SUMÁRIO CAPÍTULO 1: PRIMÓRDIOS EL JEFE MÁXIMO Da infância até a revolução NEM TÃO VERMELHOS A ideologia dos revolucionários revolucionários FIDEL, O INÍCIO O ataque ao quartel de Moncada A GRANDE FESTA AMERICANA Cuba na época de Fulgêncio Batista CONSPIRAÇÃO NO MÉXICO Fidel conhece Che no México
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CAPÍTULO 2: REVOLUÇÃO VIAGEM INFERNAL A desastrosa mi ssão do iate Granma HASTA LA VICTORIA A guerrilha e a conquista de Cuba
26 32 Fidel posando em Sierra Maestra, em foto de 1970
CAPÍTULO 3: PODER RÉVEILLON VERMELHO A festa e as esperança s dos cubanos MARXISMO-SURPRESA Ninguém esperava o radicalismo 2 MINUTOS PARA A MEIA-NOITE Baía dos Porcos e Crise dos Mísseis K C O T S R E T T U H S A P A C | S N O M M O C A I D E M I K I W O T O F
638 TENTATIVAS, ZERO SUCESSO A obsessão da da CIA por matar Fidel Fidel A GRANDE MUSA DE FIDEL Celia Sánchez, amante e camarada O GUARDIÃO DA REVOLUÇÃO Os últimos anos do comandante TIRA-TEIMA Antes e depois de Fidel, em números FOTO HISTÓRIA Um jovem prisioneiro
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EDITORIAL
DIRETOR-SUPERINTENDENTE Edgardo Martolio
A AVENTURA REVOLUCIONÁRIA
T
odo mundo parece ter no coração um cantil de gasolina reservado para Fidel Castro. Seu nome incendeia paixões como poucos outros. Amor ou ódio, todos parecem ter uma opinião intensa sobre aquele que conduziu o único país da América a adotar o socialismo ao modo soviético. Convido então a leitora ou leitor a lembrar o nome da nossa revista. Porque o que vai nestas páginas é uma legítima aventura na História. Uma figura quixotesca atacando um quartel, que volta do exílio numa viagem incrivelmente desastrada, quase perde tudo, e termina – usando dos métodos mais precários e contra todas as possibilidades – vitorioso. Só isso já garantiria a Fidel Castro um lugar privilegiado na história do continente. Mas, apesar da insistência dele de usar farda e ser chamado de comandante a vida inteira, não é nos livros militares que será lembrado. Fidel entrará para a História por sua segunda aventura, aquela na qual, para bem e para mal, o povo cubano o acompanhou. Um governo que, mostrando um poder geopolítico incrivelmente desproporcional ao tamanho do país, quase pôs a civilização inteira a perder. Que demandou uma reação igualmente desproporcional dos Estados Unidos, inspirando uma geração em sua contestação ao despotismo tradicional na América Latina. Sim, seu plano era instalar outra ditadura, mas uma nascida de um ideal radical de justiça, não de um velho apego ao poder. Fidel, famosamente, disse que a História o absolveria. E o processo ainda está em andamento. Não seremos nós, aqui, a dar um veredicto. Em suas soluções, Fidel podia estar enganado. Mas algo que ele jamais pôde foi ser ignorado. A seguir, as melhores matérias que publicamos sobre Fidel, atualizadas e acompanhadas por material inédito.
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Fábio Marton
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Manifestação de massa em Havana: Cuba tinha uma longa história de instabilidade
P Í TU LO A 1 C
PRIMÓRDIOS K C O T S R E T T U H S O T O F
NADA ESTAVA PREDESTINADO: O LÍDER COMEÇOU NUMA CAUSA MODESTA, RADICALIZADA POR UMA SÉRIE DE EVENTOS E REAÇÕES ADVERSÁRIAS
PRIMÓRDIOS
EL
JEFE MÁXIMO FIDEL SEMPRE FOI UM ENCRENQUEIRO NOTÓRIO. AINDA MENINO, JÁ GOSTAVA DE DESAFIAR COLEGAS BEM MAIS FORTES DO QUE ELE. O GAROTO CRESCEU E FICOU BARBUDO, MAS NÃO PERDEU ESSA MANIA TEXTO Lira Neto
A
pesar das canelas longas e finas, o rapagão de 17 anos tinha um chute possante, de fazer tremer o goleiro adversário. Titular da equipe sub-18 do colégio Belén, o jovem Fidel – cujo apelido familiar era “Titín” – ajudou sua equipe a sagrar-se campeã da Liga Intercolegial de Futebol de Cuba. O moço tinha talento não só com a bola nos pés. Com 1,83 m de altura, foi também o “cestinha do Belén”, cele-
brado por ter acertado três arremessos consecutivos de longa distância na final de um campeonato estudantil de basquete. Além disso, jogava beisebol muito bem. Dizem até que esteve prestes a ser contratado por duas equipes americanas na década de 1940: New York Yankees e Washington Senators. O que tinha de craque tinha de encrenqueiro. Ainda menino, já gostava de desafiar colegas bem mais fortes. Se levasse a pior, não se aba-
tia. No dia seg uinte, chamava o desafeto para nova sessão de catir ipapos e ganchos de direita. Sim, porque Fidel também estava se tornando aprendiz de b oxeador. Nas horas vagas, dedicava-se à pesca submarina e ao tiro ao alvo – orgulhava-se de acertar urubus em pleno voo, a 300 m de altura. Outra d iversão era escalar, habilidade que lhe seria muito útil mais tarde, para escapar de inimigos menos preparados na campanha em Sierra Maestra.
1926
1953
1956
1959
FILHO DE FAZENDEIRO
GOLPE FRACASSADO
GUERRILHA EM CUBA
ENTRADA TRIUNFAL
Em agosto, nasce Fidel Castro Ruz, em Biran, leste de Cuba. Ele é filho de Angel Castro, soldado espanhol que servira na repressão ao movimento próindependência (1890-1902), mas que se assentara definitivamente na ilha e acabara se tornando um grande fazendeiro.
Ex-líder estudantil formado em direito, participa de uma ação contra o ditador Fulgêncio Batista. O ataque ao quartel de Moncada, o segundo maior do país, acaba com 61 guerrilheiros mortos. Fidel sobrevive, mas é levado a tribunal e pega uma pena de 15 anos.
Um ano depois de ser libertado e ter se mudado para o México, onde conheceu Ernesto Che Guevara e fundou o Movimento 26 de Julho, volta a Cuba no iate Granma, com 82 rebeldes. O governo reage ao desembarque, e os sobreviventes se refugiam na região de Sierra Maestra.
Pressionado pela opinião pública e pela resistência da guerrilha, Fulgêncio Batista renuncia e vai para a República Dominicana. Oito dias depois, Fidel chega à capital, Havana, e assume o posto que só deixaria de vez em 2008.
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1962
1962
(fevereiro)
(outubro)
EMBARGO TOTAL
CRISE NUCLEAR
Um ano depois da tentativa fracassada de invasão da Baía dos Porcos, os Estados Unidos declaram embargo total a Cuba. Ao mesmo tempo, surgem planos, alguns organizados pela CIA, para matar Fidel, que se mostra mais alinhado à União Soviética.
Aviões americanos descobrem mísseis nucleares soviéticos instalados em Cuba. É a Crise dos Mísseis, a mais grave de toda a Guerra Fria. Mas o presidente John Kennedy e o premiê soviético Nikita Kruschev chegam a um acordo, e os mísseis são retirados.
K C O T S R E T T U H S O T O F
Fidel na República Soviética do Uzbequistão, em 1963: discurso longe de casa
1967 GUERRILHA NO MUNDO Depois de iniciar um movimento para tomar o poder no Congo, Che Guevara é preso e assassinado na Bolívia. Por muitos anos, Cuba financiaria e treinaria guerrilheiros na África e na América Latina, incluindo os brasileiros contrários à ditadura.
1980 PORTAS ABERTAS Em abril, Fidel declara que os cubanos dispostos a deixar o país estão liberados. Em seis meses, vão embora da ilha 125 mil pessoas. A medida gera controvérsia nos EUA, que acusam Fidel, que depois fechou as fronteiras de novo, de aproveitar a brecha para expulsar detentos.
1991 A VOLTA DO TURISMO Em dezembro, a União Soviética é declarada extinta. Com isso, a economia de Cuba deixa de ganhar, aproximadamente, 5 bilhões de dólares por ano. Em 14 de agosto de 1993, visando favorecer o turismo (e, mesmo sem querer, as remessas dos exilados nos Estados Unidos), o dólar é readmitido.
2006 LICENÇA MÉDICA Em 31 de julho, Fidel delega o controle provisoriamente ao irmão Raúl, para se tratar de um problema intestinal não revelado. Nos meses seguintes, ele faz poucas aparições, faltando pela primeira vez à celebração do 1º de Maio em 2007.
2008 PASSANDO O BASTÃO Com Fidel anunciando que não vai mais concorrer à presidência, a Assembleia Nacional do Poder do Povo elege seu irmão Raúl como sucessor, em 24 de fevereiro. Encerrava-se um mandato de 49 anos.
2016 DESPEDIDA O último discurso de Fidel é proferido em 19 de abril, pedindo pela preservação dos ideais da revolução. Na noite de 25 de novembro, ele morre por causas não reveladas. Seu corpo é cremado no dia seguinte.
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PRIMÓRDIOS
Os irmãos Castro: Fidel, Raúl, e Ramón, em foto de 1943
Se no gramado, na quadra e no ringue ele se destacava, nas salas de aula o jovem Fidel chamava atenção pela prodigiosa memória. De acordo com um de seus biógrafos, o jornalista Tad Szulc, sua capacidade de decorar textos era tão espantosa que, muitas vezes, os colegas de classe divertiam-se fazendo-lhe perguntas do tipo: “Fidel, o que está escrito na página 43 do livro de sociologia?”. Ele não era capaz apenas de decorar capítulos inteiros, linha por linha. Tinha a mania de arrancar e jogar no lixo as páginas lidas. Não precisava delas, alegava. Poderia recitar, de cor e salteado, qualquer trecho que lhe pedissem. O NOME DO PAI
Fidel na escola de Belén, com 17 anos: fera do basquete
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Não se sabe o que há de exagero, ou mesmo de mitologia pessoal, nas reminiscências de velhos colegas que dão conta dessa admirável memória. Aliás, boa parte da vida particular de Fidel permanece assim, cercada de fábulas, mistérios e lacunas – obstáculos que continuam a desafiar os biógrafos. Até sua data de nascimento é alvo de controvérsias. Oficialmente, ele nasceu no dia 13 de agosto de 1926, embora conste “1927” numa primeira certidão. O pai de Fidel, Angel Castro, foi o responsável pela alteração no documento original. Don Angel, como era conhecido pelos colonos de sua fazenda de cana-de-açúcar, na província de Holguín, aumentou a idade do filho para que pudesse ser matriculado mais cedo na escola secundária. Fidel adotou o ano de 1926 como data oficial e terminou por enxergar no número 26 uma aura de predestinação: aos 26 anos, no dia 26 de julho de 1953, ele comandaria o ataque ao quartel Moncada, seu batismo como revolucionário.
As reais circunstâncias do relacionamento entre don Angel e a mãe de Fidel são outro detalhe que a história oficial tratou de cercar de reticências. Sabe-se que Angel Castro foi casado com uma primeira mulher, a professora María Argota, com quem teve dois filhos, Pedro e Lidia (os meiosirmãos mais velhos de Fidel). Mas pouco se diz – e menos ainda se escreve – sobre essa esposa que o quase cinquentão don Angel trocaria por uma humilde criada da fazenda, de apenas 16 anos: Lina Ruz Gonzalez, mãe de Fidel e mais seis irmãos. Como já era casado, o pai inicialmente não pôde batizar os novos filhos, nem lhes legar o nome de família. O menino Fidel foi registrado como Fidel Casiano Ruz Gonzalez. Somente aos 15 anos, quando don Angel finalmente se divorciou de Argota, ele passaria a chamar-se Fidel Alejandro Castro Ruz, nome que assinaria para o resto da vida. Educado na rígida disciplina de um colégio jesuíta, Fidel entrou na Universidade de Havana em 1945, na faculdade de direito. “Era péssimo estudante, nunca ia às aulas”, confessaria ao jornalista espanhol Ignacio Ramonet, na série de entrevistas que daria origem ao livro Fidel Castro: Bio grafia a Duas Vozes. Àquela altura, a política estudantil mobilizava as atenções do rapaz, que decidiu se ligar à ala jovem do Partido Ortodoxo. Numa época de tensão política, na qual líderes estudantis andavam com armas escondidas debaixo das roupas, nasceu uma das idiossincrasias mais conhecidas de Fidel: a de fazer longos discursos. Sempre vestido com um paletó preto, era o orador mais contundente – e o mais prolixo – entre os colegas de universidade. Nada, contudo, que se comparasse à falação de
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quatro horas e meia que, em 1960, o colocaria pela primeira vez no Guiness Book por proferir o discurso mais longo da história da ONU. Vinte e seis anos mais tarde, em 1986, bateria sua própria marca, falando por intermináveis sete horas e dez minutos durante o Terceiro Congresso do Partido Comunista de Cuba. No segundo ano de faculdade, Fidel viajou até Bogotá, capital da Colômbia, para os preparativos de um congresso latino-americano de estudantes. Sua presença ali coincidiu com o assassinato do líder da oposição colombiana, Jorge Eliécer Gaitán. O episódio deu origem ao “Bogotazo”, protestos que evoluíram para um ciclo de violência incontrolável. Fidel aderiu às manifestações e, empunhando um fuzil, sentiu pela primeira vez o gostinho de uma rebelião armada. “Foi a primeira vez que vi uma revolução popular”, diria anos depois.
exilada em Miami e autora de um livro de memórias no qual se refere ao pai como “tirano”. A relação com a esposa se tornou insustentável quando o irmão de Mirta foi nomeado vice-ministro do Interior de Fulgêncio Batista, pasta responsável pelas ações da polícia secreta. Na prisão, logo após o ataque a Moncada, Fidel soube que a esposa recebia uma subvenção do ministério para as despesas domésticas. Após o rompimento, ele jamais voltaria a casar-se. “Como revolucionário, recuso-me a misturar família com política. Essa história de primeira-dama me parece ridícula”, justificou, em 2002, ao cineasta Oliver Stone, que filmava o documentário Olhando para Fidel. Outras mulheres cruzariam seu caminho. Durante a guerrilha, Fidel conheceu Celia Sánchez, com quem viveria um de seus mais duradouros romances. Na condição de chefe da revolução vitoriosa, em 1961, foi apresentado a Dalia Soto, a “Lala”, de feliMULHERES E CRIANÇAS De volta a Cuba, Fidel Castro casou- nos olhos verdes. Teve com ela cinco se, em 1948, com a estudante de filo- filhos. Todos, assim como “Fidelito”, sofia Mirta Díaz-Balart, uma loura vivem discretamente em Cuba. Há de olhos claros e também militante notícias de pelo menos outros dois estudantil. Com ela, teria um filho, herdeiros, Jorge e Francisca, frutos de Fidel Félix Castro Díaz-Balart, o “Fi- relacionamentos fugazes. Na vida de Fidel, tudo foi assim, delito”. Quando se integrou à revolução, a ausência constante de casa e a superlativo e nebuloso. Foi o líder dificuldade financeira da vida na efetivo com o mandato mais longo da clandestinidade fizeram o casamen- História (os recordistas são monarcas sem poder). Ditou por quase to entrar numa séria crise. SAIBA MAIS meio século os destinos dos Amigos ajudavam a pagar as LIVROS cubanos, resistindo à pressão contas de luz do casal, o açou- Fidel Castro: Uma Biografia gue e o armazém. Nessa fase Consentida , Claudia exercida por dez presidentes Furiati, Revan, 2001 americanos. Sob o pretexto de de aperto e intensa movimen- Fidel: Um Retrato Crítico, Tad Szulc, manter a revolução intacta, tação política, ele conheceu Best-Seller, 1987 Fidel Castro: outra jovem e bela militante, Biografia a Duas reprimiu opositores, manteve Vozes , Ignacio Natalia Revuelta, a “Natty”, Ramonet, Boitempo, a imprensa sob censura e 2006 com quem manteria um caso Alina: Memórias da mandou centenas de dissidenFilha de Fidel Castro , tes para a cadeia ou o paredón. de amor paralelo. Natalia deu Alina Fernández, Ática, 1988 a Fidel uma filha, Alina, hoje A história o absolverá?
EL PECADOR AO LADO DE C ALVIN O, LUTERO E HENRIQUE VIII, FIDEL CASTRO INTEGRA O SELETÍSSIMO CLUBE DOS EXCOMUNGADOS
Em 1961, depois da invasão americana à Baía dos Porcos, Cuba nacionalizou propriedades de organizações religiosas, inclusive as da Igreja Católica. Centenas de padres foram expulsos da ilha. E Fidel Castro declarou que o Estado, dali em diante, seria ateu. Embora tenha sido salvo do fuzilamento por um arcebispo, depois do fracassado levante contra o quartel Moncada, em 1953, o comandante teve uma relação difícil com a Igreja desde seus primeiros meses no poder. A reforma agrária, decretada menos de cinco meses depois da revolução, desagradara a maior parte do clero, que cultivava ligações históricas com donos de engenho e latifundiários. A resposta do Vaticano não demorou. Em 1962, o papa Leão XXIII excomungou Fidel – colocando-o ao lado de Lutero, Calvino e Henrique VIII no grupo dos que já foram ou irão para o inferno. Em 1998, com a visita do papa João Paulo II a Cuba, o governo mostrou-se mais tolerante ao catolicismo. Atualmente, cresce igualmente o número de igrejas protestantes no país. Boa parte da população religiosa é adepta da santería, sincretismo que funde os santos católicos a entidades tradicionais africanas, parecida com a umbanda brasileira.
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PRIMÓRDIOS
Raúl (à esq.) e Che Guevara em Sierra Maestra: o primeiro era um comunista discreto; o segundo, festivo e panfletário
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NEM TÃO
P VERMELHOS ENTRE OS LÍDERES REBELDES QUE SE PREPARAVAM PARA INVADIR CUBA, APENAS DOIS ERAM COMUNISTAS: RAÚL CASTRO E CHE GUEVARA TEXTO Eduardo Szklarz
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arece óbvio que Fidel, Raúl e outros líderes cubanos sempre foram comunistas. Afinal, eles levaram a cabo uma série de reformas ultrarradicais, assim que tomaram o poder e alinharam-se à União Soviética, enquanto o novo regime ainda engatinhava. Mas a verdade é que vários “barbudos” – a começar por Fidel Castro – só se declararam socialistas após o triunfo da revolução. Até então, o que realmente os unia era o desejo de derrubar a d itadura de Fulgêncio Batista. Faz sentido: salvo raras exceções, os inte-
grantes do ataque ao quartel Moncada, em 1953, não eram comunistas, mas membros da ala jovem do Partido Ortodoxo – uma agremiação opositora, mais liberal do que qualquer outra coisa. Fidel assumiu a liderança dos ortodoxos, aproveitando o vácuo deixado pelo suicídio do fundador do partido, Eduardo Chi bás. Quando muitos deles decidiram partir para o exílio no México, Fidel cultivou entre o grupo a única ideologia comum a todos: o nacionalismo, insuflado pela retórica romântica de José Martí. Os dois únicos líderes rebeldes que se definiam como comunistas àquela altura eram Raúl Castro e Ernesto Che Guevara. Eles seguiam a linha pró-soviética (da qual Che se afastaria nos anos 1960), mas com atitudes distintas. Raúl preferia manter em segredo seu apreço pela foice e o martelo, enquanto Guevara não só o alardeava como tentava converter ao marxismo-leninismo qualquer um que cruzasse seu caminho. FALSETA HISTÓRICA
Che era um leitor eclético desde os tempos de garoto. Sua mãe apresentou-o a escritores que transitavam por várias “esquerdas”, de Er nest Hemingway a Jean-Paul Sartre. No início dos anos 1950, durante as andanças pela América Latina, textos da filósofa polonesa Rosa Luxem burgo e do teór ico peruano José Mariátegui ajudaram a consolidar sua fé no marxismo. Àquela altura, ele já lia esporadicamente Lênin e tinha fascínio por Marx – “São Karl”, como dizia. Fidel Castro, por sua vez, declarava-se anticomunista. “Nossa revolução não é vermelha, mas verde-oliva [a cor do uniforme de seus soldados em
Sierra Maestra] ”, bravateava o co-
mandante, que se autodenominava “um humanista acima de tudo”. Seja como for, Fidel soube juntar várias nuanças políticas dentro do Movimento 26 de Julho – o grupo revolucionário fundado depois de Moncada – para levar adiante seu projeto de poder. Além do mais, ele sabia que a revolução, em seus primeiros passos, ainda estaria vulnerável, e só poderia escapar de retaliações americanas se qualquer identificação com o comunismo fosse negada. Era tamanha a aparente moderação de Fidel que não há uma única proposta comunista nos documentos firmados por ele entre 1953 e 1959. Oficialmente, os “barbudos” revolucionários defendiam apenas a volta da Constituição de 1940 (abandonada por Batista), reforma agrária, restauração da democracia, combate à corrupção e ao analfabetismo, modernização da indústria e confisco de terras ocupadas ilegalmente – uma espécie de “nacionalismo democrático”, como define o historiador cubano Rafael Rojas. Foi esse o programa adotado logo após a vitória da revolução, em janeiro de 1959. Mas tudo mudou em 1961, quando Fidel resolveu anunciar que sempre fora um legítimo marxista-leninista. Opositores passaram a ser eliminados e funcionários públicos que não se declararam comunistas foram substituídos. O comandante nacionalizou empresas estrangeiras e confiscou jornais. Suprimiu as liberdades de associação e expressão. E fez de Cuba o satélite caribenho da União Soviética. O que começou como revolução social-democrata, para varrer do mapa um tirano, acabou virando uma ditadura socialista.
ÍDOLO DOS “BARBUDOS” JOSÉ MARTÍ FOI A VERDADEIRA INSPIRAÇÃO PARA OS REBELDES
Herói da independência cubana, José Julián Martí foi a verdadeira fonte de inspiração para Fidel Castro e seu exército rebelde. Nascido em Havana, no ano de 1853, desde cedo ele se rebelou contra o domínio colonial, a escravidão e a falta de liberdade na ilha. Tinha só 16 anos quando foi preso pela primeira vez, acusado de trair a coroa espanhola. Advogado, jornalista, poeta e diplomata, Martí usou todas as habilidades que tinha para defender a “Nossa América” contra o império. “Foi fundamental para Che Guevara e Fidel”, diz o historiador argentino Felipe Pigna. “Ele tinha concepções revolucionárias muito avançadas para um homem que morreu no final do século 19.”
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PRIMÓRDIOS
FIDEL O INÍCIO O ATAQUE AO QUARTEL MONCADA FOI O PRIMEIRO CAPÍTULO DA REVOLUÇÃO CUBANA – UM LEVANTE ESMAGADO PELO EXÉRCITO DE FULGÊNCIO BATISTA, QUE ACABOU COM FIDEL E RAÚL CASTRO INDO PARAR NA CADEIA TEXTO Lilian Hirata
Soldados de Batista comemoram vitór ia sobre os rebeldes: 18 mortos e 70 presos
nquanto pierrôs e colom binas brincavam nas ruas de Santiago, no dia 24 de julho de 1953, um grupo formado por 162 jovens de classe média chegava à cidade. Vinham da capital, Havana. Mas aquelas pessoas não tinham viajado quase 800 quilômetros para pular o Carnaval (que, em Cuba, acontece no meio do ano). O objetivo era ambicioso: dar início a uma revolução que derrubaria o ditador Fulgêncio Batista. Liderados por Fidel Castro, advogado recém-saído da faculdade, então com apenas 26 anos, eles pretendiam invadir o quartel Moncada – uma das maiores fortalezas do Exército de Batista, perto de Santiago. Os rebeldes instalaramse num sítio alugado a 20 minutos de distância. E só sairiam de lá na alvorada do dia 26, prontos para o ataque. A data não foi escolhida ao acaso. Fidel esperava surpreender os militares de Moncada, que provavelmente estariam em clima de festa, talvez até cansados por conta da folia de Carnaval. Os rebeldes seriam divididos em quatro times, comandados por ele próprio e por seu irmão, Raúl Castro, além de Abel Santamaría e Raúl Martinez Ararás. Em investidas sincronizadas, tomariam de assalto não apenas o quartel e sua estação de rádio mas também o Palácio da Justiça e o Hospital Civil, ao lado da fortaleza militar. Enquanto isso, outro grupo rebelde iria se encarregar de impedir que o Exército enviasse reforços, neutralizando o quartel localizado em Bayamo, um município vizinho. No dia do ataque, tudo teria de funcionar com absoluta precisão. Às 5 horas da manhã, todos deixariam o sítio numa comitiva de carros, com uniformes iguais aos dos soldados de Batista. Fidel, a bordo de um Buick
E
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verde alugado, placa 169-361, tentaria se passar por general do Exército em visita. Seria um dos primeiros a entrar em Moncada. E o faria em grande estilo, pelo portão principal – onde as sentinelas já teriam sido rendidas. Assim que a rádio fosse ocupada, o poeta Raúl Gómez García leria um manifesto pedindo a volta da democracia e incitando a população à luta armada. O passo seguinte seria distribuir as armas do quartel entre civis dispostos a encampar a revolução. BAIXAS ALÉM DA CONTA
Depois de revelados os detalhes do plano, poucas horas antes do início da operação, pelo menos dez integrantes do grupo decidiram pular fora, percebendo o tamanho da encrenca em que estavam prestes a se meter. Outros tantos, talvez 30 ou mais, declararam-se incapacitados para a tarefa – ou porque estavam doentes, ou porque as armas não eram suficientes para todos. Fidel Castro compreendeu. Ele mesmo já tinha declarado a
seus comandados que aquela seria uma missão suicida, e que não haveria represálias para quem preferisse desistir. Só não contava com tantas baixas. Dos 162 rebeldes originais, agora restavam menos de 120. E a batalha nem tinha começado. Quando o dia 26 de julho finalmente começou a raiar, o que restou do bando de Fidel já não se aguentava de ansiedade. Tratava-se, porém, de uma agonia com hora marcada para acabar. Às 5 horas em ponto, teve início a operação. E, logo de cara, dois acontecimentos colocaram tudo a perder. Os carros que levavam Fidel Castro e seus camaradas não convenceram no papel de “comitiva de general”. Resultado: foram interceptados antes de chegar ao quartel. O Buick de Fidel acelerou e partiu para cima de um grupo de soldados. Acabou espatifando-se contra um muro, mas o comandante conseguiu escapar. No portão principal do quartel, uma patrulha do Exército apareceu justo na hora em que os rebeldes
Bandeira do Movimento 26 de Julho
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PRIMÓRDIOS
se preparavam para render os sen- para dentro do quartel sumiu no dia tinelas. Teve início um tiroteio in- anterior e nunca mais deu as caras. O fernal. Com carabinas calibre 22, jeito, agora, seria depositar todas as escopetas de caça, revólveres e pis- fichas no elemento-surpresa e atacar tolas, os companheiros de Fidel não com a maior violência possível. Mas eram páreo para os 400 soldados em o avanço do grupo foi percebido de serviço naquele momento, munidos longe. A troca de tiros que veio em até de canhões. Rebeldes foram pre- seguida durou cerca de 20 minutos. sos, é claro, entre eles Raúl Castro e De um lado, havia soldados do ExérAbel Santamaría. Mas a maioria cito aquartelados; do outro, rebeldes conseguiu escapar. mal treinados e mal armados, inteiNa investida contra o quartel Car- ramente expostos ao fogo inimigo. los Manuel de Céspedes, em Bayamo, Em meio à confusão, e desesperado a situação também fugiu ao controle. para sair dali, o rebelde Ñico López Embora a operação tivesse sido minuciosamente planejada desde o início daquele mês de julho, tudo deu errado na hora H. O morador local que conduziria rebeldes disfarçados
simplesmente esqueceu que não sabia dirigir. Só foi lembrar-se desse detalhe quando já estava ao volante de um dos carros usados no ataque, agora lotado de revolucionários em fuga. O automóvel deu alguns solavancos, acabou perdendo uma das rodas e não saiu mais do lugar. Para seus ocupantes, a solução foi fugir a pé. Somados os ataques a Moncada e Bayamo, 18 rebeldes morreram e quase 70 foram presos. Seg undo a história oficial, muitos não sobreviveriam aos porões da ditadura de Ao lado: um selo de 1962 mostra o mártir de Moncada Abel Santamaría. Abaixo, os buracos de balas no quartel, logo após o ataque. Fidel o transformaria numa escola; depois, museu
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Fulgêncio Batista. O caso de Haydée Santamaría – irmã de Abel – virou símbolo da tortura praticada no período. Haydée participou da operação de Moncada e foi presa pelas tropas de Batista. Na cadeia, enquanto esperava para ser interrogada, teria recebido uma encomenda macabra: os olhos do irmão e um dos testículos do namorado, Boris Luis La Coloma, também detido pelas forças do ditador cubano. Uma semana depois dos ataques frustrados, Fidel foi encontrado. Estava escondido numa choupana em Sierra Maestra, região montanhosa, de mata fechada e acesso difícil. Tudo leva a crer que ele só não foi assassinado graças à intervenção de um in-
tegrante da Guarda Rural. “Ele era dro Castro Ruz, líder dos ataques retenente, um homem negro, que levou beldes aos quartéis de Moncad a e Fidel à delegacia de polícia de Santia- Bayamo, foi condenado a 15 anos de go de Cuba em vez de conduzi-lo ao prisão. Seu irmão, Raúl, teria o mesquartel Moncada, onde cert amente mo destino. Mas as penas seriam teria sido morto com os demais transformadas em apenas 22 meses rebeldes capturados”, escreve o jor- de detenção, cumprida no presídio da nalista e historiador britânico Ri- Ilha de Pinos. Libertados, os irmãos chard Gott no livro Cuba: Uma Nova Castro seguiriam para o exílio no México, onde elaborariam outro plano História. O arcebispo Pérez Serantes, amigo da família de Mirta Díaz-Ba- para derrubar Batista. Os mortos em lart, primeira esposa de Fidel, pediu combate ou nos porões virariam mártires do Movimento 26 de Jupela vida do foragido. E acalho (M-26-7) – a célula revolu bou operando um verdadeiro SAIBA MAIS cionária que, batizada em milagre. Em vez de fuzilamen- LIVRO The Moncada Attack: to, o líder rebelde teria de en- Birth of the Cuban homenagem aos ataques, iria Revolution , Antonio se multiplicar nos anos sefrentar um tribunal. Rafael de La Cova, University of South Em 16 de outubro de 1953 Carolina Press, 2007 guintes para desencadear a (em inglês) Revolução Cubana. saiu a sentença: Fidel Alejan-
“A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ” FIDEL JURA QU E ACABOU COM ESSA FRASE SUA ÚLTIMA DEFESA, ANTES DE SER CONDENADO A 15 ANOS DE PRISÃO. MAS HÁ QUEM DIGA QUE É MENTIRA
Preso por liderar os levantes contra os quartéis Moncada e Carlos Manuel de Céspedes, em julho de 1953, Fidel Castro foi a julgamento em setembro do mesmo ano. Como o regime do ditador Fulgêncio Batista negou-lhe o direito a audiências privadas com seu advogado, ele não teve dúvida: assumiu a própria defesa. E foi no último pronunciamento diante dos juízes, ao final de um discurso que já durava duas hora s, que ele disparou uma de suas frases mais célebres: “Condenem-me, não importa, a História me absolverá”. Palavras corajosas e persuasivas já tinham livrado o rapaz de outras enrascadas, garantindo-lhe fama de grande orador. Dessa vez, no entanto, elas foram inúteis. Fidel acabou “Ausente do mais elementar conteúdo revolucionário, o regime de Batista tem significado, em todas as ordens, um retrocesso de 20 anos para Cuba.”
“O país é uma fábrica de matériaprima. Exporta açúcar para importar caramelo, exporta couro para importar sapatos.”
condenado a 15 anos de prisão. Há, porém, quem conteste essa versão dos fatos. Para o historiador cubano Antonio de La Cova, autor do livro The Moncada Attack: Birth of the Cuban Revolution (Ataque a Moncada: O Nascimento da Revolução Cubana, inédito no Brasil), as frases de impacto jamais foram ditas por Fidel. Na verdade, ele teria dito: “O tempo, definitivamente, o dirá”. Segundo La Cova, tudo provavelmente não passa de um mito criado pelos revolucionários – e transformado em verdade por 50 anos de ditadura comunista. Seja como for, o desfecho não foi o único momento de coragem na defesa de Fidel. Confira mais alguns:
“Onde estão todos os nossos companheiros detidos pelo Exército? Apenas cinco deles apareceram. O resto certamente foi assassinado.”
“Quanto a mim, sei que a prisão será dura como nunca foi a ninguém, cheia de ameaças, de mal e covarde ensinamento. Mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de meus 70 irmãos.”
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A GRANDE FESTA
AMERICANA CASSINOS, DROGAS, PROSTITUTAS, MAFIOSOS ÍTALO-AMERICANOS... BEM-VINDO À ILHA DO DITADOR FULGÊNCIO BATISTA, UM PAÍS CASTIGADO PELA CORRUPÇÃO E PELA DESIGUALDADE SOCIAL TEXTO Álvaro Oppermann
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im de ano agradável em Cuba, com dias ensolarados e temperatura amena. Era dezembro, 1946. No aeroporto de Camagüey, uma multidão de turistas americanos desem barcava diariamente, vinda de Nova York e Miami pelos voos da Pan Am. Chegavam alvoroçados e seguiam com pressa para os luxuosos hotéis, cassinos, cabarés e balneários da ilha. Já no Hotel Nacional, o mais famoso e charmoso de Havana, a clientela destoava um bocado desse clima festeiro. Sujeitos corpulentos e taciturnos, vestidos com ternos escuros, ocupavam o saguão de entrada. Um ou outro lia o jornal Miami Herald , entre baforadas de Davidoff. Esse charuto de tipo “robusto” – curto e bojudo – era o preferido dos capangas da máfia. Os sujeitos do saguão, você já deve ter adivinhado, eram mafiosos ítalo-americanos. E estavam lá porque, entre os dias 22 e 26,
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o Nacional foi palco de uma reunião de mais de 20 famílias do crime organizado americano. O mentor do encontro, Meyer Lansky, um judeu russo que se tornara lendário na crônica policial de Nova York, operava em Havana desde os anos 1930. Conhecido como Little Man (“Nanico”), Lansky costurou a reunião para selar um pacto entre as famílias quanto à exploração de jogo, prostituição e tráfico de drogas em Cuba e nos Estados Unidos. Quase todos os chefões compareceram, entre eles Vito Genovese, Frank Costello, Tommy Lucchese, Alberto Anastacia, Lucky Luciano e Santo Trafficante. A única ausência sentida foi a de A l Capone, que, sofrendo de sífilis, não tinha mais forças para sair de sua mansão de cinema em Palm Beach, na Flórida. Depois das negociações, feitas a portas fechadas na suíte 212, os mafiosos rumavam para o Salão de Banquetes, onde eram entretidos
Hotel Nacional, o mais famoso e charmoso da ilha: frequentado por gente rica e mafiosos
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PRIMÓRDIOS Poster turístico de 1935
por belas prostitutas e coristas dos melhores cabarés habaneros – Tropicana, Montmartre e Sans Souci. No dia 25, não faltou um banquete de Natal. Para animar as cinco noites do encontro, foi contratado o segundo cantor mais popular da América, depois de Bing Crosby: Frank Sinatra.
PÉROLA DAS ANTILHAS Entre as décadas de 1930 e 1950, Cuba tinha se tornado um paraíso de impunidade punidade para organizações criminosas. “Cada túnel e rodovia construído em Havana nos anos 1950 vinha do dinheiro da máf ia”, ia”, escreveu o jornalista amer icano T. T. J. English, Noturno de Havana (ed. autor do livro Noturno Seoman). A ilha era sinônimo de charutos, cassinos, rum, mulheres e música. Mas essa casca de faceirice escondia um país miserável, marcado por segregação racial e desigualdade social. Por trás dessa situação, dois fatores determinantes: a subserviência total aos interesses dos Estados Unidos e a influência perversa de um militar que virou o homem forte de Cuba: Fulgêncio Batista. Os interesses americanos na “Pérola das Antilhas” – assim chamada pelos conquistadores espanhóis – datavam do século 19. Na Guerra dos Dez Anos (1868-1878), quando a aristocracia criolla (espanhóis nascidos na ilha) tentou a independência da Espanha, a interferência dos Estados Unidos foi discreta. Em 1895, de novo, os criollos insurgiram-se contra a Coroa – dessa vez, liderados pelo poeta, advogado e ativista político José Martí. Era uma luta ganha para os cubanos. O imperialismo espanhol estava tão combalido àquela altura que poderia tranquilamente ser derrotado sem a ajuda de ninguém. Mas não foi assim. Em 1898, 18 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
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os Estados Unidos declararam guerra à Espanha e engrossaram a briga. Exigiram a independência de Cuba. E conseguiram. No dia 1º de janeiro de 1899, os americanos assumiram a administração da ilha, que ficou sob controle militar. A tutela acabou em 1902, mas seus efeitos revelaram-se duradouros. Nas décadas seguintes, a sociedade cubana acabaria dividida: de um lado, os funcionários de empresas americanas estabelecidas na ilha, como General Motors e United Fruit Company, burocratas dos Estados Unidos e a nata da sociedade branca local; de outro, o “populacho”: brancos menos favorecidos, negros e mulatos. O balneário de Banes, na província de Hol-
guín, sede da United Fruit, era um exemplo da segregação. Ali havia uma demarcação rígida entre a “cidade americana” e a “cidade cubana”. “A Banes ‘americana’ era uma comunidade fechada de chalés e bangalôs, com jardins e ruas meticulosamente limpas, como se um subúrbio dos Estados Unidos tivesse sido transplantado”, escreve o historiador americano Louis A. Pérez em Cuba Between Reform and Revolution (Cuba entre a Reforma e a Revolução, sem tradução para o português). A outra Banes era repleta de casebres sem pintura, ruas esburacadas de chão batido e falta de saneamento básico. Em 1948, Fidel Castro, então recém-casado com Mirta Díaz-Balart, filha de um advogado
O mafioso Santo Traffic ante Jr. (sério, era esse o nome dele) , posando em Havana nos anos 1950. Na época, ele tinha ordem de prisão em 48 estados americanos. Fidel o expulsaria do país, confiscando seus múltiplos bens e negócios. Em resposta, se aliaria à CIA em suas tentativas de assassinar o líder
da United Fruit, conheceu a parte exclusiva de Banes. O acesso era controlado por um portão cercado de guardas, e só os funcionários e convidados tinham acesso a ela. LIVIN’ L A VIDA LOCA
Apesar de estar enraizado em Cuba desde a década de 1920, o crime cri me organizado só ganhou musculatura na ilha – e liberdade para agir ag ir – com Batista. Obviamente, uma mão lavou a outra. “A máfia americana tornou-se um dos braços do ditador no poder”, afirma o cubano Enrique Enr ique Cirules, autor de El Imperio Imperio de la Habana Habana (O Império de Havana, também inédito por aqui), sobre a presença da máfia em Cuba. Havana, uma cidade colonial,
foi reurbanizada, ganhou hotéis, clu bes e cassin cassinos. os. Por Por um decreto decreto de 1937, 1937, as casas de jogos viraram concessão estatal. A licença de um novo estabelecimento custava 25 mil dólares, mais 20% dos lucros anuais. O cartão de visitas da ilha era o Tropicana, nightclub inaugurado em 1939, no bairro Marianao, Mari anao, em Havana. Havana. Seus espetáculos, com garotas seminuas e coreografias monumentais de Roderico “Rodney” Neyra, ajudaram a fazer da cidade uma referência mundial do show business, como a Broadway, way, em Nova York. Carmen MiranM iranda, Nat King Cole e Josephine Baker apresentavam-se lá regularmente. A orquestra do catalão Xavier Cugat revezava-se entre o hotel Waldorf As-
toria, em Manhattan, e Cuba. Na década de 1950, a Cubana Airlines oferecia um voo especial Miami-Havana, que saía no fim da tarde e retornava aos Estados Unidos Unidos às 4 da manhã. A bordo dos dos Lockheed-1049 Lockheed-1049 Conste Constellallation da frota, os passageiros jantavam ao som de pianos de cauda, especialmente instalados nos aviões. O ator George Raft, que se popularizou no papel de gângster em filmes da Warner Brothers, só se hospedava numa suíte do hotel Capri, em Havana, onde promovia festas particulares com prostitutas, cocaína e jogatina. A alquimia financeira de Batista deu certo: os dólares injetados na economia geraram bolsões de prosperidade nas principais cidades da AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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PRIMÓRDIOS
Espetáculo no cabaré El Tropic ana
ilha. Cuba era primeiro lugar na América Latina e no Caribe em número de aparelhos de televisão, com 150 mil televisores, e tinha quatro emissoras de TV. Também era recordista em número de salas de cinema, e filmes de sucesso de Hollywood estreavam quase simultaneamente em Nova York e Havana. A influência americana fazia-se notar até no esporte favorito dos cubanos: o baseball. A garotada idolatrava o jogador Mickey Mantle, do New York Yankees. Era, sem dúvida, um mundo de absoluta despreocupação e muito glamour. Mas também de decadência. O lendário cantor cubano Ignacio Villa, mais conhecido como Bola de Nieve, sintetizou o espírito daqueles anos com uma frase cortante: “Yo soy un hombre triste que me paso la vida muy alegre” (Eu sou um homem triste que leva uma vida muito alegre). O homem que, discretamente, montou o império mafioso em Cuba foi Meyer Lansky. Em 1934, Fulgêncio Batista queria aumentar o rendimento medíocre dos cassinos de Cuba e chamou um gerente de corridas de cachorro da Nova Inglaterra, Lou Smith, para supervisionar a operação. Como não 20 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
Casebres em Havana, 1954, atrás de um cassino
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tinha a menor experiência no assunto, Smith, por sua vez, pediu ajuda ao baixinho Lansky, antigo parceiro de tráfico de bebidas durante a Lei Seca americana, nos anos 1920. Lansky e o estadista cubano entrosaram-se rapidamente.
Com o tempo, o gângster montou um esquema de lavagem de di nheiro e contrabando de diamantes e ouro entre os Estados Unidos, Cuba e bancos suíços. Havana servia de ponto intermediário do triângulo, um lugar discreto e seguro para a
entrada e a saída de mercadorias, divisas ou o que fosse. O “Nanico” também serviu de “embaixador” quando outros mafiosos se estabeleceram na ilha. Os Traff icante, pai e filho, influentes criminosos no estado da Flórida, tornaram-se os proprietários de um hotel-cassino – o Sans Souci, na Rua 51, em Havana. De quebra, enviavam cocaína e heroína provenientes da Colômbia para os Estados Unidos. Batista permitiu que a máfia ganhasse licença para abrir instituições financeiras em Cuba. Don Amadeo Barletta, um calabrês que, na década de 1930, servira de “laran ja” para negócios do ditador italiano Benito Mussolini, fundou o Banco Atlantico S/A em Havana. E ganhou uma concessionária da General Motors em Santiago. Antes tratados como marginais, os mafiosos ganharam súbita respeitabilidade na ilha. “Eles passaram a usar colarinho branco e limparam o vocabulário. Viraram homens de negócios”, escreve T. J. English. A era Batista chegou ao ápice em 1952, quando Fulgêncio deu um golpe de Estado e proclamou-se ditador. Cuba, àquela altura, tinha o terceiro maior PIB entre os países latinoamericanos. Mas as distorções sociais e a inversão de valores eram visíveis. A indústria da prostituição gerava mais dinheiro que a exportação de frutas. Estima-se que 20 mil prostitutas trabalhavam nas ruas e cabarés de Havana, cidade campeã de abortos na América. Em 1954, também na capital, um médico ganhava SAIBA MAIS 90 pesos por mês. No LIVRO Havana Nocturne , mesmo período, um T. J. English, William Morrow, crupiê recebia 1,5 mil, 2008 (em inglês) fora as gorjetas.
Fulgêncio em viagem oficial aos Estados Unidos, em 1938
“NOSSO HOMEM EM HAVANA” Ruben Fulgêncio Batista Zaldívar nasceu na província de Oriente, em Cuba, no dia 16 de janeiro de 1901. Veio de uma família pobre: seus pais eram macheteros , cortadores de cana. Tinha sangue negro, índio, branco e, segundo a crença popular, até chinês. Em abril de 1952, a revista Time estampou-o na capa, com uma estridente manchete: “Ditador!”. Um mês antes, Batista liderara um golpe de Est ado. Foi a formalização de algo que todo mundo já sabia: entre 1933 e 1958, ele mandou e desmandou na ilha, seja como presidente, seja como eminência parda. Quando liderou uma revolta militar em 1933, tomando o poder pela primeira vez, Cuba vinha de uma sucessão de presidentes inoperantes ou sanguinários. Talvez por isso o golpe de estado pareça não ter incomodado a elite cubana. O presidente americano, Franklin Roosevelt, preferiu manter um pé atrás. “Melhor ficar de olho nele”, telegrafou ao embaixador em Havana. Nos anos seguintes à rebelião, Batista atuaria nos bastidores, elegendo presidentes-fantoches e fuzilando adversários. Até 1940, quando ele próprio foi eleito presidente para quatro anos de mandato. Em 1952, novo golpe de Estado. A Constituição foi rasgada e o Congresso, dissolvido. Tortura e perseguição política tornaram-se práticas ainda mais comuns na ilha. Nesse período, o ditador teve apoio irrestrito de Eisenhower, o presidente americano da vez. Fazia sentido, afinal os dois odiavam comunistas. Mas veio a revolução comandada por Fidel Castro. No dia 31 de dezembro de 1958, Batista fugiu de Cuba e foi viver entre Por tugal e Espanha, abrigado pelos ditadores Salazar e Franco. Morreu em agosto de 1973.
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CONSPIRAÇÃO NO
MÉXICO FOI NO PAÍS QUE FIDEL E RAÚL CASTRO CONHECERAM ERNESTO GUEVARA. JUNTOS, ELES PLANEJARAM A REVOLUÇÃO, APRENDERAM TÁTICAS DE GUERRILHA E ORGANIZARAM UM EXÉRCITO REBELDE TEXTO Eduardo Szklarz
O
México serviu de trampolim para a Revolução Cubana. Lá os irmãos Castro, líderes originais do movimento, conheceram um jovem chamado Ernesto Che Guevara e convenceram-no a participar da empreitada. Também ali Fidel reuniu outros exilados cubanos e reorganizou o Movimento 26 de Julho, para derrubar o ditador Fulgêncio Batista. E foi lá que o Exército Rebelde recebeu treinamento de guerrilha para os combates que viriam pela frente em Sierra Maestra. Por que a revolução acabou sendo gestada em território mexicano? A resposta começa em maio de 1955, quando Fidel e Raúl Castro deixaram a cadeia em Cuba.
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Libertados depois de 22 meses de prisão, por terem comandado os ataques aos quartéis de Moncada e Bayamo, os irmãos acreditavam que, se permanecessem na ilha, acabariam sendo assassinados pela ditadura. Preferiram o exílio e encontraram, no México, o ambiente perfeito para planejar uma nova investida contra o regime de Batista. O país, na década de 1950, era um verdadeiro santuário de exilados latino-americanos. Essa tradição começara 15 anos antes, quando os mexicanos haviam recebido de braços abertos os refugiados da Guerra Civil espanhola. “Se você precisasse ir para algum lugar no continente, esse lugar era a Cidade do México, a grande metrópole para onde fluíam as ideias,
as pessoas e a cultura”, diz o jornalista americano Jon Lee Anderson, um dos mais respeitados biógrafos de Che Guevara. O médico argentino Ernesto Guevara tinha 26 anos quando pisou pela primeira vez em solo mexicano, em 1955. Trazia na bagagem uma experiência marcante vivida na Guatemala: o golpe orquestrado pela CIA contra o presidente Jacobo Arbenz, que iniciava uma reforma agrária.
RECÉM-CHEGADOS Nos primeiros meses de sua estada no México, Guevara fez de tudo: fotografou os Jogos Pan-Americanos para uma agência de notícias argentina, descolou um emprego mal-remunerado num hospital, viajou pelo país e
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Fidel, seu irmão Raúl e Che Guevara, em foto de 1963
reencontrou exilados que conhecera de seu novo amigo era uma sensaem suas andanças – entre eles o ami- ção, ídolo dos revolucionários latinogo cubano Ñico López, integrante do americanos – o réu que, em pleno ataque fracassado ao quartel de Baya- julgamento, ousou acusar o governo mo, e a peruana Hilda Gadea, com que o havia detido. Em julho de 1955, Fidel Castro quem se casaria pouco depois. Foi López quem o apresentou a finalmente chegou à Cidade do MéRaúl Castro, outro recém-chegado xico. Desceu do ônibus vestindo um ao México. “Quando Che soube do terno usado, sem um tostão no bolso plano de Fidel de invadir Cuba, sol- e com sede de ação. Depois de passar tou uma gargalhada: ‘Esses caras 22 meses no presídio da ilha de Pinão têm solução!’”, relata o jornalis- nos, em Cuba, ele tinha pressa para ta argentino Hugo Gambini na bio- reunir os exilados e retomar a luta grafia El Che Guevara (sem tradução contra o regime de Fulgêncio Batisno Brasil). Mas nasceu ali uma pro- ta. Os biógrafos de Guevara e Fidel funda simpatia pela causa dos ir- discordam sobre a data exata do primãos Castro. Fidel já estava em li- meiro encontro dos dois, mas sabem berdade, embora ainda não tivesse que ele ocorreu entre julho e setemdeixado a ilha. E Guevara não via a bro de 1955. Seja como for, uma coihora de conhecê-lo. Afinal, o irmão sa é certa: a lealdade e o respeito
mútuos foram selados numa conversa que durou a noite inteira, no apartamento de Maria Antonia González, uma cubana casada com o lutador profissional mexicano “Dick” Medrano. O endereço – Rua Emparán, 49 – servia como quartel-general, onde exilados comiam e dormiam de graça. Ao final do longo papo com Fidel, Guevara já estava decidido a participar da empreitada revolucionária. Numa entrevista publicada em 1967 pelo jornal cubano Granma, ele recordaria assim o encontro: “Conheci-o durante uma daquelas noites mexicanas frias, e lembro que nossa primeira discussão foi sobre política mundial. Poucas horas depois, de madrugada, eu já era um dos futuros AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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expedicionários. (...) Era hora de fa- cos, que acreditavam muito mais na zer, de combater, de planejar. De dei- queda de Fulgêncio Batista do que xar de chorar para começar a lutar”. no programa social de Castro”, Por sua vez, Fidel Castro recor- afirma Gambini. daria num discurso, também em De volta ao México, Fidel achou 1967, a primeira impressão que teve o homem ideal para treinar seus redo argentino. “Era uma dessas pes- crutas: o cubano A lberto Bayo, ansoas por quem tomamos afeto no tigo oficial do Exército Republicano primeiro momento pela simplicida- espanhol (veja ao lado). de, o caráter, a naturalidade, o comO local escolhido para o treinapanheirismo, a personalidade e a mento foi a imensa fazenda Santa originalidade, mesmo quando ainda Rosa, localizada per to do município não conhecemos as virtudes singu- de Chalco. Com 9 quilômetros de lares que o caracterizam.” Fidel pre- largura por 1 5 quilômetros de comcisou de poucos meses para juntar primento, vegetação densa e relevo exilados cubanos e reorganizar o montanhoso, a propriedade reproMovimento 26 de Julho (ou M-26-7, duzia algumas das condições que os data do assalto ao quartel Moncada), guerrilheiros enfrentariam mais movimento que ele havia fundado tarde, nas serras de Cuba. “Durante pouco antes em Cuba, na clandesti- três meses, Bayo ensinou os segrenidade. O primeiro objetivo do gru- dos da guerrilha”, diz Gambini. po era desembarcar na ilha com um “Eles aprenderam a dar tiros de piscontingente bem armado e fazer um tola, rifle e metralhadora; fabricar chamado aos camponeses, para que bombas pa ra explodir barr icadas e se unissem à revolução. destruir tanques; localizar e derruUma vez garantido o respaldo bar aviões; camuflar-se e esconderpopular, Fidel esperava levar adian- se; transportar e atender feridos; e te seu programa de governo. Logo andar pela selva sem serem descode cara, pretendia eliminar funcio- bertos.” Embora sofresse de asma, nários corruptos, iniciar a indus- Guevara foi o primeiro da turma, trialização do país, assentar 100 mil com nota dez em todos os cursos. pequenos agricultores, limitar o Em fins de 1956, Fidel e Raúl detamanho das fazendas e repartir o cidiram que já era hora de tomar o excesso de produção entre famílias poder em Cuba. Compraram um camponesas. Em busca de recursos, ba rc o, o iate Gr an ma (do in gl ês Fidel viajou a Tampa, Miami, Nova grandmother , “vovó”) e, no dia 25 de York e outras cidades americanas, novembro, deixaram silenciosamendivulgando a revolução entre exila- te o cais do Rio Tuxpan, em Verados cubanos. Conseguiu angariar cruz, levando na popa uma bandeicerca de 50 mil dólares, dinheiro ra vermelha e preta – as cores do prontamente convertido em algu- Movimento 26 de Julho. A proa emmas armas e munições para bicava rumo à costa leste de embrião do Exército Rebelde Cuba. Era lá que Fidel, Che SAIBA MAIS – que, àquela altura, já con- LIVRO Guevara, Raúl Castro e o resEl Che Guevara – tava com mais de 80 volun- La Biografia , Hugo to da tropa colocariam em Gambino, Editora tários. “Esse valor, é claro, Argentina, 20 05 prática tudo o que haviam (em espanhol) foi doado pelos cubanos riplanejado no México.
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DOM QUIXOTE À CUBANA Alberto Bayo era um camarada de extremos. Nasceu em Cuba, mas foi educado nos EUA. Seguiu carreira militar, mas gostava de publicar poesias. E parecia um Lênin gorducho, embora não fosse com a cara do líder comunista. Bayo era aviador. A missão mais importante de sua vida foi uma invasão de barco à ilha de Mallorca, durante a Guerra Civil espanhola. Alguns historiadores dizem que era péssimo militar. Mas todos concordam num ponto: ele foi um aventureiro de primeira. Quando conheceu Fidel Castro, em 1955, Bayo levava uma vida pacata: administrava uma fábrica de móveis. Com Fidel no poder, depois da revolução, Bayo foi alçado ao posto de general do Exército de Cuba. Pouco antes de morrer, em 1967, ainda esbanjava disposição. “Se não fosse pela artrite, a diabetes, as duas tromboses, o olho de vidro e as 14 balas que tenho espalhadas pelo corpo, estaria feito um leão”, teria dito aos amigos, com o humor que lhe era tão característico.
Fidel e Camilo Cienfuegos em sua entrada triunfal em Havana, em 8 de janeiro d e 1959
P Í TU LO A 2 C
A B U C / A R A V E U G E H C U E S U M / A D R O K S Í U L O T O F
REVOLUÇÃO UMA DÚZIA DE GUERRILHEIROS CONTRA O EXÉRCITO DE UM PAÍS. COMO FOI POSSÍVEL?
REVOLUÇÃO
VIAGEM
INFERNAL UM BARCO PARA 20 OCUPANTES TRANSPORTANDO 82 GUERRILHEIROS, CONTRATEMPOS NO DESEMBARQUE E UMA EMBOSCADA DEVASTADORA. FOI ASSIM QUE A REVOLUÇÃO COMEÇOU TEX TO Mauricio Manuel REPORTAGEM Lilian Hirata
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uando Ernesto Che Guevara viu, pela primeira vez, o barco que o levaria até Cuba, para dar início à revolução, achou que aquilo fosse uma piada. O Granma – corruptela do inglês grandmother , ou “vovó” – parecia uma lata velha flutuante. Ou melhor, semiflutuante. Sim, porque o iate de 19 metros estava submerso até a metade quando Fidel Castro o descobriu em Tuxpan, no México, abandonado no Rio Pantepec. Pertencia a um americano, Robert Bruce Erickson, que achou estar fazendo um negócio da China quando o vendeu por 15 mil dólares ao bando de revolucionários cubanos.
Depois de uma reforma básica, o Granma até ficou apresentável. Mas podia levar, no máximo, 20 ocupantes. Os ex ilados que embarcariam de volta à ilha, carregando armas, munição, combustível e mantimentos, eram 82. A conta não fechava de jeito nenhum, mas Fidel e seus companheiros, depois de meses de treinamento e planejamento no exílio, não viam alternativa. Já estava passando da hora e era com aquele barco mesmo que a Revolução Cubana teria de começar.
Quem bancou a compra do Granma foi um exilado chique: Carlos Socarrás, o presidente deposto por Fulgêncio Batista, em março de 1952. Socarrás queria voltar à presidência de Cuba, é óbvio, e achou que poderia usar os rebeldes para isso. Fidel agradeceu, nem quis saber se o dinheiro era
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sujo ou limpo. Mas reconduzir o presidente deposto ao poder não fazia parte de seus planos. Seu governo fora tão corrupto quanto o de Batista e, àquela altura do campeonato, todo mundo sabia disso. No fim das contas, seria Fidel quem acabaria usando Socarrás para tomar o poder. A partida foi marcada para 25 de novembro de 1956. Era fundamental zarpar à noite, para não chamar a atenção da polícia mexicana em terra firme, nem da Guarda Costeira em alto-mar. No dia e no horário combinados, estavam todos lá, prontos para
cruzar o Golfo do México e o Mar do Caribe. A jornada seria difícil, cerca de 2,2 mil quilômetros de navegação (mais ou menos a distância entre as cidades de São Paulo e Salvador). O Granma estava incrivelmente pesado. Fora o tanque cheio, com aproximadamente 4,5 mil litros de óleo diesel, levava mais 7,5 mil litros extras, distribuídos em dezenas de galões. O iate também carregava comida para cinco dias de viagem. E uma boa quantidade de armas: dois fuzis antitanque, cerca de 90 rifles, três subme-
tralhadoras Thompson e 40 pistolas, além de muita munição. Não sobrou muito espaço e, mesmo assim, 82 guerril heiros deram um jeito de se acomodar no Granma. A superlotação e os motores cansados impediam que o iate acelerasse. “Levamos meia hora apenas para deixar a foz do rio, em Tuxpan, e outra meia hora para atravessar o porto rumo ao golfo do México”, diz Faustino Pérez, um dos rebeldes a bordo, em Diary of the Cuban Revolution (Diário da Revolução Cubana, sem tradução no Brasil).
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REVOLUÇÃO 1
I
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A VIAGEM DO GRANMA Foram sete dias em alto-mar e mais de 2,2 mil quilômetros navegados entre México e Cuba
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RECEPÇÃO LETAL
4
25 de novembro de 1956, 2h 26 de novembro de 1956, 19h 27 de novembro de 1956, 12h 28 de novembro de 1956, 18h 29 de novembro de 1956, 17h 30 de novembro de 1956, 19h 2 de dezembro de 1956, 3h
C U B A 5 7
6
O PLANO PARA A INVASÃO DA ILHA ERA PERFEITO. OS R EBELDES SÓ NÃO CO NTAVAM COM ATRASO E A TRAIÇÃO DE UM GUIA
HOLGUÍN
BAYAMO MANZANILLO GUANTÁNAMO
3
NIGUERO
SANTIAGO DE CUBA
1
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2
PRAIA DE LAS COLORADAS Local onde ocorreu o desembarque dos revolucionários, no dia 2 de dezembro. 1
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ALEGRÍA DE PÍO Emboscada armada pela Guarda Rural de Fulgêncio Batista, dia 5 de dezembro. 2
SIERRA MAESTRA Os sobreviventes do massacre de Alegría de Pío reagrupamse nas montanhas. 3
COMANDANCIA DE LA PLATA Os rebeldes tomam a guarnição militar de Fulgêncio Batista, no dia 17 de janeiro. 4
QUARTEL DE EL UVERO A guerilha assume o controle de mais um posto militar, no dia 28 de maio. 5
O D A J E N A L P O
No dia 30 de novembro de 1956, o Granma desembarcaria 82 rebeldes numa praia de Niguero. De lá, eles seguiriam para Sierra Maestra.
Celia Sánchez, do Movimento 26 de Julho (M-26-7), aguardaria a chegada dos rebeldes em Niguero com 50 homens, jipes, armas e comida.
Simultaneamente ao desembarque, ataques contra instalações do Exército ocorreriam em Santiago de Cuba, Holguín, Matanzas e Guantánamo.
U E C E T N O C A E U Q O
O desembarque só aconteceu no dia 2 de dezembro e em outro lugar, Las Coloradas. Uma parte do armamento foi perdida durante a operação.
Com o atraso no desembarque, os rebeldes não receberam os reforços providenciados por Celia. Agora estavam extremamente vulneráveis.
Os ataques aconteceram No dia 5 de dezembro, no dia marcado, 30 de os rebeldes foram novembro, mas os rebeldes emboscados por pelotões ainda estavam em alto-mar, da Guarda Rural perto de e muito longe da costa, Alegría de Pío. Dos 82, perto das Ilhas Cayman. apenas 12 sobreviveram.
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Fidel Castro e seus guerrilheiros chegariam às montanhas de Sierra Maestra sem serem molestados pelas forças do ditador Fulgêncio Batista.
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SEM COMUNICAÇÃO O equipamento de rádio da embarcação não funcionava direito. Recebia as mensagens enviadas pelos agentes da revolução infiltrados em Cuba, encarregados de organizar atentados em várias cidades na hora do desem barque. Mas não permitia que os passageiros do Granma respondessem. Pouca velocidade e falta de comunicação eram problemas sérios. Se a travessia levasse mais tempo do que o previsto, os ataques diversionários teriam de ser retardados e, simplesmente, não havia como falar com o pessoal em terra. Por baixo dos panos, simpatizantes de Fidel Castro movimentavam-se em várias cidades para “recepcionar” o exército rebelde. Na data marcada para o desembarque, 30 de novembro, Celia Sánchez – fundadora do Movimento 26 de Julho – levou para o local 50 homens, caminhões, jipes, comida e armamentos. Enquanto isso, Frank País – outro militante histórico do M-26-7 – preparava-se para atacar bases da polícia em Santiago de Cuba. O quartel Moncada, aquele mesmo da rebelião de 1953, também seria atacado, com o objetivo de distrair suas tropas e facilitar o deslocamento dos homens de Fidel até Sierra Maestra. Atentados contra instalações militares e prédios públicos ocorreriam simul-
taneamente num punhado de cidades, de La Villas a Guantánamo. Tudo parecia muito bem arranjado, mas o plano inteiro desandou por causa de um rádio com defeito. Quando os ataques começaram, no dia 30, o Granma ainda estava a milhas e milhas da costa de Cuba, perto das Ilhas Cayman. O desembarque só aconteceu no dia 2 de dezembro, e em outro lugar, não na praia inicialmente escolhida, em Niguero. Como foram avistados por um helicóptero antes de alcançar a orla, os guerrilheiros certamente seriam recebidos à bala, se mantivessem o curso original. Aca baram seguindo para Las Coloradas, cerca de 25 quilômetros mais ao sul. Ali, a beira-mar era completamente dominada por manguezais. E o Granma ainda encalhou num recife de coral, obrigando seus ocupantes a descarregar o arsenal com um b ote salva-vidas. Foram tantas as dificuldades imprevistas que muitas armas acabaram sendo perdidas durante a operação. “Pense no lugar onde eles desembarcaram”, diz Celia Sánchez no livro The Twelve (Os Doze, sem tradução para o português), sobre os primeiros dias da Revolução Cubana. “Se tivessem desembarcado na praia, e não naquele mangue, teriam encontrado caminhões, jipes, gasolina. O resto seria um passeio.”
A marcha dos 82 guerrilheiros para Sierra Maestra, onde estariam protegidos pela mata e pelo acesso difícil, pode ter sido tudo, menos um passeio. Para começar, um morador da região de Las Coloradas viu o desembarque e avisou a polícia. Não demorou quase nada e dois helicópteros das forças de Fulgêncio Batista já estavam na captura dos invasores. Por horas, os rebeldes esquivaram-se chafurdando no mangue, às vezes, com lama na altura do peito. No dia seguinte, o primeiro “anjo da guarda” apareceu: Tato Vega, um lavrador que serviria de guia até as montanhas de Sierra Mestra. A ideia era montar acampamento na mata, conquistar o apoio do povo e recrutar mais guerrilheiros entre os camponeses. Com ataques frequentes a instalações do Exército, os rebeldes iriam se abastecer de armas e munição. Passariam a controlar uma área do território cubano ao redor das montanhas. E ampliariam esse domínio progressivamente, até abrir caminho para o avanço final até Havana e a deposição do ditador. Repetiriam o caminho percorrido por José Martí e seus homens na guerra da independência de Cuba, em 1895.
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REVOLUÇÃO
TRAÍRA DE PRIMEIRA O que ninguém imaginava era que o “anjo da guarda” se revelaria um traíra de primeira linha. Depois de guiar os guerrilheiros por dois dias inteiros, em meio aos canaviais da região de Alegría de Pío, Vega despediu-se. Era dia 5 de dezembro de 1956. Mal o guia deu no pé, por volta das quatro e meia da tarde, os pelotões 12 e 13 da Guarda Rural de Batista caíram literalmente matando sobre os rebeldes. Fidel Castro e seus companheiros tinham sido traídos e foram apanhados numa em boscada mortal. Dos 82 combatentes originais, apenas 12 sobreviveram. Cada um se safou como pode. Eles só se reagrupariam duas semanas depois, já no coração de Sierra Maestra. Finalmente abrigados nas montanhas, Fidel, Guevara, Raúl e Cienfuegos, mais oito sobreviventes do massacre de Alegría de Pío, montaram o primeiro acampamento da revolução.
Os 12 remanescentes logo seriam 20, depois 50, 100... Ataques a pequenas guarnições militares no entorno de Sierra Mestra tornaram-se frequentes. A estratégia era simples: sair do mato, investir contra a guarnição e voltar correndo com todas as armas que pudessem carregar. A primeira investida foi em janeiro de 1957, contra uma pequena guarnição. Em maio, o grupo partiu para uma empreitada ambiciosa: o quartel do Exército em El Uvero. No dia 20 daquele mês, 80 rebeldes partiram para cima dos 53 oficiais. Seis guerrilheiros morreram, contra 14 do outro lado. Apesar do derramamento de sangue, o resultado da
DEU NO
operação foi festejado pela guerrilha. O exército rebelde precisava desesperadamente de novas armas, e pôde se serv ir à vontade no quartel. El Uvero representou a “maturidade militar” para seus homens, segundo Fidel. No fim do ano, os rebeldes eram senhores absolutos de Sierra Maestra e já tinham um quartel-general fixo, funcionando a todo vapor na localidade de La Plata. O ditador Fulgêncio Batista já pensava em enviar uma força de milhares de soldados para lá, enquanto o irmão de Fidel, Raúl, se preparava para abrir uma segu nda frente de batalha. O ano de 1958 prometia muita ação.
NEW YORK TIMES
UM REPÓRTER AMERICANO PROVOU QUE FIDEL CASTRO ESTAVA VIVO
Depois que o grupo original de 82 rebeldes foi dizimado, em dezembro de 1956, o regime de Fulgêncio Batista apress ou-se em divulgar que Fidel Castro estava entre os 70 mortos. Acontece que o comandante – assim como o irmão Raúl, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Huber Matos – escaparam do massacre. O ditador só foi desmentido quando o jornalista Herbert Matthews, do jornal The New York Times , entrevistou Fidel no acampamento rebelde em Sierra Maestra , provando que o líder revolucionário estava vivinho da silva. O encontro entre os dois foi organizado pelo próprio Movimento 26 de Julho (M-26-7). Para chegar às montanhas, o jornalista passouse por fazendeiro americano à procura de negócios. Durante a visita ao acampamento, no dia 16 de fevereiro de 1957, calculou que a força de Fidel era composta de cerca de 40 homens. Era um truque. Na verdade, os rebeldes não passavam de 20. O comandante havia ordenado que trocassem de roupa constantemente e ficassem zanzando para cima e para baixo. O jornalista mordeu a isca: na primeira página de um dos jornais mais importantes do mundo, Fidel apareceria duas vezes mais poderoso do que era. “A personalidade do homem é cativante. Foi fácil perceber que seus homens o adoram”, escreveu Matthews. “Tem-se a sensação de que ele é invencível. Talvez não seja, mas essa é a fé que ele inspira em seus seguidores.”
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O Ã Ç U D O R P E R O T O F
GUERRA DESIGUAL DE UM LADO, TANQUES, AVIÕES E BOMBAS DE NAPALM. DO OUTRO, O FERVOR E A TENACIDADE.
DAVI CONTRA GOLIAS NO INÍCIO DE 1958, ERAM APENAS 300 REBELDES CONTRA 10 MIL SOLDADOS DO DITADOR FULGÊNCIO BATISTA
CLÁSSICOS DA 2ª GUERRA AS AR MAS MAIS USADAS ERAM AS MESMAS DOS D OIS LADOS DO CONFLITO
FUZIL M-1
Fabricado nos Estados U nidos, foi o primeiro rifle semiautomático adotado por infantarias do mundo todo. Também esteve em ação na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), na Guerra da Coreia (1950-1953) e na Guerra do V ietnã (1959-1975).
CARABINA M-1
) R O T L U S N O C ( A I R I S I U L E T M M , A M I L O D R A U D E , T R U O C N E T T I B O I S S Á C O Ã Ç A R T S U L I
EXÉRCITO REBELDE
EXÉRCITO DE CUBA
Com menor poder de fogo que o Exército do ditador Fulgêncio Batista, os rebeldes de Fidel Castro apostaram no conceito de “guerrilha irregular” – nas palavras do comandante, “uma guerra de movimento, de atacar e retirar-se”.
Batista reaparelhou suas Forças Armadas para enfrentar o exército rebelde, comprando tanques de guerra, aviões e fuzis. Não adiantou. “Desenvolvemos a arte de confundir o adversário com os ardis do segredo e da surpresa”, disse Fidel.
ARMAMENTO PESADO Entre 1952 e 1958, o ditador cubano fez acordos de cooperação militar com os Estados Unidos e gastou uma fortuna comprando armamento pesado, incluindo aviões de combate e tanques americanos e britânicos. Caças e bombardeiros foram largamente usados por Batista em ataques contra posições rebeldes em Sierra Maestra.
HAWKER SEA FURY F.50
Foi desenvolvido pela RAF durante a Segunda Guerra. Tinha quatro metralhadoras e podia levar 12 de 76 mm ou 900 quilos de bombas.
Mais leve que o fuzil M-1, mas tão precisa e poderosa quanto ele, esta arma é usada até hoje. Ela ainda equipa forças de segurança importantes, como a polícia israelense e o famoso Batalhão de Operações Policiais Especiais (o Bope) .
CARABINA MAUSER
Fabricada na Alemanha, a Karabiner 98k foi a arma-padrão das infantarias de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra. Como pesava 3,7 quilos (contra 2,4 quilos da M-1), não era o rifle mais adequado para o relevo acidentado de Sierra Maestra. DOUGLAS B-26C
Amer icano, es te bombardeiro para três tripulantes era capaz de carregar 2,7 mil quilos de bombas – em sua maioria, de napalm, o gel incendiário que gruda na pele. Indiscriminadamente, contra guerrilheiros e civis.
M4A3 SHERMAN
Fabricado nos Estados Unidos, era uma variação do M4 Sherman, tanque médio que fez história na Segunda Guerra. Foi produzido em versões com canhão de 75 mm, 76 mm e 105 mm – todas elas equipadas com três metralhadoras.
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REVOLUÇÃO
HASTA LA
VICTORIA NO INÍCIO, ERAM 300 GUERRILHEIROS LUTANDO CONTRA AVIÕES, TANQUES DE GUERRA E 10 MIL SOLDADOS. MESMO ASSIM, OS REBELDES VENCERAM A GUERRA TEX TO Sérgio Tauhata
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oite de gala no luxuoso hotel Habana Riviera, 11 de dezembro de 195 7. Era a festa de inauguração do cassino, com direito a show da estrela de cinema Ginger Rogers. Boa parte dos 14 milhões de dólares gastos na suntuosa construção tinha saído dos cofres do governo, no primeiro de uma série de investimentos que transformariam Havana numa nova Las Vegas. Esse, pelo menos, era o plano do mafioso americano Meyer Lansky, sócio no empreendimento. A despeito dos hóspedes famosos, o Riviera escancarava tudo que o regime do ditador Fulgêncio Batista tinha de pior: corrupção e desigualdade social. No ano seguinte, 1958, Batista viu naufragar cada um de seus planos. O prenúncio do fim veio logo em fevereiro, quando, sob a supervisão de Ernesto Che Guevara, começaram as transmissões da Rádio Re be lde, di re ta mente da se lva, em Sierra Maestra. Em poucos meses, a emissora clandestina já alcançava todo o país e tornou-se a grande brecha contra a censura dos meios de comunicação imposta pelo regime cubano. Além disso, mantinha todas as colunas de combatentes conectadas umas às outras. Em março, a revolução começou a espalhar-se. Fidel enviou o irmão, Raúl, com uma coluna de 50 homens para a região de Sierra Cristal, na porção nordeste da antiga província do Oriente. A formação da nova frente de batalha permitiu aos rebeldes ampliar a inf luência política e recrutar novos combatentes. Quando se juntou novamente às tropas de Sierra Maestra, em outubro, as forças de Raúl Castro somavam de 500 a 600 integrantes. AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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REVOLUÇÃO
OFENSIVA REBELDE Enquanto Raúl consolidava a posição no Oriente, as colunas de Che Guevara e Camilo Cienfuegos partiram em missões para sabotar a infraestrutura usada pelo Exército cubano no abastecimento de guarnições nas províncias centrais. Foi então que Batista resolveu dar um basta na revolução. Para não correr riscos, o ditador mirou seu canhão para o que, imaginou, seria a caçada a um coelho: destacou uma força de cerca de 10 mil homens, apoiados por tanques e pela Força Aérea, para um ataque maciço contra a ba se rebe lde em Sier ra Maestr a. Com pouco mais de 300 guerri lheiros, Fidel Castro parecia condenado. Acontece que o coelho acabou se revelando um leão. Sob o comando do general Eulogio Castillo, o Exército de Cuba rumou para as montanhas em maio. Após dois meses e meio de numerosos combates, a operação – batizada Verano – fracassou. Hábil estrategista, Fidel conseguiu controlar as condições nas quais as batalhas eram travadas. Assim, nenhum em bate de gr ande s proporçõe s ocorreu. E os guerrilheiros, palmo a palmo, foram minando o moral das forças inimigas. Essa derrota de Batista marcou a virada a favor dos revolucionários. Em agosto, Fidel partiu para a ofensiva: enviou as colunas de Guevara, Cienfuegos e Jaime Vega para ocupar a província de Las Villas e sua capital. No caminho, uma em bo sc ada estraça lh ou o gr upo de Vega. Mas os remanescentes deram sequência à jornada. Em dezembro, eles bateriam às portas de Santa Clara, Santiago de Cuba e, finalmente, o grande prêmio, Havana. 34 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
LIÇÕES DO MÉXICO Como isso foi possível? Os revolucionários de Fidel Castro certamente tiraram proveito do despreparo das tropas oficiais, que jamais tinham encarado uma guerra de guerrilha. Mas também devem parte do sucesso à ajuda dos camponeses. Pouco a pouco, eles foram engrossando as fileiras rebeldes. Quando não se apresentavam como voluntários para pegar em armas, contribuíam com informações sobre os movimentos das tropas inimigas ou ofereciam comida e abrigo. O que realmente decidiu o conflito em favor dos rebeldes, no entanto, foi o treinamento ocorrido entre 1955 e 1956, no México. Naquele período, Alberto Bayo – veterano da Guerra Civil espanhola e especialista em téc-
nicas de guerrilha – ensinou a Fidel e seus companheiros como fabricar bombas caseiras e coquetéis molotov, manusear minas, atirar com fuzis, encontrar refúgio na mata e preparar emboscadas. As lições foram determinantes em 1958, especialmente durante a resistência à operação Verano. “Levamos em consideração que, nas montanhas, uma coluna de 400 homens deve avançar em fila indiana”, diz o comandante, em Fidel Castro: Biografia a Duas Vozes, de Ignacio Ramonet. Segundo Fidel, os guerrilheiros sabiam que, em posição defensiva, o adversário seria imbatível. Tudo o que precisavam, portanto, era provocar o inimigo e fazê-lo sair da toca. Armadilhas eram preparadas em terrenos acidentados, dificultando a
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Grupo de guerrilheiros exibe bandeiras do Movimento 26 de Julho (M-26-7), em 1958: camponeses engrossaram as fileiras
organização das forças oficiais. Os homens de Fidel atacavam primeiro a linha de frente, forçando a coluna inimiga a bater em retirada. Quando os batalhões de Batista chegavam perto de suas próprias bases, crentes de que já estavam em segurança, entrava em ação outro grupo de rebeldes, para um segundo ataque. “É o melhor momento”, afirma Fidel. “Quando uma tropa desmoralizada está chegando a seu quartel, ela reduz a vigilância.” CRUZADO DE DIREITA
Os homens de Batista também se viam frequentemente presos entre campos minados, que anulavam a vantagem dos tanques de guerra. No dia 11 de julho de 1958, entretanto, apesar de todos os reveses sofridos
por Batista, teve início uma nova ofensiva do ditador em Sierra Maestra. Dois batalhões do Exército de Cuba, o 17 e o 18, atacaram de direções opostas. As forças rebeldes concentraram o contra-ataque sobre o Batalhão 18 e cercaram o grupo perto de La Plata. Durante dez dias, a tropa resistiu naquela posição, esperando ajuda. Mas os guerrilheiros conseguiram deter as tentativas de resgate, com estradas bloqueadas, minas e franco-atiradores. No dia 21, o batalhão se rendeu. No fim de agosto, Fidel começou sua ofensiva. Enviou as colunas de Che Guevara e Camilo Cienfuegos em direção à cidade de Santa Clara, para abrir caminho até a capital, Havana. Cienfuegos deixou a Sierra Maestra com 60 homens. Mas, conforme avançava em direção à localidade de Yaguajay, ia recebendo apoio de camponeses. Quando chegou à capital da província de Las Villas, já tinha 500 combatentes. Era uma situação inusitada: pela primeira vez, um destacamento rebelde estava em vantagem numérica frente ao inimigo. Os soldados de Batista resistiram por 11 dias, até que a munição acabou e não lhes restou alternativa a não ser a rendição. Guevara tratou de conquistar localidades próximas, como Caibarién e Camajuani, antes de atacar Santa Clara. Com 300 homens, tomou a cidade em 28 de dezembro. Cienfuegos conseguiu a rendição de Yaguajay dois dias depois. As vitórias rebeldes foram sentidas como um cruzado de direita pelo regime cubano. Batista fugiria, deixando tropas sem comando e entregues ao avanço do inimigo. Fidel, com o apoio do irmão Raúl, logo ocuparia a cidade de Santiago de Cuba e iniciaria sua marcha triunfante em direção a Havana.
ENQUANTO O PAU QUEBRAVA EM CUBA... O MUNDO DESCOBRIA, EM 1958, A BOSSA NOVA E O FUTEBOL BRASILEIRO
31 DE JANEIRO
Entra em órbita o Explorer 1, primeiro satélite americano. 2 DE FEVEREIRO
Oito jogadores do Manchester United morrem num desastre de avião em Munique. 24 DE MARÇO
O cantor Elvis Presley entra para o Exército dos Estados Unidos. 29 DE JUNHO
O Brasil bate a Suécia e ganha uma Copa do Mundo pela primeira vez. 10 DE JULHO
João Gilberto grava Chega de Saudade e inaugura a Bossa Nova. 18 DE AGOSTO
Sai a primeira edição de Lolita , do polêmico Vladimir Nabokov. 12 DE SETEMBRO
O americano Jack St. Clair Kilby (futuro Prêmio Nobel de Física) inventa o circuito integrado. 10 DE DEZEMBRO
Começam a funcionar os primeiros parquímetros do mundo, na cidade de Londres.
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REVOLUÇÃO
A CAMINHO DE HAVANA OS COMBATES DECISIVOS, AS ARMADILHAS PREPARADAS PELOS DOIS LADOS E OS LÍDERES REBELDES QUE PUSERAM FULGÊNCIO BATISTA PARA CORRER
Fevereiro
Raúl Castro abre um novo front na região da Sierra del Cristal. Em Sierra Maestra, sob supervisão de Guevara, começa a funcionar a Rádio Rebelde, principal meio de comunicação entre as colunas. Maio
Fulgêncio Batista envia 10 mil soldados para Sierra Maestra. Os guerrilheiros eram apenas 300. Mas vencem, desmoralizam o Exército cubano e ainda conseguem um belo reforço de armas. 28 de dezembro
Guevara captura um trem cheio de armas e rende a guarnição militar de Santa Clara. Enquanto isso, Cienfuegos trava uma luta difícil pelo controle de Yaguajay, vencida no dia 31. 5
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ILHA DE PINOS
Hoje chamada Ilha da Juventude, foi nela que Fidel Castro cumpriu 22 meses de prisão após o fracassado ataque ao quartel Moncada, em 1953. 1
OPERAÇÃO VER ANO
SIERRA MAESTRA
Décadas antes da revolução, as montanhas já tinham servido de esconderijo para guerrilheiros (na guerra de independência) e escravos foragidos. 2
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GUANTÁNAMO
A baía foi concedida aos Estados Unidos em 1903, por cerca de US$ 4 mil, para a instalação de uma base naval. Está com os americanos até hoje. 3
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LA PLATA
LAS MERCEDES
11 A 21 DE JULHO
29 DE JULHO
19 A 30
FIM DE DEZEMBRO
25 DE MAIO
A 8 DE AGOSTO
DE DEZEMBRO
A 8 DE AGOSTO
Depois da derrota em La Plata, Cantillo destacou parte de suas tropas para encurralar um grupo de rebeldes e esperou que Fidel Castro viesse em auxílio. O general conseguiu cercar os guerrilheiros, mas hesitou em aniquilá-los. Fidel, então, negociou uma trégua, dando tempo para que seus homens escapassem de volta às montanhas.
Camilo Cienfuegos e sua coluna de 450 homens alcançaram a guarnição militar de Yaguajay com uma superioridade numérica inédita até então: a força rebelde era quase duas vezes maior que a tropa no quartel. Mesmo assim, a resistência foi feroz. Depois de 11 dias, os soldados de Batista finalmente se renderam.
Guevara chegou a Santa Clara quatro dias antes do fim do ano. A cidade era a última a ser conquistada antes de Havana. Um trem blindado com armas e munições, enviado por Batista para abastecer as tropas da guarnição local, foi interceptado pelos rebeldes. Reforçado por esse arsenal, Ernesto Che Guevara esmagou a resistência.
O chefe da operação Verano, general O fracasso da grande Eulogio Cantillo, ofensiva de Fulgêncio decidiu fazer um Batista, apelidada pelo ataque direto à base ditador de FF (“Fase de Fidel Castro em Final” ou “Fim de Sierra Maestra. Fidel”), foi o ponto Surpreendidas por da virada da guerra. emboscadas e campos Cerca de 10 mil minados, as tropas soldados, com oficiais renderam-se tanques e aviões, após dez dias de luta. foram derrotados No balanço final, por 30 0 guerrilheiros. mais de 500 soldados Emboscadas e ataques morreram ou rápidos minaram a foram capturados resistência do Exército. pelos rebeldes.
36 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
YAGUAJAY
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SANTA CLARA
A I R I S I U L / T M M / A M I L O D R A U D E / T R U O C N E T T I B O I S S A C A P A M
Fidel na Assembleia das Nações Unidas em 1960, onde faria seu legendário discurso de quatro horas
P Í TU LO A 3 C
S S E R G N O G F O Y R A R B I L / R E L F F E L . K N E R R A W O T O F
PODER UM CAUDILHO, SEU GOVERNO, SEUS INIMIGOS, O QUASE APOCALIPSE NUCLEAR – E O RESULTADO DESSAS DÉCADAS EM NÚMEROS
Fidel entra em Havana, 8 de janeiro de 1959: saudado como herói
PODER
erme QUANDO FIDEL CASTRO ENTROU EM HAVANA O PAÍS ACHOU QUE ESTAVA EMBARCANDO NUM VOO PARA UM FUTURO MELHOR TEX TO Sérgio Tauhata
38 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
Q
o
ue passagem de ano teve Havana! Na virada de 1958 para 1959, uma festa sem precedentes tomou conta da cidade. Pedestres agitavam bandeiras e carros buzinavam, como se todos comemorassem a conquista de uma Copa do Mundo. A euforia ocupou o lugar da angústia dos dias anteriores. O ar da capital tinha cheiro de pólvora já fazia algum tempo. A população vivia encurralada pelos combates entre as
forças do governo e os guerrilheiros. Os confrontos só não deram em tragédia porque as forças leais ao ditador jogaram a toalha. Batista enfrentaria o paredão se caísse nas garras do exército rebelde. Como não cogitava morrer assim tão cedo, aos 53 anos, simplesmente fugiu. Na madrugada de 1º de janeiro, embarcou com a família – e 40 milhões de dólares – rumo à República Dominicana. Amigos, altos oficiais e empresários ligados ao governo tam bém abandonaram a ilha e foram para Miami. Uma multidão reuniu-se às portas da penitenciária de Príncipe, enquanto juízes da alta corte emitiam ordens para libertar centenas de presos políticos. Ao saber da fuga de Batista, o comandante da revolução, Fidel Castro, ordenou que as tropas lideradas por Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos seguissem para Havana. Mas o que seria a última ofensiva acabou se transformando num passeio. Àquela altura, o comando das Forças Armadas já tinha decidido pela rendição. E a capital foi invadida sem qualquer resistência. Fidel estava do outro lado da ilha, assegurando o controle sobre uma cidade bem mais importante do ponto de vista estratégico: Santiago de Cuba. Assim que deu sua missão por cumprida, iniciou uma marcha triunfante em direção a Havana. Ora de jipe, ora sobre um tanque de guerra, o comandante percorreu 760 quilômetros e foi saudado por multidões pelo caminho. No dia 8 de janeiro, finalmente entrou na capital, conduzido por um tanque do regime que ele acabara de derrubar. Os cubanos punham imensas esperanças no líder. Muitos seriam pegos de supresa pelo que viria a seguir.
E S I M O R P F O S R A E Y N O I T U L O V E R N A B U C O D A I S E T R O C O T O F
Fidel e o premiê soviético Nikita Kruschiov: novos melhores amigos
MARXISMO-
SURPRESA S S E R G N O C F O Y R A R B I L O T O F
EM SEUS DOIS PRIMEIROS ANOS, FIDEL EXPROPRIOU EMPRESAS AMERICANAS, MANDOU CENTENAS DE OPOSITORES PARA O PAREDÃO E JOGOU-SE NOS BRAÇOS DA UNIÃO SOVIÉTICA TEXTO Eduardo Szklarz
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ezembro de 1959: a Revolução Cubana está prestes a festejar seu primeiro aniversário. Mas o governo americano não vê nenhum motivo para comemoração. Ao contrário, circulam pelos corredores da Casa Branca fuxicos que preocupam o presidente Eisenhower. No dia 11, o coronel J. C. King, chefe da divisão ocidental da CIA, enviou um memo-
rando para Allen Dulles, seu superior “Nos dias seguintes, Allen Dulles em Washington, informando que Fi- apresentou o documento ao Conselho del Castro já tinha estabelecido em de Segurança. E o órgão aprovou a Cuba uma ditadura de extrema es- sugestão de criar uma equipe de traquerda. Agentes da central de inteli- balho que, em pouco tempo, encongência previam que o novo regime trasse soluções para o problema reforçaria seu apoio a movimentos cubano”, relata Fabián Escalante revolucionários em outros países da Font, ex-chefe dos serviços de contraAmérica Latina. E mais: uma “rápida informação de Fidel Castro, no livro nacionalização de bancos, indústrias Cuba: La Guerra Secreta de la CIA (Cuba: A Guerra Secreta da CIA). e comércio” estava por vir. AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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Agricultor carregando cana-de-açúcar em Cuba
A preocupação de Eisenhower era justa. Afinal, os Estados Unidos tinham muitos interesses econômicos em jogo. Os maiores bancos americanos e grandes companhias – entre elas, a gigante das frutas tropicais United Fruit e as petrolíferas Texaco e Exxon – estavam instalados em território cubano. E o pior: nascido logo ali, no quintal caribenho de Tio Sam. Fidel Castro parecia ter coragem de enfrentar a potência. Assim que foi empossado, em fevereiro de 1959, o primeiro governo revolucionário – com o moderado Manuel Urrutia Lleó na presidência e Fidel no cargo de primeiro-ministro – deu início a reformas ousadas e extremamente populares. Logo de cara, baixou por decreto o valor dos aluguéis (50%), a taxa de luz (30%) e o preço dos livros escolares (25%).
BILHETE SÓ DE IDA AS DIFERENÇAS ENTRE ESTADOS UNIDOS E CUBA QUE TERMINARAM COM A INVASÃO DA ILHA
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Uma lei de confisco tomou para o Estado os bens do ditador Fulgêncio Batista e seus associados: 14 fábricas de açúcar, a Companhia Cubana de Aviação, a Interamericana de Transportes, quase toda a indústria têxtil da ilha e um hotel. Empresas suspeitas de favorecimento ilícito sofreram intervenção. Imóveis supostamente comprados com dinheiro proveniente de corrupção foram expropriados. E a indústria do jogo simplesmente desapareceu. Praias controladas por clubes requintados à beira-mar, muitas vezes proibidas aos negros, foram abertas para toda a população. A transformação mais radical do primeiro ano de revolução, contudo, veio com a reforma agrária, em maio de 1959. “As terras de americanos, quase 75% de toda a área cultivável, e também as da família Castro, esta-
JANEIRO DE 1959
Julgados como criminosos, pelo menos 400 ex-oficiais de Fulgêncio Batista são executados. Uma nova palavra entra na moda em Cuba: paredón .
vam entre as primeiras nacionalizadas”, escreve a pesquisadora carioca Claudia Furiati em Fidel Castro: Uma Biografia Consentida . Todas as propriedades com mais de 420 hectares foram repartidas entre 200 mil famílias camponesas. O apoio popular à revolução era total. E vivia-se um clima de euforia e esperança jamais v isto, nos quatro cantos da ilha. Mas os ricos e a classe média entraram em pânico. Entre os anos de 1959 e 1961, cerca de 256 mil cubanos deixaram o país, principalmente para os Estados Unidos. Quase todos brancos e remediados. Quem ficou e não aderiu ao regime passou a ser visto como uma ameaça à revolução. Integrantes do governo de Batista foram julgados em tribunais de fachada e condenados à morte por fuzilamento. Estima-se que,
16 DE FEVEREIRO DE 1959
15 DE ABRIL DE 1959
17 DE ABRIL DE 1959
O comandante do exército rebelde, Fidel Castro, assume o cargo de primeiroministro de Cuba e anuncia profundas transformações sociais.
Fidel faz uma visita oficial aos Estados Unidos. Os americanos suspeitam de que ele seja comunista, mas o primeiro-ministro cubano nega.
Sai a reforma agrária. O governo desapropria todas as fazendas com mais de 420 hectares – muitas delas pertencentes a empresas americanas.
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Fidel diante da estátua de Lincoln, na malfadada visita de 1959
O líder cubano esquiando na Rússia em 1962, onde teve uma recepção bem mais calorosa
apenas nos dois primeiros meses de 1959, pelo menos 400 foram levados ao paredón. Na imprensa internacional, as execuções viravam notícias com “atos de barbárie” e “banho de sangue” invariavelmente estampados nas manchetes.
ENTRE POTÊNCIAS A presença de moderados no primeiro governo revolucionário de Cuba, de início, acalmou os americanos. Mas perseguição política e fuzilamentos em série acabaram produzindo as primeiras faíscas entre os dois países. Em abril de 1959, Fidel Castro até embarcou numa viagem oficial aos Estados Unidos, com passagens por Washington e Nova York, na esperança de tranquilizar Eisenhower. Todo o seu esforço, porém, foi por água abaixo logo em seguida, com o
anúncio da reforma agrária cubana. Havana. A União Soviética acompaO presidente americano deu carta nhou a tudo comendo pipoca. Os branca para o serviço de inteligência EUA jogavam em seu colo um aliado a 170 quilômetros de casa. planejar a deposição de Fidel. Quando John Kennedy assumiu No início de 1960, Cuba decidiu abrigar-se sob as asas da União So- a Casa Branca, em janeiro de 1961, a viética. Num acordo econômico ca- crise parecia não ter mais volta. marada, Moscou comprometeu-se a Diante disso, o presidente tomou comprar 5 milhões de toneladas de uma decisão da qual se arrependeria açúcar cubano nos cinco anos se- profundamente: no dia 15 de abril, guintes. E mais: forneceria petróleo, autorizou uma invasão à Baía dos alimentos e crédito ilimitado. Porcos, um passo do plano para tirar Fidel do poder. Dois dias mais Essa foi a gota d’água para SAIBA MAIS os EUA. Em março, Eisenhotarde, uma brigada de 1,4 mil anticomunistas cubanos – wer ordenou um boicote eco- LIVRO The Secret War: CIA nômico à ilha. A resposta não Covert Operations com apoio da CIA e das Foragainst Cuba , ças Armadas americanas – demorou. Bancos e grandes Fabián Font, Ocean Press, 1995 (em desembarcaria na ilha e seria companhias americanas fo- inglês) arrasada pelo Exército Revoram expropriados. Em janei- DVD Soy Cuba – O lucionário em horas. Isso sero de 1961, a tensão atingiu o Mamute Siberiano, Três Mundos laria o destino do país. Cuba ápice. Washington rompeu Produções, Imovision, 2004 jamais perdoaria a ofensa. relações diplomáticas com
17 DE MARÇO DE 1960 O presidente Eisenhower aprova um plano antiCastro. Entra em vigor um boicote aos produtos importados e exportados por Cuba.
17 DE SETEMBRO DE 1960 Cuba nacionaliza bancos, entre eles o Citibank e o Chase Manhattan. Três meses antes, as petrolíferas Texaco, Exxon e Shell já tinham sido estatizadas.
3 DE JANEIRO DE 1961 Washington rompe relações com Havana. A fuga de profissionais liberais e empresários cubanos é enorme.
15 DE ABRIL DE 1961 O recém-eleito presidente Kennedy autoriza uma invasão. Dois dias depois, uma brigada de exilados cubanos desembarcaria na Baía dos Porcos.
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DOIS MINUTOS PARA
MEIA-NOITE UM FIASCO DE ESPIONAGEM AMERICANO E O QUASE APOCALIPSE NUCLEAR DA REAÇÃO CUBANA TEXTO TIAGO CORDEIRO
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a noite de 27 de outubro de 1962, o secretário de defesa americano Ro bert McNamara deixava o Salão Oval da Casa Branca, em Washington, em direção à rua. “Estava uma noite linda, perfeita”, ele comentaria, 36 anos depois. “Enquanto caminhava olhando para o céu, comecei a pensar se eu viveria para ver mais uma noite de sábado.” McNamara tinha motivos sérios para acreditar que o mundo poderia aca bar em menos de uma semana. No dia anterior, um míssil terra-ar soviético disparado de Cuba derrubou um avião espião americano modelo U-2. O procedimento pré-combinado para casos assim era claro: os Estados Unidos deveriam contra-atacar imediatamente. Mas o presidente John F. Kennedy ordenou que nada fosse feito enquanto ele não fizesse um novo contato com o dirigente máximo do Partido Comunista soviético, Nikita Khruschiov. Naquele mesmo dia, o líder cubano Fidel Castro,
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em Havana, mostrava-se preocupado: “Se Cuba entrar nessa batalha, vamos desaparecer do mapa”. O GRANDE FIASCO
Cuba alegremente tinha recebido as armas soviéticas em retaliação a um embaraçoso episódio com os EUA. Tudo começou em 1959, antes de Fidel se aliar aos soviéticos, quando o presidente Dwigth Eisenhower liberou 13 milhões de dólares para que a CIA construísse um campo de treinamento na Guatemala. Em 1954, o governo americano havia financiado o golpe que derrubou o presidente de esquerda Jacobo Arbenz Guzmán no país. A ideia era repetir em Cuba a mesma estratégia: dissidentes nativos, financiados e treinados pela CIA, iniciariam um movimento popular local que forçaria o governante a renunciar. Ao assumir a presidência, em janeiro de 1961, Kennedy manteve o plano, mas, para evitar que o grupo de exilados cubanos ficasse muito diretamente vinculado
a Washington, mudou um pouco a estratégia. A área de desembarque das tropas foi transferida dos arredores da cidade de Trinidad, na parte central da ilha, para a Baía dos Porcos, mais próxima a Havana – porém mais distante da pequena base de apoio rebelde dentro da ilha. Na madrugada de 15 de abril, oito bombardeiros B-26B atacaram três aeroportos da região. O ataque só inutilizou três dos 16 aviões cubanos disponíveis. Dois dias depois, 1,5 mil homens desembarcaram sem cobertura aérea. Começaram então as batalhas em terra, com os cubanos usando tanques russos, e por ar, com a CIA enviando quatro aviões equipados com napalm. Acontece que a rebelião popular que os americanos esperavam não aconteceu. A 21 de abril, o Exército cubano, que contava com 50 mil homens, derrotou os rebeldes em definitivo, matando 118 e capturando a maioria com vida. A suposta contrarrevolução não durou nem um dia.
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Pela primeira vez em sua história, os Estados Unidos sofriam uma derrota definitiva em terr itório latinoamericano. “Essa ação foi um dos maiores erros já cometidos pela CIA. Criou o mito em torno da figura de Fidel e jogou o comandante nos braços da União Soviética”, afirma o historiador americano Philip Brenner, professor de relações internacionais da American University, em Washington. Em consequência do vexame em Cuba, três diretores da CIA, Allen Dulles, Charles Cabell e Richard Bissel, renunciaram. O amadorismo da ação tem mais outro motivo. Por meses antes e dias após o ataque, o embaixador norteamericano na ONU, Adlai Stevenson, repetiu veementemente que as movimentações, detectadas meses antes, eram ações de um grupo de “cubanos patriotas”. Em outras palavras, os EUA acreditavam que conseguiriam convencer o mundo de que não tinham nada a ver com a história. Isso a despeito de o New York Times ter pu blicado em janeiro do mesmo ano que a CIA estava treinando cubanos para derrubar Castro. Do outro lado do mundo, a Rádio Moscou havia anunciado a invasão quatro dias antes. “O problema para a CIA era criar uma força invasora poderosa o suficiente para vencer... mas não tão forte a ponto de revelar o apoio americano. A invasão, em essência, tinha que ser cubanizada – feita para parecer amadora”, afirma Michael Prince, autor do livro Guerras Estú pidas – Um Guia sobre Golpes Fracas sados, Ações sem Sentido e Revoluções Ridículas (ed. Record). Diante disso, no mês seguinte, Fidel declarou-se marxista-leninista. E que, a partir daquele momento, Cuba era uma república socialis-
Kennedy e o secretário de defesa Robert McNamara durante a Crise dos Mísseis
Navio militar soviético a caminho de Cuba, em duas fotos aéreas de setembro de 1962
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ta. Os invasores seriam repatriados para os Estados Unidos 20 meses depois, em troca de 53 milhões de dólares em alimentos e medicamentos do governo americano. TENSÃO PERMANENTE
O incidente mudou a estratégia dos EUA. O objetivo passou a ser assassinar Fidel. Mas, para sustentar o clima de tensão, Washington deixou vazar a informação de que mantinha 40 mil marines preparados para agir a qualquer momento. Esse medo constante de que os americanos atacariam novamente estreitou os laços militares de Fidel com a União Soviética. Ciente de que seu país demoraria pelo menos uma década para alcançar a tecnologia americana em mísseis de longo alcance, Khruschiov começou a despachar para Cuba seus artefatos de médio alcance. “Por que não jogar um ouriço dentro da calça de Tio Sam?”, ele dizia a seus subordinados. Os Estados Unidos haviam aberto um precedente em 1961, quando ins-
talaram na Turquia 15 mísseis Jupiter IRBM, capazes de atingir Moscou em 16 minutos. Em julho de 1962, a primeira leva de 150 navios soviéticos, carregados com ogivas nucleares e 43 mil soldados, desembarcou em Havana. Era a primeira vez que os russos operavam armamento nuclear fora de seu território. A CIA passou a monitorar a movimentação marítima soviética com mais atenção, até que, no dia 14 de outubro, um avião U-2 fotografou uma estrutura militar capaz de armazenar e lançar mísseis balísticos SS-4. Às 8h45 de 16 de outubro, Kennedy recebeu a informação de que os armamentos eram soviéticos e seriam capazes de alcançar cidades do porte de Washington e Nova York. O gabinete de emergência criado pelo presidente posicionou-se a favor de um ataque aéreo maciço contra Cuba. Mas o conselheiro Robert Kennedy, irmão do presidente, argumentou que essa reação poderia estimular os soviéticos a invadir Berlim Ocidental – afinal, a crise em torno da posse do
Canal de Suez, em 1956, foi o pretexto necessário para Moscou tomar a Hungria. O conselho acabou aprovando um bloqueio naval a Cuba, acompanhado de preparativos militares para a possibilidade de uma invasão. Na noite de 22 de outubro, Kennedy falou em cadeia nacional de televisão: “Conclamo Khruschiov a interromper essa ameaça clandestina e provocativa à paz mundial. Ele tem agora a oportunidade de tirar o mundo de perto desse abismo de destruição”. Alegando que o armamento era apenas preventivo para o caso de uma tentativa de invasão, Khruschiov manteve-se irredutível. E ainda criticou o bloqueio americano em águas internacionais, não aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU). CONCESSÕES E PAZ
No dia 24, o Comando Estratégico da Aeronáutica americana elevou, pela primeira vez em sua história, o nível de atenção para a condição 2. O passo seguinte seria o estado de guerra. Na manhã seguinte, Kennedy orde-
A ERA DA ESPIONAGEM No dia em que 1,5 mil homens desembarcaram na Baía dos Porcos, os cubanos já os esperavam. Duas semanas antes da invasão, espiões do serviço secreto soviético, a KGB, sabiam quando, onde e como aconteceria o ataque. Já a CIA estava muito mal informada. Espiões russos infiltrados em Cuba fizeram com que os Estados Unidos acreditassem na força dos grupos de resistência ao comandante Fidel – que, na verdade, não existiam mais. Quando financiou
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e treinou os militantes que invadiriam a ilha, a CIA tinha certeza de que a simples tentativa de ataque serviria de estopim para uma revolta popular. Em uma guerra não declarada, o acesso às informações era mais importante que nunca. Não por acaso, tanto a CIA quanto a KGB foram criadas logo depois do fim da Segunda Guerra e estiveram no auge até a década de 1980. A americana Agência Central de Inteligência surgiu em 1947, por ordem do presidente
Harry Truman. Entre suas funções: “Realizar ações preventivas, incluindo sabotagem, contra Estados hostis, e apoiar grupos anticomunistas locais”. Já a KGB, sigla em russo para Comitê de Segurança do Estado, foi criada em 1954 e tornou-se uma das maiores organizações espiãs da história. Foi com a ajuda da espionagem que Moscou conseguiu pular etapas e construir sua bomba atômica e o avião Tupolev Tu-144, a versão russa do Concorde.
O Ã Ç U D O R P E R E S N O M M O C A I D E M I K I W , M U E S U M D N A Y R A R B I L L A I T N E D I S E R P Y D E N N E K . F N H O J / N E S D U N K T R E B O R S O T O F
O legendário “telefone vermelho” não existia em 1962. Informações eram trocadas por telégrafo, o que levava horas. Abaixo, Fidel e Kruschiov abrindo o sorriso, em capa de revista soviética
Fidel Castro non ono nn on
Kennedy em 22 de outubro de 1962, numa tensa declaração ao rádio e à televisão
nou a interceptação do primeiro navio soviético, o Bucharest. Como só carregava combustível, ele acabou sendo liberado. No dia 26, um telegrama de Khruschiov oferecia trégua, desde que os Estados Unidos se comprometessem a não invadir Cuba. Horas depois, um novo texto, um pouco mais duro, fazia uma nova exigência: a retirada dos mísseis da Turquia. Enquanto o comando de Kennedy debatia a proposta, chegou a informação da derrubada do avião U-2 em solo cubano. Era sábado, e McNamara já começava a olhar para as estrelas com saudades. No domingo, uma visita do conselheiro Robert Kennedy ao embaixador soviético em Washington, Anatoly Dobrynin, deu início ao fim da
crise. Robert propôs que os america- e eles acabariam forçando um ataque nos aceitassem a exigência em relação ao Vietnã. E Fidel se sentiu usado, à Turquia, desde que a retirada fosse porque os soviéticos foram embora mantida em segredo – e, assim, os sem avisar.” Uma amarga lembrança países europeus do lado ocidental da de 1898, quando, após a guerra HisCortina de Ferro não passassem a pano-Americana, a independência de achar que os EUA estavam dispostos Cuba seria negociada entre Espanha a abrir mão dos aliados para se defen- e Estados Unidos sem a participação dos cubanos. Um sequestro de derem. Khruschiov concordou e desmontou sua estrusua luta patriótica. Os novos SAIBA MAIS aliados não se mostravam metura militar em Cuba. A paz FILME foi rapidamente restabeleci- Sob a Névoa da Guerra , nos arrogantes. Estados Unidos, 2003 Mas Cuba não sairia totalda. “Ninguém ficou satisfei- LIVROS Battleground Berlin: to com o acordo”, afirma o CIA vs. KGB in the Cold mente de mãos abanando. Os War , David E. Murphy e EUA prometeriam formalprofessor Brenner. “Khrus- Sergei A. Kondrashev, Yale University Press , chiov ficou enfraquecido 1999 mente jamais tentar invadir História da Guerra Fria , Cuba novamente. E essa prodentro do partido e perdeu o John Lewis Gaddis, Nova Fronteira, 2006 poder dois anos depois. Ken- Fidel Castro – Biografia messa seria cumprida. Quana Duas Vozes , Ignacio to a tentar assassinar Fidel... nedy deixou alguns milita- Ramonet, Boitempo Editorial, 2006 aí é outra conversa! res linha-dura insatisfeitos, AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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TENTATIVAS ZERO SUCESSO CHARUTO EXPLOSIVO, CÁPSULAS DE VENENO, SAPATOS RADIOATIVOS, FUNGOS LETAIS, SPRAY ALUCINÓGENO... A CIA INVENTOU DE TUDO PARA ASSASSINAR SEU INIMIGO CUBANO TEXTO Mauricio Manuel REPORTAGEM Felipe van Deursen
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arece brincadeira, mas Fidel Castro passou absolutamente incólume por mais de 600 planos de assassinato em sua vida. Quem faz essa conta é Fabián Escalante, o “anjo da guarda” de Fidel, responsável pelo serviço de contrainformação cubano e pela segurança pessoal do comandante. Foram tantas as investidas patrocinadas pela CIA nesse período que Escalante decidiu reuni-las num livro: 638 Ways to Kill Castro (638 Maneiras de Matar Castro, inédito em português). E a obra acabou virando documentário de TV, exibido na Inglaterra pelo Channel 4. Tanto na
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telinha quanto nas páginas do livro, descobre-se que os americanos tiveram ideias incrivelmente mirabolantes para eliminar o líder cubano. Algumas jamais foram colocadas em prática. Outras só não mataram Fidel por sorte. “A CIA precisava eliminá-lo sem correr o risco de ser incriminada”, explicou o diretor do filme, Dollan Cannell, numa entrevista ao jornal britânico The Guardian. “Portanto, era melhor que ele não fosse assassinado de uma forma convencional, com arma de fogo.” Já que era preciso literalmente inventar um instrumento que pudesse matá-lo, os
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Em visita aos Estados Unidos, em 1959, Fidel acha graça da manchete de um jornal: “Toda a polícia em alerta – plano para matar Castro”
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agentes deram asas à imag inação. Um dos planos previa o envio de um charuto-bomba para Fidel, que explodiria em sua cara. O ar tefato até foi fabricado, mas nunca chegou perto do comandante. Além de fumar charutos, Fidel Castro gostava de mergulhar e praticar caça submarina. E a CIA viu aí, segundo Escalante, mais uma chance de emboscar o inimigo. Dois planos “subaquáticos” teriam sido ela borados pelos agentes. Um deles era simples: contaminar uma roupa de mergulhador com um fungo letal. O outro, bem mais complicado: criar um molusco falso, enchê-lo de explosivos e colocá-lo à vista num recife de coral. Durante o mergulho, o comandante seria atraído por aquela cria-
tura tão exótica. E viraria picadinho quando chegasse a certa distância. Documentos secretos liberados na administração Clinton provaram que os dois planos realmente foram traçados pela CIA – mas que, como tantos outros, não saíram do papel. LOUCO NA TV
Até atentados de efeito moral passaram pela cabeça dos agentes americanos. Uma das ideias era contaminar os sapatos de Fidel Castro com tálio, um elemento químico altamente radioativo. O efeito da r adiação faria cair os pêlos da barba, minando a autoconfiança do líder cubano e tornando-o mais vulnerável a outros ataques. A CIA cogitou também espalhar um spray alucinógeno no
YO NO CREO EN BRUJAS... EM CUBA, ACREDITA-SE QUE FIDEL TINHA O CORPO “FECHADO” PELA SANTERÍA
Será que Fidel escapou de tantos planos para matá-lo apenas por sorte ou por incompetência da CIA? Há quem acredite em outra explicação. O comandante, que se autodenominava ateu, seria adepto da santería – sincretismo de crenças católicas com rituais africanos, parecido com a umbanda no Brasil. E sua proximidade com essa religião iria lhe garantir o que se chama de “corpo fechado”. Para a brasileira Claudia Furiati, biógrafa de Fidel Castro, a ligação do líder cubano com a santería podia não ser tão absurda quanto parecia. “Ele conviveu com o sincretismo religioso desde pequeno, na região da fazenda de seu pai”, diz Claudia. Em Cuba, dizem que Celia Sánchez – guerrilheira e amante por mais de 20 anos – apresentou Fidel às práticas da santería.
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estúdio de TV onde Fidel faria um pronunciamento à nação. Muito “louco” com as propriedades da substância, o comandante pagaria um mico histórico diante de toda a população, e ficaria desmoralizado demais para seguir governando. De novo, nada disso foi levado adiante. Entre as tentativas de assassinato que ocorreram de fato, um dos casos mais famosos é o de uma antiga amante de Fidel contratada pela CIA. Num encontro íntimo, ela deveria dar um jeito de fazê-lo engolir uma cápsula de veneno. Mas as pílulas que a mulher levava na bolsa derreteram, escondidas num pote de creme para o rosto. Passar o cosmético na barba de Fidel, enquanto ele estivesse dormindo, não parecia ser boa ideia. E o
Praticante de santería em Havana: semelhanças com o Brasil
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plano, que tinha tudo para dar certo, acabou indo por água abaixo. A última tentativa de matar Fidel Castro de que se tem notícia ocorreu em 2000, durante uma visita do comandante ao Panamá. Cerca de 90 quilos de explosivos, prontinhos para explodir, foram encontrados pelos seguranças de Fidel sob o palanque onde ele faria um discurso. Quatro homens, entre eles o exilado cubano e colaborador da CIA Luis Posada, foram presos naquela ocasião. Uma das explicações para tantos planos de atentado é a longa permanência de Fidel Castro no poder: 49 anos, de 1959 a 2008. As conspirações começaram logo depois da revolução. Em março de 1960, o presidente americano, Dwight Eisenhower, já tinha aprovado um plano para derrubá-lo, que atingiria seu objetivo sem que os EUA precisassem invadir a ilha. A estratégia seria financiar a oposição a Fidel em território cubano e treinar 60 exilados, que se infiltrariam em Cuba com armas fornecidas pela agência. Se tudo desse certo, o comandante cairia em seis meses. Mas o plano não funcionou. Assim que tomou posse na Casa Branca, em 1961, John Kennedy demonstrou especial interesse pelos planos da CIA para eliminar Fidel Castro. Foi em março daquele ano que Richard Bissell, diretor de operações encobertas da agência, apresentou-lhe a ideia de invadir Cuba por três praias localizadas na Baía dos Porcos. No mês seguinte, uma brigada composta de cerca de 1,4 mil exilados cubanos desembarcou na ilha. Novo fiasco, e dessa vez dos grandes, com as tropas de Fidel esmagando as forças invasoras e fazendo mais de mil prisioneiros. Cada vez que se esquivava de uma arma-
2000: A ÚLTIMA TENTATIVA DE MATAR FIDEL CASTRO. 90 KG DE EXPLOSIVOS SOB SEU PALANQUE. ção, o comandante aproximava-se em Miami cápsulas contendo uma mais e mais da União Soviética. Em bactéria assassina. Elas dever iam plena Guerra Fria, os EUA assistiam ser dissolvidas no café ou no lenço à construção de um regime comunis- do comandante. Só que o plano, para ta logo ali, no quintal da casa deles. variar, não deu certo. No ano seguinEm novembro de 1961, Kennedy te, a agência recrutou um ex-revolucriou um comitê denominado Grupo cionário para dar cabo do líder. RoEspecial Ampliado e entregou a che- lando Cubela havia lutado ao lado de fia ao irmão, Robert. Na prática, sua Fidel em Sierra Maestra e, àquela missão era uma só: eliminar Fidel. altura, ocupava um cargo no gover“A CIA estava tão ocupada condu- no. Os agentes prometeram-lhe a zindo aquelas ações que errou, ao arma que ele quisesse. Cubela escover em Cuba uma ameaça crescente lheu um rif le com mira telescópica. à segurança dos EUA”, escreveu o Jamais recebeu a encomenda. jor nal ista americano Tim Weiner No dia 22 novembro de 1963, antes em Legado das Cinzas: Uma História de o atentado ser consumado, o preda CIA. O novo diretor da agência, sidente Kennedy foi assassinado en John McCone, tinha assumido o car- quanto desfilava em carro aberto go naquele mês e não sabia dos pla- pelas ruas de Dallas, no Texas. Quem nos arquitetados pelo antecessor, assumiu seu lugar na Casa Branca Allen Dulles, e seu subordinado foi o vice, Lyndon Johnson, que nada Richard Bissell. Disse ao presidente sabia sobre os planos da CIA para que apenas uma guerra – “secreta eliminar Fidel. “Poucas pessoas saou não” – derrubaria Fidel. E que a biam”, escreveu Tim Weiner. Quase CIA não estava pronta para essa quatro anos mais tarde, em 1967, o guerra. Kennedy ignorou o alerta e FBI – polícia federal americana – enpermitiu que os planos para assas- tregou a Johnson um relatório que sinar o líder cubano seguisconfirmava: a CIA tinha plasem em frente. nejado várias vezes a morte SAIBA MAIS de Fidel Castro e chegou a LIVRO 638 Ways to Kill contratar os serviços da máMÁFIA NA JOGADA Castro , Fabian Ocean fia para alcançar seu objetivo. Determinada a eliminar Fi- Escalante, Press, 2006 (em inglês) O presidente teria comentado: del, a central de inteligência DVD 638 Ways to Kill “John Kennedy queria pegar acabaria se associando à má- Castro , Dollan Cannel, BCI/Eclipse, Castro, mas Castro pegou fia. Em abril de 1962, o gân- 2006 (em inglês) Kennedy primeiro”. gster John Rosselli recebeu AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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A GRANDE
MUSA DE FIDEL TUDO LEVA A CRER QUE CELIA SÁNCHEZ E FIDEL FORAM AMANTES POR MAIS DE 20 ANOS. E QUE ELA INFLUENCIAVA AS DECISÕES DO COMANDANTE TEXTO Lira Neto
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Celia, a mulher por trás de Fidel
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m pleno combate, uma guerrilheira de 36 anos, cabelos negros, conquistou o coração do comandante. Embora os dois nunca tenham assumido o romance publicamente, tudo leva a crer que Fidel Castro e Celia Sánchez mantiveram um relacionamento de mais de duas décadas, iniciado na manhã de 16 de fevereiro de 1957, quando o líder da revolução a conheceu no acampamento, em Sierra Maestra. Sob o codinome “Norma”, Celia foi a primeira mulher a pegar em armas. E alguns historiadores afirmam: sem ela, o processo revolucionário poderia ter tomado outro rumo. Antes de conhecer Fidel, Celia já era uma figura importante nos bastidores do movimento. Filha de um médico ligado ao Partido Ortodoxo, participou ativamente dos preparativos para o desem barque dos 82 guerrilheiros que chegaram a Cuba no Granma, em dezembro de 1956. Coube a ela a tarefa de obter cartas náuticas e tábuas de maré que garantissem uma viagem tranquila do México até a ilha, sem levantar suspeitas. Mas a confusão que marcou a chegada do iate impediu que Celia e Fidel se conhecessem naquele momento.
MARIANAS DA REVOLUÇÃO PELOTÃO DE MULHERES ERA USADO POR FIDEL COMO ARMA PSICOLÓGICA
E S I M O R P F O S R A E Y N O I T U L O V E R N A B U C E D A I S E T R O C E A D I R O L F , S E B A G L A R O C , S E I R A R B I L I M A I M F O Y T I S R E V I N U , N O I T C E L L O C E G A T I R E H N A B U C E D A I S E T R O C O T O F
Para a maioria dos guerrilheiros nas montanhas de Sierra Maestra, parecia absurda a ideia de entregar armas às mulheres do acampamento e convocá-las para lutar contra as forças de Fulgêncio Batista. Tarefa de mulher era cozinhar, cuidar dos feridos, costurar uniformes ou servir de mensageira. Mas a criação de um pelotão feminino era defendida por alguém que exercia grande influência sobre os líderes da revolução: Celia Sánchez, que desde a batalha de El Uvero, em maio de 1957, já circulava com um poderoso fuzil M-1 sempre à mão.
Em setembro de 1958, formouse o pelotão Mariana Grajales. Para decidir qual das 13 integrantes iniciais seria a chefe do grupo, Fidel organizou uma prova de tiro: ganharia quem acertasse uma moeda à distância de 50 metros. Isabel Rielo ficou com o primeiro lugar e a patente de capitã. Mas foi Teté Puebla, segunda colocada na prova, que se tornou a mais célebre das “marianas”. Por seu desempenho em combate, Teté seria promovida a general de brigada – a primeira mulher a receber tal honraria. Para Fidel, o pelotão
feminino funcionava como arma de efeito psicológico: os soldados de Batista ficavam arrasados ao serem derrotados por um “bando de mulherzihas”. A “marian a” Haydée Santamaría
Quando os combatentes conseguiram se embre- SOMBRA PROTETORA nhar nas montanhas, Celia tornou-se uma peça Quando Celia começou a ser perseguida em Manfundamental da guerrilha. Principal elo entre o zanillo, ficou impossível permanecer na cidade. Ela acampamento rebelde e os partidários do movi- decidiu, então, subir as montanhas e unir-se à linha mento na cidade de Manzanillo, onde morava, ela de frente. Natural da região, conhecia os segredos passou a cuidar do envio de suprimentos, armas e da mata. E revelou-se uma guia de primeira, espemunições para Sierra Maestra, além de recrutar cialista em encontrar água potável, abrir novas camponeses. Sua importância era tal que, à época, trilhas e identificar frutos silvestres que pudessem Ernesto Guevara declarou: quando escreverem um ser comidos, sem risco de envenenamento. livro sobre a história da revolução, o nome de Celia Celia transformou-se numa espécie de secretária deverá obrigatoriamente estar na capa. de Fidel. E logo ficou claro para os revolucionários Para Rich Haney, autor de Celia Sánchez: The que havia algo mais entre o comandante e a nova Legend of Cuba’s Revolutionary Heart (Celia Sánchez: integrante. “Ela era confidente, secretária, mulher A Lenda do Coração Revolucionário de Cuba), sua e sombra protetora”, escreve Claudia Furiati em atuação nos primeiros passos da revolução, em solo Fidel Castro: Uma Biografia Consentida. No livro cubano, foi mais decisiva até que a de Fidel Castro. Fidel: A Critical Portrait (Fidel: Um Retrato Crítico), Não fossem as articulações de Celia, a guerrilha Tad Szulc registra um detalhe que revela o alto grau teria permanecido isolada nas montanhas, sem de intimidade entre os dois: no quartel-general de chances de vitória. “É justo que existam inúmeros La Plata, havia até um dormitório com cama de monumentos erguidos a ela em Cuba, em número casal. Quando a revolução triunfou, Celia Sánchez muito maior do que aqueles em homenagem a Fi- assumiu a chefia do gabinete de Fidel e, em seguida, del”, diz Haney. O historiador Tad Szulc, biógrafo a secretaria da presidência do Conselho de Minisdo comandante, concorda: “Sem Celia Sánchez, a tros de Cuba. Permaneceu na função até sua morte, história poderia ter sido bem diferente”. em 1980, aos 60 anos, vítima de câncer.
SAIBA MAIS LIVRO Celia Sánchez: The Legend of Cuba’s Revolutionary Heart , Rich Haney, John van Dippel e Richard Haney, Algora Publishing, 2005 (em inglês)
AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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PODER
O GUARDIÃO DA
IDEOLOGIA EM SEUS ÚLTIMOS ANOS, FIDEL APARECEU POUCO. MAS, QUANDO O FEZ, FOI PARA REAFIRMAR SUAS CRENÇAS POLÍTICAS TEX TO Fábio Marton e Tiago Cordeiro
íder, presidente, coman- xista, que ganha em dólar, pode re- Fria, ninguém podia mais levar a dante, herói, revolucioná- ceber o equivalente a várias vezes o sério a ideia de que a ilha iria acabar rio, libertador, tirano, di- salário de um reitor de universidade. com a democracia no continente tador: Fidel foi um homem Por essa mesma época, o coman- americano. Na década de 2000, Casde muitos adjetivos, dados por fãs e dante deixou de andar exclusivamen- tro ganhou vários amigos próximos detratores. Até a aposentadoria, em te de farda para aparecer de terno. E nos governos esquerdistas do conti2008, ele e seu país nunca deixaram as polêmicas começaram a esfriar. nente, abraçado literal e figurativao noticiário. Nas décadas de 1960 e Cuba continuou a ser um regime au- mente pelos presidentes Hugo Chá1970, foi pelas incursões militares na toritário, mas, com o fim da Guerra vez, da Venezuela; Evo Morales, da África e o apoio às guerriBolívia; o casal Néstor e lhas da América do Sul. Em Cristina Kirchner, da Ar1980, com o Êxodo de Mariel gentina; e, não é segredo, – quando Fidel responde a Lula e Dilma, do Brasil. acusações americanas de Seria esse “Castro light” É provável que Fidel Castro tivesse influência sobre prender seus cidadãos no a sumir dos holofotes em os rumos de Cuba depois de 2006. Mas seu irmão próprio país abrindo o por2006, quando veio a público mais novo, Raúl, que assumiu o poder, mostrou ter personalidade própria. Raúl não lançou o país num to de Mariel para quem quia notícia de que ele tinha soprograma econômico de matizes capitalistas, sesse sair. E, como um prefrido uma grave hemorragia como fez a China depois de Mao, mas inseriu sente ao Tio Sam, mandanintestinal que quase o levou mudanças para recuperar a economia e dar um do alguns indesejáveis na já então, não fosse uma cipouco mais de acesso às novas plataformas de rota, prisioneiros comuns e rurgia de emergência realicomunicação. Ele permitiu, por exemplo, o acesso pacientes de instituições zada no fim de julho. Afasirrestrito a telefones celulares e a venda de mentais. Na década de 1990, tado provisoriamente do produtos eletrônicos. E deu aos cubanos o direito o foco se torna a imensa pecargo de presidente, ele faria de possuir casa própria. Publicamente, recebeu o núria em Cuba, resultante uma participação no prograapoio de Fidel para todas as decisões – ainda que do fim da União Soviética e ma de rádio do presidente da várias declarações de Fidel na época possam ser a perda de um grande clienVenezuela Hugo Chávez, em interpretadas como críticas veladas aos novos te e patrocinador, forçando fevereiro de 2007. Mas não rumos de Cuba. Sob a tutela de Raúl, em 2015, Cuba e Estados Unidos retomaram relações o país a se abrir ao turismo voltaria mais ao comando de diplomáticas. Em março de 2016, o presidente e aceitar o dólar em sua ecoCuba: em fevereiro de 2008, Barack Obama visitou Havana. Em novembro, os nomia. O que causaria uma oficializou a posse do sucespaíses restabeleceram voos comerciais. perversa forma de desigualsor Raúl Castro, seu irmão. dade social, na qual um taEra o fim de 49 anos no po-
L
SUCESSÃO EM FAMÍLIA
52 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
L I S A R B A I C N Ê G A / O T S E N R E O R D N A J E L A O T O F
Fidel nos anos de aposentadoria
der, somando as funções de primeiroministro de Cuba, entre 1959 e 1976, e presidente até 2008. Em 2011, deixaria também a função de primeirosecretário do Partido Comunista de Cuba, que ocupava desde 1961. Com a batuta firmemente nas mãos do irmão Raúl, Fidel se tornaria uma figura simbólica, espécie de espírito guardião da alma revolucionária. E um tanto folclórica, também, trocando o terno que havia substituído a farda por roupas esportivas, com as quais visitava chefes de Estado – remetendo à sua atlética juventude (como visto na página 6). (A resposta para o mistério dos conjuntinhos “capitalistas”, aliás, é simples: ele simplesmente se apossou de alguns uniformes da seleção olímpica de Cuba, gentilmente cedidos por marcas esportivas europeias.) Em seus últimos anos, Fidel faria viagens, aparições e declarações esporádicas. Em 2011, condenou a ação da Otan contra Muammar Gaddaffi, um velho aliado, na Líbia. Em 2012, receberia o papa Bento XVI em sua visita a Cuba. Durante a ida de Obama ao país, em março de 2016, recu-
sou-se a encontrá-lo, quem sabe retor- pena termos feito esta revista sobre nando o favor do presidente Dwight Fidel. Ele entraria para a História Einswenhower, que não o recebeu em como um dos maiores generais de 1959. Afirmou então que “Cuba não todos os tempos. Mas Fidel e seus amigos tiveram precisa de presentes do império”. Em 20 de abril seguinte, ele faria quase 60 anos para administrar o seu último discurso, diante do con- país. E, aí, nem tudo é vitória. Cuba gresso do Partido Comunista de tem excelentes indicadores em alguns Cuba. Anunciando que logo faria 90 pontos, como boa escolarização, acesanos e que talvez fosse sua última vez so à saúde e baixa mortalidade infannaquela sala, ele fez sua despedida. til. Contudo é também ainda hoje uma Terminando em: “Prossigamos na ditadura de partido único, onde as marcha para diante e aperfeiçoemos pessoas são perseguidas por suas opio que devemos aperfeiçoar, com a niões políticas e toda a imprensa é máxima lealdade e força unida, controlada pelo governo. O paredón numa marcha impossível de deter”. pode ter ficado para trás, mas a FreeDefinitivamente, não é esse um dom House, a ONG americana que discurso de alguém que revê suas busca medir a liberdade no mundo, crenças, mas o de quem parece ter a ainda classifica Cuba entre os “piores convicção de estar na mesma luta do dos piores”, o único caso na América. princípio da carreira. Ao anunciar Fica a pergunta que ele levantou sua morte, em 25 de novembro de lá em 1953: a História o absolverá? Ou 2016, seu irmão Raúl terminou com continuará ele a dividir corações e um já hoje quase nostálgico “hasta la mentes na América, o bicho-papão ditador comunista, para uns, victoria, siempre!”. SAIBA MAIS e o santo guerreiro contra o Vitória eles tiveram. A exdragão do imperialismo ametremamente improvável der- SITES www.granma.cu/ granmad/secciones/ ricano, para outros? A verdarota de um governo de 50 mil ref-fidel/ de provavelmente fica em alsoldados por 12 guerrilhei- https://twitter.com/ reflexionfidel gum lugar do meio. ros, por si só, faria valer a AVENTURAS NA HISTÓRIA |
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PODER
TIRATEIMA VALEU A PENA? CUBA EM NÚMEROS, ANTES E DEPOIS DE FIDEL
F
idel não fundou um país do nada. Quando ele achou a cadeira abandonada por Fulgêncio e nela se sentou em 1959, Cuba era, em vários aspectos, um dos mais avançados países da América Latina. Entre eles, Cuba tinha a segunda melhor renda per capita e o menor índice de mortalidade infantil – que, aliás, batia vários países de primeiro mundo. Enquanto há avanços inegáveis em áreas como educação e atendimento médico, ficou para trás em economia – e, não é mistério, em coisas relacionadas à liberdade de expressão, como o uso de internet. Trazemos aqui os avanços de Cuba em paralelo com os de um país não exatamente famoso por um desenvolvimento social vertiginoso: nosso Brasil. Tire suas próprias conclusões.
POPULAÇÃO
6.763.736
PIB*
US$ 21 BI
PIB PER CAPITA*
US$ 3.096,66
EXPORTAÇÕES EXPORTAÇÕES TOTAIS* PRODUTOS
U$ 732 MI PARCEIROS
81% AÇÚCAR 74%
POPULAÇÃO
72.780.000
PIB*
U$ 126,9 BI
PIB PER CAPITA* 54 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
U$ 1.722
7% 7% 5% TABACO NÍQUEL OUTROS
ESTADOS UNIDOS
BRASIL EXPORTAÇÕES TOTAIS*
U$ 10,291 BI
ENSINO SUPERIOR MATRÍCULAS NO ENSINO SUPERIOR MATRÍCULAS / 1.000 HABITANTES
20.000
ANA LFABETISMO
1958
23,6%
0,33
SAÚDE MORTALIDADE INFANTIL / 1.000 L I MATRÍCUL AS NO ENSINO SUPERIOR S A MATRÍCULAS / 1.000 HABITANTES R B ANALFABETISMO
93.00 0
32 CRIANÇAS
0,78 39,30%
EXPECTATIVA DE VIDA 63 ANOS MÉDICOS / 1.000 HAB 0,9 MÉDICOS
L I MORTALIDADE INFANTIL / 1.000 S A EXPECTATIVA DE VIDA R B MÉDICOS / 1.000 HAB
129 48 ANOS 0,47
*AJUSTADO PELA INFLAÇÃO **ALGUNS DADOS DO CENSO D E 1960
AVENTURAS NA HISTÓRIA | 55
PODER
POPULAÇÃO
11.238.317
PIB*
US$ 80,7 BI
PIB PER CAPITA* AUMENTO PIB PER CAPITA PIB PPP PER CAPITA
POPULAÇÃO PIB* PIB PER CAPITA* AUMENTO PIB PER CAPITA PIB PPP PER CAPITA
2016
US$ 7.186 132% U$ 7.301
USUÁRIOS DE INTERNET
209.567.920
CUBA
U$ 1,77 TRI
31% BRASIL
U$ 8.300 382%
DA POPULAÇÃO
59,1%
DA POPULAÇÃO
U$ 15.175
EXPORTAÇÕES EXPORTAÇÕES TOTAIS* EVOLUÇÃO 1958 - 2016
U$ 1,74 BI 137% PARCEIROS
PRODUTOS 32% OUTROS 7% RUM 6% NÍQUEL
BRASIL 56 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
23% AÇÚCAR 14% TABACO 18% PETRÓLEO
EXPORTAÇÕES TOTAIS* EVOLUÇÃO 1958 - 2016
18% CHINA 52,5% OUTROS 3,5% BRASIL
9% HOLANDA 8% ESPANHA 5% SENEGAL 4% REINO UNIDO
U$ 191,127 BI 1 ,757%
ENSINO SUPERIOR
SAÚDE
MATRÍCULAS NO ENSINO SUPERIOR 173.298
MORTALIDADE INFANTIL / 1.000 4,2 CRIANÇAS
MATRÍCULAS / 1.000 HABITANTES
ANALFABETISMO 0,30%
15,42
EVOLUÇÃO 1958 - 2016
EVOLUÇÃO 1958 - 2016 4,572% * * *
L I S A R B
EVOLUÇÃO 1958 - 2016 98,7%
MATRÍCULAS NO ENSINO SUPERIOR MATRÍCULAS / 1.000 HABITANTES EVOLUÇÃO 1958 - 2016
ANALFABETISMO EVOLUÇÃO 1958 - 2016
87%
EXPECTATIVA DE VIDA 78,5 ANOS EVOLUÇÃO 1958 - 2016 24,6% MÉDICOS / 1.000 HAB
2,9 MI
7,6 MÉDICOS
13,83 1,673%
8,3% 79,9%
EVOLUÇÃO 1958 - 2016
744%
MORTALIDADE INFANTIL / 1.000 L I S A R B
EVOLUÇÃO 1958 - 2016
EXPECTATIVA DE VIDA
72,5 ANOS
EVOLUÇÃO 1958 - 2016
51,04%
MÉDICOS / 1.000 HABITANTES EVOLUÇÃO 1958 - 2016
14 89%
1,95 315%
IDH CUBA
0,769
BRASIL
0,755
*AJUSTADO PELA INFLAÇÃO **ALGUNS DADOS DO CENSO D E 1960 ***DADOS ENT RE 2014 E 2016 FONTES: IBGE, BANCO MUNDIAL, PNUD, ANUÁRIO ONEI, FMI, ARCHIBALD RITTER, UNIVERSIDADE DE MIAMI, OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY, USP
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E S I M O R P F O S R A E Y N O I T U L O V E R N A B U C E D A I S E T R O C O T O F
PODER
Fidel aos 26 anos, aguardando sua sentença. O quadro atrás dele é do herói da independência José Martí
E, ENTÃO, O VEREDICTO É?... O JOVEM FIDEL CASTRO LIDEROU UMA COLUNA GUERRILHEIRA QUE TENTOU INVADIR O QUARTEL MONCADA. NO JULGAMENTO, DISSE A FRASE FAMOSA: “A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ”
58 | AVENTURAS NA HISTÓRIA
rapaz imberbe da foto acima teria ainda muito a oferecer à história mundial quando o instantâneo foi feito. É Fidel Castro, e ele espera a sentença no julgamento em que foi acusado de liderar um movimento para a tomada do Quartel Moncada, em 1953. Diante dos juízes, emitiu um moto que o seguiria por toda a vida: “A História me absolverá”. Da parte de Cuba, ele foi anistiado após dois anos na cadeia, por razões não muito claras. Voltaria para vencer e se tornar o juiz de seus inimigos. Quanto à História... Fidel é um daqueles que a escreveu.
O