FONOLOGIA FONOLOGIA EM NOVA GHAVE Ministério daj Educação ;
rÜPtl&B ^ ■ : msFeWón vou üiiüiia Poriuguosn
LingUdlgem] Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno Linguagem & comunicação social — linguística para comunicadores, Manoel Manoel Luiz Gdnçalves Corrêa Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo Sistema, mudança e linguagem — um percurso pela história da linguística moderna. Dante Lucchesi “O português são dois” — novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virgínia Mattos Mattos e Silva. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rose/ Virgínia Mattos e Silva A linguística que nos faz falhar — investigação crítica, Kanavillil Rajagopalan, Fábio Lopes da Silva [orgs.] - sob demanda Do signo ao discurso — Introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo Ensaios de filosofia da linguística, José Borges Neto Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo r s Doa-se lindos filhotes de poodle — Variação linguística, mídia e preconceito, M a Marta Pereira Scherre A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.], Kanavillil Rajagopalan Gêneros - teorias, métodos, debates, /. L. Meurer, Adair Bonini, Désirée Motla-Roth [orgs.] O tempo nos verbos do português — uma introdução a sua interpretação semântica, Maria Luiza Monteiro Monteiro Sales Corôa V O Considerações sobre a fala e a escrita — fonologia em nova chave, Darcilia Simões f Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini ' ' Moita Lopes C Por uma linguística aplicada indisciplinar, Luiz Paulo da Moita O Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística O U. Weinreich, VV. Labov, M. I. Herzog Naro, M a Marta Pereira Scherre Origens do português brasileiro, Anthony julius Naro, Introdução à gramaticalização — Princípios teóricos & aplicação, Sebastião Carlos L. Gonçalves, M a Célia Lima-Hernandes, Vânia Cristina Casseb-Galvão [orgs.] O acento em português — Abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo [org.] Sociolinguística quantitativa — Instrumental de análise, Gregory R. Guy , Ana M" S. Zilles Metáfora, Tony Berber Sardinha Norma culta brasileira brasileira — desatando alguns nós, Carlos Alberto Faraco Padrões sociolinguísticos, William Labov Gênese dos discursos, Dominique Maingueneau Maingueneau Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau Estudos de gramática descritiva — as valências verbais, Mário Mário A. Perini Caminhos da linguística histórica — “Ouvir o inaudível”, Rosa Virgínia Mattos e Silva Limites do discurso — ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti Questões para analistas do discurso, Sírio Possenti Linguagem & diálogo as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco Nomenclatura Gramatical Gramatical Brasileira — cinquenta cinquenta anos depois,Cláudio Cezar Henriques Língua na mídia, Sírio Possenti
Considerações sobre a fala e a escrita FONOLOGIA EM NOVA CHAVE
r?> Ed i t o r : Marcos Marcionllo Ca pa e pr oj et o gr Af i c o : Andréia Custódio Custódio
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R e v i s ã o : Maria Noèmia Freire da Costa Freitas Co n s e l h o e o i t o r i a C: Ana Stahl Zilles [Unisinos] [Unisinos]
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Carlos Alberto Faraco [UFPRJ Egon de Oliveira Rangel [PUC-SPJ Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, Ipol] Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela) Kanavillll Rajagopalan [Unicamp]
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Sumário
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Marcos Bagno [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
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Rachel Gazolla de Andrade (PUC-SP)
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Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
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Por que uma nova edição?, 7 A chave e as portas, 9
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C) CiP-BRASll. CATALOGAÇÃO NA FONTE S I N D I C A T O N A C I O N A L D O S E D I T O R E S D E L I V R O S , R J _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ S613c Simões, Darcilia, 1951 C o n s i d e r a ç õ e s s o b r e a f a l a e a e s c r i ta : f o n o l o g i a e m n o v a c h a v e / D a r c i l ia S i m õ e s . - S à o P a u l o : P a r á b o l a E d i t o r ia l , 2 0 0 6 . (Lingualgem); 16)
A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO FONOLOGICO NA APREENSÃO DO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE UMA LÍNGUA, 11
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Palavras iniciais, 13
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inclui bibliografia ISBN 978-85-88456-53-2
Subsídios para um enfoque teórico: breve revisão, 15
1. Língua portuguesa - Fonética 2. Língua portuguesa Ortografia e soletração. i. Título. II. Série 06-0743
Pa r t e I: Su b s í d i o s Té c n i c o -t e ó r i c o s
COD 469.2 CDU: 811.134.3*234
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Uma proposta de abordagem de problemas da escrita infantil, 47
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Mudanças linguísticas, 63
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II: Es t u d o s
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A contrução fonossemiótica dos personagens de Desenredo de Guimarães Rosa, 77 Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL
O sertanejo cantando tirana, 91
Rua Dr. Mário Vicente, 394 - Ipiranga 04270-000 São Paulo, SP pabx: [11) 5061-9262| 5061-8075 | fax: [11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mall:
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Aulas de português: parada de sucessos, 103
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Bibliografia, 117
ISBN: 978-85-88456-53-2' 1a edição - 1a reimpressão - abril/2010
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Palavras finais, 115 •t.J
Abreviações e símbolos utilizados adj.
adjetivo
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conferir com
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desinência modo-temporal
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sentido figurado
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futuro do pretérito do indicativo
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Trabalhos de Linguística Aplicada
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Por que uma nova edição?
Sob os auspícios da Parábola Editorial, vem a público a quarta edição corrigida e atualizada de Considerações sobre a fala e a escrita — Fonologia em nova chave. O projeto apresentado nesta obra nasceu em 1991, como uma proposta de curso de atualização promovido pela Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo (FFP). Naquela oportunidade, conversamos com cursistas, docentes e fonoaudiólogos, o que possibilitou um avanço nas considerações que se faziam acerca dos problemas verbais em questão. Verificou-se então que muitas das dificuldades de interação vivenciadas nas classes de alfabetização decorriam especialmente de alguns desconhecimentos técnicos, por parte dos docentes, do sistema linguístico e de suas particularidades internas e externas. A observação da língua como um fato social sujeito a inter venções históricas quase nunca era objeto de discussão nos cursos de formação de docentes, tampouco nos de atualização ou aperfeiçoamento. Com o avanço das conversas durante o curso, começamos a reunir materiais que davam margem a análises técnicas que (apesar de não muito complexas) ofereciam suporte aos docentes, não só para a compreensão das dificuldades do alunado, assim como para o entendimento das soluções que os discentes produziam quando enfrentavam problemas de natureza gráfica, sobretudo. E assim demos início a um novo modelo de encaminhamento do processo de aquisição ou aperfeiçoamento da língua escrita. As estratégias de abordagem linguístico-didática propostas pelos cursos que sucessivamente passamos a ministrar na FFP (de 1991 a 1995) foram-se incorporando às disciplinas de língua portuguesa e linguística da grade curricular do curso de Letras, uma vez que os docentes da UERJ também aprovaram o modelo de trabalho proposto. Outras instituições nos chamavam a ministrar cursos rápidos de atua lização docente para apresentar o material que então denominávamos
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A demanda foi-se mostrando tão alta que, em 1997, decidimos publicar nosso primeiro livro reunindo o material produzido nos cursos, inclusive com auxílio-dos cursistas. Este livro teve a colaboração de alunos do curso de especialização de língua portuguesa do Instituto de Letras e da docente colaboradora, Cláudia Maria Ferreira, que coparticipou dos cursos minis trados na FFP.
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A chave e as portas
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Apesar de despretensioso, o livrinho, que foi intitulado Estudos fonológicos (1997), esgotou-se em menos de um ano. Docentes do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (hoje ISERJ) adotaram o livro nas turmas de formação de professores para o ensino fundamental, e os últimos quinhentos exemplares foram ali absorvidos. Em respeito ao público leitor, partimos para uma nova obra, então denominada Fonologia em nova chave. Considerações metodológicas sobre a fala e a escrita (2003), que obteve o mesmo sucesso da anterior, pois foi adotada em cursos de Letras dentro e fora da UERJ. Com a colaboração dos alunos da disciplina de mestrado Tópicos de fonologia da língua por tuguesa (2004-2), foram observadas falhas de editoração e pontos em que seria necessário aperfeiçoar a descrição ou a exemplificação.
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Nos estudos de língua portuguesa, a fonologia talvez seja o campo em que os pesquisadores encontram as maiores resistências entre os leitores hipotéticos que compõem* o que poderíamos chamar de “contingente linguístico-gramatical” da estética da recepção, data venia de nossos colegas da área de teoria da literatura. Com efeito, a insistência no ensino exclusivamente descritivo dos itens referentes à fonética e à fonologia, dissociados de sua aplicação real e ex pressiva na língua viva, tem contribuído para a exclusão — nem sempre disfarçada — desse assunto das preferências e galerias acadêmicas.
Em 2005-2, novamente o livro serviu de base para curso-disciplina do
O livro que temos diante dos olhos oferece-nos, porém, uma “nova
mestrado de língua portuguesa, e os cursistas (em especial, a ouvinte Luizete Adelaide da Pena de Souza) mais uma vez trouxeram contribuições que fo ram acrescidas ao texto, e assim nascia mais uma edição revista e atualizada.
chave”. E o que nos diz seu subtítulo, despertando a curiosidade do
Agora entrego aos meus colegas e leitores a 4 a edição, intitulada Consi derações sobre a fala e a escrita — Fonologia em nova chave, convidando-os não só à incansável e permanente discussão, como também a possíveis colaborações para o contínuo aperfeiçoamento deste projeto de leitura de questões que envolvem o processo de aquisição da modalidade escrita da língua portuguesa entre nós. São Gonçalo, abril de 2010. Da r c il i a
Si m õ e s
intelectual que cogita, enfim, sobre o desvendamento de alguma senha que mostre mais do que as habituais relações da fonologia. A principal delas - com a fonética - está muito bem sintetizada nos ensinamentos de Carlos Henrique da Rocha Lima, desde a primeira edição (em 1957) de sua Gramática normativa da língua portuguesa : “Estes dois ramos da ciência linguística não se opõem: antes se coordenam e completam. Porque somente com apoio numa boa descrição fonética é possível depreender-se, com segurança, o quadro dos fonemas de uma língua” (p. 14, 31a ed, 1992). A fonologia e a fonética estão também de braços dados com a ortografia, a ortoépia e a prosódia, e as consequências da quase sempre tardia revelação dessa parceria são por demais conhecidas de todos, pois se desnudam nas salas de aula dos cursos de formação de futuros professores ou mesmo no exercício docente em turmas dos ensinos fundamental e médio. Considerações sobre a fala e a escrita — Fonologia em nova chave investe
o fascinante território a ser explorado por conhecedores menos, ou mais, experientes da fonologia portuguesa. Sintaxe? Morfologia? Dialetologia? Semântica? Estilística? Lexicologia? Pedagogia? Sociolinguística? Análise do discurso? Para onde pode levar o estudo fonológico? Pense mais um pouco e aumente essa lista. Vá para a literatura, para as histórias em quadrinhos, para a música, para o futebol... Afinal, ela é apenas o começo de uma aventura que não precisa ter fim. Darcilia Simões apresenta-nos uma obra que conjuga essas duas portas, a que leva para dentro do conhecimento técnico, sem a intenção de fazer “a descrição minuciosa do sistema fônico da língua portuguesa falada no Brasil” (cf. “Palavras finais”), e a que leva para fora, para o lugar onde se concretizam as aplicações pedagógicas e as coisas do espírito.
PARTE I: S U B S Í D IO S T É C N I C O - T E Ó R I C O S
Rio de Janeiro, fevereiro de 2003 Cl á
u d io Ce z a r He n r i q u e s
Professor Titular de Língua Portuguesa do Instituto de Letras — UERJ
A
IMPORTÂNCIA DO
CONHECIMENTO FONOLÓGICO NA APREENSÃO DO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE UMA LÍNGUA
Palavras iniciais Seja qual for a língua ponto de chegada , é importante o domínio da língua materna: a primeira janela para o mundo (Vilela, 1995: 250).
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rvV importância do domínio da língua materna e, por isso, > vimps nos empenhando em deixar contribuições para o ensino e aprendiza gem do vernáculo. A presente obra é resultante de um trabalho construído a partir da observação do desempenho linguístico em português de estu dantes da pré-escola ao 3o grau, em que se buscou analisar as dificuldades manifestadas na produção escrita dessa ampla clientela.
Considerando as avaliações dos diversos programas educacionais que atravessamos ao longo de mais de trinta anos de efetivo exercício do ma gistério e as solicitações acadêmicas de aprofundar o conhecimento da camada fônica da língua portuguesa, acabamos por adentrar os portais da fonologia vernácula e deflagrar um processo de autoindagação sobre possíveis origens para as dificuldades materializadas na fala e refletidas na escrita de nossos alunos. %
Utilizando textos escritos e alguns materiais levantados pelos próprios alunos com fins de pesquisa, chegamos à conclusão de que nosso trabalho v- .^teria um cunho muito mais técnjco-dijático que propriamente fonológico \ -linguístico, uma vez que ríão traríamos contribuições teóricas ou nomen y* claturais para a subárea em questão, senão alguma sugestão pedagógica ; / dirigida ao ensino-aprendizagem da língua portuguesa. (i J'
y f\ Integra este trabalho uma seção de revisão teórica na qual fazemos al** . gumas releituras pessoais de definições ou conceitos que circulam na área, j com vistas a dar-lhes uma dimensão pedagógica, sem, no entanto, privá-los
da necessária cientificidade. As considerações tecidas acerca da variação linguística e de seus re
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v / n v . / L i v / v n v. A /
a sustentação cie nossas interpretações das formas selecionadas (ou mes mo criadas) pelos autores de textos que se prestam à ilustração dos fatos comentados. Entendemos que, da mesma forma que a fala (língua oral) varia, a escrita tem de variar, sob pena de mutilar a expressão dos matizes diferenciais do pensamento, oriundos da distribuição do homem pelos tempos e lugares geográficos e sociais. Como consideramos o signo como objeto formal de nosso trabalho (pois o observamos semioticamente) e o perscrutamos como material disponível para a semiose (produção de significação) ilimitada, temos de analisá-lo em ‘ si e em relação (endógena e exógena), para que se torne possível captar os valores significativos produzidos a partir de sua seleção e combinação no texto.
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Cremos ter deixado claro para nossos leitores que a intenção fundamental deste estudo é rediscutir a atuação docente quando diante de problemas de natureza fônico-gráfica, observando que o raciocínio linguístico do usuário (estudante ou não) se constrói sobre paradigmas nem sempre conformes com o modelo empregado na normatização dos empregos linguísticos (or tografia, gramática normativa etc.); e que a lógica desenvolvida por esses • falantes acaba por viabilizar a construção de hipóteses teóricas, por meio das quais se torna possível uma nova reflexão sobre os padrões gramaticais e ortográficos vigentes em busca de uma harmonização entre os postulados linguísticos, o uso efetivo, o compromisso da comunicação e o processo de ensino-aprendizagem do vernáculo. ^ Nossa meta principal é criar esquemas facilitadores do entendimento dos mecanismos da língua, com vistas a gerar prazer no contato com a informação linguística (as aulas de português não precisam ser enfadonhas), *, estimular o gosto pela prática consciente na produção textual (construção de enunciados mediante seleção e combinação cuidadosas, em busca da melhor expressão) e a compreensão dos mecanismos da língua como es- /. tratégias de manifestação do pensamento que, no registro padrão, carecem de normatização^ em benefício da mais ampla comunicabilidade. Em outras palavras, demonstrar a possibilidade de uni ensino pragmático (sem excessos) no qual a clientela se integre não por coerção externa, mas por desejo, por motivação interna, por necessidade de melhorar a qualidade de seu desempenho linguístico em prol de uma participação social mais ampla e significativa.
Subsídios para um enfoque teórico: breve revisão
1.
Pr e l i min a r
e s im po r t a n t e s
Observadas as dificuldades encontradas pelos professores de língua, em geral, e pelos alfabetizadores em especial, resumimos alguns pontos importantes dos aspectos fônicos da língua portuguesa a serem considerados durante o aprendizado da leitura e da escrita. Da prática de sala de aula (incluindo dez anQs_como alfabetizadora de crianças e adultos), buscamos compilar tópicos que problerriatizam o processo de aquisição da língua escrita, especialmente nos primeiros anos de escolarização. Nossa atenção voltou-se para tais questões devido às consequências detectáveis no desempenho oral e escrito dos estudantes, que chegam à universidade com uma série de sequelas no falar e no escrever. Sabemos que o domínio das formas escritas não pode ser adquirido imediatamente; ele se faz com a prática da língua: muitas leituras e muitas escrdtas. Contudo, há estruturas básicas da fonologia da língua que podem e devem ser assentadas desde as primeiras séries do ensino fundamental, para que o estudante obtenha pontos de partida para seu aperfeiçoamento, fundamentando sua prática de usuário da língua com uma boa dose de raciocínio linguístico. Não queremos pregar nenhuma mudança radical no processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, mas estimular um trabalho mais racional, menos memorizante, através do qual o aluno possa apropriar-se das estruturas da língua com mais facilidade, já que poderá compreendê-las melhor. Visando fornecer subsídios para esses trabalhos, escrevemos o presen
16 A IMPORTÂNCIA DO CONHKC 1 MENTO KONOLÓGICO . . -)
para o domínio da camada fônica da língua portuguesa, assim como para seus reflexos e interferências no uso escrito. Dentre esses pontos, observamos a complexidade do sistema alfabético-ortográfico com que os ocidentais grafam seus enunciados. Este é um grande obstáculo -para o estudante em seus p rimeiros contatos com o texto escrito. Antes, porém, de qualquer especulação direta sobre a língua objeto, cumpre lembrar que ninguém escreve como fala nem fala como escreve. Logo: ainda que o processo de aprendizagem da lectoescritura (cf. Ferreiro, 1987: 35 ) seja simultâneo, trata-se de modalidades diferentes da língua ,^omo veículo de interação social. A língua falada conta com a assessoria de recursos como o gesto, a expressão facial, o tom e o timbre de voz etc., os quais não são transpor táveis para o escrito. A língua escrita, por sua vez, apresenta figuras não conversíveis em som (letras “mudas”, pontuação, diacríticos etc.); espaços em branco sem correspondência no texto oral, visto que a emissão oral é contínua, além de outras particularidades. Por isso a apropriação da leitura e da escrita, pela criança em especial, N é um processo de alto grau de complexidade e requer do professor com, petênciaUécnico-pedagógica^ específica, para que as dificuldades possam ser minimizadas. Há mil problemas em torno da aprendizagem da leitura/escrita, desde a movimentação dos olhos — de cima para baixo e da esquerda para a direita — até a análise última do vocábulo como uma sequência de figu ras — letras ou grafemas — que, em princípio, correspondem a entidades sonoras — fonemas — resultantes do uso das potencialidades do aparelho fonador humano. Além desses argumentos, cumpre acrescentar que o conhecimento não só do material sonoro que produz a realidade oral da língua, mas também dos fenômenos decorrentes da atuação dos órgãos da fala em consequência do ritmo que se imponha ao texto, torna possível a compreensão de fatos gramaticais ou textuais que, sem tal conhecimento se mostram obscuros, abstratos e complexos.
fonologia/ sincrônica,» visto que aquelas ocorrem em qualquer tempo nas línguas vivas. Por exemplo, se as variações dialetais fossem observadas no foco dos metaplasmos, seria possível entender o fenômeno das perdas e acréscimos de substância fônica, facilitando o entendimento de determinados fatos captáveis na língua oral e, muitas vezes, transpostos para a escrita. •j. . • . / # v* Fatos semânticos como a paronímia seriam mais bem trabalhados pe los docentes, dado que a complexidade decorrente da semelhança fônica passaria a ser alvo da atenção dos estudiosos. O mesmo sucederia com a homonímia, a homofonia e a homografia. Tais fatos linguísticos têm ficado relegados ora à ortografia, ora à morfologia ou mesmo à semântica, sem que se preste atenção no’ signo objeto. E preciso trabalhar paradigmaticamente com as formas que se ofereçam à análise, para que, por meio do confronto das formas, tornem-se visíveis as semelhanças e diferenças nos significantes. Finalizando estas reflexões iniciais, esclarecemos que a nossa proposi ção de uma fonologia em nova chave, nestas nossas Considerações sobre a fala e a escrita, significa uma proposta técnico-metodológica de descrição e entendimento do material fonêmico e de suas consequências.na cadeia < da fala, nos processos interacionais mediados pelo vernáculo.
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2. Co n c e it o s
o pe r a c i o n a i s
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Para que nosso trabalho se desenvolva tecnicamente, achamos por bem (. iniciar com o assentamento de determinados conceitos (òu definições) que v julgamos básicos para a compreensão do que vem a seguir. 2.1. Fonética e fonologia
Os livros de gramática, em geral, trazem um capítulo inicial a que in titulam ora fonética, ora fonologia (ou fonêmica). Outros há que reúnem tais termos na apresentação do capítulo. No entanto, nem sempre são felizes no estabelecimento dos liames que separam tais noções. Por isso, Ç; eis nossas definições. 2.1.1.
Fonética
Parte dos estudos linguísticos que se ocupa do levantamento de todos
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as distinções dialetais que caracterizam comunidades linguísticas e, conse quentemente, seu subagrupamento geográfico (pelas variações dmtópicas), social (pelas variações diastráticas) ou mesmo individual (pelas variações diafásicas). ';» > ' Então, interessam aos estudos fonéticos as diferentes realizações de fonemas como os que são representados graficamente pelas letras [s] e [t] da palavra gosto (f.v.): a) no falar carioca — pronúncia chiante do travador de sílaba /SI seguida de oclusiva dental /t/ b) no falar sulista — pronúncia sibilante do travador /s/ seguida de oclusiva dental /t/ c) no falar caipira — pronúncia chiante do travador /tjV e da oclusiva dental /t/ (palatalizada). .....-------r~x A fonologia resolve essa variação por meio da figura do krguifonemjK No caso apresentado, as variáveis são resumidas no arquifonema sibilante /SÁ Ainda que observada a variaçãoCaíofônica)/t/ e /tjV — realizações fonetica mente distintas de um mesmo fonema'— pode-se concluir pela irrelevância do fato sob o prisma fonológico, dado que tal variação (ou alofonia) não produz alteração no signo: o significado do vocábulo se mantém, indepen dentemente da pronúncia, seja ela “a”, “b” ou “c”. 2.1.2.
Fonologia (ou fonêmica)
Parte da linguística que se ocupa dos sons da língua , ou seja, le vanta, classifica e estabelece as djstin£ões_básjcas^entre os fonemas de uma língua, visando à descrição de sua estrutura fônica, o que possi bilita distingui-la de outras línguas e definir seu padrão combinatório no nível da sílaba. u
Assim, a fonologia não leva em conta as diferenças dialetais, ocupando-se tão somente das diferenças fonemáticas (entre um fonema e outro, y. como /p/ e /b/, por exemplo), as quais produzem as distinções entre S' significantes e significados numa língua. Deve-se debitar na conta da ; fonologia a análise de fatos gramaticais de certa complexidade — crase y homonímia, paronímia, hpmofonia, homografia etc,— que, se vistos também numa Ótica fonológica, podem tornar-se mais compreensíveis para o falante em geral. À fonologia não interessa se o falante chia ou sibila ao pluralizar os
sígnica provocada pela presença (ou ausência) do fonema /S/ na construção da forma linguística, o que gera a o posição singular/plural. Para dar suporte ao entendimento de nossos estudos, trazemos ao presente texto uma revisão compacta do conteúdo teórico básico para o entendimento dos mecanismos fonológicos da língua portuguesa do Brasil, tomando por base os estudos mattosianos. . ..... 2.2. O aparelho fonador O homem é um ser natural, em princípio, como os outros animais, os minerais e os vegetais. E, no entanto, um transformador da paisagem: ele modifica seu habitat; por isso, o homem é, posteriormente, um ser cultural. E, no exercício de suas atividades culturais, surge a função social — a de estruturação da sociedade —, que se sustenta na comunicação, a qual, em primeira instância, realiza-se pela interação verbal que se materializa na fala: produto do aparelho fonador. Os órgãos que compõem o aparelho fonador são: pulmões, brônquios, traqueia, laringê, glote, faringe, úvula, fossas nasais, cavidade bucal, língua, dentes e lábios. Os pulmões fornecem a energia para a produção do som: os seus movimentos provocam as correntes de ar inspiratórias e expiratórias, cujo movimento controlado gera a voz. Os brônquios e a traqueia servem de canais condutores da corrente aérea dos pulmões para a laringe e vice-versa. Na laringe, situa-se a glote, órgão essencial da fonação, onde estão as pregas vocais. Seu funcionamento poderia ser assim resumido: quando a glote está aberta e as pregas vocais afastadas uma da outra, a corrente aérea originária dos pulmões passa livremente; nessa posição nenhurh som é pro duzido, é a posição da respiração natural; quando completamente fechada, a glote interrompe a passagem da corrente aérea. Com a glote fechada, as pregas vocais, muito próximas e relativamente tensas, opõem resistência à corrente aérea e, consequentemente, vibram, produzindo o chamado som glotal. Dá-se, então, a fonação, cujos efeitos sonoros resultantes variarão f\ de acordo com a tensão das pregas vocais (que são músculos) e com o estreitamento provocado no canal por onde transita a corrente aérea.
A
A faringe serve, juntamente com a cavidade bucal, de caixa de res sonância, que permite amplificar certos harmônicos (variações do som
20 A IMPORTÂNCIA IKJ u w h i i u a i b i m v / i
.......
A úvulci, situada no fini do palato mole (na cavidade bucal), tem duas posições: (a) fachada, dirige toda a corrente expiratória para a cavidade bucal, produzindo os sons ditos orais; (b) aberta, dirige parte da corrente expiratória para as fossas nasais, que como caixa de ressonância reforça outros harmônicos, gerando os sons ditos nasais. Ilustrando:
Na língua portuguesa, a base silábica é a vogal; alguns fonemas resultam de combinações de sans_elementares como a nasalação (= vogal + travador); e há combinações impossíveis no padrão silábico português, como g/i, rx etc. Há variações de pronúncia que não pertencem à descrição fonêmica (ou fonológica) da língua, visto que não criam novas formas linguísticas, ou seja, não interferem na comunicação verbal. Ilustrando:
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■ rio a) dissílabo — na pronúncia carioca; b) monossílabo — na pronúncia sulista. ■ tinta a) /t/ chiado = /tjV na pronúncia carioca; b) /t/ duro = H na pronúncia sulista. v Não há correspondência entre o número de fonemas e o número de letras (grafemas) no português, ou seja: há mais fonemas que letras no total.
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í) C)
A cavidade bucal tem papel importantíssimo na modulação do som glotal produzido nas cordas vocais, assim como na produção de ruídos. Antes, contudo, de discutir a construção dos sons propriamente dita, faremos uma necessária incursão na língua escrita.
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Consoantes
Vogais
20 letras
5 letras
19 fonemas
7 fonemas (em posição tônica)
A língua se estrutura a partir de um conjunto de sons tipo chamados, fonemas. A língua portuguesa, por exemplo, tem 19 (dezenove) consoantes e 7 (sete) vogais (Mattoso Câmara Jr., 1973: 40 - Sua Ia edição data de 1953 e foi realizada pelas Organizações Simões). Os fonemas são unidades mínimas não significativas, mas distintivas, ou seja, unidades que distinguem as formas da língua. Ex. pato é diferente de bato. A combinatória dos fonemas obedece a padrões silábicos específicos
) y ) <)
Há sons que são graficamente representados por:
3. Al g u m a s q u e s t õ e s f o n o l ó g i c o o r t o g r a f i c a s r e l e v a n t e s
( ' ).
a) figuras diferentes: Ex.: o som sê — Isl — pode ser grafado com c, s, ss, ç, x } sc, sç, xc;
'; ' )
( ,i
b) mais de uma figura combinada: Ex.: o som rê — Ivl — pode aparecer grafado com r ou rr; c) há letras que podem representar sons diferentes: Ex.: [r] em arame é /r/; [r] em roda é /k / E assim por diante. Estas são algumas particularidades da língua escrita que geram dificul dade no processo de ensino-aprendizagem da estrutura fonêmico-ortográfica
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A PRODUÇÃO DOS SONS VOCAIS
A questão da nomenclatura quase sempre dificulta o aprendizado, uma vez que há uma tendência à memorização dos nomes sem, todavia, haver a assimilação do que significam.
~) . •
Por isso, principiemos observando que vogal é o som da voz, ou seja, aquele que resulta da expiração pura, livre d e obstáculo. Melhor dizendo, o som vocálico — soante ou vogal — resulta de uma corrente de ar que vem dos pulmões e atinge a atmosfera, livremente, transitando sem obstáculos ) pelo conduto respiratório. Ao contrário disso, o som consonantal — ou consoante — é um ruído ) (som impuro) que resulta de corrente de ar que vem forçando passagem, atravessando obstáculos no conduto respiratório até atingir a atmosfera.
Por isso, a vogal tem sua realização independente, enquanto a conso) ante precisa de apoio vocálico para atualizar-se, isto é, não conseguimos, ) em português, realizar o som de um /p/, por exemplo, sem apoiá-lo numa • vogal. Por isso, não há sílaba sem vogal em português, e o nome consoante equivale a com vogai Mesmo em palavras como pneu, ritmo, dogma, acrescentamos vogais para apoiar as consoantes que, a princípio, não formam sílaba. Assim, a realidade fonológica dessas palavras difere da realidade gráfica: ). ) 3
Grafia Transcrição N° de sílabas N° de sílabas Classificação Realidade tônica segundo rea- segundo segundo a a grafia lizaçüo fônica grafia /pi ‘ne'7
átono
oxítono
trissílabo
paroxítono
proparoxítono
trissílabo
paroxítono
proparoxítono
monossílabo dissílabo
)
pneu
.)
ritmo /’ri ti mU/
dissílabo
)
dogma ido gi ma/
dissílabo
)
I Cumpre esclarecer que utilizamos a representação dos fonemas (sons da , língua) entre barras inclinadas e dos grafemas (letras) entre colchetes; e o acento tônico, na transcrição fonológica (representação entre barras), vem representado por aspa simples colocada antes da sílaba tônica. Portanto, nos vocábulos em questão, as sílabas V’ne'7 , /Vi/ e /'do/ são,* respectivamente,
Alem disso, na produção dos sons, há outras questões a considerar, pois, dependendo de onde e como os sons são produzidos, nós os distribuímos em grupos (ou subgrupos). 4.1.
Classificação dos sons vocais 4.1.1. Quanto à passagem do ar
Considerando o caminho da corrente de ar, ou seja, por onde ela passa até atingir a atmosfera, temos: (a) som oral — saída total do ar pela boca: Ex.; lá /a/; dê /e/; (b) som nasal — saída parcial do ar pelo nariz: Ex: lã /aN/; som /oN/. 4.1.2. Quanto à zona onde se forma o som
Segundo o local onde se dá o movimento básico da produção do fo nema, temos duas subclassificações: 4.1.2.1 — para as vogais Considera-se o movimento da língua: a) avanço (movimento para diante): vogais anteriores: /e/ /e/ /i; b) recuo (movimento para trás): vogais posteriores: hl /o/ /u/; c) repouso (língua relaxada): vogal central: hl. 4.1.2.2. para as consoantes São considerados os órgãos bioqueadores da corrente de ar expiratória. São elas: a) labiais (com oclusão dos lábios): Ipl Ibl /ml b) dentais (articulação nos dentes): Inl /t/ /d/ /f/ /v/ /r/71/ c) alveolares (produção nos alvéolos dentais): Isl Izl d) palatais (articulação junto ao palato duro): h /jV (Ex. chá; xícara) ■ I 3 I (Ex. já; gelo) __________________________________________ a /ij/ (Ex. minha) e /Ã/ (Ex. ilha). e) velares (articulação junto ao véu palatino): ■ /k/ (Ex. casa; queijo) ■ /g/ (Ex. goma). f) uvular (produzido junto à lívula): / b / (E rato; arremate).
4.1.3. Quanto ao modo como se produz o som Para as vogais y considera-se a posição dos lábios: a) arredondadas (alta)* ' /u/; b) semiarredondadas (média) /e/ /e/ /o/ /o/; c) não arredondada •aixa) /a/. As vogais médias, como formas intermediárias que são, apresentam na particularidade, isto é, são passíveis de um desdobramento: semirredondadas - a) para menos (-): /e/. Ex: dê; lo/ Ex.: no; b) para mais -): lei Ex: fé; hl Ex: só. Para as consoantes, considera-se o processo de desbloqueamento reazado na passagem da corrente expiratória. a. oclusivas (ou plosivas): cujo som resulta de um processo assemelhado à explosão; o bloqueio é rompido abruptamente. São elas: /p/ /t/ /k/ \ íbl /d/ /g/ b. constritivas (ou fricativas, se considerado ,6 efeito auditivo): som resultante de descompressão paulatina do$ órgãos bloqueadores da corrente expiratória, produzindo um som arrastado (captado pelos ouvidos como fricção). São elas: /f/ /s/ /jV M Izl fel. c. nasais: resultantes da passagem pelo nariz do ar expirado^em decorrência do rebaixamento do véu palatino. São elas: /m/ In/ lr\l. d. laterais: resultam do toque da ponta da língua nos incisivos superiores ou nas gengivas (alvéolos), o que promove a saída do ar pelos lados da boca. São elas: /l/ IÁI. e. vibrantes: decorrentes de movimento ondulatório da língua ou da úvula, do qual resultam leves batidas. São elas: e.l) vibrante dental: Irl
como em arame;
e.2 .) vibrante uvular: /k /
como em rato ou carro.
4.1.4. Quanto à vibração das.cordas vocais Os fonemas podem ser classificados como sonoros ou surdos, se consideda a maior ou menor vibração das cordas vocais. São surdos os fonemas )S quais a vibração das cordas vocais se faz suave. Há estudiosos que afirmam que, nos fonemas surdos, as cordas vocais iò vibram (cf. Kury, apud Luft, 1976: 40; ou Infante & Nicola, 1991:35). ontudo, sem tal vibração, ainda que tênue, não há voz (cf. Carreter^ >77: 124).
Os fonemas sonoros decorrem de forte vibração das cordas vocais durante a passagem da corrente expiratória pela glote (cf. Gili-Gaya, 1953: 68 ). No português, todas as vogais são sonoras; já as consoantes dividem-se em dois grupos: a) surdas: Ipl /t/ /k/ /f/ /s/ /JV b) sonoras://?/ Idl /g/ A7 Izl /j/ hnl M hjl lll I a I Irl I k I Izl
4.2. Estudando as vogais Segundo 0 ensino tradicional (antes da contribuição da linguística), as vogais eram cinco: a é i 6 1 /, pois não se distinguia fonema de letra. Mas qual não é 0 espanto do aprendiz quando, logo nas primeiras palavras estudadas, aparecem vogais diferentes, como em meia, o ê — lei — não está no conjunto estudado; assim acontece com 00 — Iol — de ovo. Também o som final de ovo é problemático, pois se fosse escrito como se fala, deveria ser grafado *ovu. A linguística trouxe contribuições importantes nesse- setor dos estudos da língua, pois estabelece premissas como: %)Jetra é diferente de fonema; b) ojpnema só .se define no vocábulo. Por conseguinte, em posição: TÔNICA, AS VOGAIS
PRE7ÔMCA, O QUADRO DAS VOGAIS
PORTUGUESAS SÃO SETE
SE REDUZ A CINCO. ASSIM:
saco /a/ ; seco Izl (f.v.); seco /e/ (adj.); sico /i/; soco hl (f.v.); soco Iol (s.); suco lul.
a) calor /a/ . . caloroso /a/; b.l) céu lei...celeste lei ; b.2 ).selo /e/...selado /e/; c.l) mole hl...molenga- Iol; c.2) mofo Iol...mofado Iol; d) vidro l\l . .. vidrado í\l; e) sujo lul .. . sujeira lul.
A oposição aberto/fechado — para as vogais médias — desaparece na posição pretônica, ou melhor, essa oposição deixa de ser distintiva provo cando o fenômeno da neutralização [Garreter, 1977: 292; cf. item 4.5. deste estudo). Também se dá uma redução ao observarem-se as vogais postônicas (nos proparoxítonos). Nessa posição elas serão apenas quatro.
.......... ...
wiiilL.\jimiil'HU rVANWLA
Observe-se o quadro:
n
r
a) lâmpada /a/ b) célebre lei c) médico m • d.l) método lul • d.2 ) fécüla lul Finalmente, as vogais átonas finais reduzem-se a três. Como:
) )
a) casa b.l) leite b.2 ) cáqui c) rato
la/ li/ li / lul
Importante lembrar que não há formas vernáculas paroxítonas cujo último grafema represente a vogal átona final [u]. Em outras p alavras: não ) há palavras paroxítonas vernáculas escritas terminadas em [u]. )
Mediante essas considerações, é possível perceber que muitas confusões detectadas durante o processo do aprendizado da escrita são consequência da inobservância da realidade oral da língua, dado que a língua falada não pode ser fielmente representada pela escrita. Observada contextuai mente segundo uma abordagem funcional, a concretização dos conceitos e definições fica mais fácil para o aprendiz. Retomando o início deste estudo, vale a pena fixar algumas caracterís ticas fonológico-ortográficas do português. Ilustrando: • Em apto/apito^ vê-se que, no primeiro elemento do par, a consoante não consegue formar sílaba sozinha; daí a distinção entre ap e dpi, em que o fonema /p/ busca apoio na vogal que o precede ou sucede, respectivamente. Contudo, ver-se-á adiante que a distinção das formas apto/apito fica por conta da tonicidade (posição do acento tônico — ou sílaba mais forte), a saber: a) apto = /a pi tu/; b) apito = /a ‘pi tu/ ... • Em casa e cidade, vê-se que uma mésma figura — grafema ou letra — pode representar fonemas diferentes: a letra [c] indica /k/ em casa e /s/ em cidade; ou e/e e ela, onde o grafema [e] funciona como /e/ ou /e/y respectivamente. ~~ J . i .. » • chuva ou táxi,
• Em vê-se que o número de fonemas nem sempre coincide com o número de g rafemas, pois o [ch] equivale a /f/, e
SUBSÍDIOS PARA UM KNKOQUK TKÓRKX): BRKVK RKVISÂO 27 o |x] representa /ki si/. .Assim temos, no primeiro par - [ch] = /J7 duas letras representando um fonema; no segundo par - [x] = /ki si/ - uma letra representando quatro fonemas. 4.3. A sílaba portuguesa 4.3.1.
Definindo sílaba
Sílaba é o conjunto de fonemas emitidos a cada corrente de ar expirada. Para ilustrar, o vocábulo ja ne la tem três sílabas, pois precisamos de três expirações para produzi-lo. Por isso é que os professores costumam induzir à contagem de sílabas perguntando: Quantas vezes se abre a boca para dizer ja ne la? Cada vez. que sé abre a boca, libera-se uma corrente expiratória, que produz uma sílaba. Então, serão tantas sílabas quantas vezes ocorrer o fenômeno descrito acima. A sílaba é uma entidade sonora; portanto, sua depreensão só é possível na língua oral e só é captável materialmente pelos ouvidos. Por isso, os exercícios de partição de palavras que são realizados desde as primeiras sé ries escolares não devem ser entendidos como meio de grafação da divisão silábica, mas como o aprendizado de normas gramaticais para o corte das palavras na mudança de linha — translineação. Segundo esses parâmetros, podem ser minimizadas as confusões resul tantes de situações como: (a) para mudar de linha: car - ro; (b) para partir em sílabas (ao falar): /'ka k u / igual a ca rro. (Obs. O símbolo /U/ representa o arquifonema vocálico posterior.) Só em ‘b’ é que se leva em considera ção o fonema; em V, o que vale são regras elaboradas para uniformizar a translação de partes de palavras ao final de linhas. Com base no exposto, é possível não mais considerar incoerente a conservação de c/i, nh, lh, qu, gu, an, am etc. juntos num mesmo seg mento de palavra, ao passo que rr e ss precisam ser desmembrados para partes vocabulares diferentes. Trata-se de um critério ortográfico, isto é, de uniformização de grafia, sem que os fonemas sejam levados em conta em primeiro plano. 4.3.2.
A estrutura da sílaba
Em português, a sílaba se estrutura numa base vocálica. < Vejamos o que diz Silva (2001: 171): (...) Pelo menos uma vogal deve ocorrer em uma sílaba bem formada do português. Se duas ocorrem
28 A IMPORTÂNCIA IX> CONHECIMENTO FONOLÓGICO
será assilábica (glicle).
O glide pode preceder ou seguir a outra vogal (ver item 4.3.3). Logo: não há sílaba sem vogal em português.
Para clarificar, passemos ao exame da configuração diagramática da sílaba portuguesa. 4.3.2.1. Em sua formação, podem ser captados três movimentos (ou fases): a) ascendente — formando o aclive; b) clímax (ou auge) — formando o ápice ou base (fase obrigatória); c) descendente — formando o declive.
É interessante lembrar.que, na fase do balbucio , o bebê produz palavras construídas apenas com vogais. Ex: aua = água; oa = bola, o que comprova a classificação da vogal como som elementar, e da sílaba monofonemática como simples. Para representarem-se os tipos de sílaba, toma-se por base o seguinte esquema (com exemplos de alguns dos tipos silábicos encontradiços em nossa língua): EXEMPLOS PADRÃO CONVENÇÃO
Veja-se o gráfico:
4.3.2.2 — De acordo com a presença (ou ausência) dessas fases da sílaba, teremos: (a) sílaba simples: só possui a base; é constituída por um fonema (logo: uma vogal). Ex: é , há, oh; (b) sílaba complexa: constituída - por mais de um fonema; possui mais de um movimento; pode ter (entre outras) as estruturas expressas no seguinte quadro: \/ FASES DA SÍLABA
PADRÃO
EXEMPLO
base + declive aclive + base
Vc cV
ar
aclive + base + declive
cVc
par
aclive + base + declive
cVv
pai
aclive duplo + base + declive
ccVc
flor
aclive duplo + base + declive
cvVv
quão
aclive duplo + base + declive duplo
cvVvc
quais
de
A sílaba complexa compreende dois tipos: (a) complexa livre: não tem declive; termina na base. Ex: lá; (b) complexa travada: tem declive (travamento ou interrupção da passagem da corrente de ar expiratória). Ex: pai; lar.
c = consoante
menino
cV cV cV
V = vogal
uva
V cV
v = semivogal
pai
cVv
Mesmo trabalhando com sílabas complexas (com mais de um fonema), os alfabetizadores escolhem as complexas livres (ou abertas — terminadas em vogal), dada a sua pronúncia mais natural e o favorecimento à previsi bilidade estrutural (cf. Jakobson, 1972: 115). 4.3.3.
A semivogal
Falou-se em semivogais durante este estudo; todavia, não nos detivemos nestes fonemas de distribuição especial (ou complementar). Primeiramente, devemos lembrar que o termo semivogal (cf. vogais assilábicas, in Mattoso Câmara Jr., 1977: 55ss.; glide, in Silva, op. cit.) já denuncia que tal fonema é cjuase vogal; portanto, não ç uma vogal plena. Entretanto, só se vai descobrir a diferença quando examinadas a vogal e a semivogal dentro da estrutura silábica (cf. item 4.3.2). Assim temos: pai [pj.no aclive; [a] na base; [i] no declive. Observe-se que às letras indicadas correspondem os sons: /p/, /a/ e lyl. Este último vem assim grafado por tratar-se da semivogal anterior. Se já foi dito que a vogal está sempre na base, o grafema [i] — em pai — não é uma vogal plena. Ora, se é a produção livre ou com bloqueio que distingue vogais e consoantes, é lógico que o [i] representa um som vocálico; no entanto, por estar fora da base, tal som desempenha papel típico das consoantes. Então, semivogal é o fonema produzido como vogal , mas que funciona como consoante (no aclive ou no declive silábico).
Ilustrando:
4.3.4. Encontros vocálicos: ditongos; tritongos e hiatos. Retomando os gráficos das palavras pai e quase , já se tem uma visão do que é ditongo : uma sequência de vogal (V) mais semivogal (v) — ou vice-versa — na mesma sílaba.
) ")
Segundo Silva (2001: 94),
) As sílabas 1 e 2 apresentam, ambas, um fonema no declive: na de n° j uma consoante [r]; na de n° 2 , uma vogal [i]. A princípio, tais vocábulos são estruturalmente iguais (monossilábicos, ■im sílaba complexa travada). No entanto, no declive silábico, constata is uma diferença fonológica quanto ao modo de produção do som: [i] ?presenta fonema de natureza vocálica e [r] indica fonema de natureza onsonantal. ) A despeito da natureza diferente, eles funcionam de modo igual: figuram •o declive silábico como travadores de sílaba. Portanto, no caso estudado, j • [i] representa um fonema de natureza vocálica e função consonantal — //, sendo, por isso, uma semivogcil. A denominação semiconsocinte resulta .ò critério funcional sobreposto ao da natureza do som. Optamos pela jassificação mais frequente — semivogal — em função da força harmônia dos fonemas assim denominados. As consoantes, como já dissemos, em iltima análise, são ruídos. ) A semivogal (como as consoantes) também pode figurar no aclive si-
■^bico (cf. item 4.3.2). ) Vejamos exemplificação com a palavra quase:
um ditongo consiste de uma sequência de segmentos vocálicos, sendo que um dos segmentos é interpretado como vogal e o outro é interpre tado como um glide. O segmento interpretado como vogal no ditongo é aquele que tem proeminência acentuai (ou seja, conta como uma unidade em termos acentuais). O segmento interpretado como^glide não tem proeminência acentuai. Em um ditongo, a vogal e o glide são pronunciados na mesma sílaba (...) Para fixar esta noção, observe-se que a base da sílaba é sempre uma vogal e, fora da base, não pode haver vogal. Além disso, não" è possível mais de uma vogal na base, ao passo que nas margens (aclive e declive) aparecem combinações fonemáticas como: grupos e encontros consonantais ou consoante seguida (no aclive) ou precedida (no declive) de semivogal, como veremos mais adiante. Ainda nos ditongos, veremos que, de acordo com a posição da semivogal — antes ou depois da base —, os ditongos se estruturam como crescentes e decrescentes, respectivamente. Ilustrando: a) No vocábulo quase, a sílaba sublinhada contém a sequência çy no aclive; por conseguinte, tem a série vV: v no aclive e V na base. Temos, então, um ditongo crescente. b) No vocábulo pai, a sílaba sublinhada apresenta estrutura inversa em relação à da palavra anterior. Em pai, temos c no aclive + V na base + y no declive = cVv. A sequência Vv corresponde ao ditongo decrescente. Há, ainda, o fenômeno do agrupamento de semivogal + vogal + semivogal numa mesma sílaba, como em quais ([qu] no aclive + [a] na base + [is] no declive). Esse grupo vocálico se chama tritongo e tem baixa frequência no português.
A sílaba n° 1 apresenta dois fonemas no aclive: um consonantal e um bcálico, que é uma semivogal devido à sua função. A partir destas considerações, entramos a examinar novos fenômenos fônicos.
Quando, entretanto, sons vocálicos aparentemente unidos na grafia se separam ao pronunciar-se o vocábulo, surge, então, o hiato. Este é o en contro gráfico de vogais de sílabas diferentes, como em saúde: /sa ‘u de/. Vê-se, pela transcrição fonológica (ou fonêmica), que /a/ e /u/ encontram-se em sílabas diferentes.
Também na transcrição pode-se indicar a presença da semivogal: lyl — o iode}— para o que, normalmente, se representa na grafia por [e] ou [i]; /w/ — o uau —para [o] ou [u]. Ilustrando: PARA O GRAFEMA E
PARA 0 GRAFEMA 0
CLASSIFICAÇÃO
a) fez: [e] = lei;
c) cor: [o] = /o/;
vogal
b) mãe: [e] = lyl.
d) não: [o] = Av/.
semivogal
4.3.5. Grupos e encontros consonantais Há que distinguir grupos e encontros consonantais, visto que os grupos participam da mesma sílaba, ao passo que os encontros são uma ilusão da grafia: pronunciado o vocábulo, o encontro se desfaz. Assim, temos em flor grupo consonantal consonantal |fl]; mas, em carta, o encontro consonantal [rt] é desfeito ãò pronunciarmos /TcaR ta/. 4.3.6. Os digrafos Outro fenômeno interessante a ser examinado são os fonemas que se representam na escrita por mais de um grafema, ou seja, grupo de letras que representam um único som. Daí o nome dígrafo (ou duas grafias),- que designa figura construída por consoantes duplas, consoantes repetidas ou combinações de consoante e vogal, ou vice-versa. O dígrafo requer nossa atenção pelo fato de receber tratamento específico no ato da translineação. Observe-se: a. chuva — o [ch] representa /jV e, ao dividir a palavra para mudar de linha, o [ch] é conservado junto, p ois o grupo figura no aclive silábico; b. aquele — o [qu] representa /k/, mas o [qu] se mantém unido como o [ch], ainda que se trate de consoante seguida de vogal, pois ambos estão no aclive silábico e a "letra vocálica” não corresponde ao som vocálico. d) carro — o [rr] representa / b Y, porém, ao partir-se a palavra, põe-se um [r] em cada segmento resultante, assim: car - ro. por mera convenção ortográfica.
Lembrando que a vogal resulta de ulna corrente expiratória livre, sem obstrução do conduto aéreo, vamos observar que as vogais nasais não são ) tão livres assim, pois o rebaixamento do véu palatino ensaia um bloqueio da . corrente expiratória e resulta em dividi-la, fazendo com que a maior parte desse ar saia pelo nariz; é, portanto, uma articulação vocal cuja ressonância se produz nas fossas nasais (Carreter, 1977: 289). Produzido dessa forma, o som vocálico perde a sua liberdade original e se reàliza abafado , travado. E o fenômeno da(nasalaçãoJ ,) 4.4.]. A nasalidade fonêmica — as vogais nasais Em português, a nasalação vocálica é tão forte que a consoante, que su cede a vogal e provoca o fenômeno, perde sua própria articulação, passando a integrar-se à composição da vogal. Daí, Mattoso Câmara Jr. (1977) preferir falar em vogal seguida de travamento a chamá-la vogal nasal. Veja-se o excerto:
r- ,
A verdade é que, por ser a nasal de travamento um mero glide, o obser vador é levado a desprezá-la em qualquer língua onde a ressonância da vogal seja foneticamente intensa.(...) parece-me, por tudo isso, preferível suprimir a consideração das vogais nasais portuguesas como fonemas distintos, resolvendo-as num grupo de vogal seguida de arquifonema nasal (Mattoso Câmara Jr., 1977: 68-69). A nasalidade vocálica aparece na escrita de duas maneiras: a) com diacrítico [~] — o til; b) com a sucessão de uma consoante nasal no declive sTíábTco (como travador) — [m] ou [n]. Ambas as marcas indicam o aba famento (ou travamento) da vogal. Indicam que a maior parte da corrente expiratória que a produz sai pelo nariz. Logo: as consoantes que figuram no declive, silábico como travadores nasais não têm valor sonoro próprio, mas funcionam como elemento diferenciador entre a vogal nasal e a vogal não nasal (ou oral), o que distingue vocábulos em português e, portanto, tem valor fonológico. Trata-se de mais um caso de glide na estruturação silábica portuguesa.
4.4. A nasalidade
Comprovando: a) o valor diacrítico da consoante n asal no declive; Ex.: lã = *lam; b) o valor distintivo de formas da língua; Ex.: cinto (s.) = cito (f.v.)
Uma das particularidades importantes e distintivas da língua portuguesa são os sons nasais. E considerada por alguns como sendo a maior dificuldade fonológica de nossa língua.
Cumpre lembrar um fato ortográfico (relacionado com a nasalida de) que não é discutido, mas apenas decorado: antes de [p] e [b] só se escreve [m].
\)
SUBSÍDIOS PARA UM ENFOQUE TEÓRICO: BREVE REVISÃO 35
O porquê dessa regra é o modo de articulação dos sons: os três fonemas /p/ /b/ e /m/, representados por aquelas letras, se produzem nos lábios, são consoantes labiais. Logo, por comodidade articulatória [lei do menor esforço — cf. Silva Neto (1956: 72-73)], passa-se de /p/ ou /b/ para /m/ sem mudar a posição dos lábios. Em decorrência disso, ainda que sai bamos que as consoantes nasais no declive se esvaziam, incorporando-se à vogal precedente, não podemos ignorar que as mesmas são articuladas, caso contrário-não travariam a vogal. Daí, o sistema ortográfico (nesse caso) ter-se pautado por um argumento fonêmico bastante objetivo. Para testar, experimente pronunciar algo como pente forçando um /m/ como travador. Logo você sentirá o incômodo da articulação na passagem para a sílaba seguinte. Idem se quiser forçar um /n/, ao pronunciar algo como tampa. Ainda que esta ilustração se apoie em situação de exceção, serve como demonstração do argumento fonêmico que teria originado a convenção em questão: antes de [p] e [b] só se escreve [m]. Ainda se pode prestar à testagem, a constatação do apagamento da dental [d] nas termina ções -ndo, do que resultam formas em -no, jamais em -mo. Isto também pode servir de documento para a distinção articulatória dos travadores nasais. Para simplificar a explicação, tem-se que antes de labiais — [p] e [b]. — usa-se o [m]. Antes das demais consoantes, usa-se [n]. Desta forma justifica-se o uso de labial junto a labial e das demais, não labiais, por eliminação, por travador não.labial representado na escrita por [n]. 4.4.2.
A nasalidade fonética (sem valor distintivo)
É interessante notar que vocábulos como lama, muito, comida não pos suem sílaba travada por elemento consonantal nem til, mas trazem vestígios de nasalidade. Contudo, são apenas contaminações (ver assimilações, §7.17 in Barbosa, 1994: 178), resíduos, que não interferem na significação dos vocábulos, não distinguem formas da língua. Observe-se que tanto faz dizer-se: Legenda /a/ aberto /e/ abafado
pato cama
/ba ‘nB na/ — como os cariocas, /bB ‘nB na/ como os baianos, /ba ‘na na/ como um estrangeiro,
que o significado do vocábulo não será afetado. Portanto, é um fato dife rente da oposição cinto/cito. Disto se conclui que não se trata de uma nasalidade propriamente dita, senão de uma nasalação ou contaminação nasal por influência da proxi midade de consoante nasal; tal fato decorre de uma assimilação fonética resultando numa variação alofônica sem consequências semânticas (cf. Câmara Jr, 1977: 69). Quanto à transcrição de vocábulos que apresentem vogal nasalada por contaminação, isto fica por conta dos estudos fonéticos, já que na descrição fonológica só é relevante a indicação daquilo que interfere na comuni cação. Em outras palavras: indicar a nasalidade do /a/ na forma canta é indispensável, pois é isto que gera a distinção com cata. Entretanto, qual a necessidade de marcar a pronúncia nasalada (ou não nasalada) do fonema /e/ em leme? Ou do /o/ em toma? 4.5. Neutralização, arquifonema e alofonia K neutralização é o resultado do desaparecimento de uma oposição, ou seja, o traço distintivo entre duas formas deixa de existir (cf. item 4.2).
No caso das vogais, vê-se a neutralização da oposição quanto ao timbre das médias: na posição tônica, são sete as vogais, reduzindo-se a cinco na posição pretônica, pois o hl e o /3 /, segundo o dialeto carioca (inicialmente, tomado como modelo para a descrição linguística), deixam de realizar-se nesta posição. Ex.: s/e/lo (s.) s/s/lo (f.v.) s/e/lado (adj.); b/o/lo (s.) b/o/lo (f.v.) b/o/lado (adj.) Nas posições postônica e átona (final e não final), também é detectável a neutralização; porém, é a posição átona final que nos interessa observar aqui, pois dela decorre o arquifonema. O arquifonema é uma ficção da descrição linguística que visa reunir numa só entidade fonemática todos os traços de um conjunto de fones (unidades fonéticas). Assim, uma vez extinta a oposição /e/ e /i/ átonos em final de palavras, surge o /I/ — arquifonema vocálico anterior — que reuniria os traços pertinentes à descrição do /e/ e do /i/ cóncomitantemente. Ex: mate /I/; mato /U/. Para a representação fonológica dos arquifonemas (que também ocorrem entre as consoantes) reservou-se a maiúscula. Especialmente na posição de travadores silábicos (no declive), as consoantes participam dos fenômenos da alofonia e da neutralização. A
36 A IMPORTÂNCIA DÒ CONHECIMENTO FONOLÓCICO
alofonia (ou variação alofônica) decorre ora do contexto fônico, ora da pro núncia do falante; e o arquifonema é a solução técnica para a representação daqueles fonemas (os travadores) de uma forma generalizante. Exemplificando: Em carta, o travador grifado pode ser realizado como vibrante velar ou dental, dependendo da região de origem do falante. E um caso de alofonia livre. Daí, ao transcrever-se fonologicamente aquele travador, usa-se /RI. Em bar, a vibrante está sujeita não só às variações descritas acima, mas também às decorrentes do contexto frasal. Numa frase como Fui ao bar ali da esquina, o fenômeno da juntura (o som final de um vocábulo liga-se ao inicial do vocábulo seguinte, formando sílaba) determina a realização do [r] como Ixl — vibrante dental simples. No entanto, se a frase fosse Fui ali na esquina, ao bar , há forte tendência ao apagamento do /k / / vibrante velar múltipla (segundo o falar carioca, bar /'ba:/, — com prolongamento do /a/ — ou /'bar/ — com vibrante alveolar (no dialeto gaúcho). Essa determinação posicionai é conhecida como alofonia condicionada. Nos plurais, o fonema constritivo Is/ passa pelas mesmas variações que a vibrante, assim como os demais travadores consonantais. Por isso, os marcadores de plural Is/ são apagados na fala informal? A variação fonemática (ou de fonemas) é tão grande que leva à trans formação de um travador consonantal em vocálico por consequência das realizações diferenciadas que lhes imprimem os falantes. Em sal, vamos encontrar as seguintes realizações: a. por juntura: sal_amargo [1] = /l/; b. por alofonia livre: b.l) sal - na fala gaúcha - [1] = /l/; b.2) na fala carioca - [1] = /w/. Nota: Apesar da letra [1] graficamente reipresentar consoante, fonologicamente pode realizar-se como semivogal.
Ainda que para alguns haja divergência entre ser alofonia condicionada ou debordamento, preférimos optar pela variação condicionada, uma vez que está cobre tanto a descrição fonêmico-estilística quanto a descrição
Já é possível definir alofonia como variação da realização de um fonema da qual não resulta qualquer interferência sígnica. Melhor dizendo:.a variação alofônica tem efeito apenas fonético, pois não altera o signo, não provoca ruído na comunicação, não muda o significado contextuai. Tanto faz dizer sal com travador consonantal ou vocálico que seu significado será o mesmo. Fica mais patente a não interferência da alofonia na camada semântica da língua quando é observada a pronúncia do /t/. Na série ta, te, ti, to, tu, vê-se que o /t/ sofre interferência da zona de articulação da vogal /i/, que o contamina, palatalizando-o (ou africando-o), gerando uma pronúncia diferenciada para o ti — /tji/ — (na fala carioca). Contudo, cariocas e paulistas — a despeito do chiado daqueles — entendem perfeitamente o que se quer dizer com time, por exemplo. O mesmo se aplica ao /d/, variando para M3 / (africada) por influência do /i/. Essas últimas variações alofônicas, do tipo livre, são irrelevantes nos estudos fonológicos por não promoverem consequências semânticas, isto é, não distinguirem formas da língua. São, portanto, relevantes apenas no âmbito dos estudos fonéticos. 4.6. Debordamento Não só na alofonia se manifesta a variação fonemática. Outros fenô menos são detectáveis quando se leva em conta a posição dos fonemas no ambiente fônico. O debordamento nas vogais — ou harmonização vocálica — consiste na sistematização de uma pronúncia para as vogais pretônicas segundo a tendência da língua. Por tal fenômeno, é possível detectarem-se fatos interessantes como: • comprido / cumprido — essa oposição só se faz notar, via de regra, na escrita, pois a fala geral costuma imprimir-lhes realização única: /kuN ‘pri dU/. No entanto, é possível recorrer-se à distinção do timbre (pelos graus de. abrimento bucal) — médio fechado para o /o/ e fechado para o /ui — em favor da clareza da expressão e identificação das diferenças morfossemânticas de tais signos. É um fenômeno diferente da neutralização. Na verdade é o seu oposto: enquanto esta extingue oposições, o debordamento evoca uma distinção em benefício da comunicação eficiente.
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Segundo Jota (1981), debordamento é o mesmo que variação. Para Mattoso Câmara Jr. (1978), trata-se de um caso de flutuação. Ainda que os termos possam ser vistos como sinônimos, optamos pelo segundo em virtude da possibilidade de reforçar certa opção fonemática em benefício da clareza expressional. Em pares como expectador (aquele que espera) e espectador (aquele que vê), é possível forçar a pronúncia chiante para o travador da primeira sílaba do primeiro vocábulo, para que este não se confunda com o segundo. No entanto, os dois vocábulos são pronuncia dos, via de .regra, como homófonos (sons idênticos). Convém lembrar que qualquer artifício de prosódia (como aquele mas [conj.] com pronúncia abafada para distinguir-se do mais [adv.]) é mera caricatura, uma vez que no fluxo corrente da fala, palavras como expectador e espectador ou mas e mais não apresentam qualquer distinção fonológica. Todavia, além desses fenômenos, há outros que saltam aos olhos quando se examinam a camada fônica da língua e sua relação com a realidade da fala. Há casos em que o falante se vê obrigado a adulterar a convenção or tográfica em benefício de um paralelismo, embora hipotético, entre formas orais e-formas gráficas. Veja-se o fenômeno a seguir. 4.7. A epêntese Já se disse que não existe sílaba sem vogal em português. No entanto, há normas gramaticais que falam de letras mudas, por exemplo. É difícil aceitar uma regra desse tipo, pois, ao falar, geram-se situações como: NO PLANO GRÁFICO N°d e síl a ba s
apto
NO PLANO FÔNICO
To n ic id a d e
Pr o n ú n c ia
N°d e síl a ba s
To n ic id a d e
dissílabo
paroxítono
/’a pi tU/
tri ssíl abo
proparo xíto no
digno
dissílabo
paroxítono
/’di gi nU/
trissílabo
proparoxítono
pacto
dissílabo
paroxítono
/’pa ki tU/
trissílabo
proparoxítono
fixo
dissílabo
paroxítono
/’fi ki sU/
tri ssí la bo
prop aroxí tono
Segundo estes exemplos, é possível observar a rejeição natural à ausência de apoio vocálico. Seguindo a tendência fônica da língua, cada conso ante busca um apoio vocálico. Daí,, as chamadas letras mudas (sempre consoantes) passarem a soar , gerando nova sílaba e contrariando normas
assentes ditadas pela Nomenclatura Gramatical Brasileira — NGB. Vale notar que nossa descrição não está circunscrita à terminologia da NGB, sobretudo motivada por nossa opção mattosiana. Vejamos: ■ segundo a análise funcional da camada fônica do português, são letras mudas apenas as que figuram nos dígrafos e não correspondem a qualquer fonema. Ex.: nas sequências [qu] e [gu] — antes de [e] ou
[i], o [u] não corresponde a som vocálico; ou o [h] etimológico em início de palavras como hora, hoje etc. não representa qualquer som. ■ o [x] não representa dígrafo em palavras do tipo fixo, sexo. O que ocorre neste caso é uma letra que representa três fonemas: /kis/. Ocorre aí fato curioso, pois um único grafema representa uma sílaba livre (cV) e o aclive da sílaba seguinte (c). Veja-se o gráfico: SE M
[0]
N
XO /U/
Essajnserçãq de novos fonemas npiuterior. de vocábulo é denominada de metaplasmo. (mudança de forma) de, aumento que consiste em intercalar.-mima palavra ou grupo_.de.palavras.um fonema n não etimológico por motivos de. eufpnia, de comodidade articulatória, por analogia etc. (Dubois, 1978). Quando essa inserção é o desenvolvimento de uma vogal no interior de um grupo de consoantes, dá-se o nome de suarabácti ou anaptixe (id. ib.). epêntese^Tratã-se
Exemplos típicos de suarabácti: (a) digno : entra um li/ entre o Igl e o /n/; (b) apto: entra um lil entre o /p/ e o /t/; (c) fixo: entre um /il entre o / k / e o Is/ reunidos no grafema /x/. Há, contudo, a epêntese simples, muito comum no desfazimento de en contros vocálicos incômodos à pronúncia popular. Ex.: NÉA Iea/ y AndrÉA lea/ etc. O elemento grifado é pronunciado com IjJjQenté&co (semivogal — por figurar como travador). Então, tem-se ditongo seguido de hiato /’s>a/. Essa é uma tendência histórica. Em formas como europeu, a flexão de gênero resultou em europeia, na qual o /y/ se fez incorporar até na grafia. Por conseguinte, modernamente, nomes próprios terminados em [ea] pas saram a ser registrados com [éia], oficializando a epêntese. Outro caso de alta frequência é a evolução de um lyl em formas como /kre> ‘se:/, e similares. (É possível encontrar a
nascer In a-' ‘se:/ ou
■iu r\ iív ii ''v /iv i/u n v ^i .*\ jl /V7 \-.u ímh ío ii \iiji \ i w i v /i>u iív /\ jiw
transcrição desse [i] epentético como lyl). Acrescente-se que a transcrição do iode (semivogal anterior alta) com o símbolo diferenciado lyl é uma forma icônica de representar uma semivogal resultante da epêntese, ao mesmo tempo que se lhe distingue da vogal correspondente. Assim tem-se: lyl para a semivogal grafada com [i] ou [e]; e /w/ para a semivogal posterior alta grafada com [o] ou [u]. Logo, lyl se opõe a /i/; e /w/ se opõe a /u/. O estudo do plano fônico da língua portuguesa vem ganhando algum relevo nos últimos tempos. Apesar da dedicação de pesquisadores à análise dos fenômenos fonêmicos e* fonéticos do português no Brasil e em Portugal, verifica-se (ainda hoje) certa marginalização desse plano de análise no âmbito da formação dos profissionais de Letras. Nas grades curriculares de alguns cursos de Letras, fica patente que o tempo reservado ao estudo do plano fônico é mínimo. Contudo, há uma justificativa de natureza pragmática para este quadro: considerando-se a necessidade de desenvolvimento de habilidades relacionadas à leitura e à compreensão de textos e o indispensável suporte técnico-teórico correlato, percebe-se de imediato a desproporção entre a carga horária destinada às disciplinas da matéria língua portuguesa e os conteúdos a ministrar. Logo, privilegia-se o tempo destinado aos campos morfológico, sintático e semân^ tico, em detrimento dos estudos fonético-fonplógicos. Entretanto, a experiência — oriunda da prática obtida na produção/ realização de cursos avançados de tópicos de fonologia (pós-graduação lato e stricto sensu) e da disciplina fonologia da língua portuguesa na graduação — demonstra que o domínio dos fatos e fenômenos do plano fônico da língua subsidia o entendimento dos outros planos da descrição linguística; e que, uma vez compreendida a inter-relação entre os vários planos, a compreensão dos esquemas da língua atualizados na produção de textos se realiza de uma forma mais firme, visto ser sustentada em bases múltiplas: a fonologia explica a morfossintaxe e abre espaços para requintes estilísti cos. E estas, morfossintaxe e estilística, por sua vez, orientam a elaboração semântica, a produção do sentido textual. Tentando objetivar nosso enfoque, dirigimos a atenção para alguns fatos não muito observados, mas que têm relevância nas análises.
OV.I1K1ILÍIV/.)
5 . J . A escrita ortográfica
Ao considerar as particularidades de um sistema de escrita alfabético-ortográfico, portanto, convencional, vamos desaguar na normatividade.
■ vv» -. .
As normas que seguimos para escrever são pautadas pelo Vocabulário Orto gráfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, edição de 1940, aprovada unanimemente pela Academia Brasileira de Letras em 29 de janeiro de 1942; as instruções para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa no Brasil foram aprovadas pela ÀBL em 12 de agosto de 1943, tendo sofrido alteração em 1971 (lei n° 5.765, de 18 de dezembro de 1971) no que concerne aos acentos diferenciais, espe cialmente os circunflexos. Onde havia oposição de timbre aberto/fechado e o som fechado era marcado na grafia pelo circunflexo, este desapareceu. Ex.: zebra (s.) /e/ & cf. zebra (f. v.) /e/ passou a ser escrito sem qualquer marca gráfica diferenciadora. Depois de discussões iniciadas em 1986 (quando, em Salvador, sete países lusófonos firmaram um acordo inicial Henriques, 2009, 6), nova reforma ortográfica vem à cena, após a assinatura de quatro dos oito países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O presidente do Brasil assinou, em 29 de setembro de 2008, o decreto 6.583, que “promulga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990. A partir desse decreto, voltam ao alfabeto as letras Kk, Ww, Yy, as quais terão seu uso em (a) antropônimos como Franklin, Wilson, Taylor; (b) topônimos^ como Kwait, Nalavvi; (c) siglas, símbolos e palavras que indicam medida em uso internacional: kg - quilograma; kw - quilowatt; yd - jarda; kb - quilobar; kcal - quilocaloria; www - World Wide Web, a rede mundial de computadores, internet; e assim por diante. As letras k , w, y também serão usadas em palavras derivadas dos nomes estrangeiros que as contenham. O verbo pôr continua acentuado. Continua a ser acentuada a forma pôde (terceira pessoa do pretérito perfeito do indicativo do verbo poder). E facultativo o uso do acento circunflexo em fônna (substantivo), homógrafa de forma (substantivo/verbo). 5.2. Acento
5. Pr o b l e m a s d a o r t o g r a f i a
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tônico e acento gráfico
Falando-se em acento, é mister ressaltar a diferença entre acento tôni acento gráfico. O primeiro está presente em todos os vocábulos com mais de uma sílaba (exceto as preposições dissílabas); o segundo aparece na escrita como recurso distintivo de formas homógrafas (escritas com as mesmas letras), por exemplo. Ex.: sábia / sabia / sabiá.
co e
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42 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO FONOLOCICO
Como se vê, as três formas apresentam a sequência [s] [a] [b] [i] [a]. No entanto, representam noções distintas na língua e, portanto, têm usos específicos nas mensagens. Sua distinção na escrita fica por conta do acento gráfico.
Ex.: O sábio sabiá sabia assobiar {Ave nossa, de Moraes Moreira e Béu Machado; grifamos). Assim, a função diferenciadora do acento gráfico permite a formulação de regras de utilização do diacrítico, levando-se em conta a tendência prosódica da língua (o português é uma línguajgrave, paroxítonaj .e as termi nações dos vocábulos. Então, as palavras proparoxítonas e oxítonas figuram marcadas pelos acentos agudos e circunflexos, para que se distingam das formas paroxítonas, que são maioria na língua. Conclui-se, desta forma, sobre o porquê da pluralidade de situações gráficas dos paroxítonos como uma decorrência de seu maior numero. Em contraponto, os proparoxítonos são “favas contadas”; por isso, sua regra é a mais fácil de todas: acentuam-se graficamente todos os proparoxítonos (ou esdrúxulos). Também os oxítonos apresentam pouca dificuldade por serem de pequeno número em relação aos paroxítonos; e a regra de acentuação grá fica daqueles se apoia na oposição aos paroxítonos. Por isso, acentuam-se graficamente os oxítonos terminados em [a], [e] e [o] — seguidos ou não de [s]. Portanto, os paroxítonos que têm tais terminações não precisam do acento gráfico. Observe-se o quadro a seguir: Terminados em A-E-O (seguidos ou não de S) Terminados em [em] ou [ens] paroxítonos oxítonos oxítonos paroxítonos item também cará cara café armazéns itens sabe fiió calo Com os terminados em [en], o modelo se altera. Não temos oxítonas que terminem com [en], então, a marca gráfica decorre de uma acomo-
i c.wtuv^w:
i:. i \u v i.\u ; t i
dação vernácula para formas eruditas e fião se restringe ao final [en], mas aos vocábulos paroxítonos terminados em [n]. Ex: hífen, pólen, cânon, nêu tron, elétron, próton, abdômen (podem ser encontradas as formas abdome e abdômen - Lus.) etc. 5.3. O emprego de letras Quanto ao problema do domínio das formas da língua escrita, se levados em conta os problemas de acentuação e, sobretudo, os de emprego de letras, o melhor caminho é tirar a poeira do Vocabulário Ortográfico — VQLP. (republicado pela ABL em 2009, com edição eletrônica) e transformá-lo em companheiro de trabalho: na conversação, surgem dúvidas sobre sig nificados; na escritura, aparece o fantasma do não sei se é com [s] ou com [z], por exemplo. Adivinhar ou decorar são paliativos às vezes perigosos e podem causar efeitos colaterais muito sérios, como: eu sempre escrevi assim... e, repenti namente, descobrir que sempre escreveu errado. ^Quanto aos exercícios escolares, dentre outros, o treino ortográfico e o ditado são técnicas utilíssimas para domínio das formas escritas, pois per mitem analisar cada forma da língua isoladamente, observando cada um dos elementos que a compõem. Trata-se de duas estratégias distintas: o treino ortográfico é um exercício, e o ditado é uma tarefa. Esta se faz, por exemplo, para acompanhar ou avaliar o domínio das formas apreendidas durante os treinos ortográficos. No que concerne ao aperfeiçoamento das habilidades de escrita, cum pre exercitar incansavelmente o contato com o texto escrito, por meio da leitura, da produção de enunciados, dos exercícios ortográficos auxiliados pelos dicionários, vocabulários ortográficos etc.
6. So b r e
v o c á b ul o s e a c e n t o s
A classificação dos itens léxicos da língua como vocábulos carreia quase sempre alguma hesitação. Seguindo a trilha de Mattoso Câmara Jr. (2000: 34ss.),- os vocábulos podem ser distribuídos em dois tipos: (a) Jprrnal - subordinado a um significado; (b) fonológico - subordinado a um acento tônico.
% i i uvii
i \/nv/iiuv.nviv^
Esta divisão leva-nos a considerar a estruturação linguística em dois planos: o das formas e o dos sons. No plano dos sons, torna-se fáci] a delimitação vocabular, pois a identificação do acento tônico parece não oferecer problema. Ex: CAma; pé de moLEque; chapéu de PAlha etc. [A sílaba tônica está representada com maiusculas.] No plano das formas, cremos que também não haja maiores dificul dades, pois a'identificação do conteúdo semântico, em última análise, pode ser resolvida pelo dicionário. Ilustrando: (a) cama = s. móvel de quarto; (b) pé de moleque = s. tipo de doce; (c) chapéu de palha = s. peça de vestuário Todavia, a teoria se complica quando entra em cena o grupo de força de palavras que extraem sua homogeneidade do fato de estarem entre duas pausas — grupo respiratório — ou reunidas em torno de um mesmo acento — grupo acentuai; cf. Dubois, 1978). Entretanto, seguindo o raciocínio mattosiano, parece-nos problema de fácil solução desde que se leve em conta que: (a) a representação, de espaços em branco na escrita não corresponde a pausas na fala. Por isso o sujeito em fase de aquisição da escrita inicia grafando suas frases em forma de cordão. Ex. Ameninaéhonita; (b) as pausas que de fato acontecem na fala são provocadas por intervalo respiratório que coincide com a emissão dos grupos de força que, por sua vez, coincidem com os enunciados. ou grupo fonético (grupo
Entendemos como enunciado (segundo Dubois, 1978, o fechamento do enunciado é assegurado por um período de silêncio antes e depois da sequência de palavras, silêncios realizados pelos falantes) a emissão de uma sequência acabada de palavras de uma língua, precedida e seguida por pausa respiratória não passível de pontuação — demarcação sinaliza da de pausa média ou longa em decorrência da extensão dos enunciados, da inversão da ordem lógica e da indicação de termos que participam de funções especiais da linguagem, como: metalinguística (o aposto); conativa (o vocativo); fática (interjeições, operadores argumentativos, marcadores conversacionais etc.). Da noção de enunciado, ousamos estender a coincidência da pausa do grupo de força à demarcação dos termos da oração, dado que tais pausas delimitam sintagmas. É também Mattoso Câmara Jr. (2000) quem assevera que dentro de um sintagma nominal ou SN (ou seja, entre substantivos e adjetivos que os determinam) não ocorre esta pausa; no
entanto, ela se verifica entre sintagmas* nominais ou entre um sintagma nominal e um sintagma verbal (SV). Ex: Não podia faltai | humor | a um pacote | que inclui | um arsenal de manifestos], cartas abertas. |indignação,| paranoias, [histerias e xin- . , gamentos], divulgados |sobretudo |pela internet (fragmento de Sônia, você está no Rio, de Zuenir Ventura, O Globo,- Rio de Janeiro, 2 de outubro de 2001). A partir dessas considerações, é possível deduzir que o reconheci mento dos grupos de força pode auxiliar na depreensão dos sintagmas. E é por meio de tal identificação que se pode refletir sobre as normas que prescrevem a impossibilidade de pontuar entre termos determinante e determinado. A pausa respiratória é responsável pelo reabastecimento dos pulmões, de modo a tornar possível manter a uniformidade nas emissões vocais. Tais pausas servem ainda para garantir a cadência das frases, do que depende sobremodo a compreensão do texto. Em síntese, pode-se afirmar que cada grupo de força corresponde, quase sempre, a um termo de oração e que cada um deles é marcado na emissão oral pela presença de um acento tônico de grau 3 (três), que corresponde à sílaba tônica — a mais forte naquela emissão. Mediante raciocínio mais genérico, pode-se pensar no grupo de força como um vocábulo. Contudo, diferentemente do que se denomina vocábulo formal (subordinado a um significado) e vocábulo fonológiço (subordinado a um acento), o grupo de força seria um vocábulo que teria por condicionantes a sua inclusão numa estrutura oracional. Logo, o grupo de força poderia, grosSo modo, ser deno minado vocábulo sintático. Comparando: • janela, pé, feliz, muito, comia, de, a, em, por — são vocábulos formais • janela, pé, feliz, muito, comia, amor-perfeito, chapéu de palha, comigo-ninguém-pode, mais-que-perfeito, à medida que — são yocábulos fonológicos. • O livro de Pedro / é novo. || A mesa do almoço / está posta. || Ele / a esperava / junto ao portão. || De vez em quando,/ ela / se atrasa. — os elementos delimitados pelas barras simples são vocábulos sintáticos ou grupos de força.
46 A IMPORTÂNCIA OO CONHECIMENTO FONOLÓCICO
É possível, então, deduzir que vários níveis de descrição da língua en contram suporte na sua camada fônica, na distribuição de seus sons tipo (.ou fonemas). Portanto, o estudo fonológico se amplia. Ultrapassa o âmbito de uma simples descrição de fonemas e estruturas silábicas, para estender-se a observações nos níveis mórfico, sintático, semântico e estilístico. Observado o’ vocábulo como signo, verifica-se que este apresentará funções e valores decorrentes de sua atualização em enunciados. Logo, o estudo da composição fônica de um vocábulo vai facilitar a compreensão de fatos linguísticos que complexificam a leitura e a produção textual, como a homonímia, a paronímia etc. Assim sendo, o redirecionamento dos estudos fonológicos que aqui propomos pauta-se num repensar da língua como um todo e de suas relações interplanos.
Uma proposta de abordagem de problemas da escrita infantil
1. O PORQUÊ DESTE ESTUDO
Há muito que nos ocupamos com o exame de questões vernáculas, com o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento do ensino da língua portuguesa, sobretudo na escola básica, onde devem ser construídas as bases para um domínio sólido da língua materna. Tal interesse nasceu de nossa atuação nos programas de atualização de professores desen volvidos pela União, pelo governo do Estado do Rio ou de municípios fluminenses, onde pudemos conviver com as ansiedades dos professores no que tange à detecção da ineficiência de métodos e técnicas de ensino diante do quadro da repetência e da evasão escolar nos primeiros anos de escolaridade. O compromisso das séries iniciais com o letramento chega a levar docentes e discentes a uma relação neurótica, já que se escravizam às formas gráficas do registro padrão, esquecendo-se de que a língua é a invariante nas varia ções, princípio estabelecido por Jakobson (apud Mattoso Câmara Jr., 1973: 7), ou a unidade na variedade e a variedade na unidade, na expressão de Schuchardt (apud Carvalho, 1979: 297), do que resulta uma pluralidade de realizações para os mesmos itens lexicais no âmbito da fala; por conseguinte, a grafação de tais formas vai documentar aquela variação. É óbvio o compromisso da escola com o domínio da língua em seu registro padrão, o qual é manifestado, na escrita, pelo estilo formal. Con tudo, o período de letramento quase sempre coincide com o choque entre a variante popular (do aluno) e a variante padrão (do professor), especial mente nas metrópoles. Assim, para o aluno, aprender a forma escrita no
UMA PROPOSTA E ABORDAGEM DE PROBLEMAS DA ESCRITA INFANTIL 49
4S A IMPORTÂNCIA PO CONHECIMENTO FONOLÓGICO
modelo da fala do professor é quase como aprender a escrever em uma língua estrangeira. Então nascem as controvérsias.
da palavra problemática. Logo, dificuldade ortográfica não é exclusividade nem pressuposto da alfabetização.
/a) Pode a escola conviver com formas gráficas da língua popular e até mesmo do registro vulgar? b) Até que ponto aceitar grafias de base fonética (assentadas na fala discentè) é um caminho didático adequado? c) Por que há alunos'que produzem textos ricos (o critério para classificar um texto como rico é a informatividade) em informações, mas com grafia “bárbara” e outros que reproduzem textos “certinhos” e, no entanto, com baixa informatividade? p O d) Como avaliar esses dois tipos de desempenho escrito?
A alfabetização, como processo de aquisição da escrita, sobretudo na infância, se apresenta como um processo da maior complexidade; desde a assimilação das diferenças específicas da camada fônica da língua, observa das as variantes linguísticas, até as diferenças marcadas e marcantes entre o sistema fonêmiro e o sistema gráfico. Enquanto esta distinção não se instala nos esquemas de observação do alfabetizando, ou melhor, quando o processo de letramento se desenrola de uma forma menos comprometi da no que se refere às questões ortográficas, a produção de textos escritos parece fluir de modo mais solto e eficiente.
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FONO-ORTOGRAFICOS NO PERÍODO DE LETRAMENTO
Antes de partirmos para a tentativa de responder às questões que en cerram o item anterior, vamos tecer algumas considerações sobre escrita e escola de uma forma bem sucinta e genérica. Não é de hoje que são discutidos os problemas fono-ortográficos que atra vessam a aquisição da modalidade escrita da língua; e os docentes debatem-se entre variados métodos destinados ao letramento sem que, no entanto, consi gam chegar a conclusões objetivas sobre como minimizar as incongruências decorrentes da grafação da língua por meio do sistema alfabético. Considerando-se as importantes contribuições da epistemologia genética (Piaget, in Boden, 1983) e da psicogênese da língua escrita (Ferreiro, 1991), vê-se que é mister a análise cada vez mais aprofundada dós mecanismos de raciocínio desenvolvidos pelos aprendizes acerca da língua escrita, ou em torno de seus símbolos. É notório que a dificuldade de escrita correta das formas da língua em seu registro padrão não é exclusividade das crianças, nem mesmo dos aprendizes do ensino fundamental em particular. De vez em quando, somos surpreendidos por algum tipo de dúvida gráfica sobre item léxico não pertencente ao nosso vocabulário usual. Em outras palavras: basta que seja preciso escrçver palavra de estrutura gráfica complexa perten cente ao jargão de outro campo profissional, para que sejamos levados ao vocabulário ortográfico ou a um dicionário em busca da grafia correta
O raciocínio linguístico na infância busca regularidades no sistema da língua, do tipo: comi,, bebi, fazi; disto resultam problemas de natureza: i-j? fônica, gráfica, mórfica, sintática etc. Logo: trabalhar desde o início do letramento com a responsabilidade de grafação da forma dicionarizada é i5 Jí. J um acréscimo prematuro de complexidade que pode atropelar o processo; e quase sempre o faz.
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3. A ANALOGIA NO RACIOCÍNIO LINGUÍSTICO INFANTIL NO PERÍODO DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Vejamos então a analogia estrutural refletida no plano gráfico a partir da analogia com o plano fônico. A reação dos alfabetizadores diante de produções como as que aqui ana lisaremos continua sendo muito controvertida, pois, para uns, a dificuldade ortográfica é algo que se resolve com o tempo e com o uso frequente das formas escritas da língua. Portanto, textos infantis como os que aqui discu tiremos seriam considerados ricos. Para outros, a grafia incorreta é marca de incompetência linguística grave, logo, os exemplos de texto trazidos ao estudo seriam mostras da deficiência linguística do aluno. No entanto, a linguística moderna e a psicologia têm trazido substanciais contribuições para o processo de ensino-aprendizagem da língua, reservando a aprendizagem das formas gráficas do uso padrão para um estágio posterior ao processo de letramento — ou aprendizado do código escrito. Até mes. mo em relação ao aperfeiçoamento do domínio do vernáculo, vê-se que a conquista das formas gráficas é algo paulatino e decorrente.
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UMA PROPOSTA K ABORDAGEM DE PROBLEMAS DA ESCRITA INFANTIL 51
!>U A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO FONOLOGICO
j 'ç Retomando fatos da história interna da língua,, é possível perceber que yh perda do índice vocálico no ditongo [o\v] de pousa, caracteriza a mo7 OçKotongação (simplificação de ditongos românicos por assimilação total da se mi vogal à base, cf. Silva Neto, 1956: 102) que, em última análise, é um d ^simplificador da estrutura da sílaba, visto que reduz o número de fonemás ^e, por conseguinte, resgata, no caso em questão, o padrão cV (consoante + jfvogal), que é, via de regra, o eleito pelos métodos para início do letramento ^após o domínio das vogais.
Analisando situação emergente de discussão provocada por texto produzido por um aluno de sete anos do 2o ano de escolaridade de um CIEP, pudeijios perceber o quanto ainda está equivocada uma boa parte dos alfabetizadores quanto às questões fono-ortográ ficas da língua portuguesa. Eis o texto: O sapo voador O sapo vai a o ispaso || lá ele ve o sol e posa ni um praneta chamado marte || ele ve um mostro || ele fala socoro || o vucao começo a sai lava || ò mostro soo too o sapo || o sapo foi para o fogete || quado ele chegou na terra ele foi çe um soldado.
j Mo n t a n d o p a r a d i g m a s p a r a o e s t u d o 4
Apresentamos aqui um tratamento gradativo dos fatos detectados no texto corpus, para a partir disto compor um esquema de trabalho que não só estimule o progresso da produção linguística do aluno, mas também lhe assegure o domínio eficiente das formas da língua. Distribuímos os fatos em três grupos, levando em conta o tipo de racio cínio linguístico deles dedutível: a) da escrita fonética; b) da regularização sistêmica; c) da instabilidade gráfica. Com base neste estudo, pretendemos subsidiar a formulação de exer cícios e tarefas que levem o aluno à pesquisa de formas e ao treinamento sistemático do padrão fono-ortográfico da língua em sua modalidade padrão. Para melhor demonstrar o caminho que resolvemos utilizar na discussão das formas presentes no texto em questão, organizamos uma abordagem triádica para os fatos levantados: sA Grupo 1: da escrita fonética ■ Ispaso || posa (*) || ni (*) || praneta (*) || soo too || ce Nesses casos, entendemos que o aluno tenta reproduzir na escrita a sua fala, registrando, inclusive, as alterações de pronúncia decorrentes da variação linguística já mencionada. Na forma ispaso, o que se vê é a grafação da forma oral da vogal, por desconhecimento das convenções ortográficas: para o aluno, quando se fala [i], escreve-se [i].
A forma ni — de alta frequência na fala popular —, além de represen j tar uma forma oral, parece-nos reiterar a força do padrão cV na escritura v £ dessa primeira fase^dojetramento. Não é concebível ao aluno desta fase J uma sílaba com estrutura Vc como em.
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Ainda com base em fatos documentáveis na diacronia, na passagem do latim vulgar (latim falado) para o português, vê-se catalogado o grupo consonântico pl-, evoluindo na fala para pr -, como em: implicare> empre gar; implicita> empreita etc. (Coutinho, 1974: 122), o que caracteriza uma tendência fonética natural da língua. Logo, a forma praneta é a grafação de um fenômeno yernáculo de fundamento histórico que não indica in competência linguística, muito pelo contrário. Não queremos aqui contrariar as tendências sincrônicas da gramática descritiva na linguística contemporânea, mas demonstrar que a verdade sincrônica, no mais das vezes, vai ao encontro da diacronia, evidenciando a máxima de Scherer e H. Paul de que as leis fonéticas são imutáveis (Du bois, 1978 — lei fonética): o mesmo fonema, num contexto fonético dado, sofre na mesma língua e durante certo período a mesma mudança em todas as palavras da língua em questão.
Para comprovar, na fala de hoje são encontradiças as formas: prano (plano); pruma (pluma); prenário (plenário) etc. A forma sootoo^é um fenômeno especial, pois não a havíamos encontradõanteriormente em textos produzidos por escolares do mesmo nível que o produtor de O sapo voador. No entanto, é imediatamente perceptível o raciocínio utilizado pelo menino: comparada à forma posa, a grafação do ditongo vem demonstrar a captação de diferença fonético-fonológica na marcação da duração dos sons (ainda que este não seja traço distintivo na fonêmica portuguesa). Em posa f o ditongo [ow] se perde no fechamento ou na abertura da vogal de base, sem prejuízo da significação. Contudo, em soo, a redução do s ditongos resultaria em
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prejuízo semântico, pois, para o menino em questão (como pára tantos outros), é preciso marcar graficamente a diferença entre formas como: vô (independentemente do uso do acento gráfico) (= avô) e voo (= vou). E a marcação é sistêmica. Também se faz presente em too, que faria oposição a tô [o mesmo que em vô.] (cf. com estou). ^ Grupo 2: da regularização sistêmica ■ vai a_o ispaso / comeco a = destaque da preposição. Neste caso o aluno capta, ainda que intuitivamente, a complementação preposicional. A grafia que decompõe a combinação ao (a + o) parece-nos ser de corrente de uma observação apurada dos sintagmas nominais. Levando-se em conta que as primeiras frases infantis são do tipo: (a) A menina viu a boneca, (b) O papai deu a roupinha. (c) O gato pegou a bola etc. e que os sintagmas nominais são construídos com artigo mais substantivo (art. + s.), é possível concluir que o pequeno escritor dá mostras de uma percepção estrutural da língua, ao apresentar separadamente a preposi ção e o artigo, uma vez que ele ainda não teve notícias do mecanismo morfofonêmico da combinação. Confrontada com o vucao comeco a sai lava, vê-se que a presença da preposição é uma constante na sintaxe do autor desse texto. ^ ■ nasal idade não marcada: mostro / vucao / quado
Ainda que captasse a nasalidade dos vocábulos, o desconhecimento da marcação gráfica por meio do til ou do travador consonântico leva o aluno a não grafá-la. Considerando que a nasalidade é uma situação de maior complexi dade, concluímos que, no plano fônico, ela não atordoa o alfabetizando, pois, captando-a ou não, a criança resolve sua grafia de forma sistêmica e estruturada, ou a ignora e, portanto, não usa marcas; ou a percebe e elege uma marcação uniforme: põe travador (consoante nasal após a vo gal fechando sílaba) ou til em todas as sílabas que apresentem qualquer vestígio de som nasal (nasaladas e nasalizadas). Convém lembrar que, na ótica mattosiana (Mattoso Câmara Jr., 1973: 36-7), há uma Xiasalação^ fonológica, que marca oposição na língua e se forma por vogal travada por consoante nasal (Ex: canto; cinto; penso); e uma nasalação fonética,
UMA rKUrUS IA ü AHOKDAÜEM DL. PKOULEMAS DA ESCRITA INFANTIL 53
que representa mera oposição na fala e resulta de. contaminação fonética (regressiva ou prospectiva) sobre uma vogal (Ex.: lama, limo, muito). É possível a verificação de fenômeno inverso: canna (cana), bananna (banana), lamma (lama). Nestes casos, a criança percebe a nasalação foné tica regressiva pela contaminação com o aclive consonantal nasal da sílaba posterior e marca graficamente essa diferença. O mesmo ocorre com a palavra muito. Há quem a registre com til ou com travador, indicando graficamente a nasalação fonética prospectiva (a consoante nasal contamina som vocálico subsequente). Há quem rejeite a diferenciação entre nasalação fonológica (nasalação propriamente dita) e nasalação fonética (contaminação nasal). Contudo, é indiscutível a captação de uma nasalação na pronúncia de palavras como banana, cama, lama, muito etc.; mas é igualmente indiscutível que tal nasalação altera apenas o significante sonoro e não interfere no significado, ou seja, não haverá ruído na comunicação caso o falante realize ou não a nasalação. Note-se a diferença entre esse fenômeno e o que ocorre com formas como: cato/canto; vedar/vendar; mito/minto; sodar/sondar; pote/ponte; mudo/mundo etc. onde a nasalação resulta em mudança de signo, ou seja, altera-se o significante (oral e escrito) e o significado. Em última análise, identificar a diferença pode ser excelente recurso didático. ■ identificação de fonema: sapo / ispaso / socoro / soo Os elementos grifados indicam o reconhecimento do fonema /s/ em ambientes distintos. A despeito da dificuldade ortográfica carreada pelo som Is/ em português, que tem oito formas gráficas possíveis ([c] [ç] [s] [ss] [sc] [sç] [x] [xc]), o alfabetizando resolve o problema estabelecendo a correspondência biunívoca entre fonema e letra (o que não é urria realidade sistêmica no vernáculo): Is/ <=> [s]. ■ fogete / chegou O fonema /g/ é percebido, ainda que ignorado o uso do dígrafo antes de /e/. A informação sobre o dígrafo deve vir posteriormente. ■ começo / çe Nesse caso, tem-se um aparente complicador: o mesmo som Isl já comentado em sua grafia por [s], ressurge grafado com [c]. Como expli car essa variação? Em primeiro lugar, esse item contempla a identifica-
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ção cios fonemas como ponto axial. Logo, o fonema /s/, independenteinente de suas grafias, foi identificado. Em segundo lugar, é importante lembrar que uma criança em processo de letramento estará de algum modo ligada às formas gráficas da língua tomadas como desenhos, por isso, é plenamente possível que, quer no emprego do [s] quer no do [c], já exista alguma influência de formas captadas pela vista, não apenas pelos ouvidos. Retomaremos isto no item seguinte. Até aqui, é possível concluir que é inegável o predomínio das formas orais sobre as escritas nessa fase do aprendizado escolar. Grupo 3: da instabilidade gráfica ■ socoro / terra || ispaso / começo / çe Retomando-se a questão da grafia flutuante do fonema /s7, ver-se-á que a imprecisão gráfica dos elementos grifados pode ser decorrente ou da influência de formas gráficas conhecidas sobre as desconhecidas ou da não familiaridade gráfica com tais formas, pois, diferentemente de sol e.g.y tais vocábulos não participam da rotina das leituras escolares, prin cipalmente em se tratando de alfabetização por cartilhas tradicionais, do tipo Eya viu a uva. No par socorolterra, além das considerações já feitas sobre familiaridade ou não com as formas gráficas, há que se observar a predominância do padrão cV, o que parece reiterar a hipótese de uma possível influência do contato com formas grafadas do vocábulo terra em outros contextos. Tais considerações já não são aplicáveis às formas verbais comecolce ' que, por seus conteúdos altamente abstratos — representam processo e estado — via de regra, não provocariam do mesmo modo a atenção po r suas grafias.
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5. A LEGIBILIDADE DA REDAÇÃO INFANTIL
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A classificação que aqui propomos é ainda mais incipiente, vem servindo de ponto de referência para a solução de alguns casos com que nos temos defrontado durante nossas análises de redações infantis. Novo texto: Eu vim aminha cava e vi amarli. iela tava cora fira dela.-1| Eli viu mu carro. || Eli poloda bicicleta. || Acado. (Varre-Sai/RJ, Mariah, 7 anos).
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Observe-se que há uma série de fatos novosj*e]atiyps à questão ortográ fica. Contudo, podemos lançar mão dos três modelos propostos e tentar classificar os fenômenos detectados. Gr u p o i - d a e s c r i t a f o n é t i c a : aminha
amarli iela
Estas três formas trazem vestígios da escrita em cordão, em que o aluno transpõe para a escrita a ausência de silêncio na cadência frasal e liga as palavras. Surge então ponto polêmico, pois já foi atitude co mum ensinar ao aluno que o espaço em branco entre as palavras corres ponderia a espaços de silêncio da fala. Entretanto, sabe-se que nossas frases, especialmente as mais simples, como as construídas pelas crianças em seus textos, são produzidas por uma única força expiratória. Logo, não há espaços de silêncio, dado que, enquanto a corrente de ar estiver produzindo os fonemas que compõem as palavras da frase, estar-se-á produzindo algum som. Tanto em aminha como em amarli, o artigo se acopla com o pronome e o substantivo, respectivamente, formando um bloco sonoro único. Trata-se de fenômeno equivalente ao ocorrido com nomes oriundos do árabe, como: álcool alface, alfarrábio (entre outros), nos quais o artigo al foi acoplado ao substantivo, formando um único vocábulo. Verifica-se aqui a prática espontânea do vocábulo fonológico, em que as formas da língua se subordinam a um acento tônico. Em iela f o conectivo e /i/ também se adjunge ao pronome, segundo o molde anterior. Assim, Mariah retratou na escrita o modo como percebe os vocábulos fonológicos (Mattoso Câmara Jr., 2000), subordinando os espaços brancos às pausas entre estes e não entre os vocábulos formais, como é o conven cionado em nosso sistema ortográfico. Antes de seguir na análise das formas do texto de Mariah, convém uma ilustração interessante por meio de texto que circula na internet como sendo uma caricatura da fala mineira (q mineirês). Vejamos. Sapassado ,
era sessetembro, taveu na cuzinha tomano uma pincumel e cuzinhano um kidicame com mastumate pra fazer uma macarronada com galinha asSada. Quascaí de susto, quano ouvi um barui vindo de dendofomo y parecendo
u.\m rivwrwo j .-\ r. A M . m i u i i l'KUüLI*,MAh DA liSCRITA INFANTIL 57
M> A 1MI'UKIA.NUIA LHJ CUKHlMJlMbNIU FUNULUUIUU
A receita mcindopô midipipoca dendagalinha prassá. O forno isquentô, o mistorô e ucu da galinha ispludiu! Nossinhora\ Fiquei branco quinein um lidileite. Foi um trem doidimaisl Quascaí dendapia\ Fiquei sensabê doncovim, proncovô, oncotô.
Eli leva-nos a repensar até que ponto a* pronúncia alfabética tradicional seria o condicionante da forma poloda. Especialmente neste caso, pois
Oiprocevê quilocural Grazadeus ninguém semaxucô\
Quanto ao acoplamento da combinação de+a, apliquem-se os motivos descritos no grupo 1, na análise do texto O Sapo Voador (p. 50).
Observe-se que todas as formas em itálico (grifos nossos) nada mais são que resultantes da fusão de formas que constituem grupos de força (sábado passado = sapassado; sete de setembro = sessetembro; estava eu = taveu; pinga com mel = pincumel;) ou vocábulos fonológicos (para assar = prassá; que nem = quinein; sem saber = sensabê). A escrita pseudofonética aqui praticada tenta retratar a realidade oral de uma fala regional, ao mesmo tempo que serve de demonstrativo para as junturas .espontâ neas que se praticam na fala, independentemente de idade ou mesmo escolaridade, pois há intelectuais mineiros que assim se pronunciam até em ocasiões formais. Retomemos o texto infantil em discussão. ■ ta va Eli Estes novos exemplos trazem a oralidade reproduzida fielmente, como em ispaso e nz, ou seja, escreve-se como se fala.
a professora da turma não se mostrava nem um pouco atraída pelos procedimentos didáticos tradicionais desse estilo.
■ mu Repete-se aqui o caso do ni. Tomando por base o padrão cV, mesmo falando izm, a autora optou por escrever mu. Lendo artigo sobre criações lexicais da fala infantil (cf. Figueira, TLA, n° 26, p. 49), constatamos a ocorrência da forma dusa (= duas). Tal forma é comuníssima na produção oral entre os 2 e os 7 anos. Tam bém é detectável na escrita no período de letramento. Observe-se que a inversão fonêmica na fala é produto da dificuldade estrutural contida no signo duas, cujo segmento fônico apresenta dois padrões silábicos: cV + Vc. Para os falantes aprendizes, a inversão do padrão para Vc é um complicador, já que a articulação da sílaba parte do som puro (vocálico) para o travador (ruído consonantal). Ora, a partir disto é fácil verificar a dificuldade refletida na escrita, já que o modelo inicial de grafia, pelo menos em tese, é o fonético (conforme ocorreu na história do português - cf. Coutinho, 1974: 71 $93).
Gr u p o 2- d a r e g u l a r i z a ç ã o s i s t ê m i c a : poloda
Fato interessante é detectável nessa estrutura. Ao contrário do grupo anterior, a autora afasta-se da fala e aplica uma convenção: se mato, galo, dedo, por exemplo^ a despeito de falar-se [u], são grafados com [o], (conclui que) sempre que surgir o som [u] escrever-se-á [o]. Daí pulou da, resultar em poloda. Dessa forma ainda é possível fazer outras inferências, e a que nos ocorre é uma hipercorreção decorrente de uma pronúncia alfabética muito típica do comportamento de alfabetizadores tradicionais, onde a leitura oral se fazia — erradamente — de modo a causar a impressão de que o fonema estivesse inscrito na letra (ou grafema), ou que houvesse correspondência biunívoca entre fonema e grafema. Daí que, em se tra tando de texto produzido na escola, para o professor, pode-se arriscar que a forma poloda pudesse ser algo resultante desse tipo de raciocínio: ['e li po 'lo da bi ci ‘kleta]. Entretanto, a presença do [e] ou [i] na forma
Outro texto: Menino pra ser .bonito || ão precisa de pintura || chapei preto na cabesa || e trinta e oito na cintura (Varre-Sai/RJ, Diogo). Continuando a ideia de que a criança regulariza o sistema, vê-se que em chapei deu-se uma analogia com formas como anel, papel etc., enquanto que em cabesa retoma-se a presença da oralidade associada à dificuldade
de grafia do /s/ em português. Mais um texto: Lá no alto da quele Morro. || Passa boi passa boiada, || Só não passa uma velha || Toda barriada (Varre-Sai/RJ, Viviane). A forma da quele traz de novo à tona a capacidade de observação e a regularização sistêmica, pois é comum dizer-se lá no alto do morro! lá no alto da serra, lá no alto da ladeira etc. Daí a criança deduz que lá
58 A IMPOKTANUA UU UU l NHIMJIMLMN i u ruiNULU^iv^w
no alto da é uma estrutura constante e, então, conclui que quele é separado, é outra forma que não faz parte do habitual lá no alto doida.
Em barriada (cf. barreada = suja de fezes), tem-se de novo o predomínio do oral. A grafia quer representar como se fala, tal e qual já se mencionou nos itens referentes a ispaso , tava, Eli e poloda.
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sempenho linguístico na variante transmitida (ou .transferida — cf. Silva Neto, 1956: 72-73), vai-se fazendo um paralelo entre o que se fala , o que se escreve/o que se lê, isto é: entre os diferentes modos de dizer algo oralmente ou por escrito etc. Em suma, os constrangimentos decorrentes da postura tradicional do certo/errado deixam de atuar como entraves no processo de ensino-apren dizagem escolar.
6. Re t o m a n d o a s q u e s t õ e s i n i c i a i s
Com base na abordagem proposta, ou no tratamento dado aos fatos le vantados nos textos utilizados como corpus de análise, tentaremos responder às indagações levantadas no início deste estudo. Pode a escola, conviver com formas gráficas da língua popular e até mesmo do registro vulgar? Nossa resposta é afirmativa, uma vez que cabe à escola enriquecer o potencial comunicativo do estudante, dando-lhe meios e modos de trans mitir o que pensa e sente (ou ler o que os outros expressam) em qual quer das variantes linguísticas de seu idioma (cf. Bechara, 1991: 1?). Isto posto, vê-se que a convivência com formas gráficas diversas, particulares de cada registro, é umá estratégia técnico-didática, por meio da qual o estudante será levado a manter contato, exercitar, explorar os mais variados tons e tipos de texto. Até que ponto aceitar grafias de base fonética (assentadas na fala discente) é um caminho didático adequado? Em consequência da resposta à questão anterior, conclui-se que as grafias “pseudofonéticas” da primeira fase da escrita escolar são um porto de passagem natural que, se bem trabalhadas, podem resultar numa base promissora para a futura aquisição das formas dicionarizadas, pois, durante a exploração daquelas, é possível desenvolverem-se muitas atividades voltadas para a pesquisa das formas, do que resultará o domínio desejado. Além do mais, há muito que se ressalta a importância da exploração do universo imediato da criança como ponto de partida para as aprendizagens em geral. Assim, tomar as formas gráficas emergentes da fala original da criança como elementos, deflagradores do processo de aquisição da escrita parece-nos o procedimento mais adequado, pois, além de prestigiar o de
Por que há alunos que produzem textos ricos (o critério para classi ficar um texto como rico é a informatividade) em informações, mas com grafia “bárbara” e outros que reproduzem textos “certinhos” e, no entanto, com baixá informatividade? Considerando a premissa de que, ao se escrever algo, há uma preten são (mesmo que remota) de que tal texto venha a ser lido por alguém, a qualidade da escritura terá, pelo menos em tese, alguma relação com o seu leitor virtual. No caso dos textos escolares, há uma tradição de exigência de textos “certinhos” da parte do leitor natural destes textos: o professor. Con tudo, nem sempre esta exigência coincide com o grau de informatividade do texto em apreciação. Daí resultarem controvérsias no que concerne à definição de texto bom e texto ruim no contexto escolar. Graças à linguística textual e à análise do discurso, hodiernamente, tem-se um farto material teórico para alicerçar nossas considerações sobre o que é um bom texto. E esta classificação aponta para os textos que apre sentem maior legibilidade (possibilidade de ser compreendido) e maior grau de informatividade (quantidade e qualidade de dados novos para o leitor). Assim, não basta escrever “certinho” para que seja garantido o conceito BOM para um texto. E necessário que o texto manifeste condições mínimas de legibilidade quais sejam: coerência e coesão. Partindo do fato de que o leitor primeiro dos textos produzidos em classe é o professor, o aluno autor poderá tomar duas atitudes polares ante a situação de produção: (a) esforçar-se por construir texto semelhante ao do livro didático (ou cartilha) adotado pelo professor leitor, para não correr muitos riscos, além dos decorrentes de seu pequeno domínio da norma-padrão; (b) arriscar tudo, produzindo texto que registre sua expe riência de usuário da língua, sem preocupar-se com o poder avaliatório do leitor professor.
No caso “a”, o autor poderá produzir textos do tipo: A bola é da Lalá. || A bola é bonita. || Lalá pega a bola. || A bola é bela.|| (Aluno de um CIEP, São Gonçalo/RJ) em que é reduplicada a forma dos textos da cartilha, sem qualquer esforço criativo, portanto, sem riscos de uso impróprio de formas da língua. Já em “b”, o’ pequeno escritor estará envolvido pelo desejo de dizer coisas, e o fató de ser lido/avaliado não é o mais importante. Assim, ele afrouxa o compromisso com a apresentação de formas autorizadas e passa a escrever seu mundo e registrar sua experiência. Desta atitude podem surgir textos do tipo de O Sapo Voador (p. 50). Como avaliar esses dois tipos de desempenho escrito? Nos dois casos, teremos alunos em treinamento e, resguardadas as di ferenças, teremos de realizar exercícios específicos de aperfeiçoamento de seus desempenhos linguísticos. Apesar de ambos terem produzido textos e de terem dado seus “recados”, cumpre oferecer-lhes oportunidades de ampliação de seus respectivos domínios, para que não haja qualquer tipo de confjnamento ou de liberdade desmedida na condução do processo de aprendizagem da língua, sobretudo da modalidade escrita, que é a que ora focalizamos. Ao dizermos confinamento , referimo-nos ao aprisionamento à norma culta e, por conseguinte, à escrita formal como único modelo; e entendemos por liberdade desmedida (quase libertinagem) o não controle do uso das formas linguísticas, a ignorância de uma necessária disciplina na seleção do registro em consonância com o tipo de texto que se pretende criar. Cabe ao professor buscar o equilíbrio para suas ações: nem confinamento nem liberdade desmedida. Lembremo-nos ainda do uso literário que, para enriquecimento do trabalho linguístico, não pode de forma alguma ficar fora de nossas ações didáticas. Logo, ao defrontar-se com formas diversas do padrão culto em textos literários, o aluno deve estar preparado para entendê-las como postas em contexto autorizado, pois uma das marcas daquele tipo de texto é o entrecruzar de vozes (e registros). Para tanto, a exploração do texto literário é imprescindível (ver Parte II deste livro). Portanto, para concluir nossa resposta à questão sobre textos “certinhos” ou não, o que pensamos é que tanto melhores serão os textos produzidos pelos alunos
quanto maiores forem suas possibilidades de travar contato com a variedade da lín gua — lendo e escrevendo —, ampliando sua prática por uma vivência direta. Isto vai propiciar a produção de textos espontâneos que ora trarão formas repetidas das cartilhas, ora trarão formas supostamente fonéticas ou mesmo inventadas, quando o repertório (oral ou escrito) falhar. E nós, os professores, estaremos ali, à disposição para receber o produto e apreciá-lo, acolhedoramente, com olhos técnicos bem preparados e capazes de orientar as reformulações neces sárias sem qualquer constrangimento tanto para o aluno redator, quanto para o professor leitor.
7. Al g u m as i d e i a s c o n c l u s iv a s
Além de trazer à análise situação vivenciada em classe, parece-nos perti nente provocar uma reflexão técnico-didática em favor da minimização das consequências de uma avaliação inadequada do desempenho escrito dos alfabetizandos. A presença de formas escritas não autorizadas não provoca ruídos graves na comunicação entre os textos produzidos e seu leitor — o professor — já que as condições de produção de tais textos já estabelecem todo um conjunto de dados partilhados entre autor e leitor, viabilizando, assim, a inferência da forma ortográfica adequada a partir das inferências semânticas emergentes. O estudo da língua precisa ser visto de forma globalizante; por isso, os fenômenos detectáveis. nos diferentes planos da análise linguística devem ser, sempre que possível, relacionados com a leitura e a produção de textos — principais metas da aquisição da língua na modalidade escrita. Portanto, o acompanhamento e a avaliação dos progressos obtidos pelos escolares, mormente no período de letramento, devem sempre ter em conta que as escritas iniciais são produzidas para o professor — interlocutor imediato e exclusivo, dadas as condições de entrada nos domínios da escrita no âmbito escolar. Considerando-se a necessidade de experiências compartilhadas entre autor e leitor de um texto como garantia da legibilidade deste último, cumpre lembrar que cabe ao professor investir-se do mais alto grau de cumplicidade nas produções dos alfabetizandos, para desencadear uma abundância de produtos escritos cada vez maior. A aquisição da língua escrita depende da prática de produção escrita, da mesma forma que o aperfeiçoamento da leitura depende do exercício continuado de leituras.
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62 A IMPORTÂNCI A DO CONHECIMENT O FONOLOCICO
Logo, o compromisso docente/discente com as grafias dicionarizadas deve ser proporcional ao grau de ruído provocado pelas formas presentes na escritura; e a correção das formas defeituosas — quer as que registrem uso dialetal inoportuno (Ex: ispaso, praneta), quer as que registrem forma estranha ou mesmo ilegível — deve ser promovida paulatinamente, atendendo ao seu surgimento e levando em conta as necessárias contextualizações para que não sejam condenadas gratuitamente e, mais tarde, venham a gerar conflitos quando detectadas em textos literários, por exemplo.
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Mudanças linguísticas
Desde cedo o aluno deve ser orientado para:
a. as diferenças entre língua falada e língua escrita; b. a variação dos usos linguísticos; c. a necessidade de adequação de registros; >í d. o modelo alfabético-ortográfico de grafia; e. a não correspondência entre fonemas e letras; ■> I f. a natureza convencional da língua — sobretudo na escrita; ^ g. o esquema paradigmático para dedução de formas etc. Enfim, o que pretendemos demonstrar aqui é que muitas das dificuldades atribuídas, no processo de ensino-aprendizagem do vernáculo, à heteroge neidade e à falta de prontidão (biológica ou psicológica) do alunado nada mais são que resultantes de ações pedagógicas impróprias e, muitas vezes, decorrentes de uma carência técnico-teórica docente no que se referejip domínio da estrutura e c|o funcionamento da língua materna. Nao que o docente esteja descomprometido com o processo, mas, por falha na sua formação, não se tenha habituado à pesquisa e à reflexão sobre os temas que, no curso de sua prática, venham a apresentar-se como problemáticos, carecendo, assim, de maior, esclarecimento e de novos recurso^'táficosypara explanação didática. ^ / o \v •ij
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1. Lí n g u a t a m bé m é h i st ó r i a A nossa língua é também a nossa história (Grim).
Enquanto Roma dominava o mundo, o latim era a língua da civiliza ção. Mas isso não foi perene. Toda dominação passa por fases de equilí brio e desequilíbrio sucessivos que permeiam as mudanças características da estruturação da sociedade. E tais mudanças, é claro, afetam a língua predominante, ou oficial. Assim, o latim coexistiu em contato direto com línguas bárbaras — as dos povos invasores — que a ele se mesclaram vindo, posteriormente, a dar origem às chamadas línguas neolatinas, dentre as quais figura o português. Como consequência da transculturação — intercâmbio de usos e cos tumes —, a língua latina foi passando por mudanças de toda ordem; e a acomodação da pronúncia, sob a ação das leis fonéticas, atua determinan temente na configuração do léxico. Não precisamos abstrair muito para perceber alterações lexicais decorren tes de impropriedade articulatória. Basta observar um estrangeiro tentando falar a nossa língua e logo se captam alterações fonéticas das mais variadas. Um exemplo bem característico é a dificuldade de articulação do som nasal: a pronúncia de palavras como mamão, mãe etc. torna-se engraçada quando realizada por um inglês, por exemplo. 1.1. Questões de fonética articulatória
Os indígenas brasileiros também apresentam características interes santes a serem observadas, no que concerne à pronúncia. Uma delas é a necessidade de apoio vocálico para qualquer consoante. Por isso, na sua
pronúncia, se desfazem os encontros consonantais, por exemplo. Observe-se: cruz passa a curuz. Veja-se exemplo textual: Fui indo pra lá, fui vendo: curuz! De toda banda, ladeza da chapada tinha rastro de onça... ( Meu tio, o lauaretê, de Guimarães Rosa). Fenômeno semelhante ocorre com a busca de apoio para consoantes travadoras em sílábas finais. Veja-se o exemplo textual: Da Carantonha mili légua a caminha / Muito mais, inda mais, muito mais / Da Vaca Seca, Sete Varge inda pra lá / Muito mais, inda mais, muito mais (in Na quadrada das águas perdidas, de Elomar) [grifamos]. A realização de sílaba travada se mostra como uma dificuldade para a fala espontânea. Tanto na linguagem regional como na fala popular, vê-se uma forte resistência aos travadores. Ora eles são apagados dando lugar ao aumento da tonicidade da vogal que antes travavam; ora evoluem para aclive de sílaba, gerando novo movimento silábico a partir do ingresso de uma vogal que se lhe apoie. O primeiro caso foi demonstrado com a fornia cruz e sua variante curuz; o segundo caso é demonstrado então pela forma rniliy que é variante de mil. "" Além dessas alterações causadas pelas trocas interculturais, há também as mudanças de ordem fonética, ou seja, mutações causadas pela natureza dos sons e pelo contato entre eles. Também isto pode ser observado sem que precisemos recorrer à exemplificação diacrônica, a qual é muitas vezes pouco objetiva, considerando-se o estudante hodierno, cujo conhecimento de latim é, via de regra, inexistente. Examinando mudanças morfofonêmicas nos processos sincrônicos de estruturação vocabular, ver-se-ão fenômenos idênticos àqueles detectáveis na evolução do latim ao português. Observe-se: feijão > feijoada. O ditongo da última sílaba é fonologicamente /a"'N/, na palavra primi tiva, e passa a /ò/ ria derivada, inclusive desnasalada. O mesmo fenômeno ocorrera no passado em P3 IdPt2 (Pretérito Perfeito do Indicativo). Ex: amaut > amou. Cumpre lembrar que a presença da semivogal posterior fica restrita ao registro formal, uma vez que a pronúncia corrente é /a 'mo/. Constata-se então: /o"V > /o/ Vamos aos textos.
E o cantado aos poco / Foi se paxonano pruela / Té qui um dia fico loco / De tanto cantá parcela (in “Parcelada” do Auto da Catingueira y de Elomar) [grifos nossos]. Nos textos produzidos em linguagem regional, vamos encontrar a mar cação gráfica de fenômenos fonéticos e fonêmicos da mais alta relevância, como no exemplo retirado da obra do compositor baiano Elomar Figueira Mello, cujas composições são objeto de nossas pesquisas atuais, oferecen do farto material para a documentação dos fenômenos da dialetação. No próximo exemplo, observaremos algumas transformações oriundas de uma articulação diferenciada: a nordestina. Purriba dos lajedo o luá chego / Já cá na cabicera a função pispiô (in Clariô”, de Elomar) [grifos nossos]. Vê-se em por riba > purriba —> justaposição da preposição ao advérbio com grafação da metafonia da vogal da sílaba 1 lul (então vogal do radical) e duplicação do [r] para indicar a vibrante forte que abre a sílaba seguinte. Em luáy dá-se a marcação da tonicidade do /a/ que, na língua padrão, vem demarcada pela presença do travador /r/. Destrava-se a sílaba, simplifica-se a pronúncia, mas mantém-se a tonicidade. A forma cabicera abriga dois fatos: a mudança do timbre da vogal pretônica (de /e/ para lil) e a monotongação do -ei em -ê, na sílaba tônica (cf. cadeira > cadera; ladeira > ladera, etc.). Já em pispiô, tem-se uma revolução fônica interessantíssima. A forma padrão é principiou. Os fenômenos ocorridos são: a) na primeira sílaba — síncope da vibrante e desfazimento do grupo consonantal —pr~; desnasalação com o desaparecimento do travador -n-; redução da sílaba -ci- à condição de travador sibilante por analogia fonética; b) na última sílaba — monoton gação do -ou em -ô, por simplificação fônica.
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Para melhor visualizar: )
principiou • prin (-r) (-n) -► ci
pispiô pi /s/
pi ou
pi ô
Retomando trecho do excerto: E o cantado aos poco / Foi se paxonano pruela (in Parcelada do Auto da Catingueira, de Elomar) [grifamos], O elemento grifado apresenta um outro caso em que a vogal antes base de uma sílaba travada — evolui para vogal plena, de sílaba aberta. A
%
presença de uma semivogal ou de uma consoante após a vogal (no declive silábico) promove certo abafamento do som vocálico. Isto resulta em um complicador de pronúncia. O falante comum busca então a simplificação da sílaba, o apagamento de seu travador, quer vocálico quer consonantal. Assim, formas terminadas em -or (como cantador) realizam-se como em -ô (como cantado). O mesmo processo se dá em relação aos infinitivos verbais em geral:, -ar > -á; -er > -ê; -ir > i. % Como se vê, o mecanismo de simplificação fônica é uma prática cor rente na dialetação. Ainda que sejam mínimos os exemplos, cremos que, a partir destes dados, o leitor poderá passar a observar as falas ao seu redor e verificará que não se trata de fato exclusivo da modalidade nordestina da língua nacional, mas de uma prática usual dos falantes. 1.2. Questões de fonética sintática Ao lado da fonética articulatória, está a fonética sintática, também deter minante de significativas mudanças na língua. Os fenômenos resultantes do contato das palavras na frase também provocam alterações no léxico. Os exemplos mais frequentes desse fenômeno são as aglutinações do tipo: a) filho de algo > fidalgo; b) Santa Ana > Santana; c) em boa h ora > embora. Também são detectáveis as variações alofônicas resultantes da juntura (cf. 4.5), tais como: a) asas /s/ ou /j7; b) asas abertas /z/ ou /3 A Assim sendo, não há nada de estranho ou espantoso na evolução de uma língua. E os fenômenos se repetem desde que os fonemas estejam sujeitos às mesmas influências, ou seja, funcionem em ambientes fônicos idênticos ou, pelo menos, análogos. ' Quanto aos vários períodos (ou estágios) por que passou o português até chegar ao modelo por nós utilizado, basta rever 0 processo histórico e examinar a origem e formação do povo português, assim como as lutas que travaram com outros povos em busca de sua afirmação e independência, desde a queda do Império Romano, época em que 0 latim começou a desdobrar-se nas atuais línguas neolatinas. Destarte, a evolução (ou mudança) é uma constante nas línguas vivas e carece de estudo pormenorizado e diferenciado, dado que cada língua é um sistema particular com características próprias. Contudo, ainda que haja fenômenos condicionados a uma dada época, a linha geral de evo lução é constante e se* repete, podendo ser descrita quer diaçrônica, quer sincronicamente, sem prejudicar a visão geral dos fenômenos.
2. Em a l g u m l u g a r d o p a s s a d o ..*.
Uma veis, io tava ajuntano um gado de Sio Venso e conde foi a mea noite nois tava arranchado dibaxo dum pé de pau, conde iscutemo a vois dum vaquero qui vinha tocano um horro de gado, qui pela trivuada paricia uas duzentas cabeça.(...) (trecho de Rio Pardo). Quando escutamos um causo como este, contado por um sertanejo, dependendo de nossa experiência linguística, podemos ficar entre espantados e animados, pois quem se espanta, via de regra, não está entendendo nada. E quem se anima? E claro que deve ser um interessado pelos fenômenos de nossa língua. A princípio, em decorrência da falta de familiaridade com o estilo do texto, o leitor pode achar-se como que diante de língua estranha, ou mesmo estrangeira. Porém, na segunda leitura, começa a sentir a seme lhança com coisas que já escutou, principalmente se esta leitura for feita em voz alta. Esse é um dos motivos por que os leitores principiantes, às vezes, acham os textos rosianos difíceis. Observe: Nhor sim, ca por mim vou bebendo. Cachaça boa, especial. Mecê bebe, também; cachaça é sua de mecê; cachacinha é remédio... Ce tá espiando. Ce quer dar pra mim esse relógio? Ah, não pode, não quer, tá bom... Tá bom, deistá. Pensei que mecê queria ser meu amigo... Hum. Hum-hum. E. Hum. Ia axi. (...) (trecho de Meu tio, 0 lauaretê de G. Rosa). Este fragmento — uma fala do personagem onceiro — traz formas típi cas da oralidade, conforme 0 causo anteriormente citado, e nos transporta para o meio do mato, onde um bugre — companheiro de onças — fala truncado, numa mistura de formas do dialeto caipira com grunhidos que o aproximam dos animais selvagens com os quais convive. Aproveitando a incursão iniciada pelo conto do vaqueiro, e mais adentrada pela fala do onceiro, visitemos a tradição através da qual se pode encontrar uma fala ainda mais remota, com vestígios de fala arcaica. Ó boio, dare de banda, / Xipaia esse gente, /Dare p’ra trage, /E dare p’ra frente.../Vem mai pra baxo, Roxando no chão /E da no pai Fidére, /Xipanta Bastião.../Vem pra meu banda.
MUDANÇAS LINGUÍSTICAS 69
Em algum lugar cio passado, o negro escravo aqui chegado é levado a falar a língua local, a nossa língua, pelo processo de aculturação. Mas os hábitos linguísticos por ele trazidos exercem forte influência sobre a nóva língua, resultando em formas como as contidas no excerto transcrito. Tal fragmento é trecho de um reisado de Pernambuco, documentado por Silvio Romero e por nós recolhido (apud Silva Neto, 1977: 38), que retrata um modelo de língua ainda presente em nossos dias, principalmente nas letras de músicas das festas populares, mormente as do Norte e Nordeste. A língua’ do negro escravo — remanescente do crioulo português — é uma das variantes do português do Brasil, além da variação regional e so cial; e vem fornecer dados para a constatação de que a evolução fonética descrita na passagem do latim ao português se mantém viva, ativa, atuante. Conforme afirmaram Scherer e H. Paul (cf. Dubois, 1978), as leis fo néticas são, em princípio, imutáveis; e basta confrontar formas de transição latino-portuguesas com algumas do português atual para vermos que a ação de tais leis mantém o mesmo padrão. Na fala popular hodierna, vemos metaplasmos idênticos aos ocorridos na formação do português. Veja-se o quadro a seguir: (outrora) bon da doso parale le pípedo Conde de Bonfim Imposto de Renda rana
(hoje) > bondoso > paralepípedo > Con’de Bonfim — todos casos de haplologia > Impôs’ de Renda — adição de substância fônica > arrã (pop.)
voar
> avoar (pop.)
3. I PRU MODE QUE NUM DIZE?
As mudanças linguísticas têm por determinantes maiores o tempo, o es paço e a organização social. Esses três fatores exercem pressão e provocam transformações em toda a vida humana; logo, a língua também se altera por esses elementos. As mudanças podem ser: (a) temporais ou diacrônicas: apiciila (lat.) > abelha (port.); (b) espaciais ou diatópicas : facto (Portugal) cf. fato (Brasil); (c) sociais ou diastráticas: lagartixa (culta) cf. largatixa (pop).
Observados tais fatores e .retomada a questão da' imutabilidade das leis fonéticas, desde que mantidas as condições contextuais — ambientes fônicos idênticos ou análogos —, concluímos que é válido tentar fazer um estudo da história do português seguindo outro itinerário, isto é: em vez de voltar ao latim e analisar os metaplasmos que deram origem às formas do português atual, compararemos formas da língua padrão com as da língua popular; então, poderemos constatar a dinâmica da evolução da língua a partir de uma realidade mais próxima de nossa experiência de falante. Adevorve, adevorve, amô\ I Adevorve o porta-estandarte / do Craudionô (MPB) [grifos nossos]. Nesse trecho de letra de .música po pular, vamos encontrar a linguagem dos sujeitos não escolarizados, conforme Adoniran Barbosa demonstra tam bém em Trem das onze: Além disso, muié , / tem otras coisa / minha mãe não dorme / inquanto eu não chegá / Sô filho único / tenho minha casa pra oiá [grifos nossos]. As formas grifadas demonstram fenômenos frequentes na fala popular, as quais comprovam a ação dos metaplasmos a despeito da evolução temporal, ou seja, ratificam a imutabilidade das leis fonéticas. Ilustrando: (a) muié — vocalização da consoante lateral palatal [y]; (b) muliere (lat.) > mulher [Á] palatalização da consoante dental lateral /!/ pelo contato com a vogal palatal /i/. Na corruptela muzé, tem-se a plenitude da palatalização a partir da predominância da vogal e do apagamento do [1]. #
Na forma otras, vê-se a assimilação, que é a aproximação ou perfeita identidade de dois fonemas, resultante da influência que um exerce sobre o outro (cf. Coutinho, 1974:143). O ditongo ou (em sou) foi desfeito pela assimilação perfeita entre a vogal posterior média fechada [o] e a semivogal posterior [w], predominando a primeira. O apagamento de fonemas no final dos vocábulos apócope — é também detectável em nossos dias com frequência, especialmente na fala popular. Exemplificamos com muié , chegá e oiá, nos quais se dá a apócope do [r] - arquifonema consonantal vibrante, tal qual ocorrera em: a) amare > amar; b) amat > ama. Ainda no cancioneiro popular, teremos exemplos interessantes como:
%
MUDANÇAS LINGUÍSTICAS 71
70 A IMPORTÂNCIA DO CONHKCIMKNTO K)N()l/X;iCO
Os termos grifados vêm ilustrar outro metaplasmo:
permitindo tanto ao estudioso-quanto ao falante comum deslumbrarem-se ante o carrossel de possibilidades formais que se lhes apresenta no universo de uma língua. E a nossa — o português — é um manancial prodigioso que deslumbra seu espectador.
a. agarrei > garrei — aférese (apagamento de fonema no início do vocábulo); b. imaginar'>-maginá(*) — aférese. (*) Além da apócope do [k ].
Confrontando-se o trecho de Língua com algum trecho d’Os Lusíadas ou mesmo com
Maringá, Maringá! / Depois que tu partiste / tudo aqui fico tão triste / que eu garrei a maginá (MPB) (Joubert de Carvalho) [grifamos].
Não vamos aqui fazer análise de variadas mudanças morfofonêmicas ocorridas nessa ou naquela palavra, pois nosso objetivo é outro: identificar os mecanismos fônicos que ocasionam as mudanças (ou evoluções) nas formas da língua. Contudo, a ilustração apresentada com recortes de textos da literatura e da música popular vem simplesmente demonstrar que as mudanças fonéticas não são extraordinárias, tampouco raras, senão comuns, frequentes e patentes na língua em funcionamento.
4. O QUE QUER, O QUE PODE ESSA LÍNGUA?
Examinar as mutações linguísticas é um convite a viajar no tempo, no espaço, na imaginação... Revirar os signos, auscultá-los, radiografá-los é ta refa emocionante, uma vez que por detrás de cada palavra há uma história a ser desvelada; e, no intrincado dos enunciados, a trama semiótica cria e recria um mundo potencial encantador, capaz de levar-nos à busca de respostas relacionadas com a origem do cosmos. E o cosmos se explica em palavras. E nós nos apropriamos dele a partir de nossa língua, em particular. Assim, a língua portuguesa é o nosso convite a uma viagem pelo mundo das palavras que nos cercam. Sigamos a música: Gosto de sentir a minha língua roçar / A língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar / A criar confusões de prosódias / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade / E quem há de negar que esta lhe é superior? [bis] E deixa os portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua / Fala, Mangueira! Fala! (Caetano Veloso, Língua: 1984). A mesma língua pela qual a nossa vida passa de boca em boca entra em
Quando n’alma pesar de tua raça / A névoa da apagada e vil tristeza, / Busque ela sempre a glória que não passa, / Em teu poema de heroísmo e de beleza. (...) Não morrerá sem poetas nem soldados / A língua em que cantaste rudemente / As armas e os barões assinalados (Manuel Bandeira. A Camões). Vê-se que os signos são reutilizados e ecoam provocando, a um só tempo, o renovar e o reviver das gentes por meio da expressão linguística que retrata e contrasta os tempos. E no reutilizar formas, muitas vezes, o povo cria exp ressões pitorescas tais como cuspido e escarrado para esculpido em Carrara ou esculpido e encarnado; bicho carpinteiro em lugar de bicho no corpo inteiro; e outras tantas que fazem parte (da) e estão presentes na fala popular. Nem sempre o nosso ouvido é fiel aos sons, e aí: hanger (ing.) torna-se rango; for all (ing.) passa a forró; first fist (ing.) gera vias de fato, ein Kranke (al. = uma doença) tornou-se encrenca etc.
A pista falsa fornecida pelos ouvidos, associada à proximidade articulatória desse ou daquele fonema, faz com que as novas criações sejam possíveis sem muito sacrifício (ou imaginação, ou engenho e arte) do falante/ou vinte. ’ Vê-se, ainda, a dificuldade articulatória de determinadas estruturas fonológicas as quais levam os falantes a atrapalharem-se na pronúncia e criarem novas formas que, mais tarde, podem ganhar o status de vernáculas. Ilustrando: f. saSTIfeito, POgrama, TaUBa: são exemplos de metátese (ou hipértese, para Serafim da Silva Neto) frequentes na fala popular; g. meSmo > ,cmeRmo; Gente > * Rente: são conversões articulatórias que também caracterizam uma tendência fonética na fala corrente atual. As contrações (mudanças morfofonêmicas decorrentes da ordem sin tática) também vão gerando formas novas que às vezes até geram polê mica. Por exemplo, na letra de Universo no teu corpo (Taiguara, 1970):
72 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO FONOLÓCICO
famos] o elemento grifado, resultante da contração de pra + esse, de monstra a elisão do /a/ em decorrência da tonicidade do lei que *o sucede, favorecendo a assimilação perfeita entre os fonemas vocálicos /a/ e /e/, originando a forma presse (p’ra + esse = p resse). A inscrição dessa música num Festival da Canção — celebrada com petição musical dòs anos 1960 e 1970 — ficou condicionada à aprovação do uso daquele termo — presse — submetido à apreciação da Academia Brasileira de .Letras, a qual o aprovou com base nos mecanismos internos da nossa língua e pelo fato de ser documentável na fala popular. Portanto, rejeitar formas como presse é negar a vitalidade da língua; é repudiar o pulsar da cultura na boca do povo. Criações dessa natureza são possíveis em decorrência das tendências fonéticas naturais da língua, as quais permitem a acomodação fonêmico-ortográfica que, como essa, pautam-se na lei do menor esforço, isto é, no favorecimento da simplificação articulatória. Manuel Bandeira já dizia: A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da bo ca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil (m Evocação do Recife). E é estudando a língua em sua forma mais viva que se podem compro var as evoluções fonéticas, fonêmica, morfofonêmica, como moto-perpétuo na linguística histórica. Assim, até estudantes do ensino fundamenta] poderão fazer uma visita à evolução da língua, conhecer os metaplasmos específicos a cada fenô meno, a partir do levantamento e da discussão de formas presentes na fala que ressoa à sua volta e da qual eles participam.
5. Uma
c o n c l u sã o s o b r e l í ng u a , h i s t ó r i a e m u d a n ç a s
Muito se discute hoje em dia sobre as mudanças linguísticas. Contudo, nem todas as discussões são regidas por dados e critérios técnicos ou científicos. Veem-se muitos pronunciamentos por um lado apaixonados, por outro, meramente políticos (ou politiqueiros). Entretanto, as mudanças aí estão e devem estar sempre, já que o português é uma língua viva e sua consolidação como língua nacional já se estende a oito nações: Portugal, Brasil, Moçambique, Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste.
MUDANÇAS LINGUÍSTICAS 73
Hodiernamente, a língua-portuguesa é vista conio língua de países em evolução. O Brasil já se anuncia como celeiro do mundo, e as mudanças sociopolíticas no panorama brasileiro chamam a atenção da comunidade internacional para a necessidade de domínio da língua portuguesa não ape nas como um ganho cultural ou acadêmico, mas como uma necessidade política ou estratégica. Do ponto de vista da lexicologia, a discussão sobre o volume de estran geirismos catalogáveis no vocabulário geral brasileiro é sempre oportuna, desde que voltada para um aprofundamento na dinâmica da língua. To davia, o rumo dado à polêmica tem-se mostrado quase totalmente inútil ou inócuo, uma vez que os comentaristas se perdem do fundamento da questão que é o caráter neológico (ver formação de palavras, in Bechara, 1999: 351 ss.) do estrangeirismo e, antes, a própria definição do neologismo e sua função nas línguas. Como o presente estudo trata de questões fonêmicas, cumpre dizer que o neologismo por empréstimo estrangeiro só deveria incorporar-se ao léxico geral (ganhando espaço nos dicionários e vocabulários oficiais) quando, de fato, preenchesse uma lacuna expressional. Nesse caso, a adoção da u nidade léxica atravessa etapas. Uma vez popularizado o uso do termo, via de regra inserido por uma área ou setor específico (ex. moda, informática, medicina etc.), e constatada a sua popularização por meio da documentação de sua frequência, o vocábulo novo (ou sintagma lexical — às vezes composto, locucional etc.) é usado, inicialmente, como estrangeirismo ou peregrinismo, e pode então fixar-se como xenismo (cf. Carvalho, 1987: 56 e Houaiss, s.u. - Excesso de presença ou influência da cultura estrangeira.) - ex: show - ou como decal que - ex: blecaute -, por força do aportuguesamento. A nós interessa o aportuguesamento. Quando um neologismo se instala como termo de adoção necessária, o fluxo de seu uso transcende o espaço original de sua inclusão no sistçma linguístico (pelas vias de uma linguagem técnica, em geral) e expande-se para o uso geral. O falante popular, por sua vez, propulsionado pela lei do menor esforço, vai ajustando oralmente o termo alienígena aos seus hábitos articulatórios e, na escrita, poderá também haver o reajuste da forma. Vejamos o que recolhera Daltro Santos (1938: 9) em Novíssimos estudos: Os termos, antes de os assimilar, cada idioma os digere, dando-lhes o colorido fonético que lhe é próprio (apiid Barreto, 1924: 21). Portanto, nesse processo de adaptação da forma nova às cores locais e seu uso, dá-se a simplificação fônico-ortográfica (ex. videoteipe) ou mesmo a tradução literal (ex. alta tecnologia < high-tech) que pode gerar o chamado
74 A (MPORTÀNCIA DO CONHECIMENTO KONOLÓGICO
decalque (Alves,
1994: 79) para uns, calco (cf. Bechara, 1999: 351) para outros, que é uma forma de recriação vernácula com suporte em forma importada. Exemplps marcantes históricos são: clube (< club); futebol (< foot bali); gol (< goal); boate (< boite); abajur (< abat-jour); sutiã (< soutien); etc. Hoje, vemos outras como: xampu (< shampoo); uebimáster (< webmaster); disquete (< diskette); saite (< site) etc.
Evidência mais forte da intervenção popular na incorporação e adapta ção de formas novas estrangeiras é apurável nos anúncios do comércio de rua (sobretudo o informal). Formas como x-burguer ou x-tudo documentam a interpretação dos empréstimos estrangeiros e sua tradução segundo o material disponível na língua e conhecido do falante. A forma importada cheese (ing.) desprende-se da ideia de queijo e passa a significar sanduíche. A grafia de cheese (que passou a xis ou chis) não se mostra problemática, uma vez que a sequência sonora /Jis/ corresponde ao nome da letra [x]. Como se vê, as questões fono-ortográficas não afligem o usuário geral, mas o intelectual, o político, uma vez que estes se preocupam com pro blemas transversais ao uso da língua; problemas relacionados à descrição (pelo intelectual, mormente o especialista) ou concernentes ao movimento sociopolítico (pelos políticos). Logo, o encaminhamento no âmbito escolar de questões como as aqui focalizadas merece um tratamento muito especial, muito estimulante, já que, grosso modo, o desconhecimento desse plano da descrição linguística não se mostra imediatamente relevante para o estu dante. Portanto, cabe aos professores uma reflexão profunda sobre o tema, principalmente focalizando-o numa perspectiva pedagógica, reprojetando-o numa dimensão embebida de algum ludismo, para que então o estudante passe a se interessar pela camada fônica da língua, assim como por suas consequências quando transcodificada para a escrita. Com estes fundamentos vimos conduzindo os estudos fono-ortográficos de uma forma diferenciada das práticas tradicionais e decidimos lançar mão de textos que documentem a variação dialetal manifesta no país, para que a proposta da assunção de uma poliglossia interna (domínio da dialetação em língua materna — cf. Bechara, 1991: 13) cada vez mais ampla se torne uma realidade próxima *e possível. Cremos que o corpus constituído de textos artísticos (música e literatura, em nosso caso) seja uma forma produtiva de aproximar estudante e variedades regionais e sociais (dialetação horizontal) sem que isto implique o sofrimento de aulas enfadonhas e improdutivas. Para demonstrar o tipo de análise que podemos fazer em um texto literário ou em uma página poético-musical, incluímos neste volume uma segunda parte — Estudos aplicados — em que apresentamos ao leitor dois estudos apresen tados em encontros acadêmicos e que mereceram atenção de especialistas.
P A R T E I I: E S T U D O S A P L IC A D O S
A construção fonossemiótica dos personagens de D e se n re d o de Guimarães Rosá
1. O DESEJO EXPLÍCITO DE LER DESENREDO Descoser um conto é também um ato de desejo. Desejo de enveredar pelos subterrâneos de um texto; desejo de viver a trama e investigar per sonagens; desejo de “escandir” o enunciado e viajar de volta ao momento da enunciação. O desejo é móvel de ação. E do desejo nasce o mito. E do mito nasce o conto. No conto — aqui tomado como sinônimo de narrativa — entrelaçam-se e entretecem-se mitos, e o saber é representado simbolicamente no jogo dos vocábulos, na trama das frases. E o tecido do texto. E assim como o alfaiate examina o tecido para descobrir a direção do fio, da tra ma da tela, para melhor aproveitar os cortes, também a análise de textos requer perícia de .alfaiate, para que seja possível não só pinçarem-se as palavras-chave do enunciado que funcionam como símbolos, índices e ícones da trajetória da narrativa, mas também examinar a armadura — o código e a mensagem — destrinçando o texto, estabelecendo isotopias e dando início à viagem de interpretação; ao fim e ao cabo, reinventando o narrado. Escolhemos página de Guimarães Rosa para corpus de análise, consi derando a verdadeira alquimia do verbo por ele praticada. As palavras, no texto rosiano, são rocha e nuvem a um só tempo. E, como se trabalhasse com argila, ele modela o verbo de seu texto de unin forma tal que o leitor é surpreendido em cada esquina da leitura pela riqueza do dizer. E quando a matéria é dura — mármore ou granito ò cinzel é impiedoso, e a artesastúcia de G. Rosa adapta-o no que ( dt
78 ESTUDOS APLICADOS
O )
ser dito sem que esta lhe fuja às rédeas, rendcndo-se ao seu desejo poético-literário de contar histórias.
é o conto escolhido. E seus personagens fazem acrobacias linguísticas (ou resultam delas?), proporcionando ao leitor oportunidades * ímpares de, a partir de um breve estudo dos nomes próprios — os quais ) tomamos como âncoras textuais — dos seres que rolam na trama do ) conto, tentar recuperar os textos que atravessam o texto-matéria de sua j leitura já.
A CONTRUÇÃO FONOSSEMIÓnCA DOS PERSONAGENS DE DESENREDO DE GUIMARÃES ROSA 79
gens principais e de suas váriàs máscaras, por meio de uma análise, em última instância, fonossemiótica.
Desenredo
)
3. Mo v i m e n t o s d o c o n t o pe l a s c a r a c t e r í s t i c a s d o s
PERSONAGENS E TRECHOS DA NARRATIVA
Apresentação dos personagens: a) —> Jó Joaquim — um bom e simples homem; b) —> R/L/V/I/A — uma mulher bela e equívoca.
ó ) 2. A ORIENTAÇÃO DA VIAGEM PELO CONTO
) x O presente relato visa acompanhar o processo de análise do percurso de construção/desconstrução dos nomes dos personagens com vistas a demonstrar a significação emergente das estruturas resultantes da variada ■' combinação fonêmica apresentada ao longo da narrativa. Por meio do ) levantamento dos índices (Peirce, 1990) de polifonia (Bakhtin, 1981) no } nível fônico do conto, tentamos objetivar a evolução/involução dos perso nagens por meio de uma análise em bases estruturalistas e funcionais dos ingredientes linguísticos utilizados. Observando os modelos silábicos, a seleção fonêmica e a utilização da estrutura fônica (especialmente o modo de articulação nas consoantes, o ) timbre e o acento tônico nas vogais), buscamos acompanhar a trilha da ) história e penetrar na alma construída de cada personagem, vivendo com l eles a trama decorrente da arte/manha de Guimarães Rosa e de seu pro fundo domínio do código. ^ -• Brincando com os fonemas e com a história, o autor traz no texto RLV7 IA (em Livíria, Rivília, Irlívia e Vilíria) e JÓ JOAQUIM, uma reedição 1 de JÓ, que funcionam como ícones/índices de uma trajetória e de uma paciência, respectivamente, mutante e inusitada. A(s) personagem(ns) (?) nomeadas por RVL/IA atuam no comporde JÓ JOAQUIM, que reproduz o mito bíblico sem, no ent tanto, repeti-lo. A inversão das letras e, por conseguinte, dos fonemas, } vai trazendo ao conto novas faces de unia personagem feminina que se assemelha à figura do demônio, o qual tenta destruir a paciência de JÓ, segundo conta a Bíblia. Então, fazemos uma desmontagem da história, ; tamento
Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja (p. 38). R/L/V/I/A - Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão (p. 38). Envolvimento amoroso do par descrito: a) Jó Joaquim — envolvido no amor: traidor / traído; b) R/L/V/I/A — leviana e conquistadora. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando, (p. 38) R/L/V/I—Apanhara o marido a mulher; com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o.(...) Aza rado, fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo (p. 39). Descoberta dos amantes + viuvez de R/L/WI/A + casamento com Jó Joaquim: a) JÓ JOAQUIM — reenvolvido no amor/traído; b) R/L/V/I/A — marginalizada, expurgada. Soube-o logo Jó Joaquim (...) Vai, pois, com a amada se encontrou (...) Nela acreditou (...) Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse (p. 39). Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora (...) Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem (p. 39). Transformação da relação amorosa:
ou c.o i uuua .ArLiv-zAUUíí
à CONTRUÇÀO FONOSSKMIÓTICA DOS PERSONAGENS DE DESENREDO DE GUIMARÃES ROSA 81
b) R/L/V/I/A — marginalizada, expurgada (Jó Joaquim). Entregou-se a remir, a redimir a mulher, à conta inteira.(...) Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente (p. 39).
4. U m pa r ên t es e pa r a
u ma l e it u r a d o m o v i me n t o n a t r a m a
Tomando por base a teoria da carnavalização de Bakhtin (1981: 116), como referente para a leitura do conto, concluímos que Desenredo é um típico exemplo de menipeia — paródia, com forte tom satírico, cínico, des confiado e desdenhoso. E o ingrediente carnavalesco que ora consideramos é a ambivalente entronização!destronamento dos atores a partir do estudo de seus nomes em relação ao desenrolar do conto, ao desenredar. Nos quatro movimentos do conto, o par amoroso mostra-se ziguezagueante, assim: * RLV/IA (a mulher)
* JÓ JOAQUIM
entronização 3o movimento
entronização Io movimento
destronamentoW0 movimento
destronamento 2o movimento
Cumpre observar que os movimentos descritos mostram os dois personagens subindo e descendo do trono, simetricamente, uma vez que consideramos como trono a tomada da cena, a centralização das atenções sobre si; e a simetria decorre do antagonismo comportamental dos atores diante da opinião pública: traidora/traído —> traidor/traído —► expurgada/anistiada. No 2o e 3o movimentos, a oposição é mais nítida: JÓ JOAQUIM = vítima 2o movimento
no - do amor o no 3 movimento - da traição
no
RLV/IA = causa - do amor
2o movimento
no 3o movimento - da traição
Contudo, nos movimentos de início e fecho do conto, ambos os per sonagens se mostram em destaque por qualidades comuns e de aparente equilíbrio: JÓ JOAQUIM homem bom e simples ' vencedor pela paciência
RLV/IA mulher bónita, fascinante e leviana mulher purificada e renovada pelo desenredo
5. O pa d r ã o s i l á b i c o c o m o s i g n o i c ô n i c o o u i n d i c i a l d o s pe r f is d o s pe r s o n a g en s
Analisando o padrão das sílabas destacadas a seguir, vemo-las como cV — sílabas complexas; e tomando-as como lexemas, teremos: LIVÍR1A, RIVÍLIA, IRLIVIA e VILIRIA e podemos interpretar como: a) LI — examinei, obsemei, interpretei; b) RI — gostei, diverti-me; c) VI — descobri. Obs: Todas formas verbais de passado; ações completas. Fato notável se dá em RIVÍLIA pelas múltiplas hipóteses de análise desse anagrama: a) RI + VILIA — a forma verbal do passado se reúne com uma possível flexão de VIL que, para não se confundir com VILA, recebeu o índice temático [i] ou /y/, por assimilação às sílabas anteriores. Teríamos, então, a personagem sendo vista como uma coisa ví/, vulgar etc. RI + VI + LIA - caso em que o protagonista teria tido uma visão que o fez feliz, pois ela seria um elo entre ele e o almejado amor: RI = f.v. de PddPt?; VI = f.v. de P3IdPt e LIA, que designa elo } liame, ligação, união. Saltamos, deliberadamente, o terceiro momento — representado pela forma IRLIVIA visto trazer, na sílaba inicial, um padrão diverso dos até agora discutidos e, para nós, coincidente com a penúltima parte do conto — o clímax — e que altera o itinerário da personagem que, até ali, era o de uma fêmea formosa e adúltera. Após a chegada da nova máscara — IRLIVIA — ela passa a ser uma mulher expurgada, proscrita, marginal (ao marido vencera, mas a JÓ JOAQUIM, não). E IRLÍVIA foi embora. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino (p. 39). b) LIVÍRIA & RIVÍLIA: a parte grifada de tais anagramas tem a estrutura cV cVv, vejamos: VÍ RIA VÍ LIA cV cvV cV cvV Com elas quem pode, porém? Antes bonita, olhos de viva mosca, mo
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«2 ESTUDOS APLICADOS
Mesmo a mulher, até, por fim. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento (p. 40). r r
E eis que apareceu IRLÍVIA. Depois de ser entendida (LI = ler em P, Id Pt,) por Jó Joaquim como alguém que chegaria (VIRIA) embora com uma tonicidade que prenunciava algo estranho (VIRIA); depois de envol vida pelo destino .e pelo desejo nas tramas da carne, como se tudo fosse maior que sua -vontade — à revelia — RIVILIA não deixou de desfrutar do mundo, do gozo, do prazer e de alguma maldade. Lobo sob pele de cordeiro, a morena mel e pão saiu pelo mundo a buscar novo destino. IR LÍVIA poderia ser a combinação da forma do infinitivo IR e do substantivo feminino LÍVIA que nomeia um tipo de inseto — olhos de viva mosca (diz o conto) —- comum nos brejos e nas junqueiras, que é uma vegetação delgada e flexível, com 225 espécies (o que pode ser índice da variedade de máscaras da personagem feminina neste conto). Ver-se-ia então nesse anagrama a propositura de um destino sujo — como o de uma mosca; fraco, vulnerável e múltiplo, como o dos juncos; inserto/incerto e inseguro como o dos brejos — lugar preferido por aquela espécie de inseto chamada a compor o nome da personagem. Observe-se que em IRLÍVIA a sílaba grifada é uma complexa travada, diferente de LI, RI, VI — todas complexas, mas livres. E esse travamento por uma vibrante cremos funcionar como signo ícone das dificuldades que ocorrem nesse terceiro estágio do conto: tanto ela quanto JÓ JOAQUIM (ainda que com estranha e abnegada paciência) sofrem momentos traumá ticos quer pela ausência, quer por sabe-se lá o quê. A reviravolta do destino se materializa na estrutura silábica, e a con soante ultrapassa a vogal, tentando bloquear-lhe o caminho, da mesma forma que R/L/V/I/A entrou na vida de JÓ JOAQUIM pára adulterar-lhe o destino. E todas as modificações observadas em JÓ JOAQUIM e em R/L/V/I/A parecem involuntárias, parecem força do destino; como já dissemos, sugerem acontecimentos à revelia (não poderia ser uma forma variante: revelia ou rivília?)
^ ^
o
c) IRLÍVIA & VILÍRIA: este outro par anagramático, consideradas as partes grifadas, a nosso ver, traz a marca da mudança propriamente dita: é o ícone da transformação: Io) LÍVIA — nome de um tipo de mosca, portanto, índice de sujeira, de coisa asquerosa, indesejável. E é essa a trajetória da personagem feminina. Suas peripécias
A tXíNTRUÇÃC) KONOSSEMKVIICA nos PERSONAGENS ni i DKSENREDO DE GUIMARÃES ROSA 83
uma ambiência putrefata, malcheirosa, nojenta; 2 o) LÍRIA — que poderia ser lido como um neologismo, uma flexão produzida para lírio, sendo, então, símbolo de candura, pureza etc.— traz ao conto o inverso, um sema de tragédia e purgação. LÍRIA é o mesmo que LIA, que tanto pode significar o segundo período como pode ser atilho, baraço, algo que serve para liar (ou ligar). E foi daí que o seu par — JO JOAQUIM — em seu obstinado desejo de ser feliz ao lado daquela equívoca mulher, projeta e profetiza o seu modelo final — aquele com quem ele findaria seus dias: VILÍRIA. Seu projeto nomeava não mais a mosca dos desmastreios, mas uma visão de pureza e candura como se lírio fosse. Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos. E, aqui, a personagem masculina — mais JOAQUIM (em alusão inferenciável a são Joaquim, marido de Santa Ana e pai da Virgem Maria) que JÓ (...) dedicou-se a endireitar-se (...) a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. (...) Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Era o pai re criando a filha malfadada. Assim, cria a flexão LÍRIA, para melhor caber ho nome de sua ufanática mulher, pois assim ele a viu: — VI LÍRIA. E digna de nota a existência do anagrama VIRÍLIA que recupera forma latina (virilia), trazida para o português como virilha, onde a evolução da sequência [li] (por palatização) gerou o grupo [lh] que representa uma forma cujo conteúdo estaria bastante afinado com a predominância do conteúdo erótico na personagem em questão. de fermentação do vinho, borras y fezes, sedimentos;
Examinando cineticamente as sensações provocadas pelos fonemas consonânticos em análise, é possível dizer que sugerem: /l/ —> fluência, deslizamento; /r/ /k / —> rapidez, tremor; /v/ —> escapamento, fugacidade.
6. O PAPEL DAS CONSOANTES NO ESTUDO DOS NOMES
Havia um homem na terra de UZ, cujo nome era Jó; homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desviava do mal (Jó 1,1). A primeira personagem a aparecer é JÓ JOAQUIM, que traz em seu nome a reiteração da figura de JÓ a partir da repetição dessa sílaba. Con tudo, a metafonia presente serve de índice para as nuanças de diferenciação
o*r
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Observe-se que pela própria ordem de apresentação no segmento fônico — em primeiro lugar aparece o homógrafo /3o/ conforme o mito judaico que remonta aos primórdios da história — vê-se um Jó diferente, inclu sive com prenome duplo. E esse nome apresenta uma estrutura silábica complexa, porém, do tipo cV — livre, destravada, aberta, como era o JO bíblico em seu comportamento. A transformação do JÓ num outro se anuncia com o fechamento do ~ timbre da vogal posterior média; e se consolida na incorporação de mais uma sílaba àquela. Um segmento fônico mais extenso e de estrutura fônica mais complexa — /kiN/ - se liga a /30/ por intermédio de uma sílaba do tipo V — /a/, formando 0 nome composto: JÓ JOAQUIM, cuja transcrição fonológica é a seguinte: /30/ /30 a ‘kiN/. Essa estrutura sugere possíveis alterações de comportamento se compa rarmos os dois jós: o bíblico e o rosiano. No plano semântico, JÓ JOAQUIM se distancia do outro JÓ não só pelo nome composto, mas pelo fato de 0 segundo elemento da composição relembrar 0 pai de Nossa Senhora. Isto pode prenunciar um comportamento especial,-uma vez que o pai, na história das civilizações, seria 0 responsável pelo alicerce da sociedade: enquanto pater familia, ele comandava a célula máter da estrutura social e educava os indivíduos. No plano fônico, as diferenças serão aqui examinadas mais detidamente no esquema a seguir: Padrão silábico
Jó II cV
&
Jó Joaquim 11 lll lll cV cW cVc ✓ /
Comparando-se a evolução no padrão silábico — de JO para JO JOAQUIM vemos que tudo está dito — ou inscrito — no nome: SÍLABA PADRÃO COMENTÁRIO. JÓ & JÓ & JO cV — repetição do nóme de uma personagem universal; A V — a sílaba simples sugere uma descomplicação para a personagem, ou mesino um aumento da simplicidade de JÓ. E isto é comprovado no correr do conto de G. Rosa, quando termina o primeiro episódio vivido pela nossa personagem:
UVA» I r.lX.lV/lxnV.UMN.-» I #1’. I /<'.OC.i VINf.l J\ J UL OUHV!AlV\C.»> KUM ò?
...Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado (p. 39); QUIM cVc — a sílaba complexa travada (diferente da reiterada [30] — complexa livre) já parece anunciar a complicação por que vai passar a personagem na segunda metade de sua vida. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora (p. 39). (...) Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa (p. 40). Aqui se impõe uma nova acepção para o vocábulo jó (com minúscu las). Em Estas estórias, Rosa inclui 0 arcaísmo náutico jó, que significaria cada uma das duas travessas, uma à proa e outra à popa, que limitavam os bancos dos remadores.
Observe-se o excerto: A alegria se espraiara por todo o nobre barco — de jó a jó; popa a proa (EE—I, 32/51) (Martins, 201). É possível depreender então mais um valor semiótico no nome jó: signo icônico-indicial de demarcação, de limite de lugar, de fundos e fren te, de início e fim. Todas essas marcações servem de valor referencial para a imagem construída para Jó Joaquim: aquele que delimita as ações e transformações da história e da personagem feminina com quem forma par em Desenredo. E essas três fases são anunciadas ainda no Io parágrafo do conto, com o aparecimento de personagem de nome equívoco — LIVÍRIA, RIVÍL1A, IRLÍV1A (ou VILÍRIA, que surge no final do conto) — cujos fonemas — em trocadilho anagramático — prenunciam-na como índice ícone de atropelo, apesar da constância da tonicidade na penúltima sílaba — palavra grave, paroxítona (como se fosse manter 0 padrão dos costumes...). Será?... A língua portuguesa é grave, paroxítona. E 0 clima do conto parece modelar-se ou espelhar-se no padrão do vernáculo, uma vez que o clímax da trama se dá na penúltima parte, como se fosse a penúltima sílaba da palavra trama. Observados os anagramas LIVÍRIA, RIVÍLIA, 1RLÍVIA e VILÍRIA, é possível pressupor que o conto passa por quatro fases distintas; e, se anali sarmos essa personagem feminina 110 mesmo modelo que 0 fizemos com
86 ESTUDOS APLICADOS
}Ó JOAQUIM, veremos que a primeira sílaba de seus nomes (da mulher plural) já compõe um índice morfofonêmico de seu destino: A mulher — RLV/IA — se nos apresenta como: LIVÍRIA, RIVÍLIA, IRLÍVIA e VILÍRIA, e cada um desses nomes é a marca de um dos quatro momentos do conto. 6.1. O papel das vogais no estudo dos nomes 6.1.1. Analisando a vogal [a]
Como em português não há sílaba sem uma base vocálica, a despeito das aparições ruidosas da personagem feminina de Desenredo, o autor é obrigado a dar-lhe nome com vogal presente. Contudo, entre as sete vogais em posição tônica (Mattoso Câmara Jr., 1977), escolhe o autor o /i/ — vogal anterior alta fechada, reiterado em cada um dos nomes dados à personagem feminina. Se analisarmos cada uma de suas classificações, veremos que: a) anterior — articulada na proximidade dos lábios e dos dentes, portanto, "quase fugindo da boca”; b) alta — como um fonema arredondado, pode ser visto como ícone da personagem a que nomeia, pois ela obedece primordialmente aos impulsos interiores, colocando-se à mar gem ou acima das coerções sociais (Moisés, 1973: 230); também é índice às avessas de sua posição social, uma vez que vive na boca dos escândalos populares como uma vadia; portanto, seu status quo é dos mais baixos; b) fechada — mais uma ironia rosiana na seleção fonêmica: a personagem em questão é aberta a todo tipo de estripulia, de extravagâncias e aventuras.' Logo: a reiteração de vogal fechada é outro índice às avessas (ou signo desorientador, cf. Nõth, 1995: 116). É também o /i/ um representante estilístico da pequenez, do estreita mento, da agudeza (Monteiro, 1987: 99); daí ser R/L/V/I/A tão acentuadamente perigosa. Ainda no simbolismo sonoro, é possível lembrar que uma vogal fecha da indica quase sempre tristeza. E na sua combinação com as consoantes R/L/V/I/A eleitas pelo autor — o que se tem é um vaivém entre articulações anteriores e posteriores, o que pode iconicizar a vida tumultuada de nosso JÓ reinventado, ao lado da mulher polinomeada com quem se enredou e desenredou o conto. Com o nome LIVÍRIA experimentou sons líquidos e dentais, portan
A CONTRUÇÃO FONOSSEMIÓTICA DOS PERSONAGENS DE DESENREDO DE GUIMARÃES ROSA 87
RIVÍLIA, a gutural hs! já o fez “engolir em seco”, ao ter de articular fone mas tão opostos e experimentar o sombrio e o dificultoso conotado pelos fonemas posteriores; com IRLIVIA tentou empurrar para diante a gutural que, por sua vez, bloqueou a vogal puxando a articulação para o fundo da boca, conotando o gosto amargo da dificuldade; e com VILÍRIA reuniu outra vez a líquida l\l e as dentais /v/ e /r/, como que tentando'harmonizar, no nível concreto, o não harmonizável em espírito. 6.1.2 — O papel do [a] nesta história Fechado o parêntese, retomamos os fonemas. Deve ter causado espanto a omissão do /a/ na análise vocálica realizada. Mas isto foi um ato deliberado. A construção básica dos anagramas LIVÍRIA, RIVÍLIA, IRLÍVIA ou VI LÍRIA assenta-se nas consoantes R/L/V e na vogal I. Contudo, a presença do /a/ faz-se obrigatória pelo simples fato de, diante das circunstâncias do conto, funcionar ora como morfema gramatical flexionai ora como nominalizador, ou vogal temática. Fizemos então a seguinte análise: a) LIVÍRIA = LI + VIRIA; logo: -a seria uma DMT de IdFt 2 (Silva .& Koch, 1989: 59). b) RIVÍLIA = RI + VILIA ou variante de revelia, ou mesmo na análise como RI+VI+LIA, em todos os casos, teríamos em -a uma ocorrência de VT nominal. c) IRLIVIA = IR + LIVIA donde -a, na designação de espécie de mosca, funcionaria como VT nominal; como forma sincopada de lívida, também seria VT nominal e, numa terceira hipótese, não mencionada ainda: IR + LI + VI + A, teríamos — no afastamento da fêmea — o início de sua reconstrução por JÓ JOAQUIM que, ao vê-la IR, leu que a viu voltar renovada e pura. Neste caso, o a será o pronome pessoal oblíquo de terceira pessoal do singular, tendo uma realização bem suave. Se a lêssemos como IR+LI+VIA, o vaticínio seria mais forte, dado que a forma inconclusa do verbo ver (Id Ptj) — sendo então o -a uma DMT — anteciparia a visão da mulher reconstruída por JÓ JOAQUIM. E neste caso, o a ganharia maior relevo por integrar a forma e constituir uma sílaba plena, pois, a despeito da homofonia com vi-a, o a pronominal tem uma realização mais abafada que o a flexionai. Basta fazer-se
usTunos a pl ic a d o s
bem próximo à boca, ver-se-á quê, na produção da forma verbal via, a corrente de ar produzida é mais forte — daí, maior opacidade np espelho — que a resultante de vi-a, em decorrência do sutil intervalo contido entre o som vocálico anterior alto e o central baixo). Como se vê nessa breve análise, o /a/ — contrariando sua inequívoca classi ficação fônico-furtcional como vogal plena — sufge para manifestar ainda mais fortemente o equívoco da personagem criada, coberta de sete capas. 6.1.3. E o que dizer do [o]? Em JÓ JOAQUIM, é o /o/ que faz a diferença. Vê-se JÓ & JÓ em momentos e histórias distintas, mas ambos tentados em igual vermelha e preta amplitude. Entretanto, o redobro do JÓ de Desenredo é uma pista da reedição revista e aumentada do conhecido personagem bíblico. A paciência do segundo JÓ não é mais tão aberta quanto a do primeiro (o da Bíblia). O primeiro era JÓ tão somente. O segundo, JÓ Joaquim, com o seu segundo JO em som fechado, é indicador de maus agouros; a sua realização como vogal posterior média fechada e a sua característica semiarredondada prenunciam um JÓ diferente. A continuação do seu nome AQUIM nos leva a rever os valores desse fechamento de timbre vocálico, pois também a sílaba final /kiN/ é travada por fonema nasal que, segundo os estiólogos, lembra gemido e sugere de pressão (Monteiro, op. cit.). Ora, o que se vê aqui é uma reedição de JÓ aqui, mas modificado, travado, diante de alguns fatos, sem por isso levar sua paciência às últimas consequências: no conto que ora analisamos, JÓ JOAQUIM não reconstrói sua união por paciência, mas por obstinação, numa postura entre paternal e maquiavélica, onde os fins justificavam qualquer meio. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta (p. 40). E a atuação calculada e medida de nosso JÓ se materializa na frase final do conto: E pôs-se a fábula em ata. Como se se documentasse a pro dução de JÓ JOAQUIM como um grande invento que deixara boquiaberta a população da vila. Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e o válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos (p. 40).
Isto posto em ata estimulou-nos a perseguir a. trajetória dos fonemas enquanto um ato componencial do fazer literário, pois, na escritura rosiana, o que se tem é uma verdadeira artesania linguística, onde vão-se os casacos e ficam os que os usam, assim como vão-se as palavras conhecidas e ficam as recém-criadas, desde que manifestem o que é preciso.
7. À GUISA DE CONCLUSÃO
Os campos da fonologia, da fonoestilística e da fonossemiótica são estradas ermas de pesquisadores e de pesquisas, assim como a análise li terária pouco contempla a .camada fônica, mormente quando se trata de prosa. Há quem diga que a fonêmica da língua não é mais do que um plano subserviente dos estudos linguísticos, deixando-a à mercê das conse quências da morfologia e da sintaxe, frequentemente, e, acidentalmente, da semântica. Mesmo nos estudos do léxico, há uma grande confusão quando se entra a classificar homônimos, homófonos, homógrafos, parônimos etc. No entanto, isto seria facilitado se o plano fônico da língua fosse tratado com um pouco mais de atenção. Não queremos dizer com isso que sejamos especialistas no assunto, mas, ao longo de nossa trajetória de pesquisa, a fonologia vem se impondo como algo relevante, a tal ponto que, num estudo semiótico de texto, na busca de ícones e índices que funcionassem como âncoras dos significados textuais na composição do contexto intratextual, acabamos por desaguar no oceano dos fonemas, pois, tratado como igarapé por uma' grande maioria de estudiosos, este plano da língua encontra-se à espera e à disposição dos que nele queiram penetrar para além das classificações já cansadas e can sativas, indo buscar outros dados como os que ousamos mostrar-lhes nessa pequena e despretensiosa análise de Desenredo. Quanto às questões da carnavalização — tão bem configurada ou iconicizada pela “dança” dos fonemas no conto —, atribuímos a Desenredo a classificação de menipeia, uma vez que a reedição de JÓ, humano, falível, ainda que forte e decidido, cria um clima tragicômico a partir de seu en volvimento com RLV/IA. A força apolínea de JÓ JOAQUIM se faz presente durante todo o conto, visto que a forma de seu nome é única do princípio ao fim do
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90 ESTUDOS APLICADOS
conto: os fonemas compõem um segmento fônico inabalável, a despeito dos desenlaces sofridos pela personagem. Em contraponto, RLV/IA é a força dionisíaca alegórico-iconicamente demonstrada, pois seu camaleônico nome denota a instabilidade e o dese quilíbrio dessa personagem tão vibrante quanto.o /k /, tão líquida quanto o /]/, tão constritiva quanto p /v/ e tão redondeada quanto o /i/. E a instabi lidade de RLV/IA é também configurada pela sua desenfreada mudança de desejo __ o que se materializa em suas quatro máscaras designadas pelos qiíãFro anagramas: personagem RLV/IA objeto do desejo: LIVÍRIA
mulher casada e leviana = prazer carnal = libido + tânatos
RIVÍLIA
casada, amante de Jó e de X = marido 1, amante 1 e amante 2
IRLÍVIA
esposa de Jó e amante de Y = marido 2, amante 3
VILÍRIA
reconciliada com Jó = prazer espiritual = libido
A opinião do povo enunciada no conto é também bastante significativa quanto à construção do carnaval e da paródia: Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido (p. 39). Temos aqui um índice das meias alianças entre JÓ e RLV/IA, pois, nem chegando ao fim da história é possível garantir que eles se tenham unido de fato, integralmente. Ao final do conto, JO se apresenta um tanto modificado em seu equilíbrio inicial: Celebrava-a, ufanático. tendo-a por justa e averiguada , com convicção manifesta. (p. 40) [grifo nosso]. O vocábulo grifado parece-nos indicar uma tomada emocional, passional, de JÓ. Logo: o desejo e a paixão também levam ao desequilíbrio, quer assim quer assado. Jó inicial: ...chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. (...) (p. 38) Jó final: Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu ne voeiro^...) Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos. (p. 40) Como o texto é um macrossigno, esse é o nosso ensaio de interpretar Desenredo a partir de sua organização fonossemiótica.
0 sertanejo cantando T i r a n a
1. In t r o d u ç ã o
Na intenção de redescobrir o Brasil a partir de sua variação linguística, ampliando assim o universo léxico-semântico do falante, vimos buscando, sob a inspiração inicial dos sertões linguísticos de Guimarães Rosa, penetrar mais detidamente na variedade sertaneja de nossa língua. Ao lado de pesquisas na obra do escritor mineiro, estamos iniciando uma investigação de cunho léxico-semântico-semiótico que consiste no levantamento das unidades léxicas presentes nos poemas musicais de Eloinar Figueira Mello. A escolha deste compositor foi motivada pelas descobertas que vimos fazendo há algum tempo ao estudarmos a obra rosiana. Alimentando a nossa paixão pela língua nacional, as páginas do texto de Guimarães Rosa conduziram nosso olhar para a linguagem interiorana, dado que tal varie dade apresenta um potencial semiótico-semântico riquíssimo. É-nos possível construir imagens do sertão brasileiro por intermédio da. leitura dos textos quase sempre bem humorados do escritor mineiro. Por inferências temáticas e linguísticas, encontramos analogias fortes entre as obras de G. Rosa e de Elomar. Uma e outra, contemplando o agreste: agreste (S. m. 5. Bras. Zona fitogeográfica do NE, entre a mata e o sertão, caracterizada pelo solo pedregoso e pela vegetação escassa e de pequeno porte — mirtáceas, leguminosas e combretáceas — Aurélio, s.u.) e a caatinga ([De caa- + -tinga.] S. f. 1. Bras. Tipo de vegetação característico do Nordeste brasileiro, mas que alcança o N. de MG e o MA, formado por pequenas árvores, comumente espinhosas, que perdem as folhas no curso da longa estação seca — Aurélio, s.u.). Ambas retratando um tipo brasileiro enriquecido pela dificuldade e
92 ESTUDOS APLICADOS
rio, rude, crente, ingênuo, corajoso, viril, em suma, um forte. Os temas fo calizados tornam-se símbolos de um Brasil ainda não descoberto, entregue à* própria sorte que, como as palavras em situação dicionárici (cf. João Cabral em “Rios sem discurso”), espera por alguém que o visite, conheça, reconheça e valorize-lhe o potencial, sem modismos e sem arroubos, apenasmente (cf. Dias Gomes em “Odorico na cabeça”) com seriedade. Neste capítulo, nossos estudos perscrutam o objeto — o léxico — com o auxílio das lentes da fonologia e da semiótica. A primeira para radiografar as unidades lexicais e examinar-lhes o material sonoro que as constitui; a segunda destinada a revelar as relações intersígnicas, perseguindo a semiose, ou seja, a geração de sentido.
2. U m
t r o v a d o r no s e r t ã o
O ternário explorado por Elomar mostra sua preocupação com retratar o sertão baiano, sua paisagem sócio-histórica e sua gente. Por isso, a fala local, interiorana, espontânea, manifesta-se num gênero substancialmente dramático, como espelho da vida no sertão brasileiro. A página musical escolhida para análise neste artigo traz à tona a fala regional, o cenário rústico da vida do peão, do tropeiro, abarrotada de dificuldades e desilusões; é, portanto, uma mostra da língua sertaneza (sic). O uso da variante sertânica é deliberado; e a obstinação do autor o faz optar pela denominação língua sertaneza. Esta opção evidencia domínio do sistema linguístico e acentua a definição dos critérios de seleção lexical inscritos em sua composição. O autor trata nossa língua com ética e declara-se engajado na difusão da variante sertaneza, com vistas a dar ao sertão o tratamento que lhe é devido. Dois comentários imediatos se impõem: um (lexical) e um ortográfiç^. Partindo do ponto de vista mórfico, o item sertafreza é um neologismo literário (a princípio, dispensável), cuja forma dicionarizada é sertaneja (cf. sertanejo (ê). [De sertão + -ejo.] Adj. 1. Do sertão. 2. Que habita o sertão. 3. Rústico f agreste, rude. 4. V. caipira (3 e 4). S. m. 5. Indivíduo sertanejo.
6. V. caipira (1). (Aurélio, st l ); trata-se de nome adjetivo que: significa rela tivo ao sertão. É uma palavra derivada, e o'sufixo formador deste vocábulo é grafado -est-esa, portanto, a opção gráfica do autor pelo [z] parece-nos uma idiossincrasia individual, uma vez que não se sustenta na história da
língua portuguesa. _Diacronicamente, tem-se o -es como forma resultante da convergência de -èsl-ense (lat- cf. cf. Sousa da Silveira, 1983: 96], for mador de adjetivo e indicador de qualidade, origem e naturalidade, cuja grafia se manteve com [s]. Ao lado disto, tem-se a história do sufixo -ez (lat.), formador de substantivos abstratos e indicadores de qualidade é esta do. A possibilidade de indicarem qualidade permite deduzir uma provável confusão de grafia entre os nomes substantivos e os nomes adjetivos ter minados em /eS/ ou /eza/, o que caracteriza um uso não padrão da língua e pode servir de justificativa para a opção do autor pela forma sertaneza. Homologado o “neologismo” (aspeado por ser forma concorrente), segundo a ortografia atual, a grafia prevista seria sertanesa. Há outra hipótese: ser taneza: adj. fem. de sertanez: o que tem os traços do sertão. Mas isto fica para outro estudo. Afinada com a paixão linguística de Elomar, vimos examinando suas páginas musicais e tentando formular um glossário que, a um só tempo, auxilie a compreensão de suas letras e traga o sertão linguístico para a academia, mostrando — por meio do vocabulário estudado — o potencial expressivo-comunicativo patente na obra elomariana e na variedade sertaneza do português do Brasil. O presente trabalho trará mostras deste estudo.
3. A LÍNGUA DO CANTADOR Tirana (de “O Tropeiro Gonsalin”) Inriba daquela serra passa u'a istrada rial / Entre todos qui ali passa uns passa bem otros mal / Apois lá mora um ferrero ferrado de ani mal / Qui sentado o dia intero no portero do quintal / Conta istoras de guerreros / De cavaleros ligeros / Do Reno de Portugal / Anda mula ruana / Qui a vida tirana / Foi dexada por Deus / Derna de Adão / Pra quem pissui os terém / Aqui na terra / Pra quem nada pissui / Té pru ladrão / Das coisas de minha ceguera aquela qui eu mais quiria / Formá u’a tropa intera e arriba no mundo um dia / Cabeçada de u’a arroba vinte campa de arrilia / Cruzeta riata nova rabichola e peitural / E arriça fazeno ruaça / A tropa na boca da praça / Do Reno de Portugal / Destá mula ruana / Na vida tirana / Ela é feia e mais dura / Qui a lei / Nóis inda vai xabrá / Pinga de cana / Jabá e rapadura / Mais o rei / Cuano saí lá de casa dexei os campo in fulo / A lia já deu treis volta só a buneca num volto / Mais pra que tanta labuta corre corre e confusão / Quanto mais junta mais
%
O SERTANEJO CANTANDO TIRANA 95
dana é tribusana é só ousão / Oras qui na vida in ança / O pobre cristão só discansa / Dibaixo d’um tampo de chão / Para mula mana / Dexa. de gana / Qui a vinda do tropero / E só u’a veis / Assunta mermo a vida / Assim tirana / E pura buniteza / Foi Deus quem fez. No texto “Tirana”, temos, desde o título, marcas regionalizantes e uma grafia com características pseudofonéticas.* Vejamos o que informa o dicionário: tirana2 [Das palavras Ay tirana, tirana!, com que principia a canção.] S. f. 1. No Minho (Portugal) e na Andaluzia e Galiza (Espanha), no séc. XVIII, canção e dança cantada, em compasso de 6/8, andamento ) moderado e caráter lamuriante. 2. Bras. RS Modalidade do fandango: tirana grande, tirana de dois, tirana de ombro, tirana tremida, tirana dos farrapos, tontilha. 3. Bras. BA Cantiga de amor , em andamento lento, e de caráter lânguido. 4. Bras. BA Canto de trabalho, entoado ao desafio por lavadeiras, roceiros f canoeiros. (Aurélio, s.u.) [Grifamos o que nos ) interessa mais de perto.]
tribusana
barulho •
Bras. vaf. de trabuzana,
terem
cf. com haveres; bens; riqueza
forma dialetal de teres> terem
reno
fig. domínio, âmbito:
forma monotongada de reino
arrilia
cf. com ruaça
var. de arrelia
peitural
objeto de montaria
var. de peitoral
ria ta
objeto de montaria;
forma aferesada de aireata;
ferrêro
ofício
forma monotongada de ferreiro
tropêro
ofício.
forma monotongada de tropeiro
cavalêros
ofício
forma monotongada de cavaleiros
fulô
) autor, tirana é uma espécie de cantoria, contudo, sem o caráter desafiante. ^ Vejamos o verbete ditado por Elomar: Cantoria = tipos de #: moirão, mar telo (desafio mais forte) y tirana, coco, parcela (canta ilusão e desenganos). O estudo de vocabulário apresentado no quadro a seguir tenta identifi car e “traduzir” unidadès léxicas que consideramos marcas de um modelo } sertânico
de dizer o mundo. Veremos, portanto, representações de ofícios,
) objetos, medidas, alimentos típicos da região nordeste e atributos dos perso) nagens que atravessam o texto. Selecionamos apenas itens que apresentam alteração fono-ortográfica. U ni da de l ex ic al
íc on e d o us o r eg io na l Comentários fonodialetológicos e correspondente a
anca
angústia, aflição
forma sincopada de ânsia
intêro
atributo
forma monotongada de inteiro
guerrêros
atributo
forma monotongada de guerreiro
ligêros
atributo
forma monotongada de ligeiro
maça
(= arruaça); baderna; confusão; arrilia
forma'' aferesadrpde arruaça
órgão reprodutor plantas;
das
Bras. var. de flor; na expressão in
fulô, corresponde a florido.
portêro
portão de entrada em propriedades rurais; cancela.
forma monotongada jde porteiro; var. de porteira
istoras
var. de história
mais aproximada da var. estória
Como se vê, trata-se de item^onomásticd) que designa um tipo de compo) sição musical característica de certas regiões. Segundo informação direta do
esfera,
Vale atentar para o fato dé que a maioria dos fenômenos apontados não é exclusividade da fala nordestina. A monotongação, por exemplo, é metaplasmo praticado inclusive pelos usuários da modalidade padrão do português brasileiro. Apreciando com olhos semióticos o vocabulário tabulado, verificar-se-á que as escolhas representam concretamente o cenário 'sertanejo, quer no plano linguístico quer no plano referencial. A cosmovisão simulada pelo poeta identifica um tipo regional específico, “embaixador” da rudeza e da secura do nordeste brasileiro. Desde a seleção temática denotada até as formas vocabulares utilizadas, tem-se um desenho a um só tempo figurativo e impressionista da realidade sertaneza. Convém ressaltar que o estudo dos metaplasmos identificados nas unidades léxicas levantadas dá mostras da influência da fala sobre as formas da língua. As línguas vivas estão sujeitas à intervenção prolatória de seus usuários, os quais, a seu turno, respondem a ordens de seus hábitos,articulatórios treinados, em primeira instância, com a língua her dada de seus antecedentes e aprendida no seio de seu primeiro núcleo social: a família.
% KSTUDOS APLICADOS
Os hábitos articulatórios resultam alterados mais fortemente nas ca madas populares e mais acentuados ainda no homem do campo ou do • sertão, onde saúde ç saneamento básico não se fazem presentes. Logo, os dentes — componentes que atuam na produção de número significa tivo de fonemas consonantais (/f/ /v/ Isl /JV /t/ /d/, principalmente) — são altamente prejudicados. Via de regra, os ditos* “caipiras” perdem muito cedo parte da dentição definitiva. Fatos como este, associados a influ encias decorrentes de contatos culturais eventuais e diferenciados — o indígena, o religioso (padre, pastor etc.), o emigrante, o pesquisador, entre outros —, promovem a transformação dos vocábulos ao longo do tempo. Daí, formas vão-se desdobrando, outras vão sendo substituídas, e assim sucessivamente.
nho, do qual adquire traços articulatórios e ao qual se torna mais semelhante; coarticulação [Representa economia de movimentos articulatórios e desempenha papel impor tante na mudança linguís tica.] [Houaiss, s.u.] arriça
eriça
Dissimilação do processo de mudança linguís /i/ inicial (grafado tica em que um ou mais traços fonéticos de um fone [e]) ' ma, comuns a outro fonema vizinho (contíguo ou não), são trocados, tornando-os diferen tes; p.ex.: a pal. lat. calamellu deu caramelo em port. (os traços trocados foram lateral /l/e vibrante /r/; tb. a f. popular aribu, por urubu, no port. do Brasil) [Essa tendência é atri buída à necessidade de mais contraste entre os elementos fônicos da língua, para maior clareza.] [Houaiss, s.u.]
Fazeno, Cuano
Fazendo, quando
Síncope
Síncope e perda de substância fônica no interior do vocábulo. Neste caso, dá-se a redução da marca morfêmica do gerúndio nd para n- (escreveno por escrevendo); (Mattos e Silva, 1997: 57)
Desta
Deixa estar v
aglutinação
feia
filho da puta (chulo)
reunião em um só vocábulo, com significado independen te, de dois ou mais vocábulos distintos; ocorre perda de fonemas e esp. de acento de um dos vocábulos aglutinados (p.ex.: aguardente por água + ardente, pernalta por perna + alta) [Houaiss, s.u.]
Nóis treis, vcis
Nós, três, vez
Epêntese
A pronúncia popular desen volve uma semivogal que nos parece realçar tanto a tonici-
Veremos outras formas extraídas de Tirana, nas quais outros fenômenos fono-ortográficos se manifestam. Unidade vocabular
Forma padrão
Fenômeno fono-ortográfico
Explicação do fenômeno
Inriba
Em riba (cf. Em cima de)
istrada
Estrada
Aglutinação + metafonia da vogal pretônica metafonia da vogal pretônica
Metafonia também chamada dilação vocálica é um tipo particular de assimilação, uma vez que só intervêm vogais e estas não são contíguas.
u’a
Uma
Distinção gráfica da vogal nasal e da vogal nasalizada
A vogal nasal distingue signi ficados na língua (como em canto & cato); a vogal nasali zada é uma mera variante fônica, em que a impressão de abafamento nasal não gera fonema, não influi na significação (como em lama, dama, muito). [JMB, 1994]
ança
Ânsia
Assimilação total
A contaminação do traço palatal sobre o fonema /s/ promove a transfonnação deste num som intermediário entre o/s/eo /z/, que, a nosso ver, estimulou a criação do símbolo [ç].
pissui
Possui
Assimilação parcial do /o/
tipo de modificação que um fonema sofre por estar em contato com um fonema vizi-
) 98 ESTUDOS APLICADOS-
O SERTANEJO CANTANDO TIRANA 99
dade do monossílabo quanto a clareza do travador /S/. xabrá
Acochambrar
Té
Até
Inda
Ainda
dexei
deixei
volto
Voltou
lia
lua
Àférese + desnasalação + apócope Àférese
Monotongação
Nasalação
Àférese = perda de substância fônica no início do vocábulo. Desaparecimento de som no início do vocábulo, cf. Silva Neto (1956: 127) Em acochambrar há perda suces siva de duas sílabas iniciais: acochambrar *cochambrar > *chambrar; desnasalação = *chambrar > chabrar; Apócope = perda do travador final /r/ —* chabrá grafada no texto com [x] Simplificação de ditongos românicos (Silva Neto, 1956: 102) por assimilação total da semivogal à base. luna > lua > lua . cf. lua - [Do lat. luna, por via popular.] [Aurélio, s.u.]
Os fenômenos fonéticos aqiii apontados exemplificam, inclusive, o percurso evolutivo da língua na passagem do latim ao português. E aqueles se tornam fáceis de serem entendidos pelo fato de serem praticados em qualquer tempo pelos falantes. Logo, trata-se de conteúdo importante para o conhecimento mais amplo tanto da língua em si quanto do povo que a fala.
4. Pa r a c o n h e c e r m e l h o r El o m a r e n o s s o pr o je t o d e
TRABALHO
J
J
A pesquisa na obra elomariana iniciou-se efetivamente em fevereiro cie 2002, quando pudemos ficar por duas semanas na casa do autor, con vivendo com a sua rotina e a sua produção em acontecência, o que nos propiciou construir uma imagem bem aproximada da genialidade do poeta e compositor Elomar Figueira Mello. (...) Trovador, místico, arquiteto criador de bode, inspirador de Henfil
Caatinga, às margens do Rio Gavião) e da graúna. Elomar é uma estranha mistura. “Prumodi” compreendê-lo, é viajar 500 e poucos quilômetros, de Salvador até Vitória da Conquista (...) (Trecho de Depoimento prestado a Tânia Pacheco - Setembro/quase primave ra de 1976 - cf. encarte do CD Na quadrada das águas perdidas, produção independente da gravadora Rio do Gavião, do próprio autor, 1979). Vê-se então que a rudeza do menestrel vaqueiro está marcada em sua couraça nordestina. Mas, mesmo assim, sua sensibilidade mantém-se viva e aguçada e sua obra é prodigiosa e vai-se avolumando dia a dia. Presenciamos o seu diuturno criar, a despeito do envolvimento com a administração de suas duas fazendas e do amor à sua criação de bodes. E, com um comportamento conforme o descrito por Fernando Pessoa (em “Autopsicografia”, in Cancio neiro), Elomar segue fingindo em sua poesia musical. Mesmo tendo, eventualmente, de colar unha com escama de surubim para poder apresentar-se em recitais, Elomar não arrefece e continua sua cruzada musical, demonstrando que o homem caipira é um forte e tem um universo maravilhoso e fantástico a expressar. Assim, ele, sua poesia e sua música vão cantando as profundezas dos brasis aperreados pelas enchentes e secas que se revezam na manutenção da dificuldade do homem nordestino brasileiro. (Nota: a frase comentada consta de declaração na Faixa 9 - gravada ao vivo no Palácio das Artes em Belo Horizonte - do disco Cantoria 3 — Elomar — Canto e solo y M-KCD-057, Kuarup, 1984). (sic)
A iconicidade dos textos sertanejos (tanto de G. Rosa quanto de Elomar) é construída num uso particular do código-fonte — a língua portuguesa. Um e outro autores têm o requinte da língua extraída da pesquisa direta, da vivência junto ao homem do sertão. Todavia, Elomar se distingue de G. Rosa quanto à forma de coleta, pois este visitava o sertão, enquanto aquele integra a paisagem sertaneja, é um de seus ingredientes. Ouso dizer que G. Rosa tenha feito um trabalho de “reportagem” da paisagem humana e cultural, do sertão; ao passo que Elomar “presta depoimento”: é o sertanejo falando de si mesmo e de seu mundo. Tomando a dramaticidade dos textos de Elomar como objeto de ob servação fonética na substância da fala do sertanejo, enveredamos por um campo de investigação vastíssimo além de complexo: a evolução linguística
%
1U0 ESTUDOS APLICADOS
As mutações fonéticas são alvo cie pesquisa que ganhou vulto sobretudo
O SERTANEJO CANTANDO T/RANA 101
de um povo e que serve de documento histórico: Logo, não apontamos o
a partir cia definição de fonema (Baudouin de Courtenay). Estudiosos como.
clássico nem o contemporâneo como melhor. Vemos ambos como indis
Scherer, Herman Paul, Schuchardt, Maurice Grammont, Trubetzkoi, entre outros, ocuparam-se de uma análise mais detida dos fenômenos fonéticos e,
pensáveis. Vale, no entanto, ponderar-lhes a complexidade e ajustá-los ao nível do interlocutor discente, para que a interação com tal material não
aos poucos, percebeu-se que há dois movimentos fundamentais o do menor
resulte no apavoramento do estudante e em subsequente desinteresse, não apenas dos textos, mas, sobretudo do estudo da língua.
esforço (facilitação fonética) e seu oposto do maior esforço (diferenciação dos sons, realce etc.). Portanto, a evolução de uma língua está intimamente ligada e depende do povo que a fala. O falante, por sua vez, sofre, como lembra Serafim da Silva Neto (1956: 72-73), influências oriundas de duas camadas linguísticas: a da língua transferida, herdada, que passa de pais para filhos; a da língua incorporada, aquela que não apresenta continuidade e que, via de regra, compõe-se de vocabulário, já que, em princípio, não se tomam de empréstimo sons, morfemas nem torneios sintáticos. Logo, as manifestações apuráveis nos textos, sobretudo os que documentam falas diversas da modalidade padrão, comprovam a intervenção do falante na evolução linguística. Vejamos o que disse o grandiloquente Rui Barbosa sobre mudanças nas línguas: Não há língua definitiva e inalteravelmente formada. Todas se formam, .reformam e transformam continuamente. Quem o não sabe? Que homem de medianas letras hoje o ignoraria? (in BARBOSA, Rui, “Réplica”. Imprensa Nacional, Rio, 1904). Entretanto, a informação sobre o fenômeno da mutação linguística precisa chegar ao falante de uma forma bastante significativa para que o incite a observar sua própria língua como algo vivo, em movimento. A escola tradicional pautou o ensino do vernáculo na exclusividade do texto modelar, e este era o considerado clássico. Em contraponto, meio que perdida no emaranhado e na abundância de descobertas científicas difun didas em alta velocidade, a escola contemporânea (salvo exceções) acabou por resumir-se ao texto da comunicação de massa (jornais e revistas), como sendo a modalidade mais propícia à transformação das aulas de língua em sessões de língua viva e ativa. Postulando uma escola moderna, mas equilibrada, propomos o texto rico como o mais ajustado à produção de aulas eficientes. Entendemos como texto rico aquele que traz, além .de um conteúdo informativo ou provocativo relevante, mostras de uma língua real, que representa a fala
Isto nos leva a uma reflexão sobre o grau de complexidade apresen tado pelo texto rosiano e endossa a nossa ideia de buscar na poesia de Elomar um caminho para o entendimento das narrativas do escritor mi neiro. Observe-se que não queremos tão somente divulgar os dois artistas (G. Rosa e Elomar), mas, principalmente, alargar o horizonte cultural de nossos estudantes dando-lhes oportunidade de dialogar, não só com dados histórico-geográficos muitas vezes distantes de sua realidade imediata (lem bremos de O rato da cidade e o rato do campo), mas também com modelos de falas diferenciadas. Tais interações lhe favorecerão, a um só tempo, a aquisição de conhecimento enciclopédico e linguístico, demonstrando-lhe a importância de cada um dos dialetos e registros, através dos quais um povo revela sua visão de mundo. Portanto, operar em sala de aula com textos regionais com a meta de discutir o material fônico e gráfico de nossa língua não parecerá inútil ou inadequado aos olhos do estudante, pois ele verá ali retratado o movimento real da língua, sua dinâmica. E a opção por usar a música neste projeto, em especial a música de Elomar, é a tentativa de investir no trabalho com as sensações e as emo ções, lançando mão dos subsídios da semiótica de Peirce. na busca de uma melhor compreensão da linguagem, dos códigos e de suas tecnologias sem, contudo, obrigar o estudante a atravessar o semiárido dos textos-inoportunos e das nomenclaturas incômodas e improdutivas. Com esse projeto, pretende-se levar o estudante a reexperimentar o prazer que a língua nos traz nos primeiros balbucios, em que cada som articulado é saboreado e representa uma grande conquista. Vamos seguindo os poetas cavaleiros musicais: Caminhando e cantando, seguindo a canção... (Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré).
y -
Aulas de português: parada de sucessos
J — '
São históricas as discussões acerca do insuficiente desempenho esco J —
lar no âmbito da leitura e produção de textos em língua materna. Este problema se reflete no rendimento escolar em geral, uma vez que todas as disciplinas dependem de domínio do vernáculo. Discentes e docentes apresentam dificuldades na expressão linguística, o que é comprovado pelas dificuldades de comunicação (sobretudo escrita) nos exercícios e tarefas. Docentes se assustam ante as respostas obtidas. Discentes reclamam do não entendimento dos enunciados. Em suma, a comunicação linguística em português não anda bem. Em função dessas dificuldades, vimos desenvolvendo estudos e pesquisas que possam minimizar os problemas de comunicação em sala de aula e, por conseguinte, auxiliar a formação de usuários de língua mais competentes no que tange à fluência de leitura e produção textual. Em nossas elucubrações e conversas com o público envolvido (docentes e discentes), temos concluído que um dos principais problemas (se não o principal) é a opção didática. Métodos e técnicas de trabalho em classe — repetidos historicamente — não têm conseguido estimular professores nem alunos, porque os resultados são cada vez menos significativos. A despeito de todas as intervenções dos recursos audiovisuais, da informática etc., as aulas de português (com poucas exceções) continuam sendo tempo-espaço de muito esforço e pouco resultado para professores e alunos. Estudiosos contemporâneos de diversas áreas não têm poupado esfor ços na busca de explicações psicopedagógicas e culturais ou estratégias didático-pedagógicas para a melhoria do ensino. Neste âmbito convém lembrar que o problema da escola brasileira não é só a língua nacional. A amplitude da crise no panorama educacional brasileiro e na escola em particular transcende a dificuldade do ensino-aprendizagem do vernácu
104 ESTUDOS API .IÇADOS
mola mestra no processo de ensino-aprendizagem em geral, já qué é o código-base para as interações interpessoais, independentemente de área ou tema, portanto, o não domínio ou domínio deficitário da língua por tuguesa (nossa língua) resulta em graves sequelas educacionais, mormente no âmbito da instrução escolar. Observe-se que adotamos a expressão instrução escolar , uma vez que não se pretende aqui usar educação e instrução como sinônimos. Logo, focaliza-se a intervenção escolar no plano da preparação do indivíduo para a interação social fundada no conhecimento amplo de si mesmo e do mundo que o cerca. Para tanto, impõe-se a instrução linguística. Há muito que se vem sofisticando o dizer sobre os temas relacionados a ensino-aprendizagem em geral e à formação linguística em especial. No entanto, pensadores contemporâneos chamam a atenção dos estudiosos acerca da importância da organização do saber humano, o qual, a seu turno, demanda o entendimento e o melhor aproveitamento de nosso potencial intelectivo. O homem nasce apetrechado para tarefas cognoscitivas de alta complexi dade; contudo, é preciso exercitar seu potencial para que tais tarefas sejam realizadas com êxito. Refletindo com Morin (2002: 490) e admitindo que o conhecimento é uma tradução do que captamos do mundo, cumpre enfatizar a impor tância da religação dos saberes (tema da obra citada) no sentido de que a aprendizagem humana seja lida como consequência de um encadeamento racional de curiosidades. Estas, por sua vez, resultariam do contato com o desconhecido, o novo, o diferente, a partir do que o homem seria provocado a descobrir, seria tentado a realizar algo. A tradição fraginentadora do saber, materializada no modelo disciplinar, acabou por promover um esmigalhamento dos saberes (cf. Joêl de Rosnay apud Morin, 2002: 493), e a dinâmica da vida contemporânea tende a re sultar num estilhaçamento das informações, dos conteúdos, de modo que o estudante hodierno vê-se cada vez mais perdido, incompetente e impotente para acompanhar o fluxo das informações oriundas da mídia, da informática, das vivências íntimas e públicas, e, por fim, da escola. Por que a escola em último lugar? Pelo simples fato de ser esta o objeto menos atraente, ante os demais que se oferecem ao homem do século XXI. Nesta perspectiva, vê-se a escola em plena desvantagem em relação às demais instituições que viabilizam as interações: clubes, agremiações,
AULAS DE PORTUGUÊS: PARADA DE SUCESSOS 105
à escola, vêm buscando mêios e modos de conquistar clientela, ampliar seus quadros de “associados”, fisgar o afiliado por meio de sensações de prazer e segurança. Segundo estudo de uma de nossas orientandas, “qual quer movimento (...) que aponte convicções fornece um sedutor apelo de segurança aos indivíduos e, por isso, tende a ter mais sucesso na obtenção de adeptos” (Farah, 2004). A despeito disso, as salas de aula (salvo exce ções) têm conseguido tornar-se locais de desconforto, de incompreensão, de intolerância, enfim, de incomunicabilidade. O momento histórico é de conflito e questões relativas à inclusão social são bandeira das discussões deste início de século. Rosnay (in Morin, 2002) assevera que uma atitude pautada na síntese seria uma grande saída para a reorganização dos sistemas de transformação sociocultural. Pela síntese seria possível realizar a pretensão da abordagem sistêmica (em lugar da enciclopédica), canalizando a pesquisa e o ensino para a comunicação e a interação no sentido mais restrito: o do intercâmbio. Nessa linha de raciocínio, nossa hipótese assenta-se na operação com sistemas de signos complexos (de natureza diversa), mas que funcionam solidariamente na produção dos textos do mundo e que, por isso, mostram-se completamente inseridos numa visão ecossistêmica e se nos permitem cruzar dados de uns para outros, de modo que se autoiluminem, facilitando assim a inteligên cia dos fenômenos e a compreensão da natureza cósmica e humana. No entanto, para que isto se dê de modo adequado, é preciso rever o modelo de aprendizagem que está sendo perseguido e confrontá-lo com o que está sendo requerido. O estudante hodierno, em consequência dos muitos estímulos que o envolvem (e às vezes sufocam), precisa encontrar significado nas coisas a que se dedica. Logo, o paradigma didático-pedagógico mais ajustado à ansie dade do aluno contemporâneo é a chamada aprendizagem significativa (cf. Moreira, 1999: 20), que consiste num processo cuja essência é que ideias simbolicamente expressas sejam relacionadas — de forma não arbitrária e não literal — à estrutura cognitiva do aprendiz, ou melhor, ao que ele já sabe. Um dos caminhos para que se atinja tal modelo pedagógico é o trabalho interdisciplinar. A interdisciplinaridade articula o conhecimento sem dissolver a es pecificidade dos campos do saber nem negar as disciplinas escolares. Todavia acaba com a prática escolar fragmentada. A contextualização, por sua vez, reinsere o conhecimento específico no âmbito da vida,
1U0 .ESTUDOS APLICApOS
AULAS DF. PORTUGUÊS: PARADA DE SUCESSOS 107
correm as autonomias de pensamento e de atuação onde cada qual se vê como um e como parte de um grupo maior. A formação para a autonomia, a diversidade e a constituição e o reconhecimento de identidades pressu põem formação na autonomia, na diversidade, constituindo e reconhecendo identidades. O desenvolvimento pessoal e a preparação para a cidadania e o trabalho pressupõem a construção da efetiva autonomia intelectual do educando, para que ele possa transitar com desenvoltura pelos diversos contextos da vida em sociedade.
Em virtude disso e levando em conta outras pesquisas realizadas ou orientadas, chegamos à conclusão de que é urgente renovar as aulas de português, para que o aluno se torne usuário eficiente da língua nacional e, por conseguinte, atinja a condição de aluno produtivo em todas as disciplinas, uma vez que, obtida a fluência linguística indispensável, este aluno se tornaria capaz de ouvir/ler/compreender os textos que se lhes apresentassem, da mesma forma que estaria apto a produzir textos (orais e escritos) compreensíveis para outrem.
Concordando com Eurides de Brito Silva (s/d) entendemos que o currículo escolar é o fundamento do sucesso ou do fracasso das práticas escolares. Segundo o estudioso, o currículo de qualidade é aquele que faz
Perseguindo esse objetivo, vimos desenvolvendo projetos diferenciadores (que atualizam a ideia de estudo pautado na síntese e na transversalidade dos temas — conceitos e- operadores —, conforme propõe Rosnay), do paradigma convencional das aulas de português. Por um lado, decidimos construir uma proposta de ensino multidialetal, a partir do que não só seria possível ampliar o potencial verbal vernáculo do estudante, mas também ampliar o debate e as ações sobre a dita inclusão social. Por outro, estimu lar a exploração de sistemas complexos (onde entra a letra de música) que efetivem a troca cultural e modifiquem os caminhos já trilhados (e nem sempre bem-sucedidos) pelas práticas didáticas de língua portuguesa. Ain da hoje o aluno consegue concluir o ensino médio sem fluência verbal, especialmente no uso padrão.
a integração horizontal e vertical de conteúdos significativos dos diversos componentes curriculares, transformando a escola num ambiente vivo de aprendizagem. Sua visão curricular destaca uma aprendizagem fundada na
prática de trabalhos que desafiem a compreensão do diferente e a busca de soluções diante de situações novas típicas de uma sociedade em constante mudança. Tal modelo curricular atende aos princípios básicos da interdisciplinaridade, entendida como diálogo constante dentro de cada área de conhecimento e entre as áreas de conhecimento e a contextualização, concebida como a vinculação do conteúdo ao social, buscando aproximar o aluno da sua cultura.
Silva (2004) afirma que trabalhar com textos de tipologia diversa e produ zidos por diferentes setores da cultura nacional significa, em última análise, 1. Au l a d e po r t u g u ês n o s é cu l o XXI
Em outro de nossos estudos (Simões, 2003: 23), apontamos o seguinte conjunto de problemas presentes em nossa sala de aula: a) sem-número de recursos não verbais utilizados nos veículos de comunicação de mas sa desenvolvem hábitos distanciados da escrita; b) texto verbal divide espaço com uma infinidade de outras linguagens; c) a falta de hábito e a consequente inabilidade de “leitura” empobrecem o repertório do estudante e reduzem-lhe o potencial temático, em decorrência de uma visão fragmentada de mundo, pois para exprimir-se é necessário que se estruturem os esquemas mentais, que se organize o pensamento; d) a seg mentação, a diferenciação e estigmatização linguísticas cada vez maiores fortalecem a estratificação social; e) o “bombardeio” da oralidade como concorrente para um relaxamento expressional (sobretudo verbal) que afasta mais e mais o falante do domínio do uso padrão e da escrita no
O trabalho da pesquisadora levou a termo uma de nossas discussões acerca da implementação de aulas de português a partir de letras de música brasileira.
dar ao aluno meios e instrumentos para uma leitura plural do mundo.
É ainda Silva (op. cit.) quem diz que a pobreza vocabular retratada numa obra pode funcionar como estímulo à paralisia linguística , a partir do que o estudante, ou usuário da língua em geral , passa a contentar-se com a umeia dúzia” de palavras que domina ,
o que, a nosso ver, é a concretização do confinamento social, uma vez que as interações se realizam (via de regra) linguisticamente; e quanto maior for a versatilidade do falante, maiores serão suas oportunidades de comunicação e expansão sociocultural. Aproprio-me então de palavras de Silva, sobre a importância da expansão linguística e do conhecimento de mundo advindo do trabalho com textos de modalidades diversas, o que daria ao estudante condições de aprimoramento da capa cidade de expressão verbal em sua ampla variação idiomática, com ênfase
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Na busca de textos que contemplem a mais ampla variedade idiomática e estilística (uma vez que os usos indicam estilos diversos de ver e representar o mundo), temos encontrado na música brasileira uma grande aliada, já que permite sejam reunidas as responsabilidades e os prazeres de modo a tornar as aulas de português agradáveis e produtivas.
- 2. A MÚSICA E O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA: UM PROJETO O projeto que ora vimos desenvolvendo objetiva a construção de estra tégias didáticas de base semiótico-estilística destinadas à implementação de um ensino do idioma a partir da exploração de letras de música brasileira. Trata-se de estudo voltado para a variação linguística e para a análise dos contornos icônicos e expressivos presentes nos textos musicais, a partir dos quais o estudante é informado sobre a norma gramatical, a riqueza lexical e a consequente importância da escolha das palavras na produção textual. Esta perspectiva contempla um indivíduo dotado de sensibilidade que precisa ser trabalhada em prol de seu aprimoramento estético, ético, moral e social. Sobre a estética da sensibilidade, os PCN asseveram que, como expressão do tempo contemporâneo, a estética da sensibilidade vem substituir a da repetição e padronização, hegemônica na era das revolu ções industriais, com vistas a estimular a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a afetividade, para facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente. A análise de letras de música de indiscutível valor literário vem ser vindo como base para a demonstração da competência linguística de seus autores, tomada como referência para o aperfeiçoamento vernacular dos estudantes. Para tanto, não apenas a seleção dos objetos textuais se impõe, mas também a moldura teórica se mostra fator relevante para nossas considerações, uma vez que estas vão alicerçar a orientação de processos de leitura e produção textual que permitiriam ao indivíduo a sua realização como homem integral. A medida que chegamos a dispor de uma riqueza maior nos meios de expressão, um elemento comum entre as tendências diversas emerge mais claramente (cf. Fischcr, 1973) e assim nos tornamos mais livres e felizes. Liberdade e felicidade são componentes da formação do homem integral, uma vez que sinalizam com a possibilidade de autorrealização.
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Já trouxemos a este texto, lembrando Rosnay, a questão dos temas transversais dos quais emergem abordagens multidimensionais que, a seu turno, chamam à cena pressupostos teóricos da mais variada natureza. Na vertente que questiona um ensino linguístico predominantemente gramaticalista e propõe uma abordagem funcional interacionista, des tacamos a semiótica e a estilística como enquadres obrigatórios para a descrição linguística contemporânea. Um ensino voltado para a eficiência comunicativa tem de pautar-se na relatividade dos signos e significados, ao mesmo tempo que precisa propiciar a percepção/interpretação da conexão entre aqueles na dinâmica da produção de sentidos. Nesse plano atua a teoria semiótica, uma vez que gerencia as oposições e correlações construídas nâ superfície dos textos e viabiliza a produção de interpretações plausíveis, ainda que não únicas. Ao lado disto ganha relevo a estilística que vem dialogar com a gramática normativa e possibi litar a validação (ou não) de enunciados que se mostrem transgressores em determinados aspectos. A perspectiva de um ensino multidialetal fundamenta suas hipóteses em premissas estilísticas, uma vez que cada dialeto, falar ou uso linguístico não é senão a manifestação de uma visão de mundo diferenciada e representada em linguagem. Por isso, optamos pela exploração da letra de música em nossas aulas, já que neste gênero textual reconhecemos as seguintes vantagens: a) possi bilidade de lidar com um universo textual conhecido, propiciando assim a condução didático-pedagógica na linha da aprendizagem significativa; b) garantia de abordagem interdisciplinar imediatamente deflagrada entre lite ratura e música e t) oportunidade para a discussão das diferenças culturais a partir dos usos linguísticos documentados nas letras de música. A Base Legal das Instruções para Reformulação Curricular do Ensino Médio (PCN) intenta promover o reconhecimento da historicidade do processo de produção do conhecimento. Por isso, preconiza que a con cepção curricular seja transdisciplinar e matricial, de forma que as marcas das linguagens, das ciências, das tecnologias e, ainda, dos conhecimentos históricos, sociológicos e filosóficos sejam vistos como ingredientes da pro dução de uma leitura crítica do mundo e estejam presentes em todos os momentos da prática escolar. Muito antes da divulgação desses parâmetros, já desenvolvíamos uma prática com essa perspectiva. Nossas pesquisas têm explorado, entre outras, a obra de Elomar Figueira Mello.
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Além do universo histórico-geográfico que descortina-com sua obra, Elomar tem servido de comprovação para a tese de que o falante deve ser um poliglota em sua própria língua. Cumpre acrescentar que, diferentemente do que pensam os leigos, os cantadores sertanejos em geral são pesquisa dores por conta própria, para suprir a obrigação de cantar temas dos mais variados (cf. Amorim, in Oliveira, 2003: 119). Elomar, por exemplo, além de sua formação acadêmica (graduado em arquitetura e estudioso de mú sica), sempre foi um leitor contumaz, e os clássicos sempre foram fonte de inspiração para suas obras. E patente que a música e a literatura produzidas no interior do país apresentam-se como um manancial quase virgem para a exploração linguística, sobretudo, uma vez que depois do Dialeto caipira (Amadeu Amaral) e do Linguajar carioca (Antenor Nascentes), quase nada apareceu sobre os usos diferenciados de nossa língua com a profusão de detalhes contida nestas obras. Ao lado de uma perspectiva linguístico-literária, persegue-se toda a gama de informações socioculturais emergentes dos textos, demonstrando assim a importância da leitura e da exploração deste material. Os estudos já realizados têm propiciado o levantamento de estratégias discursivo-textuais inscritas nas letras selecionadas ao mesmo tempo que permite a identificação da música como documento cultural. Finalizando este aparte metodológico (e ideológico!), salientamos que as letras de música têm-se mostrado como material de alta produtividade nas classes de língua portuguesa. Como as considerações sobre a fala e a escrita incluem a dificuldade de operar com os fenômenos fôni-cos da língua (por conta de uma tradição de ensino que os tornou totalmente antipáticos), temos podido explorar a produção musical nacional (sobretudo a MPB) com vistas a descrever e documentar a riqueza de nossa língua seja numa perspectiva histórica (diacrônica) ou sincrônica. Em virtude da explosão de produções ditas musicais no cenário na cional, verifica-se uma oportunidade de trazer à sala de aula a apreciação crítica das letras veiculadas pelo rádio, televisão, gravadoras etc. O preparo linguístico do cidadão hodierno demanda capacidade de avaliação de textos, sobretudo no que concerne à informatividade. Em se tratando de criação musical, que, em princípio, seria produção artística, acresce-se a exigência de usos criativos da língua. Portanto, o material disponível no mercado fonográfico nacional coetâneo é abundante; e, do ponto de vista da documentação de usos linguísticos variados, pode-se considerá-lo recurso didático farto e produtivo.
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É muito mais fácil estimular a apreciação de .páginas da música que se ouve nos rádios e tevês, pelo simples fato de ser material próximo do estudante, é objeto conhecido; difere dos textos “de proveta”, criados ex clusivamente para exemplificação de fatos da língua e que, quase sempre, soam artificiais ou mesmo absurdos. Como nosso objeto imediato é a descrição da fala e çla escrita e as interven ções de uma sobre a outra, as letras de música podem ser consideradas excelente corpus a ser explorado nas aulas que têm o registro escrito da língua como meta, contemplando os reflexos do que se diz no que se escreve. Na seção seguinte, trazemos uma sugestão de trabalho com letra de música amplamente veiculada pela mídia.
3. Uma il u s t r a ç ã o s o br e o a p r o v e i t a m e n t o d a s l e t r a s d e m ú s i c a
Com vistas a demonstrar uma possível aplicação da descrição fonológica a uma letra de música, trazemos uma composição de autoria de Gilberto Gil e Liminha, “Vamos Fugir”. Eis a letra: Vamos fugir (v.l) / Deste lugar, baby (v.2) / Vamos fugir (v.3) / Tô can sado de esperar (v.4) / Que você me carregue (v.5) / Vamos fugir (v.6) / Proutro lugar, baby {v.l) I Vamos fugir (v.8) / Pronde quer que você vá (v.9) / Que você me carregue (v.10) / Pois diga que irá (v. 11) / Irajá, Irajá (v. 12) / Pronde eu só veja você (v. 13) / Você veja a mim só (v. 14) / Marajó, Marajó (v. 15) / Qualquer outro lugar comum (v. 16) / Outro lugar qualquer'(v. 17) / Guaporé, Guaporé (v. 18) / Qualquer outro lugar ao sol (v. 19) / Outro lugar ao sul (v. 20) / Céu azul; céu azul (v. 21) / Onde haja só meu corpo nu (v. 22) / Junto ao seu corpo nu (v. 23) / Vamos fugir (v. 24) / Proutro lugar, baby (v. 25) / Vamos fugir (v. 26) / Pronde haja um tobogã (v. 27) / Onde a gente escorregue (v. 28) / Todo dia de manhã (v. 29) / Flores que a gente regue (v. 30) / Uma banda de maçã (v. 31) / Outra banda de reggae (v. 32). Trata-se de uma letra de estrutura simples e ritmo leve ( reggae) oriundo da culttira jamaicana. Gilberto Gil, apreciador de Bob Marley, destaca-se como divulgador do estilo reggae no Brasil. E possível verificar no texto do compositor baiano, alterações fonológicas típicas da fala cotidiana como: a) Tô (v.4) - subtração de fonemas iniciais e finais: estou > tô; b) Proutro (v.7) - contração das
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formas para (>pra) + outro = proutro; c) Pronde (v.9) - o mesmo processo se repete em para (>pra) + onde = pronde.
O mesmo itinerário estrutural apresentam as rimas formadas por: tobogã / manhã / maçã. Apenas a vogal nasal final sustenta a rima.
Outro fato interessante e de vezo estilístico-semiótico é o aproveitamento da semelhança sonora de vocábulos, independentemente de seu conteúdo semântico. Vejamos: Pois diga que irá / Irajá. Irajá (w. 11-12).
Mais uma rima interessante é a que se apresenta em: Qualquer outro lugar ao sol I Outro lugar ao sul. Os vocábulos sol e sul constituem uma
Nestes dois versos, o autor associa a forma verbal irá ao advérbio de -tempo já, do que resulta o vocábulo Irajá, que é topônimo de um bairro do Rio de Janeiro. Esta construção reforça iconicamente a ideia de deslo camento espacial. Na trilha de usos vocabulares de denotação locativa, surgem Marajó (para rimar com só), Guaporé (rimando com qualquer ) e reforçados pelas ideias dos versos Qualquer outro lugar ao sol / Outro lugar ao sul (w. 19-20), além de evocarem substância fônica de línguas aborígines: Irajá, Marajó e Guaporé. (Três lugares onde há forte movimento reggae). A referência a sol e sul são índices textuais para Marajó e Guaporé: este situado ao sul do país (Rio Grande do Sul); aquele em posição acima da linha do Equador, portanto, local de clima quente nos paralelos do sol. O sol ainda serve de referência para Irajá. Tratando-se de bairro do Rio de Janeiro (XIV Região Administrativa de Irajá), ainda que em área não litorânea, está a poucos quilômetros das praias que, metonimicamente, podem ser substituídas por sol. Além disso, Rio de Janeiro é cidade de parte do país conhecida como Sul Maravilha. Logo: sul também serve de referência para Irajá. Voltando às rimas, entre Marajó e só, tem-se a rima toante: em que só há identidade de sons nas vogais, a começar das vogais ou ditongos que levam o acento tônico, ou, algumas vezes, só nas vogais ou ditongos da sílaba tônica. Assim: jó / só. Na rima entre Guaporé e qualquer , vê-se a ênfase da fala popular que torna tal rima perfeita: as sílabas finais ré e quer são pronunciadas como simples complexas abertas, pois o travador vibrante [r] desaparece na fala cotidiana, dando lugar a um [e] tônico. Assim, temos: ré / qué , rima soante como a primeira comentada. O apagamento do travador se repete no par sul e nu, que rima de modo toante com base na vogal lul, uma vez que, na fala corrente (à exceção dos dialetos sulistas), o travador lateral sonoro /!/ se realiza como a semivogal Av/ que, por sua vez, é assimilada pela vogal similar, promovendo a pronúncia ísul perfeitamente combinável com /'nu/.
rima denominada impura heterofônica ou metafônica, uma vez que, em bora assentada exclusivamente nas vogais, são distintas quanto ao timbre (Tavares, 1981: 217). Este fenômeno se repete em várias letras de música brasileira, sobre tudo no movimento da Bossa Nova. Vejam-se, por exemplo, os versos de Ronaldo Bôscoli em “Rio”: Rio é mar! Eterno se fazer amar / O meu Rio é lua! Amiga, branca e nua! é sal é sol é sul/ São mãos se descobrindo em tanto azul (...) Observe-se que a sequência vocálica constrói o balanço da música por intermédio do fechamento paulatino do timbre da vogal: sal /a/ - central baixa aberta; sol hl - posterior média aberta; sul lul - posterior alta fechada. Numa representação gráfica teríamos:
Ainda no caminho das rimas, verifica-se nesta letra o aproveitamento máximo da semelhança fônica: homofonia. Observem-se as formas: carregue, escorregue. regue, reggae. Os segmentos sublinhados representam graficamente a mesma sequência sonora: Are gl/ (que corresponde a régui). Do ponto de vista estilístico-semiótico, tem-se neste fato a produção de uma imagem sonora reiterada de reggae, o que funcionaria como um ícone desse ritmo a ecoar na mente dos ouvintes. Trata-se de uma exploração artística da substância fônica projetada no nível da seleção vocabular. Mais adiante, outro fato fonossemântico se sobressai: a polissemia. Vejamos os versos: Uma banda- de maçã / Outra banda1 de reggae. Os vocábulos grifados nos dois versos são idênticos quanto à sua configuração fônica e gráfica. São ainda pertencentes a uma mesma classe gramati cal: substantivo. No entanto, a noção que carregam é distinta. Banda1 significa pedaço fatia (metade de alguma coisa, [Houaiss, s.u]; banda1
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significa conjunto musical (ou ainda: agrupamento músico de número de componentes e formação instrumental variada , que em geral executa música popular , ou marchas militares.[Amé\io, s.ti.]; ou conjunto de música popular urbana [Houaiss, s.u]. Observe-se que, do ponto de vista semântico, a alusão a locais como reitera a opção rítmica representada por '‘Vamos fugir”, já que se trata de locais em oposição extrema: norte e sul do Brasil. Ade mais, a origem jamaicana do reggae aguça a curiosidade de saber mais sobre a Jamaica. Por isso, para arrematar este estudo linguístico, incluímos alguns dados enciclopédicos que podem ser úteis a docentes e discentes que queiram trabalhar a letra “Vamos fugir”.
Palavras finais
Marajó e Guaporê
Encerramos aqui nossa pequena mostra de um trabalho que se pro põe bastante rico tanto do ponto de vista linguístico quanto cultural. Em continuidade, o professor poderá propor uma pesquisa sobre: reggae, Bob Marley, Jamaica, Irajá, Marajó, Guaporé etc.
Reiteramos o que foi dito na primeira edição: a organização deste livro é totalmente despretensiosa quanto a solucionar as dificuldades com a fonologia ou a ortografia da língua portuguesa. Todavia, temos por meta auxiliar nossos colegas, repassando noções que consideramos de grande relevância quando do ensino-aprendizagem da língua materna. Na qualidade de professora pesquisadora da língua portuguesa, cada dia com mais afinco, centramos nossas ações no aperfeiçoamento do processo de transmissão das informações linguísticas com fundamentação técnico-científica (que é essencial) e com uma visão crítica do trabalho realizado em sala de aula. Acreditamos que a eficiência do ensino da língua materna não depende exclusivamente da complexidade (ou não complexidade) dos conteúdos a transmitir, mas de uma metodologia apropriada que torne as aulas de língua portuguesa agradáveis e eficien tes. Para tanto, é preciso associar o rol de conteúdos de um curso aos objetivos da clientela, para que haja um mínimo de relevância prática nos itens discutidos e exercitados. É muito comum ouvir de nossos alunos lamentações quanto à utili dade ou aplicabilidade deste ou daquele item gramatical trabalhado em classe. Isto não é um dado gratuito, mas um sinal amarelo — ATEN ÇÃO! — que se acende diante de nossas aulas, apontando que algo precisa ser modificado. Partindo dessa preocupação, vimos nos dedican do a discutir os conteúdos e as metodologias de trabalho, visando, no mínimo, a apresentar sugestões de abordagens que suavizem o estudo gramatical, tornando-o algo necessário em decorrência da conscientização sobre suas aplicações. Cremos que o título Considerações sobre a fala -e a escrita — Fo?2o/odeixa claro que nossa intenção não seria a descrição minuciosa do sistema fônico da língua portuguesa falada no Brasil (que
gia em nova chave
116 KSTUIX )S APLICALX )S
já conta com relevantes trabalhos, como: Mattoso Câmara Jr., 1953; Aragão, 1997; Mollica, 1998; Morais, 1999: Bisol, 2001; Silva, 2001; entre outros); mas a discussão dos caminhos metodológicos que se têm seguido no ensino-aprendizagem da língua portuguesa (sobretudo na modalidade escrita). Ve rificamos, ao longo de nossa atuação docente, que muito do desinteresse do aluno pelo estudo da língua em geral e da fonologia, em especial, assenta-se não no objeto a estudar, mas na forma como é estudado. Por isso, o que ^apresentamos neste pequeno manual é destinado precipuamente ao trabalho didático com a‘ língua portuguesa. Pretende-se deixar elementos que promo vam a reflexão docente acerca de certos equívocos avaliatórios da produção escrita discente, motivados pela desconsideração do intercâmbio irrefutável entre as modalidades oral e escrita. Se não demos conta da intenção, pelo menos, tentamos.
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