Esse Ofício do Verso
JORGE LUIS BORGES
Esse Ofício do Verso ORGANIZAÇÃO
Calin-Andrei :vlihailescu TRADUÇÃO
José Yiarcos Yiacedo
CoMPANHIA DAS LETRAS
Copnight
·r· 2ooo hv the Presirll'nt and
l·{·llows of llarvard Colkgc Publicado nH·diant<• acordo con1
llarvard University l'rr·ss. Todos os dirf'Ítos n•st•rvados.
TITULO ORIGINAL
This craft of
H'fSP
Haul Lonrt:>iro, sobn•
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Páp,inas ( 1972 ), óleo snhn· tt·la df' Vlaria I ,eont in a. CoiPção Alexandre da Costa. FOTO DA P. 5
PREPARAÇÁO
n lljli:- hv ChristophPr S. .lohnson
Copvright
ÍNDICE REMISSIVO
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REVISÁO
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Todos os din·itos desta
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Rua Bandf'ira Paulista, 0+5)2 oo2-
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1 O Enigma da Poesia 9
2 A Metáfora 29
3 O Narrar uma História
so
4 Música da Palavra e Tradução 63
5 Pensamento e Poesia 82
6 O Credo de um Poeta 102
"Desse e daquele ofício versátil" por Calin-Andrei Mihailescu 127
Notas 133
Índice remissivo 155
1 O Enigma da Poesia
De início, gostaria de alertá-los sobre o que antes, sobre o que não
esperar~
esperar~
ou
de mim. Creio que co-
meti um deslize já no título da minha primeira palestra. O título, se não estamos enganados, é "O enigma da poesia", e a ênfase, claro, recai na primeira palavra, "enigma". Assim, vocês podem pensar que só o enigma é que interessa. Ou, o que seria talvez pior ainda, podem pensar que me iludi acreditando de algum modo ter encontrado a verdadeira chave do enigma. A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. "Sorvendo" poesia, cheguei a uma derradeira conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes oferecer dúvidas.
O grande escritor e sonhador inglês Thomas De Quincey
escreveu~
seus catorze
em alguma das milhares de páginas de
volumes~
que descobrir um problema novo
era tão importante quanto descobrir a solução de um antigo. Mas nem isso eu posso lhes oferecer; posso lhes oferecer somente perplexidades consagradas pelo tempo.
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
E no entanto, por que me preoCU!Jar com isso? O que é a história da filosofia senão a história das perplexidades dos hindus, dos chineses, dos gregos, dos escolásticos, do bispo Berkeley, de Hume, de Schopenhauer e assim por diante? Desejo apenas partilhar essas perplexidades com vocês. Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia- a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante. Ora, tendemos a fazer uma confusão cornque1ra. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a
Divina comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estaremos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poes1a.
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O ENIGMA DA POESIA
Creio que Emerson escreveu em algum lugar que uma biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos. E aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta à vida quando se abrem as suas páginas. Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã- a maçã não pode ter gosto por si mesma- nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas. O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras -ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos- saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra. Ocorre-me agora um poema que vocês todos conhecem de cor; mas nunca terão notado, talvez, como ele é estranho. Pois as coisas perfeitas na poesia não parecem estranhas; parecem inevitáveis. E assim mal agradecemos o escritor por seu esforço. Estou pensando num soneto escrito há mais de cem anos por um jovem em Londres (em Hampstead, creio), um jovem que morreu de complicações pulmonares, John Keats, e de seu famoso e talvez batido soneto "On first looking into Chapman's Homer"
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
[O Homero de Chapman à primeira vista]. O que é estranho nesse poema- e só pensei nisso três ou quatro dias atrás, quando refletia sobre esta palestra- é o fato de ser um poema escrito a respeito da próprià experiência poética. Vocês o conhecem de cor, porém gostaria que ouvissem mais uma vez o lampejo e o trovão de seus versos finais, Then felt I like some watcher of the skies When a new planet swims into his ken; Or like stout Cortez when with eagle eyes
He stared at the Pacific- and all his men look'd at each other with a wild surmiseSilent, upon a peak in Darien.
[Então me senti como um observador dos céus Quando um novo planeta desliza para o seu campo de vista; Ou como o resoluto Cortés quando com olhos de águia
Contemplou o Pacífico- e todos os seus homens Entreolharam-se com um alucinado presságioEm silêncio, sobre um pico em Darién.]
Aqui temos a própria experiência poética. Temos George Chapman, o amigo e rival de Shakespeare, que
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O ENIGMA DA POESIA
jaz morto e subitamente torna à vida quando John Keats lê sua Ilíada ou sua Odisséia. Creio que era em George Chapman (mas não posso ter certeza, não sou um
espe~
cialista em Shakespeare) que Shakespeare pensava ao escrever: "Was it the proud full sail of his great verse,/ Bound for the prize of all too precious you?" [Terá sido a altiva e enfunada vela de seu grande verso,/Em deman~ da do prêmio teu, precioso que és?] 1• Há uma palavra que me parece muito importante: "On.first looking in to Chapman's Homer". Esse "first", a meu ver, pode se revelar extremamente útil para nós. No exato momento em que repassava esses vigorosos versos de Keats, pensava que talvez só estivesse sendo fiel a minha memória. Talvez o verdadeiro frêmito que senti com os versos de Keats remonte àquele distante
momen~
to de minha infância em Buenos Aires, quando ouvi pela primeira vez meu pai
lê~los
em voz alta. E quando o fato
de que a poesia, a linguagem, não era somente um meio de comunicação, mas também podia ser uma paixão e um prazer- quando isso me foi revelado, não acho que tenha compreendido as palavras, mas senti que algo
acon~
tecia comigo. Acontecia não com meu simples intelecto, mas com todo o meu ser, minha carne e meu sangue. Voltando às palavras "On .first looking in to
Chap~
man's Homer", me pergunto se John Keats sentiu esse frêmito depois de ter transposto os vários livros da Ilíada
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
e da Odisséia. Penso que a primeira leitura de um poema é a verdadeira, e depois disso que nos iludimos acreditando que a sensação, a impressão, se repete. :vias, como disse, pode ser mera fidelidade, mero truque da memória, mera confusão entre nossa paixão e a paixão que sentimos uma vez. Portanto, pode-se dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez. Cada vez que leio um poema, a experiência acaba ocorrendo. E isso é poesia. Li certa ocasião que o pintor americano Whistler estava num café em Paris, e as pessoas discutiam como a hereditariedade, o ambiente, a situação política da época etc. influenciavam o artista. E Whistler então disse: "A arte acontece". Quer dizer, existe algo misterioso sobre a arte. Gostaria de conferir a suas palavras um novo sentido. Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema. Ora, isso pode parecer suprimir a noção dos clássicos consagrada pelo tempo, a idéia de livros eternos, de livros em que se pode sempre encontrar beleza. Mas espero estar errado nesse aspecto. Tal vez possa fazer um breve resumo da história dos livros. Até onde me lembro, os gregos não faziam grande uso deles. A maioria dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores. Pensem em Pitágoras, Cristo, Sócrates, Buda e assim por diante. E já que falei de Sócrates, gostaria de dizer algo sobre Platão. Lembro que Bernard Shaw disse que Platão foi o dramaturgo
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O ENIGMA DA POESIA
que inventou Sócrates, tal como os quatro evangelistas inventaram Jesus. Isso talvez seja ir longe demais, mas há nisso uma certa verdade. Kum dos diálogos de Platão, ele fala sobre os livros de modo um tanto depreciativo: "()que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto" 2 . Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou- felizmente para nóso diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor. Mas podemos dizer também que Platão tinha saudades de Sócrates. Depois da morte de Sócrates, ele terá dito a si mesmo: "Ora, o que Sócrates diria sobre essa minha dúvida específica?". E então, a fim de ouvir mais uma vez a voz do rnestre a quem amava, escreveu os diálogos. Em alguns desses diálogos, Sócrates representa a verdade. Em outros, Platão dramatizou os seus vários humores. E alguns não chegam a conclusão alguma, porque Platão estava pensando à medida que os escrevia; ele não sabia qual seria a última página quando escreveu a primeira. Estava deixando que sua mente vagasse, dramatizando-a em várias pessoas. Imagino que seu principal objetivo era a ilusão de que, a despeito do fato de Sócrates ter bebido cicuta, o mestre ainda estava com ele. Sinto ser essa a verdade porque tive muitos mestres em minha vida. Tenho orgulho de ser um discípulo- um bom dis-
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
cípulo, espero. E quando penso em meu pai, quando penso no grande autor judaico-espanhol Rafael CansinosAsséns\ quando penso em Macedonio Fernández4, também gostaria de ouvir suas vozes. E de vez em quando treino minha voz para imitar as suas vozes, a fim de que possa pensar corno eles teriam pensado. Eles estão sempre ao meu redor. Há outra frase, num dos Pais da Igreja. Dizia que era tão perigoso pôr um livro nas mãos de um ignorante quanto pôr urna espada nas mãos de urna criança. Assim os livros, para os antigos, eram meros paliativos. Numa de suas muitas cartas, Sêneca escreveu contra as bibliotecas; e, séculos depois, Schopenhauer afirmou que muitas pessoas confundiam a compra de um livro com a compra dos conteúdos do livro. Às vezes, olhando os muitos livros que tenho em casa, sinto que morrerei antes que chegue ao fim deles, porém não consigo resistir à tentação de adquirir novos. Sempre que entro numa livraria e encontro um volume sobre um de meus hobbies- por exemplo, inglês antigo ou poesia nórdica antiga-, digo comigo: "Que pena que não posso levar esse livro, já tenho um exemplar em casa". Depois dos antigos, do Oriente chegou urna outra idéia do livro, a da Sagrada Escritura, de livros escritos pelo Espírito Santo; chegaram os Alcorões, as Bíblias etc. Seguindo o exemplo de Spengler em seu Untergang des
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O ENIGMA DA POESIA
Abendlandes- O declínio do Ocidente-, gostaria de tomar o Alcorão como exemplo. Se não estou enganado, os teólogos muçulmanos o consideram anterior à criação do mundo, O Alcorão é escrito em árabe, porém os muçulmanos o consideram anterior à linguagem. Aliás, li que consideram o Alcorão não uma obra de Deus, mas um atributo de Deus, tal como são Sua justiça, Sua misericórdia e toda a Sua sabedoria. E assim foi introduzida na Europa a noção da Sagrada Escritura- uma noção que não é, a meu ver, inteiramente equivocada. Certa vez indagaram a Bernard Shaw (a quem sempre estou recorrendo) se ele pensava realmente que a Bíblia fosse obra do Espírito Santo. E ele disse: "Acho que o Espírito Santo escreveu não só a Bíblia, mas todos os livros". Isso é ser um tanto injusto com o Espírito Santo, claro- mas todos os livros valem a pena ser lidos, suponho. Era isso, imagino, o que Homero tinha em mente ao falar com a musa. E é isso o que os hebreus e o que :Ylilton tinham em mente ao falarem do Espírito Santo, cujo templo é o correto e puro coração dos homens. E em nossa não tão bela mitologia, falamos do "eu subliminar", do "subconsciente". Claro, essas palavras são bastante toscas quando comparadas às musas ou ao Espírito Santo. Seja como for, temos de nos haver com a mitologia de nosso tempo. Pois as palavras significam essencialmente a mesma coisa.
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ESSE OFICIO DO VERSO
Chegamos agora à noção dos "clássicos". Devo confessar que não considero um livro um objeto imortal a ser tomado em mãos e devidamente cultuado, mas antes uma ocasião para a beleza. E assim tem de ser, pois a linguagem está mudando o tempo todo. Tenho muito gosto pelas etimologias, e gostaria de relembrá-los (pois tenho certeza de que conhecem muito mais essas coisas do que eu) de algumas bastante curiosas. Por exemplo, temos em inglês o verbo "to tease" [caçoar] -uma palavra maliciosa. Significa uma espécie de brincadeira. Porém em inglês antigo tesan significava "ferir com uma espada", tal como em francês navrer significava "trespassar alguém com uma espada". E, para tomar uma palavra diferente do inglês antigo, preat, vocês talvez descubram já nos primeiros versos do Beowulfque ela significava "multidão em fúria"- quer dizer, a causa da "threat", da ameaça. E assim podemos prosseguir ao infinito. Mas vamos agora atentar para alguns versos em particular. Tomo os meus exemplos do inglês, já que tenho um amor todo especial pela literatura inglesa- embora meu conhecimento dela seja, é claro, limitado. Há casos em que a poesia cria a si mesma. Por exemplo, não acho que as palavras "quietus" [óbito] e "bodkin" [adaga] sejam especialmente belas; aliás, diria que são um tanto ásperas. Mas se pensamos em "When he himself might
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O ENIGMA DA POESIA
his quietus make/With a bare bodkin" [Quando ele próprio causar seu óbito/Com uma adaga nua], nos ocorre o grande monólogo de Hamlet 5 . E assim o contexto cria poesia para aquelas palavras- palavras que ninguém jamais se atreveria a usar hoje em dia, porque seriam meras citações. E há outros exemplos, talvez mais simples. Tomemos o título de um dos livros mais famosos do mundo, Historia
deZ ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. A palavra hidalgo tem hoje uma dignidade toda própria, mas quando Cervantes a escreveu, ela significava "um cavalheiro interiorano". Quanto ao nome "Quixote", pretendia ser uma palavra bastante ridícula, como os nomes de muitos dos personagens de Dickens: Pickwick, Swiveller, Chuzzlewit, Twist, Squears, Quilp etc. E temos ainda "de la Mancha", que hoje soa nobre em castelhano para nós, mas quando Cervantes escreveu, pretendia que soasse talvez (peço desculpas a algum residente dessa cidade que esteja presente) como "Dom Quixote de Kansas City". Já se vê como aquelas palavras mudaram, como foram enobrecidas. Eis um fato estranho: ao fazer graça com La Mancha, o velho soldado Miguel de Cervantes transformou-a em uma das palavras eternas da literatura. Tomemos outro exemplo de versos que mudaram. Penso num soneto de Rossetti, um soneto que opera sob um título que não é dos mais belos, "Inclusiveness".
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
Começa assim: What manhas bent o'er his son's sleep to brood, How that face shall watch his when cold it lies? Or thought, as his own mother kissed bis eyes, Of what her kiss was, when his father wooed?6
[Que homem debruçou-se sobre o sono do filho para refletir, Como esse rosto observará o seu quando frio ele jazer?Ou pensou, ao beijar sua própria mãe os seus olhos, O que era o beijo dela, quando seu pai a ·cortejava?]
Penso que esses versos são talvez mais vívidos agora do que quando foram escritos, cerca de oitenta anos atrás, porque o cinema nos ensinou a seguir as rápidas seqüências de imagens visuais. No primeiro verso, "What man has bent o'er his son's sleep to brood", temos o pai se debruçando sobre o rosto do filho adormecido. E no segundo verso, como num bom filme, temos a mesma imagem invertida: vemos o filho debruçado sobre o rosto do morto, seu pai. E talvez o nosso recente estudo da psicologia nos tenha feito mais sensíveis a estes versos: "Or thought, as his own mother kissed his eyes,/Of what her kiss was, when his father wooed". Temos aqui, é claro, a beleza das suaves vogais inglesas em "brood", "wooed".
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O ENIGMA DA POESIA
E a beleza adicional de "wooed" estar sozinha- não "wooed her", mas simplesmente "wooed". A palavra segue ressoando. Há também um tipo diferente de beleza. Tomemos um adjetivo que antes era lugar-comum. Não sei grego, mas acho que em grego é oinopa pontos, e a versão inglesa comum é ''the wine-dark se a" [o mar vinho-escuro]. Suponho que a palavra "escuro" foi inserida para facilitar as coisas para o leitor. Talvez fosse "the winy sea" [o mar vináceo] ou algo do gênero. Tenho certeza de que quando Homero (ou os vários gregos que compilaram Homero) escreveu isso, pensava simplesmente no mar; o adjetivo era direto, sem rodeios. Mas hoje em dia, se eu ou qualquer um de vocês, depois de tentarmos vários adjetivos imaginosos, escrevermos num poema "the wine-dark sea", não será uma simples repetição do que os gregos escreveram. Será, sim, uma volta à tradição. Quando falamos de "the wine-dark se a", pensarnos em Homero e nos trinta séculos que nos separam. Assim, embora aspalavras sejam bastante parecidas, quando escrevemos "the wine-dark sea" estamos na verdade escrevendo algo bem diferente daquilo que Homero escrevia. Portanto, a linguagem está mudando; os latinos sabiam muito bem disso. E o leitor está mudando também. Isso nos faz remontar à antiga metáfora dos gregos- a metáfora, ou antes a verdade, sobre nenhum homem se
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
banhar duas vezes no mesmo riu 7 . E há, a meu ver, um elemento de temor aqui. A princípio tendemos a pensar no rio como um fluxo. Pensamos: "Claro, o rio segue adiante, mas a água está mudando". Então, com um emergente sentido de espanto, sentimos que nós também estamos mudando- que somos tão cambiantes e evanescentes quanto o rio. Contudo, não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos, porque a beleza está sempre conosco. Gostaria aqui de citar outro verso, de Browning, talvez um poeta hoje esquecido. Diz ele: Just when we're safest, there's a sunset-touch, A fancy from a flower-bell, some one's death, A chorus-ending from EuripidesH.
[Agora que estávamos mais seguros, um toque do pôr-do-sol, O capricho de um canteiro, a morte de alguém, Cm coro evanescente de Eurípides.]
Porém o primeiro verso já basta: "Just when we're safest ... ". Quer dizer, a beleza está à espreita por toda a parte. Pode chegar a nós no título de um filme; em alguma canção popular; podemos encontrá-la até nas páginas de um grande ou famoso escritor.
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O ENIGMA DA POESIA
E já que falei de um falecido mestre, Rafael Cansinos-Asséns (talvez seja a segunda vez que ouçam o seu nome; não sei direito por que ele foi esquecido ) 9 , lembro que Cansinos-Asséns escreveu um primoroso poema em prosa no qual pedia a Deus que o defendesse, que o salvasse da beleza, porque, dizia ele, "há beleza demais no mundo". Ele achava que esse mundo era esmagado pela beleza. Embora eu não saiba se fui um homem particularmente feliz (espero que seja feliz na maturidade de meus sessenta e sete anos), ainda acho que a beleza está por toda parte a nossa volta. Se um poema foi escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos historiadores da literatura. Suponhamos, só para argumentar, que eu tenha escrito um belo verso; tomemos como uma hipótese de trabalho. Uma vez escrito, esse verso não me serve mais, porque, como já disse, esse verso me veio do Espírito Santo, do subconsciente, ou talvez de algum outro escritor. Vluitas vezes descubro que estou apenas citando algo que li tempos atrás, e isto se torna uma redescoberta. Vlelhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos. Falei de "the wine-dark sea", e já que meu hobby
é inglês antigo (receio que, se tiverem a coragem ou a paciência de ouvir minhas próximas palestras, talvez lhes seja impingido mais inglês antigo), gostaria de recordar alguns versos que julgo belos. Direi primeiro
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ESSE OFICIO DO VERSO
em inglês, e depois no forte e vocalizado inglês antigo do século
IX.
It snowed from the north; rime bound the fields; hail fell on earth, the coldest of seeds.
Norpan sniwde hrim hrusan bond hregl feol on eorpan cor na caldast 10.
Isso nos traz de volta ao que eu disse sobre Homero: quando o poeta escreveu esses versos, estava apenas registrando coisas que haviam acontecido. Isso, claro, era muito estranho no século
IX,
quando as pessoas pensavam em
termos de mitologia, imagens alegóricas etc. Ele estava apenas narrando coisas bem triviais. Mas hoje em dia, quando lemos It snowed from the north; rime bound the fields; hail fell on earth, the coldest o f seeds ... ,
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O ENIGMA DA POESIA
há uma poesia suplementar. Há a poesia de um saxão ter escrito esses versos junto às praias do Mar do Norte -em Northumberland, eu acho; e de aqueles versos chegarem a nós tão francos, tão diretos e tão patéticos através dos séculos. Temos então os dois casos: o caso (nem preciso me estender nele) no qual o tempo degrada um poema, no qual as palavras perdem a sua beleza; e também o caso no qual o tempo enriquece em vez de degradar um poema. Falei no início sobre definições. Para concluir, gostaria de dizer que cometemos um erro bastante comum ao pensar que ignoramos algo por sermos incapazes de defini-lo. Se estivermos num humor chestertoniano (a meu ver um dos melhores humores em que se pode estar), diremos talvez que só podemos definir algo quando nada soubermos a respeito dele. Por exemplo, se preciso definir poesia, e se me sinto um tanto hesitante, se não tenho muita certeza, digo algo como: "Poesia é a expressão do belo por meio de palavras habilmente entretecidas". Essa definição pode ser boa o suficiente para um dicionário ou um manual, mas todos sentimos ser bastante frágil. Existe algo muito mais importante- algo que pode nos encorajar a seguir adiante e não somente treinar a mão escrevendo poesia, mas desfrutá-la e sentir que sabemos tudo a seu respeito. Isso é o que sabemos ser a poesia. Sabemos tão bem
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ESSE OFICIO DO VERSO
que não podemos defini-la em outras palavras, tal como não podemos definir o gosto do café, a cor vermelha ou amarela nem o significado da raiva, do amor, do ódio, do pôr-do-sol ou do nosso amor pela pátria. Essas coisas estão tão entranhadas em nós que só podem ser expressas por aqueles símbolos comuns que partilhamos. Por que precisaríamos então de outras palavras? Vocês talvez não concordem com os exemplos que escolhi. Talvez amanhã eu me recorde de exemplos melhores, pense que poderia ter citado outros versos. Mas assim como vocês podem pegar e escolher seus próprios exemplos, não é necessário que se preocupem muito com Homero nem com poetas anglo-saxões nem com Rossetti. Porque todos sabem onde encontrar poesia. E quando ela chega, sente-se seu toque, aquela comichão própria da poesia. Para concluir, trago uma citação de Santo Agostinho que, a meu ver, vem bem a calhar. Disse ele: "O que é o tempo? Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei" 11 • Sinto o mesmo em relação à poesia. Dificilmente alguém se incomoda com definições. Dessa vez estou bastante desnorteado, porque não sou nada bom em pensamento abstrato. Mas nas palestras seguintes- se vocês forem bondosos o bastante para me aturar-, daremos exemplos mais concretos. Vou falar
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O ENIGMA DA POESIA
sobre a metáfora, sobre a n1úsica da palavra, sobre a possibilidade ou a impossibilidade da tradução poética e sobre o narrar uma história- ou seja, sobre poesia épica, o mais antigo e talvez o mais admirável gênero de poesia. E encerrarei o ciclo com algo que nem posso adivinhar agora. Encerrarei com uma conferência intitulada "O credo de urn poeta", na qual tentarei justificar minha própria vida e a confiança que alguns de vocês tal vez tenham em mim, apesar dessa minha primeira palestra um tanto canhestra e titubeantt'.
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
2 A :\Ietáfora
Como o assunto da conferência de hoje é a metáfora, começarei com uma. Essa primeira das muitas metáforas que tentarei recordar vem do Extremo Oriente, da China. Se não me engano, os chineses chamam o mundo de "as dez mil coisas" ou- e isso depende do gosto e da fantasia do tradutor- "os dez mil seres". Podemos aceitar, suponho, a estimativa bastante modesta de dez mil. Certamente há mais de dez mil formigas, dez mil homens, dez mil esperanças, medos ou pesadelos no mundo. Mas se aceitarmos a cifra de dez mil e se pensarmos que todas as metáforas são feitas pelo encadeamento de duas coisas diversas, então, tivéssemos tempo suficiente, poderíamos formular uma soma quase inacreditável de possíveis metáforas. Esqueci a minha álgebra, mas imagino que a soma seria
10 ooo
multiplicado
por 9 999, multiplicado por 9 998 e assim por diante. Claro que a soma de possíveis combinações não é infinita, mas atordoa a imaginação. Assim, podemos ser levados a pensar: por que diabos os poetas pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis? O poeta argentino Lugones, lá pelos idos de 1909, escreveu pensar que os poetas estavam usando sempre as mesmas metáforas e que tentaria treinar a mão descobrindo novas metáforas para a lua. E, de fato, inventou várias centenas delas. Disse também, no prefácio a um
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
livro chamado Lunario sentimental
1,
que cada palavra é
uma metáfora morta. Essa declaração, claro, é uma metáfora. Mas acho que todos sentimos a diferença entre metáforas mortas e vivas. Se pegarmos qualquer bom dicionário etimológico (estou pensando em meu velho amigo ignorado, dr. Skeat2) e se procurarmos uma palavra qualquer, na certa encontraremos uma metáfora enfurnada em alguma parte. Por exemplo- e vocês podem encontrar isso já nas primeiras linhas do Beowulf- a palavra preat significava "uma horda em fúria", mas agora a palavra é dada ao efeito e não à causa. Temos ainda a palavra "king" [rei]. "King" era originalmente cyning, que significava "um homem que representa a parentela-o povo". Assim, etimologicamente, "king", "kinsman" [parente] e "gentleman" [cavalheiro] São a mesmapalavra. Mas se eu disser, "O rei estava em sua sala, contando dinheiro", não pensamos na palavra "rei" como uma metáfora. Aliás, se formos dados ao pensamento abstrato, temos de esquecer que as palavras eram metáforas. Temos de esquecer, por exemplo, que na palavra "consider" [considerar] há uma sugestão de astrologia- "consider" significava originalmente "estar com as estrelas", "fazer um horóscopo". O importante sobre a metáfora, eu diria, é ser sentida pelo leitor ou pelo ouvinte como uma ·metáfora. Circunscrevo essa conferência a metáforas que são sentidas
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A METÁFORA
como metáforas pelo leitor. Não a palavras como "king", "threat"- e poderíamos prosseguir, talvez para sempre. Primeiro, gostaria de tomar alguns modelos surrados de metáforas. Uso a palavra "modelo" porque as metáforas que vou citar, ainda que bem diferentes quanto à imaginação, são quase as mesmas para o pensador lógico. De modo que podemos falar delas como equações. Iniciemos com a primeira que me vem à cabeça. Tomemos a comparação batida, a comparação consagrada pelo tempo, de olhos com estrelas, ou, inversamente, de estrelas com olhos. O primeiro exemplo de que me lembro vem da Antologia Grega 3, e penso ter sido Platão quem o escreveu. Os versos (eu não sei grego) dizem mais ou menos assim: "Eu queria ser a noite, de modo a poder velar teu sono com olhos mil". Aqui, é claro, o que sentimos é a ternura do amante; sentimos seu desejo de ser capaz de ver a amada de vários pontos ao mesmo tempo. Sentimos a ternura por trás desses versos. Agora tomemos outro exemplo, menos ilustre: "As estrelas olham do alto". Se levarmos o pensamento lógico a sério, temos aqui a mesma metáfora. Porém o efeito em nossa imaginação é bem diverso. "As estrelas olham do alto" não nos faz lembrar de ternura; antes, passa a idéia de gerações e gerações de homens labutando e as estrelas olhando do alto, com uma espécie de indiferença altiva.
32
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Deixem-me tomar um exemplo diverso- uma das estrofes que mais me impressionam. Os versos são de um poema de Chesterton chamado "A second childhood" [Uma segunda infância]: But I shall not grow too old to see enormous night arise, A cloud that is larger than the world And a monster made of eyes 4 .
[Mas não chegarei à idade de ver surgir a noite enorme, C ma nuvem que é maior que o mundo E um monstro feito de olhos.]
Não um monstro cheio de olhos (conhecemos esses monstros do Apocalipse de são João), mas- e isso é tanto mais aterrador- um monstro jeito de olhos, como se estes olhos fossem o seu tecido vivo. Vimos três imagens que podem todas ser reconduzidas ao mesmo modelo. :Vias a questão que gostaria de salientar- e essa é realmente uma das duas questões importantes da conferência- é que, embora o modelo seja essencialmente o mesmo, no primeiro caso, o exemplo grego "Eu queria ser a noite", o que o poeta nos faz sentir é a sua ternura, a sua ansiedade; no segundo, sentimos uma espécie de indiferença divina a coisas humanas; e no terceiro, a noite familiar vira um pesadelo.
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A METÁFORA
Tomemos agora um modelo diferente: tomemos a idéia do tempo fluindo- fluindo como um rio. O primeiro exemplo vem de um poema que Tennyson escreveu aos treze ou catorze anos, penso eu. Ele o destruiu; mas, felizmente para nós, um verso sobreviveu. Acho que vocês o encontram na biografia de Tennyson escrita por Andrew Lang 5 . O verso é: "Time flowing in the middle of the night" [O tempo fluindo no meio da noite]. Acho que Tennyson escolheu seu tempo com muita sabedoria. Na noite todas as coisas estão silenciosas, as pessoas dormem, porém o tempo flui sem ruídos. Esse é um exemplo. Há também um romance (tenho certeza de que vocês estão pensando nele) chamado simplesmente
OJ
time and the river6. A mera conjunção das duas palavras
sugere a metáfora: tempo e o rio, os dois seguem fluindo. E há ainda a famosa sentença do filósofo grego: "Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio" 7• Temos aqui o início do terror, porque a princípio pensamos no rio como algo que flui, nas gotas de água sendo diversas. E então somos levados a sentir que nós somos o rio, que somos fugidios como o rio. Temos também estes versos de Manrique: Nuestras vidas son los ríos que van a dar en la rnar qu'es el morir.
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
Our lives are the rivers that flow into that sea which is deathH. Essa declaração não impressiona muito em inglês; gostaria de poder lembrar como Longfellow a traduziu em suas "Coplas de Manrique" 9 • Mas, é claro (e entraremos nessa questão em outra palestra), por trás da batida metáfora temos a grave música das palavras: Nuestras vidas son los ríos que van a dar en la mar qu'es el morir; allí van los sefíoríos derechos a se acabar e consumir ... Porém a metáfora é exatamente a mesma em todos esses casos. E agora passaremos a algo bem banal, algo que talvez faça vocês rirem: a comparação de mulheres com flores, e também de flores com mulheres. Aqui, é claro, há exemplos de sobra, todos muito fáceis. Mas há um que gostaria de lembrar (talvez não seja familiar a vocês), daquela obra-prima inacabada, o Weir oj Hermiston de Robert Louis Stevenson. O herói de Stevenson vai a urna
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A METÁFORA
igreja, na Escócia, onde vê uma garota- uma garota adorável, pressentimos. E sentimos que ele está prestes a se apaixonar por ela. Porque olha para ela e então se pergunta se há uma alma imortal dentro daquela bela moldura, ou se ela é um mero animal da cor das flores. E a brutalidade da palavra "animal" é destruída, claro, por "da cor das flores". Não acho que precisamos de mais exemplos desse modelo, que pode ser encontrado em todas as épocas, em todas as línguas, em todas as literaturas. Agora passemos a outro dos modelos essenciais da metáfora: o modelo da vida sendo um sonho- a sensação que nos invade de que a vida é um sonho. O exemplo evidente. que nos ocorre é: "\Ve are such stuff as dreams are made on" [Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos] 111 • Ora, isto pode soar como blasfêmia -eu amo demais Shakespeare para me importar-, mas penso que aqui, se olharmos bem (e não acho que devemos olhar muito de perto; devemos, isso sim, agradecer a Shakespeare por essa c muitas outras dádivas), há uma ligeira contradição entre o fato de que nossas vidas são como um sonho ou têm dentro de si uma essência onírica, c a declaração um tanto indiscriminada de que "Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos". Porque se somos reais em sonhos, ou se somos meramente sonhadores de sonhos, então me pergunto se podemos fazer tais declarações indiscriminadas. Essa frase de
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
Shakespeare está mais para a filosofia ou para metafísica do que para a poesia- embora, é claro, esteja realçada, esteja elevada à poesia, pelo contexto. Outro exemplo do mesmo modelo vem de um grande poeta alemão- um poeta menor ao lado de Shakespeare (mas suponho que todos os poetas sejam menores ao lado dele, salvo dois ou três). Trata-se de um poema bastante famoso de Walther von der Vogelweide. Imagino que a pronúncia seja esta (não sei quão bom é meu médioalemão- por favor, me perdoem): "Ist mir min leben getroumet, oder ist es war?". "Terei sonhado minha vida ou foi eia verdadeira?" 11 . Penso que isso se aproxima mais do que o poeta está tentando dizer, porque em vez de uma afirmação indiscriminada, temos uma pergunta. O poeta indaga consigo mesmo. Isso aconteceu com todos nós, mas não o formulamos em palavras como Walther von der Vogelweide. Ele se pergunta: "Ist mir min leben getroumet, oder ist es war?", e a meu ver essa hesitação nos confere aquela essência da vida como um sonho. Não lembro se em minha última palestra (porque esta é uma frase que costumo citar com freqüência, e a citei durante toda a minha vida) lhes falei do filósofo chinês Chuan Tzu. Ele sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem. Essa metáfora, a rríeu ver, é a mais sutil
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A METÁFORA
de todas. Primeiro porque começa com um sonho, e, mais tarde, quando ele acorda, a sua vida ainda guarda algo dos sonhos. E segundo porque, com uma espécie de felicidade quase miraculosa, ele escolheu o animal certo. Tivesse dito "Chuan Tzu sonhou que era um tigre", não seria nada. Uma borboleta tem algo de delicado e evanescente. Se somos sonhos, o verdadeiro modo de sugeri-lo é com uma borboleta, não com um tigre. Se Chuan Tzu tivesse sonhado que era uma máquina de escrever, não valeria nada. Tampouco lhe valeria uma baleia. Creio que encontrou a palavra exata para aquilo que tentava dizer. Tentemos seguir outro modelo- um muito comum, que encadeia as idéias de dormir e morrer. É uma metáfora bastante corriqueira também na fala do dia-a-dia; mas se buscarmos exemplos, vamos descobrir que são muito diversos entre si. Creio que numa passagem de Homero ele fala do "sono férreo da morte" 12 . Aqui ele nos dá duas idéias opostas: a morte é uma espécie de sono, porém essa espécie de sono é feita de um metal rijo, implacável e cruel- o ferro. Claro, há também Heine: "Der Tod daL3 ist die frühe Nacht" [A morte é a boca da noite]. E já que estamos ao norte de Boston, acho que cabe recordar aqueles versos de Robert Frost, talvez conhecidos à exaustão:
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ESSE OFíCIO DO VERSO
The woods are lovely, dark, and deep, But I have promises to keep, And miles to go before I sleep, And miles to go before I sleep 15. [Os bosques são adoráveis, escuros e fundos, J\!Ias tenho promessas a cumprir, E milhas a trilhar antes de dormir, E milhas a trilhar antes de dormir.] Esses versos são tão perfeitos que mal pensamos num truque. Porém, infelizmente, toda a literatura é feita de truques, e esses truques- a longo prazo- acabam sendo desvendados. E então os leitores se cansam deles. Mas nesse caso o truque é tão discreto que sinto certa vergonha de mim mesmo por chamá-lo de truque (só chamo assim por falta de palavra melhor). Porque Frost tentou aqui algo bastante ousado. Temos o mesmo verso repetido palavra por palavra, duas vezes, porém o sentido é diverso. "E milhas a trilhar antes de dormir": isso é meramente físico- as milhas são milhas no espaço, na Nova Inglaterra, e "dormir" significa "ir dormir". A segunda vez- "E milhas a trilhar antes de dormir"nos faz sentir que as milhas não estão somente no espaço, mas no tempo, e que "dormir" significa "morrer" ou "descansar". Tivesse o poeta dito isso literalmente, teria
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A METÁFORA
sido bem menos eficaz. Porque, no meu entender, qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada. Talvez a mente humana tenha uma tendência a negar declarações. Lembrem o que dizia Emerson: argumentos não convencem ninguém. J'\ão convencem ninguém porque são apresentados como argumentos. E então os contemplamos, e refletimos sobre eles, e os ponderamos, e acabamos decidindo contra eles. Mas quando algo é simplesmente dito ou- melhor ainda- insinuado, há uma espécie de hospitalidade em nossa imaginação. Estamos dispostos a aceitá-lo. Lembro ter lido, há uns trinta anos, as obras de Martin Buberque considerei poemas extraordinários. Então, quando fui para Buenos Aires, abri o livro de um amigo meu, Dujovne 14, e descobri em suas páginas, para grande espanto, que Martin Buber era um filósofo e que toda a sua filosofia estava contida nos livros que eu lera como poesia. Talvez eu tenha aceitado aqueles livros porque chegaram a mim pela poesia, pela sugestão, pela música da poesia, e não como argumentos. Creio que em alguma passagem de Walt Whitman a mesma idéia pode ser encontrada: a idéia de razões serem inconvincentes. Creio que ele diz em alguma parte achar o ar noturno, as poucas estrelas graúdas, bem mais convincentes que meros argumentos. Podemos pensar em outros modelos de metáforas.
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ESSE OFICIO DO VERSO
Tomemos agora o exemplo (este não é tão comum quanto os outros) de uma batalha e um incêndio. Na Ilíada, encontramos a imagem de uma batalha se alastrando como uma conflagração. Temos a mesma idéia no fragmento heróico de
Finnesburg 1 ~.
Nesse fragmento nos são rela-
tadas as lutas entre dinamarqueses e frísios, o fulgor das armas, dos escudos e das espadas. Diz então o autor que parecia que o Finnesburg inteiro, que todo o castelo de Finn ardia em chamas. Suponho que tenha omitido alguns modelos bastante comuns. Até agora tratamos de olhos e estrelas, mulheres e flores, tempo e rios, vida e sonho, morte e sono, incêndio e batalhas. Tivéssemos tempo e erudição suficientes, poderíamos encontrar mais meia dúzia de modelos, e estes talvez nos rendessem a maioria das metáforas na literatura. O que realmente importa é que há uns poucos modelos, mas que são capazes de variações quase infindas. O leitor que aprecia poesia e não teoria poética pode ler, por exemplo, "Eu queria ser a noite" e então mais tarde "Um monstro feito de olhos" ou "As estrelas olhavam do alto" e jamais parar para pensar que tudo isso pode ser reconduzido a um único modelo. Se eu fosse um pensador arrojado (mas não sou; sou um pensador bem tímido, avanço às apalpadelas), poderia dizer, é claro, que somente uma dúzia desses modelos existe e que todas as outras
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A METÁFORA
metáforas são meros passatempos arbitrários. Isso redundaria na declaração de que, entre as "dez mil coisas" da definição chinesa, somente umas doze afinidades essenciais podem ser encontradas. Porque, é claro, podem-se encontrar outras afinidades que são apenas surpreendentes, e a surpresa dificilmente dura mais que um instante. Lembro que esqueci um exemplo bastante bom da equação sonho-e-vida. :vias acho que posso evocá-lo agora: é do poeta americano cummings. São quatro versos. Peço desculpas pelo primeiro. Evidentemente foi escrito por um jovem, para jovens, e não posso mais pleitear tal privilégio- estou velho demais para esse tipo de jogo. :vias a estrofe deve ser citada na íntegra. O primeiro verso é: "god's terrible face, brighter than a spoon" [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher]. Lamento bastante pela colher, pois se sente, claro, que ele pensou primeiro numa espada, ou numa vela, ou no sol, ou num escudo, ou em algo que tradicionalmente brilha; e então disse: "Kão- afinal sou moderno, vou meter aqui uma colher". E assim teve a sua colher. Mas podemos perdoá-lo pelo que vem depois: "god's terrible face, brighter than a spoon,/ collects the image of one fatal word" [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher,/colhe a imagem de uma palavra fatal]. Esse segundo verso é melhor, a meu ver. E como me disse meu amigo :\1urchison, numa colher mui-
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
tas vezes colhemos várias imagens. Nunca pensara nisso, pois caíra para trás com a colher e desistira de pensar a respeito. god's terrible face, brighter than a spoon, collects the image of one fatal word, so that my life (which liked the sun and the moon) resembles something that has not occurred 16.
[a terrível face de deus, mais luzente que uma colher, colhe a imagem de uma palavra fatal, de modo que minha vida (que gostava do sol e da lua) parece algo que não ocorreu.]
"Resembles something that has not occurred": esse verso carrega uma espécie de estranha simplicidade. Creio que ele nos confere a essência onírica da vida melhor do que aqueles famosos poetas, Shakespeare e Walther von der Vogelweide. Claro, escolhi somente uns poucos exemplos. Tenho certeza de que a memória de vocês está repleta de metáforas entesouradas- metáforas que talvez esperem ser citadas. Sei que depois desta palestra serei invadido pelo remorso, pensando nas belas metáforas, muitas, que terei deixado escapar. E claro que vocês me dirão, a meia-voz: "Mas por que é que o senhor omitiu essa metáfora ma-
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A METÁFORA
ravilhosa de fulano de tal?". E terei então de gaguejar e pedir desculpas. Mas agora, acredito, podemos passar a metáforas que parecem estranpas aos antigos modelos. E já que falei da lua, tomarei uma metáfora persa que li em algum trecho da história da literatura persa de Brown. Digamos que seja de Farid al-Din Attar, ou de Ornar Khayyám, ou de Hafiz 17 , ou de outro dos grandes poetas persas. O poeta fala da lua, chamando-a "o espelho do tempo". Suponho que, do ponto de vista da astronomia, a idéia de que a lua seja um espelho é apropriada- mas isso é um tanto irrelevante do ponto de vista poético. Se de fato a lua é um espelho ou não, carece de toda a importância, já que a poesia fala à imaginação. Olhemos a lua como um espelho do tempo. Creio que essa é uma metáfora muito sutil- primeiro, porque a idéia de um espelho nos transmite o brilho e a fragilidade da lua, e, segundo, porque a idéia do tempo nos faz lembrar de repente que essa própria lua cristalina para a qual olhamos é muito antiga, é cheia de poesia e mitologia, é antiga como o tempo. Já que usei a expressão "antiga como o tempo" [as old as time], devo citar outro verso-um que talvez esteja fervilhando na memória de vocês. 1\"ão estou lembrado do nome do autor. Achei-o citado por Kipling num livro seu não muito memorável, chamado From sea to sea: "A rose-red city, half as old as Time" [Uma cidade
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
rubro-rósea, com a metade da idade do Tempo] 18. Tivesse o poeta escrito "A rose-red city, as old as Time", não teria escrito absolutamente nada. Mas "half as old as Time" empresta uma espécie de precisão mágica- a mesma espécie de precisão mágica obtida por aquela estranha e corriqueira expressão inglesa "I willlove you forever anda day" [Vou te amar para sempre e um dia]. "Para sempre" significa "por um tempo muito longo", mas é abstrato demais para empolgar a imaginação. Temos a mesma espécie de truque (peço desculpas pelo uso dessa palavra) no título daquele livro famoso, as
Mil e uma noites. Pois "as mil noites" significam para a imaginação "as muitas noites", tal como "quarenta" costumava significar "muitos" no século
XVII.
"When forty
winters shall besiege thy brow" [Quando quarenta invernos assediarem teu semblante] escreve Shakespeare 19 ; e penso na trivial expressão inglesa "forty winks" exprirnindo "uma soneca". Pois "quarenta" significa "muitos". E temos aqui as "mil noites e uma noite"-tal como "a rose-red city" e a fabulosa precisão de "half as old as Time", que fazem o tempo, é claro, parecer ainda mais longo. A fim de considerar diferentes metáforas, retomarei agora- inevitavelmente, dirão vocês- meus anglo-saxões. Recordo aquele kenning 211 bastante usual que chama o mar de "caminho da baleia". Pergunto-me se o saxão
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A METÁFORA
anônimo que primeiro cunhou esse kerznirzg sabia como ele era engenhoso. Pergunto-me se ele sentiu (embora isso nem precise nos preocupar) que a imensidão da baleia sugeria e enfatizava a imensidão do mar. Há outra metáfora- uma nórdica, sobre o sangue. O kerzrzirzg usual para sangue é "a água da serpente". Nessa metáfora, temos a noção- que encontramos também entre os saxões- de uma espada como um seressencialmente maléfico, um ser que sorvia o sangue dos homens como se fosse água. Temos ainda as metáforas para batalha. Algumas delas são bem banais- por exemplo, "encontro de homens". Aqui, talvez, haja algo bastante sutil: a idéia de homens se reunindo para matar uns aos outros (como se não houvesse outros "encontros" possíveis). Mas temos também "encontro de espadas", "dança de espadas", "embate de armaduras", "embate de escudos". Todas elas podem ser encontradas na "Ode" de Brunanburh. E há outra boa: porn ameoht, "uma assembléia de cólera". Aqui a metáfora impressiona talvez porque, quando pensamos numa assembléia, pensamos em camaradagem, em amizade; e aí sobrevém o contraste, a assembléia de cólera. :\1as essas metáforas não são nada, eu diria, comparadas a uma metáfora muito sutil sobre a batalha, de origem nórdica e - por estranho que pareça- irlandesa. Ela chama a batalha "a teia de homens". A palavra 46
ESSE OFÍCIO DO VERSO
"teia" é realmente formidável aqui, pois na idéia de uma teia assimilamos o modelo de uma batalha medieval: temos as espadas, os escudos, o entrelace das armas. Depois, há o toque de pesadelo de uma teia feita de seres vivos. "Uma teia de homens": uma teia de homens morrendo e matando uns aos outros. Ocorre-me de repente uma metáfora de Góngora bem no estilo da "teia de homens". Ele fala de um viajante que chega a uma "bárbara aldea"- a uma "bárbara aldeia"; e então essa aldeia tece uma corda de cães a seu redor. Como suele tejer Bárbara aldea Soga de perros Contra forastero. Assim, por estranho que pareça, temos a mesma imagem: a idéia de uma corda ou uma teia feita de seres vivos. Porém mesmo nesses casos que parecem ser sinônimos, há uma sensível diferença. Uma corda de cães é algo barroca e grotesca, enquanto "teia de homens" tem um quê de terrível, um quê de pavoroso. Para concluir, tomarei uma metáfora, ou uma comparação (afinal de contas, não sou um professor, não preciso me preocupar com a diferença), do hoje esquecido
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A METÁFORA
Byron. Li o poema quando
garoto~
imagino que todos
vocês o leram em idade bem tenra. Porém dois ou três dias atrás descobri de repente que essa metáfora era bastante complexa. Jamais pensei em Byron como um poeta especialmente complexo. Todos vocês conhecem as palavras: "She walks in beauty, like the night" [Ela anda em beleza, como a noite ] 21 . O verso é tão perfeito que não lhe damos valor. Pensamos, "Ora, isso nós poderíamos ter escrito, se tivéssemos nos dado ao trabalho". ::vias só Byron se deu ao trabalho de escrevê-lo. Passo agora à complexidade oculta e secreta do verso. Suponho que já descobriram o que vou revelar avocês. (Porque isso sempre acontece com surpresas, não é? Acontece conosco ao lermos um romance policial.) "Ela anda em beleza, como a noite": no início temos uma adorável mulher; então nos é dito que ela anda em beleza. Isso sugere um quê de língua
francesa~
algo como
"vous êtes en beauté" etc. Mas: "Ela anda em beleza, como a noite". Temos, em primeiro lugar, uma adorável mulher, uma adorável senhora, ligada à noite. Mas a fim de compreender o verso, temos de pensar também a noite como uma mulher, senão o verso não tem sentido. Assim, dentro dessas palavras bem simples, temos uma dupla metáfora: uma mulher é ligada à noite, mas a noite é ligada à mulher. Não sei e não me importo se Byron sabia disso. Penso que se tivesse sabido, o verso dificil-
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ESSE OFICIO DO VERSO
mente seria tão bom. Talvez antes de morrer ele o tenha descoberto, ou alguém lhe tenha feito notar. Agora somos levados às duas óbvias e principais conclusões dessa palestra. A primeira, claro, é que, embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples. Mas isso não precisa nos preocupar, já que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as variações são diferentes. E a segunda conclusão é que há metáforas- por exemplo, "teia de homens" ou "caminho da baleia"- que não podem ser reconduzidas a modelos definidos. Assim, acho que a perspectiva- mesmo depois de minha palestra- é bem promissora para a metáfora. Porque, se quisermos, podemos treinar nossa mão em novas variações das principais tendências. As variações seriam muito bonitas, e somente uns poucos críticos, como eu, se dariam ao trabalho de dizer: "Bem, aqui temos olhos e estrelas e aqui temos tempo e rio- sempre a mesma coisa". As metáforas vão surpreender a imaginação. :vias talvez ainda nos seja dado- e por que não esperar também por isso?-, talvez ainda nos seja dado inventar metáforas que não façam parte, ou que ainda não façam parte, dos modelos aceitos.
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A METÁFORA
3 O Narrar uma História
Devemos levar em consideração distinções verbais, já que representam distinções mentais, intelectuais. É pena, porém, que a palavra "poeta" tenha sido fracionada. Pois hoje em dia, quando falamos de um poeta, pensamos apenas em quem profere tais notas líricas, à maneira de pássaros, como "With ships the sea was sprinkled far and nigh,/Like strars in heaven" [De navios o mar estava salpicado por toda parte,/ Como estrelas no céu] (Wordsworth) t, ou "Music to hear, why hear'st thou music sadly? /Sweets with sweets war not, joy delights in joy" [Ouvir música, por que estás triste a ouvir música?/ Doçura com doçura não guerreia, o prazer se deleita no prazer V Ao passo que os antigos, quando falavam de um poeta- um "fazedor" - ,
pens~vam
nele não somente
como quem profere essas agudas notas líricas, mas também como quem narra uma história. Uma história na qual todas as vozes da humanidade podem ser encontradas- não somente a lírica, a pesarosa, a melancólica, mas também as vozes da coragem e da esperança. Ou seja, me refiro ao que suponho ser a mais antiga forma de poesia: a épica. Consideremos algumas delas. Talvez a primeira que nos venha à cabeça é uma que Andrew Lang, que tão bem a traduziu, chamou The tale
oj Troy [A história de Tróia]. Vamos examiná-la em busca daquele narrar muito antigo de uma história. Logo no primeiro verso, temos algo como: "Tell me, muse, of the
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
anger of Achilles" [Conta, musa, da fúria de Aquiles]. Ou como o professor Rouse, se não me engano, traduziu: "An angry man- that is my subject" [Um homem furioso- eis o meu tema]"'. Talvez Homero, ou o homem que chamamos Homero (pois essa é uma velha questão, claro), tenha pensado que escrevia o seu poema sobre um homem furioso, e isso de algum modo nos desconcerta. Pois entendemos a fúria como os latinos: "ira furor brevis"- a fúria é uma loucura breve, um acesso de loucura. O enredo da Ilíada, em si próprio, não é mesmo dos mais atraentes- a idéia do herói amuado na sua tenda, sentindo que o rei o tratara injustamente, e que então move a guerra como uma rixa privada porque o seu amigo fora morto, e depois disso vende o homem que matara ao pai desse homem. Mas talvez (é possível que eu tenha dito isso antes, tenho certeza que sim), talvez as intenções do poeta não sejam tão importantes. O que importa hoje em dia é que, embora Homero possa ter pensado que narrava essa história, estava na verdade narrando algo bem mais sutil: a história de um homem, um herói, que ataca uma cidade sabendo que jamais irá conquistá-la, sabendo que morrerá antes de ela capitular; e a história tanto mais instigante de homens defendendo uma cidade de cuja desgraça já têm consciência, uma cidade que já está em chamas. Creio que este seja o verdadeiro tema da Ilíada. E, de
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
fato, os homens sempre sentirarn que os troianos eram os verdadeiros heróis. Pensamos em Virgílio, mas podemos pensar também em Snorri Sturluson\ que, em sua jovem era, escreveu que Odin ~ o Odin dos saxões, o deus~
era filho de Príamo e irmão de Heitor. Os ho-
mens buscaram parentesco com os derrotados troianos, e não com os vitoriosos gregos. Isso talvez porque haja uma dignidade na derrota que dificilmente faz parte da vitória. Tomemos uma segunda épica, a Odisséia. A Odisséia pode ser lida de duas maneiras. Suponho que o homem (ou a mulher, como pensava Samuel Butler") que a escreveu tenha sentido que havia na verdade duas histórias: o regresso de Ulisses a casa e as maravilhas e perigos do mar. Se tomarmos a Odisséia no primeiro sentido, temos a idéia do regresso ao lar, a idéia de que estamos no exílio, que o verdadeiro lar está no passado ou no paraíso ou em algum outro lugar, que jamais estamos em casa. Mas claro que o périplo e o regresso ao lar tinham de ganhar interesse. Assim foram inseridas as muitas maravilhas. E já quando chegamos às Mil e urna noites, vemos que a versão árabe da Odisséia, as Sete viagens de
Sirnbá, o marujo, não é uma história de regresso ao lar, mas uma história de aventuras; e acredito que assim a lemos. Quando lemos a Odisséia, acho que sentimos é o glamour, a mágica do mar; o que sentimos é o que en-
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
contramos no homem do mar. Por exemplo, ele não tem olhos para a harpa, nem para a troca de anéis, nem para os prazeres de uma mulher, nem para a grandeza do mundo" Só pensa nas longas correntes salgadas do mar. De modo que temos as duas histórias numa só: podemos lê-la como um regresso ao lar e podemos lê-la como uma história de aventuras- talvez a mais primorosa que jamais tenha sido escrita ou cantada. Chegamos agora a um terceiro "poema" que avulta muito acima deles: os quatro evangelhos. Os evangelhos também podem ser lidos de duas maneiras. Pelo fiel, são lidos como a estranha história de um homem, de um deus, que expia os pecados da humanidade. Um deus que se digna ao sofrimento-à morte na "amarga cruz", como diz Shakespeare 6 . Há ainda uma terceira interpretação, que encontrei em Langland 7: a idéia de que Deus queria saber tudo sobre o sofrimento humano e que não Lhe bastava sabê-lo intelectualmente, como é facultado a um deus; queria sofrer como um homem, e com as limitações de um homem. Contudo, se você for um incrédulo (muitos de nós somos), então poderá ler a história de modo diverso. Pode pensar num homem de gênio, num homem que pensava ser deus e que no final descobriu ser somente um homem, e que deus- o seu deus- o abandonara. Pode-se dizer que, por muitos séculos, essas três his54
ESSE OFÍCIO DO VERSO
tórias- a história de Tróia, a história de Ulisses, a história de Jesus- têm sido suficientes à humanidade. As pessoas as têm contado e recontado muitas e muitas vezes; elas foram musicadas; foram pintadas. As pessoas as contaram inúmeras vezes, porém as histórias continuam ali, ilimitadas. Pode-se pensar em alguém, em mil ou dez mil anos, tornando a escrevê-las. Mas no caso dos evangelhos há uma diferença: a história de Cristo, a meu ver, não pode ser contada de modo melhor. Foi contada inúmeras vezes, porém os poucos versos em que lemos, por exemplo, Cristo sendo tentado por Satã, são mais fortes que os quatro livros juntos do Paradise rt;gained [Paraíso reconquistado]. Sente-se que Milton talvez não tivesse a menor idéia de que tipo de homem era Cristo. Bom, temos essas histórias e temos o fato de que os homens não precisavam de muitas histórias. ]\;"ão suponho que Chaucer algum dia tenha pensado em inventar uma história. ]\;"ão acho que as pessoas fossem menos criativas naquela época do que são hoje. Acho que sentiam que as nuances introduzidas na história- as sutis nuances nela introduzidas- bastavam. Além do mais, isso facilitava as coisas para o poeta. Os seus ouvintes ou leitores sabiam o que ele diria. E assim podiam assimilar todas as diferenças. Ora, na épica- e podemos pensar nos evangelhos como uma espécie de épica divina-, podem-se encon-
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
trar todas as coisas. Mas a poesia, como disse, foi fragmentada; ou melhor, de um lado temos o poema lírico e a elegia, e do outro temos o narrar uma história - o romance. Quase somos tentados a pensar o romance como uma degeneração da épica, a despeito de autores como Joseph Conrad ou Herman Melville. Pois o romance remonta à dignidade da épica. Ao considerarmos o romance e a épica, somos tentados a pensar que a diferença principal está na diferença entre verso e prosa, entre cantar algo e enunciar algo. :VIas acho que há uma outra maior. A diferença está no fato de que o importante na épica é o herói- um homem que é um modelo para todos os homens. Ao passo que a essência da maioria dos romances, como salientou :\!Iencken, reside na aniquilação de um homem, na degeneração do caráter. Isso nos leva a outra questão: o que pensamos da felicidade? O que pensamos da derrota e da vitória? Quando se fala hoje em dia num final feliz, as pessoas consideram-no uma simples concessão ao público ou uma estratégia comercial; consideram-no artificial. Mas por séculos os homens puderam acreditar sinceramente na felicidade e na vitória, embora percebessem a dignidade intrínseca da derrota. Por exemplo, quando se escrevia sobre o Velocino de Ouro (uma das velhas histórias da humanidade), leitores e ouvintes sabiam desde o início que o tesouro seria encontrado no final.
S6
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Bem, hoje em dia, se alguém Pmpreende uma aventura, sabemos que terminará em fracasso. Quando lemos- penso num exemplo que admiro- The Aspern papersH, sabemos que os papéis jamais serão encontrados. Quando lemos O castelo de Franz Kafka, sabemos que o homem jamais ingressará no castelo. Ou seja, não podemos realmente acreditar em felicidade e sucesso. E isso talvez seja uma das pobrezas de nosso tempo. Suponho que Kafka tenha sentido algo bem parecido quando quis que seus livros fossem d\estruídos: queria na verdade escrever um livro feliz e triunfante, e sentiu que não podia fazê-lo. Ele poderia tê-lo feito, é claro, mas as pessoas teriam percebido que ele não estava dizendo a verdade. Não a verdade dos fatos, mas a verdade dos seus sonhos. Ao final do século XVIII ou início do século XIX, digamos (não precisamos entrar em discussão de datas), o homem começou a inventar histórias. Talvez se possa dizer que a tentativa começou com Hawthorne e com Edgar Allan Poe, mas claro que há sempre precursores. Como salientou Rubén Darío, ninguém é o Adão literário. Ainda assim, foi Poe quem escreveu que a história deveria ser escrita em vista da última ftase, e um poema em vista do último verso. Isso degenerou na história de peripécias, e nos séculos
XVIII
e
XIX
as pessoas inventa-
ram toda espécie de enredos. Esses enredos às vezes são bem engenhosos. Se meramente narrados, são mais enge-
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
nhosos que os enredos dos épicos. Porém de alguma forma sentimos que há algo artificial neles- ou melhor, algo trivial. Se tomarmos dois cas'os- vamos supor a história de O médico e o monstro, de um lado, e, de outro, um romance ou um filme como Psicose-, talvez o enredo do segundo seja mais engenhoso, mas sentimos que há mais por trás do enredo de Stevenson. Voltando à idéia de que falei no início, a idéia de que há somente uns poucos enredos: talvez devêssemos mencionar aqueles livros nos quais o interesse não está no enredo, mas na alteração, na mudança de vários enredos. Estou pensando nas Mil e uma noites, em Orlando furioso etc. Pode-se acrescentar também a idéia de um tesouro maligno. É o que temos na Volsunga Saga 9 , e talvez no final do Beowulf- a idéia de um tesouro que acarreta o mal às pessoas que o encontram. Aqui talvez tenhamos chegado à idéia que tentei desenvolver em minha última palestra, sobre a metáfora- a idéia de que talvez todos os enredos pertençam somente a uns poucos modelos. Claro, hoje em dia as pessoas inventam tantos enredos que somos ofuscados por eles. :vias talvez esse acesso de inventividade esmoreça, e quem sabe então achemos que esses muitos enredos não passam de aparências de uns poucos enredos. Isso, contudo, não cabe a mim discutir. Há outro fato a ser notado: os poetas parecem esquecer que, outrora, o narrar uma história era essencial, e o
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
narrar uma história e o declamar o verso não eram pensados como coisas diversas. Um homem narrava uma história; cantava-a; e seus ouvintes não o tomavam como um homem empenhado em duas tarefas, mas antes como um homem empenhado numa tarefa que tinha dois aspectos. Ou talvez não sentissem que houvesse dois aspectos e considerassem a coisa toda como algo essencial. Chegamos agora ao nosso tempo e nos deparamos com esta circunstância um tanto esquisita: tivemos duas guerras mundiais, porém delas não surgiu, de um modo ou de outro, nenhuma épica- exceto talvez os Sete pila-
res da sabedoria 111 • !\os Sete pilares da sabedoria encontro muitas qualidades épicas. Mas o livro é tolhido pelo fato de que o herói é o narrador, e tem assim algumas vezes de se rebaixar, se fazer humano, se fazer crível demais. De fato, tem de cair nas armadilhas de um romancista. Há outro livro, hoje bastante esquecido, que li, acho eu, em 1915 -um romance chamado Le feu, de Henri Barbusse 11 • O autor era um pacifista; foi um livro escrito contra a guerra. Mas de algum modo a épica imiscuiu-se no livro (recordo uma investida de baioneta primorosa). Outro escritor que tinha senso épico era Kipling. É o que vemos numa história tão maravilhosa como "A Sahib's war". \1as do mesmo modo que Kipling nunca tentou o soneto, por pensar que isso podia indispô-lo com seus leitores, ele nunca tentou a épica, embora pudesse fazê-
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
lo. Também me ocorre Chesterton, que escreveu "The ballad of the white horse", um poema sobre as guerras do rei Alfredo contra os dinamarqueses. Kele encontramos metáforas bem estranhas (fico imaginando como fui esquecer de citá-las da última vez!) - , por exemplo, "marble like solid moonlight" [mármore como luar sólido], "gold like frozen fire" [ouro como fogo congelado], nas quais mármore e ouro são comparados a duas coisas que são ainda mais elementares 12 . São comparados a luar e fogo- e não ao fogo propriamente, mas a um fogo magicamente congelado. De certo modo, as pessoas estão famintas e sedentas de épica. Sinto que a épica é uma das coisas de que os homens precisam. Mais que todo outro lugar (e isso talvez soe como uma espécie de anticlímax), foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por todo o globo, quando as pessoas assistem a um faroeste- observando a mitologia de um cavaleiro, e o deserto, e a justiça, e o xerife, e os tiroteios etc.-, imagino que resgatem o sentimento épico, quer tenham consciência disso ou não. Afinal, ter consciência da coisa não é importante. Ora, não quero profetizar, porque tais coisas são perigosas (embora talvez se revelem verdadeiras com o tempo), mas acho que, se o narrar uma história e o cantar um verso pudessem se reunir outra vez, uma coisa muito importante talvez acontecesse. Talvez isso venha dos Es-
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
tados Unidos- já que, como vocf>s todos sabem, os Esta~ dos Unidos têm um senso ético para o certo e o errado. Quem sabe isso seja sentido em outros países, mas não imagino que possa ser encontrado de modo tão explícito como encontro aqui. Se isso pudesse ser alcançado, se
pu~
déssemos remontar à épica, algo muito importante seria obtido. Quando Chesterton escreveu "The ballad of the white horse", foi bem acolhido pela crítica e tudo o mais, porém os leitores não tomaram afeição pelo poema. De fato, quando pensamos em Chesterton, pensamos na saga do Father Bro,wn e não naquele poema. Só fui refletir sobre o assunto bem tarde na vida; e além disso, não sei se conseguiria experimentar a épica (embora tenha trabalhado em dóis ou três versos épicos). Isso cabe aos mais jovens fazer. E espero que o façam, porque todos sentimos, claro, que o romance está de um modo ou de outro em declínio. Pensem nos principais romances de nossa época- digamos, o Ulisses de Joyce. Ficamos sabendo de mil coisas sobre os dois personagens, porém não os conhecemos. Sabemos mais sobre as
per~
sonagens de Dante ou de Shakespeare, que nos vêmque vivem e morrem- em umas poucas frases. nhecemos mil circunstâncias sobre eles, mas os
Desco~
conhece~
mos intimamente. Isso, claro, é muito mais importante. Acho que o romance está em declínio. Acho que todos aqueles experimentos bastante ousados e
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O NARRAR UMA HISTÓRIA
interes~
santes com o romance- por exemplo, a idéia de deslocamento temporal, a idéia de a história ser contada por diferentes personagens-, todos eles conduzem ao momento em que o romance não estará mais entre nós. Mas existe algo com a história, com a narrativa, que sempre estará presente. Não creio que um dia os homens se cansarão de contar ou ouvir histórias. E se, junto com o prazer de nos ser contada uma história, tivermos o prazer adicional da dignidade do verso, então algo grandioso terá acontecido. Talvez eu seja um homem antiquado do século XIX, mas tenho otimismo, tenho esperança; e como o futuro comporta várias coisas- como o futuro comporta, talvez, todas as coisas-, acho que a épica voltará para nós. Creio que o poeta haverá de ser outra vez um fazedor. Quero dizer, contará uma história e também a cantará. E não consideraremos diversas essas duas coisas, tal como não pensamos que são diversas em Homero ou em Virgílio.
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
4 Música da Palavra e Tradução
Em favor da clareza, atenho-me agora ao problema da tradução poética. Um problema menor, mas também muito relevante. Essa discussão nos deve abrir um caminho para o tópico da música da palavra (ou talvez da magia da palavra), do sentido e do som na poesia. Segundo uma superstição amplamente difundida, todas as traduções traem os seus inigualáveis originais. Isso é expresso pelo conhecido trocadilho italiano, "Traduttore, traditore", que se julga irretorquível. Sendo esse trocadilho bastante popular, há de existir um núcleo de verdade, um âmago de verdade, oculto em seu interior. Vamos entrar na discussão das possibilidades (ou não) e do sucesso (ou não) da tradução poética. Segundo meu hábito, começa~emos com alguns exemplos, pois acho que nenhuma discussão pode ser levada adiante sem exemplos. Já que a minha memória costuma ser muito afeita ao esquecimento, adotarei exemplos breves. Estaria além de nosso tempo e de minha capacidade analisar estrofes ou poemas inteiros. Começaremos com a Ode de Brunanburh e sua tradução por Tennyson. Essa ode (minhas datas são bastante instáveis) foi composta no início do século x para celebrar a vitória da gente de Wessex contra os vikings de Dublin, os escoceses e os galeses. Passemos ao exame de um ou dois versos. No original, encontramos algo mais ou menos assim: "sunne up ret morgentid mrere
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
tungol". Ou seja, "o sol na maré matinal" ou "na hora matinal", e depois "aquela famosa estrela" ou "aquela poderosa estrela"- mas aqui "famosa" seria uma tradução melhor ("mrere tungol"). O poeta segue falando do sol como "godes candel beorht"- "uma cintilante vela de Deus". Essa ode foi vertida em prosa inglesa pelo filho de Tennyson; foi publicada numa revista 1. O filho provavelmente explicou ao pai algumas das regras fundamentais do verso inglês antigo- acerca de sua cadência, seu uso da aliteração em vez da rima etc. Tennyson, que tinha muito gosto por experimentos, treinou sua mão escrevendo poemas do inglês antigo em inglês moderno. É digno de nota observar que, embora o experimento tenha sido bastante bem-sucedido, o poeta nunca mais tornou a ele. Assim, se estivéssemos buscando poemas em inglês antigo nas obras do lorde Alfred Tennyson, teríamos de nos contentar com aquele único exemplo ilustre, a Ode de Brunanburh. Esses dois fragmentos- "o sol, aquela famosa estrela" e "o sol, a cintilante vela de Deus" ("godes candel beorht")- foram traduzidos assim por Tennyson: "when first the great/Sun-star o f morning-tide" [quando primeiro a grande/Estrela-sol da maré-da-manhã]2. Ora, "sun-star of morning-tide" é, a meu ver, uma tradução admirável. É ainda mais saxão que o original, já
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
que temos duas palavras germânicas compostas: "sunstar" e "morning-tide". E embora "morning-tide", é claro, possa facilmente ser explicada como "morning-time" [hora-da-manhã], podemos pensar também que Tennyson queria nos sugerir a imagem da aurora inundando o céu. Assim, o que temos é uma expressão bem esquisita: "when first the great/Sun-star of morning-tide". E então um verso adiante, quando Tennyson chega à "cintilante vela de Deus", ele a traduz como "Lamp of the Lord God" [Lâmpada do Senhor Deus]. Tomemos agora outro exemplo, não só uma tradução impecável, mas também elegante. Dessa vez vamos considerar uma tradução do espanhol. Trata-se domaravilhoso poema "Noche oscura del alma" [Noite escura da alma], escrito no século
XVI
por um dos maiores-
podemos dizer com segurança o maior dos- poetas espanhóis, de todos aqueles que usaram a língua espanhola para os propósitos da poesia. Refiro-me, é claro, a San Juan de la Cruz. A primeira estrofe diz assim: Rn una noche oscura con ansias en amores inflamada jO
dichosa ventura!
salí sin ser notada estando ya mi casa sosegada 3 .
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
Uma estrofe maravilhosa.
~as
se considerarmos o
último verso destacado de seu contexto e tomado em si mesmo (claro, não nos é permitido fazer isso), trata-se de um verso indistinto: "estando ya mi casa sosegada". Temos o som um tanto sibilante dos três sem "casa sosegada". E "sosegada" está longe de ser uma palavra notável. Não estou tentando desmerecer o texto. Estou meramente salientando (e em breve vocês verão por que o faço) que o verso tomado em si mesmo, destacado de seu contexto, é bem pouco extraordinário. Esse poema foi traduzido para o inglês por Arthur Symons no final do século
XIX.
A tradução não é boa, mas
se tiverem interesse, poderão encontrá-la no Oxjord book of modern verse de Yeats 4 . Alguns anos atrás um grande poeta escocês que é também sul-africano, Roy Campbell, ensaiou uma tradução da "Noite escura da alma". Gostaria de ter o livro comigo; mas vamos nos ater ao verso que acabei de citar, "estando ya mi casa sosegada", e ver o que Roy Capmbelllogrou fazer. Ele o traduziu assim: "When all the house was hushed" 1 . Temos aqui a palavra "all", que confere um sentido de espaço, um sentido de vastidão, ao verso. E depois a bela, a adorável palavra inglesa "hushed". "Hushed" parece nos dar algo da própria música do silêncio. Acrescentarei a esses dois exemplos bem propícios à arte da tradução um terceiro. Este eu não discutirei, já
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
que não é um caso de verso vertido para verso, mas antes de prosa sendo alçada a verso, a poesia. Temos aquele bordão latino (herdado dos gregos, claro), "Ars longa, vi ta brevis"
~ou,
como suponho tenhamos de pronun-
ciar, "ui ta breuis". (Algo sem dúvida muito feio. Tornemos a "vita brevis" ~a "Virgílio" e não a "Uirgilius".) Temos aqui uma declaração direta, uma declaração de opinião. Uma frase direta, de sentido evidente. Não remete a nada mais profundo. De fato, é uma espécie de profecia do telegrama e da literatura por ele originada. "A arte é longa, a vida é breve." Esse bordão foi repetido inúmeras vezes. Então, no século translateur" 6 ,
"um grande
tradutor"~
XIV,
"un grand
mestre Geoffrey
Chaucer ~precisou desse verso. Claro, ele não estava pensando na medicina; estava pensando talvez na poesia. Mas talvez (não tenho o texto comigo, então podemos escolher), talvez estivesse pensando no amor e quisesse trabalhar esse verso. Ele escreveu: "The life so short, the craft so long to learn" [A vida tão breve, o ofício tão longo de aprender] ~ou, como podem supor que ele tenha pronunciado, "The lyf so short, the craft so long to lerne" 7 . Aqui temos não só a declaração, mas também a própria música do pesar. Podemos ver que o poeta não está simplesmente pensando na árdua arte e na brevidade da vida; também está sentindo. Isso é dado pela palavra-chave aparentemente invisível, inaudível
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
- a palavra "so" [tão]. "The lyf so short, the craft so long to lerne." Voltemos aos dois primeiros exemplos: a famosa ode de Brunanburh e Tennyson, e a "Noche oscura del alma" de San Juan de la Cruz. Se considerarmos as duas traduções que citei, elas não são inferiores ao original, porém sentimos que há uma diferença. A diferença está além do que o tradutor pode fazer; depende, antes, do modo como lemos poesia. Pois se olharmos em retrospectiva para a Ode de Brunanburh, sabemos que ela nasceu de profunda emoção. Sabemos que os saxões haviam sido derrotados inúmeras veze pelos dinamarqueses e que eles odiavam isso. E temos de pensar na alegria sentida pelos saxões ocidentais depois de uma das maiores batalhas na história medieval da Inglaterra- eles derrotaram Olaf, o rei dos vikings de Dublin, e os odiados escoceses e galeses. Pensamos no que sentiram; pensamos no homem que escreveu a ode. Talvez fosse um monge. Mas o que importa é que, em vez de agradecer a Deus (no estilo ortodoxo), ele agradeceu à espada de seu rei e à espada do príncipe Edmund pela vitória. Ele não diz que Deus lhes afiançou a vitória; diz que venceram "swordda edgiou"- "pelo gume de suas espadas". O poema inteiro está repleto de alegria feroz, inclemente. Ele zomba daqueles que foram derrotados. Fala do rei e do irmão regressando a sua própria Wessex- a sua
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÀO
própria "West-Saxonland", como diz Tennyson (cada qual "went to his own West-Saxonland, glad of the war") [foi para sua própria Saxônia Ocidental, feliz com a guerra]K. Depois disso, remonta aos primórdios da história inglesa; pensa nos homens que vieram da Jutlândia, em Hengist e Horsa 9. O que é muito esquisito- não suponho que muitos tivessem tal senso histórico na Idade Média. Assim, temos que pensar o poema como fruto da emoção profunda. Temos que pensá-lo como uma irrupção da grande poesia. Quando lemos a versão de Tennyson, por mais que a admiremos (e eu a conheci antes de conhecer o original saxão), pensamos nela como um bem-sucedido experimento em verso do inglês antigo forjado por um mestre do verso em inglês moderno; ou seja, o contexto é diferente. Claro, o tradutor não deve ser recriminado por isso. O mesmo ocorre no caso de San Juan de la Cruz e Roy Campbell: podemos pensar (como suponho nos seja permitido) que "when all the house was hushed" é verbalmente- do ponto de vista da mera literatura- superior a "estando ya mi casa sosegada". Mas isso de nada vale no tocante a nosso julgamento das duas obras, o original espanhol e a versão inglesa. No primeiro caso, San Juan de la Cruz, pensamos que ele atingiu a mais sublime experiência de que a alma de um homem é capaza experiência dos êxtases, da fusão de uma alma humana
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
com a alma da divindade, com a alma do Ente Supremo, de Deus. Depois de ter tido essa experiência inefável, precisava comunicá-la de algum modo em metáforas. Aí encontrou à mão o "Cântico dos cânticos", e tomou (muitos místicos assim fizeram) tomou a imagem do amor sexual como uma imagem para a união mística entre o homem e o seu deus, e escreveu o poema. Portanto, estamos ouvindo- ouvindo por acaso, podemos dizer, como no caso do saxão- as próprias palavras que ele proferiu. Passamos depois à tradução de Roy Campbell. Achamos boa, mas talvez nos inclinemos a pensar: "Bem, o escocês fez, afinal, um trabalho e tanto". Isso, claro, é diferente. Quer dizer, a diferença entre uma tradução e o original não é a diferença dos próprios textos. Suponho que, se não soubéssemos qual era o original e qual era a tradução, poderíamos julgá-los com eqüidade. Mas, infelizmente, não podemos. E assim a obra do tradutor sempre é tida como inferior- ou, o que é pior, é sentida como inferior- ainda que, verbalmente, a versão seja tão boa quanto o texto. Chegamos agora a outro problema: o problema da tradução literal. Quando falo de traduções "li ter ais", uso uma metáfora abrangente, já que, se uma tradução não pode ser fiel palavra por palavra ao original, pode ainda menos ser fiel letra por letra. No século
XIX,
um mestre de
grego bastante esquecido, Newman, ensaiou uma tradu-
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
ção literal de Homero em hexâmetros 10. Era seu propósito publicar uma tradução "contra" o Homero de Pope. Usou expressões como "wet waves" [ondas molhadas], "winedark sea" [mar vinho-escuro] etc. Ora, Matthew Arnold tinha suas próprias teorias sobre traduzir Homero. Quando o livro do senhor Newman veio a lume, ele o resenhou. :Kewman lhe respondeu; Matthew Arnold replicou. Podemos ler essa discussão bastante acalorada e inteligente nos ensaios de Matthew Arnold. Ambos tinham muito a dizer sobre os dois lados da questão. Newman imaginava que a tradução literal era mais fiel. Matthew Arnold inaugurou uma teoria sobre Homero. Disse que, em Homero, várias qualidades eram encontradas- clareza, nobreza, simplicidade etc. Pensava que um tradutor devia sempre transmitir a impressão dessas qualidades, mesmo quando o texto não as confirmasse. Matthew Arnold salientou que uma tradução literal contribuía para o estranhamento e a bizarria. Por exemplo, nas línguas românicas, não dizemos "It is cold"-dizemos "It makes cold": "Il fait froid", "Fa freddo", "Hace frío" etc. Porém não acho que se deva traduzir "Il fait froid" por "It makes cold". Outro exemplo: em inglês se diz "Good morning" e, em espanhol, "Buenos días" ("Good days"). Se "Good morning" fosse traduzido por "Buena mafíana", sentiríamos tratarse de uma tradução literal, mas dificilmente fiel.
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
Matthew Arnold assinalou que, se um texto for traduzido literalmente, são criadas ênfases falsas. Não sei se ele topou com a tradução das Mil e uma noites do capitão Burton; talvez o tenha feito tarde demais. Pois Burton traduz Quitab alif laila wa laila como Book oj the thou-
sand nights anda night [Livro das mil noites e uma noite], em vez de Book oj the thousand and one nights [Livro das mil e uma noites]. Essa tradução é literal. É fiel, palavra por palavra, ao árabe. Porém é falsa no sentido de que as palavras "livro das mil noites e uma noite" são uma fórmula comum em árabe, enquanto em inglês temos um ligeiro choque de surpresa. E isso, claro, não era pretendido pelo original. :\1atthew Arnold aconselhou o tradutor de Homero a ter uma Bíblia à mão. Disse que a Bíblia em inglês podia ser uma espécie de modelo para a tradução de Homero. Porém se Matthew Arnold tivesse examinado de perto sua Bíblia, talvez tivesse visto que a Bíblia inglesa está cheia de traduções literais e que parte da grande beleza da Bíblia inglesa está nessas traduções literais. Por exemplo, na Bíblia inglesa temos "a tower of strength" [uma torre de vigor]. Essa expressão é traduzida, supõe-se, por Lutero como "eine feste Burg"- "um possante (ou um firme) baluarte". Temos ainda "song of songs" [o cântico dos cânticos]. Li em Frei Luis de León que os hebreus não tinham superlativos, daí não poderem
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
dizer "o mais sublime dos cânticos" ou "o melhor dos cânticos". Diziam "cântico dos cânticos", tal como poderiam ter dito "o rei dos reis" para "o imperador" ou "o mais sublime dos reis"; ou "a lua das luas" para "a mais sublime das luas"; ou "a noite das noites" para a mais abençoada das noites. Se compararmos a versão inglesa "song of songs" com a alemã de Lutero, vemos que Lutero, que pouco ligava para a beleza, que simplesmente queria que os alemães compreendessem o texto, traduziu-a como "das hohe Lied", "a, elevada canção". Assim, descobrimos que essas duas traduções literais servem à beleza. De fato, pode-se dizer que traduções literais contribuem não só, como salientou Matthew Arnold, para o estranhamento e a bizarria, mas também para a singularidade e a beleza. Isso, a meu ver, é sentido por todos nós; pois se examinamos uma versão literal de algum poema exótico, esperamos algo estranho. Se não encontramos, ficamos meio desiludidos. Vamos agora a uma das mais notáveis e famosas traduções inglesas. Refiro-me, claro, ao Rubáiyát de Ornar Khayyám traduzido por FitzGerald 11 • A primeira estrofe diz assim: Awake! For morning in the bowl of night Has flung the stone that puts the stars to flight;
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
And, lo! The hunter of the East has caught The Sultan's turret in a daze of light.
[Acordem! Pois a manhã na gamela da noite Lançou a pedra que põe as estrelas em fuga; E vejam! O caçador do leste apanhou O torreão do sultão num deslumbre de luz.]
Como sabemos, o livro foi descoberto numa livraria por Swinburne e Rossetti. Que foram tomados pela sua beleza. Não tinham a menor notícia de Edward FitzGerald, um incógnito homem de letras. Ele treinara a mão traduzindo Calderón e o Parlamento dos pássaros de Farid al-Din Attar; não ficaram muito bons, esses livros. E sobreveio então este livro famoso, agora um clássico. Rossetti e Swinburne perceberam a beleza da tradução, porém nos perguntamos se teriam percebido essa beleza caso FitzGerald apresentasse o Rubáiyát como um original (em parte era· original), e não como uma tradução. Será que pensariam fosse permitido a FitzGerald dizer , "Awake! For morning in the bowl of night/Has flung the stone that puts the stars to flight"? (O segundo verso nos remete a uma nota de rodapé que explica que lançar uma pedra numa gamela é o sinal para a partida da caravana.) E me pergunto se seria permitido a Fitz75
MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
Geraldo "noose of light" e o "sultan's turret" num poema de sua autoria. Mas penso que podemos nos deter em segurança num único verso- um verso encontrado numa das outras estrofes: Dreaming when dawn's left hand was in the sky I heard a voice within the tavern cry, "Awake my little ones, and fill the cup Before life's liquor in its cup be dry".
[Sonhando quando a mão esquerda da aurora estava no céu, Ouvi uma voz gritar dentro da taverna, "Acordem, meus pequenos, e encharn a taça Antes que a bebida da vida em sua taça esteja seca.]
Vamos nos deter no primeiro verso: "Sonhando quando a mão esquerda da aurora estava no céu". Claro, a palavra -chave nesse verso é a palavra "esquerda". Tivesse sido usado qualquer outro adjetivo, o verso perderia o sentido. Mas "mão esquerda" nos faz pensar em algo estranho, em algo sinistro. Sabemos que a mão direita é associada a "direito"- em outras palavras, a "retidão", a "direto" etc.- enquanto aqui temos a agourenta palavra "esquerda". Recordemos a expressão espanhola "lan-
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
zada de modo izquierdo que atraviese el corazón"- a idéia de algo sinistro. Sentimos que existe algo impalpavelmente errado com "a mão esquerda da aurora". Se o persa estava sonhando quando a mão esquerda da aurora estava no céu, seu sonho poderia virar um pesadelo a qualquer instante. E disso temos vaga consciência; não precisamos nos demorar na palavra "esquerda". Pois a palavra "esquerda" faz toda a diferença- tão delicada e tão misteriosa é a arte do verso. Aceitamos "Dreaming when dawn's left hand was in the sky" porque supomos que haja um original persa por trás. Que eu saiba, Ornar Khayyám não corrobora FitzGerald. Isso nos leva a um interessante problema: uma tradução literal criou uma beleza toda sua. Sempre quis saber a origem das traduções literais. Hoje em dia temos gosto por traduções literais; aliás, muitos de nós só aceitam traduções literais, porque queremos dar a cada um o que é seu. Isso teria parecido um
crime aos tradutores em épocas passadas. Eles pensavam em algo bem mais valioso. Queriam provar que o vernáculo era capaz de um grande poema como o original. E suponho que don Juan de Jáuregui, ao verter Lucano para o espanhol, também tenha pensado nisso. 1'\ão acho que um contemporâneo de Pope pensasse em Homero e em Pope. Suponho que os lel.tores- os melhores leitores, pelo menos- pensavam no poema em si mesmo.
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
Estavam interessados na Ilíada e na Odisséia, e não ligavam para ninharias verbais. Ao longo de toda a Idade Média, as pessoas pensavam a tradução não em termos de uma versão literal, mas em termos de algo sendo recriado. De um poeta, tendo lido uma obra, desenvolver essa obra a partir de si mesmo, de sua própria força, das possibilidades até ali conhecidas de sua língua. Como surgiram as traduções literais? Não acho que resultem da erudição; não acho que resultem de escrúpulos. Acho que tiveram uma origem teológica. Pois embora as pessoas considerassem Homero o maior dos poetas, sabiam que Homero era humano ("quandoque dormitat bonus Homerus" etc. 12), e podiam assim remodelar suas palavras. Mas quando se tratou de traduzir a Bíblia, a coisa mudou de figura, porque se julgava que a Bíblia fora escrita pelo Espírito Santo. Se pensamos no Espírito Santo, se pensamos na infinita inteligência de Deus empreendendo uma tarefa literária, não nos é permitido pensar em nenhum elemento casual- em nenhum elemento fortuito- em sua obra. Kão- se Deus escreve um livro, se Deus se digna à literatura, então cada palavra, cada letra, como dizem os cabalistas, há de ter o seu propósito. E pode ser blasfêmia se intrometer no texto escrito por uma inteligência infinita, eterna. Portanto, acho que a idéia de uma tradução literal proveio das traduções da Bíblia. Esse é apenas um palpite 78
ESSE OFÍCIO 00 VERSO
(imagino que haja aqui muitos especialistas que podem me corrigir se eu estiver errado), mas acho ser altamente provável. Quando traduções bastante idôneas da Bíblia foram empreendidas, começou-se a sentir que havia uma beleza nos modos alheios de expressão. Agora todos têm muito gosto por traduções literais, porque uma tradução literal sempre nos dá aquelas pequenas sacudidelas de surpresa pelas quais esperamos. De fato, pode-se dizer que não se precisa de original algum. Dia virá, talvez, em que a tradução será considerada como algo em si mesmo. Podemos pensar nos Sonnets from the Portuguese de Elizabeth Barrett Browning. De vez em quando eu ensaiava uma metáfora um tanto ousada, mas via que ninguém a aceitaria se viesse de mim (sou um reles contemporâneo), e assim a atribuía a algum remoto persa ou nórdico. Aí meus amigos diziam que ela era um primor; e eu nunca lhes contava, claro, que eu a inventara, pois gostava da metáfora. Afinal de contas, os persas ou nórdicos podem ter inventado essa metáfora, ou outras tanto melhores. Assim, voltamos ao que disse no início: que uma tradução nunca é julgada verbalmente. Deveria ser julgada verbalmente, mas nunca é. Por exemplo (e espero que não pensem que esteja proferindo uma blasfêmia), examinei com muito cuidado (mas isso foi quarenta anos atrás, e posso alegar os equívocos de juventude) as Fleurs du mal
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
de Baudelaire e as Blumen des Bosen de Stefan George. É óbvio que Baudelaire foi melhor poeta que Stefan George, mas Stefan George era um artífice bem mais hábil. Creio que, se compararmos verso por verso, consideraríamos a
Umdichtung de Stefan George (essa é uma bela palavra alemã que significa, não um poema traduzido de outro, mas um poema tecido ao redor de outro; temos também
Nachdichtung, um "pós-poema", uma tradução; e Übersetzung, uma simples tradução)- consideraria a tradução de Stefan George um livro talvez melhor que o de Baudelaire. :\!Ias é claro que isso de nada serve a Stefan George, já que as pessoas interessadas em Baudelairee eu fui muito interessado em Baudelaire- pensam em suas palavras como vindas dele; quer dizer, pensam no contexto de toda a sua vida. Já quanto a Stefan George, temos um poeta do século
XX
-eficiente, mas algo pc-
dantesco- vertendo as próprias palavras de Baudelaire para um outro idioma, o alemão. Falei do presente. Disse que estamos carregados, sobrecarregados pelo nosso sentido histórico. Kão conseguimos examinar um texto antigo como o fariam os homens da Idade Média ou da Renascença ou mesmo do século XVIII.
Agora nos preocupam as circunstâncias; queremos
saber exatamente o que Homero quis dizer quando escreveu sobre o "wine-dark sea" (se é que "wine-dark sea" é a tradução correta; não sei). :\!Ias se nos inclinamos sobre
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ESSE OFÍCIO DO VERSO
a história, acho que talvez possamos supor que chegará o dia em que os homens não terão mais ciência da história como nós. Chegará o dia em que os homens cuidarão muito pouco dos acidentes e circunstâncias da beleza; cuidarão da beleza em si mesma. Talvez não cuidem sequer dos nomes ou das biografias dos poetas. E isso tudo com largueza, se pensarmos que há nações inteiras que pensam assim. Por exemplo, não acredito que na Índia as pessoas tenham um sentido da história. Uma das pedras no sapato dos europeus que escrevem ou escreveram histórias da filosofia indiana é que toda a filosofia é vista como contemporânea pelos indianos. Ou seja, eles estão interessados nos próprios problemas, não no mero fato biográfico ou histórico, cronológico. Que fulano era mestre de sicrano, que veio antes, que escreveu sob tal influência- todas essas coisas não são nada para eles. Eles se importam com o enigma do universo. Suponho que, numa época futura (e espero que ela não tarde), os homens se importarão com a beleza, não com as circunstâncias da beleza. Aí teremos traduções não só tão boas (já as temos) mas tão famosas como o Homero de Chapman, como o Rabelais de Urquhart, como a Odis-
séia de Pope 1'>. Acho que esse é um resultado a ser fervorosamente desejado.
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MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
5 Pensamento e Poesia
Walter Pater escreveu que toda arte aspira à condição da música 1 • A razão óbvia (falo na condição de leigo, é claro) seria que, em música, forma e substância não podem ser cindidas uma da outra. Melodia, ou qualquer peça musical, é um modelo de sons e pausas que se desdobram no tempo. A melodia é simplesmente o modelo- as emoções da qual ela brotou e as emoções que ela desperta. O crítico austríaco Hanslick 2 escreveu que a música é o idioma que podemos usar, que podemos entender, mas que somos incapazes de traduzir. No caso da literatura, e especialmente da poesia, o caso parece ser exatamente o oposto. Podemos contar o enredo de Letra escarlate a um amigo nosso que não a leu, e suponho que possamos até relatar o modelo, a moldura, o enredo, digamos, do soneto "Leda e o cisne" de Yeats. De modo que acabamos tomando a poesia como uma arte bastarda, como sendo algo híbrido. Robert Louis Stevenson falou também dessa suposta natureza dupla da poesia. Ele diz que, num certo sentido, a poesia é mais próxima ao homem comum, ao homem das ruas. Pois o material da poesia são as palavras, e essas palavras são, diz ele, o próprio dialeto da vida. As palavras são usadas para os corriqueiros propósitos diários e são o material do poeta, tal como os sons são o material do músico. Stevenson fala das palavras como sendo simples blocos, simples utensílios. E admira-se
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com o poeta, capaz de urdir esses símbolos rígidos destinados a propósitos corriqueiros ou abstratos num modelo por ele chamado "the web" [a tramap. Se aceitarmos o que diz Stevenson, temos uma teoria poética- uma teoria das palavras sendo feitas pela literatura para servir de algo além do seu uso intencional. As palavras, diz Stevenson, são destinadas ao comércio habitual do dia-a-dia, e o poeta de algum modo as converte em algo mágico. Suponho concordar com Stevenson, mas acho que ele talvez pudesse ser contestado. Sabemos que aqueles solitários e admiráveis nórdicos, em suas elegias, foram capazes de nos transmitir sua solidão, sua coragem, sua lealdade, seu sentimento pelos inóspitos mares e pelas inóspitas guerras. Porém suponho que esses homens, escritores desses poemas que nos parecem tão próximos e atravessam os séculos- sabemos que esses homens teriam grandes dificuldades se tivessem de conceber algo em prosa. Esse é o caso até mesmo do rei Alfredo. Sua prosa é direta; é eficiente para os seus propósitos; mas não desperta algo mais profundo. Ele nos conta uma história- a história pode ser interessante ou não, nada mais; ao passo que há contemporâneos dele que escreveram poesia que ainda ecoa, poesia que ainda é muito viva. Seguindo um argumento histórico (claro, tomei esse exemplo a esmo; ele pode ser confrontado pelo mundo afora), descobrimos que as palavras não começaram abs-
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tratas, mas concretas- e acredito que, nesse caso, "concretas" signifique quase o mesmo que "poéticas". Consideremos uma palavra como "dreary" [lúgubre]: a palavra "dreary" significava "bloodstained" [manchado de sangue]. De modo semelhante, a palavra "glad" [alegre] significava "polished" [polido], e a palavra "threat" [ameaça] significava "a threatening crowd" [uma multidão ameaçadora]. Essas palavras que agora são abstratas já tiveram um forte significado. Podemos seguir com outros exemplos. Tomemos a palavra "thunder" [trovão] e olhemos em retrospecto para o deus Thunor, o equivalente saxão do Thor nórdico. A palavra puno r exprimia o trovão e o deus; mas tivéssemos perguntado aos homens que chegaram à Inglaterra com Hengist se a palavra exprimia o estrondo no céu ou o deus colérico, não acho que seriam argutos o suficiente para compreender a diferença. Imagino que a palavra carregava ambos os sentidos sem se comprometer muito a fundo com nenhum deles. Imagino que, quando proferiam ou escutavam a palavra "thunder", ao mesmo tempo ouviam o grave estrondo no céu e viam o raio e pensavam no deus. As palavras eram envoltas em mágica; não tinham um significado estanque. Portanto, ao falarmos de poesia podemos dizer que ela não faz o que Stevenson pensava- a poesia não tenta pegar um conjunto de moedas lógicas e transformá-las
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em mágica. Mas ela trata de levar a linguagem de volta às fontes. Lembrem que Alfred North Whitehead escreveu que, entre as muitas falácias, há a falácia do dicionário perfeito- a falácia de pensar que, para cada percepção dos sentidos, para cada asserção, para cada idéia abstrata, pode-se encontrar um equivalente, um símbolo exato, no dicionário. E o próprio fato de as línguas serem diferentes nos faz suspeitar que isso não exista. Por exemplo, em inglês (ou melhor, entre os escoceses) temos palavras como "eerie" e "uncanny" [algo como "soturno", "sinistro"]. Essas palavras não são encontradas em outras línguas. (Bem, temos sim, é claro, o alemão
unheimlich.) Por que isso? Porque quem falava outras línguas não tinha necessidade dessas palavras- imagino que uma nação desenvolve as palavras de que necessita. Essa observação, feita por Chesterton (creio que em seu livro sobre Watts 4), equivale a dizer que uma língua não é, como somos levados a supor pelo dicionário, a invenção de acadêmicos ou filólogos. Ao contrário, ela foi desenvolvida através do tempo, através de um longo tempo, por camponeses, por pescadores, por caçadores, por cavaleiros. Não veio das bibliotecas; veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da aurora. Assim, temos na língua o fato (e isso me parece óbvio) de que as palavras começaram, em certo sentido, como mágica. Talvez tenha havido um momento em que a
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palavra "light" [luz] parecia lampejar e a palavra "night" [noite] era escura. No caso de "noite", podemos presumir que, de início, ela representava a própria noitesua escuridão, suas ameaças, as estrelas cintilantes. Então, depois de tanto tempo, passamos ao sentido abstrato da palavra "noite"- o período entre o crepúsculo do corvo (como diziam os hebreus) e os crepúsculo da pomba, o princípio do dia. Já que falamos dos hebreus, podemos encontrar um exemplo adicional no misticismo judeu, na cabala. Para os judeus, parecia óbvio que havia um poder nas palavras. Essa é a idéia por trás de todas as histórias de talismãs, de abracadabras- histórias a serem encontradas nas Mil e uma noites. Eles lêem no primeiro capítulo da Torá: "Deus disse: 'Que se faça a luz', e fez-se a luz". Assim, lhes parecia óbvio que na palavra "luz" houvesse uma força suficiente para fazer com que a luz brilhasse por todo o mundo, uma força suficiente para engendrar, para gerar luz. Andei pensando nesse problema do pensamento e do sentido (um problema, é claro, que não irei solucionar). Falamos anteriormente sobre o fato de que, em música, não se pode cindir o som, a forma, da substância- que de fato elas são a mesma coisa. E pode-se suspeitar que, até certo ponto, o mesmo acontece na poesia. Consideremos dois fragmentos de dois grandes poetas. O primeiro é de um poemeto do grande poeta irlandês
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vVilliam Butler Yeats: "Bodily decrepitude is wisdom; young/We loved each other and were ignorant" [Decrepitude física é sabedoria; jovens,/Amávamos um ao outro e éramos ignorantes V Aqui encontramos a princípio uma afirmação: "Bodily decrepitude is wisdom". Isso, claro, poderia ser lido com ironia. Yeats sabia muito bem que podemos atingir a decrepitude física sem atingir a sabedoria. Suponho que a sabedoria seja mais importante que o amor; e o amor, que a mera felicidade. Há um quê de trivial na felicidade. Temos uma declaração sobre a felicidade na outra parte da estrofe. "Bodily decrepitude is wisdom; young/We loved each other and were ignorant." Tomo agora um verso de George Meredith. Diz assim: "Kot till the fire is dying in the grate/Look we for any kinship with the stars" [Não até o fogo estar morrendo na lareira/Buscamos nós alguma afinidade com as estrelas] 6 . À primeira vista, essa declaração é falsa. A idéia de que todos nós somente nos inter,essamos pela filosofia quando estamos quites com a volúpia físicaou quando a volúpia está quite conosco- é, a meu ver, falsa. Sabemos de muitos jovens filósofos apaixonados; pensem em Berkeley, em Spinoza e em Schopenhauer. Porém isso é irrelevante. O que realmente importa é o fato de que ambos os fragmentos- "Bodily decrepitude is wisdom; young/We loved each other and were ignorant" e o de Meredith, "Not till the fire is dying in the
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grate/Look we for any kinship w1th the stars", tomados de forma abstrata, significam praticamente o mesmo. Porém suscitam sentimentos diversos. Quando nos é dito -ou quando agora lhes digo -,que significam o mesmo, vocês todos sentem instintiva e acertadamente que isso é irrelevante, que os versos na verdade são diferentes. Suspeitei muitas vezes que o sentido é, na verdade, algo acrescentado ao verso. Tenho plena convicção de que sentimos a beleza de um poema antes mesmo de começarmos a pensar num sentido. Não sei se já citei um exemplo de um dos sonetos de Shakespeare. Diz assim: The mortal moon hath her eclipse endured, And the sad augurs mock their own presage; lncertainties now crown themselves assured, And peace proclaims olives of endless age 7 .
[A lua mortal resistiu a seu eclipse, E os tristes augúrios zombam do próprio presságio; Incertezas agora se coroam asseguradas, E a paz proclama oliveiras de idade infinda.]
Ora, se descermos às notas de rodapé, descobrimos que os primeiros dois versos- "The mortal moon hath her eclipse endúred,/ And the sad augurs mock their own presage"- pretendem ser uma alusão à rainha 89
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Elizabeth- a Rainha Virgem, a célebre rainha comparada pelos poetas da corte à Diana, a casta, a donzela. Imagino que, ao escrever esses versos, Shakespeare tinha as duas luas em mente. Tinha a metáfora da "lua, a Rainha Virgem", e não acredito que pudesse deixar de pensar na lua do céu. O que quero dizer é que não precisamos nos comprometer com um sentido- com nenhum dos dois sentidos. Sentimos os versos antes de adotarmos esta, aquela, ou ambas as hipóteses. "The mortal moon hath her eclipse endured,/ And the sad augurs mock their own presage" carrega, ao menos para mim, uma beleza muito além do simples fato de como é interpretado. Há versos, é claro, que são belos e sem sentido. Porém ainda assim têm um sentido- não para a razão, mas para a imaginação. Permitam-me tomar um exemplo bem simples: "Two red roses across the moon" [Duas rosas vermelhas atravessadas na lua] 8 . Aqui talvez se diga que o significado é a imagem conferida pelas palavras; mas para mim, pelo menos, não há imagem definida. Há um prazer nas palavras e, claro, na cadência das palavras, na música das palavras. E tomemos outro exemplo de William Morris: "'Therefore', said fair Yoland of the flowers" (fair Yoland é uma bruxa), '"This is the tune of Seven Towers"' ['Portanto', disse a bela Yoland das flores, 'esta é a música das Sete Torres'] 4 . Estes versos
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foram destacados de seu contexto, e ainda assim acho que subsistem. De algum modo, embora eu adore o inglês, quando rememoro versos ingleses sinto que minha língua, o espanhol, está me chamando. Gostaria de citar alguns versos. Se vocês não os entenderem, talvez se consolem pensando que eu tampouco os entendo, que eles não têm sentido. É com formosura, de um modo adorável, que não têm sentido; não são destinados a ter nenhum sentido. São daquele poeta boliviano caído no esquecimento, Ricardo Jaimes Freire- um amigo de Darío e de Lugones. Ele os escreveu na última década do século XIX.
Gostaria de recordar o soneto inteiro- imagino
que algo de sua qualidade sonora chegaria até vocês. Mas não é preciso. Penso que estes versos sejam suficientes. Dizem eles: Peregrina paloma imaginaria Que enardeces los últimos amores Alma de luz, de música y de flores Peregrina paloma imaginaria 10 .
Eles não significam nada, não se destinam a significar nada; e ainda assim subsistem. Subsistem como algo belo. Eles são- ao menos para mim- inesgotáveis. E agora, já que citei Meredith, tomarei outro exem-
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plo. Esse exemplo é diferente dos demais, já que comporta um sentido; temos a convicção de que corresponde a uma experiência do poeta. E, ainda assim, tivéssemos de apontar a origem dessa experiência, ou se o poeta fosse nos contar como chegou a esses versos, como os obteve, ficaríamos na dúvida. Os versos são: Love, that had robbed us of immortal things, This little movement mercifully gave, Where I have seen across the twilight wave The swan sail with her young beneath her wings 11 .
[O amor, que nos roubara de coisas imortais, Deu clemente este breve movimento, Em que vi por entre a onda crepuscular O cisne navegar com sua cria debaixo das asas.]
Encontramos no primeiro verso uma reflexão que talvez nos soe estranha: "O amor, que nos roubara de coisas imortais"- não (como bem podíamos supor) "o amor, que nos fizera dádiva de coisas imortais". Não: "O amor, que nos roubara de coisas imortais,/Deu clemente este breve movimento". Somos levados a sentir que ele fala de si mesmo e de sua amada. "Where I have seen across the twilight wave/The swan sail with her young beneath her wings": temos aqui a cadência tríplice do
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verso- não carecemos de nenhuma historieta sobre o cisne, sobre como ele entrou a navegar no rio e depois no poema de Meredith, e então em definitivo na minha memória. Sabemos, ou pelo menos eu sei, que ouvi algo inesquecível. E posso repetir aqui o que Hanslick disse da m~sica: posso recordá-lo, posso compreen.g.ê-lo (não com a simples razão, mas com uma imaginação mais profunda); mas não posso traduzi-lo. E nem acho que precise de tradução. Já que usei a palavra "tríplice", ocorre-me uma metáfora de um poeta grego de Alexandria. Ele escreveu sobre "a lira da noite tríplice". A impressão que tenho é a de um verso poderoso. Ao consultar as notas, descobri que a lira era Hércules, e que, Hércules fora concebido por Júpiter numa noite que teve a duração de três noites, de modo que o prazer do deus pudesse ser vasto. Essa explicação é um tanto irrelevante; aliás, talvez prejudique o verso. Ela nos fornece uma pequena anedota e subtrai algo daquele maravilhoso enigma, "a lira da noite tríplice". Isso há de bastar- o enigma. Não precisamos decifrá-lo. O enigma está ali. Falei de palavras que sobressaíam no princípio, quando os homens as inventaram. Cogitei que a palavra "thunder" talvez não significasse apenas o som, mas o deus. E falei da palavra "night". Quando falo da noite, ocorreme inevitavelmente- e felizmente para nós, a meu ver
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- a última frase do primeiro livro de Finnegans wake, na qual Joyce fala das "rivering waters of, hitherandthithering waters of. Night!" [águas fluviantes de, águas decáparalás de. Noite!] 12. Este é um exemplo extremo de um estilo elaborado. Sentimos que tal verso só podia ser escrito depois de séculos de literatura. Sentimos que o verso é uma invenção, um poema- uma trama bastante complexa, como teria dito Stevenson. E, no entanto, suspeito que houve um momento em que a palavra "night" era tão impressionante, tão estranha, tão estarrecedora quanto essa bela frase tortuosa: "rivering waters of, hitherandthithering waters of. Night!". Claro, há duas maneiras de usar a poesia- pelo menos duas maneiras opostas (há muitas outras, claro). Uma das maneiras é o poeta usar as palavras comuns e de algum modo torná -las incomuns- extrair-lhes a mágica. Um exemplo bastante bom seria aquele poema bem inglês, feito de subentendidos, de Edmund Blunden: I have been young and now am not too old; And I have seen the righteous forsaken, His breath, bis honour and bis quality taken. This is not what we formerly were told 13 .
[Fui jovem e agora não sou muito velho; E vi o justo esquecido,
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Seu fôlego, sua honra e sua qualidade roubados. Não é isso o que antes nos fora dito.] Temos aqui palavras simples; temos um sentido simples, ou pelo menos um sentimento simples- e isso é mais importante. Mas as palavras não sobressaem como no último exemplo de Joyce. Ou como neste, que será mera citação. São três palavras. Dizem assim: "Glittergates of elfinbone" 14 . "Glittergates" [portaispompa] é a dádiva de Joyce para nós. E temos ainda "elfinbone". Claro, quando Joyce escreveu isso, estava pensando no termo alemão para "marfim",
Elfenbein. Elfenbein é uma corruptela de Elephantenbein, "osso de elefante". Mas Joyce viu as possibilidades da palavra e a traduziu para o inglês; e temos assim "elfinbone". Acho "elfin" mais bonito que "elfen". Depois, de tanto que ouvimos Elfenbein, não a recebemos com o choque de surpresa, com o choque de assombro, que descobrimos nesta nova e elegante palavra, "elfinbone". Assim, temos duas maneiras de escrever poesia. Falase em geral de estilo simples e estilo elaborado. Acho isso errado, porque o importante, o decisivo, é o fato de que a poesia esteja viva ou morta, não que o estilo seja simples ou elaborado. Isso vai depender do poeta. Podemos ter, por exemplo, poesia bastante notável escrita com simplicidade, e tal poesia, para mim, não é menos admirável
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-aliás, acho às vezes que é mais admirável- do que a outra. Por exemplo, quando Stevenson (e como discordei de Stevenson, quero agora cultuá~lo) escreveu o seu "Requiem":
Cnder the wild and starry sky Dig the grave and let me lie Glad did I live and gladly die, And I laid me down with a will. This be the verse you 'grave for me: "Here h e lies where h e longed to be; Home is the sailor, home from the sea, And the hunter home from the hill".
l Sob o céu ermo e estrelado Abram a cova e me deixem deitar Feliz eu vivi e feliz eu morro, E me deitei com urna última vontade. Gravem este verso para rnirn: "Jaz ele aqui onde ansiava estar; De volta o marinheiro, de volta do mar, E o caçador de volta das montanhas".]
Esse verso é de linguagem simples; é simples e vivo. Mas o poeta também deve ter dado muito duro para obtê~lo.
Acho que versos tais como "Glad did I live and
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gladly die" não ocorrem senão em momentos muitos raros, quando a musa é generosa. Creio que nossa idéia de as palavras serem uma simples álgebra de símbolos vem dos dicionários. Não quero ser ingrato com os dicionários- minha leitura favorita seria o dr. Johnson, o dr. Skeat e aquele autor conjunto, o Shorter Oxford 11 . Acho, porém, que o fato de termos longos catálogos de palavras e explicações nos faz pensar que as explicações esgotam as palavras, e que qualquer uma dessas moedas, dessas palavras, pode ser trocada por outra. Mas acho que sabemos- e o poeta há de sentirque toda palavra subsiste por si mesma, que cada palavra é única. E essa sensação nos vem quando um escritor emprega uma palavra pouco conhecida. Por exemplo, achamos a palavra "sedulous" [afinco] um tanto afetada, embora interessante. Porém quando Stevenson- de novo o saúdo- escreveu que ele "played the sedulous ape to Hazlitt" [macaqueou Hazlitt com afinco], de súbito a palavra ganha vida 16 . Assim, essa teoria (não é minha, claro- tenho certeza de que pode ser encontrada em outros autores), essa idéia de as palavras começarem como mágica e serem reconduzidas à mágica pela poesia, é, a meu ver, verdadeira. Chegamos agora a outra questão, muito importante: a da convicção. Quando lemos um autor (e podemos estar pensando em verso, podemos estar pensando em prosa-
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tanto faz), é essencial que acreditemos nele. Ou melhor, que alcancemos aquela "voluntária suspensão da incredulidade" de que falava Coleridge 17 . Quando falei de versos elaborados, de palavras em destaque, deveria ter lembrado, claro: Weave a circle round him thrice, And dose your eyes with holy dread, For h e on honey -dew hath fed, And drunk the milk of Paradise 1H. [Tece um círculo ao redor dele três vezes, E fecha teus olhos com sacro temor, Pois ele nutriu-se de orvalho-mel, E bebeu o leite do Paraíso.] Vamos agora- e este será nosso último assuntofalar sobre essa convicção necessária tanto na prosa como no verso. No caso de um romance, por exemplo (e por que não falar do romance quando falamos de poesia?), nossa convicção repousa no fato de acreditarmos no personagem principal. Se acreditamos nele, tudo corre bem.
~ão
estou- e espero que isso não soe como uma heresia para vocês-, não estou muito convencido das aventuras de Dom Quixote. Talvez descreia de algumas delas. Acho que algumas talvez sejam exageradas. Tenho plena con-
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vicção de que, quando o cavaleiro falava com seu escudeiro, não desfiava aqueles longos discursos convencionais. Porém tais coisas não importam; o que realmente importa é o fato de eu acreditar no próprio Dom Quixote. É por isso que livros tais como La ruta de Don Quijote, de Azorín, ou mesmo a Vida de Don Quijote y Sancho, de Unamuno 19 , me parecem um tanto irrelevantes, pois levam as aventuras muito a sério. Ao passo que eu realmente acredito no cavaleiro. Ainda que me dissessem que aquelas aventuras jamais aconteceram, continuaria a acreditar em Dom Quixote como acredito no caráter de um amigo. Tive a sorte de possuir vários amigos admiráveis, e contam-se muitas anedotas sobre eles. Algumas dessas anedotas -lamento, mas me orgulho em revelar- foram cunhadas por mim. Entretanto não são falsas; são essencialmente verdadeiras. De Quincey dizia que todas as anedotas são apócrifas. Creio que, cuidasse ele em se aprofundar no assunto, teria dito que são historicamente apócrifas, mas essencialmente verdadeiras. Se contam uma história de uma pessoa, então essa história se parece com a pessoa; essa história é seu símbolo. Quando penso em amigos meus tão caros como Dom Quixote, o sr. Pickwick, o sr. Sherlock Holmes, o dr. Watson, Huckleberry Finn, Peer Gynt etc. (não estou certo se tenho muito mais amigos), sinto que as pessoas que escreveram suas
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histórias estavarn "contando história", mas que as aventuras elaboradas eram espelhos, adjetivos ou atributos daquelas pessoas. Ou seja, se acreditamos no sr. Sherlock Holmes, podemos olhar com escárnio para o cão dos Baskerville; não precisamos temê-lo. Digo, enfim, que o importante é acreditarmos num personagem. No caso da poesia, pode parecer existir uma diferença- pois um escritor trabalha com metáforas. Às metáforas, não é preciso lhes dar crédito. O que realmente importa é o fato de acharmos que elas correspondem às emoções do autor. Isso, eu diria, é mais que o suficiente. Por exemplo, quando Lugones escreveu que o pôr-do-sol era "un violento pavo real verde, deliriado en oro" 20 , não
é preciso se importar com a semelhança- ou antes a dessemelhança- de um pôr-do-sol com um pavão verde. O importante é que somos levados a sentir que ele foi tocado pelo pôr-do-sol, que precisava daquela metáfora para nos transmitir os seus sentimentos. É a isso que me refiro por convicção na poesia. Isso pouco tem a ver, claro, com linguagem simples ou elaborada. Quando ::\1ilton escreve, por exemplo (e lamento lhes dizer, talvez revelar, que estes são os últimos versos do Paradise regained), "hee unobserv'd/Home to his Mothers h ouse private return'd" [ele despercebido/ retornou ao seio da casa de sua mãe ]21, a linguagem é bastante simples, mas ao mesmo tempo está morta. Ao passo
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que quando ele escreve "VVhen [ consider how my light is spent/ Ere half my days, in this dark world" [Quando considero como minha luz está extinta/ Antes que a metade de meus dias, nesse mundo escuro]2 2 , a linguagem talvez seja elaborada, mas é uma linguagem viva. Nesse sentido, escritores como Góngora, John Donne, William Butler Yeats e James Joyce estão justificados. Suas palavras, suas estrofes podem ser afetadas; nelas podemos achar coisas estranhas. Mas somos levados a sentir que a emoção por trás das palavras é verdadeira. Isso deve nos bastar para lhes oferecer nossa admiração. Mencionei vários poetas hoje, e lamento dizer que, na última palestra, falarei de um poeta menor- um poeta cujas obras nunca li, mas um poeta cujas obras tenho de escrever. Falarei de mim mesmo. E espero que me perdoem esse anticlímax um tanto complacente.
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6 O Credo de um Poeta
Meu propósito era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho apenas um tipo claudicante de credo. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente é para os outros. Aliás, acho que todas as teorias poéticas são meras ferramentas para escrever um poema. Suponho que haja tantos credos, tantas religiões, quantos são os poetas. Embora no final eu diga algo sobre os meus gostos e desgostos no tocante à escrita da poesia, acho que vou começar com algumas memórias pessoais, não só de escritor, mas também de leitor. Tenho para mim que sou essencialmente um leitor. Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta- porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever. Minha memória me leva de volta a uma certa tarde, coisa de sessenta anos atrás, à biblioteca de meu pai em Buenos Aires. Eu o vejo; vejo o bico de gás; poderia pôr minha mão nas estantes. Sei exatamente onde encontrar as Mil e uma noites de Burton e a Conquista do
Peru de Prescott, embora a biblioteca não exista mais. Volto àquela tarde sul-americana já antiga e vejo meu pai. E o vejo nesse momento; e ouço sua voz dizendo palavras que eu não compreendia, e no entanto sentia. As palavras eram de Keats, de sua "Ode to a nightingale"
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O CREDO DE UM POETA
[Ode a um rouxinol]. Tantas e tantas vezes eu a reli, como vocês, mas gostaria de repassá-la outra vez. Acho que isso talvez agrade ao fantasma de meu pai, caso ele esteja por perto. Os versos que recordo são aqueles que vocês estão lembrando neste momento:
Thou wast not born for death, immortal Bird! No hungry generations tread thee down; The voice I hear this passing night was heard In ancient days by emperor and clown: Perhaps the self-same song that found a path Through the sad heart of Ruth, when, sick for home, She stood in tears amid the alien corn 1•
[Não nasceste para a morte, Pássaro imortal! Nenhuma geração faminta te espezinha;
A voz que ouço nessa noite fugaz foi ouvida Nos dias antigos por imperador e palhaço: Talvez a mesmíssima canção que se insinuou Pelo triste coração de Rute, quando, saudosa de casa, Ela se desfazia em lágrimas entre o milharal alheio. J
Pensava saber tudo sobre palavras, tudo sobre linguagem (de pequeno, a pessoa acha que sabe muitas coisas), mas aquelas palavras foram uma revelação para
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mim. Claro, eu não as entendia. Como poderia entender aqueles versos sobre pássaros- sobre animais- que eram de algum modo eternos, intemporais, porque viviam no presente? Somos mortais porque vivemos no passado e no futuro- porque lembramos um tempo em não existíamos e antevemos um tempo em que estaremos mortos. Aqueles versos chegaram a mim através de sua música. Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer que se estava feliz ou triste etc. :vias quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem podia também ser música e paixão. E assim me foi revelada a poesia. Divertiu-me uma idéia- a idéia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares e milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si. Imagino que, quando Judas beijou Jesus (se é que o fez), sentiu naquele momento que era um traidor, que ser um traidor era seu destino, e que estava sendo fiel a seu pérfido destino. Todos nós conhecemos The red badge of
courage, a história de um homem que não sabe se é covarde ou valente. Chega então o momento e ele descobre quem é. Quando escutei aqueles versos de Keats, senti de repente que aquela era uma grande experiência. Sinto-
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O CREDO DE UM POETA
o desde então. E talvez a partir daquele momento (suponho que esteja exagerando, para os propósitos de uma palestra), tomei a mim mesmo como sendo "literário". Quer dizer, muitas coisas aconteceram comigo, como a todos os homens. Tirei prazer de muitas coisas- de nadar, de escrever, de contemplar um nascer do sol ou um crepúsculo, de estar apaixonado e assim por diante. Mas, de algum modo, o fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia. A princípio, certamente, eu era apenas um leitor. Porém acho que a felicidade de um leitor está além da de um escritor, pois o leitor não precisa experimentar aflição nem ansiedade: seu negócio é simplesmente a felicidade. E a felicidade, quando se é leitor, é freqüente. Assim, antes de passar a discorrer sobre minha produção literária, gostaria de dizer umas palavras a respeito dos livros que foram importantes para mim. Sei que essa lista abundará em omissões, tal como todas as listas. Aliás, o perigo de compor uma lista é que as omissões sobressaem e as pessoas nos tomam por insensível. Falei alguns momentos atrás das l'vlil e urna noites de Burton. Na verdade, quando penso nas Mil e uma noites não penso naqueles vários volumes, pesados e pedan-
tes (ou antes empolados), mas nas que posso chamar as verdadeiras l\;fil e uma noites- as Mil e uma noites de Galland e, talvez, de Edward vVilliam Lane 2 . A maior
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parte de minhas leituras foi em inglês; a maioria dos livros chegou a mim por intermédio da língua inglesa, e sou profundamente grato por esse privilégio. Quando penso nas Mil e uma noites, a primeira sensação que tenho é de vasta liberdade. :\1as ao mesmo tempo sei que o livro, embora vasto e livre, é limitado a alguns modelos. Por exemplo, o número três ocorre nele com muita freqüência. E não temos personagens, ou melhor, temos personagens prosaicos (salvo talvez o barbeiro silencioso). São homens maus e bons, recompensas e castigos, anéis mágicos e talismãs etc. Embora nos inclinemos a já pensar no tamanho como algo brutal, acho que existem vários livros cuja essência consiste em serem extensos. Por exemplo, no caso das Mil e uma noites, precisamos pensar que o livro é extenso, que a história prossegue, que talvez nunca cheguemos ao fim. Talvez nunca tenhamos percorrido todas as mil e uma noites, mas o fato de estarem lá empresta amplitude à coisa toda. Sabemos que podemos mergulhar mais fundo, que podemos continuar vagando ao léu, e que as maravilhas, os mágicos, as três belas irmãs etc. estarão sempre ali, a nossa espera. Há outros livros que gostaria de recordar- Huckle-
berry Finn, por exemplo, que foi um dos primeiros que li. Desde então o reli muitas e muitas vezes, e também
Roughing it (os primeiros dias na Califórnia), Life in
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1\!Iississippi e por aí vai. Tivesse de analisar Huckleberry Finn, diria que, para criar um grande livro, talvez seja necessário um único fator central e muito simples: é preciso haver algo que agrade à imaginação na própria mol-. dura do livro. No caso de ffuckleberry Finn, sentimos que a idéia do negro, do menino, da jangada, do Mississippi, das longas noites- que essas idéias são de algum modo agradáveis à imaginação, são aceitas por ela. Gostaria também de dizer algo sobre Dom Quixote. F'oi um dos primeiros livros que li de cabo a rabo. Recordo até as gravuras. A pessoa sabe tão pouco sobre si mesma que, quando li o Dom Quixote, pensei que o fazia por causa do prazer que eu tirava do estilo arcaico e das aventuras do cavaleiro e do escudeiro. Agora acho que meu prazer estava em outra parte- que ele vinha do personagem do cavaleiro. Já não tenho mais certeza se acredito nas aventuras ou nas conversas entre o cavaleiro e o escudeiro; mas sei que acredito no personagem do cavaleiro, e imagino que as aventuras foram inventadas por Cervantes a fim de nos mostrar o personagem do herói. O mesmo pode ser dito de outro livro que se pode chamar de um clássico menor, o sr. Sherlock Holmes e o dr. Watson. Não tenho certeza se acredito nQ cão dos Baskerville. Tenho certeza de que não acredito em ficar apavorado por um cachorro pintado com tinta fosforescente.
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Mas tenho certeza de que acredito no sr. Sherlock Holmes e na estranha amizade entre ele e o dr. Watson.
É claro, nunca se sabe o que o futuro nos reserva. Suponho que o futuro nos trará todas as coisas a longo prazo, e assim podemos imaginar um momento em que Dom Quixote e Sancho, Sherlock Holmes e o dr. Watson ainda existirão, embora todas as suas aventuras tenham sido obliteradas. Mas as pessoas, em outras línguas, talvez continuem inventando histórias que se ajustem a esses personagens- histórias que sejam como espelhos dos personagens. Isso, talvez possa acontecer. Agora vou pular os anos e ir a Genebra. Eu era então um jovem muito infeliz. Imagino que os jovens têm gosto pela infelicidade; fazem de tudo para ser infelizes, e em geral conseguem. Descobri naquela época um autor que, sem dúvida, era alguém muito feliz. Deve ter sido em 1916 que topei com Walt Whitman, e senti vergonha de minha infelicidade. Senti vergonha porque tentara ficar ainda mais infeliz lendo Dostoiévski. Agora que reli Walt Whitman, e também biografias dele, imagino que talvez, ao ler suas Leaves of grass [Folhas da relva], Walt Whitman tenha dito consigo: "Oh! if only I were Walt Whitman, a kosmos, of Manhattan the son!" [Ah! quisera fosse Walt Whitman, um cosmos, de Manhattan o filho!P. Porque sem dúvida ele era um tipo muito diferente de homem. Sem dúvida derivou
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"Walt VVbitman" de si próprio- uma espécie de projeção fantástica. Ao mesmo tempo, descobri também um escritor muito diferente. Descobri também- e também fui dominado por- Thomas Carlyle. Li Sartor Resartus, e posso lembrar muitas de suas páginas; conheço-as de cor. Carlyle me remeteu ao estudo do alemão. Lembro ter comprado o Lyrisches Intermezzo de Reine e um dicionário alemão-inglês. Depois de um tempo, descobri que podia prescindir do dicionário e prosseguir com seus rouxinóis, suas luas, seus pinheiros, seu amor e assim por diante. Mas o que eu realmente queria e não encontrei na época foi a idéia do germanismo. Essa idéia, creio, não foi desenvolvida pelo próprio povo germânico, mas por um cavalheiro romano, Tácito. Eu fora levado por Carlyle a pensar que podia encontrá-la na literatura alemã. Encontrei muitas outras coisas; sou muito grato a Carlyle por ter me remetido a Schopenhauer, a Holderlin, a Lessing etc. :\las a idéia que eu tinha- a de homens nada intelectuais, mais dados à lealdade, à bravura, à varonil submissão ao (lestino - , eu não a encontrei, por exemplo, na Nibelungenlied. Tudo parecia romântico demais para mim. Iria encontrá-la muitos e muitos anos mais tarde nas sagas nórdicas e no estudo da poesia inglesa antiga.
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Ali descobri finalmente o
qw~
procurava quando jo-
vem. No inglês antigo descobri uma língua. áspera, mas cuja aspereza propiciava uma certa beleza e também um sentimento bastante profundo (ainda que, talvez, não tão profundo pensamento). Em poesia, o sentimento basta, imagino. Se o sentimento nos invade, isso há de ser suficiente. Fui levado ao estudo do inglês antigo por minha inclinação à metáfora. Li em Lugones que a metáfora era o elemento essencial da literatura, e aceitei essa máxima, Lugones escreveu que todas as palavras eram originalmente metáforas. Isso é verdade, mas é verdade também que, a fim de entender a maioria das palavras, é preciso esquecer o fato de serem metáforas. Por exemplo, se digo: "Style should be plain" [O estilo deve ser direto], não acho que devamos lembrar que "style" (stylus) significava "caneta" e que "plain" significa "plano", porque nesse caso nunca compreenderíamos a frase. Permitam-me remontar a meus dias de infância e lembrar outros autores que me impressionaram. Pergunto-me se já notaram muitas vezes que Poe e Oscar Wilde são na verdade escritores para garotos. Pelo menos, as histórias de Poe me impressionaram quando eu era garoto, porém agora mal posso relê-las sem sentir certo desconforto com o estilo do autor. Aliás, bem posso entender o que Emerson quis dizer quando chamou Edgar Allan Poe o "jingle man". Suponho que esse fato de ser um es-
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critor para garotos possa ser aplicado a vár.ios outros escritores. Em alguns casos, tal descrição é injusta- no caso de Stevenson, por exemplo, ou de Kipling; pois embora escrevam para garotos, escrevem também para adultos. Mas há outros escritores que se deve ler quando se é jovem, porque se a pessoa chega a eles quando está velha, grisalha e entrada em anos, essa leitura dificilmente pode ser prazerosa. Talvez seja uma blasfêmia dizer que, a fim de desfrutar Baudelaire e Poe, devemos ser jovens. Mais tarde é difíciL É preciso se haver com muitas coisas; é preciso pensar na história etc. Quanto à metáfora, devo acrescentar que agora vejo que a metáfora é algo muito mais complicado do que eu pensava. Não é meramente a comparação de uma coisa com outra- dizer "a lua é como ... " e assim por diante. Não- ela pode se dar de maneira mais sutiL Pensem em Robert Frost. Vocês lembram, claro, os versos:
For I have promises to keep And miles to go before I sleep And miles to go before I sleep.
Se tomarmos os dois ultimos versos, o primeiro- "E milhas a trilhar antes de dormir"- é uma declaração: o poeta está pensando em milhas e no sono. Mas quando o repete, "E milhas a trilhar antes de dormir", o verso
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vira uma metáfora; pois "milfias" simboliza os "dias", os "anos", um longo espaço de tempo, enquanto "dormir" simboliza présumivelmente a "morte". Talvez não me caiba nenhum mérito em salientar isso aqui. Talvez o prazer esteja não em traduzirmos "milhas" por "anos" e "dormir" por "morte", mas antes em sentir a implicação. O mesmo pode ser dito de um outro excelente poe-
ma seu, "Acquainted with the night" [Familiarizado com a noite]. !\o início, "I have been one acquainted with the night" [Fui alguém familiarizado com a noite] talvez signifique literalmente o que ele nos diz. Mas o verso retorna no final: O luminary clock against the sky,
Proclaimed the time was neither wrong nor right. I have been one acquainted with the night.
[Ó relógio luminar contra o céu, Proclamava que o tempo não estava certo nem errado. Fui alguém familiarizado com a noite.] Somos então levados a pensar a noite como uma imagem do mal- do mal sexual, imagino. Falei instantes atrás sobre Dom Quixote e sobre Sherlock Holmes; disse que podia acreditar nos personagens mas não em suas aventuras, e dificilmente nas pala-
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vras que os autores põem em seus lábios. Ora, me pergunto se podemos achar um livro em que ocorra exatamente o contrário. Podemos achar um livro em cujos personagens não acreditamos, mas em cuja história podemos acreditar? Lembro-me aqui de outro livro que me impressionou: o !'v1obyDick de :vlelville . .1'\ão tenho certeza se acredito no capitão Ahab, não tenho certeza se acredito em sua contenda com a baleia branca; mal posso distinguir os personagens uns dos outros. :vias acredito na história- ou seja, acredito nela como uma espécie de parábola (embora não saiba exatamente parábola do quê -talvez uma parábola da luta contra o mal, do modo equivocado de combater o mal). Imagino se há algum livro do qual isso possa ser dito. K o Pilgrim 's progress, creio que acredito tanto na alegoria quanto nos personagens. Caberia examiná-lo. Lembrem que os gnósticos disseram que o único jeito de se livrar de um pecado é cometê-lo, porque depois você se arrepende dele. No tocante à literatura, estavam essencialmente corretos. Se alcancei a felicidade de escrever quatro ou cinco páginas toleráveis, após escrever quinze volumes intoleráveis, logrei esse feito não só através de muitos anos, mas também através do método de tentativa e erro. Acho que cometi não todos os erros possíveis- porque os erros são inúmeros-, mas muitos deles.
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Por exemplo, comecei, tal como a maioria dos jovens, pensando que o verso livre era mais fácil que as formas fixas. Hoje estou bastante convicto de que o verso livre é muito mais difícil que as formas fixas e clássicas. A prova- se for necessário prova- é que a literatura começa com o verso. Suponho que a explicação seria que, uma vez desenvolvido um modelo- um modelo de rimas, de assonâncias, de aliterações, de sílabas longas e breves e assim por diante- só é preciso repetir o modelo. Ao passo que, se você tentar a prosa (e a prosa, é claro, surge depois do verso), precisará então, como assinalou Stevenson, de um modelo mais sutil. Porque o ouvido é levado a esperar algo, e então não obtém o que esperava. Algo diverso lhe é dado; e esse algo diverso deve ser, em certo sentido, uma deficiência e tamb~m uma satisfação. E assim, a menos que você tome a precaução de ser Walt Whitman ou Carl Sandburg, o verso livre é mais difícil. Pelo menos eu descobri, agora que estou perto do final de minha jornada, que as formas clássicas do verso são mais fáceis. Outra facilidade, outra comodidade, talvez esteja no fato de que, uma vez escrito um determinado verso, você se compromete com uma determinada rima. E já que as rimas não são infinitas, seu trabalho fica mais fácil. Claro, o importante é o que está por trás do verso. Comecei- tal como todos os jovens- tentando me disfarçar. De início, estava tão equivocado que, na época em
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que li Carlyle e Whitman, pensei que o modo de escrever prosa de Carlyle era o único possível, e que o modo de escrever verso de Whitman era o único possível. Não fiz tentativa alguma de conciliar o fato bastante estranho de que dois homens opostos tivessem atingido a perfeição da prosa e do verso. Quando comecei a escrever, sempre dizia a mim mesmo que minhas idéias eram bastante
superficiais~
que
se um leitor as desvendasse, me desprezaria. E assim me disfarcei. No começo, tentei ser um escritor espanhol do século XVII com certa noção de latim. Minha noção de latim era bastante vaga. Não me considero agora um escritor espanhol do século XVII, e minhas tentativas de ser Sir Thomas Browne em espanhol fracassaram estrondosamente. Ou renderam talvez uma boa dúzia de versos melodiosos. Claro, eu estava à cata de flores de retórica. Agora acho que as flores de retórica são um erro. Acho que são um erro porque são um sinal de vaidade, e o leitor as toma como tais. Se o leitor acha que você tem um defeito moral, não há razão alguma para que ele o admire ou o ature. Caí então num erro bastante comum: fiz de tudo para ser~ acima
de tudo ~moderno. Há um personagem nos
Wilhelm Meisters Lehrjahre de Goethe que diz: "Bem, você pode dizer o que quiser de mim, mas ninguém há de negar que sou um contemporâneo". Não vejo diferença
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entre esse personagem um tanto absurdo do romance de Goethe e o desejo de ser moderno. Porque nós somos modernos; não precisamos lutar para ser modernos. Não é uma questão de tema nem de estilo. Se examinarmos o Ivanhoé de Sir Walter Scott ou (para tomar um exemplo diferente) o Salambô de Flaubert, podemos dizer a data em que esses livros foram escritos. Embora Flaubert falasse de Salambô como um
"roman cartaginois", qualquer leitor digno do nome saberá depois da primeira página que o livro não foi escrito em Cartago, foi escrito por um francês muito inteligente do século XIX. Quanto a Ivanhoé, não somos iludidos pelos castelos, pelos cavaleiros e pelos porqueiros saxões etc. O tempo todo, sabemos que estamos lendo um autor do século XVIII ou XIX. Depois, somos modernos pelo simples fato de vivermos no presente. Ninguém descobriu ainda a arte de viver no passado, e nem mesmo os futuristas descobriram o segredo de viver no futuro. Somos modernos, queiramos ou não. Talvez o próprio fato de atacar a modernidade seja agora um modo de ser moderno. Quando comecei a escrever histórias, fiz de tudo para floreá-las. Apurei o estilo, e por vezes essas histórias se ocultavam sob várias camadas superpostas. Por exemplo, pensei num enredo bastante bom; escrevi então a história "El inmortal" 4 . A idéia por trás da história-e a
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idéia talvez sep uma surpresa a quem de vocês leu a história- é que, se urn homem fosse imortal, então a longo prazo (e o prazo seria longo, claro), ele teria dito todas as coisas, feito todas as coisas, escrito todas as coisas. Tomei como meu exemplo Homero; pensei nele (se é que ele existiu) como tendo escrito sua Ilíada. Homero então seguiria vivendo, e mudaria à medida que as gerações dos homens mudassem. Por fim, é claro, ele esqueceria o seu grego, e com o tempo esqueceria que fora Homero. :Yiomento talvez chegue em que tomará a tradução de Homero feita por Pope não apenas como uma bela obra de arte (de fato é), mas como fiel ao original. Essa idéia de Homero esquecer que era Homero está oculta sob as várias estruturas que teci ao redor do livro. Aliás, quando reli essa história uns anos atrás, achei-a uma chatice e tanto, e fui obrigado a remontar a meu antigo plano para ver que a história teria sido bastante boa caso eu tivesse me contentado em redigi-la simplesmente e não permitisse tantas flores de retórica e tantas metáforas e adjetivos esquisitos. Acho que agora cheguei, não a uma certa sabedoria, mas talvez a um certo bom senso. Vejo-me como um escritor. O que significa ser um escritor para mim? Significa simplesmente ser fiel a minha imaginação. Quando escrevo algo, não o tomo como factualmente verdadeiro (o simples fato é uma trama de circunstâncias e acidentes),
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mas como fiel a outro algo mais profundo. Quando escrevo uma história, escrevo-a porque de alguma forma acredito nela- não como se acredita na simples história, mas antes como se acredita num sonho ou numa idéia. Penso que talvez possamos ser tirados do bom caminho por um dos estudos que mais estimo: o estudo da história da literatura. Imagino (e espero que isso não seja uma blasfêmia) se não temos consciência demais da história. Ter consciência da história da literatura- ou de qualquer outra arte, nesse particular- é realmente uma forma de incredulidade, uma forma de ceticismo. Se digo comigo, por exemplo, que vVordsworth e Verlaine foram poetas muito bons do século
XIX,
talvez caia no pe-
rigo de pensar que o tempo de algum modo os destruiu, que não são tão bons agora como antes. Acho que a idéia antiga- que podemos conceder perfeição à arte sem levar em conta as datas- era mais corajosa. Li várias histórias da filosofia indiana. Os autores (ingleses, alemães, franceses, an1ericanos etc.) sempre se admiram com o fato de que, na Índia, as pessoas não têm senso histórico- que tratam todos os pensadores como se fossem contemporâneos. Traduzem as palavras da filosofia antiga para o jargão moderno da filosofia atual. :VIas isso simboliza algo corajoso. Simboliza a idéia de que se acredita na filosofia ou que se acredita na poesia- que as coisas outrora belas podem continuar sendo belas.
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Embora eu suponha que esteja sendo um tanto ahistórico ao dizer isso (claro, já que os significados e conotações das palavras mudam), ainda assim acho que há versos- por exemplo, quando Virgílio escreveu "Ibant obscuri sola sub nocte per umbram" 5 (imagino se estou escandindo isso como deveria- meu latim anda muito enferrujado) ou quando um antigo poeta inglês escreveu "Norpan sniwde ... " 5 , ou quando lemos ";\;Iusic to hear, why hear'st thou music sadly? /Sweets with sweets war not, joy delights in joy" 7 -
nos quais de algum modo
estamos além do tempo. Acho que há uma eternidade na beleza; e isso, claro, é o que Kcats tinha em mente quando escreveu "A thing of beauty is a kind of joy forever" [Uma coisa bela é um tipo de prazer eterno]H. Assimilamos esse verso, mas o assimilamos como uma espécie de direito, como uma espécie de fórmula. Às vezes tenho coragem e esperança para achar que talvez seja verdadeiro- que, embora todos os homens escrevam dentro do tempo, estejam envolvidos em circunstâncias e acidentes e insucessos do tempo, que de algum modo as coisas de beleza eterna podem ser alcançadas. Quando escrevo, tento ser fiel ao sonho e não às circunstâncias. Claro, em minhas histórias (dizem-me que devo falar sobre elas) há circunstâncias verdadeiras, mas de algum modo senti que essas circunstâncias deviam sempre ser contadas com certo quinhão de inverdade.
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Não há satisfação em contar uma história como realmente aconteceu. Temos de mudar as coisas, ainda que as achemos insignificantes; caso contrário, não devemos nos tomar como artistas, mas talvez como meros jornalistas ou historiadores. Embora suponha que todos os verdadeiros historiadores soubessem que podiam ser tão imaginativos quanto os romancistas. Por exemplo, quando lemos Gibbon, o prazer que desfrutamos dele é bastante afim ao prazer que desfrutamos da leitura de um grande romancista. Suponho que ele tivesse de imaginar as circunstâncias. Há de ter tomado a si mesmo como tendo criado, num certo sentido, o declínio e a queda do Império Romano. E o fez de modo tão magnífico que não me interessa aceitar nenhuma outra explicação. Tivéssemos de dar conselhos aos escritores (e não acho que precisem, porque todos têm de descobrir as coisas por si mesmos), lhes diria simplesmente isto: pediria que mexessem o menos possível em seu próprio trabalho. Não acho que remendos sejam de algum proveito. Chega uma hora em que a pessoa descobre o que é capaz de fazerem que descobre a sua voz natural, o seu ritmo. Não acho que, nesse momento, ligeiras emendas se revelem úteis. Quando escrevo, não penso no leitor (porque o leitor é um personagem imaginário) e não penso em mim mesmo (talvez eu também seja um personagem imaginário), mas penso no que tento transmitir e faço de tudo para
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não estragá-lo. Quando eu era jovem, acreditava na expressão. Eu lera Croce, e a leitura de Croce de nada me serviu. Eu queria expressar tudo. Pensava, por exemplo, que, se precisava de um pôr-do-sol, devia encontrar a palavra exata para o pôr-do-sol- ou melhor, a mais surpreendente metáfora. Agora cheguei à conclusão (e essa conclusão talvez soe triste) de que não acredito mais na expressão: acredito somente na alusão. Afinal de contas, o que são as palavras? As palavras são símbolos para memórias partilhadas. Se uso uma palavra, então vocês devem ter alguma experiência do que essa palavra representa. Senão a palavra não significa nada para vocês. Acho que podemos apenas aludir, podemos apenas tentar fazer o leitor imaginar. O leitor, se for rápido o suficiente, pode ficar satisfeito com nossa mera alusão a algo. Isso favorece a eficiência- e no meu próprio caso, favorece também a preguiça. Por que nunca experimentei um romance, me perguntaram. Preguiça, claro, é a primeira explicação. Mas há outra. 1'\unca li nenhum romance sem sentir um certo fastio. Romances incluem recheio; penso que o recheio pode ser uma parte essencial do romance, pelo que me consta.
~as
li muitos con-
tos várias e várias vezes. Penso que de um conto, por exemplo, de Henry James ou Rudyard Kipling, se tira tanta complexidade, e de modo mais prazeroso, do que se pode tirar ele um longo romance.
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Acho que a isso se resume o meu credo. Quando prometi "o credo de um poeta", pensei bastante crédulo que, uma vez tivesse proferido cinco palestras, teria desenvolvido, no processo, um credo qualquer. Mas acho que devo dizer a vocês que não tenho nenhum credo em particular, exceto aquelas poucas precauções e receios de que venho falando. Quando estou escrevendo algo, tento não compreendê-lo. Kão acho que a inteligência tenha muito a ver com o trabalho de um escritor. Acho que um dos pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente. Por exemplo, tomo a literatura francesa como uma das grandes literaturas mundiais (não suponho quP alguém ponha isso em dúvida). Porém acabei sentindo que os autores franceses são muito autoconscientes. Um escritor francês começa definindo a si mesmo antes de saber direito o que irá escrever. Diz ele: o que (por exemplo) um católico nascido em-tal e tal província, e sendo um bocadinho socialista, escreveria? Ou: como devemos escrever depois da Segunda Guerra Mundial? Suponho que haja muitas pessoas pelo mundo afora que labutam nos mesmos problemas ilusórios. Quando escrevo (claro, talvez eu não seja um exemplo idôneo, mas simplesmente uma terrível advertência), tento esquecer minhas circunstâncias pessoais. Não tento, como tentei certa vez, ser urn "escritor sul-americano".
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Tento somente transmitir o sonho. E se o sonho é daqueles sombrios (no meu caso, geralmente é), não tento embelezá-lo e nem sequer compreendê-lo. Talvez tenha me saído bem, pois toda vez que leio um artigo sobre mim- e de um modo ou de outro, parece que há um bocado de gente fazendo esse tipo de coisa-, em geral fico estupefato e sou muito grato pelos profundos sentidos extraídos da leitura daqueles meus rabiscos fortuitos.
É claro, sou grato a eles, pois acho que a escrita é uma espécie de colaboração. Ou seja, o leitor faz sua parte do trabalho; enriquece o livro. E o mesmo acontece quando se dá uma palestra. Vocês podem pensar, em certos momentos, que assistiram a uma boa palestra. Nesse caso, devo cumprimentá-los, porque, afinal, têm trabalhado comigo. Não fosse por vocês, não acho que essas conferências teriam parecido especialmente boas, ou mesmo passáveis. Espero que tenham colaborado comigo esta noite. E já que esta noite é diferente das outras noites, gostaria de dizer algo sobre mim. Cheguei aos Estados Unidos seis meses atrás. Em meu p\iÍs sou praticamente (para repetir o título de um lívro famoso de Wells) o Homem InvisívelY. Aqui sou de algum modo visível. Aqui as pessoas me leram- tanto me leram que me indagam sobre histórias que esqueci completamente. Perguntam-me por que fulano de tal
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ficou em silêncio antes ele responder, e eu me pergunto quem era fulano ele tal, por que ele ficou em silêncio, o que respondeu. Hesito em lhes contar a verdade. Digo que fulano ele tal ficou em silêncio antes ele responder porque, geralmente, a pessoa fica- em silêncio antes ele responder. E no entanto, todas essas coisas me alegraram. Acho que vocês se enganam bastante se admiram (me pergunto se o fazem) o que eu escrevo. :VIas o tomo como um engano bastante generoso. Acho que a pessoa eleve tentar acreditar nas coisas, mesmo que elas a decepcionem mais tarde. Agora estou brincando, porque sinto algo dentro ele mim. Estou brincando porque sinto realmente o que isso significa para mim. Sei que vou relembrar esta noite. Vou me perguntar: por que não disse o que deveria ter dito? Por que não disse o que estes meses nos Estados Unidos significaram para mim- o que todos estes amigos desconhecidos e conhecidos significaram para mim? Mas acho que ele algum modo meu sentimento está chegando até vocês. Pediram-me que declamasse alguns versos meus; direi então um soneto, o soneto sobre Spinoza. O fato ele muitos ele vocês talvez não saberem espanhol o fará um soneto mais belo. Como disse, o sentido não importa- o que importa é uma certa música, um certo modo ele dizer as coisas. Quem sabe, embora a música talvez não
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esteja presente, vocês a sintam. Ou melhor, como sei que são muito gentis, vocês a inventarão para mim. Eis o soneto, "Spinoza":
Las traslúcidas manos del judío Labran en la penumbra los cristales Y la tarde que muere es miedo y frío. (Las tardes a las tardes son iguales.) Las manos y el espacio de jacinto Que palidece en el confín del Ghetto Casi no existen para el hombre quieto Que está sofíando un claro laberinto. Ko lo turba la fama, ese reflejo De suefíos en el suefío de otro espejo Y el temeroso amor de las doncellas. Libre de la metáfora y del mito, Labra un arduo cristal: el infinito Mapa de Aquél que es todas Sus estrellas 1o.
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Desse e daquele oficio versátil* Calin-Andrei Mihailescu Quando Borges chegou a Harvard no outono de 1967 para ministrar as Norton Lectures, havia muito ele era tido em alta conta. Com seu jeito àuto-irônico, alegou ser uma espécie de Homem Invisível em seu próprio país, porém seus contemporâneos norte-americanos pareciam certos (educado entusiasmo à parte) de que ele era um dos nomes destinados a sobreviver através dos tempos. Sabemos que, até aqui, não se enganaram: Borges resistiu à habitual obliteração do tempo 1, e o encanto e o poder dessa obra esquiva ao esquecimento restam incólumes. Por mais de trinta anos as seis palestras nunca chegaram perto do prelo, as fitas juntando pó na sempiterna quietude de um cofre de biblioteca. Após juntarem o bastante, foram encontradas. O espetacular prec,edente da
Poetics of music in theform of six lessons, de Igor Stravinsky, proferidas como Norton Lectures em 1939-40 e publicadas pela Harvard University Press em 1970, mostra que um longo atraso na transição à letra impressa não priva as palestras, a rigor, de sua relevância. As de Borges dizem tanto hoje quanto três décadas atrás.
Esse oficio do verso é uma introdução à literatura, ao gosto e ao próprio Borges. No contexto de suas obras completas, compara-se apenas a Borges, oral (1979), que con-
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tém as cinco palestras- algo mais restritas no escopo do que estas- que ele deu em maio-junho de 1978 na Universidade de Belgrano em Buenos Aires 2. Estas Norton Lectures, que precedem Borges, oral em uma década, são um tesouro de riquezas literárias que nos chegam de forma ensaística, despojada, muitas vezes irônica e sempre estimulante. A primeira palestra, "O enigma da poesia", proferida a 24 de outubro de 1967, trata do status ontológico da poesia e efetivamente nos introduz ao volume como um todo. "A metáfora" (proferida a 16 de novembro) discute, no estilo de Leopoldo Lugones, o modo como a poesia, através dos séculos, usou e abusou dos mesmos modelos metafóricos, os quais, sugere Borges, podem ser reduzidos a doze "afinidades essenciais", sendo o resto destinado apenas a causar surpresa e, portanto, efêmero. Em "O narrar uma história" (6 de dezembro), consagrado à poesia épica, Borges comenta a negligência do mundo moderno pela épica, faz especulações sobre a morte do romance e examina como a atual condição humana é refletida na ideologia romanesca: "Não acreditamos realmente na verdade, e isso é uma das pobrezas de nosso tempo". Revela aqui afinidades com Walter Benjamin e Franz Kafka (o último dos quais ele considerava um escritor menor que G. B. Shaw ou G. K. Chesterton): advoga a espontaneidade da narração e parece ter algo de anti-romancista, invo-
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cando a preguiça como a principal razão de não ter escrito romances. "Música da palavra e tradução" (28 de fevereiro de 1968) é uma meditação virtuosística sobre a tradução na poesia. "Pensamento e poesia" (2o de março) ilustra sua abordagem ensaística- mas não teórica- da literatura. Enquanto sustenta que a verdade mágica, musical, é mais potente que as ficções estáveis da razão, Borges argumenta que o sentido na poesia é um fetiche e que as poderosas metáforas subvertem moldes hermenêuticas em vez de realçar o sentido. Finalmente, "O credo de um poeta" (10 de abril) é um texto confessional, uma espécie de testamento literário que ele compôs "no meio do caminho da vida". Em 1968, Borges ainda estava no auge de suas forças e publicaria ainda obras de primeira linha, tais como El iriforme de Brodie (1970) -que contém "La intrusa", a história que ele alega ser a sua melhor- e El
libra de arena (1975). Essas Norton Lectures foram proferidas por um visionário muitas vezes nivelado com outros "grandes cegos do Ocidente". A infalível admiração de Borges por Homero, seu elevado (mas complexo) louvor a Joyce e sua mal disfarçada reserva com Milton dizem muito sobre essa tradição. Sua cegueira progressiva tornara-se quase total por volta da década de 6o, quando ele já não era capaz de enxergar nada além de um campo amorfo de amarelo. Ele dedicou El oro de .los tigres ( 1972) a essa
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última e mais fiel das cores de seu mundo. O estilo de palestra de Borges era tão singular quanto cativante: enquanto falava, erguia a vista com uma expressão gentil e tímida no rosto, parecendo materialmente tocar o mundo dos textos- suas cores, sua textura, sua música. A literatura, para ele, era um modo de experiência. Ao contrário do tom brusco e idiossincrático que caracteriza a maioria de suas entrevistas e palestras em espanhol, as maneiras de Borges em Esse ofício do verso são a de um convidado de honra, versátil e de fala mansa. Mas este livro, embora extraordinariamente acessível, não oferece lições de fácil digestão; ao contrário, está repleto de reflexões profundamente pessoais, e não é ingênuo nem cínico. Preserva a espontaneidade de seu caráter oral- sua fluência, seu humor e ocasionais hesitações. (A sin-taxe de Borges foi alterada somente na medida necessária para tornar gramatical e legível a sua prosa. Eventuais citações equivocadas de sua parte também foram corrigidas.) Esse texto lido/ escrito dirige-se a sua platéia com informalidade e muito calor. A facilidade de Borges com o inglês é encantadora. Ele aprendeu a língua na sua primeira infância com a avó paterna, que se mudara de Staffordshire para Buenos Aires. Seus pais sabiam bem o inglês (o pai era professor de psicologia e línguas modernas; a mãe, tradutora). Borges o falava fluentemente, musicalmente, com delicadas con-
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soantes, e tinha particular prazer com os sons "fortes e vocalizados" do inglês antigo. Não se pode levar muito a sério a alegação de Borges que ele avança "às apalpadelas", que é um "pensador tímido e não arrojado" e que sua bagagem cultural é uma série de "infelizes miscelâneas" 3 . Borges era imensamente culto, e um dos principais temas de sua obra- o tema do mundo como uma biblioteca infinita-tem claras conotações autobiográficas. Sua memória era extraordinária: proferiu estas seis palestras sem a ajuda de notas, já que sua visão debilitada o impossibilitava de ler 4 . Auxiliado por sua notável capacidade mnemônica, Borges enriquece suas palestras com miríades de exemplos textuais- sua estética está sempre radicada no solo primordial da literatura. Dos teóricos da literatura ele não tira muito proveito; dos críticos, só um pouco; e os filósofos só lhe interessam enquanto suas idéias não abandonam o mundo em favor da pura abstração. Portanto, sua memória da literatura mundial mantém vivas as belles lettres enquanto ele fala. Em Esse rfício do verso, Borges dialoga com autores e textos que jamais perdeu o prazer de citar e discutir, fontes que vão de Homero, Virgílio, o Beowulf, as Eddas nórdicas, as Mil e uma noites, o Alcorão e a Bíblia até Rabelais, Cervantes, Shakespeare, Keats, Heine, Poe, Stevenson, Whitman, Joyce e, claro, ele próprio.
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DESSE E DAQUELE OFÍCIO VERSÁTIL
A grandeza de Borges deve-se em parte a um engenho e polimento que caracterizam não somente suas obras, mas também sua vida. Ao lhe perguntarem se alguma vez fora visitado em seus sonhos por Juan Perón (o ditador argentino, viúvo de Evita), Borges retrucou: ":vieus sonhos têm lá o seu estilo- de jeito nenhum vou recebê-lo em meus sonhos"5.
*Gostaria de agradecer a :vtelitta Adamson, Sherri Clendinning, Richard Green, Christina Johnson, Gloria Kovounian, Thomas Orange, Andrew Szeib, Jane Toswell e :vtarek Crban. Sem a ajuda deles, meus esforços para transpor as palestras para o formato de livro teriam sido mais penosos. Sou profundamente grato a :Vlaria Ascher, editora da Harvard llniversity Press, cujo profissionalismo condicional devoção a Borges possibilitaram este livro.
132
ESSE OFÍCIO DO VERSO
P lll-
Notas I.
[1
[2
O ENH;MA DA POESIA
l William J
[pp. g-z8]
Shakespeare, Soneto 86.
Borges está pensando, sem dúvida, no Pedro de Platão (seção
275d), no qual Sócrates diz: "Não posso deixar de sentir, Fedro, que a escrita é infelizmente como a pintu.ra; pois as criações do pintor têm a atitude da vida, e no entanto, se lhes fizermos uma pergunta, elas conservam um silêncio solene". De acordo com Sócrates, as coisas devem ser ensinadas e comunicadas oralmente; esse é "o verdadeiro rnodo de escrever" (278b). Escrever corn pen
palavra viva do conhecimento, que possui uma
alma"~
é por-
tanto superior à palavra escrita, que nada mais é senão a sua imagem. As palavras escritas com pena e tinta são tão indefesas quanto aqueles que nelas se fiam.
[3] Rafael Cansinos-Assf>ns é o escritor andaluz de cujas "memórias magníficas" Borges nunca se cansou de falar. Quando em Yladri no começo dos anos
20,
o jovem argentino freqüentou o seu círculo
literário (tertuLia). "Ao conhecê-lo, pareci encontrar as bibliotecas do Oriente e do Ocidente" (Roberto Alifano, Conversaáones con Borges [Buenos Aires: Debate, Ig86], pp.
101-2).
Cansinos-Asséns, que se
gabava de poder saudar as estrelas em catorze línguas (ou dezessete, corno diz Borges em outra nas
~,
ocasião)~
tanto clássicas como moder-
fez traduções do francês, árabe, latim e hebraico. Ver Jorge
Luis Borges e Osvaldo Ferrari, Diálogos (Barcelona: Seix Barrai, 1 99 2 ),
P· 37·
133
NOTAS
[4] \hcedonio Fnnández (I874-I952) foi um advogado do idealismo absoluto que exerceu constante fascínio sobre Borges. Foi um dos dois autorps que Borges comparou .a Adão pelo seu senso de origem (o outro foi Whitman). Esse argentino, dos mais inconvencionais, declarou: "Só escrevo porque escrever me ajuda a pensar". Produziu um vasto número de poemas (reunidos em Poesias completas, ed. Carmen de \1ora [\l!adri: Visor, Iggil) e um bocado de prosa, incluindo Una novela que comienza [Um romance que começa], Papeles de
recie.nvenido: Continuación de la nada [Papéis de rechn-chPgado: Continuação do nada], Museo de la novela de la Eterna: Primera no-
vâa buena [\l!useu do romance da Eterna: Primeiro romance bom], !'vlanera de una psique sin cuerpo [\l!aneira de uma psique sem corpo] e Adriana Buenos Aires: Última novela mala [Adriana Buenos Aires: Último romance ruim]. Borges e Fcrnández fundaram a revista literária Proa em Igzz.
[5] Shakespeare, Hamlet, 3º ato, Iª cena, linhas 57-go. [6] Dante Gabriel Rosst>tti, "lnclusivf'nf'ss", soneto zg, in Rossetti,
Poems, Iª cd. (Londres: Ellis, I87o), p. 217.
i 7]
Heráclito, fragmento 41, in The Jrawnents of the work cif Hera-
clitus oj Ephesus on nature, trad. Ingram Bywater (Baltimore: ~ \1nrray, Iil8g). Ver tamb(•rn Platão, Crátilo, 402a; e Aristóteles, !Yletajísica,
IOiaª,
n3.
[8] Robert Browning (I812 I88g), "Bishop Blougram's Apology", versos I82-4.
[g] O poema de Borges "A Rafael Cansinos-Asséns" diz assim:
134
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Larga y final andanza sobre la exaltación arr<:'batada de! ala de! viaducto. A nuestros pies, busca velajes e! viento, y las estrellas- corazones absueltos -laten int<:'nsidad. Bien paladeado el gusto de la noche, traspasados de sombra, vuelta ya una costurnbre de nuestra carne la noche. Noche postrer de nuestro platicar, antes que se levanten entre nosotros las leguas. Aun es de cntrarnbos e! silencio donde como praderas resplaridecen las voces. Aun e! alba
l'S
un pájaro perdido en la vileza más lejana de!
mundo. {;Ltima nod1e resguardada del gran viento de ausencia. (~rato
solar de! corazón; puno de arduo jinete que sabe sofre-
nar el ágil rnaiiana. Es trágica la entraiia de! adiós como de todo acontecer en que d notorio d Tiernpo.
Es duro realizar que ni tendremos en común las estrellas. Cuando la tarde sea quietud en mi patio, de tus cuartillas surgirá la mariana. Será la sombra de mi verano tu invierno y tu luz será gloria de mi sombra. Aún persistimos juntos. Aún las dos voces logran convenir, como la intensidad y la ternura en las puestas del sol.
[Longa c final andança sobre a exaltação arrebatada do vão do viaduto. A nossos pés, busca velarnes o vento, e as estrelas- corações absoltos- pulsam intensidade.
135
NOTAS
Bem saboreado o gosto da noite, trespassados de sombra, já volve a noite um costurne de nossa carne. Noite derradeira de nosso palestrar, antes que se levantem entre nós as léguas. Ainda é de ambos o silêncio onde como pradarias resplandecern as vozes. Ainda
a aurora é um pássaro perdido na vileza mas longínqua
do mundo. Última noite resguardada do grande vento de ausência. Grato solar do coração; punho de árduo cavaleiro que sabe sofrear a ágil manhã.
É trágica a entranha do adeus como de todo acontecer em que é notório o Tempo.
É duro perceber que nem temos em comum as estrelas. Quando a tarde seja quietude Pm meu pátio, de tuas páginas surgirá a manhã. Será a sombra de meu verão teu inverno e tua luz será a glória de minha sombra. Ainda persistimos juntos. Ainda as duas vozes logram convir, como a intensidade e a ternura nos pores-do-sol.] [Este poema apareceu pela primeira vez na revista Proa, segunda época, Buenos Aires, ano 1, n2 1, em agosto de 1924. Em seguida foi reproduzido, com variantes, em Luna de enfrente (1925), segundo livro de. poemas de Borges. Nas posteriores reedições, acabou sendo suprimido pelo autor, junto com o prólogo e outros sete poemas, que não constam das obras cornplE·tas. Para maiores detalhes, ver Jorge Luis Borges, Textos recobrados (rgrg-1929): Buenos Aires, Emecé Editores, 1997.] [N. T.j
136
ESSE OFÍCIO DO VERSO
[10] The seafarer, ed. Ida Gordon (Manc!H•ster: :vlanchester University Press, 1979), p. 37, versos 31b-33a. A tradução de Borges, "rime bound the fields" evita a repetição dP "earth" pn•sente no original. lima tradução literal seria: "rime bound ÜIP earth".
[Ern português, teríamos algo como: Do norte veio a neve;/ a geada cingiu os campos [ou a terra);/o granizo caiu na terra,/a mais fria das sementes.] l~-
T./
[11] Essa famosa citação ("Quid est ergo tem pus? Si nem o ex mP quaerat seio; si quaerenti explicare n·lim, nescio") f. das Cor!fissões de Santo Agostinho,
XI,
14.
\pp. 29-49]
2.
A METÁFORA
riJ
LPopoldo Lugones (1874-'938), um dos grandes escritores argPn-
tinos do sf.cnlo
XX,
foi a princípio um modernista. Seu Lunario senti-
mental (Buenos Aires: :vloen, 1909) é um eclético volume de poesia, contos e peças que giram em torno do tema da lua; causou escândalo quando vPio a público, tanto por romper com o já Pstabelt·cido moder-
nismo de \·eleidadP intelectual corno por zombar das audiências dessa corrente. Lugones costuma ser citado e comentado nas obras dP Borges. Ver, por exemplo, BorgPs, "Leopoldo LugonPs, El imperio jesuítico", Bi-
blioteca personal, in Obras completas, 1996, pp. 461-2, em que Lugones é descrito como "um homem de convicções e paixões elementares".
[2] Borges refere-se a An et_rmologir:al dictionary of the English language, do reverendo Walter vV. Skeat, publicado pela primeira vez em Oxford, Inglaterra, 1879-82.
137
NOTAS
[3] O qw.' hoje conhecemos como a Antologia (;rega consiste em cerca de 4500 poernas curtos de cerca de trezentos autores, representando a literatura grega do século
VII
a. C. ao
si~culo X
d. C. Estão
preservados principalmente ('m duas coleções justapostas, a Antologia Palatina (compilada no século
X
e cujo nome dPriva da Biblioteca
Palatina de Heidelberg) e a Antologia Plarmdeana (que data do século
XIV
e homenageia o retórico e compilador :viaxirnus Planudes).
A Antologia Planudeana foi primeiro impressa em Florença em 1484; a Antologia Palatina foi redescobPrta em 1006. [4] G. K. ChPsterton (1874-1936), "A second d1ildhood", in The
collected poems oj G. K. Chesterton (Londres: Ceci! Palmer, 1927), p. 70 (tj"- estrofe).
Is] Andrew Lang, Aifred Tennyson, zi! ed.
(Edimburgo: Blackwood,
1901). p. 17. Lang diz, na verdadP, que o yerso é do poema "ThP rnystic" de Tennyson, publicado ern 1R3o.
[6]
qf time and the river, de Thomas Wolfe, foi
I7 J Heráclito, fragnH'nto 41, in
publicado em 1935.
Thejra{!;ments of the u•ork of Hera-
clitus c:f Ephesus on nature, trad. Ingram Bywater (Baltimore: N. :viurnl.y, 18Rg). Ver também Platão, Crátilo, 402a; e Aristóteles,
/}fetafísica, 1010"-, n3.
[8] Jorge :\Ianriqne (1440-1479), "Copias dP Don Jorge :vlari.rique por la muerte de su padre", estrofe 3, versos 25-30. Para urna reedição, ver :\Ianrique, Poe.1ía, ed. Jesús-:\Ianud Alda Tesán, 13u ed. (:viadri: Cátedra, 1989).
138
ESSE OFÍCIO DO VERSO
[ 9 j A trarlução de Longfellow ó: Our livcs are rivers, gliding frpc To that unfathomed, boundless sea, The silent gravP 1 Thither ali earthly pomp and boast Rol!, to be swallowed up anrllost In one rlark wave.
[to] Shakespeare, The tempest, 4º ato, t" cena-;- linhas t56-8: "We are such stuff/As dreams are made on, and our little life/Is rounded with a sleep".
[ tt] Walther von der Vogelwcide foi um poeta medieval alemão (c. 1170-c. t:z3o), um dos rloze "apóstolos" dos bardos (zu•o?f Schir-
mherrenden Meistersiingers). Os primeiros três versos de seu poema "Die Elegie" (A elegia) dizem:
Owêr sint verswundPn ist rnir min leben getrournet, daz ich ie wânde ez wrere.
In Walther von der Vogelwcide, Gedidzte: !Vlittellwchdeutsdzer Te.rt
und Übertragung, ed. Peter Wapnewski (Frankfurt: FischPr, tgllz), p. toll. A versão citada por Borges está metade em médio-alto alemão, rn!'tade em alemão moderno.
[12] Não há referência a "sono fórreo" entre as 93 ocorrências de "sono" elencadas no glossário de Homero. Borges talvt•z estivesse pensando na Eneida de Virgílio, na tradução de John Dryden: "Dire
139
NOTAS
dreams to thee, and iron sleep, he bears" [terríveis sonhos para ti, e sono férreo, ele traz] (livro v, verso wg5); "An iron sleep his stupid eyes oppress'd" [Um sono férreo seus tolos olhos oprimiu] (livro
XII,
verso 467). [13] Robert Frost, "Stopping by woods on a snowy evening", 4ª estrofe, versos 13-6. [14] Entre outros feitos, León Dujovne traduziu o Sepher Ietzirah do hebraico para o espanhol. [15] Ver "Beowulf" and the
Finnesbur~;Jra~;menl,
traduzido para o
inglês moderno por John R. Clark Hall (Londres: Allen and Lnwin, 1958). [16] Do poema 51 da coleção W(ViVa) de e. c. cumrnings, publicado em 1931 (quando curnmings tinha 37 anos). Borges cita os quatro primeiros versos da terceira estrofe. [17] Farid al-Din Attar (morto c. 1:.!30) foi o autor do lVlanliq al-tayr, em inglês The conjerence oj the birds, trad. Afkharn Darbandi e Dick Davis (Harmondsworth: Penguin, 1984). Ornar Khayyárn (floruit século
XI)
foi o autor do Ruháiyát, tradmido
Prn
1il59 por
Edward FitzGerald, cuja versão alcançou posteriormPJJte várias edições. Hafiz de Shiraz (morto 1389-1390) foi o autor de Divan, traduzido do persa por Gertrude Lowthian Bell (Londres: Octagon Press, 1979).
[1H] I\.udyard Kipling, From sea to sea (Garden City, Nova York: Doubleday Page, 1912), p. 386. A citação é do poema "Petra" (1845)
140
ESSE OFÍCIO DO VERSO
de Dean Burgon, que faz eco ao "ltaly: a farPwell" (18z8) de Samuel Rogers: "many a templP half as old as Time".
[19] ShakPspeare, Soneto
2.
[zoj Um kenning (plural kenningar) é urna paráfrase rnultissubstantivada usada no lugar de um único substantivo. Kenningar são comuns no verso do alemão antigo, em especial na poPsia escáldica e, em menor extensão, na literatura édica. Borges discute tais expressões em seu ensaio "Las kenningar", parte de Da historia de la
eternidad (1936) e em Literaturas germánicas medievales (1951), escrito com :Ylaría Esther Vázquez.
[zl] Este é o primeiro verso do poema de dezoito versos de Byron, "She walks in beauty, like the night", publicado em sua colPtânea
Hebrew melodies (1815), urna série de cantos a serem adaptados a tradicionais melodias judaicas pelo músico Isaac Nathan.
3·
O NARRAR lJ:v!A HISTÓRIA
[pp. 50-62]
[1l Williarn Wordsworth, "With ships the sea was sprinkled far and night", coligido em seu volume Poems, 1815.
[ 2[ William ShakespearP, Soneto 8.
[) J
Homero, The Iliad: the story oj Achillês, trad. Williarn H. D.
H.ouse (:'-iova York: :\ew American Library, 1964).
[4] Ver Borges, "l .as kenningar", in La historia de la eternidad (Bue-
141
NOTAS
tlOs Aires: Ernecé Editores, 1930), que trata extensamente de Snorri Sturluson (1179~1241), o mestre islandês da Edda. O poema de Bor~ ges a ele dcdicado diz assim:
Tú, q1H' legaste una rnitología De hielo y fuego a la frlial rnernoria, Tú, que fijaste la violenta gloria De tu estirpe pirática y bravía, Sentiste con asombro en una tarde De espadas que tu triste carne humana Ternblaba. En esa tarde sin maiiana Te fue dado saber que eras cobarde. En la noche de Islandia, la salobrc Borrasca mueve Pl mar. Está cercada Tu casa. Has bebido hasta las heces El deshonor inolovidable. Sobre Tu pálida cabeza cae la espada Corno en tu libro cayó tantas veces.
[Tu, que legaste urna mitologia De gelo e fogo à filial memória, Tu, que fixaste a violenta glória De tua estirpe pirática e bravia, Sentiste com assombro em uma tarde De espadas quP tua triste carne humana Tremia. X essa tarde sem manhã Te foi dado saber que eras covarde. Na noite da Islândia, a salobre Borrasca move o mar. Está cercada Tua casa. bebeste até a borra
142
ESSE OFÍCIO DO VERSO
A desonra inesquecível. Sobrf' Tua pálida cabeça cai a espada Cmno tantas vezps caiu em teu livro.1 151 VPr Samuel Butler (1835-1902), The authoress rif the "Odyssey", u•here and u·hen sfze wrole, u·ho slze was, tlze use she made o). lhe "lliad", and hou· lhe poem greu• under her hands, ed. David Grene
(Chicago: University of Chicago Prt>ss, 1967). [61 Shakespean', King Henry the fi'ourtlz, Pari I, 12 ato, 1ª cena, linhas U)-T
"those blessf'd feet/Which fourteen hundred years ago were
nail'd/For our advantage on tl1e bitter cross" [aqueles abPnçoados pés/Que catorze séculos atrás foram pregados/Em nosso proveito na a1narga cruz]. [7 J Williarn Langland (1330?-14oo?), The vision of piers the Plou·rnan, ed. Kate :\1. Warren (Londres: T. Fischer Cnwin, 1895).
[8] Henry Jamf's, The Asperrz papers (LondrPs: \1artin Secker, 1919). [9] Volsun{!:a saga: The story of lhe Volsungs and 1\Tiblungs, Pd. H. Halliday Sparling, traduzido do islandês por Eiríkr :\1agnússon e William :\lorris (Londres: W. Scott, 187o).
[ 10
J T. E. Lawrence, Seven pillars of u·isdom: a triumph (Londres: J.
Cape, 193'í).
[u] Henri Barbusse, Lefeu: Journald'wze escouade (Paris: Flammarion, 1915).
143
NOTAS
[12] G. K. Chesterton, "The ballad of the white horse" (1911), in Tlze collected poems qf G. K. Clzesterton (Londres: Ceci! Palmer, 1927), p. 225.
Trata~se
de um poema longo, com cerca de 530 estrofes.
Borges cita do livro
4·
[1
III,
22ª estrofe.
MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO
J
[pp. 63~81]
Essa tradução em prosa foi publicada no Contemporar:r Review
(Londres), novembro de 1876.
[ 2] Tennyson, "The Battle o f Brunanhurh ", in Tlze complete poeú~ cal works of Trenn_yson (Boston: Houghton :\1iff1in, 1898 ), p. 485 (3d estrofe, versos 6~7 ).
[3] Essa é a primeira das oito estrofes da "1\loche oscura de! alma" de Sau Juan, ou, como diz o castelhano do século de ouro, "CancionPs de e! alma qup
SP
goza de aver !legado ai alto estado de la perfectión, que
es la unión con Dias, por el camino de la negación espiritual".
[4j Symons traduziu como "The obscure night of the sou!". Ver \'Villiam Butler Yeats, ed., Tlze Oxji1rd book of modem z•erse,
1892~
1935 (Nova York: Oxford University Press, 1936), pp. 77~8. [ 5] Roy Campbell, Collected poems (Londres: Bodley IlPad, 1949; reed. 1955), pp. 164~5. Campbell toma a primeira expressão do original espanhol corno título de sua tradução: "En una noche oscura".
[6] A expressão "granel translateur" vem df~ urna ballade de Eustache
144
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Deschamps, contemporâneo francês de Ch,mcer. O refrão(~: "et translateur, noble Geoffroy Chaucier".
l7] Este é o primeiro verso do "Parlament of Fowlcs" de Chaucer. [8] Tcnnyson, "The Battle of Brunanburh", in The complete poeti-
cal works, p. 4H6 (13il estrofe, versos 4-5).
rg] Segundo a tradição, Ilengist e Ilorsa foram
os irmãos que lidera-
ram a invasão dos jutos à Grã-Bretanha em meados do século v c fundaram o reino de Kent.
[wl Francis VVilliarn :\ewman
(1íl<>5-1íl~J7) não só foi um erudito e
tradutor clássico, mas escreveu extcnsamente sobre religião, política, filosofia, economia, moralidade e outros temas sociais. Sua tradução da lliada foi publicada em 1íl56 (Londres: Walton and \1aberly).
[uj Ornar Khayyám (1048?-1122), Ruháiyát, trad. Edward FitzGerald (18og-18H3), Pd. Carl J. \'Vpber (WatcrvillP, :\1aine: Colbv College Press, HJ5g). A versão de FitzGerald foi publicada originalmente em Londres, em 1859.
r12 J .\ frase í· de f lorácio, Ars puetica. p. 3'i!-i' "I ndignor quandoque bonus dorrnitat Hornerus" ("Indigno-me quando até mesmo o bom Homero cochila").
[ 13] A tradução da Ilíada a cargo de George Chapman foi publicada em 1614; sua Odisséia, em 1614-5· Thornas Crquhart (ou Urchard) publicou sua tradução dos cinco volumes dP Rabelais entrP 1653 e 1694. A tradução da Odisséia a cargo de Alexander Pope aparPceu em 1725-6.
145
NOTAS
5·
PENSAMENTO E POF.SIA
[pp. 8:2~1o1]
[ 1J "Toda arte aspira constantemente à condição de música". Walter Pater, "The School o f
(~iorgionc",
in Patcr, Studies in the history oj
the Renaissance (1873). [z] Eduard Hanslick (1825~1904), crítico musical austríaco, foi autor de Vorn iVIusikalisch~Schonen, publicado pela primeira vez em 1854· Em inglês: The beauliful in rnusic, trad. Gustav Cohen (Londres: :\ovello, 1891).
[3] Ver o ensaio de Stevenson "On some technical elemcnts of style in literature" (seção
2,
"The Wcb"), in Robert Louis Stevenson,
Essays oj travel and in lhe art C?f writin~ (Nova York: Charles Scrib~ ner's Sons, 1923), pp. 253~77, esp. pp. z56 c 259: "O motivo e o fim de qualquer arte é fazer um modelo
I ... J. A trama, pois, ou o modelo:
uma trama a uma vez sensual c lógica, uma textura elegante e
sugcs~
ti v a relegant and pregnant]: isso é estilo, esse Í' o fundamento da arte da literatura". [41 G. K. Chestcrton, G. F. Watts (Londres: Duckworth, 1904). Borges talvez estivesse pensando nas pp. 91~4, na quais Chcstcrton discute sinais, símbolos e a mutabilidade da língua.
\51 William Butler Yeats, "After long silence", in W.
n. Yeats, The
poerns, ed. Hichrad J. Finneran (:\ova York, Macmillan, 1983), p. z6s (versos 7~8).
I6[ (~eorge
\lcredith, A1odern love (1R6z), Soneto 4·
146
ESSE OFÍCIO DO VERSO
l 7 I Shakespeare, Soneto 107. r8 I Williarn :Vlorris, "Two red rases across the rnoon "' in \lorris,
"The deferu:e oj Guenevere" and olhe r poerns (Londres: I ,ongmans, Green~
18g6), pp.
223-5.
Esse verso é o refrão de cada uma das non•
estrofes. [g] Williarn \1orris, "The tune o f seven towers", in "The defew·e of
Guenevere" and olher poems, pp.
Igg-201.
De novo, Borges cita ore-
frão. O po~ma foi escrito em 1858, inspirado pelo quadro The !une oj
seven tou·ers (1857) de Dante Gabriel Rossetti.
[10 l Tradução aproximada: Peregrina porn ba imaginária 'Que inflama os últimos amores Alma de luz, de música e de flores, Peregrina pomba imaginária.
[11] :vleredith, !Vlodern lave, Soneto 4 7· [ 12] James Joyce, Finnegans wake (Harmondsworth: Penguin, 1976; reed. 1999), p. 216 (final do livro 1). A passagem inteira diz: "Who were Shern and Shaun the living sons or daughters of? :-.right now! Telt' me, tt>ll me, tell me, elm! l\ight night! Telmetale o f stem or stone. Beside the riveríng waters of, hitht>randthithering waters of. Night!". A postura de Borges diante do último romance de Joyce é ambígua: "A justificação para todo esse período está nas duas obras de Joyce, [ ... ] das quais Finnegans u·ake, cujo protagonista f. a língua inglesa, f. indiscutivelmente ilegível c cPrtarrH•nte intraduzível para
147
NOTAS
o espanhol". Ver Roberto Alifano, Conversaciones con Borges CVIadri: Debate, 1986), p. 115.
[13] Esses versos de "Report on experience", de Edmund Blunden (18g6-1974), ganham força pelo fato de ecoarem, com sinais invertidos, uma passagem da Bíblia na versão do rei Jaime (King James version): "I have been young, and now am old; yet haveI riot seen the ;ighteous forsaken, nor his seed begging bread" [Fui jovem e agora estou velho; porém não vi o justo esquecido nem sua prole rogando pão] (Salmos 37,25). [14] "Luck! In the house of breathings lies that word, all fairness. The walls are of rubinen and the glittergates of elfinbone. The roof herof is of massicious jasper anel a canopy of Tyrian awning rises and still descends to it." James Joyce, Finnegans wake, p. c-!49 (livro li).
[15j O Dictionary oj the English langua{!;e de Sarnuel Johnson foi publicado em Londres em 1755. O Etymological dictionary
if
the
En{!;lish lan{!;uage de Walter VV. Skeat foi publicado pela primeira vez em Oxford, Inglaterra, 187g-8z. The shorter Oxjord English
dictionar_y (baseado no Oxjord English dictionar_y de doze volumes) teve sua primeira publicação em Oxford, em 1933. [16 J Robert Louis Stevenson, l\!lemories and portraits (11l87), capítulo 4: "I have thus played the sedulous ape to Hazlitt, to Lamb, to Wordsworth, to Si r Thornas Browne, to Defoe, to Hawthorne, to :\1ontaigrJP, to llaudelaire, and to Obermann".
[17] Samuel Taylor Coleridge, Biblio{!;raphia !iteraria, capítulo 14: "that willing suspension of disbelief for the moment, whicb consti-
148
ESSE OFÍCIO DO VERSO
tutes poetic faith" [voluntária suspensão momentânea da incredulidade, que constitui a fé poética]. [18] Estes são os últimos quatro versos do "Kubla Khan" de Samuel Taylor Coleridge. [19] Azorín (1873-1967), La ruta de Don Quijote (Buenos Aires: Losada, 1974). :viiguel de lJnamuno (1864-1936), Vida de Don Quijote y Sancho según Miguel de Cervantes Saavedra, 2ª ed. (:viadri: Renacirniento, 1913). l2o] "um violento pavão verde, ddiriado em ouro". [21] Paradise regained, livro
IV,
versos 638-9; in The complete works
oj Jolml\1.ilton, ed. John T. Shawcross (Nova York: Doubleday, 1990), P· 57 2 · [ 22] Do soneto de :viilton sobre sua cegueira, "When I consider how rny light is spcnt" (1673).
6.
O CREDO DE UM POETA
lpp. 102-126]
[ 1j.John Keats, "Ode to a nightingale ", versos 61-7 ( 7ª estrofe). [2] Borges tratou extensarnente do assunto ern "Los traductores de las 1001
noches", incluído em La historia de la eternidad (1936). O erudito
Antoirie Galland (1646-1715) publicou sua tradução francesa das Mil e uma noites nos anos 1704-17. O orientalista britânico Edward Williarn Lane (1801-1876) publicou sua tradução inglesa em 1838-40.
149
NOTAS
I3 i:\ frase é das Leaz•es oj grass de VVhitman (edição d(• 1Hg2), "Song to myself'',
I4[
24il
sPção,
1Q
verso.
"El inmortal '' foi publicado em 1949, na coletànea FJ A /eplz de
Borges. [5] Virgílio, Rneida, livro
VI,
verso 26R. :\"a tradução dP John Dry-
den, o verso diz: "Obscure they went thro' dreary shades" l Obscuros eles foram por sombras lúgubres] (livro
VI,
wrso 37R). Robert D.
Williams verte como: "They walk<'d exploring the unpeopled night" [Caminharam explorando a noite despovoada] (livro
VI,
v<'rso 35:i).
[6] Do Tlze seajarer, ed. Ida Gordon (:vianchPster, Inglaterra: :\hnchester liniversity Press, 1979), p. 37· V(•r a discussão de Borges no capítulo 1 deste livro.
[ 7] Shakespeare, Soneto R.
[8] Este é o primeiro verso do "Endymion" (1H1H) de Keats.
[g] Borges, em convPrsa com Willis l3arnstone, Pxpressou um desejo de anonimato. '"Se a Bíblia são penas de pavão, que espécie de pássaro você é?', perguntPi. 'Sou', respondeu BorgPs, 'o ovo do pássaro, em seu ninho em l3tu•nos AirPs, dPntro da casca, feliz em não ser visto por ningu(•m com discriminação, c espero enfaticamente que continue desse jeito!"' Willis Barnstonc, With Borges on an ordinary
evening in Buenos Aires: a memoir (Urbana: liniversity of Illinois Press, 1993), p.
2.
[w] "Spinoza" foi publicado num volume dedicado a Leopoldo
150
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Lugones, El otro, el rnismo (Buenos Ain·s: Ernecé Editores, 1966). Uma tradução aproximada: As translúcidas mãos do judeu Lavrarn na penurnbra os cristais Ea
tard:~
que morre é mt>do e frio.
(As tardes às tardes são iguais.) As mãos e o espaço de jacinto Que empalidece nos confins do gueto Quase não existem para o homem quieto Que está sonhando um claro labirinto. I'\ão lhe perturba a fama, esse reflexo De sonhos no sonho de outro espelho, :'-lenr o tenreroso mnor das donzelas. Livre da metáfora e do mito,
r.avra um árduo cristal: o infinito \l[apa DaqupJt• que f. todas Suas estrelas.
Cm segundo soneto consagrado ao filósofo, "llaruch Spinoza", foi publicado em La moneda de hierro, em 1976 (ver Borges,
Obras completas, vol. 3 [Buenos Aires: Emecé Editores, 1995 J, p.
lijr):
Bruma de oro, cl occidente alumbra l .a ventana. El asiduo manuscrito Aguarda, ya cargado de infinito. Alguien construye a Dios en la penumbra. Cn hombre engendra a Dias Es un judío De tristes ojos y piel cctrina; Lo lleva cl tiempo como lleva el río
151
NOTAS
Una hoja en e! agua que declina. No importa. E! hechicero insiste y !abra A Dios com gC'ometría delicada; Desde su enfermedad, desdt> su nada, Sigue erigiendo a Di os con la palabra. E! más pródigo amor !e fuC' otorgado, E! amor que no espera ser amado. [Bruma de ouro, o OcidPntP ilumina A janela. O assíduo manuscrito Aguarda, já carregado de infmito. Alguém constrói Deus na penumbra.
~m homem engPndra Deus. Í~ um judPu De tristes olhos e pele citrina; Carrega-o o tempo corno carrega o rio Urna folha na água que declina. Não importa. O feiticeiro insiste
P
lavra
Deus com geometria ddicada; Desde sua enfermidade, desde seu nada, Segue erigindo Deus com a palavra.
O mais pródigo amor lhe foi outorgado, O amor que não espera ser amado.]
DESSE E DAQCELE OFÍCIO VERSÁTIL
[pp.
127-1321
r I J Com sua habitual ironia, Borges declarou que não Pra tão bom ern zmnhar de si rnesrno como outros
escritores~
seu grande arnigo
Adolfo Bioy Casares cntrP eles. "Consola-mC' saber que serei dissolvido pelo Psquecimento. O esquecimento me fará anônimo, não
152
ESSE OFÍCIO DO VERSO
fará?" Borges-Bioy: Confesiones, conjesiones, ed. Rodolfo Braceli (Buenos Aires: Sudamericana, 1997), pp. 51-2.
[2] Borges, oral contém a "parte pessoal" dessas palestras de Belgrano. Os tópicos incluem (em. ordem cronológica) o livro, a imortalidade, Swedenborg, a história policial e o tempo. Borges, oral foi publicado pela Emecé Editores em Buenos Aires, em 1979, e reimpresso in Borges, Obras completas, vol. 4 (Buenos Aires, Emecé Editores, 1996), pp. 161-205. Desde a sua publicação, tornou-se urna referência para os estudos sobre Borges e para os leitores no mundo hispânico.
l3J
Ver capítulo 2; e também Borges-Bioy: Conjesiones, conjesiones,
IJI.
[4] A memória de Borges era lendária. Um professor americano de ascendência romena relata que, durante urna conversa informal com Borges em 1976, na Universidade de Indiana, o escritor argentino lhe recitou um poema romeno de oito estrofes que aprendera com seu autor, um jovem refugiado, em Genebra, em 1916. Borges - não sabia romeno. O poder d(• sua memória também era peculiar no sentido de que ele tendia a lembrar as palavras e obras dos outros, enquantD alegava ter esquecido completamente os textos que ele próprio escrevera.
[5] Borges--Bioy: Confesiones, confesiones, p. 6o. Outras coletâneas de entrevistas com Borges incluem Dos paiabras antes de morir y otras
entrevistas, ed. Fernando :vlateo (Buenos Aires: LC Editor, 1994); Borges, el memorioso: Convêrsaciones de .!or{!;e Luis Borges con Antonio Carrizo (Cidade do :vléxico: Fondo de Cultura Económica, 1g8z);
153
NOTAS
Borges: lmágenes, me mo rias, diálogos, ed. :\Iaría Estlwr Vázquez,
2ª
ed. (Caracas: \Ionte Axila, 1g8o); e Jorge Luis BorgPs e Osvaldo Ferrari, Diálogos últimos (Buenos Aires: Sudarnericana, U.J87).
154
ESSE OFÍCIO DO VERSO
Índice remissivo
Adatnson, \1Plitta, 132 Arlrentures uj· I /urkleherr_r Firm
Borges, oral, a:l:--H, IJJII
[\lark Twainl, qq, 107-H Agostinho, Santo, 27; Corifissões, IJ7fl .\lcorão, 17-H. 1)1
Browning, Elizabeth Barrett: Sonnets
Browne, Thom~s, 110, 14811
alPmão. )~. 74, Ho, Ho, 95, 110, 13911,
Jrotn the Portu~uese, 79 Browning, Hohert, >3, 13411 Buher, :VIartin, 40
Buda, •5 Buenos Ain~s. 14, 40,
l41ll
:\lfredo, rei, tio, H4 Ali fano, Roberto, 13311, 14811 anglo-saxão, 1·er ingl~ antigo Antologia (;rega, 32, 13811
lO), 12H, 130,
13611, 1)011 Bunyan. John: The Pilgrinz 's progress,
Apocalipse, lino do, 33 :\rios to, l.udovico: Orlando furioso, 5H Aristóteles, 1)4"' IJ8n Arnold, Vlattlww, 72-4 Ascher, '-'1aria, 132
114 Burgon. 11ean, 14m Burton, Hichard, 73, 103, 100 Butler, Samuel, 5), 14311 Byron, ( ;eorg<' ( ;ordon. I ,ord, 4H; "She walks in heauty. like the
A>pem papers, Tlze [Henry Jamesj, ">7· 143 11 AI'etlluras de Sherlock llolmes [Arthur Conan Doyle], gg-•oo, 10H-g, 113 Azorín: /,a rula de /Jon Quijote, gq, 1
49"
"Ballad of the white horse. 'ri"·" [ Chesterton J. 144n Barbusse, Henri: I.e.feu: Journal ri'unc
escouade, :j9, 14]11 Barnstone, Willis, 1)0ll
night,
141ft
Bywater, lngram, 13411. 13811 cabala, 7H, H;
Calderún de la Barca, Pedro, 75 CampiJl'll, Hoy, 07, 70, 14411 Cansinos-Asséns, Hafael, 17, 24, IJJn, '34 11 CarlyiP, Thomas, 116; Sartor Resartus, 110 Casares, Adolfo Bioy, 1)211 Cen·antes, \liguei de, •')•; Dom
"Battle of Brunanhurh, Tlw'' [Tennyson ], 14411, 145n Baudelaire, CharlPs, 1 u, 148n; l.cs
jleurs du nzal, 79-Ho Belgrano, UniversidadP de, 1>H, 1)3" Bell, (;ertrudP I ,owthian, 140n Benjamin, WaltPr, uH
Be01ru!f, 19, 31, ~H, 1)1, 14on BerkelPy, <;eorgf', 11-2, Hq Bíblia, 1~-H, 71· :H-(J, 131. 148n, 1)0ll Blurukn. Edmund, 4+· 14811
155
Qui.rote, 20, 1oH, 14911 Chapman, (;eorge, •3-+· H1, 14)11 Chaucf'r, <;eoffrey, 55, oH, 14)11 Clwsterton, <;. K, 20, Ho. 12H, 13811,
14611; "A s~cond childhood ", 00 ; "The hallad of the white horsp", 00-1,14411 China, 11, 30, 42 Chuan Tzu, 37-H Clendinning, Sherri, '3> Cohen, ( ;ustav, 14611
ÍNDICE REMISSIVO
ColPridgP, Sarnucl Taylor, yH, 148n, 1
49"
Cor~fissões r Santo Agostinho j, IJjfl Conquista do Peru I William Prescott ], 103
Conrad, Joseph, 56 Crane, Stephen: The red badge oj courage, 105 cristianis1no, 55 Croce, Benedetto,
11, 122
curnrnings, e. e., 42, 14on
Dante Alighieri, 61, 8o; Dit·ina comédia, 11 Darbandi, Afkham, 14011 Darío, Rubén, 57· qt Davis, Dick, 140n De QuincPy, Thomas, 10, 99 Declínio do Ocidente, O [SpPngler], 17-8 Defoe, Daniel, 148n Descharnps, Eustache, 144n, 145n I )ickens, Charles,
Farid al-llin Attar, 44, 14on; Parlamento do~· pássaros, 75 Fedro lPlatàoj, IJJn Fernándf"z, \1acedonio, 17, 1)411 Ferrari, Osvaldo. ljjrl, 154" Feu: Journal d'une escouade, l.e [llenri Barbusse], 59, r43n Fmnegans u·ake [James Joyce ], 94, 147"• '48n Finnesburg, fragrnento de, 41, 14on
FitzGerald, Edward, 74-7, 140n, 145'l Flaubert, Gustave: Salarnbô, 117 Fleurs du mal, f,es [Charles
Baudelaire], 79-Ho francês (língua), I<), 4H,
123,
13311
Freire, Ricardo Jaimes, 91
From sea to sea [Rudyard Kipling],
44· 140n Frost, Hobert, 3H, 112: "Aequainted with the night", 113; "Stopping
by woods on a snowy evening", :;g, 140fl
20
lJil·ina cornédia rDante A lighieri], '' Dom Quuote [:Vliguel de Cervantes],
(Talland, Antoine, Ioíi, 149n
2o, qH-g, wH-q, 113, 149n Donne, John, 101
(J.eorge, Stefan: Blumen des Büsen, Ho
Dostoii-vsk1, Feodor, 109 Doyle, Arthur Conan: Az•entums de
gnósticos,
(;enebra 1 1og, l5}Tl
Gibbon, Edward, 121. 114
Sherlock Holmes, gg-•oo, 10H-g, ""> Dryden, John, 139n, 150ll Dujovne, León, 40, 14on
(Tmethe, Johann \Yolfgang von: fVlihelm :Weisters l,ehrjahre, 116-7 (;óngora y Argote, Luis de, 47, 101 grego (língua), 11, IC,, 22, 32-3, c;3,
Elizabeth, rainha, go EmPrson, Ralph Waldo,
6H, 71, 9">· 11H (;recn, Richard, 132
12.
40,
111
Eneida rvirgílio], '39"· IJOTI escod•s (língua), 64, ;·•, H6 escolásticos,
11
espanhol (língua), 66, 70, 72,76-7, g•, 110, 12:), 1)0. 140fl, 144fl, 14811
Espírito Santo, 17-H, 24, 7H Estados Cnidos. 12, 61, 124-5
Hafiz de Shiraz, 44, 14on HalL John lt Clark, 14on Hamlet [\Yilliam Shakespeare :, 20, 1}4" Hanslick, Eduard, R3, 93· r46n llarvard, Cniversidade de, 127 Hawthorrw, r\athaniel, 57, 148n; /Jetra e~·car!ate,
evangelhos, C,4-'i
156
ESSE OFÍCIO DO VERSO
H)
llazlitt, \\"i! liam, q~. 14811 hebraico (língua), 1'j 'j. 14011 hcbreu~ 1H,73, H7 l!eine. !IPinrich, 1)1; '·llerTod dall ist frühe Kacht ", 3H; /,_yrischn lntermezzo, 110 Hengist, :"O, 8'), 145" HPráclito, 1]4"· IJ8n l-{Olderlin, Friedrich, 11 o Homem fmúir·el, O [H. ( ;. \Yells :. 124 Homero,
11, I),
d1,
22, 21),
27, 3H, 52,
62, 72-3, 77, 7H, Ho-1, 11H,
7H, H1, 145n Horácio, l45'l Horsa, -;--o, 145ll Hume, f1avid, 11
')2,
:H,
Lane, Edward \Villiam. 106, 149" Lang, Andrew, ?i+• 51, IJ8n Langland, William, 54· 14}" latirn, 22, 52, OH, IJJII I ..awrence, T. E.: Sete pilares da
León, Frei Luis de, 11, :"3 LPssing, ( ~otthold, 110 OI),
Hti, 91, 94-5· 10?, tio, 130, 14on, 147n; antigo, 17, (2-+,
Letra escarlate [Kathaniel Hawthornej, H3 lA/é on the ivl/sszSSJppl [\lark Twain ], 1o:"-H I . em dres, 12 I m1gfellow, Henry Wadsworth,
24--), ti:'), 70, 111, 131
lmnhoé [Walt
57• l4Jn Jáuregui, Juan de, 77 Jesus, 16, 1)1), 105
João, são, )3 Johnson, Christina,
140n
tog, 150ll
Indiana, Universidade de, 153
122;
'var", 59; From sea to sea, 44· Koyounian,
"Leda e o cisne" [\\'illiam Butler Yeats ], H)
Inglaterra, 39, bq, H!) ingli'·s (língua), l(j, 21-2, 35, 45·
Jatnes, Henry,
77• 14Dfl, I45n Kipling, Rudyard, 112, 122; "/\ Sahib's
sahedona, c,q, 143 /,eaPes of grass [V\'alt Whitman],
Ilíada íHomero:, 14, 41, IIH, 145" Índia, 11, H1, 119
IQ 1
Khayyárn, Ornar, 44' Ruhái_yát, 74,
131,
1.2g,
1]9"· 14Ifl, 145fl; Ilíada, 14, 41's>, 7H, 11 H, 14 511; Odisséia, 14-5, ') '),
07, ?O,
Kafka, Franz, 1:zH; O castelo, 57 Keats. John, l) I. 1 son; ":\ thing o f beauty is a kinrl of )O)'" forP\Tr", 120; ''Ode to a nightingale", lO)-'), 149n; "On first looking into Chaprnan's Hmner", }2-5
3C,, 1}911 l . ucano, 77 l . ugones, I . Popoldo, 30, 91, Ioo, 111, 12R, 150fl, l)In; /,unario sentimental, ')I, 1}711 Lutero, \lartinho. 73-4
132
Johnson, Samuel, 97· 14811 Joyce. JamPs, g'), 101, 129, 1)1;
Fumegans u·ake, 94, 147"· 148n; Ulisses, 61 Judas,
105
judeus, H7, 141ll, 15fn, lj2n
157
!'vlacbeth] William Shakespeare], 11 \'lagnússon, Eiríkr, 14]n \lanriqw•, Jorge, 138n .'\-lédico e o monstro. O rsrevenson], sH \1elvillc·, Herrnan, 50; iHohylJick, 114
ÍNDICE REMISSIVO
\1Pncken, 1-1. I .. , :;ti \leredith, ( ;Porge. 14611, 14711 .~li! e uma noites, 45, 53, :)H, 73· H7, 10). 100-~. '3'· '49 \lilton, John, tH, 55, 129; Paradise
regwned, tuo, 149!1
\lontaigm·. \lichel de, 14811
Platão, 15·6, 32, 1]4"• 1J8n; Fcdro, 1JJ" Poe, Edgar Allan, 57, IJJ-2, 1)1 Poetics cif musir in the_form of si:r lessom [lgor Stravinsky J, 127 Pope, Alexander, 72, 77, H1, 11H, 145fl Prescott, William: Conquista do Peru,
103 Psicose [.\lfrPrl Hitchcock],
\lorris, \Yilliam, ()O, 14}"• 147n rnuçulrnanos, tR
~H
Rabelais. François, Ht, 1)1, 145Tl Red badp:e of cuurage. The [Stt>plwll
:Kathan, Isaac, 14Tn
Kewrnan, Francis \Villiam, -;-1-2, 14511
.Vibelungenlied. 110 nórdico antigo (língua), '7• 46, 79, 110 T\orton Lectures, 127-9
Crane~,
Rogprs, Sarnuel, 141T1 Rorna,
( lde de Brunanburh, 46, 64-5, 69 "Ode to a nightingale" [John Keats], 10 3·5· 149" Odisséia [Homero], •4·), 53, ;-H,
HJ, 145"
Of time and the rú·er [Thomas
lU:)
"1\,.qui<•m", [RobPrt l.ouis St(•V('lJSOll j, qti 121
1\ossetti, Dante• ( ~abriel, .lo
1, 27, ':"·),
1}4 11 • 14711 Roughing itl\Iark Twai11], 107
Rouse, William H. ll., -)2, 14m Rubázyát [ Omar Khayyám), 74, 77• 14011,
14511
Wolfe]. 34· IJ8n "On first looking illlo Chapman's Homer" [John Keatsl, 12-C, Orange. Thomas, 132 Or/andojunoso [I .udovico :\riosto ], :;H
Ruta de Don Quijute, /,a [Azorín ],
O.rford book oj modern l'erse. Thc [\Yilliam Butler Yeats]. o~. '44"
Sa/ambô [r;ustave Flaubert], "7 Sa11 Jua11 de la Cruz, 66-;, 69·70 Sanrlburg, Carl, "'i Sartor Resartus [Thomas Carlyle], 110
Paradzse rq;azned [John \lilton]. Joo,
9<:), 149 11
"Sahib's war, /1." [Hudyard Kipling], ~9
Schopenhauer, Arthur, 11, 17. Hq, 110
149 11
11 ~
Paris, 15
Scott. \Yalter, '4}11; lmnhoé,
Parlamento rios pássaros [ Farid ai I )in
SPtwca. '-:-' Sete pilares da sabedon'a [T. E.
Attarj, 7·)
!'ater, Walt<•r, H0 , 14611 Perón, Evita,
I .awrence ], 59, '43 Shakespeare, \Villiam, •3·4. 3ti-;. 4'>•
1 :l)2
Perón, Juan Ilmningo.
1 ):l
persa (língua), 44, 77, ?
45· 54· 61, Hg-go, 'Jl• IJJn, 14111, 147n, 15011; Hamlet, 20, 13411; Killf, llenry the Fourth. Par! I, 14]11,
l'vlacbeth, 11; The tempest, 1]9" Shaw, Bernard, I'), 1H, uH
158
ESSE OFfCIO DO VERSO
Shorter Oiford Englísh dictionary,
l'hsscs: JanlPS Joyc~ J, 61
The, 97, 148n Skeat, \Valter \V., 3'· 97, IJ7"• 148n Sócrates, 15-6, TJJn "Song of songs", 73-4 Sonnetsfrom lhe Portuguese [Elizabeth Barrett Browning], 79 Spengler, Oswald: O declínio do
l:namu11o, \liguei de: Tida de Don Quijote _l· Sancho ser;ún -~ligue! de Ceruantes Sam-redra, gg, 14911 l'rba11, \larek. l'j2 Urquhart, Thomas, Ht, 145" Vázquez, \1aría Esther, 141n Verlaine, Paul, 119 Yirgílio, ;), 6>, 6H, 120, 131; Eneida,
Ocidente, 17-H Spinoza, Raruch, Hg, 121)-6, IJOll, IJIIl Stevenson, Robert I .ouis, Hy5, 94, 97, 112,115, 1?)1, 146n, 148n; Ornédicoe o nwnstro, 5H; "1\equietn", q6; ll'éir qf Herrniston, )o) "Stopping by woods on a snowy evening" [Robert Frost], 14011 Stravinsky, Igor Poct1:cs of music in the jorn'l oj si.r lessons, 127 Sturluson, Snorri, t')),
14211
Swinburne, Algernon Charles, Symons, Arthur, 6~. 144" Szeib. :\ndrew, •v Tácito,
':-'~
110
Tempesl. The [William Shakespeare], 1]9"
Tennyson, Alfn•d, )4, 64-b, tig-7o. IJ8n; "The 1\attle of Ilrunanburh",
144"· 145" "Thing of beauty is a kind of joy forever, A" [John Keats], 120 Toswell, Jarw, 132 Twain, \1ark: Adr,entures çf
lluckleberry Finn, qq, 107-H~ l~~fe on the l'vlississippi, 107-H; Ruughing ti, 107
159
IJ9ll, 150fl
\iogelwPide, Walther von der. 37, 43, 1]9"
To/sunga Sa{!.lk The story of the Vo/sungs and :Viblungs, I4Jll
5H,
\Vaus, ( ~. F, H6, 146n Jf/eir cf 1/errniston [Robert Louis Stevenson], 35 Wells, H. ( ~.: O Homem Im•isíl'el, 124 \\ihistler, James \1cKeill, 15 Whitehead, Alfred :\orth, H6 Whitman, \Yalt, 40, 110, li')-O, '3'· 1)4ll; l.eaves of grass, 1og, 15on \Yilde, Oscar, 111 lf/ifhelm _'l.feisters /,ehrjahre [<~oethej, ll6-: Williams, Robert D., 15011 \\'olfe, Thomas: Of time and the
rú·er, 34, IJ8n \Yordsworth, William. 'i'· li<), 14111, 148" Yeats, William Hutler, HH, 101, 146n; "Leda e o cisne", H'j; The (JJjord book
cf
ÍNDICE REMISSIVO
modern t'erse,
n:, 14411
RAUL LOUREIRO
Composição WALBAUM Fonte
BUREAU 34
Filme GEOGRÁFICA Impressão OFFSET 100% RECICLADO DA SUZANO
Papel
EDITORA SCHWARCZ DEZEMBRO DE 2000