ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA (Org.)
4 ANTROPOLOGIA DE RIVERS
Tradução: Gilda Cardoso de Oliveira Sonia Bloomfield Ramagem
FICH A CATALOGRÁ FICA ELAB ORAD A PELA BIBLI OTECA CENT RAL - UNI CAMP An89
A antropologi a de R iven / Robert o Cardoso de Oliveira (organizador); traduçSot Gilda Cardoso de O liveira, Sdnia Bloom field Ramagem — Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991. (C oleçio Repertórios) 1. Antropologia cultural. I. Riven, William Habe, 1864*1922. II. Oliveira, Roberto Cardoso, m . Tí tulo.
ISBN: 85-268 -019 9-2
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índice p ara catálogo sistemáti co: 1. Antropologia cultural 306 Coleçfio Repertórios Cop yright (c ) 1991 by Robert o Cardoso de O liveira Projeto G ráfico Camla Cesarino Costa Etana Kestenbaum Coo rdenado Editor ial Carmen SSvia Palma Editoraçáo Sandra Vieira Alves Preparado Alzira Dias Sterque
RevisSo Marta Maria Hanser Josiane de Fátima Pio Romera 1991 Ed itora da U nicamp Rua CecfHo Fe ltrin, 253 Cidade U nivers itária - Baião G eraldo CEP 13081 -C am pina s-SP -B rasil Fax: (0192)39.3157 Td.: (0192)39.8412
SUMÁRIO
Introdução — Leitura de Rivers (Roberto Cardoso de Oliveira) ......................................................................
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Parte I — A idéia do parentesco ...................................
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1.1 — O método genealógico na pesquisa antropológica (1910) ...................................................................... 51 1.2 — Terminologia classificatória e matrimônio com primo cruzado (1913) .......................................... 71 1.3 — Terminologia classificatória e outras formas de matrimônio (1913) ................................................ 95 1.4 — O sistema classificatório e as formas de organização social (1913) ................................................ 123
.............................
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— A análise etnológica da cultura (1911) ............. — O desaparecimento das artes úteis (1913) . . . . — Sobrevivência em sociologia (1913) ................. — Sociologia e psicologia (1916) ............................ — História e etnologia (1920) ................................ — A unidade da antropologia (1922) ....................
155 179 199 219 239 263
Parte II — A idéia da antropologia
11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6
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INTRODUÇÃO Leitura de Rivers
I Ao se aceitar a afirmação retumbante de Lévi-Strauss, se gundo a qual: "Em Rivers a etnologia encontrou o seu Galileu” (1958:180), pouco poderíamos acrescentar para justificar a pre sente obra. Porém, mesmo que a etnologia ou, melhor diríamos, a antropologia social não tenha encontrado o seu Galileu, cer tamente encontrou alguém que procurou incessantemente o seu método e a sua conformação como uma disciplina autônoma. A rigor, pode-se dizer sem nenhum exagero que Rivers foi — na tradição empirista anglo-saxã — quem programou a nova disci plina, delineando a matriz com que ela haveria de se desenvol ver no interior daquilo que ficaria conhecido como a “Escola Bri tânica de Antropologia Social”. Qtiem era esse homem e qual a sua trajetória intelectual é o que se procurará responder inicial mente para, em seguida, procurarmos equacionar suas contri buições mais decisivas à construção da antropologia social. Um de seus biógrafos e comentadores, Richard Slobodin,
inicia seu livro sobre Rivers dizendo que: “No primeiro quartel 7
do século XX a Antropologia emergiu como uma disciplina aca dêmica enraizada na pesquisa de culturas não-ocidentais e con cebida como uma ciência ou em busca de um status de ciência. Uma figura central na emergência dessa ciência foi W.H.R. Rivers (1864-1922), doutor em Medicina (M.D.) membro da So ciedade Real (F.R.S.), fisiólogo, psicólogo, psiquiatra e antropó logo. Não há nenhuma contribuição em antropologia social e cultural, ou ‘sociologia e etnologia’, como ele e seus contempo râneos chamaram-nas, em que Rivers não tenha estado envol vido e em que sua obra e suas opiniões tenham deixado de levar sua marca” (Slobodin, 1978:1). Outros autores atestam a importância de Rivers na construção da Antropologia Social: Meyer Fortes, por exemplo, credita a Rivers o fato de ter ele iniciado a pesquisa britânica no estudo da família e do paren tesco, revelando ser a focalização dessas instituições sociais a chave capaz de abrir as portas do entendimento da vida social (Fortes, 1953); David M. Schneider, em seu comentário sobre a crítica que Kroeber fez a Rivers relativamente ao ponto de vista causal com que este último impregna seu estudo do parentesco, não obstante diz: “Sua History of Melanesian Society e sua etnografia sistemática sobre os Toda constituem os primeiros estudos de campo cuidadosos sobre o parentesco. A grandeza de Rivers está em seu gênio para entender a mecânica do parentesco, e foi isso que deu forma ao trabalho de campo e à teoria antropológica desde então” (Schneider, 1968:15). Mas é Raymond Firth que, mostrando a contribuição de Rivers ao estudo do parentesco na Oceania, oferece a mais su cinta ilustração sobre a atualidade de sua contribuição à teoria do objeto e à sua respectiva metodologia. Assim, diz ele: “Onde
a diferença entre a perspectiva de Rivers e as perspectivas mo dernas aparece mais marcadamente é no conceito de matrimônio. Rivers prestou um grande serviço ao estudo do parentesco e ao desenvolvimento da antropologia social insistindo com grande brilho — às vezes com erradas suposições — sobre a noção de
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que matrimônio não é uma simples escolha pessoal, mas uma categoria de classificação — uma relação entre tipos específicos de parentes. Para ele ‘formas de matrimônio’ não significam diferentes tipos de cerimônias unindo duas pessoas, mas dife rentes tipos de posição de parentesco representada pela união de duas pessoas — primos cruzados, de um homem com a filha do irmão, ou com a mulher do irmão da mãe etc. Nenhum tipo de união de parentes foi excessivamente bizarro para levá-lo a recusar sua validade teórica. Mais do que qualquer outro antro pólogo de sua geração — conclui Firth — foi ele que pavimen tou o caminho para as modernas análises estruturais do paren tesco neste campo” (Firth, 1968:21). Qual o percurso acadêmico e científico deste homem que veio marcar o seu lugar na história da antropologia social pelo pioneirismo de suas idéias e pela força de sua personalidade? £ o que procuramos esboçar a se guir.
Por força da multiplicidade de “carreiras” que se articulam na biografia de Rivers, o registro de sua vida demandaria por si só um livro para que dela o leitor tomasse conhecimento e ava liasse corretamente toda sua significação para uma atividade intelectual que com tanta determinação realizaria durante cerca de 36 anos, se tomarmos por base o ano de sua formatura, 1886, quando contava apenas 22 anos (segundo Slobodin, o mais jo vem graduado em medicina na longa história da Universidade de Londres), e o ano de sua morte, 1922, aos 58 anos. Deveremos nos limitar aqui a apontar alguns momentos dessa vida, apoia dos, particularmente, em duas fontes: o já mencionado Richard Slobodin, com seu livro W.H.R. Rivers (1978), e o excelente livro de um jovem historiador de ciências, Ian Langham (srci nalmente uma tese de doutoramento apresentada em 1976 à Universidade de Princeton e editada sob o título The Building of British Social Anthropology: W.H.R. Rivers and his Cam-
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bridge Disciples in the Development of Kinship Studies, 18981931, 1981). No ano seguinte ao da sua formatura, Rivers viajou para o
Japão e EUA como médico de bordo. Dentre as inúmeras via gens que fez, uma teve particular importância, quando — ao retornar para a Inglaterra vindo das índias Ocidentais — viajou com Bernard Shaw, com quem pôde conversar diariamente; con ta Rivers que isso “foi uma das melhores coisas de sua vida” (Slobodin, 1978:11). Em 1888 obtêm seu doutorado em Medi cina (M.D.) na Universidade de Londres e é eleito membro do Royal College of Physicians. Durante o período em que traba lhou como médico no St. Bartholomew’s Hospital, um dos três hospitais-escola da Universidade de Londres, sempre aplicou-se em pesquisas, tendo publicado trabalhos sobre delírio (1889), histeria (1891) e neurastenia (1893), revelando um especial talento para fenômenos da mente. Tanto assim que foi admiti do em 1891 como médico-residente no National Hospital for the Paralysed and Epileptic. Um ano depois deixou o posto e foi para a Alemanha continuar seus estudos em neurofisiologia e psicologia. Slobodin destaca que nessa oportunidade pôde assis tir a um curso de filosofia ministrado por Rudolf Eucken, cuja posição quanto às possibilidades do conhecimento diferia da de Spencer, na época altamente influente na Inglaterra; “ele não apenas negava o lugar das leis naturais no estudo do comporta mento humano, mas também, como a maioria dos filósofos idea listas alemães, ia além em sua forte depreciação da ciência em geral” (Slobodin, 1978:13). Difícil dizer com segurança qual a repercussão que esse curso teve em sua formação; ao que parece, pelo menos no que tange à problemática da causalidade na obra de Rivers, as idéias de Eucken sobre leis naturais e sua inaplicalidade ao comportamento humano tiveram “de ser cote jadas com as de J. Stuart Mill, o grande lógico da geração ante rior a Rivers e cujas idéias marcaram tão profundamente a constituição da antropologia social e as ciências humanas em
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mental e, ao que parece, o motivo de Rivers haver mudado de opinião e ter aceito posteriormente o convite de Haddon), além de C.G. Seligmam, um patologista, Anthony Wilkin, um jovem estudante pós-graduado de Cambridge, e, para fotógrafo da expe dição, Sidney Ray, um professor primário versado em línguas do Estreito de Torres (à base de dados secundários, provindos de fontes missionárias e de anotações lingüísticas feitas pelo pró prio Haddon). Interessante notar que todos os membros da expe dição, de um modo ou de outro — e a despeito da diversidade de suas respectivas formações — mantiveram-se ligados à antro pologia social que se constituía. Rivers foi certamente o grande líder do grupo. Observa I. Langham que a expedição, um fato marcante na vida de seus participantes, inscreve-se como parte de um processo padronizado de mudança de carreira, de con versão à antropologia, graças ao fascínio neles despertado pelo homem pré-letrado: “Durante a expedição e por um considerável número de anos depois dela, houve uma marcada tendência para que o núcleo de pesquisadores do Estreito de Torres fun cionasse como um grupo solidário. Estiveram juntos na Melanésia em 1898. Tiraram a em antropologia britânica sua fase Eles de ‘gabinete’ e a colocaram uma saudável basedeempírica. viram e questionaram o selvagem em seu próprio habitat e o submeteram a testes psicométricos e antropométricos cuidadosa mente conduzidos. Eles forneceram o modelo para os futuros antropólogos britânicos copiarem” (Langham, 1981:66). Tão rica foi a experiência proporcionada por essa expedição que a partir dela o interesse de Rivers pela antropologia marcaria definitiva mente sua vida. Entre 1901 e 1902 Rivers passou vários meses entre os toda da índia, graças ao patrocínio da Royal Society of London e da British Association. Resultou disso sua monografia The Toda (1906), que se tornaria um clássico da antropologia so cial. Se examinarmos sua bibliografia 2 veremos que suas publi cações em antropologia começam na virada do século; e mesmo
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se nos limitássemos ao mero registro bibliográfico já teríamos uma boa base para traçar o seu percurso intelectual. £ assim que em 1900 Rivers publica um artigo que prenuncia a ela boração do método que contribuiría decisivamente para tomá-lo célebre, ainda em vida, e que o tornaria lembrado até os nossos dias: o método genealógico. O artigo intitulava-se “A genealogi cal method of collecting social and vital statistics” (1900) e para sua elaboração Rivers socorreu-se de tabelas genealógicas destinadas a auxiliar os seus estudos experimentais de fenôme nos sensoriais sobre acuidade visual, visão para cores e percep ção espacial, preocupado em discernir neles o papel da heredita riedade. Naturalmente que esse método — como se verá adian te — seria desenvolvido à proporção que Rivers construía a antropologia social. O seu segundo artigo relevante para a nova disciplina foi “The funeral of sinerani” (1903), seguido de “The marriage of cousins in India” (1907), publicado um ano depois de seu livro sobre os Toda. Sem deixar de produzir artigos e relatórios na área da psico logia experimental durante todo esse tempo, publica dois impor tantes artigos antropológicos 1908: “Genealogies, regulation of marriage, socialem organization” (1908a) e kinship, “Some sociological definitions” (1908b). Oois anos depois publica o famoso artigo “The genealogical method of anthropological inqui ry” (1910), incluído neste volume (ver 1.1) e onde o método genealógico, devidamente refinado, já é apresentado como fruto de sua experiência etnológica, sobretudo daquela adquirida na pesquisa dos Toda. Os primeiros anos posteriores à sua segunda expedição (1907-1908) foram decisivos na obra de Rivers: 1910 e 1911 assinalam uma mudança de orientação em sua antro pologia, com a adoção da perspectiva difusionista em nome de uma crítica cerrada ao evolucionismo imperante no campo científico britânico, responsável — segundo Rivers — por uma atitude especulativa extremamente prejudicial à constituição da nova ciência. £ quando faz sua conferência presidencial à Seção
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dubitavelmente a experiência acumulada durante as pesquisas de campo se refletiria nessa guinada teórica de Rivers em dire ção ao difusionismo: em oposição à orientação especulativa dos evolucionistas, como já se mencionou, os difusionistas acredita vam privilegiar a empiria, mercê do trabalho de campo que rea lizavam. Embora para o padrão britânico de pesquisa de campo, que viria a ser constituído posteriormente, a experiência etnográ fica de Rivers deixasse muito a desejar — seja pelo tempo de campo relativamente curto, seja por jamais haver dominado um idioma nativo — , havia, como aponta Langham (1981:125-128), a prevalência de uma “ideologia empiricista” a guiar a indagação etnológica. Nesse sentido o difusionismo representou para a geração de Rivers a mesma opção que o funcionalismo (ou o estrutural-funcionalismo) representaria para a geração posterior: o fortalecimento da pesquisa empírica. Mas a grande ironia do percurso intelectual de Rivers está precisamente, ao que nos parece, em seu retorno posterior a um outro tipo de especula ção, agora à especulação difusionista. Mas em seu trajeto — de um tipo de especulação a outro — , Rivers constitui o programa básico da antropologia social a partir de sua experiência na análise do parentesco e no estudo da organização social. O produto talvez mais consistente, relativamente à teoria do parentesco e surgido em decorrência desse conjunto de pes quisas de campo, foi seu pequeno livro Kinship and Social Organization, publicado em 1914, no mesmo ano em que era igual mente editada sua já mencionada The History of Melanesian Society, cujo primeiro volume se articula perfeitamente com aquela publicação. Menos do que um livro, Kinship and Social Organization não é mais do que o elenco de três conferências ministradas por Rivers em 1913, (ver 1.2, 1.3 e 1.4). Assim, esclarece o autor em seu breve prefácio: “Essas conferências foram dadas na London School of Economics em maio do pre sente ano e estão amplamente baseadas na experiência adquirida durante o trabalho realizado no âmbito da expedição ( . . . ) à
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Melanésia em 1908, fornecendo um registro simplificado das condições sociais que serão descritas em detalhes no amplo rela tório de trabalho dessa expedição” (Rivers, 1968:38). The History of Melanesian Society foi esse relatório. E num artigo publi cado anos depois, “History and ethnology” (1920), (ver II.5), Rivers fará um extenso comentário dessa última obra que retrata bem a mudança de ponto de vista ocorrida em sua antropologia. Enquanto o primeiro volume se dedica à descrição etnográfica dos diferentes povos visitados, obtida mediante a técnica de survey ,4 o segundo se propõe a uma discussão teórica sob o signo da análise comparativa e voltada para uma crítica à pers pectiva evolucionista prevalecente da na obsolescência época. É a primeira forma pela qual Rivers se conscientiza do evolucionismo como perspectiva capaz de abrigar os dados etnográficos obtidos pela observação direta. Vale transcrever aqui suas pala vras inscritas na introdução do vol. 11 da mencionada obra: “Como registrei alhures (Rivers, 1911), meu próprio ponto de vista foi profundamente alterado enquanto redigia a discussão teórica contida neste volume. Eu havia começado com uma fir me adesão à corrente da Escola Inglesa, quase exclusivamente interessada na evolução da crença, costume e instituição, dedi cando pouca atenção às culturas individuais, exceto quando eram perfeitamente óbvias, as mudanças que haviam sido intro duzidas de fora, como no caso de recente influência polinésia na Melanésia. (...) Eu havia começado minha discussão teórica com um estudo comparativo de sistemas de relações, como o que realizei no primeiro volume e primeiramente interessado de modo exclusivo em sua estrutura, negligenciando a distribuição geográfica dos termos de relacionamento enquanto fatos lingüísticos. À base de seu estudo puramente morfológico, habiliteime a construir um esquema da evolução da estrutura social da Melanésia. Foi somente depois de haver seguido tanto quan to possível o caminho sugerido pelo estudo comparativo das for mas de sistemas e suas funções associadas, que me voltei à
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consideração dos sistemas como coleções de fatos linguísticos. Considerando sua distribuição geográfica em conjunção com o esquema já conseguido, tornou-se claro que o desenvolvimento traçado não tinha lugar numa sociedade simples e homogênea, mas ocorria como parte de uma interação geral entre dois povos. Isto transformou minha tarefa num esforço para analisar a com plexidade apresentada pela sociedade melanésica em seus ele mentos constitutivos” (Rivers, 1914,11:1-2). Como aponta Slobodin, os contemporâneos de Rivers e ele próprio sempre consi deraram The History of Melanesian Society como sua obra mag na, da qual divergiam apenas alguns poucos como RadcliffeBrown, Brenda Seligman e, possivelmente, Hocart, para os quais muito mais importantes foram as conferências enfeixadas no livrinho Kinship and Social Organization, livro que desde os anos 20 é considerado um marco na antropologia social (Slobodin, 1978:50). Às vésperas de eclodir a Primeira Grande Guerra (19141918), Rivers embarcou para a Austrália em companhia de um grupo de pesquisadores, entre os quais Seligman, ElliotSmith e um jovem polonês expatriado, Bronislaw Malinowski, recém-doutorado em antropologia pela Universidade de Londres com uma tese bibliográfica. Apesar da guerra, Malinowski obte ve permissão para seguir para Nova Guiné, embora fosse legalmente um inimigo, enquanto Rivers seguia para as Novas Hébridas. “Durante o resto de 1914 e princípios de 1915, Rivers esteve em vários lugares ao norte das Novas Hébridas. Não está claro que tenha visitado as Ilhas Salomão ocidentais, onde ele srcinalmente havia esperado fazer alguns estudos com Hocart. Seu itinerário melanésio foi muito mais limitadoAntes do que 1908; assim, suas temporadas foram demoradas.(...) de em retor nar à Inglaterra, visitou a Nova Zelândia, onde ministrou confe rências e ouviu importantes autoridades sobre a Polinésia. Quan do Rivers chegou à Inglaterra no verão de 1915, sua maior preocupação foi o tipo de serviço militar que poderia assumir.
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pios talentos foram reconhecidos por seus contemporâneos: foi o primeiro presidente da seção médica da recém-formada British Psycho-Analytical Society em 1919; presidente da Folk-Lore So ciety durante 1921-1922; e igualmente presidente do Royal Anthropological Institute em 1922, ano de sua morte, pronun ciando sua última conferência presidencial em janeiro daquele ano sobre o tema da unidade da antropologia, aqui reproduzida (ver II.6).
Nesta Introdução não se pretende explorar todas as dimen sões da multiplicidade da obra de Rivers, nem mesmo da parte antropológica em sua totalidade. Os quatro textos que compõem a primeira parte deste volume são suficientemente eloqüentes sobre a contribuição de Rivers à problemática do parentesco, não exigindo um exame mais profundo, salvo um breve comen tário para ressaltar o seu lugar na história da teoria. Como men cionado no início desta Introdução, a aplicação de Rivers no estudo do parentesco e da organização social redundaria na cria ção da Obase necessária à constituição da moderna antropologia social. parentesco, sobretudo, tornar-se-ia no núcleo em tomo do qual se expandiria o próprio conceito de antropologia social e de suas refinadas metodologias, como as análises estruturais ou estrutural-funcionais a elas pertinentes. Tudo indica que Ri vers escolheu um caminho srcinal, mesmo se considerarmos os estudos pioneiros de Lewis Hemy Morgan. Ao aceitarmos a interpretação de Langham, as descobertas de Rivers guardam expressiva independência em relação às de Morgan. “Sou favo rável — diz Langham — ao ponto de vista de que Rivers chegou às suas técnicas e descobertas independentemente de todos os antigos estudiosos do parentesco. Quando embarcou com a expe dição para o Estreito de Torres em 1898, Rivers estava estrita mente treinado como psicólogo experimental. ( . . . ) Em todos os relatórios da expedição, que incluem o diário de Haddon,
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não há qualquer indicação de que Rivers, ou algum outro mem bro da expedição que tivesse participado de suas investigações genealógicas, possuísse qualquer conhecimento antecipado da obra de Morgan sobre o assunto. É verdade que, após a expedi ção ao Estreito de Torres, Rivers utilizou finalmente alguns escritos de Morgan sobre o parentesco. Seu desdobramento dos dez indicadores do sistema classificatório de Morgan, por exem plo, que teve lugar no volume de 1904 do relatório da expedição, dificilmente teria ocorrido sem detida atenção a uma curta mas tecnicamente difícil passagem do Systems of Consanguinity ... Contudo, seria difícil provar que a leitura do livro feita por Rivers teria sido muito maisdeprofunda do the quesrcin isto”of(Langham, 1981:90). E mesmo o artigo 1907, “On the classificatory system of relationships”, elaborado para o Festschrift de Tylor, no qual Morgan e seu esquema evolucionista são repetidamente referidos, “não é o caso de um discípulo seguindo servilmente os passos do mestre. Ao contrário, Rivers usa o arti go para criticar a contribuição de Morgan e sugere muitas e importantes correções em seu esquema” (Langham, 1981:90). Sem deixar, todavia, de reconhecer o pioneirismo de Morgan na descoberta do campo do parentesco, o que Langham pretende mostrar é a srcinalidade de Rivers no tratamento analítico do tema e sua influência na antropologia britânica, para a qual “a obra de Morgan foi amplamente ignorada ou pouco aprecia da (...). O que importou foi Rivers ter desenvolvido seu méto do no curso de uma expedição que foi vista como reveladora da inadequação da antropologia de gabinete” (Langham, 1981:91). Ê assim que na primeira parte deste volume, destinada à elabo idéia do parentesco, pareceu-nos conveniente divulgar ração da brasileiro ao leitor um conjunto de textos que constituíssem o âmago da contribuição de Rivers à temática do parentesco, par ticularmente no que diz respeito à obtenção do dado etnográfi co mediante a aplicação da técnica genealógica (ver 1.1); e no que concerne aos procedimentos analíticos, graças aos conceitos
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tar o leitor na leitura do artigo de 1909. Menos do que um entendimento entre os autores do debate (um deles, Rivers, já falecido trinta anos antes do último artigo de Kroeber), o que se observa é uma melhor articulação entre suas respectivas po sições com vistas a compreendê-las de forma mais adequada. O que significa que a diferença entre ambas não se desvanece; ao contrário, tal diversidade persiste particularmente naquilo que ela espelha, a saber, a diferente postura epistemológica de ambos. Kroeber tenta explicar isso como sendo resultante de duas dife rentes tradições seguidas respectivamente por um e por outro: Kroeber srcinário de uma tradição humanista, para a qual as “ciências da mente" se aplicam a tudo aquilo que o homem pensa e, nesse sentido, a antropologia seria uma “psicologia”, porém nos termos postos por Boas — seu professor — no clássico The Mind of Primitive Man; ao passo que Rivers, for mado no interior de uma tradição científica, como vimos, have ria de imprimir em seu trabalho um tratamento inspirado na psicologia experimental e na fisiologia dos sentidos. O ponto maior de divergência estaria, assim, na questão da causalidade: “do ponto de vista de Rivers — como sublinha Schneider — Kroeber não cita um único exemplo de causa psicológica” (Schneider, 1968:11; o grifo é meu); argumento que bem reflete uma preocupação que, presente já nos estudos sobre o parentes co, consolidar-se-ia em seus trabalhos posteriores. E é esse cientificismo de Rivers que passaremos a examinar.
II A segunda parte deste volume foi, portanto, intitulada A idéia da antropologia em seu sentido de ciência, isto é, como uma nova ciência que se constituía. Rivers percorre assim os mesmos passos que seu contemporâneo Durkheim, com a dife rença de — ao contrá rio deste, orientado pela tradição raciona-
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lista — orientar-se pela tradição empirista inerente ao pensa mento anglo-saxão* Sabemos que a questão da causalidade se constituiu na pe dra de toque da filosofia empirista especialmente a partir de Hume e prolongando-se em uma pletora de filósofos ingleses e escoceses, dentre os quais cabe destacar John Stuart Mill: A lógica indutiva por e}e elaborada, particularmente no Livro VI de seu A System of Logic Ratiocinative and Inductive (1843, edição consultada a de 1974) intitulado “On the logic of the moral sciences’’, foi de grande importância para as gerações seguintes à sua, mesmo que pessoas por ela influenciadas, como Rivers, tenham se apercebido dessadeinfluência ou sobre ela não se não tenham manifestado. No caso Rivers, por exemplo, não é difícil encontrar a projeção em sua obra do pensamento de Mill. Em outras palavras, Mill fornece as categorias através das quais Rivers irá pensar a antropologia social como uma ciência indutiva. Embora não caiba aqui uma exposição de sua lógica, nem mesmo se nos limitássemos apenas ao Livro VI, cabe não obstante uma apresentação tão concisa quanto possível do pensamento de Mill naquilo que diz respeito a sua repercussão na obra de Rivers, a rigor, naquilo que pode ser considerado como uma reprodução da lógica indutiva no interior do projeto riversiano da antropologia social (cf. Cardoso de Oliveira, 1985). Alguns pontos devem ser destacados numa leitura da lógica de Mill, que de algum modo exprimam sua influência no projeto científico de Rivers. O primeiro deles — central na Lógica e que já indica uma definitiva opção de Rivers pela observação empí rica — é a indução. Mill entende a indução como uma “genera lização da experiência” (Livro III, cap. 3, § 1). Consiste em que “inferindo-se de alguns exemplos individuais em que a ocor rência de um fenômeno é observada, ele ocorrerá em todos os exemplos de uma certa classe; a saber, em todos que se asseme lhem ao primeiro, vistos como circunstâncias materiais” (ibid.). Nesse sentido, indução pode ser definida como “a operação de
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entre lei da natureza e lei empírica. Em síntese, a “pluralidade de causas” significa a inviabilidade de se procurar detectar uma única causa na produção de fenômenos complexos, notadamente quando esses fenômenos pertencem ao âmbito das ciências so ciais. Se se trata então de um feixe de causas na determinação de um conjunto de efeitos, pode-se aceitar como sendo viável a identificação de uma “composição de causas” na determinação de efeito ou efeitos. Identificadas as causas uma a uma é onde o método dedutivo se articula com o indutivo: Mill diz que a averiguação das leis de cada causa em separado constitui o pri meiro alvo do método dedutivo; e define este método como con sistindo “de três operações: a primeira, a indução direta; a segunda, o raciocínio e a terceira, a verificação” (Livro III, cap. II, § 1), mostrando com isso que é através da observação e da experimentação que as causas são identificadas para serem explicadas, no entanto, pela via dedutiva; i. è., descobertas as leis naturais responsáveis pela causalidade inferida, a partir de las se logrará a explicação graças ao exercício do raciocínio e da verificação. No mesmo parágrafo Mill irá tomar precisamen te os fenômenos sociais para ilustrardependem a aplicação de dutivo. Mostra que tais fenômenos de do atosmétodo e impres sões mentais dos seres humanos que, por sua vez, estão sujeitos a leis vitais relacionadas com a estrutura orgânica, da mesma forma que as substâncias sólidas e fluidas formadoras do corpo organizado e do meio em que ele subsiste estão sujeitas a leis mecânicas e químicas. Cada uma dessas leis, tomada separada mente, é descoberta experimentalmente, sendo que os fenômenos por ela abrangidos são explicados pelo método dedutivo. Tais leis são leis da natureza, a saber, gerais e invariáveis, no que diferem das leis empíricas, tendençiais, exprimindo apenas uma uniformidade de sucessão ou de coexistência amparada na ob servação de todos os casos conhecidos, mas nunca além desses, o que confere sempre a esse tipo de lei um caráter a posteriori. Portanto, as leis empíricas descobertas pela observação sempre
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pedirão por uma explicação que, para Mill, somente poderá ser alcançada pela descoberta de leis da natureza, ou causais, das quais as leis empíricas seriam derivadas. Mas como Mill procura resolver essa relação entre as leis empíricas e a causalidade nas ciências morais? Busca resolver isso pela via da constituição de uma nova disciplina por ele denominada Etologia (Ethology) ou a ciência da formação do caráter. Ê uma disciplina que procura determinar as leis univer sais da formação do caráter, mesmo reconhecendo que não existe um caráter universal na humanidade. Trata-se — para Mill — de uma disciplina em formação e, como ele mesmo reconhece., jamais — fato levou que, segundo um dos seus comen tadores consolidada (A. Ryan, 1974:88), Mill a lastimar-se sempre por não ter trabalhado nela o suficiente. Mas sua concepção ajuda a entender a difícil passagem que Mill pretende transpor entre as leis empíricas e as leis universais, entre a indução e a dedução e, ao que mais nos interessa aqui, entre a psicologia e a sociolo gia (ou ciências morais). Esta última passagem — como se verá na última seção desta Introdução — é extremamente importante para se entender as bases do psicologismo de Rivers. Ê assim que, para Mill, as leis empíricas da mente ou “as verdades da experiência comum’’ só podem ser explicadas (explained ) na medida em que vão sendo decompostas em leis causais, estas últimas obtidas dedutivamente, pois sendo leis universais não podem ser descobertas experimentalmente ou pela observação. Nesse sentido é que vemos como a Etologia difere da Psicolo gia — ciência experimental — uma vez que aquela tem status de ciência exata; porém, é das leis gerais da Psicologia que a Etologia vai deduzir os princípios necessários à determinação das leis universais da formação do caráter (cf. Livro VI, cap. 5, § 6). "Em outras palavras — diz Mill — a Etologia, uma ciên cia dedutiva, é um sistema de corolários da Psicologia, uma ciên cia experimental” (Livro VI, cap. 5, § 5). E sua importância para a fundamentação das Ciências Sociais (ou da Ciência So-
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fatos são descobertos pela experimentação. Em nossa ciência eles precisam ser encontrados pela observação e( xploration) não somente de culturas ainda existentes em formas vivas, mas tam bém de culturas de idades passadas, enterradas” (ver II. 1). A longa citação não é despropositada. Ela indica muito bem a concepção de ciência que Rivers possuía e de como a Antropo logia Social emergente deveria se assumir — segundo ele — para tornar-se uma efetiva disciplina científica. Como se vê, para Rivers o método é o das ciências naturais adaptado à natureza peculiar dos fenômenos socioculturais. Tal como em Mill, o método busca explicar pela via da observação guiada pela lógica indutiva. Mas a influência dessa lógica empírica não se limita a elevar a observação ao nível de autoridade máxima do saber científico; ela se estende a outros aspectos da constituição desse saber. Destacamos dois que nos parecem fundamentais: o psico lógico e o histórico; ambos, como procuraremos mostrar, con templados igualmente no pensamento de Mill e refletidos na antropologia social riversiana. Ainda na mesma conferência, Rivers é bastante explícito quanto à importância da análise etnológica como um meio refreador das especulações evolucionistas, ao mesmo tempo que insiste sobre a necessidade de articulação dessa análise com o estudo psicológico. Com o risco de sobrecarregar esta Introdu ção com reiteradas citações de uma conferência reproduzida in totum nesta coletânea, permito-me parafraseá-la o suficiente para dar ao leitor, desde o início da sua caminhada no interior do pensamento de Rivers, uma idéia e uma diretriz concisas, ca pazes de guiá-lo. Essa idéia aflora — no que tange ao aspecto psicológico — em sua afirmação de que o imperativo de exerci tar a análise etnológica, a saber, “a análise das culturas e civili zações presentemente espalhadas na superfície da terra” (o grifo é meu), como uma forma de derrogar as especulações evolucio nistas, não significa qualquer desprezo pela “necessidade do es tudo psicológico de costumes e instituições”. E acrescenta: “Se
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nos estratos. Durante esse trabalho é inevitável que, de posse de certas leis fundamentais da física e da química no fundo de sua mente, ele não se valha delas para ajudá-lo em sua inves tigação, ainda que elas não se constituam em seu objeto — en quanto geólogo — destinadas a provê-lo de explicações físicoquímicas de condições geológicas, pelo menos não nos primeiros estágios de sua pesquisa” (ibid.). Portanto, afirma Rivers, teria sido desastroso à geologia “se ela tivesse gasto seu tempo nesse último século a buscar explicações físico-químicas dos fenôme nos que lhe são afetos” (ibid.). Para Rivers é como se a expli cação físico-química se antecipasse ao estabelecimento das se quências próprias aos fenômenos geológicos criando grande confusão, ainda que a tal explicação caberia recorrer após — e somente após — a descrição geológica. O mesmo raciocínio se aplicaria à sociologia no sentido desta, indevidamente, “formu lar explicações psicológicas de fenômenos sociais antes de ter mos determinado o curso do desenvolvimento histórico dos fe nômenos que nos dizem respeito” (ibid.). E conclui: “Se isso ocorresse estaria evidenciado o quanto errados estão em seu caminho aqueles que rejeitam o processo social da sobrevivência à base de que, para eles, não se pode dar uma explicação psicoló gica adequada dos fenômenos sociais”, nestes incluindo RadcliffeBrown (ibid.). Para Rivers, precedida da análise sociológica ou etnológica, a explicação psicológica não só é possível quanto necessária se se quiser alcançar um verdadeiro conhecimento científico. Nesse sentido cabe uma referência ao testemunho de seu colega e amigo, G. Elliot Smith, na introdução que fez ao livro póstumo Psychology and Ethnology (1926): “A mera cole ção e tabulação de fatos ( . . . ) não eram seus reais interesses, mas unicamente a preparação essencial à investigação dos pro blemas psicológicos que se alojam no coração da Etnologia. A interpretação das práticas sociais, crenças e costumes — continua Elliot Smith — foi para ele mais um meio de abordagem dos processos mentais que estavam envolvidos. Os pensamentos e
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comportamento de qualquer comunidade eram merecedores de estudo como um meio de entender a psicologia da humanidade como um todo” (Rivers, 1926:IX). E completa: “Para o Dr. Rivers, queemfoietnologia primeiroerapsicólogo e depoispsicológico” um etnólogo, todo problema essencialmente (ibid.). Como conciliar o interesse de Rivers pela dimensão psico lógica e histórica dos fenômenos sociais com a sua programação de uma disciplina — como a antropologia social — que pro curou construir o seu domínio num espaço próprio, distinto do ocupado pela psicologia e pela história? A solução desse enigma parece se encontrar no interior do campo intelectual de sua época marcado pela presença de Stuart Mill. É por isso que não nos parece suficiente atribuir a Rivers — como fez Elliot Smith — a condição de ter sido primeiro psicólogo e só depois etnólogo como a razão de suas preocupações psicologísticas. Como se procurou mostrar, a estrutura lógica da argumentação de Rivers acompanha quase pari passu o raciocínio e o estilo de Mill; a rigor segue a ciência da lógica que era ensinada — como já se mencionou — nas escolas britânicas durante a sua juven tude. Daí esse ar de família que se respira quando se lê (e com para) tanto um quanto outro autor. Toda a inteligibilidade da obra de Rivers não pode ser alcançada se não se levar em conta esse fato. E se compararmos o nosso autor com Durkheim, ou com a antropologia que se constituía no interior do racionalismo francês, veremos que enquanto este e seus associados recortam com linhas nítidas e intransponíveis as diferentes disciplinas, particularmente a Filosofia e a Psicologia, Rivers se preocupa em associá-las, como a não querer perder nada do que a psico logia e a própria história — disciplinas com as quais mais se preocupa — “The possam dar of à antropologia sua última conferência, unity anthropology”social. (II.6),Emproferida no ano de sua morte, Rivers procura articular entre si todos os ramos da antropologia, tais como a arqueologia, a filologia, a etnologia e a somatologia ou antropologia física. Mas é certa-
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mente a psicologia e a história, com seus respectivos campos fenomênicos, as disciplinas que — enquanto autônomas — vão delimitar e de certo modo fecundar a antropologia social nas cente. Em seu livro Social Organization (1924, 2.a edição con sultada, 1929) editado dois anos após o seu falecimento, Rivers procurou didaticamente delimitar o campo da antropologia so cial aos fenômenos de organização social, como seu título já indicava. Os seus nove capítulos se aplicam à formulação dos conceitos de Família (cap. I), Clã, Metade e Tribo (cap. II), Matrimônio (cap. III), Parentesco e Relacionamento (cap. IV), Direito Paterno e Materno (cap. V), Propriedade (cap. VI), Fra ternidade e Sociedades Secretas (cap. VII), Ocupação, Classe e Casta (cap. VIII) e, finalmente, Governo (cap. IX); seguem-se três apêndices sobre a srcem classificatória do parentesco, so bre a organização social na Austrália e sobre a organização dual.11 Para alcançar esse objetivo, Rivers principia seu livro dizendo: “Gostaria de iniciar o estudo de meu objeto por um breve esclarecimento sobre o lugar que, creio, a organização so cial ocupa no estudo da cultura humana. Sou daqueles que acredita que o fim último de todos os estudos da humanidade, sejam históricos ou científicos, está na procura de explicações (explanations) em termos de psicologia, em termos de idéias, crenças, sentimentos e tendências instintivas através dos quais a conduta do homem, individual e coletiva, é determinada” (Rivers, 1929:3). Mas não se trata, porém, de uma unideterminação ou exclusiva causalidade exercida pelos fenômenos da mente ou mesmo do corpo (somáticos), como os instintos. Rivers concede, particularmente no que tange ao comportamento cole tivo, uma (ouquer umaindividual “pluralidade de causas”, como diria multideterminação Mill): “essa conduta, ou coletiva, mas particularmente coletiva, e também determinada pela estrutura social” (ibid.; o grifo é meu). Essa estrutura social é considerada por Rivers como “a base social na qual todo ser humano, seja ele membro de um
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Ê assim que, seguindo caminhos aparentemente contraditó rios, a idéia da Antropologia Social que havia germinado no pensamento de Rivers reproduz, ela própria, o itinerário inte lectual do nosso autor. Tal itinerário é o que se preocupou traçar nesta Introdução. Como todo trajeto de vida, intelectual ou não, está pautado de sucessos e insucessos. E, a nosso ver, há pelo menos duas modalidades de julgamento: o que privilegia o su cesso, e o faz com generosidade, e o que sublinha o insucesso e se compraz em olhá-lo sob uma perspectiva hipercrítica. Mas o julgamento final é o da história — e este, felizmente, menos do que emitir um juízo definitivo, interpreta, i. e., ao tentar compreender um autor/ator que—logrará nas uma versão, a sua — como talvezRivers, de suasabe época como ape uma síntese de si e do Outro, expressa na presença simultânea (e por conseguinte artificial) de dois tempos, o de Rivers e o nosso, do leitor e de quem redige esta Introdução. Para concluir, cabe dizer que a seleção de textos que se segue, menos do que feita para amparar nossa leitura, foi ela borada para introduzir o leitor ao pensamento de um autor, marcado por seu pioneirismo: o de criar uma disciplina. Claro que o empreendimento de Rivers não foi solitário. Teve seus associados, seus seguidores e, particularmente, seus antecesso res — como se procurou mostrar. As críticas que mais recaem sobre Rivers o atingem em seu manejo nem sempre hábil da disciplina no desvendamento de seu objeto: os povos exóticos. Efetivamente, não está aí o forte de Rivers. A força de seu tra balho resideuma na própria da Antropologia corporando tradição edificação e dela partindo para abrir oSocial, espaçoin que a nova disciplina iria ocupar e nele se desenvolver. Por isso, os textos escolhidos visam proporcionar ao leitor um acompa nhamento, o mais próximo possível do autor, das vicissitudes de seu pensamento na programação da disciplina. Simultanea
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mente, objetivam também incentivar o leitor numa determinada modalidade de historiografia, aquela que se aplica à reconstru ção de perfis intelectuais, indispensáveis à boa compreensão des se fenômeno social e cultural que chamamos de Ciência. Cabem — antes de concluirmos — algumas indicações so bre a editoração dos textos. Os quatro primeiros textos, que compõem a Parte I (A Idéia do Parentesco), foram traduzidos da edição de 1968 do livro Kinship and Social Organization, citado na bibliografia; eles representam integralmente as versões definitivas — revisadas por Rivers — das conferências de maio de 1913 (1.2,1.3 e 1.4), publicadas em sua primeira edição (1914) juntamente com o artigo de 1910 (1.1), que foi incluído pela primeira vez em The Sociological Review (vol. 10, 1910, pp. 1-12). Dos textos seguintes, incluídos na Parte II (A Idéia da Antropologia), dois deles foram traduzidos das edições ori ginais, “Survival in sociology” (II.3), publicado em The Socio logical Review (vol. 6, 1913, pp. 293-305), e “History and ethnology” (11.5), em History — The Quartely Journal of the Historical Association (vol. 5, 1920, pp. 65-80); a conferência “The ethnological analysis of society” (II.l), editada primitiva mente na revista Science (vol. 34, 1911, pp. 385-393), foi reedi tada em 1926 e inserida na coletânea de ensaios de Rivers, Psychology and Ethnology, com o título modificado para “The ethnological analysis of culture”, de onde procedemos a tradu ção. Os outros três textos foram traduzidos do volume W.H.R. Rivers (1978) de R. Slobodin que os reproduziu na terceira parte de seu livro, constituída de uma seleção de escritos: “Sociology and psychology” (II.4) foi reproduzido integralmente, enquanto “The disappearance of useful arts” (II.2) e “The unity of anthropology” (II.6) foram reeditados com alguns cortes de res ponsabilidade de Slobodin, mas sem prejuízo da integridade dos conteúdos que, nessas condições, foram aqui traduzidos.
Roberto Cardoso de Oliveira
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NOTAS
1 Esse novo laboratório não significou que a pesquisa e o ensino de psicologia experimental estivessem suficientemente amparados. Na reali dade, Rivers esperou anos para conseguir condições satisfatórias de tra balho para si e para seus alunos; dificuldades, porém, que não eram exclusivas da psicologia. Também delas partilhava a fisiologia. Ambas desfrutavam, à época, de baixo status acadêmico. O próprio Laboratório de Fisiologia somente seria aberto às vésperas da guerra de 1914 (Slobodin, 1978:16-17). Durante a guerra Rivers se incorporou ao exército britâ nico como médico, atuando no tratamento de neurose de guerra e valen do-se das idéias de Paul Janet e Freud com especial êxito. Pode ser consi derado como um dos introdutores da psicanálise na Grã-Bretanha. 2 A revista M a n em seu número de julho de 1922 publicou uma relação de 142 títulos da bibliografia de Rivers. Richard Slobodin, em seu livro sobre o autor, relaciona 49 títulos, entre os quais 6 publicados posteriormente ao falecimento de Rivers e mais 5 títulos de trabalhos escritos em colaboração. 3 Talvez o melhor estudo sobre Hocart, e sua importância para a Antropologia Social, esteja na introdução da edição de 1970 de seu livro Kings Society
and C ounci llo rs : A n es sa y i n the Com
parat ive A na tom y o f Hum an
de autoria de Rodney Needham. Nela Needham comenta Hocart não foi somente o discípulo mais eminente de Rivers, como que tam bém o mais injustiçado pela academia britânica, que jamais soube reco nhecer seus méritos concedendo-lhe um cargo docente. 4 Escreve Rivers no primeiro parágrafo de sua introdução: “Há dois modos principais de trabalho etnográfico: um, intensivo, em que o con junto da cultura de um povo, suas características físicas e meio ambiente são examinados tão minuciosamente quanto possível; o outro, um traba lho de levantamento (survey-work) em que um número de povos são estudados o suficiente para obter uma idéia geral de suas afinidades físicas e culturais entre cada um deles e com povos de qualquer outro lugar (...) Contudo,a por mais profundamente que se possa ir incompleta no trabalho e de levantamento, informação obtida é inevitavelmente jamais possui a precisão que um estudo intensivo poderia proporcionar” (Rivers, 1914, vol. 1:1). 5 O exame da tradição racionalista que influenciaria a vertente fran cesa da antropologia social, atualizada no interior da École française de sociologie, foi por nós realizado alhures (R. Cardoso de Oliveira, 1979 e 1983) e acreditamos que possa ter algum valor para o leitor interessado
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em cotejar aquela tradição com a empirista que aqui estamos examinando por meio de uma leitura de Rivers. 6 A esse reducionismo é que se aplica o termo psicologismo, “a doutrinaprecisam que, sendo a sociedade produto redutíveis de mentes interagindo, leis sociais ser, em última instância, a leis psicológicas, desde que os eventos da vida social, incluindo suas convenções, devem ser causados por motivos procedentes das mentes dos homens individuais” (Popper, 1971:90). 7 Em sua teoria da convergência, Rivers procura mostrar que é pela combinação de duas metodologias — a psicológica e a histórica vis a vis etnológica — que o processo de convergência ganha sentido. Assim, diz ele: “temos ainda que descobrir o quanto a semelhança se deve à ação de leis comuns à constituição mental da humanidade e o quanto ela foi produzida por semelhanças de equipamento mental e social não comum à humanidade em geral, mas à posse especial de um povo proveniente de um lugar que, por suas andanças em diferentes direções, chegou a formar um elemento comum de populações amplamente diversas, de lugares distantes um do outro no espaço e na natureza genérica de sua cultura. Meu objetivo neste capítulo é sugerir que será útil classificar juntos certos processos sociais como casos de convergência à medida em que reconheçamos claramente que permanecemos ainda com a tarefa de descobrir o mecanismo ao qual se deve esta convergência ( . . . ) . Conver gência será um conceito útil na etnologia somente se reconhecermos que ela pode ser histórica ou psicológica, ou, como' provavelmente descobri remos com mais freqüência, dependente de um processo que apenas pode ser inteiramente entendido quando estudado pela combinação dos méto dos histórico e psicológico” (Rivers, 1926:149-150). 8 Na publicação C am bridge A nthr op olog y (vol. 3, n.° 3, s/d), edi tada pelo Departamento de Antropologia Social da Universidade de Cambridge, encontram-se reproduzidos o artigo crítico de RadcliffeBrown, “The study of social institutions”, e a carta-réplica de Rivers, procedidos de uma pequena introdução de Meyer Fortes. No catálogo da Tozzer Library, da Universidade de Harvard, aparece 1976 como a data de referência da revista. 9 Tal como Mill, em sua controvérsia com Comte, mostrava que os fenômenos (estados) mentais deveriam ser estudados em suas múltiplas interdeterminações sem recorrer aos “estados do corpo”, i.e., sem reduzir o psicológico ao fisiológico, Rivers preocupa-se em não reduzir o socio lógico ao psicológico. 10 Em seu artigo de crítica a Rivers (cf. nota 8), Radcliffe-Brown vai dizer que o método psicológico de Rivers objetiva estudar aqueles fenômenos que ele, Radcliffe-Brown, chama de estáticos, enquanto o método histórico do mesmo Rivers se concentra nos fenômenos din âm i cos. A nosso ver, Radcliffe-Brown, com essa nova terminologia — bas
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tante durkheimiana — estava procurando eliminar de uma só vez quais quer implicações com a Psicologia e a História como disciplinas autô nomas. Segundo seu prefaciador, G. Elliot Smith,destinado o livro aestá num 11manuscrito elaborado por Rivers em 1920, doisbaseado cursos de leitura que ministrou em Cambridge entre 1921 e 1922. A intenção de Rivers era revisá-lo no verão de 1922 para um curso que daria no inverno de 1922-1923 na Índia, e, posteriormente, publicá-lo em forma de livro. Com sua morte, Elliot Smith pediu a W. J. Perry, então M. A. ereader em antropologia cultural na Universidade de Londres, para editar o manuscrito. Assim, os capítulos II, III e IV tiveram de ser ajustados e quase reescritos por Perry (cf. Rivers, 1929:Prefácio). 12 Sobre o caráter da oposição dos historiadores a essa naturalização da história, leia-se o excelente livro de Frederick |. Teggart, Theory of (1925), sua segunda “The study change”. Anos depois esseespecialmente livro seria reeditado, agoraparte, em conjunto comof um outro do mesmo autor, Processes of History (1918), graças a um empreendi mento da University of Califórnia Press que intitulou a nova edição (1941:última edição, brochura, de 1977). Theory and Processes of History H is t o r y
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1.1
O MÉTODO GENEALÓGICO NA PESQUISA ANTROPOLÓGICA * ( 1910 )
É conhecido o fato de que muitos povos preservam longas genealogias de seus ancestrais, abrangendo inúmeras gerações, e freqüentemente chegando até tempos míticos. O que não é sabido tão bem é que vários povos de cultura primitiva preser vam oralmente suas genealogias por várias gerações, em todas as linhas colaterais, de modo a apresentar genealogicamente to dos os descendentes de um bisavô ou trisavô, e deste modo, distinguindo aqueles que nós denominaríamos primos em segun do e terceiro grau fazendo com que, por vezes, suas memórias penetrem ainda mais profundamente no tempo. É este o tipo de genealogia utilizado no método que me proponho a considerar neste artigo. Iniciarei pelo modo de coletar gepealogias que fornece a base para este método. O primeiro ponto a ser considerado é * Extraído do
The Sociological Review,
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vol. 3, jan. 1910, pp. 1-12.
que, devido à grande diferença entre os sistemas de relações1 de parentesco dos povos primitivos e dos civilizados, é desejável que sejam usados tão poucos termos de parentesco quanto possí vel, sendo que genealogias completas podem ser obtidas com expressões limitadas às seguintes: pai, mãe, filho, filha, marido e mulher. A pequena genealogia apresentada como exemplo foi obtida em Guadalcanal, na parte leste das Ilhas Salomão e, neste caso, iniciei a pesquisa perguntando a meu informante: Kurka ou Arthur, o nome de seu pai e de sua mãe, deixando claro que queria os nomes de seus pais biológicos e não de quaisquer outras pessoas que ele assim denominasse em virtude do sistema classificatório. Depois de me certificar que Kulini tinha apenas uma esposa e Kusua apenas um marido, obtive os nomes de seus filhos e filhas por ordem etária pesquisando os matrimônios e a prole de cada um. Assim, cheguei ao pequeno grupo dos descendentes dos pais de Arthur. A Ilha de Guadal canal possui um sistema social caracterizado pela descendência matrilinear e, deste modo, Arthur conhecia melhor a genealogia de sua mãe do que a de seu pai. Obtive os nomes dos pais de sua mãe, certificando-me, como fiz anteriormente, de que cada um havia sido casado apenas uma vez e então indaguei os nomes de seus filhos e filhas obtendo assim os matrimônios e descen dentes de cada um. Pelo fato de Arthur ter vivido por um longo período de tempo em Queensland, seu conhecimento não ia além da geração de seus avós. Caso ele fosse mais versado em sua genealogia, eu teria pesquisado a parentela de Sinei e Koniava, e chegado até os descendentes de seus pais exatamente do mes mo modo, seguindo assim até que o conhecimento de meu in formante sobre sua família fosse completamente exaurido. Ao coletar as genealogias obtêm-se os descendentes em am bas as linhas, masculina e feminina, mas ao transcrevê-los para uso deste artigo, é aconselhável anotar em uma página apenas os descendentes de uma linha, com referências cruzadas a outras páginas para os descendentes da outra linha.2
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SINP.I r Koniuvn Kliuliipnlcl
Lukwili
T VAKOI e : Kombokl TU A N - : Kokiiukina K U LIN I =? Kusun Lukwili Lukwili Kimlupulei Kindttpulci Huumbutu Lukwili sem filhos
BEN|E morto Jovem
r —»—•— . .
GEORGE Kinclapalel
Koluvnll Lukwili
TOK.HO Liikwili
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Dutovl Kakau
KUKKA ou ARTHUR
sem filhos GEIMBA
TIA KO v ' 'uruknmuim MuumbuU
(Stivo) Kukuu
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Cell l.iikwill
iem filho*
S IN E I
Koiinl Kopcrou Hum fllhos
GU SA
Ku ilk l Komlutshlkiil morlus Jovcn*
au u i i ui uo
SINEI
Koani Koperoa sem filhos
GUSA
Koriki Kondatshikai mortas jovens
O método exato para o arranjo de nomes não é de grande importância, entretanto achei conveniente colocar os nomes mas culinos em letras maiusculas e os nomes femininos na forma habitua], sempre posicionando o nome do marido à esquerda do da esposa. Em matrimônios poligínicos, ou poliândricos, in cluo os nomes das esposas ou dos maridos entre parênteses. Uma das mais importantes características do método é a de mencionar, tanto quanto possível, a condição social de cada pessoa incluída genealogias. A localidade de srcem de cada um deve ser ditanas e freqüentemente faz-se necessário gravar, não apenas o distrito, mas também o nome de algum grupo territo rial menor, seja um vilarejo ou uma aldeia. Caso o grupo possua organização totêmica, os nomes do totem ou dos totens de cada
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pessoa devem ser mencionados ou, se não existirem clãs totêmicos ou outras divisões sociais, isto deve ser igualmente mencio nado. genealogia de das Guadalcanal, dada como exemplo, os nomes Na colocados sob os pessoas referem-se a clãs exógamos que provavelmente possuem natureza totêmica.8 Ao iniciar o trabalho em uma nova localidade é aconselhá vel mencionar qualquer fato, sobre cada indivíduo, que possa ter significação social, podendo posteriormente a pesquisa ser limitada àqueles considerados de importância. Cuidados espe ciais devem ser tomados para o registro das localidades de pro cedência daqueles que se casaram dentro da comunidade, vindos de outras tribos ou locais. Caso exista a prática da adoção, as crianças adotadas quase que certamente são incluídas entre os filhos legítimos, a menos que se preste atenção específica ao tema, devendo, nos casos em que for possível, ser mencionado o parentesco real e o adotivo. Freqüentemente são encontradas dificuldades e fontes de erro quando da coleta do material para a aplicação do método genealógico. Uma delas, com que me deparei, é a existência de tabus em relaçãocom aos muita nomes dificuldade, dos mortos,nasó maioria podendodas estevezes. fato ser sobrepujado Em minha própria experiência fui compelido, em consequência deste tabu, a obter em segredo certas genealogias e de outras pessoas que não do grupo estudado. Outras fontes de erro e perplexidade são as práticas da adoção e da mudança de nomes e, sem dúvida alguma, novas dificuldades serão encontradas por aqueles que procurarem levantar genealogias em outros locais. A fim de empregar o método genealógico do modo que proponho faz-se necessário ter certeza de que as genealogias obtidas são fidedignas. Ao coletar as genealogias de toda uma comunidade existirão muitos pontos de entrecruzamento; em um caso pessoas que pertençam ao tronco paterno de um informan te pertencerão ao tronco materno de outro, ou estarão entre os ancestrais de sua esposa, havendo assim amplas oportunidades
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para testar a concordância das versões oferecidas pelos diferen tes informantes. Em quase todas as comunidades com as quais tive oportu nidade de trabalhar, encontrei pessoas com conhecimentos ge nealógicos especiais, sendo bom que delas se faça tanto uso quanto possível. De acordo com minha experiência, é perigoso confiar em homens jovens, que em quase todos os locais não se dão mais ao trabalho de aprender suas genealogias junto aos seus velhos. No entanto, se elas forem obtidas através destes últimos, normalmente possuirão extraordinária acuracidade quan do confrontadas com diferentes versões bem como uma maior coerência dentro da genealogia completa da comunidade. Tendo assim descrito rapidamente o método de registro de genealogias, e de garantir sua acuracidade, posso seguir detalhan do os usos a que elas se prestam. O primeiro e mais óbvio uso refere-se à elaboração dos sistemas de parentesco. Em quase todos os povos de cultura simples estes sistemas diferem tanto do nosso próprio, que existe um grande perigo de se cair em erro, caso se tente meramente obter os equivalentes aos nossos termos através do método de pergunta e resposta. Meu procedimento é perguntar ao infor mante os termos que ele aplicaria a diferentes membros de sua genealogia e, reciprocamente, os termos que aqueles aplicariam à sua pessoa. Assim, no caso da genealogia de Guadalcanal que apresentei como exemplo, perguntei a Arthur como ele denomi nava Tokho, e ele mencionou o equivalente a “irmão mais ve lho”, quando um homem está a falar, enquanto que o modo pelo qual Tokho denomina a Arthur é o equivalente a “irmão mais novo”. Os termos aplicados um ao outro por Vakoi e Arthur deram os equivalentes a “filho da irmã” e “irmão da mãe”, respectivamente; no parentesco de Komboki e Arthur sur giram os temas “esposa do irmão da mãe” e “filho da irmã do marido”, tendo sido as outras expressões de parentesco do lado materno obtidas do mesmo modo. Para os termos de parentesco
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do lado paterno, a genealogia de Kulini, pai de Arthur, era empregada. É fato real que excepcionalmente, um jogo completo de termos demas parentesco ser obtido partir denão apenas genealogia, mesmo pode se assim fosse apossível, seriauma recomendável que se fizesse deste modo, porque sempre há a possibilidade de ocorrência de algum parentesco duplo, um talvez por consangüinidade e outro por afinidade, que pode nos enganar. Nunca fico inteiramente satisfeito com um sistema de parentesco, a menos que cada genealogia tenha sido obtida a partir de três outras distintas. A seguinte lista de termos das relações de parentesco deve ser obtida: Pai ................................ Mãe .............................. Irmão mais velho (h.f.) Irmão mais velho (m.f.) Irmã mais velha (h.f.) . Irmã mais velha (m.f.) . Irmão do pai ............... Esposa do irmão do pai Filho* do irmão do pai .
filho filha irmão mais novo (h.f.) irmã mais nova (h.f.) irmão mais novo (m.f.) irmã mais nova (m.f.) filho* do irmão (h.f.) filho* do irmão do marido
Irmã dodapaiirmã do pai Marido Filho* da irmã do pai . Irmão da m ã e ............... Esposa do irmão da mãe Filho* do irmão da mãe Irmã da m ã e ................. Marido da irmã da mãe Filho* da irmã da mãe Pai do pai ..................... Mãe do pai ................... Pai da mãe ................... Mãe da mãe ................. Marido ........................... Pai da esposa ............... Mãe da esposa ............. Pai do marido ............. Mãe do marido ............. Irmão da esposa ..........
filho* do do irmão irmão (m.f.) da esposa
.................
filho* da irmã (h.f.) filho* da irmã do marido filho* da irmã (m.f.) filho* da irmã da esposa filho* do filho (h.f.) filho* do filho (m.f.) filho* da filha (h.f.) filho* da filha (m.f.) esposa marido da filha (h.f.) marido da filha (m.f.) esposa do filho (h.f.) esposa do filho (m.f.) marido da irmã (h.f.)
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por hábito suplementar o método genealógico pedindo uma lista de todas as pessoas a quem um homem específico aplica termos de parentesco. Na análise, geralmente descobre-se que eles caem em uma das seguintes classes: (1) parentesco que pode ser tra çado nas genealogias; (2) parentesco consangüíneo ou afim que não pode ser traçado nas genealogias disponíveis, mas que pos sui, sem sombra de dúvida, uma base genealógica; assim, em conexão com a mesma genealogia, Arthur poderia dizer que denominava um homem nianggu, ou “irmão de minha mãe”, porque ela era o tasina, ou “irmão” de Kusua; (3) parentesco dependente da pertinência a uma divisão social — assim, Arthur poderia chamar um homem kukuanggu ou “meu avô” porque este era um lakwili da mesma geração de Koniava; e (4) paren tesco dependente de algum laço artificial estabelecido pelo usuá rio do termo ou mesmo pelo seu pai ou avô, sendo tal parentesco artificial, por vezes transmitido de pai para filho. Os termos dados na lista são suficientes para determinar o caráter geral de um sistema, mas o ideal será obter um certo número de expressões para parentesco mais longínquo tal como com o do eirmão da irmã avô paterno, juntamente com sua prole netos. ou Entre estes do parentes mais distantes, a esposa do filho da irmã e o marido da filha da irmã e suas proles são, algumas vezes, de interesse especial. O uso de genealogias também é interessante para o estudo das regulamentações matrimoniais. Se todas as genealogias de uma população forem coletadas, como tenho conseguido em di versos casos, teremos então um registro dos casamentos que tiveram lugar na comunidade, retornando, certas vezes, até cer ca de cento e cinqüenta anos no passado. Este registro é preser vado nas mentes das pessoas, e através dele pode-se estudar as leis que regem a instituição local do matrimônio, assim como em uma comunidade civilizada pode-se fazer uso dos registros matrimoniais em um cartório ou igreja. Podemos, então, saber não apenas quais os tipos de matrimônio permitidos ou prefe-
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rendais e quais aqueles proibidos, mas também expressar esta tisticamente a freqüência dos diferentes tipos. Entre diversos povos de cultura simples, parece estar em andamento uma mu dança gradual da condição em que o matrimônio é regulamenta do primordialmente, ou inteiramente, por meio dos mecanismos de clãs, fratrias ou outros arranjos sociais, para uma outra na qual a regulamentação do matrimônio depende de uma consangüinidade verdadeira, e a natureza exata do estado de transição de um povo apenas pode ser determinada de modo satisfatório através de um método concreto, tal como o provido pelo estudo do registro genealógico. Mais ainda, sendo o matrimônio regu lado por alguma regra social, o método permite descobrir quais quer tendências específicas para que pessoas de determinadas divisões se casem entre si, tendências estas que talvez não hajam sido informadas pelo próprio povo. O método torna possível o estudo exato de formas de matrimônio tais como a poliginia, a poliandria, o levirato e o matrimônio entre primos cruzados. Estas instituições possuem inúmeras variedades que escapam fa cilmente à atenção pelos métodos comuns de pesquisa, mas que se tornam perfeitamente claras quando sua natureza é trabalha da em detalhes usando-se as genealogias; além disso, o método permite detectar se as regulamentações matrimoniais de um povo estão sendo obedecidas na prática, podendo um estudo dos casamentos, através de gerações sucessivas, revelar uma mudan ça progressiva na severidade com que qualquer regra seja san cionada. Na realidade, é possível trabalhar os problemas mais complexos concernentes à regulamentação do matrimônio sem jamais haver formulado uma questão direta sobre o assunto, embora isso não seja desejável, porque uma das características mais interessantes do método genealógico é fornecida pela com paração entre os resultados obtidos através de seu uso e aqueles derivados da pesquisa direta. Caso existam discrepâncias entre os dois, a investigação poderá não apenas fornecer idéias para novos pontos de vista, como também lançar luz sobre as peculia
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ridades lingüísticas ou psicológicas que possam ter sido a causa do mal-entendido. A genealogia de Guadalcanal apresentada como exemplo é muito diminuta para que possa valer como um bom exemplo da aplicação do método, mas deve ser observado que em nenhum caso duas pessoas do mesmo clã casaram entre si e que, de um total de oito casamentos, quatro tiveram lugar entre membros dos clãs kindapalei e lakwili, fato explicado provavelmente pela existência do matrimônio entre primos cruzados naquela ilha. Ela também nos fornece um exemplo de casamento com um membro de outra comunidade, ou seja, com um nativo da viz:nha Ilha de Savo, cujos clãs correspondem muito de perto acs de Guadalcanal. Outra aplicação do método é a investigação das leis que regulam a descendência e a herança de propriedades. Assim, na genealogia servida como exemplo, será visto que cada pessoa pertence ao clã de sua mãe, ilustrando deste modo a descendên cia matrilinear nesta parte das Ilhas Salomão. O método é espe cialmente importante para o estudo sobre sucessão na chefia, bem como para o da herança de bens. Assim é possível tomar um determinado pedaço de terra e pesquisar sua história, talvez a partir do tempo em que ela começou a ser cultivada; o trajeto de suas divisões e subdivisões, em ocasiões diversas pode ser seguido em detalhes, e um caso de posse que pareceria sem espe ranças de resolução torna-se perfeitamente simples e inteligível à luz de sua história, havendo uma penetração na dinâmica das leis concernentes à propriedade, de um modo que jamais pode ria ter sido obtido através de um método menos concreto. Outro uso do método que ocasionalmente torna-se de gran de valor é no estudo das migrações. Assim, em diversas partes da Melanésia, nos últimos cinqüenta anos teve lugar uma mu dança no estilo de vida das matas para o litoral, e a informação fornecida pelas localizações de gerações sucessivas pôde explicar a natureza de tal migração.
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Os usos até aqui considerados são concernentes ao estudo da organização social, mas o método possui também validade para o estudo da magia e da religião. Na maior parte dos povos que estudei, descobri que, nos cerimoniais, funções bem defini das são destinadas a pessoas que estão em relação determinada com quem executa a cerimônia ou com a pessoa para quem ela está sendo levada a efeito. Acredito que a pesquisa exata, torna da possível pelo método genealógico, mostraria que estas fun ções conectadas às relações de parentesco são muito mais amplas que a literatura antropológica atual pode nos levar a supor, e mais ainda, que os direitos e privilégios oriundos do parentesco, descobertos deste modo, podem ser mais precisamente definidos. O método permite também que se investigue o cerimonial de modo mais concreto do que seria possível de outro modo. Quan do estou trabalhando com este tema, coloco à mão meu livro de genealogias e conforme obtenho os nomes dos vários atores procuro verificar como eles estão ligados ao executante ou ao sujeito da cerimônia, havendo ao mesmo tempo a vantagem de eles se tornarem personagens reais para mim, mesmo que ante riormente nunca os tenha visto, e a investigação proceder de uma maneira que interessa tanto a mim quanto aos meus infor mantes, muito mais do que se os personagens fossem meros X, Y ou Z. Outro grupo de usos para os quais o método pode ser co locado à disposição é o estudo dos vários problemas que, embora sejam primordialmente biológicos, ainda assim são de grande importância sociológica. Refiro-me a temas como: a proporção dos sexos, o tamanho das famílias, o sexo do primeiro filho, a proporção de crianças que crescem e se casam para com o núme ro total de nascidos, e outros temas similares que podem ser estudados estatisticamente pelo método genealógico. Nas genea logias possuímos uma grande massa de dados de maior impor tância para o estudo exato de vários problemas demográficos, mas aqui torna-se necessário exprimir uma nota de advertência:
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de acordo com minha experiência, a memória do povo é menos crível no referente a crianças da geração passada que morreram jovens, ou antes da idade matrimonial, do que no caso daqueles que se casaram e tiveram prole — é óbvio que estes últimos terão ganho uma importância social dentro do grupo, que faz da preservação de seus nomes um fato natural. Tem sido uma freqüente fonte de surpresa para mim o fato de jovens falecidos uma geração antes serem lembrados tão bem quanto o são; pro vavelmente devem existir poucas dúvidas de que alguns tenham sido esquecidos, e as estatísticas concernentes a estes temas biológicos são menos completas do que aquelas que lidam com problemas estritamente sociais. Um outro uso do método, ainda mais importante, é a sua possibilidade de ajudar a antropologia física. Como exemplo des te fato, apresentarei o exemplo de uma ilha, visitada por mim e pelo Sr. Hocart no ano passado, onde existem duas fontes cons tantes de mistura, em ambos os casos com povos cujas carac terísticas físicas são muito diferentes daquela da massa geral de seus habitantes. A antropometria da população desta ilha pelos métodos comuns dificilmente produz algum resultado definido, mas através do método genealógico foi possível descobrir a ascendência imediata de cada pessoa a ser medida; além do mais, a combinação de medições físicas com o uso do método genealógico provê um grande volume de material para o estudo dos problemas de hereditariedade. O método também tornà pos sível trabalhar exaustivamente o modo de transmissão de con dições como o daltonismo e o albinismo que estão presentes, em proporções variadas, na maioria das partes do mundo. Pode-se mencionar, brevemente, algumas outras vantagens incidentais do método genealógico. Muitas informações podem ser obtidas no tocante à transmissão de nomes, e no exemplo fornecido pode ser observado que uma criança recebe o nome de seu bisavô, além do mais, o nome de alguma pessoa morta, talvez alguém que haja vivido um século atrás, lembrará a his
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tória passada do povo que, de outro modo, possivelmente não seria obtida, e alguns comentários lançados à esmo, em conexão com os nomes dos ancestrais, podem fornecer sugestões valiosas para pesquisa. Além disto, a mera coleção de nomes provida na genealogia forma um depósito de material lingüístico que seria de imenso valor não fosse o fato de possuirmos pouco conheci mento das partes mais vivas da linguagem de modo a permitir que ela seja utilizada. Tendo agora considerado linhas mais detalhadas de pesqui sa para as quais o emprego do método genealógico é útil ou essencial, sintetizo brevemente algumas de suas vantagens em termos mais gerais. Em primeiro lugar, mencionaria sua solidez. Qualquer um que conheça povos de cultura simples sabe a dificuldade que se coloca ante o estudo de qualquer questão abstrata, não tanto porque o selvagem não possua idéias abs tratas, mas sim porque ele não possui palavras para expres sá-las, ao mesmo tempo em que é certo que dele não pode ser esperada uma apreciação adequada dos termos abstratos do idio ma de seu visitante ou de quaisquer outras línguas estrangeiras que sirvam de meio de comunicação. O método tor na possível a investigação de problemas abstratosgenealógico em uma base puramente concreta. É até mesmo possível que através dele pos sam formular-se leis que regulem a vida do povo, as quais pro vavelmente jamais foram formuladas, certamente não com a cla reza e exatidão que elas têm para a mente treinada em uma civilização mais complexa. Também serão evitados desentendi mentos infindáveis entre aqueles passíveis de surgirem entre povos de esferas tão diferentes, desentendimentos queapreciação, possuem sua fonte em diferenças de perspectivas e falta de de um lado ou de outro, das amenidades da linguagem, seja européia ou nativa, que esteja servindo como meio de comuni cação. O método não pode eliminar as dificuldades que atrapa lham a interpretação das condições sociais do selvagem pelo
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visitante de outra civilização, mas fornece uma massa de fatos definidos e indubitáveis para serem interpretados. Deste ponto de vista, o método é mais útil àqueles que, como eu, apenas podem visitar os povos selvagens ou bárbaros por um pequeno espaço de tempo, totalmente insuficiente para adquirir um grau de domínio sobre o idioma nativo que permita que ele seja usado como instrumento de comunicação. Para isto, o método é essencial, caso haja alguma esperança de se conse guir fatos de valor verdadeiro sobre as características mais com plexas da organização social. Através do método genealógico é possível, sem conhecimento do idioma e com maus intérpretes, trabalhar comque maior acuracidade sistemas de suas parentesco, tão complicados os europeus queostêm passado vidas entre estes povos nunca conseguiram entendê-los. Não é exagero dizer que sobre este assunto ou sobre aquele da regulamentação do matrimônio é possível obter, através deste método, um conheci mento mais definido e exato do que é possível, sem ele, para um homem que viva muitos anos entre estes povos e que tenha obtido um conhecimento tão pleno quanto aquele que um euro peu pode adquirir da língua de um povo bárbaro ou selvagem. Outra grande vantagem do método é que ele fornece meios de testar a acuidade das informações obtidas. Entre os selva gens, tal como entre nós, existem enormes diferenças quanto à veracidade com que se descreve uma cerimônia ou a história de uma pessoa ou um curso de eventos. O método genealógico for nece um meio rápido de se testar a acuidade. Não quero sim plesmente dizer que uma pessoa que guarde em sua memória, de maneira acurada, as genealogias, possuirá também memória aguçada para outros temas, sendo que o método concreto de pesquisa, tornado possível pelo método genealógico, nos permite detectar a falta de cuidado e de acuidade muito mais rapida mente do que pelos métodos mais comuns de pesquisa. Não é um detalhe sem importância o conhecimento de que fatos acura dos dão ao pesquisador um sentido de confiança em seu traba
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lho, que não é passível de ser desprezado nas penosas condições climáticas, ou de outros tipos, em que a maior parte do trabalho antropológico temgarante de ser aefetuado. Mais o método genealó gico não apenas confiança nosainda, informantes, como pos sui um efeito igualmente importante no sentido de dar ao selva gem segurança quanto ao seu interrogador. Todos conhecem o velho refrão de que “a principal característica do selvagem é que ele lhe contará o que você quiser saber”; quando ele age assim é porque lhe parece o meio mais fácil de efetuar uma tarefa pela qual ele não possui interesse, freqüentemente porque não entende a natureza real das perguntas, mas creio que mais usual mente porque ele reconhece que seu interrogador não as entende também. O que parece ser a mais simples das questões para um europeu não instruído pode, para o nativo, ser totalmente inca paz de prover uma resposta direta, e não é surpresa constatar que o confuso filho da natureza tome o caminho mais curto para liqüidar o assunto. Acredito que o método genealógico co loca o pesquisador europeu no mesmo nível do nativo. É certo que os povos de cultura simples não preservariam suas genealo gias com as prática minúcias casoe elas não possuíssem grande importância emhabituais, suas vidas, a familiaridade do pesqui sador com o instrumento que ele usa dará aos selvagens confian ça e interesse na pesquisa, os quais são de inestimável valor para se obter informações. Além do mais, a confiança mútua que é engendrada pelo uso do método genealógico para o entendimen to da organização social estende-se a outros departamentos da antropologia, não sendo limitada em seus efeitos. Outra característica de grande valor do método genealógi co, à qual já me referi, é a ajuda que ele nos oferece quando nos permite entender aquelas características da psicologia dos selva gens que tanto dificultam o trabalho antropológico. Tenho sem pre o hábito de fazer perguntas utilizando o método genealógico e o método comum de perguntas e respostas. Sempre existirão discrepâncias, e sua investigação nos fornecerá uma percepção
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que eles convençam o leitor do mesmo modo que qualquer uma das ciências biológicas. O método genealógico, ou outro similar, que torne tal demonstração possível, ajudará a colocar a Etnologia num posto de igualdade, juntamente com as demais ciências.
Tradução : Sonia Bloomfield Ramagem
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NOTAS
1 N. T.: Como na língua inglesa o termo Kinship (parentesco) tende a ser entendido como “parentesco consanguíneo”, em oposição a “paren tesco afim”, parece que Rivers, para evitar ambigüidades, resolveu utilizarse do termo relationship dando conta tanto do sentido de consangüinidade quanto do de afinidade. Já em português, o termo “parentesco” abriga esses dois sentidos, razão pela qual decidimos traduzir relationship, sem pre que possível por “parentesco” sem prejuízo da compreensão global do texto. 2 Para o método de arranjo de uma grande qu antidade de material genealógico o leitor deve reportar-se aos livros The Todas, Londres, Macmillan, 1906, e os Reports of the Cambridge Expedition to Torres Straits, vols. V e VI. 8 Cf. Journal Royal Anthropological Institute, vol. XXXIX, 1909, p. 156. 4 N. T.: O termo “prole” aqui foi utilizado no sentido de “criança”, child.
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Creio ser arriscado presumir a familiaridade do público com este sistema e, assim sendo, iniciaremos por uma breve descrição de suas características principais. A deve mais seu importante delas, aquela à qual o sistema classificatório nome, é a aplicação de seus termos, não a indivíduos, mas a classe de parentes que podem ser, com freqüência, imensas. Objeções têm sido levantadas com relação ao uso do termo “classificatório”, tendo por base a idéia de que nossos próprios termos de paren tesco também são aplicados a classes de pessoas; o termo “ir mão”, por exemplo, é usado para todos os filhos do sexo masculino do mesmo pai e da mesma mãe, o termo “tio” é uti lizado para todos os irmãos do pai e da mãe, bem como para os maridos das tias, enquanto o termo “primo/a” pode denotar uma classe ainda maior. É verdade que vários de nossos próprios termos de parentesco se aplicam a classes de pessoas, mas nos sistemas para os quais a palavra “classificatório” é usualmente empregada, este princípio aplica-se com muito maior amplitude e, em alguns casos, mesmo de maneira mais lógica e consistente. Na forma mais completa deste sistema não existe sequer um único termo de parentesco cujo uso denote referência a uma pessoa, e a ela somente, enquanto que em nosso próprio sistema existem seis destes termos, a saber: marido, esposa, pai, mãe, sogro e sogra. Naqueles sistemas, nos quais o princípio classifi catório é levado a um grau extremo, cada termo é aplicado a uma classe de pessoas. O termo “pai”, por exemplo, é aplicado àqueles aos quais o pai denomina “irmão”, e a todos os maridos daquelas que a mãe denomina “irmã”, sendo ambos os termos, “irmão” e “irmã”, usados de maneira muito mais ampla que entre nós. éEm algumas formas sistema classificatório, ter mo “pai” também usado paradotodos aqueles a quem a omãe chama “irmão” e para os maridos daquelas a quem o pai deno mina “irmã”, sendo que em outros sistemas a aplicação do ter mo pode ser ainda mais ampla. Similarmente, o termo usado para a esposa pode ser utilizado para todas aquelas que a esposa 72
mentação, ligando diretamente a srcem da terminologia a formas de organização social que não existiam em lugar algum da Terra, e das quais não havia nenhuma evidência direta no passado. Quando, além disso, a condição social primária formulada por Morgan foi a de promiscuidade geral, que evoluiu para o casamento em grupo, estas condições repugnaram profundamente os sentimentos das pessoas mais civilizadas, e não é surpresa que ele tenha levantado contra si uma grande e acalorada oposição que levou, não apenas à rejeição de suas idéias, mas também ao negligenciamento das lições a serem aprendidas com sua nova descoberta, que poderia ter recebido reconhecimento geral muito antes de então, caso elas não tivessem sido obscurecidas por outros fatores. O primeiro a atacar vigorosamente Morgan foi nosso próprio pioneiro no estudo de formas primárias da sociedade humana, John Ferguson MacLennan." Ele criticou de modo severo, e de forma freqüentemente justa, as idéias de Morgan, demonstrando então, como na época se acreditava, que nenhum direito ou dever estava ligado às relações de parentesco abrangidas pelo sistema classificatório, concluindo que os termos formavam simplesmente um código de troca de cortesias e de maneiras cerimoniosas usadas no contato social. Aqueles que adotaram suas idéias geralmente se contentam em repetir a conclusão de que o sistema classificatório não é nada mais que um corpo de saudações mútuas e formas de tratamento. Eles não conseguem perceber que, ainda assim, permanece necessário explicar como os termos do sistema classificatório passaram a ser usados em saudações recíprocas, falhando em reconhecer que estão rejeitando o princípio do determinismo na sociologia, ou apenas colocando a uma distância conveniente a consideração do problema de como e por que os termos classificatórios passaram a ser utilizados por tantos povos da Terra. Este aspecto do problema, que foi negligenciado ou colocado de lado pelos seguidores de MacLennan, não foi assim tratado
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por ele próprio. Como poderia se esperar do caráter geral de seu trabalho, MacLennan reconheceu claramente que o sistema classificatório deveria ter sido determinado pelas condições so ciais, e tentou mostrar que o sistema deve ter surgido como re sultado da mudança da forma poliândrica Nair para a Tibetana.3 Ele chegou mesmo a formular variedades deste processo através do qual acreditava terem sido criadas as principais for mas do sistema classificatório, cuja existência havia sido de monstrada por Morgan. É evidente que MacLennan não duvida va da necessidade de ligar a instituição social do sistema classi ficatório de relações parentesco a causas sociais, uma necessida de que tem ignorada, ou mesmo explicitamente por aqueles que sido o acompanharam na rejeição das idéias negada, de Morgan. Entre as diversas conseqüências funestas da crença de MacLennan sobre a importância da poliandria na história da so ciedade humana, foi a impossibilidade de que seus seguidores percebessem a importância social do sistema classificatório, fa lhando em entender que o sistema classificatório não é o resul tado nem da promiscuidade nem da poliandria, tendo sido determinado, tanto no seu caráter geral quanto em seus detalhes, pelas formas existentes de organização social. Desde a época de Morgan e MacLennan poucos foram os que tentaram lidar com a questão de modo inteligível. O pro blema foi envolto pela controvérsia entre os defensores da pro miscuidade srcinal e os da monogamia primitiva do ser huma no, estando a maior parte dos primeiros pronta a aceitar cegamente as idéias de Morgan, enquanto os últimos contenta vam-se em tentar explicar a importância das conclusões deriva das do sistema classificatório, sem tentar nenhum estudo real da evidência. Do lado de Morgan existe uma exceção na pessoa do Professor J. Kohler,4 que reconhece as linhas pelas quais o problema deve ser estudado, enquanto de outro existe, até onde seja do meu conhecimento, apenas um autor que aceita o fato de que a evidência da natureza do sistema classificatório de re 76
lações de parentesco não pode ser ignorada ou diminuída, de vendo ser encarada de modo a prover alguma explicação alter nativaEsta àquela dada por Morgan. há quatro anos atrás pelo Pro tentativa foi efetuada fessor Kroeber,5 da Universidade da Califórnia. Sua linha é a rejeição absoluta da visão comum a Morgan e MacLennan de que a natureza do sistema classificatório é determinada pelas condições sociais. Ele rejeita explicitamente a idéia de que a maneira de usar os termos das relações de parentesco depende de causas sociais, e apresenta a alternativa de que eles são con dicionados por fatores puramente lingüísticos ou psicológicos. Não é muito fácil entender o que ele quer expressar quan do fala que “os termos das relações de parentesco possuem causação lingüística”. Ao final de seu trabalho, Kroeber conclui que “eles (termos das relações de parentesco) são determinados principalmente pela linguagem”; se, entretanto, os termos das relações de parentesco são elementos da língua, a proposição de Kroeber é que estes elementos são determinados em princí pio pelo próprio idioma. Caso esta proposição possua algum significado, ele deve ser o de que, no processo de busca das srcens do fenômeno da linguagem, é nosso dever ignorar todos os fatos, exceto os lingüísticos. O que se poderia deduzir é que o estudioso sobre o assunto deveria procurar os antecedentes dos fenômenos lingüísticos em outros fenômenos da mesma na tureza, colocando de lado quaisquer referências a objetos e rela ções que as palavras denotam e conotam como não pertinente à sua tarefa. A proposição alternativa de Kroeber é que os termos das relações de parentesco refletem a psicologia, e não a sociologia, ou, em outras palavras, que a maneira pela qual os termos das relações de parentesco são usados depende de uma cadeia de causalidades da qual os processos psicológicos seriam os antece dentes diretos. Tentarei tornar clara a idéia de Kroeber através
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de um exemplo que ele mesmo fornece: ele diz que atualmente existe entre nós uma propensão para falar sobre o cunhado como se o mesmo fosse um irmão; resumindo: tendemos a clas sificar o cunhado e o irmão juntos na nomenclatura do nosso próprio sistema de relações de parentesco. Ele supõe que faze mos isto devido à existência de uma similaridade psicológica entre as duas relações, o que nos leva a classificá-las em con junto. Posteriormente retornarei a este e a outro dos exemplos de Kroeber. Vimos que os oponentes de Morgan têm assumido duas posições básicas, ambas passíveis de crítica: uma, a de que o sistema classificatório não é nada mais do que um conjunto de formas de tratamento; e a outra, a de que o sistema classifica tório e os outros modos de exprimir relações de parentesco são determinados por causas psicológicas e não sociológicas. Propo nho que consideremos estas duas posições, uma de cada vez. O próprio Morgan ficou profundamente impressionado pela função do sistema classificatório das relações de parentesco como um conjunto de termos de saudações. Sua própria experiência derivava de material sobre os índios norte-americanos, e ele notou o uso exclusivo dos termos das relações de parentesco em saudações, um costume tão comum que uma omissão em reco nhecer um parente desta maneira seria quase que uma afronta. Morgan também mostrou, como um dos motivos deste costume, a existência de uma relutância em pronunciar os nomes pessoais. MacLennan teve de basear-se inteiramente nas evidências coleta das por Morgan, e não há dúvidas de que foi profundamente influenciado pela ênfase que o próprio Morgan colocou na fun ção dos termos classificatórios como saudações mútuas. O moti vo pelo qual, em certas sociedades simples, determinados paren tes possuem funções sociais explicitamente designadas para si pela tradição já era sabido no tempo de Morgan, e acredito que, por essa época, era fato conhecido que as relações de pa rentesco que implicavam estas funções eram do tipo classifi-
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catório. Entretanto, somente através de trabalhos mais recentes, começando com o de Howitt, Spencer e Gillen, e de Roth na Austrália, e da expedição de das Cambridge Estreito de Torres, é que a grande importância funçõesaodos parentes através do sistema classificatório chamou a atenção dos sociólogos. Os procedimentos sociais e cerimoniais dos aborígenes aus tralianos abundam de características em que funções especiais são executadas por tais parentes, como o irmão mais velho ou o irmão da mãe, e enquanto estive no Estreito de Torres conse gui observar grandes conjuntos de deveres, privilégios e restri ções associados a diferentes relações de parentesco classifica tório. De maneira geral, embora não universal, os novos trabalhos têm demonstrado que a nomenclatura do sistema classificatório traz consigo uma quantidade de práticas sociais claramente defi nidas. Aquele que emprega um determinado termo de relação de parentesco para com outra pessoa, tende a comportar-se em re lação a ela de uma maneira definida: ele tem de cumprir certas obrigações para com o outro, goza de certos privilégios, e está sujeito a certas restrições em sua conduta para com ele. Estas obrigações, privilégios e restrições variam grandemente em número entre os diferentes povos, mas onde quer que existam, não conheço exceção à sua importância e ao respeito com que são mantidos por todos os membros da comunidade. Sem dúvi da, todos conhecem vários exemplos de tais funções associadas às relações de parentesco e creio ser preciso fornecer apenas um exemplo. Nas Ilhas Banks, o termo usado entre dois cunhados é wulus, walus ou walui, e um homem que aplique um destes termos a outro não pode pronunciar seu nome, nem devem, de modo algum, os dois comportarem-se de maneira familiar entre si. Em uma das ilhas, Merlav, estes parentes têm todas suas possessões em comum, e é obrigação de um ajudar o outro em qualquer dificuldade, preveni-lo em caso de perigo e, se neces
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dar-lhe algum dinheiro, mas isto é o máximo a que se pode chegar em termos de qualquer obrigação social por parte deste parente. O mesmo é verdade, em escala ampla, se nos voltarmos para aquelas regras sociais que foram incorporadas por nossas leis. É apenas no caso de transmissão de linha hereditária e de propriedades de uma pessoa que faleceu, sem fazer testamento, que parentes distantes são colocados em relação legal entre si e somente no caso de inexistência de parentes próximos. É ape nas quando forçada a agir assim, em circunstâncias excepcio nais, que a lei reconhece quaisquer das pessoas às quais apli cam-se os termos mais classificatórios de nossas relações de pa rentesco. Caso nos importemos com as funções sociais associa das às relações de parentesco, é nosso próprio sistema, não o classificatório, que estará exposto à reprovação, pois suas rela ções não trazem consigo direitos ou deveres. Durante o curso do recente trabalho da “expedição Percy Sladen Trust” na Melanésia e na Polinésia, consegui coletar um conjunto de dados que mostra, de maneira ainda mais clara do que até então sido possível, dos termos clas sificatórios nostem direitos sociais.6 aOsdependência sistemas classificatórios da Oceania variam grandemente de feitio: em alguns locais as re lações de parentesco são definitivamente diferenciadas por no menclaturas que são classificadas com outras relações de pa rentesco nos demais lugares. Assim, enquanto a maioria dos sis temas melanésios e alguns sistemas polinésios possuem um termo definido para o irmão da mãe e para a classe de parentes a quem a mãe denomina irmão, em outros sistemas este parente é colocado na mesma classe, e é chamado pelo mesmo termo que o pai. O ponto que agora irei focalizar é o da existência de uma conexão bastante íntima entre a presença de um termo especial para este parente e a presença de funções especiais ligadas a esta relação. 81
Na Polinésia, tanto os havaianos quanto os habitantes de Nine classificam o irmão da mãe com o pai, e em nenhum dos dois locais fui capaz de encontrar quaisquer obrigações, privi légios ou restrições especiais atribuídas ao irmão da mãe. Nas ilhas polinésias de Tonga e Tikopia, por outro lado, onde exis tem termos especiais para o irmão da mãe, este parente também possui funções especiais. O único local da Melanésia onde não consegui encontrar um termo especial para o irmão da mãe foi na parte oeste das Ilhas Salomão, e este foi também o único lugar em que não encontrei qualquer vestígio de funções sociais especiais atribuídas a este parente. Não conheço tais funções em Santa Cruz, e as informações que possuo sobre o sistema desta ilha derivam de terceiros, mas creio que futuras pesquisas qua se que certamente demonstrarão esta ocorrência. Através da minha experiência, na época entre dois povos distintos, consegui estabelecer uma correlação definida entre a presença de um termo de relação de parentesco e funções espe ciais associadas a tal relação. As informações gentilmente forne cidas pelo Pe. Egide, entretanto, parecem mostrar que a mesma correlação não tem é completa entre os melanésios. Mekeo, o irmão da mãe o dever de colocar o primeiro Em estojo peniano em seu sobrinho, mas ele não recebe nenhum termo especial de tratamento e é colocado na mesma classe que o pai. Entre os Kuni, por outro lado, existe um termo específico para o irmão da mãe, distinguindo-o do pai, mas não possuindo o tio, até onde seja do conhecimento do Pe. Egide, quaisquer funções especiais. Tanto na Melanésia quanto na Polinésia uma correlação similar aparece ligada a outras relações de parentesco, sendo a ex ceção mais proeminente a ausência de um termo especial para a irmã do pai nas Ilhas Banks, embora esta parenta possua fun ções bem definidas e importantes. Nestas ilhas, a irmã do pai é colocada na mesma classe da mãe como vev ou veve, mas
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mesmo aqui, quando a generalização parece sucumbir, ela não o faz completamente, porque a irmã do pai é distinta da mãe como veve vus rawe, “a mãe que mata um porco” em oposição ao simples veve usado para a mãe e suas irmãs. Existem então, a partir de agora, evidências definidas de uma parte do mundo que demonstram que a presença ou a ausência de termos especiais é dependente da existência ou não de funções sociais específicas, não sendo meras suposições para associar os termos classificatórios das relações de parentesco a funções sociais específicas. Podemos tomar como algo consuma do o fato de que os termos do sistema classificatório não são, como MacLennan supôs, meraschegou formas adeesta tratamento e modos de saudação mútua. MacLennan conclusão porque acreditava que os termos classificatórios não estavam associados às funções sobre as quais possuímos evidência abundante atual mente. Ele perguntava: “Quais direitos ou deveres são afetados pelas relações de parentesco compreendidas no sistema classifi catório?” e ele mesmo respondia, de acordo com o conhecimen to então ao seu dispor: “Absolutamente nenhum” .7 Esta passa gem deixa claro que, se MacLennan soubesse o que hoje sabemos, jamais teria tomado a posição de ataque a Morgan, na qual ele teve, e ainda tem, tantos seguidores. Posso agora voltar-me para a segunda linha de ataque, aquela que audaciosamente descarta a srcem da terminologia das relações de parentesco nas condições sociais e procura sua explicação na Psicologia. Inicialmente, a linha de argumentação que pretendo seguir é a de mostrar que várias características dos sistemas classificatórios têm sido diretamente determinadas por fatores sociais. Para cumprir esta tarefa deve-se pisar em terreno firme, do qual partir-se-á numa tentativa de ligar os caracteres gerais dos sistemas classificatórios ou de outros tipos de relações de parentesco a formas determinadas de organização social. Qualquer teoria completa de uma instituição social tem
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de levar em conta não apenas seus aspectos gerais, mas também seus detalhes, e proponho que comecemos pelos detalhes. Inicialmente retornarei à história do objeto, permanecendo nela por algum tempo para perguntar por que a linha de argu mentação que proponho seguir não foi adotada por Morgan e por que tem sido tão negligenciada por outros. Sempre que um novo fenômeno é descoberto em alguma parte do mundo, existe uma tendência natural da procura de paralelos em outros locais. Morgan viveu numa época em que a unidade de cultura humana era um tópico que muito excitava os etnólogos, e é evidente que um de seus interesses principais na da possibilidade que parecia abrirse nova para descoberta demonstrar decorreu a uniformidade da mesma. Ele esperava mostrar a semelhança do sistema classificatório em todo o mun do, contentando-se em observar certas variações amplas do sis tema relacionando-as a supostos estágios da história da socie dade humana. Morgan prestou pouca atenção a tais variedades do sistema classificatório, tais como ilustrado em suas próprias observações sobre os sistemas norte-americanos, e parece ter desprezado inteiramente certas características dos sistemas india nos e oceânicos que registrou, as quais poderiam ter-lhe permi tido demonstrar a íntima conexão entre a terminologia das rela ções de parentesco e as instituições sociais. A negligência de Morgan em atentar para estas diferenças deve ser imputada, em alguma medida, ao desconhecimento das formas simples de orga nização social que existiam na época em que ele escreveu, mas a falha dos demais em reconhecer a dependência que as carac terísticas dos sistemas classificatórios têm das instituições so ciais deve ser imputada principalmente à ausência de interesse sobre o assunto, induzida por sua adesão ao erro inicial de MacLennan. Aqueles que acreditam que o sistema classificatório seja meramente um código de saudações mútuas sem importância não estão dispostos a prestar atenção às diferenças relativamen te pequenas nos costumes que menosprezam.
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O crédito de ter sido o primeiro a reconhecer integralmente a importância social destas diferenças pertence a ). Kohler: em seu livro Zur Urgeschichte der Ehe, já mencionado anterior mente. Ele estudou minuciosamente os detalhes de vários siste mas diferentes, demonstrando que eles poderiam ser explicados por certas formas de casamento praticados por aqueles que usam os termos. Proponho, neste momento, lidar com a termi nologia classificatória a partir deste ponto de vista. Meu proce dimento será o de, inicialmente, mostrar que as características que distinguem entre si as diferentes formas do sistema classificatório têm sido diretamente determinadas pelas instituições sociais daqueles que utilizam os sistemas, e somente quando tal for estabelecido, tentarei relacionar os caracteres mais gerais do sistema classificatório e de outros sistemas em relação às insti tuições sociais. A razão pela qual fui capaz de empreender esta tarefa de maneira mais completa do que até agora tem sido possível, é porque observei na Melanésia uma série de sistemas de relações de parentesco que diferem entre si em maior escala que aqueles mencionados no livro de Morgan ou em outros que têm sido coletados desde então. Algumas das características que distin guem estes sistemas melanésios serão totalmente novas para os etnólogos, não tendo ainda sido observados em qualquer outro local. Proponho iniciar por um longo e conhecido modo de ter minologia que acompanha este costume amplamente difundido, conhecido como matrimônio entre primos cruzados. Em sua forma mais freqüente, um homem casa-se com a filha do irmão de sua mãe ou da irmã de seu pai; e ainda, embora mais rara mente, sua escolha está limitada a uma destas parentas. Tal matrimônio terá algumas consequências específicas. Va mos examinar um caso em que um homem contraia núpcias com a filha do irmão de sua mãe, conforme representado no diagrama abaixo:
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B 4= a
C
A 4= b
=d
E
f
Diagrama 1 8
Uma das conseqüências do casamento entre C e d será que A, que anteriormente às núpcias de C era apenas o irmão de sua mãe, agora tornar-se-á também o pai de sua esposa, en quanto b, que antes do casamento era a esposa do irmão da mãe de C, agora tornar-se-á a mãe de sua esposa. Reciprocamen te, C, que antes de seu casamento era o filho da irmã de A e filho da irmã do marido de b, agora tornar-se-á genro de ambos. Além do mais, E e /, os outros filhos de A e b, que antes do casamento eram apenas os primos de C, agora tornar-se-ão o irmão e a irmã de sua esposa. Similarmente, a, que antes do casamento de d era a irmã d, agora B, C do pai de serápai, também a amãe seu do marido, e se o marido da irmã de seu passará ser de o pai esposo; possuir quaisquer irmãos ou irmãs, estes primos tornar-se-ão seus cunhados e cunhadas.
A combinação das relações de parentesco que se criam a partir do casamento de um homem com a filha do irmão de sua mãe vai diferir para o homem e para a mulher, mas se, como usual, um homem casar-se seja com a filha da irmã de seu pai ou do irmão de sua mãe, estas combinações das relações de pa rentesco serão válidas para ambos, homens e mulheres. Outra conseqüência ainda mais remota do matrimônio en tre primos cruzados, quando tal instituição é estabelecida, é que as relações de irmão da mãe e de marido da irmã do pai podem ser combinadas em uma só pessoa, havendo uma combinação
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semelhante das relações de parentesco para a irmã do pai e esposa do irmão da mãe. Se o matrimônio entre primos cruzados for o costume habitual, B e b no diagrama 1 serão irmão e irmã; em conseqüência A será, ao mesmo tempo, o irmão da mãe e o marido da irmã do pai de C, enquanto b será a irmã do pai de C e a esposa do irmão de sua mãe. Entretanto, uma vez que o irmão da mãe é também o sogro, e a irmã do pai é a sogra, em cada caso três relações de parentesco diferentes esta rão combinadas. Através do matrimônio com a prima cruzada, as relações de irmão da mãe, esposo da irmã do pai e sogro esta rão combinadas em uma única pessoa, e as relações de irmã do pai, esposa do irmão da onde mãe esabemos sogra estarão Nos vários locais ser o igualmente matrimôniounidas. entre primos cruzados uma instituição estabelecida, encontramos ape nas aquelas designações comuns que acabei de descrever. Assim, no dialeto Mbau de Fiji, a palavra vungo é aplicada ao irmão da mãe, ao marido da irmã do pai e ao sogro. A palavra nganei é usada para a irmã do pai, a esposa do irmão da mãe e a sogra. O termo tavale é usado por um homem para o filho do irmão da mãe ou da irmã do pai assim como para o irmão da esposa e o marido da irmã. A palavra ndavola é usada não ape nas para o/a filho/a do irmão da mãe ou da irmã do pai quan do diferem do sexo de quem fala, como também é usada por um homem para referir-se à irmã de sua esposa e à esposa de seu irmão, e por uma mulher para designar o irmão de seu marido bem como para o marido de sua irmã. Cada um desses detalhes do sistema Mbau é conseqüência direta e inevitável do matri mônio entre primos cruzados, a partir do momento em que este se torne uma prática habitual e estabelecida. Este sistema fijiano não é o único na Melanésia. Nas Novas Hébridas que se encontram ao sul, em Tanna, Eromanga, Aneityum e Aniwa, o matrimônio entre primos cruzados é costu meiro e seus sistemas de relações de parentesco possuem carac terísticas similares àquelas de Fiji. Assim, em Aneityum, a pala-
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vra matak aplica-se ao irmão da mãe, ao marido da irmã do pai e ao sogro, enquanto o termo engak, utilizado para a prima cruzada, não é apenas usado para a irmã da esposa e para a esposa do irmão, mas também para a própria esposa. Mais uma vez, na ilha de Guadalcanal, nas Ilhas Salomão, o sistema de relações de parentesco é justamente o resultado da instituição do matrimônio entre primos cruzados. O termo nia é usado para o irmão da mãe e para o pai da esposa, e prova velmente também para o marido da irmã do pai e para o pai do marido, embora minha estadia na ilha não tenha sido pro longada o suficiente para permitir que se coletasse material ge nealógico quantidade adequada uma demonstração abrangenteem desta terminologia. De para modo similar, inclui tarunga mais entre seus significados a figura da irmã do pai, da esposa do irmão da mãe e da mãe da esposa, e provavelmente da mãe do marido, enquanto que a palavra iva é usada tanto para primos cruzados quanto para cunhados e cunhadas. Correspondendo a esta terminologia, parece não haver dúvidas sobre o fato de que o costume local era o de que um homem casasse com a filha do irmão de sua mãe ou da irmã de seu pai, embora não me fosse possível demonstrar genealogicamente esta forma de matrimônio. Estas três regiões, Fiji, Novas Hébridas do Sul e Guadal canal, são as únicas partes da Melanésia incluídas em minha pesquisa nas quais encontrei a prática do matrimônio entre primos cruzados, sendo que em todas as três regiões os sistemas de relações de parentesco são exatamente como seria de se espe rar de tal costume. Tentemos agora explorar até onde é possível explicar estas características dos sistemas melanésios de relações de parentesco por similaridade psicológica. Se não fosse pelo matrimônio en tre primos cruzados, o que pode existir para dar ao irmão da mãe uma maior semelhança psicológica com o sogro do que o irmão do pai, ou à irmã do pai uma maior semelhança psicoló gica com a sogra que a irmã da mãe? Por que existem dois
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NOTAS
1 Lewis Morgan,
System
s of
Consanguinit
H u m a n F a m ily : S m ith s o n ia n C o n tr ib u tio n s t o
y and A ffinity o K n o w le d g e ,
f the
Washington.
1871, vol. XVII. 2 John Ferguson MacLennan, Studies in Ancient History, 1st series, 1976, p. 331. 3 Ibid., p. 373. 4 “Zur Urgeschichte der Ehe”, Stuttgart, 1897 (extraído de Z e its c h . F. vergleich. Rechtswiss, 1897, XII, 197). 5 J o u r n a l R o y a l A n th r o p o lo g ic a l I n s titu t e , 1909, XXXIX, 77. 6 Uma versão completa destes e de outros fatos citados nestas conferências aparecerá brevemente num trabalho intitulado “The history of Melanesian society”, a ser publicado pela Cambridge University Press. 7 John Ferguson Maclennan, op. cit., p. 366. 8 Neste, como nos demais diagramas, as letras maiúsculas representam o sexo masculino e as minúsculas o sexo feminino. 9 Grant, G azett eer o f Ce ntral Provinces, 2.a,ed., Nagpur, 1870, p. 276.
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