COLEÇÃO OFICINAS DA HISTóRIA VOL. 4 Direção: Edgar Salvadori de Decca
Natalie Zemon Davis ····~@~·· · ·
O Retorno
de Martin Guerre Tradução Denise Bottmann
~
Paz e Terra . Oficinas da História
Copyright by Éditions Robert Laffont, SA, Paris, 1982 Traduzido do original em inglês: The Return of Martin Guerre cotejado com a versão francesa. Capa Isabel Carballo Revisão técnica Margareth Rago Stella Bresciani Revisão Barbara E. Benevides Arnaldo Rocha de Arruda Vera Lúcia F. P. Gião Fernando de B. Gião Cely Naomi Uematsu
Para Chandler Davis
CIP-Brasi!. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ-
D294r
Davis, Natalie Zemon O retomo de Martin Guerre I Natalie Zemon Davis; tradução Denise Bottmann. - Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1987. (Coleção Oficinas da Hist6ria, v_ 4) Tradução de: The Retum of Martin Guerre. Bibliografia. 1. Idade Média - Hist6ria. I. Título. li. Série. CDD-909.5 CDU-94
87-0643
Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua São José, 90, 11. andar Centro, Rio de Janeiro, RJ Tel.: 221-4066 0
Rua do Triunfo, 177 Santa Ifigênia, São Paulo, SP Tel.: 223-6522 Conselho Editorial Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso
1987 Impresso no Brasil/Printed in Brazil
Prefácio ····~@-····
STE LIVRO surgiu da aventura entre um historiador e uma forma diferente de falar sobre o passado. A estóE ria de Martin Guerre foi muitas vezes recontada. Nos anos 1540, no Languedoc, um camponês rico abandona sua mulher, filho e propriedades, e durante anos não há notícias suas; ele volta- ou é o que todos pensam- mas, depois de três ou quatro anos de agradável casamento, a esposa diz que foi enganada por um impostor e leva-o a julgamento. O homem quase convence a corte de que é Martin Guerre, mas no último momento surge o verdadeiro Martin Guerre. Imediatamente foram escritos dois livros sobre o caso, um deles por um juiz do tribunal. Por toda a França é comentado, entre outros pelo grande Montaigne. A estória foi recontada, ao longo dos séculos, em livros sobre impostores famosos e causes célebres, e ainda é lembrada na aldeia de Artigat, nos Pirineus, onde os acontecimentos ocorreram há quatrocentos anos. Inspirou uma peça, três romances e uma opereta. Quando li pela primeira vez o relato do juiz, pensei: "Isso precisa virar um filme". Raramente um historiador encontra uma estrutura narrativa tão perfeita ou com um apelo popular tão dramático nos acontecimentos do passado.
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PREFÁCIO
Agradecimentos
Por coincidência, fiquei sabendo que o roteirista Jean-Claude Carriere e o diretor Daniel Vigne iniciavam um roteiro sobre o mesmo tema. Consegui encontrá-los, e de nosso trabalho conjunto resultou o filme Le Retour de Martin Guerre. Paradoxalmente, quanto mais eu saboreava a criação do filme, mais aguçava-se meu apetite para ir além. Estava pronta a escavar o caso mais profundamente, a dar-lhe um sentido histórico. Ao escrever para atores e não leitores, surgiram novas questões sobre as motivações das pessoas no século 16 - por exemplo, se se importavam tanto com a verdade como com a propriedade. Ao observar Gérard DepardietÍ representando o papel do falso Martin Guerre, surgiram-me novas idéias de como pensar o desempenho do verdadeiro impostor, Arnaud du Tilh. Senti que tinha meu próprio laboratório histórico que gerava, não provas, mas possibilidades históricas. Ao mesmo tempo, o filme se destacava do registro histórico, e isso me inquietava. Sacrificava-se a origem basca dos Guerre, ignorava-se o protestantismo rural e, principalmente, o duplo jogo da mulher e as contradições internas do juiz eram amenizados . Essas alterações possivelmente ajudaram a dar ao filme a poderosa simplicidade que permitiu que a estória de Martin Guerre se convertesse antes de tudo numa lenda, mas também tornavam mais difícil explicar o que realmente acontecera. Nessa bela e forte recriação cinematográfica, onde estavam o espaço para as incertezas, os "talvez", os "poderia-ser" a que o historiador tem de recorrer quando as evidências são inadequadas ou geram perplexidades? Nosso filme era uma emocionante estória de suspense que mantinha o público tão incerto sobre seu final quanto os aldeões e juízes da época. Mas onde ficava o espaço para refletir sobre o significado da identidade no século '16? Assim, o filme colocou o problema da invenção para
o historiador de modo tão seguro quanto fora colocad?. à mulher de Martin Guerre. Tinha de voltar .ao meu ofl~i? original; mesmo durante as filmagens e.xtenores n.os Pmneus, eu escrevia às pressas para os arqu.ivos em Fo~x: Toulouse e Auch. Eu daria a essa impressionante estona seu primeiro tratamento histórico global, usando todos os papéis e documentos legados pelo ~assado. Descobriria por que Martin Guerre deixou sua aldeia e par~ onde fora; com? e por que Arnaud du Tilh se tornou um impos~or; se ludibriou Bertrande de Rols e por que não conseguiU sustentar sua posição. Isso nos daria novas in.f~rmações ~obre a s?ciedade rural do século 16. Eu seguma os aldeoes atraves das cortes criminais e explicaria os diferentes verédictos d~s juízes. E teria a rara oportunidade de mostrar um acont~~I mento da vida camponesa remodelado como uma estona por homens de letras. . . ., .. As coisas se mostraram mmto mais dificeis do_ que ~u imaginara - mas é um prazer relatar uma vez mais a história de Martin Guerre.
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N.Z.D. Princeton Janeiro de 1983 Agradecimentos
Agradeço a Princeton Universit~ .e a ~atio~al Endowment for the Humanities peio auxtho fmanceuo para a a preparação deste livro~ Tall_lbém ~uero agradecer aos ~~~ quivistas e à equipe dos Arch~v~s Depar~e~entales .de Ane ge, Haute-Garonne, Gers, Pmneus-Atlant_tcos, Gironde .e Pas-de-Calais pelas suas informações e g~nttleza, .que perm~ tiram um rápido avanço na minha pesqUisa. Mane-Rose Be-
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Agradecimentos
lier, Paul Dumons e Huber Daraud de Artigat tiveram muito boa vontade em partilhar comigo S\}as memórias da aldeia e da história de Martin Guerre. Jean-Claude Carriere e Daniel Vigne proporcionaram-me novas formas de pensar sobre as conexões entre as "correntes gerais" dos historiadores e a experiência viva das pessoas. Emmanuel Le Roy Ladurie ofereceu importante estímulo, quando foi necessário. Foram-me apresentadas idéias e sugestões bibliográficas por vários colegas nos Estados Unidos e França: Paul Alpers, Yves e Nicole Castan, Barbara B. Davis, William A. Douglass, Daniel Fabre, Stephen Greenblatt, Richard Helmholz, Paul Hiltpold, Elisabeth Labrousse, Helen Nader, Laurie Nussdorfer, Jean-Pierre Poussou, Virgínia Reinburg e Ann W altner. Alfred Soman foi generoso em suas informações para os capítulos sobre direito penal. Agradeço ainda a Denise Bottmann por contar a estória de Martin Guerre aos meus leitores brasileiros. Sem o auxílio do meu "verdadeiro" marido, Chandler Davis, essa história de um marido-impostor poderia nunca ter existido.
Sumário
Introdução De Hendaye a Artigat O Camponês Descontente A Honra de Bertrande de Rols As Máscaras de Arnaud du Tilh O Casamento Inventado Querelas O Processo de Rieux O Processo de T oulouse O Retorno de Martin Guerre O Contador da Estória Histoire prodigieuse, Histoire tragique Dos Coxos Epílogo Bibliografia Selecionada de Textos sobre Martin Guerre
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Notas
153 159
Sobre a autora
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ARREST MEMORABLE,
DV PAR-
LEMENT TO L OS E,
ilustrações
Conrenant vne hifloire prodigienfe, de noflre temps, auec cent belles, & doél:es Annotadons, de monlieur maifl:re x E A N" o E c o a. A s, Confetl1er en ladice Cour, & rapporteur du proces.
····-@-···· Primeira edição de Coras, Arrest Memorable (1561). Bibliotheque Nationale Primeira página de Arrest Memorable (1561). Bibliotheque Mazarine Os caminhos de Martin Guerre Soldados imaginários, ca . 1545. Archives départamentales de l'Ariege, 5E6220 Dança camponesa. Bibliotheque Nationale, Cabinet des Estampes Máscaras de Guillaume de La Perriere, Theatre des Bons Engins (Lyon, 1549). Houghton Library, Harvard University Um casal rural. Bibliotheque Nationale Acareação entre acusado e testemunha. Harvard Law School Library, Treasure Room Primeira representação pictórica do caso. Bibliot'.1eque Mazarine, Paris Jean de Coras. Bibliotheque Nationale, Cabinet des Estampes Um caso de notável semelhança. University of Pennsylvania, Furness Memorial Library, Special Collections, Van Pelt Library O castigo vem com perna de pau. Princeton University Library, Department of Rare Books and Special Collections
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rprononcé ti .A"fk Gtnerulx lt xii. St!ternwt ~ V. L X. A Jlai(oo c:cdo.
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Auec Priuilege du Roy.
RREST DV PARLEM ENT de T olofe, coritenanr vne hifioire memorable, & prodigieufe , auec cem beJies & dot;les Annotations, de monfieur maifire I E A N D E C O R A s, rapporteur du proces.
Texte de la toile du proces & de l'arreft. ~:W.WJ~~il V moys de Ianuicr, mil ~~~,., 1 cinq cens cinquanre"' neu~ ~~~ Bercrande de Rolz, du 1ieu
d'Artigat , au diocefe d~ Rieux, fe rend fuppliant, '"""".,._.... & plaintiue, deuant lé Iuge de Rieux : difant, que i~~~'~ vingt ans peuuéc dl:re pafefiant ie!Jne filie, de neufà ez,ou enu1ron, qu Martin Guerre, pour lors auec mariee, ans,fut dix aufsi fort ieune, & prcfque de mefmes aage, que la fuppliant. Annotation I. =""".-""'"-...,.
\U:.t/P._.... ,
Les mariages ainfi conrraaez auant l'aage legitime , ordonné de naturc,ou pa~ les loix policiques, ne p~uucnr eíhe (s'íl ellloylibl~ d.e ~o.nder.' IUfques aux fecrecz, & intcrutables iugemens de la diUinlte!plaifans,ny aggreables à Di eu, & r itfue, en ellle plus fouuent p1reufe,& mifcrablc, & (comme on voit iourncllement par cxemple) pleine, de mille repenrances : p:h' nnt qu'cn rellcs !uc~;~!;~~: pr~occ,s,& deuancees conionaions, ceux qui ont rramé,& gidlltmalrfic. pro!crcc Ic .cout , n'onr aucunemcnr refpeaé l'honncur, & 1.1 ~~·llt~~~~·:;., giOire de D1eu:& moins la .fin, pour laquellc cc f.'lint, & venera- de vor. & vor. blc etlac de mariage, ha cllé par luy inllitué du commenccment ~;1~~p.au Sis pcrc, du monde. • ( ui fuc clcuanr 1'o1fence de noíl:rc
·Introdução ····-@-· ··· BONNE qui a mauvais mary} a bien souvent "F EMME le coeur tnarri} ("Mulher boa com mau marido geralmente tem o coração ferido"). "Amour peut moult} argent peut tout" ("0 amor pode muito, o dinheiro pode tudo"). Esses são alguns dos provérbios com que os camponeses ca1 racterizavam o casamento na França do século 16. Os historiadores vêm conhecendo mais e. mais as famílias rurais, a partir de contratos de casamento e testamentos, registros paroquiais de nascimentos e óbitos, e relatos de rituais pré-nupciais e charivaris (com panelaços e assuadas após a cerimônia 2 de casamento). Mas ainda sabemos pouco sobre as esperanças e sentimentos dos camponeses; as formas como vivenciaram a relação entre marido e mulher, entre pai e filho; as formas como vivenciaram as restrições e possibilidades de suas vidas. Muitas vezes pensamos neles como pessoas com poucas escolhas; mas, de fato , será verdade? Será que alguns aldeões individualmente nunca tentaram modelar sua vida de formas insólitas e inesperadas? Mas como fazem os historiadores para trazer à superfície tais informações das profundezas do passado? Esquadrinhamos as cartas e diários íntimos, as autobiografias , memórias e histórias de família . Examinamos as fontes literárias
O RETORNO DE MARTIN GUERRE
Introdução
-peças teatrais, poemas líricos e contos - que, quaisquer que sejam suas relações com a vida real dos indivíduos, mostram-nos os sentimentos e reações que os autores consideravam plausíveis num determinado período. Já os camponeses, dos quais, no século 16, noventa por cento não sabiam escrever, deixaram-nos poucos documentos sobre sua vida privada. Os diários e histórias de família que chegaram até nós são escassos: uma ou duas linhas sobre nascimentos, mortes e o tempo climático. Thomas Platter pode nos dar um retrato de sua mãe, uma camponesa que trabalhava arduamente: "Quando quisemos dizer adeus à nossa mãe, ela chorou ... Exceto essa vez, nunca vi minha mãe chorar, pois era uma mulher corajosa e viril, mas rude". Mas tal página . foi escrita quando esse erudito hebraísta há muito tempo deixara sua aldeia suíça e os pastos de suas montanhas.3 Quanto às fontes literárias sobre os camponeses, quando existem, seguem as regras clássicas que fazem dos aldeões um tema reservado às comédias. A comédia apresenta personnes populaires, pessoas de baixa condição, assim diz a teoria. "A comédia descreve e representa em estilo simples e humilde o destino privado dos homens. . . Seu final é feliz, divertido e agradável.'' Assim, em Les Cent Nouvelles Nouvelles (coletânea de histórias cômicas do século 15, várias vezes reimpressa no século 16), um camponês ganancioso, ao surpreender sua mulher na cama com um amigo, apazigua sua cólera com a promessa de doze medidas de trigo e, para manter a transação, tem de permitir que os amantes concluam seus entretenimentos. Em Propos Rustiques, publicado pelo jurista bretão Noel du Fail em 1547, o velho camponês Lubin recorda o tempo do seu casamento, aos trinta e quatro anos: "Eu não sabia o que era estar apaixonado. . . Imagine se hoje em dia um rapaz passa dos 4 quinze anos sem ter tido nenhum caso com essas moças". A imagem do sentimento e comportamento camponeses que
emerge de tais relatos não deixa de ter seu valor - a comédia, afinal, é um instrumento precioso para explorar a condição humana - , mas é limitada em seu registro psicológico e no leque de situações em que se encontram os aldeões . Mas existe uma outra série de fontes onde os camponeses aparecem em situações desagradáveis e o desfecho nem sempre é feliz: os anais judiciais. É aos registros da Inquisição que devemos o quadro de Emmanuel Le Roy Ladurie sobre a aldeia cátara de Montaillou e o estudo de Carlo Ginzburg sobre o intrépido moleiro Menocchio. Os registros dos tribunais diocesanos estão cheios de casos matrimoniais, que vêm sendo usados pelos historiadores par?. entender como os aldeões e a arraia-miúda urbana manobravam no interior do rigoroso mundo .da lei e do costume, para encontrar uma companheira adequada. 5 Existem, enfim, os processos verbais de diversas jurisdições criminais. Eis, por exemplo, a história contada em 1535 por um jovem camponês lionês, que tenta obter do rei o perdão por um assassinato cometido impulsivamente. Mesmo na transcrição elaborada de seu procurador ou escrivão, temos um pequeno retrato de um casamento infeliz:
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Há cerca de um ano, o dito suplicante, tendo encontrado bom partido de casamento, desposou Ancely Learin ... a qual tem mantido e sustentado honestamente como sua mulher, e desejava viver em paz com ela. Mas a dita Ancely ... muitas vezes sem como nem pot quê, resolveu que tinha de matar e bater no dito suplicante, e de fato bateu nele .. . O dito suplicante aceitou pacificamente. . . esperando que se reduzisse com o tempo ... Não obstante isso ... no domingo, segundo dia desse presente mês de maio próximo passado, enquanto o dito suplicante jantava pacificamente com ela em sua casa, sem lhe fazer mal nem desprazer , pediu para beber do vinho que ela mantinha numa garrafa de vidro que não queria lhe dar. Assim disse que lhe daria na cabeça, o que fez. . . e quebrou a dita garrafa esparramando o vinho no rosto do dito supli-
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O RETORNO _DE MARTIN GUERRE cante. . . Sempre continuando no seu furor [ela] se levantou da mesa, pegou uma escudela e. . . a atirou contra o dito suplicante e · tê-lo-ia ferido gravemente [se] a criada do dito suplicante [não] se colocasse entre os dois. E então o dito suplicante . . . alterado e acalorado por tais ultrajes . . . pegou uma faca que estava na mesa. . . e correu atrás da dita mulher · ~ lhe deu um único golpe ... no ventre.
Sua mulher não viveu o suficiente para nos contar sua versão da história. 6 Tais documentos nos ensinam alguma coisa sobre as expectativas e sentimentos dos camponeses em épocas de agitações súbitas ou crises. Em 1560, contudo, vem ao Supremo Tribunal de Toulouse um càso criminal que lança uma luz sobre vários anos de casamentos camponeses; um ca:so tão extraordinário que um dos juízes escreveu um livro sobre ele. Chamava-se J~an de Coras, nativo da região, jurista eminente, autor de comentários em latim sobre o di- · reito civil e canônico, e, além do mais, humanista. O Arrest Memorable, como o in titulou, reunia todas as provas, argumentos formais e julgamentos do caso, incluindo ainda suas anotações. Não se tratava de uma comédia, dizia ele, mas de uma tragédia, mesmo que os atores fossem autênticos rústicos, "pessoas vis e abjetas". Escrito em francês, o livro foi reimpresso cinco vezes ao longo dos seis anos seguintes e conheceu ainda muitas outras edições em francês e latim antes do final do século.7 Combinando as características do texto jurídico e do texto literário, a obra de Coras sobre o caso Martin Guerre pode nos introduzir no mundo secreto dos sentimentos e aspirações camponeses. Não me incomoda que seja um caso excepcional, pelo contrário, pois uma disputa fora do comum por vezes desnuda motivações e valores que se diluem na agitação da vida cotidiana. Espero mostrar que as aventuras de três jovens aldeões não estão tão distantes das experiên-
Introdução
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cias mais corriqueiras dos seus vizinhos. Desejo também mostrar como uma estória que pareceria adequada apenas para um simples panfleto popular - e de fato foi relatada dessa forma - fornece material também para as "cento e onze belas anotações" do juiz. Finalmente, gostaria de arriscar a hipótese de que estamos frente a uma rara identificação entre o destino dos camponeses e o destino dos ricos e instruídos. Para as fontes, parti do Arrest de Coras de 1561 e da breve Historia de Guillaume Le Sueur, publicada no mesmo ano. Este é um texto independente, dedicado a um outro juiz do caso, pelo menos em duas passagens há detalhes que não se encontram em Coras, mas que verifiquei nos arquivos. 8 Utilizei Le Sueur e Coras como complemen,tos mútuos, embora, nas poucas passagens em que diverg~m, tenha dado maior peso ao juiz. Na ausência dos interrogatórios do processo (no Tribunal de Toulouse, faltam todos os registros dos processos criminais anteriores a 1600), investiguei os registros das sentenças do Supremo Tribunl:l.l para encontrar informações suplementares sobre o caso, a prática e atitudes dos juízes. No rastro dos meus atores rurais, consultei contratos notariais em muitas aldeias das dioceses de Rieux e Lombez. Quando não consegui encontrar meu homem (ou minha mulher) em Hendaye, Sajas, Artigat ou Burgos, fiz o máximo para, descobrir, através de outras fontes da época e do local, o mundo que devem ter visto, as reações que podem ter tido . Q_que aqui ofereço ao leitor é, em parte, uma invenção minha, mas uma invenção constrUídà pela atenta escuta das vozes do passado.
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De Hendaye a Artigat ····-@-····
O ANO DE 1527, o camponês Sanxi Daguerre, sua mulher, seu jovem filho Martin e seu irmão .Pierre abandonaram sua propriedade familiar na região basca francesa, e foram se instalar numa aldeia do Condado de Foix, a três semanas de caminhada. Não era algo usual para um basco. Não que os homens do Labourd fossem muito apegados à casa, mas seus deslocamentos geralmente levavam-nos ao outro lado do Atlântico, na caça à baleia, às vezes até Labrador. E quando se expatriavam, em vez de subir para o norte dos Pirineus, atravessavam o rio Bidassoa, para alcançar a região basca espanhola ou adentrar no interior da Espanha. Além disso, em sua grande maioria, os emigrantes, ao contrário de Sanxi Daguerre, não eram herdeiros da propriedade familiar, mas filhos mais novos que não podiam ou não queriam permanecer sob o teto ancestral. Aos olhos dos aldeões bascos, a importância da casa dos pais era tal que cada uma trazia um nome retomado pelo herdeiro e sua mulher: " [eles] se fazem chamar senhores e senhoras de tal-e-tal casa [mesmo] que esta não passe de um chiqueiro", como diria a seguir um comentarista malévolo. 1 Contudo, a casa de Sanxi Úaguerre estava longe de ser
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O RETORNO DE MARTIN GUERRE
De Hendaye a Artigat
um chiqueiro. Situava-se em Hendaye, uma aldeia na fronteira espanhola composta apenas por "algumas casas" segundo ~m viajante em 1528, mas cercada por amplas t~rras comuna1s. Encerrados entre as montanhas, o rio e o mar os habit~ntes dedicavam-se à criação, pesca e agricultura. solo ~rglloso, de fato, prestava-se apenas ao painço, entre os cerea1s, mas era excelente, em contraposição, para as macieira~. O_s irmãos Daguerre exploravam-no também para a fabncaçao de telhas. Certamente, a vida no Labourd não era fácil,' mas tinha seus bons aspectos, pelo menos aos olhos dos visitan.tes: a extraordinária beleza das aldeias; os praz~res ~ pengos da pesca de baleias, a repartição da presa, os d1vert1mentos dos homens, mulheres e crianças nas ondas. "As pessoas de toda esta região são alegres . . . estão sempre rindo, brincando, dançando, mulheres e homens", descrevem-nos em 1528. 2 No entanto,. Sanxi Daguerre decidiu partir. Talvez devido às eternas ameaças de guerra que pesavam sobre a região: o país basco e Navarra há muitos . anos eram um pomo de discórdia entre a França e a Espanha, e essa zona de fronteira sofria os conflitos que opunham Francisco I ao imperador Carlos V. Em 1523, as tropas imperiais lançaram-se contra Hendaye e arrasaram o Labourd. Em 1524, a peste atacou de modo particularmente violento. Foi no ano seguinte que nasceu Martin, o primeiro filho de Sanxi. Na or~gem da partida talvez estivesse um motivo pessoal, uma bnga entre Sanxi e seu pai, o "antigo senhor", o senior echekojaun, como se dizia em basco (admitindo-se que ainda estivesse vivo), ou outra pessoa qualquer; ou talvez a iniciativa viesse da mãe de Martin, pois as mulheres bascas 3 passavam por intrépidas e davam suas vontades a conhecer. . Qualq~er que fosse a causa, Sanxi arrumou suas bagagens e partm, levando consigo sua família e o irmão mais novo solteiro. A propriedad e ancestral permanecia em Hendaye, e um dia Martin a herdaria. Mesmo que quisesse, San-
x i não teria podido vendê-la facilmente, pois os Fors, isto é,
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os costumes da região de Labourd, proibiam a alienação dos bens patrimoniais, exceto em caso de extrema necessidade,4 c mesmo assim com o consentimento de todos os parentes. Em contraposição, era livre de dispor dos acquêts, isto é, tudo o que reunira com seu próprio esforço; e Sanxi levou recursos suficientes para se estabelecer honradame nte em sua nova aldeia. As estradas tomadas pelos nossos imigrantes em seu êxodo para o leste eram muito freqüentadas. Cruzavam uma zona de trocas secular entre os Pirineus e as planícies, que agora vivia um desenvolvimento econômico particularmente intenso, desde que Toulouse se afirmara como importante 5 centro distribuido r da região. Nesse perímetro entre os rios Save e Ariege, que serviriam de limites à sua nova existência, era um vaivém de carroças carregadas de nozes de pastel-dos-tintureiros, a caminho para as tinturarias de Toulouse; peles, lã bruta e cardada, madeira, trigo, vinho e frutas. Os Daguerre devem ter visto comerciantes e mascates dirigindo-se a feiras e mercados locais, pastores conduzindo o gado ou o rebanho para as montanhas no verão ou trazendoos às planícies de Toulouse e Pamiers para a invernada, peregrinos em direção ao santuário sempre popular de Santiago de Compostela, jovens deixando suas aldeias pelas ruas de Toulouse ou alhures. Finalmente, por uma decisão longamente amadurecida ou devido a informações apanhadas pelo caminho, detiveram-se em Artigat, uma aldeia situada na vasta planície ao sopé dos contrafortes dos Pirineus, a algumas horas de cavalgada de Pamiers. Artigat estendia-se de ambos os lados do Leze. Esse rio, insignificante em comparação ao Ariege a leste e ao Garonne a oeste, era porém suficientemente impetuoso para devastar os campos adjacentes em suas enchentes sazonais. Nessas terras e colinas circundantes viviam de sessenta a setenta famílias que, além do painço do Labourd muito fa-
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De Hendqye a Artigat
miliar a Sanxi e Pierre Daguerre, ainda cultivavam trigo , aveia e vinhas, e criavam vacas, cabras e sobretudo carneiros. Artigat contava com alguns artesãos: um ferreiro, um moleiro, um sapateiro e um costureiro; talvez houvesse alguns tecelões, como no burgo vizinho d~ Le Fossat. Periodicamente havia dias de mercado, e membros da família Banqueis se autodenominavam "comerciantes", embora as feiras medievais não passassem de uma lembrança e a maior parte do comércio local passasse por:- Le Fossat. Por volta de 1562, e mesmo antes, na chegada dos Daguerre, Artigat tinha seu próprio notário; contudo, um notário de Le Fossat fazia sua ronda pelas aldeias, para firmar os contratos.' Os Daguerre devem ter compreendido imediatamente que tipo de laços econômicos uniam Artigat às aldeias e burgos vizinhos. As trocas mais importantes ocorriam com a aldeia de Pailhes a montante, Le Fossat a jusante e o burgo de Le Carla numa colina a oeste. A zona privilegiada de trocas se estendia a jusante até Saint-Ybars, a leste para além de Pamiers, e do lado dos Pirineus até Le Mas-d'Azil. Jean Banqueis de Artigat arrenda uma égua a um camponês de Pailhes por um prazo de seis anos. Um comerciante de Le Fossat arrenda bois a dois lavradores de Le Carla, que lhe pagarão em trigo, na feira de Pamiers, em setembro. Jehannot Drot, lavrador de Artigat, vai a Le Fossat, em todos os invernos, para vender a lã dos carneiros do seu rebanho espanhol. Firma o contrato : pagam-lhe com dinheiro à vista e volta para entregar a lã no mês de maio. Outros vendem a lã bruta a comerciantes de Pamiers. Um pastor de Le Carla conclui um acordo de gasailhe (como se diz na langue d'oc) com um comerciante de Saint.Ybars: o pastor se encarrega de alimentar e pastorear trinta ovelhas às suas expensas, as despesas da estiada "nas montanhas" e os lucros serão repartidos meio a .meio entre os dois associados . J ames Loze de Pailhes concluiu um trato de parceria com um comerciante de Pamiers, em relação a cinqüenta e duas ovelhas : dividem
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O RETORNO DE MARTIN GUERRE
De Hendaye a Artigat
gastos e lucros; após a tosquia, a lã é enviada a Pamiers, em troca de sal para Pailhes. Os cereais e o vinho também circulam, sob forma de arrendamentos pagos em gênero ou compras realizadas pelos camponeses em Pamiers e Le Fossat.7
deyro cedem seis sesteiros de suas terras aos irmãos Grose de 9 Le Mas-d'Azil que, após a compra, instalam-se em Artigat. Essas vendas esporádicas dos propres, como se chamavam os bens herdados, não significavam que os ribeirinhos do Leze não fossem apegados às suas terras. Se os bascos davam nomes às suas casas, os camponeses de Artigat e seus vizinhos faziam o mesmo em relação aos terrenos. Setores intclros da jurisdição de Artigat traziam os nomes das famílias da região: "Les Banqueis", não distantes do centro da aldeia, "Rols" a oeste, "Le Fustié" perto das margens do Leze, onde vivia o moleiro Fustié. Os campos, as terras aráveis e também os vinhedos recebiam nomes ·_ "a la plac", "al sobe", "les asempres", "al cathala", "la bardasse" - , e os camponeses que os adquiriam às vezes adotavam esses 10 · títulos, como alcunha. Naturalmente, em Artigat, talvez mais do que em Hendaye, essa identificação entre família e terra era regida pela estrutura econômica e social da aldeia. No ápice, figuravam as famílias prósperas como os Banqueis, seguidos pelos Rols, que possuíam várias propriedades espalhadas por Artigat, algumas cultivadas por eles mesmos e outras arrendadas a lavradores por pagamento fixo ou parcela da colheita. Eram esses homens que anualmente compravam do bispo de Rieux o direito de coletar as rendas dos cargos eclesiásticos de Artigat e dirigiam a irmandade paroquial da igreja da aldeia. Davam-se com as melhores famílias locais que não pertenciam ao mundo dos senhores: os Loze de Pailhes, os Boeri, comer~iantes e sapateiros rurais de Le Fossat, os Du Fau, notários em Saint-Ybars. Na outra extremidade, encontravam-se Bernard Bertrand e sua mulher, que, em tudo e para tudo, possuíam um miserável campo de dezesseis sesteiros para alimentar a si e a seis filhos; o pastor Jehannot Drot, quando os tempos eram difíceis, obrigado a pedir de empréstimo vinho e trigo; os irmãos Faure, parceiros que esta-
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Esse pequeno mundo azafamado não podia ser totalmente estranho aos Daguerre, pois as trocas entre aldeias e burgos também eram praticadas no Labourd. A novidade fundamental em relação à região basca residia na cessão de terras, tanto por herança como por venda. Aqui, na planície ao pé dos Pirineus, as pessoas comuns praticamente não se esf~rçavam para manter o patrimônio familiar. Na região de Artlgat, raramente os testamentos davam mais vantagens a um filho em detrimento dos outros, e o costume era o de dar dotes às filhas e dividir a herança em tantas parcelas qua_?to.s fossem os filhos, mesmo que chegassem a cinco; na ausencra de herdeiros masculinos, a propriedade era repartida entre as filhas. Às vezes, dois irmãos ou dois cunhados decidem cultivar juntos as terras, ou ainda um irmão deixa a aldeia, cedendo sua parte a um outro herdeiro; em geral, como se pode ver no terrier, isto é, registro fundiário de Artigat no século 17, os herdeiros dividem a terra e vivem lado a lado. Quando uma família cresce e passa a contar com duas gerações de membros casados, não é absolutamente o modelo basco, antigo senhor e jovem senhor, que aqui funciona, e ,sim a combinação entre o genitor viúvo (geralmente 8 a mãe).~: um dos filhos casados. Assim compreende-se que a propnedade possa ser vendida, de tempos em tempos, com muito menos obstáculos do que no Labourd. Desse modo vê-se um padre deLe Fossat vender seu jardim para um comerciante, alegando que teve de sustentar seus velhos pais nos últimos oito anos. Da mesma forma, Antoine Basle de Artigat cede, pela módica quantia de 35 libras, "a quarta parte dos bens e sucessão do falecido J acques Basle seu pai'' a um homem do povoado vizinho, e em 1528 os irmãos Cal-
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De Hendaye a Artigat
vam com os pagamentos tão atrasados que o proprietário tinha-os citado para comparecer à justiça. 11 Entretanto, nenhum habitante de Artigat, fossem seus bens modestos ou importantes, pagava taxas nem realizava corvéias para um senhor. Eram "livres e alodiais", do que não pouco se orgulhavam. Por mais de um século, não havia na aldeia domínios pertencentes a nobres; um certo Jean d'Escornebeuf, senhor de Lanoux, a oeste de Artigat, comprara terras após a chegada dos Daguerre, mas tinha de Pl!gar a derrama como qualquer outro camponês. Na aldeia, toda a administração da justiça- alta, média e baixa- era da alçada da própria comunidade ou do rei representado em primeira instância pelo juiz de Rieux, a várias horas de cavalo de Artigat, pelo senescal de Toulouse e, para a apelação, pelo Tribunal de Toulouse. Nos escalões inferiores do aparelho judiciário, encontravam-se os três ou quatro cônsules ·~< de Artigat, notáveis locais, anualmente autorizados pelo juiz de Rieux a portar os barretes vermelho e branco, insígnia de suas funções. Exerciam sua jurisdição sobre questões relativas à agricultura, particularmente em matéria de terras comunais (em Artigat, geralmente de pequena extensão), e fixavam a data das colheitas de inverno; firmavam os inventários de bens em caso de morte; puniam as fraudes nos pesos e medidas. A vigilância dos detentos, a manutenção da ordem pública- os delitos de blasfêmia ou as rixas-, igualmente eram de sua alçada. Convocavam periodicamente assembléias compostas pelos homens da aldeia. 12 Esse sistema agradaria aos Daguerre, que provinham de uma região onde (apesar do poder crescente dos "nobres" Urtubies} o poder senhorial era frágil e os paroquianos tinham o direito de se reunir livremente e promulgar estatutos relativos às necessidades da comunidade. Se tivessem se estabelecido um pouco mais a montante, em Pailhes, onde
residiam os Villemurs, senhores de Pailhes e capitães docastelo de Foix, tudo teria sido diferente. 13 O caso · Martin Guerre não teria seguido seu curso caso um senhor local ou seus representantes tivessem autoridade para intervir. Em sua situação, os habitantes de Artigat só podiam contar com os mexericos e pressões dos seus pares. Afora essas liberdades específicas, Artigat apresentava uma identidade razoavelmente fluida e heterogênea. Do ponto de vista lingüístico, a aldeia estava na fronteira dos diferentes sons nasais e líquidos da Gasconha e do Languedoc. Geograficamente, ligava-se ao Condado de Foix, mas, juntamente com Pailhes e algumas outras aldeias, dependia do governo do Languedoc. Embora próxima a Pamiers, sede de diocese, Artigat fazia parte da diocese mais distante de Rieux. A nomeação do prior da principal igreja paroquial, Saint-Sernin de Artigat, dependia dos cônegos de SaintEtienne, na ainda mais distante Toulouse; o cura de Bajou, uma paróquia menor que estava sob a jurisdição de Artigat, também era designado por um cabido sediado em Toulouse. Os habitantes de Artigat tinham de atravessar muitas fronteiras em suas atividades de agricultores, pastores, litigantes e cristãos, e recebiam vários rótulos: gascões, "foixianos", . 14 1angue doc1anos. É, então, nessa aldeia que chegam os Daguerre. Instalam-se a leste do Leze, compram terras (talvez os propres de algum habitante) e fundam uma telharia como a de Hendaye. Durante um certo período, os dois irmãos moram sob o mesmo teto e prosperam - "tornaram-se bastante abastados para gente de modesta condição", escreverá mais tarde Guillaume Le Sueur, a seu respeito. Suas posses aos poucos estendem-se pelas colinas perto de Bajou, e às telhas e tijolos vieram se somar a cultura do trigo, do painço, os vinhedos e a criação de carneiros .15 Para serem "aceitos", tiveram de adotan:ertos costumes do Languedoc. Daguerre tornou-se Guerre; se Pierre alguma
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* Consul: ant:gamente, juiz escolhido entre os comerciantes para intender em assuntos comerciais, aqui traduzido simplesmente como cônsul (N. do T.)
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vez tivesse utilizado a forma basca do seu primeiro nome, Betrisantz ou mesmo Petri, doravante teria renunciado a ela. A mulher de Sanxi provavelmente continuava a carregar cestos de trigo sobre a cabeça, mas deve ter dado novos pespontos em sua touca e nos enfeites de sua saia, de modo a adequá-los aos de suas vizinhas. Na missa paroquial, deve ter se acostumado ao fato de que, aqui, as mulheres não se adiantavam aos homens em suas oferendas, não estavam autorizadas a fazer coletas para os fundos da sacristia e não podiam preencher as funções de sacristãs .16 E todos, é claro, puseram-se a falar correntemente a langue d'oc e habituaram-se a um mundo onde a palavra escrita desempenhava um papel mais importante do que em Hendaye. "A língua dos bascos", escrevia o conselheiro de Coras, "é tão obscura e difícil que muitos acharam que ela não podia se exprimir por nenhum caractere escrito." Na realidade, fora editada em Bordeaux, em 1545, uma coletânea de poesias em basco, mas no Labourd todos os documentos administrativos e contratos eram redigidos em gascão ou francês. Entre eles, os Guerre teriam realizado oralmente seus negócios, em basco, espanhol ou gascão. Na zona entre Garonne e Ariege, muitas vezes recorreram aos tabelionatos para redigir os contratos. Estes dividiam suas · atividades entre vários pequenos burgos e, antes mesmo que o édito de Villars-Cotteret de 1539 declarasse obrigatório, redigiam contratos em francês com, aqui e ali, algumas grafias e palavras occitânias. Os Guerre tinham adquirido prática suficiente quanto à escrita para fazer contas simples, embora, como a maioria dos habitantes de Artigat, nunca tenham assinado contratos com seus nomes e provavelmente não sabiam ler. Na verdade, não havia nenhum mestre-escola em Artigat que pudesse ensiná-los.17 Enquanto se radicavam na aldeia, a família aumentava. A mulher de Sanxi deu à luz mais crianças, e quatro filhas sobreviveram à mortalidade infantil. Pierre Guerre se casou
, , :.\'puindo o costume basco de que os irmãos casados não v 1wtn sob o mesmo teto, foi se instalar ao lado, em sua l'tnpria casa. Nessa ocasião, sem dúvida procedeu-se a uma p u·tilha da propriedade. A seguir, em 1538, os Guerre 'P"I' ·cem num contrato que mostra o caminho percorrido dtlt': tnte onze anos em. Artigat: trata-se do casamento do printngênito e único filho de Sanxi com Bertrande de Rols, filha .1, ubastada família Rols do outro lado do Leze. O fato de o pai de Bertrande ter considerado aceitável :1 1111ião é um testemunho suplementar sobre a relativa abert11ru das pessoas da aldeia em rel~çã~ aos forasteiros. O_s < :ruse tinham chegado deLe Mas-d Azll, e prosperavam: u11lwm-se associado aos Banqueis e foram nomeados cônsules. ( :nntr:aíam-se muitos casamentos dentro da jurisdição de Artigat, freqüentemente entre cônjuges de duas paróq~ias, como no caso dos Rols e dos Guerre, mas por vezes la-se procurar mais longe o esposo ou esposa. Jeanne de Banqueis trouxe Philippe Du Fau de Saint-Ybars, ao passo que Arnaud ch.: Bordenave foi buscar a jovem esposa e sua mãe numa alc.leia da diocese de Couserans. Embora a região basca fit'
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'' Em sua queixa dirigida ao juiz de Rieux, Bertrande declara que, "sendo menina de nove a dez anos casou com Martin Guerre, então também muito novo, ~ quase da me~ma iq~de da suplicante" (Coras, Arres~, p. 1) ._ Mas em 1560, durante o processÔ, considera-se Martin Guerre com trmta e cmco anos
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direito canônico, não era válido. Contudo, os Rols e os Guerre estavam muito ansiosos por uma aliança, e o cura de Artigat, messire Jacques Boeri, era de uma família local e evidentemente não levantou nenhum impedimento. Como comentaria Le Sueur, "grande é o desejo, não só entre os grandes senhores, mas também entre as pessoas comuns, de casar cedo seus filhos para ver continuar neles sua posteridade".19 Mas a vontade de assegurar uma posteridade não era o único móvel nessas uniões precoces. Os bens e trocas de serviços certamen te pesariam na balança: a olaria dos Guerre pode ter sido importan te aos olhos dos Rols, da mesma forma como para os Guerre, aflitos com todas as suas filhas, contava o irmão de Bertrande. O contrato de casamento entre Bertrande e Martin não chegou até nós, mas podemos imaginar o seu conteúdo a partir de muitos outr.os que lhe sobreviveram. Em geral, nessa região entre o Garonne e Ariege, o casamento não acarretava grandes transferências de terra de uma a outra família camponesa: como vimos, a maior parte da propriedade era conservada para ser dividida entre os filhos, por presentes inter vivos Ol! testamentos. Mas as filhas recebiam um dote equivalente ao pr~ço de venda de, digamos, um vinhedo ou um pequeno campo. Nas famílias mais modestas, o pagamento era escalonado em vários anos. Os abastados entregavam a soma total ao casal, e às vezes acrescentavam um pedaço de terra. O dote da jovem Bertrande de Rols provavelmente pertencia a esta última categoria: um pagamento à vista entre 50 e 150 libras - um presente pequepo para uma noiva da cidade, mas generoso pelos padrões rurais - e um vinhedo a oeste do Leze, chamado Delboura t. (Ficava próximo a outras terras (p. 76), e os testemunhos relativos ao número de anos que viveu com sua mulher e tudo o mais mostram que tinha perto de catorze anos na época do seu casamento. Quanto a Bertrande, provavelmente atingira a adolesçência , conforme sugiro no ~apítulo 3.
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dns Ro1s e encontra:se posteriormente, no século 16, entre 11 : proprieda des dos Guerre.) Além disso, havia a mobília e 11 enxoval trazidos por todas as noivas da região: um leito ,·tJtn travesseiros de penas, lençóis de linho, colchas de lã, lllll
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O Camponês Descontente ····~@~··· ·
ADA SE PASSOU no leito conjugal naquela noite, nem nos oito anos que se seguiram. Martin Guerre era impotente; o casal estava sob "um feitiço maléfico".' Talvez não fosse a primeira desventura de Martin. Não deve ter sido fácil para um menino do Labourd crescer em Artigat. Em primeiro lugar, fora-lhe preciso ziguezaguear entre duas línguas: o basco dos pais e a língua falada pelas pessoas que via na olaria, nas vindimas e na missa. Às vezes, imagina-se, tivera permissão para correr com os meninos da aldeia - os mais velhos queixavam-se de moleques que roubavam as uvas nas vinhas. Não teria ouvido graçalas dos camaradas por causa do nome Martin? Bastante difundido em Hendaye, aqui era insólito em meio aos Jehan, Arnaud, }ames, Andreu, Guillaume, Antoine, Pey e Bernard de Artigat. Que fosse o nome de uma aldeia vizinha, não fazia nenhuma diferença. Martin era nome de bicho, de asno, e na tradição local os pastores usavam-no para o urso que 2 encontravam nas montanhas. Entre os Guerre, o jovem senhor se deparava não só com uma, mas duas fortes personalidades masculinas, igualmente exaltadas, como veremos. Cercado somente por meninas mais novas, sua irmã Jeanne e as outras três, além das
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primas, filhas de Pierre Guerre - apenas pisseuses ("mij _ nas"), e mal se~ pênis crescera dentro da braguilha, eis uma nova _memna entrava em sua vida, Bertrande de Rols. ] am~Is deve ter passado pela cabeça de Sanxi Guerre que seu filho pudesse ter dificuldades em consumar seu casamento. P?dia-se reprovar na aldeia uma união demasiado pr~c?ce, pois o_ ~apazote não tinha os meios econômicos nem o JUIZo necessarw para fundar uma família e também p _ or ' que os "humores , aquosos e moles do seu corpo de adolesfente, segu~do a crença do século 16, produziam um sêmen raco dema:s. _Mas, uma vez com pêlos no púbis, julgava-se que os agmlhoes da carne despertariam naturalmente e até ' com um certo excesso. No início, Martin e sua família provavelmente esperaram que su~. impot~ncia passasse. Na região basca, um cos~~m~ permltla aos Jovens "a liberdade de terem uma exfenencia com suas mulheres ... antes de esposá-las e tomáas na forma de um ensaio". Podia-se considerar como uma prova sexua~. Mas Martin prometia se tornar um rapaz alto e magro, ágil como diziam ser os bascos exímio na esgrima i< e exer~ícios físicos. Bertrande se t;ansformara numa en~antadora JOV~m (belle seria a primeira palavra que Coras ma~s tarde u~~fla para descrevê-la). No entanto, nada acon~eCia. A. fam1ha de Bertr~nde pressionava-a para se separar . e Martm. Em_ caso de nao-consumação após três anos, um casamento pod~a ~er desfeito: segundo o direito canônico, Bertrand~ est~na hvre para contrair uma nova união. 3 A situaçao era humilhante, e a aldeia não deve ter deixado de ~azê-lo~ sentir. Um casal que, ao cabo de um certo tempo, .nao ~egis_trava nenhuma gravidez era o alvo perfeito para ~t_:I carzbarz. ou calivari, como se chamava o charivari na reg1ao ~e Pam1ers. Os rapazes que se mediam ou lutavam com Martm devem ter pintado o rosto, vestido roupas de
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aos no res.
irt;io. do século 16, a esgrima não era um jogo elegante reservado avia uma versão aldeã do esporte. (N. do T.)
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tnulher e se reunido em frente a casa dos Guerre, batendo dornas de vinho, tocando sinos e fazendo retinir as espudas.4 Era realmente humilhante. Martin estava enfeitiçado. Como Bertrande dirá mais t1ude, estavam "ligados" pelos encantos de uma feiticeira com inveja dos Guerre e da sua aliança com os Rols, de modo que não podiam consumar o casamento. (Atualmente, a impotência do marido costuma ser atribuída à esposa dominadora. No século 16, responsabilizava-se uma outra mulher, exterior ao casal.) A se crer nos tratamentos usados tanto no Labourd como no Condado de Foix, sem dúvida consultaram mais de uma vez uma dessas curandeiras famosas pela sua sabedoria. Finalmente, após oito anos, uma velha "aparecida miraculosamente, como que caída do céu" mostrou-lhes como romper o sortilégio. Os padres rezaram quatro missas por eles e deram-lhes a comer hóstias e fogaças. Martin consumou o casamento; Bertrande engravidou imediatamente e deu à luz um filho que recebeu no batismo o nome basco de seu avô Sanxi. 5 Infelizmente, as coisas não melhoravam para o jovem pai. Se se julgar o estado de espírito de Martin Guérre pela forma que escolheu para passar os doze anos seguintes de sua vida, é-se levado a concluir que, afora a esgrima e os exercícios físicos, pouquíssimas coisas lhe agradavarri em Artigat. Sua sexualidade precária após anos de impotência, a enfiada de irmãs em idade de casar, sua posição de herdeiro agora realçada pelo nascimento do seu filho Sanxi, tudo isso lhe pesava . Na melhor das hipóteses, num lar basco, as relações entre o antigo senhor e o jovem senhor eram delicadas; pode-se imaginar o que deviam ser entre um pai autoritário como Sanxi e seu filho relutante. Boa parte do tempo, historiadores do movimento populacional julgam que a migração camponesa se deve apenas a considerações econômicas; o caso dos Guerre mostra que a história não se encerra aí. Martin sonhava com uma outra l'tn
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vida, longe dos campos de painço, das fábricas de telhas, das proprie dades e dos casamentos. Viajara um pouco. Fora a Pamiers, a leste, para sua crisma e seguramente em outras ocasiões, e a oeste estivera em Mane, junto ao rio Salat, onde fizera amizade com o estalajadeiro. 6 Mas tudo o reconduzia a Artigat. A sociedade aldeã tinha, de fato, instituições que serviam como válvulas de segurança para os jovens, permitindo-lhes escapar tempor ariamente às restrições da vida familiar. Na região basca, era o mar e a pesca da baleia. Certamente Martin ouvira estórias dos seus pais e tio a respeito. Nos Pirineu s e na planície , havia a transumância dos pastores e seus rebanhos, como Le Roy Ladurie mostro u admiravelmente em relação a Pierre Maury de Montaillou.7 A primeira opção, por razões práticas, era inacessível a um habitan te do Condado de Foix. A segunda estava excluída por razões sociais: não convinha a um membro das melhores famílias de Artigat . Os que levavam os carneiros a pastar nas montanhas não tinham a responsabilidade da comercialização da lã, das vendas e negócios que se tratava m no vale do Leze. E havia outras saídas? Le Fossat tinha uma escola; o jovem Dominique Boeri a freqüen tara e preparava-se para cursar direito na universidade. Havia as tropas que Francisco I arregimentava no Languedoc e outros lugares . No Labourd, um Daguer re servira no exército do rei. Mesmo um honorável notário de Le Mas-d'Azil podia sonhar com isso e rabiscar soldados imaginários em seus registros. Enfim, havia a Espanh a que, todos os anos, atraía homens da diocese de Rieux. Pey dei Rieux de Saint-Ybars, "deCidido a ir ao país da Espanh a para ganhar a vida", fez seu testamento antes de partir, de forma que, se viesse a morrer , sua irmã poderia herdar seus bens. François Bonecase de Lanoux partia com sua mulher para Barcelona, mas em certos con. tratos de casamento o cônjuge previa o sustento e aloja-
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mento de sua mulher na casa dos pais, caso decidisse partir para a Espanha após as núpcias. 8 . To?os .eram empreendimentos para os quais Sanxi Guerre Jamais daria autorização a seu filho Martin. Mas, em 1548: quando .Martin ia atingir seus vinte e quatro anos, e ~eu filho Sanx1 era ainda bebê, deu-se um fato que tornou urelevante o consentimento do antigo senhor. Martin "roub?~" uma pequena quantidade de trigo de seu pai. Como vivi.am sob o mesmo teto, esse "furto" provavelmente refletia uma luta p~lo poder entre os dois herdeiros. Mas, de qualquer forma, o roubo, particularmente no seio da família era um crime imperdoável segundo o código basco. "Os bas~ cos são fiéis", escreveria o juiz Pierre de Lancre; "acreditam que o furto é uma vileza da alma e uma submissão de um coração abjeto e baixo que mostra apenas sua miséria." Martin Guerre se colocara numa situação impossível. "Por temor à severidade do seu pai", deixou patrimônio, pais, filho e mulher, e por anos não mais se ouviu falar dele. 9
ção conta com cerca de 19.000 habitantes, ainda é a capital comercial de Castela, o centro de distribuição de lã e uma etapa para os peregrinos a caminho para Santiago de Compostela. Naquele ano, seria nomeado bispo dessa magnífica catedral Francisco de Mendoza y Bobadilla, antigo bispo de Coria, erudito e humanista, amigo em vida de Erasmo e Vives, cardeal desde 1544 e membro do partido imperial na primeira sessão do Concílio de Trento. Encarregado de altas missões políticas pela Igreja e Carlos V, Dom Francisco permaneceu vários anos na Itália. Em agosto de 1550, delegou ao seu irmão Pedro de Mendoza, um comendador da ordem " militar espanhola de Santiago, capitão do exé.rcito espanhol, para apresentar suas credenciais ao cabido da catedral. Pro-· vavelmente Pedro providenciou que tudo se desenrolasse sem problemas no palácio episcopal durante sua ausência." Foi neste palácio que o jovem camponês de Artigat se . .tornou lacaio."~< Do seu baixo lugar na esc~la, agora contemplava um mundo de homens importantes, cônegos oriundos da nobreza, grandes comerciantes do Ayuntamiento de Burgos, jesuítas recém-chegados e outras pessoas que iam e vinham pela residência do bispo. Observava o ritual faustoso da catedral, que contrastava singularmente com a rusticidade da missa paroquial de Bajou e Artigat. Perçorria as ruas fervilhantes da cidade, espada à cinta, com a libré de uma das maiores casas da Espanha. Terá lamentado a aldeia que deixara para trás ou contado seu·passado ao confessor?
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Seria interessante saber se Martin Guerre tornou a p~rcorrer em sentido contrário o caminho que seu pai fizera
vmte anos antes, e se visitou o Labourd. Seu estatuto de herdeiro, agora, era contestável e talvez tenha preferido não se enco?trar com Johanto Daguerre e seus outros primos, para evitar que prevenissem sua família. Mas ao menos terá deseja~o ver sua região natal e as ondas de suas praias. O certo e que alcançou a Espanha através dos Pirineus, aprendeu o castelhano e terminou em Burgos como lacaio na casa de Francisco de Mendoza, cardeal da igreja romana. 10 Em 1550, Burgos é uma cid~de próspera: sua popula-
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,., O comentário de Coras é: "Esse Martin Guerre, que partiu jovem para as Espanhas, onde o Cardeal de Burgos, e depois seu irmão se serviram dele como lacaio" (p. 137). Francisco de Mendoza não residiu em seu bispado antes de 1557, e nesta data Martin já deixara Burgos. Supus que fora lacaio no palácio de Burgos antes da chegada de Francisco. É possível que tenha servido na casa do cardeal em Roma e Siena - o que teria introduzido Martin Guerre a um número ainda maior de novidades - , mas não há menção de uma estadia na Itália nem no relato em latim de Le Sueur. Os bascos eram apreciados como lacaios no século 16 devido à sua alacridade. Gargântua tem um lacaio basco; Montaigne fala do seu amor ao :movimento (Rabelais, Gargântua, cap. 28; Montaigne, Essais, III, cap. 13).
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O RETORNO .DE. MARTIN GUERRE
A seguir, Martin passou para o serviço do irmão de Francisco, Pedro, que deve ter f10tado suas qualidades atléticas e quis que se tornasse soldado. Uma campanha levou-o a Flandres e fez parte daquele exército que Filipe II enviaria a ~aint-9uentin contra a França. Pode ser que jamais tenha Imagmado que era culpado de lesa-majestade; mas provavelmente jamais imaginou que um dia voltaria à França. Enquanto combatia (seja sob as ordens do seu superior Pedro, na cavalaria ligeira, seja na infantaria), Martin atravessou sem um arranhão os primeiros dias do bombardeio espanh~l à cida_de da Picardia. Depois veio o dia 10 de agosto, o dia de Sao Lourenço, em 1557, quando os exércitos de Filipe TI puseram em debandada as tropas francesas vindas em socorro à cidade sitiada, massacrando muitos soldados e fazendo prisioneiros, entre os quais o condestável de Fral).ça. "Recolheu-se grande botim, armas, cavalos, correntes de ouro, prata e outras coisas", anotava em seu diário um ofic~al · espanhol. Pedro de Mendoza fez dois prisioneiros, dos quais extraiu um resgate de 300 escudos. Quanto a Martin Guerre, um arcabuz francês antingiu-o na perna. Amputaram-na. Acabavam-se seus dias de agilidade. 12
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A Honra de Bertrande de Rols ·· ··~@._,_.__
....
O MOMENTO em que começava a vida de aventuras . de Martin Guerre, sua mulher Bertrande mal tinha vinte e dois anos. A '.'bela jov.em·" ·também devia olhar para o seu passado com algumas queixas. Tanto quanto, se sabe·, Bertrande passara sua infância em companhia de pelq menos um irmão e junto ~ sua mãe, inicianc~o-se no trabalho' da roca- e outros trabalhos femini. nos. Em At-tigat e aldeias vizinhas, às vezes as moças eram colocadas ern outras casas - conhece-se o caso de uma mulher de um çomerciante de Le Fossat que legou suas roupas à empregada - , mas, em famílias como as de Bertrande, 1 as moÇas ajudavam a cuidar da casa até se casarem. Em seguida, antes de ter tido oportunidade de dançar ao som de violinos com um rapazola da aldeia em 15 de agosto, na Festa de Nossa Senhora em Artigat, antes de ser cortejada, ei-la casada com Martin. Parece provável que já conhecesse suas "flores", como na época chamava-se a menstruação, sem o que suas famílias não teriam permitido que lhe administrassem, na noite de suas núpcias, o "despertar", essa beberagem de fecundidade destinada a facilitar a gravidez. Mas, muito jovem, conduzida a um lar estranho, sentia o mesmo mal-estar de Martin; também ela estava "enfeitiçada", conforme declarou anos mais tarde perante o tribunal
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de Rieux. É verdade que as feiticeiras, quando tentavam se opor ao coito entre marid o. e mulher, reservavam seus cuidados ao membro viriL"' Mas pode acontecer a uma mulher: em Malleus maleficarum, como explicam os inquisidores, ''o diabo pode enlouquecer de tal modo a imaginação [da mulhe r] que ela passa a considerar seu marido tão execrável que por nada consente que ele a conheça". 2 Bertrande não teria formulado as coisas nesses termos, mas é claro que, por algum tempo, sentiu-se aliviada por não' poderem ter relações sexuais. Contudo, quando seus pais a pressionaram para se separar de Marti n, recusou-se categoricamente. Aqui devemos nos deter sobre alguns traços do caráter de Bertrande de Rols que se manifestavam desde os dezesseis anos: a preocupação pela sua reputa ção de mulher, uma independência obstinada, uma astúcia e um realismo, finalmente, de que se servia para se mover d~ntro das restrições impostas ao seu sexo. Sua recusa em anular o casam ento- o que tê-la-ia deixado livre para contra ir um novo matrimônio segundo a vontade dos seus pais - permitia-lhe subtrair-se a certos deveres conjugais. Dava-lhe oport unida de de viver uma adolescência em companhia das irmãs mais novas de Marti n, com quem se enten dia bem. Além disso, podia-se vangloriar de sua virtude. Com efeito, o juiz Coras falará de sua resistência à vonta de dos seus pais nos seguintes termos: "este ato dava (como uma pedra de toque) grande prova da honestidade da dita de Rols" ; 3 certas comadres de Artig at poderiam expressar os mesmos sentimentos. 1 ' De fato, ao comentar as palavras de Bertrande, Coras supõe que só Martin fora enfeitiçado e descreve apenas as formas de sortilég ios que visam ao· macho. A impotência feminina, diz ele, deve-se a causas naturai~, tal como · uma mulher que seria "tão apertada e estreita ·em suas partes secretas que não ·poderia sofrer companhia carnal de homem" (Arrest, pp. 40-4). Ma·s não era a·· caso de Bertrande. Os versados em direito canônico, da mesma forma, pouco se interessaram pelas causas "ocultas" da impotência feminin a .(Pterik Darmon, Le tribunal de l'impuissancé, Paris, Seuil, 1979, pp . 48-52). ~,
A Honra de Bertra nde de Rols
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A seguir, quando Bertrande estava prepa rada para tal, :t velha "apar eceu miraculosamente, como que caída do céu'~ c ajudou-a a romper o malefício. Acabou por dar à luz uma ·riança um acontecimento que, para ela (como para as outras aldeãs cujos casamentos começavam sob melhores auspícios), era o primeiro verdadeiro passo para a vida adulta. Bertra nde conhecia esse mundo pela sua mãe, pela sua sogra basca) pelas madrinhas. O que lhe reservava ele? Antes dé tudo) era um mundo onde a estrut ura formad e a identidade pública estnvam exclusivamente associ'adas aos home ns. A partícula ·''de" , que se encontra com tanta fre-
D_ança camponesa, '~or Georges Reverdy, Le Branle, ca. 1555
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qüência nos nomes femininos em Artigat e redondezas, não traduzia o desejo dos camponeses em imitar os nobres, mas uma maneira de expor o sistema de classificação da sociedade aldeã. Bertrande era "de Rols" como seu pai era Rols; . Jeanne era "de Banqueis", seu pai, Banqueis; Arnaude "de Tor", seu pai, Tor. Nas margens do Leze, osherdeiros eram s~I?p~e .homens, como vimos, a menos que ~ · família, por má sorte, tivesse apenas filhas. Em suas deliberações, os cônsules da aldeia admitiam apenas os homens; as mulheres casadas e as viúvas só eram convocadas para receber ordens.4 " casa, .Na vida cotidiana do trabalho no campo e na as mulheres, porém, des_empenhavam um papel importante. . Realizavam as tarefas tipicamente femininas de mondar, podar as vinhas, cortar as uvas. Ao lado dos maridos ar' rendayam e cultivavam as terras, tosquiavam os carneiros e levavam as vacas e bezerros em gasailhe. Uma certa Maragille Cortalle, uma viúva de Saint-Ybars, adquiriu en gasailhe dezoito ovelhas por conta própria, comprometendo-se a mantê-las "como bom pai de família" durante quatro anos. Fiavam a lã para os tecelãos de Le Fossat e faziam pães que vendiam a outros aldeões. Mulheres como Marguerite, dita La Brugarsse, de Le Carla, emprestavam pequenas quantias de dinheiro, ao passo que as esposas e viúvas de pequenos comerciantes rurais, como Bertrande de Gouthelas e · S~zan ne de Robert, de Le Fossat, vendiam quantidades· consideráveis de trigo, painço e vinho. Naturalmente exerciam o ofício de parteiras e, ao lado de alguns cirurgiões, dispensavam cuidados aos doentes. 5 . . . ' As mulheres, ao enviuvareJill, dependiam da boa vontade dos seus maridos e filhos. Em princípio, o costume do Languedoc garantia à viúva a recuperação do dote que trouxera, aumentado em um terço do seu valor. De fato, em Artigat e nos burgos e aldeias vizinhas , os contratos de casamento não se pronunciam a respeito. Só prevêm os direitos ~
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cIn mulher sobre os bens do marido no caso específico em que seus pais ou mãe viúva pretendam viver com o casal. A maior parte dessas disposições vem consignada no testatnento do marido. Na melhor das hipóteses, ele estipula que sua mulher poderá gozar do usufruto dos seus bens enquanlo viver "em estado de viuvez" (alguns testamentos acres·cntam "e honestamente"). Se realmente confia nela ou deseja recompensá-la "por seus agradáveis serviços", especifica que poderá usufruir dos seus bens " sem prestar contas u ninguém no mundo". Se ela não se entende com seus herdeiros, o marido inclui em ata uma cláusula detalhada a seu favor: sete sesteiros de trigo e uma pipa de bom vinho por ano, uma roupa e um par de sapatos e meias de dois em dois anos, lenha para o aquecimento, etc. Em caso de segundo casamento, ela receberá uma soma total, talvez previamente fixada, em geral equivalente ao seu dote aumentado em um terço. 6 · O funcionamento desse mundo camponês estimulava não só as qualidades domésticas e agrícolas da· esposa, como também sua habilidade em manobrar os homens e pesar as vantagens em se manter viúva ou casar novamente. Uma esposa de Artigat jamais poderia esperar alcançar a posição de Rose d'Espaigne, senhora de Durfort, uma nobre herdeira que comprava terras e atormentava seus meeiros instalados a leste da aldeia. Mas podia esperar desfrutar do respeito das outras aldeãs e retirar do seu estado de viúva um certo poder informal; receber o título honorífico de Na e ser livre para outorgar um vinhedo a um filho recém-casado e meias a todos os seus afilhados e afilhadas. As mulheres parecem ter se adaptado ao sistema, afrouxando-o graças ao profundo laço e cumplicidade secreta entre mãe e filha. Esposas, faziam dos maridos seus herdeiros universais. Viúvas , preferiam os filhos às filhas, como herdeiros. Sentiam-se gravemente ofendidas e exigiam reparação quando tratavam-nas de bagasses , isto é, prostitutas.
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Uma boa mulher de Le Fossat arrastou sua vizinha à justiça não só porque esta lhe batera durante uma briga por . uma questão de galinheiros, mas também porque chamara-a de ''galinha'' .7 Tais eram os valores em que Bertrande de Rols crescera. Em todas as vicissitudes que iria atravessar, Bertrande · jamais manifestou a mínima veleidade de se diferenciar ou se destacar da sociedade de sua aldeia. Contudo, empenhava-se em seguir seu próprio caminho. Pode ter sido influenciada pelo exemplo de sua sogra, uma dessas mulheres base cas donas de si. Muitas vezes herdeiras e exercendo uma autonomia de pleno direito, eram famosas pelo seu "atrevimento" e, mais tarde, engrossariam as fileiras das "feiticeiras" .8 No mesmo momento em que se instaurava um novo tipo de relação entre Bertrande, agora mãe de um filho, e sua sogra, Martin Guerre desaparecia sem deixar rastos. Era a catástrofe. Mesmo entre os camponeses amigos de mexericos, o desaparecimento inesperado de um membro ermnente de sua comunidade perturbava os espíritos, deixando um vazio inquietante entre os jovens casais. Para os Guerre, que não eram do lugar, era umnov() escândalo a ser esquecido. Os pais de Martin morreram sem notícias do filho. O velho Sanxi acabara por perdoar; legava ;. a Martin sua propriedade de Hendaye e as terras de Artigat. Os notários locais então sabiam como proceder enquanto o herdeiro universal·estivesse "ausente da presente região": "se- estivesse morto ou não voltasse", havia outros designados para substituí-lo. Entrementes, Pierre Guerre era o administrador das propriedades do seu irmão e tutor das irmãs solteiras de Martin. 9 Ao longo desses anos, provavelmente no início de 1550, após o vazio deixado pela morte do velho Sanxi, Pierre Guerre esforçou-se por salvaguardar as relações entre os Guerre e os Rols e por ajudar a mulher abandonada de
Martin . Viúvo com filhas, casou-se com a mãe de Bertrande, que igualmente perdera o marido.~< Seu contrato de casamento pertencia àquela categoria especial dos contratos firmados com a reunião de dois lares. A mãe de Bertrande, sem dúvida, trazia o dinheiro e os bens que lhe deixava o defunto em caso de segundo casamento; Pierre deve ter se comprometido a sustentar Bertrande e seu filho Sanxi e, indubitavelmente, terão decidido partilhar as novas aquisições. A casa vizinha onde tinham vivido o antigo senhor e o jovem senhor provavelmente foi alugada com um contrato a curto prazo (ninguém esperaria que a jovem Bertrande, em tais circunstâncias, fosse conservá-la), e· Pierre Guerre tornou-se chefe de uma família essencialmente composta de mulheres, em suas próprias terras. O estatuto de Bertrande perdera muito do seu brilho com todos esses acontecimentos. Nem esposa nem viúva, vivia novamente na casa de sua mãe. Nem esposa nem viúva , devia enfrentar as outras mulheres no moinho, na olaria, nas vindimas. E a lei poucas escapatórias oferecia. Desde o pontificado mais brando de Alexandre III no século 12, os doutores da Igreja tinham decretado que uma mulher não podia se casar novamente na ausência do marido, qualquer que fosse a duração de tal ausência, exceto se tivesse provas seguras de sua morte. Das duas tradições simultâneas no direito civil, foi a mais rigorosa, a de Justiniano, que prevaleceu. O Tribunal de Toulouse invoca-o em 1557, ao julgar um caso de casamento: "Durante a ausência do marido, a mulher não pode voltar a casar: a menos que tenha prova de sua morte. . . Nem mesmo quando ele tenha ficado ausente vinte anos ou mais ... E a morte deve ser provada por
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* Coras não cita a data de casamento de Pierre Guerre e a mãe de Bertrande (pp. 67-8), mas esta parece a mais plausível. Jamais se referiu às filhas de Pierre como irmãs ou meia-irmãs de Bertrande, portanto deviam ter nascido do casamento anterior. Quaisquer que fossem as disposições financeiras testamentárias que seu marido possa ter tomado em relação a ela, a mãe de Bertrande, devido à posição de sua filha, tinha interesse em se casar novamente.
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testemunhas, que depõem com certeza ou grandes e evidentes suposições" .10 Naturalmente , os camponeses podiam tentar contornar a lei (jamais se privaram disso) e forjar uma história de morte por afogamento ou na guerra, ou simplesmente ignorar a lei, bastando que houvesse na aldeia um padre compreensivo. Mas Bertrande afastou essa solução. Seu interesse material mantinha-a ligada ao seu filho e ao que, um dia, seria sua herança; além disso, possuía um senso inflexível de sua dignidade e reputação. Indiferente às investidas e convites, a bela jovem vivia (todos os testemunharam depois) "virtuosa e honradament e" .11 Sempre trabalhando, ela criava seu filho Sanxi e esperava. Talvez tenha sido amparada em sua solidão pelas suas quatro cunhadas e a sábia velha que a aconselhara durante seu "enfeitiçamen to". Os curas que se sucederam a Jacques Boeri na igreja de Artigat não pertenciam a famílias locais e nem sempre residiam na paróquia; Bertrande só podia confiar seus desgostos a Santa Catarina, cuja capela se encontrava no cemitério. 12 Mas certamente terá refletido sobre sua existências, que dividia em três partes, conforme expôs posteriormente ao juiz de Rieux: os nove ou dez anos de sua infância, os nove ou dez anos do seu casamento, os anos de sua espera que ascendiam a oito, e talvez mais .13 Além de uma vida de mulher que teria apenas um curto período de sexualidade, além de uma união com um marido que não a compreendia, sem dúvida temia-a e, em todo o caso, abandonara-a, Bertrande sonhou com um esposo e amante que voltaria e seria diferente. Foi então que, no verão de 1556, um homem se apresentou a ela como o Martin Guerre há tanto tempo perdido. Este homem antes era conhecido pelo nome de Arnaud du Tilh, dito Pansette.
4 As Máscaras de Arnaud du Tilh ····-@-·· ·· U TILH ERA um nome comum na Gasconha e LanD guedoc, ouvido com muita freqüência na diocese de Lombez, onde nascera Athaud . Seu pai, Arnaud Guilhem du Tilh, era originário da aldeia de Sajas; sua mãe, em solteira Barrau, vinha da aldeia vizinha de Le Pin. Esses lugares se encontravam a noroeste da diocese de Rieux, bem adiante de Garonne; uma boa jornada a cavalo separava Sajas de Artigat. Os contemporâneos de Arnaud chamavam essa região de Comminges . "Fértil em trigo", escreverá seu compatriota François de Belleforest, "fértil em vinho, frutas, feno, óleo de noz, painço e outras coisas necessárias à vida humana. [A região de Comminges] abunda em homens e estes valentes e guerreiros ao máximo. . . com uma infinidade de grandes burgos e ricas aldeias e castelos antigos, aí havendo tanto ou mais nobreza do que em qualquer outro lugar da França." 1 Arnaud du Tilh provavelmente descreveria sua província em termos menos bucólicos. Sajas tinha seu senhor Jean de Vize , ao qual se sucedeu o filho Séverie . A antiga casa de Comminges-Péguilhan possuía o senhorio de Le Pin . Isso significava, além dos pagamentos usuais, o direito de inter-
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ferir na vida da aldeia, como por exemplo em Mane, onde os senhores se empenhavam em limitar as liberdades dos habitantes, opondo-se por exemplo à abertura de uma taberna e um açougue. "A abundância de gente" não significava apena~ reforços de mão-de-obra para os trabalhos no campo, mas atnda uma pressão sobre as terras disponíveis. Na diocese de Lombez., com muita freqüência os notários tinham de preparar contratos de parceria. 2 No entanto, a região conhecia uma intensa átividade econ~mica dentro da órbita de Toulouse. Os camponeses de SaJas eLe Pin iam a Rieumes e, adiante, a Isle-en-Dodon, ~ombez,
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entre meninos com quem se entendia bem. Baixo e encorpado, não se destacav_a especial~ente nas justa~ "e j_ogos ?a aldeia. Em contrapartida, seduzta pela sua eloquenc1a e dtspunha de uma memória assombrosa ~e, c_ausar inv_eja a um ator. Era o tipo de menino que os v1gar1os de SaJas - os únicos na aldeia que sabiam assinar seus nomes - notavam pelas suas aptidões e enviavam à escola para fazer dele um 5 futuro padre. Com Arnaud teriam arriscado uma amarga decepção. " ' como um "deb och ado " , "de ma, v1"da., O rapaz se destacou bebta cet.:tamente é, "consumado em todos os vícios". Isto e se divertia na taberna com as moças de Rieumes, e talvez também freqüentasse as meretrizes de Toulouse, _Ape~ida ram-no Pansette ("barriga"), devido aos seus apetites Imoderados: devia ser louco por carnavais, bailes de máscara, dançase todos os divertimentos das "abadias de juventude" (grupos de jovens) que ocupavam um lugar tão considerável na vida das aldeias da Gasconha. Tinha o sangue quente e estava sempre pronto a jurar pela cabeça, corpo, sangue e chagas de Cristo, blasfêmias certamente menos graves do que as que punham em causa a Virgem ~aria, mas mes~o assim bastante sérias para que se associasse seu nome as pessoas desordeiras, jogadores de cartas e trapaceiros. A astúcia de Pansette era tão maravilhosa que até chegaram a suspeitar de magia, acusação quase lisonjeira se se pensar que não se dirigia a alguma velha solitária, mas a um rapaz de vinte anos. 6 À sua maneira Arnaud du Tilh não se adaptava ao mundo camp~nês d~ família e às propriedades da mesma forma que Martin Guerre em Artigat. f:mbora suas pr?ezas conduzissem-no a Pouy-de-Touges e ate Tolouse, ardta de vontade de alcançar o universo além das colinas ~a dioce~e de Lombez. Sempre poderia se unir às tropas da mfantana real esses "aventureiros " entre os quais os gascões figuravard com destaque. Os notários de Gimont muitas vezes
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tinham de redigir os testamentos "dos soldados de guerra" da região. Após uma série de pequenos furtos, Pansette deixou a aldeia para servir a Henrique II nos campos de batalha da Picardia .7
esbelto e um pouco mais moreno do que Arnaud. Descobril"am essa semelhança não por sua própria observação, mas através de terceiros; no século 16, os aldeões praticamente não tinham oportunidade de formar uma imagem de suas fisionomias com freqüentes olhadas ao espelho (objeto que não se encontrava numa casa camponesa). A revelação os consterna, fascina-os, e como abundam os provérbios camponeses que estabelecem uma relação entre o feitio dos olhos ou o desenho do maxilar e certos traços do caráter/ eles se perguntam se essa semelhança não iria além da simples aparência física. Trocam confidências. Martin se exprime com uma certa ambigüidade a respeito de sua herança e esposa, talvez diga tacitamente ao seu sósia: "Fique com ela". E Pansette pensa: "Por que não?". De qualquer forma, uma das raras confidências de Pansette a um conhecido de Sajas durante seu período em Artigat é: "Martin Guerre morreu, deu-me seus bens". 10 É um roteiro possível, mas não é o que Arnaud du Tilh finalmente confessou. Afirmou jamais ter encontrado Martin Guerre antes de vir a Artigat. Se disse a verdade, o fenômeno de identificação é tanto mais assombroso ("mais maravilhoso", "mirabilis magis", dirá mais tarde Le S1JPur) e psicologicamente mais provável: aí está toda a diferença entre assumir a vida de um outro e limitar-se a imitá-la. Ele voltou da Picardia ' por volta de 1553, sem dúvida após as batalhas de Thérouanne, Hesdin e Valenciennes. Um dia, passando por Mane sur le Salat, encontra dois amigos íntimos de Martin, messire Dominique Pujol e o estalajadeiro Pierre de Guilhet, que o tomam pelo desaparecido de Artigat.11 Então desperta o trapaceiro em Pansette. Informa-se com a maior habilidade possível sobre Martin Guerre, sua situação, sua família e as coisas que costumava dizer ou fazer. Serve-se de Pujol, Guilhet e "outros amigos familiares e vizinhos" dos Guerre, os dois primeiros, na realidade,
····-@-···· Será que os dois fugitivos em algum momento se encontraram an_tes que du Tilh decidisse encarnar o personagem ~e Martm Guerre? Em seu depoimento perante o juiz de R1eux, Bertrande de Rols disse que poderiam ter sido colegas de regimento - "E estando o dito du Tilh como é provável, acompanhado na guerra pelo dito Martin' e deste (sob prete~to de amizade) tendo ouvido várias coisas privadas e partlc~lares dele e de sua mulher", sugestão que forneceu matenal a Coras para uma dissertação sobre a amizade traída . Um ponto do depoimento de Arnaud em Rieux dá algum fundamento à hipótese de um encontro anterior entre os dois homens; é a sua enumeração dos lugares e pessoas que Martin Guerre visitou na França e na Espanha durante a sua _ausência, os quais foram todos verificados pela Corte. Essa mformação podia provir de Martin ou de outros que o conheceram. Entretanto é difícil entender como poderiam ser amigos íntimos no exército, visto que Martin estava lutando pdo rei da Espanha, inimigo do rei da França, e Arnaud deve ter voltado da Picardia antes mesmo de Martin ter deixado Burgos. 8 Contudo, os dois rapazes poderiam ter se conhecido em suas perambulações pela sua região ou alhures. Imaginemos por _um momento, por puro exercício intelectual, o que se podena passar se o herdeiro de Artigat tivesse feito amizade com o camponês língua de ouro de Sajas. Perceberam que eram parecidos, embora Martin fosse mais alto, mais
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puderam até tornar-se cúmplices. 12 Naquele mundo movimentado, podia recolher informações na rede de boatos da aldeia sem precisar ir até Artigat - e eram abundantes; incluindo detalhes íntimos como o lugar onde Martin deixara as meias brancas, num certo baú, antes de partir. Aprendeu os nomes de muitos aldeões, e os feitos e gestos de Martin ao longo dos d~z ou quinze anos anteriores. Adquiriu algumas noções sobre o Labourd e aprendeu algumas palavras de basco. O estudo do seu papel levou meses, já que Arnaud só chegou em Artigat em 1556.>'< · O que havia, então, de excepcional nas aldeias e burgos do século 16 quanto a se mudar de nome e adotar uma nova identidade? Tais acontecimentos eram cotidianos. Os Daguerre deixaram Hendaye, tornaram-se Guerre e mudaram seu modo de vida. Qualquer camponês que se estabelecesse -ã -uma boa distância da região natal fazia o mesmo. De resto, mesmo os que permaneciam no local podiam assumir uma alcunha, um apelido. Em Artigat, essa alcunha era ligada à propriedade; em Sajas, dependia da personalidade: um dos camaradas de Arnaud na aldeia recebera a alcunha de Tambourin ("tambor im"), como também Pansette. 13 Mas assumir uma falsa identidade? Por ocasião do Carnaval ou outras festas, permitia-se que um jovem camponês se fantasiasse de animal, mudasse de sexo e condição social e se exprimisse através dessa máscara. Num charivari, um aldeão podia desempenhar o papel de outro, apresentarse como a pessoa ridicularizada por um casamento desigual ou suas infelicidades domésticas. Mas tratava-se de máscaras temporárias, adotadas para o bem geral. Havia, porém, embustes menos desinteressados: mendigos em perfeita saúde que fingiam ser mancos ou cegos, pessoas que usurpavam um nome falso para conseguir uma herança ou desfrutar de alguma vantagem econômica. Narra-
dores contavam a História de Três Irmãos: dois impostores tinham tentado reivindicar a herança do verdadeiro filho; b príncipe descobriu quem era o filho legítimo, ao ordehar qUe os três disparassem flechas contra o cadáver do pai . Gente de verdade também tentou. Em 1557, por exemplo, um certo Aurelio Chitracha, originário de Damascus, veio a Lyon onde, valendo~ se do nome do falecido Vallier T rony, pôs-se a embolsar as somas devidas a Trony, até qUe as freiras que tinham herdado os bens do defunto descobriram a impostura, e foi preso. No mesmo ano, à distância de apenas algumas ruas, Antoine Ferlarz e Jean Fontanel anuncia_vam em alt:o·e bom som chamar-se Michel Mure, e como cada um deles tomara os préstimos de um notário, cada qual enviava recibos e recebia em seu nome, até que Mure descobriu o mistério. 14
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Não se sabe exatamente onde viveu Arnaud durante esse período preparatório. Talvez não tivesse voltado a Sajas e sua antiga "vida de deboches".
Máscaras de Guillame de La Perriere Theatre des Bons Engins
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Quanto a Arnaud, tinha algo a ganhar com sua instalação em Artigat, pois a herança de Martin Guerre era mais atra~nte do que a su~. Mas também é evidente que em seus meuculos,os preparativos, sua investigação, memorização e talvez ate em sua representação, Pansette ia além da máscara do ator carnavalesco e do embuste do caçador de heranças; aspirava a forjar uma nova identidade e construir uma outra vida nessa aldeia às margens do Leze.
5 O Casamento Inventado ····~@~····
NOVO MARTIN não se dirigiu diretamente a Artigat. Como registra Le Sueur, instalou-se na hospedaria de uma aldeia vizinha, provavelmente Pailhes. Contou ao hospedeiro que era Martin Guerre e derramou lágrimas ao ouvir notícias de ·sua mulher e família. O boato chegou aos ouvidos de suas quatro irmãs, que correram à estalagem, saudaram-no com alegria e voltaram para buscar Bertrande. Esta, porém, quando o viu, ficou surpresa. Só depois que ele lhe falou com ternura, lembrando-lhe as coisas que tinham feito juntos, mencionando as meias brancas, é que se lançou em seus braços e o beijou. Fora a barba que a impedira de reconhecê-lo imediatamente. Da mesma forma, Pierre Guerre examinou-o atentamente, sem querer acreditar que fosse seu sobrinho, até que Arnaud fizesse alusões às suas atividades passadas. Finalmente, apertou-o contra si e agradeceu a Deus pelo seu retorno. Mesmo então, o novo Martin não seguiu para Artigat, permaneceu na hospedaria para descansar das fadigas da viagem e se recompor de uma doença. (Le Sueur afirma que estava com "sífilis" e demonstrava estranhos escrúpulos de consciência ao proteger o corpo de Bertrande da doença, agora que estava prestes a contaminar sua alma e o leito conjugal.) Esse arranjo deu oportunidade a Bertrande para
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cuídar dele e se habituar à sua presença. Isso lhe permitiu aprender mais sobre o passado de Martin Guerre. Quando se sentiu melhor, ela o levou a casa, acolheu-o como marido e ajudou-o a reconhecer os aldeões. A recepção que lhe reservou a aldeia não foi muito diferente da dos seus parentes. Ele cumprimentava as pessoas pelos nomes, e quando pareciam não o reconhecer, evocava coisas que tinham feito juntos há anos. A cada um explicava que servira ao rei de França, passara vários meses na Espanha e agora estava desejoso de ficar novamente em sua aldeia, com seus parentes, o filho Sanxi e, acima de tudo, sua mulher Bertrande. 1 Acho que podemos explicar a aceitação inicial pela família e vizinhos sem recorrer à feitiçaria de que posteriormente foi acusado e sempre negou. Antes de tudo, desejava-se seu retorno a Artigat, de uma maneira talvez ambígua, pois aqueles que voltam sempre frustram certas esperanças e desfazem o equilíbrio de poder, mas, de modo geral, sua reaparição respondia a uma expectativa. O herdeiro e chefe de família Martin Guerre retomara seu lugar. Além disso, voltava após ter-se anunciado, assim preparando Artigat para reconhecê-lo como Martin Guerre. 2 Esse 'reconhecimento era reforçado por sua arte de persuasão e pela exatidão de suas lembranças . É verdade que não apresentava totalmente a mesma aparência que tinha ao partir, e sem dúvida não tinha a mesma linguagem do antigo Martin Guerre. Mas os Guerre não tinham retratos com que pudessem comparálo e era natural que um homem mudasse ao envelhecer, e que a vida de soldado transformasse um camponês. Assim, quaisquer que fossem as dúvidas sobre sua identidade, os habitantes de Artigat guardaram-nas para si ou até enterraram-nas por algum tempo, permitindo que o novo Martin entrasse na pele do seu personagem. ·
Um casal rural de Roussillon, sul de Artigat, 1529, extraído de Das Tractenbuch des Christoph W eiditz
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E quanto a Bertrande de Rols? Saberia ela que o novo Martin não era o homem que a abandonara cerca de oito anos antes? Talvez não de imediato, quando ele se apresentou com todos os seus indícios e provas. Mas a obstinada e honrada Bertrande não parece ser uma mulher que se deixe enganar facilmente, mesmo por um sedutor como Pansette. Uma vez acolhido ao leito, ela deve ter notado a diferença; todas as mulheres de Artigat estariam de acordo sobre esse ponto: "o toque" do homem não pode enganar a mulher. 3 O que Bertrande encontrava no novo Martin era a possibilidade de realizar seu sonho: um homem com quem viveu três anos em paz e amizade (para citar os ideais do século 16) e paixão. Era um casamento inventado, não arranjado como o que contraíra há cerca de dezoito anos, ou de conveniência, ' como o de sua mãe e Pierre Guerre. Começara com uma mentira, mas, como mais tarde dirá Bertrande, passavam seu tempo "como verdadeiros casados, comendo, bebendo e deitando geralmente juntos". Segundo Le Sueur, o "Pseudo Martinus" vivia em paz com Bertrande, "sem brigar se conduzia para com ela de maneira tão irreprovável que ninguém suspeitaria de nenhuma trapaça". No leito conjugal da bela Bertrande, agora as coisas iam bem. Em três anos, nasceram duas filhas, das quais uma, Bernarde, sobreviveu e se tornou a irmãzinha de Sanxi. 4 A t-.;;_nura entre o novo Martin e Bertrande manifestase mesmo durante o período em que o casamento inventado é contestado. Tudo, então, evidencia que se apaixonou pela esposa para quem representou a comédia e ela, por sua parte, apegou-se profundamente ao marido que a tomou de surpresa. Ouando, entre dois autos, ele sai da prisão, ela lhe dá uma camisa branca, lava-lhe os pés e recebe-o em seu leito. Quando tentam matá-lo, ela se interpõe entre ele e seus agressores. Perante os juízes, dirige-se "docemente" a ela; põe sua vida nas mãos dela, dizendo que, se ela jurar
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que ele não é seu marido, aceitará que os juízes submetamno "a mil mortes cruéis" .5 Em dias mais_felizes, conversavam muito. Foi "ao conversar dia e noite juntos" que o novo Martin enriqueceu a coleção de suas informações sobre Bertrande, os Guerre e Artigat. Trocas tão íntimas entre marido e mulher correspondiam, no século 16, ao ideal dos humanistas cristãos e moralistas protestantes, praticadas, se é que o eram, em famílias de nível mais elevado que as de Artigat. Mas, como Le Roy Ladurie já mostrou em relação a um período anterior, o gosto dos occitânios pela conversa nã se expressava apenas em serões en_tre vizinhos, mas também nas frases trocadas entre amantes. 6 O novo Martin certamente teve outros assuntos de conversa com Bertrande, além de colheitas, carneiros e filhos. Entre outras coisas, pode-se conjeturar que decidiram tornar permanente o casamento inventado. Tal ato era mais facilmenté justificável para pessoas que tinham às costas séculos de práticas camponesas que visavam a conciliar os rituais populares com a lei católica do casamento. Desde o final do século 12 até 1564, o que validava um casamento segundo o direito canônico era o consentimento mútuo, e apenas ele; se os parceiros aceitavam tomar-se mutuamente como marido e mulher de verba presenti, mesmo na ausência de padres ou testemunhas, trocavam os penhor~s do seu assentimento e, sobretudo se se conheciam carnalmente, estavam unidos por um casamento indissolúvel. A Igreja desaprovava essa via "clandestina" do casamento;" mas ainda existiam pessoas, principalmente no campo, que, por razões pessoais, tinham recorrido a ela: '' Como disse Béatrice 'Gottlieb "os casuístas e os homens da lei tratavam o casamento clandestino como um p~cad~ e um mal" [The Meaning of Clandestine Marriage", in R. Wheaton e T . K. Hareven (org.), Family and Sexuality in French History (Filadelfia, University of Pennsylvania Press, 1980), p. 521. Era um mal devido aos numerosos casos de queixas registradas por ruptura de promessa ou bigamia, que passavam pelos tribunais eclesiásticos . Como fazer para estabelecer a prova na ausência de testemunhas? Na última sessão
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menores a quem os pais recusavam o consentimento; consangüíneos que não conseguiam obter permissão especial; um homem ou uma mulher com desejos de manter um contato carnal e que só dispunham de tal meio: um dos dois parceiros já tinha marido ou mulher em outro lugar .7 Tal tradição não oferecia uma solução eficiente ao casal de Artigat. Afinal, o novo Martin assumira uma identidade falsa; quanto a Bertrande, tentava conciliar uma eventual bigamia com seu senso de honra, para nem falar de sua consciência. Mas oferecia-lhes a ·possibilidade de conce ber o casamento como um ato que dependia de sua vontade, e apenas dela. Aquilo que, segundo o dogma católico, não H ,·s pertencia de forma alguma eram as suas almas. Emhor~ .:tmbos pudessem considerar sua conduta culpada, é pouco provável que tenham confessado seus pecados aos curas de Artigat ou . Bajou. Todos os relatos apresentam-nos como um casal respeitável durante os anos desse casamento pacífico; aliás, um padre que, na confissão da Páscoa, viesse a saber que o novo Martin não era senão Pansette, tê-los-ia excomungado como adúlteros , a menos que concordassem em se separar imediatamente. Isso nos leva a colocar a questão do protestantismo em Artigat. É possível, e até provável, que o novo Martin e Bertrande de Rols tenham se interessado pela nova religião, quando menos para daí extrair alguma justificativa para suas próprias vidas. Prosélitos protestantes difundiam , por volta de 1536, suas pa"lavras no Condado de Foix, e desde 1551 os condo Concílio de Trento em 1564, a Igreja decretou que, para que um casamento fosse válido, teria de contar com a assistência de um padre com os procedimentos adequados . Foi preciso muito tempo para que o clero conseguisse acabar. com a prática mais antiga. Na França, o principal motivo de reprovação era que o casamento clandestino permitia que os filhos contraíssem uma união válida e indissolúvel sem o consentimento dos seus pais . Em fevereiro de 1557, Henrique 11 promulgou um édito sobre os casamentos clandestinos, que seria tema de um tratado de Jean de Coras. Sobre essa questão, ver diante, capítulo 10.
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vertidos deixavam Pamiers e Le Mas-d' Azil, seguindo para Genebra. Depois de 1557, o movimento aumentou, e em t5 61, Le Mans, encorajado pelo exemplo de sua condessa protestante Jeanne d'Albret, declarou-se cidade Reformada . Ainda mais perto de Artigat, Le Carla tornou-se um bastião da Igreja Reformada. A agitação também reinava nas aldeias e burgos às margens do U:ze. Um católico extremado, como Jacques de Villemur, senhor de Pailhes, conduzia seus camponeses com mão de ferro, mas em 1563 Le Fossat contava com um grupo importante de famílías "suspeitas da nova religião". Em 1568, na igreja de Art.igat, os ídolos foram quebrados e o altar saqueado, não só pelos soldados Reformados, mas também por convertidos locais .. Referindo-se a esse episódio, uma visita diocesana posterior fala do · período em que "os habitantes do dito lugar de_ Artigat eram huguenotes " .8 Um movimento de tal amplitude ~ão pode nascer do nada. Isso significa que, dez anos antes, em meio àquelas trocas que uniam Artigat a Pamiers, Le Fossat, Saint-Ybars, Le Carla e Le Mas-d' Azil, as idéias protestante~ circulavam juntamente com a lã, o trigo e o vinho. Significa que Anto~ ~e Caffer, pastor de Genebra que em 1556 pregava no c~ml''ltério de Saint-Vicent, em Foix, também passou por Arugat. Significa que na aldeia alguém possuía um Novo Testamento reformado ou um libelo protestante redigido em 'francês, que lia em voz alta em langue d'oc para seus . viz~nhos. Mesmo continuando a batizar as crianças segundo o nto católico , alguns ouvintes esperavam com impaciência o dia em que um pastor protestante tomaria o lugar do cura. Entrementes, o clero local não tinha como reagir. Quando Messire Pierre Laurens de Le Caylar tornou-se prior de Artigat, por volta de 1553, tinha à frente um candidato rival: só o Tri~ bunal de Toulouse pôde resolver o caso. (0 mesmo aconteceu a Messire Dominique de Claveria em 1540, e Messire Jacques Boeri, em 1530). O cura da paróquia de Baiou, um
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dos irmãos Drot, oriundo de uma família modesta, pouco peso tinha na aldeia. 9 Quais são as provas de que nosso casal inventado tenha sido tocado pela nova fé? Em primeiro lugar, a família Rols se converteu ao protestantismo: deram a seus filhos nomes tomados ao Antigo Testamento, como Abraham, e no século 17, quando os habitantes de Artigat, em sua maioria, eram bons católicos, os Rols ainda· iam a Le Carla para ouvir as pregações da Igreja Reformada. 10 Quanto ao novo Martin, duvido que em sua chegada a Artigat já viesse penetrado pelo novo Evangelho. O bispo de Lombez, Antoine Olivier, era tido como simpatizante protestante e havia um forte movimento protestante na diocese de Arnaud, 11 mas o exsoldado Arnaud du Tilh, entre 15.53 e 1556, tinha mais coisas a fazer e talvez nem residisse em Sajas nessa época. Eu me inclinaria antes a pensar que foi em Artigat que seu espírito se abriu às novas idéias, onde a vida que construíra para si operava como uma conversão, afastando o blasfemador, o rapaz "de má vida", se não totalmente o trapaceiro. Como quer que fosse, é significativo que nenhum padre de Artigat ou Bajou tenha desempenhado um papel importante nos processos do novo Martin em Rieux e Toulouse. Talvez estivessem presentes entre as cento e oitenta testemunhas que foram ouvidas ao longo do processo, mas seus depoimentos não constam do relatório oficial de Coras, onde estão registrados todos os dados essenciais. Outro fato significativo é o respeito manifestado pelo novo Martin em relação aos dois conselheiros encarregados do seu interrogatório, Jean de Coras e François de Ferrieres, protestantes assumidos que viriam a ser os defensores mais firmes do protestantismo no Tribunal de Toulouse. Pediu para ser ouvido por eles numa última confissão que não fazia referência a nenhuma fórmula católica, nem aos santos, mas implorava apenas a misericórdia de Deus para os pecadores que esperavam em Cristo crucificado. 12
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Que esperança oferecia a mensagem protestante ao novo Martin e a Bertrande durante os anos que viveram juntos como "verdadeiros casados"? A de poder contar sua história a Deus, sem intermediários. A de que a vida que tinham forjado voluntariamente fizesse parte da providência divina. Talvez tivessem ouvido alguns ecos das novas ordenações sobre o casamento, promulgadas em Genebra a partir de 1545. Lá, o casamento não era mais um sacramento e uma n.1ulher abandonada por seu marido, "sem que a dita mulher tivesse dado ocasião ou fosse culpada disso", podia, ~fÓS uma investigação de um ano, obter do. Consistório o divórcio e a autorização para um segundo casamento. 13 Mas, se se apoderaram de tais idéias para aplicá-las ao seu caso, devem ter compreendido que não havia saída para eles. Como explicar a um Consistório Reformado a ressurreição de Arnaud du Tilh como Martin .Guerre? O n~v? Martin obtivera, pelo menos por algum tempo, a cumphcldade de Bertrande de Rols, mas poderia um impostor contar com os outros habitantes de Artigat?
6 Querelas · ··-@-····
NOVO MARTIN era não só marido, mas também O herdeiro, sobrinho e importante proprietário camponês em Artigat. Foi aí que as coisas se complicaram. A casa que outrora pertencera ao velho Sanxi Guerre agora tornou-se o lar do novo Martin. ,., Suas duas irmãs solteiras provavelmente vieram morar com ele, como seria de se esperar pelo costume basco. De lá participavam, ele e Bertrande, do mundo aldeão de hospitalidade, apadrinhamento e trocas, recebendo e fazendo visitas a Pierre Guerre e sua mulher (a mãe de Bertrande, lembremo-nos), às irmãs casadas de Martin Guerre, ao irmão de Bertrande e outros vizinhos e amigos que mais tarde deporiam sobre sua iden.· tidade. Catherine Boeri, que anos antes trouxera a ineficaz poção ao leito conjugal de Bertrande, os Lozes de Pailhes, a família Del Pech, seleiros de Le Carla, James Delhure e sua mulher Bernarde Arzel de Pamiers e Artigat (Bernarde talvez fosse a madrinha do bebê Bernarde Guerre), todos faziam parte do seu círculo de famílias rurais prósperas, 1 O ingresso na vida rural não foi difícil para o novo Martin; o trigo, o painço, vinhedos e rebanhos já lhe eram conhecidos na diocese de Lombez. Também havia olarias ··· A propósito deste caso ver a nota 11 , des te capítulo à pág. 171.
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de telhas nos arredores de Sajas, mas como os tijolos não são citados entre as transações do novo Martin, é possível que Pierre Guerre mantivesse o controle sobre essa empresa familiar. O impressionante era como o novo Martin imprimia agora uma direção comercial no desenvolvimento dos bens dos Guerre; tornou-se um "comerci ante" rural como Jean Banqueis, lidando com cereais, vinho e lã de uma ponta à outra do U:ze e mesmo além. Em Artigat, seria difícil tornar-se senhorio e dirigente de uma grande propriedade - o caminho de maior êxito para um capitalista rural no Languedoc - , pois não havia nenhuma propriedade nobre ou eclesiástica em sua jurisdição. Talvez tenha conseguido se incluir entre os homens que arrendavam terras senhoriais de Artigat em 1558 ... 1559 (há uma lacuna nos relatórios desses anos), mas certamente envolveuse na compra, venda e arrendamento de terra. Isso significa que ele tentou tirar vantagem comercial das propriedades que Sanxi Guerre pacientemente adquirira em Artigat e legara ao seu herdeiro Martin. 2 Bertrande de Rols deve ter apreciado esse novo rumo dos acontecimentos, pois a mulher de um comerciante. rural muitas vezes tornava-se, ela também, comerciante. Mas Pierre Guerre começou a se desagradar. Inicialmente, ficara feliz com a volta do sobrinho à aldeia e gabara-se dele junto aos seus amigos íntimos, como Jean Loze, um cônsul de Pailhes. A seguir, o novo Martin começou a vender parcelas dos propres, uma prática não estranha ao ativo mercado fundiário do vale de Leze, como vimos, mas avessa ao costume basco. Quando propôs arrendar, ou até vender, alguma propriedade em Hendaye, Pierre Guerre deve ter se horrorizado. 3 Nesse ínterim, Martin tomou uma atitude que desencadeou a poderosa cólera dos Guerre. Pediu a Pierre que lhe prestasse contas sobre os bens que administrara para o s0brinho, após a morte do velho Sanxi. Pediu-lhe com bons
modos - "em belas palavras" que o talentoso Pansette sempre tinha na ponta da língua - , mas suspeitava que Pierre retinha uma parte da herança, e de qualquer. forma queria os lucros que Pierre dela extraíra. Por muito tempo, brincaram jovialmente com o assunto, mas finalmente, no fim de 1558 ou início de 1559, o novo Martin abriu um processo civil contra Pierre perante o juiz de Rieux. ~< Tais litígios não eram desconhecidos entre as famílias camponesas. Pelos costumes do Labourd, seria de se esp~ rar que Pierre fizesse um inventário sobre os bens do sobnnho no início de sua administração e depositasse uma caução como garantia de que os devolveria em boas condições. Na diocese de Rieux as viúvas com direitos sobre os bens dos maridos prestav;m contas aos seus filhos, quando atingiam a maioridade, a menos que o marido tivesse declarado especificamente que elas "não deviam ser molestadas". Na verdade, em Artigat, o repasse amistoso da prestação de contas e rendimentos da propriedade pelo tutor fazia-se perante um notário, de modo a não haver mal-entendidos. 4 Para Pierre Guerre, porém, o novo Martin tinha se excedido. Talvez achasse que as circunstâncias da ausência de Martin não o autorizavam a nenhum rendimento. Talvez achasse que um sobrinho que tinha "criado desde a infância" não devia exigir tais acordos contratuais e seguramente não devia recorrer à litigação. Talvez o velho patriarca se indignasse com o desafio à sua autoridade; ele dissera não, e isso significava não. Talvez fosse simplesmente o que o novo Martin dizia ser - "avareza ", desejo de manter os bens e rendimentos para sua própria casa, filhas e genros.
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'' Tudo o que Coras nos relata ' sobre o desfecho desse processo é que o novo Martin "foi obrigado a processar (Pierre Guerre) e pela justiça buscar a recuperação dos seus ben~: mas quanto aos frutos e prestaçã6 de contas, aquele Pierre Guerre tio não queria nem ouvir falar" (Arrest , pp. 33-4). Parece ser um compromisso onde Pierre concorda em lhe devolver o resto da herança, e em troca Martin renuncia a exigir a prestação de contas e o saldo das rendas.
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De qualquer forma, as dúvidas que o esperto Martin acalmara em sua primeira aparição agora se revelavam às claras e proliferavam na mente de Pierre. Por que esquecera tantas expressões bascas, algumas das quais devem ter acompanhado toda a sua infância? Por que não se interessava mais por esgrima e exercícios físicos? Aquele corpo robusto que aceitara como a forma adulta do seu sobrinho agora parecia-lhe estranho. Quando observava Sanxi, o menino não se parecia com o homem que partilhava o leito de Bertrande. Acima de tudo, "o basco é fiel". Por um pequeno furto de trigo do seu pai, Martin Guerre .abandonara seu patrimônio em desonra. Agora um impostor estava a roubá-lo desavergonhadamente do seu herdeiro. 5 Pierre convenceu sua mulher e genros da terrível verdade. A mãe de Bertrande estava de pleno acordo com seu marido, não só como esposa obediente, mas também como mulher prática e boa mãe, devotada aos melhores interesses de sua filha. Não implorara, há anos que Bertrande se separasse de Martin e contraísse uma união melhor; durante seus anos de irppotência? Agora devia salvar sua filha da desonra do adultério. Juntos, pressionaram Bertrande a levantar um processo contra o homem com quem vivia. Bertrande recusou-se obstinadamente. Durante todo o ano seguinte, e ainda mais, a família Guerre se manteve dividida, · e a querela espalhou-se por toda a aldeia e arredores. Pierre Guerre saía dizendo a todos que o novo Martin era um impostor que o enganara. Pediu ao seu 'amigo Jean Loze que o ajudasse a juntar di. nheiro para mandar matar o impostor. Loze recusou-se, chocado. i Martin saiu dizendo que seu tio inventara essa história porque ele lhe pedira as contas O sapateiro da aldeia perguntou, por quê,_ se ele era Martin Guerre, seus pés tinham diminuído tanto com os anos. As irmãs de Martin · insistiam que' o novo Martin era seu irmão (talvez preferissem-no ~o tio, como chefe da família e de suas proprieda-
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des); os genros de Pierre insistiam que o novo Martin era um embusteiro. (0 que o irmão de Bertrande disse não foi registrado.) Bertrande se mostrou feroz na defesa de "Martin Guerre [como] seu marido": "É Martin Guerre, meu marido [teria dito] ou algum diabo em sua _pele. Conheço-o bem. Se alguém é tão louco para dizer o contrário, farei com que morra". E quando Pierre Guerre e seus genros bateram nele com um cacete, Bertrande o protegeu, como 6 foi dito, com seu próprio corpo. Os cônsules de Artigat, sem dúvida, discutiram o caso de Martin Guerre em muitas reuniões na prima~era e verão de 15 59. Com a opinião da aldeia tão dividida; nunca poderiam ter arbitrado a disputa. Para alguns, o novo Martin era um íntegro pai de família, marido e comerciante rural injustamente vilipendiado por um tio ganancioso; para outros, era um hábil impostor que maculava a reputação de uma família honesta. Outros ainda estavam incertos quanto à verdade. De ~mbos os lados, a família rural é valorizada, mas os primeiros dão mais peso às aspirações da geração mais jovem em sair e ver o mundo por algum tempo e em gerir seus bens por conta própria; ao passo que os outros dão mais peso às decisões dos mais velhos e a longa continuidade dos comportamentos familiares. Seria interessante saber se tal divergência de opiniões correspondia a algumas outras diferenças que atravessavam a sociedade aldeã. Coras diz-nos que o número de defensores do novo Martin era equivalente ao de Pierre Guerre em Artigat e arredores, mas fora da f~mília Guerre cita posições específicas em apenas três cas.os: Catherine Boeri e Jean Loze defendiam Martin, e o sapateiro defendia Pierre. O certo é que Artigat não se estruturava por linhas clânicas estritas, como as que dividiam Montaillou entre os Clergue e os Azéma há cerca de duzentos e cinqüenta anos. Possuía instituições políticas que antes favoreciam alianças entre as famílias influentes em Artigat e aldeias vizinhas.
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Os Banqueis, os Loze e os Boeri tinham seus próprios círculos e dependentes, mas, conforme podemos ver pelos cont~atos notariais, eles se sobrepunham. As brigas que surgiam, como esta, nem sempre seguiam estritas linhas familiares.7 Se eu tivesse de arriscar um palpite sobre o caso · Martin Guerre, seria o de que os simpatizantes protestantes locais tendiam a acreditar no novo Martin e os católicos em Pierre Guerre. Seja como for, no final do verão e no outono de 1559 ocorreram dois acontecimentos que pioraram muito a situa~ ção de Martin e Bertrande. Um soldado de Rochefort passava por Artigat e, ao ver o homem em questão, declarou a testemunhas que era um embusteiro. Martin Guerre estivera em Flandres e tinha perdido uma perna dois anos antes, no cerco de Saint-Quentin. O verdadeiro Martin Guerre tinh~ uma perna de pau, disse o soldado, e segúiu seu cammho. 8 Assim, depois de onze anos, talvez o Martin Guerre original ainda estivesse vivo e multiplicavam-se as provas quanto à falsificação do novo Martin. Parecia cada vez mais provável que Pierre Guerre encontraria meio de conduzir o impostor à corte. O casal devia se preparar para desmontar sua argumentação, e agora p.rovavelmente elaboravam a estratégia a seguir durante o processo. O depoimento dele devia ser o mais completo possível, sobre os mínimos aspectos da vida de Martin Guerre, desde a infância no Labourd até sua partida, e sempre de acordo com o testemunho dela: s~ria preciso fornecer detalhes íntimos que ninguém podena contestar. Talvez então os juízes pronunciassem o veredicto de que era o verdadeiro Martin Guerre e o padrasto de Bertrande seria reduzido ao silêncio. Assim recomeçavam as "representações" de Pansctte; novamente recitava sua antiga existência, as bodas, as festas, a impotência, a quebra do sortilégio e a consumação do casamento. Bertr::~nde revirava a memória em busca de um episódio íntimo
(talvez o enfeitasse) capaz de surpreender os juízes. (A propósito, Coras diria mais tarde que era "muito mais fácil de entender do que relatar ou escrever" .9) Nesse momento, irrompeu um outro golpe teatral. Uma fazenda arrendada em parceria, de propriedade de Jean d'Escornebeuf, senhor de Lanoux, incendiou-se, e ele acusou o novo Martin de incêndio voluntário e fez com que fosse preso naquela cidade, por ordem do Senescal de Toulouse. Os Escornebeuf pertenciam à pequena nobreza do vale do Leze; as propriedades de Jean se concentravam na paróquia a oeste de Artigat. No entanto, comprara te~ras na própria Artigat e, em 1550, estava entre os que, como Antoine Banqueis e outros, recebiam o arrendamento dos seus benefícios. É possível que alguns lavradores deJArtigat, descontentes em ver um nobre se imiscuir numa aldeia tão orgulhosa de não ter senhores, tenham ateado fogo à fazenda. Mas Escornebeuf escolheu como alvo o camponês-mercador Martin Guerre, objeto de escândalo, e em sua queixa evidentemente instigado por Pierre Guerre - declara ao juiz que o prisioneiro "usurpara o leito conjugal de um outro homem" .10 Bertrande estava em profunda aflição. Via-se, uma vez mais, obrigada a voltar ao lar de sua mãe e Pierre Guerre. 11 Foi a Toulouse (talvez sua primeira ida àquela cidade em trinta e dois anos de existência), levou dinheiro e outros objetos necessários a Martin na prisão, declarou que esse homem era seu marido e que Pierre Guerre e sua mulher tentavam coagi-la a acusá-lo falsamente. Faltavam provas sérias que pudessem Jundainentar a acusação de Escornebeuf. Se fosse senhor de Artigat, é fácil imaginar o que teria acontecido, mas perante o Senescalato de Toulouse teve de renunciar à acusação de incêndio voluntário, e o preso foi liberado. 12 Nesse ínterim, Pierre Guerre tomara providências para descobrir a verdadeira identidade do impostor. É surpreen-
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dente que, nesse mundo de intenso tráfego e muitos mexericos, não tivesse descoberto antes. O próprio novo Martin espalhara indícios pelo caminho. Um exemplo: em Pouyde-Touges, aldeia ao sul de Sajas pertencente à diocese de Rieux, o estalajadeiro referiu-se a ele como Arnaud du Tilh · tinha-lhe recomendado segredo pois "Martin Guerre mor~ reu; deu-me seus bens". Um certo Pelegrin de Liberos reconheceu-o como Pansette; o novo Martin pedira-lhe que se calasse, mas fora bastante imprudente para esquecer seu papel e lhe confiou dois lenços a serem entregues a seu irmão Jean du Tilh. 13 Esse tipo de estória chegou aos ouvido's de Pierre Guerre, que, de ora em diante, podia dar um nome ao traidor que se introduzira em sua casa: Arnaud du Tilh, dito Pansette, um homem de má vida de Sajas. Para pegar um mentiroso, é preciso mentir também. Apresentou-se ao juiz de Rieux como representante de Bertrande de Rols (talvez munido de uma procuração firmada por um notário; quando Messire Jean Pegulha vinha de Le Fossat para redigir os contratos, muitas vezes usava como escritório a casa de Pierre). Obteve em nome de Bertrande a autorização para a abertura de um inquérito sobre o homem que se dizia chamar Martin Guerre e sua imediata prisão com o recurso à força, conforme permitia a lei em casos especiais, quando o acusado era "muito mal-afamado e difamado por vários e enormes delitos'' .14 Quando o novo Martin saiu da prisão de Toulouse, em janeiro de 1560, Pierre estava pronto. Como vimos, Bertrande recebeu-o com ternura, lavou-lhe os pés e concedeulhe o leito. Na manhã do dia seguinte, à aurora, Pierre e seus genros, todos armados, apoderaram-se dele em nome de Bertrande e conduziram-no à prisão de Rieux. 15
Martin nunca mais voltasse, Arnaud du Tilh conseguiria se livrar da situação? Alguns colegas historiadores americanos, de espírito pragmático, são da opinião que, se o impostor não tivesse exigido a prestação de contas, tivesse sido um pouco mais respeitoso em relação às idéias do seu tio quanto à propriedade familiar, poderia continuar a desempenhar o papel de Martin Guerre durante anos, sem ser molestado. Por outro lado, quando falei com pessoas de Artigat, que conheciam muito bem a estória de Bertrande e Arnaud, sorriram e deram de ombros, dizendo: "Está tudo muito bem, mas esse belo malandro mentiu". Creio que as pessoas de Artigat têm uma vis~o mais correta das coisas. A questão não é saber se, com mais prudência e previdência, Arnaud du Tilh poderia dar alguns retoques ao seu papel. Tampouco Arnaud era o único mentiroso em Artigat: acabamos de pegar Pierre Guerre numa mentira, e ouviremos outras antes de concluir. Mas uma grande mentira, uma mistificação desse porte- principalmente sendo imposta por uma só pessoa às outras - tem incidências perturbadoras sobre as consciências e as relações sociais. 16 Dos aldeões e da família Guerre que, em certa medida, assentiam com sua mentira, Arnaud exigia uma cumplicidade constante. Não era um lago rural, uma encarnação do espírito do mal que procurava lançar as pessoas umas contra as outras. Mas, a partir do momento em que se tornava um honrado chefe de família sob um nome usurpado, não poderia mais confessar a mentira nem esperar perdão. Dessa forma, sua mentira e uma profunda desconfiança tinham se insinuado entre as relações sociais. Quando as pessoas começaram a se indagar abertamente da sua identidade, novamente a suspeita de magia levantou-se contra ele. E agora, por trás dessa acusação, ocultava-se um temor muito mais sério do que no tempo de sua juventude. A mentira de Arnaud sempre cria uma distância interna perturbadora entre ele e os outros aldeões. Tenqo a crer
Detenhamo-nos um momento para perguntar se um tal desfecho era inevitável. Em outros termos, se o verdadeiro
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que não era um simples impostor que quisesse o dinheiro de Martin Guerre para depois fugir. Muitos atos seus, como a venda dos propres ou a exigência da prestação de contas que lhe reprovava Pierre Guerre , podem receber uma interpretação totalmente difere nte- e que deve ter ocorrido aos seus defensores de Artigat - , como um comportamento típico, ainda que sob forma inovadora, do camponês do Languedoc. O que o novo Martin desejava era se radicar, voltar, como fazia após cada viagem, ao leito de Bertrande. Seu pedido de prestação de contas indica como se sentia à vontade em seu papel. Em sua cabeça, porém, sempre havia uma saída, não aquela saída criativa, aquele distanciamento momentâneo dos seus camaradas que permite a reintegração ("so~ cristão e estou acima de tudo isso") ou pelo menos a lucidez e a sobrevivência ("sou basco e esta não é realmente minha região"), mas uma saída vergonhosa ("não tenho nenhuma verdadeira obrigação em relação a essas pessoas"). Para Bertrande, que conhecia a verdade, a mentira acarretaria ainda outras conseqüências. Procurara modelar sua vida da melhor forma possível, usando todos os seus rodeios e sua imaginação feminina. Mas também fora ciosa de sua honra e virtude e, além do mais, como diria mais tarde aos juízes, temia a Deus. Aspirara a viver no seio da sociedade da aldeia, como boa esposa e mãe de família. Desejara qu~ seu filho fosse herdeiro. Iria Deus puni-la pela sua mentira? E se o seu casamento não passasse de uma . invenção, ela seria, aos olhos de sua mãe e de todas as mulheres da região, uma esposa adúltera, objeto de escândalo? E sua filha Bernarde estaria irremediavelmente maculada já que se diz que um filho concebido no adultério carreg~ o peso do pecado dos seus pais? 17 Ela amava o novo Martin , n:as ele a eng~nara uma vez e, afinal, o que garantiria que nao a engana na novamente? E o que aconteceria se o outro Martin Guerre voltasse?.
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····-@ -···· Depois que o novo Martin foi lançado à pnsao em Rieux, Bertrande sofreu o dia inteiro terríveis pressões por parte de sua mãe e padrasto. Chegaram ao ponto de ameaçar expulsá-la da casa se não aprovasse formalmente a atitude de Pierre. A mulher obstinada calculava e arquitetava seus planos. Levantaria uma queixa contra o impostor, esperando perder o processo. Seguiria a estrat'égia que elaborara de acordo com o novo Martin em relação aos seus d<;poimentos e desejaria que o juiz o declarasse seu marido. Iyfas, em vista do seu dilaceramento íntimo e os perigosos acontecimentos dos meses passados, também devia se preparar para ganhar o processo, por mais terríveis que fossem as conseqüências para o novo Martin . Durant e o dia, enviou roupas e dinheiro ao prisioneiro em Rieux. À noite, deu sua concordância à atitude _que Pierre tomara em seu nome e " tornou-se queixosa" perante o juiz de Rieux contra o homem que tomara o lugar de Martin Guerre , seu verdadeiro marido. 18
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O Processo de Rieux ····-@-····
CORTE DE Rieux não era desconhecida das famílias de Artigat. Alguns litígios não conseguiam ser resolvidos localmente e acabavam perante esse tribunal: Jehanard Loze processou na justiça o bispo ausente de Rieux por não-pagamento de uma pensão anual devida à paróquia; dois lavradores mantinham um processo pela propriedade de um pedaço de terra; Jeanne de Banqueis lá se apresentara para contestar uma outra herdeira. 1 Quando o caso Martin Guerre compareceu perante os juízes, muitas testemunhas tinham uma idéia aproximada dos custos e perigos da justiça real e das vantagens que poderiam extrair disso .
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O próprio juiz recebia apenas uma remuneração medíocre, em comparação às somas destinadas aos magistrados que dependiam do Supremo Tribunal de Toulouse. Mas, no mundo de Rieux, era uma figma importante que, pelo prestígio e poder, elevava-se sobre os senhores locais. Era assistido por seu ajudante geral , Firmin Vayssiere, licenciado em direito, cujo catolicismo intransigente mais tarde lhe valeria o encargo de investigar os danos dos huguenotes contra os bens da Igreja na diocese .2 Juntamente com o procurador do rei em Rieux e os advogados da Corte, o juiz e
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o assistente enfrentavam um dos casos mais espinhosos de suas carreiras. A falsa alegação de identidade, com intenção de lesar a pessoa usurpada, era considerada na França do século 16 como um grave crime. Não era passível de pena prefixada, como veremos, mas desde que o procurador do rei assumisse a queixa da parte civil - conforme Bertrande foi designada - , o acusado se arriscava a algo mais do que uma simples multa. Se fosse declarado culpado, podia ser condenado a castigos físicos e até à morte. Neste caso, onde estavam em jogo a honra e a vida de um homem, as provas deveriam ser "certas, indubitáveis e mais claras do que o dia" .3 Mas numa época em que não existia a fotografia, os retratos pintados eram raros, sem impressões digitais~' nem carteiras de identidade, com registros paroquiais ainda mantidos de modo irregular - quando o eram - , como estabelecer a identidade de uma pessoa de modo indubitável? Podia-se sondar a memória do acusado, ainda que sempre pudessem ter lhe assoprado a lição; pedir que as testemunhas o reconhecessem, contando com seu discernimento e sinceridade. Podia-se examinar os traços distintivos do seu rosto e corpo e, ainda assim, para que essa prova tivesse algum significado, seria preciso que as testemunhas tivessem uma lembrança exata da pessoa. Podia-se verificar se ele se parecia com os outros membros da sua família. Podia-se examinar sua letra, com a condição, porém, de que ele e seu duplo soubessem escrever e houvesse amostras da letra deste último. À luz de tais provas, a Corte de Rieux devia reconstruir a verdade, e era este o objetivo dos depoimentos dos aldeões sobre Martin Guerre. * Mesmo com impressões digitais, pode haver dúvidas, conforme mostra o célebre caso Giulio Canella em Turim, em 1927-1931. As impressões digitais mostravam que o homem em questão era o impressor Mario Bruneri, mas a esposa do professor Canella, contudo, declarava que ele era seu marido . Leonardo Sciascia, Il teatro delta memoria (Turim, 1981).
A acareação entre o acu~ado e uma testemunha, extraído de Jean Milles de Souvigny ( Ioannes Millaeus), Praxis Criminis Persequendi (Paris, 1541)
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O Processo de Ríeux
O primeiro procedimento consistia em recolher informações junto a testemunhas citadas pela parte civil, num rol sem nenhuma dúvida elaborado por Bertrande e Pierre. 4 (Pierre arrolaria pessoas que esperava apoiarem a acusação, Bertrande as que esperava que pudessem lançar dúvidas s?~re ela.). P~ra reduzir os custos, todos a cargo da parte civil, a maiOria dos depoimentos provavelmente foi registrada em Artigat ou arredores, de preferência a Rieux. Pode-se imaginar a comoção geral quando o juiz ou o seu representante apareceu em cena e as opiniões antagônicas espalharam-se à direita e à esquerda, proferidas pelos notários locais e por Messire Dominique Boeri, bacharel em direito em Le Fossat. As testemunhas tinham de jurar dizer toda .a verdade e quando encerravam seus depoimentos, o exammador relia suas declarações, palavra por palavra (pelo menos em princípio), para que pudessem acrescentar ou retirar o que bem lhes parecesse. A. seguir, os que sabiam escrever assinavam seus nomes e os outros punham sua ru. brica.
Em seguida, vieram as "reinquirições" das testemunhas e suas acareações com o prisioneiro (é ainda a parte civil que arca com as despesas!) . O juiz se assegura de que a testemunha confirma seu depoimento, e então convoca-se o acusado. Este começa por dirigir reproches, objeções às testemunhas, ou aceita-as como confiáveis, antes mesmo de conhecer o conteúdo dos seus depoimentos. É sua umca oportunidade de semear a dúvida quanto à moralidade dos seus acusadores e tem de se empenhar ao máximo nisso. Depois, o depoimento da testemunha é lido em voz alta e o homem que se pretende Martin Guerre rec:usa-a quando lhe parece necessário, fornecendo álibis e fazendo perguntas. Muitos processos se encerram após essas acareações, tão evidente se mostra, a esse ponto, a culpa ou a inocência do réu aos olhos do procurador real e do juiz. Mas não no caso de Martin Guerre. O acusado citara testemunhas para confirmar as declarações que fizera ao longo dos interrogatórios e acareações. Bertrande ainda não retirara sua queixa, e ele tinha certeza de poder apresentar a prova de que fora subornada. O próprio juiz não estava satisfeito com .as testemunhas; gostaria de saber mais sobre essa enigmática camponesa de Artigat, a reputação das outras tester~m~has e a identidade do prisioneiro. O procurador do re1 freou encarregado de reunir as testemunhas do acusado (agora era a sua vez de pagar as contas e teria de depositar antecipadamente o dinheiro; é de se perguntar como a Corte de Rieux conseguia se entender nessa embrulhada. Foi lida uma monitória solene nas igrejas de Artigat, Sajas e arredores, apelando para todos os que conhecessem a verdade na matéria
Após um prazo razoável para que o procurador real pudesse estudar a massa dos depoimentos e emitisse sua op.i~ião,. o j~iz abriu as audiências em Rieux. Interpelou o prisiOneiro, mter~ogou-o sobre as acusações de que era obJ~to e· so?re a vida de Martin Guerre, e ouviu o que ele tinha a dizer em sua defesa. A seguir, interrogou Bertrande de Rols e tornou a dar a palavra ao acusado, permitindo-lhe responder. Neste ponto, o juiz levou a sério a declaração do prisioneiro, corroborada por testemunhas da aldeia de que Pierre Guerre obrigara Bertrande a dar queixa co~tra sua vontade; decidiu que ela devia abandonar a casa de Pierre e se alojar em outro lugar. >'c * Coras diz que o acusado pediu que Bertrande fosse colocada "em alguma casa de pessoas de bem", o que foi feito (pp. 37-45) . Acrescenta que " antigamente" as mulheres podiam ser conduzidas a um convento (p. 38) . A diocese de Rieux tinha quatro casas femininas, · todas absolutamente aristocráticas e
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nenhuma situada entre Artigat e Rieux: a abadia de Salenques, perto de Le Mas-d'Azil, e mosteiros em Longages, La Grace-Dieu e Sainte-Croix-Vol:'est~e [L. H. Cottineau, Répertoire topo-bibliographique des Abbayes et Prteures (Macon, 1935-1939), cols. 1315, 1643, 2183 , 2932] . Havia também uma casa de Pobres Claretianas em Pamiers. Nenhuma delas era prática para Bertrande, que provavelmente foi instaJada, de iníc~o, com uma famíli~. de co~fiança em Artigat e, durante seu depoimento em Rteux, com uma famtha de la.
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em questão que a revelassem ao juiz, sob pena de excomunhão. Mesmo os protestantes, apesar do seu ceticismo quanto aos poderes ·do padre, devem tê-la levado a sério. 5 Cento e cinqüenta pessoas desfilaram durante o processo em Rieux. Nas duas dioceses, em todas as aldeias, as pessoas se perguntavam como fazer para afirmar quem era um homem - um homem arrancado do contexto cotidiano dos campos e da família, agora exposto na sala da corte de Rieux. Todas, ou quase todas as testemunhas do Artigat, concordavam sobre um, e apenas um, ponto: quando o prisioneiro apareceu entre elas, cumprimentara-as cada qual pelo seu nome e lembrara-lhes coisas exatas que tinham feito juntos em circunstâncias precisas muitos anos antes. Afora isso, suas opiniões divergiam, como divergiam também as das testemunhas vindas de outros lugares. Quarenta e cinco pessoas, ou mais, declararam que o prisioneiro era Arnaud du Tilh, dito Pansette, ou que, pelo menos, não era Martin Guerre, pois tinham comido e bebido com um ou outro desde a infância. Entre eles encontravam-se Carbon Barrau, o tio materno de Arnaud du Tilh de Le Pin · pessoas com que Pansette fizera contratos há muito tempo;' três homens que tinham reconhecido o prisioneiro como du Tilh, mesmo quando ainda vivia com Bertrande de Rols. Trinta a quarenta pessoas afirmaram que ele era Martin Guerre e conheciam-no desde o berço. Esse grupo incluía as quatro irmãs de Martin, seus dois cunhados e Catherine Boeri, que pertencia a uma das famílias mais respeitadas da localidade. Essas testemunhas que conheceram Martin antes de sua partida de Artigat. esquadrinhavam suas memórias em busca dos seus traços. Esperava-se que os camponeses tivessem uma boa memória visual - com efeito, devem armazenar muitas paisagens, formas e cores durante seus trabalhos mas ainda aí havia divergência. Alguns sustentavam qu~ Martin era mais alto, mais magro, mais moreno do que o
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acusado, tinha um nariz chato e o lábio inferior mais saliente, além de uma cicatriz na sobrancelha que não se via nesse impostor. O sapateiro contou sua história sobre as diferenças do tamanho do sapato, Martin calça doze "pontos", o acusado, nove. Outras testemunhas, pelo contrário, ressaltaram que Martin Guerre tinha dentes a mais em seu maxilar, uma cicatriz na testa, três verrugas na mão direita; ora, o prisioneiro apresentava todos eses sinais particulares. Finalmente, um grupo importante de testemunhas, cerca de sessenta, recusava-se a se pronunciar sobre a identidade do prisioneiro. Talvez temessem, ao. tomar posição, alguma conseqüência desagradável, processos por calúnia da parte do acusado, se fosse reconhecido como inocente, ou aborrecimentos com Pierre Guerre. Mas o que diziam era menos tortuoso: apesar de todos os testemunhos relativos à sua boca, sobrancelhas e nariz, o réu parecia-se realmente com Martin Guerre. Não estavam certos de sua identidade e, num caso de tamanha gravidade, como ousariam ser categóricos ?6 Essas semanas que precederam a sentença foram uma prova dolorosa e solitária para a mulher do prisioneiro. Vivia num meio estranho, longe do novo Martin, o qual tinha razões para duvidar de sua lealdade. Sua mãe e seu padrasto queriam conseguir a morte do impostor, ou pelo menos sua condenação às galeras; suas cunhadas certamente censuravam-na por ter dado queixa contra ele. A honra de Bertrande de Rols era objeto de uma monitória lida do alto do púlpito no vale do u~ze e mesmo adiante. Era preciso ser cautelosa: em seu depoimento, para fortalecer a causa dele, devia se limitar a revelar aquilo que o réu sabia do passado de Martin Guerre, sem dizer nada que pudesse comprometê-la como adúltera. Devia apresentar no tribunal a imagem de uma mulher crédula, papel este que, como mostrou Nicole Castan, as mulheres desempenhavam diante dos oficiais da justiça sempre que lhes parecia conveniente. 7
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Bertrande provavelmente teve oportunidade de consultar um advogado antes das audiências em Rieux, mas frente ao juiz, ao escrivão, ao procurador real, estava entregue a si própria. Mesmo para uma mulher que, em sua aldeia, andava com a cabeça erguida e não media suas palavras, era um tormento enfrentar esse mundo de homens. Mas respondeu às perguntas do juiz sobre a vida de Martin Guerre, desde seu casamento demasiado precoce até a fuga do rapaz, e forneceu por iniciativa própria alguns detalhes inéditos. Assim, o juiz ouviu o relato da impotência de Martin Guerre e sua cura, ao qual acrescentou um episódio mais íntimo. Tinham ido, há muito tempo, a um casamento, e como faltavam as camas de casal (cubília), Bertrande teve de passar a noite com sua prima; com seu consentimento, Martin deslizou para a cama delas, depois que a outra moça adormeceu (Le Sueur interrompe aqui o seu relato, mas Bertrande pr"vavelmente continuou, revelando as "conversas que tiveram antes, depois e durante o ato secreto do matrimônio") .8 Bertrande desempenhou à perfeição seu duplo papel até a acareação com o prisioneiro. Era uma situação delicada também para ele e tinha de "objetar" seu testemunho com muitas precauções: ela era "uma mulher de bem e honesta" que dizia a verdade, exceto quando afirmava que ele era um impostor; nesse aspecto, fora incitada a mentir por seu tio Pierre Guerre. A seguir, pôs à prova o amor dela e exprimiu o seu (como vimos) declarando ao juiz que, se ela jurasse que ele não era seu marido Martin Guerre, aceitaria a morte que o tribunal decidisse lhe infligir. E Bertrande manteve silêncio. 9 Se a mulher de Martin Guerre estava dilacerada, o novo Martin nunca pareceu tão seguro de si mesmo quanto durante esse processo. Sob as luzes da ribalta, todos os seus talentos mobilizados para provar sua identidade, não cometeu o menor deslize, fosse descrevendo as roupas que cada
convidado usava no dia do casamento de Martin Guerre ou contando como, na calada da noite, insinuara-se no leito onde Bertrande dormia com sua prima. Não poupava detalhes sobre suas atividades na França e Espanha após a partida de Artigat. Deu nomes de pessoas capazes de confirmar seu relato (de fato, a Corte verificou e elas confirmaram). Durante as acareações, sua avaliação das testemunhas deve ter sido excepcionalmente penetrante - "vivamente e validamente objetadas" , dirá Coras mais tarde, ao julgar a ma-. neira como rejeitara Carbon Barrau e outras testemunhas "que particularizam tanto os fatos contra o .dito prisioneiro" .10 Só podemos imaginar o que pode ter dito. A Carbon Barrau, por exemplo: "Nunca vi esse homem antes deste dia. E se ele é realmente meu tio, como é que não consegue nenhum outro membro da família que apóie sua declaração?". Ao sapateiro: "Este homem é compadre de Pierre Guerre. Que mostre-nos seus registros sobre o tamanho dos meus pés. O que mais pode encontrar para sustentar suas mentiras?" . O réu parece ter conduzido sozinho sua defesa, sem recorrer a conselhos de um jurista. A ordenação de VillersCotterêts de 1539 negava formalmente ao acusado num processo criminal o direito à assistência de um advogado, embora trabalhos recentes mostrem que a lei às vezes era contornada. 11 No caso do novo Martin, um advogado se sentiria em seu ambiente; os procedimentos a.presentavam ir~egularidades que poderia alegar para recorrer em apelação a uma instância superior, a começar pela sua prisão por homens armados antes do amanhecer. Mas apesar das monitórias e do desfile das testemunhas, o processo durou apenas alguns meses. É lícito supor que, com a perspicácia que o caracterizava, o réu aprendeu rapidamente os argumentos mais adequados para impressionar os juristas. O acu~ado centrou sua defesa em um ponto: Pierre Guerre o od1ava porque ele o levara à justiça. Como sua tentativa de assas-
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fracassara, ele e seus genros montaram esse complô, forJando uma nova acusação contra ele, a de impostura: "Se a~gum dia um marido foi maltratado por seus parentes próximos, certamente era ele, e injustamente". 12 Deviam libertá-lo e condenar Pierre Guerre por difamação, com a mesma severidade aplicada a Martin por fraude.* Após a audição do último grupo de testemunhas, o procurador pressionou o juiz para apresentar seu veredito. O caso era delicado de se deslindar e o requerimento do juiz para que se examinasse a semelhança do acusado com suas irmãs e o filho de Martin Guerre não esclarecia as coisas. O prisioneiro não se parecia com seu filho Sanxi, mas se parecia com suas irmãs. Não podiam submetê-lo a um exame grafológico pois, se por acaso o réu agora sabia escrever seu nome (e os comerciantes rurais eram as únicas pessoas da aldeia, além dos notários e padres, que sabiam assinar contratos), nem Pansette nem Martin Guerre jamais souberam antes. A Corte pode ter pensado em submetê-lo à tortura para arrancar-lhe confíssões: uma tal decisão supu~ nha sérias presunções de culpabilidade após o depoimento de um testemunho irreprochável ou provas circunstanciadas apresentadas por duas testemunhas. 13 Mas o juiz de Rieux não tinha nenhuma vontade de pôr o dedo nessa engrenagem. Talvez achasse que não daria certo (e novas pesquisas sobre o Supremo Tribunal de Toulouse têm mostrado que não era muito freqüente que a tortura resultasse em confis· sões) . Talvez ten,ha achado que, mesmo sem confissão, dis-
punha de elementos sólidos e o acusado simplesmente apelaria da sentença de tortura ao Tribunal de Toulouse. Seja como for, o juiz declarou o acusado culpado de usurpação do nome e pessoa de Martin Guerre e abuso de confiança em relação a Bertrande de Rols. A parte civil solicitara que reconhecesse publicamente sua culpa, pedisse perdão e pagasse-lhe 2.000 libras, além das custas do processo. O procurador do rei, por sua vez, requereu a pena de morte, o que tornava caduca a pena reclamada por Bertrande. Nada de surpreendente nisso, mesmo sem a acusação suplementar de adultério: em 15 57, o Senescalato de Lyon condenara dois homens à forca, simplesmente por terem firmado falsos contratos, durante alguns meses, em nome de um terceiro. O juiz de Rieux condenou o prisioneiro a ser decapitado e esquartejado, curiosa homenagem . - estava reservada aos noh res. 14 se se pensar que a decapltaçao O condenado apelou imediatamente da sentença junto ao Supremo Tribunal de Toulouse, protestando sua inocência. Pouco depois, foi conduzido sob escolta àquela cidade, às suas expensas. A grande pilha de dossiês e papeladas geradas pelo caso seguiu-o às expensas de Bertrande. Desde 30 de abril de 1560, a Câmara Penal do Tribunal tinha à sua frente o caso de "Martin Guerre prisioneiro na Conciergerie", que apelara do veredito pronunciado pelo juiz de Rieux. 15
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,., Coras justificava essa lei de talião em sua anotação (p. 35), mas o assistente criminal Jean lmbert, em seu tratado contemporâneo de prática judicial, declara que ela não estava mais em vigor. Os indivíduos culpados de calúnia eram condenados à confissão e pedido de perdão públicos e uma soma em dinheiro. Considerando a leviandade com que as pessoas caluniavam seu próximo, lmbert às vezes desejava que a lei fo~se restabelecida. Jean lmbert, Institutions Forenses, ou practique iudiciaire (Poitjers: Enguilbert de Marnef, 1563), pp. 446-98.
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UNDADO CENTO e setenta anos antes, o Supremo Tribunal de Toulouse é agora uma entidade que desfruta de imenso poder no Languedoc: seus edifícios acabam de ser restaurados, o número de seus conselheiros, aumentado. Em 1560, aí são .julgados não só processos civis e criminais em apelação, e às vezes até mesmo em primeira instância, observando as atividades das cortes inferiores em sua região, como também decide-se sobre o destino dos iconoclastas anticatólicos de Toulouse; de lá despacham comissários encarregados de investigar as reuniões ilegais, os portadores de armas, as heresias e os assassinatos na diocese de Lombez. Seus presidentes e juízes constituíam uma elite rica e cultivada, possuindo belas mansões em Toulouse e domínios no campo. Enfim, todos se empenhavam em adquirir títulos nobiliárquicos. Suas roupas jurídicas se tornavam a cada dia mais faustosas. As pessoas se dirigiam a eles em termos que ressaltavam o respeito e a consideração : "Integerrimus, amplissimus, meritissimus", dizia Jean de Coras a um deles, numa dedicatória escrita antes que viesse a ocupar um lugar entre eles; ou ainda a um outro: "Eruditissimus et aequissimus", e a todo o Tribunal , "gravissimus sanctissimusque Senatus" .1 A Câmara Criminal, uma das cinco câmaras do Tribu-
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nal, La Tournelle, como a chamavam, era composta por um grupo de dez a onze conselheiros, designados alternadamente, e dois ou três presidentes. Entre os magistrados que acompanhavam o processo em apelação de Martin Guerre, certamente encontravam-se algumas das sumidades da corte. Lá estava o erudito Jean de Coras, autor de muitas obras de direito. Estava também Michel Du Faur, antigo juiz de Toulouse e um dos três presidentes do Tribunal; oriundo de uma dinastia de juristas ilustres, desposam uma Bernuy cujo dote provinha dos lucros obtidos com o comércio de nozes de pastel-dos-tintureiros. Jean de Mansencal, primeiro presidente do Tribunal, veio pessoalmente da Alta Câmara ràra assistir ao último dia do processo. Proprietário na cidade de um luxuoso palácio renascentista possuía ainda uma propriedade familiar na diocese . de Lombez, não distante da aldeia natal de Arnaud du Tilh. Unidos pela profissão, às vezes até por casamentos ~a filha do conselheiro Étienne de Bonald estava para se casar com o filho de Mansencal), os homens que em 1560 constituíam a Câmara Criminal começavam a tomar consciência das profundas divergências que os separava!l).. Três dos conselheiros, Jean de Coras, François de Ferrieres e Pierre Robert, logo se tornariam firmes defensores do protestantismo, e alguns outros, como Michel Du Faur; eram pelo menos simpatizantes da causa da Reforma. No outro extremo, o presidente Jean Daffis, Étienne de Bonald e Jean de Mansencal estavam decididos a empregar todos os meios para extirpar a nova heresia. 2 Mas o estranho caso que lhes chegava da corte de Rieux permitia-lhes esquecer por alguns momentos o fosso que se alargava entre eles. Todos tinharp. anos de experiência no ofício. Simon Reynier julgava casos há quase quarenta ::mos, e Jean de Coras, o menos antigo na carreira, era conselheiro desde 1553 -mas algum deles já teria um dia se deparado. com um caso onde a mulher pretendia que tomara por mari-
do, ·durante mais de três anos, um outro homem? O adultério, o concubinato, a bigamia eram-lhes conhecidos; mas já se ouvira falar de um "suposto" marido? Jean de Coras foi designado pela Câmara como relator: após um exame minucioso dos elementos do processo, foi encarregado de redigir um relatório sobre o conjunto do caso e de recomendar uma sentença. François de Ferrieres tinha a tarefa de assisti-lo em suas investigações e interrogatórios. Antes de tudo, a Corte quis ouvir Bertrande de Rols, que pedirá para compàrecer, e também Pierre Guerre. 3 Enquanto estes se dirigiam a Toulouse, o homem que se obstinava em afirmar ser Martin Guerre encontrava-se acorrentado na Conciergerie. Não era vítima de uma medida de exceção; o índice de evasões era tão elevado que tinham acorrentado todos os homens, com exceção dos gravemente doentes, dos condenados por dívidas e devedores de multas. Ele tinha a liberdade de falar a todos os que se encontravam ao alcance de sua voz e sua verve inesgotável deve ter alegrado seus camaradas de infortúhio: o alegado "raptor" de Carcassone; o notário, o padre e o esporeiro de Pamiers, acusados de heresia; e os dois misteriosos homens que .se pretendiam oriun"dos de "Astaraps no Pequeno Egito" .4 No início de maio, os juízes ouviram Bertrande e Pierre; a seguir, em plena câmara, foram alternadamente acareados com o réu. Parece que não houve problemas quanto à língua; a maioria dos membros do tribunal pertencia à região. Bertrande começou com uma declaração visando a convencer os juízes de que jamais fora cúmplice do detido; sua honra, ela sabia, estava maculada, mas fora vítima de urna horrível maquinação. Falava com tremor, os olhos cravados no chão (((defixis in terram occulis satis trepide"). O prisioneiro então se dirigiu a ela com urii ar ani" mado (((alacriori vultu") e afetuoso, dizendo que não lhe queria nenhum mal, que sabia que todo o caso fora tramado pelo seu tio. Mostrava um rosto "tão seguro", comenta
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Coras, e "muito mais que a dita de Rols, de tal modo 'que havia poucos juízes assistente.s que não se persuadiram ser o prisioneiro o verdadeiro marido e proceder a impostura do lado da mulher e do tio". Após a acareação entre o réu e Pierre Guerre, a câmara ordenou que Pierre e Bertrande fossem ambos encarcerados, Pierre presumivelmente a uma boa distância de "Martin Guerre", e Bertrande na seção da . ' Conciergerie reservada às mulheres. 5 Recomeçaram os intermináveis relatos da vida de Martin Guerre. Coras e Ferrieres interrogaram primeiro Bertrande. Se, a essas alturas, ela quisesse traí-lo, bastava contar uma história que ele não pudesse repetir; no entanto, aferrou-se à versão que tinham elaborado juntos, meses antes. A seguir, interrogam inúmeras vezes o réu, tentando inutilmente pegá-lo em erro.* Coras registrou:
ra vez. Sete testemunhas foram convocadas a Toulouse no final de maio, para uma acareação com Bertrande de Rols. Colocada na situação infamante de prisioneira, teve de enfrentar sua cunhada J eanne Guerre e pessoas importantes do vale do Leze, como Jean Loze e Jean Banqueis, que provavelmente tiveram de se pronunciar sobre a questão das pressões de que teria sido objeto. 7 Durante o verão de 1560, Jean de Coras passou todos esses dados pelo seu crivo e decidiu o que faria figurar em seu relatório. Deve ter sido um descanso ocupar-se do caso de Martin Guerre. Acabava de concluir seu grande tratado, De iure Arte, e não preparava nenhuma nova obra. Entrementes, exacerbavam-se na França as paixões políticas despertadas pela conspiração protestante de Amboise, abortada poucos meses antes, e até em Toulouse multiplicavam-se os confrontos entre partidários da nova e da antiga religião. A cada vez que a Câmara Criminal julgava heréticos, Coras contentava-se em se manter à distância. 8 Ele sabia de que lado encontrava-se a verdade, mas ainda não estava pronto para se lançar na refrega. Por ora, era-lhe mais fácil descobrir a verdade sobre a identidade de um homem. Os testemunhos suplementares pouco acrescentaram. Nove ou dez pessoas estavam convencidas de que o acusado era Martin Guerre, sete ou oito juravam que era Arnaud du Tilh, os restantes se abstinham. Coras se dedicou a uma análise sistemática das testemunhas e seus depoimentos. Era o que, achava ele, faltara no julgámento anterior em Rieux . Nos dois processos, o peso numérico depunha contra o acusado. Contudo, tratando-se da identidade de um homem, o que contava não era o número, mas a qualidade das testemunhas - eram pessoas íntegras, empenhadas na verdade, ou, pelo contrário, falavam dominadas pela paixão ;medo ou interesse? Enfim, ponto essencial, a plausibilidade dos seus testemunhos. Nesse caso insólito, Coras julgava que o testemunho dos parentes próximos tinha a mais alta
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Esses comentários aqui longamente discorridos e a quantidade de tantos e tantos sinais tão verdadeiros davam grande oportunidade aos juízes de se persuadirem da inocência do dito [réu], e além disso admirar a sorte e a felicidade de sua memória, que soube contar inumeráveis coisas feitas e passadas há mais de vinte anos: no que os comissários, que por todos os meios a eles possíveis tentavam surpreendê-lo em alguma mentira, não conseguiram porém obter nada dele, nein fazer com que não respondesse verdadeirament~ a todas as • cOisas ... 6
Certamente procedeu-se à audiência das test~munhas, e os membros da comissão interrogaram de vinte e cinco a trinta delas, algumas já ouvidas. Houve novas acareações com o réu. Carbon Barrau chorou quando viu o prisioneiro acorrentado, mas Martin Guerre recusou-o como da primei* "Às vezes é permissível que os juízes mintam", escreveria mais tarde um juiz do Supremo Tribunal de Toulouse, "a fim de descobrir a verdade sobre crimes e felonias" . Bernard de La Roche-Fiavin, Treize livres des Parlemens de France (Genebra, 1621), livro 8, cap. 39.
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importância: 1< eles estão em melhores condições para reconhecer um homem "pela proximidade do sangue" e porque foram criados juntos. Mas aqui estava-se em presença de parentes que divergiam formalmente sobre sua identidade. Para condenar um acusado, um tribunal deve possuir a prova de que realmente foi cometido· um crime e que o acusado é o seu autor. Mesmo uma confissão isolada não bastava para estabelecer esses dois fatos, pois um acusado podia não dizer a verdade, com ou sem tortura. De qualquer forma, neste caso preciso não houvera confissão. Podia-se concluir pela culpabilidade com o recurso à regra tradicional que reconhecia valor de prova ao depoimento concordante de duas testemunhas dignas de fé? Coras tinha fatos precisos que acusavam o prisioneiro, mas a cada vez deparava com dificuldades. Por exemplo, Pelegrin de Liberas declarara que o réu respondia pelo nome de Arnauld du Tilh e lhe entregara dois lenços para seu irmão Jean, mas era a única testemunha a apresentar tal depoimento, e foi desmentido pelo réu. Duas te~temunhas declaravam ter ouvido um soldado de Rochefort dizer que Martin Guerre perdera uma perna na batalha de Saint-Quentin. Mas cómo não passava de um ouvir-dizer, não se podia atribuir grande peso a
testemunhas que concordassem entre si. Por outro lado, se era verdade que Martin Guerre, quando jovem, tinha pernas mais magras do que as do acusado, a experiência demonstra que os adolescentes esguios tornam-se mais pesados com a idade. O fato de o réu praticamente não saber falar o basco podia significar que não era Martin Guerre, pois é pouco provável "que um basco nativo não saiba falar sua língua", ou apenas que, tendo deixado o Labourd com poucos anos de vida, jamais aprendera realmente a língua dos pais. 9 Coras estava em "grande perplexidade" .. Mas o relator devia fazer uma recomendação. Quanto mais refletia sobre os fatos, mais parecia-lhe que o réu era quem pretendia ser e que a sentença do juiz de Rieux teria de ser invertida. Ele começava por refletir no caso de Bertrande. Era uma mulher que vivera 'virtuosa e honradamente" e as informaçõe~ obtidas com as monitórias confirmavam-no. Partilhara seu leito com o prisioneiro por mais de três anos, "em cujo intervalo tão longo não é provável que a dita de Rols não o tenha reconhecido como estranho, se o prisioneiro não fosse realmente Martin Guerre". Ela o defendera durante meses contra seu padrasto e sua mãe, chegando a protegê-lo com seu corpo, para que não lhe sucedesse nenhum mal; ela o recebera em seu leito, poucas horas antes de ter depositado sua queixa. A seguir, diante do juiz de Rieux, recusara-se a jurar que não .fosse Martin Guerre. De um ponto de vista jurídico, tal fato não ajudava em nada a descoberta da verdade, pois nos casos ~riminais "a prova por juramento não é legítima", mas era revelador do seu estado de espírito, e essa impressão era reforçada pela sua atitude hesitante e nervosismo durante a acareação com o acusado, no mês de maio, perante a Câmara Criminal. Parecia provável, como aliás Bertrande inicialmente dissera, 10 que tinham-na coagido a fazer uma falsa declaração. Ele observava Pierre Guerre. Seria interessante saber
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ISSO.
A prova material, cada vez mais valorizada nos processos criminais do século 16, embora não fizesse parte da teoria medieval quanto ao estabelecimento das evidências, tampouco trazia uma resposta decisiva. Baseava-se em larga medida no testemunho de pessoas que se lembravam dos traços de Martin Guerre. E se elas estivessem mentindo, ou simplesmente a memÓria as traísse? Os que declaravam que o prisioneiro apresentava os mesmos sinais distintivos e cicatrizes de Martin Guerre não estavam de acordo sobre suas verrugas ou particularidades das unhas. Não havia duas '' Ver adiante, p . 108, sobre a questão geral dos testemunhos dos parentes num processo criminal e sobre os irmãos de Arnaud du Tilh.
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o que se passou efetivamente durante os interrogatórios entre o jurista de Réalmont e o velho fabricante de telhas de Artigat, com sua forte pronúncia basca. Em que termos teria o tio exprimido sua cólera e indignação em relação ao impostor, a ponto de levar Coras (a cujos olhos, como se sabe, o comportamento das testemunhas era um critério essencial de sua boa-fé) a exigir seu encarceramento? De qualquer forma, as provas que tinha sob as vistas não apresentavam o homem sob uma luz propriamente favorável. O litígio pela prestação de contas e devolução das rendas figurava no dossiê e fornecia um motivo plausível para uma falsa acusação. O próprio Pierre confessava ter se apresentado abusivamente em nome de Bertrande perante o juiz de Rieux. Sua "conspiração" com a mulher e genros, para tentar matar o acusado, fora descrita por "várias testemunhas", entre as quais o respeitável cônsul Jean Loze. Isso era prova suficiente para motivar uma ordem de tortura a Pierre Guerre, para confessar a tentativa de assassinato, acusação caluniosa e suborno da testemunha Bertrande de Rols. · A bem dizer, Le Sueur afirma que a Câmara Cri~inal pensara em tomar tal medida, embora não tenha chegado a fazê-lo. Seja como for, Coras considerava a calúnia como um crime grav~ e demasiado difundido que, visando a prejudicar o próximo, violava o Oitavo Mandamento. 11 Finalmente havia o acusado. Muitos fatos ·depunham a seu favor. Coras considerava as quatro irmãs de Martin como testemunhas excepcionalmente boas, "mulheres de · bem e honestas, se é que existem na Gasconha, as quais sempre constantemente sustentaram que o prisioneiro era seguramente Martin Guerre seu irmão". (Seu apoio deve ter parecido especialmente desinteressado a Coras, pois teriam possibilidades ainda menores de herdar as propriedades de Guerre, se Martin Guerre tivesse mais filhos.) Sua semelhança com o réu era ainda mais comprovadora do que a
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falta de semelhança deste com Sanxi, dizia Coras, pois está mais próximo delas pela idade, ao passo que Sanxi era apenas um menino de treze anos. Havia também o fato inegável de que o prisioneiro se lembrava com certeza de tudo o que se referia à vida de Martin Guerre, incluídos os detalhes íntimos fornecidos pela própria queixosa. Os relatos sobre a . conduta dissoluta de Arnaud du Tilh, "dado a todo tipo de maldades", não' prejudicavam a causa do acusado, pelo contrário, pois parecia não ter nada a ver com esse gênero de homens. Além disso, uma decisão que inocentas.s<" o réu daria expressão a um princípio do direito romano, segundo o qual "seria melhor não punir um culpado do que condenar um inocente". E, mais importante, daria peso a uma disposição no direito civil levada muito a sério pelos tribunais do século 16, favorecendo o casamento e os filhos nascidos do casal. "Em coisas que há alguma dúvida", dizia Coras, "o favor do marido ou dos filhos ... faz inclinar a balança." Bertrande teria um marido; Sanxi e Bernarde teriam um pai.12 . . La Tournelle estava prestes a apresentar sua sentença final, com as opiniões "mais dispostas a favor do prisioneiro e contra os ditos Pierre Guerre e de Rols" ,13 quando um homem com perna de pau apresentou-se nas dependências do Tribunal de Toulouse. Disse que seu nome era Martin Guerre e pediu para ser ouvido.
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EPOIS QUE Martin perdeu sua perna na ba.talha de Saint-Quentin, teve dois golpes de sorte em seu infortúnio. Em primeiro lugar, não morreu do ferimel}to, ma~ sobreviveu ao tratamento do cirurgião e conseguia coxear com uma perna de pau. A seguir, seus senhores, I)edro de Mendoza ou seu irmão, o Cardeal, pediram a Felipe II que assistisse Martin em seu estado de diminuição físic:a. O rei recompensou-o pelos serviços prestados concedendo-lhe uma posição vitalícia como irmão laico num dos mosteiros da ordem militar de São João de Jerusalém. Essa orderrt, a mais estrita do país, exigia títulos de nobreza dos seus cavaleiros; os banqueiros de Burgos suplicaram em vão que a regt;a 1 fosse suavizada a seu favor Martin Guerre pross~guia sua vida como antes, pequena parte de um universo n1asculino dominado por aristocratas. Como terá se decidido, após uma ausência de dl)ze anos, a atravessar os Pirineus com sua perna de pau e voltar à sua antiga existência? É o enigma mais cerrado da e~tória de Martin Guerre. Coras cala-se sobre suas razões, errtbora sugira que só descobriu a impostura após seu retorno. Le Sueur declara que, ao chegar, foi primeiramente a Artigat, soube do que se passara e partiu imediatamente com Sanxi para Toulouse. Mas o relatq de Le Sueur levanta algun, proble-
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mas, pois torna difícil explicar, entre outras coisas, certos acontecimentos dos últimos dias do processo, como a surpresa demonstrada pelas suas irmãs.* · Contudo, é possível que Martin Guerre tenha voltado por acaso na última hora. Pode ter se cansado da atividade restrita de uma instituição religiosa e; como irmão laico, ter preferido voltar, com seu aleijão, ao seio da família onde poderia exercer uma certa autoridade. A paz de Câteau-Cambrésis fora assinada entre a Espanha, França e Inglaterra no ano anterior, e o Cardeal de Bnrgos fora enc-arregado por Filipe II da missão de receber sua noiva Elisabeth de Valois na fronteira francesa, em dezembro de 1559.2 Martin Guerre podia esperar que, nessa época de reconciliação, seria perdoado por ter lutado pela Espanha. Mais provável parece-me a hipótese de que tenha ouvido alguma coisa sobre o processo antes· de seu retorno. ,Pierre Guerre certamente esperaria notícias suas, se ainda estivesse vivo. O caso estava sendo discutido por todas as aldeias do Languedoc, e o juiz de Rieux enviara investigadores à Espanha para verificar os testemunhos do novo Martin sobre sua estadia naquele país. Os burgueses de Toulouse e os juristas de todos os lugares interessavam-se pelo caso, mesmo que supostamente as deliberações se mantivessem secretas e o público não fosse autorizado a assistir ao processo antes da sentença final. Os rumores também poderiam ter chegado aos ouvidos do verdadeiro Martin, por intermédio da ordem de São João de Jerusalém, que tinha várias casas no Languedoc e no Condado de Foix.3 . Quem sou eu então, deve ter se perguntado Martin Guerre, já que um outro homem vive a vida que abandonei e está para ser declarado o herdeiro do meu pai Sanxi, o
marido de minha mulher e o pai do meu filho? O verdadeiro Martin Guerre pode ter voltado para readquirir sua identidade e pessoa antes que fosse tarde demais. Quando chegou a Toulouse no final de julho, foi posto à disposição do Tribunal e começaram as audiências. "Recém-chegado", teria gritado o réu no início de sua acareação com o homem que vinha da Espanha, "pérfido, malandro! Este homem foi comprado por dinheiro sonante e instruções de Pierre Guerre." Viera romper os laços sagrados do casamento. Se ele não conseguisse desmascarar "o afrontante", seria enforcado. E, coisa estranha, o homem de perna de pau se lembrava muito menos dos acontecimentos referentes a Martin Guerre do que o prisioneiro.4 A pessoa que outrora respondia pela alcunha de Pansette teve seu momento de triunfo. Seria um erro interpretar sua conduta, naquele dia e nas semanas seguintes, como um esforço desesperado para salvar sua pele. Vivo ou morto, defendia contra um estranho a ideritidade que forjara para si. (0 leitor lembrará que, provavelmente, os dois homens nunca tinham se encontrado antes.) Coras e Ferrieres tiveram dez ou doze interrogatórios com os dois homens em separado, colocaram ao recém-chegados questões "secretas" sobre assuntos até então não abordados, verificaram as respostas e constataram que o réu respondia a elas quase tão bem quanto o outro. Da pessoa do acusado parecia se desprender algo de mágico. Tentando descontrolá-lo, Mansencallhe perguntou como fazia para invocar o espírito do mal que lhe soprava tantas informações sobre as pessoas de Artigat. Coras registra que o acusado empalideceu e hesitou, sinal certo de culpabilidade aos olhos do Conselheiro. 5 Ao meu ver, essa reação pode ter resultado não só da sensação de perigo por parte do réu, como também da cólera ao ver não-reconhecidos seus talentos naturais. A Câmara Criminal então procedeu às últimas acareações. Carbon Barrau foi novamente convocado a comparecer,
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Se for verdade, esvazia o significado do confronto decidido pela Câmara Críminal entre o recém-chegado -e as irmãs e cunhados de Martin Guerre. Se já tivesse passado por Artigat e visto seus parentes ("os seus"), a prova do tribunal era inútil ..
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e desta vez também os irmãos .de Arnaud du Tilh, violando (mas tal prática se difundia cada vez mais no século 16) uma lei medieval que estipulava que os irmãos não podiam prestar testemunhos recíprocos de acusação num caso criminal. Os du Tilh preferiram antes fugir do que comparecer a Toulouse. Para Pierre Guerre, macilento após meses de prisão, os membros da comissão imaginaram uma encenação teatral. O recém-chegado foi colocado no meio de um grupo de pessoas, vestidas de modo semelhante. Pierre reconheceu seu sobrinho, chorou e alegrou-se que finalmente a sorte tivesse mudado. Para as irmãs, introduzidas uma após a outra, os dois · ·Martin foram colocados lado ·a lado. Após examinar atentamente o perneta, Jeanne disse: "Eis meu irmão Martin Guerre". O traidor que se parecia com ele abusara de sua confiança por todo aquele tempo. Estreitou Martin em seus braços, irmão e irmã derramaram lágrimas - e a mesma 6 • ,.. • cena se repetiu com as tres outras 1rmas. Chegou-·a vez de Bertrande de Rols. O que acontecera cqm ela após três meses passados na Conciergerie? Emagrec~ra e ficara doente, mas, como pelo menos algumas de suas companheiras de cativeiro eram acusadas de heresia, teve ocasião de discutir o Evangelho com elas. Lá estava também uma proprietária queixosa que, como ela, fora encarcerada. E ainda u.ma das reclusas sumiu por algum tempo para dar 7 à luz. Era um mundo de mulheres, que talv.ez recordou a Bertrande os anos de espera pelo retorno de Martin Guerre. Estava preparada para todos os desfechos possíveis: assim, quando chegou à Câmara Criminal, embora ignorasse o retorno ele Martin Guerre, desempenhou muito bem o seu papel. Após um olhar ao recém-chegado, pôs-se a tremer, derreteu-se em lágrimas (são expressões de Coras que, como bom juiz, considerava dever seu anotar todas as expressões
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das testemunhas) e correu para abraçá-lo, implorando seu perdão pelo erro cometido por imprudência e por ter sido enredada pelas manhas e seduções de Arnaud du ·Tilh. Desenrolou todas as desculpas preparadas: suas irmãs não desconfiaram; seu tio o reconheceu; eu desejava tanto que meu marido estivesse de volta que acreditei nele, por tantas coisas íntimas que conhecia a meu respeito; quando compreendi que era um impostor, quis estar morta e teria me matado se não fosse por temor a Deus; quando compreendi .que tinham roubado minha honra, dei queixa contra ele. Martin Guerre não manifestou o menor sinal de dor diante d~s . lágrimas de Bertrande de Rols e com um ar feroz e severo (lembrando-se talvez dos pregadores espanhóis que tivera oportunidade de ouvir), disse a ela: "Deixe de lado . essas lágrimas. . . E não se desculpe pelas minhas irmãs nem por meu tio: pois não há pai~ mãe, tio, irmã nem irmão ,que deva melhor conhecer seu filho, sobrinho o~ ir~ão do que a mulher deve conhecer o marido. E quanto a catastrofe . que sucedeu à nossa casa, só você é culpada". ' Coras e Ferrieres lembraram-lhe que ele tinha alguma responsabilidade no assunto, já que abandonara Bertrande, 8 mas el~ se manteve inflexível. Agora Martin Guerre fora reconhecido. Mesmo sem confissão, a Corte dispunha de provas suficientes para apresentar uma sentença definitiva. Jean de Coras reescreveu seu relatório e redigiu uma sentença; a Câmara Criminal pôs-se de acordo sobre o texto. Arnaud du Tilh, dito Pansette, era reconhecido culpado de "impostura e falsa alegação de nome e pessoa e adultério" .9 As suspeitas de recurso à magia e invocação do Demônio que pesavam sobre ele nas últimas semanas do. processo não foram mantidas na sentença. Du Tilh foi condenado a fazer confissão pública e pedir perdão em Artigate depois conduzido à morte. A condenação à morte sem dúvida foi objeto de discussão entre os juízes. Uma sentença de prisão evidentemente .
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não cabia para o caso de Arnaud du Tilh, pois as pnsoes se destinavam apenas a pessoas à espera de julgamento e devedores condenados. A escolha se distribuía entre multas, vários tipos de punição física (açoitamento, estigma a feno ou fogo, mutilação), banimento, um período como remador nas galeras do rei e morte. Coras não encontrava no direito francês praticamente nenhum texto que pudesse orientá-lo, pois o crime de "usurpação de nome e pessoa" era pouco tratado, além do caso restrito de fraude em assinaturas. Os textos antigos divergiam, uns tratando a impostura como um jogo que não acarretava nenhuma punição, alguns prevendo uma pena leve, outros o banimento, pouquíssimos a morte. Em 1532, um édito real tornara possível a aplicação da pena de morte à "multidão" de falsificadores de contratos e falsas testemunhas perante as cortes, mas a prática judiciária não era uniforme. Coras pode ter ouvido falar do que acontecera em 1557 à apelação de dois impostores de Lyon (aqueles que assinavam contratos sob o nome de Michel Mure) da sentença de morte pronunciada pelo Senescalato de Lyon: o Supremo Tribunal de Paris reduziu a punição a açoitamento e nove anos nas galeras. A outra vez que o Senescalato sentenciou um impostor, o grego Citracha, que recebera dívidas devidas a um defunto, foi condenado a devolver todas as quantias recebidas indevidamente, pagar 500 libras ao rei e ser banido da França. 10 O crime de du Tilh, porém, era mais grave. Implicava a apropriação indébita de uma herança, delito comparável ao de uma mulher que apresenta ao marido um filho ilegítimo como se fosse seu, para que possa herdar. Mais importante, cometera adultério, crime que, segundo Coras, devia ser punido severamente e de modo mais regular pelos seus contemporâneos. O Tribunal de Toulouse só aplicava sentenças de morte a adúlteros que transgrediam a ordem social, como em 15 53, quando o auxiliar de um conselheiro foi condenado à forca por ter seduzido a mulher do seu patrão,
e em 1556, quando a mulher de um proprietário rural foi acusada de adultério com seu meeiro (ambos foram enforcados).11 Foram tais considerações que determinaram a opção pela condenação à morte para Arnaud du Tilh, opção que sabemos, ao menos por um exemplo, ter chocado certos juristas. Tampouco foi decapitado, como ordenara o juiz de Rieux, mas enforcado como convinha a um simples plebeu culpado de traição e luxúria. A Corte não chegou ao ponto de queimá-lo vivo, mas , devido ao seu detestável crime, queimou seus despojos ''para que a memória de pessoas tão desgraçada e abominável se anule totalmente e se perca".
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A primeira representação pictórica do caso, mostrando o casal com uma condição social mais elevada do que a real,
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De certa maneira, La Tournelle levou em consideração os interesses de Arnaud du Tilh. Essa atitude, certamente, facilitava as coisas para Martin Guerre e Bertrande de Rols, mas expressa igualmente um respeito inconfesso pelo homem cujo sistema de defesa os fascinara. Sua filha Bernarde foi considerada legítima. O tribunal baseou sua decisão sobre o reconhecimento da boa-fé de Bertrande: aceitou sua decla-. ração de que pensava viver com Martin Guerre quando a criança foi concebida. Aqui se dispunha de diversos precedentes. Para que um filho fosse bastardo, seria preciso que os dois pais estivessem a par da situação; as crianças de uma mulher que ignorava estar casada com um padre eram declaradas legítimas. Decisão mais surpreendente, a Corte não confiscou os bens e propriedade de Arnaud du Tilh na diocese de Lombez, para entregá-los ao rei (como usualmente ocorria nos casos dos condenados à morte). Ao invés disso, depois de Bertrande reembolsar as despesas com o processo, os bens passariam para sua filha Bernarde, como dote e auxílio para seu sustento. 12 Além disso, a chamada question préalable ("questão . prévia"), a tortura a que se submetia o condenado antes de sua execução, para que entregasse seus cúmplices, foi-lhe poupada. Coras recomendava o seu uso em alguns casos, já que em 1560 ele e o presidente Daffis tinham assinado uma sentença ordenàndo que um certo Jean Thomas, dito Le Provincial, "será posto .à questão para saber de sua boca a verdade dos excessos, crimes e malefícios a ele atribuídos" .13 A Câmara Criminal deve ter achado pouco provável que u~ . criminoso de tal envergadura cedesse à tortura - e' em caso contrário, certamente os juízes não queriam ouvi-lo denunciar no último minuto Bertrande de Rols como sua cúmplice. Agora, La Tournelle tinha de decidir quanto à sorte da mulher prisioneira na Conciergerie. O que se podia dizer da bela esposa tão fácil de se enganar e tão obstinada no
seu erro? Após longos debates, os conselheiros concordaram em aceitar sua boa-fé; afinal, o sexo feminino era frágil. Não foi processada por fraude ou adultério (este poderia lhe custar a clausura num convento até que seu marido decidisse retomá-la) e, como acabo de dizer, sua filha fora declarada legítima. O mesmo se deu com Martin Guerre. A Corte passou muito tempo a examinar as acusações que poderiam ser levantadas contra ele, por ter abandonado a família durante anos e combatido nas fileiras dos inimigos da França. Finalmente concluiu que sua partida podia ser· debitada à juventude, "o calor e leviandade de juventude que então ferviam nele". Quanto ao engajamento a serviço de Filipe II, seria atribuído à obediência que, como lacaio, devia aos seus senhores, e não tanto ao desejo "de ofender seu príncipe natural". A perda da perna, o que acontecera aos seus bens e a sua mulher eram um castigo suficiente. Tampouco Pierre Guerre seria processado por ter se apresentado falsamente como agente de Bertrande, nem pelo seu plano de matar Arnaud du Tilh. Já arriscara seus bens e até sua vida, ao instaurar o processo contra o impostor; se tivesse perdido a causa- como quase aconteceu - , teria sofrido uma pena severa por falsa acusação perante um TribunaP 4 Tudo na sentença final tendia a satisfazer os critérios que tinham levado Coras a formular um primeiro julgamento favorável ao novo Martin: protegia o casamento e os filhos dele saídos. A 11 de setembro, o presidente de Mansencal convocou Bertrande de Rols, Ma~tin Guerre e Arnaud du Tilh perante toda a Câmara. Este último persistiu em afirmar que era Martin Guerre, sem levar em conta o que dizia o presidente. Mansencal, a seguir, tentou reconciliar Bertrande e Martin, censurando-os por seus erros e insistindo que esquecessem o passado. O réu interrompeu-o diversas vezes, refutando cada uma de suas palavras.
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Foi a representação mais lamentável - ou a mais sincera - do novo Martin. Perdera a partida e agora era sua vez de ser o marido ciumento. Mostrou-se petulante e irascível perante a Corte, e esse comportamento acarretou uma alteração de última hora em sua sentença. 15 Estavam previstas duas confissões e pedidos de perdão públicos, um perante a Câmara, outro em Artigat. Agora só teria de fazê-lo em Artigat. Quem sabia o que poderia dizer à corte?'~ Em 12 de setembro, o Tribunal abriu suas portas para que o público pudesse ouvir a sentença. Uma imensa multidão precipitou-se na sala do tribunal; entre ela parece ter estado o jovem Michel de Montaigne, há pouco tempo conselheiro no Tribunal de Bordeaux. 16 Mansencalleu a sentença: a justiça declarava Martin Guerre, Bertrande de Rols, Pierre Guerre livres de qualquer processo e recusava a apelação de Arnaud du Tilh, dito Pansette, "autodenominado Martin Guerre". Devia iniciar sua apologia pública perante a igreja de Artigat, depois ser conduzido através da aldeia para ser executado diante da casa de Martin Guerre. O juiz de Rieux se encarregaria do caso. Coras não registrou a expressão dos rostos de Bertrande de Rols e Arnaud du Tilh.
para ver o impostor e assistir à sua execução. A aldeia não estava mais dividida como estivera por mais de um ano. O mentiroso fora desmascarado e ia-se assistir ao ritual da sua humilhação, arrependimento e rejeição. Pansette deu o melhor de si para tornar a ocasião memorável. Começou o dia retomando seu antigo nome. Apresentou voluntariamente sua confissão ao juiz de Rieux, contando como fora cumprimentado pelo nome de Martin Guerre por dois homens em Mane. Tudo se produzira por meios naturais, seus e de seus cúmplices, os quais nomeou.* Nada se devia à magia. Manteve em segredo o.papel de Bertrande do início ao fim. Segundo Coras (mas não Le Sueur), também confessou vários pequenos furtos da · juventude. A seguir, como qualquer bom camponês pai de família, fez seu testamento. Arrolou todos os seus devedores e credores em dinheiro, lã, trigo, vinho e painço, e pediu que as dívidas fossem pagas com as propriedades que herdara de Arnaud Guilhem du Tilh e outros parentes; atualmente eram ocupadas por Carbon Barrau. Para ter certeza de que seu tio pagaria, abriu processos civis contra ele, certamente continuados pelos seus executores testamentários. Fez de sua filha Bernarde - agora Bernarde du Tilh - herdeira universal, tendo como tutores e executores testamentários seu irmão Jean du Tilh deLe Pin e um certo Dominique Reh;ndaire de T oulouse. Para o perdão público, ajoelhou-se diante da igreja, na posição tradicional dos penitentes - camisa branca, cabeça desnuda e pés descalços, um archote na mão. Pediu perdão a Deus, ao rei, à justiça, a Martin Guerre e Bertrande de Rols, marido e mulher, e a Pierre Guerre. Conduzido através da aldeia, corda no pescoço, o camponês de língua de
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· ··-@-···· Quatro di*s depois, o patíbulo estava erguido. defronte à casa onde ' se preparara o leito conjugal de Bertrande de Rols, vinte anos antes. A família completa voltara de Toulouse e vinham pessoas de vários lugares das redondezas ,., O relato de Coras é muito estranho. Por que punir Arnaud du Tilh em sua má conduta suspendendo uma das apologias públicas? Não teria sido mais adequado trocar a apologia frente à Corte por uma apologia mais humilhante perante a aldeia? Ou Coras está deturpando o que aconteceu , ou temos aqui um outro exemplo dos sentimentos mesclados dos juízes em relação ao extraordinário Arnaud du Tilh .
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,., Coras diz apenas que ele confessou "que alguns tinham lhe dado certas informações e conselhos" (p. 83) . Le Sueur diz que ele "nomeou duas pessoas que tinham-no ajudado" (Historia, p. 22). Talvez se trate dos dois amigos do desaparecido que inicialmente tomaram du Tilh por Martin Guerre.
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ouro dirigiu-se às multidões: ele era Arnaud du Tilh que, por infâmia e astúcia, tomara os bens de um outro e a honra de sua mulher. Louvou os juízes de Toulouse pela maneira como conduziram a investigação e expressou sua vontade de que os honoráveis Jean de Coras e François de Ferrieres estivessem presentes para ouvi-lo. Na escada que o conduzia ao patíbulo, ele ainda falava, recomendando ao homem que ia tomar seu lugar que não se mostrasse rude para com Bertrande. Podia testemunhar que era uma mulher de honra, virtude e constância. Desde que ela suspeitara, tinha-o repelido. Ao agir assim, manifestara coragem e elevação de espírito incomuns. A Bertrande, pediu apenas que o perdoasse. Morreu implorando a misericórdia de Deus em nome do seu filho, Jesus Crist0. 17
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O Contador da Estória ····-@-···· OUCO DEPOIS do processo de Arnaud du 'Tilh, o TriP bunal de Toulouse entrou em recesso a partir de setembro, como em todos os anos. Jean de Coras, ao invés de partir imediatamente para sua residência familiar em Réalmont, entregou-se ao seu estudo em Toulouse, onde começou a escrever a história do homem que fora queimado, para que se apagasse sua memória. Em 1. 0 de outubro, praticamente terminara sua primeira redação. 1 Por' sua vez, um jovem chamado Guillaume Le Sueur punha no papel sua versão dos mesmos acontecimentos. Algo de assombroso, de perturbador nessa história encontrava uma ressonância em . suas próprias vidas: e esse algo precisava ser dito. No caso de Guillaume Le Sueur, é difícil encontrar a corda que fora vibrada por esse caso, pois é uma figura pou" co conhecida . Filho de um rico comerciante de Boulogne-surMer na Picardia foi enviado à universidade de Toulouse para' estudar direi~o civil. Seu irmão Pierre tornou-se funcionário das finanças reais , e no final de 1561 usava sua casa em Boulogne para "reuniões e preces segundo a nova religião". Guillaume parece ter partilhado dos seus sentimentos, e por algum tempo fez parte do círculo do Príncipe protestante de Condé. Sabe-se que em 1566 já era advogado no Senescalato de Boulonnais ; vários anos mais tarde, tornou-se o
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encarregado de suas águas e florestas. Em 1596 escreveu a primeira história de sua cidade natal, obra de cer~o mérito . Mesmo antes disso, La Croix du Maine tinha ouvido falar de~e e cita-o em sua Bibliotheque de 1584 como "poeta em lati~ e francês " . Conhecia também o grego, e em 1566 ~ubhcou uma tradução em versos latinos da versão grega do hvro dos Macabeus. A seu crédito ainda figura a Admir ável História do Falso M~rtin de T_oulouse, composta em latim, que circulava manuscrita pela cidade. Dedicou-a a Michel Du Faur quarto presidente do Tribunal e membro de La Tournelle duran te o. processo de Martin Guerr e. Como Le Sueur disse posteriormente numa dedicatória ao Chanceler Michel de l'Hôpi tal, fora "adota do na família e clientela de Du Faurs, pma ~asa q~e supera~a todas as da região pela sua erudição única, Integn dade de vida, esplendor e honrà ". Suas evidências sobre o julga~ento pro~avelmente foram obtidas com as palavras e dossu·," ~o presidente - ele diz ter "colig ido" (colligebat) a e"tona - e talvez estivesse presente no tribunal em alguma função menor. O certo é que, em 1560, Guillaume Le Sueur esperava ascender dentro do mundo jurídico e da cultura retórica legal, além de uma inclinação pessoal pela literat ura clássica.2 . Sobre Jean de Coras existem muitas informações. Era "Ilustr e", "clarissimus", como anunciavam os editores nas páginas de rosto dos seus livros. E não era uma celebridade recente . .No ano do processo de Martin Guerr e, acabava de aparecer sua própri a "Vita" , contada por um dos seus antigos discípulos, Antoine Usillis , como prefácio à obra de Coras, De iuris Arte. Nascera por volta de 1515 em Réalmont Albigeois, a primogênito de quatro filhos, e crescera e~ Toulouse, onde seu pai, Jean de Coras, licenciado em direito, era advogado no Supremo Tribunal. Já aos treze anos interpretava o direito civil de cátedra (pelo menos é o que diz a lenda), e nos anos seguintes, quando era estudante de di-
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reito canônico e civil em Angers, Orléans e Pari~, pr~puse ram-lhe várias vezes que ensinasse direito. A segmr, fm para Pádua, onde propôs cem temas de dissertação aos seus examinadores e foi aclamado pelas suas boas respostas. Em 1536, com 21 anos, seria aprovado em se~ doutor~d~ e~ Siena com Philippe Decius, "um gran.de luminar ~o dir~tto . (Coras disse posteriormente que Decms esta~a ~a? seml qu.e não se lembrava mais de uma única palavra Jundtca e precisava de um quarto de hora para pronunciar a prim~ira frase de sua peroração. Finalmente, o grau de doutor foi-lhe con·· cedido por outra pessoa. Essa anedo ta. most.rou, ~ue Coras não levava tão a sério sua fama de memno prod1g10.) De volta a Toulouse, Coras entrou como regente na universidade, e seus cursos de direito civil tiveram enorme sucesso. Usillis diz que não se lembra de nenhum outro professor capaz de atrair tamanhas multidões. Estav~ pr~sente quando Coras derramava as torrentes d~ sua eloquenCla}ascinante sobre um auditório de duas mil pessoas, com sua voz suave, fluente, clara, melodiosa". Esse entusiasmo .é tanto mais impressionante se se lembrar que as ~ulas ,de direito em Toulouse geralmente eram dadas das cinco as dez 3 horas da manhã. Duran te esses anos de glória precoce, Coras mantinha com 0 direito .relações de outra ordem, não mencionadas por Usillis: tornou-se litigante. Sua mãe Jeanne de Termes morreu em Réalmont, legando-lhe por um testamento d~ 1542 todos os seus bens e propriedades. Jean de Coras pai opôs-se ao testamento e o mestre Jea? de Coras filho atacou-o na justiça. O caso foi finalmente Julga~o ~m 154~ pel? Tribun al de Toulouse. Foi confirmado o duetto do filho a herança e ordenaram ao pai permi tir que ~ filho f~z~sse o inventário no momento desejado . Coras pai usufru ma. dos bens e propriedades durant e' sua vida. Ao final, os dms s · reconciliaram (Coras lhe dedicaria uma obra em 1549), m ~l H , assim como o relato cômico da cerimônia de doutor ame nt o, A
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o pr,ocesso contra seu pai revela uma atitude pelo menos ambtgua em relação à ordem e à autoridade. 4 Entrementes, Coras se casara e tivera filhos, para felicidade sua. "Um casamento afortunado", diz-nos em sua obra de direito, De ritu nuptiarum, e não hesita em inserir bem no meio do seu comentário um trecho sobre sua mulher Gatherine ~oyso.nné. Filha de uma antiga família de magistrad?s muntctpats de Toulouse, era parente do jurista humanista Jean Boysonné, grande amigo de Coras. O casal teve primeirame~te u~a filha, Jeanne, e depois um filho, Jacques, tambem objeto de citação em meio a uma discussão jurídica: "Ontem, 13 de abril de 1546, fiquei comovido com uma alegria incrível pois tornei-me por nossa florescente Catherine pai de um filhinho". 5
de Toulouse. Os cardeais de Châtillon e Lorraine recebem 6 na hora adequada as obras adequadas. Essa tática rendeu seu frutos em janeiro de 15 53, quando vagou um cargo no Tribunal de Toulouse. Ele retornara de Ferrara à cidade por uma triste circunstância: sua mulher Catherine Boysonné morrera e voltou por um período de luto. Henrique II aproveitou sua · presença na França para consultá-lo sobre suas negociações com o Duque e o Cardeal de Ferrara, e depois concedeu-lhe o cargo que cobiçava. Em fevereiro de 1553, Jean de Coras prestou juramento como conselheiro no Supremo Tribunal, onde seu pai por muito 7 tempo fora (e talvez ainda fosse) advogado. Durante os sete anos que separam seu ingresso na função de juiz e o caso Martin Guerre, spa vida conheceu novas mudanças. Casou-se novamente, interessou-se cada vez mais pela causa protestante; suas obras se abriram a novas perspectivas. Em segundas núpcias, desposara Jacquette de Bussi, viúva que era também sua prima e sobrinha de um presidente do Tribunal. Sem filhos do primeiro casamento, tampouco teve filhos com Coras, mas serviu de mãe a Jacques de Coras, que sempre chamou de "meu filho". Conhecemos as relações do casal por cartas trocadas por vários anos após o processo, mas sugerem, porém, o que pode ter 8 sido seu casamento num período anterior. Coras é abertamente, profundamente, quase loucamente apaixonado por Jacquette de Bussi: "Nunca mulher alguma, presente ou ausente , foi tão querida e amada pelo marido quanto você é e será. Suplico-lhe que acredite que , dia ~ noite, em todas as horas e momentos, penso em você, espero-a, desejo-a e amo-a tanto que sem você não existo em nada" ..Envia-lhe livros, "uma roupa maliciosa" e "duas penas bem talhadas e fendidas a meu gosto como ..você". E quando esfria em Réalmont, recomenda-lhe: "Não durma sozinha, desde que não seja com um monge" (um trocadilho : moine é uma ·antiga palavra francesa para "aquecedor" ou
Nomeado para uma cátedra, Coras muda-se com a família para Valença, onde ensina direito civil de 1545 a 1549· a seguir, durante dois anos dá cursos em Ferrara. Durant~ t?dos esses.anos, não deixou de escrever e publicar comentár~os em lattm sobre o direito romano, em assuntos que vartavam .de~d_e o casamento e contratos até ações judiciais e a c?nstttmçao do Estado. A partir de 1541, pelo menos, envtava seus manuscritos a editores, principalmente em Lyon, grande centro de publicações jurídicas. E os estudantes de direito gostavam dos seus livros: "Corasissima" escreveu um deles à margem de uma frase particularmente' adequada sobre o tema da herança de menores. As edições revelam ainda dois aspectos interessantes de Coras .. Primeirament.e, uma vontade de desenvolver, repensa:, retnterpretar. Dtz com freqüência ao·s leitores: "Comecei ~ trab~lhar sobre este tema em Toulouse no ano tal, reveJ?-o agora e~ Ferrara". A seguir, a habilidade que lhe P,er~ute pr.ogredtr na carreira. Suas publicações de juventude Ja sao ded~cadas ao primeiro presidente do Supremo Tribunal de Pans e a Mansencal, primeiro presidente do Tribunal
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o móvel de madeira que o sustinha). Apresenta-lhe relató rios políticos e conta-lhe notícias sobre a causa Refor mada· instrui-a para receber as visitas impq rtante s e entre gar men~ sagens. Preocupa-se com sua saúde e' quer saber se seu afeto é correspondido. Quan do fica sem notícias, escreve: "Isso me faz ter a opinião, contr a minha vonta de, de que não estou tão gravado nas entranhas da sua memória como semp re desejei". De fato, Jacqu ette é um pouco reservada com seu marido. Ele a persegue e ela se esquiva: tais são as regra s de seu jogo amoroso. Ele assina as cartas como "seu ~eu seu e cem mil vezes seu Jean de Cora s"; ela ássina as suas como ".sua muito humilde e muito obediente espos a". Ele a pressiOna arden teme nte para que lhe diga se deve aceitar ou não um cargo impo rtante . Ela lhe responde: "seja feita a sua vonta de", o que lhe vale em resposta uma carta mago ada com uma assinatura impessoal, como um decreto. Nesse ínterim, apesar da saúde frágil, ela administra seus bens com competência, arrendando terras, consertando as cercas verificando os livros da derra ma e dando orden s para ~ue os campos sejam semeados com painço e aveia. Envia-lhe notícias e livros que leu, jarreteiras que confeccionou para ele, capões e água medicinal para seus olhos. Espe ra que esteja "cont ente e alegre" .9 Marido e mulh er estavam partic ularm ente unidos pelo seu engajamento na nova religião. Jean de Coras pode ter sido instru ído no prote stant ismo por vias diversas, por exemplo por seu amigo Jean de Boysonné, que nutri a sentimentos heréticos muito depois de ter abjurado deles em Toulouse, e por pessoas do círculo da Duqu esa René e, em Ferra ra, centr o dos refugiados religiosos da França. Quan do em 1548 surgiu sua impo rtante obra sobre o direit o canônico, Paraphrasis in unive rsam sacerdotiorum mater iam a~n~a não tinha se convertido efetivamente; aceitava a legi~ ttmtdade do papa, limitando-se a observar que o sober ano
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pontífice devia ser sempre um pasto r fiel e não um tirano . Por volta de 1557 , seu tratad o sobre os casamentos cland estinos, em todo caso, está de acordo com a sensibilidade pr~ testan te em sua crítica ao direito canônico, seu press entimento de que seria atacado por "venenosas calúnias ... sob prete xto de religião" e sua afirmação de que seus argum entos estavam "conf ormes a' pa1avra de D eus " .10 Le petit discours . .. des mariages cland estine ment e irrev erem ment contractes marca uma nova guinada em sua vida. Era a primeira obra que publicava em vernáculo. O objetivo deste gascão não era o de enriquecer· a língua francesa, "a qual confesso muito pouco favorecida pelo meu. I?odo de falar natural e espinhoso". Procurava antes mobt hzar a opinião pública: a autorização dos pais para o casam ento dos seus filhos é um assunto que "não pertence meno s aos que não são letrados do que aos conhecedor~s, ,d?utos e sábios" . Dedicou seu livro a Henr ique li, cuJO edtto recen te sobre os casamentos clandestinos ele aprovava e que, pouco depois, iria lhe conceder um privilégio de nove anos para todas as obras que quisesse publicar ou reeditar. Esse presente incomum permitiu a Coras controlar a impressão e os lucros de uma forma melhor que a grande maioria dos autores de sua época. Utilizou-o em 1558 para a tradução em francês de um diálogo entre o imperador Adriano e o filóso fo Epíte to, dedicado ao Delfim, e depois, em 1560 , para ~ua grande síntese sobre a estru tura da lei, De iuris Arte, dedtc ada ao Chanceler de França. 11
····- @-· ··· Em 1560 , quando Jean de Coras assumiu o cargo em La Tournelle , tinha quarenta e cinco anos de idade e estav a no apogeu do sucesso. Mas , como sugerem os fatos ;que aca-
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bamos de citar, era um homem ambivalente com aspirações contraditórias. Moldara , é verdade, uma carreira brilhant e, mas seu compromisso com o protestantismo era maior, o que finalmente lhe custaria a carreira e a vida. Eminen te especialista de direito romano , acreditava na autoridade da família e no poder do soberano; não obstante, viria a ser uma das grandes figuras implicadas nas sublevações protestantes de Toulouse. Advertia as famílias contra as "temerá rias paixões do amor", mas a simples idéia de que poderia ir buscar sua mulher dali a um mês, corria a procurar a mala e começava a embalar suas saias de tafetá. 12 Quando Jean de Coras entrou em contato com "Martin Guerre" , encontrou nele algumas de suas próprias qualidades. Embora não passasse de um simples camponês, o prisioneiro era ponderado, inteligente e sobretudo eloqüente. "Não par'ecia que contava as coisas aos juízes", diz Le Sueur, "fá-las reviver diante dos seus olhos." "Não me lembro de jamais ter lido que algum homem tivesse a memória tão boa", diz Coras. 13 Tinha também a aparência de um homem respeitável, apegado à família, e seu amor pela bela esposa era evidente. O fato de ter processado na justiça seu tio, por causa de uma prestação de contas, não escandalizaria além das proporções um homem · que indiciara seu pai num processo por inventário de bens . Se é correta minha hipótese de que "Martin Guerre" nutria simpatia pela causa protestante, Coras tinha mais uma razão para pensar que ele era pessoa digna de fé. Foi então que apareceu no tribunal o homem de perna de pau, "como um milagre", um ato da Providência, uma graça de Deus para protege r Pierre Guerre e demons trar a Jean de Coras que estava enganado.14 Coras refletira sobre os perigos da mentira dois anos antes, po.r ocasião de sua tradução do diálogo entre Adriano e Epíteto.
Jean de Coras no final do~ anos ~~60 , . cópia do século 17, por Bastet, de um ongmal perdtdo
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O RETORNO DE MARTIN GUERRE Adriano: O que é que o homem não pode ver? Epíteto : O çoraçã.o e o pensamento de outrem .
Comenta o juiz: "E na verdade não há entre os home ns nada mais · detestável do que fingir e dissimular, embora nosso século seja tão --desventurado que, em todas as posições, aquele que melhor sabe refinar suas mentiras, simulações e hiprocrisias muitas vezes é o mais rever encia do ... ". 15 Teria imaginado Coras 'algum dia que seria tão enga nado, e por alguém cuja trapaça suscitaria sua admiração ? Que obra profunda e bem-acabada era aquela impostura - "as mil necessárias mentiras" de Arnaud du Tilh! ("Ele respondeu tão bem ", disse Le Sueur, "que parecia estar representand o"). Os advogados, os funcionários do rei, e por que não os próprios juízes, conheciam tudo sobre a arte de se automodelar (do self-fashioning, para retomar a expre ssão de Stephen Greenblatt), sobre a modelagem do discurso, das maneiras , gestos e conversação, como qualquer pessoa que, no século 16, alçava-se a uma posição elevada. Ond e se detinha a modelagem e onde começava a mentira? A inventividade de Pansette colocava o problema de modo agudo aos seus juízes, muito antes que Montaigne colocasse a questão para seus leitores num ensaio auto-acusatório. 16 A primeira reação de Coras foi negar que se tratasse de inventividade humana. Du Tilh devia ser um mági co, auxiliado por um demônio. Era um traidor e Coras não tinha absolutamente nada a lamentar em sua morte, tanto do pont o de vista jurídico como do ponto de vista moral. A segunda reação de Coras foi reconhecer que Arna ud du Tilh tinha algo de fascinante que traduzia a situa ção das pessoas de sua classe, e que, no casamento inven tado do novo Martin e Bertrande de Rols, havia algo de profu ndamente falso, mas também profundamente justo . Assim pôs-se à mesa de trabalho e afiou suas pena s.
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. uinada em sua obra, uma nova Mals um~nova ? .de tudo esse livro permitia-ledição em he julgar francês. as, aclma 'b de exec utar· cond ená-lo aca ara · , novamente o homem que b, dar-l he ou pelo meno s a sua uma segunda vez, mas tam e~ ' estória, uma segunda oportumdade.
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de gêneros. Embora possam se encontrar alguns ttraços originais nele, Admiranda Historia de Pseudomartirw de Le Sueur, inscreve-se na longa tradição dos "relatos v'erídicos" gue desempenharam um papel tão importante ante!s do aparecimento da imprensa periódica. Panfleto de formato pequeno, simplesmente conta a história desde a chegada dos Guerre em Artigat até a execução de Arnaud du Tilh, e termina com um pequeno dístico moral. Um "amigo" de Toulouse enviou o manuscrito a Jean de Tournes, o célebre humanista livreiro e impressor de Lyon, gue às veze!s editava relatos verídicos. Mesmo sem esperar a obtençãc> de um privilé2:io real para a obra, imprimiu-a imediatamente em latim. Um outro manuscrito chegou às mãos do livr~eiro Vincent Sertenas, em Paris. No final de janeiro de 1561, Sertenas já estava com a tradução para o francês e conse!5uira um privilégio real de seis anos segundo a boa e devida forma . Editou-o sem o nome do autor, sob o título Histoire Admirable d'un Faux et Supposé Mary, advenue en Languedoc, l'rzn mil cinq cens soixante. Foi assim gue as notícias da impos,., Em francês no original ( N. do R. .).
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tura começaram a circular, engrossando a literatura já volumosa das "terr íveis " ou "maravilhosas" estórias de assassinatos, adultérios e catáclismas de todos os gêne ros. 1 Entrementes, em 2 de fevereiro de 1561, Jean de Coras assinava a dedicatória do seu manuscrito e expe dia-o ao comerciante-livreiro Antoine Vincent, de Lyon, transferindolhe seus direitos, cobertos pelo privilégio geral de nove anos. Até então, o editor lionês publicara pouquíssimos livros em vernáculo; sua fortuna se construíra sobre a publ icação de obras em latim, entre as quais De actionibus, de Coras, aparecido em 1555, e seu De iuris Arte , de 1560 2 ; O novo título em si já era muito atraente e cheio de fresc or para um leitor de 1561: Arrest Memorable, du Parlemen t de Tolose, Contenant une histoire prodigieuse, de notre temps, avec cent belles, & doctes Annotations, de monsieur maistre Jean de Coras, Conseiller en ladite cour~ f, rapporteu r du proces. Prononcé es Arre stz Generaulx le xii Sptembre MDL X. Esporadicamente eram publicados relatórios de sentenças criminais na França, como o processo daqu ele italiano condenado por ter envenenado o Delfim em 1536. E já começavam a surgir coletâneas de julgamentos; tanto criminais como civis. 3 Mas, na obra de Coras, a sente nça propriamente dita ocupava apenas duas páginas, num total de 117. E o juiz, ao invés de reservar seus comentários para algum douto tratado de direito_ criminal, preferira dese nvolvê-los ampla e profundamente nesse entretenimento. Coras pode ter sido o primeiro jurista na França a explorar um dos seus próprios casos criminais numa obra na língua vernacular. *
* Desde o édito de Villars-Cotteret de 1539, todos os procedimentos judiciais deviam ser em francês . Nos casos civis, abertos ao público, os discursos formais dos advogados às vezes eram impre ssos, e no final do século 16 tornaram-se um gênero literário apreciado [Cath erine E. Holmes, L'Eloq uence iudiciaire de 1620 à 1660 (Paris, 1967)] . Os casos criminais, em contraposição, · eram em princípio fechados ao público, até a leitura da sentença, e, como no caso Martin Guerre, muitas vezes não tinha discursos de advogados. Isso significava que qualquer tratamento literário posterior do caso exigiria uma · grande reconstrução por parte do autor . .
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E ainda havia a expressão "um a estória prodigios a", a melhor possível para a venda. As coletâneas de "prodígios" - plantas ou animais fabulosos, visões estrar:has nos céus e nascimentos mon stru oso s-, tão logo eram Impr essas, sumiam como pãezinhos frescos . Um ano antes, Vincen_t Sertenas publicara as Histoires prodigieuses de Pier r~ Boa1~tuau e, quando saiu o opúsculo de Le Sueur, a expressao se mt~o duzira no soneto introdutório do relato do falso Martm: "As histórias mais prodigiosas que se lêem I Do tempo dos cristão ou dos pagãos . . . I Se leres este escri to, nada te parecerão I Ao lado do falso marido . . . ". Cora s tampouco hesitara em usá-la no título, dando-lhe o mesm o senudo de Boaistuau, que aliás fora seu aluno em Valença~ Certamer:te, um prodígio é algo bizarro e maravilhoso, mas_ nem por 1sso é único. Os prodígios constituem os casos ma1s extremos e, portanto, os mais raros dentro de um c~njunto de coisas ou acontecimentos de mesma natureza. Ass1m, no caso que nos interessa, a impostura ultrapassava tudo o que até então se • ouvu a. 4 À primeira vista, o livro de Coras parece ser um comentário jurídico, com o jogo constante das relaç ões entre Texto e Anotações. Na realidade, a maior parte doJe xto não consiste em documentos oficiais, mas naquilo que o autor chama le texte de la toile du proces 5 - a "tram a" tecida pelo próprio Coras - , e muitas vezes as Anotaçõe s nada têm a ver com a lei. Poder-se-ia defini-la simultaneame nte como uma obra jurídica que questiona o funcionamen to da lei, um relato histórico que duvida da sua própria veracidade e uma narrativa que se desdobra entre as fronteira s do conto moral, da comédia e da tragédia. É evidente que essa forma heterogênea deu a Cotas uma liberdade que nunca tivera antes , mesmo que suas obras em latim abarcassem temas bastante amplos. Inicialme nte, proporcionou-lhe ocasião para se entregar a uma refle xão sobre as questões essenciais da prática jurídica de sua época: tes-
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temunhas, evidências, tortura, natureza da prova, etc. O caso Martin Guerre fornecia-lhe um exemplo onde os "melhores" testemunhos se revelavam falsos, a verdade se encontrava nos boatos e os juízes se extraviavam. Em segundo lugar, podia discutir o casamento e problemas a ele ligados: noivados de filhos impúberes, impotência, abandono do leito 6 conjugal e adultério. Aí encontraria também material para comentários religiosos, como sobre a blasfêmia; sem dúvida, deu-se ao malicioso prazer de lançar algumas alfinetadas discretas contra o catolicismo. A água benta, hóstias e fogaças, longe de serem meios eficazes para livrar do malefício um homem afetado pela impotência, não passavam de "vãs superstições'': mais valia orar e jejuar. E suas observações sobre a feitiçaria deixam transparecer sua sensibilidade protestante: redimidos péla paixão de Cristo, devemos suplicar-lhe "que queira elevar nossos corações e nos dirigir para seus caminhos, para que pela luz de sua palavra possamos expulsar de nós todas as ilusões, artifícios e imposturas, com as quais o diabo que sempre tenta nos enredar faz incessantemente novos embustes contra os filhos de Deus e sua Igre• " 7 . Ja . Mas não seria de uma forma bem mais fundamental que Coras via nessa estória e confirmação das teses protestantes? Certas circunstâncias que acompanharam sua publicação inclinam-nos a crer nisso. O editor, Antoine Vincent, era uma das figuras de proa do calvinismo francês. Um pouco depois, no mesmo ano de 1561, viria a obter o privilégio real para o Salmério Calvinista, um best-seller da língua vulgar que superaria Arrest Memorable. Coras dedicara seu livro a Jean de .Monluc, bispo de Valença, cujas idéias 'foram consideradas heréticas pela Faculdade de Teologia de Paris naquele mesmo ano. A publicação inicial de Le Sueur também tinha uma certa posição protestante: um autor que se voltava para sentimentos calvinistas; uma dedicatória ao juiz Michel Du Faur, suspeito de simpatias heréticas; um im-
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pressor, Jean de Tournes, defensor da nova religião. Coras e Le Sueur podem ter se perguntado se as desgraças dos Guerre ocorreriam na cidade reformada de Genebra, onde as novas leis sobre o casamento e um Consistório vigilante não teriam permitido um casamento entre pessoas tão jovens ou então forçariam Bertrande a se divorciar logo, e em todo ca;o des~obririam rapidamente o adultério. E não era um deus protestante que concebera o retorno do homem com perna de pau no momento oportuno, para abater a confiança excessiva dos conselheiros do Tribunal de Toulouse? 8 Se Coras e. Le Sueur tinham tais concepções, não as impunham aos textos. Arrest Memorable encontrava .le~to res entre as duas crenças, católica e protestante, e sena Impresso posteriormente em Paris por editoras. católica~. Vincent Sertenas, o editor de Le Sueur em Pans, tambem era católico. Na realidade, a dedicatória de Coras a Jean de Monluc só apresentava os propósitos leves do, livro: havia aí "um argumento tão belo, tão aprazível e tão monstruosamente estranho" que poderia trazer ao bispo "recreação e descanso" em meio às suas preocupações. 9 De fato, a construção de Arrest Memorable é bastante complexa: a mescla de tons e de formas são as características centrais. É um livro jurídico que questiona as operações do direito; é um relato histórico que levanta dúvidas sobre sua própria verdade. É um texto que se move entre.~ conto m~ ral, a tragédia e a comédia. Os heróis parecem viloes, e os. vilões· parecem heróis; e a história é contada de duas maneiras ao mesmo tempo. A matriz legal do livro ajuda a criar essa complexidade. O Texto de Coras inspirava-se no documento que redigira como relator da corte de Toulouse, onde pesava os argumentos a favor da acusação e os da defesa. Agora , ele joga constantemente com a distância entre o seu estilo administrativo, onde se trata do "réu" , do "dito du Tilh", e as Anotações, onde o mesmo homem é.qualificado de " esse
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rústi.c o", "esse luxurioso" ou ainda "esse prodigioso ofensor". Além disso, optou deliberadamente por acentuar certos traços e .omitir outros. Pode-se até dizer que se permitiu algumas dtst<;>rções da verdade para enfeitar seu relato. A memória de Arnaud torna-se ainda mais prodigiosa 'do que já era. Pelo que nos conta !,te Sueur, ele teria esquecido o nome de um dos padrinhos, que assistira à crisma de Martin Guerre. Mas em Coras ele nunca esquece. Ademais, esforça-se em se apresentar a si e toda a corte como imensamente menos convencidos da inocência de Arnaud do que de fato. Nunca menciona a prisão de Bertrande e Pierre - no entanto durou meses. O fato é relatado por Le Sueur e, principal~en te, anotado duas vezes r:tos registros do Tribunal. A sentença de 12 de setembro de 1560 .diz, com todas as letras, sobre Bertrande de Rols e Pierre G;uerre: "antes prisioneiros por razão do assunto", mas· quando Coras reproduz o veredito em seu liv~o, contenta-se em substituir a frase por um "etc.". A omissão não se devia a um cuidado de concisão ou economia de espaço, já que vemo-lo acrescentar à sua versão da sentença vários crimes de que Arnaud du Tilh não era realmente acusado: "rapto, sacrilégio, plagiato [no direitO romano, seqüestro de uma pessoa para venda ou outro abuso], furto e outros casos pelo dito du Tilh prisioneiro cometidos".10 ~s Anotações de Coras mostram-nos que considerava esses cnmes como extensão do adultério e usurpação de nome e pessoa; sem dúvida, também lhe permitiam tornar mais aceitável a pena de morte.* Todas essas modificações tendiam a fazer de Arrest Memorable um conto moral. As qualidades excepcionais de Arnaud eram realçadas por comparações com os grandes im* Coras tinha alguma dificuldade apenas com o fuito, pois Justiniano não prescrevera a pena de morte para tal crime. Ao demonstrar que o furto era grande (a herança .de Mart~n), envolvendo traição e perturbação da paz do casamento, Coras dtsse que Isso acarretaria condenação à morte (pp. 126-7).
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pastores dos tempos bíblicos, da antigüid~~e clássica e .te~ pos mais recentes. Tamanha semelhança flSlca entre d01s Indivíduos sem nenhum laço de parentesco já era em si algo pouco comum, mas, tão longe quanto Coras pudera levar suas pesquisas, jamais houvera um e~emplo onde a s~m~: . lhança do físico e dos costumes- "mil fraudes e mentiras · _ conseguira enganar tanto e p~r tanto te~po. O falso conde Baudouin de ·Flandres, no seculo 13, nao enganara a filha do conde, Jeanne, apesar de todas as pro~as que pudesse apresentar. Mas, aqui, não só os parentes unham s1do 1~ grados, mas até, coisa "que,de~e levar cada um. a uma admiração ainda maior", sua propna ~ulhe:, qu~ v1vera com ele na intimidade durante três anos s~m Jamais se ap~rceber c nem sequer suspeitar da fraude". Essa versão exphca ? engano pelo assombroso poder de iludir ~e. Ar?aud du Tdh, .o que tornava plausível a acusação ~e.!eltlç.ana - Coras ~1z que não podia se livrar dessa op1mao, amda que du Tdh negasse qualquer artifício di~bólico - e ao m_:smo tempo aceitável sua execução exemplar. Bertrande nao passa d.a simplória tapeada, o que é com~ree~sível visto 9u.e "a ~ragl lidade do seu sexo, fácil de ser Ilud1do, pela astuc1a refmada 11 e habilidade dos homens". Contudo, havia algo inquietante nessa ve;s~o, tanto para os cônjuges como para os amantes. Nas estonas engr~ çadas, tão correntes na época, onde um personage~ substitui um outro para fazer amor ~m seu lugar, proteg.ldo pela escuridão da noite, geralmente a vítima não nota a d1f~rença. (Só conheço um exemplo contrário: o velho cavale1ro das Cent Nouvelles Nouvelles percebe a diferença entre o colo firme da jovem criada e as formas amolecidas de sua e.sp~ sa.)12 Mas no caso de Bertrande, tratava-se de uma hlstoria verdad~ira e não de um estereótipo da literatura gala~te, tanto mais que a trapaça durou bem mais que uma n01:e. A "fragilidade do sexo" seria tão grande que as esposa~ ~ao conseguiriam distinguir entre o amor conjugal e o adulteno?
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O marido traído, Martin Guerre, estava convencido do contrário, como provam as palavras que teria pronunciado perante o tribunal, segundo Coras e Le Sueur. E é difícil crer que Coras, cujas relações com Jacquette de Bussi conhecemos, pudesse acreditar realmente que as mulheres se enganassem com tanta facilidade.* . Mas o juiz deixara falhas no próprio conto edificante. Onde estava, então, o seu herói? Um conto, supostamente, abre-se com a partida do herói e conclui com seu retorno s~a vitória s~bre o fals~ herói e seu casamento. Mas a par: tida Martl~ Guerr e e condenada, seu retorno, por providencial que seJa, mostra-o a nós como inflexível e impenitente; não vence a justa da memória contra Pansette. Coras não nos diz se o casal ficou feliz com o novo reencontro. Le Sueur, que não demonstra grandes simpatias por Martin nem por isso deixa de reproduzir a cena onde o president~ Mansencal tenta reconciliar os dois esposos; nada disso aparece em Coras .13 Uma omissão ainda mais curiosa é a escassez de detalhes da primeira edição .de Arrest Memorable sobre a confissão e execução de Arnaud du Tilh. A confissão é mencionada d~as vezes de passagem 14 o .fato escapa totalmente ao leitor apressado - , e o livro conclui com o reenvio do condenado ao Tribunal de Rieux. Coras deixa ao leitor um certo espaço de dúvida se a Câmara Criminal realmente apanhara o homem certo. É apenas na sua edição de 1565 que Coras.. preenche essa lacuna, fornecendo-nos a confissão de Arnaud du Tilh em ~rtigat, mas apena syara nos deixar nD;ma nova situação amb1gua, quando nos d1z, em uma de suas belas Anotações, que toda a estória é uma "tragé dia":
?e
* A~ relações com sua filha Jacqueline de Coras também permitem supor que nutria p~r ela um gran~e afeto. Em setembro de 1559, traduziu para ela Les Douze rezgles de Juan Pico de la Mirandola do latim para o francês, como uma defesà contra a tentação. O livro foi editado .em 1565 em Lyon, juntamente com uma nova edição de Arrest Memorable.
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Texto: Vendo e considerando que, já que os mais privados e particulares amigos do dito Martin Guerre tinham se iludido cóm ele, . . . trata-se de desempenhar a tragédia que vocês
aqui ouviram. , . Anotações CIV: Era verdadeiramente uma tragedi a para ess~ gentil rústico: tanto que o resultado foi muito funesto e mt· serável para ele, Além do que ninguém sabe a diferença entre tragédia e comédia .. .
O impressor parisiense da edição de 1572 acrescenta seu grão de sal falando em "tragicomédia", a quall~nt~me?~e abria seu caminho tanto na prática como .na teona hteran~ francesa do século 16:>'< "Pois a Prótase, ou abertura, e muito divertida, agradável e recreativa, conte~do,~s astúc.ias, manhas e trapaças de um falso e suposto mando . (Ó leitor poderia pensar que tem nas mãos um exemplar. do Decamerão, de Boccaccio, ou o Heptamerão, de 1:1arguente de Na~~r ra ou ainda o romance picaresco Lazarzllo de Tormes.) A E~ítase, ou entrecho, incerta e duvidosa, para os debat,es e diferentes fatos sobrevindos durante o processo. A Catastrofe ou a Moral da estória triste, lastimável e miserável. · · '' Le Sueur também dá ao seu relato mais simples uma outra coloração, ao falar várias vezes de tragédia. 15 , • Mas a originalidade da visão de Coras nessa estona camponesa merece ser ressaltada. A tragicomédia na França tinha um desfecho feliz .e tratava de nobres - pel~ menos para os personagens principais. Se as Histoires tr~gtques do italiano Bandello, traduzidas, adaptadas e pubhcadas, ~or Pierre Boaistuau em 1559, combinavam bem a força tragica e a paixão "prodi giosa" , nenhum dos protagonistas. era aldeão. O fato de Coras ter concebido "peças de tragédia entre pessoas vis e abjetas" devia-se indubitavelmente (conforme ressaltei no capítulo anterior) ao seu caráter, capaz de se '' É bastante interessante que o termo "tragicomédia" tenha sido empregado pela primeira vez no pró.logo de A,nfitriã~,, ~e Plauto, uma peça sobre imposturas, com edições em latim e frances no m1c1o do século 16.
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identificar de certa forma com um homem rústico que, como ele, soubera se reconstruir. 16 . Na versão "comitrágic~", Arnaud du Tilh possui ainda dons incomuns: é comparado a Júpite r disfarçado de An~ fitrião, para seduzir sua mulher, e ultrapassa as memórias mais prodigiosas da antigüidade, como Portius Latro, amigo de _Sêneca. Mas tem cúmplices, entre eles Bertrande de Rols, que, longe de ser apenas a tola enganada, decide com pleno conhecimento de causa viver conjugalmente com ele. (Esta Bertrande está presente no texto de Coras, mas de modo menos evidente do que a esposa ludibriada, e foi totalmente eliminada da versão de Le Sueur. A imagem de uma mulher que dispõe do seu corpo à sua vontade é muito mais pertü-roadora do -que a automodelagem de Pansette. É tema de pesadelos, como quando Coras escreve a Jacquette sobre "um estranho sonho que tive ., ontem, que na minha frente você ~stava casada com .\lm outro e quando lhe mostrei o erro que fazia a mim, em troca você me deu as costas".) 17 Aqui pode~se aprovar a traiÇão a um marido inicialmente impotente e depois ausente. Arnaud du Tilh converte-se numa espécie de herói, um Martin Guerr e mais real do que o homem de coração empedernido e perna de pau. A tragédia · reside menos na impostura e mais na sua descoberta.
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· ··-@ -···· "ENV IO-L HE . . . um dos meus arrestz de Martin Guerre, novamente e pela quinta vez reimpres.s o", escrevia Jean de Coras a sua mulher em dezembro de 156 7. Podia-se orgulhar da forma como caminhava o livro, mesmo talvez com as edições publicadas em Paris e Bruxelas em 1565, em violação ao seu privilégio de nove anos. O formato agora era menor, um sinal certo do menor preço do livro e ·de que os editores esperavam alcançar um mercado maior. No iníCio de 1572, editores parisienses publicaram-no com sua própria concessão real de dez anos. 1 Nessa época, Coras pouco estaria pensando sobre seu Arrest Memo rable. Inicialmente entrara em conflito com seus colegas católicos no Supremo Tribunal, após o levante calvinista em Toulouse em maio de 1562 (as testemunhas declaravam que os arcabuzes tinham sido disparados das janelas da casa de Coras, o que ele negava calorosamente). No início de 1568, os juízes protestantes não só tinham sido expulsos do Tribunal como também condenados por alta traição e enforcados em efígie. Coras servia à causa como chanceler para a rainha huguenote de Navarra, Jeanne d' Albret. De volta a Toulouse após a pacificação, ele e François de Ferrieres foram encarcerados na esteira dos massacres do Dia de São Bartolomeu em Paris. Em outub ro de 1572 ,
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for~I? linchados em seus mantos vermelhos por uma turba
tiplicação dos crimes" de Arnaud du Tilh (multiplicação, lembremos, que foi obra de Coras na edição impressa) e achava que cada um deles mereceria a pena de morte. Para Géraud de Maynard, ex-aluno de Coras e posteriormente juiz no Tribunal de Toulouse, era a questão da legitimidade de Bernarde du Tilh e seus direitos à herança do seu pai acusado de impostura que constituía o material de Notables ... questions du droict. Étienne Pasquier inclui o caso de Martin Guerre em seu Recherches de la France, entre outros processos que se encerraram com provas miraculosas. Retirando detalhes principalmente do relato de Le Sueur, o historiador e ilustre juiz de Paris achava - ·e tinha certeza que as mulheres concordariam - que Martin Guerre devia 6 ter sido punido por abandonar a esposa. Para os comentadores menos interessados em questões jurídicas, o que os atraía eram as características "prodigiosas", maravilhosas da estória. O erudito editor Henri Estienne utilizou-a para demonstrar que uma história de Heródoto sobre uma impostura bem-sucedida não era tão incrível. Gilbert Cousin e Antoine Du Verdier incluíram-na entre relatos de revoltas camponesas, cometas e inundações, transformações de mulheres em homens e conspirações políticas. François de Belleforest colocou-a num capítulo sobre semelhanças físicas notáveis em sua continuação de Histoires prodigieuses de Boaistuau. (Evidentemente, , encontrava-se entre a multidão que aguardava o pronunciamento da sentença em Toulouse. É de perguntar se Belleforest lembrava que Pansette era seu conterrâneo quando afirmou que os maridos do Comminges tratavam ~mas esposas "doce7 mente e não com essa rudeza que se atribui aos gascões".) Quaisquer que fossem seus motivos literários ou profissionais, todos esses autores concordavam em fazer de Arnaud du Tilh o personagem marcante, a figura inventiva do conto, a ser admirado e temido, invejado e repelido. Alguns mencionavam a possibilidade da magia, mas não a acentua-
catoltca defronte ao edifício do Tribuna1. Contudo, as obras de Coras continuavam a ser publicadas: E~quanto _as pessoas lutavam sobre a verdadeira e a fal~a IgreJa e as Ilusões do demônio, · o livro sobre o maridoImpostor era mais uma vez, em 1579, editado em Paris. Em 1576 e 1588, surgiram traduções latinas da primeira edição em F,ra?kfurt (e uma delas chegou à Inglaterra). Finalmente, nos ultimos anos d~ século, Barthélemy Vincent, em Lyon, retomou o autor editado por seu pai. 3 _o livro foi a~quirido principalmente por juristas e conselhei~os, que ass:navam seus nomes nas páginas de rosto, escreviam anotaçoes nas margens, comparavam-no a Paraphraze sur l'Edict des Mariages clandestinement contractez ~e, ~oras, ~u a outros livros sobre as leis de casamento. N~ IniCio do seculo 17, Arrest de Martin Guerre era citado entr: os textos fundamentais para qualquer estudioso de dir~Ito. Mas t~mbém era apreciado por suas qualidades literárias; um _leitor, ~or essa razão, encadernou-o juntamente . com Admzranda hzstoria, de Le Sueur. 4 A obra de Le Sueur encerrava sua carreira transformando-se, como c_ert~s rela~os verídicos, em lenda popular. Já: desde su~ primeir~ 7dição em francês, desapareceram as c?mparaçoes com Jupiter, Mercúrio, Anfitrião e Sosius. Artigat transformou-_se_ em Artigne e dti Tilh em Tylie _ e nunca foram corrigidos. Na reedição de 1615, Bertrande converte-se. no título numa "mulher notável". A trama tem~o~al se dissolve: o acontecimento ocorre "durante esses . ul~Imos problemas", sem nenhuma referência à batalha de . Samt-Quentin e Filipe IJ.S Sab;mos como o livro do juiz foi récebido pelos leitores atraves daqueles que reescreveram-no ou comentaram-no. Jean ~ap?n, Conselheiro do rei no Forez, inclui-o em seu Recue_z~ d arrestz. notables, redigido em 1566, na seçã.o sobre adulter10s. Ele ficara particularmente chocado com "a mul2
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vam muito, visto que a personificação não era ·o· tipo ·de malefício de que se acusavam as feiticeiras nos processos contemporâneos.8 Bertrande e seu papel composto .desapareceram completamente, assim como quaisquer dúvidas ·sobre a" justiça da sentença. Contudo, é preciso acrescentar que não possuímos nenhum comentário feminino sobtê ·a história até o século 20. Não chegou a nós a reação de Jacquette Bussi ao livro que lhe foi presenteado pelo marido. Mas duvido que ela tenha acreditado que Bertrande de Rols se deixara enganar por tanto tempo.* Há duas exceções que vêm discordar da unanimidade desse concerto de vozes masculinas. A. primeira provém · do poeta occitânio Auger Gaillard, antigo soldado do Albigeois e protestante. Em seu Amou rs prodigieuses, de 1592i publicado em francês e occitânio, identifica-se não ,com o "enganador aguerrido" (trompeur aguerri), mas com a esposa ludibriada:
2. 7'
DE
DE VX GE NT ILS h"mmes fe ,·apportans tellement de {4~ t::".L , ·z ç-j • ce, -v~ix ~ ptlrole & gfH·e s qu t e:, rott' impoj?tble de les difc:ertJcr e1z, forte
'J.liC lconlj :i-e.
Hifi oire pren 1iere .
Em Béarn e em França Muitas moças vi com semelhança Que entre si prontamente trocariam De modo que teriam me enganando facilmente. ,.,* ; * O encantador romance de Janet Lewis, The Wife of Martin Guerre, sob muitos aspectos difere do seu relato histórico, mas assemelh am-se ao apresentar uma Bertrande que não é ingênua e tem alguma independ ência de espírito. *•· Gaillar publicou o poema em francês e occitânio : En Béarn et en France Maintes filles ;'ay veu d'une mesme semblance T ellement que changer se porroint àisément De sorte que l'on meust trompé facilemente . En Bear et en Fransso " . A prou filhos que ·sou toutos d'uno semblansso Que s'ieu ne prenio cap 'd'aquelos que ne sou A my m'etz pouirio prene ai tal de la faissou .
Coras dá um exemplo de impostura feminina: uma mulher que cobiçava uma herança na época de Augusto, em Milão (p. 23} . ..
Um caso de notável semelhança no século 16, extraído de François de Belleforest, Histoire's prodigieuses (Paris. 1 'l74 )
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E se regozijava por estar apaixonado por uma mulher moura, certo de poder reconhecê-la mesmo que ficasse ausente por mais de cem anos. 9 A outra exceção é Montaigne, em seu Des boyteux (Dos Coxos), gue apareceu pela primeira vez em 1588. 10 Muitas vezes pensa-se que esse ensaio introduz o caso de Toulouse de forma apenas incidental, numa discussão sobre a queima das feiticeiras, mas de fato as questões que Mon~ taigne levanta não se limitam à feitiçaria, e por todo o texto ressoam ecos de Coras e seu livro. Montaigne ressalta a dificuldade em se saber a verdade sobre as coisas e tenta nos mostrar a que ponto a razão .humana é um instrumento incerto: "A verdade e a mentira têm seus rostos semelhantes ... olhamo-las com o mesmo olhar". Ele próprio admite se deixar levar pelo calor da argumentação, exagerando a verdade nua pelo vigor de suas palavras. Todos tentamos fazer prevalecer nossas opiniões, forçando os outros a aceitá-las a ferro e fogo. Não valeria mais sempre hesitar do que dar provas de presunção? Ser um aprendiz aos sessenta anos do que se considerar um doutor aos dez? É neste ponto do seu argumento, que constitui o pivô central do ensaio, que Montaigne introduz explicitamente o caso d<; Martin Guerre: Vi em minha infância um processo de um acidente estranho: que Coras, conselheiro de Toulouse, mandou imprimir, dois homens que se apresentavam um pelo outro . Lembro-me (e não me lembro tanto de outra coisa) que me pareceu ter ele considerado a impostura daquele que julgou culpado tão maravilhosa e excedendo em tanto o nosso conhecimento, e o seu próprio enquanto juiz, que achei muita audácia na sentença que o condenava a ser enforcado .
Montaigne teria reservado seu julgamento, como os
O castigo vem com perna de pau, · extraído de Otto Vaenius, Quinti Horatii Flacci Emblemata (Antuérpia, 1612)
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O RETORNO DE MARTIN GUERRE
Dos Coxos
sesse~ta campa.neses de ~rtigat e Sajas que não conseguiam
para fustigá-lo. E a tarefa de Montaigne era mais fácil: estava escrevendo não como juiz, mas "pelo discurso", ao passo que Coras enfrentara uma família e uma aldeia dividida à espera da decisão da corte. A leitura conjunta de Arrest Memorable e Des boyteux dá a ambos uma nova dimensão. Montaigne volta incessantemente à imagem de pernas, ao longo de suas páginas. A perna deformada pela gota do príncipe pretensamente curado pel~ "maravilhosa operação" de um padre; as pernas finas dos franceses e as pernas grossas dos alemães, ambos os casos explicados pela prática da equitação; as pernas aleijadas, enfim, da sensual manca. Mas o próprio Montaigne é c;leformado, isto é, de difícil compreensão: "Não vi monstrÓ e milagre no mundo mais manifesto do que eu mesmo . . . quanto · mais eu me freqüento e me ·conheço, mais minha deformidade me espanta". As pernas de Martin Guerre e Arnaud du Tilh também foram fonte de perplexidade. Mas o homem "chegado das Espanhas com uma perna de pau" seria um indício tão convincente? Certamente, desde Horácio sabe-se que o castigo, por mais que coxeie, alçança o criminoso mais veloz. Mas também se conhece o provérbio que a mentira anda de muletas e não se pode ir muito longe com elas.u Coras acreditava ter descoberto quem era o impostor, mas no centro do seu Arrest Memorable encontra-se uma incerteza tão profunda como em Montaigne.
ver difefen'Ça entre Martm Guerre e Arnaud du Tilh: *
Aéeitemos alguma fo~ma de · sentença que diga: "A corte nada ent~nde", com ~ais liberdade e ingenuidade do· que os Areopagttes, os quats ell:corrtrando-se pressionado por uma causa que não : con~eguiam .desembaraçar, ordenaram que as partes voltassem palt a cem 1anos.
Mo~:aign_: r.essalta ,as .pobres evidências que existem ~~r~ de~~soes tao Irrevogaveis quanto a de queimar uma feiticeira. Para matar as pessoas é preciso uma clareza luminosa e límpida." E Montaigne cita o provérbio italiano· "Não conhece Vênus em sua plena doçura quem não dormi~ · com a manca". Alguns aplicam-no também aos homens, afirmando que os que lhes falta nas pernas encontra-se nos seus membros genitais. Não é a forma como nossa imaginação no~ ar,r~bata o exemplo supremo do coxeamento dos nossos raciOcimo~? Isso o leva a se interrogar sobre "a temeridade" de quem Julga. Para Montaigne, "não há outra sentença ou ponto de parada além do da necessidade". Em "Des bo!teu~", Montaigne é muito duro para com o ~obre Coras, ha multo tempo falecido, duro até demais, P.o~s, paradoxalmente, exprime aí uma das mensagens essenciais de .Arrest Memorable. Coras, com pouco mais de dez · ~nos, agua como um doutor, e a divisa com que assinara 0 hvro era "À razão cede"; mas aos quarenta e cinco anos reconhec~r~ a que ponto sua razão o enganara e quão difícil para um JUIZ era separar o verdadeiro do falso. Coras recomendara .a pena de mor~e, quando podia requerer as galeras ou o bamme~t?. Mas fm a narração do juiz, evocando o caso sob suas mult1plas facetas, que deu a Montaigne as varas * É de s~ lem?rar que, no final do julgamento, presenciado por Montaigne, Arnaud d~ Ttlh amda s~ste~tava .ser Martin Guerre. Além disso, Montaigne pode t~r _hdo apenas a pr1me1ra ed1ção de Arrest, de Coras, que não apresenta a conf!ssao de Arnaud.
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Epílogo ····~@~····
M 1563, quando novamente dispomos d~ informações sobre a aldeia de Artigat, tudo parece estar em seu lugar e as dúvidas se dissipam lentamente. Pierre Guerre e Martin Guerre . unem seus esforços para apaziguar uma disputa entre dois vizinhos. Decide-se que A. Rols será um dos árbitros do conflito e todos se dobrarão à decisão. Pierre ainda tem assuntos a tratar na corte de Rieux. Processara na justiça um grande comerciante rural, Ja.mes Delhure e sua mulher Bernarde. Talvez possa-se ver aí uma tentativa para reobter para a família Guerre alguns dos bens vendidos por Arnaud du Tilh. Coras julgara que Martin Guerre tinha o direito de anular tais contratos e o comprador estaria autorizado a manter os benefícios que extraíra da terra naquele 1 ínterim. Sobre Martin Guerre e Bertrande de Rols não temos nenhuma informação direta, mas é certo que agora estavam reunidas as condições para um armistício entre eles . Se ela cometera o pecado do adultério, ele era um marido traído. (Em todo o caso, havia uma antiga tradição local que reconciliava os adúlteros com seus cônjuges com o pagamento de uma multaY E · se ela fizera perdoar com a facilidade com que aceitara o impostor, ele devia fazer esquecer a leviandade e irresponsabilidade que levaram-nO a abandonar o lar .
E
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Agora Martin tinha estórias maravilhosas a contar sobre sua vida entre grandes homens em lugares distantes; inválido, precisaria de uma mulher para cuidar dele. [O terror popular em ficar aleijado se manifesta na praga do Languedoc: "Que suas feridas na perna o devorem" ("le maulubec 3 vous trousse").] Ela agora adquirira todas as habilidades e autoridade que antes lhe faltavam e precisava de um marido e um pai para seus filhos.* A única questão que poderia ser um ponto de discórdia entre eles era a religião, pois Martin; após servir a um cardeal espanhol e ter sido irmão laico em São João de Jerusalém, podia ter voltado como católico fervoroso, ao passo que Bertrande certamente se inclinava para o protestantismo. ·- · Mesmo o leito conjugal de Bertrande retomou uma atividade, a julgar pelos registros paroquiais e pelo terrier de Artigat, com a divisão das propriedades entre os filhos do falecido Martin Guerre em 1594. Sanxi morrera, não sem antes passar seu nome a um · afilhado na geração seguinte, Sanxi Rols. A olaria de telhas, três casas e várias parcelas de terra de ambos os lados do Leze foram partilhadas entre Pierre e Gaspard Guerre, filhos de Martin com Bertrande, e Pierre, o jovem, seu filho (nascido por volta de 1575) com 4 sua segunda mulher. (Os descendentes de Martin nitidamente vivem à moda do Languedoc, e não à maneira basca.) Em meados do século 17, há um outro Martin Guerre n~ aldeia e tem pelo menos seis outros parentes com o mesmo sobrenome de família, entre eles Messire Dominique, o ·notário, e uma certa Anne de Guerre, bem-casada com um Banqueis. Os Guerre e os Rols estão em ótimos termos , apaI drinham-se os filhos, possuem propriedades vizinhas e, em . alguns casos, cultivam juntos campos indivisos. 5 Significaria isso que ~ vida continuou como se a im. * Bérnard du Tilh evidentemente ficou· .com sua mãe. Os bens de Arnaud du Tilh foram-lhe adjudicados, "para que Martin não ficasse encarregado do · seu dote" (Le Sueur, Histoire, E ür).
Epílogo
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postura nunca tivesse acontecido? Que os valores representados pelos direitos de sucessão legítima e casamento legalmente contraído tivessem varrido e eliminado qualquer traço do embuste? Creio que não . Bertrande não poderia esquecer sua vida com Arnaud du Tilh e a aldeia encontraria meios de comentar o fato sem reavivar demais feridas ainda recentes. Parece-me provável que tenham chegado ecos da estória através do livro de Coras - certamente os notários e mercadores que circulavam entre Rieux e as aldeias nos arredores devem ter ouvido falar dele - , mas improvável que os habitantes de Artigat quisessem ler em voz alta o Arrest Memorable em suas reuniões noturnas ou aceitassem como sua essa versão de um elemento externo. A estória local seria contada com outras novidades do mais recente bastardo da aldeia ou o mais novo migrante do vale do Leze para a Espanha, que tomou uma concubina e teve uma segunda família durante os anos que lá viveu. 6 Mas sobreviveu, ao contrário dos outros episódios, atravessando grandes perturbações sociais, como as Guerras de Religião. Há cerca de vinte e oito anos, em Artigat, uma jovem mãe, recém-imigrada da Catalunha francesa, queixava-se a uma avó da aldeia, enquanto empurrava seu carrinho com o nenê: "Nunca acontece nada em Artiga t" _ " Tal vez rião agora", respondeu a velha, " mas no século 16 ... ".E contou a estória de Martin Guerre.
· ··-@-···· A estória de Martin Guerre é contada e recontada porque nos lembra que as coisas assombrosas são possíveis. Mesmo para a historiadora que a decifrou, ela mantém uma vitalidade obstinada. Creio ter desvendado o verdadeiro rosto do passado - ou Pansette terá voltado a agir?
Bibliografia Selecionada de Textos sobre Martin Guerre ····-@-····
As entradas estão organizadas cronologicamente, segundo a data da primeira edição. As edições posteriores e as traduções vêm indicadas após a primeira edição. Jean de Coras, Arrest Memorable, du Parlement de Tolose, Contenant une histoire prodigieuse, de nostre temps, avec cent belles, & doctes Annotations, de monsieur maistre Jean de Coras, Conseiller en !adite Cour, & rapporteur du proces. Prononcé es Arrestz Generaulx le xii Septembre MDLX. Lyon: Antoine Vincent, 1561. Avec Privilege du Roy. (Quarto.) Reimpresso em Paris, 1965, in octavo, sem privilégio e sem o nome do editor. Reimpresso em Bruges : Hubert Goltz, 1565. - - -.A rrest Memorable . . . avec cent et onze belles, et doctes annotations . . . I tem, Les Douze Reigles du Seigneur I ean Pie traduites de Latin en François par ledit de de la Mirandole . Coras . Lyon: Antoine Vincent, 1565. Avec privilege du Roy. (Octavo). Reimpresso em Paris em 1572, sem Les Douze Reigles, edição partilhada por Galliot du Pré Vincent Norment. Avec privilege du Roy. Reimpresso em Paris em 1579, edição partilhada por .Jean Borel e Gabriel Buon. Reimpresso em Lyon : Barthélemy Vincent , 1596, 1605, 16 18.
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Bibliografia Selecionada
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---Arrest um síve placítum Parlamentí Tholosani Contínens Híst~r~am (in cas~ matrímoníali) admodum memorabiÍem adeoque prodzgtosam: una cum centum elegantissímis , atque doctissimís Annotationibus Clariss. I. C. Dn. Ioan. Corasii .. . Doctiss. Viro Hugone Suraeo Gallo interprete. Frankfurt: Andreas Wechel ' 1576. Reimpresso em Frankfurt: Heirs Wechel, Claude Marnius e Jean Aubry, 1588. Guillaume Le Sueur, Admiranda historía de Pseudo Martino Tholosae Damnato Idib. Septemb. Anna Domini MDLX Ad Michaelum Fabrum ampliss. in supremo Tholosae Senatu Praesidem. Lyon: Jean de Tournes, 1561. "A Gulielmo Sudario Boloniensi Latinitate. donatum" (p. 2); "colligeb. G. le Sueur Bolon" (p. 22). Bibltotheque Nationale, F13876. --~H.istoire Admirable d'un Faux et Supposé Mary, advenue en Languedoc, l'an mil cínq cens soixante. Paris: Vincent Sertenas ' 1561. Avec privilege du Roy. panfleto, mesmo desse edições duas No mesmo ano, saíram uma delas com o título escrito acima (Bibliotheque Mazarine, 4~214}, a out~a com Histoire mal escrita como Histoite (Bi27 bltotheque Nattonale, Rés. Ln 9277 bis). A reimpressão dessa o.br~ ~o r Edouard Fournier em seu V aríétés historiques et lttterazres (Paris, 1867, vol. 8, pp, 99-118) está com a data errada, cheia de erros .e acréscimos do editor e omite quatro páginas do texto. Histoire admirab!e d'Arnaud Tilye, leque! emprunta faussementA le ~om de Marttn Guerre, afin de jouir de sa femme. Lyon : Benmt R1gaud, 1580, Histoire admirable du faux et supposé mary, arrivée à une fem.me notable au pays de Languedoc en ces derniers troubles. Pans: Jean Mestais, sem data [ca. 1615], Jean Papon, Recuei! d'Arrests Notables des Courts Souveraines de France · · · Nouvellement reveuz et augmentez outre les precedents ímpressions, de plusieurs arrests. Paris: Nicolas Chesneau, 1565, ff. 452v.456v. Henri Esti.erine, Herodoti Halicarnassei historiae lib. ix . , . Henr. Stephanz pro Herodotu . Genebra: Henri Estienne for Ulrich Fugger, 1566, f. **** W.
Bibliografia Selecionada
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---L'Intro duction au traité de la conformité des merveilles anciennes ave c les modernes. Ou traité prepartatif à L' Apologie pour Herodote. Genebra: Henri Estienne, 1566. Au lecteur. Gilbert Cousin, Narrationum sylva qua Magna Rerum, partim à casu fortunaque, partim à divina humanaque mente evenientium ... Lib. VIII. Base!: Henricpetrina, 1567, pp . 610-1 : "Impostura Arnauldi Tillii". François de Belleforest, Histoires prodigieuses; extraictes de plusieurs fameux Autheurs, Grecs et Latins, sacrez et Prophanes, divisees en deux Tomes. Le premier mis en lumiere par P. Boaistuau ... Le second par Claude de Tesserant, et augmenté de dix histoires par François de Belle-Forest Comingeois. Paris: Jean de Bordeaux, 1571. Vol. 2, f. 282r-v: "Faux Martin à Thoulouze". Edições posteriores incluem Paris, 157 4, Antuérpia, 1594, e Paris, 1598. Antoine Du Verdier, Les Diverses lecons d'Antoine Du Verdier ... Contenans plusieurs histoires, discours, et faicts memorables. Lyon: Barthélemy Honorat, 1577. Livro 4, cap . 26. Pierre Grégoire, Syntagma Iuris Universi ... Authore Petro Gregorio T holosano I. V . Doctore et professare publico in Academia Tholosana. Lyon : Antoine Gryphius, 1582. Parte III, livro 36, cap. 6, "Sobre o crime de adultério", p. 669. Michel de Montaigne, ,Essais, Paris, 1588. Livro 3, cap. II, "Des boyteux" . ---The Essayes or Moral!, Politike and Millitarie Discourses of Lord Michael de Montaigne . .. dane into English by ... John Floria. Londres, 1610. Livro 3, cap. II, "Dos Mancos ou Aleijados". Auger Gaillard, Les Amours prodigieuses d'Augier Gaillard, rodier de Rabastens en Albigeois, mises en vers françois ' et en langue . albigeoise . .. Imprimé .nouvellement. (Béarn), 1592. completes. Oeuvres em Negre Ernest por moderna Edição Paris, 1970, pp. 514 ; 525-6. Géraud de Maynard, Notables et singulieres Questions du Droict Escrit: Decídees et Iugees par Arrests Memorables de la Cour souveraine du Parlement de Tholose. Paris, -1628, pp. 500-7. Essa obra apareceu pela primeira vez em 1603. Jacques-Auguste de Thou, Historiarum sui temporis ab anno Domini
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Bibliografia Selecionada
1543 usque ad annum 1607 Libri CX.XXV III. Orléans (Genebra): Pierre de la Roviere, 1620. Vol. I, p. 788. O caso de Martin Guerre não apareceu na primeira edição (1604) dessa famosa estória do membro do Supremo Tribunal de Paris, de Thou. Após a edição de 1609, escreveu um adendo sobre o caso (anexado ao volume 4 da edição de 1609 na Réserve da Bibliotheque Nationale, entre pp. 288 e 289); foi finalmente impresso em 1620, após sua morte, como parte do livro 26. ---His toire de Monsieur de Thou, Des choses arrivées de son temps. Mise en François par P. du Ryer. Paris, 1659. Vol. 2, pp. 177-8. Estinne Pasquier, Les Recherches de la France . Paris: L. Sonnius, 1621. Livro 6, cap. 35. Jacob Cats, S'weerelts Begin, Midden, Eynde, Besloten in den Trouringh Met den Proef-steen van den Selven door I . Cats ... Trougeval sonder exempel, Geschiet, in Vranckryck, In het Iaer MDLIX, in Alle de W ercken, Amsterdã, 1658. O prolixo moralista holandês conta a estória de Martin Guerre em parelhas rimadas. Jean Baptiste de Rocoles, Les imposteurs insignes ou Histoires de plusieurs hommes de néant, de toutes Nations, qui ont usurpé la qualité d'Empereurs, Roys et Princes ... Par Jean Baptiste de Rocoles, Historiographe de France et de Brandebourg. Amsterdã: Abraham Wolfgang, 1683. Capítulo 18: "L'Impo steur Mary, At:naud du Thil, Archi-fourbe". Rocoles explica que, embora em princípio seu livro se limite a impostores que tentaram roubar cetros e coroas, abre uma exceção para este caso por ser tão "memorável e prodigioso" . Segue o relato de Coras, afirma ele, fazendo alterações apenas onde "a grosseria da linguagem" não seria mais permitida pela "polidez atual" (p. 287). ~--Tradução alemã, Geschichte merkwür diger Betrüger, Halle, - 1761. Vol. 1, pp. 419-45. Germaine Lafaille, Annales de la ville de Toulouse . Toulouse, 16871701. Parte 2, pp . 198-9. F. Gayot de Pitava!, Causes célebres et intéressantes. Paris, 1734. Vol. I, cap. I.
Bibliografia Selecionada
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Nova edição, revista por M. Richer, Amsterdã, 1772. Um dos novos relatos mais interessantes do caso de Martin Guerre e o único a especular livremente sobre a possibilidade de que Bertrande fosse cúmplice de Arnaud du Tilh: "Muitos acreditarão que Bertrande de Rols ajudou pessoalmente a enganar, pois o erro lhe agradava". O impostor nunca poderia ter feito todos os mínimos gestos específicos do autêntico . Tradução inglesa sem comentários pela romancista Charlotte Turner Smith, como um dos quinze casos extraídos de Gayot de Pitava! e Richer, em The Romance of Real Life, Londres: T . Cadell, 17 8 7 . Voi. 2, cap . 4 : "O pretenso Martin Guerre". Primeira edição americana, Filadélfia: J. Carey_, 1799, pp. 20221. Charles Hubert, Le Faux Martinguerre, ou La Famille d'Artigues, Mélodrame en Trois Actes, A Grand Spectacle, Tiré des Causes Célebres . . . Représenté pour la premiere fois à Paris, sur la théâtre de la Gaieté, le 23 aoút 1808. Paris: Barba, J808. Reimpresso , Paris, 1824. Tão romanceado que chega a ser irreconhecível : "Marting uerre" é um conde que estivera nas índias; Arnaud du Tilh é desmascarado pelo seu próprio pai etc. _. Pierre Larousse, Grand dictionnaire universel. Paris, 1865-1890 . Vol. 8, p. 1603:- "Guerre, Martin, cavalheiro gascão" . . Celebrated Claimants Andent and Modern. Londres : Chatto e Wmdus, 1873, pp. 84-90. L' Abbé P. aristoy, Galeria Basque de Personnages de Renom in Recherches historiques sur le pays Basque. Bayonne, 1884 . Vol. 2, cap. 24 : "Martin Aguerre de Hendaye". Armand Praviel, L'Incroyable Odyssée de Martin Guerre. Paris: Librairie Gallimard, 19 33 . Janet Lewis, The Wife of Martin Guerre. São Francisc?•. 1941. Edição francesa, La Femme de Martin Guerre. Paris : Edttlons R. Laffont, 1947. Lewis baseou seu romance num relato inglês do século 19 sobre o caso . Ela conta como suas idéias mudaram após ter lido Coras, em The T t iquarterly, 55 (outono de 1982), pp. 104-10.
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Bibliografia Selecionada f1dendo
Jean de Coras, Processo, et Arresto à sentenza data dal Parlamento di Tolosa sopra d'un fatto prodiogoso et me.morabile, tradotto di língua francese nella favella toscana, per Mag. Gio. Baua Forteguerri Dottr" Pistorese, con cento annotationi ornate et aggiunte .da lui. Dedicatória de Forteguerri a 'Christine de Lorraine, grãduquesa da Toscana, com data de Pistoia, abril de 1591. (Manuscrito descrito por H. P. Kraus, Rare Books and ManusClÚpts., lista 203, n. 0 132.) Forteguerri traduziu a edição de 1561 do Arrest Memorable, ocasionalmente acrescentando suas própri~ anotações às de Coras.
Notas ····~@-····
Seguem-se as abreviaturas e siglas utilizadas nas notas. As referências aos Inventários-Sumários dos vários arquivos departamentais serão indicadas com a letra I, antes da abreviatura. ACArt ADAr ADGe ADGi ADHG ADPC ADPyA
Archives communales d'Artigat Archives départementales de l'Ariege Archives départementales du Gers Archives départementales de la Gironde Archives départementales de la Haute-Garonne Archives départetnentales du Pas-de-Calais Archives départementales des Pyrénées-Atlantiques Archives départementales du Rhône ADR Archives Nationales AN Jean de Coras, Arrest Memorable du Parlement de Coras Tholose. Contenant Une. Histoire prodigieuse d'un supposé mary, advenüe de nostre temps: enrichie de cent et onze belles et doctes annotations (Paris: Galliot du Pré, 1572) Le Sueur, Historia Guillaume Le Sueur, Admiranda historia de Pseudo Martino Tholosae Damnato Idib. Septemb. Anno Domini MDLX (Lyon: Jean de Tournes, 1561) Le Sueur, Histoire Guillaume Le Sueur, Histoire Admirable d'un Faux et Supposé Mary, advenue en Languedoc, l'an mil cinq cens soixante (Paris: Vincent Sertenas, 1561)
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Notas das . páginas 17-18
····~@-····
Observação em relação às datas: até 1564, o ano novo na França começava no domingo de Páscoa . Neste livro, todas as datas seguem o nosso calendário. Nas notas, qualquer data antes da Páscoa é dada em ambos os calendários (p. ex., 15 de janeiro de 1559/60).
Introdução 1. Jean Gilles de Noyers, Proverbia Gallicana (Lyon: Jacques Mareschal, 1519-20), C iiv; "Ioannis Aegidii Nuceriensis Adagiorum Gallis vulgarium . . . traductio", in T hresor de la langue francoyse (Paris, 1606), p. 2, 6, 19; James Howell, "Some Choice Proverbs ... in the French Toung", in Lexicon Tetraglotton (Londres, 1660), p. 2. 2. Entre outros estudos, ver Jean-Louis Flandrin, Les Amours paysans, XVI"-XIX" siecles (Paris, 1970), e Familles: Parenté, mai•son sexualité dans l'ancienne société (Paris, 1976); J. M. Gouesse, "P~rertté, famille et mariage en Normandie aux XVIIe et XVIII• siecles", Annales: Economies, Sociétés, Civilisations, 27 (1972), 1139-54; André Burguiere, "Le Rituel du mariage en France: Pratiques ecclésiastiqúes et pratiques populaires (XVIe-XVIIIe siecles) ", ibid., 33 (1978), p. 637-49; Alain Croix, La Bretagne aux 16• et 17c siecles: La Vie, la mort, la foi (2 vols., Paris 1981); Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (org.), Le Charivari: Actes de la table ronde organisée à Paris (25-27 avril 1977) par l'Ecole des Hautes Etudes en Siences Sociales et le Centre National de la Recherche Scientifique (Paris, 1981) . 3. Thomas Platter, Autobiographie, trad. Marie Helmer (Cahier des Annales, 22; Paris, 1964), p. 51. · 4. Jacques Peletier, L'Art poetique de Jacques Peletier du Mans (1555), ed. J. Boulanger (Paris, 1930), pp. 186-9; Coras, pp. 146-7.
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Les Cent Nouvelles Nouvelles, ed. Thomas Wright (Paris, 1858), conto 35. Noel du Fail, Les Propos Rustiques: Texte original de 1547, ed. Arthur de la Borderie (Paris, 1878; Genebra, Slatkine Reprints, 1970), pp. 43-4. 5. Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324 (Paris, 1975); tradução inglesa~ Montaillou: The Promised Land of Errar, por Barbara Bray (Nova Iorque, 1978). Carlo Ginzburg, Il Formaggio e i vermi: Il Cosmo di un mugnaio del '500 (Turim, 1976); tradução inglesa, The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller, por John e Anne Tedeschi (Baltimore, 1980). Michael M. Sheehan, "The Formation and Stability of Marriage in Fourteenth-Century England' 1, Mediaeval Studies, 32 (1971), pp. 228-63; Jean-Louis Flandrin, Le Sexe et l'Occident (Paris, 1981), cap. 4. 6. AN, JJ248, 80r-v. Alfred Soman, "Deviance and Criminal Justice in Western Europe, 1300-1800: An Essay in Structure", Criminal- Justice History : An International Annual, I (1980), 1-28. 7. Coras, pp. 146-7. Sobre as edições do Arrest Memorable, ver minha bibliografia. 8. Segundo Le Sueur, os Guerre montaram uma olaria de telhas em Artigat ·(Historia, p. 3); essa olaria encontra-se em 1594 entre as propriedades da família (ADHG, B, lnsinuations, vol. 6, 96v). Le Sueur afirmou que Bertrande de Rols e Pierre Guerre foram levados à prisão (p. 11) por ordem do Supremo Tribunal de Toulouse (ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560; vol. 76, 12 de setembro de 1560).
1. De Hendaye a Artigat 1. Pierre de Lancre, Tableau de l'inconstanc~ des mauvais anges et demons (Bordeaux, 1612), pp. 32-8, 44-5 .. ADPyA 1}160, n , 45, 0
9 de março de 1609, quanto ao "Sr de la maison" em Hendaye e proximidades de Urrugne . }ames A. Tuck e . Robert Grenier, "A 16th-Century Basque Whaling Station in Labrador", Scientific American, 245 (novembro de 1981), pp. 125-36; William A. Douglass e Jon Bilbao, Amerikanuak: Basques in the New World (Reno, 1975),
Notas das páginas 23-25
Notas das páginas 26-31
pp. 51-9. Jean-Pierre Poussou, "Recherches sur l'immigration bayonnaise et basque à Bordeaux au XVIIIe siecle", De l'Adour au Pays Basque. Actes du XXI• Congres d'études régionales tenu à Bayonne, les 4 et 5 mai 1968 (Bayonne, 1971), pp. 67-79. Jean-François Soulet, La Vie quotidienne dans les Pyrénées sous l'Ancien Régime (Paris, 1974), pp. 220-5. William A. Douglass, Echalar and Muré.. Zaga (Londres, 1975), cap. 3. 2. Philippe Veyrin, Les Basques de Labourd, de Sou/e et de Basse-Navarre (Bayonne, 1947), p. 39 ss. L. Dassance, "Propriétés collectives et biens communaux dans l'ancien pays de Labourd", Cure Herria, 29 (1957), pp. 129-38. Davydd J. Greenwood, Unrewarding Wealth. The Commercialization and Collapse of Agriculture in a Spanish Basque Town (Cambridge, Ingl., 1976), cap. 1. Paul Courteault, "De Hendaye à Bayonne en 1528", Cure Herria, 3 (1923), pp. 273-7. Sobre o aumento populacional de Hendaye em 1598, ver ADPyA, 1}160, n. 0 46, 3 de abril de 1598. De Lancre, pp. 45-6. 3. E. Dravasa, "Les privileges des Basques du Labourd sous l'Ancien Régime" (tese de doutoramento, Universidade de Bordeaux, Faculdade de Direito, 1950), pp. 28-9, ADGi, 1B10, 2P-22r ADPyA, 1}160, n.0 45, 19 de maio de 1552. De Lancre, pp. 33-4, 42. 4. "Coutumes générales gardées et observées au Pays de Labourd", in P. Haristoy, Recherches historiques sur le Pays Basque (Bayonne e Paris, 1884), vol. 2, pp. 458-61; os Fors de Labourd foram ·redigidos em 1513. Jacques Poumarede, Recherches sur les successions dans le sud-ouest de la France au Moyen Age (tese de doutoramento, Universidade de Toulouse, 1968), pp. 315-20. 5. Sobre toda essa região, ver Léon Dutil, L'Etat économique du Languedoc à la fin de l'Ancien Régime (Paris, 1911); Philippe Wolff, Comínerces et marchands de Toulouse, vers 1350-vers 1450 (Paris, 1954); Michel Chavelier, La Vie humaine dans les Pyrénées ariégeoises (Paris, 1956); Gilles Caster, Le Commerce du pastel et de l'épicerie à Toulouse, 1450-1561 (Toulouse, 1962); E. Le Roy Ladurie, Les Paysans de Languedoc (Paris, 1966); Soulet, Vie quotidienne; e John Mundy, "Village, Town and City in the Region of Toulouse", in J . A. Raftis (org.), Pathways to Medieval Peasants (Papers in Mediaeval Studies, 2; Toronto: Pontifício Instituto de Estudos Medievais, 1981), pp. 141-90.
6. Jean F roissart, Chronique s, ed. Léon Mirot (Paris, 19 31 ), vol. 12, pp. 21-4, livro 3, par . 6. ADHG, C1925; 3E15289, 328' . ADAr, G271; 30j2, Reconnaissance de 1679; 5E6653, 188r-189', 200r-v; 5E6655, 14r-16r. 7. ADAr, 5E6653, 9", 96r-97', 101"-102", 142'.. ', 200r-v; 5E6655, l"-2", 8r-'·, 3Y", 98'; 5E6656, 12r; 5E6847, 17 de dezembro de 1562. Sobre o contrato de gasailhe e todos os outros costumes nessa região, ver Paul Cayla, Dictionnaire des institutions, des coutumes, et de la langue en usage dans quelques pays de Languedoc de 1535 à 1648 (Montpellier, 1964). Sobre Le Carla e arredores, ver Elisabeth Labrousse, Pierre Bayle (Haia, 1963), cap. 1. 8. Dezenove testamentos retirados de ADAr, .5E5335, 6219, 6220, 6221, 6223, 6224, 6653, 6655, 6859, 6860; ADHG, 3E15280, 15983. ADAr, 5E6860, 110"-111"; ACArt, Terrier de 1651. ADAr, 5E6220, 8 de outubro de 1542; 5E8169, 12 de março de 1541/42. 9. ADAr, 5E6223, 10 de dezembro de 1528; 5E6653, 95"-96'; 5E6860, 12r-13", 74r-76r. 10. ADAr, 5E6653, 95"-97r, 201"-202r; 5E6846, 34'-36"; 30j2, reconnaissance de 1679; ADHG, B50 (arrêts civils), 678"-679"; B, Insinuations, vol. 6, 96''. 11. ADAr, 5E6653, 1r·v, 96"-97r ; 5E6655, , 29', 35'", 158"; 5E6656, 12.r, 26"; 5E6837, 126'-127"; 5E6846, 34"-36"; ADHG, 2G134, 2G143; 2G108, p. 263 . 12. ADAr, 30j2, Inventaire pour les consuls .. . d'Artigat, 1639; Reconnaissance de 1679; ADHG, 2G203, n. 1; C1925. ADAr, 5E6860, 12r-l3". ADHG, 2G108, 127r, 151r-152r. F. Pasquier, "Coutumes du Fossat dans le Comté de Foix d'apres une charte de 1274", Annales du Midi, 9. (1897), 257-322; ADAr, 5E6654. 13 . "Coutumes ... observées au Pays de Labourd", p. 482 . ADPyA , 1}160, n. 4, 14 de janeiro de 1550/51, n. 3, 12 de junho de 1559. F. Pasquier, Donation du fief de Pailhes en 1258 et documents corcernant les seigneurs de cette baronnie au XVI" siecle {Foix, 1890) . ADAr, 2G203, n. 8. 14 . Pierre Bec, Les I nterférences linguistiques entre Cascon et Languedocien dans les parlers du Comminges et du Couserans (Paris, 1968), p. 74-5. Pasquier, Pailhes, p. 3. Léon Du til, La H aut eCaronne et sa région (Toulouse, 1928), cap. 14. ADHG, 2G108,
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Notas das páginas 31-35
Notas das páginas 35-42
p. 261 ss. J. Decap, Le Diocese de Rieux avant la Révolution (Foix 1898). A diocese de Rieux se estabeleceu em 1318 e deixou de existir com a Revolução. 15. Le Sueur, Historia, p. 3; Histoire, A iir. Coras, p. 150. ADHG, B, Insinuations, vol. 6, 9JV-9r. ACArt, Terrier de 1651, 34r-41', 209r, 290r, 310r. 16. Veyrin, pp. 43, 263. De Lancre, pp. 42-4. ADPyA, 1}160, n. 45, 18 de agosto de 1598; n. 46, 14 de janeiro de 1620. 17. Coras, pp. 55-6. G. Brunet, Poésies basques de Bernard Dechepare . . . d'apres l'édition de Bordeaux, 1545 (Bordeaux, 1847). ADGi, 1B10, 21v-22r, cartas reais em francês. para as paróquias de Urrugne e Hendaye; Dravasa, p. 125; ADPyA, 1}160, n. 0 3, testamentos da casa senhorial de Urtubie gascão (1493) e francês (1559); nenhuma outra família de Hendaye ou Urrugne deixou testamentos escritos. ADAr, 5E6223 (contratos em francês em 1528); 5E8169 (contrato de casamento em occitânio, 12 de março de 1541). ADAr, 5E6653, 96r-102v. ADHG, 2G207 (o primeiro mestre-escola enviado a Artigat, a 2 de· julho de 1687). 18. ADAr, 5E6223, 10 de dezembro de 1528; 5E6653, 95v; 5E6654, 24r-v; 5E6655, 29r; 5E8169, 12 de março de 1541/42. ACArt, Registre des Mariages de la Paroisse d'Artigat, 1632-1649. ADHG, 3E15983, 126r-127r. Pode-se até encontrar um Pierre de Guerre, dito O Basco, como criado do senhor de Vaudreuille, a muitos quilômetros a nordeste da diocese de Rieux (AN, ]]262, 245v-24r). 19. Le Sueur, Historia, p. 3; Histoire, A. W. 20 . Dezessete contratos de casamento e dois legados de dotes extraídos de ADAr, 5E5335, 6220, 6653, 6656, 6837, 6838, 8169; ADHG, 3E15280, 15983. O maior dote aqui citado é de 50 escudos (cerca de 150 libras), dado em 1542 a um sapateiro deLe Mas-d'Azil. Para uma comparação com a transferência da terra aos filhos no final do século, ver a doação do comerciante rural Jean Cazalz de Le Fossat ao seu filho, em 1585: duas propriedades e a promessa de 2000 escudos em dinheiro, uma casa e mobília no dia do casa- . mento (ADHG, B, Insinuations, vol. I, 563v-56Y). Cayla, pp. 236-7. ADHG, B, Insinuations, vol. 6, 9Y-9r. 21. ADHG, 2G108, p. 263. Coras, p. 61. A. Moulis, "Les Fiançailles et le mariage dans les Pyrénées centrales et spécialement
dans l'Ariege", Bulletin annuel de la société ariégoise des sciences, lettres et arts, 22 (1966), pp. 74-80.
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2. O Camponês Descontente 1. Coras, p. 40. 2. ADAr, 5E6654, 37r. Nos muitos contratos que examme1, desde Le Mas-d' Azil ao longo do vale do Leze, encontrei apenas um Martin antes de 1561, um antigo arrendatário do senhor de SaintMartin-d'Oydes (ADAr, E182, Reconnaissance de 1549, 50r). Compare-se com os muitos homens chamados Martin, M?-rtissa~tz ~ Mar0 ticot na área de Hendaye, ADPyA, 1}160, n. 4, 14 de Janeiro de 0 1550/51, 5 de março de 1554/55; n. 45, 18 de agosto de 1598. "Proverbes françoys", in Thresor de la langue françoyse, p. 23; "L'Ours 'Martin' d'Ariege", Bulletin annuel de la société ariégoise des sciences, lettres et arts, 22 (1966), pp. 137-9, 170-2. 3. Coras, pp. 2-4, 40-3, 53, 76. ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560. Hierosme de Monteux, Commentaire de la conservation de la santé (Lyon, .1559), pp. 202-3. De Lancre, Tableau de l'inconstance, p. 38, 41, 47; Soulet, Vie quotidienne, pp. 228-32, 279. A. Esmein, Le Mariage en droit canonique (Paris, 1891), pp. 239-47. 4. G. Doublet, "Un Diocese pyrénéen sous Louis XIV: La Vie populaire dans la vallée de l'Ariege sous l'épiscopat de F. E. de . C;mlet (1645-1680)", Revue des Pyrénées, 7 (1895), pp. 379-80; Xavier Ravier, "Le Charivari en Languedoc occidental", in Le Goff e Schmitt (orgs.), Le Charivari, pp. 411-28. 5. Le Sueur, Historia, p. 12. Coras, pp. 40, 44. 6. Le Sueur, Historia, p. 17. Coras, pp. ~45~6. 7. Le Roy Ladurie, Montaillou, cap . 7. 8. ADAr, 5E6220, capa, com figuras ·imaginárías de soldados; 5E6653, 1V, 9Y-96r; 5E6656, llr, 50r; 5E6847, 12 de dezembro de 1562; 5E6860, 110v-l1P. Roger Doucet, Les Institutions de la France au XVI• siecle (Paris, 1948), pp. 632-41. Veyrin, Les Basques, p. 138. J. Nadai e E. Giralt, La Population catalane de 1553 à 1717: L'Immigration française (Paris, 1960), pp. 67-74, 315. 9. Coras, p. 5. Le Sueur, Historia, p. 4, De Lancre, p. 41.
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Notas das páginas 42-50
Notas das páginas 50-55
10. ADPyA, 1]160, n. 0 4, 5 de março de 1554/55. 1.0 de abril de 1555. Coras, p. 137. 11. Pàul J acob Hiltpold, "Burgos in the Reign of Philip li: The Ayuntamiento, Economic Crisis and Social Control, 1550-1660" (tese de doutoramento, Universidade do Texas, Austin, 1981), cap. 2. Henrique Florez, Espana Sagrada (Madri, 1771), vol. 26, pp. 427-32. Nicolás López Martínez, "El Cardenal Mendoza y la Reforma Tridentina en Burgos", Hispania Sacra, 16 (1963), pp. 61-121. 12. Le Sueur, Historia, p. 4. Coras, p. 137. E. Lemaire, Henri Courteault et al., La Guerre de 1557 en Picardie (Saint-Quentin, 1896), vol. 1, pp. ccxxi-ccxxv, vol. 2, pp. 48, 295.
bourd à travers les âges (La Science Sociale suivant la méthode d'observation, 20; Paris, 1905), pp. 437-41. 9. Le Sueur, Historia, p. 9. ADAr, 5E6223, 5 de julho de 1542; 5E6224, 6 de janeiro de 1547/48. No final dos anos 1550, a herança e todos os rendimentos de Martin Guerre dela provenientes em oito anos foram estimados em 7000-8000 libras (Coras, p. 29). 10. Coras, pp. 5-7, 25; Jean de Coras, Opera omnia (Wittenberg, 1603), vol. 1, pp. 730-1. Jean Dauvillier, Le Mariage dans le droit classique de l'Eglise (Paris, 1933), pp . 304-7 . Bernard de La Roche-Flavin, Arrests Notables du Parlement de Tolose (Lyon, 1619), pp. 601-2. 11. Coras, p. 46. 12. ADHG, B38 (arrêts civils), 60v-61r; B47 (arrêts civils), 487r; 2G241. 13. Coras, pp. 1, 5, 7,
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3. A Honra de Bertrande de Rols 1. ADAr, 5E6653, 9Y-98r; 5E6655, 110v-llP. 2. ADHG, 2G108, 12T Doublet, "Un Diocese pyrénéen", pp. .369-71. Coras, p. 44. Henry Institoris e Jacques Sprenger, Malleus maleficarum, trad. Montague Summers (Londres, 1948), p. 55, parte 1, questão 8. 3. Coras, pp. 40-1. 4. ADAr, 5E6654, 29r; 5E6655, 79r; 5E6838, 104v. 5. ADAr, 5E5335, 92..-v; 135r, 282v-28Y; 5E6653, 6r; 5E6654, 29"; 5E6655, 6..-v, l06v-107r, 13r-138r; 5E6656, 5W; E182, 26r. ADHG, 3E15280, 14 de janeiro de 1547/48. Jacques Beauroy, Vin et société à Bergerac du Moyen Age aux temps modernes (Stanford French and Italian Studies, 4; Saratoga, Calif., 1976), p. 125. 6. Cayla, Dictionnaire, p. 54-8, 236. ADAr, 5E6219, 31 de julho de 1540; 5E6653, y-v, 54v, 5E6655, ur. ADHG, 3E15280, 31 de janeiro de 1547/48; 3E15983, 126r-127r, 322r-334v. . 7. ADAr, .5E6846, 34v-36v; ADHG, B50 (arrêts civils), 678v679v. Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan, pp. 286-7. ADAr, 5E6837, 236r-23r; 5E6655, llWllP; 5E6847, 23 de setembro de 1562. Pasquier, "Coutumes du Fossat", pp. 298-9; Cayla, p. 63. 8. De Lancre, Tableau de l'inconstance, p. 42-4. Para um retrato posterior das mulheres do Labourd, ver G. Olphe-Galliard, Un Nouveau type particulariste ébauché. Le Paysan basque de La-
4. As Máscaras de Arnaud du Tilh 1. Coras, pp. 8, 151. François de Belleforest, La Cosmographie universelle de tout le monde . . . Auteur en partie Munster ... augmentée . .. par François de Belle-Forest Comingeois (Paris: Michel Sonnius, 1575), pp . 368-72. 2 . ADHG, B78 (arrêts civils), 3r-4r; IADHG, BB58, ff. 220, 214. Charles Higounet, Le Comté de Comninges de ses origines à son annexion à la couronne (Toulouse, 1949), vol. 1, pp. 277, 292. ADGe, 3E1570, 10 de julho de 1557; 3E1569, 27 de julho de 1552 . 3. Higounet, p. 512 ss; Wolff, Commerces et marchands de Toulouse, carte 12. ADGe, 3E1569, 19 de dezembro de 1551; 3E1570, 7 de abril e 4 de julho de 1557. ADHG, 4E2016, 4E1568, 2E2403. Georges Couarraze, Au pays du Saves : Lombez évêché rural, 1317-1801 (Lombez, 1973) . . 4. ADGe, G332, 47r-48r; 3E1570, 21 de abril de 1557. Coras, pp. 97, 151. 5. Coras, pp. 52, 54. ADGe, G332, 4Yvbis. 6. Coras, pp. 56-7, 77, 97 . Leah Otis, "Une Contribution à l'étude du blaspheme au bas Moyen Age", in Diritto comune e diritti locali nella storia dell' Europa. Atti del Convegno di V aren11a, 12-15
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Notas das páginas 55-64
Notas das páginas . 64-69
giugno 1979 (Milão, 1980), pp. 213-23 . IADHG, B1900, f. 118, B1901, f. 143 (ordenações reais sobre a blasfêmia de 1493, 1523). 7. Raymond de Beccarie de Pavie, Sieur de Fourquevaux, ' fhe Instructions sur le Faict de la Guerre, ed. G. Dickinson (Londres, 1954), pp. xxix-xxxii. ADGe, 3E1571, 16 de abril de 1558, e passim. Coras, pp. 53, 57, 144. Yves-Marie Bercé, "Les Gascons à Paris aux XVI• et XVII• siecles", Bulletin de la société de l'histoire de Paris et de l'Ile-de-France, 106 (1979), pp. 23-9. 8. Coras, pp. 8-11, 38-9, 144. 9. Le Grand Calendrier et compost des Bergers avec leur astrologie (Troyes: Jean Lecoq, 154(1)), M ir-M iii'. 10. Coras, p. 53. 11. Le Sueur, Historia, p. 13; Histoire, C ivv. Coras, pp. 144-6. François de Rabutin, Commentaires des dernieres guerres en la Caule Belgique, entre Henry second du nom, tres-chrestien Roy de France et Charles Cinquiesme, Empereur, et Philippe son fils, Roy d'Espaigne (1574), livros 4-5 in Nouvelle Collection des Mémoires pour servir à l'histoire de France, ed. Michaud e Poujoulat (Paris, 1838), vol. 7. 12. Coras, pp. 145-7; Le Sueur, Historia, p. 22. 13. ADGe, 3E1569, 19 de dezembro de 1551. 14. Bibliotheque Nationale, Département des Estampes, Inventaire du fonds français . Graveurs du sei:deme siecle, vol. 2, L-W por Jean Adhémar, p. 273: "L'Histoire des Trois Freres". ADR, BP443, 37r.39v, 294v-296r.
4. Coras, p. 25; Le Sueur, Historia, p. 7. 5. Coras, pp. 68, 34, 65-6. Le Sueur, Histoire, C iv, C iii'. 6. Coras, p. 149. Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan, p. 275, n. 0 1. 7. Sheehan, "The Formation and Stability of Marriage", pp. 228-63. ]. M. Turlan, "Recherches sur le mariage dans la pratique coutumiere (XII•-XVI• s.)", Rev~e historique de droit français et étranger, 35 (1957), pp. 503-16. Beatrice Gottleib, "The Meaning of Clandestine Marriage", in Robert Wheaton e Tamara K. Hareven (orgs.), Family and Sexuality in French History (Filadélfia, 1980), pp. 49-83 . 8. Jean-Jacques de Lescazes, Le Memorial historique, contenant la narration des troubles et ce qui est arrivé diversement de plus re111arquable dans le Pa'is de Foix et Diocese de Pamies (Toulouse, 1644), caps. 12-6. Jean Crespin, Histoire des Martyrs persecutez eimis à mort pour la Verité âe l'Evangile (Toulouse, 18851889), vol. 1, p: 457, vol. 3, pp. 646-9. J. Lestrade, Les Huguenots dans le diocese de Rieux (Paris, 1904), pp. 4, 10, 29-30 . J. M. Vidal, Schisme et hérésie au diocese de Pamiers, 1467-1626 (Paris, 1931) , pp. 147-69. Raymond Mentzer, "Heresy Proceedings in Languedoc, 1500-1560" (tes~ de doutoramento, Universidade de Wisconsin, 1973), cap : 12. Labrousse, Pierre Bayle, pp . 6-8. Alice Wemyss, Les Protestants du Mas-d'Azil (Toulouse, 1961), pp. 17-25. Paul-F. Geisendorf, Livres des habitants de Geneve, 1549-1560 (Genebra, 19571963), vol. 1, pp. 9, 13 . · ADAr, 5E6654, Y, 16v, 29r. ADHG 2G108, 127r-130v; B422 (arrêts civils), 22 de outubro de 1620. 9. ADHG, :a33 (arrêts civils), 156v-157r; B38 (arrêts civils), 60'-61r; ~47 (arrêts civils), 487r; ADAr, 5E6655, 14r-16r. 10 . . ACAart, Terrier de 1651, 137r.139v. "Memoire des personnes decedées en la ville du Carla en Foix ou en sa Jurisdiction commance le vingt et deusiesme octobre 1642", 10', 12v, 13', 1Y (registros mantidos por Jean Bayle, pastor da Igreja Reformada de Le Carla de 1637 a 1685, fotocópia em ·posse de Elisabeth Labrousse). 11. Couarraze, Lombez, p. 122 . ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560. 12. Le Sueur, Historia 1 pp. 16, 21-2. Coras, p . 160. 13. "Projet d'ordonnance sur les mariages, 10 novembre 1545 ",
5. O Casamento Inventado 1. Le Sueur, Historia, pp. 5-7; Histo~re, B iv-B iiv. Coras, p. 63. 2. Mark Snyder e Seymour Uranowitz, "Reconstructing . the Past: Some Cognitive Consequences of Person Perception", Journal of Personality and Social Psychology, 36 (1978), 941-50. Mark Snyder e Nancy Cantor, "Testing Hypotheses about Other People: The Use of Historical Knowledge", ]ournal of Experimental Psychology, . 15 (1979), pp. 330-42. 3. Etienne Pasquier, Lés Recherches de la France (Paris: L. Sonnius, 1621), pp. 571-2 .
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Notas das páginas 69-77
Notas das páginas 77-79
in Jean Calvin, Opera quae supersunt omnia, ed. G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss (Brunswick, 1863-1880), vol. 38, pp. 41-4.
10. Le Sueur, Historia, p. 8; Coras, p. 68. ADAr, 5E6860, 12r-u•; 5E6837, 188•-189•. ADHG, 2G143, 1550; B37 (arrêts civils), 68r. O lieutenant-criminel no Senescalato de Toulouse para o caso de incêndio premeditado era Jean Rochon, antigo juiz e funcionário da Casa da Moeda em Paris, homem que provavelmente não seria dominado por um pequeno nobre do vale do U:ze (IADHG, B1905, f. 125). 11. Pelo menos é como interpreto a declaração do novo Martin em janeiro de 1559/60, de que Bertrande estava "em poder do dito Pierre Guerre, permanecendo em sua casa" (Coras, pp. 37, 4 5, 67) . São mencionadas duas casas pertencentes à família Guerre: "a casa de Martin Guerre" (ADHG, B76, La Tournelle, 12 de setembro de 1560; Coras, p. 129; Le Sueur, Historia, p. 19) e "a casa de Pierre Guerre" (ADAr, 5E6653, 96r-98r). Supus que se tratavam de duas residências diferentes, ainda que vizinhas [ver a disposição das propriedades dos Guerre em 1594 (ADHG, Insinuations, vol. 6, 95"97") e em 1951 (ACAart, terrier)], e que, conforme o costume muito arraigado entre os bascos, os casais só viviam na mesma casa quando havia um herdeiro da propriedade entre esses cônjuges. Assim, Martin Guerre e Bertrande tinham morado com o velho Sanxi Guerre; e Pierre Guerre viveria com sua herdeira designada, seu marido e suas outras filhas solteiras. O novo Martin devia ter se instalado na antiga casa do velho Sanxi, agora transmitida ao herdeiro. Naturalmente, sempre é possível que tais costumes não tenham sido respeitados, e o novo Martin e Pierre Guerre podem ter vivido na mesma casa de 1556 a 1559. Pode-se imaginar a atmosfera que lá reinaria durante essas brigas. 12 . Le Sueur, Historia, p. 8; Histoire, B iw-• . Coras, pp . 68, 86 .
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6. Querelas 1. Coras, p. 61. ADHG, B, La Tournelle, vol. 74 , 20 de maio de 1560. 2. Le Roy Ladurie, Les Paysans de Languedoc, vol. 1, p. 302-9. ADAr, 5E6655, gr-v, 98r; 5E6656, 12r, 26•, 29r, 58"; 5E6653, 79", 20or-v, ADHG, 2G143, 2G134, Arrentements des benefices du diocese de Rieux. Coras, pp. 150-2. 3. Le Sueur, Historia, p. 7; Histoire, B iW. Coras, pp. 22-3. 4. Coras, pp. 33-4. "Coutumes ... observées au Pays de Labourd", pp. 467-8. ADAr, 5E6653, y•, 112r·•, 5E6656, ur. 5. Coras, pp. 12, 47, 53. De Lancre, Tableau de l'inconstance, p. 41. 6. Coras, pp. 53, 62, 66-7. Em relação ao irmão de Bertrande, documentos de Artigat pouco posteriores ao processo mencionam Pey Rols, dito Colombet, herdeiro dos falecidos pai e filho Andreu e Barthélemy Rols, e outro Rols, com o nome iniciado por A (o resto da página está rasgado) no círculo próximo de Pierre Guerre (ADAr, 5E6653, 9Y-98r). É possível que um dos "genros" de Pierre Guerre fosse um "enteado", em nossa acepção contemporânea (oS termos gendre e beau-fils são intercambiáveis no texto de Coras). Neste caso, o irmão de Bertrande teria estado de acordo com sua mãe e padrasto, contra ela e o novo Martin. Por outro lado, o irmão de Bertrande simplesmente podia estar ausente entre 1559 e 1560. 7. Le Sueur, Historia, p. 7, Coras, pp. 46, 53, 61-2. Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan, cap. 3. Várias escrituras mostram uma ligação entre os Banqueis e os Boeris (ADAr, 5E6653, 95•-96r, 186r-•). Não se encontram tantas ligações dos Loze com os Banqueis, mas James Delhure, sócio de James Loze, consta como testemunha de um arrendamento de cavalos por Jean Banqueis (ADAr, 5E665 3, 200r-v). 8. Coras, p. 54. Le Sueur, Historia, p. 8. 9. Coras, p. 21.
13. Coras, pp. 53-4. 14. Coras, pp. 69-70. ADAr, 5E6653, ff. 96r-9T Jean lmbert, Institutions Forenses, ou practique iudiciaire .. . par M . Ian Imbert Lieutenant criminel du siege royal de Fontenai Lecomte (Poitiers: Enguilbert de Marnef, 1563), p. 439. 15. Coras, pp. 68-9. ' 16. Sobre a mentira, ver o número especial de Daedalus, mtltulado "Hypocrisy, Illusion and Evasion" (verão de 1979) e "Speci~l Issue on Lying and Deception", Berkshire Review, 15 (1980) .
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Notas das páginas 80-89
Notas das páginas 89-93
17. Coras, p. 19; Jean Benedicti, La Somme des Pechez (Paris, 1595), pp. 151-2. 18. Coras, pp. 69-70, 1, 28.
Parlement de Toulouse, 1690-1730", in A. Abbiateci et ai., Crimes et criminalité en France, XVII"-XVIJ I• siecles (Cahiers des Annales, 33; Paris, 1971), pp. 91-107. 8. Coras, pp. 21, 40,·44. Le Sueur, Historia, pp. 12-3; Histoire, iv•. iUV-C C 9. Coras, pp. 37, 65-6. Le Sueur, Historia, p. 10; Histoire, C iv. 10. Coras, pp. 38-9, 73. 11. Recuei/ Général des anciennes !ois françaises, ed. Isambert (Paris, 1822-1833), vol. 12, p. 633: "Ordonnance sur le fait ai. et agosto de 1539, n. 162. Langbein, p. 236. Soman, justice", la de e", pp. 60-1, e "Justíce criminelle". Jurisprudenc "Criminal 29. p. 12. Coras, 13. Imbert, p. 478. Coras, p. 54. Jean Imbert e Georges Levasseur, Le Pouvoir, les juges et les bourreaux (Paris, 1972), pp . 172~5: Entre os 1069 casos de heresia que compareceram ao Supremo Tribunal de Toulouse em 1510-1560, Raymond Mentzer descobriu que a tortura foi ordenada a 27 (2-3%); Raymond A. Mentzer Jr., "Calvinist Propaganda and the Parlement of Toulouse", Archive for Reformation History, 68 (1977), 280. Baseando-se num período de 2 anos (1535-36 e 1545-46), Schnapper descobriu que 16,8% dos casos criminais julgados pelo Supremo Tribunal de Paris incluíam ordem de tortura ("La Justice criminelle", quadro 5, pp. 263-5). Em amostras maiores de todos os crimes, com exceção da heresia, apresentados ao Tribunal de Paris em 1539-1542 e 1609-1610, Alfred Soman encontrou 20,4% dos acusados torturados para extração de confissões no primeiro período e 5,2% no segundo. Em casos de fraude, perjúrio e falsificação, as porcentagens eram mais elevadas que a média em 1539-1542, e zero em 1609-1610. Dos 125 casos de tortura em 1539-1542, os resultados são conhecidos em 70 casos: seis pessoas confessaram; Soman, "Criminal Jurisprudence", quadro 6 e p. 54, e "Justice criminelle", quadro 7, a sair. Para um estudo geral sobre a tortura, ver John H. Langbein, Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien Régime (Chicago, 1977). 14. Coras, pp. 28, 47~. ADR, BP443, 37•-39r. 15. Coras, p. 47 . Imbert, Practique iudiciaire, p. 504-6. ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 30 de abril de 1560.
172
7. O Processo de Rieux 1. ADHG,
3E15289,
46r-47r.
ADAr,
5E6653,
96r-98•;
5E6655, 29', 79r.
2. André Viala, Le Parlement de Toulouse et l'administration royale latque, 1420-1525 environs (Albi, 1953), vol. 1, p. 143. IADHG, B1, f. 37; B. 47, f. 805; B58, f. 638; B66, f. 290, 294; Lastrade, Les Huguenots, p. 1. 3. Coras, pp. 28-9, 85; Imbert, Practique iudiciaire, pp. 420-1. 4. Sobre a justiça criminal na França durante o século 16, ver Imbert, Practique iudiciaire, baseada na experiência de um lieutenantcriminel; Pierre Lizet, Brieve et succincte maniere de proceder tant à l'institution et decision des causes criminelles que civiles et forme d'informer en icelles (Paris: Vincent Sertenas, 1555), escrito por um membro do Supremo Tribunal de Paris; A. Esmein, Histoire de la procédule criminelle en France (Paris, 1882); Bernard Schnapper, "La Justice criminelle rendue par le Parlement de Paris sous le regne de François ler", Revue historique du droit français et étranger, 152 (1974), 252-84; John H. Langbein, Prosecuting Crime in the I?._en-aissance (Cambridge, Mass., 1974); Soman, "Criminal Jurisprudence in Ancien-Régime France: The Parlement of Paris in the Sixteenth and Seventeenth Centuries", in Crime and Criminal fustice in Europe and Canada, ed. Louis A. Knafla (Waterloo Ontário 1981), p. 43-74. O ensaio de Alfred Soman sairá, revist~ e muit~ ampliado, como "La Justice criminelle au XVI•-xvn• siecles: Le Parlement de Paris et les sieges subalternes", in Actes du 107' Congres national des Sociétés Savantes (Brest, 1982). Section de Philologie et d'Histoire jusqu'à 1610. 5. Coras, pp. 38-46. Imbert, p. 439-74; Lizet, 2v-26v. Yves Cas-' tan, Honnheté et relations sociales en Languedoc, 1715-1780 (Paris, 1974), pp. 94-6. 6. Coras, pp. 46-7, 50-3, 58-61, 63 . 7. Nícole Castan, "La Criminalíté familíale dans le ressort du
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Notas das páginas 95-101
Notas das páginas 101-107
8. O Processo de T oulouse
pp. 163-9. Soman, "Criminal Jurisprudence", pp . 55-6, e "Justice criminelle", a sair. 10. Coras, pp . 34-5, 47, 59, 68-70, 85 . 11. Coras, pp . 33-6, 62, 69-70. Le Sueur, Historia, p. 14. 12 . Coras, pp. 59-60, 71-2, 75-9 . 13. Coras, p. 87.
1. Sobre o Supremo Tribunal de Toulouse, ver Viala, Parlement de Toulouse; B. Bennassar e B. Tollon, "Le Parlement", in Histoire de Toulouse, ed. Philippe Wolff (Toulouse, 1974), pp. 236-45; e Bernard de La Roche-Flavin (por muito tempo juiz do Tribunal de Toulouse), Treize livres des Parlemens de France (Genebra, 1621). ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 27 de abril e 20 de maio de 1560. Jean de Coras, De acqui. possessione Paraphrasis (Lyon: Michel Parmentier, 1542), A W; De Ritu Nuptiarum, dedicatória, pp. 205-6, in De Servitutibus Commentarii (Lyon: Dominique de Portunariis, 1548); De verborum obligationibus Scholia (Lyon: Guillaume Rouillé, 1550), página de rosto. 2. La Roche-Flavin, Parlemens de France, pp. 34-5, 54. IADHG, B43, f. 707; B51, f. 2; B32, f. 219; B57, f. 466; B55, f. 415; B57, ff . 70, 73; B56, ff. 556-7, 561; B67, ff. 478-9. Mentzer, "Calvinist Propaganda and the Parlement of Toulouse", pp. 268-83. Joan Davies, "Persecution and Protestantism: Toulouse, 1562-1575", Historical ]ournal, 22 (1979), 49 . 3. IADHG, B-19, f. 8. Coras, p. 1. Le Sueur, Historia, p. 16. La Roche-Flavin, Parlemens de France, pp. 753-5 . ADHG, B. La Tournelle, vol. 74, 30 de abril de 1560. 4. La Roche-Flavin, Parlemens de France, p. 260. Viala, pp. 381 -5. ADHG, B, La Tournelle, vol. 72, 29 de janeiro de 1559160; vol. 73, 15 de março de 1559160; vol. 74, 1. 0 de fevereiro de 15591 60, 31 de maio, 23 de agosto de 1560. 5. Le Sueur, Historia, pp . 11-2; Histoire, C iir-C iW. Coras, p. 47 . IADHG, B1900, f. 256 . ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560. La Roche-Flavin, Parlemens de France, p. 250. 6. Coras, p. 39. 7. Coras, pp. 48, 51, 73 . ADHG, B. La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560. 8. Por exemplo, Coras não estava pr~rnte à condenação de heréticos em 29 de janeiro de 1559160 (B, _La Tournelle, vol. 72), 0 em 1. de fevereiro de 1559 I 60 ou 1.0 de março de 1559 I 60 (ibid., vol. 73), embora estivesse presente a condenações pronunciadas antes e depois dessas datas . 9. Coras, pp. 48-56, 72-4, 76-7. Imbert e Levasseur, Le Pouvoir,
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9. O Retorno de Martin Guerre 1. Le Sueur, Histoiria, p. 4; Histoire, A iiir. Sobre o relativo êxito dos cirurgiões militares ligados ao exército espanhol em Flandres, ver Geoffrey Parker, The Army of Flanders and the Spanish Road, 1.567-1659 (Cambridge, lngl., 1972), p. 168. No século 17 , foi montada uma casa especial na Bélgica para soldados que perdiam os membros. L. P . Wright, "The Military Orders in Sixteenth and Seventeenth-Century Spanish Society", Past and Present, 43 (maio de 1969), 66. 2. Le Sueur, Historia, p. 15, Martin Fernandez Navarreta et ai., Colección de Documentos Inéditos para la historia de Espana (Madri, 184 3), voi. 3, pp. 418-4 7. O perigo de processo por traição não é de se minimizar: um certo Martin de Guerre foi enforcado em 15 55 em Rouen, por ter trazido cartas da Espanha, por Bayonne, a comerciantes espanhóis em Rouen, "altamente prejudiciais a nós [o rei] e nossa república" (AN, ]]263\ 271r-272r). Desconhece-se a relação, se é que existe, entre esse Martin de Guerre e nosso Martin Guerre. 3. Viala, Parlement, p . 409 . M. A. Du Bourg, Histoire du grand-prieuré de Toulouse et des diverses prossessions de l'ordre de Saint-]ean de Jérusalem dans le sud-ouest de la France (Toulouse,
1883), cap. 5. 4. Coras, pp. 88-9. De Sueur, Historia, p. 15; Histoire, D iir. 5. Coras, pp. 89-90, 149. Le Sueur, Historia, p. 17 ; Histoire, D iW-D ivr. Uma das questões secretas se referia a detalhes sobre a crisma de Martin Gúerre. Por alguma razão, ela foi feita em Pamiers e não em Rieux, sede do bispado, ou em Artigat, durante uma visita do vigário do bispo. Algumas das aldeias da área faziam parte da diocese civil de Rieux e da diocese espiritual de Pamiers, mas Artigat não estava entre elas; C. Barriere-Flavy, " Le Diocese
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Notas das páginas 107-114
Notas das páginas 114-119
de Pamiers au seizieme siecle, d'apres les proces-verbaux de 1551", Revue des Pyrénées, 4 (1894), 85-106. Talvez os juízes achassem que seria uma ótima pergunta para testar o prisióneiro, mas, contudo, ele deu o lugar correto. 6. Coras, pp. 97-9. Le Sueur, Historia, pp. 15-6; Histoire, D iir·v. Imbert e Levasseur, Le Pouvoir, pp. 166-7. B. Schnapper, "Testes inhabiles: Les Témoins reprochables dans l'ancien droit pénal", Tijdschrift voar Rechtsgeschiedenis, 33 (1965), pp. 594604. 7. ADHG, B, La Tournelle, vol. 73, 2 e 5 de março de 1559/ 60; vol. 76, 6 de setembro de 1560. Le Sueur, Historia, p. 16. 8. Coras, pp. 98-107. Le Sueur, Historia, pp. 16-7; Histoire, D iiv-D iW. 9. São as palavras que efetivamente constam do registro do Tribunal ("L'imposture et faulce supposition de nom et personne et adultere"). ADHG, B, La Tournelle, 76, 12 de setembro de 1560. 10. Schnapper, "La Justice criminelle", quadro 4; "Les Peines arbitraires du XIII• au XVIII• siecle", Tijdschrift voar Rechtsgeschiedenis, 42 (1974), 93-100. S01pan, "Criminal Jurisprudence", pp. 50-4. Coras, pp. 111-2. Isambert, Recueil général des anciennes lois, vol. 12, pp. 357-8. A. Carpentier e G. Frerejouan de Saint, Répettoire général alphabétique du droit français (Paris, 1901); vol. 22, "Faux". Hélene Michaud, La Grand Chancellerie et les écritures royales au 16• siecle (Paris, 1967), pp. 356-7. AN, X2a119, 15 de junho de 1557; X2a914, 15 de junho de 1557. ADR. BP443, 294v296r. 11. Coras, pp. 111, 118-23. La Roche-Flavin, Arrests notables du Parlement de Tolose, p. 14. 12. Coras, pp. 24, 26-7, 109, 132-4. Imbert, Practique iudiciaire, pp. 488-90. 13. ADHG, B, La Tournelle, vol. 72, 29 de janeiro de 1559/ 60. Imbert, Practique indiciaire, p. 516. ' Imbert e Levasseur, Le Pouvoir, p. 175. 14. Coras, pp. 135-42. 15. Le Sueur, Historia, p. 18; Histoire, D ivv-E ir. Coras, p. 128. 16. Le Sueur, Historia, p.l9; Histoire, E iv. E. Telle, "Montaigne et le proces Martin Guerre", Bibliotheque d'humanisme et
renaissance, 37 (1975), pp. 387-419. Em princípio, apenas o pronunciamento da sentença era aberto ao público num caso criminal; se Montaigne presenciou qualquer procedimento anterior, foi em violação às regras da corte. 17. Coras, pp. 144-60. Le Sueur, Historia, pp. 20-2; Histoire, E iir-v.
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10. O Contador da Estória 1. Coras, p. 78. 2. Le Sueur, Historia, pagma de rosto e p. 27. Louis-Eugene de la Gorgue-Rosny, Recherches généalogiques sur les comtés de Ponthieu, de Boulogne, de Guines et pays circonvoisins (Paris, 18741877), vol. 3, pp. 1399-400. ADPC, 9B24, 120r-12P. A. D'Hautefeuille e L. Bénard, Histoire de Boulogne-sur-Mer (Boulogne-surMer, 1866), vol. 1, pp. 314-5, 377. Dictionnaire historique et archéologique du département du Pas-de-Calais. Arrondissement de Boulogne (Arras, 1882), vol. 1, pp. 267-9. Les Bibliotheques françoises de La Croix du Maine et Du Verdier (Paris, 1772) ; ·.;,ml. 1, p. 349. Liber qui vulgo Tertius Maccabaeorum inscribitur, Latin versibus à Graeca oratione expressus, A Gulielmo Sudorio, Caesarum apud Boloniens. Belg. patrono (Paris: Robert II Estienne, 1566), dedicatória a Michel de L'Hôpital. Antiquitez de Boulogne-sur-mer par Guillaume Le Sueur, 1.596, ed. E. Deseille, in Mémoires de la socié(é académique de l'arrondissement de Boulogne-sur-Mer (19789), 1-2p. 3. Ioannis Corasi Tolosatis, Iurisconsulti Clarissimi, in Nobilissimum Titulum Pandectarum, De verbor. obligationibus, Scholia (Lyon: Guillaume Rduillé, 1550) . Ioannis Corasii . .. vita: per Antonium Usilium ... in schola Monspeliensi iuris civilis professarem, edita. 1559, in Jean de Coras, De iuris Arte libellus (Lyon: Antoine Vincent, 1560). O próprio Coras relatou suas façanhas acadêmicas de juventude numa cárta de Pádua, de 22 de maio de 1535, a Jacques de Minut, primeiro presidente do Tribunal de Toulouse; foi editada com as cem sentenças no final do seu Miscellaneorum I uris Civilis, Libri Sex (Lyon, G . Rouillé, 1552). Coras, p . 56. Henri de Mesme, Mémoires inédites, ed. E . Frémy (Paris, s/d), pp. 139-40,
Notas das páginas 119-121
Notas das páginas 122-126
143 ; Coras foi um dos professores de Mesme em Toulouse. Jaçques Gaches, Mémoires sur les Guerres de Religion à Castres et dans le Languedoc, 1555-1610, ed. C. Pradel (Paris, 1879), p. 117, n. 1. Jean de Coras, Opera quae haberi possunt omnia (Wittenberg, 1603), ' vol. 2, p. 892 . O jurista humanista Jean de Boyssoné, ex-professor em Toulouse, também falou da glória de Coras como conferencista; Gatien Arnout, "Cinq lettres de Boysonné à Jean de Coras", Revue historique de Tarn, 3 (1880-1881), 180-5 . 4. ADHG, B37 (arrêts civils), 12 de julho de 1544. O nome da mãe de Coras aqui citado é Jeanne; Usilis registra-o como Catherine. Jean de Coras, In Titulum Codicis Iustiniani, De Jure Emphyteutico (Lyon: Guillaume Rouillé, 1550), verso da página de rosto: "Domino Ioanni Corasio patri suo observandissimo, Ioannes Corasius filius S. D.", dat.ado de Lyon, setembro de 1549. · 5. Coras, Opera omnia, vol. 1, pp. 549, 690. Archives Municipales de Toulouse, AA10Y; ADHG, 3E12004, 56r (referências gentilmente fornecidas por Barbara B. Davis). 6. Mareei Fournier, "Gujas, Corras, Pacius . Trois conduites de professeurs de droit par les villes de Montpellier et Valence au seizieme siecle", Rev~e des Pyrénées, 2 (1890), 328-34. Jean de Coras, De Impuberum . .. Commentarii (Toulouse: Guy Boudeville, 1541); p. 168 ria cópia da Bibliotheque Municipale de Toulouse traz "Corrasissima" na margem. A obra é dedicada a Jean Bertrand, presidente, Tribunal de Paris; De acqui. possessione é dedicada a Mansencal em 1542 . A dedicatória ao Cardeal de Châtillon data de 1548, ao Cardeal de Lorraine, de '1549 . Coras, Opera Omnia, vol. 1, pp. 22, 162, 191, 225. 7. Usilis, "Vi ta" . IADHG, B46, f. 172. 8. ADHG, E916. Essas cartas foram parcialmente publicadas por Charles Pradel, Lettres de Coras, celles de sa femme, de son fíls et de ses amis (Albi, 1880), e estudadas por F. Neubert, "Zur problematik franzi:isicher Renaissancebriefe", Bibliotheque d' humanisme et renaissan.ce, 26 (1964), 28-54. Gaches, Mémoires, p. 120, n. 2. Coras casara com Jacquette em junho de 1557, data em que escreveu uma afetuosa dedicatória a Antoine de Saint-Paul, "maitre des requêtes ordinaires de I'hôtel du roi", tio de J aéquette (O pera omnia, vol. 2, p. 894). Pradel, Lettres, p. 13 , n. 1; p . 32 , n. 1. IADHG, B75, f. 167.
9. Lettres de Coras, pp. 10, 12-3, 15, 20-1, 26-8, 35-6. ADHG, cartas de 10 de abril, 12 de julho e 8 de dezembro de 1567. 10. Jean de Coras, In Universam sacerdotiorum materiam ... paraphrasis (Paris: Arnaud l'Angelier, 1549), capítulo sobre o Papa. Coras, Des Mariages clandestinement et irreveremment contractes par les enfans de famille au deceu ou contre le gré, vouloir et consentement de leurs Peres et Meres, petit discours . .. A trêcretien ... prince Henri deuxieme ... Roy de France (Toulouse: Pierre du Puis, 1557), p. 92. 11. Des Mariages clandestinement ... contractes, dedicatória a Henrique II. Altercacion en forme de Dialog~e de l'Empe~eur Adrian et du Philosophe Epictéte . .. rendu de Lattn en Françozs par monsieur maitre Jean de Coras (Toulouse: Antoine André, 1558); o privilégio de nove anos é datado de 4 de abril de 1557/58. De iuris Arte libellus (Lyon: Antoine Vincent, 1560). Esta obra e o pensa" mento jurídico de Jean de Coras são o tema de A. London Fell !r., Origins of Legislative Sovereignty and the Legislative State (Ki:imgs. tein a Cambridge; Mass ., 1983). 12. Jean de Coras, Remonstrance Discourue par Monszeur Maistre Jean de Coras, Conseiller du Roy au Parlement de. Tolose: sur l'installation par luy faicte de Messire Honorat de Martms et d~ Grille en l'estat de Seneschal de Beauscaire, Le 4 Novembre 1566 a Nymes (Lyon: Guillaume Rouillé, 1567), pp. 17-9. G . Bosquet, Histoire sur les troubles Advenus en la ville de Tolose l'an 1562 (Toulouse, 1595), p. 157. ADHG, B56 (arrêt civils), 557v-558r. Germain La Faille, Annales de la ville de Toulouse (Toulouse, 16871701), vol. 2, pp. 220, 261. Ver também meu capítulo 12, em especial n. 2. Lettres de Coras, p. 13 . 13. Le Sueur, Historia, p. 12. Coras, p. 64 . 14 . Coras, p. 87 . Le Sueur, Historia, p. 14 . 15. Coras, Altercacion, pp. 59-63. 16. Coras, p. 12; Le Sueur, Historia, p. 18; Histoire, D ivr. Stephen Greenblatt, Renaissance Self-Fashioning: From More t.o Shakespeare (Chicago, 1980). Para uma abordagem um pouco diVersa, ver Norbert Elias, The Civili:âng Process : The Development of Manners, trad. E. Jephcott (Nova Iorque, 1977). Michel de Montaigne, Oeuvres completes, ed. Albert Thibaudet e Maurice Rat (Bibliotheque de la Pléiade; Paris, 1962) , livro 2, cap. 18: "Du démentir".
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Notas das páginas 130-133
Notas das páginas 133-138
11. Histoire prodigieuse, Histoire tragique
Charon pelas informações sobre as ligações católicas de Vincent Sertenas e os editores parisienses de Arrest Memorable de Coras. 10. Le Sueur, Historia, pp. 11, 18. Coras, pp. 90, 108-9, 123-8. ADHG, B, La Tournelle, vol. 74, 20 de maio de 1560; vol. 76, 12 . de setembro de 1560. 11. Coras, pp. 11-22, 139, 149. 12. Cent Nouvelles Nouvelles, conto 35. Compare-se o Heptaméron de Marguerite de Navarre, Segundo Dia, conto 14 (o Sire de Bonnivet substitui o amante italiano de uma mulher milanesa); Quinto Dia, conto 48 (dois franciscanos substituem o novo marido de uma noiva aldeã de Périgord); All's W ell T hat Ends W eU, de Shakespe.are (Helen substitui Diana no encontro amoroso com Bertram) e Measure for Measure (Mariana substitui Isabelle no encontro amoroso com Angelo). Em todos esses casos, a pessoa enganada só sabe da verdade quando lhe contam depois. Stith Thompson não dá ne· nhuma referência de conto com o mesmo tipo de impostura da história de Martin Guerre; o exemplo mais próximo é o de um gêmeo que engana a mulher do seu irmão; Motif-Index of Folk Literature (Bloomington, 1955-1958), K1915-1917, K1311. 13. Vladimir Propp, Morphologie du conte, trad. Marguerite Derrida (Paris, 1970) . 14 . Coras, Arrest Memorable (1561), f.** yv, pp. 70-1. 15. Coras, Arrest Memorable (Lyon: Antoine Vincent, 1565), pp~ 158-78, anotação 104 . Coras (1572), f.* ir. Le Sueur, Historia, pp. 4, 11, 22; Histoire, A iW, CiW. Henry C. Lancaster, The French Tragi-Comedy: Its Origin and Development from 1552 to 1628 (Baltimore, 1907); Marvin T. Herrick, Tragicomedy: Its Origin and Development in Italy, France and England (Urbana, 1955); Susan Snyder, The Comic Matrix of Shakespeare's Tragedies (Princeton, 19?9). 16. Histoires tragiques, Extraictes des oeuvres Italiennes de Bandel, et mises en langue Françoise: Les six premieres, par Pierre Boaistuau . . . et les suavantes par François de Belleforest (Paris, 1580); Richard A. Carr, Pierre Boaistuau's "Histoires Tragiques" : A Study of Narrative Form and Tragic Vision (Chapel Hill, 1979) ; Coras, p. 147. 17. Coras, pp. 107,- 138. Lettres de Coras, p. 16. A self-fashioning Bertrande não aparece no texto de Le Sueur .
1. Admiranda historia, verso da página de rosto. Histoire Admirable d'un Faux et Supposé Mary, E iiiv, privilégio de Sertenas por seis anos, datado de 25 de janeiro. de 1560/61. Jean-Pierre Seguin, L'Information en France avant le périodique. 517 Canards imprimés entre 1529 et 1631 (Paris, s/d); L'Information en France de Louis XII à Henri II (Genebra, 1961). 2. E. Droz, "Antoine Vicent: La Propagande protestante par le Psautier", in Aspects de la propagande religieuse, études publiées par G. Berthoud et al. (Genebra, 1957), pp. 276-93. N. Z. Davis, "Le Monde de l'imprimerie humaniste: Lyon", in Histoire de l'édition française, ed. Henri-Jean Martin e Roger Chartier (Paris, 1982), vol. 1, pp. 255-77. 3. Seguin, L'Information ... de Louis XII à Henri II, reinado de Francisco I: n. 05 55, 142; reinado de Henrique II: n. 0 29. Jean Papon, Recuei! d' arrestz notables des courts souveraines de France (Lyon: Jean de Tournes, 1557) . 4. Jean Céard, La Nature et les prodiges: L'Insolite au XVI" siecle en France (Genebra, 177, pp. 252-65. Michel Simonin, "Notes sur Pierre Boaistuau", Bibliotheque d'humanisme et renaissance, 38 (1976), 323-33. Seguin, L'information . . . de Louis XII à Henri II, reinado de Henrique II: n. 0 22. Pierre Boaistuau, Histoires prodigieuses les plus memorables qui ayent esté observées depuis la Nativité de Jesus Christ iusques à nostre siecle (Paris: Vincent Sertenas, 1560). Jean de Tournes publicara Des prodiges de Jules Obsequent em 1555,' cinco anos antes de Admiranda historia, de Guillaume Le Sueur. Le Sueur, Histoire, verso da página de rosto. Coras, pp . 11-2.
5. Coras, p . 1. 6. Coras, pp. 2-7, 40-5, 118-23. 7. Coras, pp. 44-5, 96. 8. O privilégio de Antoine Vincent para o Salmério data de 19 de outubro de 1561. Sobre Jean de Monluc, ver AN, MM249, 130v-133", 136r·v e Vidal, Schisme et hérésie, pp. 165-6. "Projet d'ordonnance sur les mariages", in Calvino, Opera omnia, vol. 38, pp. 35-44. 9. Coras, Arrest Memorable (1561), f.* 2r-v. Agradeço a Annie
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Notas das páginas 139-140
Notas das páginas 140-147
12. Dos Coxos
Sueur está na Bibliotheque Nationale (Fl3876) e traz a assinatura do grande apreciador de livros Claude Dupuys. 5. Ver minha bibliografia. 6. Jean Papon, Recuei! d'Arrests Notables des Courts souveraines de France (Paris: Nicolas Chesneau, 1565), 452v-456v. Géraud de Maynard, Notables et singulieres Questions du Droict Escrit (Paris, 1623), pp. 500-7; C. Drouhet, Le poete François Mainard (158.3?-1646). (Paris, s/d), pp. 7-8 . Pasquier, Recherches de la France, livro 6, cap. 35. 7. Heródoto, Historiae libri IX et de vita Homeri libellus ... ApoúeJgia Henr. Stepbani pro Herodoto (Genebra: Henri Estienne, 15.66), f.***-* iir. Henri Estienne, L'Introduction au. traité de la conformité des merveilles anciennes avec les modernes (1566), ed. P. Ristelbuber (Paris, 1879), pp. 24-5. Gilbert Cousin, Narrationum sylva qua Magna Rerum (Base!, 1567), livro 8. Antoine Du Verdier, Les Diverses Lecons (Lyon: Barthélemy Honorat, 1577), livro 4, caps. 21-7. Histoires prodigieuses, extraictes de plusiers fameux Autheurs ... divisees en deux Tomes. Le premier mis en lumiere par P. Boaistuau . . . Le second par Claude de T esserant, et augmen~ té de dix histoires par François de Belle-Forest Comingeois (Paris, Jean de Bordeaux, 1574), vol. 2, f. 279r.239r. Cosmographie universelle ... enrichie par François de Belleforest, p. 372. Céard, Les Prodiges, pp. 326-35. 8. Papon, 456r·v; Du Verdier, pp. 300-1; Pasquier, pp. 570-1. Alfred Soman, "La Sorcellerie vue du Parlement de Paris au début du XVII• siecle", in La Girondc: de 1610 à nos jours. Questions diverses. Actes du 104• Congres national des Sociétés Savantes, Bordeaux, 1979 (Paris, 1981), pp. 393-405. 9. Auger Gaillatd, Oeuvres Completes, publ. e trad. Ernest Negre (Paris, 1970), pp . 514, 525-6, 10. Montaigne, Oeuvres completes, livro 3, cap. 11. Uso a tradução contemporânea de John Floria, The Essayes or Moral!, Politike a..ttd Millitarie Discourses of Lord Michael de Montaigne (Londres, 1610), "Of the Lame or Cripple", pp. 612-7. 11. Coras, pp . 52, 74, 88. Montaigne, Essayes, pp. 614, 616. Quinti Horatii Flacci Emblemata (Antuérpil:\; Philippe Lisaert, 16t;l), pp. 180-1: "Raro antecedentem scelestum / Deseruit pede poena claudo", das Odes, livro 3, ode 2. Cesare Ripa, Iconologia
1. ADHG, E916, 8 de dezembro de 1567. Uma inscrição lati· na na guarda da edição de 1579 da Bibliotheque de !'Arsenal diz que o exemplar foi comprado por 10 sous em fevereiro de 1583, . preço razoável para esse tipo de livro. 2. ADHG, B56 (arrêts civils), 55r-558r; B57, 6Y, 70r-73v; B67, 473v.479r. IADHG, B64, f. 69; B62, f. 73; B68, f. 449. Archives Municipales de Toulouse, GG826, depoimento de 26 de maio de 1562 (referência gentilmente fornecida por Joan Davies). (Jean de Coras?), Les Iniquitez, Abus, Nullitez, Injustices, oppressions et Tyrannies de l'Arrest donné au Parlement de Toloze, contre les Conseillers de la Religion, fevereiro de 1568, in Histoire de Nostre Temps, Contenant un Recuei! des Choses Memorables passees et publiees pour le faict de la Religion et estat de la France, depuis l'Edict de pacification du 23 iour de Mars 1568 iusques au iour present. Imprimé Nouvellement. Mil D. LXX (La Rochelle: Barthélemy Berton), pp. 321-54. E. Droz, Barthélemy Berton, 1563-1573 (L'Imprimerie à La Rochelle, 1; Genebra, 1960), pp. 98-106. J. de Galle, "Le Conseil de la Reine de Navarre à La Rochelle ... 156970", Bulletin de la société de fhistoire du protestantisme français, 2 (1855), 123-37. Lettres de Coras, pp. 23-8. Jacques Gaches, Mémoires, pp. 75, 117-20, 193, 417-8. O terceiro juiz assassinado pela multidão foi Antoine I de Lacger, irmão mais velho de Antoine II de Lacger, o marido de Jeanne, filha de Coras. 3. Ver minha bibliografia sobre essas edições. O exemplar da edição latina, Frankfurt, 1576, da Bibliotheque Nationale (F32609) traz a assinatura da Kenelme Digby, colecionador inglês do século 17. 4. Exemplares do Arrest Memorable de propriedade de advogados: 1561, Bibliotheque Municipale de Lille; Lyon, 1565, Bibliotheque Municipale de Poitiers. Exemplares encadernados com Paraphraze sur l'Edict des mariages clandestinement contractez, Paris, 1572: Bibliotheque Nationale (F32604); Bibliotheque Municipale de Lyon (337624); Paris, 1579: Robinson Collection, Faculty of Law, University of California, Berkeley. Exemplares encadernados com obras sobre a lei de casamentos: Lyon, 1565, British Library, proprietário original francês (G 19.341); Lyon, 1605, Saint Genevieve. A edição de 1561 encadernada com Admiranda historia de Le
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Notas das páginas 147-150
Notas das páginas 150-151
overo Descrittione dell'Imagini universali cavate dall'Antichità et da Altri Luoghi (Roma: Herdeiros Gio. Gigliotti, 1593), p. 37: Bugia. A personificação da Mentira tem uma perna de pau porque "la bugia ha le gambe corte". Outros exemplos de significados mistos de uma perna de pau ou aleijão: Saturno com perna de pau (Adhémar, Inventaire, vol. 2, p. 272); aleijão ou deformidade dos pés associada ao extravio da verdade divina e à injustiça [ Giovanni Piero Valeriano Bolzoni, Hieroglyphica (Lyon: Paul Frellon, 1602), pp. 366-7].
não jurat da aldeia (d~ Lancre, Tableau de l'inconstance, p. 71, 125, 217; ADPyA, IJ160, n.o 46, 14 de janeiro de 1620). Os du Tilh continuaram em Sajas e Le Pin nos séculos 17 e 18, mas seu status ainda era modesto (ADHG, 2E2403, 4JV-4Y, 4E2016) . 6. ACArt, Registro de Batismos, 1634: "nasceu um bastardo Jean, filho de Ramond Guerre" . Pouquíssimos ttabalhadores imigrantes na Espanha lá formaram uma segunda família, para depois voltarem à sua mulher e filhos no Languedoc (comunicação oral de Jean-Pierre Poussou).
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Epílogo 1. ADAr, 5E6653, 63", 97'-98r. Coras, pp. 23-4. 2. F. Pasquier, "Coutumes du Fossat", pp. 278-320. Philippe Wolff, Regards sur le midi médiéval (Toulouse, 1978), pp. 412-4. 3. François Rabelais, Oeuvres, ed. J. Boulanger (Bibliotheque de la Pléiade, Paris, 1955), Pantagruel, prólogo, p. 169. Esse provérbio é atualmente corrente no Languedoc. F. Mistral, Lou Tresor dóu Felibrige ou Dictionnaire Provençal-Français (Aix-en-Provence, 1979), II, 302. 4. ADHG, B, Insinuations, vol. 6, 9Y-9r. Apenas Pierre, o jovem é descrito como o filho da viúva de Martin Guerre, Jehanne Carolle. Ainda é menor, com dois curateurs, o que sugere que tem entre 15 e 25 anos de idade e vive com a mãe. A família Carol (também Carrel, Carolz) era de Artigat, embora de menor status do que os Rols (ADAr, 5E6656, 9r). 5. ACArt, registro de casamentos e batismos da paróquia de Artigat, 1632-1642. Terrier de 1651: Dominique Guerre; Gaspard Guerre, aliás Bonnelle; Ramond Guerre; Jean Guerre; Jammes Guerre, François Guerre e Martin Guerre, irmãos; os herdeiros de Marie Guerre. Pierre Rols mantém vários campos em comum com os herdeiros de Marie Guerre. Os Guerre de Artigat sobreviveram aos seus processos com maior facilidade · do que os Daguerre de Hendaye às perseguições à feitiçaria no Labourd, em 1609. Marie e Johannes Daguerre estavam entre as testemunhas, e Petri Daguerre, com 73 anos de idade, foi descrito pelo juiz de Bordeaux como "o mestre-de-cerimônias e governador do sabá", e foi executado. Em 1620 ainda havia Daguerre em Handaye, um bastante importante embora
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Sobre a autora
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atalie Zemon Davis é, atualmente, uma das mais destacadas historiadoras sociais. Tendo nascido em novembro de 19 2 8, foi educada no Smi th College, Massachuset!\, onde graduou-se summa cum laude em 1949. No ano seguinte, graduou-se também pelo Radcliffe College. Recebeu seu Ph. D., em 19 59, na Universidade Michigan e, desde então, tem lecionado nas Universidades Brown (19 59-1963), de Toronto (1963-197 1), da California, Berkeley (1971-197 7) e Princeton, onde foi professora de História de 1978 a 1981; atualmente é professora de História na Henry Zharles Lea. Paralelamente às atividades mais diretament e ligadas ao ensino, dirigiu por um ano, o Associated Studies da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Foi fundadora e coeditora ( 1964-1968 ) do "Renaissance and Reformatio n", tendo participado também do conselho editorial de diversas publicações especializadas. Foi membro e presidente de inúmeras associações profissionais. Natalie Davis tem recebido íncontáveis honrarias ao longo de sua carreira. É autora de vários ensaios e artigos, particularmente sobre aspectos da vida na França do século XVI. Seu primeiro livro, Society and Culture in Early Modern France, foi publicado nos EUA em 1975. O RETOR-
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Sobre« autora
NO DE MARTIN GUERRE, seu segundo trabalho, é uma extensão da pesquisa por ela desenvolvida quando das filmagens da aclamada versão cinematográfica desta estória, dirigida na França por Daniel Vigne. Seu último estudo histórico-antropológico, The Gift in Sixteenth-Century France, acaba de ser concluído. Natalie Zerrion Davis é casada com o matemático Chandler Davis e tem três filhos.