próxima daquela em que foi produzida a versão babilônica arcaica c ontid a na s tá b ua s de Yale e Pensilvâ nia (Prime ira Dina stia d a Ba bilônia). A ve rsão hitita p arec e d ivergir ra dic alme nte d a s de ma is no qu e se refere aos últimos episódios, mas apresenta contribuições importantes em muitos pontos do texto, especialmente no que diz respeito ao conflito c om Humb ab a (Huwa wa ) e a o p rim eiro enc ontro c om Urshana bi. A ordem dos acontecimentos não fica sempre clara e é particularmente confusa no episódio da floresta; mas a ordem dos ep isód ios é relativam ente uniforme . Nã o seg ui o no vo arranjo d a s táb ua s IV e V proposto por J. V. Kinnier Wilson (VII Rencontre Assyriologique Internationale [1960], ver abaixo), segundo o qual os sonhos de Gilgamesh acontecem antes de sua chegada na floresta. Embora, sob certos aspectos, isto seja mais lógico, podem-se fazer sérias objeções a este tipo de alteraç ão . A seq üênc ia seguida po r mim é ba sic am ente a de Heide l e Sp eiser, que c om bina o s textos hitita, a ssírio e b ab ilônico , incluindo o fra gm ento d e Sultante pe . O uso a d ic ional de "Gilga me sh e a Terra dos Vivos" e a "Morte de Gilgamesh" forçou-nos a fazer algumas alterações neste arranjo. A versão suméria do episódio da floresta é suficientemente fiel às demais para poder preencher diretamente as muitas lacunas do trecho que narra o encontro com Humbaba. A principal divergência nos textos está na descrição suméria dos "cinqüenta filhos da cidade" que acompanham os dois heróis em sua jornada, uma descrição por mim omitida. Um fragmento no antigo idioma babilônico, recentemente publicado, sobre a luta com Humbaba e sua morte, aproxima bastante o texto da versão suméria; e uma tábua hitita há pouco descoberta sugere a existência de uma terceira variante. As versões suméria, babilônica e assíria diferem ligeiram ente entre si na seq üênc ia d e e ve ntos relativos ao s p rep a rativos pa ra a "Jorna d a na Floresta ". Fiz a q ui um am álg am a d a s ve rsõe s a ssíria e babilônica, seguindo porém o texto sumério ao colocar o apelo ao Deus-Sol a nte s d os enc ontros c om os c id ad ãos e c om os ferreiros. A
incorporação do texto sumério "A Morte de Gilgamesh" justifica-se porque ele proporciona à narrativa um final mais satisfatório do que a Tábua XI assíria. A razão para não incluir a Tábua XII já foi dada. Ela é incompatível com o relato que recebemos da morte de Enkidu após o ep isód io d o "Touro do Céu". O trec ho em que stão é c om provad am ente uma tradução literal do poema sumério que devia ocupar o lugar do sonho e da morte de Enkidu descritos na sétima tábua da recensão ninivita. Mais exposta a possíveis objeções talvez seja minha opção de usar o texto sumério "Destino" no começo da "Jornada na Floresta". Sen do Enkidu o inté rpret e d e sonhos na s oc asiões q ue se seg uem , e um a vez q ue o "Destino" é obv iam ente reve lado a G ilga me sh p or m eio de um sonh o, a c he i que seria permissível inseri-lo neste ponto, rep etind o-o , além disso, no final, junto com "A Morte" (fragmentos A e B), onde o trecho arremata adequadamente a narrativa. Ambos os textos, sumério e ba bilôn ic o arca ic o, fazem d e Enlil o a utor do "Destino". Há outros pontos que precisam ser explicados. Omiti inteiramente a alusão feita ao "sentinela" do portão de Humbaba, por achar que o texto se refere sempre ao próprio Humbaba. Embora a linguagem utilizada seja ambígua, não se faz qualquer outra menção a um segundo sentinela, e este personagem seria supérfluo. Além do relato sumério do assassinato de Humbaba, utilizei integralmente a versão babilônica do evento, embora as duas descrições sejam coincidentes em muitos trechos. Alterei muito ligeiramente a seqüência das frases no iníc io d a última jorna d a (Tá bu a XI a ssíria), pa ra d eixa r c laro o m otivo do empreendimento o mais cedo possível. As linhas adicionais no "Jardim dos Deuses" baseiam-se na tradução de L. Oppenheim (Orientalia 17, 1948, 47-48). A mesma fonte emprega a alegoria da "lã" no lugar do sono. Os "Objetos de Pedra" despedaçados por Gilgamesh antes de zarpar com Urshanabi desafiam qualquer explicação no momento. E difícil acompanhar a corrente de água doce e os movimentos de Gilgam esh e Ursha na bi a o d eixa rem Utna p ishtim; utilizei-me a qui de um a pista deixad a p or Sp eiser em Anc ient Ne ar Ea stern Texts (p . 96, no ta 232).
A afirmação de que Gilgamesh saiu "pelo portão por onde havia entrado" foi tirada das palavras da mulher de Utnapishtim (Heidel XI, 207-208). Neste ponto, é p rec iso alg o q ue a ssinale a tra nsiç ã o. Na lista de nomes, ao final de "A Morte de Gilgamesh" (texto sumério), deixei de fora quatro deles, por pertencerem a personagens sobre os quais nada se sabe; em relação a cada um dos demais, acrescentei um epíteto explanatório para transmitir uma idéia do significado desse catálogo. Em três pontos da narrativa, tomei emprestado alguns trechos de outras epopéias. No início do relato do dilúvio, e nxertei algum as linha s que explic a m a ira de Enlil, tirand o -as da epopéia de Atrahasis, escrita no idioma babilônico arcaico (ver abaixo p. 83). Trata-se dos versos que se iniciam: "Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se..." No fim do sonho que Enkidu tem do mundo inferior, o símile do intendente é tirado do texto assírio "Visão do Mundo Inferior", que contém uma passagem bastante sem elhante a esta. As linha s q ue d esc reve m a loc aliza ç ão d o Dilmun foram tira da s do "Dilúvio" sumério. O Apên dic e tra z um p eq ueno resumo c lassifica tório do ma terial encontrad o em ca da uma das tábua s. Julho de 1959 (1972)
N. K. Sand ars
Desde a pub lic aç ão de sta v ersão da Epo pé ia de Gilga me sh, em 1961, a d ec ifraç ão de nova s táb uas e o estudo ma is profundo da quelas já c onhec ida s ac resc entaram muito à nossa c om preensão da ob ra em si e ao nosso conhecimento do seu contexto histórico e literário. Gilgamesh foi objeto de um congresso no "Rencontre Assyrioíogique Internationale", cujas atas foram transcritas e publicadas sob o título de Gilgamesh
et
sa
legende
no
Cahiers
du
Groupe
François-Thureau-Dangin, I, Paris, 1960. Aí podem ser encontradas uma bibliografia completa, novas discussões e novo material textual. Entre as substanciais adições das quais me vali, apesar de algumas incongruências, está um novo relato sumério do episódio de Humbaba (Hu-wawa) (J. van Kijk). Um exemplo do tipo de dificuldade inerente a
este tipo de interpretação está no fato de que os "cedros abatidos", a am arraç ão e o de pó sito d os ga lhos de uma trad uçã o to rnaram -se, em outra, "vestimentas de aura", rosetas ou "os seguidores adormecidos da expedição". Um outro acréscimo se fez num ponto onde o texto é particularmente defeituoso: a crise no encontro entre Humbaba e Gilga me sh. Às versõe s sumé ria e b ab ilônic a po d e-se ag ora a c resc enta r uma táb ua hitita d e Bog hazköy, esc rita n o séc ulo XIII e c onte nd o, ao q ue tudo indica , a v ersão de ste e pisód io seg undo a tra diçã o hitita, na qua l o herói parece ser Humba-ba e não Gilgamesh (H. Otten, 1958). A linguagem utilizada é muito semelhante à empregada nos outros mitos hititas conhecidos, e uma única tábua cobre toda a sucessão de even tos q ue va i do ep isód io em q ue Gilga m esh rec eb e seus talento s d os deuses até o assassinato de Humbaba. Esta mesma narrativa ocupa cinco tábuas na versão acadiana, donde se conclui ter havido aí considerável condensação. Mesmo assim, algumas lacunas são preenchidas pelo texto hitita, que também oferece um material alternativo p ara outros po ntos da história . Por exemp lo: é p erfeita me nte natural que , pa ra os hititas, seja o d eus hitita d o c lima a c on c ed er o d om da c orag em, e não o Adad a ca diano, em relaç ão a q uem a divindad e hitita
mantém
uma
posição
hierárquica
equivalente,
embora
relativam ente sup erior. O p rep a rad or de a rm ad ilha s que eng od a Enkidu tem um nom e a c ad ian o, Sa ng asu, q ue signific a "golpe ad or mo rtal". O mais importante, porém, é que o texto sugere a possibilidade de Gilgamesh só ter chegado a Uruk após peregrinações pelo mundo, o que torna mais compreensível o ressentimento causado por sua "tirania". A jornada na floresta ganha nesta versão um cenário físico real. Ela começa às margens do Eufrates, onde os heróis oferecem sacrifícios ao Deus-Sol. De lá, uma jorna da d e seis d ia s os leva à Monta nha dos Cedros. O texto é mais uma fonte a confirmar sua localização a noroeste, e não a leste, e está perfeitamente de acordo com o fra gm ento b a bilônico a rc aic o d e Tell Isc ali, qu e, ao final da luta c om Humb ab a, situa a aç ão no Líba no. Emb ora na tá bua hitita Humb ab a se
revele uma am ea ç a m ais perigo sa, a c onclusão é exatam ente a me sma e vem a se encaixar muito bem entre os fragmentos sumério e babilônico. Mais detalhes aparecem em outras fontes e foram publicados por A. Falkenstem {(Journal of Near Eastern Studies, 19, abril de 1960, 2, 65-71) e J. van Dijk, (Sum er, 15, 1959, i, 8-10), mas a s diferenç a s estão perfeitamente dentro daquilo que podemos esperar de uma tradição oral. Uma tábua de Ur, talvez do século XI a. C, contém uma outra ve rsão de pa rte d a Tá bu a VII d a rec ensã o ninivita , que d esc reve a conversa entre Shamash e Enkidu no leito de morte deste último. Este texto lig a -se a o fragm ento d e Sultantep e, tend o sido pu blic ad o p or C. J. Gadd em Iraq, 28, 1966, 105-121, com uma série de comentários que inc luem inte ressante s sug estõe s rela tivas ao nom e e a o p erfil psic ológ ic o de "Siduri" e c onsideraç õe s refe rentes a os "Ob jeto s de Ped ra" de struídos por Gilgam esh ante s d e sua trave ssia p elas Água s d a M orte. Boa parte desses novos textos foram incorporados à terceira ed iç ão do Anc ient Nea r Eastern Texts Rela ting to the Olá Testa m ent, Princeton, New Jersey, 1969, ou ao Suplemento, pp. 503-7, numa tra duç ã o d e A. R. Gra yson. Um fragm ento d e Tell Ha rmall narra o "primeiro" sonho de Gilgamesh na montanha e contém acréscimos à c onv ersa e ntre Gilgam esh e Ishta r e a o e p isód io d o "Touro d o Cé u". Imp ortante s c ontribuiçõ es que eluc ida m a do enç a e o sonho de Enkidu pod em ser enc on trad as no m a terial hitita d e R. Stefa nini (1969) e nos textos de Ur de C. J. Gadd, loc. cit. (1966). Estes últimos são do período babilônico médio ou cassita — talvez do começo do século XI — e fornecem uma alternativa à versão ninivita, além de acrescentar consideravelmente ao diálogo entre Enkidu e Shamash. O problema do "portão" — se era o "portão da floresta" ou o da cidade de Uruk, feito c om a m ad eira d a floresta — é d isc utido p or I. M. Diakono ff (Bibliothe c a Orientalis, XVIII, 1961, 61-67). Usei aqui a segunda alternativa por achá-la mais provável. Os Objetos de Pedra são novamente discutidos por C. J. Gadd, A. R. Millard (1964), em sua edição de um fragmento no babilônico arcaico que se sobrepõe a de Meissner, e também por D.
Wiseman em Gilgamesh et sa legende (1960). Acréscimos menores à Táb ua X tam bé m fo ram tirad os d a terce ira ed içã o de Texts Relating to the O ld Testam ent, e a c eitei as sug estõe s d o a rtigo d e L. Ma to us (Bibliotheca Orientalis, XXI, 1964, 3-10), bem como dos vários autores do artigo "Gilgamesh" no Reallexikon der Assyriologie, partes 3 e 4, pp. 357-74. Uma p ista em relaç ã o à na tureza d a p lanta d a juventud e e terna provém d o Dic tiona ry of Assyrian Bota ny, de R. Cam pb ell Thom pson (Londres, 1949). O primeiro verso da epopéia foi emendado em Assyrian Dic tiona ry of the Orienta l Institute of Chic ag o, 7, 33b . Mencionei nesta introdução a descoberta de novas provas rela tiva s à existên c ia d e um Gilg am esh históric o. Esta q uestã o é d isc utida em Gilgamesh et sa legende por W. G. Lambert, S. N. Kramer e, numa nota curta, por E. O. Edzard; e também por M. Rowton, no Journal of Near Eastern Studies, 19, 1960, 2, 156-62. As divergências, embora importantes, não são muito grandes, e qualquer que seja a época que ad otem os, o pe ríod o d e vida de Gilga mesh nã o e stará m uito d istante da da ta de c onstruç ão do Túm ulo Rea l de Ur, c om seus req uintes e rituais bá rba ros; por isso, o texto frag m entá rio d e "A Mo rte d e G ilg am esh" p od e ser usado como um documento semi-histórico para elucidar aspectos do s ritos fúneb res da c a sa rea l de Ur no terceiro m ilênio, o q ue d e fa to fo i feito p elo p rof. Kram er num a rtigo publica do em Ira q, 22, 1960, 58. O p rof. Mallowan escreveu a respeito do dilúvio, ou dos dilúvios (Iraq, 26, 1964, 62-82), que também são discutidos em Atrahasis, The Babylonian Story of the Flood, de W. G. Lambert e A. R. Millard (1969). M. Civil examinou o assunto à luz d a trad iç ã o sum éria . A possível dívida da mitologia grega para com o Oriente vem sendo estudada por vários autores desde o aparecimento de From Mycenae to Homer, de T. B. L. Webster (Londres, 1958): P. Walcott, em Hesiod and the Nea r Ea st (Cardiff, 1966), G. S. Kirk, Myth, its Meaning and Func tions in Anc ient a nd other Cultures (Ca m bridg e, 1970), e M. L. West, Early Greek Philosophy and the Orient (Oxford, 1971). Quanto ao problema de determinar quem eram os sumérios, a
que stão p erm ane c e sem respo sta, e talvez co ntinue assim. Se c heg a ram à reg ião vind os d e um a outra pa rte, é p ossível que tenha m sido po uc os, e ta lvez nunc a sa iba mo s a o c erto a e xtensã o d e sua influênc ia na língua e na literatura loc al. Ma io d e 1972 N. K. Sa nd a rs Con tinua m a surgir da d os relac iona d os a G ilgam esh. Novos textos vêm à luz que incrementam nosso conhecimento da Epopéia e do Gilgamesh histórico, ao mesmo tempo em que trabalhos realizados sob re os textos existente s ajuda m -nos a ob ter uma c om p reen sã o m a ior das passagens difíceis. Nestes últimos anos, duas obras de especial importância foram lançadas. The Treasures of Darkness, de Thorkild Jacob-sen (New Haven e Londres, 1976), contém uma análise nova e original de toda a Epopéia à luz da visão geral que o autor tem das religiõe s da Me sop otâ m ia ; e The Evolution o f the G ilga me sh Ep ic, de J. H. Tiga y (Filad élfia, 1982), mostra -nos, po r me io d a c om pa raç ã o da s diferentes versões e da distinção das diferentes fontes — cronológicas e geográficas —, como as mudanças teológicas e políticas moldaram o poema e como esses diferentes elementos se combinaram na compilação final do texto. Novas e interessantes observações sobre o po em a po de m ser enco ntra da s em The Theo logy of Dea th, d e W. G. Lambert
(edição
de
B.
Alster,
XXVI
Rencontre
Assyriologique
Internationale, 1980), e um novo fragmento da quinta tábua foi publicado por E. von “Weiher em Baghdader Mitthei-lungen (1980, II, 90-105)”. R. A. Veenker, no Biblical Archaeologist 1981, 44/45, 199-205), se ap rofundou no signific ad o d a Planta Má gica da Juventude Rec up erada c om o um m ito à pa rte, e a p esq uisa p rosseg ue. Sou grata à Sra . Stephanie Dalley por sua ajuda com as referências bibliográficas. Setem b ro d e 1987
N. K. Sa nd ars