C. F. D. MOULE
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FICHA CATALOGRÁFICA CIP-BRASIL. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP M882o
Moule, Charles Francis Digby, 1908As origens origens do Novo Testamento Testamento / C. C. F. D. Moule; Moule; (tradu (traduziu ziu Josué Xavier; revisão de Luiz Antonio Miranda). —São Paulo: Ed. Paulinas, 1979. (Nova coleção bíblica; 9) lo. lo.
1.
Bíblia. N.T. N.T. —Cânon —Cânon 2. Igreja Igreja —História —Igreja —Igreja primitiva primitiva I. Titu
CDD-225.12 -270.1
79-0859
índices para catálogo sistemático: 1. Igreja cristã cristã primitiva: primitiva: Hist História ória 270. 270.)) 2. Novo Testamento: Cânon 225,12
NOVA COLEÇÃO BÍBLICA 1 As parábol parábolas as de Jesus — Joachim Jeremias 2 Forma e exigências do N .T. .T . — J. Schreiner-G. Dautzenberg (coords.) 3 Teologia do Novo Testamento (1‘ parte) — J. Jeremias 4 A interpretação do quarto Evangelho — C. H. Dodd 5 Introdução ao A.T. (vol. 1) — E. Sellin-G. Fohrer 6 Introduçã Intro duçãoo ao A .T. .T . (vol. 2) — E. Sellin-G. Fohrer 7 História Histó ria de Israel Isra el — John Bright 8 Palavra Palavra e mensagem — Josef Schreiner (coord.) 9 As A s origens origens do Novo No vo Testam Tes tamento ento — C. F. D. Moule
C. F. D. MOULE
AS ORIGENS DO NOVO TESTAMENTO
Digitalizado por: por: jolosa
EDIÇÕES PAULINAS
Título original The Birth of the New Testament © Charles Charles Francis Francis Digby Moule, Moule, 196 19 6 2,19 2, 1966 66 Adam & Charles Black, Ltd., Londres Traduziu Josué Xavier Revisão de Luiz Antonio Miranda
C o m a p r o v a ç ã o e c l e s iá iá s t ic ic a ©
E D IÇ Õ E S P A U L IN A S - S Ã O P A U L O , 1979
Ao A o SENATU S ACADEMJ ACA DEMJCUS CUS da UNIVERSITY OF ST. ANDREWS em sinal de gratidão pe p e la gran gr ande de h o nra nr a que qu e m e fi f iz e r a m conferindo-me o título de doutor em Teologia
A B R E V I A T U R A S
Ang. Theol. Rev. BJ.R .L . Bibl. Zeitschr. CD Canad. Journ. of Theol. Cath. Bib. Quarterly E.T. H.T.R.
I.C.C.
IX .N .T , J.B.L. J.N.T.S. J.R.S. J.T.S. N.E.B. Nov. T. par. Proc. Brií. Acad. 1Q S R.B. R.G.G. Rev. d ‘Hist. et de Philos. Rev. Qum. S.-B. S.N .T .S.
Stevenson
Anglican Theological Review (Evanston, III.). Bulletin o f the John Rylands Library (Manchester). Biblische Zeitschrift (Paderborn). Documento de ‘Dam asco’ (da Geniza do Cairo; ed. C. Rabin, The Zadokite Documents, 1958, 2* ed.). Canadian Journal of Theology (Toronto). Catholic Biblical Quarterly (Washington). Expository Times (Edimburgo). Harvard Theological Review (Cambridge, Mass.). • International Criticai Commentary. J. Moffatt, Introduction to the Literature o f the New Testament (1918, 3’ ed.). Journal o f Biblical Literature (Philadelphia). Journal called New Testament Studies (Cambridge). Journal o f Roman Studies (Londres). Journal o f Theological Studies (Oxford). The New English Bible (1961). Novum Testamentum (Leiden). paralelo(s). Proceedings o f the British Academy (Oxford). (i.e. Serek hayyahad, a Regra da comunidade, da gruta I de Qumran) Manual o f Discipline (Trad. inglesa e notas, W.H. Brownlee, 1951). Revue Biblique (Jerusalém). Die Religion in Geschichte und Gegenwart (1927, 2* ed. — 1932; 1957, 3* ed,). Revue d ’Histoire et de Philosophie religieuses (Paris). Revue de Qumran (Paris). H.L. Strack e P. Billerbeck, Kom mentar zum Neuen Testa ment aus Talmud und Midrasch (1922-28). Studiorum Novi Testamenti Societas (Boletins i-iii, 1950-52, Oxford; precedeu J.N.T.S.). J. Stevenson, A New Eusebius: Documents illustrative o f the History o f the Church to A.D . 337 (1957).
PREMISSA DO AUTOR
Dentre as muitas pessoas a quem devo agradecer, figura de modo especial o Dr. Henry Chadwick, que primeiramente propôsme escrever um volume para a coleção por ele dirigida. A seguir, leu quase todo o rascunho e, com sua paciente ajuda, permitiu-me evitar inúmeros erros e enriquecer consideravelmente a obra. Algu ma inexatidão ou lacuna que ainda possa ter ficado não deve ser atribuída a ele, evidentemente. Sou também muito grato a G.M. Styler pelo seu excurso. Agradeço de coração às eficientes datilógrafas, A.N. Thompson e A. de Q. Robin, que passaram a limpo grande parte da obra diretamente dos manuscritos, muitas vezes quase inlegíveis; à Sra. Milne, que deixou ordenadas e claras inú meras folhas corrigidas várias vezes; ao Editor e ao impressor pela admirável cortesia e grande capacidade que demonstraram. Além das muitas publicações que não pude consultar, um ma terial bastante vasto e importante chegou às minhas mãos quando já era demasiado tarde para indicá-lo, ainda que em nota. Por isso é meu dever apresentar a seus autores minhas escusas por essa fa lha. C.F.D.M.
No original inglês o AT foi citado a partir da Revised Standard Version o f the Bible (© 1946 2 1952, Division of Christian Education of the National Council o f the Churches o f Christ in the U.S.A.) e o NT a partir da The New Engllsh Bible (o The Oxford and Cambridge University Presses). . Em nossa tradução utilizamos para o AT a tradução da Bíblia Sagrada (Edi ções Paulinas) e para o NT a tradução da Bíblia de Jerusalém. , „ .. (N. da Ed.)
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ABREVIATURAS
The Babylonian Talmud (Trad. ingl. por Epstein, incompleta, Soncino Press, 1935). TJ. The Jerusalem Talmud (ed. Krotoschin, 1866). T.M. Texto massorético. Texie und Untersuchungen zur Geschichte der altchristliT. und U. chen Literatur (1882ss.). T.W.N.T. Theologisches Worterbuch zum Neuen Testament (ed. + G. Kíttel e G. Friedrich, 1933). Testaments of the Twelve Patriarchs (ed. R.H. Charles, Test. 1908); Benj. = Benjamin, etc. Theologische Zeitschrift (Basiléia). Th. Zeitschr. Theol. Literaturz. Theologische Lileraturzeitung (Leipzig). W. H. B.F. Westcott e F.J.A. Hort, The New Testament in the Ori ginal Greek (editio maior, 2 vols., texto e introdução, 1881; editio minor, apenas texto, 1896). Z.N .T .W . Zeitschrift fü r die neutestamentliche Wissenschaft (Berlim). Z.Th.K. Zeitschrift f ü r Theologie und Kirche (Tübingen). T.B.
ABREVIATURAS
ABREVIATURAS BÍBLICAS Utilizamos nesta tradução as abreviaturas adotadas pela Biblia de Jerusalém Novo Testamento (Edições Paulinas):
Ab Ag Am Ap At
Abdias Ageu Amós Apocalipse Atos dos Apóstolos
Br
Js Jt Jz
Josué Judite Juizes
Baruc
Lc Lm Lv
Lucas Lamentações Levítico
Cl ICor 2Cor ICr 2Cr Ct
Colossenses 1? Coríntios 2* Coríntios 19 Crônicas 2? Crônicas Cântico dos Cânticos
Mc lMc 2Mc MI Mq Mt
Marcos l9 Macabeus 29 Macabeus Malaquias Miquéias Mateus
Dn Dt
Daniel Deuteronômio
Ecl Eclo Ef Esd Est Ex Ez
Eclesiastes (Qohelet) Eclesiástico (Sirácida) Efésios Esdras Ester Êxodo Ezequie!
Na Ne Nm
Naum Neemias Números
Os
Oséias
IPd 2Pd Pr
1* Pedro 2‘ Pedro Provérbios
F1 Fm
Filipenses Filemon
G1 Gn
Gálatas Gênesis
Rm lR s 2Rs Rt
Romanos l9 Reis 29 Reis Rute
Hab Hb
Hãbacuc Hebreus
Is
Isaias
Sb Sf SI ISm 2Sm
Sabedoria Sofonias Salmos l ç Samuel 2’ Samuel
Jd J1 Jn Jó Jo 1Jo 2Jo 3Jo Jr
Judas Joel Jonas Jó João 1*Joào 2* João 3* João Jeremias
Tb Tg lTm 2Tm lTs 2Ts Tt
Tobias Tiago 1» Timóteo 2* Timóteo 1* Tessalonicenses 2* Tessalonicenses Tito
Zc
Zacarias
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
A natureza e o objetivo deste livro necessitam de explicação. Ele não se propõe ser uma introdução ao Novo Testamento no sentido comum da expressão, pois não visa uma investigação siste mática da autoria, data e composição de cada escrito. Já existem numerosas obras que seguem esta linha. Contudo, também não é primariamente uma teologia do Novo Testamento, embora de fato muitos problemas teológicos sejam focalizados. O que tenta fazer é investigar as circunstâncias que orientaram a formação do Novo ít Testamento. Interessa-se pelo nascimento da escritura cristã ou, f ainda mais, por seu período pré-natal. A constante pressão da pesquisa bíblica felizmente produziu uma atmosfera em que é muito mais fácil do que costumava ser, re cordar a comunidade viva e há menos perigo agora de se imaginar um procedimento de “mesa redonda” 1 e simples métodos de “ tesoura-e-cola” por trás daqueles vividos e úteis documentos. N a ver 1. Falar de “mesa redonda”, literalmente, no período do Novo Testamento na verdade, mesmo talvez no oitavo século, seria casualmente um anacronismo, até em relação ao estudo erudito. B.M. METZGER, recentemente, fez uma inda gação sobre o curioso fato (já observado por outros antes dele) de que escrever a „ uma mesa parece ter sido um progresso relativamente tardio. O sjseribas da anti guidade ou ficavam em pé (para anotações relativamente breves) ou se sentavam : numa banqueta ou banco, ou mesmo no chão, e apoiavam seu material nos joe^Jhos. Cf. B.M. METZGER, “The Furniture o f the Scriptorium at Qumran” in Rev. Qüm. I, 4, 1959, 509-5 15; “When did Scribes begin to use Writing Desks?” in Akten des XI internationalen Byzantinisten-Kongresses, 1958, Munique, 1960, 355ss; e, onde são citados autores mais antigos, como Theodor Birt, Die Buehrolle in der Kunst, 1907; W. SANDAY (E.), Studies in the Synoptic Problem by the Members of the University of Oxford, 1911, 16ss; A. DAIN, Les Manuserits, 1949, 22; JAROSLAV CERNY, Paper and Books in Ancient Egypt, 1952, 14; T.C. SKEAT, “The Use of Dictation in Ancient Book-Production” in Proc. Brit. Acad. 42, 1956, 138.
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INTRODUÇÃO
dade, já há muitos livros que tratam da vida e culto das comunida des cristãs primitivas em que o Novo Testamento se formou2. Mas parece que ainda há lugar para uma tentativa, dentro dos limites de um único livro de tamanho razoável3, de reunir num quadro com pósito os principais traços das circunstâncias complexas de que, sob a direção de Deus, emergiram primeiramente numerosas unida des distintas de material e, em seguida, o processo que finalmente reuniu algumas delas em escrituras cristas, enquanto muitas foram colocadas de lado ou mesmo repudiadas. N Este livro considera o Novo Testamento à luz da “crítica das for mas”4 projetada nos primeiros tempos da Igreja Cristã (embora 'nem todas as descobertas fundamentais desta técnica sejam aceitas aqui); tenta colocar em seu contexto de vida e pensamento o pro cesso que conduziu à redação dos livros cristãos primitivos e o início do processo de seleção dentre aqueles que chamamos de escrituras do Novo Testamento. Isto nos levará a muitas questões de língpaa, história e teologia, em que muitos enganos facilmente se cometem, muitos fatores são negligenciados, muitas falsas conjeturas oferecidas. Porém valerá a pena conduzir os leitores outra vez ao Novo Testamento com uma sensibilidade mais viva para os 2. Ao conjunto das obras sobre a “critica das formas” citadas abaixo, no n9 4, pertencem também aquelas sobre o culto no Novo Testamento (cf. c. 2, n9 1). 3. M. ALBERTZ, Die Bohchaft des Neuen Testamenís, 4 vols., 1947-57, é obra magnífica, embora volumosa. 4. Esta é a expressão geralmente usada (inglês: Forrn criticism) para o ale mão die formgeschichtUche Methode. É o método (de investigação crítica) que procede por reconstruir a história das formas assumidas por cada unidade de tra dição da maneira que passa de boca em boca e de lugar a lugar. Entre introduções ao método e discusáSo de seu escopo e limitações, cf. U.S. EASTON, The Gospel be/ore the Gospels, 1928; V. TAYLOR, The Formation o f the Gospel Tradition, 1933, 1953, 2» ed.; R.H. LIGHTFOOT, History and Interpretation in the Gos pels, Bampton Lectures, 1935; The Gospel Message o fS t. Mark, 1950, 98ss; M. DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, 1919;^ Fresh Approach to the New Testament and Early Christian Literature, versão inglesa, 1936; R. BULTMANN, Die Geschichte der synoptischen Tradition, 1931, 2? ed.; H. Riesenfeld, The Gospel Tradition and its Beginnings, 1957, também na comunicação ao Con gresso de Oxford sobre “Four Gospels” in Studia Evangélica, 1959, e em The Gospels Reconsidered, Blackwell, 1960; C.F.D. MOULE, Lond. Quarterly e Holborn Review, abril de 1958, 87ss; O. CULLMANN, Unzeitgemàsse Bemerkungen zum "historischen Jesus” der Bultman n^ ule, Berlim, 1960; B. GERHARDS SON, Mem ory and Manuscrípt, 1961. -
INTRODUÇÃO
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problemas que uma leitura atenta deve suscitar, o que especial mente se deu logo de inicio quando da composição do Novo Tes tamento. Duas ou três coisas, pelo menos, podem surpreender o leitor, í Uma é que, enquanto a abordagem geral é aquela representada I pela “crítica das formas”, as conclusões são freqüentemente mais conservadoras do que é tipíco daquela abordagem. O livro dos ' Atos, em particular, é tratado com mais credibilidade (alguns di riam credulidade) do que por muitos especialistas. Isto não é (cons cientemente, pelo menos) do interesse de qualquer conservadoris mo como tal. É porque o livro dos Atos, tomado em seu valor no minal, parece-me, em gerai, coerente e de acordo com o resto da evidência. Pode ser surpreendente, em segundo lugar, que no curso desta investigação muito pouco seja dito a respeito de evangelização. Mas, embora a evangelização seja absolutamente inseparável da vida da Igreja (quando ela está viva), não gerou diretamente muita literatu ra cristã primitiva. Naqueles dias, antes que os livros pudessem ser ^ prontamente reproduzidos em quantidade, a literatura era menos ' proeminente como meio de propaganda do que é hoje. O kérygma inicial ou proclamação era_oral: quando se expandiu naTorma de um Evangelho escrito, parece ter-se tornado explicativo antes que (primariamente) evàngelísjUco. Se há exceções, estas são talvez os '^"Evangelhos dè Lucas e João, que possivelmente foram planejados 'J. | pa rajeitore s não-cristaos. Além do mais, a escassez de alusões a todo o mundo de pensa mento e religião helênícos parecerá a alguns leitores uma grave dis torção do quadro. Contudo, eu mesmo me encontro entre aqueles \ 0 que descobrem um mínimo de tal influência no Novo Testamento, j, pelo menos quanto àquilo que se relaciona com os temas básicos; e, onde deixa vestígios, parece-me ser mais freqüentemente à maneira deafastamento do que de aceitaçao. Isto não é negar que há numerosos empréstimos de palavras e.frases e mesmo de idéias do rftundo helêrfico, mas estes estão num nível mais superficial que ps dos temas básicos. A substância é comumente hebraica, mesmo ^ quando os termos sacTgregos; exceto quando (como é freqüente mente o caso) alguma coisa bem peculiar ao cristianismo é apre-
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^ sentada, a qual não pode remontar nem a hebraismo nem a helenis■\ mo como fais, mas simplesmente a Cristo5. " Um a ulterior observação deve ser feita a esta altura, à maneira de surpresa antecipada. Grande parte da matéria tratada e pressu posta neste livro já tem sido profundamente estudada e há muitas monografias a respeito dela. Pareceu-me, portanto, perda de tempo tentar recontar a história com igual detalhe. Alguns aspectos, por outro lado, têm sido até agora comparativamente negligenciados; e há certas sugestões e pressuposições (algumas delas talvez novas) que pareciam dignas de serem aventadas como hipóteses de traba lho. Por conseguinte, as proporções são desiguais, sendo devotado í menos espaço aos bem estudados e bem documentados aspectos \ do que aos menos familiares. Este capítulo introdutório oferece um ou dois exemplos do tipo k de questão que deve ser colocada. O último capítulo resumirá as | descobertas e também alguns dos problemas que permanecem sem [ solução. Entre os dois, aparecem seções que descrevem a Igreja sob vários ângulos: no culto, interpretando-se a si mesma, defen dendo-se, edificando-se, manifestando suas diferentes característi cas locais, buscando autoridade. Cada ângulo de visão auxilia-nos com respeito a uma compreensão da origem das várias partes que compõem o Novo Testamento ou toda a coleção. Nada disso se converteu num exercício acadêmico; foi simplesmente a resposta do Espírito de Deus na Igreja aos desafios de seu ambiente e da . história. Tomemos, agora, à maneira de ilustração dos problemas com que nos defrontaremos, dois fenômenos típicos, dois novos gêneros de literatura encontrados no Novo Testamento. Primeiro, o “ Evan gelho”. Imaginemos (se possivel) que uma pessoa culta de nossos ^'dias, sem qualquer conhecimento do cristianismo ou de sua litera tura, fosse repentinamente presenteada com o Evangelho de são Marcos. Que pensaria dele? Imediatamente reconheceria que era bem diferente de qualquer outro gênero de escrito conhecido por ela. Ele diz respeito a Jesus de Nazaré, contudo não existe descri ção de sua aparência pessoal, praticamente não tenta datar a ação, 5. Mas, de qualquer maneira, The Semantics of Biblical Language, de J. BARR. 1961, constitui uma advertência muito importante contra classificações amplas de conceitos como “grego” ou “hebraico”, .....
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apenas as mais escassas indicações de onde ocorre. Não começa com nenhuma história de família ou do ambiente; apresenta uma seqüência pouco ordenada dos acontecimentos. Ele passa direta mente para aquilo que descreve como boa nova, euanguélion, e apresenta a’vinda de João como o cumprimento de uma certa pas sagem do Antigo Testamento. Deste ponto, através de uma série de parágrafos breves e fracamente unidos, que descrevem a atividade y ou (raramente) os ditos de Jesus, continua com úm relato, propor- ^ cionalmente muito longo, de sua prisão, julgamento e execução; e ' parece finalizar abruptamente no ponto em que o túmulo é encon trado vazio, pois os poucos versículos que se seguem são claramen- ^ ■ te de um autor posterior e constituem um sumário das tradições J acerca das conseqüências dos acontecimentos. Isto não é certamente uma biografia real ou fictícia. Contudo, não é um escrito ético ou moralistico. Ele não possui paralelo ver\ dadeiro que o tenha precedido. É o primeiro exemplo existente de ^ um novo gênero literário: é aquilo que temos aprendido a denomi nar de ‘um Evangelho’, embora o termo euanguélion seja emprega do pelo próprio Marcos não com referência ao livro, mas ao seu conteúdo.6 Como ele veio a ser escrito e por quê? Parte da resposta" tem-se tornado mais clara do que costumava ser no passado. Em primeiro lugar, aquilo que pode ser chamado de “forma” ou “as pecto” do Evangelho deve ser considerado anterior a este livro do Evangelho e evidentemente se origina de um esforço para colocar r em poucas palavras uma explicação daquilo que os cristãos tinham ouvido e visto e que os tinha levado às suas atuais convicções. A razão pela qual eles pertenciam juntamente a uma comunida- j de distinta foi que tinham estado no meio de certos eventos, a res peito do significado dos quais eles compartilhavam uma convicção ^comum e dos quais criam ser eles mesmos encarregados de dar tes temunho. Eis como se caracterizava o seu testemunho: 6. Para o significado da palavra, cf. E. HENN ECKE, Neulestamendiche Apokryphen, 3* ed., 1959, ao cuidado de W. Schneemelcher e a critica de A. D. NOCK em J.T.S., n9s., XI, 1960, 64s, onde ele duvida que o substantivo euangué 5 tion possa ser verdadeiramente considerado um termo religioso ou se seu uso pelos < ^ cristãos'está em competição com o (totalmente diferente) euanguéiia do culto a ' César. Cf., também, a interessante nota em Überlieferung und Auslegung im Mat ~ tàus Evanaelium de G. BORNKAMM, G. BARTH e H.J. FELD, 1960, 47, n’ 2.
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Um certo judeu chamado Jesus, durante sua vida, tinha sido designado como representante especial de Deus devido à sua bondade suprema e realizações excepcionais de poder, tais como cura e libertação daqueles que estavam nas garras do mal, e também devido às suas palavras excepv cionalmente poderosas. Ele tinha sido cruelmente condenado à morte peJ o s gentios por instigação de seus patrícios, os judeus. Mas Deus o trouxe 'J de volta à vida. Tudo isso estava, de fato, de acordo com os planos de Deus para o seu povo, como pode ser deduzido das escrituras judaicas. Assim, fica claro que Jesus é o Agente Supremo de Deus para libertar o seu povo do mal e para cumprir o seu propósito no mundo. E isto consti tui um desafio a você que ouve, a confiar nele, e prestar-lhe lealdade e ser batizado em associação com ele.
r
Isto é, a uma só vez, menos e muito mais que uma simples nar rativa:^ uma declaração de fé em alguns eventos. E o Evangelho de são Marcos e um preenchimento desta estrutura de declaração (excluindo as duas últimas cláusulas) confalguns detalhes circuns tanciais: é a história de Deus cumprindo e levando a um clímax, em Jesus, o destino perpétuo de seu povo. Desta forma, um gênero de escrito até então desconhecido parece ter-se derivado da elaboraC ção e expansão explicativas de uma bem antiga e muito espontânea , proclamação oral. Substancialmente, não é nem biografia nem ^ exortação moral, nem mesmo história ou ética. Origina-se imedia tamente do testemunho cristão: é a elaboração do anúncio de um arauto. Um antigo escrito cristão como a Epístola a Diogneto (en contrada entre “Os Padres Apostólicos”) sêrvèTaÕfem, a maneira de contraste, para pôr em relevo este tipo de livro surpreendente mente diferente. A Epístola a Diogneto é uma breve e graciosa ex posição a respeito do generoso amor de Deus pelo homem e a res peito das virtudes cristas. Não é um Evangelho. Mas, embora tão nova e sem precedente, a proclamação crista não seria nada, caso não estivesse enraizada na vida do judaismo que a precede. Embora constituindo um libelo direto aos judeus, ^ ^ por terem sentenciado à morte seu Rei, ela era, ao mesmo tempo, $ paradoxalmente uma boa nova para eles. Pois o crime do judaís mo, assim se declarava, conduzira, inconscientemente, à colocação da pedra angular na estrutura do planO Salvífiço de Deus pãrá Is: f c j y l - Ajpedra rejeitada pelos periíos construtores tornou-se a parte TmSTs vital do edifício, por colocar-se no lugar próprio, mediante \ aquele mesmo processo de rejeição. A salvação de Israel estava em
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admitir o crime e na união, através do arrependimento e batismo, com este Jesus, que era o Rei de Israel divinamente ungido, o Se nhor da Glória. Contudo, o Evangelho de são Marcos pára repenti namente nesta última fase. Ele representa uma elaboração apenas ] da proclamação cristã, isto é, a exposição do fato e a convicção que precede e conduz àquele apelo final ao arrependimento e ao ba tismo. Não há evidência de que tenha existido um Evangelho comple- ^ ^ to antes do de M arcos; mas anfes que ele iniciasse essa obra, pro vavelmente já circulassem folhas de papiro, em que se registravam, ,^_em aramaico (e possivelmente em hebraico) ôu jr e g o , adágios ou , ditos tais que, finalmente entraram em sua composição. Diversos indícios apontam para esta direção. Há vestígios em Marcos do uso de várias fontes, talvez uma que chamava os apóstolos de “os Dov ze”,7 talvez outra idêntica a um a coleção de ditos ou grupo de cole^ções empregadas também por Mateus e Lucas;8 há indicios, até mais antigos, em algumas epístolas, de tradições (escritas ou orais) dos ditos de Jesus e possivelmente de alguns episódios de sua vida;9 p e os argumentos elaborados em Rm 9-11 podem encontrar paralelo ' nos Evangelhos escritos mais tarde.10 De qualquer maneira, as tra dições que contêm aquilo que conhecemos como material evangéli{p co certamente podem ser distinguidas no background, antes mesmo de nossos Evangelhos existentes se formarem. Mas não um Evan gelho completo; M arcos parece ser o primeiro exemplar. Depois de Marcos, contudo, foram escritos muitos outros, bem como coleJ ções de ditos de Jesus. Muitos destes outros escritos foram perdi dos e nós os conhecemos, se não totalmente, apenas o nome ou através de breves citações de outros escritores. De outros, além dos ^ outros Evangelhos canônicos, possuímos fragmentos ou mesmo v cópias quase completas. Só recentemente foi restaurada uma cole .. ção copta de ditos de Jesús. 7. E. MEYER, Ursprung und Anfánge des Christentums. I, 1924, 133ss. 8. Para a fonte ‘Q \em Marcos, cf. (por exemplo) B.H. STREETER, Studies in the Synoptic Problem bv the Members o f the University of Oxford, 1911, 165 ss; B.W. BACON, The Gospel of Mark, 1925, II, n? 7. 9. Cf. pp.l70ss. 10. J. MUNCK, Christus und Israel: eine Auslegung von Rom. 9-11, 1956, 22.
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/ Mas os únicos Evangelhos, além de Marcos, definitivamente j aceitos por consenso unânime dos cristãos em todo o mundo, fo I ram Mateus, Lucas e João. Durante alguns anos, parece que as tra dições sobre Jesus fluiram através de muitos canais mais ou menos paralelos. Mas, no fim, esses quatro Evangelhos emergiram acima (’ ' da congérie ou possivelmente foram de fato os únicos Evangelhos i já escritos em forma completa. Suas relações recíprocas, como se sabe, constituem assunto de acurado estudo e controvérsia. É notá vel que apenas dois dos quatro portam nomes apostólicos, enquan: to que os outros dois trazem nomes de pessoas que não foram apóstolos. Neste último caso, poder-se-ia esperar, pelo menos, a autoridade das comunidades antes que de indivíduos que não fo ram apóstolos. Mas não é assim. De qualquer maneira, todas estas atribuições são tradicionais; nenhum dos Evangelhos contém expli citamente o nome do autor (embora Jo 21,24, nota indicativa do autor, seja agora parte integrante do Evangelho). Entretanto (e isto nos conduz a outro novo gênero literário, a epístola neotestamentária), antes mesmo que o Evangelho de Marp cos fosse escrito e no estágio em que a Boa Nova estava sendo _ proclamada quase que só oralmente, eminentes evangelistas como >7* Paulo de Tarso encontraram oportunidade para escrever cartas de aconselhamento e exortação às comunidades que eles organizaram. n Até agora, nenhuma carta cristã tem sido definitivamente datada §5* como anterior"! mais antiga carta paulina. É possível que tenha A sido Paulo quem criou este outro novo gênero literário cristão, pois (v se trata de um gênero verdadeiramente novo. A carta literária, como as de Cícero, e a carta ocasional em papiro da antiguidade são bem conhecidas (pelo menos nas formas que assumiram no Egito), mas antes de Paulo o mundo nunca tinha visto algo seme lhante a estas cartas bem longas, quase inteiramente interessadas não em questões pessoais, mas em assuntos de doutrina e conduta cristãs, introduzidas e conctüidas por fórmulas de saudação e dès pedida novas e distintamente cristãs. Mesmo as poucas cartas con^ tidas no Antigo Testamento não podem ser comparadas a estas. ^ As cartas paulinas, sendo ou não absolutamente precursoras de seu gênero, foram certamente seguidas por outras e até por homí lias artificialmente compostas em forma epistolar. Algumas das cartas de Paulo e algumas de outros escritores foram evidentemen..
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te conservadas com muito apreço pelas comunidades destinatárias e finalmente vieram a ser coligidas (de uma forma que é uma ques tão obscura e fascinante; cf. cap. X) e classificadas, ao lado dos Evangelhos, como literatura reconhecidamente crista: “o Evange lho” e “o Apóstolo” colocados lado a lado, algo como “a Lein e “os Profetas” das escrituras hebraicas. As cartas do Novo Testamento refletem uma variedade de situações muito interessantes, em face de que, uma vez mais, somos compelidos a perguntar: por quê? Por que se apresentou este ou aquele problema e por que são Paulo e as comunidades que ele representava adotaram esta e não aquela solução? Por que a Igreja primitiva abandonou o conservadorismo V das exigências do ritual judaico? O que controlava as decisões to madas com respeito às relações entre cristãos e pagãos? Além dos Evangelhos e Epístolas, há o livro dos Atos e o Apo calipse. E por trás de grande parte do Novo Testamento estão, sem dúvida, documentos mais antigos e fragmentários, partes integran tes, absorvidas e transformadas, a fim de serem habitualmente su periores a uma reconstrução segura. As circunstâncias em que tal miscelânea de escritos de um novo tipo foi criada e em seguida sele cionada e investida de autoridade ao lado e até acima das escritu ras do Antigo Testamento constituem a nossa história. Uma de suas lições é que a única esperança de reconstruir e compreender a origem das escrituras cristãs está em indagar: por quê? E a cada passo: por que isto e não aquilo? Por que esta ou aquela omissão? Por que esta decisão e não aquela? Este livro começa principal mente por perguntar “por quê?”. E apenas por este caminho, se for possível, chegar a algumas respostas para a questão “como?”. Outra lição, contudo, é o notável grau de unidade que foi atin gido através de todas as diferenças e variedades. Se se indaga por que isto aconteceu, a única resposta é que o fator comum que man tém tudo em unidade é a devoção à pessoa de Jesus Cristo, o Jesus histórico reconhecido como Messias e Senhor. No capítulo sobre a variedade e uniformidade da Igreja primitiva (cap. IX), tenta-se fa zer justiça ao enorme grau de diversidade de ênfases tanto entre di ferentes indivíduos como entre diferentes tradições. Mas o espectro cromático assim apresentado é inegavelmente causado por uma única luz. A devoção a Jesus'Cristo é comum a todo escrito do Novo Testamento, sem excetuar mesmo a Epístola de Tiago. Se ele
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INTRODUÇÃO
f ' é visto como o Messias davídico ou como o preexistente Verbo de v Deus, é a Jesus que cada escritor promete fidelidade. Com exceção ‘"p de Mateus, Marcos, Tito e as epístolas joaninas, todos chamam Je sus de “Senhor”; e todos os escritos excetuados emjjregam expres sões paralelas, senão mesmo expressões mais significativas, tais como “Filho de Deus” ou “Salvador”. Se há alguma coisa igualmente notável, que os documentos do Novo Testamento possuem em comum, além desta fidelidade pecu liarmente cristã, esta confissão comum do Senhor encarnado, po dia ser que, com algumas exceções, eles fossem escritos judaicos ou, sem qualquer exceção, monoteístas. Isto somente torna mais f surpreendente que, mantendo rigorosamente seu monoteismo e sem L a mínima concessão em relação ao pensamento pagão, eles todos V adotam esta atitude de reverência para com Jesus. No capítulo X, se discutirá um pouco o processo de seleção que, finalmente, separou os livros do Novo Testamento dos outros escri tos cristãos e se verá que um importante fator foi esta “ centralidade de Cristo”, esta prova de devoção a Jesus como Cristo e Senhor. Qualquer crístologia que tentasse resolver esta tensão (pois há tenV são em qualquer confissão da encarnação) estava destinada a ser desprezada, ainda que sua forma pudesse ser reverente, e mesmo se um nome apostólico fosse atribuído a ela. ' Em resumo, a proclamação apostólica a respeito de Jesus foi o elemento unificador do Novo Testamento ou, definido mais profun damente, é ao próprio Espírito de Deus, através de Jesus Cristo, nosso Senhor, que deve ser atribuída a unidade-na-diversidade do Novo Testamento. ... .. ..................
CAPÍTULO II
O CULTO DA IGREJA1
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Nenhum leitor do Novo Testamento com um mínimo de per cepção criadora poderia deixar de reconhecer que consideráveis blocos de seu material inflamam-se com o fervor do culto. Mas, nos últimos anos, este calor (pelo menos aparentemente) tem-se trans formado numa chama, em virtude de um interesse especial, que tem penetrado em todos os setores da práxis e da pesquisa cristãs. Na Inglaterra, a renovação litúrgica e os experimentos concretos, liga dos ao movimento Porish and People (“Paróquia e Povo”)2, têm caminhado pari-passu com a recente avaliação do ambiente de grandes porções da literatura bíblica, especialmente os Salmos, ao longo de linhas já desbravadas na Escandinávia por especialistas como Sigmund Mowinckel e, em outras partes do Continente euro peu, por outros.3 Conseqüentemente, a tendência hoje é pressupor um contexto litúrgico mesmo onde ele esteja em grau o minimo possível, ao invés de partir de outros pressupostos. Isto tem renovado grandemente a compreensão e proporciona do uma vivida percepção da vida e atividade coletivas e da poesia 1. Para este assunto em geral, cf. P.G.S. HOPWOOD, The Religious Expe rience o f the Primitive Church prior to the Influence o f Paul, 1936; JJÍEREMIAS, Die Abertdmahlsworte Jesu, 1935; Bo I. REICKE, Diakortie, Festfreude und Zelos, in Verbindung mit der altchristlichen Agapenfeier, 1951; O. CULLMANN, Early Christian Worship (trad. inglesa, 1953); cf. Les Sacrem ents darts í ’Evang!Íe johannique, 1951; Bo 1. REICKE, Glaube und Leben der Urgemeinde; Bemerkungen zu Apg. 1-7, 1957; E. SCHWEIZER, Gemeinde und Gemeindeordnung im Neuen Testament, 1959; C.F.D. MOULE, IVorship in the New Testament, 1961. 2. Cf. o periódico Parish and People como um espelho deste movimento. 3. Para se ter uma idéia da obra de S. fyfOWINCKEL, cf. seu livro Psalmenstudien II. Das Thronbesteigungsfest Jahwãs und der Ursprung der Eschatologie, 1922; outra importante figura desta tendência é H. G UN KEL (por exemplo, ' Die Psalmen: Reden und Aufsàtze, 1913).
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em passagens que tinham sido consideradas de maneira demasia damente estática, individualista e prosaica: as próprias palavras co meçaram a cantar, os olhos do entendimento a ver o ritmo de pro{ cissdes e o balanço dos incensórios. De resto, esta moda tem exage~ rado um pouco e nossos professores correm o perigo de gritar: “culto”, “culto”, onde não existe culto. A pista litúrgica é um guia útil, mas pode tomar-se uma armadilha. Um eminente especialista holandês tem, justamente, denunciado uma certa tendência “ panliÇ túrgica” que estaria invadindo os estudos do Novo Testamento.4 v~ Mas tudo isto é apenas um protesto contra os abusos do novo enfoque: fica perfeitamente certo que muitas das partes que comt põem o Novo Testamento foram forjadas na chama da devoção e v que o culto deixou sua marca em todo o seu vocabulário. Nós nos voltamos, agora, para o culto cristão como uma parte importante de nosso estudo das origens e crescimento do Novo Testamento. Ou, antes, devemos começar com a igreja judaica no culto. O culto cristão,5 assim como a literatura cristã, manteve r í ção de continuidade e, contudo, em nítido contraste com o culto ju^ daico. Como as escrituras cristãs, ele desenvolveu-se a partir de ter mos tomados por empréstimo fora de tradições memorizadas, fora de declarações inspiradas. Como aconteceu com as escrituras, as sim também com o culto: o Jesus que era lembrado era o mesmo Jesus da experiência e que estava presente onde dois ou três se reu nissem em seu nome. O culto cristão mantinha relação de continui( ) dade com o culto judaico e, contudo, desde o princípio, era distinto. ' Como é bem conhecido, o templo de Jerusalém continuou sen do o centro do culto judaico ate a sua destruição no ano 70, se na verdade foi completamente destruído nesta ocasião.6 A sinagoga judaica (instituição de origem obscura, mas que data talvez do tem po do exílio) era, em essência, simplesmente uma “reunião conjun ta” (que é o que o grego synagogué significa) de um grupo local para ouvir a leitura das escrituras em voz alta, louvar a Deus e, comunitariamente, dirigir-lhe súplicas e ser instruídos. De qualquer 4. W.C. VAN UN NIK, “Dominus Vobiscum” in New Testament . Essays in mem. T.W. Manson, 1959, 272. 5. As páginas seguintes foram tomadas por empréstimo, por gentil permis são de Lütterw orth Press, de meu livro Worship in the New Testament, 1961. 6. Cf. p. 142, n. 21, abaixo.
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maneira, teoricamente, o sistema da sinagoga não era uma alterna tiva para o culto do templo. A religião, ao nivel da consciência naí cional e em sua forma oficial, ainda encontrou expressão no culto sacrifical, no único templo, o único centro do judaísmo mundial.7 Na verdade, mesmo quando um adorador não oferecia, ele pró prio, um sacrifício, parece que suas orações freqüentemente eram feitas realmente no templo ou, pelo menos, estavam ligadas às ho ras em que o sacrifício era oferecido. Em Lc 1,10, toda a congrega ção ora no pátio, enquanto Zacarias oferece incenso no Lugar San to (cf. Ap 8,3s); em Atos 3,1, Pedro e João sobem ao templo â hora da prece, que era também a hora do sacrifício vespertino (cf. Ex 29,39, etc.); e, em Atos 10,30, um gentio temente a Deus faz a sua oração na mesma hora vespertina. Igualmente, no Antigo Testa mento, em lRs 18,36, a oração e a oferenda de Elias no Monte Carmelo são feitas na hora da oferenda da oblação (cf. Esdras 9,5); e, em Dn 6,10, Daniel ora na direção de Jerusalém três vezes por dia (cf. SI 55,17). (Casualmente alguém pode perguntar seé signifi cativo, para a origem das tradições que estão por trás de Mateus e Lucas respectivamente, que em Mt 6,2 uma oração feita com os tentação seja colocada na sinagoga, mas em Lc 18,10 no templo. Em Mt 5,23s, contudo, não há dúvida de que se tem em vista o templo). ^ “Teoricamente”, portanto, a sinagoga era secundária em rela ção ao templo. Mas tem de ser admitido que seria legítimo pergun tar: “de qual teoria?”. Pois é, provavelmente, um engano imaginar que tenha havido alguma forma de “ortodoxia” judaica no período do Novo Testamento. Antes, temos de imaginar a existência, lado a lado, de várias correntes de pensamento e práxis .* Não há dúvida de que a aristocracia sacerdotal, principalmente a dos saduceus, sustentava que o culto do templo era essencial e o único essencial. Más igualmente temos alguma idéia, através das descrições dos essênios em Fílon e Josefo e, recentemente, através dos escritos de Qumran, de quão diferentemente um grupo sectário, mas ainda sa cerdotal, podia comportar-se ao mesmo tempo.9 Evidentemente, a 7. Para certos paralelos entre templo e sinagoga e para a natureza derivada da condição da sinagoga, cf. T.W.N.T., art. "synagogué". 8. Cf. E.R. GOODENOUGH, Jewish Sym bols in lhe Greco-Roman Period, 1953, e a recensão feita por A.D. NOCK, Gnomon 27, 1955, 558ss. 9. FÍLON, Omn. Prob. Lib. 75; Flávio Josefo, Aní. XVIII, 1.5. 0 mais im-
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; seita de Qum ran mantinha um sacerdócio e uma organização ri1, tual, mas eram independentes e agudamente críticos da hierarquia , do templo. Embora não em princípio opostos ao sacrifício de ani, mais como tal, parece que eles consideravam a hierarquia de Jeru salém tão corrupta que deviam, naquelas circunstâncias, abster-se do uso do sistema sacrifical. Enquanto isso, fazendo da necessida de virtude, eles podiam consolar-se com a observação de que o lou vor e a prece, “a oferenda dos lábios”, eram tão valiosos quanto o sacrifício tradicional.10 Em adição a grupos que sustentavam tal atitude, é bem possível que houvesse movimentos extremistas den _ tro do judaísmo que se opunham ao culto do templo por princípio e ^ se contentavam apenas com o tipo de culto da sinagoga, espécie de judaísmo “quaker” (Is 66,1-4 pode representar alguma coisa da es pécie no Antigo Testamento). Mareei Simon publicou interessantes reflexões acerca disto em conexão com o mártir cristão Estêvão e os assim chamados “helenistas” dos Atos.11 Possivelmente seja re levante notar que nenhum cordeiro é mencionado nos relatos da ' última ceia em si (enquanto distinta de sua preparação, Mc 14,12 e paralelos). É possível que assim seja somente porque os relatos da última ceia estão influenciados pela práxis eucaristica tardia; ou porque a refeição não era a Páscoa; ou, ainda, como Ethelbert Staufíer sugeriu12, porque Jesus já tinha sido excomungado como portante dentre os documentos de Qumran para este propósito é a assim chamada Regra da comunidade (designada no uso corrente pela sigla IQS), que pode ser lido adequadamente na tradução inglesa anotada por W.H. BROWNLEE no Bulletin o f the American Schools o f Oriental Research, Supplementary Studies, n*s 10-12, 1951. 10. Cf. J.M. BAUMGAR TEN, “Sacrifice and Worship among Jewish Sectarians of the Dead Sea (Qumran) Scrolls” in H.TJi, LXVI, 1953, 154-157; J. CARMIG NAC, “L’Utílité ou 1’inutilité des sacrifices sanglants dans la ‘Regle de la Communauté* de Qumran” in RM, LXII, 1956, 524-532; M. BLACK, The Scrolls and Christian Origins, 1961, 39ss. __ 11. M. SIMON, St. Stephen and the hellenists, 1958, e os estudos precedentes citados ali. (Não concordo com todas as suas conclusões). 12. Por exemplo, em Jesus, Gestalt und Geschichte, 1957, 86; B. GÂR NER, “John 6 and the Jewish Passover” in Coniectanea Neotestamentica, 17, t ^ 1959, 46ss, sugere que Jesus podia, mais facilmente, ter celebrado uma ceia pasI. cal, sem cordeiro, no dia anterior à Páscoa, se os judeus da Diáspora fossem fami liarizados com tais celebrações, quando eles não pudessem subir a Jerusalém. A essência de que foi este o caso é escassa, mas ele cita JOSEFO, Ant. X IV , 214, com respeito aos judeus de Delos e a evidência da Mishnah acerca do costume na Palestina, fora de Jerusalém. Assim, M. BLACK, “The Arrest and Trial of Jesus” __
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í falso mestre pelas autoridades judaicas e a um herege não se conceV dia um cordeiro. Mas não podia ser que, como outra alternativa, Jesus era um judeu contrário aos sacrifícios? Ou não pode ser mes A mo que Jesus, presciente em sua antecipação da queda de Jerusal lém e da desjudaização do Evangelho, deliberadamente tenha liga^ dõ seu ensino não ao cordeiro (houvesse ou não cordeiro à mesa), mas àqueles elementos da comida e bebida que sempre estariam disponíveis? Contudo, fizemos apenas uma digressão acerca das variedades de atitude dentro do judaísmo. O ponto fundamental em nosso pro f'- pósito é que a Igreja Cristã nasceu dentro do contexto do templo e 1 ~dã sinagoga. Na verdade, sempre se tem tentado encontrar já ali os dois componentes do culto cristão: os sacramentos, que correspon dem ao templo, e a “Palavra” que corresponderia ã sinagoga des^pròvída do sacrifício e dos sacramentos, com sua forte ênfase na leitura e instrução. Conseqüentemente, tem havido ocasiões em "que, por exemplo, aquilo que é agora representado na Igreja Angli cana pelas matinas e vésperas e pela “pré-comunhão” tem sido re . montado ao culto da sinagoga, enquanto que “a liturgia” (a santa ^ comunhão ou propriamente a eucaristia) tem sido considerada ; como uma espécie de correspondente da ação cultuai e sacrifical do judaísmo. Mas, de fato, nem o judaísmo nem o cristianismo é tão simples de ser esquematizado desta maneira. É melhor simplesmen te observar a estrutura judaica e ver que quadro do culto cristão emerge de tal evidência que possuímos, antes de tentar fazer gene ralizações temerárias e formular princípios. Não há dúvida de que Jesus prestou culto no templo. Todos os quatro Evangelhos preservam alusões a este fato. Segundo Lucas, ele foi encontrado no templo ainda menino, quando seus pais o trouxeram para ser apresentado como primogênito macho, de acordo com a Lei; e, de novo, quando ele subiu a Jerusalém já ra paz para sua primeira páscoa. Segundo o testemunho unânime de todos os quatro Evangelhos, foi por ocasião de sua vinda a Jerusa lém para a Páscoa que ele foi preso e morto. O Quarto Evangelho menciona claramente sua presença no templo também para a “fesin New Testament Essays in mem. T.W. Manson, 1959, 32, refere-se ás “celebra ções da Páscoa na sinagoga, especialmente na Diáspora, sem um cordeiro pas-
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x ta dos tabernáculos” (Jo 7,2s) e para a festa do inverno do Hanriukkah ou Dedicação (Jo 10,22). ; O que não é claramente evidenciado é que o próprio Jesus te nha alguma vez oferecido um sacrifício de animal. O mais próximo disto que os Evangelhos chegam é a ditos que podiam sugerir apro vação do sistema sacrifical (Mc 1,44 e paralelos e Mt 5,23s). Con tudo, tais ditos dificilmente podem ser usados para significar apro vação positiva do sacrifício. O significado de Mt 5,23s (“ . . . e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás apresentar a tua oferta”) é, de fato, quase idêntico ao da citação de Oséias feita por Jesus: “ Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (M t 9,13; 12,7); e embora esta signifique apenas que a misericórdia é mais importante que o sacrifício, não se pode evitar a admiração se f constatarmos que o próprio Jesus (como já tem sido sugerido), pro vavelmente, tenha prestado culto sem oferecer sacrifício. Contudo, que Jesus se preocupou com o culto do templo, quer tenha ou nao concordado com o sacrifício, está bastante evidente a partir apenas da história da expulsão dos mercadores do pátio ex terno do santuário. Se se tratou de um ataque á inclinação merce nária ou de um gesto para com os gentios, em qualquer caso mos tra um zelo ardente pela reforma do templo. É difícil çonsiderá-Io como um ataque ao culto do templo como talf Está igualmente claro, entretanto, que Jesus também viu que o templo estava condenado. A frase que ele tinha dito: “Eu destruirei este Templo . . segundo Mc 14,57-59, não foi comprovada. En tretanto, que ele tenha dito, na verdade, alguma coisa que podia ter Ç sido interpretada assim aparece dos insultos dirigidos contra ele em ' Mc 15*29 (paralelo a Mt 27,40). E, na introdução ao discurso escatológico (Mc 13,2 e paralelos), ele prediz a destruição do templo, embora Jo 2,19 apresente o dito. *fDestruí este templo, e em três dias eu o levantarei”. Em Mt 12,6 se lê: “ . . . aqui está algo maior do que o Templo”. Estas tradições são suficientes para explicar a atitude de Estêvão (Atos 6,13$), que é acusado de afirmar que Je sus destruirá “este Lugar”. Se não há dúvida de que, apesar destas reservas, Jesus tenha prestado culto no templo, está igualmente claro que ele ia regular mente á sinagoga no dia de sábado (cf. Atos 17,2, a respeito de Paulo). Em Lc 4,16 está claramente atestado como seu costume fa
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zer assim. Mesmo se fôssemos descontar isto como evidência, há, permeando os Evangelhos, um número suficiente de referências ao ensino e curas por Jesus nas sinagogas para não nos deixar em dú vida quanto a isto. Às vezes, se alega que Jesus teria recitado necessariamente, na sinagoga, todo o Saltério no curso do culto público. Não existe cia ' ra evidência disso. O fato de o Saltério ter sido, em certa ocasião, divfdido em secções correspondentes aos ciclos de lições em outras ■partes das escrituras13 não prova sua existência no tempo de Jesus, nem que, mesmo que fosse assim, todos os salmos das várias sec, ções fossem usados publicamente.14 Que Jesus tinha um grande co-r nhecimento, inclusive do Saltério, é sugerido pelos ditos atribuídos a ele nos Evangelhos. Mas a mesma evidência parece sugerir também uma liberdade bastante considerável na seleção dos textos. Em resumo, portanto, pode ser dito que, embora Jesus usasse pelo menos algumas das instituições judaicas de culto, e aparente mente fez assim com ardor e grande devoção, ele recusou-se a fe j char os olhos diante do castigo merecido que estava para surpreen: der um templo que tinha se tornado mercenário e exclusivo. Ele viu em seu ministério e em si próprio o centro do “ novo templo” ; e não P se satisfazia a não ser com a sinceridade e espiritualidade absolu^ tas, de que o templo devia ser a expressão, mas freqüentemente não o foi: “ . . . vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o P a i . . . os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em v espírito e verdade” (Jo 4,21.23). Aproximando-nos, agora, do livro dos Atos, encontramos logo que, em Jerusalém, os apóstolos parecem ter ido, a principio, orar no templo como algo natural (Atos 3,1; cf. Lc 18,10; 24,53; Atos 2,46); e há referências a respeito de Paulo, não apenas prestando -culto no templo (Atos 22,17), mas também se prontificando a pa ; gar as despesas de um grupo de homens com o sacrifício, presumi\ velmente homens pobres, como um ato de piedade judaica (Atos 21,23-26). Da mesma maneira, escrupulosamente mantém-se con 13. Cf. Megfflah e, por exemplo, The Jewish Encyclopedia, VI, 136. 14. Isto é digno de ser mencionado, desde que o uso indiscriminado, em certas partes do culto cristão, de todo o saltério, incluindo os cânticos violentamente na cionalistas e cruéis, é algumas vezes defendido sob a alegação de que o próprio Je sus fez uso de todos.
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tato com a sinagoga pela mediação de Estêvão (Atos 6,9) e Paulo (Atos, passim), não só em Jerusalém como também fora da Judéia, na diáspora, até que eles foram expulsos dali. Mais cedo ou , mais tarde, a expulsão da sinagoga inevitavelmente aconteceria (como está implicado em Jo 16,2, cf. 9,22, e Atos 18,6s testemu nha).15 É provável que o reconhecimento final de que o cristianismo era incompatível com o judaísmo não-cristão tenha tido uma in fluência de longo alcance sobre a forma do culto cristão. Contudo, isto não se deu imediatamente. Então não foram ape nas os lugares de culto judaicos freqüentados pelos judeu-cristãos como também, sem dúvida, o calendário religioso judaico teve ob servância. Os primeiros cristãos, pelo menos na sua maioria, de vem ter feito observância do sábado, mesmo que o dia seguinte da semana (o domingo) tenha vindo, finalmente, a ocupar uma posi ção dominante como o dia da ressurreição ( I g n M a g n . 9,1; Barn. 15,9, etc.; cf. Ap 1,10 e a visão seguinte). De qualquer maneira, nas ^ sociedades judaicas o sábado permaneceu como o único dia livre \ para o culto (nas sociedades gentilicas, não há um dia semanalmen■?J te livre, apenas as festas pagãs em intervalos regulares). É muito provável, como H. Riesenfeld sugere,16 que os cristãos começaram simplesmente prolongando o sábado durante a noite de sábado para domingo, por meio da observância do cumprimento, em Cris to, do sábado judaico. A justificação de um oitavo dia (o dia após o sétimo), como sinal do começo de uma nova criação, parece ser uma idéia trazida da apocalíptica judaica (cf. Barn. 15,8s).17 Rm 14,5 testemunha a existência, na comunidade cristã, de uma diver sidade de pontos de vista acerca da observância dos dias sagrados. Dentre as grandes festas, a Páscoa judaica provavelmente conti; nuou a ter observância pelos cristãos muito tempo depois de eles Terem encontrado a sua própria vida religiosa, especialmente quan do se prestou a uma conotação cristã e se ligou às tradições da 15. Não obstante, cf. p. 129, n9 5, abaixo. 16. “Sabbat et Jour du Seigneur” in New Testament Essays (bem como p. 26, n? 12, acima); Cf. C.W. DUGMORE, The Influence of the Synagogue upon the Divine Office, 1948, 28,30. 17. Notem-se também as possíveis implicações da genealogia de Mateus (Mt 1,17): trata-se de uma nova criação em Cristo? Cf. A. FARRER, Studies in the Gospels, 1955, 87.-
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morte de Cristo (cf. Atos 20,6; ICor 5,7). Outras festas judaicas também devem ter permanecido.18 Em Atos 20,6 está pressuposto que Paulo observou a Páscoa antes de partir de Filipos (tanto quan to era possível fora de Jerusalém); em seguida, em Atos 20,16, nós o encontramos se apressando a fim de chegar a Jerusalém por oca sião do Pentecostes. Isto aconteceu com o fim de celebrar, com os irmãos de fé, o nascimento da Igreja Cristã? Ainda que fosse o ca so, seria necessário também celebrar a festa publicamente com os judeus não-cristãos: como se poderia evitar isto, se estivesse real mente em Jerusalém? Deve ter havido muita superposição de festas judaicas e conotações cristãs, umas sendo absorvidas e tendendo a colorir as outras. A Páscoa e Pentecostes, em suas formas cristãs, \y foram destinadas a formar a base do “ Ano Litúrgico Cristão” .19 Só quando a observância de um calendário fixo se identificou com pontos de vista incompatíveis com a liberdade do Evangelho Cris tão e com a avaliação cristã de Cristo é que encontramos Paulo protestando contra isto, como em G1 4,1 Os; Cl 2,16. O mesmo vale também para a circuncisão. A sua prática, ao lado do batismo cristão, por um partido judaizante que havia den tro da Igreja só se toma matéria de controvérsia quando ela com promete a essência do Evangelho e desafia a singularidade e a fina lidade de Cristo (Atos 15, etc.). Paulo está preparado para circun- ) cidar Timóteo a fim de que ele possa ser aceito pelos judeus (Atos 16,3); mas ele não se submeterá, por um instante sequer, àqueles j que desejam tratar a circuncisão como condição necessária, supe rior e pré-requisito para a incorporação em Cristo (G1 2,5; 6,11 16). Portanto, quaisquer que fossem as formas características do culto cristão, elas se encontravam lado a lado do culto judaico ou mesmo inseridas nele. Por exemplo, a exclamação “Bendito é (ou seja) o Senhor!” está no centro da adoração judaica. Como a pes quisa recente tem enfatizado, há aqui algo mais profundo do que 18. Cf. D. D AUBE , “The Earliest Structure of the Gospels” in J.N.T.S ., 5.3, abril de 1959, 174; E. LOHSE, em T.W.N.T., 6.49, n* 35, sobre a Páscoa (crista?) de ICor 5,6-8; e (49) sobre a possibilidade do Pentecostes cristão fora de Jerusa lém. Cf., também, H. KRETSCHMAR, “Himmelfahrt und Pfingsten” in Zeitschrift fu r Kirchengeschichte, 4* série, IV, 1954-55, 209ss. 19. A.A. McARTHUR, The Evolution of the Christian Year, 1953.
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uma simples ação de graças. Agradecer a Deus favores específicos é apenas expressão especial (e em grande medida antropocêntrica) daquela adoração a Deus por si só, mais profunda e até mais extro vertida, expressa pelo hebraico '*baruch Acionai”, “bendito (é ou se ja) o Senhor” . O Antigo Testamento fornece numerosos e belíssi mos exemplos de liturgias de adoração baseadas nesta expressão. Não se trata de, naturalmente, limitá-las a esta adoração genérica e menos ainda a esta simples expressão, mas de passar desta atitude de adoração a Deus por si só para a adoração a Deus também por seu ser, sua criação e seus atos poderosos, bem como, em particu lar, por sua obra de salvar seu povo. J.-P. Audet cita, como exem plo típico desta atitude (embora aqui a presente expressão “ Bendi to .. .” esteja reservada para o fim), a grande liturgia de lCr 16,8 36, que inclui partes do Saltério:20 Celebrai o Senhor, invocai o seu nome, divulgai entre os povos os seus feitos! Cantai-lhe, entoai-lhe hinos, apregoai todas as suas maravilhas! Gloriai-vos no seu santo nome; rejubile-se o coração dos que buscam o Senhor! Recorrei ao Senhor e à sua potência, buscai sempre sua face. Recordai ás maravilhas que Operou, os seus prodígios e sentenças que proferiu, ó progênie de Israel, seus servos, ó filhos de Jacó, seus eleitos! Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, de eternidade em eternidade! E todo o povo exclamou: “Assim seja!” e “Louvado seja o Senhor!”
("^ Esta atitude de “ abençoar” está, portanto, no centro do culto V judaico. A exclamação rabinica “bendito seja (ou é) ele!” ainda encontra expressão, esparsamente, em frases de Paulo, o fariseu convertido (Rm 1,25; 9,5; 2Cor 11,31). Contudo, o que é distinta mente novo acerca de expressões cristãs de culto é, naturalmente, a referência a Jesus. 20. J.-P. AUDET, L a Didachè, 1958, 377ss.
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Existiram certas bênçãos e preces judaicas que faziam alusão a Davi, Servo de Iahweh. Por exemplo, a oração de uma haggadah (exposição) pascal contém a frase: “Davi, filho de Jessé, teu servo, o teu ungido” .21 Uma cristianização desta é ilustrada extraordina riamente no Didaché (9,2), onde, junto aos agradecimentos pela “videira santa de Davi, teu servo”, segue-se: “que tu nos fizeste co nhecer através de Jesus, teu servo”. Aqui se pode ver realmente como se processou a substituição da frase “teu servo (pais) Davi” por “teu servo (pais) Jesus”: a ação de graças não-crista pelo rei Davi, o servo do Senhor, e por todas as bênçãos prometidas á sua descendência messiânica, nos lábios cristãos, toma-se uma ação de graças pelo cumprimento daquela promessa messiânica no Filho \ maior de Davi. Qualquer que seja a posição cronológica do Dida ché, este representa um estágio logicamente primitivo na consciên cia cristã. No próprio Novo Testamentojws é aplicado a Jesus apenas em dois capítulos (Atos 3 e 4) e,"de qualquer modo, parece que provavelmente em Atos 4,25 se tenta exatamente o mesmo sen tido que foi aplicado a Davi e significa não tanto o Servo sofredor G quanto o Servo real de Deus. Atos 4,24ss é, sem dúvida, litúrgico. “ N a verdade, ê alguma coisa apenas formal. Deixando à parte o fato de que o texto grego é confuso e possivelmente corrompido, a oca sião è representada como exultante espontaneidade, uma explosão de louvor no grupo de cristãos de Jerusalém, depois do choque com \ as autoridades judaicas, em que a inflexível confiança e a ousadia]/ dos apóstolos foram notavelmente sustentadas. Contudo, o interes sante é que se o escritor (como parece bem possível) recebeu isto de uma antiga tradição oral ou se ele está simplesmente escrevendo o tipo de oração que podia ter sido usado, as frases tomam uma for ma tipicamente judaica: Invocação a Deus como criador e inspirador de profecia: Mestre, tu fizeste o céu, a terra e o mar e tudo o que eles contêm; tu falaste pelo Espírito Santo, através da boca de nosso pai Davi, teu servo: 21. Cf., por exemplo. W. Z1MMERL1 e J. JEREMIAS, The Servant o f God, 1957, n’ 184 (trad. inglesa do art. “pais Theou", em T.ÍV.N.T.). 2
As origens do Novo Testamento
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Citação do Salmo 2: Deus defende o Messias: Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram Contra o Senhor e contra o seu Messias. Alusão a Jesus, fiel Servo de Deus, como o Rei ungido e defendido contra os seus inimigos: Sim, verdadeiramente, coligaram-se nesta cidade contra o teu santo servo Jesus, que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos com as nações pagàs e os povos de Israel, para executarem tudo o que, em teu poder e em tua sa bedoria, havias predeterminado. Oração no nome do Servo de Deus, Jesus, por ajuda e defesa contínuas: Agora, pois, Senhor, considera suas ameaças e, a fim de permitires a teus servos anunciarem a tua palavra, com toda confiança, estende a mão para serem operadas curas, sinais e prodígios pelo nome do teu santo ser vo Jesus.
Aqui estão louvor e oração de acordo com uma fórmula fa^ miliar, apenas com a diferença de que o centro da defesa de Deus está identificado e identificado em Jesus, que é saudado como o Rei ungido e como o instrumento do triunfo contínuo de Deus, Portanto, estamos observando aqui, como no caso das palavras do Didaché, a submissão da liturgia judaica ao ponto de vista dis tintamente cristão. Onde pais é usado com referência a Jesus, no capítulo precedente (3,13), vem empregado em sentido expositivo antes que cultuai e parece que, em geral, mais provável que ali a re ferência seja ao Servo Sofredor de Is 53. É no contexto litúrgico do capítulo 4 que a nota real é dominante.22 Outros exemplos no Novo Testamento daquele sentido espon tâneo e extemporâneo de louvor e adoração são os cânticos do Evangelho de Lucas: o Benedictus, o Magnificat e o Nunc dimittis. Mas todos estes são, estritamente, pré-cristãos.23 No Benedictus, é 22. Para a discussão da distinção, no vocabulário cristológico, entre culto e exposição, cf. C.F.D. MOULE, “The Influence of Circumstances on the Use of Christological Terms” in J.T.S., 10, 1959, 247ss, 23. Sobre os cânticos de Lucas como composições genuinamente se m iticas,j, cf. R.H. AYTOUN, “The Ten Lucan Hymns of the Nativity in their Original Lan- 'J guage” in J.T.S., 18, 1916-17, 274ss; P. WINTER, “Magnificat and Benedictus — Maccabaean Psalms?” in BJ.R.L., 37, 1954, 328ss, e “The Proto-source o f Luke
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difícil resistir á impressão de que João Batista está sendo saudado [ como o precursor, por excelência, não de Jesus, mas do Senhor * Deus, como o Elias que deve preceder a aurora do Dia Final ou (embora não seja este o termo usado aqui) como o próprio Mes sias.24 De qualquer maneira, encontramos aqui, outra vez, a alusão a Davi, o Servo (pais) de Deus (Lc 1,69), à bênção de Deus, à obra de Deus na história real (o nascimento do menino) e à aspiração e esperança pela vinda de melhores tempos. Os cristãos podem assi milar estes cânticos interpretando kyrios como o Senhor Jesus em vez de Deus; e desde que João precedeu a Jesus, se João é Elias, então a vinda de Jesus deve corresponder ao Dia Final. Portanto, a ( extemporânea liturgia pré-cristã é tom ada e usada em sentido çristão, exatamente como aconteceu também com tantos salmos. Des de que o Magnificat não é um salmo estritamente messiânico, mas principalmente louvor a Deus por seus feitos poderosos, fazendo transposição da sorte do humilde e do soberbo, os cristãos podiam também usá-lo sem alteração. Como outros fragmentos já exami nados, o Magnificat contém alusão ao pais de Deus, mas desta vez se trata de seu servo Israel (Lc 1,54). Os próximos fragmentos, semelhantes à maioria dos salmos, dentre as explosões de adoração do Novo Testamento, são os cân ticos do Apocalipse. É fato conhecido que estudiosos do Saltério classificam alguns salmos como “salmos de entronização”, como, por exemplo, os salmos 47; 93; 96; 97; 98; 99, que podem ter sido usados durante a festa anual da entronização de Iahweh como Rei Divino. Não há necessidade de se debater aqui os prós e os contras desta teoria,25 mas o Apocalipse certamente apresenta alguns exemplos esplêndidos de salmos cristãos de entronização:
I” in N.T. 1,3, 1956, 184ss. Estes estudos, que tomam diferentes posições na conf trovérsia “aramaico versus hebraico", deveriam ser lidos em confronto* còríTb ""background dos estudos referidos à p. 215, nota 15. 24. Cf. J.A.T. ROBIN SON, “Elijah, John and Jesus: an Essay in Detection” in J.N.T.S., 4.4, julho de 1958, 263ss. 25. Para as discussões, cf., por exemplo. A. WEISER, Die Psalmen (D as AUe Testament Deutsch, 1950), 17, 35ss; A.R. JOHNSON, “The Role of the King in the Jerusalem Cultus” in The Labyrinth, 1935; H.-J. KRAUS, Psalmen (Biblische Kommentar, Altes Testament), 1960, I, XLII, LV.
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f À realeza do mundo passou agora para nosso Senhor e seu Cristo, e ele
reinará pelos séculos dos séculos (Ap 11,15). Aleluia! Porque o Senhor, o Deus todo-poderoso passou a reinar! Alegremo-nos e exultemos, demos glória a Deus, porque chegou o tempo das núpcias do Cordeiro, e sua esposa já está pronta: concederam-lhe vestirse com linho puro, resplandecente (Ap 19,6-8).
Mesmo se estes e outros salmos e exclamações litúrgicas cristas deste livro extraordinário foram compostos pelo vidente expressa mente por ocasião ou revelados a ele em êxtase, é difícil duvidar { que eles representam o tipo de poesia que os cristãos realmente usaram no culto comunitário. De novo, portanto, é na liturgia (e li-''' turgia profundamente influenciada por formas judaicas) que pode mos localizar a origem de tais partes do Novo Testamento. Consideravelmente além de quaisquer antecedentes judaicos conhecidos, tanto na linguagem como na forma, estão os pequenos fragmentos de hinódia distintamente cristã (pois a maior parte deles deve ser classificada como tal) em Ef 5,14 e lTm 3,16. Portanto, eles nos conduzem um passo além para dentro do culto puramente cristão. Eles apareciam não como simples adaptações de fórmulas judaicas, mas como criações originais do espírito cristão de culto. lTm 3,16 fornece, a este respeito, interessante paralelo e contraste com a maioria dos salmos de entronização judaicos contidos no Apocalipse: \ Ele foi manifestado na carne, | justificado no Espírito, contemplado pelos anjos, proclamado às nações, j crído no mundo, [ exaltado na glória.
Seu modelo, contudo, de acordo, pelo menos com a interpreta . ção de J. Jeremias,26 ainda o liga como o antigo Oriente e é também um “hino de entronização". A antiga cerimônia oriental de entronização (por exemplo no Egito) era constituída de exaltação, aprev sentação e, finalmente, a instalação propriamente dita no trono. Se gundo J. Jeremias, estes três momentos se referem aos três dísticos 26. J. JEREMIAS, Die Briefe an Timotheus u. Titus (D as Neue Testament Deutsch), 1953, in loco.
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de nosso hino: (1) a justificação daquele que veio em carne; (2) a apresentação de suas credenciais aos homens e aos anjos; (3) sua exaltação na fé do mundo e na glória do céu. Um modelo tríplice semelhante pode ser identificado em F1 2,9-11: exaltação, procla mação, aclamação. Mt 28,18-20 e Hb 1,54 são invocados no inte resse da mesma teoria. Contudo, é preciso forçar o texto para ex trair este exato modelo de lTm 3,16, onde, afinal de contas, a única referência explicita à exaltação está no fim, não no começo! De fa to, é notoriamente difícil comprimir estas seis linhas, de modo con vincente, em conformidade com algum modelo lógico, seja toman do-as como um par de tercetos, seja como um temo de dísticos; e talvez tenhamos de admitir que o ardor da adoração nem sempre é lógico ou mesmo simétrico. De qualquer maneira, ainda que o texto possa ser analisado ou ordenado, é muito provável que este seja um hino cristão muito antigo. O fato real que ele começa abruptamente com um pronome relativo (no original) desligado (pelo menos apa rentemente) de qualquer antecedente sugere que se trata de citação de um texto que o leitor já conhecia e identificava. Como muitos dos maiores hinos cristãos, ele é essencialmente uma profissão dej ; fé, uma grande confissão cultuai, como será mais tarde o Te Deum. w Pelo que diz respeito a Ef 5,14, a situação ainda é, possivelmen te, mais complexa. Em Atos 12, na dramática história da libertação de Pedro por um anjo, lemos (v. 6) que Pedro estava dormindo (koimómenos) encarcerado entre dois soldados; então (v. 7), de repen te, o Anjo do Senhor apareceu, e a cela foi inundada de luz. O anjo tocou o lado de Pedro e despertou-o (égueiren) dizendo: “Levantate (anásta)! Depressa!”. Eis Ef 5,14: Ó Tu, que dormes, desperta (égueire) __ e levanta-te (anásta) de entre os mortos, que Cristo te iluminará.
Este é um antigo hino composto em torno da história de Pedro? [/ (Em nenhum outro lugar no Novo Testamento, exceto nestas duas passagens, ocorre a rara forma anásta). Estava o hino relacionado com o período pascal, como certamente está a história (Atos 12,3)?27 E isto significa que pertence ao vasto contexto batismal, 27. Cf. A. STROBEL, “ Passa-Symbolik und Passa-Wunder in Act. XII. 3ss” in J.N.T.S., 4.3, abril de 1958, 2I0ss.
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C aos grandes batismos pascais celebrados após os exercícios espirii tuais e os jejuns da quaresma? Não há dúvida de que o batismo esí tá estreitamente associado com a luz, tanto que veio a ser chamado I de “iluminação” ou que^significa a passagem da morte para a vida. Podemos ter encontrado, então, um fragmento de um dos mais an tigos hinos batismais da Igreja. Na verdade, toda a Epístola aos Efésios pode ser de natureza batismal. Estas suposições são muito comuns, mas permanecem no terreno da especulação. Todos nós podemos dizer com certo grau de segurança que, como lT m 3,16, Ef 5,14 é um hino e que lTm 3,16 contém um antigo credo cristão. Muitas outras passagens têm sido consideradas como hinos: F1 2,6-11; Cl 1,15-20; lP d l,3ss, só para mencionar algumas.28 Na realidade, contudo, os critérios não são convincentes. Estas passa gens podem ou não ser estróficas, isto é, simétricas e equilibradas em suas linhas ou em seu ritmo. Ninguém demonstrou decisiva mente que elas são assim. Mesmo se não fossem realmente, elas po diam ainda ter sido cantadas, tal como os salmos e outros textos irl regulares ou sem metrificação, em português, podem ser cantados. Mas quem pode provar que eram hinos? Prosa e poesia, adoração e profissão de fé, citações de fórmulas litúrgicas conhecidas e com posição livre e original, combinando-se com facilidade na mente de um pensador cristão, o qual, sem qualquer critério externo, não /"'pode estar certo a respeito da “oração comum” que está ouvindo ! furtivamente. Contudo, podemos estar seguros de que partes daqui lo que um Paulo ou um Pedro escreveu ou ditou para uma carta ele bem podia ter pronunciado num culto público; e os sublimes louvo res, que começam com a palavra euloguetós, “bendito”, em Ef 1,3 e lPd 1,3, sem dúvida, sao Htúrgicos quanto ao tipo, independente mente de serem ou não, de fato, uma composição original não usa da anteriormente. ' Além de tais fragmentos de verdadeiros hinos, que podem ser recuperados com maior ou menor segurança, há diversas alusões, no Novo Testamento, à recitação de salmos e hinos por cristãos. Parece haver muito pouca distinção prática, neste período ou nesta literatura, entre hino, hymnos (hymnein), salmo, psalmós (psállein) 28. Cf. a bibliografia em C.F.D . MOULE, Worship in the New Testament, 1961, 69, nota 4.
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e cântico, odé. Até onde sabemos, os salmos do Antigo Testamento nunca são descritos por qualquer outro nome que não psalmós, em bora o verbo hymnein seja certamente usado com referência aos salmos hallçl na, iiltima ceia (Mt 26,30; Mc 14,26). Contudo, não se conclui certamente disto que gsalmós e psállein nunca indicam composições cristãs ou, inversamente, que hymnos necessariamen te significa um hino cristão. Em ICor 14,26 Paulo diz que, quando os cristãos se reúnem, çada um tem um salmo ou um ensinamento, ou uma revelação, ou uma “outra língua”, ou uma interpretação. ' Parece improvável que psalmós, acompanhado dos outros elemen1 tos ad hoc, signifique aqui um salmo do saltério judaico que o fiel estivesse disposto para cantar; provavelmente seja mais uma com posição litúrgica cristã extemporânea. Inversamente é concebível supor salmos judaicos em Atos 16,25, onde Paulo e Silas proseychómenoi hymnoun tón Theón, “oravam ç cantavam em louvor a Deus”. As únicas passagens onde algo como uma clara distinção podia ser suposta são aquelas em que todas as três palavras apare cem juntas: Ef 5,19 e Cl 3,16. Aqui se diz que os cristãos devem cantar (ádontes) com salmos, ffinos e odes. Contudo, ambas as passagens são escritas em estilo entusiástico e fervoroso e seria pro saico insistir que se intenta uma distinção consciente entre salmos judaicos, hinos cristãos e, talvez, poemas de louvor mais formais. De qualquer maneira, em ambas as passagens o cantar e o salmodiar devem ser feitos té kardía ou en táis kardiais, isto é, talvez, “silenciosamente” e “no íntimo do coração”. Portanto, a referência direta é, presumivelmente, não ao audível, ao culto comunitário como taCmâs à constante recordação íntima do louvor comunitá rio que os cristãos devem alimentar no espírito (algo completamen te desconhecido de seus patrões e companheiros pagãos) quando cuidavam de seu trabalho (cf. especialmente Cl 3,17). De qualquer maneira, não há dúvida de que os momentos mais jubilosos do culto cristão primitivo foram marcados pp r explosões de cânticos, geralmente — presume-se — não acompanhados, em~~’&òra nunca se sabe se um harpista ou citarista, kitharistés, não podia algumas vezes introduzir às escondidas seu instrumento no lugar secreto da reunião. Incidentalmente, é interessante notar que, no Apocalipse (14,2), uma visão do culto celestial é acompa nhada pelo som de kitharodóí, que deviam significar estritamente
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não simples instrumentistas (kitharistái), aqueles que tocam a cita^ ra, mas bardos, como os rapsodos homéricos, que também usam as ] vozes e cantam com o próprio acompanhamento. Era talvez a odé ou canto um solo desta espécie? v Mas haveria fragmentos de liturgia cristã no Novo Testamento além dos cânticos e salmos? Muitos especialistas respondem com um sim confiante; e tem sido sustentado que lPd é, praticamente, uma liturgia batismal (menos, como se diz, as “rubricas”), plena de exortações, homílias, hinos e orações. Esta última teoria, realmen te, não sai muito bem da pesquisa. A evidência, com o exame de ponto por ponto, é “ raquítica” e deve contar com o efeito cumulati vo de tudo aquilo que ela traz consigo; e, ainda mais significativo, não é realmente fácil imaginar uma situação em que a essência de um rito batismal pudesse naturalmente ser elaborada em forma de carta e enviada a não-participantes distantes. É muito mais simples pconsiderar lPd como uma nobre recordação dos antigos votos e V promessas batismais, endereçada a cristãos que, enfrentando a ameaça de perseguição ou realmente sofrendo-a, necessitavam exa tamente deste conforto reanimador. O escrito está cheio de alusões batismais, más não necessitamos de considerá-lo como outra coisa que não seja genuinamente uma epístola.29 De qualquer maneira, a linguagem da pregação e exortação cristãs é praticamente indistin guível daquilo que foi provavelmente usado durante a administra ção dos sacramentos, de tal maneira que aquilo que podemos des crever como linguagem batismal ou eucarística não deve ser neces sariamente associado com o momento da execução litúrgica. Os sacramentos são evangélicos e o Evangelho é sacramental: palavra e sacrámento são, neste sentido, uma só coisa. Todavia, não se pode concluir disto que, quando em ICor ll,23ss, são Paulo alude às palavras pronunciadas por Jesus por ocasião da última ceia, ele não esteja fazendo citação de tradições que eram realmente repetidas durante a eucaristia; ou que, na ver dade, os relatos sinóticos da instituição não tinham sido transmiti 29. Cf. C.F.D. MOULE, “The Nature and Purpose of I Peter” in J.N.T.S., 3.1, novembro de 1956, lss, com a bibliografia citada ali; e a crítica de F.W. BEARE, The First Epistle o f Peter, 1958, 2* ed., 196ss. Cf., também, T.C.G. THORNTON, “I Peter, aPaschal Liturgy?” inJ.N.T.S.. 12,1961, 14ss.
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dos mediante repetição na eucaristia, muito antes de eles virem a ser escritos nos Evangelhos. Na verdade, é uma observação fami liar que as narrativas da instituição, em Mc 14*22-25 e Mt 26,26 28, revelam indicios de adaptação ao uso litúrgico. Pois, bem à pa r te dos detalhes, há uma clara diferença entre o relato paulino e o dos sinóticos. Em ICor 11,25, Paulo separa, claramente, o cálice do pão pela frase “depois de cear”; e ele apresenta as palavras ^ sobre o cálice numa forma que não tem paralelo naquelas sobre o pao. Sobre o pão: “isto é o meu corpo” . . . ; mas, sobre o cálice, não “isto é o meu sangue” . . . mas “este cálice é a nova aliança em _ (isto é, selado por) meu sangue” . Em contraste com isto, tanto Marcos como Mateus não indicam intervalo entre pão e cálice e ■ ambos usam as frases paralelas: “ isto é o meu corpo . . “isto é o " meu sangue . ..” É difícil resistir à conclusão de que, ao menos a este respeito, a versão de Paulo é a mais histérica, enquanto que as \outras duas representam uma modificação oriunda do uso sacra j mental dos dois ditos acerca da última ceia em estreita justaposi(. ção. Com toda probabilidade, os fatos não são realmente tão sim ples assim. Um exame minucioso da linguagem e estrutura das pas sagens relevantes por H. Sçhürmann30 tem conduzido à conclusão . de que em certos aspectos os sinóticos podem estar mais próximos do que Paulo d isfo rm as originais ou mais antigas da tradição. De ' qualquer maneira, a narrativa da instituição em Lucas apresenta problemas peculiares.31 Mas aqui é suficiente ilustrar simplesmente a influência da liturgia na formação do Novo Testamento através dos sinais indubitáveis deste processo nas várias formas das pala vras da instituição, ainda que, delicada e complexa, se tornasse ne cessária uma exposição completa. Um exemplo plausível pode ser dado, igualmente, por detectar os ecos jla liturgia (talvez na comunidade romana) que estão por trás das Cartas aos Hebreus e 1Clemente, cujos escritores revelam, em comum, certos traços significativos.32 Mais uma vez, a hipótese tem sido a suposição de que os “discursos de despedida” de Jo 13 __
30. H. SÇHÜRMANN, Der Einsetzurtgsbericht, 1955. 31. Cf. C.F.D. MOULE, Worshlp in the New Testament, 1961, p. 25; e H. CHADWICK, “The Shorter Text of Luke XXII, 15-20” in H.T.R. 50, 1957, 249 258 32. Cf. A. NAIRNE, The Epistle to the Hebrews. 1922, XXXIV.
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17 devem, em grau notável, sua fraseologia e forma à oração do presidente da eucaristia na tradição de Éfeso.33 Portanto, muito do que sabemos a respeito das palavras e mes mo dos atos de Jesus é devido à sua preservação pelas comunida des de culto. Mesmo que um só fragmento aqui e ali possa ser recu perado das fórmulas atuais de culto, isto não altera o fato de que vmuito daquilo que constitui o Novo Testam ento deve sua existência às exigências do culto. Mais tarde, será argumentado neste livro que os Evangelhos não foram, primariamente, planejados para uso litúrgico, tanto como para instrução, exposição e (em alguns casos) até para a apologética. Mas isto não significa negar que as palavras e atos de Jesus devem ter sido recortados durante o culto e que este foi um fator muito importante na preservação e transmissão das tradições. D. Daube sugeriu, na verdade, que a forma do Evange lho pode ter sido originada da páscoa cristã, como um a extensão e desenvolvimento da prática judaica da haggadá pascal, a recitação da história da salvação.34 Mas, em geral, embora tardiamente te nhamos o testemunho de Justino, segundo o qual a leitura das re cordações apostólicas (sem dúvida, dos Evangelhos) no culto (cf. p. 223), e embora o culto cristão não pudesse existir sem alguma no ção dos fatos que estão por trás da fé, contudo os Evangelhos es critos, de Marcos em diante, parecem ajustar-se mais naturalmente dentro do contexto da instrução, exposição e apologia. Sem dúvida, o batismo e a eucaristia oferecem ocasião para a recitação de cer tas palavras e atos de Jesus. O batismo é o cenário mais natural para os primeiros credos cristãos, quer se trate da mais breve das confissões “Jesus é Senhor” , quer se trate da ligeiramente mais lon ga “Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus” (Atos 8,37, no códice D). A eucaristia foi a ocasião em que as palavras e a na rrati va da instituição eram repetidas. Mas os credos, como já vimos, vsão realmente hinos de louvor e é mais lógico que se pense mais no culto, quando se está diante da adoração, louvor e petição, do que quando se está diante de uma narrativa.” 33. Cf. a tese de A.C. MACPHERSON, 34. “The Earliest Structure of the Gospels” in JJV.T.S., 5.3, abril de 1959, !74ss; The New Testament and Rabbinic Judaism, 1956, citado ali. 35. Cf. C.F.D. MOULE, “The Intention of the Evangelists” in New Testa ment Essays, in mern. T. W. Manson, 1959, 165ss.
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É possível, contudo, que o cjjlto tenha proporcionado, logo de inicio, um molde para a cristalização da exortação e da instrução é tica cristãs em forma de homilia ou de sermão. Não que o kérygma primário tivesse necessidade de ser repetido em sermões cristãos tão freqüentemente quanto hoje; apenas que, sendo suposto que a congregação, por definição, conhecia e tinha aceitado o kérygma, é ' T mais provável que o orador se dedicasse a extrair suas conseqüên cias éticas. O kérygma é a base verdadeira do louvor e o fu ndam en^r to da oraçao; ajio m ilia seguiria, mais naturalmente, a linha de \ \ v exortação à congregação para tornar-se aquilo que, graças à pro- I / clámação .do Evangelho, eles eram essencialmente. Tem sido su- C> posto que a Epístola de Tiago pode representar substancialmente r alguma espécie de sermão sinagogal cristão (ou, pelos menos, crisl, tianizado);36 a qualidade homiiética de partes de lP d tem sido nota da37 e as normas para a vida doméstica e familiar, (que os alemães elegantemente chamam de “távolas de família", Haüstafeln), em Colossenses, Efésios e (em alguma extensão) em Romanos e ou tras epístolas, podem dever muito a sermões, bem como às mais ( , pessoais instruções de catecúmenos. " ’ “ 0 fato de que as cartas apostólicas foram, certamente, planeja-r das para serem lidas numa congregação reunida conduz, natural ' ménte, à suposição de que elas exerceriam, em tais ocasiões, a funC ção de uma homilia. As palavras finais de ICor 16,20b-24: 36. Cf. H. TH YEN, Der Stil der Jiidisch-heUenistischen Homitie, 1955, 14 17; cf., abaixo, p. 196, n9 14, a critica ao seu ponto de vista. O Dr. J. Adamson gentilmente me informou, em carta datada de 11 de dezembro de 1960, que a idéia K i de que a Epístola de Tiago pode ter sido, na origem, um sermão parece ter sido su [ gerida primeiramente por Lutero (ed. de Erlangen, 63, 156ss; ed. de Weimar, Deutsche Blbel 7,384ss) e aceita também por Jülicher (sermão penitencial) e Harnack (miscelânea homiiética de autoria de um mestre anônimo), bem como por Moflatt- Cinodspeed. Kennedy, J. Weiss e H.F.D. Sparks. Ele chama atenção para T a breve nota de J.S. STEVENSON, E.T., 35, 1924, 44, que supõe Tiago, irmão do ^Senhor, enviando fragmentos de seus discursos nas sinagogas judaicas e cristãs V Vão® judeu-cristãos na Diáspora. Anota também o pequeno e vaUoso livro de Paul FÉINE, Der Jakobusbrlçf nach* Lehranschauungen und Entstehungsverhalmissen untersucht, 1893, em que o autor encontra sua origem numa homilia de sina goga elaborada pelo próprio Tiago (cf., por exemplo, p. 95). À p. 96, Feine cita, além de Lutero, também Palmer, Weizsacker e Holtzmann, a fim de fundamentar seu ponto de vista. Mas, realmente, Lutero não sugere que a forma da carta era a de um sermão: ele simplesmente disque a Epistola pode ter sido escrita por al guém a partir da pregação de Tiago. 3 7 “ Cf. comentários e B.H. STREETER, The Primitive Church, 1929, 123ss.
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Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo. A saudação é do meu próprio punho: Paulo. Se alguém não ama o Senhor, seja anátema! Marana tha —Senhor, vem! A graça do Senhor Jesus esteja convosco! Com todos vós está o meu amor em Cristo Jesus.
I têm sido habilmente ligadas à eucaristia e a conclusão a que se ( tem chegado é que Paulo tinha realmente planejado esta carta para , guiar a comunidade naquele ato de culto, com o seu anátema sobre os excomungados (amthema), sua invocação (maranatha), seu ós culo de paz e sua saudação. Mas este último refinamento é menos convincente, com base num exame bem cuidado, do que à primeira vista possa parecer e certamente não está firmemente fundamenta . do. O maranatha pode reforçar a excomunhão antes que franquear a eucaristia. Há evidentemente pouco indício de alguma coisa cla ramente eucarística no final de quaisquer outras epístolas do Novo Testam ento.3* Com base em alguma demonstração, este anathema-mara^natha é, contudo, um resquício do notável legado de palavras e frases aramaicas que o culto, em particular, tornou corrente entre os cristãos de fala grega. Além da (aparente) invocação maranatha (“Senhor, vem”), há o freqüente amém, evidentemente usado no culto de preferência a tais alternativas gregas como nái, alethós, guénoíto, que algumas vezes ocorrem fora do culto; há alleluia, ho sanna (embora no Novo Testamento este último não seja clara mente usado no culto cristão como é no Didaché 10,639) e Abbá (que parece ser a palavra inicial da O ração do Senhor, como recor dada ainda nas comunidades gregas, Rm 8,15; G1 4,6). Se o culto influencia grandemente, em outras direções, a esco lha de palavras no Novo Testamento è algo mais questionável. Mas o modo surpreendente com que aquelas que poderíamos descrever como palavras “seculares”, tais como leitourguêin (traduzível por “serviço cívico”) são aplicadas também ao “serviço divino” produz 38. Para a discussão deste ponto, of. C.F.D. MOULE, “A Reconsideration of the context of Maranatha”in J.N.T.S., 6.4, julho de 1960, 307 ss, e a bibliogra fia citada ali. 39. Confronte-se com H. KÕSTER, Synoptische Überlieferung bei den apostolischen Vütem, 1957, 196s.
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uma lembrança profundamente cristã e muito salutar de que o cul- q c2 to é a essência e o coroamento da atividadeçnstà; e que se culto e trabalho são distintos, isto apenas por causa da fragilidade da natu reza Humana que nao pode fazer mais do que uma coisa de uma só vez. A alternância necessária entre mãos santas levantadas em oraPção e mãos fortes e dedicadas que impulsionam um machado para ( a glória de Deus é o substituto humano daquela singular e simultâ nea vida divina em que trabalho é culto e o culto é a atividade mais Cs alta possivel. Uma única palavra, a palavra “liturgia”, no Novo Testamento, como abodah, “trabalho” ou “serviço” no Antigo Testamento, inclui tanto o culto como o serviço.40 /-- Por isso, a comunidade cristã que celebra o culto deve estar í sempre em primeiro lugar em nossas pesqfuisas acerca dos contexf tos em que as partes integrantes do Novo Testamento vieram a for mar-se. Junto com o reconhecimento entusiástico deste fato escla recedor, é importante ter em mente que houve, necessariamente, uma alternância entre os períodos de culto consciente e de outras atividades; e é até possivel que, de acordo com esta distinção, cer tos termos que foram aplicados a Jesus no pensamento cristão pri mitivo pertençam, com melhor razão, exclusivamente a este segun do tipo de contexto. A aparente localização da idéia do servo sofre dor no contexto de exposição antes que no de culto (sugerida, de '^passagem, um pouco acima) é um exemplo disto.41 Em seguida, passaremos, portanto, (ta adoração e do culto para o exame da ati vidade da mais conscientemente racional exposição.
40. Cf. C.F.D. MOULE, fVorship in the New Testament, 1961, 80. 41. Cf. C.F.D. MOULE, acima, p. 34, nota 22.
CAPÍTULO III
A IGREJA TOMA POSIÇÃO (1) A tomada de consciência gradual
A Igreja devia necessariamente esclarecer a própria posição e a própria mensagem tanto a si mesma como aos outros; mas seria um erro procurar distinguir de um modo muito acentuado os escla recimentos oferecidos aos estranhos da instrução dada aos pró prios membros, ou a determinados grupos. Pois seria difícil separar as afirmações espontâneas, feitas no decorrer da atividade evangelizadora diante de um público genérico, das respostas especificas exi gidas por perguntas bem determinadas ou por precisações apologéticas necessárias devido a críticas ou ataques de várias naturezas. O Essas várias categorias penetram, imperceptivelmente, umas nas outras. Por amor à clareza, contudo, o assunto da catequese (ou se ja, a instrução dos catecúmenos e dos neofitos) e da edificação será tratado mais adiante, num capitulo posterior. No momento, dirigi remos nossa atenção, mais genericamente, para a consciência de si mesma que a Igreja vai tomando gradualmente diante de proble mas e tensões, sejam internos, sejam externos, até chegar à plena consciência de sua vocação distinta. Deve ser lembrado, de início, que a Igreja no primeiro século, ' diferentemente da Igreja de hoje, não precisava gastar muito tempo na defesa da existência de Deus. É verdade, havia os epicureus, f, cujo sistema de pensamento relegava Deus a uma tal distância do mundo físico que se constituía num virtual ateísmo; e havia um ou dois outros ramos de “livres pensadores”. Mas, em geral, todos consideravam como axiomas a doutrina da divindade e o sobrena tural (eram os cristãos que pareciam ateístas, porque não tinham nem altar nem santuário) e a exposição cristã não tinha de começar
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( com Deus, muito menos quando confrontada com o monoteismo l judaico, mesmo que as convicções distintivamente cristãs envolves sem, de fato, uma concepção da divindade radicalmente nova. Cronologicamente, na verdade, uma das primeiras questões a serem enfrentadas foi a que podia, de inicio, parecer muito mais vulgar e menos teológica, ou seja, a questão da relação dos discípulos de Jesus com o resto do judaísmo. Esta foi imposta à c' Igreja tanto por tensões internas quanto por externas; e, como ve remos, afinal, trata-se de um dos maiores problemas doutrinários. Mesmo durante o ministério de Jesus, alguns expectadores tinham ' exclamado atônitos: “Que yem a ser isto?” E, no mesmo fôlego, responderam: “ uma nova doutrina!” (Mc l,21ss). N ão muito tem po depois, a comunidade cristã teve de enfrentar uma questão se melhante: Que era isto em que eles foram apanhados? Quem eram eles? Eram eles, de fato, alguma coisa nova e revolucionária ou ; ■ eram eles apenas uma versão revista e melhorada do velho? Eram ^ eles uma nova raça, um tertium genus, um acréscimo à familiar dis tinção dupla entre judeus e gentios ou eram eles simplesmente Is rael, o verdadeiro Israel, um núcleo purificado e interno do único e antigo Povo de Deus? Infelizmente, por causa da simplicidade e da clareza, ficou pro vado que era irrealístico tomar uma posição ou outra, pois havia ) sentidos em que ambas eram verdadeiras. Pela purificação do ve-' lho, Deus tinha realizado uma nova criação. À mensagem era, a um só tempo, antiga e nova (como lJo 2,7 diz, embora com uma conotação um pouco diferente). Por conseguinte, o Novo Testa mento contém evidência para ambos os pontos de vista e é bastante óbvio que a ênfase é determinada pelas exigências mutáveis das cir cunstâncias e do tom em que as questões foram postas. No que respeita à continuidade de Israel no cristianismo, emer ge uma vigorosa corrente de pensamento dos textos (como o curso de água do templo, na visão de Ezequiel) e bifurca-se em duas dire ções. Exatamente contra o judaísmo anti-cristão, enfatiza-se que os únicos judeus verdadeiros são aqueles que confessam Jesus como o \ Messias: “longe de não serem judeus”, os cristãos com efeito d i - ^ zem: “nós somos os únicos judeus”. Exatamente contra uma ten' dência anti-áemítica no cristianismo gentílico, enfatiza-se que para 1tomar-se cristão é preciso estar, necessariamente, crescendo, seja
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naturalmente seja por meio de enxerto, no tronco de Israel: “longe de não serem judeus, os cristãos não podem ser cristãos sem serem f t primeiro judeus*’. Não há a menor dúvida de que o próprio Jesus tenha começado apelando a Israel e até seu ministério terreno, vir tualmente, chegou ao fim também com Israel. Ele dirigiu sua men sagem a Israel e viu a sua própria missão e vocação em termos do cumprimento do destino de Israel. Mesmo que se ponha de lado a f questão se ele aceitou ou não o titulo de Messias, o Rei Ungido de Israel, o mínimo que se pode dizer é que o uso que ele fez da ex pressão “oJFilho do Homem” estava relacionado com o plano de Deus para com Israel através dele, provavelmente com a sua pró pria pessoa como o epítome e o representante do Israel fiel. Esco lher uma corporação 3è doze homens para serem seus mensageiros e amigos íntimos (sugerindo inequivocamente os doze patriarcas que representam as doze tribos, cf. Mt 19,28; Lc 22,30) e virtualf mente restringir seu ministério ao território israelita são gestos sig\ nificativamente judaicos. De forma semelhante, no livro dos Atos, não só os primeiros nazarenos palestinenses são apresentados (como vimos) continuanV do a prestar culto no templo e praticando o judaísmo, mas também escrupulosamente tem-se o cuidado de mostrar até Paulo com a p rá tic a regular de ir primeiro à comunidade judaica sempre que ele estivesse iniciando a pregação do Evangelho numa nova área (Atos 13,5 e passim; cf. Rm 1,16) e alegando ser ainda um bom fariseu (Atos 23,6; 24,12-15; 26,5-7). É bem conhecido que o livro dos , Atos apresenta o cristianismo como tolerado pelo governo romano, /. ■ o que não teria sido possível (assim parece ser o argumento impliçito) fosse ele uma religião totalmente nova. Ficamos sabendo, atra vés de G 15,11, que havia mesmo alguns (possivelmente os mais ra- dicais cristãos anti-semitas)1 que lamentavam que, de fato, Paulo i (dentre todas as pessoas!) estava “ainda” proclam ando a necessi j dade da circuncisão (contraste com Atos 21,21!). Aquilo que ele ! proclamava, em Rm ll,13ss especialmente, era que salus extra Is rael non est (para adaptar a frase de Cipriano, Ep. 73,21). Se os gentios devem receber integridade, salvação, devem ser enxertados ]. Ou foram, antes, os judaizantes que tentaram argumentar que a lógica da { posição de Paulo, qualquer que Tosse a sua p rd x isí era que ele ainda sustentava qüfc a circuncisão tinha muito proveito em todos os aspectos (Rm 3, ls)?
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t no tronco original, devem tornar-se judeus por adoção. De modo semelhante, E f 2,11-3, 2,11-3,77 fala da salvaçã sa lvaçãoo dos dos gentios gentios em termos termo s de r semelhante,
V Se uma uma bif bifurca urcaçã çãoo da cor corrren entte de de “iden “identtida dade de”” fl flui para para cortarA I aqueles aqueles q u elen el en tam ta m desviar a he heran rança ça espiritual espiritual de Israel do cami cam i-1 ou tra bifurcação, bifurcação , como vimos vimos,, é diri dirigida gida con contra tra ■ nho da salvação, a outra o judeu jude u anticristão, que nega que a Igreja seja absolutamente absolutam ente israe l i t a , ou contra o cristão cristão judaiz judaizante. ante. extr extremista, emista, qu quee só admitirá admitirá que que ela ela é israeli israelita ta se IbTcara IbT caracter cteriza izada da por uma rigorosa observância da circuncisão. circuncisão. Aqui há h á todos tod os os ditos de Jesus sobre a rejeição rejeição dos fi fi{ lhos do Reino em favor de melhores membros, a linha de ataque 1 qu quee ati ating ngee seu seu cl climax imax nas cont controv rovérs érsia iass amargas amargas do Quarto Evan Evan-1 gelho elho,, ná grande inve invect ctiv ivaa de de Mt 23 23 e nas feroze ferozess críti críticas cas de Ap 2,9 V que se afirmam afirmam judeus mas não são, pel peloo contrário, são q " " C . . . os que (Q uma sinagoga de de Satanás!”). Sa tanás!”). E nas epístolas epístolas paulinas paulinas há passagens tais como as seguintes: G1 1,6-9 (os cristãos judaizantes estão sen do realmente excomungados por fazerem da circuncisão uma con- Q Q ditio ditio sine qua non): non): Admiro-me que tão depressa abandoneis aquele que vos chamou pela gra ça de Cristo, e passeis a outro evangelho. Não que haja um outro, mas há alguns que vo voss estão estão perturban perturbando do e querendo querendo corrompe corromperr o evangelho evangel ho do f alguns VCristo. Entretanto, se alguém —ainda que nós mesmos ou um anjo do céu —vos anun anunci ciar ar um evangelho evangelho dife difere rent ntee do que vos anuncia anunciamo mos, s, seja aná tema. Como já V0'l0 dissemos, volto a dizê-lo agora: se alguém vos anun ciar um evangelho diferente do que recebestes, seja anátema. 2.J. MUNCK, Paulu Pa uluss und un d die di e Heils He ilsge gesc schíc hícht hte, e, 1954; H. CHADWICK, 1959, 9, especi especialme almente nte 13ss; 13ss; W.C7 W.C7 VAN^UN N Í 1 C L a The Circie and the Eliipse, 195 Conception paulinienne de la Nouvelle Alliance” in Recherches biblíquéíV^, 1960, 122s.
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G1 3,16.29 (a “descendência de Abraão” é Cristo e, portanto, so mente mente aqueles que estão “ em” Cristo é que são sã o o verdadeiro verdade iro .Is rael): Ora, as promessas foram asseguradas^a Abraão e à sua “descendência^ r* Nã Nãoo diz: diz: “e aos descendentes”, como referindo referindo-se -se a muitos, mas c o m o j t um só: e à tua tua descendência, descendência, que que é Cristo . . . { , um » E se vós sois de Cristo, então sois “descendência” de Abraão, herdeiros segundo a promessa.
G1 6,15ss (O Israel de Deus são todos aqueles que, circuncidados ou não, foram inseridos na nova criação): f De resto, nem a circuncisão é alguma coisa, nem a incircuncisão, mas a \ nova criatura. E a todo todoss os que pautam pautam sua conduta conduta por esta esta norma, paz paz e misericórdia sobre eles e sobre o Israel de Deus. Doravante ninguém mais me moleste. Pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus. Irmãos, que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso espirito! Amém.
F1 3,3: Osjcircuncidados somos nós, que prestamos culto pelo Espirito de Deus e \ nos gloriamos em Cristo Cristo Jesus e não confiamos conf iamos na carn carne. e.
Cl 2,11: Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de ho mem, mas pelo desvestimento da vossa natureza carnal: essa é a circunci são de Cristo.
(isto é, o batismo em Cristo alcança aquela total submissão do cor po qu quee tran tr ansc scen endd e e inclui a simples simpl es circ ci rcun unci cisã são) o).. E m tod to d a a E pís pí s tola aos Hebreus há o argumento de que os cristãos, longe de se/•■'>rem >rem destitu d estituídos ídos e afas af asta tado doss da d a congr con greg egaç ação ão de Israel, I srael, são s ão os únicos ún icos V a quem pertencem, em sentido absoluto, o sacerdócio, os sacrifí cios, o altar e o santuário. Em lPd 2,9s, os cristãos são o verdadei ro adorador e Povo de Deus:
f Mas vós sois a raça eleita, o sacerdócio rea), a nação santa, o povo de sua
particularr propriedade, propriedade, a fim de que proclameis proclameis as excelênc excelências ias daquele \ particula l que vo voss chamou das trevas para para a sua luz maravilhosa, maravilhosa, vós que que outrora
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não éreis povo, mas agora sois o povo de Deus, que nào tinheis alcançado misericórdia, mas agora a alcançastes.
E semelhantemente semelhantem ente em Ap 1,5b 1,5b.. 6 eles eles é que são o povo p ovo de reis e sa cerdotes: Àquele que nos ama, e que nos lavou de nossos pecados com seu sangue, e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai, a ele pertence a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém. Contudo, malgrado essa intrépida defesa da,posição de que o , ^ cristianismo é Israel e de que nào há salvação sem incorporação nesse novo Israel, muito rapidamente, senão ao mesmo tempo, co meçou-se a perceber também a sua diferença, a novidade do crisv tiãnismo. Com Co m muita m uita probabilidade proba bilidade será se rá verdadeiro verda deiro dizer que isto isto não foi ambicionado; ainda menos se lutou pelo argumento: todo o insti instinto nto dos cristãos estava na outra ou tra posição, a de de proclam pro clamar ar a con tinuida tinuidade de e a antigu antiguida idade. de. N ão havia desej desejoo de se se desvin desvincul cular ar ou o
3. É errôneo identif identificar icar “ catolicizaç catoli cização” ão” com helenização. Cf. G. D IX , Jew ' Je w and Greek, Greek, 1953, 109; E. STAUFFER, Die Di e B otsc ot scha haft ft Jesu Je su d am a ls u nd heute, " 1959, 1959 , sustenta a posição posiç ão extremá extremá de que a próp própria ria “ desjuda des judaizas izasão” ão” da religião \ , operada por Jesus foi quase imediatamente “re-judaizaçâo”, mesmo por Paulo! j ' C f , / por por exemplo, p. 4 5 .v j
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eram “legalistas”, não “profeta^’. O próprio Jesus, ao contrário, estendeu a mao (até onde pudesse alcançar e não era totalmente antecipador antecip adora, a, nova no va e diferen diferente) te) não à religião religião dos escribas legalistas legalistas do período pós-profético, pós-profético, mas aos poderosos pode rosos profetas de Israel. Israel. Seu Seu ministério, proclamado pelo ministério profético do Batista (a pri meira grande voz profética desde que os antigos profetas silencia ram), prosseguiu, com maior profundidade, na linha da antiga tra dição profética. Diferente dos rabís, ele passou diretamente da letra da legislação e casuística para os princípios e motivos controlado res: para a criação divina do homem e da mulher (Mc 10,6), para a vocação divina ao amor, para o amor a Deus e ao próximo (Mc 12,28 ss), a suprema dignidade do homem na criação e sua respon sabilidade diante do Deus vivo (Mc 2,27). Foi no quadro destas ca tegorias fundamentais e pessoais que Jesus encontrou, na oração e no colóquio, colóquio, seu contato con tato direto e pessoal com o Pai e fo foi neste con tato vivo, pessoal, que ele descobriu e seguiu a vontade e propósito de seu Pai. A manifestação visível desta harmonia absoluta de von tade entre Jesus e o Pai foi o poder criador que se revelou com ma jest je staa d e sem prec pr eced eden ente tess n a s o b r a s de cu curr a . Q u a n d o ele fala fa lava va,, era er a com as palavras de poder do Criador. Tudo isto é apenas uma outra maneira de dizer que o ministério de Jesus apontava para um novo concerto tal como é descrito em Jr 31: 31: um relacionam relac ionamento ento entre entre Deus De us e o homem não n ão na base de de clarações como as que podem ser escritas e gravadas em tábuas de pedr pe dra, a, m as de ob obed ediên iênci ciaa pes p esso soaa l no n o âmbi âm bito to do c o r a ç ã o e co c o nsc ns c iên iê n cia; um relacionamento pertencente propriamente à nova era, da qual aquelas mesmas obras de poder eram o prelúdio (cf. a exposi ção deste tema feita por Paulo em 2Cor 3). Podemos exprimir a mesma realidade dizendo que a comunidade que Jesus formou em torno de si era a comunidade da nova era: tratava-se de Israel, na verdade, mas o Israel dos últimos tempos. Prometendo fidelidade a Jesus, os Doze e os outros com eles foram constituídos, naquele sentido, numa nova comunidade.4 Por conseguinte, se o exato número doze testemunha a respeito da consciência israelita de Jesus e se (como vimos) ele apenas co4. Cf. L. GOPPELT, GOP PELT, Christentum und Judentum im ersten und zweiten Jahr Ja hrhu hund ndert ert,, 1954, 74s; W.C. VAN UNNIK, loc. cit. à p. 36, nota 1, pas p assi sim m.
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meçou a estender o seu ministério além dos limites do território is f meçou I raelita, contudo, contud o, seu ensino e sua atitude, não menos claramente, clarame nte, testemunham acerca da d a novidade radical radical e “ escatológica” escatológica” dest destee Is rael: aqui estâo contidos os gérmens de sua expansão universal. Na verdadfe, é"fato bem conhecido (ainda que freqüentemente esqueciTestam ento aparece a expressão {' do) que em parte alguma do Novo Testamento \ “ Novo Israel” . N a verdade, verdade, até a expressão “ Novo Testamen Te stamento” to” / (isto é, Nova Aliança) implica uma continuidade dos receptáculos dos pactos precedentes. Contudo, o fato que permanece é que o Is rael de Deus, De us, o verd v erdade adeiro iro Israel, era tão radicalmente diferente da quele que aparece como Israel no mundo contemporâneo que há um inegável sentido em que é “novo”.J Vimos xomo até os ditos radicais de epístolas, como Gâlatas e Romanos, Rom anos, se ajustam na posição do argumento argume nto pró “continuidade” e observamos que a descontinuidade (ou pelo menos a surpreen dente dente novidade) novidade) não era tã o afirma af irmada da e defendida defendida quanto (quase re lutantemente) aceita e reconhecida. Contudo, essas passagens radi cais nas cartas de Paulo atestam de modo bastante claro, se não di retamente, também esta novidade. Estar em Cristo significa, como ele ele admite, ser parte de uma um a nova no va criaçã cria çãoo e embora em bora este novo mun- j do seja, na verdade, aquilo que a apocalíptica de Israel antecipava, ele ele é claramente claram ente diferent diferentee da pop popular ular concepção conce pção israelita israelita acerca acerc a i dele. Outra maneira de colocar o mesmo ponto é, uma vez mais, re verr o passad ve pas sadoo nas tradições trad ições do minis m inistério tério de de Jesus. Jesus. Ali Ali há evidên evidência cia de que, muito antes do clímax, ele começou a ser tratado como asr 'queroso pelos líderes religiosos, que o consideravam como um falso v mestre perigoso perigoso,, e de que ele ele estava advertindo ad vertindo os os seus disc discípu ípulos los es perarem perar em a mesma mesm a espécie espécie de oposição, que cond conduz uz à excomunhão excomun hão 1 (Mc 3,6; 7,lss; 8,15; 10,29ss; cf. Mt 10,17.25; Jo 16,2, etc.). É C verdade que há indícios de que Jesus contrapôs sempre sua própria ^ autoridade àquela dos livr livros os de Moisés Moisés ou de de quaisquer outras outra s es crituras consideradas naquele tempo como autorizadas. Contudo, esta maneira m aneira de usar as escritura es criturass e fazer fazer seleção seleção delas e as concluconclu5. Ê um fato notável, notável, como com o observa SCHW SC HWEIZE EIZER, R, art. art. “Sárx" in T.W.N.T., 7,126s, que a expressão “Israel segundo ó espirito” não é contrapostaü “Israel segundo a carne”, em ICor 10,18.
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í sões a que ele chegava eram tão subversivas ao esquema de vida | rabinico que não é surpreendente que ele fosse considerado como um transgressor da lei. Era de pouco proveito se, transgredindo a lei sabática estabelecida pelos rabinos, ele apelasse para as escritu ras perante os rabinos. É verdade que isto pode não ter perturbado grandemente os saduceus; na verdade, é digno de nota6 que apenas / uma vez no processo de Jesus é mencionado que ele teve algum choque com eles (Mc 12,8ss e paralelos), enquanto que, se a histó ria do tributo do templo em Mt 17,24ss for alguma reflexão do período contemporâneo ao seu ministério, se mostra Jesus evitando escrupulosamente ofender a hierarquia do templo. Não foi senão ' no fim do ministério que os interesses políticos dos saduceus entra^ ram em conflito com Jesus; depois disso, eles iriam representar um importante papel, nos primeiros dias da Igreja, no ataque aos cristaos, considerados como perturbadores da paz (p. ex., Atos 4,5ss; contrastar com a relativa simpatia dos fariseus em Atos 23,9). Contudo, durante todo o seu ministério, os líderes do judaísmo ge nuinamente religiosos, isto é, os fariseus e especialmente seus rabi nos e escribas, reconheceram que este mestre revolucionário e sub£2 versivo representava uma ameaça ao seu sistema. Lucas, é verda de, alude a certo grau de simpatia dos fariseus (7,36ss; 13,31 ss; 14,1 ss); mas, em geral, eram os verdadeiros antagonistas. A manei ra de Jesus exercer autoridade simplesmente não se coadunava com a maneira empregada por eles. Por exemplo, quando declarou que amar a Deus é o primeiro mandamento, ele não queria dizer que deste amor poderiam ser deduzidas todas as normas rabínicas, mas que tal amor deve ter prioridade sobre quaisquer outras regras e, se necessário, invalidar todas.7 E Jesus não apenas viu as impli cações desta atitude para com ele, mas —como vimos —parece ter advertido seus discípulos acerca da excomunhão e perseguição imi 6. Cf. G. STÂHLIN, T.W.N.T., art. "skándalon 7. E. STAUFFER, Die Botschaft Jesu damals und heute, 1959, capítulo 5, sustenta que só a forma adotada por Marcos (Mc 12,31) preserva este sentido ra dica! e revolucionário: as outras versões a reduzem á forma de “dedução” precisa^ , mente rabinica. Não posSo acompanhá-lo em todas as suas ulteriores observações r sobre os escritores do Novo Testamento (incluindo Paulo!); contudo, aqui ele indi cou um fato surpreendente. Confronte-se com a opinião de G. Barth, em G. BORNKAMM, G. BARTH e HJ. HELD, Überlieferung und Auslegung im M attüus-Evangelium, 1960, 70ss.
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nentes contra eles. Se E. Stauffer está certo, haveria até espionagem ' sistemática e coleta de evidências incriminadoras contra Jesus pe las autoridades entre os escribas muito tempo antes que ele fosse realmente acusado e quando foi a Jerusalém p ara a Páscoa final ele já era um herege marcado, talvez já excluído da participação nor mal na festa.8 Por conseguinte, quando os cristãos alegaram (Atos 4,11, etc.) k que Jesus era a pedra fundamental ou a pedra angular do Israel de ' Deus, inevitavelmente estavam proclamando a novidade radical, a ^ diferença essencial de sua fé, pois esta era a pedra verdadeira que ^ t os construtores autorizados de Israel tinham rejeitado categórica- / r~fttênfe. Oü o s peritos de Israel devem confessar um monstruoso ^ erro ou o edifício cristão deve ser identificado com alguma coisa \ nova e alienada de Israel. Esta é a pedra que se tornou a pedra de x toque: ou se colidia com ela e se a considerava um skándalon, ou se descobria nela o único fundamento de todo o edifício.9 P Esta novidade, porém, não se tornou evidente imediatamente e / a evolução dos escritos cristãos pode, em parte, ser traçada em ter\ mos de surgimento gradual desta verdadeira percepção. Aproxima damente ao tempo de Cristo, já havia sectários judaicos que, ávi-, ^ dos de separar-se da corrupção do judaísmo, se intitulavam de “a \J Comunidade do Novo Pacto”.10 É não há dúvida de que os cristãos 'r primitivos criam também que eles eram não menos israelitas do que um grupo reformado como este, uma espécie de irmandade religio8. E. STAUFFER, “Neuge Wege der Jesusforschung” in Wissenschaftliche Zeiíschrift der Martin-Luther-Universitát Halle-Wittenberg, 1958; Jesus: Gestalt und Geschichte, 1957; Jerusalem und Rom, 1957, capitulo 10. 9. Cf., também, R. SWAELES, ‘^L’Arrière-fond scripturaire de Matt. XXI. 43 et son lien avec Matt. XXI. 44” in J.M.T.S. 6.4, julTío tlè 1960, 3 lOss, o qual sustenta que (a) Mt 21,44 é autêntico; (b) os versículos 43 e 44 recordam Dn 2 e 7 (Teodócio); (c) o uso que Mateus faz de ethnos (LXX), em vez de laóa è devido a uma deliberada escolha: ele quer~õpor o novo ethnos ao laós que é tomado do Rei no. Este último ponto não é muito convincente, mas pode ser importante para o / ''“desenvolvimento do^conceito do jertíu in .genus* 10. Cf. J. JEREMTÁSi Jerusalem zu rZ eitJesu, 1958, 2* ed., II, 1 16ss, r ( se à “comunidade do novo pacto” de Damasco e chama a atenção para a existên cia, emTérOSâfêm, no século I, de um grugo purista de fariseus que se autodenomi navam “a Santa Comunidade de"Terusaíem’ , interpretando evidências no Talmud. “CF. GOPPELT, o.c., 72, n? 7, sobre o uso do termo heresia (háiresis) por grupos judaicos.
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sa (uma haburah11) dentro de Israel. Como vimos, seus próprios hábitos de adoração testemunham a respeito de sua suposição de que eles eram verdadeiramente israelitas. Contudo, a sua distinção era tão fundamental que sua expulsão do judaísmo seria apenas () uma questão de tempo. Versava sobre o problema vital do princí pio da autoridade. Para o judaísmo, a observância da Lei, a fideli dade à divina Sabedoria, deviam ser a prova última no dia do julga . mento;12 e, para a ala judaizante extremada do próprio cristianisi mo, Jesus era ápenas uma pedra do edifício: a Lei, a circuncisão e as demais coisas eram igualmente vitais; a “justificação”, isto é, o correto relacionamento com Deus, podia ocorrer tanto por meio da Lei como através da fé.13 Mas, para cristãos como Paulo e João, Jesus era a suprema e única prova: ele era a pedra angular do edifí' cio, a única porta do redil e a prova decisiva era fidelidade a ele e confiança nele. Ele era necessariamente ou a pedra angular (Is. ^ 2 8 , 1 6 ) ou o skándalon (Is 8,14). Por isso, era inevitável a tomada 'Tfe~poslçãõ. E inevitavelmente, portanto, ocorreu a rachadura. De forma semelhante aos metodistas na Inglaterra, os cristãos se vi ram espremidos pela lógica de sua posição, mesmo quando estavam relutantes. Um fator que deve ter acelerado o processo de separação foi a implicação da acusação na proclamação crista de que o rebelde condenado e destinado à execução pelos judeus era, de fato, o Rei divinamente escolhido de Israel e isto implicava que os peritos construtores tinham cometido o maior erro de todos os tempos. Por cima do temor dos saduceus conservadores de que os nazare nos podiam alterar o equilíbrio político, acima do escárnio dos ze"lõfás^ na ala oposta, aos revolucionários que se recusavam a revoltar-se,1* no topo da crença farisaíca de que eles eram os fornecedo res de perigosa heresia, esta implicação de acusação (unida ao completo ciúme do triunfo dos cristãos entre o povo comum) deve 11. Para o conceito de haburah, cf. J. JEREMIAS, loc. cit. 12. Cf. T.W.N.T., art. "sophia”, que cita Hen. aeth. 5,8; 91,10; cf. 32,3-6; 48,1; 49,(61,11); 90,35; Bar. Syr. 54,13; 4 Esdras 8,52; test. Levi 18. A 13. Cf. 4 Esdras 9,7; cf. 13,23; e C.H. D Q D D ,^ À l’arrière-plan_d’üm diajpf guc johannique” in Rev. d ’Hist. et de P h i7o s^ 7T 9 yf T 5 s í (espècüilmeritep^ 9, em \ '"que examina G1 2,15s). 14. Cf. GOPPELT, o.c.. 98.
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ter contribuído para desencadear um ressentimento e antagonismo ferozes.
■-> Nesta oposição parece ter havido graus de intensidade, que cor respondiam aos graus de provocação. Não há evidência, de qual quer espécie, no livro dos Atos, de que nos primeiros dias de Jeru salém os apóstolos tenham seguido a linha de que todos, exceto um ^pequeno “remanescente” ou núcleo dentro de Israel, sempre ti[ nham fracassado. Este era o argumento de Estêvão. É ele (cf. Mt 23,31) quem chama os filhos dos judeus de assassinos dos profetas (3,25s).15 Parece que foi o argumento de Estêvão que precipitou, a primeira perseguição séria. Depois disto, seguiram-se duas conseqüêricias. Uma foi que mesmo os apóstolos de Jerusalém começa-.., p r a m a ser considerados como suspeitos de infidelidade à essência) [ do jüàaísmo, razão porque Herodes Agripa I (41-44) foi capaz de " executar o apóstolo Tiago e, constatando que isto agradava os ju deus, atenta córitra a vida de Pedro (Atos 12,lss). A outra foi que entre aqueles que realmente foram dispersos por causa da persegui f'm- ção de Estêvão estavam alguns bastante corajosos para pregar o " acerca de Jesus aos não-judeus (Atos 11,20). Era necessário coragem, pois o ministério de Jesus virtualmente se limitara, com resoluta concentração, ao povo de Israel, ainda que o ensino de Jesus a respeito da rejeição de Israel e a vinda de estrangeiros de longe para o Reino (Mt 8,1 ls; Lc 13,28$), se não esquecido realmente no momento, podia ter sido elaborado para aplicar-se à diáspora judaica e não aos gentios (talvez cf. Jo 7,35). EráTuma corajosa aplicação dos argumentos de Estêvão, então unik dos à ânsia de compartilhar as boas novas, que determinaram o iní cio da missão aos gentios. E, uma vez iniciada, tinha de ser levada ^ em conta. Os líderes de Jerusalém enviaram Barnabé para fazer V uma investigação (Atos 1l,22ss). Ele deu a sua aprovação e foi em busca de Paulo para ajudar a consolidar aquilo que já tinha sido feito. Assim, a mente mais ilustre da Igreja primitiva foi incumbida do avanço do Evangelho além dos limites do judaísmo e, desta for ma, foi preparado o caminho para o próximo passo, que não foi, 15. GOPPELT,
O.C.,
78.
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contudo, tomado pelo próprio Paulo, isto é, a definição da Igreja ) \ como um tertium genus em face de judeus e gentios.16 ‘ ' ^ Portanto, a ruptura foi, sem dúvida, fixada por circunstâncias k ^políticas. Na desastrosa guerra de 66-70, os “nazarenos” (termo j aplicado naquele tempo aos judeu-cristãos) se recusaram a partici- j ‘' par do movimento de resistência judaica, a insurreição dos zelotas ' * (vide p. 56, nota 14). Se a crise do ano 40, a ameaça de Calígula P à santidade do templo, podia ter cerrado as posições do monoteis( mo mundial, a crise de 66 separou decisivamente os judeus dos cristãos. A Epístola aos Hebreus é, plausivelmente, desta época17 (embora seja concebível uma crise anterior; cf. início do capítulo IV), quando intensas pressões políticas e psicológicas devem ter sido exercidas sobre os judeu-cristãos, a fim de demonstrarem sua fidelidade à religião dos ancestrais e à nação, absorvendo diferen ças e ajudando a formar uma frente unida na amarga luta pela exis _tência. Contudo, é exatamente tal situação que faz emergir penosa mente o caráter distintivo do cristianismo. E o heróico e perspicaz, como o autor da Epístola aos Hebreus, sente de seu dever dizer: ^ Esta é a hora da crise eterna: voltar para o judaísmo (mesmo o ju’ daísmo de tipo liberal como o de Fílon) é abandonar o Crucificado e associar-se aos crucificadores.18 O único caminho em direção " à vida é o caminho para frente e não para trás: devemos sair a cam po, suportando a injúria de Cristo. E, acrescenta ele, não desviar do vosso propósito por causa dos escárnios ignorantes dos judeus e V pagãos, c[ue dizem (ambos igualmente) que os cristãos são ateus, U porque se separaram do sacerdócio, do altar, do sacrifício e do san* f' tuário: todas estas coisas nós temos e as temos em nível absoluto, ^ no céu (fJb 8,1; 10,19ss; 13,10ss). Somente nós somos cidadãos daquela Jerusalém verdadeira, a cidade que, como diz o salmista, é estável: 16. Ef 3,5ss pode afirmar que a inclusão dos gentios é uma divina revelação aos apóstolos e profetas de Deus (instrumentos da autoridade da Igreja Primitiva). Acerca da recusa do próprio Paulo de dar este passo, cf. W.C. VAN UNNIK, loc. *Tit. (p. 36, nç 1), 122 e nota 2, onde ele cita o Kérygma Petri ap. Ciem. Alex., ^ Sírom. 6,41 (fr. 2 em E. Klostermann, Apocrypha /, 1933, 15) para esta concepr [ ção do tertium genus. 17. Cf., especialmente, A. NAIRNE, The Epistle of Priesthood, 1913, e seu comentário à Epístola aos Hebreus na série Cambridge Greek Testament, 1918, embora esta nào seja a primeira exposição sobre tal ponto de vista. 18. C.H. DODD, loc. cit., 9 (n« 10), 10 (cf. Jo 8,37).
C
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Pois esperava a cidade com os seus fundamentos, cujo arquiteto e cons trutor é o próprio Deus (Hb 11,10);
que é aparentemente uma reminiscência de: Seus fundamentos (plura!) estão nos seus montes santos . . . (SI 86,1 ÍL X X / ; cf. G1 4,26 19; F1 3,20).
Assim, emerge, sucedendo à primitiva, uma suposição acrítica de que os cristãos fossem “naturalmente” judeus, uma apologètica polêmica e elaborada cuidadosamente para a Igreja de Cristo como a única verdadeira Igreja de Israel. Basicamente, isto envolve logi camente também a conclusão paradoxal de que as escrituras de Is ' rael não pertencem simplesmente, mas pertencem exclusivamente aos cristãos.20 Contudo, muito tempo antes de esta posição se tor nar explícita e antes que a guerra judaica tivesse precipitado a sepa ração em larga escala, os instrumentos do pensamento já tinham sido aguçados por Paulo21 em seus conflitos pessoais; e ele tinha 19. C. GORE, The Reconsíruction of Belief, 1926, 770, sustenta que neste versículo Paulo parece estar citando o SI 86,5, LXX, Méter Zion, êréi ánthropos. ^ 20. G. SCHRENK , art. "grqfo”, etc. in T.W.N.T. 1, 759, cita Rm 4,23s v (“Não foi escnto so para ele (Abraão), mas também para nós”), ICor 9,9-10 (“A~ caso Deus se preocupa com os bois? Nào é, sem dúvida, por causa de nós que ele - assim fala? Sim, por causa de nós é que isso foi esc rito. . . ”), 10,11 (“estas coi sas . . . foram escritas para a nossa instrução . . como indicadoras da conclu, são (na mente de Paulo) de que_os escritos do Antigo Testamento foram escritos | para a comunidade cristã. MasTsto, naturalmente, nao é a mesma coisa que alegar j V que pertencem exclusivamente aos cristãos (como TERTULIANO, De Praescr. Haeret. 19, argumenta que as escrituras (cristãs) pertencem apenas ao ortodoxo). A Epístola de Barnabé (4, etc.) é um exemplo mais ou menos antigo desta reivin dicação. 21. Cf. E. MEYER, Ursprung und A nfange des Christentums, III, 1923, 548, citado por S.G.F. BRANDON, The F ali o f Jerusalem, 1957, 2* ed., 12 (no entan{ to, esta é minha tradução): “É opinião geralmente sustentada que a destruição de Jerusalém, no ano 70, foi de importância decisiva para o desenvolvimento do cris tianismo e que foi isto que primeiro emancipou definitivamente ò cristianismo do J j judaísmo e dediciu a vitória do cristianismo gentilico. Mas os fatos nào compro vam este ponto de vista; antes, a libertação das amarras de Jerusalém ja tinha sido alcançada por Paulo. Os eventos ulteriores que ali aconteceram, naturalmente, /^despertaram o interesse dos cristãos e a destruição da cidade e do templo lhe pareV ceu o cumprimento de profecia e a justa pu nição de um povo obstinado; foi o esta belecimento da posição de que ós judeus tinham, de fato, interpretado mal a reve\ lação e as escrituras, que somente os cristãos eram o verdadeiro Israel, o povo es- , f colhido e os portadores da divina promessa. Na verdade, porém, isto não trouxe 1
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p começado a usar dois term os antitéticos: “judeus” para indicar '■4 aqueles que por características externas ou por nascimento eram / judeus; e ‘^Israel” para indicar a comunidade religiosa, o Povo de a V Deus como tal. O último é constituído por todos que, circuncida dos ou não, confiam em Jesus e são batizados em seu nome. Do anterior, só pertencem a “Israel” aqueles que estiverem na última categoria.22 Mais cedo ou mais tarde, como resultado desta distin-c ção, o termo “judeu” começou a ser usado, em certos escritos cris- \ A ã o s, qii ase exclusivamente para indicar o judaísmo antagonista e | J anticristâo e em parte alguma de modo mais notável do que no f Quarto Evangelho. João usa a palavra “Israel” apenas duas vezes (1,31; 3,10); Ç mas a expressão “os judeus” é émprègada freqüentemente e de ma\ neira notável, sempre como se fosse escrita por um não-judeu ou observador de fora, em beneficio de não-judeus ou observadores de ' fora. O escrito tem o cuidado de explicar que a Páscoa e a Festa dos Tabernáculos são festas “dos judeus” (6,4; 7,2; 11,55); os cos tumes judaicos são mencionados como se requeressem explanação ; (2,6; 19,31.40.42); os judeus são os adversários constantes de Je sus, exceto quando uma parte deles é expressamente distinguida como aqueles judeus que chegaram a crer nele (8,31; 11,45; 12,11). AÜma vez o próprio Jesus é descrito como um .judeu, mas só pela 0 mulher samaritana que distingue sua raça da dele (4,9). “À expres! são ‘os judeus', escreve J.A.T. Robinson, é encontrada preponde[ rantemente em contextos polêmicos: eles são representativos das trevas e da oposição através de todo o Evangelho”.23 A significa r ã o deste fato para a determinação do ambiente do Quarto Evan gelho é matéria que deve ser discutida alhures (capítulo V); mas, entrementes, notamos que este uso bem ilustra a terminologia da separação e corresponde ao uso paulino já descrito. Um outro /^qualquer significação para as reivindicações do cristianismo; estas tinham sidoes\ tabelecidas muito antes por Paulo”. Cf. CH ADW ICK, The Circle an d the Ellipse V(cf. n9 2). 22. Esta declaração foi contestada num importante artigo de D.W.B. RO BIN SON, “The Salvation of Israel in Romans 9-11” in Tke Re/ormed Theological Review, Austrália, 26, 1967, 81ss. 23. J.A.T. ROBINSON, “The Destination and Purpose of St. John’s Gospel” in JJJ.T.S. 6.2, janeiro de 1960, 118. Aqui também é relevante a discussão de C.H. Dodd já referida acima. Cf. Goppelt, o.c., I O I s .
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exemplo da mesma tendência, digno de ser mencionado aqui, é Mt 28,15, em que a falsa história do roubo do corpo do Senhor é des crita como corrente entre os judeus. Esta é a única ocorrência deste uso em Mateus, embora em 4,23 Jesus seja descrito como pregan do “em suas sinagogas”, como se o narrador se sentisse estranho ao judaísmo. Contudo, se tais escritos testemunham acerca da agudeza da ; consciência de separação, çomo os cristãos a explicaram e a torna ram inteligível? Tal situação era prevista nas escrituras? Podia ela se ajustar aos planos de Deus? Havia muitos textos acerca da en trada dos gentios para Israel e que trariam sua riqueza e glória ■ para o templo (Is 60, etc.). Mas não se tratava de prosélitos? E não o /"'■deviam os convertidos de proveniência gentílica, portanto, ser cirv cuncidados e feitos verdadeiros judeus? A lógica da questão é bas tante óbvia. Para se assegurar o ingresso no “Israel de Deus”, o verdadeiro Israel, que devia ser no mínimo exigido? Certamente a circuncisão e tudo mais que fosse necessário para a formação de f um completo prosélito, em acréscimo à confissão distintamente ; cristã de Jesus de Nazaré como o Rei de Israel. Se os cristãos eram verdadeiros judeus, distintos dos outros só porque identificavam ’ Jesus com o Messias, certamente era esta a lógica da situação. A Igreja como um todo respondeu “não” e nisso enunciava deO cispes cristológicas de longo alcance. Dentro do judaísmo, o rabino Josué ben Hananiah tinha alegado que só o batismo era suficiente ^ para fazer um prosélito de um gentio do sexo masculino; mas mesí mo ele nâo negava que a circuncisão era um dever; e a posição or todoxa, liderada por Éiiezer ben Hircano, tinha prevalecido.24 Mas Ç o debate cristão não se articulava simplesmente em tomo da alter nativa “liberalismo” versus “rigorismo”, nem contava com uma in terpretação interiorizante e espiritual da circuncisão (embora Paulo faça alusão neste sentido em Rm 2,28s): o debate era (implicita mente) uma controvérsia cristológica. E Paulo é o defensor mais completo e mais explicito não do liberalismo, mas de elevada cristologia. Foi provavelmente sua influência, também no mundo cris24. Cf. T.B., Yebamoth, 46a, citado por J. KLAUSNER, From Jesus to Paul j (trad. inglesa, 1946) e HJ. SCHOEPS, Paulus, 1959, 60 e D. DAU BE, The New ( Testament and Rabbinic Judaism, 1956, 109, cuja formulação foi, em parte, co piada aqui.
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tão, que se tomou decisiva para a questão. Seu argumento era o se guinte: a forma característica de iniciação na comunidade cristã como tal é através do batismo em nome de Jesus. Isto significa ser incorporado no Messias. Segundo Paulo, ele envolvia realmente o “desvestimento” de todo o “corpo”. Quando Jesus morreu, “desvestiu-se”, separou-se dele, entregou o seu corpo; obediente a Deus, entregou seu próprio ser à morte. E ser batizado “em Cristo” signi/ fica estar identificado com aquele ato de total entrega; significa, pois morte e sepultamento em Cristo: /Q Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão nào feita por mão de ho mem, mas pelo desvestimento da vossa natureza carnal: essa é a circunci são de Cristo. Fostes sepultados com ele no batismo, no qual também com ele ressuscitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos ^ mortos. Vós estáveis mortos pelas vossas faltas e pela incírcuncisão da vossa carne e ele vos vivificou juntamente com Cristo. Ele nos perdoou todas as nossas faltas: apagou, em detrimento das ordens legais, o título de divida que existia contra nós; e o suprimiu, pregando-o na cruz, na qual ele despojou os Principados e as Autoridades, expondo-os em espetá culos, levando-os em cortejo triunfal (Cl 2,1115, cf. comentários”).
^ Mas a circuncisão era o despojamento simbólico de apenas ( uma pequena parte do corpo. O despojamento total de Cristo, compartilhado pelo cristão no batismo, era assim o termo maior q s^çmçjncluía o menor (cf. Jo 7,23, que contrasta a circuncisão com a’ saúde de todo o corpo). Conseqüentemente, o_batismo incluía ee vj: ~ tava a circuncisão; e exigir a circuncisão em acréscimo teria sido Ç declarar a insuficiência e a natureza não inclusiva do batismo. Além disso, incorporar-se no Messias, como se podia chegar mais perto do cerne de Israel? Acrescentar qualquer coisa ao batismo te^ r i a sido, portanto, também declarar a insuficiência de Cristo (Gl 2,5; 5,4). Em resumo, se Jesus tivesse sido apenas um simples in divíduo e sua morte apenas um nobre martírio, as coisas podiam ter sido diferentes. A veemente recusa paulina de exigir a circunciÇ são em acréscimo ao batismo implica uma avaliação d a pessoa e ' obra de Cristo que as considera como completas e absolutas.26 25. A critica da exegese representada pelo texto deve ser encontrada em E. SCHWEIZER, art. “sárx" in T.W.N.T., 7,137, n? 292. 26. Cf. JUSTINO, Tripho 47,1-4.
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Esta linha de argumentação envolvia o ponto de vista de Paulo de que Abraão, não Moisés, é o verdadeiro símbolo de Israel. O "grande manifesto paulino sobre este assunto é a Epístola aos Ro manos, que, sem dúvida, reúne e ordena os resultados de prolonga da e ampla controvérsia. Que a controvérsia sobre o sábado (que, naturalmente, deixou claros traços nos Evangelhos; cf. o lógion de Beza, Lc 6,5 /D/, em particular, considerado como uma “réplica” polêmica a Nm 15,32ss27) não aparece em Atos 15, nem mesmo absolutamente em primeiro plano nas epístolas paulinas, provavel mente deve ser devido ao fato de que, considerando que a circunci- i são teria sido praticada pelos gentios convertidos, a observância do ' sábado simplesmente não o era. A não ser que eles viessem para dentro do gueto judaico, onde havia uma vida ordenada, adaptada á cessação do trabalho no sábado, eles não poderiam ganhar a vida ou subsistir enquanto observassem o sábado. Se eles fossem escra-"\ vos, os senhores gentios não os dispensariam do trabalho; e, se fos- * sem independentes e ganhassem por si a própria vida, teriam ainda cje prosseguir com seus afazeres no sábado. Sem dúvida, foi porque ;a circuncisão era uma possibilidade prática para os cristãos gentios \ e ò sábado não o era que ele se tornou o centro da controvérsia.28 , Em acréscimo ao grande argumento cristológico contra a exi gência da circuncisão, houve também outras considerações. Desde que interessava apenas às pessoas do sexo masculino, ela estava >. sujeita a tornar-se cada vez menos significativa em comunidades*] em que as mulheres estavam se tornando cada vez mais importan-/ 27. O Código D (Codex Bezae), em lugar de Lc 6,5, que o transfere para se guir o v. 10, tem o seguinte: “N o mesmo dia, vendo alguém trabalhando no dia de sábado, disse-lhe: ‘Homem, se tu sabes o que estás fazendo, tu és abençoado; mas se não sabes, és maldito e um transgressor da lei’ ”. Se o significado do lógion de Beza é este, é uma deliberada inversão .de Nm 15,32ss, é comparável á alteração deliberada dos dias de jejum em D id 8 (a fim de não ser como os “hipócritas”); outro paralelo possivel pode ser 1 Pd 3,19ss, se ele é deliberadamente dirigido con tra as criticas da Mishnah à geração do dilúvio (cf. Mishnah, Sanh. 10,3; Tesí. Benj. 10,6; Irin., Adv. haer. I, 27,3; Epiph., Pan. Haer. 42,4 (Strack-Billerbeck 1, 964; IV, 11855s). Cf. tam bé m_J.J ER EMI A S. Jesus ’ P rorppe fo the Nations (trad. inglesa, 1958); e Eldon J. EPP, “The Ignorance Motif in Acts and Anti-judaic J Tendencies in Co3ex'Bezae” H .T R . 55, 1962, 51ss. 28. Para a proeminêhcia dada à lei sabática n^seita damascena, cf. E. LOHSE, art. “sábbaton", etc. in T.W.N.T. 7,9s. Curiosamente não se faz menção dele na Regra da Comunidade (1QS): cf. ibid. nota 61. ....
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tes do que nas comunidades judaicas não-cristãs.29 Também, além de ser, para adultos, um passo drástico, estava aberta a feroz difaPmação e desprezo e, portanto, criaria uma grande separação entre ) o convertido e seus amigos pagãos:30 era justo, então, exigi-la? E, finalmente, e mais sério ainda, ela implicava a obrigação de obser var toda a lei e submetia o prosélito à influência das autoridades ju^~3a]cas, que eram antagônicas ao cristianismo. Podia, por corisèguinte, proporcionar uma via de acesso passando diretamente do cristianismo para dentro do judaísmo anticristão. Em Atos 15,10, ^ apresenta-se Pedro argumentando que até os próprios judeus não V podiam observar a Lei e que, então, a Lei tinha fracassado em pro ver-lhes um meio de salvação (cf. G1 6,13). Agora que, mediante a fé em Jesus, um novo meio de salvação era oferecido, por que opri*} mir os convertidos com esta obrigação adicional e desnecessária? Cristo tinha aberto um novo caminho para Israel, que trazia liber dade e poder, não frustração. O Concilio de Jerusalém foi persuadido, portanto, (segundo a ( narrativa de Atos 15) de que, enquanto que o chamado dos gentios r para fazerem parte da comunidade estava de acordo com os desíg nios de Deus (A m _ 9 ,lls /L X X / e Is 45,21 eram citados para a fundamentação), impor a circuncisão sobre eles seria errado. Conr , tudo, estabeleceram certas normas a fim de assegurar um modus vi\ vendi com os cristãos judeus, a saber, evitar a “contaminação” ri tual com a idolatria, evitar o uso de carne com sangue (que para os "judeus era ritualmente abominável) e a fornicaçào. A questão de o quanto isto estava baseado nas leis de Noé é interessante e adequa damente discutida pelos comentaristas (cf., p. ex., C.S.C. Williams, in loc. e a bibliografia ali citada), mas não é necessário pararmos aqui. É provável que, rapidamente, a cláusula do alimento ritual te nha se transform ado em letra morta. Quanto mais o cristianismo se __
29. Assim, H.H. ROWLEY, citado por A. Gilmore em Christian Bapíism, 1959, 24, e E.T. 64,1 952-53, 362; 65, 1953-54, 158; c D. DAU BE, The New Tes tament and Rabbinic Judaism, 1956, 106.113. 30. Cf. R. MEYER, art. “'peritémno ", etc. in T.WJj.T. 6,78 e as referências feitas ali. 0$ “tementes a Deus”, gentios que admiravam o judaísmo, mas que nào tinham dado o passo para se tomarem prosélitos, parecem ter constituído um eampo favorável para a evangelização crista. Pode ser que uma das razões pelas ^ q u a is evitassem ser plenamente judeus era a objeção à circuncisão.
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/'"''afastava do judaísmo, menos necessária se tornava sua adaptação \ j ortodoxos. Como Com o assi ' a maneira de participar da mesa dos judeus ortodoxos. nala Goppelt (p. ex., o.c., 96), parece que a mudança ocorreu entre os escritos aos Gálatas e aos Romanos. Em Gálatas, há necessida de de tenaz defesa da liberdade cristã contra as reivindicações ju^ daizantes; daiza ntes; mas, ao tempo temp o em que Rm 14 foi foi escrito, os escrúpulos do judeu jude u cristão (como uma um a pessoa “frac “ fraca”) a”) tinham de ser protegi: protegi: ' dos de pesada pesa da critic critica. a. Ro Roma manos nos (como demonstra dem onstra Goppelt, o.c., 124s 12 4s)) é o verdadeiro centro ce ntro da d a história da d a resposta respos ta da Igreja primiprimi- [ / tiva a esta questão do cristianismo frente ao judaísmo. N o e n tan ta n to, to , as o u tra tr a s d u a s cláu cl áusu sula las, s, ge gera ralm lmen ente te inte in terp rpre reta tadd as ' N como o afastamento da idolatria e da imoralidade sexual, eram exi gências religiosas e éticas básicas, que, naturalmente, tinham im po p o r tân tâ n c ia pe perm rman anen ente te.. É dign di gnoo de n o ta qu quee (Gop (G oppe pelt, lt, o.c., 125 s. 13 8) n a co corresp rrespond ondênc ência ia com os coríntios e colossenses n ã o é o judaísmo judaísm o estritamente estritamente legal legalis ista ta,, mas m as j n t e s o sincreti sincretismo smo que é o objeto de ataque. Na verdade, em Corinto, não havia tendência ^ ? para par a o judaísmo, ate ate aonde vai vai nossa ev evid idên ênci cia. a. Portanto, o anta g o n i s m o judaico empurrand empurrando, o, de de um um lado lado,, e as con conver versõ sões es dos gen gen tios pressionando, de outro, levaram à definição que a Igreja fez de si como com o o verdadeiro verdadeiro Israel, Israel, porque batizada batiza da no Messias, Messias, antes po por r que circuncidada na Lei de Moisés. É mais natural supor que, quando Paulo deliberadamente circuncidou Timóteo (Atos 16,3), f neste neste caso, foi foi porque a circuncis circuncisão ão não n ão era considerada uma um a coni ditio sine qua non pelo cristianismo. Era apenas “para fazer dele ^ um honesto honesto judeu jud eu”, ”, a fim fim de de que ele ele pudesse pudesse pregar aos judeus ( como com o um dél délés és.. Se Pauío se opô opôss à circuncisão de Tito (se isso é o aquilo que G1 2,3 significa), foi porque, neste caso, a implicaçao, na verdade, teria sido que a circuncisão se tornara conditió sine qua ~ non. É, portanto, contra o background da da gradual tomada tomad a de cons[ ciência do cristianismo cristianism o que muitos escritos do Novo Nov o Testam Te stamen ento to se : torna tor nam m intelígí intelígíveis veis;; e que a verdad ver dadeira eira origem de certas ce rtas secções das cartas de Paulo e de um documento inteiro como a Epístola aos Hebreus pode ser traçada neste processo com verossimilhança. Ainda Aind a mais que a Epístola aos Efésios Efésios,, qualquer qualq uer que que seja seja o seu au au tor, é interpretada corretamente como interessada em mostrar que a Igreja Cristã, na verdade, mantém uma linha de continuidade ...
3 - As origens do Novo Testamento
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í'^com o judaísmo e, ao mesmo tempo, não herdou as limitações do \ judaísm o, Esta E sta carta ca rta é (como se tem afirmado afirm ado com exatidão)31 exatidão)31 uma um a esplêndida apologia em face do “escândalo da particularidade”: sua reivindicação de que a Igreja sempre existiu na mente de Deus que tem uma dimensão cósmica e abrange a raça humana inteira / é uma um a resposta ao questionador (ou opositor) que vê nela apenas um grupo circunscrito de pessoas e limitado no tempo e no espaço. Assim, é ao judaísmo não-cristão como um todo que as bem co nhecidas palavras de Isaías devem ser aplicadas: Ele me disse: “Vai, e dize a este povo: — Escuta Escutaii bem bem, mas mas sem com compreen preende der; r; olhai, sim, mas sem entender”. Embota a mente deste povo, entorpece-lhe o ouvido, e fecha-lhe os olhos; de modo que com os olhos nào veja, nem ouça com os ouvidos, nem entenda com a mente, e, convertendo-se, seja curado”.
(Is 6,9s; cf. cf. Mc 4,12 e paralelo par alelos; s; Jo 12,40; 12,40; Atos Ato s 28,26; 28,2 6; Rm R m 11,8).3 11,8).322 Agora podemos, então, abordar um aspecto particular do pro cesso que descrevemos até aqui: o uso que a Igreja cristã fez das escrituras judaicas.
31. Cf. Cf. H. CH AD W ÍCK, ÍC K, “Die “D ie Absicht des Epheserb Epheserbrief riefes” es” in Z.N.T.W. Z.N.T.W . 51, 1960. 32. Há uma interessan interessante te discussão dos do s vários estágios estág ios da apologética apolog ética cristã cristã em Bamabas LINDARS, New N ew Testa Te stam m ent en t Apo A polo loge getic tic,, 1961; vide o exame a fundo da questão em J. GNILKA, Die D ie Vers Ve rstoc tocku kung ng Isra Is rael el,, 1961.
CAPÍTULO IV
A IGREJA TOMA POSIÇÃO (2) 0 uso uso das Escrituras judaicas juda icas
Dentre os escritos que foram examinados, a Epístola aos Hebreus é claramente um para o qual é possivel postular uma si tuação histórica especifica e tal situação, como tem sido sugerido, pode po de ser se r e n c o n tra tr a d a n o viole vi olento nto na naci cion onal alism ismoo jud ju d a ico ic o , qu quee o inicio da guerra judaica jud aica (ano (an o 66) precipito precipitou; u; ou talvez talvez umã ou tra situação independente desta crise, quando'os cristãos de origem judaica fo ram perseguidos: a sinagoga perseguida, que (como é sugerido abaixo, p. 91) pode "e "est star ar implícit implícitaa ha h a Epístola aos Heb Hebreus, reus, po po dia ter começado a sofrer imediatamente após a perseguição pro- j/ j/ movida por Nero. Pelo que respeita ao nascimento de grande parte de outros es critos do Novo Testamento, contudo (e, na verdade, pelo que diz respeito aos antecedentes da Epístola aos Hebreus), é natural pos tular um prolongado processo de de gestação. Portanto, Porta nto, para pa ra citar um um exemplo, as formulações dos argumentos de são Paulo em suas epístolas representam, sem dúvida, o resultado de muitos debates, préd pr édic icas as e inst in stru ruçõ ções es qu quee pre pr e cede ce dera ram m e stas st as cris cr ista taliz lizaç açõe ões. s. U m do doss méritos da “critica das formas” que nos tem forçado a aguçar a vista, embora tenhamos geralmente iluminação inadequada, é ver estes estágios anteriores do processo de formação das escrituras cristãs; e o livro dos Atos nos oferece algumas imagens suficiente mente convincentes do processo. Sua última cena (28,23ss) descreA | ve um intenso debate entre Paulo e representantes represen tantes dos judeus judeu s em / Roma. Com as escrituras na mão, eles bateram na mesma tecla desde a manhã até o anoitecer e isto é apenas uma descrição mais ampla daquilo que está levemente esboçado nos capítulos prece-
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dentes tam t ambém bém (13 ( 13,16ss; ,16ss; 14,1 ss; 17,2ss 17,2ss.. 11 11;; 18,4.11; 19 19,8s ,8ss). s). A co cos s tumados tum ados a pensar a respeit respeitoo de Paulo como com o o apóstolo dos gentios, gentios, p nós nos esquecemos tão facilmente de seu amplo ministério na si[ nago nagoga ga e da d a heróica coragem co ragem que isto dev devee ter exi exigi gido do.. Â alusão, alusão , de passagem, em 2Cor 11,24 às cinco ocasiões em que ele recebeu a pena judaica da flagelação (cf. Dt 25,3, onde os quarenta golpes v são o máxi m áximo mo e a Mishna Mishnah, h, M a k . 3,10, onde isto é interpretado como significando trinta e nove) revela quão freqüentemente ele deve ter entrado no âmbito da jurisdição da sinagoga. Incontestavelmente, as infrações pelas quais, em M a k . 3,10, se decretava a flagelação dificilmente são relevantes, exceto que um doutor da lei podi po diaa ser flage fla gelad ladoo em vez de sofr so frer er a e x c omu om u nh nhãã o (cf. S trac tr ackkBillerbeck 3,530 e 4,293ss). Contudo, em Atos 5,40, os apóstolos ( são espancados espancado s (dêirantes, e cf. 22,19), e parece razoável concluir a que, de qualquer qualquer maneira nos dias dias de são Paulo, a pena era imposta mais amplamente. De qualquer modo, não há dúvida acerca da ex tensão do ministé ministéri rioo ao âmbito do judaísm juda ísmo.1 o.1 O esquema normal dos fatos provavelmente seja aquele descrito em Atos 13,15ss: pri meiro, uma audição cortês, mas depois (vv. 44ss) um exame mais pro p rofu funn d o d a s impl im plic icaç açõe õess deste des te en ensi sino no,, a c o m p a n h a d o de ciúme ciú me,, ressentiment ressentimentoo e uma reação violentament violentamentee antagonista. H á aqui es pa p a ç o suficie sufi ciente nte p a r a o desen des envo volvi lvime ment ntoo de um d e b a te sobr so bree as es es crituras. Atos 15 pinta um quadro (talvez estilizado) de uma discussão escrituristica dentro da Igreja. Aqui está um círculo de debates mais amplo do que o círculo paulino, ainda com as escrituras na mão, acerca acerc a das condições de filiação filiação dos genti gentios os ao Israel de Cris( to e o eco sinistro do debate, ainda não concluído, é ouvido no capítulo capítulo 21. 21. Grande Gran de parte pa rte da d a história história da explicação que a Igreja dá de si mesma tem de ser deduzida da tentativa de ler nas entrelinhas do Novo Testamento, sendo este o produto final do processo oral. , -Mais tarde, veremos como as parábolas do Evangelho mostram (w traços de tal controvérsia e como o Quarto Evangelho contém po lêmica de cunho semelhante. Mas, no momento, estamos particu la r m e n te mais mais inter interess essados ados no uso que se fez das escrituras escrituras judai juda i cas nestas discussões e devemos apenas fazer agora uma pausa 1. N ão se poderia poderia dar o caso que.2C que .2Cor or 3,4ss 3,4 ss tenha tenha sido elaborado a part partii do conteúdo conteú do de um audacioso audacio so sermão de sinagoga? ~
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pa p a r a n o tar, ta r, de pa pass ssag agem em,, qu quee n atur at uraa lme lm e nte nt e se serviu ser viu de u m a g ran ra n de quantidade de outros materiais nas referidas discussões. A con trovérsia sobre a lei sabática, por exemplo, seria conduzida, sem dúvida, não apenas pela referência às escrituras, mas também pela recordação recorda ção de evento eventoss e ditos da vida de Jesus. Jesus. Foi exatamente exatam ente as sim (podemos presumir) que muitas secçÕes de nossos Evangelhos, inicialmente, tomaram forma. Cristãos de um guet gu eto, o, vivendo ombro a ombro om bro com judeus não-cristãos, não-cristãos, diariamente diariamente seri seriam am indu zidos à controvérsia sobre seu modo de proceder não-ortodoxo, sobre seus novos padrões morais de referência, sobre sua escala de valores alterada. Que seria mais natural do que relembrar e recitar tradições (ou, se se tratava de testemunhas oculares, reminiscências pessoais) sobre Jesus curando no dia de sábado ou pronunciandose sobre o propósito final do sábado? Como podiam, da mesma forma, evitar a recordação dos ditos de Jesus acerca do pur p uroo e do impu im puro ro (gên (g êner eros os alime ali mentí ntício cios, s, n o rma rm a s sobr so bree a lepr le praa e a s sim por diante)? Paralelamente, os cristãos, nos grandes centros pag pa g ão ãos, s, teri te riaa m seus seu s prob pr oble lem m as espe es pecíf cífico icos: s: seria se riam m c o nfro nf ront ntad adoo s com difíceis decisões acerca do que constituía a idolatria, que ex tensão se daria ao problema da conduta sexual, em que medida as instituições pagas podiam ser “batizadas” para poderem vir a ser usadas pelos cristãos. Podiam os cristãos judeus e cristãos gentios y confraternizar-se e participar de um ágape à mesma mesa? Não é difícil imaginar como unidades independentes de instruções cristãs vieram a ser formadas, primeiro oralmente, depois em folhas sepa- } radas ou folhetos, freqüentemente de formas diferentes ainda que relacionadas, de acordo com os contextos em que eram emprega das. Portanto, quando João Marcos (por exemplo) aguçou sua pena de junco jun co e a mergulhou mergulhou no tinteiro tinteiro para pa ra escrever, escrever, j á tinha à sua dis dis pos p osiç ição ão u m a co cons nsid iderá eráve vell tra tr a d içã iç ã o de p reg re g a ção çã o c r istã is tã e, possive pos sivell- \ mente, mente,,, de escritos cristãos,2 cristão s,2 da au autor toria ia de Pedr P edroo e dé muitos mu itos ou outro tross ) (modelos reconhecidos de argumentação e exortação, de defesa e H ist.t. Eccl Ec cl.. 3,39) her2. Vale a pena indagar se a célebre frase (EUSÉBIO (EUS ÉBIO,, His meneuíés Pètrou guenómenos significa, nào que Marcos acompanhava Pedro como seu intérprete oral, mas que, no ato de escrever em em grego, ele ele se tornou o in térprete daquilo que Pedro tinha escrito em aramaico. Cf. JJ J J f .T .S . 2.2, novembro / de 1955, 115. ^
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ataque, de instrução instruçã o e apelo apelo), ), dentre os quais ele ele podia selecionar o material narrativo e os ditos. Os escritores cristãos mais antigos, prova pro vave velm lmen ente te,, já j á eram er am he herd rdei eiro ross de um co cons nside iderá ráve vell co corr p o de t r a dição. A par disto, podemos considerar agora especialmente como as escrituras judaicas eram usadas pelos primitivos cristãos. “Jesus é o Messias!” proclamavam os cristãos. Mas o que no mundo tinha induzido a reconhecer em Jesus de Nazaré o Rei de Israel e como esperavam eles eles defende defenderr tal asserção? P ara ar a os judeus judeus ortodoxos ortod oxos de Jerusalém (e especialmente, presume-se, aqueles que nunca tinham visto e ouvido Jesus pessoalmente), ele devia devia parecer parece r um profeta prof eta Ç ' visto ■v pop popula ularr que tinha tin ha ensinad ens inadoo do doutr utrina inass perigosamente perigosam ente subversivas, tais como destruir a própria estrutura estru tura do judaísm o rabinico; que ti nha feito até algumas declarações maníacas de que mantinha rela cionamento singular com Deus; que tinha sido talvez um mago;7 e que, por fim, tinha sido citado em jüizò pela Suprema Corte Judai j ca, ca , a qu qual al co conse nseguiu guiu qu quee fosse fos se ex exec ecut utad adoo igno ig nom m inios ini osam amen ente te,, atra at ra-1 vés da degradante degradante tortura da cruci crucific ficação ação,, como um rebe rebeld ldee contra a autoridade do Imperador.4 Para a lei judaica, um perigoso falso /■”' 3. Para a conce co ncepçã pçãoo de Jesus como com o um perigoso perigos o falso fals o mestre, cf. E. L STAUFFER, o.c., (capítulo III, III, n. n. 8). Hâ passage pass agens ns no Talmud e e na literatura judaica tardia que fazem referências a Jesus. Os textos talmúdicos são editados por ^ G. DÀX MÀ N, em em apênd apêndic icee ã obra obra de H. H. LAIBLE, LAIBLE, Jesu Je suss Chri Ch rist stus us im Thal Th almu mud, d, V 7 ~ Í891; os o s textos textos judaicos tard tardio ioss estão em S. KR AU S, Da D a s L eben eb en Jesu Je su nach jijiT -' Je suss o f Naza Na zare reth th,, trad. in \ dischen Quellen, 1902; cf. também J. KLAUSNER, Jesu glesa, 1929. “Klausner” de T.W. MANSON in JJJL.B. 27, 1942^3, onde o as sunto é discutido brevemente» 330: “teve êxito ao destilar o suficiente (destas fon^ tes) para fazer um breve breve parágrafo parágrafo narrativo”, narrativo”, que contém as a s afirmações afirm ações “que (Je sus) ‘praticava a magia’ (isto é» operava milagres, como era comum naqueles dias) O e enganava enganava e desencaminhav desencaminhavaa a Israel Israel”. ”. ..... ............. 4. O s detalhes detalhes da acusaçã acu saçãoo contra Jesus em seu julgamento diante diante da Corte Judaica são amplamente debatidos. Entre as discussões mais recentes, cf. E. _ L-OHSE, ai*, "synédrion" in T.W.N.T. 7 e P. WINTER, On the T rial o f Jesu Jesus, s,.. A 1961. Quafquer que seja seja o grau de ceticism ceti cismoo percebido nos relatos deste fato no i N ov ovoo Testamento, a acusa ção tentada diante diante da Corte Romana Rom ana jpar jparec ecee relativa relativa mente mente irrefu irrefutáv tável. el. Lohse eW íriterln írite rlnipa ipagft gftam am a hístoricida hístoricidade de do relato' relato' ffõ ffõ 'Nov 'N ovoo Testamento acerca da acusação acus ação de blasfêmia blasfêmia é sustentam sustentam que ele ele reflet refletee o conflito c onflito posterior entre a Igreja e a Sinagoga ou o expediente para alegar a responsabilida d e de Roma. Nã Nãoo é concebí concebível vel que que Jesus, Jesus, na na verda verdade, de, tenha tenha sido condenado, na Corte Judaica, por blasfêmia, visto ter dito dito que era era “o Filho do Homem H omem vindo com as nuvens” (uma figura gloriosa e sobrenatural), mas que os judeus preferiram não ■ ^ L executá-lo por lapidação (com (co m o podia ter ter sido possível, de acordo acord o com alguns es- , pecíálístas) para transferir a responsabilidade e levá-lo à crucificação pelos roma nos, alegando traição?
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mestre mestre e herético; herético; para p ara a le lei romana, rom ana, culpado de traição, desonrado de sonrado e tratado exemplarmente logo, como se poderia conceber e argu mentar que Jesus de Nazaré era o Ungido do Senhor? Parece que, nos primeiros tempos, as convicções dos cristãos tinham de ser expressas, na realidade, menos como afirmações a respeito daquilo que Jesus era do que como evidências acerca do que Deus De us tinha feito feito nel nelee e por ele.5 ele.5 Deu Deuss o tinha ungido com o Espírito, diziam eles, isto é, Jesus tinha recebido o equivalente espi ritual de um u m a cerimônia de entroni entr onizaç zação ão ou, pel peloo menos, uma espé cie de comissionamento comissionam ento especial, especial, como com o o locutor das palavras palavr as de Is 61,1: “O Espirito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me un unggiu para para pre prega garr boa boass no nova vass . . Aqueles les qu que eram eram tes testtemu emu nhas oculares podiam descrever o batismo de Jesus exatamente como um “batismo espiritual” (o SI 2 /“Tu és meu filho’7 era uma pro p rocc lam la m a ção çã o m essi es siân ânic icaa e algo alg o seme se melha lhante nte e sta st a v a asso as soci ciaa do a o b a tismo de Jesus, mesmo se realmente fosse mais reminiscência do servo sofredor); ele eless podiam até ter ouvido o próprio Jesus aplican aplican do Is 61 ao seu ministério (Lc 4,18; cf. Atos 10,38). Além disso, os atos excepcionais de poder que acompanhavam seu ministério eram uma um a evidência evidência de que “ Deus estava estav a com ele” ele” (Atos 10 10,3 ,388). O próp pr ópri rioo Jesu Je sus, s, q u an andd o inte in terr rrog ogaa do pelos pel os discíp dis cípul ulos os de J o ã o B atis at ista ta se ele ele era aqu aquele ele que estavam esperando, apo apontara ntara pa para ra estes even even tos e também os associara com tais passagens de Isaías (Is 35,5; 61,1; Mt ll,2ss; Lc 7,18ss). Além disso, na controvérsia com reli giosos intelectuais de Jerusalém, Jesus (assim recordavam os cris tãos) tinha citado o SI 110, que aparentemente se referia a um per( sonagem real (e (e sacerdotal) sace rdotal),, de dignidade até superior à do próprio pró prio } Davi D avi (Mc 12,35ss 12,35ss). ). Tais eram as passagens passag ens para pa ra as quais mais na na turalmente se apelava, para identificar nas escrituras, por assim di zer, o divino imprimatur em em Jesus de Nazaré durante sua vida, es crituras que, segundo a tradição, Jesus mesmo relacionou consigo. Todavia, houve muito m uito mais do que o seu ministéri ministérioo terreno. D e pois po is de sua su a m o rte, rt e, De Deus us nã nãoo pe perm rmiti itiuu qu quee o seu c o r p o sem vida vi da se 5. “ Para Para a Igreja Prim Primiti itiva va** Jesus Cristo Cris to não nã o era uma idéia, mas ma s uma so E rnied iedrig rigun ungg und un d Erhô E rhôhu hung ng bei be i Jesu Je sus, s, und un d seinert v de eventos”: E. SCHWEIZER, SCHW EIZER, Ern Nac N achf hfol olge gem m , 1955, 96. Mas, corretamente, ele aduz que os eventos eram (até os significativos) todos interpretados e dependiam, quanto ao seii significado, da in terpretação crista.
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^ corrompesse (exatamente (exatamente como com o estava estav a no SI 16 16: “ . .. . . nâo nâ o deixarás perm itirás rás que o teu teu Santo experiment experimentee f f minha alma no H ades nem permiti , ■ a corrupção” corrupç ão” , Atos Atos 2,27 2,27); ); el ele tinha tinha ressusci ressuscitado tado da tumba para uma um a posição de suprema suprem a honr ho nraa (outra (ou tra vez o SI SI 110!) 110!).. Em vista des tes eventos irrefutáveis (e os cristãos estavam convencidos de sua realidade, a despeito de seu próprio desespero e perda total do en corajamento, pela inevitável evidência de seus olhos), não estava claro que eles eles estavam vivendo em meio ao divin divinoo cumprimento cump rimento de todas as esperanças de Israel?6 Os cristãos começaram de Jesus, isto é, de seu conhecido caráter e atos poderosos e de seus ditos e de sua morte e ressurreição; e com isto eles foram ás escrituras e descobriram que o com portamento portam ento de Deus Deu s para p ara com o seu seu povo e suas intenções para com eles ali refletidas, de fato, assumiam um novo significa significado do à luz luz destes acontecimentos aco ntecimentos recentes. Cedo ou ta r de, isto devia conduzir, através de uma definição daquilo que Deus tinha feito, a algo semelhante a uma definição de quem era Jesus. Primeiro, devemos observar mais de perto as circunstâncias que influenciaram o primitivo uso cristão das escrituras. Três fato P rim m eiro ei ro,, o judaísmo pré-cristao res principais são identificados. Pri (usando parcialmente tradições gentílicas) já tinha desenvolvido certos métodos de interpretar as escrituras. Em E m segu se gund ndoo lugar, lug ar, o pró p rópp rio ri o Jesu Je sus, s, d u ran ra n te o seu minis mi nistér tério, io, tin ti n h a empr em pree ga gado do as e scri sc ritu tu ras com grande originalidade e, contudo, com uma compreensão dos métodos tradicionais. E, em terceiro lugar, os primitivos cris tãos estavam cônscios de que a voz da profecia inspirada, há longo tempo silenciosa, tinha começado uma vez mais a se fazer audível; po p o r e s sa r a z ã o , eles u s a r a m n ã o só as esc es c ritu ri tura rass co com m o tam ta m bé bém m as memórias e tradições das palavras de Jesus com liberdade criadora daquilo que era inspirado. Este terceiro fator, na realidade, se con funde de maneira surpreendente com o segundo; pois o Jesus histó rico, cuja exegese das escrituras eles recordavam, devia ser, ao mesmo tempo, considerado muit m uitoo mais do que um mestre mestre dos tem6. É muito surpreend surpreendente ente que, apesar de todos tod os os paralelos entre entre o uso das escrituras do Novo Testamento e o seu uso nos textos de Qumran e em outras lite raturas judaicas, o conceito de cumprimento parece ser peculiar ao Novo Testa mento. C.D. 7, 10-11 não está muito longe, mas m l' nâo nâo parece ocorrer ocorrer neste con con texto. Cf. J.A. FITZMYER, “The Use of Explicit Old Testament Quotations in Qumran Literature and in the New Testament” in J.N J.N .TS . 7.4, julho de 1961, 297ss.
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pos po s qu quee co corr rria iam m . C o m o S en enho horr d a fé, ele aind ai ndaa e sta st a v a com e e m e entre seu povo quando eles expunham as escrituras em seu nome. Assim, a exegese cristã dos primeiros tempos (conservando aquilo que jà descobrimos acerca do culto cristão e do caráter da primiti va comunidade cristã como um todo) era uma atividade nova e criativa, criativa, ainda que enraizada também numa num a precedent precedentee tradição ju daica. Cristo foi reconhecido como tendo mais autoridade que as escrituras, mas apenas no sentido de cumprimento e transcendên cia, não de abolição delas. Devemos examinar agora estes três fatores. 1. Quais eram os métodos de uso das escrituras correntes nos nos dias de Jesus? Jesus? P ara to to dos os judeus devotos, era axiomático (diz R. Loewe) “que o canal da revelação divina fosse a Torah e a Torah como estabelecida ex plic pl icita itam m en ente te no tex te x to insp in spir irad adoo d a Biblia, m as tam ta m bé bém m , co c o m resp re spei ei to àquilo que não fosse explicitamente encontrado ali, deduzivel pela pe la ap apli lica caçã çãoo d a raz ra z ã o h u m an anaa ao text te xto, o, com ap apen enas as a co cond ndiç içãã o de que a razão humana reconheça sua dependência da graça divi na”” .7 Con na Contudo tudo,, dentro desta suposição parece possí possíve vell disti distinguir nguir,, em sentido lato, duas atitudes principais. Uma atitude atribuía uma grande importância impo rtância às tradições dos grandes rabinos, rabinos, às interpreta ções tradicionais de passagens particulares transmitidas na comu nidade, nidade, pelas pelas quais normas de cond conduta uta e outras outr as eram extraídas das Escrituras. “Extraídas” não é um termo exagerado para algumas dessas realizações, embora os melhores rabinos conhecessem os perig pe rigos os de t r a t a r a p a lav la v ra arbi ar bitr traa riam ri amen ente te e ap apen enas as usáus á-la la q u an andd o par p arec ecia ia ab abso solu luta tam m en ente te ne nece cess ssár ária ia p a r a sanc sa ncio ionn ar algu al gum m a n o rm a considerada essencial pela autoridade mosaica. Ao rabino Eleazar de Modin (contemporâne (contem porâneoo do poderoso pod eroso Akiba, A kiba, cerca cerc a do an anoo 12 1200) é atribuído o dito: “Aquele que revela aspectos da Torah que não es tão de acordo com o ensino rabiníco não tem parte alguma no mundo vindouro”.8 Na verdade, foi pela força desta posição que 7. “The Jewish Midrashim and Patristic and Scholastic Exegesis of the Bible” ín Stu S tudd ia P alri al rist stic icaa I, T. und U. 63, 1957, 492ss. 8. Mishnah, Pir P irke ke A both bo th 3,12, citado por P. WINTER, “Marginal Notes on the Trial of Jesus” in Z.N.T.W. 50, 1959, 12. Para uma nota mais branda, cf. ibid., n9 38 (de acordo com um relato talmúdico, Moisés desceu à terra para visi tar a escola de Akiba e ficou desnorteado com os argumentos eruditos; sua con fiança, contudo, contud o, foi restaurada restaurada quando Akiba Ak iba assegurou a um discípulo que que qu q u ina in a saber com que autoridade o Mestre sentenciava, que ela “foi dada a Moisés no Monte Sinai”).
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suficiente peso foi atribuído às tradições dos grandes exegetas para impedir um individualismo irresponsável na interpretação. A outra atitude para com o texto da Torah foi essencialmente mais indivi dualista (mesmo que seus representantes não concordassem com isso). Olhando as atuais palavras escritas como sendo elas mesmas uma fonte de contínua inspiração,9 tornou-se possível a qualquer indivíduo, com apenas a condição de que (para repetir a condição mencionada no artigo de Loewe) ele reconhecesse sua dependência da graça de Deus, contando com a direta direção divina através do seu estudo pessoal delas. A primeira atitude tendia para a localiza ção da interpretação autorizada nos líderes de instrução rabínicos e nas suas tradições de sabedoria transmitidas na comunidade; a úl tima, no uso individual das próprias palavras das escrituras (fre qüentemente em tradução grega incorreta).10 Os leitores cristãos re conhecerão aqui, mutatis mutandis, as respectivas tendências da exegese cristã “ católica” e “protestante”. No artigo já citado, Loe we parece caracterizar aquilo que formou a base da última atitude quando ele diz que o princípio exegétíco sustentado pelo rabino Akiba “aponta para a qualidade inspirada do texto, asseverando que nem um jo ta ou til dele pode ser sem significado para a exegese dedutiva” (loc. cit. 505). Loewe contrasta esta posição com a insis tência de Ismael ben Eliseu (mais ou menos contemporâneo de Aki ba) de “que a Torah fala em linguagem humana”. Mas talvez isto seja simplesmente uma ênfase sobre a realidade na interpretação e não é bem o equivalente da atitude tradicionalista, que aqui está sendo contrastada com a atitude essencialmente individualista. Houve um tempo em que a interpretação do tipo inspiração verbal podia ter sido chamada de a mais helenística e é certamente bem representada por Fílon de Alexandria. Mas foi observado (por P. K ratz11) que é também representada na Sabedoria (palestinense) de Sirac (Eclesiástico). Generalizações geográficas são, portanto, peri gosas. Contudo, o tipo tradicional de exegese estava, indubitavel
9. T.W.N.T. I 755, LL, 1-14. 10. D. W. GOO DIN G, The Account o f the Tabernacle, 1959, pouco sacros santas eram as ipsissima verba para os tradutores da LXX. 11. “The Old Testament Canon in Palestine and Alexandria” inZ.N.T.W. 47, 1956, 191ss.
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mente, estabelecido na Palestina ao tempo de Cristo, e J. Jeremias12 localiza a influência dos escribas em seu conhecimento esotérico, freqüentemente de caráter apocalíptico. Nào há dúvida de que seja esta a chave do conhecimento que eles declaravam possuir, mas que nào usariam em benefício dos outros (Lc 11,52), Qualquer que seja a sua origem e ambiente, 2Pd l,20s parece estar fazendo um pronunciamento muito interessante a respeito da natureza d a inspi ração, embora seu significado ficasse mais claro, se se pudesse es tar certo da situação a que se referia: Antes de mais nada sabei isto: que nenhuma profecia da escritura resulta de uma interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por von tade humana, mas os homens inspirados pelo Espirito Santo falaram da parte de Deus.
Provavelmente isto signifique que “os profetas antigos, cujas palavras são agora parte das escrituras, estivessem falando não por sua própria escolha humana, mas sob a compulsão do Espírito de Deus; por isso, o leitor hodierno, analogamente, não deve pretender compreender estas palavras mediante seu privado e autônomo dis cernimento”. Mas se o oposto de “privado e autônomo discerni mento” é, neste caso, um discernimento privado e inspirado ou um discernimento não privado, senão apenas aquilo que os autorizados lideres da Igreja dizem, é uma outra questão. Deve ser notado, de igual modo, que ambas as atitudes há pou co definidas operaram na suposição de que a voz da profecia havia silenciado. A autoridade divina deve ser procurada não na palavra viva e atual dos homens contemporâneos inspirados, mas na inter pretação de um a inspiração concedida no passado, a das escritu ras.13 Realmente, porém, a voz da profecia não estava tão silencio sa quanto podia parecer. Havia uma literatura apocalíptica a ser le vada em conta. Apocalíptica comumente significava predição ins pirada de algum sábio antigo do período profético, preservada para ser divulgada a uma geração posterior às vésperas de seu cumpri 12. Jerusalém zur Z eit Jesu, 1958, 2* ed-, 106ss. 13. Para a fórmula de citação (muitas delas bem paralelas ao Novo Testa mento) nos escritos de Qumran, cf. J.A. FITZMYER, p. 72, n. 6. Mas notar, su pra, a ausência da idéia de “cumprimento”.
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mento predito. N a realidade, contudo, ela era geralmente a obra de um escritor contemporâneo, disfarçado sob um nome antigo. As sim, havia contemporâneos, embora eles não se declarassem como tais, que proclamavam mensagens originais de esperança ou conso lação: expressando raramente a justiça social dos grandes profetas, mas pelo menos proclamando, na medida da inspiração direta, uma mensagem para o seu tempo. E tão popular era a perspectiva dos apocalípticos que influenciou, em certa medida, também a exegese dos escritos mais antigos. A Lei (na medida em que eram usados como autorizados), os Profetas e os outros escritos também esta vam sujeitos a serem interpretados ao longo das linhas da mensa gem apocaliptica, resumida na seguinte frase: a salvação sobrena tural do Povo de Deus está iminente. Esta era a função da apocalip tica. Os antigos profetas tinham esperado o cumprimento dos pro pósitos de Deus nos reis justos e nos soberanos íntegros; mas ago ra, sob o domínio estrangeiro de Roma, era muito mais fácil espe rar por alguma intervenção sobrenatural e reinterpretar as antigas mensagens éticas e políticas ao longo destas linhas. O assim cha mado “ comentário” ao livro de Habacuc nos Rolos do Mar M orto representa uma interessante combinação do elemento político com o apocalíptico. Em geral (na medida em que se pode avaliar a partir de um manuscrito corrompido), tratava-se de um esforço para apli car as palavras do profeta, pronunciadas talvez cerca de 500 anos antes, às pressões do secularismo e de todos os alarmas e incursões do período imediatamente antes de Cristo. “A interpretação (pesher) de (desta e daquela frase) é . . Assim soa a fórmula do comentário de H abacuc,14 como o equivalente aramaico na inter pretação dos sonhos ou o escrito na parede em Daniel (4,6(T.M. 4,3); 5,15. 26; 7,16; etc.); e geralmente a interpretação é feita em termos de pessoas e povos contemporâneos do intérprete: o sacer dote perverso, o mestre da justiça, os Kittim. Mas a época que está passando é considerada como o fim do presente; e de vez em quan do a expectativa de uma intervenção sobrenatural irrompe tam bém: “no dia do juízo, Deus destruirá todos os adoradores de ído los e todos os iniquos da terra” (as últimas palavras, segundo a tra 14. Para os detalhes dos métodos exegéticos de Qumran, cf. O. BETZ, Offenbarung und Schriftforschung in der Qumransekte, 1960; também F.F. BRUCE, Biblical Exegesis in the Qumran Texts, 1960.
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dução de Millar Burrows). Provavelmente Stauffer esteja certo quando afirma que, nos últimos anos do judaísmo, a apocalíptica foi o fator dominante na interpretação bíblica. Nas pinturas da si nagoga de Dura, no Eufrates (escavada em 1934 e nos anos seguin tes), figuras identificadas conjecturalmente como Enoc e Esdras (a pocalipticos) ocupam um lugar de honra, lado a lado com Moisés e Josué.13 Contudo, mesmo assim, não devemos perder de vista as mensa gens da piedade individual, que também eram correntes na mesma época. Ler os escritos de Fílon significa recordar que houve pelo menos alguns (e por que não muitos?) que estavam interessados nas escrituras principalmente como uma alegoria da Alma Huma na e que encontraram nelas o ideal para o crescimento individual na religião e na piedade. 2. Por isso, vê-se que Jesus se insere num contexto de antiga e variada tradição de exegese escríturística. Como ele usou a Bíblia? Pensamos logo num exemplo surpreendente de aplicação do texto a uma situação contemporânea: “Hoje em vossos ouvidos este texto se tornou verdadeiro”, disse ele (Lc 4,21), quando explicava Is 61. Esta passagem é uma pesher como a de Qumran, isto é, a interpre tação de uma passagem antiga como se aplicasse a uma situação presente; mas a idéia de cumprimento, diferente do uso de Qumran, contém em si uma intensidade escatológica. Esta passagem é pecu liar a Lucas, embora não haja no fato razão para se duvidar de sua autenticidade. Tanto Mateus como Marcos têm aquilo que é quase uma aplicação do tipo pesher de Zc 14,7 após a última ceia: Esta noite todos vós vos escandalizareis por minha causa, pois está escri to: Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho se dispersarão (Mt 26,31; Mc 14,27). 15. E. STA UFFER , Theologie, 1948, 4* ed. e as referências á literatura feitas ali; cf. J. JEREMIAS, Jerusalem zur Zeit Jesu, 1958, 2* ed., 107s. O afresco de Esdras está reproduzido no Atlas o f the Early Christian World, de F. VÁN DER MEER e C. MOHRMANN, 1959, clichê 68. Contudo, deve ser admitido que a identificação de Enoque é muito duvidosa. Para uma abordagem completa e autorizada, cf. The Excavations at Dura-Europos, Relatório Final VIII, parte I, The Synagogue, de C.H. KRAELING, 1958, onde os clichês são a cores.
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Mas com certeza está ainda muito embutido nas tradições (em todos os quatro Evangelhos) o uso que Jesus faz da expressão “o Filho do Homem”, que pode ser explicada de modo muito simples (a despeito de todos os argumentos em contrário) como o uso de um símbolo de Dn 7, que é não só histórico como também escatológico. Ele é o símbolo do fiel povo-mártir de Deus (encarnado, em primeira instância, pelos mártires macabeus), a figura humana que, por causa de sua indefesa fragilidade diante da tirania dos impérios bestiais, será, no fim, divinamente defendido e por causa de sua prontidão para sofrer será coroado de glória e honra e exaltado na presença de Deus. Jesus aplica este simbolo ao seu próprio ministé rio e a si próprio como o precursor e representante do fiel e obe diente Povo de Deus, que agora vive na terra em humilhação, mas que está destinado a ser exaltado.16 Com o mesmo fim paradoxal, diz-se que Jesus aplicou a si tam bém a figura da “pedra” do SI 118 que, sendo rejeitada pelos peri tos construtores que deviam saber mais, torna-se, afinal, a pedra mais importante de todo o edifício (Mc 12,10 e paralelos). Da mesma maneira, parece que Jesus aplicou as expectativas da vinda de Elias (MI 4,5) à missão de João Batista, talvez tencionando a surpreendente conseqüência de que seu próprio ministério deve ser identificado com o Dia de Iahweh (Mc 9,13; Mt 16,12).17 Numa ocasião, Jesus também é apresentado (Mc 12,35ss e pa ralelos) recorrendo ao SI 110 para convencer seus antagonistas que 16. Afora a vasta bibliografia sobre “o Filho do Homem”, a seguinte lista, que inclui brevemente a maior parte das diferentes teorias, pode ser de grande utili dade: F.J. FOAKES-JACKSON e K. LAKE (editores), The Beginnings ofC hrisíianity I, 1920, 368ss; T.W. MANSON, The Teaching of Jesus, 1935, 21 lss (trad. bras.: O Ensino de Jesus, Aste, SSo Paulo, 1965); R. OTTO, The Kingdom o f God and the Son ofM an (trad. inglesa, 1938); J. KNOX, Christ the Lord, 1945, 32ss, reimpresso em Jesus L ord and Christ, 1958, 90ss; E.K.T. SJÕBERG, DerM enschensohn im Athiopischen Henochbuch, 1946; G.S. DUNCAN, Jesus, Son o f Man, 1947; J.Y. CAMPBELL, J.T .S. 48, 1947,145ss;T.W. MANSON, BJ.R .L . 32.2, 1950, 171ss; A. FARRER, A Stu dy in St. Mark, 1951, 247ss; C.F.D. MOULE, “From Defendam to Judge and Deliverer” in S.N.T.S. Bulletin III, 1952, 40ss; V. TAYLOR, The Names o f Jesus, 1954, 25ss; J. KNOX, The Death o f Christ, 1958; G. BORNKAMM, Jesus o f Nazareth, trad. inglesa, 1960,228ss (trad. bras.: Jesus de Nazaré, Vozes, Petròpolis, 1976). 17. Cf. J.A.T. ROBINSON, “Elijah, John and Jesus: an Essay in Detection” in J.N.T.S. 4.4, julho de 1958, 263ss, para algumas observações penetrantes sobre esta questão.
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sua esperança messiânica era muito superficial. A argumentação parece ordenar-se assim: Davi, que se presume seja aquele que fala, faz alusão a uma promessa divina, feita a uma pessoa anônima, pela qual a esta pessoa será dada uma posição de real majestade à destra de Deus até que todos os seus inimigos sejam subjugados. Tal pessoa é comumente identificada (é claro que pelos antagonis tas de Jesus, entre outros) com o Rei de Israel, divinamente escolhi do e aguardado (o Ungido, o Messias). Contudo, neste mesmo sal mo, Davi chama este personagem de “meu Senhor”: como pode ele, então, ser mais jovem que Davi, isto é, ser um descendente de Davi, como comumente se crê que o Messias é? Eis o dilema! A conclusão implícita parece ser (como sustentam alguns comentado res) que o verdadeiro Messias não é absolutamente da estirpe de Davi; mas é mais provável que o Messias, mesmo sendo davidico, seja de condição sobrenatural, "o Filho maior de Davi”. 18 É curio so que a segunda parte do salmo, na qual a pessoa é identificada com um sacerdote (cf. Hb 5,7), não parece causar dificuldade neste contexto, embora o evangelista tente aplicar claramente o salmo a Jesus (que não era sacerdote), tenha Jesus feito ou não esta mesma tentativa. A passagem do SI 1103» que parece descrever um miracu loso nascimento divino (“ . . . do seio da aurora a ti vem o orvalho da tua juventude” /?/), não foi usada em testimonia do Novo Tes tamento, mas o SI 2 tinha exatamente este propósito19: “Tu és o meu filho, eu hoje te gerei” (Atos 13,33). De qualquer modo, aqui está um exemplo de um procedimento exegético seguido por Jesus, o qual não é simplesmente histórico (ainda menos “critico”, por quanto observa a questão da autoria e contexto original do salmo), 18. “A expressão ‘Filho de Davi’ significa o mesmo que um novo Davi. O Florilégio Messiânico (= 4Q Florilegium; a parte em questão foi publicada por J.M. ALLEGRO em 3.B.L. 75, 1956, 176s; cf., também, F.F. BRUCE, Biblical Exegesis in the Qumran Texts, 1960, 52) da caverna n? IV, contudo, interpreta a profecia de Natã a Davi (2Sm 7,11-14) no sentido de que o rebento messiânico de Deus dos últimos tempos será aquele de quem Deus disse: “Eu serei o seu Pai e ele será o meu filho . . . ”. O filho messiânico de Davi devia, portanto, ser idêntico ao preexistente Filho de Deus. Assim, a questão que causava dificuldade para o farisaísmo é prontamente compreendida quando entendemos pressupostos particula res da doutrina messiânica de Qumran”: Kurt SCHUBERT, Die Gem einde vom Toten Meer, 1958. 19. Cf. H.-J. KRAUS, Psalmen (Biblischer Kom mentar, 1960), a propósito do SI 110. .
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mas que se baseia na qualidade evocativa das palavras no contexto de certas suposições e pressupostos (autoria davídica e referência messiânica) concebidas tanto por Jesus como por seus ouvintes. Contudo, isto é raro na tradição sinótica do ensino de Jesus. Nos sinóticos, só há um outro exemplo no qual se atribui a Jesus aquilo que podia ser julgado uma exegese forçada: trata-se da refu tação da incredulidade dos saduceus numa vida após a morte. Me diante a citação (Mc 12,26) de “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”, Jesus quer chegar à conclusão de que, desde que Deus não é o Deus dos mortos, mas sim dos vivos, estes patriarcas devem estar vivos ainda. Naturalmente, as palavras reais do Êxodo (Ex 3,6) não significam outra coisa senão: “Eu sou o Deus que foi antigamente adorado por Abraão, Isaac e Jacó”. Por tanto, a lição depende de alguma coisa estranha ao significado ób vio das palavras. A autoridade verdadeira que remete àquela con clusão é a convicção de que se Deus estabelece contato com o ho mem e deseja ser chamado seu Deus, então aquele relacionamento é tal que a morte não pode interrompê-lo: faz-se apelo, sob e por trás das palavras das escrituras, a outro atributo conhecido do ca ráter de Deus e, portanto, de seu relacionamento com os homens. Se a predição de que Jesus ressuscitaria em três dias ou depois de três dias (Mc 8,31 e paralelos; 9,31 e paralelos) estivesse baseada em Os 6,2, aqui estaria, outra vez, uma leitura das escrituras apa rentemente forçada; mas não está absolutamente claro que, ainda que fossem palavras genuinamente do Senhor, foram relacionadas pelo próprio Jesus com Os 6,2 precisamente desta maneira (cf. abaixo, fim do capitulo). E a aplicação forçada da história de Jonas à ressurreição è atestada apenas na versão de Mateus sobre aquele dito (Mt 12,40) e está longe de representar com segurança um ló gion genuino de Jesus. Afora estes poucos, praticamente todos os usos de citação direta das escrituras atribuídos ao próprio Jesus na tradição sinótica (não estamos pensando aqui na aplicação de figu ras escrituristicas à sua missão) são feitos num simples sentido mo ral ou religioso, que nâo depende de manipulação ou jogo sutil de palavras ou alegorias, e que qualquer um hoje consideraria válida a sua aplicação: tais são as citações sobre o culto e o amor de Deus, o amor do próximo, o ideal do matrimônio ininterrupto e o plano de Deus que atua através da obediência de seu povo em oposição
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às tramas terrenas e valores materialistas (cf. Mt 4,10 e paralelos; Mc 12,30s e paralelos; Mc 10,2ss e paralelos; e passim). Na tradição joanina, há uma argumentação nos lábios de Jesus que parece inaceitável ao leitor moderno, a saber, aquela de Jo 10,34, onde as palavras obscuras do SI 82: “Eu disse: Vós sois deu ses”, presumivelmente dirigidas aos homens por Deus ou, no máxi mo, aos deuses inferiores ou “anjos”,20 são usadas na defesa das próprias afirmações de Jesus. Se os homens (ou outros seres) aos quais chegou a palavra de Deus (assim se articula a argumentação) foram chamados de deuses, quanto mais pode ser chamado de Fi lho de Deus aquele que foi expressamente santificado e enviado ao mundo pelo Pai! É bem provável que todo o diálogo reflita a luta da Igreja Crista com a Sinagoga em vez das palavras originais de Jesus, especialmente em vista da frase “as escrituras não podem ser anuladas”, algo assim tão diferente daquilo que podemos concluir acerca da atitude de Jesus para com a autoridade. Já foi argumen tado (capítulo III, n. 7) que mesmo a forma do “grande manda mento” em Mateus revela em si mesma uma tendência rabínica para inferir ensinamentos morais das escrituras (“ Desses dois man damentos dependem toda a Lei e os Profetas”, Mt 22,40), em opo sição à forma de Marcos (Mc 12,31) que parece estabelecer a lei básica da religião (amor a Deus e ao próximo) acima de qualquer mandamento, seja bíblico ou não. Se este é o caso, aqui também podem ser distinguidos os ecos de um equívoco cristão posterior e a adaptação das palavras do Senhor a um pensamento mais elabo rado. Contudo, nada disto é absolutamente demonstrável; e se os argumentos de Jo 10 e de Mateus representam tradições genuínas, somos impelidos a aceitar que o próprio Jesus, na ocasião, tenha usado as técnicas rabinicas de casuística verbal em argumento ad hominem. Em outra parte do Quarto Evangelho (7,23), nós o en contramos usando o argumento a fortiori de deduzir o maior do menor: se a circuncisão é permitida no dia de sábado de modo a nao transgredir a Lei, quanto mais é licita a restauração da saúde ao homem todo! Mas, em geral, o Jesus do Quarto Evangelho usa as escrituras de um modo alusivo, poético, evocativo: a escada de 20. 329ss.
Cf. J.A. EMERTON, “ Some New Testament Notes” in J.T.S. 11, 1960,
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Jacó(?), a serpente de bronze, o maná, os rios de água viva (cf. Jo 1,51; 3,14; 6,49; 7,38); trata-se de uma linguagem inventiva, que usa os símbolos das Escrituras quase como parábolas em embrião. Uma vez apenas, em João, ele aplica uma frase escriturística aos eventos correntes à maneira pesher: a alusão à traição de um ami go íntimo no SI 91. Tal interpretação é, no entanto, inteiramente apropriada (Jo 13,18). Lucas é o único evangelista que descreve Jesus depois da res surreição adotando o processo hermenêutico de explicação em to das as Escrituras de tudo que se refere a ele (Lc 24,27.44ss). E a frase “que o Messias devia sofrer" (Lc 24,46; Atos 3,18; 26,23) pode ser um dos sumários próprios de Lucas.21 Mas, se é assim, ela exprime, em síntese, toda a ênfase do ministério de Jesus; o sofri mento, o serviço, a defesa, a transmissão aos outros de suas reali zações. Quando Lucas apresenta Jesus durante a última ceia dizen do: “é preciso que se cumpra em mim esta palavra da escritura” (Lc 22,37), de qualquer modo, ele revela um princípio interpretativo compatível com toda a compreensão cristã das escrituras e apa rentemente radicado no uso que o próprio Jesus fazia. Se usava ou não Is 53 é uma questão que será considerada mais tarde. O que é importante e original é que Jesus parece não levar em consideração tanto os textos probantes quanto o modo geral de Deus trata r o seu povo e do desígnio de Deus para com eles. À luz disto, ele interpre tou a sua missão. 3. A originalidade do uso que Jesus fez das escrituras é confir mada surpreendentemente quando consideramos o primitivo uso cristão das escrituras e suas implicações. É verdade, como já foi observado, que o uso das escrituras do Antigo Testa mento pelos escritores do Novo Testamento inclui um considerável elemento de jogo de palavras e elaboração, que são muito menos característicos das tradições acerca do próprio uso de Jesus. Mas o fato notável não é que os usos artificiais persistam (ou até fossem adotados ex novo), mas que o uso dominante era (quando compa rado com seus antecedentes judaicos) bem novo e convincente. A melhor explicação deste fenômeno é que ele foi derivado do próprio 21. Cf. J.A.T. RO BIN SON, “The Most Primitive Christology of Ali” in J.T.S. 7, 1956, 177ss (especialmente 183).
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Senhor. Este novo uso tem sido descrito como o uso das escrituras “no circulo”, em contraste com seu uso (por exemplo em Fílon) como uma área plana, de duas dimensões.22 Enquanto as escritu ras são consideradas primariamente como um projeto inspirado para produzir oráculos divinos, é bastante razoável ir indiferente mente a qualquer parte delas com uma constante esperança de ex trair das palavras de quaisquer versículos que forem escolhidos para interrogação um a sugestão ou um oráculo. E, se isto for ver dadeiro, é quase inevitável que as técnicas deveriam ser planejadas para assegurar que as palavras produzam uma mensagem, mesmo quando elas forem difíceis e não prometedoras. Como já se disse, tais técnicas podem ser patrimônio de expoentes autorizados, her deiros de uma longa tradição, como eram os rabinos; ou numa ou tra tradição ou situação, podem ser aplicadas por uma pessoa como Fílon em seus estudos particulares e devoções. Mas este não é o uso distintivo das escrituras que encontramos no Novo Testa mento. Quaisquer que sejam os exemplos que possam existir de in terpretação do tipo rabinico e de Fílon, estes não são os mais ca racterísticos. O que marca o uso que o Novo Testamento faz das escrituras como uma novidade é precisamente este tratamento “no círculo”, como uma entidade tridimensional; na verdade, devia-se dizer tetradimensional, pois o fator tempo é muito importante. O uso escriturístico do Novo Testamento mais característico é “mo derno”, no sentido de que ele trata o Antigo Testamento como um documento de revelação, como uma narrativa histórica do relacio namento de Deus com o seu povo, para ser ouvida como um todo e aprendida como uma história continua. Há uma enorme diferença entre este modo de usar as escrituras e o uso das escrituras como um meio de adivinhação. A razão pela qual os cristãos começaram assim a usar as escri turas “historicamente” (como diríamos nós) foi que eles tinham re conhecido realmente em Jesus de N azaré o clímax da longa história do relacionamento de Deus com o seu povo. Em Jesus, foi manifes tado, por excelência, o secular princípio do comportamento de Deus em relação aos homens: a vontade de Deus se cumpre numa 22. Cf. C.H. DO DD , The Old Testament in the New (conferência, 1952) e According to the Scrlptures, 1952 (trad. bras.: Segundo as Escrituras, Edições Paulinas, S. Paulo, 1979).
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minoria fiel e devotada. E os indivíduos eleitos (rei ungido, sacerdo te consagrado, profeta e sábio) eram personagens representativos através de toda a história do Povo de Deus, a síntese dos traços de união deste princípio de consagração a Deus, em oposição a uma maioria infiel e egoísta. Portanto, enquanto a riqueza material e o sucesso mundano podiam, temporariamente, passar para a maio ria, era ao longo do curso da fidelidade desinteressada que corria a corrente cristalina da vontade de Deus. Ora, era justamente este princípio que não estava só sintetizado mas também perfeitamente realizado em Jesus, aquele Jesus que, não obstante a sua vivida in dividualidade, procurou também ser muito mais do que um simples indivíduo; e era inevitável, portanto, que as grandes passagens bíblicas acerca do povo ideal de Deus, bem como aquelas acerca de seus representantes ideais, começassem a convergir sobre Jesus, como o ímã atrai a limalha de ferro. Não se tratava apenas do uso que Jesus fazia das escrituras (ainda que fosse provavelmente nor mativo), mas também de sua pessoa, seu caráter e da poderosa obra de Deus nele, que deram uma nova coerência às escrituras e induziram a um novo uso delas. O resultado foi um novo reagrupamento de passagens. Um rabino judeu não-cristão, se fosse indaga do acerca dos textos das escrituras que se relacionavam com o pla no de Deus para o seu povo, quase certamente não teria apresenta do a mesma antologia que um cristão. Em primeiro lugar, ela seria menos completa. A esperança judaica se desenvolvia ao longo de diferentes linhas, em épocas e lugares diferentes. A esperança mes siânica era apenas uma, e nem sempre proeminente, entre as muitas formas de que ela se revestia. O Ungido, o Messias, é uma figura que se adapta mais a uma esperança literal e política de um reino do que a um período de dominação estrangeira infinitamente pro longado. A idéia de realeza (o Ungido do Senhor) é bastante proe minente nos Salmos de Salomão escritos cerca de 60 a.C.; mas ao tempo de Cristo tal esperança sobrevivia principalmente entre os revolucionários fanáticos, enquanto que as outras formas de espe rança ocupavam mentes menos violentas. Uma destas era a espe rança apocalíptica, segundo a qual, só se Israel se mantivesse fiel, Deus interviria de modo dramático. Uma nobre forma desta espe rança era a convicção ultramundana de que, embora a minoria fiel fosse exterminada pelo martírio, contudo, no nível espiritual esta
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"figura humana” triunfaria sobre os seus opressores bestiais. O sa cerdote ungido era uma outra personificação da esperança. Ele ti nha se tornado uma realidade nos tempos gloriosos dos macabeus. A forma mais espiritual de todas podia ter sido o sofrimento criati vo e redentor do anônimo mártir de Is 53, cuja fiel morte misterio samente converteu e redimiu os seus próprios inimigos. Contudo, é desconhecida a amplitude que os judeus do período pré-cristão de ram à exploração desta figura do Servo Sofredor.23 Mas o novo e interessante fenômeno é a convergência de todas estas figuras para Jesus e que nele elas se tornaram coerentes era devido ao fato de que para Jesus convergiu toda a história de Israel no passado e a partir dele se desenvolveu todo o futuro do Povo de Deus. Foi a coerente disposição de tudo isto numa única e abran gente personalidade que transformou a exegese do Antigo Testa mento numa coisa completamente nova.24 Contudo, como já foi afirmado, o próprio procedimento hermenêutico de Jesus estabele ceu, sem dúvida, um precioso exemplo e começou uma permanente tradição e foi a sua pessoa viva mais do que as suas palavras me morizadas que condicionou o seu curso. Ter participado responsa velmente dos eventos do ministério, morte e ressurreição significa va ter alcançado um ângulo de abordagem das escrituras comple tamente novo ou, para mudar a imagem, significava observar pela primeira vez o mapa das escrituras como um mapa de relevo ge nuinamente tridimensional, iluminado ao centro por uma luz bri lhante. Foi a partir desta experiência (embora, seguramente, sem uma avaliação claramente articulada de suas implicações para as escri turas) que os apóstolos e seus companheiros estabeleceram seu tes temunho e a tarefa de interpretação. E isto nos traz de volta ao ponto de que começamos: o caráter distintivo do uso escrituristico da Igreja Primitiva é um aspecto da convicção de que, em Jesus, Deus falou diretamente ao seu povo; que assim a “voz profética”, isto é, o testemunho imediato da direção divina, tinha começado a soar novamente; que Deus tinha visitado e redimido seu povo e que 23. Cf. W. ZIMMERLI e J. JEREMIAS, art. “pais Theou”, in T.W.N.T. V 653-712 (trad. inglesa: The Servant o f God, 1957), para uma avaliação séria do uso pré-cristão; confronte-se com M.D. HOOKER, Jesus and the Servant, 1959. 24. Cf. F.F. BRUCE, o.c. (cf. capítulo IV, n. 14).
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uma nova compreensão de sua vontade tinha sido concedida. Por tanto, os cristãos não dependiam mais das tradições rabínicas para discernir a vontade de Deus ou importunar-se com o “jota e o ti!” para produzir uma mensagem: eles se aproximavam das escrituras a partir de uma dada experiência e tinham apenas de ler, nas suas linhas principais e na sua história viva, a confirmação de que aquilo que eles tinham experimentado não era estranho, ainda que tão no vo; era o clímax, a culminação, o “Amém” de todos os desígnios de Deus (2Cor 1,20). Como já foi dito, eles tinham de responder a questões de extrema dificuldade. Deve ter parecido uma história bem ridícula aquela que eles tinham de defender: “Cristo crucificado, que, para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura” (ICor 1,23). E era inevitável que, no decorrer da controvérsia, fossem invocados os “textos pro bantes” (em alguns casos, eles já tinham sido usados pelo próprio Jesus). Mas, por trás de todos estes usos estranhos das escrituras, os cristãos tinham sua experiência sólida, invencível. Qualquer que seja este versículo ou que podia significar (ou ser atormentado pelo significado), eles já tinham a chave para compreender todo o plano de Deus, que consistia em recapitular todas as coisas em Cristo (Ef 1,10). Quando Lutero firmou este principio de interpretação escriturística, ele estava voltando à Igreja Primitiva. Com isto diante de nós, podemos prosseguir para examinar as várias formas de argumentação cristã tiradas das escrituras. Algu mas, hoje, podemos considerar superadas, algumas muito engenho sas, mas todas controladas por esta convicção nova e predominan te: Cristo é a autoridade suprema, a chave das escrituras. Devemos lembrar que estamos indagando a respeito da origem dos escritos cristãos. Para começar, então, o que está por trás de tal passagem como Rm 9-11: a longa defesa do evangelho cristão feita por Paulo em face de sua rejeição pelo judaismo em geral? Nestes capítulos, somos lembrados imediatamente de um persisten te argumento contra o cristianismo: se o Evangelho é realmente a palavra de Deus, como aconteceu que (seus antagonistas pergunta vam continuamente) o próprio Israel de Deus o tenha rejeitado? Segundo as tradições, Jesus mesmo resolveu a questão da obstina ção de Israel pelo reconhecimento de que, na realidade, aquela era uma característica sempre presente na história de Israel. Não esta
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va o profeta advertido de que sua mensagem seria rejeitada (Is 6)? Não foram os peritos construtores que rejeitaram a pedra mais im portante (SI 118)? Não existe uma famosa passagem acerca de uma pedra que causaria ruína em Israel (Is 8)? E, igualmente, a convicção escrituristica da vontade invencível de Deus afirmava sua vindicação fundamental: a vital pedra angular, finalmente, veio para a sua verdadeira posição; a pedra de tropeço passou a ser, afi nal, um fundamento seguro (Is 28); a pedra talhada sem interven ção humana finalmente veio a esmigalhar os frágeis impérios dos ímpios (Dn 2); a desprezada e rejeitada figura humana foi vindicada (Dn 7). E foi ao longo destas linhas que se desenvolveu o debate na época apostólica. Seus resultados pró e contra são expressos em termos quase liricos em ICor 1,22-25: Os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que, para os judeus, é escândalo e, para os gentios è loucura, mas, para aqueles que são chamados, tanto ju deus como gregos, é Cristo poder e sabedoria de Deus. Pois o que é loucu ra de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
Em Atos 4,11, mostra-se Pedro apelando para a pedra angular, dizendo: É ele a pedra que vós, os construtores, rejeitastes, e que se tornou a pedra angular.
No fim do livro dos Atos, a última palavra de Paulo aos judeus incrédulos, quando eles abandonaram o longo debate, é a citação da passagem de Is 6 (Atos 28,25-28): É bem verdade o que o Espírito Santo disse a vossos pais peta boca do profeta Isaías: Vai procurar este povo e dize-lhe: em vão escutareis, não compreendereis; em vão olhareis, não vereis. O coração desse povo se en dureceu; taparam os ouvidos, fecharam os olhos; para que os olhos não vejam e os ouvidos não ouçam, e o coração não compreenda, e nào se convertam. Eu tê-los-ia curado! Estai, pois, cientes. Aos gentios é enviada esta salvação de Deus. Eles ao menos ouvirão.
Mas, cedo ou tarde, o atento debatedor cristão vê-se obrigado a tentar reunir estes fragmentos de defesa. Se Israel foi “planejado”
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para ser para sempre obstinado, então o que dizer de seu futuro? Se os gentios agora são convidados, a promessa da eleição de Deus passou para eles? E, se é assim, que dizer da constância das pro messas de Deus? Eis o maior problema da “teodicéia”. Todo mis sionário cristão é confrontado com ele de uma forma ou de outra, mas ninguém o sente numa tal forma aguda ou ninguém está tão bem equipado para lutar com ele como Paulo, o debatedor de for mação rabinica que defende os gentios do ataque doi judeus. E so mos afortunados por termos, em Rm 9-11, o depósito de suas dis putas. G1 3,7-4,31 é um exemplo anterior. O correlativo para os testimonia sobre a obstinação de Israel está nas passagens escrituristicas que descrevem como Deus acolhe os gentios. Há pouca evidência de que Jesus tenha se servido deste último tipo de passa gem durante seu ministério. Mt 8,11 (“virão muitos do oriente e do ocidente . . . ”) pode ser uma reminiscência de uma frase de Isaias; mas, em geral, é possivel provar25 uma deliberada reserva de Jesus a este respeito e uma aplicação de passagens escriturísticas favorá veis aos gentios antes do período pós-ressurreição. Atos 15,16s for nece um exemplo, mas é Paulo, especialmente em Rm 9-11 e 15, quem usa este tipo de passagem em profusão. . Contudo, nem todos eram evangelistas itinerantes ou debatedores peritos. O que seria dos cristãos humildes, a quem as circuns tâncias obrigavam a estar em continuo contato com judeus nãocristãos, isto é, os judeus cristãos vivendo ainda dentro de gueto ou os cristãos gentios que viviam justamente fora dele? Parece que o Evangelho de são Mateus pode representar o termo final de um longo processo de desenvolvida tradição catequética planejada exa tamente para tais circunstâncias. É possivel que o próprio evange lista não fosse judeu.26 Mas, de qualquer modo, o livro parece uma apologia, para ser usada pelos cristãos como réplica à curiosidade e à critica dos judeus. E sua argumentação consiste em demonstrar que Jesus de Nazaré cumpriu o modelo escríturistico; que ele não solapava a justiça judaica, mas, pelo contrário, a valorizava e aper feiçoava; que pertencer a Cristo significava pertencer verdadeira mente a Israel. E se membros de Israel o rejeitaram, também os 25. I. JEREMIAS, Jesus Verheissung Jur die Võlker, 1956. 26. Cf., especialmente, P. NEPPER-CHRISTENSEN, D as Mattàusevangeiium: etn jüden-christltches Evangetíum?, 1958.
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seus antepassados rejeitaram os profetas. O Israel verdadeiro tem sido sempre uma minoria dentro da massa mais vasta e degenera da. Em parte alguma do Novo Testamento se encontra uma aceita ção tã o completa do judaísmo rabínico como aquela enunciada em Mt 5,18-19:27 Porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só virgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só destes menores mandamentos e en sinar os homens a fazerem o mesmo será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus.
Esta passagem (cf. abaixo pp. 104ss) tenta, talvez demonstrar que Cristo não tinha intenção de baixar os padrões mais altos de Israel, mas antes elevá-los; Com efeito, eu vos asseguro que se vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus (v. 20).
Contudo, em nenhum outro livro do Novo Testamento a justi ça “pedante” de auto-respeito é desmascarada mais implacavel mente do que em Mt 23, o grande ataque violento contra os douto res da lei e os fariseus. Estes dois fatores se adaptam muito bem a um gueto cristão que está dentro ou vizinho de um gueto judaico. E dificilmente nos surpreenderíamos se encontrássemos neste Evan gelho também, em acréscimo aos usos das escrituras já descritos como característicos do cristianismo, outros usos que só podem ser descritos como artificiais, forçados e elaborados. Um argumento plausível tem interpretado Mateus como o resultado de uma “esco la de exegese”.28 É bem concebível (embora não possa ser demons trado) que cristãos de cultura mais elevada, em circunstâncias se melhantes àquela que já descrevemos, se reunissem em grupos de estudo para considerar se eles não poderiam, em benefício deles 27. Para tal questão, em acréscimo às numerosíssimas obras precedentes, cf. H. UUNGMAN, Das Gesetz Erfüllen, 1954; P. NEPPER-CHRISTENSEN, o.c.; G. BAR TH, cf. capítulo I, n. 6; H. SÇ HÜRMANN, “ ‘Wer daher emes geringsten Gebote au flõ st. . . ’ wo fand Mattàus das logion Mt. 5,19?” in Bibl. Zeitschr. 2, 1960, 238ss. 28. K. STENDAHL, The School o f St. Matthew, 1954.
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mesmos e de membros da comunidade menos cultos, redigir uma réplica aos seus críticos na sua própria língua e usando as suas pró prias técnicas hermenêuticas. E se, na verdade, o escritor deste Evangelho, ou (se nào era ele mesmo judeu) um dentre o seu círcu lo, fosse um escriba educado na escola rabínica que tinha se torna do um discípulo do Reino dos Céus (13,52), isto é, um escriba con vertido, eis, pelo menos, uma explicação parcial do fenômeno. O ú nico problema é explicar a inclusão, aqui e ali, de erros a respeito do judaísmo. Talvez, mesmo que o escritor não fosse ele mesmo um gentio, mas um escriba convertido, houvesse, em seu grupo de escribas, pelo menos alguém que não conhecia o judaísmo tão bem quanto ele. Muitos convertidos cristãos provinham dos sebómenoi, gentios que reverenciavam o Deus do judaísmo. Não é improvável que estas pessoas tivessem participado da compilação e uso de um documento como o nosso. Ou não pode ser que, em vez disso, o re dator final fosse um escriba “leigo” e não “rabínico” (exatamente como o próprio Mateus, caso tenha sido um coletor de impostos)? Se é verdade que grande parte do material de compilação do Evangelho de Mateus está corretamente colocada no contexto do tenaz antagonismo entre a Igreja e a Sinagoga, o mesmo pode ser verdadeiro com respeito ao Evangelho de são João. Mas seu uso do Antigo Testamento é menos direto e sua consideração, portanto, dificilmente cabe aqui. Retornando às indicações do debate público no livro dos Atos, recordamos que, além dos debates de Pedro e de Paulo, é apresentada uma vivida descrição de um tipo diferente de apologética judeu-cristã no relato de Estêvão (Atos 6 e 7). Eis aqui um homem que, como o próprio Jesus, é acusado de um ataque insidioso ao próprio coração do judaísmo, a Moisés e ao templo. Sua defesa é impressionante. Em vez de replicar diretamente, ele come ça simplesmente por contar a história familiar das origens de Israel, de Abraão em diante. Contudo, ele o faz de tal maneira a mostrar que todo o progresso envolvia a rejeição dos elementos tradicionais e estáticos; e que em toda ocasião o Espírito Santo é o Espirito do progresso, do movimento, da recusa de ser estático; por isso é que os heróis de Israel são todos eles pessoas de fé gigante, que trocam o conhecido pelo desconhecido, que abandonam a segurança do habitual em obediência cega à vocação de Deus. Abraão, José, Moisés: estes são as três personalidades fortes que estabeleceram
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os fundamentos de Israel, partindo ou indo embora e servindo a Deus no perigo e no desconhecido. Conseqüentemente, é o tabernáculo portátil antes que o templo fixo que Estêvão escolhe como seu símbolo do verdadeiro culto a Deus; e é Moisés, prenunciando um futuro Profeta, e Davi, impedido de construir um templo estático, que são seus indicadores do caminho a seguir. Em outras palavras, temos aqui uma defesa vivaz da posição cristã, mediante um ataque que é infligido às linhas inimigas. O que Estêvão diz é, com efeito, o seguinte: lede as vossas escrituras e encontrareis que são elas próprias que vos dizem para olhar além de Moisés e além do templo (cf, Jo 5,39). Com toda a probabilida de, Estêvão era um “helenista” (Atos 6,lss), isto é, um judeu que lia as escrituras na tradução grega e que não podia ou não falava línguas semiticas; e, provavelmente, ele pertencia a uma sinagoga de tradições semelhantes (Atos 6,9; cf. 11,19s); parece bem possí vel (ainda que isto seja apenas uma hipótese) que sua brilhante de fesa e sua corajosa morte podem ter induzido à conversão ao cris tianismo de um grupo de judeus helenistas de mentalidade seme lhante desta sinagoga. Não pode ser, então, precisamente a um tal grupo que foi endereçada a Espistola aos Hebreus? O principal ar gumento dela desenvolve-se, em parte, ao longo de linhas bastante semelhantes àquelas propostas no discurso de Estêvão: o verdadei ro judaísmo consiste num avanço em direção a Cristo, não em re fugiar-se numa velha posição; o tabernáculo é o modelo (ou antes a cópia!) não do templo de Salomão ou de qualquer outro templo material, mas do verdadeiro santuário dos céus; e Moisés é o tipo daquele Moisés maior que está por vir. Não está certamente excluí do, em vista disso, que a aparente alusão (Hb 13,7) aos grandes mártires não possa incluir o próprio Estêvão.29 De qualquer modo, 29. Realmente, não é impossível ajustar Hb 2,3 s à mesma hipótese. Segund esta passagem, a mensagem cristã foi confirmada ao escritor da epístola e a seus leitores por aqueles que a ouviram do próprio Senhor e que Deus ajuntou seu pró prio testemunho por meio de sinais e portentos e várias manifestações de poder e dom (merismóis) do Espírito Santo, de acordo com a sua vontade. Tudo isto é in teiramente apropriado a uma descrição do Pentecostes, como a conhecemos na história do livro dos Atos, por meio de um que, embora não fosse um dos primei ros discípulos de Jesus, tinha entrado na Igreja Cristã naquela ocasião, isto é, exa tamente como Estêvão e os seus companheiros de sinagoga. Cf. Atos 2,3 (“línguas repartidas ou distribuídas”), v. 19 (“prodígios . . . e sinais”), v. 36 (“saiba, portan to, toda a casa de Israel, com certeza .. .”)•
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esta epístola nos fornece um exemplo fascinante do produto final, isto é, a forma escrita precisamente da espécie de debate que é apresentado em desenvolvimento durante o julgamento de Estêvão; testemunha ainda a respeito de outra “escola” de interpretação, além da que pode ser postulada para Mateus. Temos aqui uma apologia cuidadosamente, na verdade brilhantemente, elaborada por um judeu cristão culto, do tipo alexandrino.30 Ele está interes sado em ajudar seus irmãos a enfrentar a tentação extrema de re tom ar ao judaísmo, talvez sob a pressão nacionalista;31 e ele está usando todos os seus (ou talvez dos companheiros) recursos de exegese escrituristica para mostrar a finalidade de Cristo e sua ab soluta superioridade sobre Moisés e sobre todas as aproximações judaicas. Em Nm 12,8, Moisés é descrito em termos superlativos como o único com quem Deus falou face a face. Parece que Hb 3,1 ss» com suas citações deste mesmo contexto, reflete um conflito com um opositor judeu habituado ao método dos textos probantes, que tivesse objetado: “Vossas afirmações a respeito de Jesus, mes mo que fossem comprovadas, nãó o colocariam numa posição mais elevada que a de Moisés. Tal argumento lembra o artificial método dos textos probantes, aludido por um escritor moderno,32 que diz que, em face da doutrina cristã do nascimento virginal, um maometano (muslim) apelará para a origem misteriosa de Melqui30. Em Hb 6 ,13ss dá-se muita ênfase na certeza proporcionada pelo juramen to divino na passagem a respeito da promessa a Abraão (Gn 22,16s). Contudo, o fio da argumentação conduz diretamente ao tema de Melquisedec (6,20ss) e al guém poderia esperar uma referência imediata ao juramento divino citado no sal mo de Melquisedec (SI 110). Contudo, isto está reservado para 7,20s. Isto sugere, creio eu, um arranjo muito cuidadoso e preciso. O escritor deseja introduzir o tema de Melquisedec e prosseguir com o seu simbolismo de Gênesis; nào se permi tirá desviar-se para o juramento do SI 110 até que esteja preparado para tratá-lo. Então, e não até que tenha terminado com Gênesis, esta segunda passagem sobre o juramento ocorre impressionantemente para levantar aquela referência primitiva ao juramento do Gênesis. Casualmente, por que Hb 6,13 se refere ao juramento de Deus em discurso indireto em vez de citar as palavras do juramento em citação direta no versiculo seguinte? 31. Outro motivo para tal mudança eficaz em tempos de perseguição para os cristãos era estar sob a proteção do judaísmo, como fez um tal Domno, a quem Serapião de Antioquia dedicou um tratado, “que tinha decaido da fé em Cristo, ao tempo da perseguição (de Severo) ao culto permitido dos judeus” (EUSÉBIO, Hist. EccL 6,12, II). 32. J. CROSSLEY, Chrisílart Wltness (Lee Abbey Journal) XIII, 2 (junho de 1960), 18; cf. K. CRAGG, The Call of the Mlnaret, 1956, 284s.
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sedec e argumentará, portanto, que Jesus não era superior a Melquisedec, tirando assim a folha seguinte deste mesmo argumento da epístola e invertendo-o! De qualquer modo, é fato conhecido que o escritor desta carta é muito indulgente com o tipo “alexandrino” de exegese, ao depender de simples palavras e de alusões indiretas para suas afirmações.33 Talvez, dentre todos os exemplos deste ti po, a passagem que deixa o leitor moderno mais perplexo seja a de Hb 1,10-12 com a espantosa aplicação cristológica do SI 102. Este é claramente dirigido a Deus, o onipotente Criador, e que (se pen saria) não podia ter, portanto, nenhuma força de convicção como prova escriturística acerca da dignidade de Cristo.34 Uma coisa é ler o SI 110 como oração de Davi ao seu Senhor, o Messias (Mc 12,36, etc.), e certamente uma outra é deslocar uma passagem diri gida por um adorador e usá-la sem qualquer escrúpulo como evi dência da dignidade de Cristo. Mesmo quando Paulo (ou um autor cristão de hinos citado por Paulo?) toma a descrição que Iahweh faz de si mesmo como Criador em Is 45 (que todo joelho se dobra rá diante dele e toda língua ju rará por ele) e a aplica a Cristo em F1 2,1 Os, ele não está ainda usando-a como uma prova de que estes 33. Na sua tese de doutorado (não publicada) pela Universidade de Manchester, The Use o f the Septuagint in the Epistle to the Hebrews (junho de 1959), em prestada a mim por gentil permissão do bibliotecário daquela Universidade, K.J. THOMAS parece sustentar que o autor da Epístola aos Hebreus conhecia alguns (poucos) tratados de Fílon e que, na verdade, se opunha diretamente às interpreta ções de Fílon em alguns casos. 34. K.J. TH OM AS resolve esta dificuldade quando afirma (p. 28): “ Segundo esta citação, o Filho está associado com a criação do mundo. Esta idéia tem para lelos não só no Novo como também no Antigo Testamento”, e continua referindose a Jo l,2s; Cl 1,1 Ss; ICor 8,6 e às idéias judaicas acerca da Sabedoria e à Torah como instrumentos (somente instrumentos acidentalmente) do ato da criação. Per manece a dificuldade em que, a fim de provar a supremacia de Cristo a um judeu, por meio deste salmo, alguém tem de ser capaz de presumir que ele fosse conside rado como dirigido a Cristo; e Thomas não faz nada para demonstrar isto. Em sua bibliografia há um artigo de Bacon (vide p. 95, abaixo), mas não faz refe rência a ele neste caso, nem à p. 186, onde trata das variantes desta parte do sal mo no texto da LXX. Cf. além disto: F. BLEEK, Theologische Studien und Kritiken 8, 1835, 441-446 e J. VAN DER PL OEG ,“ L’Exégèse de 1’Ancien Testament dans 1’Épitre aux Hébreux” in R.B. liv., 1947, 187-228 (o autor tem uma posição muito diferente da minha); e L. VENARD, VU tilisation des Psaumes dans VÉpttre aux Hébreux, 1945, id.t “Citations de 1’Ancien Testament dans le Nouveau Testament” in Dict. Bibl. Suppl. II, 1934, 23-51 (que anotei da bibliografia de K.J. Thomas). Adicione-se o indicado em P. SEIDENSTICKER, Lebendiges Opfer, 1954, 299, n9 24, G. HARDER, “Die Septuagintazitate des Hebràerbriefs” in Theologia vlatorum, 1939, 33-52.
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são os atributos de Cristo: ele está (sobre outras bases) afirmando estes atributos divinos e tomando por empréstimo frases feitas para descrevê-los. Mas, aqui em Hb 1,1 Oss, aparentemente no curso de uma argumentação escriturística, que intentava reforçar as convic ções cristãs dos leitores que conhecem o judaísmo de dentro e muni-los de argumentos contra judeus nao-cristãos, temos a aplica ção a Cristo de palavras que um judeu poder-se-ia supor sim plesmente julgaria inaplicáveis a Cristo: És tu, Senhor, que nas origens fundaste a terra; e os céus sào obras de tuas mãos. Eles perecerão; tu, porém, permanecerás; todos hão de envelhecer como um vestido; e a todos enrolarás como um manto, e serão mudados como vestimenta. Tu, porém, és sempre o mesmo, e os teus anos jamais terão fim.
A maioria dos comentadores segue B.F. Westcott (in loc.): “ A aplicação ao Filho Encarnado de palavras endereçadas a Iahweh . . . repousa sobre a concepção essencial do relacionamento de Iahweh com o seu povo. A Aliança conduz à Encarnação. E histo ricamente foi através da identificação da vinda de Cristo com a vin da do ‘Senhor* que os apóstolos chegaram à percepção de sua ver dadeira divindade”. Tudo isto pode ser verdade, mas não ajuda a explicar como, num argumento das escrituras para demonstrar a divindade de Cristo, uma passagem, que um opositor provavelmen te teria pressuposto que não pertencesse ao Messias, mas a Deus,35 podia ser usada como prova de qualidades que os apologistas cris tãos consideravam que pertenciam a Cristo. Quaisquer que sejam as obscuridades da citação do SI 45, que em H b l,8s precede este, pelo menos não apresenta este problema, pois se empregou clara mente como uma comunicação de Deus a algum homem (mesmo 3 S. Não há nada surpreendente na separação da passagem de seu contexto. F. F. BRUCE (o.c., capítulo IV, r». 18), 12, observa com o Hab 1,13 (“tu és tào puro de olhos . . . ”) é simplesmente transferido, no Comentário de Habacuc, de Deus para um grupo de homens. A característica surpreendente de Hb 1,10-12 é o uto desta passagem em argumento em que podia parecer tào facilmente refutável.
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que ele fosse um homem-Deus).35 Sob este ponto de vista, é compa rável ao SI 82 (“Eu disse: vós sois deuses”), usado, como já foi ob servado acima, em Jo 10,34. B.W. Bacon parece ser o único espe cialista que tentou uma explicação completa. Ele sustenta37 que o SI 102 (LXX:101) na versão da LXX (cujas variantes podem aqui ser explicadas como erros de leitura ou erros de interpretação do texto hebraico), já tinha mudado estes versículos numa comunica ção de Iahweh ao seu Messias. Assim, eles se tomaram uma res posta de Iahweh ao lamento do Messias; eles o exortam a nâo ser impaciente, pois a demora planejada de Deus está apenas comple tada pela metade; o Messias deve ser paciente, pois no exato mo mento ele será vingado e será mostrada a sua própria eternidade. No curso desta elevada réplica, o Messias é compreensivelmente chamado pelo próprio Senhor de “Senhor”, kyrie (embora, se a ar gumentação de Mc 12,37 baseada no SI 110 fosse forçada, signifi caria que Deus estava falando a um maior do que ele!). Agora te mos de admitir que aqui há muito de especulação e parece muito forçado. Talvez seja, porém, a única explicação inteligível do uso aqui, num contexto claramente apologético, de semelhante passa gem. Se os judeus não-cristãos de língua grega já interpretavam o SI 102, 24b-29 (LXX:101) como resposta de Deus ao apelo de seu Messias, então a citação se torna um forte argumento nas mãos do apologista cristão que está tentando demonstrar a superioridade de Cristo sobre todos os outros intermediários. Ele pode então dizer justamente: “ Vede em que termos transcendentes e divinos o pró prio Deus se dirige a Cristo!” Em outra passagem (Hb 2,13) apresenta-se um problema seme lhante. A citação do versículo precedente do SI 22 não é tão difícil de ser compreendida, pois o salmista pode parecer, “messiânico” sem demasiado esforço, aos olhos do leitor antigo: . . . ele diz: “Anunciarei o teu nome a meus irmãos; em plena assembléia eu te louvarei”. . 36. K.J. THOMAS (o.c.,) adota o ponto de vista que ho Theós é um nominati vo, n io um vocativo e faz uma paráfrase (p. 26): “Deus é o teu poder para o sécu lo dos séculos; o cetro da retidão é o cetro de sua realeza”. Contudo, cf. J.R. PORTER, J.T.S. 12, 1961, 51ss. 37. B.W. BACON, “Heb. 1,10-12 and the Septuagint Rendering of Ps. 102,23” in Z.N.T.W. 3, 1902, 280ss.
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Mas por que se devia supor tacitamente que as palavras de Is 8:
.. . e mais: “Porei nele a minha confiança”; e ainda: “Eis-me aqui com os filhos que Deus me deu”
são pronunciadas por “Cristo”? Possivelmente, a resposta possa ser, uma vez mais, que a Biblia grega os tinha interpretado em sen tido messiânico já em época pré-cristã. Pois “o texto grego de Is 8 tem as palavras kai erêi (“e ele dirá”) inseridas antes do versículo 17, que dão a impressão de que outro interlocutor, diverso do pro feta, é introduzido”38: “e ele dirá: ‘eu esperarei pelo Senhor . . . Eis aqui, eu e os filhos . . . ’ ” Se esta é a explicação correta, temos aqui duas intromissões messiânicas não-cristãs da Bíblia grega, exigidas por nosso autor para seus propósitos cristãos. Estas passagens e aquela sobre Moisés em Hb 3 (que não têm recebido sempre tanta atenção quanto às outras citações) foram isoladas para uma menção especial aqui como indicadores da si tuação em que esta epístola se originou. Ao lado de todas as outras citações do Antigo Testamento que são feitas no curso de sua argu mentação, e sobre as quais os comentários têm muita coisa a dizer, tais passagens apontam para a existência de um corpo de leitores habituados com uma engenhosa exegese da Biblia grega e elas tor nam plausível postular para Hebreus, como K. Stendahl postulou para Mateus, uma “escola” de apologética cristã: um reexame e uma reinterpretação sistemáticas das escrituras gregas feitas por cristãos cultos em seu debate com especialistas das escrituras nãocristãos.39 E se um deles, seu líder, está escrevendo para os demais (cf. 13,19) é natural que ele percorresse de novo o terreno que eles tinham atravessado nos estudos que tinham em comum, reiterando, 38. K..J. THOMAS, 14, sugere Bleek, Ltinemann e MofTatt. 39- H. KOSMALA, Hebràer-Essener-Christen, 1959, renovou, de modo mui to erudito e engenhoso, a teoria de que a epístola aos Hebreus foi escrita para ju deus nâo-cristãos como uma espécie de tratado missionário. Não há dúvida de que esta hipótese ajuda a explicar a alusão aparentemente não-cristà aos baptismói em Hb 6,2, mas deixa muita coisa sem explicação. Para o uso do SI 110 nesta carta, cf. algumas importantes observações em A.J.B. HIGGINS, “The Old Testament and some Aspects of New Testament Christology” m Canad. Journ. o f Theol. 6, 1960, n. 3, 200ss.
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replicando e sistematizando-os num todo ordenado.40 É verdade que ele se dirige a eles constantemente como se fosse seu lider e pai espiritual; e que uma vez (5,1 lss) ele lamenta que eram lentos na compreensão e ainda crianças, quando deviam ser bastante am adu recidos para ensinar a outros. Mas isto ainda não toma impossível postular um estudo sob sua liderança, combinado previamente. Dentre todas as passagens que os cristãos de hoje podiam espe rar que fossem mais citadas na apologética cristã antiga, Is 53 é a principal; mas, na realidade, curiosamente esta é pouco usada no Novo Testamento. Como já foi observado, isso parecia combinar o elevado conceito da vindicação do mártir (nisto comparável à figu ra hum ana vindicada em Dn 7) com a concepção ainda superior do poder redentor da morte do mártir, até para seus algozes e opresso res. E, a príorí, ter-se-ia esperado que Is 53 ocupasse um lugar proeminente não só na interpretação que Jesus dava de sua missão e ministério como também na evangelização e apologética do cris tianismo primitivo. Mas, na realidade, a única citação clara de Is 53 que os Evan gelhos colocam nos lábios de Jesus é a alusão, peculiar a Lucas, ao fato de que Jesus “foi contado entre os iníquos” (Lc 22,37), não uma alusão redentora. Quaisquer outras alusões que podemos coligir nas palavras de Jesus se encontram em frases cuja dependência das palavras de Isaías não é demonstrável: precisamente em Mc 10,45 e as palavras da instituição da eucaristia.41 E até os próprios escritores do Novo Testamento surpreendentemente fazem pouco uso dos Cânticos do Servo de Iahweh. Fora do Novo Testamento, mas dentro do primeiro século, I Clemente 16 cita Is 53 extensa mente, embora neste caso esteja relacionado apenas o exemplo de humildade de Cristo; e Barnabé 5,2 cita a passagem da “reden ção”. Mas dentro do Novo Testamento usa-se muito pouco esta passagem. Mateus aplica Is 53,4 ao ministério da cura de enfermi dades por Jesus (8,17); Atos 3,13 usa o termo pais “servo” prova40. A grande preponderância de citações provém do Pentateuco e do Saltério. Mas há também algumas dos Profetas e dos Escritos (outras além dos Salmos) e traços de um conhecimento dos escritos apócrifos. 41. Também M.D. HOOKER, o.c. (capítulo IV* n. 23); cf. C.K. BARRETT, “The Background of Marck 10,45” in New Testament Essays, in mem. T.W. Manson, 1959, lss. 4 - As origens do Novo Testamento
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velmente naquele sentido (Atos 4 menos provável ainda); Filipe, o evangelista, aplica Is 53,7s (acerca da humilde submissão à injusti ça) a Jesus de acordo com Atos 8,32s; Atos 13,47 aplica outro Cântico do Servo (Is 49,6) aos apóstolos; IPd 2,24 tem uma clara aplicação das palavras redentoras à morte de Cristo (o único exem plo em todo o Novo Testamento). Mas nos escritos de Paulo, onde se pensaria encontrar muitos exemplos, há poucos. A menos que F1 2 contenha alusões ao texto hebraico de Is 53 (e isto, ainda que cer tamente possível e mesmo provável, não é demonstrável), as únicas outras alusões estão em Rm 4,25 e 10,16. A primeira é uma clara alusão à redenção (mas quão rápida!); a segunda é uma citação de Is 53,1 com o interesse de demonstrar que a obstinação de Israel foi amplamente prevista pelas escrituras como alguma coisa que se devia esperar e enfrentar.42 Assim, é usada raramente uma passagem das escrituras que se podia esperar tivesse contribuído para a formação e articulação da apologética cristã. Pode-se apenas supor que tenha sido de algum modo corrompida para este propósito; que tenha sido já desgasta da como argumento empregado contra os judeus, em circunstân cias que não podemos mais discernir claramente. J. Jeremias sus tenta que Is 53, em época pré-cristã, tinha sido aplicado por alguns ao Messias (ou ao Libertador escolhido por Deus, de alguma for ma) e que foi porque os judeus constataram tão claramente a sua aplicabilidade a Jesus que eles reagiram contra esta tentativa e co meçaram a impor à passagem uma interpretação bem diferente. Mais tarde, as interpretações rabinicas mostram como o sofrimen to tinha, ao menos naquela época, sido aplicado aos inimigos dos judeus, enquanto que só a exaltação e a glória tinham sido aplica das à sua própria nação ou ao representante dela.43 Se tais interpre tações começaram a ser usadas muito cedo no período cristão, é possível imaginar porque os apologistas cristãos apelaram só rara mente para Is 53: eles sabiam a priori como sua exegese seria con42. J. JEREMIAS, numa recensão da obra de M.D. HOOKER (citada acima) em J.T.S. 11, 1960, 140ss, lamenta que “trata o Novo Testamento como um mo saico e examina cada pedra separadamente”, e que ignora as alusões sobre as cita ções diretas, tais como pollôi, hypér ou anti, etc. 43. Cf. W. ZIMMERLI e J. JEREMIAS, o.c. (capítulo I, n. 21); e observar especialmente a interpretação aparentemente messiânica de Is 52,14 por um dos textos de Qumran (IQ Is A): cf. F.F. BRUCE, o.c. (capitulo IV, n. 18), 56.
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testada pelos opositores. Mas este argumento ainda ajudaria só um pouco para explicar porque as tradições a respeito das palavras do próprio Jesus mostram tão poucos traços diretos de seu uso por ele; pois os conteúdos destas tradições não estão, em outros pon tos, totalmente condicionados por aquilo que a Igreja parece ter considerado útil ou interessante para si; e, se Jesus tivesse citado extensamente Is 53, poder-se-ia esperar que, mesmo depois que ti vesse sido completamente abandonado pela apologética cristã, ain da sobreviveria entre as suas palavras. A vida, morte e ressurreição de Jesus eram claramente reconhecidas pela Igreja (e por ele mes mo também, como a evidência parece sugerir) como eventos salvíficos: este é o Evangelho de Paulo, de Pedro, da epístola aos Hebreus e dos escritos joaninos, ainda que se deixe de contar os si nóticos e o livro dos Atos. Contudo, a única passagem de natureza claramente redentora e sofredora nas escrituras judaicas é usada apenas com parcimônia. Eis um fenômeno que ainda aguarda ex plicação. ' . Contudo, talvez seja suficiente mostrar, por meio de alguns exemplos selecionados, como as escrituras começaram a ser usa das na apologética cristã primitiva, até que mais cedo ou mais tar de os resultados foram tratados completos, tais como Rm 9-11, a Epístola aos Hebreus e o Evangelho de Mateus. Fora e distante do Novo Testamento, encontram-se outros exemplos extensos, tais como a Epístola de Bamabé, a obra sobre os testemunhos de Cipríano e o Diálogo de Trjfort de Justino. Uma comparação entre estas obras e o Novo Testamento serve para pôr em claro relevo o predominante bom senso e circunspecção do Novo Testamento. Mas a menção de Cipríano é uma lembrança de que é Impor tante p ara a nossa investigação perguntar se podemos supor que os cristãos da época do Novo Testamento, como Cipríano e Melito antes dele (Eusébio, Hist. Eccl. 4,26), já usavam “ livros de testemu nho**, isto é, antologias de tais passagens do Antigo Testamento tão consideradas quanto significativas para os cristãos. J. Rendei Harris responde afirmativamente.44 Partindo do tratado de Cipriano sobre os testemunhos (cerca do ano 249) e observando fenôme 44. J. R. HARRIS, Testimonies, 1916, 1920.
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nos tais como a justaposição de passagens acerca da “pedra” de Is 8 e 28 em Rm 9 e lPd 2, ele sugeriu que a evidência aponta para o uso bastante antigo de tais livros de testemunhos. Mais recente mente, C. H. Dodd, seguido por J.W. Doeve e outros,43 tem susten tado que é possivel explicar de modo satisfatório os dados do Novo Testamento sem recorrer necessariamente à hipótese de antologias escritas, postulando simplesmente que os cristãos aprenderam a usar perícopes inteiras das Escrituras à luz dos eventos que tinham experimentado e que essas perícopes vieram a ser reunidas em suas mentes e em seus lábios. Mesmo assim, é difícil perceber, prima f a de, algum motivo pelo qual também as coleções escritas não de viam ter estado em circulação, e M.D. Hooker (Jesus and the Ser vant, 1959, 21ss) tem questionado se as afirmações de Dodd po dem, de algum modo, ser mantidas no caso dos Cânticos do Servo de Iahweh. Se coleções escritas de testemunhos eram usadas, somos con frontados uma vez mais com a debatidíssima hipótese de que os lo gia hebraicos atribuídos a Mateus por Papias (Eusébio, Hist. Ecci 3,39,16) eram testimonia do Antigo Testamento. Em geral, contu do, mesmo que admitamos a probabilidade de que os livros de tes temunhos circulavam nos tempos mais antigos, é possível que para Papias o termo logia significava ditos de Jesus, e que aquilo que ele descreve é algo semelhante àquilo que a erudição crítica rotulou como “ Q”, isto é, uma coleção ou grupo de coleções de ditos de Je sus, empregadas na compilação dos Evangelhos de Mateus e Lu cas.46 Que semelhante coleção de ditos devia ter sido associada 45. C.H. DODD, According to the Scriptures, 1952 (trad. bras.: Segundo as Escrituras, Edições Paulinas, S. Paulo, 1979); J.W. DOEVE, Jewish Hermeneutics in the Synoptic Gospeis and Acts, cerca de 1953; E.E. ELL1S, P auis Use of the Old Testament, 1957* 98$. Cf. também T.W. MANSON, “The Argument from Prophecy” in J.T.S. 46, 1945, 129ss; e B. LINDARS, New Testament Apologetic, 1961. 46. Para a origem do símbolo Q., cf. W.F. HOWARD, E.T. 50, 1938-9, 379ss. Geralmente se diz que deriva do alemão Quelle, “fonte”, mas R.H. LIGHTFOOT, History andInterpretation in the Gospeis, 1935, 27, em nota, rela ta como J.A. Robinson reivindicou para si o ter usado aquele símbolo pela primei ra vez, escolhido simplesmente porque (pronunciando conferências em Cambridge nos “anos noventa”) estava com o hábito de usar “P” para denotar o Evangelho de Marcos, como as memórias de Pedro, e “Q” era o símbolo natural para indicar o documento seguinte, W.F. Howard, contudo, observa que, próximo de 1892, J. WEISS, em Die PredigtJesu, havia usado o símbolo; e que há um indicio (embora
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com o apóstolo Mateus nâo é, a priori, inverossímil. De qualquer modo, quaisquer que sejam as respostas dadas às questões se hou ve livros e testemunhos do Antigo Testamento ou ditos de Jesus, permanece o fato importante que os primitivos escritos cristãos se formaram sob a influência da interpretação e da aplicação cristãs das escrituras judaicas. Quando se afirmou que perícopes inteiras dos Evangelhos foram compostas a partir de material do Antigo Testamento, isto está muito longe da evidência. Em geral, a evidên cia aponta para os eventos dos Evangelhos como o fator dominan te e decisivo, ao qual o material do Antigo Testamento está quase sempre subordinado. Às vezes, uma passagem do Antigo Testa mento pode ter contribuido com algum detalhe circunstancial no relato de uma tradição a respeito de Jesus (os dois animais da en trada triunfal de Jesus em Mt 21,2.5 fornecem um exemplo clássi co). A. Guilding, do mesmo modo, atribui o nome Malco (Jo 18,10) à particular leitura do Antigo Testamento que sua teoria encontra por trás desta passagem.47 Mas é questionável se alguma história neotestamentária sobre Jesus tenha sido gerada, do começo ao fim, unicamente por uma passagem do Antigo Testamento. Ao contrário, a escolha de passagens do Antigo' Testamento é determinada pelos eventos cristãos e sua interpretação é ditada pela tradição cristã. Na verdade, tem sido sugerido de modo plausí vel (Barnabas Lindars4®) que foi (por exemplo) no cumprimento li teral daquilo que ele crê que pode ter sido a própria predição de que Cristo ressuscitaria “ao terceiro dia” que os cristãos primeiro se fir maram; e que foi só num segundo momento que eles associaram aquela predição com Os 6,2, embora possa ter sido daqui que o próprio Jesus tenha retirado a frase (para significar “brevemente”). Portanto, os cristãos se viram obrigados a adotar, em virtude da pressão dos eventos, um novo método de seleção, justaposição, nào uma demonstração) que ele o tomara por empréstimo de seu pai, Bernhard Weiss, visto que J. Weiss, num ensaio elaborado para Studien und Kritiken, em 1891, afirma (p. 248): “O discurso apocalíptico, que nós, Weiss e outros deriva mos dos Logia (Q) . . Assi m, conclui Howard, a pretensão de J.A. Robinson de ser o inventor do símbolo cairia por terra; mas a razão da escolha do símbolo nào é necessariamente (até improvável) que fosse a iniciai da palavra Quelle. Nào seria totalmente natural, em português, designar um documento desconhecido por “F” simplesmente porque constitui uma fonte histórica. 47. A. GUILDING, The Fourth Gospel and Jewish Worship, 1960, 232. 48. Barnabas LINDARS, New Testament Apoiogetics, 1961, 59ss.
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agrupamento e interpretação daquilo que chamamos de passagens do “Antigo Testamento”;4* e, embora as escrituras judaicas exer cessem indubitavelmente uma grande influência sobre a forma pela qual os cristãos apresentavam o seu material e, por fim, sobre o modo de escrever e coligir as escrituras cristãs, esta influência esta va evidentemente subordinada não só à influência do testemunho apostólico acerca de Jesus como também à inspiração viva dos profetas cristãos na Igreja.
49. Neste período não havia ainda, naturalmente, um “canôn” definido das escrituras; os livros usados, por exemplo, por são Paulo, evidentemente incluíam alguns que conhecemos agora como “apócrifos” e mesmo “pseudoepigrafos”.
CAPÍTULO V
A IGREJA TOMA POSIÇÃO (3) Os evangelhos e o livro dos Atos
Está em voga associar os Evangelhos de Mateus e de Marcos com a atividade cultuai dos cristãos e o Evangelho de Lucas e o li vro dos Atos com a apologética.1 Contudo, há muito a ser dito para se julgar a apologética como um motivo proeminente nos três Evangelhos Sinóticos e talvez também no Evangelho de são João, no sentido de serem eles obras “didáticas”. Não que seja absoluta mente provável que Mateus e Marcos tenham sido escritos como opúsculos para o não-crente ler; eles são indubitavelmente livros para uso da Igreja. Contudo, mesmo assim, eles são mais facilmen te entendidos como instrução, certamente ensino para crentes, em primeiro lugar, mas com especial referência aos não-crentes: estes escritos ajudam os cristãos na explanação de sua fé e na defesa dela no momento oportuno.2 As tentativas de associar Mateus e Marcos primariamente com o culto não são inteiramente convincentes. A hipótese de Carrington, de que Marcos segue um sistema de lecionário, não parece re sistir a uma investigação mais acurada; e embora Kilpatrick torne possível a tese que Mateus representa a adaptação de tradições cristãs para a leitura litúrgica, a tese de Stendahl que ele representa 1. Cf., e. g., G.D. KILPATRICK, The Origins of the Gospel according to St. Matthew, 1946 (contra a posição de K. STENDAHL, The School of St. Matthew, 1954); P. CARRINGTON, The Primitive Christian Calendar, 1940 (contra a posição de W.D. DAVIES em The Background o f the New Testament and its Eschatology e According to Mark, 1961; B.S. EASTO N, Early Christianity: the Purpose o f Acts an d Other Papers, 1955. 2. Cf. C.F.D. MOULE, “The intention o f the evangelists” in New Testament Essays in mem. T.W. Manson, 1959.
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antes a obra de uma escola exegética e mais plausível.3 G, quando se começa a pensar nisso, torna-se bastante óbvio que, uma vez que alguém tivesse aceitado o Kérygma, precisaria de um preenchi mento dele e de uma (como que) “incorporação” do Jesus que ti nha sido proclamado assim tão brevemente como Senhor. A men sagem evangélica de Paulo, como a deduzimos de referências em suas epístolas, teria a necessidade de força para sustentar o amor e a fidelidade do crente, se não fosse reforçada por uma imagem do Senhor em suas palavras e atos;4 e mais: teria sido praticamente impossível explicar o cristianismo a um questionador ou defendê-lo contra um antagonista sem fazer uma descrição nas circunstâncias de “como tudo aconteceu”. É conveniente dizer à multidão de Jeru salém logo após a crucificação que o Jesus que tinham crucificado se tom ara Senhor e Cristo (Atos 2,36); mas ouvintes mais distantes no tempo e no espaço necessariamente perguntariam: “Quem é este Jesus e como veio a ser crucificado pelo seu próprio povo?” E até os recém-con vertidos logo perguntariam: “ O que se conhece a res peito de sua história? Que espécie de palavras e atos traziam recor dação dele? Por que ele entrou em choque com o seu próprio po vo?” É no contexto de semelhante inquirição que parece mais pro vável estar inserida a formação dos Evangelhos. De modo reitera do, Mateus tem sido definido como o Evangelho para os judeus. Com mais propriedade, todavia, poderia chamar-se o Evangelho contra os judeus,5pois grande parte dele se apresenta como muni 3. Há resenhas muito eruditas das possibilidades no comentário sobre Mar cos de S.E. Johnson, de 1960, e no comentário sobre Mateus, de F.V. Filson, de 1960. 4. Cf. C.H. D ODD em E.H. Sneath (editor), The Evolution ofE thics, 1927, 300ss, que afirma que a ética paulina encontrava seu perfeito ponto de contato na figura do Jesus histórico, que nos amou e morreu por nós e que deve ser imitado. (Vale a pena, de passagem, porém, lembrar o pouco interesse que parece ter havi do na antiguidade para com o retrato literal de pessoas, seja no sentido pictórico seja no descritivo. A famosa descrição da aparência de Paulo, nos Ato s de Paulo e Tecla 3, constitui uma exceção e de qualquer modo é bem recente). 5. “ . .. Uma apologia histórica do nazareno e de sua comunidade contra o judaísmo” : ZAHN, Einleitung, II, 294, citado por P. NEPPER CHRISTENSEN, Das Mattàüsevangelium, 1958, 13, n. 3. Igualmente, FEINE-BEHM, Einleitung, 53, citado ibid., J. SCHMID, Das Evangelium nach Mattàus, 1952, 2» ed. Zahn sustenta que é provável que “Mateus desejasse principalmente ver seu livro lido pelos judeus nao-crentes”. Contudo, ele pensa também nos judeus cristãos (mais judeus que cristãos talvez!) que seriam confundidos no debate com judeus nào-
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ção para os cristãos usarem quando fossem atacados pelos judeus não-cristãos que diziam: “Vosso Mestre não era o Messias” (res posta: “sim, ele era; era por descendência de Davi, harmonizandose com o modelo da profecia”: Mt l,lss e passim)\ ou: “Vosso Mestre não era um verdadeiro rabino, pois ele solapou a Lei” (res posta: “ pelo contrário, ele estabeleceu um ideal moral mais rígido que o dos rabinos” : Mt 5,17-20); ou ainda: “A pretensão dos naza renos de serem o verdadeiro Israel, é falsa” (resposta: “não, porque é sobre a confissão de Jesus como Cristo que Israel está edificado” : Mt 16,18); enfim: “Que tendes para dirigir-vos aos gentios?” (res posta: “É verdade que o Senhor se limitou cuidadosamente a diri gir-se a Israel durante o seu ministério e instruiu seus discípulos para fazerem assim também; mas as implicações mais vastas de seus ditos e o seu preceito eram universais”: Mt 8,11; 10,5.23; 15,26; 28,19). Eis justamente a espécie de argumentação que pode ter sido usada em semelhante debate e é fácil conceber Mateus como um tipo de manual para os cristãos que habitavam em gueto judaico ou muito próximo de um: provavelmente “próximo” em vez de “em”, pois tem sido questionado se os cristãos de quem o Evangelho se origina eram mesmo judeus. Ele é claramente dirigido a judeus; mas está igualmente claro que ele é dirigido por judeus? Há um ou dois detalhes que parecem surpreendentes, caso for su posto que foram escritos por alguém que conhecia intimamente o judaísmo.6 Por outro lado, há, incontestavelmente, a famosa alusão ao escriba que se tornou cristão (Mt 13,52) e um respeito para com os ideais dos escribas (Mt 23,2.34). Não é possivel que Mateus re presente a obra de um grupo de pensadores cristãos (a “escola” de Stendahl), uma espécie de “grupo de estudos” (cf. capitulo IV, n. 28), incluindo não só judeus como também gentios, que juntos reucristãos e necessitariam deste auxílio (Nepper-Christensen, 15, n. 11). Cf., tam bém, a nova abordagem por E. P. BLAIR, Jesus in the Gospel o/M atthew, 1960, e. g.: “ . . . é óbvio que a Igreja estava ocupada numa dolorosa luta com a Sinago ga . . 1 6 1 . 6. Mt 27,62: nào é possível que os sumos sacerdotes e fariseus tivessem ido a Pilatos no dia seguinte à Preparação, por que isto significa que o dia em questão era a Páscoa ou o Sábado? Mt 3,7; 16,1.6ss; é plausível esta combinação de fari seus e saduceus? Cf. os paralelos nos outros Evangelhos (onde isto é possível). Cf., também, K.W. CLARK, “The Gentíle Bias in Matthew” in J.B.L. 46, 1947, 165ss.
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niram as tradições (Marcos inclusive), formularam a argumentação e compilaram uma descrição tal de Jesus que ajudaria a eles e a sua comunidade a enfrentar os judeus não-cristãos? Temos aqui um grupo de cristãos “interpretando-se” como o verdadeiro Israel, em face de vizinhos que consideram seu nome impuro. O alvo do ata que é o “hipócrita” que (para esta comunidade) significa o judeufariseu não-cristão, exatamente como o termo ethnikós indica o gentio não-cristão. Não há dúvida de que somos obrigados a tratar, em qualquer relato de como se originou o Evangelho de Mateus e por que foi es crito, da contínua e antiga tradição acerca de um escrito semitico do apóstolo Mateus.7 A forma citada com mais freqüência é aquela de Papias (apud Eusébio, Hist. Eccl. 3,39,16), que fala dos “orácu los” (tá lógia), traduzidos do original semitico pelo leitor da melhor maneira que podia. Parece haver ampla concordância em que o Evangelho, como nós o conhecemos, não oferece evidência clara de ser uma tradução, como um todo e em suas partes mais distintivas, e compreende material que é difícil atribuir a um dos Doze. É difí cil, porém, entender como surgiu a tradição de um original semitico e apostólico, se não há absolutamente nada por trás dele. É mais natural, provavelmente, postular a existência de uma coleção de di tos apostólicos em lingua semítica (talvez a coleção chamada “Q”) que foi usada, ao que parece, por Lucas; e supor que, embora esti vesse muito distante do original, esta havia contribuído com o for necimento das tradições inseridas em nosso Evangelho atual. Tor na-se ainda possível considerar o Evangelho de Mateus, na sua for ma atual, como uma coleção de “explanações didáticas” para os cristãos usarem entre si para a edificação e no debate com os ad versários. Se “os oráculos” forem identificados com uma fonte original semítica que está por trás tanto de Mateus como de Lucas, então é concebível que a alusão de Papias a diferentes versões gregas (“ca da leitor as traduzia da melhor maneira que podia”) pode ajudar na explicação de algumas diferenças entre Mateus e Lucas nestas pas 7. Cf. os textos colígidos por NEPPER -CHRISTENSEN, o.c. (capitulo IV, n. 26), 2I0s (EUSÉBIO, Hist. E ccl 3,24,6; 3,39,16; 5,8.2; 5,10,3; 6,25,4; JERÔNIMO, De vir. tll., 3, em Mt 2,12; Adv. Pelag. 3,2).
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sagens paralelas.8 Isto não significa, obviamente, negar que muitas diferenças (talvez a maioria) possam ser atribuídas a predileções teológicas e de outros gêneros dos redatores ou editores (isto é demonstrável no seu uso comum de Marcos); trata-se apenas de su gerir que algumas destas diferenças podem ser explicadas como va riantes de um original semítico comum. Isto seria válido, pelo me nos em parte, mesmo que fosse adotada uma posição extremada, pressupondo (como é a tendência da erudição escandinava) tradi ções orais em vez de algo tão rigoroso como um documento (“Q ”). Uma coisa é clara acerca do enigmático Evangelho segundo Mateus, como vemos agora: ele abrange uma considerável exten são de tradições e nenhuma perspectiva absolutamente coerente pode ser extraída dele. Pode ser que o próprio escritor (ou escrito res, se fosse um grupo) tivesse um plano e uma perspectiva coeren tes, por exemplo, a aprovação da evangelização dos gentios e a de fesa da Igreja Cristã como o verdadeiro Israel, sem fazer dos gen tios primeiramente prosélitos judaicos. Contudo, o respeito pelas tradições e o desejo de preservá-las, mesmo quando elas não po diam ser ajustadas ao esquema, pesaram mais do que o desejo de manter a coerência. Por isso, ditos de caráter particular e rigorista se encontram lado a lado com ditos de caráter liberal e universalista. Talvez a discrepância mais flagrante seja constituída pela pre sença dentro deste Evangelho do famoso dito de Mt 10,23: “Em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Is rael até que venha o Filho do Homem”. Ou o evangelista identifi cou aqui a vinda do Filho do Homem com a Ressurreição, a des peito de em outras passagens considerá-la claramente como um evento de um futuro mais remoto; ou ele está interpretando o pre ceito missionário de Mt 10 sem qualquer relação com o contexto do ministério de Jesus, no qual ele próprio o colocou, e aplicandoo, em vez disso, à sua própria situação contemporânea; ou ele está preservando fielmente um dito encontrado em suas tradições, o qual (fosse genuinamente ou não do Senhor) não mantinha mais qualquer tipo de relação com o seu tempo; ou, enfim, o dito se rela cionava originalmente com a “vinda do Filho do Homem” na crise 8. Cf. Excurso I: Grego de tradução e grego original em Mateus.
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da guerra judaica.9 Dentre estas difíceis alternativas, a última é, tal vez, a mais plausível. Há outro dito de Mateus, já mencionado acima, que é clara mente difícil de ajustar-se convincentemente ao esquema de Ma teus, isto é, o dito “rigorista” de Mt 5,18 acerca do valor perene da Lei e dos Profetas: “Porque em verdade vos digo que, até que pas sem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da lei, sem que tudo seja realizado”. Mas é possível que esta pala vra fosse preservada pelo evangelista dentre as suas tradições, a fim de refutar acusações de solapar os mais altos ideais éticos do judaísmo, dirigidas evidentemente pelos judeus contra cristãos. Ela serviria para precisar que o próprio Jesus não havia proposto um ideal mínimo, mas um ideal máximo. Esta não é uma explicação mais verossímil do que aquela proposta comumente10, segundo a qual o dito reflete críticas a uma tendência antinômica dentro da comunidade de Mateus? Não se trata, ao contrário, de uma arma retirada do arsenal dos logia (embora neste caso também não usa da por Lucas) contra não-cristãos que acusavam os cristãos (da mesma que são Paulo foi acusado) de arruinar o judaísmo? Se considerarmos Mateus com o uma coleção de tradições com piladas por um grupo de cristãos que tinham um ponto de vista de finido e uma linha de defesa precisa para sustentar contra a oposi ção judaica, mas que ainda estavam mais ansiosos de preservar as tradições do que de observar a coerência em tudo, talvez estejamos vendo este Evangelho em sua verdadeira perspectiva. Não seria ne cessário acrescentar que sua cuidadosa disposição em tópicos toma plausível a idéia que ele foi planejado para a instrução dos crentes em sua fé e em sua defesa. Este é um manual (neste sentido, seme lhante ao Didaché), um livro de catequista; contudo, serve para a instrução em apologética tanto com o em religião e moral.11 9. Cf. A. FEUILLET, “Les Origines et la signification de Mt 10,23b” in Cath. Bib. Quarterly 23, 2, abril de 1961, 182ss. 10. E. g., recentemente por Gerhard BA RTH, Überlieferung und Auslegung im Mattãus-EvangeUum, 1960, 149. 11. Cf. W. TRILLING, Das wahre Israel, 1959, para uma apresentação mui to interessante da tese de que o escopo de Mateus é apresentar a Igreja Cristã como o verdadeiro Israel, para quem o Senhorio de Deus significa o Senhorio de Cristo e cuja missão é dirigida a todo o mundo. Trilling considera as palavras fi nais do Evangelho como normativas para a sua perspectiva geral. E.P. BLAIR,
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Marcos, numa escala mais moderada, também fornece material para catequese e defesa. Ele mostra como surgiram o ciúme e o an tagonismo contra Jesus; assinala o reconhecimento de Jesus como Cristo e Filho de Deus por poucos e explica sua rejeição por mui tos. Contém um núcleo das histórias de seus atos e palavras pode rosas. Não é tão evidentemente antijudaico como Mateus e é pró prio para a instrução de cristãos, geralmente através de uma expo sição explicativa, para judeus e gentios, de como tudo começou e por que eles afirmaram que Jesus era o Cristo e o Filho de Deus. Ele começa com uma aplicação das Escrituras ao estilo pesher, in cluindo o próprio texto de Is 40 (“Voz do que clama . . . ”) que, já sabemos, era usado também nos círculos de Qumran (1QS, 8,1216), em combinação com outros textos das escrituras (Ml 3,1 ou Ex 23,20); estes dois se referiam (segundo o evangelista) ao adven to de João Batista. E através de todo este Evangelho ocorrem testi monia do Antigo Testamento. Marcos é o Kérygma apostólico (in cluídas as passagens probantes do Antigo Testamento) elaborado numa vivida forma de narrativa. Lucas e João, cada um a sua maneira, são diferentes. É mais fácil imaginá-los como planejados realmente para serem colocados nas mãos de um leitor hostil ou incerto e não dependente da media ção verbal dos cristãos. Se Mateus e Marcos são instruções para ajudar os cristãos a interpretar-se a si próprios, não só para si mes mos como também para os outros, o complexo Lucas-Atos, de al guma maneira, representa a palestra direta de uma simples pessoa a um catecúmeno (que podia ser o Teófilo) e a outros da mesma ca tegoria, pessoas que viviam à margem, os estranhos à Igreja, que estavam olhando para o seu interior com curiosidade; possivelmen te até esta obra se endereçava indiretamente, através deste tipo de simpatizantes, também aos leitores realmente antagônicos.12 Isto o.c. (cf., neste capítulo, n. 5), aventa a hipótese de que Mateus pode ser uma espé cie de revisão de Marcos feita por um helenista, enquanto que João representa a tradição helenista em sua forma mais pura (157). Contudo, é questionável se a hi pótese aventada por O. Cullmann acerca dos helenistas (pressuposta em Blair) pode autorizar semelhante conclusão. 12. C.H. ROBERTS, em suas “Sandars Lectures”, pronunciadas em Cambridge, em fevereiro de 1961, assinalou que os primeiros livros cristãos en contrados em rolos, em contraste com os códices cristãos comuns, são Lucas e Atos, mostrando que, possivelmente, eram destinados a um público leitor não-
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não significa que ela não contenha um material esplêndido para a edificação da Igreja; contudo, se estamos procurando o escopo pri mário, ele se parece com alguma coisa voltada para o exterior. É mais improvável que tenha sido produzido em muitas cópias. Mais provavelmente o único original tenha sido enviado a um único in divíduo, Teófilo, copiado só mais tarde (e talvez retocado como no caso de códex D). Evidentemente, é possível exagerar o caráter apologético do livro dos Atos. De vez em quando, ele é descrito como se seu propósito fosse provar às autoridades romanas (por meio do excelentíssimo Teófilo) que o cristianismo tem tanto direito a existir quanto Israel; ou, antes, que só os cristãos são o verdadei ro Israel. É duvidoso se Lucas faria exatam ente aquilo que fez caso fosse este o seu único escopo. Sem negar a existência do elemento apologético como um elemento de contribuição, está mais próximo do alvo considerar o livro dos Atos, no geral, como um a grande de fesa da vontade de Deus. Ele é uma história da minúscula mas po derosa semente de mostarda; é a narrativa do Espírito Santo man tendo e defendendo a causa de Cristo, de tal maneira que as bar ras da prisão caem como barro diante do decreto divino; ou, se uma testemunha do Evangelho sacrifica sua vida, então ela contri bui positivamente para o progresso da própria causa contra a qual o inimigo está erguendo a espada. Toda a história atinge o seu climax através de tempestade e naufrágio, a tram a de homens maus e o ataque da serpente: nada pode impedir o “vaso eleito” de fazer a vontade de Deus.13 Portanto, nos Evangelhos Sinóticos e no livro dos Atos, cada um com a sua ênfase particular, pode ser encontrado o depósito do ensino cristão primitivo: aqui estão as vozes dos cristãos que expli cam aquilo que os induziu àquele tipo de existência; como eles se tomaram cristãos: é contando a história a si mesmos que podem re peti-la aos outros, ou até contando-a diretamente aos outros. cristão. Ele arriscou a hipótese (contrária à minha, exposta mais adiante) de que o códex D pode representar a edição “pública” e o códex B uma “revisão restrita” para uso cristão. M. DIBELIUS, Studies in the Acís o f the Apostles, trad. inglesa, 1956, 89s, examina as numerosas variantes do texto dos Atos e as atribui á circu lação da obra em ambiente “secular”. 13. H. CHADWICK, The Circle and the EUipse, 16. Uma avaliação muito preciosa do propósito do complexo Lucas-Atos pode ser encontrada em C.K. BARRETT, Luke the Historian in Recent Study, 1961.
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Que se pode dizer acerca do grande enigma que são a origem e o propósito do Evangelho de são João? Ele declara acerca de si mesmo que seu objetivo é ajudar a crer (20,31). Isso significa forta lecer a fé daquele que já é crente ou suscitar a fé no descrente? Este é um problema muito familiar e quase certamente não pode ser re solvido em bases puramente gramaticais. A expressão (em ambas as formas variantes) podia significar, caso se desejasse, uma ou ou tra coisa.14 Se desejamos encontrar uma resposta adequada, esta deve estar na natureza do Evangelho (e suas epístolas congêneres) como um todo. Recentemente, têm sido feitas algumas fortes pro postas para considerá-lo como um Evangelho para os judeus, pre cisamente os judeus da diáspora, que/oferecem uma brilhante re presentação das primitivas tradições palestinenses, de grande valor histórico, de tal modo a falar às suas necessidades e hesitações e constranger a sua atenção.13 Contudo, é quase impossível explicar certos fenômenos, se o Evangelho fosse dirigido exclusivamente aos judeus: que a Páscoa era uma festa judaica é quase uma glosa de que se necessitou. É mais fácil pensar que o Quarto Evangelho tenha sido escrito tanto para os judeus como para os ^gentios, consi derando que as glosas (tão lamentavelmente elementares mesmo para os judeus da dispersão) foram introduzidas em beneficio dos gentios. Muito importantes são a perspectiva geral e a abordagem deste Evangelho. Ele, ao contrário dos outros, se propõe a responder a questão: “Que devo eu fazer para ser salvo?” Os outros Evange lhos se limitam, em geral, à história do discipulado; o Quarto Evan gelho fala em termos não só de seguir e imitar, mas também de crer 14. Cf. a discussão deste problema em C.H. DODD, The Interpretation of the Fourth Gospel, 19 53 ,9 (trad. bras.: A Interpretação do Quarto Evangelho, Ed. Paulinas, São Pauto, 1977). 15. W.C. VA N U NNIK , “The Purpose o f St. John’s Gospel” in Studia Evan gélica (T. und U. 73, 1959); também em The Gospels Reconsidered 1960, 167ss; J.A.T. ROBINSON, “The New Look on the Fourth Gospel”, ibid. 338ss; “The Destination and Purpose of St. John’s Gospel” in JJf.T.S . 6.2, janeiro de 1960, 117ss; para uma panorâmica dos pontos de vista, AJ.B. HIGGINS, The Historicity o f the Fourth Gospel, 1960. Para os argumentos que, enquanto reconhecem muito material apropriado para os judeus, dão uma considerável ênfase também à apologética gentílica, cf. C.H. DODD, The Interpretation o f the Fourth Gospel, 1953 (trad. bras.: A Interpretação do Quarto Evangelho, Ed. Paulinas, São Paulo. 1977).
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e incorporar-se. O que se observa com menor freqüência è que tam bém ao responder à questão: “Que devo eu fazer . . apresenta uma mensagem extremamente individualista. Enquanto que são Paulo vê Jesus como a Nova Humanidade, o Corpo em que os membros estão organicamente ligados, Aquele em quem se opera realmente a ressurreição de toda a humanidade, são João vê Jesus como a Fonte da Vida, com quem é preciso se estar ligado indivi dualmente para se ter a vida eterna; o Espírito Santo é concebido como a presença do Senhor em cada coração e João já pode falar do cumprimento disto, porque age em nível individual. Ele não nega a ressurreição geral no último dia ou a vinda do Senhor no fim; contudo, ele está interessado na fé individual e em seu contato com o Senhor da vida aqui e agora. Eis aqui um Evangelho que, com este alcance, podia ser prontamente aceito pela mentalidade dos gentios. Talvez se trate da explicação do cristianismo feita pelo evangelista para o povo cosmopolita de Éfeso, composto tanto de judeus como de gregos.16 O Quarto Evangelho contém também uma áspera polêmica contra os judeus. O conflito de Jesus com os seus adversários, es pecialmente nos capítulos 7-9, é retrospectivo da mais dura contro vérsia com os judeus que encontramos em outras partes do Novo Testamento, incluindo algumas epístolas paulinas e Mateus. A his tória do cego de nascença, no capítulo 9, parece ser narrada de tal maneira a tipificar as conseqüências do batismo cristão num am biente judaico antagonista. A condição do ser humano nascido em pecado (versículo 34) é equivalente à do ser (espiritualmente) cego desde o nascimento (versículo 1). A iluminação (ou batismo) vem da lavagem com água que é (como o próprio Cristo) divinamente “enviada” (versículo 7). Talvez até a unção batismal seja aludida no uso do verbo epéchrisen (“fez lama”) do versículo 11 (embora no versículo 6 se empregue epétheken, simplesmente “aplicou”). Se gue-se então o simples testemunho cristão: “Uma coisa eu sei: é que eu era cego e agora vejo” (versículo 25); e, por fim, observa-se que isto significa a básica confissão cristã, isto é, crer em Jesus como Filho de Deus (ou Filho do Homem? A leitura é incerta) e 16. Cf. C.F.D. MOULE, “The Individualism of St. John’s Gospel” in Nov. T., 1961.
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Senhor (versículos 35-38). A conseqüência inevitável da “ilumina ção” é o ostracismo e a excomunhão da sinagoga (versículos 22 e 34). Assim, embora a ordem dos eventos não se adapte perfeita mente ao modelo do rito batismal, as expressões esparsas e o qua dro total provocam, no conjunto, uma irresistível impressão que uma parte genuína da tradição do Senhor está sendo reelaborada à luz dos conflitos reinantes. E é fácil crer que acontece o mesmo com os capítulos 7 e 8, bem como com outras passagens esparsas menos extensas.17 Portanto, aqui podemos estar diante de excelentes tradições das reais controvérsias do próprio tempo de Cristo, preservadas e reelaboradas de tal modo a se tornarem inteiramente atualizadas para as circunstâncias em que vivia o evangelista. Numa cidade como Éfeso, o místico e o rabino judeu, o gnóstico e o ebionita acotovelavam-se um com o outro: e a história da Palavra de Deus encarna da, com suas poderosas palavras e atos luminosos, tinha uma men sagem para todos. Nos quatro Evangelhos, a narrativa da paixão representa uma parte integrante proeminente e proporcionalmente extensa. Em ne nhum deles, a narrativa é feita de modo a ressaltar claramente o as pecto redentivo da morte de Cristo, embora as alusões do Antigo Testamento tornem claro que a história inteira é considerada como o cumprimento do desígnio salvifico de Deus para com o seu povo; e tanto é assim que seus próprios oponentes, inconscientemente, contribuem para compor o plano. Uma vez mais, então, é um pro pósito didático ou apologético que parece servir de base para a nar ração; e isto se revela não só nas alusões do Antigo Testamento, mas também na parte de pura narração. É precisamente o propósi to apologético que tem, de acordo com uma das mais recentes den tre as numerosas reconstruções, distorcido grosseiramente as nar rativas do julgamento de Jesus nos Evangelhos. P. Winter susten ta 18 que Jesus foi realmente condenado pelo governador romano como rebelde e que os Evangelhos, ao declararem a cumplicidade 17. Cf. C.H. DODD, "A Parrière-plan d’un dialogue johannique” in Rev. d ’Hisí. et de Philos. 50, 1951, 5ss. 18. P. WINTER, On the Triai o f Jesus, 1961. Para contrastar, cf. J. BL1NZLER, D er Prozess Jesu, 1960, 3* ed.
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dos judeus em sua morte, apenas refletem um período quando os cristãos estavam tentando conquistar a amizade do governo, isen tando os romanos, tanto quanto possível, de culpa. Esta teoria, bem à parte da dificuldade de eliminar tanto daquilo que é circuns tancial, como se fosse pura invenção,19 não faz justiça à evidência, indicada acima, que o modo de vida e o ensino de Jesus já eram re conhecidos durante seu ministério como uma ameaça ao judaísmo farisaico. E, até certo ponto, a história de Paulo também, como é apresentada no livro dos Atos, não pode ser facilmente descartada como prova de que a posição cristã é basicamente tal que deve sus citar oposição do lado judaico. É muito mais racional a partir das narrativas do julgamento, quaisquer que sejam as inegáveis dificul dades e discrepãncias nos detalhes, aceitar como histórica a exis tência de uma oposição judaica. Só emerge uma história verossímil, se podemos supor que o ponto principal da acusação dos judeus fosse “blasfêmia” (ou, pelo menos, alguma forma de heresia), mas que os judeus não escolheram (mesmo que tivessem poder para tal)20 executar a sentença de morte, mas em vez disso preferiram conseguir que Jesus fosse crucificado pelos romanos como rebelde. Esta reconstrução dos fatos tornaria compreensível a acusaçãc como uma hábil tentativa por parte dos líderes judaicos de eliminai uma perigosa figura popular, sem se tomarem impopulares. De qualquer forma, um dos motivos primários que estão por trás das narrativas do julgamento e da crucificação —é bastante provável — seja simplesmente a exigência de explicar como Jesus veio a ser crucificado, embora sendo o Filho de Deus e o Messias.
19. Cf. o interessante artigo “Neue Forschungen über den Prozess Jesu”, de H. VAN DYEN, in Christlich-jüdisches Forum, 26, maio de 1961, lss. 20. Para uma recente discussão deste problema, cf. P. WINTER, o.c.
CAPÍTULO VI
A IGREJA TOMA POSIÇÃO (4) O reino de Cristo
“Mas onde está o vosso Messias?” Exatamente como idólatras mais grosseiros apontavam zombeteiramente para o santuário va zio dos judeus, até que eles fossem obrigados a exclamar: “O nosso Deus está nos céus” (SI 115,3), assim também os não-cristãos, tan to judeus como gentios, naturalmente perguntavam aos cristãos o que aconteceu com o Rei, o qual, segundo alegavam, ressuscitara. E, nos seus corações, os cristãos tinham de enfrentar a mesma questão. Se o cristianismo fosse interpretar a si mesmo, uma das primeiras dificuldades que tinha de explicar era a invisibilidade do Senhor dos cristãos e o fato evidente de que o seu reino de paz ain da não estava implantado. Segundo o livro dos Atos e João 21, houve um período depois da crucificação durante o qual Jesus apresentou-se vivo a testemu nhas escolhidas, embora não a quaisquer outros (Atos 1,1-11; 10,40s; 13,31; João 21); e foi durante esse período que os discípu los realmente nutriram a esperança de que a qualquer momento ele poderia manifestar-se a todo o mundo e restaurar a supremacia de Israel: “Senhor, será agora que haveís de restaurar a realeza em Is rael?” (Atos 1,6). Quando ficou patente que tal esperança era ilusória e ele foi fi nalmente e decisivamente afastado da vista deles, estes passaram a aguardar um retorno muito breve. E a vivida manifestação de po der e de confiança no Pentecostes foi saudada como um dom provi sório do Senhor exaltado, até a consumação do plano de Deus, quando Jesus retornaria (Atos 2,33; 3,21).
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H á pouca dúvida de que foi este o tipo de expectativa que pre valeceu durante um longo tempo, como, na verdade, ainda hoje (mutatis mutandis e extensis extendendis) se observa em muitos corações cristãos: Cristo, exaltado ao trono de Deus no céu, desti nado a descer de novo no final dos tempos e, nesse intervalo, repre sentado na terra pela concessão de seu Espírito e de seu poder; a Igreja, nesse tempo, está encarregada da tarefa de difundir a boa nova e operar conversões. Tal é, basicamente, o esquema da esperança de Paulo através de todas as suas epístolas. Mesmo que sua inspirada compreensão aprofunde o significado teológico e religioso do Espírito, ainda as sim permanece verdade, do ponto de vista de Paulo, que ser incor porado em Cristo significa possuir cidadania no céu, de onde aguardamos a vinda de Cristo como Salvador (F1 3,20). Cristo ha bita entre nós, agora, mediante o seu Espírito: exclamar “Abbá! Pai!” significa ser capaz de fazer, por meio do Espirito de Deus, a exclamação de obediência filial a Cristo (Rm 8,15; Gí 4,6). Toda via, isto tem ainda de ser consumado na revelação dos filhos de Deus: o Espírito Santo é ainda apenas o penhor e as primícias de alguma coisa no futuro (Rm 8,21-23; 2Cor 1,22; Ef 1,14). O Evangelho de são João, freqüentemente concebido como re presentante da mudança completa da esperança futura para a pre sente realização da vida eterna, com a vinda do Paráclito em subs tituição ao retomo de Cristo, realmente não vai além de enfatizar a importância da presença do Espírito ao nível individual1 Para cada pessoa que responde positivamente, já há uma vinda do Espírito Santo; o discípulo de Cristo já está onde Cristo está. Contudo, não temos aqui nada para substituir a consumação coletiva de todo o povo de Deus como um evento futuro. E está claro que seria uma grosseira simplificação dispor a escatologia do Novo Testamento numa linha evolutiva, com uma primitiva esperança de parousia em suas raízes, com são Paulo como importante instrumento de transição e o Quarto Evangelho como fruto de um pensamento de senvolvido e perfeitamente integrado. A vinda de Cristo já “efetiva da”, de que fala são João, é apenas ao nivel individual e exige relati1. Cf. C.F.D . MOULE, “The Individualism o f St. John’s Gospel” in Nov. T (Festheft em honra de E. Stauffer),
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vãmente um pequeno lapso de tempo ou pouco desenvolvimento do pensamento para alcançar aquela convicção. Inversamente, uma vivida esperança de uma consumação futura é perfeitamente com patível com a doutrina do Espírito num nível até mais profundo do que o joanino, como está demonstrado em Rm 8. Assim, o Novo Testamento, como um todo, não se afasta mui to deste esquema essencialmente simples: Jesus foi proclamado o real Filho de Deus mediante a ressurreição (Rm 1,4); Deus o tor nou não só Senhor, como também Cristo (Atos 2,36). Ele já reina nos corações daqueles que lhe pertencem, mas saiu de nossa vista, sem ser ainda universalmente aceito e aclamado. Cabe à Igreja, fortalecida pelo poder do Espírito Santo, operar para que aquele fim seja atingido (Atos l,7s; etc.). Portanto, se alguém perguntar a um cristão, ou se ele mesmo se perguntar: “Onde está o vosso Rei? Por que não se vê o seu reino?”, ele está obrigado a responder que o Reino, embora na verdade já inaugurado, não está ainda consumado. A mais clara expressão deste conceito está em ICor 15,25: “Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés” (alusão ao SI 110); e em seguida a conclusão do período (v. 28), de que o próprio Cristo estará sujeito a Deus, é (à luz das formulações dogmáticas posteriores) surpreendentemente “subordinacionista” (cf. ICor 11,3, onde há uma espécie de hierarquia: Deus, Cristo, o homem, a mulher). Ainda que mais fracamente, porém, a mesma idéia parece fazer-se quase audível em Ap 11,15, onde se afirma que a realeza do mundo “passou para nosso Senhor (Deus) e seu Cristo, que parece implicar uma consciência de distinção. Também em Mt 23,3lss, pode haver alguns resíduos de uma consciência do “reino de Cristo” que o distingue do “Reino de Deus”.2 Contudo, se é realmente assim, Ap 3,21 mostra como, lado a lado com tal noção, a concepção da igual realeza de Cristo e de Deus pode ter ocupado os pensamentos (“Eu mesmo venci e sentei-me com meu Pai em seu trono”); e é duvidoso se até as passagens paulinas cita das acima indicam mais do que um reconhecimento de que a Igreja está vivendo um estágio de ínterim, aguardando a consumação e o 2. Cf. C.H. DODD, “Matthew and Paul” in New Testament Studies, 1953, 53ss (originalmente publicado em E.T. 1947).
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cumprimento da vitória de Cristo, que é a vitória de Deus. A fór mula paulina que descreve os cristãos “em Cristo” é semelhante a “em Deus”; significativamente, o único exemplo de seu uso da fór mula dupla (“escondida com Cristo em Deus”) ocorre num contex to de esperança escatológica. A atitude do Novo Testamento para com a vitória de Cristo sobre os poderes demoníacos se relaciona com o mesmo problema. Cullmann3 sustenta que, para os cristãos, a cruz significava a vitó ria sobre os poderes malignos, os quais, desde então, se reduziram à obediência absoluta. Tanto assim que agora é um dever positivo para os cristãos obedecer e se submeterem, porque são servos de Cristo. C.D. Morrison, ao contrário, sustenta4 que, embora estives se claro para o cristão que Cristo sempre tinha sido, e é eternamen te superior aos “poderes”, sua morte, em si, não fez diferença no domínio temporário desses poderes, mas apenas livrou os cristãos, como tais, da necessidade de estar submissos à sua tirania. O versí culo mais problemático para a posição de Morrison é Cl 2,15 (“na cruz . . . despojou os Principados e as Autoridades, expondo-os em espetáculos . ..”), que parece definir a cruz muito explicitamente como a oportunidade para o triunfo sobre os poderes. Não obstan te, em geral, a sua posição parece convincente. De qualquer forma, o que interessa no momento é que a especulação cristã acerca dos poderes angélicos demoníacos dá um testemunho ulterior do senti do de transitoriedade de um tempo que preludia a consumação fi nal. Estreitamente relacionada com a mesma situação é a idéia de que a evangelização do mundo deve ser alcançada antes que a con sumação possa vir. A narrativa do livro dos Atos parece articularse ao longo desta linha (Atos 1,11; 2,33; 3,19ss), embora, bastante curiosamente, Lc 21,24 não mencione a evangelização dos gentios, mas (aparentemente) fala tão só de uma quota necessária de anos, durante os quais os gentios devem dominar sobre Jerusalém: “ . . . Jerusalém será pisada por nações até que se cumpram os tempos das nações”. Esta passagem contrasta com o paralelo de Mateus: “E este Evangelho do Reino será proclamado no mundo inteiro 3. O. CULLMANN, The State in the New Testament, 1957. 4. C.D. MORRISON, The Powers that Be, 1960.
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como testemunho para todas as nações. E então virá o fim” (Mt 24,14; se Mc 13,10 tem o mesmo significado é outro assunto).3 De qualquer maneira, Paulo viu claramente a evangelização dos gen tios como um passo essencial em direção à consumação final: “ . . . o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a pleni tude dos gentios e assim todo Israel será salvo . . ( Rm 1 l,25s).6 A variedade que há nas formulações desta idéia de época inter mediária no Novo Testamento depende da variedade de situações. Voltaremos a falar mais acerca disto, quando considerarmos o erro e a heresia na Igreja. Entretanto, neste momento, vale a pena ob servar que houve dois extremos no engano que tinha de ser refuta do. Primeiro, havia aqueles que diziam que a ressurreição (dos cris tãos) já tinha ocorrido (2Tm 2,18; cf. ICor 15 e, talvez, 2Ts 2,2).7 Esta posição era, provavelmente, um tipo de pensamento dualístico ou “gnóstico”: negando a realidade ou a importância do mundo material e concentrando-se na experiência religiosa individual, estes heréticos sustentavam que, por meio do batismo, eles já se fizeram participantes da vida ressurreta e que não havia mais nada a espe rar. (Eles bem facilmente podiam ter compreendido mal a perspec tiva representada por João neste sentido). Por outro lado, os cris tãos, que eram fiéis ao testemunho apostólico, sustentavam que o corpo visível da ressurreição de Jesus era as primícias e a garan tia, nao da fuga do mundo mas de sua redenção, e que eles espera vam um evento coletivo ainda no futuro, a ressurreição de todo o povo de Deus para entrar numa nova vida, “a redenção do nosso corpo” (não “ a partir do corpo” , Rm 8,23). Afirmavam a redenção coletiva contra a fuga individualística. Em segundo lugar, havia os “escamecedores” que diziam: “po deis esperar eternamente e nada acontecerá. As coisas continuam exatamente como elas eram antes. Nunca haverá um fim do mun do”. O erro verdadeiro aqui é fazer do tempo a medida de todas as coisas. A própria forma de escárnio testemunha uma incompreen são do problema verdadeiro, pois a esperança cristã não deve ser 5. Cf. G.D. K.ILPATRICK, “The Gentile Mission in Matthew and Mark XIII, 9-11” in Studies in the Gospels, 1955. 6. Cf. J. MUNCK, Paulus und die Heilsgeschichte, 1954. 7. Cf. E. SCHWEIZER, Lordship and Discipleship (cf. capitulo IV, n. 5) 112 e também 28, n. 1.
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medida principalmente em termos cronológicos, mas em termos da contínua atuação para o seu completamento num dado, isto é, a en carnação.8 Em seu nível mais profundo, a escatologia do Novo Testamento não é senão um esforço para penetrar, concretizar e exprimir fielmente aquilo que é o dado primário, isto é, Cristo. A escatologia não diz: “Quanto tempo haverá antes que toque o apito final?”, para usar uma imagem esportiva, mas pergunta: “Onde de via eu estar agora para receber a próxima jogada?” Em outras pa lavras, o fato de já ter sido dado o chute inicial significa que o jogo continua e que temos um capitão que pode conduzir-nos à vitória, eis tudo aquilo que importa. Contudo, um a vez que uma falsa ques tão foi formulada, ficou difícil evitar um a resposta em seus próprios termos: e 2Pd 3,8 mostra-nos a aplicação do SI 90,4 como uma resposta ad hominem: Deus tem um modo diferente de medir o tempo; para ele, mil anos são como um único dia; portanto, não se pode censurá-lo pelo retardamento! Sempre que entram em consideração problemas de tempo, po demos encontrar conclusões pouco equilibradas. Se os escarnecedores exploram o “retardamento” para tirar falsas inferências, o extremo oposto, a obsessão do “tempo que é breve”, parece ter le vado Paulo a alguns de seus juízos menos permanentes. Não só a esperança de uma parousia iminente como também seu adiamento sine die parecem ter conduzido a conclusões infrutíferas. Nenhuma destas posições, porém, é característica do pensamento do Novo Testamento, o qual se concentra muito mais sobre o dado, isto é, sobre o fato de que o Reino de Cristo já foi estabelecido, o Reino de Deus já foi inaugurado, e que a responsabilidade dos filhos do Reino consiste em agir aqui e agora como aqueles que receberam o encargo de testemunhar sobre a realidade do Reino.9 E, nos mo 8. Cf. J.A.T. ROBINSON, Jesus and his Corning, 1957» onde elabora agu damente este ponto, ainda que nào se concorde plenamente com outros aspectos do argumento. 9. Cf. E. SCHWEIZER, Lordship an d Discipieship (cf. capitulo IV, n. 5), 22s: “É possível que por um pouco a esperança da parousia iminente tenha suprimido o tratamento de quaisquer outras questões. Contudo, devemos dizer que esta espe rança nào exerceu alguma influência substancial sobre as primeiras profissões de fé da Igreja”. E. KÀSEMANN escreve: “A afirmação joanina de que o julgamen to já se deu era, in nuce, já antecipada na comunidade cristã do periodo pósressurreiçâo mais antigo, ainda que, em João, seja expressa numa forma que é di-
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mentos de culto cristão, tempo e espaço sempre são obliterados, e a Igreja que cultua na terra sente-se unida, na eternidade, com a Igre ja que cultua nos lugares celestiais: Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da Cidade do Deus vivo, a Je rusalém celestial, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da Igreja dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o Juiz de todos, e dos espiritos dos justos que chegaram à perfeição, e de Jesus, me diador de uma nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloqüente que o de Abel (Hb 12,22ss).
Assim, o futuro (em detalhes) nunca foi uma preocupação do minante; foi o passado, que leva conseqüentemente ao presente, que ocupava a atenção dos cristãos, quando eles eram realmente cristãos. E, conseqüentemente, constitui erro ler o Novo Testamen to como se o “retardamento da parousia” fosse um fator condicio nador de importância fundamental; e ainda pior é estabelecer a se qüência cronológica dos escritos com base em supostos desenvolvi mentos. Pode haver (e provavelmente haja) desenvolvimentos com diferenças de ênfase;10 mas o tipo geral de esperança varia pouco e até as diferenças de ênfase são uma medida muito incerta para se determinar o desenvolvimento cronológico. Talvez este seja o ponto mais natural para se fazer menção da apocalíptica do Novo Testamento. Enquanto toda doutrina cristã é verdadeiramente escatológica (por causa da convicção cristã da finalidade e absolutez de Cristo como o éschaíon , “o último”), a escatologia não é necessariamente sempre apocalíptica. O apocalipse, isto é, o levantamento antecipado da cortina para mostrar a cena final, é um modo pictórico e simbólico de comunicar a convicção da vitória final de Deus. E esta particular forma de ensino tende a tomar forma nos tempos de pressão ou de tensa expectativa, quan do os recursos humanos dos crentes são mais intensamente exposfcrentc do ponto de vista da história do desenvolvimento teológico” (“Die Anfànge christlicher Theologie” in Z.T hX . 57.2, 1960,18 3. Cf. também O. CULLM ANN, “Unzeitgemásse Bemerkungen zum ‘historischen Jesus’ der Bultmann-schule” (do Evangelische Verlagsantalt, Berlim, 1960), 276, o qual alega que só em pouquíssi mas passagens do Novo Testamento o “problema” do retardamento da parou sia é visto como um motivo. 10. Cf. C.H. DODD, “The M ind o fP au l: Change and Development " in New Testament Studies (1953) 69ss.
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tos em toda a sua futilidade e impotência, e quando as forças hu manas ou demoníacas de tirania parecem estar fazendo a sua extre ma e desesperada tentativa para ter a supremacia. Então, é que ao vidente é dado ver, de modo dramático e em imagens grandiosas, alçadas com o maior arrojo nas suas cores preta e branca, na tela de sua visão, que ainda que o mal prospere, só a verdade é forte; ainda que sua porção seja a forca, e reine o erro, contudo essa forca dirige o futuro, e, por trás do sombrio desconhecido, ergue-se Deus dentro da sombra, velando sobre os seus.
Talvez exatamente assim o vidente de Dn 7 tivesse visto a frágil e indefesa figura humana xingada e investida de glória, em face dos poderes bestiais que a esmagavam e trituravam a vida:11 Prossegui observando nas mínhas visões noturnas, e eis que com as nuvens do céu vinha um semelhante a homem, que chegou até ao Ancião, a quem foi apresentado. E foi-lhe dado o dominio, outorgado poder, majestade e império, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu poder é um poder eterno, que não passará e o seu reino é tal que não será dissolvido . . . Eu olhava, e eis que esta ponta fazia guerra contra os santos e os vencia. Até que veio o ancião de dias, e foi dado o juizo aos santos do Altíssimo; e chegou o tempo em que os santos possuíam o reino (Dn 7,13-14.21*22). 11. Naturalmente, é verdade que “a figura humana” (“um com o o filho do ho mem”) de Dn 7 nâo é descrita com o oprimida: na verdade, na sua primeira e única aparição, ela já está investida de glória (v. 13). Contudo, o fato de que, na inter pretação da visâo, ela toma a posição dos “santos”, contra quem o tirano faz guerra e vence (v. 21), e a muito provável aplicação de toda a cena aos mártires macabeus, justifica, creio eu, a interpretação do símbolo como o triunfo, por meio do sofrimento e obscurecimento, daqueles que não têm armadura, mas têm uma inflexível fidelidade. Cf. C.H. DODD, According to the Scriptures, 1952, 117, n. 2 (trad. bras.: Segundo as Escrituras, Edições Paulinas, S. Paulo, 1979).
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Tal era a mensagem de Deus comunicada através da apocalíp tica aos mártires macabeus e à sua geração. E no Novo Testamen to, além de muitas expressões e pericopes apocalípticas se interca larem com o resto, distinguem-se três exemplos principais de litera tura apocalíptica: o Apocalipse (um exemplo de tal literatura, longo e continuo), o apocalipse do Evangelho (Mc 13 e vários paralelos) e 2Ts 2. É freqüente a especulação sobre a origem destes três ou mais apocalipses. A tentativa de Caligula de introduzir a sua imagem no templo e o inicio da perseguição relacionada com o culto do Impe rador são as crises evidentes pelas quais podemos explicar estas manifestações; estas, e circunstâncias adicionais, exigem uma pos terior consideração no capítulo seguinte.
CAPÍTULO VII
A IGREJA PERSEGUIDA
A oposição ativa à Igreja Cristã é uma questão que é, sem dú vida, pertinente à nossa investigação sobre as circunstâncias que determinaram a formação do Novo Testamento, pois os ataques dos adversários não só dão origem a certos tipos de documentos que incorporam defesa e contra-ataque, como também proporcionam, de vez em quando, uma pista para se descobrir a ordem cronológi ca e as circunstâncias. O credo cristão fundamental “Jesus é Se* nhor” ou “Jesus é Cristo” pode bem situar-se tanto num contexto de perseguição como num contexto batism al;1 e as elaborações dessa confissão podem ser indicativas de um particular período his tórico. Quando examinamos como a Igreja caracteriza a própria posi ção, vimos que tal caracterização se originou principalmente no confronto com o judaísmo. Analogamente, a tese deste capítulo (que não tratará tanto da objeção e réplica, quanto do ataque e de fesa) demonstra que o judaísmo avulta, num mais alto grau, entre os antagonistas do cristianismo que deixaram sua marca sobre o Novo Testamento. É trágico que o Israel de Deus tenha encontra do seus principais opositores no seio do judaísmo, tragédia que se fez mais pungente quando o judaísmo pré-cristão tinha tido em seu ativo um martirológio tão nobre e, na verdade, o judaísmo nãocristão tinha continuado a sofrer por sua fé, pelo menos, a calúnia e I. Cf. O. CU LLMAN N, Les Premières Cor\fessions de fo i chrétiennes, 1948,2* ed., em que ICor 12,3 é abordado ã luz de tal perseguição que tentou fazer com que os cristãos renunciassem sua confissão Kyrios lesôus em favor de Kyrios Káisar e com que dissessem anáthema lesôus. Duvido que seja necessário remontar isso até ao culto de César. Se se trata de um contexto de perseguição, creio que Atos 26,11 seja mais plausível, visto que, antes de sua conversão, Paulo, o flagelo dos nazarenos, tenta obrigá-los a blasfemar. Contudo, não é fácil, de modo algum, colocar ICor 12,3 num contexto de perseguição.
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o ridículo, simultaneamente com o cristianismo.2 Contudo, esta é a triste realidade. E, como já vimos, os cristãos compreenderam rapi damente que a perseguição de uma minoria por uma maioria da co munidade religiosa, à qual eles pertenciam, já era um fenômeno profundamente tradicional na própria história dos judeus. Qual dentre os profetas não tinha seus antepassados perseguidos (Atos 7,52)? Para complicar mais a situação, parece ser verdade que os judeus não-cristãos eram mais propensos a perseguir os cristãos, quando o próprio judaísmo estava sendo perseguido pelas autori dades imperiais romanas. Os tempos em que havia mais tolerância foram justamente os tempos em que a pressão externa era quase nula. O relacionamento entre cristãos e judeus atingiu o ponto de ruptura mais naturalmente quando era perigoso para um admitir contato com o outro.3 No Novo Testamento há alusões a perseguições, seja sob a for ma de previsão, seja sob a forma de narrativas de eventos, nos Evangelhos e no livro dos Atos; e os outros escritos que são rela cionados, principalmente com situações semelhantes, são a segun da Epístola aos Tessalonicenses, as Epístolas Pastorais, Hebreus, a primeira carta de Pedro e o livro do Apocalipse. Será interessante examiná-los nesta ordem. Todos os quatro Evangelhos contêm alusões à iminente oposi ção aos cristãos, tanto ao nível privado, no seio das famílias, quan to publicamente, não só nos tribunais judaicos como também nos gentílicos (Mc í 3,13 e passim; Mt 10,22; Lc 12,11; 21,12; Jo 16,2).4 É irrelevante, para o nosso propósito, saber se estas alusões 2. Horácio, embora um pouco mais cedo, Juvenal e Filon (Legatio ad Gaium e In Flaccum) proporcionam a prova; há a expulsão dos judeus de Roma por Cláudio (Suetônio, Claud. 25,4). 3. Cf. o ensaio muito sugestivo de Bo REICKE, “Des geschichtliche Hintergrund des Apostelkonzils und der Antiochia-Episode, Gl 2,1-14” in Studia Pauli na, 1953, 172ss. O autor distingue três fases: (1) a dos anos trinta, quando a jo vem Igreja foi atacada não só pelas autoridades de Jerusalém, como também pelos “sionistas” da diáspora; (2) a dos anos quarenta, quando se deu, primeiro, a perse guição de Herodes Agripa I, que favoreceu os judeus legalistas, e, depois, sob o Procurador, o correspondente retorno do judaísmo mais rígido; (3) a dos anos cin qüenta, que viu o terrorismo zelota irromper e o estopim aceso que inflamou a conflagração que culminou com a crise do ano 70. 4. Lc 12,11 e 21,12 não mencionam synédria, embora houvesse sinedrin até na diáspora, porque o cristão gentilico estava mais familiarizado com sinagogas: A. STROBEL, “Zum Verstándnis vom Rom 13” in Z.N.T.W. 47, 1956, 73.
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são ou não são propriamente profecias, ou se elas se originam, post eventum, de ocorrências reais. Em ambos os casos, elas represen tam o reconhecimento dos elementos do conflito no centro da si tuação cristã. O Quarto Evangelho realmente descreve a excomu nhão, durante o ministério de Jesus, do cego que tinha recebido a vista. Por recusar-se a declarar que Jesus era pecador, ele foi bani do da sinagoga (9,34). É duvidoso que haja alguma razão inerente para não se considerar histórica esta passagem (12,42 menciona rapidamente o utra vez excomunhões);5todavia, o fato é certamente descrito em termos que indicam como o cego é considerado um tipo de todos os catecúmenos: ele recupera a vista mediante a lava gem, ordenada por Jesus, com água descrita como (divinamente) “enviada”, e então é expulso pelos judeus; mais tarde, no mesmo Evangelho, a excomunhão, e até a morte, são prometidas aos fiéis seguidores de Jesus (16,2).* Sejam ou não estas alusões post eventum , é impossível negar que o próprio Jesus foi incriminado, não só diante de um tribunal judaico, como também diante de um tribunal gentílico. E. StaufTer tem sustentado, de modo bastante convincente, a tese segundo a qual já muito antes do processo, na verdade durante grande parte do ministério de Jesus, a hierarquia de Jerusalém e as autoridades rabinicas o tinham vigiado sistematicamente, armando-lhe ciladas e coletando provas contra ele, para acusá-lo de ensino herético, e que ele, mais tarde, foi castigado com base nisto (cf. capitulo III, n. 8). Naquele mesmo capitulo 9 de são João se diz que os judeus tinham concordado que qualquer que confessasse Jesus como o Messias devia ser expulso da sinagoga. O modo de vida de Jesus, com sua provocação de feroz antago nismo e inflexível coragem, foi considerado pelos cristãos como a norma de vida para eles todos: Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado, como o reconheceste numa bela profissão de fé diante de mui tas testemunhas. Eu te ordeno, diante de Deus, que dá a vida a todas as coisas, e de Cristo Jesus, que deu testemunho diante de Pôncio Pilatos 5. Embora W. SCHR AG E, T.W.N.T., art. “aposynágogos”, considerando que synagogué significa todo o povo, sustente que a palavra pode refletir apenas a expulsão dos herédicos, após o ano 70. 6. Cf. acima, pp. 112ss.
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numa bela profissão de fé: guarda o mandamento imaculado, irrepreensí vel, até à Aparição de nosso Senhor Jesus Cristo (lTm 6,12-14). Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, da descen dência de Davi, segundo o meu evangelho, pelo qual eu sofro, até ás ca deias, como malfeitor. Mas a palavra de Deus não está algemada! É por isso que tudo suporto, por causa dos eleitos, a fim de que também eles ob tenham a salvação que está em Cristo Jesus, com a glória eterna. Fiel é esta palavra: Se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele sofremos, com ele reinaremos. Se nós o renegamos, também ele nos renegará. Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo (2Tm 2,8-13). Aliás, todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos (2Tm 3,12).
Desde o início, portanto, os cristãos que tinham os olhos aber tos manifestaram sua maneira de enfrentar o antagonismo e a per seguição. E, na verdade, tinha sido aquela a sorte não apenas do próprio Jesus, mas também de João Batista e de todos os mensagei ros de Deus que vieram antes deles. A história da perseguição dos cristãos se desenvolve, sem solução de continuidade, com a história de seus predecessores que estiveram sob a antiga dispensação, e eles já tinham à sua disposição uma considerável literatura judaica sobre martírio. Nos livros de Daniel e Judite, e nas histórias dos Macabeus, eles podiam ler acerca do testemunho judaico diante dos pagãos, enquanto nas legendas dos profetas podiam encontrar os exemplos de heróis que sofreram nas mãos de seu próprio povo. O autor da carta aos Hebreus encontrou consolação nestes dois grupos de escritos. E, simultaneamente ao surgimento da literatura cristã, o judeu Fílon estava escrevendo sua acusação contra Flaco e seu relato sobre a delegação judaica que se dirigiu a Calígula, dois monumentos do testemunho judaico contemporâneo em face da oposição paga. Assim também, no livro dos Atos começa a narrativa verdadei ra de perseguição: e do princípio ao fim é instigada pelos judeus. Quando os gentios participam d á perseguição, é apenas na maneira imprevista das populaças excitadas (uma vez, pelo menos, sua vio lência cega recai sobre os judeus não-cristãos, que estavam atacan do os cristãos, Atos 18,17) ou porque eles momentaneamente ima
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ginam que sua paz política está ameaçada. Os judeus é que são realmente os agressores. (Escrevo isto num reconhecimento pleno e penitente da terrível inversão de papéis, na história subseqüente, quando os judeus sofreram atrozmente nas mãos dos cristãos, bem como nas mãos de ateus ou de pessoas de outras religiões). Se al guém indagar sobre quais as passagens do Novo Testamento que se referem, clara e irrefutavelmente, à perseguição dos cristãos ins tigada pelos gentios, descobre que essas são surpreendentemente poucas. Mesmo uma referência que, à primeira vista, parece explí cita, em ITs 2,14, dirigida aos cristãos de Tessalônica que sofre ram nas mãos dos próprios concidadãos (hypó ton idion symphyletón), exatamente como os judeu-cristãos tinham sofrido nas mãos de judeus, diz-nos pouco ao contrário. Comentadores desta passa gem, como Milligan e Rigaux, não se sentem inclinados a interpre tar symphylétai num sentido rigorosamente racial, mas pensam que podia ser apenas um termo referente à localização (também o “pseudo-Ambrósio” lê concivibus) e, se isto é verdade, podia real mente incluir judeus. Então, seria provavelmente necessário inter pretar Ioudáios em sentido local, e entendê-lo como “habitante da Judéia”, “palestinense”. Ainda que víssemos nesta passagem uma alusão à perseguição de cristãos gentilicos por gentios não-cristãos, no máximo não haveria razão para interpretá-la num sentido con trário ao contexto geral desta perseguição em Tessalônica, descrita em Atos 17,5, onde os judeus são explicitamente tratados como os instigadores dos outros, exatamente como acontecerá um século mais tarde, no martírio de Policarpo (cf. E. Stauffer, Theology of the New Testament (trad. inglesa, 1955), n. 65, que cita Mart. Polyc. 13,1). A razão pela qual, nesta mesma passagem de ITs 2 se diz que a sentença final alcançou os judeus, é discutida de modo in teressante por E. Bammel.7 Ele conjectura que a expulsão dos ju deus de Roma havia induzido Paulo a pensar que a crise final era iminente. Se isto está correto, projeta uma nova e significativa luz sobre a ligação entre as perseguições de judeus e cristãos. Não é necessário alongarmo-nos aqui sobre as narrativas de perseguições que se encontram no livro dos Atos. Basta recordar que, além da perseguição de Tessalônica, já mencionada, todas as 7. “Judenverfolgung und Naherwartung” in Z.Th.K. 56, 1959, pp. 294ss.
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outras do livro dos Atos, que começam com a perseguição dirigida por Paulo antes de sua conversão e termina com as perseguições sofridas por Paulo e outros, são igualmente atribuidas aos judeus ou à instigação de judeus, exceto um ataque conjunto de judeus e gentios em Icônio (14,5) e os ataques em Filipos (16,19ss) e Éfeso (19,23ss). A perseguição de Filipos começa por razões puramente venais e termina significativamente com uma defesa plena dos apóstolos e humilhantes desculpas das autoridades romanas. Tam bém em Éfeso, é uma preocupação de natureza comercial que pre cipita o ataque, e é a própria autoridade civil que o considera injus tificado. Quando a autoridade judicial romana de uma localidade intervém, invariavelmente o faz (com as exceções especiais de Fili pos e Éfeso) por instigação dos judeus, como aconteceu no julga mento do próprio Jesus; invariavelmente conduz a um veredito fa vorável aos cristãos, e, se um funcionário romano se presta ao jogo dos judeus, como no caso de Félix e Festo, o fato é denunciado cla ramente como inconstitucional e imoral. A alusão às flagelações romanas em 2Cor 11,25 (pris erabdísthen) não precisa ser coloca da num contexto de situações diferente do que está mencionado acima. Até aqui, então, como se pode deduzir das únicas narrativas do Novo Testamento, não há predisposição para imaginar outra ori gem da perseguição, que não a hostilidade dos judeus. E se se obje tar que o livro dos Atos induz a concluir assim, porque ele é uma estudada apologia ao governo romano, o peso da evidência vai de pender daqueles que tentam desacreditar a integridade do livro nes te ponto. Que dizem, pois, os outros escritos a este respeito? Dentre as Epístolas Pastorais, a segunda carta a Timóteo é a única que contém alusão, mais ou menos direta, à perseguição. Em 2Tm 1,8; 2,3; 4,5, Timóteo é exortado a aceitar a parte que lhe cabe dos sofrimentos que estão envolvidos na proclamação do Evangelho; em 2,9-12, lembra-se a ele o sofrimento do próprio apóstolo, típico do cristianismo confessante, sofrimento este que, em seguida (3,11), é mencionado de novo, com o corolário: “Aliás todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos”. Embora o exemplo apostólico inclua confessadamente o encarceramento, que, como sabemos, era geralmente um pro cedimento romano, não judaico (Atos 5,18; 12,4 são exceções), 5 - As origens do Novo Testamento
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não obstante tem de ser lembrado que, mesmo sendo romana, era uma medida antes de proteção que penal. O sentido do exemplo proposto é, portanto, simplesmente que o apóstolo sofre por causa de seu testemunho cristão, enquanto durar o encarceramento: não é necessária a implicação de que aquilo que Timóteo está enfren tando seja uma perseguição romana. Ao contrário, a própria difi culdade do apóstolo se explica totalmente pelo antagonismo judai co; na verdade, G1 5,11 e 6,12 já tinham feito referência expressa à “perseguição” por não haver “pregado a circuncisão”. O mesmo raciocínio vale para lTm 6,13, em que se menciona o exemplo do próprio Jesus, que fez, diante de Pôncio Pilatos, sua nobre confis são. O ponto que deve ser observado aqui consiste, antes de tudo, no testemunho corajoso diante da suprema autoridade, e não é ne cessário deduzir que Timóteo esteja enfrentando uma perseguição das autoridades imperiais. Que a ameaça de tal perseguição tenha sido, por essa época, real pode ser suposta a partir da cristologia destas epistolas. É bem notório que elas usam termos e títulos para Cristo (e. g.: “Deus nosso Salvador” e sua “aparição”) que, muito mais explicitamente do que aqueles das epístolas reconhecidamente paulinas, parecem indicar a concorrência de um culto imperial. Não é difícil crer que a ameaça desta concorrência já lance sua sombra sobre a consciência cristã, mas é impossível afirmar mais alguma coisa além disto.8 Em Tt 3,1, os cristãos são ainda exorta dos a serem obedientes às autoridades governamentais. Que dizer das perseguições mencionadas na Epistola aos Hebreus? A alusão mais explícita se encontra em 10,32ss, em que os leitores são exortados a recordar-se dos primeiros tempos, quan do, depois de sua iluminação (isto é, a conversão e o batismo), eles suportaram uma grande “maratona” de sofrimentos, seja porque eles mesmos foram realmente apresentados como espetáculo, so frendo insultos e aflições, seja porque eles tomaram o partido de outros submetidos a semelhante tratamento. De fato, continua a 8. Cf. A.D. NOCK, J.T.S., nçs 11, 1960, 64s, que questiona se o euanguéllon cristão, boas novas, significava conscientemente concorrência às “boas no vas” do culto ao César e se não há um equivoco no uso pagão de sotér (“que está longe de ter em seu uso comum a conotação de exaltação que tinha para os pri meiros cristãos”) na aplicação de “Erlosungsreligion” ao culto do César. Cf. ainda C.D. MORRISON, The Powers that Be, 1960, passim, e especialmente 92s; para o significado de sotér cf., 134s.
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epístola, eles tinham participado dos sofrimentos dos prisioneiros e tinham se submetido à expropriação de seus bens. Além disso, nes te período da escrituração ainda havia cristãos que sofriam o en carceramento e aflição, como se vê em 13,3, em que os leitores são exortados a recordar-se dos prisioneiros como se eles próprios fos sem prisioneiros, e convidados a participarem com eles de suas afli ções, ainda, em 13,18s, parece aludir ao fato de que o próprio escri tor estava na prisão, embora com a esperança de que fosse liberta do; e, em 13,23, que comunica que Timóteo “foi libertado”. Final mente, em 12,4, no curso de uma prolongada exortação ao pacien te sofrimento da disciplina, se recorda aos leitores que em seu con flito e luta com o pecado ainda não tinham chegado ao ponto de derramar o seu sangue; e em 13,7, alusão ao fiel término de vida de seus líderes, parece-se referir, não geralmente, ao martírio de seus primeiros líderes. Tudo isto, á parte de suas obscuridades particula res, fornece pelo menos uma clara imagem dos cristãos que sofrem violência e aprisionamento, tanto no passado como no presente, com a possibilidade de um futuro martírio, preconizado por causa de seu passado. Até onde se pode observar, esta situação poderia ser identificada com precisão se se postulasse, como já foi sugerido, que as origens deste grupo cristão fossem vistas no círculo do cris tianismo helenista de Jerusalém, ao qual pertencera Estêvão, e do qual tinha sido talvez o fundador e primeiro mártir. Se á morte do protomártir seguiu, como nos diz o livro dos Atos, uma atroz per seguição e conseqüente dispersão dos cristãos (formando uma diáspora cristã), então há motivos para se crer que muitos membros deste grupo teriam razoes para rever o passado com a ex propriação de seus bens, com o encarceramento (como o próprio são Paulo havia infligido aos nazarenos no seu papel de persegui dor: Atos 8,3; 9,2; 22,19; 26,22; G1 1,13) e com outros sofrimen tos, enquanto que no presente eles ainda estariam sujeitos, como Paulo, o apóstolo cristão, e muitos outros contemporâneos ou qua se contemporâneos, a um tratamento semelhante. Não temos aqui nenhum indicio de circunstâncias que precisam ficar de fora do es copo da violência judaica, ou mesmo do procedimento constitucio nal judaico, contra os heréticos que surgiam em seu meio. Não existe a mais leve alusão a qualquer coisa que exija a presença de uma perseguição de Estado. Ainda que suponhamos que o autor
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deste escrito estivesse sob custódia dos romanos, como Timóteo es teve, não há razão para supor que fosse tratado de modo diferente, tanto na sua origem como nas circunstâncias do aprisionamento romano de são Paulo, a que este fora conduzido pela oposição ju daica (Atos 28 , 19). Com a primeira Epístola de Pedro, encontramos um bem co nhecido centro tempestuoso de discussão. Aqui, e só aqui, no Novo Testamento, encontramos alusão expressa a um sofrimento poten cial hos Christianós, “como cristão” (IPd 4 , 16), em contraposição ao sofrimento como assassino, ladrão, malfeitor (kakopoiós signifi ca talvez “mago”) ou como allotriepískopos. Este último termo é de significado incerto, mas está bastante claro que, se de alguma forma os cristãos são advertidos contra o escândalo de se envolve rem em condenação por mau procedimento ético, de outra parte não devem envergonhar-se, se a acusação é simplesmente porque eles são (para usar o termo que na boca de seus opositores era ignominioso ou desdenhoso) Christianói. Na verdade, eles são cha mados a considerá-lo como uma oportunidade para honrar a Deus por meio daquele nome (en tô onómati íôutd). Não é surpreenden te que isto tenha sido interpretado como referência a alguma situa ção em que fosse realmente uma ofensa vil ser cristão, e à famosa correspondência entre Plínio e Trajano (cerca do ano 112), invoca da como o paralelo mais próximo. Plínio ( Ep . 10,96 ) realmente in daga “se a pena se relaciona com o simples nome (nomen ipsum), independentemente de crimes secretos, ou com os crimes secretos relacionados com o nome (flagitia cohaerentia nomini)", declaran do que, de fato, ele tinha condenado alguns simplesmente por per sistirem em afirmar que eram cristãos, porque ele cria que, “de qualquer forma, obstinação e perversidade inflexível merecem ser punidas”. O Im perador replicou que, embora eles não devessem ser procurados, contudo, se regularmente acusados e convictos de se rem cristãos, deviam ser punidos, a não ser que se retratassem. A distinção feita aqui entre “o simples nome” e crimes relacionados com o nome parece, à primeira vista, fornecer um surpreendente paralelo com IPd 4 , 16 . Além disso, tem sido observado9 que a exortação de IPd 3,15s para se testemunhar intrepidamente, mas 9. J. KNOX em J.B .L. 72, 1953, 187ss.
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com mansidão e respeito (allá metá práytetos kai phóbou) parece recordar a objeção de Plinio às qualidades opostas (pertinacia et inflexibilis obstinatio) encontradas nos cristãos que ele condenou. Deve ser observado, de passagem, que se pertinacia e obstinatio significam fidelidade absoluta à confissão cristã, realmente não são incompatíveis com mansidão e respeito, e que os cristãos condena dos por Plínio, de fato, não parecem m ostrar quaisquer outras qua lidades que não as que a primeira Epistola de Pedro aprova: por tanto, este paralelo particular é mais aparente que real. Na verdade a principal questão é se a primeira Epístola de Pedro reflete uma si tuação na qual ser cristão era, em si, uma ofensa inominável. Que ser cristão podia levar ao sofrimento está bastante ciar o (embora em lPd 3,13$ se diga que isto é improvável). O único problema consiste em saber se o sofrimento previsto é a sentença formal emitida por um tribunal romano ou judaico, ou se é a justiça rude de um ato não-oficial. Naturalmente, é possível sustentar que, desde que em 1Pd 4,15 a expressão “ como cristão” é paralela a “como assassino”, etc., segue-se que ser cristão é uma ofensa ino minável, comparável a ser assassino. Contudo, é extremamente questionável se esta é uma inferência lícita. A palavra “sofrer” pode referir-se tanto às penas de uma sentença num tribunal como aos sofrimentos (por exemplo) de vitimas da violência de uma mul tidão; e a frase de 1Pd 4,15 poderia significar: “esforçai-vos para não acabardes num tribunal por causa de vossa conduta criminal, ou mesmo sofrerdes impopularidade ou violência por causa de vos so comportamento anti-social de qualquer espécie; mas, se sofrer des impopularidade ou violência porque sois cristãos, não vos en vergonheis, antes esta é uma oportunidade para honrar a Deus por meio do nome”. Contudo, é ainda mais provável que mesmo a acu sação de assassinato e de outros delitos não indique uma acusação formal em tribunal, mas seja típica das injúrias do despeito popular de que os cristãos são assassinos, canibais, fornicadores e ateus (cf., e. g., Tácito, Anais 15,44,25; Tertuliano, Apoi, passim); e aquilo que o autor quer dizer é que os cristãos não devem dar oca sião a calúnias desta espécie: eles devem estar acima de qualquer suspeita; sua única ofensa deve ser a fidelidade a Cristo. Assim, uma cuidadosa investigação das passagens revela que não há nada para justificar a suposição de uma situação histórica
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ou um período em que a profissão da religião cristã era um crime condenado legalmente; e as condições são satisfeitas precisamente por circunstâncias semelhantes àquelas já descritas no livro dos Atos: a oposição judaica, que conduz a uma impopularidade e sus peição gerais, e em seguida à violência das multidões, se não à in tervenção romana. Todavia, é bem possível que, na época em que esta epístola foi escrita, a oposição pagã ao cristianismo estivesse ganhando intensidade, mesmo sem o apoio oficial, quando se torna mais evidente que os cristãos não concordarão com o culto ao Im perador. Muito tempo antes que se verificasse alguma perseguição oficial romana eo nomine,10 estivessem já ameaçadas, outras real mente submetidas à perseguição oficial, à oposição privada e à vio lência popular. E, de fato, pode ser sustentado que a primeira Epís tola de Pedro contém duas cartas de encorajamento, uma endere çada aos cristãos sob a ameaça de tal ataque, e a outra dirigida es pecialmente aos cristãos que se encontravam no fogo verdadeiro.11 Ainda resta o Apocalipse. É amplamente reconhecido que Ap 13 contém alusões ao culto do Imperador, veladas tão fracamente quanto possível, talvez tão fracamente veladas por prudência. Além disso, os títulos atribuídos a Cristo neste escrito parecem (co mo aqueles das Epístolas Pastorais já mencionados, mas certamen te com maior clareza) refletir uma estudada oposição ao Impera dor. Contudo, mesmo aqui é um fato notável que, enquanto distin tas de outras partes, as cartas às sete igrejas (Ap 1-3), exceto na única alusão a um mártir cristão de Pérgamo, “onde está o trono de Satanás” (2,13), refletem apenas a oposição judaica. Do interior da comunidade, elas refletem muito das concessões escandalosas à imoralidade pagã: as comunidades cristãs estão se debatendo cla ramente contra os ataques da terrível licenciosidade antinômica, mas até o perigo do exterior vem inteiramente do amargo antago nismo do judaísmo, daqueles que são chamados judeus, mas que são, na realidade, a sinagoga de Satanás (2,9). Nem uma sombra de evidência pode ser deduzida destas cartas (se nos limitamos a 10. Para uma discussão das razões da perseguição de Nero aos cristãos, cf. A. MOMIGLIANO, Cambridge Ancient History, X. 725,887ss. 11. J.H.A. HART, I Peter (Expositor’s Greek Testament, 1910), e C.F.D. MOULE, J.N .T.S. 3.1 (novembro de 1956), lss.
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elas) de que a perseguição relacionada com o culto ao Imperador já tenha começado, a não ser que não creiamos (e por que devemos fazê-lo?) que a morte de Antipas tenha ocorrido por aquele motivo. O capitulo 13 oferece uma descrição inteiramente diversa. Ap 13,16 parece sugerir uma incapacidade civica real, ou alguma espécie de boicote, que se relaciona com a recusa de aceitar os modos de vida pagãos. Entretanto este problema não pode ser localizado nas sete cartas. f Assim, até ao fim do período do Novo Testamento (se com esta parte do Apocalipse se assinala o limite cronológico), a oposição judaica é preponderante. Contudo, é certamente difícil evitar a im pressão de que Ap 13 e também as outras alusões esparsas em todo o livro indicam que o Estado já começara a atacar com rigor. Ain da que o capitulo 13 seja interpretado como uma sátira prenunciadora do antiteismo fundamental do Estado,12 antes mesmo que sua atitude começasse a se expressar em perseguição ativa, ainda exis tem todas as alusões ao martírio: 6,9; 7,14 (provavelmente); 12,11.17 (como introdução ao capítulo 13); 13 (provavelmente); 14,1-5 (talvez); 17,6; 18,24; 19,2; 20,4. O Apocalipse é, essencial mente, uma “exortação ao martírio”, e é difícil imaginar que ele não tenha recebido a sua forma final num contexto de uma expe riência real de perseguição, como é também difícil explicar todas as referências aos martírios (de qualquer maneira que se entenda 2,13), somente em termos de execuções judaicas, ou de violentos tumultos judaicos e pagãos, especialmente quando palavras tais como “mortos”, esphagménoi (6,9) e “decapitados”, pepelekisménoi (20,4) são empregadas. Por certo, não parece assemelhar-se a uma situação em que tenha acontecido um simples linchamento. Portanto, parece que o leitor do Novo Testamento tem a possibili dade de testemunhar a transição do primitivo período da persegui ção “não-oficial” para o início da “perseguição de Estado”, no sen tido que, quando o Apocalipse recebeu a sua forma definitiva, os cristãos já estavam condenados à morte nos tribunais romanos. Contudo, isto não significa que algo como uma perseguição siste 12. Ainda que esta frase deva ser mais explicitada; cf. (C.D. MORRISON, The Powers thal Be, 1960, 106, n. 2) Ap 17,17: “Pois Deus lhes colocou no cora ção realizar o seu desígnio: entregar sua realeza à Besta, até que as palavras de Deus estejam cumpridas”.
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mática tenha começado na Ásia Menor, ou até algo na mesma es cala que a erupção da Roma de Nero. De outra parte, é preciso recordar que o culto ao Imperador, de certo modo, já tinha surgido antes do nascimento de Jesus. Ainda que isto possa surpreender o leitor moderno, a divindade do Impe rador pode até ter sido reconhecida, dentro de certos limites, pelos cristãos. C.D. Morrison sustenta esta tese na sua obra The Powers that Be (1960) 99, e resume o que era crido geralmente por todos, inclusive os cristãos, nas seguintes palavras: “o soberano era não só divino por eleição como também humano por nascimento”. Em seguida (pp. 130ss), ele distingue, claramente, entre os primeiros imperadores, os de índole fanática, como Caio e Nero, dos que não reivindicavam do mesmo modo a divindade de sua pessoa. Contu do, a questão que nos interessa no momento não é quando o Impe rador foi divinizado, ou que tons de significado estavam relaciona dos com a idéia, mas quando e onde a recusa de associar-se ao cul to ao Imperador se tomou uma ameaça para os primeiros cristãos. Foi Domiciano (81-96) quem exigiu o título de “Senhor e Deus” ;13 e é sob ele que os concilia provinciais da Ásia Menor, a quem com petia o incremento do culto de Roma e de Augusto e a supervisão dos jogos ricamente equipados, que acompanhavam as festas reli giosas, se tornaram, provavelmente, uma ameaça à liberdade reli giosa. Diônio Cássio (67,13) fala de um certo Juvêncio Celso (cf. Plínio, Ep. 6,5,4) que, acusado de conspiração, só escapou da con denação prestando culto a Domiciano. No entanto, Trajano, que sucedeu a Domiciano, adotou uma atitude bem diferente, como sa bemos através da famosa correspondência com Plinio, o jovem, já mencionada {Ep. 10,96,97). Assim, Domiciano representa um caso único dentro do período do Novo Testamento. Embora não seja improvável que o Quarto Evangelho reflita um conhecimento do antagonismo entre César e Cristo (19,12: “Se o soltas, não és ami go de César”; o próprio título de Domiciano, “meu Senhor e meu Deus”, 20,28), este fato, em si mesmo, não implica necessariamen te uma perseguição organizada. 13. SUETÔNIO, Dom. 13,2; Dio. 67,47. Cf. Cambridge Ancient History XI, art. “Emperor-worship”; PAULY-WISSOWA, Realenc., Suppl. IV, 1924, coll. 837s; F. TAEGER, Charisma II, 1960, 337ss; E.G. SELWYN, “The Persecutlons in I Peter ” in S.N.T.S. Bulletin 1, 1950, 47.
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Consideraremos brevemente algumas das questões relaciona das com este assunto, mas, antes de tudo, vale a pena resumir os dados obtidos nas palavras de J. Munck (Christus und Israel, 1956, p. 46): “O postulado mais antigo de um primeiro periodo li vre de perseguição repressiva da parte de Roma deve ser substituí do pelo postulado de que a Igreja foi perseguida desde o inicio; no começo, pelos judeus, em parte por seus próprios expedientes judi ciais ou através de acusações perante tribunais romanos, em parte por tomar a lei em suas próprias mãos e cometer homicídio; e, mais tarde, pela ação do Estado romano. No período de transição da primeira para a segunda fase, provavelmente foram, de novo, os ju deus, ao que parece, os primeiros que, no caso contra Paulo, tive ram o propósito de desviar a atenção das autoridades romanas para o fato de que o cristianismo não era um a seita do judaísmo, mas uma nova religião, que (como qualquer outra nova religião oriental) era ilegal”. Isto nos leva à consideração de um problema deixado em sus penso, isto é, a relação do cristianismo, independentemente da per seguição, com o culto ao Imperador; e com esta questão, como jà vimos, se liga aquela da relação do cristianismo com o judaísmo. No primeiro século da era cristã, os dois anos mais terríveis aos olhos do monoteísmo mundial, tanto judaico como cristão, foram os anos 40 e 70. No ano 40, Calígula planejou erigir sua estátua no templo ( Josefo , B J . 2,10,1), ato insano de provocação,14 que foi adiado graças à coragem de Petrônio, até que o perigo foi afortuna damente afastado pela morte do imperador. Contudo, a simples in tenção deve ter infligido uma profunda ofensa à sensibilidade reli giosa, tanto dos judeus como dos cristãos; e, seja qual for a data atribuída à relevante frase de Mc 13,14, certamente seria admitido que reflete uma situação semelhante. B.W. Bacon tentou fazer, de um modo extremamente engenhoso, um arranjo de Mc 13 e os seus paralelos em Mateus e Lucas, estabelecendo sua ordem relativa com base nesta crise;15 mas, de qualquer modo, qualquer que seja a datação desses documentos e daquela outra mais claramente rele 14. Este teria sido equivalente a uma pretensão bem diferente daquela formu lada por MORRISON (cf. acima) igualmente aceita pelos cristãos entre outras. 15. B.W. BACON, The Gospel of Mark, 1925, 53ss.
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vante de 2Ts 2, não há dúvida de que o ano 40 deve ter parecido a muitos cristãos uma crise religiosa de tal magnitude, que podem bem ter pensado que a perseguição ao cristianismo tinha atingido o seu climax e o fim era iminente. É necessário agora fazer uma digressão para se considerar 2Ts 2: Quanto à Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, rogamo-vos irmãos, que não percais tão depressa a serenidade de espirito, e nâo vos perturbeis nem por palavra profética, nem por carta que se diga vir de nós, como se o Dia do Senhor já estivesse próximo. Não vos deixeis enganar por pessoa alguma, nem de modo algum; porque deve vir primei ro a apostasia, e aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, o adversá rio, a levantar-se contra tudo que se chama Deus, ou receber um culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus, e querendo passar por Deus. Não vos lembrais de que vos dizia isto quando estava convosco? Agora também sabeis o que é que ainda o retém, para aparecer só a seu tempo. Pois o mistério da impiedade já está agindo, só é necessário que seja afas tado aquele que ainda o retém! Então, aparecerá o ímpio, aquele que o Se nhor destruirá com o sopro de sua boca, e o suprimirá pela manifestação de sua Vinda. Ora, a vinda do ímpio será assinalada pela atividade de Sa tanás, com toda a sorte de portentos, milagres, prodígios mentirosos, e por todas as seduções da injustiça, para aqueles que se perdem, porque não acolheram o amor da verdade, a fim de serem salvos. Ê por isso que Deus lhes manda o poder da sedução, para acreditarem na mentira e se rem condenados, todos os que não creram na verdade, mas antes consen tiram na injustiça (2Ts 2,1-12). Excluindo outras sugestões, há duas interpretações opostas desta passagem que exigem a nossa atenção. Uma delas, revivida recentemente, sustenta que aquilo que impede o grande antagonista de Cristo de mostrar abertamente suas garras é o fato de que a evangelização necessária de todo o mundo (Mc 13,10-14^?/ Mt 24,13-15) ainda não esjtá completada. Segundo esta interpretação, “aquele que o detém” é a situação missionária, a impenitência ou a não-conversão de vastas áreas do mundo pagão: Deus, em sua grande paciência, está aguardando que os pagãos sejam conduzi dos à verdade (cf. Lc 18,7 /'possivelmente/; Atos 17,31; Rm 2,4; lTm 2,4; 2Pd 3,15). Contudo, ainda que, por outro lado, esta inter pretação possa ser plausível, é extremamente difícil ver como o masculino hô katéchon (N.E.B.: “the Restrainer”, “aquele que im
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pede”) possa ser adaptado a este sentido: ele terá que indicar o apóstolo e seus companheiros missionários, na medida em que eles não completaram ainda a sua tarefa! A interpretação alternativa (que remonta a Tertuliano e a muitos outros depois dele)16 conside ra a lei e a ordem romanas como a força que impede a eclosão da perseguição do Estado (ou, segundo E. Bammel, Z.Th.K . 56 (1959), 294ss, a perseguição da parte dos judeus) contra os cris tãos; e o masculino, aquele que impede, podia se referir então ao próprio Imperador (Cláudio), ou a algum governador que os leito res poderiam facilmente identificar. Foi realmente depois da remo ção de tais impedimentos, no reinado do sucessor de Cláudio, Nero, que o grande antagonista se manifestou claramente. E esta inter pretação ainda parece a mais plausível, a despeito da vigorosa opo sição de O. Cullmann (por ex., em Christ and Time, trad. inglesa de 1951, 164ss), o qual sustenta que a ou tra interpretação (que, de al guma maneira, remonta, como ele sugere, a Teodoro de Mopsuéstia e a Teodoreto, e foi revivida por Calvino) é muito mais prová vel. Para a crítica desta última posição, combinada com uma reser va cautelosa acerca da primeira, vale a pena consultar o comentá rio às Epístolas aos Tessalonicenses de B. Rigaux (1956, 276ss). De qualquer modo, o fim mencionado em 2Ts 2 é descrito em termos tais, que bem podem ter adquirido um significado mais pre ciso depois da tentativa de Calígula, somente cerca de dez anos an tes e quase realizada, de fazer exatamente aquilo que está predito aqui. E, retornando agora à crise sob Calígula, temos de admitir que, em tal ocasião, em vez de aproximar-se em face da ameaça co mum à sua fé comum em um só Deus, judeus e cristãos provavel mente se conscientizaram mais ainda da separação. Se os judeus estivessem ante a ameaça de perseguição, não desejariam ser con fundidos com a seita dos nazarenos, de dúbia fidelidade; e se a fé dos cristãos fosse ameaçada, eles, por sua parte, não podiam res ponder ao perigo exatamente da mesma maneira que os seus vizi nhos judeus, visto que a sua fidelidade ao Deus único se exprimia em termos totalmente não-judaicos, como a fé no senhorio de Jesus Cristo. 16. TERTULIANO, Apol. 32; De Resurr. Carnis, 24; LACTÃNCIO, Div. Inst. 7,25; PSEUDO-AMBRÓSIO, ad. U AGOSTINHO; De Civitate Dei, 20,19; CRISÓSTOMO, ad . I; etc.
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Todavia, aquela crise passou, e logo que escreveu a carta aos Romanos Paulo podia declarar que o Estado deriva sua autoridade de Deus e que o sinal de um bom cristão é o fato de ele ser um cida dão que acata a lei. Na verdade, isto não poderia, de qualquer mo do, ser contestado por causa da demência de Caligula.17 O famoso dito de Jesus: “ O que é de César devolvei a César; o que é de Deus, a Deus” (Mc 12,17 e paralelos) era ainda tão válido quanto o era no momento em que foi pronunciado pela primeira vez. Ainda mais notável, em vista da discussão acima, é a ocorrência de sentimentos semelhantes em lPd 2,13ss: Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como enviados seus . . . pois esta é a vontade de Deus que, fazendo o bem, tapeis a boca à ignorância dos insensatos.
E em lClem 61,ls (a despeito das referências à perseguição em 1, 1): 17. Cf. MO RRISON , The Powers that Be, 105: “Não há razão para se acre ditar que a opinião de Paulo acerca do Estado seria facilmente alterada diante de circunstâncias difíceis; ele sofrerá e Jesus fora condenado à morte pelas mãos do Estado, mas Paulo estava peculiarmente pressionado pela ação da mão de Deus em tudo isso”. Cf. o panegírico de Filon a Augusto e Tibério, em contraste com o seu ataque a Caligula em Leg. ad Gaium. Cf. também E. BAMMEL, “Ein Beitrag zur paulinischen Staatsanschauung” in TheoL Literaturz. II, 1960, coü. 837ss. Ele observa que Rm 13,lss é praticamente a única referência nos escritos paulinos e representa uma posição rara em todo o Novo Testamento (IPd 2,13ss; Tt 3,1 são os únicos paralelos), e que manifesta mais um caráter judaico que cristão (muito menos paulino), embora ultrapasse os limites da literatura sapiencial judaica. Ele explica a presença desta passagem pelas circunstâncias em que foi escrita. A co munidade judaica em Roma, embora declaradamente fiel ao Imperador, era conti nuamente agitada por elementos turbulentos vindos da Palestina. Daí, as medidas repressivas e a expulsão dos judeus de Roma no ano 49. Foi só cerca do ano 54 que judeus e judeu-cristãos puderam começar o retorno; e foi então que os judeus, em seu senso de insegurança e na ânsia de parecerem inocentes, começaram a fa zer dos cristãos “bodes expiatórios” em tudo que cometiam de errado. Dai, o inte* resse particular de Paulo em enfatizar a afirmação cristã dos direitos e deveres do Estado. Muito mais característico do próprio pensamento de Paulo, contudo, é (segundo Bammel) a passagem de ITs 5,3, onde a expressão eiréne kai aspháleia (um bom slogan romano, pax et securitas) é ridicularizada à luz da apocalíptica. Sustenta que a atitude de Rm 13 está longe de ocupar uma posição central no pen samento de Paulo.
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Tu, Senhor e Mestre, tens concedido a eles (aos nossos soberanos e gover nadores), em teu poder maravilhoso e imperscrutável, o poder da sobera nia; que, conhecendo a glória e a honra que tens dado a eles, possamos ser-lhes submissos, sem resistir de algum modo a tua vontade!18
Se a Epístola a Tito é tardia, a exortação à obediência em Tt 3,1 é também digna de nota: Lembra-!hes que devem ser submissos aos magistrados e às autoridades, que devem ser obedientes . . .
Contudo, muito mais surpreendente do que a passageira crise do ano 40 e a persistência de uma ética cristã de fidelidade ao Esta do é a notável pobreza de traços deixada sobre o Novo Testamento pela maior crise e desastre da guerra judaica, e seu epílogo no ano 70. Uma razão para que acontecesse isso talvez possa ser encon trada no fato (como observou B.W. Bacon) de que “foi a sinagoga, não o templo, o antagonista real da Igreja; e o desaparecimento dos saduceus de mentalidade secularizada, com seu ritual sacrificial superado, realizado no templo e grandemente divorciado da verda deira vida religiosa do povo, resultou, de um modo geral, num for talecimento do judaísmo essencial” (The Gospel of Mark, 1925, 81).19 Contudo, outra razão deve-se ao fato de que, talvez, haja pou ca coisa no Novo Testamento que possa ser datada depois do ano 70.20 Ainda tem de ser demonstrado que, fora de qualquer dúvida, 18. A tradução, no original, é de J.B. LIGHTFOOT. 19. Morton SMITH, “The Dead Sea Sect in Relation to Ancient Judaism” in J.N.T.S. IA (julho de (961), 347ss (cf. 355s), sustenta (mas está ele certo?) que G.F. MOORE deturpa a situação quando sugere que o farisaísmo foi um judaís mo representativo. Ao contrário, o Pentateuco, o templo e o 'amme ha’aretz cons tituíram a verdadeira espinha dorsal do judaísmo. DANIÉLOU (Théologie du judéo-christianisme, 1958, 19) contrasta “le judáisme contemporain du Christ, celui des Phariséens, des Esséniens e des Zélotes” com “le judaísme rabbinique, légaliste, d’après la chute de Jèrusalem” que o cristianismo primitivo estava interessado em combater. Estará ele certo, fazendo tais distinções? 20. K.W. CLARK, “Worship in the Jerusalem Temple after A.D. 70” in J.N.T.S. 6.4 (julho de 1960), 276, assevera que a Epístola aos Hebreus foi escrita durante o reinado de Domiciano, mas isto é questionável. A primeira carta de Cle mente, que K.W. CLARK considera como prova do fato que o sacrifício judaico continuou a ser feito depois do ano 70, dificilmente coloca assim o problema; seus argumentos, como os argumentos da Epístola aos Hebreus, são bíblicos .
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o Evangelho de Mateus foi escrito depois daquela data;21 mesmo que fosse, há menor razão aqui para indícios da situação, se (como sustentamos aqui) este Evangelho fosse uma genuína tentativa para reconstruir a história das origens do cristianismo. Lucas-Atos po dem ser ou não posteriores. A clara alusão ao cerco de Jerusalém (Lc 21,20) não representa uma prova definitiva de que as palavras foram escritas depois do evento ao qual se referem.22 E mesmo que o livro dos Atos esteja interessado, se não primariamente, pelo me nos inter alia, em demonstrar que o cristianismo é o verdadeiro ju daísmo e, assim, não devia ser molestado pelo Estado, mas que, de fato, tinha sido considerado sempre isento de culpa pela lei romana, isto tudo prova pouco ou nada com respeito à sua data precisa! De fato, este aspecto particular de sua apologética pode ser facilmente exagerado: se o cristianismo como o verdadeiro judaísmo tivesse sido realmente o tema principal do livro, teria o seu autor insistido em enfatizar a abolição da circuncisão obrigatória? Quanto à Epis tola aos Hebreus, já foi argumentado (cf. acima pp. 58,67) que ela se situa melhor num período anterior (talvez um pouco antes) ao ano 70. As Espístolas Pastorais, o Evangelho e as Epístolas Joani nas são de data incerta; provavelmente são posteriores ao ano 70, mas é difícil dizer quanto tempo depois. Tudo o que pode ser dito é que o Quarto Evangelho contém muito material que seria particu larmente notável em vista da destruição do templo, mas não o enfa tiza suficientemente; enquanto que as Epístolas Joaninas e Pasto21. Note-se que K.H. RENGSTORF sustenta (“Die Stadt der Morder /Mt 22,7/” in Z.N. T. W. Beiheft 26, “judentum-Urchristentum-Kirche” in Festschrift fü r Joachim Jeremias, 106ss) que Mt 22,7, mormente considerado uma referência post eventum à destruição de Jerusalém, não precisa ser mais do que o uso de um topos já bem estabelecido na literatura rabínica. A história da moeda na boca do peixe (Mt 17,24-27) é posta em relação, tanto por Clemente de Alexandria ( Paed. 2,1,14,1, ed. Stãhlin 1,163) como por Ireneu (Adv. Haer . 5,24 (ed. Harvey 2,388s), com o incidente do dinheiro do tributo a César, mas eles confundem a taxa para o templo com a captação de impostos para o Império. “Isto poderia ter acontecido mais facilmente depois da destruição do templo no ano 70, quando a taxa para o templo foi substituída pelo Jiscus Iudaicus”, observa T.W. MANSON, num traba lho não publicado sobre “Dai a César . . (onde ele cita JUSTER, Les Juifs dans 1'Empire Romain, I. 377ss; II. 282; SCHURER, Gesch. Jud . Volkes4, II. 314s; DALMAN, Arbeit und Sitte in Palástina, III. 182s). Ê possível que a dedução correta da não justaposição dos dois incidentes em Mateus seja, em si, devida ao fato que o primeiro Evangelho tenha sido escrito antes do ano 70? 22. Cf. C.H. DODD, “The Fali o f Jerusalem and ‘the Abomination of Desolation*" in J.R.S. 37, 1947, 47ss.
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rais simplesmente não fazem alusões significativas. Dentro do Novo Testamento, então, apenas o Apocalipse, que podemos con siderar provavelmente tardio com base em outros indícios, é real mente surpreendente por causa de sua reticência acerca dos even tos do ano 70, como também, fora do Novo Testamento, aparece a primeira carta de Clemente, igualmente surpreendente por sua reti cência. Podia-se esperar que, no Apocalipse, se encontrasse não apenas uma referência à vingança dos profetas mártires de Deus na cidade em que seu Senhor foi crucificado (Ap 11,8), mas tam bém uma descrição de sua destruição feita em termos análogos ao cântico de destruição contra a Roma babilônica, que encontramos no capitulo 17. Alguém pode apenas supor que a observação de Bacon já citada, segundo a qual o farisaísmo e a sinagoga é que im portavam, é ilustrada aqui mais claramente: o que realmente inte ressava ao cristianismo não era o juízo sobre Jerusalém, mas a vindita do Israel de Deus sobre “a sinagoga de Satanás”. Talvez tudo fosse diferente, se possuíssemos algum documento escrito dos ju deus cristãos que fugiram de Pela, mas na verdade este não é um evento histórico.23 É difícil crer que um cristianismo do tipo judai co, que havia estado estreitamente envolvido nos acontecimentos catastróficos, que atingiram o seu clímax no ano 70, não revelaria algum sinal daqueles eventos, ou, como alternativa, não tiraria pro veito desta evidência dos sinais de que eles, e não o judaísmo nãocristão, constituíam o verdadeiro Israel.24 Contudo, sobre este pon to, de fato, nossas tradições silenciam: ou, como já o dissemos, no Novo Testamento há menos do que geralmente se imagina que seja posterior ao ano 70; ou senão, quando o desastre se abateu sobre o 23. Cf. J. MUNCK, “Jewish Christianity in Post-Apostolic Times” in J.N.T.S. 6.2, janeiro de 1960, 103ss. 24. De fato, mesmo a literatura mais tardia é também estranhamente reticente sobre este ponto. Até JUSTINO ( Trifon, 89,2) realmente não chega a usar esta ar gumentação. Contudo, nós a encontramos em HIPÓLITO, Demonstr. C. Jud. (Migne, P.G., 10,787-794; ed. crítica em Schwartz, Zwei Predigten Hippolyts, Sitzungsberichte d. Bayer. Akad., 1936); e SULPICIO SEVERO, Crônica 2,3 (cerca do ano 400) diz que, destruindo o templo, Tito, longe de ter destruído o cristianismo, “forneceu uma demonstração cotidiana ao mundo que eles (os ju deus) não tinham sido punidos por outro motivo que por causa das mãos ímpias que puseram em Cristo” (informação gentilmente fornecida por H.W. Montefiore). A réplica dos judeus era que, ao contrário, foi a apostasia dos cristãos que ti nha feito cair aquela calamidade sobre eles (cf. A. Lukyn WILLIAMS, Adversus Judaeos. 935, 137, n. 7).
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centro do judaísmo, o coração espiritual de seus adeptos consoli dou tão rapidamente o argumento, já familiar, de que o âmago da sua religião não consistia em sacrifícios, mas na oração e esmo las,25 e que os cristãos não perceberam praticamente nenhuma mu dança de tática em sua oposição fundamental, restando-lhes, por tanto, poucas oportunidades de apelar para a destruição do templo em sua apologética.26 Concluindo: o Novo Testamento, como um todo, reflete abun dantemente o ataque dos antagonistas, mas muito pouco que se pos sa atribuir à responsabilidade do Estado e às autoridades oficiais. Aquilo que podemos identificar é principalmente a ação judaica, em vez de imperial; e os métodos e intensidade dela variam de lugar para lugar e de situação para situação. O relacionamento entre o cristianismo e o judaísmo depende em parte do relacionamento vi gente, em um dado momento, entre o judaísmo e Roma. Estes são os principais fatores que devemos ter em mente quando tentamos estabelecer a origem dos “documentos da perseguição”.
25. E. g.: “Orar na sinagoga eqüivale a trazer uma pura oferta”, disse o rabi no Phinehas (cerca do ano 360) em nome do rabino Hoshaiah (cerca do ano 22S) TJ. Ber. 8d, 71 (citado em T.W.N.T. 7, art. “synagogué”). 26. K.W. CLARK, o.c. (cf n. 20) sustenta que o culto sacrificial judaico con tinuou no loca) do templo até o ano 135. Sua fonte mais válida é certamente JOSEFO, Anl. 3,224-236 (cerca do ano 94); Contra Apionem (alguns anos mais tar de) 2,77 e 193-198 e o único documento hebraico descoberto em Nablus por volta de 1900, baseado numa crônica do século XIV, em que se narra acerca de um pe regrino que sacrificava durante o tempo do sumo sacerdote Amram (120-130). Ele é de parecer que 2Esdras se localiza entre os anos 70 e 135 e, se for assim, a passagem de 1,31 é um acréscimo cristão de um pouco depois do ano 70. Para os judeus e Roma, cf. ainda C.D. MORRISON, The Powers that Be, 1960, 137.
CAPÍTULO VIII
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A metáfora arquitetônica que distingue o fundamento do resto do edifício é valiosa para o estudo das origens do cristianismo. É esta que tem relacionado o termo “edificação” com certo tipo de atividade cristã; e, embora esta palavra tenha, infelizmente, se des gastado (como também muitas outras) por ter sido associada com aquilo que os contestadores definem como “tentar fazer alguém se tornar melhor”, ela assinala uma importante distinção no desenvol vimento cristão, precisamente a distinção entre o fundamento e a superestrutura. Paulo escreve: “Segundo a graça que Deus me deu, como bom arquiteto, lancei o fundamento” (lCor 3,10). Este fun damento, acrescenta ele imediatamente, não pode ser outro que não Jesus Cristo. Nenhuma estrutura é digna de ser chamada cris tã, se não estiver firmada sobre ele. A comunidade cristã não se er gue sobre exortações, mas sobre afirmações; não sobre belos ideais, mas sobre o testemunho acerca de uma Pessoa. Quando, em Cesaréia de Felipe, Pedro declarou que Jesus era o Rei de Israel, estava dando testemunho do que tinha observado em Jesus até aquele momento. Tratava-se de uma descoberta preliminar; como se revelou imediatamente, ela era um a avaliação distorcida, mas foi o início de um juízo que foi corrigido e aprofundado pelo evento da ressurreição, e que constitui o fundamento da fé cristã. Mostrava que o testemunho dos apóstolos acerca daquilo que eles tinham vis to e reconhecido como obra de Deus em e através de Jesus, se tor nou a rocha sobre a qual todo o edifício foi erguido. Deste modo, proclamar o Evangelho significa colocar o funda mento, mas, em seguida, vem, naturalmente, o erguimento da super estrutura, isto é, a obra de “edificação” e consolidação, não só in dividualmente do neófito como também coletivamente da comuni dade. E esta tarefa persistente foi a causa da origem de muito mate rial que veio a fazer parte do Novo Testamento; na verdade, a cau
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sa da origem de muito mais material do que aquele que foi produzi do pela evangelização, que deixou menos traços nos escritos. A pa lavra escrita não foi, então, o meio primário de “propaganda”. A “propaganda” inicial foi feita principalmente de modo oral, e muito daquilo que veio depois desta primeira fase é que foi escrito. Por tanto, agora consideraremos as palavras, as frases e perícopes in teiras que refletem a obra de “edificação” e, para modificar a metá fora, “cuidado pastoral” ou pastoreio. Se a obra de evangelização, de alguma forma, constitui neces sariamente sempre o início, o método para executá-la, a natureza, o escopo e as circunstâncias da resposta que recebe variam grande mente. Em atos 2, a respota à pregação de Pedro no Pentecostes foi imediata e somos informados que uma grande multidão logo foi batizada. No caso do carcereiro de Filipos, até onde vai a narrati va soa como se ele e sua casa fossem batizados no mesmo instante, à noite, em base não mais segura que o desejo de “salvação” do pe rigo, e na certeza de que, para ser “salvo”, ele necessitava apenas crer em Jesus (Atos 16,30s). Tais conversões repentinas, sem back groundf preparação ou instrução, podem alarmar por causa de sua precariedade. Contudo, seria arbitrário dizer que nunca pode haver situações em que é justo primeiro receber uma pessoa na Igreja, e só depois dar-lhe instruções detalhadas e “edificação”.1 Em outras palavras, aqui somos confrontados com a tensão permanente entre dois ideais: por um lado, há o ideal daquilo que mais tarde será chamado de “a comunidade dos santos”, isto é, uma Igreja composta apenas de indivíduos “convertidos”, chama dos de seu ambiente por eleição divina e por meio de uma cuidado sa seleção do evangelista. Por outro lado, há o tipo de ideal “movi mento de massas”, para o qual são arrebatadas, coletivamente, famílias inteiras, populações inteiras. Os acertos e erros destas duas concepções de evangelização dependem, em larga medida, da es trutura social e de outras condições prevalecentes num determina do ambiente. O ideal da “comunidade dos santos” é aplicável pri mariamente num contexto no qual o indivíduo já esteja habituado a agir independentemente, isto é, numa sociedade em que se atingiu 1. Para a catequese judaica de prosélitos, cf. D. DAUBE , The New Testa ment and Rabbinic Judaism, 1956, Í06ss.
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um certo grau de sofisticação e em que resultou, em alguma medi da, o ideal do individualismo: ainda mais obviamente, em áreas que são sempre cristãs de nome. O extremo oposto se verifica em socie dades que são ainda essencialmente tribais em sua estrutura. Um estudo bem fundamentado de tais condições, de alguns anos atrás, pode ser encontrado na obra de J.W. Pickett, Christian Mass Movements in índia, 1933. Ali ele escreve (p. 22): As características distintivas dos movimentos cristãos de massa são uma decisão coletiva em favor do cristianismo e a conseqüente preservação da integração social dos convertidos. Sempre que um grupo, maior do que a família, habituado a exercer um certo controle sobre a vida social e reli giosa dos indivíduos que o compõem, aceita a religião cristã (ou uma grande parte dele a aceita com o estimulo do grupo), manifesta-se o principio essencial do movimento de massas.
Mais recentemente, D.A. McGravan, em How Churches Grow, 1959, escreveu (p. 23). Homens e mulheres vivem, exceto em populações individualistas, urbani zadas e homogêneas, em organismos tais como tribos, castas e famílias. Eles possuem uma intensa consciência coletiva e uma forte fidelidade tri bal Clérigos que sustentam convicções do tipo “comunidade dos santos” proclamam um Evangelho universal a eles, e os convidam como indiví duos, sem considerar o que os outros farão, a escolher a Cristo. Para eles, isto soa como sendo urgente deixar a própria tribo para unir-se à “tribo” cristã...
É bastante curioso que, no Novo Testamento, mal encontra mos alguma coisa acerca de longos períodos de catecumenatos in dividuais; contudo, por outro lado, também não há evidência direta sobre unidades coletivas ou corporativas maiores do que famílias. Somos confrontados, portanto, com uma situação de equilíbrio ins tável. Não há evidência clara dentro do Novo Testamento de que o cristianismo tenha penetrado em algumas áreas tribais primitivas, a menos que seja a Galácia; e mesmo os “gálatas” , a não ser que fos sem convertidos de Paulo, apenas significam os habitantes de Der be, Listra e Icônio, isto é, cidadãos de fala, reconhecidamente ver nácula, mas que eram adoradores de Zeus, não animistas primiti vos (Atos 14,1 lss). Fora disso (mesmo admitindo que fossem, de alguma maneira, ocasionais), a obra de Paulo parece ter sido de
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senvolvida nas cidades helenizadas, e alcançado pessoas cujo nível de inteligência e cultura não era inferior àquele dos escravos do mésticos. Não há evidência da penetração do cristianismo nos gru pos de escravos das grandes propriedades e minas.2 A passagem de IC or 1,26-29, seja qual for a sua ênfase sobre a ignorância e a obs cura origem social da maioria dos convertidos de Corinto, certa mente não precisa ser lida como se se referisse a pessoas completa mente analfabetas ou iletradas. Portanto, somos levados a concluir que, para o Novo Testa mento, a família é geralmente a maior unidade. É possível, como já foi sugerido, que os destinatários da Epístola aos Hebreus fossem um grupo (J. Moffatt falava em um “clã”) que havia constituído originalmente uma sinagoga ou uma secção de uma sinagoga. Con tudo, parece ter sido a família (compreendendo, sem dúvida, escra vos e servos, bem como parentes consangüíneos) que formava o maior grupo a que se proclamou o Evangelho e que a “comunidade familiar” representava o modo normal de crescimento e expansão de tal unidade. Não se pode dizer que há um a extensa evidência direta que fun damente esta afirmação. Tudo o que pode ser dito é que, enquanto se fala no Novo Testamento acerca da conversão de indivíduos (e em grande número no dia de Pentecostes e um pouco mais tarde), também se menciona a conversão das famílias do “funcionário” (Jo 4,53), de Comélio (Atos 11,14; cf. 10,2), de Lídia em Filipos (Atos 16,15), do carcereiro (Atos 16,3 lss), de Crispo, o chefe da sinago ga de Corinto (Atos 18,8) e de Estéfanas (IC or 1,16; cf. 16,15); en quanto se faz alusão à família de Onesíforo, considerada evidente mente como um grupo cristão (2Tm 1,16; 4,19), os falsos doutores (Tt 1,11) são descritos como os que transtornam famílias inteiras, e há evidência da existência de “comunidades familiares (Rm 16,5; ICor 16,19; Cl 4,15; Fm 2). De fato, mesmo no estudo de Pickett acerca dos movimentos de massas na índia, uma das mais arreba tadoras histórias de conversão é a de Ditt, negociante de peles no Punjab, que, sendo convertido individualmente, retornou à sua vila e converteu primeiro sua esposa, sua filha e dois vizinhos e, mais 2. Cf. E.A. JUD GE, The Social Pattern of Christian Groups in the First Century, 1960, 5lss (especialmente 60).
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tarde, outros quatro homens. Só então é que 0 movimento em sua área ganhou impulso. (Isto aconteceu em tomo de 1900, cf. o.c., 43-45). A evangelização, como aparece no Novo Testamento, então, não se configura, nem como tipico movimento de massas do tipo tribalismo primitivo, nem como conversão puramente individualistica, segundo o ideal da “comunidade dos santos”. Seu background era a vida familiar, o grupo de sinagoga judaica, ou um grupo se melhante, a menos que houvesse casos em que, na vida relativa mente atomizada e sofisticada da cidade levantina, tenha tomado a forma pura de “comunidades familiares”, “chamadas” de uma so ciedade amorfa. E é em semelhante ambiente que devemos situar o processo de edificação que é 0 assunto de nossa investigação. Como já foi observado, quase não encontramos traços de um catecumenato de longa duração. O caso de Apoio mal representa um exemplo. Ele mesmo já era evangelista quando foi encontrado e de pois instruído por Áquila e Priscila (Atos 18,24-28). Não se sabe se, no fim, lhe foi administrado o batismo, especificamente cristão, como no caso dos “discípulos” (talvez convertidos de Apoio) en contrados por Paulo em Éfeso (Atos 19,1-7). Fora disso, há indica ções, na verdade, de que havia verdadeiros cursos de “instrução para principiantes” , mas é difícil estabelecer se, como foi mais tar de a norma, o batismo representava o climax da instrução, ou se a prática do Novo Testamento consistia primeiro no batismo e de pois na instrução. A única evidência direta, como já vimos, favore ce o segundo procedimento. Em G1 6,6, 0catecúmeno é convidado a dividir os seus bens com o seu catequista, o que parece implicar um substancial periodo de instrução. Contudo, não se diz se o ba tismo já tinha sido administrado ou não. No Novo Testamento encontram os, em três passagens, a metá fora do “leite” como a dieta de quem é imaturo. Em ICor 3,1-3, a metáfora é aplicada primeiramente à condição natural dos corintios, quando, no princípio, foram evangelizados; depois, à maneira de reprovação, à sua desnaturada permanência num estado de de senvolvimento espiritualmente interrompido (evidenciado pela riva lidade egoística e partidarismo). Esta passagem não fornece ne nhum indicio sobre a natureza e o lugar do ensino catequético. Em Hb 5,11-14, a metáfora do leite ê aplicada, de novo, à maneira de
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reprovação, ao fracasso em crescer dos destinatários, além de seu ensinamento elementar, em direção à maturidade na fé cristã; e, em 6,1 s, segue-se uma interessante descrição daquilo que consistia esse ensinamento basilar. Tratava-se de “ensino cristão elementar” (ho tês archés tôu Chrisíôu lógos); de um “fundamento” (themélios) que “consistia de” (ou, menos provavelmente, “sobre o que deve ser edificado”) “arrependimento das obras mortas (isto é, inúteis ou letais?); da fé em Deus; da doutrina sobre purificações (baptismói), a imposição das mãos, a ressurreição dos mortos e o julgamento eterno”. Trata-se razoavelmente de uma catequese. Contudo, nova mente, quem pode dizer, de fato, se ela precedia totalmente, ou se guia em parte do batismo (e talvez a imposição das mãos)? Final mente, lPd 2,2 exorta os destinatários a desejarem ardentemente o leite espiritual não adulterado (loguikón gála) que os capacitará a crescer para a salvação. Para aqueles que acreditam que este escri to seja endereçado a catecúmenos prestes a serem batizados, esta passagem se referirá, sem dúvida, aos ulteriores ensinamentos pós batismais, e podia também conter uma alusão à administração ri tual do leite verdadeiro durante o batismo, como um símbolo do lei te e mel da terra prometida em que eles estavam entrando (cf. Hb 6,4). Contudo, se este escrito, ao contrário, for interpretado como uma recordação dos cristãos que estavam enfrentando a persegui ção, da grande e básica experiência de seu batismo no passado, en tão a passagem em questão será uma lembrança e um convite ao seu alimento essencial, e não soará, nem como uma reprovação pela imaturidade, nem como uma indicação de um batismo imi nente. Assim, nâo podemos estar certos se antes do fim do período neotestamentário já tinha se desenvolvido o uso de um longo catecumenato antes do batismo. Parece bem possível que freqüente mente uma pessoa fosse batizada, enquanto membro de uma famí lia inteira, depois de ter ouvido uma única vez o mínimo do “Evan gelho”, e que só depois se submetesse a um ensinamento mais apro fundado. Todavia, acerca do conteúdo do ensinamento, em qual quer tempo que fosse dado, felizmente temos mais evidência. Mes mo sem evidência específica, è possível imaginar que, cedo ou tar de, depois do batismo, senão antes, a evangelização inicial devesse ser seguida por um processo de intensa instrução, de “edificação”.
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E este erguimento da superestrutura, este edificar, compreenderia, de acordo com o momento em que ocorria, secções mais ou menos amplas do Evangelho primitivo, isto é, o Evangelho “fundamental”. Em outras palavras, se mantivermos a distinção tradicional entre kérygma e didachê tão rigidamente, não faremos justiça à real na tureza de toda a edificação cristã, a qual, ora mais, ora menos, mas continuamente, ergue pelo menos algum do material do fundamen to, para usar uma metáfora, em paredes e pavimentos. Em geral, é verdade que o fundamento é colocado pela procla mação daquilo que Deus fez na vida, morte e ressurreição de Jesus (“Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo”, IC or 3,11) e pelo desafio para se reco nhecer Jesus como Senhor; e que só depois vem a instrução deta lhada acerca das implicações desta primeira fase, tanto doutrinária quanto ética. No entanto, para ilustrar quão sutilmente o fundamento e a su perestrutura se entrelaçam, pode-se observar que, por mais parado xal que pareça, à primeira vista, no Novo Testamento, é nas epísto las que se podem ouvir mais ecos da obra de evangelização que nos Evangelhos, ou, pelo menos, mais do que nos Evangelhos Sinóticos. Pois, de qualquer modo, os Evangelhos Sinóticos não contêm, virtualmente, quase nenhum “apelo” evangelistico pósressurreição; eles não vão além de (essencialmente) narrar os fatos. Eles não incluem o “convertei-vos, e seja cada um de vós batizado” do apelo de Pentecostes (Atos 2,36.38). As epístolas, por contraste, ainda que todas endereçadas a pessoas já evangelizadas, e portanto referindo-se a um evento passado, todavia contêm uma grande quantidade de referências ao significado e aos modos de se tornar cristão (o ouvir, a fé, o inserir-se no Corpo de Cristo: Rm 1,2-4; ICor 15,lss; G1 3,1-5; Ef 2,8.13s.21s; 2,6ss; lTs l,9s). Assim, num certo sentido, os papéis se invertem: são as epístolas que fa zem ecoar o desafio inicial (ainda que como uma recordação daqui lo que aconteceu inicialmente com os cristãos), enquanto que os Evangelhos Sinóticos, do nosso ponto de vista, ao contrário, con têm aquele complemento que devia seguir o desafio inicial. Mesmo quando o apelo evangélico tinha sido aceito, e o convertido batiza do, seguia-se o período em que era necessário oferecer ao catecúmeno (pois tal era ainda a sua condição) uma clara concepção
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acerca do caráter de Deus, a quem, em Cristo, ele tinha consagra do sua vida: o simples kérygma, sem seu conteúdo pessoal, necessi taria de poder para comover e mover, o que os Evangelhos, por co locarem o caráter de Jesus dentro da prória vida, possuem.3O con teúdo dos Evangelhos é, então, indispensável para que a fé do con vertido seja concreta e seu amor ardente. O Quarto Evangelho combina, até certo ponto, essas duas exigências, visto que só ele, entre os quatro Evangelhos, não só apresenta um “retrato narrati vo” de Jesus, como também responde à questão: “Que devo eu fa zer para ser salvo?” Mas, mesmo assim, sua resposta é estranha mente carente de conteúdo comunitário e eclesiástico. As epístolas joaninas vão um pouco além. Contudo, é só Paulo quem oferece uma resposta adequada, embora, com o já foi dito, se precise de um reforço dado pelo retrato vivido do caráter de Jesus. Paulo fala em termos de ouvir e responder com fé; de despojamento do homem velho para revestir-se do novo; de incorporação do crente em Cristo; de receber o poder do Espírito Santo. E, para ele, tudo isso está claramente “centrado” no batismo e na eucaris tia (Rm 1,1 ss; IC or 10; ll,17ss). Apenas em tais condições pode um cristão esperar receber a fibra moral e o vigor para tornar-se verdadeiramente aquilo que ele já é: é ao Espírito Santo que ele deve a sua vida e é pelo Espirito Santo que ele agora deve deixar plasmar a própria conduta (G1 5,25). Apenas em tais condições, um cristão talvez possa ser confrontado com o Sermão da Monta nha. J. Jeremias propõe (Die Bergpredigt; trad. bras.: O Sermão da Montanha, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978) que se veja no Sermão da Montanha, em sua presente forma conservada por Mateus, um corpo de ensinos próprios apenas para as pessoas já batizadas. Temos, portanto, de reconhecer que existe uma relação entre o fundamento e a superestrutura, que se apresenta assim: A) Proclam ação inicial: Jesus, aprovado por seus milagres atos de bondade, foi entregue pelos judeus a Pilatos e morto; contu do, Deus o ressuscitou dos mortos e o fez Senhor e Messias. Tudo isto aconteceu de acordo com as escrituras. 3. Cf. C.H. DO DD (capitulo V, n. 4) c também Floyd V. FILSON, “T Christian Teacher in the First Century” in J.B.L. 60, 1941, 317ss.
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B) Apelo inicial: portanto, arrependei-vos, sede batizados e recebereis o Espírito Santo. a) Extensão da proclamação: a vida de Jesus, seus milagres e atos de bondade eram os seguintes (exemplos dados). Seu choque com os judeus, sua sentença e execução seguiram o seguinte mode lo (detalhes). Sua ressurreição aconteceu assim (narrativas). Nos pontos apropriados, se inserem citações das escrituras. b) Extensão do apelo; arrependimento, batismo e a vinda do Espirito significam (uma vida nova, mudança de perspectiva, reves timento do novo homem, etc.); eles comportam (detalhes do caráter e conduta); eles se relacionam com o judaísmo e as religiões pagãs como segue (discussão dos problemas relevantes). Assim, para manter a metáfora, o extrato A corresponde ao fundamento, e o B, à estrutura superior; e tanto ao nivel A quanto ao nível B se inserem elementos do tipo (a) e (b). De qualquer ma neira, muitas vezes o impacto inicial não vem, na vida real, nem de ouvir os elementos do “Evangelho” nem do “apelo” direto, mas da qualidade de vida da comunidade cristã, tanto de uma família quanto de uma comunidade familiar, em que um estranho era rece bido pela comunidade e só então ouvia as explanações da mensa gem cristã.* Em tais casos, (Aa) e (Bb) podem ocorrer em qualquer ordem ou sem ordem. Em lTm 4,13, Timóteo é exortado a dar atenção à leitura (pública: das escrituras judaicas?), à exortação e ao ensino: todos três e lado a lado. Todavia, é seguro supor que o ensinamento normal para os neófitos, batizados recentemente ou preparando-se para o batismo, se articulava, como a proclamação ou kérygma, segundo um certo esquema mais ou menos regular. A instrução ou didaché, seja como apelo ao arrependimento e ao ba tismo, seja também como ensinamento do significado e implicações éticas da vida cristã, se estruturou segundo seqüências e secções próprias. É possível reconstruir parte dessa estrutura, partindo do material que se encontra disperso pelo Novo Testamento. É verda de que o Novo Testamento não contém um manual de instrução 4. Cf. R.R. WILLIAMS, “Logic versus Experience in the Order of Credal Formulae” in J.N.T.S. 1.1, setembro de 1954,42ss. Ele observa que Ef 4,4-6, que contém claramente elementos de “credo”, nào é, contudo, constituído segundo a lógica da profissão de fé (Deus, Cristo, Espírito, Igreja), mas praticamente segun do a ordem inversa da experiência.
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(tal como o Didaché dos Doze Apóstolos pode ser), mas contém uma boa quantidade de instrução dirigida a comunidades já cristãs, e é provável que muito deste material, com algumas diferenças me nores, represente aquilo que já tinha sido ensinado a eles no princi pio. De qualquer modo, este material didático e de edificação fre qüentemente se parece com uma recordação, uma lembrança da quilo que eles já conheciam; algumas vezes, na verdade, é descrito tão explicitamente, exatamente como de modo paralelo, o célebre sumário do kérygma em ICor 15,lss é, em muitas palavras, uma recordação daquilo que eles tinham ouvido no início: Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que recebestes, no qual permaneceis firmes, e pelo qual sois salvos, se o guardais como vo-lo anunciei; doutro modo, terieis acreditado em vão. Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nosso pecados, segundo as escrituras. Foi sepultado, ressusci tou ao terceiro dia, segundo as escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já adormeceram. Posterior mente apareceu a Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim, o abortivo.
Já existem muitas obras sobre as normas de ética familiar, o Haustafeln, para o adequado termo alemão, o que torna desneces sário entrar aqui em muitos detalhes acerca disto.5 Em Atos 20, em sua comovente despedida pronunciada em Mileto diante dos an ciãos de Éfeso, Paulo aparece recomendando-os ao Senhor e à mensagem de sua graça, que tem o poder de edificar e dar-lhes a possibilidade de participar da terra prometida como todo o povo de Deus (v. 32). Esta é a surpreendente descrição daqueles mesmos in terligados kérygma e didaché, examinados há pouco, e podemos supor que em Rm 6,17 se intenta a mesma coisa quando se fala de Typos didachés, isto é, do ensinamento típico ou modelo de ensina 5. A bibliografia mais acessivel é provavelmente: P. CARRINGTO N, The Primitive Christian Catechism, 1940; A.M. HUNTER, Paul and his Predecessors, 1940; E.G. SELWYN, The First Ep istle ofP eter, 2* ed., 1958, 194ss(onde è afirmado que, por volta de 1903, A. SEEBERG escreveu sobre o assunto na obra Der Katechismus der Urchristenheit). Cf. também a obra seguinte de SEEBERG, Die Beíden Wege und das Aposteldekret, e K. WEIDINGER, Die Haustafeln, 1928. Weidinger (p. 1) observa que o Haustqfeln é, pelo menos, tão antigo quanto Lutero.
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mento, ao qual os romanos eram “recomendados” por seu evange lista, qualquer que tenha sido ele. E precisamente esta espécie de ty pos parece ser exemplificada tanto nos breves sumários do Evange lho em IC or 15,lss e 2Tm 2,8 como nas normas de vida doméstica e familiar (Haustafeln) das epístolas, que contêm injunções para cada membro da família, originadas diretamente da incorporação em Cristo advinda do batismo. Que parece haver uma certa unifor midade nos “temas”, relacionando o despojamento e revestimento batismais com o conseqüente comportamento ético, não apenas en tre as epístolas paulinas, mas também quando a primeira carta de Pedro e Tiago são consideradas, está provado por um typos larga mente aceito. E o fato de podermos encontrar paralelos de algumas secções éticas, não só entre os escritores judaicos,6 como também entre os estóicos e outros escritores pagãos, é considerado apenas natural. O cristianismo nasceu no seio do judaísmo e se difundiu rapidamente na sociedade greco-romana; e não surpreende que to* masse por empréstimo elementos tanto daquele como desta. O que é surpreendente é a intensidade com que o elemento distintivo do en kyrío, “no Senhor”, permeia e caracteriza sua marca sobre o ensi namento ético cristão.7 A conduta é medida de acordo com o pa drão de pertencer à comunidade cristã. O padrão para julgar o que é certo torna-se “o que convém” (hos anéken) “àquele que está li* gado ao Senhor” (en kyrío), Cl 3,18; cf. ICor 7,39 (“para que o matrimônio seja feito na comunhão do Senhor”). Contudo, neste ponto, é necessário firmar-se sobre uma ques tão de grande importância, que é comum não só a todo ensino ético do Novo Testamento como também da literatura do periodo ime diatamente seguinte. Trata-se do fato de que, com exceções muito raras, nenhum cristão tinha responsabilidades cívicas diretas, por que poucos dentre eles eram cidadãos romanos e poucos (ou ne 6. Cf. O. ZÓCKLER, Die Tugendlehre des Christentums, 1904; A. VÓGTLE, Die Tugend-und Lasterkataloge im Neuen Testament, 1936; S. WIBBING, Die Tugend-und Lasterkataloge im Neuen Testam ent und ihre Traditionsgeschichte unter besonderer Berücksichtigung der Qumran-Text, 1959. 7. Em 2Ts 3,6, peripatêin katá tén parádosin hert parelábete par'hemón é colocado em contraste com atáktos peripatêin, que dá testemunho acerca de um elemento didático relativo à conduta na pará dosis (ou paradóseis, plural, 2Ts 2,15).
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nhum) tinham voz efetiva em assuntos públicos.8 Isto não significa apenas que aquilo que chamamos hoje de “sociologia” cristã era desconhecida como estudo, mas também que não existia o fenôme no a ser estudado. Isto não significa que a ética cristã era indivi dualista; pelo contrário, o cristianismo do Novo Testamento não é nada mais que social. As tradições semíticas em que ele se originou têm um profundo senso de comunidade e, ainda mais, logo se per cebeu que era impossível descrever o próprio Cristo de outra ma neira que não como uma personalidade inclusiva e coletiva. Tor nar-se cristão significava, portanto, ipso facto tornar-se um órgão ou membro do Corpo de Cristo, e a Igreja Cristã é essencialmente a familia de Deus (cf. G1 6,10;Ef 2,19; lTm 3,15; Hb 3,5s; 10,21). Na verdade, malgrado toda a sua corporeidade no Antigo Testa mento, Israel nunca foi considerado um conceito tão completamen te orgânico como o foi o Israel de Deus, a Igreja. Todavia, com tudo isto, permanece a verdade de que, forte como era o sentido co letivo dentro da comunidade eclesiástica, a espécie de atividade na sociedade em geral que, hoje, é conhecida como socialismo cristão, o qual produz uma “ação cristã”, era ainda simplesmente im possível. O problema da escravatura é um exemplo típico, Todos sabem que luta teve de ser travada no Parlam ento inglês por Wilberforce e outros, no século XIX, para assegurar a abolição da escravatura nas colônias britânicas. Para os cristãos do primeiro século, tomar parte ativa na abolição daquilo que era parte da estrutura social do tempo constituía uma clara impossibilidade. Não havia outro meio, exceto a rebelião cruenta, mas esta não era uma via cristã. Além do mais, este método havia falhado, de fato, quando periodicamente fora adotado por escravos-heróis pagãos, como Espártaco. O estoicismo contava em seu meio com homens influentes e, não obstante, pôde freqüentemente se contentar em proclamar genéricos ideais; algumas vezes os praticou em nivel individual e exerceu influência 8. Nào que se deva pensar que os moralistas mais privilegiados tivessem ne cessariamente muito mais voz ativa. E. SCHWEIZER, o.c. (cf. capitulo IV, n. 5). 104, diz que a frase estóíca, segundo a qual todo o mundo é a pólis do filósofo, era, de fato, apenas “uma fuga da vida política ativa e uma admissão de que ele não pode mais exercer qualquer influência prática sobre esta pólis".
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sobre a legislação romana.9 Entretanto, para os cristãos o único modo possível para enfrentar o problema era, independentemente de pagar o resgate de escravos individualmente (cf., e. g., Inácio, Ad. Pólyc. 4,3), mudar o relacionamento entre os indivíduos. Isto eles fizeram e em parte alguma está mais claramente refletido do que nas cartas do Novo Testamento (cf. especialmente Filemon ). E o mesmo principio se aplica, mutatis mutandis, a toda a ética do Novo Testamento. O Sermão da Montanha se preocupa essencial mente com o caráter e a ação individuais. A ética sexual das Epís tolas e Evangelhos está inteiramente relacionada com a ação do in divíduo dentro do complexo da lei e dos costumes já existentes. Nada mais teria sido realista. O resultado de tudo isso é não só que os leitores de hoje procu ram em vão no Novo Testamento indicações precisas de ética so cial, mas também, e bastante paradoxal, que, no próprio tempo do Novo Testamento, os cristãos pareciam aos observadores externos pessoas sem religião. Para o paganismo, a religião era um elemento indispensável na vida civica. P ara o judaísmo, a religião se identifi cava com nacionalismo e se expressava parcialmente em formas que simbolizavam fidelidade á nação. Ao contrário, os cristãos, re cusando associar-se ao culto imperial pagão e não possuindo sa crifícios visiveis, nem um sacerdócio, nem um lugar sagrado, pare ciam ser ateus. Eles não podiam mostrar nenhum dos sinais distin tivos da religião; sua comunidade política (politeuma), como a cha mava Paulo, estava no céu (F1 3,20) e não era acessível para de monstração (cf. acima, p. 116) Assim, este modo de vida profundamente coletivo parecia ser ou muito individualista, ou, se coletivo, então de qualquer manei ra alienado da vida pública: ele não tomava parte na ação cívica e não possuía nada que o mundo antigo pudesse reconhecer como sistema cultuai. Em qualquer lugar, havia confratemidades religio sas, o grego hetairêiai e o semitico haburoth, que viviam no âmbito de cultos mais amplos; mas, no nosso caso, ainda que existissem refeições comunitárias, parecia que lhes faltava o background visí vel de culto. Contudo, o observador externo se enganava. Dentro 9. Cf. A.A. EHRHARDT, Politische Metaphysik vort Solon bis Augustin, 1959, II, 18.
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de suas próprias comunidades, a Igreja não estava apenas cons ciente da unidade orgânica entre os seus membros no Corpo de Cristo, como também era extremamente ativa no campo da “assis tência social”; e, para aqueles que tinham olhos para ver, a Igreja possuía tanto um altar quanto um Sacerdote (cf. especialmente a Epístola aos Hebreus; cf. pp. 9lss acima). Além disso, é necessário fortemente enfatizar que aquilo que se disse acerca da incapacidade dos cristãos de participarem da políti ca não significa necessariamente que eles revelassem total falta de interesse.10 Pelo contrário, em muitos casos, revelaram um interes se muito vivido por tudo aquilo que estava em torno deles. Uma moderna Testemunha de Jeová pode assistir, sem angústia, à fuga em pânico das nações para a autodestruição, porque ela crê que as nações estão irremediavelmente condenadas e que sua queda deve trazer a nova era. Um sectário extremado hoje pode recusar-se a participar de todas as sociedades, exceto a de Cristo, citando 2Cor 6,14-7,1 (“Não formeis parelha incoerente com os incrédulos”) e parecendo esquecer-se de ICor 5,9-13, onde são Paulo explica que, quando disse (talvez nesta mesma passagem, 2Cor 6,14ss) que os cristãos não devem misturar-se com gente imoral quis dizer cris tãos professos imorais, não o imoral dentre os não-cristãos: se os coríntios quisessem evitar estes últimos, teriam de retirar-se com pletamente do mundo! Contudo, em contraste com tais atitudes, a maioria dos cristãos do Novo Testamento parece ter crído que o Reino de Deus deve estar em conexão com os reinos desta era e nao totalmente separado deles. A perspectiva do Apocalipse é, re conhecidamente, mais destacada, mas, para Paulo, o senhorio do Imperador era parte da ordem legal de origem divina (Rm 13,1), e o Reino de Deus não podia ser concebido no vácuo, independente mente dos eventos históricos. Contudo, o papel da Igreja não era ainda adotar abertamente a ação política e social; ela devia crescer ainda no seio da comunidade política como uma força revolucioná ria (geralmente não reconhecida). Ela era fermento, exatamente como o Reino de Deus, de quem era o instrumento. O único ponto, no período neotestamentário, em que a Igreja toma claramente uma posição, foi em relação à idolatria e também em relação ao 10. Cf. K.L. SCHMIDT, em A.T. EHRHARDT, o.c., 20, n. 1.
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culto ao Imperador. Neste caso, “a resistência passiva”, caso fosse necessária, em direção ao martírio, era o único caminho para o fiel. Entretanto, até que a autoridade romana exigisse alguma coisa que o cristão não pudesse conscientemente dar, porque entrava em con flito com sua fidelidade, era dever do crente, como membro obe diente da sociedade, promover a lei e a ordem que, em principio, pertenciam ao Deus de paz, que na criação tinha triunfado sobre a desordem (cf. ICor 14,32s e Rm 16,20). Deus é Deus do “cosmo”, da ordem; o principio de autoridade e de uma sociedade ordenada é parte da estrutura divina das coisas (cf. ICor 11,3). Portanto, a au toridade humana é ilegítima apenas quando usurpa a autoridade suprema, que pertence só a Deus: “O que é de César devolvei a Cé sar”, mas também “o que é de Deus, a Deus”. Assim, o cristianis mo do Novo Testamento era revolucionário, mas não anarquista. Era revolucionário, porque o reconhecimento de uma autoridade absoluta e divina, em última análise, deve ser uma perene condena ção da sede humana de poder absoluto; mas não era anarquista, porque renunciava à violência e, quando a fidelidade absoluta do cristão colidia com a imposição secular, ainda aceitava o principio de autoridade e se submetia às penas impostas pela autoridade se cular, mesmo quando isso fosse injusto. A arma do cristianismo, em outras palavras, foi, em seus momentos mais autênticos, a cruz e não a espada.11 Este era, então, o foco de instrução extremamente vital para o neófito. Tendo renunciado a Satanás e aceitado Jesus como Se nhor, não devia ele recusar-se a pagar impostos? Não devia ele re jeitar toda autoridade civil? Não era talvez o caso de unir-se a mo vimentos revolucionários, como o dos zelotas, e empregar a força para derrubar o poder secular, isto é, a força de Satanás? A respos ta do catequista era: não! Toda a criação de Deus deve sua coerên cia ao princípio de uma autoridade e de uma ordem hierárquica: Deus, Cristo, o homem, a mulher; Deus, os poderes, os súditos;12 e se o pecado e a desobediência introduziram um elemento de desor dem e de caos, aquela ordem não será restabelecida pela anarquia, mas pela obediência que tem um preço muito alto, que chega ao so1). Sobre a tremenda tensão entre estas duas possibilidades, cf. J.A.T. ROBINSON. On Being the Church in the World, 1960, 43ss. 12. Cf. C.D. MORRISON, The Powers that Be, 1960, passim.
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frimento. Este é o verdadeiro princípio da encarnação. Portanto, ainda que “os filhos do reino” sejam, na verdade, livres (no sentido que a eles pertence a verdadeira cidadania e que eles não são um povo submisso), eles pagam impostos, dando a sua contribuição ao princípio da ordem (Mt 17,24ss); obedecem às autoridades civis, não por medo das sanções, mas como uma contribuição positiva ao mesmo princípio (Rm 13,5; lPd 2,13-15); e se forem obrigados a desobedecer por causa de um conflito insanável de fidelidades, então devem estar prontos a aceitar o preço. Sobretudo, eles nunca devem tornar-se culpados de imoralidade: eticamente, devem ser exemplares.13 Isto nos conduz a situações refletidas mais de uma vez no Novo Testamento, isto é, as situações em que os padrões pagãos de conduta sexual entram em conflito com os padrões cristãos. Era necessário que um cônjuge cristão rompesse totalmente com o seu passado, renunciando ao companheiro pagão? Se ele o fizesse, pode ria casar-se outra vez no âmbito da comunidade cristã? Ou era o sexo em si mau e deve o cristão eliminá-lo totalmente? Pode-se ver que essas questões são tratadas de modo incerto, algumas vezes de modo inadequado por pastores cristãos; e há evidência bastante clara de grave deficiência moral na Igreja neotestamentária, que exigiu severa ação disciplinar (cf., especialmente, ICor 5; 6,12ss e as Epistolas Pastorais). Outro problema, tratado com grande relevo em IC or 8-10, diz respeito à correta atitude dos cristãos no caso da participação com os pagãos em refeições em que se servia carne sacrificada aos ído los. Contudo, é difícil dizer se esta ordem de ensinamentos fazia parte da catequese normal. Dizer que ela foi tratada, segundo Atos 15, em termos gerais pelo Concilio de Jerusalém, só acrescenta mais incerteza: de fato, que tinha acontecido com este decreto, quando Paulo escreveu a primeira carta aos Coríntios? Por que a questão não figura em absoluto em todas as outras cartas paulinas 13. Com respeito á consciência de que o fracasso na conduta cristã trazia des crédito para o Nome de Cristo, cf. W.C. VAN UNNICK, “Die Rücksicht auf die Reaktion der Nicht-Christen ais Motiv in der Altchristlichen Paránese” in Z.N?T.W. (Beiheft 26, fur J. Jeremias, 1960). No Novo Testamento temos: Rm 14,16; ICor 10,32s; F1 2,15; Cl 4,5; lTs 4,1 ls; lTm 3,7; 6,1; Tt 2,8.10; lPd 3,17; 4,13.
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(a menos que se tenha um eco em Rm 14), nem na primeira carta de Pedro? É difícil imaginar que esta questão não tenha se tornado um problema no seio de uma comunidade gentílico-cristã. Todavia, Atos 15 (de modo geral) e IC or 8-10 (de modo particular) são as únicas alusões claras a ela. A questão paralela acerca da dieta (isto é, se os cristãos de origem gentilica deviam observar os tabus judai cos nas refeições em companhia dos cristãos de origem judaica) é tratada também em Atos 15 e talvez seja sugerida esparsamente (G1 2,1 lss; Rm 14; Cl 2,16?), mas, de outro modo, não é mencio nada, nem mesmo em Ap 2,24, que em alguns aspectos relembra o decreto de Atos 15. Pode-se imaginar prontamente que, na medida em que os cristãos se distanciavam do judaismo e conquistavam sempre novos membros entre os gentios, a questão rapidamente foi perdendo a sua atualidade: tornava-se cada vez mais raro que cris tãos viessem a se encontrar á mesa com irmãos sensíveis ainda às tradições judaicas. Além das questões éticas para as quais os cristãos deviam en contrar uma solução ao nível catequético, existiam aquelas que po deríamos chamar de questões inerentes ao caráter individual. Estri tamente falando, o cristianismo não conhece “virtudes cardeais”, pois o caráter do cristão não depende da prática disciplinada da virtude: trata-se de um desenvolvimento espontâneo, de uma messe de qualidades brotadas da semente da nova vida semeada por Deus (cf. G1 5,22; Ef 5,9; F1 1,11; Hb 12,11; Tg 3,18); ou, para usar uma imagem mais característica, trata-se da vida na nova era, vida que resulta da incorporação na nova humanidade que é Cristo (cf. Rm 13,14; 2Cor 5,17; G1 3,27; Ef 4,20-24; Cl 2,1 ls; 3,9ss). Agape não é uma virtude entre outras, tanto como um impulso totalmente novo, divinamente implantado: é o amor de Deus por nós, em Cris to, que se manifesta e ao qual se responde. E aquilo que em outros sistemas poderia ser chamado de virtudes são as formas assumidas pelo agape na comunidade cristã (ICor 12,31-13,7).14 Não obstan14. Com respeito ao agape, o tratamento mais completo é encontrado em C. SPICQ, Agapè: prolégomènes à une ètude de théologie néotestam entaire, 1955; e Agapé: dam le Nouveau Testament , . analyse des textes, 1, 1958; n, m, 1959. Sobre os vários aspectos da ética do Novo Testamento e seu background judaico e pa gão, podem ser consultadas as seguintes obras: J. BONSIRVEN, Le Judàismepalestlnlen au temps de Jésus-Christ, sa théologie, 2 vols., 1935; ed. resumida, 1950; F.B. CLOGG, The Christian Character in the Early Church, 1944; D. DAUBE, (S
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te pareça que muitas qualidades cristãs, de fato, coincidam com as da lista estóica, existe, todavia, uma diferença radical. As virtudes estóicas representam uma luta orgulhosa do espírito humano para conformar-se com a natureza e conseguir o domínio sobre a fra queza; as virtudes cristãs emergem depois da confissão do pecado e da humana fragilidade: são o resultado de uma consagração a Deus e dependência dele. Não é por acaso que o termo andréia, “coragem”, que é tão comum nos sistemas éticos pagãos, nunca ocorre no Novo Testamento (o verbo andrízesthai ocorre uma úni ca vez, ICor 16,13). A coragem do mártir cristão não resulta da determinação da alma em suportar tudo; ela deriva da abnegação e da fidelidade mais completa, da absoluta dependência do Senhor. Para provar mais ainda, o caráter cristão se distingue justamente por aquele calor e gentileza com que o estóico podia sentir-se real mente envergonhado.15 Conseqüentemente, o ensinamento catequético sobre o caráter consiste grandemente de uma recordação do batismo e só secundariamente da enumeração daquelas virtudes (gentileza, paciência e solidariedade), que são o fruto do Espírito semeado no batismo (e. g.: lPd 1,23-2,3). A catequese cristã con tém, de fato, abundantes advertências contra uma reincidência na indisciplina e na imoralidade da precedente vida pagã. Um dos mais impressionantes traços da nova vida deve ter sido, para o neófito, a libertação do medo, do medo da feitiçaria, dos espíritos malignos e das forças demoniacas. Por isso, a exorta ção ética típica fala em termos do reino das trevas, do qual o cris me New
Testament and Rabbinic Judaism , 1956; o ensaio de C.H. DODD sobre a ética paulina em TheEvolution o/E thics, 1920; C.H. DODD, Gospel and L aw, 1951; M.S. ESLIN, The Ethics o f Paul, 1930; R.N. FLEW, The Idea ofPerfec tion, 1934; T.E. JESSOP, Christian Morality, 1960; a dissertação de J.B. LIGHTFOOT sobre Paulo e Sêneca em Philippians, 1868, reimpressa em 1957; o ensaio de W.F. LOFTHOUSE sobre a ética biblica em A Companion to the Bible, 1939; T.W. MANSON, Ethics and the Gospel, póstuma, 1960; L.H. MARSHALL, The Challenge o f the New Testament Ethics, 1946; o ensaio de C.H. MOORE sobre a vida no Império Romano em The Beginnings of Christianity, 1,1920; a introdução a Filemon de L.B. RADFORD em Colossians and Philemon, 1931; C.A.A. SCOTT, New Testament Ethics, 1934; R.H. SNAPE, excur so II, “Rabbinical and Early Christian Ethics” in A Rabbinic Anthology, 1938; A.N. WILDER, Eschatology and E thics In the Teaching o f Jesus, 1939; “Kerygma, Eschatology and Social Ethics” in The Background of the New Testament and its Eschatology, 1956. 15. Cf. SPICQ, o.c„ III, 262, n. 3.
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tão foi salvo, passando para o glorioso reino da luz; da submissão dos poderes das trevas e deste século; da escravidão da qual Cristo liberta o fiel, conduzindo-o para a liberdade da nova criação (Rm 8,35ss; 12,2; 13,12-14; 16,20; ICor 8,5s; 12,2; G1 4,8ss; Ef, pas sim; Cl 1,13; ITs 1,9; 1Pd 2,9; etc.). O mundo tenebroso da su perstição avulta-se muito claramente diante do catecúmeno. Con tudo, agora que ele está livre do temor, observa que entre os princi pais perigos da nova vida estão a rivalidade, o partidarismo, a divi são. Assim, uma boa parte da catequese se preocupa com estes ma les, como se pode ver no final de Romanos, Gâlatas, Efésios, Colossenses e em muitas partes da primeira carta aos Coríntios e aos Filipenses. Assim, o material do Novo Testamento que reflete o ensina mento catequético primitivo16 forma-se a partir da repetição dos fundamentos do Evangelho, através de problemas éticos específi cos, até à edificação da personalidade cristã no seio da comunidade do Corpo de Cristo. E não há motivo para surpreender-se se mate rial semelhante tenha sido usado repetidamente, mesmo em épocas posteriores. Todo cristão, independentemente de sua maturidade, benefícia-se de uma recordação de seus votos batismais e dos ensi namentos recebidos no início de sua vida cristã. E isto nos reconduz ao uso da homília cristã, de que já se fez menção no capítulo dedicado ao culto (pp. 41s). É preciso apenas repetir aqui que a instrução catequética sobre o significado do batismo, e sobre a con duta que se origina da incorporação em Cristo, está tão integrada no todo da vida cristã que não se deve surpreender da dificuldade de determinar, por exemplo, se o material da primeira epístola de Pedro representa uma homília batismal ou uma instrução epistolar para aqueles que já tinham sido batizados. Ambas têm o mesmo conteúdo. Muito mais especificas são as passagens relacionadas com dou trinas falsas. Essas são proeminentes em muitos dos escritos do 16. Para a fase seguinte deste fascinante estudo (que está fora de nosso perío do), o leitor é remetido à edição das Sentenças de Sexto, editada por H. Chadwick. Este escreve: “O interesse que domina o presente estudo está na afinidade e na diferença entre a moralidade cristã do segundo século e a do ambiente circunstante. A obra, portanto, é concebida como uma contribuição â questão muito dis cutida acerca da continuidade e descontinuidade entre a Igreja Primitiva e a socie dade contemporânea . . . ”
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Novo Testamento e, enquanto que algumas são evidentemente diri gidas a uma única e bem determinada situação, há outras que po dem bem representar dificuldades recorrentes. Os vários tipos de erros atacados podem ser razoável e sucintamente catalogados. Há a tendência judaizante de se confiar na ação humana como meritó ria, em vez de lançar-se constantemente apenas sobre a graça de Deus: esta é uma das ameaças principais atacadas por Paulo (cf., especialmente, as Epístolas aos Romanos, aos Gálatas e F1 3). No extremo oposto, temos o antinomismo, isto é, a convicção de que a misericórdia de Deus perdoa a vida de licenciosidade e a egoística falta de amor para com os outros: este erro também é atacado por Paulo (e. g.: Rm 3,5ss; 6,lss), mas atacado ainda mais violenta mente por Tiago (2,14ss). No contexto não só deste antinomismo como também no extremo oposto do legalismo permanece uma fal sa posição doutrinária freqüentemente combatida no Novo Testa mento, isto é, o dualismo que considera o mundo material como mau em si. E esta doutrina, por seu turno, se irmana naturalmente com uma falsa cristologia que refuta a realidade da encarnação, considerando Jesus ou um semideus (arianismo), ou totalmente ho mem, ou, ainda, dividindo-o em dois aspectos não realmente uni dos. Com esta espécie de erro vai, na verdade, uma compreensão geralmente fraca do elemento histórico. Como observa G. Stãhlin em seu artigo "mythos” (in T.W.N.T.), o Novo Testamento usa a palavra “mito” num sentido pejorativo: significa um divórcio da realidade que tinha se manifestado historicamente e, sobretudo, no evento da encarnação (lTm 1,4; 4,7; 2Tm 4,4; Tt 1,14; 2Pd 1,16). Para o Novo Testamento, a “verdade” não é abstrata: está presen te em Jesus. Assim, os “negociantes” de mitos são vigorosamente atacados nas Epistolas Pastorais e na segunda carta de Pedro.17 A heresia cristológica ligada à frouxidão moral recebe a sua re futação clássica nas duas primeiras cartas de João. Outro proble ma inquietante, que assume proporções maiores na época subapostólica, é a questão do pecado cometido depois do batismo e do perfeccionismo.1®A Epístola aos Hebreus parece ser o escrito neo17. Cf. G. MIEGGE, Gospel and Myth, trad. inglesa, 1960, I03ss. 18. Cf. W. TELFER, The Forgiveness of Sins, 1959.
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testamentário que mostra maiores traços de tal discussão (cf. 6,4ss; I0,26ss; mas também lJo 5,16ss). Portanto, a catequese individual, homilias endereçadas a gru pos de fiéis e exortações particulares em face de situações particu larmente criticas devem todas ter contribuído para fornecer o con teúdo e a forma das diferentes partes do Novo Testamento. E con siderando que, em certas comunidades e em certas condições, um interesse extrapolado para a evangelização parece ter superado a concentração sobre as dificuldades externas, em outras (cf., espe cialmente, lJo) a luta pela pureza doutrinária induziu os cristãos a formarem-se uma comunidade fechada. Devemos passar agora a examinar o uso que a Igreja do Novo Testamento fez das parábolas de Jesus, pois estas oferecem impor tante material para a análise do ensino de “edificação”. A obra da crítica das formas em geral e, em particular, as pesquisas dos estu diosos modernos, especialmente C.H. Dodd (The Parables o f the Kingdom, 1935) e J. Jeremias (Die Gleicknisse Jesu, 1954, 3* ed.; trad. bras.: As Parábolas de Jesus, Ed. Paulinas, São Paulo, 1976), que investigaram o processo de transmissão das parábolas, estabe leceram, fora de qualquer dúvida, que, quando os Evangelhos fo ram escritos, as parábolas originalmente contadas por Jesus já ti nham experimentado considerável alteração no período da tradição oral. Em particular, está bastante claro que a Igreja Primitiva as ti nha aplicado e adaptado às suas próprias circunstâncias. Se fosse necessário confirmar essa tendência, o assim chamado Evangelho de Tomé, recentemente descoberto e escrito na língua copta,15 for nece uma extensa série de parábolas, quase todas reconhecidas como as mesmas do Novo Testamento, mas todas adaptadas e reelaboradas livremente de acordo com os interesses doutrinários des te escritor ou de seu grupo. E, embora este escrito esteja fora do c â non, enquanto os quatro Evangelhos estejam dentro, não há razão pela qual devemos considerar os Evangelhos canônicos imunes de semelhante prática. Embora haja uma série de provas irrefutáveis quanto ao processo de fusão e adaptação que caracterizaram a transmissão de parábolas, contudo a extensão delas num dado 19. 1960.
Cf. R.M. GRA NT c D.N . FREEDM AN, The Secret Sayings of Jesus,
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exemplo sempre necessita de cuidadoso exame, e a crítica atual ten de, algumas vezes, a adotar técnicas muito mecânicas. Contudo, antes de examinarmos alguns exemplos, vale a pena observar que o material, tanto das parábolas como de outras partes da tradição evangélica, parece ter deixado aqui e ali seus traços sobre as cartas. Se esta é uma correta leitura dos fatos, sugere que, muito tempo antes de os Evangelhos serem universalmente aceitos, mestres e pregadores estavam usando a tradição evangélica para ilustrar ou inculcar suas lições. A linguagem de ICor 7,35: “Digovos isto em vosso próprio interesse . . . para que possais permane cer junto ao Senhor sem distração” (prós tó eupáredron tó kyrio aperispástos) recorda tão claramente a narração de Lucas do epi sódio de Marta e Maria (Lc I0,39s: “Maria ficou sentada aos pés do Senhor . . . M arta estava distraída . . [Mariám, he kai pa ra kathesthêisa prós tôus pódas tôu kyríou . . . he dé Martha peries páto . . .7), que não deve causar admiração que Paulo tivesse em mente este episódio quando escolheu suas palavras, sabendo que seus amigos corintios também tinham a mesma reminiscência. Se essa hipótese tem ao menos um pouco de verdade, significa que ele tinha ilustrado uma atitude desejável recontando o episódio. Assim, as parábolas do crescimento parecem estar em mente, não apenas no dito parabólico de 2Cor 9,10 (Deus dá crescimento à semente: ele também fará a vossa justiça produzir fruto), mas também nos ditos de Cl 1,6.10 (produzindo frutos e crescendo), adaptando-se tão naturalmente ao background da parábola do semeador.20 Em Atos 20,35, coloca-se na boca de Paulo um dito de Jesus, aliás des conhecido (“Há mais felicidade em dar que em receber”). Em lTs 5,21, ocorre um dito parabólico que reaparece numa forma mais explícita em Clemente de Alexandria, Strom. 1,28,177: “Sede bons cambistas, que rejeitam algumas coisas, mas retêm aquilo que é bom” (he graphé . . . parainêi guinesthe dé dôkimoi trapezitai, tá men [?/ apodokimázontes, tó dê kalón katéchontes). Este bem pode ser um dito autêntico de Jesus; e a identificação que Clemente faz 20. O hysteron-proteron, produzindo frutos e crescendo, podia ser explicado como uma reminiscência de hebraico de Gn 1,28 (em que, dirigido a pessoas, não representa uma anomalia: devem ser fecundos e assim multiplicar a raça). Contu do, permanece o fato de que a LXX não usa karpós ou karpophorêin e a parábola evangélica é o paralelo mais próximo de Cl 1.
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da metáfora com um metal apóia plausivelmente a interpretação da passagem de lTs 5,22 no mesmo sentido: “ Guardai-vos de toda es pécie de mal” (apó pantós êidous ponerôu apéchesthe= tipos maus de moeda (?). Realmente a passagem é empregada no mesmo senti do por Basilio, Hom. 12,6: “ e como um banqueiro qualificado, ele guardará aquilo que vale, mas se desfará de todo exemplar dete riorado” (kai ho dókimos trapezítes, tó men dõkimon kathéxei, apó dé pantós eidôus ponerôu aphéxetai; cf. ainda em Is 47).21 Assim, a metáfora completa pode ser uma parábola do Senhor em embrião. Em lTm 6, pois, não há ecos de ditos e situações do Evangelho.22 Deve ser enfatizado que estes exemplos são apenas “palhas ao ven to”, surpreendentes apenas por sua fraqueza e fragilidade indivi duais. Assim, para citar somente um exemplo da grande lacuna na evidência, em 2Tm 1,12 (“ . .. porque eu sei em quem coloquei a minha fé, e estou certo de que ele tem poder para guardar o meu depósito, até aquele Dia”) se esperava uma alusão à parábola dos talentos e, em vez disso, não oferece nenhuma evidência de qual quer conhecimento a respeito dela. Ao contrário, ficamos indecisos para conhecer a imagem pressuposta na metáfora de 2Tm 2,15: “cortar retamente” (órthotomâunta: trata-se da aradura, da lapida ção da pedra ou de alguma outra coisa?). Mesmo assim, no con junto, há bastantes evidências que não deixam dúvidas de que os pregadores se serviram de material (que finalmente confluiu para os Evangelhos) para ilustrar e inculcar sua mensagem, isto é, material tanto dos ditos de Jesus quanto de sua vida e obra.23 21. A. RESCH, Ágrapha, 1889, 116ss, coleta não menos que 69 citações des te dito nos Padres Apostólicos. 22. Cf. Excurso II: Lucas e as Epístolas Pastorais. 23. Cf. C.F.D. MOULE, “The Use of Parables and Sayings as IUustrative Material in Early Christian Catechesis” in n% 3,1952 , 75ss; e notar ainda o seguinte: Fl 4,12 contém um pouco do vocabulário da parábola do Filho Pródi go de Lc 15 (devo esta observação ao Dr. G.S. Duncan); 2Pd 1,13.15 recorda es pecialmente a versão de Lucas do episódio da Transfiguração; Ap 3,3.20 faia do ladrão e do bater à porta e 2Tm 2,19 (égno kyrios tôus óntas autôu, kai apostéto apó adikías pás ho onomázon tó ónoma kyriôu) pode ser considerado como uma reminiscência inversa de Mt 7,21-23; cf., ainda, o Excurso II. Cf., também, M.S. ESLIN, The Ethics o f Paul, 1930, 116, n. 18 e J.C. HAWKINS, Horae Synopticae, 1909, 2* ed., 196, nota ali cit., e C. SPICQ, L 'Épitre aux Hébreux I, 1952, 100, n. 2; e H. RIESENFELD, “Le Language parabolique dans les épitres de saint Paul” in Recherches Bibliques 5, 1960, 47ss.
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Então, qual poderia ser o resultado de semelhante tratamento das parábolas? Subentende-se que a moral extraída delas devia ser válida para o momento em que tomaram a forma escrita: doutra sorte, teria significado apenas no contexto da vida de Jesus e não teria sido tirado deste contexto original. Analogamente, as próprias parábolas sofreriam um certo grau de adaptação e retoque, a fim de ajustar-se às lições que pretendiam expor. É difícil resistir à im pressão de que Lc 16,8ss contenha toda uma série de ensinos éti cos, relacionados, num tempo ou noutro, com a parábola do admi nistrador desonesto: . . . Pois os filhos deste século são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz. E eu vos digo: fazei amigos com o Dinheiro da iniqüidade, a fim de que, no dia em que faltar, eles vos recebam nos tabemáculos eternos. Quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também no muito, e quem é iníquo no minimo, é iniquo também no muito. Portanto, se nâo fostes fiéis quan to ao Dinheiro iníquo, quem vos confiará o verdadeiro bem? Se não fostes fiéis em relação ao bem alheio, quem vos dará o vosso? Ninguém pode servir a dois senhores: com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro.
É igualmente difícil evitar a impressão de que as duas histórias da grande festa, de Mt 22,2ss e Lc 14,16ss, foram adaptadas, de modos diversos, a situações que prevaleciam depois do início da missão da igreja apostólica. Além do mais, a interpretação alegóri ca do joio entre o trigo (Mt 13,36ss) se adapta mais ao período apostólico, quando “igreja” e “mundo”, verdadeiros cristãos e fal sos cristãos eram elementos opostos mas confundidos, do que ao próprio ministério de Jesus, quando a antítese era entre discípulos e adversários, e o perigo de confusão era muito remoto. Contudo, a critica deixa de ser científica quando, baseando-se meramente em exemplos claros como aqueles que foram citados, salta para a conclusão de que nenhuma alegoria pode remontar ao Senhor; que todo ataque e censura contidos no ensino parabólico original de Jesus era dirigido contra os seus adversários; enfim, que Jesus nunca pronunciou parábolas que se referissem ao “fim dos tempos” ou se dirigiu à condição de seus próprios discípulos. A realidade é que um volume muito maior do ensinamento parabóli
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co, como o encontramos agora nos Evangelhos, pode ser adaptado mais naturalmente a um contexto dentro do ministério de Jesus do que a moderna ciência crítica está disposta a conceder; e que nâo podemos supor tão rapidamente os traços de “ adaptação para a edificação” em qualquer lugar. Tomemos um exemplo raramente citado de Mt 24,45 e Lc 12,42. Há, nestas duas passagens paralelas, um dito de Jesus que co meça, em ambos os casos, com tis ára; “Quem, pois . . . ? ” e conti nua, com a mínima divergência de vocabulário e de estilo, por toda a parábola. A única diferença substancial entre as duas redações é que o “quem, pois . . de Mateus não é absolutamente prenun ciado, enquanto que o de Lucas é introduzido (v. 41) pelas pala vras: “Então Pedro disse: Senhor, é para nós que estás contando esta parábola ou para todos?” Contudo, esta pequena diferença é bastante importante. Em primeiro lugar, sabemos que é Mateus, não Lucas, que multiplica as alusões a Pedro. Em segundo lugar, a questão direta acerca dos destinatários da parábola precedente (is to é, os discípulos ou todos os outros) é surpreendente e sem prece dente. E, em terceiro lugar, é só esta frase interrogativa de Lucas que concede lógica ao ára, “pois”, que, em Mateus, privado de uma frase precedente, está praticamente sem sentido. É verdade que há outro exemplo de ára » em Mateus, sem introdução (Mt 18,1), quando os discípulos perguntam: “Quem, pois, é o maior no Reino dos Céus?” Mas este caso, pelo menos, pode ser explicado com a significação de algo como o português “afinal”, e com a su posição de uma discussão antecedente entre os discípulos. Todas estas considerações têm um valor cumulativo e induzem a julgar a versão de Lucas como a mais próxima do original; ou, falando de outro modo, estamos induzidos a crer que Lc 12,41 (a cláusula de Pedro) não pode ser um mero acréscimo editorial. Se esta é uma passagem de “Q”, então o texto completo de Lucas tal vez a tenha reproduzido mais fielmente. O ára, “pois”, de Mateus permanece suspenso, porque está precisamente suprimido de seu contexto original. Se isto é verdadeiro, então se deve admitir que o contexto pró ximo da parábola remonta a um período antigo; e a suposição de que a frase interrogativa, ou mesmo toda a passagem (nos dois Evangelhos), seja uma adaptação posterior (e, desta forma, de após
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o Senhor) a uma situação eclesiástica e ao problema criado pelo re tardamento da parousia é naquela extensão enfraquecida. Contu do, se se adota a suposição oposta, isto é, que aqui temos um diálo go autêntico do ministério de Jesus, é possível explicar o texto de modo compreensível? Ele parece dizer: “Este apelo para estar vigi lantes e preparados (Mt 22,44 e Lc 12,40) não é para este ou aque le, mas para vós, os Doze especialmente escolhidos. Deveis ser fiéis em administrar quando fordes comissionados para administrar; doutra sorte, sereis apanhados desprevenidos”. É possível conceber um Sitz im Leben Jesu, um momento do ministério de Jesus que seja um contexto para tal advertência? Talvez seja possivel. É claramente difícil (cf. p. 109) dar um contexto a Mt 10,23 (o famoso dito sobre a vinda do Filho do Ho mem antes que as cidades de Israel sejam todas visitadas; é o ló gion central da teoria de A. Schweitzer sobre a desilusão de Jesus), mas porque é difícil colocá-lo no período após a ressurreição, quan do começava a missão entre os pagãos; parece mais plausível si tuar no ministério de Jesus esta predição de um limitado (embora apenas limitado) retardamento da vinda do Filho do Homem. E, em Lc 19,1 lss, a parábola das minas é introduzida pela frase: “ . . . Jesus acrescentou uma parábola, porque estava perto de Jerusalém, e eles pensavam que o Reino de Deus ia se manifestar imediata mente”. Como é possível esta conexão bem circunstancial da pa rá bola com a proximidade de Jerusalém, se, de fato, o propósito do evangelista era separar a parábola do ministério de Jesus e aplicá-la a uma situação permanente?24 Então, é possível, afinal de contas, que a parábola do servo in fiel tenha sido tão retocada para satisfazer a necessidade de funcio nários eclesiásticos? Não pode ser que aquele ára, assim suspenso, faça alusão à autenticidade do exórdio de Pedro (mantido por Lu cas e não por Mateus, não obstante todo o seu interesse por Pe dro!) e que forneça um indicio para se crer na historicidade das exortações de Jesus, feitas por ocasião de seu ministério, aos Doze para serem fiéis na proclamação da mensagem do Reino? Certo, tudo isto não demonstra nada, mas é talvez bastante para provar a 24. Cf. O. CULL MANN, “ Unzeitgemàsse Bemerkungen zum ‘historischen Jesus* der Bultmannschule” (do Evangelische Verlagsanstalt, Berlim, 1960), 279.
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fragilidade da suposição oposta, se se baseia só em argumentos tais como são aqui colocados em questão. Outro exemplo da questionável sabedoria de supor o “princípio de adaptação” tão prontamente è a parábola do semeador de Mc 4.25 Freqüentemente se diz que a parábola propriamente dita (vv. 39) é, mais ou menos, origina! e autêntica, mas que a interpretação alegorizante (w . 14-20) representa um acréscimo e adaptação, ope rados pelos mestres e pregadores cristãos primitivos (por não men cionar as ulteriores reflexões dos vv. 21-25). Além disso, é sustenta do que os difíceis vv. 10-13 não remontam a Jesus, mas refletem antes considerações posteriores sobre predestinação dos judeus in crédulos (e se faz apelo ao vocabulário destas pericopes para sus tentar a hipótese de que têm um caráter estranho ao contexto atual); ou, se remontam a Jesus, os versículos estão fora de lugar e pertencem a um contexto diferente. Contudo, tais conclusões têm diversos pontos débeis. Antes de tudo, que significava a parábola original, senão aquilo que se diz nos vv. 14-20! A solução proposta por C.H. Dodd é que ela signifi cava: “Não podeis ver que a longa história do relacionamento de Deus com o seu povo atingiu o seu clímax? Depois da obra de João Batista permanece apenas uma coisa: “mete a mão à foice que a messe está madura” ( Parables, p. 180). A opinião de J. Jeremias é semelhante: “Malgrado toda a adversidade, ao final o Reino de Deus vem” ( Parables, p. 92; trad. bras,: A s Parábolas de Jesus, Edições Paulinas, São Paulo, 1976). Todavia, esta breve mensagem é transmitida melhor por parábolas como aquelas da levedura e do grão de mostarda. Por que todos estes detalhes circunstanciais: o caminho, a rocha, os espinhos, a boa terra (todos, além disso, com características perfeitamente naturais e não forçadas), se o signifi cado da parábola está todo ali? Certamente, é mais científico reco nhecer o simples fato que este quadro realistico de um semeador na obra apresenta, sem forçar o mínimo ou comprimir (quão diferente da fria e elaborada alegoria do Hermas, Similitudes 9,17ss!), uma vivida analogia das diversas reações suscitadas pelo ensino de Je sus. Em outras palavras, temos aqui uma parábola sobre a recep 25. Os cinco parágrafos seguintes são tomados por empréstimo (com permis são de S.C.M. Press) daquilo que escrevi em Religion in Education, primavera de 1961, 61s.
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ção do próprio ensino parabólico de Jesus, isto é, uma parábola tão circunstancial que está pronta para ser usada como uma alegoria. A “parábola”, como é distinguida comumente da “alegoria” por escritores que tratam deste assunto, apresenta uma autêntica e direta analogia, como se diz, da esfera da vida física com aquela do caráter humano. Contudo, acontece que esta parábola específica é também uma alegoria espontânea, isto é, há em seus detalhes, tanto quanto em sua impressão global, boas e naturais analogias. É isto improvável para o ensinamento original de Jesus? Então, até a dificuldade da passagem-ponte (vv. 10-13) tem sido exagerada. Em primeiro lugar, é bem gratuito supor que as ca tegorias “aqueles que são de fora” e “aqueles que são de dentro”26 devem ser rígidas e “predestinadas”. Que dizer de Mc 8,18, onde os próprios discípulos são claramente classificados de mudos e ce gos? Por certo a explicação mais simples é que os homens estão “fora” ou “dentro”, de acordo com a sua reação. É impossível con verter ou persuadir com simples afirmações dogmáticas ou com re preensão. Nem uma soma de meras afirmações, nem “mimação” (como sabe todo mestre) atingirão este fim. Não há nada a fazer se não semear “pensamentos-semente”, isto é, fazer com que germine alguma coisa no coração dos ouvintes. Se eles reagirem positiva mente, então começam a caminhada para “dentro” e “vêm buscar mais”; mas, se eles não dão atenção ou, por todo tempo não escu tam, eles mesmos se excluem. Dai, o uso de parábolas. Demonstra mos uma forte dose de literalismo perverso, se imaginamos que a citação livre de Is 6 (“que eles possam olhar e olhar sem ver .. . para que não se convertam . . . ”) deva significar realmente que as parábolas são usadas a fim de excluir e de tornar a mensagem deli beradamente difícil para todos, exceto para poucos prediletos. Esta passagem, exatamente como em seu contexto original no livro de Isaías, também aqui, é tomada mais naturalmente como um modo oriental, do tipo hiperbólico e violento, para dizer: “ Ah! Muitos se rão obstinados” (ainda que o mais áspero dentre os profetas pudes se justamente perder a sua fé, se fosse chamado a pregar com o propósito definido de fazer alguém fracassar!). Em segundo lugar, 26. Para '‘aqueles que são de fora”, cf. também W.C. VAN UNNIC K, “Die RUcksicht auf die Reaktion der Nicht-Christen ais Motiv in der Altchrístlichen Paranese” in Z.N.T.W., 26 (Festschrift fur J. Jeremias, 1960), 223, n.6.
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as dificuldades lingüísticas desta “passagem-ponte” quase desapa recem, se os vv. 10-12 forem tomados como uma generalização (como os vv. 33s e, como eles, se usar o imperfeito): àqueles que pediam uma explicação, Jesus costumava dizer sempre: “A vós foi dado conhecer os mistérios, que estão escondidos dos outros enquanto eles permanecerem de fora”. Esta é uma interpretação gra maticalmente correta e emprega o plural genérico “parábolas” (v. 10) em contraste com o singular particularmente seguinte (v. 13), que indica propriamente “esta parábola”, da qual se fala no mo mento. Isso leva diretamente à consideração da “alegoria” (vv. 14-20), em que não é surpreendente, afinal, encontrar realmente diversos termos que são raros, ou nunca usados em parte alguma dos Evan gelhos, e que nos relembram mais o vocabulário de Paulo. Este fe nômeno significa apenas que os temas em questão não ocorrem mais; as palavras usadas são perfeitamente adequadas ao tema; o tema se adapta naturalmente à parábola; e nem um nem outro pa rece ser incompatível com o ministério de Jesus. Isto, talvez, seja bastante para advertir-nos de que a recupera ção do uso preciso das parábolas de Jesus feito pelos evangelistas e mestres cristãos da era apostólica não é uma tarefa fácil, e que o bisturi da crítica, precioso e indispensável como é, não pode jamais, por si, decidir por nós quando o autêntico “ estrato mais antigo” foi alcançado. Aquilo que podemos reiterar, com convicção, é que as parábolas foram, sem dúvida, usadas e adaptadas livremente, e que a Igreja Cristã estava tão convencida da presença vivificante do Espírito de profecia para tentar manter um rígido autoritarismo em face das tradições. O exato remodelamento e adaptação de uma parábola podia ser obra do Espírito de Jesus neles: o teste da au tenticidade era a fidelidade, não às palavras originais, mas à verda de da mensagem como um todo. É possível que o Evangelho de To mé, apesar de suas adaptações claramente doutrinárias, conserve também traços de uma corrente antiga de tradição (derivados pos sivelmente do Evangelho para os Hebreus)27, que existiam paralela 27. Para as afinidades entre os Evangelhos canônicos e o Evangelho d e Tomé, cf. H.W. MONTEFIORE, “A Comparison of the Gospel According to Thomas and the Synoptic Gospels” in J.N.T.S. 7, 1961, 220ss; H.E.W. TURNER e H. W. MONTEFIORE, Thomas and the Evangelists, 1962.
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EDIFICAÇÃO E CONSOLIDA ÇÃO DA IGREJA
mente àqueles usados nos Evangelhos canônicos; e o reexame do material evangélico nos Padres Apostólicos28 feito por H. Kõster revela (ainda que não se aceitem os extremos de sua posição) a existência de canais independentes de tradição. Evangelistas e mes tres usavam e adaptavam livre e acriticamente, tendo presente prin cipalmente a tarefa da edificação. Assim, as parábolas e material parabólico do Novo Testamen to, bem como as passagens que contêm admoestação direta acerca do caráter e da conduta, refletem a obra da edificação de evangelis tas, catequistas e pastores e nos ajudam a compor para nós mes mos um quadro do ambiente em que tal material foi preservado. Entre outras coisas, este estudo servirá para recordar que formas li terárias tão diferentes, como os Evangelhos e as Epístolas, igual mente originaram de um fundo comum de tradição e também que elas contribuíram com seus próprios modos de adaptação e aplica ção às situações do momento.
28. H. KÒSTER, Synopíische Überlieferung bei der apostolischen Válern, 1957, Mais antigo, o bem conhecido estudo, The New Testament in the Apostoiic Fathers, Oxford, 1905, havia mostrado uma inclinação maior para uma depen dência direta. Cf., ainda, A.D. NOCK em J.T.S., n9s 11, 1960, 68.
CAPÍTULO IX
VARIEDADE E UNIFORMIDADE NA IGREJA
Na Igreja da Inglaterra, hoje, existe uma variedade tal no culto que o adorador, indo de uma igreja para outra, nunca saberá exata mente de que está participando, podendo apenas estar seguro de que mais improvável é que o ato religioso seja aquele prescrito no fíook o f Common Prayer*. Na Irlanda, ao contrário, no culto da Igreja Episcopal, prevalece a uniformidade: o visitante pode estar certo de que a adesão à liturgia estabelecida será quase total. Na Igreja do Novo Testamento, antes mesmo que existisse uma litur gia escrita (para não mencionar uma liturgia obrigatória) e antes também que se formulassem sistemas doutrinários geralmente acei tos, em suas viagens o cristão podia encontrar as mais variadas for mas de culto. Na verdade, um dos problemas seria estabelecer quais os requisitos minimos pelos quais uma comunidade podia ser considerada cristã. Um viajante, togo depois da metade do primeiro século, por exemplo lá pelo ano 60, que fosse de Jerusalém para Éfeso, encon traria uma variedade notável de doutrina e prática entre comunida des que, não obstante, reivindicavam todas estar relacionadas com Jesus de Nazaré. Em qualquer lugar da Judéia, ele poderia encon trar o círculo de Tiago, irmão do Senhor, que ainda prestava culto numa sinagoga cristã formada de judeus praticantes, que também criam em Jesus como o Messias de Deus, mas que podiam ter pro gredido muito pouco com respeito à formulação da doutrina da di vindade de Jesus: o cristianismo do tipo ebionita caracterizava-se
* O Livro da oração comum é o texto fundamental da piedade, da liturgia e da doutrina da Igreja Anglicana; as edições fundamentais são de 1549, 1552 e 1563. (N. da Ed.).
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por uma reduzida cristologia.1 E que podemos dizer a respeito do tipo de cristianismo que se desenvolveu em Samaria? Provavelmen te, tinham lá em alta estima o nome de João Batista (cuja missão ti nha sido intensa naquela região, e cujo túmulo talvez eles orgulho samente custodiavam) e recolheram tradições, muitas das quais es tão agora incorporadas no Quarto Evangelho. Eles concebiam Je sus como aquele que estava destinado a vir, isto é, o profeta como Moisés.2 Na cosmopolita Antioquia (ainda que para julgar a partir de não mais que as referências a ela no Novo Testamento, sem considerar a sua história posterior) poder-se-ia encontrar uma no tável variedade de tipos de comunidade, ou seja, gentias, judaicas, judaizantes, helenizantes, com diferentes formas de cristologia; en quanto que, se nosso viajante seguisse pelo vale do Lico, encontra ria uma estranha amálgama de astrologia oriental, de legalismo ju daico e de crenças cristãs (cf. a carta aos Colossenses e comentá rios a respeito). Ao fim de sua viagem, ele estaria preparado para a fervilhante diversidade de Éfeso, onde as igrejas paulinas estavam sendo invadidas rapidamente pelo antinomismo, pelo cristianismo judaizante e pelas influências de um cristianismo do tipo joanino (cf. Atos 20,29s; Ef ?; Ap 2,lss; o Evangelho e as Epístolas de João). Se, depois, tomasse um navio de Mileto para Alexandria, ele 1. Para a evidência extra-bíblica acerca de Tiago, cf. EUSÉBIO, Hist. Eccl. 2,23-4ss; 3,5,2; e, como acréscimo ao tratamento padronizado desta evidência nos dicionários, etc., notar aquela recentemente apresentada por N. HYLDAHL, “Hegesipps Hypomnemata” in Studia Theologica 14, 1960, 70ss. 2. Para a conexão de João Batista com Samaria, notar a tradição de seu sepultamento naquela região (cf. a versão latina de Jerônimo no Onomasticon de Eusébio, artigo “Someron” (p. 155, na edição de Klostermann): “dicunt autem nunc pro ea Sebasten vocari oppidum Palaestinae, ubi sancti Ioannis B aptistae reliquiae conditae sunt " (as palavras em itálico não têm correspondentes no texto de Eusébio); e ainda TEODORETO, Hist. Eccl. 3>3, segundo o qual, sob Juliano, o Apóstata, se abriu he théke de João Batista, incineraram seus ossos e espalharam as cinzas). Para a sua conexão com o Quarto Evangelho, cf. inter alios J.A.T. ROBINSON, “The ‘Others* of John 4,38” in Studia Evangélica (T. und U. 73), 1959, 510ss; e para uma exposição da escassez de evidência sobre a existência de “seitas batistas” rivais, cf. idem “Elijah, John and Jesus: an Essay in Detection” in J.N.T.S. 4, 4 julho de 1958, 279, n. 2. Para a escatologia samaritana e a interpre tação de Dt 1S, 15ss em termos de Ta'eb (aquele que “retorna” ou “restaura”), cf. J.A. MONTGOMERY, The Samaritans, 1907, 245ss; F.J. FOAKESJACKSON e K. LAKE, The Beginnings o f Christianity, I, 1920,406; A. MERX, Der Messias oder Ta'eb der Sam aritaner, 1909; O. CULL MA NN, Die Christolo gie des Neuen Testaments, 1957, 19.
v a r i e d a d e e u n i f o r m i d a d e n a i g r e j a
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mesmo podia ver-se confrontado ali com uma ulterior variedade de comunidades cristãs, ou, se ele já as tivesse encontrado em Éfeso, ou em qualquer outro lugar, nesta cidade elas estariam até mais concentradas e com uma fisionomia mais definida (cf., por exem plo, Hb e Atos 18,24ss). Finalmente, em Roma, ele podia observar toda sorte e espécie de tendências se “acotovelando” umas às ou tras: eram as sinagogas cristãs judaizantes; as espécies de gnósticos mais liberais dentre o liberais, muito mais próximas dos cultos de mistério do que do Israel de Deus; congregações petrínas e pau linas, e tudo o mais (cf. F1 1,12-17 e as implicações de Rm 15,20). Então, o que constituía o mínimo de uma comunidade cristã? Quanto era possível afastar-se do kérygma apostólico, sem vir a ser declarado herético?3 Que dizer dos “discípulos” de Éfeso, que co nheciam apenas o batismo de João (Atos 19,lss)?4 Ou, que dizer (para tomar um exemplo de uma época e de uma terra longínquas) da descrição dos cristãos fornecida ao missionário jesuíta do século XVII, Matteo Ricci, por um hebreu chinês, quando perguntou se ele tinha algum conhecimento dos cristãos das cidades de onde veio? O chinês não os conhecia por aquele nome, mas quando fo ram dadas as explicações por gestos, o chinês admitiu que havia certos estrangeiros que tinham chegado à China com seus antepas sados e que adoravam a cruz. Por que eles adoravam a cruz nem o chinês nem eles mesmos (assim afirmava ele) podiam dizer. O úni co nome deles era “os homens que não comem animais com cascos nao-fendidos”, porque “enquanto os mouros, os hebreus e todos os chineses comem carne de cavalo, de mula e de outras bestas de car ga, eles têm o hábito de sua terra natal e não a comem . . (A.C. Moule, Christians in China ..., 1930, lss). Tal afastamento de uma confissão cristã, conscientemente aceita, obviamente eqüivale a perder de vista o que é essencial. Mas, qual é o limite? A única prova é o batismo em nome de Cristo? A resposta pela qual a Igreja Primitiva se orientou está refletida no cânon do Novo Testamento. Como se verá a seguir (capítulo 3. Cf. W. BAUER, Rechtglaubigkeit und Ketzerei im altesíen Christentum, i 934-
4. Cf. E. K.ÀSEMANN, “Die Johannesjünger in Ephesus” in Z.Th.K. 49, 1952, 144ss, reimpresso em Exegetische Versuche und Besinrtungen, I, 1960, 158ss.
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VARIEDADE E UNIFORMIDAD E NA IGREJA
X), os escritos que, por fim, foram excluídos do cânon eram princi palmente aqueles que, mesmo que reivindicassem alguma relação com a tradição apostólica, apresentavam uma avaliação de Jesus incompatível com a avaliação apostólica, agora refletida no Novo Testamento como um todo. Isto significa que deve ter havido uma confissão cristã normativa, comumente aceita, a qual foi formada com base no kérygma apostólico. Julgada por este padrão, qual quer avaliação de Jesus que não admitisse sua existência histórica e sua morte real devia ser descartada. Do mesmo modo, qualquer avaliação que não aceitasse a ressurreição e seu decisivo cumpri mento no plano divino de salvação, esboçado no Antigo Testamen to, devia ser rejeitada. Em outras palavras, um dualismo gnóstico que negasse ou a humanidade histórica de Jesus ou a sua absoluta “transcendência” devia ser desqualificado. Esta prova se encontra explicitamente mencionada na primeira e segunda carta de João. Todavia, dentro desses limites, há uma notável variedade de ên fase; e os escritos do Novo Testamento nos ajudam a discernir co mo esta variedade se articula. Como topos montanhosos emergem do fundo do oceano para formar as ilhas, para serem, para o via jor, a única expressão visível de continentes submersos, assim os escritos do Novo Testamento nos dão uma idéia da extensão e da variedade do cristianismo menos articulado no âmbito da confissão apostólica. Fora deste âmbito, os apócrifos do Novo Testamento3 ilustram as excentricidades de crença e especulação que emergem nos mares estrangeiros em que muitos navegam. Contudo, os dois continentes submersos são muito mais contínuos do que as distin ções que estão acima das águas podiam sugerir. Se os escritos apó crifos se distinguem bem claramente daqueles ortodoxos, isto indi ca apenas a diferença entre os líderes das duas partes: as massas que estão abaixo delas, provavelmente, se misturavam. Se perguntarmos acerca dos fatores que contribuíram para a formação das diferenças e dos caracteres particulares dos vários grupos cristãos, é bom começar considerando as condições sócioeconômicas. Não se pode dizer que o Novo Testamento se divide 5. Para os apócrifos do Novo Testamento, cf. E. Hennecke, Neutestamentl che Apocrypken e M.R. JAMES, The Apocryphal New Testament.
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em escritos para os pobres e escritos para os ricos; ou mesmo, muito satisfatoriamente, em escritos para os simples e em escritos para os letrados. Contudo, o quadro da estrutura social, que pode ser re construído, certamente contribui para nossa compreensão da gama de idéias e de sentimentos que percorrem aqueles documentos. Quando se indaga a respeito da condição social e intelectual dos cristãos do Novo Testamento, uma passagem inevitavelmente vem à mente, ICor l,26ss: “Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios se gundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família pres tigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para con fundir os sábios; e, o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus o escolheu para reduzir a nada o que é . . Se a isto se acrescenta o fato de que, nas epistolas paulinas, há diversas alusões a escravos como membros da Igreja, se é induzido, à pri meira vista, a concluir que naquele período havia poucos cristãos provenientes de níveis sociais cultos ou influentes e abastados. Contudo, tal conclusão exige considerável cautela (cf. W.L. Knox, St. Paul and the Church o f the Gentiles, 1939, 125). Em pri meiro lugar, deve-se observar que a perícope de ICor 1, provavel mente, nunca teria sido escrita, se na comunidade não existissem cristãos cultos, que desprezavam a ignorância dos outros. Até cer to ponto, então, essa passagem testemunha acerca das condições exatamente contrárias às que, freqüentemente, costuma ilustrar. Além do mais, com respeito aos escravos, ainda que muitos pudes sem ter sido, na verdade, analfabetos, sabemos que geralmente não eram iletrados (cf., e. g., A.C. Bouquet, Everyday Life in N ew Tes tament Times, 1953, 161). Por outro lado, o elemento judaico é um fator que complica mais o problema. Parece razoável supor que, geralmente falando, o hebreu médio era mais culto que o gentio mé dio, uma vez que a vida da família judaica era a mais saudável do Império, e também a educação que as crianças judaicas recebiam na escola da sinagoga era, dentro de certos limites, provavelmente mais cuidadosa e acurada do que o ensino dado pelos mestres pa gãos, que necessariamente não possuíam aquela intensidade de vo
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cação, que era própria de um devoto mestre da Torah,6 Não de todo impossível que, de um modo geral, os membros judaicos tam bém incluíam, numa proporção alta, pessoas razoavelmente prós peras, tal é a famosa diligência, eficiência e habilidade daquela ra ça. Por outro lado, não é provável que eles tenham tido relaciona mentos notadamente influentes, dado que pouquíssimos judeus eram funcionários do Império. Não se tratava, então, de “influên cia”, mas de inteligência, de cultura e de familiaridade com os mo dos de honrada prosperidade, mesmo quando eles mesmos não o apreciavam. Estas qualidades eram encontradas em Paulo, Apoio, Áquila e Priscila e, na verdade, até nos primitivos discípulos, como Pedro e João. Estes últimos, é verdade, são chamados de “iletrados”, agrámmatoi, em Atos 4,13, mas este termo pode significar apenas que eles não atingiram os padrões rabínicos em seu conhe cimento das sutilezas exegéticas, e não que eles não soubessem Ier ou escrever (cf. capítulo X, n. 11). Considerando ainda o componente judeu-cristão no período do Novo Testamento, notamos que a Epístola de Tiago constituiria uma importante evidência se conhecêssemos alguma coisa acerca de sua proveniência e de seu escopo. Se foi realmente endereçada a cristãos, então existiam em sua “sinagoga” extremos de riqueza e de pobreza (cf. 2,1-13; 4,1-5,6), e o autor e os destinatários eram, doutrinariamente, “ebionitas”. Contudo, simplesmente não sabe mos bastante para dizer se tais condições eram típicas ou excepcio nais, a menos que a epístola não fosse endereçada basicamente a judeus que não eram ainda cristãos. De resto, é difícil encontrar evidência positiva para a existência de um cristianismo que, naquele m omento, tivesse alcançado fideli dade permanente de pessoas influentes ou ricas: o nome Clemente é muito comum para que se possa identificar o personagem mencio nado em F1 4,3. É bastante improvável que se trate de “Clemente de Roma”; quanto à tentativa de identificá-lo com Flávio Clemen te, parente do imperador Domiciano, deve-se observar que tal hipó tese encontra muitas dificuldades, das quais a menor consiste em 6. Cf. TJ.Kethuboth 32c, 4; W. BARCLAY, Edueational Ideais in the An cient World, 1959, capítulo I; G. BERTRAM, “Der Begriff der Erziehung in der griechischen Bibel” in Imago D ei (Festschrift fu r G- Krüger, 1932), 4 lss e o arti go” paid éyo" in T.W.N.T.
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demonstrar que “Filipenses” é uma carta posterior a são Paulo (cf. a demolição da hipótese feita por J.B. Lightfoot in loc.). O Erastro de Rm 16,23 era oikonómos (isto é, talvez, “tesoureiro”) da cidade (provavelmente Corinto); contudo, não há necessidade de que tal funcionário do conselho de uma cidade provincial tenha sido um homem de eminência maior que local, mesmo necessariamente emi nente.7É verdade que um ou dois dos cristãos nomeados no Novo Testamento parecem ter, pelo menos antes de sua conversão, al gum relacionamento com a aristocracia judaica ou semijudaica da Palestina. Tais são Manaem, que pertencera ao círculo da corte de Herodes Antipas (Atos 13,1) e Joana, cujo marido, Cuza, exercia cargo de responsabilidade como funcionário na casa de um dos Herodes, provavelmente de Antipas (Lc 8,3). Em todo caso, parece que os cristãos mais influentes tinham so mente uma influência local, enquanto que a maioria era composta, aos olhos do mundo, de nulidades, de desconhecidos, freqüente mente escravos. Por outro lado, é apenas justo acrescentar que, igualmente, não temos prova de que o cristianismo tivesse alcança do os níveis ínfimos da sociedade, isto é, os lamentavelmente avilta dos servos das glebas, ou criminosos condenados que exerciam tra balho forçado nos grandes latifúndios ou nas minas e fábricas (ex ceto quando os próprios cristãos eram condenados a trabalhar nas minas).8 As alusões a escravos no Novo Testamento, onde elas são 7. Cf. H.J. CA DB UR Y, “Erastus of Corinth” in JJB.L. 50, 1931, 42ss (exa mina a possibilidade de identificar o Erastro do Novo Testamento com o de uma inscrição corintia descoberta em 1929. A conclusão è negativa). O autor sustenta que no período romano (47ss) o termo oikonómos, usado em semelhante contexto, podia bem corresponder ao latino arcarius (com o é traduzido na Vulgata) e acres centa (p. 51): “O arcarius era sempre ou um escravo ou um de origem servil, em bora freqüentemente pudesse ser rico”; “ & idéia associada ao conceito de ar carius ou de oikonómos não implica proeminência social tal como riqueza e nível social, por isso, erram aqueles comentadores que citam Erastro como uma exce ção na descrição que Paulo fez dos primeiros cristãos de Cori nto. . (p. 57). Cf. também E.A. JUDGE, The Soc ial Pattern o f Christian Groups in the First Century, 1960, especialmente o capítulo V. 8. O único exemplo real de uma situação semelhante, no período neotesta mentárío, é o de João em Patmos, se é justo interpretar assim a sua situação. Con tudo, não se pode demonstrar que se tratasse de exílio penal, menos ainda de con denação a trabalhar nas minas. Cf., novamente, E.A. JUDGE, o.c., 60. A evidên cia para perseguições posteriores é coletada por J.G. DAVIES em Vniversity of Birmingham Histórica! Journal, 6, 1958, 99-107.
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suficientemente explícitas, implicam escravos domésticos, cuja sor te, igualmente intolerável por princípio, de fato era geralmente ali viada, ao menos no sentido de “pertencer” a uma pequena e intima comunidade, e essa não os reduzia, necessariamente, a uma condi ção completamente mecânica e sub-humana. Pelo menos alguns desses escravos tinham uma certa cultura. Tudo isso se soma para a conclusão de que, se se fosse compe lido a generalizar, o nível social da maioria das comunidades cris tãs se encontrava na parte inferior da escala social, sem tocar a base desta. Se o Evangelho cristão nunca atingiu o ínfimo estrato social, isto se deve ao fato de que era inatingível: quem devia pre gar a eles? E como podia pregar? A não ser que, na verdade, hou vesse um ou dois convertidos à fé antes de terem sido presos e man dados para o trabalho forçado. Contudo, mesmo assim, a possibili dade de alcançar os companheiros com o Evangelho seria insufi ciente ao extremo. No entanto, dentro dos limites sociais já definidos, havia, de fa to, quase certamente, uma considerável variedade entre um e outro grupo local. Sem dúvida, a situação geográfica e a condição das ci dades e aldeias tinham a sua importância. Corinto e Atenas, Ale xandria, Éfeso e Antioquia e, sobretudo, Roma eram centros co merciais de grande importância. Filipos e Laodicéia, com suas grandes vias de comunicação, devem ter sido cidades cosmopolitas. Por outro lado, algumas comunidades palestinenses se encontra vam num nível de cultura muito mais primitivo. O nível de inteli gência e de acuidade verificado em assembléias de igreja num lugar como Corinto devia ser bem diferente daquele, digamos, de uma pequena igreja de Samaria, nos albores da era cristã, como uma or ganização juvenil de Londres se distingue em acuidade e inteligên cia de um clube de juventude aldeã em uma minúscula comunidade rural. E haveria também diferenças de caráter econômico. Entre tanto, a prosperidade de uma determinada localidade implica ape nas a possibilidade de membros ricos serem atraídos para uma igreja; naturalmente, não a garante. E, de fato, os cristãos de Fili pos eram extremamente pobres e, como acontece tão freqüente mente em tais circunstâncias, extraordinariamente generosos (2Cor 8,2). Em Corinto pode ter havido alguns cristãos relativamente ri cos (ICor 4,8?). As comunidades judeu-cristãs da Palestina eram
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bastante pobres para terem necessidade de ajuda econômica das igrejas gentílicas. Na comunidade à qual Tiago escreve existiam pobres que estavam sendo oprimidos pelos ricos. Quanto aos niveis de inteligência representados, seria esperar demais que as partes mais profundas das epístolas paulinas fossem propriamente entendidas por todos, ou mesmo muitos, nas comuni dades às quais foram endereçadas. Se alguém pudesse ter certeza de que Paulo sempre escreveu de modo a ser geralmente compreen dido, então se deveria concluir que havia um nível bem alto de inte ligência, digamos, em Corinto e Colossos; apreender o significado completo de uma passagem como ICor 15 ou Cl 1, numa primeira leitura, implicaria considerável agilidade mental, mesmo estando familiarizado com as questões tratadas nas cartas. Contudo, não há certeza de que sempre as grandes mentes avaliam corretamente a capacidade dos outros (freqüentemente o contrário è que é o ca so), e os escravos, negociantes e pequenos proprietários das igrejas paulinas, provavelmente admirados, exceto com certos pontos, bocejavam com a tempestade de palavras do apóstolo. Todavia, havia certamente em Corinto, e talvez em outros luga res também, um certo número de pessoas que se orgulhavam de sua inteligência e de sua superioridade com respeito à superstição: tanto assim que Paulo, embora compreendendo e aceitando a sua posição, teve de admoestá-los a serem compreensivos acerca da consciência dos outros. E provavelmente, nas igrejas do vale do Lico, havia pelo menos alguns perspicazes pregadores de doutrinas complexas, que Paulo com bate na carta aos Colossenses, enquanto que as epistolas joaninas deixam entrever a existência de heréticos e seus sequazes de mente sutilmente perversa. Além disso, os desti natários da carta aos Hebreus devem ter sido familiarizados com o Antigo Testamento em grego e com certas técnicas de exposição, se os argumentos do escritor foram destinados a ter alguma eficá cia. Tanto é verdade que alguns comentadores observam correta mente que os destinatários devem ter constituído particularmente um restrito grupo de pessoas altamente cultas, isto é, um pequeno “clã” de treinados pensadores “rabinizantes”. Já sugerimos acima que eles todos podem ter pertencido, a um só tempo, a uma única sinagoga. E se é correta a hipótese de que por trás do Evangelho de Mateus se deve supor uma escola de exegese cristã (como sugeri
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mos acima), então todos esses elementos indicam a existência da quilo que pode ser chamado de uma espécie de cultura cristã de alto nível, desenvolvida privadamente dentro de comunidades cris tãs. Quanto aos escritores do Novo Testamento, muito pode ser dito acerca da variedade de estilo entre eles.9 Resumindo os fatos, poderia ser dito que a Epístola aos Hebreus e a de Tiago, ainda que de modos diferentes, revelam uma padronização do grego idiomáti co; que Lucas é um autor versátil, capaz ora de imitar o estilo or nado e controlado dos historiadores contemporâneos, ora de escre ver em grego bíblíco (o da Septuaginta), ora de aceitar, em seu es quema, fontes semiticas, claramente não gregas; que Mateus usa quase sempre um grego cuidadoso e correto, embora ele não se en tregue a ornamentos literários, ocasionalmente exibidos por Lucas, nem tente ocultar as expressões semiticas de suas fontes; que Mar cos escreve como alguém que conhece, com familiaridade, mais a Iingua semítica que o grego; que Paulo, ou o seu amanuense, escre via com variedade notável de estilo, às vezes muito fortemente semítico, às vezes menos» mas quase sempre tenso, brilhante e vi vaz; que, por sua vez, o Evangelho e as Epístolas de João são escri tos num estilo particular, sobretudo correto, simples, sem adorno na superfície, mas, de fato, complexamente grave de significado e, em sua natureza essencial, mais semitico que grego. O Apocalipse se distingue, entre os livros do Novo Testamento, por consideráveis perícopes de escritos rudemente agramaticais, que, todavia, atin gem um efeito profundamente tocante. Contudo, para retornar ao tema principal: à vista de tal ativida de intelectual (mesmo que fosse entre uma minoria), como se pode deduzir de Hebreus, Mateus e as epístolas paulinas, não é surpreen dente que também se revelassem a rivalidade e a divisão. O locus classicus desta situação, naturalmente, é ICor 1-4. Johannes 9. Um exemplo específico (para nomear um fenômeno ao acaso) é fornecid pelo exame da preposição syn em T.W.N.T, de KITTEL, onde é observado que syn está totalmente ausente da Epístola aos Hebreus e das joaninas. Particularidades de estilo com respeito ao uso de partículas freqüentemente fornecem importantes indicações para a identidade do autor. Para o vocabulário paulino, cf. T. NÀGELI, Der Wortschatz des Aposteis Paulus, 1905; para Mateus, cf. o Excurso I abai xo. R. MORGENTHALER, Statístik des neutestamentlichen Wortschatzes, 1958, é um guia muito útil.
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Munck (Paulus und die Heilsgeschichte, 1954) demonstrou que aquilo a que ICor se refere nâo é, necessariamente, um partidaris mo radical, oriundo diretamente dos primeiros apóstolos, e que é possível exagerar grosseiramente a divisão ali mencionada. O que Paulo contesta, diz ele, é a tendência dos coríntios de tratar seus lideres como os sofistas gregos e de tomar o partido de um contra todos os outros. Seja qual for a interpretação desta passagem em seus detalhes, é verdade que não há nada aqui que prove existir um conflito entre Pedro e Paulo. Contudo, F1 1,15ss certamente nos compele a reconhecer um deliberado partidarismo em algumas si tuações. E podemos supor a priori que a probabilidades, certa mente, que haveria uma variedade de ênfases, tendências, perspec tivas e abordagens nos diferentes grupos de cristãos, que, por fim, se consolidariam em diferentes escolas de pensamento. Esta consideração da estratificação social e intelectual das co munidades cristãs, portanto, nos encaminha para duas conclusões. Em primeiro lugar, podemos dizer que o nível social médio era bai xo, embora nâo tão baixo quanto teria sido se se incluíssem os gru pos de escravos. Em segundo lugar, conseqüentemente, se pode di zer que deve ter sido alto o respeito nutrido pelos gigantes de inte lecto e de espiritualidade (os Paulo e os João), como alta deve ter sido a tentação de seguir as entusiasmadas extravagâncias de sectá rios que exageravam as respectivas tendências destes gigantes. Não é de surpreender-se, portanto, se encontrarmos nítidas diferenças de ênfase e de tom nos escritos representativos que provêm de luga res e tradições diversos. A surpresa mais evidente (e isto é a “mo ral” deste capítulo) é que as convicções cristãs básicas persistem com notável constância através de tal diversidade. Quando se esboça o pensamento cristão a partir dos confins do período do Novo Testamento, é bem notório que certas distinções gerais tendem a cristalizar-se em tomo de centros culturais como Antioquia e Alexandria: Antioquia, com sua tendência de acentuar o significado literal e histórico e, com ele, a humanidade de Jesus; Alexandria, com sua tradição do tipo alegórico e simbólico, e com sua ênfase maior sobre o transcendente. É muito fácil colocar em contraste essas duas tendências de modo mecânico, sem ter em conta os sutis intercâmbios e variações. Por exemplo, uma das pre cauções mais elementares que se deveria ter presente, se se tentasse
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descrever este período, seria o reconhecimento de que mesmo os pensadores de Antioquia não se contentavam com o sentido evi dente e histórico das escrituras. Se eles se distinguiam dos alexan drinos, nao era tanto por rejeitar outros modos de interpretação, quanto por preferir o método “tipológico”, que reconhece a impor tância dos eventos históricos como tais, em vez do alegórico, que reduz tudo a verdades abstratas. Na verdade, se nos voltarmos para as raízes dessa ampla diver gência nos tempos do Novo Testamento, já podemos discernir seu começo. Entretanto, aqui também é difícil definir com segurança, por causa do número de diferentes fatores que contribuem para for mar o pensamento dos cristãos do Novo Testamento. Supondo que partamos de uma simplificação muito radical. Se, por um momen to, deixamos de lado as necessárias precauções e tentamos traçar uma espécie de caricatura da realidade, podemos dizer que o cris tianismo judaizante acentuaria o aspecto “carnal”, tó katá sárka, de Jesus, e o desconhecimento ou minimização de sua divindade. De fato, esta era a tendência daquilo que logo veio a ser chamado de ebionismo (da palavra hebraica para “pobre”, usada orgulhosa mente para a pobreza e simplicidade franciscana, ou usada depre ciativamente para uma pobreza de doutrina, uma pstlosis ou ate nuação da cristologia). Os ebionitas estavam entre aqueles que se distinguiam por um cristianismo subapostólico, do tipo judaizante, e por tendência ao “adocianismo” (teoria segundo a qual Jesus, o profeta humano, veio a ser “ adotado” como Filho de Deus em sen tido sobrenatural, como prêmio por sua bondade excepcional).10 Caricaturando a tendência oposta, se poderia começar dizendo que ela era fundamentalmente pagã, que partia de pressupostos politeistas e estava familiarizada com as idéias do semideus e salvador preexistente, que desce à terra para resgatar aqueles que o acolhe ram, ou que são predestinados. Quando esta idéia passou para o cristianismo, fez-se uma acentuação da preexistência de Cristo e de sua descida do céu, e, por se concentrar em sua origem sobrenatu ral, conduziu a uma atenuação de sua verdadeira humanidade. Se o 10. Cf. E. SCHWEIZER, Lordship and Discipleship, 37, que adverte contr a tentativa de traçar uma conexão direta entre algumas frases do N ovo Testamen to e o adocianismo.
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erro “judaizante” conduz ao adocionismo, este é o caminho para o monofisismo, isto é, a obliteração do humano no transcendente. Mas, de fato, nenhuma destas duas tendências existiu em forma pura. Apresentá-las, então, como duas posições claramente opos tas significa fazer caricatura. Sabemos, mais decisivamente que as gerações passadas de estudiosos do Novo Testamento, que já ao tempo de Cristo o monoteismo judaico estava contagiado por um dualismo oriental, como testemunha a seita de Qumran. É portanto provável que um certo racionalismo do tipo ocidental tenha tam bém penetrado no mais recôndito do pensamento hebraico (o Eclesiastes tem sido acusado de tendências epicuristas!). E, assim, mes mo a$ fortalezas do rabinismo de Jerusalém já tinham sido invadi das por muitas idéias estranhas. Na verdade, se pode bem dizer que, já nos primórdios de Israel, no Egito e na Mesopotâmia, ti nham sido, há muito, semeadas sementes deste tipo. Por isso, não é impossivel, a priori, que idéias helenistas hajam influenciado o pensamento de Tiago, irmão do Senhor, nem que idéias “gnósticas” tenham sido estranhas a Paulo (embora, de fato, seja difícil demonstrá-lo), nem que mesmo a idéia do rei-herói divino não esti vesse já em escritos hebraicos, tão antigos como Isaias ou os Sal mos. Portanto, não esperaremos encontrar em parte alguma, sobre tudo no Novo Testamento, traços de um ebionismo “puro” ou de um transcendentalismo “puro”. Contudo, tendências, numa ou noutra direção, podem ser notadas, e vale a pena traçá-las. É de importância real indagar em que medida os escritos finalmente fi xados no cânon do Novo Testamento revelam uma convicção do minante e consistente, que não só inclua tendências complementares, como também exclua elementos realmente incompatíveis, de tal modo que produza um todo coerente. A resposta à segunda parte do problema é que o critério de “a postolicidade” , isto é, de fidelidade ao kérygma apostólico, admitiu, de fato, no cânon, apenas aqueles escritos que se conservavam sufi cientemente próximos do evento-Cristo e contribuíam para formar esse todo coerente. Uma vez que se começa a especular e a dogmatizar sobre aquilo que deve ter sido, ou podia ter sido, então se abre a porta a todos os extremismos. Contudo, conservar-se próximo ao testemunho apostólico significa, necessariamente, afirmar que o
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Evangelho fala “do Filho (de Deus), nascido da estirpe de Davi se gundo a carne, estabelecido Filho de Deus com poder por sua res surreição dos mortos, segundo o Espirito de santidade, Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm l,3s). A verdadeira humanidade e, com ela, a pessoa inclusiva e representativa pela qual (como pensa Paulo) a sua ressurreição é a ressurreição geral no Último Dia, eis os dois elementos do kérygma apostólico, que conferem coerência às posi ções mais diversas que se encontram no Novo Testamento. Às margens do cânon, porém, “navega-se” perigosamente per to daquelas posições que já estavam excluídas: apesar de todos os sinais de cristologia que revela, a Espistola de Tiago pode estar per to da posição ebionita; a segunda Epístola de Pedro faz surpreen dentes concessões à idéia grega sobre a natureza divina: “ . . . a fim de que assim vos tomásseis participantes da natureza divina, de pois de vos libertardes da corrupção que prevalece no mundo como resultado da concupiscência” (1,4); e o Quarto Evangelho, se fosse o único Evangelho, poderia deixar-nos com um Cristo quase monofisista e com uma religião acentuadamente individualista (cf. pp. 114 e 118). É o núcleo central da fé que mantém unidas todas as di ferenças e que contribui também para definir os limites do cânon. Como conheceríamos muito mais acerca do Novo Testamento, se tivéssemos mais informações sobre cristianismo judaico!11 Tia go, irmão do Senhor, permanece sempre uma figura obscura. Em Atos 15, nós o encontramos à frente dos cristãos de Jerusalém, quando se declara contrário à circuncisão dos convertidos pagãos, firmando sua argumentação naquilo que parece ser uma tradução grega errada do texto hebraico de Amós (Atos 15,17). Em Atos 21, o encontramos aconselhando Paulo a demonstrar sua própria fide lidade às normas rituais. Segundo Hegesipo (apud Eusébio, Histo. Eccl. 2,23), ele é tão marcadamente judeu, que os judeus podiam esperar que ele condenasse a fé do Nazareno, e foi martirizado por recusar-se a fazer assim,12 Segundo uma lenda apócrifa (Jerónimo, De Vir. III. 2), o Senhor ressuscitado em pessoa lhe fez uma visita. Qualquer que seja a nossa opinião global sobre a Epístola de Tia 11. Cf. J. DANIÊLOU, Théologie du judéo-christianisme, 1958; F.C. GRANT, Ancient Judaism and the New Testament, 1960, 2* ed. 12. Cf. n. 1 acima.
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go, não estará em desacordo com muitas dessas sugestões. Ela re vela um considerável conhecimento dos moralistas e sofistas gre gos; tem um caráter bem judaico com respeito à ênfase sobre a lei e quase obscurece o Evangelho. Embora dificilmente mencione Je sus, contudo, se se tentar, não se conseguirá eliminar de sua textura um certo número de frases que parecem ser, quanto à forma, soli damente cristãs. Então, será, talvez*- cristão de reconciliação com judeus não-crístãos? Se isso fosse verdadeiro, então o autor seria membro da sinagoga; mas, pode-se conceber semelhante situação? Não se tratará, então, antes de um exemplo extremo, no âmbito do judeu-cristianismo neotestamentário, que reflete a situação de uma comunidade, cujos membros ainda cultuavam segundo o modelo da sinagoga e sublinhavam um a moralidade caracteristicamente ju daica, mas, doutra parte, confessavam Jesus como a “glória” de Deus (2,1) e criam que eles próprios eram renascidos por meio do Evangelho cristão (1,18)? Contudo, se é assim, devemos pensar que esta epístola foi escrita num período em que uma interpretação anttnômica da liberdade cristã (se através de discípulos ou não de Paulo, não está claro) já tinha sido estabelecida (Tiago 2,14ss). De qualquer ângulo em que nos coloquemos, a interpretação dessa epistola estará cercada de problemas. De qualquer modo, contudo, ela reflete um tipo de cristianismo bem diferente daquele de Paulo ou João, ainda que centrado na confissão de Jesus como Senhor (1,1; 2,1), na fé no novo nascimento que é dado por Deus por meio do Evangelho (1,18) e na visão de um fim (5,7).13 No extremo oposto às tendências verificadas em Tiago, deve ter havido tanto uma forte tentação de identificar Jesus com o Espirito ou Sabedoria de Deus, quanto de minimizar sua particula ridade histórica. De fato, contudo, é notavelmente difícil ilustrar 13. Numa discussão acerca das homílias judaicas da diáspora, H. THYEN considera Tiago como uma homilia da sinagoga com uma leve adaptação cristã (Der Stil der jüdisch-hellenistischen Homilie, 1955, 14-17). Todavia, se se aceita essa hipótese, é difícil explicar por que a adaptação foi não só leve como também sutil. O estudo de Paul FEINE (cf. capítulo II, n. 36) contém muita coisa ainda válida. Ele sustenta a possibilidade de que todas as alusões aparentemente não judaicas de Tiago poderiam ter conexão com um judeu palestinense, como o ir mão do Senhor, através de fontes da apocalíptica judaica. De um modo geral, as mais recentes descobertas (especialmente a literatura de Qumran, etc.) dão força a esta hipótese.
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essa posição extrema com passagens do próprio Novo Testamento. O Logos de João é notoriamente (e, do ponto de vista pagão, escan dalosamente) apresentado como encarnado: kai ho logos sárx eguéneto (1,14); embora o Quarto Evangelho se incline algumas ve zes numa direção docetista (as perguntas de Jesus são artificiais, criadas por causa dos discípulos, 6,6), no entanto nada é tão claro quanto a determinação do evangelista para ressaltar a realidade da encarnação: o “escândalo da particularidade” e da corporeidade nunca é evitado, mas positivamente aceito (6,52). As Epístolas aos Colossenses (l,15ss) e aos Hebreus (1,1 ss) contêm quase uma “doutrina do logos", ainda que não se use a terminologia específi ca, mas elas são tão claras quanto podem acerca da realidade da vida terrena de Jesus. Embora escritores posteriores, como Justino, confundam Palavra e Espírito, é surpreendente como o Novo Tes tamento se limita a falar de “Espirito”, quase unicamente para indi car o relacionamento de Deus com o seu Povo na “nova criação”, usando o termo Logos e Cristo (não Espírito) quando se refere ao universo e à cosmogonia. Cristo e Espírito são, às vezes, permutá veis (ou quase o são) no âmbito da Igreja, mas nunca fora dele. E tudo isso, provavelmente, dê testemunho da recusa bem sucedida, no Novo Testamento, de ceder àquele dualismo, tão comum no mundo pagão e no cristianismo herético, pelo qual a matéria é con siderada má, isto é, um maniqueismo essencial. A doutrina da ma téria e da criação é a verdadeira pedra de toque: apesar de toda a sua diversidade, o Novo Testamento não se coloca sobre uma base maniqueista. Parte da diversidade do Novo Testamento é devida precisa mente à variedade de tendências alienígenas, que são combatidas: discute-se, por assim dizer, de uma única plataforma, mas de dife rentes ângulos dela; e, na medida em que se inclina em direção a qualquer extremo, é porque os escritores, naqueles pontos, reco nhecem claramente quais são as posições que estão ocupadas com o erro e retrocedem violentamente. Paulo vê, de modo especial e vivido, qual o principio que está envolvido na observância superfi cialmente boa ou inócua da retidão legal judaica e, por isso, se apressa em dizer que, se os cristãos se deixarem circuncidar, Cristo será inútil para eles (G1 5,2). Tiago vê a preguiça egoísta que pro clama a suficiência de um credo ortodoxo independentemente de
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uma conduta coerente (2,14ss), e a primeira Epístola de João, do começo ao fim, ataca a perigosa posição que sustenta que, uma vez batizado, o cristão está seguro, independentemente de seu compor tamento: e tanto Tiago quanto João são levados a declarações ex tremadas, quando afirmam que a fé sem obras é morta (Tg 2,26) e que um cristão não pode pecar (lJo 3,9). Não é improvável que as comunidades cristãs fundadas origi nalmente por um ou outro desses grandes protagonistas tenderiam (como fazem hoje as denominações cristãs) a manter e a exagerar ou estilizar as ênfases particulares com as quais o Evangelho tinha sido, inicialmente, apresentado a eles. Bem pode ter havido marcas distintas que podiam qualificar as várias igrejas, respectivamente, como de Paulo, de Pedro, de João e de Tiago. Segundo o livro dos Atos, Filipe, o Evangelista e, provavelmente, Barnabé (com João Marcos) também empreenderam uma obra independente de evangelização (Atos 8,26ss; cf. 21,8; 15,39), e talvez se'possa pensar que suas igrejas também pudessem ter alguma coisa que as distinguisse. Sería particularmente interessante saber mais acerca da pe netração do Evangelho em território samaritano: não é provável que aqui, também, houvesse características particulares (cf. acima, n. 2)? Todavia, por toda parte se coloca uma cortina de obscurida de. E tudo o que podemos dizer é que as tradições, que se acumula ram em um dado centro, devem ter sido, de algum modo, seleciona das, plasmadas e reaplicadas de acordo com as tendências locais, e que isto explica a diversidade de ênfases nos Evangelhos, não só in ternamente em cada Evangelho, como também confrontando-os um com outro. Voltando, então, a considerar mais de perto a diversidade de ên fases encontrada no Novo Testamento, faremos o possível para oferecer uma classificação aproximativa, tosca, dos tipos, deixando para posterior estudo desdobrá-los e classificá-los com mais preci são. E será interessante recordar freqüentemente quão larga é a li nha divisória que separa o Novo Testamento, como um todo, dos escritos não-canônicos, maior do que a distância entre diferentes partes do próprio Novo Testamento. Até os assim chamados Pa dres Apostólicos (com exceção das cartas de Inácio) se afastam
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muito da maior parte dos escritos neotestamentários por uma con siderável lacuna quanto à perspectiva e à abordagem.]4 Em primeiro lugar, portanto, há a evidente distinção entre a Epístola aos Hebreus e, quase se podia dizer, o resto do Novo Tes tamento. A carta aos Hebreus se serve, mais do que qualquer outra parte, da concepção platônica (adotada também por Filo) de um mundo transcendente, absolutamente real, contraposto ao mundo sensível, que é só um reflexo ou cópia do primeiro (contudo, mes mo em Paulo encontramos 2Cor 4,18; 5,7; Cl 2,17); e, além disso, encontramos aqui uma concepção de Cristo como herói e líder, isto é, o pioneiro que todos os cristãos devem seguir até o fim. Nenhu ma das duas concepções vem desenvolvida com coerência: a tradi ção cristã é forte demais para permiti-lo. Este mundo de sombras, que não é senão uma cópia do transcendente, não é tão platônico como pode parecer, porque nele acontece o evento decisivo de toda a história, a purificação do pecado; e Jesus não é verdadeiramente apenas um Hércules que se cansa em conquistar as estrelas, pois ele já é a palavra de Deus preexistente. O autor da carta aos Hebreus faz mais concessões aos modos de expressão gregos do que Paulo ou João, mas não há dúvida de que ele, como todo o cristianismo apostólico, leva a sério o tempo, considera a história significativa, pensa que este mundo é a verdadeira arena da ação divina, e considera Jesus infinitamente superior a um herói lançado à conquista da imortalidade. Talvez Paulo e mesmo João estejam mais solidamente radicados em terreno hebraico, mas Hebreus, apesar de todas as suas concessões, nunca abandona “o escândalo da particularidade” . N a verdade, está bastante claro que em todo o tratado se combate o judaísmo não-cristão mediante uma ação de apropriação, de absorção e de superação; e mesmo que seja um judaísmo filoniano e alexandrino, não há, todavia, nada que se asse melhe a uma filosofia genuinamente grega ou um gnosticismo sem j raizes.13 14. Cf. T.F. TORRANCE, The Doctrine of Grace in the Apostolic Fathers, 1948, embora seja questionável que, dadas as suas características, a Epistola de Tiago não deva entrar na mesma categoria que os Padres Apostólicos. 15. Sobre a Epistola aos Hebreus, além dos comentários, notar C. SPICQ, “Le Philonisme de TÉpitre aux Hébreux” in R.B. 57.2, abril de 1950, 212ss; C.K. BARRETT, “The Eschatology of the Epistle to the Hebrews” e J. H ÉRING, “Eschatologie biblique et idéalisme platonicien” in The Backgroun d of the New Testa-
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Gm segundo lugar, há, portanto, notável distinção entre a ênfa se paulina sobre a incapacidade essencial do homem, isto é, sua in capacidade para salvar-se,16 e a tendência da Epístola de Tiago de conceber a religião como dever e bondade, e de julgar que o ho mem seja capaz de resistir á tentação (tendência de modo nenhum estranha ao Cristo dos Evangelhos Sinóticos, especialmente Ma teus). Paralelamente a este contraste, se situa aquele da concepção paulina e joanina do cristianismo como incorporação ou “perm a nência” em Cristo, em vez da concepção de discipulado e imitação, que perpassa (não ilogicamente) os relatos sinóticos do ministério de Jesus, mas encontra lugar também em Hebreus. No Novo Tes tamento como um todo, Cristo é tanto o modelo como o poder (pa ra esta útil terminologia, cf. A.B.D. Alexander, The Ethics o f Paul, 1910, 105ss); mas em alguns escritos ele é mais o modelo e menos o poder do que em outros. As Epístolas Pastorais (tomadas global mente, embora elas sejam provavelmente compostas de elementos paulinos e deuteropaulinos) parecem representar uma confluência de duas correntes, um cristianismo de segunda geração que repete o Evangelho da livre graça de Deus (“não por causa dos atos jus tos . . . ”, Tt 3,5), mas que, num ambiente mais amplamente cristianizado, não concebe como ilógico pensar que o homem seja capaz de observar a lei (lTm l,8ss?). Em terceiro lugar, pode-se distinguir entre a tendência apo calíptica, isto é, desesperar-se com o presente e aguardar o futuro ansiosamente, contando os dias que separam da hora da salvação, e a tendência de concentrar-se no aqui e agora e de considerar a história humana em sentido positivo. Os extremos opostos a este respeito são o Apocalipse e o Evangelho de Lucas. Não é que Lu cas não espere o Dia do Juízo e a vinda do Senhor: acerca desses assuntos ele é tão explícito quanto qualquer outro. Contudo, ele es tá interessado principalmente em valorizar o periodo intermediário, que ele considera bem longo e como uma parte vital do advento do ment and its Eschatology, 1956, 363ss; 444ss; H. KOSMALA, Hebraer-EssenerChrísten, 1959. 16. Para este motivo também nos Rolos do Mar Morto, cf. S. CHULZ, “Zur Rechtfertigung aus Gnaden in Qumran und bei Pauius” in Z.ThJC. 56, 1959, I55ss. O autor sugere que o próprio são Paulo herdou a idéia da justificação pela fé de uma corrente de tradição de Qumran antifarisaica, que pode ter vindo fazer parte da Igreja Primitiva muito cedo. 7
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Reino de Deus. Essa é a preocupação central de Lucas (p. ex. Lc 19,1 lss). Ao contrário, o Apocalipse se preocupa em expressar, por meio de símbolos e imagens, a convicção de que só o fim é de cisivo, e de que este fim significa a vitória por causa de Deus. Há também um contraste do tipo escatológico, ainda que num sentido bem diferente, entre Lucas e o Quarto Evangelho. É Lucas e não João que se situa mais decisivamente no extremo nãoapocaliptico. O Quarto Evangelho não se preocupa, no rigor do termo, nem com um, nem com outro extremo, visto que o seu cen tro real de atenção é o relacionamento do indivíduo com Deus e/ou Jesus Cristo. Para a pessoa que ama a Deus e faz a sua vontade, que crê em Jesus como o Filho de Deus e permanece na Videira Verdadeira, a vida eterna já é uma realidade. Assim, este Evange lho se interessa muito pouco pela conclusão final dos propósitos de Deus, ou pelo caminho da Igreja em direção à perfeição: este é, muito mais, o tema da Epístola aos Efésios, que cultiva uma forte esperança projetada para a frente e futurística, embora sua meta seja vista em termos de maturidade e de plenitude no crescimento, não em termos de juízo e apocalipse (Ef 4,11-16; cf. Rm 8). Um quarto par de tendências contrastantes, portanto, pode ser o que contrapõe o individualismo ao comunitário. Nas epístolas joaninas, temos uma posição intermédia: elas representam uma tendência mais comunitária e, portanto, também mais apocalíptica do que o Evangelho de João. Contudo, em lJo, as idéias comunitárias são menos inclusivas e universais do que em Efésios, e suas idéias apo calípticas têm uma conotação mais individualista.*7 Um quarto contraste pode ser visto entre o gênio intuitivo de João (brilhantemente resumido na famosa história do João mori bundo que simplesmente repete de modo contínuo: “ Filhínhos, amai-vos uns aos outros”, Jerônimo, In ep. ad GaL 6,10) e o gênio vigorosamente racional de Paulo. Paulo raciocina, onde João sim plesmente afirma; e João simplesmente pronuncia palavras resso nantes, sugestivas e poéticas, onde Paulo se fatiga para explicar. Em sexto lugar, é possível distinguir várias concepções da auto ridade e ordenamento eclesiásticos. Como já foi dito, os cristãos do T.
17. Cf. C.F.D. MOULE, “The lndividualism of the Fourth Gospel” in Nov.
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perío pe ríodo do d o N o v o T esta es tam m e nto nt o reco re conh nhec ecer eraa m o rena re nasc scim imen ento to do espírit espíritoo de profecia, profecia, e sua autoridade última sempre foi foi Deus Deu s em Je Je sus operando na Igreja por meio do Espírito. Contudo, houve di versos tipos de mediação. Em Paulo, encontramos a gama quase completa da interpretação rabínica das escrituras, até à autoridade de visão e audição do êxtase profético; mas, nas Epístolas Pasto rais, as escrituras inspiradas e as sólidas tradições cristãs parecem ocupar um lugar preponderante. De modo semelhante, é possível delinear, por trás dos escritos do Novo Testamento, a forma não só de comunidades do tipo “ca rismático”, como também de comunidades baseadas em ministé rios institucionalizados. Algumas não dependem de uma ordem de ministério claramente definida, mas de uma espontânea liderança de inspiração; inspiração; outras eram organizadas organ izadas em torno de um articulado articulado ministério de anciãos-superintendentes e assistentes (presbíteros e díáconos), talvez até de um tríplice ministério: de apóstolos, presbíteros-superintendentes e diáconos; e pode ter havido, às vezes, ou tros oficiais reconhecidos institucionalmente, semelhantes a tipos juda ju daic icoo s, tais ta is co com m o escr es crib ibas as e sábios, sáb ios, É um fato familiar que, em Mateus (13,52; cf. 23,34), aparece o escriba cristão, e é possível que este Evangelho, com sua variedade de tradições, também reflita a existência de uma variedade de co munidades de inspiração diversa: algumas carismáticas, outras do tipo institucional, outras de um tipo caro ao próprio evangelista e outras estranhas ao seu ponto-de-vista. E. Kãsemann tem sustenta d o 18 que a teologia cristã, em suas fases iniciais, iniciais, representa represe nta um co con n flito entre escolas rivais, que apelavam todas igualmente para a au toridade do Espírito Espírito,, mas m as todas de modos diferent diferentes: es: “entusiasmo “en tusiasmo”” (no senti sentido do técnico técnico da palavra) acompanhad acom panhadoo de ope operação ração de mila mila gres (refletido talvez depreciativamente em Mt 7,22-25), um tipo de organização organizaçã o de feição feição judaica jud aica e rabínica (notar Mt 23,8-1 23,8-10), 0), judaís juda ís mo legalístico (para que se podia citar Mt 5,17-20, embora esta pass pa ssag agem em p o s s a ser se r inte in terp rpre reta tadd a de o u tro tr o m od odo) o) e, no ex extr trem emoo oposto, uma espécie de liberalismo e de universalismo, do qual tal vez Estêvão fosse um campeão. Coexistem, então, no opaco back gro g rouu n d dos escritos neotestamentários, perspectivas diversas que 18. “Die Ànfange christlicher Theologie” in Z.Th.K. 57.2, 1960, 162ss.
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incorporam diferentes níveis sociais, tanto do cristianismo judaico quanto das igrejas gentílicas. Em última análise, uma grande parte disso pode ser expressa em termos de escatologias divergentes. Al guns grupos talvez visse vissem m a conversão conv ersão dos judeus jud eus como o primeiro pass pa ssoo indis ind ispe pens nsáv ável el dian di ante te d a ulte ul terio riorr ex expp a n são sã o do E va vang ngel elhh o; o u tros, liderados por Paulo, concebiam um processo contrário: só quando fosse alcançada a plenitude dos gentios é que Israel seria salvo (Rm 11,25). Alguns confiavam no esforço humano, outros aguardavam uma intervenção sobrenatural. Postular semelhante variedade variedade de organização organizaç ão e de expectação ajuda a compreender e a explicar explicar a existência existência de diversas tradições, que parecem estar est ar refle refle tidas em escritos tais como com o o Evangelho de Mate M ateus us.1 .199 Seria fácil continuar multiplicando essas antíteses esquemáticas, mas todas elas necessitam de modificação e aprimoramento; e as que foram mencionadas são apenas apen as exemplos exemplos do tipo de fenôme nos que podem ser observados, e não “antíteses daquilo que é falsa mente chamado de conhecimento” (lTm 6,20)! Se voltarmos, por um momento, a considerar os tipos de erro que são atacados no Nov N ovoo T esta es tam m en ento to,, eles serv se rvirã irãoo co com m o revés rev és e, em p arte ar te,, co com m o ex plic pl icaç ação ão de dess ssas as va vari riaa da dass tend te ndên ênci cias as.. M as, as , além alé m diss di sso, o, eles po pode dem m ser tratados, apenas de modo geral, como mera introdução a um estudo aprofundado. O mais evidente, já visto rapidamente, é o esforço judaico para obter mérito, mérito, atacado ataca do por Paulo. Paulo. Não N ão é verdade verdade que Paulo pensava que a fé salvara do pecado. Ele é, às vezes, apresentado como al guém que substitui as “obras” pela “fé”, como se o homem, não pode po dend ndoo salva sa lvar-s r-see p o r suas su as o b ras ra s , pu pude dess ssee fazê-lo fazê -lo p o r sua su a fé (se apenas ele pode ter bastante dela). Contudo, de fato, o que Paulo está dizendo é que absolutamente nada que vem do homem pode restabelecer a sua comunhão com Deus*, nada que é “do homem mesmo”, que ele “possui” pode qualificá-lo para entrar na presença do Senhor. É só quando ele abandona toda tentativa para tomar-se idôneo, e aceita aquilo que Deus oferece como um dom gratuito (como um ato de “graça” ou generosidade graciosa) que pode ser recebido no âmbito da comunhão com Deus. Contudo, a comu nhão é um relacionamento de de natureza pessoal pessoal e a oferta da com u 19.. Cf. capítulo V, n. 5. 19
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nhão restaurada requer, portanto, a confiança total da pessoa, isto é, uma resposta dada de todo o seu coração, caso deva entrar nela. Para Paulo, a fé consiste neste abandono completo à bondade e à fidel fidelida idade de de Deus, o qual não n ão é a causa caus a do dom de Deus, mas m as sim plesm ple smen ente te a resp re spos osta ta a ele. P o rta rt a n to, to , P au aulo lo se op opõe õe radi ra dica calm lmen ente te (exclui totalmente) a toda pretensão e méritos humanos. Ao contrá rio, rio, o judaísmo (embora apenas em sua forma mais tosca) afirmava que o homem podia fazer-se merecedor do favor de Deus, realizan do ações aceitáveis tais como dar esmolas. E é esta concepção de mérito e de auto-confiança que Paulo ataca em todas as suas for mas (Rm 9,31; 10,3), seja na forma de confiança na possibilidade de boa conduta, seja na forma de confiança no uso correto do rito (tal como a circuncisão), seja na forma de descendência judaica, seja na forma de crença correta. O conflito entre estas duas con cepçõe cepçõess ajuda-nos a exp explic licar ar uma boa bo a parte par te das cartas ca rtas aos Gàlatas Gà latas e aos Romanos. Rom anos. Paulo, Paulo, que era circuncidado e um um judeu puro, esta es ta va pronto a observar as prescrições rituais e éticas judaicas (ICor 9,20; cf. Atos 21,20ss), mas estava pronto também a trovejar con tra qualquer um que pretendesse que qualquer coisa desse gênero constituísse o fundamento da salvação (G1 2,17ss; 5,4). No N o ex extr trem emoo op opos osto to,, h á o u tro tr o erro er ro,, que que,, á prim pr imei eira ra vista vis ta,, pa pare rece ce ser a antítese do legalismo e da confiança na possibilidade do méri to e correçã corr eçãoo hum h umanos, anos, isto é, o erro que veio veio a ser chamado cham ado de antinomismo. Se aquilo que o homem faz não serve para nada, então po p o r que se p reo re o c u p a r co com m a c o n d u ta? ta ? P o r qu quee n ã o p ecar ec ar sem inibi inib i ção alguma, e assim oferecer a Deus oportunidade para ser genero so? Tal blasfêmia já tinha sido realmente encontrada por Paulo (Rm 6,1); na verdade, ele mesmo tinha sido acusado de sustentar tal posição (Rm 3,8). Ele diz, diretamente, que a punição de quem sustenta essa posição é bem merecida. Falar assim significa, de fa to, um completo fracasso em compreender o significado da comu nhão com Deus, que envolve toda a personalidade humana e exige uma resposta total; significa dividir totalmente a natureza humana em compartimentos estanques. Acresce que este erro tomava vá rias formas, sendo que algumas delas, pelo menos, eram mais sofis ticadas que a formulação com batida por Paulo, como se pode pode ver a pa p a rtir rt ir da daqu quilo ilo qu quee é a tac ta c a d o n a E píst pí stol olaa de Tiag Ti agoo e na nass ep epíst ístol olas as joa jo a n inas in as.. T iago ia go co com m b a te pe pess ssoa oass qu quee afir af irm m am ser salv sa lvas as po porq rque ue
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seu credo é ortodoxo: são bons monoteistas. Mas, replica o escri tor, até os demônios o são (Tg 2,19)! O que importa é que a fé se manifeste manifeste em uma vida boa: “ . . . a religi religião ão pura e sem sem mácula . . . cons co nsis iste te nist nisto: o: em assi assist stir ir os órfãos órfãos e as as viúv viúvas as . . (Tg 1, 1,27). Nas epístolas joaninas, testemunhamos um ataque contra outra forma de antinomismo: trata-se de uma heresia claramente “dualista”, se gundo a qual a matéria é essencialmente má e o espirito é distinto e separável dela. E, destes pressupostos, seus expoentes parecem ter feito duas deduções: primeiro, eles, evidentemente, não podiam aceitar que “a Palavra se fez carne”, porque, para eles, isso era grosseiramente material; e, em segundo lugar, eles se recusavam a considerar a conduta como relevante para a iniciação cristã. Essas pess pe ssoa oass cria cr iam m , ev evide idente nteme mente nte,, qu quee se torn to rnaa r a m inic in icia iada dass m ed edian iante te o verdadeiro e salvador conhecimento. Que importava se eles não demonstravam caridade para com os outros ou eram negligentes em sua moralidade? É evidente que esses antinomianos estavam realmente tão longe da posição de Paulo (na verdade, a posição cristã) quanto os legalistas. Estes tentavam obter méritos mediante as boas obras; aqueles criam ter méritos por meio do conhecimento e do rito de iniciação. Ambos, de modo semelhante, confiavam que eram salvos por meio de qualquer coisa diversa da livre e gratuita graça de Deus. Embora, de tempo em tempo, Paulo tenha estado associado com os erros do antinomismo, de fato, nada é mais injus to do que essa avaliação de sua posição. Ag ora se torna Agora torn a evidente evidente que os cristãos, cristão s, que se mantinham ma ntinham fié fiéis aos pontos essenciais e distintivos de sua fé, eram obrigados a an dar numa corda esticada sobre os abismos: o perigo de separar Cristo de Deus, a criação do Criador, a conduta da fé, fé, a aproxima ção graciosa de Deus da resposta re sposta humana. hum ana. E eles eles vacil vacilavam avam ou he sitavam? Paulo tem sido às vezes, considerado unilateral e acusado de fracassar em reconhecer o valor das boas obras, mas, de fato, nada é mais claro do que o seu enérgico apelo às boas obras, por que estas são um aspecto da confiante resposta humana à iniciativa de Deus, não um meio para se conquistar o favor de Deus. As Epistolas Pastorais, qualquer que seja a sua origem, se apresentam como um compromisso, compromisso, como uma um a cristalização da doutrina d outrina paul pauliina num ambiente eclesiástico organizado (talvez Lucas as tenha
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compilado).20 Na primeira carta de Pedro, não se enfatiza a graça de Deus em contraste com o esforço humano, mas sua exortação às boas obras não é mais forte que a de Paulo. A segunda carta de Pedro está mais próxima do reconhecimento reconhecim ento da possibilid possibilidade ade de al cançar a salvação por meio do esforço humano (l,5ss) e da idéia grega de atingir a deificação (1,4), mas, mesmo assim, existe a ex pres pr essã são: o: “ Cresce Cre sceii n a g raça ra ça . . . de no noss ssoo Senh Se nhor or . . ( 3 , 1 8 ) . O Apocalipse é, simplesmente, um apelo aos cristãos para persistirem e permanecerem fiéis. Judas se preocupa principalmente em atacar os antinomistas, mas contém uma nobre e inesquecível doxologia: Àquele que pode guardar-vos da queda e apresentar-vos perante a sua glória irrepreensíveis e jubilosos, ao único Deus, nosso Salvador, median te Jesus Cristo nosso Senhor, glória, majestade, poder e domínio, antes de todos os séculos, agora e por todos os séculos! Amém (Judas 24-25).
Somente Tiago não faz nenhuma alusão à graça de Deus em Jesus, e se concentra na obtenção de uma estatura moral tal que conduza à salvação. Tudo isso, se o Novo Testamento fosse representativo da gene ralidade de cristãos daquele tempo, significaria que, se alguém via jass ja ssee de um luga lu garr p a r a o utro ut ro,, p od oder eria ia en encc o n trar tr ar uma um a no notá táve vell va varie rie dade de ênfases; mas raramente um abandono daquele único e dis tinto Evangelho cristão da livre graça de Deus, manifestado real e historicamente em Jesus Cristo. Na realidade, contudo, se suspeita que o communis sensus sensus fidelium , expresso nas declarações de “vér tice” que fizeram o Novo Testamento, era mais fiel às verdades centrais do kérygma do que o foram os membros da Igreja menos instruídos e obscuros. É lícito pensar que, em algumas comunida des, Jesus fosse considerado mais como um exemplo que como o Senhor; seguido mais como um rabino que sentido como os membros mem bros se sentem ligados ao c orpo or po;2 ;211 que aquilo que cham ch am aría ar ía mos de idéias puramente “humanísticas” sobre ele eram estimadas, enquanto enqu anto que, alhures, alhures, ele ele era concebido como um salvador do tipo encontrado enc ontrado nas reli religi giõe õess de mistério, mistério, com quase nenhu n enhuma ma historiei20. Cf. o Excurso II: Lu L u cas ca s e a s E p ísto ís tola lass P asto as tora rais is.. L ords dsh h ip a n d D iscip isc iples leshi hip, p, 77ss; mas creio que ele 21. Cf. E. SCHWEIZER, Lor pouco leva em conta a possibilidade de que os Evangelhos Sinóticos estejam re construindo conscientemente uma situação de “pré-ressurreição”.
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dade; que, em alguns lugares, sermões sobre a expiação eram ouvi dos raramente; que, às vezes, o batismo e a eucaristia eram consi derados quase como talismãs para proteger os membros da Igreja, enquanto, em outros casos, se ouvia bem pouca doutrina, apenas exortações para a vida honesta.22 Se esta é uma hipótese com fundamento, é ainda mais notável que as variedades da fé sobreviveram e permaneceram; e são os pastores e mestres da Igreja que nos fornecem, em parte, a explica ção deste fenômeno. Os escritos dos guias espirituais é que emer gem das massas uniformes e que contribuem para preservar a fé. De fato, ainda que quanto à organização e ao ministério também existisse quase certamente, como vimos, uma considerável variação de uma comunidade para outra, a liderança de cada comunidade comumente devia incluir alguma pessoa responsável, chamada e encarregada da proclamação do Evangelho. É digno de nota que o livro dos Atos aluda mais de uma vez a essa incumbência: em duas passagens (14,23; 20,32), o verbo paratithénai indica que alguns cristãos são “confiados” ao Senhor e ao Evangelho; analogamente, em 2Tm 2,2, o mesmo verbo é usado quando se diz que homens de confiança receberam o encargo de salvaguardar os fatos autênticos do Evangelho, isto é, aquilo que é chamado analogamente de parathéke, “ depósito”, “crédito” (2Tm 1,14). O senso de responsabili dade que deriva do receber, preservar e custodiar o autêntico Evan gelho de Cristo é surpreendentemente forte através de todas as epístolas (ICor 11,23; 15,1; G1 2,2; Cl l,5s; lTs 2,2-4; lTm 2,7; 2Tm 2,8; Hb 2,3; Tg 1,18.21; IPd 1,23-25; lJo 2,20.27; Ap 2,25). Isto explica, talvez, por que as listas das funções no ministério cris tão nas cartas paulinas começam com os apóstolos. É o ministério do testemunho acerca dos fatos primários que vem em primeiro lu gar: sem um datum, não pode haver dedução. Em seguida, vêm os profetas e mestres, isto é, aqueles que, no âmbito da comunidade que se edifíca sobre a rocha da confissão de Cristo, têm a capacida de de discernir e expor a vontade de Deus e inculcar os fatos e o tipo de conduta que se relacionam com a fé. Ainda uma vez se pode afirmar que, embora possa ter havido diferenças notáveis na 22. Campbell N. MOOD Y, The M ind o f the Early Converts (s.d., prefácio de 1920) tem muito a dizer sobre isto.
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maneira de prestar culto, de uma comunidade para outra, o culto (parece provável) girava em torno de uma e a mesma narrativa da Última Ceia, com o partir do pão e a distribuição do vinho, ou de algo equivalente. Portanto, por onde quer que se fosse em todo o mundo antigo, a comunidade cristã era identificada ao menos por dois fatores: por ter à sua testa homens que preservavam um só Evangelho e por conduzir o culto no nome do próprio Senhor Jesus. E um fator ulterior contribuía provavelmente para manter a unidade e a pureza da fé: comunicação recíproca entre os diversos centros. Pouco tempo depois, temos um quadro do elaborado cuidado que Inácio de An tioquia teve de escrever aos cristãos e, logo, encontrá-los nos gran des centros, em seu caminho triunfal em direção ao martírio. Con tudo, já ao tempo de Paulo, os mensageiros viajavam rapidamente entre uma e outra cidade, e é surpreendente ver, em suas cartas, o estreito contato que mantinham. Portanto, a despeito de toda a sua individualidade e peculiari dade, a despeito das excentricidades provavelmente alarmantes do “submundo”, do qual comunidades cristãs se originaram, a despei to das diferenças notáveis entre os diversos níveis de linguagem e do estilo representados no Novo Testamento, seus vários escritos falam com uma voz claramente unânime de um só Evangelho e de um só Senhor. Basta comparar um só dos escritos extracanônicos, como “o Evangelho de Tomé”, com o Novo Testamento, para se reconhecer a diferença. H.E.W. Tumer ressalta bem o contraste, quando sustenta23 que no “Evangelho de Tomé” perdemos comple tamente “o sabor da realidade histórica”, a cruz, a doutrina da gra ça e “o robusto personalismo da religião do Novo Testamento” (em contraste com o misticismo generalizador de Tomé). Tais eram algumas das características distintivas da mensagem cristã que a Igreja militante preservou. Isso não é um milagre do Espirito?
23. H.W. MONTEFIORE e H.E.W. TURNER, Thomas and Evangelists, 1962.
CAPÍTULO X
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A história da formação daquilo que é conhecido como o “câ non” do Novo Testamento é a história da exigência de uma autoridade. A Igreja Crista começou com um relato absurdo: um homem recentemente executado pelos romanos por instigação das autoridades religiosas judaicas tinha ressuscitado e se tornou a verdadei ra pedra angular de todo o edifício chamado “Israel”. Que provas conduziam a semelhante afirmação, e qual a autoridade que a vali dava? Provavelmente a prova mais imediata e convincente fosse a própria existência deste grupo de “nazarenos”, tão confiantes e convencidos em seu testemunho sobre os eventos em questão, uni dos numa fraternidade claramente sincera, acompanhados de sinais inequívocos do poder e da presença de Deus. Os primeiros capítu los do livro dos Atos sugerem, de modo surpreendente, o impacto (numa narrativa da qual não há razão para se duvidar de sua vera cidade substancial) que tal comunidade provocou repentinamente em Jerusalém. Toda a população foi sacudida, e um grande número de pessoas se convenceu. Era difícil crer que semelhante resultado fosse devido a uma alucinação ou a um enorme engano. 1. B.F. WESTCOTT, A General Survey o f the History o f the Canon of t New Testament, 1885, 1875, 4» ed.; T. ZAHN, Geschichtedes neutestamentlichen Kanon, 2 vols., 1888-92; ID., Forschungen zur Geschichte des neutestamentli chen Kanon, 10 pates, 1881-1929; A. JULICHER, Einleitung in das Neue Tes tament, 1894; 7* ed., 1931; C.R. GREGORY, Einleitung in das Neue Testament, 1909; ID., Canon and Text o f the New Testament (trad. inglesa, 1924); A. VON HARNACK, Die Entstehung des Neuen Testamenls, 1914; ID., Die Briefsammlung des Aposteis Paulus, 1926; M. ALBERTZ, Die Botschaft des Neuen Testaments, 4 vols., 1947-57; A. SOUTER, The Text and the Canon of the New Testa ment, 1954; C.L. MITTON, The Formation of the Pauline Corpus, 1955; F.L. CROSS, TheEarly Christian Fathers, 1960, capítulos IV, V; D. GUTHRIE, New Testament Introduction: the Pauline Epistles, 1961, capitulo XII.-
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Entretanto, definindo mais precisamente, a autoridade da asser ção cristã acerca de Jesus repousava sobre o testemunho ocular de doze homens. Segundo os Evangelhos, o próprio Jesus, durante o seu ministério, os tinha escolhido e comissionado para estar com ele e ser enviados como arautos do Reino de Deus (Mc 3,13ss e pa ralelos). Um deles, Judas Iscariotes, se revelou um traidor, mas os outros onze, segundo o livro dos Atos, receberam um ulterior man dato expresso do Mestre ressuscitado para que continuassem a ser suas testemunhas, e um novo décimo segundo, Matias, foi mais tar de selecionado por lançamento de sortes e entre dois escolhidos dentre outros discípulos que eram testemunhas oculares. Ficou de cidido (Atos 1,2ls; cf. Jo 15,26) que a condição para a eleição seria que o novo membro do grupo dos apóstolos devia ter acompanha do os Doze durante todo o tempo, desde o batismo de João até a ascensão, isto é, ele devia ter sido um ativo participante de todo o ministério de Jesus e uma testemunha da ressurreição e dos sucessi vos eventos. Seu testemunho devia cobrir todo o escopo do kéryg ma, da proclamação cristã. O uso de sortes (Atos l,23ss), que re presentava a direção divina na escolha, constituía evidentemente uma tentativa de ser um equivalente do expresso mandato da parte de Jesus. Assim foi recomposto o corpo dos Doze, todos os íntimos colaboradores do ministério de Jesus e testemunhas da ressurrei ção, e todos que foram comissionados com autoridade a dar tal tes temunho. lJo 1,1 alude, de novo, a este tipo de testemunho ocular (cf. 2Pd 1,16). É natural ver no número doze uma deliberada alu são às tribos de Israel; era como se dissesse: “Aqui está, in nuce, o testemunho do verdadeiro Israel ao mundo”. É possível ver tam bém na narração do livro dos Atos, sobre o restabelecimento do número doze, uma referência à intenção de sublinhar o apelo do verdadeiro Israel, na missão da Igreja, ao Israel maior e menos fiel. Eis um apelo concentrado e duodécuplo às doze tribos.2A este res peito, a missão apostólica é comparável à missão do Servo de Iahweh ao remanescente de Israel, descrita em Isaias. Pode ser, todavia, que os Doze representassem, evidentemente, o “cânon” ou “medida” mais primitivamente cristã, isto é, o pa 2. Cf. também, K.H. RENGSTORF, “The Election of Matthias (Actes i, in Festschrijí for O. Piper, 1961.
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drão pelo qual se aferia a autenticidade da mensagem cristã no de correr de suas vidas. Eles são as colunas que sustentam toda a es trutura (cf., embora com referência mais ampla, GI 2,9; lTm 3,15) e a eles deve referir-se toda pregação (G1 2,2). Contudo, não há si nal de que os Doze tivessem pensado em perpetuar-se por meio de uma sucessão: não se tratava de um califado; se este existiu em al gum lugar da Igreja Cristã devia ser encontrado na linha de Tiago, o irmão do Senhor, não na dos Doze.3Estes eram considerados es sencialmente um núcleo eleito e enviado pelo Senhor, expressam en te autorizado a dar um testemunho ocular sobre os eventos decisi vos da vida de Jesus. Como tais, eles eram insubstituíveis por defi nição, especialmente nas gerações sucessivas. Ao passo que a eli minação de Judas, por motivo de apostasia, foi enfrentada com a eleição especial de Matias, por meio de sortes, isso não se repetiu mais, seja por causa do martírio, seja por causa de morte natural. Os Doze não representavam um corpo que devia perpetuar-se; eram simplesmente a autoridade inicial necessária para atender à pregação cristã sobre Jesus.4 Ao lado desta autoridade, e na verdade parte integral dela, exis tia também a autoridade das escrituras judaicas. O “método de ar gumentação que partia das escrituras”, isto é, a demonstração de que o testemunho dos apóstolos não era um fenômeno isolado, mas o clímax e cumprimento do propósito de Deus para o seu Povo, como já delineado nas escrituras, e já discutido com detalhes no capítulo IV. É suficiente recordar aqui que os apóstolos sustenta vam que aquilo que tinham visto estava “de acordo com as escritu ras”, e que a própria forma em que construíam sua prova era con dicionada pelas escrituras. O testemunho dos Doze era, a um só tempo, uma confirmação das escrituras e confirmado por elas. O caminho já estava sendo aberto para o reconhecimento do testemu nho apostólico como material para os escritos inspirados. 3. Cf. A.A.T. EHRHARDT, The Apostolic Successíon, 1953, c E.STAUFFER, “Zum KaJifat des Jakobus” in Z eitschrtft fü r Religions und Geistesgeschichte 4, 1952, 210ss. 4. As especulações de W.L. KNOX (St. Pa ul an d the Ckurch o f Jerusalem, 1925, 169) acerca de Tiago, o irmão do Senhor, que, num certo sentido, tomou o lugar do apóstolo homônimo, depois do martírio deste, são equívocas. “A simples morte de um apóstolo não causava automaticamente uma vaga . . . mas a aposta sia já é outra coisa”, escreve C.H. DODD, According to the Scriptures, 1952, 58, bras.: Segundo as Escrituras, Edições Paulinas, São Paulo, 1979).
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O empenho do apóstolo Paulo para estabelecer a sua reivindi cação á condição de apóstolo parece implicar critérios semelhantes àqueles definidos em Atos l,23ss, embora de uma forma anormal. Em IC or 15,8, ele conta a aparição do Senhor a ele no caminho de Damasco entre todas as outras aparições pós-ressurreição, embora esta tenha se dado numa época diferente; em ICor 9,1, ele insiste, de novo, no fato de que, neste sentido, ele é uma testemunha ocular da ressurreição; e, em G1 1,1.11, esclarece que o seu mandato como evangelizador proveio diretamente do Senhor. A peculiarida de desse mandato consiste no fato de que é, expressamente, para os gentios (G1 1,16; 2,2; cf. Atos 22,21; 26,17), que ele está fora do grupo dos Doze (ele é um décimo terceiro5), e que ele não conheceu Jesus pessoalmente durante o seu ministério terreno. N ão obstante, permanece sua reivindicação de que ele é uma testemunha ocular do Senhor ressuscitado e pessoalmente enviado pelo Senhor para dar aquele testemunho. Portanto, recusar a mensagem cristã significava duvidar de um grupo de testemunhas oculares vivas, autorizadas pelo próprio Se nhor; e, contanto que estas ou mesmo seus colaboradores mais Ínti mos vivessem, pode-se compreender prontamente a preferência ex pressa por Papias (cerca do ano 150) pela viva voz delas antes que por seus escritos: “ Pois eu não creío” , dizia ele, “que a informação derivada dos livros me ajudaria tanto quanto a palavra de uma voz viva e que sobrevive” (zóses phonês kai menâuses, Eusébio, Hist. Eccl. 3,39,4). Deve-se admitir que o próprio Papias, nâo obstante, reconhecia autoridade, pelo menos, em três dos Evangelhos escri tos (para Mateus e Marcos, cf Eusébio, Hist. Eccl. 3,39,15s; para João uma das argumentações propostas num manuscrito latino dos Evangelhos do século IX, conservado na Biblioteca Vaticana*); permanece, pois, a verdade de que a comunidade cristã não era, es 5. Cf. A. RICHARDSON, A Introduction to the Theology o f the New Tes tament, 1958, 314, n. 1 (trad. bras.: Introdução ã Teologia do Novo Testamento, Aste, Sào Paulo, 1966). 6. Cf. F. V. FILSON, Wich Books Belong in the Bible?, 1956, 152; ele apre senta reservas a propósito da passagem de Papias sobre o vator da tradição oral. Para o manuscrito em questão, cf. J.B. LIGHTFOOT em Contemporary Review, 1875; também HARNACK, Geschichte der altchristlichen L itteratur, 1893, 68. Quanto ao problema do conhecimento que Papias tinha dos Evangelhos, cf. R.M. GRANT, “Papias and the Gospels” in Ang. Theol. Rev. 25, 1943, 218ss.
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sencialmente, uma comunidade “do livro”: tinha nascido de uma série de eventos bem recordados; vivia sob a contínua direção pes soal, como se cria, do personagem central daqueles eventos; e aguardava o momento, talvez não longínquo, do seu retorno. Nesta comunidade cristã, a autoridade era constituída do “Senhor e dos Apóstolos” .7 O único livro de que se necessitava era a coleção de escritos sagrados, já reconhecidos pelos judeus, em que os cristãos encontravam a explicação e a confirmação de suas próprias con vicções, enquanto, por outro lado, viam aquelas escrituras explica das e confirmadas, de um modo inteiramente novo, pelos recentes eventos. Todavia, o último dos Doze morreu antes da “consumação de todas as coisas”, e começou a tornar-se evidente que a Igreja devia continuar a subsistir por um período indefinido, num mundo imper feito. Onde era possível encontrar a garantia da autenticidade da proclamação cristã, depois que as testem unhas oculares não exis tiam mais, e qüando mesmo os seus seguidores imediatos se torna vam cada vez mais raros? A resposta estava, inevitavelmente, na compilação dos documentos escritos. Com a contínua referência ao “Senhor e aos Apóstolos”, começa um inevitável processo de de senvolvimento, que conduziu à formação de documentos escritos de reconhecida autoridade.8 Como eram os livros naquele tempo e quão difundida era a cul tura? A resposta à primeira questão parece ser que os livros de cer ta importância, especialmente os sagrados, tinham comumente a forma de rolo, até que os cristãos adotaram a forma de códice (mais ou menos a forma de um livro moderno) para os seus pró prios escritos sagrados. Códice, do latim caudex, significa originariamente “tronco de árvore”, depois “acha de lenho” e, por isso, “tabuinha” para escrever, isto é, uma tabuinha coberta de cera 7. Seja o que for entendido pela controvertida expressão tá Biblia kai hói apóstoloi (se, na verdade, for esta a leitura correta) e 2Clem 14,2 (cf. a discussão da passagem em H. KÕSTER, Synoptischer Überlieferung bei den apostolischen Vàtern, 1957, 67ss), esta homília certamente usa léguei (êipen) ho kyrios em qual quer outra parte (4,5; 5,2; etc.), de modo que ho kyrios e hoi apóstoloi possam ser corretamente considerados as suas duas fontes de autoridade. Para a data de 2 Clemente (primeira metade do século 12?), cf. B. ALTANER, Patrologie , 1958, 5* ed., 82s (trad. bras.: Patrologia, Edições Paulinas, São Paulo, 1972). 8. Cf. W. SCHNEEMELCHER em E. HENNECKE, Neutestamentliche Apokryphen, I, 1959, 9.
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para se tomar nota. Com o passar do tempo, o termo foi adotado para indicar pilhas planas e retangulares de papel dobrado ou, em alguns casos, de pergaminho, que constituía aquilo que, hoje, cha mamos de livro. Por associação e derivação, o códice tende, por tanto, a ser usado para notas rápidas e provisórias, enquanto que o biblion (ou volumen, em latim), isto é, o rolo, é usado para os pre ciosos escritos sagrados. Embora a palavra biblion seja simples mente derivada da palavra que indica a cana do papiro, da polpa da qual se faz o papel, de fato, esta veio a denotar a forma (rolo) em vez do material. Embora os rolos não fossem, às vezes, escritos em papiro, mas em peles de animal (pergaminho ou velo, enquanto os códices eram feitos de folhas de papel, isto é, papiro), biblion, contudo, tendia a significar um rolo e membranae (peles) a signifi car códice. Dai, é plausível pensar9 que, quando (2Tm 4,13) Timó teo é instruído a trazer os biblta, e particularmente as membranae, se deseje indicar com o primeiro termo as escrituras judaicas (na forma de rolo) e com o segundo as próprias anotações do apóstolo (em forma de códice, seja em folhas soítas ou costuradas umas às outras), talvez seus sermões e dissertações, talvez cópias de cartas, talvez simplesmente notas. Se esta hipótese está correta, biblía e membranae (neste contexto particular) se referem, respectivamente, aos escritos sagrados dos judeus e dos cristãos (embora estes últi mos, neste estágio, não tivessem alcançado a condição de “canonicidade”, ou sido considerados hierá grámmata, escritos sagrados, como em 2Tm 3,15).Parece que foi nas comunidades cristãs que o códice chegou à sua própria condição, suplantando, finalmente, os rolos para tornar-se o tipo adotado para os escritos permanentes, sobretudo os sagrados.10 Que esta passagem, do rolo ao códice, te nha acontecido mais cedo do que se costuma pensar tem importân cia para a critica do Novo Testamento. É possível o deslocamento de folhas num códice (o que é impossível num rolo); assim, a data em que foi difundido o uso do códice é relevante para a discussão, por exemplo da possibilidade de deslocamento de folhas no Evan gelho de João. Por outro lado, como veremos (cf. abaixo, pp. 227s), certas teorias sobre a ordem dos livros no cânon do Novo 9. Cf. C.H. ROBERTS, “The Codex" in Proc. Brit. Acad. 40, 1954, I69ss. 10. Cf. P. KATZ, “The Early Christian Use of Códices instead of Rolls" in J.T.S. 46, 1945, 63ss.
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Testamento dependem da hipótese de que os escritos em questão foram dispostos na forma de um rolo. Quanto à difusão da cultura, Paulo, o proprietário daqueles “ li vros e pergaminhos”, naturalmente era bem apto a fazê-lo, como também seus assistentes que lhe serviam de amanuenses. De fato, a maioria dos judeus religiosos sabia, pelo menos, ler e escrever, pois, seguramente, tinham freqüentado a escola da sinagoga local, e ti nham o costume de ler as escrituras em tradução, senão propria mente em hebraico (cf. acima, p. 179). Lemos, é verdade (Jo 7,15), que alguns notaram com desprezo que Jesus nunca freqüen tou escola, mas isso indicaria apenas que ele nunca havia freqüen tado os cursos regulares de treinamento para rabinos.11 Os gentios da Igreja Cristã contavam, provavelmente, entre seus membros muitos analfabetos, ou semi-analfabetos (especialmente entre os es cravos), mas muitos dos convertidos do apóstolo Paulo, pelo me nos, já tinham entrado em contato com a sinagoga e provavelmente estavam habituados a ouvir a leitura do Antigo Testamento, como também a lê-lo propriamente. Ainda que seja impossível ir além de uma hipótese, por falta de dados, pode-se conjecturar, então, que muitos cristãos do tempo do Novo Testamento sabiam ler. Isso, contudo, não significa que eram suficientemente abastados para possuírem livros; e, provavelmente, enquanto o freqüentador médio da comunidade sinagogal dependeria grandemente da recordação das escrituras lidas de sábado a sábado, os cristãos, se não freqüen tavam a sinagoga, podem ter aprendido muito, ouvindo aquilo que era lido nas reuniões do culto cristão. Nas discussões e disputas, na defesa e na proclamação do Evangelho, eles teriam de citar aquelas escrituras do Antigo Testamento e os ditos e escritos apostólicos que recordavam. Relativamente poucos poderiam referir-se a livros de sua propriedade. Por estas razões, os livros e escritos cristãos deviam ser escas sos e raros, e a memória dos crentes era submetida a um esforço fora do comum. E é numa tal situação de escasso nivel cultural e li terário (ainda que não de completo analfabetismo), que devemos imaginar a origem de uma literatura cristã e devemos considerar agora o processo de seleção que produziu os escritos canônicos. 11. J. JEREMIAS, Jerusalem zur Z eit Jesu, 1958, 2* ed., 104.
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Uma das conseqüências óbvias dessa situação é a natural liderança adquirida, numa dada comunidade, por alguém suficientemente do* tado, não só de bom caráter, como também culturalmente, para custodiar os poucos escritos sagrados que já estavam à disposição e para transmitir o seu conteúdo (lTm 4,13, quando Timóteo é exortado a aplicar-se à leitura, significa, sem dúvida, leitura em voz alta às suas comunidades). Uma outra conseqüência é, naturalmen te, que as reuniões cristas de culto e de instrução religiosa represen tariam “os seminários” mais naturais para tal transmissão. Portan to, podemos supor, com segurança, que o conteúdo dos escritos cristãos começou a fixar-se principalmente através da audiência dos fiéis, simpatizantes e catecúmenos, e com base também no con texto do culto e do ensinamento religioso. Quais foram no entanto, os fatores que influenciaram a escritu ração e, em seguida, a seleção ou rejeição dos vários livros cris tãos? Os dados que possuimos sugerem que, antes que o último dos apóstolos morresse, já existiam vários documentos escritos, que continham ditos de Jesus, talvez certos pensamentos sobre a sua vi da, e pelo menos, um Evangelho inteiro, o de Marcos. Ê difícil de terminar mais do que isso. A tradição mais antiga (e a mais plausí vel) fixa a compilação de Marcos depois da morte de Pedro (embo ra este não tenha sido o último dos apóstolos a morrer): as tradi ções que colocam a data de composição durante a vida do apóstolo fazem suspeitar que houve “adaptações”. A autoria apostólica di reta do Evangelho de João, sustentada pela tradição, é amplamente colocada em dúvida, e Mateus, na sua forma atual, dificilmente pode ter sido escrito por um apóstolo.12 No que diz respeito aos Evangelhos completos, portanto, não podemos ir além da certeza de que o Evangelho de Marcos foi escrito no arco da geração apos tólica, embora não esteja excluída, de fato, a possibilidade de que Mateus, Lucas e João tenham sido redigidos no mesmo período. Não é improvável, todavia, que Marcos tivesse usado as fontes es critas já existentes, além das tradições orais, pois não pode haver dúvida da existência de muitas tradições que circulavam já muito cedo na forma oral ou escrita. Já podemos detectar nas cartas pau12. Cf. a evidência para as tradições acerca de Marcos e Mateus em HUCKL1ETZMANN. Synopse ou numa boa introdução ao Novo Testamento; e, ainda, B.H. STREETER, The Four Gospels, 1930, 4* ed., passim.
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linas ou parapaulinas ecos dessas tradições sobre Jesus que vieram a ser acolhidas nos Evangelhos (cf. acima, pp. 165ss). Portanto, um missionário como Paulo já podia ter acesso às tradições, sejam orais ou escritas, como fizeram mais tarde os evangelistas. Mesmo num período posterior, entre os escritores da época subapostólica, que são chamados de Padres Apostólicos, há traços de tradições semelhantes ainda correntes, e possivelmente paralelas aos Evange lhos que conhecemos, em vez de através deles.13 Podemos, então, imaginar a existência de um grande depósito de tradições, algumas orais, outras já escritas, já esboçadas pelos antigos pregadores e, fi nalmente, cristalizadas pelos Evagelhos atuais. Uma vez mais são as reuniões para o culto e o ensinamento religioso os mais prová veis depósitos de tais tradições. O uso de um escrito no culto será o estágio que precede o seu reconhecimento como canônico. Uma vez que aparece o primeiro Evangelho completo, consti tui-se automaticamente um novo gênero literário. Como já vimos, ele é essencialmente apenas uma forma mais completa, mais cir cunstanciada, mais pictórica do kérygma básico ou proclamação cristã. Se aceitarmos a prioridade de Marcos sobre os outros Evan gelhos canônicos (e, apesar das objeções de alguns especialistas ca tólicos romanos, este ponto de vista está solidamente fundamenta do14), não é possível saber positivamente da existência de outro Evangelho completo anterior ao de Marcos, embora seja possível que ele tivesse predecessores em aramaico ou mesmo em hebrai co.15 Depois de Marcos, no devido tempo, apareceu uma torrente 13. Cf. H. KÕSTER, Synoptische Überlieferung bei den apostolischen Vàtern, 1957. 14. J. CHAPMAN, Matthew , Mark and Luke, 1937, e B.C. BUTLER, The Originality o f St. Matthew, 1951. são dois católicos relativamente recentes que de fendem a prioridade de Mateus (de uma ou de outra forma). Contudo, deve ser acrescentado que essa posição nào è compartilhada por todos os especialistas ca tólicos, como demonstra o fato de W. TRILLING, Das wahre Isra el (1959) estar entre aqueles que a abandonaram. Para um tratamento critico da posição de Chapman e Butler, cf. B.T.D. SMITH (recensão da obra de Chapman), J.r.S. 39, 1938, I70ss; A.M. FARRER (recensão da obra de Butler). J.T.S. n9s., 3, 1952, 102ss. Cf., enfim, o Excurso IV: A Prioridade de Marcos, gentil contribuição de G.M. STYLER. 15. Para o hebraico, não o aramaico, como um meio de comunicação entre os cristãos primitivos, cf. M.H. SEGAL, A Crammar o f Mishnaic Hebrew, 1927; H. GRIMME. ‘Studien zum hebrãischen Urmatthaus’ in Bibl. Zeitschr 23. 1935 36 244-265; 347 357, apud P. NEPPER-CHRISTENSEN, Matthausevangelium
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de evangelhos, mas é digno de nota que aqueles agora canônicos (Mateus, Lucas e João) podem ser ainda razoavelmente considera dos mais antigos que quase todos os outros que conhecemos (qual quer que seja a implicação de Lc 1,1 com sua referência a “muitos” predecessores), e estes últimos16 que conhecemos, ora inteiramente, ora através de referências e citações, não são absolutamente Evan gelhos no mesmo sentido, mas são ou pensamentos sobre Jesus, ou novelas mitológicas, ou coleções de ditos.17 No fim, não se tratou, talvez, tanto de selecionar entre vários Evangelhos equivalentes, etc. (como na nota seguinte); e quanto à possibilidade de alguma forma ou formas de hebraico oral, paralelamente ao aramaico, cf. a interessante discussão (que conclui a favor da possibilidade), id. lOlss, com referência especial a H. BIRKELAND, Sprak og religion hos joder og arabere, 1949, cuja tese é criticada por J.A. EMERTON, “Did Jesus speak Hebrew?” in J.T.S., n’s., 12, 1961, 189 202. Além do mais, C.C. TORREY, “The Aramaic Period of the Nascent Christian Church” in Z.N.T.W. 44, 1952, 205ss (cf. id„ The Apocalypse o f John, 1958), su gere que a lista das escrituras canônicas analisada por J.-P. AUDET em J.T.S. n9 s.l, 1950, I35ss, situada como está no manuscrito entre 2 Clemente e o Didachè, é provavelmente de origem cristã e, portanto, que o aramaico era a lingua religiosa mesmo dos cristãos de fala grega antes do ano 70; ele alude (como faz AUDET, loc. cit.) às listas de EPIFÂNIO, De meus. et pond. 23 e ORÍGENES, In Ps. I; cf. EUSÉBIO, Hist. Eccl. 6,25,ls. 16. Jerônimo alude a um evangelium juxta (ou secundum) Hebraeos (Adv. Pelag. 3,2 e De vir. iUust. 2) e, na primeira destas passagens, ele diz que muitos afir mam que é juxta Matthaeums Contudo, é difícil dizer até onde houve realmente um antecedente semitico de Mateus: de qualquer maneira, P. NEPPERCHRISTENSEN, Das Matthàusevangelium: ein judenchrislliches Evangelium?, 1958, 64ss, tem posto seriamente em dúvida quase toda palavra destes dois testi mania de Jerônimo. Portanto, nao há senão frágil evidência de que este Evangelho (caso tenha existido) fosse antecedente daqueles canônicos. Quando Lucas se refe re (1.1) aos “muitos” predecessores, indica mais do que Marcos e as fontes usadas? 17. É surpreendente notar que, se se compara o Evangelho copta de Tomé com os gregos de Ossirinco, tem-se a impressão de que tais escritos podem repre sentar coleções de ditos mais antigos usados pelo escritor do Evangelho de Tomé. Se isto for exato, encontramo-nos diante de um caso de coleções de ditos nãocanônicos, que estavam em circulação e foram incorporadas num escrito poste rior, exatamente como podemos supor que anteriormente aconteceu na compila ção dos evangelhos canônicos. Cf. H.-W. BARTSCH, “Das Thomas-Evangelium und die synoptischen Evangelien” in J.N.T.S. 6, 1960, 249ss. Contudo» existe a importante diferença (notada por Bartsch) que as fontes dos sinóticos não eram meras coleções de ditos isoladas de seus contextos narrativos. As coleções de ditos que estão por trás do Evangelho de Tomé não são, portanto, estreitamente com pa ráveis a ele. G. MIEGGE, Gospel and Myth (trad. inglesa, 1960), 121ss, nota que, enquanto que os escritos cristãos ortodoxos se movem em direção à “reflexão teo lógica", os escritos apócrifos, de tendência gnóstica, se movem em direção à “ima ginação mitológica”.
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quanto de reconhecer que, entre aqueles compostos no período apostólico, somente quatro eram completos. E se se indagar por que estes mantiveram sua fisionomia independente, em vez de so frer uma fusão (como no caso do Diatessaron de Taciano), ou por que não teria sobrevivido somente um, a resposta pode ser encon trada na autoridade das igrejas locais, ou noutro fator semelhante. Um dos quatro que quase fracassou foi Marcos, por causa de sua brevidade, e pelo fato de que estava quase todo incorporado em Mateus; contudo, talvez porque estava ligado a Pedro, ou porque estava relacionado com Roma, ou por causa de ambos, tenha sobrevivido em forma autônoma. E cada um dos outros três repre sentava, evidentemente, um dos centros mais influentes do cristia nismo. Não que eles todos tenham alcançado imediatamente um re conhecimento universal. Ao fim do segundo século, Lucas era ain da aceito com hesitação, e João encontrava muita oposição até bem próximo do ano 220.18 Entretanto, o ponto a destacar é que, por fim, emergiram, não um, mas quatro Evangelhos, nem mais nem menos. Marcião e Taciano tentaram, por vias diversas, estabe lecer um único Evangelho, mas não conseguiram sensibilizar a Igreja toda.19 O processo de seleção estava em desenvolvimento bem antes que se começasse a refletir conscientemente acerca dele: devido a uma variedade de causas (algumas das quais já foram mencionadas), o cânon dos quatro Evangelhos se introduziu quase furtivamente. Certamente não se tratou de uma decisão arbitrária de uma única comunidade crista, tampouco de um indivíduo.
18. Cf. Schneemelcher, que segue Bauer, em HENNECK.E, o.c., 1. 11. 19. De acordo com a tese de BAU ER, Rechtglàubigkeit und K eízerei im àltesten Christentum, 1934, a igreja romana e as outras igrejas que estavam sob a sua influência reconheceram, por um longo período, só Mateus e Marcos, aceitan do apenas com hesitação Lucas (desacreditado pelo uso herético) e abandonaram a oposição direta a João somente cerca do ano 200. Julga que Papias reconhecia apenas Marcos e Mateus; Justino não reconhecia autoridade em João e Inácio usava Mateus, mas não João. Essa posição difere da de Hamack (cf., p. ex., The Origin o f the New Testament, trad. inglesa de 1925), a despeito de muitos pontos em comum. Harnack também considerava o cânon dos quatro Evangelhos como um compromisso e João como tendo um papel decisivo em todo o processo. Sus tentava, porém, que a oposição aos alogi induziu os cristãos do oriente a defender a posição do Quarto Evangelho num tempo quando os outros três já eram firme mente aceitos.
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Quando se fez a primeira declaração oficial da canonicidade,20 não se tratou senão de um reconhecimento, feito coletivamente pela Igreja, baseado numa convicção que, há muito, vinha amadurecen do silenciosamente na consciência dos cristãos. Talvez, pelo me nos, um ou dois destes escritos já fossem usados regularmente nas assembléias de culto, muito tempo antes de serem aceitos oficial mente como portadores de autoridade. Como foi o caso, quase o mesmo poderia ser dito a respeito do reconhecimento das escrituras judaicas também. Temos de recor dar que não havia nenhuma declaração oficial que estabelecesse um “cânon” judaico das escrituras antes do fim do período neotestamentário (embora exista evidência de um longo debate acerca do assunto). O Sínodo de Jâmnia, do ano 90, é geralmente considera do a primeira ocasião em que foi feita tal declaração; e a discussão mais interessante do problema é de autoria de P. Katz,21 o qual atribui também àquele Sínodo a ordem e a divisão da Bíblia hebrai ca que subsistem ainda, argüindo que esta não era, absolutamente, a ordem antiga, mas que (contra a opinião geralmente aceita) a or dem mais antiga é a da Septuaginta. Todavia, pode ser que o Sinodo de Jâmnia represente a primeira declaração oficial do cânon hebraico, mesmo que tenha sido oficial somente para uma parte do judaismo: não existia algo como um órgão ecumênico de opinião judaica e, sem dúvida, os judeus de Alexandria e de outras diâsporas continuaram sem um definido “cânon” das escrituras.22 O “Sinédrio” de Jâmnia (e assim o tratado Sinédrio da Mishnah) não es tá em descendência direta com o Sinédrio de Jerusalém do período antecedente ao ano 70; este não era constituído de sacerdotes e an ciãos, mas de rabinos. O tratado Sinédrio não deve ser usado im prudentemente como evidência do Sinédrio de Jerusalém.23 Contu do, é provável que Jâmnia tenha conferido um certo impulso ao 20. Para a determinação final do cânon do Novo Testamento, cf. a bibliogra fia deste capitulo. A data comumente aceita é aquela da carta pascal n9 39 de.Atanàsio (ano 367). 21. P. KATZ, “The Old Testament Canon in Palestine and Alexandria” in Z.N .T .W . 47, 1956, 191ss. 22. Seria interessante saber que relação com a decisão de Jâmnia pode ser pressuposta pelo uso da expressão cristã “toda escritura é inspirada” (2Tm 3,16). Já estava claro neste tempo o que estava verdadeiramente incluido nas “escritu ras”? 23. LOHSE, artigo “synédrion" in T.W.N.T.
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correspondente movimento de canonização que estava se verifican do no ambiente cristão. Se perguntarmos quais os critérios que a Igreja, conscientemente, havia aplicado para provar a autenticidade dos seus escritos, descobriremos que tais critérios são determinados pela controvér sia com os heréticos e incrédulos. O mais óbvio é o critério da “a postolicidade” . Um Evangelho (para limitar a nossa investigação, provisoriamente, a esta categoria), ainda que não escrito verdadei ramente por um dos Doze, devia, pelo menos, possuir uma espécie de imprimatur apostólico: devia revelar que procedia de um cola borador íntimo de um apóstolo e, se possível, mostrar que recebeu um mandato expresso do apóstolo em questão. Conseqüentemente, deveria pertencer, necessariamente, a um período de compilação bem antigo, e era de esperar que (pode-se supor) revelasse sinais, pelo menos, de sua dependência da Igreja Primitiva de fala aramaica. Um corolário deste princípio representa um segundo critério: nenhum Evangelho genuinamente apostólico pode conter uma in terpretação da encarnação contrária àquela ortodoxia que (posto que difícil de definir exatamente) pertence inegavelmente ao communis sensus fidelium daquelas primeiras décadas, a despeito de toda a variedade que já descrevemos. Ao tempo em que o último dos Doze tinha morrido, já existia um grau suficientemente claro de uniformidade de opiniões, até onde iam as convicções básicas dos líderes da Igreja, em todos os centros cristianizados do Impé rio, para detectar e reprimir a “heresia”, isto é, qualquer opinião in compatível com o testemunho apostólico. Finalmente, sem dúvida um evangelho deveria conter o Evangelho. Evidentemente, havia entao em circulação numerosos documentos fragmentários, como continuariam a circular mais tarde (coleções de ditos, de milagres e, talvez, de pensamentos); contudo, estes não podiam ser indepen, dentes dos Evangelhos, que continham o kérygma. Ora, quando a Igreja começou a aplicar, conscientemente, es ses critérios, aconteceu que, ora um deles, ora outro, conquistava uma importância maior. A relação com um apóstolo original foi, claramente, um requisito de importância primária, mas não foi sempre possível provar isto tão rigorosamente como se desejava. E, paralelamente a tudo isso, vinha o critério adicional do uso: estava provado que o livro era útil? Já havia sido superado o exame do
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senso critico da tradição cristã? De fato, é possível que certos escri tos já tinham demonstrado que eram eminentemente úteis e genuí nos, antes que a prova da ligação com um apóstolo tivesse sido descoberta. Em alguns poucos casos, o critério da apostolicidade pode ser até racionalização post koc, mas em tais casos o communis sensus fidelium já tinha sido tao profundamente formado pela autêntica tradição que o seu imprimatur era, de fato, suficiente. Deve ser acrescentado, com toda a clareza, que, na antiguidade cristã, temos pelo menos um exemplo de um autor severamente pu nido por uma obra que, embora perfeitamente ortodoxa (de qual quer maneira, segundo os padrões daquele tempo), provou-se que era ficção. A história é narrada por Tertuliano em De Baptismo 17: um sacerdote da Ásia que admitiu ter escrito os Atos de Paulo (que compreendia os Atos de Paulo e Tecla) e foi deposto de seu oficio (provavelmente por causa da acusação de impingir ficção como se fosse história), Este episódio afasta a idéia de que a Igreja Primitiva nunca exerceu qualquer tipo de crítica histórica, mas que contava inteiramente com o próprio senso daquilo que era ortodoxo e edifi cante. O ingênuo sacerdote tinha feito aquilo de boa fé, querendo exaltar a honra do apóstolo; e tinha escrito anonimamente, não tentando usurpar a autoridade de outro. Quão mais severa (poderia se imaginar) teria sido a Igreja para com alguém que quisesse pas sar por apóstolo! Por outro lado, uma coisa é escrever ficção como se fosse história, e outra é comunicar um ensinamento valendo-se do nome de outra pessoa. Este segundo expediente representava uma técnica antiga e honrada e não escandalizava ninguém, a me nos que o ensinamento fosse comunicado com malévola intenção (cf. 2Ts 2,2; 3,17)24, ou fosse herético (cf. o caso do Evangelho de Pedro, abaixo, p. 218). Contudo, mesmo na esfera do ensino, se eles se satisfizessem com aquilo que tem sido chamado exatamente de racionalização post hoc, pode-se supor que não era consciente mente concebida como tal. A aceitação da Epístola aos Hebreus como paulina é um exemplo disto. No início, houve alguns no Oriente, e muitos no Ocidente, que duvidaram de tal dependência. O escrito, porém, era indispensável, era compatível com a doutrina 24. Contudo, a passagem de 2Ts 3,1? representa a pressão de circunstâncias perigosas: ao tempo das Pastorais, a situação pode ter sido bem diferente.
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paulina, e assim a opinião que prevalecia nas igrejas orientais foi aceita por fim: a Epístola aos Hebreus considerada um escrito paulino (MofFatt, I.L.N .T., 431). E deve ser lembrado que essa Epístola não foi aceita no cânon sem controvérsia. Ainda no início do III sé culo, Tertuliano (De Pud. 20) atribuiu a Epístola aos Hebreus a Barnabé e, embora ele preferisse esse livro ao Pastor de Hermas, não o considerava escritura sagrada (Gregory, Canon and Text, 222ss; cf., ainda, Moffatt, I.L.N .T, 437). Além do mais, deve ser lembrado que Hermas, o autor do po pular Pastort mesmo como mestre, não tentou escrever sob outro nome. E, além disso, é digno de nota que, no periodo pré-niceno, as falsificações eram relativamente raras e freqüentemente descober tas: “Ninguém, naquele tempo, fazia muito uso da maioria das fal sificações que, mais tarde, encontramos em grande quantidade” (R.M. Grant, “The Appeal to the Early Fathers” em J.T.S ., n9s 11, 1960, 23). Contudo, embora a Igreja Primitiva estivesse mais atenta com respeito às “falsificações” do que às vezes se supõe, temos de reco nhecer que o processo se deu num duplo sentido: de um lado, a co munidade viva estava, constantemente, sujeita ao controle e corre ção por intermédio da evidência autêntica, isto é, as testemunhas fundamentais, primeiro as abalizadas testemunhas oculares, e mais tarde o depósito escrito daquele testemunho; de outro lado, porém, os documentos que logo começaram a circular em quantidade con siderável estavam também, em alguma medida, sujeitos ao controle e correção da parte da comunidade viva, qualquer que fosse a sua origem, simplesmente porque, por aquele tempo, ela possuía em seu seio, ou entre os seus líderes, uma tradição suficientemente estabe lecida e uniforme para fazer dela um órgão coletivo de conservação da própria tradição. É possível observar a comunidade viva que exercia tal ação de controle nas epístolas joaninas, onde se recorre à tradição autêntica e antiga das testemunhas oculares, em contra posição às interpretações e afirmações dogmáticas de homens que se opunham à tese das epístolas. Algo semelhante é possível obser var nas Epístolas Pastorais, embora sem alusão às testemunhas oculares. Quanto mais se afasta das fontes originais de evidência (“O que era desde o principio”, lJo 1,1; etc.), mais precária se tor na a pretensão da Igreja de testar a evidência, baseando-se unica
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mente em seu próprio direito de fazê-los. Entretanto, nâo existia outra possibilidade até que se constituiu um corpo reconhecido de documentos autênticos; e, de fato, é assim que vemos a Igreja pro cedendo, antes que se formasse o cânon das escrituras cristãs. É certo que as afirmações dos documentos foram controladas, até aquele momento, por aquela tradição de ortodoxia geralmente di fundida através da vida e do culto das comunidades.23 Aquela tra dição, por sua vez, estava sujeita ao controle das testemunhas ocu lares apostólicas enquanto os apóstolos vivessem; e antes que o úl timo morresse, como já vimos, já existiam, pelo menos, alguns do cumentos apostólicos validamente atestados. Neste ponto, vale a pena recordar a distinção proposta por K. Aland26 entre um periodo mais antigo (por volta do ano 150) e um mais recente. No periodo mais antigo, a inspiração profética era re conhecida, e um mestre podia levantar-se e falar numa assembléia cristã em nome do Espírito Santo e em nome de um grande líder apostólico e era ouvido. Este é o modo, segundo Aland, como al guns escritos, que hoje somos tentados a chamar de pseudonímicos, vieram a ser francamente aceitos: eles eram constituídos de de clarações bona fide de pessoas antigamente conhecidas (embora agora anônimas), as quais falavam em nome de personagens apos tólicas. Contudo, quando a inspiração entrou em declínio, e quan do a Igreja se deu conta da sua existência num tempo distante da quele dos apóstolos, começaram a ser postos em prática critérios de autoridade do tipo mais literário e, contemporaneamente, tam bém teve continuidade a aplicação de deliberadas falsificações.27 Todos os documentos extracanônicos que se apresentam como “evangelhos”, ao menos na sua forma atual, são de natureza sus peita. Os dois descobertos mais recentemente (o Evangelho da Ver 25. E muito importante, neste ponto, é o fato de que os escritos gnósticos, como o Evangelho da Verdade, estão agora à nossa disposição para demonstrar que espécie de critérios doutrinários a Igreja deve ter usado para exclui-los. Cf. W.C. VAN UNNIK, Openbaringen uit Egyptisck Zand, 1958. Notar, além disso, que a inclusão do corpus paulino e a exclusão de escritos como a carta de Clemen te demonstram que a Igreja não tinha perdido seu apreço pela posição paulína. 26. K. ALAND, “The Problem of Anonimity and Pseudonimity in Christian Literature of the First Two Centuries” in J.T.S., nçs., 12, 1961, lss. 27. Há um ensaio bem documentado sobre o tema da “pseudepígrafe epistolar” em D.GUTHRIE, New Testament Introduction: the Pauline Epistles, 1961, 282ss.
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dade, de provável proveniência valentiniana, e o Evangelho de To mé) certamente devem ter sido rejeitados por causa de seu conteú do, mesmo que, por outras razoes, se apresentassem com notáveis pretensões. De fato, nenhum dos dois é um evangelho no sentido de conter o kérygma, e o Evangelho da Verdade tampouco revela qualquer semelhança com a autoridade apostólica. Não existe ma terial extracanônico do tipo evangélico que não seja, de algum mo do, suspeito (quando é possível fazer algum teste), seja quanto à sua autenticidade, seja quanto á sua ortodoxia: muitos dos frag mentos descobertos são, em algum sentido, de tendência “gnósti ca”.28 O exemplo típico da aplicação do teste de ortodoxia contra a pre tensa apostoücidade é a história de Serapião, bispo de Antioquia, por volta do ano 200, citada por Eusébio (Hist, Ecci 6,12). O grego desta passagem não é absolutamente claro, mas o certo é que Serapião, sem lê-lo, tinha aprovado o uso de um escrito denomina do Evangelho de Pedro na comunidade cristã de Rosso (pequena cidade da Cilicia). Em seguida, ele descobriu (não se sabe, dada a obscuridade do texto, se de primeira mão) que, enquanto a maior parte deste Evangelho estava “de acordo com o verdadeiro ensina mento do Senhor”, havia acréscimos heréticos que, aparentemente, tinham sido usados por mestres heréticos para desviar os cristãos de Rosso. Então, ele os previne contra tais acréscimos, visto que, disse Serapião, “nós recebemos não só Pedro, mas também os ou tros apóstolos como Cristo” (cf. Mt 10,40; G1 4,14; lClem 12,1), “os escritos que falsamente portam seus nomes nós rejeitamos, como homens experimentados, sabendo que não foram estes que nos foram transmitidos”. O tratado de Serapião, do qual Eusébio recolhe a citação, era intitulado peri tôu legoménoi katá Pétron euangueliou (“com respeito ao assim intitulado Evangelho segundo Pedro”), e parece evidente que o fundamento para esta observação (“assim intitulado”) estava unicamente em seu caráter herético, não em alguma investigação com respeito à sua origem. O fragmento deste mesmo Evangelho que foi descoberto por Akhmim no inver no de 1886-87 confirma a justeza do julgamento de Serapião: se é 28. Cf. p. ex., J. JEREMIAS, Unbekkante Jesuswort, 1948; B. GÀRTNER The Theology of the Gospel of Thomas (trad. inglesa, 1961); E. HAENCHEN, Die Botschaft des Thomasevangeliums, 1961.
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impossível demonstrar que é rigorosamente docético ou, ao contrá rio, herético, pelo menos suas extravagâncias revelam-no espúrio e em direção às fantasias heréticas. Nele se respira uma atmosfera totalmente diferente daquela dos evangelhos canônicos.29 Assim, aos primeiros tempos em que a Igreja foi formada e controlada pelos dados fornecidos por todas as testemunhas ocula res, e especialmente os Doze, seguiu-se um breve período no qual esses dados se tornaram um patrimônio inalienável da vida e do pensamento dos líderes da Igreja, em que eles se recusaram auto maticamente a assimilar em seu sistema aquilo que era contrário, quanto à tendência doutrinária, aos padrões já considerados orto doxos. Este breve período de transição, compreendido entre a fase originária, em que provavelmente prevaleceu o controle direto das testemunhas oculares, e a fase posterior, em que mesmo aquilo que se reivindicava como testemunho apostólico era submetido ao teste doutrinário, pode ser talvez ilustrado por algumas partes das Epís tolas Pastorais. Estas revelam uma clara consciência da “ortodo xia” e, embora as “palavras fiéis” citadas nas Pastorais não sejam ditos de Jesus e não representem, em qualquer sentido, um “câ non”, a frase em si demonstra a existência de um instinto para a classificação em verdadeiro e falso.30 Além do mais, é dada uma grande preponderância nessas cartas à necessidade de transmitir fielmente o ensinamento apostólico: este é um depósito precioso que Deus confiou ao apóstolo e, através deste, ao discípulo eleito, que, por sua vez, deve transmiti-lo a homens cuidadosamente esco lhidos. A “forma da doutrina” (typos didachês) de Rm 6,17 e as “tradições” (paradóseis) de 2Ts 2,15 e 3,6 (cf. lTs 4,ls) seguem seu caminho, passando pelo estágio de “sumário” ou de “síntese” (hypotyposis) das “ sãs palavras” (2Tm 1,13) e do “depósito” ou parathéke (lTm 6,20; 2Tm 1,12.14; cf. 2,2), para dentrodo“câ non” dos escritos sancionados. É difícil datar com precisão quando toda a Igreja reconheceu os quatro Evangelhos como os únicos autênticos. Há uma evidên cia fragmentária de que eles circularam independentemente um do outro durante um período bem longo depois de seu primeiro apare 29. Cf. C. Maurer em HENNECKE, o.c„ (n. 8), 119s. 30. Cf. o Excurso III: Pistós ho lôgos.
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cimento. Assim, a julgar pela história textual dos manuscritos de Marcos, este foi, sem dúvida, o Evangelho mais excessivamente corrigido pelos escribas; o que provavelmente signifique que ele teve uma história de circulação independente mais longa do que a dos outros.31 Na verdade, há indícios que fazem pensar em Marcos como o primeiro Evangelho reconhecido como portador de autori dade canônica, a despeito de tradições posteriores que colocaram Mateus em primeiro lugar;32 e, se isto é verdadeiro, então é prová vel que tenha circulado independentemente dos outros. Contudo, logo que Mateus conquistou o primeiro lugar em popularidade, pode-se presumir, por razões semelhantes às de Marcos, que ele foi freqüentemente copiado sozinho (embora, como já foi sugerido, te nha sido copiado separadamente com menos freqüência que Mar cos). Por isso, “para a igreja siríaca, o Evangelho (escrito) conti nuou a ser, por muito tempo, o de Mateus, exatamente como tinha sido em qualquer outro lugar”.33 Quanto a Lucas e João, existe uma forte probabilidade, a prio ri, de que ambos tenham circulado, durante algum tempo, entre pessoas particularmente, ou entre grupos, para os quais lhes foram escritos primeiramente. Muitas das ressonâncias evangélicas nas epístolas parecem ser provenientes exclusivamente de Lucas, o que, talvez, sugira que Lucas foi o único dos Evangelhos usado no círculo paulino; e, R.G. Heard, num artigo publicado postumamen te,34 prova, com base num estudo comparado dos chamados “anti gos prólogos dos evangelhos”, que o prólogo de Lucas circulava in dependentemente, ainda, no quarto século. Quanto a João, é maté ria bem conhecida em discussões se realmente Justino Mártir (cer ca do ano 150) o conhecia.” Há um eco de um dito que conhece 31. Cf. G.D. KILPATRICK, The Transmission ó f the New Testament and its Reliability, 1957, 96; notar ainda (com S.E. JOHNSON , Mark, 1960, 30) o interessante caso do Marcos solitário na Biblioteca da Universidade de Chicago (Chicago MS. 972 = códice por H.R. WILLOUGHBY em Munera Studíosa, 1946, 127ss e R.P. CASEY em Journal o f Relígion 27, 1947, 148s. 32. F.C. GRANT, The Gospels, 1957, 64ss. 33. B.W. BACON, Introduction to the New Testament, 1900, 38. 34. R.G. HEARD, J.T.S., n?s.,6, 1955, 3. 35. Sobre as fontes usadas por Justino, cf. W. BOUSSET, Die Evangeliencitate Justins, 1891; J.M. HEER, Ròmische Quartalschrift 28, 1914, 97ss; E.R. BUCKLEY, J.T.S. 37, 1935, 173ss; A. BAUMSTARK, Bíblica 16, 1935, 292ss; B.F. WESTCOTT, A General Survey o f the History o f the Canon of the
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mos como joanino (“se não nasceres de novo, certamente não entrarás no Reino dos céus”) em Apol. 1,61, mas se Justino conhecia o Quarto Evangelho, este não influenciou sua teologia. Por outro lado, ele cita um dito “ Q” (“Tudo me foi entregue . . Mt 11,27; Lc 10,22) com a fórmula en tô euanguelío guépraptai, “está escrito no Evangelho” (Dial. 100). Algum tempo antes (cerca do ano 130?) a Epístola de Barnabé (4,14) havia usado guégraptai, “está escrito”, para introduzir um dito conhecido por nós como de Mateus (“muitos são chamados, mas poucos escolhidos”). Contudo, deve ser admitido que guégrap tai não implica, necessariamente, o conceito de escrituras autoriza das; e Kõster (o.c., p. 185 /cf. n.13/, 126) contesta que se possa demonstrar a origem exclusivamente em Mateus deste dito. No en tanto, o ponto que interessa é que temos aqui suficientes indícios para nos fazer crer que houve um período durante o qual os quatro Evangelhos existiram separadamente e foram usados, provavel mente, apenas em regiões circunscritas. Todavia, se houve um tempo em que uma dada comunidade ou região reconhecia apenas um ou dois Evangelhos escritos, chegou o tempo em que todos os quatro receberam igual reconhecimento. Cullmann36 sustenta que houve dois motivos opostos que justifi cam um cânon quádruplo: (1) a convicção de que nenhum Evange lho apresentou o testemunho mais completo possível acerca do En carnado; (2) o desejo de cada evangelista de compor um único Evangelho que incluísse o testemunho de seus predecessores. O re sultado foi uma redução, embora não uma redução a um Evange lho apenas. Para recapitular a argumentação de Cullmann do New Testament, I87S, 4* ed., 166, n. 1 cita como passagens principais: Jo 3,5-8 em Apol. 1,61; Jo 1,13 em Dial. 63, Jo 1,12 cm Dial. 123; Jo 12,49 em Dial. 56; Jo 7,12 em Dial. 69. Destas, Jo 1,12-13; 7,12 ecoam fracamente e 12,49 parece ser citado por Westcott por engano (talvez 5,19?). J.N. SANDERS, The Fouríh Gospel in the Early Ckurch, 1943, examina um número bem grande de passagens, concluindo (p. 31): “A conclusão mais razoável que surge do exame dessas passa gens . . que parece revelar traços da influência do Quarto Evangelho, parece ser que certas passagens podem ser explicadas mais naturalmente como reminiscências do Quarto Evangelho, enquanto sâo poucas (talvez nenhuma) que podem, com certeza, ser consideradas dependentes dele”. 36. “ Die Pluralitat der Evangelien ais theologisches Problem im Altertum” in Th. Zeitschr. I, 1945, 21ss.
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modo mais sucinto, pode-se dizer que, em vista do fluxo de escritos claramente gnósticos e falsos, era natural que se tratasse de conser var todos aqueles poucos que eram autenticamente apostólicos. Depois (diferente da atitude do período anterior) surgiu o desejo de preferir um dentre os outros. O caso de Marcião é a tentativa mais notável. Não obstante, a tendência de fundir o todo em um só Evangelho ou de escolher um em detrimento dos outros é docética: o discernimento genuinamente histórico é reconhecer uma plurali dade no testemunho humano. O próprio Irineu, quando pretende que o número quatro represente uma escolha divina e não hum ana, realmente se move na mesma (incorreta) direção que o docetismo. Ele teria visto que o escândalo da diversidade humana devia ser aceito como tal! A Igreja Primitiva estava certa quando aceitou tudo o que era julgado verdadeiramente apostólico, e viu que o úni co evento divino vinha mediante a diversidade humana (o próprio cânon muratoriano não está longe de tal reconhecimento quando diz: “ .. . embora várias idéias sejam ensinadas nos diversos livros dos Evangelhos, isso não importa para a fé dos crentes, visto que por um Espirito soberano todas as coisas são declaradas em todos eles . . contudo, no parágrafo precedente, a idéia de um único e supremo Evangelho apareceu quando se recordou a legenda segun do a qual foi revelado a André que João havia escrito todas as coi sas em seu próprio nome). Foi provavelmente da metade do II sé culo que se tornou normal usar a frase “o Evangelho segundo M a teus” etc. (que reflete a exatidão das recentes descobertas da crítica da forma sobre o único kérygma repetido em diferentes maneiras). Quanto aos quatro Evangelhos reunidos, o nosso testemunho mais antigo é aquele dos papiros de Chester Beatty e Siriaco Sinaitico, que nos fazem retroceder ao ano 250 ou mais cedo ainda. Contudo, o Evangelho de Pedro, cujo fragmento já mencionado mostra sinais do uso de todos os quatro Evangelhos, não pode ser posterior ao ano 150, visto que era bem conhecido em Rosso, quando Serapião o encontrou. E o famoso Diatessaron de Taciano, isto é, a síntese dos quatro em um único Evangelho, indica-nos uma data semelhante para o reconhecimento comum de, pelo menos, to dos os nossos quatro Evangelhos (mesmo que haja traços vagos de um quinto Evangelho, ou de uma tradição independente em sua
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síntese, a menos que sejam devidos simplesmente ao uso de um tex to diferente).37 Por volta do ano 185, Irineu proclama que é tão inevitável que haja quatro Evangelhos quanto que haja quatro ventos e quatro cantos da terra. Se isto é polêmico, como bem pode ser, o objetivo de seu ataque é, provavelmente, uma opinião herética: de fato, não há indicio pelo qual se possa pensar que, em qualquer parte consi derável da Igreja ortodoxa, se negaria semelhante afirmação. De pois de Irineu, vem Clemente de Alexandria e, em seguida, temos numerosas provas que confirmam o reconhecimento geral dos qua tro Evangelhos apenas. No entanto, deve-se notar que até esta data (metade do II século) há poucos indícios a esse respeito. Hermas, Visões 3,13, perde uma oportunidade de ouro de mencionar os quatro Evangelhos (a menos que, na verdade, se possa crer que as quatro pernas do banco simbolizem os Evangelhos38), e é assunto muito controvertido se o reconhecimento dos Evangelhos canôni cos pode ser encontrado, em geral, nos Padres Apostólicos. Toda via, pelo menos pode-se afirmar, com segurança, que o cânon dos quatro primeiros livros do Novo Testamento está bem firmado an tes que fossem formuladas as primeiras listas oficiais dos livros re conhecidos. Além do mais, deve-se recordar que (a julgar pela ati tude de Justino) os Evangelhos geralmente (não importa quantos) tenderam a ter mais influência, enquanto “reminiscências” dos apóstolos, apomnemonêumata ,39 do que os outros escritos. Antes 37. Cf. B.M. METZGER, art. “Evangelienharmonie" in R.G.G. Taciano era discípulo de Justino. Até agora, apenas um diminuto fragmento em grego do seu Diatessaron foi descoberto (publicado por C.H. Kraeling, 1935). Por outro lado, nossas fontes são, para o Oriente, o comentário de Efraim ao Diatessaron (cerca do ano 360) em tradução armênia; traduções árabes da Siríaca; algumas versões posteriores e citações esparsas nos Padres da Igreja Armênia e Siriaca. Para o Ocidente, a harmonia, com texto da Vulgata, no Codex Fuldensis (antes de 546); versões posteriores; citações esparsas. Há adições apócrifas e o material canônico è, ocasionalmente, colorido com referências ascéticas. São esses fenômenos que G. MESSINA, s.j., Diatessaron Persiano, 1951, e outros estão tentando explicar. Cf. uma interessante discussão em H.W. MONTEFIORE e H.E.W. TURNER, Thomas and the Evangelists, 1962. Jerônímo ( Espistola 121,6,15) faz alusão a uma obra semelhante de Teófilo de Antioquia, mas não temos nenhum outro indi cio desta. 38. Opinião fortemente contestada por H. KÓSTER, Synoptische Überlie/erung bei den apostolischen Vàterh, 1957, 254. 39. Cf. R.G. HEARD, “The apomnemonêumata in Papias, Justin, and Irinaeus” inJ.N.T.S. 1.2, novembro de 1954,122ss, com alguma discussão do signi-
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de Justino, Inácio tinha afirmado que ele encontrou refúgio no Evangelho como na própria carne de Jesus, e nos apóstolos como no presbitério da Igreja (Philad. 5,1). Contudo, a margem de tem po entre esta alusão a um único Evangelho circulante sozinho e o bem estabelecido quaterno do cânon evangélico parece ser exí gua.40 Parece, inusitadamente, como se alguma coisa com que não estamos familiarizados agisse como um rápido incentivo para for mar a coleção. Isto nos leva a Marcião. Será que aquele heresiarca extrema mente fascinante encontrou quatro Evangelhos já “canonizados” justamente por volta do ano 140 e, deliberadamente, eliminou M a teus, Marcos e João (bem como partes de Lucas que lhe eram ina ceitáveis)? Ou, ao contrário, foi a Igreja católica, depois de ter visto o desastre que Marcião provocou com seu uso unilateral dos docu mentos, que formou os quatro Evangelhos para restabelecer o equilíbrio e formar uma harmonia quádrupla? Trata-se do mesmo problema que encontramos por todo o cânon do Novo Testamen to: o cânon de Marcião foi o primeiro e o cânon ortodoxo é apenas a subseqüente resposta da Igreja católica? Ou Marcião tratou le vianamente um cânon já existente? No presente, não temos ne nhum indicio absolutamente conclusivo que indique a existência de um cânon pré-marcionita em uso na Igreja católica. Marcião pode ter exercido uma função catalítica, como sugerimos acima, mas não estamos certos. Igualmente pouco determinante é a argumentação baseada nos famosos prólogos evangélicos.41 Estes devem ser distinguidos dos breves prólogos descritivos das Epístolas, os quais, a partir das bri lhantes observações de De Bruyne, são considerados como tendo origem com o próprio Marcião. Ao contrário, De Bruyne sustenta ficado do termo e do artigo de Heard feita por N. HYLDAHL, “Hegesipps Hypomnemata” in Studia Theotogica, 14, 1960, 70ss. Entre os escritores menos re centes, notar E. LIPPELT, Quae fuerint Justini M. apomnemonêumata, 1901. 40. Pode haver algo a ser aprendido do paralelismo e do contraste oferecidos pela convergência e fusão dos vários relatos do “Evangelho” de Israel (a história do êxodo e do pacto) no âmbito do Pentateuco. 41. Cf. D. De BRUYNE, “Prologues bibliques d’origine marcionite” in Revue Bénédictine 24, 1907, lss; “Les Plus Anciens Prologues latins des évangiles”, ibid. 40, 1928, 193ss; também a sinopse citada no n’ 12; W.F. HOWARD, E.T. 47, 1936, 535 ss; R.M. GRA NT, “The Oldest Gospel Prologues” in Ang. Theol. Rev. 23, 1941, 231ss.
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que os mais antigos prólogos do Evangelho eram de natureza antimarcionita. Contudo, R.G. Heard42 questionou essa conclusão, pelo menos no que diz respeito ao prólogo de Lucas, que, segundo ele, é independente dos prólogos de Marcos e João (falta o de Ma teus)43 e não contém material antimarcionita. Assim, uma vez mais, é difícil lançar luz sobre a relação entre o cânon e o heresiarca. Contudo, neste ínterim, que aconteceu com as epístolas e os ou tros escritos? Um dos problemas mais evasivos na história do câ non do Novo Testamento diz respeito à origem da coleção de car tas paulinas, isto é, o corpus paulino. Desde o princípio, ele não es tava completo: alguns escritos paulinos já tinham sido perdidos (ou, de qualquer modo, omitidos). Em ICor 5,10, se faz referência a uma carta antecedente, da qual, no máximo, se pode identificar um fragmento em 2Cor 6,14-7,1; em 2Cor 7,8, se faz alusão a uma carta severa que, embora seja concebível que se refira à primeira carta aos Coríntios, mais provavelmente se identifique ou com 2Cor lOss ou com uma carta totalmente perdida; em Cl 4,16, se faz menção a uma carta “de Laodicéia”, que evidentemente é alu são a uma carta de Paulo que de Laodicéia devia ser enviada a Co lossos, em troca daquela que os colossenses haviam recebido. Esta carta aos de Laodicéia, ou se perdeu também totalmente, ou deve ser identificada com a que conhecemos agora como aos “Efésios” (ou, como sugere E J . Goodspeed, com “Filemon”)-44 Inversamen te, não é possível demonstrar que algumas das cartas finalmente in cluídas no cânon como paulinas não são escritas por Paulo. A Epístola aos Hebreus, embora eventualmente incluída no cânon paulino, foi considerada como não paulina por diversos escritores da antiguidade (cf. p. 215 acima), e até hoje esta é a opinião geral. 42. R.G. HEARD, “The Old Gospel Prologues” in n’s„ 6, 1955, e também a bibliografia citada ali. 43. Os “Prólogos Monarquianistas” (para a descrição e referências a eles, cf. F.J. FOAKES-JACKSON e K. LAKE, The Beginnings o f Christianity, II, 1922, 242ss), que incluem Mateus, não devem ser confundidos com aqueles antigos antimarcionistas. 44. E.J. GOODSPEED, New Solutions to New Testament Problems, 1927; The Meaning ofEphesians, 1933; The K ey to Ephesians, 1956. Quanto às teorias que distinguem mais de uma carta em Filipenses, cf. F.W. BEARE, Philippians, 1959; B.D. RA HTJEN , “The Three Letters of Paul to the Philippians” in J.N.T .S. 6.2, janeiro de 1960, 167ss, que recebeu réplica de B.S. MACKAY, “Further thoughts on Philippians” in J.N.T.S. 7.2, janeiro de 1961, 161 ss. K
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E muitos especialistas consideram as Epístolas Pastorais, pelo me nos em parte, como pós-paulinas, enquanto nutrem suspeitas mais ou menos fortes com respeito a outras epístolas, especialmente a segunda aos Tessalonicenses e Efésios. Portanto, enquanto algu mas cartas foram irremediavelmente perdidas, outros escritos, pro venientes talvez mais dos círculos paulinos que do próprio Paulo, podem ter sido finalmente reunidos. Constituía tradição profunda mente enraizada em círculos judaicos que certos gêneros literários deveriam aparecer, naturalmente, sob o nome dos autores que eram seus representantes mais ilustres: a Lei era de Moisés, a Sabe doria de Salomão e os Salmos, principalmente, de Davi.45 E, segun do a classificação de K. Aland, pelo menos durante o “período an tigo”, esta prática pode ter sido válida também para os cristãos. Contudo, o problema ainda permanece: quem ou que estimulou, em primeiro lugar, a formação de uma coleção de cartas paulinas? Como aconteceu com os quatro Evangelhos, também com res peito às cartas paulinas sabemos que elas existiram separadamente antes de serem recolhidas numa única coleção. Não apenas isso, mas também há uma certa evidência na tradição dos manuscritos, semelhante àquela que havíamos observado acima quanto aos Evangelhos, segundo a qual elas realmente circularam, durante al gum tempo, separadamente (e isto, note-se, se aplica a Ef l).46 E o aparecimento da coleção pode ser, plausivelmente, colocado dentro de um período razoavelmente curto. Incontestavelmente, não te mos dados suficientes para estarmos certos disso: dai, a palavra “plausivelmente”. Contudo, o fato é que o livro dos Atos não reve la traços de um conhecimento das cartas paulinas, ao passo que a primeira carta de Clemente (geralmente datada por volta do ano 95) o revela, e daí em diante há muitos ecos para demonstrar que elas, pelo menos, começavam a ser conhecidas. No entanto, mesmo assim, não se pode dizer que uma prova válida para demonstrar o conhecimento de uma ou duas cartas paulinas possa servir para atestar a existência de uma coleção, de um corpus; e, como para os Evangelhos, também para o corpus paulino, Marcião é realmente o 45. Cf. L.H. BROCKINGTON, “The Problem of Pseudonymity” in J.T.S., nçs., 4, 1953, 15ss. 46. Cf. uma interessante nota no comentário aos Efésios de F.W. BEARE, The Interpreteis Bible X, 1953, 601.
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importante marco miliárío. Através de Tertuliano, sabemos que o heresiarca usou uma coleção de cartas paulinas: foi, então, ele quem de fato a criou? Duas coisas particularmente interessantes aprendemos de Ter tuliano acerca do Apostolicon, ou coleção dos escritos paulinos de Marcião: em primeiro lugar, que ele conhecia a nossa Epístola aos Efésios como “carta aos laodicenses”; e, em segundo lugar, que a sua coleção continha as seguintes epístolas (provavelmente nesta ordem): Gàlatas, primeira e segunda aos Coríntios, Romanos, pri meira e segunda aos Tessalonicenses, Laodicenses, Colossenses, Filemon e Filipenses; isto é, Marcião usou as nove grandes epísto las paulinas (e Filemon). Que podemos aprender comparando essa ordem com a de ou tras listas conhecidas? A mais conhecida é a do cânon m uratoriano (Stevenson, n9 124), do fim do II século, cujo elenco é este: Corín tios, Efésios, Filipenses, Colossenses, Gálatas, Tessalonicenses, Romanos (nesta ordem) e também (embora não necessariamente nesta ordem) Filemon, Tito e primeira e segunda a Timóteo. Neste ponto, o cânon muratoriano faz uma digressão para mencionar também as cartas aos laodicenses e aos alexandrinos, que, como se afirma, foram falsamente atribuídas a Paulo ad heresem Marcionis, “em conexão com a heresia de Marcião”. J. Knox47 levantou uma brilhante hipótese que estabelece entre as duas listas uma relação em dois momentos: a) Marcião, que usava uma coleção já existen te, tendo Efésios em primeiro lugar, mudou a ordem de Efésios (Laodicenses) e Gálatas, de modo a colocar Gálatas no princípio, porque esta era uma epístola especialmente importante para seus propósitos doutrinários; b) Supondo que as epístolas da lista já existente estavam contidas provavelmente em dois rolos de compri mento aproximadamente igual,48 pode-se imaginar então que as 47. J. KNOX, Marcion and the New Testament, 1942. 48. E.H. BROWNLEE, numa conferência apresentada ao Congresso dos Orientalistas (1960, cf. seu The Meaning o f the Qumran S cro llsfo r Bible and Religion, 1962), disse: “O intervalo existente entre os capítulos 33 e 34 no rolo com pleto de Traias (IQ isa*), ao lado das particularidades ortográficas de cada uma das metades, indica a prática de dividir o livro de Isaias em dois rolos: um com os capítulos 1-33 e outro com os capitulos 34-46 . . . A prática antiga de dividir o li vro é abordada por H.St. John THACKERAY em suas “Schweich Lectures”, de 1920 yin T he Septuagint and Jewish Worship, apêndice 4,p p. 130-136. Isto era
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epístolas mais longas, Romanos e Coríntios, provavelmente foram colocadas uma em cada rolo. Este processo podia fazer com que um rolo contivesse Efésios e Coríntios, enquanto o outro todo o resto. E se se divide o cânon muratoriano em duas secções, com base neste princípio, e depois se inverte a sua ordem, obtém-se exa tamente a disposição de Marcião (salvo a transposição de Efésios e Gálatas). Não é possível, então, que essas duas listas sejam o resul tado de se dispor os dois rolos em sentido contrário? Embora seja uma hipótese altamente engenhosa, isto, como admite em primeiro lugar o próprio autor, não passa de uma hipótese. E, como já foi observado (p. 207 acima), não está, de maneira nenhum a, claro que os escritos elencados no cânon muratoriano fossem escritos em rolos e não em códices, caso em que a teoria de Knox ficaria insus tentável. Se negarmos o alcance dessa teoria, não teremos alternati va que explique a relação entre a lista herética e aquela (provavel mente) ortodoxa; e, neste caso, não saberemos ainda quem veio primeiro, se primeiro Marcião constituiu o seu Apostolicon e depois a Igreja ortodoxa decidiu compilar o seu próprio elenco, ou se Mar cião manipulou uma lista já existente.49 A situação aqui é a mesma dos Evangelhos. Fez-se uma outra tentativa altamente engenhosa de encontrar um indivíduo ao qual se atribuísse a formação da coleção paulina; trata-se da teoria de E.J. Goodspeed (cf. n. 44 deste capitulo) acer ca de Efésios. Levando a sério, como todo estudioso competente deve fazê-lo a estreita relação entre Efésios e Colossenses e, ao mesmo tempo, as notáveis diferenças que as distinguem, e conven cido de que Efésios não era uma epístola paulina, Goodspeed che gou à conclusão que tal carta devia ser obra de um estudioso e ad mirador das epístolas paulinas, o qual conhecia particularmente feito às vezes, pela conveniência de manuseio, quando se tratava de volumes grossos. Alguns dos melhores livros da antiguidade eram compostos assim, a fim de produzir uma natural divisão literária exatamente na metade da obra .. . Toda metade do rolo consistia de vinte e sete colunas e o ponto de divisão se situava en tre duas folhas de velo, isso se essas não fossem cosidas juntamente, as duas meta des poderiam circular mais facilmente como dois rolos separados. Um espaço de dimensão única era deixado no fim da coluna de número 27 e assinalava a divisão dos dois volumes”. 49. Cf. uma discussão deste problema em E.C. BLA CK MAN , Marcion a his ínfluence, 1948, capitulo 2.
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bem Colossenses, como também todas as outras, das quais indica ressonâncias. Quem podia ser essa pessoa e o que a induziu a co nhecer todo o corpus paulino? Nâo poderia dar-se que a leitura do livro dos Atos havia conduzido esta pessoa a visitar os centros paulinos à procura das cartas do apóstolo? Sabe-se bem que o livro dos Atos nao revela praticamente nenhum indicio de conhecimento das epístolas paulinas, enquanto em Efésios (supondo que nâo seja de autoria do apóstolo) temos o primeiro escrito que reflete tal co nhecimento e, a partir dessa carta, freqüentemente se encontram os indicios desse conhecimento. Além do mais, parece que nesta épo ca estava em prática o costume de se publicar coleções de cartas, como testemunham as sete cartas do Apocalipse e as sete cartas de Inácio (notar que o próprio corpus paulino pode ser considerado como sétuplo com o acréscimo de um: Romanos, Cormtios, Gála tas, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses (Filemon), isto é, seis mais Efésios. Não é necessário discorrer aqui sobre a teoria de Goodspeed segundo a qual Filemon é considerada como a carta a “Laodicéia”. O que nos interessa neste momento é que, segundo essa hipótese, Efésios seria, por assim dizer, a epístola que funcio nava como capa da coleção. Em vez de escrever uma introdução sob o seu próprio nome, como faria um editor moderno, este discí pulo e admirador escreve uma brilhante recapitulação da mensagem paulina, ocultando modestamente a sua identidade por meio de uma técnica habitual daquele tempo de escrever como se fosse o próprio apóstolo. E quem era ele? Se se fosse arriscar uma identifi cação, Goodspeed (aqui, fundamentado em Knox)50 sugeriria Onésimo. Quem poderia ter um conhecimento mais íntimo de Colossen ses (e Filemon) do que o escravo, cujo futuro dependia inteiramente do êxito dessas cartas? E quem estava relacionado tão naturalmen te com Éfeso como Onésimo que (de acordo com a carta de Inácio àquela cidade), mais tarde, foi bispo daquela igreja? Esta solução do problema de Efésios (para um completo tratamento do qual o leitor deve ser remetido às obras de introdução e exegese) apresenta muitas dificuldades de ordem secundária, mas o maior obstáculo é representado pela posição de Efésios nas várias listas das epístolas. Nenhuma, de fato, a coloca no primeiro ou no último lugar (as úní50. J. KNO X, Philemon am ong the Letters o f Paul, 1959, 2* ed., especial mente o capitulo 5.
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cas posições que parecem ser apropriadas para ela na teoria de Goodspeed quanto à sua origem e função). Só se aceitarmos a bri lhante hipótese de Knox sobre a ordem original, tanto do elenco de Marcião como do de Muratori, é que Efésios pode ser colocada na primeira posição. Se abandonarmos a idéia de que a coleção de cartas paulinas tenha sido obra de um indivíduo, seja Onésimo ou Marcião, então só nos resta a velha e venerada alternativa baseada no critério de um lento e anônimo processo de agregação ou, como se costuma dizer, na teoria da “bola de neve”. Temos de supor que o intercâm bio entre vários centros paulinos conduziu, gradualmente, a uma troca de cópias de cartas até que, num dado centro, se reuniram não só as cartas enviadas originalmente a ele, mas também cópias de outras cartas recolhidas de outras igrejas paulinas. Assim, em cada centro, haveria pequenas coleções de cartas e, gradualmente, estas entrariam em larga circulação e aumentariam, até que atingis sem o número que conhecemos hoje. Então, tudo que restava para se fazer era produzir uma cuidadosa “edição” de todo o corpus. Semelhante teoria ignora o papel desempenhado pelo livro dos Atos, como catalizador, e também depende muito da suposição de um novo interesse por Paulo, existente entre sua morte e a aceita ção definitiva de suas cartas. Na verdade, não temos prova nenhu ma de que Paulo tenha dominado o mundo cristão daquele tempo como ele, de fato, dominou (ao menos a maior parte) depois que suas cartas foram incluídas no cânon das escrituras. Para citar só um exemplo, basta recordar que Papias, embora fosse amigo de Policarpo, não revela nenhuma evidência do uso dos escritos pauli nos.31 Contudo, mesmo assim, é difícil crer que, pelo menos as igre jas fundadas pelo próprio Paulo não tenham conservado sua me mória (cf. IClem. 47,1: “Começai a estudar a epístola do abençoa do apóstolo Paulo”, aludindo que os coríntios conservavam pelo menos uma carta), e que isto era o quanto bastava para dar inicio a um processo de gradual agregação. As comunicações entre os vá 51. Cf., e. g., B.F. WESTCOTT, A General Survey o f the History of the C non o f the New Testament, 1875,4* ed., 77s (que atribui o silêncio ás simpatias ju daicas de Papias). Deve ser lembrado, contudo, que a obra de Papias sobrevive so mente em fragmentos esparsos, pelo que o seu silêncio não pode ter muito signifi cado.
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rios centros eram muito boas, e por isso não é difícil imaginar que tenham havido trocas e transcrições de documentos. Além do mais, contra a teoria de Goodspeed, deve ser lembrado que no livro dos Atos não se menciona a atividade de Paulo como escritor, apesar de sua menção de outras cartas (cf. Atos 15,23-29; 18,27; 23,2530; 28,21). Na melhor das hipóteses, então, o livro dos Atos pode apenas fornecer o impulso inicial no sentido de que ele relata a ati vidade de Paulo como o fundador de várias igrejas locais. Na ver dade, as igrejas em questão não precisavam desse livro para informá-las a respeito. Deste modo, embora as teorias baseadas na obra de um único colecionador sejam muito atraentes, elas são altamente especulati vas, e a hipótese de um procedimento anônimo e gradual não pode, absolutamente, ser excluída. Contudo, se se devesse sugerir o nome de um outro indivíduo, não se poderia apontar o do próprio Lucas? Recordamos há pouco que o livro dos Atos não fornece aos seus leitores nenhuma informação sobre as cartas paulinas; mas não po deria ser que, depois da redação do livro dos Atos e depois da mor te de Paulo, o próprio Lucas (que devia ter conhecimento das car tas, embora não as mencione) começasse a visitar de novo os cen tros paulinos que ele havia descrito e a procurar ali as cartas? Nin guém conhecia melhor do que ele o fato de que elas foram escritas. Está inteiramente de acordo com o seu temperamento de historia dor colecioná-las.32 E, no que respeita ao vocabulário, conteúdo e perspectiva geral, o notável vínculo entre as Epístolas Pastorais e Lucas-Atos torna plausível a hipótese de que Lucas tenha sido o colecionador, editor e ampliador do corpus paulino.33 Quanto à questão da existência ou não das Pastorais ao tempo de Marcião, é ainda hoje matéria de controvérsia. Quanto à natureza do arquétipo do corpus paulino, há uma va liosa discussão nas Schweich Lectures de G. Zuntz (1946).34 Uma cuidadosa crítica à hipótese de Goodspeed o levou á conclusão (pp. 276s) de que “quem quer que tenha escrito Efésios, não foi o editor 52. H. Chadwick me fez notar que Eusébio colecionou as cartas de Orígenes (Hist. Eccl 6,36,2). 53. Cf. o Excurso II: Lucas e as Epístolas Pastorais . 54. G. ZUNTZ, The Text o f the Eplstles: a Disquisition upon the Corpus Paulinum, 1953.
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do corpus . . Em seguida, ele sustenta que as características das “tradições editoriais na antiguidade em geral” eram “a fidelidade, o complemento e o princípio de não-interferência no material à dispo sição”. Como exemplos, ele aduz a edição de Tucídides, de Lucrécio e da Eneida, dos diários privados do Imperador Marco Aurélio, dos ensaios de Plotino, com especial referência à interessante infor mação sobre os métodos usados na “ vida” de Porfírio, que foi edi tor de Plotino. Ele passa, então, a considerar as muitas falhas das cartas paulinas, individualmente e (talvez) nas primeiras coleções, nos cinqüenta anos compreendidos entre os autógrafos das cartas e a formação do corpus (período durante o qual, segundo Zuntz, houve uso e circulação e cópias das epístolas). Ele então levanta a hipótese de um corpus compilado por volta do ano 100, que, na melhor tradição científica alexandrina (e talvez na própria Alexan dria), já possuía as qualidades já mencionadas acima e, assim, por exemplo, produziu a Epístola aos Efésios com uma lacuna em 1,1 e com en Ephéso à margem. Foi por isso que surgiu um esplêndido arquétipo variorum, do qual podemos derivar muitas das variantes posteriores. Em qualquer tempo que tenha surgido o corpus paulino, de qualquer maneira subsiste a data de Marcião como um ponto de re ferência. E, não muitas décadas mais tarde, por volta do ano 180, podemos ouvir os mártires de Scilli ou Scillium (na Numidia, na Africa proconsularis) que, interrogados pelo procônsul acerca dos livros que possuíam (“o que há na vossa capsa /=caixa de livros/?”) replicaram: libri et epistulae Pauli viri iusti 5 5(isto é, provavelmente os Evangelhos e as Epístolas de Paulo ...). “Os livros, mais espe cialmente os pergaminhos” (2Tm 4,13; cf. acima pp. 207), con quistaram um significado novo e totalmente cristão! Se pudéssemos datar, com certeza, a segunda carta de Pedro, então se poderia provar que ela contém (3,16) a mais antiga referência a Paulo como autor das escrituras canônicas. Contudo, quem pode dizer quando ela foi escrita? Que se pode dizer agora sobre o corpus joanino? Muito pouco, deve-se admitir. De qualquer modo, está bem claro que existe uma 55. A frase viri iusti (segundo um comentário de H. Chadwick) intenta subli nhar que os livros em questão não eram pornográficos, como o procônsul podia estar pensando.
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estreita relação entre o Quarto Evangelho e as cartas de João (se jam ou não, realmente, obra da mesma mão).56 Todos estes escritos (Evangelho e Epístolas), embora anônimos, são tradicionalmente associados com o nome de João e com Éfeso. O Apocalipse, que se autoproclama obra de um certo João (e também associado pela tra dição com Éfeso), é considerado ainda hoje, por alguns estudiosos modernos, obra do mesmo autor das cartas joaninas. Contudo, a despeito de certos pontos de contato no vocabulário e no pensa mento, seu estilo e, ainda mais, sua perspectiva teológica são muito diferentes. No entanto, talvez seja muito mais útil pensar não tanto em termos de um corpus joanino quanto de uma tradição de Éfeso e especular, cautelosamente, acerca do curso seguido pelos diver sos fluxos de tradição para chegarem àquele centro. T.W. Manson fez reviver, numa forma nova,57 interessante sugestão de W. Sanday, segundo a qual houve-“um estágio prévio de ensinamento joanino, localizado em algum lugar da Síria, antes que o apóstolo che gasse ao seu estabelecimento definitivo em Éfeso”. Manson propôs Antioquia como o centro das tradições “joaninas" em seu itinerário para Éfeso. Manson não analisa a relação existente entre a Epístola aos Efésios e as tradições joaninas, mas é fato bem conhecido que, enquanto que essa epístola (como já foi observado) não se situa, sem sombra de dúvida, nos moldes tipicamente paulinos, ao con trário apresenta certas afinidades com o Apocalipse (p. ex., a Igreja como noiva de Cristo e fundada sobre os apóstolos e profetas). Na realidade, não há aqui, necessariamente, nenhuma contradição com a imagem paulina de Cristo como o único fundamento; contu do, não pode ser provável que Efésios represente a confluência e a fusão dos modos de pensar paulinos e de outros tipos, e que Éfeso (possivelmente com Antioquia como um a espécie de bacia interme diária ou reservatório) seja o centro de confluência, especialmente 56. P. KATZ, “The Johanninc Epistles in the Muratorian Canon” in J.T.S., n9s., 8.2, outubro de 1957, 273ss, defende engenhosamente a inclusão da segunda e terceira carta de João no cânon muratoriano, sugerindo que duas (leia duae) in catholica habentur corresponde a um original grego como duo syn katholiké, dois em adição à (carta) católica. Em princípio me parece convincente, mas não vejo por que o original não poderia ter pros katholikén, expressão grega mais natural para significar em adição a e mais facilmente traduzivel em latim por in. 57. Cf. T.W. M AN SON, “The Life of Jesus: a Survey of the Available Mate rial: The Fourth Gospel” in BJ.RZ,. 30, 1946-47, 312ss, e também W. Sanday, The Criticism of the Fourth Gospel, 1903, 199.
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se se pensa que grande parte da tradição joanina deságua direta mente em fontes palestinenses?58 Neste ponto, talvez convenha in serir na discussão o fato de que Mateus é o único Evangelho que fala da Igreja e seu fundamento (apostólico), e que há alguma coisa a ser dita com respeito à relação entre Antioquia e este Evange lho.59 As cartas de Inácio de Antioquia não parecem conter nada que demonstre que o Quarto Evangelho ou Efésios fossem docu mentos conhecidos. Todavia (como observa H. Chadwick), não é costume de Inácio citar; ele faz apenas alusões. Em todas estas conjecturas, no entanto, estamos numa areia movediça de total in certeza. Poderia parecer, à primeira vista, que uma classificação baseada no conceito de autoridade eclesiástica observada nos vá rios escritos seria mais frutífera: Mateus, Efésios, o Quarto Evan gelho e as cartas joaninas mostram todos que estão muito interes sados no problema da autoridade, mas, outra vez, é impossível agrupá-los de um modo indiferenciado, pois, num certo sentido, o Quarto Evangelho é, claramente, não-eclesiástico em seu tratamen to da autoridade (como, na verdade, em todas as outras questões). A escatologia não-apocalíptica é, em certa medida, característica comum a Efésios e ao Quarto Evangelho, mas isso não se aplica às cartas joaninas e, ainda menos, ao Apocalipse; e há também esca tologia não-apocalíptica em Rm 8. Em resumo, lastimavelmente pouco sabemos a respeito das correntes de pensamento cristão, tanto didáticas como apologéticas, existentes em Éfeso ou em outros lugares, que determinaram o reconhecimento final desses escritos joaninos da parte de toda a Igreja. O que sabemos é que o Evangelho de são João foi o último dos quatro a atingir uma posição canônica e que foi considerado por um grupo reconhecidamente reacionário, por este motivo, como alogi (nome com um claro sentido duplo: “sem logos”, em 58. Cf. capitulo V, n. 15. 59. Para as discussões sobre a origem de Mateus, cf. e.g., T.W. MAN SON, “The Life of Jesus: a Survey of the Available Material: The Gospel according to St. Matthew” in BJ.R.L. 29, 1945-46, 392ss; G.D. KILPATRICK, The Origins o f the Gospel accoding to S t. Matthew, 1946; K.STENDAHL, The School o f St. Matthew, 1954; P. NEPPER-CHRISTENSEN, Das Matthàusevangelium: einjudett-christliches Evangelium?, 1958; W. TRILLING, D as wahre Israel, 1959; E.P. BLAIR, Jesus in the Gospel o f Matthew , 1960.
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relação ao prólogo do Quarto Evangelho, mas também “ sem senti do” ou “estúpido”). Sabemos igualmente que o Apocalipse foi tra tado asperamente por aqueles que se opunham ao milenarismo, de que ele é o único porta-voz em todo o Novo Testamento.60 Inversa mente, é fato notório que certos escritos associados ao nome de João nunca obtiveram um amplo reconhecimento, enquanto escri tos que, por algum tempo, foram amplamente lidos a propósito de edificação, como os Padres Apostólicos, ao fim foram excluídos. A necessidade de decidir quais livros deviam ser considerados autori zados para distingui-los dos falsos ou dos privados de autoridade canônica se impôs por causa da ameaça da heresia que vinha de dentro da Igreja e por causa do ataque que vinha de fora. Talvez uma frutífera linha de progresso possa ser encontrada (cf. capítulos I e VIII) na direção de uma nova investigação dos escopos de al guns livros do Novo Testamento. Assim, a segunda carta de Pedro e Judas são claramente dois ataques contra tentativas de perver sões do cristianismo, perversões que se originaram, pelo menos em parte, por causa de uma espécie de desvio das doutrinas paulinas, que o próprio Paulo ataca (p. ex., em Rm 6). As Espístolas Pasto rais se preocupam também, em parte, em corrigir perversões do en sinamento paulino e é notoriamente possível que Tiago (embora não se esteja certo de que a polêmica seja diretamente contra Pau lo) possa ter em vista qualquer coisa da mesma espécie (Tg 2). Se melhantemente, pode-se pensar que as cartas joaninas, atacando uma cristologia docética, tentam ser vistas como um corretivo ás perversões do ensinamento do Quarto Evangelho. E junto com os perigos insidiosos que vêm de dentro da comunidade, exigindo um claro reconhecimento daquilo que era correto nos escritos cristãos, houve ataques aos oponentes de fora. Na controvérsia com estes, era necessário fazer referência às escrituras autorizadas, enquanto que, em tempos de perseguição, podia ser de vital importância (co mo vimos com os mártires de Scilli) definir quais eram os escritos sagrados dos cristãos. 60. Para o antimilenarismo, cf. EUSÉBIO, Hist. Eccl. 3,28; 7,25 e ainda (p. ex.) I.T. BECKWITH, The Apocalypse o f John, 1919, 340ss. Os “alogi” se opu nham aos escritos joaninos, porque eles pareciam oferecer um pretexto para a anarquia carismática dos montanistas.
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A história das flutuações às margens do cânon (de um lado, os escritos excluídos no último momento e, de outro, os que, com dú vida, foram finalmente incluídos: segunda carta de Pedro, Judas, segunda e terceira cartas de João, aos Hebreus, etc.) é narrada em todos os livros de introdução e, por isso, não precisa ser repetida aqui, como, de resto, não importa narrar a formulação final do câ non atual, como se fez na 39’ carta pascal de Atanásio do ano de 367 e (?) no Concilio de Laodicéia. O propósito deste capítulo não é repetir toda a história, mas antes pôr em relevo, tanto quanto seja possível fazê-lo, num campo tão remoto para se localizar claram en te, alguns motivos e princípios, tanto teológicos como disciplinares, que estão por trás deste longo processo. Além disso, todo o tempo tal processo é visto, tanto quanto possível, como um processo hu mano. É também pressuposto aqui, sem ulterior discussão, que tal história narra a vitória divina sobre os desvios e erros humanos.
CAPÍTULO XI
CONCLUSÃO
O ponto de vista geral adotado em todo este livro foi o da “Critica das Formas”, a saber, que devemos examinar as circuns' tâncias e necessidades da comunidade que cultua, trabalha e sofre, se queremos explicar a gênese das escrituras cristãs. Provavelmen te, em nenhum estágio do tempo do Novo Testamento, um escritor tenha usado a pena sem o incentivo de um a necessidade precisa. Só raramente o escrito era conscientemente adornado e nunca o as pecto estético constituiu um fim em si mesmo. Por isso, foram con siderados, sucessivamente, diferentes aspectos da vida da comuni dade, com a intenção de ilustrar como se desenvolveram os vários tipos de literatura cristã, em resposta àquelas circunstâncias e ne cessidades. É só contra este pano de fundo que tais escritos podem ser adequadamente compreendidos. Contudo, se se adotou o ponto de vista da “crítica das formas”, muitos dos pressupostos que freqüentemente o acompanham foram abandonados ou usados com restrição. Não se aceitou a suposição, de bases tão tênues, de que encontramos as palavras exatas da li turgia em certas passagens interpretadas freqüentemente como litúrgicas. Insistiu-se ainda que as probabilidades favorecem uma si tuação muito mais fluída, com uma contínua permuta de formas tal, que fragmentos de oração e de hinos fluem para dentro e para fora da contextura das exortações pastorais, e frases litúrgicas no fim de uma epístola não implicam necessariamente que se trata, formalmente, de uma homília ligada à eucaristia. Além disso, a imensa importância e proeminência do Antigo Testamento no pen samento e nos argumentos cristãos, enquanto explicam muitas partes do Novo Testamento, não podem, como se sustentou, levar à conclusão de que secções inteiras da narrativa cristã foram criadas
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CONCLUSÃO
pelo Antigo Testamento. A intenção essencialmente teológica, apologética e de edificação das escrituras cristas não pode levar à con clusão de que a Igreja Primitiva teve pouco ou nenhum interesse pelas verdadeiras circunstâncias da vida do Jesus histórico. Em particular, sustentou-se aqui que os Evangelhos, enquanto docu mentos da apologética cristã (direta ou indireta), estão muito inte ressados em reconstruir a história do início da nova realidade cristã (“como tudo começou”). No capitulo sobre a perseguição, o ponto de vista adotado é o de que a maior parte das secçÕes do Novo Testamento que tratam da “perseguição” pode ser explicada postulando-se, primariamente, um antagonismo judaico, sem necessidade de invocar a intervenção romana. Na abordagem das passagens do tipo “edificação”, sublinhou-se a relatividade da ética cristã e o parcial individualismo que, necessariamente, se impôs a elas pelas circunstâncias em que vi viam as comunidades cristãs. Os dois últimos capítulos ressaltaram a ampla variedade de perspectiva e a freqüente e preocupante incer teza que devia reinar nos estratos inferiores das comunidades espa lhadas pelo Império, em nítido contraste com a surpreendente uni formidade que caracterizava seus líderes e que, por fim, se refletiu no cânon, a despeito de sua complicadíssima história e aparente mente casual desenvolvimento. Uma fundamental devoção à pes soa de Jesus Cristo, como se disse no inicio, è a chave deste fenô meno extraordinário. Centenas de problemas ainda permanecem. Pouco se conhece ainda sobre o background j udaico da vida de Jesus e da Igreja Pri mitiva, as peculiaridades do uso cristão das escrituras apresentam ainda enigmas não resolvidos; os vários tipos de condições sociais vigentes nos diversos centros da cristandade permanecem ainda na sombra e na obscuridade; a história das dificuldades do cânon está cheia de problemas não solucionados e talvez insolúveis. Contudo, deste estudo emergem duas conclusões da maior im portância que merecem ser sublinhadas aqui. Uma é a primazia da iniciativa divina; a outra é a urgente necessidade que temos hoje daquilo que podia ser chamado de “tradução ética do Evangelho”. Com respeito à primeira, um relance superficial nos títulos dos capítulos deste livro poderia levar à conclusão de que a Igreja Pri mitiva estava empenhada numa intensa luta com ela mesma (dar a
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razão de sua natureza, defender-se, edificar-se, unificar-se, autenti car-se). Mas isso seria uma falsa impressão. Foi por deliberada in tenção que estes capitulos foram precedidos por um capitulo sobre a Igreja no culto; e é, de fato, numa constante referência a Deus que a Igreja empreende todas as outras atividades, como ainda deve fazer hoje, se quer ser verdadeira. Explicação, defesa, edifica ção, unificação, autenticação: nenhuma dessas é cristã, a não ser que seja empreendida pelo impulso do Espirito de Deus e para sua glória; e seria bem contrário às intenções deste estudo se a descri ção da crescente tomada de consciência da Igreja aqui traçada (da primitiva convicção de que não era outra senão “ Israel” até à final consciência de ser um tertium genus com suas próprias escrituras) não fosse considerada um corolário da crescente compreensão de Deus e de sua vontade em Jesus Cristo. Com respeito ao segundo ponto, muita coisa precisa ser dita, embora não se possa dizer aqui. Talvez nada seja mais urgente mente necessário do que um deliberado esforço para se produzir uma ética cristã para o tempo presente. Contudo, essa empresa re quer uma “tradução ética do Evangelho” e uma ação conjunta dos especialistas em vários campos diferentes, o que vai além da com petência de um simples estudioso do Novo Testamento como tal. Na verdade, um a das mais importantes lições deste livro é que a di reção do Espírito de Deus foi concedida não em forma de código moral ou de qualquer depósito escrito de instruções, mas em forma de discernimento inspirado. Foi concedida ad hoc aos cristãos que se encontravam reunidos, enfrentando os problemas imediatos com o Evangelho diante deles, o Espirito entre eles e o desejo de encon trar a ação requerida do Povo de Deus num futuro próximo. Se se investigam as páginas das cartas paulinas, elas vão revelar várias li nhas, ao longo das quais o apóstolo buscou aquela direção: por meio de revelação direta, isto é, visão e audição; por meio das pala vras e exemplo de Cristo; mediante a leitura das escrituras judaicas á luz de Cristo; através do uso da comunidade; e mesmo através da “lei natural”. Na verdade, está bem claro que o modo cristão mais característico de buscar a direção divina era aquele descrito em ICor 14,1: os cristãos se reúnem, cada um tendo um salmo ou um ensinamento ou uma revelação ou o impulso de uma manifestação extática, e a comunidade exercita o discernimento. Este é o modo
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como as decisões éticas eram tom adas: discussão didática, intuição profética, fervor extático: tudo no contexto da comunidade que adora e que também examina tudo com discernimento, confronta da com as boas novas de Jesus Cristo, confortada com a presença do Espírito Santo, na esperança de progredir sempre na vontade de Deus. E se de tudo isso surge uma lição de importância fundamen tal, essa consiste no fato de que só ao longo de linhas semelhantes, traduzida em termos atuais, podemos esperar uma ética cristã rele vante para os nossos dias. Essa será provavelmente diferente nas várias partes do mundo: cada igreja cristã tem os seus problemas e oportunidades peculiares e suas condições próprias. E se baseará sempre não num rígido código ético, mas na direção do Espirito Santo, à luz do Evangelho imutável e das condições contemporâ neas, estudadas cuidadosamente pelos especialistas. Uma das con tribuições a essa nova empresa será uma reflexão cientifica, séria, estatística, fornecida à comunidade cristã por aqueles irmãos que são especialistas nos vários ramos de estudo. Só à luz deste conhe cimento é que a direção do Espírito será realisticamente apreendi da. Uma outra contribuição necessária será dada por uma eficiente e inteligente reconstrução do passado: a própria estrutura dos Evan gelhos dá testemunho à consciência cristã da importância de com preender e recordar constantemente a origem e o movimento do kérygma cristão. Contudo, só por meio de uma “tradução” se pode esperar uma ética concreta. A menos que a Igreja espere ouvir a voz do Paráclito em tal contexto, para guiá-la a toda verdade, em vão procurará direção específica. Os costumes éticos cristãos do passado podem e devem ser cuidadosamente estudados, mas, em última análise, só saberemos o que a ética cristã deverá ser hoje permitindo que o Espírito Santo “traduza” a mensagem, isto é, confiando na direção que recebemos hoje. Só assim é que a Igreja progrediu e enfrentou os seus problemas naqueles primeiros dias de sua existência. No curso desta investigação, surgiram muitas outras questões; todas são, de algum modo, importantes para este indispensável es tudo das origens cristãs, e algumas delas, talvez, sejam novas. Ca berá a outros estimar o valor das sugestões mais insólitas apresen tadas para a solução de alguns problemas daquele tempo. A avalia ção do propósito dos Evangelhos, as conjecturas acerca do caráter
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de Mateus e da Epístola aos Hebreus, a atitude para com o fator litúrgico e as especulações sobre a relação de Lucas, o médico com o cânon das escrituras, tudo isso pode ou não ser prudente aceitar. Contudo, os problemas que, em relação a tudo isso, vêm à luz são tais que o estudioso do Novo Testamento deve enfrentá-los constan temente; e a leitura da situação do Novo Testamento será, por sua vez, uma das contribuições que são parte de seu ministério junto à comunidade dos cristãos a que ele pertence, quando eles tentam, à luz de todos o dados disponíveis, colocar-se sob a direção do Espi rito Santo. Esperamos que este estudo, mesmo indiretamente, possa ser uma contribuição aos prolegômenos de uma ética cristã contempo rânea.
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As origens do Novo Testamento
EXCURSO I
GREGO DE TRADUÇÃO E GREGO ORIGINAL EM MATEUS
Vale a pena perguntar se não tem sido dada pouca atenção á palavra herméneusen na controvertida passagem de Papias citada por Eusébio, Hist. Eccl. 3,39,12. Tem-se refletido bastante sobre o significado de Hebráidi dialékto (à luz das considerações de H. Birkeland, seus críticos e das pesquisas de outros, cf. capítulo X, n. 15); e centenas de páginas foram escritas sobre a frase ta lógia.1 Contudo, as implicações de Herméneusen não serão dignas de uma consideração mais atenta? Behm, em seu artigo sobre esta família de palavras em T.WJf.T. 2, 659ss, distingue três sentidos principais: (a) explicar, interpretar, ilustrar; (b) sugerir, traduzir em palavras, exprimir os próprios pensamentos; (c) referir-se a uma língua estrangeira na própria, traduzir, interpretar. Todos os três significados são clássi cos; na verdade, todos os três podem ser ilustrados em Platão ape nas, para não mencionar outros autores; e, embora só (a) e (c) se jam encontrados no Novo Testamento (a) apenas em Lc 24,27 (dierm.; códice D herm.), (c) apenas em Jo 1,38 (variante), 42; 9,7 (herm.); ICor 12,30, 14,5; 12,37 (dierm); Hb 7,2 (herm.); (b) tal vez, não parece haver nenhuma razão particular pela qual o termo em Eusébio não possa significar qualquer um dos três que seja o mais apropriado àquele contexto. É claro que o segundo significado (exprimir) não pode aplicarse ao nosso caso. Contudo, existe, pelo menos lingüisticamente, uma alternativa entre interpretar e traduzir, e eu creio que (em abs trato) seja possível pensar que ta lógia indique uma coleção de pa rábolas e ditos parabólicos que foram interpretados de modos dife 1. Cf. T.W. MAN SO N, B J J U ,. 29.2, fevereiro de 1946, 392ss; e T.W.N.T. de KITTEL, 4, 144s.
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rentes por diferentes ouvintes, exatamente como os ditos do Evan gelho de Tomé são interpretados hoje de modos diferentes; em tal caso, Mt 13 conteria exemplos de tal processo. No entanto, supo nho que todos concordarão que a frase precedente, com sua refe rência ã língua do original, impõe virtualmente a adoção do tercei ro significado, traduzir. Qual a conseqüência disso? Certamente uma refutação muito mais firme da teoria de que ta lógia indique testimonia do Antigo Testamento, do que pode ser conseguido de uma investigação do mero significado de lógion. Tivesse, pois o testimonia do Antigo Testamento sido usado por ta lógia, então, em primeiro lugar, não seria completamente razoável usar Hebráidi dialékto para dizer “na lingua hebraica (original)” ; em segundo lugar, seria difícil ima ginar por que deveria ser necessário que aqueles ditos fossem tra duzidos por todos os leitores “como melhor se podia” (hos en dynatós hêkastos). É perfeitamente verdadeiro que precisamente o texto dos testimonia do Antigo Testamento foram traduzidos sepa radamente em grego ainda não justifica a frase hos en dynatós hékastos, a qual implica uma certa necessidade de se ter uma tradu ção privada. Existem já versões gregas do Antigo Testamento sufi cientemente estabelecidas, especialmente a dos LXX: por que cada leitor deveria ser obrigado a usar a própria? A frase que fala de tra dução me parece deva referir-se quase exclusivamente a ta lógia, e estas devem ter constituído uma coleção original e até agora desco nhecida. Em outras palavras, esta frase parece convalidar muito plausivelmente a teoria de que o escrito em questão poderia ser um documento semelhante àquele que chamamos de Q, embora não se possa afirmar categoricamente que se trata de uma coleção só de ditos.2 Então, se a tradição de Papias indica realmente traduções di versas, haveria algum traço delas? Tem sido observado freqüente mente que uma comparação de Mateus com Lucas sugere que, em alguns casos, eles reproduzem traduções diferentes das mesmas 2. Para as advertências contra a identificação apressada das “lógia de Ma teus” com Q, cf. B.W. BACON, Studtes in Matthew , 1930, XII, e J.A. ROBINSON, The Study ofthe Gospels, 1902. Para o ceticismo sobre “o hebraico autênti co” de Jerônimo, cf. O. NEPPER-CHRISTENSEN, Das Matthâusevangelium, 1958, capitulo 2.
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fontes (cf. o útil elenco, baseado em parte nos estudos de Wellhausen, em C.K. Barrett, “Q: a Re-examination” em E.T. 54, setembro de 1943, 320ss). Contudo, não é possível que, realmente, dentro de Mateus, diferentes versões da mesma fonte tenham deixado seus traços? Em 5,22, não só moré pode ser uma glosa de raká, mas também synêdrion e krisis podem ser traduções alternativas (cf. minha nota em E.T. 50.4, janeiro de 1939, 184); 12,31 s, possivel mente, seja uma fusão das versões que Marcos e Lucas fazem de um dito, e a de Marcos pode estar mais próxima da original; em 16,22, híleos e ôu mé éstai são traduções alternativas de hlyih (cf. P. Katz: Kratylos 5, 1960, 157ss); em 23,8.10, rabbêi e katheguetés são respectivamente uma transliteração e uma tradução; em 27,6s, tanto o termo “tesouro”, ’ôsár, como “oleiro”, yôser , são mantidos (cf. Zc 11,23, na LXX e no T.M., respectivamente).3 De qualquer maneira, está claro que o evangelista tinha, em muitos respeitos, a tendência de conservar, fundir, combinar e, às vezes, de duplicar. É possível dizer, além disso, que os semitismos do seu Evangelho são ecos de suas fontes, embora ele mesmo tenha escrito no mais puro grego? 1. É notável o fato que, pelo menos, algumas passagens, que são obviamente de natureza editorial, contêm semitismos bastante evidentes. Em primeiro lugar, há as cinco famosas “passagens de li gação” ou “conectivos” (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1). Ao menos aqui estamos mais seguros de que isso se deve atribuir à mão do próprio redator. Cada uma começa com a frase tipicamente semítica kai eguéneto hôti . . . Então, muito de uma perícope começa com um vago e de uso estritamente ilógico ekêinos, como na frase en ekêino tó kairó (11,25; 12,1; 14,1) ou en ekêine té hora (18,1) ou en te heméra ekêine (13,1); todas essas expressões significam, aparentemente, pouco mais que “uma vez” ou “um dia”. E eu sus peito que este uso seja mais semítico do que grego original; cf. G n 21,22; Js 5,2 (ba’eth hahí) e Gn 39,11; ISm 3,2, onde kehayyôm hazzeh e bayyôm hahu’ são traduzidos (e. g., pelo léxico hebraico de Brown, Driver e Briggs, art. yôm) “neste dia particular (quando 3. Cf. um tratamento um pouco mais completo desta questão da tendência “antológica” de Mateus em meu artigo “St. Matthew’s Gospel: Some Neglected Features” in T. und U.
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ocorreu o fato em questão)”. Além do mais, o uso de êis—tis (que é, geralmente, considerado semitico) ocorre em certas passagens em que é mais simples atribuir à mão de Mateus que à sua fonte. As sim: êis grammatêus (8,19), árchon êis (9,18), mia paidiske (26,69) são exemplos em que as passagens paralelas não contêm essa ex pressão idiomática; proséchthe êis autô opheilétes (18,24) ocorre numa passagem peculiar a Mateus e pode ou não ter estado em sua fonte; apenas êis proselthón autô (19,16) tem paralelo em Mc 10,17. Por outro lado, nota-se que a frase êis ek tôu óchlou de Mc 9,17 se torna simplesmente ánthropos em Mt 18,14, que é uma ad vertência contra uma pressuposição apressada demais de que esta frase é introduzida sistematicamente pelo evangelista. No entanto, talvez o que se aduziu seja suficiente para sugerir que o próprio re dator tenha usado semitismos. 2. Então, eram esses semitismos espontâneos e naturais para este escritor, ou ele os usou deliberadamente? Dois fenômenos pa recem sugerir que a última hipótese é a mais provável: a) Há passagens em que encontramos um grego bem correto, livre de semitismos. Em geral, o Aktionsart dos verbos é correta mente observado em todo o Evangelho de Mateus. Contudo, o exemplo mais surpreendente de bom grego se encontra, talvez, em 17,24-27, ou seja a perícope sobre a moeda na boca do peixe. Te mos aqui um uso relativamente complexo de participios, um voca bulário vasto e uma vivacidade comparável àquela de Lucas em seus momentos mais livres e característicos (e. g., nos últimos capí tulos do livro dos Atos). Pode-se notar especialmente a frase (17,25) kai elthônta êis ten oikían proéphthasen autôn ho Iesôus (para o uso apropriado e hábil dos participios, cf. 9,27; 26,71). Uma passagem desta espécie razoavelmente estilística podia, ob viamente, vir diretamente de uma fonte e não representar o próprio estilo do autor, mas, em geral, o peso da probabilidade (se aceita mos que por trás do Evangelho de Mateus estejam fontes semíticas) é tal que não se podem atribuir a essa fonte características qué são lingüisticamente opostas ao uso lingüístico semítico. Deve ser admitido, contudo, que há aqui (v. 26) aquilo que o grego clássico não admitiria, isto é, um aparente genitivo absoluto que, afinal, não é de fato absoluto; e por todo este Evangelho há, lado a lado, geni
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tivos absolutos corretos e incorretos (e este último tipo exatamente na passagem claramente editorial de 8,1). b) Em segundo lugar, há, por outro lado, a introdução em gre go aparentemente puro de termos semiticos como idôu. Na história dos magos (capitulo 2), um grego quase impecável é dado num tê nue sabor semitico por esta razão (como também, talvez, por echáresan charán megálen sphódra, v. 10); e, na narrativa do batismo, Mateus (3,16) parece reordenar Mc 1,10 de tal modo a introduzir deliberadamente aquela locução. Em geral, isto aduz um peso de evidência em favor da hipótese que considera os semitismos do autor como deliberados e artifi ciais. 3. Há, obviamente, indicios bastante claros do uso extenso de fontes que continham já frases idiomáticas semiticas. Muito se tem escrito sobre o aramaico que está por trás do Sermão da Montanha e de muitas outras passagens. Aqui, simplesmente se deve notar, à maneira de ilustração, que o uso atributivo de ánthropos, uso pro vavelmente semitico,4 é característica invariável das parábolas, em bora peculiar a Mateus (echthrós ánthropos, 13,28, ánthropos ém poros, 13,45 (variante); ánthropos oikodespótes, 13,52; 20,1;21,33; ánthropos basilêus, 18,23; 22,2); e é provável, portanto, que as fra ses idiomáticas acompanharam a tradição sobre as parábolas. Isto é só um dos muitos indicios que provam como Mateus simplesmen te se apropriou de abudante material que já tinha uma estrutura semítica. 4. Entre outras características lingüísticas deste Evangelho, podemos mencionar as seguintes: o hóti recitativum é relativamente raro; o tôu final com o infinitivo de propósito é pouco usado (3,13; 11,1; 13,3; 21,32); também é pouco usado o euthys típico de Mar cos, enquanto é mais comum o uso de euthéos; dêute ocorre fre qüentemente e não só nas passagens derivadas de Marcos. Há di versos termos latinos: mílion, kênsos, koustodía e talvez symbôulion labêin (27,1.7 = consilium capere?). O vocabulário é amplo e bastante notável (nas seguintes citações o sinal * indica que a pas4. Cf., e. g., N. BLACK, An Aramatc Approach to the Gospels and Acts, 1954, 2» ed., 249s.
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sagem tem paralelo em Marcos ou Lucas ou em ambos; o sinal + que a passagem é peculiar a Mateus): há um amplo uso dos verbos cm -zo, alguns dos quais são raros, e. g.: eunouchízo (19,12 + , ha pax legomenon no N.T.); katapontízo (14,30 + ; 18,6*, em nenhum outro lugar no N.T.; pyrrázo (16,2 + , si vera lectio, hapax legome non no N.T.); seleniázo (4,24; 17,15, em nenhum outro lugar no N.T.). Outros termos dignos de nota são: tón dêina (26,18*, hapax legomenon no N.T.); diasaphêin (13,36 + ; 18,31 + , em nenhum outro lugar no N.T.); thaumásion (21,15 + , hapax legomenon no N.T.); palinguenesía (19,28*, além daqui, só em Tt 3,5); pélagos (18,6*, além daqui, só em Atos 27,5); syntêleia (13,39 + 40*.49 + ; 24,3*; 28,20 + , além daqui, só em "Hb 9,26); tá hydata (plural, 8,32*; 14,28s + , além daqui, só em Jo 3,23 e passim no Apocalip se). É fato notável, no quadro da presente abordagem, que estes termos, típicos do vocabulário de Mateus, são disseminados tanto em passagens deste Evangelho como em paralelos sinóticos, embo ra Marcos e Lucas não os usem de fato. Portanto, numa avaliação preliminar, pode-se dizer que o reda tor era uma pessoa culta, com sólido conhecimento da língua grega e um vocabulário bem vasto; contudo, ele conservou muitos semi tismos e talvez alguns latinísmos derivados de suas fontes; e tinha também um certo prazer em criar uma “atmosfera” semita, intro duzindo ocasionalmente semitismos em sua própria narrativa, em bora menos histrionícamente que Lucas. Até onde chega essa conclusão se ajusta bem com as minhas sugestões acerca da proveniência deste Evangelho.
EXCURSO II
LUCAS E AS EPÍSTOLAS PASTORAIS
Quanto á relação entre as Pastorais e Lucas-Atos, notam-se em acréscimo às alusões nas Pastorais a pessoas ou situações aludidas no livro dos Atos (cf. os comentários e P.N. Harrison, The Problem o f the Pastoral Epistles, 1921, 93 ss), os seguintes pontos de conta to: lTm 5,17: timé = “recompensa material” (cf. Atos 28,10: polláis timáis etimesan hemás); lTm 5,18: áxios ho ergátes tôu misthôu autôu (é a forma que encontramos em Lc 10,7; tés trophés autêu: Mt 10,10); lTm 6,10: philargyría é um hapax legomenon no N.T.; Lc 16,14; 2Tm 3,2, ambos contêm philárgyros (apenas aqui no N.T.); lTm 6,17: hypselophronêin (hapax legomenon no N.T.), cf. Lc 16,15: tó en anthrópois hypselón (no mesmo contexto do philárgyros acima); lTm 6,18: ploutêin en érgois kalóis .. . apothesaurizontes heautóis themélion kalón êis tó méllon, hína epilábontai tés óntos zoès, cf Lc 12,21: hôutos ho thesaurizon autó kai mé êis theón ploutón e cf. Lc 16,9 (a moral da parábola do “ad ministrador desonesto”); 2Tm 2,12: êi hypoménomen kai symbasilêusomen, cf. Lc 22,28s: hymêis dé este hoi diamemenekótes met’emôü en tóis peirasmóis mâu kagâ diatíthemai hymin . . . basilêiam ... 2Tm 2,19: égno kyrios tôus óntas autôu, kai apostéto apó adikias pás ho onomázon tó ónoma kyriou, cf. Lc 13,27: ôuk ôida hymás pôthen esté apóstete ap’emôu pântes ergátai adikias (onde Mt 7,23 lê apochorêite em vez de apóstete. Contudo, Mateus apresenta claramente, também em 7,22, uma alusão ao “nome do Senhor”: kyrie, kyrie, ôu tó só onómati eprophetêusamen, k. t. 1.); 2Tm 2,26: ezogreménoi, cf. Lc 5,10 (apenas outra ocorrência de zogrêin no N.T.); 2Tm 4,7: tón drómon tetéleka, cf. Atos 13,25: Aos dé eplérou Ioánes tón drónon ; 20,24: hos teleióso tón drómon môu. Na verdade, toda a passagem de 2Tm 4,1-8 recorda a despe dida de Paulo em Atos 20, 17ss e a menção de presbíteros nas Pas
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torais e, geralmente, semelhante àquela de Atos 20; todavia podese dizer, obviamente, que as duas passagens são semelhantes por que são paulinas e não porque ambas são de Lucas! Além disso, note-se que Maurer (T.W.N.T., art. "synêidesis”) observa que, nos escritos pós-paulinos do Novo Testamento, synêidesis é quase sem pre qualificado com vários atributos (agathé, kathará, etc.). Se isto fosse, de modo geral, verdadeiro, asseguraria, em certa medida, uma conexão menos clara entre o livro dos Atos e as Pastorais em particular; contudo, na realidade, ainda que haja apenas dois exem plos claros na Epístola aos Hebreus e dois na primeira carta de Pe dro (embora as implicações, em uma ou duas outras passagens, pa reçam semelhantes), os outros casos pertencem precisamente aos nossos dois grupos de escritos, isto é, o livro dos Atos (23,1; 24,16) e as Pastorais (lTm 1,5.19; 3,9; 2Tm 1,3; 2,22). É interessante notar que duas obras recentes, as quais não tra tando do presente problema, notam, uma independentemente da outra, a relação existente entre as Pastorais e Lucas: C.K. Barret, Luke the Historian in Recent Study, 1961, 62s: “Lucas .. . com partilha da atitude da§ Pastorais, em bora seu interesse específico o impeça de dizer explicitamente: ó Timóteo, conserva o depósi to . . J.C. 0 ’Neil, The Theology o f Âcts, 1961, 176: “O autor das Epístolas Pastorais sublinha que a defesa de Paulo diante da corte imperial de Roma completou a proclamação. Em princípio, a missão entre os pagãos estava encerrada. O livro dos Atos assumiu o mesmo ponto de vista do martírio de Paulo”.
EXCURSO III
PISTÓS HO LOGOS
A frase pistós ho logos é comum a todas as três Epístolas Pas torais (lTm 1,15; 3,1; 4,9; 2Tm 2,11; Tt 3,8; cf. a fórmula muito semelhante ... antechómenon tôu katá ten didachén pistôu lógou, Tt 1,9) e só a elas, embora em Ap 19,9; 21,5; 22,6 tenhamos a fra se análoga hôutoi hoi lógoi pistói kai alethinói (eisin). Em lTm 3,1, tanto a conexão quanto a leitura são incertas* Co meçando a leitura em 2,15, temos: . . . sothésetai dé diá tés tekno gonías . . . pistós (variante: anthrópinos, códice D* it Ambst) ho lo gos êi tis episkopês oréguetai, kalôu érgou epithymêi. A “palavra” em questão é aquçla que precede ou aquela que segue? Se é a que segue, então pistós não parece fazer sentido (que volo episcopari seja um bom desejo, dificilmente pode ser qualificado como um aforismo certo!) e, neste caso, somos obrigados a ler anthrópinos, “eles dizem . . ou “é um dito humano”, isto é, “é um dito co mum . . Contudo, não pode ser que a frase se refira à promessa precedente acerca do parto e que se fez apenas um esforço errôneo para relacioná-la com a seguinte, que conduziu ao expediente de sesperado de substituir pistós por anthrópinos? Essa explicação é improvável; semelhante alteração seria muito violenta e arbitrária; e, além disso, anthrópinos é também uma variante em lTm 1,15 (r, Ambst., Aug.), onde não subsiste o mesmo motivo. A sugestão de Westcott-Hort (notas in loco), segundo a qual houve mudança de posição de 3,1 parece improvável. Contudo, mesmo que fôssemos induzidos a aceitar a leitura com anthrópinos em lTm 1,15 tam bém, ela está, de qualquer maneira, reforçada por um a frase quase equivalente a pistós , isto é, páses apodochès áxios. Portanto, temos de forma verossimil que esta última frase e, pelo menos, três casos com pistós ho logos, juntam ente com a frase semelhante de Tt 1,9, parecem revelar uma certa intenção seletiva,
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como se aqui se quisesse designar como “sãs”, “ortodoxas” as má ximas (elas são, na maioria, soteriológicas) que, por assim dizer, são dignas de inclusão num cânon de aforismos cristãos. Contrasta com o logos de 2Ts 2,2, que, enfaticamente, não é aceito. Parece que não há razão válida para se considerar a frase como comentário de um leitor (como sugere C.H. Tumer, The Study o f the New Testament (Inaugural Lecture), 1833 e 1920 (1920), p. 21): o gár de 2Tm 2,11 dificilmente pode sustentar tal hipótese, mas parece implicar, ao contrário, o próprio conhecimento do au tor que “ uma coleção de máximas cristãs análogas às” palavras de Jesus estava em processo de formação (cf. W. Lock, I.C.C., sobre Tt 3,8).
EXCURSO IV
A PRIORIDADE DE MARCOS
G.M. STYLER
Depois de um século ou mais de discussão, os especialistas es tão aceitando como conclusão quase axiomática que Marcos é o mais antigo dos três Evangelhos Sinóticos e que foi usado por Ma teus e Lucas como fonte. Essa conclusão tem sido considerada como “o único resultado absolutamente seguro” do estudo do problema sinótico. Um outro ponto em que tem havido também um a certa concor dância é que Mateus e Lucas, além de Marcos, usaram outra fonte de material, denotada pelo símbolo “Q”. Muitos, depois de várias investigações, aceitaram a hipótese de que se tratava de um docu mento bem definido, que pode ser, em larga medida, reconstruído. Outros, ao contrário, preferem postular a existência de diversos do cumentos ou tradições, conhecidos tanto de Mateus como de Lu cas, caracterizados às vezes por uma-linguagem bem semelhante, outras vezes menos. Portanto, pode ser mais oportuno usar o símbolo “Q” para indicar as partes comuns a Mateus e Lucas (mas ausentes de Marcos) do que para indicar um documento e, assim, decidir prematuramente o problema de sua unidade. A discussão sobre a unidade do documento Q ou do material Q, de fato, não é relevante para a abordagem do propósito ou reexame da prioridade de Marcos. Contudo, a validade da hipótese de Q, de uma ou de outra forma, não é totalmente irrelevante, como se verá. No nosso século, a prioridade de Marcos e a hipótese de Q têm sido amplamente aceitas e são convenientemente chamadas de “Hi pótese dos Dois Documentos” , embora devesse ser observado que é bem possível que os documentos tenham sido muito mais que dois. A formulação e defesa clássicas desta teoria foram feitas por
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B.H. Streeter,1que tentou uma reconstrução de Q como um docu mento unitário, mas o reduziu a dimensões menores do que as dos estudiosos do passado. Ele chamou respectivamente “M” e “L” àquelas partes do material que são peculiares a Mateus e Lucas, ou (para ser mais preciso) às fontes das quais ele recolheu a maior par te do seu material peculiar. De novo, aqui pode ser observado que alguns especialistas têm sido cautelosos em aceitar a unidade do material A / o u L e que, desde que esse material aparece apenas em um dos dois Evangelhos, qualquer reconstrução de sua presumivel fonte é mesmo mais especulativa do que a reconstrução de Q. Não era necessário sustentar que a versão de Marcos devesse ser, em todos os pontos, mais antiga do que a versão paralela de Mateus, desde que era possivel afirmar que qualquer elemento de Mateus que parecia, de fato, mais original que Marcos era derivado de Q. Além disso, existiam persistentes dúvidas sobre a existência de Q. Contudo, em 1951, a publicação da obra de Dom B.C. Butler, The Originality o f St. Matthew, em que se atacava ao mesmo tempo a hipótese Q e a prioridade de Marcos, provocou um tre mendo impacto. Num estudo minuciosamente detalhado, ele sub meteu as duas hipóteses a uma severa crítica e sustentou vigorosa mente a prioridade de Mateus. Segundo Butler, Marcos dependeu de Mateus, Lucas de Marcos para o material que os dois tinham em comum e de Mateus para o material de Q. Uma vez abandona da a hipótese Q, a prioridade de Mateus, afirmava ele, decorre2 imediatamente da existência daquelas passagens em que o texto de Mateus se apresenta claramente mais original que o de Marcos ou, de certa maneira, de qualidade superior a ele. De qualquer modo, apesar da argumentação perfeita e cuidado sa e da existência de algumas passagens que favorecem a conclu são de Butler, os especialistas não abandonaram a convicção co mum com respeito à prioridade de Marcos. N este excurso não será possível examinar, um por um,3todos os argumentos e exemplos de Butler. Contudo, far-se-á uma tentativa para demonstrar que a convicção sobre a prioridade de Marcos está fundamentada com 1. The Four Gospels, 1924. 2. Butler concorda com a pressuposição geral de que é impossível sustentar a prioridade de Lucas. 3. Nem considerar os vários artigos que apareceram em seguida.
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EXCURSO IV
segurança e tornar claros os principais argumentos dos dois lados, de modo que se possa tomar partido. Antes de tudo, devemos admitir que Butler revelou um grave erro lógico que ocorre em muitas apresentações da teoria relativa á prioridade de Marcos. Muitos dos seus defensores começaram por estabelecer certas relações formais que existem entre os três Evan gelhos Sinóticos, a saber: 1. A maior parte de Marcos está contida em Mateus e uma grande parte em Lucas; assim, há muito pouco material que não esteja contido também ou num ou no outro Evangelho. 2. O material de Marcos se encontra, geralmente, na mesma ordem em todos os três Evangelhos; onde a ordem de Mateus di verge da de Marcos, Lucas mantém a ordem de Marcos e onde (mas isto è muito raro) a ordem de Lucas difere da de Marcos, a ordem de Marcos é mantida por Mateus. Em outras palavras, Ma teus e Lucas nunca concordam um com o outro contra Marcos com respeito à ordem em que o material comum a todos os três Evangelhos é disposto. 3. A mesma relação, em geral, é válida com respeito à fraseo logia. Mateus e Lucas, de fato, são bem semelhantes quanto á fra seologia nas passagens Q (i. é, naquelas em que falta um paralelo em Marcos), mas nas passagens comuns a Marcos é muito raro4 que Mateus e Lucas tenham em comum termos significativos, sem que Marcos os tenha também; freqüentemente Marcos e Mateus têm a mesma fraseologia, enquanto Lucas diverge deles, ou Marcos e Lucas têm a mesma fraseologia, enquanto Mateus diverge deles. Fica claro, a partir desses fatos, que, no que diz respeito ao ma terial comum a todos os três, Marcos é o termo médio ou a cone xão entre Mateus e Lucas; isto é, Mateus e Lucas nestas passagens não estão diretamente relacionados entre si, mas só através de Marcos. 4. Existem numerosas exceções. Algumas podem ser mera coincidência; ou tras são, provavelmente, devidas a corrupções e assimilações no curso da trans missão do texto (cf. Streeter, o.c., 179ss). Talvez haja ainda outras que são difíceis de explicar, mas permanecem poucas em comparação com o imenso número de passagens em que a generalização que é dada no texto se revela verdadeira. Butler concorda e não tenta usá-las para estabelecer que Lucas conhecia Mateus.
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Ora, é obvio que a prioridade de Marcos explicará satisfatoria mente estes fenômenos. Contudo, seus defensores cometem um grave erro em sustentar (ou pressupor) que nenhuma outra hipóte se poderá explicá-los.5 Butler tem razão, quando afirma que eles são culpados de uma falácia no raciocínio. Se Mateus fosse o Evan gelho original, seguido por Marcos com algumas variações, e que se, por sua vez, Lucas seguisse Marcos, ainda com outras varia ções, esses fenômenos bem poderiam ser a resultante. Ao contrário (sempre com respeito a tais fenômenos), Lucas poderia ser conside rado o mais antigo dos três, Marcos o segundo e Mateus o último. Butler admite que essa última hipótese pode ser descartada por ou tras razões. Contudo, ele insiste, judiciosamente, que os fenômenos podem ser explicados igualmente tanto pela teoria típica, pela qual Marcos é considerado a fonte comum de Mateus e Lucas, quanto pela teoria que ele defende, isto é, que Mateus é o Evangelho mais antigo, que foi usado por Marcos e que Lucas, por sua vez, usou Marcos. Portanto, Butler está certo em afirmar que as relações formais não resolvem por si só o problema sinótico. Os textos dos Evange lhos devem ser cuidadosamente estudados, num a análise com para da, antes que possamos decidir a questão da prioridade. Com isso nós concordamos. Todavia, nos separamos, quando ele continua a alegar que essa comparação convalida a prioridade de Mateus. Embora os defensores da prioridade de Marcos estejam errados na pretensão de demonstrá-la por meio de estatísticas, etc., existem ar gumentos válidos que conservam a sua força. No julgamento do autor destas notas, Butler não teve êxito em destrui-los e eles pesam ainda mais que os argumentos que Butler aduziu na defesa de sua teoria. Antes que voltemos a esse problema, examinemos o lugar da hipótese Q nesta investigação. Ela está ligada à prioridade de Mar cos deste modo: existem passagens, especialmente nas secções di dáticas, em que a versão de Mateus bem pode ser considerada mais original que aquela das passagens paralelas em Marcos. Se se nega 5. Uma teoria alternativa é aquela segundo a qual a fonte comum de Mateus e Lucas não era o Marcos que possuímos, mas um “Ur-Markus”, isto é, uma edi ção anterior de Marcos, semelhante mas não idêntica. A única objeção a essa teo ria é que ela parece desnecessária.
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a existência de uma fonte diferente da de Marcos, será difícil sus tentar que, em tais passagens, Marcos é anterior a M ateus; ao con trário, elas favorecem a prioridade de Mateus sobre Marcos. Con tudo, se Mateus teve acesso a uma fonte diferente de Marcos, então não subsiste nenhum problema para os defensores da prioridade de Marcos. Eis, portanto, por que Q tem um lugar relevante nesta dis cussão, desde que seja justamente o que se exigia, isto é, uma fonte diferente de Marcos. Os elementos que podemos derivar de Lucas, portanto, serão relevantes para a investigação, na medida em que servem para convalidar a existência de Q. Se, contudo, a hipótese de Q for refutada, a posição dos defensores da prioridade de Mar cos será enfraquecida; eles deverão ainda postular uma fonte dife rente de Marcos usada por Mateus, mas não poderão mais referirse a Q como aquela fonte. Eis por que o ataque de Butler a Q é um elemento preliminar de grande importância na sua critica à prioridade de Marcos. Se for bem sucedido no primeiro, aumentará a sua possibilidade de obter êxito também na última, mas apenas um pouco. Os defensores da prioridade de Marcos, de fato, serão conduzidos para um terreno menos seguro; neste caso, deverão postular a existência de uma fonte desconhecida. Entretanto, esta tentativa não parece intrinsecamente injustificável.6 Em outras palavras, é perfeitamente possí vel crer que Lucas tenha obtido o seu assim chamado material Q diretamente de Mateus e que, ao mesmo tempo, Mateus o obteve de uma fonte mais anterior, possivelmente conhecida de Marcos.7 É opinião geral que Mateus nao fez empréstimos de Lucas. As duas únicas explicações possíveis do fato de que eles têm passagens bem semelhantes são: a) Lucas fez empréstimos de Mateus e b) ambos dependeram de uma (ou mais) fonte comum, isto é, a hipó tese Q. Qualquer argumento válido contra a primeira hipótese é, portanto, ipso facto, um argumento em favor de Q. Há três argu mentos principais: primeiro, que, pelo menos, em algumas passa 6. Butler afirma judiciosamente o princípio pelo qual as fontes não devem ser multiplicadas sem um motivo plausível. 7. P. ex., o Dr. A.M Farrer sustenta (como Butler) que Lucas conhecia e usou Mateus (bem como Marcos), mas continua a aceitar o ponto de vista típico de que Mateus usou Marcos. Cf. seu ensaio “On Dispensing with Q” in Studies in the Gospets, 1955, 55-58 e S t. Matthew and St. Afark, 1954.
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gens paralelas, a versão de Lucas parece mais original que a de Mateus;8 segundo, que é difícil ver por que, se Lucas tivesse feito empréstimos de material de Mateus, mudou tão violentamente e freqüentemente a ordem de Mateus; e, terceiro, parece inexplicável o fato que Lucas tenha ignorado9 coerentemente Mateus em todas as passagens em que ele segue Marcos e não tenha feito uso da na r rativa de Mateus onde não existe um relato paralelo em Marcos (e. g. das narrativas da Natividade e das aparições depois da ressurrei ção). Butler enfrenta esses argumentos e os descarta. Ele nega que haja exemplos válidos de passagens Q, em que a versão de Lucas é mais original que a de Mateus e afirma que Lucas não tenta inserir material derivado de Mateus no contexto de Marcos, em que Ma teus o faz. Ele sustenta que seria uma tarefa difícil descobrir que contexto era aquele, visto que, na primeira metade de Mateus e de Marcos, a ordem já está claramente alterada.10 Contudo, apesar dos argumentos de Butler, que merecem cui dadoso estudo, quem escreve estas notas continua a considerar difí cil crer que Lucas tenha usado Mateus. Depois de haver eliminado Q, Butler volta à questão da priori dade de Mateus relativamente a Marcos e, judiciosamente, solicita que ela seja discutida sobre a base de uma comparação, direta e sem prejuízos, das passagens paralelas. Este programa é um desa fio justo de que os defensores da prioridade de Marcos não devem fugir. O próprio Butler examina um grande número de passagens e conclui que, nestes casos, numa comparação direta de Mateus e Marcos, a prioridade quase sempre estará com a versão de Mateus, considerada como a mais original. Os seus exemplos mais convin8. Cf., p. ex., Lc 6,20 (“Bem-aventurados vós, os pobres”) com Mt 5,3 (“Bem-aventurados os pobres em espirito”). Embora seja verdade que a versão de Lucas se adapta aos seus propósitos particulares, ainda me parece que esta seja a versão mais próxima do provável original, do que a de Mateus com “pobres em espírito”. Cf., também, Lc 3,8 com Mt 3,9; a frase de Lucas (mé árxesthe) bem pode ser mais próxima do original que a de Mateus (mé dóxete). 9. Ou poderemos dizer “tenha ignorado quase inteiramente”; cf. n. 4. 10. O Dr. A.M. Farrer (Studies in the Gospeis, 67ss) sustenta que a ordem de Lucas é tipológica e que ele nunca pretendeu refletir a ordem de Mateus. Contudo, ainda que seu argumento seja exposto de modo persuasivo, considero sua tese in verossímil.
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centes são casos11 em que a versão de Mateus é constituída de um todo coerente, enquanto que a de Marcos parece ser uma redução em que se revela o conhecimento de frases ou fatos que Marcos não reproduz. Assim, a menos que se permita recorrer a Q e afir mar que Marcos reflete um certo conhecimento de Q 12 (e não de Mateus), fica claro que a conclusão de Butler parece forçada. Ao contrário, são muito menos convincentes aquelas passagens em que Marcos se refere ao ensinamento de Jesus, ou a parábolas (no plural), e dá apenas um exemplo. É certo que, nesses casos, Marcos conhece mais do que reproduz, e certamente Mateus demonstra mais conhecimento que Marcos, mas constitui uma dedução gra tuita supor que o conhecimento de Marcos é derivado de Mateus. Ainda menos convincentes são as passagens em que a versão de Mateus é mais refinada que a de Marcos; antes, elas afirmam justamente o contrário do que Butler diz. Em toda a sua argumen tação deste tipo, Butler é contraproducente; melhor é a sua defesa de Mateus e mais difícil se tom a explicar por que Marcos teria alterado uma coisa refinada para alguma coisa menos refinada. De fato, a relativa aspereza da prosa de Marcos é um dos fortes argu mentos a favor da tese de Butler. Constitui critério aceito pela criti ca textual que, sendo iguais outras coisas, se deve preferir a leitura mais difícil, visto que é mais provável que a mais difícil seja altera da para uma mais fácil do que vice-versa. Numerosos exemplos po dem ser citados, nos quais, de um modo ou de outro, a versão de Mateus parece ser mais fácil do que a de Marcos. Eles podem ser agrupados sob diversas categorias: a) Variantes gramaticais, em que Marcos está errado e Mateus correto. E. G., Mc 10,20: ephylaxámen (errado) = Mt 19,20: ephylaxa (correto). b) Variantes estilisticas, em que Marcos é prolixo e Mateus conciso. E. G., Mc 10,27 = Mt 19,26. Em tais casos, Butler habi tualmente sustenta a superioridade e maior originalidade da versão de Mateus, sobre a base de que a sua versão está mais próxima de um autêntico paralelismo semítico e mesmo de uma original carac11. Cf. p, ex., a pregação de João Batista. 12. Isto é, da fonte de Mateus para esta passagem.
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terística poética do ensinamento de Jesus. Ao escritor destas notas parece mais provável que Marcos represente uma versão mais pri mitiva e que Mateus alcançou um brilho maior, reescrevendo cui dadosamente aquilo que estava em Marcos. c) Existem os bem conhecidos exemplos13 em que a versão de Marcos parece sentir falta com respeito aos apóstolos, ou mesmo em sua avaliação da pessoa de Cristo, e em que a versão de Mateus evita tais implicações. Sem tentar estabelecer uma linha rígida de desenvolvimento, certamente devemos concluir que tais casos fa lam a favor da prioridade de Marcos e que as tentativas de Butler de evitar essa conclusão são inconsistentes. d) Em algumas passagens, Marcos contém expressões sugesti vas, mas obscuras, enquanto que os paralelos de Mateus parecem fazer uma tentativa de dar ao leitor uma mensagem de edificação, mas ficamos com a impressão de que Mateus não penetrou no sen tido real da questão. Cf., e. g., Mc 8,14-21 com Mt 16,5-12 em que Mateus interpreta o “fermento” contra o qual Jesus advertiu os seus discípulos como “o ensinamento dos fariseus e saduceus”. Contudo, o melhor exemplo é a difícil passagem sobre o propó sito (ou efeito) das parábolas.14 A explicação que Butler dá13 não me parece convincente. Parece que Mateus aqui está encontrando dificuldade para extrair um sentido plausivel de uma afirmação de Marcos aparentemente intolerável, isto é, que Jesus ensinou por meio de parábolas para evitar que os de fora tenham a oportunida de de compreender e de converter-se. Ele supõe que a expressão de Marcos “tudo se passa em parábolas” signifique “eu falo em pará bolas” . Contudo, recentes comentadores sugeriram uma linha de interpretação do texto de Marcos que o escritor destas notas consi dera totalmente satisfatória, a saber, que o mesmo ensinamento é apresentado por Jesus, e que, enquanto alguns pela graça de Deus conseguem penetrar em seu significado profundo, outros firmam o significado superficial, vendo na palavra de Jesus nada mais que 13. P. ex., Mc 4,38 (cf. Mt 8,25); Mc 6,5-6; (Ml 13,58); Mc 10,17-18 (Mt 19,16-17), em que a indagação de Mateus ti me erotás pe ri tôu agathôu e o co mentário anexo êis estin ho agathòs são inteligíveis como uma reescritura de Mar cos, mas muito estranha. 14. Mc 4,10-12 = Mt 13,10-15. 15. O.C., 90-92.
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uma parábola,16 pela qual o obscuro plano de Deus, como é predito em Isaias, se cumpre. Talvez Marcos tenha se enganado parcial mente naquilo que ele próprio anotava, mas, para o autor destas notas, é certo que as suas palavras estão mais próximas do original e que a versão de Mateus representa uma tentativa sem êxito de simplificar aquilo que ele considerava intolerável. Um outro exemplo de engano da parte de Mateus pode ser lo calizado em Mc 2,18 (= Mt 9,14). A cena está pintada na primeira frase de Marcos (“os discípulos de João e os fariseus estavam je juando”); depois, “eles” perguntam a Jesus por que seus discípulos, diferentemente dos discípulos de João e dos fariseus, não jejuam. As pessoas que perguntam, por certo, não são aquelas que eram o sujeito da frase precedente; elas não são identificáveis.17 A corres pondente frase de Mateus è mais concisa e natural. Contudo, é ób vio que, para ele, “eles” são os discípulos de João e dos fariseus. Passamos, assim, para uma fase da discussão que, para o autor destas notas, coloca a prioridade de Marcos fora de qualquer dúvi da séria, isto é, que há passagens em que Mateus se perde em enga nos, ainda que revele um conhecimento da versão autêntica, que é a de Marcos. Um claro exemplo desse fenômeno é dado pelos dois relatos da morte de João Batista (Mc 6,17-29; Mt 14,3-12), Marcos descreve exaustivamente a atitude de Herodes p ara com João: ele o respeitava, mas estava perplexo; foi Herodíades quem estava ansio sa para matá-lo e a história que se segue explica como, apesar da relutância do rei, ela conseguiu realizar o seu desejo. Mateus, cuja versão é mais breve, declara que Herodes queria matar João; mas aqui deve haver um engano, visto que, enquanto a história é perfei tamente coerente com o contexto oferecido por Marcos, nâo se adapta com a introdução de Mateus. Em 14,9, Mateus revela o fato de que ele conhecia realmente a versão completa, ao introduzir fur tivamente na declaração que “o rei” 18 se entristeceu. Está obvia 16. Ou mesmo “um enigma” : o mesmo termo em hebraico ou aramaico pode significar “parábola” ou “enigma”, Cf. J. JEREMIAS, The Parables of Jesus. Parábolas de Jesus, Edições Paulinas, trad. inglesa, 1954, 12-14 (trad. bras.: São Paulo, 1976). 17. Para outro exemplo de plural “impessoal” de Marcos, cf. 5,35.3,21.32: sào outros exemplos prováveis. 18. Marcos chama Herodes de “rei”; Mateus, corretamente, o chama de “tetrarca” em 14,1, mas, em 14,9, erra ao chamá-lo de “rei”. Butler tenta estabelecer
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mente claro que Mateus, na ânsia de abreviar, simplificou sua in trodução. Além disso, tanto Marcos como Mateus contam esta história como um “retrospecto” ou flashback, com o propósito de explicar a afirmação de Herodes segundo a qual Jesus era João ressuscita do. Marcos termina a história de modo correto e depois retoma o fio geral da narrativa com um salto à frente. Mateus, esquecendo-se que se trata de um “retrospecto”, opera uma nitida transição para a narrativa que se segue: os discipulos de João informam Jesus; e “Jesus, ouvindo isso . ..” (Mt 14,12-13). Butler judiciosamente pede que a comparação seja feita sem prejuízo, mas, no curso dela, é inevitável que se recebam determi nadas impressões. Uma impressão que se recebe de Mateus é que ele se esforça regularmente para dar uma versão natural, sem qual quer espécie de aspereza, e tam bém que ele é um tanto pedante.19 Essa impressão pelo menos está em harmonia com o fato de que Mateus, como sustentam os defensores da prioridade de Marcos, combina regularmente Marcos e sua segunda fonte. Butler ridicula riza essa sugestão, considerando-a despropositada e inútil; mas se Mateus era realmente pedante, pode não tê-la tratado assim. De todos os argumentos em favor da prioridade de Marcos, o mais forte é aquele que se baseia no frescor e no caráter circunstan cial de sua narrativa.20 A tradição liga seu Evangelho a Pedro, e esse traço reforça a convicção de que a tradição possa ser correta. Contudo, deve ser observado que o mesmo traço pode ser encon trado mesmo em narrativas de eventos nos quais Pedro nâo estava presente. Butler reconhece esta qualidade em Marcos e a explica por meio de uma sugestão audaciosa: ele admite que Pedro seja fre qüentemente a fonte de Marcos, daí uma vivacidade e riqueza de a prioridade de Mateus, baseando-se em seu melhor conhecimento deste ponto e também em seu conhecimento ocasional, tanto dos hábitos judaicos como dos palestinenses. Tal argumentação è muito frágil e facilmente contrabalançada pelo melhor conhecimento que Marcos tem da história que narra. 19. Cf. 21,2ss, em que ele, aparentemente, usa Zc 9,9 como se significasse dois animais. Cf. também 14,21, em que ele fala de cinco mil homens, “sem contar mulheres e crianças”. Certamente isto é uma glosa pedante ao simples ándres de Marcos. 20. Incluindo alguns elementos que bem podiam derivar-se da observação di reta de uma testemunha ocular, p. ex., o travesseiro no barco (Mc 4,38); e as pala vras e frases aramaicas que Marcos preserva em número maior que Mateus.
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detalhes maiores do que em Mateus; mas ressalva a prioridade de Mateus, sugerindo que o próprio Pedro21 teve acesso a uma cópia de Mateus para a pregação. De fato, essa sugestão admite que Marcos teve acesso direto àquela que foi, realmente, a fonte primária de Mateus, isto é, a ver são autêntica da história que Mateus abreviou ou modificou. É cla ro que, neste caso, a dependência de Mateus se tom ava desnecessá ria. Estes são os casos em que a prioridade de Marcos se apóia for temente, e eles contrabalançam o grupo rival de passagens, consti tuídas principalmente de ensinamento e não de narrativas, com que Butler conta para apoiar a sua hipótese. Recordaremos que, com respeito acessas últimas, os defensores da prioridade de Marcos, às vezes, estão na defensiva e recorrem a Q.22 Com respeito às passagens didáticas, o diagram a de nossa posi ção é
e o da hipótese de Butler é Mt Mc Nas passagens narrativas, a situação é exatamente oposta. Neste caso, a hipótese mais simples é que Mateus depende de Mar cos, enquanto que, agora, é Butler quem exige um diagrama trian gular, isto é Pedro
Mc 21. Ou, talvez, podia ter sucedido que Marcos, fazendo uso de Mateus como sua fonte escrita, recordou-se do relato mais completo que ele tinha ouvido de Pe dro. Em todo caso, Mateus conhece o mesmo relato de Marcos. 22. Cf. p. 252; não é necessário que “Q” indique, neste ponto, uma fonte co mum a Mateus e Lucas. Basta que seja uma fonte usada por Mateus, conhecida e ocasionalmente usada por Marcos.
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Contudo, enquanto que parece perfeitamente verossímil ao escritor destas notas que: 1) tenha existido uma fonte diferente de Marcos, conhecida tanto de Marcos como de Mateus e 2) Mateus a tenha combinado com Marcos, por outro lado, a hipótese de Butler se ba seia na pura imaginação. Nossa explicação dos seus casos favorá veis pode ser despropositada, mas sua explicação de nossos casos favoráveis é inverossimil. No ponto seguinte, se M arcos usou Mateus, então ele usou ape nas cerca de 50% de sua matéria, m as a expandiu na narrativa.13 Contudo, é difícil ver por que Marcos deveria omitir tanta coisa de grande valor, se estava usando Mateus: não só o Sermão da Mon tanha e outros ensinos, como também as narrativas da infância de Jesus. Marcos inclui secçoes didáticas e, assim, não se pode repli car que Marcos estava interessado apenas em narrativas.24 A questão pode ser resumida assim: dado Marcos, é fácil ver por que Mateus foi escrito; dado Mateus, é difícil ver por que era necessário escrever Marcos.25 Se Mateus se serviu de Marcos e incorporou outro material, é fácil compreender por que regularmente ele havia abreviado Mar cos sempre que podia fazê-lo com segurança.26 Apesar dos postula dos da Crítica da Forma,27 é provável que as histórias difusas e cir cunstâncias de Marcos sejam mais originais do que aquelas mais curtas e formais de Mateus. 23. Contudo, a expandiu de um modo natural; as sentenças extras raramente parecem inserções estranhas. 24. É verdade que ele, em todo caso, fez uma seleção do material que estava à sua disposição. Butler insiste neste fato e afirma que, se isso constitui uma dificul dade, é quase tão grande para nós como para ele. Porém, certamente que não. É difícil ver por que Marcos tería omitido esses, se eles já estavam incorporados num documento completo à sua disposição. 25. Isto é, do ponto de vista dos cristãos primitivos. Naturalmente, Marcos é muito estimado pelo estudioso moderno. 26. A história da filha de Jairo é um bom exemplo (Mc 5,21-43 = Mt 9,1826). Mateus omite um episódio inteiro da história; sua versão é mais compacta, mas tem como resultado o ser historicamente muito menos verossímil. Para ele, o pai é que conta a Jesus que sua filha acabara de morrer e lhe pede para vir e res taurar-lhe a vida. Em Marcos, a menina está prestes a morrer e o pai pede ajuda a Jesus. 27. A crítica das formas postula o princípio segundo p qual a conformidade com um modelo regular é uma indicação de que uma passagem volta a uma data mais anterior do que uma que não está em conformidade com o modelo.
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Em último lugar, um exame dos acréscimos de Mateus testemu nha fortemente contra a sua prioridade. Nessa categoria, podemos distinguir duas classes de passagens. 1) Em primeiro lugar, as por ções didáticas de Mateus, que estão ausentes das secções paralelas de Marcps. Butler sustenta que o contexto global de Mateus é ho mogêneo e que, se ele realmente inseriu aquelas secções numa es trutura fornecida por Marcos, obteve resultados incrivelmente per feitos. Contudo, com algumas exceções,28 este juizo será refutado. Assim, apesar da reivindicação de Butler alegando que a famosa passagem do tu es Petrus tem paralelos ou antíteses tanto com os versículos precedentes como com os seguintes, são raros os que o consideram convincente. Pelo contrário, a passagem parece ainda a muitos como um acréscimo no relato que Marcos faz da confissão de Pedro,29 ainda que não seja, naturalmente, necessário considerálo uma invenção. 2) Em segundo lugar, há alguns acréscimos de caráter narrati vo em Mateus que parecem provir da exigência apologética poste rior, ou mesmo do depósito de elaborações legendárias que são evi dentes nos evangelhos apócrifos. Butler se opõe fortemente a seme lhante juízo, considerando-o prem aturo e injustificado. Ele sustenta que se uma comparação detalhada de Mateus e Marcos prova que o primeiro é mais antigo, então tal veredito deve ser aceito, e qual quer suspeita de que as narrativas peculiares a Mateus são “tar dias” deve ser considerada infundada. Contudo, desde que susten tamos que uma comparação detalhada de Mateus e Marcos revela o contrário e favorece a prioridade de Marcos, então o juizo de que as narrativas de Mateus são tardias e, às vezes, quase legendárias deve pesar bastante. Concluindo, pode-se dizer que, embora Butler dê, naturalmen te, largo espaço às passagens que parecem favorecer a sua tese, ele não tenta encobrir o fato de que há fortes argumentos a favor da 28. A saber, as passagens em que os defensores da prioridade de Mateus pos tulam uma superposição de Marcos e Q. 29. Mc 8,27-33; cf. Mt 16,13-23. Cf. também a parábola dos trabalhadores da vinha em Mateus (20,1-16), que segue a frase pollói dé ésontai próto i éschatoi kai éschatoi próto i e que se conclui com uma variante do mesmo lôgion. Contudo, a mensagem da parábola é bem diferente; inserindo-a depois deste lógioti, Mateus acentuou uma característica secundária.
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tese oposta. Num sentido, contudo, ele debilita os primeiros, admi tindo-os logo e depois tentando liquidá-los com poucas palavras, servindo-se da hipótese de que Pedro teve acesso a uma cópia de Mateus. Até que uma explicação mais verossímil venha à luz, a conclusão que Marcos é anterior a Mateus permanecerá.30
30. Para uma resenha da maneira pela qual a prioridade de Marcos veio a ser aceita e dos argumentos dúbios freqüentemente usados em sua defesa, cf. W.R. FARMER, “A ‘Skeleton in the Closet’ of Gospel Research” in Biblical Research 6, 1961, 3ss que o autor destas notas não tinha visto ao tempo da redação deste excurso. Nâo obstante, parece que, conquanto sejam inseguros os argumentos usados no passado, as razoes para se aceitar a prioridade de Marcos são, de fato, fortes.
ÍNDICE ANALÍTICO
Abrao: 63 adocianismo: 186 alegoria: 168, 171, 185 Alexandria: 176, 182, 185 “alogi”: 212, 234 A.T. (uso cristão do): 70ss antinomismo: 108, 134, 164, 176, 189, 198 Antioquia: 176, 182, 185s, 234 Apocalipse de João: 35s, 123, 125, 134s, 143, 184, 193, 199, 233 apocaliptica: 75ss, 12lss, 193 apócrifos: 178 Apoio: 149, 180 apologética: 59ss, 90ss, 97ss apostolicidade: 187, 214 aramaico: 210 Atos dos Apóstolos: 15, 48, 90ss, 103ss, 110, I27s, 129, 142, 231 autoridade: 51, 56, 195, 202, 206, 235 Batismo: 37s, 40, 42, 50, 6 lss, 112s, 119, 149, 177, 200 bênção: 32s, 38 Calendário cristão: 30 Caligula: 58, 123, 127, 137, 139 cânon cristão: 178, 187, 202, 210 cânon judaico: 73, 213 Cânon de Muratori: 221, 227s canto iitúrgico: 38ss catequese: 147s, 163, 209 Clemente: 180 circuncisão: 31, 48s, 6 lss código doméstico: 43, 154 código e rolo: 109, 206, 227ss Colossenses (Epístola aos): 65, 183, 190, 228s comunhão convivial: 69, 160 comunidade doméstica: 148s Corinto: 182s Coríntios (Epístolas aos): 65 cristianismo: (étnico) 47, 208; (judaico) 30, 49, 55, 58, 175;
(e judaísmo) 47s, 124ss, 137ss; (novidade do) 47ss, 51s; (e política) 137s, 158; (estrutura social) 179s, (cultura) 179s, 208 critica das formas: 14, 67, 222, 237, 263 culto cristão: 23s, 42s, 44s, 175, 201, 209 culto do imperador: 123, 124, 130, 134, 157 Davi: 33, 35, 79 ditos de Jesus: 69, 100, 167, 251 Diatessaron : 212, 222 Didaché: 33s domingo: 30 Domiciano: 136, 180 Doze (os): 48, 52, 203, 219 dualismo: 119, 164, 178, 190s, 198 Ebionitas: 177, 180, 186 eclesiologia: 146 edificação: 145s Efésios (Epístola aos): 38, 65, 177» 194, 225, 227, 228s encarnação: 120, 160, 190, 214 epístolas do N.T.: 20, 43, 151, 165s, 174, 225 Erastro: 181 escatologia: 116ss, 234 escravos: 148, 156, 179ss Escritura: 53, 59, 70s, 204 Espírito Santo: 110, 112, 116, 152, 189s Estêvão: 57, 90, 131 estoicismo: 156, 162 ética: 43, 155, 238 eucaristia: 26s, 40ss, 4 4 ,9 7, 152, 200 evangelho(s): 15, 17s, 42, 103ss, 151, 174, 210 evangelhos apócrifos: 217s, 264 evangelização: 15, 97,118s, 138, 146 Família: 148 fariseus: 54 fé e obras: 196
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ÍNDICE ANALÍTICO
filho do homem: 48, 78, 107, 122, 170 Filemon (Epistola a): 157, 225, 229 Filon Alexandrino: 127, 140, 192 Gálatas (Epistola aos): 65 gnosticismo: 119 guerra judaica: 58, 108 Hebreus (Epistola aos): 41, 58, 65, 67, 91ss, 96, 125, 127, 130 helenismo: 16 helenistas: 26, 91, 109, 131 heresia: 119 homilia: 43, 163
Idolatria: 65, 69 Igreja: 195 incorporação: 51, 112, 116 individualismo: 73s interpretação biblica: 72s, 82s inspiração: 74s Israel (novo, verdadeiro): 47s, 59, 89, 106s, 110 Jerusalém (queda de): 58, 142 Jesus: (devoção a) 21, (ministério de) 51, 70ss, 126 (processo de) 70, 113, 126, 129 (histórico) 104, 178 Judas (Epistola de): 199, 236 judaísmo: 18, 124 judeus: 59ss judeu-cristãos: 58, 69, 88 justificação pela fé: 56 Justino mártir: 42, João apóstolo: 180 João Batista: 17, 78, 109, 176 João (Epistolas de): 152, 164, 178, 183, 194, 198, 236 João (escritos de): 142, 184,195, 233 João (evangelho de): 15, 20, 60, 90, 103, 111, 152, 176, 188, 190, 194, 207, 209, 219 Kérigma: 15, 43, 104, 109, 153s, 177, 187, 199, 203, 210, 222
“L”: 253 legalismo: 195 lei mosaica: 69s leite (metáfora do): 149
liturgia: 32ss, 40ss, 45, 175 logia: lOOss, 108, 243 Lucas-Atos: 109, 142, 248 Lucas evangelista: 231; (seu estilo) 184 Lucas (evangelho de): 15, 20s, 103, 106, 193, 209, 220 “M”: 253 maniqueismo: 190 maranatha: 44 Marcião: 212, 222, 224, 226s, 232 Marcos (estilo de): 209 Marcos (evangelho de): 16s, 69s, 103s, 109, 209ss, 220, 252ss martírio: 124s, 127, 135, 159 Mateus apóstolo: lOOs, 106 Mateus (estilo de): 184, 242s Mateus (evangelho de): 19, 20, 88, 103-109,142, 209s, 21 1,22 0, 234, 25 2s membranae: 207 ministérios: 195, 200s missão étnica: 107 mito: 164 Moisés: 63, 92s monofisismo: 187, 188 Nazarenos: 58 Nero: 136, 139 N.T. (apócrifo) 178; (estilo do) 184 (unidade do) 21,201 Onésimo: 229s Oração: 25 Paixão (narrativas da): 113s Papias: 100, 106, 205, 230, 242ss papiro: 209 parábolas: 68, 165, 242, 246 parusia: 115s, 120, 170 Páscoa: 30 Pastorais (Epístolas): 125, I29s, 142, 164, 193, 195, 198,219, 226, 231, 235, 248, 250 Paulo apóstolo: 30s, 67, 68, 129 (escritos) 20s (estilo) 183, 194s Pedro apóstolo: 180, 209, 261s Pedro (Epistolas de): 40, 125, 132, 164, 188, 199, 233, 235
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ÍND ICE DAS CITAÇ ÕES BÍBLICAS
Pedro (evangelho de): 215, 218, 223 Pentecostes: 31, 115 perseguição: 92, 124s peser: 76ss, 82, 109 Plínio: 132s, 136 potências angélicas: 118 profissão de fé: 124 prólogos: (ás epístolas) 225; (aos evangelhos): 220, 225 pseudonímico: 217
“Q”: 19, lOOs, 106, 221, 243, 252 questão sínótica: 252, 264ss Qumran: 25s, 72, 75, 76, 79, 187, 193 Rabinismo: 73ss regras díetéticas: 69s, 161 Reino de Cristo: I15s Reino de Deus: 117, 158, 194 ressurreição: 71, 108, 119, 178, 188 rigorismo: 61 Romanos (Epístola aos) 63, 65, 140 Sábado: 30, 63 sacramento e palavra: 27, 62s sacrifício: 26, 28
saduceus: 25, 54, 80, 141 saltério: 29 Samaria: 176, 182, 191 sermão da montanha: 152, 157 servo de lahweh: 33, 35, 44, 84s, 97 sete cartas do Apocalipse: 135, 229 sinagoga: 24, 29, 141, 143, 149, 177, 179 sucessão apostólica: 203 Taciano: 212 Tiago (Epístola de): 21,43, 155, 180, 183, 188, 191, 197, 199, 235 Tiago (irmão do Senhor): 43, 175, 188, 204 templo: 25, 27, 90, 141, 144 Tessalonicenses (2? Epístola aos): 125 testimonia: 79, 88, 100, 109, 243 tipologia: 186 Tomé (evangelho de): 165, 173, 201, 211, 218, 243 tradição (tradições): 67ss, 209s, 217 Torá: 73ss Volumen: 207
Zelotes: 125, 159
ÍNDICE DAS CITAÇÕES BÍBLICAS ANTIGO TESTAMENTO Ex 3,6: 80 23,20: 109 Nm 12,8: 92
15,32ss.: 63
„ , , D t 25,3: 68 IC r 16,8-36: 32 SL 2,1: 34, 71, 79 16: 72 22,22: 95 45: 94 82: 81, 95 86,1: 59 91:82 102: 93, 95
1 1 0 :7 1 , 7 2 , 7 8 , 7 9 , 9 3 , 9 5 118: 87 Is 6,9s.: 66, 87, 172 g l4 ; 56> 87
8 17s . 96
28,16: 56, 87 35 5; 7 j 40: 109 45,21; 69, 93 53: 34, 82, 98 6 0 :6 1 61,1: 71, 77 6 6 ,lss.: 36 Jr 3,: 51 Dn 2: 87 4,6: 76 7: 78, 87, 97, 122
ÍNDICE DAS CITAÇÕES BÍBLICAS
Os 6,2: 80, 101 Am 9,1 ls.: 64
269 Zc 14,7: 77 M l 3,1: 109 4,5: 78
NOVO TESTAMENTO M t I,lss.r 105 3,7: 105 5,3: 257 5,18s.: 89, 105, 108 5,22: 244 5,23s.: 25, 28 6,2: 25 7,21 ss.: 167 8,1 ls.: 88, 105 9,14: 260 9,18-26: 263 10,23: 107, 170 12,3 Is.: 244 12,40: 80 13: 243 13,10-15: 259 13,36ss.: 168 13,52: 105 14,3-12: 261 16,1.6ss.; 105 16,12: 78 16,13-23: 264 16,18: 105 17,25: 245 18,1: 169 18,20: 89 21,2.5: 101 22,2s.: 168 22,7: 142 22,40: 81 23,2.34: 105 23,31 ss.: 117 24,14: 119 24,45: 169 26,31: 77 27,62: 105 28,15: 61 Mc 1,44 par.: 28 2,18: 260 4,3ss.: 171 4,10-12: 259 5,21-43: 263 6,17-29: 260 8,27 33: 264
8,31 par.: 80 9,13: 78 10,45: 97 12,35ss.: 78 12,31: 81 13 par.: 123, 125, 137 13,14: 137 14,12 par.: 26 14,27: 77 14,57-59: 28 Lc 1,54: 35 1,68ss.: 35 4,21: 77 6,5: 63 6,20: 257 10,39s.: 166 11,52: 75 12,11: 125 12,42: 169 13,28: 57 14,16ss.: 168 i6,8ss.: 168 18,10: 25 19,1 ls.: 170 21,12: 125 21,20: 142 21,24: 118 22,37: 82,97 24,46: 82 Jo 7 9: 112 7,2s.: 28 7,15: 208 7,23: 81 7,35: 57 9,1 ss.: 112 9,34: 126 10,22: 28 10,34í 81 16,2: 30 18,10: 101 19,12: 136 20,28: 136 20,31: 111
270 At 1,23: 203 3,1 ; 29 4,11: 55, 87 4,24ss.: 33 5,40: 68 12,5ss.: 37 15: 64 16,3: 31,65 17,5: 128 18,6s.: 29 18,17: 127 20,6: 31 2 l,23ss.: 29 26,11; 124 28,25: 87 Rm 1,25: 32 3,8: 197 6,1: 197 6,17: 154 9-11: 88 10,16: 98 11,2 5s.: 119 13,lss.: 140, 158 I4,5s.: 30 IC or J-4: 184 I,22ss.: 87 I,26ss.: 148, 179 3,lss.: 149 4,8: 182 5,7: 31 5,9ss.: 158 7,35: 166 1l,23ss,: 41 12,3: 124 14,26: 39 15.25: 117 I6,206ss.: 43 2Cor 3,4: 68 9,10: 166 II,24: 68 11,25: 129 Gi 1,6-9: 49 2,3: 65 2,5: 31 3,16.19: 50 4,10s.: 31 5.11: 48 6,6: 149 6,1 lss.: 31 6,15ss.: 50
ÍNDICE DAS CITAÇÕES BÍBLICAS
E f 4,4ss.: 153 5,14: 37 5.19: 39 Fl 1,15: 185 2,10ss.: 93 4,13: 180 4,12: 167 Cl 1,6.10: 166 2,1 lss.: 50, 62 2,15: 118 2,16: 31 3,16: 39 IT s 2,14: 128 5,3: 140 5,21s.: 167 2T s 2,lss.: 123, 138 3,6: 155 3,17: 215 lT m 3,1: 250 3,16: 36 4,13: 209 6,13: 130 2Tm 1,12: 167 2,15: 167 2,19: 167 3,16: 213 4,13: 207 Tt 3,1: 141 Hb l,8s.: 94 IJOss.: 93 2,3s.: 91 2,13: 140 3,lss.: 92 5.1 lss.: 149 6.1 s.: 150 6,13ss.: 92 11,10: 59 12,22ss.: 121 IPd 2,2: 150 2,9: 50 2,24: 98 3,15s.: 132 4,15: 133 4,16: 132 2Pd 1,13.15: 167 l,20s.: 75 Ap 1,5: 51 13: 134
ÍNDICE Pág. 7 9 11 13 23 46 67 103 115 124 145 175 202 237 242 248 250 252 266 268
Premissa do autor Abreviaturas Abreviaturas bíblicas I. Introdução II. 0 culto da Igreja III. A Igreja toma posição (1) IV. A Igreja toma posição (2) V. A Igreja tom a posição (3) VI. A Igreja toma posição (4) VII. A Igreja perseguida VIII. Edificação e consolidação da Igreja IX. Variedade e uniformidade na Igreja X. As novas escrituras da Igreja XI. Conclusão Excurso I: Grego de tradução e grego original em Mateus Excurso II: Lucas e as Epístolas Pastorais Excurso III: Pistós ho logos Excurso IV: A prioridade de Marcos índice analítico índice das citações bíblicas