Texto apresentado no Colóquio Pós-crítica. Universidade Federal de Santa Catarina, dezembro 2006.
A catástrofe do turista e o rosto lacerado do modernismo
Raúl Antelo Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.
A questão que gostaria de levantar neste colóquio é a da condição etnográfica que o relato contemporâneo mantém com aquilo que, na falta de melhor rótulo, poderíamos chamar de o Real e que, em todo caso, põe a literatura em estado gasoso1. Para início de conversa, deveríamos dizer que a relação etnográfica pressupõe a viagem e que, por sua vez, toda viagem, além de deslocamento e transferência, pressupõe também desordem dos sentidos herdados. Jacques-Alain Miller lembrava, há pouco, que “Freud y Colón se parecen en que los dos hubiesen querido descubrir una cosa diferente de la que descubrieron. Colón pensaba descubrir las Indias Occidentales, y Freud creía descubrir una determinación biológica del psiquismo; en lugar de lo esperado, Colón descubrió América y Freud la determinación lingüística del inconsciente. Y de la misma manera que podemos decir que el nombre de Colón fue cambiado – por el de América - , la metapsicología de Freud se ha transformado casi en la metalingüística de Lacan”2 É sabido, além do mais, que Adorno e Horkheimer, em sua famosa Dialética do Iluminismo Iluminismo , ensaio-diagnóstico da Europa em guerra, avaliaram a viagem (cujo emblema é a Odisséia ) como a epopéia burguesa por excelência, já que encarnava a curiosidade, a racionalidade, e a auto-confiança, porém não menos a cobiça, o sentido da propriedade, e até mesmo a crueldade, fazendo coincidir, na viagem, dois vetores da dialética iluminista, de um lado, a busca da verdade e da liberdade, na conquista expansiva do mundo material, e, de outro, o rechaço e recuo, em relação à exploração simbólica, quando esse mesmo avanço —movimento em direção ao movimento, sem meta final — derruba o poder tradicionalmente acumulado. Susan Sontag já falava, em um ensaio de Contra a interpretação , “O antropólogo como herói”, que o viajante científico abisma-se diante da alteridade, embora sempre engajado na sua própria catarse intelectual. A escritura do modernismo alimentou-se, portanto, deste paradoxo. Admitiu a existência de uma tradição ocidental, porém, tentou sempre reinventar a metafísica do ser nacional como seu campo restrito, como uma reserva ou entre-lugar que guardasse a memória do desgarramento originário. Buscava assim a reapropriação do melhor da cultura universal, para utilizá-lo como arma contra o pior dela mesma, a partir da situação ambivalente dos confins, onde o Ocidente se olha a si mesmo para desconhecer-se alterado de si. A identidade antropofágica seria então a constante construção de uma diferença , mas também a busca, em si mesma, de um modo sul-americano de ser universal. 1
CF. MICHAUD, Yves – “Pequeña etnografía del arte contemporáneo” in El arte en estado gaseoso . Ensayo sobre el triunfo de la estética. Trad. L. Guyomar. México, Fondo de Cultura Económica, 2007, p.25-56. 2 MILLER, Jacques-Alain - Introducción a la clínica lacaniana. Barcelona, 2006.
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Mário de Andrade nos apresenta um caso emblemático em O Turista aprendiz . Como sabemos, o texto configura uma autêntica experiência de modernidade periférica. Tanto na escritura quanto na vida. O diário se situa entre a primeira versão, ainda livresca, de Macunaíma, e sua edição definitiva. De modo que a experiência do ser (que, no caso de Mário, é tributária de O mundo que nasce de Keyserling), um ser pensado como contato inaugural com o Outro, é decisiva na elaboração não só teórica mas também narrativa do modernismo, tal como o concebia Mário de Andrade. O simples uso da palavra turista, em grafia abrasileirada, no título do texto, destaca-se quando comparada com a cautela com que um escritor mais preso ao realismo, como Jorge Amado, mesmo uma década mais tarde, ainda insistirá, pudicamente, na grafia metropolitana, touriste. Mário, entretanto, ensaia a infinita equivocidade da linguagem nova. Anota, por exemplo, em seu diário, ao chegar ao porto de lenha de Caiçara do Madeira, que ali comprou chapéus de “tucumarumã ou tucumaruã piranga, palha avermelhada. Ainda disseram tucumãuã e tucumãhy ou tucumã -açu. Mas outro, um major, me garantiu que era murumuru e não anumã , como os outros estavam falando. E ninguém tinha falado em anumã ! Chapéu de tucumã branco. Chapéu de tucumarumã. Chapéu de carnaúba. Chapéu de timbó-açu. Chapéu de jupati. Chapéu de Chile”3. Aquilo que provocava a densidade intransponível da floresta amazônica não passava, a rigor, de algo vindo “de Chile”, como as satíricas cartas que marcaram a autonomia política do país e de sua literatura. Ora, ao chegar a Iquitos, Mário de Andrade tem desejo de mascar coca e pede o estimulante a um índio que admite saber que ele, Mário, é um escritor. O índio não aceita que o letrado o julgue integrante de uma cultura decaída. A controvérsia gira em torno deste significante. E assim o informante argumenta que só se pode dizer que os índios são decaídos porque Os filhos do Inca já não fazem mais palácio, isso sim. De primeiro eles faziam palácio, agora já não fazem mais, o senhor me entende? E não é porque espanhol tomou palácio que filho de Inca não faz mais outro, filho de Inca é feito a gente, podia fazer outro. Mas Inca foi fazendo, fazendo palácio, teve um dia que fez um palácio tão bonito, era tão lindo que a gente parava assustado. Pois então veio outro imperador e fez outro palácio que também era tão lindo que a gente parava olhando. Ficou ... não ficaram dois palácios não, ficou um palácio e ficou outro palácio, a gente parava olhando um palácio e parava olhando outro palácio... Cada um era mais lindo que o outro, contam os pais das tribos, e foi uma revelação terrível. Todos puseram reparo, por causa dos palácios, que tudo era a mesma coisa, tecidos de penas e leis (quer dizer, tudo era textura e arqui-textura. Por isso o índio admite) Tinha de tudo e tudo era bom, porém tudo era melhor. O imperador inda quis mandar uma ordem mandando a gente achar melhor só o palácio e a lei que ele tinha feito, porém a gente parava da mesma forma, olhando, na frente dum palácio e do outro palácio; e, por causa da lei, teve uma guerra temível entre os soldados do imperador e o povo. Quando se acabou, o povo ganhara porque tinha brigado com certeza. Pois então puseram no lugar do imperador, o primeiro moço que percebera que um palácio não podia ser mais bonito que o outro. Vai, o moço mandou uma lei ordenando que ninguém não construía mais palácio, porque no fundo da gente, a gente pondo reparo, no escuro, tinha um outro palácio mais guaçu, tão lindo, mas 3
ANDRADE, Mário de – O Turista Aprendiz. Ed. T.P. A. López. São Paulo, Duas Cidades, 1978, p.136. 2
tão mesmo! que era impossível construir. Todos quiseram obedecer à lei do moço que sabia tanto, porém foi impossível por causa que isso não resolvia nada; nem caso de palácio nem as leis que deviam fazer a felicidade do povo. Não resolvia porque se a gente assuntava no escuro, o fundo da gente, percebia o tal palácio muito lindo ou a tal lei que fazia mesmo a felicidade, julgava assim e estava certo. Porém, atrás do palácio muito lindo e da lei perfeita, que de tão grandes não podiam ser praticados na vida que vai passando, atrás do palácio e da lei, no fundo da gente, no escuro aparecia outro palácio e outra lei que pareciam inda mais perfeitos, mas que a gente nem podia saber se eram mais perfeitos mesmo porque não era possível construir esses palácios sobre o chão, nem obedecer pras leis que de tão boas, nem a gente conseguia saber quais eram!... Então toda gente se revoltou, e um terno exaltado, de-tarde, pegaram no moço tão sábio, e o enforcaram na maloca pobre dele. De muito que os filhos do Inca já conheciam a coca, porém uma lei sempre falara que ninguém podia mascar coca, só doente morrendo. Os pais das tribos contaram os casos dos palácios pros filhos do Inca, eles ficam horrorizados com as mortes que tiveram na guerra e na revolução. E foram, que nem huitôta, muito mais sábios, porque não fizeram mias guerras nem revoluções. O branco venceu a gente e se aproveita disso. Por se aproveitar é que dá terra pra huitôta morar e mandou uma lei de índio trabucar no roçado vinte dias por ano. Huitôta podendo nem vinte dias trabuca, é muito. Huitôta nem carece imaginar se é feliz, porque agora ele já passou pra diante do tempo do palácio e da lei. Huitôta é feliz, moço, não é gente decaída não. Huitôta não tem lei porque é feliz e por isso anda direito. Bota coca na boca pra se alimentar. E vive bem. Huitôta só sabe o que Deus manda porque os huitôtas agora possuem um deus que manda neles. Não se amolam mais com o palácio de pedra nem com o palácio que tem no fundo da gente, no escuro. (...E concluiu:) Tenho coca no bolso, aqui, porém dou não. O senhor tem um imperador que inda proíbe de mascar coca.. Pois então porque o senhor desobedece! Asim inda fica mais feliz. Não valeu de nada eu contar, sei. É muito tarde, não, é cedo pro senhor não ser infeliz... Falei mas foi pro senhor escrever uma cantiga mais bonita4. A parábola do índio alegoriza a catástrofe da escrita. Com seus três derivativos. 1º) a escrita permite o engano de quem não a controla. 2º) a escrita deve ser resistida porque ela bane a oralidade primária. E, por último, 3º) havendo escritura, há “linhas tortas”, há um sentido metafórico da escritura, um sentido derivado do próprio sentido, que fica assim sem-sentido. Em outras palavras, essa condição oblíqua nos persuade que há o Mal ou, em suma, existe a consciência do antropólogo como autor. Recapitulemos. O índio é buscado por Mário. Quer contato com ele. Não explica de que tipo, se apenas intelectual ou mesmo físico. O índio diz recusar qualquer contato. Apresenta, porém, uma teoria que comprova a ausência de fundo da verdade: uma remete a outra, que por sua vez remete a outra. Mas, ao recusar o contato, o índio, paradoxalmente, efetiva o contato. Devolve ao contágio toda sua potencialidade de metamorfose. Tem coca sim, só que não a entregará conforme o contrato social, ideal-formal, apresentado pelo letrado. A lição etnográfica não se dá, contudo, sem conseqüências. Pouco mais tarde, ao aportar em Belém, Mário, que já condenara a arquitetura marajoara , i.e. os ensaios de uma arquitetura neocolonial, como inautêntica, 4
ANDRADE, Mário de – Op. cit , p.117-8. 3
em nome de um pretenso direito à originalidade, sempre tida como nacional, i.e., toda, admite, porém, que a verdade reside na ficção. Ou, se preferirem, no detalhe. Último dia de Belém, me sinto comovido, palavra. Nunca na minha vida encontrei uma cidade que me agradasse tanto, com que eu simpatizasse tanto. Como enchimento de gostosura, passei em Belém os melhores dias de minha vida, inesquecíveis. Manhã de compras, passagens, caceteações, peles de lontra, mercado, como sempre, essa maior ventura Belém... Coisas de índios... Enfim compro algumas, é meio besta. A falta brasileira de organização é tamanha que tudo o que vendem dos índios, no mercado de Belém, é legítimo. É tudo bastante feio, sem valor usado. Inda não teve quem se lembrasse que é falsificando que a gente consegue tornar estas coisas de mais valor, não só fazendo mais bonito e mais bem feito que os índios, como valorizando as coisas deles, por torná-las legítimas e mais raras. É o documento falso que torna verdadeiro, legítimo. Ora o valor nunca está propriamente na verdade, e sim na legitimidade, não acha mesmo?5 Pouco depois de Mário, embora, na verdade antes dele, porque o texto de Mário, redigido em 1927, e revisto em 1943 é, na verdade, póstumo, editado por Telê Ancona López em fins dos anos 70, digo, depois, embora antes de Mário, Raul Bopp estampa um outro curioso e substantivo relato. Publica-o, mas também oculta-o, porque não consta da bibliografia do autor. Com efeito, em 1934, enquanto no jornal El Mundo Roberto Arlt divulgava a selvageria patagônica (En el país del viento ), o poeta Raul Bopp arma “un reportaje en esquemas”, para mostrar outra selvageria, a africana. Divulga-o na Revista Multicolor de los Sábados , editada por Borges e Ulyses Petit de Murat, em Buenos Aires, como suplemento de outro jornal de massas, Crítica . Nesse periódico se podia ler, à época, a Historia Universal de la Infamia . O texto de Bopp, “El rostro lacerado del África”, é, por assim dizer, em atribuição errônea, um capítulo retirado das inverossímeis imposturas de Tom Castro ou das piratarias da viúva Ching. Por um instante, Bopp é Borges6. Seu texto lê a África mas lê, fundamentalmente, a América Latina, sua modernização, o tamanho de sua esperança. Aquilo que havíamos captado, em 1926, no ensaio de interpretação nacional borgeano — ser ou sentir-se, tanto faz, um estrangeiro em sua própria terra — tornaria a repetir-se, pouco depois, em 1936, no ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, inscrevendo-o na tradição dos ensaios sobre a cordialidade de uma cultura visitada . O texto de Bopp apresenta uma imagem oca e é esse vazio africano que nos ajuda a definir, pelo avesso, uma identidade urbana e de vanguarda na América Latina. A África de Bopp, vista pelo avesso, carece da ternura cordial destes tristes trópicos. Quien arriba a Africa—me estoy referiendo al Africa del sur—siente como primera impresión que se halla ante una tierra bravia. Fáltale cierta ternura cordial, algo más 5
IDEM – op. cit ., p.183. Cf. BOPP, Raul – “El rostro lacerado de África”. Revista Multicolor , nº 33, Critica, Buenos Aires, 24 mar. 1934, p. 3. Em janeiro de 1934 Borges publica na Revista Multicolor “El rostro del profeta”, peça mais tarde incorporada à Historia universal de la infamia como “El tintorero enmascarado Hákim de Merv”; três meses depois o escritor editaria, nesse mesmo suplemento, “El rostro lacerado del África”, de Bopp. Ou de Bopp traduzido / adaptado por Borges. Mesmo sem mencionar este caso específico, é fundamental consultar LOUIS, Annick – Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris, L´Harmattan, 1997 e SAITTA, Sylvia Regueros de tinta. El diario Crítica en la década de 1920. Buenos Aires: Sudamericana, 1998. 6
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de sentimiento de vida. De ahí esa ausencia de alegria, ese aire lúgubre en todo. Tal vez ese embotamiento provenga de un fondo continental inconsciente. O por las preocupaciones de lucro acelerado de quienes llegan hasta allí. O tal vez todavia, cierto exceso de iglesias. Hay una sobrecarga de preceptos biblícos. La naturaleza humana amarrada a las frases bíblicas. Las varias sectas religiosas ejercen un severo control en los espiritos, vigilan la vida publica y privada de los habitantes. Na pergunta acerca do ser subalterno, direito e avesso da coesão nacional se articulam, reciprocamente, por meio das torções introduzidas por sucessivas dobras. Frente a uma “Africa ya vendida, sin nostalgias, sin voces, sin mandinga, seca y salada”, a vitalidade e a memória latino-americanas se consolidam. Deste modo, “El rostro lacerado del África”, o texto de Bopp, inscreve-se, portanto, no circuito de rostos elididos e deslocados por Borges em seus textos (os próprios e até mesmo os alheios, como as Vidas imaginárias de Marcel Schwob, dos quais derivam boa parte dos seus) e, nesse sentido, diríamos que o texto de Bopp se torna uma desconstrução hiperbólica do salvacionismo hispânico, seu efeito residual mais insuspeito, ainda que reconhecível na remota origem da história universal da infâmia (ou como rezava a faixa de propaganda do volume de Borges: de toda a escória do mundo ). Toda a memória do mundo , para retomarmos a metáfora de Resnais, porém, também a metáfora de Silviano Santiago, em “O narrador pós-moderno”. Diz Borges, logo na abertura de sua coleção de peças heterogêneas: En 1597 el P. Bartolomé de las Casas tuvo mucha lástima de los indios que se extenuaban en los laboriosos infiernos de las minas de oro antillanas, y propuso al emperador Carlos V la importación de negros, que se extenuaron en los laboriosos infiernos de las minas de oro antillanas. A esa curiosa variación de un filántropo debemos infinitos hechos: los blues de Handy, el éxito logrado en Paris por el pintor doctor oriental D. Pedro Figari, la buena prosa cimarrona del también oriental D. Vicente Rossi, el tamaño mitológico de Abraham Lincoln, los quinientos mil muertos de la Guerra de Secesión, los tres mil trescientos millones gastados en pensiones militares, la estatua del imaginario Falucho, la admisión del verbo linchar en la decimotercera edición del Diccionario de la Academia, el imperioso film Aleluya, la fornida carga a la bayoneta llevada por Soler al frente de sus Pardos y Morenos en el Cerrito, la gracia de la señorita de Tal, el moreno que asesinó Martín Fierro, la deplorable rumba El Manisero, el napoleonismo arrastrado y encalabozado de Toussaint-Louverture, la cruz y la serpiente en Haiti, la sangre de las cabras degolladas por el machete del papaloi, la habanera madre del tango, el candombe7. E, para além de “la culpable y magnífica existencia del atroz redentor Lazarus Morrell”, poderíamos concluir essa lista heteróclita com “el rostro lacerado” de Bopp, o qual, longe de encerrá-la, reabre a série, se consideramos que ali mesmo se lê, ainda, boa parte das peças que constituiriam El otro lado de la estrella , o livro de outro poeta, Raúl González Tuñón. Não penso somente nas páginas mais óbvias, “Blues de Ébano y Catinga” 7
BORGES, Jorge Luis – Obras Completas. Buenos Aires, Emecé, 1974, p. 295. Em sua primeira edição pela editora Tor, a contracapa traz, além do desenho de um barco em mar encrespado, o emblema da casa, a legenda “Contra viento y marea”. 5
ou “Menina morta”, mas também nos “Blues de Cuatro Centavos”, um texto de clara sintonia com a ópera de seu amigo Brecht, que nos obriga a reler, mais uma vez, póscolonialmente, a primeira dessas crônicas, “Los escritores y la Realidad”8. É que, na história universal da infâmia, da qual a dilaceração africana de Bopp é tão somente um capítulo, o real do ser se torna uma dimensão ôntica impossível e irrepresentável, enquanto que seu elemento simbólico de base, o sujeito, é aquilo que do ser se separa sob a forma de uma divisão, o ego scriptor , ativado por meio do descentramento operado no eu. Deste modo, a descontinuidade entre um eu imaginário, armado por identificações alienantes, opõe-se ao sujeito, enquanto produto da lei significante, introduzindo, com essa estratégia, uma ruptura radical com relação ao programa metafísico e modernizador que instala o sujeito em um lugar central do nacional (ou do continental ). Quer dizer, o Todo. A partir da supremacia do significante sobre o signo, aliás, já não é mais possível conceber a identidade latino-americana como uma operação homogênea, mas antes como sua diferença, como seu diferimento. Por isso mesmo deixa de existir uma meta-linguagem para captá-la, pois sempre haverá um novo significante (o rosto lacerado outro, por exemplo) que pode agregar-se à série, minando, assim, sua ilusória completude. A consciência de si se constitui, então, em uma ficção que aspira produzir o re-centramento do sujeito sobre o eixo da consciência mas, a subversão do sujeito racional, suposta, ao mesmo tempo, nessa operação, escava, ou por assim dizer, esvazia as condições lógicas desta captura, instaurando um vão essencial entre o sujeito da representação e a própria experiência representada, algo assim como uma borda que delimita “el perímetro exclusivamente europeo de lo no europeo” 9. Essa compreensão (que, a essas alturas, estava muito consolidada no círculo nietzscheano francês, aglutinado por Georges Bataille, discípulo de Mauss e desse grande viajante latino-americano que foi Alfred Métraux, produzindo seus primeiros frutos na expedição Dakar-Djibouti (1930), liderada por Michel Griaule, e divulgada com riqueza de detalhes pela revista Minotaure) colocava-se na linha aberta por Gide—com sua Viagem ao Congo (1927), que Marc Allegret filma nesse mesmo ano—ou por Henri Michaux, com Un bárbaro en Ásia (1933), na versão de Borges. Ela ainda pode ser lida em A África fantasma (1934), o livro de Michel Leiris, que também questionará, a partir de um debate que vem da teoria literária, a inscrição do sujeito-etnógrafo em qualquer observação de âmbito colonial. Pode ser lida, ainda, na obra de Carl Einstein, tanto na pioneira Negerplastik (1917), como nos “Aforismos metódicos” de Documents , em que Einstein propunha atuar, através do olhar, sobre o pensamento, e dali, retornar em direção ao real, provocando uma nova figuração do espaço e uma conseqüente transformação das mentalidades10. Pode, além do mais, ser reconhecida no interesse de um íntimo amigo de Joyce, o escritor Eugène Jolas, líder do grupo órfico da revista transition, que reúne uma série de anamitos e psicografias de Samuel Beckett, Franz Kafka, Henri Michaux ou Gertrude Stein, mas também de Miguel 8
GONZALEZ TUÑÓN, Raul – El otro lado de la estrella. Buenos Aires, Sociedad Amigos del Libro Rioplatense, 1934. 9 Cf. ALBANO, Sergio e NAUGHTON, Virginia - Lacan: Heidegger. Los nudos de ser y tiempo. Buenos Aires, Quadrata, 2005, p.55-6. 10 Ver, entre outros textos de Einstein, “On Primitive Art” (October 105, summer 2003, p.124) e “Revolution Smashes Through History and Tradition” ( October 107, winter 2004, p.139-145). Sobre Einstein, consultar ZEIDLER, Sebastian – “Totality agains a Subject: Carl Einstein ´s Negerplastik ” (October 107 winter 2004, p.14-46) ou HAXTHAUSEN, Charles W. – “Reproduction / Repetition: Walter Benjamin / Carl Einstein” (October 107, winter 2004, p. 47-74). 6
Angel Asturias, Ventura García Calderón ou mesmo de Gustavo Barroso, para ilustrar, precisamente, a crise meta-antropológica da arte teorizada, na mesma revista, por Frobenius, Ribemont-Dessaignes, Siqueiros, Soupault ou Vitrac11. Vamos dizê-lo concisamente: o que os escritores transicionais chamavam de crise meta-antropológica da arte, hoje nós conhecemos como pós-crítica. Jolas propunha uma nova categoria de relato, o paramito, que definia como “a kind of epic wondertale giving an organic synthesis of the individual and universal unconscious—the dream, the daydream, the mystic vision. In its final form it might be a phantasmagoric mixture of the poem in prose, the popular tale of folklore, the psychograph, the essay, the myth, the saga, the homoresque. The language of the paramyth will be logomantic, a kind of music, a mirror of a four-dimensional universe”12. Nesse sentido, os artistas de transition entendiam que a escritura constrói um nexo entre o eu e o outro ao abordar as emoções ou profundidades telúricas ascendentes para tratar assim de iluminar uma realidade coletiva, que eles julgavam universal e totalizadora. Tal síntese órfica só seria possível graças a uma comunidade de espíritos que aspirasse à construção de uma nova realidade mitológica: um surrealismo de massas, o pop, o situacionismo13. Um desses artistas, Raul Bopp, recolhe em suas leituras do acefalismo nietzscheano de Paris, um debate do qual, em seguida, ele mesmo participará na república de Weimar. É bom não esquecer, porém, que “El rostro lacerado del África” é imediatamente posterior a um dos livros chave da antropofagia brasileira, Cobra Norato (1931), um texto de profanação, que devolvia à literatura o valor de uso do impossível. Nesse poema, Bopp ilustra a idéia de que, na noite das margens, plena de imagens herméticas, se escondia toda a inquietude ventríloqua das grandes metrópoles modernas e, nesse sentido, a percepção anestética, através das forças anônimas da selva, educaria a sensibilidade do antropófago tecnificado, liberando-a das taras do monoteísmo. O novo homem vertical, superando o rosto lacerado do colonialismo, se confrontaria assim, criativamente, com o próprio medo, com o Real da falta, como marca identitária de todos os homens. Estes exemplos nos impõem um ensinamento. Uma literatura de viagem, um relato etnográfico, não pode mais ser lido, em um só plano, indo de uma origem rumo a uma meta. A viagem é um tropo, uma figura, uma catástrofe metafórica , como a chamava Derrida, que se dispara em múltiplas direções. Lembremos que o padroeiro da viagem, Ulisses, tem um caráter politrópico e que, portanto, só cabe ler a viagem na malha de uma rede discursiva e não-discursiva, porque uma viagem, a rigor, não passa de um dispositivo. É um espelho que nos permite ler tempos, espaços e hierarquias de onde se parte, por onde se passa e de um término, não somente hipotético, mas também infinito, ao qual não se acaba de chegar nunca. Por isso, a leitura de O turista aprendiz e do rosto lacerado de Bopp ganham, se superpostas, por exemplo, a “O etnógrafo”, o relato de Jorge Luis Borges, incluído em Elogio de la sombra (1969). Murdock, o antropólogo, deve definir um exterior de sua subjetividade e o faz a partir da transgressão, como ameaça da diferença, à estabilidade de si e do mundo do saber metropolitano. Murdock não é ainda um profissional. É um estudante. É um estúpido? Em todo caso, é alguém que, diante da diferença, cala. He would 11
VARIOS AUTORES - “Metanthropological Crisis: a manifesto” in transition, nº 21, Haia, mar. 1932, p. 104-45. 12 Cf. JOLAS, Eugene – Transition workshop. New York, The Vanguard Press, 1949, p.29. 13 ARP, Hans et al. – “Poetry is vertical” in transition, nº21, op. cit ., p. 148-9. 7
prefer not to. Em Murdock, a etnologia da solidão , muito semelhante, aliás, à de Octavio Paz, sabe que o segredo é mais importante do que o percurso palmilhado. Mabel Moraña, partidária da enunciação feliz, explícita, concordando, certamente de modo involuntário, com Vargas Llosa, ao analisar esse mesmo relato de Borges, nos diz:
El otro queda del lado opuesto de la orilla o del pliegue, como si no fuera posible o no valiera la pena articular su historicidad en nuestro discurso. Permance, entonces, restringindo a lo que desde afuera se percibe como el no-lugar de la lengua fría y de la lengua débil, la cual sólo alcanza su verdadera fuerza y su temperatura en el espacio que naturalmente le corresponde y a cuyos límites ha sido relegada. Borges renuncia a articular para el otro y por el otro una posición de discurso y sobre todo renuncia a teorizar acerca de su condición y su cultura, y aunque le reconoce cualidad enunciativa, afirma con la borradura de la voz la inutilidad –quizá la improcedencia—de toda traducción. En un gesto sin duda irónico, escéptico, autoparódico, en un guiño premonitorio a los debates de la posmodernidad, Borges nos devuelve a la soledad y a la promesa de la biblioteca. Deja afuera, esperándonos, la otra orilla de la subjetividad, la culpa del colonialismo y la ilusión vana e imprescindible del conocimiento14. Pelo contrário, Beatriz Sarlo, autoridade esgrimida por Moraña para propor essa leitura ainda iluminista, até mesmo legisladora, de “O etnógrafo”, embora sem renunciar a teorizar “acerca de su condición y su cultura”, Sarlo, dizia, renuncia, porém, “a articular para el otro y por el otro una posición de discurso” e, nesse sentido, acaba de nos propor uma alternativa interessante de examinarmos aqui. Com efeito, numa certa reviravolta conceitual, em “Sujetos y tecnologia. La novela después de la historia”, ensaio publicado em sua revista, Punto de vista, ainda em dezembro de 2006, Sarlo argumenta que, se o passado recente obcecou os anos oitenta, o presente é o tempo da literatura que se está escrevendo precisamente hoje. Esse presente não é mais um enigma modernista mas um cenário a ser representado: “si la novela de los 80 fue interpretativa , una línea visible de la novela actual es etnográfica ”. Sarlo tenta, então, não absolutizar os dois extremos e irrita-se só de pensar em listas de duas colunas com textos interpretativos ou etnográficos enfrentados entre si. Prefere pensar que as interpretações do passado já não são mais relevantes para a nova escritura, por apostarem a um todo, a um conjunto comunitário e que, entretanto, na atual posição etnográfica, prevalece a singularidade da particularidade absoluta. O exemplo, obviamente, são alguns textos de César Aira, em que a imaginação etnográfica opera uma reconstrução mais conjuntural do presente. Não é a miséria epicamente explorada pelo realismo de Os capitães de areia , o texto de Amado, por exemplo, mas são os catadores de lixo, o Real do atual capitalismo, o que Aira configura como novas personagens desse cenário. Eles são a moda da nova modernidade. (È bem verdade que, assim raciocinando, Sarlo leva água ao moinho de Aira=dândi=moderno, tese que mereceria maior exame). Mas, de algum modo, Montserrat (2006), a última novela de Daniel Link, insere-se também nessa linhagem. Não só pela criação do cenário urbano
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MORAÑA, Mabel – “Borges y yo. Primera reflexión sobre ‘El etnógrafo’” in SANCHEZ PRADO, Ignacio - América Latina: giro óptico. Puebla, Universidad de las Américas, 2006, p.522. 8
decaído, mas também pela estética do abandono, que Link, aliás, compartilha com o precursor, Aira15. Longe de Arlt, de Borges, de Bopp ou de Andrade, a estética do abandono opõe-se, simultâneamente, à clássica narrativa moderna em suas duas principais variantes, la cerrada, que implica una representación de totalidad y un mundo social de personajes; la abierta, que debilita la trama como señal de la dilución de las histórias y de los caracteres (el personaje se convierte en una fluctuante duración de notas subjetivas y verbales). El abandono de la trama, en cambio, refuta la pericia formal, una vez que se ha mostrado que puede ejercérsela; y también refuta el verosímil sostenido por cualquier paradigma de historia. La trama, simplemente, describe una elipsis que la aleja cada vez más de los desenlaces posibles al principio, y cae, invalidando la idea misma de un desenlace acordado con el comienzo de la ficción. Al caer, la trama señala la ilusión de cualquier verosimilitud que podría haberse construido en el comienzo; desautoriza, de atrás hacia delante, lo que se ha venido leyendo. Como si se dijera: donde todo puede pasar, se pone en duda lo que pasó antes de que la trama cayera. La novela muestra una especie de cansancio del narrador con su propia trama, que es un cansancio (contemporáneo) de la ficción. Aun en sus obras más “etnográicas”, Puig no abandonó la trama, porque ella era una dimensión central de lo que prometía a sus lectores, pero también de la forma en que se planteaba para sí mismo la novela. Disuelta por abandono, la trama fuerza a la ficción dentro de una lógica donde todo puede ser posible, que se distancia de una historia “interpretable” y cuestiona la idea de que exista un orden de los “hechos” de la ficción, así como la de un personaje que se mantenga de principio a fin, cambiando sólo dentro de las posibilidades que quedan marcadas en el comienzo (como sucede con los personajes modernos). Probablemente no haya una impugnación más severa de la ilusión representativa que el abandono de la trama en el desenlace16. Portanto, Sarlo conclui, aderindo aliás à tese anteriormente apresentada por Sérgio Chejfec, em um dos ensaios de El punto vacilante (2005), que Aira é um mestre no abandono da trama. Em outras palavras, contrariamente àqueles índios de Iquitos, que recusavam a fábula decaída de Mário de Andrade, o narrador das novelas de Aira, ou mesmo o de Montserrat, revela-se cansado de sustentar uma trama moderna e interpretativa de uma totalidade. O título, precisamente, de uma dessas ficções de Aira, Yo era una chica moderna, proclama, assim, que este narrador do presente é, à sua maneira, um turista aprendiz de si mesmo. De idêntico modo, poderíamos pensar que o melhor leitor, entre nós, da relação etnográfica , tal como colocada por Borges e aclimatada por Aira, é Bernardo Carvalho. Nove noites (2002) é, como sabemos, reatamento da exploração pós-crítica de Borges, tomando como matéria o suicídio do etnógrafo americano Buell Quain, entre os índios khanô, no interior do Brasil. O mesmo se dá em um relato menor, “Bernanos dançando no 15
Cf. ANTELO, Raul - “A estética do abandono” in RESENDE, Beatriz (ed.) – A literatura latino-americana no século XXI . Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005, p.111-140. 16 SARLO, Beatriz – “Sujetos y tecnología. La novela después de la historia”. Punto de vista, nº 86, Buenos Aires, dez 2006, p.3-4. 9
paraíso” (2005). A moldura—a morte e a literatura; Quain, Bernanos e Carvalho—é simétrica, situada entre duas guerras, a de 1939 e a de 2001. São duas e a mesma guerra. Tais relatos, portanto, giram em torno de três idéias centrais. Em primeiro lugar, a de que a originalidade não é, a rigor, um valor. A seguir, a noção de que a subjetividade não é mesmo expressão, ela é, fundamentalmente, construção e, por último, consciente de que o real nunca é suficientemente real no plano da ação, no fluxo da história, o narrador chega, então, à conclusão de que a arte também não se sente suficientemente artística no plano da dicção. Em sintonia com a tese do nominalismo pictural de Th. de Duve, poderíamos então pensar, com Badiou, que a literatura do presente, mediante a axiomática e o formalismo, revela uma incontida paixão do real 17. As dobras do texto turista, o texto que viaja ao redor de si, nos revela, enfim, o rosto lacerado do modernismo tardio, através de um desdobramento, sem fundador nem origem, que, legitimamente, pretende aspirar à condição de catástrofe discursiva, sem dentro, nem fora, colocando-se como um estranho a ambas as esferas, simultaneamente. É a partir desse vazio—creio—que o presente pode ser, precariamente, figurado.
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BADIOU, Alain - El siglo. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires, Manantial, 2005, p.75-76. 10