Carlos elson Coutinho
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CULTURA ESOCIEDADE NO BRASIL E SAIOS SOBRE IDEIAS EFORMAS
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Uma d as principais características que marca a produção intelectual de Carlos Nelson Coutinho é a vinculação de suas reflexões teóricas (a crítica filosófica e Literária) e a análise histórico-política (especialmente da fonnação social brasileira) às lutas sociais do povo brasileiro. Essa vinculação é também marcante em Cultura e sociedade no Brasil., uma reunião de diversos ensaios, escritos ao longo d e mais de 40 anos - o primeiro d eles data de 1965 e o mais recente é de 2006. São vários os aspectos que trazem unidade a este livro: a perspectiva marxista adotada na análise dos diferentes temas; a preocupação em compreender os diferentes aspectos da dinâmica da formação social brasileira, e seus reflexos tanto na cultura através do trato de romancistas brasileiros e também do papel do intelectual em uma sociedade como a brasileira - quanto na anáJjse política, ao traçar reflexões sobre três importantes intérpretes marxistas da reaJjdade brasileira. A compreensão d e que forma e conteúdo constituem uma unidade, assim como a de que a sociedade d eve ser sempre analisada a partir do ponto de vista d a totalidade é algo presente ao longo de todo o livro. Nesse sentido, pode-se perceber a marcada influência de dois pensadores marxistas: Gyõrgy Lukács e Antonio C ramsci, "que nos ensinam a ver nas formas e nas ideias
algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso: formas e ideias são também expressão condensada de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentálas e superá-las." O processo d e constituição d a formação social brasileira é outro aspecto que percorre todo o Livro, principal.mente ao analisar as transformações sócio-
políticas ocorridas ao longo da história brasileira, marcad as pela manutenção no padrão de dominação de classe, que são caracterizadas pelo autor com as categorias d e "via-prussiana" ou " revolução passiva". É a partir dessa perspectiva que Carlos Nelson Coutinho busca compreender o significado da produção teórico-cultural e o legad o de autores como Graciliano Ramos, Lima Barreto, Jorge Amado, Caio Prado Junior, Florestan Fernandes e Octavio Ianni ao terem como tema a realidade brasileira, seja na construção de obras literárias, seja na construção de reflexões teóricas. A unidade entre esses diferentes autores e temas trabalhados pode ser encontrada na constante preocupação que todos eles nutriam: a de não apenas interpretar a realidade, mas também de transformá-la.
Copyright C 1990, Carlos Nelson Coutinho Copyrighc dcsca edição© 201 1, F.dicora Expressão Popular ltda.
Revisão: Maria Ekti11t Andrtoti Lmagcm da capa: lasar Stgall Paistzgnn br11Jilnr11 (1925, pintura a óko SQbrt u fa, 64 x 54 cm) AcmJO do Museu LAsar StgaU - !BRAM/MinC Projeto da capa: Z4p Design Projeto grilico e diagramação: Krits Estúdio Impressão: Cromouu
Dados Internacionais de catalogação-na-Publicação (CIP) C871 c
Coutinho, carlos Nelson, 1943Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas I Gar1os Nelson Coutinho. -- 4.ed. -- São Paulo : Expressão Popular, 2011.
264p. Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br
ISSN978-85-n 43-187-8 1. Cultura - Brasil. 2. Sociedade - Brasil. 1. Titulo.
coo301 CDU 316.7 catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Para Todos os dirci1os reservados. Nenhuma parre desce livro pode ser utiliiada ou reprodui.ida sem a au1orizaçáo da editora. Nova cdiçáo ampliada Edição revista e acualiiada de acordo com a nova regra onogrífica. l • edição: Oficina do Livro, 1990 2ª e 3• edições: DP&A, 2002 e 2005 4• cd.içáo: Expressão Popular, outubro de 20 11 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA Rua Abolição, 20 1 - Bela Vista CEP O13 19-0 1O Sáo Paulo, SP Fone: (1 1) 3105-9500 I 3522-75 16 - Fax: (11) 3 112-0941
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Learidro Konder, lsnaia Veiga Sariema, Roberro Gabriel Dias (t), José Paulo Netto e Dariiel Tourinho Peres com quem tenho conversado sobre muitas coisas, até mesmo sobre estes ensaios.
Sumário
PREFÁCIO •••••••••••••••••• •••••• •• ••••••••••••• •••••••••••••••••• •••••••••••..•••• ••••••• •9
Os INTELECTUAIS
E A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA •••••••••••••••• ••••••••• . ••. 13
(ULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL . .......................................... ...... 35
Dois
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MOMENTOS BRASILEIROS DA ESCOLA OE FRANKFURT .................... 73
SIGNIFICADO DE LIMA BARRETO EM NOSSA LITERATURA ••••.••••••• •.• •••• 89
G RACILIANO RAMOS .................... ........ .................. .................. 141
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POVO NA LITERATURA DE JORGE AMADO . . . .......... ........... ........... 195
A IMAGEM DO B RASIL NA OBRA DE ÚIO P RADO J úNIOR ........... ...... 201 MARXISMO E "IMAGEM DO B RASIL" EM FLORESTAN FERNANDES .. ...... 221
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LEGADO DE ÜCTAVIO IANNI ............. . .. .......... ......................... 241
NOTA BIBLIOGRÁFICA ................................................................ 255
ÍNDICE ONOMÁSTICO . . ............... ..... ............. . .... .. ........ .. ... .. ................ 257
Prefácio
Reúno nesta coletânea os principais ensaios que escrevi, ao longo de ma.is de 40 anos, sobre as relações entre cultura e sociedade no Brasil. Durante um tão extenso período de tempo, certamente se alteraram tanto o âmbito de meus interesses temáticos quanto, muito provavelmente, alguns de meus juízos estéticos e ideológicos sobre figuras e movimentos da cultura brasileira. Contudo, não proporia uma leirura conjunta destes ensaios se não estivesse convencido de que eles possuem uma unidade substancial, tanto de método como de conteúdo. Embora o uso de categorias gramscianas se acentue nos ensaios mais recentes, matizando e requalificando a onodoxia lukacsiana facilmente percepáveJ nos mais antigos (sobretudo os de crítica literária), a unidade de método me parece residir num pressuposto comum a todos eles, o u seja: só é possível entender plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem relacionados d ialeticamente com a totalidade social da qual são, simultaneamence, expressões e momentos constitutivos. Enquanto marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam a ver nas formas e nas ideias algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso: formas e ideias são também expressão condensada de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las. Os ensaios desca coletânea, ainda que busquem respeitar a especificidade e a auronomia relativa das produções culturais que abordam, estão todos dirigidos para um objetivo principal: o de desvendar a problemática social que tais produções concribuem para elevar à consciência ou à autoconsciência. No plano do conteúdo, por oucro lado, penso haver um fio vermelho que atravessa os ensaios, dando-lhes relariva unidade: em todos eles, empenho-me sempre por demonstrar que o problema
CuLTUM r SOO!OADf NO BMSll
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central da cultura brasileira - ou seja, cm termos gramscianos, a
cultura democrática e nacional-popular no Brasil sem recorrer aos
escassa densidade nacional-popular de seus produtos - tem sua
melhores momentos do patrimônio culcural u niversal. 2) Os seis ensaios scguinccs abordam momentos privilegiados da construção daquilo que poderíamos chamar de " imagem alternativa do Brasil". Os dedicados a Uma Barreto, Gracilia.no Ramos e Jorge Amado, além de analisa.rcm algumas determinações gerais d e nossa evolução literária, centam mostrar como a grandeza das formas romanescas criadas pelos tr~ escritores resulta, cm grande pane, do fato de que tais formas simbolizam não s6 os im humanos rovocados r esse moddo rvcrso de modcrninção, ~caro os imp oricn os no senti o da criação de modos altcrnaâvos de vida e de organização social. Nesse mesmo eixo é que se situam os ensaios sobre Caio Prado Júnior, Florcstan Fernandes e Octávio lanni: o objetivo central das obras dos tt~ escritores paulistas me pa.rccc ser a compreensão conceicual dessa via "não clássica" de transição para o capicalismo, bem como de suas ddctérias consequências no presente brasileiro. Embora utilium diferentes meios cognoscitivos (formas simbólicas ou conc.citos científicos), as imagens do Brasil construídas por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Jorge A.ma.do, Caio Prado Jr., Florcsta.n Fernandes e Octávio lanni convergem num ponto essencial: daboram uma dura critica da moderniza ~o " russiana" ou "passiva e que mos vitimas e, ao mesmo tempo, propõem o esboço de uma alternativa nacional-popular e democrática para o nosso país. Embora não tenha alterado csscncialmcncc meu modo de pensar durante as quatro d6cadas que separam o ensaio sobre Graciliano Ramos daqudc sobre Occivio lanni - continuo, mesmo com o risco de me convcrtct num "animal cm extinção", a me considerar marxista -, modifiquei muitas das minhas posições: afinal, para n6s, muxistas, o único modo de não sermos "animais cm extinção" é assumirmos plenamente a condição de "animais cm mutação". Foi grande, assim, a tentação de rescrever os ensaios mais antigos, fu..cndo-os coincidir integralmente com meus atuais pontos de vista. Contudo, salvo no caso de umas poucas
gênese na ausência de um "grande mundo" democrático cm nossa sociedade (para repetir a expressão lukacsiana que utilli:o no ~ saio sobre Graciliano Ramos). a~cia que resulta dos processos de tran.Sformaçáo pelo alto ("via prussiana", "revolução passiva") que marcaram a história brasileira, impedindo ou dificultando a participação popular criadora nas vá.rias esferas do nosso ser social. A principal consequência dC$$a constelação s6cio-hist6rica no plano da vida cultural brasileira foi a p~ndcrância de uma cultura "ornamental", elitista. que muito SO:Utou a construção de wm efetiva consciência crítica nacional-popular entre nós. Essa preponderância, contudo, jamais signiScou monopólio: muitos dos ensaios aqui reunidos visam precisamente a resgatar figuras que se colocaram contra a corrente dominante. empenhando-se por revdar cm suas obras as graves distorções humanas e sociais ~cradas cm nosso país pela "via prussiana•. Ao 67.Cfêm isso, tais guras criaram ao mesmo tempo as bases para o florescimento de uma arte e de uma consciência social alternativas. Também busco indicar, cm alguns ensaios, a emergência das novas condições sociais que tomaram possfvd boje dcvar C$$a cultura crítica âlternativa à condição de cultura hcgcmônica - o que nada tem a ver, é importante sublinhar, com cultura "única• ou "oficial". Ao reunir aqui os ensaios, preferi dispô-los não na ordem cronol6gica cm que foram escritos, mas segundo dois eixos temáticos principais: 1) Os dois primeiros, sobretudo o que dá óculo à colcclnca, têm como meta discutir os problemas gerais da relação coere cultura e sociedade no Brasil, examinando, cm particular, o modo de formação de nossa incclocrualidadc. FJcs fornecem, cena maneira, o cnqUãdtãmcnto hiSc6rico-<:onccitual incroduc6rio para os de.mais textos. O terceiro, dedicado à recepção brasileira da Escola de Frankfurt, permite-me ilustrar, com um exemplo concreco, uma tese que defendo ao longo de todo o livro, cm particular nos dois primeiros cnsa.ios: a de que é impossfvd consttuir uma verdadeira
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CAia.os NWON CounNHO
Os intelectuais e a organização da cultura
revisões estilísticas e da supressão de uma formulação qwc hoje julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização do Brasil como "scmifcudal", contida na primeira versão do ensaio sobre Graciliano), preferi consc.rvar os ensaios cm sua forma original, mesmo quando eles &Iam de coisas hoje tão fora de moda, como "realismo socialista". Tomei a mesma decisão no que se refere à presença de formulações semelhantes cm d.ifetenres ensaios: suprimi-las talvez evita.sse repetições, mas com o risco de, muicas vezes, empobrecer ou tornar obscura a argumentação de cada ensaio tomado isoladamente. Além do mais, isso impediria o leitor de julgar se, cm tais possíveis repetições, já não estarão contidos alguns indícios daquela necessária mutação a que me referi. É o que sinceramente espero:
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úzrlos N~lson Coutinho Rio de Janeiro, kvcreiro de 2011
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A primeira edição claa colcdnca (Belo HorU.oncc, Oticína do Livro, 1990) oonlinha um cnsajosobre "A rca:pç'odc Gramsd no Brasil'", agora induldo, numa vcnioan ..linda, como apêndice ao meu livro Gn.msd Um m.M s.brr - ,_-mJJo polida (Rio de Janeiro, Ovili:zaçlo Brasilcira, 1999, p. 279-305). En:a o~udi.çk>da E:q>rcmo PopubT, além de reproduzir o cn.salo sobre. Florcstan Fum.ncles (íá conóclo nas duas edições da colmnca pubUadas pda edicora DPM. !Uo ~)~iro, 2000 e 2005,), i.nd.ul ainda os ensaios sobre Jorge Amado e Oetavio laruü.
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Gostaria de começar com úma questão terminológica. O título que me foi sugerido para esta exposição, "Os intelectuais e a organização da culrura", é - como se sabe - o título de uma coletânea de cscrioos do cárcere de Antonio Gramsci, que reúne precisamente os textos relativos à questão dos intelccrua.is e da relação deles com os mecanismos de reprodução culrural da realidade (sistema educacional, jonWismo etc.). Mas esse átulo náo é do próprio Gramsci. Os famosos Culnnos átJ cárc~ foram publicados a partir de 1948, sob a orientação editorial de Fel.ice Platone e Palmiro Toglian:i, náo na ordem cm que haviam sido escritos, mas agrupados segundo grandes temas, divididos cm seis volumes, cujos cículos foram escolhidos pelos próprios cdirores'. Pois bem: no caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci, como também não é muito frequente em suas notas a expressão "organiz.ação da culrura". Mas isso náo quer dizer que ela seja infiel ao espírito da reflexão gramsciana. AD contrário: cem um forte vínculo com o conceito de "sociedade civil", que, como se sabe, é um conceito central na obra do fundador do Panido Comunista Italiano. Em certo sentido, podemos mesmo dizer que, sem uma "organização da cultura", não existe sociedade civil no sentido gramsciano da expressão. Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito de Gramsci consiste cm ter "ampliado" a teoria marxista clássica Somcncc cm 1975, sob os cuidados cdi.corials de Valentino Gcmcana, foi publica4a (Qtuuúmí tk/ ellJ'mr, Turim, Eliuudi) uma cd~ a\tic:a, que não apcnu apttSC1112 os c:adcmos na ordem cm que foram csc:rit.os, mas fornece cambttn as ~tcs dos ccxcos e recolhe na lntqva oc aponcamcncos de G~.
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Cun·uM E SOCRDADE NO 811AS1l
C.W.0S NE1..50N COUTINHO
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do Estado. Ele viu que, com a intensificação dos p~ de socialização da política, com algo que de chama algumas vezes de "estandardização" dos comportamentos humanos gerada pela pressão do desenvolvimento capitalista, surge wna esfera social nova, d otada de leis e de funções relativamente autônomas e cspccí6cas e - o que nem sempre é observado -de wna dimensão material própria. ~essa esfc.ra que de vai chamar de "sociedade civil", introduzindo uma novidade terminológica com relação a Marx e Engels (para os quais "sociedade civil.. é sinônimo de relações de produção econômicas). mas retomando alguns aspectos do conceito tal como aparece cm Hegel (que introduz.ia na sociedade civil as "corporações", isto é, associ.açócs político-econômicas que, de cerco modo, podem ser vistas como formas primitivas dos modernos sindicatos). Nessa nova situação, ou seja. nas fom>açócs sociais que Gramsci chama de "ocidentais" por contraste com as "orientais" e mais primitivas, o Estado - os mccânismos de poder - não se limita mais aos institutos de dominação direta, aos mecanismos de cocrçáo; cm suma, ao que Gramsci chama ora de "Estado cm sentido estrito", ora de "sociedade política", e que de identifica com o governo, com a burocracia executiva, com os aparelhos policial-militares, com os organismos repressivos cm geral. É daro que tais institutos continuam a existir nas sociedades "ocidentais" mais complexas; continuam a ter papel fundamental na reprodução da sociedade segundo os intcrcSSCS de uma classe dominante. Mas, ao lado ddes, Gramsci ve a emergencia da "sociedade civil". E o que especifica essa sociedade civil é o &to de, através dela, ocorrerem rdaçõcs sociais de direção políticoideológica, de hegemonia, que - por assim dizer- "completam" a dominação estatal, a coerção, assegurando também o consmso dos dominados (ou assegurando tal consenso, ou hegemonia, para as forças que querem destruir a vdha dominação). Pode-se observar que também as formas anteriores de dominação de classe, as formas abertamente ditatora.i.s ou autoritárias, apoiavam-se na ideologia, careciam de algum modo de legitimação
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e consenso para poderem funcionar. Papel decisivo, na c.onquista dessa legitimidade por um Estado, digamos, de tipo absolutista, vinha da ideologia religiosa: a Igreja era um "aparel.ho ideológico de Estado", fundamental na época do absolutismo. Basta pensar, por exemplo, na ccoria do "direito divino" dos reis, da origem di\'.Ílla da soberania do monarca. Não usei por acaso o termo de Louis Althusscr, "aparelhos ideológicos de Estado", que a meu ver não é sinônimo do termo gramsciano "aparelhos 'privados' de hegemonia", com o qual Gramsci denomina os organismos da sociedade civil. Não quero aqui entrar na discussão sobre o valor do conceito de Althusser, mas apenas me servir dde para indicar uma diferença histórica. Na época absolutista. é justo dizer que a Igreja, por exemplo, é um "aparelho ideológico de Estado". E por quê? Porque havia uma unidade indissolúvd entre Estado e Igreja: a Igreja não se colocava como algo "privado,, cm face do Estado c.omo entidade "pública... A ideologia que da veiculava (e não se deve esquecer que da.controlava todo o sistema escolar) não tinha nenhuma autonomia cm relação ao Estado propriamente dito. O Estado impunha a sua ideologia de modo tão coercitivo como impunha a sua dominação cm geral: quem discordava dessa ideologia cometia wn crime contra o Estado. Com as revoluções democrático-burguesas, com o triunfo do liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar de laiciz.açáo do Estado. As instâncias ideológicas de legitimação passam a ser algo "privado" cm relação ao "público": o Estado já não impõe uma religião, ou uma visão do mundo cm geral; a rcligiáo deve conquistar consci~ncias, deve confrontar-se, entrar em luta contra outras ideologias, contra outras visões do mundo. Criam-se assim, enquanto portadores materiais dessas visões de mundo, o que Gramsci chama de •aparelhos 'privados' de hegemonia". Por um lado, velhos "aparelhos ideológicos de Estado" (como as igrejas, as universidades) tornam-se autônomos, passam a f.u.cr parte da "sociedade civil"; e, por outro, com a própria iotcnsi6cação das lutas sociais, criam-se novas organizações, novos institutos também
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autônomos cm face do Estado - os sindicatos, os partidos de .massa, os jornais de opinião etc. -, os quais, embora possam ter como objetivo a defesa de interesses particulares, ªprivados", tornam-se wnbém po~dore$ materiais de çylf;W'i, de ideologias. Vemos assim que a sociedade civil tem, por um lado, uma função social própria: a de garantir (ou de oontcstar) a legitimidade de uma formação social e de seu Estado, os quais não cem mais legitimidade cm si mesmos, careocndo do consenso da sociedade civil para se legitimarem. E, por outro, que da tem uma materialidade social própria: apresenta-se e.orno um conjunto de organismos ou de objetivações sociais, diferentes tanto das objetivações da esfera coonômica quanto das objetivações do Estado miau smsu. Digamos que, entre o Estado que diz representar o interesse público e os indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma esfera pluralista de organizações, de sujeitos ooletivos, cm luta ou em aliança entre si. Essa esfera intcrmcdima é precisamente a sociedade civil o campo dos apazdbos privados de hegemonia, o espaço da luta pelo consenso, pela direção políriro-ideológica (não é aqui necessário falar sobre o papel dos partidos políticos nesse quadro: o de agregar as correntes dominantes na sociedade civil, de promover uma síntese política que sirva como base para a conservação da velha dominação ou para a construção de um novo poder de Estado) . Quando surge esse mundo intermediário da "sociedade civil", e quando ele n2o está totalitariamente subordinado a um Estado despótico, podemos dizer que a sociedade passou de seu período meramente liberal para um período liberal-democrático. O que tem tudo isso a ver com a questão da "organização da cultura"? Embora Gramsci tenha usado apenas esporadicamente o termo, de me parece indicar um momento nccesdrio do seu sistema categorial; ele vê que, numa for~o social de ripo "ocidental", a organização da cultura já não é algo diretamente subordinado ao Estado, mas resulta da própria erama oomplexa e pluralista da sociedade civil. Mais que isso: aparece como um momento necessário da articulação da afinmçáo da própria
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sociedade civil Desse modo, os intelectuais já n2o são mais necessariamente ligados ao Estado ou aos seus aparelhos ideológicos; eles podem se articular agora com essa esfera de organismos "priv.ados", exercendo suas atividades (e, entre das, a de lutar pela hegemonia política e ideológica do grupo social que representam) aJravés e no sD4 dessas formas autônomas de criação e de difusão da cultura. Esta, aliás, me parece uma acepção, talvez a mais importante, da noção gra.msciana de "intelectual o~ioo". Com a em~ncia da sociedade civil e de sua organização cultural, os intelectuais ligam-se predominantemente às suas classes de origem ou de adoção - e, por meio delas, à sociedade como um todo - através da mediação representada pelos aparelhos "privados" de hegemonia. Começam a surgir fenômenos desconhecidos em épocas anteriores: o intelectual de partido, o intelectual ligado ao sindicato, o intelectual que trabalha nos Jornais, nas editoras etc., de partidos ou de sindicatos, de associações d e variado tipo, de correntes de opinião; em suma: o intelectual que já não é funcionário direto do Estado (um burocrata executivo), nem tampouco um intelectual "sem vínculos" (Mannheim), que - em sua atividade cuJtural julga comprometer apenas a si mesmo (este seria o caso típico do "in telectual tradicional": e um Voltaire, na França do século 18, poderia bem expressar o que Gramsci 6.gura com esse termo). Sem ncccssariamente perder sua autonomia e sua indcpcn~ncia de pensamento, o " intelectual orginico" tem uma maior consciência do vínculo indissolúvel entre sua função e as contradições concretas da sociedade. A "organização da cultura", cm suma, é o sistema das instituições da sociedade civil cuja função d ominante é a de concretizar o papel da cultura na reprodução ou na transformação da sociedade como um todo. Um momento básico da organização da cultura é o sistema educacional: cada vez mais, com o crescimento da sociedade civil, o sistema educacional deixa de ser uma simples insdncia direta da legitimação do poder dominante para se tornar um campo de luta entre as várias concepções político-ideológicas (basta pensar, por exemplo, na luta entre ensino laico e ensino
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CMa.o$ No..loN CoonNHO
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religioso). E até mesmo nas organllaçócs de ensino ligadas diretamente ao Estado ocorre hoje uma ampla batalha de ideias: se a sociedade civil é rcalment.e autônoma, as universidades, por exemplo, tomam-se um campo de luta pela hegemonia cultural de determinados projetos de conservação ou de transformação das rcla.çócs sociais. A luta de classes se trava também no interior das universidades. E "organizaçõcs culturais" são wnbbn as institu.içõcs que servem para difundir ideologia de um modo geral: as editoras, os jornais, os grupos teatrais etc., estejam ou não ligados diretamente a algum organismo (tipo sindicato ou panido) da sociedade civil. Para simplificar: não pode existir sociedade civil efctivamcnce autônoma e plw:alista sem uma ampla rede de organismos culturais; e, vice-versa, não pode existir organização da cultura efetivamente democrática sem estar apoiada numa sociedade civil desse tipo. E a luta de classes, sob a forma da batalha de ideias, da luta pela hegemonia e pelo consenso, atravessa tanto a sociedade civil quanto esse sistema de "organização da culwra" (não é preciso insistir aqui sobre o faro de que o Estado, enquanto permanecer sob controle capiralista clou burocrático, interfere nessa batalha de ideias, obstaculizando sua Üvn: dialética imanente: tão somente numa sociedade socialista fundada na democracia política é que podem se criar as condições para um relacionamento verdadeiramente autônomo corre as organizações culrwais e o Estado).
2 Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na anatomia do homem. Tracei aqui, con.scieotcmentc. as ünhas gerais das rcJaçõcs entre Estado e sociedade civil, cnttc sociedade civil e organização da cultura, entre intelectuais e sociedade civil etc., cal como se manifestam numa sociedade desenvolvida, sob uma forma que - ainda segundo uma indicação metOdológica de Marx - poderíamos chamar de "forma clássica". Essa forma clássica mais desenvolvida nos permite pensar a anatomia do caso brasileiro, ou seja, de uma forma mais primitiva e menos explicitada, bem como
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c:xaminar como da se criou no passado e vem se transformando até nossos d.ias. Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil conhece uma trajetória que leva de uma siru.açáo de completa debilidade (ou mesmo a~cia) de sociedade civil até outra situação, a presente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória é exprcssáo do progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias t:ransVcrsas, na era do capitalismo indusrrial. Vou esboçar aqui um quadro histórico-evolutivo extremamente esquemático; repetirei muitas coisas já ditas cm outros trabalhos meus, nos quais creio que esse esquematismo aparece - se me permitem o jogo de palavras - um pouco menos esquemático1• Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade pré-<:apitalista (ainda que anio1lada com o capitalismo através do mercado mundial), vcICmos facilmente a completa incxistblcia de uma sociedade civil. Não tínhamos parlamento, nem panidos políticos, nem um sistema de educação que fosse além das escolas de catequese; não únhamos sequer o direito de imprimir livros ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se é que se pode falar de "organização" nesse caso. era tosca e primitiva. Os intdcctuais, os poucos que havia. eram diretamente ligados à administração colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja (que era na época um aparelho ideológico direto do Estado colonialis~ ta). Há indícios de novidade na época imediatamente anterior à Independência, mas não pas.çam de indícios. O modo pelo qual se processou nossa Independ~ncia não alccrou substancialmente o quadro: a Independ~ncia resultou de urna manobra "pelo alto", de um golpe palaciano, e não de uma ativação prévia da sociedade civil (ainda inexistente). Mas as próprias necessidades políticas do país tornado independente, bem como o desenvolvimento econômico, colocaram novas questões: swgiu a necessidade de elaborar uma camada de intelectuais capaz de servir ao novo Estado. Isso impôs, por exemplo. a criação de ins-Cf. prindpalmcnce o ensaio rol>re "Cuhura e sociedade no Brasir, infoi, p. 35-72.
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C-.os Nu.!Oll Ú>UT1NHO
tituiçócs de ensino superior (principalmente jurídicas) no próprio país, cm concrastc com a siruaçáo colonial, quando os intdcc.tuais eram formados na metrópole portuguesa. Surge também, com o aparecimento de um incipiente mczcado cultural, a nccasidadc de criar os primeiros rudimentos de um sistema de organização da cultura: publicam-se jornais, editam-se livros, mont.am-sc peças de teatro etc. É preciso lembrar que vivíamos então sob um modo de produção escravista. Um escravismo certamente peculiar, já que articulado no nível internacional com o capitalismo, com suas exigências mercantis e, portanto, capaz de "imporoa? um certo tipo de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal; mas se tratava sempre, no plano interno, de um regime escravista. Isso gera importantes c.onscqu!ncias para a situação do intelectual. O escravismo cria um grande vazio entre as duas classes fundamentais da sociedade brasileira: por um lado, os escravos que, evidentemente dcsorganfaados e carentes de um projeto político global, náo podem absorver os intelcawús como seus intelectuais or~icos'; e, por ouuo, os latifundiários cscravocracas, que precisavam dos intelectuais apenas como mio de obra qualilicada para a implementação das atividades administrativas do Estado que conuolavam. Não precisando legitimar sua dominação atrav~ da bata.lha de ideias, as classes dominantes de então incentivavam uma cultura puramente ornamental, que serviu para conceder status tanto aos intelectuais quanto aos seus mecenas, mas que não tinha incidência efetiva sobre as c.ontradiçõcs reais do povo-nação. Em tal atmosfera social rarefeita, era dificil para o intelectual encontrar o meio próprio para seu florescimento independente, para sua autonomia rdativa. Restavam-lhe poucas opções; a principal, quase exclusiva, era aceitar a sua cooptação pelas classes dominantes, tomar-se funcionário do apardbo de Estado. E não ~ claro qu.: bou~ intdcauals ~on4w; nw. cm ppaL llCU vínculo culninl com os acnvos c:n cxttrioc, rrcóríoo - lwu pauar na poesia ele Castro Alws -, e a luca abollcloniJu nio se &zia cm notne ele um projeto culninl e polírico cb e.cnvos. mas clc uma ,_,. ordem libcnl que pnntirb o dacnYOivimcnco do apiollsmo.
C ULTURA l SOCIEDADE NO 8AA.Sll
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podia ser de outro modo, numa situação em que praticamente não havia sociedade civil: o parlamento, deito pdo voto ccnsitário de uma c:xígua minoria, não podia ser considerado uma entidade autônoma cm fu:c do Estado cm sentido estrito; 0$ putid0$ políticos não ccam partidos d e massa, mas simples apêndices do Estado. Por outro lado, o mercado cultural era c:xtccmamentc rcsuito; se hoje é quase impossívd ao intelectual sobreviver no Brasil com a venda de suas obras, pode-se facilmente imaginar o que ocorria no século 19. E mais: a cooptação assumia frequentemente o traço do favor pessoal. ligando-se a um poderoso, a um proprietário influente, o intdectual c.ra agraciado com empregos, prcbcndas ccc. É verdade que essa siwaçáo de subordinação pessoal às classes dominantes era disfarçada pdo status relativamente devado atribuído à condição de intdcctual. A posse da cultura era um meio de distinção para homens livres mas não proprietários, que não queriam se dedicar a um trabalho efetivo, já que o uabalbo era marcado pdo estigma da condição escrava. Ser intelectual era ser ocioso; e prccisamcnt.c na possibilidade de desfrutar desse ócio é que residia o tra~ de distinção, o status superior do intelectual. E esse status, ao mesmo tempo cm que servia de d.isfa.rcc para a posição dependente do incclectual, acentuava o caritcr ornamental da cultura dominante da época. E nesse clima que surge o que tenho chamado (usando um termo de Thomas Mann recolhido por Lukács) de "intimismo à sombra do poder". O intclccrual cooptado não tem ncc.cssa.riamcntc de ser um apologeca direto d o regime soei.ai que o mantém e do Estado ao qual está ligado. FJc pode, cm sua criação cultural ou artística, cultivar sua própria intimidade, ou seja, dar cxprcssáo a ideologias ou estilos estéticos que lhe pareçam os mais adequados à sua subjetividade criadora. Mas o fato é que a própria situação de isolamento cm face dos problemas do povo-nação, a ..torre de marfim" voluntária ou involuntária cm que é posto pda situação de cooptação (e pela ausência da sociedade civil), faz com q ue essa cultura elaborada pdos intdccruais "cooptados" evite p6rcm
CumiM f SOO(OAOC NO 8 MS11.
discussão as rdações sociais de poder vigentes, com as quais estão direta ou indiretamen te comprometidos. Por exemplo: o romanósmo, com seu culto da subjetividade, funciona ccmmcntc como estímulo à evasão. O próprio indianismo, como Nelson Wemock Sod1é mostrou, é um modo de deixar na sombra a questão mais cande.n te da vida 02.cional da época: a questão da escravidão negra (não me parece carua.I que o romântico José de Alencar, "vanguardista" literário, fosse - além de político conservador - um convicto escravista). O na.tu.ra.lismo, tão diverso do romantismo sob tantos aspectos, tem um ponto semelhante: ao dizer que a "rn.isé.ria brasileira" é &uto de condições fa.ta.i.s. naturais, eternas, de raça e de clima, os naruralistas desviam a atenção d os ponros concretos, histórico-sociais, porunto modificáveis, que estão na raiz daquda miséria. Esses dois exemplos parecem-me indicar bem a característica central da cultura que nasce no solo da cooptação: trata-se de uma cultura que promove uma "apologia ináimd' (Lukács) do c:x.istentc, que justifica a estrutura social não mediante a sua defesa direta, mas mediante a sua misti6caçáo ou ocultamenro (caso do romantismo); ou medi.ante a afirmação de que, embora feia e desumana, ela é imutávd, e q ue devemos nos resignar a da (como no naturalismo). ~evidente que existem cxccç.ócs. e não é casual que elas sejam precisamente as maiores 6guras do período, do ponto de vista cultural; basta pensar em Manuel Antônio de Almeida ou em Machado de Assis, que souberam - cm suas criações literárias - escapar dos impasses gerados pela culrura d o "intimismo"•. Essa siruaçáo não se alterou radicalmente durante a Primeira República. Também a República, como a lndcpcnd&icia, foi fruto de uma mudança "pelo alto"; foi pouco mais do que um golpe militar; as grandes massas, que continuavam desorganizadas, não participam de sua proclamação. O arremedo de instituições Tcn102ponur algunwducauwdcais ·~· cm meu cnsaiosolm: Uma Barrno, ilf/nt, p. 89- 139.
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republicanas criado em seguida não era de molde a fortalecer a sociedade civil. O parlamento con tinuou a ser um mero apbldicc do Executivo; os partidos eram nada mais que con&arias locais a serviço de alguns coronéis envolvidos na poUtica. No essencial, a vida intdccrual continua restrita a poucos setores das camadas m6dias; continua em grande parte a ser uma •cultura ornamental", algo que Afdn..io Peixoto expressou muito bem quando, ingenuamente, definiu a literatura como sendo "o sorriso da sociedade". As polbnicas culturais abrem fissuras na superfkie hom~nca da camada intdcctual, mas não tocam nas questões de fundo: não passam, no mais das vezes, de tempestades cm copo d'água. Pamasianos, simbolistaS, românticos tardios: todos se identificam numa comum concepção de cultura, ou seja, uma concepção elitista, aristocratizante, ornamental.
3 Mas seria errado não ver que algo começa a se mover, algo que explodiria à luz do sol sobretudo a putir dos anos de 1920. A sociedade brasileira vai se tornando mais complexa (ou men os simples), o capitalismo vai se tomando o modo de produção dominante também nas rdaçóes internas. Nossa estrutura social, com a Abolição, com os primeiros inícios da "via prussiana" n o campo, começa a se tomar mais próxima da estrutura de uma sociedade capitalista. ainda que continue atrasada e fortemente marcada por restos pré-capitalistas; n0V2S classes e camadas sociais se apresentam no cenário político do País. Antes de mais nada, começa a surgir uma classe operária formada ainda essencialmente por scmiartcsáos; os primeiros esboços de industrialização, a grande imigração de finais do século passado, criam um bloco social contestatário, que põe cm discussão de modo o~do (o que talvez ocorra n o Brasil pela primeira vez) o moddo "prussiano", eliósta e marginalizador de dominação poUrica, econômica e social até então dominante. Começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo, com o início das lucas operárias e com as agitações das camadas
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C-.os Nu.soN Coumot0
(UU\/llA f SOCIEOAOf NO BIIAS._
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médias, um germe do que se poderia chamar de "sociedade.civil". Multiplicam-se as associações proletárias; cm consequbicia, surge uma ainda raccfeita mas ativa imprensa operária, de orientação
nascente, incorporando corporativamente os sindicatos à estrutura do Estado (e destruindo sua autonomia), instalando cm 1937 uma ditadura aberta que fechou partidos e parlamentos, criando, com
predominantemente anarquista. Temos aMim que, a um embrião
o Dep~entQ de Imprensa e Propaganda (DIP), um arremedo
de sociedade civil (associações sindicais e primeiros grupos poüticos de artesãos e operários), corresponde um embrião de organização cultural exterior ao Estado (a imprensa e as associaçócs culturais dos proletários). E nesse quadro, a meu ver, que se pode explicar o "fenômeno" Lima Barreto; Lima é o primeiro grande intclecruaJ brasileiro a se beneficiar diretamente dessa maior explicitação das contradições sociais, dcs.ça pámcira (ainda que incipiente) tentativa de organii.M a partir de baixo a vida política e cultural brasileira. Lima publicou grande parte d e sua produção cultural, sobretudo jornalística, nessa nova imprensa operária que surgia cm sua época. E em seu principal romance, Policarpo Qwzm7111l, ele faz uma crítica demolidora da sociedade brasileira, atingindo-a cm seu ponto talvez mais típico: no modelo de desenvolvimento "prussiano", "pelo alto", que o florianismo e o militarismo (tema central do romance) encarnavam tão bem. E tampouco é casual que, cm 1922, assista-se a um fato da maior importância na vida do país: a fundação do Partido Comunista do Brasil. Temos com isso, pela primeira vez cm nossa história, a criação de um partido político feita a partir de baixo; e d e um partido n ão s6 independente do Estado, mas até mesmo antagônic.o a d e. O PCB, embora ainda não fosse um organismo d e massa, representava o embrião de um aut!ntico partido moderno, que é momento básico de urna sociedade civil efetiva. O modo "prussiano" pelo qual se deu a chamada Revolução d e 1930 - mais uma manobra "pelo alto", fruto da conciliação entre setores das classes dominantes e da cooptação das lideranças políticas das camadas médias emergentes (expressas no "tenentismo") - quebrou em grande parte as tendências que se vinham esboçando antes. M as n ão as d estruiu inteiramente. ~ certo que o Estado pós- 1930 lutou para cxónguír a autonomia da sociedade civil
de organismo cultural totalitário (ou seja. uma tentativa de pôr a cultura dirct2mcnte a serviço do Estado}. Mas a diversificação da forma.çáo social brasileira prosseguia; o próprio capitalismo "à prussiana", impulsionado pelo Estado gctulista, encarregava-se de promover essa diversificação. Tmha-sc agora um pressuposto (que se podia ocnamentc reprimir, porém não mais eliminar) para a criação de uma sociedade civil, de uma org:miz.açáo da cultura menos vincuJada a um Estado onipotente. O romance nordestino - um grande protesto literário e.onera o modo "prussiano• de modernizar o país - é um exemplo vivo de que então se tornara possível, e não mais apenas como cxccçáo que confirma a regra, criar uma cultura não ditista, não intimista, ligada aos problemas do povo e da nação' . Uma cultura, cm suma, nacional-popular. E não me parca: possivd desligar a irrupção de fenômenos como a ftoração de importantes estudos sociais no período (é de 1933 a primeira tentativa séria de interpretar a história do Brasil à luz do marxismo: o ensaio pioneiro sobre a Evo/uçdo polltica Jq Brasilde Caio Prado Júnior) da tcndbtcia à sociali:viçáo da política que, apesar dos evidentes limites, começa a se manifestar nos anos de 1930. A Aliança Nacional Libertado ra e a Ação Intcgtalista Brasileira são movimentos políticos de massa de proporções até então desconhecidas cm nossa história. Essa socialização da polftica indica que já estavam cm andamento os processos que levariam à criação no Brasil de uma socicd.adc civil autônoma e pluralista. Mas que se tratava ainda de embriões débeis, com raízes rcc.entcs e tenras, é algo que o pr6prio golpe de 1937 iria comprovar: mais A crida roinanac:a da •vb pNS$iana" n.io aparece apenas nm tt.edemes romances de Gracllb.no Raino5. Basta pensar nos romances de José LiN do Rego que traiam cfa, ~ hwmanas provocadas pela capiw lzaçio do latifilndio, pela con'V'l:rdo do vdho engenho ru moderna usiiu.
CuLTUM f 500(DAO« NO BMML
urna vez foi possível às classes dominantes se servirem do Estado, de mecanismos de dominação "de cima para baixo" (e que agora apresentavam traços terroristas e totalitários tomados de empréstimo ao fucismo internacional), para cmptt:cndcrcm um processo de modcmiz.açáo capitalista conscrwdora: afutando o povo de qualquer dcci.sáo, quebrando qualquer veleidade de autonomia da sociedade civil na.sccntc. Essa debilidade da sociedade civil - ~ bom nio esquecer revela-se tam~m pelo lado oposto: no car.itcr abertamente "golpista", igualmente autoritário e elitista, que marcou a atuação das forças poUticas renovadoras do período. Longe de apostarem no fortalecimento da sociedade civil, as forças populares apostavam no golpe. no rtsch blanqui.sta. na açio de cáguas minorias, como se viu cm 1935, quando o movimento de massas esboçado na ANL - que fora posto na ilegalidade - ~ abandonado cm f.avor de uma quanclada.
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Esses embriões de $0dedadc civil, esses pressupostos de uma autonomia da cultura, f.avorccidos ademais pela sicuaçáo internacional, aparec.criam de modo mais claro cm 1945, com a redcmocratiz.açáo do país. Fato significativo ~que. pela primeira vez, o Partido Comunista do Brasil, lcg;alizado, toma-se um partido de massas; e revela, na ~poca. compreender melhor do que cm 1935, embora de modo a.inda insu6ciente. a impordncia da luta democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos combates pelo socialismo cm nosso país'. Os sindicato1 opcrúios, embora continuassem atrelados à cutela do Ministbio do Trabalho, começam a ter um peso crescente n2o só nas lutas econômicas, mas inclusive na vida política nacional. Tambhn as camadas m~dias buscam formas de organização indcpcndcntcS, nos partidos e fora deles: escritores, advogados, jorrulliscas criam associações
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Sob~ o PCB cm
l 94S. ti. Landro Konda. A "-a.V e•~,.. BIWll4 Rio
ck Janrim. Gtul, 1980. p. ·~!.
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para a defesa de seus interesses e de seus ideais. Tudo isso amplia o campo da organização material da cultura; urna ampla e muiw vezes fecunda batalha das ideias começa a ter lugar entre nós. Há um accnruado empenho social da intelectualidade, um maior compromctimcnco com as causas populares e nacionais. A possibilidade de subsistir fora da cooptação e do &vor dos poderosos, graças à rede de organizações culrurais que se amplia (com a publicação de jornais e .rcvi.st.a.s independentes, com o aumento do número d.e editoras, com uma crcsccnte autonomia das rcdm-criadas universidades etc.), permite ao intelectual escapar ma.is facilmente dos impasses a que é levado pela siruaçáo, pouco confortável cm muitos casos, do ªintimismo à sombra do poder". E isso não vale apenas para os intelectuais desligados do aparelho de Estado: muitos produtores de cultura que retiram seu sustento material de cargos públicos, ao poderem agora se beneficiar do clima de ativação da sociedade civil, colocam-se claramente ao lado das forças progressistas, comprometem-se com posições poUticas e visões de mundo que colidem frontalmente com a dominação de classe encarnada pc.lo Estado do qual são funcionários. Isso demonstra, a meu ver, o car.itcr mecanicista e esquemático das teses que afirmam ser o intelectual brasileiro, enquanto intdccru.al, um membro das classes dominantes; ou que afirmam ser ele obrigado a assumir posições elitistas, ou mesmo reacionárias, tão somente por ser funcionário público. Basta lembrar que Lima Barreto, "max.imalista" radical, violento critico do militarismo, foi por muitos anos um pacato funcionário do Minist&io da Guerra. A questão ~ muito mais complexa. Em primeiro lugar, é certo que há uma tcnd!ncia dos intelectuais ligados diretamente ao Estado no sentido de adotarem urna culrura intimista, elitista; mas essa tcndencia s6 se impõe na m~dia, permitindo naturalmente as exccç6cs, que não são poucas. E, cm segundo lugar, essas exccçócs aumentam, tendem mesmo a deixar de ser exceções, no momento cm que se cscrurura uma sociedade civil, cm que começam a se formar diferenciações no mundo da cultura: surge para o intdcctual, mesmo para aquele que con-
Cumnv. ( SOCllDAOf NO BRASii.
tinua ligado "profissionalmente'" ao E.atado, uma possibilidade bem mais concreta de romper as paredes do mundo fechado do "intimismo" e de ser influenciado pela riqueza da vida culrural. pelo ambiente pluralista da batalha dcmocmica das ideias. A relação de dcpend~ncia entre cooptação e adoção de uma culcura elitista tende a relaxar, a deixar de ser uma tcn
5 Isso se tomou evidente quando, cm 1964, uma aliança entre os vários segmentos das classes dominantes conseguiu aunca.r o processo de democratização cm curso, impondo mais uma vez uma solução "prussi<1.na" para os problemas decom:nccs da necessidade de levar o país a um novo patamar de acumulação capitalista. O novo regime ditatorial, panicularmcntc no período que se seguiu 1
Em 1958, o PCB indla>u dar.unente caa 1cndmcb, que coosidasY2 - malgndo os altos e baixos - "uma rcndbx:b permancnuº: "As !Orças que crcsc:em no aeio da todedadc bruilcira. prindpaJmcnrc o f>'okuriado e• burguesia. ~impondo um novo cuno ao clacnvolvim.cnto polírico do país (_.). Eac novo amo se realiza no sentido da dcmocnàzaç5o. da atcnÃO dos diRitos poUõeof a camadas ada Ytt mal$ :unplu." ("Dccbnçto do CC do PCB", ID1l'ÇO de 1958, úr.: PCB; V"mlt {111#1! ik f#Utiu, São Paulo, Cltodas Hum21\U, 1980. p. 8).
ICUS
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ao Al-5, tentou por rodos os meios dcsttoçar o embri1o de sociedade civil autônoma que se vinha esboçando. E ~ evidente que a organização da cultura não foi poupada. Não ~ casual que, entre
as primeiras medidas do regime ditacorial implantado cm 1964, estivesse o fechamento dos principais instirutos dcmocriticos de organização cultural da qx,ca, os Ccnttos Populares de Cultura (CPCs) e o Instituto Superior de Estudos Brasilcitos (Iscb), bem como a dissolução do Comando dos Trabalhadores Inrclccruais (CTI) e intervenções nas universidades. Todo o esforço da "polltica cultural,. do regime se voltou no sentido de dar força às correntes clitiscas e/ou cscapistas no plano cultural. E isso era obtido principalmente de dois modos: por um lado, reprimindo e censurando os intelectuais que defendiam uma orientação cultural nacional-popular, com o que se abria espaço para o monopóUo de f.uo das correntes "intimistas"; por outro, quebrando a autonomia da sociedade civil, autonomia que, como vimos, é a base n~ria para uma cultura pluralista e democrática. Outro f.uor conspirou ainda para obstaculizar a demoçratização da cultura. O regime ditatorial-militar criou as condições políticas necessárias à passagem do capitalismo brasileiro para uma nova etapa: a etapa da dominaçio dos monopólios, a etapa do capitalismo monopolista de Estado. Com isso, introduziu-se um faro novo no sistema de organização da cultura: uma parte substancial deste, a dos mcios de comunicação de massa, passou a ser dominada por grandes monopólios. A cdcvisáo ~ o caso mais evidente, mas o fenómeno se manifesta tam~m cm outras áreas, como a grande imprensa, o cinema etc. O "capital mínimo" (Mane) necessário à criação de um organismo cultural tomou-se agora tão elevado, cm scrorcs fundamentais, que somente os grandes grupos monopolistas podem dispor dele. Mas devo advertir que mo penso como Thcodor W. Adorno; não acho que a indústria cultural seja um sistema monolítico, sem brechas. Mesmo antes que se chegue a uma radicaJ inversão de ccnd~ncia, a uma siruaçio na qual os organismos de difusão culru-
C UlTIMA f SOClfDADf NO
raJ sejam apropriados coletivamente pela c.omunid.ade. atrav~ dos produtores culturais associados, o que só ocorrerá numa sociedade socialista fundada na democracia política - mesmo antes disso, t
para qi« possamos chegar a isso, a luta pela dcmocratiz.açáo da
cultura pode e deve obter ganhos parciais de grande impordncia e significação. Por um lado, é preciso lembrar que há ainda setores culturais em que pequenas e m&üas empresas podem operar, garantindo assim uma maior variedade de orientaç{)cs, um maior pluralismo; é o caso da indústria editorial, da chamada imprensa alternativa, da montagem teatral etc. E, por ou.a o lado, à medida que a resistblcia democrática vai pondo fora de funcionamento os insuumentos de repressão e de censura, os próprios monopólios da cultura - penso particularmente na tdcvisáo e na grande imprensa escrita - começam a abrir mais espaços às~ da sociedade civil, a dar passagem relativa ao pluralismo que oda tem lugar. Além disso, com a conquista de um regime de c&tivas Ubmbdcs democráticas, podem-se conceber formas diretas de controle - exercidas canto pelos próprios produtores çU)tyrais quanto pelos organizadores da sociedade civil - sobre a geração dos programas tdevisivos e sobre a informação cm geral. E mais: malgrado o caráter ddctério da "política cultural" da ditadura, nem rudo foram sombras na cultura brasileira durante os anos do regime militar. Não quero me referir a.penas à resist~ncia passiva ou ativa da esmagadora maioria dos intelectuais, que - independentemente de suas posições idcol6gic:as- c.oloca.ram-se cm oposição às medidas repressivas do rqime no plano da culcu.ra. H :i um fato que me parece ainda mais sígni&ativo. j{ que escl na raiz dessa rcsistmcia: é que o regime miliw - modernizando o país, promovendo um intenso desenvolvimento das foiças produtivas, ainda que a serviço do capital nacional e multinacional, ainda que conservando traços essenciais do auuo no campo - deu impulso aos fatores objetivos que levam a uma difcrcndaçio social e. como tal, à wnsuuçio de uma autbltica sociedade civil entre nós. A intensa sede de organização que, nos últimos anos, atravessou
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o país, envolvendo operários, mulheres, jovens. setores médios, intdectuais, até mesmo setores das classes dominantes, atesta a pttscnça j:i efetiva dessa sociedade civil. É certo que o regime militar rudo fez ~ abafar esse florescimento da sociedade civil desde o momento cm que percebeu as imensas potencialldadcs democráticas de sua atuação. Mas a ditadura brasileira náo foi uma ditadura fucist:a "clúsica", ou seja, um regime reacionário com bast tk 1llllSSllS º'K""irAdtt. Não dispôs de organismos de massa capazes de luw e conquistar a hegemonia na sociedade civil, para depois destruir sua autonomia e fu.er funcionar sew organismos como "correias de transmissão" de um Estado totalitário, como ocorreu na Icllia ou na Alemanha fascistas. J!. certo que a ditadura brasileira lutou para oonquistar- e. cm alguns momentos (quando da sua implantação e nos anos do "milagre"), conseguiu até mesmo obter - o consenso de pondcclve:i.s parecias da população. Mas se tratou sempre de um consenso passivo, que pressupunha a atomização das massas e não se expressava mediante organizações de apoio ativo à ditadura. O regime militar, cm suma, era desmobilizador; sua tentativa de lcgitima?o não se fundava numa ideologia claramente fascista, mas na luta contra as ideologias em geral, contra a própria poUtica, acusadas de "divid.i.rcm a nação" e de impedirem assim a "segurança" que "garante o desenvolvimento". E, na mesma medida cm que era obrigada a dispensar a org;uúzaçáo das massas, a luta no interior da sociedade civil, a ditadura dispensou também o concurso de intelectuais orginicos que elaborassem uma ideologia totaliwia a seu serviço: o que da c:xigja dos intelectuais, do mesmo modo como o haviam feito os velhos regimes autoritários brasileiros, é que eles continuassem a cultivar o seu • intimismo à sombra do poder", deixando aos tecnocratas "anti-ideológicos" a discussão e o encaminhamento das questões decisivas da vida política. Ora, durante a fuc do chamado "milagre econômico", essa "ideologia da não ideologia" (de fundo neopositivisca) pôde desfrutar de um relativo consenso entre setores médios e servir à legitimação parcial d o regime. Mas, a partir do inicio da crise do
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C-.os NWOH CovnNHO
"moddo" e da reativação e reorganização da sociedadc.i:iviJ - o que cem lugar cm meados dos anos de 1970 -, essa ideologia entrou cm bancarrota. Como vimos, o regime militar não tinha (e não podia çriar) movimentos de massa capaus de organizar o consenso na sociedade civil, de torná-lo relativamente cstávd, mesmo cm épocas de dificuldades e crises. Para lutar pela obtenção desse consenso, de se viu forçado a empreender uma tentativa de "autorrcforma", a abandonar a repressão como único inscrwncnto de governo; e essa autorrcforma, para ser cxequfvd, implica de ccno modo a necessidade, por pane do regime, de fazer política. Mesmo lutando para conservar o seu monopólio de decisão, a ditadura foi obrigada a respeitar cm certa medida os espaços conquista.dos pelas forças democráticas na sociedade civil, a conviver com a presença de algo que escapava ao seu controle. Confumase assim, de certo modo, a tese do PCB cm 1958: malgndo os retrocessos, a democratização da vida brasileira - que se apoia no dcscnvolvimcnro da sociedade civil gerada objetivamente pela modcmizaçáo capitalista - parece ser wna tcnd~cia permanente e, a longo prazo, irrevcrsívd. O próprio desenvolvimento do capitalismo, ao criar um mercado de força de trabalho intdcccual, alterou a situação dos produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam sua função já náo depende do f2vor pessoal, já não resulta da cooptação. O velho int.clcctual elitista. prestigiado por possuir cultura, converte-se cada vez mais cm ttabalhador assalariado. Experimenta agora a necessidade de se organizar, como qualquer outro grupo social, para lutar por seus intcrcs.scs cspcd6cos, entre os quais não se sirua apenas a melhoria das condições de trabalho; e, entre essas últimas, ocupa lugar de destaque a sua autonomia enquanto criador. A luta pelo especifico articula-se aqui com a luta geral, ou seja, com a lura pela liberdade de expressão, de criação e de crítica, que só podem ser asseguradas plenamente num regime democrático aberto à renovação social. De casta fechada, de corporação de notáveis, os intdccruais passam a ser uma parcela do mundo do trabalho.
( UlTUllA f SOCIEOAl>l NO 8 11AS1l
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Criaram-se assim as condições para que os intelectuais compreendam ~ ~tro. como uma cxigancia de sua própria sobrcvivancia como produtores de cultura, a necessidade da construção de uma sociedade deni<>Çráti~. A ÇQnquista da democracia - de um sistema de organizações culturais aberto e pluralisr.a. apoiado numa sociedade civil autônoma e dinâmica - torna-se a base para o florescimento de uma cultura nacional-popular entre n6s; mas a elaboração e difusão de tal cultura, contribuindo para a hegemonia dos trabalhadores (do braço e da mente) na vida nacional, é por seu rumo um momento indiminávd na conquista, consolidação e aprofundamento da democracia, de uma democracia de massas que seja parte íntCgJaDte da luta e da construção de uma sociedade socialista cm nosso pais. (1980)
Cultura e sociedade no Brasil
O presente ensaio não tem a menor prctenSáo de esgow- nem histórica nem sistematicamente - os muitos e oomplcxos problemas que aborda. Deve ser lido como um conjunto de anotações mais ou menos fragmentá.rias sobre alguns tópicos que me parcc.cm decisivos para a correta colocação e o justo encaminhamento da questão culrural entre n6s. O que unifica relativamente essas anotações é que elas partem de um pressuposto - o de que não é possível compreender a problemática da cultura brasileira sem examinar algumas características da nossa intelccru.alidadc, ligadas ao modo cspcd6co do desenvolvimento social cm nosso país - e desembocam numa perspectiva: a maneira pela qual a "questão culrural" se resolverá no futuro imediato vai depender, cm medida não desprezível, da resolução dos complexos problemas colocados pela renovação democrática e social de nosso país. Isso não quer dizer, contudo, que essas anotações pretendam ser "normativas" no sentido estreito da palavra. Ou seja: não tbn a imençáo de diw ao criador culrural cenas regras estéticas e/ou determinados procedimentos político-morais sem cuja obscrvincia "não haveria salvação" para ele. Na criação a.rústica ou culrural cm geral, "não há salvação" para o criador se ele não se comprometer radicalmente com os valores e prindpios que considera os mais adequa.dos à sua personalidade enquanto criador. Nesse sentido, se há alguma "norma" proposta neste ensaio, é a defesa intransigente da mais ampla e radical liberdade de criação culrural. Todavia, mesmo com o risco de repetir o 6bvio, gostaria de advertir que essa liberdade de criação me paJ"C
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Cw.os Nu.SOM Col!TIHHO
liberdade de criação não será restringida- mas, ao contrário, será potenciada - se o criador tomar consci~cia das implicações sociais (tanto do ponto de vista da gênese quanto dos efeitos) de sua produção cultural. Um dos objetivos deste ensaio é precisamente o de tentar esboçar alguns desses condicionamentos concretos no caso brasileiro e, com isso, contribuir para uma tomada de consciência destes por parte dos produtores de cultura. Em segundo lugar, a mais ampla liberdade de aiaçáo tem como contrapartida necessária a mais ampla liberdade de crítica: se só ao criador cabe. cm última insdncia., ddinir os conteúdos e as formas de sua criação (o que de fará de modo tanto mais livre quanto mais for consci.e nte dos condicionamentos sociais a que me referi), ao crítico cultural cabe o direito de exercer a sua p lena liberdade de avaliar - em nome dos critérios que considerar válidos - os resultados concretos dessa aiaçáo. t evidente que a prática d~ dupla liberdade, de criação e de critica, implica de ambas as partes a possibilidade do acerto ou do fracasso (com todas as suas gamas intermediárias). Mas a decisão quanto a isso não pode, cm nenhum caso, depender de outra insdncia que não seja a própria dialética da vida cultural, na pluralidade de suas orientações e tendências. Talvez possa parecer supérlluo insistir nisso; mas houve e há fatos concretos que tomam necessário eliminar dúvidas e preconceitos, se é que efetivamente desejamos criar cm n<>SfO país, também no plano da vida cultural, uma efetiva democracia pluralista.
1. SullORDINAÇÃO FORMAL E s~ REAL:
CUlTllM E SOOCOADf llO 8MSIL
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nado e determinante, com o desenvolvimento do capitalismo em nível mundial? Colocando na pergwu:a a questão do capitalismo, já indicamos boa pane da resposta. Enquanto formação social espccl6~ e; rdativ:amcntc autônoma, o Brasil emerge na época do predomínio do capital mercantil, na época da criação de um mercado mundial. Nossa pré-história como nação - os pressupostos de que somos resultado - não residem na vida das tribos indígenas que habitavam o território brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se no contraditório processo da acumulação primitiva do capital, que tinha seu centro dinimico na Europa Ocidental. Os efeitos culturais d~ processo furam assim descritos por Marx e Engels: Em lugar do antigo bo.lamcnto de rtgiõcs e nações que se bastavam a si próprias, dcscnvohocm« um intaclmbio univcm.I.• uma unM:rsal in~ das nat;i6cs. E dslO se rcfm: wno à produção mataial quanro à produção incdcctual. ~ criações culturais de uma nação tomam-se propriedade ex>mum de todas. A csaeitcza e o c:xdusivismo nacionais comam-se cada vci mais lmpoS3ívcis; das in.úmcras literaturas naciol12is e locais, na.soe uma litcnrura universal.1
O objetivo central do colonialismo, na época do predomínio do capital mercantil, consistia cm extorquir valores de uso produzidos pelas economias não capitalistas dos povos colonizados, com a finalidade de cransformá-los em valores de troca no mercado internacional. A subordinação dessas economias agora "pcriféricasn ao capital mercantil metropolitano se dava no terreno da c.irculaçáo: era, para usarmos com certa liberdade um célebre conceito de Marx, uma
fimna/', que mantinha essenáalmcntc intocado o modo
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OU COMO AS IDEIAS •e.NTRAM NO LUGM•
Um dos primeiros tópicos para uma jwta conceituação da "questão culrural" no Brasil é a análise da idaçáo entre cultura brasileira e culrura universal. Em sua dimensão ontológico-social, é este um problema que não pode ser resolvi.do no plano de uma análise imanente das "fontes" e "inB~clas'". Há uma prévia questão histórico-genética a exigir resposta: de que modo se articulou a evolução das formas:õcs econômico-sociais brasileiras, de cuja reprodução e transformação a n0$Sa cultura é momento determi-
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K. Marx e F. Engels. M.Nfasto M PllniM <Ãm1Utis11t, in: 14, Ohrms aa/hi;J,u, Rio de jaocin>, Vitória, 1956. "tOI. 1, p. 29. Pan os conceitos de subonlimç.So (ou subsunção) formal e ttal, cf. K. Man, O ~itplJA/, Rio de .Jaocíro, Ovilizaçio Brasilcin, 1968, Uvro 1, p. 585 e: a; e /ti. , O upillll, LMo /, C.,lnJo V1 (btlJiio), Sio Paulo, Ciblc:ias Humanas, 1978, p. 51-70. A P" g-.:m da Alho~ fon.nsl p.n a real, garantindo a sodalizaçf.o das forças produtiva.'- aia os prmui-tos ~Is pua que a produção se liberte de sua forma social capi12lis12: do mesmo modo. ~ di:ra que a passagem COITC$j)Ondcntc, numa economia "pcrifáia"' mc:om que au;am ai bax:s mmriais 1111n711U- naâoaa.is- i-ra a nipcraçio da ckpcndbida ao capial intcmadonal.
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ÚM.OS NWON ColnMto
de produção do povo colonizado. O faro de que a cxtorsáo4J"CSCCJltC de valores de uso levasse, com o passar dos tempos, a uma altttaç:ão das bases econômicas e sociais do modo de produção inrcmo num sentido mercantil e mesmo capitalista (ou stja, que gradualmente se passasse da subordinação formal à subowiinação mú) é um resulrado não intencional do processo de colonização, não sendo c:aractc:rístico de seus inícios (voltarei depois a essa questão). O esquema acima indicado vale wnbém para o aso brasileiro; mas apresenta aqui uma especificidade da maior importincia, que não pode ser negligenciada na avaliaçáo de nossa dependência colonial e que tem amplas consequências no plano da cultur.t. Não havia cm nosso território uma formação cconômic.o-social que, mesmo primitiva, fosse capaz de fornecer cxccdcntcs de vulto ao processo de circulação do capital mercantil colonialista. O problema, assim, era o de criar um aparelho produtivo que se articulasse diretamente com o mercado mundial. Mas o fato de que o modo de produção vigente na era colonial tivesse sido posto e npotto pdo movimenco internacional do capital não significa, como pensam muitos de nossos historiadores, que se tratasse de um modo de produção capitalista, ainda que "imperfeito" ou "incompleto"~. Tais historiadores não levam na devida conta o fato de que a característica essencial do modo de produção capitalista - característica que está na base da lei do valor-trabalho e, por conseguinte, de todas as demais leis que operam nesse modo de produção - é a cxistencia do trabalho "livre", do trabalho assalariado, que praticamente inexiste n.o Brasil durante toda a era colonial. Mas tampouco me parece correto que, numa justa reação à teoria do "capitalismo colonial", ouuos histo-
CUl.TUAA
Um dos principais dcÍ<:nrottl cb ccscdo "capicalismocn&oaial bnsUciroº ~Caio Prado Jr. Fernando Hc.nrlquc Cardoso. por sua vez, f.ala em ºapimllanolncompleto" (á. AMl
llO
811AS11.
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riadores i.ns.istiam excessivamente na tese da autonomia do nosso modo de produção, chegando mesmo a afirmar que o processo de circulaçáo no período colonial era posto pdo modo de produção
interno, cm vez de ser- oomo penso- o ponto através do qual esse modo de produção tomava-se formalmente subordinado ao capital (mcn::antil) internacional. Sem entrar aquJ nos detalhes da ampla polemica acerca da natureza desse modo de produção pré-capitalista da era colonial, assumo como hipótese a de que se tratava de um modo de produção escravista (de resto, o adjetivo colonial não me pa.rcce caracterizar o modo de produção. no sentido de acribuir-lhe novas leis, mas indica precisamente o seu vínculo de subordinação formal ao capital iotcmacional: uma subordinação que ccn:a.mentc sobrcdctermina essas leis, que são podm as leis gerais de todo modo de produção escravista com dominincia mercantil"). É o elemento escravista que fomoc:e a marca determinante da formação cconômic.o-social. Ele interfere, por um lado, na produúvidadc econômica do sistema, que se mane~ estacionária (ao contrário do que ocorreria no fcod.alismo"). com todas as con.sequ~ncias que disso resultam para a criação ulterior de um mercado interno e, portanto, para a forma "prussiana" que prevaleceria quando da traru.ição para o capitalismou. E, por ouao lado, vale ressaltar 11
11
" ••
e SOOEOAOI!
De qualquer modo. ~me: de grande: intett.S$<: o livro de: Jacob Gorendcr, O anw· W- co/niiJ, São Paulo, Áric:a. 1978, ccnamc:ntc uma das mais 16cicb.s rdlc:c6cs sobre o noao modo de: produção na q,oca c:o&onial. Sobre os estímulos ao aumento da produtividade oo f'nid•lismo, cm conmstc: com o bloqueio ccc.nológico do csc:ravismo, á. Pcrry And=on, D./JiuWbiu J fa"""ksimo, Miliio, Mondadori, 1978, p. 116 e ss. Todavia. do ponro de: vista dc:s.a uusição. a qucsdo nio se alicn c:ac:ncialmc:ncc se se co~ a p~ do faidaljano no Brasil. O dc:cimo i c;oosa.w que essa uusição •prusmnaº" deu com a corucrvaç5o de fonms de: tt2ba1ho fundadas na cocrçio cxuaeconómlca. formas que. como se sabe. do c:arxtcrisdc:u wiro do acravis:mo quanro do fcudaWmo. Referindo« ao .W do. Estados Unido., Lcnia ob.crtou: ºAs~ c:c:on6micu do amtflismo não 1c: distinguem "~ c:m nada das do feudalis:m.o ( ... ). E.ncon.uamos ai pauagnn da c:murura escravista - ou feudal, o que: no caso dá no mamo - da agricultura para a c:murura mc:ramil e: capicalhc{ (V. 1. Lenin, ºNouvdlcs donná sur les lou du dmlopcmau du capicalilroc da.Da l'agriculnm", in; /J., Onwm, Pvis, &lidons Soaalcs. 1973. vol. 22. p. 21 e 106).
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CAAlos NtLSOH CounHttO
a marca escravista sobre a estrutura d e classes: a degradação do trabalho manual, que é muito mais intensa no cscravismo do que no feudalismo, opera no scnàdo de criar &ixas "médias" maiginaliz.aw pelo sistema (tanto nas cidades quanto no campo), que s6 podem se reproduzir através do "favor" dos poderosos. Mais adiante, veremos a fundamental impordncia do "favor" na formação d.a intelectualidade brasileira. O fato de que os pressupostos d.a nossa formação cconômicosociaJ estivessem situados no exterior teve uma imporcante consequência para a questão cultural. Isso signiflca que, no caso b rasileiro, a penetração d.a cultura europeia (que se estava transformando cm cultura universal) não encontrou obstáculos prévios. Em oueras palavras, não existia uma significaàva cultura autóctone anterior à colonização que pudesse aparecer como o "'nacional" cm oposição ao "universal", ou o "'aut&tàco" cm contraste com o "alienígena". Basta pensar no mundo árabe. na China e na Índia, ou mesmo no Peru e no México, paracompn:cndcr im..rliar:amcnte a diferença com o caso brasileiro. No Brasil, mesmo na época da subordinação formal, ou seja, mesmo quando o modo de p rodução interno ainda não era capitalista, as classes fundamentais d e nossa formação econômico-social colonial encontravam suas cxprcssóc.s ideológicas e culturais na Ewopa14• Com sua habitual lucidez, Antonio Candido registra o fato (o qual, cm sua &ricidade, independe de juízos de valor): lmiw-, para nós, foi integrar, foi nos incorporarmos à cultura ocidcn13.1, da qual a nossa era um d~bil ramo cm crcsdmcnto. Foi igu.almcncc manifC$CU' a tcn
..
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~ cvidtntc que a culrun lndlgcna e. em panialbr. a mltun neva daanpc:nham um papel dcclsivo rui formação de noua fisionomia c:Wrunl apeciBcamc:ntc brasileira. M:as tal papel OOOrTCU sempre no q~ de um am•lp- com u matrius cwopeias (basta pcruar. por c:xanplo. no proo:uo ooonido na m(aslaa populw). Quando raisrinm conu:a esse am:llgaau, indcpcndcntcmcruc do valor monl ckaa ~. as culturas lndia e ntgn rrarufomuram.sc ou an li:>lclon: ou .. CifH ' r ~ grupoc marginais. A Candido, !11noJ.tri411 • J. li1mUJ1n1 tll /J#rlsil, C..-. Monte Ávila. 1968. p. 27.
CuuutlA E SOOEDAOE llO BllASll.
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A cultura universal, assim, não era algo externo, imposto pela força, à nossa formação social, mas algo potmdalmmte interno, que ia se tornando efoti:vammu interno à medida que (ou nos casos cm que) era recolhido ca.Wmilado por uma~ ou wn bloco de~ ligados ao modo de produção brasileiro. Nascido no momento cm que.se forma o mercado mundial, e como conscqu&tcia de sua expansão, o Brasil - desde sua origem-Já é herdeiro potencial daqude patrimônio culrural universal de que falam Marx e Engels. A história d.a cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente definida como sendo a história dessa assim.ilação- mecânica ou crítica, passiva ou mnsfonnadora - da cultura universal (que é ccrcamcnrc uma cultura altllJllcntc clifcrenciada) pelas v.irias classes e camadas sociais brasileiras. Em suma: quando o pensamento brasileiro "importa" uma ideologia universal, isso é prova de que determinada classe ou camada social de nosso país cncontt0u (ou julgou encontrai) nessa ideologia a expressão de seus próprios intcrcsscs brasilnros de classe. Quando surgiu no Brasil a classe operária, por exemplo, não foi nos nútos bororos ou nas religiões africanas que ela foi buscar sua ~ ,.,J. • ad uada. aprcssao ~'""m4. ~. ~ Antes de prosseguir, cabe dissipai um possível mal-entendido. Embora condicionado pela relação de dependência (ou de subordinação econômica). esse vínculo com a cultura universal não impõe necessariamente um caráter dependente ou "alienado" à totalidade de nossa cultura". Por um lado, no interior de nossa formação social, há a presença de classes antagônicas, com perspectivas diferentes diante d o problema d.a dependência política e econômica, da subordinação (formal ou real) ao capital mundial; por o utro, no seio da cultura universal, su rgem correntes ideológicas diversas que rcBctem no plano das ideias - para nos expressarmos de modo simplificado - o antagonismo entre progresso e reação. Ora, é nacural que se formem "afinidades eletivas" entre as classes anàcoloniais e anà-impcrialistas e as correntes ideológicas pro"
EaAideiade wm ·~ csuutural datultura brasileira. porca11$1 dasúuaçãocolonial ou senúa>lonial, foi a pos~ domímnce a11rc os intd«tuais líp:loa ao lac:b. Sobn: isto. cf. e.aio Navarro de Toledo, lsdl:fa/trlutk ~. ~P:tulo. Ária, 19n. p. 81·90.
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C-0S NWOH COlll1NHO
CULTIIAA E SOOIOAD[ NO 8AASIL
grcssiscas; ou entre os beneficiários da dependência e as torrentes reacionárias. O processo não é c.cnamcotc mecln.ico, comportando a possibilidade de "erros" ou "desvios": mas me~ justo dizer
que, quando "transplantada" para o Brasil por
WIU
cla.s:sc pro-
gressista e anticolonial, uma corrente cultural avança.da contribui para formar cm nosso país uma consci~cia social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito da dependência, àquilo que Nelson Wcmeck Sodré chamou de "ideologia do colonialismo" (ou seja, a adoção por brasileiros de correntes culturais - como o racismo - que justificam a nossa situação de dependência)". Como quase toda reprodução social, também a da depcndencia é uma reprodução ampliada, que implica a longo praw transformações de qualidade. Ocorre, assim, uma progressiva conversão da dependencia através da subordinação formal cm dependência através da subordinação real; isso se dá quando o próprio modo de produção interno, sob a ação combinada de fatores endógenos e exógenos, vai se tornando efetivamente capitalista e se subordinando não mais ou apenas ao capital mercantil ou comercial, mas também, e sobretudo, ao capital industrial ou financeiro internacionais. Essa conversão cria novas condições para a nossa história cultural. Quanto mais passa a predominar a subordinação real, tanto mais vai dcsaparec.cndo aquele fenômeno que Roberto Schwarz, cm sua lúcida análise da cultura brasileira do século 19, chamou de "ideias fora do lugar". Segundo Schwarz, o mais claro exemplo dessa "inadequação" entre ideia europeia e realidade brasileira é a importação do liberalismo no século 19. O vínculo do modo de produção interno (ainda não capitalista) com o capital mundial~ sobretudo na época imediatamente anterior e posterior à Independência, levou o bloco das classes dominantes no Brasil de então - formado pela junção da oligarquia latifundiária e escravocrata com os representantes internos do capital comercial - a adotar uma ideologia liberal Nelson Wmieclt So
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burguesa. Schwarz obsc.rva: "Era inevitável (...) a presença entre nós do raciocínio econômico burguês - a prioridade do lucro, com seus corolários sociais - , uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a n~ economia era voltada"", Mas, como aquela ideologia übe.ral não se adequava inteiramente ao modo de produção interno (que não era capitalista), revela-se objetivamente como uma "ideia fora do lugar": "Esse conjunto ideológico [liberal] iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com des"". Há assim - se bem interpreto Schwarz - uma curiosa e paradoxal dialética de adequação e inadequação. É certo que o liberalismo expressa interesses efetivos das camadas dominantes: livre-cambismo no comércio internacional, cálculo racional n.a comercialização dos produtos de exportação, garantia de igualdade jurídioo-foanal entre os membros das oligarquias rural e comercial etc. E, cm outr0 nível, expressa também os interesses dos homens üvrcs, mas não proprietários, que viam assegurados pela ideologia liberal seus direitos formais à igualdade com os senhores e sua diferença cm fu:.e dos escravos. Mas, diante do fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida como fato natural, do trabalho fundado sobre a coerção c:xtracconômica e não sobre a üvre concr.uação no mercado, o überalismo brasileiro de então revela sua fu:c "inadequada" e "fora do lugar". Além disso, tampouco se pode Í21ar cm regulamentação liberal no relacionamento entre os "grandes" e os homens üvrcs sem propriedade. O "f.i.vor", que marca tal relacionamento, consagra vínculos de dependência pessoal, de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte, um modo de relacionamento autoritário (mesmo quando paternalista) e antiliberal. É essa dialética de adequação e inadequação que, a meu ver, altera-se com a passagem à subordinação real. Com o início da "
Robato Scbwuz. Ao wncaú>r 11S """"4s. S1o Paulo, Duas Cidades. 19n, p. 14. Pelos motivos q~ indicarei an rc:gulda. não concordo com a goe~ que Scbwan fai pano$6tulo20 (cf. pormmplo, ibUL, p. 19c 24) de sua ccsc dc"idcias fura dclugai.
"
lbúl., p. 1-4.
(ul.TuttA E SOOEDADE NO
2 . Os EFBTOS
industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do modo de produção interno à fase propriamente c:apitali.st:a (o que já se verifica wn~m em certos setores da agricultura na época da abolição
da csaavarura, ainda que isso se dt de modo "prussiano", ou seja, com a conservação de traços pré-capitalistas}, as ideias importadas vão cada vez mais "entrando cm seu lugar", tomando-se mais aderentes às realidades e aos inte~ de classe que tenwn expressar. E isso porque a estrutura de classes da sociedade brasileira vai se tornando essencialmente análoga àquela da sociedade capitalista cm geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a vida culruraJ brasileira do século 20 aproxúrwn-sc cada vez mais ainda que sem jamais se igualarem inteiramente - às contradições ideológicas próprias da cultura universal do pcc(odo. Já não se pode dizer, por exemplo, que o "maximallsmo" libertá.rio de Lima Barreto esteja simplesmente "fora do lugar"; na verdade, a ideologia de Lima expressa - e prn:isamcnte em sua contraditoricdadc interna, cm seus limites, cm seus eventuais "desvios" com relação às mauí:.zcs europeias - a concreta problemática das camadas urbanas subalternas que vão sendo geradas direta ou indirccamencc pelo cccscimento da indústria. Para usar uma expressão de Lucicn Goldmann, essa ideologia aparece como o máximo d e "consciência posslvd" dessas camadas nas duas primeiras décadas d o século 20. Uma observação análoga valeria para o movimento modernista de 1922: sem discutir aqui o conteúdo ideológico desse movimento., parece-me que a tentativa de renovação das técnicas an:.ísticas a partir da imponação do vanguardismo europeu pode ser interpretada como a expressão do necessário esforço de adequação daa "forças produtivas" da arte ao novo universo cotidiano que o capitalismo, cm sua forma moderno-industrial, ia int.roduz.indo na vida brasileira, sobretudo cm São Paulo. Os exemplos poderiam ser multiplicados, até mostrar como a irrupção do ncopositivismo ou da concraculcura na vida cultural brasileira mais recen te concspondcm - sem "estar fora do lugar" - à passagem do capitalismo brasileiro para a etapa do capicaJismo monopolista de Estado.
8AAS«.
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DA .,VIA PRUSSIANA• SOBRE A INTELECTUALIDADE
BRASU.EJRA
Somente se tivermos cm mente esse vínculo estrutural da
cultura bwikiri çom a cultura universal é que poderemos avaliar corretamente o sentido e a atualidade do problema de uma cultura. nacional-popular cm nosso país, sem com isso cairmos na armadilha de um fu.lso "nacionalismo cultural". Mas, antes de abordar esse problema, é preciso indicar outra determinação hist6rico-gcnética essencial da cultura. brasileira, gerada dessa feita não tanto no nível do caráter dependente de nossas relações de produção, mas - através da mediação d essa base econômica - no nível do tipo de articulação entre as classes e o poder político que foi característica da evolução histórica do Brasil. Essa problemática pode ser rcswnida na ideia de que o processo de modernização econômico-social no Brasil seguiu wna "'via prussiana" (Lenin) ou uma "revolução passiva" (Gramsci). Recordemos as caracccrísticas centrais do fenômeno: as uansfonnaçócs ocorridas cm nossa história não resultaram de aut<icas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população, mas se proc:cssa.ram sempre attavés de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, conciüaçáo que se expressa sob a figura política de reformas "pelo alto". É evidente que o fenômeno da "via prussiana" - tal como Lenin o formula - tem sua expressão central na questão da passagem para o capitalismo, no modo de adequar a csm.itura agrária às necessidades do capicaJ• . Mas, generalizando o conceito, pode-se dizer que - na base de uma solução "prussiana" global para a questão da cransiçáo ao capitalismo - todas as grandes alternativas concretas vividas pdo nosso país, direta ou indiretamente ligadas àquela transição (lndcpcndMcia, Abolição, República, modificação do bloco de poderem 1930 e 1937, passagem para um novo patamar de acumulação cm 1964), encontraram uma resposta "à prussiana"; "'
Cí. V. 1. Lenin, OPrrlf"IV'll' 11prio tÍll S«Wl~ "" prilMirtl rmilMfü l1ISSll tlt 1905-1907, SSo &ulo. Citncias Humana, 1980.
(ULTUAA f SOCIEDADf NO
uma resposta na qual a oonciliação "pelo alto• jamais csooodcu a
intenção expUcita de manter margina.lizadas ou reprimidas - de qualquer modo, fora do âmbito das decisões - as classes e camadas sociais "de baixo'"'. Portanto, a transição do Brasil para o capitalismo (e de cada fase do capitalismo para a f.i.sc subsequente) não se deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dcpend~ncia, ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação real cm face do capital mundial; em estreita rclaçáo com isso Qá que uma solução não prussiana da questão agrária asseguraria as condições para o desenvolvimento de um capitalismo nacional não dependente), essa cransição se processou t4mÍJlm segundo o modelo da "modernização conservadora" prussima". Enttc as várias oonscqubtcias da "via prussiana" ou da "revolução passiva", há uma de pan:.iwlar ~cia também no plano da rulrura: dado que o instrumento e o local da oonciliaçãn de classes foi sempre "
u
Esx c:onaeico •ampliado• ck vb prussWia apamz cm G,&gy Luláa. "Não~ por acaso que Lenin indica cm via (seguida pela Alcmanba) como um caso dpic:o de alanGC inrcrnaciorul., como uma via dcs&vomd paa o augjmm1o da modcma _.,,.,ade burguesa; de a chama de llÜt prvssilmA. E.m. oblcmiçio de Lenin nio ~ia limiada à qucuão agrária cm sentido cstriro, mas apllcada a rodo o dacmolvimcoto do capialismo e à $Uperesm.uun política que de assum.íu m ~ IOdo .fW bwgum da Alemanha" (G. Lulcks, ÚI ~Ma. "'fl-.Turim, Eina.ldi, 1959, p. 50). Em muitas de suas :uclliscs cone.mas da $0Çic1c!ade e da culrun da Almpoha e da Hwigria. LJlc:áa aplicou de modo fecundo seu c:onceico "ampliado• de via pnmiaoa: Ó., poc cranplo, o rcu ensaio sob~ B8a Bart6k \li mandarino ll'ICfllviglioso c:onao raliamione". Ur. RiNISdl4., n. 37. 18/'19/ 1970, p. 18-20),ondcderdaciona ~cco.witmde "via pnm1ana• e de ·mdmismo à sombndo poder". t ~obmwr .i.i.quco cooctito lubaiano de •vb prussiana" t essc:nàalmcnce ao&go ao c:ona:ito pmlàano de •revolução p:miva" (ou •rcYOlu~n:scaunçáo•, ou• rm>luçSo pelo al1X>"), c:óm o qual Gramscl p«tcndc sincc:clllr a ausbida de pattlc:ipaç$o popular e o dpo de modemiuçio c:oftRS"r.ldon ql.IC fonm proprioc do caminbo ialiano pu2 O capi " Nem IC ~ caqucoer quit cais c:oru:ic!toos foram dcsenvolvicb por Luldcs e poc ~ u imtadva de dctttminar a.1 rahc:s históóas do f.ascismo, rcspcctiv.uncntc, na Alnóánha e na Icltia. Ou, cm ouuu palavras: se tiYCSSC oc:onido uma ~ dl..:na para a nossa xculu qucsdo agrária. uma sol~ dcmocrúico-m'olodonúla e aio "pnmjana•, isso reri.a abctto o espaço efetivo pan uma indusuialhaçfo CCftmda no mercado interno popubr. uma tal iodwtriallução - expandindo« de baixo para cima - poderia ter evitado a monopo~ pra:oa: e a dcpcndtocb ~to c:mri9r, CJ~ ~ na rait do modelo capitalisca dcpcndcocc-associ>do que óedvunmtc uiwifou.
8-
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o Estado, vcrifioou-se um fottalccimenco do que Gnmsci chama de "sociedade poUtica" (os aparelhos burocráticos e militares que exercem a tÍIJmi1JllflÍQ attavés do governo) cm dcttimento da "sociedade civil" (do conjwuo de apa.rclhos ideológicos attavés dos quais uma classe, ou um bloco de dasses, luta pela hegmwnill ou pela capacidade de dirigir o oonjunto da sociedade). Ora, esse moddo de evolução política e seus resultados sobredctcnninam - e conscqucntcmcntc alrcram - omododerdacionamcnto"dássioo"(noscntidoqucMarx dá a essa palavra) enttc os intelectuais e as classes sociais. Em primeiro lugar, a debilidade da sociedade civil é responsável pela minimização de um dos papéis essenciais da cultura, precisamente o de expressar a oonsciência social das classes em choque e de organizar a hegemonia ideológica de uma classe ou de um bloco de classes sobre o conjunto dos seus aliados reais ou potenciais. A rulnua brasileira tornou-se assim cm grande pane uma rulnua "ornamental", Já que não c:xistia (ou erao:assivamcntc débil) o medium próprio da vida rulcuraJ: a sociedade civil. Em segundo lugar, um dos modos de isolar os grupos populares dos processos políticos constitui precisamente em "assimilar" os seus virtuais representantes ideológicos, incluindo-os - naruralmente cm posição subordinada - nos novos blocos de poder que iam resultando dos processos de conciliação pelo alto. Isso se faz. essencialmente, através dos vários mecanismos de CDOptllflÍD das camadas médias (cm particular dos intelectuais) pelas classes dominantes. Esses mecanismos vão desde o "fàvor" concedido a homens livres, mas não proprietários, na época da escravidão, passam pelo recrutamento da burocracia civil e militar a partir da época do Segundo Império e sobretudo do período varguista e chegam até a criação pelo regime militar - mediante mecanismos de redistribuição de renda - de um setor privilegiado de tecnocratas dotado de alto poder de consumo. O escasso peso dos aparelhos privados de hegemonia e dos partidos políticos de massa na formação social brasileira - em que "o Estado era tudo [e] a sociedade civil era primitiva e gelatinosa'"' u
A. Granuci. ~ Jo """"-· Rio de jandro, Qvil.ixaçio Brasileira. Y. 3. 2000, p. 262.
CuuullA l SOOlDAOE NO 811AS1L
- condenou os intdectuais que se recusavam à cooptaçio pelo sistema dominante à marginalidade no plano cultural e, para nos expressarmos com cena vulgaridade, a seríssimos problemas no plano da subsisttncia econômica". E isso para não falar na repressão poUtica direta contra os intclccrua.is que tentar.un se ligar às camadas populares (ou que são por elas produzidos), repressão que não foi um fenômeno marginal na história das relações entre os intelectuais e o Estado no Brasil. Temos assim um claro "desequilíbrio" na luta cultural: enquanto as classes dominantes encontram com reb.tiva facilidade os sew representantes ideológicos ou os seus "intelectuais orginicos" (veremos logo mais que at~ mesmo a cultura "ornamental" serve ideologicamente à conservação social), as camadas populares são frequentemente "decapitadas" e lutam com grandes dificuldades para dar uma 6gwa sistemitica à sua autoconscibtcia ideológica. Basta pensar nos países que não seguiram uma "via prussiana" para o capitalismo (como a França) o u que superaram posteriormente os seus efeitos {como a Itália pósfucisca) pa.ra compreender as diferenças com o caso brasileiro. O conjunto desses pressupostos prepara um clima favorável a que a cultura se desenvolva naquele clima asfixiante que - valendome de uma expressão de Thomas Mann recolhida por Lukács chamei em outro local de "intimismo à sombra do podcr"n. Esse "intimismo" liga-se diretamente ao problema da ornamentalidade da cultura.. O processo de cooptaÇáo ~obriga necessariamente ••
1)
O v{naJo de ckpcndbx:U do inidccnW bnsilcito .o e.ado fui bem ~ por Anronio Candido, qur chcg;a por isso a consuw, cm noaa 1ltcratu12 oitoccnrim, "um ccno conform4mo de ío.nna e de fundo" (Candido, li_ , . '~. São Pilulo, Nacional. 1965, p. 99). ~modo aJnda mais I~. Wúni« Nogudr.a GaMo observa: "O Em.do (... ) rc encarrega de dJspcosv o incdccwal de qualquer papd na produçio, NStcntandcH> por meio de cmprcp bwocdtic:ol. doaç6cs. p~ pttbcn
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o intclccrual cooptado a se colocar diretamente a serviço das classes dominantes enquanto ideólogo; ou seja, não o obriga a criar ou a defender apologias ideológicas diretas do existente. O que a cooptação faz~ induzi-lo - acrav~ de virias formas de pressão, experimentadas consciente ou inconscientemente - a optar por formub.çóes culturais anódinas, "neutras", socialmente assq,ticas. O "intimismo à sombra do poder" lhe deixa um campo de manobra ou de escolha aparentemente amplo, mas cujos limites são determinados precisamente pelo compromisso deito de não pôr cm discussáo os fundamentos daquele poder a cuja sombra ele é livre para cultivar a própria "intimidade"•. No interior desse espaço fechado a um contato orgânico com a realidade do povo-nação, o intelectual cooptado pode experimentar o seu isolamento não como uma aprazível "torre de marfim", mas como wna "danação" da qual não pode se libe.rta.r. Se a maior parte das ideologias ou das obras de ane criadas no terreno d o "intimismo" são apologttícas, elas o são naquele sentido mediatizado que Lukács - partindo da ideia de que não há ideologia socialmente "inocente" - resumiu na expressão "apologia indireta" do cxistente17. Por exemplo: n o caso brasileiro, o culto da evasão subjetivista no velho romantismo ou na novíssima contracultura, o pessimismo ontológico dos naturalistas, o cientificismo (que se pretende anti-ideológico) dos escruturalist:as etc. são apologia do existente apenas na medida cm que afastam da 6rica da arte ou da ciência social as contradições concrecas da realidade, cm que cransformam o essencial em inessencial ou vice-versa, obscurecendo ou impedindo uma justa consci~ncia dos problemas efetivos do povo-nação (para evitar mal-entendidos: a relação "
•eonrudo. reria P"°"' de c:squcmatlsmo cmcndcr asa tcndmcla como manifcsaçlo de uma clara adcdo i.mcdiatamcnte polfóco-ldtOlógica ao poder mabdccido, às formu ma.is re:idonúús de dominaçSo soc:hl. cmbon cambml essa adcdo OCIOm:$lC cm alguns cuos. O 'inúmismo à IOmbn do poder' combinou·sc frcqucnccmcnte com um inconfonnismo dccbndo. com wn mal-csur subjetivamente sincero dian.te da siruaçlo IOCbl domiNntc (iMtlmt, p. 92). e. Lulck:s. ÚI Jimwà#N MU. . , . ,. rir., p. se 205·206. 0
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(ULTUllA l SOCICOAOE NO BMSIL
que estabeleço aqui cnttc cooptação e "intimismo" é uma.relação tmánuüzJ, que, se é válida para a média, n.áo o é c:vidcntcmcnte para cada caso singular). A tendência objetiva da cra.nsformação social no Brasil a se realizar por meio da "conciliaçáo pelo alto" marca de vários modos o contnído da cultura. brasileira. Antes de mais nada, surgem entre nós manifestações cxplícicas da ideologia "prussiana", que - cm nome de uma visão abertamente elitista e autoritária - defendem a exclusão das massas populares de qualquer participação ativa nas grandes decisões nacionais. Citando declarações nesse sentido de pensadores como Fari2s Brito, Gilbcno Frcyrc, Oliveira Vianna, Miguel Reale, Francisco Campos, Eugbtlo Gudin e outros, Leandro Konder assim sintetiza a cssbicia do pensamento autoritário e de direita entre nós: O pluralismo da ideologia da direita prcsaup6c wna unidade substancial profunda. inabali~l: todas as cocrmtcs comcrvadoras, religiosas ou lcig;as. oàmisw ou pcssimisw, met2&icas ou $0Ciol6gicas, monallstas ou d nicas, àcnti.ficistas ou místicas, concordam cm um determinado ponto essencial. Isto é cm impcdfr que as massas populares se organizem, reivindiquem, f.açam policica e aicm um2 vcrdadei~ democramª.
Mas o elitismo antipopular n.áo aparcoe apenas cm pensadores autoritários e de direita. A conciliação social e política encontra um reflexo ideológico na tendência do pcnwncnro brasileiro ao ecletismo, ou seja, à conciliação igualmente no plano das ideias. Fones contaminações de "prussianismo" aparcocm também cm nosso pensamento liberal, tornando-<> por vezes ac.cnruadamentc moderado e mesmo conservador'. O liberal dcfcndc a mudança que se tomou noccssária, valendo-se para tanto de formulações ideológicas progressistas; mas, ao mesmo tempo, recusa as consequências últimas do progresso, por temor explícito da "anarquia" e do "caos" que vêm "de baixo", das forças populares ainda "imaturas". ,.
l..andro Kondcr. "A unidade da dittt12", iir.}mYI 4'I ~ 20/ 0911979, São P:iulo.
n
Em 1cncUnc:ia íoi bem analisada, pua o .mlio 1l', p« P&U1o McrQdance, A ttnsahtnq ttNmltlM,. ,.. Brssil. Rlo de Janeiro, Saga. 1965.
p. "·
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Podemos encontrar, na vida ideológica brasileira. toda uma série de fonnulaç.6cs que - por seu espírito e até por sua letra - antecipam a célebre dcdaraçáo do político mineiro Antônio Carlos antes da
Revolução de 1930: "Façamos a revolução ancC$ que o povo a &ça". Vejamos uns poucos exemplos. Na véspera da Independência, o liberal Hipólito da Costa - de seu exílio londrino - já afumava: "Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém se aborrcc.c mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo". E quando, após a Indcpcn~ncia, um liberal considerado avançado como Evaristo da Veiga defende a Constituição contra o perigo do absolutismo, não hesita cm dizer. "Modifique-se o nosso pacto social, mas conserve-se a cssbicia do sistema adowio. (...) Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a revolução"•. Essa tcnd~cia ao ecletismo - à conciliação ideol6gica - não se manifesta apcms nos pensadores liberais moderados. Até mesmo intelcctua.is progressisas, nada ligados em sua atividade cultural ou política às tendências incimistas e ao espírito de c.onciliaçáo/ cooptação, são pressionados pela siruação objetiva a confusas sínteses ecléticas, que minimizam ou danificam seriamente o caclter cm última insdncia progressista de ideologia que professam. Nelson Wcrncck Sodré registrou processos desse tipo na produção de Euclides da Cunha, que combinava declarações de simpatia pelo socialismo com a aceitação de elementos ideológicos de fundo racista,,. Poderíamos lembrar ainda outros exemplos. Basta pensar no modo pelo qual os líderes da Revolução Praieira de 1848, como Antônio Pedro de Figueiredo, tentavam combinar elementos do socialismo utópico com o ecletismo espirirualisra moderado, inspirado cm Victor Cousin; na bizarra síntese de marxismo e positivismo tentada por Lcônidas de Rezcnde, nos anos de 1930; na inflluaçáo de posições irracionalistaS na pesquisa sociológica e filosófica do Iscb, essencialmente voltada para uma análise crítica e racional de nossa realidade; ou na "coexist~ncia pacífica", cm ,.
Ambu as dt1Ç6cs csdo cm Mcrodanrc. •/· tú.. p. 62 e 117.
,,
N. W.Sodd.A~4'f~.m..p. 101 - 161.
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CwoJ NWOtl C011T1NH0
CuuvAA l SOO(IMO( NO 8AASIL
alguns dos intclcctuais escruturalistas de nossos dias,4c posição politica de esquerda com uma metodologia de tipo oeopositivista (e, como tal, filosoficamente rcacionária)P.
Todos ~ exemplos pretendem mostrar que a tendência ao confusionismo ideológico, ao ecletismo tc6rico objetivamente "moderado" (no qual elementos progressistaS são "temperados" com dcmcntos reacionários), ná.o resulta simplesmente de uma escolha subjetiva dos intelectuais, de um eventual oportunismo constitutivo deles, mas sim de condicionamcncos obj~tivos de nossa formação histórica e social. Escapar da "via prussiana" e de suas sequelas anticulturais não é um movimento que dependa apnuts da disposição pessoal dos intdcctuais. A coragem e a retidão moral são certamente necessárias, mas não suficientes. Dado que na raiz do "intimismo" está a separação entre os intelectuais e a realidade nacional-popular, uma separação posta e reposta pela "via prussiana", o antídoto contra tal veneno não pode ser produzido simplesmente no laboratório imanente da própria cultura: a superação do "intimismo", canto no nível pessoal quanto social, passa pela orginica integração dos intclecruais com a luta das classes subalternas para se afmnarcm como sujeitos efetivos de nossa evolução social e política. Uma luta que tem por meta a destruição do elitismo impUcito na "via prussiana", com a consequente abertura de um processo de renovação dcmoc.rárica que envolva todas as esferas do ser social brasileiro.
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enquanto tendência altcnnriva no seio da cultura brasileira. Antes de rudo, é fundamental ressaltar que tais determinações - pelo menos é esta minha convicção - não resultam de uma escolha pessoal. não são normas arbitríri2.s que cu pretenda impor de fora à prática criadora de artistas e ideólogos. São detcrminaçóes postaS e repostas por um movimento cultural efetivamente existente ao longo da história do Brasil, ainda que cm posição qU2SC sempre subalterna: um movimento que, apesar de (ou graças a) suas inúmeras diversidades internas, unifica-se enquanto alternativa real à cultura "ornamental" ou "intimista", a qual, pelas raz.ôes expostas, ocupou uma posição tendencialmente hegcmônica ao longo da hist6ria de nossa vida cultural. Nesse sentido, o nacional-popular apa.rccc objetivamente como oposifátJ ámwmlrica, no plano da cultura, às várias con6gurações concretas assumidas pela ideologia do "prussianislno" ao longo da evolução brasileira. Embora a situação italiana divirja em muitos pontos da brasileira, acredito que a definição gramsciana do nacional-popular - precisamente na medida cm que Gramsci o concebe como alternativa à cultura elitista, gemia na Itália pela prcdominància da "revolução passiva" como forma de cransformação social e pelo consequente proc.esw de "cransforrnismo" (de cooptação) dos incdccrua.is" - possa contribuir grandemente para iluminar algumas contradições também da nossa vida cultural. Na ldlia. o termo "nacional" - observa Gcumc:i- tem um signi6ado muito restrito idcologicamcrnc; de qualquer modo, ~ a>incidc
lll "popubt", já que na ldlia os intdcc:ruais estão disa.nfCS do pcwo, isto ~ da 'n;,çio', ligando-tc, ao concririo, a uma IJ'adjçáo de casta. que jamais fui rompida por um func movimento pol.lôco popular ou nacional que atuasse de bai%O pua cima (.•.). Os incdccruais ~ swgcm do J>OYO. ainda quando acidentalmmcc algum ddcs ~ de origem popular. Ido te scnccrn lig:ados ao povo (a Ido ser de modo rccórico). ~ ex>nheocm nem JCnccm auas ,,.......,qdadcs aspinçõcs e scntimenl05 dilWos; ao concririo, aparcoem diante do povo mmo algo scpar.ido, suspc:mo no ar, ou seja. CX>IDO uma ca"2 e Ido a>mo
NAOONAL-f'Of'Ul.All COMO ALTONA11VA À OJLTURA
.,INTIMISTA•
Sem a menor pretcns:áo de csgocar a questão, vamos a seguir enumerar algumas determinações essenciais do nacional-popular
., a.. rcspcaiv:uncntc: para°' llc:kres d2 Praidn, P. Ma
iante. A"'~ "11'fSLTu11-
J.,,,, rit,, p. 1"6-161; para L de Racncle. Anc6ftio Palm. ~ ""1 ilkúufü«lfir111 no Bnuil. Sio Piulo, Grijalbo, 1967. p. 223 e a ; para o 1scb. Jxiob Gorcnd~. "As conmccs sodol6gicas no Bruil". in: F.RwMs SKilis, o. 3-4. 1958. p. 335-352; e, p:m o esuurunlillno. Ferreira Gulb.r, "Vangw.rdismo e aaltun popWIJ 119 6rwr, ln; Tmuu ú CilnrlJu HIUM...s, São Paulo, 1979. YOI. 5. p. 80-81.
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uma ;anio1l-ç5o, oom funções orgWas. do próprio povo.,.
u
a. Gn.nuci, ~ dL, v.5. p. 286-287.
,.
JbiJJ.., v. 6, 2002. p. 41-43. Num IClltido ponrivo, Gt:IJl'IJCI ddlnlu o llad<1fla!..populu ligando-o c:xplid tamcntc ao hlstodcisnwr. "Humanidade 'autbiôca', 'fundamental'. pode
(uLTVAA 1 SOCltDADf NO 8llASIL
A descrição gnunsciana adequa-se muito bem ab- caso brasileiro: o nacional-popular, assim, é - visto pelo la.do negativo - a quebra desse distanciamento entre os intelectuais e o povo, distanciamento que está na raiz. do florescimento da cultura "intimista" ou do elitismo cultural e que, DO mais das vcus, náo resulta de uma escolha voluntária do intclccrual.. Mas se trata desde já de dcsf:azcr um poss1vd mal--cntendido quanto à natureza do nacional-popular. Como vimos, a cultura. brasileira vincula-se organicamente - tanto cm sua &.cc ttacionária quanto cm sua face democrática e progressista - ao patrimônio culrural universal, que lhe serviu e serve de inspiração e alimentação permanente. Assim, se o nacional-popular é essencialmente wn modo de articulação entre os intelectuais e o povo {que fàz desses intelectuais- na expressão de Gr:amsci - "intelectuais org;inicos" das correntes populares), de náo pode ser entendido, DO que se rcfcrc às suas figuras concrctaS e ao seu conteúdo, como algo oposto ao universal, como simples afirmação de nossas prcteruaS raí7.CS cu1turais "autônomas" contta a pcnco:açáo do "cosmopolitismo alienado"
Decerto, n2o se crata de afumar que cal posrura absuawncntc cosmopolita não exista entre n6s: da se manifesta sempre que a recepção de uma conente cultural universal se fu de modo abstrat0, sem nenhwna tentativa de concmizá,.Ja e enriquecê-la no confronto com a rcalldadc brasileira. Em palavras mais precisas: há cosmopo-
etc.
litismo abstrato rodas as vezes que a "importação" cultural não tem como objetivo responder a qucstóc:s colocadas pela própria realidade brasileira. mas visa tão somente a sat.isfattr exigências de um círculo restrito de intelectuais "intimiscas". Nesse sentido, podemos afumar que essa postura "cosmopolita" é uma das manifestações da culrura elitista e não nacional-popular. é por estarem separados do povo, cmpamiados nos limites do "intimismo", que certos intelectuais são incapazes de proceder àquela concrctizaçáo e àquele enriquecimento do patrimônio universal. significar co.l'.ICttWDCntc, oo campo anlsdco, uma única coisa: 'hlitoriddãdl, ou Jtjt. cati1cr 'naàonaJ.popuW' do cscriior" (;bili., p. 122).
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Por isso, é preciso insistir rcsoluwncntc no f.lto de que o nacional-popular não se confunde - antes conB.ita - com o fechamento provinciano e popularcsco diante das conquistas efetivamente progrcs.sisw da culwra mundial". Pelas ruõcs gcnttico-sociais a que já aludi, um tal fechamento seria simplesmente impossível. Quando defendido por artistas ou pensadores progressistas, esse "nacionalismo cultural" conduz a sérios equívocos, que se expressam no empobrecimento da expressão estética e/ou na limitação das potencialidades críticas da consciencia ideológica das forças populares. Por isso, na verdade, o "nacionalismo cultural" encontra afln.idades detivas mu.ito maiores com as forças reacionárias, assumindo quase sempre os traços de uma ideologia rctr6grada. Nesse caso, não é que se defenda uma suposta cultura nacional autônoma contra a cultura estrangeira, mas antes se designa como "nacional" o atraso brasileiro, os elementos anacrônicos de nossa estrurura•social, ao mesmo tempo cm que se luta contra o "idealismo" e a "f.llta de realismo" da cultura progressista mundial quando comparada à nossa vida social concreta.. Isso é mu.ito claro, por amiplo, cm Ar.cvcdo Amaral, um dos principais teóricos do autoritarismo n o Brasil: "Contra essa orientação [da democracia liberal}, no sentido da universalização artifkial de um regime político, ergue-se a reação vigorosa do espírito contcmpodneo com a afirmação da ideia nacional"" . Os exemplos poderiam ser multiplicados. Se observarmos nossa história. veremos facilmente que tal "nacionalismo cultural", desde a época da luta da Coroa ponugucsa contra a pcncuação de ideias iluministas no Brasil até os recentes ataques da ditadura contra o marxismo cm combinação com a defesa de uma "democracia J)
)O
l.ulcli::s viu bem os dois momcnros do processo: "O particular c:ari.rcr do daenvolvimcruo do povo alemão (isto ~ segundo uma via pnwianal apresmr:a, wnbém cm literatun. 0$ f.Wos polos a) de um abst.1110 cosmopolltismo (concnposto ao rca.I in1cmaciooalísmo) e b) de um provi.ncianistno teSuito, que ~1crncn1c se manifesta como cba.uvinismo ~nário (conrnpocto ao rca.I paaiotiwlo)" (G. Lulács, .Ra1ini Utk#hi t/JX/XSN'IJÚ, Millo. Ptlli'ÍMlli, 1965, p. 19). ~AmaQJ. "Real.ismo político cdcmocr.lda". ln: °"-ir JWldu. n. 1, 1943. p. 3 1.
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ÚAlOS Nruo11
COUTIHHO
relativa" ("adeqwada" à realidade brasileira). serviu sonprc para impedir - cm nome da recusa de "ideologias exóticas" conrrárias à "índole" do nosso país- a concreta assimilação dos inst.r umentos
idcol6gicos capazes de conduzir efetivamente o povo brasileiro à sua afirmação nacional e democrática. Por isso, tem razão Mer-
cadante quando observa: "A preocupação de adaptar, de ajuscar a c::xpcá~ncia estrangeira às condições nacionais, decorre do próprio espírito de conciliação"». Em outras pala~ o "nacionalismo cultural" é uma das principais manifestações ideológicas da "via prussianâ antipopular (é claro que nada tem a ver com esse "nacionalismo cultural" retrógrado a luta contra a penetração de produtos culturais alienados, impostos ao nosso povo sobretudo através dos modernos meios de comunicação de massa; como veremos adiante. uma das características do nacional-popular é precisamente a capacidade de distinguir cnue o válido e o não válido no seio do pauimônio cultural universal). Um ouuo erro seria o de identificar o nacional-popular com um determinado estilo ou com uma determinada temática, no
plano estético, ou com uma única posição idcológic::a, no plano do pc.m amcnto social''. São cxprcssócs do nacional-popular, por exemplo, tanto As memórias tk um sargmm tk mi/leias de Manuel Antônio de Almeida, que se vale de um estilo realista tradicional, quanto A mrtÍitafão sq/Jre o Tietê de Mário de Andrade. que recorre às conquistas técnico-expressivas do modernismo e da vanguarda. Mas pode-se dizer que, através dessas variações estilísticas necessárias, há um método artístico comum - o método do reaümw critico (na acepção que Lukács dá a esse conceito) - que unifica "" ~as várias cxprcssócs concretas do nacional-popular no terreno estético. Essa ideia da unidade do nacional-popular, R
,.
P. Mcrc:adantt. A e~"~ rlt., p. U.0. N5o t aqui o local pua apor a.s ncasd.riar dlfcn:nçu que a quallfiaçlo de nadona.1popubr aprcscma quando referida à arte ou ao pensamento social. O n~nal-popular, dccmo, rtfcrc-sc apenas l ickologia. no scnUclo de concq>Çio do mundo: lig;a-sc assim l cimóa social e • a.nc 1.paw iu medida cm que am K líg:am, dt dlfucntcs MO
CULTURA f SOOEDAOf NO 8llASIL
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porém, não deve levar de nenhum modo à negação do seu radical pluralismo. Como Lukács observou, "a obra de arte autwtica - e somente esta pode se tomar a base de uma fecunda universalização histórica ou estética - sati.sÍ'az as leis estética& apciu.s na medida cm que, ao mesmo tempo, as amplia e aprofunda"". Não há assim normas a prúJri para a arte de inspiração nacional-popular: é direim e tkwr de cada artista exercer a máxima liberdade de crfação, no sentido de encontrar o seu modo peculiar e próprio de ampliar e de aprofundar as leis estéticas do gênero dentro do qual trabalha. Port211co, a unidade da arte nacional-popular é algo apc~ tendencial, que só pode ser estabelecido postfotum, e que por lSto está cm permanente modificação; além do mais, é uma unidade na diversidade, que retira sua força e vitalidade do mais amplo pluralismo de estilos artísticos, de temá.ticas, de tendências ideológicas etc. O mesmo pluralismo constitutivo pode ser indicado no caso do pensamento social. Assim, é possível constacar a presença de uma consci~ncia nacional-popular tanto nas teorias pedagógicas de Paulo Freire, inspiradas numa concepção cxisççoc;iallsQ de fundo cristão, quanto nas pesquisas ou nas propostas políticas baseadas nos prindpios do materialismo histórico. Eoquanco o realismo como método (e não como estilo) pode ser considerado o f.tcor que unifica a posterúJri o nacional-popular no terreno estético, no caso do pensamento social esse f.tcor me parca: residir numa concepção humanista e hi.storicista do mundo, ou seja, numa concepção que afirma o papel da práxis na transformação das estturu.ras sociais e que concebe a ciwcia como um dos instrumentos para iluminar e guiar essa práxis transformadora (e cabe aqui recordar ainda a eficácia do conceito cngclsiano-lu.lcacsiano da "vitória do realismo": tanto no plano do pen.sarnento social quanto, sobretudo, no da arcc, não é condição necessária para a realização de um produto nacional-popular a adoção consciente pelo produtor cultural de "
G. Lulb Esll'da, Turim. Eimudl, 1970. vol I, p. 579. Pus o neasd.rio plunallsmo da edtta cstérla. á. íHt/mt. p. 629-6S4.
C UllVM 1 SOCllOAOI NO BMSIL
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wna ideologia ou conccpçáo do mundo explicitamente p~cssis ta; tamb6n aqui, s6 portfetum é possfvcl- a panir de uma análise c:onacta de cada caso concreto - definir o caráter nacional-popular
tem a ver com as condições históricas ou nacionais que tomaram possfvcl seu surgimento, todo produto estético incorpora os seus pressupostos - a sua gmesc histórico-nacional - como momento
ou não de um produto cultural singular).
indiminávd de sua cstrurura cspcrificamencc artística. Assim, quan-
Por outro lado, deve-se evitar cuidadosamente que - no plano d.a objetivação estética - se confunda o nacional-popular com a imposição de uma temática predeterminada. A consciâlcia a.nfs.. tica nacional-popular se manifesta não na temática, mas sim no 4ngulo de abordagem, no ponUJ de vis't4 a partir do qual o criador estrutura sua obra. Ao que cu saiba. foi Mac.lwio de Assis - cm seu c.élcbrc ensaio sobre o lnstinUJ de NICÍOna/i
Uma questão importante é saber qual o conteúdo social, de classe, desse 4ngulo nacúJnal-popularde abordagem do real Mas também aqui vale o prindpio dialético de que "a VCidadc é sempre conacta". 1ao somente a análise concrcu de cada período é capaz de indicar qual classe (ou bloco de classes) é capaz de se constituir cm classe efetivamente nacional - isto é, de superar wna visão fundada cm seus estreitos intcrcsses "ocont>mico-c:orporativos" - e, desse modo, de servir de suporte para a formulação de uma figura cultural de tipo nacional-popular, ou seja, com dimcnsáo "ético-políáca" (valho-me aqui de categorias~.) E esse vínculo com a conacticidade nacional-popular não entra de modo algum cm c:onmdiçáo com o caráter univcrs:a.liz.antc de toda grande criação artística. Ao contrário de uma objcávaçáo de ciâlcia natural, ruja val.idadc imanente nada
..
MM:hado de Assis, •Noticia cb anW lilctllrun bnsikin. ltwimo de nacion.alid.ulc", br: /J. , DmtMll'-· Rlo dc Janciro, Aguilat. 1992. vol p. 80~. wnbém
m.
a.
u intcrc:mnrcs obfcrvaç6c:s de /utrojildo Padra JObrc mt tmo madiad.iano; ltt: /ti., MM'htiM lk Assú, Rlo de Janeiro. Sio ~ 1~9. p. -'S-85.
to mais um artista se vincular à totalidade das contradições do seu povo e de sua nação, quanto mais se tomar (como diria Machado) "homem de seu tempo e de seu país", tanto mais lhe sccl possível devar-sc àquele nfvd de particularidade - de univcrsa.lid.adc ~ - sem a qual não cx:i.ste grande arte. Há ainda outra dctcnninaçáo do nacional-popular que me parece importante destacar. Rdiro-me à capacidade de distinguir, a panir do ingulo de visão próprio de uma classe concrc:tamentc nacional-popular, entre os clcmenros d.a cultura universal que servem efetivamente ao povo-nação (no sentido de aumentar-lhe o grau de aucoconsci~ncia) e os que conduzem ao beco sem saída do "intimismo" indiretamente apologético ou a posições claramente rcacionmas. Também nesse ponto, o exemplo de Lima Bancto me parece significativo. Apesar d.a debilidade de sua formação teórica, Lima sempre revelou wn profundo instinto nacionalpopular cm suas avaliações do patrimônio cultural universal. Foi o caso quando, cm contraste com muitos dos seus contcmporincos envolvidos pelo "intimismo", ele àdic:ula.riz.ou as bravatas pré-f.lscistas do "modernista" D 'Annu.nz.io no Fiwnc, contrapondo-lhes a solidez nacional-popular d.a ação de Lenin e d e Tro tski à frente do jovem Estado soviético; ou quando, referindo-se a Nictzschc, tratou-o como um d os responsáveis ideológicos pelo espírito bc-licista que 01lminou na Primeira Guerra Mundial imperialista; ou ainda quando expressou, ances de morrer, uma posição e.ética diante d.a importação acrítica de certas modas literárias europeias (como o fururismo). mas sem por isso d eixar de recomendar aos jovens escritores que se inspirassem n os exemplos "europeus" de Dostoievski, Tolstoi e Gorki". Para Lima Barreto, assim, não se
.
Cl, rcspcc:âvamanc, Uma Bantto, Fri.-s e lfflljMs. SSo Paulo, Brulllcnsc. 1961, p. 20Z.207;/ti., l iyms«sitldtwM, Sio Ptulo. Brulliente, 1960, p. 119-120: e/,/.., FtfNJ ~ lfflljMs. rll..,p. ~9. canu J~ A. cb Omua, 27/07/1919(rli. cm Fnncbco dc
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CAAl.os NuJON CovnNHO
tratava de contrapor o "nacional" ao "cstrangc.iro", mas de distinguir, no seio do patrimônio cultural tornado universal, enc:rc o que poderia se tornar demento organicamente nacional-popular de nossa própria cultura ou, ao contrário, o que Krviria para reforçar o predomínio das correntes djtistas e "intimistas". E, como toda manifescaçio cultural significativa, o nacionalpopular apresenta camb6n aquilo que poderíamos chamar de sua "doença infmcil" ("infmtil" não cm sentido cronológico, mas enquanto expressão de um escasso nfvd de maturidade: o que quer c:üz.cr que a "doença inf.antil" pode coexistir ou mesmo suceder ma.nifcst2çõcs m2duras do nacional-popular). Podemos considerar essa versão "infmtil", csquematicarncncc, como manifcscaçio da "má conscimcia" do intdcctual intimista, que deseja mais ou menos sinceramente se identificar com o povo, mas que é incapaz de f.uê-lo "de dentro", assumindo a "consciência possfvd" das classes populares como ponto de vista estruturador de suas criações: a ligação desse intelectual com o povo é assim - para usarmos uma expressão de Gramsci anteriormente citada - "apenas retórica". Dessa identificação retórica, "de fora", surge uma atitude patcrnalisca, que pode se expressar concretamente de divc.rsos modos: as reais contradições populares aparecem dissolvidas num ambiente de fantasia; atribuem-se ao povo valores idealizados próprios da camada intdcctual; as figuras populares sáo tratadas como crianças simpdticas, mas sempre como ma11f4S etc. Essa variedade não impede que a vcrsáo " infmtil" do nacional-popular - que seria mais justo chamar de populismo - desemboque quase sempre, do ponto de vista cst:illstico, numa espécie de retórica romântica e/ou de naturalismo fundado na exploração do pitoresco. Exemplos: os riM lk UllU &rrn., Rio de Jancúo. Jo« OOmpio, 1975. p. 321). A produção joma1lsdc:a de Uma Bumo, l'CW.\Ída cm Yários -.olumc:s de ..w obras com· pktu eclitadu por F. de A. 8atboca (S5o P.ulo. Bniaíl1cme, 1958 r ss.) l um pttrio.o in.nrumctito para anallsu a íonnaçto de uma ideologia naàonal·popular no Brull S5o pouquíssimos. att ago12, arudof dcdicadol a csa parte de sua atividade cultunl; t de rc:JAlw o belo cOAlo de Nlrojildo Pcrdn. ·l'oliç6cs polilkas de Uma Bam:w·, in: !ti., Oúb /nrp,,,., Rio de janeiro, Civilizaçlo 8l'Mllcira. 1963, p. 34-~. Assis~ A
°'
CUlTl.lllA 1 SOCl(OAOf NO
BllASll.
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romances indianistas de Alencar, o "romantismo revolucionário" do primeiro Jorge Amado, cenas produções teatrais do CPC, muitas das canções de protesto de inícios e meados dos anos de 1960, um modo de conceber a "poesia engajada" do quaJ Thiago de Mcllo tornou-se talvez a mais ápica cxprcssáo etc. Talvez não fosse equivocado - diante de certos fenômenos culturais contcmporincos - f.llar camb6n de uma "doença senil" do nacional-popular. Ela se manifesta quando certos dcmentos dessa oriencaçáo realista e bistoricista, despojados, porém, de sua intenção crítica e tor.alaadora, sã.o urifu.ados em produtos caraacrísticos de urna arte puramente "agradável"', digestiva ou comercial, cujo valor estético é praticamente nulo e cujas implicaçóes ideológicas são frequentemente negativas. O meio de propagação privilegiado dessa "doença senil" é certamente a indústria cultural; é assim que podemos f.i.cilmcnte detectar o uso castrado do nacional-popular cm várias novdas de televisão ou cm muitos dos filmes produzidos para o chamado grande público. O fenômeno também se manifcsca no campo da literatura ou da música popular".
4. As CONDIÇÕES ATUAIS DA
LUTA PELA OEMOCJlATlZAÇÃO DA
CUlTURA
Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 - e a nova situação que de instaurou no país - marcou um divisor de águas tambhn na esfera da vida cultural. O ingresso do Brasil na época do capitalismo monopolisca de Estado (CME) - ingresso f.i.cilitado e impulsionado pelo regime miliw - trouxe alterações imponantes na esfera da superestrutura, tanto no Estado cm sentido restrito quanto no conjunto dos organjsmos da sociedade civil; e isso nio poderia deixar de ter c.onscqu&icias no terreno da produção cultural. u
a., para a littttiun. Walniae Noguôra Galrio. "Amado: rapcitC»O. rapcidwl•, br: /ti., s..t-. lk : -. til.. p. 13-22; e. para a música popular. Gilberto V-.onc:dlo.. ·o wnblo-jou·. 111: liJ. . M'1ial J»pJa: tkolhoM~ RJo dcj1JlCiro, Graal. tm. P· 75.-82.
CulT\IAA f SOOlOAOf NO
Não pretendo me deter aqui cm ccnos fenômenos que se expressam do modo mais evidente na generalização da censura como prática de rdacionamcnto entre o poder e a cultura; ta.is fcnômenQ$ 1 refletindo a tentativa de quebrar a autonomia da sociedade civil e de reprimir o seu pluralismo cm nome da onipot~ncia do Estado, são apenas o aspecto mais saliente da ação do novo regime político exigido para a implantação do CME num país de capitalismo hipen:ardio e, por isso mesmo, dependente<>. A prática sistemática da censura, aliada a um claro terrorismo ideológico, pode ser considerada como a face aberta da ..política culcural" vigente após 1964 e, cm particular, no período posterior a 1968, ou seja, à decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso o quadro das rdaçócs entre a cultura e a sociedade nos últimos anos; mas seria ainda mais perigoso esquecer que tal face condicionou, através ccn:a.mentc de múltiplas mediações. a totalidade da produção culcural sob a vigência do regime militar. Não se pode esquecer, porém, que a eficácia - relativa - dessa face abertamente repressora operou num quadro para cuja caracterização global contribuíram também outras determinações, tanto as legadas pdo passado (e que foram rcprodu:z.idas e ampliadas, no que tinham de negativo, depois de 1964) quanto as geradas pelos novos dementos inttodu:z.idos cm nossa formação econômico-social pelo processo de crescente monopolização do capical. O papel das detenninaçócs herdadas e rcprodu:z.idas é de imediata identifkaçáo: reforçando os traços autoritários da "via prussiana", dcvando a um nível superior a exclusão das camadas populares dos processos de dccisáo política, o novo regime reforçaria também - direta, mas sobretudo indircwncnte - o papel u
J. Owin (O m"f"'1Js- tk Pllm. SJpM. São Paulo. O bic:W Hunwus,
1978, p. 628 e ss.) foi - ao que cu saiba - o primeiro a empregar o conooito de "capitalismo hlpcrwdio•• indicando com ele um prooosao ele indu.nrialluç4o que se ma« nec:awúmcntc ~do impuW.ísmo.
lllASll.
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das tend~cias culcurajs •mtimi.sw", estimulando o Oorcscimcnro de uma cultura ncuttalizadora e socialmente asséptica (o que era feito, cm particular, ar.ravés da repressão às correntes naclonalpopularcs, abrindo assim espaço para um quase monopólio dtfato das correntes "intimistas"). A 6poca do chamado "vazio culcural", que seria melhor designar como 6poca da cultura esvaziada- e que domina. digamos, no período entre 1969 e 1973-, representou o momento cm que a conBubicia da censurai repressão com as trlldiçóes •intimistas"/ncutra.lizadoras atingiu aquilo que um cccnocrata poderia chamar de "ponto ótimo" na tentativa de marginalização das correntes nacional-populares e, con.scqucntcmcntc, de remoção do pluralismo como traço dominante de nossa vida cultural. Quando aludi a novas dctennina.çõcs, pensei csscnàalmcnte no grande estímulo emprestado pelo CME à c:xpansáo e consolidação de uma poderosa indústria culrural cm bases não s6 capitalistas (o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas também cada vez mais monopol.isas. O processo atinge mais duramente, decerto, os grandes meios de comunicação de IDaS$l, como a televisão, a grande imprensa, a produção de disco$, o cinema etc. Mas os cfcitos da monopolização se Í2zcm igualmente sentir sobre a indústria editorial e a produção t.catr.a.I, embora aqui a presença de empresas médias e até mesmo de pequeno porte assegure um maior pluralismo de oricnt2ÇÕCS e, por conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais consistente. Por outro lado, a universidade - enquanto importante fator de produção e reprodução cultural - foi submetida n.áo s6 a processos repressivos diretos, mas também a uma crcsc.cnte ..racionalização" cm sentido capitalista, a fomw de divisão do crabalho incdcctual que, adequando-se aos mecanismos da reprodução do capital, dificultam enormemente, cm seu interior, a fonnaçáo e sistemarizaçáo de uma cultura crítica e glohaliz;mtc. Portanto, as duas tcn~cias - repressiva e monopolista "racionalizadora" contribuíram para deprimir fortemente a presença de um quadro pluralista também na pesquisa e no ensino universitários. De imediato, esse processo de monopolizaçio da indúsuia cultural gerou uma force expansão q114ntiJ4tiva dos chamados
CUl.TUAA f SOClCOADll NO BllASll
bens cultura.is, o que, antes de mais nada, serviu pan ocultar o fenômeno do vazio culruraJ, que é obviamente um fenômeno de natureza qll2ljtativa (um processo similar ocorre na produção
universitária; aqui, a "moderrn.iz.açáo conservadora" possibilitou um nfvd de formação técnico-forma.lista ou empirista dev:ulo, nus que esconde a pobreza conteudistica e o esvaziamento social que marcam com frequência o ensino e as obras gera.das no imbico uruversiclrio). AJém disso, seria ocioso lembrar o fato de que a generalização da "lógica" capitalista e monopolista no plano da cultura provoca um espontâneo priviJegW:nenco do valor de uoca sobre o valor de uso dos objetos cultura.is, o que abre caminho para a criação e difusáo de uma pscudocultura de massas que, cransmitindo valores alienados, serve como instrumento de manipu.laçáo das consciências a serviço da reprodução do existente. Tal privilcgiamento náo se manifesta apenas na difusão da "doença senil" do nacional-popular a que já me referi; mais grave é o fato de que ele leva à importação em série de produtos pseudocultura.is gerados nos países imperialistas, frequentemente preferidos pelos mASS meáút por serem majs baratos que os produtos nacionajs. E isso não cem consequblcias de.letérias apenas no terreno cultural e ideológico em si; essa importação ameaça também o trabalho e a sobrcvivencia de inúmeros artistas e intelectuais brasileiros. Todos esses fatos negativos da indústria cultural - comuns a qualquer forma de capitalismo monopolista - assumiram entre nós proporções ainda mais atastróficas na medida em que ocorreram no quadro de um regime polltico fundado na repressão e no arbítrio. Um ouuo fator negativo que não pode absolutamente ser subestimado - canto mais que reproduz uma das tendências mais negativas na formação da intelectualidade brasileira - é que a indústria cultural monopolista aparece como um novo e poderoso meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação, do qll21 essa indústria cultural é hoje peça de destaque. Em ouuas palavras: essa indústria cultural aparece como uma nova e eficiente forma de cortar a ligação dos intdcaua.is com a realidade nacionalpopular, da qll21 poderiam ser - se os organismos cultura.is da so-
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ciedade civil fossem mais pluralistas- uma "articu.laçáo orgânica", como disse Gramsci. Os altos salários pagos pelos monop6lios da cultura funcionam como um poderoso atrativo. Por outro lado, a divulgação da cultura requer agora um "capital m frumo" (Marx) impensável cm épocas anteriores, quando predominavam métodos que poderíamos chamar de anesanais ou semiancsanais. Dcsaparccc assim em grande pane a possibilidade, para o produtor de cultura, de manter-se autônomo e, como tal, independente; de profissional liberal, o produtor da cultura toma-se cada vez mais assalariado de grandes empresas. submetido cm úJtima instância à "lógica" do lucro máximo e às exigencias anticulturais de ws empresas. t certo que se trata de um processo contraditório, já que também a indústria cultural apresenta "brechas" e colera margens de manobra; e essas "brechas" e margens poderão ampliar-se substancialmente à medida que o processo de transição para um regime de liberdades democráticas avançar cm nosso país, ou seja, à medida que diminua a ação repressiva direta do Estado sobre os mas:s meáúz e estes se vejam obrigados - pela própria pressão dos consumidores - a satis&ur demandas culturais de uma sociedade civil mais aberta e pluralista. Mas seria perigoso csquoccr, em nome dessas conuatendências, o fato de que a monopolização capitalista dos meios de divulgação cultural aumenta objetivamente as já antigas dificuldades para a criação e divulgação entre nós de uma culruraJ nacional-popular democrática e pluralista... Não quero de modo algum traçar um quadro unilateralmente pessimista. Apesar dessa trfpUcc oposição - da ccnsuralrepressáo, da herança elitista da intelectualidade, da expansão monopolista da indústria cultural-, seria absolutamente equivocado ignorar a presença da corrente nacional-popular, ou, mais amplamente, de uma corrente cultural de oposição democrática durante os anos do regime militar. Essa presença foi decisiva sobrerudo em termos qualitativos. O que de mais expressivo se criou nessa época - do "
Sobre o c:arittt contraditório cb liberdade de criação no capitalismo, cf. o bdo ensaio de Lulda, "Anc livn:: ou am: dirigida?". Íll: /J/., MJtnànM t " ' " " " ' IJ1m1111rt1. São Paulo, Explt'Sdo Popular. 2010. p. 267-28S.
e.
CullUM 1 SOOlOAOt: NO
l111J"isif()ri4/ de José Carlos Capinam ao Poema sujo de Ferreira Gullar, do Quarup de Antônio Callado a Gota á'água de Paulo Pontes e Chico Buarque, d.a &vista CivlÜUflÚJ Bratikira às pesquisas do grupo Ccbrap, para darmos apenas alguns c:xcmplos inclui-se c.crt2Jllcntc, através de uma ampla pluralidade de esólos e de orientações ideológicas, na tend~ncia cultural que definimos como nacional-popular. E não s6 isso: at~ mesmo a pare.ela mais significativa dos autores (consciente ou inconscientemente) ligados a correntes "intimistas" náo hesitou cm se colocar claramente cm oposição às tendwcias totalitárias e antipluralistas d.a "poUtica cultural" d.a ditadura. E essa posrura, cm muitos casos, foi ai~ do engajamento desses intelcauais enquanto cidadãos, envolvendo também a sua produção cultural como tal. Vejamos um exemplo concreto: sob muitos aspectos, o movimento tropicalista cm seus iolcios - na medida cm que tendia a dcsistoricizar as contradições coocrcras d.a realidade brasileira e a eternizá-las numa abstração alegórica e irracionalista (o Brasil como "absurdo" etc.) - pode ser considerado expressão do "intimismo". Mas nio se deve deixar de registrar a presença, na evolução do tropicalismo, de um saudável esforço no sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios expressivos e, sobretudo, de figurar uma nova tcmá.tica, resultante do modo "prussiano" de implantação do CME entre nós (coexistência de um sofisticado capitalismo de consumo com a conservação do atraso nos meios rurais e nas periferias urbanas). Malgrado um demento de unilateralidade, a produção "tropicalista" - como podemos avaliar hoje, muitos anos após seu aparecimento- contribuiu para superar os evidentes limites de um "populismo" que se comprazia cm "cantar" um otimismo ing~uo e, cm última análise, desmobilizador, na esperança vaz.ia de que esse "canto" exorcizasse o "escuro" dominante. Na verdade, o tropicaüsmo nio se opunha ao nacional-popular, mas àquilo que antes chamamos de sua "doença infantil". Essa diaMcica interna do movimento tropicalista - a contradição dinimica entre a conquista de uma nova temática e seu tratamento ainda tendencialmente alegórico - levaria os
BRASii.
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seus mdhores representantes a abandonar progressivamente, cm muiras de suas produções, a alegoria irracionalista e a optar por uma dura crítica, nada populista nem ~ua, d.a cotidianid.adc capital.isra moderna que o CME ia implantando cm nosso país. Foi assim que produções como flllUÍAS abertas de Caetano Veloso (para d.annos apenas um exemplo) convergiram objetivamente com Sinal fichado de Paulinho d.a Viola ou com Cotúli4M de Chico Buarque (e também aqui me limito a exemplos singulares) para criar em nosso país uma música nacional-popular de alto nívd, adequada - cm seu pluralismo e em sua complexidade - às cxig~ncias dos novos tempos. Essa ccndwcia oposicionista predominante na cultura brasileira pós- 1964 reflete, antes de qualquer coisa, o ~to de que o regime militar jamais desfrutou de um consenso estável junto às camadas m~as urbanas, de onde provbn - cm sua esmagadora maioria - os nossos intelectuais. Mas rc8ctc também, ao que parece, o processo de complc:xi6eaçáo e de diferenciação que o desenvolvimento do capital.ismo introduziu na sociedade brasileira e, por conseguinte, na própria camada de intelectuais. Esse processo começa a se manifestar já antes de 1964; o crescimento de uma sociedade civil mais rica e articulada, apoiada cm grande parte na dinamização do movimento de massas, ~ responsável pela radiealiuçáo poütica dos intelectuais a partir do final dos anos de 1950, uma radicaliução que - malgrado alguns limites nacionalistas ou "populistas" - apontava no sentido de inverter a hegemonia a~ então desfrutada pelas correntes "intimistas" (é um período no qual, por exemplo, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros e os Centros Populares de Cultura cxcrccm um papel importantíssimo na produção cultural e artística.) Assim, o regime implantado cm 1964 já encontra os intelectuais numa posição de hostilidade e mesmo de oposição aberta. ~certo que as medidas imediatamente tomadas pelo novo regime - desde o restabelecimento aberto de um modo de dominação polJtica imposto de cima para baixo a~ a tentativa ditatorial de quebrar a autonomia dos organismos d.a sociedade civil (partidos,
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( 111.T\lltA E SOOEDAOI! NO
CAltLOS N EUOH CõunNHO
sindicatos, universidades, associações profissionais, organismos culrurais etc.) - representaram um duro golpe nos pressupostos que se vinham criando, ainda que de modo embrionário, no sentido de uma hegemonia cultural das correntes d~moçráticas QY n~cional populares41. Direta ou indiretamente, o regime militar lutou para impor as condições favoráveis ao predomínio da cultura elitista. Mas foram vários os fatores que obstaculizaram, no conjunto do período iniciado em 1964, a emergência efetiva dessa hegemonia cultural do "intimismo". Antes de mais nada, cabe recordar a resistência ideológica e política. ativa ou passiva. da esmagadora maioria dos intelectuais. E, em segundo lugar, devc--se lembrar que a própria modernização econômica promovida pelo regime - ainda que fosse uma modernização conservadora, de tipo "prussiano" e dependente e, por isso, antipopular e antinacional - abalou seriamente uma das bases sociais mais sólidas da culrura "intimista": o caráter de "favor" pessoal de que se revestiam os processos de cooptação da intelectualidade pelo sistema dominante. O mercado de força de crabalho incelecrual - impulsionado pela emergência da indústria culrural monopolizada - faz com que os intelectuais não mais sejam, pelo simples fato de serem intelectuais, "mandarins" privilegiados aos qu:üs a posse da cultura fornece prcsdgio e status. A gcneraliução das relaçócs capitali.stas no âmbito da culrura os vai convertendo, no momento mesmo em que aumenta seu número e complcxifica suas funções, em rraba.lhadores assalariados a serviço da reprodução do capital. Ora, se ainda existe cooptação, esta opera agora através dos mecanismos impessoalizados do mercado; e esse mercado produz. entre outras coisas, diferenciações salariais excrcmadas entre as diferentes categorias intelectuais. E isso para não falarmos no swgimento do que poderíamos chamar de "exército cultural de reserva", que se expressa no amplo desemprego ou subemprego de intelectuais, contribuindo ademais para rebaixar Sobre a rtuurc:za e 0$ limite$ dessa "hegemonia da esquerda• na vida culrum brasileira
8-.Ull.
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os salários dos que conseguem obter uma colocação" . As.run é que, ao Wfo de uma minoria tecnocrática privilegiada, vai se ampliando um setor da intdecrualidade - particularmente o setor ligado às chamadas "humanidades"1 ou seja, à produção ideológica e à criaç:áo artística - para o qual a c:xpcctativa de cooptação perde inteiramente sua l37.áo de set". Em sua grande maioria, os intelectuais passam a compreender, mais ou menos difusamente, que seu destino peswa1 está ligado organicamente ao fim da "via prussiana"; à construção de uma sociedade efetivamente democrática. em que a riqueza e o pluralismo da sociedade civil abram espaços para a sua atuação autônoma; à rrali=zação de um "modelo" de desenvolvimento econômico não ma.rginaliza.dor, que cenha nas camadas assalariadas da população (nas quais os incelcctuais estão hoje incluídos) o seu destinatário e o seu sujeito. Em suma: criaram-se os pressupostos infraestruturais para uma identi6caçáo entre os intelectuais e o povo-nação. Mas o que faur para que tais pressupostos se convertam cm resultado, levando a uma efetiva democratização da culrura brasileira? Antes de mais nada, há uma batalha a cravar no próprio plano da culO problema do dC$Ctnprcgo de diplomados - com a c:omcqucntc fomuç5o de um ·cxérdm culru.ral de ~ - ~ um dos frutos da dcs:a.suoA e danagógia politia uniYCt"Sitá.ria do tcglmc militar. t c::cno que. cm paro:, o C$pcacular awncnro das vagas
a
llllMnitárw ocorrido após 1964 c:oncspondcu às cxigincias do dcscnvolvimcnro ca· pia.lisa.. Mas um dos objetivos da política de aumento das vagas foi a de criar entre as camadas mállas uma cxpecutiva de mobilidade social asandenre, que pretendia ICl'Vir à ampliação de uma adrudc &vorávd ao rcgim< entre tais camadas. O colapso dcsla poUôca não 5C manífuu apenas no desemprego de dlplomados (que resulta na n~ cbquda expectativa): rcvda-$C ambém o.a dtterioraçio r:idica.I da.s condiçócs do ensino unívc:rsitário, que rc comou majoritariamen1c ministndo cm instiiuiçócs prívac:W, com prtjulzo indwivc de sua funçio na reprodução do sistema ccoo6mico social vigente. Por ourro lado, an! mesmo os iocdcauais privilcgbdos que obt~.m altos salários cendc:m a alo nuis encarar a sua •C>Ot>pQÇão" como um "&vor dos podcro«os. t cem> que podem swgir ncac caso fenómenos de corrupção lmclec:rual: mas o F.aro ~~ a siiuaçSo de asabtbdo lev.i cspontaocama* ao estabdecimcruo de oonfli1os de in!Cttl$C cnttt os írudcauais bem rcmutieados (massubonlinados ao apitai) e os pau6cs. Em muitos~ tals cooilltw podem assumir a fonna ele uma luta dessa lntdccruais pela sua auto00mi:.l
da qxica, á. Robaro Schwan. "Culnua ~ polidca. l ~- 1969", i"' !ti., OJNIÍ tkfnillill
cnquaruoprodUW!:'Cl
t oflht/JatrMÜs, Rio de Janeiro,
sem mcdia96cs. ~ do problcmáóc:o q uanto o de "aNtoc:raáa operária".
P.uc Tara. 1978, p. 6 1-92.
CuLTI.i«A r soatoAOE NO BllASIL
tura. E a tarefa primordial dessa batalha ideológica, no.Brasil de hoje, é precisamente a de contribuir para a superação do elitismo cultural e para uma cransformaçáo cm sentido nacional-popular da cultura e da intelectualidade brasileiras. Estimulando as obras que se encaminham no sentido do nacional-popular e revelando ao mesmo tempo o beco sem salda (ideológico e estético) da visão do mundo elitista ou "intimista", a crítica - se feita no quadro do respeito ao pluralismo e à diversidade, que são traços indiminávcis de toda cultura aut~ntica - poderá contribuir para a expansão hegemônica de uma nova cultura brasileira efetivamente democrática, cfctivarncncc nacional-popular. Essa crítica não pode se basear cm critérios estéticos estreitos e normativos; não se trata de impor aos criadores certas "regras" arbitrariamente escolhidas. Gramsci coloca a questão com grande lucidez: Parece evidente que devemos &lar de luta por uma nova 'culrura' e não por uma 'nova arte' (cm sentido imediato). (...) A arte é sempre ligada a deccrmin.ada cultura; e é lutando para reformar a cultura que se chCflil a modificar o 'oontcúdo' da arte, não de fora (pretendendo uma arte didática, de tese, moralista), mas sim de dentro, porque a5$lm se modifica o homem inteiro, na medida cm que se modl6c:un SEUS SEntimcnros, 5UllS con~pçóes. bem como ~ rcbções das quais o homem é expressão ncccsWia...
Por outro lado, lutar pela e:xpansáo hegemônica de uma orientação cultural - no caso, da oricntaç:áo nacional-popular - não pode significar de nenhum modo a negação do pluralismo. A luta pela hegemonia respeita o pluralismo e dele se alimenta em dois níveis. Em primeiro lugar, concebe a unidade do nacional-popular como uma unidade na diversidade, como uma unidade que retira sua força e sua capacidade expansiva da mais ampla variedade de manifestações individuais. E, cm segundo, não s6 reconhece a necessidade social e o direito à cx:ist~ncia de correntes não nacionalpopularcs, mas ram.b ém - mesmo no quadro de uma crítica global de seus eventuais limites artísticos e/ou ideológicos-admite a possibilidade concreta de que produções culturais "intimistas" possam ..
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contribuir para o desenvolvimento de aspectos de uma arte ou de uma concepção do mundo efctlvarnente Ugadas à vida da nação e do povo (já nos referimos ao fàto de que correntes originariamente "in~", WIDQ trnpicalismQ, wnaibuíram decisivamente para a superação do "popuJismon e para o amadurecimento do nacional-popular na música brasileira; uma mesma argumentação poderia ser desenvolvida cm relação ao papel do modernismo na evolução da literatura brasileira posterior a 1922)". Mas, como a própria formulação de Gramsci deixa claro, os problemas da democratização da cultura não se esgotam na definição de uma justa perspccàva para a batalha das ideias. Há todo um quadro social, econômico e político que tem de ser criado para que a cultura brasileira possa efetivamente se desenvolver de forma ná.o elitista. É o quadro de uma democracia pluralista de massas. Enquanto regime que assegura as liberdades formais fundamentais, a democracia de massas garante o clima nco:ssário para o amplo Aorcscimenro da Ubcrdadc de criação e de crítica, um clima no qual a influência ou hegemonia dessa ou daquela corrente se processe cada vez mais conforme os critérios iman.cntes ao próprio mecanismo da dialética cultural. Por outro lado, na medida cm que assegura os canais necessários para que a produção cultural responda aos problemas colocados pelas grandes massas e retome a das para enriquecer-lhes a autoconsciência., a democracia de massas faz com que o pluralismo da cultura seja expressão do pluralismo dinâmico e da riqueza efetiva da vida concreta das várias classes e camadas nacionais. Finalmente, já que seu caráter progmsivo (de constante ampliação e aprofundamento) leva a democracia de massas a propor concretamente a democratização da economia,
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Já cm 1957, Nm1ro Toglilltl- o dirigauc comunlsu 1121iano- se valia de pol$lbilidadcs desse tipo ~defenda a libmbdc de cri.aç6o nos po.lscs JOClalisw: "Há ouao motivo que aconselha, nesse campo, a não pór &dos à in~dgaçáo e à~ artí$tia; e t qu.c: uma &tcnninada oricnração de pesquisa formal, por acmplo, mesmo se no momento se apresenta mbil e negarlva. e como tal pode e deve ser aiâcada. poderá :unaohl apan:o::r como uma capa qu.c: foi ncccssúio auavmar ~ arlngir novas e mais profundas fomm de aprc:ssão ' • portanto, wn progiaro de roda a aiação an.lstica" {P. T~. Opnr sedu, Roma, Riunitl. 1977, p. 869).
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Cw.os NcLSON COUT1HHO
com a luta para pôr 6m à dominação dos monopólios, ela abre com isso a possibilidade concrct2 de que os producorcs de cultura se apropriem socialmence dos meios de difusão cultural de massa. hoje cm grande ~e sob poder dos monopólios; e não ~ prcciw diz.er o que isso significaria no sentido de tomar real e efetiva a liberdade de criaçáo assegurada no plano formal. Em oucr.a.s palavras: só a construçáo de uma democracia de massas pode quebrar dc6nitivamcote os estreitos limites de cast2 cm que a "via prussiana" emparedou a grande maioria d os nossos intelectuais e, desse modo, criar um novo tipo de rclacionamcnco - de dupla mão - entre os intclecruais e o povo-nação; momenro decisivo nesse processo será assegurado pela aurogcstáo dos organismos de difusão cultural pelos próprios produtores culturais associados. Ora, nesse ponto, a "questão cultural" -convcncndo-sc em momento privilegiado da "questão democrática" - encontra a base para a sua soluçáo. Lutando pela dcmocrati7.açáo da cultura, os intelectuais combatem efetivamente pela renovação democrática da vida nacional cm seu conjunto; e, ao mesmo tempo, Lut2ndo por essa renovação democrática, asseguram condições mais favoráveis à expansão e florescimento de sua própria práxis cultural.,. (1977-1979)
'°
~ auaio foi conduSdo e publJado pda primdra va cm 1979. Se ddxannoc de lado a rcpraÃo abcra e a cmsun expllcia, rodas a demais r.cndbxm idcncifiadas cm sua úlóma putr oonànu:ltn a caaacriz2r a vida IOâal bmílcin e. cm panicubt, a sua vida culnnl. Algumasdclu aa! mmno1e1m1ruanm d.pokdo6m.cm 1985, do ttgimc mílitw. Aadoção no Brasil de poUdas abatamcn(t ncolibcnis D01 pa:tXllàvb de Fanando CoDor de Mcilo e de ~ Henrique Canm> reforçou a mooopWnçio do c:apial e a dc:pendtncia cm &oc do imperialismo. 1- vale paniailanncmr cm rclw;io à indúmia cultuai, qur 1e IOmOU ada YC1 mais monopollsc:a e danac · Jjrwia Se há um f.uo nooo é que agc>a a indúsub cukunl nSo s6 c:oopa in•dtmWJ "ti aclid WS', mas cambém aia seus pr6prios incdemuls "orgWcm", cx:ramcncc nu.is indinadol a oooârlenr os bens cultuais oomo meras mcn:ador ias. Em rcbçto à unMnicbdc. 1egioowc um awncnco O'CIOCntC do $C(l)C privado e uma dara decaionçio do 11CUW público. ho;e ampGnlCll(C minoridrio. &isum, oomo xmprc. ~ nm o &co é que~ rdmva lqµnouia do ncolibcnlWno no pcriodo p61-ciimorial (indusiYe no go.ano Lub) nSo pcnniõu que a ~ abatas
pdQ ~ ck dcmoaaàzaçio polldca lõ.an apaa ck modificat ~tt. c:nae oums coisu, a vida cultural brMilcira. (AJmJo ~ , , _ - ~]
Dois momentos brasileiros da escola de Frankfurt
Uma definição sumária da Escola de Frankfun é tareh irrealizável: não somente por causa da riqueza dos tem~ abordados por seus integrantes (que vão dos pressupostos epistemológicos da teoria social à sociologia da música. do conceito de Estado autoritirio às relações entre psicanálise e marxismo, da filosofia da história à indústria cultural). mas wnbmi - e talvez sobretudo - por causa da variedade de posições assumidas por seus principais rcpn:scntantes. Fdiunentc, para o objetivo destas notas (o de examinar alguns aspectos da recepção da Escola no Brasil). posso deixar de Lado essa definição, tomando como pressuposto a unidade relativa da problenútica frankfurtiana: o u seja. a crítica da cultura moderna à luz. de algumas categorias (como as de rcificaçáo e alienaçáo) recolhidas essencialmente da uadiçáo hegeliano-marxista que se inicia 11 com Histórúl e ronsdênda de classe, a obra juvenil de Lukács • Mas, se não é aqui o local adequado para uma avaliaçáo das diversidades internas da Escola (tanto sincrónicas quanto, sobretudo, diacrônicas). parec:e-mc import20te oomeça.r por registrá-las: na medida cm que a influmcia de Frankfurt no Brasil levou, como veremos, a resultados substancialmente diversos, cabe perguntar se tal diversidade é fruto da própria heterogeneidade imanente à Escola, se é motivada pela variação histó rica do contexto cm que ocoacu entre nós a rcccpçáo d os fraokfu.rtianos, ou - o que me parece mais veros:símil - se rcsult2 de uma combinaçáo das d uas coisas. O fato é que, no interior da unidade relativa que indica)I
Uma ViÃo íonancncc afóca da &cola de Franlcfun. aporu:ada a>mo manikscaçso de ~ rominàca. pode tcrcnmnu:acb cm J.G. Mcrquiof. W..,,, _,,;,,,,, 1..oodrc:s. Nadí.n, 1986. p. J 11 · 1 ~. 15S.18S. Embora oona>nkcm muitO& pomosoom a anilisc dt Merquior, rdo eou do dtia> quanto de ~ o V1loc analltlcn politivo de mulm formulaç6ts "ui~ da F.xola de Frankfun, como te: YCri cm xgukb.
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Culos Nu.SOM C~
CuLTllllA E SOCtf:DAl>f NO BRASIL
mos acima, a Escola de Frankfurt passou no Brasil da condição de esámuJo intdec::tual à contra.cultura irracionalista, no início dos anos de 1970, para a de base teórica de uma vigorosa defesa da razão contra o suno irracionalista do arua1 "pós-moderno". A contradição parece à primeira vista tão gritante que cabe indagar se, por trás das a~das, não haverá pelo menos algum demento de continuidade.
1. MARCIJS( E A C~CUlTUltA l'Uf'INIQUIM A Escola de Frankfurt chegou ao Brasil no final dos anos de 1960. Ao lado de muitos livros de Marcuse, for:un cnráo publicados importantes ensaios de Benjamin, Adorno e Horkheimer; na mesma época, Robcno Schwarz. empregava com brilho categorias frankfurtianas cm suas análises literárias, e José Guilherme Mcrquior - então hcidcggcriano - publicava o primeiro estudo brasileiro de conjunto sobre os principais pensadores da Escola13• O processo se inseria numa saudávcJ teod~ncia à a.bcrtura do pensamento social brasileiro para as mais importantes correntes da cultura universal concempodnca; uma tend~ncia que, ~ do golpe de 1964, manifestou-se com intensidade ao longo de toda a década de 1960. Para falarmos apenas no marxismo, foi este o período cm que - quebrando um quase monopólio anterior dos manuais soviéticos- a bibliografia ma.rxista brasileira se enriqueceu De Hcrl>erl Maraasc. fonm publicado. no Brasil, com: 1968 e 1973. os ac:guinccs livros: 0 f»- "1t~,,./, Ó# I d~ t#.r "1IJ6 -n. crizW ,/,, ~. C.~ t wwlu (iodoJ pela Zahar), O fim ti. IMJ>itt (Pu e Tema). O 1M1'CÍl7M swlltW e hú. 'tnlOÚlplo (pela Sap. depois Pu e: Tem). De Walter Bcnjamlm, apatttttam pdo mcnc. ~ Yet"6es do msalo "A obra de artt na ipoc:a de sua rqM'Oducividadc úcnlcã e, cm 1975. wm oolednea, A MtNlaw/MM, 111 ~ (Rio de j2Ddro, Tempo Brullciro), que c:ontán um imponmcc CRudo JObrc 8audd:airc. De Horkhdmct e: Adorno, foi publ.l ado um aplwlo d.a Di.lmü h ~ JObrc "A indústria culrunl"; e:. cio último, albn ck dim ~do ensaio "Moei.as= ccmpo: sobre o Jan• e de um.a do 1c:rco "lddas paA wm toeiologia da música", ap:uucu cm 1975 uma c:olcdnea. Os cnsalOI de Robcno Schwan ado cm A snri4 ' • Jaa11foM, Rio de Janeiro. Civilizaçio Bruilclra, 1965: e o estudo de Mc:rquioC' ~ Anu ~,.,,. Mirrrwu, ~ / Bntjoli11, Rio de J111elro. Tempo Bruileiro. 1969. Em bibliognfi~ nio prcccndc 1er c:uusm.
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não só com os textos frankfun:ianos citados, mas também com trabalhos de Lulcács, Gramsci, Goldmann, Althusscr, Baran e Swcczy, Adam Schaff e muitos outros. Foi a peculiar situaÇio b~cira dessa agitada segunda metade dos anos de 1960 que determinou, cm grande pane. o modo como se deu essa primeira recepção da Escola cnue nós. Por exemplo: dependeu dessa situação, e não da eventual superioridade intrínseca dos textos de Marcusc, o f.lto de que esse autor tenha desfrutado, na vida intclcaual brasileira da época. de uma inAuência incomparavelmente superior à de seus companhei· ros de Escola. Já conhecido internacionalmente como uma das principais fontes ideológicas das rebeliões estudantis europeias e norte-americanas, Marcusc chcga:v:a ao Brasil no momento cm que um amplo setor da intelectualidade de esquerda não julgav:a mais encontrar nas posições do Partido Comunista Brasileiro (e da cultura marxista que lhe era próxima) uma resposta adequada aos desa.fios da realidade. A ..Grande Recusa" proposta por Marcusc parecia conuibuir para o encontro de tal resposta, naqucJc clima de "impaciência revolucionária"" em que estava imersa boa parte da nossa incclcctu.alidade. Assim, num primeiro momento, um Marcusc lido apressada.mente tornou-se componente não secundário da sopa eclética que formou a bagagem teórica da pretensa "nova esquerda" brasileira: misturado com Mao Tsé-rung, Régis Debray e Louis Althusscr, com os quais pouco ou nada tinha cm comum, Matcusc parecia fumcocr elementos para uma contestação radical que envolvia, ao mesmo tempo, a ditadura (identificada UJUt Ct>Urt com o capitalismo) e o mablishmmt marxista encarnado pelo "velho" PCB (que, embora em alguns casos buscasse renovar seu patrimônio culru.ral com autores como Lukács e Gramsci, continuava essencialmente preso às tradições esclerosadas da Tece.eira Internacional). Se, no plano político, a tática da "acumulação de forças" propoSta pelo PCB aparecia a esses intelectuais »
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fOl cunludo pdo lukaGíano aicmlo Wolfpng Harich, Critia idll,,.,.on-
rlwÚl:z:Ü1llUÍll, MUJo. Fdrrindli, 1972.
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CMlos NcLSOH CounNHO
como reformismo oportlUl.ista, o racionalismo humanisca de Lukács e o projeto nacional-popu.lu de Gramsci eram vistos, no plano da cultura, como demasiadamente vinculados a proposras csrético-idcológicas conservadoras e/ou popu.lisw. Não é assim de surpreender (embora talvez seja de lamentar) que Marcusc, cujas edições se multiplicavam, tenha sido certamente bem ma.is lido na época do que Lukács ou Grarnsci, que tinham suas traduções brasileiras vendidas cm estantes de saldo a preço de banana. Com o rápido fracasso da luta armada, à qual alguns desses intelectuais "impacientes" aderiram e com a qual muitos simpatizaram, o espírito da "Grande Recusa" sofreu uma alteração profunda. Por um lado, a vertente althusscriana- sob a cobertura de um falso revolucionarismo teórico que se reduzia a decretar "cortes epistemológicos" radicais - refluiu para uma escolástica acadbnica e estéril que, combinada e fundida com a do escruturali.smo, passou a dominar uma parte substancial da produção universitária e editorial no campo das ci!ncias humanas. Por outro lado, entre os que mantiveram o espírito da "Grande Recusa", a "impaci~cia revolucionária" rapidamente assumiu uma nova feição: de oposição política (ainda que equivocada) a uma opressão concreta, ela se converteu numa rejeição cão global quanto abstrata à "cultura" cm geral. O mal já não seria tanto a ditadura ou mesmo o capitalismo enquanto formação econômico-social, mas todo um legado cultural que, baseado na razão e na ciência, funcionaria essencialmente, segundo os defensores dessa corrente, como uma insdncia repressora da subjetividade humana. E foi então que a obra de Marcusc, lida apressadamente, serviu como ponto de partida para essa passagem do gauchisme ao irracionali.smo aberto: de csúmulo para a contestação armada à ditadura, Marcusc tornou-se fonte de inspiração para os movimentos da chamada concraculcura, ou, mais precisamente, daquela versão tropicalista da I
( ULTUAA f SOCllOA.0€ NO 8llA.SIL
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Não posso me deter na questão de saber até que ponto a obra de Marcusc foi lida corretamente pelos que a transformaram cm base ideológica do irracionalismo "concraculcural". Diria apenas, brc:vcmcncc, que - se tomarmos os ensaios marcusianos dos anos de 1930 (não casualmente inéditos, cm sua esmagadora maioria, no Brasil da época)-cssa leitura unilateralmente "concraculcural" di6cilmcntc se sustenta: apoiado numa interpretação hegeliana do marxismo, Marcusc fomcc.c nesses ensaios imporCUltcs contribuições para uma crítica concreta das tcndencias totalitárias que v~ florescer no ..capitalismo organizado" da época, indicando com precisão as suas rahcs culturais. Contudo, se analisarmos seus textos ma.is divulgados entre nós, Eros e civili,:A.fio (1955) e O homem uniáimmsioNÚ (1964), as coisas se complicam: identificando desenvolvimento cicncffico-tccnol6gico com dominação repressiva, valorizando Orfeu e Narciso contra Prometeu, dcsqualif1cando o trabalho produtivo (para ele, ncccssariarncntc alienado) cm nome de um trabalho lúdico ou libidinal, pregando uma "sexualidade polimórfica" e urna "nova sensibilidade" como antídotos contra a repressora razão instrumental, esses trabalhos de Marcusc - malgrado os seus indiscutíveis pontos de interesse - deitam raízes numa concepção do mundo essencialmente romântica e irracionalista. Não foi assim casual que a concraculcura brasileira dos anos de 1970 se tenha v.ilido abertamente de Marcu.sc {basta pensar nos artigos de Luiz Carlos Macid, publicados sobretudo cm O Pasquim)><; e se, no final, essa concraculcura terminou por se tornar cada vez mais "orientalista" e abertamente mística cm suas formulações teóricas, a ponto de não mais se reconhecer na inegável sofisticação tc6rica "ocidental" de Marcusc, isso não anula o fato de que o autor de Eros e civilização desempenhou um papel imporCUltc no florescimento do irracionalismo brasileiro dos anos de 1970. Um irracionalismo com o qual, diga~se de passagem, o ~
Os ardgos de LWx Cub Maàd fonm depois ruiolhldotcm N-t'MlnlrtàA. ]#nw/imtO ~ 1970ll!J72. Rlo de Janàro, Elcloc*. 1973. Lendo-te essa colcdnea,
pode-se F.acilmcnu pcrccbcr a·~· da conu1ICll!l\U"l brvikira de MamiK e ~ par.a Heidegger e o orienttlismo.
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ÚolllOS Nwoll ÚlYTINHO
CulTUAA f SOClfO.t.D€ HO
dos anos de 1980 - malgrado todas as inovações "pós-modernas" - conserva uma marcante Unha de continuidade. Deve ser creditada à lucidez de Marcusc a sua preocupação fina!, expressa sobretudo em Contr4rrn!fJ/UfM e T'(W/ta (1972, edição brasileira de 1973). no sentido de denunciar os excessos antirracionalistas que ele agora enxergava nos movimentos cont.raculrurais da outrora "nova esquerda" internacional. Mas, infeliz.mente, quando esse Uvro foi pubUcado no Brasil, a influência marcusiana já entrara aqui em franco declínio (a defesa da razão entre nós, na sombria primeira metade dos anos de 1970, foi cm grande pane - embora, decerto, não exclusivamente - obra dos lu.kacsianos: escolhendo travar uma luta cm duas frentes, contra a "m isé.ria da razão" dos esrruturaliscas e contra o aberto irracionalismo da contraculrura, os lu.kacsianos brasileiros, então ligados ao PC B, terminaram isolados e, nesse isolamento, náo foram infrcqucnces da pane deles manifestações de sectarismo e de intolerância''). Por conseguinte. o primeiro momento de Frankfurt no Brasil - um momento Ugado essencialmente ao nome de Marcusc - serviu sobretudo ao fortalecimento do irracionalismo. U m analista superficial jamais poderia prever que o seu segundo e arual momento, capitaneado essencialmente pelo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet, viesse vinculado a uma radical defesa da razão; e a uma defesa que se manifesta, como veremos, no combate a tendências culturais que, cm alguns casos, podem ser apontadas como sequelas da antiga influência marcusiana.
2. R OUAHET E A DEFESA DA RAZÃO O ocaso de Marcusc foi também, por algum tempo, o ocaso da Escola de Frankfurt entre nós". Com a reativação da vida politica a partir de meados dos anos de 1970, o espaço intelccruaJ - que S>
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H4, pelo mCllO$, du.vaccç6c:J Neve período, RobmoSchwaripuhliaosni aalcnrc WNtÓlrt 11S " " - (São
Paulo, Duas Cicbdes,
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era essencialmente "estético-cultural" no período anterior, cm função da dura c.cnsura ditatorial - foi ampliado com o retomo de temas explicitamente políticos. É o momento, por c:xcmplo, cm que Antonio Gramsci - que fora quase esquecido durante todo o período que vai de 1968 a 1976 - emerge como um dos ponros obrigatórios da reBc:xáo marxista entre nós" . Parcc.e--mc supérfluo insistir no valor positivo dessa ampliação temática para a reflexão intdccruaJ no Brasil e, cm particular, para a rcffc:xáo que se inspira no marxismo. Mas cabe tam~m registrar que, num curioso movimento pe.n duJar, ocorreu por algum tempo uma c:xccssiva "politiuçáo" do espaço cultural, com uma relativa "desativação" das problemáticas estéticas e crítico-culturais que ma.rearam as polemicas do período anterior. Decerto, essa transitória "desativação" era resultado da urg!ncia de encaminhar e aprofundar a transição da ditadura à democracia,, uma tarefa na qual se empenhou a grande maioria da intdccrualidadc. independentemente da diversidade de suas conccpçócs do mundo e da cuJcura. Mas era também natural que, uma vez alcançado um regime de liberdades democráticas, a polêmica especificamente cultura! e ideológica voltaSSC à supcrficie e rcconquistaSSC o lugar que lhe é de direito no espaço intclccrua1 brasileiro. Digo "de direito" porque, sem polemica sobre conccpçócs do mundo e da cultura. não há luta pela hegemonia; e, sem luta pela hegemonia, náo existe uma vida política saudável, ou seja, democrática e pluralista. É precisamente nesse quadro de reativação do debate especificamente ideológjco-ailruraJ que tem lugar o segundo momento brasileico da Escola de Frankfurt. Cabe notar, antes de mais nada, que esse segundo momento é muito mais amplo e diversificado do que o primeiro: cm vez do quase monopólio marcusiano de final dos anos de 1960 e início de 1970, vemos agora serem editados no Brasil alguns dos mais importantes crahalhos de Horkhcimcr,
O grupo lulcaaiano brasildro era fomudo 02 q.oca por Leandro Kondcr, Luh Sérgio Henriques, J'* Paulo Nccto, Gilvan P. Ribeiro e por mim. O lcicor pcrccbe.ci que. se a observação acima o>mporta um aucodogio, o>mporta wnbán uma aucocrfrica.
cnWo sob~ o pómclro Machado, Ao
BAASU.
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19m . onlk utiliu amplamcnrc categorias franlcfurtianas. E Flávio R. Kot:hc publica &njlmrirt d- AillmuJ: "trfrorti.1 (São Paulo, Ária, 1978). Cf. C. N. Courinbo. "A n:o:pçio de Gramsci no Brail", in: /JJ., Cirrunsd. llm t#wl# t#rc ln' pmsAm
CULTURA f SO(l(OADE NO BRASIL
Adorno, Habcnnas e, sobretudo, Bcnjamimsa. Por ouuo lado, com Sérgio Paulo Rouanet, a Escola se "'naruralizou" definitivamente: sew últimos livros", de marcada inspiração frankfu.rtiana, wntribuem náo somente pan wnsolidal a el~çio da ensaístiça brasileira ao n.ívd de sua melhor congênere internacional, mas chegam mesmo, cm minha opinião, a dar uma significativa contribuição para o enriquecimento da problemática &ankfurtiana em termos universais. E mais: com seus instigantes artigos sobre a cultura brasileira de boje.., Rouanct colocou a Escola de Frankfurt no centro de uma das mais importantes polêmicas culrurais desse início da mal chamada "'Nova República". ~a esses artigos que vamos dedicar o restante deste ensaio. De certo modo, o que primeiro poderíamos dizer, num comentário sobre esses artigos polêmicos de Rouanct, é que ndes Frankfurt se pôs contra Frankfurt: quando Rouanet critica o irracionalismo que entrevê cm muitas "subculturas jovens", que reconstirucm "a polarização clássica entre a vida e a teoria que 0orcsccu ( ...) no romantismo", certamente está criticando uma
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Tamb6n sem nenhuma pmcnsáocxaustiva. daria: de HorkhcimcrcAdomo, DitJltiu tltJ ad.r«immkl (Rio de Jandro, Zahar, 1985): de Benjamim, H~. Orip Jo tlrinM INmot# lllmtiú e Olmu esalhú/,u, v. 1, 2 e 3 (roei°' pela Brasiliense, Sfo Paulo, 198+ 1989): de Habennas. Ctmhm- ~ intnrM (Zahar), Pt11J1•1mmslTUf.W Jo ~ ÜJmo hirt6.W (Brasílicn.se), M,,J,mç. mnmmJ Jo efml p11blk• e C.W iÚ k:f.iim;,J,,,/, no "'PilllÜmlo t11nlio (Tempo Brasikiro). Cabe ainda regiruu dlW antologias, sobre H~ (organizada por S. P. Rouanct e B. Freyag) e sobre Bmfamm (por Flávio R. Kodw:). publicadas na coleção "Grandes Omri.uas Sociais", da cdl1012 Árlc:a. Sfo Paulo, respcaivamcn1c cm 1980 e 1985, bem como a colednea de 1orto.s &ankfunianos pubUcados pela Abril Culrun.I, Sfo Paulo, na colcc;io "Os Pensadores, vol. Xl.Vlll, 1975, com ririas ttediçi6cs posteriores. Rdiro-me a Upo e o •wfa. ltinmlrios ~mo W.Jm. Bmji111fín (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1981); T~rilt l'fÚ/'4 •~(Rio de Janciro-Fomlcu, Tempo Brasildro-Uruvc11idadc Fcden.I do Cc:an. 1983): A flUÁO uliJH1 (São Paulo, Brasiliense, 1985); e As -6n Jo í/Mmmismo (Sio Paulo, Companhia das lerras, 1987). CT. Ságio Paulo R.ooanc1. "Ycrdo-amatdo h cor do 005$0 irnclonali.smo". in: Ft>UNrim, 17 de novembro de 1985;c /4 , "Ble&ndonomollwlo", ibúl, l5 dcdcumbrode 1985 (republicados cm As '1lda M illlminismo, ris., p. 124-146). Mas á. tamblm a cotrcvú12 de Rouana publiclda an Vtjir. de 29 de janeiro de 1986, Todas as d~ de RolWICt contidas neste ensaio do rctind.as desses seus a& cnbalhos.
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ressurreição "pós-moderna" da velha cootracultura brasileira dos anos de 1970, a qual, como vimos, sofreu forte influência do frankfurtiano Marcusc. Talvez possa ser interpretado como wn "ato ~o" o fato de que Rouanct, quando cnwncra as vcncntcs teóricas que estariam na raiz dessas "subculturas" antirracionalistas, cite explicitamente Foucault e os nouveaux phiÍl>sophes, mas omita o nome de Marcu.sc e (por que não lembrar?) de um certo Benjamin f:ascinado por suas experiências com drogas. E é curioso que o único Marcusc a que de se refira seja o do último período, precisamente o Marcusc autocrítico de Conmtrm10/11Çáo ~ mJOlta. Todavia, recordar tais omissões pode aparecer como uma mesquinharia diante do que é mais importante nos ensaios de Rouanct: des nos recordam que a Escola de Frankfurt. liberada de seus momentos mais "dionisíacos", mais romintico-anticapitalistas, possui alguns instrumentos eficientes para denunciar o irracionalismo e propor soluções culrurais bastante pr6ximas da tradição dialético-racionalista que me parece estar contida na produção de Gramsci e do melhor L1kács da última fase. E é a essa vertente frankfu.rtiana - que se propõe liberar a razão das repressões que a aprisionam, e não identificá-la com a repressão e, portanto, condená-la sumariamente - que Rouanct pertence. São muitos os pontos cm que concordo plenamente com Rouanet. Por exemplo: quando ele aponta no "nacionalismo culrural", na crítica xcn6foba à cultura universal, uma manifestação oáo só irracionalista, mas objetivamente reacionária" . C.Ompartilho igualmente seu combate ao chamado "p6s-modcmo", ou seja, seu empenho cm conservar a necessária distinção entre a alta culrura, por um lado, e, por outro, a cultura popular e de massas: somente através da alta cultura (e, muito cm particular, da grande arte) é possívd ao indivíduo dcvar-sc à autoconsciê.n cia de sua participação no gênero humano, na medida cm que por meio dela se apropria dos iruuumcncos capazes de romper a falsa consciência alienada e particularista que o impede de desenvolver uma ade-
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CT. tupl'll. •CuJiura e IOCicdadc no Br.uil". P• 54 e a.
CULT\JM ( SOCllOADE NO BMSIL
quada postura crítica diante do mundo cm que vive. 'Runbém me parece corresponder a uma política cultural efetivamente democrática sua atitude cm face da língua culta (que me recorda o combate similar de Gramsci pela língua nacional e contra o fi:tichismo do dialcco); ou sua corajosa denúncia das manifestações de anti-intdccrualismo que vicejam hoje entre alguns setores do movimento operário brasileiro (cm particular, mas náo apenas, cm algumas correntes minoritárias do P1}. Em todos esses ponros, que sáo decisivos cm seus ensaios, Rouanet demonstra que pode haver uma convcr~cia de princípio entre uma postura gramsciana e lulcacsiana em face da cultura e um frankfurtianjsmo "apoHnoo", baseado no que há de mais lúcido nas reflexões de A.domo, de Benjamin e de Habcnnas. Mas, de um ponto de vista grarnsciano (que, diga-se de passagem, pode e deve ser enriquecido com algumas reflexões lulcacsianas), sinto-me tentado a levantar algumas objcções às formulações da Escola de Frankfurt, mesmo cm seus melhores momentos. Em primeiro lugar, diria que a colocação geral de Rouanct pressupõe distinções demasiado rígidas entre os vários níveis da cultura e> mais concretamente, da consciencia social que se expressa através das obras culturais. Deccno, de nos advene para o fato de que "a alta cultura e a cultura popular sáo as duas metades de uma totalidade cindida"; mas, ao mesmo tempo, afirma um pouco resignadamente que essa totalidade "só poderá recompor-se na linha de fuga de uma utopia tendencial". Em segundo lugar, revelando uma fone inBuencia adorniana, parece considerar como essencialmente alienada toda a cultura de massas (que ele distingue corret:a.mentc da cultura popular), isto é, a cultura gerada pdos modernos meios de comunicação". É o que me parece resultar de sua afirmação de que "a ameaça à sobrcviv&tcia da literatura de cordd não é o "
~dos explícitos modvos de cndca ttndmd1lma11c nutxista, crdo q ue não~ dif!dl pcn:d>cr na r.adial oposiçio c:k Adorno à indústria rulrunl W1Ü>b\ unu posiçio dicim, ou stja. um indlsfuçivd nu.1-csw- dianic do "agradável", do mero tliwrrissmtm1. f. inm"Emntl! ~ q1U?, mi sua Ettltial (Turim, Eill3udi; vol. 2, p. 1.288-1.336), l..Wdcs iambém lnsisic na subsunci.al d.istinçio cnuc o "agt2dávd" ~o "cmtico"; no
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Finneganí Wake, e sim a tdcnovcla". Uma análise menos abstrata, mais diferenciada, deveria não só levar cm conta a possibilidade de que a consciência alienada e o irracionalismo se manifestem
r.ambém no interior da alta cultwa (e este me parece precisamente o caso da obra de Joyce tomada como c:xemplo por Rou.anet), mas também, invCl'SaOlcntc, como veremos a seguir. a possibilidade de que obras da cultura de massa (como algumas tdcnovdas) expressem elnnmtos de uma consciencia crítica e náo alienada. Embora certa.mente não seja essa a intenção de Rouanet, o fato é que sua posiçáo frankfurtiana conduz a um certo imobilismo: por um lado, devemos proteger a culrura popular, que de identifica. em mais de uma oporrunidade, com o folclore (licerarura de cordel, artesanato nordestino etc.); por outro, trata-se de valorizar os produtos da alta cultura. operando ~ralmmk (por meio da democratização da sociedade) no sentido de que o povo tenha acesso a seus produtos. E, finalmente, cabe proteger ambas contra "a cultura de massas, nacional ou estrangeira", adoroianamcntc concebida como o reino da alienação e da manipulação. Com Gramsci, eu diria que uma política cultural democrática - sem deixar de lado, evidentemente, os fatores cxtraculturais de democratizaçáo - deve operar de modo que a "recomposição da totalidade cindida" se processe Utmbhn por meio de um progressivo potcnciamento das virtualidades de pensamento crítico contidas nos níveis culturais inferiores. Mais explicitamente: o que Rouanet designa como culrura popular é, essencialmente, o que Gramsci chama de "folclore", ou seja, um amálgama bizarro de elementos bctcrogbleos provenientes da culrura superior do passado {é o caso, muito cla.ramente, do romance de cordd, citado por Rouanct). Através dessa cultura popular, forma-se o que Gramsci chama de "senso comum": um conjunto de concepções do mundo hetcrogencas e contraditórias que organizam a práxis dos "simples", fornecendo-lhes normas para a açáo. Para Gramsci, (DWJto, ele oio condena o llfO do agradável cm obl'3S culturais. mas liln 1 W2 confudo com o cspccilic:amcnic CS'tttico.
(ULTVllA f SOOfDAOl NO 8llASIL
a luta por uma nova cultura (momento da luta por uma nova hegemonia) implica um esforço no sentido de "depurar" o "senso comum" e elevá-lo ao nível do "bom senso". ou seja, a uma concepção do mundo mais organizada e sisccmácica que, liberta de anacronismos e mesclas bi:z.arras, coloque-se à altura da modernidade e se converta cm instrumento de uma práxis crítica. Todos sabem o imenso papel que Gramsci atribuía aos "grandes intelectuais" - e, como cal. à alta cultura - nesse processo de elevação da consciência folclorista a.o nível do bom senso (ou, se quisennos, da cultura nacional-popular). Mas tal processo não pode ser confiado à simples esperança numa "utopia tendencial": sem jamais propor o desprezo ou o abandono da alca cultura, Gramsci chega a diz.cr que - no nlvel tÍ4 conscibuia social - o fato de que uma concepção do mundo já elaborada seja difundida entre as massas, tornando-se "bom senso", é mais importante do que a realização de uma descobert2 teórica espcdfica que reste limitada a um circulo restrito. Por ouuo lado, para o autor dos Cadernos do cdrcere, essa obra de difusão e renovação cultural não s6 não é incompacfvel com a grande arte, mas é mesmo urna de suas condições: "~ lutando por uma nova cultura - diz. ele - que se chega a modificar o 'conteúdo' da arte"" . Ora, no mundo moderno (que deve cen:amcncc ser criticado, mas náo romantic:amcncc recusado em bloco), a difusão de massa de uma cultura crítica pode cnconttar nos meios eletrônicos de comunicação um instrumento privilegiado. Rcfuo..mc, cm primeiro lugar, ao caráter positivo da difusão pela mi.dia de obras culturais de nível superior (algo com o que o próprio Rouanet talvez concorde, já que afirma que "até c:crto ponto a indústria cultutal é neutra em matéria de conteúdos"); com o perdão de Adorno, citado por Rouanct, parece-me muito importante que "
Raumo aqui concicito1 gnmscianos C:Xpta80S nos ~ "- dtmr, Rio de J.t.ndro. Ovili:r;oçJo Bn.sildn, 1999-2002, cm panicubt nos vs.. 1. 2 e 6. Nas vdhas ~~ bnsíklns. dcs podem sa mcontrados cm C..""1(M .IU/Jtiu '4 ~ Ülnwrw1J1 t IJiiú IUliotui, Oi iNNau.fk t • '"flflllu{M ú oJnus (Rio de Jandro, Ovilluçlo
Bruilcir.a. rupc:aMmmrr 1966, 1968 e 1968).
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milhares de pessoas escutem a Nona Sinfonia pelo cidio ou pela rclcvisáo, mesmo que essa audição se de entre duas propagandas de dcnrifrlcio, caso a alternativa para isso seja a de que jamais a escutem, por nio poderem fiequenw uma adequa
CUl.TUAA ( SOCl[OAl)f
os que são funiliariz.ados com a alta cultura - chegam atrav6 ddas, pela primeira vez, a uma massa de milhões de telespectadores. Produções desse tipo podem diminuir a dcfuagcm cnttc o
folclorismo anacrônico, hoje prcdominance na rulrura. do povo, e uma consciência nacional-popular mais rica e desenvolvida. Nesse sentido, considero m.anifcstaçáo de elitismo a condenação prévia da telenovela enquanco g&tero, sob a alegação de que, por operar no nível do agradável e não do estético, da jamais poderá alcançar o patamar arústico-idcol6gjco de obras como, por c:xcmplo, DouúJr FallStuS ou Viva o pqvo brasikiro". Por tudo isso, no plano da política cultural, a concepção gramsciana de uma inter-relação dinâmica e rctroalimcntadora entre os vários níveis culturais me parece mais fecunda do que a visão estática e, cm última instância, conservadora que resulta das concepções de Horkheirncr e Adorno. É nesse ponto que julgo cncrcvcr uma linha de continuidade, no seio de uma marcada descontinuidade, entre os dois momentos da recepção da Escola de Frankfurt no Brasil: na medida cm que opta por trabalhar num nívd demasiadamente abstrato, "ftlos6fico-univ~", a Eswla de Frankfun - seja cm sua versão "contraeultural" marcusiana, seja cm sua atual figura racionaliSta encarnada por Rouanct - tende a deixar de lado muitas mediações sociais concretas, sem as quais é impossível rcaliz.ar uma análise histórico-materialista da cultura e, como con.sequwcia, propor uma política cultural democrática e socialiSta, que não perca de vista a quest.áo da luta pela hegemonia entre diferences blocos de classe. Porque, afinal, quando Rouanct nos diz que o irracionalismo brasileiro "se apropriou (...) das três tcnd~cias mencionadas [anticolonialista, antielitista e antiautoritária], usando-as para seus próprios fins", não me parece manifestação de sociologismo vulgar lembrar-lhe que o
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Um clitcuno1cmdlwuc JCria cambán ~. czn:amcncc cm maiot mc:Wda, par.a a DOSA música popu1u: num pa& orwk a aha Utt:rarun qmK scmp~ cxprmou um esc:mo gr.w de conscitnda nacional-popular. foi arnvá dcm música - de Nod Rosa a Cacuno
Vdoso r Otia> Bwrque - quegn.ndt pane da popubçk>enconuou insaummros pm forju o acu "bom tcruo". ou acja. a 1112 condncb aídca.
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"irracionalismo" não cem fins, mas que é apenas a manifcstaÇáo ideológica de uma ~ (ou de um bloco de classes) historicamente concret2. A que interesses sociais serve o irracionalismo que Rouanct tio lucidamcnrc denuncia e combate? Na medida cm que o marxismo frankfuniano, com sua declarada predileção pela aitica cultural "cpocal", deixa inteiramente de lado a qucst.áo da luta de classes, não é de surpreender que não haja nos ensaios de Rouanet nenhuma resposta a essa qucst.ão. Seria uma ilusão ing&ua supor que se possa fucr uma •reforma intelectual e moral" (Gramsci) de modo exclusivo, ou automafica.mcntc, atrav6 da difusão propiciada pela múlia clctr6nica: devemos à Escola de Frankfurt, e cm particular a Horkhcirncr e Adorno, uma consciência mais lúcida e perspicaz dos imensos riscos regressivos contidos na indústria cultural. A adoração basbaque das virtudes da múlia, t.áo bem denunciada por Rouanet, é certamente uma manifestação equivocada, que deve ser duramente combatida. Mas também me parcc.c perigoso ignorar as potencialidades dos meios de comunicação de massa, quando submetit:Íbs à pressão e ao rontrok de 11ma socie"'1de civilfone e ámromitka, no processo de elevação do senso comwn folclorístico ao "bom sen· so" crítico. Enquanto aparelhos de hegemonia, também os meios eletrônicos são terreno de uma "guerra de posições" entre blocos sociais conflitantes. Numa vertente frankfurtiana diversa daquela de Adorno, foi esta a conclusão a que chegou Benjamin, cm seu belo ensaio sobre A obrrz de arte na época de sua reproáutibiliJade técnia Se quisermos evitar o espírito de Kulturlrrirlt romintica que condena inapclavclmcntc o desenvolvimento cccnol6gjco, e se temos de reconhecer que a cxpansáo dos meios de comunicação é algo inexorável no mundo moderno, então temos de atualizar, parodiando, a lição de Benjamin: diante das tentativas de "pscudocstctização" da miJúz a serviço da alienação e do embrutecimento, a rcspoSta do comunismo é politizar a cultura de massas. Contudo, para que essa arriscada operação não se converta cm populismo, ou mesmo cm c;ini$mo ("se o csrupro é inevitável, relaxe e aproveite"). mas se mantenha gramscianamentc no nível
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de urna proposta nacional-popular abcna à alta cultura~ aos seus insubstituíveis valores estéticos e ideológicos, as advcnências da Escola de Frankfun são indispensáveis. E temos de agradcc.cr a Rouanct por nos tê-las recordado, com lucidez e coragem.
O significado de Lima Barreto em nossa literatura
(1986)
A forruna crítica da obra de Lima Barreto é um dos fenômenos ma.is dcsconcenantcs da historiografia literária nacional. Com efeito, desde o seu aparecimento até hoje, no momento cm que transcorre o cinquentenário da morte do escritor, essa obra vem despertando reações cctrcmamcntc contraditórias, que vão do entusiasmo apaixonado de alguns à rejeição mais ou menos categórica de muitos. Deve-se ainda observar que esse entusiasmo se expressa frequentemente sob a forma de uma simpatia calorosa mas pouco atenta ao essencial, enquanto a rejeição assume muitas vezes o aspecto de um desprezo "aristocrático" pelas pretensas debilidades "formais" do grande romancist2 popular. O mod.o pelo qual se processa essa forruna, assim, evidencia em primeiro lugar como o pensamento progTcssista brasileiro apesar dos avanços realizados - ainda está distante de uma correta e adequada reavaliação crítica de nossa própria herança cultural. Na verdade, mesmo da parte de seus admiradores, habitualmente siru.ados à esquerda, a exata significação de Lima passou despercebida; o autor de Triste fim de Policarpo ~rmna - uma das poucas obras-primas com que conta o romance brasileiro - é elogiado enquanto notável "cronista" do mundo urbano carioca, enquanto corajoso defensor das camadas populares etc., mas sem que se avalie o seu significado real no fortalecimento e aprofundamento de uma tradição rcaJist2 autenticamente nacional-popular. Por outro lado, tal como ocorre cm relação a Graciliano Ramos, não são poucos os que insistem erroneamente no caráter "memorialistâ da obra de Lima, na pretensa natureza biográfica dos seus romances; esse biografumo, ademais, cm mãos de analisw superficiais, leva à afirmação de que o caráter profundamente crítico da obra d e Lima decorreria dos "ressentimentos d e um derrotado", das
Cut.lUAA (
"amarguras de um homem de cor", dos "desequillbrigs de um alcoólatra" etc. Em suma, mesmo nos casos em que se ressalta o valor documental de suas "'crônicas" ou o interesse humano de suas "confissões", deixa-se de lado o que distingue Lima do naturalismo populista que caracteriza grande parte da literatura brasileira "de esquerda". Em segundo lugar, é inccressance observ:u como a intermitência do seu prestigio e de sua influência pode ser cornada como claro indício do quadro geral apresentado, cm cada época concreta, pela culrura brasileira. Assim, nos períodos cm que se destaca a função crítico-social da arre, o papel que da desempenha na formação da autoconsciência da humanidade, Lima Barreto encontra o devado posto que lhe é devido no quadro de nossa literatura. Ao contrário, nas époc2S cm que floresce uma visá.o fonnalisca ou esteticista da ane, desce sobre a obra do romancista um absoluto silêncio, interrompido apenas pdas d esdenhosas afirmações de que de desconheceria os "inscrumentos específicos da escrita". Isso não é de modo algum casual. Lima Barreto não pode ser "reinterpretado", ou seja, mutilado ou empobrecido a fim de servir aos prop6sitos das correntes cstericiscas ou reacionárias no campo da literatura; o inequívoco caráter realisca e democrático-popular d e sua obra se impõe com tal evidência, de modo tão absolutamente insofumávd, que os cultores brasileiros do esteticismo só podem reagir diante dela com o silêncio ou a mistificação.
1 A exata determinação do significado de Lima Barreto na evolução da literatura brasileira requer, como condição preliminar, o estabelecimento - ainda que sumário - de algumas linhas determinantes dessa evolução, náo apenas no específico campo dos problemas escéticos, mas igualmcnce no que se refere ao quadro histórico-social em que da se processa. O caminho do povo brasileiro para o progresso social - um caminho lenco e irregular - ocorreu sempre no quadro de uma conciliação com o acraso, seguindo aquilo que Lenin chamou de
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"via prussiana" e Gramsci designou como "revolução passiva". Em vez das velhas forças e relações sociais serem extirpadas aaavés de amplos movimentos populares de massa, como é característico da "via francesa", a alteração social se fez aqui mediante conciliações entre o novo e o velho; ou seja, se consideramos o plano imediatamcnc.e político, mediante um reformismo "pelo alto", que excluiu inceiramentc a participação populac. Como consequência desse "moddo" de evolução, difunde-se a imprcssáo de que a mudança social asserndha-se a um "destino fual", inteiram.coe.e independente da ação humana; e, como concrapartida desse fatalismo, ganha força cm outras áreas a suposição - igualmente equivocada - de que aquda mudança resulta cáo somente da ação singular de "indivíduos excepcionais". No quadro desse profundo divórcio entre povo e nação, toma-se assim particularmente diBcil o surgimento de uma autêntica consd~ncia democrático-popular. Esse fato, dcccno, tem profundas repercussões negativas cambém na formação e no caráter da intdeccualidade brasileira. Desenvolveu-se entre da, praticamente desde os inícios do Brasil independente, uma forte tendência a situar-se naquilo que Thomas Mano, referindo-se aos imdccruais alemães, chamou de "intimismo à sombra do poder"',. Dcscrcnccs da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se processam sempre mediante acordos de cúpula entre as classes dominantes, os intdcctuais tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocarse num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que náo se põem em jogo as questões decisivas da vida social, as concretas relações sociais de poder. Essa sicuaçáo é agravada pelos craç.os característicos da 41
O camo apattec no mAlo manniano Grolllku t sofrimmt4 ~ RkhtlrrJ W
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formação social de nossa intelcctUalidadc: nwn pcríodD cm que predominava urna radical separação entre as da.sses e cm que o trabalho permanecia sob o estigma da condição servil, os intelectuais - oriundos quase sempre da dassc m&iia - utilizav.un a culnua como meio de diferenciação, de prestígio e elevação social, acentuando assim o seu isolamento com relação à concreta realidade nacional-popular. Se a isso acrescentarmos o fato de que os intelectuais dependiam, para o seu sustento, quase sempre de uma integração no aparelho burocrático do Estado, teremos as linhas histórico-soei.ais gerais da cspcd6ca modalidade brasileira do "intimismo à sombra do poder". Do romantismo ao concretismo, sob formas aparentemente variadas, essa tendência caracterizou uma corrente significativa e quase sempre dominante da intelectualidade brasileira. Contudo, scri2 prova de esquematismo entender essa tendência como manifestação de wna dara adesão imediatamente poUticoideológica ao poder estabelecido, às formas mais rcaciorWi.as de dominação social, embora também essa adesão oco~ cm muitos casos. O "intimismo à sombra do poder" combinou-se frequentemente com um inconformismo dcd.arado, com um mal~ subjetivamente sin.ccro diante da situação social dominante. O que determina os limites do "intimismo", cm úláma instância, é o fato de que ele capitula diante dos preconceitos ideológicos gerados espontaneamente pela Via prussiana", ou seja, ao subjetivismo extremado que vê nos indivíduos cxc.cpcionais as únicas forças da história, por um lado, e, por outro, ao fatalismo pseudo-objetivo que amesquinha ou ~lvc o papel da ação humana na criação h.ist6rica. Facilmente se perceberá que esses dois preconceitos, no plano estético, dão origem respectivamente ao romantismo e ao naturalismo. O fato de que o "modelo" prussiano seja algo permanente na evolução brasileira, por sua vez., explica a razão por que essas duas tendências antirrcalistaS - sob formas estilísticas cxtrcmamcntc variadas - se manifestam ao longo de toda a nossa história cultural. Tomemos inicialmente o caso do nosso romantismo cm sentido estrito. Nelson Wcrncck Sodré descreveu com acuidade os
Ôft.T\JAA f SOCICOAOt NO
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complica.dos meios pelos quais a insatisfuçáo romântica inicial, expressa cm sua tentativa de desvincular-se do passado colonial, terminou por desembocar numa forma cspcd6c:a daquilo que antes chamamos de "intimismo à sombra do poder... Na opinião de So~.o indianismo- voltado contra o demento colonial encarnado pelo português - ocultava na verdade um desprezo pela realidade social concreta do então presente brasileiro, pelo demento popular encarnado na figura do escravo negro". Transformando o índio no autêntico representante da nação brasileira, o indiarusmo ressaltava o seu valor ideal - expresso atra\'6 das deformações de um subjetivismo romântico - cm oposição à mesquinha e prosaica realidade da época; mas, ao mesmo tempo, cumpria uma função social claramente cscapista. ao deixar na sombra as concradiçócs sociais concretas do Brasil de então. O culto romântico de um índio mitificado (que vemos se expressar tão claramente na prosa de José de Alencar ou na lírica de Gonçalves Dias) situava-se perfeitamente no interior daquela esfera de suposca autonomia tolerada pelo poder estabelecido. Por outro la.do, nos casos cm que o pathos romântico voltava-se para os problemas do presente, de servia claramente a finalidades de ocultamento das contradiçócs essenciais da realidade (como ocorre nos romances de Joaquim Manuel de Macedo) ou à expressão quase exclusiva de problemas privados e superficiais de uma subjetividade isolada (como cm grande pane da nossa lírica romântica). Em todos esses casos, o romantismo não escapa essencial.mente aos limites estreitos do "intimismo à sombra do poder". Uma tendência similar rcvda-sc também cm nosso naturalismo, embora fosse pretensão explícita da corrente naturalista a ruptura com o monopólio romântico da época. ~ indiscutívd que o naturalismo europeu, cm seus melhores representantes, como Émilc Z.Ola, pane de uma recusa subjetiva da prosaica realidade do capitalismo. No caso brasileiro, essa recusa volta-se contra o i.
Cf. N. W. Sodtt. Hist6rút J. lilmllVnt lmuikint. Rio de Janc:hv, Oviliiação Brasileira,
19().4, p. 199-294, h
(Ull\IAA l SOCIEDADE NO BAAS!L
Segundo Reinado, no qual predomina um estagnado equilíbrio de classes, com predomínio da pseudoaristocracia rural escravista. Mas, no plano objetivo da criação artística, o nacuralismo capitula diante do aspecto imediato dessa estagnação, ao considerar a realidade que descrevia - a repressão e alienação das mais íntimas potencialidades humanas - como algo eterno e imutável. O predomínio fatalista do "ambiente" fctichizado sobre a ação humana, que foi ainda mais incenso no naturalismo brasiJciro do que cm sua matriz europeia, terminava por transformar o protesto originário dos naturalistas em conformismo real, numa resignada aceitação das misérias humanas que descreviam em seus romances. Essa tendência à resignação e ao imobilismo conformista aparca:, em última instância, como uma capirulação da intelectualidade diante do aspecto fatalista que a "via prussiana" emprestava ao nosso desenvolvimento. O fenômeno é bastante evidente no mais importante (inclusive sob o aspecto estético) de nossos romances naturalist.as, O cortifo de Aluísio Azevedo. .Descrevendo as dcswnanas condições cm que vive a população pobre d o Rio de Janeiro, o romancista descreve ao mesmo tempo a paulatina capitulação de todos os personagens às pressões dissolutoras do "ambiente", à pretensa fatalidade de leis de hcrcd.itariedade entendidas de modo fetichista, com o que termina por amesquinhar e empobrecer radicalmente todas as figuras humanas que constrói. Do ponto de vista estético, deve-se observar que o nacuralismo brasileiro revdou-se absolutamente incapaz de criar autênticos tipos humanos que pudessem se inscrever na autoconsciência nacional; essa iocapaci.dadc congênita do naruralismo já havia sid o observada pelo marxista Paul Lafa.rgue, ao comparar os personagens de B·alzac com os de Zola, mas se acentua decisivamente no Brasil, cm decorrência da pobreza humana objetiva e da escassa integração nacional que caracterizavam nossa sociedade semicolonial. E, do ponto de vista ideológico geral, essa resignação final implfcica na figuração naturalista do mundo, ainda que muicas vezes involuntariamente, desembocava numa nova versão do " intimismo à sombra do poder": as contradições sociais e humanas,
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fruto das vicissitudes histórico-a>nc.retaS de nosso país, aparecem no naruralismo como produto de uma "fatalidade" ambiental e biológica, sobre a qual a ação efetiva dos homens não teria nenhum poder. Assim, no sentido ideológico mais profundo, o episódio naruralista - tanto cm suas vcrsócs urbanas quanto nas "senaniscas" - não reprcscnta uma ruptura essencial com a tradição romântica. f.ssa continuidade, ademais, expressa-se igualmente no nívd estético-formal, dado que - como já se observou repetidas veu.s - o nosso naruralismo herda não apenas a ênfase romintica no plano do estilo, mas igualmente a preferência temática (também de origem romântica) pelo pitoresco e pelo exótico. Em tais condições sociais, ou seja, nas condições de um país scmicolooial imerso na "via prussiana" de desenvolvimento, a criação de autênticas obras estéticas rcaliscas torna-se muito difkil. A quase completa estagnação social e a impossibilidade de captar no plano fcnomên.ico imediato ações humanas significativas (capazes de servir de objeto à 6guraç:áo artística) acentuam ainda mais a tendência dos criadores a situar-se no plano do "intimismo à sombra do poder". O romantismo, por um lado, busca na evasáo subjetivista diante do prosaísmo dcsumaniz.antc da realidade concreta o seu cspcclfico material poético, ao passo que o naruralismo, por outro, recusando o subjetivismo dessa eva.são, limita-se a dcsacver a estagnação e a considerá-la como algo "fatal" e imutável. Contudo, essa marcada oposição à arte que surge esponcancamcntc da atrasada realidade brasileira apresenta influências diversas em cada gênero literário específico. No caso dos gêneros "objetivos", como a épica e o drama, que se centram na representação de ações humanas significativas, esse prosaísmo antiartístico derrota ou prejudica seriamente a maioria dos aniscas brasileiros. Mas na lírica, que se constrói a partir da explicitação de uma subjetividade elevada à universalidade concreta, as tendências aludidas- tanto o " intimismo à sombra do poder" quanto a pobreza humana objetiva da realidade social - podem mais &.ci.lmcnte ser contornadas, dando lugar a algumas expressivas "vitórias do realismo" (reside aqui a razão de dois fàtos até agora não muito bem explicados: a
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superioridade estética da Ürica no seio da Üteram.ra brasileira; e, cm estreita relação com isso, a existência de uma expressiva continuidade evolutiva no caso desse gênero, continuidade incciramcncc inexistente no plano do romance e, em particular, do drama). Essas "vitórw do realismo" ocorrem frequentemente já na lírica de inspiração romântica, cm que um intenso pathos subjcúvo de recusa e inconformismo diante do sufocante ambiente imposto pela "via prussiana" encontra em muitos casos um elevado teor poético e humano; embora o realismo de Castro Alves apareça muicas vezes mesclado com uma retórica romântica abstrata, a obra abolicionista do poeta baiano pode ser apontada como um concreto exemplo de superação lírica dos limiccs impostos pdo 'intimismo" dominante. Aqui nos interessam mais de perto - dadas as suas rdaçõcs com a obra de Lima Ba.rrcto - as "vitóíW do realismo" que se expressam no plano específico da criação épico-narrativa. A primeira delas aparece cm Mmi4rias de um sargmt.o de milíeúJ.s, de Manuel Antônio de Almeida. Situando a ação de seu romance numa época cm que a mobilidade social parecia tornar-se uma possibilidade concreta, ou seja, na época imediatamente anterior à lndcpcndencia, Almeida consegue emprestar a seus personagens - quase sempre provenientes das camadas populares da época - wna sagacidade prática e uma alta capacidade de iniciativa, o que faz de Mem6rias o digno rcprcscnwne brasileiro das melhores tradições do romance picaresco universal. Mais concretamente: o romance de Almeida aproxima-se da forma aberta do grande realismo ingles do s«ulo 18, cm particular de Ficlding (Tom fones) e de Dcfoc (MoU FIAIUÍers), ou seja, de um tipo de romance que expressa uma época na qual o capitalismo - liberando as potencialidades humanas reprimidas pelo feudalismo e incentivando uma ampla mobilidade social - ainda oáo revelara inteiramente sua face contraditória e repressora da individualidade. Se as MmuJrias conseguem alcançar um tio significativo nível de realismo, isso se deve, antes de mais nada, ao fato de que Manuel Antônio de Almeida conservou-se fid às promessas de progresso anunciadas no período das lutas pela
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lndcpcndlncia, sem se comprometer com as formas "prussianas" que caracterizaram efetivamente a rcaJiz.açáo da Independência e que já dominavam soberanamente na época em que de viveu e
criou. A profunda verdade estética de Leonardo - o primeiro tipo autenticamente nacional-popular na literatura brasileira - decorre precisamente dessa cspccífica verdade do seu conteúdo histórico e humano. E isso acentua ainda mais o demento fortemente crítico do realismo de Almeida: o seu romance figura concretamente, de modo imediatamente estético, as alternativas democráticas do povo brasileiro, as potencialidades humanas que poderiam Aorcsccr caso fossem efetivamente rompidas as ataduras retrógradas e sufocantes impostas pela "via prussiana". Bem mais complexo e completamente diverso (cm seus aspectos estéticos e ideo16gico-históricos) é o modo pdo qual Machado de Assis, cm sua obra da maturidade, logrou alcançar uma plena e profunda vitória do realismo. Machado oáo se vale do anacronismo histórico de Almeida pa.ra escapar às dificuldades impostas pdo prosaísmo de sua época; a matéria de seus romances é o tempo presente, a época do Segundo Rcinado 1 quando as devastações humanas causadas pela "via prussiana" haviam alcançado um ponto cxt:rcmo. Na sufocante aanosfcra de uma falsa "segurança", parece não haver mais lugar para nenhuma ação humana independente e significativa, capaz de revelar cstcócamcntc o núcleo humano dos homens. Graças à universalidade da sua concepção do mundo e do homem, po~m. Machado tomou-se o implacável critico romanesco dessa falsa segurança, dessa insensata forma de vida baseada no "intimismo à sombra do poder"; com uma aguçada sensibilidade realista para a distinção entre a máscara superficial e a ~ncia íntima dos homens, Machado vai paulatinamente revelando - através da espantosa descoberta de Bentinho, das amargas c:xperiblcias de Brás Cubas e de Rubião - como eram hip6criras e precárias as bases daquela estabilidade obtida às cusras do aprisionamento numa mesquinha vida privada. Derrubando com seu humor sereno mas explosivo as paredes que protegiam aquele "intimismo à sombra do poder", Machado foi capaz de
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emprestar às suas figuras a universalidade concreta requerida pela autêntica configuração épica do mundo. A similaridade temática imediata com o naturalismo de tipo flaubcniano náo deve ocultar esta diferença essencial: Machado atinge o nyc;.lt;Q CS$Çflçfal dos problemas que aborda, enquanto o naru.ralismo limita-se à descrjção de suas cascas superficiais.
2 f.s.ça rápida alusão às obras de Manud Antônio de Almeida e de Machado de Assis, os dois maiores exemplos de vitória do realismo na arte narrativa brasileira do século 19, tem um objetivo preciso: indicar o fato de que não existe cnttc os dois romancistas nenhuma continuidade orpruca, que os seus meios estilísticos e os seus recursos ideológicos - embora se orientem cm ambos os casos para o realismo e para o hwruuüsmo - são basicamente diversos. Em outras palavras: o modo pelo qual cada um ddes alcança a vitória do realismo aparece como um fenômeno singular e irrepedvd, carente de qualquer exemplaridade. É indiscudvd que não existe, na literatura universal, nenhum exemplo de continuidade homogênea, de c:xcmplaridadc absoluta; não ocorre jamais, por parte dos rca.listas expressivos, uma simples rcpccição das soluções estéticas e ideológícas encontradas pelos seus antecessores. Mas, nos países que seguiram uma via não prussiana de desenvolvimento, nos quais a contínua intervenção popular na criação da vida nacional :wegu.ra a formação de um amálgarrul sócio-humano relativamente homogêneo e continuo, a litcrarura apresenta também uma marcada continuidade: os novos escritores tomam como ponto de partida, ainda que para superá-los dialeticamente, os problemas e as soluções encontrados por seus antecessores. Basta aqui lembrar, como exemplos, as linhas que levam de Balzac a Rogcr Martin du Ga.rd. na litcrarura francesa, ou de Pushkin a Gorki (ou, ainda, de Dostoievski a Soljcnitsin) na literatura russa: apesar de grandes diversidades, os romancistas franceses e russos evidenciam wna marcante unidade e homogeneidade, que decorre essencialmente da profunda ligação entre eles e a vida nacional-popular de seus respectivos países.
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Uma continuidade desse tipo inexiste nos países que adotaram a "via prussianan ou a "revolução passiva" como forma de desenvolvimento. Em primeiro lugar, isso decorre da radical separação · e o povo-na~; - em segYJ'Id-º • da ......cn,,.r:>o entre os ·lDtClccnws __ r-. ··~.. -.,e da heterogeneidade sociais decorrentes da a~ncia de um sujeito nacional-popular unitário, que intervenha continuadamente na criação da história (gerando, entre outros, o fenômeno da divisão do país cm "regiões" mais ou menos autônomas); e, finalmente, como consequência, da a~ncia de tipos humanos exemplares que se expressem através de ações independentes e significativas. Por isso, cm tais países, o realismo assume quase sempre um caráter c:xccpcional, não apenas no sentido estrito de não habirual, mas também naqudc de fenômeno im:pctfvel. Assim, não se pode diz.cr que Machado tenha recolhido a tradição de Manuel Antônio de Almeida, ou seja, que tenha adequado aos novos tempos - como Soljenitsin cm relação a Dostoievski, ou como Martin du Gard em relação a Balzac - os meios estilísticos e ideológicos utilizados pelo autor de Mn1Wrias. Na verdade, de recriou por sua própria conta (a partir, quando muiro, de certas constelações estilísticas e ideológicas da literatura universal) instrumentos basicamente diversos dos de Almeida cm sua tentativa de alcançar o realismo. É esta a razão essencial pela qual a obra de Machado, apesar da profunda influência imediata que c:xerccu, não foi capaz de invcncr a tendência dominante, ou seja, a tendência a cultivar a arte no estéril terreno do "intimismo à sombra do poder". Esse efeito libcrador tornou-se ainda mais problemático por Machado, obrigado a lutar contra grandes obstáculos pessoais e sociais, ter sido impelido a algumas conciliações exteriores, assumindo enquanto personalidade literária certas formas daquele " intimismo à sombra do poder" que, cm seus romances e novelas, desmistificara impiedosamente (nesse sentido, o destino pessoal de Machado aproxima~sc bastante das vicissitudes de outro humanista: Goethe.) Mais do que isso: a "serenidade" e a distância irônica do estilo machadiano, instrumentos de sua crítica social mordaz e profunda, foram frequentemente confim-
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didas com desumanidade, com uma "impassibilitr Aaubertiana equivocadamence transposta de sua vida pessoal para o inrerior d e sua obra criariva61 • Aquela excepcionalidade que caracteriza
o realismo brasileiro, aliada às
c;onçiliaç~
exteriores e a ~
característica idcol6gico-estilística de sua obra, impediram que Machado de Assis cxe.rcesse uma influência posiàva imediata no sentido d e dissolver a continuidade das tendências "intimistas", nas quais se situara (e continuava a situar-se) a maior parte da intelectualidade brasüeira. Reside aqui a razão profunda dos ataques que Lima Barreto, ao longo de sua vida. não cessou de dirigir a Machado de Assis. O ponto central desses ataques não seria, como ocorreria pouco ap6s entre os primeiros modernistas, o pretenso passadismo da Ünguagnn romanesca de Machado. Lima Barreto - empenhado num combate desapiedado e quase solirário contra todas as manifestações do "incimismo à sombra do poder", contra todas as focmas de esteticismo aristocratizante - escolheria um outro alvo: o que lhe desagrada. no autor de Brds Cubas, é precisamente a aparente f.Jca de humanidade, o suposto abandono das especificas funções sociais e humanistas da literatura. Numa carta a Auscrcgésüo de Ataíde, escreveu Lima: Gostei que o senhor me scpar.usc de Madudo de Assis. Não lhe negando os m~ritos de grande escritor, sempre achd no Machado muita secura de alma, muíca falt:t de simpatia hununa, falta de cntuSiasmos generosos, uma porção de scsuos pueris. Jamais o imitei e jamais me inspicou. Que me falem de Maupa.ssam, de Dickco.s, de Swift, de Balzac, de Daudcr - vi lá, mas Machado, nunca! At~ cm Turguenicff, cm Tolstoi, podiam ir buscar os meus modelos; mas, cm Machado, não!'"
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A crl'tia d4ses cqulvocos podescr cnco.nuada cm Aruojildo Pcrcic:a, MMbaJ,, tk A.siü, Rio de Janeiro, São José, 19.59, pan:iaila.rmcme p. 89-112. Mas cmamemc a mais IU· d da "leitura" de Machado de Assis j~ prodU'Zida flO Brasil ~ :aquch contida cm Robc:no Schwarz. h wnat/ti, 11J IHu.tw, São Paulo. Dtw adadcr, l 9n, e lá.. Um maar "" pmfrri4 J.. capilltÍimw, São Paulo, O\W Cidades, 1990. Carta a Ausnql;silo de Ataídc, 19/0111921, in; Uma Barreto, Ccrmpontlhrci4, São Paulo, s~ilicnsc. 1956. tomo a. p. 256-257.
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Não é casual que Lima, ao buscar um modelo para opor-se a Machado, indicasse o nome de sete escritores estrangeiros" . Isso evidencia até que ponto ele estava consciente do seu isolamento, da singularidade de sua missão literária oo qy~rQ de wna literatura cm que o realismo era algo excepcional, ao passo que as tend~ncias continuas e permanentes orientavam-se decisivamente para o escapismo e para o antirrealismo. Assim, embora objetivamente injusto, o combate de Lima à herança machadiana fuz parte de sua lura mais geral, histórica e esteticamente correta, por um autêntico realismo crítico nacional-popular. Carecendo de instrumentos teóricos adequados (que, cm sua época. ninguém possuía no Brasil}, de não foi capaz de perceber o f.ato de que a obra de Machado representava objetivamente um movimento na mesma direção. Todavia, além dessa justificativa geral, a compreensão por parte de Lima Barreto do seu anragonismo cm relação a Machado manifesta ainda wn outro elemento correto. Embora de modo confuso, Lima captou um traço essencial da diferença estilística (determinada cm última insdncia por questões de conteúdo) entre sua própria práxis literária e aquela de Machado. Os efeitos da "via prussiana" sobre o desenvolvimento literário brasileiro manifestavam-se concretamente: a criação de um novo realismo, adequado aos novos tempos, não podia se fazer a partir de Machado, mas implicava a necessidade de um rompimento com a sua herança. Mais prcci.samencc: o desenvolvimento da herança realista de Machado requeria, paradoxalmente, o completo abandono de sua temática, de seu estilo e de sua visão do mundo. A nova realidade impunha umestiJo menos sereno, menos "equüibrado", no qual as preocupações "artísticas" não mais podiam ocupar o lugar dominante. Lima extrai, ainda que sem plena clareza teórica, as conclusões desse faro, capacitando-se assim - como diria Na lltcrarun universal. Um2 $CDW-SC pankubrmcntc ligado aos ru.uos. Assim, cm cana. a um escritor csm:antc, escri~ cm 19/08/1919, dizia de: "Leia sempre nmos:
Oosiolm.ki, Tolstvi, TW'gllCOidf. um pol!al de Gorki; mas, sobrmido o Oo.woimkl da O- "41 -1101 e do Crimu Outito.(ibúl., p. 17 1).
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Francisco de Assis Barbosa - a "inaugurar revolucionariamente a fase do romance moderno no Brasil"'°. A prática demonsuari2, ademais, que a conservação do moddo machadiano para além das condições concretas que lhe deram origem deveria conduzir paulatina.mente ao seu esvaziamento maneirista. Os três grandes romances machadianos, precisamente aqudes que inscrevem o seu nome no cume da literatura nacional (Brds Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro), têm como objeto imediato de sua figuração a época da estabilização imperial, embora tenham sido publicados no período que vai da desintegração do Segundo Reinado à República pós-florianista. Entretanto, Machado já percebe o modo pelo qual os elementos capitalistas modernos penetram no velho mundo escravocrata; e indica como essa penetração, longe de representar urna ampliação dos horiz.ontes humanos, contribui para reforçar - na medida cm que se processa nos quadros da "via prussiana" - a miséria humana da vida social brasileira. Desse modo, a exuaordinária universalldade de sua obra é paradoxalmente beneficiada pelo aparente desc.onhccimento das agitações ideológicas e poüticas republicanas que se iniciariam já a partir dos anos de 1870; ao abandonar essas agitações superficiais (que muito prometiam, mas que cumpriram tão pouco) em troca da representação da continuidade da "via prussiana", Machado capeou u m aaço essencial e duradouro da evolução histórica brasileira. Contudo, quando o ingresso do Brasil na era imperialista (que coincide com o advento da República) aguça intensamente as contradições, levando o "moddo prussiano" a uma nova fase, o equilíbrio assegurado pela ironia e pelo distanciamento com os quais Machado forjara o seu estilo da maturidade deveria romper-se. Isso já se revda na própria obra machadiana; com efeito, é inegável que em seus últimos romances, particularmente cm Esaú e jacó, no qual pretende captar mais de perto as agitações republicanas dos novos tempos, o grande realista fruicisco de A.ssís &sbos:l. "PreAcio" 1 Ll1n2 Barreto. ~ do eJtrllJllq bAíllJ CtmitJNI, SSo Paulo, Bruilicnse, 1970. p. 14.
Cul TUltA E SOOEDADE MO B~l
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não mais alcança o nfvel es~tico e a verdade histórico-humana de seus três romances citados. Ainda mais significativo, todavia, parece ser o completo csva-
úamcnto que o estilo de Machado- rompido o equilíbrio dialético de seus vários componentes (equilíbrio assegurado pela especificidade do conteúdo que expressava) - haveria de sofrer cm mãos dos seus inúmeros imitadores da época pamasiana. Temos aqui wna comprovação negativa, mas altamente expressiva, daquela descontinuidade a que aludimos: para continuar efetivamente o realismo de Machado, era preciso - como Lima o intuiu - romper decisivamente com a sua herança imediata. Com efeito, na obra dos epfgonos, o "distanciamento" machadiano será acentuado, mas com inteiro abandono da cortante crítica social que de expressava origmariamente; a "serenidade" ganha a fisionomia da pose aristocrática, ao ser esvaziada da universalldadc histórico-humana que assumia em Machado; e, finalmente, a "artísticidade" converte-se num objetivo em si, numa nova versão do " inómismo à sombra d o poder" , não mais aparecendo como o resultado estiliscico (não artificialmente buscado) de urna profunda verdade do conteúdo humano e ideal. Tudo isso desembocaria na concepção de Afrânio Peixoto da literatura como o "sorriso da sociedade", concepção contra a qual Lima - com lucidez crítica exemplar - combateria implacavelmente. Reagindo contra a herança imediata de Machado, Lima Barreto expressa a sua categórica rejeição ao "intimismo" e, ao mesmo tempo, lança as bases de sua luta - solitária na época - pela retomada da linha realista no que ela tinha de essencial. Como poucos críticos prof1SSionais de seu tempo, Lima soube avaliar corretamente a pobreza estética e humana dessas novas versões, cada vez mais envilecidas, do "intimismo à sombra do poder". Diz-nos de, no GtmZ11ga tk Sd: A nossa emotivid2de literâria s6 se interessa pelos populares do sertão unica· mente porque sáo pitorcsoos e talvez não se possa vcriflc:u a verdade de suas criações. No ITWs, é uma continuação do exame de portugu~ uma m6rica a se d~nvolvcr por este rema sempre o mesmo: Dona~Oulc:C, moça de Botafogo
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~os
NCLSOfl ColmHHO
cm Petrópolis, que se casa oom o Doutor Frederico. O oomcodador seu paí nio quer, porque o tal Frederico, apcs:ar de dou1or, nio 1cm emprego. Duke vai à superior.a do ool4ão das innis. F.ssa CfCr'CVC à mulher do ministro, antiga aluna do ool4io, que arranja um emprego pano rapaz- Esci. :1C1bada a história (...). Ená ai um grande dr.ama de amor cm 005SaS leiras, e o cerna do KU cido liccririo. Quando tu 1ccls, na 1ua 1erra, um Dostoievski, uma George Elliot, um Tolstoi - gig:ances desses, cm que a força da visão, o ilimitado da criaçáo, nio cedem passo à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dot daqucbs gentes donde às vezes não vieram - quando?1'
É evidente que Lima propõe a cri2çáo de uma literatura desse tipo {cujos modelos, sintomaticamente, vai mais uma vez buscar na literatura universal), ou seja, de uma literatura que conjugue indissoluvelmente a grandeza estética com wn profundo espfriro popular e democrático, com uma aberta tomada de posição cm favor dos "humilhados e ofendidos". Ao contrário da maioria dos seus contcmporincos, ele esd conscienrc da necessidade de encontrar, para a adequada representação dos novos tempos, um estilo diverso daquele que caracteriza a obra machadiana. Com efeito, o início da Primeira República - na medida cm que dera seguimento à "via prussiana", promovendo aperui.s um reagrupamento de forças no seio da oligarquia dominante - frustrara decisivamente as esperanças de renovação democrática vividas pelos melhores representantes da geração de 1870 (como vimos, já na época, Machado tivera a lucidez de acolher com ceticismo essas esperanças e ilusões). A simples mudança de regime político, como Lima semprc ressaltou, cm nada aJccrara os vícios fundamentais da formação hisró rica brasileira. Mas isso não significa, de nenhum modo, que o período desconheça a irrupção de fuos novos. Ao contrário: coincide com a implantação da República ranto o aguçamento da dcpcndblcia brasileira ao capital intcmacionaJ, inclusive através da indústria nasccnrc, quanto o tumultuado surgimento das primeiras lucas de classe entre o proletariado e a oligarquia dominante. O país ingressava na era capitalista (que 11
Unu Barmo. Vi.ú 1 133'134.
tMrtt
Jt M. j . ~llUI" i/.t Si, Sio P.lulo, Bruilierue, 1956, p.
já atingia no pia.no muodiaJ a fase imperialista) sem ter resolvido os impasses históricos decorrentes da "via prussiana". Com isso, dissolver-se-iam inteiramente os apa.rcotcs traços de "estabilidade" da qx>ca imperial, ainda hoje louvados pdos hiscoriadorcs reacionários, que os assumem como fetiches (basca pcruar no mito da "democracia coroada"). Com a República, iniciava-se uma época aguda de contradições soda.is tomadas evidentes; o fundo regime de trabalho escravo, com o conscqu.cotc surgimento de wna classe de crabalhadorcs assalaria.dos. fula i.ogres.ur um novo protagonista na história brasileira, o que, pela primeira vez, fundava a possibilidade objetiva de se encontrar uma aJtcmativa concreta para a "via prussiana". A tentativa "republicana" de prosseguir nessa via antidemocrática já não podia mais se processar no quadro de uma aparente "estabilidade social"; as formas burocrático-ditatoriais da "via prussiana" deveriam substituir as modalidades "paternalistas" próprias do Segundo Império. Do seu ingulo de visão profundamente nacionaJ-popular, alheio a quaJqucr conciliação com o "moddo prussiano", Lima Barreto captaria correta.mente a ~ncia classista do novo regime; Sem ser monarquísta, não amo a república (... ). O n0$$0 rcglmen atual l da m:aU bruw plutoc:racia, l da m:aU intensa adubçio ~ dcmentos estranhos, aos capitalistas inicmaciooa.is, aos agcn1es de ~os. aos charbtks úntos com uma sabedoria de pacoúlh.a71•
O aguçamento dessas contradições rcftctc-se também na literarura brasileira. A sutil ironia machadiana deve ser substirulda pela amarga sátira contra os poderosos, uma sátira que não hesite cm converter-se cm impiedoso sarcasmo. O "distanciamento", o peculiar modo encontrado por Machado para se manter fid ao humano numa época cm que as camadas populares permaneciam esmagadas e imobilizadas pelo regime do trabalho escravo, tem de se converter agora numa clara tomada de posição cm favor das classes sociais que apontavam para um caminho novo, cm favor daqueles "humilhados e ofendidos" que já começavam a se 71
Unu Barreto, Ctti.w J, Rtitu> # /111'1Jbo11, S1o Paulo, Brasilkruc, 1956. p. 8-0.
106 CAAlos NfUOH CounHltO
anunciar como sujeitos políticos. Não é casu.aJ que Llma Barreto seja contemporâneo do surgimento das primeiras man.ifcstaçócs do proletariado organizado cm nosso país; somente esse surgimento podia possibilitar ao cscriror aquele "ponto de Arquimedes" situado fora da "via prussiana•, capaz de revelar-lhe a integralidade das contradições sociais e humanas decorrentes dessa via. Em sua tomada de posição diante da realidade social, Lima Barrcro nio se situaria apenas, como muitos dos seus contcmpor.\ncos progrcssisras, ao lado dos '"industrialistas" modcmizadorcs contra o passadismo "agrarisca". Ele não se limitou a denunciar a aliança entre a "moderna" República nascente e o imperialismo; enxergou também a tcndencia de "agrarisw" e "industrialistas" a se fundirem numa nova eoalizão, continuadora da tradicional "via prussiana", ou seja, uma coalizáo que continuaria a excluir qualquer autmtica panicipaçáo popular (essa nova coalizio, após inúmeros atritos entre os seus componentes, chegaria ao poder com a chamada Revolução de 1930). Dcccno, não pretendemos afirmar que Lima tenha compreendido e assimilado uma visão ma.rxis~ ou mc:smo coerentemente socialista do mundo; nem tampouco que, cm sua simpatia pelas classes populares, tivesse alcançado uma clara consciência do papel específico que nelas desempenhava o proletariado industrial. Não apenas isso seria praticamente impossível cm seu tempo, como - o que é mais importante - não era de modo algum condição necessária para o êxito realista de sua obra. Esse b:ito podia ser alcançado através de seu anarquismo mais ou menos sentimental, de seu bizarro "maximalismo", pois eles expressavam a íntima adesão de Lima a uma perspectiva nacional-popular decisivamente contrária a qualquer conciliação com a "via prussiana"'>. De qualqUC1' modo, UJM nunca hcsirou cm apontat no capitalismo :a origem ck 1od0f males e de defender a rtYOluçio doe "muimallaw" (ou seja, doc bokhcvi· qucs). desejando-a wn~m para o Bruil. Num :artigo CICli10 cm nulo ck 1918, de diz: "Nós, OI brasileiros, dcYemos iniciar a nossa Rnotuçio Social (•••) Confesso que foi a rcvoluçio rum que me irupirou rudo issio. (•••) A &ct do mundo mudou. Ave RW:sbJ (...)"(Uma Surtto, &t-t.u. Sio Paulo, Braslliauc, 1956. p. 96). Em março de 1919. OI n~
CulfuttA E SOCIEDAOt NO BllASIL 107
A determinação dos problemas ideológicos e históricos vividos por Lima Barreto não é de modo algum tardà cxcerna à análise imanente de sua obra literária; com efeito, é a panir dessa recusa global do "modelo prussiano" - tanto cm suas ve.rsóes tradicionais quanto "modernizadoras" - que Lima figura e critica, no plano espcc.ificamcn te estético, a realidade social de seu tempo. Em sua obra, ele não se limita a apontar algumas "manias" sociais, capaz.cs de correção por meio de reformas no interior do sistema, como frequentemente ocorre no naturalismo brasileiro {basta mencionar aqui, como exemplo, o interessante romance O Ateneu, de Raul Pompéia). A sua demolidora denúncia da imprensa, da burocracia, das formas políticas da época republicana, inclusive do militarismo Aorianista, são momentos dessa crítica histórico-universal, feita cm nome de um novo caminho alternativo para a evolução brasileira. É assim possível que ele tenha, algumas vcus, tratado com demasiado "rigor" certas manifestações culturais ou políticas que, vistas à luz das carcfu imttliacasdo período (consolidação da forma republicana de governo), desempenhavam um papel rdativamentc positivo. Talvez seja o caso do jornal que escolheu para combater (no /salas Caminha) e, mais amplamente, do movimento Aorianista (contra o qual se volta parti.c ularmcnte no Policarpo Quaremuz). Mas essa aparente "injustiça", que podia ser problemática para um dirigente político, não o prejudica absolutamente enquanto romancista: ao contrário, faz dele não um interessante "cronisca" da época ou da cidade, não um panAccá.rio de valor relativo e transitório, mas um dos maiores reprcscntanccs da Unha humanista e dcmoccit.ico-popular na litcrarura brasileira. vol12 ao cam: "Todo o mal csú no c:apil2llsmo, na insemibilidack moal ela burgucsb. na su:a ganincb sem ÍTclo ck esplcíe a.lgunu. quc s6 ~ n:a viWruw, jonW!sw .,/hoe. que nos saqueiam, noc csf:aimaro, cmbolc:adoc auás clas leis rq>Ublic:anas. 2 preciso, pois Mo há outro meio de c:xrcrminá-la (lbú/., p. 163-164). Sobre a idcolop de Uma. d. o bdo cns:aio ck Ntn>jildo Padn. "Po6içóa politicas de Uma Sumo", indWdo cm CriJfa ÍllJ/ll,.. Río de janeiro, Qvilizaçio Bruilcia. 1963, p. 3+5'1.
108 CAAl.os Nu.SOM CD\nlNHO
(Ull'UllA E SOCIEOAOf NO
3 Entretanto, apesar de intuir corretamente os problemas estéticos e ideológicos da literatura da nova época, Lima nem sempre conseguiu resolver adcquadamcncc, cm sua práxis criativa, as tarefas a que se propusera. Seria uma explicação equivocada - diante do auror de Trisu fim de Poli.carpo Quaresma, uma das maiores realizações estéticas da literatura brasileira - falar cm "falta de talento"'•. As causas dos desníveis internos que podemos indicar na produção narrativa do romancista devem ser buscadas num nívd mais profundo, ou seja, naquela ausência de continuidade subStancial na evolução do realismo brasileiro, ausência que impõe uma linha fragmcnclria e cheia de altos e baixos. Essa descontinuidade obriga o escritor a recomeçar sempre "do início", a descobrir por sua própria conta os meios estético-ideológicos adequados à reprodução da realidade; e, mais que isso, eb se insinua froqucntcmcntc no próprio interior da produção de cada escritor tornado isoladamente. Assim, forçando um pouco a mão, poderíamos dizer que "recomeçar do início" não vale apenas para cada escritor $ingula.r, 111as ~rÇ m~mo ~º"da, o bra singular (ou, pelo menos, para cada etapa singular na produção do escritor, como é o caso em Machado de Assis). Em outro local, analisando a obra de Graciliano, momei não apenas o evidente desnível cxisrencc entre Caah e os demais romances, mas indiquei também o futo de que
"
Em KU péssimo ensaio sobre Lima Barrcco, Eugâtio GomC$ (.AJf'«'os Jo rtm111n« '-ri· kiro, Salv:ador, Progresso. 1958, p. l 5}-173) olo se Umir.a a defender essa ase insusc.cn· clvd. Afirma ainda que Lima sctit conscicoce ~"'2 "&.lmde calcnto•, rcpn:scntando na ridkub figura de Roe - um cronisu licerário que, no ÚitÍIU Orminh.z, 1e suicida ao oonvroccr·se de SU2S debilidades cmdvas - a própria problenútic:a pessoal. Mas o absurdo das análises de Eugbüo Gomes mo pua aé nas 20 páginas do seu ensaio, nem sequer uma ~ t mCflCionado o Políaupo Qwms...... enquanto o único ccxco de Uma qoc:, ru opiniJo do c:r(rico, aprc:sa11.ari2 indldos de calemo Hccririo seria... o Gonus11 úStl. N.ío mcpueccca.ru;alque um pl'C(cnso "machadiaoo", oomoc~ Eug1!nioGomC$, prckrislC o Gonus11, nem mm pouco que, a partir de suas conccpç6es cstédca.s "intimi$w•. deixasse: inrciramcntt de lado o Polk.upo. Esse ensaio pode sa comado assim como um daro sintoma da incapocicbdc dos aitic:os conxrvadorcs, mesmo quando sensíveis e Inteligentes (como ~o aso de Eugmio Gomes), de comprttndcrcm e 2r:ciwem 2obn de Llnu Batrcto no que ela tem de cspcc:ffico.
llAAs.L 109
São &nuzráo, Angústia e V'uias Secas, cada um a seu modo, recriam diferentes estruturas romanescas, surgidas na literatura universal cm épocas históricas bastante diversasn. Uma mesma defasagem, mu14#1 mlltllndi.s, ocorre entre a etapa romàntico-juvcnU de Machado e o seu período da maturidade. Dependendo apenas dos próprios rccwsos para a conquisra do amadurecimento humano e expressivo, o u seja, carentes de uma s6lida tradição onde se apoiar, os realistas brasileiros - até mesmo os de maior grandeza - estão sempre sujeitos a esses desníveis e fraturas . Nesse sentido, a irregular trajetória de Lima não é um F.ito excepcional. O pleno aroadurcdmcnto obtido no Policarpo Quaresma representa um cume a dividir uma interessante e significativa via ascenden te (Gonuga de Sá, !Sllfas Caminha) de um período fi nal extremamente problemático (Numa e a ninfa, Clara dos Anjos}. Não estou negando, decerto, que o extremo isolamento de Lima, aliado à forma autodissolvente (o aJcoolismo) que encontrou para reagir à hostilidade crescente do meio, influíram de algum modo sobre essas fraturas internas, sobretudo na medida cm que contribuíram para diminuir-lhe a força criativa nos últimos anos de vida. O que estou afirmando é que essa problemática pessoal é em grande pane o efeito, na vida do escritor, daquelas tendências histórico-sociais hostis à arte, características da sociedade brasileira. Ou, cm outras palavras: que tanto a problemática pessoal do escritor quanto os desníveis da sua obra, sem deixarem de se influenciar reciprocamente, devem ser rdacionadas enquanto momentos parciais à totalidade concreta da vida social e cultural brasileira. Por outro lado, devemos recordar que, embora a plena realização estética de Lima só tivesse ocorrido no PolicArpo, isso não anula a importância e a significação - inclusive estéticas - dos demais romances do escritor carioca. Ainda que tenhamos a intenção de concentrar nossa análise no Policarpo, aludiremos aqui brevemente às demais tentativas romanescas de Lima. Cf. "Gr:tciliano Ramos". i11fiw, p. 141-194.
11 O C-.OS NQSO!j CoonHHo
Gonzaga de Sá- publicado em 1919, mas concluído ao que rudo indica em 1906-1907 - pode ser considerado o primeiro romance de nosso autor. Além dos dados documenca.is de que dispomos hoje, contribui Pª"'ª c::scabclcccr essa cronologia a cons-tacação de uma contradição interna que vemos na obra: com efeito, embora já assuma no conteúdo as tarefas "participantes" da literatura da nova época, Goruaga de Sá se apresenta ainda sob a decisiva influência dos preconceitos estéticos impostos pelo epigonismo machadiano, ou seja, pela ideia equivocada de que a serenidade e o distanciamento são a única forma concreta (independentemente do conteúdo) para o romance, ou mesmo para a ane em geral. Assim, de modo certamente involuntário, Lima pagou nesse primeiro romance um pesado tributo ao "culto macbadiano" então em vigor, embora já o denunciasse - até mesmo no interior de Gonzaga de Sá - como um profundo descaminho. Temos aqui um caso, para parodiarmos o famoso conceito de Engels e de Lulclcs, de "derrota do realismo". Pode-se observar, ao longo de Gonzaga de Sá. a completa incapacidade do autor para criar uma "fábula" romanesca, para dispor a narrativa de tal modo que o protagonista pudesse explicitar na ação e através da açáf> os conteúdos humanos e ideológicos (profundamente críticos) de sua personalidade. Dcccno, Lima já evidencia ter percebido na bizarrice- na cxuavagância do caráter - um traço típico do peculiar modo brasileiro de reagir ao ambiente mesquinho imposto pela sociedade (essa problemática, como veremos, irá ocupar o centro do Policarpo). Mas, apesar disso, ainda se revela incapaz de estruturar wn mundo concreto no qual essa bizarrice possa se explicitar de modo autenticamente romanesco. Para obter a aparência de "serenidade"', para encontrar um estilo "equilibrado", Lima deve renunciar inteiramente à figuração de ações concretas e à cstrucuraçáo efetivamente narrativa de um enredo. Ao contrário dos romances de Machado, em que essa ação e esse enredo ocupam o posto central, no Goruaga tk Sd vemos uma coleção fragmentária de comentários do autor e de "opiniões" do personagem, aos quais o "cenário" exterior - a calorosa e tema descrição da cidade do Rio
(IJUUAA E SOCIEDADE NO B IWll
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de Janeiro - não consegue fornecer um quadro épico org2nico e adequado. Assim, enquanto os epígonos de Machado simulavam a "se.rcnidade" na medida em que criavam pscudoaçõcs em tomo dos problemas "petropoUtanos" de dona Dulce e do doutor Frederico, Lima - que evita completamente essa mistificação, mas que permanece influenciado pelo mito da "se.rcnidade" cstillitica - termina por alcançar essa "scrcn.idadc" ao preço de abandonar qualquer tentativa de figuração romanesca. O novo conteúdo - o marcado protesto humanista contra a burocracia, contra as classes dominantes etc. - não encontra ainda uma forma adequada. t curioso constatar que Lima, embora reconhecesse explicitamente o caráter "desequilibrado" do Isaías Caminha, escrito quase simultaneamente ao Gom:aga, tenha preferido publicá-lo antes que este último. Numa cana que escreveu a Gonzaga Duque, em 7 de fevereiro de 1909, explicando as razões dessa prcferencia, ele põe cm evidencia alguns problemas estéticos essenciais de sua produção inicial: Era um tanto cerebrino, o GonrAga t:k SJ, muito calmo e s;,kne, pouco acessível, poru.nco. Mindcí (para publiação] :u &cortÍJiç6t1 tio scri114o l!llúu Caminha, um l.iVTo tinigual, proporiralmmu mal feito, hrll111/ por wus, 1'141 sincn-o smtpre (.•.). [Ele] tenciona di1.Cf aquilo que os simples 12ros não d.iuro, de modo a csdartd-los melhor, cbr-lhes imporclncia, cm vinudc do poder da forma literária, agid-los, por~ s4tJ imporlllntespil11l o MSSO tÚstino. Querendo fazer isso e fazer compreender aos outros que há importàn.cia na questão q uc eles trlltam com canta ligclrcu, n1 lllÍO me afastd átz lilnlttMra,
'º".forme fa} 'º"ctbo (...)".
Vemos aqui, como sempre, uma correta. intuição de Lima: o /salas Caminha, ainda que "desigual", correspondia melhor não apenas à própria concepção que o autor tinha das tarefas da literatura ("agitar questões importantes para o nosso destino"), mas também, e sobretudo, às necessidades objetivas da arte e da sociedade brasileiras da época. Em suma: o Gonzaga pode ser considerado, apesar da novidade do seu conteúdo, como um Llnu Barrtto, CormpoNlhrriA, m.. como 1, p. 169-170. Os grifos são meus.
112 C-OS Nu.soH CouTNto
prolongamento epigonal da velha concepção "calma" e '!oolcne" do oficio literário; o Isaías, ao contrário, marca o início de uma nova etapa - cspecificameotc moderna - do realismo brasileiro e, graças a isso, já expressa o concreto significado de Lima Barreto no seio de nossa evolução literária. As & coráafóes Jq escrivão Isaías Caminha podem ser consideradas como tentativa de criar um romance brasikiro de "ilusões perdidas". Com efeito, Lima propõe-se figurar nele o modo pelo qual a mesquinha sociedade da época destrói paulatinamente os projetos de realização humana e de elevação JC>Cial do protagonista. Como Lucien de Rubemp~. o personagem de Balzac. lsa.ías é um moço pobre provinciano que - confiance nas promessas democráticas da época republicana e na mobilidade social prometida pela asccnsáo do capit.alismo - d.irigc-se pa.ra a metrópole na tentativa de expandir sua personalidade, de fruir adequadamente as potencialidades pcswais que c:xpcrimenta subjetiva.mente. E, tal como cm llwóes perdidas, as d esilusões se sucedem: não apenas a "brilhante" sociedade metr0politana vai revelando paulatinamente sua essencial vacuidade interna, sua mesquinhez objetiva, como também o mito democratizante da elevação social evidencia dolorosamcnce seu caráter meramente ideológico. E o ro mance de Lima introduz um elemento especificamente brasikiro nessa problemática universal das "ilusões perdidas": as vicissitudes de Isaías comprovam que as afirmações "oficiais" sobre a igualdade social dos negros brasileiros, difundidas na época republicana, pós-abolicionista, escondem os mais desumanos precon ceitos raciais. O jovem provinciano mulato, apesar da superioridade que apresenta diante dos bem-nascidos que encontra, apesar da sua sagacidade e inteligência, deve permanecer sempre numa posição subalterna, sujeito a constantes humilhações. Com a habilidade compositiva de um grande romancista. Lima Barreto - na pámcira pane dessa obra - constrói um rico e articulado mundo romanesco, colocando seu personagem cm contato com alguns tipos significativos do ambiente social metropolitano, os quais, na medida cm que expressam alternativas humanas concretas, váo
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educando o protagonista - no bem e no mal - a ver o mundo sem ilusões. O romancista lança as bases de um importante "romance de fonnação" brasileiro. Nessa sua trajetória de desilusões, o jovem lsa.ías termina por ingressar, como condnuo, num dos principais jornais da grande cidade. Trata-se de uma cxccJcote oporrunidade para Lima apresentar, com um tom de devastador sarcasmo, o quadro humano e social da imprensa capit.alista moderna. Não parece casual que Lima tenha escolhido, como fonte de inspiração para essa apresentação, precisamente o mais moderno jornal brasileiro da época, no qual os traços capita.listas se evidenciavam com maior destaque não apenas no estrito sentido técnico-jomalistico, mas também no que se refere à sua posição política "modcmizadora". Mas o jornal tomado e.orno modelo serve-lhe apenas de pretexto para a criação de um aut~tico símbolo realista.: ao contrário do que afirma a maioria dos críticos, essa escolha não prcj udic.ou - antes f.avorcccu - a universalidade conacta, o nívd de particularidade realista com a qual ele figurou o fenômeno humano e social da imprensa moderna. Assim, Lima é capaz de perceber e evidenciar csteticamcnce alguns d os cra.ços mais caraterísticos da imprensa capitalista, tais como a intencional manipulaçáo da opinião pública a sc.rviço de mesquinhos interesses, a corrupção e a prostituição de grande pane dos jornalistas etc. Adernais, apesar do modo caricarural (..misto de suíno e símio" etc.) através do qual representa a maior pane dos integrantes do jornal, não são poucas as autênticas figuras humanas, dcvadas à condição de tipos realistas, que ele nos apresenta na segunda pane da obra. Gosta.riamos de recordar aqui o diretor do jornal, Ricardo Lobcrant, no qual se misturam sugestivamente traços de gcne~dade paternalista com uma constante tentativa de manipular dcspoticamcntc os seus empregados. Oscilação bastante c:x;prcssiva do caráter contraditó rio, simultaocamcnre progressista e reacionário (ou, numa palavra, "prussiano"), da burguesia brasileira (nesse sentido, Lobcrant é um precursor de Paulo Honório, o protagonista de SátJ &rnarrio de Graciliano Ramos). Podemos também lembrar a 6gura
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e o destino de Aoc, wn mcdlocrc colunist:a literário - inrcinmcntc envolvido no ambiente do "intimWno à sombra do poder" - que termina por cnconuar no suiddio um meio de escapar à dolorosa autoconsciblcia de sua mediocridade. Em suma: não apenas na 6guraçáo de alguns tipos. mas indwivc na explicitação das cara.ctcrfsticas humanas e S«i4is da imprensa moderna, o balas Caminha alcança um alto nivd de realismo, de universalidade estética. Mas, apesar disso, o romance não consegue dcva.r-sc, no conjunto da composição, à toc:alidade orginica que caracccri?.a a grande ane épico-narrativa. Em sua cuidadosa biografia do romancista, Francisco de Assis Barbosa observa argutamcntc: Da história do fracasso ck um rap:n de cor, intcllgcntc. bom e honesto, enfim, com rodas u qualidades para vencer na vida, o Uvro como que se tranSÍorm.a, do meio para o 6m, num verdadeiro pan.flcro contn a imprensa da época, cm contraStc. ai~ ccno gon10 cbocanrc, com o desenvolvimento harmonioso dos primeiros capltulos .
&se caráter dcsarm6nico, porém, não reside canto no modo "panfletário" pdo qual Lima desmistifica impiedosamente o fcn6mcno social da imprensa moderna; cm llusÕl!spnriiáas, Balzac realiza uma dcsmistiflcação similar, talvez ainda mais implacável, sem com isso comprometer cm nada - ao contrário, até aprofundando - o amplo e harmonioso realismo do seu notávd romance. Por outro lado, também seria erndo atribuir a frarura interna do balas ao seu indiscuóvcl caráter de roman à clef, visto que, como di«cmos, Lima consegue dcvar os tipos e as situaçócs reais ao nível de símbolos estéticos rcali.stas. As razões dessa frarura interna de Isaías Caminha devem ser buscadas, ao contrário, num defeito interno da composição estrutural, d o qual Lima - ao referir-se a seu romance como sendo "desigual" - n:vcla estar consciente: tio logo Isaías ingressa no jornal, o romancista altera inteiramente o seu fuco narrativo, praticamente abandonando o personagem e concentrando-se na apresentação
CulTURA E SOCIEDADE NO BRASll
dos bastidores do jornal Por um lado, a evolução de Isaías não rruüs se processa. na segunda parte da obra, cm orgânica relação com a realidade social objetiva; de se torna um quase espectador dos eventos, não sendo assim asual que o seu destino final - ou seja. sua completa desilusão pcssimist2 diante do mundo - decorra praticamente de uma crise de melancolia puramente subjetiva. que coincide (de modo paradoxal) com o momento no qual obtém, graças à "generosidade" paccmalista de Lobcraot, a tio ambicionada asccnsáo social E, por outro lado, a figuração da vida no jornal apesar dos momentos típic.os e realistas que apresenta - termina, cm última i.nsdncia, por se tom.ar a mera clcscriçáo naruralista de uma objetividade moru, na exata medida cm que aparece como simples ccnirio exterior desligado da ação do protagonista. Em vez da firme integração épico-narrativa entre o herói e o mundo, que vemos no citado romance de Balzac (assim como no romance realista cm geral), temos no /salas Caminha uma fratura compositiva que prejudica essencialmente, sobretudo cm sua segunda pane, a verdade estético-humana e o poder evocativo do rommcc. Isso não significa. todavia, que esse romance de estreia represente, como é o caso do Gonzaga tk Sá. um completo fracasso. No quad.ro de uma literatura objetivamen te pobre, como a nossa, o /salas - ao colocar com profundidade rcallsta alguns problemas decisivos da nossa vida social cm sua nova fase, inaugurada com a prodamação da República - desempenha um destacado papel na formação de uma autoconsciência estética brasileira efetivamente nacional-popular. Além disso, nunca será demais insistir sobre a sua fecunda ~. e não apenas estilística, no quadro de nossa evolução literária; com o /salas, pela primeira VC'l., swge na literatura brasileira uma criação estética valiosa e modnrut, isto é, adequada aos novos tempos, n2 qual a vida social é representada à luz de uma perspectiva ideológica cone.r etamente nacionalpopular'. Todavia, é incgávd que a primeira tentativa de Lima no "
Fr.mcitco de Assis Batboa, A tNú tk LJ,,... &mrt., Rio de Janeiro. Ci~ Br:asildra. 1964, p. 25 1.
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Que me seja pcnniticb unu comp:anç:M> amcrónic:a: 11>.-ncando dcxqu.Uairios at~ romance Qt-vp, de Anc6oio Calbdo, publicado cm 1966. apracnca unu lmpordncb e poswi wn significado do mesmo tipo qu.c Of do ÚIÚIU. na medida
ÜQQf iim.ibm, o
116 CAAlos Nu50ff COUTINHO
sentido de daborar o novo estilo exigido pela época - um estilo "panicipante", "antiartístico", "brutalmente" rcaliml- não alcança plenamente o justo termo médio aristo~co entre as "exigencias do dla" e as leis estéticas universais da grande arte. Isso aconteceria, como já dissemos, no Policarpo ~resma. Mas, antes de analisarmos esta obra-prima mais de peno, gostaríamos de f.uer algumas breves observações sobre as dWlS mais ambiciosas produções do último período de Lima (posc.criores ao Policarpo), ou seja, Numa~ a Ninfa e Clara dos Anjos. Publicado cm folhetins num jornal da época, Numa ~ a Ninfa pretende desmistificar os figurões da Primeira República, denunciando o modo covarde e mesquinho pelo qual capitulanun diante das pressões militaristas contidas na candidatura Hermes da Fonseca. Mwtos dos seus cernas, adernais, são retomados claramente do Policarpo, como é o caso do combate ao bonapartismo militarisci e à insensatez buroccltica, para não falarmos na problemática da bizarrice, aludida a propósito da interessante figura de Bogóloff. Todavia, mwto mais que o /saias Caminha, esse folhetim rcsscntcse dos defeitos do roman à clef. de urna vinculação dcmasWbmente estreita aos "eventos do dia", aproximando-se bem mais de uma reportagem satíria dos costumes políticos da época do que de uma autêntica figuração romanesca do real. O seu interesse. assim, é puramente documental. Já Clara dos Anjos - onde o autor resume numa novda suas ambições juvenis de um amplo romance histórico sobre os problemas raciais do povo brasileiro, que chegara a conceber como um Germinal negro -aprescnci uma problemática diversa. Parece que Lima o projetou como uma das SWlS obras mais imporunces, nda colocando todo o seu ódio plebeu contra a injustiça, o calor do seu generoso paúios de solidariedade aos humilhados e ofendidos. Mas, apesar do profundo interesse humano da novela, centrada sobre a sedução de uma jovem de cor por um personagem branco cm que assúu.12 o reinicio de uma noY:a etapa realista cm noaa liu:mun. airuanc!o-sc cm dan opociçlo a um pu!Qdo llWQ.do pcb in8ublda das vm6c:s Yanguaidistat" do Ydho *lntlmismo à 1e>mbn do podct".
CumMA 1 soo10ADE NO 8AASll
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e rico, é imposslvcl considerá-la como uma realização estética bem-sucedida; Lima perde-se &cqucntcmcntc na simples acusação, o que o impede de criar âpos humanos autêntic.os. A figura
de Ca.ssi, por exemplo, na qual se centra a novela, não consegue atingir o poder de convicção Ütcrária, já que se traci de mera caricatura, incapaz de ganhar autonomia diante do demolidor ódio que o romancim c:xpcrimcnca contra ele. Clara, por sua vez. aparece como urna vítima indefesa, sem afirmar cm nenhum momento uma interioridade própria, uma autenticidade humana c.onvinccntc. Uma concepção maniqueísta do mundo atravessa a novda, prejudicando decisivamente o seu nível de realismo. Há, porém, uma figura que - pelo seu poder evocativo - deva-se sobre as demais: a digna figura do btt.arro Mamunaque. Como vemos, desde Gonr.aga lk Sd até C/am do Anjos, passando sobretudo pelo Po/icJzrpo, o tema da bizarrice desempenha um papel decisivo no universo estético de Lima. Mas o que signifia exatamente, tanto no plano social objetivo quanto na obra de Lima, essa questão da bizarrice? É o que tentaremos esda.rccer agora, analisando mais de perto a sua obra-prima.
4 Antes de mais nada, cabe afastar alguns possíveis equívocos: a transformação da bizarrice cm kitmotiv, ao longo de toda a obra de Lima Barreto, não expressa uma simples preferência pessoal do autor, algo como uma idiossincrasia; tampouco pode ser visa, ao modo dos defensores do caráter "memorialista" da produção do romancist:a, como a imcdiaci cransposição para a obra de uma experiência pessoal. Não há dúvida de que a biografia de Lima - como se pode ver não apenas cm seu modo extravagante de tentar conservar a dignidade pessoal, mas também na sua singular e contraditória ideologia política - apresenta alguns traços marcadamente bizarros. Mas não é diffcil perceber que essa bi.ia.rricc pessoal de Lima é somenc.c a expressão, na vida do csc.ritor, de um fenômeno social objetivo m2is amplo. A expressão Literária desse fenômeno, assim, decorre do profundo realismo do autor
118 CMu>s NnSOH CounNHO
CuLTUAA E SOOIOADf NO 8MSIL
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do Policarpo (de sua figuração cnmca da realidade objetiw), e não de uma abstrata tendência ao autobiografl.smo. Será útil deAnirmos, desde logo, o fenômeno que aqui nos
Manud Antônio de Almeida e por Machado de Assis ba.scaramse cm meios expressivos que já não podiam servir aos propósitos espcdScos {historicamente determinados) que nortearam a práxis
interessa. E, p~ fu.!.-lo, recorreremos a Lukács:
criativa de Lima &mto.
Com efeito, a bizarrice~ uma ttrta adaptação, que se f.tt no imerior do sujeito e que decorre das possibilidades de ptitic:a social própria que lhe~ permitida pela ordem cspocffia da realidade. Mais oorrcwncnre: dcoorrc do fuo de que, se um homem pode se m-dat capaz. cm scu furo íntimo, de cnfienw a cransfonnação ncgariva das fomw fcnombtkas dadas de uma sociedade (...), de modo tal que sua integridade in1erior, ameaçada por cais formas. c:onsiga resistir à prova, se isso oc:orrc, endo a c:on~ dessa recusa numa prática social propriamente dita (c:on~ que se coma bumaiumenre nccasma} n5o pode ulcrapassarpor ca.usa de sua inc:ompatibilidade soci•l!D('llcc dcccrminada - os limites de uma interioridade abscrativa mais ou menos dcformancc. Disso decorre que o c:arárcr desemboca na cxccnrricidade, na cxtravapncia".
Pode-se já constatar como a descoberta e a figuração da problemática da bizarrice indicam a profundidade com que Lima penetrou no a.mago da reaJidade social brasileira, criticando cm sua atividade romanesca as especificas deformações humanas decorrentes da "via prussiana" seguida pelo Brasil. Mais do que isso: a figuração das deformações bizarras da ação humana, que ocorrem necessariamente nesse quadro histórico-social "prussiano". indica o modo peculiar atrav~ do qual Lima alcançou uma expressiva vitória do realismo. Com efeito, no seio de uma realidade marcada pela fragmentação nacional, pelo caráter "espontâneo" das transformações sociais, as ações humanas significativas- capazes de simbolizar esteticamente a ~eia da realidade - tendem a assumir formas extremamente peculiares. muit.as vezes bizarras, requerendo do romancista que as quer descobrir e representar uma grande sensibilidade acústico-ideológica. Diante dessas dificuldades, capitularam cm maior ou menor medida, como vimos, os rominticos (que se refugiaram numa "ação" mítica puramente subjetiva) e os natura.listas (que substirucm a ação pelo "ambiente" fctichizado). Por outro lado, as vitórias do realismo obtidas por "
G. l.uláQ. S.ljminyM, P.W. Gallinwd, 1970. p. lll- 123.
Já observa.mos como a época da Primeira República, acentuando os impasses e os limites estruturais da "via prussiana". impusera o abandono das formas estilístico-narrativas de Almeida ou de Machado. A necessidade de criar um novo realismo, fundado clara e diretamente na crítica social, impôs a Lima a wcfâ de encontrar, no seio da realidade brasileira, uma forma de ação que se revelasse objetiv:uncnte contrária ao moddo de desenvolvimento dominante, mas que conservasse simultaneamente a sua tipicidade, ou seja, que correspondesse a uma possibilidade social concreta, e não a um desejo subjetivo do escritor. Pda descrição de Lukács, vimos que a bizarrice representa uma manifestação peculiar do caráter humano, decorrente da necessidade (livremente adotada) de aruar objetivamente num meio social cujas formas fenom~oicas obstaculizam ou impedem a atividade autônoma comunitariarnentc respaldada, isto é, a atividade capaz de explicitar sem cooflitos o núcleo humano do agente. A bizarrice, assim, é um modo peculiar pelo qual se manifesta a incapacidade - histórica e socialmente determinada - de adequar esse núcleo humano subjetiva.mente preservado a um mundo social objetivamente alienado. Em sua luta para conservar a autenticidade subjetiva sem se isolar completamente do mundo, o bi.z.arro sofre uma deformação de personalidade que o aproxima da extravagância, da excentricidade, até mesmo da patologia. Desde o Dom Quixou de Cervantes até os principais romances de Soljenitsin ou de Hcirinch Bõll, passando por O idi.ota de Dostoievski, essa possibilidade de deformação bizarra da personalidade ocupa um destacado papel no mundo da figuração romanesca. Mais do que isso: nos casos cm que a defasagem entre interioridade e exterioridade assume formas extremadas, o que ocorre nas épocas de intensa alienação social, é quase inevitável que o romance realisca - fundado na rcprcsent2ção de ações significativas cm sua relação com o mundo
120 CAA1os NWOH Úl\mNHO
objetivo - assuma, na configuração dos seus personagcn5> a representação de comporramcntos m2is ou menos bizarros (é evidente que a bizarrice é uma ampla faixa que pode ser superada "para çima", nQ ~ublim~, wmo oçorre no Q}lixok, ou "para baixo", na mera patologia individual, como cm muitos romances naturalistas; mas que pode também c:onstiru.ir, como no citado romanc:c de Dostoievski, nas obras de Soljcnitsin, no Opinióa de um cÚJwn de Heinrich BõU ou na obra-prima d e Lima Barreto, um correto particular dialético de tipo simbólico-realista). A bi7.arrice aparcc:c assim, para empregarmos a terminologia do jovem Lukács, como um modo peculiar de manifest:açã.o do "herói problemático", ou seja, daquele herói que busca valores autênticos em um mundo degradado, mas que, precisamente por causa dessa degradação objetiva, relativiza ou deforma os próprios valores autênticos que norteiam subjetivamente sua ação... É precisamente através dos seus traços bizarros que Policarpo Quaresma deva-se à universalidade concreta do autêntico tipo romanesco realista, ou seja, converte-se cm "herói problemático". E Lima obteve essa elevação, essa correta realização das leis estéticas do gênero romanesco, na exata medida cm que o seu tipo expressava adequadamente, simbolicamente, uma relação humano-social específica e peculiar da realidade brasiJeira. Enquanto tipo biz.arro, Policarpo Quaresma torna-se o símbolo das contradições humanas impostas pc)a "via prussiana" seguida pelo BrasiJ: através da figuração do seu triste d estino, Lima concretiza - c:om meios espccificamcncc artísticos - urna demolidora e implacável crítica àquda sociedade que condena ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas e autênticas inclinações do nosso povo n o sentido de realização humana e, mais concretamente, da realização humana através da participação criadora no melhol'll!Dcnto da sociedade. O invulgar caJcnto que Lima evidencia no Policarpo não se revda apenas nessa sua apreensão da bizarrice como tema privilegiado de um romance crítico-realista especificamente brasileiro. •
G. Luk4a. A uori4 "4 ro,,.,,11«, São Paulo, OlW Cidades/ Editor:a 34. 2000.
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Essa apreensão já aparece no Gonzaga tk Sd. sem impedir que esse projeto de romance, apesar do seu interesse documental, represente objetivamente um completo fracasso estético. Esse talento revelasc, sobretudo, na habilidade com que Lima wrntrói ~~o quadro épico-narrativo da ação do seu tipo bizarro, cumprindo assim, simultaneamente, as duas exigências b:ásicas do gênero romanesco: por um lado, essa relação c:om o mundo objetivo explicita, canto em sentido positivo quanto negativo, o núcleo subjetivo do herói, ou seja, no caso concreto, aquda complexa dialética pc)a qual a bizarrice, surgida subjetivamente a panir da luta para conservar o núcleo da personalidade, desemboca objetivamente - num movimento que vai da comicidade à mais profunda ttagicidade - no completo esfac:clarncnto desse núcleo; e, por outro, com a construção desse quadro épico, Lima nos apresenta a "totalidade de objetos" que Hegel e Lukács apontam como exigência da representação romanesca do mundo, ou seja, apresenta aquele quadro humano-institucional no qual e através do qual ganha contcú.d o e sentido, no bem como no mal, a interioridade do herói. A ausência dessa "cocaJidadc d e objetos" cm face da trajetória do herói, que vemos ganhar corpo na segunda pane do lsaúl.s Caminha, pode ser apontada como a causa cstéti~crurural do c:arátc.r problemático desse importante e significativo romance. No Trimfim tk Policarpo Q!uzmma, ao e.onerário, encontramos a s(nrcsc orgânica do herói e do mundo, da ação individual representativa e da "totalidade de objetos", síntese que aparece como condição estética básica da vitória do realismo no romanc:c. Mas cabe ainda uma concretização: é evidente que essa "totalidade de objetos" não pode ser figurada, como supõe o naturalismo, através de uma cacaJogação cxtc.nsiva de todos os seus traços. O romance realista deve selecionar os momentos significativos, hicrarquizandoos cm função da específica problemática humana típico-simbólica que pretende abordar; c:om essa seleção e hierarquização, o mundo criado no romance pode elevar-se à condição de "microcosmo", de símbolo evocador de uma totalidade intmsiva de relações humanas. O ra, esses procedimentos sdctivos de composição.estão na base
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do Policarpo; com cfcico, o que interessa a Lima, na totalidade c:xtensiw da sociedade brasileira, são aqudas conexões capazes de expressar, do modo nuis significativo possível, os uaços do "modelo prussiwo" que pretende combater. Esquematizando um pouco, poderíamos dizc.r que essas conexões cxprcssivas, tal como se configuram no universo do Policarpo, são a burocracia (que aparece concretamente, no romance, não apenas na representação do mundo das repartições burocráticas, mas também através das deformações que esse mundo impõe a vá.rios personagens secundários) e o milir.arismo {ou, mais propriamente, aquela manifestação de "transformação pelo alto", sem participação popular, que é representada aqui no movimento 8orianista). Tanto a burocratização quanto a "transformação pelo alro" são formas sociais voltadas para a eliminação das massas populares na criação da história: aparecem assim como cxprcssõcs emblemáticas da "via prussiana.., da "revolução passiva" e, desse modo, manifestam-se também, de forma acentuada e típica, na vida social brasileira. Já no inlcio do romance, Uma nos apresenta a figura do Major Policarpo como a de wn homem que, incapaz de explicitar seu núcleo no vazio mundo burocrático em que é forçado a viver, desenvolve no isolamento de sua subjetividade um profundo amor pelo seu país. um. profundo desejo de empregar seus talentos e capacidades a serviço do progresso nacional. Assim, ironizado pelos que querem "levar ao ridículo aqueles que trabalham cm silêncio para a grandeza e a emancipação da Pácria"", o herói de Lima Barreto V2i "lCV20do a vida, metade na repartição [burocrática], sem ser compreendido, e a outra metade cm casa, também sem ser compreendido". Suas melhores qualidades humanas, a inteireza de caráter e um profundo desejo de participação social, conseguem se manter incólumes diante daquilo que Lukács chamou de "transformação negatiw das fomus fenomênicas dadas da sociedade"; mas o preço dessa manutenção, prccisarnc.nte por
"
~Ivo indicaçAo em contririo. oodu 21 cilllÇ6es daqui pm a frente rui mní
CUUUllA E SOOCDAOt NO 8AAS!l
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causa do isolamento da personalidade (obrigada a se ocultar por trás dos papéis sociais objetivos impostos pela vida burocrática), esse preço é a deformação bizarra daquelas qualidades. Desligado do contato criador com a realidade, incapaz de explicitar-se numa práxis social adequada. o pa1hos oacional-popubr de Policarpo assume a forma cxtravagante de um nacionalismo f.tnático, ufanista, fundado em mitos romântico-reacionários. Ainda que sem jamais pôr em dúvida a retidão subjetiw do seu personagem, Lima Barreto dissolve no humor os elementos equivocados desse nacionalismo. O importante é ressaltar que essa crítica autenticamente democrática ao filso nacionalismo ufànista assumido por Policarpo é rcalh.ada com meios especificamente estéticos, ou seja, através da figuração narratiw de sua completa inadequação à realidade (que assume estilisticamente a forma do humorismo); essa inadequação culmina na proposta, claramente bizarra, de adoção do tupi-guarani como língua nacional brasileira. Deve-se obscrV2r que, na representação dessa ambivalência do herói, expressa na contraditoricdade entre suas correcas intenções de participação social e os con teúdos equivocados que da assume, Lima figura aquele demento "problemático" assinaJado por Lukács na personalidade dos heróis romanescos, nos quais a busca de valores autênticos, cm função da solidão e do isolamento a que são socialmente condenados, assume traços objetivamente degradados. Já nessa primeira parte, portanto, assistimos aos momentos iniciais da critica humanista que Lima fu. da bizarrice, uma crítica que - sem ocultar as qualidades humanas prcserV2das pela bizarrice - indica os seus limites essenciais. Trata-se, mais do que de uma critica, de uma profunda auUJcrltica, fundada na tcntaów democrática de compreender a razão dos fracassos cm que cênl culminado as melhores ações do povo brasileiro. Ao contrário, a crítica de Uma à burocracia - que também já se expressa na primeira pane do romance - é simples e direta: a burocracia é apresentada como força social essencialmente contrária ao hununo, como um elemento próprio do mundo da alienação. Náo é casual que, enquanto a crítica à burocracia assume estilisticamcnte
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a forma do sarcasmo, a autocrítica da bizarrice pode SC1 expressa atra\Ú do humor. Voltando à figura de Policarpo, podemos ver como a sua primeira tentativa de convcnc.r o bizarro núcleo interior cm ação objetiva imediatamente social (a proposta de adoção do tupiguarani como língua nacional) desemboca no absoluto fracasso tragicômico. Rompe-se o seu prcclrlo equilíbrio, a~ então assegurado por seu isolamento, pela redução do personagem aos limites de um "pequeno mundo" puramente pessoal: essa ruprura leva Policarpo às ponas da loucura, da patologia. Porém, graças aos seus recursos interiores e à soüdaricdadc de um reduzido círculo de amigos e parentes, de retoma rapidamente o seu equilíbrio psicológico perdido. Mas essa "cura" de Policarpo, como a de Dom Quixote no início do romance cervantino, é apenas aparente: a sua fuga no campo não impede o prosseguimento da dialética da bizarrice, a qual, pouco depois, iria conduz:i-lo novamente à ação e, mais uma vez, à ruptura - desta feita definitiva - de seu superficial cquillbrio. Com excepcional talento compositivo, Lima utiliza esse período da tentativa de "cura" para ampüar decisivamente a figuração crítica da "totalidade de objetos" na qual se processa a ação do hcr6i. lão logo abandona o hospício, o major Policarpo, aconselhado pela afilh2da, resolve instalar-se no campo. Mas a manutenção da bizarrice rcvda-se desde o início: enquanto a afilhada supunha que a ida para o campo iria afastá-lo de seus antigos propósitos, Policarpo aproveita a oportunidade para pôr novamente cm prática suas teses nacionalistas abstratas. Pretende demonstrar de modo concreto as "maravilhas" do solo brasileiro, pois - tal como os ufaniscas - está convencido de que temos uma terra na qual "cm se plantando tudo dá". Paulatinamente. porém, esse nacionalismo uh.nista - cm contato com a prática concreta do trato da terra - começa a sofrer imponantcs alterações: o major não apenas descobre a falácia objetiva dos mitos ufaniscas como começa a descobrir também, o que é mais importante, as causas reais do auaso brasileiro. Assim, enxerga com clareza o problema
( 111.TUllA ( SOCllDAOI NO
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social da terra; •E a terra não era dele [de quem a trabalh2va]. Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava. por ai'? Ele vira até fazendas fechadas com as casas cm ruínas ... Por que csg ac;apuamento, CSSC$ 4tifúndios improdutivo$?" AJém dim, descobre que as instituições jurídicas consagram e defendem o latifúndio: Aquda rcd.e de leis, de posturas, de c6digos e de preceitos, nas mãos dC$SCS ~cs. de tais caciques K uansformavam cm potro, c:rn po~, cm insuumemo de $uplkios para tortwv os inimigos, oprimir as popubç6c$. crcst:1t· lhcs a iniciativa e a índcpcnd&cia, abatendo-as e desmoralizando-as.
Mas, embora já perceba alguns elementos essenciais da problcmitica social brasileira, a visão do mundo de Policarpo está longe de übcnar-sc das deformações impostaS pela sua bizarrice e pelo seu isolamento (no plano subjetivo) e pela "prussianização" da sociedade brasileira (no plano objetivo). Em vez de enxergar num caminho democrático-popular, numa autêntica transformação ..a partir de baixo", a solução para os problemas que agora percebia, Policarpo - cm função de sua falta de vinc:uJações concrccas com a vida social - começa a se tornar entusiástico defensor de "um governo forte até a tirania". Em outras palavras: o major "descobrira" - e, cm sua bizarrice, assumira com cxaccrbado pathos subjetivista - a problemática da "revolução pelo alto", ou seja, da ápica modalidade de transformação social nos países que seguem a "via prussiana". Essa modalidade implica a crença de que alguns indivíduos excepcionais, ou quando muito uma CÜtc esclarecida, podem substituir - enquanto sujeito histórico - as mass2S populares, que se supõe condenadas à apatia e à ignorância. Não há dúvida de que essa "soluçá.o" aparece e se difunde, muitas vcus, entre círculos "progressistas"; no plano objetivo, contudo, da reforça a continuidade da "via prussiana", na medida cm que conserva o povo afaswfo das grandes dcci.sões histórico-políticas. Trata-se, cm suma, apesar das eventuais apadncias em contrário, de uma solução reacionária e antipopular. É evidente, porém, que Policarpo - como muitos dos intcgrances do movimento 6orianisr:a - não tem clara consciência, num
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primeiro momento, dessas limitaÇ6cs essenciais do "der;potismo iluminado". Movido pda cocr!ncia e retidão subjetivas do seu caráter bizarro, o major não hesita cm passar imediatamente à ação c:oncrcta, tio logo cW>ora suas novas posições. Uma aparente coincidência - mas que Lima explora como elemento estrutural rigorosamente necessário no quadro do romancc - permite-lhe essa passagem: a sua ªsegunda incursão" no mundo da ação social processa-se agora no seio do amplo quadro histórico-social definido pdas lutas entre o movimento Aorianista (que defendia a República rcdm-instaurada) e os membros rebelados da Armada {que se punham a favor da monarquia). Policarpo julga descobrir cm Floriano o Henrique IV brasileiro, ou seja, o déspota iluminado capaz de promover a "revolução pelo alto" necessária ao progresso social da Pátria. Sem atentar para mesquinhos intcrcssc:s cgo{Stas ou para sua comodidade pessoal, o major - cheio de novas esperanças e ilusões - dirige-se ao telégrafo e escreve: "Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma". Essa feliz passagem humorística não deve ser vista como uma simples boutatú: o modo pelo qual Policarpo manifesta sua adesão ao florianismo é o meio estiUstico encontrado por Lima para evidenciar, com notável força plástica, a continuidade da bizarrice como craço ainda dominante na nova fase de atuação objetiva que se abre para o personagem. Neste ponto, seria interessante chamar a atenção para um elemento do romance, bastante expressivo da aguda $cnsibilidadc estético-ideológica de Lima: tanto cm seu nacionalismo uf.uústa quanto cm sua adesão à "'revolução pdo alto", o Major Policarpo apenas radicaliza - de modo bizarro - os elementos ideológicos degradados da realidade que o envolve. O que o diferencia radicalmente dos personagens "médios• do romance, ou seja, d os conformistas e dos acomodados, é o fato de que ele assume tais dcmcncos com radical sinceridade subjetiva, com completa coerência, não hesitando cm conduú-los às últimas insdncias. O nacionalismo uÍ
CUlTVAA ( SOCJ(OAl)f NO
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leva a propor o tupi-guarani como üngua nacional brasileira. O mesmo se pode dizer do Oorianismo: enquanto a maioria dos seus adcn:ntcs visa apenas a objetivos egoístas. Policarpo o assume como o real caminho para a "salvação da Pátria". A bizarrice, portanto, não reside tanto n o contnúlo das posições de Policarpo (que são, na verdade, elementos ideológicos próprios da realidade contra a qual se choca), mas sim na forma pela qual tais elementos são assumidos. Essa similaridade de fundo corre Policarpo e a sociedade ainda mais acentua a crítica radical implícita no romance de Lima: a radicalização das ideologias dominantes através da bizarrice do major não revela apenas a falácia objetiva delas, o seu caráter de meras ideologias, mas também acentua a hipocrisia burocrática dos personagens conformistas, que não são capazes de assumir cocrcn ccmcntc nem mesmo os preconceitos ideológicos que defendem e difundem. Esse modo especificamente romanesco de criticar as ideologias dominantes não é uma pccul.iaridade de Lima: cm sew romances, Balzac e Stcndhal - para ficarmos apenas cm exemplos maiores - efetuam uma crítica semelhante, na medida cm que mostram como a sociedade do capitalismo individualista deve condenar ao fracasso rodos os personagens que assumem o individualismo, de modo amplo e consequente, como norma vital e como conteúdo da ação. I..cva.nd.o as contradições da ideologia nacionalista abscrata ao seu paroxismo, Policarpo Quaresma tornase uma encarnação viva da insensatez humana da "via prussiana" seguida pelo povo brasileiro. Mas voltemos às vicissitudes do nosso personagem. A participação de Policarpo no movimento Oorianista é uma trajetória de desilusões, explicitando amplamente a dialética entre a bizarrice subjetiva e a ação objetiva no mundo social: a integridade do personagem choc:a~sc duramente com as "acomodações" do meio. A bizarrice, tratllda por Lima no nível do humor, vai convcrtcndosc paulatinamente numa dolorosa consciência trágica, tal como sucedera outrora ao Cavaleiro da Triste Figura. Mwto cedo, Policarpo desilude-se com a eficácia da "revolução pdo alto". Cheio de esperanças, o major elabora um memorial sugerindo medidas
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concretas para enfrentar os problemas nacionais, sob1etudo os agrários; mas, ao expor pessoalmente seus projetos ao MarcchalPrcsidcntc, este - tomado pdo "aborrecimento mais mortal" e
revelando um espírito profundamente antipopular ("mas pensa você, Quaresma, que cu hci de pôr a enxada nas mãos de cada um desses vadios?" ) - termina por definir secamente o seu então entusiástico partidário como um simples "visionário". E as decepções se acentuam, culminando no momento cm que Policarpo, já convencido da insensata no movimento de que fazia parte, assume conscientemente o risco de denunciar ahcn:amencc, numa carta ao Presidente, o massacre dos marinheiros revoltosos. Nesse momento, sua ação e sua personalidade superam os quadros da biurrice, conservando desta - o que não é casuaJ- tão somente a correção e a retidão interiores. Lima rcvda aqui, com profundo realismo, a complexa dialética da bizarrice: a extravagância como forma solitária de conservar o núcleo humano rcvda os seus limites essenciais no c:xato momento cm que- sem alteração da estrutura bizarra e, consequentemente, do isolamento cm fàce de qualquer sujeito social efetivamente comunitário - passa-se a.o dom ín io da ação objetiva no "grande mundo" da vida social. Nesse momento, a bizarrice pode convcncr-se cm simples patologia (como ocorre cm O ú/iQ14 de Dostoievski) ou cm tragédia (é o caso do Po/iearpo Quarmna). Ao abandonar a ação romanesca cm troca da "serenidade'" d o estilo, o Gonzaga tk Sd nio pudera figurar essa dialética. No Poücarpo Quarmna, ao contrário, cm que a explicitação da bizarrice se processa cm ligação orgânico-narrativa com a "totalidade dos objetos", a verdade estética e a verdade do conteúdo humano encontram uma exemplar síntese realista. Essa dialética da bizarrice articula-se assim, no romance de Lima, com uma demolidora crítica social das misérias e dos impasses humanos da sociedade brasileira. A autocrítica de Policarpo - expressa não apenas na patttica carta à irmã Addaidc, mas sobretudo cm suas rdlcxócs finais antes de ser executado - convcnc-se numa violenta acusação à realidade social "que se vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade".
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Embora já demasiadamente w-dc, Policarpo descobre no fim do romance - tal como Quixote - que noncara a sua vida por uma ilusão: o seu fànático nacionalismo uf.utlsta, como de agora compreende, baseava-se num mito, cm um conceito de pátria que "certamente era uma noção sem consistência racional e que precisava ser rcvisca". Essa tardia autoconsciência da inutilidade dos próprios esforços - ou, cm outras palavras, a compreensão por parte do "herói problemático" d o caráter ilusório de sua busca solitária de valores autênticos num mundo degradado - não é apenas uma singularidade de Policarpo Quaresma. Trata-se, ao contrário, de uma característica estrutural permanente do gênero romanesco, como podemos ver não apenas no ~ÍXQ~. mas cunbém nas obras de Balzac, Stcndhal, Dostoievski, Thomas Mann etc. Porém, através desse demento fonnal, Uma pôde transpor para o seu universo romanesco um importante conteúdo de sua visão do mundo: aquele amplo internacionalismo humanista que, embora d e fundo anárquico-libertário, permitiu-lhe assumir uma posição correta diante da Primeira Guerra Mundial (cujo conteúdo imperialista enxergou com clareza) e da Rcvolu~o Socialista de 1917 (que saudou com entusiasmo). Do ponto de vista imediato, a crítica de Lima à realidade social brasileira concentra-se no movimento Aorianista. Colocasc aqui uma importante questão: até que ponto é historicamente justa a caracterização do florianismo (e, cm particular, do próprio Marechal Floriano) empreendida por Lima? Antes de tudo, é preciso repetir algo bem conhecido: a verdade poética, que eleva os eventos ao nível da universalidade concreta, do símbolo evocador da autoconsciência humana, não se identifica mecanicamente com a verdade historiográfica. Como já Aristóteles observara, não interessa ao artista o que efetivamente ocorreu, a singularidade cm sua nudez faetual; interessa-lhe sobretudo o que poderia - e, dadas certas condições, até mesmo deveria - ter ocorrido. Em outras palavras: a arte autbláca não figura a realidade imediata, mas sim o "verossímil", aquilo que Hcgd chamou de "possibilidade objetiva", que~ um modo ontológico mais essencial e mais
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profundo da realidade como um todo. Por outro lado, a grande arre não apenas reproduz o real, como ocorre nas ciências (inclusive na história), mas também - e simultanC2mente - avalia e julga a realidade a partir de um ponto de vista genericamente humano (histórica, dassística e nacionalmente determinado). Assim, quando um fato histórico aparece cm uma obra de arte, o que interessa não é saber se os seus detalhes estão fielmente reproduzidos, mas sim até que ponto o artista representou corretamente a rdação entre o fato histórico (entendido cm sua dimensão essencial, universal e concreta) e o desenvolvimento do gênero humano (da classe, da nação etc., através das quais esse gênero se concretiza historicamente). Tomemos um exemplo concreto: é evidentemente "injusta", do ponto de vista biográfico-historiográfico, a c:a.ractcrizaçáo que Tolstoi nos apresenta, em Guerra e paz, da figura de Napoleão Bonaparte. O general que conquistou a Europa e consolidou as aquisições essenciais da Revolução Francesa não poderia, evidentemente, ter sido aquela mesquinha figura que André Bolkonski contempla no final do romance. Todavia, isso não anula a verdade superior dessa caracterização, se a analisarmos no conceito estético-humano da obra de Tolstoi; essa verdade decorre da justeza essencial da posição colstoiana, expressa esteticamente ao longo do romance, segundo a qual o verdadeiro sujeito da história, o real criador dos valores humanos, não é o "indivíduo superior", mas sim a própria comunidade popular cm movimento. Assim, à luz do desenvolvimento do gênero humano, bem como das leis estéticas que apressam esse desenvolvimento, aquela "diminuição" de Bonaparte aparece como uma colocação correta e fecunda. Se avaliarmos o Policarpo em nome de uma mesquinha exatidão documental, talvez possamos considerar injusta a crítica de Lima ao florianismo, bem como exagerada e "caricarural" a sua figuração do chamado "Marechal de Ferro". Com efeito, sob alguns aspectos imediatos, o florianismo apresentou traços progressistas, sobretudo na medida cm que contribuiu para consolidar definitivamente, contra a revolta restauradora da Armada,
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a forma republicana de governo. Mas também é incgávd que, visto à luz de uma perspectiva nacional histórico-universal, o florianismo não apresentou nenhuma ruptura essencial com a "v~ pMSiana" antidemocrática seguida pelo nosso país; além de não tocar na questão do monopólio da terra, que era na época a base da dominação oligárquica de tipo prussiano, tampouco criou os dementos necessários para encaminhar uma efetiva part.icipaçáo popular na vida pública brasileira. Mais do que isso: com o floriaoismo, inaugurou-se entre nós uma nova variante da "via prussiana", da "transformação pelo alto", ou seja, o militarismo aberto. Como muito poucos na época, Lima enxergou plenamente os perigos dessa variante. Logo após o Policarpo, voltaria a denunciar asperamente o militarismo cm Numa e a ninfa, tomando já aqui como pretexto a candidatura presidencial de Hermes da Fonseca (no mesmo sentido, deve ser entendida a sua adesão poütica à campanha "civilista" de Rui Barbosa). Assim, ao "esquecer" os eventuais lados positivos do florianismo e ao concentrar-se na representação de sua essência antidemocrática, Lima estava expressando, como Tolstoi no caso de Napoleão, uma verdade humana superior: combatendo o movimento florianisca, o escritor combatia - com um pressentimento histórico-universal digno de um grande realista - os impasses e as deformações humanas geradas por essa variante militarista da "via prussiana" (seria um equívoco entender o antiflorianismo de Lima, como alguns já o fizeram, ligando-o ao suposto, mas jamais comprovado, "monarquismo" do escritor.) Mas, embora esteja no centro da ação, a figuração crítica da diaMtica da bii.arricc (cm suas relações com o "caminho prussiano") não esgota o universo histórico-estético criado pelo Policarpo Q}4aresma. O caráter participante do realismo de Lima impunha-lhe a busca de alurnativas concrcc.as, a elaboração de uma penpectiva de superação, através da criação estética de tipos e de destinos humanos. No quadro da estagnação social da Primeira República, era bastante diflcil, sem cair numa utopia romântica, encontrar figuras humanas positivas capazes de representar essa altemati-
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va"'. O movimento operário, como vimos, já era suficiente para fornecer ao romancista um "ponto de Arquimedes" situado fora da "via prussiana", ou seja, para lhe fornecer uma base ideológica histórico-universal para sua crítica radical de nossa sociedade. Mas essa base era ainda na época baseante abstrata; alheio ao romantismo, Lima não poderia encontrar oo mundo proletário de então, que mal começava a nascer, a universalidade concreta requerida para a criação de autênticos tipos realistas. Na verdade, somente na d&:ada de 1930, cm particular no romance nordestino, a classe operária começa a aparecer, como força humana autônoma, cm nossa literatura realista; mas, mesmo então, não é casual o f.tto de que esse aparecimento quase sempre ocorra no quadro de tendências românticas (como no primeiro Jorge Amado). nem tampouco - o que é o outro lado da medalha -que o proletariado con tinue ausente na obra da figura máxima do romance nordestino, Graciliano Ramos. Ligado profundamente ao mundo urbano, por outro lado, Lima não poderia enxergar alternativas concrctaS no mundo camponês, como frequentemente o fizc.ram - e aqui com pleno âito realista - os romancistas nordestinos. Entretanto, no mundo das cidades, particularmente entre os "humilhados e ofendidos" com os quais está a simpatia plebeia de Lima, surgem alguns tipos humanos que aparecem objctiwmcntc como alternativas concretas à vacuidade e à deformação ética que vemos se manifestar nos membros das classcs dominantes e dos meios burocráticos. A maior expressão literária dessa alternativa popular, no mundo romanesco de Lima. é a simpática figura de Ricardo Coração dos O uuos. O poeta popular é uma dara expressão daquilo que Marx, a partir de obscrv3çócs de Goethe, designa P.an mar n:W-m1cndidoc Ido~ nccadrio que o rcaUsmo formule al1cnwms oonaaas. Em muicos cuo.. basta-lhe propor - como diria Tc:hdiov - "quen6cs razoávds"", qur ponham c:m cauu as soluçiõcs &isas do mundo que~ para ci12rm0S um c:xcmplo concmo, ~ale o cuo de Machado de Asili. Todavà, no dpo de realismo proposto por lima (ou Kja. no realismo fun~ na cxplíci12 tomada de posição), que com:spondc a pttlodot históricos matados por con~ f9ÇialJ intensas, 2 form~ de alm· n:uiv.u roma-se demento citnm1r.al neccsdrio da composição.
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como "plenitude limitada": um tipo popular que, embora incapaz. de se apropriar amplamente de todas as potencialidades do gênero hwnano cm dada época (apropriação que, nos períodos de alienação, permanece como concreta p
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da Umpida decisão final de Ricardo de colocar-se firmemente ao lado do major em desgraça. Enquanto todos os falsos amigos de Policarpo afastam-se ddc, pretextando "dificuldades pcs.roai.s" ou apelando para um "bom-senso" conformista, Ricardo - ao lado apenas de O lga - náo hesita cm empenhar-se, mesmo com o risco de p rejuízos pessoais, na luta para salvar o major. Através do paralelo entre a covarde reação dos Gendícios e do Dr. Armando, que se pretendem "sábios" e incdcctuais, e a correta dccisáo moral d e Ricardo, um ingênuo e simplório cantor popular, Lima Barreto expressa - com meios puramente literários de caracterização - sua dara e decidida tomada de partido: apesar de suas limitações, a "plcnirudc" popular é uma efetiva alternativa humana à corrupção moral das classes dominantes. É também diante da decisão moral ocasionada pela prisão de Policarpo que a figura de Olga - cuja inteireza humana aparecera até entáo d e modo claro, mas ainda discretamente - assume a sua plena explicitação. Seria dar provas de um sociologismo vulgar e esquemático querer determinar essa inteireza moral da afilhada do major a partir de sua vinculação com essa ou aquela classe social. Lucicn Goldmann, analisando o fenômeno da rcificação, observou corretamente:
considerada como uma precursora do humanismo que marca a atuação d e Madalena, importante personagem de São lknutn:/Q, de Graciliano). Encarnando essas possibilidades, ela aparece no mundo de Lima Barreto - l1JD C$Çritor fulsammtc a~do de misoginia.. - como um aucêntico tipo positivo. Desde o início, somente Olga compreende adequadamente o major Policarpo; somente ela é capaz. de perceber, por trás ou através das aparências bizarras, a infinita grandeza humana do seu padrinho, mas distanciado-se ao mesmo tempo, com sagacidade e lucidez, dos conteúdos equivocados cm que se manifesta essa grandeza. Incapaz. de romper com a mesquinhez e o convencionalismo da "boa" sociedade em que vive, Olga assume exteriormente, durante algum tempo, as apar&lcias do conformismo e da alienação (casamento de conveniência etc.}; mas, apesar d essa resignação, conserva íntegro o núcleo humano, o seu agudo senso moral, que se explicitariam plenamente por ocasiáo da sua aquiescência ao pedido de Ricardo para ajudar o major depois de sua prisão. Já anteriormente, quando codos ironizavam a adesão bi.zar:ra de Quaresma ao florianismo, Olga havia sido capaz. de avaliá-la corretamente, embora as suas simpatias estivessem com os opositores de Floriano:
O dcsenvolvim.enro da produção capital.im., fundado sobre o fator puramente quantitativo do valor derroca, dinúnou progressivamente a oomprccn.sáo dos homens para os elementos qualitativos e SCNfvcis do mundo natural. A se.nsi· biJidade para tais elementos tomou-se cada vez mais o privil4io 'dos poetas, das crianças e das mulbetCS', ou seja, dos indivíduos situados à rruirgcm da vida ccon6mica"'.
A rnoça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e n:agirdo fato sobre as ideias e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar, censurar: scnáu-o, porim, tão oocrcncc com ele mesmo, t4o de 1Uordo com 11 substJlfrill till vil1ll ~ tk mesmo fobmal'll, que se limitou a sorrir complacente: - O padrinho...
A conservação do núcleo humano cm Olga e a sua sensibilidade para os problemas éticos r~m suas raízes nessa possibilidade marginal con tida no desenvolvimento do mundo da alienação; desligada da vida econômica, Olga consegue afirmar eticamente a sua interioridade, colocand o cm segundo plano mesquinhas consid erações de interesse egoísta (nesse sentido, Olga pode ser
O que a moça admira no major Quaresma é exatamente essa capacidade d e fabricar por si mesmo a su bstância da p rópria vida, essa disposição interior que o faz- contra a aceitação conformista e alienada da moral burocrática vigente - conservar-se ~ surpn:mdcntc que ali mcmio Prancisa> de AsÃ$ 8arl>ooa. a quem dcYCmos um iroponandssimo a:abaJho de .levanwnento bloglilia> e de edição da obn de~ afume o quinte •Ao c:ontririo dos~~ de mçosvigol'OIQS, gane vív.i. de ame coao, as mulheres que~ nos seus romma:s do apenas dc:scnhadas. vagas. impnxlsas. f.alandc>-
ll:a a densidade, por causa ialw:z dc:llc daa>nhedmcnro daalnu fmúnioa• ~A viM lk i.J1'111 &nrto. til., p. 278). O biógrafu, narunlmaur, esqueceu« da 6gw:a de~
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preso à essência humana dos homens. Essa aguda compJCensáo da problemática de Policarpo prepara Olga para a sua decisão de enfrentar o marido, de romper finalmente com a crosta da alienação sob a qual vivera, afirmando também da - mas, neste çasQ, sem nenhuma bizarrice - o próprio núcleo conservado íntegro. Não é casual que, ao aceitar a proposta de Ricardo para ajudar o padrinho, Olga tenha motivado no crovador (apesar das profundas diferenças sociais entre ambos) as seguintes reflcxóes:
Deve-se observar que a trágica e pessimista autocrítica de Policarpo (que desemboca num desespero sem perspectivas) não aparece como desfecho do romance. Para esse posto e função, Lima escolheu as considerações finais de Olga, posteriores à sua fracassada tentativa de ajudar o major, considerações que, de acordo com a concepção do mundo do romancista, orientam-se para o futuro. Após ouvir ofensas ao seu padrinho, chamado de "traidor" e de "bandido", Olga.
Ele cntio pensou com admil'2çáo naqucb moça que. por simples amizad.e, se
(...) ergueu-se orgulhosamente e ccve vcigonha de ter ído pedir, de ter descido do seu orgulho e de tc.r cnxcm.lhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal i;cntc. era melhor ~lo deixado morrer só e heroicamente num ilhá! qualquer, mas levando para o túmulo inrciramenrc i.ntacro o seu orgulho, a sua doçura, a sua pcnonalldade moral (...). Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas remis, já tinham crr:ido tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhara de ter no sangue o sangue de dez. mil inimigos. Fol'2 h2 quatro séailos. Olhou de novo o c:éu, os ares, as árvores de Sanca Tcte7.a, as casas, as ig1tjas: viu os bondes passamn; uma locomotiva apitou; um carro. puudo por uma linda parelha, all'2VC$SOu-lhe na liuitc. quando já a entrar no campo. Tutha havido grandes e inúmcns modificaçócs. Q.ic ÍOl'2 aquele parque? Talvez. um ch.aroo. Tinha havido grandes modl6caç6cs nos aspcaos, na fisionomia
O encontro desses dois personagens, simbolizando a aliança entre a "plenitude limitada" das camadas populares e a revolta contra a alienação, não é simples casualidade: expressa-se aqui, de modo concreta.mente estético, a visão do mundo de Lima Barreto. O lga e Ricardo, com efeito, significam para o romancista alternativas concretas à mesquinha atmosfera burocrática que dissolve a humanidade dos homens. É fruto da justeza estética e ideológica da concepção de Lima o fàto de que Olga seja escolhida para encarnar a perspectiva final - de confiança no humano - esboçada pelo seu romance. Embora reconhecendo os méritos da "plenitude limitada" de Ricardo, embora afumando inequivocamente a grandeza ética oculta pela bizarrice de Policarpo, Lima enxerga ao mesmo tempo os limites e as contradições essenciais dessas duas possibilidades humanas. Mas seria quase impossCvel, sem cair no romantismo, construir o seu romance em como da figura de Olga; em contaco direto com a alienação vigente, a inteireza do seu caráter sofreria deformações (como é o caso de Policarpo) ou perderia aquela capacidade de simbolizar a conservação do núcleo humano. Assim, é graças à lucidez artística de Lima que a dialética da bizarrice ocupa o centro da composição, enquanto a conservação íntegra e harmoniosa do humano aparece de modo marginal, ainda que para assumir no fim da obra o sentido de uma ampla perspectiva histórico-universal.
Para além das trágicas contradições que ainda dilaceram a sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a humanidade dispõe para superar tais concradiçóes. Como Olga, também sem alimentar ilusões, pôde ele concluir seu romance com uma afumaçáo de confiança na humanidade.
5 Com Lima Barreto, iniciou-se para a literatura brasileira uma nova etapa - moderna e popular - do realismo. Tanto em sua obra estética quanto cm sua produção jornalística, o romancista carioca rompe decisivamente com qualquer ve.rsáo do "intimismo à sombra do poder, afirmando com clareza a dimensão humanisca do oficio literário. Diante de todas as qucstóes que enfrentou, como escritor ou periodista, ele sempre tentou encontrar {e, na
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esmagadora maioria dos casos, efetivamente encontrou) uma resposta autenticamente democrática e popular, capaz de abrir novos horizontes - ideológicos e estéticos - para a cultura e para a an.c de nosso país. Uma Barreto é assim um divisor de ;igu.a.s na evolução literária b1"2Silcira. Rompendo radicalmente com as tendbtcias cstcticisw e cscapistas predominantes cm sua~. propôs teórica e praticamente um novo realismo. Seria baseante oponuno, nesse sentido, compará-lo com o movimento modernista, que continua a ser considerado - com um radicalismo unilateral - o único iniciador d.a licc.rarura contcmporinea no B1"2SiJ. O modernismo, na verdade, rcvc o múito de pressentir e propor a necessária renovação de nossa literatura; mas, pelo menos cm seus mais significaávos representantes iniciais, colocou as questões ligadas a essa renovação cm bases preponderantemente formalistas'). Lima Barreto, ao contrário, compreendeu e formulou a necessidade taro~ de uma mwvaçáQ do conuúdo huma1JQ, ligada a uma proposta de transformação d.a sociedade. Propôs assim aos escritores a tarefa, que continua atual, de relacionar organicamente i literatura às grandes questões hwnanas e histórico--sociais d.a nação e do povo b1"2Silciros. Nessa oposição, por conseguinte, é que deve ser buscada a razão do frontal ataque que Uma, num dos seus últimos artigos, dirigiu à Semana de Arte Modc.ma e, mais concretamente, à versão futurista do então nascente vanguardismo". Não é casual que esse ataque, cm muitos pontos, se aproxime essencialmente da autocrítica do mode.mismo realizada cm I 942 por Mario de Andrade", que já então - graças ao seu profundo humanismo afastara-se decisivamente das tcndbtcias "cxpcrimcntalisw" que dominavam a obra e a agitação literária de Oswald de Andrade,
'" " .,
Não~ 3Cju.i o lugar para wm avallaçio cxawciva da problcmáóado modmtismo. Valioas
indica96cs nax x:nrido Cldo no cnAio de Lufa Strgio N. Henriques, "Conlt':ldiçi6a
do modernismo". incluído cm Vários A.utoca, /WJ"- ~ ~ ,.. /i_ , . lmuildl'll. Rlo dcjandro, Puc Terra, 1974, p. 57-74. CT. Unu lbrrcto, Frlnu 1 ""1fo,41, S5o Paulo, BruUimse, 19S6. p. 67~. Mario de Andrade, Aspmo1J,, li-IVl'll /mui~;,., ~ Paulo. Martins, 194.3.
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o mais expressivo e talentoso representante de nosso "vanguardismo". Enquanto o modernismo, na figura de Oswald, tornava-se o precursor da nova vanguarda b1"2Silcira, Lima Barreto inaugurava uma linha oposta, a linha do realismo crítico nacional-popular, na literatura contemporânea de nosso país. lnfdiz.mcncc, os antigos obstáculos histórico-sociais à formação de uma linha conúnua na evolução do nosso realismo não foram inteiramente removidos após a monc de Lima. Apesar de já encontrar agora resistências maiores, a "via prussiana" terminou sempre por predominar nos movimentos de cransformação ocorridos nos últimos 50 anos, impedindo conscqucntcmcncc a continuidade da linha realista. O romance nordestino - o mais expressivo movimento realista cm nossa história literária do século 20 - não pôde partir diretamente da temática urbana de Lima; mas é indiscuávcl que recolhe dele (consciente ou inconscientemente) tanto a visão do mundo democrático-popular quanto o conceito "participante" do oflcio literário. O pioneirismo de Lima evidencia-se quando observamos o seguinte fato: depois dele, já não mais foi possível construir o realismo crítico com base na "serenidade" estilística ou no humanismo "distanciado" de Machado de Assis. Em José l..ins do Rego ou cm Graciliano Ramos, cm Antônio Callado ou no último &ico Veríssimo, podemos sempre constatar a retomada do espírito "participante" e da profunda consciência social que ma.rearam a práxis literária do autor do Poli.carpo ~rmna. Nesse sentido, Lima continua a ser um modelo - o que não implica evidentemente a ideia de "cópia" ou "imitação" - para o realismo b1"2Silciro de hoje. R.crirar Uma do injusto esquecimento cm que o querem sepultar, m-xaminar sua obra cm função dos problemas gerais da literatura brasileira, não são assim tarefas acadêmicas ou meramente "literárias": fuzc.m parte da ncccssária e urgente reavaliação crítica de nossa herança cultural progressista, entendida como ponto de partida para a construção de uma nova cultura brasileira democrática e nacional-popular. (1972)
Graciliano Ramos
Na solidão de individuo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam. (...) llhas perdem o homem. DnmrmqnJ
1 A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro processo de formação da sociedade brasileira contcrnporinca, cm suas íntimas e essenciais dctcrminaçócs. Nada existe nele cm comum com aqudc regionalismo estreito que foi uma das manifestações brasileiras do naturalismo "sociológico". O destino de seus personagens, seu modo de agir e reagir cm f.acc das situações concretas cm que se encontram inseridos, são manifestações típicas de toda a realidade brasiJeira. No "regional", a Graciliano interessa apenas o que é comum a toda a sociedade brasiJcira, o que é "universal". Mas não um universal abstrato e absoluto, pretensamente válido cm qualquer circunstância; a universalidade de Graciliano é uma universalidade concreta, que se aliment:a e vive da singularidade, da temporalidade social e histórica. O que lhe interessa não é a c::xcmplificação, através da literatura, de teses e conccpçócs apriorísticas; é a narração do destino de homens concretos, socialmente determinados, vivendo cm uma realidade concreta. Por isso, pôde de descobrir e criar verdadeiros tipos humaMs, diversos canto da média cotidiana como da caricatura abstrata. A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste com cores mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. Os movimentos de renovação e de cransformação que começavam a esboçar-se (apenas a esboçar-se) por todo o país - expressando-se, entre outras coisas, na chamada Revolução de 1930 -, chocavam-
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se no Nordeste com barre.iras mais firmes, com obstácul06 quase intransponíveis. As esperanças de renovação democritica da sociedade eram violentamente cortadas; a ausência de uma classe
social efetivamente (e não apenas potencialmente) revolucionária condenava os que pretendiam luur por uma nova comunidade
à solidão e à incompreensão. De certo modo, na medida cm que aí as contradições eram mais "clássicas" (no sentido de Marx), o Nordeste era a região mais típica do Brasil; a sua crise expressava, cm toda a sua crueza, a crise do conjunto do país. Não é assim um acaso que tenha sido o romance nordestino da década de 1930 o movimento literário mais profundamente rcallsta da história de nossa literatwa. E, no seu interior, GraciJiano é a figura mais alta e representativa. Foi cJc quem mais radicalmente se libertou da mistura de romantismo ("revolucionário" ou reacionário) e de naturalismo que ainda vemos existir cm grande pane de seus contemporâneos. Neste sentido, Canis funciona, cm sua produção literária, como uma catarse: escrevendo-o, Graciliano se liberta do naturalismo, percebendo na prática as suas limicaçõcs para representar as determinações mais profundas da realidade humana do povo brasileiro. Com São Bernardo, Graciliano marca - cm sua obra e na história do romance brasileiro posterior a Lima Barrt:to - a passagem da crónica à hisuJrút co~. a superação de um naturaJismo que se conten tava cm descrever a superfkic da realidade por um realismo verdadeiro como a vida. Na época, a sociedade brasileira se apresentava como uma formação social scmicolonial cm crise. O esgotamento das potencialidades de nossa economia pfé.clpita.l.isca não fora seguido por uma renovação radical, pela criação de uma forma moderna de economia e de rdaç.ôcs sociais. A ausência de uma economia integrada, estruturada cm tomo de um mercado interno único, era causa e efeito da inc:xistbtcia de uma classe burguesa orgânica, que estivesse cm condições de promover uma autbttica revolução democrática. A fragmentação de nossa sociedade, típica de uma economia pré-capitalista, impedia a form.ação de uma verdadeira c.omunidadc humana, de uma vida pública democrática, afutando
o povo de qualquer participação criadora cm nossa histórica. A estagnaçio social condenava os homens a uma vida medíocre, ao cátccrc de um "pequeno mundo" restrito e sem perspectivas, scpa~ de uma autbttica vida social e comunitária por paredes bastante espessas. Esta realidade mesquinha, que impunha aos indivíduos uma radical alienação, afutando-os da evolução histórica conacta, era comum a todas as classes sociais brasileiras; mas enquanto umas se sentiam à vontade nos estreitos limites deste "pequeno mundo", outras compn:cndiam que só com a destruição de tal cárcere seria possível a abertura para uma vida autêntica e humana. O desenvolvimento do capitalismo, que se processava sem rupru.ra.s com a economia pré-capitalista e dependente, não apresentava as mesmas caractcdsticas revolucioná.rias que tivera na Europa Ocidental: cm vez de contribuir para romper as paredes daqucJe ..pequeno mundo", mais ainda as fortalecia, colaborando para transformar o isolamento e a solidão passivos cm individualismo ativo e prático. Impossibilitada de realizar a sua revolução democrática, a nossa burguesia jamais chegou a ten tar a criação do cit:oym (do homem que sintetiza cm si a vida pública e a vida privada) ou da comunidade humana aut~ntica (na qual os incercsscs individuais e os interesses coletivos formam uma totalidade orgânica). Esses sonhos do humanismo burgu~ europeu revolucionário revcJaram-sc, com o processo de desenvolvimento de economia capitalista, uma ilusão utópica: o egoísmo individualista da luta pelo lucro, a cisão radical entre o bourgeois e o citoym, a redução do homem a simples mecanismo da produção capitalista, o consequente fracionamento da comunidade - eis o que substitui, na realidade, os ideais grandiosos do homem total e da comunidade democrática. Contudo, a simples formulação desta ideologia humanista, bem como as trágicas tentativas de levá-la radicalmente à pcltica (Robespierre e oucros), marcaram profundamente a realidade europeia. Mesmo como ideologia utópica, o humanismo revolucionário desempenhou um papel ativo nas sociedades ocidentais, ensinando os homens a verem além dos estreitos horizontes de um "pequeno mundo" 6Jistcu. A tragédia
(ULTUU l SO(l(OAl>I NO B~l
dos que prctendcr.un, mesmo após a vitória do "burguês""60bre o "cidadão" no interior da revolução dcmocritica, guiar suas vidas por essas iJusócs grandiosas de realização humana, vem representada nos realisw franceses do $éwlo 19, cm &haç, Stcndhal e Flaubcn (que se pen.se nos destinos de Lucicn de Rubcmpré, de Jullen SorcJ e de Fr&Mric Morcau). No Brasil, bem como na quase generalidade dos países coloniais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de iJusócs humanistas e de tentativas - mesmo utópicas - de realizar na prática o ideal do "cidadão" e da comunidade democritica. Os movimentos neste sentido, ocoaidos no século passado e no início deste século, foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas claSSC'S dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se tomavam necessárias, das eram fciw "pdo alto", através de conciliações e concessões múruas, sem que o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, cm vez de promover uma transformação social revolucionúia - o que implicaria, pdo menos momentaneamente, a criação de um "grande mundo" democrático - , contribuiu para acentuar o isolamento e a soüd.áo, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada. Tudo isso torna extremamente problemática, entre n6s, a criação de autenticas obras épicas realistas. Tambán na Europa, com o triunfo da burguesia sobre o proletariado cm 1848 e com a triviaHzação ou abandono do antigo humanismo clássico, o romance tende cada vez mais ao naturalismo estreito, à mera descrição do "pequeno mundo'; só com o realismo russo, com o surgimento de um herói não individualista - expressão de uma época d e crise radical dos valores burgueses - , é possível a recriação de uma nova estrutura romanesca realista. Encrc nós. a penetração e evolução do capitalismo ganha características bastante originais, pclacxiscencia simultânea e contraditória de vários de seus estágios:
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em determinados casos, ele representa um esúmuJo à perpccuaçáo de nossa velha sociedade cscagnada; cm ouaos, apresenta-se como possibilidade de renovação e de progresso; finalmente, revelando prematuramente as suas naturais limitações e oontradiçócs internas, cria condições para a abcnura de uma perspectiva - ainda abstrata nos anos de 1930 - rumo à nova sociedade pela qual será superado, o sociaHsmo. Assim, não obstante todas as suas ümitaçócs, o capitalismo não deixou de traz.c.r elementos novos para o quadro de nossa realidade. Esses elementos constituíam o novo que brotava no seio da velha sociedade scmicolonia.l; contra a estagnação e a inércia dominantes, surgem aqui e aH determinados indivíduos inconfomados, possuídos por uma força interior que os leva a romper com uma cxistencia mesquinha e a buscar um sentido autentico, ainda que individualista, para as suas vidas. Essa "inquietação", esse "inconformismo" - que o jovem Lukács, usando a terminologia de Goethe, chama de "dcmonismo" - , tem uma de suas fontes principais, aqui como na Europa, no desenvolvimento do capitalismo. O fato de que Graciliano tenha percebido esse elemento novo - e que o tenha configurado artisticamente cm suas devidas proporções, sem c:x.agcros românticos ou reduções natural iscas - é mais uma prova do seu profundo realismo. A contradição entre um mundo aHcnado e indivíduos inconformados que lutam contra a aücnação, aliás. é o conteúdo essencial do gênero romanesco. Quebrando as barreiras e as estratificações fossilizadas da sociedade feudal, superando a mediocridade da vida rural, conoibuindo para a unificação do mundo cm tomo de um mercado único, promovendo o domínio e a conquista da natureza, o capitalismo representou um formidável estímulo às potencialidades criadoras do homem. Por outro lado, estabelecendo uma sociedade rigidamente individualista, dilacerada pela luta de todos contra todos pelo lucro e pela riqueza pessoal, esta formação social fracionou a comunidade humana, destruiu asolidariedade e a fraternidade, condenando os homens a urna vida solitária. Qualquer uansccndencia - seja religiosa, seja histórico-
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ÚJll OS
Nu.SON Covi1NHo
geral - é destruída; os valores universais dcsaparec.erarn• no céu vazio do homem burgu~. O sentido da vida - outrora dado ou pela participação na comunidade humana (como na Antiguidade clwica) ou pela crença em dogma,, religiosos (como na Idade Média) - é agora uma busca individual e solitária, voltada para valores mediatos e problemáticos. O jovem Lukács definiu a estrutura deste novo gênero épico, surgido com o advento da burguesia e do capitalismo, como uma pesquisa de valores autênticos cm um mundo convencional e vazio, por parte de heróis problcmáticosu; ou, numa Unguagem histórico-concreta, como uma luta pela realização individual num mundo burguês, no qual inexiste a comunidade humana e o homem está condenado à alienação e à solidão. Lukács nos informa ainda que esta busca de valores é sempre votada ao fracasso enquanto inexistir a comunidade humana autêntica (ou seja, o socialismo ou a luta concreta pela sua criação), já que a realização humana individual só é poss1vcl cm uma sociedade comunitária na qual, como diriam Marx e Engels, "o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos"'" (está em jogo, naturalmente, a verdadeira realização individual - que implica o homem total, harmonicamente desenvolvido, não alienado - , e não a falsa "realUaçáon burguesa, que consiste numa autoflagelação e autolimitação consentidas). Goldmann observou argutamentc a existência de uma homologia entre a forma romanesca, descrita pelo jovem Lukács, e a estrutura da sociedade capitalista, bem como entre a evolução desta forma e a evolução do capitalismo"'. O próprio Lukács, cm sua fusc marxista, fala da "estreita conexão entre a forma romanesca e a estrutura específica da sociedade capitalista", com a vantagem - em relação a Goldmann - de • .,
'°
G. Lukáa. A tttrl4 "'1 ronwn«, SSo P2.ulo, Duas Cidades/ Ec!Jcora 34. 2000, cm l"lfd· cular p. 23-96. K Mai:x c F. ~"'1/ltni"'1 ~ m: Virias Aurores, OMiotifoto~ 150~ Rio de J~ Pru1o. C.Oninplll&~ ~Abramo. 1998, p. 29. L. Goldmann, ~ llM H>d4f4t'~ ,/,, tom41t, Pvis, G~Hmard. 1964.• p. 16-37.
( UlTUllA f SOCIEOA.Of NO BAASll
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acrescentar que esta conexão "de modo algum significa que o romance só possa refletir esta realidade tal como ela se aprcsenca direta e empiricamente"''. Ora. como veremos, é precisamente c.5ta a forma estrutural dos romances de Graciliano Ramos. Representando uma realidade fragmentada {a nossa sociedade semicolonial, penetrada por dementas capitalistas). que desconhece um "grande mundo,, comunitário, Graciliano representa também as lutas individuais por descobrir, no interior deste mundo alienado e/ou em oposição a ele, um sentido para a vida. Através da estrutura romanesca clássica, ele representa a realidade profunda - e não apenas as aparências empíricas - da sociedade brasileira, na qual a lenta evolução do capitalismo, em alguns casos, entrava em contradição com o nosso ancini regime, em ourros contribuía para solidificá-lo, e, finalmente, já começava a apresentar o seu caráter limitador e a determinar uma abertura para o sistema social que o superará. Essa evolução determinava uma nova tomada de posição por parte das classes sociais brasileiras, fazendo surgir, em algumas dcbs, o "inconformismo" e a " inqui~çion que tornam possívd o aparecimento do "herói problemático", que não mais aceita passivamente a estagnação e o marasmo da sociedade anterior, do "mundo convencional e vazio". A dife.r ente natureza dessa reação contra a alienação, dessa busca de valores autênticos, bem como o seu resultado, decorrem da diferente classe social a qual se vincula o "herói problemático". Nessa fusão de indivíduo e classe, reside um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus personagens são sempre tipos autênticos p recisamente na medida cm que expressam em suas ações o máximo de possibilidades conti~ das nas classes sociais a que pertencem. A obra de Graciliano, cm sua totalidade, apresenta-nos um painel desses diferentes "heróis problemáticos", ou seja, uma representação literária das diversas atitudes típicas das classes sociais brasileiras (com exceção do proletariado) cm face do "mundo alienado" .
"
G. Lukác:s, ú
l'Vmlln h~w.
Paris, Plon, l 96S, p. 156.
148 CMlos NWOH COll11NHO
CUlTllllA
2 úut/s, o primeiro romanc.c de Graciliano, foi escrito entre 1925 e 1928. Essa época representa, na história do romanc.c brasileiro, um período de domínio quase inconcraswio do na~ ruralismo, que encontrara no "regionalismo" modernista, isto é, na reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos, um forte inc.cntivo. Embora con tenha elementos que anunciam o vigoroso realismo da década de 1930, úutls é - cm sua estrutura, cm seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula - um romanc.c naturalista. O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca clássica, a supressão de uma das duas áramali peno1UU que compõem o grande romanc.c realista: o hmJi problnNJtico. As obras estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do muNÚJ convmdonai e wu:ú>, isto é, à reprodução supcrficiaJ de ambientes e de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira manifestação literária da decadência burguesa, isto é, de uma época na qual a rígida divisão capitalista do trabalho, alienando os homens oom relação à história, dificulca-lhcs uma visão de conjunto da realidade global. O naturalismo limira-se a reproduzir a su perfkic da realidade, jamais cransccndcndo (pelo menos de uma maneira o~ica) o fenômeno empírico imediato. Ora, a realidade imediata de uma sociedade capitalista é a total muólação do indivíduo, sua transformação cm "coisa", cm joguete de um determinismo fatalista; a maioria dos homens adapta-se às oondiçõcs de alienação vigentes, ac.citando passivamente a sua redução a meras peças de uma engrenagem que eles não compreendem e que, por isso, os dctc.r mina do exterior. Assim, descrever apenas a realidade cotidiana, como pretendem os naruraliscas, significa muólar a realidade global, desconhecendo as forças que reagem - mesmo que de uma forma igualmente alienada - contra a alienação capitalls~ Em ourras palavras, significa dcsc:onhcc:cr aquele "incorformismo", aquela inquietação "demoníaca", aquela manifestação evidente de uma práxis humana criadora, que não aceita passivamente a alienação e que representa, oonscqueotcmentc, um ourro momen-
r
SOCllDADf NO BllASIL
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to da totalidade do real. S6 uma literatura que represente esses dois momentos - a saber, o mundo alienado e os homens que lutam con tra a alienação, podendo esta luta ser trágjca, c:ômica, mgicômica ou vitoriosa - tem condições de reproduzir a diaUtica essencial da ooncradit6ria realidade moderna. Essa negação da práxis humana criadora leva o rui.ruralismo a considerar os homen s como mecanicamente determinados pelas circunsdncias exteriores, notadamente pelo "ambiente", entendido como um fetiche independente da ~o humana. É o que ocorre a Graciliano, cm Úldés. O universo desse romana: não ultrapassa a representação da supcnkie da realidade; trata-se de uma crônica, do relato quase jomalistico de uma cidade do interior nordestino. Um t~nue enredo, disposto cm torno de um fait diwrs, não consegue organizar e unificar o unive.r so do romanc.c, criando-lhe uma estrutura que fosse an~oga à estrutura global do real. Naturalmente, parc:clas da realidade, isoladas d o conjunto, estão rcproduzídas cm Cuth; não, porém, o movimento da totalidade do real, ún ko conteúdo que pode permitir ao escritor a
construção de uma forma
~pica
verdadeiramence artística. Insis-
timos: a estrutura romanesca - com seus dois momentos: o herói problcnú.tioo e o mundo alienado - é a única capaz de reproduzír, do ponto de vista da grande ane narrativa moderna (literária ou cincmatogr.ffica). a ~ncia da realidade contemporânea.. Abandonando um daqueles momentos. canto o conteúdo quando a fonna se ftagmcncam, dando origem a uma obra problemática ou inteiramente fracassada. Os personagens de úutls são todos determinados mecanicamente pelo ambiente cm que vivem, inteiramente adaptados ao "pequeno mundo" filisteu que é sua realidade imediata. Preocupado apenas cm f.azc.r o inventário de um ambiente provinciano, Graciliano passa a nos apresentar uma oolcçáo de figuras inexpressivas, todas elas passivas e aoomodadas cm fac.e da inércia do meio cm que vivem . Joáo Valério. que narra a ação, é o personagem ccnt:ra.I. Esta ccnt:ra.liuçáo não decorre, contudo, como nos ~ manccs rcaliscas, de uma verdadeira h ic.r arquizaçáo do real. isto
CU\T\lllA f
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é, de uma escolha consciente do autor entre os iodivfduoS de que trat.a no sentido de contrapô-los uns aos outros, como representantes de diferentes atitudes típicas cm fuce da realidade. O tipo central rcalistt, por isso,~ sempre exrtpeú>naÍ! representa, conm. os demais personagens do romance - muitos dos quais, como tipos cotidianos, encarnam o mundo convencional -, um outro aspecto d o real, uma possibilidade de ação contra a alienação implícita no próprio movimento da sociedade. Essa hierarquia, condição básica da composição do romance realista, tem como fundamento o movimento do herói problemático, que vai da asccnsáo (decorrente da etpmznça cm triunfar na luta contta o mundo) ao desfecho desta luta {pela derrota, ou - cm casos muito raros - pela relativa vitória). Esse movimento torna possível, por um lado, o desenvolvimento épico da ação e, por outro lado, o "fechamento" da forma, a ncccs.sária resolução dos problemas contidos no desenvolvimento da ação. Inexistindo cm Canh o "movimento" do herói, o romance resulta cm mero acúmulo inorgin.ico de &tos superficiais, sem ligações Intimas entre si. Na busca de uma forma que "fcclic" o universo do romance, o naturalismo é obrigado a praticar aquilo que Hegel chamou de m4 infinituár: a totalidade poética é confundida com a catalogação de múltiplos eventos singulares, buscada numa txtmsão impossível e não na concenttaçáo intmsiva das tend~cias essenciais. Por isso, não obstante o conflito central que existe cm Canh, o narrador é obrigado - cm sua tentativa de abarcar a totalidade, requisito da narração épica - a inserir no romance uma infinidade de eventos sem nenhuma ligação com a ação central, destinados somente a reproduzir o "ambiente" (a descrição do banquete na casa de Vitorino, as rclaçócs entre Mana Varejão e o pai, o noivado do promotor etc.). Além dos eventos "in úteis", lú também os personagens "inúteis", que nenhuma importância apresentam para o d cscnvolvimcnt0 e o desfecho da ação central: nesse sentido, aliás, são inúteis quase codos os personagens de Outh, mesmo os mais bem caracccrizados (como Evaristo Barroca, por exemplo).
SOOfOAOf HO 81Wll
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Nem mesmo no apagado e ~uc conjli1'> cmtrrd (o amor de Valério pela mulher de seu patrão) é expressa uma ten~cia profunda da realidade, ou tampouco revelada, attavés dele, uma atit:udc que st opusesse à cotidianidade superficial e imediata. Por isso, Graciliano não consegue atingir nenhuma generalização a.rósdca verdadeira e orginica; a ação se restringe ao mundo convencional, aos fails áWm da vida cotidiana. A atitude inesperada de Adriáo Tavares, suicidando-se ao saber que é •ttaído", é rcalmcncc uma quebra do cotidiano, um f.uo e:xccpcionaJ; contudo, tal como vem dcsaita no romance. essa atitude é inexplicável: a partir da vida do personagem, nada poderia justificar tal oomportamcnto. Adernais, a sua ocorrência não lança nenhuma luz sobre os outros problemas aflorados no romance; ao que me parece, o f.tto foi inserido com a única fi.naJidadc de, fucndo Luísa viúva, oolocar João Valério diante de uma nova realidade, que comprovasse mais uma vez a sua mesquinhez e a sua fraqueza humana (as quais, no romance. são apresentadas como decorrendo apenas das limitaçôcs do "ambiente"). Apresentando uma realidade estática, que não se move cm
nenhuma direção, ~apresenta também personagens csclricos, sem nenhuma modificação essencial do pri.odpio ao fim do romance; como principal oonscqu&lcia dessa cstaticidadc, tais personagens não t&n uma ~csc soci.a1 concreta, não tem nem p~-história nem história. A ação e as situações não são mais do que pretextos para que características apriorísticas se manifestem exteriormente. Ao contrário do romance rcalisca, que é sempre simultaneamente uma biognzfia do herói problemático e uma crônica social (oomo será o caso de Si'1 &rnmrJo e de AngústUt). Caals é apenas uma crbnica. Além disso, ou por isso mesmo, wth se caraacriza pelo predomínio quase absoluto do que Lukács chamou de "método descritivo"" . Desconhecendo a unidade d o real, o método descritivo reproduz uma série de quadros isolados, servindo a ação (que é o objeto da épica) como mero pretexto para ligar entre si "
C. Lulda. "Namr ou d~·. in: /J., Mllnfi.nn. , u.,V J. 11_."'"'· São Paulo. Üprudo Popular. 2010, p. 149-185.
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esses fragmentos autônomos, que podem ser psicológicos,'SOciológic.os etc. Já o "método narrativo", que predomina nos romances rcalista.s, reduz rudo à ação, englobando nela todos os momentos
- exteriores e interiores - do personigcm e do mundo dos objetos (que se pense na relação orgânica que o narrador cstabclece, cm
São &rnarr/Q, entre o desenvolvimento psicol6gic.o d.a ambição de Paulo Honório e a construção d.a fazenda cm todos os seus aspectos objetivos). Tendo como finalidade não a descrição de tipos vivos e concretos., mas a reprodução de "ambientes", úuth f2z uso exagerado d.as t&:nicas descritivas, aptas a reproduz.ir coisas {ou homens-coisas), mas não concretas ações humanas. Lukács, no mesmo ensaio, rambém nos f.Ja sobre a estreita ligação entre o método descritivo naruralista e as tcndâtcias ao formalismo abstrato, alegórico. Após ter reduzido a realidade à sua pura imcdiaticidadc fenomênica, o naturalismo enfrenta a necessidade de generalizar os eventos descritos, os quais, como vimos. não possuem íntimas ligações dialéticas entre si; em vez de uma generalização concreta, obtida pela relação dos eventos e de uma ação ápic.a, que seja a síntese partiodar do singular e do universal, o rururalismo é obrigado a recorrer a alegorias, isto é, a rransformar o evento singular fccichizado cm simples portador de uma ideia abstrata, existente apenas na consciência do autor. O Graciliano naturalista não fugiu à regra: obrigado a generalizar a miséria moraJ do "pequeno mundo" dos personagens, a brutalidade e a selvageria de Valério, ele recorre à imagem dos cactés, estabelecendo um paralelo não orgânico cntrc a realidade presente e a vida dos índios selvagens. Aquele "romance histórico" sobre os cactés que João Valério inutilmente tentava escrever - e cuja cxistâlcia no romance não apresentava nenhuma ligação com a caracterização do personagem ou com a ação central, sendo um mero evento solto e isolado - revela a sua "necessidade": tratava-se de uma alegoria, de um recurso não orgânico de que o autor lança mão para tentar uma generalização e provar uma use. Comparado com a gcncraHdade dos nossos romances naturalistas, Cutés revela indubitavelmente um saldo positivo. Inexiste
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nele, o que é um dos seus maiores méritos, aquela tcndencia a superar a mediocridade naruraJista através da descrição de quadros patológicos e exóticos. O romance apresenta uma contenção estilística positiva, uma r~çio saluw contra a '"enfuc• romântica dos nossos rururalisw. Por outro lado, a profunda ironia do autor revela uma atitude cr(tica cm làcc d.a realidade, uma insatis&ç:áo cm face da estagnação social. Mas esta insatislà.çáo é apenas do autor, já que não se encarna concrcramcntc cm nc.n hum personagem: Graciüano ainda não percebera o novo que broava d.a velha ~ !idade brasileira, não conseguindo transcender, por isso, a simples descrição de um "pequeno mundo• estático e morto. O próprio Graciliano, posteriormente, foi um dos que mais acentuaram as fraquezas do seu primeiro romance. Conrudo, mais importante do que isso é o fato de ter de realizado uma autocrítica também prática, e de nos ter d.ado, após úuth, três d.as maiores obrasprimas do realismo crítico brasileiro.
3 Com São /JernmrJq, publicado cm 1934, opera-se uma com pica reviravolta ru obra de Graciliano: superando a visão ideológica e artística do seu primeiro romance, de cria uma d.as obras mais autenticamente realistas d.a literatura brasileira. Penetrando nas dcrerrnilUÇÕCS essenciais de nossa realidade, Graciliano reencontra a estrutura romanesca clássica e a visão humanista que haveria de ser o fundamento de sua práxis artística ulterior. Ao lado das razões biográficas que tornaram possível esse salto, acreditamos que foram as próprias transformações ocorridas na realidade brasileira a sua causa fundamental . Entre Caais e São Jkrnarr/Q, situa-se a Revolução de 1930: apesar de suas notórias limitações, de seu caráter de transformação "pelo alto", ela permitiu perceber com mais precisão as forças sociais cm choque na realidade brasileira, rc:vdando o quanto era aparcnrc e superficial a solidez d.aquela sociedade estagnada e mesquinha e indicando as tendências renovadoras latentes e encobertas. Em estreita ligação com esses movimentos da renovação, Graciliano passa a ter uma ação efetiva
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na vida social, não só exercendo cargos públicos, como somando posição prática cm face dos problemas do seu ccmpo. Essa passagem da observafáo à participação, ao que nos parece, é o aspecto pessoal - socialmcnce determinado - do processo que conduz Graciliano do naturalismo pessimista ao realismo crítico e humanista. Sempre que o escritor se coloca em face de sua sociedade como um simples observador, ainda que irônico, perde a possibilidade de utilizar os critérios seletivos que permitam superar o contingente e o inessencial, no sentido de uma penetração profunda no real e da dcscobcna das forças essenciais que o determinam; o verdadeiro realismo cede lugar às vulgares descrições naturalistas ou às "profundas" pseudoaná.Lises psicológicas". Só a defesa dos valores humanistas - a luta contra as forças que mutilam o homem, destruindo sua integridade pode permitir ao escritor a criação de uma cst.r utura romanesca orgânica e viva (não impona se ele está ou não consciente de que defende tais valores). Tal como na arte em geral, também no romance o fundamento da universalidade anística é a defesa da humanitas contra a alienação. Essa defesa é o núcleo de Sáo &rnarrlo. À transformação do conteúdo corresponde, em Graciliano - como em todo verdadeiro artista-, uma transformação formal: a composição frouxa e inorgânka de Czais cede lugar a uma intensa concentração d.ramáticonovclística, a uma escruru.ra "fechada" e análoga à estrutura global do real. Em vez da descrição exrensiva de fragmentos do real (como cm Caetls), São &rnarrlo apresenta - como seu núcleo central - o conflito que opõe, por um lado, as forças que reduzem o homem a uma vida mesquinha e miserável no interior da alienação do "pequeno mundo" individual e, por outro, as que impulsionam o homem a descobrir um sentido para a vida mediante wna "abertura" para a comunidade e a fraternidade e da consequente superação da solidão. Em suma. trata-se do conflito entre as forças da alienação "
Sobre o vínçulq ~!J'( ·~· e "dgçrição·, por l!!1l 12®, e erurc "p;m_icipação" e "narraçio", por ouuo, cf. G. LWcács, "Nun.r ou clcsc:r:cwr ?", d1,
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e do humanismo, encarnadas nas classes sociais brasileiras. Essa captação concentrada d.o movimento ela realidade deve se estruturar em tomo de tipos excepcionais, superiores à m6dia cotidiana, que encarnem em si o máximo de possibilidades concretas contidas ~m cada uma daquelas forças sociais em contradição. É o que ocorre em Sáo Bernardo: Paulo Honório e Madalena são verdadeiros súnbolos de suas classes precisamente na medida em que expressam, em suas ações decisivas, as atitudes típicas mais profundas que das comportam. Não é o mero "ambiente" externo, desligado da ação concreta dos homens, que determina o universo e a problemática humana desse romance; é justamente enquanto reagem ao "ambiente" que os tipos criados se definem e modelam a sua personalidade. O bacltgrouná de Sáo &rnardo é wn ambiente humano: a história concreta em sua evolução contraditória, a oposição de homens contra homens, de classes e.onera classes (encarnadas concretamente em indivíduos singulares), e não a adaptação de homens-coisas a wn determinismo mcclnico e exterior. É na luta contra o seu primitivo status quo, a miséria e a baixa condição social, que Paulo Honório começa a definir sua personalidade. Ele não aceita passivamente a realidade dada: sua ambição poderosa, cm que estão evidentes os traços da penettaçáo capitalista em nossa sociedade, leva-o a buscar na riqueza e no domínio - em suma, na ascensão social - o sentido para a sua vida. Gracüiano capeou aqui um dos traços essenciais do capitalismo nascente: o crescimento da mobilidade social, o rompimento com as barreiras coaguladas do pré-capitalismo. Essa luta pela ascensão social, naruraJmencc, é solitária e individualista; ela define os valores que regem a atividade de Paulo Honório, ou seja, a propriedade sobre as coisas e sobre os homens. Ora, quando inexiste o niJs, a fraternidade e a solidariedade, a relação entre os indivíduos como Hegel brilhantemente observou - não pode deixar de ser a relação entre o servo e o senhor". Paulo Honório reduz tudo ao
" ·o individual perante o indlvid!!M IÓ g
CONm'il mediante o sacriftào do ouuo" (Hegel,
Ertltíu. Usboa. Guimuic5. 1959. v. !, p. 97).
156 C-.os Nu.soH CovnNHO
seu interesse egoísta: os homens sáo apenas instrumcntQS de sua ambição, meios que ele utiliza para a obtenção do próprio fim, ou seja, a rcaliviç:ío individual a que se propõe. A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira pane de São Bernardo. Note-se que Graciliano, ao contrário dos naturalistas, não nos apresenta um burguês acabado, estático e definido de urna vez por todas: de narra a evoluf'Ú' psicológica de Paulo Honório, o dermvolvimmro de sua violenta e apaixonada ambição, cm estreita ligação com a "totalidade dos objetos" que torna possível a realização de seus desejos. Essa dcscnfrcad.a ambição capitalista é o conteúdo do "dcmonismo" d e Paulo Honório. Sua necessária solidio determina a unilatcralização de sua personalidade: de aliena-se à fu.coda, é possuído por sua própria paixão. A construção de um burguês: essa construção é, simultaneamente, a criação de um novo "pequeno mundo" de paredes tão espessas quanto o anterior, que a inquietação de Paulo Honório superara. Nesse novo "pequeno mundo", contudo, ele julga por aJgum tempo estar inteiramente realizado. Trata-se, porém, de uma tr:igica ilusão. Levado ainda por uma nnalidade egoísta, úpica de um proprietário, Paulo Honório pretende se casar: é preciso ter um filho que seja o herdeiro das riqucus que acumulou. Não é o amor que o move, pois os egoístas não conhecem o amor; de busca a mulher como quem busca um objeto, uma propriedade. Este f.uo corriqueiro, porém, é transformado por Graciliano num momento rigorosamente necessário no desenvolvimento da ação romanesca: através dele, revela-se toda a limitação dos valores egoístas construídos por Paulo Honório. Madalena, a esposa que escolhe, é o seu oposto radical: para ela, uma vida verdadeiramente humana se confunde com a superação do egoísmo na realização da fraternidade autêntica. O sentido de sua vida é por ela buscado no rompimento com o "pequeno mundo", na abertura para uma autêntica comunidade humana; seu profundo humanismo chega mesmo a implicar, ainda que abstratamente, a aceitação do socialismo. Deformado e mutilado pelo seu egoísmo, Paulo Honório não compreende e não se intcgn
CuLTullA E SOCJEOAOE NO
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com Madalena. Desenvolve um ciúme doentio - que é próprio dos que veem a pessoa amada como um objeto, como uma posse -, impedindo assim Madalena de levar uma vida autêntica, conforme as suas convicções. Personagem trágica, dilacerada entre um mundo vazio e alienado e um ideal (ainda) utópico de solidariedade, Madalena recusa o compromisso com a inautenticidade e se suicida. Esse ato repercute, na vida de PauJo Honório, através de uma dolorosa tomada de consciência: sua soUdio ainda mais se acentua (inclusive com o abandono da fucnda por parte de outros personagens). e ele percebe a inutilidade de seus esforços, centrados na busca de uma realização humana apoiada na pura ambição egoísta. Seu "pequeno mundo" revela-se um cí..rccrc. uma "danação". O momenro trágico encerra o romance: nem Paulo Honório nem Madalena conseguem se realizar humanamente. Esse desfecho trágico, embora formalmente idêntico para ambos, possui uma narurc:zasociaJ e humana inteiramente antagônica. TaJ diversidade decorre da diferente atitude de ambos em face da reaJidade, o que decorre por sua vez da diferente classe sociaJ a que penencem. São /krnartÍIJ é um romance de "ilusões perdidas": par um lado, da ilusão de que uma vida solitária e o pequeno mundo do proprietário possam proporcionar uma realização humana digna e autêntica; por outro, da ilusão cm conciliar um ideal de solidariedade humana com a existência solitária no interior de um mundo vazio e prosaico. Dessa forma, Graciliano - mesmo reconhcc.cndo e analisando os aspectos positivos d o capitalismo - põe a nu seu caráter contraditório e autolimitador, sua incapacidade de destruir efetivamente, e não apenas aparentemente, o cárcere de solidio. Contudo, por outro lado, não podem ainda deixar de ser abstracas as perspectivas que apontam para um mundo novo. Na ausência de uma classe social verdadeiramente revolucionária, permanecem solitários e impotentes os indivíduos que se opõem ao capitalismo: o socialismo aparece ainda como uma pura aspiração subjetiva, sem encontrar na realidade as possibilidades concretas de sua execução. O humanismo abstrato de Madalena, úpic.o de setores progressistas de nossa classe média urbana, apesar de apon-
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tar
para um fururo mais humano, revela-se igwlmente.-incapaz
de quebrar as paredes do pequeno mundo da prosa cinzenta e alienada da sociedade brasileira da época. O caráter cxc;cpcional de Paulo Honório, entre outras coisas, expressa-se na complexa integração dos valores pré-<:apitalisw e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade". Movido por uma sede de lucro e de domínio que é própria do capitalista, Paulo Honório é - no essencial - um burgu~ típico; mas pcrmancc.em cm sua mentalidade ccnos aspectos arcaicos, como, por exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade de ambientação na cidade. Ora, Umicado pela estreiteza do meio rural brasileiro, ainda essencialmente dominado por relações précapitalistas, d e escl impedido de dirigir a SU2 ambição "demoníaca• para horizontes mais amplos, tão amplos quanto pudesse permitir o capitalismo urbano; por isso, mais ainda se acentuam as paredes de seu pequeno mundo e de sua solidão. Mas, precisamente por causa desca pe.rmanancia de valores arcaicos, Paulo Honório é o representante úpico da burguesia brasileira, de uma burguesia que se ligou organicamente à mesquinhez da sociedade pré-capitalista e que renunciou, talvez definitivamente, aos prindpios democráticos e humanistas do seu perfodo de asccn.sáo revolucionária nos países hoje desenvolvidos. Na estrutura romanesca de São &marrúJ, Paulo Honório representa - se visto do ângulo de Madalena - o "mundo convencional e vaz.io", aquela espessa realidade que condena ao fracasso as melhores aspirações do "herói problemático". Ao mesmo tempo, porém, ele também é um "herói problemático", precisamente na medida em que os elementos capitalistas que formam a sua personalidade condicionam a busca de um sentido novo para a vida, fundado em sua ambição de elevação social, busca que o leva a se chocar-se com o mundo estagnado e a adotar uma atitude diversa da m&iia cotidiana dos demais fazendeiros. "
Nthon WancckSocW, rd"erlndo·fu ~uloHonório, obtc:rvaarguwocnrequctcu "dúme uadia o KnWncnlo poacs5ivo de uma 6gura cm que ac YCri&a a inBuàoàa de uma &se de muc:bnç2 de rebçõa aplalism rubmruíndo vdhas rcbç6cs de JCllili1crvidio• (N, W. SocW. OjitW lk otri#r. Rio de Janeiro, ~ Bruilón. 1965. p. 20).
CULTUIV. f SOCl(l)AI)( NO Biv.siL
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Essa originalidade estrutural do romance de Graciliano - a saber, que um mesmo personagem seja simultaneamente demento do "i;nundo convencional" e "herói problemático" - tem suas ra1z.es na pr6pria realidade brasileira, em sua especificidade com relação à europeia. Decorre, a meu ver, do duplo carácer da nossa burguesia e de nosso capitalismo nascente: ao mesmo tempo em que representa um papel progressista, criando condições para o surgimento do "inconformismo" cm face da cstagnação anterior, o capitalismo brasileiro - por causa de sua debilidade e de sua incapacidade de organizar a inteira sociedade a partir de um pomo de vista globalmente hcgcm6nico e inovador - é obrigado a conciliar com o velho e o caduco, com as forças que mancam o nosso ar.raso secular, e a se opor, conscqucnternemc, às novas forças verdadeiramente renovadoras. Em suma, o capitalismo brasileiro, desde o seu surgimento, já apresenta manifestações de crise estrutural, convivendo com a gestação de perspectivas que o transcendem. O herói do romance europeu da época de consolidação da burguesia podia se basear, em sua luta concra o filisteísmo e a vacuidade do mundo burguâ triunfante, nos valores do humanismo individualista da burguesia revolucionária. O Brasil, como vimos, nio conhcc.eu sequer um esboço desse humanismo; mesmo os mais consequentes entre os nossos burgueses, os que encarnam a mais alta possibilidade de ambição e de progresso contida cm sua classe, são obrigados a conciliar com o cárcere do "pequeno mundo", a limitar os seus esforços ao restrito campo permitido pelo desenvolvimento vacilante e conciliador de sua classe (referimo-nos, naturalmente, aos indivíduos que, embora excepcionais, se mantêm no interior das possibilidades burguesas, sem romper com essa dasse e buscar horizontes mais amplos fora dela). Assim, a força que se opõe e derroca as suas ambições não é apenas, como no romance europeu do principio do século 19, a realidade circundante: essa força é sua própria limitação interior, a incapacidade - que é a de sua classe-de superar o que neles existe de "mundo convencional e vazio", ou seja, o "pequeno mundo" da solidão e do egoísmo, a conciliação interior com o atraso social.
160 CAALOS NEUOH CoonNHO
CuLTUllA E SOCIEOAD( NO BAAStl
Aliás, o próprio Paulo Honório - que é o narrador ficócio d e São Bernardo - adquire, no final do romance, uma rigorosa consciência de sua condição e de sua problemática (consciência que é a determinante direta daquilo que o jovem Lukács de: "conversá.o", isto é, da descoberta da inutilidade de seus esforços anteriores). Assim, ele nos diz: Coloquei-me acinu da minha classe, ccio que me devcl bastante (...).Julgo
mama
que me danoncei numa ema.d a(...). Não consigo modiSc:ar· me, é o que mais me aflige (...). Os sentimentos e o.s propósito.s (de Madalena) esbarraram com a minlu brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tio ruins".
Ou, cm outras palavras, o t:ributo pago à "'elevação" acim.a da própria classe - à inquietação "demoníaca" - é a condenação a vivc.r na solidão e no egoísmo. O destino crágico de Paulo Honório é o destino d pico da burguesia brasileira, incapaz - pelas próprias limit:açócs sociais e humanas - de superar o ..pequeno mundo" do interesse privado e de abrir-se para uma vida comunitária e autenticamente humana. Madalena, ao contrário, apresenta uma problemática humana inteiramente diversa. Ela se opõe radicalmente ao mundo alienado, buscando um sentido para a vida, wna verdadeira realização humana, na &aremidade e na solidariedade com os seus semelhantes. E.scc é, naruralmente, um tipo novo na rustória da evolução da cscrurura romanesca: o do "herói problemático" individual que pesquisa um valor autêntico comunitário e transcendente. Os heróis individualistas do grande realismo franc& do século passado sáo problemáticos na medida cm que, ignorando os valores cransindividuais, centram o sentido de suas vidas - e de sua oposição ao mundo prosaico e alienado - na realiz.ação individual, na ambição de progresso pessoal. Ora, toda realização individual autêntica (isto é, não filisteia) no mundo burgu~. onde inexiste a comunidade humana e onde a alienação se tornou a realidade imediata, é impossível, estando a luta por ela necessariamente
'°
Gr:ociliano !Wnos, Siio &m.rú, São P2uk>, Martins, 1964, p. 165-167.
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condenada ao fracasso. Com a evolução da sociedade burguesa na Europa Ocidental, com a estabilização sempre maior do capitalis· mo, esse individualismo se transforma cada vez mais em egoísmo
rd~e1Lo d ___stcu, pe_ fili
. a grand~ e a autenttça'!.li!!. . ..1-de que am . da
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possuía nos personagens de Balzac e Stcndhal (grandeza e autenticidade que permitiam a esses escritores a criação de autênticos "heróis problemáticos") e dissolvendo-se nos conB.itos mesquinhos e limitados de que iria se alimentar o naturalismo. Só no realismo russo, ootadamente em Tolstoi e Dostoievski, vemos surgir um novo tipo de "herói problemático" (ao lado de uma renovação do antigo tipo): o indivíduo que busca realizar-se através da integração na comunidade hum.a.na, superando o individualismo, mas que - graças à inexistência objetiva desta comunidade - está também condenado ao fracasso (que se pense na trágica derrota do Príncipe Mishkin e na impotência de Aliocha Karamazov e de Nekludhov)". Essa modificação da estrutura romanesca corresponde ao período de crise radical dos valores burgueses, notadamentc os do humanismo iodividualist:a. Ao que nos parece. Madalena é um "hetói problemático" do segundo tipo. Sua impotência trágica decorre, igualmente, de sua solidão: mas d e uma solidão socialmente diversa daquela de Paulo Honório. Ela é solitária porque ainda não existe, como fato objetivo e histórico, a comunidade humana aurêntica; ou, cm outras palavras, sua solidão decorre da inexistência, na sociedade brasileira de ent.áo, das classes sociais que tornariam possível, se não o estabelecimento, pelo menos a possibilidade concreta d.a criação efetiva de uma nova sociedade, de um "grande mundo" humanista e democrático. Neste sentido, ela é o oposto de Julien Sorel, o protagonista de O ~lho e o ~: a solidão de Julien, seu total distanciamento do mundo e dos demais homens, resulta da 6ddidade que manteve ao jacobismo tardio, encarnado na figura de Na.poleão, que a evolução histórica já havi.a superado e Examinei nuis dca.lhadamcmc esta problemática cm meu ensaio "Arualidack de {}o$. roicvsld", incluldo cm C. N. C.Outinho, Litm11M111 t lnutumbmo, Rio de Janeiro, P:n ~ Tcmt, 1967. p. 191·215.
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destruído. Em Madalena, ao contrário, a solidão decor.11t do seu caráter pioneiro, do fato de ter ela antecipado os valores que ainda permaneciam implícitos na classe social (ou conjunto de classes) a
que da se ligava; sua tragédia t a tragédia do revolucionário - no caso, do revolucionário possiwl - que se antecipa à hist6ria. Por outro lado, ao contrário de Padilha (assim como Jullen Sorel ao contrário de alguns heróis balz.aquianos). ela não aceita o compromjsso com a realidade vigente, a adequação (mesmo que momentânea e apenas tááca) à vacuidade e a imoralidade do "mundo convencional". Uma autenticidade apenas parcial, pela metade, é para da - como para os grandes heróis da tragédia. tal como esta foi escudada pelo jovem Lukács e por Goldmann" - sinônimo d e uma total inautenticidade. O universo dos seus valores é regido pela categoria do "tudo ou nada"; esse radicalismo impotente é a expressão, ao que nos parece, de uma das atitudes típicas da classe média, de indivíduos solitários que, desligados da história conacta. não compreendem as suas mediações dialéticas, aquilo que Lenin chamou de "astúcia do real". É bastante problemática, a partir de uma tal caracterização, a criação de um personagem romanesco realista, não romântico. A profundidade de Graciliano, sua fidelidade simultânea aos prindpios da ane e à realidade que pretende expressar, afasta este problema. Em primeiro lugar, fazendo de Madalena um personagem central, por ceno, mas secundário com relação a Paulo Honório; e, principalmente, cm segundo lugar, apresentando-a inicialmente como portadora de uma ilusão - e, como tal, de uma esperança-, qual seja, a de poder viver autenticamente, sem compromissos, no interior de um mundo inaut~ntico e alienado. Com isso, incluisc a dimensão temporal na caracterização de sua problcmááca, o que não ocorre no caso da problemática do herói tcig.ico; trata-se "
G. Lukács, "M=fisica dclla ~a·, in: /d., L'tmi""' ~ k fomu, Milio, Sugar, 1963, p. 305-347; e: L Goldmann, ú áini cw:hl. Paris, G~ínwd, 1955. p. 71-94. H.i uma diferença. para a qual chamo a acençlo do lcicor, enttt o ha-dí "4 ~ (do Cf.
~19 literário
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c:spcdfico) e o daúno mitw do herói probkmi1ico, ilto t, do h
CuL'l\JRA E SOCIEOAI)( NO Bud!L
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do tempo que vai da etpn'll1Jfll e da ilusão que ela inicialmente alimenta, ao casar com Paulo Honório, à pertiA dessas ilusões, à comprt:msáo da vacuidade de suas esperanças. Graciliano figura .J_ n~l\!.ill, • ..l-de $QQ'al aqw,. como grande (Çjf,Wta, o tn"unfo 1.Y ~ ob"ctl 1-_~ sobre as aspirações e os sonhos meramente subjetivos. Ao tomar conscibicia do caráter ilusório de sua busca de realização humana, Madalena prefere o suiddio à conciliação com a inautenticidade; mas, como em todo grande romance, há também aqui uma evo/u;ão que a conduz, da falsa consciência inicial, à consciência de si como personagem trágica. Madalena, como dissemos acima, é a expressão c:xucma das possibilidades contidas cm um segmento da classe média urbana que tinha como ideologia um humanismo sincero, mas abstrato, e que - por sua própria condição de classe média e pelas condições do atraso brasileiro - permanecia isolada e desconhecia os meios de levar à prática os seus ideais de solidariedade e de fraternidade. Em São Jkrnare/I), nos personagens secundários, vemos ainda encarnadas outras aárudes típicas de nossa classe média: em "seu" Ribeiro, o saudosismo impotente da classe média rural; cm Padilha, o recalque e a frustração como bases para a aceitação, ainda abstrata, do socialismo; em O . Glória, o autossac.rifl'cio pela familia como forma de emprestar um sentido à vida etc. Por não terem interesse direto na determinação da estrutura romanesca de São &nulre/I), deixamos de analisar aqui com mais vagar essas atitudes e esses personagens. Dois conflitos dialeticamente inter-relacionados - o conflito entre Paulo Honório e Madalena e o conflito entre as forças da reação e do progresso tal como se aprescncavam cm nossa realidade - formam o núcleo de São &mardo. O desenvolvimento desigual e duplamente contraditório do nosso capitalismo, determinando uma especificidade nas contradições humanas e sociais, leva GracUiano à criação de uma estrutura romanesca baseante original, cm que - cm orgãnica síntese dialética - coexistem demcntos de dois níveis diversos da evolução da forma romanesca: o "herói problemático" individualista, ápico do romance frands da primeira
-•=-
Cum1u
metade do século 19, e o ..herói problemático" que busca.valores comunitários, ainda que de forma abstrata e solitária, surgido com o realismo russo da segunda metade do mesmo século. Apesar
disso, ou c:xacamcntc por isso, Sú &rn4rdo me parece: ser o mais perfeito, o mais "clissico" dos romances de Gracili.ano: foi nele que, com maior perfeição, o romancista alagoano soube encontrar - para expressar a contraditória realidade brasileira- uma estrutura romanesca orgânica e profundamente realista.
4 Após a "dassicidadc" de São &rnarrkJ. pode parecer estranho, ao leitor superficial, que Graciliano tenha escrito um romance bastante diverso do ponto de vista técnjco, no qual são mais evidentes as afirudades com a chamada "vanguarda". Na realidade, Angústia é um romance tecnicamente "vanguardista": além do uso frequente do monólogo interior, cm sua forma da livre associação de ideias, encontramos nele uma radical fragmentação do tempo, o que o aproxima das mais audaciosas experiências do romance de vanguarda. Contudo, se aprofundarmos nossa análise, superando o nível imediato dos processos técnicos, reencontraremos cm Angústia a estrutura clássica acima descrita, o respeito às leis uruvc.rsais da grande arte épica: cm suma, o profundo realismo que Graciliano, com São IkrnarrkJ, já introduzira na literatura brasileira contemporânea. Como o dissemos acima, nenhuma inovação formal importante, num verdadeiro artista, é pura experimentação: ela decorre da ncccssidadc de expressar um conteúdo novo, de concretizar artisticamente a abordagem de um novo aspecto da realidade. Esse novo conteúdo, cm Angústia. c:x:prcssa-se por uma accnruaçáo dramática das paredes do "pequeno mundo", do cátccrc da solidão e da impotência cm que está encerrado o homem brasileiro. Em Ctutis, há sempre a perspectiva - ainda que tênue e mal esboçada - de que a superação do provincianismo, a ida para uma grande cidade, possa propiciar uma realização humana, uma expansão das potencialidades esmagadas pela limit2ção no
E socieoADE NO BMSll
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meio rural. Tipos cotidianos e médios, nenhum personagem de Ctutés dispõe-se a realizar a c:x:pcriência, abandonando o interior agreste e atta.sado pela vida cm uma metrópole. O humanismo de Madalena e a eclosão de um movimento revolucionário, cm São &rnardo, podem fazer crer que - embora a vida no meio rural esteja ncccssariamcntc condenada ao fracasso e ao estancamento - talvez na cidade, de onde vem Madalena e onde se inicia a "revolução", exista alguma esperança, alguma perspectiva de ab"'11Tll para uma vida mais rica e autêntica. Na realidade, o universo de São &rnaráo náo autoriza tal aença: é evidente que aquela "revolução" mudou muito pouco (por exemplo, permanecem int2CtaS as relações de propriedade rural). e que Madalena, também na cidade, era uma solitária, obrigada a ir para o interior cm busca da estabilidade cconôrruca mCnima. Contudo, São &rnarrkJ náo é o romance das contradições que o capitalismo traz à vida nas cidades, dos problemas especfficos da nossa classe média urbana, de nossos " humilhados e ofendidos". Angústia seria este romance. Situando os problemas num nível mais avançado do desenvolvimento capitalista-embora para isso náo seja necessário um avanço no tempo, mas apenas um deslocamento no espaço sociogcográ.Aco - , esse romance já nos mostra a impossibilidade da própria ascensão social individual, que ainda fora possível no caso de Paulo Honório. Angústút é o relato da história de Luís da Silva, último membro de uma fam.üi~ rural cm decadência, que tenta "vencer na vida" abandonando o campo pela cidade. EJe logo compreende o caráter ilusório dCStll tentativa; nem cm Maceió, nem mesmo no ruo de Janeiro, Luís da Silva consegue se afumar. AD contrário: aí ele conhece a miséria mais c:xm:ma, inclusive a mc.n diclncia. Trata-se de um novo elemento na obra de Graciliano, o da miséria econômica; nem cm Caeth (onde inexiste qualquer ligação entre a situação econômica e o destino dos personagens) nem cm São &rnttrrkJ (já que Paulo Honório ainda pôde superar a sua inicial condição de rruséria, ascendendo na escala social) a rruséria desempenha um papel decisivo na tragédia dos personagens centrais.
Cul TUltA l SOCtfOAOl NO
Não é o caso cm Angústia (como náo o será cm .V'u/as &Cill}; aqui, as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva e sua incapacidade de equilíbrio, estão todas centradas sobre a sua m.iséria, sobre a sua inferioridade coonõmica e social. tu dificuldades econômicas haviam-no levado a prostituir todos aqueles valores que Madalena, por viver desligada da necessidade de sustento ou por ter sido amparada por D. Glória cm sua juventude, pudera conservar: a solidariedade humana, a honra, a dignidade pessoal. Para conseguir um precário equilíbrio econômico, Luís da Silva foi obrigado às mais graves conccssócs e compromissos: a bajular, a se vender como jorrullista e como artista. A se tomar, em suma, um ªbicho", urna ªcoisa", como ele mesmo diz.. Obrigado a um trabalho alienado (ou diretamente a serviço de convicçócs que não eram as suas, enquanto jornalista, ou inteiramente desprovido de sentido criador, como era o trabalho burocrático), Luís da Silva é obrigado a renunciar às suas esperanças anteriores, a destruir o "demonísmo" que o havia feito emigrar para a cidade e buscar a p rópria realização como intelectual. E nesta acomodação aparente com o "pequeno mundo", com a alienação e o filistdsmo, que encontramos Luís da Silva antes de conhecer Marirua - "um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer"." Graciliano, através do seu autoirônico narra.dor fictício, descreve com exatidão a vida mesquinha de seu personagem, dividido entre a repartição onde trabalha mecanicamente e a redação do jornal onde vende, não sem conOicos íntimos, a sua consciência. Um f.uo novo, contudo, surge neste aparente marasmo, quando de já não mais alimenta ilusões: Mari.02.. E sem dúvida um f.uo importante, digno de registro, que tanto em S4'J &rna,Jq como cm Angústia tenha sido a ce.n tativa mais imediata de superar o isolamenco e a solidão, a ligação amorosa individual, a causa imediata da tragédia dos dois personagens centrais. Naturalmente, Graciliano não nos quer dizer que foi "
G. Ram~ .Anptd.ir, SSo Paulo. Manlns. 1961 , p. 18.
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a ligação amorosa em si o agente determinante da tragédia dos personagens; da náo faz mais do que tomar realidade o que já era uma possibilidade implícita cm ambos, a saber, a incapacidade de superar a solidão, de quebrar as paredes do cárcere do cgo{$mo, descobrindo a verdadeira comunidade com os outros homens. Pois nenhum dos dois conhece realmente o amor, a integração com a pessoa amada cm uma verdadeira comunidade espiritual e sensual. Em Paulo Honório, o casamento se confunde com a transmissão da propriedade (e o desejo de amar vem muito mais tarde para modificá-lo); em Luís da Silva, com o puro erotismo. Onde inexiste a comunidade humana e os homens estão atomizados entre si, como na sociedade burguesa, também o amor sc:xu.al se toma cada vez mais problemático. Ele tende, agora, a ser a c:xdusividade dos que o fundamentam em uma comwn identidade de projetos, dos que buscam uma integração da vida privada com a vida pública (evitando que o amor se transforme em uma paixão mórbida e monomaníaa), dos que conseguem superar o egoísmo e o individualismo. Os solitários e os egoístas não conhecem o amor; e Paulo Honório e Luís da Silva, bem como Marina, são solitários e egoístas. Com o aparecimento de Marina, Luís da Silva volta a experimentar uma esperança, superando o marasmo em que se encontrava: durante algum tempo, a ideia de casamento domina seus pensamentos. Reduzido a não poder ambicionar senão pequenas coisas, Luís da Silva aprende que nem mesmo estas lhe são permitidas: Marina é seduzida por Julião Tavares, um rico comercia.ote acidentalmente ligado a Luís; fu.scinada pelos prazeres mundanos e pelo dinheiro que Tavares lhe oferecia, ao conttário de Luís, ela desf.ai. o casamento, não sem ances consumir as parcas economias do "noivo". Toda a carga de fruscração e de agressividade, que Luís da Silva rccaJcara e disfuçara através de uma vida mcsqllinh2 e "acomodada", agora volta à tona: Juliio Tavares lhe aparece, numa contradicória dialética psicológica, como aquilo que no fundo ele ambicionara ser e, ao mesmo tempa, como cudo o que despreza e repugna. Nessa aácude, Graciliano retrata magiscraJmente a psi-
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cologia ápica do pequeno-burgu~: a luta por atingir a condição de grande burgu~. por subir na hierarquia social, e o profundo recalque que decorre da constatação de que é impossívd essa ascensão (salvo em casos cada vez mais raros), o que conduz à revolta e à frustração agressiva. Tal revolta se acent\12 02 luta que Luís empreende por não cair nas esferas mais baixas, por não se proleari2.al' inteiramente.: o seu passado de mendicância e a presença decadente de "seu" Ivo estão em fu:c dele, pecmanentcmente, como possibilidades ameaçadoras. Luís da Silva, após o rompimento do noivado, agarra-se a uma ideia fixa, torna-se um monomaníaco: s6 destruindo o seu rival- e Julião Tavares personifica tudo o que ele não ~ tudo aquilo que o conduziu a uma vida inútil e sem sentido - é possivd recuperar o cquilibrio perdido, afirmar-se como homem autêntico, superar a sua condição de coisa inerte e desprezfvd. O assassinato lhe aparece como a única mane.ira de afirmar uma liberdade sempre desejada e jamais alcançada, a única forma autêntica possível de romper com a alienação: Nas rcdaçllcs. na rcpaniçio. no bonde. cu era um uouu, um infeliz, mumdo. Mas, ali, na estrada deserta, Uuliiio Tavares] voltar-me as costas como a um cachonoscmdcnccs! Não. Dondcvinhaaqudagr.mdcza? Porqucaquclaqurança? Eu era um homem. Ali cu era um homem (...). A obsessão ia dcsapa.rcccr. 11vc um dedumbramcnto. O homenzinho da repartição e do jornal não era cu (...). linham-mc enganado. Em uinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela voncadc dos ouuos. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra. a palmar6rú do mcstrC Antônio Justino, os berros do sargcn10, a grosseria do chefe da repartição, a impcrtinlncia macia do diretor, rudo virou fwiuça. •• Aqui, como cm todos os grandes romances do realismo crítico, manifesta-se o caráter ambíguo, simultaneamente autE.nóco e degradado, do valor pesquisado pelo herói problemático. Em um mundo onde, como diria o jovem Luk.ács, Deus está ausente - ou seja, onde inexistem valores universais, onde não tem lugar a comunidade autêntica -, toda pesquisa de valores é sempre de100
1bUI.. p. t76- tn.
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marcada pela degradação, pelo caráter puramente negativo e incsscncial (o jovem Lukács chega mesmo a dizer que o herói do romance ou é louco, ou criminoso). Essa monl4ca, necessariamente
degradação decorre da w/iJiiq do herói, de sua impotencia, de seu desllgamcnco da vida popular, de seu egoísmo: a luta contra o mundo hostil não é revolucionária, coletiva, mas sim a marúfcstação de uma revolta individual, necessariamente marginal. Contudo, apesar das formas degradadas que assume, essa luta "demoníaca" é uma manifestação do que há de mais humano no homem: sua insatisfação cm &.ex do real alienado, sua busca desesperada da realiuçáo individual autêntica. A ação de luís da Silva - o assassinato de Ju.liáo Tavares - revela, com evidência, a ambiguidade a que nos referimos. Ela contém o que de melhor existe cm Luís: a sua aspiração à liberdade e à autonomia, o seu ódio contra a opressão e a indignidade. Mas, ao mesmo tempo, a solidão do pcrsomgcm- que o impede de transcender o aparente e encontrar os fundamentos essenciais de sua aspiração e de seu ódio - condena-o a uma ação degradada e impotente: liquidando Tavares, um simples indivíduo, Luís da Silva não destruirá a máquina capitalista de exploração, a deificação do dinheiro, que são os fatores que possibilitam a existência e a ação do repelente comerciante; nem tampouco -e esre é o conccúdo da "conversão" f1nal de Luís, da tomada de consciE.ncia da inutilidade de seu ato gratuito - lhe permitirá reconquistar a dignidade perdida, atingjr a liberdade e a verdadeira realização individual. Extinto o brilho passageiro de sua ação c:xtrcma, Luís da Silva recai na monotonia de sua vida mesquinha, na absoluta e integral falta de sentido cm que já o encontráramos antes dos eventos descritos no romance. lmediatamcnte após o assassinato, ele já nos diz: "(...) Veio-me a certeza de que me havia tomado velho e impotente. - Inútil, rudo inútil".'º' Assim, aquda possibilidade de libertação e de realização, que havia consumido as melhores energias ainda c:xistcnres cm Luís da Ili
flril/,. , p.
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CutTuM 1 SOOEDAl>f NO 811AS1L
Silva. revela-se uma possibilidade abstrata, falsa e inconsistente. Nesta distinção entre possjbilidade concreta e possibilidade abstrata, reside uma das características mais profundas do realismo de Graciliano. Ao contrário do romance antirrcalisra - que, desligando o persorugcm da concreta rcalidadc humana e social, nio mais tem critmos (se nio os puramente subjetivos) de hierarquizar as ações humanas, pelo seu confronto com o real-, Graciliano sabe relacionar a aspiração com a rcalidade, distinguindo entre a possibilidade puramente subjetiva e abstrata e a possibilidade objetiva e concreta. Assim, ele nos mostra que, longe de conduz.ir a uma solução, o ato puramente individual de Luís da Silva não altera a realidade, nem sequer a sua pr6pria realidade individual. Os indivíduos, enquanto átomos, são impotentes: a possibilidade de mudar o curso das coisas, de influir sobre a realidade e sobre si mesmo, cstá intimamente ligada à participação na vida social, ao fato de oio mais ser o indivíduo um sujeito isolado, mas um momento do sujeito histórico coletivo. A concepção do mundo subjacente à "vanguarda" liteclria, ao fazer da solidão e do isolamento do indivíduo uma realidade metafisica e "eterna", eleva igualmente o desespero e a impottncia à condição de realidades eternas, nio apenas históricas e sociais. Em Graciliano, como no realismo cm geral, esta solidão e esta derrota - embora socialmente necessárias a partir da "sjruação" concreta cm que determinados personagens estão inseridos - não sáo transformadas cm metafisica conáifáo hum4na; decorrem de certas condições objetivas e histó. ricas, notadamcntc da posição de classe dos tipos representados e da alienação do mundo cm que vivem. Desta forma, o pcquena.bwgu~. m1f"41Jm pequmg-burguis, não pode se libertar da miséria e da limitação do "pequeno mundo". Historicamente soliclrio, ele está socialmente condenado à impotência e a uma liberdade puramente abstrata. E Luís da Silva é um típico representante de nossa classe média; típico, inclusive, na medida cm que - transcendendo com sua ação a média cotidiana de sua classe - encarna uma possibilidade máxima de manifestação contida na revolta individuilista. Seu ódio à bwguesfa,
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à indignidade e à corrupção moral não o conduz a uma atitude verdadeiramente revolucionária, mas à revolta vazia e à frustração agressiva. A condição de revolucionirio - de efetivo transformador da realidade e, como tal, de hom~ verdadeiramente livre - é pr6pria dos que, cransccndcndo a solidão e o individualismo, colocam-se do ângulo de uma comunidade rcvolucionúia, de uma consci~ncia-prúis de classe, já que só um sujeita.totalidade pode penetrar e transformar a totalidade do real: só enquanto participante de uma comunidade é que o homem pode se realizar inccgralmcnte, abrindo livre curso à manifestação da integralidade de suas possibilidades. Como Ma.d.alcna e Paulo Honório, ainda que por ra:z.ócs diversas, Luís da Silva permanece solitário - e a solidão, dctcnninando a radical impo~ncia, equivale a uma "danaçãon, a um inapelável fracasso. Como Canis e São &rtuzrJq, também Angústia é um romance narrado na primeira pessoa. Esta aparente identidade, porém, nio nos deve fazer perder de vista as radicais diversidades. Em úutis, a narração na primeira pessoa tem a única finalidade de destacar um personagem, fazendo dele o tipo central; como vimos, trata-se de um processo de composição inteiramente arbitrúio e inorginico. Em São &rtuzrJq, jamais o narrador perde a objetividade, apesar de tratar de sua própria vida: o fato de a narração ocorrer após o desenrolar dos acontecimentos garante ao narrador a onisciencia épica ncccssária ao processo de hicrarq11ização e seleção da realidade, isto é, à objetividade estrutural do romance. Por outro lado, o duplo tempo - o da oco~cia dos eventos e o da narração - tem por finalidade nio só garantir esta "disdncia• do narrador diante dos fatos, como também ressaltar a patética "conversão" final de Paulo Honório. Trata-se, portanto, de dois romances tcenicamente nio problemáticos: um ligado às técnicas cspcdficas do naturalismo, outro às do romance realista tradicional. Angústia é um caso inteiramente diverso: aqui, o monólogo interior (cm sua forma radical da strram ofconscWu.mess) substitui frequentemente, como t«Dica narrativa, a narração épica tradicional; ademais, o emprego de um tríplice tempo - o da narração
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~ NWOH Ú>llTlNllO
do presente, o da recordação da inBncia e do passado e o dos devancios subjetivos, o tempo subjetivo interior - inuoduz..nos cm um fuiclstico universo de fragmencação e cstilhaçamenro. A substituição do tempo real pelo tempo subjetivo é um proctSSO já antigo no romance, sendo urna das características de muiw narrativas de "vanguarda". A partir do momento cm que, colocando-se passivamente cm f.tcc da alienação do indivíduo com relação ao mundo histórico (alienação que é o nível imediato da realidade no capitalismo), alguns romances de "vanguarda" transformam a subjetividade individual fctic:hix.ada na única matéria de suas análises, desaparece também - ao lado do mundo e da realidade- o tempo histórico objetivo no qual se inserem as ações humanas, tempo do qual o tempo subjetivo é apenas um momento subordinado. Por isso, a fragmentação e o estilbaçamento - que são apenas a c:xprcssáo de um ponw ~ vista subjetivo sobre o real - tomam-se a própria realidade: a rcsttiçáo do indivíduo à sua estreita subjetividade não é apenas o tema ccncraJ, mas o princípio de composição estrutural, a visão artística e ideológica do mundo. Naturalmente, o resultado de tal procedimento náo pode deixar de ser a di$$0luçio da objetividade épica, da relação o~ca entre a ação do sujeito e a "totalidade dos objetos" do mundo exterior histórico; como consequência, temos a UTÚ'irAflÍO do gênero romanesco e a dissolução daquela forma que permite o realismo verdadeiro e profundo. A arte se confunde então com o depoimento pessoal. Não é isso o que ocorre cm Graciliano. Tal como seu grande contcmpoclnco, Thomas Mann, de não confunde as tlcnicas de "vanguarda" - o monólogo interior e a fragmentação do tempo - nem com o conteúdo nem com a forma estrutural. A estrutura formal de Angú.sti.a se funda sobre a dialética do herói (problemático) e do mundo (alienado); e isto, cm primeira instância, porque a solidão dos seus personagens não é mais do que urna modalidade possível de sua integração no social. Por isso, nesse romance, as técnicas de "vanguarda" são englobadas pela narrativa épica uadicional, que representa as ações humanas como uma dialética de sujeito e de objeto, de consciência e de realidade.
Graciliano relaciona com a realidade -dando prim2zia a esta - rodas as f.tnwias imaginárias e as evasões subjetivas do tempo interior de Luís da Silva. As fuiwias imaginárias dcc.orrcm d.a aspiração, objetivamente explicada, de uansccndcr - ainda que apenas subjetivamente - os limites de sua vida mesquinha e miserável: ªEsse passatempo idiota dá-me uma espttic de anestesia: esqueço as humilhaçócs e as dívidas, deixo de pensar". Por outro lado, das sofrem o crivo do confronto com a realidade, o que mosua a sua falsidade e inconsistência (que se recorde o próprio assassinato e sua inutilidade): "Quando a real.i dade me cnua pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba". Os recuos no tempo, a narração interpolada da in&cia e do passado do personagem, tbn como finalidade a ampliação da objetividade épica, isto é, o fornecimento da pri-história do personagem, das razões e dos condicionamentos de algumas de suas ações atuais. Por exemplo: "Sempre brinquei só. Por isso cresci assim, besta e mofino". Além disso, tais recuos se fundamentam também no desejo de cvasão do presente, que é uma das componentes psíquicas mais profundas de Luís da Silva (sendo, Por isso, um dos mcios usados para a sua caracterização). Também aqui, porim, Graciliano está consciente do caráter puramente subjetivo e absuato dessa evasão, da sua impossibilidade de modificar a realidade presente: Tenho me esforçado por iomar-me aiança - e cm coruequb>àa ITÚSNIO coisas atuais a coisas antip (... ). Procuro um rdUgio no passado. M2S Dio posso
me esconder i.ntciramcnte nele. Não sou o que era naqude tempo. Falta-me uanqullidade, &ha·me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou.'«1
Finalmente, o monólogo interio r jamais é aqui um fetiche, um objetivo cm si: Graciliano náo visa à mera reprodução naturalista de uma associaçáo de ideias, dos mecanismos psíquicos de um homem ontologicamente isolado, sem nenhuma relação orgâiúca com a realidade objetiva; nem busca tampouco, através do monólogo interior, a "rcvdação" alegórica de absuaçócs vaz.ias '"'
//riJ., rctpcajV2Jnma: p. 141, trl. 107, 14-18.
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Últl.OS N ELSON CoumotO
CULTUllA 1 sootOAOI NO 8llASIL
e pseudoprofundas. Ao contrário, Graciliano busca precisamente, com o auxilio da stream ofconscioumess, tomar imod.iat:amcnte evidente uma realidade concreta e essencial: o desequilíbrio e a
dissolução psíquica do personagem,
rcprod~indo
ç0m
m~or
intensidade dramááca o seu desespero e a sua derrota socialmmu condicio1UUÍos. Trata-se, portanto, do emprego de uma ticmCll visando a acentuar a realidade para melhor narrá-la (para rcproduzila artisticammu), e não da substituição da realidade essencial pela reprodução mcclnica de associações mentais fctichizadas ou por alegorias metafisicas; cm suma, cm Angústia, o monólogo interior é sempre um instrumnuo do realismo, nunca um fim cm si. Por outro lado, nos momentos cm que se acentua a dissolução interior do personagem-narrador, Graciliano - pua evitar a perda da objetividade - recorre à ironia: cm face de suas próprias fantasias e aspirações, Luís da Silva mantém quase sempre uma atitude irônica, autoirônica, que lhe garante, enquanto narrador, o necessário "distanciamento". Assim, através de técnicas vanguardistas, Graciliano constrói um dos romances mais realistas da Üteratura brasileira, cuja eJtTUtura muito se aproxima daquela dos romances dostoicsvskianos de herói individualista (como Crime e castigo, por exemplo). Em vez da mera descrição paranaturali.sta ou alegórica da soüd.áo e do desespero de homens abstratos, como ocorre cm grande parte dos romances da "vanguarda" subjetivista, Graciliano nos apresenta urna interp"tafáo poltica, que implica a representação da gênese social e das consequências humanas, da solidão e do desespero de um homem concreto, dpico: um pequeno-burgu~ brasileiro.
5 SáQ &rnawúi e Angústia, que viemos de analisar, têm como conteúdo temático a contradição, que se estabelecia cm nosso país, entre uma sociedade semicolonial cm decadência e o desenvolvimento de elementos capitalistas; também estes elementos capitalistas - por força da especificidade de nossa formação histórica e da natureza geral do próprio capitalismo - revelavam desde
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logo a sua interior ambiguidade e contraditoricdade. Já observamos, na análise de SáQ Bnnaráo, como esta complexa estrutura dialética da realidade determinou, igualmente, o nascimento de uma complexa estrutura romanesca, não obstante a identidade fundamental (na diversidade) entre ela e a do romance realista tradicional. Em Vuias Secas, seu último romance, Graciliano nos apresenta um setor da realidade brasileira que ainda não fora (ou o fora apenas cm proporções mínimas) penetrado pelos elementos capitalistas em sua forma moderna: a realidade agropastoril da região nordestina assolada pelas secas. Em SáQ Bnnaráo, a fazenda que serve de órulo ao romance é um empreendimento que a ambição de Paulo Honório - através da introdução de inovações tcenológicas - tranSforma num dpico exemplo de penetração de elcmcncos capitalistas modernos no campo brasileiro; Vuias Secas, ao contrário, nos apresenta um quadro evidente da dcc:ad!ncia de nossa estrutura agrária pré-capitalista, decadência que, nesse caso, não foi seguida por nenhuma renovação capitalista (inclusive n.o estrito sentido tecnológico). Daí o papel preponderante da seca, o seu caráter de &talidade trágica: os homens concretos que formam a realidade econômica estão socialmente desaparelhados para enfrentá-la. A baixa rentabilidade econômica da região é causa e efeito do desinteresse e do conservadorismo do proprietário; as formas scmisscrvis de remuneração do trabalho, bem como, na maioria esmagadora dos casos, o fato de que o trabalhador rural não dispõe da propriedade, fazem deste um nômade, sempre obrigado a abandonar a terra no momento cm que a seca anuncia a destruição. Em suma, inexistem condições sociais (e, conscquenccmentc, tecnológicas) de resistir vitoriosamente à seca. Essa decadência econômica, aliada à inexiscência de uma economia mercantil integrada e integradora, rarefaz ao extremo a realidade social que nos é apresentada no romance os camponeses estão condenados a uma vida nômade e soUcl.ria, à luta contra um mundo inóspito, cuja hostilidade aparmtemmte se encarna no desencadeamento de forças naturais incontroláveis. Como vemos, embora num universo social baseante diverso,
176 CMlos NWON Ú>llTINHO
ressurge aqui a problemática central de Graciliano: a solidão do homem como determinante de sua impotâtcia trágica em face dos problemas que a sociedade lhe coloca. como obstáculo que se opõe à realização humana e a uma vi~ a11tcntiçamente vivida. O enredo de Vuúzs secas, correspondendo a esta realidade relativamente simples e pouco densa, apresenta-se também ele simples: cm vez dos longos desdobramentos que caracterizam o romance realista do período de formação e ascensão da burguesia, temos aqui uma realidade quase linear, sem conflitos dramáticos intensos e restrita a um cuno período temporal na vida de uma família de retirantes. Tangidos pela seca, Fabiano e os seus migram em bwca de uma região mais favorável; terminam por se fixar numa fazenda abandonada, na qual Fabiano passa a trabalhar após entrar em acordo com o patrão, sempre ausente e distante; com a volta da seca, eles são novamente obrigados a abandonar a fazcnda e retomar a migração. O romance situa a ação entre essas duas secas, isto é, no período do estabelecimento provisório de Fabiano. A profundidade de Graciliano, entre outras coisas, revela-se no fato de que - nesse cuno período de tempo e nesse limitado espaço - ele aflorou e .reproduziu a totalidade dos problemas implícitos no desdobramento da ação, sem necessidade de recorrer a largos panoramas e ações paralelas, o que não corresponderia ao baixo nível psicológico dos personagens nem à pouco densa .realidade na qual eles acuam. Temos assim, relacionados em uma estturura organicamente coerente, os vários problemas que generaHz.am e tipificam o universo agrário brasileiro, representados em situações e destinos humanos concretos: a exploração social, a solidão dos personagens, a consciência contraditória (entre passividade e revolta) do trabalhador rural brasileiro, a frwtração de suas mais ínfimas aspirações, as possibilidades (concretas e abstratas) de transcender a situação de miséria etc. Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de Fabiano decorre de um fenômeno narural, ou seja, da seca: ele se liga, em primeira instância, ao &to de Fabiano não ser proprietário, o que o impede de vincular-se definitivamente à terra; e, em
C ULTURA E SOCIEDADE NO
8AASll. 177
seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, o que torna os homens impotentes na luta contra os fatores naturais (como a seca). Em suma: a problemática de Fabiano decorre diretamente do caráter retr6grado e improdutivo da nossa estrutura agrária. inccirarnentc inadequada para proporcionar um nível de vida até mesmo medíocre aos trabalhadores rurais brasileiros. Obstaculizando o avanço das forças produtivas e dispersando os camponeses, o latifüodio - o monopólio da cerra - toma-se a causa da exploração e da miséria no campo brasileiro; é o lari.fiíndio - e não a seca, que s6 tem efeitos catastr6ficos por causa da estrutura social de dominação da nacure:za, que tem no monopólio da terra a sua peça central - que encarna o "mundo convencional e vazio" que impede Fabiano de levar uma vida aut~ntica e humana. Solitário, conscq uencementc impotente, Fabiano é presa fácil da exploração e do embwtc, impossibilitado de reagir não s6 às trapaças de seu patrão (nas quais a exploração se faz evidente e imediata), como às violências do "soldado amarelo", que representa o governo que garante e protege a dominação latifundiária. Por isso, Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as condições adversas que o mund.o lhe impõe. Não pode comprar a carna de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de um governo do qual não panicipa e que lhe aparece como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão, daquela k.afkiana irrupção em sua vida de um ordenamento social que de não tem condições de compreender, já que não contribuiu para criá-lo. É sua solidão radical, sua marginalização involuntária da comunidade humana, sua <a de intcgraçáo com seus semelhantes, que o tornam impotente e passivo, obrigado a aceitar e a capitular em face das regras de um jogo que lhe parece absurdo, regras que ele não discutiu, de cuja confecção náo panicipou e cujos aurores ignora. Desligadas do "grande mundo" da história, da participação criadora na vida pública, as camadas cra.balhadoras do campo brasileiro - da qual Fabiano é um típico representante - estão igualmente condenadas (socialmente condenadas) ao
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restrito "pequeno mundo" da solidão, o qual, neste caw, não possui nem mesmo os "refinados atrativos" do seu equivalente nas classes dirigentes.
Contudo, a passivi
para garantir as condições mínimas que possibilitem a manutenção da vida humana, é preciso se opor à realidade e buscar uma via que aponte para fora daquele universo de miséria e de morte. Portanto, o valor buscado por Fabiano, que o leva a contrapor-se a um mundo alienado - busca e contraposição que f.u.cm dele, cm sentido bastante lato, um "herói problemático"-, é simplesmente a vü/4 como realidade imediata. Desligado da classe social à qual pcnc:ncc, Fabiano não pode compreender claramente os meios pelos quais é possível a rcalizaçáo do seu desejo de viver. Por isso, este desejo se apresenta nele como uma aspiração problemática, como uma busca solitária. Não levando à prática nenhuma das possibilidades abstratas de reação acima expostas. Fabiano permanece disponível para se engajar na única possibilidade de resolução d os seus problemas, que, "" universo do romance, apresenta-se como concreta: a integração na economia capitalista, o u pelo :i-ccsso à pequena propriedade da terra, ou pela sua transformação cm operário wbano. Este é o conteúdo das reflexões de Fabiano, quando de sua segunda "retirada": "Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando(...). Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles".'°' Nacuralmcntc, a longo prazo, essa integração no capitalismo seria a fonte de novos problemas, que Fabiano ainda não pode pcrcebcr. Contudo, tÍmlro do uniwrso do romance, isto t, cm fu:c do valor buscado - a vida, pura e simplesmente - , essa perspectiva representa uma possibilidade concreta de superação dos problemas essenciais que são aí aBorados (ainda que os substitua por outros}, já que pode criar as condip;es que pcnnitam a Fabiano ou aos seus descendentes manterem uma vida minimamente digna. Deve-se frisar que essa pctspecriva não é jUSta apenas do ponto de vista da estrutura formal de Vuias &cas, da c:oa&lcia interna da obra; ela representa o próprio movimento essencial da realidade brasileira,
'º'
G. Ramos.
v-..w-. São Paulo. Martins, 1963, p. 169.
180 CAll.os NfUOll ColmNHO
na medida cm que o desenvolvimento capita.lista pode- o que não significa necessariamente que o f.ará - elevar o nfvd de vida dos trabalhadores rurais levando-os a uma condição mínima de subsiscência de que dcs hoje não desfrutam. A forma, cm Graciliano, é uma maneira justa de representar artisticamente o movimento e a estrutura da realidade. Assim, na obra do romancista alagoano, Fabiano é o único "herói positivo", não no sentido de que se realize hwnanamcntc, triunfando na luta contra o mundo hostil aos seus projetos (como o T
CuLTUAA r SO()(OADI NO BllASIL
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Fabiaoo, tomado isoladamente, individualmente, pode por ccno fracassar, não conseguindo resistir à nova soca, ou jamais se tomar um pequeno proprietário ou um trabal..bador urbano. Mas sua dassc conseguirá - tem a possibilidade concreta de f.azb. lo - destruir o sistema social que a oprime, atingindo um nível de vida com condiçôcs mínimas de dignidade. Na medida cm que o verdadeiro tipo realista é uma fusão dialética (não mecânica) de indivíduo e de classe, de singular e de universal, Fabiano mesmo enquanto indivíduo - possui a possibilidade de realizar objetivamente os valores mínimos a que se propõe. Por isso, cm Vuias secas, seu futuro é um futuro abcno, contendo a possibilidade da realização ou do fracasso. E essa abmurrz para o futuro, ao contrário da ncc.cssária r:ragicidade de Paulo Honório e Luís da Silva. é dada - cm ambos os casos - pela própria realidade brasileira: enquanto a burguesia latifundiária e a classe média tradicional não podem transcender, enquanto classes, o "pequeno mundo" da misma brasileira'04 - sendo necessariamente trágicas ou grotescas cm sua tcnt
Uso o wmo no scncido cm que Hcinc usou "m!Xria alemã".
CULTVM l SOOfOADf ..O 8AASIL
concreta de fazê-lo, não tendo a sua " busca" um caráter-neccssariamence trágico. Este foi o caso, por exemplo, do grande romance inglês do século 18 (que se pense em Tom fones, de Fielding, ou
cm MoU F/andm, de Defoc). Tratava-se de uma época de ascc:ruáo da burguesia, de rompimento das limitações feudais., sendo a vitória do herói a expressão da vitória dos valores individualistas da burguesia sobre os valores estratificados do feudalismo. Quando a sociedade burguesa se solidificou, revelando sua própria limitação e vacuidade, essa vitória do indivíduo contra o mundo, contra as formas vigentes d.a alienação, tomou-se cada vez mais problemática: o individualismo se faz trágico e revela o seu caráter ilusório (que se pense cm Balzac, Stendhal ou Flaubert). Graciliano, em V'~ secas, reencontra elementos d.a forma estrutural do romance inglês, naturalmente com diversidades gritantes e profundas: aqui não se trata, certamente, d.a concretização de uma vitória, como em Fidding e Defoe, mas de sua possibilidade (como é o caso, ademais, de grande parte dos romances socialistas, em que o combatente pelo novo mundo - mesmo que parcialmente derrocado - tem a possibilidade concreta de triunfo futuro: que se pense, por exemplo, na heroína de A mãe, de Gorki); e não se trata também do capitalismo como realidade efetiva, triunfàntc - como no romance inglês - , mas sim como horizonte, como perspectiva de solução (para insistir no paralelo: como o socialismo aparece em alguns romances socialistas). Essa estrutura e esse universo determinam, cm Vidaf secas, novas diversidades técnicas, estilísticas: a concentração novdística e dramática, própria dos romances cm que fracassam as tentativas do herói (Bahac, Stendhal, o Graciliano de São &rnardo e Angústia). cede lugar a urna composição aberta, relativamente linear, cm que as partes possuem uma maior autonomia relativa, embora se mantenha a organicidade (como é o caso em Tom fones e em Mo// Flanders). A diminuição d.a dramaticid.ade - aliada à solidão dos personagens, à sua dificuldade de comunicação - determina de imediato, em V'~ secas, a supressão quase cotai do diálogo. A possível "positividade" do herói torna esta composição aberta
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mais adequada, já que mais próxima do pathos positivo d.a epopeia (na qual a "positividade" do herói é absoluta). Além disso, para que o personagem contivesse cm si as várias possibilidades, para que f~ um personagem "aberto" (de positividade posdw/), Graciliano aproxima Fabiano - mais do qualquer outro de scw personagens realistas - do universal, d.a "média". Fabiano não realiza nenhuma das possibilidades extremas contidas cm sua classe (por exemplo, a revolta consciente. a adesão ao cangaço, ao beatismo etc.); mas, com isso, não perde a sua singularidade, a sua individualidade, ainda que não seja - como Paulo Honório, Madalena e Luís d.a Silva - um tipo excepcional. Mas ele tampouco é uma encarnação alegórica de princípios abstratos, como o são, por exemplo, os "camponeses" do romance Corpo vivo, de Adonias Filho. Ao lado d.a exigência formal, estrutural, a própria realidade permitia essa caracterização: ela se baseia, sobretudo, na baixa complexidade d.a psicologia de nosso trabalhador rural, o que toma diflcil e problemática, ainda que não impossível (como o demonstram alguns romances de José Lins do Rego), uma caraeterizaçáo mais singularizada e individualizada. Mesmo como tipo médio - e, no caso, talvez precisa.mente por isco -, Fabiano é um tipo autêntico e realista, um tipo particular, ainda que mais voltado para a universalidade do que para a singularidade (que se recorde a afirmação de Lukács, segundo a qual a particularidade - a tipicidade - é um ponto cuja fixação varia no interior de um campo, o qual tem por limites extremos a universalidade abstrata e a singularidade bipostasiad.a).•Oj
6 Trabalhando sobre urna realidade social e humana extremamente complexa - que comporta cm si, cm siru.açáo de simultânea contradição e integração, sistemas sociais diversos e em diversas fases de evolução -, Graciliano recorre, cm sua tentativa de captá-la a.reis•os G. l..ulcács, /,,woJ"{k 11 l 970, p. 242 e ss.
1111111
tt111itJ1 1'IJll'ldru.
Rio de ]lllleiro. Oviliuçio BruilciD,
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ricamente, a diversas formas de estrutura romanesca. Ele recria, ao reproduzir a total.idade brasileira cm seus vários níveis de evolução, algumas das formas básicas que a estrutura romanesca assumiu cm
seu proc.c:s.so histórico-sistemático de desenvolvimento. A ncccssária tragédia do individualismo burguês determina, cm São Bernardo e cm Angústia. a recriação da esourura própria de Balzac e Stcndhal, com o "herói problemático" que busca a realização humana a partir da sua individualidade, sendo derrotado no combate com o mundo alienado e prosaico, mas tomando consci&icia, no final, da inuàlidade de seus csforçcs. Essa mesma problemática, intenSificada ao ponto da dissolução interior do indivíduo, determina cm Angústia a absorção de recursos técnicos desenvolvidos pela vanguarda (do mesmo modo como, por exemplo, nos últimos romances de Thomas Mann). A crise do individualismo, a luta por encontrar um sentido transindividual para a vida - expressão de wna época em que o indivíduo, enquanto indivíduo, já oáo é mais um valor cm si-, encarna-se no ripo de "herói problemático" representado por Madalena, o qual busca um valor comunitário, mas que, dada a inexistência objetiva da comunidade e o caráter soütário da busca, é impotente cm face da realidade e fracassa igualmente (este tipo de herói surge, no romance moderno, com O IdúJta de Dostoievski). A complexa dialética que relaciona, cm São Bernardo, os dois tipos de "herói problemático" fundamenta a criação de uma estrutura romanesca original, que expressa a especificidade de nossa contraditória realidade (uma originaüdade similar pode ser encontrada em Os irmãos Karamaz.t>v, na relação entre os dois tipos de lvá e de Aliocha.) Finalmente, com Vidas secas, temos o esboço de um "herói positivo" - cuja problematicidade pode se tornar acidmral. deixando de ser ~cessária -, com a consequente criação de uma estrutura aberta, mais próxima da composição livre da épica clássica do que da concentração novelística d pica do romance do sécuJo 19 (este é o caso, também, do romance picaresco do sécuJo 18 e, cm circunstâncias diversas, de alguns romances socialista.s). Em todos esses casos, Graciliano procurou transcrever artisticamente aspectos da nossa realidade, daquela complexa realidade
Cu rruM f 'IOCIEt>AOE HO BAAS>l
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na qual, em alguns casos, o capitalismo já surge como limitação e como fator de intensificação da alienação (determinando assim, ainda que abscracunente, uma aspiração e uma tendência para o socialismo); e. cm outros, como fator de progresso e de libertação cm face da velha sociedade semicolonial. O fato de que esta procura tenha sido cm Graciliano coroada de 6tito - graças ao recnconuo da estrutura formal dos grandes clássicos, não como forma vazia e mecanicamente aplicada, mas como forma co~ta ek um contníáo concnUJ, como reflexo artístico da realidade brasileira - faz dele, ao mesmo tempo, um clássico e um realista, o construtor de urna obra na qual os prindpios a.rústicos universais e a reprodução do hic et nunc não estão cm contradição, mas cm orgbica e viva unidade. A relação entre a estrutura romanesca e a realidade, contudo, não é uma relação direta, fundada apenas sobre uma homologia acidental, mas uma relação dialética mediatizada por uma visão do mundo. Esta visão não é jamais, no caso da verdadeira arte, uma visão puramente individual: o verdadeiro sujeito da criação artístiç.a (ou w!Nral c:..m ~ntido amplo) é o gênero humano classística e historicamente determinado, isto é, um sujeito-total.idade cujo ponto de vista permita uma visão totalizante das relações humanas globais, garantindo assim a universalidade necessária à criação da grande arte. O conteúdo mais geral da visão do mundo que se expressa de modo smslveJ (não conceituai) nas obras de arte realistas é o humanÍSmQ: a defesa da humanitas - da integridade e da unidade do homem - contra a alienação e a mutilação do indivíduo e da comunidade autêntica. No caso concreto do romance, este humanismo expressa-se sobretudo, salvo raras exceções, cm sua forma negativa: na crítica radical dos fundamentos de um mundo alienado, que obstaculiza ou impede as melhores aspirações do homem, condenando-o à soüdáo e à impotência trágica. Ao lado desse aspecto negativo e crítico, entretanto, a defesa da humanitas expressa-se também numa forma parcialmente positiva na criação do "herói problemático", isto é, na representação da práxis criadora e prometeica do homem que
CULTUllA f SOCICOA.I)( NO 8RASll
não se conforma passivamente à alienação e luta por ..-iconuar um sentido autêntico para a vida, mesmo que. cm muitos casos, seja esta luta igualmente alienada - porque fundada cm seus próprios recursos individuais - e, por isso, impotente e trágica. Em suma, as lutas do herói problcmitico, sua busca desesperada e sua impotente oposição à alienação - desespero e impotência decorrentes sobretudo de sua solidão - , constituem um violento protesto contra a alienação capitalista e uma afirmação, ainda que por vcus igualmente alienada e abstrata, das profundas aspirações do homem a uma vida autêntica e comunitária. Entendido cm sua generalidade, é este humanismo o fundamento idcol6gico da esuutura romanesca. Entretanto, com a evolução da vida social, tal humanismo adquire formas conactas e diversas, cm relação com a classe social e com a época histórica que constitui sua infraesuurura. Em outras palavras: o hWD2filsmo implícito na forma romanesca como gênero literário cscl sujeito a variações históricas q ue determinam dialeticamente as variações no interior da própria estrutura romanesca, ou seja, as diversidades históricas tanto da natureza do herói quanto da sua relação com o mundo e com os valores implícitos cm sua ação. Desde logo, devemos advertir que a visão do mundo humanista quase nunca é a expressão da consciência real de uma classe, mas de sua consciência posrlvef•; isto é, o escritor (ou o anista, ou o pensador) torna coerente e orgânica, ICV2Jldo às últimas consequências, a visão do mundo apenas esboçada ou intuída- e sempre hcrcrogcncamcnte, cm composições não orgânicas com outras visões do mundo - pelas classes sociais das quais são os representantes ideológicos. Daí porque o romance realista burgu&, ou crítico, é o oposto radical da visão do mundo real da burguesia dominante; ele se fundamenta ideologicamente no humanismo burgu& clássico, que é o máximo de consci~ncia possível do gênero humano cm dada etapa de sua evolução histórica. Da mesma forma, o romance socialista- que
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se baseia no humanismo militante do proletariado - fundamcntasc, cm muitos casos, na consciência possível da classe operária, sempre que esta, por condições históricas determinadas, aliena-se à ideologia burguesa vulgar e trai o humanismo militOllO brasikiro, isto é, do conjunto de c1a.sses sociais que se opõem à realidade scmicolonial e que lutam pelo desenvolvimento independente, nacional e democrático de nosso pais, não hesitando, nesta luta, cm formular WJU perspectiva socialista, ainda que abstrata (tal como as próprias condições permitiam). Acreditamos que s6 a adesão ao ponto de vista deste conjunto de classes poderia permitir, a um escritor brasileiro da década de 1930, a criação de uma estrutura romanesca realista. A definição por esta ou aquda classe no interior dessa frente '
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De wna mancin crrõnea, a meu YCt, doís inidlgmtcs crfrioos de Graclliano Ramos gcocnllxar.un esse pcssimlsmo para toda a obra do romandm, transformando-o cm sua vls1o do mundo F2I- Trua-se de Antonio Canclldo (" Aoçto e oonllmo•, in: G. Ramos. CMtá, São Paulo. Mutins, 1961, p. 53) e Rolando Morei Pinto (G~ t • •· Assis. s. e., 1962, p. 25), que &bm, rapcaivamcnce, cm "pcaimismo radic:ú" e cm "c:edc:ismo. padmismo e nqptivismo". Altm dislo. une esses dois crlóoos uma aocntuaçio exagrr.da do upca:o autobiopifico da. roM11Jtta de Gracili.ano- o que. cm minha opinião, contribui pouco para a análise liJmlrltt e ~ de tais romancr.s. Nio obstante, o belo ensaio de Ondido continua xndo wna imporwuc conuibuiçio pa.ra o conhecimento da obra do rormodsa a1agoano.
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única (cqujya}ente brasileira do Terceiro Estado europeu).traria consequências altamente problemáticas. A partir da consciência. mesmo possível, do conjwno dos crabalhadores rurais ou da classe
média urbana, seria basWltC difícil a criação de uma gmide fllte: essas classes não possuíam um ponto de vista global, universal, sobre a realidade brasileira, já que estavam interessadas apenas cm uansformações parciais, em reformas (os trabalhadores rurais, por exemplo, não tinham condições de formular claramente, pelo menos de imediato, uma perspectiva socialista; os seus inccresses se confundiam com o acesso à pequena propriedade, com uma reforma agrária capitalista). O proletariado, por sua vez, ainda era enue nós uma classe majoritariamente desorgaruzada, impotente e marginalizada; a adesão explícita aos seus pontos de vista - à sua consciência possível - levaria quase necessariamente, no plano da criação artística. a uma queda na utopia, à negação radical da realidade e, consequentemente - como foi o caso dos nossos "realistas socialistas", como o primeiro Jorge Amado - , ao romantismo "revolucionário", ao antirrealismo. A adesão à burguesia, cm seu sentido esuito, determinaria limitações não menos evidentes, já que a nossa burguesia jamais formulara - nem tinha condições potenciais de f.u.ê-lo - urna visão do mundo humanista própria, rigorosamente independente tanto da ideologia do colonialismo quanto do humanismo militante do proletariado. Graciliano uansccnde o humanismo bur-gub possível à burguesia brasileira, na medida cm que rejeita qualquer compromisso com o mundo decadente, com o colonialismo cm crise, com o "pequeno mundo" da solidão e do egoísmo, e em que aceita, ainda que abstratamente, a perspectiva do socialismo; mas tamb6n não atinge, em SU4 obra tÚ ficção, a concrcticidadc do humanismo proletário, já que era impossível, a partir de um ponto de vista inteiramente crítico do capitalismo nascente, a formação de uma perspectiva globalizante e a fidelidade ao real. Precisamente na medida cm que se apoia sobre um conjunto de classes realmmte n:volucionário -e que não se isola da sociedade, não se marginaliza de uma práxis concreta, mas tampouco concilia com a "miséria brasileira" - , Graciliano
ÚILTUM f SOO(OAOl NO BMSIL
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atinge uma perspectiva simultaneamente positiva e negativa, sem a qual o romance ccalista é impossível. Pois é preciso criticar o mundo cm sua degradação, cm sua vacuidade alienada; mas é preciso rcconhccc:r também que, apesar de cudo, de é ainda su6cienccmcntc positivo para permitir e condicionar o nascimento de "heróis problemáticos", isto é, para manter um mínimo de valores que fundamentem o "inconformismo demoníaco" de alguns indivíduos ou grupos. Aliás, a nosso ver, não é Graciliano o primeiro pensador ou escritor a fundar uma visão coerente sobre um conjunto de classes (sendo esta visão coletiva diversa das visões paniculares das classes que compõem o conjunto). Este é o caso, mutatis mutanáis, de Rousseau e dos n:volucionários jacobinos franceses. A ideologia democrática de Rousseau era o máximo de consciência possível de todo o povo, do Tcrc:ciro Estado que se opunha ao feudalismo e ao filistcísmo, mas que já apontava rambém para uma crítica do próprio capitalismo. A burguesia repudiou a ideologia democrática de Rousseau e de sua encarnação jacobina {que se pense na reação tcrmidoriana), enquanto o proletariado, cm sua evolução, superou-a dialcticamcnrc (basta lembrar Babcuf e a Conjuração dos Iguais). Disso resultou o uágic.o isolamento dos jacobinos cm 1793, seu dilaceramento interior, a manifestação concreta da real contraditoriedade que Rousseau e Robespierre ignoravam. Mas, apesar desse &acasso prático-polític.o, o dcmocratismo igualitário de Rousseau representou, cm seu tempo, um dos pontos de vista mais elevados e profundos que a humanidade havia alcançado, o máximo de consciência possível no interior da sociedade europeia de então. Como ideologia, como visão do mundo {e também e.orno fator de organização da vontade coletiva, como d.iria Gramsci), apesar de seu caráter poUticamcnte utópico, o igualitarismo revolucionário - a expressá.o politicamente mais radical do grande hu manismo clássico - cumpriu a sua missão histórica. O mesmo pode ser dito da visão do mundo dcmocráticobumanista de Graciliano. Também a realidade brasHeira, cm sua evolução, demonstrou a contraditoriedadc implícita na aliança das
Cumiu. 1 SOOEDAD( NO BllASll. 191
forças anti-imperialistas e democráticas; nem por isto, conwdo, o ponto d e vista do humanismo democrático popular deixou de ser o ma.is adequa.do, cm dado momento histórico, para a criação de
principais personagens d o romance socialista náo são mais problemáticos (a náo ser na medida cm que a sua problcmaticidadc decorra do ca.rátcr problemático da comunidade da qual partici-
grandes obras realistas capazes de figurar a oomplcxa e rontrad.icória
pam): os $CUS valores são claros, definidos pela $\la participação na comunidade. Essa comunidade, entretanto, manifesta a sua problcmaticidadc cm dois casos: 1) na medida cm que não sã.o inequívocos, mas sim ambíguos e contraditórios, os meios pelos
sociedade brasileira. E cabe ainda observar que, não obstante esta contradito ricdade, o humanismo de GraciJiano abre-se para o futuro e tem os elementos para superar a necessária ilusáo sobre a q ual se assenta: como Rousseau, G raciJiano náo se recusa a criticar violentamente o filistcfsm o burgu~. jamais confundindo o grande humanismo com a defesa d os interesses particulares da burguesia; como Thomas Mann, este lúcido hwnanista d e nosso tempo, Gradliano não se recusa a enxergar no socialismo o h orizonte n o qual o humanismo burgu~. conservando-se e superando-se, d esemboca ncccssariamcncc*. E aqui se coloca um problema fundamental na análise da obra de G raciliano: qual o lugar que ele ocupa na história da evolução do realismo? ~ ele um realista crfcico ou um realista socialista? A distinção entre as duas formas d e realismo náo é, de modo algum, um p roblema puramente estilístico, o u de tema, o u mesmo do método: i um problnnll tk estrutura. N o caso do romance, a passagem d o realismo critico ao realismo socialista tem como principal caracterfstica a substituição do "herói problemático• individual por um herói comunitário; ou seja, no realismo socialista, o "herói problemático" q ue busca valores autênticos, entrando cm choque com o mundo vazio e alienado, n áo é mais um indivíduo solitário, mas uma comunidade problnndtica. Enquanto indivíduos, os ••
Eim mama ~o do mimdo. 20 que me pattce. nJo encontrou uma cxprcsdo a>nccicwl (filoe6f1Cl) táocoettntequanooa:udsóca, dcvidaa Gracillano. lsto foi unadopoulguns teóricos do extinto lscb. ootadamcntc por Álvaro Vldn P-tnto, cm sc:u inrcrcssance Uvro C4nsdhttú ~ rr~ NICÚINÚ, Rio de Janeiro. lscb, 2 v., 1960. Conrudo, escrevendo qu:asc 30 anos após Gncili2no- nwn período no qwl as concndiçõos inrcnw cnm as cbsx.s que a>mp6cm o poYO brasildro p hmam aringido um rúvd bem mais elevado -. Vieira P-uuo parece-me rcr tbbondo n5o uma •61ofo6a-. ou wm viÃo do mundo, do poYO bnsUciro. mas wm cxprado do múimo de consciCncia poafvd de.~ nuis radic:aiJ eh burpem. Por eumplo. a :iai~ do socWismo ~ mulco nuls cbn e evidente cm Gracillano romandsa do que livro do digito professor Vicita PinlO.
quais os valores - a revolução socialista e o humanismo proletário devem ser conquistados na rcalidadc (que se pense na comunidade revolucionária dos comunistas chineses, cm A condipí.o humana d e Malrau:x: ela está dilacerada entre o espontancísmo revolucionário e a disciplina imposta pela Internacional); 2) na medida cm q ue a própria formação da comunidade é problemática, estando ela permanentemente ameaçada de dissolução pelas forças do mundo hostil (recorde-se a dificiJ formação da comunjdadc dos colcoses, cm Temu tksbravadas de Cholokhov). N ão importam aqui as variações interiores da estrutura do romance socialista. mas sim sua característica difcrcnc:Wiora essencial: o caráter comunitário, não mc.r amcntc individual, do " herói problemático"'". Inexiste na obra romanesca de G raciliano este tipo de "berói problemático comunitário" (ou, sob o utro àngulo, h eróis individuais ligados organicamente a uma comunidade). t certo que d ois romances d e G raciliano -SálJ Bernardo e Angústia- possuem .., Coube a Goldmann a dacobcru e dc.:riçio dasa forma auutural do romance, desenvolvendo t ampliando o csqucnu p elaborado por Lukm cm 1916. cm A ~ "1 ~'· Em Goldmann. cnucanto, cal cscnnur.a ê a>loc:ada como momcnco de tl'Ulllçlo cncrc 1 dlssoluç5o do lndividw!Umo (Doscoicvskl, os primdroc ro~ de Malr.aux) t o que de dwm de "romance não biogr.illco de sujclco incxlStentê (que iria de Kafka ao -"'"" ,.,,,,,,,). Cl L Goldnwin, P,,,, llM s~ .IM to1'llDI, eis., p. 33, 103 e n. e 193. A meu ver, csu cscnuur.a - com su.u diversas manifesiações - #. o mo~co de tralUiçio entre as diversas modalidades de realismo critico e a furuca epopeia IOCialis12, isto ê, o ~ épico que poderi subttlruir o ronw>ae e do qwl o PwMA ~de Ancoo Malcarcnlto ê o primeiro esboço. Admitida nosu hipótese. w momcnoo pnha asaim uma gcandc imponinàa na ripologia histcSrieo-simmália d.u formu romancsas, sendo a csaurun do que K cem chamado a~ aqui de -realismo IOCiali.suº (cf. meu ensaio ºProblcaw ib lir.mrun IOYiáicaº. ln: C. N. Coll[inho, eis., p. 227-253).
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uma clara, embora abstrata, perspectiva social.isra; Madalena e Moisés apontam para um universo novo, para uma comunidade humana autêntica. Enrrecanco, cm nenhum dos dois romances esta perspectiva 5C concrcáza ao pomo de determinar o inteiro universo da obra, transformando o herói problemático cm uma comunidade e o socialismo cm um valor concreto e efetivo. O humanismo de Madalena é abstratamente socialisca, contém o social.ismo como uma possibilidade, como uma tendência; mas Madalena permanece uma heroína individual, buscando sua realização humana no plano individual (ainda que aspirando à fraternidade e à comunidade). Por isso, ela é uma solitária, uma impocence, necessariamente condenada à tragédia. Também Moisés, personagem secundário de Angústia, é um solitário, dissociado da comunidade, antes ansiando pelo social.ismo do que lutando concretamente por ele. GraciJiano, por ccno, critica a sociedade capitalista, denuncia a alienação que lhe é incn:nce, a brutal redução dos homens aos estreitos limites de sua vida privada, pondo a nu suas insolúveis contradições (embora evitando, como realista, q~qucr anticapitalismo romântico, isto é, reconhecendo o que o capitalismo representava de progressista na estagnada sociedade brasileira). Essa crítica, no entanto, como é o caso nos realistas críticos, permanece no interior do universo do capital.ismo: a comunidade humana aut~ntica e o homem novo (literariamente: o herói positivo) são possibilidada, aspirações subjetivas para onde se dirigem alguns personagens; ainda não são, contudo, uma rea/id;uk efrtiva, o sujeito da ação romanesca, como é o caso nas verdadeiras obras-primas do romance socialisca (A mãe, Terras desbravaáas, A condição humana ecc.). Goscaríamos de sublinhar que este afastamento de Graciliano do realismo socialista não implica, tÚ nmhum modo, uma diminuição do seu valor artÍstico ou ideológico. Um escritor socialista não é artisticamente superior, por uma nccc:ssidade a priori, a um escritor realista crítico: cada um deles, quando verdadeiro artista, reproduz a essência da realidade através de destinos e situações típicas, criando a estrucura romanesca adequada a rcprodui.i-la. Seria
CUlTURA E SOOIDAOt NO
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um absurdo colocar C holokhov esteticamente acima de Thomas Mann pela simples razão de ser o primeiro um comunista militante e o segundo, um burgu& humanista e consciente. O humanismo marxista, naturalmente, fomocc ao artista um ponto de visu mais adequado sobre o real, possibilitando-lhe ma.is &cilmentc superar a alienação e descobrir as relações humanas essenciais; mas isto pode ocorrer, em determinadas condições hist6ricas, também com o humanismo crítico e democrático que se fundamenta cm uma concepção burguesa do mundo. Em suma, a evolução históricosistcmática da estrutura romanesca - do realismo critico ao ~ mo socialista- não implica uma correspondente evolução do valor artístico, como pensam os marxistas vulgares: cada uma dessas estruturas, id&iticas na diversidade, representa a form4 coermte e orginica de reproduzir artisticamente - através de uma visão do mundo universal - um determinado e espcclfico "estado geral do mundo" (Hegel). Desta forma, é o universo da obra, sua coerência interna fundada no reflexo da realidade essencial, e não a posição ideológica do autor - a qual pode, ademais, estar em contradição com a visão do mundo subjac.cntc à obra-, é o universo imanente da obra que define o seu valor artístico. Mantendo-se no interior das estruturas "clissicas" do romance, centradas sobre o herói problemático individual, Graciliano é um realista critico, um dos maiores rcalisras críticos na literatura brasiJcira. Seu otimismo problemático, que compreende a tragédia como um dos seus momentos dialéticos, é a componente fundamental do seu humanismo, de sua visão do mundo literária; esta visão, como vimos, é o máximo de consciência possível do povo brasiJciro cm determinada época, isto é, do conjunto de classes que - do proletariado aos setores mais radicais da burguesia, passando pelo campesinato e pelas classes médias progressistas - esteve "aJmmu interessado em destruir o velho BrasiJ, substituindo o cárcere do "pequeno mundo" mesquinho por uma renovação democrática, pelo "gnuidc mundo" de uma comunidade autêntica. ~essa visão do mundo que permite a Graciliano representar os conilitos humanos típicos de uma sociedade duplamcnce contraditória, já que
dilac:crada não só pela contradição entre o pré-capitalismo,,:aduco e o capitalismo moderno, como também pelas novas contradições internas que o capitalismo trn necessariarncnce consigo. Daí a arualidade pemunente do velho Graça. a grandeza do seu realismo vigoroso e profundo. O esmagamento dos mdhorcs anseios e das melhores esperanças, a derroca trágica dos que lutam por superar um mundo v:azio e alienado e por encontrar o caminho da comunidade hwnana democrática são constantes na história brasileira. Mas, por sobre as tragédias momentâneas e individuais (embora socialmente necessárias), Graciliano Ramos ensina-nos a ver a pcrspccriva de um futuro mais brilhante, ainda que sem nos iludir sobre os obstáculos e as dificuldades na luta por alcançá-lo. Analisando o Doltwr Faustus de Thomas Mano, Lulclcs concluiu com uma frase que se aplica, mUl4tis mu11tndis, ao nosso caso: "O momento trágico pcrmanc:cc cm toda a sua obscura tristeza: no encanto, observado do ponto de vista do dcscnvolvimcnco da humanidade, [o romance manniano) é tão pouco pessimista quanto as grandes tragédias de Shakespeare" .11•
(1965)
''"
G. l..ulda, "ThOfTU$ Maon e~~ d.a am moderna", Í1!; /Á., ~ sHrr Utnw1J1f11, IUo ele Janeiro, Ovilizaçl.o Brasildra. 196S, p. 249.
O povo na literatura de Jorge Amado
O povo, cm suas múltiplas cstratificaçócs, não tem sido objcco privilegiado de representação na literatura brasileira; ainda mais escassas t&n sido as obras signi6carivas cm que o ponto de vista uti.l.izado na 6guraçáo cstérica seja o das camadas populares. Isso é resultado, cm grande pane, como observei cm outroS ensaios contidos neste volume, do modo pct:uliar pdo qual o Brasil se modernizou, pelo qual evoluiu para a consolidaçio de wna formação cconômicosoc:W plenamente capitalista. Valendo-se de uma terminologia di___ ,J:! _ .J _ " • • .. .. 1 . .. .. 1 vcnJn~ via pms.s•ana , revo uçao passiva , contrarrcvo uçao permanente", "modernização conservadora" -, pane significativa do pensamento social brasileiro converge na fixação dos traços decisivos desse processo de modcmizaçáo: as reformas ncccssárias à consolidação do capital.ismo foram sempre feitas pelo alto, atra~ da conciliação cncre diferences setores das cla.sscs dominantes, com a permanente tcntaeiv2 de c:xduir o pavo de qualquer participação decisiva nas decisões que envolvam as grandes questões nacionais. Boa pane da nossa literatura, consciente ou inconscicntcmcncc, adequo u-se a essa modalidade antidemocrática e antipopular de modernização, afastando as camadas populares de qualquer protagonismo efetivo no universo de suas figurações estéticas. Disso resultou uma produção literária que, rruUgrado o seu eventual valor formal, era e é muicas vczcs portadora de uma visão "intimista", marcada objetivamente por um viés elitista. Com as muitas exceções que confirmam a regra (e nio é casual que essas exceções, de Manud Antônio de Almeida a Castro Alves, de Machado de Assis a Uma Barreto, sejam figuras de pámciro plano na literatura brasileira do século 19 e início do século 20), contribuiu escassamente para a formação de uma aut~ntica consciência nacional-popular cm nosso país. Na maior parte das vezes, ela nio pretendia ser (e não foi) mais do que o "sorriso da sociedade", na emblemática expressão com que Afrânio Peixoto dcflniu a literatura cm geral.
196 CAAlos N[l.S()fj C011T1HHO
Apesar de seus inumeráveis méritos, não me parccc que.o movimento modernista de 1922 - pelo menos em sua formulação
inicial - tenha representado uma efetiva ruptura com essa tendência "inám.ista" dominante. Essa rupnira me parece rcpmcnrada de modo inequívoco, ao contrário, pelo romana: nordestino dos anos de 1930, o ma.is significativo movimento realista já ocorrido em nossa prosa de Seção. Não é casual que o romanc.c nordestino - entre cujas figuras mais representativas encontra-se precisamente Jorge Amado - tenha surgido logo após a Revolução de 1930, talvez a mais típica manifcs.. tação daquela. modalidade de transição excludente a que me referi. O segn:do da chamada Revolução de 1930 fui muito bem revelado por Antônio Carlos, o líder mineiro da Aliança Liberal: ~Façamos a revolução antes que o povo a f.aça". A nova ordem surgida após 1930 ccn:arncnte introduziu muitas das reformas modemizadoras necessárias à expansão e consolidação do capital.ismo; mas o fez sempre no quadro da conciliação com o atraso, sobretudo com o latifúndio, conservando a.çsim, e projetando para o fururo, os traços profundamente autoritários de nossa formação social anterior. O povo já se anunciava como um possívd pror.agon.ista, como o indica o temor de Antônio Carlos; mas, precisamente por isso, tratav:.i.•se de reprimi-lo ou de tentar manipulá-lo, mantendo-o à margem da nova ordem "moderna" que se pretendia construir. O romanc.c nordestino forneceu talvez. o mais lúcido ccsremunho dos impasses e das contradições geradas por esse processo de "revolução pelo alto". Ninguém expressou melhor do que Graciliano Ramos, por exemplo, os limites humanos da nov:.i. classe dominante que emerge da modernização conservadora: a figura de Paulo Honó rio, personagem central de São &rnarrio, na qual se mesclam os uaços mais despóticos do antigo senhor de escravos com a ambição e o egoísmo desmedidos da nov:.i. bwguesia, é talvez a núxima expressão, em nossa literatura, das consequências éticas e humanas da modernização promovida sem (e contra) o povo. Também na obra de outro notávd romancista da época, José Llns do Rego, podemos vivenciar as tragédias humanas que têm lugar quando da substituição do engenho pela usina, ou, mais prcci-
C ULTURA f SO(l(OAO( NO BRASIL
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sarnente, dos velhos valores de um mundo rural cm dccadencia pelo universo das relações capitalist:as, num processo cm que o novo conserva do velho precisamente os scw traços autoritários mais perversos, diminando, ao mesmo tempo, algumas formas de solidariedade humana funiliar que a velha ordem ainda comportava. Tanto Graciliano quanto José Llns, contudo, também perc.cbcm e figuram cm suas obras as potencialidades alternativas que emergem das camadas populares., o que lhes permite - como à generalidade do romance nordestino - não confundir a dura crítica do capitalismo cmcrgcn~e com a apologia noscllgica da velha ordem scmicolonial cm extinção. ~também no interior dessa problemática que se situa a pro<ÍU· çáo lite.rária inícial de Jorge Amado. Em sew primeiros romanc.cs, particula.rmcntc nos dedicados à região cacaucira, de nos mostra - sempre através da construção de destinos humanos ópicos, ou seja, com meios cspcci.6camentc literários - como a introdução de valores capitalistas no universo social, através sobretudo do acirramento do individualismo, fu..se cm estreita combinação com a pcrman~ncia do ethos autoritário da velha ordem. Ao mesmo tempo, e com uma intensidade que talvez não encontremos cm nenhum dos sew contemporâneos, Jorge Amado se empenha na construção de tipos populares alternativos, que apontem para a superação daquda poculiar modalidade de capital.ismo que ia se implantando cm nosso país. Decerto, cm não poucos casos - o mais típico dos quais me parece ser a última parte de Capitães de arria -, essa busca de tipos humanos alternativos ultrapassa os amplos limiccs do realismo e assume uaços utópico-românticos, revdando menos o movimento concreto do real do que as generosas posições poüticas do escritor baiano, o que se fu cm detrimcnco da lógica estética imanente do universo romanesco. Não é aqui o local para discutir cm profundidade até que ponto a adesão de Jorge Amado aos paradigmas do chamado "realismo socialista" prejudicou sua produção romanesca dessa primeira fase, que se encerra com Os subterrân~s á4 /ibert:ituk. A criação d e tipos alternativos que apenas "ilusuam" a ideologia do
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c.-m N!UON CoonNHO
autor, sem brotarem da dinimica do universo social estetiq,mente reconstruído, não é uma característica apenas de Jorge Amado: é um ümice que ele partilha com outros imponances escritores socialirnas da época. Porém, mais importante do que registrar esse limite - que, diga-se de passagem, nem sempre prejudica o realismo presente em suas principais criações do período - , é constatar como a força criativa de Jorge Amado muicas vezes triunfou sobre suas equivocadas concepções estético-ideológicas. Referindo-se a Balzac, Engds cunhou a noção de "vitória do realismo", buscando indicar como a fidelidade ao mundo esteticamente figurado leva codo grande escritor realista a abandonar, em sua práxis criativa, os próprios preconceitos ideológicos. A obra de Jorge Amado é uma confirmação da fecundidade dessa noção cngclsiana. Se a "vitória do realismo" não consegue se afumar cm todos os seus romances iniciais (ela me parece particularmente comprometida na trilogia Os subterrâneos da liberdade). cercamente está presente em muitos ddes, em particular cm Terras do sem fim, sua melhor produção dessa primeira fase.. A denúncia do stalinismo, cm 1956, par ocasião do XX Congresso do Paródo Comunista da U nião Soviética, levou Jorge Amado a rever radicalmente SU2S concepções estéticas e ideológicas, levando-o ao abandono dos dogmas do chamado "realismo socialista". Ao mesmo tempo cm que deixa de ser um "stalinista ferrenho", para usar sua própria autocaracterizaçáo, Amado conserva uma visão do mundo humanista e socialista, enriquecendo-a agora com urna explícita e consciente adesão ao valor universal da democracia. Com isso, fortaleceu-se a sua capacidade de criar tipos populares autenticamente rcallstas. As alternativas ao capitalismo autoritário, àquela ordem cujos valores de continua a denunciar, são cada vez mais buscadas na própria vida cotidiana das camadas populares, nos múltiplos recursos éticos e cultw:ais de que o povo dispõe para enfrentar, com astúcia e sagacidade, as siruaçõcs de oprcs.sáo e humilhação a que é submetido pelos "de cima", pelas classes dominantes. Isso já se evidencia claramente em Gabriela, cravo e canela, o primeiro romance dessa nova fase. Contra o pano de fundo de um
Cut TUllA E SOCllOAOE
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BllASIL
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processo de ttansfurmaçáo pelo alto (no qual os velhos oligarcas vão progressivamente abandonando o Coronel Ramiro Bastos e sendo cooptados pda proposta s6 aparcntememte "modemizadora" de Mundinho Falcáo, na tentativa de, mais um.a vez, "f.17.er a revolução antes que o povo a fàça"), destaca-se a autenticidade e sagacidade de Gabriela: da sabe operar nos intersácios abcnos pdo impacto dos novos costumes sobre o f2lso moralismo vigente, utilizando a seu favor todas as mudanças que iam sendo geradas, ainda que lenta e contraditoriamente, pelo processo de modernização cm curso. Sua resistblcia é individual, como também é individual o combate de Ten:z.a Batista - essa versão brasileira da Moll Flanders de Daniel Dcfoc - para afumar sua personalidade num mundo marcado pela hostilidade contra os que vbn "de baixo", sobretudo quando se trata de um.a mulher. Mas é esta, precisamente, a resistblcia possível num universo social condicionado pelo antidernocratismo, pela modcmizaçáo excludente. Muicas vcz.es essa simpatia pdo povo leva Jorge Amado a aceitar acriticamcnte muitos dos preconceitos vigentes nas camadas populares. Mas o fato é que, indicando quase sempre com realismo a presença dessa resistência, Amado nos mostra - através de recursos especificamente estéticos - como o povo brasileiro não é a massa amorfa manipulável imaginada pelos defensores dirimas das transformações pelo alto, mas sim um corpo social vivo e complexo, que detém os recursos para se tomar um dia o principal protagonista de nossa vida social, política e cultural. Um outro modo de rcsis~ncia, dessa feita coletiva, é a afirmação pelo povo, aberta ou veladamente, de seus próprios valores culturais e simbólicos contra a marginalização ou mesmo a repressão impostas pelas classes dominantes. Em Tenda dos milagres, que o autor cem razão em considerar o seu melhor romance, Amado nos mostra cxcmplanncnte o modo pelo qual as nossas classes dominantes conccbcram e continuam a conceber a modernidade no Brasil: "moderno" seria impor a cultura e os valores "brancos", "primeiro-mundistas", extirpando - até mediante a repressão o "acraso" representado pelas pretensas "superstições" negras e
200 C-.os Nll.50tf CouTINHO
populares. A luta pela legalização e reconhecimento dos.cultos afro-brasileiros, cravada por Jorge Amado tambbn quando parlamcnt:u" comunista, encontra cm Tmáa dos milagra a sua mais bela expressão literária: pelo menos cm dado momento de nossa história, a conquista pelo povo do direito de expressar abcrnuncntc seus valores, sua rcligiio e sua cultura significava um modo de romper com um aspecto importante da ideologia da modc.mização conservadora. Com lucidez realista, Jorge Amado faz com que Pedro Arcanjo - um dos seus personagens mais bem construídos - , ao mesmo tempo cm que luta tcnazmcncc pela legalidade dos cultos afro-brasileiros, suspenda o juízo quanto ao seu eventual conteúdo de verdade. O que conta - é o que parece nos dizer Jorge Amado - não é tanto discutir o conteúdo de verdade dessa ou daquela expressão cultural (essa é uma discussão a ser travada, dcmocraticamcncc, com instrumentos especificamente culturais); o fundamental é assegurar ao povo, à sua cultura e aos seus valores, condições de alcançar um pleno protagonismo na consuução da sociedade brasileira e, cm particular, de uma cultura aurcnticamencc nacional, democrática e pluralista. Tanto cm sua vida quanto cm sua obra, Jorge Amado sempre reafumou sua crença - para nos valermos de suas próprias palavras, cm Terna &tist11 - "na vida e na invencibilidade do povo, mesmo quando levado às últimas resistencias, quando restam apenas solidão e morte". Isso faz dele - ao lado de Lima Barreto, de Graciliano Ramos, de João Ubaldo Ribeiro e de alguns oucros - um dos maiores porta-vous das camadas populares na Htcrarura brasileira. Essa crença nos inesgotáveis recursos de que disp6c o povo (crença que se traduz literariamente cm figuras como Gabriela, Quinc:as Berro d'Água, Pedro Arcanjo, Tcreza Batisa, Tieta e tantas outras) faz de Jorge Amado uma d.as máximas cxprcssóes artísticas da consciencia nacional-popular cm nosso país.
A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior
1 Embora tenha consagrado a maior pane de sua obra historiográfica à análise de nosso passado, é inegável que o objetivo central da rdlexio de Ca.io Prado Júnior - o ponto focal a panir do qual se articula o conjunto de sua ampla investigação histórica - é a compreensão do Brasil moderno. Não é casual que o ótulo de sua história geral de nosso país - previsa. para quatro tomos, mas dos quais foi escrito apenas o primeiro, dedicado à "Colônia" - seja Fomulfáo do Brasil contnnpon1neo'' '. Pode-se traçar urna Unha conón ua que liga entre si a identificação do "'sentido da colonização", efetuada no brilhante capítulo com que se inicia essa sua obraprima sobre a colônia (de 1942), e as propostas para a "revolução bràsilcira", explicitadas cm sua úlcima produção signiAcativa (de 1966). Mesmo quando trata do passado, Ca.io Prado tem sempre cm visa. a investigação do pmm~ como história, o que implica para de, enquanto marxista, uma análise dialética da g~ncse e das perspectivas desse presente. Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão historiográfica, isso indica que nela estão contidos, a.inda que só implicitamente, conceitos de "transição" ou de "modernização". Se de quer pensar o presente como história, tem de responder ncc.essariamcntc à seguinte questão: de que modo e por que vias o Brasil evoluiu da situação colonial originária, através do império e d.as várias repúblicas, para a constelação histórico-social que apresenta 111
(1992)
Os dcnu.ls volumo. qw: C$l2IÚJn "cm pnpuo" cm 19S7. conlOfmc podemos ler n.a "orclhi' à S-cdlçio de~ Jo iJnlsJI ü~ c.14nil. SSo l'lulo. Brasili~ 19S7 (1• cd.: t~}, teriam os scguintc1 ónalos: 1) "A ~luçM> e a orgal\hação do Emdo nac1oiu1 (l 803· 1850); 2) Império ~ as insóruiç6ca do Bruil N~ (18501889); 3) "A Repúbllc:a e o Brasil cooccmporinco".
·o
202 CAAl.os NrLSOH Cou11NHO
hoje? Embora exista cm sua obra urna cena ambiguidade a g:spc.ito da caracterização do ponto de partida - ou seja, do modo de produção e da formação econômico-social vigente no Brasil antes da Abolição -, t indubitável que o historiador paulista não hesita cm identificar como plenamente capitalista o Brasil republicano. Em oposição ao modelo in terpretativo dominante na Terceira Internacional e no Panido Comunista Brasileiro (pelo menos a partir de 1930), de insiste cm que nosso país não é e jamais foi feudal ou scmifcudal e, por isso, não careceu nem ca.rcc.c de uma "revolução agrária e anti-imperialista" para se tornar moderno e capicaliscam. Mas, por outro lado, Caio Prado reconhece traços cxtrcmarncntc peculiares cm nosso capitalismo - traços que podcrfamos chamar de "não clássicos"-, dedicando boa pane de sua pesquisa a identificá-los e descobrir-lhes a gênese. Nesse sentido, a questão que antes formulamos ganha maior concrcrudc: quais foram as vias para o capitalismo e que consequências tiveram na constituição de nosso presente? Na Literatura marxista, existem dois conceitos extremamente fecundos para analisar vias "não clássicas" de: ~c:m para o capitalismo, ou, numa linguagem menos precisa, para a "modernidade": o de "via prussiana", elaborado por Lenin com o objetivo principal de concciruar a modernização agrária; e o de "revolução passiva", utilizado por Grarnsci para determinar processos sociais e políticos de transformação "pelo alto". Não há, na obra de Caio Prado, nenhuma referência explícita a ta.is conceitos, nem é de supor que ele os conhcccssc, sobretudo a noção de "revolução passiva", elaborada por Gramsci nos Cadnrws do cá~ e tomada pública somente no final dos anos de 1940. Caio Prado jamais cita Gramsci e não é frequente (se excetuarmos as referências a O imperUl/ismo) que cite Lenin. O registro dessa ausência sugere uma observação mais geral: o estoque de categorias marxistas de que se vale Caio Prado não llt
e __ uu
crido ao p:wdlgma tcrcdro-intmuciorulha eJd sobMudo cm Uio ~ Jr.,
A mJOl"(k lmui/d,,,, Sio Paulo, Brasillenx, 1987 (I • cd..: 1966), p. 29-75.
Cuuuiv. l
SOOIOADE NO BRASIL
203
é muito rico (essa relativa pobreza é sobretudo evidente cm suas obras de filosofia) . Nos trabalhos de história, por exemplo, cem pouco peso o cone.cito de "modo de produção", o que o leva por vczc:s a confundir, na análise da Colônia e do Império, o predomínio inequívoco de relações mercantis com a existencia de um sistema capitalista (ainda que "incompleto"), erro derivado da prioridade metodológica que ele conscientemente atribui à esfera da circulação cm detrimento da esfera da produção",. l.sso f.tt cambém com que de utiliz.c de modo pouco rigoroso a noção de burguesia: seriam "grandes burgueses nacionais", por exemplo, os latifundiários csc.ravocracas do Império'". Resulta igualmente do desconhecimento do cone.cito marxista de capital.ismo de ~tado (ou de capitalismo monopolista de Estado) o emprego tardio da imprecisa noção de "capitalismo burocrático" - um termo inventado por cx-crocskiscas para definir o regime social vigente na União Soviética stalinisca - cm seu esforço para identificar as peculiaridades do presente brasilc.irom. Esse rcgistto, naturalmente, não decorre da pretensão - que seriâ mesquinha e ridícula-de submeter recrospcctiva.mcntc Caio Prado a um exame de marxismo. Ele é feito aqui não tanto para indicar os eventuais limites de sua produção, que ccrcamcncc cx.istcm, mas sobretudo para sublinhar a sua criatividade e os seus extraordinários méritos pioneiros enquanto intérprete marxisllt da história brasileira. Nesse terreno, as categorias ma.rx.istas de que Caio Prado dispunha - e muicas das que inventou - pcrmitirarnlhc chegar, na maioria dos casos, a a.ná.l.iscs lúcidas, fecundas e quase sempre juscas. Por exemplo: a prioridade atribuída à esfera da circulação não o impediu de definir de modo substancialmente Em ~ J.o BtrUil '1111k711~ ti1.. p. 266. de d.iz: ºA Wlisc eh csuutun comercial de um país rcvda scmptt. melhor que a de qualquer um dos actorcs paniailatcs eh produção, o canta de W1U economia, sua narurcza e Olplllzaçio-. "' CT., po• CM'mplo. C. P. Júnior, &o~ po/llk1t J.o Bnuil t fllllnl mw/41, S5o Paulo. BruUicruc, 1957 (I • cd.. 1933), p. 81 ; e /J. Hist4rill ~"'.,,,;"' J.o BfrlSiJ. São Paulo. Br.ullimse, 1959 (l• cd. 1945). ptwinl. "' CI. C. P. Júnior, A MJOIM(M /miJiki,,,, rit., dmudo p. 122 e "-• 232 e u . e 2SS eu. "'
204 CMlos Nu50N CôuTINttO
(UlTIMA l SOCltDAOf NO 8 MSll
adequado a formação econômico-social da era colonial, iden tificada por ele como um cscravismo mercantil fundado na grande exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado
internacional. Suas in
2 Quando Lenin tenta conceituar a cilvcrsidade de vias para o capitalismo, inovando cm relação ao marxismo cvolucion4~ e unilinear da Segunda Internacional, constrói sua tipologia a partir do modo pcJo qual o capitalismo resolve a questão agrária. Recorda Lenin: Marx já dWa que a forma de propriccbde agrária que o modo de produção capiralisu encontra na história, ao começar a dcscnvolvcr-sc, não corresponde ao capiralismo. O proprio capitalismo aia para si as formas com:spondcoccs de ~ agririas, partindo das velhas formas de posse da cena (....). Na Alemanha, a cransfonnação das formas medi~ de propri~ agrária se proc:c:ssou, por a.uim dizer, qu.indo a via rcfunnisca, adaptando-se à roán.a, à tradição, is propriedades feudais. que se foram transformando lemamcncc cm fueodas de Ju.nkcrs (.•.). Nos Esados Unidos, a cransformação foi violcnca (...). As cerras [dos lacifundiiriosl foram fracionadas; a grande propricdaàc agrária feudal se c:onvcncu cm pequena propriccbde bwgucsa. "'
São aqui indicadas duas vias principais, que Lenin chamaria de "americana" (ou "clássica•) e de "prussiana". A via "cl2ssica" implica uma radical cransfonnação da csaurura agrária: a antiga propriedade p~italisca é dcstruída, convertendo-se cm pequena exploração camponesa. Nesse caso, nio s6 dcsaparcccm as relações de tnbalho p~italiscas, fundadas na coerção cxttaec:0nômica sobre o crabalhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já que são eliminadas as formas econômicas cm que d2 se apoiava e de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução oomo classe. Diverso é o caso da '"via prussiana": aqui a velha propriedade rural, conservando sua grande dimensão, vai se tomando progressivamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de formas de trabalho fundadas na coerção cxuaeconômica, em vínculos de dependência ou subordinação que se siruam fora das relações "impessoais" do mercado, e que vão desde a violência aberta até a intromissão na vida p rivada do ttabalhador. É eviden te que isoo permite a conservação (ou mesmo o fon:alccimcnto) do poder poUtico do velho tipo de proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da nova ordem capitalista. O leitor atento de Caio Prado não terá dificuldades cm reconhecer a proximidade de suas análises da questão agrária brasileira com a descrição leniniana da "'via prussiana". Para o historiador paulista, a modernização de nossa estrutura agrária não se deu segundo uma "via clássica"; não se pode f.tlar, no caso brasileiro, da supressão ra
"' Cf.•V. l. Lenin, OPITlf"l1'l'l •prlo ti. t«:W~. ~ ~ulo. Cil:nchs Hunww, 1980, p. 63.
205
Caio Pndo Júnior, A fWS1M ~ ""Bntsil , Sio Paulo, Br.r.si.licntc, 1979. p. 158 (Os mtllos contidos ncaaa ~ foram publicados na Rnillll Biwil~, entre março-abril de: l 9C>O e janciro-fc:vcrdro de: 1964).
206
CNILOS NEl.SOH CO\ITiflHO
Penso que Lenin não hesitaria cm definir como "não clássica" essa peculiar adaptação da "grande exploração rural" escravista, herdada da Colônia, ao capitalismo- uma adaptação que conserva, além da grande propriedade, traçe» KJ"Vis nas relações de trabalho. Característica da via "não clássica", ou "prussiana"', é precisa.mente essa complexa articulação de "progresso"' (a adaptação ao capitAilismo) e conservação (a permanência de importantes elementos da antiga ordem). Mas, além de registrar a presença desse processo de "modernização conservadora" (na feliz expressão de Barrington Moore Jr.) no Brasil, Caio Prado aponta também seus traços específicos e mesmo singulares, o que permite distingui-lo de outros casos igualmente "não clássicos", como o da própria Alemanha dos junknJ, ao qual se refere Lenin. Ao contrário desse país, o que no Brasil se adaptou "conservadoramcnte" ao capitalismo não foi um domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifündio peculiar: uma exploração rural de tipo colonild (ou seja, voltada desde as origens para a produção de valores de uoca para o mercado externo) e fundada cm relações escravistas de crabalho. É errado supor - afirma Caio Prado - que os elementos do velho que se conservaram no novo sejam "restos feudais". Diz de: O que existe e tem servido de comprovaçio e cxempli6caçio d.o 'feudalismo' brasileiro si.o rcmanes«ntC$ de rdaç6cs C1t"11111isuu, o que ~ bem diferente, tanto no que respeita à narurcza institucional dCS$U relações, como, e mais ainda, no que se refere às conscqu~ncias de ordem cconõmica, social e poliria daI dccorrcntC$.111
Entre tais consequências, Caio Prado enumera inúmeras formas de coerção cxtracconômica sobre o trabalhador rural, o que cria para este "uma situação toda cspccial de dependência e constrangimento que não existe para o trabalhador urbano""': o proprieclrio exerce sobre a pessoa do seu morador, por exemplo, uma dominação que vai além do uso de sua força de trabalho adquirida no mcrado, já que interfere na esfera do consumo '" Cf. A rrwiMç"1 bnuilnn1.. dJ. p. 104. ... a:. A 'fWSIM ~, ril., P• 96 e pilSSim.
CULTUllA E SOQ(DAOl NO BllASll
207
(obrigação de comprar no "barracão") e no seu direito civil de organizar a própria vida privada (impedimento de morar com a família ou de rcccbcr visitas etc.). Tudo isso encontra sua múima QeprcssáQ - pc:n$a Caio Prado - na completa ausência de direitos social-crabalh.istas no campo, situação que vigorou até recentemente (e, de certo modo, continua a vigorar até hoje). Em seus trabalhos dos anos de 1960, o autor de A lfuestlÚI apriA M Brasil considerava a superação dessa situação como a tarefa primordial da "revolução brasileira" no campo. Cabe registrar que essa modalidade de '"via prussiana", além de conservar o poder político do grande proprietário rural, permitiu ao capitalismo brasileiro cxcrc.cr uma supcrcxploraçáo da força de trabalho, Wlto rural quanto urbana, com o que se manteve um craço marcante da era colonial: o baixíssimo padrão de vida do produtor direto. Um dos principais méritos dessa araccerização caiopradiana da natureza de nossa formação social moderna, definida objetivamente como um apitalismo "não c/ds.sico", foi precisamente o de permitir ao historiador apresentá-la como capitalista. Esta não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos até os anos de 1960. Ignorando a problemática das formas "não clássicas" de transição para o capitalismo (e as peculiaridades da formação capitalista que delas resultam), os marxistas brasileiros - sobretudo os ügados ao PCB - afumaram durante muitos anos que o Brasil era um país "scmifeudal" e "scmicolonial", que se defrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa de efetuar uma "revolução democrárico-bwgucsa" ou de "libertação nacional". Nessa afirmação, estava implícita a noção - falsa - de que para ser plenamente capitalista um país tinha que seguir uma via"~ sica" de cransição e apresentar todos os traços de um capitalismo igualmente "clássico". Os inúmeros equívocos a que isso conduziu, canto na teoria como na prática, são apontados por Caio Prado cm A TnJOlução bnzsikirrz.. De particular importância, de resto, é sua clara afirmação de que não só a formação econômico-social cm geral, mas também a cstrurura agrdria do Brasil são de natureza capitalista:
208 CAia.os NIUOH CounNHO
Os polos principais da csuurura socW do campo brasileiro - da de~ não $áo o ' latifundiário' ou 'proprietário senhor feudal ou scmifeudal', de um lado, e o camponés, de outro; e sim, respcaivamcntc, o empresário capiWista e o mbalhador empregado, assalariado ou assimilávd econômica e socialmente ao assalariado. 1»
É possfvd que, no ardor de uma justa polêmica, Caio Prado tenha em alguns casos superestimado a possibilidade de assimilar determinadas formas de remuneração do trabalho rural (como a parceria) ao assalariamento"'; mas é inegável que ele definiu com muito mais rigor do que os defensores da tese dos "restos feudais" a real natureza da moderna estrutura agrária brasileira. Por outro lado, graças à sua utilização tácita do conceito de vias "não clássicas" para o capitalismo, Caio Prado combateu corretamente a ideia d e que esses "restos servis" constituíssem óbices ao desenvolvimento do modo de produção capitalista entre n ós, como sempre supôs o dualismo cepalino e aquele implícito nas propostas d o PCB. Antecipando posições que pouco tempo depois seriam retomadas e aprofundadas por Francisco de Oliveira, Caio Prado afirma: (...) as sobn:vivências pn!
De passagem, poderia recordar que, nessa recusa de uma visão dualista - para a qual o lado "atrasado" seria um empecilho, e não algo funcional, ao desenvolvimento do lado "modern o" -, 1111 111
122
Cf. A rnKJÚJfb b1'1Ui/dn1,. riJ., p. 105. Cf., para uma critica dessas posiç6cs de Caio Prado, á. Guido Man1cp, A tto""m/JI po/ltiu bnt.Sildnt. S5o Paulo/Petrópolis, Pol.is/Voz,,s, 1984. p. 250" ~. Caio Prado Jr., A TnJO/"flo bl'1Ui/drw. tit.., p. 97-98. Cf. Fr.ancisco de Olivdra, vA cconom~ brullcin: critic2 i r:Wo diulim", ln: /imJJJs C,,/mp, n. 2, S5o P.aulo, ou rubro de l 9n. p. 3-82.
CVlT\lllA E SOOEOAOE NO 8AASll
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as investigações de Caio Prado convergem objetivamente com as aniliscs de Gramsci acerca da "questão meridional" ttaliana111•
3 Ainda que a questão agrária ccnha lugar de destaque na determinação da via de transição à modernidade, um posto central nesse processo pode também ser ocupado, cm momentos determinados, por uma outra "questão nacional", inclusive de natureza supcrcscrutural. É esta a posição de Lenin, ao comparar a Rússia com a Alemanha: "É a questão agrária que encarna agora na Rússia a questáo Nteionaldo desenvolvimento burgues (...).Na Alemanha, entre 1848 e 1871, ela consistia na unificação [na criação de um Estado nacional unificado], e não na questão agrária".11< Em outras palavras: é o modo de resolver a "questão nacional" central que irá indicar se a implantação ou consolidação da fonnação ccon6micosocial capitalista será de tipo "prussiano" ou, ao contrário, de tipo "clássico". Lenin prossegue: Osanos 1848- 1871 foram [naAlcmanhaJa~pocadeumalucarcvolucionária ç ÇQn~l11cioniria çncrç
Também a Itália, cm meados do século passado, dcfrontavasc com o desafio da const.r ução de um Estado unificado, que era cotá.o a questão básica de sua transição definitiva para o capitalismo. Como se sabe, a solução que predominou foi a de uma transformação "pelo alto": a casa real do Piemonte, sob a direção de liberais moderados, liderou um processo de "arranjos políticos" entre as várias classes dominantes das diferentes regiões italianas, algumas das quais baseavam ainda sua dominação cm formas IU
cr. cm patticubr. os msalos contidos cm Anronio Gramsci, A 'f"6'ÁO mniÁilllllll, Rio
114
de Janeiro, Paz e Tera, 1987. V.l. lcnjn, •1...cttrc l I. Skovo·rsuov.Slépanov•, in: Onmrn. Puis, Ed. Socialcs, 1973.
l2)
~·· 16. p. 122. /bUL., p. 124.
210 C-.os NELSON c:oun..oo
econômico-sociais de tipo feudal; com isso, as massas populares da península foram excluídas de qualquer papel determinante no novo Estado nacional unificado. Foi buscando compreender as vic~icudes da unifk.açáo italiana - o chamado Ri.sorgimm«J -, bem como suas consequ!ncias para o presente da lcllia, que Gramsci elaborou o conceito de "revolução passiva", vista por de como um processo de modernização oposto à revolução popular "ativa" de tipo jacobino: enquanto esse tipo de transição ocorre quando uma classe ou bloco de classes conquista a hegemonia, mobiliz.ando efetivamente as massas populares e conduzindo-as a uma eliminação radical da velha ordem, a "revolução passiva" consiste numa sequwcia de rruUlobras "pelo alto", de conciliações entre diferentes segmentos das dites dominantes, com a consequente exclusão da participação popular. Decerto, a "revolução passiva" opera mudanças necessárias ao "progresso", mas o faz no quadro da conservação de importantes elementos sociais, políticos e econômicos da velha ordem. As massas, desorganizadas e repri.midas, faz.em sentir sua presença. mas sobrcrudo através de movimentos sem incidência efetiva, algo que Gramsci chamou de "subvcrsivismo esporádico e dementar". E um dos modos pelos quais as classes dominantes quebram a resistência à sua dominação, além naruralmcn rc da repressão aberta., é a cooptação das lideranças dos grupos opositores: um processo que o pensador italiano chama de "cransformismo"ru. As analogias entre o Risorgi~nto italiano e os eventos que constiruem o processo da Independência e da consoüdação do Estado imperial no Brasil são significativas. Assim, não é casual que Caio Prado Júnior, escrevendo sobre esses eventos cm 1933 - praticamente no mesmo momento, portanto, cm que Gramsci elaborava no cárcere seu conceito de "revolução passiva"-, tivesse chegado a resultados muito semelhantes aos do pensador italiano. Antes de mais nada, tanto para ele como para Gramsci, os processos '"
(UlTUM E SOOEl>AD< NO BRASIL
cm questão, embora conduz.idos "pelo alto", levaram a mudanças efetivas: com a Independência, diz Caio Prado, "é a superestrutura poUtica do Brasil-Colônia que, já não correspondendo ao estado
das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se rompe. para dar lugu a outras formas mais adequadas". Essas mudanças, contudo, não anulam o fato de que, na nova ordem, "permanece mais ou menos intacta a orgao.ização social vigente" na época colonial. E por que isso ocorre? A rcsposca de Caio Prado é raxativa: A forma pela qual se operou a emancipação do Brasil [cem] o car.her de 'amnjo policico' (..•), de manobras de bastidores, cm que a luta se d=rola cxdusivamcnic cm tomo do príncipe-regente(...). Resulta dai que a lndcpcndênci.a se f.rz por uma simples cransfc~ncia política de poderes da metrópole para o novo governo brasilcilo. E, na f.Uta de movimentos populares, na f.Uca de participação direta das lll2SSaS nesse processo, o poder ~ todo absorvido pclu classes superiores da cx-ooltmi.a (...}. Fez.se a independência pr.uicamcntc à rcvdia do povo; c is:so (...) afutou por completo sua participação na nova ordem política. A indcpcndênci2 brasUeira ~fruto mals de uma classe do que da nação tomada cm $Cll conjunto. 111
Essa explicação da Independência como cransformação "pelo alto" - que implica mudança, mas talvez sobretudo conservação - não esgota os pontos de aproximação entre a análise de Caio Prado e a de Gramsci. Escudando os movimentos populares que marcaram o período de consolidação do Estado imperial, o historiador paulista chega a conclusões semelhantes às do autor dos Catkrnos dlJ cárure também no que se refere à presença cm tais movimentos de um "subversismo esporádico e dementar". Assim, referindo-se à Balaiada - mas cm observação que poderia valer, mutatis mutandis, para todos os levantes da época regencial -. diz Caio Prado: "Em vez de um levante d e massa, logo aproveitado para a realização de uma política consequente, o que vemos (...) [são] apenas bandos armados que percorrem o sertão
Para uma síntese: do conceito grmuci2Do de "revolução passiV2". á . C.N. Coutinho.
Gramsn. Um tSnuJo ~brt 1tt1 J>fflSID'IOI~ polirito, Rio de Jan~íro, Oviliuçio Brasikín. 1999, p. 191-219.
211
"'
Ca.io Pnd.o Jr. &ol"{d" ~lltk11 tilJ 8r11Jil. cit., p. '49-50.
CulTIJRA r SOCllOAOt
cm saques e depredações".''" Embora náo use a gramsciana cxprcssáo "sociedade civil,. (mas sim "esuurura política democrática e popular"), Caio Prado indica na ausência de auto-organiz.ação e de coesão dos grupos subalternos - o que os impede de se tornarem acorcs poUricos efetivos - as raízes da derrota de uma via "jacobina" para a resolução de nossa qucstáo nacional. O principal grupo subalterno, os escravos, estava impossibilitado por condições objetivas e subjelivas de alcançar um grau efetivo de o rganização: (Os escravos) nio formam wna musa c:ocsa (...) e, por isso, rcprcscncun um papel poUtico insignificante (...). Falavam aos escravos bra.silciros todos os dcmemos para se constimlrcm, apesar do seu considerivd número, cm &tores de vuho no cquih'brio político o.acional.
O mesmo pode ser dito da ª população livre das camadas médias e inferiores": "náo atuavam sobre da - prossegue Caio Prado - fatores capazes de lhe dar coesão social e possibilidades de uma eficiente atuação política". E, logo após, ele fornece o diagnóstico dessa situação de amorfismo, de falta de coesão: "A economia nacional, e com ela nossa o rganização social, assente como estava numa larga base escravista, não comportava naturalmente uma estrurura política democrática e popular" .'J:t E, se a rebeldia das camadas subalternas revelou-se impotente, cm função da rcpressáo estatal e da desorganização interna, as contradições no seio das classes dominantes podiam ser resolvidas, e efetivamente o foram , pela via da cooptação e do transformismo: Os governos que se seguem à Maioridade ttm toei.os o mesmo caráter. Se bem que, dife.rcnciados no rótulo com as designações de ' liberal' e 'conservador', 1odos cvolu.lram em igual sentido, sem que essa variedade de nomenclatura tivesse maior signiSc:açáo. Por isso mC$0\0 ~ comum, e mal se C$tranha, a passagem de um político de um para ou tro grupo.',,.
Poderíamos destacar aqui, numa análise comparativa entre vias "náo clássicas", uma especificidade brasileira; enquanto na i 1t
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/hl.. P· 7-4. //JiJ, p. 63. lltül... p. 81 .
"° BAASa.
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Alemanha a soluçáo "prussiana" da questão agrária precede a soluçáo igualmente "prussiana" da qucstáo da unificação nacional, e enquanto na Itália as duas questões sáo resolvidas "passivamente" ao mesmo tcmpoi nota~sc no Brasil uma sequência cronológica diversa. A solução "pelo alto" da qucstáo do Estado nacional unifi. cado precede e condiciona a soluçáo "prussiana" da modernização agrária: conservando a grande exploração rural e o domínio político dos propriecários de cerra e de escravos, a "rcvoluçáo passiva" que se inicia com a Independência e se consolida com o golpe da Maioridade prepara o desfecho "prussiano" para a questão da adaptaçáo da estrutura agrária ao capitalismo no plano interno, no momento em que se esgotam as potencialidades das rcl.çóes cscravisus de trabalho. Nesse sentido, ambos os movimentos furam importantes degraus na lenta e "náo clássica" marcha do Brasil para o capitalismo, deixando ademais profundas marcas cm nosso presente. Caio Prado observa corretamente: "A cvoluçáo política progressista do lm~rio corresponde assim, no terreno econômico, à integração sucessiva do país numa forma produtiva superior: a
forma capita.Wtâ."' E, quando isso ocorre de modo definitivo, com a Abolição e a República, as condições estavam preparadas para mais uma "revolução passiva", aquela que leva à criação da república oligirquica. Caio Prado náo deixa de registrar o fato, ainda que só de passagem, quando observa que a proclamação da República mobilizou táo pouco as camadas populares que "uma simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar [do Império] o último suspiro" .'>2
4 Com suas análises da formação do Estado nacional e da cvoluçáo agrária brasileira, Caio Prado lançou os fundamentos para uma a.dcquada compreensão marxista da via "náo clássica" de transição do Brasil para o capitalismo. Registrou, com sagacidade e UI Ul
//,U.. p. 91. JIJ.úi., p. 9(.
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(ULTUllA C SOOCDADE NO BMSIL
ÚlltlOS NWOH Ú>llTIHHO
criatividade, as bases materiais e os processos políticos que geraram uma formação social certamente capitalista, mas assinalada por características profundamente autoritárias e excludentes. Náo creio que nenhum pensador marxista brasileiro da época ccnha decuminado com tanta propriedade as raú.cs do Brasil moderno. Aliás, na América Latina, penso que somente José Carlos Mariátegtú (cujo esroque categorial marxista, diga-se de passagem. era igualmente reduzido e problemático) realizou uma obra semelhante para um país concreto, ao analisar a i.ndependência peruana como uma "revolução abortada" e ao apontar as danosas consequências desse "aborto" nas várias esferas sociais do Peru moderno'". E náo me parece casual que esses dois pensadores ccnham realizado suas investigações à margem dos - ou mesmo cm aberta oposição aos - modelos te6ricos que a Terceira Internacional, já sob direção stalinista, tentava impor ao marxismo latino-americano, através, sobretudo, de nossos partidos comunistas. Mas, se Caio Prado determinou adequadamente as raízes de nos.so capitalismo, não creio que tenha sempre feito o mesmo
cm relação à caracterização do Brasil de hoje. Nesse caso, sua interpretação, expressa sobretudo cm obras mais recentes, apresenta pontos problemáticos. As razões dessa problcmaticidade me parecem residir n o fato de que, se o historiador paulista captou com acuidade o momento "conservador" d e nos.sos processos de cransição, tendeu a minimizar e subestimar os elementos de "modernização" que eles também trouxeram consigo. Gramsci, quando trata dos processos de transformação "pelo alto", emprega cm alguns casos o termo "revolução-restauração", pretendendo com isso indicar que o momento "restaurador" ou "conservador" d esse ripo de transformação não impede que através dela ocorram também modificações efetivas na ordem social. Diz Gramsci: "As modificaçócs moleculares [promovidas pelas 'revoluções passivas') modificam progressivamente a composição l1l
Cf. J. C. Mariíicgul, Se~ OU1Ji111 J, inttTJlrttafh Expiemo Popular, 2010,piusim.
J. m1/Uuk P"""""'• Sio Paulõ,
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anterior de forças e, por conseguinte, torruun-se matriz de novas modificações". • )4 Embora certamente reconheça que o caminho "não clássico" para o capitalismo brasileiro gerou mudanças cm nossa estrutura social, Caio Prado tende a pôr ~nfasc maior no momento da conservação, da reprodução do velho. Ainda cm t 9n, repetindo uma ideia frequentemente expressa cm sua obra mais recente, afuma o seguinte: Eucncialmcnrc, ex>m as adapaçóc:s ncccssárW dcrcrminadas pelas roncing&cias do nosso tempo, somos o mesmo do passado. Se não quanciu.civamente, na qu.alidadc (...). Embo12 cm mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto ~ na base. uma economia fundada na produçio de matfrias-primas e gfocros alimc:núcios d.cmandados nos mercados intcmacionals.'"
O Brasil não só conúnuaria essencialmente "colonial", mas a agricultura teria ainda, na estrutura global do país, um papel de "primordial importância""'. Ora, para que isso possa ser afirmado, Caio Prado Júnior é obrigado a contrariar as evidências empíricas
e a concluir que, no Brasil contemporâneo, não há "nada (...) que se as.semelhe a um processo de industrialização digno desse nome"'" . Mesmo quando reconhece a ocorr~ncia de fatos novos, o historiador paulista tende a tratá-los como "aparências" que não alteram a "essência" - ou quantidades que não mudam a qualidade - . isto é, como manifestações que, longe de implicarem a superação do passado, contribuem para acentuar seus traços mais perversos. Este me parece ser o caso, por exemplo, de sua teoria ca.rdia do "capitalismo burocrático": no Brasil, ao lado de um setor •>< A. G12nuici, CukrMs "4 cJrrnr, cil. , v. 5, p. 208. "' Caio Prado Jr. A rrvo/Ufb lmuibira. dt., p. 240. '" 'Ld p. 30. ES$a Clfllualicbdc do campo E reafi.~ em 1978, n<> prcBcio que Caio fula., Prido escreveu pan sua c:olcdnca aobrc .A 'I~ 11plrl4. dt., p. 12- 13. '" Cf. .A rrvo!Mr.Jo bl'dsilnr11, d t., p. 243. De ceno modo, essa wcatíva ~ - feita cm 1977 - mocli6ca suas posiçóes :anteriores, mais .quilibr:adas, ~"'sempre dcicas, iõbrt á industri.álizaçio e: suas potcncialid:ulcs; cí., por exemplo, Hlsilrúi m1nJmk6 J,, BrASil. d r., p. 263-274.
216 C.W.0S NCl.JOfl (()U'IWjHO
burgues "ortodoxo", que se desenvolve com base no livre mercado, teria surgido uma burguesia gerada e alimentada pelo Estado. Não é diflcil perceber que Caio Prado mistura aqui duas ordens
de fenômenos. Ele regism corrct2.mente a ocorrtncia encrc nós de manifestações de corrupção na máquina estatal, as quais, na intensidade com que ocorreram e ainda ocorrem no Brasil, são cm pane resultado de uma visão patrimonialista do Estado, que tem suas raízes cm nosso passado e são expressões de nosso "atraso". É justa sua indignação contra tais &tos e, cm particular, a crítica que f.az a uma cena subestimação dos mesmos pela esquerda. Mas essa indignação o impede, por outro lado, de distinguir entre esse fenômeno perverso, mas relativamente marginal, e um traço básico, estrutural, de nosso capitalismo "não clássico": o processo de industrialização no Brasil, verificando-se tardiamente cm nivd mundial, demandou - tal como ocorreu cm outros pa.{scs que seguiram também vias "não clássicas", como a Alemanha e o Japão - uma ampla e precoce participação do Estado na acumulação de capital, não só através de processos de regulação, mas também da criação de emp~ diretamente produtivas. Não é aqui o lug:u para tratar cm detalhe das especificidades do capitalismo de Estado no Brasil (que a época ditatorial posterior a 1964 contribuiu para transformar cm capitalismo monopolista de Estado).,.. Mas cabe pelo menos subUnhar que, cm vez de representar um obsclculo para o desenvolvimento capitalista "saudávd" e de ser uma manifestação de nosso "atraso•, como supõe Caio Prado'"• a intervenção do Estado constitui elemento decisivo na acumulação de capital e. em panicular. no processo de industrialização. constituindo assim um traço - e um traço substancial - de nossa "modernidade". Não é, pois, casual que a "revolução passiva" que se inicia cm 1930, se fortalece com o Estado Novo e prossegue na época populista - uma "revolução" que, industrializando o país R.cmcro, pan uma disawáo do problema, a meu cnsalo ·o capitalismo monopolista d.e Est.do no Br.uil•. in: C. N. Coudnho, A ~ N>- wlÍl>r 1111/tJmA/, ""mn msll~s, Rio dcjandro, Salamandn, 1984. p. 163-195. ,,. Cl. ., por Clmlplo. A rnoÚJfM ~"'· d1., p. 123. 111
Cum1u. l SOCllOADt NO BllMll
217
com o apoio da intervenção estatal, consolidou definitivamente o modo de p rodução capitalista no Brasil - seja subestimada (ou mesmo ignorada) na representação caiopradiana. do Brasil moderno. Todo esse período parece poder ser subsumido na infclii expressão com que de caractcriwu o governo Goulart: um "período mal&dado"''". E tampouco é casual que, cm sua ccnd&icia a subestimar as novidades, de se refira aos primeiros 12 anos da ditadura militar - que devaram nosso capitalismo ao estágio de capitalismo monopolista de Estado - como um período que "não assinala efetivamente(...) nenhum sinal significativo de mudança essencial do passado". 1• 1 Embora tenha sido um dos mais duros críticos do paradigma terceiro-intcmacionaljsta, pode-se conscatar que, na análise do nosso presente, Caio Prado se aproxima cm muitos pontos do "cscagnacionismo" contido cm tal paradigma: o desenvolvimento brasileiro, sua passagem definitiva pa.ra a "modernidade", estaria bloqueado pelo "acraso", seja nas relações agrárias, seja no setor industrial, um "atraso" proveniente, pensa ele, da limitação cstrurural do mercado interno e da dcpcndblcia ao imperialismo. E, além dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa convergência objetiva entre o Caio Prado tardio e os teóricos do "desenvolvimento do subdesenvolvimento", como André Gundcr Fra.nk e Ruy Mauro Marini, o que levou a um mal-entendido no plano político: A TnlO~ brasikirtz. publicado cm 1966, terminou por alimentar a ideologia da ultracsquerda no Brasil, a qual se baseava na &isa alternativa entre "socialismo j:i'' ou "ditadura fascista com estagnação econômica". Essa alternativa não está absolutamente presente no livro de Caio Prado; mas a sua visão do Brasil como ''" lin6.. p. 23. Tambán o go.ano Jcu dwúsimas cri1icu d.e Ca.io Pndo. não IÔ cm A ~ ~ mas já "°' cnWoc dos anos d.e 1950, publiadoc na Rnútll /Jnuilinu,,, Ct'do que de nio só subadmou o incg:lvd cksmvo!Yimcnto d.a industrializaçlo que se lnicb na c:n V1lgUisu e proacguc na c:n popullsu, mas ignorou compkumcucc o crescimento e ariv\\çk> d.a toeicdadc civil nda ocorrido, sobmudo no "pcriodo malfa
218 C-.os NELSON CO
estruturalmente atrasado e estagnado podia contribuir W>jcrivamcnte para alimentá-la, como de fato ocorreu. Finalmente, cabe observar que essa visão •atrasada" pare-
ce ser responsável pela insuficiente formulação da questão da democracia política ruas análises do h istoriador paulista'". Se o Brasil ~ plenamente capitalista, mas chegou a essa situação atrav6 de processos de transição que configuram wna ordem social exdudente e auto ritária - como nos ensina Caio Prado -, então a p rincipal tarefa histórica que se coloca hoje ao nosso povo, ou seja, o conteúdo da "revolução brasileira", consiste cm inverter essa tend~cia "prussiana", por meio da consolidação daquilo que, cm sua obra de 1933, o historiador chamava de "'c suurura política dcmocri.tica e popular", agora tomada possfvd pela cmcrg~cia de novas condições objetivas e subjetivas. Ao limitar as metas atuais da "revolução brasileira" à modificação das relações t:rabalhisus no campo e à "libertação nacional"' cm face do imperialismo, Caio Prado pagou um tributo às concepções tcrcciro-intcmacionalisw da democracia, que minimizam os aspectos cspcci6camcnte polfticos desta última cm favor de seus pressupostos econômicos e sociais. Contudo, no final do a~dicc que escreveu cm 1977 para A mJOÚJfáJJ lmzsikira. parece esboçar-se - ainda que só cmbrionariarnente - wna formulação que situa Caio Prado, tambbn nessa questão, para ai~ do horizonte da Terceira Internacional. Ddlnindo a democracia como "participação efetiva dos governados na ação e no comportarne.n to do governo", de conclu.i que "uma 141
E.te ~ um dos ponr:os oormos da crfcica dlrigida a Calo Pnido, c:m 1966. por Assis T•· vucs. pscud6nlmo sob o qual era cnoo obripfo a se oculw um imponanrc dirigcnrc comunista, Muco Anrbnlo Codho (cf. A. T11V2.rCS, "Caio Pnido e a teoria da rnoluçfio btuílcita". ín: Rnisw ~ Btraílmrl. n. 11-12, dc:umbio de 1966/março de 1967. p. 79). Tambán ~ justa a obscmição segundo 2 qual Caio Prado "nem xqucr cogjrou de examinar u canudas m6dhs wbanas" (íbU/. , p.m. Em .,as>nài. a meu.,.,,, clcconc da cauralidadc que de wibui ao campo. em c:ocucqublda de sua visão "auuada" do Bruil. ApcAr de~ pmincnrcs. o anigo de T11V2.rCS - quc mcrcccu uma longa rapoA2 de Calo Pndo, ioduid1 iw cd.iç6a mais ruaua de À rrJllÚlf# mRJdM rcprodui. no cucnclal, o pculMiigma anaUôco da Tuccira lnccmxional.
Cum~A 1 SOCIEOADE NO BllASIL
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democracia só para a burguesia e os aspirantes a burgues (...) não é rcaliz.ávd : [a democracia] ou será de todos ou de ningu~". "' Se houvesse desenvolvido essa formulação, Caio Prado teria definido corretamente as tarefas atuais da "revolução brasileira": somente atrav6 da plena realização da democracia - que não é um valor burgues, mas sim universal, "d e todos· - é que chegaremos ao socialismo. Caio Prado, como vimos, foi um n otável precursor dos marxistas que h oje buscam entender o caráter "não clássico" da transição para o capitalismo no Brasil. Se tivesse avançado cm sua intuição sobre o valor universal da democracia, ter.-sc-ia tornado cam~m um estimulador dos que se empenham arualmcoce cm pensar de modo novo o vfncuJo estrutural entre socialismo e democracia. De qualquer modo, parece-me incgávd que, sem a obra de Caio Prado, a interpretação marxista do Brasil seria hoje substancialmente mais pobre. (1988)
Marxismo e • imagem do Brasilw em Florestan Fernandes
1 Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em suas obras, o que poderíamos chamar de uma "imagem do Brasil". lm2gcns desse tipo articulam sempre juízos de f.uo com juízos de valor, na medida em que não se Umitam a fornocer indicações para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso país (como, por c:xcmplo, o sistema colonial, a industrialização, a consciência do empresariado, o movimento sindical etc. etc.), mas se propõem - para além e/ou a partir disso - a nos dar uma visão de conjunto, que impUca não só a compreensão de nosso passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspectivas para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos diur que tais "'imagens" contêm sempre uma aniculação entre ciência e "ideologia", ou entre ser e dever-ser, o que nos permite classificá-las - conforme sua perspectiva seja conservadora ou revolucionária - como de direita ou de esquerda. Para darmos uns poucos exemplos, há "imagens do Brasil" nas obras de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna, q ue são de direita, ou na de Caio Prado Júnior, que é de esquerda. Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores em cuja obra podemos encontrar uma "imagem do Brasil". Diria mesmo que o mais vaUoso de sua vasta produção teórica - que abordou com competência tantos e tão variados temas, da organização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos da sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no Brasil, das questões da escola pública às vicissitudes da revolução latinoamcricana - é precisamente essa " imagem do Brasil" q ue da nos fornece. Tal "imagem" é apresentada, sobretudo, cm A revo/u;áQ
Cuuviv. l
222 CAAlos NNOH Coum•HO
SOCllOA.Ol NO
8AASll. 223
obra-prima, cnuc outras coisas pelo papel central que ocupa cm sua produção teórica, na qual representa, de resto, um claro ponto
nossos dias. Certamente, seria do maior valor a realização de uma pesquisa que situasse a obra de Florcstan na hist6ria do marxismo brasileiro. Como é 6bvio, trata-se de uma tarefa que não posso
de inflexão. Com cfcico, embora Florcstan retome nesse livro cernas
enfrentar ~yi, Irei me limiw a propor algumas comparações
já abordados cm obras anteriores, o fuz cm ouuo nivd: trata-se do seu primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente como pomo de vista metodol6gico. Essa centralidade de RBB se confirma, de resto, quando constatamos que as análises da sociedade e da vida politica brasileiras presentes nas produções posteriores de Florestan, sobretudo nos livros de combate e nos muitos artigos jornalísticos que reuniu cm várias coletâneas, inspiram-se indubitavdmcntc nas formulações já expostas no livro publicado cm 1975. Antes de mais nada, é preciso sublinhar o fato de que a "imagem do Brasil" proposta por Florcstan é urna imagem marxista e, portanto, revolucionária. Se não é difkil apontar a presença hegemónica do método funcionalista nos primeiros trabalhos de nosso autor, é também indiscudvd que o seu empenho te6ricometodol6gico assume, sobretudo a partir de RBB, uma explicita e consciente dimensão marxista. Com isso, Florcstan se insere numa tradição que se inicia com Octávio Brandão {o qual, malgrado suas evidences debilidades teóricas, é o primeiro a tentar formular uma "imagem do Brasil" à luz do marxismo)'º, passa por Caio Prado Júnior e pelo Partido Comunista Brasileiro"' e chega até
enae a sua "imagem do Brasil" e aquela de Caio Prado, seu mais brilhante precursor marxista, tentando indicar t6picos concretos nos quais Florcstan, cm minha opinião, avança com relação ao autor de FomutfÍÍD do Brasil contnnpordneo (o que não anula o fato de que sua reflexão, como também veremos, continua a apresentar aspectos problemáticos). Como subsídio inicial para encaminhar essa comparação, permito-me lembrar que - tal como cm Caio Prado Jr. e outros autores marxisr:as -, o tema central da "imagem do Brasil" cm Florcstan é a questão da "revolução burguesa"', ou, mais precisamente: 1) dos processos que nos conduziram à "modernidade" capitalista; 2) das espcciflcidadcs que, em função da modalidade assumida por essa "revolução burguesa", tomaram-se próprias do nosso capitalismo; e, finalmente, 3) das tend6lcias e caminhos que apontam para a superação dessa formação econômico-social em nosso país.
burguesa no Brasil"•, que cu não hesitaria cm definir como a sua
"º
Aorcstatt flcrrundC$, A '""'~ /111rpa11 Brruil. &sim tÚ I~ ~· Rio dr janriro, Zahar, 1975, a seguir citada no corpo do cc:xco como RBB, seguida. quando nc<:el$lrio, pelo número da página. us CE. Fri~ Maytt [pseudónimo de Occlvlo Bcand4oJ. Agrtlrlsmo ' i,,,J~. &wtio l'Nlnàslll·latb.islll solm" 10J0il4 til S. P""f;,, 11pnrri tiL &um"" Brail, São ~ulo. Anita Garibaldl, 2006. (A cdlçlo origiiW 4! dr 1926). Para WD2 dcva.st:adora aíúca d.cs:sc livro de Brandio. cf. Leandro Kondcr, A tlnror11 "4 ái11Udr11, São Paulo, Exprcssio Pop..W, 2010. p. 181 - 186. "' Em 1933, Calo Prado Jr. publia seu primeiro~ millXÍSl2. Ew/uç"4 po/Jti<11 tio Bnuil Em 1942 e 1945. n:spcctiv:uncruc, public:a.rá N"""fÚ tio BrtUÜ conrmrpor41'1H. Co/Jnia e H isllrill «01ffinrk11 "4 Bf'IUÍÍ. Os ~ livros conhcoeram inúmeras n:cdiçõcs. "'
.sobmudo peb Brulliwse, S4o Pmlo. A "lnugcm do BruU" presente m uajetór:U do PCB pode ser reconsuulcb a partir dos docwncnros colcwlos cm Edgard Caronc, O
2 Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação enac Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, cm pontos substantivos, da "imagem do Brasil" formulada pelo PCB e pela maioria dos seus "subprodutos". De modo exacmarnentc esquemático, poderíamos resumir assim essa "imagem" pecebist2: segundo ela, o Brasil continuaria a ser um país "atrasado", scmicolonial e scmifcudal, bloqueado cm seu pleno desenvolvimento para o capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação imperia~ lista. Em consequ~ncia, carcccríamos ainda de uma "revolução democrático-burguesa", que deveria ser feita com a participação de uma "burguesia nacional" supostamente anti-imperialista e PCJJ, S4o Paulo, Difd, 1982. 3 v. Para urna "im2gcm do Brasil" próxima àquela do PCB, cabe também c:onNlW' :u ágnlllcarint obru ck Nelson Wan«.k Sod.rt. JObraudo ;u cscritaS a partir da década dr 1960.
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antifeudal. Em grande parte, tratava-se da aplicação ao Brasil do moddo de análise dos países periféricos daborado pelo VI Congresso da Internacional Comunista, realizado cm 1928, um modelo cujos principais dcmentO§ fol'i-lll extraídos de uma abusiw generalização da realidade chinesa da época' 47• Independentemente do caráter mais ou menos sofisticado com que foi apresentada essa "imagem" pccebista, o que se pode constatar é que, cm todas as suas variantes, da desconhece o fato de que o Brasil já havia realizado sua revolução burguesa e que, cm consequência, pelo menos desde a República, nossa formação econômico-social já era, ainda que com importantes especificidades, de tipo capitalista. Ora, tanto Caio Prado quanto Florestan rompem com essa visão: para dcs, o Brasil contemporâneo é um país plenamente capitalista, que já teria experimentado portanto uma "revolução burguesa", mas - e é esse "mas" que torna tão significativas as suas obras, inclusive no quadro do nosso marxismo - uma revolução burguesa de tipo "não clássico". Na tradição marxista, há pdo menos dois conceitos daborados para apreender processos de uansição "não clássica" para o capitalismo, ou seja, processos que não seguiram o paradigma das revoluções inglesas do século 17 ou da Grande Revolução Franc.esa do século 18: refiro-me à noção de "via prussiana", daborada por Lenin, e à de "revolução passiva", cunhada por Gramsci. Em Lenin, a noção serve sobretudo para definir os processos de cransiçáo para o capitalismo no campo, evidenciando o fato de que, nos casos de "via prussiana", conservam-se na nova ordem fundada pdo capital claras sobrevivências das formas pré-apitaliscas, como, por exemplo, o uso da cocrçáo e:xtraeconômica na extração do excedente produzido pdos trabalhadores rurais; cm Gr.un.sci, o conceito é usado para conceituar processos de modcmizaçáo promovidos pelo "'
(ULTUAA E SOCJEDADE NO 81tASlL
ÚIU.OS NWON COUTINHO
P:a.ra a cxposiçio e crítica dcs1a "imagem" pcccbim. c.f. Caio Prado Júnior, A rrtJO/,,ç.14 lmuüdrrt, Sio Po.wlo, Brasilkruc, 1987 (I• od., 1966), sobmudo p. 29 e$$.; e pcob Gon::ndcr, "A revolução burguesa e 0$ comunistai, in: M. A. O"lnao (org.), O J4INr mili11w~, F.n.16kn sofm /Wm11111 FmrtlNla. Sio Pmlo, UNESP-~ e Tem. 1987, p. 250-259.
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alto, nos quais a conciliação coere diferentes frações das das.ses dominantes é um recurso para afas12r a participação das massas populares na passagem para a "modernidade" capitalista. Embora Caio Prado não c;onhecessc nenhum desses dois conceitos, ccrt2Jllcnte chegou cm sua obra a muitas conclusões análogas às de Lenin e de Gramsci. podendo-se assim dizer que ele "reinventou" os conceitos dos dois pensadores marxisw. Basta recordar aqui, por um lado, suas brilhantes análises da "questão agrária" no Brasil. nas quais mostra como-a transição para a modernidade se deu cnttc nós não s6 com a conservação da grande propriedade rural herdada da Colônia, mas também com a manutenção de restos pré-capicalistas (corrct2Dlente definidos por de como escravistas e n.á o como feudais); e, por outro, sua instigante exposição do processo da Independência brasileira, ddinida como uma revolução pdo alto, produzida por meio de "arranjos" de cúpula entre as classes dominantes, com completa exclusão do protagonismo das camadas populares"'. Dcccno, Florestan Fernandes dispõe de um estoque de categorias marxistas bem mais rico do que aquele utilizado por Caio Prado: Florcstan não s6 conhece muito bem a produção teórica de Marx e Engels"' como também revela ter estudado profundamente Lenin, cuja presença, de resto, é marcante cm sua produção teórica a partir de RBB. Nessa obra, cnconttamos ainda uma referência a Gramsci, autor que Caio Prado. mesmo cm sua obra posterior à publicação dos Cadernos gramscianos (final dos anos de 1940), parece desconhecer inte.i ramente. Contudo, mesmo reconhecendo a grande familiaridade de Florcstan com a literatura marxista, é importante f.azcr- aqui dois rcgiscros. Embora cite várias obras de Lenin na substanciosa bibliografia contida cm RBB, é surpreendente que não conste enttc elas O programa agrdrio áa sociai-dnnocracia, escrito cm 1907, que é o textO cm que o rcvolu'" ,.,
Cf. "A imagem do Bruil m obra de Calo Prado Júnior", mprt1. p. 201-219. 8asu rcairdar aqui a looga "lnuoduçáo" que Fio= Cl(;l'CVtu para o volume sobre Mlrx-fintt.ls. Histdrill. Coleção "Granda Cicntims São Paulo. Ária, 1983. p. ?-144.
soow·.
226 CAAl.os ND.SON COUTINHO
cionário russo apresenta de modo mais sistemático o seu c;onccito de "via prussiana", ou seja, de um caminho *não clássico" para o capitalismo. Talvez por isso, Florcstan - embora se valha cm sua análise do Brasil de determinações muico próxinw daquelas contidas no conceito de Lenin - jamais emprega explicitamente, e.orno tampouc.o o fu Caio Prado, a noção de "via prussiana". Por outro lado, embora o únic.o te:xtO de Gramsci indicado na mencionada bibliografia seja o volume da edição temática dos Cukrnos ~ cárcerr referente a II lüsorgimmUJ- ou seja, precisamente aquele onde estão c.ontidas as principais observações do auror italiano sobre "revolução passiV2" -, Florcst:lJl tampouc.o se w.lc, pelo menos explicitamente, desse c.onccit:o gramsciano. Mais do que isso, ele parece não ter apreendido correu.mente o sentido dessa noção gramsdana, já que afirma (embora c.om a cautela de dizer "provavelmente") o seguinte: "Se se considerar a Revolução Burguesa na periferia e.orno uma 'revolução frustrada', e.orno fucm muitos autores (.provawlmmu seguindo implicações da interpretação de Grarnsci sobre a Revolução Burguesa na foi.lia), é preciso proceder com muito cuidado" (R.BB, 294, grifo meu). Na verdade, Grarnsci não se refere à "revolução passiV2" como uma "revolução frustrada", isto é, fracassada ou inexistente; ao contrário, trata-se para ele de um tipo espcdnc.o de revolução cxitosa. ainda que feita através de conciliações pelo alto e da exclusão do protagonismo popular, o que gera um processo de transformações polltico-sociais do qual resulta, cm suas palavras, uma "ditadura sem hcgcmonia"'!it. Ora, é precisamente este o tipo de revolução burguesa que Florcst:a.n julga ter ocorrido no Brasil, sendo evidente, ademais, a analogia entre a "ditadura sem hegemonia" de Gramsci e sua própria noção (sobre a qual voltaremos cm seguida) de "autocracia burguesa". Cabe ainda observar que, quando Florcstan emprega cm sua obra (o que, aliás, fu com frequência) os termos "hegemonia" e "sociedade civil", nunca os emprega no sentido específico c.om que os mesmos são utilizados na obra de Gramsci.
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A. Granuci,
~ 4 Urt-rrr. rit., v. 5. P• 330.
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De qualquer modo, e.orno já disse, é indiscudvcl que Florcstan elabora a sua "imagem do Brasil" mediante um estoque categorial marxista bem mais rico do que aquele presente na produção de Caio Prado. Ao wmrário de Florcstan, que qU2$e sempre se apoia cm c.onccitos, Caio constrói suas análises de modo bem mais "inruitivo", o que as toma muitas vezes ambíguas ou pouc.o precisas. Vejamos um exemplo concreto. Florcstan da explicitamente que o Brasil evoluiu para o presente capitalista a partir de uma formação econômico-social fJW 1UÍO mz atpiJalist4. No autor de Formllf'ÚJ ® Brruil etmtnnporônn1, ao contrário, a definição da natureza cc.onõrnico-social de nosso passado aparece de modo impreciso, ou seja, atribuindo à circulação a prioridade oncológica na definição de uma estrutura econômica, uma atribuição que c.ontrada claramente a lição marxiana. Isso, evidentemente, prejudica sua "imagem do Brasil" não só no que se refere ao passado, mas também ao presente. Por exemplo: embora de diga, superando os limites da " i~m" pcccbista, que o Brasil moderno já é plenamente capitalista, ainda que conservando "prussianamente" dcmentos da velha ordem colonial, termina por subestimar as novidades inttoduúdas cm nosso país e por construir assim uma imagem do Brasil c.oncemporânco onde o que predomina não é a emergência do novo, mas sim a c.onscrvaçáo do velho'''. Florestan, ao contrário, afirma explicitamente que o Brasil, nas épocas c.olonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual sua classe dominante- formada pelos latifundiários escravistas - não se movia, ao contrário do que supunha Caio, com base numa lógica capitalista, mas se o ricntaV2 por ouera "racionalidade", chamada por de de "patrimooialista". É precisamente essa c.orreta pcrccp· çáo que lhe permite constatar a emergência, a partir da expansão de relações comerciais na época imperial, de duas novas camadas sociais: a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes (R.BB, sobretudo 86 e ss.). Tais camadas, embora sem romper intcirarnenrc '"
Pira um maior dcscnvolví.mcnro ~ aspcaos da rdlcdo do autor de A ITWlll('9 lmtsilnt11. cf. wnbém "A imagem do Bwil 112 obra d., Caio Pr.ido Júnior".,.,,,,,.
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com a "velha ordem" patrimonia.lista, começam a agir segundo uma racionalidade propriamente capitalista, o que lhes possibilita desempenhar o papel de protagonistas da "revolução burguesa" que se processou cm nosso país. Mas, com efeito, tampouco Florestan escapa de algumas ambiguidades. Revelando estar ainda preso ao "ecletismo bem ccrnperado"'" que marca sua produção inicial (mas do qual, a meu ver, liberta-se quase incciramcntc a partir da última parte de RBB), Florcscan - seguindo nisso Max Weber - dc:finc essa ordem pfé...capicalista como uma "sociedade cstamcnt:al e de casta", reservando apenas para o capitalismo a designação de "sociedade de classes". Não posso aqui me deter sobre o fuo de que, segundo o marxismo - pelo menos depois de A úkologia alnn4, em que Marx e Engels parecem ainda supor que classes sociais só exjstcm no capitalismo - , a presença de estamcntos ou de ordens, isto é, de segmentos fundados numa explícita desigualdade jurídica, não implica de nenhum modo a negação da realidade econômico-social das classes'". Se é verdade, como lemos no Manifostq comunista,
que "a história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe", então é tarefa dos marxistas dc:finir com precisão quais eram as classes sociais que formavam a estrutura do Brasil nas épocas colonial e imperial e como se processavam as lutas entre elas. Na verdade, já cm RBB, Florcstan não se recusa a enfrentar essa tarefa: embora se valha de uma terminologia weberiana ("patrimonialismo•, "estamento" CTc.). ele nos apresenta nesse livro uma aruilise das motivações comportamentais dos senhores de escravos que se aproxima cm muitos casos de uma análise m.ar:xisa. já que tais motivações são por ele vinculadas à sua gênese nas relações sociais de produção. De rcno, quando analisa os processos de '"
Gabrid Cobn, •o a:ktismo bem 1empcnc1o· . 111: o "«r ,,.w-, a1.. p. '48-53. mo o que F1on:sa.n palttiC supor cm tnhal1- imecfuwncncc poslaiorcs a RBB: ºAo11e m w o dtlprcgo simuldncodcconcdros oomo 'asa'. 'cswncoto' e 'cbssc'. ~ide.se aquilo que Rrii i Jiftml(ll nlfrlfia na t\'Oluçio cb e:smdfiaç5o IOàll no Br:uil" (F. Fernandes. Clrrwl•~. São P&ulo, Huc:ir«. 1'n6, p. -47).
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cransição da "sociedade cst:ament:al" para o capitalismo, Florcstan nio deixa de fàzcr intervir nessa análise a noção da luta de classes, o que novamente o aproxi.rrul do marxismo. Por outro lado, cabe anotar que o uso de noções wcberianas cm RBB restringe-se, csscncialmence, às pancs 1 e Il do livro, que Flo rcst:an nos adverte, na "Nota explicativa'° (RBB, p. 9), terem sido escritas cm 1966; na pane III, redigida cm 1973-1974, como ele tarn~m nos informa, a noção de "sociedade est.amcnt:al" cede lugar aos conceitos de "esaavi.smo" ou "escravi.smo colonial", oriundos da tradição marxista. Tudo indica - mas se trata apenas de uma sugcst.io para posterior exame - que, entre 1966 e 1973, Florestan aprofundou os seus estudos marxiscas, em particular do pensamento de Lenin, cujos conceitos, de resto, estão fortemente presentes nessa parte III de RBB, precisamente aquela mais madura do livro cm quesdo. Há ainda um outro tópico no qual Florest:an vai certamente além de Caio Prado. Enquanto este último deixa o problema da especificidade de nossa "revolução burguesa" na sombra - mais sugerindo pistas do que efetivamente formulando conceitos -, o primeiro coloca explicitamente a questão e busca dar-lhe um tratamento teórico adequado. Ele diz com clareza, tendo provavelmente como alvo os autores pcccbistas: Não existe, como se supunh2 a partir de uma concepção europodnuica (vilida para os ~ 'dissioos' da Revolução Burguesa), um único modelo búico dcmocrúia>-burgub de uansformação capitalista. (...) At~ reocntcmcntc, só JC accicav.un intcrp~vamcncc oomo Revolução Burguesa manifcstaÇ6a que se aproximassem tipicamente dos 'casos dássicos'. (...) Tr.uava-sc, quando menos, de uma po$içáo inccrprcaôva unilateral" (RBB, p. 289-290).
Florestan coloca assim, com plmtt conscihJcilz. o mesmo problema já enfrentado por Lenin e por Gramsci, ou seja, o da definição de vias "não clássicas" para o capitalismo. Ora. essa consciência lhe permite, sempre cm comparação com Caio Prado, o uso de recursos teóricos mais precisos para entender não apenas o específico modo da revolução burguesa no Brasil, mas também a particu.Widade do capitalismo que irá resultar dessa revolução. Sem negar que a conservação do "atraso",
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CuuUllA f SO('l(OAI>( NO BllASll
da dependencia externa, da "selvagem" exploração do ttabalho, do ·autocratismo" etc. gera importantes derccminaçócs espccfficas de nosso "moderno" capitalismo, Florestan evita, porém, ao mesmo tempo, a tendência caiopradiana de dar prioridad~ a c;ús elementos "atrasados" na caracterização de nosso presente: graças a uma visão mais mccüatiz.ada, de ressalta também os traços novos que o capitalismo introduz na vida social brasileira, destacando entre eles a industrialização e a urbanização, o revolucionamento do universo de valores, a nova estratificação social etc. Com isso, a "imagem do Brasil" elaborada pelo nosso marxismo dá um significativo passo à &ente, possibilitando uma visão mais precisa e complexa não só das contradições do nosso presente, mas também das tarefas estrat~cas que se colocam aos que prcrcndcm construir um novo futuro.
3 Lenin, na definição dos pressupostos de uma via "não clássica" para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de resolução da "questão agrária". Florestan, ao contrário, sublinha uma outra característica para explicar a "não classicid.ade" brasileira: para de, com efeito, a peculiaridade de nossa revolução burguesa rcsulwia essencialmente do f.uo de que esta se processa num país dependente, primeiro do colonialismo, hoje do que ele chama de "imperialismo rotai". Para Florcstan, residiria sobretudo nesse caráter dependente e subalccmo de nossa formação social a razão por que não seguimos urna "via clássica" para a modernidade; ou, mais precisamente, foi por termos sempre ocupado uma posição dependente no quadro do capitalismo internacional que não pudemos conhecer uma revolução burguesa capaz de forjar cm nosso país uma superestrutura política que, referindo-se a Barringtoo Moore Jr., nosso auror chama de "libcral-
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manifestam da mesma forma onde a Revolução Burguesa segue seu curso 'clássico' ou /iberaJ..ánnomlticor (RBB, p. 327). Almi dessa depcndencia ao colonialismo e ao imperialismo, Florcst:m menciona wnbém, como fator explicativo da via "não clássica" no Brasil, o caráter t11rriio de nosso desenvolvimento capitalista, que se processaria num momento histórico no qual, já tendo o socialismo ingressado na agenda política mundial, ocorreria uma batalha de vida ou mone entre ele e o imperialismo (RBB, p. 352). Ora, segundo Florcst20, isso faz com que a burguesia brasileira prefira se aliar às velhas classes dominantes e aos segmentos militarCS cm vez de tentar um compromisso permanente com as classes subalternas. compromisso que, se realizado, implicaria uma ampliação dos direitos de cidadania entre nós. Em estreita aniculaçáo com a dcpendenci.a, que toma a burguesia brasileira carente de autonomia, o temor ao proletariado e ao socialismo contribuiu ainda mais para fazer com que essa classe adotasse, na busca da consolidação de seu domínfo, o caminho de uma "concrar:rcvolução prolongada" (RBB, p. 31 Oe ss.). que utiliza politicamente formas mais ou menos expliciw de poder "autocrático". Dcceno, esse caráter dependente e tareüo de nosso desenvolvimento capitalista explica muito do caráter de nossa "revolução burguesa", mas - ao contrário de Florestan - penso que nio explica rudo',.. A Alemanha e o Japão, por exemplo, embora nio fossem países dependentes, experimentaram vias "não clássicas" para o capitalismo, marcadas também, pelo menos durante um longo período, pela construção e preservação de estruturas políticas abertamente ditatoriais; além disso, embora cm ambos os casos '"
Parece-me lmporwuc registrar que há a.urorcs ma.rxistu bruikitos que, embora por c:unlnhm nem icmptt scmdha.nccs aot de Florcswi. mmbhn insistem cm definir nossa "nio dmiddadc" na uanslçlo pua o aplcalllmo recorrendo prloritaria.mencc a als dctcrmlnaçi6cs p~nta ela depcndbicia do Bra.sll ao mcrado inrcmaciona.I. ~ o aso. pot' acmplo. de J. Owin (0 ~ J, Pllú s.Jpdo. S5o Paulo. Ci&ic:W Humanas, 1978). de Ricardo Ancuncs {0.wupmrit, mwliUJou,..mM"" Brruil. S5o Pm.lo, Corto-Ensaio, r cd., 1988) e de Antonio Carlos Maxuo (&Mo~ bwtpniit "" /JnsiJ. 8do Horizonte, Of1cina do Uvro, 1989), quuc rtfcmn a uim "vamlonial" ou "colonial·pruaU.na" para definir a modalidade dc noua "rcwluçio burguesa".
CuuUAA e SOOfDADt NO 81tAS11. 23 3
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estivéssemos diante de capitalismos •tardios•, isso não impediu que Alemanha e Japão se tomassem, por sua vez, países imperialistas. Como vimos, para Lenin (e, de certo modo, wnbém para Gramsci), o filror decisivo na geração de uma via "não clássi<:aª para o capitalismo é um fator interno, residindo sobretudo no modo pelo qual o capitalismo resolve a "questão agrária": a via clássica implica uma solução revolucionária, com a destruição da grande propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre, enquanto o caminho "não clássico" rcm lugar quando a grande propriedade e a velha cla.ssc latifundiária se conservam, introduz.indo progressivamente e "pelo alto" novas relações capitalistas. Ora, a percepção disso é um dos pontos fones da "imagem do Brasil" presente na obra de Caio Prado, que dedicou importantes estudos à analise de nossa "questão agrária"•», nos quais mostra que o velho latifündio se tomou capitalista sem perder muitas de suas velhas características, cm particular o uso e o abuso de formas de "coerção c:xcraeconômica" sobre o trabalhador. Penso assim que a definição Borcstania.na da especificidade da ªrevolução burguesa" no Brasil ganharia ainda mais cm densidade se, além das determinações resultantes do caráter dependente e tardio do desenvolvimento capitalista entre n6s, incorporasse também as determinações provenientes do modo de resolução (ou de ná.o rcsoluçã.o) da nossa "questão agráriaª, tão bem c:onccirualiz.ado na obra de Caio Prado. Mas, independentemente disso, o f.tto é que, com base cm seu conceito de uma revolução burguesa de tipo "não clássico•, Florcstan não só reexaminou momentos essenciais de nosso passado, mas também propôs uma brilhante interpretação marxista - talvez. a mais lúcida de que dispomos até hoje - daquilo que, na época cm que R.BB foi publicado, constiruía o nosso presente histórico. Essa análise Borestan.iana do presente desdobra-se cm três complexos problemáticos cscrcitamcnte articulados entre si. •»
a:.. por c.umplo. OS latOS reunidos cm Calo Prado Júnior, A fW11M .r;rrm. ,,. BlwsiJ,
SJo Pauic>, Bruillmsc, 1979.
No primeiro deles, Florcstan disseca as lutas de cla.ssc que culminaram no golpe de 1964, por ele corretamente definido e.orno uma "contrarrevolução preventiva", dcsfcchada por uma burguesia finalmente unificada pelo temor comum de seus vírios segmentos à tumultuosa asccnsáo dos movimentos populares no início dos anos de 1960. No segundo, ele conceitua os principais traços polltico-institucionais do regime que resultou do golpe, regime ao qual dí o nome de "autocracia burguesa"11' ; segundo Florestan, esse regime - que Gramsci ccrumcnte subsumiria sob o tipo geral definido por ele como "ditadura sem hegemonia" - seria a expressão da impossibilidade estrutural da burguesia brasileira de ampüar minimamente suas bases de consenso junto aos segmentos subalternos, o que a obrigaria a recorrer de modo sistemático e permanente à coerção aberta contra os "de baixo·. Finalmente, no terceiro de tais complexos problemáticos, Florcstan já se revelava capaz - embora estivesse escrevendo cm 1973-1974-de apontar as principais características do "projeto de abertura" que cotão apenas se iniciava, um projeto proposto pelo regime militar para enfrentar as crescentes dificuldades econômicas e poUticas cm que estava sendo envolvido. Para nosso autor, a implementação desse projeto significaria apenas que "a autocracia burguesa leva a uma democracia rescrita típica, que se poderia designar como uma dmwcracúz tk cooptllfÃO• (RBB, p. 358-359). Ou seja: mediante um proc.csso que Gramsci eh.amaria ,,.
Embon Flocaan imha indicado com pm:ido o. miiçx» caencials do regime diworW implanwido llO Brasil depois de 1964, inclusive negando ODrrcwncote que de pudcuc scrctr.KU:rizado como •fucisa• (j2quc nio recorrü à Olpl~dat mams), pa=e-mc impróprio o IC'U emprego do termo "au.toc.rada butgucA•. R.ccomndo 1 um1 pai6dica mudança de "Pttsldc:otcs•, o poder diiatorW bruilciro da q,oc:a não ic: encarnou numa únla pcs-. e, ocssa medida, mo pode su c:lwnado de "auroaiciOD". lndaplo JObrc u ru.6cs do uso clcuc termo por Aoratan, o amigo
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de "cransformismo", o regime buscava pcrpctuac-se no poder por meio da cooptaç.áo de alguns scgmc.n tos moderados da oposição, mas sem abandonar - um fato sobre o qual nosso autor insistia sem vacilações - a sua natureza essencialmente autocrática. Com base cm sua análise das características espcclficas da nossa burguesia. Florcscan negava en&ticamentc a possibilidade de que da pudesse se reciclar cscrururalmentc, adotando formas mais consensuais ou democráticas (hegem6nicas, com o diria Gramsci) no exercício do seu poder de classe. Por isso, de nos adverte que "não se pode d.iz.cr que ditadura de classe [implantada cm 1964) seja transitória" (RBB, p. 350). De resto, como veremos, essa negação se mantém cm seus escritos poste.riores a RBB: até sua morte, Florcstan sempre supôs que - embora pudesse alterar alguns traços inesscnciais do seu modo de dominação - a burguesia brasileira seria incapaz de renunciar a estruturas autocráticas de dominação, já que tal renúncia poria seriamente cm risco não só o seu poder, mas a sua própria cxist~ncia como classe.
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Essa suposição me parece estar na raiz de concepções equivocadas presentes na produção teórica e jomalística do último Florcscan. Embora denunciasse com lucidez. os limites "cransformistas" do projeto de "abertura", Florcscan parca: ter subestimado - cm seus trabalhos posteriores a RBB - o fiuo de que projeto foi acravcssado e contraditado por um processo de abertura, isto é, por um movimento social objetivo que rcsulcou da ativação da sociedade civil, em partirular dos segmentos Ugados ~classes ttabalhadoras'". O "processo" de abertura, acuando de baixo para cima. abriu e conquistou espaços que nem de longe estavam previstos no "projeto" gciscl iano-golbcriano, que previa apenas uma reforma da autocraci2 "pelo alto", com a conservação de suas caraacrísticas essenciais. Ora. em 1974, no momento cm que cscrevcu a última parte de
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~a di~ca cnuc 'projeto" e j>roa:uo" de abcnun, d. C. N . Coutinho, ç.,._,, ,.m ~ 'l«ÍllÜmto, Sio &ulo. Concz, 2000. p. 87 e ss.
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RBB, era absolutamente comprccnsfvd que Ftorcstan subestimas-se as potencialldades desse processo de abertura, já que de só iria efetivamente tomar corpo e dimensão nacional a partir das greves do ABC, QCQrridas entre 1978 e 1980, e da memorável campanha pdas "diretas-já', que 01lmina cm 1984. Por isso, também é comprccnsfvcl - cmbora isso expresse mais um wishfo11 thinkingdo que uma análise realista- que sua obra-prima se enc.cnc sugerindo que tínhamos apenas uma alternativa: ou a pcrman~cia da "aurocracia bwgucsa" (ainda que sob as novas vestes da "democracia de oooptação") ou a "revolução Socialista" (concebida, de resto, como urna explosão violenta). Vejamos o que de diz, no último parágrafo de sua obra-prima: No oontc:no hisrórico de rebçócs e oonflicos de da.ssc que csá emergindo, tanto o E.nado aurocritioo poderá servir de pião para o advento de um autblcico capitalismo de Estado, strict# smsu, quanco o represamento sistenátioo das pressões e das ccns6es antiburguesas poderá prccipiw a dcsagrcgaçio revolu· cioniria da ordem e a eclosão do socialismo (RJJB. p. 366).
Os fatos subsequentes à publlcaçáo de RBB, embora tenham confirmado algumas das previsões ali formuladas, parecem ter desmentido outras tantas. Por nio ter avalfado adequadamente as potencialidades do procmo de abertura, Florcsun continuou subestimando, cm seus últimos trabalhos, o peso que os setores populares - e, cm particular, a nova classe trabalhadora - tiveram nos fenômenos da transição democrática e, consequentemente, na definição das instituições poUticas (sobretudo a Constituição de 1988) que dde derivaram. Dada a concreta corrclaçáo de forças que então se manifestou, essa nova institucionalidade foi fortemente marcada pdas lutas das classes subalternas; a meu ver, a transição - ainda que, cm seu momento resolutivo, tenha reproduzido a velha tradição brasileira dos "arranjos" pelo alto - foi também determinada, pelo menos cm parte, pdas pressões que provinham "de baixo". Por isso, não é de modo algum casual que a Constituição de 1988, que recolheu cm seu texto muitas dessas prcss6cs, tenha se tomado - desde o governo Collor até o governo Cardoso - um dos principais alvos da luta que a burguesia vem cravando para
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consolidar enttc nós uma nov:a forma de dominação de~ Em sua caracterização d o período, Florestan reteve apenas o momento da "reforma pelo alto", tanto assim que designou o contraditório processo de transição wmo uma "transa~o ço~ra·; cm conscqu~ncia, a nova institucionalidade lhe aparecia como nada mais do que uma cn~ima manifestação da "autocracia burguesa", ou, em suas próprias palavras, como o "último e surpreendente refügio [da ditadura] ".'"' Por isso, ele continuou a supor até o fim que o único caminho para a luta pela democracia e pelo socialismo no Brasil seria o de uma revolução explosiva e violenta. Num texto escrito cm final de 1985, por exemplo, ele nos diz.: O que se descroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa c:xpungir-sc de i niquidades~ por rodos pacfficos (...). A democracia erige uma ra-olu~ social (que) rebenta de baixo ( ...). Os caminhos pacfficns c:sdo bloqueados e as 'esquerdas' (...) precisam apreDder a avançar rcvolucionariamcntc na dircçio de sua orpnhação insticucion.al.'"
Desse modo, Florestan parece não ter visto que as novas condições abcrcas pela derrota da ditadura impunham às forças populares a adoção de uma nova estratégia de luta, estratégia que - para usar os conhecidos conceitos de Gramsci - já não devia recorrer à "guerra de movimento", ao choque frontal, mas sim à "guerra de ~ição". O que, se essa minha avaliação é correta, implica a occcssidade de substituir a proposta de uma revolução "explosiva" e violenta pela de uma revolução "processual", fundada numa luta permanente pela hegemonia. Esses limites da "imagem do Brasil" no último Florcstan parecem-me resultar, de resto, não só dessa subestimação do processo de abertura na avaliação da nova institucionalidade construída depois de 1985, mas também de uma discuávcl afirmação já presente cm RBB. Nesse livro, a correta análise florcstaniana da revolução burguesa no Brasil como manifestação de uma via "não
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c.12ssica", que implicou cm momentos decisivos o uso sistemático de formas abertamente ditatoriais e coercitivas, combina-se com uma generalização problemática, isto é, com a afirmação de que a nossa burguesia c:am:cu e carecerá snnprr, para poder c:xcrccr seu domínio de classe, dessas formas ditatoriais ou "autocráticas" de poder poUtico (uma análise empírica constata que o recurso a formas "não clássicas" de revolução burguesa não impede que o pais que as adotou conheça, cm determinadas etapas de sua história, estrururas poUticas liberal-democráticas; basta recordar aqui os casos do Japão, da Alemanha, da Itália ou da Espanha). Essa generalização faz com que Florcstan não leve cm consideração, cm suas análises, alguns períodos históricos cm que a burguesia brasücira se viu obrigada a recom:r a formas de dominação que implicam dcmcntos de hegemonia (no sentido gr:amsciano). ou seja, à busca de um relativo consenso junto às elas.ses subalternas. Penso que um movimento desse ópo ocorreu durante o chamado "período populista", quando a burguesia - atrav~ da ideologia nacional-dcscnvolvimentista - buscou (e cm grande medida obteve) uma hegemonia "seletiva" junto a segmentos das dasscs subalternas, cm particular aos trabalhadores wbanos enquadrados na C LT'M. Mas é outra a opinião de Florcstan. Para ele, "a 'demagogia populista' (...) era uma abcn.a .manipulação consentida das massas populares. (...) Não existia uma ámwmlcüz burguesa .fozc4. mas uma 11utl>C1'1lda burguesa áissimulaá4' (RBB, p. 340). Também o período que se inicia com o "processo de abertura" e que chega até nossos dias pode ser caracceriz.ado, a meu ver, como um contexto no qual a burguesia - constrangida pelas condições imposcas não só pela nova correlação de forças entre ela e as dasscs subalternas no plano intc.mo, mas também pelo contcXtO internacional - volta a buscar formas hcgcmônicas para consolidar sua dominação. Mas, assim como afirma que a época populista não passou de uma "autocracia burguesa dissimulada", Florcsr.an ""
Sobre essa "hegemonia scktin" na q,oc:a popu.lis11, cf. C. N. Coutinho, •Crise e rcckf,,. niçjo do ~o bnsi)droº, bJ: A. M. ~ e 1. Labaupin (orp.). R.Ms.111 twaútwWNll 1 EsuM ~. Sio Pa..Jo, Lofob. 1993, p. 84 eu.
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também supõe. como vimos, que o período iniciado cm J 985 é apenas o "último rcfiígio da ditadura". Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo al-
gum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar radicalismo, Florcsran desmistificou muitas das ilusões que dominavam setores importantes da esquerda cm sua avaliação da siruaçáo aberta com a chamada "Nova República", uma expressão que, lucidamcn tc, ele sempre fazia acompanhar ou de aspas ou de um ponto de interrogação. Quando hoje - à luz do que agora sabemos sobre os governos Samcy, Collor e Cardoso - rcc:xaminamos a denúncia florestaniana das tcnd~ncias regressivas e conservadoras comidas na nova fase histórica que então se iniciava, somos forçados a constatar que muito daquilo que a alguns de n6s parecia na época manifestação do "sectarismo" do velho Florcsta.n era. ao contrário, a confirmação da sua lucidez analftica e da sua capacidade de previsão. Oeccno, continuo pensando que as alternativas contidas na conjuntura que se inicia no Brasil depois de 1985 não cabem no estreito dilema formulado no final de RBB e reproduzido nos últimos textos de Florcstan: ou "autocracia burguesa", ainda que mascarada sob novas formas, ou "revolução socialista", concebida ademais como um processo explosivo que rompe radicalmente com a nova institucionalidade que resultou da transição. Essa institucionalidade. que os trabalhadores contribuíram para criar, parece-me ser o ponto de partida da nossa dificil luta para derrotar a reestruturação do poder burguês (que agora tenta se consolidar sob a hegemonia do neoliberalismo) e, ao mesmo tempo, para construir - por meio de uma estratégia reformista-revolucionária - as condições para a implantação do socialismo cm nosso país. Mas agora sabemos, graças, entre oucras coisas, ao radicalismo de Florcstan, que a esquerda brasileira não pode ttavar essa luta se não se libertar de uma dupla ilusão: por um lado, a de que os avanços obtidos na construção de nossa democracia já estejam definitivamente consolidados, mesmo no nível da superestrutura política; e, por outro, a de que. ainda que os consigamos consolidar, tais avanços sejam suficientes para realizar a vetdadeira emancipação
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humana do nosso povo. A democracia que começamos a co~ trui.r na época da transição só se consolidacl de modo definitivo e só rcaJizará plenamente seu valor universal no horizonte da sua progtcssiva radicaliz.ação, ou seja, da sua transformação em democracia socialista..
5 As críticas q ue sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança teórica e política de Florcstan, não pretendem ser mais (nem tampouco ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora talvez nenhum marxista t.cnha elaborado uma "imagem do Brasil" tão rica e lúcida como a que Ftorcstao nos legou, sabemos - como de também o sabia - que "o proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica. pois só a verdade pode levá-lo à vitória e. por isso, a autocrítica deve ser seu clcrncnto vital".'" A tarefa coletiva de elaborar uma "imagem do Brasil" com base no marxismo - para a qual, depois de Caio Prado Júnior e de Nelson Wemcck Sodré, Florcstan Fernandes deu certamente a maior contribuição - é wna tarcfa sempre cm aberto, pdo que jamais poderemos nos satisfàzcr com os resultados já obtidos. Para o cumprimento de tal tarcfa, Florestan não contribuiu apenas com suas brilhantes reflexões rc6ricas, mas também com o seu extraordinário exemplo moral. O radicalismo com que de cmpn:cndcu sua atividade intdeaual e política, sobrcrudo na última fase de sua vida, é uma lição que n6s, incdecruais macxistas (mas não só marxistas}. não podemos e não devemos esquecer. Conaa os crânsfugas e os capitulacionistas, a>naa os que optaram pela falsa "democracia de cooptação", o exemplo de Florcstan Fernandes nos recorda que o lugar dos intdecruais dignos desse nome é ao lado das classes subalternas, na difkil, mas cada vez mais necessária. luta pela revolução democrática e socialista. {1998) "'
Gy&gy Lulda, His#rV ~a~ ,/, iMM, Porto-Rio de Jandro, Escotpi»ElfOI, 1989. p. 107.
O legado de Octavio lanni
A obra de Octavio lanni, que é o tema deste Colóquio, merece ser discuóda cm profundidade: trata-se de wna obra extensa, que abordou diferentes cernas e passou por diferentes fues. Ela deve servir como inspiração e desafio para novos escudos que aprofundem suas ideias e também corrijam alguns de seus limites, mas que, sobretudo, deem oonónuidade à imagem do Brasil que de construiu nos seus trabalhos.tum enorme praur poder rememorar aqui a figura de Octavio lanni, que aprendi não s6 a admirar como intdcctua.1, mas t.ambém a csómar profundamente como ser humano. Podemos abordar a sua obra de diferentes ângulos, já que de se dedicou a inúmeros campos do saber. Escreveu livros tratando dos processos de modernização capitalista no Brasil, de questões de teoria, de nossa produção cultural e de nossas relações raciais, de fenômenos sociopollticos da América Latina e, Snalmcnte, dos problemas da gfobal.iz.açáo. Mas cabe registrar que, se de abordou vários e múlóplos temas, sempre o fez valendo-se metodologicamente do ponto de vista da totalidade, ou seja, do ponto de vista do marxismo. Tal como seu mestre Aorcstan Fernandes, Octavio sempre se disse wn sociólogo. Tenho dúvidas, porém, se um masxista, como era o seu caso, pode :Lccitar a atual divisão acadbnica do trabalho cientifico e diu:r-sc simplesmente um "sociólogo". Com base cm Gr:unsci e cm Lukács, creio que a sociologia é um modo limitado de abordar a realidade social. Não vou aqui cnttar nessa discussão - longa, profunda, complexa - das rc12.ÇÕCS entre muxismo e sociologia, mas creio que há na sociologia, qualquer que seja a sua orieot.açáo teórico-metodológica, wna tcnd!ncia a dcsistoricizar a análise do real e a desvincular os fenômenos sociais de sua b~ econômica. Já que lanni nunca fez isso, não me parece inteiramente adequado caracccriiá-lo, tal como ele mesmo o fazia,
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ÚALOS
NRSQfj CouTwlHO
como um sociólogo. Ele era mais d o que isso, na exata medida cm que, enquanto marxista, abordaw os fenômenos sociais numa rumcnsáo bem mais ampla do que a d os "escudos sociológicos", ou seja, precisamente naquela dimensão dada pelo ponto de vista historicista da totalidade. Devemos lembrar que Octavio foi um dos primeiros sociólogos, com aspas ou sem aspas, a adot2r explicita.mente no Brasil o método histórico-diaJético na abord2gcm dos fenômenos sociais. Como se sabe, formou-se nos anos de 1950 na USP, cm tomo de Florcstan Fernandes, um importante grupo depois conhecido como Escola Paulista de Sociologia. Dele fuiam parte dois jovens pensadores, certamente brilhantes, ambos preocupados cm ut:il.iza.r nas suas pesquisas o método histórico-dialético. Refiro-me, é claro, a O aavio lanni, mas também a Fernando Henrique Cardoso, de quem - apesar de sua tardia solicitação neste sentido - não devemos esqucc.cr o que de escreveu nesta época e mesmo algumas décadas depois. De C ardoso, recordo, cm particular, o bdo livro sobre Capitalimw e esmzvidáo, publicado cm 1962, no qual há uma longa introdução cm que de c:xpóc com brilho, valendo-se sobrcrudo de Lukács e de Sartre, os prind pios do método dialético. '" Diria mesmo que Oa:avio e Fernando Henrique, nesses primeiros trabalhos, aplicam um pensamento dialético mais rigoroso d o que aquele que Florcstan aplicava à época. É daro que Florcstan se apropriou mais tarde das categorias marxistas, particularmente no final dos anos de 1970, o que se expressa, sobretudo, cm sua obraprima, A revoi"f'ÚJ burguesa no Brasil'" M as, até o início d os anos de 1% 0, quando seus dois jovens assistentes já eram marxistas, Florcstan ainda ad otava cm seus estudos o método funciona.lista, ou, mais precisamente, como ruria Gabriel Cohn, um ªedctismo
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F.. H. ~. C.pillÚÍmtlJ e amwü/b "" Bnuil-.iáiMflll. Si<> Pa.ulo, Difuslo Ewopcía do Uvro, 1962. A mcnclonad.a inuoduçio csd nas p. 9·33.
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CUl.TUllA E SOCIEDADE NO
BllASI\ 243
bem temperado"."' Octavio e Fernando Henrique chegaram mesmo a publicar, cm 1960, um livro cm comum."' Mas ni o se deve esquecer que, quando alguém pensou cm rccd..ita.r o livro, num momento cm que Cardoso já e.r a presidente da República, O ctavio recusou-se a fazê-lo por ruscordar rarucalmcntc das posições teóricas e políticas então adot3das pelo seu antigo colega. É certamente cm grande medida por causa dessa base metodológica que a obra d e Octavio lanni é tão importante para a comprccnsáo do passado, do presente e (não hcsit2ria cm d izê-lo) do futuro do Brasil. Em seus primeiros trabalhos (sobretudo no já clássico As metamorfoses do escravo, de 1962). ele nos forneceu contribuições d ecisivas para a compreensão do período colonial brasileiro."' Em obras mais tardias, de nos revelou alguns d os traços fundamentai s da constituição d o Brasil moderno, no período que vai de 1930 até o golpe de abril de 1964."' Em A ditadura do grande CApirar, finalmente, encontra.mos uma das mais lúcidas análises da natureza de dassc da rutadura implantada no Brasil cm 1964, uma análise que, como veremos aruantc, evita claramente o uso de categorias ambíguas - como "autorit2rismo" e "burguesia de Estado", então desenvolvidas por seu ex-colega Fernando Henrique Cardoso"' - e desvenda o vínculo estrutural entre aquela ditadura e os interesses priwdos do grande capital nacional e internacional. Do conjunto dessas importantes obras, que abrangem uma análise do passado e do presente de nosso país, com projeções "'
G. Cobn, ·o cdcdsmo bem 1empcndo· . 111: M. A. D'lncao (org.). O 111bn- ml lil6nu.
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,., a.
Cul.TIJAA r
para o futuro, emerge o que poderíamos chamar de wna "imagem do Brasil". Entendo por "imagem do Brasil" não a descrição de elementos parciais de nossa realidade social, ou mesmo de nossa
realidade global, mas a tentativa de compreender a gênese histórica dcst2 realidade e de identificar as tendências contraditórias que ela comporta no presente e que apontam para o futuro. Há grandes pensadores que contribuíram, cm maior ou menor medida, para a elaboração de uma imagem do Brasil. Uma imagem de dircit2, por exemplo, pode ser encontrada na obra de Gilberto Freyrc ou de Oliveira Vianna; uma imagem de esquerda, ao contrário, aparece, sobretudo, nas obras de Caio Prado Júnior, Nelson Wemcck Sodré e Florest
500lOADt NO
8AAsll 245
isso inviabiliwu a possibilidade de uma revolução jacobina cm nosso país. Ternos aqui uma das ra.íz.cs dos recorrentes processos de modernização pelo alto, com exclusão das classes subalternas, que marcaram a história brasileira. Chamados de "via prussiana" por Lenin ou de "revolução passiva" por Grarnsci, a análise de tais processos ocupa um lugar de destaque na obra de lanni. Recordo aqui, cm particular, um pequeno grande livro seu, O de/o da mlOÚlfáo burgueur,., cm que ele discute as formas que a modernização capitalista assumiu no Brasil. Chamando cais formas de "revolução de cima para baixo", ou mesmo de "contrarrevolução'", ele apresenta nesse livro uma importante rcscn.ha crítica dos aurores que forneceram subsídios para a elucidação desta peculiar via seguida pela modernização burguesa no Brasil. O tema que me foi proposto é a questão do Estado na obra de Occavio lanni. Creio que não me afastei do tema ao f.ucr essas observações iniciais, voltadas, sobretudo, para esclarecer a metodologia usada por nosso autor e o quadro de conjunto cm que se inserem suas reflexões sobre o Estado. Com efeito, lanni sabe que é impossível abordar a questão do Estado sem vinculála organicamente com a totalidade social. Como marxista, de recusa a ideia de que o Estado possa ser crarado como um sujeito autônomo, situado acima do movimento das classes sociais. Ao contrário, lanni sempre nos mostra a rclaçáo de depcnd!ncia que existe entre o Estado e os movimentos da sociedade, cm particular os movimentos das classes e das frações de classe. Isso não significa que de subestime o papel do Estado na formação da ordem social capitalista e, muito panicula.rmcntc, da ordem social capitalista brasileira, na qual o Estado se reforçou cm função precisamente dos processos de •revolução de cima para baixo". Em uma de suas primeiras obrasm, ele insiste na importância de estudar o papel do Estado na história de nosso país. Já no ,,.
O. lanni. O N.1# J. fftlOl"{b ~ Pcuópolís. VOU$, 1984.
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Q , lanni, EJllllÍIJ u111fuJJmw. Es"""'rsl«i.J,ÍntÚlsm.Jíu{lllMB,.,;~ Rio ck J111d10, Q vilizaçto Br.uild12, 1965.
246
Últl.OS
NELSOH CcxmNHO
prefácio a esse importante Üvro, adverte: "As relações do Estado com a escrurura social e o progresso econômico é fenômeno pouco examinado pela sociologia. No Brasil, d e não foi senão objeto de rdlex~ çsp~""'. Qu<1.Ddo ~cm "refl~õcs esparsas", penso que Octavio estava se referindo ao tratamento inadequado que a questão do Estado recebeu enue nós e não tanto à ausência desse tratamento. Por exemplo, na obra de Oliveira Via.nna. e de Auvedo Amaral, o Estado ganha grande destaque, mas aparece como demiurgo das relações sociais. Para esses pensadores, o BrasiJ seria uma sociedade amorfa, carente de uma organização social sólida, cabendo a um Estado autoritário a tarefa de organizar a sociedade e a nação de cima para baixo; essa formulação, como se sabe, inspirou a prática política do Estado Novo varguista e pode ser considerada uma justificativa ideológica da "revolução de cima para baixo". Ianni se opõe claramente a esta fetichização do Estado. Sem negar sua impordncia, como vimos, ele liga o fenômeno estatal à tocalidade social. Com efeito, na pane final deste seu livro, lemos: "'A interpreta?o que eu aqui proponho vai num crescendo, ou seja, da atividade real do Estado ao fluxo histbico tÚJ sistema em que lllJUtla [atividatk tÚJ Estado) ganha smtido" m. Portanto, com base na sua metodologia dialética, ele mostra como é impossívd conceituar adequadamente o Estado fora do que de chama de "fluxo histórico", ou seja, fora do contexto das lutas de classes, às quais, de resto, é dedicado o capítulo N de Estado t capitalismo."' Houve sempre na produção teórica de lanni esta insistência no fato de que a luta de classes, cm suas inúmeras formas e mediações, tem um papel central na explicação não só dos fenômenos estatais, mas também dos demais fenômenos históricos, ou seja, na explicação do movimento de conjunto da tocalidade social. Este reconhecimento da centralidade da luta de classes é outro ponto cm que lanni se üga, de modo consciente e explícito, à trad.im "'
'"
lbiJ., p. x:m. '"-.•J p. 261. Grifo meu. lv'9., lnthul~ predmncn tc "As lut11S de dassc". Ibiá., p. 12?-169.
CULTURA f SOClfOAOE NO BllASll.
247
ção marxista. Pode-se mesmo dizer que, em sua imagem do Brasil, de deu mais atenção às classes sociais do que Caio Pr2do Júnior e, de ceno modo, do que o próprio Florcstan Fernandes. Caio P~o. p<>r e:x:emplo, tem UJl\a, noçio de bwguC$ia c:xmmamcntc imprecisa; de se referia aos proprietários de terras e de escravos da época imperial como "grande burguesia nacional", o que evidentemente é um equívoco. Na análise do BrasU contcmpodneo, o grande historiador paulista subestima o papel da classe operária; assim, num Üvro táo interessante como A m10l"fáo brasikiram, praticamente não aparecem as figuras do proletariado industrial e das camadas médias urbanas; já que a atenção do historiador pauüsta para nossas classes subalternas está quase toda concentrada no t.rabalhador rural assalariado. Ianni, ao contrário, deu maior atenção, cm suas análises do Brasil moderno, à pluralidade das classes e frações de dassc, tratando com maior rigor sua inserção na moderna estrutura social brasileira. Cabe, portanto, insistir: embora sempre dedicasse grande atenção ao papel do Estado cm nossa formação histórico-social, Ianni nunca o abordou como um organismo autônomo; ao contrário, sempre relacionou a estrutura e a ação do Estado ao movimento contraditório das classes sociais. De resto, refletindo sobre o Brasil, ele não poderia deixar de dar atenção ao imponantc papel que o Estado reve cm nossa história. Precisamente cm função do que ele chamou de "revolução de cima para baixo", tivemos quase sempre no Brasil uma situação que Gramsci chamaria de "oriental" - ou seja. "na qual o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa" -, uma situação que gera com frequência o que o pensador italiano chamou de "ditadura sem hegemonia""'. Uma importante corrente do pensamento social brasileiro busca explicar este fortalecimento do Estado como herança do iberismo, Caio Prado Júnioc, A~ bnzsiki,., Sio Paulo, Bro$lllcnsc. 1966. P1fll u1n2 anílisc menos sunúria deste livro, cf., "'P"'• "A inugcm do BM na obra de Calo Prado Júnior. .iobl'Ctlldo p. 201-219. ,,. A. Gl'illlUd, ÚltÍmltJJ IÍJJ a/rrm. Rio de janeiro, Ovili~ Br.uildra, 6 v.• 1999·2002, rcspcctiY2111cntc v. 3, p. 262, e v. S. p. 330. '"'
248 CAAl.os Nu SOH CovnNHO
do patrimonialismo etc.; estou pensando aqui, sob.reruda. num brilhante analista do Brasil, o wcberiano Raymundo Faoro, que tende a explicar esse Estado forte apenas a partir das raízes ibéricas
e do caráter patrimonial~t.a de nossa burocracia.'" Ao contririo, Octavio lanni vai buscar nos processos cspcdficos da revolução burguesa no Brasil a origem deste fon:alccirncnto do Estado, como já vimos ao falar de seu livro O cic/q "4 rnJO/uç4o burguesa. Neste ponto, ele partilha com Caio Prado Jr. e Florcsun Fernandes urna importante conclusão: o Brasil transitou para o capitalismo, é cercamente um país capiwista, pelo menos desde a Abolição e a República, mas operou esta transição mediante o que poderíamos chamar de uma via não clássica, ou seja, daquilo que Lenin designou como "via prussiana" e Gramsci, como "revolução passiva". Nem Caio nem Florcstan parecem ter conhecido, ou pelo menos não empregaram cm suas obras, esses conceitos de Lenin e de G ramsci; lanni, ao contrário, refere-se a eles cm alguns momentos de sua reflexão. De qualquer modo, indcpeodcnccmcncc do nome usado para designá-la, a ideia de que o Brasil tranSitou para a modernidade capitalista através de wna via náo clássica (e não de uma revolução jacobina, desencadeada de baixo para cima) parece ser hoje um sólido pattimõoio da imagem marxista do Brasil. E a obra de Oa:avio lanni ccn:amcote contribuiu para isso. Podemos constatar a centralidade das lucas de classes também nas muitas análises que Octavio dedicou ao populismo no Brasil e na América Latina. "Populismo" é certamente um conceito ambíguo. Com efeito, tem sido frequente na literatura sobre o populismo a tentativa de usar o termo para esconder duas coisas: primeiro, o caráter de classe do Estado na época dita populista; e, segundo, o f.uo de que ocorreu nessa época uma intensa luta de classes, disfarçada pelo fato de que os subalternos apareciam - e eram assim crarados não só pelos líderes populistas, mas também por alguns dos intérpretes do período - sob a forma de uma m assa amorfa a que se dava o nome genérico de "povo". Aliás, "'
R. Faoro. 01 tÚMI
""'*""·Porto Alegre. Gtobo. 1958.
CUlT\lllA l SOCICDAOE NO 8MStl
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"populismo" boje virou xingamento: qualquer governo ou tendência política que não aceite os ditames neoliberais do mercado desregulado e leve cm conta os interesses das camadas populares recebe a alcunha suposwncntc infamante de "populista". laooi recusa claramente essa lcitura asséptica do populismo. Ele nos diz claramente, cm O co/.apso do popuiimw no Brasil e cm muitos outtOS de seus trabalhos sobre o tema, inclusive os que tratam de outros países da América Latina, que o populismo é wn peculiar modo de luta e de aliança de das.ses, bem como uma ideologia que justifica um modo próprio de dominação burguesa. Ele é bastante claro: "O populismo terá sido apenas urna etapa na hist6ria das relações entre as classes sociais no Brasil (...). O populismo é um sistema de antagonismos. Como política de aliança de classes, é uma política de aliança de contrários"',.. Escrito logo ap6s o golpe de 1964, O C'Ol.apso do populismo mostra exatamente como este golpe foi a resultante da crise dessa iost.ávcl aliança de classes, urna aliança que se expressava no Í2to de que alguns segmentos da classe operária urbana foram hegemonizados pelo projeto nacional-dcsenvolvimentista dos setores mais industriali:rados da burguesia. Com a politização crescente das massas, porém, lanni acredita que "ampliavam-se as condições para uma solução propriamente revolucionária; constituíam-se as condições para uma revolução socialista"'". O golpe é precisamente o resultado da ação das várias frações da burguesia no sentido de cortar pela raiz essas tcndblcias socialistas, para as quais - na opinião de lanni - já apontava o movimento popular, sobretudo depois da ativação política dos crabalhadorcs rurais. Em suma, para ele, o populismo e seu colapso são fenômenos que só podem ser explicados a partir da luta de classes. Uma outra obra na qual o Estado apa.rccc claramente articulado com a análise dos processos sociais é Estado e p/.anejammto e~onô171
11 '
O . lanni. O ro/4ptti JiJ J>Of#Í.ismo M BrirsiJ., Rio de Janeiro, Civiliz.açlo Bruildn., 1968,
p. 213. ' """ ·
p. 140.
2 50 CAM.os NtUOfl C.0llTlllHO
mico"" Brasil•, que busca mostrar o papel do Estado brasileiro na construção dos pressupostos e dos fundamentos da modernização capitalista de nosso país. Embora este papel resulte cm grande parte do tipo de modernização "pelo aJco" a que já nos referimos, que implica o recurso permanente à coerção (à "ditadura sem hegemonia" de Gramsci), o balanço que esse livro nos apresenta da ação do Estado brasileiro p&--1930 não é um balanço inteiramente negativo. Além de criar as condições para uma intensa e rápida modernização das forças produtivas, segmentos das dasscs trabalhadoras-embora quase sempre privados de direitos polícicos e, cm muitos casos, até mesmo de direitos civis - obtiveram no período alguns importantes direitos sociais. Não posso aqui me deter no tema, mas lembro que Gramsci, ao caracterizar o que chama de "revolução passiva" (e o período histórico tratado por Ianni nesse livro pode ser considerado como uma revolução passiva de longa duração), dizia que esta modalidade de transformação pelo alto expressa o movimento pelo qual as classes dominantes, para conservar o seu poder, concedem algo aos "de baixo", que apresentam suas reivindicaçócs de modo ainda "esporádico e derncncar""'. Não me parece casual que, pouco antes de tomar posse na prcsid~ncia da República, Fernando Henrique Cardoso tenha afumado que um dos objetivos de seu governo seria pôr abaixo o que chamou de "Estado varguista•. Na verdade, o que de tinha cm vista era, precisamente, destruir os poucos dementos positivos desce Estado p&--1930, já que isso era condição para empreender uma aberta política neoliberal, fundada na privatização do patrimônio público e na implementação de contrarrefonnas antipopuJares. Porém, mesmo ressaltando traços positivos no "Estado varguista", lanni não esquece sua natureza de ~ Permitamme citar neste sentido uma passagem de Estado e púznejammto econômico: 167,
uo
Ç(., l ll/rllo llOQ
"'
A. Gramsd, ~ Jo r4rr~. cd. cit., v. 1. p. 393.
CuLTUllA 1 SOOlDADf NO 811A.S1L
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Oclibcradamcntc ou não, os membros da cccnocsuurura cscu.al põem cm prática objetivos econômicos e técnicas de conuole das rclaç6cs de produção e de apropriação por meio das quais se preserva ou modifica o modo pela qual as difcrcntC$ das5CS soci.ais e certos grupos soei.ais rcprcsc:m:amcs de cada classe
participam da renda nacional'"'.
Portanto, não é cm nome da modernidade, ou da construção da nacionalidade, que o Estado brasileiro interferiu durante tanto tempo na esfera da economia: ao contrário, o fez para garancir os interesses de determinadas dasscs e frações de classe. Essa natureza de dasse do Estado brasileiro pós-1930 volta a ser reafumada rom ênfàsc cm A áitaáura do gmntk C4f>ital, no qual lanni tenta caracterizar a forma e o conteúdo social do Estado que vigorou no período que se inicia rom o golpe de 1964. Esse livro foi publicado em 1981. Poucos anos antes, em 1975, Fernando Henrique Cardoso havia publicado Autoritarismo e dnnocratizafáo"J, no qual formula - ao lado de algumas interessantes observações cópicas - uma estranha teoria. Segundo de, com a ampliação da intervenção estatal na economia, reforçada pelo regime p&--1964, teria se criado no Brasil uma suposta "burguesia de Estado", formada pelos executivos das empresas estatais. Estaríamos diante, para de, de uma nova classe social, cujos interesses seriam antagónicos àqudes do capital privado; seria precisamente essa "burguesia de Estado" a verdadeira rcsponsávd pela ditadura (que ele prefere chamar de "aucoricarismo"), ao passo que a burguesia privada seria liberaJ (inclusive cm política!) e defenderia o firo do "autoritarismo". Ora, dizer que a participação do Esttdo na economia é causa do autoritarismo, enquanto a ação do capital privado favorece a democracia, é levar claramente água para o moinho do libcraJismo privacista. É até possível que, na época, Cardoso não tivesse plena conscirocia das implicações liberais ou neoliberais desta sua formulação, mas o &co é que, anos depois, já na presidencia da República, não hesitou cm pôr tais ideias em prática. "' O. lanni, Eslllli# t p~lll "'"'"'kv•~ {'i1. , P· ~ 16. IU
a.. 1t1p,.,,_,
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169.
252 CM.os NWOH CoulN«>
A ditadura do gra.nde capital. ao tentar caracterizar o período pós-1964, não se vale absolutamente deste f.a.Lso conceito de "burguesia de Estado". Para Janni, com efeito, é muito evidente que a ditadura pós- 1964 (designaçio diante da qual não tergiversa) é uma ditadura a serviço do grande capital privado, seja de nacional ou internacional. Como já havia mostrado cm obras anteriores, de sabe que o papel do Estado na economia brasileira foi, na maioria esmagadora dos casos, o de sustcntaçio e fomento à acumulação privada. Se as empresas estatais não eram lucrativas, isso ocorria porque sua função não era a de obter lucro para si mesmas, mas, ao contrário, a de repassar a mais-valia nelas geradas para os setores privados do capital, que num primeiro momento não tinham condições o u não estavam inccrcssados cm investir nos setorcschavc da economia. lanni mostra isso muito bem cm seus livros, mas o faz pacticulacmcntc cm A áitlldura do grande capit4l. Prosseguindo o que já fora iniciado na era Vargas, a ditadura militar adorou elementos de planejamento econômico e interveio na economia com o objetivo de assegurar condições de maior lucratividade para o capital privado, nacional e internacional. O aparelho estatal foi reforçado e concentrado no Poder Executivo como insuumcnto para &vorcccr, orientar e dinamizar a acumulação privada do capital. Juntamente com Brwil: radiogra.fia de um mode/Q (1974)'.., de Nelson Wcmcck Sodré, A áitlldura do gra.nde capital foi e continua a ser uma das principais contribuições m.arx.istas para a compreensão da natureza da ditadura militar brasileira. Gostaria de concluir sublinhando q ue Oaavio Ianni, cm seus quase 50 anos de atividade intelectual, sempre se manteve fiel ao principio metodológico básico do marxismo, que consiste cm adotar, na tentativa de entender os fenômenos sociais, o ponto de vista da totalidade, o que tem como conscqubtcia dar centralidade à historicidade contraditó ria do real e, portanto, à luta de classes. Mas gostaria de ressaltar também que essa coerência mctodoló,..
N. W. Sodré, Brt11il: ~foi tk ""' ~'4. Petrópolis. Vcncs, 197( .
CuLT\IM C SOOIDAl>f NO 8 MSIL
253
gica de Ianni está o rganicamente ligada à cocr&tcia da sua ação ético-política ao longo da vida. Octavio nio contribuiu apenas para a nossa compreensão da realidade brasileira e mundial: de é cambém um exemplo moral para os qµc buscam, através da defesa das causas populares e da emancipação humana, uma vida mais digna e dora.da de sentido. (2006)
•
Nota bibliográfica
Os ensaios reunidos neste livro, reproduzidos aqui com modificações, foram publicados pela primeira vez, quase sempre com diferences óculos, nos seguintes locais~
1. "Os intelectuais e a organização da cultura", in: Temas de c:ibici4s humanas, São Paulo, n. 10, 1981, p. 93- 110. Conf~ncia pronunciada cm São Paulo, cm 28 de junho de 1980, como parte do curso de Hisr6ria do Brasil promovido pclaAuphib (Associação de Universitários e Pesquisadores de Hist6ria do Brasil). II. "Cultura e sociedade no Brasil", in: Encontros com a Civilização Brasikira, Rio de Janeiro, n. 17. novembro de 1979, p. 19-48 (reproduzido cm C. N. Coutinho, A dmwcracúz como vak>r universal, São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 61 -92). UI. "Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfun", in:
Pmmça. &vista tk polf#ça ç rulrum) Rio d<: Jan<:iro, q , 7, m3IÇQ de 1986, p. 100- 112. IV. "O significado de Lima Barreto em nossa literatura", in: Vários autores, Realismo e anti-~a/ismo na litnrztura brasikira, Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1974, p. 1-56. V. "Graciliano Ramos", in: Revista CiviliZIZfáO Brasileira, Rio de Janeiro, n. 5-6, março de 1966, p. 107-150 (reproduzido cm C. N. Coutinho, Literatura e humanismo. Ensaws de critica marxista, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 139-190). VI. "O povo na literatura de Jorge Amado", in: Vários Autores, Um grapiúna no pais tÚJ carnaval, Salvador, Edufba-Casa das Palavras, 2000, p. 57-62. Conf~cia pronunciada em Salvador no 1 Simp6sio lntcrnacional sobre a obra de Jorge Amado, l O a 13 de agosto de 1992. Vll. "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior", in: Maria Ângela D'Jnçao (org.) 1 Hiddri4 e k/eaL Ensaios sobre Caio Pra® Júnwr, São Paulo, Editora da Uncsp-Brasillensc, 1989, p.
256
WlOS NWON Ú>\/T1NHO
(ndice onomástico·
11 5-131. Conferência pronunciada cm Marília na II Jolllllda de Ci~ncias Sociais da Uncsp, 26 a 28 de maio de 1988. VTIJ. "Marx.ismo e imagem do Brasil cm Florcstan Fernandes",
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A
Confcrbtcia pronunciada cm São Paulo no simpósio "Florcstan Fernandes e o Brasil", promovido pela Fundação Perseu Abramo, 26 a 28 de agosto de 1998. IX. "O legado de Octávio lanni", in: M. V. lamamoto e E. R. Bchring (orgs.), Pmsammto tÚ Octdvio /anni, Rio de Janeiro, 7 Letras, 2009, p. 55-65. Conferência pronunciada no Rio de Janeiro no "Colóquio sobre o pensamento de Octávio laoru", promovido pela Uetj, 22 a 23 de novembro de 2006.
ADONlAS Filho - 183 ADORNO, Theodor W. - 29, 74. 79. 80, 82, 84-87 ALENCAR. J~ de - 22, 61 , 93 ALMEIDA. Manud Antonio - 22. 56,96-99, 119, 195 ALTIIUSSER. Louis-15. 75 AMA.00,jorge - 11,12,61 , 132, 188, 195-200, 255 AMARAL, Azevedo - 55, 246 ANDERSON, Peny-39 ANDRADE. Mário - 56, 138 ANTUNES, Ricatdo - 231 ARISTÓTELES - 129 ATAIDE. AusucpUo - 100 AZEVEDO, Aluúio - 94 AZEVEDO AMARAL. Antimio }<*de - 55, 246
B BABEUF, Gracbus - 189 BALZAC, Hono~ de - 94, 98-100, 112, 114, 11 5, 127, 129, 144, 161, 182, 184, 198 BARAN, P2ul - 75 BARBOSA, Francisco de Assis102, 114. 135
BARBOSA. Rui - 131 BARTÓK. B& - 46 BAUDEl.AJR.E, Charles- 74 BENJAMIN, Walter - 74, 79-82, ~ BÔLL, H cirincb - 119, 120 BRANDÃO, Octávio - 222 BUARQUE DE HOLANDA. Chico - 66, 67. 86
e CALU.00, A.nconio -66, 115, 139 CAMPOS, Francisco - 50 CANDIDO. Anto nio - 40, 48, 187
CAPINAM, José Carlos - 66 CARDOSO, Ciro Flammarion 204 CARDOSO, Fernando Henrique 38.72.242,243,250,251
CARLOS, Antônio - 51, 196 CARONE. Edg;ud- 222 CASTRO ALVES, Antônio - 20,
96.
195 CERVANTES, Migud de - 119 CHAPLIN, Clurlcs - 85 CHASIN,J. -62, 231 C HOLOKHOV, Mikbail Aloc.a.ndrovitcb - 191. 193
Eft( !ndia rdu:iona apenas os nomes de pcaou; Ido foram incluldos nestt !nelice nomes de pcnonagcos litcrúios ou mirol6gkos. nem óculos de u,,_
2 58 Cw.os Nn!Oll C011T1NHO
COELHO, Marco Antonio (Assis Tavares) - 218 COHN, Gabrid - 228, 242, 243 COSTA. Hipóliro da - 51 COUSIN, Victor- 5 1 CUNHA. Euclides da - 51
D D'ANNUNZIO, Gabride - 59 DAUDET, AJphonsc - 100 DEBRAY, ~ - 75 DEFOE. Daniel - 96, 182, 199 DIAS GOMES, Alfredo - 85 DICKENS, Charles - 100 DOSTOIEVSKJ, Fiodor Mikhailovit.ch - 59, 98. 99, 101, 104. 119, 120, 128, 129, 161, 184, 191 OUTRA, Eurico Gaspar - 28
E EUOT, George (pseudónimo de Maty Ann Evans) - 104 ENGELS. Fricdrich - 14, 35, 37, 41. 11 o. 146, 198. 2.25, 228
F FAORO, Raymundo - 248 FARIAS BRITO. Raimundo de - 50 FERNANDES. Aorcsan - 11, 12, 221-239. 241-244. 247, 248, 256 FIELDING, Henry - 96. 180, 182 F1GUEIREDO, Anton io Pedro de - 51 FL\UBERT, Gustavc - 144, 182
CULTillll- ( SOCl[OAI)( NO BllA!ll
FONSECA. Hermes da - lJ 6, 131 FOUCAULT, Michd- 81 FRANK. AncW Gundcr- 217 FREIRE, Paulo - 57 FR.EYRE. Gilberto- 50, 221, 244 G GALVÃO, Walnicc Nogueira - 48, 61 GERRATANA. Valentino - 13 GOETHE, Johann Wolfgmg- 99. 132. 145 GOLDMANN, Lucicn - 44, 75, 134, 146, 162, 186, 191 GOMES, Eugênio - 108 GONÇALVES DIAS, Antônio - 93 GORENOER. Jacob - 39, 52, 204, 224 GORKI, Maximo - 59, 98, 101, 182 GOULART, João- 217 GRAMSCI,Antonio-9, 12-17, 45-47. 53. 54, 60, 65, 70, 71 , 75. 76. 79. 81-85, 87, 91, 189, 202, 209-21 l, 214, 215, 224226, 229. 232-234. 236, 24 1, 245,247,248,250 GUOIN, Eugbüo- 50 GULLAR. Ferreira - 52, 66 H HABERMAS, Jürgcn - 80, 82 HARJCH, Wolfgang - 75 HEGEL. Gcorg Wühdm Fricdricb - 14. 35, 73. 12 1. 129, 150, 155. 193
n.
HEIDEGGER. Martin - 74, 77 HEINE. Hcinrich - 181 HENRJQUES, Luiz Strgio - 78 HOR.KHEIMER. Max - 74, 79, 80, 85-87
lANNI, Octavio- 11, 12, 233, 241-253
K KAFKA, Fran~ - 191 KONDER. Lc:mdro - 26, 50. 78, 222 KOTHE. Flavio - 79, 80 KUBITSCH EK, Jwccli no - 28, 2 17
l LAFARGUE. Paul - 94 LENIN, Vladimir llitcb Ulianov 39, 45. 46. 59. 90. 162, 202. 204-206.209. 222,224-226, 229, 230.232. 233.245,248 UMA BAR.RETO. Afonso Henriqucs de- 11, 22, 24, 27, 44, 48, 59, 60.89,90.96. 100-108, 11 1, 112, 11 4, 117, 119, 120, 122. 123. 134- 139. 142, 195. 200 LUKÁCS. Gyõrgy - 2 1, 22. 46, 48, 49. 55-57, 65,73. 75, 76, 78. 81 , 82. 91. 110, 118-123. 145147. 151. 152, 154. 160. 162, 168. 169, 183, 19 1, 194, 239. 241, 242
2 59
M MACEDO, Joaquim Manud - 93 MAClEL. Luís Carlos - 77 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria - 22. 58. 97, 98, 100, 108, 119. 132, 139. 195 MAGADAN, Glória - 85 MAI
N NAPOLEÃO Bonaparte - 130. 13 1, 161
(ULTIMA ( SOCICOADl NO 811.t.Sll
NETfO. José Paulo - 78 NlETZSCHE. Fricdrich - 59 NOVA.ES, Fernando - 204
RIBEIRO, João Ubaldo -
ioo
ROBESPIERRE. Mnimilicn - 143. 189
VERfSSCMO, &ioo - 139 VOLTAIRE (pscud6nimo de François-Marie Arouct) - 17
ROUANET. S«gío Paulo - 78.
o
8~8
OUVElRA, Francisco de - 208 OLIVEIRA VIANNA, Francisco José - 50, 221 , 244, 246
p PAULINHO DA VlOLA (pseudónimo de Paulo CéAr de Faria) -67
PED<.OTO, Afrinio - 23, 103, 195 PERErRA, Astrojildo - 58, 60, 100, 107
PINTO, Álvaro Vieira - 190 PLATONE, Felic:c - 13 POMPrn. R:tul - 107 PONTES, Paulo - 66 PRADO Junior, Caio - 11 , 25, 38, 201-2 19, 221-229. 232, 239, 244, 247.248 PUSHKIN, Alcxa.odcr - 98
R RAMOS, Graciliano - 1~1 2, 25, 89, 108, 109, 113, 132, 135. 139. 141- 194, 196, 197, 200 REALE. Mjgud - 50 REGO, José Uns do - 25. 139. 183. 196 R.EI C H , WUhclm - n REZENDE. Lc6ruda.s - 5 1 RIBEJRO, Gi1Y2n P. - 78
ROUSSEAU, Jean-Jacques - 189, 190
s SCHAFF. Adam - 75 SCHWARZ. Roberto - 42, 43, 68, 74, 78, 100 SOORt, Ndson Werncck - 22, 42, 5 1.92. 158,223, 239, 244, 252 SOLJENITSrN. Alcxa.odcr - 98, 99, 119, 120 STENOHAL (psed6rumo de Harui Bcylc)- 127, 129, 144, 16 1, 182, 184 SWEEZY, Paul - 75 SWJFT, Jo nathan - 100
T T C HEKOV, Anton - 132 TOGUATn, Palm.iro - 13, 7 1 TOLEDO, Caio Navarro dc - 41 TOLSTOI, Lcon Nikowcvitch 59. 100, 101 , 104, 130. 131 . 133. 16 1 TROTSKI. Lcon - 59 TSt-TUNG, Mao- 75 TURGUENlEFF, lvan - JOO, 101
V VEIGA , Evaristo - 51 VELO SO , Caetano - 67. 86
w WEBER. Max - 228
z ZOLA, &niJe - 93
261