DANIEL FILIPE
a invenção do amor e outros poemas
Nota sobre a Invenção do Amor
Se dizemos que é tempo de fazer regressar ao nosso convívio a poesia de Daniel Daniel Filipe, Filipe, sobr so bret etud udoo a poes po esia ia de A Inve In ve nção nç ão do Amor Am or e outros poemas, falamos apenas em regresso físico — à palavra impressa, impressa, ao livro. Em qualquer qualque r outr ou traa acep ac epção ção,, não há que qu e falar em regresso: os seus poemas estão aí como sempre estiveram — hoje até talvez mais actuais, actuais, com uma acuidade mais viva, como se a comunicação que entre eles e nós se estabelece tivesse conquistado uma nova dimensão, ou porque a nossa actualidade se abriu mais à palavra de Daniel Filipe, encontrando-se de súbito mais próxima dessa poesia que funde tão intimamente amor e liberdade. Essa a razão por que A I n v e n ç ã o d o Amor, o poema onde tal fusão atinge a sua expressão mais nítida, guarda intactas — ou quiçá as intensifique — todas as suas promessas e todo o seu potencial potenc ial combativo. combat ivo. De resto, se considerássemos a evolução de Daniel Filipe, comparando sobretudo a poética de A Invenção do Amor com a de Recado para par a uma u ma Amiga Ami ga dis d istan tante, te, seu livro anterior, dir-se-ia que esta última é toda uma preparação para A Inven Inv ençã çãoo do Amor. O passo que vai de uma a outra é o da maturação de um poeta, do domínio de uma expressão que aparece primeirame prime iramente nte fragmentária e desigual, mais experimentando o desconforto e a esperança do viver do que assumindo-os na transmutação poética do seu livro seguinte. Recado para par a uma Amiga Ami ga distan dis tante te aparece-nos assim em versos difusos, submetidos às estreitas determinações d e um tempo e de um espaço em que se forjaram, à espera de uma unidade que os reequilibre e lhes dê o lugar certo na mundovisão do poeta. É essa unidade que nos surge com A Inven Inv enção ção do Amor, Amo r, poema poe ma-sínt síntese ese das propostas propo stas antecedente antece dentes. s. Já não é um poema poe ma passivo pass ivo ao tempo tem po e ao espaço espa ço da sua génes génese, e, mas dinâmic dinâmico, o, apoderando-se desse tempo e desse espaço, dilatando as suas dimensões a uma comunicabilidade que não esgota tão cedo o seu 2
contrastes, ela pode significar o amor. Não em plenitude, evidentemente, porque lhe falta a prática, a realização vivida; mas significando-o apenas é pô-lo já em luta — e esta luta é o campo de todo o poema. Se analisarmos a estrutura de A Invenç Inv enção ão do Amor Am or,, depara-senos em toda a extensão o combate, não apenas no plano da intenção, dos conteúdos significativos, mas sobretudo nas construções verbais, no domínio do significante. Enquanto, por exemplo, toda a linguagem da cidade é rigorosa, imperativa, comandando os conteúdos das palavras, imprimindo-lhes um sentido obrigatório que restringe a ambiguidade — sem que ela deixe de existir — , já o mesmo não sucede com a outra linguagem que a afronta: palavras como «e « e a memória da infância nos jardins escondidos / acorde a tolerância no coração das pessoas», «respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz / Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos / Água simples correndo A brisa nas montanhas», «um misterioso halo de uma felicidade felicidade incorrupt incorrupta», a», «um pássaro pássaro desconhecido e admirável» (repare-se na fraqueza deste admirável), «que o homem e a mulher tinham estrelas estrel as na fronte f ronte / e caminhavam caminhavam envol envoltos tos numa numa cortin cortinaa de música», etc., palavras como estas, marcadas de fragilidade e incerteza, revelam o esforço com que o poeta procura exprimir algo que é apenas um projecto de vida, ainda sem uma linguagem ao seu serviço. Já Fernando Pessoa dizia que todas as cartas de amor são ridículas, mas que só são ridículos os que não escrevem cartas de amor. É um pouco através deste paradoxo formal que a poesia poes ia de Dan Daniel iel Filipe Fil ipe se afirma afi rma crític crí tica, a, embo em bora ra ampl am plia iand ndoo em substância a dimensão do amor à esfera de toda a solidariedade humana. É pela sua negação, pela sua impro prie pr ieda dade de verb ve rbal al,, pelo pe lo cont co nt rast ra stee com co m o mund mu ndoo em que qu e se intromete, que a nova linguagem mina a certeza da outra, forçando até ao seu último limite o categórico da linguagem
rigidamente submetida ao quotidiano, até que esta se comece a desconjuntar, a tornar-se por sua vez desconexa e a perder terreno neste embate entre o real e o possível — é o ridículo (um ridículo que se distende até ao trágico) dos que não escrevem cartas de amor oposto ao ridículo daqueles que as escrevem. Para estes últimos o poeta reserva os dois versos de Paul chagrin rin une Éluard que fecham A Invenção do Amor: «au bout du chag fenêtr fen êtree ouve o uverte rte / une un e fenêtre éclairée.
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Francisco Espadinha
Dos pinheirais do mar, com canções de Mouloudji, nós também inventamos o amor Por isso, este livro é para ti.
A Invenção do Amor
La nuit n'est jamais complète Il y a toujours puisque je le dis Puisque je l'affirme Au bout du chagrin une fenêtre ouverte Une fenêtre éclairée PAUL ÉLUARD
Não saíram de mãos dadas para para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterrâneamente unidos pela invenção conjunta de um amor sùbitamente imperativo
Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo i ncómodo da monotonia quotidiana Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis i núteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado 9
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura captura A polícia polícia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos becos e avenidas Onde houver uma flor rubra r ubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva Todos Decrete-se a lei marcial com todas todas as suas consequênc consequências ias O perigo perigo justifica-o justifica-o Um homem homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade 10
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja demasiado tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas Fechem as escolas Sobretudo protejam as crianças crianças da contaminação contaminação Uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicàvelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão Aplicado no entanto Respeitador da disciplina Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos Ainda bem bem que se revelou revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
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Está em jogo o destino da civilização que construímos o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos a verdade incontroversa das declarações políticas Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários precisamos da sua sua experiência onde quer que se escondam escondam ao temor do castigo Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra palavra de ordem ordem Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil não precisam de dar o nome e a morada e garante-se que nenhuma perseguição será movida nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio comissões de vigilância. Está em jogo a cidade o país a civilização do ocidente esse homem e essa mulher têm de ser presos mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas
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Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da correspondência Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente espreitam a rua pelo intervalo das persianas beijam-se soluçam baixo e enfrentam enfrentam a hostilidade nocturna nocturna É preciso encontrá-los É indispensável indispensável descobri-los descobri-los Escutem cuidadosamente cuidadosamente a todas as portas antes de bater É possível que cantem Mas defendam-se defendam-se de entender entender a sua sua voz Alguém que os escutou escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz Lhe lembravam a infância infância Campos verdes floridos Água simples correndo correndo A brisa brisa nas nas montanhas
Impõe-se sistematizar as buscas buscas Não vale vale a pena procurá-los nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa Não estarão nunca nunca aí Procurem-nos nas nas ruas suburbanas suburbanas onde nada nada acontece A identificação identificação é fácil Onde estiverem estiverem estará estará também também pousado pousado sobre a porta um pássaro desconhecido e admirável ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa Será então então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa Um tiro no coração coração de cada cada um Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar ar Mas estará completo o esconjuro esconjuro e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos perdidos para nós É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o tiro indispensável Não há outra saída saída A cidade o exige exige
Foi condenado condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
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Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua longínqua No inquérito oficial atónito afirmou que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte e caminhavam envoltos numa cortina de música com gestos naturais alheias Crê-se que a situação vai atingir o clímax e a polícia poderá cumprir o seu dever
Se um homem de repente r epente interromper as pesquisas e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja seja matai-o Mesmo que tenha comido comido à vossa mesa mesa crescido crescido a vosso lado matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda espingarda os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea e deslizem depois numa tristeza líquida até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira derradeira um só golpe mortal misericordioso basta para impor o silêncio silêncio secreto e inviolável inviolável Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia A voz do locutor definitiva nítida Manchettes cor de sangue no rosto dos jornais É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE
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Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado a vida igual a sempre conversas de negócio esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado ou marinheiro em terra afogar a distância no corpo sem mistério da prostituta anónima Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas constroem com urgência o universo do amor E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los
Onde quer que desfraldem o cântico sereno rasgam densos limites entre o dia e a noite E é preciso ir mais longe destruir para sempre o pecado da infância erguer muros de prisão em círculos fechados impor a violência a tirania o ódio
Importa perguntar em que rua se escondem em que lugar oculto permanecem resistem sonham meses futuros continentes à espera
COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA
Entanto das esquinas escorre em letras enormes a denúncia total do homem da mulher que no bar em penumbra numa tarde de chuva inventaram o amor com carácter de urgência
Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade o nosso sistema policial policial é óptimo óptimo estão vigiadas vigiadas todas todas as saídas encerramos o aeroporto patrulhamos os cais há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro f erro
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice abrigo fraternal deixam correr o tempo de sentidos cerrados ao estrépito das armas Que mãos desconhecidas apertam as suas no silêncio pressago da cidade inimiga
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Quando chegaram junto dele acenou aos soldados disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas do Governo pelo engano cometido Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer Todos compreenderam compreenderam que não era caso para um protesto diplomático e depois o homem e a mulher que a polícia procura representam um perigo para nós e para a Grécia para todos os países países do hemisfério hemisfério ocidental Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida sujo insignificante e porventura bêbado
É na cidade que é preciso procurá-los incansàvelmente incansàvelmente sem desfalecimentos Uma tarefa para um milhão de habitantes todos são necessários todos são necessários Não se preocupem preocupem com os gastos a Assembleia Assembleia votou um crédito crédito especial e o ministro das Finanças tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública Depois das seis da tarde é proibido circular Avisa-se a população de que as forças da ordem atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja depois daquela hora Esta madrugada por exemplo exemplo uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia um marinheiro grego que regressava ao seu navio
SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher escondidos em qualquer parte da cidade Repete-se é indispensável encontrá-los Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu of ereceu uma importante recompensa destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo Apela-se para o civismo de todos os habitantes A questão questão está posta É preciso resolvê-la para que a vida vida reentre na normalidade habitual 19
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Investigamos nos arquivos Nada consta Era um homem como qualquer outro com um emprego de trinta e oito horas semanais cinema aos sábados à noite domingos sem programa e gosto pelos livros de ficção científica
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência era bem paga e tinha semana inglesa passava as férias na Costa da da Caparica Ninguém lhe conhecia conhecia uma aventura aventura Em quatro anos de emprego só faltou uma vez quando o pai sofreu um colapso cardíaco Não pedia empréstimos empréstimos na Caixa Usava saia e blusa e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu
Os vizinhos nunca notaram nada de especial vinha cedo para casa não tinha televisão deitava-se sobre a cama logo após o jantar e adormecia sem esforço
Esperam por ela em casa duas cartas de amigas o último número de uma revista de modas a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Não voltou ao emprego emprego o quarto está fechado fechado deixou em meio as «Crónicas marcianas» perdeu-se precipitadamente precipitadamente no labirinto labirinto da cidade à saída do hotel numa tarde de chuva O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer que se trata de uma rapariga até aqui vulgar Nenhum sinal característico característico nenhum hábito digno digno de nota Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não não é certo certo
Ficou provado que não se conheciam Encontraram-se ocasionalmente ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva sorriram inventaram o amor amor com carácter de urgência mergulharam cantando no coração da cidade Importa descobri-los onde quer que se escondam antes que seja demasiado tarde e o amor como um rio inunde as alamedas praças becos calçadas quebrando as esquinas esquinas 21
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Outros Poemas
Já não podem escapar Foi tudo calculado com rigores matemáticos Estabeleceu-se Estabeleceu-se o cerco cerco A polícia e o exército estão estão a postos Prevê-se para breve a captura do casal casal fugitivo (Mas um grito de esperança inconsequente inconsequente vem do fundo da noite envolver a cidade au bout du chagrin une fenêtre ouverte une fenêtre eclairée) eclairée)
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Canto e Lamentação na Cidade Ocupada
1.
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma Ei-la na escuridão serena resistindo Hierática Estranha Sem medida Maior do que a tortura ou o assassínio Ei-la virando-se na cama Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva seminua sensual e no entanto pura Noiva e mãe de três filhos Namorada e prostituta Virgem desamparada e mundana infiel Corpo solar desejo amor logro bordel soluço de suicida Ei-la capaz de tudo Ei-la ela ela mesma em praças ruas becos boîtes e monumentos Ei-la ocupada inerte desventrada com música de tiros e chicote Qué vida la que vivimos en estos años de muerte! NICOLÁS GUILLÉN GUILLÉN 26
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada ignóbil e miraculosamente erecta branca quase feliz quase feliz Ei-la resplendente de amor teoria e prática nocturna mistério acontecido doce habitável ah sobretudo habitável vestido acolhedor café à noite a voz distante e amada ao telefone
2.
Com ternura crescente, insone, canto. Com simples flores de angústias, canto. Em termos de revolta, crise, sonho, ergo, à mesa do café vazio e enorme, meu sonho de viagem sem regresso. Para enganar a solidão, o medo, digo palavras, música, esperança.
Ei-la a que fica e sobrevive e reflecte neons nos lagos do jardim mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis roçam de espanto a solidão crescendo
Canto porque estou vivo e amarrado à condição de ser fiel e agreste. Porque em vão nos destroem a memória
Ei-la a cidade prometida esperamos por ela tanto tempo que tememos olhar o seu perfil exacto flor da raiz que somos meu amor
com máquinas, rodísios, honorários. Porque o sol torna fulvo o teu cabelo e apetecem meus lábios os teus seios. Canto para espantar o espectro indefinido da besta apocalíptica, medonha. Canto e louvo o teu sonho, amigo anónimo, suando e trabalhando, algures oculto. 27
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Canto a tua coragem, general, confinado na prática e fora dela. Canto como quem morde, ofende, esmaga e, exausto, resiste e sobrevive.
3.
Não fora o grito a faca de súbito rasgando a fronteira possível Não fora o rosto o riso a serena postura do cadáver na praia
Canto para saber que vale a pena ter voz, músculos, nervos, coração. A mesa do café, nas ruas, canto. Nos jardins, nos estádios, estádios, sofro e canto. No quarto abandonado, abandonado, sonho e canto. Nos pequenos pequenos cinemas, rio e canto. canto. Entre teus braços doces, choro e canto.
Não fora a flor a pétala pétala recortada em vermelho o longínquo pregão o retrato esquecido o aroma da pólvora a grade na janela
Descerro a aurora com palavras graves, cantando. Reinvento a melodia, o sol aberto, o amor pelas esquinas, a marca sensual nos ombros nus, a memória da infância, a tua face — e canto. Inutilmente embora, canto.
Não fora o cais a posse do nocturno segredo a víbora o polícia o tiro o passaporte a carta de Paris a saudade da amante
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Não fora o dente agudo de nenhum crocodilo
4.
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado, acariciar-
Não fora o mar tão perto Não fora haver traição traição
lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor. Parto amanhã. Não basta depor depor nos lábios inventados inventados a frescura de um beijo doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera. Não basta amar amar a superfície cómoda, cómoda, ritual, exacta nos contornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho. Não basta olhar olhar a Amante como como um crime ou uma injúria injúria e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos. Não basta encher encher de sonhos a mala de viagem, viagem, colocar-lhe as etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento. Não basta escutar, escutar, no silêncio da noite, a estranha voz distante, entre entre ruídos de música e interferências aladas. Não basta ser ser feliz. Não basta a Primavera. Primavera. Não basta a solidão. solidão. 31
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5.
Um cavalo na estepe, o nosso vago anseio marcando-nos temores na impúbera face.
É preciso cantar, é preciso sorrir,
Recolhemos o gesto, a flor primaveril, o canal dos sentidos debruado de escombros
encher a escuridão com árvores sem nome. Estamos sós no mistério dos nossos quinze anos. A tormenta passou. A comida arrefece.
— e rígidos a planície planície inútil com nervuras de sal no rosto imaginado.
A viagem sem história concede-nos a calma: serenos existimos, ocultos, dominados. Só o navio de fogo navega sobre as águas (ponto negro no mapa que não teremos t eremos nunca). No silêncio da espera, espera, murmuramos palavras, desfraldamos bandeiras, corrompemos o sonho. Desejamos o amor, completo e derradeiro como o cheiro do mosto nos lagares de Setembro — mas olhamos o sexo e não compreendemos a noite preenchendo um corpo de mulher. E pura que ela fosse! Desfar-se-ia em bruma... De mãos vazias vamos para o sono comum. 33
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6.
7.
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz pelos teus olhos verdes estelares estelares pelo teu corpo líquido de bruma pelo direito de seguir seguir de mãos dadas dadas na solidão nocturna nocturna lutaremos meu Amor Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve o nosso amor pelo pão que nos recusam pela liberdade sem sem fronteiras pelas manhãs manhãs de sol sem mácula mácula de grades grades lutaremos meu Amor
Aqui ainda podemos esquecer-nos aqui ainda podemos fechar os olhos e sonhar aqui ainda podemos ignorar voluntàriamente o dragão pela noite Aqui ainda podemos fingir de homens aqui ainda podemos sorrir como se nada fosse aqui ainda podemos jogar obcessivamente obcessivamente o xadrez Aqui ainda podemos ter pequenas ambições aqui ainda podemos ser pequenos em tudo aqui ainda podemos cruzar inteligentemente os braços
Pela dádiva mútua da nossa carne mártir pela alegria em teu teu sorriso claro pelo teu sonho sonho imaterial pela cidade escravizada escravizada pela doçura de um beijo à despedida despedida lutaremos meu Amor
Aqui ainda podemos estar mortos e ler o jornal todos os dias aqui ainda podemos responder a anúncios aqui ainda podemos ter um tio t io nas Américas
Pelos meninos tristes suburbanos contra o peso peso da angústia angústia contra o medo medo contra a seta de fogo traiçoeira cravada em nosso doce coração aberto lutaremos meu Amor
Aqui ainda podemos ter um rádio portátil aqui ainda podemos gostar de futebol aqui ainda podemos ter uma amante oculta
Na aparência sòzinhos multidão na verdade verdade lutaremos meu Amor 35
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Aqui ainda podemos ir cedo para casa aqui ainda podemos estar no café com os amigos aqui ainda podemos ter um jeito marítimo
8.
O que menos importa é o fato surrado afinal cada qual tem o seu próprio fado
Aqui ainda podemos em silêncio esperar
Comer uma só vez por dia não tem importância é até um bom preceito de elegância Recear a prisão a pancada as torturas Ora quem os manda meter-se em aventuras Não chegar o dinheiro dinheiro para pagar pagar o aluguer nem para para ir ao cinema cinema nem para ter ter mulher mulher Disparates Doutra forma o poder poder cai cai na rua lembrem-se senhores a revolução continua
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9.
10.
Mas há a noite. O estar sozinho
Entanto, enquanto dói, ouçamos folhetins (de rádio ou doutros): écran fotogénicos potros (cavalgam pelo écran fotogénicos e a rapariga, beija o seu cow-boy).
e no entanto acompanhado — servo de um deus estranho cumprindo o ritual jamais completo. Mas há o sono. A lúcida surpresa de um mundo imaterial e necessário, com praias onde o corpo se desprende.
A solidão é chaga que rói, rói? Não pode a vida vida suportar o mito? (Devora as unhas o espectador aflito, não vá morrer de tiro ou tédio o herói).
Mas há o medo. Há sobretudo o medo. Fel, rancor, desconhecido desconhecido apelo, suor nocturno, rápido suicídio.
E há quem diga que o diabo foi o responsável desta história toda. (Nem fomos convidados para a boda — leia-se FIM — da moça e do cow-boy).
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11.
E de novo este este pão pão não amassado amassado a lágrimas mas salgado de pranto mas comido com raiva com desespero angústia tempero obrigatório amargo condimento fel e raiz da esperança
E de novo a cidade cidade ó ritmo esquecido de estranhas convulsões cheiro de pecado visco mãos esguias pedimos uma esmola negada suave deslizar de carros inconcretos E de novo a terrível sedução da manhã o jeito de navalha no riso do playboy a náusea pressentida o tem-de-ser-agora meu amor meu amor ver-nos-emos depois E de novo a pastora na gravura da sala o grito da ambulância o conto conto do vigário vigário o som de água corrente o choro choro de criança tuas mãos distraídas preparando o almoço E de novo a usura a promessa promessa de emprego a carta carta que não chega o anúncio anúncio interdito o rosto seco e ardente ardente frias salas salas de espera vá passando por cá talvez tenha mais sorte sorte
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Balada para a Trégua Possível
1.
Esta é a trégua possível, merecida, gerada no teu ventre de mulher. Beijo, adiado, a tua face, a vida! E deixo, livre, o coração bater.
Os dois apenas, entre céu e terra, sentimos o espectáculo do mundo. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 44
2.
3.
Em teu macio olhar repousa o meu.
Uma cigarra (obrigatório tropo!)
E na face polida assim formada se reflecte e recria o próprio céu.
Canta, em teus seios pousada. Uma réstea de vida. Um quase nada. Musical e alada Discípula de Esopo.
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4.
5.
Um amor como este não pede mar ou praia: sòmente o vento leste erguendo a tua saia.
Que sinal tua mão ergueu, fácil, no escuro? Que pressago ou impuro simbolismo pagão
O resto é o futuro além, à nossa espreita: doce fruto maduro na hora da colheita.
Que mistério odiado no teu corpo imaturo! Nem pressago ou impuro rósea chaga do lado. 47
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6.
7.
Andorinha secreta de um verão,
E, de novo, nos damos, nos propomos
que só nós dois sabemos, te revelas. De que longínqua e solitária estrela vieste iluminar-me o coração?
como pássaros livres e seguros de pertencer-lhes o sabor dos pomos.
De que planeta ainda inominado? De que mistério astral, corpo solar, patagónia celeste, celeste, ignoto mar, provém o teu perfil sereno sereno e amado? 49
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8.
9.
Em tuas mãos obreiras nascem flores.
Como açucena, abre-se o teu rosto por sobre a doce, doce, tímida paisagem: paisagem: serena imagem na manhã de Agosto.
Em teu sexo germinam alvoradas. manhãs de outono sem clarões de espadas riso, perfumes, cores.
Como magnólia, vertes o perfume Das tuas ancas sobre o pinheiral: ávido lume. casto e sensual. 51
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Como pinho selvagem, te recebo e amo no chão de areia ensolarado: ingénuo efebo deslumbrado.
10.
Tão próxima a colheita! Tão amável o dia! (Um gnomo verde espreita tua figura esguia). Tão claro e manso o rio! Tão distante o horizonte! (Um véu de névoa e frio veste de espanto o monte). 53
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No seio do fruto estás,
Tão próxima a partida! Tão cedo para a morte! (A secreta ferida da vária, esquiva sorte).
sorridente e igual. Quase humano e animal ansioso de paz.
Tão para pouco o amor! Tão solitário o medo! (Entre o mar e a flor, desvendo o teu segredo).
Igual e sorridente, permaneces ainda ainda no seio da trégua finda. E tudo é diferente.
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TÁBUA
Mais lúcido o metal das espadas coroa a divina pessoa que em ti, serena e igual, espera desde criança, no país ocupado, o som claro e doirado da trombeta da esperança. esperança.
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Nota sobre a Invenção Invenção do Amor ............................................ ...................................................... .......... 1 A Invenção Invenção do do Amor ............................................ .................................................................. ........................... ..... 8 Canto e Lamentação na Cidade Ocupada ...................................... ...................................... 25 Balada para para a Trégua Possível Possível ............................ ................................................. ........................... ...... 43