© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa Titulo srcinal: Goce. 1* edição: fevereiro de 2007 E di tor
es
M anoel Tosta Berlinck M aria Cristina Rios M agalhães C a pa
Imageriaestudio P rodução
E di to r i al
A raide Sanches
Dados internacional de Catalogação na Publicação (CIP) B825g Braunstein, Néstor Gozo / Néstor Braunstein ; tradução de M onica Seincman. - São Paulo: Escuta, 2007. 344 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-7137-257-3 1. Psicanálise. 2. Gozo. 3. Prazer. 4. Sexualidade. 5. Histeria. 6. Psicose. 7. Desejo. 8. L acan, Jacques. 9. Freud, Sigmund. I. Seincman. M onica. II. Título. CDU 159.964.21 159.922.1 CDD 616.9792 (Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507)
Editora Escuta L tda. Rua Dr. Homem de M ello, 446 05007-001 São Paulo, SP Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 E-mail:
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Sumário
Reeditar, reescrever, atualizar Pr
i me i r a par t e :
5 T
e or i a
I -
O gozo: de L acan a Freud 1. No começo 2. O gozo em Freud 3. Retorno aos princípios freudianos 4. A lém do princípio de prazer
11 11 20 35 43
II -
Os gozos distintos 1. Entre gozo e linguagem 2. O gozo (não) é a satisfação de uma pulsão 3. A palavra, diafragma do gozo 4. A Coisa e o objeto @ 5. A castração e o nome-do-Pai 6. As barreiras ao gozo 7. A “causação do sujeito” ou além da angústia
55 55 58 67 77 85 99 109
III - Gozo e sexualidade 1. Os equívocos da sexualidade 2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro 3. A castraçãocomo causa 4. Os três gozos e a banda de M oebius 5. Freud (Lacan) ou Foucault
121 121 132 145 153 159
IV - Deciframento do gozo 1. O gozo está cifrado
177 177
2. A A psicanálise carta 52 3. nos caminhos de Proust. Gozo e tempo S egunda
V -
par t e :
184 196
C l í ni ca
O gozo na histeria 1. O psicanalista e a histérica 2. t ' função do gozo
215 215 224
3. Histeria e saber V I - A perversão, desmentido do gozo 1. O “positivo” da neurose? 2. O fantasma perverso:sabergozar 3. O perversoe o gozo feminino
234 243 243 250 260
V II - @-dicção do gozo 1. Não se elege a psicose 2. Psicose e discurso 3. Droga-@-dicção
267 267 273 279
V III - Gozo e ética na experiência psicanalítica 1. Uma prática linguageira 2. Pulsionar e seus destinos 3. O dever do desejo 4. O ato e a culpa 5. A analogia i munológica 6. A carta ao pai 7. Ceder o desejo?
289 289 293 299 304 311 316 321
8. Para três gozos, três supereus 9. Do amor em psicanálise
327 331
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Gozo era o nome original deste livro lançado no México em 1990. Em 1994 expli caram-me que a edição em francês não poderia circular com esse título tão parcimonioso porque era pouco explícito para o leitor leigo. A ssim, Gozo foi publicado pela editora Point H ors-L igne com o título de La jouissance: un concept lacanien. A partir de então sucederam -se reimpressões anto t em castelhano como em francês, até que a editora Point Hors-L igne deixou de publicar. Há pouco tempo recebi uma solicitação da Editions Erès, de muito prestígio, que propunha uma nova edição da obra. Respondi que preferia que não fosse outra reimpressão, pois havia detectado erros que gostaria de corrigir e que a tradução para o francês iria se beneficiar com uma revisão. O convite da Érès levou-me a uma releitura cuidadosa e, com ela, à convicção de que hoje poderia transmitir de um modo mais claro os conceitos elaborados 15 anos antes. Assim, em maio de 2005, sur giu uma nova edição em francês, meticulosamente revisada por Daniel K oren, com uma nova capa (K limt foi substituído por Parmigianino) e com muitas alterações, incluindo algumas referências bibliográficas de atualização que me pareceram imprescindíveis. Gozo era bem recebido em toda a A mérica Latina, bem aceito na Espanha e era freqüentemente citado na bibliografia lacaniana
internacional em inglês e francês. Meu amigo J ean-M ichel Rabaté me fez sentir extremamente honrado ao pedir-me que escrevesse o capítulo sobre “D esejo e gozo no ensino de L acan” para o
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Gozo
Cambridge Companion to Lacanque ele preparava. Redigir esse capítulo implicava resumir muitas das próprias teses do texto do livro em espanhol; ali também descobri, especialmente pelas marcações da tradutora, Tamara Francês, que podia e devia explicar melhor minhas propostas mesmo que as críticas exteriores fossem escassas. Por todos estes antecedentes, autorizaria uma nova reimpressão em castelhano ou subme teria todo o material a uma exaustiva revisão de acordo com as alterações feitas na edição francesa? Escolhi esta última opção e trabalhei avidamente em meados de 2005 na transformaçi.o do texto. O resultado é o volume que o leitor tem agora em suas mãos. A organização não foi alterada; os oito capítulos foram mantidos, conservando seus títulos originais. Mas não há nem um parágrafo que tenha a mesma redação, algumas referências desapareceram, vários erros e erratas foram corrigidos (nada garante que não apareceram novos), a bibliografia foi atualizada a partir da edição deAutres Écritsde L acan em 2001, muitos textosmportante i s
elaborados por colegas nestes anos foram incorporados às notas do livro e, em algum caso, concretamente no capítulo III, “Gozo e sexualidade”, sentiu-se, mais que a conveniência, a exigência de incluir um item especial, o quinto, para abordar as complexas relações entre o ensino de Lacan e o pensamento deFoucault. Assim surgiram essas páginas, articuladas com o conjunto do livro, sob o título de “Freud (L acan) ou Foucault” que atualizam o ponto mais debatido atualmente da contribuição lacaniano sobre o gozo. É também nesse terceiro capítulo que aparece uma inovação terminológica que me parece se impor, pelo menos em espanhol: a gozología.A lguns (Jean Allouch etc.) propuseram psicanálise é uma que é umaerotologia, mas esses mesmos autores reconhecem que essa dimensão que eu qualificogozeira de da psicanálise tem pouca relação com Eros e sim uma íntima conexão, quando não uma consubstanciação, com a freudiana pulsão de morte. Em francês ou em inglês seria difícil encontrar uma palavra eufônica e correta para
nomear isso queaem ficasurgem tão claro e rico de significação: gozología. J unto esseespanhol novo termo outros sintagma s que a timidez c o respeito por convenções linguajeiras mantiveram à
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distância tempo atrás: aspirações gozeiras, considerações gozológicas, gozificaçãoe desgozificação do corpoetc. Uma vez que o gozo tomou seu lugar na conceituação freudiana e lacaniana, a contribuição dos sufixos que nossa língua oferece converte-se em necessidade expressiva para que não haja razões para renunciar. A pós estas considerações podemos voltar ao princípio eNo princípio... NéstorA. Braunstein Cuernavaca, M éxico, janeiro de 2006
Primeira Parte T e or i a
I
O gozo:de Lacan a Freud
1. No começo... Estaria tentado a começar com uma fórmula gnômica: Im Anfang war der Genuss(No princípio era o gozo), Evangelho que, é claro, se contraporia ao começo do de São João: Im Anfang war das Wort (No princípio era a palavra).
Não me dccido a fazê-lo, porque a contraposição seria falsa e, entre gozo e palavra, não se pode dizer qual vem primeiro à medi da que ambos se delimitam reciprocamente e se imbricam de um modo que a experiência da psicanálise mostra como inextricável. Porque somente há gozo no ser que fala e porque fala. E porque somente há palavra em relação a um gozo que por ela se torna pos Im sível ao mesmo tempo que limitado. É claro que a fórmula Anfang war der Genuss agradaria ao último Lacan, mas seria inima ginável para Goethe e seu Fausto queverbo do (Wort)de São João, passavam àforça, ao sentido e, por fim, aoato: No princípio era o ato, um ato que também, por força, é efeito da palavra e está em relação com o gozo.
Uma alternativa seria causar equívoco, buscando um sinônimo que pareça aceitável e escrever: Im Anfang war die Freude(No princípio era a alegria),
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Gozo
um aforismo que enfatizaria o aspecto bem-aventurado e jubiloso que acompanha o gozo. Todavia, ao escrever de tal modo minha tentadora fórmula gnômica começaria a confundir o gozo com sua significação corrente, inespecífica, tão distante daquela que lhe adjudicamos ao considerá-lo um conceito central na psicanálise contemporânea. Por certo que, tratando-se de psicanálise, a seguinte fórmula inevitavelmente se ouve como muito parecida com a anterior: Iin Anfang war Freud(No princípio era Freud). E, uma vez pronunciada, deve-se buscar Genuss, o o gozo, em Freud, em um Freud para quem o gozo nunca foi outra coisa senão um vocábulo da língua, não fazendo dele um conceito de sua teoria. A significação vulgar, a do dicionário, é uma sombra daquela que convém distinguir constantemente caso se queira especificar este termo em seu conceito psicanalítico. E nesse trabalho de discriminação nunca se fica de todo conforme; as duas acepções sempre passam, imperceptivelmente, da oposição à vizinhança. A vulgar converte em sinônimos gozo e prazer. A psicanalítica enfrentaos fazendo do gozo ora um excesso intolerável do prazer, ora uma
manifestação do corpo mais próxima à tensão extrema, à dor e ao sofrimento. E deve optar: ou uma ou outra. E eis-me, aqui, disposto a encadear um discurso sobre o gozo, tarefa impossível, pois o gozo, sendo do corpo e no corpo é da ordem do inefável, já que paradoxalmente somente pela palavra pode ser circunscrito, indicado. O gozo é o que escorre do discurso, mas contudo esse inefável é a substância mesma do que se fala ao longo de uma análise e, tratarei de mostrá-lo, aquilo de que sempre e desd sempre fala o discurs da psicanálise. “Goze” (“goce ”, no srcinal),que não em espanhol, é umo imperativo, uma ordem, uma injunção poderia se confundir com seu precedente mais arcaico na língua, o “gozo” que, por ser inefável, é impossível de ser dito como presente do indicativo da primeira pessoa do singular. Pois, ao dizê-lo, dissolve-se, como com o impronunciável nome de Deus. “Gozo” (“goce”, no srcinal) em espanhol, der Genuss em alemão, la jouissance em francês. Nunca enjoyment.Gozarão os tradutores do
inglês, buscandodeem sua língua palavra justa. Atendendo impossibilidade nomeá-lo e à asrcem lacaniana do conceitoà muitos optam simplesmente pelo uso do francês: jouissance. “Gozo” e
O gozo: de Lacan a Freud
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jouissance que , derivam verbo latino gaudere (alegrar-se) freue n, Freunde Freud!) edo que reserva* algumas surpresas(sich na língua corrente, quando se desdobra em suas acepções segundo a autoridade, segundo a Rea l A cademia Espanhola: Gozar: 1. T er e possuir alguma coisa; como dignidade, bens ou renda.// 2. Ter gosto, complacência e alegria por alguma coisa./ / 3. C onh ecer carnalm ente uma mul her.// 4 . S entir pra zer, experimentar suaves e gratas emoções.
E interessante que a dimensão objetiva da primeira acepção predomine dimensão subjetiva da segundaseente. da quarta, que o gozo sejasobre algo aque se tem mais do que algo que se Eé surpreendente a terceira acepção. Não se pode duvidar do involuntário da distração do acadêmico ao não excluir que seja ‘outra” mulher a que pode conhecer carnalmente a “uma” e tampouco se pode duvidar de seu pudor, não isento de lacanismo no uso do artigo indefinido “uma”, pois não se pode aceder às mulheres senão tomando-as uma por uma. O sexismo semântico imprime sua marca inconfessa nesta acepção: gozar, sim,demas uma mulher no conhecimento da carne. Pareceria ser inconcebível gozar de um homem.E, para elas, só restaria gozar “conhecendo” outra. Não há reciprocidade no gozo. Palavra de acadêmico em que o psicanalista deverá pensar. “Gozar” que deriva do latim gauderee que tem uma herança reconhecida no verbo muito castiço “foder” joder (“ ”, no srcinal), um vocábulo que teve de esperar que o calendário marcasse o ano de 1984 para que a Real A cademia Espanhola lhe desse lugar pela primeira vez na trigésima edição de seu dicionário e com uma etimologia que se quer arbitrária, pois o faz descender do latimfutuere(fomicar), do qual indubitavelmente deriva a palavra francesa foutre.e Um que teve esperar séculos para de entrar no dicionário queverbo finalmente pôdedefazê-lo, mas precedido uma advertência insólita: “Voz muito dissonante”1(alguma relação, ainda *
No original, o verbo está no singular, referindo-se apenas ao gozo, deixan do de ladojouissance. (N. da T.) 1. Na última edição do Dicionário daReal A cademia Espanhol (2001) seguema!sonante, mesmo tendo sido eliminado o se dizendo que é vocábulo advérbio muito. Há uma certa atualização, correto?
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Gozo
que por oposição, com a afirmação lacaniana sobre a psicanálise como uma “ética do bem dizer”?). De qualquer maneira, o verbo “foder” não teria muito do que se queixar, pois uma vez admitido, irrompe carregado desde um princípio com quatro acepções muito ligadas aogaudere latino e a seus derivados gozar e joidr. Essas quatro acepções são, em síntese, as seguintes: 1. Fornicar.2// 2. M olestar, estorvar.// 3. A rruinar, dar a perder.// 4. Interjeição que denota assombro ou incredulidade. A s proximidades semânticas de “gozar” e “foder” poderiam nos levar a acrescentar a esse par o verbo “jogar” jugar (“ ”, no srcinal), especialmente considerarmos a proximidade fonológica em francês entrejoui r esejouer. Não obstante, a investigação filológica nos ensina que palavras como “jogar” e “jóia” não procedem dogaudere, e sim dojocum que é um gracejo ou uma troça, algo próximo ao Witz freudiano, se nos colocarmos no plano da linguagem e de seus artifícios. Seria também possível pensar que este “jogar” jugar (“ ”, no srcinal) explica o “conjugar”, a operação gramatical que se realiza •■•;rbo mas apenaspara advertir ao final que a “conjugação” não é jogo, mas subjugação, um submeter os verbos ao tormento de um mesmo jugo (juguin em latim). J ogar e conjugar que remeteriam ao célebre sentido antitético das vozes, agora não primitivas, agora derivadas, que interessaram em seu momento ao Freud paralingüista. E útil o esclarecimento, a semântica e a etimologia para introduzir este vocábulo “gozo” que receberá da psicanálise outro valor e brilho. Em psicanálise, o gozo entra atravessando a porta de sua significação convencional e assim aparece às vezes na escrita de Freud, às vezes no L acan dos primeiros tempos, como sinônimo de uma grande alegria, de prazer extremo, de júbilo ou de êxtase. Inútil e modesto seria fazer o assinalamento das oportunidades em que Freud recorre à palavra Genuss. M as seria bom recordar, independentemente dos vocábulos usados, certos momentos capitais
2. Na edição de 2001 “fornicar” foi convertido para "praticar o coito''
O gozo: deL acan a Freud
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em que o gozo, agora lacaniano, é destacado por Freud no espaço da clínica. Sobre isso, não se pode deixar de mencionar a voluptuosa expressão que ele observa no Homem dos Ratos quando recorda o relato da tortura, um intenso prazer que era desconhecido pelo paciente no auge do horror evocativo. Ou o júbilo que Freud percebe no rosto de seu netinho quando está envolvido em brincar com um objeto, o famoso carretel, da mesma forma que o próprio menino é jogado pela alternância entre a presença e a ausência da mãe; jogo de vai-c-vem do ser que se reitera ao fazer entrar e sair sua imagem do marco de um espelho. Ou o gozo voluptuoso, infinito, que experimenta o presidente Schreber, também diante do espelho, ao constatar a transformação paulatina de seu corpo em um corpo feminino. O vocábulo “gozo” aparece no ensino de L acan afetado também pelo uso convencional; não podia ser diferente. Assim foi até um momento que pode ser especificado com rigor cronológico. M as, antes, encontramos o gozo como equivalente do júbilo, e o júbilo encontrando seu paradigma no reconhecimento no espelho da imagem unificada de si mesmo,moi do (alia Erlebnis). L ogo surge o gozo no advento do símbolo (fort-da) que permite um primeiro nível de autonomia frente aos mandados da vida. Referência errática ao gozo nos primeiros anos de um ensino, o de L acan, que se centra em torno do desejo: a relação do desejo com o desejo do Outro e do reconhecimento recíproco, dialético, intersubjetivo dos desejos. Um desejo que transcendeu os marcos da necessidade e que somente pode se fazer reconhecer alienandose no significante, no Outro como ugar l do código e da Lei. Não é que o desejo esteja desnaturalizado pela alienação e por ter de se expressar como demanda por meio da palavra; não é que o desejo caia sob o jugo do significante ou que este o desvie ou o transtorne; não, é que o desejo somente chega a ser desejo pela mediação daordem simbólica que o constitui como tal. A palavra é essa maldição redentora sem a qual não haveria sujeito, nem desejo, nem mundo. E este o eixo do ensino de Lacan durante laguns anos, até o fim da décadade 1950. Os conceitos-chave nesse período são: desejo, alienação e significante. Seu discurso gira em torno das vicissitudes do desejo, a refração deste na demanda articulada, o
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Gozo
desejo de reconhecimento e o reconhecimento do desejo, o acesso à realidade que passa pela imposição ao sujeito das condições impostas pelo Outro (o mundo, a ordem simbólica que induz efeitos imaginários, a regulação da satisfação das necessidades e o ajuste das condições dessa satisfação). São as conseqüências obrigatórias de pensar a prática analítica como molinete de palavras e de reconhecer a função da palavra no campo da linguagem. Não foram poucos osdiscípulos e os leitores de L acan que se ativeram a esta apreciação menos pática do que patética dos conceitos. Não foram muitos, se é que houve algum, os que perceberam a sacudida da árvore conceituai da psicanálise naquele dia, já muito distante, em que L acan anunciou quea originalidade da condição do desejo do homem se implicava em outra dimensão diferente, em outro pólo contraposto ao desejo, que é o gozo. De imediato, nada pareceu notar-se. Foi muito lentamente que se fez patente que o novo conceito redelineava o estatuto da psicanálise e obrigava a praticar um segundo retorno a Freud, colocando-se além da dialética do desejo na obra de subversão do sujeito, tanto do sujeito da ciência quanto o da filosofia. arbitrari edade em Lacan ao promover, as sim, noçãoNada do havia gozo de a um lugar central da reflexão analítica ema contraposição ao desejo, seu “outro pólo”. Por isso é necessário que o conceito de gozo tenha que se esclarecer em uma dupla oposição, por um lado, com relação ao desejo e, por outro, com relação àquele que parece ser seu sinônimo: o prazer. Definir o gozo como conceito é distingui-lo em seu valor diacrítico diferencial nessa dupla articulação com o prazer e com o desejo. M as de onde vem ajouissance? Por que L acan recorre ao termo gozo e dele faz um conceito central? Não o extrai do dicionário da língua que se confunde com o prazer, não é da obra de Freud na qual se liga ao júbilo e à voluptuosidade, ainda que masoquista. Temos de admitir que jouissance a chega aL acan por um caminho inesperado queé o do direito: L acan se nutre com a filosofia do direito de Hegel, na qual aparece Genuss, o o gozo, como algo que é “subjetivo”, “particular”, impossível de compartilhar, inacessível ao entendimento e oposto ao desejo que resulta de um
reconhecimento recíproco de duas consciências e que é “objetivo”,
O gozo: de Lacan a Freud
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“universal”, sujeito à legislação. A oposição entre gozo/desejo, central em Lacan, tem, pois, raiz hegeliana. Lacan lê Freud com umafaca afiada na pedra de Hegel. Não se insistiu o bastante sobre este ponto, mesmo queL acan o indicasse claramente nas primeiras lições do seminário 20. Esta importação conceituai a partir da teoria do direito (proibições) e da moral (deveres) poderia desenvolver-se amplamente com profusão de citações. Contentar-me-ei simplesmente em remeter o leitor às partes 36 a 39 Propedêutica da filosófica de 1810.3E quando, entã o, o dialético toma partido contra o gozo que é “acidental” e quando se pronuncia a favor do esquecimento de si mesmo para se dirigir ao que considera “essencial” das obras humanas, aquilo que remete e concerne aos demais. Também a partir desta remota origem, vê-se que a questão do gozo como particular éuma questão ética. A psicanálise não pode ser indiferente nesta oposição que enfrenta o corpo gozante com o desejo que passa pela regulação do significante e da lei. A filosofia e o direito, em suma, o discurso do senhor, privilegia a dimensão desiderativa. Hegel, no texto citado, afirma: “Se expresso que uma coisa também agrada ou sevalor me para remeto ao Com gozo,isso, somente expresso que ame coisa tem esse mim. suprimi a relação possível com outros, que se baseia no entendimento”. Gozo que no discurso do direito remete à noção de “usufruto”, de desfrute da coisa como um objeto de apropriação. O sistema jurídico oculta que a apropriação é uma expropriação, pois alguma coisa somente é “minha” enquanto há outros para quem o “minha” é alheio. Pode-se gozar legitimamente apenas daquilo que se possui e para possuí-lo plenamente é necessário que o outro renuncie às suas pretensões sobre sese objeto. Aqui se encontram econfluem rapidamente as teorias do direito e da psicanálise. Coloca-se desde um primeiro momento a questão fundamental da primeira propriedade de cada sujeito, seu corpo, e as relações deste corpo com o corpo do outro tal como estão asseguradas por um certo discurso ou vínculo social. Questão da compra e da posse do outro
3. G. W. F. Hegel.P ropedêutica filosófica. M éxico: Unam, 1984. p. 59-62.
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Gozo
na escravidão, no feudalismo ou no capitalismo e também problemática psicanalítica do objeto da demanda; trata-se tanto do objeto oral como do excrementício. O central é o gozo, o usufruto, a propriedade do objeto, a disputa em torno do gozo do mesmo e do gozo mesmo como objeto de litígio, a apropriação ou expropriação do gozo na re lação com o Outro. M eu corpo é meu ou está consagrado ao gozo do Outro, esse Outro do significante e da lei que me despoja desta propriedade que somente pode ser minha quando arrancada da ambição e do capricho do Outro? O direito mostra com isso sua essência: a regulação das restriçõessocial. impostas ao égozo corpos. em se outras o contrato O que lícitodos fazer e até E, onde pode palavras, chegar com o próprio corpo e com o dos demais? Tema, como se vê, das barreiras ao gozo. Licitude e licenças. M as não é só a teoria do direito. Também a medicina e o que a psicanálise descobre nela atuam como fonte de inspiração para a promoção lacaniana do conceito degozo. Foi em 5 de março de 1958 que, em seu seminário dedicado a“As formações do inconsciente”4 L acan propôs amencionadabipolaridade entre gozo e desejo. Mas foi em uma ocasião bastante posterior, em 1966, falando de “Psicanálise e medicina”, que ele recordou a experiência banal do médico obrigado a constatar vez ou outra que, sob a aparência da demanda de cura, esconde-se com freqüência um apego à doença que derrota sem perdão os progressos que a técnica põe ao alcance do médico. Que o corpo não é unicamente a substância extensa preconizada por Descartes em oposição à substância pensante, mas que “foi feito para gozar, gozar de si mesmo”.5Este gozo, disse, é o mais evidente, ao mesmo tempo que o mais oculto na relação que estabelecem o saber, a ciência e a técnica com essa carne que sofre e que é feita corpo que se põe nas mãos do médico para sua manipulação. Ali está, à vista de todos: o gozo é carta a roubadaque o imbecil do delegado não pode encontrar no corpo do paciente 4. J. L acan (1958). Le séminaire. Livre V. Les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998. p. 251-2. 5. J. L acan (1966). I ntervenciones y textos. Buenos A ires: M anantial, 1985.
p. 86-99.
O gozo: de L acan a Freud
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depois fotografá-lo, radiografá-lo, diagramá-lo atéseuma escala de molecular. O gozo é o viventecalibrá-lo de uma esubstância que faz ouvir por meio do desgarramento de si mesmo e da colocação em xeque do saber que pretende dominá-la. A medicina surge, deve-se lembrar a lição de Canguilhem,6 como uma reflexão sobre a doença e sobre o sofrimento doloroso dos corpos. A preocupação com a saúde e com a fisiologia é secundária ao interesse pela patologia. A medicina define sua meta como um estado debem-estar, de adaptação e de equilíbrio. Não é difícil reconhecer nela o ideal freudiano inicial (médico, certamente) do princípio de prazer, da menor tensão, da constância e o equilíbrio. A saúde recebe da medicina sua clássica definição: “é o silêncio dos órgãos”. M as o silêncio não é senão ignorância, a indiferença do corpo e de suas partes ante a agitação da vida. “Gozar de boa saúde” pode ser, assim, uma renúncia à experiência do gozo em favor das vivências do prazer, do que alheia e aliena o sujeito da vida do seu corpo como uma propriedade de alguém, ele mesmo, que o usufrui. Naquela conferência L acan dizia: “O que chamo gozo no sentido daquilo que o corpo experimenta é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, inclusive da proeza. Indiscutivelmente, há gozo no nível em que começa aparecer a dor, e sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar toda uma dimensão do organismo que, de outro modo, permanece velada”. O “gozo daboa saúde” pode ser o contrário do gozo do corpo como experiência vivida do mesmo. A medicina vê-se, assim, dividida entre as metas do prazer e o gozo e, normalmente, assume sem crítica a demandaque se lhe formula: a de colocar barreiras ao gozo, ignorando-o como dimensão corporal da subjetividade. Pode-se aludir à pergunta sobre esta relação entre medicina e gozo e o vínculo que esse não querer saber do médico tem com o discurso do senhor, ou pode-se eludi-la. Prefiro aludir a ela: outros poderão tratá-la minuciosamente.7 Não serão os primeiros, mas talvez os mais
6. G Canguilhem. Lo normal v Io patológico. Buenos A ires: Siglo X X I, 1971. 7. J. Clavreul. L ’ordre médical. Paris: Seuil, 1979.
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precisos. A o terminar sua conferência de 1966, Lacan definia sua ambição: continuar e manter com vida própria a descoberta de Freud, fazendo de si mesmo um “missionário do médico”. Era destacando essa idéia do gozo do corpo como o que se localiza “além do princípio de prazer”, que L acan assumia de modo radical sua missão, contrária à empresa universal da produtividade. O saber resiste à noção do gozo inerente aos corpos, uma idéia que somente se pode propor a partir da “descoberta de F reud”, de Freud no sentido subjetivo do “de”, aquilo que Freud descobriu, e também no sentido objetivo, aquilo que L acan descobrir ao descobrir Freud. Essa descoberta de Freud tem um nome inequívoco: o inconsciente. Cabe então a pergunta: por que apenas a partir da novidade lançada por Freud pode-se estabelecer o articulação entre gozo e corpo? Para respondê-la, deve-se fazer um segundo “retomo a Freud”.
2. O gozo em Freud Pois... lm Anfang war Freud. No começo era Freud pregado ao discurso oficial da medicina, aderido a uma concepção mecânica e fisiológica do sistema nervoso como um aparelho reflexo que recebia e descarregava as excitações que a ele chegavam. O organismo, tal como concebido pelo primeiro Freud, está regulado por vias nervosas aferentes e eferentes que aspiram evitar a tensão e a dor e provocar estados de distensão, de apaziguamento, de diferença energética mínima, que se sentem subjetivamente como prazer. Para esse Freud médico e neurologista, cenário mais do que autor da descoberta do inconsciente, as neuroses eram estados mórbidos que sobrevinham sob a forma do sofrimento quando o aparelho não podia livrar-se dos incrementos de energia que o transformavam. Recordemos esquematicamente que ele reconhecia três organizações diferentes:8um sistema $ para receber as excitações e dar conta das modificações que se 8. S. Freud (1896). Obras completas.Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires: A morrortu, 1976. v. I, p. 1.
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produzi entorno; de umdescarga, sistema para l ibrar as carga s, para facilitaram osno caminhos paraequi fixar e avaliar as excitações; e um sistema co para registrar os acontecimentos como experiência memorizada e oferecer um acesso direto à realidade. Nesta primeira exposição metapsicológica, de 1895, oeu faz parte do sistema VF e ocupa um ul gar decisivo no processo defensivo a serviço do princípio de prazer-desprazer. Com este aparelho, apresenta-se uma primeira versão da srcem e funcionamento do inconsciente. O paciente da neurose, o “doente”, é uma criança que viveu passivamente umasedução por parteedum adulto; a sexualidade aparece primeiro no Outro. Essa criança registrou (em co) essa irrupção do rea l sexual externo. A lembrança éuma marca que não pode integrar-se no sistema de representações (ou de “neurônios”) que é o sistema do eu ('P), porque sua presença provoca um aumento tensional que não encontra caminhos para sua descarga. Em outras palavras, a lembrança traumática é um tipo de corpo estranho ao eu que ameaça o sistema em seu conjunto. Para o princípio de prazer, que pretende o equilíbrio energético, esta lembrança é inassimilável, não cabe na memória, e por isso é separada do sistema reconhecido das representações. É assim que a lembrança se torna traumatismo, ao mesmo tempo ferida e arma ferina que não se pode tolerar; dor e tortura de uma memória inconcil iáveis com o eu. O aparelho neurona l - ou o sujeito, caso se queira arriscar uma premonição de lacanismo separa-se horrorizado da lembrança. M as esse afastamento, essarepressão, longe de fazer desaparecer a evocação do trauma, a eterniza: impossível metabolizar e digerir, fica a lembrança como um quisto localizado na estruturapsíquica. Já não é possível atenuá-la, dela se esquivar com o raciocínio ou com o esquecimento. O paradoxo é evidente: o princípio de prazer determinou o ostracismo e a exclusão da lembrança traumática. Para se proteger do desprazer, o aparelho decretou a ignorância dessa presença do Outro e de seu desejo que intervém sobre o corpo de uma criança, objeto indefeso do qual abusa para gozar. Mas, ao cindir-se como núcleo reprimido de representações inconciliáveis com o eu, este réprobo do psiquismo, metamorfoseado em memória inconsciente,
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conserva-se para sempre, torna-se indestrutível, atrai e liga a ele as experiências posteriores e retorna, opressivo, às vezes nas posteriormente chamadas “formações do inconsciente”, entre as quais o sintoma é a mais sensacional. L acan insistirá em assinalar que o reprimido não existe senão por seu retorno e quea repressã o é o mesmo que o retorno do reprimido. O princípio econômico do prazer engendrou a persistência onerosa e antieconômica do intolerável que volta e faz sofrer. O sujeito, aquele do inconsciente, experimenta a si mesmo na tortura dessa memória recorrente que o põe em cena como objeto da lascívia do Outro. O eu produziu o efeito paradoxal de aprisionar o inimigo perigoso, o desencadeante de reações imprevisíveis se deixado em liberdade. Para conservá-lo na prisão, deve viver defendendo-se de sua possível fuga, de uma fuga que não deixa de se produzir quando se enfraquecem as defesas. Fica submetido a seu submetido, escravo de seu escravizado. Agora, o agente traumatizante não é mais o Outro, mas a lembrança dasedução que ata ca - e sempre desde dentro, desde sua prisão. Não há escape possível. O sistema gerou aquilo do qual, doravante, terá de se defender. O externo tornou-se o mais íntimo, um interior inacessível e ameaçador. Esta primeira teoria da etiologia das neuroses é o solo natal daquilo de que a psicanálise nunca chegará a se desprender. Incluindo aí a teoria do gozo. A sedução. O corpo da criança é a coisa indefesa e se presta ao abuso. O objeto reclamado por e para o Outro. Essa sedução se faz presente com os primeiros cuidados, com os modos como se administra .a satisfação das necessidades, com a regulação e sujeição do corpo da criança às exigências e aos desejos inconscientes do Outro. Há um motivo daquilo que não pode haver motivo, um enigma sem solução. Quem poderá definir o lugar que a criança ocupa como objeto no fantasma do Outro, em especial o Outro materno, que é o sujeito? Quem poderá saber o que ele mesmo e desde o nascimento representa no desejo do Outro? A se-dução vetoriza, atrai e aliena o desejo da criança em relação ao desejo desse Outro que chama a si (se-duz) ao mesmo tempo em que erige defesas e emite proibições que constituem e rodeiam com cercas de arame farpado o objeto de um gozo eventual. Desejar e desejar o
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proibido. A sedução srcinária, essencial, não caricata, localiza gozo no corpo e o prepara para sua imediata condenação. O ogozo chega assim a ser inaceitável, intolerável, inarticulável, indizível. Em outras palavras: fica submetido à castração. Assim, faz-se sexual a sexualidade, canalizando-a pelas vias que Freud batizou com o nome de um certo rei de Tebas de sorte tão funesta como sua memória. Parece que seguíamos no caminho de Freud, mas, sem nos afastarmos de suas formulações, o desviamos no que se refere às conseqüências. O aparelho psíquico que desenhamos não está governado por um contrapostos. princípio soberano, o do esquematicamente: prazer-desprazer, mas por dois princípios Colocando de um lado, o clássico princípio de prazer, regulador ehomeostático(se nos atrevermos a usar uma palavra que Freud nunca usou, se é que chegou a conhecê-la); e, de outro, um princípio que está além, chamemo-lo por enquanto de gozo, gozo do corpo, que orienta um retorno incessante de excitações irreprimíveis, uma força constante que desequilibra, sexualiza, torna o sujeito desejante e não máquina reflexa. Não seria lícito figurar assim, mediante o gozo, o Aqueronta da indelével epígrafe daTraumdeutung? a sarça ardente onde habitam as sombras irredimidas que perturbam para sempre o sono dos vivos?Flectere si nequeo superas, Acheronte movebo. A carne doinfans é desde o princípio um objeto para o gozo, para o desejo e para o fantasma do Outro. Ele deverá conseguir representar para si seu lugar no Outro, ou seja, deverá constituirse como sujeito passando, imprescindivelmente, pelos significantes que procedem desse Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo, inter-ditor do gozo. O gozo fica assim confinado por essa intervenção da palavra, em um corpo silenciado, o corpo das pulsões, da busca compulsiva de um reencontro sempre fracassado com o objeto. Falo doWunschfreudiano, efeito da experiência de satisfação. Falo do desejo inconsciente e de seu sujeito. O sujeito, aquele que L acan introduz na psicanálise por tê-lo ouvido falar nela, produz-se, então, como função de articulação, de dobradiça, entre dois Outros, o Outro do sistema significante, da linguagem e da Lei, por um lado, eo Outro queé corpo gozante, 9. S. Freud (1900). Obras completas,v. IV, p. 339-436.
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incapaz de encontrar um lugar nos intercâmbios simbólicos, aparecendo nas entrelinhas do texto, suposto. teoria traumática do primeiro a colocação em cena desseA excesso de excitação e carga,Freud desseé gozo impossível de manejar que seapresenta ultrapassando o sistemaamortecedo r das representações (Freud), dos significantes (Lacan), que são o lugar do Outro. O gozo: inefável e ilegal; traumático. Um excesso trop- ( matisme,C. Soler) que é um buraco trou-matisme) ( no simbólico, segundo expressã o de L acan.10Esse buraco indica o lugar do real insuportável. Deste modo, o gozo consegue ser o exterior, o Outro, dentro de si mesmo, representante do Um resignado para entrar no mundo dos intercâmbios topos Um ainacessível para o sujeito que o aloja ee da que,reciprocidade. por razão alheia, do Outro exterior internalizado, deve ser cuidadosamente exilado. Esta posição de exterioridade interior, tão semelhante àquilo que Freud chamou Isso (Es), é trabalhada topologicamente por Lacan quando se fala de extimidadeV É, sem dúvida, o obscuro núcleo de nosso(Kern ser unseres Wesen).N ão se trata aí de palavras, não se trata do inconsciente. M as tampouco é alheio à linguagem, pois é da linguagem que fica excluído e é apenas pela linguagem que podemos conhecê-lo. Não; nãorequererá é palavra,um é letra, escritura a decifrar. ciframento do gozo capítulo especial, o quarto.O deA o resenhar seu seminário sobreA lógica do fantasmaem 1967, Lacan12chegou adizer que esse gozo, núcleo de nosso ser, “é a única ôntica admissível (avouable -confessável) para nós”. A substância da análise. M as o gozo não pode ser abordado senã o a partir de sua perda, da erosão do gozo produzida no corpo pelo que vem desde o Outro e que deixa nele suas marcas. O Outro não corresponde a nenhuma subjetividade, mas sim às cicatrizes deixadas na pele e nas mucosas, pedículos que se combinam nos orifícios, 10. J. L acan. Le séminaire. Livre XXI. Les non-dupes errent.A ula de 19 de fevereiro de 1974. Inédito. 11. J. L acan (1959). Le séminaire. L ivre VII. L ’étique dans la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. p. 167. 12. J. L acan (1967).Resehas de ensenanza. Buenos A ires: M anantial, 1984. p. 45.Ornicur?, n. 29, p. 17, 1984.
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ulceração e usura, escarificação e lástima, mágoa e dor, penetração e castração. Tudo ( isso é apenas paráfrase.) O trauma freudiano explicava as psiconeuroses de defesa; agora pode-se dizer que essa defesa é defesa frente a uma elevação no gozo, que a defesa é neutralização de uma lembrança vivida de modo prazeroso ou desprazeroso. Se a experiência foi de prazer, as defesas e os controles devem erigir-se no próprio sujeito: a configuração sintomática, centrada na formação reativa, será a da neurose obsessiva, a de alguém que se distancia de seu próprio gozo. Se a experiência foi desprazerosa, segundo Freud, o perigo será representado como provindo do Outro sedutor; as defesas serão as da aversão e da conversão somática próprias da histeria frente a um gozo suposto no Outro. Os dois modos de relação com o desejo do outro que caracterizam, distinguem e opõem a neurose obsessiva e a histeria são, assim, modos de separação. O sujeito se desvia do gozo que é deslocado e realocado no corpo como sintoma. Com o estabelecimento da neurose, isso, o corpo, fala; o gozo desterrado volta por seus foros, demanda um interlocutor, dirige-se a um saber que falta para que suas inscrições possam ser decifradas pelo único desfiladeiro possível, a palavra. Essa é a doutrina freudiana do sintoma. A fórmula consagrada e reiterada várias vezes por Freud para definir o sintoma é “satisfação sexual substitutiva”. A teoria do tratamento psicanalítico está fundada, desde o princípio, na possibilidade de habilitar o caminho da palavra a esse gozo sexual, encapsulado e seqüestrado não disponível ao sujeito. Em Freud, também em Lacan no início, o objetivo é a inclusão do reprimido no contexto de um discurso amplo e coerente. A prática da análise deveria permitir a inclusão do gozo na história do sujeito como integrando-a a um saber que pode chegar a ser o saber de alguém, pronto a dotar-se de sentido, pronto, por isso mesmo, ao equívoco e ao incomensurável. Wo Es war soll Ich werden. Impossível dizê-lo com maior economia. Esta posição do sintoma como gozo encapsulado é paradigmá tica e vale para todas as formações do inconsciente. O inconscien te mesmo consiste nessa atividade dos processos primários encarregados de operar um primeiro deciframento, uma transposi
ção, umaEntstellungdos movimentos pulsionais até figurá-los como
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cumprimentos do desejo. A condensação c o deslocamento, opera
ções uma substância sãotransforma passagens dessaexercidas escritura sobre srcinária à palavra, sãosignificante, processos de ção do gozo em dizer, do gozo do corpo em dizer em torno desse gozo. Os processos primários executam um contrabando do gozo. O gozo, por ter de dizê-lo, é evocado, frustrado, deslocado para o campo do perdido, ao outro pólo: o do desejo. M as o inconsciente existe apenas na medida em que seja escutado. Somente se isso que é dito encontra um bom entendedor, alguém que não o afogue no marulho do sentido, alguém que resgate sua condição enigmática e habilite um possível gozar do deciframento. Assim, o inconsciente depende da formação do analista. O gozo, suposto prévio, será o efeito e o produto da ação interpretativa que produz a boa sorte, a feliz hora de um saber alegre. Toda a teoria freudiana sobre os sonhos e sua interpretação é re-volvida por Lacan a partir de suas conferências pelo rádio em junho de 1970,13na qual os processos do inconsciente são postos em relação com o gozo. E, pouco depois, no seminário 20,14 especificará ao como estabelecer que, apesar deéomenos inconsciente sua estarcolocação estruturado uma linguagem, não claro que o inconsciente depende do gozo e é um aparelho que serve para a conversão do gozo em discurso. Não creio que seja injusto buscar aí o sentido do aforismo freudiano clássico: “o sonho é a realização de um desejo”. A realização do desejo ( ) é sua Erfiillung satisfação, portanto, seu desaparecimento como desejo, como falta a ser, como cisão do sujeito. Por isso, pode-se dizer que o sonho é alucinação do gozo e também defesa em relação a ele (em suma, formação de compromisso), pois esbarra no impossível de representar e dizer. E sabido que o processo de interpretação do sonho encontra um limite no contato com a satisfação desnuda do desejo que deve figurar e que esse é o momento do despertar e da angústia. A angústia é o afeto que se interpõe entre o desejo e o gozo, entre o sujeito e a Coisa.
I14. 3. J. acan (1970). Radiophoni e. In:Livre Autres Paris: SeuiSeuil, l, 2001.1975. p. 403-48 . J. LL acan (1973).Le séminaire. XX.écrits. Encore. Paris: p. 49.
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É lambem sabido que a interpretação do sonho conduz a um enigma ininterpretável; é o ponto em que o sonho assenta no não conhecido, em um inacessível lugar de sombras. Freud15reconhece e batiza esse ponto com o nom e de “umbigo” do sonho; ele é, podese generalizar, o umbigo de todas as formações do inconsciente. Todas elas podem ser compreendidas como eflorescências, como fungos que se elevam desde um micélio que está além das possibilidades do dizer: S (A). Faltam palavras para simbolizar isso que pelas próprias palavras chega a se produzir como impossível, real, gozo. Não seria trabalho inútil reler sob esta luzAtoda interpretação dos sonhos, mostrando a relação que há entre aEntstellung (distorsão) operada pelo trabalho do sonho como primeiro deciframento do gozo e pelo trabalho interpretativo do analista. Por esse caminho desembocar-se-ia no capítulo 7 e se descobriria na concepção do aparelho psíquico a maquinaria que converte o gozo em um discurso que o evoca e que é a única via que permite abordálo. Razão pela qual o sonho é o caminho real que conduz... ao impossível, a esse impossível decifrado e tomado irreconhecível pelo trabalho do inconsciente. O inconsciente tear, urdindo os sonhos, permite continuar dormindo. em E o seu guardião do repouso. Se o sonho é formação de compromisso a serviço do princípio de prazer, é devido à sua natureza bifronte. Decifra o gozo, coloca-o em palavras, cuidando ao mesmo tempo para que seu montante não exceda certos limites de segurança, tratando de colocar o fluxo das representações oníricas no centro desse “tijolo de segurança” por onde devem voar os aviões para evitar a perturbação do encontro com outros objetos voadores. E possível recordar que o primeiro Lacan (na conferência de 6 de julho de 1953 sobre o imaginário, o real e o simbólico) enquanto preparava seu discurso de Roma, sustentava que a leitura de A interpretação dos sonhos mostrava que sonhar era imaginarizar o símbolo, enquanto interpretar o sonho era simbolizar a imagem. E bem que poderia ser assim, mas ao preço de desconsiderar o resto, o significante doindizível com qUe se tropeça ao querer 15. S. Freud ( 1900). Obras completas,v. V, p. 5.
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simboli zar a imagem [S (A)] e o doirrepresentávelquando se trata de imaginarizar o símbolo. O que ficaria de fora? O não especular, o objeto @* que, como doeleva desejo (mais-de-gozo), justamente o micélio sobre ocausa qual se o fungo do sonho comoé discurso e também o discurso como sonho, assento e suporte de um primeiro decif ramento do gozo. A ssim entendemos, com L acan, a micótica metáfora de Freud. O sonho, cogumelo do gozo. Deslocamento? Sim; deslocar, transpor. Esse é o trabalho do inconsciente. Um maldito sacré ( ) deslocamento. E o de L acan? Entstellung,re-flexão de Freud a partir do gozo. Segundo retomo. Também nós teremos de retornar.
A “Psicopatologia da vida cotidiana”16ilustra, tomando o discurso como um sonho, a presença deste ciframento e deciframento do gozo. O sujeito transtornado, subvertido pela lapsus emergência de um saber inesperado ( ) ou pela falta de um significante que traz associações perturbadoras (esquecimento de nomes próprios, inesquecível Signorelli) ou por uma ação que falha na hipocrisia do eu. O sujeito fica deslocado e envergonhado. A tensão u( neasiness) do corpo confessa o gozo que escapou pelos resquícios da função intencional da palavra que consistia em mantêlo cindido e desconhecido. O sujeito do lapsus é o sujeito “embaraçado” que manifesta seu embaraço ao não saber mais quem é, porque o Outro éxtimo se expressou. A verdade pega a mentira *
O leitor pode se surpreender ao encontrar esta grafia para se referir ao que L acan considerava sua criação mais importante. Ele começou utilizan do o a em itálico para indicar que se tratava de um objeto imaginário. O uso habitual com a letra a minúscula presta-se a confusões em diferentes contextos com a preposição “a” em espanhol, ou com a conjugação do verto “ter” (il/elle a) em francês. Se L acan tivesse contado com nossos dispositivos atuais de escrita, é bem possível que houvesse admitido este signo (@) com entusiasmo: é uma letra pura, sem valor fonemático, uma escrita carente de toda significação, o matema por excelência. Haveria de dizer que @ é @-fônico. Gostaria que o uso da letra @ no texto que se gue pudesse chegar a ser de uso universal em nossa álgebra Iacaniana. Na linguagem falada, de qualquer forma, deverá seguir pronunciando a pri meira letra do alfabeto, da mesma maneira que dizemos “zero” ou “um” para maternas que somente podem ficar danificados pela fala.
16. S. Freud (1901).Obras completas,v. VI.
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no equívoco e o eu se revela nesse momento como função de desconhecimento, proteção excesso, A palavra, normalmente, tem de a missão de frente impediraoque essas fugas (cotidianas e psicopatológicas) se repitam. Missão impossível. Sabe-se que Freud trabalhava em 1905 sobreduas mesas. Em uma escrevia “O chiste e suarelação com o inconsciente”,17na outra “Três ensaios sobre ateoria da sexualidade”.18Quem observou que as duas obras são uma? Os freudólogos preocupam-se ainda em descobrir qual das duas foi primeiramente terminada ou publicada sem considerar a fraternidade solidária entre as duas portas, duas portas que são o corpo do simbólico e o simbólico do corpo. O chiste e a sexualidade, o atamento entre palavra e gozo, revelam-se tanto em um quanto no outro texto. Do lado Witz, do o afeto, a alegria, a explosão prazenteira da gargalhada, a excitação da lembrança do chiste escutado ou relatado, o riso como objeto de intercâmbio, a demanda que está implícita ao relatar um chiste: “Dême sua risada”, a sacudida corporal que é provocada pela saída insólita e surpreendente de uma palavra estranha ao discurso. Todas são expressões de uma sexualidade que desliza e patina no pavimento do significante. O corpo é um efeito feito na carne pela palavra que o habita; é o corpo constituído pelos intercâmbios e resposta s recíprocas às demandas. A sexualidade - é a tese de 1905 - tem uma genealogia, que éa da dialética da demanda e do desejo entre o sujeito e o Outro. O sujeito é essa função de articulação entre o corpo e o Outro, o corpo como Outro e o Outro como corpo. O afeto é um efeito da incorporação da estrutura e da incorporação do sujeito na estrutura. Esse é o chiste. Que a palavra tome corpo, que o corpo tome a palavra. O gozo decifra-se no riso que está além do sentido. Se a explicação mata o chiste é porque o transfere desde o sem sentido, onde se goza, até o sentido, onde sua existência já é de prazer. O gozo desconcerta, o prazer con-certa, acalma. Cabe aos psicanalistas tirar a lição e decidir para onde apontarão com sua intervenção: para o sentido que dá prazer ou para o goz o que revela o ser? 17. S. Freud (1905). Obras completas, v. VIII. IX. S. Freud (1905).O bras completas, v. VII.
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A sexuali dade endógenaou exógena ? A pulsão, um fato natural ou um efeito dos intercâmbios? O gozo, emanando do sujeito ou do Outro? As topologias bilaterais, diádicas, opositivas, não podem senão extraviar. O império da banda de M oebius e sua desconcertante continuidade é aqui absoluto. A sexuali dade não afeta o corpo a partir de dentro dele mesmo ou a partir de fora do gozo perverso do Outro, mas é litoral de união-desunião do sujeito e do Outro. Caso fosse possível desenhar o sujeito e o Outro como dois círculos eulerianos, dever-se-ia tomar a precaução de não fazê-los com dois traços fechados sobre si mesmos,
mas com um traço tão contínuo quanto o da própria borda da banda de M oebius:
Sujeito
Outro
no qual a mínima descontinuidade imposta ao arranco do vetor não é mais do que um artifício necessário à representação intuitiva, pois nenhuma descontinuidade pode se marcar no real entre uma e Outra sexualidade. A sexualidade, a pulsão, o gozo. De Um e do Outro.De um fora que é dentro e de um dentro que está fora. O princípio de prazer revela aqui sua essência. É o modo de conter e refrear, por meio de uma instância interposta - o eu - o gozo. Sua operação não depende da Lei. É uma barreira queL acan chama “quasenatural”.19Seu funcionamento é comparável ao dos 19. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 821; Escritos 2. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 801.
( i )'o/.o: deL acan a Freud
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liiMvcis na instalação elétrica. A Lei, Lei aqui com maiúscula, agrega.(■secundariamente e faz desta barra quase natural um sujeito I urrado. O prazer é um dispositivo built-in, incorporado desde o pi incípio, uma função da ordem vital, incoerente, mas ineludível. A ele se agregará, em um momento logicamente posterior, uma pmihição externaalém de toda acontestação: é a L ei. L acan escreve Iri do prazer” e “L ei do desejo”. Deve-se observar o uso das minúsculas e das maiúsculas que remetem umas à ordem da n.iiureza e outras ao registro simbólico. A lei do prazer é o lundamento, orgânico, diríamos, da Lei. 0 gozo está proibido ao que fala como tal. A L ei funda-se por t-sia proibição; é Outra, uma segunda, interdição. É aquela que Freud encontra quando deve reconhecer em sua teoria e na clínica o caráter decisivo, irredutível e heteróclito do complexo de castração. E a pmibição do gozo que traz uma marca e um sacrifício: aquele que iecai sobre o falo que é, por suavez, o símbolo dessaproibição. A I .ei faz, assim, a lei entrarna ordem simbóli ca. A L ei do desejo. Tudo que foi exposto sobre a teoria lacaniana do gozo tem lu(■ar, em meio a esta revisão da obra de Freud na perspectiva de um segundo retorno a ela para ressignificá-la em torno do conceito de gozo, à medida que, como se sabe, o complexo de castração é o ponto culminante da teoria da sexualidade na obra de Freud. Com eleito, os trê s ensaios de 1905 não culminam senão em 1923 com o artigo “A organização genital infantil”20que preanuncia os decisi vos acréscimos que fez aos três ensaios, na edição de 1924, na leescrita da psicopatologia psicanalítica em 1926 com “Inibição, sinloma e angústia” e na nova teoria das perversões, autêntico final dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, que é o artigo “Fetiihismo”21 de 1927. Ter-se-á a oportunidade de voltar à relação entre gozo e cas tração. Poder-se-ia dizer que tal é a oposição fundamental na clínica lacaniana já que é o eixo sobre oqual se articula a direção do trata mento analítico. O interessante, no momento, é marcar como a teoria freudiana da sexualidade deve ser entendida a partir do complexo de eastração. E adiantar, desde já, esta relação das duas leis: a do 20. S. Freud (1923).Obras completas,v. XIX , p. 145-50.
21. S. Freud (1927).Obras completas, v. X X I, p. 147-52.
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prazer e aL ei da castração ou do dese jo. A segunda é aque se en carna - se incorpora melhor do que se encarna no sujeito por meio daquilo que Freud descobriu antes do complexo de castração, ou seja, o complexo de Édipo. Incorpora-se, posto que faz da car ne corpo, desaloja o gozo dessa carne, o barra, o proíbe, o desloca, o promete. O sujeito deve renunciar ao gozo em troca de uma pro messa de outro gozo queé aquele próprio dos sujeitos daLei. Pelas vias - ambas assinaladas por Freud, ambas contestadas justificadamente por Lacan - da angústia decastração masculina e da inveja feminina do pênis, o sujeito vê-se levado, primeiro, à localização do gozo em um lugar do corpo e, segundo, à proibição do acesso a esse gozo localizado se não passar antes pelo campo da demanda dirigida ao Outro, ao Outro sexo, no amor. O gozo srcinário, gozo da Coisa, gozo anterior à L ei, é um gozo interdito, maldito, quede veria ser declinado e substituído por uma promessa de gozo fálico que é consecutiva à aceitação da castração: “Somente lhe é lícito pro curar aquilo que perdeu”. O gozo fálico é possível a partir da inclusão do sujeito como súdito daLei no registro simbólico, como sujeito dapalavra que está submetido às leis da linguagem. O gozo sexual faz-se, assim, gozo permitido pelas vias do simbólico. freudianoarticulatória complexo deentre Édipo encontra, então, seu lugar comoOdobradiça dois gozos diferentes. A L ei, que separa do gozo da mãe e põe o nome-do-Pai nesse lugar, ordena desejar; este desejo encontra sua possibilidade de realização por meio do viés do amor - que será um tema a ser tratado na perspectiva do gozo (capítulo 8) - , do amor como sentimento encarregado de suprir a inexistência da relação sexual e de trazer de volta o gozo a que se teve de renunciar. A obra de Freud, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” encontra sua continuação lógica nos trabalhos sobre a psicologia da vida amorosa,2 2 também três, e ne sse texto capital sobre o amor que, de modo aparentemente paradoxal, chama-se “Sobre o narcisismo: uma introdução”.23
22. S. Freud (1910, 1912, 1918). Obras completas,v. X I, p. 155-204. 23. S. Freud (1914).Obras completas,v. XI, p. 65-98.
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É como clínico da história amorosa seus sujeitos Freud encontra as tendências dissociativas nade vida sexual dosque homens, tendências essas que os levam a desmembrar em si mesmos a ternura e a sensualidade e a cindir o objeto amoroso entre a mãe e a prostituta, assegurando assim sua insatisfação e fugindo sem parar de uma para aoutra. Apartir daí, já em 1913, Freud enuncia em seu texto “Sobre a degradação da vida erótica” que há algo implícito na própria pulsão sexual que conspira contra sua total satisfação. Finalmente, com seu terceiro artigo sobre a vida amorosa, “O tabu da eleochega a distinguir sexual caráter inibidor do virgindade”, gozo que tem fantasma do gozonadovida Outro, daso mulheres neste caso, e colocará com clareza que os desejos se engendram reciprocamente (ainda que a fórmula segundo a qual o desejo é o desejo do Outro não seja sua), enquanto os gozos de um e de outro (sexo) instauram-se em um plano de oposição e concorrência. A vida amorosa não é, pois, em nenhum momento daobra de Freud, uma promessa de bem-avcnturança e complementaridade. Isto fica claro como o dia quando se lê “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Por meio de do que amor, o sujeito tenta recuperar o estado de absoluta felicidade supostamente dispunha quando His era Majesty, lhe Baby e era encarregado de suprir tudo o que faltava no Outro. Primeiro tempo do Edipo, identificação com o falo mais do que “narcisismo srcinário” como ali é chamado. “Deve (o bebê) realizar os sonhos, osdesejos não realizados deseus pais”.24 Para isso, conta com o amor por si mesmo, reflexo do amor que lhe dispensa o Outro. A investidura sem limites que recebe sua própria imagem especular será modelo, eu ideal que teráde se perder e er s recuperada por meio da obediência aos ditados do Outro, constituindo-se aí o ideal do eu. O amor do eu ideal passa pela relação amorosa com um outro que se elege sempre segundo o modelo narcísico. A outra, a chamada eleição de objeto por apoio ou anaclítica, não é senão uma variação da eleição narcísica, enquanto as figuras de predileção amorosa, a mãe nutriz e o pai protetor, não são nada além do sustento necessário para esse eu do narcisismo. As outras quatro formas de eleição de objeto de amor (que não é,
.’■I. S. Freud (1914). Obras completas,v. XIV, p. 88.
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obviamente, o objeto do desejo) que Freud distingue são, clara e confessamente, narcisistas. Do gozo ao desejo, do desejo ao amor, e o amor, por sua vez, recaindo sobre um objeto do qual se desloca a imagem de si mesmo. Não; não há nada o que fazer, a relação sexual não existe. M as o eu é, desde o princípio da obra de Freud, desde o “Projeto para uma psicologia científica”Entwurf), ( de 1895, uma instância de proteção e de desvio das cargas de tensão para tornálas inócuas e assim limitar a tensão sexual, ou seja, o gozo, que é despertado no organismo quando se orienta para a experiência srcinária e mítica da satisfação. A função do eu é regulada pelo princípio do prazer, tende ao igualamento das cargas, à homeostase, à evitação do desprazer, com o menor esforço. Seu objetivo é o de servir economicamente ao organismo como um todo pondo limites à tensão que seengendra no própr io organismo. O gozo, para Lacan, é o que não serve para nada. Em Freud, não apenas não serve, como ameaça e contraria o princípio do desprazer-prazer. O modelo freudiano do gozo é o que encontramos, parece-me, voltando aos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no , no “prazer Vorlust preliminar” que Freud opõe ao prazer final da descarga orgásmica. Desse prazer prévio, originado nas zonaserógenas, diz25que é um efeito que carece de fim e em nada contribui (antes da puberdade) ao desenvolvimento do processo sexual. Por isso Freud distinguia a excitação sexual da satisfação sexual, que suprime toda tensão e serve, sob o modo de “pequena morte” como antecipação do que será depois o “princípio de Nirvana”, o estado relratário a qualquer nova incitação. Não inutilmente, o capítulo dedicado ao tema do prazer preliminar se intitula “0 problemada excitação sexual” (grifo meu). Esse “problema” (para quem?) é a prefiguração mais clara do conceito de gozo de L acan que aparece em Freud antes das concepçõessubversivas de 1920, formulada s em “A lém do princípio de prazer”. É amplamente conhecido o equívoco que se erigiu sobre as teses freudianas que promoviam a sexualidade a um lugar central na constituição e na arquitetura do sujeito. Pretendeu-se fundar sobre
25. S. Freud (1905).Obras completas,v. VII.
() gozo: deL acan a Freud
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Freud constituições de aspecto teórico que preconizavam a liberação” da sexualidade, confundindo o orgasmo com a saúde mental e mesmo com a felicidade. Fez-se da psicanálise um novo evangelho da normalização genital. Deixou-se de lado o que qualquer um poderia ver na obra de Freud: o pouco, o relativo, o ambíguo e o pouco alentador de quanto ele escreveu sobre a cópula e o orgasmo, e o ceticismo com que sempre teve o amor corno caminho para ela. Podemos, agora, entendê-lo à luz da teoria do gozo, pois o prazer aparece relacionado a ele como curto-circuito, como corte brusco que põe limites a um corpo que se experimenta como tal. E o prazer da chamada “satisfação sexual” que interrompe o aumento tensional - seu modelo é a emissão seminal no orgasmo masculi no -, trazendo, ocm a descarga, a decepção. Ou seja, a psicanálise, com Freud e com Lacan, coloca-se como uma corrente contrária às ilusões que permitiriam sonhar com ;i superação da cisão subjetiva por meio do encontro amoroso que, no físico e no espiritual, suturaria o sujeito com o objeto, o exilado tom sua pátria, o desejante com a Coisa. Sobre este fato, fatalmente constatado na experiência da análise, funda-se o escandaloso aforismo lacaniano “a relação sexual não existe”, pois não existe como rapport, como relação que se estabelece na lógica, e não existe como um novo aporte do que cada um perdeu ao entrar na vida, como efeito da seção, da sexão, da ressecção do gozo, que se chama castração.
y Retorno aos princípios freudianos
Voltemos ao princípio. AosAmfangenda psicanálise, ao inédito c já citado “Projeto...”, de 1895,2 hfundamento não renunciado e não icnunciável de todas as construções metapsicológicas posteriores. Voltar ao princípio é retornar a esse começo mítico e absoluto na experiência de satisfação quefiat é olux da existência. Antes era o caos tão absoluto, que nem caos havia, o inomeado e '<> S. Freud (1896). Obras completas,v. I.
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irrepresentável, o nada no obscuro claustro materno onde não havia quem pudesse presumir que ali algo se encontrava ou faltava algo. O ponto de partida do sujeito, o parto do psiquismo, é concebido, então, como a vivência do desamparo absoluto de um organismo inerme frente à necessidade, incapaz de aliviá-la e acalmar a excitação interna sem a produção de uma alteração externa que traga o objeto da satisfação e permita a ação específica e apaziguadora. A incapacidade do organismo para sobreviver por sua conta o consagra à morte. Somente o Outro poderá salvá-lo e disso derivará “suaautoridade obscura”. V ive-se sob a premissa de que alguém, “um indivíduo experimentado observa o estado da criança”. Para isso, é mister que esse Outro esteja disponível e que sua atenção seja alertada pelo choro, pelo grito que “cobra assim a função secundária, importante ao extremo, do entendimento (ou comunicação), e o desvalimento inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais”.27 A ação do próximo auxiliador permite a vivência de satisfação que, na perspectiva do organismo, torna possível a sobrevivência e, na perspectiva da vida anímica, marca-se com a reprodução de um norte absoluto para a bússola do desejo. O desejo Wunsch ( )éo movimento subjetivo da reanimação constante de lembrança dessa vivência fundamental. Todas as suas aventuras e desventuras serão comparadas com o presumido Paraíso da experiência de satisfação que nada mais é do que uma invenção retroati va. Após expor, na terceira pessoa, elucubração sobre a vivência de satisfação, Freud pula para a primeira pessoa do singular.Cito: “Não duvido queesta animação do desejo produza inicialmente o mesmo efeito que a percepção, ou seja, uma alucinação. Se, em sua raiz, se introduz a ação refletora, é ni evitável a desilusão”.28 V ivência de satisfação-desejo-reanimação do passado como alucinação-comparação do que há com o que houve (“ação refletora”)-desilusão. Inevitável. O que não falta é a falta ao comparar o que temos com a experiência mítica, mágica, fantástica, paradisíaca, perfeita, daquilo que tivemos e perdemos. O que não
27. Idem, ibidem, p. 362-3. 28. Idem, ibidem, p. 364.
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pode faltar é a desilusão. É isto que há no começo. Do psiquismo. Da psicanálise. A ssim se dá. As percepçõesdas coisas não harmonizam com ;i lembrança fundamental. Não totalmente; “somente em parte”. Uma parte do complexo de representações, um “ingrediente”, permanei c idêntico, enquanto um segundo varia. O objeto da percepção de compõe-se: satisfaz o desejo e não o satisfaz. “Depois a linguagem criará, para esta decomposição, o termo juízo”.29 A ssim, o ingre diente constante será nomeado como coisa a do mundo(das Ding) c o elemento inconstante será sua atividade ou propriedade, “seu pre dicado”. Não apenas as motivações morais, mas também todo o pensamento, “o julgar”, surgem dessa marca decisiva do Outro no futuro sujeito, dessa representação inicial da Coisa que condena o ‘-cr a viver na desilusão. E não poderia haver desilusão, se não houver, antes, ilusão. Para o ser no mundo, há apenas dessemelhanças, disparidades, desencontros, de svios, dis-cursos. Acoincidência do esperado com o encontrado põe fim ao ato de pensar; o organismo se descarrega, sc esvazia. A discordâ em contra partida, ciona opresente, impulso a para o trabalho de ncia, pensar. Para discernir , na propor percepção distância com relação à representaçãodas deDing ausente. Se se produz um feliz encontro com o objeto, não há chance alguma para o ato de pensar. São os setores em dissidência aqueles despertam que o interesse.v) Vive-se pelo Outro, pe lo próximo, peloNebenmensch. M as este ii;io é o único salvador. E, ao mesmo tempo, “o único poder ■iiixiliador e o primeiro objeto hostil. Sobre o próxi mo, então, aprende o ser humano a discernir... E assim o complexo do próximo cindesi- em dois componentes, um dos quais se impõe por um encaixe constante, mantém-se reunido como uma Ding (Coisa) enquanto o miiro (componente)é compreendidopor um trabalho mnêmico... e srcina, pelo caminho judicioso do estabelecimento de diferenças, a ii presentação do próprio corpo”.
"I Idem, ibidem, p. 373. '() Idem, ibidem, p. 376.
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Talvez tenha que me desculpar por esta revisão do primeiro Freud que ninguém me pediu. E que me desculpe dizendo que nada do que está aqui escrito responde à solicitude de ninguém e que somente pretendo colocar o leitor nas srcens das deDing, da Coisa freudiana, para podermos adentrar nos despenhadeiros do gozo lacaniano. Ou que continue com o desenvolvimento. Será melhor. No começo... Im Anfang war das Ding, mas quando é a Coisa, não há sujeito que possa julgá-la. Perdida a Coisa (e o gozo está do lado da Coisa, assim como o de sejo estádo lado do Outro),31 depois de estabelecida uma disparidade irrecuperável com o objeto, pode chegar a haver um sujeito. Na marca, no rastro da Coisa. O objeto, perdido, é a causa do sujeito. De alguém que ainda não é Um, de alguém que se conta, pensa e tem motivações éticas a partir do que não pode subsistir sem esse Outro a quem primeiro apela com seu grito e depois com sua palavra articulada. Das Ding é o que fica no sujeito como marca daquilo que nunca haverá. A “descarga” ficou vedada, viver-se-á na desilusão, deverse-á pensar, discernir, estabelecer a diferença entre as coisas, todas, e a Coisa, imperatriz intangível da vida anímica, objeto absoluto. E Freud não ficou no estabelecimento desse ponto de partida. A bordou também, dez di as depois (entre 25de setembro e 5 de outubro de 1895), as conseqüenci as, ou seja, a passagem dessemito da srcem para “os processos psíquicos normais”. Processos normais que são possibilitados pelas “associações lingüísticas”, que permitem “o pensar observador, consciente”. Como? Porque esses “signos de descarga lingüística... equiparam os processos de pensar aos processos perceptivos, lhes dão uma realidade objetiva e possibilitam sua memória”.32 V ê-se com clareza que, em Freud, os processos depensar não têm em si “realidade objetiva”, mas que ela lhes é dada pelos signos lingüísticos que equiparam pensamento e percepção e os fazem assim memoráveis, históricos. (Signos =Zeichen. No capítulo dedicado ao deciframento do gozo tiraremos proveito da terminologia freudiana.) 31. J. L acan (1964). Écrits, p. 853;Escritos II, p. 832. 32. S. Freud (1896).Obras completas,v. I, p. 414.
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A realidade objetiva E doesse pensamento procede dostransbordatrilhamentos (Bahnungem) lingüísticos. deciframento, esse inento do ser pela linguagem, não tem sua srcem na própria lingua gem, em um processo de aprendizagem ou de imitação da palavra, mas na experiência de dor, no contato com ... objctos-percepções que fazem alguém gritar porque excitam dor, e adquire enorme importância que esta associação de um som (...) enfatize este objeto como hostil e sirva para dirigir a atenção para a (i magem)percepção. T oda vez que diante da dor não se recebem bons signos de qualidade do objeto, a notícia do próprio gritar serve como caracterí stica do obj eto. E ntão, essa associação é um meio para tornar conscientes, e objetos da atenção, as lembranças excitatórias do desprazer. Foi criada a primeira classe de lembranças conscientes. Daqui a inventar a linguagem, a distância não é grande (...) Assim, averiguamos que o característico do processo do pensar discernente é que nele a atenção está voltada de antemão para os signos da descarga do pensar, os signos de linguagem.-*3
O que ficou deda s Ding para o sujeito imaturo? Nada. Não a representação, não a lembrança. Somente o desespero pela ausência. 0 grito descarnado. O fundamento do serjaz nessa diferença entre as representações possíveis e a coisa que desapareceu para sempre, deixando a reprodução do desencontro e da disparidade sobre as experiências da realidade, de uma realidade que depende de e, às ve/.es, não é outra senão o Outro da linguagem, dessa linguagem na qual haverá de transbordar as desrazões, estabelecer as diferenças, lerá que alienar-se. A incorporação do ser àlinguagem é a causade um des-terro definitivo e irreversível com relação à Coisa. E a Coisa, na definição dada por Lacan quando retomae comentaFreud no seminário sobre a ética na psicanálise, é “aquilo do real que padece pelo ••ignificante”.34A ssim como se diria de alguém “que padece de 1atarro”, que “padece do sintoma”. V oltaremos a esta definição. ' Idem, ibidem, p. 414-5. '•I .1. L acan (1960). Le séminaire. Livre VII. L ’étique ilans Ia psvchanalyse. A ula de 27 de janeiro de 1960, p. 142.
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A palavra é o rastro que corre atrás do barco, o sulco que não pode alcançar o arado que o causa. M as do arado e do barco é impossível marcas que trazem deixam sobre em seu A terra e o saber mar, osenão corpo,pelas em uma palavra, si acaminho. inscrição do irrecuperável. A palavra grava-se nacarne e torna ssa e carne um corpo que é simbolizado nos intercâmbios com o Outro. Falar, pensar, passar pelos significantes da Lei; estes são os efeitos dafalta do objeto que toma assim o lugar da Coisa ( ). Somos todos Ding náufragos resgatados do gozo que perdemos ao entrar na linguagem. A conseqüência é o discernimento, a distinção linguageira da pluralidade e variedade dos objetos do mundo. O sujeito nasce e se integra à realidade compartilhada partir odeque seuhavia exílio da Coisa, essa Coisaconsensual que cria o esilêncio ou o caosa como anteriormente. A pátria é um efeito do exílio e da nostalgia. É assim que L acan elabora como se constitui o gozo a partir da “mitopsicologia” freudiana. No princípio era o Gozo, mas desse gozo não se sabe senão a partir do momento em que foi perdido. Por estar perdido, é. E porque o gozo é o real, o impossível, é que se o persegue pelos criadores caminhos darepetição. A palavra, vinda do Outro, terá de ser pharinakon, o remédio e veneno (cf. Derrida, La 3S), instru mento ambivalente separuma a e devol veque o diseminación gozo, mas sempre marcando-o comminus, umquecom perda é a diferença irrecuperável entre o significante e o referente, entre a palavra e as coisas. O gozo da Coisa está perdido, o gozo somente será possível atravessando o campodas palavras. Mas seráoutro gozo: frustrado e evocador; nostálgico. Temos de seguir com Freud e dar com ele o salto irreversível que leva dos Amfangenao J enseits, dos começos ao além, além do princípio de prazer, sobre o terreno já abonado pelo que significou a descoberta do inconsciente e suas formaçõesPonto como modos de tratar o gozo, deslocá-lo e colocá-lo em palavras. talvez propício para propor um novo aforismo: o inconsciente é um trabalho cuja matéria-prima é gozo e seu produto é discurso. O inconsciente não seria nada sem a teoria sexual. E viceversa. E da psicanálise nada resta a não ser se apoiar sobre esses 35. J. Derrida. La diseminación. M adrid: Fundamentos, 1975. p. 192-262.
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dois pés: (que, como se explica sabe, não é deament Freud, de L aca n) eo ainconsciente sexuali dade que, como teoria, o esvazi o mas do gozo do corpo e sua passagem à articulação significante da qual resultam o sujeito e o objeto que é a causa de seu desejo. Temas que deixo indicados aqui antes de retomá-los no capítulo seguinte. Freud teve dificuldades para reconhecer desde o princípio essa fonte perturbadora que assalta o aparelho desde dentro e que não aspira à fantasia nem à retração. O naturalismo o levou depois a concebê-la como uma “energia” e dar-lhe o nome de “libido”, palavra de srcem latina, mas que apenas alcança sua plena significação quando se considera que Liebe é, em alemão, o nome do amor. E foi com esse termo ambíguo de libido que Freud incluiu o gozo (naturalizado, quantificado de modo metafórico) em sua teoria. Seus relatos clínicos, sua concepção da “eleição da neurose”, seus postulados genéticos sobre os deslocamentos da libido por zonas distintas do corpo para acabar no “primado genital” que, para ele, é o do falo, porque há somente um genital, o masculino, e somente uma libido, aquela ligada ao órgão viril tanto no menino quanto na menina, são modos de conceber o gozo e prestar-lhe uma marcha teórica compatível com o conjunto da doutrina e da clínica. Assim, eis a clínica psicanalítica como uma história das errâncias do gozo, de suas “fixações”, de suas “regressões” , de sua transformação em sintomas, de sua “introversão” sobre fantasmas, essas formações imaginárias que substituem a ação no exterior e que são “reservas naturais” do gozo. No fantasma o gozo é assubjetivo, manifesta-se em sintomas, em repressões histéricas, em formações reativas obsessivas, em distanciamentos e precauções fóbicas, em invasões irrefreáveis que determinam a ruptura psicótica com a realidade exterior, em coagulações que se encenam na perversão. E a teoria do tratamento também se impregna com esta errância da libido sobre os objetos externos: é assim que se confere um privilégio seletivo à figura do psicanalista. A teoria do gozo é o fundamento inconfesso da transferência, que é ao mesmo tempo resistência e motor do tratamento, ímã que atrai a libido e abismo insondável do qual terá de se livrar para que um final de análise seja possível. Em suma, a teoria da libido é a teoria do gozo. Tudo isto é muito sucinto, mas
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“recorra [a Freud] e o verá”,36como disse L acan em outra ocasião sobre a qual retornaremos. O sujeito nascepara por estar exilado da Coisa,que do não gozoé não simbolizado e se orienta um “primado genital” outra coisa senão a primazia do significante, tendo esse significante como fundamento o falo, suporte de todos os processos de significação. A tal ponto que dizer “A significação do falo” é uma redundância, pois não há outra, conforme falava Lacan,37 ironizando o título de um de seus “escritos”.38Da Coisa ao falo, ou seja, à castração:esse é o sentido da rota freudiana que acaba dando o lugar central na psicopatologia ao complexo de castração e às suas vicissitudes. O complexo reorganiza por retroação todo o acontecido anterior ao estabelecimento desta primazia fálica. O processo de subjetivação pode estender-se como uma sucessão de migrações, exílios e esvaziamentos do gozo. Asexualidade passa, assim, por “fases” que seguem essa longa jornada que leva do real anterior e exterior à simbolização (a Coisa dos começos), ao real que fica como saldo impossível depois da simbolização e que se pretende apreender com as pinças da palavra, mas que escorre e, além disso, se produz como efeito de discurso pela própria palavra, o objeto @, o fugidio mais de gozo. É por tudo sso i quea sexualidade humana, com todas sa suas multiformes manifestações, é ela própria mais uma sublimação do que aquilo que é sublimado. Sublimar é sexualizar e não, como pre tenderia uma leitura apressada, “dessexualizar”. Pois a sexualidade é simbolização do gozo que é, assim, des-naturalizado, humanizado, colocado em palavras na relação da mulher e do homem com seus corpos e com o corpo do Outro. E aí que Freud se vê diante da ár dua questão da heterogeneidade dos gozos, enigma que o leva à su ■ cessão de escritos em que trata de explicar a assimetria dos gozos masculino e feminino a partir da assimetria que o complexo de cas ■ tração (sofrido por ambos) determina com relação ao falo. Questão 36. J . Lacan (1970). Radiophonie, p. 420. 37. J. L acan. Le séminaire. Livre XVIII. A ula de 2 de junho de 1971. Inédito. 38. J. L acan (1958). L.asigníficación du phallus, In:Ecrits , p. 685-696(Escri tos 2, p. 665-75).
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chi hete rogeneidade dos gozosfreudiana: que ocupará Lacan em urna seu esforço para responder a pergunta o que quer mulher? J á mencionei que a observação mais precária da vida amorosa, 0 elementar do que seescuta em uma análise, consegue mostrar que (falentes),não estão governados pelo os seres humanos, os falantes princípio de prazer. Freud não podia deixar de constatá-lo. E, se o ■iinor não pode ser entendi do sem que se eve l em consideração esse 1atai destino de ter de se inscrever como gozo, pode menos ainda iiiribuir ao princípio de prazer a outra atividade que parece sua contrapartida: a guerra.19A s observações sobre aguerra e a morte do período da Primeira G uerra M undial concordam com as observações sobre a vida amorosa. O artigo dedicado ao tabu da virgindade4 11(1919) apresenta aconclusão de queos gozos não confluem, mas rivalizam-se entre si. Um ano antes, já havia observado e estabelecido que o desejo feminino não estava orientado para o homem, mas para o pênis e que o órgão podia ser substituído simbolicamente pelo filho.41 O homem era ali, para ela, um apêndice necessário, mas, em última instância, prescindível. Enquanto o homem, por sua vez, não podia tampouco satisfazer, ou melhor, não satisfazer sua com uma mulher que é apenas um substituto Ersatz) ( aspiração da mãe sexual proibida.
I. Além do princípio de prazer É necessário memorizar todos estes antecedentes para compreender o trabalho de Freud noscomeços de 191 9, umaépoca cm que se poderia dizer que não trabalhava em duas mesas, mas \im cm três e que o leva a uma reformulação que implica um novo começo para a psicanálise. Com efeito, ainda que “Além do princípio de prazer”42 veja a luz em 1920, sua redação data dos ses me de '•>. N. A. Braunstein. El psicoanálisis y la guerra. In:P or el camino de Freud, M éxico: Siglo XX I, 2001. p. 28-40. 10 S. Freud (1917). Obras completas, v. X I, p. 189-204. 11 S. Freud (1917). Obras completas, v. X II, p. 118-22. I ’ S. Freud (1920). Obras completas,v. XV III, p. 7-62.
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março a maio de 1919, mês que também viu a segundae definitiva (Das Unheimlich).41 Por sua redação do artigo sobre “O estranho” vez, o térmi no de “Bate-se numa criança”44teve lugar em março de 1919. Nunca se destacou o bastante, nem sequer o próprio Freud, a diáfana unidade dos três textos e a luz que eles, como conjunto, lançam sobre (e recebem de) o conceito de gozo. Começando pelo estranho: por que aderiria o processo cultu ral a essas criações comcaráter sinistro e por queteriam as repre sentações do horroroso a pregnância que têm sobre o imaginário dos homens, se o princípio de prazer governa como soberano? Por que reincidiria o sujeito em pesadelos que o mostram acuado, sem saí da, condenado a ser o objeto de sevícias c crueldades? Por que ape gar-se às antecipações da morte e do holocausto, às premonições do fracasso, aos fantasmas da vergonha, aos estragos c cobranças da culpa, às possessões demoníacas, às invasões do horrendo impen sável, inexpressável? Qual a necessidade ou a conveniência de criar hidras e dragões, íncubos c súcubos, infernos e suplícios? E possível que uma primeira resposta coloque em jogo a consciência “que nos faz culpados”, o preço pago pelo prazer obtido ou fantasiado, a presença em cada uma dessa instância revelada por Freud nesses mesmos anos: o supereu.4 5Não é mera coincidência, não. A primeira resposta que nos ocorre volta de imediato como pergunta: e por que em um organismo supostamente regido pelo princípio de prazer, o supereu? É evidente que o supereu não se compadece na busca de uma menor tensão, mas instala no indivíduo uma eficiente maquinaria para não dormir nos braços do prazer e para exigir a retaliação por qualquer crime cometido, mesmo que seja mais com o pensame nto do que com a ação. A tal ponto que não altou f
43. S. Freud (1919).Obras coniplelas, v. X V II, p. 219-52. 44. Idem, ibidem, p. 175-200. 45. M. G erez A mbertín. Las voces dei superyó.Buenos A ires: M anantial, 1993. Nesse livro encontra-se uma minuciosa resenha do processo que leva Freud a elaborar o conceito de supereu para dar conta do conjunto da clínica psicanalítica. Igualmente impressionante é o trabalho sobre o su pereu nos escritos e seminários de L acan. Insistir-se-á nesta referência no capítulo 8 desta obra.
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psicanalista (B ergler) que sugerisse que está regido por um “princípio de tortura”. O supereu é a instância que vigia e pune as transgressões, é o código legal e penal e a força jurídica e policial que ordena dentro de cada um o suplício. Na gráfica imagem freudiana (à qual não poderíamos dar um estatuto ontológico) comanda a intranqüilidade, exige satisfações que não são as das necessidades, nem as das demandas e marca o desejo como perigoso e impreenchível. Esgrimindo a ameaça de castração nos homens e a do abandono nas mulheres, perpetua seus imperativos de sacrifício, de dívida impagável, de posse subjugante exercida pelo Outro. Sua exortação incessante não é senão a que se expressa com uma única palavra: “Goze!”, agora como imperativo do verbo que conflui para a significação homofônica do substantivo. Com mais confiança, nos tutearia, ordenando: “Goza!”J ouis (“ /”). Com ele, graças a ele, o erotismo se tinge de culpa e a culpa se erotiza, o amor se liga à transgressão, o prazer entra na caixa registradora das dívidas, o pecado se faz gozo, a consciência conhece o gozo oral dos re-mordimentos (remorsos), as chamas do inferno deitam sua sombra sobre a carne inflamável de todos nós, seres privados da relação sexual. O supereu troca o prazer por gozo, para que não se extinga com os derramamentos da satisfação alcançada. Daí também sua característica, assinalada por Freud, relativizada por L acan no seminário sobre a ética, de ser mais premente quanto maiores forem as oferendas que recebe. O apoio ao estranho ou ominoso pela presença constante do supereu é prova de um masoquismo primordial que abranda, sempre, o princípio de prazer. Conhecidas são as provas que Freud traz por ocasi ão de sua reviravolta dos anos 1920. A compulsão à repetição, descoberta anos antes na transferência analítica, que nos mostra os falantes como seres carentes de inteligência, dessa inteligência que governao reino animal, isso que nos leva a tropeçar duas vezes na mesma pedra para, depois do segundo tropeço, procurá-la pela terceira vez para que nos responda a pergunta sobre o porquê de nos chocarmos com ela nas duas oportunidades anteriores e darmo-nos por satisfeitos até havermo-nos derrotado para tirar a pedra do caminho e estarmos, assim, habilitados para
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tropeçar na seguinte. Que o diga Sísifo, que o conte Prometeu, que o expliquem as Danaídes e os mártires e os cientistas. No mesmo sentido abunda a impossibilidade de se separar da lembrança traumática, do acidente, da humilhação, da evocação dolorosa que nos ataca desde dentro. Ou o jogo das crianças que convoca os fantasmas de ser abandonado (fort-da ), de ser devorado, envenenado, seduzido, golpeado, vigiado, perseguido, acossado, torturado, vilipendiado, castigado.46 Ou a experiência comprovada às vezes na análise da reação terapêutica negativa em que o sujeito não é digno do alívio de seu sofrimento, insistindo em sustentá-lo a ponto de preferir abandonar a análise do que permitir o restabelecimento desua saúde. Amam seus delírios, amam seus sintomas, mais que a si mesmos, e testemunham em suacarneesse infeliz imperativo do gozo. A defesa é defesa do sofrimento e a técnica psicanalítica é torpe se não toma o gozo, no lugar do prazer, como ponto de partida na abordagem de cada caso. O supereu marcao sujeito com ummandamento degozo. Mas esse imperativo é também um chamado: você não está a serviço de si mesmo, presta contas a algo lhe é superi or e que é suacontas causa, suamas Causa. A existência lheque é oferecida e deve prestar dela, ainda que não a tenha pedido, deve oferecer sua libra de carne a um Deus inclemente. O que re-liga os sujeitos é essa noção da culpa de existir que seapagaria com a adoração e a gratidão A quele que nos fez seus devedores, a quem se instituiu como credor. O princípio do sacrifício é o fundamento e não o efeito das religiões. E o gozo é consusbtancial ao sacrifício. Em sua oferenda é o sujeito que se oferece, se submete ao jugo que o instala na comunidade, que o inclui dentro do vínculo social, fazendo-o partícipe do socius). clã ( E sabido que para Lacan, diferentemente de Freud, a castração não é uma ameaça, mas, pelo contrário, é salvadora. A ameaça verdadeira, a terrível, é que não haja castração. A clínica mostra, às vezes, que os defeitos na função do pai, que é a de incluir o sujeito na ordem simbólica, é a causa de um apelo desesperado, patético, 46. N. A. Braunstein. Mi papá me pega (me ama). In:Freudiano v lacaniano.
Buenos A ires: M anantial, 1994. p. 151-72.
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à intervenção castradora que separe a criança do gozo e do desejo da M ãe. É quando o sintoma vem suprir o defeito apontado. E a esclarecedora leitura lacaniana, não freudiana, do caso do pequeno Hans. O menino não tinha nada a temer desse pai domesticado que tão facilmente cedia a ele seu lugar no leito junto à mãe. O cavalo não é o símbolo ou o equivalente do pai real, mas a figura do Pai Ideal que é chamado para corrigir a falha paterna. Igualmente, o fantasma de “Bate-se numa criança”4 7 está cen trado em torno do segundo tempo do mesmo, o que cai sob a re pressão, que é a fórmula “meu pai me bate”. A í o castigo não anula o sujeito, mas o chama à ex-sistência, marca-o como pecador, de saloja-o do gozo mortífero da mãe. E um instrumento que funcio na como significante (S,) e deixa como saldo o sujeito (S) que dará conta de seus atos no mundo da linguagem, por meio da palavra. Se o chicote produz dor, é porque o Outro pede essa dor como pren da de reparação e redenção, porque o Outro pede esse estremeci mento da carne machucada, esse pranto e essa promessa de submissão. E a prova de que “você importa para alguém”. Se o nas cimento do irmão, esse irmão que se faz castigar no primeiro tem po do fantasma, esse irmão que era conlactaneum o do olhar envenenado observado por Santo Agostinho, ameaçava o sujeito com a extinção, com o desaparecimento do sujeito do campo do Outro, o castigo do segundo tempo do fantasma não apenas mortifica o desejo sádico expresso no primeiro, mas devolve à existência e se impõe adívida de viver.48 J á mencionei o seminário de 5 de março de 1958 no qual L acan enunciou a relação e a oposição entre o edsejo e o gozo como fundamental para compreender o que acontece na experiência psicanalítica. Nesse dia se protocolou o nascimento do novo conceito dc gozo. No seminário anterior, em 12 de fevereiro de 1958,4y L acan que os açoitesA arrancam o sujeito da onipotência e oassinalava lançam na existência. criança, assim, flagelada, não é nem tudo nem nada. As chicotadas sãodadas,têm algo de um dom 47. S. Freud (1919). Pegan a un nino. Obras In: completas,v. XVII. 48. N. A. Braunstein. Mi papá me pega (me ama). In:F reudiano y lacaniano. 49. J. L acan (1958). Le séminaire. Livre V. L es formations de l ’inconscient, p. 247.
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de significante que devolve à ex-sistência alienada, não em Um, mas no Outro. Fazer-se flagelar é um modo de ratificar o desejo do Outro colocado em dúvida desde o aparecimento do rival. Isto é freqüentemente constatado nas crianças politraumatizadas, nas crianças que devem sobrepor-se à hostilidade mortífera de suas mães, em tantas vítimas flageladas, em tantos acidentes e manifestações de um destino inflexível e atroz. O chicote produz a abolição, mas também a constituição do sujeito em sua divisão; suas chagas chamam à vida. O fantasma do flagelo está além do princípio de prazer, certo; é gozo, certamente; mas é também o princípio de uma segurança, a de ser um objeto que conta no desejo do Outro. “Porque te quero, te espanco” é a significação latente dos fantasmas de J ó que asseguram ao sujeito um lugar no discurso do senhor e o chamam ora à resignação, ora à rebelião. Também acontece assim no gozo de Cristo ao inverter a dívida sob a forma da invocação: “M eu Senhor, meu Senhor, por queme abandonastes?”. A ssim, existir é existir para a Lei, ser sujeito a ela, assegurar-se de que todos os seres humanos estão sob a palmatória e recebem seu ser junto com a marca do desejo do Outro. Assim é como, historicamente, se apresentou e se justificou o discurso do senhor. Todos esses argumentos juntos fizeram Freud postular a existência de uma pulsão fundamental, a de morte, da qual as pulsões de vida são desvios, ramificações que passam pela imagem narcísica do eu. A pulsão de morte é a pulsão, pura e simples. A psicanálise recomeça nos anos 1920, quando as explicações naturali stas são questionadas. As tentativas do próprio Freud de preservá-las sob o manto de uma “mitobiologia” são toscas e fazem ressaltar, por contraste, aquilo de que se trata. Isto ocorre ao mesmo tempo em que Freud se vê forçado a abandonar o projeto de construir umametapsicologia fundada no princípio de prazer. A interrupção da série de artigos metapsicológicos de Freud ao término dos cinco primeiros50não tem outra causasenão aquela que se lê como autêntica continuação em “Além do princípio de prazer”. A vançando sobrecapítulos posteriores, tenho de dizer desde já que a existência humana não aponta para a distensão, mas para a
50. S. Freud (1915-1917). Obras completas,v. XIV, p. 105-256.
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inscrição histórica, historizada, do padecer subjetivo. A clínica mostra até a exaustão esta vocação da palavra para se fazer reconhecer como signo, como escritura, por meio das desgraças, dos açoites da vida, das exigências de que o Outro reconheça a passagem significativa do sujeito, das provações da resistência e tolerância desse Outro, dos tensionamentos constantes e o máximo da lâmina libidinal. Em tudo isso - e o que eu estou dizendo não é a opinião de todos os lacanianos -. salta à vista um traço particular do gozo. O gozo é dialético ainda que se oponha à dialética do desejo. Inicialmente devemos quenã aoreferência dialreconhecer ética em Lacan não é hegeliana, pois entender em Lacan poderia se um momento final de síntese ao qual se chegaria por alguma “astúcia da razão”. Com efeito, creio que não se pode sustentar que a dimensão do desejo seria em si dialética, enquanto a do gozo não o seria. Essa é a posição sustentada por J.-A. M iller51em seu seminário de 2 de maio de 1984: “O próprio conceito de gozo é um conceito fundamentalmente não dialético em relação ao desejo”. Nesse dia o herdeiro de L acan desenvolveu, com particular perspicácia, a idéia de que o ensino de Lacan teria adotado uma li nha oposta àdialética a partir, justamente, de eu s texto de 1960, “Subversão do suj eito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Esta posição de M iller é congruente, por outro lado, com aquela sustentada em sua conferência “Teoria dos gozos”,52na qual defendia que é possível dizer sem rodeio que o desejo é o desejo do Outro, mas não é possível postular que o gozo seja o gozo do Outro. No que temos de concordar. Claro que o gozo de um não se confunde com o “gozo do Outro”. Sem dúvida, não para evitar essa confusão, deixa o gozo de estar ligado à dimensão do Outro e à dialética do sujeito com ele. E não é possível concordar com Miller, quando, nesse mesmo dia de 1984, afirmou que o desenvolvimento do ensino de L acan de 1960 a 1964, de “Subversãodo sujeito” a“Posição do inconsciente”, consiste na eliminação da referência dialética.
51. J.-A . Miller. Seminário L ’extimité. Inédito. 52. J.-A. Miller. Recorrido deLacan BuenosAires: M anantial, 1986. p. 149-60.
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O discutível dessa afirmação de M iller comprova-se ao seguir o fio do seminário de Lacan, particularmente quando chegamos a “A lógica do3Nesse fantasma ” e,Lacan muitorecordou especificament à lição de de maio de 1967.5 dia, quefoie,Hegel que m31 introduz iu a noção de gozo e isso a partir da contradição entre o gozo do senhor e o gozo do escravo, entre o ócio de um e o gozo da coisa do outro “não apenas como essacoisa que ele leva ao senhor, mas ao transformá-la tornando-a aceitável”. Lacan incluiu esta referência preciosa para entender a natureza dialética do gozo: E dipo não sabia de que gozava. C ol oquei a questão de se J ocasta o sabia e, inclusive, por que não, se uma boa parte de seu gozo não consistia em manter Edipo ignorante (...) que parte do gozo de J ocasta corresponde a deix á-l o na ignorância? É nesse nível que, graças a Freud, colocam-se agora as perguntas sérias com respeito à verdade (...) O que Hegel entrevê é que na srcem a posição do senhor é de renúncia ao gozo, a possibilidade de comprometê-lo todo ao redor desta disposição ou não do corpo, E o Outro, a partir do não apenas o seu, mas também o do outro. momento em que a luta social introduz o fato de que as relações dos corpos estejam dominadas pelo que se chama lei, oOutro, c o conjunto dos corpos, (grifos meus)
Em suma, estas breves citaçõesde L acan de 1967 confirmam a consideração do gozo em uma referência dialética, ainda que essa dialética lacaniana e não hegeliana não leve a nenhuma síntese. Tratase nela do particular, mas de um particular que somente aparece como tal à medida que é um afastamento com relação ao universal. O gozo, sim, é do Um, mas desse Um não há prevenção possível, se não for a partir do enfrentamento com o Outro e com a divisão instalada no Outro entre seu desejo e seu gozo. E, além disso, há um gozo que depende da ignorância do Outro, que se extrai, como na J ocasta, de saber que o Outro não sabe. E essa é a dialética, opositiva, divergente, dos gozos. Os gozos que não se definem em si, mas diacriticamente, por diferença, com relação ao que não é esse gozo. Oposição dos gozos entre o senhor e o escravo, entre o gozo masculino e o feminino, entre o privador e o privado, entre o que 53. J . L acan ( 1967).Le Seminaire. Libre XIV. La logique du fantasme. Inédito.
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sabe e o que ignora, entre uma raça outra. e Por que não estabelecer, então, como aprendemos a fazer com relação ao significante, que o valor do gozo não tem outra substância senão uma diferença com relação ao que este gozo presente não él Há ainda algo mais a dizer em torno desta oposição binária colocada por L acan entre o gozo e o desejo. O desejo de reconhecimento (do desejo), noção-chave do primeiro Lacan, auxilia a luta dialética com o desejo do Outro e, portanto, o gozo da batalha, da guerra por fazer reconhecer o próprio desejo frente ao desejonão-desejo do Outro. (Desejo-não-desejo, já que o desejo do Outro é um édesejo de ser e não de reconhecer mais alguém). Esta a chave dos reconhecido textos freudianos sobre o masoquismo, começando por “Bate-se numa criança”. E também a chave da clínica da vida e da história. Com o conceito de gozo (contraposto ao de desejo), a luta de morte entre o senhor e o escravo (com todas as suas variantes e versões) encontra seu fundamento. “Se me castigam é porque meu desejo existe e não foi desvanecido no desejo do Outro. Nesse castigo recupero meu gozo ao preço de aliená-lo na relação de oposição com o Outro”. O gozo se faz possível uma vez que se aplaca, com esta intervenção do Outro que é acolhida como uma salvação com relação ao Outro gozo, este sim não dialético, que é o gozo terrorífico e irrefreado do Um sem a intervenção diferenciadora do Outro. O flagelo é um significante que chama à ex-sistência, a transitar por uma relação dialética e contraposta dos gozos que se articula com a relação dialética do desejo, mas que não se confunde com ela, com seus “acordos” e com seus pactos simbólicos. Deve-se recordar uma vez mais as frases de H egel, que foram citadas no começo deste capítulo, para advertir que, na concepção jurídica do gozo, este é particular, diferentemente do desejo que é universal. E também que, evocando Lacan em seu breve artigo dedicado aoTrieb de Freud,54 o desejo vem do Outro, enquanto o gozo está do lado da Coisa, do lado do Um. De acordo. Mas isso não exclui o gozo da dialética, pois o gozo do Um apenas pode ser alcançado tirando-o do gozo do 54. J. L acan. Du Trieb de Freud et du désir de l’analyse. In:Ecrits, p. 851-4. (Escritos II, p. 830-3).
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Outro c preservando-o de seus embates. O gozo procurado pelos açoites que provêm do Outro, do destino ou de Deus, é uma marca que rubrica este desejo-não-desejo do Outro. Uma forma de forçálo a reconhecer a existência de um. Gozar é usufruir de algo. Essa “função no uso” é o despojo de alguém que não dispõe do mesmo direito de usufruto. O corpo é esse bem primeiro que é, ao mesmo tempo, campo de batalha entre o gozo do Um e o gozo do Outro. A quem pertence o corpo? É ele meu escravo e posso dispor dele ou, pelo contrário, sou eu o escravo do Outro que pode dispor de mim e desse corpo que eu, fantasmaticamente, e em com minha decova testa-de-ferro que “tenho”? O que acontece o condição Outro, que cavo nele,creio se condeno este corpo à morte (suicídio de separação) ou o mortifico com drogas que o anestesiam e o privam de responder às suas demandas? Não. O gozo está do lado da Coisa, como dizia L acam com justeza, mas não se alcança a Coisa senão separando-a da cadeia significante e, portanto, reconhecendo uma certa relação com ela. Nada ilustramelhor isso do que o suicida, mas também se comprova isso nos adictos, nos psicóticos, nos escritores para quem a escrita representa um modo de escapar aos vínculos do discurso. Todas essas formas da adicção serão abordadas no capítulo 7. O prazer está do lado do arco-reflexo. E o que leva a pata da rã a se contrair, quando hl e é aplicada uma correnteelétrica. Jamais se poderá criar um objeto. Os falantes inscrevem seus trabalhos, seus discursos, no tempo. Vivem se matando e deixando o et stemunho de seu padecer, de seu parecer, de se u para-ser. A substância verdadeira da pulsão de morte está do lado do gozo, da dor, da façanha. A morte, psicanalítica, não é a pretendida inércia de uma natureza inanimada, mas este registro em que se inscreve a paixão impossível de uma subjetividade por meio de suas atri(e)bulações, de suas derivas, de suas lutas antieconômicas que vulnerabilizam o princípio de prazer. Por isso, justificam-se os sarcasmos que L acan dirige a Freud, quando este fala das virtudes unitivas de Eros e quando sustenta a idéia da vida, da vida humana, como orientada para a criação de unidades superiores e cada vez mais amplas. Não é
necessário evocar a fissão nuclear para compreender que Freud -
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aí - não é congruente nem sequer consigo mesmo e que toda asua reflexão sobre a história da humanidade, em “O mal-estar na civilização”, deixa manifesta essa onipresença da pulsão de morte como substrato último de toda ação humana no individual e no coletivo. A meta da pulsão não é o aplacamento, a satisfação (.Befriedigimg: F ried = paz), mas a falha que relança o movimento pulsional, incansavelmente, sempre para frente. E a história de cada um é a história dos modos de falhar o objeto impossível; um resultado da inexistência da relação sexual. E isto vale também para a história da cultura, da organização dos modos de afrontar essa inexistência. O sujeito tem uma sub-stância que é gozo. Se a primeira teoria freudiana do psiquismo propunha um sujeito governado pelo princípio de prazer e no qual a sexualidade era uma impureza e uma tensão trazida pela sedução do Outro, o adulto perverso. A segunda teoria mostra o incremento das excitações como algo que se srcina no interior (é a idéia de pulsão de morte), que adere a fantasmas e que requer do Outro que se integre dialeticamente, de um modo especificado pelo estandarte do fantasma, no aparelho do gozo. O comentário e a ereescritura da obrapois completa à luz do gozo são possíveis até necessários, renovadeo Freud que Freud disse. Estamos agora em condições de reformular a história da psicanálise à luz dos tombos que sofreu e estabelecer quatro (ou cinco) pontos essenciais. O primeiro é o descobrimento do inconsciente e seus processos de composição, com o projeto freudiano de fazê-lo andar pelos caminhos do princípio de prazer (1895-1915). O segundo é o momento em que Freud transcende o naturalismo srcinário e lança a teoria escandalosa da pulsão de morte (1920-1930). Esse ponto, como se sabe, não foi aceito pelo movimento psicanalítico oficial que preferiu inclinar-se por um refluxo do pensar e pelo edificar psicanalíticos em função de objetivos homeostáticos. Contra esse refluxo, ergueu-se o “retomo a F reud” lacaniano (1953-1958) que seconcentrou em torno do evidente, mas ao mesmo tempo do desconhecido, inclusive para o próprio Freud, de que “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, terceiro momento crucial da história da psicanálise, que
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abriu a possibilidade desse quarto giro (a partir de 1958) que é aquele em que nos incluímos, analistas posteriores a L acan. A tese central é que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, sim, mas depende, como tal, do gozo; é um processador do gozo por meio do aparelho linguageiro que transmuta o gozo em discurso. E evidente que para cada um destes quatro momentos (ou cinco, se incluirmos como mais um o tempo de refluxo que se produz entre o segundo e o terceiro [1938-1953]) corresponde uma modalidade diferente de conceber a psicanálise, sua prática, o lugar do psicanalista e o processo de sua formação. Em suma, o gozo permite e obriga a reescrever e refazer a psicanálise.
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1. Entre gozo e linguagem Todo sujeito está e é chamado a ser. Esta convocação não po deria proceder desde dentro, desde alguma força interior que resi diria nele ou nela, de uma necessidade biológica que o impulsionaria a se desenvolver. A invocação é subjetivante, faz sujeito. A ele se pede quequem fale, assumindo o nome que orequer Outro sua lhe palavra: deu. Temsede fa lar, dizer é, identificar-se. O Outro a lin guagem mata a coisa ao substituí-la, tornando-a ausente, a palavra deve reapresentá-la, ordenando necessariamente o reconhecimento deste Outro da linguagem, aquele que confere a vida, separando-se dela, mortificando. O sujeito advém, alcança, assim, sua exsistência... mas por ela deve. O Outro indica-lhe de mil maneiras que a vida que recebeu não é gratuita, que deve pagar por ela. M as com que moe da poderia pagar oinfans,o sujeito anterior à função da palavra, o preço de sua ex-sistência? Pagar quer dizer que se aceita a dívida e o pagamento é uma renúncia. Cada moeda entregue, não importa sua natureza, é uma renúncia ao gozo; cada vez que é da da, não pode voltar a ser usada. A compra de um novo objeto ou um novo empréstimo obriga a dar uma nova moeda; a perda é inevitável. E para viver tem de pagar, despedir-se com renúncia do gozo. É mais, a clínica mostra os efeitos devastadores que se produz em naqueles a quem aexistência é dadagratuitamente,
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aqueles que não tropeçam com um Outro que seja demandante em um sistema de equivalências, aqueles que recebem antes de pedir, fora do regime de intercâmbios, quando a satisfação antecipada das demandas desfaz a própria possibilidade do desejo. “O toma lá dá cá do leite e cocô” 1de que falei em outra oportunidade manda que a vida se desenvolva em um mercado do gozo, no qual nada se adquire a não ser pagando. Atransação nunca é a boa, nunca é aceita de boa vontade, nunca se sabe se o preço pago corresponde ao valor do que se recebe em troca, mas é preciso resignar-se com a perda que implica entregar algo real em troca de uma recompensa que é simbólica, um quantumde gozo em troca do brilho inconsistente das imagens e das precárias certezas que dão as palavras de amor e os signos sempre falazes que emanam do Outro, de um Outro que também se pergunta por que haveria ele de renunciar a seu gozo. O Outro com maiúscula, representado sempre para o sujeito por alguém no imaginário, por um outro com minúscula, com o que começamos a esboçar a função e também os impasses do amor. O conflito entre o sujeito e o Outro seria fatal se não existisse uma, instâ ncia que regulasse inte rcâm bios. mada s esta ainda quesimból cega,i ca não éneu tra, poios s se trata da Lei Édoa Lei, Outro, cultura, que é consubstanciai à linguagem e se manifesta para cada falante como a obrigação de se apropriar de uma língua materna. A Lei é somente a imposição destas limitações e perdas do gozo. Ser um bom menino, um menino cuidadoso, bem educado, ou seja, seguindo a etimologia, bem conduzido a partir de fora para aceitar que a mãe pertence ao Outro, que a mãe chega a existir a partir do momento em que o Outro (Lei de proibição do incesto) a barra com sua interdição, que o peito é um objeto impossível que existe em um reino de alucinação, que o excremento também deve ser entregue para o gozo do Outro educador, que sua produção não pode ser gozada por si mesmo, que se pode, em suma, especular com esse bem, retardar sua entrega ou soltá-lo quando não é esperado, mas que a razão logos ( ) do Outro acabará se impondo
1. N. A. Braunstein. L ingüistería (L acan y el lenguaje). In: El lenguaje v el
inconsciente freudiano. M éxico: Siglo X X I, 1982. p. 172.
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sobre o gozo da acumulação e da tensão, que ao limite dessa barreira natural que é a lei do prazer se sobrepõe a L ei do Outro, promulgando o impossível de sua franquia, e que os gozos de olhar, ser visto, bater, cuspir, morder, vomitar, ser batido, falar, escutar, ser ouvido, gritar e ser gritado, todos eles estão submetidos à educação, à repressão de seus representantes pulsionais, à supressão discursiva das palavras inconvenientes, à retorsão sobre si mesmo, à transformação no contrário, ao deslocamento sublimatório dos objetos e dos fins, ao desconhecimento, à conversão do gozo em vergonha, asco e dor, e da mordida em remorsos. Os parágrafos precedentes podem se resumir em sua conclusão: a incompatibilidade entre gozo e L ei, que é L ei da linguagem, a que obriga desejar e abdicar do gozo. Ela obriga a viver convertendo as aspirações ao gozo em termos de discurso articulado, de vínculo social. A demanda está condicionada pelo que se pode pedir. Do gozo srcinário não resta senão a nostalgia que o cria retroativamente, que o mitifica, a partir de quando foi perdido, já que é irrecuperável nessa forma e que tem de ser vertido por outro canal, pervertido. O corpo, em princípio um reservatório ilimitado do gozo, vai progressivamente sendo esvaziado dessa substância (mítico fluido libidinal) quesupassava seus poros, meandros e se agrupa va em as bordaspor oriliciais. Agora, inundava poderá se r seus alcançado, sim, mas passando pelo caminho do narcisismo, pelo campo das imagens e das palavras, como um gozo linguageiro, posto fora do corpo ( hors-corps ), submetido aos imperativos e às aspirações do ideal do eu que o comandam com falsas promessas de recuperação [I(A )]. Do gozo do ser ter-se-á passado para o gozo fálico. Da Coisa absoluta do ponto de partida, absoluta porque não conhecia obstáculos nem mercados da renúncia, apenas ficam os objetos fantasmáticos que causam o desejo desviando para outra coisa, as coisas do Outro, as que somente são marcadas, quando alcançadas, pela diferença frustrante, pela perda relativa à Coisa que pretendiam. O objeto @, oferecido como mais-de-gozo p ( lus-de-jouir ), é a medida do gozo faltante e, por isso, por ser manifestação da faltaa-ser, é causa do desejo. Pois o gozo de @ é residual, é compensatório, indicador do gozo que falta por ter de transacioná-
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lo com o Outro quesó dá tirando. Assim como amais-valia é o mais de valor que produz o trabalhador, sendo-lhe arrebatado no próprio ato da produção pelo Outro (assim o estipula o contrato de trabalho) e restando para ele somente um remanescente de prazer sob a forma de salário que relança o processo e que o obriga a regressar no dia seguinte, o mais de gozo é esse gozo que é a razão de ser do movimento pulsional e, ao mesmo tempo, o que o sujeito perde, seu minus,a libra de carne, o valor usurário às vezes entregue à cobiça insaciável do Outro Shylock. M as ninguém se resigna de bom grado à renúncia que lhe é exigida. O gozo rechaçado àvolta por seus foros, não insiste. o fundamento da compulsão repetição. O perdido é o Éesquecido; mais ainda, é o fundamento mesmo da memória, de uma memória inconsciente que está além da erosão, de um desejo infinito de recuperação que se manifesta em outro discurso, o do inconsciente, o da cadeia da enunciação que corre subterrânea e que alimenta e perturba a cadeia do enunciado. Para ter e conservar a vida teve de se aceitar a perda da bolsa: nunca se termina de perdoar o ladrão.
2. O gozo (não) é a satisfação de uma pulsão Difundir, comentar e estender, tirando novas conclusões do ensino de L acan, ir além da letra de seus textos, não é operação isenta de riscos. M uitas vezes o expositor cita uma frase, um aforismo de fácil memorização e o leitor é seduzido pela facilidade da expressão. M as uma citação é, em princípio, uma interpretação (o analista sabe bem quando recorta uma expressão de seu analisante e a devolve subentendendo as aspas), e, além disso, é um recorte que apenas conserva seu sentido à medida que se conserve o contexto em que o citado recebe seu valor. O problema se agrava quando, como acontece muitas vezes, o primeiro comentarista conhece e maneja perfeitamente o texto do qual extrai sua citação, mas o entrega a um público que, por sua vez, torna-se o segundo
comentarista, citador de segunda mão, fundador de uma doxa corrente que desfigura o ensino sem alterar a literalidade.
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Seja este prólogo uma introdução ao comentário de uma sen tençade L acan que está alcançando um tri ste destino entreos lacanianos a partir dos comentaristas. Refiro-me à expressão multicitada de O gozo é a satisfação de uma pulsão que aparece como frase subordinada no meio de uma oração no seminário da ética.2 E sta frase é retomada por J acques-A lain M iller em seu seminário de 19843e é levada quase ao absoluto em um texto de Diana Rabinovich4em que se lê: “O gozo, definido sempre por Lacan como gozo de um corpo, recebe sua definição claraA em ética: o gozo é a satisfação de uma pulsão”. É atraente ter uma definição tão concisa, aparentemente irrefutável e avalizada pela palavra do M estre.deMintitular as nadaos seria tão perigoso. O Jequívoco se com agrava pelo modo seminários que têm .-A . M iller o editor. É sabido queL acan nunca ni titulou as aulas, apenas o seminário em seu conjunto. E, ainda assim, de um modo não definitivo como o prova o fato de os seminários III, VIII e XI terem sido editados com títulos diferentes dos que tinham quando eram aulas de seminário. É muito menos possível evitar os equívocos quando se escandem os seminários em fragmentos e os nomeiam. O seminário de 4 de maio de 19605nos chegaassim com o título, talvez pouco discutível, de “A pulsão de morte”. O que sim édeproblemático é que, como segundo subtítulo, relativo a uma parte seu texto, aparece “O gozo, satisfação de uma pulsão”. É necessário, então, voltar à precisão da palavra lacaniana para não ficar com a falsa idéia de que a pulsão é compatível com a idéia de satisfação, idéia profundamente antifreudiana, já que para Freud é a necessidade que é satisfeita, enquanto a pulsão é um ser mítico, grande em sua indeterminação, uma força constante, uma exigência incessante imposta ao psiquismo por sua ligação com o corporal que 2.
J . L acan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L ’élique dans la psychanalyse.
3.
p. 248. JParis: .-A . MSeuil, iller. 1986. Seminário L es réponses dit réel. Inédito, mimeogratado, 1983-1984. D. Rabinovich. Sexualidady significante. Buenos A ires: M anantial, 1986. p. 47. J. L acan (1960). Le seminaire Livre VII. L ’étique dans la psychanalyse, p. 243-256.
4. 5.
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estimula além de qualquer domesticação possível, sempre para frente. A pulsão não se satisfaz, insiste, repete-se, tende a um branco que sempre seusua objetivo não se alcança com a saciedade, a paz (Ffalha satisfação (Befriedgung ), mas com o com ri ede)e de relançamento da flecha, sempre tenso o arco de sua aspiração. Freud6pôde dizer que “a meta de uma pulsão é, em todos os casos, a satisfação que apenas pode-se alcançar cancelando o estado de estimulação na fonte da pulsão” para se referir imediatamente depois, às pulsões de meta inibida que “também” se associam a uma satisfação parcial. Há uma distinção entre ter uma meta e alcançála. A meta (Ziel) é uma aspiração. M as não é inútil, ou tarefa de estudiosos, dissipar oequívoco. Pelo contrário, se o gozo não éa satisfação de uma pulsão, podemos aprender da discussão aquilo que sim é ou, melhor dizendo, em que sentido muito particular e restritivo pode-se dizer, como efetivamente o disse Lacan, que o goz o é a satisfação deuma pulsão, sim, mas de uma muito específica, a pulsão de morte, que não é aquela em que se pensa em princípio quando se fala em geral da pulsão e, muito menos, é a satisfação de toda e qualquer pulsão, de uma Trieb indefinida no conjunto pulsional. Para esclarecer isso definitivamente deve-se recorrer ao texto, em vez de percorrer seus despenhadeiros. Impõe-se a citação em seu contexto: C oi sa paradoxal , curi osa, ma s é impo ssível r egistrar a experiência analítica de outro modo, a razão, o discurso, a articulação significante como tal, está aí no começo ab ovo, está aí no estado inconsciente, antes do nascimento de algo de seja experiência humana, está aí fundida, desconhecida, indomada, ignorada inclusive por aquele que é seu suporte. E é em relação a uma situação estruturada de tal modo que o homem tem, num segundo tempo , que si tuar sua s neces si dades. A tomada d o homem no campo do inconsciente tem um caráter primitivo, f und amental. M as este camp o, à medi da que está desde um começo organizado logicamente, sofre uma Spaltung, que se mantém em todo o desenvolvimento posterior, e é com relação a 6.
S. Freud (1915). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos A ires: A morrortu, 1976. v. X IV , p. 118.
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esta Spaltung que se deve articular a função do desejo como tal. E ste desejo apresenta assim certasfreudiana arestas, um ponto complicar cego, e é precisamente aí que a experiência consegue a direção dada ao homem por sua própria integração. Problema do gozo, quando este se apresenta fundido em um campo central de inacessibilidade, de obscuridade e de opacidade, em um campo cercado por uma barreira que torna mais difícil seu acesso ao sujeito, inacessível talvez à medida que o gozo se apresente não pura e simplesmente como a satisfação de uma necessidade, mas como a satisfação de uma pulsão, no sentido em que este termo necessita a elaboração complexa que trato aqui de articular diante de vocês.1 (Grifos meus.) A pulsão propri amente dita é algo mui to compl exo... para quem quer que se aproxime dela de modo estrito, procurando compreender o que Freud articula sobre ela. A pulsão não é redutível à complexidade da tendência entendida em seu sentido mais amplo, o da energética. A tinge uma dimensão histórica, de cujo verdadeiro alcance temos de nos precaver. E sta di mensão se marca na i nsi stênci a com que se apresenta, ao se relacionar (a pulsão) com algo memorável, posto que memorizado. A rememoração, a historização, é coextensiva ao funcionamento da pulsão no que se chama psíquico humano. É também aí que se registra, que entra no registro da experiência, a destruição.
Isto posto, L acan passa a ilustrar o conceito por meio do sistema do papa Pio V I, fábula do marquês de Sade em que se propõe que é pelo crime que o homem vem a colaborar nas novas criações da natureza. Lacan então lê, para seus ouvintes, o que talvez seja a citação mais extensa de seus 28 anos de seminário para lhes ensinar, a respeito da pulsão de morte, que ela deve cindir-se entre o que resulta do princípio energético ou princípio do Nirvana, que conduz ao zero, ao inanimado, à aniquilação pore,outro lado (grifos meus), a pulsão demorte. E acrescenta : A pulsão de morte deve situar-se no domínio histórico, já que se articula em um nível que somente é definível em função
7.
J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'etique dans la psychanalyse, p. 247-248.
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Gozo da cadeia significante, ou seja, como um sinal, um sinal de ordem, podendo ser colocada em relação com o funcionamento da natureza. Faz falta algo além, de onde ela própria possa ser captada em uma memorização fundamental, de modo que tudo possa ser retomado, não simplesmente no movimento das metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial."
Para L acan, então, seguindo Bernfeld, “um dos freudianos mais ortodoxos”, deve-se distinguir entre o movimento energético até o zero e aquele que nós, como analistas, podemos chamar em nosso registro de pulsão, algo que está além da tendência a retornar ao inanimado. Com a pulsão, que detectamos em nossa experiência, encontramos algo que se aproxima da vontade de destruição, “de Outra-coisa à medida que tudo pode ser questionado a partir da função do significante”. Esta vontade de destruição que é, segundo Sade, uma vontade de criação a partir do nada e recomeçar. Esta à história como memorável e força destrutiva e criadora está ligada memorizada, suspensa da existência da cadeia significante. L acan9 vê, assim, a pulsão de morte como “uma sublimação criacionista”. Devemos relembrar as posições suste ntadas por Lacan em seu seminário de 4 de maio de 1960 para articular os três sentidos do termo pulsão caso se considere o nível energéticoque está fora do registro da experiência psicanalítica e que é uma especulação que poderíamos chamar “metabiológica” de Freud; esse o nível é da pulsão como descrito em “As pulsões e suas vicissitudes”1" de 1915, cujo eixo é a pulsão sexual, sempre parcial. Dela Lacan deverá dizer" que contorna o objeto, o objeto @, que tende a ele e que necessariamente falha, em contraposição àpulsão de morte, memorizada, historizante, assimilável a uma vontade de destruição que conduzà inscrição do sujeito na cadeia significante. Estas duas últimas, a parcial e a de morte, são pertinentes ao nosso campo e, no fundo, podem reunir-se já que a meta última de toda pulsão é este
8. 9. 10. 11.
Idem, ibidem, p. 250. Idem, ibidem, p. 251. Sigmund Freud (1915).Obras completas, v. XIV, p. 113-134. J . L acan (196 4). L e séminai re. L ivre XL L es quatre concepts Paris: Seuil, 1973. p. 163. fondamentaux de la psychanalyse.
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registro da vida no simbólico não por meio da obediência, mas da transgressão do princípio de prazer. Creio ser conveniente citar aqui um comentário anterior:12 A história, postula Freud em “O mal-estar na civilização”, é o resultado da luta eterna entre a pulsão de morte e as pulsões de vida. A história, diz Heidegger em sua Introdução à metafísica, é o resul tado da luta eterna entre diké e tekhné,entre a norma instituída que aglutina unidades cada vez mais complexas tekhné, e a atividade dissolvente do homem que impugna as ordens e as ordens do esta belecido para destruir o existente e criar novas formas de existên cia... A mbas conceituações se recobrem e convergem, mas a heideggeriana é mais ajustada porque evita os equívocos biologistas inevitavelmente vinculados aos conceitos de vida e morte. Se, como acreditamos, a pulsão é o próprio da demanda que provoca o desvanecimento do sujeito (S 0 D), ela, a pulsão, tropeça no impossível de sua realização. A falta é estrutural; está inscrita no Outro a que a demanda se dirige [S (A )]. Em outras palavras, se considerarmos a pulsão em relação com o campo da linguagem e não cm uma discutível transcrição biológica e hedonista, não podemos aceitar sem o sintagma “satisfação uma pulsão”. Esse sintagma nãoobjeções é nem lacaniano nem freudiano,depois parte da confusão entre pulsão c necessidade, e a distinção entre os dois registros sempre esteve clara em nossa experiência. Se o gozo tem a ver com a pulsão e na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação que estimula a repetição, e é nesta medida que a pulsão é historizadora, já que msatisfaz. Em lodo caso, poder-se-ia afirmar que o gozo é o saldo do movimento pulsional ao redor do objeto porque isso que se delineia neste caso é o vazio da Coisa, o tropeço com o real como impossível. A outra consideração que nos ajuda aentender apulsão como sendo essencialmente pulsão de morte é a que parte também de Freud quando ele nos indica o caráter fundamentalmente conserva dor das pulsões; elas tendem ao restabelecimento de um estado an terior. Qual é esse estado anterior último a que pode se referir o
12. N. A. Braunstein. Las pulsiones y la muerte. In: La re-flexión de los conceplos de Freuden la obra de Lacan. M éxico: Siglo XX I, 1983. p. 47.
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falante? Não é necessário considerar um estado mineral anterior à vida e aos intercâmbios metabólicos tomando emprestada de um duvidoso discurso biológico a resposta para um segredo que pode mos elucidar com termos psicanalíticos. A morte não é senão aquilo que restringe todo gozo possível do falante, pois não há gozo senão do corpo vivente. Daí a consubstancialidade entre a pulsão de morte e a ordem simbólica situada por Lacan a partir de seu segundo se minário,13dedicado ao eu. Se a vida fica definida para nós a partir do ingresso nas estruturas da subjetividade que são as da transação com o Outro, ou seja, a partir de que a carne se faça corpo pela in tromissão do significante no processo vital, o movimento pulsional pode ser visto como esta força que tende à recuperação do estado anterior à palavra, ou seja, no que viemos trabalhando, à recupera ção da Coisa como objeto absoluto do desejo, à recuperação desse gozo do ser a partir do qual o sujeito chega a ex-sistir. Coloca-se novamente a antinomia entre o gozo primeiro, gozo do ser, e a palavra como vinda do Outro e consagrada ao Outro, obriga à renúncia ao gozo e dá em troca o prazer e bloqueia o gozo do ser, exigindo que este seja encaminhado e desencaminhado pelas vias doumpensar. Será acessível ao sujeito, sim, mas como outro gozo, gozo segundo, secundário, semiótico, linguageiro, palanfrório, já que fora do corpo, que a teoria - e já veremos por quê, pois não é algo evidente, dando lugar a muitas discussões e mal-entendidos - considera e designa de um modo que poderíamos chamar forçadamante com o nome duvidoso, ambíguo, e contudo necessário, degozo fálico. Há um ponto departida insondável e insuperável: os casos em que a função dapalavra não existe ou foi anulada e o vivente, ainda quando está dentro do campo da linguagem, não se inclui em intercâmbios discursivos. Pense, à guisa de exemplo e paradigma, no autista ou no catatônico. Ou, para estar plenamente no ponto de partida absoluto, no recém-nascido e em sua situação com relação ao Outro: a de um objeto deixado à sua disposição e arbítrio ou arbitrariedade.
13. J . L acan (1954-1955). Le seminaire. Livre II. Le moi...Paris: Seuil, 1978.
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É o estado de uma indistinção entre eu e o “mundo”, sendo o mundo, essencialmente, o corpo da mãe. Esta Coisa srcinária e mítica, anterior a qualquer diferença, é chamada por Freud em seu texto de 19 1614com o nome de eu-real, que é inicial, ou seja, um ser no real, anterior a qualquer reconhecimento do Outro, anterior à entronização posterior do princípio de prazer que construirá um eu-prazer e que será o eu definitivo, aquele que aceitará em maior ou menor medida as coações da realidade que modifica e continua o princípio de prazer (poderemos nos deter neste ponto no item 7). Em relação a este eu-real inicial é que incide a chamada invocante do Outro que iniciou este capítulo, o apelo subjetivante. A intervenção do Outro é assim antitética do gozo; desaloja desse real pleno, expulsa do paraíso e o constitui como o que se perdeu. A palavra é sempre palavra da Lei que proíbe o gozo. O Paraíso existe a partir de duas árvores que há nele, cujos frutos não devem ser comidos. A partir de então, está fechado o caminho de volta à Coisa {eu-real), restando apenas o do desterro e da resignada habitação na linguagem. Um anjo de espada flamejante assegura o cumprimento da Lei. E stamos neste momento nesta barreira além da qual está a C oi sa analítica, onde se produzem freios e se organiza a inaces sibilidade do objeto como objeto de gozo. É justamente aí que se coloca o campo de batalha de nossa experiência (...) Para compen sar esta inacessibilidade, é além desta barreira que se projeta toda sublimação individual, e também as sublimações dos sistemas de conhecimento e, por que não, a do próprio conhecimento analí tico.15
Ouo aOutro C oisaéinacessível o Outro. M as, sendo por ser a assim, o objeto deouum ódio primitivo que ejustifica negatividade absoluta como vocação srcinária do ser. Tal é a razão de toda pulsão ser no fundo pulsão de morte, ataque à exigência alienante de fazer passar o gozo pela cadeia do discurso. Freud diz o mesmo: “O ódio é, como relação com o objeto, mais antigo do que 14. S. Freud (1915).Obras completas, v. XIV, p. 129.
15. J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans la psychanalyse, p. 239,
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o amor; brota da repulsa primordial que o eu narcísico opõe inicialmente ao mundo externo pródigo de estímulos”.16 Se Eros tende à ligação, à constituição de nexos, trata-se de nexos entre significantes, do vetor que vai de um significante (S,) a outro significante (Sj. L acan poderá ironizar com razão o caráter delirante que assume neste ponto o enunciado freudiano ao pretender que as ligações entre as células que levam à constituição de organismos multicelulares ou de sociedades complexas pudessem ser uma prova da ação de Eros. Está bem. as pulsões são seres míticos, mas sobre elas sabemos apenas a partir de nossa prática linguageira. Os biólogos não podem dizer nada, não é seu campo, sobre nosso Eros e Tanatos tal como surgem da experiência psicanalítica. A ação da pulsão de morte recai, então, sobre o intervalo da cadeia, tende a dissolver esse vínculo que é o do discurso. E assim como nega o Outro e expressa este anseio irredimível de retorno ao gozo do ser. E uma atividade iconoclástica que pede para recomeçar. A negatividade destrutiva que se apodera do desejo, destacadapor Freud,17L acan e Hyppolite1“ na discussão em torno daDie Verneiming pode ser entendida a partir desta inclusão do gozo ser na teoria. A pulsão nãodo , pois, é algo quese satisfaz e dá acesso ao gozo, mas sim, essencialmente, uma aspiração de gozo que fracassa por ter que reconhecer o Outro e pagar-lhe com a quota “gozosa” que ele exige a título de aluguel pela residência que oferece. Em seu fundamento a pulsão é destrutiva e não apaziguável. Novamente, deve-se recorrer a Freud em uma expressão surpreendente por sua clarezaem relação ao gozo. Está em “O mal-estar na civilização”,19 quando trata sobre a pulsão de morte: M as, ainda onde emerge sem propósito sexual, inclusive na mais cega fúria destrutiva, é impossível desconhecer que sua
Obras completas,v. XIV, p. 133. 16. S. Freud (1915). 17. S. Freud (1926).Obras completas,v. XIX , p. 253 258. 18. J . L acan (1953). Écrits. Paris: Seuil, 1966; (L acan) p. 381-400 e (Hyppolite) p. 879-888;Escritos 1. M éxico: Siglo X X I, 1984 (L acan) p. 366-383 eEscritos 2. M éxico: Siglo XX I, 1984 (Hyppolite) p. 859-866.
19. S. Freud (1930). Obras completas, v. XX I, p. 117.
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satisfação se enlaça com um gozo narcisista extraordinariamente elevado, na medida em que ensina ao eu o cumprimento de seus antigos desejos de onipotência. M oderada e domada, inibida em sua meta, a pulsão de destruição, dirigida aos objetos, vê-se forçada a procurar para o eu satisfação de suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza.
A parece, no item anterior, o sintagmaque dissemos não ser freudiano, satisfação (mas não da pulsão,satisfação do eu). Concluindo este item podemos definir o sentido de nossa empresa ao analisar o aforisma de L acan que lhe dá título: evitar que a repetição de uma fórmula fácil e descontextualizada faça perder de vista o sentido específico que tem em Lacan e em Freud a ligação entre a pulsão e o gozo. C oncretamente, tratei de recalcar a srcinalidade do conceito freudiano de pulsão, uma vez que o mesmo é transformado de raiz a partir da introdução da noção pulsão de de morte, pois esse conceito se divorciou da idéia de aspiração a um apaziguamento ou satisfação e se vinculou com o gozo como “além do princípio de prazer”. Os comentaristas de L acan o sabem bem, mas a doxa que se cria chega a ser contraditória com o ensino de L acan em um ponto fundamental. A pulsão não transgressão, tranqüiliza nem sacia.com A pulsão historiza, faz o ao memorável como confina o fracasso ao levar real como impossível e é assim que alcança sua meta. J á é hora de passar ao ponto seguinte para evitar um novo equívoco: o de uma conceituação maniqueísta e apressada do Outro como o “mal” que separaria desse supremo “Bem” que seria a Coisa.
3. A palavra, diafragma do gozo Do gozo do ser, pela intromissão necessária do Outro e de sua L ei que exigem que tal gozo seja entregue no mercado dos intercâmbios, fica uma falta a ser que é o desejo. Pelo Outro há algo perdido como desfrute do corpo. E o fundamento da velha aspiração do Wunsch freudiano: a de recuperar, seja pelo curto-circuito da alucinação, seja pelo amplo caminho das transformações da realidade, a (identidade de) “percepção”, ou seja, o gozo da Coisa.
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O gozo, o que dele fica inscrito, o Isso freudiano, o pulsional que foi resignado, tudo isso é caótico, está desarticulado. impressões São IV ) que não podem ser subjetivadas e assumidas como (cf. capítulo sendo de alguém. A s “representações de coisa” freudianas (,Sachvorstellungen , nãoDingvorstellungen,pois da Coisa não há representação) devem ganhar o acesso ao sistema pré-conscientc, articulando-se com as “representações de palavra” (Wortvorstellungen ), mas este processo não é simples. As representações de palavra, ou seja, os significantes da língua não vêm tão-somente sobreinvestir, dar uma carga extra de “energia” aos significantes do desejo, como aspiração à recuperação do gozo. O
sgnificante substitui as representações de coisa e lhes impõem outras leis que não são as pretensões do (qui gozon 'a jamais connu de loi), mas as do discurso e da linguagem. Do gozo não ficam senão estas metáforas e metonímias, estas moedas que do simbólico vêm para encarregar-se e “desnaturalizar” esse real prévio que é agora inacessível e irrecuperável. Elas simbolizam; o simbolizado é o gozo perdido, renunciado, entregue à exigência do Outro. Para Freud, Triebverzicht, renúncia pulsional. E é assim que a linguagem articulada, a fala, é um caminho que desencaminha. Para percorrê-lo deve-se ir aonde ele leva, ou seja, ao exílio, à realidade, às coisas do mundo que não são senão outro nome da perda originária. A rticulado como está em “representações de coisa” (para conservar a terminologia freudiana), o desejo in consciente é inarticulável, deve aceitar as leis da cadeia significante, traduzir o gozo em palavras e perífrases que necessariamente o desvirtuam. Deve-se articular como demanda, reconhecer o Outro e torná-lo condição da satisfação. A idéia central que quero desta car neste momento é que a cadeia significante não tem medida co mum e não tem possibilidade de significar o gozo a que aspira; que o significante é incomensurável com o gozo e que a falta de tal me dida comum é o que define o gozo como um tipo de substância que corre por baixo, algo que constantemente se produz e ao mesmo tempo escapa e é barrado como impossível, indizível, pelo discur so. E que nome, que nome senão olibido de corresponderia a essa substância fabulosa e escorregadia, a esse hommelettel Repetindo o elementar da concepção lacaniana do discurso: o sujeito é o efeito da cadeia significante, está no lugar do significado
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de um significante um (S,) que o representa para outro significante (S2); entre os dois se faz a cadeia. O produto desta operação de articulação dos dois significantes é um resto irredutível, um real que é o resto in-significante, o objeto inalcançável que causa o desejo e representa o gozo perdido sob a forma demais um (minus)de gozo. Entre o sujeito e o objeto @ assim produzido como saldo que cai do encontro dos dois significantes há uma disjunção, um desencontro essencial que permite escrever a relação entre os dois efeitos da função da palavra (o sujeito como significado e o objeto como gozo faltante), ora com a dupla barra da disjunção, ora com o losango da fórmula do efantasma. encontro de capítulo ambos é, excetuando-se a psicose conforme Oserá visto no correspondente (capítulo VII), impossível.
___ S, -> S, 8
//
@
(S0@) Cabe insistir na heterogeneidade radical nesta fórmula entre os significantes e o sujeito que é seu efeito de significação, por um lado, e, por outro, o gozo, indicado pelo objeto @. Recordemos aqui, que tudo é estrutura, mas nem tudo é significante,2 0 @ é, precisamente, justamente, aquilo da estrutura que não é significante. Com Freud, a partir de Freud, sabemos que este transvazamento que também é um vazamento do gozo na articulação signifi cante vai, no discurso, se escandindo, se repartindo em momentos, pontos dramáticos de corte e interrupção, que a teoria psicanalítica delimitou como fases ou estádios da evolução psicossexual. Qual quer um se lembra dos esquemas cronológicos que colocam nas abscissas e nas ordenadas tais fasesdoevolutivas de modo adeterminadas parecer que idades a psicanálise é outra cronologia desen volvimento, uma a mais. Com Freud, a partir de Freud, sabemos que todas estas fases, marcadas como estão pela renúncia ao gozo oral primeiro e anal depois, com incisos nunca bem determinados sobre 20. J. L acan (1958). Remarque sur lê rapport de Daniel L agache. In: Écrits, p. 659;Escritos 2, p. 638.
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o gozo uretral, muscular, visual e alguns etcéteras mais, são todas preparatórias de uma renúncia final que ressignifica retroativamen te todas elas e ossobrevem fantasmas lhes correspondem. Depois do pre lúdio pré-genital o que atravessamento edípico da castração, condição do período de latência, no qual, idealmente, todas as re núncias ao gozo corporal já foram produzidas, restando apenas uma pura disponibilidade do sujeito para assimilar-se à palavra “forma dora” (alienante) do Outro. Não por casual coincidência, esse pe ríodo de latência coincide com a chamada “idade escolar”. O não sepultado pela castração é o que retorna da repressão sob a forma de sintomas, monumentos que comemoram o gozo abandonado, ainda que transposto também, de outra maneira, nos termos lingua geiros. Os sintomas são traduzíveis, interpretáveis, efeitos de “con versão” do gozo (a que sempre remeterão), formas também elas do gozo fálico. Tudo aconteceassim, até que a pressão da puberdade reativa as demandas da sexualidade; estas deverão canalizar sob os ditames da primazia da genitalidade, ou seja, do único genital que é o masculino, ficando a menina dividida entre um gozo que também é fálico, o do clitóris, igual ou comparável ao do homem, e outro gozo, vaginal, que seria complementar do gozo fálico e, portanto, incluído em sua órbita, sob a égide e supremacia (teses freudianas que L acan corrigirá e às quais dará outro alcance). Com Freud e a partir dele, temos ouvido falar deste processo de renúncia ao obje to mais arcaico do desejo, cuja dinâmica se desenrola no cenário do complexo de Édipo e que acabará, do lado masculino, cm uma iden tificação com o pai rival e, do lado feminino, com uma demanda feita ao pai depois de aceitar a decepção pela castração inevitável da mãe com seu saldo de inveja do pênis e aspiração de recuperá-lo sob a forma de um equivalente simbólico que é o filho. A sexualidade, com suas disposições polimorfas, com seus componentes sexuais “perversos”, com sua multiplicidade srcinária de zonas e objetos foi, depois deste processo, arrasada. A í onde o gozo se derramava de modo anárquico no verde paraíso dos amores infantis, tem agora uma lei, efeito da castração e da proibição do inccsto, que determina os objetos e os modos de satisfação acessíveis àquele que fala. Este processo é descrito por Freud de muitos modos e em
diferentes textos, mas talvez fique mais claro em “Dois princípios
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do funcionamento mental”,21 em que descreve a troca do princípio dc prazer por seu substituto modificado, que é o princípio de realidade. Nesse artigo, o vocábulo Lmsí do Lustprinzipnão deve ser entendido como “prazer”, ou seja, como limite e barreira ao gozo, mas como o próprio gozo, enquanto a realidade, senhora das conveniências e reguladora dos ideais, é esta escura razão do Outro que se superpõe e desloca o gozo do corpo fazendo com que o sujeito fique dividido entre dois Outros difíceis de conciliar: o corpo como Outro que é um estranho ao sustentar aspirações proibidas de gozo (gozo do Outro) e o Outro da linguagem que reclama renúncias ao que sempre se darão a contragosto e que são o fundamento dosgozo sintomas e da psicopatologia da vida cotidiana. Este processo de “dcsgozificação” (criemos um neologismo necessário) justifica que leiamos assim, transgressivamente, o artigo sobre os dois princípios. O Lustprinzip corresponde nesse texto ao gozo inicial, ao que Freud em 191522chamou Eu-ideal. O princípio de realidade é o verdadeiro nome do princípio de prazer-desprazer. Os dois princípios, o de prazer e o de realidade (ambos entrelaçados) aluam consonantemente como barreiras interpostas no caminho do gozo. Os gozos sucumbem à castração e se metamorfoseiam ao terem que se significar passando pelo funil da palavra, aceitando sua L ei, a da cultura, e evocando sempre a renúncia pulsional que os desvia (perverte) por esse estreito desfiladeiro. Daí Freud ter proposto a essas “pulsões parciais” como “precursoras” da castração, já que apenas com esta alcançam sua significação definitiva que é a dc incluir sempre a função imaginária do -(j). Passando pela castração simbólica os objetos do desejo se marcam com o lastro de suaimpossibilidade. Em relação com < i> , com o Falo como significante do gozo que está proibido para o falante como tal, é que tudo do gozo que é acessível está barrado e deve deslocarse ao longo da cadeia significante, fora do corpo hors-corp. E por isso que o objeto @, o do fantasma, carrega subentendida esta função da castração. A inda que não se escreva de tal modo por razões de economia, seu nomecompleto é: objeto @ / (-(})). 21. S. Freud (1911). Formulaciones sobre los dos princípios dei acaecer psíquico. In: Obras completas, v. XII, p. 223. 22. S. Freud (1915). Obras completas,v. XIV, p. 129-130.
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A carne n i corpora-se à linguagem e assim se faz corpo. A s as pirações pulsionais requerem do Outro, esse Outro a que se0dirigem as demandas. Por isso a escritura lacaniana da pulsão éS D, e o sujeito se constitui a partir do modo em que o Outro significa e res ponde à demanda, impondo suas condições, mostrando por onde sim e por onde não. O sujeito apenas chegará a existir como uma conseqüência da ação do Outro da linguagem sobre essa carne que se fará corpo na medida em que acolha os cortes que a linguagem faz no fluxo vital. O corpo se tornará mapa, pergaminho em que se escreverá a letra que com sangue entra. Um corpo é humano ao se incluir nesse sistema de transcrições que trocam o gozo pela pala vra. A divisão subjetiva (S) alude, entre outras coisas, a esse pro cesso de estranhamento que constitui como Isso, o pólo pulsional e que deixa o eu encarregado das relações com o Outro e organi zador das defesas contra os excessos no gozo. Desde o reprimido procede a pulsão como exigência de trabalho, como tensão impos ta ao psiquismo por sua relação com o corporal, como transgres são ao princípio de prazer,23como aspiração ao gozo que não se compadece dos mandamentos e restrições que o Outro impõe. A “dinâmica” da metapsicologia freudiana é este conflito entre o gozo transgressivo e o prazer homeostático, entre o tudo menos quieto desejo sexual infantil e a aspiração de seguir dormindo. O gozo é decli nado (em suas duas acepções: a gramatical e a subjètiva de “declinar”); agora tem uma clínica do gozo, dos modos de julgá-lo e conjugá-lo, evocá-lo e frustrá-lo, recusá-lo e reconquistá-lo sem nada querer saber sobre ele. Reaparece depois de metamorfoses linguageiras nas formações do inconsciente, esse inconsciente que trabalha com uma matéria-prima que é gozo e a transforma em um produto que é discurso, utilizando esse instrumento que está estruturado como ele e que é sua condição (“a linguagem é a condição do ni consciente”, insistia L acan24): a bateria do significante que terá que servir a seus fins, a seus fins de gozo. Não se trata da língua, mas de alíngua da lingüisteria lacaniana, essa
23. J . L acan (1964) . L e seminai re. L ivre XI . L es quatre concepts fondameiitaux de la psychanalyse, p. 167. 24. J . L acan (1970). Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 393-403.
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alíngua que é a carne do anta f sma.2 5 O inconscienteconseguepassar algo de seu contrabando gozoso, mas, de qualquer forma, para dizer não à L ei deve aceitar queé sim súdito dela e que se reconhecem suas coações. O sonho transgressivo noturno não a anula, mas confirma seu império, assim como o chiste. O reprimido a reconhece com muita dor no sintoma; o incomensurável do gozo está condenado a vegetar nos parques bem delimitados do fantasma, essas reservas falsamente “naturais”. O gozo refugiou-se na fantasia inconsciente, cujos arquivos e protocolos Mclanie K lein explorou, fantasia louca, irredutível à razão, retaliadora, corrosiva, selvagem, associai, que evoca um gozo do Outro sufocante e devorador vinculado pela “tripeira” ao corpo mítico daM ãe como representante da Coisa. Sobre estas formações imaginárias terroríficas e terríveis do gozo recairão as repressões e renúncias que tornam o sujeito dividido, em outras palavras, um bom menino da neurose. Estamos, com ele, no mundo da comunicação, do sentido e da recíproca satisfação especular dos eus. O sujeito se desconhece ao colocar-se sob os emblemas de um si-mesmo, de selfum que gruda seus pedaços gozosos em uma imagem unificada e totalizante de si e do outro, o “objeto”, como dizem os partidários de uma assim chamada “teoria das relações objetais” que pretende ser um “novo paradigma” para a psicanálise e que rapidamente conquistou a maioria das disposições na mundial de psicanálise, sempre ávida por qualquer novidade que lhe permita retroceder a tempos teóricos anteriores a Freud. Não é este o escrito adequado2 6 para fazer o relato e a crítica desta psicologia da pessoa total que floresce em nossos tempos, portando a bandeira renovadora de um inconfesso “retorno a... científica” Adler”, nãocomo por vergonhoso menos , de uma “regressão a chama um dosflagrante seguidores da repressão anterior, a da psicologia do ego, tão vituperada por Lacan em seus tempos. Pois estamos na época em que os partidários do modelo que imperou nos anos 1950 e 1960 resultam demasiado freudianos, conservadores (dois vocábulos que se tornam sinônimos
25. N. A. Braunstein. L ingüistería (L acan y el lenguaje). In: El lenguaje y el
inconsciente freudiano, p. 213. 26. Cf. N. A. Braunstein. Freud desleído. F reudiano y lacaniano, p. 133-150.
parais “inovadores”), tradicionais etc. Com selfo o o objeto total27 (queá “a pessoa do outro”), têm-se os artefatos que permitem rejeilr o inconsciente e o objeto sempre parcial da “antiquada” teoria freuoana das pulsões. Não posso deixar de apontar agora que o centn de tal empresa teórica é a deportação do gozo para fora da teoriída psicanálise para convertê -la em uma concepçã o das relações intcressoais dominada por ideais de harmonia e completudc. Já podetios imaginar quão bela fica a psicanálise quando conseguimos tirarJ ela as pulsões, a castração e o Edipo, o gozo e o desejo incoisciente e, livres de tal fardo, mostrar que o tratamento pode se reluzirsimpático a um relato pormenorizado interações entre um teraputa e um paciente quedas aprende com ele a integrar um el f previamente dissociado pela falta de uma mãe suficsntemente boa.2 8 1 assim vamos, de digr essão em digressão, até nossa compeensão já adiantada de um gozo apalavrado, de um gozo do qual rio sabemos senão pelo discurso que lhe impõe sua legalidade e ques divide entre um gozo anterior, mítico efeito retroativo da palavu, e umgozo posterior, que se produz ao mesmo tempo em que ecapa, por ter que atravessar o campo minado, para ele, da lingugem. No entanto, do gozo nada se poderia saber se não fosse por ete apalavramento. L acan pôde especular sobre o gozo da árvortou da ostra. Não seria o caso de segui-lo: o gozo não é uma funçãt vital\aparece enquanto a vida está mortificada pela palavra e pelaL ei. E coisa de falantes. A palavra tira o gozo docorpo e se encarega de dar corpo ao gozo, outro corpo, um corpo de discuco. Este processo nuncaé nem completo nem pacífico c ficam as fomações do inconsciente como memoriais da tradução imposível, como emergências do gozo que não convém. O discurso é, ret
27. H K ohut. La restauracion del st-mismo.Barcelona: Paidos, 1980, L. Rngell. The object in psychoanalytic therapy. J . of the Am. Psa. Ass., 3; p. 302, 1985.
28. M Gill e I. Z. Hoffman. Analysis of transference, Internat: U niversity Pcss, 1982. 2 vols.
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A palavra articulada tem, ao mesmo tempo, que deixá-lo passar c controlá-lo, regular sua voltagem. O significante não existe no céu das platônicas. pensante Seu lugar ée difícil de especificar e L acan que idéias as substâncias extensa de Descartes não dirá conseguem localizá-lo, pois “o significante se situa no nível da substância gozante”, ou seja, do corpo que se sente, irredutível à física e à lógica ou, cm outras palavras, suporte de uma lógica diferente da dos lógicos. Se o significante está aí e se o gozo somente existe por sua intermediação, é porque “o significante é a causa do gozo”, ao mesmo tempo em que lhe põe um limite e lhe dá razão de ser, ou seja, que “oésiganificante é o que detém oAgoz o”.29 ilustração que posso O que “substância gozante”? melhor propor é a analogia muito usada que compara o falante com o computador. O que tem nela? Um corpo, efeito da criação significante, sem dúvida, um produto da indústria que é sua materialidade física, h oardware,totalmente estúpido em si mesmo quando é suporte das atividades da máquina. É um corpo bruto que não serve para nada até que se lhe incorporam os programas, uma organização estruturada de significantes, uma informação codificada e sem corpo, osoftware.Com o “sou” dohard e com o “penso” do soft, temos à vista as duas substânci as cartesianas. A máquina pode funcionar perfeitamente, muito melhor, mais rápida e mais eficientemente do que essas máquinas tontas que somos os falantes. Para ela, o que não serve, o que erra. o ambíguo, é matéria de descarte, de descartes. Se é suficientemente avançada, aprende com seus erros e os corrige, não se compraz nem se aferra a eles. Seu hardwareé indiferente à composição e às operações de software. seu Um não incide sobre o outro, tendo em conta sua compatibilidade técnica. Não há aí fantasma, não há imaginário, estão descartadas a neurose e a compulsão à repetição. Esta é a diferença entre a máquina e o falante: este último é o assento (não o sujeito) de um gozo que passa por ele, que se sente na confluência do corpo e da linguagem, que não reconhece um princípio de eficiência e que é a fonte de uma complacência no erro e no errar. Para que serviria uma
29. J . L acan (1973). Le seniinciire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1976, p. 26-27.
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máquina gozante, se é que a algum cibernético lhe ocorreu inventála? No computador, o pensar - não o saber, segundo aespecificação de acan3 " em deserto seu seminári de 20nadecópula março feliz de 1973 - prolifera umL absoluto do ogozo, do hardware e doem software.No homem e na mulher, feitos de substância gozante nem imaginada por Descartes, o significante faz a cópula, não a felicidade. Neste sentido é que proponho que a palavra seja o filtro recorrendo a uma analogia fotográfica - (não sem que me escapem as outras conotações), que a palavra é o diafragma do gozo. Isto é, que cumpra com relação a esta “substância gozante”, ao fluido libidinal freudiano ou à mítica e tão elástica lâmina lacaniana, a função de interceptação e de proteção contra excessos indesejáveis (ou demasiado desejáveis). Diaphrasein em grego é, precisamente, separar, interceptar, estabelecer uma barreira. A palavra, o fármaco oferecido pelo Outro, a droga instilada desde o berço no falante, considerada agora um termostato regulador, o diafragma que regula a passagem da luz, essa pupila que se dilata na obscuridade e se contrai com os raios luminosos. Sabemos que luz em demasia inunda a placa fotográfica e a imagem fica velada, e que a falta de luz não permite que a placa se impressione, fazendo com que a imagem careça de definição. Sabemos também que o diafragma deve ser sensível, como a pupila, e graduar seu diâmetro esfincteriano para adequar-se a diferentes condições e às horas do dia. A ssim funciona apalavra: deixa de atuar ou não existe ou está destruído seu aparato no psicótico. Assim, o gozo inundao falante e varre a subjetividade; rompem-se as barreiras que permitem limitar a penetração da palavra do Outro, fica o corpo submetido a metamorfoses incontroláveis que o sujeito presencia atônito. Na neurose, pelo contrário, assistimos a um espasmo ou contratura desse diafragma que perde flexibilidade e nos mostra a fenomenologia inteira dos clássicos mecanismos de defesa do eu que não são mais do que operações linguageiras que tendem a refrear um gozo vivido como perigoso ou intolerável. Situações especiais e não redutíveis a esta simples oposição do diafragma fechado ou aberto
30. J. Lacan ( 1974). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 89.
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são encontradas nas perversões, toxicomanias e doenças psicossomáticas. Dever-se-á falar sobre isso nos capítulos dedicados à clínica, mas é importante sublinhar desde já a utilidade clínica da oposição e da composição entre gozo e discurso, porque ela está no cerne da experiência mesma da análise que consiste em operar sobre o diafragma do gozo. A s condições do trata mento não apenas não são as mesmas, mas devem ser radicalmente opostas para o caso em que o diafragma não exista (psicose) ou esteja fechado (neurose). O dispositivo freudiano surge da experiência das neuroses e consiste em criar as condições de possibilidade que permitam a passagem do gozo à palavra. E esta também a idéia que nos oferece um outro caminho de acesso ao que se desenrola na transferência que é transferência do saber, certamente, e constituição do sujeito suposto saber, mas somente na medida em que esta suposição seja a de umsabergozarque tanto abre para o ato perverso quanto para o ato analítico, e onde somente o desejo do analista poderá estabelecer a diferença.
4. A coisa e o objeto @ O gozo existe por causa do significante e à medida que o significante não o detenha e o submeta à sua norma que é a norma fálica. A linguagem é o que funciona como barreira a um gozo que não existiria sem ela. No entanto, no que vimos, falamos de um gozo que inunda o ser e que é devastado pela exigência de apalavrá-lo. Não há mistério nem contradições, já que também dissemos que a linguagem é o que produz o gozo como o que havia antes de sua intervenção. É a função da linguagem: matar a coisa, dando-lhe uma nova existência, uma vida deslocada. Era o meu problema ao começar o primeiro capítulo. Era primeiro o gozo ou o verbo? Problema clássico da galinha e do ovo, ou seja, de estruturas que não reconhecem antes nem depois, ainda que a pergunta sobre sua gênese retorne sempre. Se o gozo é um efeito retroativo da palavra que o limita, cabe se perguntar sobre sua srcem e ponto de partida. (Se o universo está em expansão, cabe se perguntar sobre o momento em que tudo estava concentrado em um só ponto. ítalo
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Calvino escreveu, a respeito disto, um conto menorávil em Á s cosmicômicas.)A pergunta pel a origem remete neessari mente a uma resposta que é da ordem do mito. Bem s: sabtque os psicanalistas não recusamos os mitos. As pulsões sã sere míticos e magnos em sua indeterminação, dizia Freud. Edipo: comjlexo por ser mítico. O fantasma fundamental começou a er traado por L acan como “o mito individual do neurótico”.31A libdo laaniana é um fluido mítico etc. Por seu lado, o mito originárn do g>zo e de sua perda posterior recebede L acan uma resposta ae art;ula um termo freudiano com uma ampla tradição filosófica: a Coia. K ant com Freud.aCoisa quecom na amais breveé:de suas definiões, jácitada, mostrando relação palavra, “aquilo do realprimorial que padece pelo significante”.32 A Coisa como umreal puro, anterior a qualqueisimboização, exterior a qualquer tentativa de apreensão, apagada pra semre por qualquer palavra, núcleo de m i possibilidadeencerrad; como>s mais íntimo e o mais inacessível ao sujeito, extima, ccmo a ciamou neologicamente L acan no seminário VII, A ética a psicoiálise. Qualquer representação dela a desnaturaliza. Quahuer un pode imaginar o seio, o corpo da mãe, a vida intra-uteriia, o caustro materno e o que quer que seja, mas sabendo qui toda estas imagens não são da Coisa, mas que brotam a partir daexistâcia de um mundo produzido e estruturado pelo simbólico qc habiita tais produções imaginárias, tais representações em torn de un real impossível de recuperar. Os fantasmas, incluindo o da 3oisa,;ão um efeito do sofrimento do real pela ação do significante. Aimbo zação, a intrusão da linguagem na carne, induz à falta a ser qie carcteriza o sujNietzsc eito e o lança desejo.texto A idéia adantada por he3 3em por um vereda brevese de essencial dejá 18 bra 3, pulicado postumam ente: nadasabemos do eral, senão pormeio e consruçõ es fictícias habilitadas pela linguagem. Vivemos em m muido de 31. J . L acan. Le mythe original du névrose. Ornicar?, n. 17/8, p. 39-307, 1979. [Intervencionesy textos.BuenosAires: Manantial, 1'85. p. 7-59]. 32. J . L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans Upsychnalyse, p. 142.
33. F. Nietzsche (1873). La verdad y la mentira en el sentido;xtrarmral. In: Obras completas.Buenos A ires: Aguilar, 1947. v. I, p. 39-408.
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mentiras, deficções. Lacan dirá que todo discurso é do semblante3 4 e tem como função representar e mascarar a verdade da qual deriva. Por isso, o conhecimento iémpossível, ficando apenas o saberque é um fantasma. Como voltar se não for por um discurso especial a uma realidade pré-discursiva? E aí onde está o sonho, o sonho fun dador de toda idéia de conhecimento. M as é aí também que deve ser considerado mítico. Não há nenhuma realidade pré-discursi va. C ada realidade se funda e se define por um discurso.” (G ri fos meus)
Como de um gozoa não e mito da falta da falta, a Coisa se lugar apresenta como metalimitado absoluta do desejo, o lugar ou o estado em que se cumprirá a abolição da falta a ser, estado de N irvana, supressão de toda tensão diferencial com o mundo, indistinção do se r e do não-ser, morte. A tendência à Coisa é a pulsão de morte como destino final de todos os afãs vitais humanos. Este mito de uma satisfação plena que a lógica do mito, a que pede uma concepção da srcem, obriga a considerar como o ponto de partida e lugar que está aquém dc todo desejo é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada, o estado de repouso absoluto que se alcançaria uma vez consumi da aque chama e alcança da a quietude ima. Viver, para o ser fala,daévida eleger os caminhos para aúltmorte, deambular pelas veredas do extravio e a errância do gozo com vistas à sua recuperação. A Coisa, como objeto absoluto do desejo, abre ao pensamen to a dimensão insólita e abismal de um gozo do ser, anterior ex- à sistência,um efeito retroativo da linguagem que, ao colocar-se além da própria coisa, isso que os lingüistas chamam referente,cria a in tuição de um aquém. Esta suposição, insiste L acan,16é insuprimível e “a linguagem, em seu efeito dc significado, sempre fica ao lado do referente. Sendo assim, não seria verdade que a linguagem nos
34. N. A. Braunstein. El concepto de semblanteen L acan. In: Por el camino de Freud, p. 121-152. 35. J. L acan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 33. 36. Idem, ibidem, p. 44.
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impõe o ser e nos obriga a admitir que, do ser, nunca temos nada?”. O que nos lança não a parecer, mas a para-ser, a existir de lado, no campo do semblante, dada a “insuficiência” da linguagem. Creio que já é desnecessário insistir. A Coisa é um efeito da lin guagem que introduz a falta e que, assim, separa dela. A Lei da lin guagem, a das sociedades humanas cujo efeito final e cujo fundamento é a lei da proibição do incesto, a proibição da reintegra ção com a mãe, é a que cria a Coisa e a define como perda. Desde que se produz o primeiro acesso ao simbólico, a primeira intrusão do símbolo na vida, a Coisa fica obliterada, o gozo fica marcado por um dizer-se, ente humano é chamadoque a ser por meio sempre da obrigação minus e ode de articular significantes expressam um único conteúdo fundamental: o da falta no gozo, único referente, “única ontologia confessável” para nós, psicanalistas. E é pela falta que se produz no ente por ter que se dizer que resulta o ser de to dos os exilados da Coisa, os falantes. Já no item anterior, aborda mos a questão do discurso e vimos que o trabalho de articulação dos significantes supõe um real prévio, um aquém, o da Coisa e produz um saldo inassimilável e incomensurável, o gozo perdido, causa do desejo, que é o objeto @, um real posterior. E assim que corre o fio do desejo, por meio de demandas que se repetem em direção ao Outro e que recebem dele signos, manifestações, doações, que não podem preencher o vazio aberto no gozo por ter que sc tornar pa lavra. E não é que o Outro seja malevolente, não; é simplesmente que não tem com que responder ao que lhe é pedido, que manca por falta de um significante, que está barrado. Sendo a Coisa irrepresentável - cenário vazio, um espaço que está além da infranqueável superncie do espelho cujo espaço virtual que faz surgir não é nada além da miragem os objetos que pretendem substituí-la, povoar e mobiliar esse espaço, apenas conseguirão um estatuto espectral, imaginário. São os objetos do fantasma ante os quais o sujeito se desvanece (SO @). Introduzse assim a distinção essencial entre a Coisa e os objetos (das Ding e, por outro lado,die Sache, die Objekte, die Gegenstände). É aqui que podemos co nsiderar o objeto @ que causao desejo e quemove a pulsão. Por ser a Coisa aquilo que falta, os objetos do mundo
aparecem e se multiplicam, os falantes, pela via da linguagem, dão-
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se um mundo, entram no mercado do gozo com o Outro. Pela expulsão srcinal se constituem como sujeitos em sua divisão que é, agora, divisão entre a Coisa e os objetos (inclusive o eu, seguindo como sempre Freud, que considerou o eu um objeto particular sobre o qual recaía uma classe particular de investimentos, os narcísicos). Os objetos, todos, são derivados da perda, seus sucedâneos, seus representantes fantasmáticos. Do Gozo, do Grande Gozo inicial e mítico, aos gozinhos, aos pequenos @ dos objetos que causam o desejo e o vetorizam. Desde o princípio Lacan se propôs explicar essa diferença em termos topológicos. É por isso que no mesmo ano 1960 em que reintroduzia a Coisa, concebeu um apólogo que já era uma topologia grosseira, mas que ilustrava de modo convincente a diferença entre a Coisa e o objeto. Refiro-me a seu famoso vidro de mostarda. Sabe Deus por que tinha que ser vidro e de mostarda. O que importa é que nesse objeto da indústria podemos reconhecer três elementos: a) o vidro, suas paredes, que é uma invenção humana, uma manifestação do poder criador da linguagem; em suma, um significante que produz; b) algo que intuitivamente teria estado antes, o vazio, envolto pelas paredes do vidro e que, no entanto, não o seria senão com pela algo açãodefinido, do significante; e c) convida permite seja enchido a mostarda, que nãoe teria, semque o frasco e o vazio, outro destino que o de esparramar-se e perder-se ex de modo irremediável. Este apólogo mostra a função criativa nihilo do significante que produz o vazio como essa Coisa que teria estado desde antes (e isso é falso) e que propõe ao objeto como aquilo que pode povoar (de modo enganoso) esse vazio. Dois anos mais tarde, no seminário da identificação,'7mostraria a existência de uma figura topológica que, considero, é mais rigorosa para dar conta deste desencontro estrutural entre os objetos da pulsão (variáveis, sempre substituíveis, segundo o ensino freudiano) e a Coisa como objeto absoluto ao redor do qual giram todos estes movimentos pulsionais. O que proponho, sabedor de que não é em relação a esta distinção entre aCoisa e o objeto @ trazida por Lacan em 1962, é 37. J. L acan (1962).Seminário IX, aula de 23 de maio.
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ilustrar a excentricidade de ambos por meio do toro. Para quem não sabe do que falo, é necessário remeter-se à imagem intuitiva de um anel, ou melhor, de uma câmara de roda de automóvel. Para quem busca referências mais precisas posso recomendar o livro de J. Granon-L afont.3S Na câmara, no toro, existem dois vazios que, como o vazio do vaso de mostarda, são criados pelas paredes, pela superfície do toro. Um vazio periférico, fechado, envolto pela borracha da câmara, chamada “alma” do toro e outro que é o buraco central, o “furo pelo qual corre o ar”, como uma vez o chamou L acan, que nada envolve. É claro que os dois vazios não têm nenhuma comunicação entre si e estão em dimensões diferentes.
O que nos mostra esta estrutura tórica? A atividade do demandaque se repete e insiste, articulada, vale como significante, a algo que caminhasse pela superfície interna, girando constantemente em torno do vazio fechado que é a alma do toro. O espaço interior que ela gera é o espaço desejo do , dessa atividade pulsional que contorna permanentementeo objeto @ e que o perde, tornando a lançar-se incansavelmente em seu encalço. Os ciclos da pulsão abraçam o objeto sem alcançá-lo. O retorno erra tanto em relação ao ponto de chegada quanto ao ponto de partida e é assimilável ao arco descrito por Lacan no seminário XI.39Sua repetição, ou seja, a repetição das demandas que deixa o saldo incobrável do desejo, volta a tensionar o arco do qual sairão disparadas as flechas que
38. J. Granon-L afont. La topologie ordinnaire de J acques Lacan. Paris: Point H ors-L igne, 1985. p. 45 -67.
39. fondamentaux J . L acan (1964). semina ir ,e.p. L163. ivr e XI . L es qii air e concept s de laLe psychanalyse
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novamente voltarão como bumerangues a um lugar próximo ao da partida. Esta repetição, nunca se insistirá o bastante, não é o ato intencional de um sujeito psicológico, mas o sujeito é o efeito dos sucessivos lançamentos daflecha. A pulsão é acéfala. A história de cada um é resultado dos modos de fracasso dos encontros com o gozo e do voltar a se lançar atrás dele. (Por isso tive de dedicar um item inteiro deste capítulo para esclarecer que o gozonão é satisfação de uma pulsão.) O toro não existe desde sempre ou desde um princípio, mas é o efeito deste eterno retorno da pulsão e é por ele que se configura o outro espaço vazio, central e aberto, que é o da Coisa totalmente alheia infinitos retornos circulares demanda. A excentricidade queaos háentre o des ejo e o gozo, entre da os objetos e a Coisa, entre o gozo permitido (posto em palavras, insatisfatório) e o gozo proibido (vazio central) se manifesta com total clareza nesta figura topológica.
Ao redor daalma do toro giram as pulsões, aspirações degozo submetidas à respostado Outro, $ 0 D, que Freud chamou eróticas ou de vida. Em seu orbitar, elas criam o espaço central, o buraco impreservável que é seu atém inabordável. A representação topológica nos permite também apreender a diferença entre o campo do princípio de prazer, de seu fracasso inevitável, figurado pela alma do toro, isso que chamamos seu vazio periférico, e de seu além que é, precisamente, a área da Coisa, do gozo inominado, no qual impera
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o silêncio das pulsões, irracional na medida em que aí não há nada e que é aí onde se confirma que o gozo é o que não serve para nada. M as esses espaços vazios são, como no vidro de mostarda, lugares de uma atração enigmática. O vazio pede para ser enchido e o sujeito, animado por uma paixão quehorror é vacui, lança-se a preenchêlo, anula-se na tarefa gozante de povoá-l o. E a atividade pulsional, já que deslocada de todo fim natural ou da satisfação de necessidades, um trabalho de sublimação que é, segundo a definição dada por Lacan em 1960, a elevação deum objeto à dignidade da Coisa.40Não é o lugar reservado para os exímios artistas ou para os seres excepcionais, mas a residência do falante como tal, o espaço transicional de Winnicott, a área de gozo onde brinca a criança, onde prolifera o fantasma, onde se confrontam o gozo do Um e o gozo do Outro: um espaço de impossibilidade localizado na confluência do imaginário e do real, sem mediação simbólica, onde o sujeito se precipita e se dissolve. Rodeado por esse espaço da criação significante que o espreita sem penetrar nele alça-se o império de Tanatos, aí onde as águias não se atrevem, aí onde, vivente ainda, baixa A ntígonapara encontrar sua sepultura, fascinante e perigosa, assento de uma gozo ao que a palavra permite vislumbrar e, também, sustentar uma letal distância respeitosa. A rrisquemos umatradução deum texto bemconhecido a título de ilustração: Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que ano a ano recua à nossa frente. Ele nos escapara então, mas isto não importava - amanhã correremos mais rápido, estenderemos mais adiante nossos braços... E numa bela manhã E assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado. [F. Scott Fitzgerald, palavras .] finais de O grande Gatsby
Esta imagem da vida rodeando, evitando e postergando o encontro final e definitivo coloca a questão das barreiras ao gozo que será abordada no item 6.
40. J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L 'étique dans la psychanalyse,
p. 133.
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M as, antes de chegar aí,temos que fazer a visita que estamos devendo ao Mestre Falo.
5. A castração e o nome-do-pai Sei que a topologia não é popular, mas acho que a maneira mais sensata e exata de abordar o tema-eixo deste capítulo que distingue formas do gozo passa pela figura estranha e inquietante, evocada, do toro com começamos sua criação adefazê-lo novasno dimensões erecentemente de espaços incomunicáveis. A ssim parágrafo anterior e assim continuaremos agora de modo congruente com o que a li colocamos. Uma pessoa pode passar a vida viajando pela superfície interior de uma câmara de pneu de automóvel sem ter a menor intuição ou representação do buraco central, ou do eixo ao redor do qual se girou. Em comparação com o que seria descobrir que vivemos em um espaço tórico, a famosíssima revolução copemicana pareceria uma modificação pouco importante da concepção do mundo em que existimos. Vou entrar rapidamente no assunto com uma afirmação dog mática que poderá parecer apressada, mas que na seqüência tenta rei desenvolver de modo razoável: a superfície da câmara de ar que separa de modo irreversível os dois vazios, colocando-os em dimen sões heterogêneas é a função da linguagem, separadora da Coisa, efeito da lei da cultura, da linguagem como instauradora de um corte que não é outro senão a castração simbólica, a que gira em torno do significante do Falo ((])). Trata-se do Falo simbólico, impossível de fazer negativo, que representa o gozo como inalcançável para aquele que fala, pois, tendo ou não pênis, órgão que o representa no imaginário, é impossível sê-lo. Toda relação com o gozo passa por esta proibição, por essaimposição de que os objetos @ aos quais o sujeito poderia aceder suportam sempre a dimensão da castração, o nome do @ (-()>) de que falamos em um ti em anterior. Este é um ponto complexo e debatido da articulação lacaniana e de sua leitura de F reud. M uita tinta foi gasta em torno do “falogocentrismo” da teoria, da assimilação da função da linguagem
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e da função fálica.41As objeções (Derrida,42Irigaray43-44-45-46) não deixam de reconhecer o fato evidente e maciço desta prerrogativa fálica. Nas palavras de Derrida,47 “O falogocentrismo não é um acidente nem uma falta especulativa imputável a este ou àquele teórico. E uma enorme e antiga razão sobre a qual também deve se informar”. Este é o argumento que Derrida reconhece como válido ainda que não esteja de acordo com sua utilização, pois o que acontece como descrição de uma situação de fato (“a enorme e antiga razão”), acaba induzindo “uma prática, uma ética e uma instituição; portanto, uma política que assegure a tradição de sua verdade” (ibid.). A queixa é corretae vale como uma advertência em torno dos riscos de passar do faloccntrismo da teoria ao falocratismo opressivo na vida concreta. Caríbdis e Scila são agora a renúncia a pensar o que de fato acontece e vem acontecendo (falocentrismo) e, por outro lado, acabar aceitando com conformismo que a razão estrutural impõe a passividade aos modos de transformar as injustiças do falocratismo. A pergunta é: como poderiam enfrentar-se os desmames da dominação, já que os princípios fundamentais de seu poder são desconhecidos? O questionamento destadepois solidariedade entre eo falo somente pode se fazer de aceitar queo asignificante ordem humana, a L ei, foi falocêntrica. Obviamente, isso não avaliza nenhum androcentrismo, o que historicamente aconteceu em todos os cantos do planeta. A psicanálise não tomapartido, mas explica anecessidade da articulação e é sabido que apenas o conhecimento da necessidade 41. Cf. N. A. Braunstein. El Falo como S.O.S. (símbolo, objeto, semblante). 112-120. P or el camino de F reud 42. JIn: . Derrida. Le facteur de ,lap. vérité. P oétique, Paris, n. 21, 1975. Em castelhano emLa tarjeta postal. De Sócratesa F reud y más allât. México: Siglo XII, 2001. p. 387-485. 43. L. Irigaray. Spéculum, de l’autre femme. Paris: Minuit, 1974, 44. L. Irigaray. Ce sexe qui n 'en est pas un. Paris: M inuit, 1971. 45. C. Soler. Ce que Lacan disait des femmes.Paris: Editions du Champ L acanien, 2003. 46. D. L uepnitz. Beyond the Phallus. Cambridge Companion to Lacan. Cambridge (U K ), Cambridge U niveristy Press, 2003. p. 221-237.
47. J. Derrida. La tarjeta postal. De Sócrates a F reud y más allá, p. 403.
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pode abrir o caminho para uma possível liberdade com relação ao que se apresenta como fatalidade. É justamente a chave da posição lacaniana relativa ao gozo feminino que abordaremos no próximo capítulo. E é o centro da aposta teórica, clínica e inclusive política da consideração da diferença entre os gozos que devem ser distinguidos em sua especificidade. A L ei tem um efeito temível, não ang ustiante, queé a castração. Simbólica, sem dúvida, que mais poderia ser? Por ela se instala a separação entre o gozo e o desejo. O proibido faz-se fundamento do desejo e este deve ser posto em palavras. Conforme vínhamos recordando, em Freud e a partir de Freud, toda renúncia ao gozo, todo pagamento feito na conta do Outro, todo este esvaziamento do gozo que é a educação das pulsões, culminam no complexo de castração que ressignifica todas as perdas anteriores em relação ao falo, significante da falta como universal para os falantes, que divide o campo da sexuação em duas metades não complementares que são a do Um e a do Outro, a do homem e a das mulheres. A sexualidade e a diferença entre os sexos passam a ser, assim, um fato de lógica que significa e ressignifica a diferença anatômica. Entre o homem e a mulher há um significante que os divide conforme o modo particular que têm de se posicionar com respeito a ele; há um muro de linguagem que os separa. O Falo, como significante, tem a impossibilidade do gozo da Coisa ou gozo do ser como significado. A castração não quer dizer outra coisa senão isto: todo ser humano, todo aquele que fala, está sujeito à L ei de proibição do incesto e deve renunciar ao objeto primeiro e absoluto de desejo que é a M ãe. Tendo ou não falo, ninguém, nem a criança, nem a M ãe, nem o Pai, poderá sê-lo. O Falo é o significante dessa proibição absoluta; substitui assim esse ponto zero daque, linguagem quemetafórica, é a Coisa. substitui Seu valoro ésignificante idêntico aodo do nome-do-Pai na função Desejo da M ãe. Atenção! Coloco aqui uma equação: Falo = Nome-do-Pai
que em essência é correta, mas à qual se deverá impor, seguindo L acan, alguma correçã o que explique por que ateoria necessita dois
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termos diferentes e qual é a razão derivada da prática clínica que impõe sua dualidade. Não tardaremos a fazê-lo.4S O marca Falo (O)o élugar o tampão, tronco do significante, ao omesmo tempo e a impossibilidade da Coisa. que Ocupa lugar central do toro, o buraco “por onde corre o ar”, por onde passa o dedo no anel. Daí sua função desuporte daLei e também que sirva para designar a falta no Outro, a castração daM ãe, seu caráter de incompletude, o que a faz desejante de algo que não se completa na relação com o filho. Ou seja, S (A), materna que expressao gozo como impossível de subjetivar, obrigando a transitar os estreitos do desejo e do intercâmbio. Ou, em outras palavras, que se deseja em função da castração e cujos desejo levam sua marca, são -(p. Os giros da demanda, doobjetos que ficadoinsatisfeito da pulsão, realizamse ao redor da alma do toro, de seu vazio periférico que tem a forma do anel e que vão cingindo e delimitando o vazio central da Coisa tamponado pelo significante Falo, significante do Desejo da M ãe, que é continuado e deslocado pelo significante nome-do-Pai. Com o que vimos até aqui, posso propor uma dupla equivalência e com ela uma proporção que não deve se apressar para assumir sentido matemático, mas que é para ser pensada como relação topológica entre lugares irredutíveis. No buraco central do toro, encontramo-nos com a C oisa como o real que acha seu significante no Falo (d)) simbólico, enquanto na alma do toro temos esse incessante girar em torno do objeto @, real, perdido retroativamente a partir das voltas em seu redor. O significante que polariza essa busca é o falo como parte faltante à imagem desejada ((p), um significante imaginário que para o sujeito apenas pode presentificar-se com o signo da negação, da castração que o faz desejante e que faz do @ a causa do desejo. Insistindo tratar-se de uma relação topológica, elástica, e não de uma pretensão calculadora com intenções de exatidão é que podemos propor que (p : O
@ : Coisa
48. Cf. E. Porge. Le noms du père chez Jacques Lacan. Ramonville: Érès, 1997. M. Tort. En una perspectiva crítica. In: Fin du dogme paternel. Paris: Aubier, 2005.
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É fato que a rota que leva ao gozo está fechada e deve-se tomar o desvio da palavra, sair do gozo do corpo e entrar no deslizamento dos significantes, de um em outro, buscando o elusivo ponto de estofo. Esse gozo, conotado de castração, gozo é ofálico ou gozo do significanteou gozo semiótico,gozo hors-corps para distingui-lo dos outros, gozo do ser e gozo do Outro, que são gozos do corpo e, portanto, gozos hors-langage,fora da palavra, inefáveis. (Distinguir e separar gozo do ser e gozo do Outro é um risco teórico em que incorro, sabedor de que o que vem sendo estabelecido como o ensino de Lacan por parte damaioria de seus discípulos exegetas e comentaristas a identificá-los sinônimos.4 9 Nas páginas do capítulo tende seguinte, e recorrendoe àfazê-los topologia da banda de M oebius, sustentarei a necessidade de diferenciá-los para assim dar conta da diferença clínica que existe entre o gozo do ser, vinculado à Coisa, e o gozo do Outro que é também o do Outro sexo, feminino. O gozo feminino poderá ser louco e enigmático, mas nem por isso as mulheres são loucas nem necessitam injeções de inconsciente como se ouve dizer.) O Falo, significante a que remetem todos os demais, função organizadora (no sentido lógico-matemático) dos avatares do falante, está ausente da cadeia, é impronunciável, é o círculo que se traça como -1, com relação ao que se pode dizer.5" Não é um significan-
49. Em 1998, quatro após o surgimento da primeira edição francesa , tradu ção da primeira em castelhano deGozo, Patrick V alas publicou Les dimensions de la jouissance.Ramonville: Erès. Essa obra está repleta de citações tiradas de meu livro sem nenhuma menção a ele e sem qualquer alusão às fontes pesquisadas pelo autor. Nas páginas 78-80 discute com a posição que aqui exponho sobre a distinção do gozo pré-li nguajeiro do ser e o gozo do Outro, pós-linguajeiro. No tenho inconveniente em deba ter o ponto, mas me pergunto: será que não valeria a pena incluir a refe rência do autor e da obra com a qual difere? O mesmo é válido para o ensaio de M arc-L épold L evy, Critique de la jouissance comme une, Ramonville: Érès, 2005. Ao assinalar estas flagrantes e suspeitas omis sões, quero deixar a certeza de meu reconhecimento a todos os autores que sim reconhecem - tanto a favor como contra - a existência das pri meiras edições deste livro. 50. J. L acan (1960). Écrits, p. 823;Escritos 2, p. 803.
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te, tampouco é o órgão (pênis) nem a imagem deste, mas o que in duz em toda imagem o efeito de aparecer marcada por uma falta, por uma completude. Se é -1 é porque designa, no Outro, uma fal ta de significante. Significante, pois, da falta de significante; pura positividade que marca de negatividade, que condena a não ser ou tra coisa senão semblante a todo o articulável. M arca-o de negati vidade e o faz “para-ser” no sentido de que tudo o que se afirma, seja no sentido da atribuição ou da existência, atura uma sombra: “isto que é, como significante, é por não ser Falo”. E reconhecen do o Falo neste lugar central, e ao mesmo tempo excêntrico, que se explica e se mostra a falta de fundamento de todo falocratismo e se confirma que, sim, efetivamente, a teoria é “falogocêntrica”. Pois a castração está no centro do advento do falante e não é nem patri mônio nem motivo de infâmia para nenhum dos sexos. O significado do falo como -1 não é um zero, não é uma ausência; é uma afirmação de que o conjunto do significante, o sistema do Outro, é inconsistente, suporta uma ausência que faz dele um conjunto fechado já que sem essa ausência o conjunto não teria limites e, conseqüentemente, não existiria como conjunto. É assim que Falo, S(A)F alo e proibição dodogozo (da Coisa)que como absoluto, são equivalentes. é o nome significante desvia da Coisa intangível para os objetos do desejo. O sujeito da demanda, o que resulta da repetição dos arcos na alma do toro da demanda de satisfação pulsional (essa satisfação que não existe, mas que nem por isso se deixa de pedi-la, é mais, é só o que se pede), esse sujeito que se desvanece para ficar substituído pelo que pede ao Outro (S O D), tropeça necessariamente com o fato da falta de significante no Outro, esse Outro que é desejante, que está barrado, mas cujo desejo é um éenigma (“Ocom que querdo[de mim]?” ). A significação desta falta (S[A]) ado gozo o proibi “ou também que não pode ser dito senão nas entrelinhas para quem quer que seja sujeito da Lei, já que a L ei se funda nessa proibição mesma”.51 Estas distinções submetem-se a uma difícil intuição na me tade superior do gráfico do desejo,52aí onde o vetor horizontal 51. Idem, ibidem, p. 821; Escritos 2, p. 801.
52. Idem, ibidem, p. 817;Escritos 2, p. 797.
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superior que vai do gozoà castração intersecciona o vetor retroa tivo que corre da direita para a esquerda e conduz da pulsão ao significante da falta no Outro. Avalia-se no esquema a diferença a pulsão, o desejo(d) como resto que se topológica que há entre produz pela insatisfação da demanda, o fantasma (S 0 &>) como res posta imaginária ao desejo, por um lado, à falta e do gozo, por ou tro, o gozocomo o que deve ser abandonado no ato da enunciação, sendo que o gozo é a causa e a razão de ser da própria enunciação e, por fim,a castraçãocomo resultado deste atravessamento pela pulsão, sempre insatisfatória, e pela falta do significante no Outro que permitiria uma feliz alienação e daria completude ao conjunto e suporte ao gozo. A s letras maiúsculas que corresponde m à pulsão e à proibição do gozo ou Lei indicam que se trata de termos sim bólicos, enquanto as letras minúsculas e as cursivas d do dodese jo e do @ do objeto do fantasma estão para indicar graficamente, como escritura, seu caráter de imaginários.
d (desejo) (fantasma)
T Parte superior do gráfico do desejo
A condição da enunciação é que não falte a falta, que a castração simbólica se tenha efetuado, que tenha existido o corte que faz do sujeito um súdito da Lei. Em termos mais freudianos, me nos lacanianos, que o complexo de Edipo tenha cumprido sua incumbência. A Coisa ficou interdita e o Falo, significante impronunciável [S(A )], tomou seu lugar e instaurou, no sujeito, a dimensão da falta irremissível. E a esta falta, efeito do Falo que pôs
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a Coisa a uma distância inevitável, que responde outr
objeto @ (posterior), entre um gozo do ser e outro gozo efeito a castração (Lei da linguagem) queé o gozo fálico, este que corre atrs do objeto @ que causa o desejo. Não custa descobrir portrás desta
53. J . L acan (1954). Écrits, p. 383;Escritos 1, p. 368. 54. J .-A . M iller. Seminário L ’extimité, 1986. Inédito.
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especificação inicial de L acan a fórmula do discurso do senhor, consubstanciai ao discurso do inconsciente, onde S, (neste caso o nome-do-Pai) ocupa o lugar do agente, ou seja, o lugar do semblante.
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@
Disse e inclusive escrevi sob a forma de uma equação que o nome-do-Pai é o mesmo que o Falo, mas não sem uma mínima diferença cuja hora de especificar chegou, pois “o privilégio do falo é que se pode gritar chamando-o e ele nunca dirá nada”.55 E inarticulável; para dizer deve-se unir um significante com outro significante, já que um significante não pode significar-se a si mesmo, por isso o Falo é um significante mudo e sem par. Enquanto o nome-do-Pai “é o Falo sem dúvida, mas é igualmente o nome-do-Pai... Se este nome tem alguma eficácia é justamente porque alguém se levanta para responder” (idem) e é por isso que, sendo o Falo, cumpre ao mesmo tempo uma função que o Falo não pode cumprir, a de ser o tronco e o ponto de referência a partir do qual se possibilita a articulação discursiva. Podemos considerar o F alo como o significante zero e o nome-do-Pai como sua metáfora, o significante umque vem em seu lugar. A ntes de repassar e sintetizar o que venho propondo, é necessário que me detenha neste ponto, porque encontro aqui uma confusão que se difunde com freqüência em um aspecto-chave da teoria do gozo. A cabo de citar uma afirmação inequívoca em que L acan postula, em 1971, a identidade entre nome-do-Pai e Falo. Quando Lacan o formula assim, sabe que está modificando um ponto essencial de suas teses anteriores; concretamente, o modo habitual de entender a metáfora paterna proposta em seu artigo sobre as psicoses. Por isso, ri-se do desconcerto de seus discípulos (“Deus sabe que estreme horror almas provoquei [ao escrever que o nome-do-Pai é ocimentos Falo] emdecertas piedosas” [ibid.]) e 55. J. L acan (1971). Seminário XVIII, aula de 26 de junho.
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expli ca que quando propôs a metáfora paterna, em 1957,56não podia articulá-la melhor. Com efeito, nessa fórmula anterior encontramos a razão para que uma utora a tão momuitos Colettedepois Soler,57em uma conferência proferida emcuidadosa Bruxelas,coe dela, repitam que o nome-do-Pai realiza “a produção do significante fálico”, que o Falo é secundário à metáfora. Citemos: “O nome-doPai produz outro significante sem par, o falo. Produze-o (...) como significação. Isso também se vê na escritura da metáfora: o falo está abaixo da barra, no lugar do significado. Portanto, produção do falo como significação, mas também produção da significação como fálica”. A própria autora oferece mais tarde, na mesma conferência, uma solução que permite conciliar a contradição e que é essencial para nossa exposição. E a de distinguir o Falo (O), com maiúscula, “impossível de tornar ne gativo, significante do gozo”58e o falo (-cp), com minúscula, significante do desejo, que, ele sim, é consecutivo à intervenção do nome-do-Pai e se apresenta para o sujeito como “imagem do pênis, negativado em seu lugar na imagem especular”, sendo isto “o que predestina o falo a dar corpo ao gozo na dialética do desejo”,59o que permite que, experimentando sua fal ta, o sujeito possa investir o objeto, carregando-o com o valor do que nele falta, possa tornar-se desejante. “E pois mais a assunção da castração o que cria a falta na qual se institui o desejo”.6“ A falta impostapela castração e assumida pelo sujeito como tal no imaginário é indicada algebricamente como -(p, menos phi. Temos que aceitar a idéia de um desdobramento do falo, como significante, como conseqüência da intervenção metafórica do nomedo-Pai. Por um lado, como Nasio afirmou em outra conferência desse mesmo ano de 1982,61 na fórmula da metáfora paterna, “o nome-do-Pai é o significante que se substitui e se condensa ao falo 56. 57. 58. 59. 60. 61.
J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539. C. Soler. A bords du Nom-du-Père. Quarto, B ruxelas, n. 8, p. 61, 1982. J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539. J . L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802. J . L acan (1960). Écrits, p. 852;Escritos 2, p. 831. J .-D. Nasio. La forclusion y el N ombre-del-Padre. In: La re-flexion de los conceptos de Freud en la obra de Lacan,
p. 312.
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como significante do desejo da M ãe”, e é nesse sentido que é significante do gozo como proibido, que é um significante sem par e consubstanciai à L ei de proibição do incesto, do gozo como absoluto, e, por outro lado, por sua operação, marca os objetos do desejo como seus representantes no imaginário, concede-lhes significação fálica. E é isso o que se encontra na fórmula da metáfora paterna:
NomedoPai
Esta, à luz do que vimos dizendo, poder-se-á entender assim: o nome-do-Pai, significante que chama alguém a responder, articulável, substitui o Falo como desejo da M ãe (é a primeira parte do desenvolvimento da metáfora paterna no artigo de L acan [idem] em que apresenta) e advém aí como significante um que toma o lugar da Coisa, desse elemento do Real que padecia pelo Falo, significante inarticulável, colocando-se no lugar do limite do conjunto significante, por fora de A, fora do parêntese, conforme se vê na escritura da fórmula anterior. Seu efeito é que, no nível do significado, debaixo da barra, vem todo o significável como investido pela função fálica e, por isso, à luz do que estamos avendo, palavra falo deveria escrever-se aí com minúscula, como significante do desejo (q>) que se repr esentapara o sujeito sob a forma dacastração (-cp). “A quilo que a experiência analítica testemunha é que a castração é, em todo caso, o que regula o desejo, no normal e no anormal” .63 Ou, em outras palavras, que o nome-do-Pai não “produz” o significante fálico (C. Soler), mas a significação fálica que não estofa, não permite apreender, mas que está sempre no menos (-cp) em relação ao real, lançando o desejo. Em suma, que na 62. J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539. 63. J . L acan. (1960). Écrits , p. 826;Escritos 2, p. 806. A expressão de Lacan não é feliz. Q uem pode - psicanaliticamente - falar de “normal” e “anormal"? Se todos somos falantes, para quê a distinção que está carregada ideologicamente pelo discurso normativo?
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fórmula lacaniana da metáfora paterna haveria um erro de ortografia consistente em escrever a palavra falo com maiúscula. O que o nome-do-Pai é a dizível, significação fálica, mas ele é, suafonte vez, um substituto“produz” articulável, do Falo, significante do por gozo, inarticulável da palavra. Por isso é que a função do nome-do-Pai é, para o sujeito, pacificante, nas palavras deL acan (que brinca com “pacificante” e seu homófono,pas si fiant, “não tão fiável”). Pacifica porque, ao induzir a castração simbólica, põe limites ao gozo desenfreado que é o “pior”, o que, na clínica, se manifesta como invasão psicótica de significantes que não encontram seu ponto de ancoragem, que é necessariamente este significante forcluído nos casos do nome-doPai. E o caos dos S2pela falta do S, que apenas culmina e se esta biliza quando odelírio vem tomar o lugar desse nome-do-Pai faltante, de S„ produzindo-se esse remendo que é a metáfora delirante. R epassando este percurso amplo e árido, sem dúvida preferiria que fosse de outro modo- , encontramos: 1) a Coisa, real e ao mesmo tempo mítica, efeito retroativo da simbolização primordial, objeto absoluto e para sempre perdido do desejo; 2) o Falo, significante ímpar, grau zero, indicador da radical impossibilidade do acesso à Coisa, símbolo que instala a divisão dos sexos e dos gozos, executante do corte da castração simbólica que coloca em níveis distintos o ser (do gozo) e o pensar (da palavra) e que, ao estabelecer com relação a ele a falta no falante, a carência que se imaginariza como castração, como falta na imagem desejada, induz a significação fálica e lança o desejo; 3) o nome-do-Pai, significante um (S,), articulável, diacrítico (isto é, caracterizado por sua diferença com o resto dos significantes), indutor, produtor e, ao mesmo tempo, representante de um sujeito (S) ante o conjunto dos significantes, ante o Outro da linguagem; 4) o saber inconsciente (S2), palavra que expressa a impossível integração do sujeito no real, o necessário desterro que o leva a habitar no Outro da linguagem depois de haver recusado (pela ação do Falo) o gozo do ser para tratar de alcançar outro gozo, o do para-ser por meio do semblante, e 5) o @ como efeito real que se produz pelo discurso mesmo, que suporta sempre a castração, objeto que seguramente se perde e que é um mais de gozo dependente do vínculo social estabelecido entre
o S, oSujeito e o A, o Outro, castrado e desejante.
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A Coisa, como o passado, é irrecuperável; o objeto, em sua condição de real, como o futuro, é impossível. O sujeito está dividido, também, entre um gozo passado e um gozo futuro, e de ambos está excluído. O nome desta exclusão, que impõe uma falta a ser, édesejo.Os dois, a Coisa e o objeto, escapam ao alcance da simbolização. A palavra, sempre no presente, cortadora do tempo, fabricante do futuro, é a tesoura que divide gozoodo ser(da Coisa) e o outro gozo,gozo do Outro (feminino) que abordaremos mais adiante. M as, em si mesma, na sua articulação dos significantes, no exercício do corte, na evocação dos gozos possíveis e ausentes, passados e futuros, na linguagem, há também um gozo essencialmente distinto dos dois mencionados e que, como marcado pela castração, é gozo o fálico, fora do corpo. Este gozo na palavra é uma tradução que desnaturaliza(se é que algo do gozo possa ser “natural”) e ao mesmo tempo torna possível a parte do gozo que é acessível ao falante. Este gozo linguajeiro requer a anuência do Outro, um Outro de quem o sujeito sabe sem nada querer saber; é o gozo não-sabido do qual depende o inconsciente, estruturado como uma linguagem e encarregado da função de decifrar o gozo. Será o tema do quarto ca pítulo. Pois é verdade que, falando, o sujeito goza, mas que, ao mes mo tempo, se defende de braços abertos deste gozo, limita-o e o freia porque é associai e maledicente. A fala (parole), o discurso corren te, opõe a seriedade da língua e da razão consensual à desrazão da alíngua, do dizer poético, do chiste e das emergências da verdade no discurso. Enfim, outra vez, a palavra é o diafragma do gozo. Isso é a castração, a citação deve recitar-se neste contexto: “quer dizer que é necessário que o gozo seja rechaçado para que seja alcançado naescala invertida da Lei do desejo”.64N esta síntese sensacional aprendemos que não se trata de um gozo, mas de dois, oseparam recusado e o pelo que deve ser alcançado, e função que estes não se de senão aparecimento de uma quedois os divide, uma tesoura ou gadanha que impõe o requisito de atravessar pelo funil da castração, submetendo o órgão que representa o falo, o pedacinho de carne que pode estar ou faltar, ser saliente ou ficar 64, J . L acan (1960), Écrits , p, 827;Escritos 2, p. 807.
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meio escondido entre as mucosas, a restar sempre debaixo da função que lhe atribui ocasionar o gozo. Em tomo dele, traça-seo corte que produz a divisão impreenchível dos sexos (mitificada pelo andrógino platônico e seu destino de incompletude) e se motiva a angústia do neurótico que pretende ignorar que já sofreu de saída a castração que teme e que, com seu desejo, tem pouco a perder e tudo a ganhar, enquanto a neurótica, acreditando estar fora do gozo fálico, lançase a invejá-lo e fecha o caminho para seu próprio gozo que requer o falo, mas que não se limita a ele, conforme se verá no próximo capítulo, dedicado ao gozo e à sexualidade. Se enunciamos este discurso sobre a distinção dos gozos é porque nos parece essencial para uma nova abordagem da clínica psicanalítica à medida que as estruturas clínicas (neurose, psicose e perversão) são modos de se posicionar ante o gozo. Sucintamente, e como um novo adiantamento do que se verá em detalhes nos capítulos correspondentes, deve-se falar de um gozo que se produz pela não instauração (forclusão) do nome-doPai, um gozo não regulado pelo significante e pela castração, fora da linguagem como submissão às leis do intercâmbio e às regulações fora da Ldo ei Outro do desejo, gozo que não a ser, espera nemrecíprocas, aspira a receber uma um resposta à falta gozo psicótico, enfim, aquém da palavra, inundante, invasor, ilimitado. Deste - discuti do - gozo do ser sabemos não apenas pela necessidade lógica de concebê-lo, mas porque aparece clinicamente nesses sujeitos cujo corpo é um cenário de onde se derrama, sem limites, a palavra do Outro, suas ondas, vibrações e raios que dispõem nele insólitas transformações, onde a palavra opera como um real alucinatório e onde a linguagem pode chegar, pela via do delírio, a colocar um freio precário ao gozo. E há o gozo posterior à castração, o gozo fálico, sim, mas que não pode ser simbolizado por meio da palavra e de seus intercâmbios, em que a castração não é o caminho para um bem dizer, mas uma ameaça que bloqueia a insistência no desejo e em que o gozo fálico fica sequestrado, reprimido,e se manifesta, simbolizado, mas retido, em sintomas que recaem sobre o corpo (e temos a histeria) ou sobre o pensamento (e temos a neurose obsessivo-compulsiva).
(Veja o capítulo V)
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Há, além disso, a saída voluntária do regime dos intercâmbios por meio dessa mercadoria que é a droga e que pode transformarse em uma a-dicção (A-dición, @-dicción)definitiva; ali o gozo do ser é alcançado por meio de um curto-circuito que deixa o corpo à mercê do Outro e de seu desejo. (Veja o capítulo VII) Há, por outro lado, a tentativa de se apoderar das influências do gozo, fazendo-o prenda e presa de um saber à disposição do sujeito, que, por meio de técnicas corporais, conseguiria liberar-se da intolerável castração, deslocando-a sobre um objeto degradado e submetido mediante práticas perversas. Sem saber que o fantasma de sabergozar é, por sua vez, defesa contra o ameaçador do insondável gozo do Outro. (Veja o capítulo VI) E há, por fim, depois da intervenção do nome-do-Pai, um gozo que é di-versão desse gozo srcinário, regulação do gozo pela castração simbólica, deslocamento, mudança de registro, tradução para outro código, desnaturalização, metamorfose irreversível que leva a transacioná-lo no mercado em que se discute e se decide qual é o quantum de gozo que pode ser alcançado pelo caminho do desejo. Deste gozo, a força das tradições nosológicas obrigar-nosia a dizer que é “normal”, com o que estaríamos qualificando de “anormai os em demais. Mas sabe-se bem os psicana não podemoss”af lar tais te rmos/’5ainda queque poss amos, simlistas , recorr er ao trocadilho de L acan, nunca tão claro como nestecontexto: tratase danorme mâle,da norma do macho. Uma clínica do gozo que regul a eticamenteo ato analítico e que distingue os significados psicótico, perverso, adicto, neurótico ou apalavrado do gozo em cada estrutura.Uma clínica que é a razão de ser de todos estes capítulos e itens, deste longo percurso pelos despenhadeiros do gozo.
6. As barreiras ao gozo O gozo está proibido e não somente, como acreditam os im becis (estou tirando as aspas como observa qualquer leitor avisado), 65. J. Lacan. Court eniretien a la R.T.B. Quarto, Bruxelas, n. 22, p. 31, 1985.
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por um mau arranjo da sociedade. Não é que o Outro não leixa go zar, mas o gozo também falta ao Outro, a completude naia mais é do que um fantasma do neurótico neste tempo espantosamnte ator mentado por exigências idílicas. O essencial, como Freul mesmo diz, é que a relação sexual não existe, que o amor não é ura via re comendável para atenuar o mal-estar na cultura, que o disejo, es preitado por um deus maligno, erra na desventura pelos deertos do gozo. “Este dramanão é o acidenteque se acredita. E essêicia: pois o desejo vem do Outro, e o gozo estádo lado da Coisa”.66 Por aí começamos nosso percurso, por distinguir ogozo do que pode lhe parecer, mas que são seu contrário: em primero lugar, o prazer; em segundo, o desejo. E agora encontramos ests velhos conhecidos em seu caráter de barreiras interpostas no caninho do gozo. Pois o prazer, ligação vital, lubrificante dos inómodos, nivelador das diferenças, é a trava quase natural que faz dc sujeito um travado, um S barrado, S. Ao pôr li mites ao gozo, ao jrocurar na experiência paradigmática da cópula, com o orgsmo, a detumescência, o prazer é o antídoto do gozo. A essa lei homeostática, e levantando-se sobre ela, sona-se a Lei da linguagem que impõe a renúncia aos gozos, quedes;ozifica o corpo e se significa ao redor do Falo com seu correlato}ue é a castração, a qual faz aparecer o sujeito como carente e, assm, ins titui o desejo, esse girar incansável pela superfície interiorio toro ao redor de seu obscuro objeto. Sim; o desejo colocador en pala vras é uma transação e uma defesa que mantém o gozo em;eu ho rizonte de impossibilidade; o desejo deve dobrar-se àL ei, jraças à função do Pai. O desejo ser desejo do Outro significa dizer iue está submetido e que aceitou a Lei, que tratade ajustá-la como jode no exílio Deve da Coisa, deslizando-se até os de objetos que opara causamj o ilu dem. aceitar o despojo inicial, estrutura, logo elacionar-se com esses objetos da pequena economia de perdas e [anhos. Dizia L acan67em seu seminário dedicado à angústia; “O deejo e a Lei são uma única barreira que obstrui nosso acessoà Cois”.
66. J. Lacan (1964). Écrils, p. 853;Escritos 2, p. 832. 67. J . L acan (1962). Seminário X, aula de 19 de dezembro. Inédito.
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O desejo marca os caminhos para a pulsão que são caminhos ieinsatisfação. '‘Por esta razão a pulsão divide o sujeito e o desejo, ieejo que não se sustenta, senão pela relação que ele desconhece, •on esta divisão com um objeto que o causa. Esta é a estrutura do àitasma”: SO @.6S A ssim, o desejo se desconhece a si mesmo em uma formação inginária, o fantasma, que coloca em cena a aspiração ao gozo e at, conseqüentemente, é outra barreira ao gozo. E isso tanto se o ueito se limita a imaginá-lo neuroticamente e renuncia, assim, a npor-lhe na realidade (“introversão da libido”, dizia um Freud jt>guizado), quanto se o atuasse de modo perverso, pois em ambos iscasos acaba se dando conta de que se tratava de outra coisa, de ic o objeto está perdido tanto no fantasma masturbatório quanto atentativa perversa de demonstrar que o gozo pode ser conseguido c meio do saber fazer com os corpos, o próprio epartenaire. o do O fantasma propõe objetos @ como condições ou ntrumentos de gozo, e estes objetos são um efeito, como visto, do rdo e da castração que os carrega de valor fálico negativo. Estes iljetos, como demonstr ava Freud em191769em seu célebre traba lho ore as transmutações das pulsões (sua aproximação máxima da uiçã o e do concei to do objeto @simbólicos de L acan), em estãoum subme tidos de a ibstituições e deslocamentos sistema ■CLiivalências como o que existe entre o pêni s, o filho -Lumpf,o cocô, nresente, o dinheiro e, para a mulher, o varão como apêndice do ao cobiçado. E os objetos, as coisas deste mundo, não são mais que telas );recidas ao fantasma como promessas de gratificação imaginária, i f assumem seu preço as mercadorias que a publicidade se : carrega de “encarecer” e recomendar o seu consumo, sendo ;imo é uma atividade que opera, sem o saber, sobre o objeto @ de Lican. Vê-se com clareza que arealidade e a não proliferação dos ;»jetos operam também como defesas contra o gozo. O discurso deL acan se aproxima aqui ao de M arx e o de M arx acde Freud. Mais-valia e mais de gozo, mercadoria e fetiche, 68J. L acan (1964). Écrits, p. 853; Escritos 2, p. 832. 69 S. Freud (1917).Obras completas,v. X V II, p. 113-119.
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dinheiro e falo, ouro e cocô, exploração e ganhos ou perdas, salário e despojo, gozo do Um e gozo do Outro, contrato e roubo e a propriedade como um roubo, valor de troca e valor de uso (ou de gozo?) são todas referências que se aproximam da economia política e desta outra que é seu fundamento e que é uma economia de gozo. Nas palavras do economista K arl Polanyi: “Há um ponto negativo no qual todos os etnógrafos modernos estão de acordo: ausência do móbil do benefício; a ausência do princípio de trabalhar pela remuneração; ausência do princípio do menor esforço; e sobretudo a ausência de qualquer instituição separada e diferenciada, baseada em motivos econômicos”711e nas de Norman de O. B rown,71 que categoriaeconômica... última da economi a é sua o pode r; mas uma otambém poder cita nãoPolanyi: é uma“Acategoria é, em essência, categoria psicológica”. Enfim, todo o capítulo 15 desteLife against dealh (título srcinal da obra que estamos citando) poderia ser incluído neste texto sobre o gozo. Por isso é melhor causar um curto-circuito e convocar um convidado inesperado, Aldous Huxley,72 que em seu Contraponto(de 1928) nos diz: O instinto de adquirir comporta, a meu ver, mais perversões do que o instinto sexual. Pelo menos, as pessoas me parecem, no entanto, mais estranhas a respeito do dinheiro do que de seus amores... N inguém se encontra de igual modo (que os entesouradores) incessantemente preocupado pelo sexo; suponho ser porque nas questões sexuais é possível a satisfação fisiológica, enquanto não existe isso com relação ao dinheiro. Quando o cor po se encontra saciado, o espírito deixa de pensar no alimento ou na mulher. M as a fome de dinheiro ou de posse é quase puramen te uma coisa mental. N ão há satisf ação física possível. N ossos corpos obrigam, por assim dizer, o instinto sexual a se conduzir normalmente... N o que se refere ao i nstinto de adquirir não exi s te corpo regulador, não há uma massa de carne bem sólida que deva ser tirada dos trilhos do hábito f isiológico. A mais leve ten dência à perv ersão põ e-se i medi atamente de ma nif esto. M as
70. K. Polanyi. La grau tansformación.M éxico: Fondo de Cultura Económica, 2003. p. 91. 71. N. O. Brown. Eros y Tánatos. M éxico: Mortiz, 1967. p. 293. 72. A. Huxley. Contrapunto. Barcelona: Seix Barrai, 1983. p. 302.
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talvez a palavra perversão não tenha sentido neste contexto. Por que a perversão implica a existência de uma norma, da qual se se para. Qual é a verdadeira norma do instinto de aquisição?
A economia, a atividade de produção e de consumo, encontra sua razão além do princípio de prazer. A psicanálise questiona tanto a economia política clássica quanto seu revestimento marxista. O número, a contabilidade, a acumulação reconhecem seu fundamento na castração ena investidura do dinheiro como @/-cp. Um caso particular que poderia alentar a reflexão de Huxley é o de don Juan que classifica as mulheres segundo ageografia (por países) e as contabiliza de modo que seus desvelos de conquistador não apontam ao objeto, mas ao catálogo que leva seu serviçal no qual se inscreve o registro de suas vitórias. T rata-se, em seu caso, de rebaixar esse limite que a relação com o corpo impõe à sexualidade. No catálogo, na coleção de fotografias de “suas” mulheres que um neurótico pode levar, acreditando havê-las “possuído”, no fato de passar o sexo à contabilidade, encontra-se uma maneira especial de enfrentar o prazer como barreira ao gozo e sustentar a imagem túrgida do falo além de seu decadente destino. Nada a dizer da angústia de castração que sustenta e que quer desmentir este colecionador singular que é don J uan. Os objetos, os fetiches, as mercadorias, constituem a realidade que tem a mesma substância que o fantasma, que servem como ele para encobrir o real, como telas que distanciam da coisa vedada pela L ei. Essa Lei que não proíbe, mas que impõe o desejo e o desejo em vão: esforçar-se, ir atrás do objeto que, por outro lado, nada mais é que engano, aparência, semblante. Escorregadiço. Frente a essa impossibilidade e ao decepcionante das coisas, alça-se um fantasma particular, um modo especial de imaginarizar um gozo qual o de sujeito poderia se apoderar exercer e posse, o do fantasma chegar ao gozo por meioe do saber,domínio da articulação de significantes que permitiriam a apropriação do real e a umadicção que confirme ao sujeito que está de posse da verdade. O fantasma de um sabergozar que fundamenta e aproxima os discursos do senhor, da ciência e da perversão. Este saber teria que cegar o poço impreenchível que ordena a relação sexual como impossível porque o Falo é um significante sem par que ordena
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posições assimétricas e gozos não conciliáveis entre o homem e a mulher (que, precisamente por isso, por não haver Outro significante, que seja o próprio, não existe). Em suma, que o gozo está defendido, que a Coisa está rodeada de arames farpados, círculos de fogo, cercas eletrificadas, muros de Berlim, que a tornam objeto eminente do desejo precisamente pelo halo de impossibilidade que a circunda.A Lei e a ordem simbólica, por um lado, o conjunto fantasmático das funções imaginárias, saber e realidade inclusos, e, finalmente, o desejo mesmo, por outro, constituem um conjunto de defesas que o gozo encontra além da primeira defesa, “quase natural”, oque prazer. é Neste contexto,a sexualidade, função vinculada tanto ao desejo como ao prazer, regulada pela Lei, é também chamariz oferecido e, às vezes, barreira ao gozo. Com tantos obstáculos, devendo atravessar-se tantas camadas concêntricas da cebola para alcançar o núcleo do gozo, o vacúolo central da Coisa, é fácil conceber que seja inalcançável. Talvez, como o Falo é o significante do gozo como impossível, reste dizer a castração e assim é que a barreira erigida no caminho do gozo é como aparece no vetor horizontal superior, aquele da enunciação (o da cadeia inconsciente), no gráfico do desejo comentado há pouco. Do gozo à castração e, passando pela castração, ao desejo que aspira recuperar o gozo recusado pela via enganosa do semblante. O semblante da articulação discursiva inventa um mundo que não é senão flor de retórica, jogo mentiroso de metáforas e metonímias, de processos primários e secundários. O gozo é do corpo (o Outro), mas não é alcançável senão passando pelos desfiladeiros da linguagem... (também o Outro) que o transformam de modo irreversível e o tornam irreconhecível. A C oisa é o que do real, um real que todavia não temos que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é próprio ao sujeito quanto o real com o qual se tem que haver sendo-lhe exterior, é o que, do real primordial, diríamos, padece pelo signi ficante.73
73. J . L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans la psychanatxse, p. 142.
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É claro que aqui a ditinção entre exterior e interior não é pertinente, pois tal distinão é, precisamente, um efeito desse significante que faz padeceie que marca a Coisa, que tira do buraco central do toro e propulsion o falante a dar voltas em tomo de sua alma, a do toro. A Coisa no sabe do dentro e do fora; o que está fora, despatriado, é o sujeio em relação com sua srcem, fora do gozo do ser. E, no entanto, como jícitei, algo da Coisa, do real primordial, conserva seus efeitos aténa;struturação scursi di va. Mas a passagem da Coisa ao discurso não é iem fácil nem direta. Entre ambos, entre gozo e desejo, está a angúsia que será objeto do último item deste já tão grande capítulo. A articulação do gozoIo ser e o gozo fálico é o inconsciente. Pode ser visto em sua dupkfunção: primeiro, a de permitir que o gozo seja possível e, seguno, a de condená-lo a ser impossível ao obrigá-lo a aceitar a L ei ae ordena sua conversão do real ao simbólico e que induz efeios imaginários. Deve-se colocar em palavras e viver no semdante, nas fronteiras do real. Do inconsciente não cabe faze nem o elogio nem o denegrimento. Conforme o cristal com que; olhado lhe cabe um ou outro. Melhor é dizer que aí e, com a difíil tarefa de articular o Outro que é o corpo, uma vez que foi subrrctido à castração simbólica, mas dentro do qual ficam enclaves ati os que resistem à normalização e ao Outro da linguagem, o educdor aliado da realidade por meio do Eu. Um inconsciente que, assm, não é nem o I sso das exigências pulsionais nem o Eu dos necanismos de defesa. E ste tema será abordado de modo mais prenso no capítulo IV - “Deciframento do gozo”. J unto a estas consideações acerca das barreiras ao gozo, é importante acrescentar isso não |ue é barreira ao gozo, nome-doo Pai, mesmo quando possa s pensar o contrário. Esse significante torna possível ao gozo poimeio da tradução, da localização do significante fálico no luga de articulação, que permite ao gozo subjetivar-se. Deve-se distnguir aqui o pai real e sua função do significante que o represena no sujeito, nome-do-Pai o ou, como vimos, representante-do-Flo (que não tem nome). A função do
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nome-do-Pai74 é a de conjugar a L ei (ela sim obstáculo) com o desejo. Esta consideração não “patriarcal” do Pai, graças a cujo nome nem nemtirando a mulher ficam aderidos ao serviço de sexual da mãe, dáo ahomem entender, o imaginário, os complexos castração e de Édipo. A castração mesma perde seu aspecto supostamente ameaçador e sinistro para passar a ser exatamente o contrário, uma função de habilitação para o gozo, a condição de uma relativa e precária imunidade contra esse maligno gozo do Outro que deixa o sujeito fora do simbólico. Essa função de passagem é, como já dissemos, possibilitada pelo inconsciente encarregado de transportar o gozo do corpo para a palavra. Não é um segredo que está estruturado como uma linguagem. Tampouco alinguagem é barreira ao gozo. Pelo contrário, é o aparelho do gozo7’ que apresenta e representa este gozo cuja falta tornaria inútil o universo. O que fica além do princípio de prazer está sustentado sobre a linguagem;76se algo da linguagem é barreira contra o gozo é o fato de que, ao falar, produzem-se efeitos de sentido, de compreensão, de soldadura do simbólico com o imaginário, de recíprocas confirmações narcísicas entre os interlocutores que são, muito claramente, travas opostas ao gozo que se produzem pelo blablablá. Podem rastrear-se aqui as distintas funções do aparelho psíquico freudiano, das diversas tópicas dessa máquina metabólica do gozo inventada por Freud. O gozo fálico inscreve-se na articulação do real, do que resta da Coisa, uma vez que se deslocou o desejo, e o simbólico, que pode compor-se por meio da colocação em palavras do gozo ordenado pelo significante. Entre um Outro e o outro, o sujeito deve se ins crever. O gozo do sertem outra inscrição, é inefável, está fora do simbólico, em uma atribuição imaginária que fazemos inventandoo como se fosse gozo do Outro, de um Outro devastador que, por falta de inscrição do nome-do-Pai (forclusão), reaparece no real. Fica
74. E. Porge. L es noms-du-P ère chez J acques Lacan. P onctuations et problématique. 75. J. L acan ( 1974). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 52. 76. Idem, ibidem, p. 49.
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entendido que não é o Outro que goza, que há somente gozo de um que goza atribuindo um gozo ao Outro que o tomará como seu objeto.77 Neste agrupamento dos registros de dois em dois, proposto por Lacan, fica um terceiro espaço de sobreposição, o do imaginário, recobrindo-se com o simbólico, mas sem alcançar o real, que é o nível do sentido; graças ao sentido constituem-se os objetos da realidade, o consenso compartilhado, o acordo garantido pela palavra, a ideologia; o gozo fica excluído dele e é defendido por todas as instâncias assinaladas nos parágrafos anteriores. O sentido serve ao reconhecimento do mundo doOutro qual mass o artífice é aquele em nossos tempos o comunicador, o Grande das media, que junta as representações atrás da televisão, aquele que uniformiza no planeta os modos de manter o gozo à distância e configura os eus que se reconhecem reciprocamente em um ideal comum, ou seja, que se massificam desgozificando-se segundo a fórmula freudiana de 1921.™ L acan inscreveu estas relações em seu nó borromeu quando proferiu sua terceira conferência em Roma,79 de modo que, sendo cada um dos aros da corda a representação de um dos registros, fica uma área de tripla sobreposição do real, do simbólico e do imaginário na qual se localiza o objeto @ que e t m esse triplo estatuto, essa tripla pertinência. Vê-se no nó três áreas de dupla sobreposição que excluem um dos três registros: gozo do Outro (sem simbólico), gozo fálico (sem imaginário) e campo do sentido (sem real... e sem gozo).
77. Ph. J ulien. L ’étrange jouissance du prochain. Éthique et psychanalyse. Paris: Seuil, 1995. 78. S. Freud (1921). Obras completas,v. X V III, p. 110. 79. J. L acan. L a troisième. Lettres de /'École Freudienne, Paris, n. 16, p. 177 203, 1975; em castelhano,Actas de la Escuela F reudiana de P aris. Barcelona: Petrel, 1980.
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V oltando a algo já visto no item anterior, vale a pena realçar que, nesta escritura de seu nó, Lacan escreve o gozo álico f com as iniciais J cp, ou seja, usa phi o minúsculo que remete ao significante imaginário, ao falo como semblante e não ao Falo com maiúscula, significante do gozo que, habilitando a função do nome-do-Pai, condena as portas do gozo do ser. Vale a pena reter esta distinção. A credito que não forço a concepção de L acan, ainda quando transgrida o que explicitamente disse nessa conferência, se proponho: 1) queaciência,essa atividade que se propõe a apropriarse do real por meio do simbólico, é homóloga ao gozo fálico ao repudiar todo imaginário e nada querer saber do gozo do Outro, do Outro sexo (naquilo que se aproxima à perversão tal como se verá no capítulo correspondente); 2) que aideologia como área de acordo em torno da realidade ocupa o terreno do sentido ao ter horror ao real; e que 3)religião, a consagrada ao gozo do grande Outro, inefável, mística, coloca-se na intersecção do real e do imaginário. Então, a psicanálise, saber sobre esta estrutura, saber borromeu, encontra lugar do ria objeto fugidio inclusive para o saber seu - objeto doem qualtorno não pode haver@,ciência que se localiza a um tempo nos três registros e marca a necessária incompletude que afeta todas as tentativas de dizer uma verdade plena, de conseguir esse Saber A bsoluto com o qua l sonha o senhor.
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7. A “causação do sujeito” ou além da angústia A o encerrar este capítulo, escolho dar-lhe uma estrutura cíclica, franckiana (mús.), e voltar ao começo, retomando à célula srcinária: “O sujeito é e está chamado a ser”. Em outras palavras, o sujeito não cresce nos vasos, não é um produto natural, é “resposta do real”. Para que exista é necessário que alguém o chame (no duplo sentido, de call e de name [him or her]). Com a invocação do Outro, o significante entra no real e produz o sujeito como efeito de significação, como resposta. Assim o entendeu Lacan ao longo de seu ensino.80A carne se torna corpo e esse corpo é de alguém, corpo sexuado, submetido à L ei, desgozificado, linguageiro. “Noexiste princípio eradeo havê-lo gozo”, perdido. mas o gozo nãoéera porque somente depois A Coisa o rea l, mas apenas como mortificado pela linguagem. Para Freud, no princípio era o que se chama, equivocadamente, “Eu-realidade (inicial).81Mal, por que a tradução correta de Real-Ich seria Eu-real, enquanto “a realidade” seria, conforme os casos e os momentos da escritura freudiana, Realität ou Wirklichkeit. Na citação anterior, coloquei entre parênteses a palavra inicial, porque ela é um adjetivo que qualifica o Eu-real (significando que esse eu-real está desde um primeiro momento) e não toma parte do substantivo à medida que não se opõe a um segundo e suposto “Eu-realidade definitivo”, fórmula que aparece em umanota complementar deJ ames Strachey na Standard E dition, e não de Freud. Freudjamais opôs duas formas diferentes de “Eu-realidade”. E certo que falou dele de duas maneiras diferentes em dois momentos distintos de sua reflexão e isso é o que deu chance de erro aos comentaristas. Com efeito, podemos observar que define pela primeira vezReal-Ich um em seu artigo de 1911 sobre os dois princípios do funcionamento mental82 80. J . L acan (1956). Le seminaire. Livre III. Les psychoses.Paris: Seuil, 1976. p. 210-211 ; Seminário X, aula de 9 de janeiro de 1963, L ’Etourdit,Ecrits, p. 459, onde se lê: “E o sujeito que, como efeito de significação, é resposta do real”. 81. S. Freud (1915). Obras completas, v. XIV, p. 130, 82. S. Freud (1911). Formulaciones sobre los dos principios dei suceder psíquico. In: Obras completas, v. XII, p. 223-231.
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e nesse texto o sintagmaEu-real tem o sentido de um eu que reconhece o princípio derealidade como guia tutelar. Esse é, por conseguinte, um “eu-realidade”. A proposta de 1915S3 é uma inversão total; não é um acréscimo de outro Eu-real “inicial” e diferente do “definitivo”, o mesmo do artigo de 1911, que teria de dar lugar, entre o “momento inicial” e o “momento definitivo”, a um intermediário que seria Loust-Ich, o Eu-prazer. A expressão “Eurealidade definitivo” é posterior, não figura no artigo sobre as pulsões e os destinos pulsionais. Aparece uma única vez na obra deFreud, no artigo de 1925 em torno da denegação*4e aí está incluída em uma clara relação de oposição com o “Eu-prazer inicial”. Para deixar claro e resumir este ponto, insistirei em que nas obras de Freud há três oposições de dois termos, nunca os três sucessivamente relacionados. a) No artigo sobreos dois princípios de 1911, trata-se de dois modos de funcionamento do eu (Lust-Iche Real Ich) que estão em função dos princípios de prazer e de realidade com uma anterioridade cronológica do primeiro (acredito que fica mais claro quando se traduzLust como “gozo” e não como “prazer”, seguindo a distinção lacaniana pulsional entre ambos elaboração freudiana do dualismo dos que anosderiva 1920; da neste caso, valorizamos a primazia do eu do gozo sobre o eu da realidade). Nessa primeira distinção freudiana há, então, eu-prazer (gozo do ser) e eu-realidade (“pela ligação com os restos de palavra”); b) no artigo dedicado às pulsões na “M etapsicologia”, de 1915,1 (5a oposição é a mesma, mas a relação é exatamente nversa, ai porque o que é srcinário é o Eu-real e o Eu-prazer se desenvolve a partir dele; o sujeito nasce com o E u-real e o E u-prazer e desenvolve a partir dele; o sujeito nasce como Eu-real, submerso no real; secundariamente vai surgindo nele um eu regulado pelo princípio de prazer e, finalmente,
83. S. Freud (1915). Obras completas, v. XIV , p. 129. O comentário de Strachey aparece em uma nota de rodapé. 84. S. Freud (1925). Obras completas,v. X IX , p. 255-256.
85. S. Freud (1915). Obras completas,v. XIV, p. 129.
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c)
no breve ensaio sobre a negação, de 1924,8 6 retoma-se a
oposição nos termos primeiros, os de 1911, entre um Eu-prazer originário e um Eu-realidade definitivo. Apenas a nota de Strachey dá base para pensar em uma consideração freudiana de três momentos diferentes. OVocabulárioS7de L aplanche e Pontalis contribui para a confusão, já que, depois de reconhecer que no texto de 1925 Freud não retomaa expressã o de “eu-reali dade inicial” que havia usado em 1915, estabelece que “O ‘eu-realidade definitivo’ corresponderia a um terceiro tempo” (grifos meus). Esta confusão causou estragos até no mais autorizado dos leitores que Freud pôde imaginar, opróprio L acan, que em seu seminário Encore ss reprova Freud por haver se equivocado ao postular umLust-lch como anterior aoReal-Ich. L acan salta aqui em cima de b), da formulação de 191 5, coincidente em tudo com sua própria idéia. A credito que sedeva ater a esse escrito de 1915: no princípio era o eu-real, um ser aídasein ( ), posto no desamparo. L ogo será possível teorizar sobre o eu-prazer e o eu-realidade, integrado à realidade, no mundo convencional do sentido, na intersecção do imaginário e do simbólico, efeito da ação da metáfora paterna. O eu integrado à realidade, o do narcisismo chamado por Freud “secundário” não é senão a continuação e uma simples modificação do Lust-lch, do Eu-prazer que aprendeu pela experiência que é conveniente aceitar o existente ainda que seja desagradável e contrário ao princípio de prazer. O eu darealidade, o de 1911 que retorna em 1925 com a carga do adjetivo “definitivo”, não está “além do princípio de prazer”. Seu princípio não é de gozo como o do Eu-real do texto de 1915, aquele que odeia o Outro antes que a realidade lhe imponha a conveniência de amá-lo. Poder-se-á, deste modo, conservar as três articulações freudianas, a de 1915 por um lado, e as de 1911 e 1924, por outro, distinguindo o eu-real do eu da realidade, ou seja, do fantasma, pois realidade a ( Wirklichkeit) nada mais é do que um fantasma que afasta o gozo, que protege dele. 86. S. Freud (1925). La denegación. In: Obras completas,v. XIX. 87. J . Laplanche e J .-B. Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse . Paris: PUF, 1967; verbete Moi-plaisir - Moi-réalité. 88. J. L acan. Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 52.
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São muitas as oportunidades em que L acan recorreu ao sintagma “sujeito do gozo”.*9Considero que se pode falar de “sujeito do gozo” apenas em relação com o eu-real, anterior ao simbólico, mergulhado no mundo do Outro; este é o sujeito submerso no “gozo do ser”. Para Lacan este sujeito do gozonão existe senão como um mito necessário, pois “de nenhuma maneira é possível isolá-lo como sujeito”.90A idéia de um sujeito do gozo anterior à intervenção do significante, de um puro real, é correlativa do outro ente mítico que L acan vai resgatar do texto de Freud, o da Coisa. Pois, se o sujeito surge do chamado que faz o Outro, o que há antes para que a invocação subjetivante ressoe? Qual é esse real que há de responder? De um lado, está o desejo invocante, o do Outro. De outro, está o gozo, o do ser. De um lado, a palavra apeladora, do outro, o grito pelado. Da intersecção entre ambos, haverá de surgir o sujeito do significante, sujeito do desejo. Lacan tem uma escritura para este sujeito do gozo, ainda quando não o chamasse assim, é S, no esse sem barra que aparece esquema L,definido nos Escritos, como o sujeito “em sua inefável e estúpida existência”.91 Esse “grito pelado” ressoa no Outro e algo vem daí como resposta. O grito se faz significante do sujeito e mostra o caminho: a máquina gozante somente pode socorrer suas necessidades implicando-se em outra dimensão, a linguageira. O gozo leva a exsistir. O pré-sujeito S do gozo se confronta com um Outro da onipotência, absoluto, sem barra, que se apresenta e logo se reapresentará como Mãe. Neste esquema, temos a figuração dogozo primário, o da Coisa ou do ser. Podemos representá-lo como dois círculos alheios entre si:
89. Por exemplo, em três ocasiões noSeminário X, A angústia,aula de 13 de março de 1963, e nos seminários de 29 dejaneiro e 14 de maio de 1969. Na obra escrita em “Presentación de las memórias de un neurópata”, em Autres Ecrits, p. 215. Devo a A lfonso Herresa esta valiosa observação. 90. J . L acan (1963). Seminário X, aula de 13 de março. 91. J . L acan (1955). Écrits, p. 53 e ( 1958), p. 557; Escritos 1, p. 47 eEscritos
2, p. 530-531.
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O Sujeito mítico e sem barra deve inscrever seu gozo, fazendose ouvir pelo Outro,aparecendo transformando-se naquilo que entrega, emcomo seu grito desesperado, no campo do Outro como @, objeto que escapaà função de significante, como corpo que se oferece ao olhar, como voz soluçante para o ouvido, como boca que clama pelo seio. E aí que encontra que não há tal onipotência do Outro, que o Outro está igualmente submetido à castração, que não está completo, mas que é desejante e que seu desejo aparece para ele como um enigma sem resposta possível. N este segundo momento, encontramos o sujeito entrando no campo do Outro e fazendo-se representar aí como objeto que preenche a falta do Outro. E o momento da alienação ou o momento da angústia, da despossessão total para servir um Outro voraz e insaciável. Neste ponto, o gozo se torna terrorífico; é o das fantasias fragmentadoras e sinistras, o da confrontação no lugar do objeto com uma falta que é preenchida no Outro pela criança que vem satisfazê-la. Escapando do gozo do ser, cai-se na angústia, adiantamento e correlato da alienação. O sujeito aspiraria encontrar-se satisfeito na satisfação que ofereceria ao Outro. E a posição neurótica infantil de base que impulsionainfans o a submeter-se à demanda alienante do Outro, li vrando-se da carga Mas a alienação consiste justamente em que assim não é isto o queda sevida. consegue: A alienação tem uma cara patente, que não é que nós sejamos o Outro, ou que os outros (como se diz) nos acolham desfigurando-nos ou deformando-nos. O próprio da alienação não é que sejamos recolhidos, representados no outro; ela se funda essencialmente, pelo contrário, na recusa do Outro como vindo ocupar o lugar desta interrogação do ser... Queira o Céu,
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Gozo pois, que a alienação consista em que nos encontremos cômodos no lugar do O utro.92
M as o Céu não o quer assim e por isso deve suar muito, deve se esforçar e correr atrás daquilo que poderia reparar a divisão do sujeito que se produz como conseqüência de ser rejeitado pelo Outro, pela imposição de uma separação com relação a esse Outro cuja essência é a falta. Teve que atravessar pela angústia e pela alienação para advir se tornar desejo, aceitar a inevitável castração e se reconhecer como sujeito partido pelo significante e, portanto, sujeito separado do objeto do fantasma. Separar-se do Outro sem renunciar a ele, deixando um presenteem suas mãos, o objeto @, tendo salvo a vida à custa de ter perdido a bolsa em resposta à sua intimação imperiosa: a bolsa ou a vida! Deixou em suas mãos a bolsa, o gozo, e recuperou uma vida atingida no essencial. Além disso, a relação com o gozo não se fará desde S, mas, passando por @, desde S. Viver-se-á no fantasma. A operação nesteponto pode se representar com osclássicos círculos eulerianos. O ser do sujeito teve de passar pelas redes do significante, pelo Outro. A alienação tropeça com o desejo e com a rejeição do Outro. Esse Outro está barrado por uma falta [S(A )] e essa falta não é preenchida pelo sujeito que se oferece para isso. A pergunta por seu desejo, o do Outro, permanece aberta, é enigma e, por sua vez, chave da existência. O sujeito não consegue que seu sentido se preencha plenamente no Outro e se separa dele. Subtraindo-se à intimação que revela a incompletude do Outro e traçando o que ao Outro faltaria se ele se negasse a reconhecê-lo como Outro; assim que sujeitoser recupe seu ser. nem A relaçã o entre de o Sujeito e oé Outro nãoo pode de ra inclusão, tampouco exclusão como o era no ponto de partida, o dos dois círculos isolados. Há uma zona de intersecção de onde a falta de Um se sobrepõe àfalta de Outro; é a área correspondente oa objeto @ que deixa a das barras, a de S e a de A:
92. J. L acan (1967). Le seminaire. Livre XIV. La logique du fantasme. Aula de 11de janeiro.
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O que do ensino de L acan acabamos de (re-)elaborar? Respondam osjo. rapi damente: a relação dequestão oposição neetre depassa do gozo ao dese L acan ocupou-se desta 1963 gem e 1964, em seus seminários X,A angústia, e XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise e em seu artigo intitulado “Posição do inconsciente”.93Fê-lo de duas maneiras sucessivas e diferentes que, como os círculos eulerianos, parecem obrigar a eleger à custa de uma perda. A exposição no seminário da angústia, cronologicamente a primeira, condensa-se em torno de um quadro chamado divisão subjetiva; nesse quadro a palavra “divisão” alude, sim, à barra do sujeito, mas em que o essencial está dado pela adoção do modelo matemático divisão: quantasmostra vezes S emoAsujeito ? É o somente primeiro pode momento, o da do gozo. O “quadro” que entrar em A para ni screver se u gozo como @; mas, como resultado desta operação, produz-se um quociente que é a barra do Outro (A); é o segundo momento, o angústia da e isto dá lugar a um terceiro momento, o da divisão, @dividido por S, o sujeito, depois de passar pela posição de objeto @ para o Outro, produz-se como um sujeito barrado ($), sujeito do desejo inconsciente. Entre o Sujeito e o Outro, “o inconsciente é o corte em ato”.94Resta assim um resíduo da operação: S. E hora de inscrever adivisão:
93. J . L acan (1960). Écrits, p. 829;Escritos 2, p. 808. 94. Ibidem.
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A
S
@
A
S
gozo
angústia
desejo
Este modelo aritmético da divisão não satisfez L acan, que nunca deu as razões de seu desinteresse posterior por esta formulação que não passou para os Escritos nem voltou a ser retomada no Seminário. Foi substituída no ano seguinte pela referência lógica à disjunção, as duas formas, vel e aut,de nossa conjunção “ou”, e pela referência topológica figurada com os círculos eulerianos. Da “divisão subjetiva”95passou à “causação do sujeito”96 pelo duplo processo de inclusão-exclusão, reuniãointersecção ou alienação-separação. Nesse momento, interessa a L acan a causa, o objeto @ como causa material que opera na psicanálise a partir da incidência do significante. Daí que proponha esse neologismo, se não for barbarismo, de “causação”97 do sujeito quando teria sido mais cômodo se tivesse proposto o sintagma “produção do sujeito”. M as não foi o interesse arqueológico, mas clínico o que me levou a passar por este momento fugaz do ensino de L acan, no
95. J. L acan (1963). Seminário X, aula de 13 de março. 96 J. (1960-1964). Écrits, p. 841-842 “Postions de l’inconscient”;Escritos 2, p. 821. 97. Curiosamente este neologismo falta no índice789 néologismes de J acques Lctcan, Paris: EPEL , 2002. Que sejam, pois, 790. O Littré reconhece "causativo”, mas não “causação”.
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seminário dedicado à angústia, esse afeto, o único, que não engana e que aparece, como o mostra o pesadelo, no momento da aproximação do gozo. Se o sonho está orientado pelo desejo que deve realizar e pelo dormir que deve proteger mediante uma série de distrações (por que não traduzir também assim Entstellung a que os processos primários operam?), a angústia é esse ponto de anulação subjetiva, deafânise em que o sujeito desaparece na confrontação com o insondável da falta no Outro, da castração entendida como castração do Outro, da M ãe, para nomeá-la,98 “... revelando-se a natureza do falo. O ao sujeito se divide diz-nos com relação à realidade, vendo mesmo tempoaqui, abrir-se em Freud si o abismo contra o qual se defenderá com uma fobia, e, por outro lado, recobrindoo com essa superfície de onde erigirá o fetiche, ou seja, a existência do pênis (materno) como mantida, ainda que deslocada”. O sujeito se desvanece ante o gozo do Outro, esse gozo que se apresenta de várias maneiras: com as fauces abertas monstro voraz do pesadelo, as formas de um destino devastador e inescrutável, com o ruído sinistro de um grito que nos envolve: o grito da naturezaque ressoaem nós como no quadro de M unch, esse grito que não é ouvido pelos personagens que dão as costas à boca que prefere o barulho e seguem seu caminho, com o semblante do gozo que o neurótico, em seu imaginário, atribui à viúva negra e à mantis religiosa,com esse inefável gozo feminino que se coloca “além do falo” e “além do sentido”. Esse inesquecível gozo do Outro condena a relação sexual a não existir. Assim, vemo-nos lançados a tratar arelação, sempre equívoca, entreo gozo e a sexualidde. Será o tema do nosso próximo capítulo. A angústia te m, portanto, umafunção deintermediação entre o gozo e o desejo, entre o S e o S, entre o sujeito nonato, abolido do primeiro e o sujeito cindido do segundo. Uma posição de passagem de gozo a desejo que se declara clinicamente como angústia no neurótico e no perverso. Entre a falta da falta, própria do gozo psicótico (posição superior no quadro da divisão subjetiva)
98. J . L acan (1965). Écrits , p. 877;Escritos 2, p. 856.
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e a colocação em palavras da falta que define o sujeit< desejante, meta final do tratamento analítico. A angústia não depeide da falta, pelo contrário, a angústia surge quando o objeto d>desejo se presentifica e contra ela é que o sujeito recorre aos baluaies da fobia e do fetiche que acabamos de recordar. Em ambos os casos,na neurose e na perversão, >sujeito se identifica com o que ele é para o Outro, põe-se como oljeto pronto a satisfazer sua demanda na neurose ou atua como iistrumento destinado a preservar seu gozo (o do Outro) na perversãi. E os dois acabariam tropeçando - era a posição de Freud - com ointolerável da falta que os obriga a retroceder em seu desejo. L acan e i ste ponto difere do fundador da análise e faz da castração não un fantasma temível, como acontece no neurótico, ou inaceitável, corio se passa na perversão, não um ponto de parada e rocha viva na qial tropeça a análise, mas um ponto de partida. Precisamente porqie o objeto o é de uma falta “o que se deveria ensinar a dar ao neurcico é essa coisa que ele não imagina, é nada, justamentesua angútia”,99em lugar de se oferecer ele mesmo como objeto, para satisfizer o que o Outro queira demandar-lhe, supondo que assim, de bim grado, poderá se subornar esse Outro. O sujeito se equivoca ao supor que o que o Outro |uer é sua castração, que é sua castração (ou dela) o que falta a
99.
J. L acan (1962). Seminário X, aula de 5 de dezembro.
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consiste em dar o que não se tem e o amor é o único que pode fazer com A que o gozo condesc enda ao diferente desejo.100de ,101L acan a respeito de precia-se aqui a pos ição Freud. O pai não é proibidor nem temível, nem rival nem gozante. É um nome-do-Pai, puro significante do Falo, que se distancia do Desejo-da-M ãe e que marca com acastração (-cp) os objetos do desejo que se tornam assim significantes da falta e ficam investidos de valor fálico. A falta não é temível; pelo contrário, a aceitação da própria imagem como carente é o que permite que o corpo do Outro se transforme em objeto causa de desejo; é o fator que proíbe e que marca com uma culpa que não é psicológica, mas estrutural, o autoerotismo; é, por fim, o que canaliza essa “transfusão da libido do corpo para o objeto”.102 A opção para osujeito é clara: entre ogozo e o desejo, das duas uma, ou a angústia pela falta da falta (“não é a nostalgia do que chama seio materno que engendra a angústia, mas sua iminência, tudo o que nos anuncia algo que permite entrever que se voltará para ele”)103ou o amor que édar a falta, a castração (o -cp), o único que poderá permitir a condescendência de um em relação ao outro. A experiência da análise dá-se integralmente, por meio da palavra, entre estas duas passarelas que conduzem do gozo ao desejo: angústia e amor. Atravessando a angústia, além do fantasma, para o m a or... com seu caráter fatal.
100. A expressão “o amor édar o quenão se tem” éo contrário do que pensam certos autores, por exemplo, J ean Allouch; uma constante no ensino de Lacan. Isto é lido em muitos seminários (V, VIII, X, XI, XII, XIII, XVII e X X I I). O acréscimo “... a quem não o queira” aparece apenas uma vez. No Seminário XXII (aula de 11 de março de 1975), se diz que a fórmula define “o amor das mulheres, enquanto uma por uma elas exsisten”. 101. Cf. a última frase deste livro, p. 336. 102. J . L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 801. 103. J . L acan (1962). Seminário X, aula de 5 de dezembro.
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1. Os equívocos da sexualidade M uitos pontos de partida possíveis competem entre si, deixando-me perplexo no momento de começar a escrever sobre este tema, rico como é em mal-entendidos. Deve-se eleger, deve-se equivocar, deve-se perder. Poderia começar reportando-me à mitologia ou à cronologia das elaborações de Freud, ou às modificações impostas no dito de Freud pela recuperação de eu s dizer no ensino de Lacan ou regressa r a pontos elaborados no capítulo anterior, ou tomar alguma referência literária, filoso-filosófica ou cinematográfica. Deve-se apostar e tratar de entretecer estes começos possíveis. Escolho assim uma breve epígrafe de L acan quenos submergeem nosso assunto: Que o ato genital com efeito tenha que encontrar seu lugar na articulação inconsciente do desejo, eis aí a descoberta da análise...1
que pode se completar com esta outra: Se o reconhecimento da posição sexual do sujeito não está ligado ao aparato simbólico, a análise e o freudismo não têm
1. J. L acan. Ecrits. Paris: Seuil, 1966, p. 633. Em espanhol: Escritos 2. México, Siglo XXI, 1984, p, 613.
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senão que desaparecer, pois não querem dizer absolutamente nada. O sujeito encontra seu lugar em um aparato simbólico préformado, que instaura a lei na sexualidade. E esta lei apenas permite ao sujeito realizar sua sexualidade no plano simbólico. É isso o que quer dizer o Édipo, e se a análise não soubesse isso, não haveria descoberto absolutamente nada.2
Todos podemos constatar que quando, no início do século, ao abordar est e tema em 1905, Freud devia começar demonstrando que, contrariamente à opinião popular e ao saber da época, a sexualidade estava presente muito além do campo restrito de onde se centrava, ou seja, no adulto e em torno da cópula e da função de reprodução; hoje, em um novo século, vemo-nos obrigados a um movimento inverso, a restringir e questionar a ideologia que vê a sexualidade e seus símbolos invadindo todos os lugares. Em nosso tempo, afirmar o sentido sexual de uma manifestação subjetiva é formular uma obviedade que não surpreende ninguém (nem pode interessar). E um efeito paradoxal do sucesso da psicanálise que marcou a modernidade com suas teses provocando, assim, um novo fechamento do inconsciente. A mística da repressão foi substituída por uma nova mística, da liberação e a atuação dos impulsos agora, já que sustenta a mesma repressão anterior. Pois essa é a utilidade das duas epígrafes, não se trata da mistificação de uma tendência natural à satisfação entendida como “gozo”, mas de demonstrar os modos em que “o aparato simbólico” é o organizador da sexualidade de homens e mulheres, de falantes, para usar o termo que não prejulga. E também esse rico aparato linguajeiro o que pode jogar para manter a sexualidade sujeita a ideologias reprimidas. E uma questão talvez mais fácil de entender do que de articular de modo compreensível, porque deve sustentar ao mesmo tempo duas teses aparentemente contraditórias. O próprio Freud não ficou alheio à dificuldade que pode ser apreciada no parágrafo final do prólogo de 1920 aos seus “T rês ensaios sobre a teoria da sexualidade”,3no qual sustenta que a maior fonte de resistências à 2. J. L acan. Le Séminaire. L ivre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1981. p. 191. 3. S. F reud (1905). Obras completas. B uenos A ires: A morrortu, 1978. v. VII, p. 121.
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psicanálise procede de sua “insistência na importância da vida sexual para todas as atividades humanas” (grifos meus) ao mesmo tempo em que qualifica como “disparatada censura” o pansexualismo atribuído à psicanálise. Com o que vimos nos dois capítulos anteriores, podemos levantar a dificuldade desta afirmação e negação simultâneas. Tratase não do pansexualismo da teoria, mas do falocentrismo demonstrado pela clínica psicanalítica e que indicaria que todo o campo da linguagem, e portanto da cultura, está marcado por esta função da castração, limite do gozo, condição do gozo acessível aos navalha corta separa oshomens gozos doe ser, significante efalantes, do Outro, assimque como os egozos dos das do mulheres. Aí a sexualidade não é a causa nem o princípio explicativo posto em jogo pela análise, mas o efeito, a conseqüência de um posicionamento exigido de todos os usuários da palavra com relação à castração, reguladora dos intercâmbios, condição do discurso como vínculo social. Permanece a questão de saber se a psicanálise pode ser o caminho para pensar e para chegar “além da castração” em novas e distintas circunstâncias históricas, quando os discursos tradicionalistas tenham sido de fato ultrapassados por outras formações discursivas que contestam as soluções universais e estabelecem, de acordo com a letra e o espírito do descobrimento freudiano, a consideração individual dos casos. Em outras palavras, o objeto da psicanálise, o objeto que é causado desejo e do mais de gozo, @, é certamente @ -sexual, mas nem por isso suainstauração éindependenteda Lei que tem como significante o Falo representado pelo nome-do-Pai. O falocentrismo histórico e teórico é o fundamento da ordem patriarcal. Necessidade estrutural e universal para as sociedades humanas, ou racionalização de uma forma da dom inação?Este é o temade muitos e apaixonantes debates contemporâneos que questionam, ao mesmo tempo em que animam com seus desafios o discurso do psicanalista. Pansexualismo da teoria? Certamente não, mas sim referência fálica já que o falo é o fundamento da ordem simbólica, um significante, “o significante destinado a designar em seu conjunto os efeitos de significado, já que o significante os condiciona por sua
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presença de significante”,4a articulação da conjunção logos docom o desejo, a razão necessária e suficiente para que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem. A acusação acercado presumido pansexualismo da psicanálise não deve provocar um excesso na defesa que leve a desconhecer o papel decisivo desta Bedeutung, desta significação ou referência conforme se prefira traduzir o conceito de Frege. O primeiro problema que flagela o pensador, psicanalista ou não, que se aproxime da questão da sexualidade é distinguir o que é da ordem da biologia (do organismo) e o que é da ordem da psi canálise (do sujeito), separando, em cada uma delas, o que corres ponde às representações ideológicas que invadem o terreno, campo privilegiado de todas as distorções, desde o desconhecimento, a re pressão e a hipocrisia até o exibicionismo da presumida superação de prejuízos. Ferenczi5começava sua “teoria da genitalidade” afir mando de modo atrevido: “Foi tarefa dos psicanalistas resgatar os problemas da sexualidade do gabinete peçonhento da ciência, em que estiveram enclausurados durant e séculos”. Na verdade, pouco havia encerrado esses séculos, e a obra de Freud, mais do que res gatar, chamou a atenção sobre uma zona de ignorância, destacan do como traço essencial de seu trabalho “sua deliberada independência com relação à investigação biológica”,6e se em 1905 insistia no “caráte r fundamental do quimismo sexual”, em 1920 re tirava silenciosamente o parágrafo que promovia essa hipótese na turalista.7 E a distinção entre o biológico e o psicanalítico que leva a pensar a sexualidade por analogia com a pulsão de nutrição, com a fome, dentro do modelo da necessidade e da satisfação que lhe é essencialmente inadequado ou, melhor dito, que serve tão-somente para marcar as diferenças, pois a sexualidade é o que o apetite não é... a menos que se sexualize, se humanize, se dirija ao seio antes 4. J. L acan (1958). Ecrits, p. 690;Escritos 2, p. 669-670. 5. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad. Buenos Aires; L etra Viva, 1983. p. 5. 6. S. Freud (1905). Obras completas,v. VII, p. 121. (“Prólogo” à edição de 1915 de “Três ensaios sobre ateoria da sexuali dade) 7. Ibidem, p. 197, nota 12.
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ou em lugar do leite. Freud nem sempre foi claro a esse respeito, pois sua primeira teoria das pulsões baseava-se na clássica distinção das duas grandes necessidades: a da conservação, própria ao indivíduo, e a da reprodução, própria da espécie, que seria expressa por meio da pulsão sexual com sua energia específica, a libido. Hoje, teria menos oportunidades de se confundir, quando a reprodução não é algo que a espécie necessita, mas que a ameaça (problema da superpopulação, dizem) e quando a função reprodutora pode cumprir-se in vitro, ou de muitas outras formas, sem pulsões que turvem a finalidade; hoje, quando assistimos diariamente aos promissores e temíveisprogressos na aplicação da engenharia genética; hoje, quando, por outro lado, se romperam todos os marcos que pretendiam colocar a sexualidade como fonte de prazer e quando refulge mais do que nunca a questão de sua relação com o gozo, tanto pelo que lhe abre de caminho quanto pelo que o torna tela encobridora e de defesa conforme deixamos estabelecido no item 6 do capítulo anterior; hoje, quando a psicanálise recebe as impugnações que procedem dos adeptos de novas vias para a theory ) em primeiro lugar. sexualidade (feminismo(s)queer e Neste ponto cabe denunciar o obscurantismo a que a psicaná lise deu espaço, apesar de Freud, contra Lacan, no que tange à confusão entre a “satisfação sexual”, o orgasmo, e a obtenção da “saúde mental”, a genitalidade bem-sucedida e a coorte de noções relacionadas: a felicidade, a maturidade, a completude etc. Por sua vez, este conjunto de justificações normatizantes e de ideais reforrados tomavam como modelo a fome saciada, a redução das tensões, a descarga da excitação e o vazamento seminal como análogo à re pleção estomacal. Fazia-se - e em muitos casos e lugares continua se fazendo- da cópula, da conjunção sexual (preferivelmentehetero) um ideal que estaria de acordo com a aspiração unitiva de Eros, o caminho a felicidade quando onão revolução social (Reich), apara possibilidade de cumprir quefazia seriaa um sonho universal de retorno à unidade srcinária, ao claustro materno. Eis um exem plo ilustre: Cheguei à conclusão de que o ser humano busca permanentemente, desde seu nascimento, o estabelecimento da situação intra uterina e que se aferra a este desejo de forma
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mágica e alucinatória (...) o coito permite o retorno real, ainda que somente parcial, ao útero materno.8 Sucedem-se formulações de teorias centradas no paradigma do as orgasmo masculino e de psicanalíticas “investigações”, supostamente fisiológicas, que buscam e periodicamente afirmam que conseguem encontrar um equivalente “objetivo” (e masculino) do orgasmo para a mulher, ejaculações, contrações pélvicas, paroxismos centelográficos ou revestimentos neuronais. A difusão de um certo saber psicanalítico elevado à categoria de evangelho do gozo chega inclusive a modificar a atitude subjetiva diante da cópula. Assim, Lacan observa em seu seminário de 27 de abril de triste 19669que , se alguém antigamente o poeta podia“exceto dizeranimal post e o coitum ao que soube agregar a mulher galo”, atualmenteos homens já não se sentem tristes por terem do ti um orgasmo conforme à regra psicanalítica, ao passo que as mulheres, que antes estavam contentes porque a tristeza era de seus partenaires,agora sim estão tristes porque não sabem se gozaram ou não convenientemente. Enquanto isso o galo continua cantando... e as mulheres despertam dos sonhos da profunda psicologia. É verdade que há uma relação entre o orgasmo (que pode ser obtido opor meio da cópula, mas não necessariamente dela como provam a masturbação, os sonhos eróticos epor as meio emissões seminais em situações e d angústia) e o gozo. M as essa relação não é de identidade nem de perfeição nem de recuperação de alguma mítica unidade srcinária. Não constitui, em si, uma meta para propor a ninguém e ainda menos desde uma perspectiva que se proclame freudiana. Proponho ao leitor que faça uma prova, que busque nos índices analíticos dasObras completasde Freud o artigo “orgasmo”. E provável que se surpreenda ao comprovar que os dedos das mãos sobram para contar as referências, que uma única vez aparece esta palavra nos “Três ensaios sobre ateoria da sexuali dade”10e isso para dizer que o lactente que mama com fruição alcança uma reação 8. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad, p. 25. 9. J. L acan (1966). Seminário XIII, aula de 27 de abril. 10. S. Freud (1905). Obras completas,v. VII, p. 163.
( iozo sexualidade e
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muscular queé “um tipo de orgasmo”. O fundador da psicanálise jamais escreveu algo que garantisse a atual mitologia sexológica sobre a função saudável do orgasmo. Se o leitor revisar essas poucas referências, a surpresa se confundirá com o riso ao ler que uma delas relaciona o orgasmo com a raiva das meninas depois de receber um enema. No que tange à sua fenomenologia, Freud sempre comparava o orgasmo com os modelos pouco recomendáveis do ataque, ora epilético, ora histérico. Nunca falou de “satisfação genital total”, e se Freud tem algo a dizer a respeito, é algo muito pessoal: “Eu sei que o máximo de prazer da união sexual não é senão um prazer de órgão que depe nde daatividadedos genitais”.11 Não são muitas mais as referências que encontramos quando buscamos o artigo “satisfação sexual”, mas fica sim claro que para Freud esta não é idêntica ao orgasmo. Pode inclusive dizer que “o amor, o amor sexual, nos ofereceu a experiência mais intensa de sensação prazerosa avassaladora, dando-nos assim o arquétipo para nossa aspiração a ela”12para, via de regra, desaconselhar esse caminho a quem aspire à felicidade, coisa que fizeram “com a maior veemência os sábios de todos os tempos” (ibid., p. 99). Lacan é, pois, rigorosamente freudiano ao questionar areligião gossexual de nossos já longos dias de “revolução sexual” como é chamada não sem certa comicidade involuntária. Em sua fórmula mais extrema, pôde chegar adizer que13“o grande segredo da psicanálise é que não há ato sexual”, explicando-se assim que em nossa primeira epígrafe se refira ao “ato genital” que é o que não tem nenhuma primazia, mas que deve buscar e encontrar o modo de se acomodar no aparato linguageiro “na articulação inconsciente do desejo”. É ela, justamente, a que condena o ato aesta insatisfação essencial que é, desde Freud, consubstanciai à própria pulsão sexual. Resultando disso que, depois de muito debater acerca de se havia ou não ato sexual, Lacan acabaemitindo umasentença lapidar: sim, há, mas não há ato sexual que não seja ato fracassado. Isso ocorre porque não há, entre o homem e a mulher, relação sexual, proporção U .S . Freud (1916-1917). Obras completas, v. XVI, p. 296. 12. S. Freud (1939).Obras completas,v. XXI, p. 82. 13. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula de 12de abril.
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sexual, reaporte sexual, correspondência ou harmonia que os predestinem para se conjugar, para se reunir sob o mesmo jugo. Assim, o ato sexual constitui um mal-entendido com relação ao gozo (até caberia a pergunta:who framed the sexual act?). O orgasmo não é, do gozo, outra coisa senão o ponto final, o momento da abolição de toda demanda na qual o desejo não é cumprido nem satisfeito, mas enganado pelo prêmio do máximo prazer, fugaz e fugidio, denunciado pelos comentaristas mais lúcidos de nosso tempo que falam da “novela canônica do orgasmo”,14 uma neomitologia que tem como um de seus maiores efeitos o de pretender assimilar o gozo feminino ao modelo masculino e borrar as diferenças entre os sexos ao universalizar o gozo peniano como paradigma da satisfação sexual que não existe. Desmentido do gozo feminino como Outro gozo que é, segundo a tese de nosso capítulo VI, a essência da perversão:a crença de que não háoutro gozo além do fálico. O gozo, como sabemos, está proibido - aos dois sexos porque odo t sujeito é um súdito da Lei, de seu significante, do Falo obliterador da Coisa e representado pelo nome-do-Pai que abre o caminho para a articulação das demandas que cernem o indizível e inalcançável objeto do desejo. E como sujeito da castração que cada um entra no ato sexual. O órgão que representa o falo no imaginário, pênis ou clitóris, está aí como indicador de uma carência com relação ao gozo, prometido a uma suposta e impredizível função reprodutora que é assubjetiva (para a mulher não há representação da fecundação; dela se poderá saber bastante depois, e do homem nem falemos). Como seres da linguagem estamos submetidos à limitação no gozo sexual, que é o fim da ereção, a detumescência, de uma maneira diferente para o homem e para a mulher. No homem o orgasmo representa o ponto de anulação de toda demanda, enquanto na mulher, freqüentemente a demanda subsiste, não se esgota na ejaculação do outro, ficando um saldo irresoluto que motiva seu encore,seu pedido de algo mais.
14, P. Bruckner e A. Finkielkraut,El nuevo desorden amoroso.Barcelona: Anagrama, 1979.
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No paroxismo do prazer, dissolve-se toda relação com um objeto qualquer. O funcionamento homeostático do organismo representa aí o mecanismo de detenção do gozo; não se trata da função de um sujeito, mas de sua dissolução instantânea, de sua redução ao pedaço de carne flácida que fica como saldo do ato. O final da cópula deixa um saldo de castração. É por isso que a cópula chega a ser o lugar privilegiado da insatisfação dos integrantes do par. A anulação daereção éexperimentadacomo uma perda demodo diferente para o homem que dela sofre, da da mulher que deixou essa função a cargo de seu partenaire. Neste sentido a psicanálise coloca-se contra toda a mística da sexualidade como fonte de um conhecimento superior, de uma transubstanciação, de um vislumbre de vidas ultraterrestres. rata-se, T si m, de um desvanecimento do ser do sujeito identificado com seu apêndice fálico, de um deixar de gozar que, por isso, é uma “pequena morte”. O saldo do ato sexual é a separação, o desgarramento, e isto com relação ao corpo do outro a que se abraçou e que agora escorre, com relação ao filho que poderia se engendrar, com relação ao órgão da cópula que se separa tanto da mulher quanto do homem pela detumescência e com relação à própria satisfação que se revelou em seu desvanecimento, na separação do sujeito com relação a si mesmo. Longe de qualquer recuperação deunidade não há nem reencontro do varão com a mãe, nem reencontro da menina com o pênis. O gozo se revelou como utópico, submetido à castração. E por isso que Lacan pôde usar os adjetivos mais grosseiros de seu vocabulário contra essas concepções (re)unitivas que lhe pareceram imbecis e abjetas, chegando a qualificar de delirante a idéia (freudiana) que assimila a cópula à tendência das células e dos organismos de se juntar e constituir conjuntos de complexidade e organização crescentes. No entanto, por não existir a relação por que a na conjunção não é senão uma ilusão, é que asexual, sexualidade existe realidade. É justamente um efeito da falha e da falta; a sexuali dade (humana, evidentemente) é “fáltica”, gira em torno desse objeto terceiro que escapa no encontro sexual, em torno do de gozo. mais Em torno do objeto que se constitui como perdido, por exemplo, quando Freud imagina seu filho, aquele que ele criou como objeto
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teórico, dizendo: “Pena que não possa beijar a mim mesmo”, corte com relação a si mesmo que “o levará mais tarde a buscar em outra pessoa aparte correspondente”.15 A divisão primordial, aquela que põe em marcha a sexualidade em seu sentido psicanalítico, é a divisão do sujeito com relação ao gozo induzida pela castração e é esta que conduz ao desprendimento do objeto @, suplência do gozo que falta. O objeto faz-se exótico à medida que vem em lugar da parte laltante ao sujeito na imagem desejada.16 É precisamente por ser separável que “o falo está predestinado a dar corpo ao gozo na dialética do desejo” (ibid.) e por aí é que se produz a transfusão da libido do corpo para o objeto, para essa “parte correspondente” (no corpo do outro) da qual Freud falava. O rebaixamento da sublime dignidade que o misticismo (antigo e oriental ou moderno e ocidental) atribui ao ato sexual não conduz a psicanálise pelo caminho regressivo da preconização de um retomo ao auto-erotismo e a um gozo idiota, sempre ao alcance da mão, nem, por outro lado, ao que seria o inverso e a recíproca desta regressão, a exaltação de valores ascéticos e de renúncia ao gozo do corpo em função de estar esse gozo limitado pelo prazer. A psicanálise está em outro lugar. Não é uma técnica do corpo como tolamente objetava Heidegger a L acan (conforme o relato de L acan, e segundo sedepreende de uma entrevista feita ao filósofo na qual afirma que as conseqüências filosóficas da psicanálise são insustentáveis porque biologizam a essência do homem) nem tampouco é uma ideologia espiritualizante que exalte a sublimação. Neste sentido a psicanáli se é uma ética que se manif esta em uma técnica linguageira centrada em torno desta articulação do desejo inconsciente que define os modos como cada um se acerca ou se distancia do ato genital, afirmando cada um sua diferença, sua peculiaridade, rebento do desejo, em sua aproximação ao gozo. Isto, sem que se deixe de comprovar aqui e ali na clínica o efeito daculpa que é inerenteàs práticas masturbatórias. A culpa não depende de sanções ou códigos exteriores nem tampouco da ridícula 15. S. Freud (1905). Obras completas, v. VII, p. 165. 16. J. L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802.
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aineaça de que, “se você se tocar, eu o corto”, mas da resignação do órgão ao cumprimento de sua função de intercâmbio, passando pela subjetivação da falta que é o que concede ao gozo seu valor. Valor de gozo que corresponde ao órgão e que se desvaloriza como significação para um sujeito como disponibilidade permanente de uma satisfação que não deixa marcas, que tira a pulsão de sua função memorável e historizadora ligada ao nome próprio e ao registro simbólico. É ainda pertinente - talvez mais que nunca - a já clássica crí tica de M arcuse17 à “desublimação repressiv a” oferecida generosamente aos consumidores do sexo real e virtual. A falta, o que Freud ensinou a chamar “castração”, é o fundamento da ordem sexua l. É uma falta na imagem, ou melhor, e como o evidencia o mito de Narciso, o fato de que o sujeito está separado de sua imagem e que, entre ele e ele mesmo, opera uma proibição. Narciso viverá feliz se, e somente se, não se encontrar consigo mesmo. A superfície do espelho indica a presença desse Outro infranqueável que o separa de si mesmo: é um dos sentidos implícitos na barra do S, S, que é em L acan o matema do sujeito. O traço vertical é feito de um cristal apagado que introduz a falta e marca aausência de relação entre laguém e si mesmo percebido como outro.A quele que aparece no reflexo especular é um objeto proibido, aquele que se é no olhar do Outro, aquele que recebe um nome “próprio” que é o significante cujo significado é o gozo perdido. E o primeiro mandamento a que se submete o falante: “Não gozarás de ti mesmo,te deves.A penali dade é dura e se chama psicose. Trata-se - repetimos - desta função da castração simbólica que faz passar do gozo ao desejo e abre a possibilidade de outro gozo cunhado pela L ei do desejo, um gozo além da falta em ser. Deve se admitir a falta, o que não se tem, para poder dar isso que não se tem no amor, aí onde o gozo se valoriza, chegando a ser um valor que se transfere ao corpopartenaire. do Descartada a miragem do gozo total que realizaria a pessoa no encontro com outro corpo e aceito que o orgasmo “não é senão um 17. H. Marcuse.Eros v civilización. México: Joaquín Mortiz, 1965. p, 205 228.
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prazer de órgão que depende dosenitais”1 g 14ou um desvio desses lábios que não podem se beijar a si mesmos, “uma concessão masturbatória”,19como disse uma vez Lacan, falando dacópula para distingui-la das noções espúrias do “banho oceânico” ou da reconquista do narcisismo primário, e descartada também a vã e consoladora idéia de que no encontro sexual algo do Outro passaria ao Um, abre-se então, e somente então, a questão da natureza dos gozos do Um e do Outro e a questão da relação entre ambos os gozos.
2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro No item 6 do capítulo anterior, havia afirmado, seguindo L acan, o gozo do Outro nainterseção do imaginário e do real sem mediação simbólica (p. 99). E preferível que o relembre: “O gozo do ser (...) é inefável, está fora do simbólico, em uma atribuição imaginária que fazemos inventando-o como se fosse gozo do Outro, de um Outro devastador que, pela falta de inscrição do nome-do-Pai (forclusão), reaparece no real”. E, dois parágrafos abaixo, reproduzia o esquema do nó borromeu de “A terceira”, no qual se pode “ver o espaço” do que ali se chama gozo do Outro J ouissance ( el l ’Autre). M as o que at lvez escape ao olho do cúmpli ce queé meu leitor é que aeste gozo que a L can chama gozo do Outro,eu o estava designando com outra expressão, usada também algumas vezes por L acan, como se fosse um sinônimo, degozo do ser.(Em francês um único fonema distingue as expressões jouissance de l ’être e jouissance de l ’Autre.) Na frase que reproduzo, deslizava a idéia de que é um gozo do ser ao qual atribuímos (sem que necessariamente o seja) a condição de ser gozo do Outro. Esse gozo do ser, semelhante a um impensável gozo da árvore ou da (jouissance ostra de l ’huître), o ligávamos no item 4 (p. 77) com a Coisa. Nesse momento dizíamos que a palavra era a navalha que o separava de 18. S. Freud (1916-1917). Obras completas,v. XV I, p. 296. 19. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula de 24 de maio.
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uma classe diferente do gozo filtrado pela castração, aquele que tinha o Falo como fundamento significante e que gozo era fáli co (J. ). Finalmente, e para completar um trio de autocitações, acresce ntemos que no item 5 (p. 85) havia assumido o risco de me distanciar do explícito do ensino de L acan para explicar a exigência clínica de distinguir e até de opor o gozo do ser e o gozo do Outro entendido, vamos descobrindo as cartas, como gozo do Outro sexo.Do Outro sexo, do sexo que é Outro com relação ao Falo, ou seja, do feminino. Em L ’étourdit, se lê: “Chamamos heterossexual, por definição, a quem ama as mulheres, qualquer que sej a seu sexo”.20 M inha pretensão, já adiantada, é a de explicar adiferença entre os gozos por meio da topologia da bandade M oebius. Promessa ou ameaça, chegou o momento de cumpri-la, mas não sem antes passar pela imprescindível e extensa volta que passa pelo que ensina sobre o tema a experiência clínica da psicanálise e de seu funcionamento. A grande volta abarcará o item 2 deste capítulo, no qual se insiste na distinção dos três gozos, e o item 3, no qual se mostrará a lista causal da castração. O desfecho topológico - não se assuste - fica para o item 4. Na tese, colocada desde então, o que procuro demonstrar é que o gozo fálico, gozo ligado à palavra, efeito da castração que espera e se consome em qualquer falante, gozo linguageiro, semiótico, fora do corpo, é a tesoura que separa e opõe dois gozos corporais distintos, deixados fora da linguagem, que eram, de um lado, ogozo do ser, gozo perdido pela castração, mítico e ligado à Coisa, anterior à significação fálica, apreciável em certas formas da psicose e, de outro,gozo o do Outro, também corporal, que não foi perdido pela castração, mas que emergia além dela, efeito da passagem pela linguagem, mas fora dela, inefável e inexplicável, que é o gozo feminino. Impõe-se talvez criticar - outra vez! - o modelo naturalista, francamente insuficiente, dos ciclos de necessidade-satisfação, da fome e da saciedade, que pareceria (sem que assim fosse) encon trar uma analogia na atividade sexual do macho, mas que resulta,
20. J. L acan ( 1973). Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 467.
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sob todos os aspectos, inadequado para explicar a experiência das fêmeas desta espécie presa pela linguagem que constituímos entre uns e outras. extraviar-se Freud partiuem da relação extrapolação desse caso modelo E necessário à sexualidade, se insuficiente. parta desse ponto, da tentativa de compreender a sexualidade humana so bre a base de seus pretensos fundamentos biológicos ou de conduta, e não da subordinação do funcionamento genital à L ei, ao comple xo de castração e ao corte que ele instaura entre gozo e desejo. O modelo da fome, do instinto, serve justamente para obturar as respostas com sua pretensa facilidade. O trabalho teórico da psicanálise, desde sua fundação até nossos dias, foi o de tomar distância com relação àsentre suas acomodidades. vez que se evidenciou a separação sexualidade Ue ma a função reprodutora e, mais adiante, que a sexualidade não podia ser entendida segundo a racionalidade biológica do princípio de prazer, mas a partir do gozo implicado em seu exercício, surgiu o problema de definir esse gozo em termos do masculino e do feminino e em termos daquilo que do gozo do outro (aqui com minúscula) é subjetivável por “cada um” no (des)encontro sexual. Problema, pois, da heterogeneidade dos gozos e da dificuldade reconhecida já por Freud para definir psicanaliticamente a diferença entre o masculino e o feminino, e resolvido por ele de um modo para ele mesmo insatisfatório como uma oposição entre atividade e passividade no marco pulsional, depois de afirmar o caráter masculino de toda libido. Tese que não deixa de ser questionável e irritante. Problema insolúvel para o saber quando se confronta com o gozo que, por essência, é irredutível à palavra e se confunde com todo o acontecer do corpo do qual nada se pode dizer. O que podemos saber sobre o gozo, não o nosso, mas o do Outro, em cuja pele não podemos nos meter? Problema que angustia a humanidade desde sua aurora com a divisão entre o gozo do suor do trabalho para A dão e o da dor obstétrica para Eva, ambos os gozos que são efeito da Lei depois da expulsão sem remédio do gozo paradi síaco anterior. No mito de T irésias, o vidente, a questão dos gozos e sua diferença é mais clara. Tirésias, perambulando pelo monte, viu a cópula de duas serpentes e, conforme duas versões, ou as separou ou matou a fêmea. A conseqüência foi que - como castigo? - ficou
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iransformado em mulher durante sete anos, ao fim dos quais voltou a repetir sua ação desagregante em outro par viperino e assim recuperou seu sexo primitivo. T empos depois, J úpiter e H era discutiam sobre o gozo do homem e da mulher na cópula e decidiram que a melhor maneira de dirimir a questão era perguntar ao único que havia tido as duas identidades. Convocado, Tirésias respondeu, sem vacilar, que caso se dividisse o deleite sexual em dez partes, nove corresponderiam à mulher e uma ao homem. Hera, assim o dizem, vendo traído o segredo de seu sexo, e acreditando que era melhor que não se soubesse, o castigou com a cegueira; J úpiter, não podendo absolvê-lo da sanção imposta por sua cônjuge, compensou-o com os dote s de vidente. E é assim, cego-vidente, que ele é visto intervir no drama do Édipo. Está claro que Tirésias só se tornou sábio depois de sofrer a sanção e de receber o prêmio. Se houvesse se tornado antes, quando o chamaram para se declarar, teria sabido - na posição do psicanalista - que não devia contestar, sendo preferível devolver a pergunta e, se chegava a contestar, que nada era mais tolo do que argumentar uma diferença quantitativa, como se a substância de que são feitos os gozos do homem e da mulher fosse a mesma e o assunto pudesse ser resolvido por meio de algum tipo de proporção. Foi a primeira vítima dos horrores da quantificação em matéria de subjetividade. O que discutiam os reis do Olimpo girava em torno do impensável e do irrepresentável do gozo do Outro. Semelhante é a questão do gozo que cada um dos participantes perde por não ser esse Outro. O gozo, de um ou outro sexo, funciona a fundo perdido. Fica impossível, por mais forte que seja o abraço, apoderar-se do gozo do outro tanto no sentido subjetivo (não posso viver no corpo do outro, sentir o que ele sente) quanto no objetivo (somente há gozo no corpo de um e isso de modo sempre parcial, como gozo de órgão, Organlust). De modo que o gozo se produz no encontro das zonas erógenas e escapa dos dois do casal em virtude de sua própria divisão. Este gozo do Outro pertence certamente ao registro do fantasma, mas nem por isso deixa de ter efeitos reais na subjetividade. De mil maneiras, e de modo privilegiado nos sonhos e nos sintomas, a clínica psicanalítica mostra os efeitos, às vezes
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inibidores e angustiantes, às vezes estimulantes, sempre enigmáticos e mobilizadores, do saber do inconsciente, resultado desta impossibilidade se apropriar do Isso gozoéalheio. Gozar doPoderá corpo do outro (hetero oudehomo) sexuado. possível? um dos participantes na cópula saber o que ocorre no outro? São compatíveis ou comparáveis ambos os gozos? São gozos convergentes que se asseguram reciprocamente? L acan o questionava, precisamente, como temos adiantado pela função da castração. Por isso pôde dizer: O sujeito concl ui que não tem o órgão que chamarei - j á que tenho que escolher uma palavra - o gozo único, unificante; aquele que faria um gozo singular na conjunção dos sujeitos de sexo oposto [pois] não há realização subjetiva do sujeito como elemento, como partenaire sexuado nisso que ele-ela imaginam do ato sexual.21
Em psicanálise não há nada parecido com ying e yang, o simpático par de peixinhos que juntos enchem um círculo. No primeiro capítulo, sustentei que o gozo é também uma função incluída na dialética, mas que não se tratava de um acordo das subjetividades, mas de uma rivalidade dos gozos na qual sempre está o gozo perdido, a incomensurabilidade entre oo que gozoéde um eem de jogo outro, a falta de uma justa medida para avaliar o bem (ou o mal) de cada um. A disputa de H era e J úpiter é a formulação mítica desta ancestral discórdia entre os sexos na qual nenhum Tirésias pode arbitrar, muito menos se irá quantif icar um rapport sexual que - é sabido - não existe. E aqui que tradicionalmente funcionou o paradigma do gozo peniano com sua clara localização no tempo do orgasmo e no espaço da ereção-detumescência que dá ao varão o tão duvidoso quanto vibrante privilégio de um saber certeiro sobre a satisfação genital. M as, é bom lembrar, es se desvanecimento instantâneo do ser do sujeito no orgasmo é correlativo da perda do gozo que escapa de modo irrecuperável com o sêmen. É um curto-circuito; os fuzíveis saltam, a luz se apaga. Na obscuridade subseqüente, surge a tentativa de localizá-lo, de apreendê-lo e assegurá-lo. O saber certeiro é agora 21. J. L acan ( 1968). Seminário XVI , aula de 17de janeiro.
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o da inelutável perda com um saldo de descontentamento em relação às possibilidades do gozo peniano (fálico, já que o pênis representa o significante fálico no imaginário pelo real de sua detumescência) para assegurar a satisfação subjetiva. L ocalizá-lo, onde? Na geografia como um gozo exótico que brota nos tristes trópicos; na etnologia como patrimônio de alguma raça ou tribo fabulosa; na história como conquista de alguma civilização de sábios quejá se extinguiu; na religião como êxtase dos benditos incapazes de transmitir o que sentiram; na mitologia da qual é colofão e paradigma a construção freudiana do pai gozador primitivo; na anatomia quando se esquadrinha nas neurofibras ou nos patterns de descarga; na política e no direito que pretendem administrar, canalizar e distribuir uma sexualidade “legítima” ou contestatória; na química que promete inventar paraísos artificiais e vende substâncias que privilegiam o gozo sexual; na cibernética que permitiria abolir a maldição bíblica do trabalho, encarregando disso os gólens que não pretendem gozar, deixando assim o gozo em mãos de seus inventores, sem reclamações nem invejas; na psicanálise, enfim, que o tacha de inalcançável em Freud pelo tropeço com a rocha viva da castração e que habilita outras buscas que confinam com o delírio como nos casos de Ferenczi e de Reich até encontrar aarticulação lógica e topológica de L acan. Na terraque ele lavrou se planta a semente deste discurso. L ocalizá-lo, onde? Se o pênis é o órgão que não pode sustentar sua ereção (e a ereção é justamente o gozo do órgão que se desvanece com o orgasmo), e se a mulher dá mostras de outro gozo que é, em parte, homólogo ao do macho, localizado primordialmente no clitóris, mas que não se reduz a ser apenas este gozo que pode inclusive faltar nela; se a mulher pode experimentar gozos que escapam a essa e também a qualquer localização, abre-se a possibilidade de que o gozo que falta ao Falo seja o gozo dela como Outro do Um, como Outro desse significante fálico que unifica o sujeito e que o representa ante o conjunto dos isgnificantes. Assim aparece a questão do gozo do Outro entendido como o Outro sexo, esse eteroz (hetero-) radical com relação ao Falo ao admiti-lo e reconhecê-lo. mas ao mesmo tempo ao não se esgotar em si e no universo de significações que ele impõe.
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Por isso o gozo feminino aparece como gozo do Outro e a intenção de governá-lo no campo do sabe r deu lugar às resposta s que acabamos de descrever e a muitas outras. Pois, se o gozo escapa ao saber (historicamente sempre ligado ao poder), o saber se empenha em pegá-lo justamente aí onde suas precisões sempre lhe fogem, nas mulheres,dark no continentde que falava esse Freud que, ao final de sua vida, chegou à conclusão de que nunca pôde responder a pergunta sobre o que quer uma mulher e, portanto, sobre o queé uma mulher. L acan acrescentava que apsicanálise, o modo mais radical de interrogar o falante sobre sua experiência, quando aplicada às mulheres e quando as próprias mulheres como praticantes dessa psicanálise, questionavam a si mesmas, não conseguiram tampouco alterar nada digno de destacar da perplexidade reinante arespeito do gozofeminino. Ao enigma, que parece intemporal, muitos Édipos arriscaram infinitas respostas e provocaram a ruína de muitas esfinges. Poderíamos qualificar tais respostas ora de neuróticas ora de psicóticas, mas como propostas que tentam ligar o gozo com o saber, dizia L acan, “abrem a porta a todos os at os perversos”.22Como já adiantei ao tratar o te ma do gozo nas perversões, poderei falar mais sobre essa relação entre o saber impossível sobre o gozo feminino e a tentativa perversa de dominar o que escapa ao saber, desmentindo-o ( )e Verleugnung reduzindo o gozo das mulheres unicamente ao gozo fálico, algo que equivale a considerar as mulheres como homens incompletos. A dentrar na questão do gozo feminino exige uma nova passagem pelo temada castração.Vejamos. Nem as mulheres nem os homens nascem como tai s, mas chegam a sê-los a partir de um acontecimento inicial que é a atribuição do sexo a um pedaço de carne totalmente carente de representações. O Outro profere no momento do nascimento uma palavra, “homem” ou “mulher” que fará as vezes de destino além da anatomia, se for o caso. O corte, o corte da castração, é administrado pela palavra que secciona - sexiona - os corpos arremessando-os à vida em uma das duas pátrias irreconciliáveis e
22. J . Lacan (1967). Seminário XIV, aula 7 de junho.
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não complementares da espécie. É o real que mitifica o andrógino platônico ou a extração da costela (da cauda, segundo certos mitos hebraicos, esse idioma do qual o som tsela tem tanto o sentido de “costela” quanto o de “infortúnio, tropeço”),23costela ou caudadesse andrógino queera A dão antes da divina cirurgia. O que faz o corte (linguageiro) da designação do sexo é marcar a alteridade de cada um dos falantes. E por isso que a palavra é, cm essência, castração, separação e, em uma palavra que em espanhol causa um equívoco maravilhoso, ablação*. A sexualidade é estabelecida poi um discurso e osórgãos daanatomia deverão (ou não) conformar-se com ele. Desde o discurso, pelo discurso, determina-se o valor do órgão que “faz” com sua presença ou ausência a diferença que a simboliza no Outro da linguagem. E esta diferença, como no-la ensina Freud e é confirmada incessantemente pela clínica psicanalítica, não é importante em si, por algo que tenha a ver com inervações, com o maior tamanho do pênis com relação ao clitóris, com as sensações precoces que possam existir ou faltar de uma estesia vaginal qualquer ou com determinações culturais de primazia fálica, mas pela descoberta inevitável c mais ou menos tardia de que a castração existe e opera na mãe, esse Outro primordial que temeque de sersecundariamente, fálico tanto para oa menino quantodepara menina quedeixar determina, possibilidade umaa identificação normativa para o menino com seu pai que o tem (o órgão) e, do lado feminino, uma demanda dirigida a quem o tem para que lho dê, deslocando o Outro da demanda de amor da mãe para o pai e instalando a equivalência simbólica entre falo e criança (das Kleine). É pela falta que o sujeito, homem ou mulher, se vê forçado a renunciar ao auto-erotismo e a marcar o gozo masturbatório com uma culpa que não depende dos códigos culturais. Essa culpa é inerente à pretensão a castração, de operar comodo subterfúgio, um atalhode dedesmentir auto-suficiência interposto no caminho 23. R. Graves e R. Patai.Hebrew Myths. New Y ork: Greenwich House, 1983. p. 69. * Em espanhol, há homofonia entre ablação (ablacion) e falação(hablación). (N. daT.)
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gozo. A diferençasexual implica a castração para ambos os sexos. (Quase) ninguém tem os dois. O gozo não poderia materializar-se em umcorpo só, sobre o próprio corpo; asdo aspirações desse fazendo-as passar peloimpele campo adofiltrar Outro, Outro sexo, e constituindo o Falo como o significante da falta, daquilo que se busca fora porque não está em seu lugar naimagem desi. É assim que o falo se constitui em terceiro no jogo entre o homem e a mulher, buscado no Outro e condenado a faltar. O desencontro é fatal, estrutural, alheio aos (bons) desejos delas e deles. O ausente é o causador do desejo que é o desejo do Outro. Os amantes, no ato sexual, abraçam e rodeiam essa falta que está em seu centro, interior excluído de cada um e desejado no Outro. Freud se equivocava a este respeito quando escrevia: “A pulsão sexual põe-se agora [com a puberdade] a serviço da função de reprodução; tornase, por assim dizer, altruísta”.24A introdução posterior do narcisismo chegaria para corrigir essa idéia que poderia fundamentar os fantasmas da dadivosidade e dos dons recíprocos na obediência a fins superiores que seriam os da espécie. E no ato sexual (que não existe senão fracassado) que se joga esta relação do homem e da mulher com o gozo, pois a representação do falo recai sobre o Outro do abraço, esse Outro que escorrega na separação posterior, ficando o órgão, órgão da conjunção, reduzido a algo desfeito, perdido para a mulher, relratário ao gozo para o homem, separado de ambos. O Outro é o falo - assim, com minúscula - no que tange ao valor de gozo que o sujeito não pode satisfazer em si (-cp). Por isso é que o Outro é mensageiro da castração do Um (“A o verme verás que algo falta em você”). Precisamente por não contar com o falo entra-se no ato sexual e se compreende assim o adágio lacaniano de que o amor consiste em dar o que não se tem, em dar ao Outro a castração. Daí provêm as duas proposições, aparentemente contraditórias, assentadas por Lacan em seu seminário de 31 de maio de 1967:25 a) que não existe o ato sexual como possibilidade de integração, restituição ou resgate do perdido na “sexão”, que 24. S. Freud (1905).Obras completas, v. VII, p. 189. 25. J. Lacan (1967). Seminário XIV, aula de 31 de maio.
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constitui o homem e a mulher como castrados, não e b)há senão o ato sexualpara motivar essa articulação pela qual o sujeito busca no corpo do Outro o gozo faltante, a resposta à sua insatisfação. Quem participa no ato sexual, seja qual for o seu sexo e o de seu partenaire, o faz desde uma posição subjetiva e de enunciação: é uma declaração de sexo.Certamente, inconsciente. Não há complementaridade dos sexos, mas é sim verdade a necessidade que sejam dois para que cada um se defina por não ser o Outro em um sistema de oposição significante. A diferença é irredutível. O que entre ambos delineiam é o que lhes falta, o falo
como terceiro interessado na relação cuja representação sobre um órgão marcado pelo complexo de ecastração, um órgão recai cujo único papel é o de introdução aos intercâmbios, chegando a ser o verdadeiro partenaire do ato sexual, esse ato que se verifica na interseção de duas faltas e no fato de que cada um dos participantes é -< p para o Outro. Não se creia, no entanto, em algum tipo de simetria. É verdade que não é possível definir um estatuto psicanalítico dos termos “masculino” e “feminino”, mas as condições da castração de cada um diferem no sentido de que para a cópula - se quiser participar dela - do lado do home m, é necessária a ereção do m embro viril e, do lado da mulher, é necessária... a ereção do membro viril. Do lado do homem é requisito o desejo, do lado da mulher o consentimento. A possibilidade da violação, em princípio apenas ao personagem “falóforo”, é a imposição desse consentimento. Na assimetria do lugar dos desejos respectivos é que devemos buscar a causa de que, para Freud, a única tradução relativamente aceitável para os termos masculino e feminino no inconsciente seja o da atividade c passividade; com certeza isto não tem relação algu ma comque a penetração do espermatozóide óvulo,se uma “interpre tação” não pode senão levar ao riso. Ono homem dirige à mulher, em relação ao ato sexual, colocando seu desejo como demanda de satisfação, fazendo dela um objeto em seu fantasma, concedendolhe o valor fálico, objeto para seu gozo eventual. Como disse Lacan: ... não se é o que se tem e é por que o homem tem o órgão fálico que ele não o é; isso implica que do outro lado seja-se o que não
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Gozo se tem, ou seja, que é justamente por não ter o falo que a mulher pode assumir seu valor.26
Ela, por sua vez, não o tendo, tem de sê-lo, encarná-lo, revestir-se desse valor que pode provocar essa ereção, condição da cópula. Seu desejo não pode se manifestar diretamente, mas tem que se dirigir a despertar o desejo do Outro. É o lado feminino dessa generalidade que chamamos complexo de castração e que aparece como consagração a uma função de mascarada, a mesma que confere um aspecto feminino a um homem que ostenta seus atributos viris. Por tudo isso, o acesso ao ato genital parecemenos carregado de dificuldades para as mulheres do que para os homens. Elas, uma vez definidas a si mesmas e por si mesmas como desejantes, não possuindo o órgão da conexão, têm o caminho facilitado, não tendo senão que ir em direção a quem o tem... e ver como ele as arranja. A frigidez não tem assim nem a transcendência nem as conseqüências que ensombrecem a impotência do lado masculino, onde o desejo pode inclusive adquirir uma função inibitória, como é reiteradamente comprovado. Nada a renunciar, nada a arriscar, pois a castração está dada de entrada e não de saídaécomo o caso do homem. Freud colocava esta diferença em termos parecidos e não com relação a cada ato sexual, mas em relação ao Édipo, esse Édipo cuja transgressão no sentido de incesto pai-filha não tem, em geral e por estas mesmas razões, as devastadoras conseqüências clínicas do incesto do menino com a mãe. Tal “vantagem” do sexo frágil ficava contrabalançada no discurso freudiano por esta imposição da dupla exigência de ter que se transplantar a zona erógena dominante e definitiva do clitóris para a vagina. Creio que neste ponto atualmente ninguém concorda com Freud.2 7 26. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula del9 de abril . 27. Cf. um artigo que fez sucesso no pensamento feminista apesar da grosse ria (e falocentrismo) de seus enunciados, A. K oedt (1968), “O mito do orgasmo vaginal” (“El mito dei orgasmo vaginal”), traduzido e reproduzi do em Debate feminista, M éxico, v. 12, n. 23, p. 254-263, 2001, muito bem comentado nesse mesmo número por J. Gerhard (2000), p. 220-253, “De volta a ‘El mito dei orgasmo vaginal’” (“De vueltaElamito dei or gasmo vaginal”).
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O certo é que tanto para a mulher como para o homem a cópula requer a ereção peniana como condição necessária, ainda que não suficiente (o desejo de um e o consentimento da outra devem se acrescentar), e relega à condição de contingentes todas as demais variáveis corporais. Falta dizer que esta constatação banal, assim como a diferença de posições assentada no parágrafo anterior, não autoriza privilégios nem determina maiores vantagens ou facilidades para um dos doispartenaires ainda que imaginariamente seja possível encontrar que um deles, na posição de neurótico, inveja, despreza ou temeem seu fantasmaa posição e o gozo do outro. Na verdade,a condição da cópula não passapelo que setem, mas pelo que se deixa de ter como conseqüência da divisão sexual. O falo nada assegura ao seu possuidor a não ser o fato de estar nele a parte faltante da imagem ideal de si, causa da insvestidura libidinal acordada ao outro corpo e razão da recusa ao gozo sobre si mesmo, idiopático, intranscendente. O canal da transfusão de libido a outro corpo se produz tanto no caso da eleição de objeto homo ou heterossexual. O decisivo não são os órgãos misturados, mas as posição subjetivas, ou seja, a declaração de sexo. O falo é o objeto da recíproca despossessão que conduz ao jogo do cortejo e do amor; é o que as mulheres ou outros homens buscam em um homem e, tese ligeiramente escandalosa, que os homensbuscam na s mulheres- ou em outros homens, assim como as mulheres o buscam. Para L acan,2* há um engano, um ogro*, l que éconstitutivo do ato sexual. O homem busca aí um complemento segundo a promessa bíblica de chegar a ser “uma única carne” e termina achando que há, com efeito, uma única carne, a sua. Ou seja, que, no final, há um desengano com relação a esse logro da falsa promessa: buscando a carne a castração sexual, a de que ounificada gozo faltaencontra em alguma parte. e a verdade do ato
28. J. Lacan (1967). Seminário XIV, aula de 31 de maio. * No original “timo”, que em castelhano tem o sentido de logro e que res soará com íntimo e extimo. (N. da T.)
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Destaquemos ainda a dissociação entre o orgasmo genital, que é ponta e limite do gozo, e o ato copulatório que culmina ou deveria culminar no orgasmo para o falante homem “importunado pelo falo”,29 mas não para o falante mulher. É claro queo orgasmo não requer a conjunção dos corpos e que esta não deve, nem tem por que, terminar em qualquer paroxismo. Esta dissociação leva à pergunta sobre o que representa o gozo sexual no nível do sujeito, de cada um. E sta não é uma questão de sexologia, mas de erotologia,30de gozologia - diria com prazer, ainda que ciente da impossibilidade do “objeto” gozo para o entendimento - certamente uma questão de psicanálise, uma dimensão que se abre à investigação particular das vias abertas ao gozo de cada um fora de toda normatização biológica ou cultural. A respeito do termoerotologia: o primeiro uso da palavra erotologiaem língua francesafoi proposto em 1882.O Dictionnaire Historique de la Langue F rançaise, de Robert, possui o vocábulo e também a definição: “o estudo do amor físico e das obras eróticas”. Freud nuncao usou eL acan o fez em duas ocasiões, em seminários ainda inéditos. Na primeira aula do seminário sobre aangústia (19 de dezembro “merece de 1962), odisse quedeaprática à qualNove nos dedi camos, psicanálise, nome erotologia”. anos maisatarde, no seminário X V I II (a), O saber do analista, na aula de 4 de novembro de 1971, afirmou que “o gozo está na ordem (?) da erotologia”. M eu amigo Jean Allouch retoma o termo e insiste em sua consubstancialidade com a psicanálise (op. cit.). Em um texto posterior declara31 que o vocábulo é pouco conveniente (é uma aposta, sem dúvida uma loucura, pois ninguém ignora que as intervenções do deuzinho Eros quase não têm razão nem sentido”). A palavra gozologia, vinculada ao conceito lacaniano que trabalhamos, teria a vantagem de sua especificidade ainda que, devemos reconhecer, do escorregadio objeto @ não poderia haver ciência. Em francês, deveria ser criado o vocábulo jouissologie, e
29. J. Lacan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 70. 30. J. Allouch. La psychanalyse: une érotologiedepassage. Paris: EPEL , 1998. 31. J . Allouch. L acan et les minorités sexuelles. Cités, Paris: P.U.F., n. 16,
p. 72, 2003.
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seguida - intenção nada fácil - traduzi-lo para o inglês como jouissology. O que ninguém que tenha acompanhado este texto até agora poderia negar é que a definição da psicanálise não pode renunciar ao seu objeto, o de sua prática e sua teoria que é o gozo, mos - está mais perto de um gozo que - temos visto e ainda vere Tanatos do que de Eros. em
3. A castração como causa L acan’2 foi incansável na insistência sobre este ponto que hoje se discute detalhadamente. O complexo de castração - ou seja, uma ordem de determinação acessível à psicanálise e somente à psicanálise como prática linguageira - tem aí a função de nó com relação à produção dos homens e das mulheres, com relação ao “desenvolvimento” de uns e outros (questão dos estádios ou fases libidinais), com relação à determinação da posição clínica do sujeito como neurótico, perverso ou psicótico, com relação à possibilidade e modalidade de abordagem do ato genital e até no posicionamento frente à criança que se produz a partir dele. A anatomia não é o destino, senão a partir da palavra quea recolhe e a significa. A função (da cópula) não faz o órgão, mas é o órgão, o pênis, aquilo que é apropriado pela linguagem. A ordem simbólica realiza no órgão uma função muito interessante que é a de transformá-lo em significante da perdaque se produz no gozo pela ação da Lei; em outras palavras, o simbólico submete ao corte castratório.33Não é outro o sentido da milenar prática da circuncisão, marca do Outro no órgão que representa o falo. A castração significa que o gozo, estando perdido, deve ser sig nificado, cercado,seus evocado com o entretecido de fios significantesdefinido, que desenham reservatórios, estagnam-no, acumulam-no, evitam sua dispersão. A castração é um condens ador do gozo que o torna subjetivável, subjetivo e, ao mesmo tempo, 32. J . Lacan (1958). Écrits, p. 685;Escritos 2, p. 665. 33. J . L acan (1966).Seminário XI V, aula de 27 de abril.
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estranho, extimo; vetoriza-o, canaliza-o, assinala-lhe e lhe proíbe ca minhos. Por ser simbólica (não real) e assimétrica (como vimos) abre para um mundo de perguntas a respeito de seus efeitos sobre o gozo, do gozo que falta, da possibilidade de se ressarcir da per da, do gozo do Outro, perguntas sem fim que fazem pulular as res postas no incerto mundo do saber, no lugar da verdade inarticulável. E assim que se transformam em anunciados: teorias sexuais infan tis, novelas familiares do neurótico, noções sexológicas, ensaios de teoria sexual dos adultos, das feministas e dos analistas. Nenhum destes enunciados poderia liberar-se das cargas ideológicas e por isso é imprescindível o debate que os esclareça. O Falo é primordialmente o que faz padecer a Coisa, o significante que se imprime sobre o real, o nome da falta no Outro, a barra do Desejo da Mãe, aquilo que remete do gozo da mãe ao nome-do-Pai, que o metaforiza e o condena (no sentido em que se diz “bloquear uma porta”). É esse ponto de impossibilidade, grau zero do significante, onde se implanta um S, que chama o outro significante, o resto da cadeia, que abreviamos com a notação S!? o saber em todas as suas modalidades. É o indicador da falta (no gozo). Por Osua intervenção como falta ser pode ser nomeada. Falo indica o lugar de significante, ausência quea deve colonizado pelo que sim se nomeia, pelo semblante que vem no lugar da verdade e é agente do discurso, de todos os discursos. Por ser o localizador da falta (-(p) é o organizador e o comandante do desejo, encarna a respostado sujeito à falta de ser. Assim, os objetos que são causa do desejo (@) alcançam uma significação fálica, estão correlacionados à castração. O Falo é o corpo infantil, o que pode preencher a falta na mãe, antes de ser barrado pela castração. O que falta no corpo está no campo do Outro e que é aí onde deve ser buscado. Como órgão34permite a cópula, é o que está em jogo nela, o que - por tê-lo ou não - determina as posições subjetivas dos dois da união; e não apenas quando os dois têm o título de “homem” e “mulher”. Por seu destino de detumescência o órgão volátil e instável 34. Remetemos novamente à distinção do falo como significante, como órgão
e como semblante. N. A. Braunstein. P or el camino de F reud, p. 112-120.
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que é o pênis estorva o gozo, ao mesmo tempo que lhe marca o caminho. Um dos sentidos essenciais do complexo de castração é essa canalização que faz o gozo passar pelos genitais de ambos partenaires.O gozo é imaginarizado por esse vôo de pássaro que não pode se sustentar no ar, que deve se separarparte-en-aire. de seu * E impossibilidade, não impotência, e é inerente à própria pulsão sexual, tal como indicada pelo próprio Freud. Como tal, gozo fálico localizado nos genitaisOrganlust ( ) e concentrado no pênis ou no clitóris, está presente nos dois sexos e não há razão alguma para supor que seja diferente em um e no outro, ou maior de um lado do que do outro, pois não há relação natural alguma entre gozo e tamanho ou a visibilidade. Qualquer técnico eletrônico sabe que as válvulas não são superiores aos transistores. Talvez L acan exagerasse em A lógica do fantasma35 ao dizer que A ereção não tem nada a ver com o desejo, pois o desejo pode atuar perfeitamente, funcionar, sem estar de modo algum acompanhado por ela. A ereção é um fenômeno que deve ficar no caminho do gozo. Quero dizer que por si mesma esta ereção é gozo e que justamente se demanda, para que se efetue o ato sexual, que ela não se detenha: é gozo auto-erótico.
Fala-se aqui, claramente, da ereção peniana descuidando de que também o clitóris é um órgão erétil, cuja ereção de forma alguma é condição necessária nem demanda para a cópula. A objeção que pretendo formular a essas cortantes asseverações recai sobre a suposta independência entre ereção e desejo frente à idéia difundida de que a ereção é teste o do desejo. E claro que há ereções sem desejo e que há desejo sem ereção, mas a cópula só é possível à medida que confluem a ereção e o desejo. Não se pode contemplar isoladamente função sem levar emdei conta correlato inevitável, a detaume scênciada . Aereção diferença entre ambas xa umseu resto, uma perda, que é a do objeto @ como interseção entre o gozo perdido e o desejo causado, animando-se ambas reciprocamente em
* Parte no ar. (N. da T.) 35. J. L acan (1967). Seminário XI V, aula de 21 de junho.
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sua repetição. Não há aí satisfação, mas amortecimento pelo prazer de órgão. Deve-se colocar também em equivalência dúvida a afirmação feita regularmente sobre uma suposta entre olacaniana gozo masculino ligado à ereção e o gozo feminino experimentado como algo que as moças designariam entre si como “o golpe do elevador”, um conhecimento queL acan atribui antes à sua experiência viril do que à psicanalítica. E evidente que há diferenças radicais entre os dois partenairescom relação ao gozo. O que não se pode dizer é que tal diferença seja universalizável. A questão se coloca como relação com o sabe r e com o sabe r como fantasma que o gozoé proibido. A localização do gozo masculino (e depossibilitaria sua interrupção) óbvia, não deixa dúvidas. O homem está completamente no gozo fálico, sem resíduo no semblante do gozo que depe nde daereção. M as o que acontece on Outro (sexo)? Eis aqui um enigma de Hera e J úpiter, de todas as esfinges, dos homens e das mulheres, dos fisiologistas, dos neuróticos e dos perversos, dos psicanalistas e das psicanalistas, aquilo que mantinha a perplexidade de Freud e que encontra resposta em L acan, resposta de não resposta, afirmação de um gozo recôndito, inefável, no corpo e além da linguagem que contorna o impossível de um saber e que sustenta o gozo como ligado à impossibilidade de dizer toda a verdade que, como dizia Nietzsche, é mulher. Esse gozo das mulheres que é, em parte, gozo fálico e, em parte, enigmático, está ligado ao indizível e é escrito com o matema S (Á). Para as mulheres o semblante - função da li nguagem, efeito imaginário do significante - e o gozo estão dissociados. Está, sim, o visível-sensível-dizível do gozo... e há, além disso, encore. Sendo assim, existe realmente este gozo vivido e declarado inefável? Como distingui-lo de um fantasma, de uma quimera, de um sonho que poderia estar sustentado tão-somente pela insatisfação geral e crescentecom as duvidosas promessas do gozo fálico?36 O próprio Lacan reserva ao gozo feminino um estatuto incerto, o de uma crença: 36. S. André. Que veia une femme? Paris: Navarin, 1987 e Seuil, 1995; em espanhol,Qué quiere una mujerlMéxico: Siglo Veintiuno, 2002.
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Ficam todos convencidos de que acredito em Deus. A credi to no gozo da mulher, enquanto está demais, à condi ção de que ante esse demais coloquem uma tela até que o tenha explicado bem.37
Uma crença, já se sabe, é pouco segura e quem a manifesta vita comprometer-se (como ao dizer: “acho que vai chover”) ou é, 10 outro extremo, uma certeza extrema e devoradora, algo que pode evar alguém a morrer por sua causa (justamente, esse “acredito em Deus” cujo equivalente lacaniano é o gozo feminino). À luz da clínica parece certo que há um gozo feminino que ;stá além do falo e da detumescência que aguarda o órgão que o epresenta, um gozo no corpo (en corps), um gozo que não omplementa o masculino, mas que se apresenta como plus,um algo nais(encore),suplementar, que faz naufragar todas as tentativas de EStringi-lo e localizá-lo. O desmentido (Verleugnung)deste gozo smpre animou as tentativas para controlá-lo desde os modos mais ]rimitivos como a infundibulectomia até os mais científicos, tais omo a moderna sexologia massoterápica e a busca de seus centros incefálicos ou dos pontosg da vagina. Também a intenção de emeter esse gozo misterioso a um contato sobrenatural da alma om Deus que faz do êxtaseum orgasmo. A segregação de uma deologia em torno do gozo e dos místicos é o rosto espelhado da deologi a do sexólogo. No M éxi co: “a mesma gata, mas nal tratada”.* Em Freud, há um reconhecimento do desdobramento de um çozo fálico (clitoriano) e outro gozo diferente, concepção em ;ssência fecunda, mas que sofreu depois pela pretensão freudiana le localizá-lo novamente, agora na vagina. São conhecidas as :onseqüências infelizes que trouxe esta afirmação do fundador da málise, cujo efeito trágico, paradigmático e extremo pôde ser visto ias operações (três) aque se submeteu a princesa M aria Bonaparte :>araaproximar o clitóris da vagina™ e cujos efeitos mais difundidos foram os de uma insatisfação de muitas mulheres com seu próprio 37. J. L acan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore,p. 71. * No original: “la misma gata, pero revolcada”. (N. da T.) 38. S. André. M arie Bonaparte, 1882-1962. Ornicar?, Paris, n. 46, p. 97, 1988.
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gozo. Possivelmente nenhuma tese freudiana esbarrou em uma oposição tão inflamada e virulenta, tão justificada. As feministas alinharam suas flechas contra a psicanálise, acusada de mil maneiras de relegar e inferiorizar o gozo feminino em função do modelo masculino de ereção-penetração-ejaculação, modelo de que se tratou (e não se conseguiu) provar como patrimônio comum a ambos os sexos. A insatisfação com o gozo fálico promove a busca de outros modos e modalidades de gozar sobre o fundo do enigma em torno do gozo feminino. A intenção de definir e alcançar gozos parafálicos e perifálicos pelo lado do prolongamento da duração do coito, do ascetismo,ado deslocamento químico mediante substâncias que por provocam ereção ou que sejam capazes de provocar orgasmos estimulação de centros nervosos, da sublimação estética ou da dor física absorve a imaginação e os esforços de poetas e cientistas. T ambém de psicanalistas que entendem que o fist-fucking, as práticas S/M ou a proliferação de encontros múltiplos e anônimos podem revelar novas verdades. A psicanálise tinha, desde o princípio, desde a resposta consignada pelas histéricas e desde a pergunta que essa resposta encobria, a missão de produzir As uma resposta diferente àpelos questão dos gozos orto-metae parafálicos. proposta s formuladas analistas eram decepcionantes pelo erro comum de produzir fórmulas supostamente universais ou universalizáveis. O colóquio de A msterdã em 1960reuniu dois trabalhos, um de L acan3 9e outro de Perrier e G ranoff,40 que propuseram algo novo a partir da experiência analítica e que estão na base da elaboração (relativamente) definitiva realizadapor Lacan em seus seminários de 1972-1973;4 1 neles a resposta oa enigma mil enar é alcançadapor umaum viahalo lógica desemboca em fórmulas e formulações rodeadas por deque despudor. A ausência de solução universal ao enigma do gozo feminino conduziu à escandalosa (somente em aparência, pois de fato é uma 39. J . Lacan (1960). Écrits , p. 725; Escritos 2, p.704. 40. F. Perrier e W. Granoff. Le désir et leféminin. Paris: Aubier, 1979, 41 J. L acan. Le seminaire. Livre XX, Encore.
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verdade banal e sempre reconhecida)propsição lacaniana de que A mulher não existe. Isto implica qie eis, uma a uma, devem e podem encontrar sua resposta, a delasqueião é complementar nem análoga à resposta masculina, mas i depndente e suplementar a esta. E isso porque, paraL acan,eiasnãotodas estão, estão como não-todasno gozo fálico e que, com cfalonem tudo está dito sobre o gozo. São os homensos que seemienhm em falar da mulher e em encontrar um universal para o ;ozcque elas sentem e eles pressentem, um gozo que, por escapr da redes do saber é muitas vezes temido e até tido como hostil. O suplemento de gozo extrafálio (en corps, encore) que não podia ser dito, devia ser escrito. )eviria também escrever a impossibilidade de dizê-lo. Para isso.ardiamente L acan chegou às fórmulas dasexuação,42da sexuaçãoe noda sexualidade nem do sexo, da eleição de um modo particilarle se posicionar de cada falante ante a função fálica que está eterninada não pela anatomia nem pela cultura, mas pelos avatars dt complexo de castração (determinante do saber inconsciente)e di desejo que resulta desse complexo como expediente para a smjeti ação da falta a ser. Com homem relação ea aestas fórmulas disexiação dividem a parte chamada parte chamada nulhc dosque seres falantes, tomei a decisão de não incluir neste li'ro ima reprodução e uma interpretação a mais, quese agregari às árias existentes. Permitome, em troca, remete o leitor aosemnário de L acan43 e aos comentários enriquecedores que s fiieram (por exemplo, em A ndré44e M illot45). Por outro lado arrsearei uma resposta que implicar a marcação de uma diferena con postulações explícitas e a meu ver confusas do próprio Laca:, apoximando-me e adotando sugestões que procedem de autor es
42. 43. 44. 45.
Ibid., p. 73. idem, ibidem. S. A ndré. Que veut unefemme? C. Millot. Horsexe: essai sur le transxuaisnie. Paris: Point Hors-Ligne, 1983; em espanhol,Exsexo. Barcelcia: fradiso, 1984; em português, Extrasexo. Ensaio sobreo transexualimo. So Paulo: Escuta, 1992.
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questão, SergeA ndré,46e Gerard Pommier,47e Colette Soler,48para as quais procurarei encontrar um modelo topológico. E o momento de repetir e repassar o que foi apresentado no começo do segundo item deste capítulo: havíamos chegado ao ponto de separar um gozo do ser e um gozo fálico e os havíamos localizado, com Lacan, em duas áreas diferentes do nó borromeu (figura à p. 108). No ensino de L acan, o gozo quechameigozo do seré chamado também, indistintamente, gozo do Outro.M as de que Outro se trata? Pois é possível falar tanto a) do corpo comoOutro, Outro radical, fora da linguagem, assento de um gozo ligado à Coisa, impossível deda simbolizar grande Outro, como oOutro linguagem,oudab) Leio eOutro, do código (código queprecisamente poderia haver, mas que não há), do Outro onde deve se significar a mensagem, o Outro indicado como A no gráfico do desejo ou pode, por ora interromperemos aqui a enunciação, referir-se c) ao Outro Eteroz(), que é o Outro sexo e o Outro sexo é sempre o feminino pois o sexo que éUm é o que está integralmente regulado pelo significantee pela Lei do falo. A credito que aexpressão gozo do Outroé infeliz, porque, dada a polivalência do Outro lacaniano e de seu matema, o A maiúsculo, todos os gozos são gozos do Outro: 1) o gozo do corpo fora da linguagem (que estou denominando de gozo do ser); 2) o gozo que passa pela articulação linguageira submetida à L ei, marcado pela cultura (chamado aqui e com Lacan gozo fálico); e 3) um terceiro gozo, suplementar e situado além da castração e de seu símbolo que é o gozo feminino para o qual proponho reservar, a este sim, a denominação de gozo do Outro (sexo). Gozo do Outro (sexo), é preciso esclarecer, no sentido do genitivo o Outro objetivo, como aquele que goza, e nãosubjetivo no sentido pois de, é impossível gozar do Outro como objeto do gozo do Um. Deste terceiro gozo, o gozo além do falo, é que cabe falar ao terminar este capítulo.
46. S. André. Que veut unefemme? 47. G. Pommier.L ’exception jeminine. Paris: Point Hors-Ligne, 1985.
48. du C. Champ Soler, Ce que L acan Lacanien, s/d.disait des femmes... ln: Progress. Paris: Éditions
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Declarar como desafortunado e acabar reconhecendo de modo restrito o sintagma gozo do Outroexige alguma precisão adicional. Se algo está claro, conforme já se disse e se citou no capítulo anterior, é que “o desejo vem do Outro e o gozo está do lado da Coisa”;49neste sentido deve-se ver o gozosempre como referi do ao Um, esse Um do qual os falantes somos desalojados pela intervenção invocante do Outro que cinde a subjetividade, sendo o gozo o que lalta ao Outro e ao mesmo tempo o que ele proíbe no Um, isso que se expressa nos maternas com a dupla barra do Outro e do sujeito. Assim, e some nte assim, o gozo se apresenta ao sujeito como sendo o Outro, o radicalmente ausente que encontra seu símbolo no O maiúsculo do falo e se manifesta no mundo da linguagem como nome-do-Pai. Por tudo isso é que reconhecemos, em uma última análise: 1. gozo do ser (da Coisa, mítico); 2. gozo fálico (do significante, linguageiro), e 3. gozo do Outro (feminino, inefável). Sim, deveria concordar comL acan quanto ao gozo do se r (1) e o gozo do Outro (3) se inscreverem na mesma região (marcada como J .A., j oui ssance de l ’Autre) do nó borromeu escrito em superfície plana, na região da interseção do real e do imaginário, sem mediação simbólica, como algo corporal alheio à função fálica que é a função dapalavra. Não deixa de ser paradoxal- mas tem de ser assim - que o gozo marcado como sendo “do O utro” fique totalmentefora do simbólico (figura na p. 108)
4. Os três gozos e a banda de M oebius Trata-se agora de articular estes três gozos sem nunca perder de vista que, com eles, não nos movemos em um terreno especu lativo, mas em uma referência constante à clínica, a uma clínica que terá de pensar de modo diferente com o conceito de gozo.
49. J . L acan (1964). Écrits, p. 853;Escritos 2, p. 832.
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A enumeração dos trê s tipos degozo tem algo deexcessivo ou de bizarro; é como a superposição de três substâncias heterogêneas, algo assim como as três identificações reconhecidas por Freud no capítulo 7 de sua “Psicologia das massas” ou os três masoquismos do artigo sobre o “problema econômico”, reunindo três coisas que não parecem somar-se, mas proceder de conjuntos diferentes. Não poderia ser de outro modo, sendo o gozo o que está em relação com a lógica: o que dela fica excluído. E para isso que fica tão difícil captar com as palavras de um discurso, convém uma apreensão topológica. Deve-se partir da clínica, dos gozos não-ditos, os que não pas sam pelo diafragma colimador da palavra, os de uma dissolução da subjetividade, externos a qualquer vida de relação, extradiscursivos. Falo dos corpos reduzidos à sua existência corporal na embriaguez extrema, o autismo, infansa cia. Isso em um extremo. No outro, as experiências extáticas de quem, havendo atravessado todas as barreiras oportunamente indicadas ao gozo, e muito particularmen te aquela que é seu contrário, o desejo, encontram-se em uma re lação direta, imediata com o gozo. Entre os dois extremos, estão os gozos diafragmatizados, regulados pelos esfíncteres linguageiros, submetidos à castração e à sua lei, perseguidores de um objeto fantasmático que escapa inexoravelmente como a tartaruga ao bom A quiles ou comoa mulher ao homem. Não é errôneo dizer que este último, o fálico, é gozoperverso (ou seja, virado de costas, trans ferido, meta-fórico), enquanto os outros dois são loucos. M as deve-se atentar para não confundir estes dois gozos que estão fora da linguagem, pois eles não são iguais e sim o contrário um do outro; ou, melhor dizendo, seu avesso. O autismo, apesar de a clínica psiquiátrica clássica englobá-lo sob a mesma rubrica da psicose, não é assimilável à paranóia. Entre ambos, entre o aquém e o além da palavra, estende-se este campo da cobertura insuficiente do real por meio da linguagem que nos dá uma “realidade”, um certo substituto do gozo que nos escapa. É o campo que L acan chamou de semblante e N ietzsche, com mais crueza, de mentira. O semblante ou a mentira, ambos tributários do falo e de seu gozo, são as condições de possibilidade do discurso, pois não há discurso que não seja o do semblante.
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Seria fácil mostrar topologicamente a relação entre os três gozos sobre a superfície de uma folha de papel. B astaria traçar três círculos concêntricos que representariam as relações existentes entre os três gozos.
zona centralque constituiria o núcleo do ser Figurariam aí uma (o círculo de dentro), o mais íntimo e ao mesmo tempo inacessível, a terra estrangeira interior, isso que do Real fica excluído e padece gozo pelo significante; aí representar-se-ia o do ser.N o meio pode fazer-se figurar esta zona sombreada, a da palavra que marca e
limita Coisa, condenando-a ao silêncio e àsum filtrações inesperadas, gozo fálico. espaçoa do significante do E ficaria além, uma zona exterior, a do gozo que excede a significação e a de gozo que seria (pas-toute), função fálica, aquele que faz da mulher uma não-toda cujas pistas - já que não conhecimento - nos dariam certas experiências de místicos e paranóicos que vão além do órgão que estorva como falo. E a área gozo do do Outro(sexo). Este modelo é demasiado singelo. O problema é que com ele perde-se a possibilidade de mostrar a continuidade e a oposição que há entre os dois gozos do corpo (o central e o exterior) separados pela colocação em palavras que faz passar o gozo pelo funil do falo. Com os círculos concêntricos, a separação é absoluta e entre am bos os gozos não há oposição, mas simples falta de contato. Por isso é que proponho recorrer a outro modelo e a outra demonstração que L acan usou em um contexto totalmente dif erente, o dabanda de Moebius. É necessário neste ponto recordar o essencial desta figura topológica. O leitor interessado nos detalhes técnicos e na utilização
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que L acan dá a essa figura pode recorrer ao livro já citado de Granon-L afont.50Darei por conhecidas as propriedades topológicas da banda. Não nos conformamos com a relação entre três espaços visí veis e claramente separados entre si, como são vistos em nossos cír culos concêntricos, e por isso preferimos a banda, essa cinta com uma meia torsão. Sabemos que abanda de M oebius que habitual mente manejamos - a que fazemos juntando em uma cinta a borda superior de um de seus extremos com a borda inferior do outro é uma falsa banda de M oebius porque sea cortássemos ao meio e no comprimento com uma tesoura, o que ficaria seria novamente uma cinta, superfície compelo doiscorte ladosnão e duas bordas.por Sabemos também queuma ao espaço aberto se poderia, sua vez, cortar. Esse espaço que é virtual e intangível banda é a de Moebius verdadeira.O intangível e incorpóreo espaço do corte é essencial para nossa concepção dos três gozos e da separação entre eles. Considero que o gozo do ser e o gozo do Outro (sexo), os dois gozos que estão fora da palavra, têm a mesma falsa continuidade daquela observada nafalsa bandade M oebius. É aí onde atesoura, bonito objeto para indicar a função da castração, a intromissão do fálicoproduz (caso esse se queira um modode menos esignificante mais preciso), vazio,dizer essade separação gozo intuitivo srcinário que abre as portas do gozo acessível aos sujeitos da palavra, o gozo fálico, o dos e ncantos edas decepções ilnguajeiras. Trata-se de um gozo sem corpo, fora do corpo, na linguagem, que opera uma divisão e um enfrentamento. O gozo do corpo fica agora dividido em dois, armado de direito e avesso, fora da linguagem (figurado como corte na banda de M oebius) que o partiu em umgozo do ser, anterior ao corte e um gozo do Outro, seu antípoda, sua antífona, seu além, que é secundário e inconcebível sem esse corte.resistência em con A credito ter explicado o por quê de minha ceber os três gozos com o esquema simples dos círculos concên tricos que carecia da riqueza heurística que devemos agradecer à bandade M oebius e à oposição entre a banda falsa e a verdadeira. 50. J. Granon-L afont. La topologie ordinaire de J acques Lacan. Paris: Point Hors-L igne, 1985.
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M inha proposta torna vidente e que a castração éjustamenteo corte que faz com que a substância dos dois gozos do corpo seja a mesma, mas que não são o mesmo, que são distintos sem que se possa passar do um ao outro. Há entre eles uma descontinuidade que lhes é essencial. O corpo, com sua superfície, é um, com seu direito e seu avesso. A linguagem (o Falo) é esse ser virtual que produz nele a oposição e a diferenciação dos três gozos, é esse hálito sutil que marca o impossível do reencontro com o perdido gozo do ser e o possível, mutilado, que se instaura pela intervenção da palavra. O corte da castração é completo, total, do lado homem do que o entorna pelo habil i tado si pelo órgão que representa mas de (recordemos pela funil última vez queemnão é questão deoanatomia, relação com uma representação imaginária do órgão como faltante ao desejo). O corte é incompleto nas mulheresque não tropeçam com o estorvo de um órgão que em sua imagem corporal põe barreira ao gozo como semblante de falo; é um corte não-todo, um corte que, uma vez efetuado, abre um além e remete ao significante que falta na bateria do Outro da linguagem, ao enigma da feminilidade, claro, enigma desde o ponto de vista do falo. Da heterogeneidade incomunicável dos gozos (pois dois deles são inefáveis e remetem ao S [A] faltante) resulta necessariamente a impossibilidadeno real da relação sexual. Se o Falo fosse um significante que tivesse par, se existisse o significante próprio de A mulher, a relação poderia articular-se, poderia inscrever-se; algum tipo de complementaridade seria possível. M as por faltar esse significante instaura-se um desequilíbrio que configura e delineia o gozo vinculado à castração e os dois gozos que estãoaquém um {gozo do ser)e outroalém (gozo do Outro)do corte. Em síntese: antes da palavra está o gozo do ser, depois da palavra, o gozo do Outro (sexo); entre um e outro, o gozo semiótico, o que está ligado ao falo, o da palavra que separa do corpo. J ean A llouch51 nos deu a possibilidade de restituir o texto autêntico de uma referência lacaniana que diz lindamente da existência e a diferença entre estes três gozos:
51. J . A llouch. Le sexe du maître.Paris: Exils, 2001. p. 205.
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Nada há mais ardente do que aquilo que, no discurso, faz referência ao gozo [ao gozo do ser], o discurso o toca ali sem parar, pois dali é que ele se srcina [o gozo fálico], Volta a comovê-lo, posto que tenta retornar a essa srcem. E é assim que impugna todo apaziguamento [gozo do Outro].52
As denominaçõesdos três gozos têm sido intercaladas no dito de Lacan. A credito que deva insistir em assinalar essa diferença entre os dois gozos que se situam fora da linguagem, em não assimilá-los, ainda quando - como efetivamente acontece - estejamos vulnerando com umainterpretaçã o o texto de L acan. Se não se insiste nisso, a concepção lacaniana da feminilidade faria das mulheres àseres quee somente podem ex-sistir como linguageiras e vinculadas ordem à Lei do falo. Muitas reprovações procedentes do feminismo ficariam plenamente justificadas porque a elas, como mulheres, não lhes restaria outro reduto que esse lugar impensável da Coisa, em que o silêncio se confunde com o grito, em que todas as significações se desvanecem e onde a vida cede seu lugar à morte. Seu gozo seria gozo fálico e, se assim não fosse, somente lhes restaria o silêncio das árvores e das ostras ou o grito que ninguém escuta e nada diz. Nessa concepção, não parae,opor feminino a impostura e a mascarada fálica, porhaveria um lado, outro, senão a aceitação passiva do lugar de @, deobjeto, para ofantasma de um sujeito que faria valer sobre ela um desejo essencialmente perverso. A riqueza da formulação de L acan é apreciada quando se valoriza sem prejuízos sua afirmação de que A mulher não existe. Elas, as mulheres, consideradas uma a uma, todas diferentes, carecem de universal, estão instaladas em uma relação que lhes é essencial com o Falo, sim, mas estão como não-toda(s) aí, perseguindo também, além disso, um significante impossível de articular, “algo” que não está aquém, mas sim além da palavra, S (A). Tal significante leva ou poderia levá-la (não é o caso de criar outro universal depois de havê-lo descartado) a um mundo de valores de experiência vivida que está além do imperialismo fálico 52. J. Lacan (1969). Seminário XVII, aula de 17 de fevereiro. A referência equi vocada encontra-se na edição "oficial” do mesmo seminário, p. 80.
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c seu universo de significações, segredo desses místicos e dessas místicas não são no loucos/as, dessas sutilezas da alma feminina que que não, desbaratam, dizer dose enamorados, as arrogâncias "falóforas”. T rata-se de um além cujo lema é encore e que é o direito desse avesso que é a loucura ou o avesso desse direito à loucura sem a qual todos os direitos são desprezados.
5. Freud (L acan) ou Foucault 2005. A atualização que este livro neces sita com maior urgência - acredito - é a referência ao gozo do Outro, ao gozo no fálico que está além da palavra, o que surge pela impotência do saber em abrangê-lo. N estes 15 anos (1990-2005) transcorridos desde a primeira edição de Gozo surgiu, como he rdeira dos Gay an d L esbian Studies dos anos 1980 - herdeiros, por sua vez, do grandechoque de pensamento que representou o feminismo dos anos 1970 a queer theory, que tomou e desenvolveu nos Estados Unidos o trabalho de investigação da história da antigüidade clássica que devemos a M ichel Foucault (1926-1984). A expressão intraduzível queer theoryfoi cunhada porTeresa de L auretis53exatamente em 1990 para dar conta dos múltiplos fenômenos e experiências subjetivas e das teorias correspondentes sobre as modalidade do gozo que escapam à normatividade social imposta e dominantes e heteronormativida.de. que foi batizada com o presunçoso nome de A heteronormatividade é a norma social que se apresenta como a coluna vertebral das sociedades democráticas avançadas. Essa norma não precisa ser sancionada pelo aparato jurídico. Corresponde à ideologia e aos prejuízos dos homens brancos, adultos, de classe média, definidos em sua sexual frente às mulheres, monogâmicos e centrados no orientação par heterossexual como paradigma da relação amorosa e nos valores do casamento e da família. “Pressupõe que uma relação complementar entre os sexos 53. Cf. D. Halperin.San F oucault. Cuadernos de Litoral. Córdoba (Argenti na): Edelp, 2000. p. 135-136.
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é tanto uma regra natural (tal como as coisas deveriam ser)” .54A heteronormatividade não é apenas um complexo ideológico ou, se o for, é no sentido mais radical: o de uma ideologia que configura os seres àqueles que se dirige, classificando-os e fazendo-os sentirse estranhos a si mesmos queer ( , ou seja, “raros”) quando não se ajustam ao sistema regulador. Queer são, então, todos aqueles que não se ajustam a essa norma: as mulheres, na medida em que não se assumem como “complemento” dos homens; as minorias raciais e culturais; os indigentes e sem família; os homens e as mulheres que buscam sua satisfação pessoal em relações e encontros fora dos padrões (genitais, heterossexuais); os que são objeto de segregação e desconfiança porque seu modo de gozar queer, é alien,diferente do esperado. O esperado não é aquele estatisticamente majoritário, pois em vista da diversidade queer, do temos que a maioria da população é a discriminada. Mas a ideologia oficial impõe-se pela força de um biopoder (Foucault) que é efeito do discurso dos bons gozantes e dos bons pensantes. O discurso é o instrumento transindividual que exerce sua força performativa independentemente das instâncias do sujeito, de seu acordo ou de seu desejo. O biopoder se manifesta criando e distribuindo rótulos de identidade que pretender dizer, a partir da norma, o que o outro é em relação com o que deveria ser. Os sistemas classificatórios (a psicopatologia em pimeiro lugar, desde fins do século XIX) são poderosos discursos criadores de identidades anormais. O fascinante processo de produção do queer foi estudado exaustivamente por M ichel Foucault; ele abriu novas frentes para um saber renovador e crítico. Foucault não chegou a usar a palavra queercom o sentido que ela tomou anos depois de sua morte e que prevalece até hoje. Seus cursos noCollège de F rance55 são investigaçõesexemplares, 54. T. Dean. Lacan and queer theory. In: J ean-M. Rabaté (éd.).The Cambridge Companion to Lacan.Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2003. p. 238. 55. M. Foucault.Le pouvoir psychiatrique (1973-1973),Les anormaux( 1973 1975),Il faut défendre la société, (1975-1976),Naissance de la biopolitique (1978-1979) eL ’herméneutique du sujet (1981-1982). Paris: Gallimard, Seuil, 2003, 1999, 1997, 2004 e 2001. respectivamente. O conjunto cons titui uma obra unitária e transcendente, cujo interesse para a psicanálise é
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continuadas atualmente por muitos pensadores reunidos sob a rubrica daqueer theory. A hipótese básica dessa teoria é que a identidade sexual e a identidadede gênero, da mesmaforma que todas aque las identidades que recebem sua denominação a partir da ideologia dominante, são total ou parcialmente construções sociais que classificam e segregam os “diferentes”. A conseqüência política desses estudos críticos é o de um desafio ao biopoder e suas pretensões dogmáticas de limitar os caminhos do gozo do Outro assim definido. Em termos lacanianos que o Outro é aquele que pretende gozar além dapoderíamos unificação dizer que se queria monopolítica por parte do significante fálico. O gozo do Outro é o de quem se distancia da norma; é um gozo suspeito, a que deveria limitar e submeter àL ei. A L ei tem vocação de perversão enquanto nã o reconhece outro gozo além do que vem à luz sob o sol do órgão erétil do homem, do falo como sem blante. A ordem heteronormativa seria: “todos ao redor do falo e de seu substituto, o nome-do-Pai”. “Fora da igreja não há salvação” se dizia antes; “fora do nome-doPai” tampouco, dir-se-ia hoje com um tapete falso e arcaicamente lacaniano. A teoria queer está ameaçada pelo seu próprio êxito.As publicações se multiplicam, seus expositores são convidados para desenvolver suas posições em todos os fóruns, as livrarias têm prateleiras especiais paraesses livros, a academia - longe de isolála - oferece-lhe um lugar proeminente. Seu impulso irreverente se desvanece pelo surgimento de uma nova normatividade e pela cooptação na distribuição do poder, pelo menos no intelectual. Ninguém ou quase ninguém se faz defensor aberto do pensamento straight, que passou a ser politicamente incorreto. Não se terminou com o sexismo, com o racismo nem com a homofobia, mas se conseguiu que esses devem ser ocultados.closet O é agora o de quem se trai a si próprio com lapsos c sintomas que delatam sua
evidente, ainda que as considerações feitas pelo autor nem sempre sejam "justas”. Cf. J. Derrida, “Être juste avec Freud”, inP enser la foli e. Essais sitr Micliel Foucault. Paris: Galilée, 1992, p. 139-195, um texto que subli nha ainjustiça na avaliação freudiana de Foucault.
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resistência a este conjunto de minoria que continua sendo o objeto de sua repulsa. Não é que os bem pensantes eos bem gozantes tenham ram repriamsupri ido -mno psicana aprende i-lassentido do discurso. 56lítico - suas perdas; é que Desde o princípio os impulsionadores desse movimento teórico e político estavam divididos quanto ao lugar que deveriam dar, dentro de suas concepções, ao pensamento psicanalítico em geral e ao lacaniano em particular. M uitos, particularmente nos Estados Unidos, consideram que, além das discutíveis afirmações de F reud e de L acan, eles não poderiam prescindir do aporte psicanalítico e de valorizar a utilidade que a teoria e a prática da psicanálise sucesso de seus objetivos. Por outro lado, assim comotêm nospara anoso 1970 muitas pioneiras do feminismo chauvinist pigpromotor das consideraram que Freud era male o desgraças das mulheres, existem vários autores que se lançaram e ainda se lançam contra Lacan como seele tivesse sido umevangélico da heteronormatividade, alguém que pretendia condenar as perversões em nome de princípios patriarcais e discriminatórios. Estes últimos são os que insistem em se opor a Foucault contra um L acan a quem satanizam como o adversário. A luta em torno da queer theoryé apaixonante. psicanálise no seio da Gostaria de poder dar conta das posições em jogo. Entre elas à teoria e à prática da psicanálise o mais recente e decidido opositor é Didier Eribon, que dá título ao nosso último item deste capítulo: T emos que eleger: é Freud (L acan) ou Foucault. É Foucault ou a psicanálise. Creio que toda a grandeza do projeto foucaultiano consiste precisamente no fato de que ele procura destruir a teoria psicanalítica do psiquismo individual para oporlhe uma teoria da individuação como efeito do corpo submetido, do corpo di sci pl inado.57
56. Assim, o presidente Fox, do M éxico, pôde declarar, em maio de 2005, que “os mexicanos nos Estados Unidos aceitam trabalhos que nem sequer os negros querenv'. O escândalo assumiu proporções internacionais, e ape sar disso o arrogante “estadista” se negou a pedir as desculpas que se lhe exigiam e se limitou a dizer que havia sido mal interpretado. 57. D. Eribon. Êchapper à la psyclianalyse. Paris: Léo Scheer, 2005. p. 86.
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Para Eribon, biógrafo e amigo íntimo de Foucault, “o psiquismo do qual a psicanálise se ocupa é um produto da sociedade disciplinária e a psicanálise é uma engrenagem da tecnologia disciplinária” (ibid.). Esta posição extrema é vista com simpatia também em certos círculos lacanianos. Para J ean Allouch: ... os psicanalistas não denunciam os erros; calam-se e se espantam, fazendo como se Foucault nos os houvesse comprometido, como se ele não houvesse articulado publicamente uma crítica razoável da psicanálise, algo que equivaleria a uma espécie de oração fúnebre [reprimenda] para a psi canálise.5*1
Se a psicanálise é o que Foucault disse - continua A llouch está acabada e isso “inclusive desde antes da morte de L acan” (ibid.). A ssim, reiterando umafrase anterior, acrescenta esta fórmula cortante : “A psicanálise será foucaultiana ou deixará de ser; isto quer dizer que temos a obrigação de fazer com queL acan se reúnacom Foucault” (idem, p. 179). Mais ainda: “Foucault nos precedeu e nós não temos nada melhor a fazer, com Lacan, do que alcançá-lo” (idem, p. 173). V emos, então, a psicanáli se se enfrentando com quem que r destruí-la e tendo que proteger-se de quem quer salvá-la seguindo a ordem de acompanhar Foucault. Sustentaremos nas páginas seguintes que todos eles partem de um erro de perspectiva e de um desconhecimento de que a psicanálise, tanto em Freud como em L acan, é o fundamento irrenunciável e o antecedente direto do qual a teoriaqueer deriva como uma conseqüência lógica e necessária. Também desconhecem - no sentido da recusa da realidade - o que falta em Foucault, o “esforço mais” que havia permitido a ele romper, radicalmente, com o sistema heteronormativo. Como disse Tim Dean: Pode indicar que, ainda que a teoria queer remeta sua genealogia intelectual a M ichel Foucault, ela, na verdade, começa com Freud, especificamente com suas teorias da perversidade polimorfa, a sexualidade infantil e o inconsciente. O “retorno a F reud” de L acan impli cou redescobri r tudo aquil o que é mai s 58. J . A llouch. Le sexe du maître,p. 169.
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Gozo estranho e refr atári o - tudo aqui l o que co nti nua sendo alheio a nossos modos normais e de sentido comum no pensamento -
acerca da a subjetividade humana. desde perspe ctiv anglo ame ri cana, f az a Isto, psi can ál i se uma de L aca n parecer bastante queer (...) A psicanálise lacaniana pode aportar munições que contribuem para a crítica queer da heteronormativi dade.59
Essa críticaqueercomeça, historicamente, com a extensa nota que F reud acrescenta aos “T rês ensaios sobre a teoria da sexualidade” em 1915: A investigação psicanalítica opõe-se terminantemente à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular (...) Sabe quetodos os homens são capazes de eleger um objeto de seu próprio sexo e que de fato (...) A psicanálise o tenham consumado no inconsciente considera melhor que o srcinário a partir do qual logo se desenvolvem, por restrição para um ou outro lado, tanto o tipo normal como o invertido é a independência da nomeação de objeto a respeito do sexo deste último, a liberdade de dispor de objetos tanto masculinos quanto femininos, tal como se pode observar primitivos épocas préhistóricas.naNoinfância, sentido em da estados psicanálise, então, e em nem sequer o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é algo óbvio, mas um problema que requer esclarecimento.60 (Gri fos meus)
Freud sabia do que falava. Ninguém ignora que essa posição teórica é o resultado da análises de suas próprias tendências e dos saldos de sua relação com Fliess. Não cansarei o leitor com citações que possivelmente já sejam conhecidas. Sabemos que quando se perguntava a Freud sobre a possibilidade de transformar a orientação sexual de alguém ele dizia que era muito difícil, mediante a psicanálise, alguém passar da homossexualidade para a heterossexualidade e vice-versa. Na conhecida carta de193661 à mãe norteamericana preocupada com 59. T. Dean. Lacan and queer theory, p. 238. 60. S. Freud (1905).Obras completas,v. VII, p. 132-133. 61. S. Freud.E pistolado (1891-1939). Barcelona: Plaza y J anés. 1970. v. II. p. 170.
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,i homossexualidade de seu filho, depois de censurá-la por se negar ;i chamar a coisas pelo seu nome, dizia-lhe sem rodeio que não havia razões para se envergonhar dessa condição que não supõe vício nem degradação alguma e que não se pode classificá-la como enfermidade, mas como uma variante da função sexual. E certo que, como no traçado sobre a psicanálise leiga, a maioria dos psicanalistas seguiu uma política contrária às posições de Freud e sabe-se que sua filha A nna, em 1956, impediu que uma jornalista inglesa reproduzisse essa carta no The Observer. Todavia há, em muitos países, psicanalistas que continuam pensando que a homossexualidade é uma enfermidade e que se deveria proibir os gays de exercer a psicanálise. L acan, que é censurado por haver sustentado em seus seminários I (1953) e VIII (1960) que a homossexualidade era uma modalidade da perversão, foi um admirador da obra de Foucault e alguém que nunca fez, em sua trajetória institucional, outra coisa que se opor a qualquer intenção de segregação dos psicanalistas em função de suas preferências sexuais. A palavra “perversão”jamais conteve, para ele, uma qualificação moralizante e foi pensada sempre como uma constatação clínica que não devia se manchar com valorizações que vulnerassem a neutralidade do analista. Lacan esteve muito atento aos progressos conseguidos pelo feminismo na luta pela igualdade e é evidente que suas teses sobre a feminilidade, apresentada no Seminário Encore (1972-1973), são sua resposta às críticas que se faziam às teses freudianas desde o M ovimento de L iberação Feminina. Atrevo-me a dizer que suas concepções sobre a repartição dos falantes entre homens e mulheres e suas teses sobre o gozo suplementar são a contribuição máxima da psicanálise à gozologia (erotologia) feminina na história da humanidade. A partir delas o conceito de perversão mudou de signo e por isso podemos sustentar que a perversão é a crença de que existe apenas um gozo, o fálico, ao mesmo tempo em que desmente a possibilidade de um gozo Outro. Igual a Freud, cabe assinalar que a posição nítida do mestre encontrou resistências entre seus mais próximos colaboradores. A inda hoje é possível ler que alguns deseus seguidores- e não dos
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menos importantes - como é o caso de Charles M elman/’2 em que pese certas denegações incidentais, argumentam sobre a homossexualidade desde tomadas de posição inequivocamente homofóbicas: E verdade que o homossexual não elegeu seu destino [custa-nos admiti-lo e, ainda assim, que triste destino /] e que as mesmas forças que em outros conduzem à heterossexualidade revelam neles, às vezes para profunda surpresa do sujeito e sem que possa evitá-lo [ tal como, claro, ele mesmo gostaria de ter podido escolher], que ele estava do outro l ado (sic). A penas a religião pode condenar a desonra ou a exclusão [não nós, os psicanalistas, que estamos excluídos desse privilégio]. Dito isto, parece possível formular um juízo ético, que partiria menos da necessidade geral de segurança narcisística induzida por uma sexualidade diferente e que formularíamos a partir desta pergunta: a homossexualidade dá ao sujeito uma maior liberdade a respeito desta ordem da linguagem do que pelo viés do inconsciente nos determina? [quem falou de maior ou menor liberdade ante a linguagem em função das preferências sexuais?]. A penas podese responder negativamente. A perversão [assimilada, se com uma valoração pejorativa, à condição de homossexual] é um sistema de constrangimentos e de dependências ainda mais rígido do que aquele que ela impugna pela sua insuficiência, seu caráter prosaico ou sua estupidez [Deste lado somos isso, mas “do outro lado” nos ganham], É por isso que não se pode aceitar que a perversão homossexual seja portadora de emancipação; parece que uma invasão pela ordem fálica tem incidências essencialmente conservadoras, mesmo quando se oponha ao mal gosto estabelecido.
Estas são as linhas finais de um grande artigo sobre a homossexualidade desde uma perspectiva que se pretende rigorosamente clínica e lacaniana. O autor não deixa de lamentar que na homossexualidade masculina como na feminina encontra-se uma sentença inumana do pai em todas as figuras que pudessem representá-lo; ódio, chega a dizer, que comumente é transmitido por 62. Ch. Melman. Dictionnaire de la psychanalyse.Verbete “Homosexualité”. Paris: Albin Michel, 1997. p. 276-282.
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uma mãe que encontra no filho a forma de vingar-se por sua castração. Reproduzi fiel e amplamente as opiniões de M elman paradeixar claro que as críticas de Foucault à psicanálise não são infundadas, mas não podem se referir à psicanálise em geral, mas a certos paladinos da norma que se distanciam explicitamente do discuro de Freud e L acan: a delfina efetiva no primeiro caso, Anna Freud, e o delfín frustrado no segundo, Charles M elman. Não obstante, isso é 0 anedótico. O que verdadeiramente importa é a contribuição da psicanálise ao tema e a política que a prática e a teoria da psicanálise induzem. Nesse sentido é que abraço a tese citada de Tim Dean sobre o caráter pioneiro do pensamento freudolacaniano para uma autêntica teoria queer. E não é que a psicanálise deva correr atrás de Foucault com a esperança de alcançá-lo (A llouch), mas que é Foucault quem, ao renegar os desenvolvimentos de Freud e L acan, cai em formulações ambíguas que turvam os contundentes resultados de suas ricas investigações arqueológicas e históricas. A que me refiro? À ignorância nada inocent e - de muitas coisas Foucault poderia ser acusado, mas jamais de ignorância e ingenuidade - e ao silêncio sobre apulsão de morte em Freud e do conceito de gozo emL acan, tudo si so que, segundo demonstramos no capítulo 1deste livro, obrigava a reescrever a história da psicanálise para nela inscrever quedas que dão sentido aos passos prévios do descobrimento freudiano. Iniciando por Freud, assinalamos, além disso: a) suas já citadas idéias sobre a homossexualidade, totalmente contrárias a qualquer heteronormatividade; b) a afirmação da perversão polimorfa como berço da subjetividade que subjaz em todos os seres humanos ao longo de toda sua vida; c) a noção de que todas as pulsões são parciais e aspiram satisfação não encontram e quedeimpele sempre adiante na uma busca de novasque metas; d) a superação toda perspectiva biológica ou biologizante para entender a sexualidade humana; e) a afirmação do caráter transgressivo da pulsão que não se ajusta com as metas do princípio do prazer, mas que as prejudicam num percurso que leva o sujeito “além”; f) a tese de que essa pulsão de morte é a essência da pulsão que sempre está mais ou menos ligada às pulsões de vida; g) o caráter repetitivo da
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insistência pulsional; e h) a (condenação) de toda possibilidade de complementaridade através de uma genitalidade alcançada (sempre alvo dos sarcasmos de L acan); enfim, tudo na teoria de F reud conspira contra uma leitura normativae defende a essência da psicanálise: escutar o que é dito em cada análise, em cada minuto do discurso do paciente, renunciando e contestando todo saber prévio. A teoria das pulsões e de sua especificidade transgressiva, repetitiva, masoquista ao máximo, é a base para começar a pensar uma teoria queer, contrária à assunção de identidades provenientes do Outro. A teoria queer éque está ameaçada pelo desconhecimento da psicanálise quando acredita que uma identidade gay ou lésbica ou sadomasoquista ou que quer que seja, pode ser um impedimento contra a heteronormatividade, sendo que essas identidades procedem de classificações e juízos elaborados pelo Outro. Não é invertendo o signo da discriminação que ela é derrotada. A investigação psicanalítica é uma ferramenta essencial para a desconstrução das categorias normativas. Por que? Porque permite revelar em cada caso a singularidade do desejo, base para a formação posterior de movimentos comunitários onde se juntam, sem se confundir, os sujeitos rodeados por uma taxonomia que sempre é um efeito da hostilidade do outro, hostilidade que se disfarça em objetividade e que pretende fazer parecer o que é diferente como se fosse disforme, cambembe, digno de ser corrigido. E do lado de L acan? Lacan aportou, além de uma releitura desmistificadora e anticonvencional de Freud, os conceitos que podem servir de base para uma teoria irrecuperável pelo discurso oficial. Concretamente, a impugnação das metas de “maturidade genital” que primavam no discurso analítico quando ele iniciou seu ensino e - o mais importante, aquilo no qual insistiremos - a promoção do conceito de gozo ao lugar central da reflexão analítica. O gozo como - insistimos - o pólo oposto ao desejo. Entre os dois, entre gozo e desejo é que se joga a totalidade da experiência subjetiva. Em ambos os casos trata-se de um sujeito imerso nas redes da linguagem, cindido e separado do objeto que é causa de seu desejo e evocador do gozo proibido. Como conseqüência dessa onipresença da dimensão gozanteda existência é que se sucedem as
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teses lacanianas que servem de obstáculo intransponível para o imperialismo fálico que marca nossa cultura e impele os sujeitos a viverem sob as grades que canalizam o gozo pelas valetas que o poder cava. O monolitismo fálico nas fórmulas lacanianas da sexuação é todo o contrário de uma prostração ante os altares de Príapo. Desse monolito surge a tese de que a mulher é não-toda com relação a ele (Ele) e que ele nada pode a não ser sonhar com organizar o mundo sob sua égide, que ele é, por sua vez, não-todo porque elas (não há Ela) existem e portam a mensagem de um gozo suplementar, irredutível à linguagem, sentido mas ainexplicável nos imperialismo arrogante que conduziu voz cantante natermos história.doDaí que L acan termine falando da perversão, em uma linha coerentecom a freudiana, em termos de seu valor civilizatório e inovador, sem que isso implique criar uma nova ética de signo inverso à que dominou o discurso oficial, o do senhor. Por isso é que a conclusão de Lacan, conseqüência de sua invençãodo objeto de quea relação sexual não existe, é a base para toda teoria queer. Não há qualquer relação normal ou natural entre os sexos. Seus gozos não são complementares e o único acordo possível entre eles a partir reconhecimento heretogeneidade que não écomeça A s diferenças da nem biológica nem do natural. culturais existem - que ninguém duvide disso - e elas são suscetíveis de desconstrução.M as a diferença nos dois campos “a pa rte homem e a parte mulher dos seresalante f s”63não é uma ni vençãoda cultura - sem que por isso se remeta a uma diferença biológica não é suscetível de desconstrução,64não é, como alguns pretendem, “um binarismo que é uma produção sexista”,65 uma construção que poderia ser destruída na medida em que foi fabricada pela cultura. Na perspectiva da psicanálise a contestação da divisão sexual em homens e mulheres tem um nome: desmentidada diferença entre os sexos (“já o sei, mas é assim”). 63. J . Lacan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 73-74. 64. J. Copjec. Read my Desire. Lacan Against ihe Historicists.Cambridge (M ass): M I T Press, 1994. Especialmente o notável capítulo 8 (p. 201 236) “Sex and the euthanasia of Reason”. 65. D. Halperin.San F oucault, p. 67.
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O trabalho político ainda a ser realizado nesse campo é imenso e existem multidões que militam nesse sentido e conseguem diariamente vitórias: igualdade jurídica; não discriminação das minorias sexuais sequer pela igreja ou exército; direitos à reprodução; casais e casamentos homossexuais reconhecidos pela lei; famílias monoparentais; mudanças na legislação sobre o nome dos filhos que antes impunha o patronímico; paridade nos postos de poder entre closet homens e mulheres; abolição da cultura do para os que vivem fora danorma hetero etc. A psicanálise não pode senão aplaudir esse movimento contrário aos ideais sociais milenares de adaptação a normas repressivas; muitos são os que encontraram em sua própria análise o caminho para se manifestar abertamente nesse sentido. M as a exigência da psicanálise é mais radical e vai além dessas conquistas necessárias que estão fortemente reconhecidas na trajetória individual e teórica de Foucault como historiador e desconstrutor das categorias segregacionistas, como denunciante dos abusos do biopoder. E justamente esse o valor da noção de gozo que Foucault pretende desconhecer. Vejamos um parágrafo muito conhecido e chave em nossa argumentação: A sexualidade é uma figura história muito real, e ela mesma suscitou, como elemento especulativo requerido pelo seu f unc i onamento , a noção de sexo. N ão se deve acredi tar que dizendo sim ao sexo se diga não ao poder; segue-se, pelo contrário, o fio do dispositivo de sexualidade. Se mediante uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade se quer fazer valer, contra o poder, os corpos, os prazeres, os saberes em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência, convém primeiro libertar-se da instância do sexo. Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres.66 (Gri fos meus)
O texto deFoucault é de 1976. Lembramos queé de 1958 a citação do seminário de L acan que declaramos como at a de batismo do gozo, aquela onde sedizia que até então o ensino de L acan havia 66. M. Foucault. H istoria de la sexualidad. I - La voluntad de saber. Méxi co: Siglo V eintiuno, 1977. p. 191.
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girado em torno do desejo, mas que a partir desse momento deveria ser levado em consideração o “pólo oposto” que é o gozo. Já sabemos que a partir de então o ensino lacaniano girou em torno da contraposição do gozo e o desejo e que encontrou seu ponto decisivo de inflexão quando, em 1962, no seminário sobre a angústia, introduziu a noção de objeto@ com mais de gozo.O “pólo oposto” implica que o desejo foi considerado a partir daí uma barreira no caminho do gozo. Por essarazão nossaobra desde 1990 tomava a formulação de L acan de 1960, quando afirmava queapenas o amor pode fazer com que o gozo condescenda ao desejo, e a invertia na última linha que també podepode rá ser fazer, lida nesta edição - ao postular que- apenas om amor por nova sua vez, que o desejo condescenda ao gozo. Pois é a instância analítica que permite levar o sujeito a confrontar-se com seu desejo, momento em que a experiênca deverá ser interrompida para permitir ao sujeito procurar os caminhos pelos quais poderá transitar para que seu desejo abra caminho ao gozo. Isto não é Foucault contra-atacando em nome “dos corpos e dos prazeres” ; isto é L acan trabalhando bravame nte nessa direção durante mais de vinte anos (1958-1981). O problema é que Foucault chega a problematizar o sexo como caminho ao gozo e isso o compromete pelas vias de uma nova ética, desconhecida pela maioria dos foucaultianos, mas que não passou despercebida pelos leitores mais lúcidos: uma ética comprometida com o ascetismo e com a desconfiança, quando não à refutação da sexualidade (“o dispositivo da...”) considerada, por sua vez, mecanismo do biopoder. É certo que não devem ser entendidas ao pé da letra as afir mações de Foucault que parecem dizer o contrário do que ele quer realmente dizer. Mas como sabê-lo? Estaremos dispostos a admitir com ele que a sexualidade (“o dispositivo de...”) é repressiva, des pótica, destinada a distribuir aos indivíduos submetendo-os a hierarquias? Não achamos suspeita a promoção das “artes da exis tência”,67 pelas quais devemos entender “as práticas sensatas e voluntárias por meio das quais os homens não apenas fixam regras 67. M. Foucault. Historia de la sexualidad. II - El uso de los placeres. M éxi co: Siglo Veintiuno, 1986. p. 313-314.
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de conduta, mas buscam transformar-se a si próprios, modificarse em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que apresenta certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo”? Não são estas artes, estas technologies ofthe self .,68este “cuidado de si”, esta “estética da existência”, uma continuação e uma culminação das aspirações do senhor que não reconhece a servidão necessária im posta pelas pulsões e por seu caráter linguageiro? Não caem sobre os ombros dos sujeitos o fardo de novos ideais que conservam gatopardianamente aquilo que pretendem mudar? Quando ouvimos um de seus mais autorizados continuadores, Paul Veyne, dizendo: Podemos adivinhar o que resulta do diagnóstico [de Foucault]: o eu (moi), que toma a si mesmo como uma obra a realizar, podia sustentar uma moral não baseada na tradição ou na razão; como artista de si mesmo, gozaria dessa autonomia da qual a modernidade j á não pode presci ndir (...) J á não é necessária a revolução para começar a nos atualizarmos: o eu é a nova possibi lidade estratégica.69 (grifos de P. V eyne)
não nos estremecemos pensando que voltamos ao reino da ilusão de um eu autônomo, dono de si, superado etc.? E assim sucessivamen te com ênfase na ascese, a insistência em “resistir à sexualidade”, a ordem de “liberar-se da instância do sexo”, a referência à dessexualização (claro, entendida como desgenitalização)etc. As citações seriam supérfluas. Não em vão temos ouvido Jean A llouch susten tar que o mais importante filósofo no ensino de L acan era... Plotino, depois de dar um seminário na cidade do México sobre o tema do amor e no qual a palavra “gozo”não foi pronunciada uma única vez.7(1 68. L. Martin (ed.).Technologies of the Self. A Seminar with Michel F oucault. Amherst: M assachus ettsFoucault Univ. Press, 1988. Critique, Paris, n. 471-472, 69. Paul Veyne. L e dernier et sa morale. p. 939, 1986. 70. A o interrogá-lo em uma cordial conversa sobre essa exclusão, respondeugozo porque “os millerianos” haviam se apo nos que preferia não falar do derado da palavra em questão. Curioso critério epistemológico! Para não Le sexe du maitre ser injusto com nosso amigo, digamos que no seu livro mais (op. cit.) há uma sábia e certeira exposição sobre o objeto @ como de gozo e do caráter masoquista de todo gozo (p. 205-240) que comparti lham com o sentido e com a letra de nossas formulações de 19 90.
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Talvez agora possamos compreender o título deste item. É Freud (L acan) ou Foucault pela insistência deste último em bagunçar os conceitos fundamentais da psicanálise (transferência, pulsão, inconsciente e repetição; vale a pena recordar) para reimplantar novos ideais, para promover uma nova ética que pretende superar a antiga que levou à liberação da sexualidade dos traiçoeiros gabinetes da ciência oficial (Ferenczi, op. cil.) e a um trabalho com intenção de fazer com que o sujeito procure caminhos pelos quais o desejo pode condescender ao gozo. Tampouco cabe fechar os olhos ante o grande escotoma de Foucault tem as uma semicegueira: o gozo feminino. que Na obra do dimensões historiador de e desconstrutor os prazeres aparecem como indiferenciados e as referências concretas se dirigem sempre ao prazer dos homens, que eles podem alcançar com História homens, mulheres ou adolescentes. Um capítulo inteiro da da sexualidade 71 intitula-se “A mulher”, sem qualquer referência à sexualidade feminina. Todo discurso gira em torno do casamento e do lugar que a mulher ocupa como guardiã do lar do homem, obrigada a prestar-lhe fidelidade: “O adultério era juridicamente condenado e moralmente censurado pelo entendimento da injustiça que o homem fazia àquele cuja mulher seduzia” (idem, p. 159). Que ninguém espere encontrar uma linha sobre a mulher como sujeito do “prazer”, muito menos como gozante. Raras vezes aparecem na obra escrita e nas múltiplas entrevistas que concedeu, referências explícitas aos movimentos intelectuais e políticos que agitavam a sociedade nos últimos 15 anos da vida de M ichel Foucault. Por que? Por ser a categoria de feminilidade uma invenção sexista? Para evitar cair nas armadilhas do dispositivo da sexualidade sobrevalorizando o sexo como fonte de “prazer” (já que não se falava de gozo)? Por uma negativa geral em diferenciar, já que a distinção seria cúmplice da segregação? Inclino-me a pensar “mal”, a acreditar que Foucault não podia admitir outro prazer sexual que o masculino, homo ou hetero; isso é secundário. Não sei o porquê deste desconhecimento; nego-me a fazer psicanálise aplicada. Seu hagiógrafo disse: 71. M. Foucault.Historia de la sexuatidad. Hl- La inquietud de sí. México: Siglo Veintiuno, 1990. Gap. V, “L a mujer”, p. 137-193.
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Foucault não era um monstro antifeminista como o figuram seus detratores. Pelo contrário, trabalhava com muito entusias mo com suas colegas mulheres, apoiava o surgimento de organizações políticas de grupos marginais, incluindo o das mu lheres [até isso!] e tinha a intenção de queLiberation lhe desse voz a várias tendências emergentes dentro do movimento femi nista. T ambém parti ci pou, em menor pr oporç ão, na luta pelo direito ao aborto na F rança.72
Falta sublinhar a denegação implícita em cada um dos enunciados. E é suficiente ler as várias (três) biografias de Foucault para do sobre despojamento de suas dos referências o feminismo e seusaber silêncio a especificidade prazeressobre femininos e das práticas eróticas do sexo que não o seu. Esta crítica a Foucault nunca poderia desconhecer a importância capital de seus estudos antes e depois História da da sexualidade.Resumiremos nossas teses unindo-nos às conclusões do já citado artigo de Tim Dean:7-1o conceito lacaniano de gozo é uma ferramenta necessária para qualquer propósito de modificar o campo epistemológico da vida dos seres que falam, de suas vidas como realidades corporais. Infelizmente a maneira como Foucault abordou o tema “dos prazeres”- desconhecendo sua diferença e oposição ao gozo - levou muitos teóricos queer e também alguns psicanalistas a ver com otimismo o prazer, como se ele não estivesse emaranhado pelo seu “além” e pudesse se expandir sem encontrar outras barreiras que não as culturais àquelas que haveria de desconstruir. Nessa utopia foucaultiana pareceria que os obstáculos à felicidade sexual dos corpos fossem um simples plano mal concebido proveniente do exterior; como se não existissem barreiras internaspara o prazer, inerente à montagem linguageira da pulsão. E absolutamente ingênuo supor que o sexo possa chegar a ser apenas uma questão de prazer e afirmação de si, de cuidado e de domínio, no lugar de ser o ponto onde necessariamente um se encontra com
72. D. Halperin. San F oucault, p. 182-183.
73. T. Dean. L acan and queer theory, p. 251.
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a negatividade e com o gozo como uma busca, com indícios masoquistas, de um objeto do dese j o que seescapa. Isso é o que Freud entendeu com a idéia que descartam Foucault e a maioria dos que se inspiram nele: a pulsão de morte. Não, não devemos alcançar um Foucault que está adiante da psicanálise. Devemos entender que é a teoriaqueer que será ou não lacaniana. O trabalho ainda a ser realizado não é excessivo: basta incorporar a categoria psicanalítica de gozo como além do prazer; é o que permitirá à teoria passar da impotência à impossibilidade. O preço é a renúncia ao messianismo e à soteriologia.
IV
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1. O gozo está cifrado A bordarei, aqui, um momento crucial, de virada, no ensino de L acan, um momento que requer um trabalho especial para elucidar os antecedentes que têm em sua produção e para extrair as conseqüências que acarreta para a prática da análise. Refiro-me à expressão que figura no texto Televisão: O que Freud articula como processo primário no incons ciente - isto é meu, mas quem procurar encontrará não é algo que se cifra, mas que se decifra. Eu digo: o próprio gozo. Neste caso ele não constitui energia e não poderia se inscrever como tal.1
A proposição étaxativa e definitiva. É tão imponente o queela mobiliza e desloca na teoria que o comentário do texto obriga a uma releitura do ensino anterior de L acan e a uma reflexão do texto freudiano em seu conjunto. Esta tese condensa e concretiza uma nova concepção teórica da psicanálise, solidária com as demais modificações que, na mesma época, se apreciam na sempre inquieta, inquietante, revisão lacaniana de Freud. Que me perdoem a ênfase na literalidade e o afã exegético limitante na repetição: o que está cifrado é o gozo, é por isso que 1. J. L acan (1970),Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001, p. 522.
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pode ser decifrado. Quem o decifraria? Um bom decifrador: o processo primário (no singular?) articulado por Freud, ou seja, o par da condensação e deslocamento. É uma expressão diáfana, não se presta a mal-entendidos: o processo primário, o inconsciente, não é cifra, não é ocultação, é começo de desvelado aletheia ( ). Ele é agora e sempre deciframento, passagem do cifrado, da letra, do escrito, do codicilo, da partitura, para outro terreno, o da palavra, o do discurso. A ponta para um outro que lhe outorgará uma significação, que o incluirá nas redes do sentido, possibilitará que seja imaginarizado, relacionado com um eu do enunciado. Indica-se assim uma passagem do indizível [S (A )] para a articulação significante [s (A )]. A ssim, o processo primário serve para a passagem do gozo ao discurso. Em outras palavras, o inconsciente freudiano, que opera por condensação e deslocamento, é o processo pelo qual o gozo, cifrado, é decifrado e transladado para o vínculo social, para a palavra articulada e dirigida a alguém, pronta a carregar-se de sentido em quem escuta. Pronta a mal-entendido. O gozo é assim transplantado, exilado do corpo para a lingua gem: “Fazer passar o gozo para o inconsciente, ou seja, para a con tabilidade, é com efeito um maldito sacré) ( deslocamento”.2Valham as redundâncias: o inconsciente não é o lugar srcinário do gozo que é gozo do corpo. É desde esta pátria que o gozo deve tomar o ca minho do exílio e passar a habitar no discurso e recuperar-se nele. Retorno impossível e eterno retorno. O sujeito constituir-se-á no ostracismo, indo do Um originário ao Outro da palavra. Já não ha verá para L acan espaço no qual sonhar com “a pa lavra plena e a palavra vazia na realização psicanalítica do sujeito”, título do primeiro item do discurso deRoma.3As palavras faltarão daqui em diante para que a verdade possa se r toda dita. Verdade do Um, gozo, e ver dade do Outro da linguagem e da cultura, saber absoluto, as duas esquartejando-se reciprocamente. Entre ambas, o sujeito da psica nálise, partido, barrado, varrido por sua dupla pertinência. A experiência da psicanálise tem como ponto de partida a palavra, a mansão do dito (a referência a Heidegger é óbvia), um 2. Idem, ibidem, p. 420. 3. J. L acan (1953). Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 247. Em espanhol, Escritos 1. México: Siglo XX I , 1984, p. 236.
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‘deciframento dedit-mensionsignificante pura”.4Esse é o campo fenomênico reconhecido desde um começo como operador do primeiro retorno deL acan a Freud, ao terreno da“verbali zação”. É neste campo que o criador da psicanálise tropeça com um motor invisível da articulação e do jogo significante, de um “algo” inédito que banha a palavra e se manifesta como re-torsões da própria articulação palavreira, “tecido de equívocos, de metáforas, de metonímias”.5Freud lhe dá um nome mítico, libido e L acan outro nome igualmente mítico: lâmina(lamelle). A palavra de Freud perde algo de seu poder evocador em português, confome já dissemos no primeiro capítulo: “libido” é um vocábulo que pede ser pensado em uma língua cm que o amor se diz Liebe. E o mito freudiano. O de L acan éo da emanação de uma baba que sedesprende do orpo c e recobre o campo vital de um sujeito. As palavras giram em torno desta coisa inconcebível “que Freud supõe no limite dos processos primários”6(aqui sim no plural) e que nada mais é do que o próprio gozo. A articulação significante, o trabalho do inconsciente, bordeja, delimita, des-linda (?!) esse gozo que estava cifrado, ignorado, sepultado em um corpo exterior à palavra. O gozo subjacente, substancial, suposto pela experiência analítica de Freud em diante. A decifrar. Gozo do exílio e da nostalgia pela maldição (necessária) de habitar na linguagem, fora do paraíso. Esse gozo sem o qual seria inútil o universo,7 mas que não se alcança, e sim se evoca, se circunscreve, se deslinda, se convoca, mantém-se a uma distância prudente por meio de metáforas que prendem ao sentido e de metonímias que o postergam. Pois sim, a relação da palavra com o gozo é o que faz da psicanálise uma ética do bem dizer. Um deciframento e um maldito deslocamento do Um ao Outro. Do gozo ao desejo que é, como sempre, desejo do Outro. E que, também comosempre, como sempre em Lacan, é falta a ser, nostalgia
4. 5. 6. 7.
J. L acan (1970). A. E., p. 515. Idem, ibidem. Idem, ibidem. J. L acan (1960). Écrits, p. 819. Em espanhol,Escritos 2, México: Siglo X X I, 1984. p. 800.
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de um passado mítico a ser recuperado em um futuro não menos ilusório, mediante o fantasma vivido no presente. O inconsciente é, então, um dizer que se diz (enunciação) a partir daquilo que do gozo se inscreveu. Inscrição de uma escritura quesuporta um a e muitas leituras. O gozo se adere no dizer queo decifra. Mas o sujeito não sabe e não quer saber nada de tal transcrição. Com as palavras de 1973, “o inconsciente não é que o ser pense (...) é que o ser, falando, goze e não queira saber nada mais sobre isso”. Nesse dizer, o gozo “consiste (...) nos desfiladeiros lógicos”8pelos quais o discurso atravessa.9Os processos primários não realizam o desejo (como poderiam, se seu resultado é alucinatório?), mas satisfazem um sujeito que o ignora, quando utiliza recursos que são os de sua alíngua aí onde pensa que obedece à língua dos lingüistas e dos gramáticos. Cada um com seu modo peculiar de esvaziar os tesouros de alíngua srcinária, linguageira, lingüistéril. E aesse modo singular de viver nas margens da língua chama-se estilo. Pelo que se pode aventurar esta outra definição - mais uma-do inconsciente: é o estilo de cada um para decifrar seu gozo, para filtrá-lo pelos desfiladeiros lógicos que o dosificam e que se pretende ampliar na experiência da análise. Pois a palavra é o diafragma do gozo e a neurose exibe uma obturação rígida que impede o contato do gozo com o dizer. O que se diz é o gozo, mas o gozo, próprio do dizer, desapa rece no dito, fica esquecido, é um resto perdido porque passa pela bateria significante da língua que o leva a se carregar de sentido, esse sentido que o outro escuta no queentende.10Entre o fato de dizer (enunciação) e o produto que se recolhe (o enunciado) há um es quecido constituinte que é o do gozo de quem falou. O real irrecu perável travestido sentido. não ohámodelo dito sem sem sabê-lo, uma no perda. Para Enós, do dizer. dito é Oo dito que disse, se diz na análise. A psicanálise tem um material sobreo qual trabalha: a di ferença entre o dito e o dizer. Há sempre um destino inelutável que se impõe à cadeia dos significantes e que se pretende perdoar na 8. J . L acan (1973).L e seminaire. L ivre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975. p. 95. 9. J . L acan (1970). A. E., p. 515. 10. J . L acan (1973). A. E., p. 449.
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experiência da análise, na qual o outro da elocução é um outro que não entende e que devolve ao que fala a pergunta pelo gozo que ig nora em seu dizer. Funções do silêncio e da escansão no tempo e espaço da sessão, presença do analista, esse que o é porque acei tou o conselho de evitar compreender. A interpretação é uma evo cação do gozo perdido ao falar. Em tal medida, remete ao real. M esmo quando o analista, sem saber nadadisto, também ignore que é no real do gozo que intervém. Pois a palavra está espreitada e deslocada pelo sentido, essa sombra imaginária que persegue, infatigável, os significantes que vão se encadeando no discurso. É a função da palavra no campo da linguagem. N os termos que L acan inscreve quando diz sua Radiofonia, o significante flutua por cima da barra do signo, enquanto o significado flui debaixo... ao que caberia acrescentar que o referente escapa como produto dessa operação, é o resto de real que fica esquecido. Esse resto é o objeto @, causa do desejo, mais de gozo(minus,enquanto gozo perdido para o falante) e semblante do real que assim, excluindo-se, faz-se presente no que se diz. Simbólico da articulação significante, imaginário do sentido e real do gozo evocado constituem a trindade onipresente em toda palavra. Vazia de plenitudee plena de vacuidade. E se a palavra não se diz? O sujeito fica eclipsado, posto que já não há um significante que o represente ante outro significante. O falante emudece e, em seu lugar, aparece o sintoma que é o re verso, desde o discurso, ao gozo, um gozo ignorado e repudiado. Freud não tinha vergonha em definir o sintoma como uma “satis fação sexual substituta”; era sua forma de dizer que o sintoma é um gozo não sentido e sem sentido, desarticulado. A palavra não dita, desdita, é sintoma e gozo des-sentido , jouis-sens, escreverá Lacan,11 vocábulo intraduzível de alíngua lacaniana para o qual puderam ar riscar neologismos tais como gossentido, eugozo, eugossentido.* é anterior, mas se constitui na De qualquer forma, o gozo não retroatividade da palavra, como o saldo que ela nunca consegue reintegrar, como o que produz e deixa para trás em progresso. Baba 11. J. Lacan (1974). A. E., p. 517. * Em francês jouis-sens (goze-sentido) é homófono ajouissance (gozo) e a j'ouï s sens (eu ouço sentido). (N. da T.)
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de caracol, nunca recuperada. Não que o caracol se ancore ou se tinja em sua baba, mas que em seu andar a segregue.12“Não que o significante se ancore ancre) ( outros ou setraços tinja(encre) no prurido (...), o gozo mas que o permita entre com que se significa e cujo problema é saber o que se satisfaz nele”. E assim, pela paixão do significante, é que o corpo se torna o lugar do Outro (1970, idem). E por isso que apenas cabe falar de gozo com relação ao animal que fala e cabe não supor o gozo fora da linguagem que o constitui como resto (real) perdido, @. O inconsciente, o de F reud e também o de L acan, é deciframento. A verdade que fala por meio do processo primário c uma verdade de gozo, de gozo antieconômico, na contramão do princípio de prazer, da menor tensão, da homeostase, da ética prudente do justo meio e da moderação aristotélica. Nisto, L acan13 toma sua distância com relação a Freud. Corrige-o. Não há uma termodinâmica cujos princípios dariam ao inconsciente uma explicação póstuma (ibid.). Na verdade, nem o sentido nem a energética interessavam Freud. Do sonho recusava ambos aspectos, um por não ser essencial, o outro por ser especulativo; apenas ficava, como aquilo propriamente psicanalítico, otrabalho do sonho, que transformava o desejo em um determinado conteúdo manifesto, utilizando a matéria-prima dos pensamentos latentes que se revelavam nasessão como associações “livres”. Isto em 1933, na “Novas conferências introdutórias à psicanálise”.14E que mal pese ao próprio Freud, “incompreendido, ainda que por si mesmo, por ter querido fazer-se entender...”.15 No inconsciente não é o prazer ataráxico, mas o gozo desconcertante que se decifra em um discurso. E esse discurso, pelas sombras do'sentido que arrasta atrás de si, é ao mesmo tempo desconhecimento do gozo, alienação do gozo no campo do Outro.
12. J. L acan (1970). A E., p. 418. 13. Idem, p. 523. “Posto que esta famosa tensão menor com que Freud arti cula o prazer, qual o destino da ética de A ristóteles?” 14. S. Freud (1932-1933). Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis. In: Obras completas.Buenos Aires: A morrortu, 1979. v. XX II , p. 7. 15. J. L acan (1970). A E., p. 407.
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Se assim é, delimita-se a possibilidade e o terreno da psicanálise como práxis ética: a recuperação do gozo perdido. Ou um ao menos a intenção. Que aqueles(impossível?) que encontrem nestas palavras eco de Proust não se sintam enganados pelas que vêm a seguir. Gozar-se no despertar que atravessa os alambrados do sentido e colocam ao pensante a pergunta pelo ser. Como alcançar esse resultado se não há à mão mais do que uma prática de falação (bavardage)! Do gozo em uma ponta, gozo cifrado, ao gozo na outra, gozo recuperado. Por isso o ato psicanalítico está determinado segundo o gozo e, ao mesmo tempo, pelos modos que requer para pres ervar-se dele.16Esta expressã o sobre a na tureza do ato analítico deve es somar econtrapor-se às já clássicas expressões que aparecem em “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (op. cit.), no qual se reconhece que a análise não tem outro meio, senão o da palavra. Sim, no meio da palavra, com o meio da palavra, no meio dizer da verdade, mas tudo isso determinado por algo que não é palavra, mas gozo, gozo do corpo, coceira permitida pelo significante quando sacode e rasura tanto quanto possível o sentido que somente aparece à medida que o sujeito se aliena de seu gozo ao ofertá-lo ao Outro da significação. Esta “rasura”17do sent ido apontapara arecuperação do gozo perdido gozo pelo único meio ao alcance do falante, o do deciframento. Deste gozar do deciframento, Lacan faz o traço definitório de uma nova relação do sujeito com o saber, o gaio saber considerado uma virtude, por certo uma virtude pecaminosa. É o aspecto ético da teoria do gozo que absorverá o capítulo 8, ao terminar nosso percurso. No final desta gaia ciência, não há outra coisa senão a queda no pecado pela reconciliação do saber e o gozo proibido, pela evocação do gozo nos intervalos da palavra quando se atravessa a superfície especular do sentido. Um gozo que vai além da impotência
frente ao real, não para encontrá-lo, mas para marcar esse real como 16. J. L acan. Comptes rendus d’enseignement 1964-1968. Ornicar?, n. 29, p. 24, 1984. Em espanhol, Reseflas de ensênanza. In: Hacici ei Tercer Encuentro dei Campo F reudiano. Buenos Aires, 1984, p. 58. A citação é de 1969. 17. J. L acan (1974). A. E., p. 526.
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impossível, e que denuncia o eu como aliado da realidade exterior e de suas camisas-de-força tecidas pela convenção e pela obediência às demandas do Outro. Um gozar do deciframento que remete à realidade essencial do sujeito, esse real além do imaginário e do simbólico, que é tocado e deslindado pelos processos primários que imperam no inconsciente, pelo dizer de metáforas e metonímias que engancham o gozo impossível de articular. Gozar na fronteira do impossível, gozar do deciframento do gozo cifrado, numerado, contabilizado, gozar de um saber que não preexiste ao dizer e que, portanto, não é descoberto, a não ser que o invente. Reencontrarse com esse gozo que subjaz ao fato de falar, mas do qual o sujeito nada quer saber, afirmar o gozo pelo estilo ou pelo estilete da palavra que o inscreve no Outro ao qual ela se dirige. E, no final, nenhuma completude, uma queda no pecado. “Oh. Inteligência, solidão em chamas (...) páramo de espelhos!” - exclamará o poeta.1S Purgatório.
2. A carta 52 Creio que é chegado o momento de uma primeira revisão. Para fazê-la, servir-me-ei da mais simples das representações topológicas: a linha reta . Nela temos duas pontas em e cadauma das pontas está o gozo. E ntre esses dois extremos colocam-se processos de ciframento e deciframento que permitem reencontrar, no final, o que estava no princípio, o gozo, que leva, sim, as marcas e a fadiga do trânsito pelos pontos intermediários desta sucessão de estados que primeiro o desnaturalizam e depois o recuperam, uma vez transformado. Não é arriscado chamar de sublimação esta metamorfose. Do gozo perdido ao gozo recobrado, transmudado. Do gozo recusado ao que pode ser alcançado... Volto ao início para mostrar queesta exposição segue um curso rigorosamente coerente com a expressão de L acan e - ver-se-á 18. J. Gorostiza. M uerte sin fin. In: Poesia completa. México: Fondo de Cul tura Económica, 1984.
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não alheia à metapsicologia de Freud: “O que Freud articula como processo primário no inconsciente (...) não é algo que se cifra, mas que se decifra (...) o próprio gozo”. Se no extremo esquerdo da linha figura o gozo, deve-se reconhecer que entre o gozo e seu deciframento pelo inconsciente deve haver um estado ou momento intermediário em que é o gozo cifrado, convertido em um grupo de inscrições em si carentes de sentido, mas prontas a se carregar com ele uma vez tenham sido submetidas a um processo de deciframento. Ficam, assim, delimitados três estados ordenados sucessivamente: 1) o do gozo primordial, 2) o de seu ciframento ou escritura e 3) o de construção como seé vê, seu estádeciframento imposta pelainconsciente. razão e pela Esta experiência; não linear, é facultativa, imperativa. O inconsciente - isto é Freud, isto é L acan, isto é a psicanálise de todos ede sempre - já é um discurso, uma passagem do gozo à palavra, na qual um significante não significa nada se não se articula com outro significante. N este caso, o que é significado e representado pelo significante é o sujeito, sujeito do inconsciente, efeito da articulação. Agora refulge, inapelável, o dito de L acan: “O inconsciente se articula pelo que do ser vem ao dizer”.19Do ser do gozo ao “penso” do sujeito da ciência e aí, entre os dois, a articulação do inconsciente. O inconsciente é manifestação da verdade, de “isso” do ser que vem ao dizer. Mas a verdade, que assim fala, não diz a verdade. Os processos primários produzem uma transposição, Entstellung uma da verdade que veiculam. O gozo chega ao dizer filtrado pelas malhas da linguagem. Uma vez produzido esse dizer - o menor relato de um sonho basta para comprová-lo -, é necessário um novo processo de deciframento para se incorporar esse discurso dentro do campo do sentido. Esse trabalho recebe de Freud o nome preciso de Deutung, interpretação. Para evitar confusões, é necessário manter a distinção que existe entre a operação que se faz sobre uma deciframento(o modelo é o dos hieróglifos), e escritura que é um a operação que re cai sobre apalavra tal como ela é proferida pelo interpretação. analista na situação da análise e que é A ssim, o gozo 19. J. L acan (1970). A. E p. 426.
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é aquilo que se decifra, os processos primários são já deciframento e eles são suscetíveis de interpretação. O decifrado revela uma escritura que, como tal, é semsentido* (nonsense, pas-de-sens) e não chama o Outro como o faz a palavra. A interpretação recai sobre a leitura dessa escritura, “é sentido e vai contra a significação”20 (1972). Esta distinção não remete a uma oposição binária na qual houvesse que escolher entre deciframento e interpretação, mas a uma complementação que mostra, até a evidência, que cada uma das duas operações rec ai sobre um ponto distinto dessa linha reta que vai do gozo cifrado ao gozar do deciframento. É necessário insistir nesta complementaridade da escritura e da leitura, do deciframento e da interpretação, pois não é raro ver que mesmo os mais lúcidos e leais comentaristas de L acan se deixam levar pelo entusiasmo ao advertir a novidade acrescentada por Lacan em seu ensino, quando faz valer “a instância da letra no inconsciente” e passam a uma exegese que confronta uma leitura de L acan, “moderna” - escriturai - , com outra leitura de L acan, “antiga” e centrada sobre a palavra falada e sobre o significante. M inha intenção em tudo o que escrevi e que escreverei é destacar e evidenciar a continuidade diferença topológica na reta dos pontos de inserção próprios e a a cada uma das duas operações. O inconsciente é, nessa reta, um ponto intermediário de junção no caminho do deciframento que se encontra entre o sistema das inscrições que o precede e o diálogo com sua impregnação de sentido queo segue. É um estado intermediário no deciframento do gozo. J á é discurso, mas um discurso que parece colocar-se antes e à margem do outro da interlocução e do sentido. Deve-se voltar - sempre - a Freud: Pois bem, se prossigo para mim mesmo a análise, sem preocupar-me com os outros (para quem, na verdade, uma vivên cia tão pessoal como meu sonho de modo algum pode lhes es tar destinada), chego a pensamentos que me surpreendem, que não havia observado no interior de mim mesmo, que não apenas me são alheios, mas também desagradáveis, e que por isso eu
* Como no original (sinsentido).(N. da T.). 20. J. L acan (1970). A. E., p. 475.
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queria contestar energicamente, enquanto a cadeia de pensamen tos que discorre pela análise se me impõe de modo inexorável.21
A situação queFreud descreve como pa radigmática do sonho é a de um locutor sem alocutário, uma cadeia de significantes que se enlaçam, seguindo seus próprios desígnios e que fazem do eu uma testemunha, um simples cenário no qual se representa uma obra perturbadora, desconcertante, que não é entendida nem apreciada por este espectador que queria contestá-la com energia. Isto é o inconsciente e este é seu trabalho. A interpretação é um trabalho posterior que, vencendo resistências, introduz o Outro do diálogo, inicialmente alheio, nessa vivência pessoal e solipsista. Esse Outro é, justamente, o sujeito suposto saber da transferência, um Outro inventado pelo discurso psicanalítico, absolutamente desnecessário, contingente, lugar de um desvelamento daquilo que o eu, animado pela paixão da ignorância, nada quer saber. Se volto à ficção desta linha reta (“a verdade tem estrutura de ficção”), constato que o extremo final da mesma nãosentido, éo recuperado(“A h!”). Este final é (“agora entendo”), mas gozo o possível somente atravessando a linha completa que leva do gozo ao gozo, a um gozo Outro. A interpretação conduz ao sentido, um sentido que podemos considerar equivalente ao sistema percepção-consciência e que se vincula à coerência que freudiano impera emda “nosso eu oficial”. Do eu testemunha não o processo primário, mas elaboração o secundário, mais concretamente e no caso do sonho, a secundária,processo de maquiagem da verdade que tende a proteger o dormir e amortecer o impacto do real sobre o eu da vigília que se apega à realidade, a essa realidade que está feita justamente de sentido, na junção do simbólico e do imaginário,22com exclusão do real. (Cf. figura do nó borremeano, p. 108) Não se pode falar sem ser inundado pelo sentido, mas este está comandado pelo fantasma, é o imaginário que flui sob a cadeia dos significantes que flutua. A experiência analítica não aponta para consolidá-lo nem para retificá-lo, oferecendo um novo e mais consistente, mas para deslocá-lo, para levantar seu peso de lastro, 21. S. Freud (1901). Sobre los suenos. Obras In: completas, v. V, p. 654. 22. J. L acan (1973), La troisième. Lettres deFÉcole Freudienne, n. 16,1975,. p41.
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para comovê-lo, para denunciá-lo em sua suspeita pretensão de suturação da relação do sujeito com a verdade que fala. A análise aponta para reintroduzir a dimensão do real do gozo que o discurso exclui. Pois tudo na experiência analítica se organiza com vistas ao esvaziamento do sentido, a chegar a um único e último sentido: que a relação sexual é o que não há, que é um semsentido e que o discurso é um bordado ou um zumbido que tende a se alongar e anegar (e [a] negar) este topo ante o qual a palavra se declara derrotada e a pulsão, silenciosa, volta por seus direitos. “A essência da teoria psicanalí tica é um discurso sem palavra”.23 A gora, o percurso está completo. O traçado da linha exigia deter-se e identificar estes cinco pontos de sua trajetória: a) o gozo srcinário; b) sua inscrição ou ciframento; c) seu deciframento em um discurso confuso e incoerente que manifesta a verdade ao mesmo tempo que a dissimula; d) sua interpretação que lhe restitui a coerência à custa de aumentar o desconhecimento e, finalmente, e) o esvaziamento desse sentido redundante para recuperar a verdade da inscrição srcinária, mas transubstanciada agora em um saber inventado que consiste em gozar do decifrado. Vale dizer que é umproponho: percurso de queponta levado gozo à ? E a fórmula que a ponta dosublimação gozo. E de imediato dou-me conta: não estou enunciando algo novo, nem estou pondo às claras um aspecto desconhecido do pensamento de L acan, ma s estou regressa ndo, armado com o rasenal das últimas referências do ensino deL acan, às origens dapsicanálise. Pois o que encontro ao recapitular o escrito sobre uma linha com dois extremos e com três estados intermediários que são o cifrado, o deciframento e a interpretação produtora de sentido, não é nem mais nem menos do que a reprodução literal do esquema desenhado em todos os seus pontos por Freud nacélebre carta 52de 6 de dezembro de 1896, que agora conhecemosem uma versão não ex purgada.2 4 O texto é acessível e conhecido por todos os psicanalistas, mas não obstante requer ser citado in extensopara deixar claro até que 23. J. Lacan (1968). Seminário XVII, aula de 13 de novembro. 24. S. Freud (1896). Carta 52 dos “Fragmentos de la correspondencia con
Fliess”. In: Obras completas,v, I, p. 274.
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ponto é coerente com a teoria do gozo e, mais ainda, para mostrar que nele estáe,definida distinção entreum o Isso e o inconsciente portanto,uma queclara na carta 52 temos deslumbrante ponto de srcem que condensa as duas tópicas de Freud e as duas grandes épocas do ensino de L acan. Podemos fazê-lo sem ter que forçar em nada a interpretação do texto freudiano, antes, sim, voltando com exatidão à sua literalidade. Freud parte da idéia de uma estratificação sucessiva do psiquismo humano que supõe que os processos anímicos e da memória estão sujeitos a um reordenamentoque obedece a certas novas circunstâncias. Desta nova ordenação, Freud tem uma clara concepção: é uma retranscrição,urna Umschrift.A s duas palavras em itálico aparecem sublinhadas por Freud. Umschriftimplica tratarse de escritura, concretamente, de inscrição. “O essencialmente novo” nesta teoria é a tese da existência da memória da experiência como uma série de inscrições sucessivas e coexistentes, não menos de três. E o registro nelas recorre a “diversas classes de signos” (Zeichen). E imediatamente, para tornar gráfico seu pensamento, desenha um esquema, muito conhecido, com cinco elementos ordenados linearmente, dos quais os três intermediários estão caracterizados, além da inicial de seu nome, pelos números romanos I, II e III. A idéia de que estes sistemas de inscrições tivessem suportes neuronais é reconhecida no texto como muito cômoda, mas não indispensável, admissível a título provisório e, portanto, descartável. No extremo esquerdo da linha, está a notação W, que remete a Wahrnehmungen,corretamente traduzida para o espanhol e para o inglês comopercepções. M as o termo pode prestar-se a mal entendido, caso seja tomado no sentido técnico que tem em psicologia. Destes “ neurônios W", Freud diz que neles “as percepções se srcinam e a consciência se agrega, mas que em si mesmos não conservam marca do acontecido. Pois a consciência e a memória são mutuamente excludentes" (grifos de Freud).
Gozo
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1
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Wz
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X X
Impressões - -»
Isso
-
II
III
Ubw
Vb
X X -
X X
Bew
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- >Inconsciente- »Pré-cons ->
XX Fading 8
ciente Gozoperdido- >Ciframento -» Decifrado - > Sentido --»Gozorecuperado
Do que seque trata? um registro da experiência. De uma Warhnehmung em De alemão implica direto claramente a apreensão da verdade, do real tal como cai, golpeia, marca um ser que recebe o impacto e não conserva traços nem memória do acontecido. Para evitar o equívoco com a concepção tradicional, psicológica, da percepção, que supõe o sujeito como já constituído e como constituinte das percepções que seriam uma função dele, do percipiens considerado fonte e srcem do perceptum,penso que é preferível recorrer aqui ao termoimpressão de no seu duplo sentido daquilo que impressiona (uma placa ou película sensível) e daquilo que se imprime, que fica gravado. São, pois, impressões assubjetivas,acéfalas, feitas em ninguém, matrizes de uma escritura da qual um sujeito advirá. A idéia está claramente exposta pelo próprio Freud quando, muitos anos depois, exporá sua analogia do psiquismo com o Wunderblock,com o bloco mágico,25no qual a inscrição feita com um estilete sobre uma superfície de celulóide se faz sem deixar tra ços no próprio celulóide (uma vez que não se levanta), mas deixando as marcas impressas em uma película de cera macia colocada de baixo. Estas impressões sem memória que estão no extremo do apa relho e que deverão ser recuperadas (ou não) pelas inscrições posteriores são a inequívoca manifestação de um real srcinário do sujeito, anterior à simbolização, que é o próprio Gozo e remete ao conceito freudo-lacaniano da Coisa. O conjunto do aparelho 25. S. Freud (1925). N ota sobre la pizarra mágica. In: Obras completas, v. 19, p. 239.
Decifrarriento dogozo
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ordenar-se-á aparti deste momento fundante em que protossuum jeito (perdoanlo o Tbrido grecolatino) é impressionado, impresso, pelo Real. E, s nãi se tem medo das analogias, por que não falar de imprintinglDu sja, da cunhagem matricial do futuro falante por uma experiênca qie é anterior e exterior à linguagem, ainda que, como é o caso ia in'estigação etológica, a linguagem não seja alheia à experiência nesna a que são submetidos, em seu caso, gansos e símios pelo dsígro dos sábios. Impressões do gozo, hieróglifos assistemáticos cunagem de uma moeda na superfície de um cor po. M arcas. Destas hpresões, passa-se a um sistema primeiro (I), de quê? De signo depercepção, Wahrnehmungszeichen, de que é “o primeiro regisro” < u “a primeira transcrição” Niederschrift ( ) de tais impressões. Gmose vê, Freud insiste na idéia da escritura. Ago ra, agrega arnção capital em L acan, designos, de Zeichen.A ca racterização feudana destes signos é precisa e preciosa: eles não são susceptívds di consciência e estão dispostos (“articulados”, se lê na traduçãcparío espanhol) segundo uma associação por simul taneidade. A sim,jma escritura que é puro signo, carente de sen tido e carenteie odenação no tempo. Neste sistema, como em toda escritura, nãohá dacronia. Assim como um livro ou um disco of nográlico tên tocb o seu conteúdo ao mesmo tempo, no instante, mas no qual i coijunto de inscrições impressas e gravadas não re presenta nadi paa ninguém, se não se submeter a um processo diacrônico qe insaure a sucessão, que o torne audível, que o tras lade por meii de im deciframento da escritura, por meio de uma leitura. Este sstem dos Wahrnehmungszeichen é, pois, um registro cifrado das inpresões de gozo que marcaram a carne do protossujeito. Estasmaras não são significantes, são - e é o próprio Freud da carta 52 cu em) destaca - signos, marcas anteri ores à palavra, que parecemprefi;urar a oposição que Lacan26fará notória emTe levisão, quaido ojõe o registro do signo ao registro do sentido. Que n» metomem por excessivamente apressado, se me atrevo a afimar iue esta sucinta descrição feita por Freud deste primeiro regstro oincide exatamente e no essencial com isso que, 26. J . L acan (974). 1. E., p. 515.
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nos anos do “bloco mágico”, chamará Isso. Bastará apenas deixar de lado a sub-reptícia hipóstase de um discurso alheio à experiência psicanalítica “pólo biológico”) para compreender quepróprio essa referência é (o tãodo prescindível e supérflua como a que ele indica nessa carta 52 sobre um suporte neuronal de seus “extratos psíquicos”. Pois a biologia em questão se reduz - e isto é o cerne da questão - a que estas experiências que não vacilo em qualificar como impressões do gozo são marcas escritas no corpo, ou melhor, na carne que se tornará corpo por graça e obra desta cunhagem. Não há ordem nem concerto, não há sentido e não há tempo. Assim é como o gozo é cifrado. L acan27aporta um a imagem esclarecedora, quando compara esta desordem sincrônica com o funcionamento de uma loteria, um grande globo cheio de pedras nas quais estão inscritas cifras que nada significam em si mesmas. Uma desordem de marcas escriturais que está prestes a adquirir sentido uma vez que se produza o sorteio, uma vez que elas saiam em uma certa seqüência ao acaso ou arbitrária que as porá em relação com uma matriz simbólica preexistente (atribuição de prêmios) que dotará de sentido a série de bolinhas sorteadas. O globo cheio de inscrições é o “caldeirão pleno de ferventes estímulos” do Isso freudiano. Aí está o gozo cif rado. Apenas o significante poderá instaurar uma ordem ao desdobrar estes elementos da escritura em uma diacronia. Em suma, postulo que este primeiro sistema de inscrição da carta 52 é o Isso da segunda tópi ca e que suas características são as que permitem distingui-lo do segundo sistema, o do inconsciente, que já é um deciframento e uma tradução desta escritura primária das marcas do gozo. O número é, na imagem da loteria assim como na língua de todos osdias, cifra. Uma cifra semcarente sentido. de E lingua gem,no maqual s do os lado da pura aescritura, hieróglifo palavra, elementos são alheios à organização do discurso, no qual não há um agente da palavra que se dirija a um outro para estabelecer um vínculo social. Fora do sentido, mas pronto para carregar-se de sentido. Para isto, é necessário que se produza “o sorteio”, que se instaure uma série, que o número, além de sua função cardinal, se 27. J. Lacan (1958). Écrits, p. 58;Escritos 2, p. 638 (1960).
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"ordene”, que seja “um” na série dos números, que seja “esse” número na relação dos que saem sorteados com os da outra série de números;no caso da oteri l a, a daordem dos prêmios.28 O Isso é um conjunto de elementos gráficos, não submetidos a nenhuma hierarquia organizacional, totalmente comparáveis e intercambiáveis entre si, alheios à contradição lógica ou dialética, puras positividades que não conhecem a negação. É o império do gozo (do ser) anterior à organização subjetiva, sendo esta um efeito da orde nação que, no reino do significante, impõe a metáfora paterna. Sa bemos que o nome-do-Pai entroniza a primazia do significante fálico que esvazia o gozo do corpo fazendo-o passar por uma zona estri tamente do corpo (gozo“lacaniano” álico), f submetida Lei.está afirmado Isto,limitada tão essencialmente comoà é, com todas as letras por Freud na mesma carta 52 que expõe esta topologia retilínea do gozo e da palavra, de seu ciframento e deciframento. Por trás disto, a idéia de zonas erógenas resignadas. Ou seja: na infância, o desprendimento sexual seria recebido de numerosos lugares do corpo, que logo são apenas capazes de desprender a substância de angústia de 28 [dias], e não já as outras. Nesta diferenciação e limitação [residiria] o progresso da cultura, o desenvolvimento da moral e do indivíduo.
Em resumo, o sistema chamado por Freud na carta 52 dos sig nos perceptivos, dosWahrnehmungszeichen (WZ), é um sistema de passagem das impressões corporais (W) para uma escritura desor ganizada, para um ciframento que existe na sincronia e na desor dem. Nesse sistema não há noções de empo, t de contradição e de ordem. Está prefigurado em todos os seus aspectos o Isso que nas ceria 25 anos depois e constitui um tipo de matéria-prima para que nela se opere o significante, ou seja, a bateria das diferenciações e dos valores que introduz a língua, o código das significações. E tam bém possível dizer que neste caos em que está cifrada aexperiên cia vivida não opera a língua dos lingüistas, mas alíngua lingüistéril da psicanálise cuja significação não é de sentido, mas de gozo. 28. Cf. J .-A. Miller. Seminários de 19 de dezembro de 1984 e de Ia de abril de 1987 (inéditos).
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A questão para o psicanalista é recuperar esta possibilidade de gozo que está obstruída, sem tradução, no sistema do Isso. Para ial, tem um único recurso:em o da foi oque primeiro aspecto da descoberta lacaniana seupalavra. retomo Esse a Freud: o inconsciente está estruturado como uma linguagem... ao que se deve acrescentar que é apenas na análise que seus elementos se ordenam em um discurso, que o gozo condescende à audição, à ordenação em uma cadeia temporal diacrônica. E na experiência analítica onde a escritura (do gozo) permite sua leitura e onde a letra se presta à palavra. Podemos nos valer de uma analogia técnica, o CD: uma delgada lâmina metálica em que estão registrados números, cifras, dígitos, que coexistem sincronicamente em uma superfície polida alheia completamente, em si, à arte musical. Essas inscrições sem sentido estão, no entanto, em condições de serem decodificadas, decifradas por um raio laser que as transforma em impulsos elétricos; estes, por sua vez, são enviados a um sistema de transformação e tradução em movimentos que afetam um falante de onde saem transformados em música. Pode-se completar esta analogia recordando os estados prévios à transcrição numérica das inscrições digitais: partitura do compositor que também é uma escritura sincrônica e hieroglífica que deverá ser codificada pelo intérprete (sim; aquele que fazinterpretação) a e passada para o ciframento digital, para o deciframento eletrônico, para o som e, finalmente, para a audição diacrônica na qual será o ouvinte o que dotará a música escutada de um sentido em relação à sua subjetividade [vetor s (A)]. E pode-se voltar mais uma vez ao ponto de partida: os processos primários que Freud descobre no inconsciente não são algo que se cifra, mas algo que se decifra. Em outras palavras: do caos do Isso no qual o gozo está cifrado passa-se a um certo ordenamento, a uma forma de extração das bolinhas, a uma sucessão diacrônica da saída desses signos que haviam sido transcritos a elementos de outra ordem, a significantes cuja bateria está na língua, tomados do capo do Outro da palavra. Os processos primários produzem um resultado que já é discurso, um discurso que parece, a olho nu, carente de sentido e absurdo, mas que já está em condições de ganhar sentido e ser transmitido.
I K 'cüramento do gozo
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O U nbewusst ( U bw), o inconsciente, é, na carta 52, assim definido: como uma se gunda rtanscrição em que já não primam as iissociações por simultaneidade, mas “outros nexos, talvez causais”. A causalidade implica a sucessão no tempo da causa e o efeito, a diacronia. Enquanto discurso (o dito), o inconsciente já é algo que se escuta, um material em que o gozo deverá ficar esquecido, será L ’étourdit (1973, op. cit.). Este essereste oubliéde que se fala em inconsciente é palavra ordenada segundo nexos que repugnam o pensamento organizado pela sintaxe epela lógica. A interpretação é a atividade que, tomando como ponto de partida as formações do inconsciente, dotará essa palavra de sentido e a expulsará do reino do “absurdo”. É o nível da terceira transcrição que sedescreve nacarta 52: Ubw ao Vbw, do inconsciente ao pré-consciente aquela que leva do ( Vorbewusst ), que está “ligado a representações-palavras, correspondente ao nosso eu ofici al”. A qui, dão-se todas as características do pensar racional, no qual o encadeamento significante carrega consigo ondas de sentido, um sentido que “é de efeito posterior ( nachträglich ) na ordem do tempo”. Freud acrescenta que esses “neurônios-consciência” seriam também “neurônios-percepção”, chamar “impressões”. Fica, assim, o aparelho esses como que umapreferi linha na qual odeordenamento sucessivo implica a anulação do tempo em cada um dos dois extremos. O gozo atemporal está figurado em cada uma das duas pontas da reta que atravessa por a) o cifrado, b) o deciframento inconsciente e c) a interpretação que dá sentido no pré-consciente quando se liga a experiência vivida com a ordem da linguagem oralizada, feita oração, articulada como proposições submetidas à lógica dos processos secundários, suscetíveis de serem catalogadas como verdadeiras ou falsas. Freud completa sua descrição do aparelho assim constituído afirmando que entre um e outro sistema existe uma incompatibilidade de leitura ou de código que obriga que as inscrições que caracterizam cada um deles devam ser traduzidas para passar de uma modalidade de inscrição para a seguinte. Esta teoria vale tanto para o psiquismo normal como para as neuroses - concebidas como efeitos da repressão, ou seja, da impossibilidade de “tradução do material
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psíquico” - e também para o tratamento quedeve ser o processo capaz de fazer com que o retido em inscrições anteriores seja transferido para os novos modos de leitura próprios dos sistemas mais avançados. O avanço que traz a leitura lacaniana que proponho da carta 52 consiste em destacar que o que se cifra e o que se decifra é “o próprio gozo”. Esta elaboração dos conceitos freudianos nos permite retornar à obra do próprio Freud e estabelecer de modo inequívoco a continuidade que existe entre o Isso da segunda tópica c o inconsciente da primeira; essas instâncias não se intercambiam ou se substituem reciprocamente: são dois sistemas topologicamente diferenciados dois modos diferentes, escriturai o um, e palavreiro o outro, dee tratar as para sempre irrecuperáveis impressões srcinárias. A seqüência, em síntese, é: do gozo bruto (W) ao Isso (Wz) do Isso ao Inconsciente (Ub), do Inconsciente ao Pré-consciente (V b) e do Pré-consciente à C onsciência (Bew); este não é um sistema de inscrições, mas um momento vivencial que retoma o so that the neurones of consciousness ponto de partida inicial (“... would once againbe perceptual neurones and in themselves without memory”)29 (grifos meus).
3. A psicanálise nos caminhos de Proust. Gozo e tempo O gozo, gozo do corpo impressionado, gozo do Um sem Outro, apenas pode ser recuperado mediante um recurso ao Outro, o Outro mesmo da linguagem e do sentido, que perturba, obstaculiza e proíbe esse gozo. A experiência da análise pretende, na figura do analista, encarnar e suprimir esse Outro do diálogo e da resistência para que o gozo bloqueado em sistemas de inscrição não decifrados possa ser subjetivado. O Outro da linguagem é o muro que deverá ser atravessado nessa busca das marcas deixadas pelo gozo. O
29. J. W. M asson (comp.). The complete letters o f Sigmund F reud to Wilhelm
F liess - 1887-1904. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1985. p. 207.
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corpo é a prancha ou tábua vazia, o cenário, o livro, o disco marcado pelas inscrições ou gravações cifradas. A análi se será, assim, processo de leitura com agulha (estilo) ou raio laser que tome audível o que está inscrito e desconhecido para o sujeito: o próprio gozo. Para este trabalho, não há código oculto a descobrir; em todo caso, há um código ou pedra deRoseta a inventar, o sistema de alíngua em que o gozo foi cifrado, alheio à bateria de significantes com significação convencional. Da impressão, escolhendo a íwpressão e a repressão, à expressão, à produção desse livro ou dessa letra-carta escondida, roubada ao mesmo tempo que exposta, como a de Poe, em cada um dos falantes. Re-citando: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem, mas é na análise que se ordena como discurso”.30E ao ordenar-se como discurso, palavra dirigida ao outro, carrega-se de sentido insólito, revela-se como saber subjacente ao sujeito, mostra se como portador do gozo que atravessa o agora permeável diafragma da palavra que até então o bloqueava. E gozar do deciframento, jouis-sens, j ’ouis sens, jouissance que poderiam passar, como já vimos, como gossentido ou eugossentido.Fazer passar o gozo pelo diafragma da palavra, articulá-lo, traduzi-lo, passálo pela contabilidade. Para isso, é mister desarmar a coerência discursiva, atentar contra a gramática, jogar com o equívoco lógico e homofônico, atravessar a barreira do sentido e descolar o HumptyDumpty que a controla, aquele chamado por Freud, já em 1896, nessa mesma carta 52, de “nosso Eu oficial”. Pelo caminho deve-se ressignificar voltando no tempo as marcas da memória e atravessar os fantasmas que conduziram em cada momento e em cada caso à fixação das embranças l . Trata-se de despejar e construir os fantasmas srcinários estruturantes da experiência e da história pessoal que se apresentam na compulsão de repetição. Repetição? Sim, dos modos particulares de cada um de falhar ao encontro com o objeto do desejo. E recuperar assim o gozo perdido à medida que o desejo não aponta para o futuro, mas que é nostalgia, memória gravada na carne sem linguagem e rasgada pelo Outro, pelo que o Um foi como objeto no desejo do Outro e 30. J. L acan (1974). A. E., p. 452.
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daquilo que saiu constituindo-se ao preço de uma cisão interna, como sujeito barrado e dividido entre o Um e o Outro, fazendo do corpo Outro e fazendo o lugar o cenário em que pretende recupera r-se como Um, do issoOutro que se chamaeem psicanálise o Ideal do Eu. Entre o Um e o Outro. Entre a neurose, alienação no Outro e a psicose, alienação no Um. Entre o Outro sem o Um da neurose e o Um sem o Outro da psicose. Entre a letra sem leitura do Um, da psicose, e o discurso submetido aos códigos do Outro, que desconhece a essência escriturai do gozo na neurose. Pois a subjetividade navega entre Caríbdis e Scila. Seus naufrágios são a substância da psicanálise. O su-jeito como o que sub-jaz, a subs-tância, o su-posto do discurso, con-jugado em suas frases, cifrado que deverá ser decifrado, Eu que deve advir no lugar onde é desconhecido, aí onde Isso estava como um hieróglifo no deserto, como um livro enterrado com o cadáver de seu dono. Por trás desses objetivos, ordena-se a prática da análise e se decidem todos os seus momentos: para pegar o gozo como deciframento por meio do jogo e o fogo dos encadeamentos e das substituições significantes, pelo chiste e pela aleteia surpresa, pela e pela epifania joyciana, evocação inesperadaheideggeriana que burla as defesas, pela agudeza do pela estilo que rasga a superfície estúpida do discurso que não diz à força de “querer dizer”. Esta colocação da recuperação do gozo perdido está na própria srcem da reflexão freudiana. Não seria, por acaso, a “identidade de percepção” a meta que orienta toda a atividade do aparelho psíquico? E não seria a “identidade de pensamento” o queinterpõe - pela via dos processos secundários - uma barreira de sentido, de sentido regulado para e pelo eu, no caminho para essa recuperação do gozo originário? L ido assim, armados com a distinção lacaniana entre prazer e gozo, é difícil não reconhecer já em Freud e desde o começo que a concepção do psiquismo está determinada pelo gozo, pelo gozo como perdido e como recuperável por meio de uma elaboração que passa por sistemas intermediários e no qual a neurose é definida como impossibilidade da recuperação enquanto a psicose é ora instalação no gozo, ora renúncia para recuperá-lo. Está em jogo a função do real. A identidade de percepção ser alcançada pelo curto-circuito da
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alucinação que libera a passagem pelos estádios que decifram o gozo. O inconsciente não é alucinação, mas discurso. O dispositivo freudiano da análise é uma colocação em cena concebida para que este discurso se desdobre. A transferência se fundamenta na suposição de que o Outro a quem o sujeito se dirige dispõe do código que decifrará seu hieróglifo ou, em outra analogia, que a música existe não no disco, mas no aparelho que oleva a se transformar em sons. A estratégia da análise consiste em passar esse disco pelo laser in-diferente, a-pático, para que se tornem audíveis as inscrições gravadas nele, para que a sincronia do Isso se transforme em diacronia do inconsciente e este, por sua vez, em gossentido. Pois o Outro da transferência não é o dono do sentido, mas o pretexto para que o texto escrito em alíngua torne-se gossentido. R essignificação do passado que converte todo falante em sujeito de uma anagnórise a ser produzida, de um desvelamento da identidade srcinária e desconhecida, de um rebatismo a partir de uma nova relação do sujeito do discurso com o gozo que (o) transporta e o desconhece. A proposta é a de passar da palavra da lingüística para a letra vocalizada da lingüisteria (lingu-histeria), aí onde a voz já não é cadeia, mas objeto mais de gozar e causa de desejo. E a cadeia, a palavra falada, é o instrumento indispensável para receber a voz como objeto que evoca e faz semblante do gozo. Que retorna do discurso para a marca, do significante para a letra, do desejo para a pulsão, da comunicação para o gozo. O livro está escrito. O disco está gravado. Deve-se torná-los audíveis, convertê-los em palavra e em música. Recuperar, retrouver, a escritura que marca o falante. A “identidade de percepção” é o reencontro com a experiência de satisfação proibida ao que fala como tal. Nesse ponto em que se entrelaçam os dois extremos do aparelho freudiano da carta 52, percepção e consciência, Wysignificante, e Bew, o gozo, gozo do objeto, substitui o sujeito cindido pelo substitui o próprio significante e anula a seqüência temporal da palavra ordenada no discurso. É isto que descobriu e é nisto que se equivocou M areei Proust, totalmente à margem da investigação psicanalítica, enquanto trabalhava em uma substância que é a mesma da análise: o gozo.
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A la recherche du temps perdu,1"busca do tempo perdido, é a crônica de uma análise sem analista, fora da transferência. Suas
3.200uma páginas são uma obedece. investigação recherche ( ) detalhada das uma chaves que subjetividade O resultado transmite experiência ao mesmo tempo paradigmática e irrepetível. Pode-se discutir quem é o Outro da escritura proustiana, seu leitor, a posteridade etc. Difícil seria afirmar que esse Outro é o sujeito suposto saber da experiência analítica. Contudo, o resultado deste ricercare, a obra volumosa, pede interpretação, deciframento de seu deciframento, comentário. Proust deixa, como produto, um objeto artístico que desloca o autor, uma obra que, assim como o quis J oyce com relação à sua, será objeto durante séculos da elucubração especular e especulativa dos eruditos e dos universitários, objeto do scholarship. O que me interessa mostrar aqui - basta mostrá-lo, não é necessário demonstrá-lo - é que Em busca do tempo perdido éo modelo de uma análise e a melhor ilustração que se pode prover das hipóteses freudianas da carta 52 e das conseqüências da teoria lacaniana do gozo tal como surge da experiência analítica. Com uma única objeção: Proust não recuperará o Tempo ao cabo de seu longo itinerário, pois não é o Tempo aquilo que perdeu. Pelo contrário, é no Tempo em que se perdeu, no tempo dos relógios e da história, no tempo do discurso, na diacronia e na ordenação de seus momentos como sucessivos e seriais. E o que termina por encontrar é o gozo, isto é, a anulação do Tempo. Proust se encontra com a sincronia, o fechamento do movimento progrediente do aparelho psíquico. Sim, o gozo não transcorre no Tempo, masno instante que é a abolição do decurso (do discurso) temporal. O instante e a eternidade estão fora da ordem que distingue passado, presente e futuro. Os temposverbais, por sua vez, estão determinados pelo discurso, estão em relação à enunciação da palavra que estabelece uma seqüência que não existe no Real; que é um efeito do Simbólico.
31. M. Proust. À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1969. (La Plêiade). No texto citado, coloca-se entre parênteses o número da página do v. III dessa edição. A tradução é minha. [En busca dei tiempo perdido. M adrid: Alianza, várias edições.]
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O tempo proustiano, “tempo recuperado” do último volume de sua obra, é, na verdade, o tempo abolido pelo retorno das marcas primeiras. Uma palavra estrangeira de nobre linhagem filosófica impõe-se:Aufhebung. Em Em busca do tempo perdido trata-se, mais uma vez, da epifania do gozo pelo reencontro com o incunábulo de sua primeira edição. O tema, sempre o mesmo, sempre variado, recorre nos múltiplos exemplos dados por Proust: o sabor da madalena submersa em um chá, o som de uma breve frase musical, o tropeço resultado do encontro do pé com um par de ladrilhos desiguais, a rigidez ao tato de um guardanapo engomado, o som de uma colher que golpeia contra um recipiente e que devolve à viagem pela estrada de ferro, em que um empregado bateu com um ferro a roda do vagão preso, o livro casualmente achado na biblioteca e que é o mesmo que a mãe lera para o filho insone, hoje idoso. Em que pese a referência temporal que se lê no título da obra monumental não se deve enxertar nada no texto para substituir a idéia de “tempo” pela de “gozo”. Basta ler a prosa do próprio Proust: a recorrência do gozo é uma ressurreição do ser que foi e esse ser ressuscitado gostava “de fragmentos de existência subtraídos ao tempo” em uma contemplação que, “mesmo que de eternidade, era fugidia” (v. III, 875). Nesses momentos em que o tempo é anulado, anula-se também o sujeito, a menos que este consiga recobrar-se, aferrandose às sensações da realidade exterior do tempo presente e do espaço circundante. E se o lugar atual não houvesse vencido de imediato, acredito que haver-se-ia perdido o conhecimento, pois tais ressurreições do passado, no segundo em que duram, são tão totais que não apenas obrigam nossos olhos a deixar de ver o quarto que está junto a eles, para olhar o caminho margeado de árvores ou a maré crescente, obrigam nossos narizes a respirar o ar de lugares muito distantes, nossa vontade de eleger entre diversos projetos que nos propõem, nossa pessoa a acreditar-se rodeada por eles, ou pelo menos a esbarrar com eles e com os lugares presentes, no aturdimento de uma incerteza semelhante à que se experimenta às vezes ante uma visão inefável, no momento de adormecer. (Ibid.)
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Inefável, com a palavra fora de jogo, nestes momentos de “alegriaextratemporalcausada, seja pelo ruído da colher, seja pelo sabor da madalena” (v. III, p. 877, grifos meus). Um tempo, pois, que é a anulação do tempo depois de havêlo vivido, de havê- lo esquecido, de haver atravessado o esquecimen to, de haver ressuscitado em um “gozo direto”, no qual “a única maneira de gostar mais delas é conhecê-las mais completamente, aí onde se encontravam, ou seja, em mim mesmo, esclarecendo-as até suas profundidades” (ibid.)- Um tempo do gozo que rompe com os marcos sociais do tempo compartilhado com os marcos fenomenológicos do tempo das coisas e com os marcos psicobiológicos do tempo da própria vida. Um tempo feito de instantes sem dimensão, da mesma maneira que a linha reta está constituída por pontos sem dimensão.32Neste sentido é que, insisto, o tempo de Proust é a li quidação do tempo. E, como ele disse, extratemporal. O discurso está no tempo: o gozo está fora dele: implica-o e o anula. É o tem po submetido a uma Aufhebungque o recupera dissolvendo-o. Por isso é que o título do último volumeEm de busca do tempo perdi do poderia ser, melhor, o tempoaufgehoben do que o tempo retrouvé,“recuperado”, nas traduções para o castelhano. Não é o retorno do passado. E “muito mais, talvez algo que, comum ao mesmo tempo ao passado e ao presente, é bastante mais essencial do que eles dois” (v. III, p. 872). E o que supera a decepção que inevitavelmente acompanha as experiências e os amores da realidade, a superação da defasagem entre a imaginação, o desejo e a memória. M as que um ruído, um olor, j á escutado ou j á respirado, o sejam novamente, ao mesmo tempo no presente e no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, e de repente a essência permanente e habitualmente oculta das coisas se vê liberada e nosso verdadeiro eu que, às vezes há muito tempo, parecia morto, mas não o estava por completo, desperta e se anima ao receber o alimento celestial que lhe é trazido. U m minuto descarregado da ordem do tempo recriou em nós, para senti-lo, o homem descarregado da ordem do tempo. E compreende-se 32. G Bachelard (1932). La intuicion de! instante.Buenos Aires: Siglo Veinte,
1973.
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que ele confie em sua alegria, ainda quando o simples sabor de uma madalena não pareça logicamente conter as razões de tal alegria, compreende-se que a palavra “morte” careça de sentido para ele; situado fora do tempo, o que poderia ele temer do porvir? (v. III, p. 872-873)
Os dois tempos nos quais virtualmente transcorre a existência, passado e futuro, estão determinados e fixos como tais a partir do instante presente que é o instante do “penso”, do discurso atual. Passado e futuro não existem no real, são dimensões introduzidas pelo simbólico que arrastam seus efeitos no imaginário sob a forma da em relação aoO“atrás” de desejo em relação à “frente”; daí memória ego sum,aqui-e-agora. sujeitoeproustiano emerge como tal a partir de sua escapada da “ordem do tempo”, ou seja, da ordem de uma vida psicológica centrada na construção fantasmática do ego. A ressurreição, a recuperação do gozo do eu verdadeiro que parecia morto porque estava sepultado, é uma epifania do real inefável, ilustra a saída da ordem do discurso que instaura o tempo passado como morto e o tempo futuro como tempo da morte. O presente, tirado do tempo, é ao mesmo tempo um instante fugaz e uma visão da eternidade. A nulados e postos delado o simbólico e o imaginário, resta tão-somente o resplendor do real puro, que dissolve a subjetividade, que merece o nome de “alucinação” no discurso de Freud ede L acan. O sujeito encontra-se com o objeto causa de seu desejo sem a interposição do fantasma. Tal é o sentido da manuseada fórmula lacaniana do “atravessamento do fantasma”. V ive-se. Corpo e linguagem. Outro que é o corpo, não-eu, e Outro que é a linguagem, tampouco eu.Eu é o representante imaginário do sujeito, que pretende suturar esta divisão entre duas substâncias alheias e estranhas. Sobre o corpo se estampa a marca da experiência vivida, uma experiência para ser significada com os signos do Outro da linguagem. Os sabores das madalenas, as sonatas de V inteuil, as imagens das árvores eos campanários. Para o sujeito habitado pela palavra, resta um recurso, a evocação, a memória, a ordenação seriada, as referências espaço-temporais. Um recurso que proporciona pálidas imagens, desocupadas pelos processos secundários do pensamento, decepcionantes, carentes de vivacidade, mortas, fazendo pensar no que elas eram quando estavam vivas,
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seladas sempre a fogo por uma diferença, marcadas pelo signo da negação. O real é o perdido. Nos momentos em que retorna, chamase alucinação. É possível recuperar o gozo srcinário de outro modo a não ser sob as formas esfumaçadas da evocação e da nostalgia? Proust responde que sim, que aquilo que em Freud é “identidade de percepção” pode ter lugar a partir de um encontro casual, contingente, não-intencional. Em seu caso, um tropeço em ladrilhos desnivelados que faz surgir ne le uma vivência deliciosa: “A felicidade que acabava de experimentar era certamente a mesma que experimentei ao comer a madalena e cujas causas profundas posterguei buscar então” (v. III, p. 867). “Onde encontramos este real?” - pergunta-se L acan.33 Pois é, com efeito, um encontro, um encontro essencial, é disto que se trata o que a psicanálise descobriu em uma citação que sempre volta com um real que se subtrai... É a tiqué , que tomamos do vocabulário de A ri stóteles em sua busca da causa. T raduzi mo- l a como o encontro do real. O real está além do autómaton , do retorno, da insistência dos signos a que nos vemos levados pelo princípio de prazer. O real é aquilo que jaz sempre detrás do autómaton, e do que resulta tão evidente que é a preocupação de Freud em toda a sua busca (recherche ).
A s duas buscas, a de Freud e a de Proust, são uma única. A mesma que a de Lacan, a do gozo que esprei ta por trás dos enco n tros “fortuitos”, “como por acaso”. E não se trata da felicidade, mas do momento em que o sujeito é transbordado pelo real, quando se quebram os marcos tranqüilizadores da realidade, a de todos. A função da tiqué, do real como encontro - o encontro como podendo ser fracassado, que é essencialmente encontro fracassado - apresentou-se primeiro na história da psicanálise de uma maneira que, por si só, basta para despertar nossa atenção: a do traumatismo. (Ibid.)
O traumatismo como tropeço com o real, com o que sempre volta ao seu lugar, com o impossível do eterno retomo,isso, com 33. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre conceptsfondamentaux
de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 53-54.
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Isso, que nã o deixa nunca deestar presente como pano de fundo de toda a experiência. O traumático não como agradável ou desagradável, fora do registro do sensível para alguém, do “patológico” (no sentido kantiano), mas como excessivo, inassimilável, produtor de um fading do sujeito. No reencontro do Tempo proustiano, na “identidade de percepção” freudiana e no gozo lacaniano, temos este denominador comum da abolição tanto do tempo quanto do espaço que marcam a subjetividade. Neste ponto da exposição é difícil resistir à tentação de citar e glosar toda a experiência que Proust relata na biblioteca dos Guermantes e que é o ponto de partida (mítico) da escritura de seu livro. T rata-se desse ponto do relato em que, depois de 3.200 páginas de novela, o autor percebe que tudo nele fora uma preparação para o momento em que tropeçaria com uma ressurrreição das sensações que, como marcas de srcem, orientarão sua vida. Na concepção que venho desenvolvendo, trata-se do momento do encontro dos dois extremos da linha reta descrita na carta de Freud. Deslizava-me rapidamente sobre tudo isso, mais imperiosamente solicitado pelo caráter de certeza com o qual se impunha esta felicidade do que por buscar sua causa, busca em outro tempo demorada. M as eu adiv i nhava est a causa a o comparar as diversas impressões felizes que tinham entre si em comum o que eu experimentava nelas ao mesmo tempo no momento atual e em um momento distante, até sobrepor o passado no presente e fazer-me vacilar em saber em qual dos dois me encontrava; para dizer a verdade, o ser que então saboreava em mim esta impressão a saboreava naquilo que ela possuía de comum com um dia antigo e agora, naquilo que tinha de extratemporal, um ser que apenas aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, podia se encontrar no único meio em que pudesse viver, gozar da essência, das coisas , ou seja, f ora do tempo” .34 E co ntinuo
34. Devolvo a vírgula que separa “da essência, das coisas” que todas as edi ções francesas e espanholas omitem por considerar que é um “erro evi dente”, v. III, p. 1134, em referência ao v. III, p. 871, n. 6. Considero que ali não há um “erro” de Proust, mas uma absoluta exatidão tanto nas pala vras como na pontuação da frase.
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citando Proust: Isto explicava que minhas inquietações sobre minha morte cessaram no momento em que reconheci inconscientemente o sabor da pequena madalena, posto que nesse momento o ser que eu havia sido era um serextratemporal e, por conseguinte, despreocupado das vicissitudes do futuro. Este ser nunca havia chegado a mim c jamais havia se manifestado fora da ação, do gozo imediato, cada vez que o milagre de uma analogia me fizera escapar do presente. Somente ele tinha o poder de me fazer recuperar os dias antigos, o tempo perdido, ante o qual os esforços de minha memória e de minha inteli gência fr aca ssavam sempre, (v. III, p. 871, grifos meus)
A credi to está que suficientemente a idéia de Proust clara sobre eo que empo t a ereiteração m sua obradas e cita em sua vida ções apenas poderia privar o leitor do gozo de recorrer pessoalmente às cinqüentapáginas dacena da biblioteca. Mas devemos passar ao ponto seguinte que leva ao seu auge a leitura que, a partir de Proust, pode se fazer de Freud e de L acan. Refiro-meao gozo como uma escritura e às possibilidades e às modalidades da leitura dos signos gravados, sobre os quais está edificado nosso eu real. A o longo do ensino de Lacan, insiste-se na idéia de que não há gozo que não o do corpo. Não poucas vezes o estudioso enfrenta com incredulidade esta afirmação, pois parece contrapor-se à experiência do gozo do espírito ou do saber, daquilo que poderia acertadamente qualificar-se de gozo do significante, esse gozo fálico de nossos cuidados expositivos nos três capítulos anteriores. E é claro que uma formulação não acaba com a outra, mas o postulado lacaniano é que, se o significante pode ser portador do gozo, o é à medida que evoca e mobiliza as escrituras registradas como gozo anterior e exterior ao significante. Pois a palavra é o caminho aberto ao falante para se acercar do gozo perdido que, esse, é gozo do corpo. De modo que, psicose à parte, apenas há acesso ao gozo do corpo pelo caminho da articulação significante. E há outro gozo, além, o gozo do Outro (sexo). Isto implica a sucessão já descrita de marcas, ciframento dessas experiências em um Isso de sincronia e permutabilidade, deciframento das inscrições do Isso em uma palavra absurda e carente de sentido que parece mais acidente do que revelação, interpretaçãodessa palavra insensata do inconsciente em um sistema
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regulado segundo conjunto da línguadoe,vaguear finalmente, a travessiadedasignificações barreira do sentido paraorecuperar, depois palavreiro, a verdade de um sujeito exilado do gozo. A vi rtude (...) do gaio saber (...) não se trata de mordi scar o sentido, mas de rasurá-lo o mais possível sem que faça liga para esta virtude, gozando do deciframento, o que implica que o gaio saber não produza, ao final, senão a queda, o retorno ao pecado.35 (1971 )36
O Proust da cena da biblioteca sente e vive a recuperação do gozo que do é apresente anulaçãododofantasma tempo na superposição do passado memória, e do futuro do desejo em umdains tante de epifania e imortalidade. Os objetos de suas rememorações se carregam para ele de sentidos ocultos. Eles assumem o caráter de hieróglifos que pedem para ser decifrados; este deciframento “era difícil, mas apenas ele fornece alguma verdade para ler” (v. III, p. 878). Apenas ele, “porque as verdades que ainteli gência captadi retamente com toda clareza no mundo da plena luz têm algo menos profundo, menos necessário do que aquelas que a vida nos comu nicou ao nosso pesar em uma impressão, material posto que entrou por nossos sentidos, mas do qual podemos apreender o espírito” (ibid.). Estas impressões compõem-se em nós como um livro, “um livro de bruxarias complicado e florido”, frente ao qual não temos a liberdade de escolher, mas que se nos apresentam como revela ções de nosso ser verdadeiro e oculto. Quem poderá ler por nós este “livro interior de signos desconhecidos”? Quem poderá dizer que o tenhamos verdadeiramente lido quando a leitura “é um ato de criação”, ou seja, que constitui retroativamentenachträglich ( ) ao lido, no qual a escritura se constitui como prévia a partir de sua leitura? Qual era a ordem de realidade de Em busca do tempo perdido antes de sua escritura pelo sujeito Proust? Do livro pode-se afirmar aquilo que L acan disse do inconsciente: nem era nem não era, pertencia à ordem do não realizado. Sua escritura o cria e ao criá-lo o projeta 35. J . L acan (1974). A. É., p. 526. 36. N. A. Braunstein. Existe o sentido, mas não o Sentido do sentido no qual o sentido nos faz acreditar, 2004. No prelo.
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retroativamente no tempo, o faz aparecer em um passado que nunca existiu, é mais, cria o passado como aquilo que é recuperado pela escritura. A ssim, a sincronia do objeto, do produto cri ado, é a conseqüência da diacronia de sua ordenação em leitura e de sua transformação em uma nova escritura, a do livro que hoje qualquer leitor pode ler, se o quiser e se tiver a coragem necessária, com a assinatura deM areei Proust. Oque acontece agora já não temrelação com a vivência de Proust. Ele decifrou seu livro interior e o transformou em objeto, um objeto que é uma obra de arte e que se oferece ao consumo de um leitor de quesua pode (ou não) usá-lo como instrumento para o deciframento própria alíngua, das inscrições das quais ele próprio é um efeito. Neste sentido, propõese o objeto da sublimação como embaixador do real: A arte é o que há de mais real, a mais austera escola da vida e o verdadeiro J uízo F inal. E sse l ivro, o mais penoso de todos para decifrar, é também o único que a realidade nos ditou, o único cuja “impressão” foi feita em nós pela realidade mesma (...) O livro com caracteres figurados, não traçados por nós, é nosso único livro. (v. III, p. 880)
Não é necessário abusar da paráfrase quando as idéias se expressam com tal justeza e quando a superposição dos significantes utilizados torna transparente a relação entre a proposta proustiana e a empresade uma análise: “Um grandeescritor não te m, no sentido comum, que inventar este livro essencial, o único verdadeiro, posto que já existe em cada um de nós; tem que traduzi-lo. O dever e a tarefa de um escritor são os de um tradutor” (v. I I, p. 890). Este trabalho do artista, que trata de ver sob a matéria, sob a experiência, sob as palavras, alguma coisa diferente, é exatamente o trabalho inverso daquele que, em cada minuto, quando vivemos separados de nós mesmos, o amor próprio, a paixão, a inteligência e o costume também cumprem em nós, quando amassam, sobre nossas impressões verdadeiras, e para que nos sejam ocultadas por completo, as nomenclaturas e os fins práticos que falsamente chamamos vida... Esta arte tão complicada é, justamente, a única arte vivente. Somente ela
expressa para os demais e nos faz ver nossa própria vida, esta
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vida que não pode “observar-se”, e da qual as aparências que se observam necessitam ser traduzidas e amiúde lidas ao contrário e penosa mentedecifradas. E ste trabalho quefizeramnosso m a or próprio, nossa paixão, nosso espírito de imitação, nossa inteligência abstrata e nossos costumes; este é o trabalho que a arte deverá desfazer, é a marcha em sentido contrário, o retorno às profundezas, onde aquilo que existiu realmente jaz desconhe cido pornós, quenos fará seguir, (v. III, p, 896) “Este trabalho do artista...” etc., tem íntima relação com a prática da psicanálise como desmontagem dos espelhismos do imaginário, das armadilhas do amor próprio, das capas sobrepostas de nomenclaturas e de significantes convencionais, de desmontagem per via di levare para permeabilizar o inconsciente, esse intermediário entre o Isso e o diálogo. Pelo caminho de Proust e pelo de Freud, chega-se a um resultado comparável: a recuperação do gozo mediante um regozijo no deciframento. A suposição departida é a mesma: o livro já está inscrito, o disco já está gravado, mas essas inscrições estão sepultadas como hieróglifos no deserto. Não há o que inventar nem o que agregar; deve-se recuperar e traduzir com fidelidade o texto srcinário que exige a discriminação para não distinguir o que para nova não confundir que que é diferente. E para quê? Paraé idêntico chegar ae uma escritura, opara o gozo decifrado se inscreva em um ato que faça passar ao real o efeito desse deciframento. Aí onde o sujeito sabe de uma vez por todas quem é a partir da certeza que deriva de uma ação que inscreve seu nome próprio como conseqüência dessa ação. Historizando. Porque- dito comas melhores palavras - os atos são nos so símb olo. Qualquer destino, por longo e complicado qu e seja, consta na real idadede um único momento: o momento emque o homemsabeparasempre queé [pois] um destino não émelhor que outr o, mas todo homemdeve acatar o que leva dentro.37 A o final do percurso não há , não pode haver, umasuperaçã o da partição constitutiva do sujeito, essa partição imposta pela estrutura entre o Um do Gozo e o Outro da linguagem. Mas 37.
J. L. Borges (1949). Biografiade Tadeo Isidoro Cruz. In: El Aleph.Bue nos Aires: Emecé, múltiplas edições.
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tampouco há uma resignação, mas sim a assunção do lugar segundo da subjetividade comdarespeito ao saber, a um saber sem sujeito, escritura objetivada qual o falante é efeito, como “resposta do real”.38-19 Para alcançar esse resultado deve-se atravessar muralhas de compreensão, de sentido, de significação, de apego aos marcos consensuais da realidade, às certezas compartilhadas, à ideologia de um saber totalizanteque é efeito do discurso daUniversidade (pelo caminho da “educação” e-duceree pelo caminho da uniformização das representações por meio da indústria da comunicação). Recordando sempre que o falante goza, mas seu gozo o horroriza e dele nada quer saber. Que o Um se apaga, mas é de extraordinário desconhecido no discurso que é o discurso do Outro; que as estruturas constituídas do sujeito tendem a obturar este nível do gozo como matriz do falante. A o final do percurso, podemos refazer ahistória: a de Freud, com sua apreensão genial do conjunto da estrutura psíquica na carta 52 e seu paciente trabalho de recherche que o leva a centrar-se primeiro no trabalho de interpretação, Deutung, de frustrados das formações do inconsciente. A partir de sonhos, atos e sintomas, estebeleceu o católogo dos recursos que possibilitam que se outorgue sentido às manifestações aparentemente absurdas dos processos primários. Logo, gradualmente, resistindo-se a ele, admitiu que este inconsciente já é tradução e passagem pelo rodamoinho da palavra de uma realidade mais fundamental, sincrônica, real, à qual denominou de Isso. Por seu lado Lacan, mais de meio século depois, refez o caminho: partiu da experiência analítica que, fenomenologicamente, é experiência da palavra, perdeu-se ao confundir Isso e inconsciente em sua célebre fórmula gnômica:Isso fala e logo distinguiu os dois planos: enquanto o inconsciente é palavra e fala, é discurso (do Outro), o Isso goza e está feito de signos, não de palavras. E possível que nestes termos a distinção seja esquemática e que caiba uma precisão adicional. O inconsciente não apenas é discurso do Outro, mas está sim, por sua vez,
38. J , L acan (1973)./!. É , p. 458. 39. J .-A. M iller (1983-1984). Seminário: Des réponses du réel.Inédito.
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estruturado como uma linguagem. Nesse sentido tem duas caras, é de dupla vertente: por um lado, olha as escrituras do Isso e as decifra; por outro, recebe os significantes que são os do Outro e com esses significantes realiza seu trabalho de leitura. O inconsciente se sustenta nesse incômodo encavalamento: entre o inefável núcleo de nosso ser e as estruturas do intercâmbio da palavra. Em síntese, o inconsciente é deciframento do gozo e seus produtos são suscetíveis de interpretação. A práxis da análise consiste em intervir sobre o discurso desarmando a trama de significações para que aflore esse gozo do deciframento de um saber que não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito, é o efeito, o filho. Regozijo.
V
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1. O psicanalista e a histérica Uma certa tradição impõe queo analista comece afalar sobre a histeria e as histéricas, fazendo seu elogio e manifestando sua gratidão por serem elas as inventoras da psicanálise, aquelas que forçaram o Freud médico a calar e aquelas que o ensinaram a escutar.1Uma vez que nventa i ram o psicanali sta e que este aprendeu ao se render com ouvidos complacentes ao desdobramento de seu sofrimento, enamoraram-se de sua invenção, deste objeto admirável que se sustentava sem desfalecer em um contrato de longa audição. Porque o psicanalista não pede senão que se fale e por elas fazerem do relato pormenorizado de seus sintomas e de seus desencontros com o Outro um modo de se sustentar na existência; porque o analista registra com sua atenção flutuante todas as suas desventuras e porque elas vivem suas desventuras para a testemunha que as
1. L. Israel. La jouissance de l 'hystérique. Paris: Arcanes, 1996. Este livro, Gozo, tem - apesar do título publicado em francês vários anos depois de - alguns pontos decontato com o que se aborda neste capítulo. Corres ponde, sem dúvida, a idéias que já estavam no ambiente, como o prova o que seja a elaboração escrita deum seminário oferecido pelo autor em 1974. Israel morreu em 1996, quando seu livro estava no prelo. Inicia com um “Elogio da histérica”, p. 43.
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escutará com simpatia complacente; por isto é que o encontro di ambos está inscrito de antemão na natureza das coisas e se oferciv à primeira vista como um paradigma da predestinação. M as não é que a histérica apenas inventepara o psicana l istn Também o analista inventa para a histérica, porque o dispositivo qui inventaram entre ambos reproduz a espécie que o engendrou. A tal ponto que hoje, lacanianos por fim, aceitamos como um fato estabelecido que a histerização estrutural é a condição para que todo falante, não importa sua estrutura clínica, possa entrar em análise A fórmula do discurso da histe ria é a fórmula do come ço de uma análise. Tem de haver uma queixa, um sintoma, transformado cm demanda de saber, que encubra uma demanda incondicional de amor e que se dirija a quem supostamente detenha esse saber sobre aquilo que se ignora de si mesmo. O sofrimento, transformado em pergunta feita ao Outro, é o fundamento que torna possível uma análise. O dispositivo analítico é o oferecimento do terreno para que um discurso se histerifique. Não há, então, por que estranhar se, desde que existe psicanálise, a histeria mudou em suas modalidades de apresentação. A solidariedade entre histeria e psicanálise é completa . (Solidariedade não implica harmonia.) A s histéricas inventaram o dispositivo que engendrou o analista, o analista que pede e que produz histéricas, estas que desdobram hoje seus encantos no campo da escuta e não no campo primeiro da visão. Se antes elas se mostravam como espetáculo charcotiano que se derretia com a hipnose, é pelo falar que as reconhecemos hoje. E na dupla analista e histérica é impossível decidir/dizer quem foi o primeiro. Este é o fato. Como o assinalou L acan, com sua oferta o psicanalista cria hoje a demanda. À histérica não custa reconhecer que foi isso exatamente o que sempre quis, antes ainda de chegar a sabê-lo. Dispor de um Outro sobre o qual descarregar seu sintoma e sua insatisfação, um suporte e um testemunho neutro, não culpabilizador como o foram todos os que antes a escutaram, alguém capaz de entender a verdade em sua palavra em lugar de rejeitá-la como mentirosa ou inconsistente. Quando o encontra, cura-se rapidamente e faz do Outro um substituto dos sintomas. Freud chamou isto de“neurosede transferência”; L acan não o segue nesse
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caminho, ainda que tampouco se detenha para considerar em detalhes este sintagma freudiano. Suponho que achar aque esta expressão é pleonástica. Pois a transferência é a por neurose, neurose necessária para que a análise progrida. A neurose entra na transferência e assim o sujeito da neurose entraem análise. A “satisfação sexual substitutiva” queera o sintoma se desloca agora sobre a figura do analista e o gozo que se ancorava no sofrimento muda agora de ancoradouro. Pois não fica à deriva, não, quando se assenta no nível do discurso, ou seja, da pulsão vocal, modalidade daTrieb que apenas foi entrevista (por Robert Fliess) antes de L acan. A análise poderia serdoo gozo. cenárioSim; e o há porto destino desta do mudança na localização umde gozo da análise, cumprimento da regra fundamental, do contrato analítico, do enquadre discretamente erotizado no qual “tudo” poderia acontecer sem que “nada” aconteça, dos intercâmbios de discursos e interpretações, do falar e do ser falado. E uma das ciladas da análise e, por vezes, das mais difíceis de romper pela “trama de satisfações”2que é capaz de envolver tanto o analisante quanto o analista que não saiba estar à altura de sua função. A histérica e o analista inventam-se reciprocamente com relação ao gozo. O edesejo deverá, aparecer como vala de contenção canal do de analista evacuação para então, esse gozo; se não consegue fazê-lo, o estancamento da análise é a conseqüência inevitável. A palpa-se aqui a dimensão de gozo da tra nsferência que é, como o queria Freud, modalidade da resistência, sem por isso deixar de ser o motor daanálise. Transferência do gozo, dos undos f depositados no banco do inconsciente, do capital quantificado, cifrado. A histérica quererá ser escutada se o Outro quiser que lhe fale. Não se trata de um encontro fortuito, mas do cumprimento de uma exigência estrutural. Ela demanda ser ouvida, pede o tempo do Outro como medida do desejo de sua palavra. O discurso, diferentemente do instante do olhar, requer tempo para ser desenvolvido e é assim que o tempo se torna objeto e o discurso tem de se armar dos 2. J . L acan (1958-1961). Écrils. Paris: Seuil, 1966. p. 602. Em espanhol, E s critos 2. México, Siglo XX I , 1984. p. 582.
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recursos que permitam que o Outro se sustente como ouvinte. Suspensões da frase, entrecortamento por choros e suspiros, insinuações de relatosem saborosos dolorosos queque se postergam, criação do suspenso torno deou uma revelação tarda, rodeios e desvios aparentemente caprichosos quando o Outro formula uma pergunta, dosificação cuidadosa das confidências, aproximações enviesadas do escabroso. Como não haveria de ocorrer a Freud, escutando-as, a imagem da cebola com suas camadas concêntricas de resistência à medida que o discurso se aproxima do centro, do “núcleo patogênico” que é a lembrança do trauma, fortaleza que encerra o encontro do gozo com o gozo do Outro? O discurso, assim estruturado, seduz, conduz at é si. Mas apenas a quem quer e espera ser seduzido. O sedutor conta com o beneplácito daquele pede para seduzido, que nãorecordar é, portanto, sua vítima, mas seu que cúmplice. Não ser excessivo, portanto, aqui que o ato analítico está determinado pelo gozo e pela necessidade de se preservar dele. A histérica é entusiasta da análise, uma análise que lhe custa, que avança em meio a imensas dificuldades, das quais se queixa, mas que não acaba de recomendar e ate exigir àqueles que a rodeiam. A ssim, dá a partida a análise, com a exposição detalhada os d sofrimentos e da responsabilidade que o Outro e sua traição ou ingratidão têm em si. Atendendo aos signos do ntere i sse do analista que ele deixa escapar para aderir à sua demanda, para lhe oferecer em abundância os dados, os sonhos ou as associações transferenciais vividas como demandas formuladas a ela. É o que os médicos e hipnotizadores de antigamente haviam conhecido como um traço de caráter e que batizaram com o nome de “sugestionabilidade”. Esse traço deu base a Freud para escrever um inesquecível capítulo de sua psicologia das massas. Com um desespero por se fazer amar que a leva a crer que ama... e daí apaixonar-se não há mais do que umpasso. A espreita de manifestações do desejo do Outro que puderam se filtrar como demandas e pronta para satisfazer tais demandas, para sacrificar-se inclusive até a imolação. Esta disponibilidade para aquilo que o Outro pudesse demandar aparece como uma “plasticidade” especial que contrasta com o outro pólo que é a “rigidez” obsessiva. Que o Outro diga o que lhe
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falta para ser dado, para que ela se dê no lugar da falta do Outro, ou seja, para se identificar, para chegar a ser o desejo do Outro. Se o Outro quer ser um escultor que plasme os seres humanos segundo formas ideais, encontrará na histérica a argila maleável que lhe permitirá ser um Pigmaleão. Se o Outro se entregou a uma causa que o uniformiza, ela se apaixonará pelo uniforme que foi investido como objeto do desejo. A ventais de médicos, batinas de sacerdotes, togas de magistrados, belezas da ostentação e da maquiagem, eloqüências do dizer e poderes da política que atuarão assim como objetos imaginários aos quais se prenderá o sujeito em uma dimensão quase etológica. Encanto suave do apagamento do eu na-identificação com o ideal do eu do Outro. A salvação na Causa. M ais freqüente é que o objeto queo Outro reconhece ta mbém seja uma mulher, a Outra mulher. A pareceaí a perguntapelo atributo que a Outra tem como segredo da atração que sobre ele exerce e da identificação com o que pode ser o motivo da atração entre eles. O papel de intermediária e de espiã dos segredos do amor lhe vem a propósito. Operará como “procuradora”, como juiz e, parte, como “a convidada” (cf. Simone de Beauvoir), como elemento que sustenta as intrigas, identificando-se e escutando as queixas de uma e outra parte, como Dora, representando os papéis que a trama lhe inspira. Quer se encarregar do gozo, extraindo-o da suposta jazida que é o Outro e para isso não há caminho mais curto do que confundirse com ele, entrar em sua bolsa. O gozo é uma essência que lhe escapa e que apenas poderia ser fixado sobre a base de reconhecêlo e pegá-lo no Outro, um Outro que deve ser construído, esculpido e defendido a qualquer custo. O Outro que é o assento de um gozo ilimitado, o Pai ideal, primitivo, morto desde sempre, do mito freudiano que ela, a histérica, empenha-se em sustentar além de todos os desmentidos.3 A esse gozo alheio e fugidio trata ela de mimar, fazendo semblante dele (“artifícios”, diziam os clínicos depreciativos). Em uma atuação à qual não concede maior confiança, insegura de 3. C. M il lot. Nododaddy. Paris: Point Hors L igne, 1988.
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experimentar o que representa. E ntra na intriga como atri/., figurando-se o que poderia sentir no lugar do Outro e os efeitos qiuse produzirão no Outro segundo as diferentes op(era)ções que cm cada momento lhe são oferecidas para que interprete seu papel. Daí que sua própria atuação lhe é apresentada como artificial, rebuscada, falsa. Lacan aludirá ao costado SemFé da intriga histérica, deste desdobramento que a leva a ficar um tempo sobre o cenário e entre os espectadores, participando e subtraindo-se no jogo dramático, dizendo-se a cada momento que é “de mentirinha” que está nele c logo saberão quem ela é de verdade, estando sem estar, sentindo a impostura do gesto e a impostação da voz, oferecendo ao Outro um corpo anestesiado ou morto que é observado desde fora por um olhar ansioso de captar o que esse Outro faz ante seu corpo deixado no abandono e na anestesia. M as o compromi sso é menos fingido do que ela crê. Equivocar-se-á ao identificar a demanda do Outro, uma demanda que ela pediu e tomou como objeto de seu desejo, com o desejo do Outro. Terá de viver para preencher o Outro, consagrada a satisfazer o que supõe ser o desejo do Outro à custa do sacrifício de seu desejo, o próprio, um desejo duvidoso que deixa de bom grado e com alívio. Optará deste modo por um caminho de abnegação, de sacrifício, de renúncia. Para isso, terá de ser um complemento imprescindível, um objeto apendicular do Outro. E de nada se queixará depois mais amargamente do que de haver sido tratada como objeto. Em sua imaginação se figurará que o Outro a quer perversa (inocente) e se representará fantasmaticamente essa perversão para assim assegurar-se do Outro segundo a fórmula proclamada por Lacan4como característica geral das neuroses e confirmando as observações de Freud em seus trabalhos sobre os fantasmas esobre o ataquehistérico de 1908 e 1909 .5,# Oferece-se como objeto que encobre a castração do Outro que aparece assim, graças a este apêndice pórtico, em sua completude 4. J . L acan (1960). Écrits, p. 825;Escritos 2, p. 805. 5. S. Freud (1908). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires: A morrortu, 1976. v. IX, p. 139. 6. Sigmund Freud (1909).Obras completas,v. IX, p. 207.
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sem falhas, no lugar do dono e senhor do gozo, no sítio inacessível do Urvater. Essa é a fórmula da histeria propostapor Lacan em seu seminário sobre a transferência e logo deixada (por quê?) no esquecimento:7 @
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A
-cp
A operação é interesseira. Ser no fantasma o objeto que assegura o gozo dopartenaire do amor para assim negar, não a castração do Outro, como acontece nas perversões, mas a própria, é algo que leva a ocupar um lugar preferencial, a tornar-se imprescindível - no fantasma - para o Outro. Este lugar é incerto. Como estar convencida desse lugar de privilégio do qual a Outra mulher poderia despojá-la? Até que ponto édigno e o Outro aprecia o sacrifício e a homenagem que recebe? Que efeitos podem se produzir por sua separação e sua perda? Se o Outro a quer, é mister que dê provas. Deve-se ver até que ponto está disposto a chegar e se é capaz de responder às oferendas ilimitadas que recebeu. A lâmina libidinal que a une com esse Outro incerto é um órgão elástico que deve ser constantemente estirado até comprovar seu limite.8 E o Outro, à larga, quase fatalmente, revela não merecer os sacrifícios, ser incapaz de responder com gratidão, ser traidor, pervertido, sádico, indigno da confiança depositada. O ato seguinte ao da oferenda sacrificial sob o lema de “tudo por ele” é o da reprovação, da acusação, da autocomiseração, da reclamação violenta, da provocação que produzirá as provas palpáveis da traição do Outro. E o terceiro ato é o do deslocamento paraum novo Outro, pessoa ou causa, que pareça exigir o sacrifício passional para restaurar ou alcançar sua plenitude. Sempre à espera desse Outro absoluto, definitivo, ao qual ela ofereceria Tudo. Frente a essa figura 7. J . L acan. Le seminaire. Livre VIII. Le transferi.Paris: Seuil, 1991. p. 289 e 295. 8. J. L acan (1960-1964). Écrits, p. 848;Escritos 2, p. 828.
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Cio/n
do Pai Ideal, todos os demais (os outros com mi núscula) estã o em falta, são menos válidos. A ssim, entendem-se saquatro belezas da histérica. Queixosa, vítima, objeto de humilhações, traições, incompreensões e ingratidões, ela é alma bela, depositária imerecida de sevícias e desgraças. Oferece-se como objeto ao olhar e à escuta do Outro. “Olhe ao que me vejo reduzida.” “Ouça, se é que pode suportar, o relato de minhas desventuras.” Sade o prefigurou com um título mordaz: J ustine ou os infortúnios da virtude. O ser da alma bela confunde-se com essa queixa continuada, esse prolongado lamen to, essa sucessão de sintomas e crueldades. O gozo corre ao largo do relato sem que seja identificado como tal nos pormenores das traições do amado, os erros dos médicos que deixam um resto de corpo quereconhecimento sofre, descartado, cicatrizes cirúrgicas, as faltas de por marcado parte dospor filhos e amigos, as injusti ças de chefes e professores. Sofre e chora ao contar na outra cena. Conta reavivando o sofrimento das experiências desagregadoras na extensão da lâmina além do tolerável. O relato da inocência perse guida, do sujeito que é castigado quando somente segue a lei do coração, exige a inversão dialética indicada por Lacan nocomeço de seu ensino.9O fantasma de flagelo, batem numa criança, isolado por Freud, é a colocação em cena privilegiada da alma bela. A segunda beleza da histérica belle é a indifférence. Bela indi ferença para atravessar, sem se despentear, os furacões e moinhos de que se geram em torno O Outro aparentemente se confronta comdesespero seus próprios limites frente a umadela. experiência, imprevisível, que o insta a atuar e logo o preenche de reprovações por sua atuação. Toda vez que o Outro resolve fazer algo em prol ou contra a demanda histérica, demanda de que se responda a seu oferecimento eentrega, el a se subtrai à homenagemou à reação que suscitou. Não é isso que ela queria. Seu desejo continua sendo um desejo insatisfeito. A indiferença, quando não o franco desdém, são respostas à mobilização do Outro. Insensibilidade que também o é, ou que primeiro é, do corpo. O alimento ou a bofetada, as carícias e o sexo, os adornos e as vestimentas que realçam ou que desme 9. J. L acan (1951-1952). Écrits, p. 219;Escritos 2, p. 211.
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recem a beleza “dão no mesmo”. São problemas para o desejo do Outro, esse desejo que ela desperta ou invoca, mas que ignora, im pávida, porque não lhe diz respeito. Chegando ao extremo da anorexia nervosa, na qual a colocação em jogo inclui a própria vida e mobiliza seu entorno, sem que isso lhe importe, o desespero de um entorno sempre crescente. É que a angústia do Outro pode chegar a ser um alimento que nutre e acalma uma fome que está além da fome, necessidade insaciável de um nada que eleva a potência fáli ca de quem se recusa, ela, à dominação do significante fálico. E ela quem - subtraindo-se - mostra a inútil vaidadedo desejo. São eles quem os reprovam. A terceira beleza é a da “bela adormecida” que sonha com um futuro despertar em um paraíso de felicidade, mas que, enquanto isso, espera sem se agitar achegada de umdesejante que adesperte. O desejo não lhe diz respeito; ela atua na lista da ausência de desejo. A ação está assim sempre suspe nsa e, quandofinalmente seproduz, será ignorando as conseqüências, será para ser arrastada pela turbulência incompreensível do Outro. Amar, estudar, lutar por uma causa, ter um filho, comportar-se a favor ou contra certas regras, trabalhar, são coisas alheias, coisas que ela pode fazer, mas sem senti-las como suas, com frieza, prestando-se (sem se dar) a satisfazer expectativas estranhas, dissociada das conseqüências. Enquanto não as faz está dormindo, quando as faz é sonâmbula. Em um futuro, alguma vez, o desejo manifestado pelo beijo do príncipe, o amor, poderá resgatá-la de sua apatia. Pois dela não procede nenhum desejo; está encantada. A quarta beleza da histérica é a que a opõe alter a seuego:a fera. A beleza quarta vem ao seu encontro com um carrasco sanguinário que a faz objeto das vilezas mais abjetas. O ser brutal, tosco, violento, carente de delicadeza, que a relega e a humilha é algo de que se queixa sem cessar e que parece, apenas parece, a atualização necessá ria de um fantasma masoquista. A dupla da bela e da fera aparece com chamativa freqüência nos consultórios analíticos. A história da alma bela, da bela indiferença e da bela adormecida parece requerer em algum momento a aparição deste personagem complementar que é o responsável pelos infortúnios da virtude, dando substância e espessura às queixas, essas queixas que
se repetem nrnotonamnte ante a série dos faiiliares, dos sacerdotes, dos:onfidente e dos terapeutas e que, tolos suspeitam disso, são a fonemas de do umfanasma gao recôndito, um gozo qtt procede não do masoquismo que acompanha o sifrimento, que é o de relatar ese sofrimeno ante um ouvido comprensivo que se identifica com da no proteto c na com-paixão (Mitlid). Em suas ndinhas, os psiquiatras vingam-se e cpetem o que seus livros nãodizem: quena especialidade há dua vítimas por antonomásia, qe são a muller do alcoolista e o maricb da histérica. A s vezes, os dosfazem uncasal e o resultado garaite o gozo de ambos. Para o pscanalista, oda vítima é suspeita de cumplicidade quando não o ator inteL ctual do crime. (Sim;3s li vros de jurisprudência etão imprenados de comicidade iivoluntária.) I nclusive um arali sta perpicaz como L ucien I srél chegou a escrever um rtig) a que se chmava assim: “A vítima d histérica”.10
2. Em função dogozo Bem; chegoi o momeno de abandonar os retrato: falados para entrar na considração estutural e apreciar o quese ganha ao introduzir o conce to de “goz>” na clínica do pitiatismoantigo nome desta venerável nurose da ciai nem os psiquiatras qiErern saber. A histérica, )stentandosua insatisfação, advoga )or um gozo supremo, subline. A solu<áo que se oferece ao faante é a da normalização sex al, passan o pela castração, que ginem torno de um significante dcgozo com( impossível: o falo. A histrica o recusa (esta é uma dasrazões eTão a menor para falai sempre da “histérica” indepeidentemene do sexo de suas credencais). O falo, caminho ofereciò ao gozoie todos e de cada um, é omado por ela não como sgnificant;, mas como objeto qu
10. L. Israel.L ’hystrique, te se£ et le médecin. Paris: Massa, 1976. (Em português,A histrica, o sexo? o médico.São Paulo: Escuta 1995.)
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Contestando o vetor que va i desdeA mulher (que nã o existe) até o falo, sublinha a importância do outro vetor, aquele que, dentro do campo feminino mesmo, dirige-se ao enigma do que é e do que quer uma mulher:
N ão-toda é a fórmul a lacaniana, a mulher não-toda na significação fálica, partida entre o homem e a Outra mulher, dirigindo alternativamente sua pergunta e encontrando sempre meias respostas sobre este gozo que experimenta, mas que não sabe em que consiste. Na histérica esta alternância é extrema. O apaixonamento de sua entrega não conhece meias palavras. Seu nãotoda é desmentido; a consagração absoluta à figura do Pai Ideal redivivo a leva a um toda-em. Mas toda-em nã o podeconduzir senão à decepção, ao naufrágio anunciado do falo e de sua soberba. Passase assim dotoda-em para o toda-não na relação com o falo e na contestação das virilidades imaginárias. É o momento da identificação com o que falta à imagem, o momento em que ela, dizia L acan, “faz o homem”. Do toda-em ao toda-não como re sultado de um questionamento que, nos dois casos, está centrado em torno do falo e de sua função. A decepção anima esta passagem a uma pergunta que a leva, em um momento de sua dialética, a colocarse “toda-na” pergunta dirigida à Outra mulher sobre o gozo feminino: é a situação de Dora quando se volta para a sra. K , que mal poderia ser tomada como “homossexualidade” ou como “perversão”, ainda quando o ane xo de Freud, acrescentado m e 1923, pudesse abonar
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a confusão. É histeria e nada mais do que histeria o que há em sua posição ante o casal K. Estapôde contesta çãoque do falo m, ao mesmo tempo, am imese do título homem, fazer um co livro imprescindível levasse o justo de O feminismo espontâneo da histérica.A pergunta histérica é consubstanci ai à pergunta sobre afeminilidade. A respostalacaniana, “não-toda”, é pouco convincente para a histérica que se joga ao “tudo ou nada”, oscilante, sempre temporário e desejante de um definitivo que sele para sempre o estatuto de “a mulher”. Daí também que a fórmula do discurso histérico inclua esta busca reiterativa de um senhor que possa responder sem ambigüidade à pergunta pelo ser da mulher: S -» S, (2>
//
S2
de um senhor que dê respostas, que ofereça um saber (padres, mé dicos, professores, psicanalistas), um saber que, claro, sempre falharápara dizer a verdade e que estará em relação de disjunção (@ // S2) com o objeto que é causa de seu desejo, com o mais de gozo, com a verdade que move seu discurso. Um senhor que, a menos que se estreitem os nós da relação, a menos que se creia nis so, acabar á em fera. A histérica vai pelo mundo, ass im, insegura de sua identidade, tratando de“a definir quem é, qual é seu nome próprio própr io que importun a”),11mimando d i ferente s iden tidades(esse que senome confundem com papéis (sociais, teatrais), à pesca do que é desejo no Outro para se identificar com o objeto desse desejo e alcançar, assim, uma identidade fantasmática (terceiro tipo, identificação histérica, descrita por Freud no capítulo 7 de “Psicologia das massas e análise do eu”).12Repetindo permanentemente a pergunta dirigida em primeira instância à mãe: o que é ser uma mulher e como ela goza? E que, ante a decepção da resposta (castração feminina), desloca-se para o pai: “o que me falta?” e que leva a filha a se 11. J. Lacan (1960). Ecrits. p. 822;Escritos 2, p. 802. 12. S. Freud (1921).Obras completas, v. XVIII, p. 107.
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identificar com sese falo que éparao pai uma mulher além da mulher (castração masculina). Na dupla da bela e da fera, como já disse, o gozo está garantido para ambos. Com uma dupla cujo desejo é, em essência, um desejo insatisfeito, produz-se para certos neuróticos uma excitante situação de desafio, um aguilhão permanente para gozar coo1,o sintoma, sintomaprivilegiado “de todo homem”,13que éessa mulher. -Ser o príncipe do beijo despertador é um fantasma complementar ao da bela adormecida, assim como o é também o de ser quem detém os segredos do gozo feminino, superando nisso o (jmrtenairesinconscientes do ato [homo]-sexual). resto dos homens Por outro lado, se ela é porta-estandarte de um gozo duvidoso que estaria além do falo, ele pode se satisfazer com a convicção de que a vida de casal parece trazer-lhe que não há outro gozo mais do que o seu, o fálico. E, se ela recusa o álibi e o curto-circuito do prazer, prolongando e postergando as ocasiões de satisfação, ele percebe que esta inacessibilidade sustenta sua ereção e pode montar cada (des)encontro sexual sobre um cenário de violação e estupro. Pois a ausência e a indiferença ante o desejo elevam o gozo à condição de um absoluto inalcançável com o qual se consuma a façanhaE de gozar não ao quadrado pelo fato (noinsatisfeito, leito) de gozar gozar. o desejo falta, mas, nela, está pois de ela não não se engana, pede o falo e sabe - bem e muito bem- que o pênis não é senão um simulacro descartável, incapaz de assegurar o gozo. Seu partenaire é, além do varão, o Pai primitivo, dono de um gozo irrestrito, não submetido à castração, exceção inalcançável que inscreve a regra da falibilidade de todos os outros. O desejo fica insatisfeito porque ela não é incauta, comprova uma e outra vez a castração do Outro c recebe dessa castração seu próprio valor fálico; por não tê-lo, chega a sê-lo,non-clupe, é pois sabe que o pênis não é senão a metonímia do falo. (Não quer falar com o palhaço, mas non-dupes errenf,essa é a essência com o dono do circo.) Claro, os da neurose. Muitas vezes, vem curar-se de sua incapacidade para se deixar enganar, da astúcia com que torna seu desejo um desejo insatisfeito, de sua perdurável engenhosidade para criar insatisfação. 13. J. L acan (1975). Seminário X XI I I , p. 19.
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O que pedeé saber, mas, além, sustenta a insatisfação deseu desejo; mal poderia, então, comprazer-se com os significantes que lhe entrega o senhor, o homem de Deus ou da ciência. Sua pergunta aponta, por cima da demanda, ao desejo. Como na criança (“infantilismo” tão denunciado), as respostas a seus “por que” não acalmam a curiosidade, mas a exacerbam. Que o Outro se disponha a saciar seu apetite de respostas, encontrando incontinenti nela, como resposta, uma verdadeira “anorexia mental”, um cuspir e vomitar os significantes que pediu. Bulimia e anorexia. A pergun ta se desmultiplica, toda ela é um enigma, o saber é posto em suspenso por sua simples prese nça. E eis que não há significante deA mulher. Essa é a resposta deL acan àpergunta. Dirige-se ao Outro com uma demanda (D) insaciável. O Outro, diante dos porquês da criança, acaba por mostrar sua falha, o saber que lhe falta. A resposta que a demandaobtém é a falta a ser do Outro como efeito infaltável [S (A)]. A demanda revelou o desejo (d) e seu fundo impreenchível. A(Outro) - D (dem anda [de saber]) = S (A ), [d (desejo)]
A discordância entre D e d revela a falta no Outro: o grande A é A. A demanda feita ao Outro revela inevitavelmente uma falha que não está nela, mas nele. Assim, o lugar da incógnita se deslocou. A gora é ela própria o enigma para esse Outro que nã o compreende esuposição que é insufi esmo que, esforce-se e ainda maispor quadotá-la ndo, seduzido pela dociente. saberMabsoluto, da resposta. E que o gozo procede justamente da revelação da insuficiência do senhor, de sua impotência e de sua castração. Ela o põe a trabalhar, mas as palavras que ele diz não fazem senão exibir sua falência (carência de falo). R ecebe com ceticismo o saber que lhe é oferecido: “Sim; está bem, mas... não é suficiente, algo, não sei bem o quê, falta”. O clínico se assombra ao ver que toda palavra sua é corrigida por ela, ainda quando é simplesmente a citação textual do que ela disse. E que nenhuma palavra poderia dizer o ser dela e sempre se aferrará à sua diferença, essa diferença que não quer nem pode ceder, já que sersedita pelo porque Outro ésupõe reconhecer sua castração, essa (pre)sente castração que à que aferra, que é o que o Outro quer e que o Outro gozaria com ela. O analista deve
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partir, então, para intervir, de sua necessária imperfeição, da renúncia a tudo que seja saber, da recusa em tomar o lugar do " que enganosamente lhe é atribuído, da colocação em ato de sua ignorância. Também neste sentido cabe afirmar que é a histérica que inventou opsicanalista com suapaixão dominanteque é a ignorância. No discurso da histérica, as palavras e o saber podem ser apreendidos, mas eles não a tocam em seu corpo cortado e recortado pelo sintoma, pelo ataque de nervos, pelas operações do cirurgião, pela maquiagem e pela persecução incabável da beleza e juventude eterna, pela busca no espelho e na outra mulher do segredo de seu desejo insatisfeito. O gozo do sintoma não se dissolve no gozo fálico que passa pela articulação discursiva. Em outras palavras, é gozo fálico que não atravessou o diafragma da palavra, que está retido, reprimido. Por isso, Freud se inclinava pela hipótese da dupla inscrição com a Vorstellungendiferentes, arepresentação de dissociação entre duas coisa e a representação de palavra dissociadas entre si, consciente e inconscientecoexistindo sem se tocar. E L acan arremata aquestão dizendo que o saber e a verdade não mordem do mesmo lado da banda de M oebius.14A interpretação sábia não levanta a repressão por irrepreensível que pareça ser nas perspectivas da lógica e da técnica. Frente aos discursos do senhor e a universidade, é ela quem tem razão. Por isso teve que inventar o dispositivo psicanalítico que é a resposta de Freud ao enigma da histeria. O essencial da verdade se subtrai, necessariamente, ao saber da interpretação, assim como o substancial, a sensibilidade do corpo, se subtrai ao gozo fálico. Fica intocada. Esta subtração deve atuar como estímulo do desejo do Outro e, portanto, no lugar do que falta, vê-se investida de valor fálico, de significação, de estatura imaginária. C riando a faltapostiço, a ser (dese no Outro possívelPois para fabricar um desejo umjo) simulacro deédesejo. é ela essa falta no Outro que opera como molde e como modelo para sua identificação: ela será isso que falta. Deste modo, alcançará uma
14. J. Lacan (1965).Écrits, p. 861;Escritos 2, p. 840.
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identidade e poderá aspirar a ser imprescindível, a inscrever-se de tal maneira na história, por procuração, por meio do Outro e da oferenda do quanto ele demandar-lhe. Operou-se, o engano fundamental quepossa é feito a si mesma ao confundirassim, a demanda (do Outro) com o desejo (próprio). Ser, no fantasma, objeto do desejo passará a ocupar o lugar de ser sujeito. Foi necessário criar a lacuna, a falta a ser no Outro (como se não existisse por si só!) para se oferecer no lugar daquilo que pode preenchê-la. Daí a constituição da dupla da bela e da fera. Daí sua formidável predisposição para instalar-se no dispositivo analítico. Reagindo com emotividade e agitando-se ante o desinteresse do Outro, reclamando-lhe a frieza e, pelo contrário, ante a paixão que poderia despertar, respondendo com a indiferença e com o desapego. Sem na contramão. Cultivando a ordenada falta, pedindo ser vista,correspondência, reconhecida, ouvida, admirada, hipnotizada, por um Outro que não consegue possuí-la plenamente porque sempre fica esse resto que se subtrai, posto que “isso” que constitui a resposta não é precisamente o que ela esperava. Pois nenhum pai é O Pai, esse a que dirige a sua demanda. A análise lhe convém , lhe corresponde eé fonte deum gozo que é resistência ao desejo e que deverá ser cevado e logo contrariado pela operação do analista. Graças a esse gozo, a análise pode evoluir e também pode estacionar nos pântanos da neurose de transferência. Sua paixão requer uma testemunha que seja sujeito de (a) (com)paixão para quem ela está disposta a viver sofrendo e oferecendo óbolos sacrificiais. Queixando-se de ser tomada como objeto, é como objeto que vem a se oferecer às manobras do Outro. Formula sua pretensão de especularidade, de intercâmbio recíproco dos í(@), oferecendoi por @, gato por lebre, em um engano do qual é a primeira vítima. Sua idéia, seu fantasma, é o do recobrimento recíproco e absoluto dos dois desejos. Por isso pode funcionar como sacerdotisa do amor. Sua religião é a relação sexual, essa que não existe. Para fazê-la existir fica o que a supre, o amor, o que a permitiria tapar a tripla falha no imaginário, no simbólico e no real. @ é o que falta ao Outro em sua barra (A) para chegar aser A . E la se oferece no lugar deste objeto restaurador da
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integridade, com a esperança de que sua própria cisão subjetiva, sua própria castração, seja superada nesta relação de absolutos. Se o outro, graças aela, conseguepassar de A a A, ela, de volta e por identificação, poderá passar de S a S na integridade de um amor invicto. Oferece-se como objeto mais-de-gozo, apresenta-se como agalma, garantia de gozo que falta ao o estojo que contém essa agalma consiste em Outro, causando seudesejo. M as o segredo da estar oculto, enclausurado, inacessível. Para que o desejo se sustente é necessário que seu objeto se subtraia e desse modo fique exaltado o gozo de que este objeto “queria” ser a condição absoluta. Do desejo do Outro, ela é - negando-se - a causa objetai e objetivada. Para poder sê-lo tem que negar-se e ignorar toda possibilidade de Befriedigung,semear a insatisfação. A relação com o saber, a que se mostra no discurso da universidade, oferece-lhe uma oportunidade privilegiada. Colocandose como @, no lugar da ignorância oferecida ao discurso do sa ber (SJ , ela se produz como suj eito (S) que, em seu devido momento, buscará o senhor. O discurso da histérica é o inverso, especular, do discurso da universidade. S @
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discursoda histérica
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discurso da universidade
Dirige-se ao Pai primitivo, presumido dono do gozo e do saber sobre o gozo, Outro que não conhece a castração, para o qual erige um lugar deexceção insustentável. Tropeça ol go, quando não é ela mesma que a provoca, com essa falha que renega e se identifica à falta que está agora à vista como sendo a medida de seu preenchimento. “O que me falta é faltar-lhe” pôde dizer alguém, expressando assim seu desejo pelo lugar que corresponda a seu desejo renunciado e insatisfeito. Daí a difícil posição do analista que não pode se refugiar na impostura da impassibilidade e da falta de desejo, mas que tampouco pode permitir-se indicar-lhe um lugar de carência para que ela se aninhe nele. É o momento de recorrer a essas vacilações calculadas da neutralidade e essas mostras da
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necessária imperfeição recomendadas por L acan, eludindo a dificuldade de indicar um lugar de identificação que possa depois dar pé ao álibi do: “Não é por mim que faço isso, mas por você”. No seminário, em 1975,15 L acan distinguiu os três tipos freudianos da identificação como ligados a cada um dos anéis da cadeia borromeana e referiu a identificação histérica, a terceira da relação de Freud, à identificação com o imaginário do Outro real. T rata-se de um Outro real que foi elevado à categoria do Um absoluto, do Pai srcinário, para logo subtrair-se dele e elevar-se ela com a qualidade de objeto de seu desejo. Por tudo isso, o desejo da histérica é um desejo sem objeto e essencialmente insatisfeito: seu objeto é a falta no Outro e isto é o que insaciavelmentepede, consumae consome. Mas de tal falta no Outro não pode ter senão manifestações duvidosas, palavras que são tão incertas como a pouca segurança que pode conceder à sua própria sinceridade. O costado Sem Fé de sua palavra se projeta sobre a palavra do Outro. A dúvida exige provas de coerência e consistência, provas que não fazem senão alimentar a desconfiança. A limenta-se com a inconsistência do Outro. De nobodaddy (C. M illot, op. cit.) Tomar o lugar do objeto @ para desmentir a falha no A e vol tar ao Outro imortal dos primeiros tempos é algo que a irmana, mas que também adistingue do perv erso que lea imagina ser. Vale apena comparar e diferenciar. O perverso toma o lugar do objeto @ em sua relação com um sujeito, partenaire seu na perversão, no qual se propõe fazer aparecer a falha subjetiva (S), a dor, a curiosidade por ver, a submissão a um contrato que ele dita e edita, o despedaçamen to frente ao seu olhar de voyeur,a adoção de um credo transgressivo que ele inocula no ato de sua penetração proselitista etc. Na prática dessas operações perversas, ele não atua por conta própria, mas por contade um terceiro, o Outro, a M ãe, cuja incompletude é desmentida por esse filho-falo que tomou um valor de fetiche ou que assumiu o fetiche como objeto de gozo que nega a castração, a castração do Outro. Em troca, os histéricos encobrem sua cas tração, a que receberam de início, oferecendo-se ao seu par para 15. J . L acan. Seminário XXII, aula de 15 de abril.
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cumprir o desejo que eles mesmos provocam. O perverso solicita a conversão do outro; a histeria é “de conversão”, faz e se presta partenaire. L acan expressava esta à conversão que oferece a seu divergência dos caminhos, dizendo: “Para voltar ao fantasma, diga mos que o perverso imagina ser o Outro para assegurar seu gozo, e que isto é o que revela o neurótico imaginando ser um perverso: ” .16E daí a diferença essencial que se ele para assegurar-se do Outro destaca quando se aproximam as clínicas da histeria e da perversão. Enquanto ela, a histérica, abomina o gozo, ele, o perverso, se con sagra a cultivá-lo; uma o reprime e o desterra, o outro o colhe... não formam uma dupla tão má a bela e a fera. Ou pior. O perverso desme nte a “falha” da mãe - ela não pode senão ser fálica - e adora, no objetoelevado à dignidade do fetiche, o ins trumento mágico que usa para desmenti-la quando não se transforma ele mesmo em tal fetiche. A histérica não alimentaessa esperança. Sua mãe, como a mãe de Dora, é esse ser carente e depreciado que constitui o pólo negativo de suas identificações, o lugar de um des prezo inevitável. “Se ser mulher é ser como ela, então eu não que ro ser mulher”, é seu lema e se consagra a estabelecer uma diferença (vive la différence!) que assume as formas do “fantasma bissexual” (Freud) deestar negação O pai se faz digno comi seração epor unidodaa feminilidade. uma mulher tão insuficiente e elade está dis posta a se identificar com o que falta ao pai, com a Outra mulher que poderia lhe ensinar o que é uma “verdadeira” mulher, com as senhoras K. Assim é como a filha se torna o que preenche a falta em A, assumeo lugar de |)
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Para esquematizar: o perversotem a M ãe e a histérica tem o Pai como objeto de culto. A diferença nodal reside na atitude ante a castração, a que verdadeiramente importa, a castração do Outro. Se o perverso a desmente, a histérica a abomina e a reprime. Daí o parentesco, daí a oposição, daí a freqüente complementaridade. O perverso “faz A mulher”, diria, para cotejar sua posição com a da histérica que, Lacan dixit, “faz o homem ” .17
3. H isteria e saber Particular, muito particular, é a relação da histérica com o saber. Sabe-se que ela sofre por não saber, por reminiscências, por repressões, por falta de continuidade cm seu discurso, por “lacunas mnêmicas”, pela armadilha de seu gozo em sintomas que falam sem dizer, sofre pelo saber que insiste em ser inconsciente. Seu saber não sabido é fantasmatizado por ela no Outro, o sujeito suposto saber do qual está prestes a se apaixonar justamente por isso. Sua falta se preenche no imaginário como discurso sem cesuras. O falo, que separa do gozo, encontra seu equivalente no saber. Ah, se soubesse! Sabendo, o gozo, amarrado ao sintoma, poderia ser alcançad o como articulação discursiva. Mas esse saber que a ela falta é o atributo do Outro. E ele, exigido, instigado, não dá senão restos insatisfatórios que, como já foi dito, alimentam as perguntas. Máfé, desprezo? Acontece queele se nega a compartilhar o saber que não pode ter e, com base nisso, exerce e sustenta seu domínio sobre ela ou o usa de modo agressivo e humilhante, bestial. No fantasma, o Outro do saber se torna sádico; conviria chamar “sabismo”ls esta relação de cumplicidade que, com freqüência, se estabelece entre a bela e a fera que a flagela com seu açoite de palavras. Não raro, este fantasma do saber como potência fálica incita a histérica a buscar apoderar-se do saber, despertar de seu sonho e de suas fantasias,
17. J. L acan (1969). Seminário XVI , aula de 18 de junho. 18. N. A. Braunstein. Sabismo. El saber en la histeria. Por In: el camino de Freud, p. 73-85.
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avivar em si a dormida curiosidade, tratar de recuperar o corpo perdido por meio do saber da fisiologia, da psicologia, da psicanálise ou da literatura, como modo de suprir a falta inelutável do Outro, a resposta que indubitavelmente falta ao enigma que se escreve com S (A). Deste modo sustenta a insatisfação provocada pelo falo, por suas promessas não cumpridas (versagt).Como o Outro não pode dar o saber a que ela aspira, saber sempre insuficiente, perpetua a interrogação dirigida à Outra mulher, aquela que deteria o segredo do que uma mulher é e quer. De certo modo implica uma passagem para o outro lado das fórmulas da sexuação, invertendo o sentido do vetor: deter o saber como falo e desde aí tratar de responder à pergunta pelo ser de A mulher: O — A. O fantasma de flagelação revela, agora, sua conhecida reversibilidade. O sujeito que era passivo e gozava interrogando o Outro passa a ser ativo e a exercer o sabismo sobre opartenaire, sobre os alunos, sobre os doentes, sobre os que estão sofrendo por não ter esse saber. Não é raro que esse fantasma do uso sádico do conhecimento acabe por determinar inibições intelectuais e profissionais que são o motivo, por sua vez, de novas demandas ao saber, desta vez, o psicanalítico. E ali os fantasmas do sabismo tenderão a se atualizar na transferência e como transferência. Dirigir-se ao Outro até fazer aparecer a falha nele para logo se oferecer como tampão de tal falha. Desesperá-lo, marcar sua insuficiência, propor-lhe como sujeito de análise ainda quando não haja demanda nele, incorrer no risco de que se cure desse sintoma que é uma mulher, tensionar a lâmina libidinal, provando seus limites, falar incessantemente “sobre a relação” fazendo de seus lamentos acusações (Klagen sind Anklagen),'9 viver sempre no limite da ruptura e da separação, das lágrimas e da oferenda agressiva, da entrega que se inscreve no livro cuidadosamente levado da dívida do Outro, com uma memória desapiedada das falhas, deslealdades e inconsistências do Outro. Porque o sacrifício da histérica é uma face de seu amor, sendo a outra a da acusação pela falta de reciprocidade daquele que não soube corresponder a ta nta entrega. A teatrali dade 19. S. Freud (1915-1917). Obras completas,v. XIV, p. 246.
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é representação que aponta a um terceiro, o futuro espectador e o futuro ouvinte do drama da ingratidão, um terceiro que pode ser permutado pelo livro de contabilidade, no qual se anotam sempre os danos sofridos e que está pronto tanto para ser recordado minuciosamentequanto pa ra ser n i crementado. L acan, em seu artigo sobre a agressividade, falou dos “contragolpes agressivos da caridade” ,20 que constituem um aspecto essencial da intriga histérica: dando e dando tanto e mais do que lhe é pedido, consegue ela um devedor, alguém que supostamente lhe está abastecendo, um ser inseparável porque está aí atado pelo que recebe u. É o aspecto interessado de seu “maso-heroísmo” (Colette Soler) e de sua “função civilizadora” (Catherine M illot) cumprida por meio da entrega ao Pai alternativamente idealizado e perverso. A relação especular e o fantasma da simetria dominam o campo. O que dá éo que pede. A projeção é constant e: “Eu em seu lugar teria...”, “se eu lhe fizesse o que ele me faz...”, “não me explicou como pôde fazer isso comigo...”. E tudo isto vivido e atuado para um terceiro - livro, personagem ou psicanalista - , a testemunha de sua paixão, ele que deverá se compadecer, culpar o outro, absolvê-la em uma estrutura narrativa judiciária na qual ela é alternadamente vítima, jurado, juiz e carrasco que sanciona e aplica o merecido castigo. Seu eu se torna a medida de todas as coisas. É inconcebível que o outro tenha gostos diferentes, se interesse por outras coisas, queira seus familiares em vez dos familiares dela, não compartilhe sua espiritualidade e seu amor pelo belo. N ecessita, exige e contabiliza as provas de devoção, de que ela importa para o Outro. Os ciúmes narcisistas que sofre pela rival, pelo trabalho, pela repartição do tempo do Outro, a consomem, mas se transformam, por sua vez, em uma nova maneira de se fazer presente e de reclamar a dívida sempre crescente do Outro. Sua exigência de ser o objeto onivalente do gozo do Outro, de ser a condição de seu gozo, de que somente com ela se goza. Seu valor de gozo deve se equiparar ao gozo que falta ao Outro: é prisioneira do gozo do Outro que pretende saturar e encapsular ao mesmo tempo em que procura 20. J. L acan. (1948). Écrits , p. 1075;Escritos /, p. 100.
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sempre subtrair-se a esse gozo alheio para confirmar seu valor. Pois é pela falta dele, d’Ele, que ela alcança valor fálico, valor de gozo. M as nada lhe consta disso se não for pela insatisfação que pode trazer e que traz o desejo. A relação com o gozo do Outro a define nesse difícil papel de se oferecer para a satisfação ao mesmo tempo em que se subtrai para que o desejo insatisfeito a sustente no lugar fálico-narcísico da plenitude que imaginariamente poderia trazer ao Outro e que a leva a controlar constantemente seu peso na báscula do Outro. M as assim fica em dependência das altas e baixas em sua cotação, exposta a impredizíveis vai-e-vens que são causa e razão de freqüentes feridas narcísicas disso que os psiquiatras de hoje qualificam “depressões” e alimentam com medicamentos. Basta que com o Outro se desdobre, se “farte” (nos dois sen tidos) dela, lhe signifique de algum modo que “não precisa dela”, a desbanque de seu fantasma de ser indispensável, coloque outra ou um equivalente qualquer em seu lugar para que ela fique privada da razão que havia construído para a sua existência, sem fundos nem fundamentos, infundada. É então que sobrevive sua identifica ção ao objeto @ como desfeito e o gozo se manifesta como repro vação e autocompaixão masoquista, com o inventário infindável das ingratidões de que é vítima. Sobre isso tem necessidade de fa lar, encontrar uma alma gêmea que seja sustento de sua “neces sidade de comunicação” a partir desse “nada” que sente ser e que entrega com generosidade, disposta sempre a voltar a ser o “tudo” do Outro. Com a insatisfação como meta prometida ao desejo e o rancor conseqüente, com a contestação merecida da infalibilidade fálica, impõe um estandarte inalcansável que cria um abismo entre o desejo e o gozo. Essa diferença é preenchida pelo sintoma. O desejo insatisfeito faz gozo da conversão e a fazem ele se com apegaseu amando-o do que a sisemesma como os delirantes delírio, mais aferrando-se à queixa e mostrando seu ser por meio do sofrimento. O sintoma está feito de gozo desconhecido e aninha nela as cinco resistências descritas por Freud em 1926:21 a compulsão do Isso, o 21. S. Freud (1926).Obras completas,v. X X , p. 149-150,
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castigo do Supereu e as vanagens narcísicas que derivam da transferência, a repressão e aiujeição do Outro aos avatares da própria doença. Esta queixa, aalizada pelos estigmas que são as marcas no corpo, é uma acusição pelo fracasso do Outro para integrar-se em uma relação sen falhas que desculpe o sujeito dos deveres para com um desejoque lhe seria próprio. A pelando, apostando sempre à xistênci e a
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também aqui sc encontram encobertas a compulsão à repetição e a fixidez na conjugação do fantasma. Os infortúnios da virtude não são mais divertidos do que a prosperidade do vício. Enquanto o perverso se afirma como vontade de gozo, e esse é o nome que tem o desejo nele, a histérica consegue gozar com sua recusa e indiferença frente aos gozos terrenos em nome de um gozo absoluto e, portanto, impossível, além e contra o gozo fálico, trazendo ao desejo a insatisfação. O sintoma e o asco, a dor e o pudor, colonizam para ela as regiões do gozo perdido. Acreditando dizer não ao gozo do Outro, sustenta justamente como gozo, separando-o das vias facilitadoras do princípio de prazer, das facilidades complacentes. E o valor ético do apostolado da dificuldade que ela exerce. Seu corpo se entrega como um conjunto de partes dispersas e carentes de unidade para que sejam a palavra e o desejo do Outro as argamassas que façam “disso” um conjunto. Nas palavras de C armen G all ano (op. cit.), ela recusa as conseqüênci as do significante no real e vive como sujeito em função da separação (la coupure)entre o gozo e o corpo. O corpo é oferecido como em um anfiteatro de anatomia, é o corpo da lição de Rembrandt sobre o qual dissertam os sábios, é o corpo anestesiado sobre a mesa do quirólano, insensível ao sexo que é repudiado ou vivido na indiferença, é o corpo oferecido ao bisturi que corta segmentos ou nervos imaginários da sensibilidade, o que poderia representar assim parece - um ganho na espiritualidade. Carne de cirurgião, pronta ao suicídio focal e ao esquartejamento. Desconfia e rechaça o gozo do Outro, esse gozo que ela pro duz por meio da insatisfação com quenutre o desejo. Assim, alienase do gozo, encerra-o no sintoma e parece dizer: “Eu não gozo para que o Outro, o Outro da identificação, não goze de mim”. “Pois pa rece que o Outro demanda sua castração ” .23 E essa medida que se apresenta como “castrante”; representa a imagem vivente da castra ção, com seu corpo de lagartixa, de partes modulares que se cortam e se reconstituem. Pois, subtraindo-se, demonstra a validade univer sal da castração, consagrando-se ao Pai primitivo, aquele da fórmula 23. J . L acan (1960). Écrits , p. 8267;Escritos 2, p. 806.
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diferentemente do perverso que é quem nega o não-toda da mulher e afirma a validade absoluta de VX.OX, isso que Freud designou como premissa da universalidade do pênis. Daí procede outro traço clínico, difícil também de distinguir das desqualificações pejorativas, o da inconstância, o caráter capri choso e imprevisível, a freqüência das birras histéricas. Isso que motiva a queixa do Outro, que se apresenta como “vítima da histé rica” e pretende ignorar o gozo que, também ele, deriva do tensionamento da lâmina, aí onde se chega ao extremo da palavra e aparece o gozo no limite do articulável, na injúria, na surra e no desvaneci mento. Pois o gozo dahistérica - e o de seupartenaire,obviamen te - firma-se na subtração que ela pratica sobreo desejo, proclaman do-o como um além das satisfações e das reduções de tensão. Catherine Millot24 pôde definir a histérica como a guardiã do mistério do que é inalcançável pelo lado do gozo fálico. Mas esta insatisfação com ogozo fálico, como bem aponta SergeA ndré ,25 não é patrimônio das mulheres. É uma limitação de todo falante, um efeito de que não haja significante da mulher e de que não exista a relação sexual. Neste sentido é que cabese perguntar se, sendo o desejo o desejo do Outro, não é a histérica uma manifestação, um efeito e uma produção do desejo masculino, isso que nunca se disse melhor nem com menos do que 26 sílabas:* “Homens nécios que acusais / à mulher sem razão / sem ver que sois a ocasião / do mesmo que culpais” e que se completa com outros quatro heptassílabos: “Pois por que os espantais / da culpa que vós te ndes? / Querei-as qual as fazeis / ou fazei-as qual as buscais”.
24. C. M illot. D esiret jouissance chez T hystérique. In: Hysterie et obsession, p. 219. 25. S. André. Que veut unefemme?Paris: Navarin, 1987. * T radução li vre do espanhol, não sendo mantida a estrutura heptassilábica que resultaria em 28 síladas.
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É preciso dizer que em todo este capítulo que chega a seu fim fez-se referência à histérica como se se ignorasse que um dos pri meiros achados de Freud na nova clínica das neuroses foi o de ca sos de histeria masculina e como se não se conhecesse o trabalho que L ucien Israel26 escreveu sobre o tema. A razão, não por conhe cida, deve deixar de serepetir: não se tratade uma diferenciação em função da sexualidade biológica, mas de uma eleição inconsciente entre os dois campos, do homem e da mulher, delimitados pelas fór mulas da sexuação. Neste sentido, os casos não pouco freqüentes de histeria masculina também são casos de histéricas, já que o de cisivo é a posição subjetiva ante o significante fálico: @
0 A
-cp
Se a negativa ao gozo fálico em função de um gozo que está além é característica da histérica, é claro que ninguém encarna melhor essa impugnação que o homem que sofre de transtornos e inibições em sua genitalidade: ejaculação precoce e diferentes tipos de impotência. Casos nos quais pelo se inverte quais se opta pela passividade, dar-se oa sentido desejar,do nosdesejo, quais nos se opera uma defesa frente ao gozo do Outro, do Outro sexo. Também ele supõe querer ela sua castração e se protege dela com um sintoma que é o de não dar sua falta, aferrando-se ao que teme e comportando-se como um “bom menino” que não enfrenta a lei de proibição do incesto que se estenderia até cobrir “toda mulher” em vez do “não-toda ” .27 E, em última instância, deveria buscar a histeria masculina do lado da “fera”, do lado da complementaridade e da cumplicidade que estabelece com a histérica como sua“vítima”. E aqui que aparece o sentido final da expressão lacaniana de que “para todo homem uma 26. L. Israel.L ’hislérique, le sexe et le médecin. 27. N. Braunstein. De sintomas y mujeres. Algunas consecuenciasde las dife rencias psíquicas entre los sexos sobre la vida erótica de hombres. Freu In: diano y lacaniano. Buenos A ires: A morrortu, 1994. p. 173-190.
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mulher é um sinthoma” (op. cit.), um sinthoma histérico, poder-seia arriscar. Pois a histérica não pode sustentar seu discurso se não encontrar a cumplicidade de alguém que assuma o lugar do Outro sem barra a que ela se dirige, alguém que se coloque como o sujeito que faz dela o objeto @ de seu fantasma e que esteja disposto a conferir-lhe o lugar de complemento indispensável que ela reclama. E assim; nada pode entender-se em psicanálise sem assumir que o desejo é o desejo do Outro e o inconsciente é o discurso do Outro... e que por isso o gozo está proibido ao que fala.
IV
A perversão, desmentido do gozo
1.
O “positivo” da neurose?
D eve-se pular. Pular desde a neurose, essa negativa à colocação em palavras do gozo, esse negativo,até seupositivo, a perversão. N ovamente estamos diante de uma metáfora fotográfica, de Freud, desta vez :1 “a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão”. Fórmula, aforismo, que aparece invertida em um artigo que L acan nunca terdo assinado e que foi escrito peloGrãnão (oué o o pequeno) offda devia história lacanismo .2 Não; a perversão negativo da neurose, mas seu positivo. A inversão nã o é, no entanto, total. O negativo da perversão, dizia Freud, no singular, em uma fórmula que unificava as perversões, agregando repetidamente, mas apenas entre 1905 e 1920, como uma questão de fato, que na neurose não havia nada que indicasse uma inclinação ao fetichismo. Na edição de 1920 de “Três ensaios sobre a teoriadi sexualidade ,3 esta “particularidade” da neurose foi suprimida porque foi possível ver que os neuróticos não
1. S. Freud (1905). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires: A morrortu, 1979. v. V II, p. 150. 2. J L acan e W. Granoff. El fetichismo, lo simbólico, y lo imaginário. In: Marc A uge (éd.). El objeto en psicoanálisis. Buenos A ires: Gedisa, 1987. p. 19 32. 3. S. Freud (1905). Obras completas, v. VII, p. 152, nota 47.
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Gozo
eram imunes aos encantos do fetiche e que, neste aspecto, essencial para a compreensão do fenômeno perverso, não sçj odia estabelecer
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ajplação cômoda (para o autot-e.ojeitor) entre perversão j ositiva e neurose negativa. M as o fato subsiste: o tro/o é recôndito na neurose, express ase no sofrimento, na queixa e no sintoma que o dizern_auando o eu cala e o sujeito se mostra em sua divisão, avergonhado se tiver de ser reconhecido como gozante. Se o neurótico se compraz é quando pode assinalar sua falta em relação ao gozo, esse gozo que reconhece e atribui tão geoexosainente aos-demais. os que vivem com facilidade,j>em se preocupar Todos esses que se deleitariam com o espetáculo que ele lhes pródiga com seu sofrimento e com sua cisão subjetiva, a eles, os unificados por seu fantasma, os vitimários, os_£ais cruéis e insensíveis, as mães e possessijvas. Esses outros gozantes que queriam sua castração e aos quais o neurótico resiste, ocultando-se que já sofreu inicialmente essa castração que repudia, denyando sgu sofrimento dp não saber o que fazer com ela, çcyna^onvej^ê-la^mjdesEjo. A histérica do capítulo anterior e o obsessivo do_capítulojjue_decidi não. escrever mostram estes dois pólos do gozo recusado pelo neurótico mediante a repressão dos significantes que o evocam eque permitiriam subjetivá-lo. Assim, o neurótico goza sem o saber, desconhecendo, transpondo, travestmdo .seu gozo com as pompas do sintoma. Seupotencial não saber o desgarra o tornaessencial sujeito da análise, agente desse discurso edaisso histérica, para que a experiência possa começar. Na neurose, o gozo aparece como colocação em cena fantasmática de difícil confissão. E uma imageria da perversão que faria dele um anormãf, um ser desdenhável, um porco porque a ele ocorrem porcarias. E claro que esse descarado teatro interior lhe permite brincar com o interesse que despertaria no Outro ao tomá- lo ou ao ser tomado como objeto de seu fantasma. Com sua perversão de banheirp (que não de tocador sadiano), torna-se desejável, amável, condição para o gozo... do Outro. _Não qugr senão se [aze^amar. A perversão lhe facilitaria a tarefa. O script cinematográfico da perversão no cenário do fantasma é uma peça-chave da intriga histérica e da estratégia obsessiva. De qual perversão? De qualquer uma, de todas, da que melhor convier.
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M as este gozo do neuróti co é irrealizável, estácondenado ao armário, pode ser atuado de vez em quando, não sempre, não em todos os casos, mas sua colocação em cena é sempre decepcionante, forçada, vivida como submissão aos desígnios de um perverso verdadeiro ou como um desafio aos sentimentos de culpa, pudor e asco que rodeiam e inundam o ato que se fantasia mais do que atua. É mais, sua recusa ao acting perverso em que ocasionalmente pode incorrer serve-lhe para patentear a virtude. As excursões do neurótico pelo campo-jla—perversão não sãQ-xaras..-mas se caracterizam por deixar a impressão de que apontam mais ao renuarso posterior do que ao gozo presente. Não é, pois, a atuação o que distingue a neurose da perversão, mas a posição do suieito_ant£_essa atuação. Tampouco é o fantasma, porque este existe tanto em um caso quanto no outro e é difícil dizer quem leva a melhor. Nem é a pulsão, cujo catálogo se estabelece no neurótico tal como Freud o fez sem recorrer a seu K raft-Ebing. J á indiquei onde se enraíza a diferença. Não nos surpreende que seja no discurso, posto que as estruturas clínicas são fatos de discurso, modos de relação com o Outro, posições subjetivas. Relações com o inconsciente, essa instância que cada vez mais prefiro traduzir literalmente do alemão: suifio-sabida, o não-sah'do do saber que se crê ignorar ( 1’insu que sait).Neurose eperversão (e psicose, sem dúvida) são modos de relação com o saber tal como se materializam em discursos. Só que... só que o discurso do perverso raramente é escutado pelo analista. E por razões muito boas. Com efeito, se o neurótico, conforme já se disse, busca um saber que lhe permita recuperar o gozo perdido, queixando-se do-Qutro que goza, imaginando com vergopha que é um desavergonhado, o perverso toma uma atitude que é o contrário, o positivo dessa negatividade. Ele vive para o gozo, sabendo quanto é dado saber sobre seus o próprio gozo e o oalheio, pregando seu evangelho, afirmando direitos sobre corpo, ostentando seu domínio. O que em um é falta e dever, no outro é haver e saber. E, assim sendo, por que haveria o perverso de instaurar o outro no lugar do sujeito suposto saber? O que poderia esperar - além de conselhos e receitas que asituação analítica exclui por princípio - da palavra de outro?
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iii,
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A diante, abordare i a questão das relações entre perversã a o e o amor. M as desde já posso adiantar queno p erv& r sn o apinr se confunde com o erotismo, com a habilidade e a perícia do corpo e que esse é cTsignificado que acaba tendo a palavra “amor” em seu dicionário. Sendo assim, que lugar poderia restar para o amor de transferência por meio do qual se atam e desatam os nós de uma análise? Como inscrever as técnicas do corpo nessa experiência de pura tagarelice que é uma análise? Penso que aqui temos uma razão de peso para sustentar quão difícil e infrequente é a efetuação da psicanálise em um verdadeiro perverso. Há um desencontro ,estrutura l , uma não correspondência de origem entre a vontadede gozo e o desejo do_analista. A inversão das posições relativas ao saber é também inversão de posições relativas à psicanálise. O psicanalista é quem parece atraído pelo discurso esquivo da perversão, aceitando-o, contentando-se sempre com pálidos sucedâneos, com a literatura (Sade e M asoch, M asoch e Sade, pedaços de Gide, de Genet, de M ishima) e, fundamentalmente, com esses sonhos perversos do s neuróticos, com os relatos que estes fazem quando se encontram em mãos de um perverso, o que lhes faz viver e reviver o traumatismo sexual infantil condenando-os ao silêncio. O vínculo do analista com o perverso é aleatório, precário, sempre no limite contraditórios da interrupçãoem da relação experiência, sempre impulsionado até os extremos ao lugar do analista que são a cumplicidade (com)-e.a contestação.da perversão. Pois o perverso, se representa a mascarada de se dirigir ao analista como depositário do saber do inconsciente, da lei da sexualidade, avalista dos bons costumes ou árbitro da saúde mental, se segue um destes jogos, é na expectativa do momento do desafio a esses supostos ideais. Esse momento em que, vendo e crendo que o analista encarna alguns destes valores, poderá lhe dizer a fórmula que o define, a do desafio: “E por que não?”. Razão a mais para sustentar a neutralidade nestes casosjsm que a vaciTãçãò, longe_de ser acõnselfiávcl como acontece na histeria e na neurosc-ohsassiva. é queda do emalista e da análise possível. E é assim que se inscreve a difícil possibilidade, pois a passividade vale para o perverso como prova de sedução e
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cumplicidade, enquanto a atividade é um desafio que reforça sua po.stura, O perverso atua em direção ao outro, procurando evidências dessa barra subjetiva no limite mesmo do desvanecimento (fading), do reconhecimento da falta que aparece como curiosidade e como desejo de um saber que ele se oferece para preencher. O seu não é o auto-erotismo, mas a demanda da participação - partição de outro, de sua vítima ou de seu público - do analista, se for o caso. A ncurotização_que ele induz no analista, a passagem deste ao discurso da histérica, éjjm-mdício diagnósticaclam da estrutura perversa. Não se trata, aqui, de um saber a ser alcançado. A questão é como desmentir, entre outras coisas, a ignorância, a fenda que condena a relação sexual e o sabçr que lhe é concomitante. Damos aqui nosso primeiro passo em uma construção progressiva que tende a determinar qua L í o desmentido(Verleugnung)perverso. O analista não pode ser investido como sujeito suposto sa ber pelo perverso (ai do analista que insiste em tomar ess e lugar!), pois^o suposto saber é o próprio eu do sujeito. O que ele com seu saber ignora é que não pode saber do sexo e que aquilo que acumula como verdades não são senão “teorias sexuais”, fantasmas, quimeras que soldam coisas vistas e ouvidas, pedaços de discursos heteróclitos, colagens de ciências, ideologias, ilusões, legislações e mandatos. D iante do não-sabível (valha este barbarismo) do sexo, proclama um domínio imaginário sobre o saber faltante, preenchendo os ocos com racionalizações, projeçõeswishful e thinking.A ssim, nenhuma_surpresa é possível. O que poderia cair-lhe como uma interpretação feliz entra de antemão em uma das duas categorias complementares: a do “não éassim” e a do “eu áj sabia”. Sabedor do quanto pode se saber, sobra apenas um resto que é eyuívoco do Outro. E odo que sabe?está Sabe o quepor quer: Enquanto neurótico o lugar desejo selado umaj|ozar. incógnita, e no no psicótico não existe nem a pergunta, no perverso o desejo diama-se “vontade, de £ozo”, e o único problema que ele encontra é o de como encontrar os meios para assegurá-lo. Agresenta-se sabendo sobre odesejo e sobre o gozo, conciliaado-os. resolvendo sua contradição srcinária. Esta segurança o toma atraente e fascinante para o neurótico que não
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espera senão encontrar quem lhe resolva a equação de seu desejo, quem faça de sua pergunta uma demanda de submissão. Sendo o negativo da perverso, o neurótico não sonha s£nãqçpm se positivar, com adquirir valoFTafico por refluxo de quem se coloca além da castração e, chegado o momento, faltar-lhe. O neurótico quereria aprender com o perverso e levantar, assim, a hipoteca de suas inibições. O perverso o seduz com seu fantasma de saber-gozar (o hífen no meio sobra), de sabergozar.E esta é a característica clínica dominante do perverso, a que campeia por onde quiser em seu discurso, o fantasma pré-consciente de alcançar o gozo por meio do saber e do poder sobre um objeto inanimado, reduzido à ignominiosa abjeção ou preso por um contrato. Para isso, para pôr em cena este fantasma, deve saber como fazer com o Outro, deve obter sua cumplicidade ou seu terror, deve aplicar-se e arriscar-se, deve mostrar-se e ocultar-se, deve manejar sabiamente arealidade, ou seja, o semblante. Trata-se detornar operativo o fantasma, de triunfar aí onde o neurótico fracassa de antemão. O fantasma deve ser colocado em cena e tornar verossímil esse gozo a que a castração obriga a renunciar. Outro desmentido, o da falta no gozo, outro sentido para Verleugnung essa na qual Freud soube ver o mecanismo essencial da perversão. E claro que o teatro re-presenta a realidade e que ambos, teatro e realidade, fantasma e semblante, não fazem senão mascarar o real, o impossível, a ausência da relação sexual. A realidade não é o real e o verossímil não é a verdade. M as fazer passar umpelo outro exige muita “consideração aos meios da encenação”, figu rabi1idade, Rucksicht auf Darstellbarkeit, terceiro dos processos - recordarse-á - freudianos na elaboração onírica. O sanguedeve ser visto bem vermelho, o discurso não deve apresentar falhas nem lapsos. O inconsciente, também ele, sempre tão ambíguo e equívoco, deve ser desmentido pela elaboração perversa. Não deve haver aí lugar para o azar, tudo deve star e devidamenteem seu lugar, o ritual deve estar perfeitamente especificado pelo contrato ou pelo decreto, nada do real deve se infiltrar na montagem. O do perverso é um diferente metteur en scène, mente histérico queconsciencioso observa desde o palco o que ele mesmo faz na cena e do obsessivo quejiirige desde o palco a demanda de um
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olhar de reconhecimento por suas façanhas irrisórias. Por este cui dado pelo detalhe, por esta proscrição do inconsciente, por este jogo premeditado com a lei e as transgressões, o perverso é o mais adap tado à realidade dos vários personagens que passam pelo proscênio analítico; está perfeitamente integrado no discurso, é convincente, lógico, não apenas perito nos meandros das leis, mas até legalista e legislador. Ensinag prega, catequiza e persuade. Seu parentesco com as posiçQüv-do mi. do mestre, do sacerdote, do político ejlo mé dico éeyidente. E também com o psicanalista, em um”vínculo que deve ser assinalado desde já porque é estrutural, caso se queira de pois marcar a diferença. A ssim o encontram os, encravado na alidade, re dedicado afazer desta uma tela que oculte o que falta, proclamando saberes, legislações, objetos fetichizados, sistemas filosóficos, doutrinas esotéricas, metalinguagens, promessas de paraísos na terra e além, ídolos e ilusões. Fazendo saber porque não se pode saber. Erige falos, porque há a castração e ela é intolerável. A do Outro. Isto deriva do que se lê em Freud 4 desde 1927, mas stá e aí desd e antes, desde as reuniões das quartas-f eiras em Viena, e assim pode se ler na ata de 24 defevereiro de 1909,5quando Freud aprese ntou o caso de um fetichista de roupas c comentou: O paciente chegou a ser mxufilósofo eseg£uiativo,e os nomes desempenham para ele um papel maior. A lgo parecido com o que teve lugar no aspecto erótico lhe ocorria no plano intelectual: gle^separava seu-i nteresse das.xaisas_ £ o di ri gi a para gs palavras que são, por assim dizer, a roupagem das idéias; isto explica seu interesse pela filosofia.
Este é, desde a descoberta freudiana, o modo perverso de enfrentar a castração: o desmentido._a conversãojmaginária^de si mesmo, de um objeto qualquer ou de um ideal em representantes do gozo que no real falta ao Outro ou do falo que no simbólico e como significante representa o gozo perdido. 4. S. Freud (1927). Obras completas, v. XX I. p. 147. 5 L ouis Rose (editor e tradutor) Freud and fetishism: previously unpublished minutes of' the V ienna Psycho analyti c Soci ety. The P sychoanalytic Quarterly, v. 57, n. 2, p. 147-166, 1988.
É indubitável a função civilizadora (sublimatória, auto- e aloplástica) que desde sempre cumpriu a perversão, pretendendo conseguindo - muitas vezes ser contestadora e constituir-se como subversão dissolvente. Ao erigir um ideal contrário ao dominante, uma lei contra outra lei, ppe em ação a dialétka-hegd;; na que acaba com o triunfo da astuta razão.
2.
O fantasma perverso: sabergozar
O perverso não poderia desmentir sem reconhecer primeiro o que deveria desmentir (“j á o sei, mas ajmja assim”). A penas instalando-se na castração e no deserto de gozo que se estende a seus pés, pode montar o cenário de seu fantasma que se sustenta sobre um discurso homogêneo, negador da discordâjmia irremediável que há entre o discurso, sempre dojiemblante, sempre ajustadojio verossímil, e o gozo. ^eu_Iantasrna nã o e mestiço e não circula de um lado para o outro da alfândega tópica que Freud instalou entre inconsciente e préconsciente.6 Habita com todos os direitos de proprietário no castelo fortificado que é o eu. E tem horror ao vazio. ^eüjtorrar. vacui faz do sujeito um mostruário de plenitudes especulares: o domínjo sobre o deseio. sobre o discurso, sobre o outro. O eu forte, fortíssimo. O desmentido recai sobre a castração, sobre o inconsciente, sobre ,a falta inerente oa go^o. Assim é como se revela o que sepretende ocultar.0 remendo Lapa_o_rasgo ao preço de sublinhar sua presença c indicar seu lugar. Quando o fantasmaTênTtãnta substância e vaidade,guando é o sujeito que agita a bandeira de seu fantasma em vez de ser~um efeito destef^cabe cfesetínfiar. Pois, e outra vez estamos com Freud, jpeértSi^que dão o fetiche e seus derivados não faz senão destacar o ugar l do que se ^jpmp|a 7 ^ã~cãstxa^ ão_da ,m㣻_da iiicompletude desejante do Outro, dojjerigoque ameaça o trono e o altar.^~
6. S. Freud (1916). Obras completas,v. XIV, p. 188.
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Por tudo isso podemos afirmar sem rodeioso }u; fantasma perverso é um fantasma encàbridor. a construção ispcular de um eu que re£resenta a si mesmo como sujeitQ^upnstn akrgazar. Seu posto o obriga a pôr à prova a suposição. 0 csejo foi pervertido, apenas, j i m pequeno desvio, como vontade e jq zq, colocou
apenas aIgunsjpoatinhos.de costura sobrea..£alta. i prversão põe deu apenas uns pontinhos de costur a sobre afalta, 'oqueesta falta é intolerável; torna-se cabeça de M edusa, medusansAo desmentir o desejo, a ele se renuncia; alETe se~cede Posto qiej desejo está do lado do Outro, desejar é mostrar uma falta e oercer esta.falta à falta do Outro, ou seja, reconfiecer a recíprõca:atração como contfíçãcTpara atravessá-la. Daqui derivam as dificuldadesjara defüiri relação dc pervei^ojíom_ clamor. Se, com L acan, aceitanoique o amor consiste em dar o que não se tem (pois dar o que seten é caridade), se o amor é dar o que falta, é dar a castração, a crâcia no gozo; se, novamentecom Lacan, aceitamos que o amor é>ú icqflue-PQde fazer com que o gozo conjescenda ao desejo, eníonão tardamos em reconhecer a difícil relação entre amor e pcrvesõ. Uma relação difícil não significa ausência nerrir.possibilidade. Desde sempre se soube, ainda que desde sempr tnha-se posto muito empenho em negá-lo, que a pajavra “amo ^m diferentes significados quando empregada por um homem ou ma mulher. Não custa nada estender esta iUéia e aceitar que agjayra “amor” significa algo diferente conforme a posição subjetiv dquele gue fala fnenfótirn psjrrifirn “normal” ou jDerverso). Nãcsetrata, pois, de decidir se os perversos “ta.mhém” amam, mas d ompreender o específico de um,am(ir-que desmente a,.falta--emvx* dc basear-se jiela^Isto é o que coloco por enquanto, seguindo adcitrina clássica, ainda que no final do capítulo proponhaque oj j e e desmente na pprversão seja algo que sinjMá-ç não uma ausênci. F reud pôde defi nir o amoT :omo a (im)iosibi lidade da confluência de duas tendências opostas na vida eótca, a tgrnurg e a sengjjalidade. Neurose e perversão apre sentan-s aqui também como negativo e positivo. Q jjeurptico divid c amor porquÊ renuncia à sensualidadejreprimida) em nome d; tenura, inibe_as metas pulsionais gozadeiras. Resigna o gozo em alare de um desejo
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equívoco e equivocado porque o substituiu pela demanda do Outro que veio ocupar o lugar do objeto em seu fantasma. Queixa-se do esvaziamento do gozo que ele mesmo provocou e se conforma, a contragosto, com as mocões-rc.freadas da ternura. Seu caminho é das estruturas clí nicas,) A essência da vida amorosa do perverso radica nessa desintricação que consiste em oferecer o gozo sem passar pelo de H;i ternura O consenti sejo (do Outro), abohndo as_simcorrente a mento e a convergência com o desejopartenaire do restringem a satisfação perversa. Por isso é que não há complementaridade das perversões. O sádico não é o par do masoquista e o exibicionista não o é dovoyeutu. Sg há coincidência jto gozo não se produz a cisão subjetiva dopartenaire.meta preferencia]_do _alQ _pery£rso_£omo t^l. Por isso o neurótico é o companheiro ideal e predestinado do pervêtso; E também^uem informa o analista sobre o que acontece eptre os dois (‘‘A bela e a fera”). Novamente encontramos a difícil relação entre a perversão e o desejo foi convertido em de gozo; perícia o Eros do. fezseamor. douto,O doutrina (“doctorina”) e é vontade agora erotismo: corpo, saberjjazer com ele. exploração das jazidas enterradas do
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gozo, repúdio das canalizações monótonas do encontro sexual, invenção e prova, explorarão, viojação e extensão dos limites. “E por que não?” Também aqui o discurso perverso cumpre e tem cumprido uma função civilizadora ao independentizar a sexualidade dos utilitarismos da reprodução e a satisfação, ao denunciar a suposta “necessidade” sexual, ao desatar a-^nzn das amarras do prazer mostrando outros horizontes, denunciando os curto-circuitos e as convenções unificadoras das ordenações do amor. Sempre correndo o risco e incorrendo (amiúde) no pecado de mudar o senhor por outro, criando novos evangelhos do hem gozar. O erotismo foi por muito tempo patrimônio do discurso considerado perverso, essa forma do vínculo social que afirma o fundamental direito ao gozo e que comete um equívoco, determinado pelo que já vimos do fantasma, ao pretender ser possível gozar do corpo do outro que é alheio e do qual não recebemos nada além de sinais, dados equívocos a interpretar, elementos significantes cuja significação sempre nos éscaga. Esse erotismo, dizíamos, teve um valor formativo quando. ^ convergiu com a psicanálise ao acabar afjnnando_gue não-h.á_ ’ universais do gozo. Foi descentralizado o monopólio do gozo fálico e se estabeleceu a pergunta pelo particular do gozo de cada um, expulsando da recâmara o olho deste Deus e o olhar da polícia. A o deslocar-se do amor para o erotismo, o perverso “apenas ".7 O “apenas” nos remete a acentua a função do deseio no homem uma diferença estrutural de importância capital. Pois o fantasma que responde ao de seio inclui a castração, Q_-(p que acompanha como sombraojihjelaJ âLçau&a-dQ desejo, enquanto o perverso seostenta como o dono d&-t«n_faQtasma de autonomia que o permitiria fazer o curto-circuito do caminho que obriga a passar pelo Outro e por seu desejo, pela recíproca castração partenaires dos do amor. O “apenas” em excesso coloca o perverso além do desejo, des tinado ao exercício de uma vontade que atua como imperativo uni versal, que irmanaSade a K ant. De uma vontadeque não é nem o livre arbítrio nem o capricho, mas justamente o contrário da.liber dade, a submissão acrítica. enervada e apática a urna norma abso7. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 823. Em espanhol, Escritos 2. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 803.
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lutaque impede transitar>or aminhos alternati vos e que legisla com ferocidade. De uma vonade iue faz do gozo o princípio racional e ineludível da acão. colocdo m uma dialética de oposição e de sub tração recíproca do gozeentr, os participantes no ato perverso. De uma vontade que não nase d decisão elaborada de um querer, mas de uma^oação que exig^esonar da lei do Edipo e da castração e da divisão entre os gozoipel seção, pela bissexão. De uma vonta de que levaj) pcrverso.avivr para o gozo, para apoderar-se dele, para organizá-lo, adminhrá-o, antecipá-lo e adiá-lo, para regular suas ascensões e quedas razo pela qual a análise pode agradecer à perversão (como, por atro ado e por razões diferentes, à psicose e à histeria, à obsessão e i “sáde mental”) o que traz ao campo dis cursivo, mas isso não a fcva. idealizarjL pervsrsão (ou aqualquer outra das estruturas clín:as)No final da análise o sujeito não se encontrará com a pervesão.mas com a ljberdade para o ato per verso, terá cabimento o sijeite da ética analítica, o do bem dizer que deve decidir em cada menenu se quer o que .8deseja Este pouquinho de :xagro de que nos fala o “apenas” revela que se desmeiU&-a^faUa-Jo-€rtro (castração mate rna, dizia Freud; S (A), escrevia L acan) e :olo-ano lugar dessa ausência o objeto @ convertido em fetichejgÊinamgão, um objeto que não inclui e afirma a castração como conece quando falta o “apenas”, mas que a renega. A castração. o gozo seja j e cusado...”, casoT rati-sedela. se recusasse.“Ea preciso recusa, que afi rmar-se-i a a possibilidade, poder-seia soihar com um gòzo que não estaria proibido, que alguém pderiaagenciá-lo. M as é assim justamente como se o falha, porqu:j£ir.dej>eiL_reçusado "... para que seia alcançado na escala invetidaia Lei do jlesgjo ” .9 O que acabo de citar e HUcfinição lacanana a castração que, como vemos, jjpõe castração ao gozo (tal cimo £visto no desenho do vetor superior do gráfico do desejo). Vdtare a este ponto no capítulo sobre ética e gozo, mas estáclaro dsde j que aética da análi se £$tá centrada na conçjliaçãodo desejo 'om 3 gozo, no questionamento e não na 8. J. L acan (1958). Écrits, p682Escritos 2, p. 662. 9. J. L acan ( 1963). Écrits, [ 113'Escritos 2, p. 752.
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-plus” que “apenas” acentua a continuação deste pequeno “mais função do desejo (no homem e não nas mulheres). Claro que o centramento da ética no desejo como caminho para que o gozo seja alcançado nos leva a marcar a diferença em relação ao discurso do direito em Hegel que vimos no começo, no primeiro capítulo. E evocar Hegel é aludir ao amo e ao seu discurso. .A perversão é a recusa, mediante o desmentido, de converterí\ív os valoresjia tiu/y em termos da moeda do desejo. “Fixação”, dizia Freud, para se referirlT este modo- de se aferrar ao gozo primário, infantil, negando-se a convertê-lo e traduzi-lo em palavras, a articular o @ por me i o dos instáveis_s.iffnifirantes da demanda com seu inexorável saldo de perda. Esta conversão do gozo em desejo como condição prévia para reencontrar o gozo é o inconcebível na Verleugnung.O perverso peide estrutura perversa, o objeto de outra por se negar 3 perdeL-pois nestejogo aquel e que perde_g<°nha E é falando, colocando em palavras, que se perde. Fatalmente. De qualquer forma, o desejo não está ausente no perverso; está apenas pervertido. Como nos demais falantes é o desejo que anima o fantasma e, neste caso em particular, a renúncia ao gozo de qualquer forma já se produzi ujporisspnao é psicótico) e todos os desmentidos e todos os homens e os cavalos do rei não poderão devolver Humpty Dumpty a seu lugar anterior, bem acima de seu alto muro. Ele bem sabe que ao gozo se deve renunciar, “mas ainda assim”, morre de vontade de alcançá-lo. O desejo também a ele divide, tornando-o sujeito (S) 10 e, por mais que esge desejo_se converta em. vontade-de-^ozo. nem por isso deixa de ser, também como em qualquer outro, o meio de defesa que coloca um fusível, “uma proibição de ultrapassar um limite no” gozo .11 O desejonão afirma em seu caso a falta, mas a nega e a nega justamente aí onde aparece a proibição de gozar: no Outro. O Outro não pode e não deve estar castrado, a premissa do falo (e de seu gozo, acrescentemos) deve sustentar-se como universal (e
excludente, adiantemos). Sim, de qualquer forma nãQ_sej>od£ ignorar^mej2_Outro está castrado [S (A)] e está habitado por um 10 J. L acan (1960). Écrits, p. 773;Escritos 2, p. 752. 1I. J. Lacan (1960). Écrits , p. 825;Escritos 2, p. 805.
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-(p, o perverso sai do atoleiro recuperando o -cp, tornando-o o instrumento do gozo do Outro ,12 colocando-se no imaginário nor 13 e fora desesua própriacomo divisão subjetiva, como ssua, e fosse o Outro como tivesse encargo assegurar não castracão. Daqui em diante, viverá em função desta empresa, alienando seus serviços para assegurar seu gozo, o do Outro, o terceiro da cena, o que está ameaçado pelajá conhecida castração. Seu deseio nerverso qleva a so tornar utensílio, ferramenta do gozo do Outro. Isto dá sua forma ao fantasma sadiano, que recebe de L acan forma e estrutura em seu “K ant com Sade” ,14sendo figurado como um vetor quebrado. Não esgotaremos o esquema nem nos deteremos em sua modificação para explicar o fantasma do marquês de Sade, porque não vem ao caso (e porque não estou seguro de poder fazê-lo), mas
CA<û **M •
valerá a pena assinalar maiscomo importante. O perverso que se toma esua queaplicação pretendeclínica ser visto um sujeito absoluto que porta e aporta o gozo, um ser sem barra, é levado pela lógica mesma de sua estrutura e de seu desejo a converter-se em um objeto, em um instrumento, em um complemento que está a serviço do Outro. Ele é o fetiche que venera, é o chicote com aue flagela ^sua^vítimíi,J Í_o_contrato com que escrav iza seu fl agfilq^lor, é esse olhar que vai e. vem nas perversões escópicas etc. Em suma, ele é @, um @ quejosilháza o falo, que nega que o falo falte., que assegura que o gozo se falifica no Outro. E isto que me levará, e já não falta muito, a transformar a concepção freudiana e lacaniana do desmentido. Pois esse Outro a que se consagra o perverso não é - se bem ele não queira sabê-lo - um Outro absoluto que está fora do gozo; o Outro é a sede de um gozo que lhe é próprio e que o perverso desconhece,um gozo queé possível precisamentepela falta do órgão que, paraele, imaginariza o falo. (Vol)ver-se-á. ,Urn sujeito é al^o instável, vacilante,.O lugar do sujeito é o da incerteza, já que ele é o efeito do que se articula na cadeia significante; está à mercê da palavra que virá, a que terá de ressignificá-lo e mostrar-lhe sua frágil condição. O perverso recusa
12. J. Lacan (1960).Écrits , p. 823;Escritos 2, p. 803: 13. J. L acan (1960).Écrits , p. 825;Escritos 2, p. 805. 14. J. Lacan (1960).Écrits , p. 775;Escritos 2, p. 754.
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identificar-sc de modo tão precário, tão dependente da resposta que o Outro dê às suas palavras, às suas demandas. Ele nega a divisão que se lhe impõe ao fazer que sua demandajle satisfação pulsionaí deva~stHflTÍcíílar com o desejo do-Outro. Também nisto é o positivo da neurose negativa. Enquanto o neurótico vive encarnando uma pergunta dirigida ao Outro por seu deseio e demandando que esse Outro lhefaça um lnpar o perverso se constitui como resposta, sua demanda não é uma pergunta, mas uma imposição exercida de modo categórico. Ele é a causa pela qual o outro se divide. E é assim que sofre uma metamorfose que o transfo.r-ma-.em objeto e in^umento; riãojé um sujeito sujeitado aos vai-e-vens da cadeia signiücante. Identifica-sê corrTo real que toma acessível o gozo ao O utro.^omjjjna.s de gozo, com acausa do deseio da-QutroLtamase obieto @. Esta identificação não pode existir no vazio; necessita de umpartenaire,um outro, com minúscula certamente, um sujeito fading que experimente, agora sim, este sim, a divisão subjetiva eo como efeito da manipulação perversa. A criança violada ou seduzida, o horrorizado especiador da exibição, a histérica humilhada, o flagelador que deve trabalhar contra o mais íntimo^dg-_suas convicções para satisfazer as cláusulas do contrato masoquista, são exemplos deste forçamento da em cisão até intolerável chegar ao que limite do desvanecimento pela colocação cena transpassa as fronteiras da consciência, do pudor e do asco. Esse outro que não 4 bom quando é complacente, mas quando é violentado^resistente, suplicante. Quando o outro consentc a nerversãjQ-se-dissina. Considerada assim, a perversão é totalmente o contrário do que o próprio perverso pensa que é e faz. O fantasma encobridor do eu que trata como objeto o outro de sua ação revela, além de seu é o perverso aue imaginário, que acontece exatamente o contrário: é q objeto e é. sua vítima que é o suieito. mais, é quem, pela manipulação perversa, transcende as barreiras do prazer e se encontra com o gozo que está além. O paradoxo é que o perverso, vontade de gozo, aqu£Íe.qu£ vive parasabergoxar. acabapor virar o gozo sobre as duas vertentes contrapostas, a do Outro cuja falta é desmentida c a do outro cujo gozo é alcançado pelo caminho do sofrimento e da dor. E o perverso, ele mesmo, querendo ser o dono da situação, imaginando sê-lo,_é o ahieto^ de sua paixão. Perde a
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recompensa que se promete e concede a que queria arrebatar. O gozo se lhe escorre na própria efetuação de seu ato deliberado, consciencioso e volitivo e essa substância gozadeira que se lhe escapa é a que brota em quem sofre seus rigores. A fórmula do fantasma se inverteu e assim é observada no esquema lacaniano ao qual estamos nos referindo:
@o r O desejo(d) leva-o a identificar-se com o objeto ((s>) e isto o coloca em relação de corte, de impossível encontro com o sujeito (S) em sua divisão e em sua possibilidade de gozo. Diferentemente do que se espera no fim não de uma perverso não instrumentalizou seu deseio-e p^deanálise,_o decidir se. qner o que deseja; qjjeseio o instrumentalizou submetendo-o a um impêrativcTtanto ou mais inflexível auè~õ da~Lci a que pretende contestar. Deve, então, chamar a atenção que quem demande a análise não seja ele, mas o verdadeiro sujeito, sua suposta vítima? (cf. capítulo V). Por que não fazer a apologia da perversão e propô-la como uma meta desejável? Por inveja, própria de neuróticos distanciados do gozo? Por militar na defesa de valores convencionais? Esta é uma pergunta inevitável que complementa e redobra o clássico “e por que não?” que nos espeta o perverso. A ética da psicanálise está comprometida na resposta. A contece, conf orme vimos, que avontadede gozo não dáem nada, senão que com ele falha por desconhecer que a premissa do gozo é a castração e aaceitação daLei do desejo e queo sabergozar não é senão um fantasma que, como todo fantasma, se interpõe e levanta uma barreira no caminho do gozo. O perverso insiste e sua insistência exibe sua defesa; ele “também” interpõe seu desejo no caminho do gozo em lugar de transitai pelas vias do desejo até uma meta de gozo." 1 O eu desconhece sua própria função jie
15. J. L acan (1960). Écrits , p. 775;Escritos 2, p. 754. 16. J. L acan ( I960), Ecrits, p. 825;Escritos 2, p. 805.
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desconhecimento quando pretende colocar-se por cima da barreira inevitável que há ejitre saber e gozar: no caso da perversão, mais do que em qualquer outro, o eu está do lado da realidade e do semblante. Pois “só há acesso à realidade por ser o sujeito conseqüência do saber, mas o saber é um fantasma feito apenas para o gozo. E, além .17 disso, por ser saber, necessariamente ”falha Por ser saber, por ter que articular os significantes produzindo constantemente o real como um impossível que escapa à apreensão da verdade, porque busca impor-se como vínculo social, como discurso, um discurso que procura negar a falta sobre a qual necessariamente se funda. E o perverso argumenta: é um pedagogo, um demonstrador, um eterno comprovante da justeza de sua tese. “Prega aí um pouco demais ” .18 Seu discurso, centrado no gozo, reforça a falha no gozo. Justamente por es dizer, por não seater ao hoje - tão pronto! - clássico conselho de calar sobre o que não pode ser dito. E com sua palavra de certeza, de imposição categórica disso que ele crê ser verdadeiro, põe-se à distância de qualquer palavra que poderia questionar ou modificar sua posição. E claro que de sua condição não poderia se queixar já que surge de uma eleição que lhe parece razoada e razoável. Seu desejo e sua,v.qntade dependem de um cálçuLo_ein J orno do gozo do corpo. E “um ato puro do entendimento que razoa, no silêncio das paixões, sobre o que o homem pode exigir de seu semelhante e sobre o que seu ” .19 V ive para o gozo; é sua semelhante tem direito de lhe exigir escolha. Mal poderia a psicanálise questioná-la desde fora. E desde dentro é inquestionável porque a colocação como proibição é incompatível com a própria posição que se questionaria. E o atoleiro da perversão. Para o psicanalista; para o perverso não. SmLa^qsta consiste em saber, sempremais, mais ainda, sobre o possível corporal ante o impossível da_£glação sexual. Sonha com 17. J. Jacan. Compte-rendu avec interpolations du Séminaire de l'Éthique. Ornicar?, v. 28, n. 14, 1984. Em espanhol,Resenas de enseftanza.Bue nos A ires: M anantial, 1984, p. 17. 18. J. L acan (1963).Écrits , p. 787;Escritos 2, p. 767. 19. D. Diderot.Encyclopedic, V, p. 116. Art. “Droit naturel”, citado por Nicola A bbagnano, Diccionario defilosofia. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1974, p. 1196, art. “Voluntad”.
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um trazer de volta no real, por sua atividade encenadora do fantasma, daquilo que a castração lhe obrigou entregar. Desaparece como sujeito para ser, desde o lugar do objeto, o senhor do gozo invulnerável à divisão, essa divisão que translada sobre o outro. Procura, incansável, fazer passar o gozo pelos desfiladeiros do discurso e assim controlá-lo. Tudo isso está muito bem e já foi dito, inclusive aqui. M as agora éo momento de tirar as conseqüê ncias.
3. O perverso e o gozo feminino J á fiz notar a característica clinica do horror do perverso ao vazio, à falta no saber. Seu projetgJ ie.ijiateriali za fazendo do goza uma doutrina e do corpo umjçampo.experrmental de onde se opera esse saber para se apoderar das influências da sexualidade. Chega assim a ser (pelo menos no imaginário) ojisico nuclear da libido que governa e administra sua energia, que decide sobre sua utilização e sua economia. Mas o horror ao vazio no saber significa ter todas as respostas e, muito particularmente - ponto de tropeço poder responder ao vetusto interrggantgjiobre o que quer uma mulher, essa pergunta quefoi causa dos tormentos de Tirésias... por ter pretendido saber a resposta... e de FreuJT ccrtamente, depois de tantas tentativas vãs de resporulâ-la, A gora, sim, com Freud, volta-se à tese (perversa?)de que há uma única jjbido, a masculina, .e-wa-úaico genital,_oj^í-h1 t-xilic organiza a genitalidade infantilem tomo da.a l temativa fálico/castra do, caso seaceite que no nível da teoria, do saber, a pergunta pelo gozo é respondida fazendo valer a qualidade proeminente do falo como significante e de sua função privilegiada que é a de conjugará pôr sob o mesmo jugo, o desejo, caso se adira a ela - a concepção freudiana da sexualidade humana - não se pode demorar em reconhecer que no coração desta teoria subjaz um tremendo agulheiro pelo qual escapa esse fluxo do gozo que não admite o jugo comum da palavra e do falo. Em suma, que há do lado das mulheres um gozo suplementar aoj^ozo fálico. Sobre este já íalãmüsTK i capiiulòTT C mas c mister recordá-lo agora para buscar cm torno deste ponto a essência da perversão.
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Para que fosse possível sabergozar, seria necessário que todo o sexual estivesse sob a égide do significante fálico, que as mulheres fossem “todas”em vez de^não-todas”,que existisse Ajmilhsr como equivalente simétrico do homem ou como seu contrário ou sua negação, que a sexualidade feminina pudesse ser reduzida por meio de algum tipo de equação que referisse, se a uma homogeneidade dos gozos. Freud chegou a se dar conta de que não podia responder a pergunta sobre oque quer uma mulher e que sua resposta: “falo” (Penisneid) não fechava .aquestão,mas abria o espaço de umalém. , L acan respondeu diz endo que devi a permanecer abe rta para sempre, porque as mulheres não estão ausentes do gozo fálico, mas que, além disso, são tributixias-de-oulro gozo, de um gozo Outro, suplementar, sentido mas inefável, enigmático, não esgotável em um discurso do saber, louco (o do homem é chamado “perverso”), que está além do falo .20 Ijjji gozo que não apenas é distinto, mas também oposto e rival do fálico: “a sexualidade feminina aparece como o esforço de um gozo envolto em sua própria contiguidade...separa realizar à porfia (à 1’envi)do desejo que a castração libera no homem dando-lhe seu significante no falo ” 21 (grifos de L acan). A ignorância reconhecida por Freud torna-se m e Lacan necessidade porque responde a uma falta, na estrutura, a^do significante d’A mulherj^uejpsse contrapartida e eqnivglente. do gozo fálico. Há uma falta no saber que remete a um impossível de saber, a um além do falo. E esse não-sabível não é um inexistente, não é uma falta, mas, pelo contrário, um excesso, um gozo a maisque o saber até agora pretendeu cercar, limitar, localizar, extirpar, fazendo-o objeto de discurso e controlando-o. A posição do perverso ante o saber sobre a sexualidade feminina é tão interessante como a de Freud e a de L acan, porque encerra a problemática que eles abrem e condensa a posição que é congruente o discurso do senhor como avesso do discurso psicanálise. com O perverso proclama sabergozar, desmente as faltas da no saber, desmente o inconsciente, desmente que o falo pode faltar no O utro, sutura todas as falhas. A té ãgoTK seguindo F reud, 20. J. L acan. (1972-1973).Le seminaire. Livre XX. Encore.Paris: Seuil, 1975. 21, J. Lacan ( 1960) Écrits, p. 735;Escritos 2, p. 714.
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sustentamos que a essência da perversão era este desmentido (antes traduzíamosVerleugnungpor “renegação” ou ‘YeçjsaT) da castração que punhaem perigo o falo, o trono e~õ altar e qu e, comprometido nestarecusa d e umaparte dareali dade, o sujeito destituía a si mesmo de seu lugar incerto para recuperar a certeza que lhe dava o objeto, o tornar-se instrumento do gozo que ele asseguraria com seus atos. A gora, levados pelas fórmulas lacanianas da sexuação e pelas ddrk cjwtinçntj\a fp.minjjiHaHp explorações recentes no ajitigo devemos deslocar nossa concepção da perversão. A tualmente, muitos autores acha m que a palavra “perversão” deveria ser eliminada do vocabulário porque se presta a fins da segregação. Pessoalmente sinto uma forte repulsa pelas classificações psiquiátricas e psicopatológicas, mas acredito que a psicanálise opera uma inversão destas e demonstra suas pretensões reacionárias. Por isso é que os criadores do DSM-IV ou V ou outras criações do mesmo padrão querem afastar o vocabulário e as concepções da psicanálise de suas taxonomias. Eles estão conseguindo. Deveremos segui-los? A té aqui dissemos, com Freud ecom Lacan, que se desmentia uma falta. Agora sabemos que es sa falta não o é; que há íaa prese nça de um algo que está ajáro e que não é alcançado pelo que surge da ordem do discurso que pretende coordenar o gozo em torno do significante e do semblante fálico. A perversão, o que faz que clinicamente se encontre comumente do lado masculino, o que favorece tantas discussões em torno de se poder falar em propriedade de “perversã o feminina”, oque levou Lacan a dizer que o sexo masculino é o sexo frágil enxj^laeão-à^perversão -22 é esta posição que assimila gozo com falo. As mulheres, logicamente, se ó são, não poderiam aceitar esta equação gozo = falo. Somente poderiam ser perversas à medida que esta seja sua posição com relação ao saber. Os casos não faltam, mas tampouco proliferam; não é raro descobrir a equação e, com ela, a perversão feminina quando, em um casal homossexual. umajfas-iotegFantes é a que se dirige ao analista com sua demanda: a outra é, no caso, a que sustenta« posiçac)-perversa, a~3e que somenteo falo permite o gozo. 22. J. L acan (1960). Écrits, p. 823;Escritos 2, p. 803.
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Em tais casos pergunta-se sc cabe falar de “perversão feminina” uma vez que o ser homem ou mulher nàõ é um dado da anatomia, mas posição subjetiva e que p aartenaire de nossa paciente é, assim(.'y colocadas as coisas, aquele que ocuna a posição masculina. E desde ajdgntificacão com o falo que essa, desmentindo o gozo feminino, dirige-se à outra mulher e a converte na ohieto (jj>de seu fantasma. A perversão está do lado masculino, é uma resposta que pretende sabe r ao preço de des mentir a verdade. Averdade, que é mulher (Nietzsche com Lacan), a verdadeque desmascara o falo como semblante, como um deslocamento do real pela linguagem, a verdade que namas psicanálise revela como isso que porémenão diz a verdade, a disfarçasecom as vestimentas do fala, semblante do fantasma, a verdade, se diz pela metade. Sempre se soube que havia um gozo diferente (nem maior nem menor, outro) e esse insabido era coberto com circunlóquios tais como “mistério feminilidade”. da mistério que é e foi tanto para os homens quanto para as mulheres. A função do saber sempre foi a de tratar de circunscrever e reduzir esse mistério, buscando localizar o gozo feminino (inclusive na duplicidade freudiana do gozo clitoriano e vaginal), concebendo-o como equivalente do masculino, submetendo-o ao modelo do orgasmo, posuilando ciclos imaginários de-ejeção e detumescência, experimentado com eletrodos no cérebro, contando as terminações nervosas no anterior e no posterior de tal mucosa, medindo secreções e umidades, contando os dias do ciclo e retorcendo-os ,1 com cálculos fliessianos. dosando hormônios e neurotransmissores recomendando massagens e técnicas de ginástica sexual. E mais ainda. Mas_a-^©l«çãcuiã_o passa pelo saber: o discurso do senhor renova aí suajmpolência. A respostaperversa àpergunta histéri ca não é a do psicanalista, mas a do senhor e a do universitário. Sua rgspastii é de universalidade, de redução do enigma no sipnificanle (fálico, resta dizélõTTQ jjesmentidojão é a castração, mas o gozo das mulheres, dõD utro sexo. A postulação perversaé que as mulheres nã o gozam porque são _urna pura disponibilidade para o gozo do falo-pênis ou, se na verdade gozassem, é porque também estariam incluídas, e totalmente, no gozo fálico, com mri gozo-ftue~éüdêntico aomagriiiiri^ Em qualquer dos casos, afirma-se que não há outro goz.o
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senão o eo~o fúlic/). A s mulheres são, em sua particularidade.,ora anuladas ora desmentidas. Novamente, devemos reconhecer que a. perversão “apenas” acentua a função do desejo no homem. Sua
essência é o fantasma: desmentido do sabergozar. gozo feminTricTe o substituto de um enigma pelo o de Esse gozo hostil, gozo do Outro, gozo à Venvido gozo fálico é o insuportável, a cabeça de M edusa que conduz ao fantasma. A .atividade do perverso faz semblante de ser sexual. Na verdade, o sexo é aí pretexto para demonstrar que o gozo do corpo pode submeter-se integralmente a uma articulação lintruageira que organiza as “posições”. O discurso que o perverso impinge sobre o gozo é isso, discurso, suplantação do gozo com experimentos mentais que revelam a cada passo seu caráter de artifícios, de cálculos da modalidade para dominar e bloquear o gozo do Outro, do Outro sexo. Parece uma busca..., mas é um disfarce. O teatro da divisão subjetiva negada e deslocada para o Outro oculta uma fuga frente ao incontrolável que se materializa no fetiche, na vítima, no olhar ou no contrato. A angústia subjacentese resume nessa falta deengenho, .no tédio reiterativo das encenações, nos sermões monótonos para a vítima e ridículos para o carrasccTque todos, também L acan, lemos em_Sad_e, O ponto limite do per_yersa não é a castração do Outro como acreditamos ao aprender a lição freudiana, mas o inconcebível gozo do Outro, esse gozo que o perverso, ao nretender desmentir, põe manifesto no Outro ao mesmo tempo em que fica excluído dele. Não é seu infortúnio particular, pois ele, corno todos, estava excluído desde antes. Seii-CHae ter acreditado que não. Quer tornar-se dono daCoisa da qual está exilado. É aí que “se agrega aos fantasmas que governam a realidade, o do” capataz .23A í a psicanálise pode trabalhar (e não se priva de fazê-lo) como reforço da perversão ao reeditar a idéia de um G ákjn, servil p om o “Eu, 'autônomo”. A fortaleza do eu que organiza e dirige a vida amorosa é, precisamente, o fantasma perverso,^ J imíasma dojseahüt-que quer reduzir o desejo_kigQyerná vel à vonta de racioflãTA ssenhorearse das pulsões, dos “instintos” como dizem. do~Isso para submetè23. J. L acan (1970). Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 423.
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a leis e a princípios lógicos. Deve-se ouvir Cícero, falando dois mil anos antes de Freud em um discurso que é seu avesso: “a. yontade é um deseio conforme à razão, enquanto o desejo oposto !q s
à razão ou muito em violento elaA éfalta a lascívia ou (sobre cobiçaodesenfreada que se encontra todospara os ”tolos .24 no saber gozo do Outro, do gozo da mulher) é desmentida; no lugar do buraco o perverso-instala-o exercício de um poder, o do capataz. Para concluir: a perversão é. em essência uma tentativa He. cura da falha da relação sexual e da irremediável heterogeneidade dos gozos. E uma decisão de suturar que é^ntinômica com o projeto próprio do discurso e a busca da psicanálise, o desígnji uj e não ocultar a fenda. E característica da perversão a pretensão de obturar tudo que provém do não-sabido do sujeito. Encontrar-se com o inconsciente revelaria ao perverso a insondável rachadura que o leva a ceder seu desejo, a substituí-lo pela vontade de um eu forte, ^rpnnnrn r rr) ]iffl dj «j i an Hr> a wiHn erótica. Sua Única possibilidade, na perspectiva dapsicanálise, ^UtnTnãperseguição de seu jiqzçixncQntxe^se com a impotgiiciarcomo no caso que Freud relatou aseus colegas em 1914.25M as então, como agora ou como "no caso da jovem homossexual, não se pode esperar muiio. E difícil substituir a vontade de gozo pelo desejo quando “a única” coisa que se pode propor para curar esta passagem necessária pela impotência é o reconhecimento da impossibilidade real no final do caminho. E não obstante...
24. M. T. Cícero. Tuscitlanes, citado por N. Abbagnano, Dicionário de filosofia. p. 1195. 25. H. Nunberg e E. Fedem (eds.).M inutes of the Vienna Psychoanalytic Society. v. IV (1912- 1918). N ova Y ork: I nternational U niversity Press, 1967. p. 243. (Acta 225: A case of foot fetishism, relator Prof. S. Freud.)
VII
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1. Não se elege a psicose A ntes, depois e em vez de. Assim se orientam os gozos em relação ao comércio da palavra, à dicção, à regulação das relações com o Outro. A ntes da palavra, mas não fora da linguagem, o gozo do psicótico. Depois da palavra. No falante, aquele que não seria nem neurótico, nem psicótico, nem perverso - é essa condição pensável? - o gozo passa pelo diafragma flexível da palavra que o dosifica, o submete à significação fálica, o desvia pela metonímia desejante, o torna correlativo da castração e permite atravessar as barreiras do narcisismo e do princípio de prazer para que a pulsão, historizadora, inscreva a passagem do sujeito pelo mundo, deixando sua marca no Outro, recebendo seu fardo e aportando sua cota ao mal-estar na cultura. Em vez de, em vez da palavra, avesso da palavra, é assim como vem o gozo coagulado no sintoma neurótico e na encenação perversa. Sob os emblemas do eu, dizem que forte. A ssim, há um gozo que insiste, um gozo maldito, aquém da palavra, um puro ser no ser, anterior à falha que se produz no ente por se dizer. Deste gozo incomunicável, que prescinde do Outro e se aloja em um corpo que escapa à simbolização, nos falam, sem se
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dirigir a nós, os psicóticos. Eles nos mostram que a palavra não funciona como diafragma regulador, que o sujeito foi inundado e deslocado por esse gozo rebelde aos intercâmbios, proliferante, tão invasor que não deixa lugar para uma palavra Outra que possa refreá-lo e limitá-lo. Se O é o significante do gozo como proibido para o ser que fala como tal, então é o Falo que não se simbolizou, o gozo não foi esvaziado do corpo, a falta a ser não se instaurou, o sujeito não é desejante. Sem esta falta fecunda, sem que se cumpra a função imaginária de -cp, nada fica por buscar no campo do Outro. Porém, como já sabemos, mas é mister aqui reiterar, o Falo não cumpre sua função como significante per se, senão por meio de outro significante, o do nome-do-Pai, que permite a instauração de um tronco fundamental, significante um (S,), ao qual poderão se articular os significantes dois (S j do saber inconsciente. O Falo barra a C oisa e permite a emergência do sujeito ao se fazer representar pelo significante do nome-do-Pai que permite a significação fálica (capítulo II, item 5). Se este tronco que é o nomedo-Pai falta em seu lugar, os ramos ficam soltos e não pertencem a árvore nenhuma. Esta é, numa imagem apressada, anoção lacaniana da forclusão, chave das psicoses. Não há limite para o gozo, não há canal para a palavra articulada. Este é, em tais pacientes, o obstáculo de estrutura que impede que se unam o saber e o amor nesse coração da psicanálise que é a transferência. A interpretação é aqui inútil quando não persecutória e perigosa. E a questão preliminar a qualquer tratamento possível da psicose. Esta situação, este destino do ser que não se diz na interdicção, não está ao alcance de qualquer um. Não é louco aquele que quer sê-lo. Freud pôde falarNeurosenwahl, da da eleição da neurose. M as não, nunca, de uma eleição da psicose. A lição da psicose - creio - é que ela não é eleita. Esta afirmação é categórica, ainda que discutível e discutida. Não bastarecordar queem 1967 L acan disse que “o louco éo único homem livre”. Era o ano em que Lacan se dirigia para elaborar sua proposta dos quatro discursos, quando pôde definir em um prodígio lien social. Lien,ou seja, laço, vínculo, de síntese o discurso como atadura. Nesse sentido não cabe discutir que o louco é livre; ele, o único que vive fora das cadeias discursivas que fazem com que a
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palavra que se enuncia, tenha de passar pelo tribunal do Outro e esperar a resposta do Outro. É em sua linguagem, fora das coações do discurso, que o louco é livre. Entrar no discurso é atar-se, perder a liberda de. Arior, loucura uma exceçã etro é por exceção, ess e lugar exte que cri osadiscursos, oso qua deLessa acan, constituepo mr um conjunto. L acan reiterou em 1968' o quehavia dito há vinte anos, em suas “Observações sobre a causalidade psíquica”: “O ser do homem não apenas é impossível de compreender sem a loucura; não seria ele ser do homem se não levasse em si a loucura como o limite de sua liberdade ” .2 Sua posição é diáfana: a liberdade tem uma fronteira e o nome desse limite, borderline do , é loucura, linha onde acaba a liberdade. A crescentava na segunda oportunidade: “O psicótico apresenta-se essencialmente como o signo, signo em impasse, daquilo que legitima a referência à liberdade ” .1 Impasse, o que nã o pode se atravessar, o que separa de um e outro lado a liberdade de sua ausência. Observe-se que não há lugar para mais um discurso, o do psicótico, esse no qual a palavra não seria semblante, mas que sc colocaria diretamente no ponto de união da verdade com o real, isso que J ulia K risteva4 batizou como “vreal”. Todo discurso é semblante porque se apresenta como verdadeiro sem sê-lo. Todo discurso é do semblante,5 6 porque fala de entidades que não existem senão por meio do discurso que lhes dá seu estatuto linguageiro. E, finalmente, todo discurso é do semblante porque seu agente (o que se dirige ao outro e o interpela), é o semblante, que toma o lugar da verdade ao mesmo tempo em que a põe a respeitosa distância, seja ele senhor, universitário, analista ou histérica. E o psicótico não é nem faz 1. J . L acan (1968).Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 361. 2. J . L acan (1946). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 176. Em espanhol, Escritos l. M éxico: Siglo X X I, 1984. p. 166. 3. J . L acan (1968).A. E., p. 363. 4. J . K risteva. Locci verdad. M adrid: Fundamentos, 1985. 5. J . L acan (1971-1972). Le séminaire. Livre XVIII. D'un discours qui ne serait pas du semblant.Paris: Seuil, 1984. 6. N. A. Braunstein. El concepto de semblante en Lacan. México: Siglo XXI. p. 121-152.
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semblante. V ive fora dele mesmo quando não lhe esteja vedado cruzar sua fronteira e dar-se a entender. Não quer dizer, pois, que o louco seja livre para eleger. De fato, e, como psicótico, são os demais queelegem porele. Aquilo de que o louco está livre é de ter de eleger,isso a que nos obriga o discurso a todos os outros, que sabemos que não é possível eleger sem perder, sem renunciar a uma parcela de gozo. A psicose “salva” o sujeito depassar pela castração simbólica, de ver-se obrigado a desalojar o gozo do corpo, de ter que se manifestar em um discurso em que o objeto se constitui como perdido, das barreiras (ao gozo) que obstruem a subjetividade na significação fálica e que tomam impossível a relação sexual. O louco é o sujeito que está em contato imediato com o objeto precisamente porque não está submetido a ter de metaforizar e metonimizar sua relação com ele no encadeamento dos significantes. A alucinação toma o lugar que tem o fantasma para os enlaçados pela palavra. A ssim a loucura nos mostrauma imagem da liberdade que é alheia aosnormais, os mais ou menos neuróticos ou perversos, os que nos defendemos do real por meio do simbólico, nos agarramos à nossa imagem narcísica e nos instalamos em uma suposta “realidade” que está feita de enlaces arbitrários entre significantes e significados. Tal “realidade” não é mais que uma formação fantasmática compartilhada por muitos bem-pensantes e que nos deixa a ilusão de não estar loucos. Vivemos no reino do sentido; não somos insensatos.Gostemos ou não. O louco, particularmente o esquizofrênico, denuncia sem o saber a presunção da razão que se confirma a si mesma, excluindo o louco dos intercâmbios e subordinando-o, em nossas culturas, à ordem médica por meio da psiquiatria que encerra e domina seu corpo com a ajuda dos fármacos. A psicanálise se confronta assim com um dilema: idealizar o louco e a loucura como paradigmas da liberdade ou objetivá-lo com a noção de “doença” e justificar assim as manipulações e a prisão. Nossa opção consiste em denunciar a falsidade desse dilema e mostrar um caminho diferente, congruente com o nunca de smentido determinismo deFreud e L acan. O risco é duplo; por um lado o de justificar a redução do louco a uma condição de animalidade, por outro, o de um bunuelesco fantasma da liberdade em que aqueles que estamos encadeados a
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subsistir à mercê dos ofícios de um significante que nos represente ante outro acabamos por construir a idéia da “liberdade do louco” como remendo imaginário à nossa falta .7dela O problema é que na loucoonão éo dono de seu corpo, mas o entrega ao loucura Outro, ocomo fazem também, e a seu modo, o farmacodependente e o suicida para que se ocupe dele. Sua liberdade tem o âmbito dos muros do manicômio ou dos miseráveis quartinhos de hotel onde são hoje encerrados depois de impregná-los com produtos químicos. Se o louco fosse o único homem livre, o invejaríamos. E assim? Como se consegue ser psicótico? É a eleição de uma posição subjetiva dessas pelas quais se é sempre responsá vel, como diz L a cans cm “A ciência e a verdade”? A neurose, a adicção, o suicídio, a perversão o são. Também o é, à luz do que nos ensina a clínica, a psicose? Eleger não é escolher um objeto do qual se haverá de gozar. Caso se tome esse ponto de partida ficar-se-ia no mais tosco psicologismo da consciência autônoma. Eleger é aceitar a perda, abrir mão do gozo. O paradigma da eleição, uma eleição forçada, está dado por L acan em seu célebre “a bolsa ou a vida” .9 A eleição imposta ao sujeito exclui a conjunção de ambas. O psicótico é precisamente aquele que responde o impossível: a bolsa e a vida, aquele que não aceita, que recusa, a perda de gozo. Eleger é eleger a perda do objeto e, a partir de aceitar o cerceamento écornement) ( do gozo, elege-se o modo de se relacionar com o objeto como perdido. Essa é, justamente, aNeurosenwahl. Não acontece o mesmo na psicose. E necessário seguir o pensamento lacaniano sobre as psicoses e encontrar em seu ensino o momento de inflexão a esse respeito. E verdade que L acan pôde falar da psicose como uma“decisão in sondável do ser ” . 10 Esta expressão aparece no artigo dedicado à causalidade psíquica, escrito a pedido deHenry Ey em 1946, no qual 7. Chr. Fierens. Comment penser la folie. Ramonville: Erès, 2005. 8. J. L acan. Écrits, p. 858;Escritos 2, p. 838. 9. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 193. 10. J. L acan (1948). Écrits, p. 177;Escritos I, p. 167.
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L acan enfrentava a ssim as pretensões vet erinarizantesd) organodinamismo. A “decisão insondável” está imbuída do espírio sartreano que dominava nesses anos. E, por mais que se pretend negá-lo, c abertamente contestada concepção lacaniana que st deduz len tamente de z anos depois, pela no perí odo de el aboração ^ ue vai do seminário III sobre as psicoses 11 até a escritura (em 1»58) de “A questão preliminar a todo tratamento possível da ”psicos . 12 Aqui a questão da psicose aparece centrada em torno do conceto de “forclusão”. totalmente oposto à idéia de uma “decisão insoidável”. A nova tese estabelece a não intervenção da metáfora paDrna. O de terminismo próprio da psicose deve ser buscado na relaçã>do sujeito com a linguagem: o significante que seria o eixo de todaarticulação não tomou seu lugar na cadeia e todos os demais vagamsem rumo. Bloqueou-se a artéria principal e o sujeito deve errar peloicaminhozinhos secundários onde todos os sinais se põem a falir por sua conta. Produz-se um desencadeamento com relação ao Iço discur sivo, com relaçãoà cadeia borromeana e com a cadeia da gerações e é esse ruído de cadeias rompidas que ensurdece o psidtico. Quando o significante do nome-do-Pai falta em seu hgar - nos é ensinado pela cl ínica - o que fica não é um sijeito na indeterminação e na liberdade absoluta, mas um sujeito ubmetido ao inefável do gozo, submetido à arbitrariedade do desej) da Mãe. Pois a metáfora paterna é o efeito da operação da ausênca da mãe, cujo lugar o nome-do-Pai vem ocupar. Para que estaoperação fracassada, para que esta forclitsão se produza, disse .acan em 1968, nas J ornadas sobre a P sicose I nf antil , 13 é ireciso o encadeamento de três gerações que são as necessárias pan produzir uma criança psicótica. A tese das três gerações se lontrapõe evidentemente com a “decisão insondável” de 25 anosmtes e se soma à compreensão das psicoses como um deeito não compensado na junção da cadeia borromeana (R, S, ) que foi elaborada nos seminários de L acan de 1974a 1977. 11. J. Lacan (1955-1956). Le seminaire. Livre III. Les psychoses.'aris: Seuil, 1981. 12. J. Lacan (1958). Écrits, p 531-585;Escritos 2, p. 513-564. 13. J. Lacan (1968). A. E., p. 362.
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O Pai vem dar fim ao pior. Não resta nenhuma dúvida de que ele é um impostor e que a conseqüência de sua impostura é a submissão do sujeito às ataduras do discurso. Pela interferência do nome-do-Pai o sujeito é desalojado doo gozo, sarsa ardente Coisa. Impostura não é, em contrapartida, desejo da da M ãe; esse sim da é bem real. Sabe-se de seus efeitos quando a impostura fracassa, quando o sujeito não entra nessas formações de discurso e formações do inconsciente que não são senão semblante. Sobrevêm o pior, isso que deve evitar qualquer tratamento da psicose para não “se exaurir com os remos quando o bote está na” .14 areia E ntre a proposta do senhor que fecha e reduz o louco e o recurso idealista a uma liberdade insondável e fantasmática, o desafio para os psicanalistas é encontrar uma terceira via. O determinismo freudiano e a causalidade estrutural lacaniana indicam a direção a seguir. 2. Psicose e discurso Para o psicótico não há escapatória. Nele não existe a possibilidade de uma entrada e saída manipulável, operatória, das transações linguageiras. Sua separação da cadeia significante é um efeito, a conseqüência de um defeito da cadeia simbólica do sujeito. O psicótico se situa e sempre é situado foraring do U ma dificuldade se aprese ntado ao discurso. escrever deforma geral sobre as psicoses: tende-se a fazer delas um modelo global que resulta sempre uma alusão ao que se encontra na clínica dos pacientes diagnosticados como psicóticos, mas que quase nunca se confirma plenamente nos casos singulares. E assim como “a psicose” e “o psicótico” que chegam a ser rótulos esquemáticos que extraviam o clínico e o leitor que investiga no lugar de orientá-lo com relação ao processo estudado. Freud bem o sabia no final de sua vida. quando escrevia em um texto que os lacanianos, com razão, tendemos a esquecer, quando não nos esquecemos de ler. No ” 15 (1940[ 1938]) o fundador manifestava qu "Esboço de psicanálise e 14. J. Lacan (1958). Écrits, p. 583;Escritos 2, p. 564. 15. S. Freud (1938). Obras completas, v. XX III, p. 241-242.
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O problema das psicoses será simples e transparente se o desatamento do eu com relação à realidade objetiva pudesse se consumar sem deix ar rastros. M as, ao que parece, isso oc orre raramente, talvez nunca... Provavelmente tenhamos o direito de conjeturar, com universal validade, que o sobrevindo em tais casos é uma cisão psíquica. Formam-se duas posturas psíquicas em vez de uma postura única: a que leva em consideração a realidade objetiva, a normal, e outra que, sob a influência do pulsional, desfaz-se o eu da realidade.
Deve-se sempre ter presente esta Spaltung.Falar ou escrever sobre “a psicose” e sobre “o psicótico” é se restringir a uma das duas “posturas psíquicas”, a que se separou da realidade, ou seja, do Outro do significante, e ignorar a presença constante da outra postura, a que continua vinculada ao Outro. Por isso em nenhum psicótico singular se encontrará plenamente o que este ou outro autor escreve sobre “a psicose” como modelo ideal. Esta consideração é essencial para justificar a afirmação feita linhas acima de que o psicótico, pelo fracasso da metáfora paterna com forclusão do nome-do-Pai, fica situado fora do discurso. Possivelmente não valha absolutamente para nenhum psicótico e, não obstante, tem validade clínica geral com relação “à psicose”. A definição lacaniana do discurso como vínculo social, vínculo entre corpos habitados pela linguagem, é o recurso essencial para aceder à concepção psicanalítica das estruturas clínicas em geral e às psicoses em particular. Desde a definição do significante e sua concretização na matriz de todo discurso que é o discurso do senhor. “Um significanteé o querepresent a a um sujeito ante (ou para) outro significante” ,16 é definição incompleta caso não se acrescente: “... que deixa como produção um resto, um real fugidio que escapa à articulação discursiva do S, e do S2. Na posição da verdade dessa articulação discursiva está o sujeito S, o que é representado pelo significante primeiro ante o segundo. A definição do significante escreve-se como matema do discurso do senhor:
16. J . L acan (1960-1964). Écrits, p. 860;Escritos 2, p. 840,
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verdade
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—> //
outro
produção
S, S
—> //
S2 @
os lugares da verdade e da produção se que inscreve, formaEntre de uma dupla barra de separação, um corte marcasob a a disjunção, o desencontro necessário entre os dois elementos. Ao serem estes lugares ocupados na fórmula do discurso do senhor, toma-se vidente que a relação de corte ou de disjunção é a que existe entre o sujeito e o objeto e que a escritura assim produzida é a do fantasma, em que o corte é indicado pelo losango 0: S 0. Como esta fórmula é aplicada na intelecção das psicoses? J á desde o Seminário XI, anos antes de produzir os maternas dos quatro discursos, L acan havia estabelecido que devia se buscar a chave entre intervalo que separa,nanoligação “ante”auprès ( )oso dois “parasignificantes, (pour) o outronosignificante” da os definição. O S, não representa o sujeito ante o S2, seja porque não há diferenciação entre ambos significantes, seja porque está rompida a sintaxe que os articularia. E o efeito da forclusão. Pela função da palavra, pelo discurso, obtém-se um saldo fugitivo de gozo que é @, um @ que, por definição, é inacessível para o sujeito. Nas psicoses esta função da palavra e do discurso está radicalmente perturbada. A coagulação ou a desarticulação dos dois significantes, esta é a tese que aqui se sustenta, provoca como efeito uma falha estrutural na constituição do fantasma, um transtorno na relação entre o sujeito $ e o objeto causa de seu desejo, @. A psicose é um processo de afetação do intervalo significante, mas seu efeito para o sujeito é a falha na constituição do fantasma no membro que corresponde ao intervalo no matema do fantasma, ou seja, o losango O. A escritura do losango foi dita por Lacan de três formas diferentes: como a) corte; b) inconsciente; e c) desejo de. A relação do sujeito com o objeto do fantasma pode ser expresso dessas três formas. Isso é, precisamente, o que falha na psicose. Poder-se-ia dizer que está ausente ou rompido o losango e que por isso não há fantasma ou o próprio termo fantasma deveria receber outra definição se se quisesse conservar o incerto sintagma “fantasma psicótico”. Bem, a função do fantasma é a de distanciar o sujeito do objeto causa de desejo que é, por sua vez, o objeto do gozo ou o gozo
Gozo
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como objeto. Graças ao fantasma o sujeito está protegido em relação ao gozo, mantida a respeitosa distância dele. O losango equivale, na fórmula, à imagem gráfica do cristal de uma vidraça (ou um espelho) que separaria o sujeito do objeto desejado e proibido, perigoso. A psicose é a quebra do cristal, a situação na qual o sujeito fica exposto ao gozo e é extrapolado por ele. V oltando ao matema do discurso do senhor, que é o da definição do significante, temos que expor agora a situação anômala que se encontra na psicose: a) S, 2 coagulados, c S como uma massa indi stinta, homologados entre si, o que L acan designara prematuramente de holofrase.1 1Esse grude é o responsável, segundo disse, não apenas pelas psicoses, mas também por outros processos, como a debilidade mental ou as afecções psicossomáticas, e b) S, e S, desarticulados, carentes de casos sintáxe, separados de omodo inelutável entre si. Em ambos os deixou de existir discurso como vínculo social. Tomando como matriz o discurso do senhor, cabe arriscar agora a escritura da relação do psicótico com a palavra, desta maneira: S, 8
0
S, @
Esta escritura pretende mostrar que a relação de disjunção ou 0 , foi deslocada para a relação entre o corte, indicada pelo losango S, e 2Se que esse mesmo corte deixou de existir entre o sujeito e o gozo, desaparecendo a barra que os mantinha separados e que alentava no imaginário a busca de um reencontro poste rior. Assim era o fantasma(8 0 @) como resposta ao desejo ilustrado no gráfico de “Subversão do sujeito e dialética do desejo”.IS Dupla ruptura, pois, no psicótico: de um significante com outro e do fantasma como barreira frente ao gozo. Duplo efeito clínico: interrupção da dialética intersubjetiva e invasão irrefreável do gozo do Outro, não submetido à regulação fálica e à lei que ordena o desejo.
17. J. Lacan (1954). Écrits, p. 256. 18. J . L acan (1958-1960).Écrits, p, 817;Escritos 2, p. 797.
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Ou o gozo ou o discurso. Temos recordado que L acan quase nunca falou de um sujeito do gozo. A primeira vez, já mencionada, foi no seminário da angústia (13 de março de 1963 ) para propor o momento mítico de início que haveria de culminar na divisão subjetiva (fórmula da divisão ecausação a subjetiva). A segundafoi em 1966, ao apresentara publicação, em francês, dasmemórias de Schreber.1'' Escreveu n etão sobre arecém-surgida polaridade entre o sujeito do gozo- por um lado - e o sujeito, a quem o significante representa para um significante, sempre outro, por outro lado. A forclusão opera sobre a relação do significante do nome-doPai com o restante da cadeia. Desamarrado, o falante é lançado à deriva dos discursos, à dependência da resposta do Outro, a ter que se significar por meio de sua palavra, à ex-sistência. É por isto que no psicótico anão palavra não como é símbolo, não édoconvite intercâmbio, funciona diafragma gozo. ou invenção do O significante representa ao sujeito que não é psicótico. O sujeito está no lugar do significato, ele é o significado ante outro significante. Nunca do todo, porque fica um resto que é @. Esta articulação com o segundo significante é o que falta na psicose. Um significante suplanta completamente o sujeito, não o (re)presenta; esse significante não necessita se conjugar com outro, há coalescência do significante e o sujeito (significado). Não há um resto inassimilável, um resíduo da operação. O psicótico está invadido pelo gozo, esse gozo do qual, de ordinário, cada um fica excluído pela não coalescência do significante e o significado. Aí palavras são as coisasdo psicótico, não um saldo fugitivo que obriga a prosseguir o encadeamento discursivo. N ele há um significate S, que representa o sujeito de modo absoluto, confundindo-se com ele, sem remédio nem perdão, sem que a falta se simbolize. Por isso falamos do gozo psicótico, mas não do desejo psicótico. Não há falta em ser que motorize o discurso. O psicótico não se sustenta à distância do gozo. habita nele; está identificado com seu gozo. Ele é gozo. A alucinação ali não é uma percepção de alguém. Não há distinção entre perceptum e percipiens. Faltando o losango que afasta o sujeito do gozo do ob jeto a condensação é agora produzida entre os dois termos do 19. J . L acan (1966). A. E., p. 215.
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fantasma. Deveria se pensar em um vocábulo análogo ao de holofrase para designar esta coalescência entre S e @ cujo exem plo mais notável é a alucinação. Na percepção o sujeito à sua fren te um objeto e podeestá submetê-lo “prova de realidade” freudiana; alucinação o sujeito fundido,àconfundido, com seu objeto. Não na são dois, mas apenas um, não guardam uma relação de exterioridade recíproca. Nas psicoses o gozo não se localiza em uma região do corpo, não está reprimido e limitadopelo significante fálico, representante de -cp, daquilo que no corpo falta à imagem desejada, mas que invade o corpo inteiro transformado em quebra-luz onde se projetam metamorfoses arrepiantes que deixa o sujeito atônito, um sujeito que se vê reduzido a ser o cenário passivo de transformações que obedecem a escura vontade de um Outro onisciente que rege e regula o acontecer orgânico. Influência, hipocondria, alucinação de ordens, persecução, magnetismo, irradiações, transexualismo, negação, putrefação, cadaverização de um corpo onde não impera senão a O utra vontade, a que governa a carne do presidente Schreber pelos séculos futuros. Outro efeito dessa ausência de regulação do gozo pelo falo (pela castração) é que a vertente paterna, freudiana, do supereu, herdeira do complexo de Edipo, não se apresenta para incitar a outra mulher, a prometida e possível. Subsiste, então, irrefreável e incoercível, a ordem obscena e feroz do supereu arcaico, materno, kleiniano, que comanda oGozo! impossível,gozo! ilimitado da Coisa que está antes e aquém da castração. Pela defeituosa integração do sujeito na ordem simbólica é que ele não chega a se distanciar do real como impossível. E produzida sucessivamente uma desorganização completa do imaginário do corpo. Sobre esse fundo de fragmentação, sobre esse transtorno radical da existência, implanta-se a função restitutiva do delírio que pretende voltar a ligar o sujeito em uma cadeia significante e dar conta experiência O conjunto da aventura psicótica resulta desta da dispersão dos vivida. significantes que ficaram invertebrados^ desligados do vínculo social. A metáfora delirante pretende remendar a falha da metáfora paterna na sua função de conferir uma significação à falta no Outro. Pretende devolver o sujeito às redes
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do laço social. Restaurar a ligação, Bindung a do gozo com a palavra.
3. Droga-@-dicção Não se eleje a psicose. Há, no entanto, um método de sub tração do sujeito ao intercâmbio simbólico que é, este sim, objeto de uma decisão e de uma eleição. A lgo que permite uma conexão quase experimental com o gozo e que opera um curto-circuito com relação ao Outro e aseu desejo. Uma senda que permite ao sujeito um certo balizamento, a produção mais ou menos regulável de uma separação com relação aos efeitos da operação de alienação significante. Uma separação que pode ser completa, ou seja, uma recusa absoluta da alienação significante. Não deixa de ser paradoxal que este método seja posto à disposição do sujeito justamente por esse Outro do qual o sujeito pretende se separar. Com efeito, é um produto da indústria, algo que se trafica, algo que é proposto e oferecido pelo Outro no comércio que pode satisfazer esta de manda de uma separação radical, de aniquilação do “penso” em benefício de um “sou” sem atenuantes e além de qualquer cogita ção. Estou falando, como já se deve ter entendido, da droga, das drogas e de seu efeito permanente no sujeito que é a drogadiçse ão.2preferem, 0 A intenção de separação (do Outro), entendida como operação oposta à alienação (no Outro), é, conforme acredito, a chave que nos permite internarmos na selva das drogas, que é uma das características específicas de nosso mundo e de nossas vidas atualmente. Uma realidade cuja presença irá ganhando importância sem que possamos contemplar qualquer limite à criação de novas 20. A níbal L enis B. de Cali publicou um artigo que intitulou “Interpelar la droga-dicción”. O hífen de seu título serviu de estímulo para estas reflexões, assim como suaafirmação de que “o drogadito é quem ‘cria’ ou ‘adminis tra’ sem necessidade dos outros, que o demandam como sujeito, seu pró prio gozo”. O texto de L enis foi publicado no número 2 do Boletín de Estúdios Psicoanalíticosde Cali, Colômbia.
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substâncias que cheguem ao organismo e o modifiquem sem passar pelo filtro da subjetividade. O modo mais barulhento da separação do Outro é, sem dúvida, odiferente. suicídio de queela logo oferece uma rumor, alternativa Com ou falare commos. elasAo droga clamor é apenas a batida toma-se um mero escorregar, a soberba se torna humildade, a pompa se torna recôndita, a altivez suicida se faz vergonha. Uma diferença salta para o primeiro plano: na intoxicação não há morto, mas um “dar-se por morto” que não reivindica com orgulhoso desdém o corpo que se entrega como uma esmola ao Outro, mas que o degrada e o mostra na miséria de suas servidões orgânicas. O suicídio destaca o nome, o toma próprio, o livra da entrega ao Outro. Em contrapartida, os alcoólicos são anônimos, enquanto alcoólicos e alcoolizados, claro. De qualquer forma, deve-se ter cuidado de não falar leve e superficialmente dos adictos, toxicômanos ou fármacodependentes conforme se prefira chamá-los. O uso do álcool e das demais drogas configura uma “conduta” e não uma estrutura clínica. Tal conduta pode se manifestar em neuróticos, perversos ou psicóticos e a maneira de encarar psicanaliticamente os casos não depende do uso das drogas, mas dos reparos estruturais; são eles que permitirão orientar a direção do tratamento. Sempre será sábio por parte do analista que encontra o uso de drogas no lugar mais visível da apresentação de um caso, a retroação a este modo encobridor no qual o sujeito se mostra ou é levado a se mostrar ao psicanalista. “Sou toxicômano” é um dizer comum para fugir à pergunta pelo ser: o nome-do-Pai, do pai como quem nomeia o sujeito, é o da droga da qual o sujeito está pendente (de-pende). A própria toxicomania cobre e esconde essa questão conferindo um semblante de identidade que não deixa de ser uma máscara que deve ser tirada para que as verdadeiras perguntas do sujeito sejam ouvidas. O interessante deste comportamento está no modo como o sujeito enfrenta este objeto peculiar que é a droga. Supõe-se que sua adicção lhe permitiria uma via de acesso privilegiada e direta, em curto-circuito, até o gozo e que seria um modo de contestar a exigência do Outro e da cultura de renunciar ao gozo. A droga consegue ser o objeto de uma necessidade imperiosa que não aceita
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nem os diamentos nem as diferenças dasatisfação demandada. Temos a uma diferença radical entre o objeto da toxicomania e o objeto a pulsão ou do fantasma. A falta a ser não parece ser provocaia objeto inominado e. irrecuperável, a de uma mercadcria por queum se compra no mercado Neste sentido mas a droga, objeto d. necessidade, mascara ou substitui o desejo inconsciente que ficanais desconhecido do que nunca ao se disfarçar como uma exigêncii do organismo.Trata-se de uma necessidade colocada em termos asolutos, de vida ou morte: ou há o gozo químico ou há o nada. 0;ujeito fica abolido, reduzido ã condição de desfeito, @. A droga nô é um objeto sexual substitutivo, carece de valor fálico; é, pelo cor.rário, um substituto da sexualidade mesma, um modo de afastar-s das coações relacionais impostas pelo falo. E assim que a droga;e assemelha ao auto-erotismo da proibição srcinária: o sujeito dministra em si mesmo uma substância que o conecta diretamnte com um gozo que não passa pelo filtro da aquiescência ou pelo orçamento do corpo de outro; consegue-se deste modo a substituião da sexualidade. E ecasso o queencontramos no ensino de L acan acerca de ste tema, ms a escassez não é necessariamente a pobreza. E preciosa a indicaão que deixara plantada na única oportunidade em que se referiu droga com esse nome, no final de sua vida,21 quando expressai que a dificuldade para nós, falantes, é tirar da castração um goze permitir que a castração e o desejo nos liberem da angústia, conduzido-nos até o investimento do corpo do Outro que simboliza a falta o nosso. Pois a angústia vem para nós, homenzinhos ou futuras nulherzinhas, de descobrir - como no caso do pequeno Hans - |ue estamos casados com o p aito e que a difícil questão é como dssolver esse matrimônio funesto, contraindo outro, com o corpo d) Outro ou com o que quer que seja; daí que seja bem recebidctudo que permita escapar dessa união, “de onde vem o êxito da drogi”. E conclui: “Não há outra definição da droga: é o que permiteomper o casamento com o pipi”. A droga é o companheiro que ven depois do divórcio do homem ou da mulher com a ordem 21. J . L ean. Séance de C lausure de la J ournée des Cartels de 1’E col e Freucenne(18 deabril de 1975),L ettres de iE cole Freudienne, n. 18, 1976.
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fálica, com a admissão da falta. É a promessa de um paraíso où tout n ’est qu’ordre, beauté, calme, luxe et volupté,1 2no qual o Outro é substituído por um objeto sem desejos nem caprichos, um objeto que deixa como único problema procurá-lo como mercadoria e que não trai. O alcoolista, o droga-a-dicto, impugna a dúvida simbólica, dúvida eterna e externa que não contraiu e que não quer pagar. Porque, para ele, é impagável. Alíngua mexicana diz que contrair uma dúvida é “endrogarse”. A própria dúvida é chamada “droga”. Deve-se insistir nessa relação entre droga e dúvida (simbólica) com o Pai, com o Outro, com o credor onipotente que exige renunciar ao gozo e entrar no comércio. Frente à marca imposta sobre ele por um Ideal, I (A) que aspira o que procededo sujeito (vectorS — I [A]) no gráfico do desejo), ele entrega sua vontade sob a forma de um corpo privado de reações vitais, pura máquina metabólica sem desejo, negação fantástica e fantasmática da castração por meio da negação do falo. A fenomenologia mostra a diferença aparente entre a impotência que afeta os alcoólicos e os drogaditos do sexo masculino e a promiscuidade sexual com multiplicação das buscas e dos contatos sexuais nas mulheres de igual condição. A contradição não é estrutural. A função fálica cumprida pelos homens através da investidura fálica de uma mulher que alcança assim valor de gozo (e de sintoma) é algo que o alcoolista, paradigma do grupo, não realiza. Ele se coloca fora, aquém do desejo. A alcoolista, por sua vez, nega-se a receber essa significação fálica; seu corpo já não é um objeto de investiduras narcísicas, é algo que se dá, objeto de ínfimo valor quequalquer umpode pegar ou largar. A promiscuidade de uma tem o mesmo sentido que a importância do outro. Em ambos a castração passou a ser real porque não funciona como via para alcançar o gozo “na escala invertida da Lei do desejo”. O gozo não foi recusado, a castração não foi simbolizada, o gozo se fez inalcançável, a lei do desejo, a que ordena desejar, não opera, Há o Outro. Ai, o Outro! Esse Outro que demanda que se deseje seu desejo, que o sujeito se inscreva nele sob as insígnias do 22. Ch. Baudelaire.L esfleurs du mal.
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trabalho, do amor, da paternidade ou da maternidade, da descendência e da condescendência, da decência e da docência, da produção de objetos como significantes e de significantes como objetos. Eis o Outro que, ainda que barrado e ainda que não exista, impõe sua Lei e faz o sujeito responsável por suaposição desujeito. O Outro que pede que se dê conta da passagem pelo mundo, que impõe que o sujeito explique e responda pela vida que lhe foi dada no simbólico quando lhe foi atribuído um nome próprio que o representa ante o conjunto dos significantes. Nem sempre o Outro pede; às vezes é mais letal quando não o faz. A adicção não é tão-somente uma renúnica a pronunciar as palavras que representariam o sujeito ante o Outro exigente. A vida no mundo capitalista tardio mostra outra forma de dispor a capitulação do falante, a derrota da palavra. Isso ocorre quando o Outro não diz nem pede nem espera, quando o outro cala. Proponho que em tal caso falemosA-dicção. de “Faça o que quiser. A mim não importa. Nem te falo nem te escuto.” A função dogmática de transmitir verticalmente uma mensagem que descende das alturas da terra, essa função cumprida por Deus, o Imperador, o Rei, o Estado, o Partido, o Pai em todas as suas formas históricas, tem sido abandonadapor todos os seus figurões. A Lei é objeto de desdém; não está presente no horizonte. A parentemente a liberdade foi entronizada. Para muitos o inconveniente da atualidade pós-moderna é que a palavra que se podia dizer carece de efeitos. São contadas ao sujeito, mas ninguém as leva em consideração. São números em estatísticas e sua presença se reduz a dizer “sim” e “não” às perguntas do pesquisador. A palavra que se diz com-promete, é uma promessa, uma invocação ao entendimento e ao desejo do Outro; em última instância, a uma falta que teria de habitar nele para que a existência de alguém tenha sentido. Poderíamos jogar com os dois sentidos do vocábulo “oração”. Sai da boca oris ( ), mas não é simples exalação de ar; é àdemanda de sentido uma resposta, é expectativa de um se dará oração no gramatical e no religioso. O sentido sentido que depende da resposta; nunca habita com autonomia no sujeito. Procede sempre daquele que escuta, tal como é demonstrado freqüentemente na experiência analítica. O gozo do sujeito está
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refreado por essa expectativa de resposta, pelo desejo, na instância do diálogo. Bem, se o outro nem espera algo nem deixa saber o que quer, se o Outro não é desejante, para que falar? O sujeito é aniquilado pela surdez do Outro e eleje mutismo. As drogas queembriaga m e oferece m um atalho ao gozo sem opas sar pelo desejo, que chegam ao cérebro e atuam sem a mediação do diafragma da palavra, permitem desprender-se dos compromissos que unem o corpo com a cultura. Da abolição do sujeito fica, como resto, o corpo feito objeto, @. Neste caso permitimo-nos falar de @dicção. Recordemos: “Que se diga fica esquecido detrás do que se disse naquilo que se escuta”.23Temos comentado que a enunciação do sujeito é o que se esquece no enunciado pela escuta que corresponde que oO Outro ouviu. E se o Outro não escuta, qual é o sentido deaodizer? anulado em tal caso é o sujeito da enunciação. O gozo fálico, o do blábláblá, o que poderia abrir caminho para que, transitando pelo desejo se chegue ao gozo, está obstruído. Sendo impermeáveis as vias que levariam ao gozo, que está além da palavra, resta apenas o gozo do aquém, o primitivo gozo do ser, anterior à palavra. Sentimos a confluência de nossos três termos: adicção, @dicçãoc Adicção, todas modalidades nas quais o sujeito deixa de dizer e se separaKulturarbeit do , desse trabalho da cultura reclamado por Freud, e que pode fazer que onde o Isso estava o Eu possa advir. A indiferença em matéria de política, a renúncia à congregação e a aceitação da segregação são as manifestações mais visíveis em nosso mundo desta a-@-A -dicção. A psicanálise e os psicanalistas têm que se envolver nesta situação sem somar-se à já dita indiferença. O corpo em todas estas formas da sem-dicção é assento de um gozo que desaloja o sujeito, colocando-o fora do discurso como expressão do vínculo social. Sob o efeito das drogas o corpo é objeto @ e não, como nos suicidas, S (A ). Neles o corpo é a oferenda que se entrega em troca da dívida, uma libra de carne que é toda a carne que se livra nas mãos e na vontade do Outro. Assim,
23. J . Lacan (1973). A. É„ p. 449.
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materializa-se a suspensão de pagamentos, o “disponham de mim”. A rremessando seu corpo para o abismo é como os suicidas respondem à demanda insaciável de um credor usurário. A fastar-se do Outro, sua demanda (ou de que seu silêncio), ordenada conciliação dosdedesejos, é operação se pode da fazer de modo barulhento por meio da passagem ao ato suicida, a forma mais radical de fechar a porta que, sob pretexto de “não querer saber mais nada” dos condicionamentos da vida, da completa aspiração ao apagamento do sujeito na cadeia significante, produz paradoxalmente uma inscrição indelével. Pois o ato suicida auxilia, com o afastamento, uma contestação feroz e desapiedada do Outro e de seu gozo. O suicida mata, é um “homicida tímido” conforme o definiu o suicida Cesare Pavese. O sujeito da auto-imolação não disse, mas coloca seu cadáver como objeto livre da decomposição orgânica. (sentence):“Aqui tem meus restos (corpse)” Sua tácita proposição é uma determinação que , longe de brindar ao Outro esseobjeto @ que é o corpo como desfeito, marca esse Outro, inscrevendo nele uma cicatriz que érecordação pe rpétuade sua inconsistência. Assim, a carne putrefatível inscreve-se de modo indelével como S(A), justamente quando não é mais que (the rest is...)silêncio. Ao apagar por decisão própria a vida do corpo é oa Outro daL ei que se barra. Daí a fascinação e o espanto, daí a repulsa, a secular condenação e culpa, eterna se fosse possível, que recai ou que se pretende fazer recair sobre o suicida e sobre seu ato. De qualquer forma, há um vínculo essencial entre o suicídio e a drogadição. Recordemos o Lacan dos primeiros tempos (1938)2 4 quando falava da “formação do indivíduo” e de “os complexos familiares”: E ssa tendênci a psíqu ica para a morte... revela- se nos sui cídios especialíssimos que se caracterizam como “não violentos”, ao mesmo tempo em que neles se evidencia a forma oral do com plexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástri cas. A análi se desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe.
24. J . L acan ( 1938). A. E., p. 35.
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Se a relação sexual não existe, se o amor não pode supri-la e cumprir sua promessa, se o trabalho valoriza e consagra a escravi dão em vez de se ibertar l del a, o que resta se não o dese spero, a sede, a atração pelomaelstromde que dão conta em suas obras um Poe, um L owry, um personagem de Drieu la Rochell e{El fuego fatuo) ou um Rimbaud que seapagado mundodepois de ter tratado, e nã o em vão, de fixar suas vertigens? O que fica senão se empanturrar com essa comida que o Outro pede que se “lhe” coma (bulimia) para depois vomitá-la e se negar a seguir comendo (anorexia)? As desor dens da pulsão oral são também formas clínicas da a-@-A -dicção. O que pedem - sem palavras - os a-dictos? Ser deixados em paz, sem querer nada do que o Outro quer deles; gozar sem desejar, contestando assim o falo e suas pretensões unificadoras; sair do jogo com os dados carregados do dar e receber, dos intercâmbios de palavras, objetos, signos, criaturas, para chegar a viver essa relação perfeita do alcoolista com sua garrafa, manifestada por Freud como modelo invejável de um amor que não conhece as falhas, as traições nem os apelos recíprocos. Viver desconhecendo essa dúvida simbólica com que são importunados. Eu disse que a-@-A -dicção ilustra um apelo da e-dicção, do edicto promulgado pelo Outro. O adicto o faz por meio de um afastamento experimental, instrumental, operatório, com relação ao Outro, por meio de um movimento de vai-e-vem do qual o sujeito, pois há, sim, sujeito, sujeito da a-dicção, queria ser o senhor. Todas as a-dicções começam - como se constata diariamente - com a ideia do “controle” das entradas e saídas do gozo. “Sei bem até onde posso chegar se m me perder”. M as “Eu é Outro”, e o Outro, que pretende atuar por meio de Eu, que pretende “controlar” o vai-e-vem, termina sendo arrastado; o gozo sem dicção se apodera e muitas vezes consegue destruir o diafragma da palavra. No período clínico, desde a perspectiva da psicanálise, a única que aqui considero, o sujeito se apresenta como um pestanejar, uma piscadela reiteradamente dada ao Outro, fort e da, que é o que põe em ação esse Outro do qual nada quer saber e que, no mais das vezes, assume e se torna depositário de seu desespero. É assim que o álcool e as demais drogas rompem o diafragma da palavra e abrem as comportas dos paraísos artif iciais. M as a situação do psicótico não é artificial não.
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Chegando neste ponto creio que posso assinalar outra forma da adicção à qual não me deterei a considerar: refiro-me à escritura, não a qualquer uma: a de quem a utiliza como modo separação de (contrária àalienação)em relação ao Outro e suas exigências. Penso em diversas figuras do século passado: K afka, Joyce e Beckett, Plath, Woolf y Pizarnik, Camus, Céline e Sebald, Roth, M usil e Broch. Penso no magnífico ensaio de Serge A ndré:25 “A escritura começa onde termina a psicanálise”, no qual se analisam a fundo as relações entre psicanálise e literatura e a presença do gozo e o desejo do escritor na obra acabada. M as penso ainda que não apenas a escritura, mas também a música e as artes plásticas são mostruários da criatividade que se desencadeia em certos criados que se separam do laço social e optam pelas dores do gozo à custa dos prazeres do reconheci mentfazem o.26Penso, , na multidão criadores anônimos que uma artefinalmente bruta(art brut), obras de de tolos e ingênuos fora dos editoriais e das galerias, não dirigidas a nenhum outro nem Outro. Deixo apenas indicado este caminho para a investigação dos gozos adictos. Em síntese, resumindo o movimento deste capítulo: definiramse três formas polares de ruptura dos laços entre o sujeito e o discurso: a psicose, a drogadicção e o suicídio. Em todos os casos o parentesco se estabelece pela divisão da função do discurso. Nos três trata-se de um fato de linguagem, no campo da linguagem. A é escolhida, no sentido freudiano Wahl , pelos dois primeiros; esaída forçada no terceiro. A relação com o ()gozo e com o Outro da dialética subjetiva é radicalmente diferente para cada uma destas três posições de a-dicção. E o desafio para o analista é, em cada uma delas, o de restaurar o movimento do desejo que se deteve. Com poucas possibilidades; apenas conta com um instrumento, a transferência, cujo fio está desfeito pelo próprio processo que atravessa o sujeito. Há razões, sem dúvida, para que estas três a-dicções não sejam o campo eletivo da psicanálise. M as se não for a psicanálise, que outra coisa cabe eticamente tentar? 25. S. A ndré. Flac. M éxico: Siglo XX I, 1999; en francês, M arselha: Que, 2000. 26. G. Steiner.G rammars o f creation. New Haven e L ondres: Y ale 11niversity Press, 2001. Cap. 1, p. 17-64.
V III
Gozo e ética na experiência psicanalítica
1. U ma prática linguageira M uito e muitas vezes falamos antes deste último capítulo acerca das relações entre o gozo e a palavra. Tanto que pode parecer um excesso. Deve-se justificar por isso? Direi primeiro que não se deve fazê-lo e logo o farei. A clínica psicanalítica explora o modo de relação do sujeito com o gozo que pass a - é nossa tese - pela mediação ativa do diafragma da palavra. A clínica não tem outra base senão o que e s diz em uma análise e o que se faz numa análise é criar condições para o desdobramento do saber inconsciente, condições para a tradução em palavras. Portanto, a experiência psicanalítica está jogada integralmente na relação do sujeito com o gozo e está orientada para um certo bem que é o gozo como possível, como aquilo sem o qual seria vão o universo, mas também como aquilo que deve ser recusado para que possa ser alcançado. Na rota até o gozo há que fazer, forçosamente, uma escala no porto do desejo. Esta é a razão que gora a encontramos para aorganização es trita e exclusivamente linguageira dessa experiência da análise. Ela tende para que a verdade seja dita depois de aceitar que a verdade não se pode dizer senão por meias palavras, que deve ser filtrada pelo semblante, pelo discurso. As palavras sempre faltarão para dizê-la toda. Apenas pela linguagem é que estamos no mundo e, do mundo,
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a linguagem não nos dá mais do que um semblante, algo que parece, que para-é. E a análise está desenhada em relação com esse gozo do ser que a linguagem mesma forclui; não pode mais do que prometer dele, do gozo, o deciframento. Em seu fundamento, há uma presunção que a experiência mesma revelará como falsa: que a verdade poderia ser dita - é a consigna inicial: Diga tudo...etc. Essa injunção da regra fundamental não tem outro objetivo senão confrontar o sujeito com a impossibilidade de dizer tudo e assim tornar manifesta a inconsciente estratégia discursiva seguida pelo analisante ante a evidência dessa impossibilidade. O “diga tudo” inicial é seguido de ainda um que pareça desagradável, que é uma segunda injunção, a mais superegóica que se possa imaginar, porque seria indiferente formulála deste modo ou sob a forma que esse modo encobre e que é uma ordem:Goze\ Em outras palavras, a experiência da análise consiste em confrontar o sujeito do sintoma com o impossível do gozo e oferecer para tal impossibilidade o caminho da colocação em palavras em condições suaves, ideais, artificiais; as do dispositivo analítico, as da transferência, propícias ao amor. U ma palavra, sim, isso é o sintoma (ao menos no primeiro L acan), mas palavra ausente, “... farrapo de discurso, na impossibilidade de proferi-lo pela garganta, cada um de nós é condenado, para traçar sua linha fatal, a se fazer o alfabeto vivo”.1 Uma palavra, sim, mas se essa palavra pode esr lida no sintoma “é que (o sintoma) já está, em si mesmo, inscrito em um processo de escri tura” .2 A crescentemos, escri tura do gozo, capaz de deciframento conforme sabemos desde a carta 52 que revisamos no capítulo IV. Para tal deciframento é que teve de inventar, como o fez Freud, um dispositivo psicanalítico destinado a formar o inconsciente,o inconsciente lacaniano. “Para queo gozo possa ser alcançado naescala invertida daLei do desejo”.3Fazer com que o gozo condescenda ao desejo - já o sabemos - é a função do amor. Na experiência da transferência é 1. J . L acan (1957). Ecrits. Paris: Seuil, 1996. p 446. Em espanhol, Escritos 1. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 427. 2. J . L acan (1957). Écrils , p. 445;Escritos !, p. 426. 3. J . L acan (1960). Écrits, p. 825;Escritos 2, p. 805.
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o amor que está em jogo: ama-se o Outro porque supõe-se-lhe o saber, o saber que falta, o que deverá resultar da leitura do sintoma. M as a suposição de saber não está somentedo lado do analisante. O analista, por suavez, também supõe- e é um ato de caridade -, algo que ainda deverá demonstrar: que há saber no Outro, que existe o inconsciente. Deste encontro entre dois saberes supostos, surge a faísca que permite que se fale “de verdade”, que se constitua o inconsciente e que se goze com seu deciframento. Não é fácil. A atividade analítica está orientada para flexibilizar o diafragma da palavra, para que por ele passe o gozo. Isto na situação srcinária (historicamente) das neuroses. Reconhecendo esta orientação é que é possível se pensar o funcionamento especial que adquire o diafragma da palavra em casos de perversão e psicose, quando os sujeitos provisoriamente inscritos em tais estruturas clínicas são postos sob a prova da análise e de seu dispositivo. “Do gozo ao desejo” não quer dizer que o desejo tenha de ser dito. Pois a natureza última do desejo é, como sabemos, a de uma barreira posta ao gozo; é em relação a esta função fundamental, escondida pelo disfarce do fantasma, que há “incompatibilidade do desejo com a palavra”.4Não que o desejo deva ser dito, mas que seja tomado à letra, “posto que são as redes da letra que determinam e sobredeterminam seu lugar” (idem). Não que seja dito, mas que seja levado ao ponto de impossibilidade, o do gozo recusado, de onde ele emana. Deve passar pela palavra, emitida nas condições legisladas pela regra fundamental, para chegar à letra, aos codicilos srcinais do gozo inscritos no corpo, às formas em que se inscreveu a relação do sujeito com o gozo; essa história é a das migrações libidinais ou das renúncias gozosas, avatares da castração que podem ser recordados ao permitir que na análise opere a compulsão à repetição. Recordação, repetição e perlaboração. Da pulsão à compulsão e aos encontros fracassados com que tropeça o desejo. Para passar de uma escritura à outra, a do livro que todos levamos dentro (p. 208). Pois a letra está escrita e o desejo, saldo inarticulável da demanda, deve ser tomado etra. à l Terá de ir além da demanda, até 4. J L acan ( 1958). Écrits, p. 641 ; Escritos 2, p. 621
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encontrar isso do desejo que passa para a palavra ainda que seja incompartilhável com ele. Deve-se reconhecer nestas afirmações a teoria do dispositivo analítico e do que se faz com ele. A regra fundamental é equivalente ao imperativo de gozar, de transcender a função tradicionalmente acordada à palavra. O uso “normal” da palavra tende a “ratificar”, a “com-preender”, a confirmar na reciprocidade do sentido consentido, as imagens especulares dos que se “comunicam”. Na análise pretende-se atravessar a barreira self, esse fantasma organizador narcísica do cuidado do eu ou do em cada um da relação com o mundo, esse tampão que protege do real. O sujeito, empurrado pela consigna de associar “livremente”, logo se vê desalojado do terreno do prazer e é forçado a se confrontar com o traumático e com o inconciliável para o eu, com “isso” inominado que é o núcleo de seu ser. Desde o princípio (cf. p. 21), reconhecemos que a repressão esconde, mas também conserva um gozo seqüestrado, não disponível para o sujeito, vivido dolorosamente como sintoma. O gozo do Outro, do corpo desabitado pela palavra. A neurose é esta defesa do gozo, defesa de no duplo sentido: uma proteção contra o acesso a um gozo desmedido e um gozo que está protegido, coagulado, isento do comércio da palavra. O sujeito da neurose se defende subtraindo-se ao que percebe como um perigo na relação com o Outro do vínculo social: o desejo do Outro. Tal desejo é negado pelas operações de autodomínio que são essenciais na estratégia do obsessivo e que se sustentam na insatisfação pela intriga histérica. Com esta defesa neurótica ante o desejo como o traço que define a estrutura clínica da neurose, compreende-se bem que o desejo, assim, não condescenda ao gozo e que a relação com o Outro seja o campo minado e alambrado das defesas. Compreende-se também que o sujeito retroceda espantado ante o suposto gozo de um Outro que pediria sua castração. Defendendo-se do Outro, justificando-se ante ele, experimentando-se sempre como culpável, o neurótico renuncia a fazer valer seu desejo, o dele, confunde-o com a demanda do Outro, submete-se ou se insubordina, mas sempre em dependência dessa demanda, retrocede ante a possibilidade de inscrever seu nome próprio, esse nome que o importuna e o estorva e o substitui por uma demanda dirigida ao Outro para que o nomeie: “Como você quiser; isso e assim serei”.
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A operação analítica consiste em reanimar este movimento das defesas ante o Outro, esta demanda de alienação guiada pelo fantasma que protege e faz debarreira ao gozo. Uma vez queseja reanimado, operando na transferência, é-lhe posto um limite, é levado ao seu inevitável atoleiro, a seu ponto de impossibilidade. Chegado a este ponto o sujeito se vê forçado a ir além de seu fantasma, das satisfações gozosas a que poderia prestar-se a situação analítica; é levado a se identificar com a causa de seu desejo, com sua falta. Esta ação levada a cabo Lanto pelo corte oportuno do encadeamento discursivo quanto pela surpreendente intervenção interpretativa implica um forçamento do narcisismo que se conforta por hábito com a aquiescência complacente do Outro e que aponta para a simpatia, para a compreensão, para a reciprocidade dos sentimentos e dosrarefeito, reconhecimentos. Sim; é raro, o ambiente da análise. Para que esta marcha contrária aos bons costumes do diálogo seja possível, é necessário que o discurso do analisante e seu motor fantasmático se encontrem, se choquem, com um desejo que esteja, por sua vez, além das miragens do narcisismo, da solidariedade, da confusão dos eus, da benevolência e dos ideais compartilhados. E necessário que este discurso e este motor não se encontrem com outro sujeito, mas com um vazio que os confronte com seu próprio vazio em vez de lhes oferecer tampões ilusórios para sua falta a ser.
2. Pulsionar e seus destinos “Tomar o desejo à letra” é reconhecer que a letra do desejo é esta inscrição do gozo no corpo e que a palavra é, a partir do inconsciente, uma tentativa de ler esta letra, de traduzi-la em termos de um discurso queé sempre do sem blante. A subjetividadegermina, expande-se nesta fenda fecunda que se abre entre a escritura do gozo e o dizer que a cinge até topar com o impossível de sua (e)missão, com essa zona inacessível e inanimada que se abre além do fantasmae que recebe u de Freud o nome de “morte” e de L acan o conceito que designa aí esse radical a que a pulsão conduz, o real impossível.
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O movimento na experiência in:iada por;reud está orientado por esta pretensão de tocar o real con o signiícante, ainda que se saiba que as palavras não são feitas pra preencier o vazio da Coisa (pelo menos na análise queorepuda o mistcismo), mas para É contornar o vazio, delimitar oco, r.conhecero impreenchível. o Oceano emSolaris e a Zona em Salker,esses filmes definitivos de Andréi Tarkovsky que ilustram mravil hosanente a relação dos exploradores com o inominável da Cosa centrab êxtima e os modos nos quais o núcleo inacessível de noso ser pod: ser contornado em uma ventura cujo saldo é o desampaD. Frente ao cancelado e inabordáel do oriício central do toro, o que fazer, o que fazer senão dar vetas em tono de sua alma, do espaço vazio periférico e interior que ircunda oorifício central pelo qual correnão o ar semsenão nunca nele pnetrar? p. asim 85). um Em novo outras palavras, resta “pulsionar’\criando verbo que falta à língua portuguesa para traazir treien o da língua alemã, sem faltar com sua íntima conexão con Trieb o ie Freud.Pulsionar em relação a uma propulsão, com um ; força queestimula, indomada e indomável, sempre para frente, satando po cima das alegrias (.Erde Freuden) terrenas, dos prazere, caracterstica do espírito de Fausto no discurso de M efistófeles qie serviu Freud para definir a pulsão.3O que Freud concebeu é otalmente congruente com o que vimos desenvolvendo. Apulsão é áustica poque o caminho para a Coisa, “o(...) caminho para trás, paramas satisfaça plena, em pela geraloutra é obstruído e então não resta do queivançar direção do desenvolvimento, todava diligene, na verdade sem perspectivas de enclausurar a marchanem alcaiçar a meta” (idem). Do atrás e da frente freudianos é qie passaros à complexidade enriquecedora dos dois espaços rodados pelo‘oro, o interno e o externo, rodeados pela superfície aa e esféri:a do toro. É esse pulsionar interminável o que encamiiha a vida em outra clausura da marcha que a pontuação final da rorte. Um pulsionar que salta sobre a; valas do jrazer, que de tanto negar se torna afirmação e que é rentente a trnsacionar com os 5. S. Freud (1921). Obras completas.Trac J. L. Etchverry. Buenos A ires: A morrortu. 1979. v. XV III, p. 42.
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perigos que o extraviam e que se escrevem como outros tantos prefixos: com-, im-, re-, ex-... pulsões. Surge a pergunta: de que natureza poderia ser a força pulsionante a de um homeostáticas organismo biológico necessidadesseenão por for tendências nem amovido de umpelas sujeito psicológico incapaz de distinguir entre o desejo e o capricho? Nem biológica, nem cultural, nem psicológica; ética é a natureza deste movimento no campo do simbólico por meio do qual um sujeito se inscreve, deixa as marcas memoráveis de seu ato, se historiza, mediante esta força negativa e criadora que é a pulsão de morte freudiana, alheia ao movimento energético de abolição das tensões que se chamou “princípio de N irvana” nessa vacilação, instante bárbaro elow da reflexão de Freud. Pulsionar, rodear a Zona, a Coisa, reconhecer que ante ela naufragam as ilusõese chegar ao ponto proposto por Lacan no auge do seminário sobre a ética, em que o sujeito afronta a realidade da condição humana, esse fundo de angústia em que se perfila um desamparo insondável e irremissível. É então quando, confrontado com sua própria morte, é sacudido pela certeza de que não pode nem tem que esperar o socorro de ninguém. Não há proteção nem escudo. Assim define Lacan a experiência, didática, do fim da análise. Colocar-se além da angústia, pois a angústia supõe um perigo, apesar de inomeável, escondido atrás dela, enquanto o desespero e o desamparo aparecem quando a angústia foi atravessada, quando já não há perigo, nada que temer e nenhum Outro ao qual demandar (tanto no sentido de lhe pedir como no de abrir-lhe o juízo e imputarlhe a responsabilidade). Nada alentador para es propor em virtude de que “não há nenhuma razão para que nos façamos avalistas do sonho burguês”.6 Certamenteesta ética vinculada à perseverança no ser, ao desejo como caminho para o gozo, à confrontação sustentada com a falta, vai contra as idéias difundidas sobre o bem-estar e contra as propostas Por de issotodas é queelas a análise uma terapia, mas atranquilizadoras. contestação tácita e que não não é pode 6. J . L acan (1959). Le seminaire. Livre VII. L 'étique dans la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. p. 350-351.
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esperar mais que fracassos e postergações, caso pretenda comparar-se aos ansiolíticos de hoje. Pois sua meta não aponta para o princípio de prazer, para o “completo bem-estar” da definição “mundial” da saúde, mas para o além, a esse corpo que se experimenta ainda no sofrimento e por meio de uma tensão sem pausa, ao gozo que, se sofre, é pelos impedimentos e os limites que o prazer lhe opõe. Pulsionar, empurrar, reanimar a busca além do fantasma em que os objetos @, como elementos imaginários do fanta sma, vêm enganar o sujeito, recobrindo o condenado lugar da Coisa, sustentando aí a isca das representações e dos ideais.7N esse fantasma, formação imaginária, ramo da árvore narcísica do eu quando não é o próprio eu sob a forma deself, um“si mesmo”, o que fantasma, nesse fantasma, nesse ramo, se sustenta o sintoma. A í o égoz o permanece estancado, desconhe cido, renunciado, des-dito (versagt), fora da palavra, carregado de um sentido que não se pode reconhecer. E desde este reduto da ignorância produz-se e se fundamenta a demanda dirigida ao saber, ao saber suposto no Outro, que permitiria subjetivar o gozo. A transferência é o primeiro, é a razão quefundamenta a de manda feita a alguém, a qualquer umsignifiant (Sq, quelconque, no matema da transferência que L acan propôs).8Ela permitirá ao su jeito se produzir em um discurso significante (S, - S2) do qual ele mesmo é o significado. O encontro com qualquer um que, sendo analista, se negará a entrar no campo das significações, a tamponar a demanda com respostas, a se oferecer como objeto de identificação ou como assento de um saber que estivesse à espera do momento em que se poderia aplicar colmatando o lugar da ignorância e do erro. Se o sintoma fazia o curto-circuito que afastava o sujeito de seu desejo, esse desejo do grande e inacabável circuito, o analista virá no lugar do sintoma, reanimará o movimento estancado, fará cinema a partir da foto fixa e tomará o lugar indicado topologicamente como a alma do toro, ágalma do desejo. E em torno dele que girarão as demandas... e encontrarão seu topo. (p. 85). 7. Idem. p. 119. 8. J . L acan (1967). Autres écrits (A. E.). Paris: Seuil, 2001. p. 248.
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Esse é o sentido ae convém dar - creio - ao termo freudiano “neurose de transferêma”. O psicanalista, fazendo semblante, no lugar do semblante cono agente de seu discurso, ocupará o lugar do objeto causa do desijo plus e (já sabemos:minus,falta) de gozo. O analista colocará en andamento e sustentará o movimento pulsional em torno dojbjeto @, sempre deixando vazio o espaço central da Coisa. A topologia do tco (p. 85) vem novamente nos ajudar, agora para ilustrar o lugar d) @-analista. Na superfície tórica pode-se definir qual é a colocaão correta e quais as incorretas do analista em relação à demandaque recebe. E possível dizer sem rubor que o analista engana e ilud o analisante (/’escroquerie analytique, dizia L acan),9pois faz sembinte, para-é, apresenta-se como sendo o que não oculta opermite que sinoé;sujeito desteemergir modo, oferecendo-se como isca para é,o desejo, a partir da inutilidade do desejar, além da vanidae de uma completudequalquer. Ao colocarse nessa posição periféica com relação ao centro inarticulado do desejo, ao tomar o lugr de @ e não o do saber obturador ou da Coisa inacessível, ofence-se como pasto para o fantasma e pode chegar a substituir o sinoma, dissolvê-lo, apaziguar o conflito e até converter-se em um obtáculo no processo do tratamento. São os momentos, talvez eterms, de estancamento da análise em torno de uma certa “trama de saisfações”1" que procede daprópria análise. A análise toma-se resistncia à análise pelo gozo (fálico) que nela se alcança e ao qual não siquer renunciar ou, por outro lado, fracassa pela possibilidade de s conformar com o bom funcionamento do sujeito no mundo que pode levar a um término prematuro da experiência. Caríbdis e Cila dcgozo dentro e do gozo fora da análise que bloqueiam o movimeito que consiste em sustentar a pergunta dissimulada ao princípa sob essa aparência de resposta que era o sintoma. Pois, se umaanálise pode começar, isto é, caso tenha acabado a fase das entevistas preliminares, é porque o sintoma, resposta inconsciente, tonou-se pergunta ou enigma e essa incógnita 9. J. L acan ( 1977). Seminrio XXIV, aula de 26 de fevereiro. 10. J. L acan (1958).Écritsp. 602; Escritos 2, p. 582.
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encarnou em qualquer fatosignificante de todos os dizeres do sujeito. Produzido este deslocarrjnto do significante do sintoma para o significante da translerênáa, desenha-se o risco de que a análise e o próprioaberta analista sejam Dmados já não como para oportunidade para manter a questão mas como pretexto seu des-vio (“trans-ferência”) e feche E por isso que o anaista não se dirige para seu paciente nem como $ nem como S, nen como S„ mas como @ —* S, como um objeto que sustenta sempr a abertura, a não coalescência entre dois discursos complementares O analista representa a exigência perma nente de um dizer e de un trabalhar incessante em torno da falha subjetiva. A história, essacoisa que L acan tanto elogiou no come ço de seu ensino e tanto dsvalorizou ao final porque não pôde dei xar de fazer crer que tem entido, porque está sempre disposta a se carregar de sentido, a hisôria - dizíamos - deve voltar a se escre ver, claro que atravessano as telas e os disfarces do sentido. Se a neurose era o bloqueio a-iistórico, o cegamento-secamento do de sejo (no sentido de cegar im poço, de secar um depósito de água), a análise deverá ser reabetura das fontes e das vias interrompidas, a ocasião oferecida à moblização do gozo sintomático, à simbolização do corpo que se torneu o reduto de um Gozo Outro, gozo que já localizamos com o esqisma deÁ terceira(p. 110) na intersecção do imaginário e do real foa da mediação simbólica. Penso que isto deveser dito correndo o risco de criar a im pressão da fixação de novis metas ideais para a experiência da aná lise, algo que o analista, :om razão, recusa fazer (a ser),* porque indicar metas causa uma ombra de imaginário, de neofantasmatização, de prescrição do “om” caminho, inclusive a promessa que se adianta à demanda, dealienação em um Bem que, por não pro vir do deslinde feito pelo póprio analisante, apareceria como o fan tasma do analista. Além desainterpretação possível, no entanto, deve se dar conta de por que a aálise existe, por que se inicia e por que prossegue para que se posa definir também quando e por que aca ba. Em outras palavras, dive ser evitado o comentário do sentiflo
Em espanhol são homófons:hacer e a ser. (N. da T.)
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(evitem compreender!) atravessado na intersecção do simbólico e do imaginário, fora do real, campo das psicoterapias.
3. O dever do desejo Wo Es war, soll Ich werden,onde o Isso, o gozo do se r, a sincronia dos significantes, a desordem de todas as bolinhas da linguagem na imensa bola da loteria, o conjunto das escrituras do gozo que jazem indecifradas como os hieróglifos no deserto, onde o Isso estava, deverá haver uma ordenação, uma articulação discursiva capaz de provocar efeitos insólitos e regozijantes de
significação, um encadeamento dos significantes que revelará o inconsciente como umdiacrônico saber ordenado pelo nome-do-Pai no lugar de S,, que faça do resto dos significantes (o saber inconsciente) um S2, a partir do qual um novo S, produto do discurso do analista poderá representar o sujeito. Essa é também, e em outra dimensão, a meta da análise, seu dever ser indicado pelo sollen freudiano que é a antecipação do gozo pelo bem-dizer e pela invenção do saber. Para produzir este efeito, é necessária a presença física do analista. Que tenha tetas, essas mamelles de Thirésias mencionadas por Lacan no seminário de 1964." Que seu corpo se preste para a investidura amorosa tomando o lugar de causa do desejo; que ponha suas veias e seu sangue para que opere o amor de transferência c para que o sujeito possa chegar a reconhecer seu desejo como falta a ser. Terá que emprestar não apenas useser e suas palavras, mas também sua imagem, entregar-se como i (@), como outro especular, pois “a imagem especular é o canal que toma a transfusão da libido do corpopara o objeto”.12E a razão pela qual não há análise sem encontro dos corpos; a transferência requer suporte imaginário, um suporte que se sublinhe mais do que se apague quando se adota
11. J . Lacan (1964). Le seminaire. Livre XI. L es qiiatre conceptsfondamentaux de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 238. 12. J . Lacan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802.
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um dispositivo que subtrai o corpo do analista como objeto no campo visual do analisante. Não se pode esquecer de que, se o sujeito S fala na análise, ele dirige suas palavras, antes de qualquer outra coisa, à imagem do outro e que este é o ponto inicial e ineludível para chegar às maiúsculas I (A) que se colocam no outro extremo do gráfico do desejo. Esta disposição é observada com clareza quando se faz abstração de todos os demais momentos:
No lugar de I(A ) temos, mais do que um ponto dechegada, um ponto de sucção, uma máquina aspiradora das palavras que arranca quando o sujeito aceita a regra fundamental da análise e a coloca no lugar do supereu: gozar pela articulação discursiva dizendo tudo, enfrentando a dor, o pudor, o asco e a vergonha que resistem à confissão do fantasma, tabernáculo do gozo, ligado ao incesto, à perversão e às satisfações libidinais auto-eróticas. E evidente que o prazer constitui a principal das resistências que se encontram na análise, tanto por parte do analisante quanto do analista, e que se fosse por obedecer ao princípio de prazer não haveria quem se analisasse. E óbvio que, se a análise existe, é pelo gozo que está além das complacências narcisistas, sempre à mão. Nestes parágrafos, definiu-se a tripla função do analista: a) como semblante de @, resto caído do real que é impossível de simbolizar; como imagem deque umobriga semelhante especular; e c)como como suporte da b) regra fundamental o sujeito a dizer(se), orelha-sopapa que aspira os dizeres do analisante em função da lei da análise que se inscreve como I (A). Real, imaginário, simbólico. Esse é o abc da prática da psicanálise.
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Se o que há é um dispositivo para uma invenção constante e não uma “técnica psicanalítica” é porque esta tripla função legisla não um código de procedimentos, mas uma posição do analista frente ao entramado linguageiro criado por Freud, no qual ele mesmo foi pego. É a “estratégia da aranha” que comprime em uma face a tática, a estratégia e a política da análise em função da ética. Disons que j ’y lie la technique à la fin première. “Digamos que eu vinculo a técnica com seu fim primordial”.13 A precia-se, por exemplo, nessa “neutralidade benevolente” que sempre parece um ideal impossível a quem ouve falar dela sem ha ver passado pela experiência de uma análise verdadeira e, particu larmente, quando essa prescrição de neutralidade se reforça com o dever lacaniano de “preservar para o outro a dimensão imaginária do não-domí nio, da“a neces sária impe rfeição”14que toma aconselhável seu momento vacilação calculada da neutralidade”, essaem que pode valer (e não apenas) para uma histérica mais do que todas as inter pretações. Em todas estas formulações que podem parecer inclusi ve contraditórias, de que se trata? De assegurar a presença do analista, sim, e também de fazer dela uma força ativa e atuante em função deseu desejopara preservar o horizonte do gozo em cada momento do encadeamento discursivo e, ao mesmo tempo, para pôr freio a esse gozo, para pontuá-lo, para canalizá-lo para um dizer iné dito, para dinamizá-lo desde seu enclausuramento no sintoma, para fazê-lo atravessar a barreira da angústia que o separa do desejo. O gozo é assim convocado e derivado, provocado e expulso e, ao fim, recuperado, manifestado e desnaturalizado. A manobra do analista sempre o leva em conta; o tempo e o dinheiro das sessões se regulam em função destes indicadores ou, em outras palavras, por esses imperativos de aspecto contraditório. E aqui que resplandece a dimensão ética da análise que a distancia de todo código universal de conselhos e obrigações morais ou deontológicas e a habilita para a busca sempre e em todos desse núcleoparticular que é para cada falante a relação articulada do gozo e do desejo. Em cada caso deverá fazer valer a ignorância renovada 13. J. L acan (1964).Écrits, p. 854;Escritos 2, p. 833. 14. J. Lacan (1960).Écrits, p. 824; Escritos 2, p. 804.
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do analista seguindo o conselho freudiano de abordá-los, renunciando ao saber previamente adquirido; em cada caso haverá de inventar o inconsciente e a teoria sexual a partir da srcinalidade da nova experiência. A ética analítica é comandada não pelos mandamentos do Outro, mas pelo desejo inconsciente, ela faz do desejo um dever, ordena o dever de cada um para com seu desejo inconsciente e desconfia, quando não contradiz, as suspeitas regras morais. Essas regras morais que, por sua vez, dependem do desejo, pois se fazem de barreiras interpostas em seu caminho a serviço de um suposto bem comum e comunitário, como unitário, como se todos fossem Um, o Um unificador da psicologia das massas, o ideal uniformante do senhor com seus códigos e suas censuras legais. psicanáloi segozo não (da se trata das no leis,real, mas odadesloca Lei e essa Leioéterreno a que, Em ao proibir Coisa) para do semblante, ordena que seja alcançado por vias discursivas, toman do o gozo, feito semblante, o lugar de agente de um novo discur so, o discurso analítico, inverso, inversão, avesso, do discurso do senhor. E a Lei que ordena de sejar ao mesmo tempo que tornanali cansável o objeto (absoluto) do desejo, a Coisa. Obriga, então, a desejar em vão eé assim, rodeando o b ojeto @ como causa de seu desejo, relacionando-se com ele somente sob as aparências do sem blante do gozo impossível, elevando esse semblante ao lugar da Coi sa, é assim - dizíamos - que os homens e as mulheres se inscrevem como seres históricos, se fazem um nome que é o significado do nome que receberam ao nascer como significante, deixam a cons tância de seu caminho para o gozo que passa por seu desejo. Essa formulação permitiria talvez sonhar com uma superação da L ei por meio da articulação significante. Implicaria uma dimensão de promessa. Nada disto. Não há comportamento possível com o Outro ou por meio do Outro. É hora de voltar às formulações sobre os três gozos que nos ampararam ante a possibilidade de um erro tão funesto. A palavra ea ordem fálica, induzidas pelo nome-do-Pai, vêm colocar um fim ao gozo do ser, arrancam da pátria srcinária da Coisa e lançam ao exílio linguageiro. M as o Outro manca. Há nele (nEle) um significante que falta e esse é o significante da mulher que possibilitaria a relação sexual. A ordem fálica não assegura
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nenhuma completude e tampouco pode fazê-lo em nome próprio, O que o nome-do-Pai faz, representante S, do Falo, é abrir uma brecha de impossibilidade para o registro discursivo e essa brecha correspondeao significante dA mulher que falta no Outro eque está além do Falo. O gozo fálico, semiótico, tropeça em seu próprio limite, como o inarticulável que começa além dele que é o gozo do Outro, o gozo feminino. A palavra, submetida à L ei que proíbe o gozo, produz esse outro gozo como ummais indizível. Aquilo que na condição neurótica da existência, a de todos aqueles em que se produz o corte da castração, aparece como impotência, como não poder nomear o objeto do desejo, resulta, como conseqüência da travessia da experiência analítica, estar não no campo do poderio imaginário sobre um objeto submetido ao domínio e ao controle, mas numa área de impossibilidade que se abre além do significante. A sexualidade está ligada ao significante fálico, o significante sem par. Além do que ele cobre e encobre, abre-se o suposto dark continentda feminilidade e de seu gozo enigmático, louco, inefável, verdadeiro Outro do Outro que se coloca fora da linguagem e que, assim, justifica reiterar agora que não há metalinguagem, que não há possibilidade de uma análise “completa”, se é que alguém se agarra de maneira dogmática à ordem linguageira. E, nem mais nem menos, essa rocha viva na qual se machucou o fundador da psicanálise. Rocha viva há se o analista se constringe à função da palavra historizadora como devendo dizer tudo sobre o gozo, como devendo subsumir tudo o que é do sujeito; isto é, se o analista se deixa aprisionar pelo imperialismo da palavra. E verdadeque a Lei ordenadesejar. M as o desejo, no registro neurótico da experiência, apresenta-se como transgressão, o desejo do delito é o delito do desejo impasse no neurótico e “a consciência nos toma a todos culpados”. A vida e o gozo se erguem e prosperam no solo fecundo da culpa, assumindo o risco de ir além do pai... para o qual há que seservir dele. Cabe dizer, invertendo a fórmula freudiana, que o complexo de Edipo é um herdeiro do supereu, desse supereu primitivo e feroz que profere a ordem inaceitável e impossível de gozar. O complexo é um alívio, uma atenuação, um deslocamento para o imaginário da relação triangular; cumpre com a função de colocar cenário e limites
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à culpa, ao mesmo tempo em que possibilita uma via para o gozo, um gozo limitado, floreado, depois de haver tomado o caminho sinuoso da castração: é a via fálica com todas as limitações que já apontamos, tanto para os homens quanto para as mulheres. Neste sentido, o Edipo é o fundamento da existência... e o complexo nuclear... das neuroses, da submissão absoluta ao Falo e ao nomedo-Pai. Como se, devendo estar agradecidos a ele por nos haver tirado do gozo do ser e da psicose concomitante, tivéssemos de ficar para sempre submetidos à ordem de impotência que eles instauram, à culpa neurótica. Denunciar deste modo o ponto em que se deteve Freud é re encontrar a proposta de Nietzsche sobre uma ética em que se aceite orgulhosamente que, se matamos Deus, o Pai, não é para ficarmos submetidos à sua palavra, tão castrado qualquer um; é para explorar a zonapois queEle seestá estende além de quanto seus domínios, além do bem e do mal. E necessário, falantes, um esforço a mais; é nesse esforço extra que se joga o destino ético da psicanálise.
4. O ato e a culpa Que fique claro: primeiro está a voz tonante do Outro: “Goza!” ou, quando se abandona a segunda pessoa, “Goze!”. Frente ao impossível de seu mandamento enlouquecedor, o sujeito advém à exsistência por meio da palavra, da concessão feita ao Outro da linguagem, que é a localização fálica do gozo, a desertificação do gozo do corpo e asubmissão do gozo àLei do simbólico. Colocase em ação um artefato da identificação masculina com o pai real falóforo ou o da demanda feminina feita ao(père-version). pai Essa passagem pela castração que não deve ser confundida com o ponto de chegada da subjetividade; não é questão de submeter-se ao pai, de aceitar suas condições para se fazer querer por ele, mas de aceder a outras vicissitudes, as do desejo que é parricida e transgressor, que inscreve outros significantes que aqueles que puderam comprazer o pai. É o destino do pulsionar, um dever Outro, outro dever. Em um texto muito sugestivo, Gerard Pommier escreve: “O sentimento de uma falta não se reduz à culpa edípica, mas é inerente
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à existência- pois um sujeito deve distinguir-se dos determinismos (superegóicos) que o esperavam antes inclusive de seu nascimen to”.15Ele não pode existir como desejante, senão desmarcando-se do desejo do Outro portanto, caindoentender em falta.o dever, no sentido Com tudo o quee, vimos, podemos psicanalítico, como duplo: edipizar-se para transcender o gozo louco do ser fora da linguagem e, depois, transedipizar-se, ir além do Edipo, para não ficar preso nas redes do fantasma, da impotência e do sintoma. A ética da análise se afirma além da culpa, na relação consubs tanciai do sujeito e da culpa que ele/ela encontra necessariamente ao se afirmar comodesejante. A meta não é então de bem-aventurança e absolvição: cada um afrontará a culpa inerente ao desejo e para isso não há regras ou mandamentos que indiquem o que e como fazer. Neste caminho, não há “companheiros de viagem”, igrejas, partidos ou mestres iluminados que guiem pelo bom caminho, tampouco cabe a possibilidade de renunciar à responsabilidade de eleger, dissolvendose nos interesses superiores do grupo ou da instituição. Cada um está só e não pode esperar a ajuda do Outro. O sujeito deve jogar quando chega a sua vez e não pode “passar” como acontece em certos jogos. Zugszwangcomo é chamado no xadrez. Fazer a jogada conforme o desejo e submeter-se às suas conseqüências, a uma li mitação do gozo que lhe abre caminhos diferentes na escala inver tida da Lei do desejo. A neurose, um mal ético e não uma doença predestinada a classificações e tratamentos médicos, é a impotência ou a renúncia ante a jogada que cada um deveria fazer para chegar a ser. É a recusa ao ato afirmativo particular em função da sujeição aos significanles da demanda do Outro, seja por critérios normativos, seja pela chantagem do abandono e da perda do amor. Pois o dizer, a experiência discursiva ordenada pela regra analítica, não tem a finalidade de compreender, de se satisfazer com um novo saber, com “inteligência” qualquer, mas aIsidoro de produzir um com ato que, comouma no conto de Borges sobre Tadeo Cruz, faça que 15. G. Pommier.Le dénouement d'une analyse.Paris: Point Hors L igne, 1987. p. 197.
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o sujeito acate o destino que leva dentro, que escreva seu livro proustiano, que saiba, por séu ato, quem é (p. 208-210). A análise como “tratamento” da neurose tem uma meta ética que é a de reabrir este campo da decisão particular que não se com padecede ordens, ordenações eordenamentos. Atenção! Não setra ta de encontrar, assim, mais uma vez essa ideologia da liberdade solidária da psicologia mais obscurantista nem de recair nos cantos laudatórios daindividualidade. “O eu é a teologia da livre empresa”.16 Por isso, acabamos de evocarZugszwang o enxadrístico: deve-se jogar e o saldo da ação é uma perda irreparável; deve equivocar-se. O obsessivo que posterga sempre seu ato para não perder, sabe-o melhor que ninguém. “Saber para sempre quem se é”, efeito retroativo do ato, de uma jogada que compromete o ser e o escreve como um destino, de uma aposta cujo saldo é de abandono e de solidão. Poder~se-ia dizer também de uma identificação com a causa de seu desejo, ou seja, com uma falta impreenchível que subjaz às decisões e aos atos. Esse é, psicanaliticamente, o destino. Não é uma predestinação real, mas uma razão que se constitui retroativamente a partir dos atos. Por atuar, por falhar, por inscrever essa falha como rastro de sua passagem pelo mundo, o sujeito “sabe para sempre quem é”. O novo saber é ambíguo: desolado e desolador por um lado, mas também “gaio saber”, fonte do entusiasmo e de um contato renovado com o gozo, de uma curiosidade aguçada que desterra a tristeza e o tédio, esses estados da alma que anulam as diferenças e que tiram do mundo seu relevo. Citando novamente Pommier,17o analisante se equipara nisto ao herói moderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato de afrontar sua angústia e sua culpa. Ele percorre na análise um trajeto paradoxal:tendo vindo para apre nder a gozar, para pe rder as travas de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade de negociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele habita, jo. A ambigüidade do fim da análise feita desta mesclaseu dedese desolação e entusiasmo que se está experimenta 16. J. L acan (1955). Écrits, p. 335;Escritos 1, p. 324. 17. G Pommier. Le dénouement d’une analyse, p. 215.
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psicologicamente como “estado maníaco-depressivo” em termos retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma exaltação desolada que não deixa de se acompanhar de mau humor porque as coisas não vão como se quer, porque andam com um ritmo que não acompanha o desejo, devorador do tempo. O desejo, o autêntico desejo, não quer saber de adiamentos, tem pressa de concluir. N esta ética sem ideais, além dos di eais, não sepode saber gozar, mas pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo como seu horizonte sempre fugitivo, sempre evocado nos interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de falar: o significante um representa o sujeito para outro significante, o significante dois; este segundo significante reverte sobre o significante um e o toma representantedo sujeito. Mas o processo da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois significantes é aprodução de @, do objeto mais de gozo que escapa à articulação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu motor. O @ que foge à frente do buscapé da palavra não podeser abarcado por uma expressão “exata” que o recupere e o faça entrar no discurso. E o elemento real organizador do discurso da ciência, sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há discurso que não esteja infiltrado pelo semblante e que a ciência aprendeu há muito tempo a indicar com certos nomes próprios, o de Heisenberg (incerteza) e o de Godel (incompletitude). A ilusão da metalinguagem, do suposto saber, do discurso que diga o verdadeiro sobre a verdade, de um Outro sem barra, Outro do Outro e garantia dos enunciados, é fecunda e fundadora da situação analítica. O fantasma da garantia e de um gozo ao alcance do discurso constitui o Outro da transferência e é a esse Outro que não existe, que é uma pura suposição, que se dirige o discurso do inconsciente, transcrição e deciframento de um gozo do qual não se pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos sabe e que faz o sujeitocomo efeito de seu dizer, um saber de onde o sujeito ocupa o lugar do significado e fica em uma relação de disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no lugar da produção:
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;ito acatc o destino que leva dentro, que escreva seu livro tiano, que saiba, por seu ato, quem é (p. 208-210). A análise como “tratamento” da neurose tem uma meta ética deordens, reabrir oeste campo da decisão particular se comíea de rdenações e ordena mentos. Atenção! que Não não se tra que o encontrar, assim, mais uma vez essa ideologia da liberdade corpoíria da psicologia mais obscurantista nem de recair nos cantos mtervtórios da individualidade. “O eu é a teologia da livre empresa”.16 estofojso, acabamos de evocarZugszwang o enxadrístico: deve-se respore o saldo da ação é uma perda irreparável; deve equivocar-se. como ícssívo que posterga sempre seu ato para não perder, sabe-o produ^r qUe ninguém. do sujf'Saber para sempre quem se é”, efeito retroativo do ato, de ogada quecujo compromete ser e o escreve como um destino, ia aposta saldo é deoabandono e de solidão. Poder-se-ia também de uma identificação com a causa de seu desejo, ou :om uma falta impreenchível que subjaz às decisões e aos atos. B, psicanaliticamente, o destino. Não é uma predestinação real, saber, ma razão que se constitui retroativamente a partir dos atos. Por maiêu, por falhar, por inscrever essa falha como rastro de sua Hussegempelo mundo, o suj eito “sabe para sempre quem é”. O novo renuncé ambíguo: desolado e desolador por um lado, mas também anterk saber”, fonte do entusiasmo e de um contato renovado com saber t>, de uma curiosidade aguçada que desterra a tristeza eo tédio, signifii estados da alma que anulam as diferenças e que tiram do Co seu relevo. mas nâCitando novamente Pommier,17o anali sante se equipara nisto deverrói moderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato (prescirontar sua angústia e sua culpa. Ele percorre na análise um uma iroparadoxal: tendo vindo para p arender a gozar, para perder as “E seu; de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade relaçãcgociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele único a, seu desejo. A ambigüidade do fim da análise está feita desta la de desolação e entusiasmo que se experimenta 18. J . L
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psicologicamente como “estado maníaco-depressivo” em termos retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma exaltação desolada que não deixa de se acompanhar de mau humor porque as não coisas não vão como se quer, porquedoandam um ritmo que acompanha o desejo, devorador tempo.com O desejo, o autêntico desejo, não quer saber de adiamentos, tem pressa de concluir. N esta ética sem ideais, além dos ideais, não sepode saber gozar, mas pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo como seu horizonte sempre fugitivo, sempre evocado nos interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de falar: o significante um representa o sujeito para outro significante, o significante dois; este segundo significante reverte sobre o significante um e o toma representante do sujeito. Mas o process o da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois significantes é a produção de @, do objeto mais de gozo que escapa à articulação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu motor. O @ que foge à frente do buscapéda palavra não pode se r abarcado por uma expressão “exata” que o recupere e o faça entrar no discurso. E o elemento real organizador do discurso da ciência, sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há discurso esteja infiltrado pelo semblante e quepróprios, a ciênciao aprendeuque há não muito tempo a indicar com certos nomes de Heisenberg (incerteza) e o de Gõdel (incompletitude). A ilusão da metalinguagem, do suposto sa ber, do discurso que diga o verdadeiro sobre a verdade, de um Outro sem barra, Outro do Outro e garantia dos enunciados, é fecunda e fundadora da situação analítica. O fantasma da garantia e de um gozo ao alcance do discurso constitui o Outro da transferência e é a esse Outro que não existe, que é uma pura suposição, que se dirige o discurso do inconsciente, transcrição e deciframento de um gozo do qual não se pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos sabe e que faz o sujeito como efeito de seu dizer, um saber de onde o sujeito ocupa o lugar do significado e fica em uma relação de disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no lugar da produção:
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do analisante a partir do que nele se produziu pelo ato (e mais ainda pelo silêncio que trabalha) do analista. Com efeito, o gozo ordena que a técnica se subordine à ética, o enunciação, o que se diz ao que não se pode dizer. Emenunciado todo caso,à como dizia Wittgenstein... Que o ser se faça na retroatividade de seu ato é algo que não concerne somente ao analisante. Está implicado aí, e em primeiro lugar, o próprio analista. É ele quem, borgesianamente, sabe então e para sempre o que é e quem é. Seu desejo se equipara à interpretação, fórmula avançada por Lacan desde o sexto de se us seminários. E sua interpretação não diz o ser, mas o faz ao modo de um corte em uma superfície topológica que modifica suas propriedades, quefaz algo diferentedo que havia. Não se trata de uma frase, que maséde um atodo que une gozo o desejo e o condição gozo passando pela castração, bloqueio louco do ser, do gozo fálico e barreira significante interposta ao gozo do Outro de acordo com a concepção já trabalhada sobre os três gozos (capítulo II). A interpretaçã o abre parao desejo, uma vez que funciona como significante reordenador do conjunto. E, de fato, um nome-do-Pai que abre o campo de gozo pela via do bem- dizer; deixa o sujeito em condições de procurar a aventura do gozo desamarrando-o das cadeias linguageiras que o continham em sua jaula de sintomas; em outras palavras, o intima tacitamente, por sua mera presença, a atuar além da resignação e da culpa. A interpretação é oracular, é um dizer que se apresenta como equivalente do real, além da articulação significante. Não é um discurso que se agrega a outro discurso para confirmá-lo, infirmálo ou desviá-lo. É uma evocação do gozo que se propõe ao deciframento sem dizer a verdade e sabendo que o gozo não é o que se cifra, mas o que se decifra. E oracular porque o inconsciente, discurso do Outro, é um oráculo e a interpretação lhe é homóloga. Na interpretação, definem-se tanto o ser do analista como o analítico. É uma manifestação do “sou” que se convalidará pelo “penso” que lhe seguirá. Faz-se pela presença simbólica, imaginária e real de um analista que não se separa de seu dizer para re ser presentado por tal dizer; ele é e está em seu dizer. O dito é a conseqüência do ato e manifesta a posição ética, o desejo do analista.
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Não vale pela afirmação ou pela respost que lhe segue (discurso do senhor), não é julgado no plano do safer (discurso universitário), não responde auma cisão no sujeito (dscurso dahistérica). Uma interpretação, um dizer traduzido :m um dito que não é a excrescência da subjetividade deste oudaquele analista e que não surge de nenhuma contratransferência nascarada do desejo.
5. A analogia imunológica Para que uma enunciação interpetativa possa ter efeitos, é condição necessária e prévia a entradaio sujeito na transferência. Sobre este ponto, o acordo dos analista é universal, ainda que não coincidam na significação dos termos iferpretaçãoe transferência. Em termos lacanianos, que já são lujar-comum, é necessária a constituição do sujeito suposto saber. Chegado a este ponto, sinto a tentação de recorrer a uma (quase) par bola (de fato, uma alegoria) para ilustrar o ponto da relação entre axansferência e o gozo. Não faltam - está claro - os antecedentes feudianos, mas em lugar de recorrer, como Freud, a analogias nilitares, farei uso de uma comparação com a imunologia que s tristes circunstâncias do presente quasecom do saber de tidos. em síntese, que se trata tornaram de provocar a anilise umaDirei, síndrome de imunodeficiência. O sujeito, exceção feita ao psiotico, chega armado de um sistema defensivo de anticorpos. Um aiticorpo, se escutamos isso que o significante faz ouvir, é o que põi freio e se opõe ao gozo que é do corpo. Façamos agora, por um mcnento, uma mistura insólita com a ignorância provocada, as rtsistências e a repressão; pensaremos todas elas como antiiorpos. N osso sujeito do inconsciente, o falante, foi banhadodesde antes de nascer em palavras e discursos que, vindo do Qtro, levaram-no a rotular como indevidos e inconciliáveis a
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seus e os tolera sem reagir contra eles. Os linfócitos circulam por todas as partes, levando a informação que permite distinguir o próprio do alheio no indivíduo normal; quando aparece na circulação uma proteína estranha, ela funciona como um “antígeno” que provoca uma reação de recusa, um processo defensivo que culmina com sua assimilação ou sua expulsão. Quando as proteínas estranhas não entram na circulação - como normalmente acontece - mas no aparelho digestivo, elas são destruídas cm partículas elementares que logo se usam para reconstruir outras proteínas que sejam compatíveis com as do próprio organismo. N ão percamos nem por um instante nosso ponto de comparação analógica. O sistema estável reconhecimento de dos próprios componentes compatíveis no plano do significante é o “eu”, o velho eu oficial indiciado desde da correspondência com Fliess. Os signifícantes vindosos detempos fora (a palavra do Outro), não entram no sujeito sem passar por uma alfândega “linfocitária” que decide se essa palavra é assimilada às próprias, às que o eu aceita por julgá-las inofensivas ou se é recusada. O destino comum é que lhes sejam soltos seus componentes elemenlares e logo sejam rescontruídos em compostos complexos de acordo com a organização do Eu. Toda intervenção do saber do Outro que recaia sobre o sujeito ativará o sistema de defesas imunológicas já preparado. O radicalmente incompatível será recusado como vil enxerto. os efeitos dolmente que Freud “análise selvagem”. A palavraSão estranha éhabitua assimilchamou ada e neutrali zada p or um sistema “protetor” onipresente. E uma função do “timo” como dizem os médicos e também, porém com um sentido mais vulgar, os analistas. O sujeito é ludibriado para não reagir frente aos componentes que sente como próprios (egóicos); é induzido a tolerar suas próprias proteínas, pela armação discursiva e imaginária que se chama “eu”. A palavra estranha é recebida e integrada ao aparelho defensivo. E mais; pode atuar como “vacina” que o imuniza contra uma palavra nova e imprevisível, devastadora. Deverá para isso ser semelhante, com que relação significantes “perigosos” que falammas de atenuada uma verdade seriaaos preferível desconhecer. O processo analítico foi concebido desde o princípio para desativar esse sistema de resistências que passa ora pela assimilação
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ao “eu”, ora pela recusa desses significantes que, por repressão, ignorância ou má-fé, não são reconhecidos como próprios. O sujeito é levado pelo processo mesmo da análise a se estranhar com relação à sua própria palavra. O sonho, essa palavra própria que se escuta como procedente do Outro é a via régia que conduz a este resultado. Os lapsos e o que se produz pelas escanções e pontuações do analista não estão atrás. O “próprio” ao qual não se reage, o sistema imunológico ar mado no seio de cada um é, na realidade, o discurso do Outro que tomou posse do corpo do sujeito, de seu gozo, deslocando-o, tor nando-o estranho, convertendo-o em zona interior inabordável, cm Isso, cm uma satisfação irrcdenta e irredimível pelo discurso. O gozo, o próprio, é tratado como alheio. “Eu é Outro”, mas não o sabe. Nemsequer saber disso; de “Dissolver miragens imaginárias”, tal como diz no discurso Roma, éas“outrificar” o Eu, desco brir a castração que se encobre sob sua máscara, revelar a falta a ser, o desejo que lhe subjaz e denunciar sua impostura, sua falsa unidade monolítica. E Outro, mas acredita ser “Um”. A ignorância em si mesma não é seu pecado; no final das contas a ignorância é o único uni versal em matéria de saber. O problema é a ignorância quando se acredita saber; não é a ausência do saber, mas a resistência à ver dade a partir e em nome do saber, de um saber referencial que per mite colocar-se na realidade e que é ativo desconhecimento da verdade e do gozo que ela inscreve. Essa é a ação dos “anticorpos” de que estou falando. Retomemos o ponto de partida: trata-se, com a psicanálise, de provocar uma síndrome de imunodeficiência, ou seja, de neutralizar este sistema supostamente protetor que é o conjunto de barreiras ao gozo. Nesta analogia que julgo ilustrativa (e se não, para quê?), a neurose, condição universal, aparece como uma doença auto-imune. E, em poucas palavras, o eu recusando o sujeito. O sujeito trata o que lhe é próprio, as pulsões que aspiram ao gozo, como estranhas, desconhece os significantes que as representam, as reprime, erige um sistema de defesas para se proteger delas, faz do seu íntimo algo êxtimo, trata-o como um corpo (uma proteína) estranho, torna-o sintoma, gozo incógnito, disfarçado e vivido como sofrimento corporal incompreensível. O sintoma se apresenta como “o mais
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alheio ao eu que se encontra no interior da alma”, é, como todo o reprimido, “terra estrangeira interior”.” Talvez nunca tenha se definido sintoma melhor do que com estas três palavras. Poder-seia dizer também que é um enclave do discurso do Outro, um remanescente da ordem superegóica inicial de gozar que não encontra o exutório da travessia da castração e a canalização pela via do ato que é conseqüência da articulação significante. Outra vez,Wo Es war soll Ich werden. Onde o inominado do sintoma fundia suas raízes, terra estrangeira interior, deverá o eu advir, significar, dar lugar a um saber que está aí, desconhecido. Deverá desarmar as resistências que recusam o autêntico por julgálo ameaçador. Certamente advertindo que a relação entre o sujeito e o Outro não é de oposição e exclusão recíproca (em uma polarida de meu/alheio), mas de intersecção de círculos eulerianos, onde o que falta em um se superpõe e se reúne com o que falta no outro (ver gráfico na p. 116). O resultado é a dupla barra, a do sujeito e a do Outro. O engano do eu, o cerne da neurose, é justamente este desconhecimento de que entre Sujeito e O utro (A ) não há a possibilidade da completude e o recobrimento recíproco que o fantasma promete, que a cisão é irremissível e que o saldo do duplo corte é o objeto do gozo (@) que se perde para ambos. Na neurose é produzida esta plena identificação do sujeito com o eu e com o desconhecimento de que esse eu é efeito e aliado do Outro; a serviço desse eu que é Outro, renuncia-se ao desejo e se submete o desejo à demanda do Outro. Troca-se o pulsionar pelo satisfazer (ao Outro), com a esperança fantasmática de assim ser satisfeito. O tratamento analítico tende a reconquistar a terra estrangeira interior, fazendo-a passar pelo diafragmade uma palavra inédita e insólita que invente uma saída para o desejo pela via do ato que declara a particularidade subjetiva. Aí onde Isso estava. Deverá colocar limites ao sistema pseudoprotetor dos anticorpos egóicos, defesa do Outro encravada noalante f , habilitar o corpo paraqüe seja experimentado como gozante, desmarcarar os anticorpos,
23. S. Freud (1932).Obras completas, v. XV I, p. 53.
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eencaninhar o gozo que se exilou depois de padcer uma ransubtanciação e atravessar pelos sistemas de colo ação em Dalavra; o que se sucedem de uma ponta à outra do es|uema da ;arta 5! (cf. p. 190). Depois de decifrar o gozo e go.ando do iecifrarento. Advindo Eu nesse lugar. A nterpretação terá de ser uma palavra que burl e o istema de iefesasissimiladoras e/ou recusantes. Por isso não pod ser uma palavra ilheia que ponha em andamento o sistema imundógico de ■ecusa e for eifraquecido o eu forte da metapsicologia revisiorista, o do ‘timo”A estratégia consiste em fazer do daquilo eu outro,demque;e Outroqueixa. iuspeitcde cumplicidade e encobrimento D denuiciante é o primeiro suspeito; isso é algo que nm o mais inexper;nte dos detetives pode ignorar. Deve-se fazê-lofalar para que caiim as máscaras que ocultam suas verdadeirs razão e identidáie. Essa identidade é a mesmaque ado sintoma, iois como um sintoma está estruturado. A interpretação cairá obre seu discursojma vez que se tenham desativado os processos lefensivos habituai, as barreiras fantasmáticas. Por isso comecei :ste item propomo que se induza uma “imunodeficiência”, una AIDS analítica que faz o sujeito passar para uma situação de desroteção, de desanparo, de travessia dos fantasmas da vida para mtrar em contato om o real descarnado que se encontra além. A sanalogias e as parábolas cativam, mas depois deexpô-las deve-se .dvertir o público sobre sua estrutura de ficção: osssencial que as onstitui é a diferença entre os dois termos que asintegram
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além do parentesco imaginário que elas estabelecem. Pois a imunologia e a psicanálise dependem de legalidades diferentes. De qualquer forma, não gostaria de abandonar a comparação sem relembrar que estes recursos retóricos são convenientes; um discurso trata sempre de uma realidade que foi configurada por outro discurso e que o real pode ser circundado, ainda que não agarrado pela palavra. A sombrado imaginário cai sobretodo discurso,áj que a verdade tem estrutura de ficção. L acan consumou uma singular façanha ao revisar na sua totalidade os ditos de Freud e integrá-los com o dizer de Freud. Seu gesto deve ser constantemente renovado. Deve-se criar uma imunodeficiência com relação ao ensino de L acan e à proteção q ue muitos encontram em um discurso que se assegura de si mesmo e que recusaas inovações como enxertosperigosos. L acan fez com que a psicanálise “convencionalizada” se tornasse estranha a si mesma mediante a importação de outros discursos (lingüística, filosofia, lógica, topologia), autênticos anticorpos que mostravam por onde mancava essa verdade que se desgastava pelo manuseio do saber textual do inconsciente que apenas do texto de Freud tira sua consistência. E assim, difícil, estranho, apetitoso é o objeto da psicanálise. Desejável.
6. A carta ao pai O analista se submete à exigência ética de realizar com seu sujeito a travessia que os levará pelos caminhos perdidos do fantasma sem se deixar deslumbrar pelas miragens do conforto físico e anímico. Essa travessia é a que ele mesmo fez e tentará com quem o procura para fazê-la juntos. No final encontará um último obstáculo que não é o da castração postulada por Freud, mas a subjetivação da morte. Uma exigência ética para o analista. Qual? Não a dos universais e dos da preceitos, não uma l. Isso da é claro. M as tampouco uma do ética indiferença ou mora da apatia, complacência na morte, desdém. Uma ética anunciada desde o título de uma obra anterior a Freud, mas que resume todo o programa ético da psicanálise quase
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- poder-se-ia dizer - até a última vírgula de su teto: “Além do bem e do mal” do qual nosso tão citado “A lém o pincípio de prazer” não é somente uma paráfrase, mas tambén urr comentário, uma continuação, a culminação. O seminário de lacaisobre a ética pode e talvez deva ser lido como a constatação d una linha secreta, de um fio até agora invisível que une Nietzsch; a Peud como os dois grandes imoralistas que se perguntam: “Mcalizir não seria... uma coisa imoral?”.24 Não será o projeto subjaentea todas as morais conhecidas até hoje o de refrear e ordenaro g>zo sujeitando-o a normas e princípios surdos erefratários a>aneio dos sujeitos a quem regulam, todos esses códigos pro:edeites de Deus, da natureza, da convivência, do prazer, da realilade’ Será por isso que “toda ante moralo éespetáculo uma ampla, falsifiaçãi, graças à qual um gozo, dauma alma,ousada é impossív,l”?; Em meio ao arsenal das morais crava-s o ardo psicanalítico: “Anuncia-se uma ética, convertida ao silêndo pio advento não do espanto, mas do desejo: e a questão é sab r c
F. Nietzsche.M ás allá dei bien e dei mal, aforimo 28. Idem, aforismo 291. J. L acan (1960). Écrits, p. 684;Escritos 2, p. 63. F. Nietzsche. Más allá dei bien e dei mal,aforimo 2.
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Deve-se eleger, decidir. É mister. Nem sequer a sexuação está prefixada. Ainda que queriam chamá-lo de terrorismo, L acan dizia, em “A ciência e a verdade”,28 que de nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis, temos de responder por ela, pelo gozo que aceitamos, pelo gozo que recusamos, por dizer se queremos ou não o que desejamos. Eis um exemplo clínico de validade universal, que tem a estru tura discursiva de uma demanda de análise. Aos 34 anos de idade um homem solteiro, que vive na casa do pai e que trabalha no prós pero comércio que seu pai possui e dirige, escreve uma longa car ta ao seu progenitor, que é uma violenta recriminação por todos os males que lhe aconteceram na vida e uma acusação pela incapaci dade de gozar queexperimenta. A carta de Franz Kafka é amplamen te conhecida e interessa em relação aonos seuneuróticos, autor quanto pela massiva identificação quetanto seu texto provoca analisantes ou não. Bem, esta assunção especular de um texto alheio di rigido a um pai tão abaixo de sua função como um outro qualquer, é possível somente ao preço de ignorar a última página da célebre carta que, até esse final, é a queixa que qualquer analista escuta todo dia. E o ponto em queFranz, que já não tem 17 anos no que sere fere às suas possibilidades de decidir e de pôr em prática suas resoluções, interrompe seu desacato para dizer em poucas linhas o que o pai poderia lhe dizer (se “o inconsciente é o discurso do Ou tro”, o que Kafka põe naboca de seu pai é esclarecedor): A fi rma que me ponho em situação cômoda a o exp licar minha atitude em relação a você simplesmente por suas culpas, mas considero que, em que pesem seus esforços visíveis, você se encontra em posição muito mais favorável ou, pelo menos, não mais difícil. Em primeiro lugar, também recusa toda a culpa e responsabilidade suas, no que estaríamos procedendo igual. E nquanto, com a mesma franqueza com que o penso, faço recair sobre você a única culpa, você quer ser “superinteligente” e “superterno” e absolver-me, por sua vez, de toda a culpa. C onsegue-o, cl aro que apenas aparentemente (tampouco o guia outra intenção), e... fica nas entrelinhas que na realidade fui eu
28. J. Lacan (1965). Écrits , p. 858;Escritos 2, p. 837,
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o agressor e que tudo o que você fez foi aitolefesa. Portanto, graças à tua falta de sinceridade, teria consgudo seu objetivo, pois demonstrou três coisas: primeiro, que (incente; segundo, que sou terceiro, que sendo está disposto não eu só a meculpado; perdoar,e, mas também, o que sblme é rai ou menos igual, a demonstrar e querer crer você mesmo cuetambém eu sou inocente; logo, contra a verdade. Isto podri; bastar-lhe, mas não. M eteu em sua cabeça a intenção de vive tcalmente à minha custa. R econheço que bri gamos um com oouro, mas há duas classes de luta. O combate cavalheiresco, en |ue se medem as forças de adversários independentes; cada un stá só, perde só, vence só. E a luta do parasita, que não apns pica, mas que também sorve o sangue de quem o mantém A sim é o soldado mercenário e assim é você. É incapaz para a id; mas para poder arrumá-las comodamente, sem preocupçês nem peso na consciência, demonstra que lhe tirei toda ; sia aptidão para a vida e que a coloquei no bolso. O que lheinporta agora se é incapaz para a vida; a responsabilidade : riinha, e você se desespera com tranqüilidade e se deixa le\»r>or mim, física e espiritualmente pela vida. Um exemplo.h; pouco, quando pensava em casar-se, queria ao mesmo temperío se casar, o que admite em sua carta; mas para não ter que reover você mesmo, desejava que o ajudasse a não se casar, proiliido-lhe essa boda pela “desonra” que a união traria a meu nom.V Ias isso nem me ocorreu. Em primeiro lugar, porque neste casi, omo em todos os outros, não desejava “ser um obstáculo paras í felicidade”, e em segundo, porque não desejo escutar jamasjma reprimenda semelhante de meu filho. Significou-me algui; vantagem ter-me vencido ao dar-lhe liberdade para a boda? /bolutamente nada. M inha recusa em relação à boda não a h ad a evi tado; pelo contrário, teria significado um estímulo pa você, já que a “tentativa de evasão”, como se expressa, s-se-ia feito mais co mpl eta. M eu con sentim ento para a boianão evi tou sua s reprimendas, pois demonstra, de todas asfrmas, que sou o culpado de que se tenha realizado. Para nãc min,no entanto,ouneste e em todos os outro s casos, no f undo lemonstrou tra coisa senão que minhas reprimendas se justiiavam e que entre elas faltava uma mais, particularmente jisificada, que é a reprimenda pela falta de sinceridade, docilidd' e parasitismo. Se não me engano muito, também com sua cart tua como parasita
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sobre mim. (C ito a tradução de H aeberle ent re as várias existentes.)
Essas linhas quase finais são a razão de a carta nunca ter sido enviada: a carta chegou antes ao seu destino, que era o próprio autor. O parágrafo final consiste em um certo reconhecimento das razões do pai e em uma certa insistência nas razões do filho, mas - termina dizendo o escritor - “conseguiu-se, em minha opinião, algo tão próximo à verdade que pode nos tranqüilizar um pouco a ambos e nos tomar mais fácil viver e morrer. Franz”. São as palavras que um analista espera quando ouve o longo relato do sofrimento da alma bela até o ponto em que se produz a inversão dialética da reprimenda, o ponto em que o analista pode resolver que as entrevistas preliminares acabaram e que a análise pode começar. Aí onde o sujeito alcança o limite de sua auto-expiação acusatória para aceitar sua responsabilidade no gozo que alcança em direção ao desejo em sua dupla função de barreira e de caminho para o gozo e o sujeito acabará sendo, terá sido, um modo de conjugação do desejo e do gozo que se abrirá, em meio e por meio da linguagem, de uma relação diferente com o saber inconsciente. E a ética da psicanálise se dará em torno do desejo, de sua cessão ou não e do bem-dizer conforme o gozo que assim se conjuga com o desejo. Essa é a função atribuída ao nome-do-Pai. A seu nome, que é de um morto no aquário do simbólico onde bóiam as palavras. Não o pai que aterroriza com seu poder aniquilador, tal como Kafka o apresenta, mas o que pode harmonizar a lei com o desejo, o significante com o gozo. O desejo e o gozo, o Outro e a Coisa. A experiência da análise se inaugura e se prossegue pela articulação dialética desses dois pares de conceitos entre os quais se destaca o sujeito S. Razão demais para que o dizer, o dizer que decifra, seja a articulação e o diafragma que os liga. Podem vir ao caso outros exemplos históricos e clínicos que não ganham cm peso, nem em celebridade, nem em caráter paradigmático do de Kafka: os deFreud eL acan, esses sujeitos que se constroem em um dizer e em um escrever seu desejo que convocam em um único ato o desejo e o gozo: isso se chamaestilo, um estilete que deixa sua marca no Outro ao realizar a inscrição
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histórica de um desejo. Um desejo que não é variável psicológica, mas que se constrói retroativamente, para nós, a partir do que os pais da psicanálise deixaram: analistas, escritos, discípulos, instituições, dissoluções... 7. Ceder o desejo? J acques-A lain M iller em seu seminário chamou justamente a atenção sobre o erro que se comete quando se lê apressadamente, e de modo voluntarioso, o seminário de L acan sobre a ética da psicanálise e se extrai dali, como consigna, um “não ceder o desejo” que Lacan nunca d i sse. Desde essa consigna espúria se avaliza uma justificação da perversão, da birra, do negativismo ou de um egoísmo desenfreado que ora passa pelo desconhecimento, ora pelo avassalamento do outro. É uma leitura perversa que confunde o desejo inconsciente com a intenção de gozar e ue q faz passar o gozo pela afirmação soberana do eu. Contra esta interpretação que favorece advogar por um “eu forte” ergue-se a orientação lacaniana. Devemos ler com atenção o texto da reunião final do seminário de L acan sobre a ética em 19602 9 e ver que seus enunciados são sumamente cautelosos. Com efeito, não se poderia comparar o L acan habitualmente apodítico com oque começaadvertindo:“E a título experimental que profiro diante vocês estas proposições. Formulemo-las paradoxalmente. V ejamos o que isto dá para os ouvidos de analistas”. Imediatamente depois de tomar estas precauções, disse: “Proponho que a única coisa de que se pode ser culpado, pelo menos na experiência analítica, é de haver cedido em relação a seu desejo”. A proposta diz que a cessão do desejo engendraculpa; este é um dado clínico, uma observação irrefutável da qual cabe extrair conseqüências éticas. O sujeito cede seu desejo e para isso tem boas razões, “inclusive a melhor” (ibid.), ou seja, o bem, a conveniência 29. J. Lacan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L 'elique dans la psychanalyse, p. 368.
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do Outro e a do próprio sujeito, posto que seu lugar lhe é designado no Outro pe lo Outro. Mas isto implica uma traição e um engano, que o sujeito realiza em si mesmo ou aos quais se presta, pretendendo que vhaja reciprocidade, o Outro por vez façave uma renúncia equi alente de seu próprioque desejo. E isto é osua que - uma z feitas as contas - não seconsegue. Não por egoísmo deum ou outro,mas porque o gozo de um é incomensurável em relação ao gozo do Outro, porque as renúncias não podem se comparar, porque a perda e o prejuízo são inerentes à renúncia. O gozo clama, reivindica sua oferta. Nega-se ao conluio. Não se pode trocar. Trocá-lo é trucálo. E traí-lo. A aspiração do desejo se paga com uma cota de gozo, com uma moeda que é a libra de carne extraída do corpo e reclamada pelo Outro. E a oposição entre desejo e gozo: os pólos enfrentados daquele seminário de 5 de maio de 1958 que comentamos no n i ício, e do qual se tira a reflexão deL acan em tomo deste insólito e impossível objeto de conhecimento que é o gozo. Não se cede o desejo sem culpa porque ceder o desejo é adormecê-lo, anulá-lo como força (pro)pulsora, admitir em seu lugar a conveniência, o conforto, o prazer, o serviço dos bens, o mal menor, o risco calculado, a submissão à demanda manifesta ou suposta do Outro, a conformidade com o fantasma que realiza o desejo no imaginário ao mesmo tempo que o resigna, a detenção do movimento de inscrição do nome próprio, a obediência à proibição edípica de não ir além do pai. Bem podia Freud experimentar tristeza entre as colunas da A crópole, mas maior e definitiva teria sido sua culpa se, para não chegar até este ápice, para não rebaixar o pai, tivesse ficado nos pés da colina.-10A tristeza e a solidão eram o corolário da façanha de seu desejo. O Édipo e seus fantasmas de crime e castigo operam como lugares de detenção para o desejo inconsciente, protegem do gozo considerado transgressivo, incestuoso, pagável com a cegueira. Por isso que ao fim da marcha analítica o que advém não é o espanto, mas o desejo de atravessar o alambrado de de alcançar uma lei esse que ordena retrair-se a possibilidade gozo a deter-se, que o Outro, sujeitoante também ele da castração, teve de renunciar. 30. S. Freud (1936).Obras completas, v. XX II, p. 209.
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Freud não podia chegar a Roma, não podia subir na A cropole, não podia “ir longe”, porque isto lhe era apresentado como “algo injusto, proibido de muito... e é como se continuasse proibido querer ultrapassar o pai”. Por “os isso,que ele fracassam evoca na carta seu antigo trabalho sobre ante aoRomain êxito”. Rolland Reconhece em sua incredulidade e recusa psíquica de alcançar algo fervorosamente desejado “a motivação universalmente válida” do Edipo. Ante o desejo é mais seguro recuar, desvanecer-se como sujeito, padecer de uma inibição (fading), refugiar-se no sintoma neurótico por ação dos anticorpos que recusam o gozo como o alheio ou paralisar-se pela angústia erigida como última barreira para desconectar o desejo do gozo. Inibição, sintoma e angústia. A neurose, o mal-estar na cultura, deriva da L ei que torna a cultura possível, o sujeito desejante, o gozo transgressão e crime, os afãs do desejante malditos, incompreensíveis, loucos. A cultura é o mal-estar. Do gozo contido, esse ao qual não se resigna. A psicanálise, como sedisse, é umaprática quenão se guia por ideais ou prescrições. Sem dúvida não fica excluída a possibilidade de julgar. A promoção freudiana do desejo (em sua relação com o gozo) ao lugar central da ética permite uma revisão crítica de todos os desvios impostos ao desejo inconsciente. E então cabe um juízo e até um J uízo Final no tribunal ético, aquele em que não cabe o perjúrio, do qual sairá uma sentença inapelável conforme a respos ta dada pelo sujeito à pergunta: “Você atuou conforme o desejo que o habita?”.3'A pergunta enfatiza as conseqüências fáticas do desejo e não o próprio desejo, questiona a ação orientada pelo desejo que não é, como se vê, o desejo de alguém, mas aquilo que habita em alguém. Por este matiz é que este modo de colocar a pergunta é mais preciso do que o da fórmula previamente citada e proferida por L a can nesse mesmo dia sobre “ceder seu desejo”. Pois o desejo não é de alguém, como se poderia entender pelo genitivo; o desejo está do lado do Outro e “habita” em um. “A medida da revisão32da éti ca a que nos leva a psicanálise é a relação da ação com o desejo que 31. J. Lacan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L ’étique dans la psychanalyse, p. 362. 32. Idem, p. 361.
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a habita” e tal ação se inscreve em uma dimensão trágica, tragicômica, davida. Normalmente em sua pergunta, Lacan insiste em que ela só pode ser colocada em sua pureza no contexto analítico e que essa pergunta, ape nas ao que colocar-se, já aé tuma oposição à ética tra dicional , a de A ristót eles, pre coniza emperança , o afast amento dos extremos e, em última instância, a obediência às consignas escravizantes e benevolentes do senhor que impõem a postergação do desejo. E é neste ponto que a ética da análise se separa e contesta o poder. Psicanaliticamente não há ato inocente. O ato implica conseqüências éticas que tornam o atuante culpado. O ato é uma irrupção criadora na ordem significante e implica uma transgressão, um parricídio. O herói analítico não é um inocente; é quem encara a culpa. A meta não é a beatitude, tampoucoa absolvição. Se Deus (o pai) morreu, e é o fundamento da ordem inconsciente, é porque o matamos. E-se culpado pelo único fato de existir, por se separar da (de todos os modos impossível) alienação absoluta no desejo do Outro. E-se culpado por afirmar uma palavra, por atravessar a castração para explorar os limites do gozo fálico que está filtrado pelo diafragma da palavra. Há assim duas variedades daculpa. Uma que se experimenta por não haver atuado segundo o desejo, imaginária, expressa em fantasmas masoquistas de castigo e redenção; outra, real, encarada como preço do desejo, assumida e reivindicada como uma façanha movida pelo desejo. Esta culpa é a que proclama o louco de Nietzsche emA gaia ciênciae cujo resultado é a exaltação:33 “A alegria ou, para falar minha linguagem, o gaio saber, é uma recompensa: a recompensa de um esforço continuado, atrevido, tenaz, subterrâneo, que, a bem dizer, não é para todo mundo”. O gozo, razão e medida do ato, arrasta a sombra de parricí dio. “A consciência nos torna culpados”, sim, mas por uma culpa que é anterior e inominada. Edipo, inconsciente, não é menos cul pado do que A ntígona que sabe de seu delito. Mais ainda, porque Edipo não sabia qual era seu crime; é que o Outro, o Coro, estaria disposto a perdoá-lo, mas ele mesmo sabe que não há absolvição 33. F. Nietzsche.Genealogia de la morai aforismo 7.
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possível e por isso se mutila. Antígona, suafilha e irmã, assume a culpa com orgulho e desce ao sepulcro para que se cumpra a sen tença que lhe impõe o Outro da Lei. Ela não se arrependenem se castiga; pelo contrário, reivindica seu carras ato ecos advoga por outra o comandou, uma lei superior à de seus políticos. A he lei que roicidade analítica distingue, como antes Hegel, entre estes dois modelos de crime e castigo. E opta: o que atua conforme seu de eu aí onde Isso estava sejo é o que pode designar-se como e afronta a responsabilidade de sua posição de sujeito, não aquele que, incons ciente, cedendo às armadilhas do amor próprio (narcisismo) provoca em si mesmo o sofrimento e a destruição. “Da única coisa que se pode ser culpado é de ter cedido o seu desejo.” E o caso de Édipo, não o de A ntígona. Edipo se sacrifica a serviço dos bens, do bem-estar da cidade, abdica, se exila. A ntígona atravessa a barreira do conforto próprio e alheio que personifica sua irmã Ismênia e refuta com violência o argumento das conveniências políticas da obediência. Ismênia lhe fala em nome da condição feminina que impõe a submissão aos ditados do Outro. A ntígona responde desde outra concepçã o da feminilidade que está ligada ao que do desejo da Mãe, explicitamente invocado no te xto de Sófocles, não foi regulamentado pelo nome-do-Pai. A ntígona reivindica esta outra concepção; ela fala desde um lugar de não-toda dentro da função fálica, desde um desejo que aponta não para o falo, mas além, para o significante que falta no Outro, aquele pelo qual A mulher não existe. A lém da culpa e da angústia, aceitando que acastração é n i icial e estrutural, o herói analítico faz sua jogada, arrisca e perde, toca os limites do (im)-possível em função do desejo e do que corre sob a cadeia significante, inarticulado e inarticulável, que é o gozo, uma escritura no pergaminho corporal. Põe-se além do bem e do mal, além da organização judiciária da vida cotidiana, que torna todo ato criador um delito passível de punição pelo supereu como carrasco ou pelo Outro sobre sidea atravessar carga de vigiar e punir pelo que o sujeito pôde que ter toma feito depois as travas internas do supereu, cumprindo seu imperativo fundamental que é gozar. Tratase aqui dessa culpa anterior e refreadora do ato feito conforme o desejo que secontrapõe àcastração, omo c ameaça. A análise mostra
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a inutilidade de ameaçar com uma pena que já foi executada e que, além disso, nem penaé, pois somente pa ssando por ela é quese abre a possibilidade do gozo. Por seujá desejo, o sujeito afronta essa ameaça e revelahavendo sua inocuidade que, passada a castração primeira e essencial, recebido sobre si a marca que habilita o gozo fálico, não há a castração, mas a afânise,fading o do sujeito, seu desaparecimento sob a demanda do Outro, a neurose. O neurótico é o personagem que cede seu desejo, que se protege dele como se fosse perigoso. O cumprimento do desejo parece-lhe pior que a frustração e por isso a ele renuncia, “coloca-o cm seu bolso”.34Quando poderia realizálo sobrevêm a angústia c a inibição. Quem melhor ilustra isso é o fóbico. fálico,oefeito da mas passagem pela precária castração, evocaO egozo contorna incesto, é, por do suasujeito vez, uma e sempre incerta garantia de que não há incesto, de que o sujeito é algo mais que o objeto @, mais de gozo do Outro, submetido à sua demanda. As vias de acesso à sexuali dade são vias de saída do incesto, enquanto a castidade (“castigade” dizia alguém em análise) é em si incestuosa, pois mostra o sujeito encadeado ao gozo incestuoso da Mãe, figurando ele com seu corpo esse gozo materno que é perverso, que é a forma mais generalizada da perversão feminina, que passa por desmentir que haja outro gozo que o gozo fálico por meio da posse da sexualidade do filho (ou filha) sujeita a sob seu pé. Ofetichismo tem suas ordens, literalmente sujeitada, sanção etimológica. Cabe aqui recordar a sagaz observação clínica de Freud: a obediência ao Supereu, o sacrifício do gozo fálico para satisfazer suas exigências não acarreta a paz interior, mas quanto mais “virtuoso” se é, mais se encontra o sujeito assediado pelos escrúpulos e pela culpa. As renúncias pulsionais não fazem senão incrementar o mal-estar tanto no indivíduo quanto na cultura.
34. J. L acan (1961). Le seminaire. Livre VIII. Le transferi.Paris: Seuil, 1991. p. 271.
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8. Para três gozos, três supereus15 O supereu freudiano c, corno se sabe, um herdeiro do complexo de Édipo que supõe a substituição da ameaça de castração como perigo externo pela regulação interna do sujeito das moções pulsionais. O supereu é concebido como um sistema de habilitações e proibições do gozo. Obediente à lei e dentro de seus marcos, o gozo está permitido, mas é um gozo limitado, podado pelas tesouras da castração. O supereu lacaniano não pode ser confundido com o freudiano. Seu imperativo não é o de obedecer, mas o de gozar e o gozo é justamente o que o supereu freudiano proí be. O gozo é trans gressivo; isso tem pouco a vefizemos r com a obe A que stão é, depois de por ter distinguido como nosdiência. primeiros capítulos, entre três formas do gozo, determinar o que quer dizer o mandamento superegóico de “gozar”, posto que os gozos se contrapõem e se excluem entre si.Trata-se degozar antes, em vez ou depois da castração; inclinar-nos-emos pelo gozo do ser, pelo gozo fálico ou pelo gozo do Outro? Optaremos pela concepção de um supereu aniquilador que ordena uma loucura irresponsável, de um supereu regulador que por sua vez permite e proíbe, mas que sempre submete às suas demandas neurotizantes, ou por um supereu transgressi vo que ordena reconhecero desejo que habita no sujeito e fazer dele a Lei que facilite o caminho do gozo? (Psicose, neurose e liberdade para o ato perverso, respectivamente.) Proponho que a formulação lacaniana de que a ordem do supereu é a de gozar pode ser estendida em toda a sua riqueza
35. M. Gerez A mbertín. Las voces dei superyó. Buenos A ires: M anantial, 1993 eImperativos dei superyó.T estimonios clínicos. Buenos A ires: L u gar Editorial, 1999 (Em português: Imperativos do supereu.T estemunhos clínicos. São Paulo: Escuta, 2006). Estas duas obras recapitulam e abordam o essencial que a psicanálise pode dizer sobre o tema. Depois delas, já dis semos, “o supereu nunca vo l tará a ser o que era”. A recomendação rres i trita de recorrer a essas obras imprescindíveis não se contrapõe às teses diferentes,não estritamente de Freud nem deL acan, quese sustenta m neste parágrafo.
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apenas quando se respeita a ambigüidade de seu enunciado, reconhecendo a polissemia e a polivalência do gozo. Ao se aceitar esta proposta, ter-se-á que reconhecer uma triplicidade superegóica que inclui rocha o supereu freudiano como aquele que tropeçacomo comaquele a inevitável viva da castração e o supereu lacaniano que elege não se deter ante a castração simbólica, reconhecê-la como o acesso possibilitado pela função e pela metáfora paterna ao campo da linguagem e do discurso e atravessá-la no caminho da inscrição do desejo no real por meio de atos que rompam as miragens imaginárias e as permissões e licenças simbólicas. Atos que, por sua própria realização, significam a impugnação da normatividade. A distinção tripla deveria se realizar entre um supereu primitivo, este sim obsceno e feroz, que exige um gozo irrefreado, alheio à linguagem e que não quer saber nada do nome-do-Pai como função metafórica que lança o desejo, kleiniano, diríamos, para distinguilo de um supereu freudiano que seria consecutivo ao anterior, pacificante (e não tão confiável) que promete recompensas pela obediência às diretivas do ideal do eu procedentes, por sua vez, de identificações com os significantes do Outro introjetados, pelas admoestações recebidas de “viva voz”; é um supereu que maneja com a armada culpa, que reco mendadeter-se no caminho do desejo, aceitar “que não se pode” e que deriva a subjetividade por caminhos de impotência, inibição, sintoma e angústia. Estes dois supereus devem, por sua vez, distinguir-se de um terceiro, lacaniano, que impele a gozar como os outros dois, mas agora com uma diferença essencial: nele o gozo terá de passar pelo discurso, ou seja, pelo semblante,36que aspira recuperar o goz o perdido em um caminho (recherche)que vai além das prescrições reguladoras e que confronta o sujeito com o limite, comnec o plus ultra,com o impossível que é conseqüência da inexistência da relação sexual. Por suas implicações clínicas, este terceiro supereu deve se distinguir da perversão que poderia ser seu ponto de desembocadura, como são para os outros dois a psicose e a neurose. A diferença, apesar de sutil, é importante: é a diferença que há entre um fazer semblante de 36. J. Lacan (1971 -1972).Seminário XVIII e N. A. Braunstein.El concepto de semblante en Lacan.México: Siglo XXI.
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gozar, próprio do perverso e um gozar de fazer semblante, de uma gaia ciência dionisíaca que se estende além do fracasso em ordenar o saber e o viver segundo os objetivos apolíneos da completude, da integração e da harmonia entre o homem e o mundo ou entre o homem e a mulher. Além da culpa, além dos ideais, além do princípio de prazer, além do bem e do mal, do pai e do sentido, mas não além do sembl ante ou da máscar a.37 A relação entreo supereu lacaniano ea obediência do perverso ao mandamento de gozar, levando ao Outro o gozo que lhe falta é, repito, sutil mas substancial. Não é uma relação de exclusão , pois para o sujeito no fim da análise o desejo tomou o lugar que era do supereu normativo e freudiano e que condenava à impotência: o ato perverso não está agora proibido em função de códigos jurídicos. O sujeito está em condições de tentá-lo, tendo tão-somente que decidir se quer o que deseja, se dá seu consentimento a esse desejo que descobriu habitando nele. Não há uma condenação a priori, mas uma possibilidade de decidir. A qui reside uma das diferenças em relação à perversão: ela obedece a um imperativo que, recordemos, “apenas acentua a função do desejo no homem” (p. 253). A distinção é de estrutura: se o analisado se identifica com suafalta e em função dela realiza seu ato, na perversão o sujeito se identifica com a falta do Outro e a desmente, tornando-se ele o instrumento do que falta outro ou que faltaria à mulher; como se para ela gozo não houvesse gozo que não fosse oprocede gozo fálico. O perverso toma o lugar do objeto @ para assegurar o gozo do Outro, fazendo ele, por meio de sua encenação, o semblante de sabergozar. O analista, por sua vez, como resultado de sua análise, toma o lugar de semblante de lugar da falta no saber e no gozo e desde aí questiona o sujeito em sua cisão, colocando ao Outro a pergunta por seu desejo, recusando qualquer pretensão de obliterar a falta, fazendo atuar a ignorância, reconhecendo o gozo em seu horizonte de impossibilidade e deixando ao sujeito a consigna de se venturar pelos caminhos do significante, gozando de fazer semblante, de inventar o saber, de se exaltar sem se alterar, atuando segundo o desejo que nele habita. 37, G. V attimo. El sujeto y la máscara.M adrid: Península, 1989.
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O supercu que chamamos freudiano, o que ordena submeterse ante a ameaça da castração, remanescente ou herdeiro do complexo de Édipo, é o fundamento de uma forma particular do gozo que é o gozo do sintoma neurótico e da culpa, de um gozo que surge do recuar do sujeito ante a castração. E, nesse sentido, um gozo fálico que não consegue canalizar-se no discurso, retido no corpo e, por isso, aparentemente “pré-fálico” ou, como o chama a doutrina estabelecida, pré-genital(caso se aceite que o único genital é o falo). É gozo do significante, sim, mas submetido à repressão secundária. E por isso que seu efeito é recolhido por alíngua como sendo de manifestação oral: remorsos. A culpa e o fantasma de castigo (“Bate-se numacriança”) não são, todos sabem, alheios ao gozo. Pelo contrário, em torno deles se tece um gozo retorcido por invocar e se oferecer de forma propiciatória e sacrificial ao gozo do Outro. Este gozo é o fundamento de uma compulsão à repetição que levou alguns analistas a cunhar a fórmula de “neurose de destino” para designar este fantasma de perversão que consiste em acomodar-se ao suposto fantasma perverso do Outro e de seu gozo. O autocastigo, a paranóia de autopunição, os despojos, a recorrência dos acidentes, as prisões, as desgraças e as operações cirúrgicas não são as indicações de ter atuado conforme o desejo, mas enquanto este desejo está alienado no fantasma do gozo do Outro, esse Outro a que se ofertaria a castração e o fracasso. Culpa e remorso estão assim na órbita do gozo fálico, da fantasmatização masoquista e edípica, do castigo imposto pelo retrocesso ante o desejo inconsciente. O gozo no castigo do supereu existe e o sujeito tem horror a saber disso. A melancolia e a neurose obsessivo-compulsiva aparecem nesta ótica como cultivos do gozo. Freud falava em tais (Entmischung)das pulsões. K afka mostrou casos de desintricação em suas narrações este gozo recôndito, este deserto subjetivo do gozo, que corresponde à renúncia ao desejo para submeter-se ao enigmáti co gozo do Outro. A af çanha de gozar por nã o gozar não é patrimônio exclusivo da histérica. Para nós o supereu é o gozo sem o desejo, fora dele, em vez dele.
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9. Do amor em psicanálise O amor, somenteele, dizia L acan em 13 de março de 1963,™ permite ao de gozo condescender ao desejo. Paradeverá que tal milagre de conciliação opostos seja possível o sujeito mostrar-se como desejante, habitado por uma falta que fecha a via ao gozo do ser e abre a de um acesso ao gozo do Outro, transcastracional (se for permitido neologizar). É mister que, para um, o Outro se @ize, se faça @, sofra uma @ificação, passe a representar a causa desse desejo que instiga a desafiar os impedimentos externos, os diques da presumida impotência interna. Transitando por esta via maldita ver-se-á conduzido ao (des)encontro @-muroso, ao a-muro, ao impermeável muro que envolve a Coisa. O encontro dodesprender-se de sejo com o gozo pode ter lugar sob o signo daComo castração e supõe da só angústia correspondente. já dissemos no final do capítulo II (p. 117-119), entre o desejo e o gozo há, se não o amor, o grito desaforado e dissolvente da angústia. A psicanálise tem a mais estreita relação com o amor, pois não há nada mais do que o amor como desfiladeiro para que se produza essa “condescendência” tão desejada quanto defendida. O bem na análise - deve-se superar um certo pudor pa ra dizê-lo, para não cair ou para não sustentar uma acusação de ridicularidade pastoral da qual L acan estava a par - tem a ver com o desejo conjugado com o gozo e, portanto, com o amor. Não se poderia deduzir disto uma nova idealização do amor romanesco ou um retorno às exaltações piedosas que adornam as primeiras apologias deO banquete platônico e que chegam ao ápice no discurso de Fedro. O amor está consagrado a um “destino fatal” e frente a ele só cabe a forçada valentia de assumi-lo. Não se trata do amor-paixão nem do amor dos avozinhos fundado na reciprocidade e na compreensão piedosa; trata-se do amor como esse mal-entendido ineludível, esse equívoco que, bem ou mal, leva à reprodução dos corpos. Para que possa aflorar esta condescendência é necessário que o gozo tenha sido recusado, perdido, renunciado, separado do corpo pelo Outro do significante e da Lei. A condição do am or é arepressão 38. J. L acan (1963). Le seminaire. Livre X. L'angoise. (inédito)
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srcinária. Seu pano de fundo e seu abrigo é o inconsciente. É um derivado da Lei de proibição do incesto que faz daM ãe primordial um objeto proibido para o gozo e que, pela via da marca fálica, induz ao desejo, esse desejo que encontra apenas objetos evocadores do perdido e que levam a marca de uma diferença, objetos particulares que são e que não são, que são por não serem aCoisa. A Lei faz deste modo o gozo, proibindo-o. Todo amor tem este pano de fundo culposo que bordeja a transgressão e a quer e a requer. Do gozo e do auto-erotismo, passando pela L ei, ao desejo que a L ei ordena. O gozo, sim, mas encaminhado desde o outro (“extroversão da libido” diríamos recorrendo ao cemitério da psicanálise), não desde dentro. Disso deriva a ligação inconsciente entre masturbação e incesto e a culpa concomitante. O autoerotismo conduz opor suasdavias ao prazer edos esteremorsos, prazer é razão de um gozo paradoxal, gozo transgressão, do castigo imposto pelo Outro que leva a contabilidade do gozo, que está preocupado pelo que o sujeito experimenta com seu corpo, que esgrime o chicote, a loucura ou as chamas do inferno como argumentos de sua lei. Ou a sífilis e a AIDS. O sujeito, neuroticamente, assegura-se do Outro, imaginando ser um perverso, um transgressor. O prazer serve assim ao gozo na medida em que evoca a culpa. Quando esta culpa se atenua o gozo acessível ao neurótico se vê reduzido, a sexualidade passa a ser uma atividade a mais da qual pode se derivar um maior ou menor desfrute e, finalmente, contamina-se com sensações de saciedade: é o que se observa atualmente como conseqüência da tão apregoada “revolução sexual” que não tocou certamente em nada a condição neurótica da repressão que a precedeu. Que, melhor, nutriu-se da sexualidade, fazendo dela uma mercadoria multiforme que permite abundantes negócios que já não ofendem ninguém. A “sabedoria” do judeu-cristianismo consistiu nesta operação neurotizante que permitiu que o sexual chegasse a ser reduto e paradigma do gozo, deslocado do resto do corpo, limitado ao apêndice viril (perverso, segundo nossa definição), submetido a uma legislação estrita e ligado à noção de pecado. A contrapartida é, lógico, a localização, restrição e, na medida do possível, a exclusão do gozo feminino que ficava confinado à maternidade. Essa
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legislação condena o gozo a ter de se fazer perdoar depois de prestar contas ao grande Outro, ao beneficiário final e generoso que concede ii absolvição ao pecador a rrependido que se auto-acusa. O resultado desta operação, além do aumento constante do mal-estar na cultura, loi a constituição de uma erótica e deu srcem à abundante mitologia do amor no Ocidente. A instituição jurídica do matrimônio civil e sua sacramentação serviu para dividir esquematicamente a sexualidade ein campos opostos: o obrigado e o proibido. Fazer da sexualidade uma obrigação, um inciso da deontologia, um dever para com o partenaire afeta o narcisismo e cria uma tensão agressiva que justifica a máxima de L a R ochefoucauld, cujo “rigor” sobre a incompatibilidade entre matrimônio e as delícias39(Il y a des bons mariages, mais il n ’y en a point des délicieux ) destaca Lacan. J á o sabemos: o gozo se estabelece em uma relação concorrente com o gozo do Outro. “Não desejarás a mulher do próximo” é um mandamento ao mesmo tempo pleonástico e impossível. Pleonástico porque toda mulher é a mulher do Outro e impossível porque é justamente por ser a mulher do Outro que é desejada. O objeto - vimos dizendo desde o princípio deste texto só pode ser possuído sobre a cena imaginária de algum outro que c despossuído. E mais, é apenas esta despossessão o que o torna objeto para o desejo. Assim é com o esio, assim é com a mulher, assim é com o falo. A mulher primeira é a mulher do pai, logo a do irmão, logo a do rival. Desejá-la é consumar imaginariamente a despossessão do Outro que reclamará seu bem. O gozo somente é possível ao preço do pecado. Se o Outro não existe, é mister inventálo, inventar esse ser da caixa registradora que tudo vê eque tudo cobra, onipresente, esse Deus do judeu-cristianismo metido na alcova para observar e reprovar, ocupado e preocupado pelo que cada um faz com seu falo, ou seja, compartenaire seu ou com sua mão. Neste sentido é mais ou menos claro que a chamada revolução sexual umSomente certo debilitamento erotismo ultimamente, até da provocou pornografia. a AIDS veiodo devolver ume,certo tempero picante à sexualidade ao oferecer-se como um inferno prometido e ameaçante que renova os imaginários da castração em um tempo em 39. J. Lacan (1948). Écrits, p. 119;Escritos I, p. 111.
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que quase todo mundo começava a se entediar ou a rir-se dos anteriores. O resto é manipulação dos mecanismos cibernéticos sucessores e substitutos das alcoviteiras de outrora. A neurose,padecer universal que é efeito da primazia do discurso do senhor, é a pena do desejo que deve tomar suas modalidades de prevenido, insatisfeito ou impossível. Tal desejo, além da castração, se constitui como o único regulador da ética da psicanálise; é a “me dida incomensurável e infinita” que está no centro de nossa expe riência como analistas e que subjaz à única pergunta válida que po Você atuou conforme o desejo que o habita ? demos (nos) fazer: O desejo - nunca é demais dizê-lo - não pode ser confundido com esse engodo do gozo que é o fantasma, essa construção ima ginária que o tampona e serve para manter o sujeito alijado do gozo (neurose) ou atuando a serviço do gozo do Outro (perversão), fa zendo semblante de não gozar no primeiro caso e de sim gozar no segundo. Pelo Falo (O) como significante universal é que o gozo está proibido a quem fala como tal e que o falante passará a vida con tornando-o com seus dizeres, vivendo sua castração (-cp). O fantas ma é a encenação do gozo como possível, apresenta imaginaria mente a fusão do sujeito e do objeto, do pensamento e do ser, do homem e da mulher, do fenômeno e do númeno, do racional e do real, do semblante verdade, unidos sem; éfalta nem perda. animado pelo desejo, eaodaqual adormece e suplanta respost a subj e Está tiva à falta a ser e é, ao mesmo tempo, o que extravia o sujeito apre sentando-lhe essa máscara do real que é a realidade consensual, o mundo ideológico das significações, o sentido. Adiferençafundamen tal entre as psicoterapias e a psicanálise passa por essa opção ética entre reanimar e corrigir o fantasma, por um lado, ou atravessá-lo e colocar-se além de seu tamponamento do de sejo pelo outro. E comum que a leitura da observação clí nica de L acan sobre a relação entre o “ceder-o-desejo” e a culpa seja transformada em uma consigna tanto insistente quanto inexistente que seria a do “não cedas teu desejo”. Quase se confunde, de imediato, este desejo que não há que ceder com o fantasma de uma realização imaginária do desejo supondo alguma confluência entre o sujeito S e o objeto @, e ignorando que o essencial da fórmula do fantasma está dado por esta punção O que separa os dois termos. Esta leitura do seminário
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de L acan conduz a uma interpretação perversa da psicanáli se que deveria levar à encenação para o sujeito de um cuidado do fantasma desmentindo assim a castração que ordena o reconhecimento do real (a Coisa) como impossível. A meta da análise está, sim, certamente, no desejo liberado, mas liberado justamente deste fantasma de realização e de autosuficiência que o ata e o ancora no imaginário ao propor-lhe uma satisfação que desconhece o simbólico e que exclui o real. O fantasma é a condenação do gozo que pretende representar. No livro já citado, Pommier4" assinala o que todo psicanalista sabe: a maioria das análises se detém a partir de um certo efeito terapêutico e de um certo grau de realização do fantasma, efeitos que podem inclusive durar para sempre. Deve-se lamentar que nem todas as análises possam ser levadas até seu final lógico? Ou se deve perguntar o que acontece com a maioria das análises que se detém no meio do caminho quando o sujeito topa com certas metas que coincidem com as do princípio de prazer? O problema é de natureza ética e concerne ao bem buscado na análise. Se a cura não coincide com o fim lógico da análise concebido como a construção e a travessia do fantasma fundamental e se háliappy endingssem lógica e finais “lógicos” sem cura, então, como escolher? O analista fará bem em prosseguir com sua meta de flexibilizar o diafragma da palavra para que o sujeito se confronte com a verdade de seu ser, verdade limítrofe com a morte e com o espanto de uma terra deserta cheia de cruzes que, abertas, perguntam por quê, mas estará pronto também para reconhecer que o sujeito pode, chegado o momento, manifestar que está em condições de regulá-las somente com a dor de existir. L acan dizia que quando isso acontecia, ele os deixava ir: “Uma análise não deve ser levada demasiado longe. E suficiente quando o analisante pensa que está feli z de viver”.41A insistência em alcançar aquele ideal teórico da psicanálise pode se converter na imposição de um novo ideal, em uma refantasmatização do desejo do analista, que, depois de haver atravessado a formação imaginária que tamponava seu 40. G. Pommier.Lê dénouement d'une analyse , p. 217. 41. J. L acan (1975). Conférences aux Etats-U nis. Scilicet, n. 6-7, p. 15, 197 6.
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desejo, volta a erigi-lo como algo que deve se conseguir do analisante e no qual seu “eu”, o da análise, não deixaria de estar comprometido. Toda precaução é pouca quando se trata de fixar critérios de da universal. análise, pois quesenão sejamcritérios implicariam a término submissão atérmino um novo Nãoquaisquer pode haver para o de uma análise, infinitamente variáveis para cada análise. M elhor ainda, critérios - como diz em seu título Gerard Pommier - de desenlacede uma análise. E que nada permitiria assimilar o desenlace de uma análise ao de outra. N unca se deve esquecer que, de qualquer forma, o desejo do analista, desejo sem fantasma, “não é um desejo puro”, mas é o “desejo de obter a diferença absoluta (...) na qual pode surgir a significação de um amor sem limite, porque está fora dos ilmitesda lei, em que somente ele pode viver”.42 Um amor sem limites é o amor que, de saída, renuncia a seu objeto entendendo, como o faz a análise desde Freud, que o objeto impõe limites ao amor e o (pre)destina à desgraça. E claro que se trata do Freud indevidamente chamado de pessimista, o que transcendeu aquilo que também pode ser encontrado sob sua assinatura acerca das virtudes unitivas de Eros. A “diferença absoluta” encontra-se no gozo, na travessia da angústia e do fantasma dos perigos que espreitam no prosseguimento indefinido e intransigente do desejo, a transcendência também do amor como lugar privilegiado do reforço da imagem narcísica pelo encontro com uma “alma gêmea”. Esta diferença absoluta que coloca se não uma nova arte deamar, ao me nos uma con cepção do amor que vaialém das miragens da identificação, do altruísmo, do “faça o bem sem olhar a quem”, do “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, do “não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”, dos imperativos categóricos kantiano e sadiano, da reciprocidade, da oblatividade, da generosidade e demais belezas inscritas sob a rubrica do “amor genital”. Sim; o fim da análise tem a ver com o amor descarnado, sem objeto, absoluto, sem limites, sem miragens de ou compl etude , fora daolei, a particondescenda r do desejo, ali ao onde ele, oharmoni amor,a pode fazer com que desejo gozo. 42. J . L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre conceplsfondamentaux de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 249.
LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA
Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.) Do gozo criador,Carlos D. Pérez O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein Elementos da interpretação, Guy Rosolato A puhão de morte, A ndré Green et al. Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Berlinck (orgs.) Família e doença mental, Isidoro Berenstein Narcisismo de vida, narcisismo de morte, AndréGreen As Erínias de uma mãe, Conrad Stein Notas de psicologia e psiquiatria social, A rmando Bauleo Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fédida Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck O acalanto e o horror,A na L ucia C. J orge A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaídis O desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer Edipo africano, M arie-Cécile e Edmond Ortigues Comunicação e representação, Pierre Fédida (org.) Ensaios de psicanálise e semiótica, M iriam Chnaiderman F reud e o problema do poder, L eón Rozitchner Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.) F igurações do feminino, Danièle Brun 14 conferências sobre JacquesLacan, Fani Hisgail (org.) Introdução à psicanálise, L uis Hornstein O aprendiz de historiador eo mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de M. Klein, Donald Meltzer Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.) A construção do espaço analítico, SergeViderman Um intérprete em busca de sentido /, Piera A ulagnier Um intérprete em busca de sentido - II,Piera Aulagnier Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morei
A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico, Claude Le Guen O inconsciente: várias leituras, Felicia Knobloch (org.) Psicose. uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.) História da histeria, Etienne Trillatde A.T. do Hospital-Dia A CASA (org.) A rua com o espaço clí nico,Equipe A clínica freudiana,Isidoro Vegh O título da letra,J ean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-L abarthe Quando a primavera chegar, M. Masud R Khan O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanáli se e representação do mal,Mareio Peter de Souza Leite e J acques Cazotte As bases do amor materno,M argarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B. Vianna Transferências, Abrão Slavutzky Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Ficud, Hervé Huot O sentimento de identidade, Nicole Berry Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué F reud e o homem dos ratos, Patrick J . Mahony Nome, figura e memória, Pierre Fédida A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al. Perturbador mundo novo,SBPSP (org.) Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-cd.Edunicamp) Casal e família como paciente, M agdalena Ramos (org.) Mancar não é pecado,L ucien Israel Crônicas científicas,Anna Verônica Mautner Penare,Celia Eid e Maria Lucia Arroyo A histérica, o sexo e o médico,L ucien Israel Olho d'água. Arte e loucura em exposição, J oão Frayze-Pereira Vida bandida,V oltaire de Souza F iguras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp) Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok Ah! As belas lições!,Radmila Zygouris Sigmund Freud. O século cia Psicanálise (3 vols.),Emilio Rodrigué A dialética da falta,Alba Gomes Guerra ePatrícia Simões A interpretação,Elisabeth Saporiti Fato em psicanál i se, Mode UPA rnidade e materialismo em Adorno e Horkheimer,Pau O corpo de Ulisses. lo Ghiraldelli Jr. (esg.) Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha G. de Souza Dias IsaíasMelsohn. A psicanálise e a vida.Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.) Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanáli se,Cláudio Bastidas
Pierre Fédida O sitio de estrangeiro, Haydée C. Kahtuni Psicoterapia breve psicanalitica, IJPA O processo analítico, Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalitica, Paulina Oymrot A linguagemdos bebês, M arie-Claire Busnel Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro,M auro P. M eiches Freud. Um ciclo de leituras,Silvia L. Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.) Cadernos de Bion I,J úlio C. Conte(org.) O estrangeiro,C aterina Koltai (org.) Eu corpando. O ego e o corpo em Freud,L iana A lbernaz de M. Bastos Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet O sintoma da criançae a dinâm ica do casal,Isabel Cristina Gomes IJPA A escuta, a transferência e o brincar, Sexo,Rosely Sayão(Co-ed. V ia Lettera) A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG) Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG) O instante de dizer, O desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion,D onald Meltzer Achados chistos os da psicanálisenas crônicasdeJ .Simão,J anedeAlmeida (Co-E duc) A história de Tobias. Um estudo sobre o aninuis e o pai,Fabíola Luz F reud e a consciência, Oswaldo França Neto Putsões de vida,Radmila Zygouris Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi,L uis Cláudio Figueiredo Transferência, sedução e colonização, IJPA Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin Gina K. Levinzon A criança adotiva na psicoterapia psicanalitica, Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres Cadernos de Bion II,J úlio César Conte (org.)
M auricio Tragtemberg Memórias de um autodidata no Brasil, L uís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr. Ética e técnica em psicanálise, A arte do encontro de Vinícius de Moraes,Sonia Alem Marrach M, Cristina M. Kupfer Educação para o futuro. Psicanálise e educação, Política epsicanálise. O estrangeiro, Caterina K oltai M icheline Enriquez Nas encruzilhadas do ódio, Aids. A nova desrazão da hum anidade, Henrique F. Carneiro O problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho Ribeiro A rthur Nestrovski e M árcio Seligmann-Silva (orgs.) Catástrofe erepresentação, IJPA Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, A histérica entre Freud e Lacan, M onique David-Ménard J . Vasconcelos Como a mente humana produz idéias, Mulher no Brasil. Nossasmarcas e mitos, Marisa Belém A clínica conta histórias,L ucia B Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
O olhar do engano. Autismo e outro primordial, L.ia Ribeiro Fernandes Doença ocupacional, Marina Durand Os avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Correa (org.) Abertura para uma discoteca, Roland de Candé A conversa infinita- l. A palavra plural, Maurice Blanchot A morte de Sócrates. Monólogo filosófico,Zeferino Rocha Cenários sociais e abordagem clínica, J osé Newton Garcia de Araújo e Teresa Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec) O que é diagnosticar em psiquiatria, J orge J Saurí A constituição do ni consciente em práticas clínica na França do século XIX,Sidnei J osé Cazeto Narcisismo, superego e o sonhar, IJPA Psicofarmacologia e psicanálise,M. C ristina Rios M agalhães (org.) A Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de F ormação 1933-1953. De poimentos,íris K antor, D ébora A . M aciel, J úlio A ssis Simões (orgs.) Linha de horizonte - por uma poética do ato criador, Edith Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossom ática Derdyk para a práti ca clíni ca, Susanade AlbuquerqueLins Serino O carvalho e o pinheiro. F reud e o estilo romântico, Ines L oureiro O conceito de repetição em F reud, L ucia Grossi dos Santos (co-F umec) Driblando a perversão. P sicanálise, futebol e subjetividade brasileira, Cláu dio Bastidas O cálculo neurótico do gozo, Christian n I go Lenz Dunker Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches Espinosa. F ilosofia prática,Gilles Deleuze Os gregos e o irracional, E. R. Dodds Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica, Olga B. Ruiz Correa (org.) Em torno de O mal-estar na cultura de Freud, J acques Le Rider, Michel Plon, Gérard Raulet, Henri Rey-Flaud Personalidade, ideologia e psicopatologia crí tica,Virginia Moreira e Tod Sloan Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau Figuras clínicasdofeminino no mal-estar contemporâneo,Silvia Alonso et.al. (orgs.) Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, IJPA O gozo encena. Sobre o masoquismo e a mulher,Eliane Z. Schermann Anne Dufounnant elle convida J acques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne Dufourmantelle/Jacques Derrida Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica, Eliana Araújo Nogueira do Vale Psicanálise. Elementos para a clínica contemporânea,Luís Cláudio Figueiredo Psicologia do de sempenho. Corpo pulsional & corpo mocional,J osé Luis Moraguès Memória e exílio, Sybil Safdie Douek
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Dor, M anoel Tosta Berlinck (org.) Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho Paulo Roberto Ceccarelli Diferenças sexuais, Zeferino Rocha Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, Hysteria,Christopher Bollas Manoel Tosta Berlinck Psicopatologia fundamental, Culpa, Urania T. Peres (org.) A paixão silenciosa,M aria Helenade Barrose Silva Clínica da melancolia,A na Cleide G. M oreira (C o-E dufpa) D epressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya Hipocondria, M. A isenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.) Dos benefícios da depressão. E logio da psicoterapia, Pierre Fédida Superego,M arta RezendeCardoso Angústia,Vera Lopes Besset L azslo A. Ávila. Doenças do corpo e doenças da alma, Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.) Violências,Isabel da Silva Kahn Marin Mário Eduardo CostaPereira Psicopatologia dos ataques de pânico, Masoquismo mortífero e masoquism o guardião da vida, Benno Rosenberg A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.) Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.) A neurose obsessiva, Limites,Marta Rezende Cardoso (org.) Lazslo A. Ávila O eu e o corpo, Edilene Freire Queiroz A clínica da perversão, Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi Psicopatologia e disfunção erétil, Manoel T. Berlinck (org.) Obsessiva neurose,
Adolescentes, MartaRezende Cardoso (org.) M arta Gerez Ambertín Imperativos do supereu, Traumas, A na M aria Rudge (org.) Arthur Tatossian A fenomenologia das psicoses, COLEÇÃ O — INFÂNCIA E PSICANÁ LISE Rumo à palavra. Três crianças autistas empsicanálise,M.-Christine L aznik-Penot Paulo A. Buchvitz Sublimação da sexualidade infantil, Silvia Abu-J amra Zornig A criança e o infantil em psicanálise, A história da psicanálise de crianças no Brasil,J orge Luís Ferreira Abrão Ana M aria Sigal de Rose mberg O lugar dos pais na psicanálise de crianças, 0 que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição,Leda M ariza F. Bernardino (org.) Paulina S. Rocha Cata-ventos. Invenções na clínica psicanalitica institucional, (org.)
COLEÇÃO — O SEXTO LOBO Hello Brasil!, Contardo Calligaris Luiz Tarlei de Aragão (org.) Clínica cio social. Ensaios, Exílio e tortura,Maren e Marcelo Vinar Catherine Millot Extrasexo. Ensaio sobre o iransexualismo, Charles Melman Alcoolismo, delinqüência, toxicomania. Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles M elman F antasia de Brasil, Octavio Souza L uis Cláudio Figueiredo (CoModos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Educ) A face eo verso. Estudos sobre o homoerotismo - II,J urandir Freire Costa Carmen Backes O que é ser brasileiro? COLEÇÃO — ENSAIOS Merleau-Pontv. F ilosofia como corpo e existência,Nelson Coelho Jr. e Paulo Sér gio do Carmo
Alfredo Naffah Neto O inconsciente como potência Subversiva, Hiroshi Oshima O pensamento japonês, J eanne Marie Machado deFreitas Comunicação e psicanálise, Berta Waldmann Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., A pulsão anarquista,Nathalie Zaltzman Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ) Escutar, recordar, dizer, Sintoma social dominante e moralização infantil,Heloísa Fernandez (CoEdusp) Maria Cristina Rios Magalhães (org.) Na sombra da cidade, J acques Derrida Estados-da-alma da psicanálise, Radmila Zygouris O vínculo inédito, Radmila Zygouris Nem todos os caminhos levam a Roma. COLEÇÃO — TÉL
OS
François Perrier Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier A formação do psicanalista, Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, M onique Schneider René M ajor (org.) Como a interpretação vem ao psicanalista, COLEÇÃ O — L INHAS D E FUG A L uís Cláudio endonça Figueiredo (Co-Educ) A invenção psicológico, Rogério daMCosta (org.) Limiares dodo contemporâneo, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ) A psicoterapia em busca de Dioniso, Pierre L évy e Michel Authier As árvores de conhecimentos, As pulsões,A rthur Hyppólito de M oura (org.) (Co-Educ)
COL EÇÃ O — TRANS VESS AS O corpo eróge no. Uma introdução a teor ia do complexo'e EdipoSerge Ixclaire CO LEÇÃO _ PLET HO ! A palavra in sensata.Suzana Poesia Alves c psicanál ise, Eliane For.eca Contratransferência, Viana Poética do erótico, Samira Chalhub A Escola. Um enfoquefenomenológico. Vitória Helen Cunha Espósito Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia A eternidade da maçã. Freud e a ética,Flávio Carvalb Ferraz A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia,Ana Mari L offredo (esg.) Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidadepolitic, Maria Auxiliadora de Al meida Cunha Arantes A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius,Guaraciah Micheletti Psiquismo humano, M arco Aurélio Baggio Semiótica da canç ão. Melodia e letra,Luiz Tatit A cientificidade da psicanálise. Popper e. Peirce, Elisabth Saporiti A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Codio Junior Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A M uylaert Crianças na rua.A na Carmen Martin del Collado Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf Os dizeres nas esqiiizofrenias.Uma cartola sem fundoMariluciNovaes COLEÇÃO - FILOS OF IA NO RA SIL F reud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgencio e Rioard T. Simankc (orgs.) Kant no Brasil.Daniel Omar Peres (org.)
Título Projeto Gráfico Diagramação Revisão F ormato Tipologia Papel
Gozo Diogo Angelo/.i Rossao Diogo Angelozi Rossao Tereza C ristina P. T eieira 14x21 cm Times New Roman (1,5/12,5) Cartão Royal 25()g (caa)
Off set 75g (miolo) Número de páginas 344 Tiragem 1 000 Impressão Gráfica e Editora Vida: Consciência
Os sucessivos desenvolvimentos e seus efeitos sobre a teoria do inconsciente, a sexualidade e a ética permitem vincular o gozo a questões tão urgentes como a drogadiçào, as psicoses, as formas da angústia contemporânea e o debate sobre as perversões.
N éstor B raunstein é médico e psicanalista. Antes de seu exílio da A rgentina foi professor na
Universidad Nacional deé Córdoba, e atualmente professor na pós-gradução da Facultad de Psicologia de la Universidad Nacional A utónoma de México e encarregado de uma cadeira extraordinária na Facultad de Filosofia y Letra de la UNAM. É permanentemente convidado a dar cursos e seminários sobre a teoria e a clínica lacaniana em universidades e instituições psicanalíticas da A mérica do Norte, A mérica do Sul, Europa e Ásia. De sua recente produção destacamos os livrosiccionario F de psicoa nálisis e Por el caminho de Freud, ambos publicados
pela Siglo XXI.
Em 1990 foi publicada pela Siglo XXI a primeira versão deste livro. Desde então, ele se tornou a obra de consulta mais citada e recomendada para elucidar as dificuldades do célebre conceito de J acques Lacan, que coroa e dá sentido ao conjunto do pensamento psicanalítico tal como aparece desde os primeiros trabalhos de Sigmund Freud. Anos mais tardes, após a tradução para o francês, o percurso internacional da obra
fez com que se acrescentassem comentários, tendo sido necessárias atualizações bibliográficas e correções, além de uma consideração de novos temas que não faziam parte da versão srcinal. O autor efetuou uma revisão completa do texto e, em seu conjunto, esta edição aumentada pode ser considerada definitiva. Entre a satisfação profunda e a plenitude sexual, intelectual ou espiritual, entre o prazer próprio e o do outro, entre a proibição e o desejo, as noções apresentadas em Gozo persistem na tradição renovadora da teoria e da clínica psicanalítica.
mÊm A “diferença absoluta” encontra-se no gozo, na travessia da angústia e do fantasma dos perigos que espreitam no prosseguimento indefinido e intransigente do desejo, a transcendência também do amor como lugar privilegiado do reforço da imagem narcísica pelo encontro com uma “alma gêmea”. 0 auto-erotismo conduz por suas vias ao prazer e este prazer é razão de um gozo paradoxal, o gozo da transgressão, dos remorsos, do castigo imposto pelo Outro que leva a contabilidade do gozo, que está preocupado pelo que o sujeito experimenta com seu corpo, que esgrime o chicote, a loucura ou as chamas do inferno como argumentos de sua lei. ... o inconsciente é deciframento do gozo e seus produtos são suscetíveis de interpretação. A práxis da análise consiste em intervir sobre o discurso desarmando a trama de significações para que aflore esse gozo do deciframento de um saber que não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito, Regozijo. é o efeito, o filho.
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