BREVE HISTÓRIA DO CORPO E DE SEUS
MONSTROS
IEDA TUCHERMAN
2
para meu pai, Gregorio Vaisberg, in memorian
para Fernanda, Guilherme, David e Marcela, “ventos do futuro”
3
AGRADECIMENTOS :
Este livro é resultado de inquietações, curiosidades e diálogos. Nasceu sob o signo dos encontros e das amizades, surgindo como continuidade de uma viagem minha a Portugal em abril de 1997. Creio que estas três condições marcam seu estilo e a sua “errância”, pois é ainda um trajeto onde fez mais prazer o percurso do que a hipótese da chegada. Sem algumas pessoas ele não teria sido possível, ou seria outro, e para elas vão os meus realmente sinceros agradecimentos.
a José Augusto Bragança de Miranda pelo convite para escrevê-lo, pela aposta de que eu o faria e pela amizade tão estimulante a minha turma das quartas-feiras de manhã, meus alunos de pósgraduação, adoráveis “sócios” na experiência de concebê-lo a Carmem Gadelha pelo cuidado da primeira leitura ao Cláudio pela paciência na digitação
No mais, aos meus amigos (que sorte que os tenha!) não faço dedicatórias. Prometo dedicação.
4
“O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser”
(Padre Antonio Vieira - Paixões Humanas)
“Repetir, repetir, até ficar diferente “Repetir é um dom do estilo”
(Manoel de Barros - Livro das Ignorãnças)
5
S UMÁRIO :
I - APRESENTAÇÃO , 6 II - BREVE HISTÓRIA DO CORPO, 12 II.1 - A CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA : A FUNÇÃO - ESPELHO , 12 II.2 - O CORPO TRANSCENDENTE : O SEGUNDO PASSO , 22 II.3 - A
IDEALIZAÇÃO DO CORPO : A EXPERIÊNCIA DO CORPO GREGO E
A INVENÇÃO DO CORPO ROMANO ,
25
II.4 - O CORPO CRISTÃO : UM CORPO SEM LUGAR , 31 II.5 - C ORPO , ESPAÇO E NARRATIVA , 46 II.6 - A TRANSIÇÃO PARA O C ORPO M ODERNO , 52 II.7 - O NOVO CORPO E OS NOVOS PERSONAGENS , 55 II.8 - A CRISE DO CORPO , 68
III - M ONSTROS , FREAKS OUTRO ,
E
C YBORGS :
O OUTRO DO CORPO E O CORPO DO
72
III.1 - A CONSTRUÇÃO DOS MONSTROS E AS RAÇAS FABULOSAS , 72 III.2 - O S MONSTROS FANTÁSTICOS E OS FREAKS , 87 III.3 - O S FREAK-SHOWS , 98 III.4 - O MONSTRO IMAGINÁRIO DE M ARY S HELLEY , 101 III.5 - DO FRANKENSTEIN ABSORÇÃO ,
AOS NOVOS
FREAKS :
105
III.6 - A RTE, C ULTURA E TECNOLOGIA , 113 III.7 - C YBORGS , UM DEVIR ..., 120 III.8 - “M ANIFESTO PARA OS CYBORGS ”, 124 III.9 - C YBORGS E A C IBERCULTURA , 129
UM PROCESSO DE
6 IV - ENSAIO PARA UMA CONCLUSÃO , 137
V - BIBLIOGRAFIA , 150
I - APRESENTAÇÃO :
“Com pedaços de mim eu monto um ser atônito” (Manoel de Barros - Livro sobre Nada)
Perplexidade
parece
ser
o
sentimento
mais
comum
que
experimentamos em nossos dias. Divididos entre o assombro e o desassossego nos vemos incapazes ou, pelo menos, mal preparados para entendermos o que constituía nossa sensação de realidade. De certa for ma perdemos o mundo e as mais caras idéias que tínhamos sobre nós mesmos. Neste fim de milênio, sempre uma data muito grave, repetimos, sem nos darmos conta, as profecias milenaristas que no ano 1000 enchiam de pânico os habitantes da velha Europa, antecipando, naquele então, o fim dos tempos e o fim do Mundo. Sabemos que eles estavam enganados. Nossa simples presença é a prova concreta do seu engano e, de há muito, nos pareceram ingênuas e fanáticas suas previsões. No entanto, alguns de nossos intelectuais mais festejados assim como a grande massa atingida pelos meios de comunicação não cessam de fazer voltar a saudade dos outros tempos referindo-se à nossa atualidade como o momento do fim da história, do esgarçamento do humanismo, da gravíssima ameaça ao nosso eco-sistema, da perda das identidades e do fim dos processos de subjetivação. Perda, fim, vazio, indiferenciação, desaparecimento são os termos e os diagnósticos mais freqüentes hoje.
7 Este pequeno livro nasceu deste e contra este ambiente. Pode ser pensado como um desejo de teimosia e de esperança. Que não se quer ingênua, pois não desconsidera que, como diz a canção, “nada será como ontem, amanhã”. Mas que assume algumas lições aprendidas com pensadores que, como faróis, iluminam parte do caminho a ser inventado e percorrido. Sem eles a tarefa seria impossível. Com eles não existem garantias totais já que lhes ser fiel significa também afastar-se deles, que já não estão presentes, em alguns casos como os de Nietzsche, Foucault e Deleuze, ou não desejam discípulos como Michel Serres, para citar apenas os companheiros mais constantes. Algo há de fazer, ou melhor, a pensar. Pois o fim de um pensamento não é o fim da possibilidade de inventar; pois não temos o direito de desprezar o presente; pois precisamos conhecer os perigos e as estratégias que nos permitam resistir; pois devemos escolher o que queremos que permaneça e lutar por isto. Imperioso optar por um “ceticismo ativo” que nos proteja da falsa euforia como da improdutiva apatia. O resto é tentar, correndo o risco de encontros e encontrões, de muitos pequenos enganos e de algumas contradições que, esperamos, sejam perdoáveis. A autora tem o vício, mais do que o estilo, de não saber conceber tratados. Não por ausência de rigor ou seriedade, mas por ser alérgica a verdades contumazes. Sendo assim este texto reapresenta uma escolha já antiga realizada para a sua tese de doutorado, que tinha como título: Ética e Modernidade: Diário de Bordo ou Contos de Amizade. Escrever no modelo grego dos “hypomnemata”, espécie de cadernos que constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas e pensadas, para nós também vistas e simuladas, de modo a ajudar nos exercícios de reflexão mas também na arte de viver. Este é o projeto. Que sorte o bafeje. Onde estamos nós? poderia ser nossa primeira pergunta. Em que lugar tempo realizamos nossa coexistência? A que cultura, afinal, pertencemos? Alguns nomeiam nossa época de pós-modernidade, num
8 batismo que nos parece pouco definido: pós significa aí apenas dep ois de, tal como o prefixo pré em pré-socráticos junta no mesmo nome todos os que antecederam Sócrates, incluindo pensadores tão contrastantes como Anaximandro, Empédocles, Heráclito, Parmênides etc. E, se é o depois da Modernidade, como é, ou seja, é uma continuação no depois, uma evolução, ou é uma ruptura? Pós-modernidade seria o nome da crise da Modernidade, ou de sua total superação? Preferimos pensar em termos de atualidade, considerando que esta tem relações ambíguas com o seu passado imediato, ou seja, a Modernidade que talvez defina o que não somos mais, ao menos em termos absolutos, mas do que ainda manifestamos sintomas, e algo que ainda não somos mas que estamos devindo, isto é, vindo a ser. Inegável no entanto é que neste nosso agora assistimos a uma espécie de reinvenção da cultura onde o ciberespaço e a realidade virtual põem em questão a própria existência do real e de seu sentido, experimentado por nós como ausência de existência já que a realidade, tal como nossa tradição cultural a concebeu, supõe uma efetuação material e uma presença tangível. Podemos viver afetivamente esta perda, mas é necessário evitar as armadilhas: o virtual não se opõe ao real; a relação que existe é entre o atual e o virtual, um modo próprio de ser do real que se associa a um processo de “desterritorialização” e a novos fenômenos espaço-temporais. Ora, o que era a realidade pensada como presente e presença para a experiência moderna senão um contínuo deixar de ser? Sua aposta não foi a eleição do novo como o cultuado valor já que o que lhe parecia intolerável era que o futuro não fosse melhor e mais digno do que o passado? O presente que aí foi desvelado, uma vez rompidas as ligações com a tradição, era uma questão apresentada pelo negativo, ou seja, como já o dissemos, pelo deixar de ser, cuja singularidade é a emergência do possível. Pontuou, ao mesmo tempo, o mágico momento do aflorar das utopias, este não-lugar do real que fala do desejo do que pode vir a ser,
9 portanto do sonho, e da autonomia da razão que deve ser capaz de avaliar as condições possíveis do presente atual e preparar a chegada do novo. O novo era o lugar de confluência do sonho e da razão, era a radical promessa onde sopravam os ventos da liberdade e da realização. Mas tinha os seus problemas, alguns dos quais constituem nossa herança. Para além da Revolução Francesa e no seu modelo, surgiram todos os movimentos libertários, buscando construir os novos mundos. Surgiram também, é bom não esquecermos, os movimentos totalitários, pretendendo produzir um novo pré-determinado e único, exterminador radical de todos os possíveis. Ora, foi em busca do novo e do mais veloz, de introduzir uma separação entre cultura e natureza que o Ocidente investiu o melhor dos seus esforços. Paul Virilio menciona esta relação na fórmula “HOMO FABER”, o que é capaz de fazer melhor e mais rápido que a Natureza, sujeita às leis do comparecimento do acaso, que, desde o mito da Gênese já é um outro do Paraíso: o enunciado bíblico “Tu cultivarás a Terra com o suor do teu rosto e nem sempre ela te dará os melhores frutos”, mais do que uma condenação, produziu uma tarefa: a ação da cultura humana que, tendo a ciência e a tecnologia como suas apostas, deveria tentar controlar, por um lado, e antecipar por outro, a cultura dos frutos necessários. Não é portanto tão espantoso que falemos hoje do desaparecimento do real, entendido como suporte material, relacionado, de certa forma, ao espaço e à natureza. Talvez a diferença se encontre, em primeiro nível, na aceleração da velocidade que desqualifica o espaço: mas este sempre foi transformado pelas tecnologias; enquanto suporte, sua existência se realiza a partir da possibilidade de percorrê-lo e esta deveria poder ser sempre mais segura e veloz. Hoje é a velocidade que nos confunde: é que parecemos estar atrasados não em relação ao nosso futuro, mas em relação ao nosso próprio presente. Ao mesmo tempo em que o real faz questão, surge desta uma segundo pergunta, logicamente correlata. Quem somos nós, humanos? já as novas tecnologias biomédicas, as novas teorias de neurofisiologia
10 cerebral, a profusão de próteses conectáveis ou implantáveis com as quais nos hibridizamos, as clonagens e as experiências que superaram as determinações da espécie só fazem por em questão as mais antigas noções de
humanidade
e
nossas
determinações
mais
radicais:
a
saber,
mortalidade, singularidade e sexualidade. Em relação à mortalidade, a nossa finitude constitutiva da experiência da Modernidade, cuja elaboração podemos reconhecer nas questões Kantianas a partir da radicalidade do limite como nosso princípio próprio: O que posso conhecer? O que devo desejar? O que posso esperar? parece estar sob suspeição. Assim como as intervenções protéticas e o processo de duplicação tornam possível o adiamento ou a superação da mortalidade, à condição que o homem perca suas pretensas características de ser natural, portador de singularidades próprias, pois para postular -se como imortal é preciso que o homem seja “em seu próprio corpo”, puro artefato, as questões que nos constituíam tornam-se anacrônicas ou obsoletas. Talvez não estejamos totalmente preparados mas é, sem dúvida preciso, conceber as novas questões que se fazem necessárias. Entre elas, talvez, a mais significativa seja: O que é ser um corpo? ou O que é ter um corpo? que possibilidades hoje nos são abertas e que experiências nos são possíveis? Quanto à singularidade, ela se relacionava mediatamente com a experiência de finitude, de corpo e modo de ser próprios. E o processo de globalização, que configura o que chamamos de sociedade de controle, parece ter como premissa lógica para seu funcionamento a nossa des singularização. Somos agora senhas, que fala do nosso lugar no sistema, que é o que interessa para a operacionalidade do mundo que tem como alma a empresa, como somos conexões no regime da cibercultura. “Eu sou na medida das minhas conexões” parece ser o que hoje define nossa subjetividade, assim como nosso corpo. No que se refere à nossa sexualidade, nós nos orgulhamos do movimento político que nos permitiu destacá-la da reprodução, a nossa tão festejada revolução sexual que afirmava em nós a liberdade de seres do
11 desejo. Mas não estávamos, parece, preparados para não sermos mais responsáveis pela vida e pela continuidade da espécie. Tudo parece supor que a ordem mundial na sua mais intensa radicalidade não depende mais do homem, condenado então à “funções inúteis”. Não é possível deter este processo. Não parece também sensato acreditar que conheçamos ou possamos determinar o seu desfecho. A única certeza que parece lógica é a da perda de tudo o que enquadrou nossos saberes, nossas confortáveis referências teóricas, nossas antigas seguras fronteiras que delimitavam humano e não-humano, e da articulação presente - passado - futuro que nos dotava ao menos imaginariamente, da capacidade de previsão, da diferença representada pelo novo que destacava real e possível entre outras. Logo, não perdemos a bússola, mas também o mapa e o território, o que para um viajante corresponde à experiência impossível de perder-se no não-lugar. A Modernidade apostou no desejo de futuro, na antecipação de seus possíveis. Mas a atualização de um certo intolerável aconteceu para além de suas previsões. Não foram os acidentes singulares, lugares de um medo identificável que nos perturbaram mais profundamente, mas, de certa forma, as vitórias obtidas. As revoluções tecnológicas configuraram um tempo onde as coisas acontecem antes de terem sido desejadas. O novo, valor de investimento do nosso mais imediato ontem é também o nome da angústia do nosso hoje, já que nos inclui na pergunta: Que humanos somos nós? A que nova raça pertencemos? O que é hoje nossa corporeidade? Modificam-se o ambiente, a questão e os afetos: agora não se trata apenas do que podemos ser ou fazer mas também, e principalmente, se podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos. Curiosamente nossos poderes escapam a nossos poderes. E, como um mote, atingem-nos diretamente na carne, isto é, naquilo que o corpo protegia. É disto que tentaremos falar. Nossos personagens conceituais serão o corpo, sua história e seus outros: monstros, freaks, cyborgs, anjos.
12 Tentaremos encontrá-los ouvindo os “ventos do futuro” que sopraram para Nietzsche: “O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir” (F.Nietzsche - Assim falou Zaratustra, Primeira parte 4)
CAPÍTULO II
BREVE HISTÓRIA DO CORPO
Et puisque tous ces mystères nous dépassent Feignons d’en être les organisateurs
(Jean Cocteau - La Machine Infernale)
II.1 - CRIAÇÃO DE UMA CATEGORIA - A FUNÇÃO ESPELHO O “corpo” pertence ao conjunto de categorias mais persistentes na cultura ocidental. Fundamentalmente porque ele suporta, pela sua aparente evidência, todas as grandes questões que nos configuraram e permitiram que nós nos inventássemos, nos esquecêssemos e tornássemos a nos inventar na categoria mais radical que parecia definir a nossa humanidade ou seja, aquilo que pensadores como Clément Rosset (entre muitos outros) chamam de nossa fatalidade ontológica: a nossa finitude radical e a nossa necessária singularidade que “by all the ways”, ou seja, “always”, nos determina uma forma que
13 reconhecemos no espelho, no cinema e mesmo na nossa sombra que nos faz presente na nossa ausência imediata.1 O recurso ao espelho, agora pensado no grande plano para além closeup, parece alegoricamente sedutor. Pois apenas o que possui uma imagem atual e totalizada se permite capturar no espelho na presença de duas dimensões: altura e largura. “E quando nos vemos no espelho, o que vemos refletido é a imagem do Narciso que está em nós, mas não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa como viajante nômade [...]. O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que vemos: mas o vampiro é o que não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem de vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo”.2 Lembrando também o que a nossa música popular através de Caetano Veloso enunciou definitivamente: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”.3 O espelho é, em relação ao mundo, poderoso mas também específico. E parece que, desde a primeira possibilidade técnica do reflexo nas águas, a que o mito de Narciso faz menção, a grande aposta da tradição ocidental foi a de se constituir como o reino da visibilidade universal: ver é conhecer e a aposta é que uma pedagogia do olhar é o que constrói nossa relação com o mundo. A relação entre especulação filosófica e fenomenologia Ser é Perceber é a de um vínculo forte, como aponta, com argúcia, Umberto Eco.4 Speculum - espelho; spectabilis - o visível; specimem - a prova; o indício, o argumento e o presente; speculum é parente de spetaculum (a festa pública) que se oferece ao spectator (o que vê, o espectador) que não apenas se vê no espelho e vê o espetáculo, mas ainda pode voltar-se para o speculandus (a especular, a investigar, a examinar, a vigiar, a espiar) e ficar em speculatio (sentinela, vigia, estar de observação, pensar vendo) porque exerce a spectio (a
1
Clément Rosset, Le Réel - Traité de l’idiotie, Paris, Minuit, 1977. E. L. de Souza, Theatrum do sentido, dissertação de mestrado apresentada na Escola de Comunicação da UFRJ, 1995, e orientada por mim. 3 Caetano Veloso, Sampa. 4 U. Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. 2
14 vista, inspeção pelos olhos, leitura dos agouros) e é capaz de distinguir entre as species e o spectrum (espectro, fantasma, aparição, visão irreal). Poderoso porque congela o tempo e define o espaço para que nele conquistemos uma forma e, assim, reflete o Narciso que ele mesmo produziu. Específico em outro sentido: se eu escrever um diário, gravar uma fita e enviála a alguém na garrafa do náufrago das lendas ou através das modernas tecnologias de comunicação, o meu pedido de socorro ou as minhas reflexões serão apreendidas - assim diz a lenda - como assim acontece quando aciono meu netscape. No entanto, depois que eu desaparecer, a pessoa que me seja mais amada e a mais próxima, olhando no espelho em que eu me vi a cada manhã, só encontrará seu “próprio” corpo e minha perda. O espelho é um agora absoluto ou, usando uma expressão mais filosófica, uma recusa do tempo.5 E todo e qualquer homem (na generalidade de humano onde ela ainda parece ser possível) do mais sábio ao menos cultivado, sabe que precisa esperar derreter o torrão de açúcar para que o café seja adoçado: ou seja, sabemos instintivamente que só existimos no tempo e em sua medida de duração, ainda que falemos sobre instantaneidade, ubiqüidade, virtualização e aceleração. Ao lado da INTERNET, acessada pelo meu computador, está a velha xícara talvez com a pequena fissura na porcelana familiar, esperando que o açúcar se misture a um café não-instantâneo, para permitir que o “meu corpo”, cansado de um dia de trabalho, se energize com a cafeína consumida e me permita continuar “plugada”. Mantendo a referência afetiva a Deleuze, a ela acrescentando Guattari, a máquina desejante pode muito, mas precisa ter qualquer espécie de combustível que, associado ao desejo, me permita, simplesmente estar acordada. De pé na “aldeia global”. Voltando ao espelho para um re-conhecimento, seu agora absoluto é “mortal” ou, pelo menos, muito perigoso. Narciso apaixona-se por sua “própria” imagem e isto significa sua morte. Cecília Meireles, a mais conhecida poetisa brasileira, com a sutileza do olhar feminino, pergunta: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.6 5 6
Ferdinand Alquié, Le Désir d’Eternité, Paris, PUF, 1a. edição, 1943. Cecília Meireles, Retrato - Flor de Poemas, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1972, p.63.
15 E a nossa cultura tem sido, refiro-me aí às duas matrizes que sustentam o nosso chamado pensamento ocidental de Occidere lugar onde o sol vem morrer e portanto ficará sem luz, “cego” (talvez como Tirésias por saber demais), e a matriz grega e a judaico-cristã, uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladoras de princípios de inclusão e exclusão, natureza e cultura, mesmo e outro. Entre estas, talvez a mais radicalmente privilegiada tenha sido a imagem do corpo, o que parece explicar a sua longevidade, por um lado, e uma certa aflição por outro, já que não é difícil identificar nas queixas de alguns pensadores como Virilio e Baudrillard, apenas para citar exemplos, pois a lista seria bem maior, a associação de três conceitos: a hiperrealidade, a perda do suporte material e a morte da vida viva, isto é, do real e do corpo. O que tem justificado certas perguntas decorrentes desta associação: qual é hoje o campo da experiência possível? Ainda há um agir, para além do agir comunicativo? Vamos tentar pensar de outra forma e isto vai significar pôr em questão cada uma da três evidências, ou melhor, compreender a que imagens elas ainda se referenciam. Mas há um tom imediatamente identificável e que é apocalíptico, retomando contemporaneamente, desde O Evangelho de São João, passando pelas profecias milenaristas, até certas propostas modernas e nostálgicas: a idéia da perda ou da morte do mundo e de tudo que nele vive e vigora. Tom que embora soe às vezes como melodioso, tem embutido nele um certo princípio messiânico e purista que atrapalha as cambalhotas do pensamento.7 Fizemos referência à longevidade da idéia de corpo. Para reforçar sua capacidade de impregnação é curioso lembrar que, depois da morte de Deus proclamada por ele e da noção associada da morte do homem e do advento do Super-Homem (ou o Além-Homem como preferem alguns preocupados talvez com a homonímia com o personagem das aventuras que é a metamorfose poderosa de Clark Kent), Nietzsche ainda enuncia assim nos aforismos de A vontade de potência sua relação com o corpo: “O corpo é um pensamento mais
7
Estamos apenas fazendo referência a alguns diagnósticos e sobretudo a leituras feitas a partir destes autores: ainda que não concordemos com todas as suas posições são dois pensadores próximos com os quais o diálogo é sempre enriquecedor.
16 surpreendente do que a alma de antigamente,8 ou, “O que é mais surpreendente é bem mais que o corpo: não deixamos de nos maravilhar com a idéia de que o corpo humano tornou-se possível”.9 Idéia compartilhada pelos modernos físicos dedicados ao recente estudo da cosmologia científica diante de dados surpreendentes: os 4.600.000.000 de anos do universo, a existência de fósseis encontrados especialmente no Xisto de Burgess de mais de 16 espécies diferentes e o fato de que do período camboriano - de 600.000.000 de anos se tenha fixado uma espécie de vida, o Picabia, que, apesar de menor e menos forte do que outras espécies que lhe foram contemporâneas, pela estrutura rígida de sua formação deu origem à coluna vertical que nos tornou possíveis, e ao nosso corpo. Para tais físicos somos filhos do acaso no sentido mais científico que este termo possa ter. Mas, a partir da coluna vertebral, surgiram várias espécies. Para nós interessa pensar em que medida ela sustentou para nossa civilização a idéia de corpo próprio e ideal que nos é rigorosamente peculiar e que, se podemos ver com tanta nitidez, é porque esta imagem na nossa contemporaneidade se mostra em crise a partir de uma série de sintomas dos quais podemos listar: o aumento das próteses, a criação do cyborg (um cyberbody), o surgimento da clonagem, a replicação como possibilidade técnica e as intervenções científicas viabilizadas pela engenharia genética, a biologia molecular e pelas novas técnicas cirúrgicas e de visualização. É evidente que a crise do corpo é caudatária da crise dos fundamentos da nossa cultura e se articula com a crise do sujeito, a qual tinha como condição operatória sua diferença do objeto, que era, em primeira instância, o mundo, do qual nós aprendemos a nos destacar, primeiro pelas narrativas míticas e depois pela dualidade que impusemos entre logos e physis. Este foi um longo processo de constituição e invenção, rupturas e metamorfoses, o que nos permite dizer
8
F. Nietzsche, La volonté de puissance, Fragments Posthumes org. por Généviéve Bianquis, livro II aforisma 173, cit. por G. Deleuze, Nietzsche et La Philosophie, Paris, Ed. Minuit, 1963, p.45. 9 Idem Livro II aforisma, 226 - idem p.45.
17 que o nosso corpo tem uma realidade lógica, ou seja, de “logos”, o que não corresponde à evidência, já que naturalmente somos “physis”, isto é, carne.10 Para compreendê-lo faremos contraste entre duas fábulas. A primeira, expressa num dos capítulos de Além das nuvens, filme dirigido por Antonioni e Win Wenders e relatada pela personagem num bar conta a seguinte história, transcrita de memória, pois sua exatidão não compromete a associação que vai possibilitar, e retoma a magia da tradição oral que encerrava esta prática narrativa: uma equipe de arqueólogos contratou um grupo de carregadores mexicanos para conduzir sua bagagem e seus instrumentos de trabalho por uma região montanhosa. Depois de um certo tempo, quando o ritmo vinha sendo bem ágil, os carregadores pararam sem que nada os convencesse a avançar. Perguntados pelo chefe da expedição da razão de tal comportamento, responderam que tinham ido muito rápido e suas almas tinham ficado para trás; era preciso parar para que elas os alcançassem. A segunda nos foi fornecida por José Gil, no livro As metamorfoses do corpo11, referindo-se ao caledôneo cristianizado perguntado pelo missionário Leenhard:12 “Em suma é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso pensamento?” e que respondia: “O espírito? Oh! Vós não trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito [...] O que vós nos trouxestes foi o corpo.” Aparentemente, elas relatam experiências opostas: aos primeiros faltava a alma, aos outros foi “oferecido” um corpo, o que nos fez lembrar que as expedições feitas no Brasil às tribos indígenas, das mais predatórias às mais sérias, tinham por hábito oferecer espelhos e outras coisas que brilhassem (e assim refletissem), o que, seguramente se ligava a este trazer o corpo ao qual o caledôneo se referia. Corpo como imagem de corpo próprio, como diferença dos elementos da natureza mas também dos “homens brancos”.
10
Este texto é extremamente devedor dos trabalhos de José Augusto Bragança de Miranda, especialmente da conferência entitulada As ligações do corpo realizada na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 11 de setembro de 1977 e ainda não publicada, cujo texto ele gentilmente me cedeu para consulta. 11 José Gil, As metamorfoses do corpo, A Regra do Jogo Edições Lisboa, 1980. 12 M. Leenhard, Do Kamo, Gallimard, Paris, 1947, p.212 apud J. Gil op. cit., p.48.
18 Mas é possível ver algo que comparece às duas fábulas: uma certa existência diferente e algo autônoma entre o corpo e o espírito. O que elas parecem descrever fala de uma não apropriação de um pelo outro: o corpo dos carregadores “não sabe” aprisionar a alma e a marcha ou o ritmo dos dois não é o mesmo, o que demanda uma “orquestração” dos movimentos; o corpo dos cristianizados ainda não havia chegado quando eles já conheciam o espírito. No entanto, é mais que óbvio, que ambos estavam vivos mesmo na constatação da não-sincronicidade. E que respiravam, se mexiam, falavam, comiam, dormiam, etc. É possível estar vivo sem um corpo? Parece que sim, isto quer dizer sem o conceito de corpo que nós, ocidentais e cristãos (mesmo gregos) idealmente construímos, tendo como sustentação as idéias de corpo-perfeito no mundo grego e sua apropriação: de corpo feito à imagem e semelhança do seu Criador, Deus, que criou todas as coisas do mundo, todas as flores da terra e todas os pássaros do céu, todas as pedras e plantas e animais, todos os rios e florestas, mas só à sua última criação concedeu a sua própria forma, criando do barro (terra e não carne, mas aí se encontra a raiz mitológico-religiosa que as combinou em nosso imaginário), soprado pelo seu ar divino, o homem feito para ser diferença que se expressa no mito da Gênese: Deus fez desfilar diante de Adão todas os animais e a cada um este concedeu um nome diferente do seu. Então Deus viu que ele estava só e criou de uma de suas costelas aquela que destinou para sua companheira, a quem ele chamou de Virago, isto é, descendente de varão que, posteriormente, ganhou o nome de Eva. Vale ressaltar que a civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito, que era pensado e produzido nos rapazes aos quais se aplicava uma dietética e uma erótica13 e que elas eram proibidas de participar dos cultos dionisíacos e beber o sangue do touro sagrado que conferia VIR (força) e, portanto, excluídas de uma das experiências de transe, o permitido sendo àquele experimentado pelas pitonisas como mediadoras do oráculo.
13
Vejam-se os últimos trabalhos de Foucault a este respeito, a saber O uso dos prazeres e o cuidado de si, respectivamente o 2º e 3º volumes da História da Sexualidade.
19 Também o mundo judaico-cristão produziu um corpo feminino que só por mediação do corpo do homem da qual é imediatamente herdeira, mediatamente se aproxima da semelhança ao divino. Nela a carne surge no que sangra e morre todo mês, no que muda de forma e funciona na comunidade com o mundo animal. Virilio nos lembra que nas sociedades nômades a mulher foi o primeiro “animal de carga” sendo responsável pelo transporte dos víveres e dos bens, antes que os homens se apossassem do corpo dos animais e fizessem “este estranho engate” de dois corpos de natureza distinta que permitiu a passagem da caça para a guerra, “caça homossexual”.14 Parece interessante contrastarmos esta fundação cultural que se deu em torno do corpo com algo que parece se constituir como nossa diferença e que, de certa forma, está presente nas duas fábulas apresentadas: uma outra experiência de corpo que, na oposição à noção de corpo próprio e privado, designa um corpo comunitário, que constitui o suporte de experiência das sociedades arcaicas ou tradicionais e funda uma forma própria de comunicação, respondendo de uma maneira particular aos processos de singularização, mas também às questões e às pressões sociais. É um corpo que comunica, mas de maneira própria. José Gil em Metamorfoses do corpo assim descreve: “Sempre que falamos de “comunicar” com a natureza; sempre que o xamane pretende compreender a linguagem dos animais; sempre que as técnicas artesanais primitivas se referem aos materiais (à madeira, aos metais) como se se tratasse de seres vivos que é preciso “entender” - encontramo-nos perante um tipo de comunicação diferente da linguagem articulada e de qualquer código explícito. E qual é o médium utilizado? É o corpo, mas o corpo que abarca e atravessa todos os corpos individuais, é um corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos”.15 Este corpo que faz comunhão, oferece, neste processo e em sua dinâmica, todas as presenças deste universo primitivo pois, segundo a imagem do corpo humano, tudo são combinações metáforo-metonímicas em ação, o que permite pensar no corpo como uma árvore e na árvore como um corpo e, por 14 15
Paul Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. José Gil, op. cit., p.43.
20 esta sua possibilidade, o corpo e sua plasticidade constituem-se no modelo de representação do universo, ao qual o corpo se integra. Não é desrazoável dizer que nestas culturas de sociedades primitivas, assim como na maior parte das religiões orientais, por oposição à nossa tradição ocidental, produz-se uma cultura para o corpo.16 E o que seria, neste universo, uma tal realidade: seria o investimento num equilíbrio que salvaguarde cada corpo e sua singularidade, que não se afirma como separação dos outros corpos ou das forças cósmicas, mas, ao contrário, numa certa intensidade, num estilo de produzir as articulações ou seja, à sua capacidade de se descodificar e se recodificar. Ao lado e às margens das instituições normais e seu códigos, uma energia que circula sob outro regime será considerada e articulada por outras práticas de decodificação e recodificação, ao mesmo tempo, práticas periféricas, mas também situadas no interior do campo social. O corpo recebe assim e os traduz na sua própria existência, dois tipos de forças, ambas compreendidas como pertencentes, de direito e de fato, à vida do próprio corpo. O primeiro conjunto de forças designa um funcionamento institucional, ao mesmo tempo social e individual que se refere à potência dos corpos comunitário e singular. Este conjunto abraça todas as forças cósmicas, do acaso e do não-conhecido, que ligadas aos corpos, aos seres e às coisas do universo, se expressam nos nascimentos, nas mortes, nos fenômenos meteorológicos, nas guerras etc, manifestando a irrupção da natureza na cultura, não considerando esta irrupção como a de polos opositivos como polos opositivos trata esta presença da natureza na cultura na elaboração de suas próprias criações culturais: os ritos, as práticas mágicas, religiosas etc, responsáveis pela reestruturação de sistemas ameaçados de desordem. O segundo conjunto de forças se refere às outras interferências de energias não controladas, cuja atuação se dá fora das articulações normais dos
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Podemos lembrar do contraste proposto por Foucault em A vontade do saber entre a sciencia sexualis do Ocidente e a ars erotica oriental como duas radicalmente diferentes formas de relação do corpo com os desejos e os prazeres.
21 códigos de comunicação dos quais o corpo é transdutor, tais como a loucura, a doença etc. “Num e noutro caso, o xamane ou o feiticeiro encontra-se lá para voltar a tecer as articulações simbólicas, recodificando o corpo, permitindo a tradução dum código noutro. O que ele faz - o que implica num processo de descodificação-recodificação - contribui para restaurar a vida do corpo voltando a dar força aos símbolos [...] o homem primitivo encontrou a parada no seu corpo; saberá quando e como o descodificar para se fabricar um todo novo em que, uma vez mais os desvios e as diferenças deixarão passar, intacto, o fluxo da vida”.17 Daí a importância da dança, como esta manifestação da cumplicidade entre o mundo físico, biológico e humano, de certa forma responsável pela “recriação do universo” e pela captura do que ele tem de fluxos, rupturas e medidas. A dança recolhe os fragmentos caóticos do cosmo e do corpo e lhes dá um sentido originário imanente à própria dança, que, produzindo este sentido, o fará ser rememorado pelo mito, se concordarmos com Fernand Robert em La Réligion Grecque18 que afirma os mitos serem enredos gerados após as ritualizações, às quais se adequam, para fornecer uma narrativa àquilo que já se praticava. Ora, o que a dança ritual expressa, na sua função de integração do cosmos, é um radical hibridismo da figura humana, que se tornará posteriormente insuportável para uma cultura que só saberá pensar-se a partir da separação radical entre natureza e cultura, onde o comunismo dos corpos não fará nenhum sentido. É interessante verificarmos um tema comum: a humanidade mesclada à animalidade, o que faz com que o comércio entre o homem e o animal seja cercado de rituais sagrados, mostrando a tensão destas relações e que aparece numa cumplicidade entre a caça e a dança. Em vários estudiosos vemos descrições que relatam o fato de o caçador matar a sua caça com pesar, buscar 17
José Gil, op. cit., p.55. Fernand Robert, La Réligion Grecque, mimeo, s/data, Estamos voltando à Grécia, mas algo antes dela ter se constituído na matriz que separa corpo e mundo, e exatamente, para desenhar esta separação. 18
22 desculpas para isto e procurar acalmar os espíritos que irritou com lamentações e conservação ritual de parte do corpo do animal. O fato de que seja significativa a difusão destes ritos constitui uma prova de sua remota origem, mas comprova também a ambivalência dos sentimentos do homem para com o animal. Através da mímica e na integração do corpo pela dança, este homem, anterior e diferente da nossa história cultural, tentaria reproduzir o animal, incorporá-lo e assim também assumir o seu poder, seja domesticando-o ou encantando-o pela dança, movimento intenso de trocas e passagens, de representações vividas e intensas onde nossas atuais fronteiras não tinham sido, ainda, construídas; a operação é sutil e ambígua: matar o animal e ao mesmo tempo incorporá-lo, distanciar-se e confundir-se com ele, ser e não ser animal. O equilíbrio destas duas dimensões, enfatizado por Eurípedes nas Bacantes, como indispensável, a saber, o encontro do delírio, da paixão, da loucura e do vinho com a sabedoria, ou seja, o encontro das duas ordens de forças do corpo que as sociedades primitivas sabiam considerar, fazem parte de uma "saudade" que foi talvez a primeira promessa da filosofia: a possibilidade de decifrar o enigma da animalidade devoradora expressa também metaforicamente nos fenômenos onde a natureza faz a sua irrupção arrasadora, jogando com as presenças de ser e não ser, como nos jogos heraclitianos, para quem a guerra, polemós, é a mãe de todas as coisas.
II.2. O CORPO TRANSCENDENTE: O SEGUNDO PASSO
A filosofia posterior será talvez a eterna tentativa de escapar aos efeitos dilaceradores, contundentes e desistematizadores destes encontros. A criação da filosofia como escrita, a redução da dança ao texto que permita representar o encontro são a via transversa pela qual a filosofia abordará o mistério. Via que permite ao filósofo escapar, não apenas vivo, mas sem sofrer nenhum contágio, num corpo asseptisado pela letra. Passamos do labirinto do Minotauro à caverna do filósofo, que pode a ela retornar e dela sair ileso e iluminado; que pode
23 dançar no labirinto de onde expulsou o touro; que poderá enfim, trocar a Caverna pela Academia. Esta via, que troca o fio tecido no corpo pela tessitura das letras é também o que pode estrangular o Eros. Resta celebrá-lo, numa quase elegia, um banquete loquaz, sempre temendo os efeitos da intempestividade ébria de Alcibíades. Confiando "para sempre" em Sócrates. Abandonar a caverna é subtrair-se ao espaço simbólico por onde se penetra nos "mistérios" da sobrevivência, da reprodução e do além. Para Mircéa Éliade
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a caverna é um dos "omphalos" (umbigo) do mundo, cujo traçado
confuso, próximo do labirinto, exigiria uma vinculação do saber com um poder mágico, privilégio do rei, sacerdote caçador ou heróis extemporâneos ou imprevistos como Teseu, resumindo uma geometria coreográfica e cósmica. A nova filosofia fundará uma cidade, a implantação de uma concepção de espaço elaborado simultaneamente por arquitetos, astrônomos e legisladores. Nesta nova cartografia, delineia-se um novo pensamento: de uma física jônica passamos ao pensamento do múltiplo e do um. De um cosmos mítico ao cosmos geométrico, onde o espaço se define por relação de distância e posição, orientando-se uniformemente a partir de um centro. Neste novo espaço será preciso reinventar o corpo, mediado por um ideal a ele externo, que o destacará da natureza para a pólis: o novo corpo, agora grego, do cidadão. Um corpo que encerra a carne, comum aos homens e animais, sob uma forma protetora em torno da qual as legislações da cidade terão sua aplicação. É curioso pensarmos que ainda nesta cidade nascente, outro recorte irá constituir-se, anunciando a efetiva entrada na nossa tradição ocidental, cuja origem pode estar expressa na tradição pitagórica, a qual terá com a cidade grega uma relação de exclusão que nós cristalizaremos mais tarde, em certa medida, no corpo e na carne: ao mesmo tempo questão e sintoma. Os pitagóricos compunham uma pequena sociedade marginal cujos membros desenvolviam um ensino original, ao mesmo tempo em que recusavam o sacrifício e o alimento carnal, conforme atestam os escritos de Porfírio e Diógenes Laércio.20 19 20
Mircéa Éliade, Aspects du Mythe, Paris, Gallimard, 1965. apud Dany-Robert Dufour, Les Mystéres de la Trinité, Paris, Gallimard, 1990, p.350-1.
24 Os membros desta sociedade sabiam o alcance de seus atos: o estatuto de cidadão era, nas cidades gregas, definido pelo direito e pelo dever de participar dos sacrifícios21 e a recusa de se juntar às festas sacrificiais significava a exclusão da comunidade. Assim, os pitagóricos seriam excluídos das honras da cidade por recusarem a composição com a morte que era, nas cidades gregas, celebrada como a maior das virtudes, os heróis, homens mais audazes e menos temerosos do que os outros eram os modelos dos que teriam transcendido sua condição de mortal "acolhendo a morte em vez de sofrê-la." 22 Os pitagóricos foram os primeiros na história humana, se as nossas indicações forem confiáveis, a ter, de maneira tão coerente, recusado-se a instalar as bases de seu sistema simbólico na aceitação mental da morte e na ingestão física da carne, e, concomitantemente a esta recusa teórica e prática, desenvolveram um sistema de conhecimento novo, cujos elementos de aritmética e geometria emprestados do Egito eram reinterpretados em uma visão global, coerente, que tinha por fundamento um sistema de oposição binário ou "schizis" : "ilimitado ou limitado, par ou ímpar, múltiplo ou um, esquerda ou direita, macho ou fêmea, em repouso ou movente, curvo ou retilíneo, obscuridade ou luz, mau ou bom, redondo ou quadrado. Seja, dez oposições que a filosofia posterior organizará numa "schizi" única: mesmo e outro". 23 Por outro lado, a aptidão ao número (e sua familiaridade com o som), que os pitagóricos visualizam como própria dos homens, é o que lhes permite relacionar o fim e o começo, através da serialidade, e assim, dominando esta relação, os homens "não morrerão" mais, ou seja, serão como deuses. Não é de estranhar que esta filosofia valorizasse a medicina, como a atitude humana mais sábia, uma medicina voltada para os começos e os fins, a saber: o nascimento, a morte e a reprodução sexual. O princípio da imortalidade já existe: é a alma só lhes resta realizar este princípio em si mesmos, em seus corpos o que é possível já que o corpo, como qualquer elemento do mundo, é apenas o objeto
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A este respeito é bastante elucidativo o livro de René Girard Le Bouc Émissaire, Ed. Bernard Grasset, Paris, 1982, assim como Des choses cachées depuis la fondation du Monde, idem, 1988. 22 Jean-Pierre Vernant, La belle mort ou le cadaver outragé in L’Individu, l’amour et la mort, Paris, Gallimart, 1989, p.52.
25 de uma dualidade, assim como a alma é, do mundo, a expressão harmônica. "Segundo Alcméon, relata Aécio, é o equilíbrio das potências, como úmido e o seco, o frio e o quente, o amargor e a doçura, etc... que produz e conserva a boa saúde, é, ao contrário a predominância de uma delas que provoca a doença e quando duas destas potências predominam, se segue a morte".24 Vemos aparecer aí o corpo idealizado, modelizado e "julgado" por princípios agora externos a ele, transcendentes, antes pensados do que vividos. As situações singulares e a realidade empírica serão analisadas por estas configurações universais que constituirão o corpo, particularmente o corpo grego, como uma imagem de valor universal. Nascido da recusa da carne. O que parece fundamental retermos da influência pitagórica é que ela realizou, de uma forma particular, o que nós chamamos o modo ocidental de ser, ou seja, produziu uma diferença - com o não - ocidental - e afirmou uma lógica de pensamento para a nossa experiência cultural. A particularidade aí produzida, e que veio a nos caracterizar de maneira irrevogável, relaciona-se ao uso das imagens da geometria para representar ou simbolizar a natureza, prática que, sendo apenas nossa, fundou uma concepção de mundo que nos levou a pensar o Cosmos como uma abóboda, de forma esférica, portanto criando uma filosofia que se sustentaria até a chamada revolução copernicana. Sabemos que Pitágoras foi a influência marcante de Platão, com quem e contra quem a filosofia ocidental não cessou de se debater, a ponto de pensadores como Gilles Deleuze (a partir de sua herança nietzscheana) afirmarem ser a tarefa da filosofia contemporânea, ainda, a reversão do platonismo. E não ignoramos, na amável influência de Jorge Luis Borges, que a história da cultura humana é a história da repetição de umas poucas idéias. Portanto, a leitura da natureza a partir da geometria, talvez nunca completamente abandonada, apesar de tantas descontinuidades apresentadas pela filosofia e pela ciência, é o quadro ou a cena imaginária onde a menção do
23 24
Dany-Robert Dufour op. cit., 351. Idem p. 375.
26 corpo é sempre o enunciado do desejo de forma. O que significa imagem totalizada, reconhecível no espelho. Vejamos agora, panoramicamente, o percurso das imagens idealizadas do corpo no Ocidente que funcionaram, para as respectivas experiências culturais que as produziram, como suportes necessários e legítimos para as configurações dos princípios de totalidade, unicidade e consistência. Dizendo de outro modo, foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada e discutida, assim como foi a partir da invenção destas imagens do corpo que têm sua própria história, de cuja crise falamos agora, que cada uma destas experiências pensou-se como integral e totalizada.
II.3. A IDEALIZAÇÃO DO CORPO: A EXPERIÊNCIA DA POLIS GREGA
A primeira delas, já a ela nos referimos, é a imagem do corpo grego, atraente ainda hoje para nossas saudades originárias, pela ligação deste com princípios de uma estética da existência, que nos convida a uma existência estética. Na verdade, este corpo grego era radicalmente idealizado mas devia constantemente ser treinado, produzido em função do seu aprimoramento, o que significa que ele era, ao contrário de uma natureza, qualquer que fosse ela, um artifício a ser criado numa civilização que alguns helenistas chamam de "civilização da vergonha" por oposição à judaico-cristã que será uma "civilização da culpa".25 Não desconhecemos as diferenças internas da experiência grega, exemplificadas pelo contraste de suas duas pólis mais representativas, Atenas e Esparta, que se relacionam menos com a imagem ideal do corpo e mais com suas atualizações articuladas, mas nos serviremos do exemplo de Atenas especialmente em função de ali ter florescido um duplo culto do corpo: na vida dos cidadãos e nas formas com que a arte grega, cujo exemplo maior é o Parthenon, celebrou a existência maravilhosa deste corpo.
27 O crítico John Boardman26 aponta que, no Parthenon, a imagem do corpo humano é "mística e idealizada, mais do que individualizada [...]; (nunca) o divino foi tão humano, nem o humano tão divino". O que nos autoriza a pensar que a imagem idealizada correspondia ao conceito de cidadão, e que cada um dos cidadãos devia buscar realizá-la no seu corpo singular, ou seja, modelá-lo a partir de exercícios e meditações. Esta relação de poiésis, ou seja, de um corpo a ser produzido, fundou uma moral própria, para a qual o corpo foi o médium fundamental: trata-se de uma moral assimétrica e livre com um conjunto de regras normativas (e não prescritivas) que convida a uma adesão que terá a intensidade possível para cada um. Como menciona Tucídides: o corpo nu e belo não é uma dádiva da natureza; a nudez é uma conquista da civilização. O corpo exposto é objeto de admiração; eram os bárbaros que cobriam a genitália nos jogos públicos pois, para o habitante de Atenas, havia uma equivalência entre a liberdade de exibir-se, o que se dava mais intensamente nos ginásios onde o corpo era adestrado; e a de exprimir-se, sendo o debate o exercício de adestramento do espírito e seu topo de manifestação a Ágora. O próprio ginásio era esta afirmação de que o corpo pertencia a uma unidade, a Pólis, onde ele podia, a partir de uma exibição pública e de constante treinamento, ser modelado de modo artístico. Por isto as figuras humanas do Parthenon são todas jovens, exibindo corpos perfeitos e nus, com expressões serenas, contrastando, por exemplo, com o Zeus de Olímpia, esculpido poucos anos antes, mais individualizado e mostrando sinais da idade e do medo. Os deuses estão prontos; os homens estão se fazendo. Mas a nudez tinha também um outro e curioso valor: o imaginário do interior do corpo humano na época de Péricles, marcado pelo calor corporal que, segundo eles, antecedia o próprio nascimento, determinando que fetos bem aquecidos deste o início da gravidez deveriam tornar-se machos e, de fetos carentes de aquecimento, surgiriam fêmeas. Diógenes de Apolônia foi o primeiro grego a pesquisar estas diferenciações de calor, mais tarde 25 26
P. Dodds, Os Gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988. apud Richard Sennett, Carne e pedra, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.38.
28 desenvolvidas por Aristóteles em Das partes dos animais, onde comparou o sangue menstrual sangue frio e o esperma sangue quente; o esperma, superior por gerar a vida, em contraposição à menstruação, inerte. Na Grécia, acreditava-se que macho e fêmea eram dois pólos de um continuum corporal, a diferença que havia entre ambos era de grau (e o grau era referido ao calor) e não de natureza; o corpo tem um único sexo de modo que fetos masculinos precariamente aquecidos tornam-se homens afeminados e fetos femininos muito aquecidos tornam-se mulheres masculinizadas. A anatomia dos homens e das mulheres supunha que os mesmos órgãos fossem reversíveis na genitália masculina e feminina: "a vagina virada para o lado de fora" ou "virando para dentro o pênis dobrado" encontra-se a mesma estrutura em ambos. Idéias que nos parecem curiosas, mas vigoraram vomo verdade científica por dois mil anos, passando da antiguidade ocidental, através dos pensadores árabes, para o ocidente cristão medieval e atravessando a Renascença, até serem contestadas no século XVIII. Mas, à inclusão do feminino e do masculino na mesma espécie não correspondeu o reconhecimento liberal da igualdade, e sim o abandono da idéia da fêmea como "obviamente inferior ao macho": o registro médico formava uma escala ascendente de valores da fêmea, fria, passiva; para o macho, quente, forte e participante, ainda que fossem da mesma matéria. E embora compareçam corpos femininos como desvios caloríficos de sua "normalidade" expressos nas amazonas-guerreiras (masculinizadas) e na figura das prostitutas sagradas, as leis da cidade aplicavam normas diferentes aos corpos masculino e feminino. Se ao primeiro correspondia o exibir-se nu nos ginásios e o andar na cidade com vestes soltas por serem seres capazes de absorver calor e manter o equilíbrio térmico, dispensando o uso da proteção das roupas; ao segundo, feminino impunha-se o seu uso, considerando-se que, para o interesse das casas as roupas leves seriam suficientes e para a saída às ruas seus corpos deveriam estar cobertos. Lei equivalente para os escravos, excluídos dos debates pois - quando os homens livres falavam, liam e ouviam, o entusiasmo aumentava o calor do corpo, e sem a capacidade do corpo ideal grego de absorver e produzir calor,
29 teriam necessariamente, a temperatura de seu corpo reduzida e por isto precisavam andar vestidos. Uma curiosa relação de honra e vergonha, derivando, na cidade grega, também de um conceito de fisiologia, que associava as regras do calor corporal para dominar e subordinar os outros corpos. Cabe sempre lembrar que imagens ideais do corpo humano levam sempre à repressão mútua e à insensibilidade, especialmente entre os que estão fora do padrão. “Em uma sociedade ou “ordem política” que enaltece genericamente “o corpo” corre-se o risco de negar as necessidades dos que não se adequam a este paradigma.”27 Considerando a imagem idealizada evidente, presente na expressão “corpo político” como condição da ordem social, fica fácil compreendermos como a idealização do corpo enquanto imagem funcionou como duplo suporte para as relações que configuram o campo político: a da pedagogia e a do poder que tem, no corpo, o médium necessário. Para ilustrar o que dissemos, Richard Sennett nos fornece um exemplo acabado, citando João de Salisbury que, em 1156, afirma: “O estado (res publica) é um corpo”28 formado por: o governante, que funciona como cérebro; os conselheiros como o coração; os comerciantes como o estômago da sociedade, os soldados como as mãos e os camponeses e trabalhadores manuais como os pés. Sendo assim, a ordem hierarquizada do corpo deve servir de modelo para a nação, que deve ser organizada como o corpo humano, e para a cidade, com suas construções e movimentos, que deve proteger e orientar os corpos dos cidadãos singulares, e encenar a presença do corpo político. A esta configuração da cidade grega e ao tipo de “mensagem” que ela veiculava, Paul Virilio descreve como sendo a do lugar onde “os homens devem aprender a marchar juntos e caminhar separados”29 portanto a que encerra e pedagogiza o corpo também no movimento e na ação, particularmente no controle das paixões.
27
Richard Sennett, op. cit., p.20. Idem p.22. 29 P. Virilio, Guerra Pura - A militarização do cotidiano, São Paulo, Brasiliense, 1984. 28
30 Esta paidéia foi reforçada não apenas no campo das representações visuais, das quais o Parthenon é o exemplo, mas também na tragédia grega que exibia um corpo humano em “um estado não natural de pathos quando se afastava de seu ideal de força e integridade”
30
. Podemos aí fazer uma nova
associação: a tragédia grega descreve a luta entre duas ordens de justiça ou diké: a justiça do clã ou do sangue e a da cidade; o lugar onde esta tensão se expõe é no contraste entre os dois corpos e suas ligações: o sangue comum familiar ainda preso a uma noção de continuidade comunitária é o que constitui o corpo a ser abandonado, o novo corpo ordenado a partir das normas da polis é o que se desliga do sangue (e da carne) para se ligar à lei e à palavra. Esta foi a lição de Antígona e todos aprenderam com ela. Assim se constitui uma história de poder e de formas. “Aqueles que dispõem do poder, - ou, os fundadores de Igrejas e de Estados, os padres, os chefes - dispõem também de meios de adestração dos corpos; e aos olhos daqueles que eles submetem, possuem o saber que permite o controle e a manipulação das forças agora denotadas/conotadas pelo significante supremo: transformam estas potências em poder sobre os corpos”.31 Convém ressaltar que este desejo de forma que constituía a idéia de corpo representava uma aposta também numa hierarquia dos sentidos, tal como nos referimos, no início do capítulo, à função - espelho, refletora de Narcisos e amedrontada com os vampiros que não se mostram. Não era um dado completamente novo: já na Odisséia, o grande perigo para Ulisses era o canto da sereia, a audição representando uma penetração que desfaz a ordem interior/exterior e sendo, portanto, encantatória. Ver é conhecer, isto significa, produzir formas identitárias. Michel Serres, em um belo texto chamado Génèse, nos fala desta sintomatologia ocidental que constrói como dicotômicos o visível e o invisível, o que deve ser visto e o que não o pode ser, as ligações explicitadas e explicitáveis e o que deve viver à sombra. Assim ele nos dá a fórmula: “Nossa metafísica se ressente metaforicamente da nossa física. Nós temos medo dos 30 31
R. Sennett, op. cit., p.53. J. Gil, op. cit., p.71.
31 gases e dos líquidos, não compreendemos Lucrécio, nosso saber não é feito para as grandes multiplicidades. Fugimos do pensamento da multiplicidade enquanto tal.”32 Mais tarde, numa expressão sintética, ele nos afirma: “O Universo é Diverso.”33 Foi assim que à ordem visual associou-se o poder imperialista de Roma. O poder do imperador devia ser exibido, tornado grande e evidente, em monumentos e obras públicas. Quando Adriano começou a construção do Pantheon em 118, no mesmo lugar onde Agripa havia construído o primeiro Pantheon para a devoção aos deuses romanos, era a afirmação do Império que estava em questão, sendo a lógica desta nova construção um extraordinário uso da luz que se colocava contra seitas nascentes como o cristianismo com cultos mais dirigidos a mundos invisíveis do que a este. “O Pantheon correspondeu a um esforço, exercido na própria Roma, para que todos olhassem, acreditassem e obedecessem”.34 Estas novas relações entre mundo visível e invisível eram decorrentes de um mal-estar mais geral e profundo do corpo. Os atenienses já aproximavam a escuridão da fragilidade de várias formas, desde a mais matinal filosofia onde “alethéia” era desvelamento, luz e memória e “lethe” era esquecimento, escuridão, noite. Mas eles celebravam, como vimos, em seus ginásios, a exposição total, a força dos músculos e dos ossos.
II.4. O CORPO CRISTÃO: O CORPO SEM LUGAR
32
M. Serres, Génèse, Paris, Galilée, 1982, p.176. Idem p.181. 34 R. Sennett, op. cit., p.81. 33
32 Já os Romanos, quando Adriano construiu o Pantheon, mesmo os mais fortes, não se expunham à luz. O mundo onde se nascia era um mundo sem piedade, tal como o enunciavam os gladiadores no seu juramento. Estes homens, que pretendiam matar-se, afirmavam esta vontade de modo absolutamente contraditório: “Deve-se morrer ereto e invencível”.35 A força física tingia-se de escuridão e desespero. Não nos admira portanto que a grande metáfora do cristianismo seja a Luz de Deus, vinculada a um Poder mais alto e imaterial. Este Deus/criador e centralizador atrairá para si uma nova ordem, de tal maneira generalizante, que destruirá a vontade de forma e as ligações que o corpo humano experimentava até então, para uma configuração particularmente notável. Senão vejamos: o cristianismo pregará a irmandade de todos no amor a Deus, ou seja, proporá, no lugar de uma moral assimétrica e livre, o seu oposto, quer dizer, uma moral simetrizante e mediada pela figura do próprio Cristo, filho de Deus, tornado corpo e carne, que morreu na cruz para nos salvar a todos, sem distinção. Esta “irmandade em Cristo” já que todos somos filhos de Deus, proporá para o corpo humano a idéia que ele deverá para sempre suportar, a saber, que somos feitos à imagem e semelhança do Senhor, o que poderia indicar uma volta a uma experiência comunitária do corpo. Acontece porém que nascemos em ou do pecado, expulsos do Paraíso aonde vivemos o corpo da criação feito, vale lembrar, pelo “O Criador de tudo é Luz”. As pragas que o mito da Gênese enuncia são claras: uns cultivarão a Terra com o suor de seu rosto e nem sempre ela lhes dará seus melhores frutos; outras parirão seus filhos em dor. Ambos morrerão, já que agora, depois de comerem do fruto da Árvore do Conhecimento e se verem nus e se envergonharem, expulsos do Éden, não poderão comer da Árvore da Vida, guardada pelo anjo com sua espada-de-fogo. Podemos pensar que a transgressão de Adão e Eva construiu um dilema: se os homens tivessem o conhecimento e a eternidade seriam deuses. Entrando no tempo ganharam um corpo-para-a-morte, ao qual é prometido o apocalipse que prepara o juízo final e a ressurreição. 35
Idem p.82.
33 Este corpo pecaminoso que precisa ser guiado pelo pastor, responsável pelo conjunto do rebanho e por cada uma das ovelhas36 diante desta dupla e radical diferença de temporalidade, a saber o corpo-para-a-morte e o que ressuscitará, fará uma cisão, até então não cristalizada tão opostamente na experiência ocidental, entre o corpo e alma, e, por muitos séculos eles serão antagônicos devendo os cristãos, guiados por seus pastores, investir no aprimoramento da alma, já que o corpo é a sede dos pecados “da carne”. É por isto que a noção do sofrimento físico sofrerá uma grande transmutação. Não queremos afirmar a ausência do sofrimento no mundo pagão, o que seria não apenas absurdo mas contrário ao que enunciamos panorâmicamente nas referências à “bela morte ou o cadáver ultrajado” grego ou ao “morrer ereto e invencível” do corpo romano. Mas este sofrimento físico não era considerado uma circunstância humana: os homens e mulheres podiam aprender com ele mas não o buscavam, na antiga e agora superada “civilização da vergonha”. Nestes novos tempos, que inauguram a “civilização da culpa”, o advento do cristianismo conferiu à dor do corpo um valor espiritual. A lição divulgada era a da morte de Cristo e suas torturas e, portanto, lidar bem com a dor do corpo é mais importante do que saber lidar com os prazeres, para estes novos corpos cristãos. Nos primeiros tempos do cristianismo as pessoas não nasciam, mas tornavam-se cristãos, ou seja, assumia-se a fé ao longo da vida, pois o “tempo espiritual” aparecia na linguagem teológica como a equivalência de que a afirmativa de acreditar correspondia a uma experiência transformadora, onde o corpo funcionava como o primeiro alvo do sacrifício necessário, devendo ser objeto de árduas e não naturais renúncias e de penitências flagelantes em circunstâncias particulares. O primeiro alicerce do cristianismo, era, como já vimos, a doutrina da igualdade entre os seres humanos. Vistos por Deus, todos os corpos não eram
36
A respeito da figura do pastor cristão e de sua diferença do pastor grego, ligado ao conjunto da cidade e do pastor judaico, ligado à promessa do lugar, buscamos em Michel Foucault, no texto Omnes et Singulatim, um curso oferecido na Universidade de Berkeley, em 1979 e publicado na Revue Débat nº 41 de setembro-outubro de 1986 e depois transcrito no volume III do Dits et Ecrits, Paris, Gallimard, 1984 o apoio teórico.
34 nem feios nem bonitos, nem superiores nem inferiores; as imagens como as formas visuais deixavam de ser importantes. Também a distinção macho/fêmea sofre uma certa relativização; na epístola de São Paulo aos Coríntios I, este reinvidicou roupas que distinguissem rigorosamente homens e mulheres, mas sustentou que os (as) profetas são dotados de “um espírito” e, nesse sentido, não tem sexo. Quanto às não-profetas, bem, serão os elementos de sedução de que se servirá o príncipe deste mundo, o diabo, sempre pronto a alianças que elas podem aceitar. A figura da feiticeira, tal como descrita por Jules Michelet nos dá disto um sábio exemplo: elas que foram as pitonisas decifradoras dos oráculos e ligadas aos mistérios, são agora as bruxas, com segredos próprios com a natureza da qual são próximas. A Inquisição lhes dedicará mortes horrendas, consumidas pelo fogo, que transformará carne e nervos em cinzas, num processo de tortura absoluto - eis o castigo do corpo vivo, cremado antes da morte. O segundo alicerce repousava sobre a aliança ética com os corpos vulneráveis: os pobres, os desamparados, os oprimidos. A ênfase cristã na igualdade dos humildes e despossuídos, derivada da concepção religiosa do corpo de Cristo, de origem modesta e que se fez fraco pelos outros, cujo martírio serviria para restaurar a honra dos que lhe eram semelhantes, fornecia o laço entre a vulnerabilidade de Deus e a dos aflitos. Peter Brown resume este nexo afirmando: “os dois grandes temas da sexualidade e da pobreza caminhavam juntos na retórica de João e de muitos cristãos. Ambos dizem respeito à fraqueza universal do corpo a que todos os homens e mulheres estão sujeitos, independentemente de classe estatus social”.37
Por outro lado, a
história cristã compõe um corpo narrativo onde todos os sinais mais significantes da vida cristã estão presentes, colocados no relato da vida de Cristo. Esta nova experiência de fé, especialmente no seu início, foi o rompimento de uma relação com a política tal como o mundo pagão a praticava, como seria de se esperar. Mas, pelas características particulares ligadas ao credo
35 e à narrativa da vida de Cristo, ela se configurou também como uma outra e mais radical do que uma simples diferença interna a um sistema político, como uma experiência de uma não-cidade ou um não-lugar, de todo incompatível com a noção básica de cidadão que sustentava o mundo helênico e romano. Se no mundo pagão o corpo pertencia à cidade, livre deste laço e desta identidade para onde o corpo poderia ou deveria ir? Por outro lado, o povo do Velho Testamento se concebia como errante e o seu YHVH38 também era um deus errante, um deus do tempo e não do lugar, cuja promessa aos que o seguiam era a de um sentido divino nas jornadas que levavam a lugar nenhum. Com o cristianismo, os valores do Velho Testamento persistiram. Mesmo sem sair mundo afora, o apego ao lugar onde se vive deve ser deixado de lado. Santo Agostinho refere-se a esta obrigação referindo-se a uma “peregrinação através do tempo”. E assim a descreve na Cidade de Deus: “Sabemos que está registrado sobre Caim que ele edificou uma cidade, enquanto Abel, como se fosse um simples andarilho, nada construiu. Pois a verdadeira Cidade dos Santos está no paraíso, embora aqui, na terra, haja cidadãos que erram como numa peregrinação através do tempo, procurando pelo Reino da eternidade”.39 Esta romaria, nascida também da proibição de Cristo a seus discípulos, quando estes desejaram construir-lhe monumentos, associada às provas no corpo, de um sacrifício ou castigo agora compreendidos como um processo de purificação, já que realizava o rompimento das relações da carne com o lugar e com os prazeres, vai produzir uma importante cesura na idéia de corpo e de corpo próprio. Por um lado, não se tem um corpo comunitário, embora o pontode-partida do Cristianismo seja a comunidade em Cristo; ao mesmo tempo, o corpo individual que se tem, concebido à imagem e semelhança do Senhor, precisa tornar-se cristão, num processo que começa no batismo e deve acompanhar o cristão por sua vida inteira.
37
apud R. Sennett, op. cit., p.111. YHVH - é o tetagrama impronunciável que nomeia o inominável no Velho Testamento, onde é proibida a representação verbal ou por imagem do que conhecemos por Deus. O hábito entre os que “traduzem” o tetagrama é grafá-lo D’s. 39 Agostinho apud Sennett, op. cit., p.115. 38
36 As fábulas sobre a vida dos santos ou as histórias das vidas religiosas não cessam de nos falar sobre este corpo - próprio mas não tropo - e de seus processos para romper as ligações deste com o lugar, com os afetos individuais e, por fim, com a carne. De todas estas experiências, a que nos parece mais interessante foi a dos eremitas coptas, realizadas entre os séculos I e IV, porque nelas se misturaram, de maneira intensamente original, heranças diferentes do Velho e do Novo Mundo, já que aí encontramos as velhas tradições do Egito, para quem o deserto foi sempre um espaço de fuga para os fora-da-lei; a herança grega das seitas epoptas, fora das cidades e às suas margens; a presença do nomadismo judaico na fuga do Egito pelos quarenta anos no deserto e, finalmente, o novo apelo cristão. O que ela parece nos informar vai mais longe do que sua simples descrição. Ela nos faz conjugar duas premissas, não excludentes mas também não complementares, cuja relação nos fornece um olhar mais acurado para compreender as formações aparentemente bizarras que atravessam e são atravessadas pelas nossas experiências históricas. A primeira delas se refere à idéia da modelagem do humano: não estando nunca pronto, isto é, totalmente modelado, o homem é receptador de seu contrário e seus ciclos culturais e históricos desenham órbitas diferentes a partir de sua exposição a certas solicitações. De que outro modo poderíamos compreender as escolhas individuais pelo deserto, o mais inumano de todos os espaços? A segunda, inspirada pelos trabalhos de Michel Foucault, nos mostra que a experiência religiosa de uma época e sua história social reenviam a um centro, uma espécie de código sutil que restringe certas formas de experienciar, estimula outras e transforma, no sentido mais amplo, o contexto social, modificando não apenas a tensão ou diferença entre o espaço público e o privado, mas também a relação com a natureza e desta com a cultura. Segundo Jacques Lacarrière, em seu livro Os homens embriagados de Deus40, pensar o deserto é uma questão que se impõe para compreender um tipo de movimento ou de errância que atravessou efetiva e imaginariamente o percurso da nossa cultura. A questão que abre o seu prefácio pergunta se os
37 desertos do Oriente Próximo deixaram de ser hoje o lugar de experiências soberanas. Ligados agora à idéia do petróleo e do combustível, terão eles perdido aquilo que os caracterizou por tantos séculos, a saber, uma espécie de nudez que rejeitava a história para os confins de suas areias, onde nada se mexia ou parecia “progredir”? “Os desertos eram o lugar do imovente, de uma virgindade perpétua onde o homem termina por se parecer com os anjos”.41 Num tal mundo, o homem é uma presença absurda que só pode nele viver tornando a si mesmo peso morto do tempo. Eis porque durante séculos este lugar extremo só abrigou hirsutos fantasmas, sombras desencarnadas, restos de seres humanos que os testemunhos de então chamavam de atletas do exílio, homens que sobreviviam e buscavam um lugar cujo sintoma mais imediato é o de não se constituir num território, compreendido como um espaço regulado por leis e normas de ocupação, trânsito, habitação etc. No entanto, se isolar do mundo, romper com a sociedade de seu tempo, pensar que apenas longe dela, tal como o fizeram os eremitas, podemos encontrar a resposta para o destino humano não é uma atitude completamente insólita. É uma atitude quase natural, na medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra uma espécie de franja anti-social onde aparecem, como irmãos, os profetas e os fora-da-lei, cujo comportamento tem em comum uma rejeição à comunidade (e uma rejeição da comunidade), sendo ambos formas de rebeldia a uma ordem julgada intolerável ou fracassada. Com outra paisagem, mas não radicalmente oposta, os anos 60 do nosso século viram surgir o movimento hippie, a literatura e o cinema on the road, enfim, a contracultura, que associava o fora-da-lei e o artista, numa prova onde não se desconsiderava a produção de outros corpos, tanto singulares quanto sociais: um mundo onde a associação de sexo, drogas e letras produziu o seu campo como o outro do mundo industrializado e tecnológico. Não parece também impertinente considerar a postura filosófica, herdeira ainda em certos pensadores e num modo particular de operar (o que evidentemente não se aplica aos filósofos que tiveram nos sofistas e nas cidades 40 41
J. Lacarrière, Le Hommes Ivres de Dieu, Paris, Fayard, 1975. Op. cit., p.9.
38 seus topos de reflexão) uma distância ativa das regras sociais. Se pensarmos em uma filosofia contemplativa não nos afastaremos da frase de Toynbee que Deleuze gostava de citar: “Eles são nômades porque não se mexem” assim como compreenderemos a tarefa da filosofia exposta por Foucault no prefácio do Uso dos prazeres: a de ser “uma ascese do pensamento”42 Voltemos à nossa origem: este fenômeno, gerador destes homens “embriagados de Deus” tinha originalmente um nome: a ANACORESE, que, do grego anachorèsis, significa uma fuga do mundo quotidiano. Atitude negativa em princípio, marcando uma recusa, uma ruptura radical com toda sociedade organizada. Mas é sabido que não basta sair para a solidão do deserto (ou hoje para a “inocência” do campo) para romper com os valores de seu tempo. O anacoreta cristão se isolava da comunidade temporal para reencontrarse com a comunidade espiritual, ideal e intemporal, de seus irmãos de outros tempos e de outros lugares e, neste movimento, vieram a fundar, sob nomes diversos, os monastérios que serão o modelo das cidades futuras ou das cidades de Deus. Este paradoxo é legível na história da palavra “monge” (moine) que, no início, significava um homem vivendo só e que terminou por designar todo homem vivendo numa comunidade religiosa e organizada. “O monastério é um céu terrestre e assim devemos todos ser como anjos” escreveu Jean Climaque, autor ascético do século VII. Terá sido então para tornarem-se anjos que Antônio, Pacôncio e todos os que os imitaram desertaram um dia da cidade e da história para enfrentar a prova do deserto”.43 Vimos que o Cristianismo trouxe para a comunidade humana uma nova ordem temporal à qual o apocalipse e o escatológico pertenciam como condição de redenção para o “outro mundo”. Como viver então num tempo que prega, ao mesmo tempo, o Reino de Deus e o fim da história, neste anúncio do fim imanente do tempo? Como viver no medo do desaparecimento de tudo? Neste clima exaltado que se amplificará nos séculos seguintes dando origem aos movimentos milenaristas, tiveram nascimento comportamentos excessivos e 42 43
M. Foucault, op. cit., p.13. J. Lacarrière, op. cit., p.26.
39 irracionais, tais como a vocação ao martírio, a obsessão da virgindade e da ascese, a fuga para os desertos, tendo todos, como traço essencial, o de ser uma recusa radical deste mundo destinado a desaparecer um dia, única resposta possível à angústia de um mundo que lia em si mesmo os signos da própria agonia. Esta ruptura com a sociedade e com a história, este retomar por sua própria conta a espera do Reino de Deus, eram valores que exigiam uma ruptura total com o mundo profano. Não bastava sair para o deserto, era preciso romper com as tentações que traziam as lembranças do passado cultural, o que significava romper com tudo que integrava o homem nesta sociedade, tudo o que criava um vínculo social: o saber, a cultura, a posse dos bens, a família, o casamento, a procriação. A renúncia ao social implicava a renúncia à carne e é por isto que o anacoreta é necessariamente um asceta. Mas há ainda uma outra lógica na relação entre a anacorese e o ascetismo: os dois comportamentos não são apenas anti-sociais mas também anti-naturais. Ao contrário do mito do bom selvagem do século XVIII, que tanto exaltou a imaginação européia, tocando de perto seu campo reflexivo como se verifica numa certa leitura de Jean-Jacques Rousseau, o bom santo do deserto da literatura cristã do século IV e dos séculos seguintes, exaltará a recusa da natureza sob todas as suas formas. Viver em sociedade é tão natural para o homem como comer ou procriar, e, assim, a saída para o deserto não significava o retorno a uma vida “natural” - até porque o deserto é uma “natureza vazia”, mas a busca de uma vida tão antinatural quanto possível. Ao contrário, a imobilidade, o silêncio, os jejuns prolongados, a vigília são asceses que fazem do homem um “mortovivo”, alguém que coteja o lado de lá e, de alguma forma, toca o segredo da morte e da eternidade. Por outro lado, já nos referimos a um mundo impregnado narrativamente da vida de Cristo e de imagens bíblicas. Toda a realidade circunstante o deserto, o céu, os sons, as luzes possui um valor e um sentimento simbólico por haver participado, de uma ou outra forma, da história divina. O deserto, antes de tudo, é um lugar anti-hospitaleiro onde ninguém poderia levar uma
40 existência normal. Ali o homem é só e nu, entrincheirado entre o dia escaldante e a noite gelada, prisioneiro de uma paisagem abstrata que não se associa a nenhuma imagem humana ou familiar. O deserto é um lugar inumano, habitado por outra espécie de criaturas: os anjos e os demônios.44 No deserto um homem só sobrevive se for ajudado por deuses ou demônios, aí se vive entre tentações e milagres, numa certa proximidade simbólica dos anjos. Nesta “frequência” aos anjos, os atletas do exílio terminaram por a eles assemelhar-se; o que perdem em humanidade, ganham em “angelismo” e assim podemos compreender que os pintores bizantinos tenham representado nos afrescos dos monastérios da Capadócia ou da Grécia seres pintados neste duplo aspecto de selvagens e anjos: rosto emaciado, vestes em frangalhos, cabelos compridos até o chão, mas também olhares perdidos, na contemplação de uma outra realidade, carne que já não é quase mais uma carne. “Todas as convenções da arte bizantina terão por objetivos fazer dos grandes ascetas não criaturas impossíveis, fantasmas ou ilusões, mas seres pertencentes já a outra forma de humanidade, a meio caminho do outro mundo. O deserto é o lugar de uma experiência suprema, uma prova que conduz o homem para além de si mesmo, em direção ao Anjo ou à Besta, para o Diabo ou para Deus”.45 Este rompimento das ligações do corpo, na própria “descarnificação” mas também na construção de um outro corpo não-orgânico, cujos traços imediatos seriam a castidade e a anorexia, são retomados por Gilles Deleuze e Felix Guattari nos seus trabalhos do Anti-Édipo e Mil Platôs, respectivamente o primeiro e o segundo volumes do Capitalismo e Esquizofrenia. Na perspectiva destes pensadores, o sujeito se problematiza pela diferença na medida em que o desejo se fixa nas amarrações da cultura, mas realizando um permanente movimento de questioná-las, já que na natureza não há divisões, há movimento puro. O desejo produz diferença a partir de fluxos e devires.
44
São curiosas a este respeito as alegorias apresentadas em A última tentação de Cristo, filme de Martin Scorcese. 45 J. Lacarrière, op. cit., p.59.
41 Dizendo de outro modo: o desejo é um processo que se dá num plano de consistência que é imanente, ou seja, sem referência externa ou transcendência. Nesta perspectiva, ele não é interior a um sujeito nem tende para um objeto, ele é imanente a este plano ao qual ele não pré-existe, ou seja, o desejo produz-se construindo o plano onde os fluxos se conjugam. Este plano, que eles nomeiam de corpo sem órgãos, o que se liberta da lei do organismo, comporta vazios e desertos mas estes são componentes do desejo e não fendas ou faltas. Os “homens embriagados de Deus”, submetidos a este olhar, seriam uma radical experiência de produzir este “outro corpo” antisocial e antinatural, produtor de outros fluxos e novos agenciamentos, no termo caro a esses pensadores. Encarando-os apenas, numa visada obviamente redutora, sob o pontode-vista dos jejuns prolongados, já que encontramos estritas observações a uma radical ausência de alimentação, limitada em certos casos a duas ou três azeitonas a cada dois dias, seria viável aproximá-los do quadro que a psiquiatria moderna define como o da anorexia e que para Deleuze e Guattari é um dos quadros clássicos do corpo sem órgãos. Poderíamos dizer que, ao contrário do conceito
hegemônico
de
regressão,
esta
manifesta
uma
involução,
representando uma maneira de escapar às determinações orgânicas da falta e da fome, da hora mecânica da refeição e do próprio consumo: a anorexia é uma micropolítica: escapa às normas de consumo para não se tornar a si mesmo em objeto de consumo, o que confere à anorexia uma feição feminina, sendo o seu comparecimento a presença de um devir-mulher, presente, segundo Deleuze e Guattari, em todo anorético. Este seria um apaixonado que vive de forma múltipla a traição: trai a fome (pois esta o traia sujeitando o organismo), trai a família e a política familiar (a refeição) e o alimento (que é traidor da natureza). A idéia anorética é que há impurezas e venenos na comida e assim ela constitui-se numa experimentação real e perigosa que produz uma simbólica e não o contrário. Distancia-se também do que foi próprio da topologia gerada pelo cristianismo. A casa cristã se centrava na sala-de-jantar; neste ambiente, conforme a explicação de São Paulo, ao redor da mesa, evocava-se a Última
42 Ceia. Além disso, segundo as palavras de historiadores da Igreja, “essas refeições domésticas eram fundamentais (porque) o próprio ato de comer sinalizava as relações sociais. A extensão da hospitalidade fazia transparecer o apreço à comunidade” [...] “o encontro nas refeições era chamado de ágape, palavra que pode ser traduzida por “celebração de companheiros”, Koionia, segundo a Bíblia”.46 É pelo menos curioso tentar compreender como a nova realidade religiosa construiu relações tão díspares entre seus seguidores, mas acreditamos ter buscado compreender como, produzindo uma história social, uma nova experiência estabelece uma simbologia própria que restringe certas formas de viver, e estimula outras que, aparentemente opostas, respondem às possibilidades abertas por esta nova realidade. Também não deixa de despertar nossa atenção e nossa curiosidade que esta perspectiva de corpo altamente teológica ainda irrompa em algumas experiências
da
arte
tecnológica
atual,
embora
esta
se
caracterize
especificamente por expor as ligações entre a carne e a técnica tal como acontece nos casos de Stelarc ou Viola47, que no entanto, propõem imagens de uma “crítica” do corpo ligado ou de um “crucificado” nas redes (o caso específico de Stelarc). Não podemos nos furtar a uma tentação analógica: nas imagens do Cristo crucificado assim como na exposição das ligações da carne com a técnica própria, da arte contemporânea, o que parece fazer diferença teria sido já expresso por Nietzsche no aforismo onde ele menciona a diferença entre Dionísio e o Crucificado, centrado no sentido a ser dado para o sofrimento. Senão vejamos, em suas próprias palavras: “Dionísio contra o crucificado: eis a oposição. Não há diferença quanto ao martírio, mas apenas este tem um outro sentido. A própria vida com sua eterna fecundidade e retorno necessita a angústia, a destruição, a vontade de destruição... No outro caso, o sofrimento, o “crucificado inocente” serve de argumento contra esta vida, de fórmula para
46
apud R. Sennett, op. cit., p.120. Estamos mais uma vez nos referindo à conferência já citada As ligações do corpo de José Bragança de Miranda. 47
43 condená-la. Compreende-se: o problema é o da significação a dar ao sofrimento: um sentido cristão ou um sentido trágico... No primeiro deve ser o caminho que leva a uma existência sagrada, no último a existência parece suficientemente sagrada para justificar ainda um infinito de sofrimento mais duro: é bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto; o cristão diz “não” até em face da sorte mais feliz sobre a terra: é bastante fraco, bastante pobre, bastante deserdado para sofrer a vida sob todas as suas formas... O Deus na cruz é uma maldição à vida, uma indicação para dela redimir-se. Dionísio dilacerado, em pedaços, é uma promessa de vida, renascerá eternamente e voltará da destruição”.48 Esta imagem arcaica que retorna, talvez porque nunca nos tenha totalmente abandonado, parece ter algo a dizer. Para além da associação do dionisíaco como metamorfose, hibridismo, excesso e destruição, sua presença nos fala da permanência de um princípio-corpo, de uma ontoteleologia ocidental que tem nele a determinação de toda a possibilidade da sua experiência,
sempre
desejante
desta
“imagem-corpo”
como
suporte
epistemológico, ético e estético. O recurso a Nietzsche não foi, como seria de se esperar, gratuito. Talvez nenhuma filósofo tenha sido mais crítico na análise da experiência cristã e no desejo que ela distribuiu e administrou de transcender à carne postulando um corpo “puro”. A parábola que ele nos apresenta em A genealogia da moral49 faz confrontar os cordeiros animais que são o óbvio símbolo cristão - os “cordeiros de Deus” e os gaviões, aves de rapina, de características imperiais que representariam os romanos, seres dos altos vôos sempre em busca de novas presas. São os pássaros os mais fortes, e não apenas por suas garras ou bicos mas, e principalmente, porque tem consciência dos seus poderes. Não “decidem” matar os cordeiros; apenas o fazem por que têm fome e é da sua natureza o saber aplacá-la. O corpo forte, “cego de si mesmo” não precisa da autoconsciência, o que é o mesmo que dizer que não há “ser” por trás do fazer, do suportar, do tornar-se. 48 49
F. Nietzsche, A vontade de potência, parte IV aforisma 483. Rio Ediouro, s/ data, p. 419. F. Nietzsche, Genealogia da moral, São Paulo, Brasiliense, 1987.
44 A defesa dos cordeiros, na sua leitura, é “responsabilizar as aves de rapina por serem rapinantes”50 e, para se proteger, estes “cordeiros humanos” montam uma rede de relações sociais que “aprisiona” a força dos fortes em julgamentos morais. O que é criticável, para ele, nos fracos não é a sua fragilidade mas a sua mentira. No lugar de reconhecer que “tem medo” o cordeiro bale porque tem uma alma que lhe permite achar que a fome é terrível. Assim sendo, melhor é acercar-se do rebanho e de seu pastor e depreciar os desejos do corpo. Nietzsche termina dizendo que “a crença na alma, mais forte do que qualquer outra coisa, talvez decorra do fato dela tornar possível aos fracos e oprimidos de todo tipo, que constituem a maioria dos mortais, sublimar a auto-ilusão que interpreta liberdade como fraqueza”.51 De qualquer forma não é exagero dizermos que a regência da civilização ocidental pelo monoteísmo cristão dilacerou o corpo concebido no passado panteísta e pagão, alimentando uma ambigüidade bastante particular: a noção de um corpo que é vivido individualmente como indissoluvelmente ligado a uma comunidade imaginária e transcendente, por um lado, e a outra, terrena e simétrica, cuja vinculação com a primeira exigia a renúncia ao próprio de cada corpo. A vida deste corpo vai estabelecer-se como uma “hermenêutica de si”, tal como Foucault no-la apresenta especialmente em A vontade do saber.52 Concebido como a sede dos pecados e das tentações, ele deve se transformar em “Récit” narrativa confessional e, portanto, transmutar-se em voz a ser ouvida nos confessionários criados para conhecer e regular todos os pequenos e “sujos” segredos. Quanto ao domínio público, aos espetáculos sangrentos de castigo e morte, uma curiosa torção vai se realizar. Não são os casuais espetáculos que se viram nas lutas nos ginásios gregos com seus efeitos pedagógicos; não são também as lutas dos gladiadores onde os corpos estão em conflito e em questão; como nos relata Richard Sennett “os espetáculos que Paris assistiu em 1250 50
Idem p.91. Idem p.93. 52 M. Foucault, A vontade do saber, Rio de Janeiro, Graal, 1978 - primeiro volume da História da sexualidade. 51
45 não eram casuais como antes; os carrascos tinham garantias eclesiásticas que causariam malefício aos demônios, não aos corpos das pessoas por eles possuídos”.53 Conhecemos o investimento que foi elaborado e gerido pela Igrega no medo como afeto de “coesão social”. É em função dele, ou de torná-lo presente, que movimentos diretamente vinculados ao corpo e à sua imagem vão organizar processos de exclusão relacionados com a mediação da figura do Mal, representada pelo Demônio, espécie de “significante flutuante”54, ou seja, algo que no campo dos signos mantém-se disponível sem um ponto de fixação no significado. A aplicação do conceito aí é perigosa e de certo modo parcial, mas o que buscamos indicar com ela é que todo o campo da diferença ou do afastamento dos princípios religiosos cristãos, fosse na ordem da natureza, na das outras e diferentes realidades étnicas, quanto no próprio princípio do movimento social e individual é atravessado pelo sentido aberto ou extenso desta figura. Ou seja, o corpo diferente ou monstruoso, o princípio do contágio e da criação dos guetos, o extermínio de grupos e o exercício dos sacrifícios públicos exemplares e a própria atuação dos homens no seu cotidiano neste mundo terrestre são formas de relação desta figura e, não sem motivo, refletemse num afastamento também imaginário, da imagem do corpo “à imagem e semelhança” do Senhor. Dentro desta perspectiva, não causa admiração a associação de Satanás ou do Príncipe deste mundo com as práticas políticas e médicas. Muito menos que elas tenham no corpo o seu suporte. Seguindo as trilhas de Foucault, embora ele estivesse propondo estes conceitos para outras e mais próximas experiências culturais, e dentro da premissa partilhada por ele e por Deleuze de que o seu trabalho devia ser uma “boîte à outils” (caixa de instrumentos) que servisse a cada um para as suas necessidades, podemos considerar como lógicos os princípios desta associação a partir de sua análise sobre o bio-poder, expressa na célebre entrevista concedida a Dreyfus e Rabinov onde Foucault diz que ao
53
Op. cit., p.142. Estamos utilizando o conceito de Lévi-Strauss in Introduction à obra de Marcel Mauss cit. in José Gil, Metamorfoses do corpo, p.10. 54
46 poder não se pergunta o que é, mas como se exerce, acrescentando: “Não há algo como o poder ou do poder que existisse globalmente, massivamente, em estado difuso, concentrado ou distribuído [...] o Poder só existe em ato [...] Ele é um conjunto de ações sobre as ações possíveis ...”55 Por outro lado, no curso de 1971-1972 cujo tema eram as Teorias e Instituições Penais56 ele reafirma o que já havia , de outra forma, apresentado na aula inaugural do Collége de France, publicada sob o título de Ordem do Discurso57: “Nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação de registro, que é em si mesmo, uma forma de poder e que é ligado na sua existência e no seu funcionamento às formas de Poder. Nenhum poder, ao contrário, se exerce sem a extração, a apropriação e a retenção de um saber. Neste nível não há conhecimento de um lado e sociedade do outro ou a ciência e o Estado mas as formas fundamentais de Poder-Saber”. Esta relação de uma medicina, definida por Galeno, nascido por volta de 58
130
como “o conhecimento do que é saudável, mórbido e neutro”59 capaz
portanto de intervir na imagem do corpo dotando-a de um saber particular, instrumenta, em suas próprias palavras, ““a virtuosa crueldade” que faz o governante atacar os maus até que a segurança dos bons esteja assegurada”.60 Não distante deste processo, Jules Michelet, em A feiticeira61, mostra o percurso da figura feminina que aparece como próxima dos mistérios enquanto a pitonisa na vida grega e se transforma, por esta própria proximidade, aqui da natureza, campo dos enigmas dos duplos, na feiticeira, como, por um lado, a sua convivência com os elementos ao seu redor (num mundo onde os homens partiam para as Cruzadas) a tornava íntima das plantas (e dos bichos) das quais ela se servia e indicava por propriedade curativas, portanto numa prática de curandeira e outra, pela sua relação com a patogênese, ela foi a inimiga a ser 55
Dreyfus e Rabinov, Michel Foucault, Un parcours philosophique, Paris, Gallimard, 1984. Publicado in Michel Foucault - Résumés des Cours. 57 Idem, Gallimard, Paris, 1971. 58 Galeno escreveu seus textos em grego; foram depois traduzidos do árabe para o latim, incorporando os comentários de Ali ibn Ridwan, assim como vários intelectuais europeus se debruçaram sobre seu trabalho o que permite dizer que a Ars medica era um compêndio de idéias. 59 Richard Sennett, op. cit., p.143. 60 Idem p.144. 56
47 exterminada pela medicina “oficial” de seu tempo que, associada às práticas de exclusão da Igreja, dedicaram a ela a morte na fogueira, já que os seus poderes (que eram existentes enquanto curandeira e parceira) só poderiam vir de uma inaceitável relação com o Demônio, do qual elas seriam noivas e instrumentos.
II.5. CORPO, ESPAÇO E IMAGINÁRIO
Funda-se, assim e relativa a esta imagem desejada do corpo semelhante ao do Criador uma leitura ativa, no sentido das práticas que engendrou, das diferenças visíveis e suspeitas como merecedoras de uma intervenção radical e as noções de monstro e de infernos, como as de contágio serão formas de pensar e viver “os outros corpos”. Nos capítulos seguintes trataremos destas duas configurações: a figura-monstro e o corpo-contágio. Resta dizer, neste momento, que o cristianismo triunfante, ligado agora à sociedade feudal e sua lógica própria e granulosa foi, durante os séculos XI a XIII, o espaço de uma solidão quase impossível; aquilo que concebemos como espaço privado referia-se a um privado coletivo. A este respeito diz Geoges Duby: “O poder encerrava, retinha em seu interior os indivíduos, submetia-os à disciplina comum. Ele era coercitivo. E se a vida privada significava segredo, esse segredo necessariamente partilhado por todos os membros da família ampla era frágil, logo descoberto; se a vida privada significa independência, também esta independência era coletiva”.62 O gueto, que aparece neste contexto, terá a mesma estrutura, a saber de um privado-coletivo e esta espacialização particular, pensada como marca e
61
Jules Michelet, A feiticeira, Rio de Janeiro, Círculo do Livro, 1982. George Duby, A emergência do indivíduo in História da vida privada, vol. II - Da Europa feudal à Renascença, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p.506. 62
48 proteção da privacidade coletiva, será um dos fenômenos curiosos para a idéia de corpo, apresentando uma simbiose entre o corpo próprio e o coletivo. As cercas deste privado-coletivo, representadas pelas muralhas, faziam com que o isolar-se fosse imediatamente objeto ou de suspeita (a contestação) ou de heroísmo (ou santidade), em todo caso impelido para o domínio do “estranho”. Quem se retirava, se não fosse já deliberadamente para fazer o mal, a despeito da ausência de intenção, terminaria por fazê-lo, sem a proteção que o agrupamento dava aos ataques do inimigo e das tentações. Só se expunham deste modo os desencaminhados, os possuídos e os loucos. A marca própria da loucura era o vaguear sozinho. O século XIII verá sinais evidentes relativos à conquista de uma autonomia pessoal que, para o que nos interessa, referem-se, basicamente, à idéia de que, na busca da perfeição não basta pertencer ao grupo e agir no coletivo: é preciso uma transformação em si mesmo, o que convida a uma introspecção, à exploração da própria consciência o que expandirá as práticas cristãs da “hermenêutica do si”, até então presentes mas articuladas a uma relação de associação da falta com o ato (cujo exemplo é o isolamento) e não com a intenção. Deste movimento irrompe, já desde o fim do século XII, o florescimento de autobiografias, pois embora possamos afirmar que Abelardo imita os modelos da Antiguidade, essas obras literárias afirmam a autonomia da pessoa, senhora de suas lembranças e seus segredos, distinta do coletivo. Ao mesmo tempo a representação dos corpos se liberta do seu caráter hierático, e, nos processos de figuração plástica começa a se conceber a idéia de semelhança, fazendo irromper na escultura o retrato. Desta conquista da autonomia e dos processos de perfeição ou liberdade que ela promete surgem “as regras para principiantes”, nas palavras de São Bento, que propunha a vida cenobítica a homens que não seriam fortes o suficiente para a vida dos anacoretas. Aí, trata-se menos de circunscrever espaços do que tempos, de modo que a pessoa, isolada física e materialmente, pudesse concentrar-se em si mesma. Das diferenças às interpretações dadas a esta mesma idéia veremos surgir uma hierarquia, refletida no maior ou menor vigor das leis de silêncio e de prova entre a diferentes ordens, tais como os
49 próprios beneditinos e os cisternienses e a permissão aos mais preparados dos monges de retirar-se em cabanas por algum momento, num “isolamento escrupulosamente dosado na medida da força respectiva de cada um”.63 Aparece também a nova figura literária: a do cavaleiro andante, associada às provas do amor cortês que fazem confluir duas paisagens no seu enredo: o mundo solitário das aventuras e os olhares capazes de reconhecer-lhe o valor e conceder-lhe o prêmio; de um lado a floresta; de outro, a corte. Para além do encantamento natural que o tema do amor cortês sabe despertar, parece-nos interessante, na medida em que estamos refletindo sobre a produção da imagem do corpo e de suas ligações, e, considerando que há uma relação sempre imediata entre esta idéia de corpo e as teorias médicas, confrontar a relação entre a medicina medieval e as teorias do amor cortês, que têm uma premissa em comum: o amor é uma afecção violenta que precisa de um vigoroso tratamento; é produzido por uma mulher, freqüentemente sem que ela o saiba: ele penetra o amante pelos olhos e vai se alojar no seu coração, de onde ganha o cérebro e os testículos, que formam com o coração os três pontos locais de amor no homem. “Pelo olho, a flecha do amor penetra até o coração que ela vem inflamar. Troca de olhares na origem de toda paixão, e, mais tarde, em um dos mais altos graus da progressão amorosa, na penúltima etapa, a ostentação, talvez, pela amada de seu corpo nu. O corpo surpreendido, o corpo exibido [...] o indivíduo face ao seu próprio corpo e o corpo de outrem”.64 No entanto, se a medicina e a erótica cortês concordam com a definição e apóiam-se numa concepção comum a do dualismo sobre o qual se construía toda a representação do mundo discordam quanto ao tratamento. Assim, não se coloca em dúvida que a pessoa fosse formada de um corpo e de uma alma, portanto partilhada entre a carne e o espírito. De um lado o corpo, perecível, efêmero, atraído para baixo pelos pesos, pela opacidade da substância carnal, lugar da tentação; de suas partes inferiores surgem as pulsões incontroláveis, nele se manifestando o que depende do mal 63 64
Idem p.510. Idem p.515.
50 pela doença, pela corrupção, pelas purulências das quais nenhum corpo escapa, nele devem se aplicar os castigos purificadores que expulsam o pecado, já que o espírito é imortal e aspira à perfeição celeste. O corpo é sentido como um invólucro, como uma casa, como um pátio e como uma clausura. Esta associação com a morada aparece tanto nos textos eruditos quanto na linguagem comum: o interior do corpo é dito “doméstico” e o exterior “silvestre”, a oposição dos dois adjetivos remetendo aos dois pólos da intriga romanesca: a floresta e a corte. No contraste produzido quanto às propostas médicas e as da erótica cortês em relação à terapêutica, as indicações serão opostas. Para os médicos, é preciso evacuar a afecção, exorcizá-la, já que ela é prejudicial à saúde e mesmo mortal; para os trovadores, estes devem dedicar-se de corpo e alma e cultivar este amor tanto em relação à intensidade quanto em relação à perpetuação; na medicina o apaziguamento é proposto por duas vias: pela razão, quando o amor sobe para o cérebro e pelo coito, quando o amor se aloja no sexo; na erótica cortês a proposta é a exaltação, e isto aparece nas suas regras, num claro princípio de estilização que começa por considerar que é preciso afetar uma atitude submissa em relação à dama e dedicar-lhe dois tipos de provas: os atos de bravura (como no código cavalheiresco) e os talentos da linguagem, presença da poesia. A virtude fundamental é, neste momento, a paciência (oposta ao furor cavalheiresco); é preciso sacrificar a impaciência demandando uma “audácia contra si mesmo” mais feroz e vigilante que a temeridade de seus pares: é esta lentidão que pode conduzir à “joy”, alegria de desejar. Para manter o amor, ao contrário dos conselhos médicos, é preciso além de experimentá-lo no coração, evitar que ele saia, seja subindo para o cérebro e sublimando a dama ideal numa idealização, seja descendo para os testículos e experimentando um gozo apaziguante, a tristeza pós-coito. A “joy” só tem lugar no coração. O erotismo não se completa nem com a posse da dama (que não é excluída) nem com a sublimação do desejo, mas realiza um paradoxo: quando o amante passou com sucesso o ASAG (ficar toda a noite com a dama sem obter o
51 gozo) e é totalmente transe de amor, apenas uma troca de olhares com a dama é suficiente para experimentar a “joy”. Por esta razão apenas, a completude do ato sexual não lhe é interdita: seu amor é tão forte que a perda da semente não diminuirá seu ardor ou reverterá a joy em tristeza pós-coital. Sendo um fim supremo, o amor provençal se opunha a todas as morais e basicamente à moral cristã, criando um sistema de valores independente, que libertava o corpo para uma experiência de intensidade e artifício. Como se opunha às orientações médicas: a contenção carnal do amor cortês que afasta o prazer não é privação, é a decisão de não deixá-lo interromper-se por uma descarga que testemunharia que ele é mui-pesado para si mesmo. Como sistema de valores, o amor cortês produzia sua própria ética e assim os trovadores e as damas não se viam obrigados à obediência aos preceitos da moral comum: no interesse da paixão, eles enganavam a todos que podiam fazer obstáculo à sua realização, todos os meios para conseguir amor eram lícitos e não constituíam falta ou pecado e, particularmente para as damas, enganar o ciumento, se recusar, responder pelo “merci” ao amor do amante sincero, pecados para a moral cristã, eram o seu código particular. Ao mesmo tempo, enquanto estilização, era disciplina, constrangimento e regulação estrita: o amor cortês era a repressão da paixão (como mais tarde a teoria corneliana, esta em nome de imperativos que não emanavam dela ou lhe eram estranhos); a erótica era a purificação da paixão mudando o que ela era por natureza, ou seja, não a loucura apaixonada mas a exaltação do coração. O amor era, antes de tudo, “Jeunesse”, rejuvenescimento moral pela alegria do amor, ou seja, era o bem de uma juventude espiritual (a mesma que Descartes mais tarde demandará à ciência); era ainda “Entusiasmo”, pois, por causa da presença da mulher que leva o espírito no caminho do bom e do belo, que aí se confundem, ele é a generosidade da beleza que transmuta a relação do amante com o mundo e faz com que a “Caritat” fique ligada ao amor já que é do amor que nasce no homem esta doçura que faz com que ele sofra a dor dos outros. Ao mesmo tempo, para os Provençais, amor e poesia eram indissoluvelmente ligados: o amor precisava ver-se revelado pela linguagem.
52 Ele suscitava a poesia, mas a poesia, por sua vez, revelava e exaltava o amor, com tudo o que ele podia criar. Nesta união substancial do amor e de sua expressão poética é que René Nelly65 encontra o milagre provençal. No entanto, se ele se revestiu de importância pela influência que exerceu sobre a evolução da sensibilidade, a partir da floração lírica que provocou na Europa Ocidental, e se, por se exprimir sob forma literária ele foi habitualmente pensado como um fenômeno mais estético do que ético, é possível considerá-lo de um mais amplo ponto-de-vista: ele nos mostra, não sendo um milagre único no gênero, que, em diferentes épocas e em diferentes sociedades, o amor foi inventado e reinventado, assim como o corpo que o suporta e o experimenta. É assim que Gilles Deleuze parece configurá-lo, considerando-o um agenciamento particular e produtivo do desejo com o fim da feudalidade, tornado historicamente possível em tal lugar. Diz-nos ele: “O amor propriamente cavalheiresco só foi possível por que dois fluxos se conjugaram: fluxo guerreiro e erótico no sentido onde a valentia dava direito ao amor. Mas o amor cortês exigia um novo solo onde a valentia se tornasse interna ao amor, e onde o amor incluía a prova. Dir-se-á a mesma coisa em outras condições, do agenciamento masoquista: a organização das humilhações e dos sofrimentos aparece aí menos como um meio de conjurar a angústia e atingir assim a um prazer suposto proibido, do que como um procedimento particularmente retorcido, para constituir um corpo sem órgãos e desenvolver um processo contínuo do desejo que o prazer, ao contrário, viria interromper”.66 Produzir um corpo-sem-órgãos, um artifício: o outro corpo possível na tensão de uma experiência na qual irrompe como um princípio novo e individual de corpo próprio e privado, nem religioso nem médico, produzido a partir de outras relações e produzindo novas ligações entre elas a do corpo com a linguagem poética e com o amor. Não é nosso objetivo o esgotamento de uma história do corpo. Tem-nos interessado refletir a configuração das imagens do corpo que envolvem a “carne” e lhe dão forma, identidade e inteireza. Assim, não é absurdo propor, na 65 66
R. Nelly, Érotique des troubadours, Paris, Gallimard, 1976. Deleuze, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977, p.119.
53 linha de uma história das mentalidades e correndo o risco do afastamento da periodização clássica, que, no que se refere ao corpo, de meados da Idade Média até o final do século XVIII, não houve uma modificação profunda de sua imagem, o que não significa que ela não tenha sido submetida a outros movimentos.
II.6. A TRANSIÇÃO PARA O CORPO MODERNO
Segundo Philippe Ariès, no Prefácio ao 3º volume da História da vida privada67 teríamos, para abrigar este corpo, dois grandes conjuntos de espacialização. No final da Idade Média encontramos um indivíduo enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias que o encerram e à família num mundo que não é nem privado nem público, no sentido que nós conferimos a estes termos ou no sentido que lhes foi outorgado a partir do século XIX. Há uma mistura ou confusão entre o público e o privado significando, conforme mostrou Norbert Elias, que muitos atos da vida cotidiana se realizarão em público. Mas há correções necessárias: a comunidade que enquadra e limita o indivíduo, constitui um meio familiar onde todo mundo se conhece e se vigia, além da qual existe uma terra incógnita, habitada por alguns personagens de lenda. Este espaço comunitário que é regulamentado segundo as leis, nunca foi completamente cheio, mesmo nas épocas de maior povoamento. Havia vazios, capazes de oferecer um espaço de intimidade reconhecida, ainda que precária, e mais ou menos preservada. Foi nestes espaços que o corpo comum foi posto à prova: eremitas, monges, cavalheiros são seres de fora dos muros.
54 Chegando ao século XIX, temos uma sociedade anônima, uma vasta população de gente que não se conhece. O trabalho, o lazer, o convívio com a família são atividades separadas, vividas em compartimentos a ela destinados. O homem procura proteger-se do olhar dos outros acreditando ter, para isto, dois recursos: o direito de escolher mais livremente (ou pensar que o faz) sua condição e seu estilo de vida e o recolhimento, junto à família, no refúgio de um espaço privado. Quais teriam sido os acontecimentos que vão modificar as mentalidades, em especial a idéia de indivíduo e de seu papel na vida cotidiana? De um lado temos, a ressonância ontológica da ferida copernicana, expressa por Giordano Bruno e referindo-se à distância necessária agora da idéia do destino divino.68 De outro temos um conjunto fundamental de fatores que transformam radicalmente as sociedades do Ocidente: o novo papel do Estado, cada vez mais interferindo em questões que durante muito tempo não eram de sua alçada69; as reformas religiosas, tanto a protestante quanto a católica, que exigem dos fiéis uma nova forma de devoção interior e íntima e, por fim, os progressos da leitura e da escrita, graças aos quais o indivíduo se pode emancipar da antiga vida comunitária presa à fala e ao gesto. Novas relações de autoridade e poder por um lado, constituindo a passagem das sociedades hierárquicas para as sociedades disciplinares, na terminologia foucaultiana e as suas correlatas novas relações de comunicação e
67
São Paulo, Companhia das Letras, 1991. Bruno, G., apud Figueiredo - A invenção do psicológico (1500-1900), São Paulo, EDUC, 1952, p.44. “ [...] existe um campo infinito e um espaço continente que compreende e penetra tudo. Nele se encontram infinitos corpos semelhantes, não estando nenhum deles mais no centro do que outros por que o universo é infinito e portanto sem centro e sem margens [...] 68
Figueiredo, Luiz Cláudio., A invenção do psicológico (1500-1900), São Paulo, EDUC, 1992, p.62. “[...] as experiências subjetivas no sentido moderno (pós-Renascimento) do termo e que vieram a se constituir em objeto de um saber e uma intervenção psicológica devem sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às tentativas de organização e costura, ou seja, a todas as práticas reformistas que implicavam uma subjetividade individualizada e uma tensão sustentada entre áreas ou dimensões de liberdade e ãreas ou dimensões de submissão”. 69 Um exemplo maravilhoso disto encontramos em M. Foucault, A vida dos homens infames, in O que é um autor? Lisboa, Vega, 1992, onde ele nos mostra a partir das “lettres de cachet”, legitimadas pelo selo real, e articuladas em torno de uma idéia de um monarca atual e virtual, certas vidas “infames” ganharam luz pelo atrito que viveram com o Poder, do mesmo modo que
55 pedagogia cujo limite seria marcado, na passagem para a nossa experiência moderna, na sua leitura (secundada por outros pensadores, é verdade) do célebre texto O que é o iluminismo? de Kant, 1794.70 O que Foucault privilegia neste “pequeno” texto é, em primeiro lugar um novo sentido histórico para o presente, o qual deixa de ser uma evidência e passa a poder ser pensado como uma diferença na história e como o movimento desta própria diferença, já que o próprio do presente é o contínuo deixar de ser. Neste movimento ele reconhece a introdução da necessidade de pensar as condições históricas de possibilidade e regularidade que tornam possíveis aos homens o se constituírem a si mesmos como objeto de reflexão. A filosofia ganharia assim não apenas o peso da história, mas a sua face ética, obrigando-se a se perguntar sobre um “nós” do presente. Este presente a ser pensado traz consigo duas possibilidades: ou bem nós o encaramos como posto num eixo linear que vai, irreversivelmente, do passado, passando pelo presente, para o futuro (e não foi gratuita a permanente opção de Foucault para acentuar a descontinuidade e romper com este eixo) ou nós concebemos o sentido do presente como uma multiplicidade de relações com o tempo, uma confluência de vetores distintos que ligam o presente ao passado (aquilo que não somos mais, nosso arquivo, que ainda nos pressiona) e vetores que ligam o presente ao futuro (aquilo que ainda não somos mas estamos nos tornando, devindo). É aí que a pergunta Kantiana sobre o sentido da atualidade representa um deslocamento da posição clássica pelo seu próprio enunciar e faz aflorar uma nova relação com os antigos: não mais longitudinal mas “sagital” (em flecha). Nesta relação não há, como o próprio pensador não estar incluído na própria pergunta, O que é a atualidade? já que ele necessariamente faz parte dela e nela ocupa um certo lugar de um “nós”. Não é, portanto, surpreendente
pelo seu modo de funcionamento virtual ele permitiu que durante muitos anos cada um pudesse funcionar como monarca para o outro. 70 Este texto teve uma presença muito significativa no percurso do próprio Foucault, que a ele consagrou dois cursos: um no Collège de France e outro nos Estados Unidos - Berkeley nos anos 80. Foi o que lhe permitiu introduzir a nova perspectiva da atualidade como dimensão ética e a noção depois visceral nos seus últimos trabalhos, de uma Estética da Existência, um trabalho de si sobre si.
56 que, ao incluir-se na pergunta, e por este mesmo motivo, Kant tenha aí apresentado uma problematização ética: qual é a relação entre o sujeito do conhecimento e o sujeito moral? O fato de que sejam dois e entre eles haja uma assumida diferença impõe a exigência de uma atitude ética, um certo “rapport à soi” que se configura nos imperativos categóricos da Crítica da Razão Prática. Assim, se, de algum modo, Descartes havia liberado a racionalidade científica da moral quando enuncia “Para ascender à verdade é suficiente que eu seja capaz de ver o que é evidente”, fazendo da evidência a ponte da relação com a verdade do que deriva o célebre Cogito Ergo Sum, Kant reintroduz a moral como forma aplicada dos exercícios de racionalidade e, pelo viés, reintroduz as questões: Como pude constituir-me como sujeito universal? Como posso me constituir como sujeito ético: como me reconhecer como tal? Necessito de um trabalho e atenção ou basta-me a relação com o universal que me torna moral, conformando-me à razão prática? Assim, a constituição do Estado Moderno e do Pensamento Moderno, construção progressiva, sobretudo no caso de uma elaboração administrativa e burocrática que vão dar forma ao Estado, vão produzir a condição necessária para uma nova setorização entre o domínio do privado e de um domínio público claramente identificado e organizar dois conjuntos de condutas, primeiro para os homens da côrte e depois para a sociedade em geral: as que se pode ter em público sem constrangimentos ou escândalos e as que devem ser subtraídas ao olhar dos outros.
II.7. O NOVO CORPO E OS NOVOS PERSONAGENS:
Produz-se assim uma clivagem no próprio indivíduo e no seu corpo, distribuindo normas e ambientes: a nudez, o sono, as necessidades naturais e o ato sexual tornam-se publicamente impróprias, assim como os discursos passíveis de nomeá-las devem permanecer secretos como as partes do corpo que se tornam vergonhosas. Do mesmo modo instalam-se, no íntimo de cada um, as
57 disciplinas exigidas pelas normas sociais, transformando as restrições impostas externamente, pelas autoridades ou pela comunidade, em uma grade espessa de auto-restrição. Assim, o Estado, agindo sobre a sociedade, distribui as atividades humanas entre o permitido e o ilícito, o mostrado e o escondido produzindo uma nova economia psíquica onde se verifica um considerável progresso das privatizações das condutas correlacionadas às transformações da estrutura da personalidade que sofrerá uma reformulação na Idade Moderna a partir das tensões entre pulsões e emoções, de um lado, e controle e censura, do outro. Os espaços privados constituídos pela própria presença do Estado e por ele delimitados não significam que o poder público se desinteresse por estas formas sociais; ele as regulamenta e as defende em função de uma autonomia que o serve, considerando que estas comunidades intermediárias (territoriais, profissionais e familiares) pelo seu processo próprio de rivalização, impedem uma aliança contra o soberano e mantém o equilíbrio do corpo social. Ao mesmo tempo, e se o privado surge do próprio fortalecimento do Estado, espaços públicos distintos começam a se constituir, diferentes daquele ocupado pelo Estado e seus agentes. Na Inglaterra do século XVII, assim como na França no século XVIII, emerge uma esfera pública fundamentada no uso público da razão por pessoas privadas e assim, o Século das Luzes viverá uma sociabilidade agenciada por formas diversas, que, ao fim, dirigirá suas discussões ao próprio âmbito da autoridade do Estado. Surge assim uma prática de associação intelectual nas sociedades literárias, nas lojas maçônicas, nos cafés etc, que reconhece os participantes como iguais (qualquer que seja a sua condição) estendendo a exigência da crítica racional a novos domínios, pretendendo falar então em nome da opinião pública contra a política do Estado. Produz-se uma troca de sentido entre os termos público e privado, como o demonstra o já citado texto de Kant: O que é o Iluminismo?: “O uso público da nossa razão deve ser sempre livre e só ele pode espargir as luzes entre os homens; porém, seu uso privado pode ser severamente limitado sem com isto impedir de modo sensível o progresso das luzes. Por uso público da nossa
58 própria razão entendo o que dela se diz e faz como sábio ante o conjunto do povo que lê. Chamo de uso privado aquele que se tem o direito de fazer de sua razão num cargo civil ou numa função determinada que lhe é confiada”.71 Portanto, a esfera pública é pensada como aquela em que os indivíduos particulares se dirigem a outros com total liberdade e em seu próprio nome, enquanto o domínio privado está ligado aos ofícios, civil ou eclesiástico. Uma certa inversão semântica refletindo o fato de que práticas antes tidas como privadas definem agora o espaço da reflexão pública, do posicionamento político. Há ainda uma menção ao ato de ler e a um público leitor nesta citação. Sem dúvida, a familiaridade com a escrita transformou profundamente a relação entre o indivíduo e o Estado e também as suas relações religiosas. “Os progressos da capacidade de ler serão fundamentais não apenas porque permitem a um maior número de pessoas novas práticas solitárias, familiares e sociáveis como porque trazem em si as principais evoluções, política e religiosa que, entre os séculos XVI e XVIII, ao lado ou dentro dos espaços públicos, redefiniram no Ocidente uma esfera da existência tida como privada”.72 Por outro lado a literatura expressou e “contagiou” esta passagem de um privado-coletivo, onde a idéia de solidão produzia um imaginário estranho e suspeito, até a sua consagração, a partir de uma nova e festejada idéia do indivíduo só. Ian Watt em “Mitos do individualismo moderno”73, analisa o que chamou do percurso de quatro personagens mitológicos, desde sua primeira versão, até sua recuperação pelo romantismo do século XIX, conduzindo-nos a uma curiosa leitura. Dos quatro personagens, três são razoavelmente contemporâneos: Fausto (1587), Dom Quixote (1605) e Dom Juan (c. 1620) e traduzem, nas suas versões originais, o antiindividualismo da época em que foram criados: Fausto e Dom Juan sofrem o castigo do fogo do inferno, Dom Quixote é enjaulado e
71
apud A história da vida privada vol. III, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.29. Idem p.25. 73 Ian Watt,op. cit., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997. 72
59 recebe o escárnio de todos. O quarto escolhido é Robinson Crusoe (1719) que aparece como uma nova encarnação do individualismo a partir de uma concepção muito menos moralista. Este período, que torna próximos os três primeiros, do Fausto no Faustbuch de 158774 ao Dom Juan da peça “El Burlador”, pois embora publicada em 1630 foi, provavelmente escrita entre 1612 e 1616, foi aquele que os historiadores chamaram de Contra-Reforma, no qual as forças da tradição e da autoridade uniram-se contra as novas aspirações do individualismo renascentista na religião, no cotidiano, na literatura e na arte. A Contra-Reforma foi particularmente importante na Espanha, onde a ordem medieval manteve-se por muito mais tempo do que em qualquer outro lugar da Europa, e de onde se originaram tanto Dom Juan quanto Dom Quixote. Fausto, Dom Juan e Dom Quixote são portadores das energias positivas e individualistas do Renascimento (Dom Quixote e Dom Juan diretamente ligados aos “princípios lógicos” do amor cavalheiresco ou cortês, deslocado de sua lógica temporal). Cada um dos três quer seguir o seu próprio caminho, e não o dos outros, o que os faz entrar política e ideologicamente em conflito com as forças da Contra-Reforma, e, por isto, serem punidos. Robinson Crusoe é o novo e articulado porta-voz das novas atitudes econômicas, religiosas e sociais, num texto que vem à luz um século mais tarde, 1719, já no contexto do desenvolvimento de individualismo e de sua “autorização”. O que é de fato interessante, é o modo como o romantismo, dois séculos mais tarde, irá recriá-los como personagens heróicos e lendários. No século XIX, transformados por autores geniais como Rousseau, Goethe, Byron e Dostoievski, os quatro mitos foram universalizados sob o ponto-de-vista do individualismo favorável e passaram a existir numa espécie de espaço próprio, onde não são vistos como personagens verdadeiramente históricos, mas também não como simples invenções da natureza ficcional. 74
Embora baseado numa suposta pessoa real e histórica, um mago errante que circulava na Alemanha no século XVI, atendendo pelo nome de Jorge (Jörg em alemão ou Georgino em latim) Faust ou Faustus, o texto do livro apareceu como anônimo, sendo o texto da apresentação anterior ao prefácio assinado pelo editor Johann Spies, que bem pode ser o autor.
60 De qualquer modo, lembra Watt, nenhum dos quatro personagens se casa ou tem relações duradouras com uma mulher, encerrando-se no espaço privado da família. Nos quatro casos, o amigo mais próximo e o referente mais constante é um criado do sexo masculino: Mefistófeles, Sancho Pança, Catalinón e Sexta-Feira desempenham até o fim um papel que lhes é comum: o de um criado fiel e sem defeitos. Malgrado todas as inúmeras análises que estas relações já receberam, este parece ser um indício forte de quanto tais personagens são fechados em si mesmos. De outro lado, e nossa tarefa é criar as conexões, a medicina do século XVII vai, a partir das descobertas sobre a circulação do sangue, em 1628, com o surgimento da obra de William Harvey, De motu carbis,75 modificar a imagemmodelo da compreensão do corpo, estabelecendo um novo entendimento para a sua estrutura, seu estado de saúde e sua relação com a alma. O que Harvey descobriu parece muito simples: o coração bombeia sangue através das artérias do corpo, recebendo-o das veias, para ser bombeado. Esta descrição contrastava diretamente com a idéia de que a circulação se dava num corpo já aquecido que, como vimos, atravessava, desde os gregos as concepções médicas, já que agora o calor provinha da circulação. Ao mesmo tempo, e embora Harvey ainda se apegasse à concepção cristã de que o coração é o órgão da compaixão, este aparece no seu modelo como uma máquina. A relação de Harvey com o conhecimento científico era ligada ao princípio da observação e do experimento pessoal e não, como a de seus adversários, entre os quais Descartes, a princípios abstratos. Os últimos estavam preparados para acreditar que o corpo funcionava como uma máquina pois o Divino podia atuar por uma espécie de mecanismo celestial: Deus seria o princípio das máquinas. Para Harvey, embora o animal humano possuísse uma alma imaterial, a presença de Deus no mundo não explica de que modo o coração faz o sangue circular. Seus estudos encorajaram vários pesquisadores, entre os quais o médico Thomas Willis (1621-1675) que procurou entender a atuação do sistema nervoso dentro da nova concepção mecânica. O resultado de suas pesquisas e a
61 dos seus seguidores entre o final do século XVII e o início do século XVIII era “revolucionário”. “Se o sistema neurológico não carecia de “espírito” para sentir e desde que a atividade dos gânglios (verificada por observações e dissecações) era sempre igual, a alma poderia estar no ar ou em qualquer parte, isto é, não em um lugar específico, que se pudesse localizar por meio de observações empíricas”.76 Assim, o movimento mecânico-reações nervosas e fluxo sanguíneo deu nascimento a uma compreensão secular do corpo, contestando a antiga noção de que a fonte de energia era a alma (anima). Esta nova imagem do corpo, provavelmente não por acaso, coincidiu com o advento do capitalismo moderno, contribuindo ambos para o nascimento de uma grande transformação social: o individualismo. O homem moderno é, antes de mais nada, um ser humano móvel. Adam Smith, no clássico A riqueza das nações, foi o primeiro a reconhecer que as descobertas de Harvey levariam a isto, e imaginou que poderia haver um mercado livre, de trabalho e de mercadorias, operando de modo semelhante à circulação do sangue. Isto significava que a circulação de bens e dinheiro era mais lucrativa que a propriedade fixa e estável, que seria apenas um prelúdio para a troca. Mas, para integrar-se e beneficiar-se da economia circulante, os novos atores históricos deveriam realizar dois movimentos: abandonar velhas lealdades e aprender tarefas especializadas, individualizadas, a ponto de poderem oferecer algo do diferente e particular. O movimento autônomo diminui a experiência sensorial, que é despertada pelo encontro com pessoas ou lugares. Assim, qualquer conexão visceral com o meio poderia tolher o indivíduo que, para dispor de si mesmo, deve não sentir nada, des-sensibilizar-se. Como aponta Sennett, a revolução de Harvey promoveu mudanças de expectativas e planos urbanísticos em todo o mundo. Suas idéias sobre a respiração e a ciculação provocaram o surgimento de novos conceitos no campo da saúde pública. No Iluminismo do século XVIII, começaram a ser aplicadas aos centros urbanos e, então, reformadores e construtores começaram a 75 76
apud Richard Sennett, op. cit., p.213. apud Richard Sennett, op. cit., p.217.
62 enfatizar tudo que facilitasse a liberdade de trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio. A cidade era imaginada como composta por artérias e veias contínuas, através das quais os habitantes pudessem se deslocar como as hemáceas e os leucócitos num plasma saudável. “A revolução médica parecia ter operado a troca da moralidade pela saúde - e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da felicidade humana”.77 A circulação, valorizada pela economia e pela medicina, promove uma ética de indiferença. O corpo errante cristão, exilado do paraíso, tinha uma promessa, sustentada por Deus, de que encontraria o seu lugar. É o que descreve John Milton no Paraíso Perdido. O corpo secular, em infindável locomoção, perdeu essa história, como perdeu as conexões com as pessoas e os lugares entre os quais se move. Abandonando a antiga imagem da duplicidade da alma e do corpo, a saúde do corpo é pensada a partir de um novo paradigma: o de uma corrente que constrói uma nova imagem de saúde e individualidade corporal, mudando as relações entre o corpo e o ambiente humano. Agora, numa sociedade cada vez menos religiosa e mais secular, a saúde passa a ser vista, e cada vez mais, como uma responsabilidade individual, em vez de uma dádiva de Deus. As ligações entre a nova anatomia e a cidade estabeleceram-se com as descobertas dos herdeiros de Harvey e Willis relativas à pele. Um deles, nos 1700, chamado Ernst Platner estabeleceu a primeira analogia da circulação (sangue e impulsos nervosos) com a experiência ambiental. Ele postulava que o ar é como o sangue, devendo percorrer o corpo, e a pele é a membrana que lhe permite respirar. Portanto, a entrada do ar através da epiderme conferia um novo e secular significado à idéia de “impuro”. Agora, mais do que uma mancha na alma, que seria a conseqüência de um desastre moral, a impureza indicava pele suja, em função da experiência humana social.
77
Idem p.214.
63 A cidade se organiza em torno de uma nova noção de limpeza onde o medo, tipicamente urbano, de manusear os excrementos (que no campo são empregados como adubo) nasce com o novo discernimento das impurezas que aderem à pele. “Propre”, que deu próprio, é também limpo em francês. O século XVIII viu assim nascer, por volta de 1750, o papel descartável para o asseio, os penicos começarem a ser esvaziados diariamente e, desde 1730, novos hábitos de vestir, especialmente como prática urbana e da classe média. Alivia-se o peso das roupas, usando tecidos como musseline e algodão, simplificam-se os modelos masculino e feminino, de modo que o corpo, livre para respirar, ficava saudável pela capacidade de dispersar os vapores nocivos. Os banhos, após terem sido abandonados na Idade Média, voltaram à moda e depois deles, as novas fragâncias, os perfumes, responsáveis por disfarçar o cheiro dos vapores nocivos. Também os centros urbanos, uma vez que a cidade tem por modelo o corpo, começam a promover novas práticas de limpeza, drenando buracos e depressões alagadas, cheias de urina e fezes, para esgotos subterrâneos. As ruas tornam-se mais limpas e, abaixo delas, “veias urbanas” substituem os bueiros rasos e “epidérmicos” como canais que carregam a água suja e os excrementos. Por outro lado, surgem novas leis de saúde pública dividindo entre os cidadãos e o governo a responsabilidade pela nova imagem de limpeza e saúde. Tendo como ponto-de-partida a idéia de um corpo limpo e saudável, que se desloca com liberdade, o poder prevê uma cidade que funcione assim. Os primeiros tempos de Barroco já enfatizavam os benefícios da melhor circulação possível, conferindo um novo sentido à locomoção e transformando a idéia de deslocamento em direção a um objetivo na jornada como um fim em si mesma. Os termos médicos “veias” e “ artérias” são marcas do novo vocabulário urbano, e os novos planejadores tratavam de impedir o perigo que imaginavam e que se constituía na idéia da locomoção ser bloqueada em um ponto qualquer provocando, no corpo coletivo, uma crise semelhante ao derrame que resulta de um entupimento arterial. Também a economia medicaliza seu repertório: os colegas de Adam Smith referem-se às noções de “saúde econômica”, “respiração das
64 mercadorias”, “exercício de capital”, “estimulação à energia de trabalho”, do mesmo modo como os médicos falam e descrevem a saúde do corpo e suas exigências. A construção deste novo “corpo em movimento” tem mais uma marca de conquista, presente num dos mais notáveis registros do fim do século XVIII, A Jornada Italiana de Goethe, de 1786, que narra sua fuga de uma pequena côrte alemã para as fétidas cidades da Itália. Circulando entre estrangeiros, misturando-se à multidão na praça de San Marco em Veneza, Goethe escreve: “afinal, tenho ao meu alcance a solidão que tanto desejei, pois em nenhum lugar pode-se estar mais sozinho do que em meio a tanta gente, que é preciso forçar caminho”.78 Não é desproposital compararmos os dois textos: A Riqueza das Nações (1776) e
A Jornada Italiana (1786); em ambos o movimento articula,
particulariza e individualiza a experiência. A crença da época era a de que a viagem, o movimento e a exploração ampliam a sensibilidade de cada um, e o século XVIII criou um verdadeiro hábito de viajar; podemos dizer que, na cultura Iluminista, as pessoas eram incentivadas a se moverem, o que produzia benefícios físicos e mentais, já que o mesmo paradigma se aplicava ao desenho do ambiente, à reforma da Economia e à formação da sensibilidade poética. Nos dois textos os limites desta mentalidade se tornam evidentes. Goethe descreve-se com mais exemplos e singularidade do que às multidões entre as quais circula. Adam Smith não tem atitude diferente: divide as populações urbanas em categorias e especialidades, sem considerações maiores a respeito do seu conjunto urbano. O que também ocorre nos discursos da saúde pública: lá o povo figura como um poço de doenças que, para ser purificado, estaria condicionado ao fim das aglomerações. Assim, o deslocamento também provocava incerteza, sobretudo pela nova relação de multidão que incluía os mais pobres e menos favorecidos. Isto se tornou evidente em Paris, às vésperas da Revolução Francesa.
78
Idem p.227.
65 Lá, embora os bens e os serviços tivessem se aprimorado no decorrer do século XVIII e na medida em que aumentava a prosperidade econômica da própria cidade, eles permaneciam fora do alcance das classes populares. Esta desigualdade, devida ao próprio movimento, tornava-se visível ao povo que andava pelas ruas, a ponto de se constituir em uma provocação. Pois os pobres circulavam livremente nos espaços da riqueza inacessível e, ao sentir a aguda dor desta desigualdade o povo foi buscar alívio não na circulação de capital ou do trabalho, mas junto ao governo, o único ponto de fixidez e estabilidade visível. A alta do pão foi o estopim da revolta e a demanda era que fosse desconsiderada a relação com o mercado e considerada a capacidade de pagá-lo do povo trabalhador parisiense. Em 1776, a Guerra da Farinha havia tornado visível a questão mas embora o Governo fixasse seu preço, o tabelamento era ignorado. Na manhã de 5 de outubro de 1789 explodiu no distrito operário de Saint-Antoine, a leste de Paris e nos grandes armazéns de gêneros alimentícios, no centro da cidade, a grande revolta do pão. A marcha, liderada pelas mulheres, inscreveu-se na tradição da participação feminina nos protestos populares, especialmente quando estes são gerados pela crise de subsistência. A pergunta, encaminhada ao crepúsculo à Assembléia foi: Quando teremos pão? Aí as autoridades (e não os padeiros) eram responsáveis pela escassez. Pela primeira vez, e na sequência dos acontecimentos, a multidão reinvidicante e rebelde era mais que um grupo de indivíduos em movimento, substituindo-se uns aos outros: unida por necessidades econômicas comuns ela ganhou identidade própria, o que deu à palavra “movimento” um sentido coletivo. A Revolução Francesa foi o seu maior feito. Ao mesmo tempo surge um novo contraste: o movimento individual e o coletivo: a crença é de que qualquer um pode ser bem educado quando está só; quando, no entanto, faz parte de um bando, converte-se num bárbaro, agindo por instinto. Estas teses, expressas por Gustave Le Bon, no quadro da Revolução Francesa, foram de grande influência sobre Freud, especialmente em seus escritos sobre “Horda Tribal”, que lançava fora as restrições da individualidade. Conceitos persuasivos embora polêmicos, capazes de explicar
66 as atitudes de indivíduos aparentemente decentes, que aceitam participar e os crimes hediondos aos quais aderem, como no caso das experiências nazista e fascista. Ao mesmo tempo, prenunciando algo que seria a marca mais forte dos tampos modernos, estréiam nas ruas de Paris Revolucionária a insensibilidade do espaço urbano e a passividade individual. A rebelião do pão trouxe à luz uma necessidade vital e coletiva a que a Revolução não soube ou não conseguiu responder. E, ao lado da visibilidade deste contraste, e totalmente gerada por este novo espaço urbano, torna-se presente, visível e ameaçadora, a presença de um novo tipo de corpo, o da multidão em movimento, que contrasta com a passividade individual, ao mesmo tempo em que a complementa. Um tipo de corpo - de caráter temporário e móvel - que se constituirá no tema de várias teorias políticas e pedagógicas. Talvez a utopia buscada pela Revolução fosse a da unidade destacável deste conjunto: o cidadão que, apesar das diferenças no modo de falar e de vestir, diferenças visíveis e impressas, deveria ser a imagem em que todos deveriam se reconhecer. Por outro lado, o nascente humanismo moderno, surgido no mesmo movimento iluminista, distingue o homem por sua capacidade singular de pensar, de ter consciência de si e de constituir cultura, ou seja, história. O sujeito humano moderno supostamente é o que se faz presente para si mesmo, auto-suficiente, racional e capaz de livre-arbítrio. É um ser que se constitui como sujeito a partir da sua diferenciação dos objetos do mundo. Para Foucault, o humano é um ser que conhece o mundo e se reconhece como ser no mundo, ou seja, o homem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de seu próprio conhecimento. Constituído então como objeto no mundo, ao contrário do sujeito clássico, que era um universal, o sujeito moderno será individual: terá corpo e história. Significa então que à experiência do homem na Modernidade é dado um corpo que é o seu corpo - corpo próprio - cuja espacialidade própria é irredutível se articula com o espaço das coisas. A esta experiência são dadas duas formas: desejo (intensidade particular) e linguagem (capacidade de
67 representar o mundo). Apesar de poder pensar o intemporal e de perceber em si a ação da temporalidade, o corpo existe no presente e é o suporte de sua experiência de sujeito, assim como de objeto. Para o pensamento moderno, o corpo humano, embora natural, não é da ordem da natureza e é aí que ele se distingue da vida animal. Ele nasce ligado à razão e à cultura. A imagem que se cria do corpo é a de um artifício cultural que deve estar preparado para o espaço social. Não é o corpo cru, mas o corpo do já cozido. Como nos lembra Bragança de Miranda: “Corpo próprio, propriedade do corpo, tudo isto são características da maneira como o contratualismo moderno fez de cada “sujeito” o proprietário legítimo de sua carne”.79 Muda a tecnologia da morte, ao mesmo tempo em que surgem os espaços de disciplina.80 Se nas antigas crucificações romanas ou nos rituais da Inquisição as execuções a dramatização dos poderes de provocar sofrimento, o suplício adiando a morte tanto quanto possível, o mundo revolucionário abolirá tal experiência e com ela certa relação entre o sacrifício e a multidão necrófila. O invento de Guillotin, a nova tecnologia da morte, não buscava o arrependimento e “considerava” que mesmo o criminoso mais abjeto possuía um determinado direito corporal, a que legava ao Estado a tarefa de, respeitando-o, propiciar morte rápida, isenta de dor inútil. A nova “morte humana” de Guillotin provocou
“corpos passivos” que não podiam falar,
resistir ou gritar, gerando também então uma nova reação na multidão que assiste: a paixão do espetáculo do sacrifício cede lugar a manifestação de passividade coletiva: a morte se torna um não evento, morte em um corpo passivo, produção em série da morte, morte no vazio. Mas a vida do novo indivíduo urbano não será menos modificada. Para o novo espaço sem limites, a liberdade manterá os corpos indeterminados e fundará uma nova noção de solidão, como sentimento do corpo próprio: um
79
Bragança de Miranda, As ligações do corpo, Miméo, p.8. A respeito das sociedade disciplinares, vejam-se os vários trabalhos de Foucault, especialmente os da década de 1970, sintetizados em Vigiar e Punir e a célebre entrevista sobre o bio-poder conferida a Dreyfus e Rabinov e publicada em Michel Foucault: Um percurso filosófico. 80
68 novo e curioso isolamento que não é protegido pelo espaço privado mas posto à prova no meio da multidão em movimento. A lexis de Tocqueville é dos primeiros a enunciar melancolicamente esta questão, no segundo volume de Democracia na América em 1845. A ele se seguirão Baudelaire (e a leitura que dele faz Walter Benjamin em A Paris do século XIX), Simmel e muitos outros. Para todos vale o mesmo batismo: a Idade do Individualismo. A descrição que se segue é a de Tocqueville, mas expressa, no seu tom próprio, o que Simmel chamou de “o homem blasé”: cada pessoa age como se fosse estranha em relação à sorte das demais, mistura-se aos concidadãos mas não os vê; pode tocá-los mas não senti-los, existe apenas em si e para si. O equilíbrio social é obtido porque o que se presentifica é uma comunidade que só é coesa porque seus habitantes não mantém efetivas relações sociais: são as vidas isoladas e mutuamente indiferentes que podem garantir sua manutenção. Baudelaire terá desta curiosa transformação uma leitura particular a que Foucault se refere como busca de uma “heroização irônica do presente”. Ela consistirá, para o poeta, em deixar cair a sua auréola na lama, em conseguir manter-se incógnito e em constante transformação e assim explorar a nova dimensão “épica” da cidade. Mas ele nos lembra que esta possibilidade é dada a poucos: “Não é dado a todos tomar um banho de multidão; gozar da turba é uma arte; e somente pode fazer uma pândega de vitalidade às custas do gênero aquele a quem uma fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia, o ódio do domicílio e a paixão da viagem [...] O passeador solitário e pensativo, retira uma singular embriaguez desta comunhão univeral. Aquele que desposa facilmente a multidão conhece gozos febris, dos quais estão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, enrolado em si mesmo como um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que a circunstância lhe apresenta.81 O poeta é uma alma errante, para quem multidão e solidão são termos que convertem um para
81
Charles Baudelaire, Petits Poèmes en Prose, Les Foules, Le Spleen de Paris, Paris, Gallimard XII.
69 o outro. O direito ao anonimato, que ele festeja, é também o da existência do homem só com um corpo que deve administrar a ausência de contatos. Georg Simmel comenta esta relação: antes na Londres ou na Paris antiga, em público, as pessoas tinham a expectativa de abordar e serem abordadas. Agora, nos carros modernos dos trens e mesmo circulando nas ruas os transeuntes tornam-se atentos ao exercício de seu direito de não serem interpelados por estranhos. Do mesmo modo, antes do advento do transporte de massa raramente as pessoas eram obrigadas a sentar juntas, caladas por um longo tempo, apenas olhando. A mudança de postura acabará por influenciar também a maneira como as pessoas sentavam nos cafés e nos pubs. Os primeiros cafés surgiram a partir dos ingleses no século XVIII e configuravam um lugar onde “o preço de uma xícara de infusão dava direito a participar das coversações que tinham lugar no salão”.82 Além do bate-papo outras informações eram trocadas: o estado das estradas, os fatos ocorridos na cidade etc. Embora as diferenças sociais fossem visíveis, a troca de informações era o mais importante, o que demandava um debate livre. Os periódicos, afixados nas paredes, forneciam assunto para discussão, quando a fala era mais confiável que a escrita. O próprio nome “café” é filho do “Ancien Regime”. E o Café Procope, na margem esquerda do Sena, nos anos que antecederam a Revolução, foi palco de intensos debates políticos. No início do século XIX, terá início uma transformação no que já se transformara num hábito social e que se constituiu simplesmente na colocação das mesinhas do lado de fora, a céu aberto, incentivando o cliente à contemplação mais do que à conversa. No final do século XIX, o café já deixara de ser território político. “Meia hora nos bulevares ou nos Jardins da Tulherias tem o efeito de uma peça teatral, infinitamente divertida” escreveu Auguste Hare.83 Agora as imagens compunham enredos particulares para os devaneios de cada freguês. O café, polido e urbano, será o lugar conveniente a esta nova interioridade solitária entre a multidão. 82 83
Richard Sennett, The Fall of the Public Man, New York, W. Norton, 1992, p.81. Idem p.216.
70 Esta relação com uma nova visão, a que transforma o movimento em espetáculo, foi estudada por Barthes, na sua reflexão sobre os poderes classificatórios do repertório de imagens dos quais fazem uso as pessoas quando se vêem diante de estranhos. Opressivo como qualquer classificação, já que “em cada signo dorme um monstro, um estereótipo”84, ele observa que um branco quando cruza com um árabe ou um negro na rua registra uma ameaça e desvia os olhos. O julgamento é instantâneo e o resultado é surpreendente: os poderes classificatórios do repertório de imagens levam o indivíduo a fechar-se inteiramente. Posto em confronto com a diferença, ele assume uma postura ao mesmo tempo passiva e defensiva. Esta “desestimulação defensiva” influencia as pessoas nos lugares onde caminham, no modo como administram seus corpos nas ruas, na maneira como assumem um posicionamento que evita qualquer contato físico: desloca-se assim o que parece confuso e ambíguo. Assim, a experiência corporal cria guetos individuais e o medo do contato que dera origem ao isolamento dos Judeus na Renascença, reaparece, robustecido.
II.8. A CRISE DO CORPO
Esta é a marca fundamental que parece ter-nos acompanhado do século XIX até, pelo menos, a Segunda Guerra Mundial. O que Foucault chamou de sociedades disciplinares, nascidas sob o capitalismo de concentração na produção e na propriedade (que se reflete na vivência do corpo) apresenta dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, pensado como identidade fixa, totalizada e definida, inclusive e principalmente para si mesmo, e o número da matrícula, que indica sua posição na massa. As sociedades disciplinares nunca viram incompatibilidade entre os dois pólos, multidão e solidão pertencem ao mesmo momento. 84
Roland Barthes, A aula, Cultrix, São Paulo, 1980, p.15.
71 O poder que aí atua é, ao mesmo tempo, massificante e individualmente, constituindo num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, ao mesmo tempo, moldando a individualidade de cada membro do corpo. De certo modo, e tal como Margrit Shildrick85 nos aponta, na Modernidade, o corpo era o lugar do limite individual, o ponto de interface com o mundo social. Mesmo assim havia uma separação entre sujeito e corpo, onde este podia trair o sujeito, ou o eu, por ser um lugar aquém ou além de toda lógica e razão. O corpo cru, assim como o corpo putrefato podiam fazer emergências no corpo de cozido no caldo da razão iluminista. Esta possibilidade conferia às disciplinas, com seus processos de quitação parcial86 (a escola, a caserna, a fábrica), a função de educar os corpos, torná-los dóceis, produtivos e obedientes, visando à integridade do sujeito e à construção racional da sociedade
perfeita. Os corpos dóceis, produzidos pelas disciplinas são
construções que marcam e destacam a diferença do corpo selvagem e do corpo civilizado. Citando Drew Leder, no mesmo texto, Shildrick postula que o pensamento moderno referiu-se ao corpo humano como um corpo ausente, aquele que enquanto saudável, longe de ser presente e consistente, é raramente experienciado. Apenas quando é danificado ou quando adoece, o corpo se faz presente, sendo percebido pela consciência como um outro. Simbolicamente o corpo presente à experiência era ruptura do sujeito. No entanto, talvez possamos dizer que este corpo que aí irrompe só o faz abandonando a estatuária da imagem do corpo. Servindo-nos do conceito proposto por Bragança de Miranda87 o que aí comparece é a carne “rude material orgânico”, que, no limite, é o que está por trás ou por dentro do corpo. A rudez da carne surge no corpo que falha, e que o faz porque a carne fica doente ou é tocada pelo não-conhecido (não-humano). Quando isto se dá, como invasão de physis na experiência, vivida como sofrimento e como dor, todos os
85
M. Shildrick, Post humanism and the monstrous body, In Body and Society, vol 2, nº.1, London: Sage, 1996. 86 Estamos nos utilizando da terminologia deleuziana, usando como referência o texto PostScriptum sobre as Sociedades de Controle, publicado na coletânea Conversações, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994.
72 conhecimentos e todos os esforços são convocados para reinstaurar a imagem do corpo, “alma secularizada” que deve se impor à presença da carne, expulsando-a da visão. O corpo é assim a idealização da carne, espécie de outra pele invisível. Seu sentido é nitidamente bio-político. É assim que assistimos à associação entre o poder disciplinar e a “tecnologia política do corpo”. Esta constitui um saber do corpo, que não sendo a ciência do seu funcionamento, fala de um controle de suas forças e da capacidade de dobrá-las. É o agente que deve gerir a vida dos homens, no sentido da maior e melhor utilização dos corpos e mentes pela sociedade. Mas este, desde o século XVIII é acompanhado de uma biopolítica da espécie: o corpo não individual, mas da espécie humana, preocupado com a sobrevivência, com o prolongamento da vida, com a proteção da higiene pública e com uma incipiente preocupação com a preservação do meio ambiente. Este bio-poder, que não se confunde mas não se opõe ao poder disciplinar, dirige-se ao ser vivo, à massa, à população e os seus esquemas de intervenção são globais, atuando em questões como natalidade, fecundidade, endemias, velhice, sempre no sentido do prolongamento e preservação da vida. O ideal, neste poder, é “fazer viver e deixar morrer”. Mesmo com a entrada do bio-poder, o poder disciplinar não desaparece. Ao contrário, complementarmente, ele se desvia para outro nível. O grande exemplo é o caso da medicina: se anteriormente ela se voltava para a vigilância e o controle da vida sexual dos indivíduos, na biopolítica seus objetivos são a fertilidades e a procriação de uma população. O elemento que circula no indivíduo, como na sociedade é a norma, sendo a nossa sociedade a da normalização: uma sociedade onde se cruzam a norma da disciplina e a da regulação. O que parece explicar sintomas que ainda manifestamos: uma medicalização da política, como da ética. Sendo o corpo o centro de um conjunto de propriedades apoiadas juridicamente (veja-se o texto da Declaração dos Direitos Humanos: todo homem tem direito à vida e a não ser humilhado no seu corpo) e sendo o próprio corpo apresentado como propriedade, ele se torna 87
Bragança de Miranda, As ligações do corpo, Miméo, 1997.
73 também responsabilidade: devemos tomar vitaminas para conservá-lo preventivamente, fazer exercícios e controlar o colesterol, os triglicídios e a osteoporose, fazer uma alimentação “saudável”. Michel Serres, em entrevista concedida a Bruno Latour88 nos brinda com um comentário delicioso: aos hábitos locais e “deliciosamente” cegos, do ácool, da gordura e do açúcar “se substitui certa obrigação dietética e austera, sem, a microscópica virtude temperante de se contentar com uma salada! E de correr, rápido, da mesa para a ginástica. Doença e morte dependem, então de mim. A gulodice e a preguiça, a luxúria e a cólera passam do confessional ao laboratório, da intenção espiritual e subjetiva à evidência racional e a obrigação final e causal em conjunto. Formando um líquido preparado como meio de cultura bacteriológica comunitária, a liberdade sexual dos indivíduos se transforma em necessidade viral coletiva. Tal ato local atinge uma condição global de sobrevida”. No entanto, todo este cuidado com o corpo, toda a sua “eticalização” e todas as técnicas que no interesse de sua preservação se elaboram, não fazem mais do que demonstrar a crise do corpo, caudatária lógica da crise da Modernidade. Este corpo está desaparecendo, por motivos que se relacionam com a crise do sujeito moderno, perplexo diante das simulações e dos duplos que põem em questão a sua principal noção de realidade, tradicionalmente associada à presença tangível e ao suporte material. Corpo que foi inventado mas também imposto, propondo uma “vontade de forma” totalizada, singularizada e reconhecível. Se podemos afirmar que nossa experiência moderna não pode prescindir da idéia de corpo - que nos liberava do “comunismo” da carne, as tecnologias contemporâneas se enxertam diretamente sobre este, fazendo uma associação que desconstrói sua inteireza: carbono + sílício; carne + técnica.
74 CAPÍTULO III
MONSTROS, FREAKS E CYBORGS - O OUTRO DO CORPO E O CORPO DO OUTRO
III.1. A CONSTRUÇÃO DOS MONSTROS E AS RAÇAS FABULOSAS
“O senhor ache. O senhor pense. O senhor ponha enredo.”
João Guimarães Rosa
“Provavelmente o homem só produz monstros por um única razão: poder pensar a própria humanidade. Seria possível traçar a história das diferentes idéias ou definições que o homem deu de si próprio através das representações da monstruosidade humana que a acompanham”.89
José Gil
A existência real ou imaginária de pessoas ou raças que apresentam deformações ou malformações não é evidentemente um fato recente. É possível dizer que nasceram junto com a própria humanidade. Povos mitológicos que povoaram o imaginário grego assim como os “freaks” clássicos, anões, 88 89
M. Serres, Sagesse in Éclaircisrements, Flammarion, Paris, 1993, p.254. José Gil, Monstros, Quetzal Editora, Lisboa, 1994, p.56.
75 gigantes, siameses, hermafroditas, seres a quem falta ou sobra algo da ordem do corpo são de há muito conhecidos. Podemos dizer que cada momento histórico propõe suas teorias, suas explicações, seus motivos, suas origens. No entanto, parece também que podemos afirmar que a “monstrologia” não é um campo extremamente criativo; em épocas distintas vemos a repetição de temas, explicações e motivos, o que leva a uma constatação simples: não existe uma diversidade infinita de formas, processos de composição que sejam ilimitados. Como nos lembra José Gil: Um monstro não é não importa o quê (...) o que nos leva a buscar a razão “que levou a “imaginação” a fixar certas malformações biológicas e não outras, numa teratologia fantástica das raças humanas”.90 Consideramos assim que temos dois pressupostos: sempre houve a crença e a demonstração desta, tanto nos textos condutores do pensamento ocidental quanto na organização dos espetáculos que dão a ver, como show, a monstruosidade (cujo contraponto lógico foi o da existência de raças ou seres fantásticos); aquilo que foi fixado como categoria de identificação de monstruosidade sofreu variações limitadas. Dizendo de outro modo, o que parece contínuo e consistente é a necessidade de constituir um locus de diferença, de alteridade, mas esta terá os limites daquilo com o que contrastar o idêntico ou o mesmo. A literatura, especializada ou não, oferece-nos várias cartografias de monstros, demonstrando o interesse que experimentamos, no campo da reflexão como no da diversão, quanto a estas “estranhas” figuras. O estudo exaustivo delas constituiria uma enciclopédia (em muitos momentos bastante próxima à enciclopédia chinesa de Borges, talvez o pretexto para o surgimento de As palavras e as coisas de Foucault) que, embora fascinante, excederia em muito o objetivo deste pequeno texto que não quer mais do que desenhar, modestamente, parte do percurso do Outro na tradição de nosso pensamento e de nossa experiência existencial. Assim sendo, proporemos, redutoramente, um princípio de “monstração”: nossas referências se circunscreverão aos monstros enquanto categoria corporal (ainda que o senso comum, na sua abundante capacidade de criação de metáforas, sirva-se do termo para designar atitudes, do 90
Idem p.151.
76 tipo: Unabonder, ou Hitler, ou Salazar ou etc. são monstros de maldade), porque os concebemos como lugar de pensar o outro corpo ou o corpo do outro. Dividiremos nosso “personagem conceitual”91 em duas categorias gerais: raças monstruosas e monstros individuais; paras o últimos consideraremos os “monstros reais”, ou seja, aqueles que foram efetivamente pautados na existência
concreta
de
deformações
ou
malformações;
e
“monstros
imaginários”, aqueles produzidos pela fabulação sem correspondência na existência física dos quais o Frankenstein de Mary Shelley é, talvez, o primeiro fulgurante exemplo. Começamos com uma constatação: nunca fomos tão frequentados por estas categorias: vivemos hoje uma prodigiosa proliferação de monstros que nos surgem de todos os lugares: do cinema, das histórias em quadrinhos, das exposições de artes plásticas, dos brinquedos e video-games, etc. Talvez o que haja de mais interessante é o fato de que, além de sua multiplicação numérica, eles nos sejam apresentados também nas revistas científicas, programas educativos, nos nossos mais conceituados laboratórios (como o rato ao qual foi implantada
uma
orelha).
Vivemos
uma espécie de banalização da
monstruosidade, ou, talvez em função desta nova associação com a ciência, basicamente através da manipulação genética, uma “contração do domínio da anomalia”.92 A que se poderia dever tal fenômeno, para além da banalização generalizada realizada indistintamente pela “sociedade do espetáculo”, que atinge diretamente as imagens da violência e do mal, tradicionalmente suspeitas na alteridade do corpo monstruoso? Como entender esta domesticação em relação a algo que, não tendo sido despido de sua aura de fascinação, convive simpaticamente, com um hóspede bem vindo, nas nossas casas e cidades?93
91
Usamos aqui o termo de personagem conceitual no sentido em que ele foi proposto por Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Editions de Minuit, 1991. 92 José Gil, op. cit., p.12. 93 Usando uma nota absolutamente centrada numa experiência pessoal e esperando que o leitor me desculpe pela familiaridade, num fim-de-semana cercada de adolescentes na faixa de 14 a 15 anos, 3 meninos, fiquei convencida desta realidade pois foi um “curso de imersão “sobre os seres alienígenas, sua genealogia, sua proveniência, a classificação de suas próteses, o material de sua epiderme, seus poderes etc. O mais curioso foi a reação diante da minha infinita
77 Correndo um certo risco, podemos considerar que se os monstros nos aterrorizam menos, é porque não temos hoje uma configuração tão fechada para o mesmo, na qual estabeleceríamos nossa imagem do nosso próprio corpo, e que os fixaria na absoluta e apavorante diferença (embora, em relação aos seres alienígenas haja sempre presente, enunciada ou não, a idéia de uma invasão do nosso planeta por gente de “outros mundos” ou galáxias). Por outro lado, se por eles nos interessamos, é porque eles nos colocam questões extremamente contemporâneas, talvez porque precisemos de suas figuras para recolocar a pergunta sobre a humanidade do homem, esgarçadas as certezas de sua identidade e inteireza neste mundo onde fazemos proliferar as associações entre a carne e o metal. Tradicionalmente, o que se torna mais visível na figura dos monstros imaginários (aí incluídas as raças e os monstros teratológicos, assim como certas figuras mitológicas como o centauro, o minotauro etc.) é o seu surgimento a partir de hibridizações de espécies de diferente natureza: natureza divina e humana ou natureza animal e humana. O que dever-se-ia configurar como estruturalmente diferente (e o conceito de corpo humano, como tentamos mostrar no capítulo precedente, nasce desta depuração de uma unidade lógica de diferença: não-divino e não-animal) e nunca se cruzar, produz os monstros teratológicos ou “fabulosos” quando perde a distância, quando se aproxima demasiadamente a ponto de se misturar. Não é portanto leviano afirmar que alguém que se conecta com as realidades técnicas e que não vive seu próprio corpo como separação radical do mundo, ao mesmo tempo em que domestica seu horror, fascina-se com esta semelhança de hibridização, ou seja, mistura. O que buscamos no monstro é saber se tal ser é um radical outro, categoria que ele sustentou valentemente até muito pouco tempo. E ainda que a
ignorância: Nossa, você não sabe nada! O que me permitiu explicar que isto é que é pesquisar e tentar aprender. Espero, com esta contribuição, ter retribuído aos ensinamentos que me fizeram.
78 noção de nossa humanidade seja hoje uma noção “débil”94 é em função dela que nos interrogamos sobre a humanidade do Outro.95 Assim, não é a oposição simples que marca a diferença entre monstro e homens, mas um sistema complexo de relações de aproximação e distância, de misturas e de hibridização. É por isto que a descrição de um minotauro não se faz pelo elemento que falta: um touro ao qual falta a cabeça de touro ou um homem a quem falte o corpo de homem, mas um conjunto de “núpcias contra a natureza”. Cruzamento que, olhado sob o prisma antropológico, representa o desregramento da cultura, como o contato direto, sem as mediações rituais e sacrificiais entre os homens e as divindades. O outro, como oposição simples, situa-se sempre nas fronteiras exteriores: nem a divindade nem o animal são os limites do humano. Sendo radicalmente-outros, encontram-se, desde sempre, para cá ou para lá do humano (mesmo que certas experiências contemporâneas busquem antropomorfizar a diferença projetando coisas como os “direitos do animal” no campo éticojurídico). O monstro, ao contrário, nas suas mais diferentes formas, não está fora, mas no limite do humano. Um limite “interno”, produtor de figuras estranhas em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são efetivamente humanas, já que nos surgem como “desfiguração” do Mesmo no Outro. Como algo com o qual não nos confundimos, mas também não nos diferenciamos totalmente: neste sentido sua definição é instável e sua alteridade é móvel. Um exemplo disto nos aparece seguindo a época do Descobrimento e a expansão das fronteiras do mundo conhecido. Desde as questões colocadas por Pedro Vaz de Caminha sobre se os índios brasileiros seriam pertencentes a uma raça humana ou “bestial”, e embora os índios e os negros, a nova presença para os brancos europeus dos séculos XV e XVI não tivessem aspectos das
94
Na utilização do termo que faz Gianni Vattimo, A sociedade transparente, Lisboa, Relógio d’Água,1993. 95 José Gil nos mostra que o caso oposto não acontece: não perguntamos se um golfinho ou macaco são humanos, mas se tem linguagem, inteligência ou desejo, aproximando-nos da fronteira onde a animalidade cessa. Mas perguntamos sobre a animalidade e não sobre a alteridade do golfinho ou do chipanzé. Mesmo a nova paleoantropologia se preocupa em buscar
79 monstruosidades clássicas, sua humanidade foi objeto de dúvidas: seriam animais, monstros?96 Os monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca seríamos e assim articulam a questão: Até que grau de deformação (ou estranheza) permanecemos humanos? Uma tradução contemporânea desta questão, exigida sobretudo a partir das tecnologias de manipulação genética, poderia assim ser exposta: até que ponto e qual é o limite onde podemos levar os artifícios e as intervenções sem prejudicar a imagem humana “natural”?
O que é humanóide? Que corpo
podemos ter hoje que seja ainda reconhecível como humano? A figura da monstruosidade exerceu uma função simbólica fundamental. Perturbando os sentidos, especificamente a visão, o monstro foi pensado como uma aberração, uma folia do corpo, introduzindo, como oposição lógica, a crença na necessidade da existência da “normalidade” humana, do corpo lógico. Hoje forçamos a natureza e suas potencialidades até seus limites mais extremos. Reencontramos neste processo tanto o devir-animal xamânico, quanto o inumano, na esteira de alguns pensadores que se aproximaram da figura do Além-Homem de Nietzsche entre os quais Lyotard e Deleuze, para nos fixarmos em alguns. No entanto, nossa angústia nos leva a considerar: “Que corpo podemos ter hoje? Que corpo “natural” humano, para uma alma que se tornou completamente artificial, anti-natural, destruidora da natureza? Pomos à prova os limites de nossa “naturalidade”, procuramos pontos de referência por toda parte e é por isto que colhemos todas as espécies de monstros: os fabulosos e os teratológicos. O fantástico, aliás, está em situação de se tornar real através da manipulação genética e o teratológico invadiu o imaginário graças às mais diferentes espécies de extra-terrestres”.97 Podemos acrescentar também que sempre sustentamos, a partir desta relação com este devir-monstro, uma aposta na excelência formal e simbólica
uma redefinição dos campos ou aproximá-los por um certo neo-darwinismo mas não vê o macaco como seu alter-ego. 96 Voltamos a uma referência da apresentação “É que Narciso acha feio o que não é espelho” dos versos de Caetano Veloso que aponta a função especular de um outro-posto-no-limite-do mesmo. Que foi contemporâneo de outra canção popular: “Black is beautiful”.
80 da natureza humana, o orgulho de sermos homens, corpos racionais como nossos espíritos. E que o século XX nos brindou com um espetáculo de horror que introduziu em nós, “a vergonha de ser um homem”, tal como Primo Levi descreve a sensação que os campos nazistas e o holocausto criaram como resultado de uma raça que “produziu homens para serem nazistas”. As figuras humanas que foram dadas a ver nos campos de extermínio, como as que sobreviveram, nos apareceram como “restos humanos”, “corpos sem carne”, cabeças sem cabelo. Opostas às aberrações excessivas dos monstros, seus corpos humilhados, torturados, quase ausentes, humanos para aquém do nosso pior pesadelo, nos fizeram perder o orgulho de pertencer à raça daqueles que foram “concebidos, de modo perfeito e sem falhas, nas mãos, nos pés e no espírito”. Sem dúvida o episódio nos falaria do paroxismo do mal ou da violência. Mas é possível que seja o grande divisor de águas em relação àquilo que nos inspira horror: nenhuma figura ou cena que nos fosse proposta teria a capacidade de concentrar tamanha estranheza diante de nossos devires. No mesmo sentido, Virilio afirma que “a bomba que explodiu em Hiroshima, implodiu o Ocidente”: por excesso de excesso, tornou-se claro que o equilíbrio racional que sustentava nossa concepção de homem era apenas uma visão narcísica que construimos e celebramos. Assim o olhar que lançamos aos monstros tem, atualmente, um novo ambiente: vivemos um momento de obcenidade, no sentido baudrillardiano do termo, onde tudo se dá a ver, o que, de certa forma, domesticou nossa percepção visual. O mal e seus paroxismos que acompanharam uma certa recepção da monstruosidade foi banalizado, e nosso medo, como nossa indignação foram, de certo modo, domesticados. As experiências da arte, especialmente nesta segunda metade do século XX já realizaram as deformações concebidas e sonhadas na idéia de corpo humano. A ciência, especialmente a partir das suas técnicas de manipulação genética, produz como experiências vitoriosas figuras híbridas e monstruosas e a cybercultura, junto das questões éticas relativas ao uso político do ciberespaço, do espaço sideral, de maneira particular, parece 97
José Gil, op. cit., p.11.
81 retomar ou reinaugurar um outro ciclo de Grandes Navegações, propondo para os alienígenas perguntas semelhantes às provocadas no encontro com os negros e os índios nos séculos XV e XVI. Detenhamo-nos no olhar curioso, fascinado ou apavorado que dirigimos a estes estranhos seres. É comum, na etimologia utilizada pelos autores que trataram do campo semântico do monstro, a associação com monstrare e a tradução deste verbo por mostrar ou por “indicar com o olhar”. Entretanto José Gil98 afirma que monstrare significa muito menos “mostrar um objeto” do que “ensinar um comportamento, prescrever a via a seguir”. No entanto a atração entre monstro e monstrare é maior do que a homofonia das palavras: os monstros talvez tenham assim sido chamados porque se mostram raramente ou, “porque eles nos admoestram e previnem da ira dos deuses”.99 Num tratado sobre os monstros do início do século XVIII Fortunio Liceti, assim os descreve e elabora sua origem, considerando que eles são menos um sinal de presságio, um anúncio do que está por vir (crença a eles ajustada durante o período que atravessa a Antiguidade e a Idade Média) e mais uma novidade e uma extravagância que nos fazem a eles ser atentos, considerando-os com admiração e apontando-os para os outros, uma vez que “Trata-se de um comportamento comum entre os humanos que, quando viu algo de maravilhosamente extravagante, o mostra aos vizinhos ou àqueles que encontra”.100 Nesta relação com o olhar, o monstro é uma espécie de irreal (se for pensado como relação com o corpo humano) verdadeiro. É por isto que ele é sempre excesso de presença. Nas inúmeras classificações que tiveram suas anomalias fossem as redundâncias, as mutilações ou as ausências de um membro ou um órgão sempre tiveram um caráter positivo, porque são estas anomalias que justificam a criação de uma categoria de criaturas à parte, onde o excesso e a falta são sempre traços de presença. Já citamos antes o exemplo do Minotauro; agora nos valemos do exemplo do ciclope que não é descrito como
98
José Gil, op. cit., p.77. Festus Pompericus apud José Gil, op. cit., p.78. 100 apud José Gil, p.78. 99
82 um ser ao qual falta um olho, mas um gigante que possui um olho na testa. É válido portanto dizer que o monstro excede a representação: ele mostra um transbordamento de ser, oferece ao olhar mais do que o que já foi visto. O nosso olhar tem por hábito encontrar o corpo, que sendo uma imagem-invólucro que encerra a rude presença da carne, é também, e em cada experiência histórica, particularmente apreendido e interpretado como expressão. Ainda que numa ótica de separação de corpo e alma, ou na secularização da alma no corpo que a experiência moderna pareceu realizar, a determinação hereditária não nos faz prisioneiros, mas nos dá voz e narrativa. O corpo conta uma história e é só por isto que ele ganha sua existência. Sobre este corpo histórico, várias fantasias foram sobrepostas, como mantos que o cobriram de outra pele. Na Grécia Antiga ele vestia a virtude da beleza; na Idade Média cristã o manto da castidade que “cobria suas vergonhas”; nas cortes européias dos séculos XVII e XVIII os artifícios das perucas, dos brocados, das jóias, etc, sinais da aristocracia e da riqueza que nele deveriam ser expostos. O século XIX traz a nova marca da veste burguesa, mas foi também o momento da invenção do “dandysmo”, um modo particular de vestir e mover o corpo para aquele que assim foi descrito: “um dandy deve viver e dormir como se estivesse diante de um espelho”, aposta da “estetização artificial” que deve envelopar o corpo de alguns humanos. O século XX nos traz a indústria da moda e seu “império do efêmero”; a volatilidade desta implicando concepção de uma visão do corpo onde a metamorfose é prevista, requerida, produzida e imposta. Neste trajeto, o corpo e suas fantasias sempre participaram dos mecanismos de identificação e alteridade. São modos de inscrição e, portanto, de produção do idêntico e do diferente, ainda que saibamos que este par é uma projeção modelar a partir de uma fronteira ideal estabelecida com base na cultura. A fixação da imagem no espelho101 só é possível porque o corpo a fornece, desde o mito de Narciso, embora não seja apenas pelo fato de haver
101
Procuramos mostrar no capítulo anterior a função espelho como produtora da imagem do corpo.
83 uma imagem que se cristalize a eternidade, já que o tempo do espelho é apenas um agora. O corpo sustenta como matéria a produção dos processos de identificação a partir de suas evidentes marcas visuais que expõem a identidade do sujeito consigo próprio, com a sociedade e com o grupo do qual participa e pelo qual quer ser acolhido e reconhecido. Mas o corpo é também o limite que separa o sujeito ou o indivíduo do mundo e do outro, lugar de onde se pode determinar a alteridade. Determinar e excluir o outro é fundamental para que se possa delimitar o que é idêntico no sujeito em questão: o processo que estabelece identidade é o que demarca uma fronteira entre o que é idêntico (mesmo) e o que é diferente (outro). Exige portanto a construção de um jogo de posições relativas. Para estabelecer a identidade é necessário tomar-se um parâmetro que permita caracterizar identidade e diferença. A exclusão de um elemento é aquilo que delimita a fronteira do conjunto identitário e assim a alteridade é a antítese que determina a identidade. Dissemos antes que é o Drácula que pensa em nós e não o Narciso como desenvolvemos no capítulo anterior que vemos refletido no espelho.102 Mas que só por que Narciso pode refletir-se, que Drácula é o vampiro que não tem imagem no espelho. Se ele não se pode dar a ver como representação especular, é porque, apesar de todas as crenças que nos foram inoculadas e no fato de haverem figuras cujo corpo nos faz estranhar - fascinar pela efetiva diferença produzida por malformações, deformações, redundância ou ausência de membros ou órgãos, o lugar da alteridade nesse processo é singular: o outro não está do lado de fora, ou do outro lado do espelho, mas contém a própria noção de identidade. A alteridade faz parte do processo de classificação do idêntico, participando das teias de significação que determinam a identidade. Seu significado provém de uma posição relativa - o contraponto ao idêntico - na rede de signos que um grupo ou sociedade estabelece para si. Sendo assim, o outro não surge apenas de uma oposição primária entre o que está dentro e o
84 que está fora.103 Numa partida, um determinado lance pode reposicionar um elemento que pertencia ao grupo identitário, transferindo-o para o outro lado e vice-versa (sempre conservando-o num lado de dentro, o que explica a criação variável dos guetos nas sociedades ocidentais). Como a alteridade não se encontra fora do processo de identificação, mesmo que ela seja fabulada como espacialmente externa, tal como vimos para o Oriente em relação ao Ocidente e suas “raças fabulosas” que compunham o imaginário grego e cristão, a ponto de terem constituído um problema teológico que preocupou pensadores como Santo
Agostinho na tentativa de
compatibilizar o conteúdo religioso da Bíblia e a existência de tais raças104, o outro surge por exclusão social no interior do grupo onde a identificação é estabelecida. A cidade, por exemplo, modelizada como um corpo arquitetônico, não estabelece apenas a divisão entre o cidadão e o estrangeiro, como o que está fora de suas fronteiras. No interior de seus muros, criados para cercá-la real e simbolicamente, tudo o que não corresponde à norma pode tomar o lugar do Outro. O desviante pode ser o louco, o criminoso ou o monstro e as três figuras, tendo sua própria história, que refere-se sempre, mas não da mesma forma, ao desregramento da cultura, a partir do momento em que lhes é atribuída tal posição veem serem erguidas, para cada um destes, uma construção que deve, ao mesmo tempo, encerrá-los e evidenciá-los: o hospício, a prisão e o circo (ou espetáculo). Mesmo hoje, com a crise da sociedade disciplinar e asilar, que se manifesta inclusive pela discussão sobre a validade das prisões e dos hospícios, com novas propostas tais como hospitais-dia e prisões-albergues, a idéia topológica de uma construção de unidades de asilo para outros não parece ter sido totalmente eliminada, do mesmo modo como os monstros se deslocaram do circo para o cinema, a televisão e o jornal, tornando ainda presentes modos de “comunicação do grotesco”.
102
Alusão ao nosso texto, publicado no livro Cultura e Mídia, Anais da COMPÓS de 1996. A este respeito o conceito de “dehors” de Michel Foucault é extremamente útil, apontando o “dedans” como dobras do “dehors”. 104 A este respeito ver José Gil, op. cit., capítulo I, As preocupações de Santo Agostinho. 103
85 A discriminação não implica a expulsão dos jogos de comunicação e poder. O outro pode servir para regular o idêntico, funcionando como seu parâmetro, mas também pode atuar dinâmicamente na prática social. Foucault em sua análise sobre a sociedade disciplinar, identifica mecanismos de utilização do delinquente pelas estruturas do poder do século XIX: A prisão fabrica os delinquentes, mas os delinquentes são úteis, tanto no domínio econômico quanto no domínio político. Os delinquentes servem para alguma coisa. Por exemplo, no proveito que se pode tirar da exploração do prazer sexual: a instauração no século XIX, do grande edifício da prostituição só foi possível graças aos delinquentes que permitiram a articulação entre o poder sexual cotidiano e custoso e a capitalização”.105 Qual o proveito então na dinâmica expositiva das figuras dos monstros? Qual é a operação realizada por eles neste jogo de mesmo e outro? Já dissemos que eles nos servem para pensar a humanidade do homem como “natural” e necessária, pelo menos no percurso que vai de nossas origens até perto da nossa contemporaneidade. Funcionam também como advertência: é preciso manter distante o que é de diferente natureza: a hibridização compromete a humanidade do homem. Neste sentido eles exercem uma função didática: tal como as imagens do diabo do século XII deveriam encarnar o que deve ser temido e rejeitado, a existência dos monstros funciona como um incentivo à “perseverança no ser”. Considerando, na influência de Espinosa, que nossos governantes têm necessidade de administrar nossos pequenos terrores íntimos, a existência destes seres e de sua capacidade de nos amedontrar e fascinar, estiveram sempre ligadas a esse jogo do mostrar e conduzir, levantando problemas particulares para cada experiência cultural. O Ocidente medieval acreditava que existiam raças que viviam nos confins da terra (que era povoada por cristãos e pagãos) que não se sabia se seriam humanas ou mais próximas de animais: são as raças fabulosas do Oriente. Numa tradição literária que se inaugura no século IV a.C. com Hecataios de Mileto e atravessa os textos de autores como Ctésias (400 a.C) 105
M. Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p.132.
86 sobre a Índia e a obra de Mégasteno (cerca de 290 a.C.), geógrafo que acompanhou Alexandre ao Oriente, que, por sua vez, citam compilações e historiadores, entre os quais Homero, Heródoto, Plínio, Estrabão, Solinus e Diadoro da Sicília, produziu-se uma estereotipia de imagens relativas a seres que habitam quase exclusivamente o Extremo Oriente, mais precisamente , a Índia. Até o século XVI não haverá mudanças neste repertório de povos monstruosos como testemunham os relatos de viajantes que os viram, dos quais os Ciápodes, que se protegem do sol usando o seu único pé e os pigmeus são exemplos, ou outras espécies de raças meio-animais, meio-humanas como a que Ctésias descreve como sendo constituída de rosto de homem, corpo de leão e cauda de escorpião. No decorrer destes séculos que separam os textos iniciais do final da Idade Média, as alterações sofridas por estas representações foram ligeiras, significativas do espírito de cada época, mas, no seu conjunto, permaneceram inalteradas até meados do século XVI, exercendo um forte poder de sedução que irá obcecar os cartógrafos, os viajantes místicos, os viajantes verdadeiros (como Marco Polo), os moralistas e os religiosos (como Santo Agostinho, ao qual já nos referimos). Enquanto imagens, sua estabilidade se explica pela pertinência a um sistema estável de crenças e representações que dizem respeito a múltiplos domínios do conhecimento: teologia, cosmografia, geografia, história sagrada, mitologia. Pertencem ao mundo pensado como “mundo fechado”, onde a questão do infinito ainda não havia irrompido, produzindo, a partir de sua presença, a idéia de um Cosmos sem centro e sem margens. No que toca às crenças medievais nos monstros, seguiremos a classificação proposta por José Gil que distingue os povos fabulosos das imagens fantásticas que, regra geral, são as figuras mitológicas de animais monstruosos resultantes da união de várias espécies: dragões e centauros, por exemplo; nosso interesse se circunscreverá aos monstros humanos biológicos. Há ainda uma distinção necessária que compreende os dois aspectos relativos à concepção que a Idade Média teve da teratologia: o primeiro diz
87 respeito aos nascimentos monstruosos, considerados como presságios, portenta; o outro limita-se a admitir que há raças fabulosas nos confins da terra. As duas crenças não se misturam e liberam questões que são particulares: Os povos monstruosos existem? São os monstros presságios? As raças fabulosas não poderiam ser pensadas como presságios. Afinal, um presságio tem uma temporalidade própria e efêmera, durando apenas o tempo de transmissão de sua mensagem. Para que serviriam então estas maravilhas do Oriente? Outra questão dela decorre: existiria uma relação entre estas raças do Oriente e a profusão de imagens fantásticas que invadem as catedrais, os bestiários e os livros de salmo: dragões, sátiros, leões alados, animais híbridos? A discussão das raças monstruosas na experiência cristã produzia um problema teológico com o qual Santo Agostinho se debaterá, guiado pela preocupação de manter a unidade da espécie humana e através dela, a salvação que deveria abranger a todos os homens. Seu primeiro movimento será o de considerar que “não é necessário acreditar em todos esses gêneros humanos que se dizem existirem”, afirmação onde se conjugam a conveniência teológica e uma visão de realidade em elaboração e para a constituição da qual Santo Agostinho, com o projeto de reabsorver todo o conhecimento antigo no conhecimento do texto bíblico, muito contribuiu. A resolução será
“salomônica”: não é porque os homens não
compreendem o porquê da monstruosidade (e o nascimento monstruoso é uma realidade
incontestável
embora
provoque
escândalo
e
seja
absurda
teologicamente - e aí não seria uma advertência divina) que ela não existe e se possa dizer que não foi desejada por Deus. Temos portanto de manter o mesmo princípio para as raças fabulosas: admitir a probabilidade de existirem raças fabulosas no Oriente entre certos povos, faz com que estas, segundo o mesmo princípio, tenham sua existência considerada e funcionem sobre a premissa de que, se há raças humanas monstruosas, o absurdo de haver nascimentos monstruosos seja aparentemente reduzido. Assim, ao afirmá-las, ele subtrai as raças dos monstros ao estatuto de realidade que tinham na tradição clássica e, apresentando-as como
88 incompreensíveis e possíveis, ele, no mesmo movimento, torna-as maravilhosas e as integra no sistema de representações da Bíblia. A questão da monstruosidade no corpo não estaria separada da noção da alma, já que o corpo é onde esta se aloja. Portanto é da “natureza” deste corpo que é preciso tratar. Como entender nele a irrupção das anomalias as quais trazem o risco de tornar o homem estranho a si próprio, ou torná-lo animal, misturando os gêneros que podem contaminar um ao outro, a alma (que é humana) corre o risco de deixar de existir. É preciso então reduzir a aberração corporal, assimilar o lado excessivo e desordenado da Natureza que nãose deixa pensar segundo o dogma. Logo, é preciso permitir que os povos monstruosos usufruam do estatuto de mirabilia da Natureza. Assim a Natureza na Idade Média será pensada como dividida em dois espaços distintos: o da ordem (sagrada ou profana) e o do maravilhoso, do desconhecido e do inesperado. O último está à beira da desordem, muitas vezes englobando-a, mas sua apresentação, por si só, reduz sua potência de ameaça em relação ao espaço da ordem. A literatura medieval, as canções de gesta, as narrativas das peregrinações apresentam pletoras de monstros, fadas, demônios e além da esfera da ordem estável e permanente marcada por sinais religiosos, é rico o espaço mágico das figuras fantásticas. O problema das raças fabulosas do Oriente conjuga em torno do seu eixo três espécies de problemas que aí se cruzam: o conceito de Natureza e espaço com o centro europeu e as margens mais afastadas no Oriente; o problema do tempo: ritmando-o pelo relato bíblico, as margens pertenciam a um “outro tempo” que escapava ao tempo cristão da história da humanidade; uma visão do homem, de seu corpo e de sua alma para o qual as raças monstruosas, livres da estrutura objetiva, tornar-se-ão disponíveis para um tratamento simbólico. Por que a discussão se aferra às raças e não aos nascimentos monstruosos? Neste momento, o que está em questão é a própria definição de homem como espécie natural criada por Deus; não é o caso de um qualquer acontecimento efêmero e contingencial como parecem ser as existências dos monstros individuais.
89 Será que hoje, quando nos referimos aos alienígenas ou com eles convivemos no cinema, na televisão e nas histórias em quadrinhos estamos diante de um problema semelhante? Admitir a existência de outras raças, maravilhosas porque pertencentes a outros planetas, portadoras de um corpo para nós estranho, pode ser a nossa maneira de pensar a aventura espacial como nossos antepassados pensaram o Oriente e seus habitantes? Pois o mundo dos monstros não se opõe a uma representação particular, mas ao próprio mundo como imagem do local de habitação do homem e mortal. As fabulosas raças do Oriente apresentam assim leis de formação diferentes daquelas que regem a elaboração dos monstros fantásticos que, por outro lado, invadem a Idade Média cristã; uma extraordinária fauna que, principalmente entre os séculos XII e XIII aparece nas catedrais góticas e nos manuscritos, vivendo um outro regime de monstruosidade: o de um outro tipo de simbolismo.
III.2. OS MONSTROS FANTÁSTICOS E OS FREAKS
Se as raças monstruosas estão nos confins da terra, as serpentes com cabeça humana, os dragões que soltam fogo pelas ventas, ocupam espaços próximos às regiões habitadas. Surgem em um mundo cheio de vazios, armadilhas, espaços de onde brotam forças maléficas e animais fantásticos e que marcam o contraponto à ordem simbólica regulada pela existência religiosa. No mundo físico, são seres das florestas, dos desertos ou dos lagos, e não parece que seja mera coincidência que estes séculos sejam os mesmos que viram surgir no Ocidente a primeira “explosão diabólica”, no Satã de olhos vermelhos, cabelos de fogo e asas de Apocalipse de Saint-Sever ou no diabo
90 devorador de homens de Saint-Pierre de Chauvigny, ou os demônios imensos de Autun, criaturas que tentam ou torturam os homens, possuindo-os.106 Indicam assim, na nossa leitura, seu parentesco com o Príncipe deste Mundo, contraponto lógico ao da existência de um mundo marcado pela presença de Deus e pelo fundamento da semelhança.107 No campo das imagens eles inscrevem seu bestiário fantástico também em espaços particulares. Como nos lembra José Gil108 não é nos grandes lances das paredes, nos altares ou nos retábulos que os monstros são mostrados, mas nas volutas das colunas ou nas cantoneiras entre duas figuras de santos, dissimulados e presentes, prontos para nos surpreenderem. “Neste sentido, o espaço da catedral gótica simboliza o espaço humano onde os monstros, como observou Mary Douglas, se encontram sempre na convergência de dois universos”.109 Também nos manuscritos seu lugar é característico: aparecem nas margens, decoram as maiúsculas que iniciam os parágrafos nos Livros de Salmos, Bestiários, Romances, Livro de Horas, ocupam os espaços em branco que terminam as linhas. Lugares marginais, fronteiriços ao texto, ou seja, lugares ao redor da ordem e do sagrado onde
“A inventividade, o
extraordinário movimento das figuras fantásticas, opõem-se à imobilidade rígida das letras que compõem a orto-grafia”110 Esta subversão que realizam, acompanhada da presença do grotesco que perturba a ordem medieval, é o que garante “a solidez arquitetônica do mundo real”.111 Nas figuras do universo da semelhança estudada por Foucault, as figuras fantásticas fazem movimentar-se este mundo de duplos, principalmente pelo que expõem das analogias e das simpatias/antipatias que garantem a mobilidade simbólica do mundo.
106
A produção destas figuras é analisada por Jean Delumeau em A história do medo no ocidente, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, a que já nos referimos no primeiro capítulo. 107 A este respeito consultar o capítulo A prosa do mundo in As palavras e as coisas de Michel Foucault. 108 José Gil, op. cit., p.60-1. 109 Idem p.60. 110 Idem p.61. 111 Idem p.61.
91 Outro personagem, também oriundo do mundo dos monstros, ao qual podemos associar o bizarro ou o grotesco, surge no mesmo movimento da individuação dos monstros: os freaks.112 É evidente, e já o afirmamos acima, que a existência de pessoas malformadas ou deformadas (segundo nossa expectativa estético-biológica), é um fato que, especulando um pouco, podemos supor nascer junto com a própria humanidade. Os freaks clássicos, tais como anões, gigantes, siameses ou hermafroditas são há muito conhecidos e mesmo a Bíblia faz a eles menção, bastando lembrar a figura do gigante Golias. Do mesmo modo como são antigos, as explicações para a sua existência também o são, cada momento histórico propondo uma teoria, ordens de motivo ou causalidade. No entanto, e na mesma lógica que rege a generalidade dos monstros, a freakologia não é infinita, sendo mesmo não muito criativa. Constantemente, em épocas distantes, temas se repetem, assim como algumas explicações a estes referida. Aristóteles, que por eles se interessou, ao mesmo tempo em que propôs sua própria explicação, fez um levantamento das explicações então já existentes. Para ele os freaks eram lusus naturae: piadas ou brincadeiras da Natureza. Sendo assim, tais criaturas não deveriam ser objeto de horror, mas de divertimento.113 As causas que eram corretamente aceitas na época aristotélica, e por Aristóteles transmitidas para a Idade Média e o Renascimento incluem: traumas intra-uterinos, introjeção de uma quantidade anormal de sêmem (muito ou pouco, dependendo do caso), “impressões negativas” causadas em mulheres grávidas.114 De todo modo, o que aí predomina é um enfoque etiológico. 112
The American Heritage Dictionnary of the English Language, New York, Dell, 1977, p.285: “Freak [...] a person, thing or occurence that is abnormal or very unusual [...]” Comumente: pessoas com graves deformações corporais (anões, gigantes, siameses, etc). Veremos que o campo de aplicação deste termo flutua e se alargará sensivelmente na segunda metade do século XX. No âmbito deste texto, em função da não existência de uma palavra em português que satisfizesse a especificidade de seu uso e sentido na língua inglesa, optamos pela manutenção do termo em inglês. 113 O que de fato aconteceu no decorrer da nossa história tendo sido o circo, especialmente o dos séculos XVIII e XIX seu ponto de auge como show e diversão. 114 É curioso observar que o senso comum é quase aristotélico em algumas de suas manifestações conservadoras em torno das quais ditam as condutas: os desejos das mulheres grávidas que devem ser atendidos para que o feto tenha sua perfeição preservada ou as imagens que lhes devem ser poupadas teriam nesta ordem de causas sua explicação.
92 A Igreja ofereceu explicações que apontam menos para uma etiologia e mais para a compreensão de um sentido para a existência dos freaks, numa espécie de teleologia. Assim, o nascimento de um freak pode ser interpretado de várias maneiras: em primeiro lugar, pode tratar-se de uma manifestação concreta da ira de Deus. Em segundo lugar, os freaks podem funcionar como uma espécie de lembrança de que todo e cada nascimento é um milagre tão dependente da intervenção divina quanto a criação original. Por último, os freaks podem ser uma espécie de sinal vivo acerca do futuro, uma profecia encarnada ou um presságio, o que gerou como vimos, problemas para Santo Agostinho e outros teólogos, especialmente em função da assunção da existência de raças fabulosas. Assim: “todas as três razões explicam a existência de “freaks” não etiologicamente; em termos do que os causou, mas “teleologicamente”, em termos da finalidade a que se destinam”.115 Mais ou menos no final do século XVI, teleologia e etiologia se combinam em algo que pode ser, em certa medida, designado como uma “Teratologia standard”116 Uma das obras mais importantes dessa época é, sem dúvida, Monstres e Prodiges, de Ambroise Paré, onde são listadas treze causas para os nascimentos dos freaks e que assim Paré enuncia: “A primeira é a glória de Deus. A segunda, sua indignação. A terceira, uma quantidade muito grande de sêmen. A quarta, uma quantidade muito pequena. A quinta, imaginação. A sexta, útero estreito ou pequeno. A sétima, a impropriedade da maneira de sentar da mulher que, enquanto grávida, permanece sentada por muito tempo com suas pernas cruzadas ou pressionadas contra o estômago. A oitava, por quedas ou golpes contra o estômago da mãe durante a gravidez. A nona, por doença hereditária ou acidental. A décima, por deterioração ou decomposição do sêmem. A décima primeira, por mistura ou mescla de sêmem. A décima segunda, pelo ardil de mendigos errantes. A décima terceira por demônios ou diabos”.117
115
L. Fiedler, Freaks: myths and images of the secret self, New York, Anchot, 1993, p.290. Idem p.291. 117 Idem p.233. 116
93 Por outro lado, há uma longa tradição remontando a Hipócrates que atribui uma das origens dos monstros (freaks) aos “apetites” desregrados das mulheres grávidas, entre os quais aparecem o incesto e o canibalismo, “o desejo de comer a carne do belo rapaz”, e que vai até o século XVIII. Contemporânea do tratado de Paré, realiza uma associação interessante: na anomalia física posta a descoberto, visível para todos, aparece a “sujidade moral” da mãe, que alimentou o embrião. Vejamos o texto de Pierre Boaystuau: “Algumas crianças nascem tão extraordinárias e disformes que nem parecem homens, mas monstros ou abominações; alguns nascem com duas cabeças, quatro pernas [...] “Outros nascem cegos, outros surdos, outros nascem débeis ou defeituosos dos membros, sentindo-se por isto tristes os amigos, culpadas as mães, envergonhados os pais: de modo que se considerarmos atentamente todo o mistério da nossa natividade, depararemos com o provérbio antigo que diz: Somos concebidos na imundície e fedor, paridos com tristeza e dor, alimentados e educados com angústia e labor”.118 Aí o monstro é testemunho vivo do desregramento não apenas da natureza, que ele expõe, mas da cultura, na medida em que esta se revela incapaz de resistir à natureza de uma natureza “crua” no mundo dos homens. Nos contos populares este nascimento monstruoso, que é um tema quase universal no folclore, recebe um tratamento purificador: no final a criançamonstro, sempre um menino, adquire uma forma humana, perdendo o seu caráter de animal (o freak aí é um monstro híbrido: criança-porco ou criançasapo), a partir do casamento com uma moça, que não tendo os desregrados apetites da sogra, resgata-o para uma adequação entre sua alma própria e seu corpo, liberando-o de ser o duplo da mãe. Esta fabulação figurativa da monstruosidade, apoiada na relação podridão da mãe-contaminação do embrião, tem por objetivo a remissão para o conjunto de ritos e técnicas sociais que devem ser cumpridas para manter o desejo socialmente integrado. É preciso cumprir os rituais para que a
118
Pierre Boaystuau, Le théatre du Monde ... Antuérpia, 1553, p.48-50 apud José Gil op. cit., p.92.
94 monstruosidade desapareça, o que significa que ser humano, isto é, aparecer e ser reconhecido como tal, implica na submissão às regras da cultura. Podemos assim afirmar que é gerando em si um duplo cultural que o corpo, carne, ganha sua pele própria, o que indica que são as leis da cultura que o regem, nesse contexto cultural, desde o seu princípio de aparição. Além de existentes, fabulados, merecedores da curiosidade teológica e científica, os freaks precisam ser exibidos. Pensados como anormais, excepcionais, qualitativamente distintos porque resultados de uma falha ou quebra nas regras usuais de operação da natureza, eles são vistos pelo homem normal (pelo menos o que é assim considerado) com um misto de horror e pena, mas sempre encarados como "de outra ordem", frutos de uma outra causalidade. Em nenhum momento este homem se reconhece no freak, mas talvez só tenha a possibilidade de se reconhecer como "normal" porque o freak lhe serve de parâmetro para a alteridade. "A exibição dos "freaks" existe, é claro, desde a Antiguidade, e como outras práticas pagãs foi revivida na Europa durante a Idade Média".119 Inicialmente os freaks eram exibidos em suas casas e nas cortes dos príncipes. Eram exibições estritas. Foi a Igreja, e pode-se bem compreender o poder didático que ela compreendia poder realizar, que, lentamente, começou a aumentar as audiências a que eram expostos, exibindo-os em "dias festivos e sob solo sagrado".120 No entanto, vale lembrar: os freaks não se constituem em atração pública naturalmente e será apenas após a restauração inglesa (1660) que passarão a ganhar notoriedade como atrações. Neste momento formam uma categoria que dispõe de certa flexibilidade para acolher self-made freaks, que englobam estrangeiros assim como homens e mulheres tatuados. "As apresentações étnicas também são incontáveis, seres de todas as cores, de aldeias negras, indianas, árabes ou outras [...] Isso sem esquecer as mulheresgirafa, asiáticas que tinham o pescoço com pelo menos 25 cm de comprimento
119 120
L. Fiedler, op. cit., p.279. Idem p.280.
95 encerrado dentro de anéis de cobre".121 Será o início do freak show, cujo ápice se dará no século XIX marcando de maneira mais do que sugestiva a nossa relação com a alteridade. Voltemos um pouco ainda no tempo, pois é possível compreender melhor as linhas que se cruzaram e os agenciamentos que se produziram para que o show-circo e os seus sucedâneos contemporâneos, entre os quais a TV e o cinema tivessem constituído esta relação com a freakologia. Buscaremos, por escolha e influência dos textos que nos servem de base, dois momentos, ou melhor, dois acontecimentos de origens diversas. O primeiro nos é apresentado por José Gil122, quando este, retomando a célebre análise de Michel Foucault do quadro Las Meninas de Velasquez, que inicia As Palavras e As Coisas, mostra que Foucault não menciona a presença de um anão em primeiro plano do quadro. Conhecemos a análise do quadro e seria redundante repeti-la, mas, para Foucault, aí se mostram as próprias leis da concepção da representação, uma "representação da representação". Referindo-se às origens da representação pictórica renascentista e a uma de suas leis, a perspectiva, Gil afirma que o anão Pertusato parece troçar dela. Se estivesse no plano de fundo ou em segundo plano, seria confundido na minituarização que a perspectiva impõe, muito perto do olhar do espectador. À frente de todos os outros personagens - salvo o do rapaz à direita - parece inverter a perspectiva: sua altura é a mesma da infanta em segundo plano e é menor que as aias e que o pintor que ainda está mais afastado. Neste lugar "o anão descentra ligeiramente a ordem do quadro e toda a organização da representação".123 Mais ainda: sendo o de menor tamanho, é o que tem o rosto mais pormenorizado, com sombras e claridades, expressão nos lábios e no olhar, o que não acontece com o rapaz que está no mesmo plano. Nisto consiste sua monstruosidade, na desproporção que a análise pictórica geometricamente executada não pode resolver harmonizando as partes: pois ele possui uma
121
Idem p.328. José Gil, op. cit., capítulo Representação, p.65-74. 123 José Gil, op. cit., p.66. 122
96 cabeça desproporcionada, uma corcunda excessivamente proeminente, pernas demasiado curtas. Seu crânio, mais volumoso que das outras personagens, faz com que o rosto adquira detalhes também desarmônicos: assim, o monstro nega as leis da representação que consistem em negar o real que deve ser controlado e "devolvido" segundo a veracidade das leis da perspectiva. "O monstro nega estas leis e surge como aquilo que é preciso por sua vez negar para que se instaure o reino da representação".124 O monstro teratológico do século XVI funciona também em outra direção, no que se relaciona com o saber científico e que fala da grande transformação da ordem cultural, quando esta abandona o mundo da similitude e da assinatura para a "Idade da Representação". No lugar das relações de sentido hierarquizadas que o sistema de classificação medieval fornecia, criando redes de realidade e de sentido, a nova regra é que o objeto por menor que seja, deve ser apreendido através de sua representação individualizada; a própria separação do objeto de suas redes de relação é a nova condição do seu conhecimento. Este momento, ao qual José Gil se refere como sendo o da descontextualização terá, nos monstros e nas coleções heteróclitas que o vão caracterizar, uma espécie de ensaio preparatório para as futuras taxinomias que farão dos grandes quadros representativos o lugar privilegiado de produção de seus enunciados. Na mistura de etiologia e teleologia que apresentamos na explicação do surgimento dos monstros por Ambroise Paré, este aspecto heteróclito já comparece, ainda que subsumido à associação de duas lógicas. As primeiras coleções, como os primeiros museus, serão o lugar de consagração desta descontextualização. Assim, encontramos inventários de museus onde se vêem reunidos elementos díspares como fósseis e restos de seres monstruosos, objetos incomuns tais como os que figuravam no museu de Copenhagen ainda em 1696: "um fígado seco; a orelha de um elefante medindo três pés e meio por dois e meio; sandálias feitas com pele humana; cabelos com pele arrancados por uma mão colérica; unhas monstruosas de um adolescente de Copenhagen; a mão 124
Idem p.67.
97 peluda de um selvagem da Índia; duas mãos de uma sereia; uma pedra proveniente de um rim humano pesando 12 libras e meia; um feto petrificado carregado no ventre durante 28 anos; embriões do tamanho de uma polegada e sete polegadas; uma salamandra e vários bezoares, tanto orientais como ocidentais".125 Relação que, no seu conjunto, não se afasta da "certa enciclopédia chinesa"126 de Borges que, do riso que provocou em Foucault, fez nascer o interesse com "o encanto exótico de um outro pensamento"127 e, para nós, Les Mots et Les Choses. A descontextualização favorece a mirabilia porque é extremamente enriquecida pelas descrições de uma literatura abundante que a tudo descreve e pelo relato dos viajantes que trazem para o Ocidente os encontros com os Novos Mundos.128 Os monstros têm algo em comum com estas coleções: do mesmo modo como estas reúnem objetos fora de qualquer classificação, eles são seres que fogem às categorias da taxinomia. Ao mesmo tempo, reunindo em si características que não podem coexistir numa espécie ou que não concordam entre si, porque reúnem gêneros que se excluem ou porque não têm origem em nenhuma espécie conhecida, o monstro é, ele mesmo, uma coleção de traços fora do contexto, aparecendo como "uma espécie de paradigma vivo destes museus do século XVI".129 Descontextualizados
na apreensão, os
elementos
são tornados
homogêneos pelo pertencimento à coleção que, reunindo o heterogêneo, o heteróclito e os justapondo, estabelece um lugar para cada objeto isolado. Assim se constrói a aposta de um olhar científico capaz de abarcar e justapor toda a superfície do mundo. "Este torna-se teatro onde se representa e
125
apud José Gil, op. cit., p.61. Michel Foucault, As palavras e as coisas, Prefácio, p.5. 127 Michel Foucault, As palavras e as coisas, Prefácio, p.5. 128 Numa entrevista realizada por Bernard Pivot com Claude Lévy-Strauss em 1983, divulgada pela televisão, Pivot perguntou ao antropólogo como ele via as viagens espaciais e a chegada do homem à lua. Levi-Strauss respondeu que achava interessante mas muito menos impactante que a chegada de Colombo na América, encontrando outros povos, outra fauna, outra flora, enfim um "maravilha populosa". 129 Jose Gil, op. cit., p.72. 126
98 continuará a representar-se ao longo dos séculos XVII e XVIII o estranho cenário dos fenômenos".130 O fascínio pelos monstros, sempre presente e sempre especial, pode aí ser pensado como uma teatralização, um show vivo da reunião do que não se reúne. Pode-se prever que quando as taxinomias se tornam vitoriosas e se afirmam a partir de novas categorias lógicas, os monstros e os freaks perderão o seu estatuto de "mirabilia" para serem olhados por outra relação de saber e de poder. Vejamos então o que se passa no século XVIII: da curiosidade e do assombro, desde sempre peculiares à Europa em relação à existência de seres aberrantes nas regiões distantes do planeta, relatos de viagens se sucedem, trazendo à luz problemas novos para a classificação oficial, como vimos desde a carta de Caminha século XVI em relação à humanidade do índio. Lineu, em 1755 intervém nesta nova contextualização através da publicação do seu Sistema da Natureza, introduzindo a nomenclatura binária que engloba gênero e espécie. Entre os "objetos" que aí ele classifica, notamos a presença, entre outros, do Homo monstrosus e do Homo Ferus. O que indicam estas presenças? Fiedler assim responde: "A inclusão da humanidade, selvagem e civilizada, monstruosa e normal, no mesmo sistema taxionômico pode ter servido então para desmistificar "monstros", mas o fez ao preço da criação de uma mitologia individual da raça".131 Assim, é no momento em que se procura normalizar o anormal, inserindo-o na "ordem natural das coisas", que uma outra (e perigosa) mitologia se estabelece, onde, de maneira racista e dogmática, o anormal (onde o freak se inclui) aparece como o outro do europeu, branco, macho. Deste modo, um iluminista como Voltaire, embora questione a autoridade do Rei e da Igreja, diz o que se segue: "o homem branco está para o negro, como o negro está para o macaco, e como o macaco está para a ostra".132
130
Idem p.73. L. Fiedler, op. cit., p.231. 132 apud L. Fiedler, op. cit., p.240. 131
99 Surge a mitologia da raça, de uma raça em radical alteridade em relação à raça branca, que, de maneira indireta, vai influenciar o modo de percepção do fenômeno freak com seu tipo particular de monstruosidade. O freak aparecerá associado, de maneira indireta, quase como caso individual, deste outro racial. "O antigo mito europeu de freaks estrangeiros situados nos confins da terra, quando cruzado com o mito da evolução, dá a luz a dois outros mitos que influenciaram profundamente nossa noções do que significa ser humano [...]".133 Estes dois novos mitos são: o mito do elo perdido e o mito de uma involução, como se os filhos de nossos filhos pudessem criar, no futuro, um elo perdido que não pode ser localizado no passado. Uma criança mal formada é quase a encarnação de uma degeneração da raça neste novo discurso que se interessa pelos monstros. O evolucionismo fundou assim, para além da ferida narcísica provocada por Charles Darwin, no meio do século XIX, a mitologia da raça branca, que pode ser associada à mitologia do homem moderno, o qual se vê, nos seus parâmetros
de racionalidade européia, como
o ápice na linha de
desenvolvimento e de evolução das espécies. Duplo movimento constituidor da experiência do século XIX e que não parece ter nos abandonado tão completamente, embora seja do próprio lugar da crise do mito do homem moderno que possamos pensar, hoje. O primeiro concerne ao novo discurso sobre o monstro: o que constitui o que podemos chamar de "teratologia moderna". Esta começou por suspeitar das explicações até então correntes para o surgimento dos freaks. A ambição científica precisa livrar-se de todas as referências a Deus para tratar racionalmente a natureza a fim de poder, a partir deste novo conhecimento acumulado, intervir nas suas manifestações e nos seus domínios. Assim, se Paré reúne causas seculares e sobrenaturais para o surgimento dos freaks, num comportamento próprio ao século XVI, o quadro que se desenhou no século XIX estimulava o total abandono das causas não-científicas. Teratólogos como Geoffray Saint-Hilaire, autor de Histoire Générale et
100 Particulière des anomalies de l´organisation chez l´homme et les animaux, cujo subtítulo era Traité de teratologie, publicado em 1832134, diz que as causas para o aparecimento dos freaks eram relacionadas à membrana amniótica, à interrupção no desenvolvimento do feto ou a doenças embrionárias, explicações totalmente circunscritas ao domínio da medicina. No entanto, embora logicizados discursivamente, isto não produziu uma recepção naturalizada dos freaks na cultura. O que a teratologia fazia, ao contrário, apenas afirmava a monstruosidade daqueles seres, que eram classificados como anomalias, anormalidades, desvios. A ciência corroborava, portanto, a alteridade dos monstros. O segundo movimento, em tudo complementar, que descreve a experiência do século XIX, é o próprio mito da modernidade e, a ele acoplado, o mito do homem moderno já que a modernidade "considera a história humana como um progressivo processo de emancipação, como a cada vez mais perfeita realização do homem ideal".135 Neste quadro, de natureza claramente evolucionista, ganha sentido a definição proposta por Vattimo: "a modernidade é a época em que se torna valor determinante o fato de ser moderno",136 pois o sentido natural da história é o progresso cada vez maior. Sendo assim, terá sempre mais valor o que estiver mais perto do final do processo, o que gera um imperativo lógico - o novo é o que deve ser festejado, o intolerável é que ele não surja; e um imperativo ético: sejamos modernos, busquemos a vanguarda. A modernidade se apresenta como a experiência da desmistificação. É preciso libertar o homem de suas crenças, ou seja, torná-lo realmente humano no espaço de um projeto racional. No entanto, talvez pelo seu próprio empenho na desmistificação, a modernidade acabará por engendrar seus próprios mitos, que são os mitos da razão e do seu progresso. Esta relação do mito do homem moderno com as idéias de razão universal e progresso histórico vão criar as condições dentro das quais os freaks 133
Idem p.241. apud L. Fiedler, p.250. 135 Gianni Vattimo, A sociedade transparente, Lisboa, 1993, p.8. 136 Idem p.7. 134
101 (cientificamente
explicados)
serão
percebidos
pelo
homem
moderno.
Estabelece-se um jogo opositivo que põe, de um lado, o homem moderno, efeito da consciência moderna; de outro, o freak como outro deste homem, como desvio e alteridade que, enquanto tal, forneceria a garantia para a estabilidade do jogo. Como nos aponta Deleuze, existem: "dois corolários de uma doutrina da razão universal: a necessidade utópica de invocar uma cidade ideal, ou um Estado universal de direito [...]; a necessidade apocalíptica de assinalar um desvio, uma alienação fundamental da razão que se teria produzido de uma vez por todas e reuniria num só golpe toda a evidência ou o não humano".137 Para que esta dialética do mesmo e do outro funcionasse era preciso afastar o monstro, pô-lo à distância e reintroduzi-lo no discurso cotidiano: ele será transformado numa curiosidade (de feira), reapropriado como show que, ao mesmo tempo em que exibe a alteridade, o transforma num fator libertador da angústia porque reordena as relações entre os homens "Os homens precisam de monstros para se tornarem humanos".138
III.3. OS FREAKS-SHOWS
Agora o lugar do monstro, do freak, do bizarro, serão o circo e a feira. Não parece ser possível determinar exatamente quando os freaks começaram a ser exibidos; o registro de seu aparecimento nas feiras menciona apenas o período elizabetano. Já nos referimos às antigas exibições restritas às cortes ou organizadas pela Igreja. Mas o fenômeno que será a exibição - freak nos locais de comércio, como show e entretenimento, terá o seu auge no século XIX. Eram grandes feiras, como a Bartholomew Fair, suspensa em 1840, onde se concentravam em
137
Gilles Deleuze, Périclès et Verdi, la philosophie de François Châtelet, Paris, Minuit, 1988, p.18. 138 J. Gil, op. cit., p.88.
102 um único lugar atrações que durante o ano inteiro permaneciam expostas, espalhadas pela cidade. Naquela época "o gosto por monstros tornou-se uma doença".139 É curioso contudo e parece corroborar a relação que propusemos entre o museu, a coleção e o monstro que aquele que ficou conhecido como o grande gênio da exibição pública dos freaks fosse P.T. Barnum. Sua carreira começara com a formação de um pequeno museu, concebido para expor curiosidades: o American Museum. Em 1865 este museu é destruído por um incêndio e, neste momento, Barnum abandona o ramo fixo dos museus e concebe uma espécie de circo, que batiza com o sugestivo nome de "O maior show da terra". No centro deste "maior show da terra", o que ocupa o lugar de destaque será a exibição de figuras estranhas, os freaks. Após a sua morte e o declínio de seu circo, os freak-shows ainda persistem, por algum tempo, numa fórmula curiosa: são shows menores, em cidades pequenas ou médias onde o número de atrações é exato: "o mágico dez".140 Aí se incluem: anões, gigantes, mulheres barbadas, mulheres gordas, esqueletos ambulantes e outras atrações menos comuns no clássico freak-show, tais como homens e mulheres tatuados, falsas sereias e até mesmo parentes de criminosos famosos. No nosso século XX, o cinema tomará o lugar dos freakshows que serão condenados ao desaparecimento. É interessante perceber que sua exibição seguia uma lógica: como atrações de um show-circo, as anormalidades humanas ganhavam um duplo estatuto: ligadas ao bizarro que sua aparência expunha e ao insólito por suas particularidades incomuns eram resgatadas pela própria idéia de show. Assim, o espanto e a surpresa que poderiam produzir eram domesticados, já que era a própria estranheza que o espectador buscava quando ia ao circo. Tornavam-se a exibição do desvio num novo espaço de norma, resgatando, em certa medida, a expressão de brincadeiras da Natureza que Aristóteles havia proposto para sua recepção.
139 140
L. Fiedler, op. cit., p.280. L. Fiedler, op. cit., p.280.
103 Fiedler, no livro que tanto citamos, descreve assim a exibição clássica: "as anormalidades humanas do show não são mostradas em nosso nível - o nível da realidade e da rua do lado de fora. Na maioria das vezes ficam de pé contra uma cortina, numa plataforma, para onde devemos olhar".141 Pertencem assim ao primeiro grupo de freaks classificados por Jacques Garnier142 que são os que se contentam em oferecer-se ao olhar do público. O segundo grupo refere-se aos que participam do espetáculo, apresentando um número: "enfiar pregos em seus corpos, quando esta é a única desculpa para estar no show, ou acender cigarros com fósforos seguros entre seus dedos ou entre as bochechas e o pescoço se são Maravilhas-sem-braço ou Garotos-foca".143 Os dois casos ressaltam a alteridade ligada às imagens destes monstros. Os freaks do primeiro grupo enunciavam algo como "vejam-nos, notem-nos porque somos diferentes de vocês". Os do segundo grupo, indo além, articulavam o insólito ao grotesco, espantando os que os viam pelo modo como concebiam e exibiam funções, às vezes comuns, tornadas curiosas porque seus agentes eram seres tão incomuns. Neste processo, tudo é concebido e montado para que o visitante espectador se veja num mundo à parte, em tudo diferente de seu universo cotidiano. Portanto, no mesmo movimento, produzia-se a oposição entre o cotidiano e o espetáculo-freak e entre os habitantes dos dois mundos. Um encontro que era também um confronto entre duas imagens, o inglês vitoriano, branco e racional, consciente de si mesmo como ligado ao progresso da raça e da razão; e seu outro, irracional, anormal e materializado. O efeito obtido só podia ser uma espécie particular de catarse que, a partir da exposição desta radical alteridade, espurgava o homem moderno de seus "fantasmas" reafirmando para ele sua própria modernidade. Situando desse modo a anormalidade, a alteridade e a deformação no que se dá a ver no freak-show, o homem moderno não teme encontrá-la no seu interior e assim se reafirma e se acalma. Apropriando-se do outro pelo 141
L. Fiedler, op. cit., p.283. Jacques Garnier, Numéros insolites - Le grand livre du cirque, Genebra, Edito Service, 1977. apud Sergio Benevides, Cartografia do monstro, ECO-UFRJ, Miméo, 1996. 143 L. Fiedler, op. cit., p.283. 142
104 espetáculo produz a familiarização do diferente e a sua discriminação. Sem muitos sustos, já que o que acontece no show é amplamente divulgado antes dele. Esta dinâmica sofrerá importantes mudanças no século XX. De início, como já mencionamos, o cinema exterminará o circo-show, assumindo o lugar do espetáculo por excelência, associado, depois dos anos 50-60 à televisão e sua comunicação do grotesco, ainda freqüente nos programas de auditório “politicamente incorretos”. Mas as mudanças ocorridas no século XX trarão outra e nova relação para a questão dos freaks. Ao lado das figuras dos freaks tradicionais, surgem novos corpos desviantes, novas práticas de intervenção nos corpos que se utilizam da estética do bizarro como forma de se opor à norma. Comportamentos "de circo" se expandem para um certo cotidiano particular como as tatuagens, os body-piercing, e outras marcações corporais que demandam agora uma outra análise de sua produção e recepção.
III.4. O MONSTRO IMAGINÁRIO DE MARY SHELLEY
O mito moderno do progresso do mundo, da razão e do homem, acompanhado da necessidade de controlar a natureza, afirmando a absoluta superioridade da cultura, fez do séxulo XIX e de sua descendência, na qual nos incluímos, o universo da aposta na ciência e em sua filha dileta, a tecnologia, como o que poderia, ao mesmo tempo, controlar o presente e produzir o futuro. Conhecer as leis que regem os fatos determinados foi sempre o objetivo da ciência, entendido como a possibilidade de, para além de prever com certa margem de segurança o que pode acontecer, poder intervir concretamente no que efetivamente acontece. Assim, a era da técnica, na qual ainda estamos mergulhados, agora com sua com sua lógica própria - tecno-logia - construiu-se sobre as bases do discurso racionalista, evolucionista e cientificista do século XIX. Propôs a ultrapassagem do conhecimento das causas de determinados
105 processos naturais para a tentativa de dominá-los, a ponto de poder reproduzir uma natureza, não por processos mágicos mas a partir da intervenção racional e científica. Este mito do poder da técnica, que ainda embriaga nossa contemporaneidade e que legitima e incensa nossas universidades, laboratórios, centros de pesquisa etc, não se fez presente apenas nos espaços a ele diretamente consagrados. Acompanhou nosso imaginário e nossas fabulações e, correndo o risco das escolhas que precisam abrir mão de certos antecedentes, talvez tenha feito sua primeira e mais visível aparição no célebre romance Frankenstein or the modern Prometeus, escrito por Mary Wollstonecraft Shelley e publicado, pela primeira vez, em 1818. O nascimento do livro, conforme nos relata a autora na apresentação e no prefácio, foi cercado por duas motivações particulares. A primeira foi um desafio de Lord Byron, de quem o casal Shelley foi vizinho num verão particularmente desagradável climaticamente na Suiça. A proposta era que cada um escrevesse uma história de fantasmas (e o Frankenstein foi a única que efetivamente foi concluída) e, a segunda, foi uma conversa, ouvida por ela, entre seu futuro marido Shelley e Byron sobre a criação artificial da vida e sobre as experiências de um mencionado doutor Darwin - que seria o avô, Erasmus, ou o pai, Robert, de Charles Darwin. Ela nos conta ter-se dedicado a pensar uma estória que tocasse os medos misteriosos da nossa natureza
e nossos horrores mais secretos e mais
espantosos; uma estória capaz realmente de amedrontar. Encontrando a dificuldade que cerca toda criação, considerou que tudo deve ter um início e que esse início deve estar ligado a algo que já existiu antes. Portanto: “Inventar, deve-se admitir humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas sim do caos; em primeiro lugar, deve-se dispor dos materiais; pode-se dar forma à substância negra e informe, mas não se pode fazer aparecer a própria substância. Em tudo o que se refere às descobertas e às invenções, mesmo aquelas que pertencem à imaginação, lembramo-nos constantemente da estória
106 do ovo de Colombo. A invenção consiste na capacidade de julgar um objeto e no poder de moldar e arrumar as idéias sugeridas por ele”.144 Foram também dois os seus pontos-de-partida: considerar que o fato em que a ficção se baseia - a criação da vida artificial no laboratório - embora parecesse quase impossível como fato físico naquela época, proporcionava o ponto-de-partida para compreender as angústias e as paixões humanas, entre elas a tensão com a natureza, e o controle sobre a vida e sobre a morte, de modo mais visceral do que aquele provocado por acontecimentos reais. Sua segunda alavanca foi o que ela apresenta como os princípios elementares da natureza humana, presentes na Ilíada, em Shakespeare, (especialmente na Tempestade e em Sonhos de uma noite de verão), e, mais radicalmente no Paraíso Perdido de Milton, por ela concebidos como capazes de receberem novas combinações sem perderem seus traços originais. A epígrafe do livro indica sua inserção: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro Me fizesses homem? Pedi para que Me arrancasses das trevas?” (O Paraíso Perdido X, 743-45)
O livro conta a história de Vitor Frankenstein, um jovem cientista que criou, a partir de retalhos de corpos mortos, um monstro dotado de vida. Mas Mary Shelley parece ter antecipado, ao fazer do monstro criado um ser com referências tão pouco estáveis e definidas, questões que se tornariam fundamentais, mais de um século depois, para as nossas reflexões. O corpo do monstro, de proporções gigantescas: dois metros e quarenta e músculos muito ágeis, construído como uma colcha de retalhos de pedaços de outros corpos, sem memória e sem nome, criava uma vida de identidade impossível.
144
Mary Shelley, Frankenstein, Porto Alegre, L & PM, 1997, p.9.
107 Sua existência, absurda e anônima, negava-lhe a possibilidade de autoreferência, nenhum signo (nome) o tornava idêntico a si mesmo; seu corpo, fora de qualquer princípio de reconhecimento também não lhe permitia realizar o processo identitário. Nada lhe servia de modelo, “[...] Eu carregava, além disso, uma figura horrivelmente deformada e repugnante; eu não era sequer da mesma natureza que os homens. Era mais ágil do que eles e podia sobreviver com uma alimentação mais rudimentar; suportava extremos de calor e frio com menos prejuízos, minha estatura em muito excedia à deles. Quando olhava em volta, não via nem ouvia falar de ninguém como eu. Era eu então um monstro, uma mancha sobre a terra de que todos fugiam e todos rejeitavam? [...]”.145 Para aquele ser espantoso, a única referência era o seu criador; o monstro reconhecia no cientista o seu pai. Mas este o havia abandonado. “Lembra-te que fui criado por ti; eu deveria ter o seu Adão, porém sou mais teu anjo caído, a quem tiraste a alegria por algum crime cometido. Por toda parte vejo reinar a alegria da qual estou excluído. Eu era benévolo, bom; a desgraça tornou-me um demônio. Faze-me feliz e voltarei a ser virtuoso”.146 Mais do que isto, o criador abominava sua criação: “Maldito criador! Por que você fez de mim um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim, repugnado? [...]”.147 Assim, o que o monstro queria, perdido o paraíso que nunca conheceu por carregar no corpo o signo do grotesco, era a possibilidade de uma referência, de um afeto, e por isto ele pede ao pai que crie uma mulher para sua companheira,
alguém
com
quem
ele
possa
construir
identidade
e
reconhecimento. Diante da recusa de Frankenstein, o monstro se vê preso ao próprio dilema: por ódio deve perseguir o pai, mas a morte deste anularia seu único referencial. Inicia então uma perseguição implacável ao seu criador, exterminando aqueles que com ele, amorosamente, relacionam-se e cortando assim as amarras afetivas daquele que o produzira. Perseguir o cientista dava ao
145
Mary Shelley, op. cit., p.136. Idem p.116. 147 Idem p.151. 146
108 monstro um objetivo, embora matar o criador anulasse sua única referência. Perseguir o monstro dava ao cientista, para quem todas as vidas amadas tinham sido ceifadas, a única motivação diante das perdas e da culpa. O monstro surgira na euforia prometéica do jovem cientista. Representava a superação pela técnica do enigma da vida. No entanto ele se transforma no signo da morte, o que nos permite pensar que Mary Shelley antecipou a imagem da vitória da técnica produzindo a crise da referência a partir da intervenção técnica no corpo, a relativização das fronteiras sujeito/objeto e a hibridização homem-máquina como a perda das tradicionais identidades e afetos culturais
III.5. DO FRANKENSTEIN AOS “NOVOS FREAKS”: UM PROCESSO DE ABSORÇÃO
O monstro de Mary Shelley enunciava o imaginário da intervenção da técnica no corpo. A horrível criatura assinalava, no mesmo movimento, o fascínio pelo progresso da ciência e o pânico gerado por suas possíveis vitórias no embate contra a natureza. Seu drama, a ausência de identidade, fazia dele um personagem quase trágico (o que se torna impossível pelo seu aspecto grotesco); a hibridização homem-máquina que ele antecipa, mas que nele marca a impossibilidade de identidade cultural, sofrerão uma considerável transformação. Nos 150 anos que separam o texto de Mary Shelley do emblemático ano de 1968, o que se modificou mais consistentemente não foi a assimilação do monstro, ou do “freak”, na nossa cultura. Podemos dizer que, ao mesmo tempo, o mito da interferência da técnica modificou-se com o progresso da ciência. Do monstro que era o preço da intervenção na vida e na morte, chegamos ao cyborg (cyber-body), totalmente desprovido do caráter de monstruosidade. Mas podemos também afirmar que o que perdeu seu caráter paradigmático foi o próprio princípio de identidade moderno, que ele requeria como seu paraíso perdido. Neste sentido, somos todos exilados deste Éden.
109 Já nos referimos antes ao fato de que a modernidade foi construtora de mitos: o mito da razão universal e da história única, cuja associação configurava o mito do progresso universal: a afirmação absoluta do saber universal na apreensão e na ordenação do mundo. Associada à formação do Estado Moderno Capitalista, a noção de corpo gerou a premissa de que o corpo social não era o corpo de uma única pessoa (como havia sido o do monarca) mas se alastrava entre os membros da sociedade. O corpo individual, portanto, tinha que obedecer às normas do corpo social, o que, evidentemente não acontecia com a criatura do Doutor Frankenstein. Se, na literatura, o corpo individual era reconhecido e incensado, na vida cotidiana da sociedade moderna foi necessário produzir normas de submissão destes às normas sociais. Criaram-se meios de confinamento para moldar o corpo, gerando o que conhecemos como sociedades disciplinares e que são a escola, a fábrica, etc. Neste contexto, tornou-se lógico e necessário investir sobre o corpo das crianças, dos trabalhadores, dos soldados etc, para proteger e guardar o corpo social e este investimento caracterizou-se por exercícios físicos, ginástica, a busca do corpo sadio, direcionado pela disciplina para o trabalho. Criou-se assim uma forma de assepsia, uma pasteurização, para impedir que o corpo social adoeça. E, como vimos no capítulo precedente, “contagie” a economia e a política. No entanto, o próprio investimento sobre o corpo individual deu a este uma visibilidade que ele não possuía.148 Será exatamente em torno deste dar-se a ver que, à crise das grandes narrativas que construíam o espaço de pensamento e expressão da modernidade, corresponderá uma espécie de fracionamento do corpo social homogêneo, construído abstratamente pelo discurso da disciplina e pelas práticas da vigilância. Do “corpo social” que internalizava as normas e as manifestava, veremos surgir novos corpos, que irão para as ruas, nas décadas de 60 e 70, demonstrando o surgimento de “novos
148
No capítulo anterior procuramos mostrar como a questão da “conquista” do espaço privado e do corpo individual, privado e próprio representou um longo processo entre o fim da Idade Média e o século XIX.
110 sujeitos da história”, ou, pelo menos, novos agentes do processo: os corpos femininos e feministas, os corpos hippies, os corpos gays e, pouco mais tarde, os corpos punks, os skinheads etc. Na verdade, o dar-se a ver desses novos corpos, o fracionamento do único que eles expuseram, relacionava-se com um processo mais amplo, que eles, ao mesmo tempo, produziram e expressaram. Sua presença arrogante ao ar-livre, suas palavras de ordem realizavam o que Vattimo considerou como “o momento da desmistificação, aliás, pode considerar-se o verdadeiro momento de passagem do moderno ao pós-moderno”.149 Vimos que a modernidade havia-se caracterizado pela substituição do que era mito (por ela considerado) pela razão e que, neste processo, elaborou a sua posição condicionada por pressupostos acerca da história, única e linear; da razão universal e do progresso que seria o resultado natural da associação entre a história e a razão. Assim, o processo de desmistificação dos mitos, criava, ele próprio, seus próprios mitos: a razão, o progresso, a história, que funcionavam como garantia e horizonte do processo de desmistificação. O que alguns teóricos chamam na esteira de Lyotard de pós-moderno e que outros anunciam como a crise da Modernidade ou a crise do Ocidente, enunciada como a crise da verdade e da representação, a crise das grandes narrativas etc, é o momento onde estes novos mitos são postos sob suspeita e crítica. Em primeiro lugar, como constituindo o horizonte onde o movimento vai se produzir, temos a crise da apreensão moderna do tempo e da história, visível em dois níveis: o primeiro nos movimentos filosóficos que entre os séculos XIX e XX criticaram radicalmente a idéia de uma história unitária, denunciando seu caráter ideológico e teológico e cujos iniciadores seriam Marx e Nietzshe. O segundo para além da crítica filosófica e mais impregnante que o efeito dos textos e dos gabinetes acadêmicos, foi a modificação da experiência concreta e cotidiana do tempo, que se transformou radicalmente a partir dos desenvolvimentos tecnológicos: meios de comunicação, de transporte,
149
G. Vattimo, op. cit., p.49.
111 circulação de informações etc que puseram em declínio, como obsoleta, no próprio cerne da sociedade, a noção de uma história única e sucessiva. No que, aparentemente, devia se desenrolar inexoravelmente numa direção préestabelecida e concebida, surgem fraturas, simultaneidades, múltiplas direções. A crise da razão absoluta é contemporânea e correlata a esta crise do tempo e da história. Nesta via, iniciada por Nietzsche, cuja extensão talvez ainda não tenhamos completamente absorvido, malgrado o esforço de pensadores como Foucault, Deleuze e tantos outros, surgem enunciados como: “Não há razão pura, há racionalidades por excelência. Há processos de racionalização, heterogêneos, bastante diferentes de acordo com os domínios, as épocas, os grupos e as pessoas”.150 Continuando, Deleuze nos diz que tais processos continuamente abortam, escorregam, ficam presos a impasses, mas, também, não cessam de ser retomados alhures, com outras medidas, novos ritmos, outros rostos e que a questão é exatamente, como questão teórica e ética, a pluralidade dos processos de racionalização que contornam, também, pluralidades de processos de subjetivação. Do mesmo modo, toda a crise da ciência clássica, que fornecia o indicador paradigmático de verdade, e que teve como seu ponto-de-partida a presença de Einstein, desembocando nas nossas contemporâneas teorias do caos que falam de indeterminações e imprevisibilidades, concluiu o trabalho de solapar o pedestal da razão única, que, mostrando seus pés-de-barro, entra em processo de descrença, senão mesmo de extinção. Ora a crise da idéia da história, assim como a crise da razão, só podiam ter como consequência a crise da idéia do progresso que era sua associação: a história racional em direção à sua máxima realização: o Estado e o Espírito Absoluto. Não havendo um curso unitário dos acontecimentos humanos, não se pode afirmar que estes caminhem para um fim, que realizem um projeto racional de aprimoramento, libertação e emancipação. Com a queda da tríade razão absoluta, história unitária e progresso, desmorona também o homem que funcionava como ideal da modernidade. Não 150
Gille Deleuze, Péricles et Verdi, la Philosophie de François Châtelet, Paris, Minuit, 1988, p.15.
112 foi por outro motivo que, a partir de Nietzsche e de seu decreto da morte do homem, em seu tempo tão mal-compreendido (ele sabia que era “póstumo”) e demonstrando sua forte influência no pensamento francês pós-60, de pensadores diversos vem os enunciados da perda deste ideal. Escolhendo apenas três, demonstrativos desta apreensão temos: Michel Foucault enunciando que o homem, concebido como sujeito, era um conceito histórico e construído, pertencendo a um particular regime discursivo e não uma evidência atemporal que pudesse fundar coisas como o direito ou a ética universais. Louis Althusser, dizendo que a história, ao contrário do que elaborara Hegel, não era o devir absoluto do Espírito, ou a chegada de um sujeito-substância, mas um processo regulado, que ele chamava de “processo sem sujeito”, o que não autorizava a olhar o humanismo dos direitos ou da ética como algo além de construções imaginárias. Finalmente, Jacques Lacan que, no esforço de subtrair a psicanálise de toda tendência psicológica e normativa, mostrava que era preciso distinguir o Moi, figura de unidade imaginária, e o Sujeito, e que o sujeito não tinha nenhuma natureza e nenhuma substância, dependendo das leis contingenciais da linguagem e da história, sempre singular dos objetos do desejo. Ora: “o fim para o qual a modernidade acreditava dirigir o curso dos acontecimentos era também ele apresentado do ponto-de-vista de um certo ideal de homem, o homem europeu moderno”151 e “o ideal europeu de humanidade revelou-se como um ideal entre outros, não necessariamente pior, mas que não pode, sem violência, pretender valer como verdadeira essência de homem, de qualquer homem”.152 Assim a pós-modernidade revela que o que enformava o projeto moderno de desmistificação eram outros mitos, o que aponta para uma desmistificação que seria, ela mesma, mítica, de onde vem o sentido da expressão desmistificada da desmistificação. Ela se acompanha também da perda das ilusões modernas, o que seria seu aspecto negativo, produtor de questões nostálgicas (mas não impertinentes) como a de Jean Baudrillard: somos ainda capazes de produzir utopias? Pelo 151 152
G. Vattimo, op. cit., p.9. G. Vattimo, op. cit., p.10.
113 aspecto positivo, ela apresenta uma nova possibilidade de invenção de outras formas de existência e sociabilidade que abre lugar a um “ideal de emancipação” que tem, na sua base, a pluralidade e a oscilação, o nãodogmatismo. É evidente que na imensa mudança de contexto que representou a passagem da modernidade à pós-modernidade, se o ideal de homem foi posto sob suspeita, a apreensão dos freaks e da noção mais ampla de monstruosidade, como alteridade do corpo humano, não poderia não acompanhar este processo, e, sendo assim, não poderia permanecer a mesma. Não que se tivesse exterminado, real ou imaginariamente, sua presença ou os seus efeitos. Nossos piores programas de televisão e, ocasionalmente, nossos jornais mais prestigiados, ainda apresentam anões, xipófogas, irmãos siameses etc, como um espetáculo do grotesco com sucesso de público. Mas, na década de sessenta, com o movimento da contra-cultura, um novo fenômeno, em tudo ligado à aparência e a expressão do corpo, terá lugar. Tal movimento pode ser percebido através da análise dos novos sentidos que a palavra freak vai adquirir. Se anteriormente, freak designava uma pessoa que portasse malformações ou deformações, nos anos sessenta toda a contra-cultura começa a se reconhecer como “freak”. Eis a nova definição: “Freaks [...] são membros visíveis de subculturas jovens de classe média, o que inclui uma realidade subcultural em completa descontinuidade com a realidade convencional. Freaks são contra-ambientes ambulantes que ... asseveram o direito ao total controle sobre sua aparência física ou comportamento externo - a total irrelevância da cultura e de normas informais daqueles que operam dentro da realidade convencional ... [...] “Freak” consagra um tipo ideal que abarca o hippie (1965) e novas subculturas de esquerda (1967-?)...”153 Retirando o peso erudito da definição, o que constatamos é uma total mudança do campo de aplicação do termo freak, que, agora, designa toda forma de ser contrária ao establishment como sendo freak. De onde decorre a expressão, constante no cinema, nas histórias em quadrinhos e na nova música
114 jovem freak out, que poderíamos traduzir por “pirar” ou por “viajar” numa alusão evidente às drogas, sexo e violência. O genérico devir-freak154 que acontece junto à explosão do consumo cultural, propiciada pelos novos e velozes meios de comunicação, produzirá uma certa pasteurização, ao mesmo tempo em que realiza uma mistura nos temas relativos aos freaks. Na enorme proliferação de quadrinhos vemos tantos temas ligados aos freaks clássicos: anões, gigantes etc quanto aos novos freaks que se constituem naquele momento: roqueiros, drogados etc. Do mesmo modo, o rock será a música ambiente da nova cultura, convidando a gestos desarmônicos e exagerados e criando tribos particulares: acid-music, technomusic, rock radical etc. E, neste novo universo, surge ainda uma nova espécie: agenciamentos de homem e máquina, que foram consagrados nos filmes clássicos das décadas de 70 e 80, como 2001 - Uma odisséia no espaço e Blade runner. Voltemos um pouco: as atitudes de resistência e/ou desafio passaram a ser exercidas no corpo, acompanhadas, muitas vezes, de marcas visíveis e grotescas. O bizarro passou a significar uma nova postura social, transformando-se numa estratégia de afirmação da diferença mas também de fuga dos sistemas disciplinares. Fiedler nos fornece um vigoroso exemplo: Frank Zappa, líder e criador do Mother of Invention propõe uma espécie de manifesto, encartado em seu album, cujo título é Freak out! “No nível pessoal, Freaking Out é um processo através do qual um indivíduo rejeita padrões de pensamento obsoletos e restritivos, roupa e etiqueta social, para expressar criativamente suas relações com o ambiente imediato e com a estrutura social como um todo ... Queremos que cada um que ouça esta música se junte a nós ... se torne um membro d’As Mutações Unidas .. FREAK OUT! 155 Este processo de generalização convidado, através do qual um enorme conjunto de pessoas começa a se reconhecer como freak, modificando o campo de aplicação da palavra - de pessoa “deformada” a pessoas “normais” se 153
Foss. D, Freak Cultura in Fiedler, op. cit., p.303. G. Deleuze nos mostra em Conversações como o devir pertence às minorias fazendo menção a um devir minoritário que todos teríamos em nós mesmos. 155 L. Fiedler, op. cit., p.311. 154
115 chocando criativamente com a cultura e a sociedade, modificou visceralmente nossa reação “afetiva” do freak: Se antes podíamos imaginar uma balança que oscilasse entre os pratos da repulsão e o da atração, hoje, o que acentua o seu peso, de maneira mais do que considerável, é o da atração. O freak contemporâneo atrai e seduz, não como o fazia (e com menos veemência) no período moderno, quando representava a sedução do outro, da diferença radical encarnada. Agora sua sedução é indicar o que nós somos, todos nós. Um comentário acerca da reação violenta das pessoas aos comics americanos dos anos sessenta é muito revelador: [...] ou seja, também sua consciência profunda foi alterada por uma nova mitologia onde Freaks e monstros representam não mais o Outro mas o Eu secreto”156 Este investimento corporal da contra-cultura corresponderá a uma conseqüente e ardilosa resposta do Capital. Gradativamente começam a alastrarse os meios de controle, nos quais os corpos começam a fazer parte de um sistema social contínuo. Os antigos meios de confinamento que disciplinavam os corpos, transformam-se, alargando-se em contigüidade com o indivíduo. Novos modelos de administração e os novos discursos daí surgidos substituem a fábrica pela empresa, incentivando o empregado a participar desta, já que agora o empregado tem chance de crescer com a empresa, como se, entre ele e o corpo da empresa não houvesse mais hiatos. A empresa deve fazer parte do projeto de vida de seus empregados. Termos como a cultura da empresa funcionam agora como as novas determinações. Deste modo o poder não precisa mais dos seus antigos mecanismos de confinamento, sobretudo porque os sistemas de controle não abandonam nunca os membros da sociedade e, na sua atuação permanente, abrem as portas para a reapropriação do desvio na lógica do consumo. A norma pode ser relativizada e o poder percebe que, a partir dos anos sessenta, não é tão indispensável como se pensava antes, nas sociedade, industriais, um exercício tão rígido, podendo agora se contentar com uma outra forma de aplicação, mais sutil e lucrativa. Os novos corpos, e principalmente aqueles que se produziam contra o establishment eram rentáveis e vendáveis e nesta forma de reapropriação dos
116 novos freaks obtinham-se duas excepcionais vantagens já que, incorporando-os como produto, anulava-se a crítica que eles representavam e, de outro lado, realimentava-se a juventude ao mesmo tempo como categoria e como público para o consumo. Dessa dinâmica complexa surge a industrialização do corpo e do sexo nas suas formas mais desviantes. Este, que antes por ser altamente vigiado, comumente associava-se imediatamente ao campo do grotesco, tal como as práticas sado-masoquistas que se associavam ao couro, metais, chicotes e algemas - que ganharam as ruas e depois as grandes passarelas de alguns dos novos grandes costureiros, e, a partir daí, as capas das revistas de moda, com seus novos manequins andróginos, mutantes, etc forneceram novos modelos de presença corporal e novos padrões de “beleza” e projeção. Novos mitos também são difundidos. Mick Jagger e sua magreza bissexual, Madonna pregando novas formas de amor, Michael Jackson na sua camaleônica e permanente indefinição: nem preto, nem branco, nem homem, nem mulher, nem adulto, nem criança, etc. É também o tempo das tatuagens e do body-piercing que ganham projeção e status no mundo do consumo como intervenções voluntárias que volatizam as noções antigas de atuação sobre o corpo, deslocando as marcações que foram, por algum tempo, o que identificava modos de relação com o corponão-próprio. Precisamos, no entanto, de uma posição crítica. Há ainda uma diferença entre o “freak” tradicional e a absorção do grotesco pela estética dos corpos da segunda metade do século XX. Como já dissemos, anões, xipófagas etc ainda são atrações de TV, exatamente pelo que tem de estranho. Relativizada e absorvida pelo consumo, a norma não desapareceu por completo e não se permite a todos o usufruto desta maleabilidade. É possível absorver o grotesco mas não de maneira total, pois este faz parte dos jogos discursivos onde se constituem, deformam-se e se reconstituem as fantasias do corpo, a cada novo movimento ou nova experiência.
156
Idem p. 308.
117 Nesta presença discursiva, na produção destes jogos que absorvem o bizarro, o grotesco ou o horrendo parte importante da arte contemporânea tem realizado suas experiências e suas reflexões. E talvez não seja outro o motivo do sucesso de artistas como Breuer e suas instalações ou de Sterlarc, ocupando lugares de inovadores e/ou inventores.
III.6. ARTE / CULTURA / TECNOLOGIA
Com certeza podemos pensar a presença da arte e as questões que ela nos propõe relacionando-a com épocas nas quais ela é produzida e que, de alguma forma, ela metaforiza. Não pretendemos imaginar que esta relação esgote o potencial das obras-de-arte, o que seria uma total leviandade para quem acredita na sua relação com “os mundos possíveis”157 Todavia, para efeitos da nossa análise, podemos considerar que em épocas mais conturbadas e tumultuadas, quando as questões mais viscerais vem à luz, como é o caso da nossa atualidade, a arte se tensiona fortemente com as questões morais e éticas. Derrick de Kerckove, o herdeiro mais imediato de Mac Luhan, investigando sobre a nova realidade eletrônica e propondo uma tecnopsicologia que abarque as novas experiências psicológicas geradas pelas novas tecnologias numa nova imagem de humano e de inteligência humana e coletiva
158
afirma:
“Em tempos de violentas convulsões psíquicas, como o nosso, a arte não é um escape, não é uma saída da confusão e da incerteza, mas uma entrada, um postigo para espreitar para a massa da inteligência coletiva, o magma da realidade em construção”.159 Sua proposta é reorientar a relação entre arte, cultura e tecnologia, considerando que vivemos uma realidade que se modifica, cada vez que é
157
Conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari, apresentado mais consistentemente em Qu’est-ce que la Philosophie?, Paris, Ed. de Minuit, 1991. 158 D. de Kerckove, A pele da cultura, Lisboa, Relógio D’Água, 1997, Neste texto Kerckove menciona também Pierre Lévy e seu livro L’Intelligence Colletive, Paris, Ed. de la Découverte, 1994.
118 invadida por uma nova tecnologia. A tecnodependência da realidade o leva a definir a última a partir de uma premissa comunicacional: a realidade seria uma forma de consenso, apoiada pela adesão e pela linguagem das comunidades que a tem como referência partilhada; sua manutenção seria enquadrada pelo principal meio de comunicação usado por esta cultura. É assim que ele contrapõe o mundo e o homem da massa, correspondendo à presença da televisão, ao homem e ao mundo da velocidade, correspondendo à presença dos computadores pessoais e das redes digitais. A passagem de um para o outro teria alterado radicalmente nosso universo perceptivo: da visão, que supõe o efeito dentro-fora, teríamos hoje a presença interativa do sentido tátil. A tecnologia portanto “afeta” o real, invadindo nossa realidade e provocando, na sua leitura, uma absorção rápida e pouco consciente por parte de um público, majoritariamente, tecnofetichista.160 Este público viveria a contradição desta adesão acrítica com as antigas imagens psicológicas que manteria de si mesmo e do mundo, às quais permaneceria ligado, gerando, nessa dessincronia uma época de desassossego. Os artistas, no entanto, seriam a antena consciente, questionando os efeitos das novas tecnologias não de um ponto-de-vista politicamente ingênuo mas na própria atuação psicossomática. Recuperando os efeitos das novas presenças tecnológicas que aparecem no horizonte de marketing tais como computadores, sistemas interativos, multimídia, realidade virtual etc, eles elaboram as perguntas que nos faltam, demonstrando parcialmente as respostas nelas embutidas. “Quem somos nós? Que é que esta máquinas estão a nos fazer? Que reflexões nos devolvem sobre nós próprios? Como é que estão a transformar a imagem de quem nós ainda pensamos ser?”161 Suas respostas, ao contrário da presença das novas tecnologias, teriam o efeito de provocar espanto, reprovação e resistência por parte da crítica do meio artístico, assim como por parte do público fruidor.
159
Kerckove, op. cit., p.229. Eu teria alguns cuidados com tais generalizações: acredito que seu inverso também acontece: experiências pessoais tecnofóbicas e culturais, com a francesa, que ainda hoje tem uma adesão bastante restrita às www. 161 D. de Kerckove, op. cit., p.229. 160
119 A arte, se ela é tensão com o real, nasce necessariamente da tecnologia, funcionando como um agente produtor de novos arranjos de equilíbrio em relação aos efeitos de ruptura das novas tecnologias na cultura, sendo, deste modo, a face metafórica das mesmas tecnologias que, no seu processo, ela usa e critica. Assim, quando surgiu a imprensa, inventada para representar e distribuir a informação, os romances, a poesia e o teatro, assim como a pintura perspectivista, a escultura e a arquitetura se constituíram como metáforas da condição humana sujeita à “literacia”. Nós, ocidentais, seríamos constituídos então por uma consciência estruturada pela literacia e teríamos, por outro lado, nossa sensibilidade e sua matéria relacionadas com os trabalhos de Shakespeare, Da Vinci, Vermeer, Dostoiévski, Racine, Espinosa etc, artistas que “pacientemente construíram as paredes de nossa consciência privada e as decoraram”162 Quais seriam hoje, as metáforas tecnológicas da arte? Kerckove nos propõe uma solução otimista, mas não desconsidera a necessidade de sermos conseqüentes diante do novo contexto que teria em muito extrapolado as possibilidades da representação visual e do corpo que esta constituiu e trouxe à luz, utilizando-se para este processo e como seu outro e contraponto, das figuras dos monstros e dos freaks. Para ilustrar seu ponto-de-vista, ele nos apresenta uma discussão recente entre o já citado Sterlarc, um artista australiano e Paul Virilio, arquiteto e urbanista, que ele nos apresenta com o rótulo de um crítico pós-desconstrutivista dos media.163 Virilio sustentaria a especulação sobre as novas formas, possíveis em teoria, de colonização política e econômica que invadiram o corpo, biológica e geneticamente, manifestando um medo justificado já que as indústrias farmacológicas demonstram evidente interesse em adquirir patentes ligadas às pesquisas da engenharia genética.164
162
Idem p. 232. D. de Kerckove, op. cit., p.247. 164 Na verdade, Virilio tem sido uma espécie de “grilo falante” ou consciência resistente diante das transformações tecnológicas. Seus variados estudos de cronopolítica e os efeitos da velocidade no mundo social, político e existencial começaram no final da década de 70 e foram 163
120 Sterlarc teria um discurso ideológico desanimador em relação ao seu próprio trabalho, apresentando, como a geração cyberpunk, que o corpo está obsoleto e que deveria ser inteiramente substituído pela tecnologia. Contra ambos, que o herdeiro de Mac Luhan acusa de “romantismo ao contrário”, ele contrapõe a idéia de que a maior parte das tecnologias eletrônicas não se dirigem ao abandono do corpo mas a uma reutilização da vida sensível, que teria diante de si infinitas possibilidades em aberto já que, a Internet, por exemplo, é o primeiro meio que é oral e escrito, privado e público, individual e coletivo, ao mesmo tempo, e “acho que uma das coisas mais impressionantes sobre o sistema do mundo virtual no que teremos poder para mudar facilmente o conteúdo deste mundo é que a distinção entre o nosso corpo e o mundo é escorregadia. Do ponto-de-vista da realidade virtual, a definição do corpo é a parte que se pode mover tão rapidamente como pensamento. Num mundo virtual [...] pode-se ... abrir portas à distância ou fazer com que vulcões entrem em erupção. Torna-se difícil definir com rigor qual é a fronteira do corpo”.165 Ao mesmo tempo, entre as elaborações mais interessantes que os artistas tem produzido sobre as imagens de si que emergem dos sistemas ciberativos está a noção de David Rokeby de “subjetividade que se pede emprestada” 166 o que teria, como consequência, a idéia de que a forma mais moderna de diversão, será, talvez, no futuro, a mudança de identidade, de certa forma já possível, na medida em que podemos inventar identidades para os chats que frequentamos na www. Não concordamos totalmente com suas opiniões, embora seja difícil não reconhecer a pertinência delas. Nos sentimos mais próximos de Michel Serres quando este nos cutuca afirmando que temos todos os poderes mas não sabemos se podemos controlá-los. A realização que Kerckove acredita ser possível nos soa um pouco eufórica, dando a entender que neste novo jogo de possíveis será
sempre conseqüentes. Uma de suas perguntas recorrentes tem sido “Podemos democratizar a ubiqüidade?”. 165 Laron Lanier e Frank Biocca in Insiders view of the future reality, Jornal of Communication 42:4 (outono 1992) apud. D. de Kerckove, p.266. 166 Idem p.266.
121 viável minimizar a dor, que é pessoal e intransferível, e o trágico que constitui ainda uma certa experiência de nossa humanidade fragmentada. “Casse-se o trágico, ele voltará amanhã, por nossas próprias mãos, uma vez que nossas expertises partem dele, e se tivermos esquecido ou apagado este depósito, não saberemos domesticar as tragédias do dia, invariantes desde que o mundo é mundo, nem como habitar de novo uma terra e uma história de onde a infelicidade não terá desaparecido”.167 Assim, o que nos parece mais imediato é a compreensão de uma radical mudança de referência: de uma identidade firme, estável, centrada, totalizável e constante que o mito do homem moderno propôs e construiu para nós, passamos, na nossa contemporaneidade, a uma nova relação conosco mesmos, com o mundo e com os outros que se manifesta numa identidade frágil, instável, descentrada, mutante, processual e inconstante à qual corresponde, pertinentemente, um corpo fragmentado e “metamorfótico”. No entanto, somos responsáveis pela manutenção deste corpo novo. A nossa política, como a nossa moral não cansam de nos responsabilizar pela sua posse numa medicalização que impregna todos os discursos, fazendo do corpo a nova religião. Devemos sobreviver e para isto utilizar o melhor de nossos esforços: comer moderadamente, repor nossas vitaminas, praticar com persistência e disciplina exercícios físicos, fugir do sol, do sal, do açúcar, das carnes vermelhas, evitar e condenar o tabagismo, praticar sexo seguro etc. Não serão os novos freaks uma espécie de exposição herética desta religião que substitui a salvação pela saúde? Tentamos mostrar que na figura da criatura de doutor Frankenstein já se vislumbrava a hibridização homem-máquina. Não é estranho supor que este mito da intervenção da técnica deveria se modificar radicalmente, à medida do desenvolvimento da ciência e que dele tivéssemos chegado ao cyborg. No século XX, a anunciada hibridização natureza-tecnologia surge como uma conquista e não mais como o pecado cultural da aproximação e mistura daquilo que tem diferente natureza. No lugar do horror, vimos a sedução nos novos corpos que surgiam como realização da promessa tecnológica. Cada vez
122 mais a ciência promoveu a interação das máquinas à natureza ou, se quisermos, do metal (ou do silício) à carne. Surgiram neste movimento conquistas importantes e fundamentais: sistemas de controle e auxílio para as funções orgânicas, desde marca-passos que têm salvo vários cardiopatas do que já foi uma condenação, aos aparelhos de monitoramento e respiração artificiais que operam “milagres” de ressuscitamento nas Unidades de Terapia Intensiva. Produziram-se aparelhos que ajudam portadores de deficiência a se locomover e a falar, por exemplo, de tal maneira eficientes, que Virilio afirma que o modelo do homem rico superequipado é o deficiente físico, ”naturalmente”, parcialmente desequipado. E mesmo quando a técnica não introduz corpos nas máquinas ou máquinas nos corpos, pode realizar outras intervenções tais como o transplante de órgãos ou as cirurgias plásticas. Paralelamente a esse avanço científico, e como não podia deixar de ser, o terreno ficcional também se viu invadido por seres híbridos como os andróides, celebrizados no cult-movie Blade Runner, ou mutantes, derivados de melhorias genéticas que associam o imaginário social às conquistas da ciência. Neste contexto, surge o cyborg (cyber body) - organismos híbridos, cujas funções fisiológicas são realizadas com a participação de máquinas tecnológicas, correspondendo à nova imagem mítica relaciomada à era da técnica. Nesta cultura tecnológica, como já vimos, os antigos dualismos e as seguras fronteiras que caracterizavam nossa tradição cultural são postos em xeque. Separações radicais como eu - outro, corpo-mente, criador-criatura, verdade-ilusão, real-irreal, entre outras, não são tão nítidas e operacionais no mundo da relação homem-máquina. Do mesmo modo, o desenvolvimento dos sistemas de comunicação desarranja as oposições local-geral, privado-público etc, produzindo um novo e dinâmico jogo onde a realidade da globalização vive em tensão dinâmica com culturas locais e nacionais, desfazendo a certeza da oposição entre o aqui e o agora para o lá, no futuro. 167
Michel Serres, Éclaircissements, Paris, Flammarion, 1992, p.264.
123 Assim, se na modernidade as fronteiras demarcadas permitiam que o freak fosse percebido como “um outro”, na nossa atual experiência parece ter-se configurado uma forma que afirma o direito à diferença e à individualidade calcado fora do parâmetro binário, mas na idéia de uma pluralidade de diferenças irredutíveis à binariedade. Em princípio, deveríamos assumir como salutar esta nova proposta de culto à diferença pois ela deveria gerar pluralidades correspondentes de criação e invenção. O que no entanto, parece fazer-se presente, é que o atual processo de diferenciação tem, paradoxalmente, conduzido a uma profunda homogeneização, onde as condições efetivas de criar e inventar parecem dissolver-se numa sociedade voltada para o consumo e para o mercado. Neste contexto, muda a apreensão que temos dos freaks, no mesmo movimento em que surgem os cyborgs, como espécies de novos heróis. O freak não é mais o outro de cada um dos normais, mas um “eu secreto”, um fundo sem profundidade sobre o qual construimos nossas identidades sociais e individuais. Como na fórmula célebre de Rimbaud “je est un autre”, de certa forma, somos todos freaks, ou seja, especiais. Pelo mesmo motivo, na ficção gerada em torno do cyborg, nesta mescla entre o humano e o maquínico, o que aparece é a humanização do andróide. O cinema nos fornece múltiplos exemplos que seria impossível listar. Escolhendo apenas alguns vejamos: os replicantes de Blade Runner, o caçador de andróides, de Ridley Scott, projetados para serem isentos de emoções, desenvolvem subjetividades resistentes e guerreiras a partir de sua morte anunciada, já que duram apenas quatro anos. Em O Exterminador do Futuro II, de James Cameron, o andróide é capaz de compreender por que as pessoas choram; o Robocop do filme de mesmo nome de Paul Verhoeven desperta emoções na policial que o acompanha e tem, a todo momento, lapsos onde parecem surgir fragmentos de uma memória e de uma história humanas. A ficção científica é povoada de cyborgs, estes seres simultaneamente homens (ou animais) - máquinas que habitam mundos naturais e construídos. Também a medicina moderna é povoada de cyborgs, este acasalamento homemmáquina, o que parece curioso se pensarmos na nossa tradição cultural, ou seja,
124 que tanto no campo da ciência quanto no campo da fabulação o modelo seja o mesmo. Para Donna Haraway 168 [...] os cyborgs são um mapeamento ficcional da nossa realidade social e corporal, além de uma fonte imaginativa que sugere associações muito frutíferas. A biopolítica foucaultiana é uma premonição flácida da política dos cyborgs, um campo em expansão”. O final do 2º milênio, final do século XX, é um tempo mítico, onde todos nós seríamos quimeras, seres híbridos, ao mesmo tempo teorizados e fabricados como organismos e como máquina, ou seja, somos todos cyborgs. O cyborg é nosso devir, e a nossa antologia e a imaginação, como a realidade; condensam na sua imagem, um novo modo nosso de ser que, como tentamos mostrar, desfaz a guerra de fronteiras entre organismo e máquina, guerra que se tem travado nos territórios da produção, da reprodução e da imaginação.
III.7. CYBORG - UM DEVIR ...
Antes de entrarmos no domínio mais festejável que transforma o cyborg no nosso herói contemporâneo, parece-nos importante compreender que sua existência produz um abalo que não pode ser considerado apenas sob o pontode-vista da vitória da ciência. Alguns autores, que gozam da nossa simpatia, problematizam os efeitos e as conseqüências destas conquistas e se preocupam com o preço, ontológico e político, além de imaginário, que pagamos por elas. Pois, se por um lado, como já afirmamos, a possibilidade das próteses e das nanotecnologias associando-se ao humano aumentam a sobrevida, isto implica também numa diferença radical para o nosso estatuto ontológico clássico, o de sermos singulares e não duplicáveis. “Com as nanotecnologias e todas as futuras próteses interiorizáveis [...] podemos cada vez mais protetizar o corpo, a ponto de haver a pretensão de duplicar os corpos, isto é, de ter
168
D. Haraway, Um manifesto para os cyborgs - Ciência Tecnologia e Feminismo Socialista na década de 80 in Tendências e Impasses, O feminismo como crítica da cultura org. por Heloisa Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p.243.
125 vários corpos simultaneamente, o que traz o imenso problema da identidade”.169 Já consideramos a diferença entre a identidade fechada, correspondente à experiência moderna e a identidade contemporânea, mutante e aberta, assim como afirmamos, na companhia de Kerckove, o fato de que o jogo de identidades pode ser uma nova forma lúdica de brincar com as diferenças. Mas há o contraponto desta perspectiva, que tem servido de base para vários estudos teóricos, várias experiências laboratoriais e para uma visão do homem e do mundo cada vez mais despolitizada, gerando uma espécie de novo “naturalismo” científico. Isto se dá, sobretudo, porque a partir do imbricamento homem-máquina, o que era conflito no humano fica regulado por uma premissa puramente orgânica, esta noção de orgânico agora referindo-se ao corpo agenciado. Daí derivam duas importantes consqüências: a maquinização do comportamento, a qual pressupõe que todo comportamento é resultado de reações químicas e, portanto, absolutamente decodificável a partir de explicações fisiológicas, e uma certa naturalização da ética e da política sua “medicalização”. Significa que certos comportamentos passam a ser explicados pela simples presença em quantidades mensuráveis de substâncias químicas. Assim a presença do feronômio passa a responder pelas questões da sedução e do amor, desengajando-nos de qualquer processo de vinculação e de subjetividade erotizante: qualquer rejeição pode ser tratada farmacologicamente, o que explica a explosão do consumo de perfumes que tem o feronômio entre seus componentes nos atualíssimos shoppings americanos. A violência, por seu lado, é uma questão de excesso de serotonina, o que gerou uma nova retórica na justiça penal: no julgamento de criminosos já se tem usado como argumento de defesa alguma característica física ou biológica que teria gerado uma disfunção, tal como um tamanho reduzido do córtex ou uma quantidade excessiva de serotonina. Curiosa organicidade: há pouco tempo, o argumento lógico da defesa referia-se à perda das capacidades mentais, o que tornaria o criminoso 169
Bernard Stiegler, A tecnologia contemporânea: rupturas e continuidades in Ruth Scheps (org) O império das técnicas, Campinas, Papirus, 1996.
126 não responsável pelos atos que cometeu; aí se mantinha ainda uma relação com algum acontecimento que faria alguém perder o que teria tido antes do trauma que gerou a perda de tais faculdades; agora a química é uma espécie de destinação. Esta maquinização do mental rompe o estatuto ontológico do humano. Dele são excluídas a liberdade da vontade, a disponibilidade à experiência, a potência e a intensidade que constituiam seu estilo. Confunde-se aí subjetividade e identidade e diante da perda da segunda, a primeira se transforma num signo vazio. É como se o homem deixasse agora de ser um ser da cultura. Sofre uma nova naturalização que, mais do que ser uma nova ferida narcísica, é uma espécie de abandono radical, não apenas das noções de alma ou corpo próprio mas também de Eu e de Mundo. A noção de corpo, um conceito construído, como tentamos mostrar no segundo capítulo, objeto de uma história particular feita de rupturas e novas costuras, exigia, como seu habitat, a idéia de espaço que se expressava pela localização das coisas no mundo, entre as quais o corpo; e pela relação deste com o meio. A aceleração da velocidade eliminou as distâncias e desqualificou o espaço. Mais ainda: com o surgimento da idéia de ciberespaço e infoesfera, o mundo tornou-se uma informação a ser tratada por sistemas, a imagem de síntese prescindindo agora do observador, ou seja, não há objeto como não há sujeito e o ser humano tornou-se um sistema que processa informações, assim como tantos outros sistemas. Nosso próprio código genético nos é apresentado exatamente assim: como um sistema de informações que devem ser processadas. No lugar da relação sujeito/objeto propõem-se a multiplicidade cognitiva, o que, se não extermina totalmente, condena a subjetividade a um espaço claustrofóbico de resistência nostálgica. Não há mais a separação entre a razão e o seu contrário, desrazão ou loucura, há apenas uma particularidade dos sistemas que processam as informações e, mesmo compreendendo o efeito perverso e excludente que se acoplou ao campo da desrazão, nossas tensões entre o imaginário e o simbólico parecem não ser mais do que uma operação
127 sem maiores consequências, até porque a angústia gerada pelo conflito pode ser “tratada” com Prozac. A multiplicação implica também numa mudança no conceito de representação que, dissociada da consciência, torna-se a capacidade de dar respostas ao meio, o que estende a noção de representação aos sistemas maquínicos, por um lado, e, por outro, questiona o que é a capacidade de pensar e/ou decidir. Se todos os sistemas representam, a representação nem é mais uma imagem da mente nem é mais exclusividade dos humanos. Também a matéria se torna obsoleta. A realidade virtual, prescinde dela. Mas a simulação dos sentidos, a multiplicidade da possibilidade de experiências, a experiência prescindindo de tempo e espaço (podemos ver, ouvir, cheirar e tocar à distância) também prescindem do corpo-próprio, o que permite a Virilio elaborar assim sua perplexidade: o mínimo de homem que nos resta-corpo e território - está ameaçado; ainda há algo que torna o humano singular? Se por um lado ganhamos com a extensão da vida e com novas e abertas possibilidades de propormos diferenças, libertos do cerco da identidade moderna e de um humanismo bastante redutor, não podemos nos furtar à compreensão das consequências deste determinismo sistêmico no campo ético e político. As novas formas de tecnologia e as novas formas de pensamento que lhes são sincrônicas tem uma estranha e avassaladora capacidade de gerar novas pedagogias de dominação. Fragilizando o humano neste processo de entendê-lo como sua hibridização com as máquinas, as possibilidades de singularização lhe são retiradas ou oferecidas apenas como etiquetas, identidades prêt-à-porter. Daí deriva a estranha convivência de uma certa euforia algo maníaca com o seu par patológico: o pessimismo depressivo do pós-moderno e a anestesia da sociedade de controle. Não temos mais uma revolução a realizar, não há uma humanidade a ser preservada. Surge uma nova forma de poder que se ajusta à nossa contemporânea sociedade de controle, que Donna Haraway denomina de Informática da Dominação: as redes ubíquas e invisíveis da sociedade
128 tecnológica. Para ela, a sociedade tecnologicamente avançada desafia de forma inquietante os dualismos: não se sabe quem faz ou quem é feito nesta relação homem-máquina, não é claro o que seria do domínio da mente e o que pertence ao domínio do corpo, não é nítida a resposta sobre a origem do pensamento: são as máquinas que pensam ou somos nós que as operamos. As últimas décadas realizaram três radicais rupturas de fronteiras: humano e animal; animal humano e máquina e físico e não físico, mas produziram, a partir destas, novos posicionamentos políticos e científicos que talvez venham a ser expressos em novas formas de classificação-dominação, como, por exemplo, quem processa mais rápido, quem é mais eficiente?
III.8. MANIFESTO PARA OS CYBORGS 170
“Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós apavorantemente inertes”.171
O cyborg aparece neste universo de fronteiras rompidas e, por isto mesmo, é uma criatura pós-gênero, sem nenhuma tentação de uma integridade orgânica realizável por meio de uma apropriação final de todas as partes numa unidade maior. “A formação da totalidade, a partir de fragmentos, inclusive aqueles da polaridade ou da dominação hierárquica, está em questão no mundo do cyborg”.172 No extremo oposto ao da figura do monstro do Dr. Frankenstein, o cyborg não busca uma unidade original, não sonha com a comunidade a partir
170
O título deste sub-capítulo é inspirado por Donna Haraway e seu texto: Um manifesto para os cyborgs: Ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80 apud Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura org Heloisa Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, Rocco, 1994. 171 Idem p.247.
129 do modelo da família orgânica (enquanto o monstro deseja a companheira que o complete) e não é reverente em relação ao pai: “fruto ilegítimo do militarismo e do capitalismo patriarcal, para não mencionar o socialismo do Estado. Mas a prole ilegítima é frequentemente muito infiel às origens”.173 Esta bastardia virtual é a sua força e talvez a justificativa de uma nossa aliança. O universo dos cyborgs é o mundo dos fluxos. Na ficção, especialmente fílmica, as células vivas podem responder a chips programados, como o que vemos no Exterminador do Futuro II. No campo da ciência, eletrodos podem induzir movimentos em membros paralisados, retirando as pessoas dos limites da cadeira de rodas. Nos corpos “cyborg” as funções orgânicas se regulam pelo fluxo de informação e estímulos entre as máquinas e os organismos biológicos conectados. Sendo fluxos de informação, no âmbito da comunicação, que é onde os cyborgs vigoram, é fundamental a conexão. Fazer parte deste contexto é estar conectado. Mas estas conexões não têm mais a saudade da unidade total, não é a ela que buscam. O cyborg, filho da perda das grandes narrativas, é uma ironia parcial e, ao contrário de se constituir numa nova promessa totalizante, ele politiza a própria corporificação. Constrói o mundo das sínteses conectivas nãototalizantes, onde os conjuntos unificados, bem definidos e predicáveis tendem a se relativizar tornando imprecisa a distinção identidade/alteridade. Estamos dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente constituído. Sabemos que mitos políticos este nos engendrou. Como bastardos, os cyborgs podem, talvez, propor-nos uma outra política, fora da anestesia do controle. Donna Haraway, no artigo citado, fala de uma semiologia e de uma imaginação cyborg, definindo-as sobre a premissa da positividade das conexões e utilizando-se de expressões como um é pouco, dois é uma possibilidade ou ainda é possível construir uma subjetividade potente a partir da fusão de identidades externas. Há um espaço para a esperança neste cyborg pensado como “[...] um tipo de eu desmontado e remontado, no sentido
172 173
Idem p.246. Idem p.246.
130 pós-moderno e pessoal”.174 Este poderia sugerir não a pasteurização, mas uma nova política plantada nas reinvidicações de mudanças fundamentais nos conceitos de classe, raça, gênero etc, herdeiros de nossos dualismos clássicos, política da qual o cyborg seria uma simulação. Esta política, por ser inspirada na mistura e na não totalização, se afirma como a luta pela linguagem e contra a perfeita comunicação, contra qualquer código que seja capaz, ou assim se pense, de traduzir todos os significados perfeitamente, o dogma central do falo-logocentrismo. É assim que a política “cyborg” insiste no barulho e defende a poluição, rejubilando-se nas fusões ilegítimas animal/máquina; carne/metal. Donna Haraway cita constantemente Foucault e, numa longa nota, ela expõe esta sua ligação: “[...] Minha posição se baseia no seguinte ponto: as feministas (e outros) necessitam de reinvenção cultural constante, da crítica pós modernista e do materialismo histórico; apenas um cyborg teria esta oportunidade. As velhas dominações do patriarcado branco e capitalista parecem
nostalgicamente
inocentes
hoje:
elas
normalizaram
a
heterogeneidade, por exemplo, entre homem e mulher, preto e branco. O capitalismo avançado e a pós-modernidade libertam a heterogeneidade sem uma norma e nos encontramos achatados, sem subjetividade, que requer profundidade, até mesmo profundidades sufocadas e hostis. É tempo de escrever “A morte da clínica”. Os métodos da clínica exigiam corpos e esforços; possuimos textos e superfícies [...] A normalização abre caminho para a automação e a redundância total. Os livros de Michel Foucault “O nascimento da clínica”, “História da sexualidade” e “Vigiar e punir” nomeiam uma forma de poder no momento de sua implosão. O discurso da biopolítica abre espaço para o balbucio tecnológico”. 175 O cyborg em si tematiza o problema do nosso tempo: o acontecimento da técnica cujos efeitos abaladores ainda não ousamos totalmente decifrar. As tecnologias continuam inscrevendo-se no corpo, enxertando-se nele, levando-o ao limite. A tradicional oposição entre a carne e o metal se esvanece como a, 174 175
Idem p.262. Idem p.248-9.
131 agora obsoleta, interdição de hibridização de elementos de natureza diversa. E não o faz sem um custo certo: o que é atingido aí é a própria imagem do corpo, elemento mediador, presença aglutinadora e ordenadora, já que se constitui como um feixe de ligações dentro e para fora. Foi a partir de sua elaboração como imagem-conceito e sob o modelo conectivo que ele forneceu nas diversas experiências históricas (preocupação que levou Foucault a genealogizar e a fazer a arqueologia destas conexões) que o corpo funcionou como atrator das ligações das quais ele era o suporte. Portanto ele participou sempre da lógica das ligações, tal como pretendemos ter demonstrado no capítulo anterior. O que acontece hoje é que a tecnologia exibe escandalosamente o “corpo conectado”. Mudou no entanto, a consistência destas ligações: não são mais religiosas, naturalistas, antropocentradas já que pertencem ao mundo da eletrônica e da informação. Para produzir a diferença entre natural e artificial, a cultura criou um corpo e o impôs como parâmetro; a técnica como último acontecimento da cultura, está substituindo o princípio do corpo mediador por uma nova noção: o corpo-dos-media, cuja consistência eletrônica desfigura e desmaterializa o corpo, que sempre foi, como o pensou Deleuze, maquinável tecnicamente. Este corpo, que Kerckove chama de biotécnico, e que corresponde ao ideal do cyborg, é aquele em que as ligações são visíveis, e, é por se dividir em suas ligações, que ele perde a unidade. No filme que já citamos, o Exterminador do Futuro II, o personagem de Arnold Schwarzeneger possui um corpo aparentemente igual ao nosso na superfície, mas quando se machucava e sua pele sofria danos faziam-se ver suas ligações internas e externas. Neste princípio de conexões e no novo ambiente onde este se realiza, que inclui realidade virtual e a idéia do mundo da informação, as fronteiras entre o eu (corpo) e o meio-ambiente se dissolvem, atingindo de morte o dualismo dentro-fora. Através do corpo e fora dele é a nova corrente que substitui a distinção eu-mundo, não sem deixar de cobrar o imaginário da presença de um corpo perdido.
132 A “morte” do corpo e o ideal cyborg talvez sejam o último som da já prenunciada morte do homem de Nietzsche, retomada tão insistentemente por Foucault e digna da primorosa análise de Deleuze no apêndice de seu livro Foucault, cujo título é: Sobre a morte do homem e o super homem.176 Na parte final deste anexo, Em direção à formação do futuro? Deleuze retoma a recusa de Foucault, sempre irônica, de chorar esta morte, “retenhamos as lágrimas”, e a questão que ele teria reformulado: a forma homem foi boa? Soube ela enriquecer ou preservar no homem as forças de viver, de falar, de trabalhar? Conseguiu afastar os homens existentes da morte violenta? Indo além: Se as forças do homem só compõem uma forma entrando em relação com uma força externa (as conexões), com que novas formas estão elas agora em relação? Que nova forma pode surgir, que não seja Deus ou o homem? Hoje, diz Deleuze, as forças do homem entram em relação com outras forças: as do silício contra as do carbono, as do código genético contra as do organismo (ligação finita, histórica e interna), as dos agramaticais contra as forças do significante. E o que é o super-homem (ou o Além Homem): o composto formal das forças no homem com novas forças. “O super homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado em si dos próprios animais (um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos esquemas de evolução lateral ou retrógada). É o homem carregado em si das próprias rochas ou do inorgânico (lá onde reina o silício) ... Como diria Foucault, o super homem é muito menos que o desaparecimento dos homens existentes e muito mais que a mudança de um conceito: é a chegada de uma nova forma, nem Deus nem homem, da qual se pode esperar que não seja pior que as duas precedentes.”177
176 177
Gilles Deleuze, Foucault, Paris, Ed. de Minuit, 1986. Idem p.140-1.
133
III.9. CYBORGS E CIBERESPAÇO
O ciberespaço é a “morada” do cyborg, e a possibilidade de constituição de seu corpo como fluxo. Ambos constituem e são constituidos por uma outra e nova experiência cultural que designamos, por decorrência, de cibercultura. Sua compreensão nos parece fundamental para a análise fundamental desta nova corporeidade, cuja marca mais forte, para além da hibridização, é a nãototalização formal já que, dividido em suas ligações, este corpo biotécnico perde a unidade identitária. Segundo alguns de seus teóricos, tais como Pierre Lévy, assim como o que define o cyberespaço é o fato de “mais ele se estende e mais ele se torna universal” fórmula comum a todos os seus textos, o que designaria a cibercultura seria o Universal sem totalidade o que constituiria, para os padrões da nossa tradição de pensamento, um paradoxo, já que o que caracteriza a noção de universal é a sua carga fechada de sentido e significação. No entanto, sua proposta é a de considerarmos as mutações culturais a partir das pragmáticas da comunicação, espécie de ecologias dos medias e assim, fazendo recurso à história, podemos encontrar onde se constituiu esta identificação entre universal e totalidade, que não tendo existido desde sempre, não tem, portanto, nenhum compromisso com a eternidade. Nas civilizações orais, onde as mensagens lingüisticas eram recebidas no tempo e no lugar onde eram emitidas, onde os atores da comunicação se banhavam, na maior parte do tempo, numa idêntica situação e num semelhante universo de significação, ou seja, no mesmo contexto, havia a experiência radical da totalização, sincronia entre experiência e narrativa, mas não havia a idéia de um universal, sempre impossível no campo de um contexto prédeterminado. Não nos parece inviável compreender que nesta configuração de totalização sobre o contexto, a figura do corpo seja a que descrevemos, a partir de José Gil no capítulo anterior, como a de um significante flutuante que se
134 realiza contextualizando-se como comunitário, à diferença do posterior corpo próprio. A
escrita,
entretanto,
introduziu
um
espaço de comunicação
desconhecido para as civilizações orais e, neste, era possível tomar conhecimento de mensagens produzidas por pessoas à distância de quilômetros ou séculos, imbuídas de enormes diferenças sociais e culturais. Dizendo de outro modo, os atores da comunicação não participavam mais do mesmo contexto e será esta saída ou liberdade do contexto que, incorporada pela cultura, gerará a noção de universalidade. Sendo difícil a transmissão de mensagens separadas do contexto de sua produção, dois movimentos se produziram: do lado da recepção surgiram as artes da interpretação, da tradução, uma tecnologia lingüística que se realizou nas gramáticas e nos dicionários; do lado da produção, o esforço foi o de produzir mensagens capazes de circular por todos os lugares, independentes de realidades particulares, contendo em si mesmas as suas chaves próprias de interpretação ou sua razão. É a este esforço prático que corresponde à idéia de Universal. As religiões universais, assim como a filosofia e a ciência clássicas, fundam-se sobre este dispositivo de comunicação instaurado pela escrita. Isto permite, por exemplo, que possamos converter-nos ao islamismo, ao catolicismo ou ao budismo, religiões de texto, no Rio de Janeiro, em Paris ou em Nova York. O que não seria possível se nós nos quiséssemos converter ao culto yanomâni ou bororo, o que nos obrigaria a viver entre eles e a participar de seus ritos e crenças. Pois as religiões universalistas, e disto são testemunhas a Thora, os Evangelhos e o Alcorão, são, ao mesmo tempo, a verdade e a sua revelação, o que constitui sua fonte de autoridade. Talvez não seja outro o motivo pelo qual a catequese cristã transportou para os novos mundos o abstrato e novo corpo próprio, cujo sentido universal era, evidentemente, a noção de propriedade e a partir dela, a de identidade. Também os textos científicos e filosóficos clássicos são concebidos como contendo em si mesmos seus fundamentos e suas condições próprias de interpretação e, neste regime de verdade, o que deve permanecer inalterado por
135 traduções e interpretações é o sentido, já que a significação da mensagem deve ser a mesma em qualquer lugar e a qualquer tempo. Podemos portanto afirmar que a descontextualização do discurso, que seria sua desterritorialização, operou sua reterritorialização em torno do sentido fechado, ou seja, da associação do universal com a totalidade. E foi esta, sem dúvida, a responsável pelo lógico corpo humano. Uma outra pragmática comunicacional se instala com os meios eletrônicos, os novos media, dos quais a televisão é nosso ambiente mais próprio atualmente. Em sua configuração clássica, eles também se inscrevem na idéia de universal totalizante e de sentido fechado inaugurada pela escrita. Atingindo um público imenso numericamente e produzindo mensagens a serem entendidas, vistas e ouvidas por milhões de pessoas dispersas, as mensagens são compostas visando o mínimo decodificador comum, a mínima abertura para a mínima capacidade interpretativa de seus receptores. Como circula num espaço privado de interação, a mensagem mediática não deveria, em princípio, explorar o contexto particular onde o receptor se move, desprezando sua singularidade, suas micro-culturas, suas adesões sociais etc. É o dispositivo espetáculo, que reduz e conquista no mesmo movimento, que baliza o fechamento de sentido dos medias eletrônicos. Mas a televisão, em interação com os outros media, levando a descontextualização ao limite, promove o surgimento de um novo “macrocontexto flutuante”, a chamada Aldeia Global, batizada por Mac Luham. Recuperando sua contribuição para a compreensão do caráter das sociedades mediáticas, ele percebeu que a principal diferença entre estas e as civilizações de contexto oral era que os telespectadores, embora sejam implicados emocionalmente na esfera do espetáculo, pela construção própria da televisão, não poderiam ser implicados praticamente. Este “macro-contexto flutuante” produziu e deu a ver na sua dinâmica de consumo acelerado, inúmeros novos corpos, sendo, como já vimos, o atual e mais confortável habitat do show freak, assim como o lugar onde convivemos com as camaleônicas figuras de Michael Jackson ou de Madonna e com as
136 novas experiências de nossos laboratórios científicos, apresentadas com orgulho em nossos telejornais como as vitórias da razão técnica. É preciso compreender, entretanto, esta relação que “dá a ver” novos corpos e novas possibilidades. Mantém-se ainda a distância entre o ver e o visto, a clássica hipertrofia da visão que caracteriza a tradição ocidental, mesmo se e quando, como é o caso, este olhar parece um pouco siderado pela velocidade do que se vê e pelas novas formas que se tornam visíveis, agora, neste contexto, como objetos grotescos ou vitoriosos a partir dos corpos deformados, reformados ou criados. Este é o panorama que antecede, sendo ao mesmo tempo co-presente do evento cultural que se chamou de cibercultura, que teria por característica, como já mencionamos, a desconexão entre dois conceitos, ou melhor, dois operadores sociais e duas máquinas abstratas, que seriam a universalidade e a totalização. Na verdade, o ciberespaço instala uma pragmática de comunicação que dissolve a antiga conjunção, remetendo-nos para uma situação anterior à escrita, embora, evidentemente, em outra escala e numa órbita diferente, pois a interconexão e o dinamismo em tempo real das memórias em linha cria novamente a partilha de um mesmo contexto, “o mesmo imenso hipertexto vivo para os participantes da comunicação”.178 Qualquer mensagem, assim como qualquer texto, é sempre um fragmento deste hipertexto móvel que serve de meio e de mediador para uma comunicação interativa e recíproca. Surge assim um novo universal cuja atuação ao contrário de amalgamar pelo sentido que aí se totaliza, afirma-se pela interação geral: “um universal por contato”179 e necessariamente desligado da noção de totalidade. Não é o mesmo que as noções correntes de globalização ou planetarização, que se referem mais estreitamente à globalização das economias e dos mercados financeiros ou ao fato geográfico puro que seria a extensão das redes de transporte material e informativo num “novo Atlas” ciberespacial. A escolha do termo universal para Lévy, justifica-se por que, no seu sentido mais profundo, o termo tem sido
178
P. Lévy, La cyberculture: l’ universel sans totalité, conferência realizada no Colóquio Media e Percepção Social, maio de 1998, Rio de Janeiro, miméo, p.5. 179 Idem.
137 associado à idéia de humanidade. Para ele portanto, e isto nos pareceu interessante, a cibercultura e as novas tecnologias, ao invés de questionarem o que nos configurava como humanos, realizam nossa humanidade de um modo como antes não poderíamos concebê-la. Retomando, o ciberespaço não realiza o universal porque esteja em todos os lugares, ele pode produzir uma nova cultura do universal porque sua idéia, assim como sua forma, implica num direito comum a todos os seres humanos. Não há aí a ingenuidade de não ver que há povos, continentes (como a África) e grupos, “info-desesperando”, tal como os define Virilio em seus textos, mas a reinvidicação do acesso a todos neste espaço que liga pessoas a pessoas, comunidades a comunidades, e comunidades entre si, quaisquer que sejam as pessoas e as comunidades. Tudo isso suprime os monopólios de difusão, e autoriza a todos e a cada um a postular-se como emissor; revela que participar neste e deste espaço é entendido como um direito e que sua construção e abertura se aparenta a um tipo de imperativo moral, uma lógica de dever prático. Universal por contato, pois ele se experimenta por imersão, o que significa por participação, não em um sentido de identidade, mas na produção de múltiplos, abertos e temporários sentidos. Aí humanidade se define como um coletivo de saberes e habilidades contra as categorias anteriores de identidades fixas, nações, classes sociais etc. Quanto mais se estende o ciberespaço menos este se torna totalizável. Toda nova conexão acrescenta nova carga de heterogeneidade, produz novas linhas de fuga, fabrica novas singularidades móveis. É assim que ele exprime em sua existência e em sua pragmática a diversidade do humano é querer a diversidade, como a reinvidicação do acesso a todos que lhe é sincrônica, são o novo dever moral, contra a lógica do sentido total e estável. Parte daí a crítica de Lévy à pós-modernidade. Ele formula que esta, numa operação ampliada, jogou fora, ao mesmo tempo, a totalidade e o universal, sobretudo na menção de Lyotard da perda das grandes narrativas. Assim, se a totalização é hoje impossível, ela é também indesejável, pois não
138 faz mais que, quaisquer que sejam as complexidades de suas modalidades, afirmar o mesmo, ou o já dito. A cibercultura seria, ao contrário, a possibilidade de experimentar o universal a presença virtual em si de toda a humanidade sem recurso à identidade do sentido. Assim, ela não representaria a ruptura com os valores fundadores da modernidade européia, mas, ao contrário, o dispositivo técnico de sua realização e a herança legítima do projeto iluminista do século XVIII. Valorizando a participação das comunidades no debate e na argumentação, na linha própria da idéia de igualdade, a cibercultura encoraja uma forma de reciprocidade essencial nas relações humanas. Indo mais longe, os valores da modernidade se transformam em dispositivos técnicos concretos: na era dos medias eletrônicos, a igualdade se dá como possibilidade de cada um emitir para todos, a liberdade no acesso sem fronteiras a múltiplas comunidades virtuais e a fraternidade comparece através da interconexão mundial. Se o ciberespaço e a cibercultura aparecem como o ambiente e a solução das questões produzidas na época precedente, sua simples existência não resolve os principais problemas da vida em sociedade. Criando formas novas de liberdade, igualdade e fraternidade, de reapropriação dos meios de produção e comunicação, ao mesmo tempo desestabilizam rapidamente e em enorme velocidade as economias e as próprias sociedades. Fraturando os antigos poderes-participam na criação de novos que embora menos visíveis e mais instáveis não são sem nada menos virulentos.180 Parente do universo da globalização, a cibercultura constitui-se assim como solução parcial de algumas questões mas também como um novo, imenso e complexo campo de problemas e conflitos para os quais nenhuma solução global se desenha com nitidez. E que talvez só possa, na coerência mesma com a sua premissa de não-totalização, apostar em soluções coletivas, parciais e singulares. Fragilizando as velhas formas sociais, que se referiam à relação com o saber, com o trabalho, com o emprego, com a democracia etc, ela não 180
A este respeito a pequena entrevista de Deleuze em Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações, Ed. 34 Letras, Rio de Janeiro, 1992, p.219-26 é exemplar repolitizando a questão do poder sobre sua nova forma, o controle e a dívida inquitável parecenos, ainda, antológica.
139 elaborou fórmulas substitutas, e portanto, é preciso reinventar nosso modo de estar no mundo, em sociedade e conosco mesmos. Levy propõe uma mutação na essência da cultura, que não se poderia dar sem nela incluir o último universal, ou seja, o corpo próprio, universal e totalizável. Pensemos agora na imageria do corpo diante das novas tecnologias, contemporâneas da cibercultura. Nossas formulações espaciais, tais como interior e exterior, para as quais a pele funcionava como limite de demarcação desaparecem. O interior se torna visível com múltiplas superfícies bastando pensar no raio x e nas tomografias computadorizadas que tornam o interior visível, como se cada tecnologia descascasse nossa pele, inventando uma nova pele a ser pesquisada. Ou a antecipação do sexo das crianças que a ultrasonografia tornou possível, antecipando o tempo mas também, como na experiência de revelar o interior, transformando o domínio privado do corpo em domínio público. Ou ainda, de maneira mais radical: a prática dos transplantes, espécie de circulação de órgãos entre os corpos, elaborando um novo corpo coletivo ou um hiper-corpo do qual cada um dos nossos corpos pessoais fosse um fragmento temporário. Explicação que também se aplica às cirurgias estéticas cujas estatísticas mundiais afirmam serem mais frequentemente realizadas entre os adolescentes, que veriam neste processo de modelização novas atualizações corporais como relações com a virtualização de todos os corpos. A bio-ciência parece ser o campo onde nossas determinações mais arraigadas entram em colapso de maneira mais radical. Atua em todos os níveis de hibridização e coletivização do corpo. Hormônios artificiais fabricados em laboratórios e fábricas e que não pertencem ao nosso corpo próprio são consumidos em pílulas que coletivisam nossas funções hormonais. Nanorobôs podem ser-nos implantados, do tamanho de um micróbio, e passar a se responsabilizar por uma de nossas funções. Detenhamo-nos nos transplantes, que sempre fazem perguntar, liricamente, quem ama em mim se não é meu coração original que o faz? Sua prática, iniciada no final dos anos 60, anula separações radicais na nossa
140 experiência de nós mesmos: a do eu e a do outro; a da vida e a da morte; a das espécies (já se utilizam pedaços de tecido vindos de porcos para refazer as paredes cardíacas), a dos reinos, como o marca-passo mineral que se implanta no corpo animal/humano. Esta experiência de criação de um estoque coletivo-material como o que vemos nos bancos, remonta ao neolítico, onde começa a prática de armazenamento de grãos e se segue incluindo o mundo dos signos e das letras como as bibliotecas. No entanto, os novos bancos de sangue, banco de esperma, banco de órgãos são radicalmente contemporâneos. O que exprimem, senão a exteriorização e a coletivização dos corpos em nossa atualidade? Ou a produção de corpos biotécnicos e coletivos que suportam a nova inteligência coletiva realizada pela cibercultura?
141
V - ENSAIO PARA UMA CONCLUSÃO
Não espere o leitor encontrar aqui qualquer fórmula capaz de diagnosticar a experiência contemporânea e o lugar que o corpo, o seu desaparecimento ou a sua reinvenção, ocupa nela. Buscaremos apenas, com a humildade que os tempos nos recomendam, tentar compreender, ou seja, abraçar, linhas ou tendências que parecem indicar os caminhos onde a vida e suas novas relações com o mundo tecnológico tem gerado problemas, teorias e obras e nos parece que, nesta relação, é interessante confrontar ou por em diálogo dois caminhos, duas vias teóricas e práticas que vivem de pensar e produzir o corpo e suas novas ligações. Assim poremos de um lado a bio-ciência, a engenharia genética, a nova neurologia e a filosofia da mente não pretendendo, o que em muito ultrapassaria nossa capacidade e o limite deste pequeno livro, dar conta de todo o seu potencial ou descrever todos os seus projetos e intervenções. Do outro lado, numa divisão que é muito menos estanque do que neste momento estamos fazendo ver, posicionaremos alguns aspectos e alguns autores da arte contemporânea, especialmente aquela que tem centrado nas relações do corpo com as novas tecnologias interativas sua produção. Na verdade, a proximidade que ambas realizam da leitura do nosso mundo contemporâneo estabelece muito mais vínculos do que rupturas ou diferenças. Não é, com certeza, a primeira vez que, na nossa história, as relações entre arte e ciência se fazem tão intensas, confirmando as teorias deleuzianas da exo-consistência dos conceitos.
142 Mas é preciso alguns cuidados: se estamos aproximando arte e ciência a partir das suas relações com a tecnologia, não é toda a arte que circula atualmente que se faz para e neste ambiente. Assim como há focos de resistência em alguns ambientes científicos, aí incluídos certos campos ou projetos da medicina. A rigor, a maior parte da arte que circula como arte estabelecida continua vinculada à era pré-industrial, ligada à idéia de manualidade ou então apenas incorporando os inventos técnicos da Revolução Industrial, discutindo problemas como: peso, medida, resistência, fragilidade, escalas, tonalidades, totalidade de formas etc, ou seja, é uma arte que se faz com materiais, cuja aposta é a da permanência de uma idéia sobre um suporte. Uma arte do “para sempre” que teve suas origens na relação sempre tensa que os homens tiveram com a morte e que tem por modelo as pirâmides, as catedrais, as câmaras mortuárias. Da mesma forma, a bio-ciência tem seus teóricos e seus movimentos de resistência, buscando ainda um certo princípio de unidade “pura” do humano, num certo culto de um naturalismo que se traduz por práticas homeopáticas e outros tantos projetos de saúde de base quase religiosa, apenas para citar os mais exagerados. No entanto há outro e fundamental eixo que estamos vendo nascer e se desenvolver. No campo da genética e da filosofia da mente ou filosofia cognitiva surgem trabalhos e autores como Daniel C. Dennett, numa linha que eles mesmos chamam de “neo-darwinismo” social, onde a questão da seleção da espécie se recoloca, em outro nível, a partir da análise de uma leitura do código genético como um sistema de informação “somos constituídos por robôs [...] somos, cada um de nós,
uma coleção de trilhões de máquinas
macromoleculares. E todas essas são em última análise, descendentes das macromoléculas auto-replicantes originais”181 Sendo constituídos já por robôs, nada mais lógico do que a operação de implantação de nanorobôs capazes de nos restituirem ou criarem novas funções. Sem mencionar as próteses, 181
Daniel C. Dennett apud Michael Wrigley, Jornal de Resenhas, Folha de São Paulo, 11 de julho de 1998 p.6.
143 produzidas por uma engenharia médica e seus efeitos mais radicais tais como devolver movimentos a membros paralisados, intervir quimicamente nas sinapses do cérebro constituindo ou reconstituindo um novo campo de percepção e afetos. Vemos também um campo onde a medicina acentua suas outras formas de mistura: os transplantes, os hormônios concentrados quimicamente, as cirurgias virtuais e infinitas outras manifestações de uma eletrônicainformacional atuando na pesquisa do DNA etc. Sem discutir as implicações éticas destas práticas parece, no entanto, que elas ainda se relacionam com um novo projeto de evolução da espécie e portanto no seu seletivo aperfeiçoamento, possibilitado pelas novas misturas e por uma ação muito constante das descobertas tecnológicas. Produzir uma nova espécie, parece o seu desafio.182 A arte tecnológica também assume relação direta com a vida, gerando produções que levam o homem a pensar sua própria condição conduzindo a problematização da passagem de uma cultura material para uma cultura imaterial, onde os antigos artefatos e ferramentas são substituídos por dispositivos de múltiplas conexões que envolvem modems, computadores, redes e satélites intervindo na produção e na comunicação. Vemos surgirem happenings e performances vividas por corpos tecnologizados, ampliados de seus limites físicos e psicológicos, comandados por dispositivos de interação que se excluem da discussão matéria-forma em estado permanente, assim como do lugar como espaço determinado e imutável. A lógica desta arte que se faz com tecnologias interativas tem como pressupostos a mutabilidade, a conectividade, a interação, a não-linearidade, a efemeridade. Supõe assim o fim das verdades acabadas, de qualquer fixidez (talvez mesmo e principalmente do que de eterno se buscava na efemeridade da arte moderna como proposto por Baudelaire, seu grande leitor) mas supõe também a parceria, a interconexão. O corpo aí pensado e construído assume a capacidade de circular no planeta e conectar-se a uma rede mundial.
182
Parece que para esta linha o humano que tradicionalmente conhecemos é um estágio entre o macaco e o que há de vir como nova espécie pós-humana.
144 O princípio da interação, ou das interfaces, que participa da constituição da obra não é o mesmo que o consagrado princípio da surface ou superfície que, opondo-se à noção de profundidade, consagrou algumas das mais interessantes produções modernas, bastando lembrar a frase de Valéry “o mais profundo é a pele”, citada por Deleuze em seu esforço de combater o pensamento tradicional. Aqui os contatos se dão entre superfícies distintas (não permitindo a formação dos plateaux) que levam corpos diferentes a participarem da mesma decisão: conexões do corpo biológico humano e do corpo sintético da máquina, da mente humana e a mente do silício dos computadores, do sistema nervoso humano com as redes nervosas da máquina. É asssim que a arte tecnológica projeta corpo e mente, reorganizando em outro nível nossa percepção e sensibilidade. Cabe assim aos artistas o papel de ex-cedere, fazer ceder os limites, pela exploração dos comportamentos do sistema e assim produzir o que podemos chamar de corpo pós-humano. Intuíamos já que no próximo milênio seria difícil distinguir o que haveria de prótese no humano, mas o que produções como as de Sterlarc nos acrescentam é que será igualmente difícil distingüir a parte carne das máquinas. Mac Luhan já havia afirmado, numa citação que aparece em vários teóricos das relações entre arte e novas tecnologias, como Pierre Levy, Philippe Quéau, Kerckove etc que: “Só o artista pode enfrentar impunemente a tecnologia porque ele é um especialista em notar as trocas de percepção sensorial”183 Talvez o que possa decorrer daí seja uma nova idéia de subjetividade: “eu sou na medida das minhas conexões”. Vejamos então, usando Sterlarc como interlocutor,184 como o corpo é pensado a partir deste novo mundo arte-tecnológico. É interessante constatarmos também que vivemos outro tipo de mistura que não é ocasional: a maior parte dos engenheiros e informatas que tabalham nos domínios das multimídias e das realidades virtuais são também artistas. Do mesmo modo os
183
Apud Diana Domingues, A arte no século XXI, Editora Unesp, São Paulo, 1998. p.29. Sterlarc, Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a prótese, a robótica e a existência remota in A arte no século XXI, Tradução: Flavia Saretta, p.52-62. 184
145 artistas são também produtores e teóricos dos processos tecnológicos o que modifica a tradicional figura do mediador-intérprete que foi, por séculos, o responsável pela ligação entre a obra e o público ao qual esta se dirigia.185 Na realidade, ele menciona a reposição do corpo, que sairia da sua zona tradicional psicológica e biológica para a ciberzona, ou seja, romperia os limites genéticos pela extrusão eletrônica. Seriam as novas estratégias rumo ao póshumano que representariam mais um apagamento do eu do que sua afirmação. O próprio dos corpos é serem diversificados em forma e função, não sendo simplesmente conectados mas ampliados a partir dos componentes implantados. A pergunta não é mais apenas que corpo quero ter, como forma, mas que funções quero poder exercer, o que desloca a questão de um projeto estético (que não é abandonado) para um projeto pragmático-funcional. Nesta tecnologia invasiva a pele desaparece como lugar significativo, interface adequada ou barreira entre o espaço público e o aparelho fisiológico. Sua função de limite perde a força e talvez o próprio do ciber resida no ato do corpo trocar a sua pele. Mas há ainda outras e muito radicais mudanças que o levam a postular a idéia fundamental de um corpo que teria se tornado obsoleto porque é uma forma biológica limitada, mal estruturada e mal equipada para a quantidade, a complexidade e a velocidade das informações que acumulou; o corpo humano é frágil, pouco durável e pouco resistente. Assim, não se trata mais de perpetuar a reprodução da espécie humana, o que nos colocaria no fim da idéia de uma
185
Corremos o risco constante das generalizações e da imprecisão. Parece evidente que pertenceu à lógica da arte moderna, especialmente na figura de alguns dos seus produtores, o exercício de um trabalho teórico e crítico sobre a própria experiência da arte e seus limites. Poderíamos citar, para exemplificar, Klee, Kandinsky, os surrealistas, os dadaístas, etc, sem esquecer Marinetti e o manifesto futurista e sobretudo Marcel Duchamp, talvez o mais radical divisor de águas entre o moderno e a sua crise. No Brasil, o movimento modernista e os concretistas assim como, e, principalmente Helio Oiticica e seus parangolés (esculturas que deviam ser vestidas) e Lygia Clarck com seus objetos relacionais, que já demandavam um princípio de interação espectador e obra e constituiam um campo entre uma experiência psicológica de percepção e uma experiência artística, se enquadram no mesmo campo onde autor e intérprete pertencem ao mesmo lugar. No entanto, apenas para buscar compreender uma diferença, talvez possamos aproximá-los de um princípio de meta-arte, um discurso artístico sobre as obras-de-arte, noção que não esgota sua interferência mas lhes é comum. Ao contrário, artistas como Sterlarc talvez estejam construindo a meta-tecnologia e perguntando não do lado preciso da experiência artística mas a partir das novas tecnologias e
146 fisiologia e de uma filosofia humanas (o pós-humano é necessariamente um anti-humanismo). Obviamente isto incluiria a questão da sexualidade e da clonagem, na medida em que a reprodução fisiológica da espécie humana tornando-se obsoleta, isto afeta diretamente os postulados do humano, aí incluído o desejo de perpetuação da espécie que seria a base da sexualidade animal e humana. Cabe aí, talvez, uma ressalva: se para pensadores como Deleuze e Guattari o desejo é maquímico, produtor de agenciamentos e devires não é sempre de um inumano que se trata? Sem dúvida inumano não é o mesmo que pós-humano, mas nos permite refletir sobre questões que não aparecem no texto de Sterlarc. O corpo foi suporte ou limite do desejo e do desejar? Talvez por isto ele afirme que estamos no limite da filosofia porque ela foi estruturalmente baseada na nossa fisiologia, numa associação muito parecida com a que faz Michel Serres quando diz que nossa metafísica se ressente de nossa física de sólidos e que nós não sabemos lidar com gases e fluxos. Certamente a tradição da filosofia ocidental se estruturou a partir dos limites, bastando lembrar a primeira divisão do método platônico que opõe o limite ao ilimitado. E, certamente, os limites do corpo próprio geraram não apenas nossa política mas também um pensamento onde a sua existência era a diferença de Deus e da verdade, os transcedentais clássicos sendo a possibilidade de pensar, incorporar os limites do humano e de transcendê-los. No entanto talvez isto não se aplique a pensadores contemporâneos como Deleuze, Guattari e Michel Serres, entre outros, que pensaram o corpo não como entidade pura, mas como ligação: como processo e não como dado. De todo modo a proposta de Sterlarc é também um projeto: “Quando o corpo se torna consciente de sua posição atual é que ele pode planejar suas estratégias pós-evolutivas”186 O corpo obsoleto seria imediatamente o resultado delimitador de um processo: a exploração da informação como o auge da civilização humana e o
das ligações do corpo que elas engendram que tipo de experiência é possível para este corpotécnico. 186 Idem p.58.
147 clímax de sua existência evolutiva: a informação funciona como prótese para um corpo que se tornou obsoleto; ela o sustenta, mas, neste processo, obriga o corpo a irromper de seus limites biológicos, culturais e planetários. Pois as informações não são mais vivenciáveis e não contém mais o mundo: grandezas relativas a nanossegundos ou nebulosas tornam-se dados desconexos e não digeríveis, constituindo assim um processo paralisador, lentamente destrutivo que impede o corpo de realizar uma ação física filogenética. O corpo aboleto é paralisado sem as novas conexões com a técnica e a radiação das informações. Nesta reposição do corpo e do pós-evolutivo como projeto, vivemos a nova experiência da liberdade da forma que substituiria o ideário moderno de liberdade das idéias, o projeto democrático de criar diferenças do presente com o próprio presente, produzindo a noção do novo e da possibilidade. A questão agora seria a liberdade para modificar e mudar o corpo, respondendo à provocação: Qual é o corpo que eu quero ter? Assim não se discute mais a liberdade de expressão, mas a produção e o uso de códigos genéticos alternativos. Para Sterlarc, a liberdade fundamental é os indivíduos poderem determinar o destino do seu próprio DNA e a mudança biológica é encarada mais como uma questão de escolha do que de oportunidade. Neste sentido, as tecnologias médicas que monitoram, mapeiam e modificam o corpo também oferecem um meio de manipular a estrutura do corpo e seriam, portanto, experimentos pós-evolutivos. Não desparece no entanto a relação entre liberdade e vontade - expressa na idéia de escolha e isto parece nos permitir remapear este pós-humano na concepção de Nietzsche, onde o corpo é uma força que quer mais força, potência, ao contrário de uma certa apatia que costumamos associar às técnicas pós-modernas, tais como a expressam, por exemplo, Baudrillard quando pergunta se há ainda um projeto ou uma utopia que nos mova atualmente. Diante do corpo obsoleto um novo projeto se elabora: entender o corpo como objeto de um projeto, compreendendo que alterar a estrutura do corpo tem como resultado ajustar e estender sua consciência do mundo. Sendo assim, afirma Sterlarc, vivemos um período do psico-social onde o corpo girava em torno de si mesmo, orbitava tendo-se como centro, iluminava e inspecionava a
148 si mesmo como topos da psiquê e do social. Agora, obsoleto, separa-se desta subjetividade para reexaminar-se, reprojetar sua estrutura. Consideramos o naturalismo desta subjetividade um leitura inocente. Desde sempre o corpo do homem foi investido das inovações tecnológicas. É um dualismo criticável a concepção que supõe homem e sociedade de um lado e técnica do outro - como se a história humana e a técnica não pertencessem a um mesmo movimento, o que nos permite definir a política como a intervenção e o exercício de se apropriar e organizar as possibilidades produzidas pela técnica, sua distribuição e o controle de seus efeitos. Da mesma forma a idéia de subjetividade não se esgota num modelo de corpo que lhe serviu de suporte lógico. Se a considerarmos não como um dado natural e a priori, mas como um permanente processo de produção, ela se dá em territórios existenciais em formação e sua cartografia ultrapassa os limites do indivíduo. A subjetividade constrói seu território existencial a partir de outros territórios dos quais se apropria, misturando-os. Ela agencia humano e não humano, carne e metal, cérebro e silício incluindo também grupos humanos, máquinas sócio-econômicas, informacionais etc. O que chamamos de processos de singularização é a integração de variados processos de conexão, diversos sistemas semióticos num território existencial, sempre a se fazer, onde estes fragmentos heteróclitos combinados servem para inventar novas relações do corpo e com o corpo, outra imaginação, novas formas de presença, outros estilos de ser. O indivíduo emerge não de uma evolução linear da espécie humana, independente e determinada mas de um mundo complexo: biológico, técnico, político, semiótico e o incarna, corporifica-o. Não há, como nunca houve, subjetividade de um lado e técnica do outro. Do mesmo modo como criticamos os dualismos tradicionais, a saber: sujeito e objeto, natureza e cultura, interior e exterior, corpo e alma, natural e artificial, homem e máquina precisamos repensar talvez o último avatar do binarismo: a oposição entre humano e nãohumano.
149 Portanto podemos supor que o tecnocosmos está impregnado de germes de subjetividade, talvez uma proto-subjetividade na qual não se diferencia humano e não-humano. Pois o corpo obsoleto ou ausente é o das antigas conexões de uma certa histórica experiência de subjetividade. O corpo projeto é, ou pode ser totalmente ligado à invenção e articulação de novos territórios existenciais. Fizemos há pouco referência a uma diferença entre surface (surperfície) e interface considerando que talvez o mais importante do corpo cyborg fosse o ato do corpo de trocar a sua pele. Vale a pena retornarmos a este ponto a partir de uma provocação de Sterlarc: “Como superfície, uma vez a pele foi o começo do mundo e simultâneamente a fronteira do eu. Como interface, uma vez ela foi o colapso do pessoal e do político”187 Em ambos os casos a pele separava interior e exterior: era uma clausura. Hoje, esticada e penetrada pela máquinas rompem-se pele e superfície desfazendo-se as relações entre o externo e o interno e rompendo-se aquilo que envolvia a carne constituindo um eu. Pois a tecnologia não é apenas presa ao corpo, o que manteria a pele como sua interface. Ela é implantada tornando-se um componente do corpo: o marcapasso, o nanorobo etc. É curioso, que embora as tecnologias tenham sempre investido no corpo do homem, nós nos mantemos resistentes, arraigados às imagens de nós mesmos que estão em descompasso com as mudanças. Talvez apenas em alguns projetos estéticos, muitos dos quais tem a pele como objeto, como é o caso das cirurgias ou ainda de certas “correções” desejadas nesta imagem, parecemos menos assustados e mais aptos a aderir à intervenção da operação estética como uma corporificação da tecnologia, uma das maneiras pelas quais, desavisada, nossa subjetividade adere ao que há nela de maquínico. Creio que podemos pensar que aí somos ainda herdeiros da tradição platônica, pois é como se a modificação que em nós acontecesse, cujo desejo é de uma gratificação narcísica, atingisse apenas a aparência, mantendo intacta aquilo que supomos ser a nossa essência. Ficar mais jovem, adquirir outro perfil, lipo-esculpir nosso contorno, aumentar ou diminuir boca, busto e quadril parece ser apenas questão
150 de nova embalagem, como se o produto o nosso interior ficasse incólume nesta investida. No entanto, como em toda cirurgia, há riscos inerentes que corremos alegremente, no entanto, nossa filosofia parece ter há muito superado o platonismo e acreditamos, quase sempre, que não há separação entre essência e aparência. Sterlarc, que tem sido um interlocutor privilegiado pelas provocações que enuncia, afirma também e bastante categoricamente, que a tecnologia como instrumento fragmentou e despersonalizou a experiência. Mas a afirmação da perda da experiência para os humanos, modernos antes que contemporâneos, já havia sido diagnosticada por Walter Benjamin, em seu mais que consagrado artigo Experiência e Pobreza, de 1933. Portanto, não é a primeira vez que nos convidam para o seu luto. Talvez seja o momento de pensarmos diferentemente: quais são as novas experiências possíveis? Qual a disponibilidade que temos para inventá-las? O que pode ser um convite oportuno e atraente. Mudou o contexto, isto é mais do que evidente. E, em função da tecnologia a idéia de permanecer humano ou evoluir como espécie, o que parece ser o projeto generalisante das novas tecno-ciências “neo-darwinistas”, talvez não faça sentido. A tecnologia fornece individualmente a cada pessoa o poder de progredir em seu desenvolvimento e talvez possa, por isto mesmo, gerar processos de singularização, condições de produção de si, mais ricas e imediatas do que os novos projetos genéricos que a ela são atrelados. Uma nova bio-micro-antropo-política, quem sabe? Nesta direção, ou seja, na incorporação de novos territórios existenciais, a arte ou a estética podem produzir uma interferência benfazeja nas nossas relações atuais e futuras com a técnica. Pois se a natureza da arte pode mudar, e o fez, se o artista pode aparecer como um vetor de agregações, juntando elementos humanos, técnicos, digitais etc, abandonando dois mitos, o da contemplação e o da inspiração artística, é por que tem a possibilidade de, a partir da hibridização que produz, desconectar e reconectar nossa sensações e nossos afetos com outros possíveis. O que significa que os meios de criar subjetividades são também outros. Sabe o artista, e não de hoje, que a 187
Idem p.55.
151 tecnologia é parte do devir-outro do humano. Percebe que “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade autoenriquecendo de modo contínuo sua relação com o humano”, como afirma Guattari em Caosmose. E pode acreditar que a tecno-arte pode ser um dispositivo de intervenção na existência, produzindo sua expansão criativa.
Durante toda a elaboração deste pequeno livro, incorporei angústias e questões, algumas que espero ter compartilhado e outras que apontavam sempre para uma impossibilidade de sentir o que eu pensava. Em muitos momentos tinha diante de mim dois caminhos sinalizando, ambos, como estradas perigosas: não era possível voltar para trás e esquecer leituras e reflexões, não era fácil seguir em frente sem ficar muito assustada. Agora, já no final deste ensaio, que em francês diz-se essai, como tentativa, ou répétition, quando ligado à teatro, à dança etc, dou-me conta que não poderia ser de outro modo nem o fazê-lo nem o expô-lo. Assim, para finalizá-lo sem, todavia, concluí-lo, exponho a última associação que, imediatamente, seu tema em mim fez presente. Falo de duas figuras, duas pessoas existentes, embora distantes no tempo que são, de certo modo, possíveis personagens conceituais. São eles Joe Bousquet e Aimee Mullins, curiosas experiências existenciais produzidas a partir de marcas ou acontecimentos corporais que têm em comum o fato de, em algum momento, terem sido atletas. Comecemos por Joe Bousquet, e mais particularmente, com a análise que faz dele Gilles Deleuze em Lógica do Sentido188: Bousquet era um corredor que ficou paralítico depois que uma bala - um filho da guerra - atingiu sua espinha. A partir deste acidente que, diz Deleuze, ele transforma, como um estóico, num acontecimento, desenvolve uma obra literária que é uma surpreendente meditação sobre a ferida, o acontecimento e a linguagem. São dele estas formulações que selecionei pelo que de muito impressionante carregam:
152 “Minha ferida existia ante de mim, nasci para encarná-la”189 “Tudo estava no lugar nos acontecimentos de minha vida antes que eu os fizesse meus; e vivê-los é me ver tentado a me igualar a eles como se eles não devessem ter senão de mim o que eles tem de melhor e mais perfeito.”190 “Torna-te o homem das tuas infelicidades, aprende a incarnar tua perfeição e o teu brilho.”191 “Erigir entre os homens e as obras seu ser de antes do amargor.”192 “Ligar às pestes, às tiranias, às mais espantosas guerras a chance cômica de ter reinado por nada.”193
O que nele é festejável pode ser expresso numa fórmula sintética AMOR FATI - que ele reliza num movimento duplo: rejeitando o ressentimento e a condenação à uma paralisia pela transferência do ritmo: do corpo para a escrita, mas também pela maneira como o faz, já que é sobre o próprio acontecimento que ele escreve. Refaz a si mesmo, ou seja, como o diz Deleuze: “Tornar-se filho dos acontecimentos, refazer para si mesmo um nascimento, romper com o nascimento da carne”194 é a mais alta forma de ser digno do que nos acontece, na fórmula estóica tão presente nos trabalhos de Nietzsche e na admiração de Deleuze. Aimee Mullins nos é apresentada numa revista americana: J. D. Magazine de maio de 1998 num artigo de Amy Goldwasser. Trata-se de uma moça de 22 anos que nos é descrita como das mais impressionantes vitórias da biomecânica e da escultura artística. Tendo nascido sem o osso do calcanhar, amputou as pernas com um ano de idade, o que seria um destino desesperador
188
Deleuze Gilles, Lógica da Sentido, Editora Perspectiva, São Paulo, 1974. Bousquet, apud Deleuze, Lógica do Sentido, Editora Perspectiva, São Paulo, 1974. p.151. 190 Idem. 191 Idem p.152. 192 Idem p.153. 193 Idem p.154. 194 G. Deleuze, idem p.152. 189
153 para qualquer um; no entanto, com seus dois conjuntos de pernas, um para beleza e outro para performance, ela nunca se sentiu inferior. Com suas pernas de corrida, inventadas por Van Phillips, um pesquisador de próteses e, ele mesmo, um corredor amputado, ela é uma atleta de elite que sustenta recordes na sua classe que são os 100 e os 200 metros rasos: seus tempos são de 15:77 segundos para os 100 metros e 34:06 segundos para os 200 metros. Para termos uma idéia, os recordes nestas modalidades pertencem a Florence Griffith Joyner e são de 10:45 segundos para os 100 metros e 21:34 segundos para os 200 metros. Van Phillips, aliás, vai bastante longe na sua aposta. Diz ele: “Eu discuto com qualquer um que a prótese é mais rápida que a perna natural. Aposto minha casa que eu consigo fazer Carl Lewis e Michael Johnson correr mais rápido se eles perderem suas pernas”195 Mas ela tem também um segundo par de pernas, que o seu inventor (que é o mesmo) designa
das “pernas belas”. Com estas, ela é a única moça
amputada no país que parece um manequim ideal em mini-saia e sandália. “Fora da corrida, eu quero parecer com uma mulher. Quero comprar sapatos que não sejam completamente rasos (baixos) e quero ser capaz de usar saias e me sentir atraente. Se isto é vaidade, então eu partilho esta vaidade com 20 bilhões de outras mulheres”, afirma Aime. O título do artigo faz referência à consagração: “Biomecânica e escultura artística ajudam a “star-atleta” Aime Mullins a triunfar na pista - e fora”. E a sua conclusão é também otimista: se o design pode ser visto para resolver questões humanas, então o desafio de criar pernas que funcionem em duas possibilidades é o encontro da bio-mecânica com a arte. Sem o defeito, congênito, Aimme seria, muito provavelmente, uma moça comum de 22 anos. A partir de suas espetaculares próteses ela é uma espécie de fenômeno. O que aproxima e o que distancia estes dois personagens para além do fato óbvio de terem sido marcados (Bousquet diria escolhidos) por uma perda inscrita no corpo: no caso dele a do movimento, que não foi acompanhada de
154 uma amputação? Ambos superam uma determinação de destino, ambos se excluem da definição da impossibilidade de movimento e assim fogem de uma identidade constituída e fixada. Bousquet produz uma dobra sobre si mesmo. Seu ritmo e seus passos se dão em um chão de texto. Sua marcha é a escritura, lá onde ele imprime suas pegadas. Constitui assim sua subjetividade, agenciando corpo e letra. Aimee exterioriza seu processo. Articula-se com territórios de outra natureza: metal, plástico etc, produzindo, a partir do seu defeito ou de sua incompletude, formas variáveis de presença: a atleta e a modelo, identidades móveis e mutantes. Serão estas as possibilidades que vivemos de subjetivação do corpo?
Tudo indica que fizemos um longo percurso desde a Grécia mãe e seus mitos encantadores até os nossos sofisticadíssimos laboratórios de genética, informática e bio-mecânica. Que talvez possa ser expresso como a passagem de um “Decifra-me ou te devoro” a um “Cria-me, pois tecnicamente és deus”.
Rio de Janeiro, 1997-1998
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CAPÍTULO III
MONSTROS, FREAKS E CYBORGS: O OUTRO DO CORPO
ASSIS PACHECO, OLANDINA
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CAPÍTULO IV
159
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