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CURRÍCULO: TEMPO E ESPAÇO NA ESCOLA
Stelamaris Rosa Cabral
UNESA - Universidade Estácio de Sá/Rio de Janeiro
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Resumo O presente artigo faz uma reexão sosobre a organização da escola em ciclos, no caso o Município do Rio de Janeiro, assim como as possibilidades, que tal organização escolar, abre a implanimplantação de um currículo mais aberto às questões da diversidade cultural. Apoia-se nas visões de autores que tratam do estudo do cotidiano escolar como um espaço de construção e circirculação de aprendizagens. Reete as FAAG - Faculdade de Agudos
questões da organização do tempo e do espaço escolar como a ação do curcurrículo. Faz uma breve análise histórica escola ante as políticas educacionais, com prioridade para a escola pública brasileira. Relaciona homem e objeto em interação, como a gênese do conPalavras-chave: hecimento, como fonte de satisfação Currículo; e conito, como uma necessidade imimTempo e Espaço; prescindível na vida dos seres humahuma- Ciclo de Formação no Rio de Janeiro. nos.
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Introdução A proposta dos ciclos amplia a discussão no que tange a organização do tempo no interior da escola, uma vez que dessa organização demanda a execução do currículo. Currículo, nesse estudo, pode ser compreendido como um dínamo, que na organização do tempo escolar, deve facilitar o uir das aprendizagens. Da mesma forma, um ciclo de aprendizagem pressupõe uma dinâmica de eventos, regulamentados pelo currículo, dentro de um espaço de tempo. No caso da escola, o ciclo de aprendizagem, se expressa por uma nova concepção de tempo e espaço letivo, para o desenvolvimento do currículo. O que compreendíamos como ano letivo, passamos a compreender como ciclo letivo, ou seja, o tempo de aprender se estende, ao contrário da seriação, para que o espaço escolar se abra a outras aprendizagens.
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zando o saber assimilado e permitindo que os alunos se sintam importantes e valorizados. Como explica Pelizzari (2002 p.38): [...] o conteúdo escolar a ser aprendido tem que ser potencialmente signicativo, ou seja, ele tem que ser lógica e psicologicamente signicativo: o signicado lógico depende somente da natureza do conteúdo, e o signicado psicológi co é uma experiência que cada indivíduo tem. Cada aprendiz faz uma ltragem dos conteúdos que têm signicado ou não para si próprio.
As diferentes signicações de aprendizagem e avaliação, nas diversidades a que se expõe entre as culturas em que a escola se envolve, quando não Machado (2002) destaca: são bem compreendidas, ao se defronUma educação para o futuro tarem em suas práticas nas experiênimplica, pois, um projeto edu- cias escolares, e no curso do currículo, cacional exível e descentral - podem valorizar apenas as questões izado, apoiado num sistema ligadas à classicação de conteúdos, ao mesmo tempo abertos e seleção de aprendizagem, aferição de abrangentes, que admita abor- conhecimento etc, o que nos provoca dagens alternativas e metod- a reetir que essas categorias ao carologias inovadoras. (p.48) acterizar o fazer escolar, impõe na estrutura curricular do conhecimento a Nesta perspectiva, a escolarização por questão do poder. ciclos pode relacionar o desenvolviO poder está essencialmente mento global do aluno, dentro de uma ligado à classicação. [...] a visão democrática de distribuição do classicação diz o que é legíti conhecimento. Tendo como base uma mo ou ilegítimo incluir no curação pedagógica que leve em conta rículo. A classicação é uma tanto às diculdades da turma, quanto expressão de poder. [...] o os saberes adquiridos, sem deixar de controle está associado ao ritlevar em conta a pluralidade cultural mo, ao tempo, ao espaço de do entorno escolar. transmissão (Bernstein, apud, Os ciclos de aprendizagens oportuniSilva, 2001, p.73). zam a experimentação de novos processos pedagógicos, o que deve se constituir num incentivo para tornar o O currículo se reetido como o perato de ensinar e aprender mais praze- curso no processo de aprendizagens, roso, de modo que torne possível o fa- pelo próprio dinamismo que opera seu vorecimento de ações multiplicadoras, movimento, acaba por se aproximar dessas aprendizagens, por e entre os da idéia de não estar subordinado à alunos, e possibilitem, uma estratégia ação humana. Enquanto trajetória, pedagógica mais observadora e re- o currículo pode ser pensado como exiva da trajetória adotada em sua um contorno que molda a educação, mediação no ensino-aprendizagem. O destituindo-a, de sua autonomia e currículo deve torna-se o eixo motiva- maleabilidade, fundamentado no poddor, na escola ciclada, ao incentivar a er estratégico da transformação e da atuação dentro da sala de aula, na es- adaptação pela aprendizagem, ao ascola e na comunidade, através desses sumir o território escolar pelas vias agentes multiplicadores das apren- das relações que mantém com as indizagens, informações e de ações de tenções /ações das políticas educacioconscientização educativas, valori- nais. Revista Cientíca SER - Saber, Educação e Reexão, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008
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Dessa forma, pretende-se reetir a concepção de currículo como espaço e tempo de produção de aprendizagens, na perspectiva de análise que determina as questões de (re) organização do espaço/tempo escolar em ciclos. Busca-se reetir as possibilidades do uso do espaço e do tempo da escola, como fonte alternativa de proporcionar a construção de aprendizagens signicativas que priorize o contexto sócio-cultural do aluno em uma proposta multicultural de ensino. A partir da LDB 9394/96 o sistema escolar pôde lançar mão de outras formas organizacionais para a escola, na perspectiva de oferecer em seu espaço, novas concepções sobre o processo de aprendizagem, articulando-se a outras áreas do conhecimento.
privilegia a idade deste como referência para a enturmação. Nesse contexto proponho a seguinte questão: Como a escola ciclada reete o currículo e a cultura na organização do tempo, espaço? Para tal, procurarei analisar a escola pública brasileira no tempo, na intenção de observar de que forma o sistema educacional se estruturou a partir dos interesses hegemônicos que se materializaram nos diversos momentos políticos e sociais; reetir sobre a organização do tempo no interior da escola; relacionar espaço escolar e mediação docente, como construtores do currículo e da cultura escolar.
Segundo Freire (2000) a ação de um educador contém implicações políticas, fato que interessa as partes mais Os ciclos de formação compreendem desvalorizadas da sociedade, o profesuma dessas formas de organização sor deve utilizar todos os meios de coescolar para a educação básica, que municação para conduzir uma a uma procura sublinhar a importância do reexão, trabalhando conceitos e cultempo e do espaço na esfera institu- turas, o sujeito pode reetir sobre sua cional de ensino. Uma das característi- realidade de modo crítico, pois é pelo cas dos ciclos de formação é o foco na conhecimento que compreendemos a faixa etária dos alunos, uma vez que vida como é.
O Tempo Histórico da Escola Tempo é meio da sucessão. “É o período que vai de um acontecimento anterior a um acontecimento posterior”. “Uma mudança contínua (geralmente considerada como contínua), pela qual o presente se torna passado”. (SANTOS, p. 66.) Ao analisar sucintamente a trajetória da escola brasileira ao longo do tempo e do espaço procurei delinear seu percurso de estruturação, objetivando rastrear e compreender de que modo à herança pós-colonialista que veio arrastada no tempo, acabou por congurar a identidade de nosso sistema educacional.
educação como um direito de todos. Essa concepção democrática de educação poderia ser considerada como uma forma de cisão com a escola da colônia, intimamente ligada à igreja e posta para formar a elite. A partir de meados do século XIX, a burguesia considerada classe dominante inicia o processo de estruturação democrática dos sistemas nacionais de ensino “e vai advogar a escolarização para todos” em causa própria. Saviani (2005), faz uma análise da educação desta época e percebe que a questão central era a conversão de servos em cidadãos com o objetivo de obter uma maior participação política das classes subalternizadas no processo de consolidação da ordem democrática, por ela, classe dominante, idealizada. Assim, toma a escola como sua principal instituição para materialização de seus ideais.
Nesse sentido, observamos que nossa escola ainda mantém resquícios das escolas do século XVIII, quando se instaurava a Revolução Industrial e, com ela surgia à necessidade de cidadãos mais qualicados para um incipiente mercado de trabalho. Surge fundada nos ideais difundidos pela Revolução Ao que em uma reexão, Cabral Francesa, pautados na fraternidade, (2006) completa: igualdade e liberdade, que veio trazer Isso explica a situação de domia concepção de um modelo igualitário nação que as classes privilegiade sociedade, e instaurou a idéia de das passaram a exercer sobre FAAG - Faculdade de Agudos
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as trabalhadoras e, com isso, o início de uma escola vinculada às relações de poder e dominação. Com a divisão de classes, a cultura escolar é também dividida e faz com que a educação renada e intelectual seja ministrada ao grupo dominante, ao qual também caberá a gestão da escola, restando a muitos o ensino prático para o trabalho. (p.20).
Com o aumento da procura por escolarização por parte da população que procurava melhores postos de trabalho, a escola precisou criar novos mecanismos de homogeneização para dar conta de abrigar a grande massa analfabeta. Aranha (2007) completa que “vieram daí a divisão dos alunos em séries, a especialização dos professores em disciplinas e a sistematização de um ensino básico a ser transmitido a todos”.
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de ensino (ARANHA, 2007). As tensões políticas, marcantes neste período, por força de interesses eleitorais, colocaram um ponto nal ao processo de construção da democracia brasileira e, a partir de 1964, os interesses internacionais numa manobra aliada impõem à instauração de uma ditadura militar que duraria quase vinte anos. Nesse período de conitos e autoritarismo, e pactos de silêncio, houve uma transformação profunda nos alicerces da educação brasileira. Segundo Fazenda apud Rodrigues (1988), nesse período a escola foi esvaziada de suas funções no campo da ideologia ganhando funções renovadas no campo da economia.
É importante destacar que, como as propostas de educação que se rmaram até 1964 não foram sucientes para a realização do desenvolvimento proclamado pelos países do primeiro Na década de 20 os movimentos popu- mundo, e tampouco, coincidia com os lares reivindicavam uma maior partici- ideais do Regime que se estabelecia, pação na sociedade. A escola passa a acusou-se o sistema educacional de priorizar uma educação fundamentada defasado e improdutivo, ao lado da em humanidades cujo objetivo seria o constatação da falta de escolas técde conscientizar os sujeitos de direito nicas bem equipadas que viessem ao prepará-los para o exercício da ci- a formar prossionais competentes dadania, e por outro lado também ca- de acordo com o desejo do modelo bia a escola abastecer de prossionais econômico. especializados o mercado de trabalho, a m de consolidar o ideal capitalista Dentro dessa concepção, foi decretahegemônico. Nesse momento o prole- da a Lei 5.692/71 que dividiu o ensino tariado começa a reivindicar uma es- primário em 1º e 2º graus e atribuiu cola que garantisse oportunidades ig- um caráter estritamente prossionuais a todos, ao expor toda realidade alizante à educação tendo, contudo, competitiva e indigna, que desvelava perdido de vista a infra-estrutura ado lugar comum de descriminações e equada à sua execução e implantação de processos excludentes no contexto deste, ainda no âmbito desta lei, visou social. alterações signicativas na esfera das licenciaturas, direcionando novas moPodemos apreender dessa análise, dalidades formativas a partir das neque a escola pública brasileira através cessidades do mercado de trabalho. dos anos veio aprofundando sua crise identitária, dividida no interior de uma Com o processo de redemocratizasociedade mesclada em classes po- ção iniciado no nal dos anos 1970, bres e de poder, num contexto social esperava-se ansiosamente a abertura antagônico aos anseios de desenvol- de novos caminhos para uma outra vimento social e econômico preten- redenição social. A escola, nesse dido que marcaram as décadas de 40 período, acumulava anos de estagnaa 60. ção sem possibilidades imediatas de ampliar as chances de interrupção do Os desencontros aumentaram os aprofundamento das injustiças socidesníveis entre a estrutura educacio- ais, mascaradas pelo regime autorinal e o sistema econômico, aspecto tário dentro da sociedade civil. que se mantém até os dias atuais. A Nos anos de 1980, tomou-se como LDB 4.024/61 veio legitimar os inter- mote localizar o problema do fracasso esses das classes que se encontravam escolar na má administração da esno poder, mantendo a visão dualista Revista Cientíca SER - Saber, Educação e Reexão, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008
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cola ou na inadequada formação dos professores, o que levou grande parte dos docentes a reciclagem de sua formação. Assumiu-se a gestão participativa ou democrática como motor de incentivo para a melhoria do ensino escolar. Estava na baila a erradicação do fracasso escolar. Ao que Shiroma (2003, p. 10) alude: Lembremos que se difundiram, no nal dos anos de 1980, visões críticas sobre a construção do fracasso escolar e da produção dos excluídos da escola que, embora reconhecessem a existência de problemas educacionais de toda ordem, desoneravam o aluno da responsabilidade individual pelo fracasso.
Durante os vinte anos de regime autoritário pouco se caminhou no sentido de ampliar ou desenvolver políticas educacionais competentes, que garantissem a superação de nossas necessidades de desenvolvimento social e econômico, tendo, entretanto, avançado em direção ao encontro dos interesses dos organismos internacionais.
Na atualidade, possivelmente o descompasso que a escola deixa transparecer, pode ser atribuído às transformações sociais e às séries de reformas educacionais, que ao longo do tempo, que ao invés de fortalecê-la, vieram deformando sua ação e compreensão por parte da sociedade civil. Podemos pensar que durante todos esses anos, tudo mudou, menos a escola, que foi mantida nos moldes tradicionais. Da primeira LDB até os dias de atuais, várias foram às tentativas de superar o descompasso entre o desempenho e a qualidade de nossa escola, porém não se ousou modicá-la de qualquer modo. Falou-se em qualidade atribuindo-lhe distintos signicados, uma vez que, qualidade em educação está atrelada ao tipo de sociedade que o país demanda para formar seus cidadãos. Um dos enfoques mais usados foi articular qualidade com eciência e ecácia, o que veio através dos anos cristalizando a idéia de considerar a educação como um produto e um serviço que deve satisfazer os usuários, e como usuários, entendemos, os empresários e o mercado de trabalho.
A m de aferir a eciência e a ecácia da escola ante as aspirações do A LDB 9.394/96 trouxe uma nova mercado de trabalho, criaram-se inconcepção para a efetivação dos seus strumentos de mensuração da qualidispositivos legais, isto a partir da ar- dade do ensino oferecido nos diversos ticulação com a sociedade dentro de níveis do sistema educativo, e pelos uma perspectiva democrática e partic- resultados obtidos empreenderam-se ipativa, na qual se percebe a valoriza- novas políticas educacionais, que tamção da posição que a sociedade toma bém não se efetivaram em resultados no sentido de operacionalizar suas positivos e deram margem ao surgipropostas. De acordo com Romanelli mento de novas questões, como o fra(1999 p. 179): casso escolar, exclusão, analfabetismo funcional etc. Nenhuma lei é capaz, por si só, de operar transformações profundas, por mais avançada que seja, nem tampouco de retardar, por si só, o ritmo do progresso de uma dada sociedade, por mais retrógrada que seja. Sua aplicação depende de uma série de fatores. Em primeiro lugar, a ecácia de uma lei está subordinada a sua situação no corpo geral das reformas por acaso levadas a efeito, paralelamente a outros setores da vida social, e, o que é mais importante, sua ecácia decorre de sua integração e de suas relações com o todo esse corpo. FAAG - Faculdade de Agudos
Sem dúvida, estas dimensões da escola são fundamentais, porém insucientes, posto que, para produzir um efeito satisfatório em educação, a escola precisa antes de tudo desconstruir a concepção de ser ela a fonte primeira de instrumentalização dos futuros operários, pela transmissão do conhecimento construído e historicamente sistematizado, fazendo o resgate dos princípios de uma educação escolar fundada nos interesses da maioria social. Esta superação pela negação, diz Frigotto (2001), “é a penas o ponto de partida de uma teoria e prática educativa críticas, que se articulam com os interesses da maioria”. No entanto, Saviani (1982) nos faz reetir mais profundamente, quando arma que
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os interesses da maioria muitas vezes e pais de alunos, pela não compreensão confundidos com os interesses de são de que as possíveis mudanças em uma minoria dominante. uma instituição tão tradicional como a escola, pode resultar em, além de A organização escolar em Ciclos de angústias e resistências, um passo Aprendizagem tem sido alvo de muitos rme para uma nova concepção de questionamentos, preocupações e escola. Não se trata de uma novidade, mobilizações por parte de professores mas, uma possibilidade.
Currículo: Tempo na Escola Dimensionar tempo no sentido físico e abstrato, no contexto escolar, não é uma tarefa fácil, uma vez que a escola se organiza em dois sentidos de tempo. No sentido físico ela abarca o espaço estrutural, como cronogramas, horários, tempos de aulas; enquanto no sentido abstrato, opera dentro de um ciclo complexo das fases do desenvolvimento humano, faixas etárias, aprendizagens etc.. Com Veiga-Neto (2002 p.214) entendemos que:
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[...] os calendários, cronogramas e horários escolares funcionam, ao mesmo tempo, como espacializadores do tem po e como espacializadores epistemológicos; eles conformam (espacialmente) nossa percepção sobre o tempo e o nosso entendimento sobre os nossos próprios saberes, além de conformarem os usos que fazemos de ambos – tempo e saberes. Nesse sentido eles nos disciplinam [...] e nos ensinam a ver o mundo como disci plinar; nesse caso, vale dizer: tanto um mundo cujos corpos e ações são ou devem ser (naturalmente) disciplinares, quanto um mundo cujos saberes são ou devem ser (naturalmente) disciplinares. O naturalmente corre por conte do esquecimento de que tais dispositivos são invenções sociais [...].
seqüências de dias de trabalho e dias de descanso. O tempo kronos no percurso do trabalho pedagógico orienta, sustenta e organiza os ensinos disciplinares e a rotina escolar pautado em uma cronologia ou ordem de acontecimentos sucessivos de atividades. Estas atividades estão inseridas em um cronograma global de trabalho o calendário escolar - que orienta o planejamento e determina os prazos e as fases de execução do programa de ensino, e o cotidiano. Pai (2003), acrescenta que “O cotidiano promove o entrecruzamento de distintas dimensões temporais: para além do tempo linear e progressivo, homogêneo e exterior, surge o tempo da repetição, da circularidade” (p.87). O tempo transversal seria o tempo cotidiano, nesse caso, Kairós, o tempo que transcende kronos, pois está acima de organizações racionais, constituindo-se de acontecimentos inesperados, no vai -e - vem das relações, que não são passíveis de previsões, mas que marcam profundamente a instituição escolar, nele é possível planejar acontecimentos futuros no presente, uma dinâmica instigante.
Nessa perspectiva, podemos armar que o tempo na escola é um referencial, que pode ser utilizado diferentemente e ideologicamente. Em certa medida, pode inclusive ser compreendido como momentos de diálogo de saberes que não lineares. Contudo, o tempo na escola é cíclico, constituindo-se de Para a análise do cotidiano esco- repetições até certo ponto, regulares. lar recorro a uma alegoria de tem- Compreender essa temporalidade, no po, como, se esse fôsse uma linha âmbito escolar, é um modo de ler o imaginária que atua como condutor mundo das aprendizagens para fazer do cotidiano, e que abrange duas di- as escolhas pedagógicas conscientes. mensões, a dimensão kronos e a di- Goergen (2000, p.15) arma que: “O mensão kairós. Na análise de (Ponce, tempo da escola é um tempo segmen1997; Teixeira, 1998) existem duas tado com momentos destinados para dimensões temporais, Kronos que é o as atividades que igualmente não se tempo medido pelo relógio, que divide confundem nem se misturam”. a sucessão de dias e noites em frações de horas, minutos segundos, as Para melhor compreensão, volto a Revista Cientíca SER - Saber, Educação e Reexão, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008
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Veiga-Neto (2002 p.207) que aponta, que: “as concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de práticas [...] que servem à reprodução social”. No espaço/tempo escolar essas práticas ocorrem concomitantes. São as construções e as estruturações dos saberes, que pelo processo de ensino aprendizagem, dão espaço as construções dos sujeitos sociais, que entendido como processos interconectados, revela a materialização da ação da política educacional. Um olhar exível para a questão espaço/tempo escolar em ciclos viabiliza a exploração de um contexto social em que os alunos aprendem e se desenvolvem, dos quais a pedagogia ao se apropriar como fonte para suas propostas de ensino, pode proporcionar combinações entre a cultura universal, os conteúdos escolares e a realidade cultural circundante de modo interativo.
mata: Sem dúvida, o tempo escolar, melhor dizendo, os tempos escolares são múltiplos e, tanto quanto a ordenação do espaço faz parte da ordem social e escolar. Sendo assim, são sempre “tempos” pessoais e institucionais, individuais e coletivos, [...]. Daí, entre outros aspectos, sua força educativa e sua centralidade no aparato escolar.
Os ciclos de aprendizagens podem ampliar tanto o tempo individual quanto o tempo coletivo se ousar abranger os espaços da escola em busca da interação entre a comunidade e a escola, na universalização dos saberes. Nessa integração do espaço escolar, os ciclos, colocam em destaque as questões do conhecimento da cultura, do poder e da política, podendo a partir da concepção de um currículo aberto Um outro ponto evidencia a gestão es- às muitas culturas, apoiar-se na percolar, como aquela que rege e estrutu- spectiva da superação dos resquícios ra a dinâmica educacional no interior pós-colonial, e reivindicar uma polítida escola e está tão associada ao suc- ca curricular focada na universalizaesso da elaboração dos objetivos da ção dos saberes e na possibilidade de instituição, que pode contribuir para construção de novas aprendizagens ampliar ou diminuir as possibilidades signicativas, uma vez que seu mote de resultados favoráveis às metas prioriza o contexto sócio-cultural do determinadas pelos projetos políticos aluno em uma proposta multicultural pedagógicos da mesma. A gestão es- de ensino, ao valorizar os variados colar pode interferir na organização do modos pelos quais os sujeitos em inespaço/tempo escolar, ao determinar teração, constroem nos espaços relauma estrutura curricular particular, cionais, suas formas de ser e estar no ao priorizar somente características mundo, assim como os modos pelos próprias de sua realidade, deixando quais as expressam e as (re) apresende fora uma gama enorme de infor- tam. mações, pois um contexto social é formado de muitas realidades. Nesse sentido, ao abordar as questões tratadas no chamado multiculturalÉ importante para a escola trabalhar ismo crítico e pós-colonial, na escola no sentido de compreender o que é e organizada em ciclos, estamos pencomo se estrutura o tempo em seu in- sando nessas possíveis transformaterior. Perceber que atua em segmen- ções oportunizadas pelas interações, tos temporais complexos como: tem- trocas e incorporações dos elementos po letivo, tempo de curso, tempo de culturais do outro. Nas diversidades aula, tempo do aluno etc e, que cada de culturas que se estabelecem no um desses segmentos tem suas par- processo mesclagem cultural. A que ticularidades tanto temporais quanto Macedo (2001) explica: “a noção de espaciais. hibridismo, que poderia ser denida, de forma bastante simples, como O tempo abarca também as divisões e mescla”. subdivisões do próprio ensino em: educação básica, ensino médio, ensino As escolas de qualquer parte do munsuperior, divisões que foram historica- do são identicadas por elementos mente construídas, em cujo espaço é universais que a constituem com tal. sempre concebido como um espaço de A escola, em sua grande maioria, se aprendizagens. constitui de: grandes prédios cinzentos, salas de aula e carteiras, quadro Faria Filho (2002 p. 17) assim arre- negro e giz, alunos, docentes, direção, FAAG - Faculdade de Agudos
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comunidade de pais, entre outros, e estes se articulam com o espaço de aprendizagens para construir o cotidiano, a vida da escolar, o que corrobora para que o identiquemos em qualquer lugar do mundo. Mas é no seu cotidiano que podemos encontrar elementos que as diferem uma das outras, como por exemplo: as formas como o currículo é pensado dentro da instituição, como as questões culturais são mescladas na proposta losóca da escola, como os saberes escolares são internalizados e de que forma são avaliados, além das interações entre a escola e os professores, as famílias, os alunos e a comunidade no momento em que se reúnem em torno de objetivos comuns ou não comuns a eles.
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conhecimentos que vem da própria comunidade pela via das diversas realidades em que lidam seus alunos, procurando organizá-los junto com estes, criando assim,uma identidade escolar própria. Segundo Nóvoa (1992 p.41), “[...] o estabelecimento escolar ‘constitui um ltro que modela as mudanças que vêm do exterior, bloqueando-as ou dinamizando-as’ à medida que no seu interior desenvolvem-se padrões de relação, cultivam-se modos de ação que produzem uma cultura própria”. Vygotsky entende o homem como um ser histórico-social que, sem os processos de interação com o sociocultural, dicilmente poderá desenvolver as características fundamentais que vêm sendo construídas ao longo do ciclo da evolução da humanidade. A culturalização, sob a perspectiva sócioconstrutivista, não é concebida como um processo de absorção passiva, mas como um processo bidirecional de transformação. Na perspectiva histórico-cultural o desenvolvimento humano é denido pela história social e não pelas leis da natureza. Esse pensamento é bem explicado na seguinte armação, que extraída do texto de Leontiev: “[...] o homem e a humanidade libertam-se [...] do despotismo da hereditariedade e pode prosseguir o seu desenvolvimento num ritmo desconhecido no mundo animal” (1978 p. 264).
O modo como os sujeitos escolares se articulam, como signicam suas reivindicações, ou seja, o espaço que a escola abre para ouvir seus parceiros, para saber como se sentem no seu fazer prossional. Outro diferencial pode ser percebido nas relações que a escola mantém com a comunidade onde está inserida, a forma como a instituição elabora o conhecimento que a rodeia e como faz para que este conhecimento se mescle e se manifeste em seu interior através de oportunidades de convivência. Nesse sentido o cotidiano escolar constrói um acervo de interações que podem evidenciar as particularidades da instituição, o que imprime uma forma de identidade àquela escola. Se pensarmos que as escolas funcionam dentro de uma dinâmica de rela- O início de um novo ciclo de desenvolções e interações nem sempre estáveis, vimento histórico-cultural produz mude interesses nem sempre idênticos, danças extraordinárias no ser humano pois lida com grupos culturais het- e na natureza. O homem, munido de erogêneos, cada característica do seu signos e instrumentos, ao interagir movimento pode materializar em seu com outros homens e agir sobre a interior formas multifacetadas de cul- natureza, modica e transforma a si turas, e criar dessa forma sua própria próprio e cria uma natureza nova. É cultura. Dessa forma, a escola, não a partir da idéia de “nova natureza”, apenas precisa abrir-se como espaço conquistada pela interação com o cultural para a comunidade, articu- conhecimento do outro, que a escola lando-se com a produção cultural do ciclada pode operar e materializar promeio, mas também precisa assegurar jetos para a transformação do que foi que essa abertura se expresse no seu estabelecido, até então, como escola. currículo, garantindo que a totalidade Tempo e espaço escolar passam a ser da experiência escolar passe a ser cul- movimentado pela valorização do contural e de todos. hecimento acumulado historicamente através da ação de um currículo orgaA organização dos ciclos, se bem com- nizado com base nas necessidades do preendidos, podem abrir um leque todo escolar e social. de possibilidades de aprendizagens, sem aprisionar aluno e professor A cultura se mistura tanto nos grunum referencial de tempo e conteú- pos escolares, quanto nas unidades dos obrigatórios, administrando os individuais que adentram a escola. Revista Cientíca SER - Saber, Educação e Reexão, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008
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Pela ação dos saberes, que são transmitidos de gerações a gerações e se incorporaram na identidade de cada grupo ou de cada indivíduo, passam a ser partilhadas por toda comunidade. Lembramos as colocações de Arendt (1985) quando arma que cada ator social faz sua leitura deste texto que é a cultura, e essa leitura pode originar pensamentos antagônicos e várias interpretações possíveis, que pode avançar em colisões, e numa espécie de “retrocesso” necessário, porém temporário do exercício individual de interpretação dessa leitura, ao tornarse o mote principal de uma educação multicultural. Os ciclos de aprendizagem ou a escola organizada em ciclos pode ser um primeiro passo de reformulação do contexto escolar, se apreciada dentro das possibilidades de exibilização das aprendizagens para além do conteúdo, ampliando o currículo pra as questões da diversidade cultural e para as ne-
cessidades reais, de conhecimento, da comunidade. A escola não forma operários, forma pessoas para o exercí cio consciente da cidadania. A questão do tempo como dimensão do espaço escolar, ao ser considerado, no sistema de ciclos, como o dinamizador do currículo, implica em imprimir à escola, uma outra forma de articular o cotidiano e toda a hibridização cultural. O que vai se transmutar em uma identidade própria da escola, ou, uma nova concepção de si mesma. Isso implica em dar ao professor e a própria instituição mais autonomia. Ainda há muito que se estudar sobre os ciclos, e, possivelmente, a partir deles novas formas de organizar a escola possa surgir. Porém o mais importante é que a nossa escola retome o caminho da superação da estagnação que lhe foi imposta, por falta de ousadia, ou por políticas educacionais que até os dias atuais não referenciaram o fazer escolar com a dignidade necessária.
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R E S a t s i v e R
Revista Cientíca SER - Saber, Educação e Reexão, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008