ABRIL | MAIO | JUNHO 2013
K C O T S N I T A L / N O I T C E L L O C T T E R E V E Y S E T R U O C
Capote em retrato dos anos 1950 Pág. 90
8 CARTAS 9 ROUBOU A CENA 10 TUDO EM DIA
IMPRENSA LOCAL FORTE Carlos Eduardo Lins da Silva
ressalta o valor de jornais de cidades pequenas quando ocorrem ali fatos de interesse mundial 14 DIRETO DE COLUMBIA
DILEMAS DA PROFISSÃO David Klatell Klatell explica por que
as tecnologias digitais alteram a tomada de decisões éticas nas redações
16 IDEIAS + CRÍTICAS
JORNALISMO PREVENTIVO Marce Ma rcelo lo Soar Soares es, da Fo Folha lha, mostra
como boas coberturas podem ajudar a evitar tragédias em vez de apenas noticiá-las
22 MEMÓRIA
O MEU JORNAL DA DA TARDE TARDE Humberto Werneck Werneck relata sua
experiência no mítico diário paulistano durante os dias de glória da publicação que já não circula mais
30 ESPECIAL
JORNALISMO PÓS-INDUSTRIAL
Relatório preparado por C.W. Anderson,, Emily Anderson Emily Bell e Clay Shirky Shirk y, da Columbia University, investiga as fronteiras da imprensa no século 21 32 INTRODUÇÃO
A transformação do jornalismo norte-americano é inevitável 41 PARTE 1: JORNALISTAS
Se há profissionais de imprensa, é porque o mundo precisa saber o que aconteceu, e os motivos
Memorial a repórter mexicano morto Pág. 102
55 PARTE 2: INSTITUIÇÕE INSTITUIÇÕES S
A dificuldade de viabilizar as mudanças necessárias em instituições jornalísticas 70 PARTE 3: ECOSSISTEMA
A capacidade de produzir, copiar e discutir conteúdo digital faz desmoronar antigas verdades sobre a imprensa e a mídia 81 CONCLUSÃO: MOVIMENTOS TECTÔNICOS
A sobrevivência da profissão depende do reconhecimento de que estamos em meio a uma revolução e do compromisso com as mudanças 90 À PENA FRIA Douglas Dougl as McCol McCollam lam, da CJR,
descortina a astúcia de Truman Capote para conseguir a entrevista que originou o perfil de Marlon Brando
K C O T S N I T A L / S
O D Ú E T N O C O Ã D A T S E / S A T I E R F E D N O S L E V E
98 POR QUE OS JORNAIS ERRAM AO BRIGAR COM O GOOGLE NEWS Leão Serva, professor da
ESPM, argumenta que a resistência da mídia impressa
102AULAS DE SOBREVIVÊNCIA Judith Matloff Matloff , da CJR, expõe o
drama de jornalistas mexicanos que pedem apoio a colegas da Colômbia para resistir aos cartéis de drogas
106 ENQUANTO ISSO, NO BRASIL... O jornalista Mil Milton ton Bellint Bellintani ani
traz à tona a realidade de repórteres obrigados a sair do país para escapar dos bandidos que os ameaçam de morte
112 INOVAÇÃO COM PRAZO DE VALIDADE Micha Mi chael el Schu Schudson dson e Ka Kather therine ine Fin Fink k, da CJR, apresentam um blog de notícias
que teve de deixar de ser visionário para crescer e ganhar legitimidade
114 PARA LER E PARA VER
Comentário sobre a série House of Cards e os lançamentos A Poeira Poeira dos Outros e O Silêncio contra Muamar Kadafi na coluna de Tito Montenegro 118 CREDENCIAL Jorge Ta Tarquini rquini, ex-diretor de redação de Quatro Rodas
Conra os lançamentos do Instituto Cultural ESPM
Imprensa livre, Democracia forte
presidente J.Roberto Whitaker Penteado vice-presidentes Alexandre Gracioso, Elisabeth Dau Corrêa,
Emmanuel Publio Dias e Hiran Castello Branco
diretoria Flávia Flamínio (diretora-geral da espm Rio de Janeiro), Richard Lucht (diretor-geral da espm Sul), Luiz Fernando Garcia (diretor da Graduação da espm São Paulo) e Licínio Motta (diretor da Pós-Graduação da espm São Paulo) conselho editorial J. Roberto Whitaker Penteado (presidente), Eugênio Bucci (secretário), Carlos Eduardo Lins da Silva, Caio Túlio Costa, Carlos Alberto Messeder, Janine Lucht, Judith Brito, Maria Elisabete Antonioli e Ricardo Gandour
A Propaganda no Brasil. Evolução histórica de 1808 a 1979 . Roberto Simões
206 páginas
redação da revista de jornalismo espm diretor de redação Eugênio Bucci editor Carlos Eduardo Lins da Silva Paula Cardoso editora-associada Ana Paula diretora de arte Eliane Stephan assistente assist ente de de arte arte Marcelo Salvador editora-assistente Anna Gabriela Araujo coordenadora editorial Lúcia Maria de Souza tradução Ada Félix, Faoze Chibli e Lizandra M. Almeida revisão Mauro de Barros
publisher Jorge Tarquini
A Revista de Jornalismo é uma publicação trimestral da ESPM, Jornalismo espm é com conteúdo exclusivo da Columbia Journalism Review endereço Rua Doutor Álvaro Alvim 123 - Vila Mariana - São Paulo - SP - CEP 04018-010 editorial 11 - 5085-4643 e-mail
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diretor da columbia graduate school of journalism Nicholas Lemann presidente Victor Navasky vice-presidente Peter Osnos
Conferência Legislativa sobre Liberdade de Expressão 7 anos de debates. 88 páginas
diretora de redação Cyndi Stivers editor-executivo Mike Hoyt editor-administrativo/revista Brent Cunningham editor-chefe/internet Justin Peters editor-associado/chefe de redação Tom O’Neill editores-associados Kira Goldenberg, Sang Ngo Ngo Barrett, Curtis Brainard (Ciência), equipe de redação Liz Cox Barrett,
Greg Marx, Michael Meyer (Agência de Notícias) comissão de auditoria Dean Starkman (Kingsford Capital Fellow), Ryan Chittum (Editor Adjunto), Felix Salmon, Martha Hamilton (Auditor) editores-assistantes Sara Morrison, Hazel Sheffield editores-associados James Boylan, Julia M. Klein, Charles Lewis, Trudy Lieberman, Robert Love, Michael Massing, Judith Matloff, Douglas McCollam, Alissa Quart, Cristine Russell, Michael Shapiro, Scott Sherman, Clay Shirky publisher Dennis Giza
Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Ed. Prof. Dr. Luiz Celso Piratininga - 2º andar Vila Mariana, São Paulo, SP CEP 04018-010
A Columbia Journalism Review é uma publicação da Columbia University Graduate School of Journalism As informações contidas nos artigos assinados e publicados nas páginas da Revist Revista a
Embora se atenha ao exame do jor-
nalismo apenas nos Estados Unidos,
EDITORIAL
o estudo tem óbvia relevância para todos os países que em maior ou
menor medida adotaram ao longo do século passado o sistema norte-americano como modelo para si próprios,
como é o caso do Brasil. É evidente que nenhuma sociedade copia ou transplanta princípios e práticas de outras sem modificações, muitas
vezes significativas, que alteram e dão características próprias ao que se vai construindo a partir das inspirações que
vêm de fora e da sua própria história.
Mesmo assim, ainda mais depois que a globalização se impôs de modo defini-
Sem tempo a perder
tivo do último quarto do século 20 em diante, é fundamental para nações como
Revista comemora um ano com edição especial que inclui documento sobre jornalismo pós-industrial, tema prioritário para a atividade
o Brasil prestar atenção ao que ocorre e ao que se discute nos Estados Uni-
dos em campos como o do jornalismo para poder ter condições de entender melhor o que acontece aqui mesmo e o que se pode fazer para evitar erros lá cometidos e desenhar caminhos apropriados para aproveitar os seus acertos.
Esta é uma edição especial de nossa revista, que marca o seu primeiro aniversário. Para lhe dar mais substância, ela
traz a íntegra de um dos mais importantes documentos de diagnóstico da crise em que se encontra há pelo menos 20 anos a atividade do jornalismo no mundo.
O que o Tow Center nos diz é que as condições técnicas, materiais e de metodologia que mantiveram a indústria do jornalismo atuante até o fim do
século 20 não existem mais. O jornalismo se organizava em torno das normas da proximidade do maquinário de produção, e isso não é mais necessário. As crenças e comportamentos que se sustentaram pela lógica industrial não se seguram mais, e ainda não está
Trata-se de “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos Novos Tempos”, do Tow Center for Digital Journalism da Columbia Journalism School. O centro foi estabelecido pela escola em 2010 para explorar como o desen-
claro o que os substituirá. Isso vale tanto para a produ-
lismo para que eles possam compreender melhor os desa-
Nossa intenção, ao publicar este importante docu-
ção física do veículo jornalístico em qualquer forma,
quanto para a da informação em si, devido à importância crescente de bases de dados, de interação com múlvolvimento das tecnologias está alterando o jornalismo, tiplas fontes e com o próprio público. suas práticas e consumo, por um público que tenta avaNão se trata apenas de discutir o “modelo de negócios” do liar a credibilidade de informações que lhe são oferecidas jornalismo, como se diz comumente no Brasil. A questão é em quantidades cada vez maiores e por diversas fontes. muito mais profunda, de acordo com a lógica do Tow Center. Esse debate, que ainda é muito incipiente entre nós, não Por meio de pesquisa e ensino de elevado nível de qualidade, o centro vem prestando excepcional auxílio a jor- deve ser mais adiado nas empresas, nas escolas, nas entinalistas, empresas jornalísticas e consumidores de jorna- dades ligadas à imprensa, mesmo no âmbito do Estado. fios desta época e as perspectivas para o futuro. O relatório da pesquisa sobre o jornalismo pós-industrial lançado no fim de 2012 foi uma espécie de coroamento dos primeiros anos de atividade do centro. “Parte
mento na íntegra, não é que ele seja usado como cânone, nem mesmo como mapa, já que a realidade e a conjuntura brasileiras, em todos os sentidos, são muito diferen-
tes da americana, por mais que os dois sistemas de jor-
CARTAS
FORMAÇÃO DE LEITORES Recebemos duas edições da Revista de Jornalismo ESPM ( julho/agosto/ setembro de 2012 e janeiro/fevereiro/ março de 2013). Diante de sua importância, gostaria de ter acesso às demais edições da publicação. Atenciosamente, Silvana Capelari Orsolin, setor de
Periódicos, Biblioteca Central, Fundação Educacional de Patos de Minas (MG)
MUITO BOA Sou editora executiva do programa AutoEsporte e gostaria de dizer que considero a Revista de Jornalismo ESPM muito boa. Ivandra Previdi, editora executiva
do programa AutoEsporte
ALGO A MAIS...
CONTEÚDO RELEVANTE
ARQUIVO VALIOSO
Sou João Victor, estudante do segundo ano de jornalismo do Cesumar (Centro Universitário de Maringá), em Maringá (PR). O chefe da TV Cesumar, onde trabalho, me mostrou a Revista Jornalismo ESPM e eu a achei fantástica. Fiquei impressionado com o conteúdo. Gostaria de saber como faço para receber essa publicação.
Agradecemos o envio dessa valiosa revista, que passa a integrar o acervo da Biblioteca Central desta Universidade. Esse tipo de publicação não só enriquece nosso acervo, como também amplia as fontes de consulta que disponibilizamos à comunidade acadêmica e à comunidade externa desta região. Reiterando os agradecimentos, apresentamos nossos cumprimentos.
João Victor, Maringá (PR)
Resposta da redação – Prezado leitor, você pode assinar a Revista de Jornalismo ESPM no link www.espm.br/espmcjr.
Ivone H. Oogusuko Carvalho,
bibliotecária da Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo (SP)
RELEVÂNCIA TELEGRAMA Agradeço a gentileza do envio de exemplar da Revista de Jornalismo ESPM. Parabéns aos organizadores e colaboradores pela iniciativa. Contínuo êxito nas atividades.
Excelente o artigo “Em busca da Antonio Salim Curiati, deputado estadual alma perdida”, de autoria de Marcelo Partido Progressista de São Paulo Rech, publicado na edição nº 4, da Revista de Jornalismo ESPM. SEM DEMAGOGIA Na era do conhecimento, o conceito é diferenciar: segmentar para aproximar, emocionar para cativar, envolver para Recebi a edição de janeiro/fevereiro/ compartilhar. Na pauta, sensibilidade março da Revista de Jornalismo ESPM. Fantástica. Editorial ácido, para conquistar, credibilidade para fidelizar. Na sedutora tecnologia, engajado e, acima de tudo, sem inovação para mobilizar, não demagogia. Obrigado pelo presente! para protagonizar. O amadurecer André Laurent, repórter especial jornalístico é obrigação, não uma e apresentador do Globo Esporte – questão. O fazer pensar neste TV Liberal, Belém (PA) instante certamente produzirá um “algo a mais” interessante. Encontrar SÓ ELOGIOS ... a alma perdida, mais do que um desafio, é o único caminho! O pessoal aqui da sucursal do Mauro Wainstock, jornalista, editor de jornal Valor Econômico , em Brasília, livros, jornais e sites, Rio de Janeiro (RJ) é só elogios em relação à Revista de Jornalismo ESPM. Parabéns! Fernando Exman, repórter do Valor Econômico, Brasília (DF)
Caros, gostaria apenas de manifestar (tardiamente, é verdade) meus sinceros agradecimentos por receber a edição do primeiro trimestre. O conteúdo está um primor, muito relevante para qualquer jornalista que se preze. Obrigado. Paulo Gomes
JORNALISMO DE QUALIDADE Agradeço o envio do exemplar da edição de janeiro/fevereiro/ março da Revista de Jornalismo ESPM e felicito essa instituição pela qualidade da publicação. Com as expressões do nosso apreço, firmo-me. Cordialmente, Maurício Azêdo, presidente da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI)
■
ROUBOU A CENA M U N G A M / S S E L G N I N A E M D N A Y T P M E O Ã Ç A R T S U L I / 3 1 0 2 , L I S A R B , S I V T U A R O P O D A I C N E C I L / É N E R , E T T I R G A M , E T T I R G A M . R E U Q È H T O T O H P © L A N I G I R O
D
ia 11 de fevereiro, segunda-feira de Carnaval, eu tive um dia de traba-
lho normal. Como de costume, antes de começar as atividades, passei os olhos no mural do Facebook para saber das novidades. Um “post” enfático e mal-humorado de um amigo me chamou a atenção: “Parem de falar sobre o Papa, falem sobre qualquer outra coisa, menos sobre o Papa!” “Escaneando”
o mural, vi de relance outros “posts” – mais Papa. Deve ser algo sobre os recentes escândalos do Vaticano, pensei. Mas eis que uma palavra me saltou aos olhos: “renúncia”. Imediatamente compreendi o que estava acontecendo e passei para a home de um importante provedor de notícias. Não havia nada a respeito. Voltei ao FB. Notícias e comentários se somavam: não havia dúvida, o Papa havia renunciado. Voltei à home do provedor de notícias e lá estava uma chamada acanhada ao lado da nudez exuberante da foto de uma mulher, destaque de escola de samba.
Bento 16 era o primeiro papa a renunciar em 600 anos – o anterior, Gregório 12, jogou a camisa em 1415 – e, pelo menos no Brasil, um grande portal jornalístico havia sido furado por uma rede social. Claro que tudo isso se passa muito rápido, e é impossível não constatar a agilidade com que a notícia se espalha. Logo os sites de notícias brasileiros destacavam o assunto. Mas o FB, então, já havia passado para a fase dos comentários sardônicos, e a página Empty and Meanin-
Da página Empty and Meaningless veio a primeira imagem, numa citação da tela surrealista de Magritte. “Isso não é um cachimbo”, faz parte de uma de suas obras-primas, de 1926. O autor da paródia
TUDO EM DIA carlos eduardo lins da silva
K C O T S N I T A L / S R E T U E R
Fazer fotos como esta em tragédias em cidades pequenas, como Newtown, traz dilemas éticos para jornalistas que fazem parte da comunidade
Jornalismo local confirma relevância quando o megainvestidor warren buffett, um dos mais
bem-sucedidos financistas do mundo, anunciou que estava comprando dezenas de jornais de pequenas cidades dos Estados Unidos, em fevereiro deste ano, muitos se surpreenderam, já que é quase um lugar-comum a teoria de que o jornalismo impresso está há muito tempo condenado à morte, em especial o de comunidades menores. Mas nos dois meses anteriores, nos Estados Unidos e no Brasil, a “imprensa local”, como em geral é conhecida, havia fornecido exemplos claros de sua importância, em tragédias de repercussão mundial: o assassinato de 20 crianças e seis adultos numa escola em Newtown, em 14 de dezembro de 2012, e o incêndio em uma boate
até que os repórteres dos grandes centros chegassem até lá. E, mesmo depois disso, eles continuaram a fazer uma cobertura diferenciada, às vezes complementar, às vezes antagônica, o que permite refletir de maneira mais aprofundada sobre qual pode ser o seu papel nesta sociedade altamente digitalizada dos tempos atuais. Alberto Dines, antigo defensor da importância dos jornais de cidades pequenas, comentou no programa Observatório da Imprensa dedicado ao episódio de Santa Maria: “A
grande imprensa não existe solta no espaço, seus atributos dependem dos atributos do espírito cidadão que circula em sistemas de alto-falantes, rádios e TVs comunitárias, jornais de bairro, semanários e diários regionais. Quem sofre o pri-
Números fortes
JORNALISMO LOCAL
33%
O lado trágico
dos adultos que moram sós no Brasil têm internet em casa, comparados com 58% de toda
o aspecto mais dramático do jor-
nalismo local é a extrema vulnera bilidade que afeta seus praticantes, em especial em países nos quais a proteção à liberdade de imprensa é menos estruturada, como o Brasil. Apesar da relativa liberdade de expressão aqui vigente para os veículos de repercussão nacional desde o fim do regime militar, em regiões mais distantes dos grandes centros, é quase corriqueira a ocorrência de violência contra os profissionais de imprensa que atuam com independência diante dos poderes políticos e econômicos locais. O Brasil é o ter-
ceiro país em ataques à imprensa nas Américas e ocupa a 11ª posição no índice mundial de impunidade contra crimes praticados contra jornalistas em represália direta por suas reportagens, segundo o Commitee to Protect Journalists. A diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, costuma citar o Brasil ao lado do Paquistão como as nações em que os ataques a jornalistas são mais graves. E as vítimas são invariavelmente de cidades pequenas, como a mais recente, o repórter Rodrigo Neto de Faria, morto em março em Ipatinga (MG). ■
a população adulta do país
34%
340 milhões
de tuítes são enviados por dia no mundo
130
é o número médio de amigos de um usuário do Facebook
1º
é o posto do Brasil na lista dos países com Facebook que mais publicam posts; apenas um grupo de 800 páginas brasileiras tem 86 mil posts por mês
12%
foi a porcentagem representada pelos veículos impressos do total
Não é só Buffett warren buffett não é o único
bilionário que investe em jornalismo local. Joe Ricketts, 71, criou o TD Ameritade, que revolucionou o mercado de ações norte-americano ao permitir operações online, e é dono de dezenas de empresas, além do time de beisebol de Chicago, o Cubs. Em 2009, lançou o DNAinfo.comNewYork, site jornalístico que cobre
os assuntos locais de cada bairro da cidade. Em 2012, surgiu o DNAinfoChicago. O primeiro tem 1,5 milhão de visitantes únicos/mês; o caçula, 650 mil. Ambos com crescimento exponencial. Com redações encorpadas e bem pagas, recebem elogios de jornalistas importantes, mantêm relações sólidas com as comunidades que cobrem e vão bem economicamente. ■
comparou as prioridades: “Qual era a grande pergunta das emissoras de grande expressão da mídia nacional? Quem são os culpados? Qual era nossa grande pergunta? Quem são as vítimas? Nossa preocupação era com a informação”. A revista The New Yorker, na edição de 4 março, publicou análise de sete páginas sobre a cobertura que o semanário The Bee, de Newtown, fez do massacre na escola elementar Sandy Hook, que traumatizou a comunidade. O repórter John Voket, do semanário, disse a sua colega Rachel Aviv, da New Yorker, que a maneira de cobrir o assunto de um e outra era necessariamente diversa: “Você não tem que se preocupar, você vai escrever esta matéria e vai embora; nós vamos cobrir esta matéria para sempre”.
dos homens entre 45 e 75 anos que moram sós no Brasil são leitores de jornal durante a semana, comparados com 19% de toda a população adulta do país
do faturamento de US$ 29,6 bi-
lhões do grupo Time Warner em 2012; em março deste ano, o grupo resolveu separar as publica-
ções impressas do conglomerado Fontes: IBGE, Mediabistro, AllTwitter, Socialbakers, Financial Times
Airton Amaral, da TV Santa Maria, afirmou ao Observatório da Imprensa que optou por não colocar no ar entrevistas de pais ou mães desesperados pela morte trágica de um filho: “Outros veículos fizeram isso, porque há outros interesses em jogo – pela audiência, pelo Ibope –, o que não é o nosso caso. No nosso caso há um comprometimento com a cidade”. Shannon Hicks, a repórter fotográfica do Bee, que fez a célebre imagem da fila indiana de crianças resgatadas da escola de Newtown, também resolveu não publicar inúmeras fotos mais sensacionais que tinha, em respeito a quem, para ela, são mais do que “personagens da notícia”. Impossível dizer o que é certo ou errado. Como conclui Alberto Dines: “O interesse do leitor distante vai
UMA FRASE
“Não há nenhum substituto para um jornal local que esteja fazendo um bom trabalho” Warren Buffett, 82, considerado o maior investidor do século 20, ao explicar por que resolveu comprar 28 jornais de pequenas cidades em 2012
ESPAÇO GARANTIDO
PALAVRA ABERTA
Os jornais pequenos que fizeram sucesso em 2012
Pelo desenvolvimento
Seven Days (Burlington)
comportamento nas escolas da cidade. O sucesso fez com que seus editores passassem a dar prioridade ao jornalismo opinativo na pauta, com mais colunistas e mais editoriais. O redator-chefe, Mitch Pugh, argumenta: “Os leitores podem não concordar sempre conosco, mas como um todo eles gostam de saber que há um veículo empenhado em melhorar a cidade”.
O semanário da cidade de 42 mil habitantes no Estado basicamente rural de Vermont, na costa leste dos Estados Unidos, teve em 2012 o maior faturamento de sua história de 28 anos de publicação. O sucesso se explica em parte pelo bom uso que faz das tecnologias digitais, com boas versões para aparelhos móveis de telefone e tablet, em parte pela Lawrence Journal-World criação de diversos títulos comple- (Lawrence) mentares ao do jornal (revista mensal para pais e filhos, anuário gastro- O diário da cidade de 88 mil habinômico, guia para escolas e faculda- tantes iniciou em 2012, em colades) e principalmente pela dedica- boração com diversas lojas locais, ção editorial aos assuntos da comu- um programa de fidelidade chanidade, que se expressa na cobertura mado Give Back (dê de volta), pelo e na realização de eventos de inte- qual consumidores e comerciantes resse dos leitores. que se associam a ele dão parte do dinheiro utilizado em compras fideSioux City Journal (Sioux City) lizadas a entidades filantrópicas. O Give Back se tornou uma das mais O diário da cidade de 82 mil habitan- bem-sucedidas campanhas liderates no Estado basicamente rural de das pelo jornal em seus 122 anos de Iowa ganhou circulação, publicidade publicação e reanimou os editores, e influência em 2012 por ter tomado que vinham passando por uma crise atitude editorial agressiva a partir do de confiança devido à baixa de circusuicídio de um estudante, vítima de lação em anos anteriores. O sucesso bullying num colégio local. O jornal fez com que o jornal resolvesse invespublicou um editorial de primeira tir mais em tecnologia digital, com
A defesa da liberdade de expressão não se resume a um princípio fundamental dos direitos humanos e da democracia como valor filosófico. Ela também tem a ver com o desenvolvimento econômico das sociedades que a praticam. A relação entre o nível de liberdade de expressão e de progresso material das nações foi o tema central de debate promovido pelo Instituto Palavra Aberta em março, com a participação do reitor da Columbia University, Lee Bollinger, um dos maiores especialistas na defesa da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, e de Nicholas Lemman, diretor do curso de pós-graduação em jornalismo da mesma universidade, entre outros. Apesar das dificuldades metodológicas para comprovar empiricamente a relação entre liberdade de expressão e bem-estar material coletivo, que – no entanto – podem ser eventualmente superadas, há evidências de sobra da relação positiva entre graus de prosperidade de nações e seus índices de liberdade. O esforço que o Instituto Palavra Aberta e outras entidades têm feito para
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OMBUDSMAN
Espécie em extinção a posição de ombudsman em 1970, o Washington Post, na época já um dos mais influentes jornais do mundo e prestes a se tornar modelo de virtude profissional graças à cobertura do caso Watergate a partir de 1972, parecia ter consagrado essa instituição, até então limitada a alguns poucos diários menos importantes dos Estados Unidos. De fato, a partir do Post, em especial depois que Ben Bagdikian ocupou o cargo no jornal, ainda na década de 1970, diversos veículos em dezenas de países aderiram ao bom exemplo e a instituição do ombudsman de imquando criou
prensa consolidou-se no final do
século passado e início do atual, ainda mais depois que o New York Times a adotou em 2003, após o caso Jay- Pioneiro na adoção do posto de ombudsman, o Washington Post eliminou a função em fevereiro son Blair (repórter que inventou
dezenas de matérias até ser descoberto). Mas a crise do modelo de sustentação do jornalismo fez com que muitos veículos norte-americanos eliminassem a função de ombudsman ao longo deste século. E agora o próprio Post, em fevereiro, fez isso. É muito possível que, assim como há 40 anos seu exemplo fez com que o ombudsman se fortalecesse mundialmente, agora possa acelerar seu processo de extinção. No Brasil, não fará diferença, porque aqui, fora a Folha de S.Paulo
e O Povo, de Fortaleza, nenhum veículo de expressão se interessou em criar ou manter o ombudsman, outra inequívoca demonstração de que a indústria nacional não tem disposição para praticar nenhum tipo de autorregulação minimamente significativa. Atitude que pode lhe custar caríssimo no médio ou até mesmo no curto prazo, porque a qualquer momento o Estado pode lhe impor controles capazes de ameaçá-la gravemente e danificar a democracia como um todo. ■
SNOW FALL
Futuro do jornalismo? Em dezembro do ano passado, o New York Times publicou em seu site o que muitos analistas consideram ser o protótipo do futuro do jornalismo. Sob o título de “Snow Fall” (http://www.nytimes.com/projects/2012/ snow-fall/#/?part=tunnel-creek), o jornal contou ao público a história de esquiadores que ficaram isolados após terem sido atingidos por uma avalanche de neve nas montanhas Cascade, no Estado de Washington, com recursos de texto, fotos, vídeos, infográficos interativos, magnificamente concebidos do ponto de vista visual. Nada a ver com o que os jornais e revistas têm feito como regra desde que se deram conta de que não havia como escapar dos meios digitais, ou seja, se limitar a transcrever para a tela aquilo que antes colocavam no papel (palavras
e ilustrações). É claro que sempre haverá espaço e público para isso, em especial no que disser respeito às notícias “quentes”. Mas matérias especiais vão ter de ser tratadas de modo especial nas tecnologias disponíveis e com as quais cada vez maiores parcelas da audiência estarão acostumadas. Como sempre, os veículos brasileiros mostram-se retardatários, quase letárgicos, no acompanhamento dessas tendências. Eles são rápidos para adotar formas de cobrar do público, mas lentíssimos para oferecer a ele produtos de qualidade superior. Investir em novos processos e em recursos humanos capazes de utilizá-los bem não é prioridade para nossos veículos jornalísticos, que ainda parecem confiantes no desempenho financeiro que têm tido. ■
DIRETO DE COLUMBIA p o r
david klatell
Ética e imprensa As mudanças radicais trazidas pelas novas tecnologias obrigam a repensar fundamentos do jornalismo se surpreender cia para o mundo que passa por uma ao saber que a Escola de Jornalismo da lente que pode ser moldada por muiColumbia University não se submete tos fatores e pessoas. Então, jornalisa um código de ética. Nem exigimos tas podem e devem trazer todo o seu que nossos alunos sigam algum código conhecimento, experiência e crenças específico. Como alguém que frequen- para embasar seu trabalho e considetemente ensina ética na escola, acho rar os diversos fatores relacionados. que essa é uma boa política por várias Porém, o grande dilema enfrentado razões: 1) Nenhum código de ética, nem pelos jornalistas não é, em minha opimesmo os Dez Mandamentos, pode nião, como pensar em suas obrigações antecipar todas as situações e ofere- éticas, mas sim o que eles fazem em cer uma orientação útil – de qualquer consequência de suas crenças que lhes forma, por que não poderiam ser 11, 15 causa tanta ansiedade e desconforto. ou 20 mandamentos?; 2) O jornalista e E, no final, as crenças de um jornaa definição de “jornalista” mudaram; lista devem ser traduzidas em uma e 3) A tecnologia alterou o tempo, o escolha simples, totalmente binária: espaço e o contexto para os jornalis- será que eu revelo uma fonte, mudo tas que enfrentam decisões difíceis. aspas, tiro aquela foto, salvo a pessoa Como digo aos meus alunos, a ética que está se afogando, presto socorro profissional com frequência pode ser ao ferido, agrego conteúdo, copio e confundida com moralidade, filoso- colo, uso Photoshop ou não? fia e “códigos de conduta” extraoficiais, que vão desde pressões fami- Mudança de contexto liares até religião ou o que as empresas exigem de seus funcionários. Não As tecnologias digitais não criaram essas há nada de errado, é claro, com esses incertezas, e muitas existem há tanto outros modos de pensar sobre as res- tempo quanto o próprio jornalismo,
as pessoas costumam
a mudar a definição de quem é jornalista: em todo o mundo, jornalistas independentes ou freelances estão enfrentando essas questões sem uma redação cheia de colegas experientes que poderiam ajudá-los a pensar sobre as decisões que tomaram. Segundo, o jornalismo cidadão e o conteúdo gerado pelos usuários significam que muito do que o público vê e ouve foi produzido por pessoas que não trabalham para uma empresa jornalística, e não se sentem limitadas por nenhum código de conduta. Terceiro, é claro, é a lei inevitável de que as pressões do deadline são maiores do que nunca, com a obrigação de publicar rapidamente; uma vez publicada, a história e todos os seus conteúdos se tornam “fatos” mundiais, instantâneos e permanentes, e a correção ou retratação é difícil e ineficiente. Mesmo as fundações mais básicas do jornalismo ético estão sujeitas ao reexame e à reinterpretação no ambiente digital. Quase todo mundo concorda que roubar o trabalho de outros é antiético. Mas como deverí-
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retweets e posts em blogs – ou de fontes
desconhecidas ou não identificadas? Todos nós concordamos que a checagem deveria ser o coração de qualquer prática jornalística, mas como alguém verifica a informação amplamente reunida por meio de buscas on-line, elas mesmas sujeitas a todo tipo de pressões técnicas, incluindo a otimização para motores de busca (ou SEO, sigla em inglês de search engine otimization ), notificações de aplicati vos e os infames algoritmos do Google? De maneira ainda mais básica, será que a ética da entrevista mudou quando os jornalistas foram passando de encontros cara a cara para telefonemas, e-mails, mensagens instantâneas e outros formatos? O que são justiça e equilíbrio quando tanta coleta de informação é feita na blogosfera ou
Costuma-se dizer que o jornalismo deveria ser transparente, e o público quer saber mais e mais sobre nossas fontes e métodos. Mas pessoas que fazem parte do público – especialmente nossos críticos – também querem saber mais sobre nós como indivíduos: no que acreditamos? Como nos comportamos? De que organizações fazemos parte? Em quem votamos? A maioria dessas informações agora está disponí vel em sites e bancos de dados. Deveríamos, no melhor interesse da transparência, nos tornar entidades públicas, abertas à inspeção de todos? E se não fizermos isso e formos “excluídos” pelos críticos? Deveríamos nos importar? A questão da autoria
Em uma era em que quase qualquer pessoa com um laptop decente e um software simples pode manipular fotos, áudio, vídeo, gráficos, manchetes, layout etc., o que é justo e ético? O corte de uma foto tudo bem, mas mudar a iluminação
mos materiais brutos como documentos, vídeo e áudio – especialmente quando os materiais originais podem estar disponíveis ao público? Finalmente, fico surpreso e desapontado com a quantidade de jornalistas que não parecem dar muito valor ao crédito adequado, à propriedade do conteúdo original ou até ao copyright: eles não pedem permissão do publisher. Na alta velocidade do ambiente digital, muitos jornalistas se sentem livres – “impelidos” talvez seja uma palavra melhor – a “tomar emprestado” ou combinar materiais de sites e aplicativos como se fizessem parte do creative commons, a licença aberta de conteúdo para adaptação e reprodução, sem se preocupar em checar as histórias originais. Não preciso lembrar os leitores desta revista, que tanto podem ser perpetradores como vítimas dessas práticas, que o que vai tem volta. O que precisamos, acredito, é de uma nova sensibilidade em relação ao que é jornalismo ético na era digital, baseado no realismo teimoso sobre como produzimos e consumimos jornalismo agora. Meus colegas na Columbia e eu estamos apenas começando a ter essa conversa. ■ é responsável pela área de estudos internacionais da Columbia david klatell
IDEIAS + CRÍTICAS
MARCELO SOARES
Jornalismo de prevenção Como a cobertura da imprensa pode ajudar a identificar e evitar tragédias, muitas vezes classificadas como fatalidade por autoridades e responsáveis na madrugada de 27 de janeiro, uma suces-
são de erros evitáveis causou um incêndio na boate Kiss, na cidade universitária de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, matando, até o momento em que este artigo é escrito, 240 jovens. Nos dias após a tragédia, os jornalistas despachados até a cidade revelaram falhas de fiscalização que desperdiçaram oportunidades de impedir o desastre. A prefeitura e o Corpo de Bombeiros jogaram pingue-pongue com a batata quente da responsabilidade, enquanto a polícia avançava na produção de provas. Nas semanas que se seguiram à tragédia da boate, as chuvas mataram pessoas no litoral paulistano e o desabamento de uma obra de estacionamento no bairro da Liberdade, próximo ao Centro de São Paulo, levou à morte um auxiliar de limpeza. O padrão de resposta é sempre o mesmo: a palavra “fatalidade” virá à baila, as autoridades dirão não ter como fiscalizar tudo e as reportagens demonstrarão sinais claros de que os pro blemas eram iminentes. Cobrir desastres e seus desdobramen-
K C O T S N
Falhas de fiscalização reveladas após o incêndio na boate
cobrir o incêndio ajudou na obtenção de documentos que comprovavam as falhas de fiscalização, colaborou no esclarecimento das causas das mortes e pressionou as autoridades locais por respostas. Em cinco dias, o caso estava praticamente esclarecido, faltando apenas comprovar poucos elementos. Um grau maior de dificuldade é praticar um jornalismo preventivo, que identifique e procure evitar tragédias. É mais comum uma espécie de jornalismo preventivo de emergência, que nos dias após o evento busca identificar onde ocorrem falhas semelhantes à que levou à catástrofe da vez. Quando as prefeituras de diversas cidades brasileiras abriram suas portas na segunda-feira após o incêndio da Kiss e as redações começaram a telefonar para as assessorias de imprensa questionando se algo do gênero poderia ocorrer em sua cidade, os recém-empossados prefeitos ordenaram mutirões de fiscalização e fechamento de casas noturnas irregulares. Assim, ficamos sabendo que boa parte das boates da moda, em São Paulo e outras cidades, opera sem licenças que atestem suas condições de segurança. Também chegaram a nosso conhecimento os entraves burocráticos para que essas inspeções ocorram.
sobressaltos idênticos. É o que se vê no início de cada ano, quando as chuvas têm data marcada para pegar prefeitos de surpresa e as autoridades atri buem as mortes a São Pedro. Todo ano, quando as chuvas desa barem matando pessoas, o leitor ficará sabendo que:
quando diversas oportunidades de mitigar o risco foram voluntariamente perdidas. Aqui, o recorte demográfico é um tanto diferente, pois a popular “gam biarra” pode se fazer presente tanto na obra sem alvará de um prédio de escritórios no centro do Rio quanto no isolamento acústico improvisado de uma • Já havia estudos indicando o risco boate frequentada por universitários de iminente da região afetada. classe média no centro de Santa Maria. • Obras emergenciais não foram feitas. • O orçamento não foi devidamente
executado a tempo. Foi assim em São Luiz do Paraitinga, cidade do Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, conhecida pelo seu Carnaval, por seus prédios históricos – e pela violência das chuvas que a costumam atingir. Em 2010, a água veio no dia 2 de janeiro, isolando a cidade, desalojando quase toda sua população e danificando prédios históricos. Quatro meses depois, 400 pessoas permaneciam desabrigadas. A igreja da cidade mal voltara a ter missas havia dois meses quando, no final do ano, a chuva voltou a elevar o nível do rio Paraitinga. Em janeiro de 2012, dois anos após a tragédia, apenas 80% da cidade estava reconstruída e novas enchentes ocorreram. Um ano depois, duas semanas antes do incêndio na Kiss, o rio Paraitinga voltou a transbordar. Fatalidade, não O primeiro cuidado recomendado pela ONU ao cobrir tragédias é o de não É positivo que essa cobertura exista. É tratá-las como “desastres naturais”, no uma tentativa de prevenir novos desas- caso de chuvas e terremotos, como os tres. Um desastre, na definição pro- governos adoram fazer nessas horas. posta pela Organização das Nações Uni- Ainda que o risco seja inevitável, o desasdas (ONU) no guia Disaster Through a tre depende da ação ou omissão humana: Different Lens (O Desastre sob o Enfoque se famílias pobres viviam em áreas de de Novas Lentes) , é uma combinação risco desfeitas pelas chuvas na região de riscos, condições de vulnerabilidade serrana do Rio de Janeiro ou na serra e insuficientes medidas ou capacidade do Mar, é porque ninguém as impediu para reduzir as consequências nega- de construir onde poderiam morrer. tivas do risco. Essas reportagens pósDe forma análoga, em desastres não -tragédia identificam esses elementos. ocasionados diretamente pela natureza, 1
Informações públicas
Como usar a apuração jornalística para tentar evitar que novos desastres ocorram? Afinal, sabemos que eles ocorrem e ocorrerão, mas não sabemos onde e
quando. A resposta pode estar no bom uso de informações públicas e em bancos de dados disponíveis.
Todos os órgãos federais e estaduais e, a partir deste ano, todas as prefeituras são obrigados por lei a manter portais de transparência revelando como gastam seu dinheiro. Embora nem sempre esses portais de transparência sejam organizados de maneira a facilitar a compreensão por parte do cidadão, na maior parte dos casos a informação desejada já está lá à espera do curioso. No Portal da Transparência do governo federal e no Orçamento da União, é possível saber quanto o governo gasta com prevenção de desastres e quanto gasta com o rescaldo deles. A ONG Contas Abertas, especializada em analisar o Orçamento, publicou em 4 de janeiro a informação de que apenas 32% dos recursos previstos para prevenção e resposta a desastres foram executados em 2012. Abertos , os números dizem bastante sobre o lugar da prevenção no orçamento dos governos. Dos R$ 5,7 bilhões orçados para prevenção e resposta a desastres, 2,4% se destinam à prevenção e preparação para desastres 2
mil, ou apenas 0,7% do total orçado para prevenção. Além disso, o governo gastou R$ 85,1 milhões com restos a pagar do orçamento preventivo de anos anteriores, e ao final do ano deixou um saldo de R$ 327 milhões, somados todos os atrasados, para pagar um dia. Antes de espanar o discurso de “só podia ser no Brasil” ou “quero ver na Copa”, vale consultar o guia da ONU para ver que não estamos sozinhos: internacionalmente, menos de 0,7% da despesa total com desastres é destinada à redução de riscos e apenas 0,1% vai para a prevenção. O impacto econômico de uma tragédia, porém, é permanente. Em 2008, o prejuízo mundial com desastres causados por riscos naturais foi estimado em quase US$ 200 bilhões. Desconheço cálculo semelhante para tragédias evitáveis que não tenham o envolvimento de intempéries. Peque-
nos detalhes, porém, ajudam a ter uma vaga ideia. No caso da boate Kiss, entrevistei o professor Thomé Lovato, diretor do Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Maria – que concentra os cursos que mais perderam alunos no incêndio da Kiss. Ele lembrou que a universidade é muito procurada por filhos de produtores e técnicos rurais, cujas famílias visam dar continuidade ao seu negócio. “Muitos ficaram sem herdeiros”, disse. Pautas nas lacunas
Ao consultar repositórios de informações públicas em busca de dados para pautas focadas na prevenção de tragédias, é razoável lembrar que boas pautas podem não estar necessariamente na própria informação pública, mas em suas lacunas.
Após a comoção vinda de Santa Maria, a prefeitura de São Paulo publicou na internet uma lista com nomes e endereços de locais de reunião que tinham seus alvarás em dia 3 e outra com casas sem alvará, mas fiscalizadas pelos bombeiros 4. Todos os portais noticiaram a publicação das listas, que, além de casas noturnas, também incluem restaurantes e igrejas. Ninguém verificou suas lacunas. Com alguns minutos de trabalho sobre os dados da planilha numa ferramenta gratuita e poderosa como o Google Fusion Tables, é possível criar uma planilha georreferenciada e a partir dela gerar um mapa mostrando cada ponto onde há um bar com o alvará em dia em São Paulo. Fazendo “zoom” sobre um quarteirão com alta concentração de bares na região central da cidade, foi possível verificar
Programas de prevenção e resposta a desastres, 2012 Valores em Reais. Fonte: Siafi. Elaboração: Contas Abertas.
PROGRAMA > DOTAÇÃO ATUALIZADA > DESPESAS EMPENHADAS > DESPESAS EXECUTADAS > VALORES PAGOS > RP PAGOS > TOTAL PAGO EM 2012 (ATÉ 31/12) > TOTAL DE RP A PAGAR >
1027: Prevenção e preparação para desastres
1029: Resposta aos desastres e reconstrução
2040: Gestão de riscos e resposta a desastres
Total
139.840.000,00
337.010.127,00
5.270.791.912,00
5.747.642.039,00
137.839.264,40
336.279.558,37
3.208.792.701,06
3.682.911.523,83
972.721,65
225.999.875,22
1.278.060.629,80
1.505.033.226,67
957.121,65
225.782.337,58
1.249.588.054,17
1.476.327.513,40
84.178.925,91
292.578.666,90
0,00
376.757.592,81
85.136.047,56
518.361.004,48
1.249.588.054,17
1.853.085.106,21
327.583.958,06
259.237.659,34
0,00
586.821.617,40
RECURSOS DE CONSULTA Portal da Transparência do governo federal: www.transparencia.gov.br Rede de Transparência do governo federal: www.portaldatransparencia.gov.br/rede/ SIGA Brasil – Orçamento da União: www9.senado.gov.br/portal/page/portal/orcamento_senado/SigaBrasil
1 www.preventionweb.net/files/20108_mediabook.
pdf 2 www.contasabertas.com.br/website/noticias/ arquivos/1126_SG-PROG%20102710292040-PROG2012%20ATE%2031-12-consulta%2003-01-2013ok%20 (1).pdf 3 www3.prefeitura.sp.gov.br/sd0241_consulta_ sisacoe/PaginasPublicas/frm001Alvara.aspx
Dez bons motivos para cobrir redução de riscos Traduzido do guia Disaster Through Different Lens , da Organização das Nações Unidas (ONU)
que apenas um deles tinha o alvará em dia. Um curioso que jantava num desses
locais poucos dias após a publicação da lista viu um aparelho entrar em curto-circuito próximo à entrada. Da mesma maneira, mergulhando
um pouco dentro do site da prefeitura,
é possível encontrar os dados de obras aprovadas na cidade. Espalhando os
1.
Os riscos naturais vêm aumentando e continuarão a ser notícia
6. Redução
Reportagens sobre redução de riscos de desastres não dependem de ter mais repórteres ou dinheiro; dependem de uma disposição diferente, fontes de informação estabelecidas e uma boa compreensão do “processo” por trás de cada desastre.
Quando houve o tsunami do oceano Índico, em 2004, matando mais de 250 mil pessoas na Ásia, a ilha de Simelue, próxima ao epicentro do terremoto, perdeu apenas sete dos seus 83 mil habitantes. O guia da ONU atribui isso ao conhecimento passado de geração a geração sobre como os antepassados se salvaram de tsunamis anteriores.
endereços pelo mapa e observando por
apuração própria ou com o auxílio do
leitor onde há obras não inclusas na
lista, é possível descobrir obras irregu-
lares. O uso dos dados para apuração, vale lembrar, não suspende a necessi-
dade de apuração própria – o que ele faz é apontar novas possibilidades de pauta. Onde esses dados não estão pronta-
mente disponíveis, sempre é possível utilizar a Lei de Acesso a Informações Públicas, cuja criação foi uma bandeira da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Em vigor desde 2012, a lei de acesso determina que os
Redução de riscos é uma questão política 2.
Quando o desastre chega, a população demanda ação por parte dos governos. O guia da ONU, editado em 2011, lembra que poucos dias após a posse da presidente Dilma os desabamentos na região serrana do e a presidente exigiu a criação de um sistema de alerta prévio. Como ficou a implementação desse sistema?
órgãos públicos são obrigados a for-
necer informações não sigilosas, ou ao menos uma boa explicação para o não
Os prejuízos causados pelos desastres são cada vez maiores.
os funcionários públicos que se nega-
rem a fornecer informações.
No Brasil, não temos alguns dos
mais extremos desastres potencializados por fatores naturais, como terremotos ou tsunamis, mas dispomos de uma enraizada tradição da “gam biarra” – uma mistura de criatividade e amadorismo, presente em boa parte das tragédias que aqui surgem. Avaliar como a cultura da “gambiarra” coloca populações inteiras em risco é potencialmente um manancial de pautas. ■ , jornalista especializado em análises de dados, faz parte da equipe de Novas Plataformas da Folha de S.Paulo e é autor do blog Afinal de Contas. Entre outras funções, foi correspondente especial do Los Angeles Times no Brasil. Membro do Consórcio Internacional de Jornalistas marcelo soares
Redução de riscos é uma questão de gênero 7.
Em regiões mais pobres, as mulheres tendem a ser as mais afetadas pelos desastres.
Rio de Janeiro mataram 900 pessoas,
Redução de riscos é uma questão econômica
fornecimento. A lei cria sanções para
de riscos é uma questão cultural
3.
O terremoto que atingiu o Japão em
2011, diz o manual da ONU, deixou prejuízos estimados na época em US$ 300 bilhões. Redução de riscos é uma questão de direitos humanos 4.
Embora o conceito de proteção aos direitos humanos seja amplamente reconhecido como um elemento crucial de estratégias humanitárias em tempos de emergência e de situações de desastre, ainda se trabalha pouco com os aspectos de longo prazo ligados à proteção e definição de uma abordagem de prevenção a desastres com base nos direitos humanos.
8. Redução de riscos garante
boas reportagens investigativas e em profundidade
Boas pautas podem questionar a eficiência preventiva dos governos e alertar para desastres em potencial antes que eles ocorram. Muito antes de o furacão Katrina atingir Nova Orleans, nos Estados Unidos, diz o guia, o jornal Times-Picayune, de Louisiana, fez uma série de cinco reportagens mostrando que, dadas as condições de prevenção implementadas na cidade, um desastre poderia ocorrer em caso de furacão. 9. Reportagens sobre redução
de riscos não precisam ser só sobre desastres
Há boas pautas também nos esforços de reconstrução de áreas afetadas por desastres e sobre educação para a prevenção. 10. Redução de riscos
interessa a todos Redução de riscos é uma questão ambiental 5.
Ecossistemas são barreiras naturais e dinâmicas que ajudam a proteger
O guia lembra que a cobertura da imprensa foi fundamental para informar sobre os riscos da Aids e dos acidentes de trânsito nos Estados Uni-
MEMÓRIA
O meu Jornal da Tarde Lembranças de um dos mais belos e inovadores diários já feitos no Brasil, contadas por quem viveu a redação em seus melhores tempos p o r
humberto werneck
cada um dos que por lá passaram, e em 46 anos foram
centenas, teve o seu Jornal da Tarde , e sobre ele poderia debulhar um mundo de impressões e lembranças. No caso do repórter esportivo Vital Battaglia, por exemplo, a experiência rendeu um livro, Ah! – Atestado de Óbito do Jornal da Tarde. A mim, bem mais modestamente, coube-me um período não muito longo – maio de 1970 a setembro de 1973 –, porém riquíssimo, em que vivi momentos cruciais de minha juventude e formação. Foi também um tempo de esplendor da lendária publicação paulistana, nascida em 4 de janeiro de 1966 e desaparecida, ao cabo de inglória agonia, em 31 de outubro de 2012. Não sou apenas eu que digo: tenho sob os olhos uma declaração de Mino Carta, seu criador e primeiro editor-chefe, em 1986: a melhor fase se estendeu de 1969 a 1973, pois “é aí que o Jornal da Tarde se cristaliza”. Mino não puxava a brasa para suas fartas e invejáveis sardinhas, pois em janeiro de 1968 havia deixado a casa para criar a Veja. Se está correta a sua avaliação, participei da melhor quadra de um desses raros jornais cuja existência a mais sucinta história dos avanços na imprensa brasileira não poderia ignorar. Do JT se falava, e não só em São Paulo, como algo revolucionário em termos de texto e design. Não se limitou a ser uma esplêndida costela do Jornal do Brasil, cujos experimentos, na década de 1950, ajudaram a desengravatar nossos diários. O JT levou adiante essa revo-
humor eram bem-vindos. Não foi inovação pequena – a começar pela casa onde a nave-mãe, O Estado de S.Paulo, até então chamava gol de “ponto” e vereador de “edil”. Tente imaginar o impacto que terá causado a chegada de um bando de jovens no ambiente circunsp ecto da empresa da família Mesquita, instalada ainda no número 28 da pequena, feia e triste rua Major Quedinho, no Centro da cidade. A redação do JT foi montada no mesmo quinto andar onde funcionava a do Estadão . Ligando uma a outra, havia um corredor largo, em discreto arco, que os recém-chegados (quase todos na “gloriosa faixa etária situada entre os 25 e os 30 anos”, haverá de se lembrar um deles, Carmo Chagas) não tardaram a batizar de “túnel do tempo”. De madrugada, com a redação do Estado deserta ou quase, armavam-se no corredor umas peladas com bolas de papel. Foi ali que o repórter Ramon Garcia, com a pelota nos pés, percebeu que alguém se aproximava por trás – e aplicou artístico “chapéu” em ninguém menos que Júlio de Mesquita Filho, o Dr. Julinho. O comandante máximo da S.A. O Estado de S. Paulo seguiu firme, sem passar recibo da finta – ao contrário do filho Ruy, que um dia se encaminhava para o elevador quando o repórter Eric Nepomuceno, sem dar pela presença do diretor do JT , ergueu uma perna e apertou o botão com o pé. “Boa forma, rapaz”, disse apenas o Dr. Ruy. Também no “túnel do tempo”, um chute desferido
0 7 9 1 /
6 0 / 8 0 E D R A T A D
1971
Auge da repressão. E o JT emplaca outra capa memorável, sobre a morte de Carlos Lamarca, um dos ativistas mais procurados pela ditadura 1 7 9 1 / 9 0 / 1 2 E D R A T A D L A N R O J
Paquinha. No dia em que o mandaram embora, foi se despedir de mesa em mesa, chorando. Persistente, não tardou a voltar. Nosso decano era o repórter
Ewaldo Dantas Ferreira, que aos 46 ganharia destaque internacional ao colher na Bolívia o depoimento de
um nazista fugitivo da Justiça, Klaus Altmann-Barbie. Seu trabalho imediatamente rendeu livro – a exemplo do que acontecera, em 1970, com uma reportagem do JT sobre a rodovia
Transamazônica, cuja abertura então se iniciava, a cargo de dois jovens jornalistas mineiros: Fernando Morais e Ricardo Gontijo. Quase tão vivido quanto Ewaldo de 1968, uma bomba explodiu no saguão do edifício, os era o editor de Internacional, Luiz Carlos Lisboa, homem peritos arrolaram a moldura entre os danos causados fino e culto cuja voz mansa mal se ouvia na redação. pelo atentado direitista. Foi também Sandro quem, numa Muitas lembranças me ficaram dele, todas excelentes, madrugada de 1969, tendo chegado à redação do JT a incluindo um episódio burlesco de que foi personagem notícia da morte do poeta Guilherme de Almeida, cor- secundário. Lisboa tinha em sua equipe um redator a reu ao relógio de ponto e bateu a saída do ilustre cola- quem nos referíamos como o Judeu Errante – por sua borador do Estado . origem semítica e porque errava muito. O editor-chefe, Murilo Felisberto, mandou demiti-lo. O delicado Lis-
Nos anos que lá passei, o
JT
tinha ainda sua imagem
associada a juventude, talento, irreverência. Continuava sendo uma sensação. Tanto que a certa altura de 1971 baixou na redação uma alentada equipe – 12 repórteres – da revista mensal Bondinho, também ela uma publicação cheia de atrevimentos. “Invadiram nossa redação”, leu-se depois na capa da Bondinho, que imitava a cara do JT , chamando para uma reportagem que durante 24 horas acompanhou o nosso trabalho. O título da matéria – que ocupou oito das 38 páginas da revista – também arremedava o nosso estilo: “É uma bagunça, uma desordem, um barulho, uma confusão danada: estão fazendo um jornal. O mais bem-feito da cidade”. E era mesmo. “A juventude que a gente respira aqui no Jornal da
anima, rejuvenesce e alimenta”, escreveu no pé da reportagem o comandante da equipe da Bondinho, Woile Guimarães, veteraníssimo aos 32 anos. Na nossa redação, o caçula era Paulo Moreira Leite, repórter de Tarde
Esportes, mal chegado aos 18. Perderia o posto para
Luís Fernando Silva Pinto, mais tarde repórter da TV
boa o fez com tantos circunlóquios e eufemismos que no dia seguinte lá estava o moço a errar, como se nada houvesse acontecido. O editor precisou voltar à carga, agora mais direto, e aí o redator veio com esta maravilha: — Quer me contrariar, é tocar nesse assunto! É farto o repertório de frases e historinhas daquela redação, não raro banhadas em maldade inteligente. Por escrito, ninguém superaria o carioca Telmo Martino,
que em sua coluna no JT , durante anos, a partir de 1972, distribuiu finíssimas alfinetadas, visando sobretudo às caricatas “turmas” a que deu nomes, quase todos autoexplicativos: “poncho-e-conga”, “barba-e-bolsa”, “tempura-e-mesura”, “scala-e-escarola”, “quibe-e-quilate”, “kosher-e-kibutz”. É espantoso que Telmo, fino no trato mas corrosivo na escrita, tenha atravessado anos de São Paulo sem mais que um chute no traseiro desferido pelo poeta Mário Chamie. Vá aqui uma historinha dele. No dia em que chegou à redação (a esta altura, no 6º andar, de onde decolaria em 1976 rumo à Marginal do Tietê, Telmo, tímido e desambientado, aceitou convite para sentar-se ao lado
gado, Flávio declarou que “gostaria mesmo é de ser uma puta internacional” – ao que o colunista retru-
cou: “Uê, viaja...”. A mordacidade de que Telmo foi o suprassumo era um atributo muito apreciado no JT – e não por acaso, já que poucas línguas havia, ali, mais
venenosas que a do próprio editor-
-chefe. Na boca de Murilo Felisberto, o rótulo “filho da puta” podia ser um elogio a quem destilasse artís-
Nos anos que lá passei, o JT tinha ainda sua imagem associada a juventude, talento, irreverência. Continuava sendo uma sensação
tica peçonha. Certa vez, quando lhe contaram que haviam tentado “comprar” um repórter, Murilo perguntou: “Quem?” – e ao ouvir o nome, cravou:
— Vende! Vende!
Muitas histórias daquele que entre nós chamávamos de “Rainha” voltaram à tona no que se escreveu por ocasião de sua morte, em 2007. Como esta
declaração, num fechamento em que tudo dava errado: — Hoje, se tudo correr bem, eu me fodo!
Ele às vezes reagia como criança emburrada. Quando, em 1992, publiquei O Desatino da Rapaziada (Companhia das Letras), que tem uma passagem sobre os começos do JT , soube que o Murilo ficara chateado. Só fal-
tou fazer beicinho: pouco curvas, os cabelos precocemente brancos alvo— Eu apareço duas vezes, e o Mitre, cinco! Ainda posso ver sua figura miúda e seca, as costas um
roçados numa carapinha, óculos de aros ovais doura-
dos empoleirados no nariz adunco, sardas pintalgando a pele muito clara – tão clara que inspirou uns versos quando uma febre de haicais gozativos assolou a redação: “O pinto da Rainha / é branco / como farinha”. No dia em que fui lhe entregar meu convite de casamento, Murilo o examinou demoradamente – e quando abriu a boca foi para fazer uma crítica tipográfica de minhas bodas. Eu já ia saindo quando me recomendou: — Não tenha filhos! É o maior problema na hora da separação!
Fernando Mitre, amigo e discípulo, o substituíra quando deixou o comando da redação do JT , em 1978. Era um dos jovens talentos que Murilo – mineiro de Lavras que se fez profissionalmente em outras praças –
foi buscar em Belo Horizonte, no segundo semestre de 1965, para compor a equipe do jornal. Arrebanhou um time de que fizeram parte, entre outros, Ivan Angelo, Carmo Chagas, Moisés Rabinovici, Flávio Márcio, Kleber de Almeida e Luciano Ornelas. O mais vivido deles, Ivan Angelo, estava a um mês de completar 30 anos quando o
jornal foi lançado. Pouco menos, aliás, que Mino Carta
Sem demérito da linguinha viperina, o maior dos
e o então secretário Murilo, ambos com 33. A mineirada
tava notícia e que gostava mesmo é de “frescura”. Nunca me pareceu que a política o preocupasse minimamente,
romancista Renato Pompeu: tendo escrito a palavra “lin-
página, em retícula, de alto a baixo, uma tesoura aberta.
somar-se àquele time – e nem poderia ser diferente.
talentos de Murilo era o de designer, criador de belas, chegou com a fama de ser boa de texto, e se esforçou ousadas, inesquecíveis páginas. Com evidente exagero, para se adaptar ao meio – com tanto empenho que um pour épater le bourgeois, ele chegou a dizer que detes- deles mereceu gozação de um colega paulista, o futuro guiça”, o forasteiro julgou necessário informar ao leie me pergunto se o Murilo tinha em mente os tempos tor ser este “o nome que os mineiros dão à calabresa”. Aos poucos, muitos outros mineiros haveriam de de censura que vivíamos quando pôs no fundo de uma Coube a mim o pesadelo de fechar a matéria, sobre o Quando se abria uma vaga na redação, os montanheses declínio do ofício de alfaiate. Num tempo em que não vasculhavam a memória em busca de quem pudesse prehavia computadores que o fizessem por nós, o texto ia enchê-la – e como a maioria de seus conhecidos estava
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D N O B A T S I V E R A D O Ã Ç U D O R P E R
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Um copidesque entrava no começo da noite e saía em algum momento da madrugada. Boa parte das matérias era reescrita, e a busca do melhor lead podia tomar tempo
de Menezes, Marco Antônio de Rezende e, no mesmo ônibus da Cometa, em maio de 1968, Nirlando Beirão e José Márcio Penido. Também em 1968, na esteira de prêmios literários, veio uma revelação da ficção nacional, Luiz Vilela, mineiro de Ituiutaba. Não esquentou lugar, mas recolheu inspiração para um romance cujo título já dá conta das impressões do autor: O Inferno É Aqui Mesmo , de 1979. Naquele mecanismo de mineiro-puxa-mineiro, tive a partir de 1968 ofertas para trabalhar no jornal que
tanto me encantava. Quando me decidi, não havia con vite – mas vim assim mesmo, em maio de 1970, para cair num caldeirão em que vários outros focas disputavam duas vagas na reportagem da editoria Geral. Se fiquei com uma delas, não foi por competência – que, de resto, não tinha, pois toda a minha experiência jornalística até então se limitava a dois anos passados na redação do Suplemento Literário do diário oficial Minas Gerais. Já contei em crônica (“Meu Traumatismo Ucraniano”) o desastre que foi, no SLMG, uma das primeiras entrevistas de minha vida, com Clarice Lispector, da qual circula na internet uma foto em que a escritora fulmina com os olhos o cabisbaixo, arrasado repórter, por causa de uma pergunta infeliz. Significa que na redação do JT eu comecei do zero, naqueles tempos em que ainda não se exigia diploma de jornalismo, e, se ganhei uma vaga, o devo a dois colegas. O fotógrafo José Pinto, com quem fiz minha primeira reportagem, no bairro da Casa Verde, para achar malfei-
tor da Geral, Fernando Portela, meu primeiro e maior mestre nesse ofício. Pernambucano de Olinda, Portela era uma das figuras centrais da vida na redação, e não apenas por comandar uma das editorias mais importantes. Reinava por seu brilho de editor e repórter, mas também pelo humor vitriólico, que lhe valeu o apelido de “Satã”. Malignidade? Prefiro ver suas intervenções como clarões de inteligência envelopados em exercícios de virtuosismo verbal. Pois Portela, hoje autor de obra respeitável, já era um craque do texto – categoria na qual se encaixavam, por que não?, as observações que proferia de sua mesa, enquanto, sentado sobre uma perna dobrada, diagramava uma página ou canetava matéria de algum de nós. Pena que saísse tão pouco à rua, sendo o extraordinário repórter que era. Reportagens suas viraram livro. Minha predileta é o diário de bordo que Portela destilou enquanto acompanhava a solene viagem marítima em que os ossos de Pedro I vieram de Lisboa para o Brasil, em 1972. Quando ia mais pesada a repressão da ditadura militar, o repórter conseguiu passar nas entrelinhas a informação de que a mulher de um ministro graúdo tinha deixado a mesa do almoço para vomitar. A irreverência passou despercebida dos censores que, na época, atuavam nas dependências do jornal.
“Fulano de Tal ganha um fusca por mês” – me lembro de volta e meia ter ouvido a cotação, a respeito de fulanos que nem ocupavam as mais altas prateleiras da redação. Copidesque, jamais ganhei um fusca no JT , mas não me lembro de apertos financeiros. Em dado momento, Murilo me apresentou à então incontornável obriga-
ção da monogamia jornalística. Eu tinha convite para secretariar um congresso de bancos, freelance equivalente ao meu salário, mas precisaria tirar c inco dias de licença; a Rainha vetou – e me deu aumento. Um copidesque entrava no começo da noite e saía em algum momento da madrugada. Boa parte das matérias era reescrita, e a busca do melhor lead podia tomar tempo. Tenho ainda na memória um lead da Valéria
quando for comprar um perfume – e não lamente o preço”. Valéria era uma das poucas mulheres no JT de meu tempo, quando o jornalismo ainda estava longe de tor-
nar-se o que hoje é: cada vez mais, um ofício feminino. A única, me dou conta agora, a figurar na foto que abre a matéria da Bondinho, em compa-
nhia de duas dúzias e meia de mar-
1972
Cenas de horror do incêndio do Edifício Andraus, que resultou em 16 mortos e 330 feridos, ganharam destaque em imagens e texto na capa do JT
manjos (me reconheço, de bigode, no lado direito, atrás de Eduardo Castor
2 7 9 1 / 2 0 / 5 2 E D R A T A D L A N R O J
e ao lado de Antônio Portela). Havia outras. Uma dúzia? A bela Cláudia Batista, que aos 20 e poucos anos convulsionava corações e depois se converteria ao budismo, tornando-
-se a Monja Coen. Bia Bansen, com seus RRR rascantes de alemãzinha. Regina Echeverria, foi preso e conduzido à Oban, a teratológica Operação a alguns anos de tornar-se best-seller com sua biogra- Bandeirantes, com o risco de ser torturado. fia de Elis Regina. A atriz Inês Knaut. Evelyn Schulke. Na foto não está Marco Antônio de Menezes, outro Leila V.B. Gouvêa. Liane Alves. Teresa Montero. San- que se foi, inteligência prodigiosa, homossexual sem drinha Abdalla e seus gostosos desenhos. Yole Di Capri,
nenhum medo de o ser escancaradamente. Meg, como ele se apelidou, era um dos habitués do Picardia, restaurante
que também já se foi), a uma notícia em 1973: “Mor-
cie de panfleto em que misterioso autor verberava as
mãe de futuro astro da Globo. Por breve tempo, esteve entre nós a professora Cremilda Medina, que em 1971 sofrível que frequentávamos na madrugada, antes que Murilo contratou para “cremildar”, como dizíamos, o se abrisse, mais próximo do jornal, o Mutamba. Marco jornal da véspera, garimpando nossos erros. Por sua pedia ao garçom Vicente que lhe trouxesse três copos causa, e isso lhe devo, me muni de gramática e dicio- para bebericar alternadamente, trio etílico – Campari, nário para as madrugadas de escreveção. uísque e menta – que batizei de “semáforo”. Na febre Mesmo sendo jornal diário, punha-se esmero de de haicais de que falei, Meg teve a esperteza de criar revista na elaboração dos textos, olhos, legendas, títu- para si o primeiro e melhor de todos: “Marco Antônio los. Quanto a estes, ficou famoso, naquela e em outras de Menezes: / ele trabalha / às vezes”. Licença poética, redações, o título dado por Guilherme Cunha Pinto, o pois trabalhava duro, como todos nós. Em algum momento dos anos que lá passei, aí por falecido Jovem Gui (pois havia no jornal um xará mais velho, Guilherme Duncan de Miranda, o Bill Duncan, 1972, alguém colou numa coluna da redação uma espéreu Picasso – se é que Picasso morre”. Não foi só no JT mazelas do jornal, a começar do fato de ser ele um vesque marcou época o Jovem Gui – por seu texto finís- pertino que saía na manhã seguinte. Me lembro da esto simo, mas também por sua beleza e pelo ar de desam- cada que fechava o arrazoado, algo assim: todos os jorparo que nas mulheres ateava sentimentos maternais nalistas do JT são de esquerda, mas só até comprarem não raro incestuosos. apartamento. Olho a foto e me pergunto: será que tem Volto à foto daquele grupo, e subitamente me impres- alguém aqui que ainda não comprou o seu? ■ siona a quantidade dos que morreram jovens. Inajar de Souza, hoje avenida, repórter de polícia que se deleitava
em passar trote nos focas. Não sei como escapei. Meu amigo Antônio Carlos Braga por pouco não se deu muito
mal num dia em que o Inajar errou a mão: tendo rece-
é jornalista e escritor. O colunista do jornal O Estado de S.Paulo trabalhou em várias redações depois da passagem pelo Jornal da Tarde , como Veja , IstoÉ , Jornal do Brasil , Elle e Playboy . Entre seus livros, estão humberto werneck
ESPECIAL
JORNALISMO PÓS-INDUSTRIAL ADAPTAÇÃO AOS NOVOS TEMPOS relatório de c.w. and er son emily bell clay shirky
tradução de ada f é l i x PÁGINA 32
INTRODUÇÃO Transformação do jornalismo norteamericano é inevitável PÁGINA 41
PARTE 1 Jornalistas PÁGINA 55
PARTE 2 Instituições PÁGINA 70
PARTE 3 Ecossistema PÁGINA 81
CONCLUSÃO Movimentos tectônicos PÁGINA 89
MÉTODOS USADOS NO RELATÓRIO
Preparado no âmbito do Tow Center for Digital Journalism da Columbia Journalism School, o documento a seguir foi traduzido com exclusividade para a Revista de Jornalismo ESPM. Trata-se de um relatório de pesquisa sobre o jornalismo pós-industrial, lançado em 2012, e dividido em três partes: Jornalistas, Instituições e Ecossistema. O documento apresenta o atual estágio do jornalismo, em que as condições técnicas, materiais e os métodos empregados na apuração e divulgação das notícias até o fim do século 20 já não se aplicam. Estamos em meio a uma revolução, e a adaptação às novas fronteiras da profissão é a condição de sobrevivência nesse cenário, que prevê o uso intensivo de bases de dados, além da interação com múltiplas fontes e com o público. O foco do trabalho é a imprensa norte-americana, mas as lições a serem tiradas da análise servem
S N I L O C
INTRODUÇÃO
Transformação do jornalismo norte-americano é inevitável
PARTE PESQUISA E PARTE MANIFESTO, o presente dossiê trata do exercício do jornalismo e de práticas de jornalistas nos Estados Unidos. Não é, contudo, um documento sobre o “futuro da indústria jornalística”. Primeiro, porque boa parte desse futuro já chegou. E, segundo, porque já não há mais uma indústria jornalística, por assim dizer. Antigamente, havia uma. Era uma indústria que se mantinha em pé por coisas que em geral mantêm um setor em pé: a similitude de métodos entre um grupo relativamen-
te pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade de alguém de fora desse grupo de criar um produto competitivo. Essas condições não se cumprem mais. Se quisesse resumir em uma sentença a última década no ecossistema jornalístico, a frase poderia ser a seguinte: de uma hora para outra, todo mudo passou a ter muito mais liberdade. Produtores de notícias, anunciantes,
novos atores e, sobretudo, a turma anteriormente conhecida como audiência gozam hoje de liberdade inédita para
se comunicar, de forma restrita ou ampla, sem as velhas
Muitas das mudanças discutidas na última década como parte da futura realidade do jornalismo já ocor-
reram; boa parte do futuro vislumbrado para o jornalismo já se converteu em presente (é como disse o escritor William Gibson lá atrás: “O futuro já chegou, só não
está uniformemente distribuído”). Nossa meta, em vez de ficar tecendo conjecturas, é escrever sobre o que já ocor-
reu, o que está acontecendo neste instante e que lições é possível tirar disso tudo. As transformações em curso no ecossistema jornalístico já tiveram o efeito de derrubar a qualidade da cobertura jornalística nos Estados Unidos. Estamos convencidos
de que, antes de melhorar, a situação do jornalismo em limitações de modelos de radiodifusão e da imprensa escri- solo norte-americano irá piorar ainda mais – e, em certa. Nos últimos 15 anos houve uma explosão de técnicas e tos lugares (sobretudo em cidades de médio e pequeno ferramentas. E, mais ainda, de premissas e expectativas. porte, sem um jornal diário), piorar muito. Nossa esperança é limitar o alcance, a profundidade e a duração desTudo isso lançou por terra a velha ordem. Não há como olhar para organizações distintas como sa derrocada. Como? Sugerindo saídas para a produção Texas Tribune, SCOTUSblog e Front Porch Forum, ou mes- de um jornalismo de utilidade pública, com a adoção de mo plataformas como Facebook, YouTube e Storify, e notar ferramentas, técnicas e premissas nem sequer imagináqualquer coerência. Não há como olhar para novas experi- veis dez anos atrás. ências no jornalismo sem fins lucrativos, como o trabalho
de Andy Carvin na National Public Radio (NPR) durante a Primavera Árabe, e acreditar que o jornalismo está seguro nas mãos de empresas voltadas ao lucro. E não há como olhar para experiências de financiamento coletivo de jornalismo pelo site de crowdfunding Kickstarter, ou
Também mostramos que novas possibilidades para o jornalismo exigem novas formas de organização. Até
aqui, a tendência de veículos de comunicação tradicionais foi a de preservar tanto métodos de trabalho como hierarquias, mesmo com o colapso de velhos modelos de negócios e a incompatibilidade de novas oportunidades
A adaptação a um mundo no qual o povo até então chamado de “audiência” já não é mero leitor e telespectador, mas sim usuário e editor, vai exigir mudanças não só em táticas, mas também na concepção que o jornalismo tem de si. Incorporar um punhado de técnicas novas não será suficiente para a adaptação ao novo ecossistema; para tirar proveito do acesso a indivíduos, multidões e máquinas, também será preciso mudar radicalmente a estrutura organizacional de veículos de comunicação (estamos cientes de que muitas das organizações de hoje verão nes-
sas recomendações um despautério). Este dossiê é dirigido a diversos públicos – a veículos de comunicação tradicionais que queiram se adaptar, a
novos atores (sejam eles jornalistas independentes, novos
Em vez de tentar enumerar ou definir tudo aquilo que distingue a notícia séria da futilidade, decidimos adotar a célebre prova dos nove de Lord Northcliffe: “Notícia é algo que alguém, em algum lugar, não quer ver publicado. Todo o resto é publicidade”. Isso não significa que o material produzido por veículos de comunicação possa ser precisamente dividido em duas categorias, a de notícias sérias e a de futilidades. Às vezes, o caderno de economia vai dar uma matéria sobre estampas de gravatas; em outras, o caderno de moda trará uma reportagem sobre algum negócio realizado no mundo da moda. No momento em que escrevo, o site do New York Daily News traz um texto sobre o novo corte de cabelo da cantora Miley Cyrus e um sobre a persistente e elevada taxa de desemprego em Nova York. Mesmo cientes dessa diversidade, o hard news é o que distingue o jornalismo de outra atividade comercial qualquer. Sempre haverá público para a cobertura de esportes, de celebridades, de jardinagem, de culiná-
projetos de jornalismo ou até organizações que não pertenciam ao ecossistema jornalístico) – e a organizações e entidades que afetam o ecossistema da notícia, sobretudo governos e faculdades de jornalismo, além de empresas e instituições sem fins lucrativos. ria – mas não haveria grande impacto para o país se toda Partimos de cinco grandes convicções: essa atividade fosse feita por amadores ou máquinas. O jornalismo é essencial. O que tem impacto, sim, é a cobertura de fatos imporO bom jornalismo sempre foi subsidiado. tantes e reais capazes de mudar os rumos da sociedade. A internet acaba com o subsídio da publicidade. A cobertura do insistente abrigo de pedófilos no seio da A reestruturação se faz, portanto, obrigatória. Igreja Católica, da contabilidade fraudulenta da norteHá muitas oportunidades de fazer um bom trabalho -americana Enron e do escândalo envolvendo uma opede novas maneiras. ração do Departamento de Justiça norte-americano, a Fast and Furious [ operação Velozes e Furiosos, ligada ao tráfico de armas a cartéis de drogas mexicanos ] se encaixa nessa definição. O jornalismo é essencial Já que narrar fatos reais é vital, o valor do jornalismo O jornalismo expõe a corrupção, chama a atenção para não pode ser reduzido a outras necessidades, secundáa injustiça, cobra políticos e empresas por promessas e rias. Embora o jornalismo desempenhe várias funções obrigações assumidas. Informa cidadãos e consumidores, que se sobrepõem, nunca houve muita urgência em defiajuda a organizar a opinião pública, explica temas com- ni-las. Na época em que o discurso público era escasso plexos e esclarece divergências fundamentais. O jorna- (ou seja, durante toda a história até hoje), o jornalismo lismo exerce um papel insubstituível tanto em regimes era simplesmente aquilo que jornalistas faziam; jornalistas eram simplesmente gente contratada por empresários democráticos como em economias de mercado. A atual crise de instituições norte-americanas de jor- da comunicação, que constituíam o grupo relativamente nalismo nos convence de duas coisas. A primeira é que pequeno de indivíduos com acesso aos meios para tornar não há como preservar ou restaurar o jornalismo no for- público esse discurso. mato praticado ao longo dos últimos 50 anos. E a segunda Acreditamos que o papel do jornalista – como portaé que é mister que busquemos, de modo conjunto, novas -voz da verdade, formador de opinião e intérprete – não saídas para o exercício de um jornalismo capaz de evitar pode ser reduzido a uma peça substituível para outro sisque os Estados Unidos descambem para a venalidade e a tema social; jornalistas não são meros narradores de fatos. pura defesa de interesses pessoais. Precisamos, hoje e num futuro próximo, de um exérciÉ óbvio que nem todo jornalismo é essencial. Muito to de profissionais que se dedique em tempo integral a do que se produz hoje não passa de entretenimento ou relatar fatos que alguém, em algum lugar, não deseja ver diversão. Aqui, no entanto, iremos lidar apenas com o divulgados, e que não se limite apenas a tornar disponí• • • • •
ESPECIAL | INTRODUÇÃO
Um crescente volume de informação obtida em primei-
A maior mai or fonte fo nte de d e subsídio subsí dio no n o meio mei o jornalí jor nalístic stico o sem-
pre foi indireta e privada, vinda de anunciantes. É como sobre o desastre nuclear de Fukushima Daiichi, no Japão, disse o jornalista norte-americano norte-am ericano Henry Luce 75 anos e do massacre de Pearl Roundabout, no Bahrein, veio de atrás: “Se tivermos de ser subsidiados por alguém, creio ra mão é fornecido por cidadãos – muito do que sabemos
indivíduos que se encontravam na cena do ocorrido. Mas isso não significa que todo jornalista profissional vá ser substituído, nem que possa ou deva sê-lo. Significa, isso sim, que seu papel vai mudar, que vai se sobrepor ao do indivíduo (ao da multidão, ao da máquina) cuja presença caracteriza o novo cenário jornalístico. O bom jornalismo sempre foi subsidiado
A questão do subsídio à atividade jornalística vem gerando polêmica há algum tempo. Observadores do meio jornalístico como Steve Coll, David Swensen e Michael Schmidt, além de Michael Schudson e Len Downie, já sugeriram a migração da imprensa norte-americana para um modelo de subsídio mais explícito. A sugestão provocou respostas acaloradas de outros analistas – Jeff Jarvis, Jack
que o anunciante apresenta possibilidades extremamente interessantes”. Há, no meio jornalístico, um punhado de publicações cujos leitores pagam diretamente pelo trabalho da redação. Mas são uma parcela ínfima do ecossistema jornalístico e se concentram em áreas de especialização profissional (finanças, direito, medicina), com um punhado de casos excepcionais, como o da revista norte-americana Ms., cuja promessa é libertar o leitor da publicidade. A maioria dos veículos de notícias notíc ias não atua no mercado jornalístico, mas no mercado da publicidade. O mais importante na relação entre a publicidade e o jornalismo é que não há relação. A ligação entre anunciante e meio de comunicação não é uma parceria – é uma operação comercial na qual o meio tem (ou tinha) a primazia. A fonte básica do subsídio publicitário é a fal-
ta de opção; enquanto o anunciante tiver de contar com o
aparecer, esse meio vai poder Shafer,, Alan Mutter –, para quem somente veículos comer- meio de comunicação para aparecer, Shafer ciais teriam como garantir os recursos e a liberdade que usar os fundos obtidos para bancar o jornalismo, indepena imprensa norte-americana exigiria. A nosso ver, é uma falsa dicotomia dicotomia.. Subsídi Subsídios os volta e meia são vistos como sinônimo de aporte direto pelo Estado, o que levantaria óbvios e sérios temores. Mas o
dentemente da preferência do anunciante. A Nine West não está interessada em manter aberta uma sucursal em
derada de interesse público, pode assumir várias formas.
da tal sucursal em Washington. Além da publicidade, publicidade, há muitas outras formas de subsídio privado. Durante boa parte da história norte-americana, certos empresários aceitaram publicar jornais e revistas mesmo com prejuízo. Em troca, buscavam prestígio ou influência. Tanto a revista The New Yorker como o jornal New York York Post operam no vermelho. Esses veículos sobrevivem no formato atual porque seus abastados proprietários decidiram que não deveriam deixá-los totalmente expostos às forças do mercado. Na prática,
Washington. O que quer é vender sapatos. Mas, para chegar a potenciais consumidores, a Nine West precisa pagar
subsídio, no sentido do apoio dado a uma atividade consi- a uma organização que se interessa, sim, com o destino Pode ser direto ou indireto, pode vir de fontes públicas ou privadas. Doações de cidadãos são subsídio – tanto quanto um concedido pelo Estado. O bom jornalismo sempre foi subsidiado; o mercado nunca foi capaz de suprir o volume de informação que uma democracia exige. A forma mais óbvia é o subsídio público indireto: em troca do acesso gratuito ao espectro eletromagnético, emissoras de rádio e TV precisam (ou precisavam) precisav am) montar uma operação jornalística de credi bilidade. Empresas são obrigadas a pagar pela inserção de publicidade legal em jornais. Publicações impressas recebem tarifas postais favoráveis.
uma publicação dessas é uma entidade sem fins lucrativos. Na mesma linha, o controle de um jornal por uma família era uma proteção contra o imperativo do lucro ime-
Há desdobramentos alentadores envolvendo a cobrança diatista, em parte porque o empresário em geral se dispudireta do leitor pelo consumo de conteúdo digital. No caso, nha a receber alguma remuneração na forma de prestígio p restígio o modelo usado é o da cobrança após ultrapassado certo número de artigos. Esses fundos obviamente são bem-vin-
dos. Contudo, apenas alguns dos grandes veículos de comunicação que adotaram o sistema conseguiram obter 5% que seja de adesão de usuários na versão digital, e a liberação de certo número de artigos praticamente garante que a maioria
(salário à parte, era bom ser o dono de um jornal local) e em parte porque o controle familiar significava administrar de olho na viabilidade a longo prazo, não na extração imediata de receita, outra forma de estar no mercado mas sem se submeter a ele. Embora a recente discussão do subsídio ao jornalismo
somas consideráveis em spots de 30 segundos na TV ou anúncios de página inteira por estarem legalmente obrigadas a fazer publicidade da marca. A GM até que gostaria de vender diretamente da fábrica, como faz a Dell, e a Diageo adoraria vender a um clicar do mouse, como faz a grife de chocolates Ghirardelli em seu site. Só que, em seu caso, leis estaduais proíbem o uso do marketing direto. A publicidade de carros, caminhões, cerveja e destilados é sustentada por um subsídio, imposto pelo governo, que impede certas empresas de investir em outras alternativas. O público norte-americano nunca pagou integralmente pela cobertura jornalística feita em seu nome. A atividade sempre foi bancada por outras fontes, não por leitores, ouvintes ou telespectadores. Neste dossiê, não vamos explorar de onde poderia ou deveria vir esse subsídio no futuro, e nem mesmo como deveria ser direcionado. Essa receita pode vir de anunciantes, patrocinadores, usuários, doadores, mecenas ou filantropos; a redução de custo pode se dar com parcerias, terceirização, crowdsourcing ou automação. Não há uma solução universal: qualquer saída para ter mais receita do que custo é uma boa saída, seja a organização grande ou pequena, de nicho ou generalista, voltada ou não ao lucro. O que está patente é que o modelo há muito adotado pela maioria dos meios de comunicação – uma entidade comercial que subsidia a redação com receita da publicidade – está em risco. A internet acaba com o subsídio da publicidade O foco deste relatório é o modo como jornalistas exercem sua função, e não práticas comerciais de instituições que abrigam esses profissionais. Há, contudo, um ponto crucial de interseção de práticas comerciais e práticas jornalísticas: o apoio da publicidade, principal fonte de subsídio do jornalismo norte-americano desde a década de 1830, está desaparecendo (no caso de jornais, grande parte dessa receita já evaporou; e há mais má notícia a caminho para jornais, revistas e emissoras de rádio e TV). Anunciantes nunca tiveram interesse no patrocíni patrocínio o propriamente dito de meios de comunicação; o elo entre receita publicitária e salário de jornalistas sempre foi uma função da capacidade do veículo de comunicação de atrair essa receita. Até deu certo no século 20, quando o poder de barganha no mercado de mídia estava estava nas mãos de quem vendia, no caso os meios. meios. Hoje, Hoje, esse modelo já não serve. Embora tenha começado para valer com a chegada da internet comercial com ercial na década de 1990, a ruptura foi camuflada durante uma década pelo aumento da receita publi-
Embora a receita trazida pela publicidade tradicional tenha começado a cair em 2006, a transformação do mercado publicitário subjacente já estava estava,, àquela altura, bastante avançada. A perda da receita era um indicador tardio de um cenário já transformado. Meios de comunicação tradicionais não vendem conteúdo como se fosse um produto. Seu negócio é a prestação de serviços, com a integração vertical de conteúdo, reprodução e distribuição. Uma emissora de TV também mantém recursos para a difusão de conteúdo via satélite ou cabo; uma revista opera ou contrata serviços tanto de impressão como de distribuição do material. Na integração vertical, o custo de capital é elevado, reduzindo a concorrência e, às vezes, criando um gargalo no qual o público poderia ser induzido a pagar pagar.. A internet acaba com essa integraç integração ão vertical vertical,, pois pois todo mundo paga pela infraestrutura – que é, então, usada por todos. O público segue mais do que disposto a pagar pela reprodução e pela distribuição, embora hoje paguemos à Dell por computadores, à Canon por impressoras e à operadora Verizon pela entrega, em vez de pagar à Conde Nast, à Hearst ou à Tribune Co. por um pacote com todos esses serviços. Quando queremos ler algo no papel, é cada vez mais comum imprimirmos o material em uma pequena impressora a poucos passos de nós, quando bem entendermos, em vez de pagar alguém situado a quilômetros de distância para imprimir algo que vai chegar com um dia de atraso. Quando queremos ouvir algo ou assistir a um vídeo, usamos cada vez mais a infraestrutura genérica da internet, e não a infraestrutura especializada (e financiada) de torres de transmissão e redes de cabo. Meios de comunicação também costumam promover uma integração horizontal, juntando num mesmo saco notícias relevantes e horóscopo, colunas sociais, receitas e esportes. No passado, quem sintonizava um determinado canal ou comprava uma publicação para ler um artigo específico seguia vendo ou lendo o que mais hou vesse nesse pacote por pura inércia. Embora o fenômeno volta e meia fosse chamado de fidelidade, na maioria das vezes era pura preguiça – ler outro artigo bom o bastante no mesmo jornal era mais fácil e cômodo do que buscar uma excelente reportagem reportagem em outra publicação. publicação. A inte internet rnet acab acabaa com a integ integraç ração ão hori horizont zontal. al. Ante Antess dela dela,, reunir uma dezena de textos bons – ainda que não excelentes – num pacote só costumava ser o suficiente para impedir que alguém saísse à cata dos dez melhores textos em uma dezena de publicações distintas. Num mundo de links e feeds, no entanto, em geral é mais fácil achar a
ESPECIAL | INTRODUÇÃO
em muitos sites jornalísticos de interesse geral, a categoria mais comum de leitor é aquela formada por gente que confere um único artigo por mês. Como se não bastasse, a competição está mais acirrada. Como observou o jornalista Nicholas Carr em 2009,
meses, a Amazon testou comerciais de TV – mas desistiu da ideia para a maioria de seus produtos, pois concluiu que um anúncio desses teria menos impacto nas vendas do que gastar a mesma verba para oferecer frete grátis. Até veículos que entendem que a receita perdida não
uma busca no Google por informações sobre o resgate pela Marinha norte-americana do capitão de um cargueiro de
será reposta, e que a receita trazida pelo impresso (e a produção) vai continuar caindo, seguem com esperan-
o episódio – a maioria meramente reproduzindo reproduzindo um mesmo conteúdo sindicalizado. A internet derruba o valor de
O fato de que a internet, mesmo sendo um meio me io visualmente flexível, tenha se adaptado mais depressa ao marketing direto do que à publicidade convencional foi uma decepção para veículos de comunicação, comunicaç ão, que sempre tiveram um ganho desproporcional com a velha publicidade.
obstáculo. Assim como na revolução dos junk bonds na década de 1980, o MySpace usou o argumento de que um inventário de anúncios de baixa qualidade poderia
Parece pouco provável. A migração da lógica da propaganda convencional para a lógica do marketing direto é só
do em volume suficiente e vendido a um valor baixo o bastante. O discurso feito era basicamente o seguinte: MySpace ace “Dependendo do preço pago, os page views do MySp
ração. A publicidade tradicional era rentável porque nin-
bandeira dos Estados Unidos sequestrado por piratas na ça de que a mudança no subsídio publicitário possa, de Somália rendeu 11.264 fontes possíveis de matérias sobre algum modo, ser revertida.
publicar um mesmo artigo de agências de notícias em St. Louis e em San Luis Obispo. Além das mudanças trazidas pela tecnologia, a popularização de redes sociais fez surgir uma nova categoria Na última década, volta e meia se afirmou que o markede anúncios que, embora vinculada à mídia, não subsidia ting direto como forma de publicidade na internet seria a criação de conteúdo. Na década de 1990, muitos sites só uma fase – e que alguém iria reinventar a publicidatinham fóruns de discussão que gerava geravam m enorme interesse de convencional no meio digital. É, basicamente, afirmar entre internautas – mas pouca receita, já que anunciantes que anunciantes vão começar a investir cifras volumosas temiam que o material produzido por usuários não fosse em anúncios gráficos com animação e em transmissão seguro para sua marca. de vídeo com pouca expectativa de retorno além da cer MySpace ce foi o primeiro grande site a transpor esse teza de que a marca terá O MySpa te rá conquistado mais visibilidade. um sintoma da mudança maior promovida pela internet, ser um bom investimento para o anunciante se agrega- que representa a vitória, em todos os lugares, da mensu-
podem ter valor para sua empresa mesmo com taxas de clique [ click-through click-through rates ] minúsculas”.
guém sabia ao certo como funcionava, f uncionava, de modo que tampouco se sabia como otimizá-la. Produzir um comercial de TV era mais como rodar um pequenino filme para o cinema do que conduzir um grande experimento psicológico.
Hoje, na internet, o anunciante espera, e spera, cada vez mais, que até a publicidade tradicional tenha resultados mensuráveis – e a aposta na publicidade mensurável derruba as altas margens da fase áurea. A célebre dúvida do crianas outras, e não da capacidade do veículo de comunica- dor do conceito da loja de departamentos, o empresário ção de criar conteúdo ou manter a audiência. Quando a norte-americano John Wanamaker Wanamaker – a de não saber exademanda gera oferta a um custo pouco acima de zero, o tamente qual metade da verba de publicidade era dinheiro jogado fora –, explica por que a mensura mensurabilidad bilidadee na publiefeito nos preços é previsível. Os últimos 15 anos também testemunharam o surgi- cidade põe ainda mais pressão sobre a receita. mento da publicidade como um serviço independente. A Outra fonte de esperança para o restabelecimento da publicitári a era a especificidade maior que a interperda de anúncios classificados para concorrentes supe- receita publicitária riores como Craigslist, HotJ já foi exausti- net permitiria. (“É possível dirigir o anúncio exclusiva HotJobs obs e OkCupid já Com isso, abriram-se as comportas. Quando um número satisfatório de empresas decidiu que redes sociais eram um meio aceitável, o estoque disponível de anúncios passou a ser função do (ilimitado) interesse das pessoas umas
vamente dissecada. Menos discutida é a populariz popularização ação de indicações de usuário para usuário em ambientes comerciais, como o da Salesforce e o da Amazon. Uma recomendação dessas assume parte das funções da publicidade B2B (empresa a empresa) ou B2C (empresa a consumidor),
mente a advogados tributaristas no Estado de Montana!!)
Todo mundo achava que essa segmentação precisa justificaria a cobrança de preços mais altos pela publicidade, pelo menos em certos sites; uma segmentação melhor
traria melhores resultados, o que faria compensar o cusmas sem nenhum subsídio do conteúdo (ou nem mesmo to maior.
atingir mil pessoas com publicidade online não segmen- redigimos este dossiê estamos no 23º trimestre consecutada custa cerca de US$ 0,60. Um espaço publicitário que tivo de declínio anual das receitas. Os últimos três anos de custe US$ 12 por mil visualizações (uma estimativa mui- queda ocorreram num período de crescimento econômito discutida em 2010 para certos sites de nicho) pode até co; além do efeito cumulativo da perda de receita, a incaser mais eficiente em razão da segmentação, mas para pacidade de elevá-la mesmo com a economia crescendo fazer sentido do ponto de vista econômico a publicidade sugere que velhas empresas de comunicação sofrerão um dirigida teria de ser 2.000% mais eficiente. Se for menos baque descomunal quando tiver início a próxima recesque isso, a relação custo-benefício do estoque de baixa são, o que certamente ocorrerá dentro de alguns anos. qualidade é melhor. A receita por leitor trazida pela publicidade online nun Agora que redes sociais já exibem anúncios, o extremo ca chegou nem perto da tradicional – e no caso de platada curva de custos que abriga esse inventário inferior é formas móveis é ainda pior. Enquanto isso, à medida que realmente baratíssimo, o suficiente para exercer constan- vai avançando, a publicidade no meio digital vem passante pressão sobre o preço superior de anúncios segmen- do totalmente ao largo de veículos de comunicação traditados. O que uma empresa quer não é chegar ao público cionais. Já fontes sonhadas de receita direta – paywalls, com seus anúncios. O que a empresa quer é vender o que micropagamentos, aplicativos móveis, assinaturas digitais faz. A capacidade de entender quem realmente compra – não surtiram efeito ou ficaram aquém das expectativas. seus produtos ou serviços online significa que, hoje, muiDentre todas essas soluções, a assinatura digital nos tos anunciantes podem arbitrar anúncios caros e baratos moldes praticados por jornais como Los Angeles Times, como bem entenderem. Minneapolis Star-Tribune e The New York Times foi a que Embora ainda possa haver uma fonte desconhecida de melhor se saiu. E, mesmo assim, o efeito líquido dessas receita publicitária, para que a saúde do jornalismo banca- assinaturas não anulou as perdas no impresso. De resdo por publicidade fosse restituída, o acesso a essa pedra to, já que a assinatura digital em geral é concebida para filosofal teria de ser exclusivo de veículos de comunica- aumentar a circulação em papel, seu efeito a curto prazo ção – e não de redes sociais ou sites só de publicidade. E, é aumentar ainda mais a dependência da receita oriunda do para justificar o retorno ao custo elevado lá de trás, essa impresso, apesar da deterioração a longo prazo do papel. fonte teria de ser muito mais eficaz do que qualquer outro A nosso ver, o arrastado colapso da receita publicitária método de publicidade atual. E, de quebra, gerar recei- tradicional não será compensado por outras plataformas tas imunes à pressão que a concorrência em larga escala num período de três a cinco anos. A próxima fase da exisexerce sobre preços. tência da grande maioria dos meios de comunicação vai Partindo de evidências atuais, isso tudo parece impro- ser parecida com a última. Haverá uma redução obrigató vável. O poder de meios de comunicação sobre anuncian- ria de custo, embora de forma menos urgente (e, esperates está evaporando; desde a chegada da web, houve uma mos, mais estratégica), levando em conta novas técnicas grande migração, de meios para anunciantes, do valor líqui- de cobertura jornalística e novos modelos organizacionais. do de cada dólar investido em publicidade. Além disso, Na década de 1980, muita tinta foi gasta no meio acahá mais sinais indicando uma intensificação da tendên- dêmico para discutir o “paradoxo da produtividade”: os cia do que sua reversão. Até veículos dispostos a apostar fracos resultados produzidos por duas décadas de pesatodas as fichas nessa promessa de salvação deveriam tra- do investimento da iniciativa privada em tecnologia da çar um plano B para seguir produzindo um jornalismo de informação. Um punhado de empresas, contudo, regisqualidade caso o subsídio da publicidade continue a cair. trou fortes ganhos de produtividade em decorrência do investimento em TI lá atrás. Essas empresas de sucesso não se limitaram a informatizar processos correntes. A reestruturação é obrigatória O que fizeram foi alterar esses processos à medida que incorporavam computadores às operações. Viraram outro A virada basicamente negativa na sorte de meios de comu- tipo de organização. Já aquelas que simplesmente instalanicação tradicionais nos leva a duas conclusões: o custo ram computadores sem mexer em processos que já exisde produção de notícias precisa cair e essa redução de tiam não registraram nenhum avanço evidente em rencusto deve ser acompanhada de uma reestruturação de dimento ou eficiência. modelos e processos organizacionais. A nosso ver, há uma dinâmica similar nos dias de hoje Vários fatores sugerem que a receita publicitária segui- – dinâmica que resolvemos chamar de jornalismo pós-
ESPECIAL | INTRODUÇÃO
maquinário de produção” (lá atrás, a lógica da redação não era administrativa, mas prática: o pessoal da redação, que produzia o texto, tinha de estar perto das máquinas que reproduziriam esse texto, em geral instaladas no subsolo). Observadores do meio jornalístico, como David Simon, já disseram, acertadamente, que “fazer mais com menos” é o mantra de todo veículo que teve de demitir uma dezena de repórteres e editores. Contudo, já que nessa equação a parte do “com menos” é obrigatória, é preciso tentar fazer com que a parte do “fazer mais” funcione, o que significa menos tergiversação sobre cortes de pessoal e mais reestruturação, a fim de tirar partido de novas formas de fazer jornalismo. O jornalismo pós-industrial parte do princípio de que instituições atuais irão perder receita e participação de mercado e que, se quiserem manter ou mesmo aumentar sua relevância, terão de explorar novos métodos de trabalho e processos viabilizados pelas mídias digitais. Nessa reestruturação, todo aspecto organizacional da produção de notícias deverá ser repensado. Será preciso ter mais abertura a parcerias, um maior aproveitamento de dados de caráter público; um maior recurso a indi víduos, multidões e máquinas para a produção de informação em estado bruto; e até um uso maior de máquinas para produzir parte do produto final. Serão mudanças sofridas, pois irão afetar tanto a rotina diária como a autoimagem de todos os envolvidos na produção e distribuição de notícias. Sem isso, no entanto, a redução dos fundos disponíveis para a produção do jornalismo fará com que no futuro a única opção seja fazer menos com menos. Não há, na crise atual, solução capaz de preservar o velho modelo.
Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras
Com a superdistribuição – a propagação de conteúdo por redes sociais –, um artigo importante de uma publicação minúscula pode chegar a um público enorme sem custo adicional. Agora que muitos levam no bolso câmeras de vídeo conectadas a redes, uma quantidade cada vez maior de informação visual vem dos próprios cidadãos. Com a proliferação de novas possibilidades de apu-
ração, interpretação e distribuição de informações, é possível ver organizações tirando partido de métodos de trabalho que nem sequer existiam dez anos atrás. É o que faz a Narrative Science ao automatizar a produção de notícias extraídas de mares de dados. Ou a ProPublica ao disponibilizar dados e modelos para a
reprodução de notícias, como na iniciativa Dollars for Docs. Também há quem vasculhe dados existentes para descobrir fatos novos, como fez o caçador independente de fraudes financeiras Harry Markopolos no caso do investidor norte-americano Bernard Madoff, que ocasionou perdas bilionárias a instituições bancárias, grupos de investimentos, fundações, entre outros (uma das
grandes oportunidades perdidas do jornalismo norte-
-americano na última década). O que une gente digitalmente empreendedora de organizações tradicionais – Anjali Mullany, ex- Daily News; John Keefe, da rádio WNYC; Gabriel Dance, da sucursal do The Guardian nos Estados Unidos – e meios que já nasceram digitais, como WyoFile, Technically Philly e Poligraft, é o fato de organizarem suas premissas e processos em torno daquilo que agora é possível, como incluir interatividade em gráficos, dar ao público acesso direto a bancos de dados, solicitar imagens e informação ao público ou distribuir uma matéria por redes sociais. Não há como saber se o Poligraft (aliás, nem se o Daily News ) ainda existirá daqui a dez anos, mas a experimentação em curso nessas organizações é um exemplo do bom uso de novas ferramentas na busca de objetivos jornalísticos. O aspecto mais animador e transformador do atual cená-
Se concluirmos que o jornalismo é essencial, e que não há rio jornalístico é poder explorar novas formas de colasolução para a crise, a única maneira de garantir a sobrevi- boração, novas ferramentas de análise e fontes de dados vência do jornalismo de que a sociedade precisa no cená- e novas maneiras de comunicar o que é de interesse do rio atual é explorar novas possibilidades. público. A maioria de nossas recomendações ao longo Graças a fenômenos como o movimento da transparên- do presente dossiê terá a ver com essas oportunidades. cia e a disseminação de redes de detecção, um jornalista hoje em dia tem acesso a muito mais informação do que antes. Tem novas ferramentas para transmitir a informa- O que é “público”, o que é “audiência” – ção de forma visual e interativa. Tem muito mais manei- e o caso especial do New York Times ras de fazer seu trabalho chegar ao público – a ubiquidade da busca, a popularização de fontes constantemente Antes de entrarmos no relatório propriamente dito, é preatualizadas (o Facebook com sua linha do tempo, o Twitter ciso um esclarecimento sobre duas palavrinhas contro-
Mas, primeiro, o público. O conceito de “público” como
grupo de pessoas para o qual se produzem notícias é o “termo divino” do jornalismo, como diz James Carey:
...é o termo final, o termo sem o qual nada conta; por ele, jornalistas justificam seus atos, defendem o ofício, sustentam sua tese em termos do direito do público à informação, de seu papel como representantes do público, de sua capacidade de falar ao público e pelo público. O público é o grupo cujos interesses deveriam ser ser vidos pelo ecossistema jornalístico. E é um conceito de dificílima definição. A ideia de “público” ocupa um lugar central no pensamento norte-americano sobre o jornalismo desde uma célebre resposta de John Dewey a Walter Lippmann na década de 1920. Lippmann duvidava de que, numa socie-
dade de massas com complexas engrenagens econômicas e técnicas, o indivíduo comum pudesse se tornar o cidadão informado que o grosso da teoria democráti-
ca preconizava. Em resposta, Dewey alegou a existência de vários públicos sobrepostos que poderiam ser “ativados” com o surgimento de questões específicas. A ideia de meios de comunicação voltados a públicos distintos, porém sobrepostos, até hoje é fundamental para a lógica organizacional deles. Desde o surgimento dessas duas visões da comunicação de massas e da sociedade de massas, a conceitualização da esfera pública virou um elemento central da obra de filósofos como Jurgen Habermas, Nancy Fraser, James Carey, Michael Schudson e Yochai Benkler – o que enriqueceu, e complicou, qualquer descrição de uma mídia que sirva a um (ou ao) público. Vamos adotar a estratégia do covarde: a de expor – mas não solucionar – o dilema. Não temos a intenção de dar uma definição mais rigorosa do que a seguinte:
O público é o grupo de consumidores ou cidadãos que tem interesse em forças que exercem influência sobre sua vida e que busca alguém para monito rar tais forças e mantê-lo informado, para que possa agir com base nessa informação.
É uma definição insatisfatória, prenhe de interrogações, mas ao menos respeita a barafunda de opiniões sobre aquilo que realmente constitui um “público”. O termo “audiência” é igualmente problemático. Quando o mundo da comunicação estava claramente dividido em
produzido e distribuído por meios. Filmes, música, jornais, livros – tudo isso tinha audiências claras.
Um dos efeitos mais desnorteantes da internet foi
combinar modelos de meios e de comunicação num único canal. Quando alguém no Twitter compartilha uma matéria com um grupinho de amigos, a impressão é a do velho papo informal na sala do cafezinho. Quando essa mesma pessoa divide o mesmo artigo com outras duas mil pessoas, a impressão é a de que está agindo como um meio de difusão, ainda que nos dois casos a ferramenta e a ação tenham sido as mesmas. Além disso, cada des-
tinatário desses pode fazer o conteúdo circular ainda
mais. A posição privilegiada da fonte original do conteúdo diminuiu drasticamente.
Ao constatar que no mundo atual membros da audiência tinham se tornado mais do que meros recipientes da informação, o acadêmico Jay Rosen, da New York University, cunhou o termo “The People Formerly Known as the Audience” – algo como “a turma antes conhecida por audiência” – para descrever de que maneira grupos até então passivos de consumidores tinham se convertido em criadores, editores, juízes e veículos da informação. Neste dossiê, adotamos a visão que Rosen tem dessa transformação; mas não usamos o termo (nem a sigla em inglês TPFKATA), que é rebuscado demais. Ao longo do dossiê iremos, portanto, falar de “audiência”. Tenha em mente que, com isso, nos referimos à turma antes conhecida por audiência – gente hoje dotada de um grau inédito de poder de comunicação. Por último, uma palavrinha sobre a razão para não nos atermos muito à situação do New York Times. Uma bela parte de tudo o que se escreveu sobre a sorte do jornalismo norte-americano na última década girou em torno do destino do jornal nova-iorquino. A nosso ver, essa atenção foi contraproducente. No decorrer da última geração, o New York Times deixou de ser um excelente jornal diário que concorria com vários outros de igual calibre e virou uma instituição cul-
tural de importância única em escala mundial (parale-
lamente, aqueles outros jornais – The Washington Post, Chicago Tribune , Los Angeles Times , Miami Herald –
encolhiam tanto em termos de cobertura como de ambição). Com isso, o New York Times ficou numa categoria só dele. Logo, qualquer frase que comece com “Peguemos o exemplo do New York Times...” dificilmente irá explicar ou descrever muito o resto do setor. A redação do New York Times é fonte de muitos experimentos interessantes – na visualização de dados, em parcerias, na integração de blogs. Fomos falar com mui-
ESPECIAL | INTRODUÇÃO
por o jornal estar numa categoria só dele, decisões que possa seguir todas as recomendações aqui feitas, ou no sua gestão pode tomar, e o resultado dessas escolhas, mínimo a maioria delas, pois são coisas muito diversas, não representam nem preveem a realidade da maioria voltadas a atores de natureza muito distinta. Tampouco dos demais veículos de comunicação, seja qual for seu acreditamos que o que sugerimos aqui seja uma direção porte ou tempo de vida. Logo, passaremos relativamen- estratégica acabada. Vivemos nitidamente numa era na te pouco tempo discutindo seu destino. Embora sirva de qual é mais fácil saber o que não funciona do que o que inspiração para meios de comunicação mundo afora, o funciona, e na qual teorias e práticas daquilo que costu jornal é menos útil como modelo ou termômetro para mávamos chamar de indústria jornalística estão abrindo outras instituições. espaço a uma constelação muito mais diversa de entidades do que qualquer coisa que tenhamos testemunhado no século 20. Organização Acreditamos, sim, (ou, no mínimo, esperamos) é que as recomendações a seguir sejam úteis para organizaEste dossiê foi redigido com diversos públicos em mente: ções que não só queiram evitar o pior do anacronisnovas empresas de mídia, organizações tradicionais ten- mo entre processos tradicionais e oportunidades atutando se adaptar, faculdades de jornalismo e entidades ais, mas também tirar partido das possibilidades que que dão apoio ou forma ao ecossistema, como o Pulitzer hoje se abrem. Prize Board e o governo norte-americano. A esta introdução se seguem três grandes seções: Jornalistas, Instituições e Ecossistema. Partimos indagando o que cada jornalista pode e deve fazer hoje, já que seu trabalho é o mais importante – e já que a obsessão com a sobrevivência de instituições nos últimos anos ocultou o óbvio ululante: a importância de instituições reside no fato de que permitem o trabalho de jornalistas, e não o contrário. Em seguida, perguntamos o que uma instituição pode fazer para apoiar o trabalho de jornalistas. Aqui, não usamos o termo “instituição” no sentido coloquial de “meio de comunicação tradicional”, mas sim com a significação sociológica de “um conjunto de pessoas e bens com padrões relativamente estáveis de comportamento”. Nessa acepção, o Huffington Post é uma instituição tanto quanto a Harper’s. Estamos interessados tanto na institucionalização de novas organizações de notícias quanto na adaptação de velhas instituições à nova realidade. Por último, analisamos o ecossistema jornalístico, que nesse caso significa todo o aspecto da produção de notícias que não está sob controle direto de uma instituição. O ecossistema atual tem novos recursos, como uma explosão de dados digitais e de capacidade de processamento. Traz, ainda, novas oportunidades, como a capacidade de criação de parcerias e consórcios de baixo custo. Esse ecossistema também abarca forças que afetam organizações jornalísticas – de premissas e apoios (ou obstáculos) criados por faculdades, empresas e o poder público. Em nossa breve conclusão, usamos várias dessas forças atuais para traçar um cenário para o fim da presente déca-
PARTE 1
Jornalistas
NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou sua decisão sobre a obrigatoriedade de contratação de plano de saúde privado por todo cidadão do país – prevista na chamada Affordable Care Act, a lei da reforma da saúde norte-americana. Em pleno ano de eleições, e diante da possibilidade de que um pilar da legislação proposta pelo presidente fosse julgado inconstitucional, a decisão já não tinha impacto só para o setor de saúde. Virara também um grande fato político.
Nos dias que antecederam a decisão, todo veículo
das pressões comerciais e protocolares típicas do ofíimportante de comunicação cobriu o caso. O veredic- cio. Em um mundo que o professor norte-americano de to foi anunciado às 10h07 do dia 28. A CNN anunciou jornalismo Jeff Jarvis descreve com o mote “do what que o dispositivo fora rejeitado. Já o blog SCOTUSblog you do best and link to the rest” (literalmente, “faça o informou que a obrigatoriedade fora mantida. que é seu forte e ponha links para o resto”), o modelo O vexame que a emissora de TV a cabo deu ao levar do SCOTUSblog traz a cobertura mais consistente da ao ar uma informação incorreta só perdeu, em dimen- Suprema Corte – cobertura que, se honrada sua meta, são, para a projeção conquistada naquele instante pelo também deve ser a melhor. O SCOTUSblog não vai des SCOTUSblog , até ali um pequeno site desconhecido cuja pachar 25 jornalistas para o Haiti caso haja um terreúnica missão era cobrir a Suprema Corte. Naquele dia, moto (nem mandar alguém ir cobrir outra audiência da o SCOTUSblog virou a grande fonte dos últimos des- atriz Lindsay Lohan por dirigir embrigada). Não está dobramentos sobre o caso e de análises indispensáveis substituindo a CNN – e nem precisa. O SCOTUSblog sobre o parecer do tribunal. Mais tarde, ao esmiuçar a achou seu nicho e sabe qual é seu papel. cobertura do blog no dia 28, a revista The Atlantic inforSe há jornalistas, é porque o público precisa saber o mava que às 10h22 – 15 minutos depois de anunciada a que aconteceu, e os motivos. A maneira mais eficaz e decisão – o site registrava perto de um milhão de visi- confiável de transmitir uma notícia é por meio de gentantes (foi preciso instalar mais servidores para acomo- te com profundo conhecimento do assunto e capacidadar o salto no tráfego). de de levar a informação ao público na hora certa. No O SCOTUSblog foi criado em 2003 por Tom Goldstein episódio acima, o SCOTUSblog cumpriu os dois requie Amy Howe, marido e mulher. Nenhum dos dois era jor- sitos. Embora tenha corrigido a “barriga” em questão nalista: eram, ambos, sócios de um escritório de advoca- de minutos (críticos, é verdade), a CNN a princ ípio deicia e professores nas faculdades de direito de Harvard e xou a desejar no quesito mais básico: informar o que o Stanford. Na manhã da decisão, Goldstein cobriu o pro- tribunal de fato decidira. cedimento todo ao vivo; o material que foi postando no A goleada do SCOTUSblog é só um exemplo de como blog serviu de base para a cobertura do canal público o velho território de jornalistas tradicionais está sende TV C-SPAN 3. Segundo Goldstein, o episódio foi o do invadido. Um mapeamento do novo ecossistema “Superbowl” do site – site cuja meta seria levar ao público jornalístico revela exemplos muito mais radicais do
ESPECIAL | JORNALISTAS
ofício com tanta tarimba quanto profissionais da área Science já produz textinhos com resultados financei– às vezes, até mais. Especialistas – seja o economis-
ros de empresas para o site Forbes.com. Outro projeto, o ta Nouriel Roubini discorrendo sobre a bolha imobili- Journatic , desperta tanto interesse como angústia com ária, o sociólogo Zeynep Tufekci falando de conflitos sua cobertura a distância de fatos “locais”. Quando prano Oriente Médio, a analista financeira Susan Webber ças em países do Oriente Médio são alvo de artilharia, a no site Naked Capitalism – estão produzindo um con- confirmação do estrago é feita por redes de testemunhas teúdo contextualizado melhor do que muito material munidas de celular e especialistas em assuntos militacriado por jornalistas tradicionais. E não é só questão res no Twitter – que garantem um testemunho em pri-
de um indivíduo qualquer poder publicar sua opinião
meira mão e análise em tempo real dos fatos.
sem intermediários; no caso de doping do ciclista Lance Armstrong, o blog NY Velocity, especializado em ciclis-
A lista daquilo que um jornalista pode fazer cresce diariamente, pois a plasticidade de tecnologias de comunicação muda tanto recursos de apuração de fatos como a con-
mo, saiu muito à frente da imprensa esportiva profissional (que, no episódio, foi de uma credulidade absur- duta do público. Jonathan Stray, repórter da Associated da). E sua cobertura foi muito melhor. Press e inovador da mídia, observou em um post: Uma questão interessante sobre o acesso direto de especialistas ao público surgiu quando a pirâmide de Ponzi erguida por Bernard Madoff foi desmascarada. O
detalhe mais curioso do escândalo foi a Securities and Exchange Commission (a SEC, a comissão de valores
Cada uma das atividades que compõem o jornalismo pode ser conduzida melhor dentro ou fora de uma redação, por profissionais ou amadores, por parceiros ou especialistas. Tudo depende da matemática do ecossistema e, em última instância, de
mobiliários norte-americana) não ter dado ouvidos aos necessidades de usuários. alertas certeiros e detalhados da fraude disparados pelo investidor Harry Markopolos. No blog de investimentos Seeking Alpha, Ray Pellecchia perguntou: “Se Markopolos Entender a reviravolta na produção de notícias e no tivesse um blog, [ a fraude ] de Madoff teria sido conti- jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de aplida?”. Será que a SEC teria ignorado o alerta se, em vez car o esforço humano, será crucial para todo e qualquer de procurar a agência, Markopolos tivesse usado um jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o
blog para apontar publicamente a improbabilidade das operações de Madoff? Obviamente, é impossível saber. É fácil imaginar, contudo, que uma análise pública das maracutaias de Madoff teria tido mais impacto do que teve a cobertura do assunto por profissionais da mídia. Também chegamos a um ponto no qual a “multidão”
jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jornalístico é preciso responder a duas perguntas correlatas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho modelo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor do que ninguém?
lá fora está disseminando a própria informação em tem-
po real para outros indivíduos e para o mundo. Hoje, é mais barato do que nunca reunir dados sobre qualquer Quando mídias sociais são melhores: amadores mudança mensurável – e surgem algoritmos capazes de reordenar essa informação em frações de segundo e pro-
duzir relatos de acontecimentos que já passam no teste de Turing: ou seja, nada os distingue de textos redigidos por gente de carne e osso. E isso sem nenhuma intervenção de um jornalista. Mas o retrato pintado pelas mudanças no ecossistema
do jornalismo não é só de perda. Se de um lado velhos monopólios desaparecem, há, de outro, um volume cada
vez maior de trabalho jornalisticamente útil a ser feito pela colaboração de amadores, multidões e máquinas. Uma corretora de commodities, por exemplo, não precisa de um repórter plantado em uma lavoura de trigo para entrevistar o agricultor: satélites podem produzir
O valor jornalístico de mídias sociais ocupa um espectro que vai do indivíduo munido de uma informação
importante – a testemunha em primeira mão, o “insider” – até a coletividade. Bradley Manning, o soldado do braço de inteligência do Exército norte-americano acusado de vazar milhares de documentos do Departamento de Estado para o site WikiLeaks, ocupava um posto de importância singular; já o registro
do rastro de detritos deixado pela explosão do ônibus espacial Columbia pela BBC exigiu vários observadores independentes. Um projeto do Huffington Post em 2008, o Off the Bus, ocupou um espectro similar: o rela-
to de um discurso de Barack Obama em São Francisco,
convenções de eleitores ( “caucuses” ) no Estado do Iowa e idiossincrasias de complexas organizações modernas “caucuses” foi feita por levas de indivíduos. é uma empreitada intelectual nada banal – e, de queQuando uma força de operações especiais da Marinha bra, um serviço s erviço públic público. o. Em muito muitoss casos, ca sos, os aspecto a spectoss norte-americana (os SEALs) matou Osama bin Laden, mais importantes do trabalho jornalístico individuquem primeiro tornou pública a notícia foi Sohaib Athar al seguem sendo o que sempre foram em sua melhor (cujo Twitter é @reallyvirtual). @reallyvirtual) . Ou, nas palavras do pró- encarnação: entrevistar, observar em primeira mão, prio, “o cara que blogou ao vivo o ataque ataqu e a [ bin bin Laden ] sem analisar documentos. sequer saber”. Sohaib Athar não é jornalista (é consulNão obstante, muitas das estratégias que defendetor de TI em Abbottabad, no Paquistão, onde bin Laden mos não espelham diretamente o paradigma da reporfoi encontrado) e talvez nem soubesse que estava fazen- tagem tradicional. A maioria dos jornalistas, e das insdo jornalismo. Mas, como observou Steve Myers, à épo- tituições jornalísticas, foi incapaz de tirar proveito da ca no Poynter Institute, o rapaz “agiu como um jorna- explosão de conteúdo de potencial interesse jornalístilista”. No Twitter, Athar disse ter ouvido o barulho de co trazida pela expansão da comunicação digital. O fato um helicóptero e uma explosão. Na sequência, respon- é que a maioria dos jornalistas, na maioria dos jornais, deu a perguntas, acrescentou informações quando jul- não passa a maior parte do tempo realizando algo que gou que havia fatos novos, seguiu o desenrolar da tra- possa ser considerado uma apuração empiricamente ma e contextualizou o episódio. Athar virou um recurso robusta de fatos. Assim como a histórica hi stórica falácia da “era para jornalistas que tentavam reconstruir a cronologia de ouro” do jornalismo, a crença no valor do trabalho dos eventos – uma parte do sistema de verificação que original de reportagem muitas vezes supera o volume podia ser cotejada em tempo real com a versão oficial. real ao qual é produzido. Em muitos acontecimentos de relevância jornalísti Ainda há muito jorna jornalista lista que se restrin restringe ge a um rol ca, é cada vez mais provável que a primeira descrição relativamente limitado de fontes na hora de colher inforin fordos fatos seja feita por um cidadão conectado, não por mações para matérias de grande relevância, com o ocaum jornalista profissional. Em certas situações – desas - sional complemento de dados obtidos em comunicados tres naturais, chacinas –, a transição já foi concluída. de imprensa e por observação direta. Essa concepção Nesse caso, como no de tantas outras mudanças no do trabalho de reportagem centrado na fonte com auto jornalismo, jornali smo, a erosão de velhas formas de agir é acompa- ridade exclui mídias sociais, a explosão de dados diginhada da expansão de novas oportunidades e de novas tais, fontes de informação geradas por algoritmos e muinecessidades de um trabalho jornalisticament e impor- tas das novas estratégias de coleta de informações que tante. O jornalista não foi substituído – foi deslocado aqui destacamos. para um ponto mais acima na cadeia editorial. Já não Devia haver mais trabalho de reportagem, e não menos, produz observações iniciais, mas exerce uma função cuja e essa reportagem devia aprender a conviver com forênfase é verificar, interpretar e dar sentido à enxurrada mas mais recentes de apuração de informações de i ntede texto, áudio, fotos e vídeos produzida pelo público. resse jornalístico. Reconhecemos que o colapso econô A “apuração “apu ração dos fato fatos” s” ocupa um lugar de destaqu destaquee mico de jornais representa uma ameaça bastante real na autoimagem do jornalismo: está no cerne daquilo que para o trabalho de reportagem; a solução desse dileo jornalista faz – algo, que, em sua concepção, ninguém ma exigirá uma nova atenção a instituições jornalístimais pode fazer; é o aspecto da ocupação que requer a cas, algo que discutiremos em mais detalhe na próxihabilidade mais tácita; é a função que serve de forma ma seção, sobre instituições. mais direta o interesse público. A importância desse trabalho de reportagem se reflete em muitas das batalhas mais perenes travadas em torno do jornalismo na Quando mídias sociais são melhores: multidões última década e meia, da briga aparentemente interminável entre “blogueiros x jornalistas” ao confli to sobre Quando um número suficiente de atores é reunido, chegaagregação de conteúdo x cobertura própria. -se a uma multidão. E algo que essa multidão faz fa z melhor Por ser considerado simplista ou metodologicamen- do que jornalistas é coletar dados. Quando o Japão foi te ingênuo, o trabalho de reportagem costuma ser mal atingido por um terremoto em março de 2011, provointerpretado por gente de fora do meio. Obter informa - cando um vazamento na usina nuclear de Fukushima ções descritivas cruciais de uma testemunha na cena Daiichi, a frustração devido à falta de inform ação atua-
ESPECIAL | JORNALIST JORNALISTAS AS
Plataformas para partilha de dados em tempo real, No setor de tecnologia, projetos novos como Palantir Palantir,, como a Cosm, contam com grupos militantes de empre- Kaggle e Narrative Science estão eletrizando investidosas, ou simplesmente cidadãos comuns, para recolher res com as possibilidades infinitas abertas pela coleta informações de seu interesse – sobre qualidade do ar, de dados e o uso de algoritmos para organizá-los. condições de trânsito, eficiência energética, o que seja Com uma equipe de 30 pessoas – dois terços enge– e compartilhá-las por meio de sensores bem baratos. nheiros, um terço editorial –, a Narrative Science “proDados em um site desses têm um alcance, alc ance, uma profun- duz narrativas completas a partir de dados numéricos didade e uma precisão que simplesmente não podem bruto bru tos”, s”, co como mo diz o pró própri prio o dir direto etorr de tec tecno nolog logia ia da ser garantidos por um jornalista sozinho. empresa, Kris Hammond. Hammond e sua equipe de Hoje, o cidadão também fotografa e filma fatos de cientistas da computação buscam identificar elemeninteresse jornalístico – e, às vezes, como no projeto tos cruciais de um texto jornalístico e de que forma Off the Bus do Huffington Post em 2008, dá verdadei- poderiam variar, seja para o resumo de uma partida de ros furos políticos. Plataformas sociais como Facebook bei beiseb sebol ol ou o anún a núnci cio o dos d os res result ultado adoss de d e uma u ma emp empreree Twitter reconhecem que reunir e interpretar toda a sa. Em seguida, programam um código que permite informação hoje disponível é uma tarefa que extrapo- a conversão de dados em estado bruto em palavras. la a capacidade humana. Daí toda plataforma social e Esse conteúdo de baixo custo já está sendo vendido todo mecanismo de busca contar com algoritmos que a empresas e veículos de comunicação tradicionais, ajudam a analisar que conteúdo está sendo comparti- entre outros. lhado, que temas são mais discutidos (e por quem) e A proposta da Narrative Narrative Science Scie nce é automatizar automati zar a procomo surge e circula a informação. dução de textos padronizados como resultados finan A disponibilidade disponibilidade de recursos, como fotos tiradas pelo ceiros de empresas e resultados de competi ções esporcidadão comum, não elimina a necessidade do jorna- tivas. Isso reduz a necessidade de intervenção humana lismo nem de jornalistas, mas altera sua função. O pro- em atividades repetitivas: repetit ivas: em vez de ficar redigindo texfissional deixa de ser o responsável por registrar a pri- tos elementares, essa mão de obra é liberada para coisas meira imagem ou fazer uma observação inicial e passa mais complexas ou que exijam interpretação. a ser aquele que solicita a informação e, em seguida, filE, como sempre, essa comoditização permite a partra e contextualiza o que recebe. Um termo hoje mui- ticipação até de quem não pertence aos quadros trato usado, “crowdsourcing ”, ”, implica por si só uma rela- dicionais da profissão. Se uma criança está disputanção de “um com vários” para o jornalista, que lança do uma partida de beisebol pela liga infantil e o pai usa uma pergunta a um grande grupo de pessoas ou recor- um aplicativo para iPhone chamado GameChanger GameChan ger para re a esse exército de gente para achar respostas. Mas registrar os resultados, a Narrative Science vai procesessa multidão também pode ser uma série de indivídu- sar esses dados instantaneamente e produzir um texto os atuando por meio de redes – multidão que pode ser com a descrição do jogo. Mais de um milhão de pequeinterrogada e utilizada para uma versão mais comple- nos textos do gênero serão gerados só este ano. ta dos fatos ou para a descoberta de coisas que seriam Em entrevista à revista Wired , Hammond disse espedifíceis ou demoradas de apurar com o modelo tradi- rar que, no futuro, algo como 80% a 90% das matérias cional de reportagem. sejam geradas por algum algoritmo. Quando pedimos que desenvolvesse o pensamento, ele explicou que vai haver uma expansão do tipo de “matéria” que poderá ser produzida por máquinas à medida que mais dados Quando a máquina é melhor de caráter local e pessoal forem sendo coletados e lanSe há algo que a máquina faz melhor do que o homem çados na internet. Esses 90% implicam, portanto, não é garimpar com rapidez grandes volumes de dados. A só dados em estado mais “granular”, mas um univerautomação de processos e conteúdo é o território mais so muito maior de matérias ou conteúdo sendo publisubaproveitado para derrubar o custo do jornalismo e cados, por um conjunto muito maior de repórteres, a melhorar a produção editorial. No prazo de cinco a dez maioria amadores. Esse tipo de reportagem será viável anos, teremos informações produzidas a baixo custo e sempre e quando houver dados disponíveis nesse formonitoradas em redes de aparelhos sem fio. Vão servir mato digital. E sempre e quando não houver dados nespara várias coisas – informar às pessoas qual o melhor se formato, como em uma audiência pública realizada
cria devem “pensar como um jornalista”; sua intenção é esmiuçar o que o jornalista faz e, em seguida, reproduzir a atividade com a programação. “Queremos que a máquina se aproxime das pessoas, [ queremos q ueremos ] humanizar a máquina e produzir lampejos humanos em escala gigantesca.” gigan tesca.” Repórteres e editores consideram esse cenário horripilante. Jornalistas e programadores (ou jornalistas com formação em ciência da computação) raramente trabalham com esse processo de replicação. “Falta uma boa compre compreensão ensão da questã questão, o, no moment momento o ainda são poucas as organizações jornalísticas com essa capacidade”, explicou Reg Chua, diretor de dados e inovação na Thomson Reuters. Se a resposta à pergunta “em que situações um algo ritmo é melhor?” for “para produzir textos a partir de dados estruturados”, e se o universo un iverso de dados estruturados de natureza pessoal, local, nacional e internacional estiver crescendo de forma exponencial, prever a automatização de 90% do conjunto de “matérias” não soa tão absurdo.
Quando o jornalista é melhor Ante s da chega Antes chegada da da máqu máquina ina a vapo vapor, r, todo t odo prod produto uto têxtil era “artesanal” – no sentido de que era feito por artesãos. Não era, no entanto, muito bem feito; o homem não fabricava têxteis porque tinha alguma habilidade superior, mas por falta de alternativa. A máquina a vapor transformou a indústria têxtil, encerrando a participação humana no grosso da produção básica de tecidos – mas criou uma leva de novas ocupações para artesãos sofisticados, bem como para criadores de estampas e gerentes de fábricas. A nosso ver, algo a lgo pareci parecido do ocor ocorre re hoje no jorna jornalislismo. A ascensão daquilo que conhecemos por “i mprensa” coincidiu com a industrialização da reprodução e da distribuição de material impresso. Quando o custo de levar uma coluna de texto a milhares milh ares de pessoas começou a cair, organizações jornalísticas puderam canalizar mais recursos para a produção diária de conteúdo. Agora, estamos estamos testemunhando uma mudança correlata: a automatização da coleta e da disseminação di sseminação de fatos, e até de análise básica. Isso obviamente mexe com atividades que empregavam jornalistas não como artesãos, mas como meros braços – gente que desempenhava a função porque não havia máquina capaz c apaz disso. Mas tam bém permi permite te que meios de comun comunicaç icação, ão, tradic tradicionai ionaiss
Prestação de contas cont as
Uma pergunta que a sociedade está sempre fazendo, e para a qual exige resposta (em geral, quando algo dá errado), é “quem é o responsável?”. Se o jornalismo tem um impacto, e se parte de sua função é obri gar outras instituições a prestar contas de seus atos, o próprio jornalismo deve ser capaz de justificar justi ficar os seus. Os três inquéritos (um deles policial) envolvendo o tabloiWorld , acusado de apelar para de britânico News of the World grampos telefônicos, demonstram de forma bastante vívida que, embora deva ter liberdade de expressão, o jornalista também precisa responder pessoalmente por seus atos. Determinar de quem é o risco da publicação de contecont eúdo é legalmente importante (e se tornará ainda mais), tanto no terreno da imputação de responsabilidade responsabilidade como no da defesa de direitos. A criação criaçã o de programas program as e algoritmos algorit mos que substitue subs tituem m o trabalho humano de reportagem envolve uma série de decisões que devem ser passíveis de explicação e responsabilização para todos os afetados. Na Narrative Science, jornalistas criam algoritmos; no Google News, engenheiros precisam entender o que torna uma matéria “melhor” para poder melhorar um algoritmo. Dados e algoritmos são tão políticos polít icos quanto charges e textos de opinião, mas raramente possuem a mesma transparência. Novas áreas de responsabilização vão surgindo. Jornalistas e instituições jornalísticas terão de responder à seguinte pergunta: “O que vocês estão fazendo com meus dados?”. Talvez não importe saber quem é jornalista – exceto para a pessoa que está revelando informações a um jornalista. Na mesma linha, salvaguardas e defesas garantidas a jornalistas devem ser estendidas a todo aquele que dissemina alguma informação de interesse público. Se um jornalista ou organização jornalística jornalí stica está de posse de seus dados, é razoável esperar que não sejam entregues à polícia. Sabemos o que acontece quando informações delicadas, como a correspondência diplomática vazada para o WikiLeaks, são hospedadas em uma plataforma inerentemente comercial mas não inerentemente jornalística: o serviço pode ser suspenso. Tanto um braço da Amazon que prestava serviços de internet para o WikiLeaks como o PayPal, um mecanismo de pagamentos na rede, cessaram a relação com a organização. Em geral, é mais difícil detectar plataformas que praticam censura por motivos comerciais. Rebecca MacKinnon, pesquisado-
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para a popular loja de aplicativos é turvo e arbitrário, e que o rechaço de certas contribuições equivale a censura (como na decisão, notoriamente opaca, de rejeitar o mapa interativo de ataques com “drones” feito pelo programador Joshua Begley). Com a simples decisão de usar um produto da Apple, portanto, o jornalista toma parte na criação de um futuro com censura para a internet. Eficiência
seguidores?”. É fato, no entanto, que a atividade individual do jornalista – seus recursos e sua liberdade – está crescendo, e já não se restringe à marca do veículo e ao público deste. No ecossistema da informação, o jornalista pode exercer o maior impacto no trabalho entre as massas, de
um lado, e o algoritmo, do outro – no papel de investigador, tradutor, narrador. Sem explorar as possibilidades da multidão ou de algoritmos, certas modalidades de jornalismo se tornam insustentáveis, incapazes de
É evidente que o jornalista pode ser muito mais eficiente do que a máquina na apuração e disseminação de certas informações. É entrevistando gente que o profissional tem acesso aos fatos e se “apodera” de um assunto, às vezes com exclusividade. Ligar para o palácio do governo ou para a Secretaria de Educação, comparecer a reuniões e assimilar o que é dito ali, dar ideias e questionar – tudo isso aproxima a notícia da ideia de “drama” que o teórico da comunicação James Carey julgava central para o conceito do jornal. Pessoais e humanas, essas atividades convertem o jornalismo em uma espécie de performance da informação, e não mera divulgação de fatos.
acompanhar o mundo de redes e dados em tempo real que chegam ao público de todas as partes – de sensores instalados na lata de lixo a “trending topics” no Twitter. O lugar ocupado pelo jornalismo no ecossistema tem a ver, portanto, com a humanização dos dados, não com o processo de mecanização. A adaptação a esse mundo é um desafio para o jornalista que aprendeu a trabalhar em redações cujo produto exigia, antes de tudo, exatidão e certeza, e onde havia unidade e clareza em torno de um pequeno con junto de processos: apuração, redação, edição. A capacidade de reconhecer, localizar e narrar um fato rele vante no format o mais condizente para um púb lic o específico segue sendo necessária, mas o número de
formatos e a variabilidade da audiência aumentaram. E mais: técnicas do ofício que ajudarão o jornalista a Para ter ideias, criar algoritmos, formar movimentos definir e redefinir seu papel futuro e o setor no qual e inovar em práticas é preciso originalidade de raciocí- atua estão mudando. nio. Um jornalista deve provocar mudanças, promover a experimentação e incitar à ação. Ainda é difícil criar Originalidade
e manter máquinas capazes de entender a realidade
O que um jornalista precisa saber?
com a complexidade exigida para reconhecer o que há de importante em uma história como a de swaps de crédito ou por que é preciso investigar a situação fiscal de Mitt Romney. Essa bagagem cultural distingue repórteres, editores, designers e demais jornalistas de outros sistemas de coleta e disseminação de dados.
Quando Laura e Chris Amico trocaram a Califórnia pela capital norte-americana, Washington – onde Chris foi trabalhar como desenvolvedor no site da rádio NPR –, o casal não conhecia o lugar, não conhecia a comuni-
Carisma
dade e não sabia onde Laura, que é repórter policial,
iria achar trabalho. “Não havia ninguém contratando”, diz Laura. O tédio do desemprego e o interesse dos dois pelo jornalis-
Gente segue gente. Pelo mero fato de ser “humano”, portanto, o jornalista cria para si um papel mais forte. É um trunfo que a televisão, movida que é a personalidades, há muito explora, mas sempre numa via de mão única. Já num mundo de redes, a capacidade de
mo cívico levou o casal a cogitar possíveis projetos na área. “Pensamos muito sobre o que ‘não’ vinha sendo coberto”, diz Laura, que mantém um pequeno apare-
lho para escutar a rádio da polícia onde a maioria exi be um despertador. informar, entreter e responder a feedback de forma E o que não estava sendo coberto nas páginas poliinteligente é uma habilidade jornalística. É como dis- ciais dos jornais locais e até do Washington Post , perse Paulo Berry, ex-diretor de tecnologia do Huffington ceberam, era todo homicídio ocorrido na cidade. Para Post : “Hoje em dia, quando um jornalista é entrevista- tapar esse buraco na cobertura, o casal criou o site
rede toda e qualquer informação apurada – aproveitar “Soft skills” do jornalismo “o porco inteiro”, por assim dizer. O Homicide Watch D.C. é organizado por “objetos” – ocorrência, vítima,
Mentalidade
suspeito, processo – e usa informações estruturadas
O que Laura e Chris Amico têm além da bagagem prosobre local do crime, idade e raça dos envolvidos para compor um retrato detalhadíssimo desse tipo de ocor- fissional – ela como repórter de polícia, ele como prograrência em uma única cidade. O próprio caráter por- mador de sites – é o espírito de melhorar o jornalismo menorizado do site ajuda no trabalho de apuração: se em vez de simplesmente repetir o que já se faz ou tentar alguém entra na página e dá uma busca por um nome resgatar o ofício. “Precisamos mostrar a jovens jornadesconhecido, é uma deixa para Laura investigar se o listas que está em seu poder mudar uma organização”, alvo da pesquisa é uma vítima. Graças a isso, o site já diz Shazna Nessa, chefe de redação do braço interativo conseguiu dar a notícia de um assassinato e descobrir da Associated Press. “Aliás, a esperança de que as coisas a identidade da vítima antes que a polícia tivesse con- mudem em geral é depositada sobre esses jovens”, diz. firmado a ocorrência. Para quem possui essa mentalidade, o apelo de uma Não há “voz” autoral no site: é tudo escrito no esti- instituição é reduzido. Pouquíssimas empresas seguem lo de agência de notícias. E, enquanto o relato de cada o exemplo de John Paton, da Digital First Media , um homicídio é factualíssimo, comentários de parentes das chefe que incentiva a ruptura, espera mudanças e con vítimas ou de outros membros da comunidade recebem sidera que nada está gravado em pedra. bastante destaque. Ao registrar e tornar visível cada Logo, gente talentosa como o casal Amico – e Leela homicídio no Distrito de Colúmbia, onde fica a capital Kretser, da DNAinfo , Lissa Harris, da Watershed Post, norte-americana, o site cumpre uma função jornalística Burt Herman, da Storify, Pete Cashmore, da Mashable , bem clara e específica: com uma corrida de olhos pela e centenas de outros como eles – opta por uma trilha página, é possível deduzir que o homicídio na região
envolve, em sua maioria, homens, negros, jovens. Com um punhado de cliques, é possível conferir estatísticas detalhadas que confirmam essa impressão. O Homicide Watch é um exemplo daquilo que Chris e Laura tinham certeza de que não poderiam fazer em uma redação. A conversão da informação em estatísti-
aberta por Nick Denton, Arianna Huffington e Josh Marshall e tenta fazer algo melhor com a criação de
uma nova instituição. Ter desejo e motivação para exercer influência pessoal sobre o jornalismo, tanto no plano da notícia como no da instituição, requer uma combinação de consciên-
cia, confiança, imaginação e habilidade.
cas e um site que prioriza vítimas e ocorrências, e m vez
Ainda que nem todas essas qualidades possam ser
car e filtrar observações úteis é outro exemplo. Nem
Só que julgar a qualidade da inovação pelo lucro gerado
da velha reportagem, estão em conflito com as priori- ensinadas, o fato é que não são opcionais. É importante recrutar e formar jornalistas (nas redações ou em faculdades de muita redação. Embora a reportagem seja o pilar do jornalismo, o dades de jornalismo) que saibam lidar com um estado Homicide Watch mostra que ferramentas de reporta- permanente de mudança. Em algumas dessas instituigem podem ser usadas das mais variadas formas. Um ções, que pela própria natureza representam estabili banco de dados que converte cada detalhe apurado pelo dade, será preciso considerável reajuste. A ideia do jornalista “empreendedor” vem ganhando repórter em informação estruturada com o intuito de produzir mais conteúdo é um bom exemplo disso. Um força e é cada vez mais estimulada tanto em cursos de sistema de comentários que permite ao usuário desta- jornalismo como em certos veículos de comunicação. todo jornalista terá domínio de toda área de trabalho.
– algo associado a essa ideia – nem sempre é útil, pois a busca do lucro deve ser precedida da criação de rele-
Por reconhecer a centralidade da reportagem, nossa atenção aqui se concentra em recursos novos que já são vância. Seja qual for sua área de especialização, todo exigidos para um trabalho melhor de reportagem, mas jornalista deve encarar a experimentação voltada à ino vação como algo a praticar, e não simplesmente tolerar. que ainda são escassos.
Não há dúvida de que a bagagem técnica que Laura e Chris possuem (suas “hard skills”) são a base do sucesso do site. Laura é repórter policial, Chris é programador. A grande lição a tirar do caso, no entanto, não é só
Redes
Todo jornalista tem – aliás, sempre teve – uma rede.
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À medida que cada integrante da rede vai ficando ain- do jornalista levaram a um resultado que pode ser visto da mais conectado, um jornalista com bom trânsito por como o símbolo do accountability journalism. essas redes pode obter mais ajuda ou ser mais eficien Persona te. Edição, pauta e apuração viram atividades total ou parcialmente delegadas à rede. Criar e manter uma rede eficaz requer tato (uma “soft skill ”), mas também a imposição de limites bem con-
Presença, acessibilidade e responsabilização são coisas importantes no jornalismo. E o mesmo pode ser
serviços como Faceboo k , YouTube, Twitter, Orkut e Weibo publicam muito mais conteúdo do que a produção somada da mídia profissional no mundo todo.
seminação, a informação hoje é instantaneamente compartilhada, discutida, comentada, criticada e louvada
irlandês de jornalismo Storyful, que vasculha a ativida-
à natureza da busca e à publicação contínua, estabelecer um atributo desses ficou mais fácil. Mas, uma vez perdi-
que participara do protesto para tentar determinar a
ser ter acesso a fontes sigilosas deve ser capaz de prote-
cretos. Exige tempo, reflexão e processo. Exige crité- dito da habilidade narrativa. Qualquer um de nós pode rio, até porque uma rede implica proximidade e o jor- constatar, em cifras, o declínio da imprensa. Mas qualnalismo exige distância. Logo, garantir ambas é difícil. quer um de nós também pode ler um David Carr no New No documento “The AOL Way”, uma diretriz estraté- York Times para saber que fatores são importantes na gica do portal que vazou para o público em 2011, a tese opinião do jornalista. Aliás, queremos ler Carr porque explícita da AOL era que jornalistas com redes maiores sua prosa é um primor. Quanto mais um jornalista nos ou mais seguidores valiam mais. Embora boa parte do envolve com sua persona , mais queremos ouvir o que material tenha sido considerada pura besteira, o impacto tem a dizer sobre o mundo. de um exército grande e visível de seguidores na carreiAntigamente, ter uma persona pública era prerrogara de um jornalista é inegável. Quando o site Daily Beast tiva de colunistas festejados. Hoje, é parte do trabalho tira um jornalista como Andrew Sullivan da revista The de todo jornalista. Todo mundo – editores e repórteres, Atlantic , a expectativa é que seus leitores migrem tam- profissionais da arte, fotógrafos, “videomakers”, cien bém. A credibilidade, a confiabilidade e a tarimba de um tistas de dados, especialistas em mídias sociais – tem jornalista já são julgadas pela composição de sua rede. um ângulo próprio e responsabilidade na narração dos Todo indivíduo, assunto ou lugar tem o potencial de fatos. Para isso, é preciso ter critério e aplicá-lo de forcontar com uma rede visível a seu redor. Diariamente, ma pública e reiterada. Qualquer que seja o meio de dis– ao vivo, sem possibilidade de controle. Logo, garimpar relacionamentos, conversas e histórias Integridade e critério são qualidades que um jornaserá cada vez mais importante para a coleta de infor- lista arrasta consigo como parte de sua persona pública. mações. A ferramenta de agregação Storify e o projeto Estão mais para valores do que para “soft skills”. Devido
de em redes sociais para buscar notícias e checar fatos, são como agências de notícias sociais: garantem mais do, é difícil recuperá-lo. Plágio, desonestidade e intenproteção e filtro jornalístico do que as plataformas em ções ocultas são mais difíceis de esconder; já erros facsua base, sempre tentando imprimir algum sentido a tuais, material requentado e falta de civilidade podem abalar uma reputação de forma rápida e irreparável. informações dispersas e não raro confusas. Um repórter do The Guardian, Paul Lewis, se valeu Por outro lado, um bom jornalismo em qualquer esfede técnicas viabilizadas por redes para produzir uma ra pode conquistar autoridade sem apoio institucional. série de matérias importantes, incluindo uma na qual O processo pelo qual o jornalista conquista uma boa analisou imagens registradas por indivíduos na cena reputação – mantendo a integridade, agregando valor de protestos durante a reunião do G20 em Londres, em à informação para determinado público, demonstrando 2009. Ian Tomlinson, um manifestante que já tinha pro- conhecimento, revelando fontes e explicando metodo blemas de saúde, caiu ao chão e morreu durante a mar- logias – hoje se dá em público, em tempo real. O velho cha, mas a versão da polícia sobre o in cidente não soava modelo de proteção de fontes – na prática, um acordo correta para Lewis, que continuou a entrevistar gente de cavalheiros – já não basta. Hoje, o jornalista que quiordem dos fatos. Dias após a morte de Tomlinson, um ger a informação o suficiente para impedir que as ditas vídeo feito por um espectador com o celular foi envia- fontes sejam identificadas por ferrenhos inimigos, do do ao The Guardian, que preconiza a “abertura” como poder público ou não. Instituições jornalísticas precisam buscar um equilíprincípio central de seu jornalismo. O vídeo mostrava,
que o profissional construa sua reputação, a necessidade
de transmitir informações de forma segura, rigorosa e coerente, dentro de prazos ou nos limites de um determinado produto, pode estar em conflito com o modo
mais eficiente de trabalhar para o jornalista. Veremos essa questão em mais detalhe no trecho
dedicado a processos. Bagagem concreta, ou “ hard skills” Conhecimento especializado
Hoje em dia, o jornalista precisa, cada vez mais, exi bir um conhecimento profundo de algo além do ofício jornalístico em si. Diante da maior disponibilidade e da maior qualidade de conhecimentos e comentários de
especialistas, a relativa ignorância do jornalismo profissional fica ainda mais patente. Em áreas como economia, ciência, relações internacionais e negócios, a complexidade da informação e a velocidade à qual o público
deseja recebê-la, já explicada e contextualizada, deixa pouco espaço para o típico generalista.
O custo da contratação de especialistas com profundo
domínio de uma determinada área significa que, cada vez mais, a cobertura jornalística especializada virá de
gente para quem o jornalismo é só uma atividade a mais – como os criadores do SCOTUSblog , com seu escritó-
Dados e estatísticas
Para que o jornalismo mantenha sua relevância, gen-
te que trabalha na área terá de melhorar seu traquejo no uso de dados. À medida que indivíduos, empresas e governos vão criando e soltando dados em volumes cada
vez maiores, vemos que disponibilidade e acessibilidade, no caso de dados, são coisas distintas. Entender a natureza daquilo que conjuntos imensos de dados oferecem, saber compor narrativas e tirar conclusões que deem sentido a informações talvez falhas ou parciais, é um trabalho importante. Assim como precisa de gente com um conhecimento maior de tecnologias da comunicação e ciência da informação, o jornalismo precisa converter cientistas de dados e estatísticos em competências centrais dentro de seu campo de atuação. Há uma relação estreita e simbiótica entre redes de usuários, jornalistas e dados. Todo jornalista deve ser capaz de analisar dados e indicadores que acompanham
seu trabalho e estar ciente de que toda cifra representa uma atividade humana. Além disso, deve ser capaz de entender feedbacks e interpretá-los de forma correta, para poder melhorar o alcance e o conteúdo daquilo que produz. Em 1979, a especialista em segurança Susan Landau estabeleceu uma distinção entre segredos e mistérios. Ao tentar entender por que a Revolução Iraniana pegara os
Estados Unidos totalmente de surpresa, Landau obser-
rio de advocacia, ou os economistas Nouriel Roubini e vou que a comunidade de inteligência estava focada em Brad DeLong, com seu trabalho acadêmico e de consul- segredos (buscava entender aquilo que o regime do xá toria. O conhecimento pode ser geográfico, linguístico vinha ocultando), não em mistérios (aquilo que ocorria com diversos grupos fiéis ao aiatolá Ruhollah Khomeini ou em certa disciplina ou área de estudo. O valor da especialização pode estar em técnicas ou que, embora públicos, não eram muito visíveis). habilidades de comunicação e apresentação. Profissionais
destacados – jornalistas e fotógrafos, especialistas em áudio ou vídeo, editores de mídias sociais – vão criar público para seu trabalho graças à capacidade de identificar um mercado e de se comunicar com ele. Meg Pickard, diretora de interação digital do jornal britânico The Guardian, descreve o fenômeno da criação, pelo indivíduo, de comunidades de nicho em torno de áreas específicas do conhecimento como geração
Em termos jornalísticos, a cobertura mais famosa
presente na memória dos Estados Unidos – Watergate – foi baseada na descoberta de segredos. Alto funcioná-
rio do FBI, Mark Felt abriu a boca para o repórter Bob
Woodward, do Washington Post – entregou informa-
ções cruciais para a cobertura que Woodward e o colega Carl Bernstein faziam do governo Nixon. O peso de Watergate para a autoimagem da imprensa norte-americana tradicional segue sendo importante, ainda que
de “microfama contextualizada”. Todo jornalista pre- muitas das grandes coberturas da última década tenham cisa saber como criar comunidades de conhecimento e girado em torno de mistérios, não de segredos. As falinteresses que casem com sua especialização. catruas da Enron e de Bernard Madoff, e a manipula A jornalista Sara Ganin – que recebeu um Pulitzer ção da Libor pelo Barclay’s, foram expostas por gente pela reportagem sobre o abuso sexual de menores pra- de outra área; aliás, a primeira a escrever sobre as frauticado por Jerry Sandusky, ex-técnico de futebol ameri - des da Enron, a repórter da Fortune Bethany McLean, cano em uma universidade na Pensilvânia – conseguiu não foi endeusada em parte porque aplaudi-la por ter
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Ainda que o mundo em si tenha ficado mais complexo, o volume de dados disponíveis sobre muitos atores importantes – empresas, políticos, religiosos, criminosos – cresceu radicalmente. Um dos principais recursos para a compreensão de mistérios é a capacidade de esmiuçar dados em busca de padrões que possam estar escondidos debaixo do próprio nariz.
técnica – ou seja, o jornalista precisa aprender a escrever código. É verdade que ter verdadeira fluência em
como o conteúdo jornalístico é recebido, saber o que
progresso de organizações jornalísticas. “Até na redação com mais recursos a proporção de programadores e jornalistas não passa de um para dez, o que é muito pouco.
ção a decisão do site norte-americano Gawker , cujo edi-
Na maioria das instituições, as altas esferas do comando dão importância a competências comerciais e edit o-
muitas linguagens de programação exige estudo e expe-
riência, algo que nem todo jornalista vai poder – e nem deveria – adquirir. Mas todo jornalista precisa entende r, ainda que num nível elementar, o que é um código, qual
sua função e como se comunicar com gente que entende da coisa. John Keefe, chefe de uma pequena equipe Compreensão de indicadores e públicos de programadores na redação da rádio norte-americana WNYC, observa que a admissão a escalões cada vez Um número surpreendente de veículos de comuni- mais baixos já exige um domínio básico de ferramencação que estudamos ainda não emprega ferramentas tas e aplicativos de programação. Um jornalista ouvido por nós, que trabalha em um de monitoramento em tempo real como Chartbeat ou Google Analytics – ou, o que é mais comum, não garan- ambiente mais técnico do que a maioria, apontou a falte o acesso de todo jornalista a esses recursos. Entender ta de programadores como um entrave importante ao torna algo viral e poder conferir o que é lido, ouvido ou visto (e por quem) são coisas importantes para o jornalismo. E podem, embora não necessariamente, levar à E a qualidade de muitos programadores nas redações manipulação do conteúdo para aumentar o número de é bem inferior à de profissionais que trabalham para pageviews ou de visitantes únicos (merece considera- empresas de tecnologia como Facebook e Twitter”, diz. tor, A.J. Daulerio, fez circular um memorando deixando clara a decisão de botar o pessoal para trabalhar, em esquema de rodízio, em uma tática de geração de tráfego chamada “traffic whoring ”) Identificar com franqueza alvos e metas, saber distinguir dados relevantes de irrelevantes e reagir retorno recebido são parte do jornalismo sustentável – e não sua ruína.
riais, não ao domínio tecnológico. É algo que preocupa, pois vemos a crescente utilização de plataformas independentes que poderiam fornecer um excelente
conjunto de ferramentas para jornalistas (para muitos, o Twitter seria a ferramenta mais útil para o jornalismo desde o surgimento do telefone), mas que não são O monitoramento de tendências técnicas e de tráfego inerentemente jornalísticas. Até para o jornalista que conduz a práticas mecânicas – coisas como otimização nunca vai escrever uma linha de código para uso diáde sites (testar links e títulos distintos para garantir a rio, dominar o bê-a-bá da tecnologia é tão importante melhor posição possível para um artigo em resultados quanto entender o básico da economia. de buscas no Google) – que não contribuem necessa Narração riamente para a imagem do jornalismo. Por outro lado, facilitar o acesso de um determinado público a um con-
Escrever, filmar, editar, gravar, entrevistar, diagramar teúdo jornalístico sujeito a filtros é prestar um serviço. O fato de que o público chega a notícias cada vez mais e produzir seguem sendo a base do ofício jornalístico. por meio de links compartilhados em redes sociais, e não Não falamos muito sobre esses dotes porque não espepor agregadores de notícias, tem implicações para repór- ramos que a capacidade elementar de saber identificar teres e editores. A ignorância geral sobre o modo como e relatar uma história relevante vá mudar, e tudo isso o público consumia a informação não era um problema segue sendo fundamental para o arsenal de um jornalisdurante o reinado do modelo industrial. Já no mundo ta. Parte da “alfabetização” tecnológica de um jornalisfragmentado e solto de hoje, saber como o público con- ta significa entender como cada uma das competências some a informação, e se o que você escreve, grava ou
fotografa chega a quem deveria chegar, é algo crucial. Programação
acima pode ser afetada por novidades no plano tecnológico ou mudanças no comportamento humano. A narra-
tiva pode ser criada com novos recursos de agregação, o que implica a compreensão de fontes e a checagem de material diverso. Um aspecto do trabalho com redes
que turbinam o tráfego de seu site, Jonah Peretti (do BuzzFeed ) martela a tese de que é preciso muita habilidade para determinar o que torna um conteúdo apetecível para que outros o compartilhem. Exercícios de curadoria e agregação mais sofisticados (como o Brain Pickings, de Maria Popova) podem provar o mesmo de forma mais cerebral ao exibir ensaios sobre a natureza da beleza em vez de cães que são o focinho de líderes mundiais – embora a competência subjacente seja análoga. Gestão de projetos
Com o surgimento de modelos mais eficazes de jornalismo a partir da reconstrução do processo existente, algo que muitos vêm observando é que o jornalista está sendo obrigado a deixar o mundo no qual toda sua atividade era focada nos assuntos que cob ria. Agora, há muito mais coisas a considerar. Steve Buttry, que chefia o programa de capacitação da Digital First Media e está sempre falando de mudanças na redação em seu blog, chama isso de “capacidade de gestão de projetos”. Ele mesmo explica: é a capacidade de “estar a par de todos os aspectos do processo e de sab er juntar isso tudo para produzir algo que funcione”. Uma ideia editorial já não tem a primazia que um dia teve num produto estático como um jornal ou boletim de notícias. Agora, a ideia também precisa funcionar à luz de um grande número de variáveis, não raro com subsídios de terceiros, e de um jeito tecnologicamente viável e condizente com o que o público pede. No novo formato, uma matéria já não é uma unidade, mas sim um fluxo de atividades. Com a contínua redução dos quadros nas redações, planejar a evolução de uma cobertura, saber por que um trecho de código está sendo escrito ou imaginar qual será o resultado, objeti vo ou impacto de um conteúdo jornalístico específico passa a ser importante – bem como definir parâmetros para monitorar essas metas internas. O corte de recursos nas redações, somado à intensificação da cobertura de eventos já bem cobertos – como as primárias presidenciais nos Estados Unidos ou os Jogos Olímpicos –, produz uma desproporção na cobertura e um desperdício de dinheiro em atividades redundantes. Um tema central deste dossiê é mostrar como o jornalista terá de cultivar a capacidade de colaboração – com tecnologias, multidões e parceiros – para poder lidar com a considerável e crescente tarefa de narrar acontecimentos. Esse trabalho multidisciplinar e colaborativo deve começar pela redação (de onde deve fluir o novo
A síndrome do hamster e Flat Earth News
O processo do jornalismo vem sofrendo uma transformação tão radical pelas mãos de forças tecnológicas e econômicas que já não há algo que possa ser descrito como “uma indústria” na qual o jornalista atuaria. Nos Estados Unidos, já não há um plano comum de carreira, um conjunto de ferramentas e modelos de produção ou uma categoria de trabalhadores estável e pre visível. Antigamente, um emprego no Washington Post pressupunha uma determinada trajetória profissional – igual a um posto na General Motors. O cargo mais baixo de redator ou repórter de uma editoria podia ser inserido numa trajetória que refletia o produto em si. O que um jornalista fazia na era industrial era definido pelo produto: um redator de títulos, um repórter, um editor, um colunista. Quando o fechamento passa a ser constante, e quando a notícia como “unidade atômica do jornalismo” é questionada, o que o jornalista faz diariamente passa a depender mais do desenrolar dos acontecimentos e do público que consome essa informação. Tanto em montadoras de veículos como em veículos de comunicação tradicionais, há bem menos ocupações do que antes, e em geral distintas. Embora compartilhe muitas das características de atividades que sofreram uma revolução, como a fabricação de veículos, o jornalismo passou por uma mudança muito mais profunda em sua constituição. A General Motors ainda fabrica carros – que por ora ainda têm quatro rodas, um motor e um chassi. Já aquilo que o jornalismo pode ser e o produto do trabalho de um jornalista são muito mais fluidos, pela própria natureza de tecnologias da informação e distribuição. No processo de migração do jornalismo de uma ati vidade que exigia um maquinário industrial e produzia um produto estático para outra na qual liberdade e recursos individuais crescem e respondem a necessidades de usuários, a dúvida é saber como cada jornalista vai influenciar o próprio processo de trabalho. As principais diferenças nesse processo são claras: •
•
•
Prazos e formatos de produção de conteúdo já não são delimitados. Localização no mapa perde relevância na coleta de informações e na criação e consumo do conteúdo jornalístico. Transmissão de dados em tempo real e atividade em redes sociais produzem informações em estado bruto.
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Como todos sabemos, essas tecnologias também aba- deixou a Associated Press para criar o Storify . Ory laram velhos modelos de negócios do jornalismo. As Okolloh montou a equipe que criou o Ushahidi e, mais condições nesse meio levaram jornalistas a sentir impo- tarde, licenciou o software de mapeamento de multitência, e não mais influência sobre a própria vida pro- dões para redações; é que seu weblog, o Kenyan Pundit , fissional. O que Dean Starkman chama de giro inces- não funcionou bem como plataforma para denunciar sante da “roda do hamster” (correr atrás do público ao mundo a violência étnica que vinha ocorrendo na transitório com a rápida publicação de matérias cha- esteira das eleições de 2007 no Quênia. mativas) e o que o jornalista britânico Nick Davies É interessante observar que em 2012, um ano de eleiexpõe no livro Flat Earth News são descrições de um ções presidenciais nos Estados Unidos, vários dos jormesmo fenômeno. nalistas que mais geraram audiência nos veículos de Reciclar comunicados de imprensa e produzir mais comunicação mais tradicionais do país não eram das com menos sem nenhuma mudança fundamental em redações, mas sim gente que se projetou por rotas relaprocessos são, sabidamente, práticas inimigas do bom tivamente experimentais – e por conta própria. Nate jornalismo. A nosso ver, no entanto, o jornalismo do Silver se dedicava à consultoria econômica e a montar futuro dificilmente seguirá esse modelo, pois pagar modelos estatísticos para o beisebol. jornalistas para produzir informações de baixo valor é O blog de política que criou – o FiveThirtyEight.com , insustentável. Se há um espaço e um modelo de negó- incorporado em 2010 ao New York Times – era tocacios para a produção às pressas de conteúdo redun- do como um projeto de caráter basicamente anônimo, dante, o mais provável é que tal modelo tenha suces- nas horas livres. so nas mãos de empresas como Demand Media ou Há paralelos com a trajetória de Ezra Klein, comenJournatic, que se valem de algoritmos e de mão de
obra barata, terceirizada.
Um jornalista que produza conteúdo de qualida-
de, independentemente de como é bancado, terá mais autonomia e controle sobre o próprio trabalho. E terá, a seu dispor, um público maior e mais diversificado, a custo baixo ou zero. Nos últimos tempos, o melhor exemplo de um jornalista que soube explorar oportunidades abertas pela tecnologia fora dos processos da redação talvez seja o de Andy Carvin, da emissora norte-americana de rádio
tarista de economia e política que criou o primeiro
blog aos 19 anos e levou sua plataforma (a Ezra Klein) primeiro para o American Prospect e, depois, para o Washington Post. Nos dois casos, o risco
da inovação e o laborioso processo de angariar público e achar uma posição singular no mercado ficaram a cargo de indivíduos que blogavam com software gratuito – e cujo pro jeto acabou sendo encampado por veículos de comunicação que, mesmo dotados de recursos maiores e de uma bela reputação, não tinham conseguido incubar
esse tipo de talento. NPR. Instalado em Washington, Carvin tuitou a ritA próxima fase da evolução verá surtos semelhanmo tão frenético sobre a Primavera Árabe em 2011 que tes de genialidade e empreendedorismo individuais virou o centro de uma rede para o público nos Estados em novas áreas – como visualização, criação de dados, Unidos e outros jornalistas que acompanhavam os fatos. partilha, agregação. As redações já não encaram bloCarvin não se limitou a repetir informações obtidas por gs, Twitter ou coberturas ao vivo com o mesmo receio outros (como um repórter gerando conteúdo sem parar e incompreensão do passado (e “passado”, aqui, signia partir de material de agências); o que fez, basicamen- fica cinco anos atrás). te, foi tornar público um processo de bastidores similar Em cinco anos mais, receber dados em tempo real de à intervenção de editores em uma matéria. Só que em vastas redes de sensores, criar conteúdo automatizavez de permanecer restrita a editores e jornalistas da do, adquirir ou criar tecnologias que reflitam valores NPR, e ao conteúdo produzido pela rádio, essa inter- jornalísticos, estabelecer parcerias com diversos espevenção foi publicada em tempo real no Twitter. Carvin cialistas e instituições e fazer experiências com agreacha que foi capaz de enveredar pelo novo caminho em gadores, animadores e performers renomados poderia parte porque seu cargo oficial – diretor de estratégia ser tão corriqueiro quanto licenciar um blog. em mídias sociais da rádio – não era visto como editorial em primeiro lugar. Embora haja muitos outros casos de gente que cha- Como vai mudar o trabalho do jornalista? coalhou velhos processos do jornalismo, é raro que os
próximos anos. Mais uma vez, essa mudança terá gradações: o papel de um editor de textos na revista The New Yorker e o processo de produção ali dentro podem mudar menos ao longo dos próximos anos do que o de um gerente de comunidade ou repórter de dados no site Nola.com . O jornalista seguirá atuando em um ambiente de alta imersão, adaptando sua rotina de trabalho a um mundo de conversação e informação contínuas, em tempo real – o que pode causar tanto cansaço quanto dispersão. A meta final desse envolvimento contínuo, no entanto, é a produção de jornalismo de qualidade, relevância e impacto elevados. A avaliação de metas e resultados do jornalismo terá caráter rotineiro e público. A presença de indicadores e dados, ligados tanto ao mundo externo como à própria atividade do profissional, serão parte da realidade cotidiana. Feeds de informações entregues em tempo real – um Twitter de dados – terão um papel maior em decisões editoriais e em matérias. Caberá ao jornalista definir a quem pertencem esses dados, determinar o que pode ser terceiriz ado para outras tecnologias comerciais e o que precisa ser mantido. Programar algoritmos, também. Jornalistas especializados – animadores, criadores de charges interativas, redatores, “videomakers”, especialistas em análise estatística de eleições, especialistas em interação – estarão sempre buscando entender as mudanças tecnológicas em sua área e provando novas ferramentas e técnicas. A evolução do meio editorial se dará à velocidade da internet, não à velocidade de redações digitais. Um jornalista vai dedicar mais tempo a relações de colaboração – relações que podem envolver tecnólogos (para a criação de sistemas melhores), especialistas ou acadêmicos em sua área e outros jornalistas (para a cobertura de fatos, a criação de software e a edição e agregação do trabalho de terceiros). Embora todo jornalista já deva estar acompanhando o desdobramento de fatos e tomando parte em discussões públicas em redes sociais ou seções de com entários, sua capacidade de agregar valor para usuários com essas técnicas será, cada vez mais, parte de seu valor como profissional. Hoje, todo jornalista pode publicar por conta própria. Uma óbvia consequência da automação da redação é a diminuição do valor e da utilidade do papel de editores. Visionários no alto das organizações seguirão dando o tom e ditando o rumo editorial de seus veículos, e talvez cada assunto venha a ter um editor especiali-
toda etapa do processo. Uma redação já não pode arcar com gente em altos cargos que não produza conteúdo. Todo editor devia, no mínimo, estar agregando conteúdo e dando links para material produzido ou não pela organização, fazendo uma meta-análise do processo e de fontes, dando continuidade à cobertura com o cultivo e a recomendação de fontes em público.
S N I L O C
PARTE 2
Instituições
DUAS GRANDES PUBLICAÇÕES ESPECIALIZADAS NA COBERTURA da atividade jornalística nos Estados Unidos são a tradicional Columbia Journalism Review (CJR), fundada em 1961, e uma revista mais recente, a Nieman Journalism Lab , instalada desde 2008 no Nieman Center, parte da Harvard University. Ambas se erguem sobre a paisagem normalmente árida de bastidores de redações e críticas à imprensa. Ao lê-las, no entanto, fica a dúvida se o setor que cobrem realmente é o mesmo.
Ao narrar em suas páginas o triste declínio de uma leva Uma história de declínio e colapso institucional : nos estade publicações e instituições tradicionais da imprensa dos norte-americanos de Michigan, Louisiana e Alabama, norte-americana (incluindo jornais como Philadelphia a Advance Publications está abandonando a publicação Inquirer e San Jose Mercury News ), a CJR volta e meia diária de jornais, reduzindo o número de dias da semasoa como um tributo a um mundo extinto. Já a Nieman na em que imprime um exemplar em papel. Em Chicago, Journalism Lab é pródiga em notícias sobre as últimas Boston e San Francisco, organizações jornalísticas se debanovidades no ofício jornalístico e novas organizações de tem com questões éticas e logísticas trazidas pela cresmídia, muitas delas com semanas de vida (ou que ainda cente terceirização da cobertura local para “fazendas de nem saíram do papel). Embora a Nieman Journalism Lab conteúdo” (e para as Filipinas). O respeitado Philadelphia traga sua cota de fatalismo e a CJR prospecte um pouco Inquirer está no quinto dono em seis anos. Até o New York o futuro, o contraste é claríssimo para qualquer pessoa Times, embora revigorado pelo modelo de assinatura digiinteressada em ficar a par dos últimos desdobramentos tal, trava uma batalha com sindicatos para tentar congeno meio jornalístico. lar aposentadorias, enxugar planos de saúde e aumentar Quando se trata de instituições de imprensa, o proble- a carga horária da redação. E esses são só os destaques ma – e razão para que a discussão em geral seja tão pola- da semana. Dois anos atrás, discutíamos o fechamento de rizada – é que tanto a CJR quanto a Nieman Journalism jornais em Denver e Seattle. E daqui a dois anos? Como Lab estão contando uma história real. O momento atual observamos na introdução, ainda que a idústria jornalísé tanto de desgraça como de ressurgimento para institui- tica se estabilize, dificilmente voltará a registrar a mesções que abrigam o trabalho jornalístico. ma rentabilidade de antes de 2005. A história que contamos a nós mesmos sobre instituiUma história de renascimento institucional : a históções jornalísticas é, em suma, mais de uma. Aliás, são três ria do declínio não é, contudo, a única. Embora projetos histórias, todas transcorrendo mais ou menos simultane- como Talking Points Memo e ProPublica costumem figuamente. Há uma história de declínio e colapso institucio- rar em tratados sobre o futuro do jornalismo como símnal, uma história de renascimento institucional e, talvez a bolo do ressurgimento institucional que ocorre paralelamais importante para nossos propósitos, uma história de mente no setor, pelos padrões do universo digital esses adaptação institucional. Onde termina a morte e começa sites já seriam veteranos. Pode levar anos para que um o renascimento, qual o grau de responsabilidade de novas fato como a decisão da Suprema Corte norte-americana instituições pelo declínio das velhas, se há mais a ganhar ou sobre a reforma da saúde nos Estados Unidos traga maior
ESPECIAL | INSTITUIÇÕES
parte do New York Times. Um rápido exame de instituições consideradas para um prêmio da Knight Foundation (o Knight News Challenge) em junho de 2012 revela uma meia dúzia de projetos – Behavio, Signalnoi.se, Recovers. org , Tor Project, alguns novos, outros nem tanto – dedicados a levar informações de cunho jornalístico à sociedade. E essas são só as organizações citadas em uma rodada da disputa; além delas, havia muitas outras. O atual consenso sobre essas novas instituições – opinião expressa em uma série de estudos, incluindo um relatório de 2011 da Federal Communications Commission (FCC) intitulado “The Information Needs of Communities”,
e num estudo sobre o mercado em Baltimore feito pelo Project for Excellence in Journalism – é que nenhuma
delas irá substituir a cobertura jornalística hoje feita por veículos de comunicação tradicionais (e em declínio).
efeito da internet sobre o ecossistema do jornalismo norte-americano volta e meia seja pintado como anti-institucional, destinado basicamente a reduzir ou até destruir a viabilidade de instituições, a realidade é mais complexa. Embora tenha de fato abalado muitas instituições, a internet também ajudou a criar várias outras. Em grande medida, o futuro da indústria jornalística será decidido não por aquilo que está sendo extinto, nem por aquilo que está chegando, mas pelo modo como novas instituições passam a ser velhas e estáveis e como velhas instituições se tornam novas e flexíveis. Neste ponto, é importante ter duas coisas em mente. A primeira é que, embora iremos frisar a relativa inflexi bilidade de instituições de grande porte, não queremos dizer que toda instituição, seja lá de onde for, seja incapaz de mudar. Nossa tese é outra: mudar instituições jornalísticas não é impossível, mas é difícil – e mais difícil do que um observador externo poderia logicamente esperar. Argumentos sobre a eficiência econômica da mudança, o valor normativo da mudança e o imperativo administratvio da mudança são, em geral, corretos – mas, do ponto de vista institucional, irrelevantes. A segunda coisa a lembrar é que instituições jornalísticas capazes de se adaptar seriam uma das mais valiosas fontes de crescimento e evolução no ecossistema jornalístico de modo geral. É óbvio que, onde quer que ocorra, a adaptação tem tremendo impacto; grandes instituições jornalísticas são, contudo, como um navio de guerra: ainda que demorem para mudar de curso, uma vez completada a volta são capazes de avançar com força e velocidade impressionantes. Editores e gestores de meios de comunicação devem ter em mente que muito da mudança potencial nesse ecossistema depende de sua capacidade de pensar de forma distinta.
No que tange ao volume de conteúdo produzido, não discordamos. Achamos, contudo, que o nó é mais embaixo; mais adiante, abordaremos alguns dos motivos para tal. Uma história de adaptação institucional: o foco no declínio e no ressurgimento também oculta uma terceira história – história que, no final, pode ser a mais importante de todas. A pergunta é como um novo ator no meio jornalístico chega ao ponto no qual se pode dizer que atingiu estabilidade organizacional? Como passa de um precário projeto a membro legítimo da comunidade jornalística? Como veremos a seguir, uma das marcas de uma instituição é poder enfrentar idas e vindas de pessoal sem o risco de extinção organizacional. Como isso ocorre, e como uma organização jornalística emergente vira uma instituição, é uma das questões centrais diante do jornalismo nessa transição para a era digital. É preciso indagar, ainda, como organizações jornalísticas tradicionais estão reformulando processos para se adaptar ao novo cenário da informação. Um estudo sobre o New York Times a ser publicado em breve por Nikki Usher, professor assistente da George Washington University, pro- Afinal, o que são instituições? vavelmente ajudará muito a esclarecer a questão, embora também devamos começar a sintetizar saídas adotadas O que, exatamente, são instituições? O economista Geoffrey por organizações criativas para se adaptar à era digital.
Estudiosos precisam partir de uma constatação sociológica básica – o fato de que a maioria das instituições jornalísticas busca assimilar a ruptura com o mínimo possível de mudanças em processos operacionais e autoimagem ideológica – e começar a indagar como instituições criativas contornam essas limitações sistêmicas, autoimpostas. Ao pensar em instituições jornalísticas, estamos contando a nós mesmos uma série de histórias ao mesmo tempo. Embora as histórias de declínio e renascimento formem
M. Hodgson sustenta que instituições são “a forma de
estrutura que mais importa no plano social, por constituírem a matéria da vida social”. Segundo Hodgson, uma instituição pode ser definida como “um sistema de normas sociais estabelecidas e dominantes que estrutura interações sociais”. Na análise do sociólogo Jonathan Turner, a coisa é um pouco mais elaborada. Segundo ele, insti-
tuições são “um complexo de posições, papéis, normas e valores que, contido em certas estruturas sociais, organiza padrões relativamente estáveis de atividade humana”.
pode estar situado fora de uma determinada estrutura física. Instalações da empresa e até sua folha de pagamentos não são o substrato da matéria institucional. Instituições são, antes disso, uma série de normas sociais que criam padrões estáveis de comportamento. É óbvio que trabalhar junto com outros numa redação ou ganhar para realizar certo trabalho não prejudicam a formação e o fortalecimento dessas normas sociais, mas dinheiro e proximidade física nem sempre são o essencial. Também seria um erro encarar a instituição como mero agrupamento de indivíduos racionais, cada qual tomando a decisão consciente de que aderir a esquemas institucionais é a melhor maneira de maximizar o próprio interesse. Como disseram os sociólogos Walter Powell e Paulo DiMaggio, “embora sem dúvida sejam resultado da atividade humana, instituições não são necessariamente o produto de uma vontade consciente (...) o novo institucionalismo na teoria da organização e na sociologia traz uma rejeição do modelo do ator racional, a adoção de explicações cognitivas e culturais e um interesse em características de unidades de análise supraindividuais que não podem ser reduzidas a somatórios de motivos individuais ou a consequências diretas destes”. Em outras palavras, embora entender o indivíduo seja importante para
[ nova redação ]. A cada repetição de processo, ao analisar algo, você só sabe como funciona quando algo dá errado.” O lamento geral poderia ser assim resumido: a presença de processos é um obstáculo maior à mudança do que a ausência de dinheiro. Não chega a surpreender; como observamos em nossa definição de instituições, a finalidade de esquemas institucionais é incutir e racionalizar normas padronizadas de conduta – em outras palavras, dificultar a mudança. Aqui e ali, essa frustração com a lentidão da mudança institucional se converte em um niilismo organizacional generalizado. Por essa lógica, se arranjos institucionais estão ruindo, e se organizações em ruína se recusam a encarar a realidade e mudar, melhor seria destruí-las de vez e começar do zero. O problema com esse raciocínio anti-institucional é que, paradoxalmente, aquilo que torna uma organização conservadora é justamente o que, em certos casos, faz com que seja tão forte na produção do “núcleo duro” da notícia. Resta saber, portanto, que tipo de jornalismo é via bilizado por instituições jornalísticas e se há um jeito de preservar suas possibilidades (“affordances”) positivas e, ao mesmo tempo, abri-las à evolução e à mudança. Esse paradoxo institucional tem solução? À recei-
entender a instituição, há, em instituições, um resíduo acumulado que impossibilita sua redução a comporta-
ta da produção de notícias, instituições adicionam os seguintes ingredientes: influência, capital simbólico,
mentos individuais. Tudo isso nos leva a um terceiro argumento – argumento capaz, a nosso ver, de lançar luz sobre a crise que hoje assola o jornalismo. Citamos, acima, a observação de um acadêmico de que instituições organizam “padrões relativamente estáveis de atividade humana”. A estabilidade tem suas vantagens, e discutiremos algumas delas a
seguir. Mas, como afirmaram Powell e DiMaggio, “condutas e estruturas institucionalizadas normalmente demoram mais a mudar (...) esquemas institucionais são reproduzidos porque, muitas vezes, indivíduos são incapazes de sequer conceber alternativas adequadas”.
continuidade e margem de capacidade. De modo geral, instituições utilizam esses ingredientes para produzir dois tipos distintos de informação relevante para uma democracia: informações genéricas sobre acontecimentos públicos e informações mais especializadas destinadas a exercer “impacto” sobre outras instituições sociais. A confusão sobre o propósito do jornalismo, e a tendência jornalística a mesclar deliberadamente essas duas categorias de produção de informação, dificulta a definição da melhor forma de preservar influência, capital simbólico, continuidade e margem em uma nova con juntura tecnológica.
Por que instituições são importantes
Imprensa, burocracias e cobertura setorista
Durante entrevistas com jornalistas em uma série de contextos institucionais, ficamos impressionados com o contraste entre o orgulho que exibiam pela organização na qual trabalhavam e o sentimento de frustração que muitos manifestavam ao falar do ritmo moroso da adaptação
As origens do jornalismo norte-americano moderno
remontam à década de 1830, quando uma crescente leva de publicações populares – a chamada “penny press” – buscou padronizar e racionalizar a produção regular de notícias. Em vez de depender da correspondência vinda organizacional. “Não acho que falte vontade de mudar do exterior, de notícias que desembarcavam nos portos da nessas grandes organizações”, disse um repórter. “Mas colônia pelas mãos de gente que cruzava o Atlântico, ou de
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parte, porque cada instância dessas supostamente geradesaparecendo é a cobertura setorista e a estrutura va, em caráter regular e previsível, informações de intesetorista de um jornal diário. resse da crescente massa alfabetizada de consumidores de notícias. A infância do jornalismo é, em suma, a históA tese de Simon é interessante, embora seja em grande ria de uma nova instituição que buscava instituições mais medida circunstancial. É possível definir com mais preestabelecidas para alimentar a “roda de hamster” do sécu- cisão exatamente o que uma instituição faz? E, uma vez lo 19. O acadêmico Matthew Carlson, especializado em que isso tenha sido precisado, é possível descobrir uma estudos do jornalismo, generaliza o argumento históri-
maneira de preservar suas funções básicas, mesmo em uma fase de transição? Eis a seguir quatro fatores que
co, invocando estudo anterior de Mark Fishman (1980) segundo o qual a “afinidade burocrática” leva organiza- definem o valor agregado de uma instituição jornalístições jornalísticas burocraticamente organizadas a buscar ca quando comparada com uma amostra aleatória de joroutras burocracias para obter informações. nalistas isolados. Sociólogos costumam apontar as consequências negativas dessa afinidade burocrática. “Embora jornalistas
não busquem intencionalmente fortalecer detentores do poder, o jornalismo legitima instituições de controle social ao apresentar lógicas institucionais ao público como [ se fossem ] leis da natureza”, diz Carlson. Jornalistas, por sua vez, costumam frisar a função de cobrança de prestação de contas (“accountability ”) incorporada a essa vigilância institucional; “de olho constante em burocracias”, como alertou o repórter David Burnham em artigo de 1998 para a Nieman Reports. Mas por que instituições jornalísticas seriam particularmente qualificadas para cobrir grandes burocracias e organizações governamentais e empresariais? David
Simon explica:
É suficientemente difícil exigir que órgãos [do Estado] e lideranças políticas prestem contas de seus atos
numa cultura que já não tem paciência nem disposição para lidar com a dinâmica de instituições. No
Influência
Se a meta fundamental do jornalismo é levar ao público a informação de que este necessita para se autogovernar, e se parte dessa informação é o conhecimento que advém do monitoramento vigoroso e não raro hostil de uma série de instituições sociais, por que alguém revestido de algum poder falaria com um jornalista? Por que os alvos desse olhar vigilante não se comunicariam simplesmente uns com os outros, e com o público diretamente, evitando qualquer contato com profissionais da imprensa? Em parte, por interesse próprio: autoridades públicas e outros indivíduos com algum poder sabem que falar com a imprensa é sempre uma oportunidade, por mais limitada que seja, de “dar sua versão dos fatos”, ainda que o tiro saia pela culatra. Mas detentores do poder também falam com a imprensa por temer as consequências de se manter calados. Instituições jornalísticas, pelo menos em sua versão
do século 20, tinham um punhado de características que aumentavam seu poder na comparação com outras estrusolucioná-los. Na falta de uma imprensa profissional turas de governança pública. A primeira era a tese de que devidamente financiada – imprensa que cubra burosua autoridade era diretamente proporcional a seu públicracias civis com constância e tenacidade –, nossas co de massa – a tese da influência. Um grande público, chances no futuro serão menores ainda. nesse caso, era garantia de poder, já que se supunha que leitores e a “opinião pública” eram moldados pelo jornaOrganizações que estão surgindo na era digital, alega lismo em grande escala. É irônico que a raiz dessa equiSimon, não estão preparadas para cumprir essa função: valência entre audiência e poder não esteja na ascensão da “penny press”, mas na era da chamada “party press” A blogosfera, por sua vez, não chega a ser um fator (a imprensa partidária que a precedeu), quando era mais nesse tipo de cobertura. A maioria daqueles que direta a correlação entre a circulação de um veículo e a dizem que o jornalismo das novas mídias está cresforça de um partido numa determinada área. Isso posto, momento, temos dificuldade, como sociedade, até para reconhecer nossos problemas, que dirá para
cendo (explodindo até), em um surto democráti-
co de cobertura igualitária, de todo ângulo possível, simplesmente nem menciona a cobertura jornalística setorista que inclui juízo qualitativo e análise.
a era da comunicação de “massa” trazia a ideia de que
as massas respondiam à conduta do jornalismo e por ela eram influenciadas. Hoje, a ideia da influência, ao menos como corolário do
a opinião pública e punir políticos desvirtuados, a fragmentação do público consumidor de notícias lançou por terra a velha noção do público como massa. De novo, não estamos negando que instituições tradicionais de comunicação tenham um grande público na internet, como gestores desses sites não cansam de repetir ao comparar o número de visitantes únicos e pageviews dessas páginas ao de pequenos blogs. O que mudou não é o tamanho do público propriamente dito, mas o modo como é entendida a relação entre instituição e público – entre o jornalismo e a imagem que este faz do público. Mudanças nessa imagem do público têm profunda relação com uma segunda leva de transformações: o declínio do capital simbólico de instituições jornalísticas tradicionais.
dificuldades econômicas ou foram as dificuldades econômicas que levaram à queda na reputação?), o fato é que tendências nessa área continuam indicando um só movimento: o de queda. Assim como a matemática do capital monetário, a matemática do capital simbólico do jornalismo parece vítima de uma crise estrutural, não conjuntural. No século 21, não só jornalistas, mas chefes e executivos de redações, terão de refletir profundamente sobre essas mudanças institucionais. Continuidade
Instituições jornalísticas existem tanto no tempo como no espaço. Pode ser útil pensar na continuidade como a “influência acumulada distribuída ao longo do tempo”. É bem possível que este seja o mais importante dos quatro Capital simbólico ingredientes da “sopa” institucional, embora normalmen Além da diminuição de seu capital financeiro, insti- te seja o menos teorizado. Continuidade significa poder tuições jornalísticas testemunharam também a queda decidir cobrir um certo fato, setor ou segmento da sociede uma segunda forma de capital: o capital reputacional. dade de forma persistente ao longo do tempo, mesmo com alterações no time de jornalistas. O jornal Philadelphia cas não pode ser atribuída a indicadores de fácil quanti- Inquirer cobre o crime na cidade da Filadélfia desde que Parte da autoridade histórica de instituições jornalísti-
ficação como porte do público, faturamento ou honrarias como um Prêmio Pulitzer. No longo decorrer da história, o século 20 foi testemunha de uma grande transformação em instituições jornalísticas, que passaram de veículos panfletários e não raro escandalosos de informações
foi fundado – cobertura que não cessa quando o principal repórter da editoria de polícia se aposenta. Em tese, ao menos, o meio é a instituição que monitora a violência na cidade. É essa a função básica dos “padrões estáveis de comportamento” citados lá atrás, quando da defiúteis e publicidade a sóbrios guardiões da democracia. nição de instituições – a tese de que um processo existe É um exagero, é claro, mas não totalmente injustificado. independentemente do indivíduo. Partindo de uma analogia feita por Leo Downie e As razões para a mudança fogem ao escopo do presente ensaio, mas são de caráter tanto cultural e sociológi- Michael Schudson num estudo de 2009 intitulado “The co como econômico; o mito de Watergate marcou mais Reconstruction of American Journalism”, podemos dizer o culminar de uma recuperação de longo prazo da repu- que a continuidade institucional vem respaldar duas funtação do que o nascer desta. No intervalo aproximado de ções exercidas pelo jornalismo: a de cão de guarda e a de 1908 a 1968, instituições jornalísticas passaram a ser o espantalho. Tanto um cão de guarda quanto um espantalho “quarto poder”. dão certa proteção. Mas o fato de que só o cão de guarda O capital reputacional do jornalismo foi conferido basi- é capaz de ladrar nem sempre importa. Embora o espancamente à profissão e ao conjunto de instituições, não a talho “não faça nada”, sua simples existência – o fato de jornalistas de forma isolada. Isso significa que, pelo menos que o corvo sabe que está ali, de guarda – costuma bastar em parte, o grau de capital simbólico detido por este ou para coibir a má conduta de corvos e afins. O mesmo vale aquele jornalista decorria tanto de quem era como de onde para o jornalismo. A imprensa vigilante, reconheçamos, trabalhava. Embora haja exceções (o caso de I.F. Stone é raramente ladra. Mas a continuidade dessa imprensa, o particularmente destacado), o capital simbólico que um fato de que está de guarda, volta e meia basta para inibir jornalista em particular possuía na mente do público e na a má conduta de instituições poderosas. mente de políticos era, basicamente, produto de sua filiaQuando se discute o impacto que a redução da capacidade institucional teria sobre instituições jornalísticas, se ção institucional e profissional. Em suma, uma segunda vantagem que instituições essas instituições desapareceriam por completo ou sim jornalísticas conferiam a jornalistas e ao jornalismo de plesmente cobririam menos assuntos, o foco em geral é a modo geral era uma marca extremamente forte. Embora função cão de guarda – o fato de que serão cobertos menos
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claro, e a capacidade de fazer empresas e políticos andarem na linha reforça a sensação de que a imprensa está aí, vigiando. A verdadeira questão para a indústria jornalística, no entanto, é como convencer o público de que a atividade segue sendo importante. Margem
Instituições jornalísticas, ou pelo menos organizações que costumávamos encarar como instituições jornalísticas, fazem mais do que cobrir um único tema. Fazem mais do que promover a cobertura setorista, e fazem mais do que orquestrar investigações especiais de longo prazo, com pesado uso de recursos. Fazem essas três coisas. E foram capazes desse feito devido à capacidade de rapidamente lançar mão de uma margem de capacidade. Essa margem institucional significa que, ao longo do tempo, organizações jornalísticas foram capazes de se adaptar, a um piscar de olhos, a acontecimentos mundiais incertos, que evoluíam rapidamente. Paradoxalmente, o conservadorismo operacional deu a essas organizações a capacidade de mostrar bastante agilidade na cobertura de fatos, justamente o que todos aqueles processos conservadores foram feitos para facilitar. Muitas das novas instituições jornalísticas – organizações especializadíssimas vivendo permanentemente com o mínimo – não têm essa margem de capacidade. O site Technically Philly, por exemplo, tem uma só missão: cobrir novidades no setor de alta tecnologia da Filadélfia. Texas Tribune, Voice of San Diego e Smoking Gun também vão por aí; o traço comum da maioria dos novos projetos jornalísticos é não tentar ser tudo para todos. Andrew Donohue, editor do Voice of San Diego, dá a seguinte explicação: “[Mais] do que em setores, o pessoal aqui se especializa em narrativas específicas dentro de uma área. Não vamos cobrir algo a menos que nossa cobertura vá ser melhor do que a dos outros, ou se ninguém mais esti ver cobrindo o assunto”. Não há mal nenhum nessa especialização, é claro. Tampouco achamos que a descomunal duplicação de esforço que hoje existe na indústria jornalística (despachar centenas de repórteres para cobrir o Super Bowl, por exemplo) seja saudável ou sustentável. Queremos simplesmente frisar que eliminar essa margem do arsenal de instituições jornalísticas é algo inédito, cujas implicações ainda não estão totalmente claras.
Recomendação: formar parcerias
disponíveis em outros pontos do ecossistema. Em outras palavras, é preciso tornar parcerias jornalísticas um ingrediente mais comum do repertório institucional. A nosso ver, há uma imensa diferença entre instituições que encaram parcerias como parte genuína de seu DNA e aquelas que não o fazem. A fé genuína em parcerias não depende, em última instância, do benefício que a parceria terá para a instituição, mas sim da capacidade dessa parceria de agregar valor ao ecossistema como um todo. Para concluir, instituições jornalísticas agregaram valor público às esferas política e jornalística ao alavancar o trabalho de muitas pessoas, acumular capital simbólico, estabelecer padrões estáveis de atuação capazes de garantir continuidade ao longo do tempo, ser capazes de se concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo e, de modo geral, exercer a função de espantalho da imprensa tanto quanto a de cão de guarda. Muitas dessas instituições estão sob considerável risco devido a mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais no ecossistema maior de mídia. E é nesse momento de crise que deficiências dessas instituições – deficiências que, paradoxalmente, nascem das mesmíssimas vantagens que foram de tanta utilidade em momentos de estabilidade – mostram suas garras.
O dilema da mudança institucional Uma queixa recorrente entre jornalistas entrevistados por nós – profissionais de publicações e setores bem distintos da imprensa – é a dificuldade de alterar os rumos de organizações tradicionais de mídia às quais pertencem para, com isso, fazer frente aos desafios da era digital. Zach Seward, ex-editor de interação e mídias sociais do Wall Street Journal e hoje editor sênior do site de economia e negócios Quartz , da Atlantic Media, opinou que o próprio êxito dos jornais em sua atividade tradicional dificulta qualquer mudança: A ideia de alterar o curso, para uma organização que ainda é obrigada a colocar um produto impresso em circulação diariamente, ou é muito boa e eficiente em um certo processo, faz parecer que o melhor que uma organização nessa situação tem a fazer é promover pequenos ajustes, caso esteja atada a um processo de produção que já existe. Já é um verdadeiro milagre
Essa “presença de processos”, como chamamos o fenômeno, não se manifesta apenas na hora de tomar grandes decisões. É da natureza de processos institucionais serem repetidos a cada dia, até mesmo a cada hora. Um processo determina o que é ou não possível, não só em conversas entre repórteres, editores e executivos, mas na própria infraestrutura tecnológica que torna possível o exercício do jornalismo. Ferramentas instituídas para administrar
vez, em torno de tecnologias específicas), podem tanto limitar organizações jornalísticas quanto capacitá-las a
processos também instituem as premissas usadas para
com limitações, era possível ter muita criatividade. O único problema era conseguir o sinal verde de alguém
cobrir o noticiário. Matt Waite observa que o problema de organizações grandes, hierárquicas, não é que desencorajem o raciocínio criativo, uma distinção sutil e importante: “No tra balho em uma redação, [ processos são ] um enorme pro blema. Mas mesmo em hierarquias rígidas, trabalhando
conceber as ditas ferramentas. Vejamos o caso de sistemas de gestão de conteúdo (CMS, para tirar algo do papel”. Waite também observa que em na sigla em inglês) para redações. Um sistema desses já organizações com processos altamente burilados o tes vem com uma ideia definida do fluxo de trabalho – de te de novos métodos pode ser politicamente difícil: “Nas quando e como o conteúdo será criado, editado, revisado redações, a estrutura ainda é militaresca. Com isso, fica e publicado. O resultado é que um CMS faz mais do que difícil fazer qualquer coisa sem pisar no calo de alguém”. ajudar a organização a gerenciar o conteúdo de uma cerA dificuldade da mudança institucional também é visíta maneira. Na prática, dificulta, ou até impede, qualquer vel se formos ver como novos projetos jornalísticos, embotentativa de gestão de um jeito não previsto no sistema. ra em grande parte formados por jornalistas e editores Isso vale para tudo, é claro; todo processo existe para veteranos, lidam com mudanças em processos. Andrew obstruir alternativas. Só que um CMS costuma chegar a Donohue lembra-se do comecinho do Voice of San Diego: extremos, pois, em seu caso, requisitos e premissas foram “Simplesmente fazíamos o que costumávamos fazer em programados no software e são difíceis de questionar, ou jornais, mas na internet. Fazíamos a cobertura ao longo ignorar. É como disse Anjali Mullany, que foi editora do do dia, fechávamos às 7 e, então, subíamos o material no site do New York Daily News e hoje é editora de mídias site. Ninguém nem pensava em atualizar constantemensociais da revista Fast Company: te [ o conteúdo ]”. Ouvimos uma história parecida de um alto editor do New York Times: “Fomos informados de que, com os corSistemas de CMS e de gestão de projetos são a raiz de muitos desses problemas [ com processos ]. Talvez de tes, seria preciso fazer mais com menos, com menos gente, 90%. Às vezes, o fluxo de trabalho e o CMS não são mas sem trégua na cobertura. Em nenhum momento veio sequer compatíveis, ou o CMS não casa com o fluxo alguém da área técnica com conhecimento ou autoridade de trabalho. Ou, então, o fluxo de trabalho destrói o para dizer que adotássemos outras ferramentas ou outro modo de usá-las. Ninguém disse, ‘vejamos o que vocês CMS. Pegue qualquer organização de grande porte, com várias plataformas. Não é raro ver a mesma verprecisam fazer em um dia para ver se podemos mudar os são [ de uma matéria ] várias vezes. Ou vários repórteprocessos’. Isso era o que mais desanimava”. res cobrindo a mesma coisa por pura falta de comuNuma organização menor e mais ágil como o Voice of San Diego, no entanto, era mais fácil trocar o processo nicação. O CMS maravilhoso e flexível que permitirá [ à redação ] alterar seus processos com o tempo não tradicional por algo que fizesse um pouco mais de sentiexiste. Faça o seguinte: tente achar um repórter na do na atual era tecnológica. “Tínhamos uma rotina bem estruturada que foi sendo abolida à medida que a redacidade de Nova York que goste do CMS que usa. É um sério problema. Se seu CMS o restringe, vai restrinção crescia e as mídias sociais foram se impondo. Agora, gir tudo na redação. A tecnologia que a pessoa está nossa rotina é bem distinta. Ainda apuramos notícias do usando vai mexer com aquilo que a pessoa produz. jeito tradicional, por meio de fontes e de observação, mas temos de decidir como apresentar o fato: como um post O dilema aqui é claro. Já observamos que uma institui- de blog, uma matéria única, uma série publicada ao lonção pode ser definida como padrões e processos estáveis go de três meses, um conteúdo gerado por crowdsourque permitem a um conjunto de pessoas e tecnologias cing. Hoje, essas são as grandes questões.” realizar mais do que seria possível como mero somatóO descompasso de processos costuma ser mais visível rio de indivíduos. Esses processos institucionais dão à em esquemas de trabalho atrelados a sistemas de gestão organização jornalística várias vantagens vis-à-vis insti- de conteúdo, pois o conservadorismo desses sistemas é
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trabalho na redação. Além disso, como no processo do Voice of San Diego relatado por Donohue, um CMS normalmente é atualizado aos poucos; quando produtos com um ritmo diário centrado no impresso são adaptados para
a internet, tudo o que tem a ver com a plataforma digital parece – e em geral é – mero apêndice do projeto original. Para termos uma ideia do grau de inadequação de mui-
tos processos de produção atuais, vale a pena ir conferir um CMS que já nasceu digital e os processos que o acompanham. Um exemplo recente é o da Vox. A editora, que tem vários sites de nicho (incluindo SB Nation e Verge ), projetou seu próprio CMS do zero. “Armamos nosso plano de desenvolvimento com base nas ferramentas que as equipes editorial e de publicidade dizem que precisam”, contou Trei Brundrett, diretor de produtos e tecnologia da Vox, em uma entrevista. Embora pareça um jeito óbvio
de trabalhar, isso requer habilidades raras e essenciais: uma equipe editorial capaz de definir corretamente suas necessidades; uma administração que incentive a cola boração editorial e técnica; equipes editoriais e técnicas capazes de se comunicar; e um pessoal técnico suficientemente qualificado para criar um sistema simples e está vel o suficiente para ser utilizável. Com isso, não estamos
sugerindo que toda organização jornalística deva criar um CMS só seu – ainda que fosse possível, seria perda de tempo e dinheiro. Queremos apenas mostrar que ferramentas feitas para o meio impresso não combinam com a nova realidade da produção de notícias. Unidades do jornalismo em geral estão ligadas à lógica da atualização diária – lógica que nem sempre vale em condições de digitalização. À medida que a noção de tempo e atualidade do usuário vai mudando, a organização precisa repensar totalmente o modo como o conteúdo é organizado e disposto no fluxo de trabalho da redação. A linha de montagem da redação é quase totalmente anacrônica como método de produção de conteúdo para consumo digital, e deve ser repensada. Recomendação: administrar requisitos tecnológicos da internet
Quando o fluxo de trabalho em condições de digitalização não é repensado, a organização jornalística pode acabar sofrendo todos os inconvenientes de processos digitais sem obter nenhum dos benefícios. É o pior dos cenários – algo que certas vozes no meio chamam de “roda de hamster”: jornalistas com o tempo cada vez mais contado e menos autonomia profissional.
efeito da “roda de hamster”. A nosso ver, a culpa é da própria organização jornalística que segue passivamente aferrada a velhos processos mesmo com a mudança das condições tecnológicas. Em outras palavras, é preciso lidar com exigências tecnológicas da internet para que essa “roda de hamster” seja evitada. A lista de soluções para administrar o digital pode incluir o uso inteligente de links (em vez de acrescentar informações sem parar e de reescrever matérias já publicadas), botar alguém na equipe editorial para atrair tráfego (“traffic whoring”), como faz
a Gawker, e muitas outras mudanças em processos. Recomendação: poder passar por cima do CMS
Sistemas de gestão de conteúdo volta e meia incorporam processos já cristalizados na redação. Nesse caso, a capacidade de subverter um sistema desses pode ser uma forte arma contra a tirania rotineira de
processos contraproducentes. Jornalistas devem se preparar, individualmente ou em grupo, para poder passar por cima de toda etapa de seu CMS. Com sorte e persistência, essas soluções alternativas podem lançar as bases para um processo mais racional no futuro.
Aqui, há uma analogia com a criação de sistemas de informação médica. À medida que prontuários médicos vão sendo digitalizados, há, como sempre, um conflito entre segurança e acesso. Um sistema
suficientemente seguro para impedir todo uso inde vido dessa informação acabaria prevenindo também
certos usos justificados, porém imprevistos. Já um sistema que permitisse todo uso possível seria incapaz de garantir a segurança das informações. A solução, em geral, é um recurso do tipo “que-
bre o vidro” (algo análogo a romper uma proteção de vidro para acionar um alarme). Um médico que solicita arquivos que por algum motivo o sistema se recu-
sa a liberar pode passar por cima do mecanismo de
segurança. Como? Afirmando, basicamente, que sua
necessidade vem antes do modelo de segurança do sistema. Isso feito, o acesso à informação é liberado. Isso exige, contudo, que o médico seja identificado pelo sistema, que dê uma justificativa para estar contornando o sistema e que esteja ciente de que sua decisão será auditada no prazo de 24 horas. Se suas razões não forem justificadas, será disciplinado.
O que estamos recomendando é um mecanismo
equivalente a esse “quebre o vidro” para que o jorna-
lista possa ignorar premissas que um CMS faz sobre
– desde que tenha suficiente tempo de estrada para ter interiorizado a versão local do critério jornalístico, que seja identificado pelo sistema e justifique a decisão, e que esteja disposto a defender essa justificativa quando analisada pela chefia. Obviamente, isso abre a porta para a possibilidade de erros de incumbência – erros cometidos quando o jornalista faz algo que não deveria ter feito.
Mas muitos sistemas de gestão de conteúdo causam erros de omissão, erros que impedem o jornalista de tirar partido de uma oportunidade óbvia. Ao permitir que o jornalista passe por cima dos próprios processos quando necessário, e com a devida supervisão, organizações jornalísticas podem impedir que o desejo de manter um fluxo de trabalho previsível destrua a oportunidade de que sua equipe inove e
tome iniciativa.
Recomendação: promover a transparência
Como contrapartida ao poder de “hackear” processos e de passar por cima do CMS da redação, instituições jornalísticas devem tornar transparentes e sistematizáveis por outras organizações os novos
processos sendo empregados para produzir um jornalismo de qualidade. Em outras palavras, quem inventa um processo que funciona deve exibi-lo para
que possa ser utilizado por outros meios de comunicação. Nesse sentido, o ProPublica é um exemplo
Discutiremos na próxima seção o papel que amadores e cidadãos engajados exercem no ecossistema jornalístico de modo geral. Por ora, é suficiente afirmar que, a nos-
so ver, ambos os lados de um debate hoje muito estéril estão errando o alvo. O papel do cidadão comum na produção de notícias é uma questão de caráter tanto institucional quanto econômico. Em linhas gerais, o fato de que ao menos parte daqueles que produzem notícias estejam trabalhando de graça significa que um mundo de informação limitada hoje virou um mundo de informação infi-
nita, em geral não processada. Isso cria um desafio geral para instituições jornalísticas: como criar novos processos e procedimentos institucionais para ir de um mundo no qual a informação era escassa para outro no qual há fartura de informação. Em termos mais específicos, um dos grandes dilemas da produção amadora é como organizar, racionalizar e sistematizar essa produção. Não é mera coincidência
que Amanda Michel, que chefiou o projeto Off the Bus do Huffington Post, tenha começado a vida profissional como organizadora de campanhas eleitorais, não como jornalista. No papel de organizadora, Michel sabia deter-
minar o que amadores e voluntários podem fazer, o que não podem fazer e como fazer com que trabalhem juntos em benefício de uma instituição maior. A questão da gestão da produção amadora pode, portanto, ser vinculada à questão maior de como converter novos atores no ecossistema jornalístico de redes ad hoc em instituições. É essa questão que agora abordaremos.
no setor. Embora certas organizações jornalísticas
temam que essa transparência vá “ajudar a concorrência”, o fato é que, durante um século, processos jornalísticos foram um livro aberto. Não há nada que
impeça uma organização de seguir faturando e dando furos nessa nova era, ainda que seu modus operandi seja transparente.
Informação e impacto (ou para que serve o jornalismo?)
Uma instituição leva vantagens importantes na hora de cobrir notícias de interesse público. Tem a influência,
o poder simbólico, a continuidade e a folga de recursos necessários para enfrentar em pé de igualdade outras
instituições: políticos, órgãos públicos, empresas, instituições de ensino, ONGs, organizações religiosas. Só que esse mesmo “sistema de normas sociais estabelecidas e O fato de que um número crescente de indivíduos contri- dominantes” que ajuda a garantir o poder de instituições bua de graça para o ecossistema da informação, ou que o também serve, em sua inércia, para impedir mudanças faça por razões outras que a obtenção de ganho financei- necessárias e obrigatórias. ro, causa quase tanta comoção no setor de mídia como a A solução para esse paradoxo não é abolir instituições. questão dos paywalls. O otimismo inicial sobre o poder do Tampouco é seguir cegamente fiel a instituições que, no “jornalista cidadão” de transformar o mercado jornalís- passado, produziram o jornalismo de maior qualidade. Há tico rapidamente cedeu lugar à atitude defensiva de pro- coisas importantes que só uma instituição pode fazer – fissionais e à crise que se abateu sobre jornais (crise sem mas é preciso reinventar as que já estão aí e inventar novas Por que trabalhar com jornalismo? Motivação e impacto institucional
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e estratégias de cobertura jornalística tirar da observa-
ção desse processo de institucionalização. No jornalismo do século 21, há dois dilemas centrais de institucionalização. O primeiro, óbvio e discutido a torto e a direito desde a década de 1990, é a necessidade de adaptação de organizações jornalísticas tradicionais à internet (e a dificuldade que estão sentindo para tal). Já o segundo é menos discutido: novas formas de produção de notícias (posts no Twitter editados por Andy Carvin, o jornalismo de banco de dados do MapLight, a estabilização de veículos digitais sem fins lucrativos como Voice of San
Diego ou Texas Tribune ) precisam ser institucionalizadas,
pois sem as virtudes de instituições (ainda que concebidas para a produção digital) nenhuma iniciativa dessas vai conseguir sobreviver ou se tornar persistente ou forte o bastante para disciplinar outros atores institucionais. Um caso emblemático de organização jornalística nova e pouco estruturada que atingiu certo grau de estabilidade institucional é o do Talking Points Memo (TPM). Não damos esse exemplo porque o TPM não tenha enfrentado sua cota de dramas e desafios institucionais, mas justamente porque passou por tudo isso. Para entender de que maneira o ecossistema jornalístico está mudando é crucial entender a dinâmica entre desafio organizacio-
nal e evolução institucional. Lançado em 2000 por Josh Marshall, um jornalista que na época fazia um doutorado, o site era basicamente indistinguível do sem-fim de
Ao analisarmos a trajetória do Talking Points Memo ao longo do tempo, vemos o surgimento de um site não-institucional em 2000, seguido de um nível cada vez mais complexo de estruturação organizacional, de crescimento da equipe e de acúmulo de capital simbólico (o site ganhou um Polk Award em 2008 pela cobertura da exoneração de procuradores nos Estados Unidos por questões políticas). Embora hoje seja um projeto “velho” pelos parâmetros digitais, o TPM é um caso útil exatamente por isso. É só com o exame da evolução de organizações digitais na internet que iremos entender que a história do jornalismo na era digital não é só de morte e nascimento. É tam bém de estabilização institucional. Igualmente importante é entender que a história do Talking Points Memo representa a estabilização de um
híbrido de velhas e novas práticas jornalísticas, e não simplesmente a adoção de métodos tradicionais de cobertura jornalística para a era digital. O TPM foi um pioneiro no que hoje é chamado de jornalismo interativo, algo que o site define como o “uso de sugestões, informações e textos explicativos de leitores ao lado de conteúdo de produção própria para armar reportagens de fôlego”. Embora haja menos informação sobre como o TPM incorpora tais práticas na versão 2012 de sua estrutura organizacional, há pouca dúvida de que a solidificação da capacidade institucional do site representa a popularização de um certo conjunto de práticas organizacionais.
Um exemplo mais recente espocou em meados de revolução dos blogs. 2012, quando o site Homicide Watch D.C. quase foi fechaEm 2002, o site tinha a arquitetura do gênero naquela do. Conforme relatado na primeira seção do dossiê, o fase inicial, com uma foto de Marshall para dar um toque Homicide Watch é uma fusão da cobertura tradicional de
blogs políticos individuais lançados nos primórdios da
“pessoal” e uma organização em duas colunas (links numa coluninha estreita à esquerda e o conteúdo principal no meio da página). Quatro anos depois, em 2006, o visual do site sugeria o despontar de uma organização bem distinta. A foto de Marshall seguia ali, mas o leitor era rece bido por uma página muito mais estruturada. O mais importante é que, em 2006, o TPM já empregava jornalistas – processo que teve início em 2005, quando Marshall solicitou contribuições de leitores para contratar dois profissionais fixos; levantou US$ 100 mil diretamente do público. Além disso, a coluna à direita fazia o link com o TPMMuckraker, um projeto paralelo cuja meta é produzir mais conteúdo próprio e combativo. Em 2007, a transição na arquitetura do TPM fora concluída. Agora, a página parecia um típico produto jornalístico, com boxes, links e fontes de corpos distintos para
polícia com uma infraestrutura tecnológica nova. O site tem um orçamento minúsculo; seus fundadores, Laura e Chris Amico, licenciam a plataforma para outras organizações jornalísticas. É um exemplo ideal de reformulação de processos para geração de alto valor a baixo custo. Isso posto, depois de dois anos no ar o Homicide Watch corria o risco de ser fechado – por dois motivos. O primeiro era que poucas organizações de mídia se interessavam em operar a plataforma sob licença. O Homicide Watch é tão diferente do modelo tradicional da editoria de polícia – que decide que crime vai ou não cobrir – que nenhuma organização estabelecida poderia usar a plataforma sem o efeito colateral de ter de alterar premissas e processos internos. A incompatibilidade de processos tornou o licenciamento da plataforma muito mais difícil do que o casal Amico imaginara. diferenciar cada área do projeto e apor o selo editorial Apesar dessa dificuldade, e da verba curta, a dupla mana notícias importantes. A redação seguiu crescendo: em teve o site no ar. Foi quando surgiu o segundo problema.
não teria nenhuma das vantagens de grandes instituições:
parece ainda menos provável. O Washington Post rece-
uma forte reserva de talentos, funcionários com atribui- beu US$ 500 mil da Ford Foundation; não é difícil imações redundantes capazes de assumir o trabalho de outros ginar o que o Homicide Watch seria capaz de fazer com e assim por diante. uma fração dessa verba. O site só foi salvo devido a uma campanha de última Recomendação: repensar a distribuição de verbas hora no Kickstarter que permitiu a contratação de uma equipe em Washington para trabalhar remotamente com Amico. Isso adia, mas não resolve, o problema: peque-
nas organizações como a Homicide Watch são um prodígio na arte de fazer muito com pouco, mas vivem sob eterna ameaça. Para sobreviver e difundir seu modelo, terão de conseguir fontes mais seguras de receita, uma equipe maior e mais variada e processos mais complexos para gestão desse pessoal. Precisam, em outras palavras, virar uma instituição. Recomendação: criar “guias” para novos projetos Criar uma organização jornalística nova não é tão
difícil quanto estabilizar um empreendimento desses no médio e longo prazos. Cientes disso, iniciativas de sucesso (como Talking Points Memo, Texas Tribune, West Seattle Blog , Baristanet ) deviam criar “guias” de caráter público para orientar novas organizações jornalísticas. É preciso levar em conta que o fundador de uma organização que atinge certo sucesso pode ter pouco tempo ou interesse em destinar recursos para
explicar como chegou lá. Sua função, afinal, é produzir jornalismo. Daí sugerirmos que essas organizações, e similares, recebam dinheiro de fundações para poder promover essa “metarreflexão”. Entender como novas organizações jornalísticas adquirem estabilidade e como, no processo, fazem uma série de práticas institucionais parecerem mais do que lógicas, é o
Fundos “públicos” ou de fontes não comerciais (incluindo dotações de governos e fundações) devem ser usados basicamente para ajudar na institucionalização de organizações. Paradoxalmente, é justamente o que essas fundações e o poder público parecem menos inclinados a fazer, pois seu foco é
mostrar impacto. Dada a importância e a fragilidade de novos atores, fundações devem repensar essa estratégia de financiamento. Em última instância, como saber se instituições jorna-
lísticas – velhas, novas ou no meio do caminho – estão
fazendo o que deveriam fazer? Como medir o êxito de uma
organização dessas? Quando o sucesso é definido basicamente como “sucesso comercial”, a resposta é simples
– embora, por esse critério, a indústria jornalística norte-americana venha em queda livre há pelo menos meia década. Quando o sucesso passa a ser definido em termos do impacto exercido no mundo, e não só do lucro, o cálculo muda. Hoje, há muito mais maneiras de definir esse impacto do que antigamente, embora a complexidade da questão também tenha aumentado. Para saber se instituições estão funcionando, precisamos entender seu propósito e medir o impacto que estão tendo sobre as instituições que monitoram. Não faz muito tempo que a questão do “impacto” virou um tema de discussão em organizações jornalís-
ticas e nos círculos que debatem o “futuro do jornalismo”. O ProPublica há muito lidera a reflexão sobre o real impacto do jornalismo. Na seção “About Us”, o site decla-
elo perdido em nosso esforço para entender o novo ecos- ra que, “na melhor tradição do jornalismo norte-amerisistema jornalístico. É, também, uma área nebulosa em cano de serviço público, buscamos promover mudanças termos de financiamento. O grosso de dotações de fun- positivas. Expomos práticas ímprobas a fim de incentidações é dirigido a projetos que tenham “impacto” tangí- var a reforma”. O ProPublica acrescenta que age “sem vel, o que torna essas entidades menos inclinadas a ajudar nenhuma filiação a partidos ou ideologias, aderindo aos
organizações na missão maçante e invisível da estabili- mais rigorosos padrões de imparcialidade jornalística”. zação institucional (coisas como montar uma folha de Para encerrar, observa que “todo material publicado [ no pagamentos, alugar espaço comercial e contratar plano site ] é distribuído de modo a maximizar seu impacto”. de saúde para o pessoal, bem como orientar gente nova A princípio, é uma missão sem controvérsia. Por incríe fortalecer normas institucionais). Agora que grandes
vel que pareça, no entanto, não é encampada publicamen-
fundações norte-americanas – como a Ford Foundation te por organizações de mídia mais tradicionais, embora – estão investindo cada vez mais em meios de comunica- o desejo de exercer “impacto” esteja na base do ideá-
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ditos fatos terão não são de sua alçada. Instituições jor- instituições jornalísticas e achar saídas para repor o capinalísticas em geral veem o consumidor de notícias como tal institucional hoje arrastado pelo tsunami digital desum receptáculo vazio de informação pública que, quan- te início do século 21. do preenchido com o conhecimento adequado, passará Recomendação: determinar e avaliar impacto a exibir condutas democráticas. O impacto do jornalismo, em outras palavras, não vem Torne a avaliação do impacto, incluindo distribuide quem produz a notícia, mas de quem consome a notícia – do próprio cidadão de democracias. ção de tarefas e promoções, parte da cultura orgaA essa altura, já deve estar claro que não damos muinizacional. Considere parcerias com organizações to valor à analogia do receptáculo vazio para refletir, que possam fornecer informações ou conhecimennas palavras do professor de jornalismo da New York to sobre áreas nas quais se deseja exercer impacto. University Jay Rosen, sobre “a função do jornalismo”. A nosso ver, são as instituições jornalísticas que, em geral, dão a maior contribuição para a promoção de resulta- Como serão as novas instituições jornalísticas dos positivos em uma democracia. Isso posto, é essencial saber exatamente como a organização jornalística Já mostramos por que instituições são vitais para garanexerce impacto e fazer essas empresas aceitarem que tir o bom funcionamento de um ecossistema jornalístico sua função é exercer impacto. saudável. Também abordamos um paradoxo institucioFoi alentador ouvir, em meados de 2012, que a Knight- nal: o fato de que características que garantem o sucesMozilla Foundation iria instalar um bolsista da fundação so de uma organização em tempos de relativa estabilidano New York Times com a missão específica de conceber de social podem impedi-la de se adaptar a uma realidade maneiras para uma organização jornalística medir seu organizacional em rápida transformação. Isso posto, como impacto. “O que não temos é uma forma de medir até que seria uma instituição jornalística saudável no século 21? ponto um conteúdo jornalístico muda o modo de pensar Que tipo de esquema institucional deveriam exigir ediou agir das pessoas. Não temos um indicador de impac- tores, jornalistas, presidentes de empresas e estudiosos to”, explicou Aron Pilhofer, editor de conteúdo interati- do futuro do jornalismo? vo do jornal, em seu blog. Já de saída, devemos afirmar que instituições jornaNão é um problema novo. Critérios tradicionalmen- lísticas do futuro serão menores do que as de hoje; com te usados por redações em geral são bem imprecisos. A base em nossos argumentos anteriores, reconhecemos lei mudou? O vilão foi para a cadeia? Expusemos riscos? que cortes de pessoal, orçamentos menores e a necessiSalvamos vidas? Ou, o menos relevante de tudo, ganha- dade de “fazer mais com menos” hoje viraram a regra em organizações jornalísticas. Também achamos provável mos algum prêmio? Mas a equação muda no universo digital. Estamos soter- que organizações jornalísticas encontrem, em uma série rados por dados e temos a capacidade de travar um diá- de fontes, novas formas de bancar as operações; nessa lislogo com leitores numa escala, e de um modo, que teriam ta entrariam algum formato de assinatura digital, publisido impossíveis (ou impossivelmente caros) num mun- cidade no site, estratégias de vendas para mídias sociais do analógico. (como as adotadas pelo site BuzzFeed ), verbas de fundaO problema hoje é saber que dados computar e quais ções e subsídios do Estado. Não é nossa intenção recoignorar. É uma questão de criar modelos para teste, análi- mendar qualquer fonte dessas em detrimento de outras, se e interpretação que possam tanto ser ampliados como embora certas formas de geração de receita contribuam reproduzidos. para as estratégias institucionais que apresentaremos a É questão de achar, em meio a todo o ruído, um sinal seguir, enquanto outras dificultem a transição. Nosso argumento é que instituições jornalísticas do claro que indique se nosso jornalismo está repercutindo ou não, se está tendo o impacto que acreditamos que deve- futuro, além de menores e “agnósticas” quanto a fonria ter. Nossa meta, ao abrigar um bolsista da fundação tes de receita, devem ter três características definidoras. Knight-Mozilla, é ajudar a eliminar esse ruído. Terão um fluxo de trabalho “hackeável”, ou contornável. Esperamos que essa iniciativa do New York Times e Vão adotar alguma forma daquilo que chamamos de “insda Knight-Mozilla Foundation abra caminho para que titucionalismo em rede”, sendo que muitas das maiores outras organizações jornalísticas reflitam sobre aquilo que organizações jornalísticas de penetração nacional devem
terão de repensar radicalmente o que conta como “pro va jornalística válida”, buscar novas maneiras de avaliar essas novas provas e integrar tais processos de apuração e avaliação a seus fluxos de trabalho “hackeáveis”.
Fluxo de trabalho hackeável
outros aparelhos, em novas matérias e até por outras organizações de comunicação. Há ainda outra consequência: sistemas de gestão de conteúdo de redações terão de ser projetados para permitir que sejam contornados. Um corolário óbvio é que na escolha (ou, em raros casos, na concepção) do CMS será preciso indagar quem terá o direito de passar por cima de expectativas embutidas no sistema (e de que modo). Outro corolário é que processos erguidos em torno do CMS terão de frisar a capacidade de certos funcionários de fugir ao processo previsto a fim de tomar decisões atípicas em meio a circunstâncias incomuns. Em outras palavras, terão de ser flexíveis e adaptá veis a necessidades organizacionais específicas. O foco da gestão da produção de conteúdo jornalístico não deve ser a criação de um produto final com um fluxo de trabalho genérico, mas sim a criação de um conteúdo infinitamente iterável por meio de um CMS altamente hackeável.
Atualmente, processos de produção jornalística são concebidos com dois imperativos em mente. O primeiro é a gestão racional da geração, transmissão, edição e produção de conteúdo para o maior número possível de plataformas simultâneas. O segundo imperativo, ligado ao primeiro e basicamente herança do processo de produção da imprensa escrita e falada, é que essa gestão do fluxo de trabalho é feita para produzir um produto único, aca bado, que será “consumido” uma vez e, em seguida, descartado. Encarar o fluxo de trabalho dessa forma (e, mais ainda, administrar a produção e a difusão de conteúdos dessa forma) só faz sentido se o modelo da criação e do consumo de uma única vez se mantiver. A instituição em rede No meio digital, o conteúdo jornalístico pode ser produzido, complementado, modificado e reutilizado inde- Muita tinta já foi gasta na questão da parceria entre finidamente. Para tirar partido desse fato, o fluxo de tra- organizações do meio jornalístico. Muitos argumentos balho terá de ser alterado para comportar essas novas já foram apresentados sobre a necessidade de instituipossibilidades tecnológicas e culturais. Criar um fluxo de ções estarem mais abertas à colaboração com outros intetrabalho que reflita a produção mais flexível de conteú- grantes do ecossistema jornalístico digital. Por ora, no do digital terá o efeito secundário de tornar rotinas rígi- entanto, o veredicto sobre projetos atuais de colaboração das da redação mais “hackeáveis”. ainda é incerto. Várias das parcerias mais f estejadas do O salto organizacional do hacker-jornalista não está New York Times (com a Chicago News Cooperative, com no domínio das últimas novidades em ferramentas de o Bay Citizen , com a Local, abrigada na City University mídias sociais nem na capacidade de trabalhar com um of New York – Cuny) tiveram um desfecho bastante Google Fusion Table de mil colunas. Nada disso. A gran- inglório; paralelamente, muitas organizações parceiras de sacada de jornalistas versados nos ritmos da produção do New York Times descobriram que trabalhar com uma digital e de linguagens de programação é entender que o organização tão forte pode acabar distorcendo as prio“conteúdo” já não é descartado após o primeiro uso. Em ridades de suas próprias organizações. A ideia da cola vez disso, é infinitamente reciclado e deve ser projetado boração institucional, embora atraente no plano intepara uma perpétua iteração. Em entrevistas com jornalis- lectual, precisa ser repensada. tas que exercem a profissão, ficamos impressionados ao Nossa tese é que a organização jornalística do futuro constatar que a redação de toda organização jornalística, provavelmente não será uma instituição totalmente aberem maior ou menor grau, permanece presa a um fluxo de ta, cujo objetivo básico seja a colaboração, e que tampoutrabalho básico no qual a meta final da produção jorna- co deva buscar apenas a colaboração fundada em projetos. lística é um produto único, acabado. Instituições jorna- Recomendamos, em vez disso, uma estratégia muito parelísticas repaginadas vão projetar o fluxo de trabalho em cida à adotada pelo ProPublica no projeto “Free the Files”. torno de um fato novo, fundamental: a notícia não é nunNo “Free the Files”, o ProPublica apostou no crowdsourcing ca um produto acabado, e não há um jornal matutino ou para reunir dados entregues à FCC (Federal Communications um telejornal noturno que possa sintetizar, em sua tota- Commission) sobre a veiculação de propaganda política em lidade, o trabalho daquela jornada. emissoras de TV. Já que os mercados de mídia em quesDisso se infere que o conteúdo noticioso, e a produ- tão são inerentemente locais, o ProPublica promoveu, na
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colaborar com organizações jornalísticas locais para publi-
car os dados de forma jornalisticamente relevante e interessante. Não se trata nem de uma parceria permanente,
ter o direito especial de apurar informações. Logo, sob o modelo do quarto poder, uma imprensa livre era, basicamente, sinônimo de uma imprensa forte
nem de uma colaboração em torno de um fato único. O que
dotada do privilégio especial de apurar informações.
o site está fazendo é usar um institucionalismo em rede, inteligente e dirigido, para preencher uma lacuna aberta com o trabalho de reportagem local de prestação de contas. Como seria de supor, essa nova colaboração é fundada na chegada de novas formas de evidência jornalística, no caso em questão grandes volumes de dados. Novas formas de prova
Sob a teoria do quarto poder, ainda segundo Carey, a imprensa começou, cada vez mais, a se enxergar como
representante do público na arena política. Para que esa noção de representação vingasse, no entanto, o público não só tinha de ver a imprensa como sua legítima representante política, mas também acreditar que essa imprensa representativa era capaz de entender e retratar corretamente a realidade empírica básica do mundo. Se sondagens da confiança no jornalismo servirem de algum
Na primeira parte do dossiê, falamos de novas habilida- indicador, é justo dizer que nenhuma dessas condições des que serão exigidas do jornalista pós-industrial. Sob se sustenta em 2012. vários aspectos, é possível resumir essas habilidades como a capacidade de reconhecer, ou melhor, avaliar e apresentar
novas formas de prova jornalística. Qual o elo entre conversas em mídias sociais, grandes constelações de dados e a geração de informação em primeira pessoa, na cena dos fatos? É, basicamente, o fato de darem ao jornalista do século 21 um sem-fim de novas fontes a serem incorporadas ao processo de produção jornalística.
O que Carey não considerou – o que quase ninguém con-
siderou menos de uma década atrás, quando a margem de
lucro de jornais ainda era de 20% a 30% – foi que a imprensa poderia se tornar incapaz de cumprir sua parte do acor-
do na cobertura dos fatos. Desde a década de 1960, o grosso da crítica à mídia se resumiu à tese de que a imprensa era capaz de uma cobertura jornalística muito mais forte, aprofundada e agressiva do que se dispunha a empreenComo dissemos lá atrás, essas mudanças no ecossis- der. Como sustentam Downie e Schudson em sua análise tema geral da mídia vão impor ao jornalista novos desa- do accountability journalism e como reitera o relatório de fios e a necessidade de dominar novas habilidades. Todo 2011 da FCC sobre ecossistemas de informação da socieindivíduo que trabalha no setor de comunicações preci- dade, o problema com a imprensa hoje é tanto de incapasa, portanto, encarar com seriedade essa necessidade. Já cidade quanto de deliberada negligência. Também anainstituições que abrigam esses jornalistas devem montar lisamos o elo entre capacidade institucional, o problema uma organização e um fluxo de trabalho na redação que do tempo e a cobertura setorista ao discutirmos os argudeem respaldo ao jornalista nessa empreitada. mentos de David Simon: em suma, muito do valor agregaEm outras palavras, não podemos seguir exigindo que do pelo jornalismo está na operação de rotinas diárias, o um repórter domine novas habilidades e procedimentos sistema de vigilância setorista funciona melhor com insde avaliação sem, simultaneamente, garantir a esse pro- tituições saudáveis e o declínio institucional está levando fissional um fluxo de trabalho e uma estrutura organiza- à corrosão desse recurso jornalístico singular. Aqui, uma breve discussão sobre a lógica econômica da cional que indiquem que tal traquejo é valorizado e premiado. Esse fluxo de trabalho precisa ser flexível, e em atividade jornalística se faz inevitável, pois é nesse ponto rede, para facilitar e melhorar o trabalho. que o consenso em torno do futuro do jornalismo desaparece. Segundo pelo menos dois campos distintos neste debate, mecanismos de mercado melhores vão restituir Conclusão: jornalismo, instituições e democracia a saúde institucional – embora a definição de “mercados melhores” de um lado e outro seja diretamente oposta. Num ensaio em 1995, o teórico da comunicação James
Uma terceira corrente duvida que seja possível achar uma
Carey discorre com eloquência sobre a visão da impren- solução de mercado para o problema do declínio institusa como um “quarto poder” – uma visão da relação entre cional do meio jornalístico. mídia e democracia que só ganhou contornos definidos A primeira corrente de pensamento, representada por na década de 1960, a era de Watergate: teóricos do futuro da mídia como Jeff Jarvis, acha que o ecossistema jornalístico digital constitui, em si, um mer-
combinação de transparência, maior disseminação pelo da imprensa como um quarto poder. A prestação pública público e avanços na capacidade da indústria publicitária de contas deve vir, em parte, das próprias redes que hoje de microssegmentar consumidores. Tendo como contra- embasam o ecossistema de notícias. Não estamos dizenponto o monopólio do qual instituições jornalísticas mais do que essas redes existem em um vácuo institucional. poderosas gozaram durante quase um quarto de século, Nada disso. Instituições de jornalismo estão entre os nós esses teóricos veem a atual fase de fartura de informa- mais importantes nesse novo ambiente digital. Precisam, ções, a capacidade de adaptar o conteúdo ao público con- contudo, coexistir de novas formas, ao lado e em conjunsumidor e a facilidade de compartilhamento como gran- to com mais grupos e instituições do que nunca – e não des avanços em relação ao modelo anterior de produção só por razões econômicas, mas também democráticas. jornalística, menos livre. Precisam se apoiar nesses novos grupos e redes de um Em comentários ao post do blog discutido acima, David jeito novo. Estamos repetindo aqui nossa tese inicial de Simon articula com maestria uma segunda ideia do sig- que a indústria jornalística está morta, mas que o jornanificado de mercado “melhor” – uma ideia aparente- lismo segue vivo em muitos lugares. mente partilhada por uma crescente leva de executivos No ensaio citado anteriormente, James Carey afirma que da imprensa. “Acredito que a cobertura jornalística local a “ideia da imprensa como cão de guarda, de uma imprenpossa ser sustentada por receitas do meio digital”, diz sa independente de toda e qualquer instituição, imprensa Simon. “Mas isso requer que o jornalismo institucional que representa o público, imprensa que expõe interesses e valorize e proteja seus direitos autorais e que o setor como privilégios, imprensa que lança a luz ardente da transpaum todo projeta esse direito. Requer, ainda, um reinvesti- rência sobre toda esfera da república, imprensa que busmento real nesse produto.” A essa lista Simon acrescen- ca o conhecimento especializado entre uma barafunda ta a imposição de paywalls, que segundo ele já demons- de opiniões, imprensa que busca informar o cidadão, são traram seu poder no New York Times. Em suma, Simon ideais e funções que nos ajudaram muito em momentos e gente como ele defendem a ação unificada para coibir sombrios”. Mas, continua Carey, “com o século avançanagregadores e cobrar pelo conteúdo como uma maneira do, as deficiências do jornalismo moderno foram ficande o setor como um todo enfrentar as causas do declínio do cada vez mais evidentes e debilitantes”. da imprensa. Para que organizações jornalísticas dete As ideias de Carey sobre as vantagens e as desvantanham o posto de principal fornecedor de notícias, será gens do quarto poder são tão válidas hoje como no passapreciso instalar barreiras na internet. do. A crise, no entanto, é ainda mais severa do que quanUma terceira corrente de opinião duvida que qualquer do essas palavras foram redigidas, em 1995. O universo solução de mercado dessas possa facilmente se mate- da comunicação mudou radicalmente. Para que a prestarializar. Teóricos e comentaristas dessa vertente obser- ção democrática de contas promovida pela imprensa ins vam quão atípica foi a confluência de instituições capi- titucional sobreviva num mundo pós-quarto poder, essa talistas abastadas e do jornalismo de interesse público cobrança deve, em si, ser encampada pela rede. que produziram. Sua tese é que a dinâmica do mercado digital na verdade pune atores institucionais que buscam criar conteúdo jornalístico amplo, de caráter vigilante. Diferentemente de teóricos da segunda corrente, no entanto, não acreditam que a atual dinâmica do sistema jornalístico digital possa ser facilmente suplantada – nem acham que deveria ser necessariamente suplantada, ainda que possível. Certos teóricos dessa corrente saltam daqui para a tese de que bens públicos produzidos por instituições de imprensa (sobretudo a cobertura setorista) só podem ser financiados por formas de subsídio alheias ao mercado, sejam filantrópicas ou oriundas mais diretamente do Estado. Os três autores deste ensaio se situam nessa terceira categoria, uma decisão que também embasa nossa transição de instituições, na presente seção, para o ecossis-
PARTE 3
Ecossistema
A ÚNICA RAZÃO PARA FALARMOS DE ALGO TÃO ABSTRATO quanto um ecossistema jornalístico é como meio de entender o que mudou. A mais recente e importante transformação foi, obviamente, a disseminação da internet, que conecta computadores e telefones a uma rede global, social, onipresente e barata. Em se tratando de novos recursos, a capacidade de qualquer cidadão conectado de produzir, copiar, modificar, compartilhar e discutir conteúdo digital é um assombro, e derruba muitas das velhas verdades sobre a imprensa e a mídia em geral. A atividade jornalística no século 20 foi um processo bastante linear. Nele, repórteres e editores colhiam fatos e obser vações e transformavam tudo em notícia, que era então registrada em papel ou transmitida por ondas de rádio para ser consumida pelo público situado na outra ponta desses distintos meios de transporte. A figura do “ pipeline” é a metáfora mais simples para representar esse processo, seja a distribuição de notícias organizada em torno de rotativas ou de torres de transmissão. Parte da simplicidade conceitual de meios de comunicação tradicionais vinha da clareza garantida pela divisão quase total de papéis entre profissionais e amadores. Repórteres e editores (ou produtores e engenheiros) trabalhavam “upstream”: ou seja, como fonte da notícia. Criavam e burilavam o produto, decidiam quando estava pronto para consumo e, nessa hora, o difundiam.
profissionais e amadores se entrecruzam de modo mais dramático, e mais imprevisível, a cada dia. O principal efeito da mídia digital é que não há nenhum efeito principal. As mudanças trazidas pela internet e pelo
res do produto, que víamos apenas em seu formato final, processado. Podíamos consumi-lo, é claro (aliás, era nossa
foi Ed Sebesta, historiador que vinha reunindo decla-
em meio ao cafezinho – mas não muito mais. A notícia era algo que recebíamos, não algo que usávamos. Se quisésse-
que o comentário fora um raro deslize, Sebesta procurou Josh Marshall, que mantinha o blog Talking Points Memo (TPM), para mostrar uma lista de comentários similares (e igualmente racistas) que Lott fizera desde a década de 1980.
Já a audiência ficava “downstream”. Éramos recepto-
grande função). Podíamos discuti-lo à mesa do jantar ou
mos tornar pública nossa própria opinião, precisávamos pedir permissão a profissionais, que tinham de ser con-
vencidos a imprimi-la na seção de cartas ao editor ou a nos ceder um breve espaço no ar em algum programa aberto à participação do público. Esse modelo do conduto ainda é central para a imagem
celular, e por aplicativos erguidos sobre cada plataforma
dessas, são diversas e disseminadas o bastante para frustrar qualquer tentativa de pensar a atual transição como uma força ou um fator únicos. Para entender a situação como uma mudança no ecossistema, é útil ter uma noção de onde as mudanças estão aparecendo, e de como interagem.
Eis um punhado de surpresas em nosso pedacinho do
mundo nesse século 21: • Em 2002, quando o senador americano Trent Lott
louvou a campanha de segregação racial de Strom Thurmond em 1948, um dos indivíduos que selaram a queda do líder da minoria republicana no Senado rações racistas feitas por políticos americanos a grupos segregacionistas. Pouco depois de Lott ter dito
Essa evidência impediu que Lott caracterizasse a
declaração como mero deslize e fez com que perdesse a liderança da bancada republicana. Sebesta monta-
uma empresa); e a fonte procurou o veículo (a quase 2.500 quilômetros de distância), não o contrário. Aliás, como dito na segunda seção do presente dossiê, o TPM
virou a instituição que é hoje devido ao que Marshall foi capaz de fazer como amador (em outro exemplo de estabilização institucional).
site conseguiu aproximar de forma inédita seu banco de dados da realidade local: um usuário pode digitar o nome de um médico no sistema e receber um informe individualizado. A coleta e organização de dados de cará-
ter público virou, assim, uma plataforma para a cobertura de fatos nos planos nacional, local e individual.
• Em 2005, o sistema de transportes londrino foi alvo de
Três fatores – maior acesso ao cidadão comum, como no
um atentado a bomba. Ian Blair, chefe da polícia metro-
caso de Ed Sebesta; “multidões”, como no caso de inter-
TV que o problema era uma pane elétrica no metrô.
for Docs – estão viabilizando esquemas de trabalho que,
politana de Londres, declarou a emissoras de rádio e Minutos depois de veiculadas as declarações de Blair, cidadãos começaram a postar e a analisar imagens dos destroços de um ônibus de dois andares na Tavistock Square. Em menos de duas horas, centenas de posts
em blogs analisavam essa evidência. Cada post desses chegou a milhares e milhares de leitores e contradizia abertamente as declarações de Ian Blair. Diante disso (e ignorando o conselho de sua pró-
pria equipe de comunicação), Blair voltou novamente ao ar em menos de duas horas para declarar que o episódio fora de fato um atentado, que a polícia ain-
da não tinha mais informações e que voltaria a se pronunciar à medida que surgissem mais dados. Quando se dirigiu ao público, Blair tinha a seu favor o poder de todo meio de comunicação tradicional. Ficou patente, no entanto, que transmitir uma mensagem única por todo canal de radiodifusão existente já não significava ter o controle da situação. • Em 2010, em uma série de reportagens sob o título Dollars for Docs, o site americano ProPublica expôs o
fluxo de fundos que escoa da indústria farmacêutica para médicos que receitam seus fármacos. Embora essa realidade tivesse sido coberta previamente de forma fragmentada, a investigação do ProPublica trazia várias novidades, incluindo um banco de dados montado a par-
tir de informações que companhias farmacêuticas são obrigadas a divulgar – além da capacidade e da vontade jornalística de esmiuçar essa montanha de dados. O Dollars for Docs não foi só uma notícia nova. Era um novo formato de apuração de fatos. Embora boa parte dos dados utilizados fosse de caráter público, essa informação não fora centralizada nem padroni-
zada a ponto de se tornar útil; munido desse banco de dados, o ProPublica foi capaz de expor uma realidade nacional e, ao mesmo tempo, dar ferramentas para que
outras organizações cobrissem o fenômeno no plano local; hoje, outras 125 publicações já lançaram repor-
nautas em Londres; e máquinas, como no caso do Dollars dez anos atrás, seriam tanto impensáveis como inviáveis. O projeto “Off the Bus” do Huffington Post, que em 2008, durante a campanha presidencial americana, cobriu todas as convenções de eleitores (“caucuses”) no Estado do Iowa com a ajuda de jornalistas cidadãos, teria levado a organização à bancarrota se tocado com correspondentes pró-
prios. Para monitorar despesas de membros do parlamento do Reino Unido, o jornal britânico The Guardian optou pelo crowdsourcing – pois, se entregue à redação, a tare-
fa não só teria custado muito como levado tempo demais. O jornalismo sempre teve meios para receber denúncias e sempre foi ouvir o cidadão nas ruas. Membros do público sempre recortaram e passaram adiante matérias de seu interesse. A novidade aqui não é a possibilidade de participação ocasional do cidadão. É, antes, a velocidade, a escala e a força dessa participação – a possibilidade de participação reiterada, e em vasta escala, de gente anteriormente relegada a um consumo basicamente invisível. A novidade é que tornar pública sua opinião já não requer a existência de um veículo de comunicação ou de editores profissionais. Enquanto um mecanismo de denúncias só funcionava em áreas bem circunscritas, o site NY Velocity chegou ao outro lado do mundo para conseguir uma entrevista crucial no caso de doping do ciclista Lance Armstrong. Entrevistas de
rua são aleatórias, pois o profissional controla o modo e o ritmo das declarações do cidadão. Já com o Flickr e weblogs, internautas britânicos puderam discutir os atentados em
Londres em público, a seu bel-prazer, sem nenhum profissional à vista. O Dollars for Docs pegou uma barafunda de informações e, com isso, montou um banco de dados que
garantiu ao site um recurso permanente reutilizado por ele, por outras organizações e por milhões de usuários ao longo de mais de dois anos. Em outras palavras, a mudança de grau aqui é tão grande que acaba sendo uma mudança de gênero. É como disse Steven Levy ao escrever sobre o iPod: quando melhora algo em 10%, a pessoa fez um aprimoramento; já quando faz algo dez vezes melhor, está criando algo novo. Novas ferramentas
ESPECIAL | ECOSSISTEMA
Vivemos hoje um choque de inclusão – choque no qual o também o modo como os demais atores afetam essas instituiantigo público se envolve cada vez mais em todo aspecto da ções. A preferência do público por notícias sobre Hollywood a notícia, como fonte capaz de expressar sua opinião publicamente, sem nenhuma ajuda, como grupo capaz tanto de criar
como de vasculhar dados de um jeito inviável para profissionais, como divulgador, distribuidor e usuário de notícias. Esse choque de inclusão se dá de fora para dentro. Não está
sendo promovido pelos profissionais até então no comando, mas pelo velho público. É fomentado, ainda, por novos empreendedores da comunicação, por homens e mulheres interessados em criar sites e serviços que abracem, em vez de ignorar, o tempo livre e o talento do público. A importância do jornalismo não vai acabar. A importân-
Washington, a presença da concorrência a um clicar do mouse, a atual interpretação da Primeira Emenda da Constituição norte-americana pela Suprema Corte do país, a proliferação de câmeras de alta qualidade em celulares: tudo isso é parte do ecossistema jornalístico nessa alvorada do século 21, com efeitos do velho e do novo totalmente embaralhados.
O ecossistema também afeta a capacidade institucional: o tipo de história que é ou não coberta é determinado por vários fatores – pela audiência, pela vontade de anunciantes, por estruturas narrativas. Todo mundo sabe contar a história
mida só por amadores – amadores que, por conta própria,
de um atleta trapaceiro ou de uma empresa insolvente, mas não há estrutura narrativa óbvia para a tensão entre a união monetária e fiscal na União Europeia, ainda que esta última seja de longe a mais importante. Na mesma linha, fatos e suposições ligados a coisas como o acesso a dados, a validade de fontes, a natureza e os limites de parcerias aceitáveis,
eram basicamente incapazes de produzir notícias, distribuí-
entre outros, afetam o que instituições creem que podem ou
Tão robusta e multifacetada é tal transformação que devíamos considerar o total abandono do termo “consumidor” e simplesmente tratar o consumo como uma de várias condu-
No modelo jornalístico do pipeline, instituições estabe-
cia de profissionais dedicados ao ofício não vai acabar. O que
está chegando ao fim é a linearidade do processo e a passividade do público. O que está chegando ao fim é um mundo no qual a notícia era produzida só por profissionais e consu-
-las ou interagir em massa com essa informação.
não fazer, que devem ou não fazer.
lecidas poderiam ser vistas como uma série de gargalos de produção controlados e operados por empresas de comutas que o cidadão hoje pode exibir. As mudanças que estão nicação que, com isso, tiravam receita tanto de anunciantes por vir superarão as que já vimos, pois o envolvimento do como do público. Esses gargalos eram subproduto do custo e cidadão deixará de ser um caso especial e virará o núcleo de da dificuldade incrível de reproduzir e distribuir a informanossa concepção de como o ecossistema jornalístico pode- ção, por rotativas ou torres de transmissão. Como observaria e deveria funcionar. do na seção anterior, nesse ecossistema instituições tinham alto grau de controle sobre a própria sorte. Para imprimir e distribuir um jornal diário, era preciso
Ecossistemas e controle
Falar de um “ecossistema jornalístico” é admitir que nenhuma organização de imprensa, hoje ou no passado, foi senho-
uma equipe grande e qualificada – e maior ainda para produzir e transmitir um telejornal. A concorrência era limitada por esses custos e dificuldades, bem como pelo alcance geográfico de caminhões de entrega e sinais de transmis-
ra absoluta do próprio destino. Relações em outras partes são. No pequeno número de organizações com meios para do ecossistema definem o contexto de toda e qualquer orga- criar e distribuir notícias, estruturas profissionais complenização; mudanças no ecossistema alteram esse contexto. tas foram erigidas. Este ensaio começou com um foco no jornalista e nos distintos métodos usados pelo profissional para apurar, processar e interpretar informações e fatos de caráter vital para a vida pública. A maioria dos jornalistas exerce o ofício dentro de instituições; várias coisas moldam uma instituição dessas – o porte e a composição da redação, a imagem que tem de si mesma, fontes de receita. Essas instituições, por sua vez, determinam o trabalho do jornalista: que fatos o profissional pode ou não cobrir, o que é considerado um trabalho bom ou ruim, com quem pode colaborar, que recursos tem a seu dispor. As instituições em si estão em situação análoga, operando no âmbito da mídia que cobre notícias (e, às vezes, até na parte
Essa institucionalização se deu primeiro em jornais e revis-
tas; a máquina impressora precedeu não só o rádio e o cinema, mas também o motor a vapor e o telégrafo. A estrutura profissional de repórteres, editores, publishers e, mais tarde, ilustradores, diagramadores, checadores e todo o resto do aparato utilizado na produção de um jornal foram erguidos em torno de – ou literalmente “sobre” as – gigantescas máquinas que aplicavam a tinta ao papel. Departamentos
de jornalismo de emissoras de rádio e TV seguiram o mesmo padrão, inventando categorias e práticas profissionais para subdividir e sistematizar tanto o trabalho como distintas categorias de profissionais envolvidos na produção
de participantes em produtores e consumidores – bate de inovação na cobertura ao vivo do furacão Irene, substituinfrente com princípios organizadores da produção jornalísti- do a página principal do site do jornal por um blog em temca vigentes desde o século 17. A abundância cria mais ruptu- po real, o Storm Tracker. Isso feito, o jornal despachou repórteres para as ruas. ra do que a escassez; quando todo mundo de repente passa a ter muito mais liberdade, toda relação no velho modelo – Munidos de câmeras e celulares (em geral, o mesmo apano qual o meio de comunicação cobrava para “operar o gar- relho), foram registrar de tudo: o processo de evacuação, a galo” – pode ser questionada. luta de moradores para se proteger da tormenta, os efeitos A chegada da internet não trouxe um novo ator para o do vento e da água em si. Essa cobertura ao vivo foi intercaecossistema jornalístico. Trouxe um novo ecossistema – lada com informações de serviços de meteorologia, de sernem mais, nem menos. Com ele, o anunciante pode chegar viços de emergência e da prefeitura, tudo ocorrendo paraao consumidor diretamente, sem pagar nenhum pedágio – lelamente à tempestade. algo que muito consumidor até prefere. O amador pode ser A cobertura ao vivo da catástrofe no blog do Daily News um repórter “na acepção do termo” (“reportador”): a notí- foi um êxito e rendeu grandes elogios ao jornal. Só que por cia do terremoto em Sichuan, na China, do pouso de emer- pouco não ocorreu. O que precipitou o projeto Storm Tracker gência de um avião no Rio Hudson, em Nova York, e de mas-
sacres na Síria partiu, sempre, de relatos de gente na cena dos fatos. A doutrina do “uso justo”, até então uma válvu-
não foi uma estratégia nova para o meio digital, mas o colapso de uma velha. Já que a sede do Daily News fica em uma região de Manhattan sujeita a alagamentos, a polícia limitou
severamente o número de trabalhadores que podiam che blocos de conteúdo por um pequeno grupo de meios virou, gar ao lugar no fim de semana em que o Irene passou pela de repente, uma oportunidade para a construção de opera- ilha. A princípio, isso não impediria que se subisse conteúções ineditíssimas de agregação e “reblogging ”. E por aí vai. do digital no site – salvo pelo fato de que o sistema de gesQuando a mudança é pequena ou localizada e instituições tão de conteúdo do jornal fora projetado para dificultar o estabelecidas estão bem adaptadas a essas condições, não faz acesso de quem não se encontrava no prédio. Como dito anteriormente por Anjali Mullany, pioneira no muito sentido pensar no entorno como um “ecossistema”, pois a simples resposta a pressões competitivas e a adapta- uso ao vivo de blogs no Daily News e responsável pela opeção a mudanças pequenas e óbvias já bastam. Para institui- ração Storm Tracker, a necessidade de erguer um processo ções jornalísticas, no entanto, as mudanças da última déca- de produção em torno do CMS é um grande obstáculo (não da não foram nem pequenas, nem localizadas. raro invisível) a tentativas de inovação. Nesse caso especíUm tópico comum na discussão da reação de meios de fico, o Daily News tinha pego uma ferramenta que podia ter comunicação tradicionais a essas mudanças é a incapacida- permitido o acesso de qualquer funcionário do jornal, em de de executivos de jornais de reconhecer os problemas que qualquer lugar do mundo, e acrescentado mecanismos de enfrentariam. A nosso ver, esse diagnóstico é equivocado: a segurança que, na prática, faziam o recurso agir como uma transição para a produção e a distribuição digital de infor- velha rotativa a vapor: o trabalhador tinha de estar perto da mação alterou de forma tão drástica a relação entre meios máquina para operá-la – ainda que no caso a máquina fosse de comunicação e cidadãos que “seguir como sempre” nun- um computador ligado a uma rede mundial. ca foi uma opção – e, para a maioria da imprensa bancada A necessidade por trás do lançamento de Storm Tracker, la de escape para a reutilização disciplinada de pequenos
por publicidade, nunca houve saída que não envolvesse uma
dolorosa reestruturação.
em outras palavras, não foi achar um jeito novo de levar infor-
mação à população de Nova York durante uma tempestade Um tema parecido é a imprevisibilidade e a surpresa. das grandes, mas simplesmente descobrir uma maneira de Aqui, a explicação para a crise atual é que mudanças recen- manter o site no ar quando péssimas decisões de engenhates foram tão imprevisíveis e vieram de forma tão rápida que ria colidiram com uma tragédia climática. Esse foi um fator essencial no lançamento do Storm Tracker. organizações tradicionais foram incapazes de se adaptar. É outra visão equivocada: ainda no fim da década de 1980 já Havia outro. Em entrevistas com Mullany sobre o sucesso havia projeções plausíveis do problema que a internet cau- do projeto, a jornalista observou que por sorte o Irene chesaria para a indústria jornalística e, apesar de muito se falar gara no final de agosto e não no início de setembro. É que no da “velocidade da internet”, o ritmo dessa mudança foi gla- final de agosto o grosso da alta chefia estava de férias. Não cial; se partirmos de 1994 (ano em que a internet comercial podia, portanto, reverter a decisão do pessoal de escalão se difundiu para valer), executivos tiveram 75 trimestres inferior, que entende mais de internet, de testar algo novo. consecutivos para se adaptar. Conforme observado na segunda seção, instituições são
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interna de uma instituição até o momento em que entra em há, contudo, resposta certa para a pergunta: “Quem publica colapso. Se para inovar à moda do Storm Tracker for preciso e quem é fonte?”. O WikiLeaks é uma fonte capaz de publiuma tecnologia cheia de entraves, o medo de que a redação car no mundo todo. E é um meio que colabora com outros seja varrida para o mar e uma chefia em férias, as perspecti- no repasse de informações em estado bruto. vas de inovação ordenada em organizações tradicionais são A cobertura de eventos como #Occupy e Cablegate (bem péssimas (um triste epílogo: durante o furacão Sandy o pré- como levantes na Tunísia, massacres na Síria, tsunamis na dio do Daily News foi alagado e os usuários do CMS tiveram Indonésia, acidentes de trem na China e protestos no Chile) o mesmo problema que durante o Irene; passado um ano da simplesmente não pode ser descrita ou explicada com a primeira crise, ninguém tinha adaptado o sistema para per- velha linguagem do conduto. A melhor justificativa para penmitir a ação de uma força de trabalho distribuída). sarmos no jornalismo como ecossistema é ajudar a rever o Diante disso, a fabulação coletiva da velha imprensa no sen- papel que instituições podem exercer em dito ecossistema. tido de restituir o statu quo ante é, em si, nociva. Organizações Imagine dividir cada novo ente do ecossistema em três jornalísticas devem, obviamente, fazer o possível para elevar grandes categorias – indivíduos, massas e máquinas (ou seja, sua renda, mas a receita garantida, o lucro alto e as normas tanto novas fontes de dados como novas maneiras de proculturais do setor no século 20 se foram, e o ecossistema que cessá-los). Indivíduos adquiriram novos poderes porque, produzia tais efeitos, também. Para o jornalista, e para institui- hoje, todo mundo tem acesso a um botãozinho onde se lê ções que o servem, a redução de custo, além de uma reestru- “publicar”; qualquer informação pode aparecer e se alastrar, turação para garantir mais impacto por hora ou dólar inves- levada nas asas de redes sociais hoje densas. As massas têm tido, é a nova norma de organizações jornalísticas eficazes poder porque a mídia agora é social, criando um substrato – padrão que hoje chamamos de jornalismo pós-industrial. não só para o consumo individual, mas também para a con versa em grupo. A norte-americana Kate Hanni soube usar a seção de cartas de jornais para lutar pelos direitos de passageiros de companhias aéreas porque entendia, melhor do Ecossistema pós-industrial que os próprios meios, que aquele era um espaço de congreComo descrever o jornalismo pós-industrial? O ponto de gação de leitores. E máquinas hoje ganharam poder porque partida é uma premissa apresentada na segunda seção. A a explosão de dados e métodos de análise abre perspectivas saber, que organizações jornalísticas já não possuem o con- inéditas nesse campo, como exemplificado pela análise léxitrole da notícia, como se supunha que possuíam, e que o grau ca e de rede sociais na esteira da divulgação de telegramas maior de defesa do interesse público por cidadãos, governos, do Departamento de Estado americano. empresas e até redes com elos fracos é uma mudança per Assim como não dá para confinar o WikiLeaks exclusivamanente, à qual organizações jornalísticas devem se adaptar. mente à categoria de fonte ou à de meio de difusão, um veíUm exemplo dessa mudança veio durante a retirada de culo de imprensa não tem como adotar uma postura inflemanifestantes do movimento Occupy Wall Street de uma xível diante do novo poder do indivíduo, da disseminação praça em Nova York em novembro de 2011. A notícia não foi de grupos absurdamente fáceis de formar ou do maior volu veiculada primeiro pela imprensa tradicional, mas pelos pró- me de dados brutos e do novo poder de ferramentas analíprios acampados, que avisaram sobre a ação da polícia por ticas. Como a experiência imprevista do Daily News com a SMS, Twitter e Facebook. Participantes do protesto geraram cobertura de tragédias via blog demonstra, não são recursos mais fotos e vídeos do episódio do que meios tradicionais, que podem ser agregados ao velho sistema para aprimorá-lo. em parte porque a esmagadora maioria das câmeras estava São recursos que mudam qualquer instituição que os adote. nas mãos de manifestantes e, em parte, porque a polícia barImaginemos, agora, dividir a atividade básica de uma rou helicópteros da imprensa do espaço aéreo sobre a praça. organização jornalística em três fases sobrepostas: apuração Repórteres no local escondiam crachás de meios de comu- de informações sobre um fato, transformação desse matenicação, pois o cidadão comum tinha mais acesso à cena dos rial em algo digno de ser publicado e posterior publicação. fatos do que gente credenciada da imprensa. Essa divisão do processo jornalístico em apuração, produUm outro caso: organizações jornalísticas que publica- ção e publicação é, naturalmente, simplista, mas sintetiza ram documentos sigilosos obtidos via WikiLeaks em geral a lógica básica da produção na imprensa: buscar material tratavam o WikiLeaks como fonte, não veículo de informa- no mundo lá fora, colocar essa informação no formato que ções. A lógica era que o WikiLeaks fornecia o material de a organização deseja (um artigo, uma série, um post) e, isso base para seu trabalho. Isso faz sentido quando detento- feito, difundir ao mundo o material em seu novo formato.
• Um exemplo dessa fase de “apuração” dos fatos veio do blog de ciclismo NY Velocity, fundado em 2004 por três fãs do esporte, Andy Shen, Alex Ostroy e Dan Schmalz. Embora o propósito básico do site fosse cobrir o ciclismo em Nova York, seus criadores foram ficando cada vez mais perturbadoscom o silêncio público e consciente diante da possibilidade de que Lance Armstrong, sete vezes vencedor do Tour de France, tivesse apelado para a eritropoietina (EPO), um hormônio que aumenta a resistência do atleta. O site entrevistou Michael Ashenden, o médico australiano que criara um teste para detectar a presença do hormônio; na entrevista, Ashenden afirmou que, tendo testado uma amostra de sangue de Armstrong colhida na Tour de France de 1999 (que ele venceu), sua opinião era que o atleta usara, sim, a substância. Foi uma reportagem exclusiva, no velho formato jornalístico. A entrevista, de 13 mil palavras, serviu para galvanizar a opinião de ciclistas que achavam não só que Armstrong conquistara essas vitórias injustamente, mas que o jornalismo desportivo profissional estava disposto a fechar os olhos para o fato. Já os fundadores do NY Velocity estavam dispostos a buscar a verdade de forma tenaz e pública; além de terem suas suspeitas confirmadas, no final também mostraram que profissionais da imprensa simplesmente não estavam cobrindo o fato como deviam – e que gente da área em questão, com empenho e conhecimento dos fatos, podia muito bem preencher essa lacuna. • Em outro cruzamento do método tradicional com
novas possibilidades, vejamos como a capacidade de formar grupos mudou a cobertura dos fatos. O projeto de 2008 do Huffington Post citado lá atrás conseguiu cobrir todos os caucuses no Iowa porque despachou um voluntário para cada lugar para um trabalho de uma ou duas horas, algo que teria custado demais com a contratação de freelancers e exigido um vaivém excessivo da equipe da redação. Os voluntários do pro jeto Off the Bus não redigiram o texto sobre cada “caucus”; o projeto foi um híbrido de reportagem distribuída e redação centralizada; foi, de certa forma, a volta à velha separação de repórteres nas ruas e redatores em redações próximas do maquinário. • Outro exemplo do cruzamento de atividades atuais
e novos recursos é a maneira como o relato de certos fatos pode ser feito por máquinas. Vários projetos que empregaram o Ushahidi , uma ferramenta de “mapeamento de crises”, passaram de “recurso para a supera-
violência nas ruas, de níveis de radiação e de remoção de neve das ruas. Cada aplicação do Ushahidi para eventos de interesse jornalístico é um exemplo da máquina alterando a forma como dados são coletados, compilados e apresentados. Cada atividade básica dessas – apurar, produzir e distribuir notícias – está sendo modificada por novas formas de participação de indivíduos, grupos e máquinas. Como observado na segunda seção, o significado e o alcance dessas mudanças devem frustrar o desejo de instituições de incorporar aos poucos as ditas transformações. Muitas das recomendações dessa seção são, portanto, ecos das apresentadas na seção sobre instituições; quando são repetidas aqui, é com maior ênfase no fato de que o emprego desses novos recursos e capacidades significa a adaptação a um novo ecossistema.
A notícia como produto de importação e exportação Uma maneira de analisar um ecossistema é perguntar o que troca de mãos entre seus participantes. Como dito anteriormente, no século 20 esse fluxo era relativamente linear e previsível; fluxos de informação envoltos em considerá vel complexidade em geral eram parte de contratos comerciais altamente detalhados, como a reprodução comercializada de conteúdo de outros meios (“syndication”) ou o uso de material de agências de notícias. O valor de uma matéria da Associated Press (AP) para um jornal estava refletido no interesse do público local; assinar o serviço da AP valia a pena quando o valor desse interesse ajudava o jornal a gerar mais receita publicitária do que o custo do serviço. Era um sistema no qual o valor gerado para as duas partes era definido em acordos bilaterais e calculado em termos monetários – um jornal firma um acordo com a AP em troca do acesso a seu conteúdo. A título de comparação, peguemos o modelo original do Huffington Post: parte do material publicado no site poderia trazer trechos de outros artigos, agregar comentários e produzir um produto novo, economicamente viável. Essa forma de “uso justo” existe há décadas. O que mudou foram as condições do ecossistema. A chefia do Huffington Post percebeu que, no meio digital, o uso justo significava, na prática, que todo o material de uma agência de notícias, e que a citação de trechos e comentários de conteúdo exclusi vo do Washington Post ou do New York Times, tinham muito mais valor para o leitor do que a contratação dos serviços de uma AP ou Thomson Reuters.
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cruzam. A própria AP vem testando algo novo: deixar de
repassar grandes notícias a assinantes na tentativa de obter um tráfego mais direto. Na mesma linha, a briga da AP com Shepard Fairey, o artista que criou uma popularíssima imagem de Barack Obama inspirado em uma foto da AP, repousa na tese de que a AP tinha o direito de fotografar Obama sem sua permissão, mas que Fairey não podia usar aquela imagem para criar algo semelhante. No caso Fairey, não havia realidade objetiva sobre a qual fundar o caso – tudo o que havia era um conjunto de doutrinas jurídicas. A velha ética foi descrita por Terry Heaton num post intitulado “Por que não confiamos na imprensa?”: Ninguém nunca cita outros no universo da cobertura jornalística a menos que obrigado a tal por uma questão de direito autoral. Antes da internet, até dava para entender, pois até onde sabíamos nossos repórteres sabiam tudo o que era preciso saber sobre um fato. A tese de que alguém, em outro lugar, tivesse essa informação primeiro era tão irrelevante que nem valia a pena mencioná-la. Para nossos leitores ou telespectadores, éramos a fonte de todo conhecimento. Além disso, tínhamos tempo para levantar toda informação de que precisávamos. Era o mundo do produto jornalístico “acabado”. Mas agora, com a informação em tempo real, qualquer um pode ver claramente o papel de cada fonte na informação. Sabemos quem a tinha primeiro. Sabemos quando algo é exclusivo. Nossa propaganda de nós mesmos perdeu totalmente o sentido. No novo ecossistema jornalístico, hoje é óbvio que a ideia de todo mundo produzir do zero um artigo acabado sim-
plesmente não é o normal. Somos externalidades uns dos outros. Em certa medida, sempre foi assim – jornais ajuda vam a definir a pauta de veículos de radiodifusão no século 20 –, embora em geral fosse algo oculto, como Heaton conta. A explosão de fontes e a queda do custo de acesso tornaram mais saliente o aspecto interligado do jornalismo. O site Slashdot era nitidamente fonte de ideias de pauta para o caderno de tecnologia do New York Times; outro, o Boing Boing , gera tráfego para sites desconhecidos, porém inte-
ressantes, que volta e meia servem de subsídio para reportagens em outros lugares, e assim sucessivamente. De certo modo, a agregação, a inspiração, a citação e até a “cópia” deslavada de conteúdo jornalístico que ocorre no ecossistema é um retorno a eras anteriores da atividade jornalística, na qual jornalecos do interior às vezes não passavam de um apanhado de notícias requentadas de grandes diários. A capacidade de agregar notícias, à século 18, se devia em par-
dia veria um jornal do interior do Kentucky). A ideia de que daria para cobrar pela reprodução de conteúdo – o syndication – é um conceito relativamente novo na história jornalística. O modelo de “syndication” (ou distribuição comercializada) que existia sob o regime de produção de notícias do século 20 não está, portanto, sob pressão devido à má-conduta de certos atores, mas porque a configuração básica do meio jornalístico mudou drasticamente. No modelo antigo, a reutilização de material era contratual (freelancers, agências de notícias) ou oculta. No novo modelo (velhos modelos, na verdade), há muitas formas de reaproveitamento; algumas são contratuais, mas a maioria não o é. Embora a AP seja um caso particularmente visível, toda instituição jornalística vai ter de se posicionar ou de se reposicionar em relação a novas externalidades no ecossistema. O espectro da troca de valor entre indivíduos e organizações é enorme e altamente graduado. Hoje, é imperativo que a instituição tenha a capacidade de estabelecer parcerias (formais e informais) possibilitadas pelo novo ecossistema. Para darmos um exemplo recente, importante por si só e por aquilo que revela sobre esse novo mundo, traduzir material escrito e falado hoje é muitíssimo mais fácil e barato do que já foi. Ferramentas de tradução automática são muito melhores hoje do que há coisa de cinco anos, como ilustrado pelo uso do tradutor do Google por falantes de língua inglesa para ler tweets em árabe; pelo crowdsourcing da tradução para
verter volumes incríveis de material em pouquíssimo tempo (como no caso do dotSUB e da tradução das TEDTalks); e pelo surgimento de instituições dedicadas a transpor abismos linguísticos e culturais como Meedan ou ChinaSmack. Hoje, toda instituição no mundo está diante de duas opções estratégicas: quando, e de que idiomas, começar a traduzir material didático ou conteúdo já produzido para apresentar a nosso público e quando, e para que idiomas, traduzir nosso próprio material para tentar chegar a um novo público. Imaginar a notícia como um produto linguístico de importação e exportação, investir na importação do árabe para o inglês, possivelmente em todos os níveis da curva de custo-qualidade, poderia ser utilíssimo para qualquer redação americana que queira cobrir assuntos geopolíticos. Já o investimento na exportação do inglês para o espanhol, dada a tendência demográfica nos Estados Unidos, poderia contribuir muitíssimo para a aquisição e a retenção de público.
Recomendação: aprender a trabalhar com parceiros Numa foto famosa tirada nos Jogos Olímpicos de 2008, uma falange de fotógrafos se acotovela numa plataforma
em equipamento foi comprometido para o registro de um mesmo momento, de um mesmo ângulo. Pior ainda é o custo humano de dezenas de fotógrafos talentosos competindo por um valor incremental mínimo.
Essa forma de competição, na qual cada institui-
desenvoltura básica com números. É um problema que chamamos de “Final Cut versus Excel”: faculdades de jornalismo estão mais aparelhadas para ensinar técnicas básicas de produção de vídeo do que de exploração básica de dados.
ção tem de cobrir a mesma coisa de modo ligeiramente distinto, era absurda até quando essas organizações
Embora a ênfase em ferramentas de apresentação em detrimento da investigação seja um problema mais gra-
recursos, é também nociva.
ve em faculdades de jornalismo dos Estados Unidos, o problema assola o setor inteiro (é como disse Bethany
nadavam em dinheiro. Hoje, com a perda incessante de Instituições jornalísticas precisam aprender a atuar em
parceria com indivíduos, organizações e até redes pou-
co coesas tanto para ampliar seu alcance como para reduzir custos. Há vários exemplos de sucesso: uma parceria do New York Times com a rádio WNYC (a SchoolBook) para melhorar a cobertura dos dois meios na área de educação; WikiLeaks e Dollars for Docs, já citados; o uso sem compromissos de dados digitais colhidos pela Sunlight Foundation ou pelo Data.gov. Buscar maneiras de usar e reconhecer o trabalho desses parceiros sem a necessidade de classificar tudo por categorias como “fonte” ou “fornecedor” ajudaria a ampliar o leque de possíveis colaborações.
Recomendação: descobrir como usar o trabalho sistematizado por outros
Esse é um subconjunto da recomendação anterior. Vemos, hoje, o enorme crescimento de dados estrutu-
rados (dados que já se encontram em formato altamen-
te ordenado e bem descrito, como um banco de dados)
e o aumento correlato de APIs (interfaces de programação de aplicativos, uma forma sistemática de máquinas dialogarem). Ao juntarmos as duas coisas, temos um aumento potencial na colaboração sem cooperação: quando um meio de comunicação aproveita dados ou
interfaces disponíveis sem a necessidade de solicitar ajuda ou permissão à instituição que abriga os dados.
É, naturalmente, algo importante, pois garante o
acesso a baixo custo e alta qualidade a um material até então indisponível. Tal como ocorre com tantos recursos novos no cenário atual, no entanto, dados estruturados e APIs não são ferramentas novas para fazer coisas à moda antiga. São ferramentas cuja adoção altera a organização que as emprega. Na hora de tirar proveito do trabalho sistematizado
McLean, da revista Vanity Fair: “Qualquer pessoa capaz de entender um balanço de empresas provavelmen-
te vai estar trabalhando no mercado financeiro, e não cobrindo esse setor”).
Os obstáculos mais sutis são culturais: para usar o
trabalho sistematizado por outros é preciso superar a chamada síndrome do “não foi inventado aqui” e aceitar que será preciso um grau maior de integração com
organizações externas para tirar proveito de novas fontes de dados. Há outro obstáculo cultural: embora o uso de dados e APIs em geral não tenha um custo, organi-
zações que abrigam essa informação querem crédito
por ajudar a criar algo de valor. Essa necessidade bate de frente com a tendência acima citada de não dar crédito a terceiros em público.
Essa lógica, naturalmente, não vale só para o uso
do trabalho alheio. Organizações jornalísticas devem
melhorar a própria capacidade de disponibilizar seu tra balho de forma sistemática para reutilização por outras organizações, seja pela partilha de dados, seja pela partilha de ferramentas e técnicas. Sempre haverá tensão entre a lógica competitiva e a cooperativa no ecossis-
tema jornalístico. Na atual conjuntura, no entanto, o
custo de não empreender um esforço conjunto subiu, o custo de colaborar sem muito ônus caiu considera velmente e o valor de trabalhar sozinho despencou.
Como observado na seção 2, a presença de processos
costuma ser um obstáculo maior à mudança do que a falta de recursos. Tirar proveito do trabalho sistemati-
zado por outros e descobrir maneiras de tornar seu tra balho sistematicamente útil para outros são saídas para a produção de um trabalho de maior qualidade a um custo menor. Para isso, no entanto, a organização precisa começar a tratar a redação como uma operação de
importação e exportação, não como um chão de fábrica.
por outros, os obstáculos mais óbvios são a falta de capa-
citação técnica e visão para usá-lo. Por sorte, a situação está melhorando um pouco, já que ferramentas como Many Eyes e Fusion Tables estão facilitando a vida de
Autodefinição como vantagem competitiva Não há solução para a presente crise. Um corolário é que a
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Thurston, por assim dizer), mas uma transição de um para Já que a internet oferece o potencial de variedade infinimuitos, de um mundo no qual Cronkite era capaz de repre- ta, o argumento em favor da audiência de nicho (e da lealsentar um ponto focal para outro com uma cacofonia de dade de nicho) também é forte aqui. Além disso, a velha vozes: Thurston, Rachel Maddow, Juan Cole, Andy Carvin, lógica da segmentação geográfica da cobertura local perSolana Larsen – para citar só alguns dos personagens de um mitia a veículos de comunicação contratar uma agência elenco de milhões. de notícias ou comprar pacotes de conteúdo distribuído Já vimos isso em microcosmos: na transição da TV aberta nacionalmente sabendo que o público não veria o mespara a TV a cabo ou, num exemplo menos popular, da radio- mo conteúdo publicado ou exibido em uma cidade vizidifusão terrestre para a rádio via satélite, quando passamos de nha. Com a chegada da busca como forma básica de locaemissoras voltadas a uma ampla faixa do público para nichos lização de conteúdo, no entanto, o usuário típico hoje tem altamente específicos (Comedy Central, Food e, na rádio via acesso a milhares de fontes para matérias sobre os pirasatélite, não só blues, mas “Delta blues” ou “Chicago blues”). tas somalis, digamos – a vasta maioria delas derivada de um mesmo texto de agência de notícias. Recomendação: incluir links para o material-fonte Isso cria um novo imperativo para organizações jornalísticas – imperativo para o qual a estratégia de “ser tudo O link é a “affordance” tecnológica básica da internet, para todos em um raio de 50 quilômetros” já não funcioo recurso que a distingue de outras formas de publina. Há serviços úteis a serem prestados por organizações cação. É como se dissesse ao usuário: “Se quiser saber hiperlocais ( St. Louis Beacon, Broward Bulldog ), outros por mais sobre o tema aqui discutido, é possível achar mais organizações hiperglobais ( New York Times, BBC), outros material aqui”. É uma forma de respeitar o interesse do ainda por sites de nicho voltados a análises altamente espeusuário e sua capacidade de seguir os acontecimentos cializadas ( Naked Capitalism, ScienceBlogs ) e por aí vai. por conta própria. Aqui, a escolha é entre abrangência e profundidade. A Na prática jornalística, a forma mais básica de link é internet produz um salto imenso em diversidade num munpara o material-fonte. Uma matéria sobre um indiciado dominado pela imprensa escrita e falada. Ultimamente, um volume crescente de notícias vem circulando por mento recente deve ter um link para o texto do indiciamento. Uma discussão de um artigo científico deve mídias sociais, sobretudo Twitter e Facebook; o crescenter um link para o artigo. Um textinho sobre um vídeo te domínio da difusão social de notícias e comentários engraçado deve ter um link para o vídeo (ou, melhor reduz ainda mais a capacidade de qualquer site de proainda, incorporar o vídeo ao texto). duzir um pacote exaustivo de notícias. Não se trata de uma estratégia digital sofisticada,
mas sim de pura ética comunicativa. E o que espanta é que tantos veículos de comunicação não passem nesse teste básico. A culpa é de velhos obstáculos culturais (como na observação de Terry Heaton sobre não dar o crédito), de hábitos arraigados (antigamente, a redação tinha pouco tempo e espaço para ficar citando fontes de informação) e do receio comercial de encaminhar o leitor para outro lugar. Nenhum desses entraves, porém, merece muita simpatia. O hábito de não dar crédito, embora disseminadíssimo, é claramente antiético. A internet deixou de ser novidade para o público; já passou da hora de suas práticas básicas serem interiorizadas por jornalistas.
E evitar links por razões comerciais pode fazer sentido para o departamento de venda de publicidade, mas devia horrorizar qualquer pessoa cujo trabalho envolva a prestação de um serviço público. Para o público, o link para o material de origem tem valor tão óbvio, e é tão fácil, que a organização que se
Há espaço para textos rápidos, redigidos às pressas, sobre notícias que acabam de chegar. Há espaço para
análises relativamente rápidas, de extensão relativamente curta (o primeiro esboço da história). Há espaço para a análise refletida e minuciosa por gente que entende da coisa para um público que entende da coisa. Há espa-
ço para relatos impressionistas, de fôlego, sobre o mundo alheio à balbúrdia do noticiário diário. E assim sucessivamente. Não são muitas, no entanto, as organizações capazes de agir satisfatoriamente em várias dessas frentes – e não há nenhuma que dê conta de tudo isso para todos os temas que interessam seu público. Qualquer veículo de comunicação sempre viveu o dilema da abrangência e da profundidade. Só que a internet piorou as coisas: as massas são maiores, como exemplificado pela propagação da notícia da morte de Michael Jackson. Nichos são cada vez mais especializados (o Lenderama cobre problemas com hipotecas, o Borderzine
a questão de jovens latinos nos Estados Unidos). A notícia que já chegava rápido pode chegar ainda mais depressa:
Recomendação: não tentar aplicar peso da marca a produto menos nobre
Aqui estamos, basicamente, recomendando o que não fazer. Na última década, duas coisas mudaram radicalmente: o valor da reputação (maior) e o custo de produção (menor). Hoje em dia, há tantas fontes de notícias no mercado que qualquer publicação conhecida pela exatidão, pelo rigor e pela probidade tem vantagem sobre o mar de concorrentes indistintas. Só que ferramentas digitais também derrubaram drasticamente o custo de localizar e publicar informações, levando a uma profusão de veículos que publicam às toneladas. É tentador, para publicações com boa reputação, com binar essas duas mudanças: achar um jeito de aplicar seu selo de alta qualidade a iniciativas novas, de baixo custo e alto volume. Foi a lógica que levou à criação de um recurso de agregação e comentário do Washington Post: o blogPost, que ficou famoso pela renúncia de
Elizabeth Flock depois de levar uma bronca por não ter dado crédito a parte do material que vinha agregando. Vale a pena reproduzir parte da coluna do ombu-
dsman do Post, Patrick B. Pexton, na esteira da renúncia de Flock: Flock renunciou voluntariamente. Segundo ela, os [ dois ] erros foram seus. E disse que era só questão de tempo para que cometesse um terceiro; a pressão era simplesmente grande demais. Mas a culpa foi tanto do Washington Post quando dela. Falei com vários dos jovens a cargo de
blogs do Post esta semana, e com alguns que deixaram o jornal nos últimos meses. Sua crítica era sempre a mesma. Segundo disseram, a impressão é que estavam sozinhos no mundo digital, sob alta pressão para emplacar coisas na internet, sem treinamento,
com pouca orientação, pouco apoio e pouquíssima edição. Quase não há diretrizes para agregar histórias, disseram.
falsos a matérias redigidas por freelancers no exterior. Em todos esses casos, a tentação é colocar um processo de baixo custo sob uma marca de alto valor. É óbvio que a rápida comoditização de notícias corriqueiras não é só inevitável como também desejável, pois liberaria recursos para o trabalho mais complexo em outras áreas. Também é óbvio que a tentação a imprimir à notícia comoditizada a aura de sua contrapartida não comoditizada é considerável, até para instituições augustas como The Washington Post e The New Yorker.
O respeito básico pelo esforço jornalístico exige que indivíduos a cargo do trabalho comoditizado recebam diretrizes claras sobre o que é ou não permitido. O respeito básico pelo público exige que receba diretrizes claras sobre a fonte e o processo da cobertura jornalística. Um recurso do gênero “últimas notícias de toda a internet” pode ser valioso, bem como pedir a gente
nas Filipinas que redija o que é, basicamente, um texto padrão, a partir de certo conjunto de fatos. Ambas são estratégias úteis. Mas apresentar esse conteúdo
como se fosse idêntico a reportagens apuradas, redigidas e verificadas com mais afinco cria riscos tanto a curto como a longo prazos – riscos que não compensam a efêmera oportunidade de arbitragem da união de uma boa marca com um conteúdo barato. Aqui, a mudança no ecossistema é que funções antigamente exercidas por organizações jornalísticas rivais, e sobretudo furos e últimas notícias, hoje foram encampadas por plataformas. Qualquer veículo de comunicação
pode se organizar para dar notícias sobre esportes antes do Deadspin, por exemplo, ou dar notícias de tecnologia antes do Scobleizer. Mas nenhuma organização no momento pode superar garantidamente o Facebook ou o Twitter em velocidade ou penetração. Uma observação final: a tese central deste ensaio é que organizações jornalísticas nos Estados Unidos já não estão aptas a garantir a cobertura dos fatos sozinhas. Isso coloca instituições estabelecidas na incômoda posição de ter de
defender ou até melhorar instâncias do ecossistema atual das quais talvez nem se beneficiem, e que podem benefi-
Flock e outros agregadores ficaram encurralados
entre a lógica da notícia comoditizada de um site agregador e a marca do Washington Post, o mesmo dilema observado quando a revista The New Yorker cedeu uma plataforma para o conteúdo reciclado de Jonah Lehrer; como observou Julie Bosman no New York Times, o célebre “departamento de checagem de informações
ciar suas concorrentes.
Se organizações jornalísticas fossem meras entidades
comerciais, isso seria impossível: a rede varejista Best Buy tem pouco interesse em melhorar o ecossistema no mercado de eletrônicos, pois no processo acabaria ajudando as rivais Amazon e Walmart. Só que organizações jornalísticas não são meras entidades comerciais. São constituídas para prote-
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jornalísticas não fossem fonte desse tremendo valor cívico e separadas da lógica do mercado, sua senescência comercial não seria mais relevante do que o fechamento da agência de turismo da esquina. Diante disso, e da necessidade de um jornalismo pós-
-industrial que faça uso consideravelmente melhor de cada hora do tempo de um jornalista ou de cada dólar da verba de uma instituição, instituições jornalísticas de grande e pequeno porte, comerciais e com fins lucrativos, executi-
vas e educativas devem se comprometer com duas mudanças no atual ecossistema. Recomendação: exigir que empresas e governos soltem dados inteligíveis
O dinheiro mais valioso que uma organização jornalís-
Recomendação: reconhecer e premiar a colaboração
Organizações que oferecem subsídios e recompensas ajudam a balizar o modo como profissionais de jornalismo encaram a si mesmos e seus pares. Uma organização dessas devia partir oferecendo sub-
sídios ou criando critérios ou categorias de premiação que de algum modo recompensem a colaboração – de forma explícita, como no caso do SchoolBook, ou implí-
cita, como no caso de organizações que permitem que seus dados sejam reutilizados por outras organizações, como a Dollars for Docs. Na mesma linha, premiar o reaproveitamento de formatos de cobertura investigativa –a exposição de casos
de corrupção como o de Bell, na Califórnia, por outras
tica pode ganhar é o dinheiro que não tem de gastar. No século 21, o dinheiro mais fácil de não gastar é o dinhei-
organizações, por exemplo – ajudaria a combater a atual
nossa recomendação de que organizações jornalísticas
ma possivelmente generalizado. Foi uma grande perda para a nação norte-americana que nenhuma organi-
ro gasto colhendo informações. Em consonância com
devem dar mais prioridade a cobrir mistérios do que a cobrir segredos, qualquer pessoa que lide com governos ou empresas deve exigir que dados de relevância pública sejam liberados de modo oportuno, interpretável e acessível. Por oportuno queremos dizer que os dados devem ser disponibilizados logo depois de serem criados. Há muito menos valor em se inteirar das recomendações de um certo comitê sobre um projeto de lei quando a
valorização do trabalho artesanal que tende a ser irreproduzível, ainda que a reportagem revele um problezação tenha feito um exame sistemático de conselhos de enfermagem de outros estados após um escândalo na Califórnia ou de fraudes financeiras e contábeis da Enron após denúncias de Bethany McLean. Em entrevista aos autores do presente dossiê, McLean observou que, para analisar o caso Enron, foi muito importante ter cultivado fontes que suspeitavam
como o PDF para divulgar dados costuma ser um indício de que a organização tem algo a ocultar). Acessível
da empresa –seu interesse foi despertado quando um operador do mercado classificou de incompreensíveis os demonstrativos financeiros da empresa. Pode parecer uma estratégia óbvia, mas pouca gente na imprensa de negócios a adotou, antes da queda da Enron ou, pior ainda, depois do colapso. Organizações que ditam normas tácitas da comuni-
significa que os dados são prontamente lançados em
dade de jornalistas e editores devem dar destaque a ini-
ou liberados somente mediante solicitação. Nos Estados Unidos, a decisão da FCC de exigir que emissoras aber-
lho anterior. Tal como ocorre com subsídios e prêmios, essas mudanças atingirão diretamente só um punhado de instituições, mas chegarão a muitas outras de forma
matéria já está sendo votada. Dados interpretáveis vêm
em formato estruturado e utilizável. É preciso disponibilizar os dados num formato flexível como o XML, e não inflexível como o PDF (aliás, usar um formato
canais públicos na internet, e não mantidos em papel tas de TV divulguem na internet dados sobre publicidade eleitoral veiculada em seus canais (em vez de disponibilizar o material para “inspeção” na emissora) foi
um grande avanço nesse sentido.
Todo meio de comunicação devia investir, por menor
que seja o montante, para assumir uma postura ativista nessa questão. Um acesso melhor a dados melhores é uma das poucas coisas que constituiriam um óbvio avanço para o ecossistema jornalístico – algo cujo principal obstáculo não é custo, mas inércia, e em que a van-
ciativas que partam da base lançada por algum traba-
indireta, ao expor o tipo de trabalho que pode colher tanto fundos comercialmente ilimitados quanto a admi-
ração dos pares – ou ambos.
CONCLUSÃO
Movimentos tectônicos
ERA UM INFORME DO FUTURO: uma espetacular descrição, pelos olhos de um alto executivo da imprensa, do alvorecer do universo digital. Secretário de redação do Washington Post , Robert Kaiser fora ao Japão em 1992 para um congresso repleto de gente visionária do mundo tecnológico. Ali foi apresentado ao futuro da “multimídia” e a dois potenciais métodos de distribuição do produto de meios de comunicação: microcomputadores e redes digitais.
Na volta, Kaiser redigiu um relatório de 2.700 palavras
dirigido ao presidente da Post Co., Donald Graham, e à diretoria do jornal. O texto partia com a alegoria (falsa, mas sugestiva) do sapo na panela de água quente: Às vezes descrito como o pai intelectual do microcomputador, Alan Kay soou um alerta com uma ana-
logia que parecia valer para nós. Era a velha história do sapo: se botarmos o bicho numa panela com água e formos subindo a temperatura aos poucos, o sapo não vai pular fora nem quando a água estiver fervendo, pois seu sistema nervoso não capta pequenas mudanças de temperatura. O Post não está numa panela com água, e somos mais inteligentes do que o típico sapo. Mas estamos, sim, nadando num mar eletrônico no qual a certa altura poderíamos ser devorados – ou igno-
público que se seguiu louvou a clarividência do executivo e lamentou que sua impressionante prévia daquilo que estava por vir – redigida antes da estreia pública da
internet – não tivesse levado a qualquer ação. Boa parte da discussão sobre a oportunidade perdida ignorou, contudo, um segundo aspecto do relató-
rio, aliás crucial: ainda que o Post tivesse rapidamente colocado em prática tudo o que Kaiser sugerira, de nada
teria servido. Embora Kaiser tenha exposto com maestria grandes forças àquela altura mal perceptíveis, seu informe também trazia indícios de quão difícil seria se adaptar a um mundo no qual a internet era algo normal. Kaiser garante aos colegas executivos que, já que teria
de filtrar toda essa nova informação, o público precisaria de editores profissionais:
rados, como um desnecessário anacronismo. Nossa
Diante da massa de informações do mundo moderno, suspeito que até o cidadão do século 21, já à von-
Na sequência, Kaiser contou o que descobrira no encon-
para tentar extrair daí algum sentido. Curiosamente,
meta, obviamente, é não sair da revolução eletrônica como um sapo escaldado.
tro. Falou de um mundo no qual a distribuição e o consumo eletrônicos redefinem o mundo da mídia. O executivo não só alerta os colegas do risco de serem devorados – ou, pior, ignorados –, mas também sugere que o Post lance
imediatamente dois projetos prospectivos: um para a cria-
ção imediata de um produto eletrônico de classificados e
tade com o computador, vai querer contar com a ajuda de repórteres e editores que se disponham a vasculhar essa massa de dados com inteligência
quando perguntei a uma série de pessoas no simpósio o que gostariam de poder fazer nesse futuro eletrônico, muitos falaram do desejo de achar tudo
o que já tivesse saído na imprensa sobre temas de seu interesse (o CompuServe tem um recurso bem primitivo que já permite algo parecido).
ESPECIAL | CONCLUSÃO
depois, ao Google – e concluiu que seguiria sendo algo marginal, pois imaginou que a mercadoria que vendia – critério editorial – não teria substituto. Na mesma linha, os dois projetos que sugeriu eram fundados no mesmís-
simo raciocínio que frustraria milhares de outras tentativas de inovação; falando da versão eletrônica dos
classificados, Kaiser disse que o Post deveria reservar para si o direito...
futuro com décadas de antecedência ainda achava que, no caso de jornais, a revolução digital favoreceria a tradicional virtude do critério editorial – e não a nova virtude de um usuário com mais poder – e que a matemática do meio eletrônico giraria em torno da geração de receitas, não da redução de custo. Agora, essa narrativa de “fim de era” também está chegando ao fim. Hoje, o mercado de mídia no qual
vivemos é o menos diversificado e menos inclusivo que ...de adiar a implementação até o momento no qual habitaremos nos próximos anos, o que significa dizer possamos garantir que iremos ganhar mais dinheique o ecossistema que vem se formando a nosso redor ro (ou deter um concorrente) se lançarmos o provai incluir ainda mais atores e atividades do que a paiduto eletrônico. sagem atual. É fácil associar esse crescimento do discurso públi Até alguém que tivera uma privilegiada visão do futu- co a um aumento no caos, embora o caos seja um ativo ro não captara uma lição crucial – lição que Alan Kay que se deprecia: o que parece irremediavelmente cone colegas tinham claramente tentado transmitir: nin- fuso hoje será normal amanhã. A velha ordem não será guém podia se dar ao luxo de adiar a implementação
restituída, mas todos vão se acostumar à nova ordem
do futuro. O erro (grande, porém oculto) foi supor que que agora desponta. Embora até aqui tenhamos nos concentrado em indao Post, ou qualquer outra instituição, poderia optar por ficar de fora das mudanças que viriam. Esse erro cus- gar como é a produção de notícias hoje, nesta seção iretou ainda mais caro porque, em sua elucubração, Kaiser mos lançar uma pergunta correlata: dadas as forças já não admitiu a possibilidade de que a receita por usuá- em ação, como será a produção de notícias em 2020, rio trazida por novos canais de distribuição de notícias daqui a sete anos? A distância em relação a hoje é tão e publicidade pudesse ser menor, e não maior. grande quanto a de hoje para 2006, quando YouTube, Era esse o verdadeiro nó – algo impossível de perce- Twitter e Facebook ainda engatinhavam. ber lá atrás, mas óbvio da perspectiva atual: o probleComo de regra em qualquer exercício de futuroloma enfrentado por organizações jornalísticas tradicio- gia, vamos nos equivocar, ao menos em parte. Vamos nais nas duas décadas transcorridas desde a viagem de superestimar certas mudanças, subestimar outras e, Kaiser não foi a concorrência, mas uma revolução. Sua pior ainda, deixar de antever forças novas que surgitese era que a nova tecnologia iria aumentar, em vez de rão nos próximos sete anos. Nossa meta aqui é acertar derrubar, a receita publicitária. E que iria dar mais con- no rumo, não no destino final; acreditamos que muitrole ao jornal, não ao leitor. Isso condizia com tudo o tas das forças que irão esculpir o cenário jornalístico que ocorrera até 1992, mas não era o que estava prestes em 2020 já são visíveis hoje, assim como redes sociais a ocorrer agora que a internet começava a dar a todos e distribuição de vídeo por internautas eram visíveis muito mais liberdade. sete anos atrás. Em 2020, vai haver considerável continuidade super-
Movimentos tectônicos
Na década de 1990, gente que, como nós, ponderava a relação entre a internet e organizações jornalísticas, equivocadamente supunha que o principal problema diante dessas organizações era entender o futuro. Na verdade, tal problema era secundário. O grande pro-
blema era se adaptar a esse futuro. A história do jornalismo em 2012 volta e meia ainda é narrada como a história do colapso da velha ordem, o fim do período no qual “notícia” era aquilo que um
ficial com o panorama jornalístico do século 20. Ainda haverá um Los Angeles Times e uma CNN. No entanto, essa continuidade de instituições será acompanhada
de uma reconfiguração de quase todo aspecto do mundo da mídia no qual atuam. É como disse George W.S. Trow no ensaio “Within the Context of No Context”, uma estranha e maravilhosa reflexão sobre a nova paisagem social nos Estados Unidos: Todo mundo sabe, ou deveria saber, que houve um “deslocamento de placas tectônicas” sob nós (...) partidos políticos ainda têm os mesmos nomes, ain-
Trow falava do desaparecimento de qualquer núcleo evidente de cultura cívica no ocaso da década de 1960, mas a figura de um movimento tectônico também pode servir de metáfora para o panorama da mídia hoje em dia. O rótulo “CBS News” ainda indica o braço jornalístico de uma emissora de TV norte-americana, mas já não representa o padrão-ouro no jornalismo e já não ocupa um posto de inquestionável centralidade no meio jornalístico. Em parte, porque a própria CBS hoje encara a notícia de forma distinta, mas sobretudo porque o contexto da concorrência e do consumo no jornalismo mudou tanto que, ainda que a única meta da CBS News nas duas últimas décadas tivesse sido manter o posto que detinha, o esforço teria sido em vão. O ecossistema jornalístico de 2020 será caracterizado por expansão, com maior contraste entre os extremos. Haverá mais gente consumindo mais notícia, e de mais fontes. A maioria dessas fontes terá uma noção clara de seu público, dos setores específicos que cobre, de suas competências básicas. Um número menor dessas fontes será de “interesse geral”; ainda que uma organização decida produzir um apanhado completo das notícias do dia, o leitor, o telespectador e o ouvinte vão desmembrá-lo e distribuir, por suas distintas redes, aquilo que lhes interessa, e nada mais. Um crescente volume de notícias vai ser consumido por essas redes ad hoc, não por um público fiel a uma publicação específica. Quase todo aspecto da paisagem jornalística vai comportar mais variedade do que hoje. Não estamos migrando de grandes organizações de mídia para pequenas, ou de uma cobertura lenta para a rápida. O espectro din âmico do jornalismo está aumentando ao longo de vários eixos simultaneamente. A internet criou mais demanda por formatos narrativos e por notícias factuais, por uma gama maior de fontes em tempo real e pela distri buição mais ampla de textos de fôlego. Um punhado de organizações terá redações maiores do que hoje, em geral subsidiadas por serviços de informação voltados a profissionais de certas áreas (como nas dobradinhas Thomson–Reuters e Bloomberg– Business Week ). A maioria dos veículos de comunicação, no entanto, terá uma redação menor (em termos do total de profissionais na folha de pagamento). Ao mesmo tempo, haverá muito mais atores de nicho do que hoje, com operações menores e mais especializadas ( Outer Banks Voice, Hechinger Report ). Haverá mais organizações jornalísticas sem fins lucrativos, bancadas por distintos mecanismos: dotações diretas de entidades filantrópicas e outras fontes de subsídio
(NPR, TPM) e doações em espécie – tempo, conhecimento – de uma determinada comunidade (como na redação de verbetes sobre catástrofes para a Wikipedia ou na criação de fluxos de hashtags no Twitter ). A óbvia vantagem de um subsídio maior para a notícia é sua maior disponibilidade. Uma desvantagem igualmente óbvia é o risco de que a fronteira entre relações públicas e jornalismo se dissolva ainda mais. O crescente número de veículos de comunicação, com sua mixórdia de interesses e fontes de custeio, aumenta a necessidade de autopoliciamento. Veículos independentes terão de aprender a identificar, rotular e rechaçar publicamente o “churnalism”, a mera reprodução de comunicados de imprensa (como observou David Weinberger, transparência é a nova objetividade). O tradicional papel de formadora de opinião da imprensa seguirá em declínio, e com ele a ideia do “público” como grande massa interligada de cidadãos consumidores de notícias. A variedade em veículos de mídia disponíveis vai continuar crescendo, o que produzirá menos uma cacofonia e mais um mundo de diversos públicos sobrepostos, de distintos portes. Visto por esse prisma, o colapso da confiança na imprensa, que vem de muito, é menos em função de uma nova postura em relação a veículos tradicionais de comunicação do que efeito colateral da contínua fragmentação do mercado norte-americano de mídia (provavelmente é hora de aposentar a tese de que haja um ente chamado “imprensa” que goza de reputação junto a um ente chamado “público”). A mudança no controle da distribuição também seguirá a toda. O velho modelo, no qual a maioria dos usuários visitava a página de um meio ou usava um aplicativo móvel atrelado a uma única organização, vai seguir perdendo terreno para a superdistribuição: ou seja, usuários mandando material de seu interesse para outros. Já vivemos num mundo em que os textos de maior circulação chegam a um público muitíssimo superior à audiência média do site de origem do conteúdo. Para se adaptar a essa distribuição cada vez mais desigual, a maioria das organizações terá de aprender a cooperar com usuários para filtrar e passar adiante conteúdo relevante. Essa superdistribuição não vai se limitar à difusão de material novo; uma das grandes surpresas do Twitter, meio que prima pela brevidade e o imediatismo, é o volume de demanda que revelou por textos de fôlego e vídeo. O News.me , um serviço criado há pouco, vasculha feeds de usuários do Twitter para sugerir os links mais conferidos nas 24 horas anteriores; do material fil-
ESPECIAL | CONCLUSÃO
Embora a “roda de hamster” seja um efeito óbvio da
Primeiro, porque o trabalho de jornalistas tem pre-
colonização da paisagem jornalística pela internet, a
cedência lógica e temporal sobre o trabalho de instituições. Segundo, porque o ato de testemunhar, des-
expansão do espectro dinâmico do cenário jornalístico está ocorrendo em ambas as extremidades da distribuição; a roda de hamster foi acompanhada de um crescimento da cobertura jornalística de fôlego e de análises. Na produção de notícias, haverá um emprego de mais técnicas: análise algorítmica de dados, representação
visual de dados, contribuição do cidadão comum, incorporação da reação das massas, produção automatiza-
da de textos a partir de dados. Haverá mais generalistas trabalhando em temas de nicho; entrevistadores especializados em temas específicos irão criar, editar
e distribuir fotos, áudio ou vídeo, como numa redação de uma só pessoa. Em redações com equipes grandes o suficiente para permitir a colaboração entre distin-
tas seções, haverá muito mais especialização. Em 2020, a pessoa mais tarimbada na exploração de dados, na
representação visual de informações ou na criação de experiências interativas terá um arsenal bem mais sofisticado de ferramentas e experiência do que seus congêneres no presente. Toda redação ficará mais especializada. Haverá menos intercâmbio de profissionais e funções entre uma redação e outra, pois essa permuta já não será tão simples. Cada redação terá uma ideia melhor de
cobrir ou entender o que é importante, e de transmitir essa informação de modo inteligível a públicos distintos, é o papel sagrado; a preocupação com instituições jornalísticas só assume caráter de urgência pública por prestarem apoio a indivíduos que exercem esse papel. E, terceiro, porque muito da discussão da última década partiu da tese de que a sobrevivência dessas instituições é mais importante do que a capacidade de um indivíduo qualquer de exercer esse papel sagrado, seja lá como for. Embora esse conceito tenha sido maculado pela atual ladainha de que hoje “você é sua própria marca”, vivemos numa era na qual iniciativas de jornalistas solitários e pequenos grupos são ideais para a descoberta de novas fontes de valor – e, já que todo processo é a resposta à dinâmica de um grupo, quanto menor o grupo, mais fácil será equilibrar processo e inovação (embora mais tarde a inovação tenha de se converter em algo repetível). Se o leitor estiver buscando um lema ideal para um jornalista, redator, analista, artista de mídia, explorador de dados ou qualquer outra ocupação ou função de relevância no momento, uma boa pedida seria “se não for detido, siga em frente”. É como disse um executivo da rádio norte-americana NPR a Andy Carvin, que criou o modelo de “curador” de notícias no Twitter: “Não entendo isso que você faz, mas continue fazendo, por favor”. Neste ensaio, já demos uma descrição – na verdade,
quem são seus parceiros entre instituições e o público em geral, e terá uma noção só sua sobre a melhor maneira de trabalhar com eles. Muitos dos produtores daquilo que antigamente encarávamos como notícia não serão organizações jornalísticas em qualquer várias – de competências e valores que um jornalista acepção comum do termo hoje em dia. O levantamento pode colocar na mesa. Esse leque de descrições existe de ocorrências policiais virá da polícia. Dados ambien- porque o jornalismo não está passando de A para B, de tais serão apresentados com ferramentas interativas
do Sierra Club. Wikipedia e Twitter vão solidificar seu papel como fonte importante de informação sobre fatos ocorridos no último minuto. Como Robert Kaiser e o Washington Post acabaram descobrindo, não há como adiar a implementação das mudanças que hoje testemunhamos. Há apenas a luta para se adaptar e garantir um nicho no ecossistema que permita a criação sustentável de valor a longo prazo.
um estado estável nos Estados Unidos do pós-guerra
para um estado novo (e distinto) no presente. O que o jornalismo está fazendo é ir de um para muitos: de um conjunto de papéis cuja descrição e cujos padrões diários eram uniformes o bastante para merecer um único rótulo para uma realidade na qual o vão entre aquilo que faz de Nate Silver um jornalista e aquilo que faz de Kevin Sites um jornalista segue crescendo. Já prevendo o crescimento de modos e tempos possíveis do jornalismo, nossa recomendação geral ao jornalista é a seguinte:
O que jornalistas devem fazer?
Como no cubo de Necker, é possível olhar para o meio jornalístico e ver um de dois conjuntos de relações: o trabalho de jornalistas no apoio a instituições ou o traba-
Conheça a si mesmo. Saiba quais são seus fortes, quais as suas deficiências e como explicar isso tudo aos outros. Saiba quais são suas áreas de especialização, tanto em termos de conteúdo (política no
“Final Cut”? Um jornalista Excel? Um jornalis-
ta Hadoop?). Saiba quando a ferramenta mais útil é um algoritmo ou a “multidão”. Saiba quando é mais fácil localizar por Twitter do que pelo auxílio à lista uma pessoa com quem é preciso falar. Saiba quando sua rede pode ajudar. Saiba quando alguém em sua rede pode ajudar, e aprenda a buscar essa ajuda (e tam bém a recompensar quem o ajuda). Saiba quando o processo está contribuindo para seu trabalho e quando não – e, se for esse o caso, quando romper o vidro (até onde possível). Saiba quando trabalhar sozinho, quando pedir ajuda,
quando buscar apoio fora de sua esfera costumeira. No fundo, isso significa alguma forma de especialização. É possível se especializar em conteúdo: cobrir uma certa área, dominar um certo assunto, entrevistar um certo tipo de gente. Também é possível se especializar na técnica: adquirir a capacidade de peneirar bancos de dados, interpretar prospectos de investimento, circu-
lar por zonas conflagradas ou interagir com usuários – sendo que cada habilidade dessas poderá ser aproveitada em várias outras áreas de inquérito. É possível se especializar em conteúdo e ser um generalista na parte técnica, ou se especializar na parte técnica e ser um generalista em conteúdo. Ou se especializar nas duas
coisas (antigamente, a especialização em nenhuma era aceitável; hoje, bem menos). Faculdades de jornalismo também terão de se adaptar a esses novos modelos. Hoje, o curso de jornalismo já está mais para o de cinema do que o de direito – ou seja, o sucesso ou o fracasso relativo de quem tem um diploma de jornalismo vai comportar muito mais variação do que antigamente. Em grandes jornais e emissoras locais de TV, há muito menos vagas para quem está começando – vagas que serviam como meio informal de praticar e aprender. Além disso, a carreira que espera o aluno no mercado será mais variável e vai depender mais de sua capacidade de criar uma estrutura própria do que simplesmente se adequar a um posto em uma constelação conhecida de instituições abastadas e estáveis. O que a faculdade deve fazer é ajudar o aluno a entender tanto o tipo de especialização que gostaria de adquirir como o caminho a percorrer para chegar lá, missão que tem muito menos a ver com preparar o aluno para instituições específicas (como na velha, e hoje nociva, divisão entre imprensa escrita e falada) e muito mais com prepará-lo para formas específicas de investiga-
do que nas de instituições que sustentam esses profissionais. Para chegar ao jornalismo que uma democracia complexa e tecnocrática exige, precisamos que cada profissional assuma, por si só, a parte mais difícil da
tarefa de decidir o que significa jornalismo de qualidade em um mundo no qual informação é o que não falta. O que velhas organizações jornalísticas devem fazer no novo contexto?
Embora muitas instituições consolidadas ainda vejam na perda incessante de receita o principal efeito das
mudanças atuais, a reestruturação do jornalismo norte-americano é, hoje, muito mais influenciada por modelos organizacionais do que pelo lucro (ou o prejuízo). Com um punhado de exceções, organizações jornalísticas voltadas ao lucro terão de seguir cortando custos até que a receita (que segue em queda) supere as despesas – embora cortar pura e simplesmente vá resultar em instituições que fazem menos com menos. Instituições tradicionais precisam adaptar seu braço de jornalismo, e não só o balanço, à internet. Na hora de fazer mais com menos, falar é sempre mais fácil do que fazer. Mas projetos como Homicide Watch e Narrative Science estão aí para provar que não é impossível. Embora tenhamos feito várias recomendações ao longo do dossiê, nossa recomendação geral para instituições da velha guarda é, basicamente, a seguinte: Decida que esfera da sociedade sua organização
quer cobrir, e como. Abandone qualquer atividade que não contribua para essa meta. Entre em parcerias ou colaboração com organizações que persigam a mesma meta mas tenham custo menor do que o seu. Nas demais atividades, busque ou excelência, ou baixo custo (se possível, ambos). Certos veículos de comunicação tradicionais simplesmente vão passar a gastar menos para cobrir o noticiário – sem promover nenhum outro ajuste –, o que significa que abandonarão aos poucos a cobertura diária dos fatos. Ainda que alguns consigam sobreviver com esse corte de custo, o interesse em preservar a saúde de organizações jornalísticas tradicionais sempre se deveu ao serviço público que prestam; uma organização que elimina gorduras mas não busca assumir funções novas, menos onerosas, está abandonando essa missão de servir o público, ao menos em parte. E, com isso, vai atrair
ESPECIAL | CONCLUSÃO
dependiam de publicidade – que vem em queda há seis anos – estão em lastimável situação. Dada a incessante debandada de anunciantes para outras plataformas e a nefasta matemática da diminuição do público do produto impresso – a receita cai a ritmo mais acelerado do que o custo da impressão –, muitas organizações da velha guarda terão de considerar novas fontes de receita: realização de eventos, apoio financeiro de outras instituições para cobertura de certos setores, cobrança de assinaturas digitais para a minoria de leitores mais devotos. Seguir derrubando o custo, no entan to, ainda é a estratégia mais óbvia. Não há como sustentar o velho modelo do “tudo em um” – para levar toda (ou quase toda) notícia ou informação ao usuário –, pois sem barreiras geográficas à entrada no mercado há pouquíssima vantagem em dar a mesma notícia que está sendo dada no município ao lado ou no estado seguinte. Assim como o princípio da subsidiariedade nos Estados Unidos (pelo qual a instância federal só deveria ser responsável por aquilo que não pode ser resolvido no âmbito de estados, municípios e instâncias inferiores), a notícia devia ser produzida e distribuída por aqueles mais aptos a cobri-la. Isso sugere a migração para especialização e colaboração muitíssimo maiores. Ao ouvir esse conselho, o que muitos jornais tradicionais fizeram, na prática, foi preencher a homepage com material de agências e a grande notícia ocasional – um belo exemplo de adaptação à perda de receita em vez de adaptação à internet. Uma organização jornalística com DNA digital simplesmente não traria o conteúdo comoditizado de agências; talvez daria links para notícias importantes, ou publicaria uma seleção de trechos de blogs conceituados ou outros agregadores. Sejam quais forem as decisões tomadas nesse sentido, no entanto, instituições jornalísticas que encaram a “primeira página” como a grande preocupação organizacional vão perder muitas oportunidades de reinvenção. O desperdício do jornalismo de matilha e as calorias vazias do material de agência sem nenhum valor agregado são duas coisas ruins para a maioria das instituições no atual cenário. Organizações que abracem a missão de deixar um certo público informado de grande parte dos fatos provavelmente serão agregadoras, como Huffington Post e BuzzFeed , e não veículos de comunicação tradicionais – no mínimo, porque o custo e a curva de qualidade favorecem o formato do agregador, e não daquele que gasta para melhorar o material de agências ou, mais acima na curva, para criar um conteúdo pró-
enxutos com o resultado do jogo da véspera ou o balanço de uma empresa no trimestre precisam ser publicados, mas sem ser longos nem excelentes) pode ser substituído por agregação, ou pela produção automatiz ada. Para a maioria das organizações, qualquer coisa que exi ja tempo mas tenha baixo valor (e tempo, aqui, significa tudo o que envolva mais de dez minutos de trabalho humano remunerado) deve ser automatizada, delegada a parceiros ou usuários ou totalmente eliminada. Qualquer redação que se dedique a mais de um formato de cobertura – últimas notícias e longas análises – terá de entender melhor o toma-lá-dá-cá entre rapidez e profundidade. Aqui, não há uma resposta certa, ou mesmo um mescla certa: a cobertura de setores que avançam lentamente, com um punhado de atores rele vantes – a indústria de mineração, o projeto de veículos –, terá um mix distinto da de fatos em rápida evolução, movidos pelo fator surpresa – campanhas eleitorais, guerras civis. A redação também terá de entender as trocas envol vidas entre a agregação e a cobertura original (e otimizar cada atividade dessas de forma distinta), ou as tro cas envolvidas entre traduzir relatos em primeira pessoa e colocar jornalistas entre essas fontes e o público para contextualizar e interpretar. Organizações estabelecidas também terão de aprender a encarar relacionamentos e dados como novos recursos, e a lidar com isso. A capacidade de uma instituição de pedir a usuários que tomem parte da criação, avaliação e distribuição de notícias, de encontrar testem unhas em primeira mão dos fatos ou gente com informação privilegiada para dar uma notícia específica, será uma das grandes fontes de diferenciação. Na mesma linha, a capacidade de interpretar certos dados e deles extrair valor de forma reiterada ao longo do tempo é, cada vez mais, algo essencial (na velha disputa da U.S. News and World Report com Newsweek e Time, o irônico é que o ranking de universidades da primeira, e seu banco de dados, em breve poderiam estar valendo mais do que as outras duas publicações juntas). Na questão de processos, a organização terá de ser capaz de dizer quando um processo ajuda e quando atrapalha – e saber como tornar seus processos “hackeá veis”. Também terá de decidir que funcionários da casa ou voluntários terão autorização para ignorar ou alterar processos já institucionalizados a fim de explorar oportunidades imprevistas, mas de alto valor. De todas as nossas recomendações, essa talvez seja a mais difícil de seguir para instituições tradicionais. Seja como
O que novas organizações jornalísticas devem fazer?
fontes de subsídio para novos projetos terão duração
O leque de modelos e ideias inéditos sendo testados por
limitada. Devem aprender a trabalhar com amadores, multidões, máquinas ou outros parceiros para manter o custo baixo e a influência alta. Para sobreviver, novos
ainda não é nem robusta, nem estável. Parte da explica-
tituições mais antigas que tentam desbancar. Não devem
Novas organizações jornalísticas terão de fazer o mes-
seu lugar, por não terem estabilidade institucion al para
e parceria. Em geral, no entanto, é mais fácil para novas
organizações seguem definhando, mas novas entidades
mais, mas justamente por saberem menos coisas que deixaram de ser verdade. Sem o fardo de velhas pre-
Talvez a maior mudança nos próximos sete anos vá ser
novos projetos de jornalismo é grande, mas a maioria projetos jornalísticos terão de adotar parte da rotinizados grupos que hoje colocam essas ideias em prática ção do trabalho e da estabilização de processos das ins-
ção é que, como em qualquer revolução, o velho entra ter medo de ser um pouco previsíveis. Há uma certa leviandade no discurso sobre a presenem colapso muito antes de ser substituído pelo novo. Mas outra razão é que o modelo de negócios nas últi- te ruptura. É a crença de que, na “grande roda da vida”, mas décadas criou uma monocultura jornalística na qual velhas instituições perderão força e novas instituições o subsídio publicitário era a principal fonte de recei- automaticamente tomarão seu lugar. ta até para organizações que também obtinham receiÉ uma possibilidade, é claro. Uma outra é que velhas instituições percam força mas que as novas não ocupem ta diretamente de seus usuários. míssimo que organizações da velha guarda em termos servir de contrapeso a grandes organizações burocráde buscar um equilíbrio entre rapidez e profundidade, ticas. De todos os cenários nefastos que se poderiam agregação e geração própria de conteúdo, criação solo imaginar, este seria o pior: o poder e a função de velhas
organizações entender e administrar essas trocas, pois simplesmente são incapazes de manter as rédeas sobre os indivíduos que ali trabalham não precisam “desapren- o poder burocrático. der” velhas coisas a fim de se adaptar à presente realidade. Como sempre, indivíduos e organizações jovens levam vantagem sobre os mais velhos não por saberem O fim da solidariedade missas que já não se sustentam, perdem menos tempo e energia desaprendendo coisas antes de poder encarar e reagir ao mundo atual. Nossa recomendação geral para organizações jornalísticas novas é ainda mais simples do que para jornalistas ou organizações da velha guarda:
o contínuo enfraquecimento da noção daquilo que cons-
titui uma notícia e, por conseguinte, daquilo que constitui uma organização jornalística. Iniciada há mui-
to por Jon Stewart e a cobertura de eleições na MTV, essa mudança segue em curso no momento. À pergunta “O Facebook é uma organização jornalística?”, tanto “sim” como “não” não são respostas satisfatórias (a Sobrevivam. melhor resposta aqui é “Mu”, que no linguajar de programadores significa dizer que “a pergunta, conforme A crise visível de instituições jornalísticas é a redução foi feita, não tem resposta plausível”). Embora crucial de suas funções tradicionais. Mas uma segunda crise, para o ecossistema jornalístico, o Facebook é estruturamenos discutida, é a necessidade de estabilidade institu - do de um jeito totalmente alheio a qualquer coisa que cional, previsibilidade e margem de recursos em novos identificaríamos como organização jornalística; sua preprojetos jornalísticos nos Estados Unidos. sença altera o contexto da questão. Grande parte da questão da institucionalização dessas
Também haverá menos clareza sobre aquilo que constitui o jornalismo propriamente dito. Instituições reite-
modelo voltado ao lucro versus o modelo sem fins lucrativos é inútil; qualquer saída que garanta mais receita do que despesas é uma boa saída). Mas parte do problema
fluxo constantemente negociado de enunciações públicas por um elenco cambiante de atores, e que calhou de
novatas está ligada à gestão de receitas e despesas por essas organizações, algo que foge ao escopo da discus- radamente tomam a continuidade superficial por uma são sobre a cara do jornalismo no século 21 (reiteran- estrutura profunda; o jornalismo não é uma categoria do nossa posição: o grosso da discussão envolvendo o coerente nem ontologicamente robusta; é, antes, um viver um período de relativa estabilidade nos Estados tem a ver com premissas e competências organizacio- Unidos do século 20. Hoje, vemos o fim dessa estabili-
ESPECIAL | CONCLUSÃO
sentimentais, mas não o Little Green Footballs , embora Charles Johnson tenha produzido ali um resultado melhor do que a CBS ao analisar documentos forjados sobre a passagem de George W. Bush pela Guarda Nacional norte-americana. Antes um conjunto de ocupações, a produção de notícias virou um conjunto de atividades; embora sempre vá existir um núcleo de profissionais dedicados em tempo integral ao ofício, haverá uma participação cada vez maior de gente que mexe com isso apenas parte do tempo, muitas vezes em caráter voluntário – gente que, em certos casos, se concentrará menos em definir o que é ou não notícia do que em saber se seus “amigos ou seguidores” vão curtir o conteúdo. A sobreposição e a colaboração crescentes entre quem se dedica integral ou parcialmente à coisa, e entre indivíduos remunerados e voluntários, será um grande desafio no que ainda resta desta década. Neste mundo, as grandes mudanças terão ocorrido não no papel de jornalistas dedicados integralmente ao ofício, mas no papel do público. Nele, o consumo atomizado e a discussão privada em pequenos grupos terá dado lugar a uma profusão de novas formas de partilhar, comentar e até ajudar a moldar ou produzir a notícia. Instituições estabelecidas e novos atores, quem dedica o tempo inteiro ou só parte dele a produzir notícias, generalistas e especialistas – estamos, todos, nos adaptando ao novo panorama. Aqui, o mecanismo mais importante de adaptação talvez seja reconhecer que estamos em meio a uma revolução – a uma mudança tão grande que a estrutura atual da sociedade não tem como contê-la sem ser alterada por ela. Em uma revolução, estratégias que por décadas surtiram efeito podem simplesmente deixar de funcionar (como muitas já fizeram). Estratégias que pareciam impossíveis ou insanas há coisa de anos podem, agora, ser perfeitas para o novo cenário. Esse período não acabou – aliás, seu fim não está sequer à vista; o futuro próximo trará ainda mais reviravoltas, de modo que até estratégias atualíssimas, com poucos anos de vida (feeds RSS, blogs de jornalistas) podem se converter em recursos triviais, enquanto outras (a capacidade de caçar mistérios em vez de segredos, de levar à atenção do público vozes novas, que surpreendam) podem adquirir nova importância. Mais do que qualquer estratégia ou recurso, a principal virtude nesse novo mundo será o compromisso em se adaptar à medida que velhas certezas desmoronam e adotar novidades que ainda nem entendemos plenamente. E lembrar que a única razão para que tudo isso importe, e não só para quem segue trabalhando no que antigamen-
Métodos usados no relatório esteja Em geral, no entanto, o dossiê se micos mais tradicionais . Muitas das mais para ensaio do que estudo acadê- baseia na experiência profissional e conclusões aqui apresentadas podem mico passível de comprovação, empre- em estudos acadêmicos anteriores de ser colocadas à prova com métodos gamos, sim, uma série de métodos para seus autores. A meta foi combinar a teo- distintos, para distintos fins. Tendo formular nossas análises, recomenda- ria acadêmica mais tradicional com os em vista que cada um de seus autoções e conclusões. A pesquisa foi fun- últimos desdobramentos no mundo do res trabalha em alguma faculdade de dada, basicamente, em entrevistas qua- jornalismo e da mídia digital – tarefa jornalismo na cidade de Nova York, litativas feitas em diversas instâncias: invariavelmente complicada. Espera- e que cada um está envolvido em um em conversas a sós, em locais de tra- mos ter cumprido tal objetivo e garan- aspecto distinto da produção acadê balho, por e-mail ou telefone e nas ins- tido que o relatório não soe superficial mica para sua respectiva instituição, o talações da Columbia University Gra- para estudiosos da área e nem denso futuro da “pesquisa jornalística útil” duate School of Journalism. Colhemos demais para profissionais do jorna- poderia parecer promissor. Em última um volume considerável de dados em lismo que decidam encarar a leitura. instância, a validade das conclusões e um simpósio fechado na faculdade de Em última análise, acreditamos provocações deste ensaio vai depen jornalismo (nos dias 17 e 18 de abril de que o relatório deva servir também der de transformações registradas no 2012), do qual participaram 21 pessoas. para incentivar novos estudos acadê- próprio jornalismo. ■ embora o presente material
Agradecimentos em consonância com o espírito e
o tema aqui abordados, o presente ensaio foi um esforço de colaboração que envolveu muito mais gente do que os autores citados na capa. Nosso tra balho foi enriquecido com observações, conversas e conselhos de colegas que, de um jeito ou outro, encontraram maneiras de apoiar a empreitada. Somos gratos, em primeiro lugar, a Charles Berret, doutorando da Colum bia Journalism School que esteve a nosso lado o tempo todo e ajudou tanto a coordenar como a conceber os diversos aspectos do trabalho. Sem sua ajuda, o projeto teria sido inviável. Também somos gratos a Nicholas Lemann, diretor da Columbia Journalism School, cuja visão lançou o germe para esse exame do meio jornalístico. Sem ele, nada disso teria saído do plano das ideias. Ainda na administração da Columbia, conta-
sugestões feitas e pela paciência na edição do texto. Somos gratos também à Carnegie Corporation, que financiou o projeto. Gostaríamos de agradecer à Tow Foundation pelo apoio contínuo a nosso tra balho na Columbia por meio do Tow Center for Digital Journalism. As vozes mais representadas neste ensaio são as de indivíduos que participaram de um simpósio em Nova York durante os dias 17 e 18 de abril de 2012 (foram, também, os que mais tempo cederam ao projeto). Entre os presentes estavam Chris Amico, Laura Amico, Josh Benton, Will Bunch, Julian Burgess, John Keefe, Jessica Lee, Anjali Mullany, Shazna Nessa, Jim O’Shea, Maria Popova, Nadja Popovich, Anton Root, Callie Schweitzer, Zach Seward, Daniel Victor e Christopher Wink. Não é exagero dizer que iniciamos o encontro com observações bastante
fizeram observações (ou foram formalmente entrevistados sobre a situação presente do jornalismo e seu futuro, ou deram sua opinião sobre as primeiras versões da obra). Aqui, somos gratos a Erica Anderson, John Borthwick, Steve Buttry, David Carr, Andy Carvin, Susan Chira, Reg Chua, Jonathan Cooper, Janine Gibson, Kristian Hammond, Mark Hansen, Andrew Heyward, Alex Howard, Vadim Lavrusik, Hilary Mason, Bethany McLean, Javaun Moradi, Dick Tofel, Matt Waite e Claire Wardle. Uma série de acadêmicos, dentro e fora de escolas tradicionais de jornalismo, foi fonte vital de estímulo e provocação intelectual; agradecemos, em particular, a Rasmus Kleis Nielsen, do Reuters Institute for the Study of Journalism (University of Oxford), e a Michael Schudson e Robert Shapiro (Columbia University). Um último agradecimento vai para
À pena fria Quando resolveu redigir um perfil de Marlon Brando para a revista The New Yorker , em 1957, o escritor Truman Capote sabia exatamente como agarrar a sua presa
p o r d o u g l a s
ao descer ao saguão do hotel Miyako
naquela manhã de janeiro de 1957, o produtor de teatro e diretor de cinema Josh Logan, veterano da Broadway e de Hollywood, avistou a última pessoa no mundo que queria ver ali em Kyoto, no Japão. Na recepção do hotel, equili brando-se na ponta dos pés para preencher a papelada, estava o enfant terrible do meio literário e jornalístico, o diminuto escritor Truman Capote. Logan não ficou totalmente surpreso em vê-lo. Semanas antes, tinha sido avisado de que Capote queria escre ver para a New Yorker sobre as filmagens de Sayonara, o longa estrelado por Marlon Brando que o diretor estava rodando no Japão para a produtora Warner Bros. Logan tinha feito de tudo para gorar a empreitada. Um ano antes, Capote publicara seu primeiro grande relato nas páginas da revista – sobre a insólita turnê, pela União Soviética, de uma companhia de teatro norte-americana com o musical Porgy and Bess. Capote passara semanas na estrada com o elenco. O texto resultante – “Ouvindo as musas”, publicado em duas partes – foi uma crítica impiedosa, não raro hilariante, da trupe e dos
m
ccollam
filme a igual escárnio. Para piorar, tinha medo do que podia acontecer se Capote tivesse acesso a seu temperamental astro. Embora Brando sabidamente fugisse da imprensa e Logan duvidasse que Capote pudesse romper a couraça do ator, era melhor não arriscar. Tanto ele como William Goetz, o produtor de Sayonara, tinham escrito à revista para avisar que não iriam cooperar com a reportagem. E mais: se aparecesse no Japão, Capote seria barrado do set. E, mesmo assim, ali estava Capote. Como Logan mais tarde diria, sua reação à súbita aparição do escritor foi visceral. O diretor veio por trás de Capote e, sem dizer palavra, o apanhou nos braços, cruzou o saguão do hotel e o depositou na calçada em frente. “Josh, por favor!”, protestou Capote. “Não vou escrever nada de ruim.” Logan subiu imediatamente ao quarto de Brando para alertar o ator: “Não fique a sós com o Truman. Ele veio atrás de você”. A advertência seria ignorada. Ao lembrar-se da reação que teve ao avistar Capote, Logan mais tarde diria: “Tive a triste sensação de que o que aquele baixinho quisesse, ele conseguiria”.
cardigã bege e uma garrafa de vodca para o que, pelos cálculos de Brando, seria um jantar rapidinho seguido de um papo breve (aliás, Brando pediu ao secretário que ligasse dali a uma hora para ter uma desculpa para despachar Capote). Não foi bem assim. Quando saiu do quarto do ator, seis horas depois, Capote tinha a certeza de ter reunido material para redigir um perfil inédito do recluso astro. O que transcorreu entre Brando e Capote durante o tempo que passaram a sós naquele quarto de hotel há muito é alvo de curiosidade histórica. O que Capote fez para convencer o taciturno Brando a falar? O ator (como mais tarde o próprio diria) foi feito de trouxa por Capote? Ou contribuiu de livre e espontânea vontade para a desconstrução da própria imagem? Havia (como insinuou Capote) uma história homoerótica entre os dois? O que é patente é que, mais de meio século depois de ter sido publicado, “O duque em seus domínios” continua servindo de parâmetro para perfis de celebridades. O texto foi um precursor do Novo Jornalismo, que desabrocharia com tudo na década de 1960. Com uma profusão
S I B R O C / K C O T S N I T A L
Nos anos 1940, Truman Capote era considerado a esperança da literatura moderna
evolução na cobertura jornalística de personalidades do meio artístico e foi um prenúncio da atual invasiva e profunda imersão na cultura pop. A curiosidade sobre o encontro desses dois ícones culturais do século 20 é fruto, em parte, da imensa diferença entre os dois. Graças a papéis como o de Stanley Kowalski, de Um Bonde Chamado Desejo; Terry Malloy, de Sindicato de Ladrões ; e Johnny Strabler, de O Selvagem, Brando era, em 1957, a perfeita encarnação do machismo norte-americano do pós-guerra: um sujeito monossilábico, um gênio dos palcos com o corpanzil de um pugilista. Já Capote – com a vozinha infantiloide, o ar teatral e a estatura miúda (media menos de 1,60 metro) – ocupava
Mas, apesar do suposto mar de diferenças, havia muita coisa semelhante na vida dos dois. Ambos eram os únicos filhos homens de mães alcoólatras e pais ausentes, problemáticos. Ambos tinham sido despachados, ainda na adolescência, para um colégio militar, experiência que tinham abominado. Nenhum fez faculdade. Ambos eram famosos, entre amigos e conhecidos, pelo dom de manipular a vida daqueles a seu redor. E ambos eram figuras revolucionárias na respectiva seara artística. “Já entrevistei milhares de pessoas, e são poucas as que transmitem uma verdadeira sensação de poder”, disse o escritor Lawrence Grobel, que passara horas falando tanto com Brando
embate entre os dois, as fichas todas teriam ido para Brando (que, provavelmente, teria sido o primeiro a apostar em si mesmo). Nos meses que se seguiram ao encontro, no entanto, foi Brando quem ficou cada vez mais desesperado para impedir que o relato de Capote fosse publicado. Alternando momentos de cólera e aflição, intimidação e súplica, Brando tentou, em vão, enterrar o ensaio. “Minha alma é um lugar privado”, dizia o ator. E Capote iria escancará-la. Com a publicação do perfil, foi-se a mística de perigo que embalara os primeiros anos do estrelato de Brando; no lugar, entrou o retrato de um menino crescido, confuso, aturdido pela própria fama e assombrado pelo fantasma da mãe alcoólatra. “Eu mato esse sujeito!”, disse Brando a Logan, quando o perfil saiu na New Yorker. “Agora é tarde”, retrucou Logan. “Você devia ter aca bado com ele antes daquele jantar.” O encontro de Brando e Capote ocorreu num momento crucial da carreira dos dois. Nascidos a seis meses um do outro em 1924, ambos tinham 32 anos quando se encontraram no Japão, cada qual já escaldado por uma década de celebridade. Ambos tinham feito fama aos 20 e poucos anos, no firmamento pulsante da Manhattan do pós-guerra. Na mocidade, ambos ficaram conhecidos pela beleza física, pelo talento incandescente e por estranhos maneirismos. Brando chegou a Nova York em 1943, meses depois de ser expulso da acade-
pintura com Hans Hofmann, expoente do expressionismo abstrato. Enquanto vivia com ela no Village, Brando começou a gravitar em torno da oficina de teatro tocada por Erwin Piscator e Stella Adler, que tinham importado técnicas de interpretação do russo Konstantin Stanislavski. O “Método”, que faz o ator recorrer a memórias e experiências próprias para compor o personagem, iria transformar a arte norte-americana de representar. Em Brando, a novidade encontrara seu maior convertido. Não tardou para que Adler estivesse vislumbrando um futuro grandioso para o ensimesmado rapazote do meio-oeste. A um jovem pupilo, disse o seguinte: “Espere até conhecer esse garoto (...) ele é um gênio”. Embora a experiência de Brando no teatro tivesse se limitado até ali a um punhado de peças no colégio, em um ano o rapaz estreava na Broadway. Aos 23, tinha conseguido o papel que faria dele um astro. Embora a princípio fosse considerado jovem – e belo – demais para convencer no papel de Kowalski de Um Bonde Chamado Desejo, Brando tinha o apoio do diretor, Elia Kazan, que o despachou para a casa de praia de Tennessee Williams em Cape Cod para um teste. Mais tarde, Brando contaria que havia lido o texto por apenas 30 segundos quando Williams disse que o papel era dele. “Em seguida, me emprestou dinheiro para o ônibus de volta a Nova York.” Na mesma época em que a estrela de Brando subia na Broadway, Capote também iniciava sua ascensão, um pouco mais acima na ilha de Manhattan. Sua família trocara a placidez de Connecticut, onde a mãe se casara com o segundo marido, Joe Capote, pelo Upper East Side. Truman, que mal entrara nos 18, logo virou um habitué de redutos exclusivos da noite nova-iorquina, como o Stork Club e o El Morocco. Na época, Capote tinha um bico de faz-tudo na New Yorker – e já tinha certeza de que sua escalada
pela primeira vez com Capote ali dentro, o fundador da New Yorker, Harold Ross, levou um susto. “O que é isso?”, perguntou, enquanto Capote desfilava pelo corredor “como uma pequena bailarina”, na descrição do editor. Segundo Brendan Gill, que escrevia há tempos para a revista, Capote era “uma aparição absolutamente divina”, circulando airosa pelos corredores mofados da revista com as madeixas louras e, não raro, uma capa de ópera. Ambição literária Capote acabou sendo demitido da New Yorker, supostamente por ofender o poeta Robert Frost, que ficou furioso quando o rapaz saiu no meio de um recital seu. Mas a ambição literária do frangote seguiu inabalável. Em 1946, Capote foi aceito na colônia para escritores de Yaddo, no interior do Estado de Nova York. Lá, tra balhando ao lado de conterrâneos do sul, como Carson McCullers e Katherine Anne Porter, começou a redigir seu romance de estreia, Outras Vozes, Outros Lugares (há uma edição portuguesa pela Sextante, 2010). No ano seguinte, a revista Life deu destaque a Capote em uma reportagem sobre jovens escritores do pós-guerra (o texto também citava Gore Vidal, que em pouco tempo viraria um eterno antagonista de Capote). Quando foi lançado, em 1948, o romance foi parar na lista dos mais vendidos (em parte,
lânguido). Ao discorrer sobre o talento do jovem em uma entrevista, Somerset Maugham disse que Capote era “a esperança da literatura moderna”. Embora a princípio tenha relutado em trabalhar em Hollywood, Brando acabou se rendendo. Foi para a costa oeste norte-americana em 1949, para o que encarava como uma breve ausência dos palcos (no final, nunca voltou à Broadway). Os cinco anos seguintes solidificaram sua posição não só de maior astro de Hollywood, mas também de figura revolucionária do cinema norte-americano. A disseminação da “brandolatria” contagiou toda uma geração de jovens atores e o “Método” fez o estilo tradicional de interpretação nas telas parecer empolado e artificial. “Até ali, a coisa toda era muito certinha”, disse o ator Anthony Quinn da atuação de Brando no papel de Stanley Kowalski. “Até que chega o Brando (...). [ Aquela interpretação ] vira tudo de pernas para o ar (...). Todo mundo começou a se portar como o Brando.” Elia Kazan classificou o trabalho do Brando em Sindicato de Ladrões como “a melhor coisa já feita por um ator de cinema norte-americano”. O papel rendeu a Brando o primeiro Oscar de melhor ator (indicado anteriormente por Um Bonde Chamado Desejo , Brando perdera para Humphrey Bogart, o favorito do público por Uma Aventura na África ). Um efeito da repentina ascensão de Brando à fama foi, obviamente, o
Um efeito da repentina ascensão de Brando à fama foi o implacável assédio da imprensa, que desde o início ele detestou. Brando raramente dava entrevistas
dava, pouco ou nada revelava. A certa dou. Só parou quando Bogart pediu Em 1955, Capote mostrava intealtura, tamanha era sua revolta com o arrego, já no chão. Huston, que decla- resse em expandir sua atuação para que julgava um interesse indevido em rou que Capote havia sido “o único uma nova área: o jornalismo. “Tive de sua vida particular que contratou, ele homem que [ vira ] vestindo um terno escapar da minha própria imaginapróprio, detetives para escavar podres de veludo”, ficou impressionado. “O ção e aprender a existir na imaginada Time Inc. Tinha tanta aversão a Truman era uma ferinha... Os modos ção e na vida de outras pessoas”, disse promover os filmes que estrelava que femininos não afetavam em nada sua Capote em uma entrevista. “Estava um produtor foi obrigado a suborná-lo força ou coragem.” obcecado demais com minhas prócom um conversível (um Thunderbird prias imagens internas. Essa foi a zerinho) para que entrasse na roda-viva Jornalismo e ficção principal razão para ter me voltado da publicidade. Em 1955, na estreia de ao jornalismo.” Mas Capote não estava seu oitavo filme na Times Square – o Em Manhattan, Capote era presença interessado em simplesmente explomusical Garotos e Garotas –, uma mul- constante na alta sociedade, sobre- rar o gênero; queria transformá-lo. “O tidão ensandecida furou o esquema de tudo no círculo de beldades como Babe que eu queria era levar ao jornalismo segurança e estraçalhou as janelas da Paley, Gloria Guinness e Slim Keith, a técnica da ficção, que avança simullimusine que levava Brando. Foi preciso socialites que o adotaram como uma taneamente no plano horizontal e no despachar um pelotão de policiais para espécie de adorno literário, bobo da vertical: horizontalmente no lado narresgatar o astro, a essa altura abalado. corte e confessor (várias diriam, mais rativo e verticalmente ao penetrar o Foi nesse ano que Brando ultrapassou tarde, ter servido de inspiração para a íntimo dos personagens.” Jimmy Stewart, Gary Cooper e John personagem Holly Golightly, de BoneTendo aberto o apetite com aquele Wayne nas bilheterias de Hollywood. quinha de Luxo (Companhia das Letras, primeiro texto sobre a turnê de Porgy Para Capote, o meio da década de 2005). Levavam Capote a tiracolo em and Bess, em 1956, Capote saiu à cata 1950 também foi uma fase produtiva. viagens a lugares exóticos, abriam suas de outros temas de interesse jornaSeu segundo romance, A Harpa de mansões ao escritor e trocavam confi- lístico. Como lembrou mais tarde em Ervas (Sextante, 2011), fora bem rece- dências com ele – intimidade da qual uma entrevista com Andy Warhol, o bido. O escritor já fizera uma primeira muitas mais tarde se arrependeriam. escritor discutiu possibilidades com incursão no cinema quando foi con- Uma amiga do autor, Marella Agnelli, William Shawn, editor da New Yorker. tratado pelo diretor John Huston para lembrou certa vez como Capote obser- “Disse o seguinte: ‘Olha, acho que as trabalhar no roteiro de O Diabo Riu vava as pessoas em busca de pontos pessoas cometem um grande erro por Último. Durante as filmagens na fracos. “Quando vi, estava contando hoje em dia, pois o jornalismo pode Itália, Capote teve um curioso (e reve- a ele coisas que nunca imaginei que ser uma das formas mais elevadas de lador) entrevero com o astro do filme, contaria.” A certa altura, Agnelli pas- arte em um novo gênero’. O Shaw me Humphrey Bogart – que, para matar sou a ter medo do dom de Capote de pediu um exemplo. ‘Claro. Peguemos o tempo, gostava de chamar o pessoal conquistar a confiança dos outros. a forma mais rasteira de jornalismo da equipe para uma queda de braço. “Achei que só uma pessoa muito estra- que pode haver: uma entrevista com Quando viu “Caposy” (como Bogart nha ou louca poderia ter uma relação um astro de cinema. Teria algo mais chamava Capote) por perto, Bogart íntima e de amizade com alguém e, ao baixo do que isso?’.” desafiou o escritor. Por duas vezes, mesmo tempo, apunhalá-la”, lembrou Depois de poucos dias filmando no
que nunca tinha feito um longa, deixava à mostra a inexperiência. Uma trupe de teatro Kabuki que iria aparecer no filme dera para trás no último minuto.
Para piorar, seu galã parecia ressabiado. Brando tinha demorado a aceitar o papel
em Sayonara e só fechara com a produção depois que o roteiro sofrera sérias
mudanças (incluindo aí um novo final). Seu peso, que começara a flutuar quando
o ator chegara aos 30, tinha subido; em
tese, Brando devia estar sob estrita dieta.
hora, para ter uma desculpa para encer- cou um gravador para reproduzir tudo rar o papo. Fiore relembra a impres- o que Capote dissera dos presentes, na dido a confiança em Logan e estava ente- são que teve ao conhecer Capote: “Ele sua voz inconfundível. O pior de tudo, diado com o filme. “Desde o início, ele entrou no quarto com aquele andar gar- disse Capote, era que Bernstein apaCarlo Fiore, amigo e secretário do ator, diria depois que Brando já tinha per-
achava que Sayonara era puro turismo boso dele, embalando uma garrafa de nas telas, tudo misturado com uma his- vodca nos braços. Já ouvira falar que tória de amor improvável.” o Capote era pequeno, mas fiquei sur-
O tédio pode ter levado Brando – apesar da advertência de Logan – a abrir a porta para Capote. Mais tarde, Brando diria não ter ideia de que Capote estava
preso ao ver como era minúsculo. Pare-
declaração que o jornalista conside-
garoto de 12 anos de idade. Era a primeira vez que ouvia sua voz. O tom nasal e agudo e a dicção um pouquinho arrastada me deram a sensação de que havia um ventríloquo amador falando por meio daquele boneco de tamanho menor que o natural, mas de proporções perfeitas”.
gara sua parte da conversa. Ou seja, a
impressão era a de que só Capote falara. Fiore não soube bem como interpretar a história, mas saiu do quarto de
Brando com um mau pressentimento. as mãos eram de uma criança. Embora Capote não tinha nenhum interesse já tivesse 30 anos ou mais, tinha o olhar em utilizar as ferramentas tradicionais apurando uma reportagem sobre ele, franco e o semblante imaculado de um do novo ofício. Para conseguir a intirou absurda. Logan acreditava que sua tentativa de impedir o encontro pode
ter tido o efeito inverso. “Como o Marlon automaticamente fica do lado do menos favorecido, seja lá quem for, o Truman se apresentou como o mais
rejeitado dos desfavorecidos”, lembrou o diretor. Ainda que Brando detestasse
a imprensa, de acordo com Logan, o ator chamou Capote para jantar para contrariar os “chefões” que queriam
proibir o encontro. Brando sugeriu que
cia um menino de tão magro. Os pés e
Toque pessoal
Capote colocou a vodca na mesa e Brando pediu à camareira que trou-
midade que queria, evitava usar gra-
vador ou até anotar o que ouvia. O que fazia era se transformar em um “gravador humano”. Capote dizia ter a ver-
são auditiva da memória fotográfica –
e que, com a prática, atingira um alto grau de precisão. “Isso é de extrema
importância para o tipo de reportagem
que faço, pois é absolutamente fatal fazer uma anotação ou usar um gra vador quando se entrevista alguém.”
Na avaliação de Capote, a técnica per-
uma longa tarde no apartamento do maestro – tarde na qual Capote, inci-
mitia que o escritor “se inserisse na situação, que virasse parte da cena que estava registrando e de nenhuma maneira fosse excluído dela” (como mais tarde diriam seus críticos, tam bém permitiu que Capote inventasse fatos importantes na narrativa). Como combinado, Fiore ligou para
misso. O ator passara a tarde traba- dos dos dois. Sem que o escritor soulhando no roteiro do faroeste A Burst besse, Bernstein escondera um microof Vermilion ( Uma Erupção de Ver- fone no apartamento e gravara a conmelhidão ) que sua produtora supos- versa inteira. Pouco tempo depois, o tamente iria rodar (a primeira versão maestro deu uma festa à qual compare-
o ator já estava “alto como uma pipa” e sem nenhuma vontade de dar por encerrada a entrevista. Fiore perguntou se Brando tinha bebido. “Dei uns goles, só isso”, respondeu Brando. O
havia se disposto a falar com Capote
xesse um baldinho de gelo. Fiore lembra
um amigo em comum. Fiore, que estava no quarto quando Capote chegou, por volta das sete da noite, contou em suas memórias que
maestro Leonard Bernstein. Segundo
porque o companheiro dele na viagem que, então, o escritor começou a conao Japão era o fotógrafo Cecil Beaton, tar uma história rocambolesca sobre o
Brando tinha até esquecido o compro-
Capote, ele e Bernstein tinham passado tado por Bernstein, difamara conheci-
Brando uma hora depois. Àquela altura,
relacionamento com a mãe, atriz amadora e dona de casa frustrada. Dodie Brando tinha incentivado o lado criativo do filho na infância. O pai, distante, era, nas palavras do próprio Brando,
“um idiota de carteirinha... um sujeito intimidante, caladão, fechado, bravo, K C O T S N I T A L / A M E N I C M U B L Á / S T S I T R A D E T I N U
Marlon Brando ,
que tinha aversão a promover seus filmes, faz pose na década de 1950
a entrevista. Agora, estamos só conversando, entre nous”, disse o ator. “Liga de novo em uma hora.” Assim como
Logan, Fiore sabia que, com o estímulo certo, a reticência de Brando podia sumir. “Ele raramente bebia”, lem brou o amigo. “E, às vezes, depois de um copo ou dois, a desconfiança natural que sentia de estranhos evaporava, ele ficava sentimental, piegas, disposto a contar a vida todinha, a expor livremente todos os esqueletos do armário.” Foi o que Brando fez. Enquanto se esbaldava com um jantar que incluiu sopa, carne, fritas, três variedades de legumes, massa, pães, queijos, bola-
chinhas e torta de maçã coberta com sorvete, Brando (supostamente de regime) contou que a fama tinha trans-
tado sobre uma pilha de doces, mas só comia as casquinhas”. Anunciou a intenção de demitir o secretário e de ir morar numa casa menor, sem cozinheiro, sem empregada, sem telefone – telefone que suspeitava estar grampeado. Falou da inaptidão para manter a atenção por mais de “sete minutos”, contou que era incapaz de amar, teceu teorias sobre a amizade: “Sabe como faço amigos? Vou cercando, fico rondando. Aos poucos, me aproximo mais. Até a hora em que chego e toco a pessoa, de um jeito muito sutil. Aí recuo, aguardo um pouco, espero que processe. Na hora certa, volto a atacar, a tocar, a rondar. A pessoa não entende o que está acontecendo. Antes que perceba, caiu na rede, está envol-
beberrão, rude – um valentão que adorava dar ordens e ultimatos”. Tanto o pai como a mãe eram alcoólatras. A mãe de Capote, Nina, também tinha sérios problemas com a bebida. O fato de ter abandonado Capote ainda cedo, deixando o menino nas mãos de parentes para ir morar sozinha em Nova York, marcou o filho para sempre. Seu nome verdadeiro, Lillie Mae, era quase idêntico a Lula Mae, nome de batismo de Holly Golightly, a heroína de Bonequinha de Luxo, que também parte para Nova York para se reinventar. As duas – a mãe de Brando e a de Capote – morreram em 1954, com um intervalo de poucos meses uma da outra. O assunto da mãe de Brando aparentemente veio à tona quando já passava da uma da madrugada. No perfil, Capote escreveu: “Servi um pouco de vodca; o Brando não quis me acompanhar. Mais tarde, entretanto, apanhou meu copo, tomou um gole, o colocou entre nós e, do nada, disse algo num tom displicente que, mesmo assim,
transmitia emoção: ‘Minha mãe. Ela se partiu como um pedaço de porcelana (...). Meu pai era indiferente comigo. Nada que eu fizesse o interessava, ou o agradava. Hoje, já aceitei isso. Somos
casa e a geladeira vazias ao chegar da rua. “O telefone tocava, era sempre alguém ligando do bar. Diziam que havia uma senhora lá, que era melhor eu ir buscá-la.” Mais adiante, quando Brando estava na Broadway, a mãe foi morar com ele em Nova York. “Achei que se ela me amasse o bastante, se confiasse o suficiente em mim, daria para estarmos juntos, em Nova York; viveríamos juntos, eu cuidaria dela... Fiz de tudo. Mas meu amor não bastava... Um dia, deixei de me importar. Ela estava lá, no quarto, se agarrando a mim. E deixei que caísse. Já não aguentava mais presenciar aquilo, ver a pessoa se destruindo na minha frente, como um objeto de porcelana. Passei por cima dela, me desliguei. Fiquei indiferente.” Para o leitor moderno, talvez seja difícil entender o efeito chocante que o desabafo de Brando teria sobre o público da época. Hoje, estamos acostumados – e já nem damos muita atenção – a histórias cabeludas de ricos e famosos. Mas, em 1957, o sistema dos estúdios de Hollywood, que por tanto tempo controlara cuidadosamente a imagem de seus astros, mal começara a entrar em declínio. Até ali, detalhes íntimos da vida de um ator tinham sido circunscritos à imprensa marrom, execradíssima. Era a primeira vez que a intimidade de um astro da grandeza de Brando era servida em banquete público, e ainda por cima por um escritor do calibre de Capote. Era algo inédito. Na manhã seguinte à entrevista, Brando tinha pouca noção do perigo ao qual se expusera. Quando ficou sabendo do encontro, Logan questionou o maquiador de Brando. Então, descobriu que o astro tinha “adorado a noitada”. Mais tarde, tomando um drinque com Logan, Capote mal continha o orgulho. “Ah, você estava totalmente equivocado ao dizer que o Marlon não se abria”, disse Capote a Logan, comen-
Logan. “Você deve estar escondendo alguma coisa. Ele não fala de coisas pessoais.” Logan disse que Capote devia ter armado alguma arapuca para o ator. “Não enganei ninguém”, retrucou Capote. “Simplesmente trocamos histórias. Inventei coisas sobre a loucura da minha família e, acredite, tornei a coisa tão escabrosa que ele começou a sentir pena de mim, a contar sua história para que eu me sentisse melhor.” Em outra ocasião, Capote esmiuçaria essa técnica para seu biógrafo, Gerald Clarke. “Na arte de entrevistar – e é uma arte –, o segredo é deixar que o entrevistado ache que está entrevistando você... você conta algo sobre si mesmo e, devagarinho, vai tecendo a teia até que a pessoa se abra completamente. Foi assim que peguei o Marlon.” Em entrevista à revista Rolling Stone mais de 15 anos depois do episódio, Capote declarou: “Lembra que eu contei como o Marlon Brando ficou impressionado? Eu não tinha anotado nada. Não mexi um dedo. Não parecia sequer interessado”. Estrelas em declínio
No final, Sayonara se saiu bem nas bilheterias e rendeu a Brando a quinta indicação ao Oscar. Já no final das filmagens, Logan conseguiu as provas de “O duque em seus domínios”. A coisa era feia como esperava. Além das revelações sobre a mãe, o perfil trazia farpas disparadas por Brando contra Logan,
devastado. Imediatamente escreveu uma longa carta a Capote. Nela, admitia que uma “inacreditável idiotice” o levara a crer que estavam trocando confidências em caráter privado, e que agora suas entranhas seriam “expostas e adornadas para o deleite do público”. Brando comparou Capote a Judas, ao general norte-americano Benedict Arnold, a Átila, o Huno. Capote depois diria que foi “a carta mais longa e confusa” que já recebera. E nunca respondeu. A portas fechadas, o tom de Brando era ainda mais irado. À futura mulher, Anna Kashfi, Brando disse que Capote o “embebedara” com vodca até às duas da manhã. Mas admitiu que o “filho da mãe” tinha uma memória perfeita. “Ele lembrou cada palavrinha.” O perfil foi publicado na edição de 9 de novembro de 1957 da New Yorker. Capote nunca saiu da lista negra de Brando. “Foi a única grande entrevista que tiraram de Brando”, disse Kashfi. “Para grande arrependimento dele.” Brando foi falar com o advogado e o assessor de relações públicas para decidir se processava ou não Capote, mas foi dissuadido depois de constatado que os fatos narrados na reportagem correspondiam à verdade. “Não olhei para ele como [ alguém da ] imprensa”, esbravejou Brando para o relações-públicas, Walter Seltzer. “Achei que era um amigo”. Capote, por sua vez, não se desculpou – nem na época, nem depois. “O Marlon sabia qual era a minha. Depois, disse que não, que não
Acho que as pessoas cometem um grande erro hoje em dia, pois o jornalismo pode ser uma das formas mais elevadas de arte em um novo gênero
vista, mas, por outro lado, eu estava muito, antes mesmo da incursão no usando meu método, que dá a impres- jornalismo: a do romance de não ficsão de que não estou fazendo coisa ção. Ao ler sobre o assassinato de uma alguma. Sabe como?”, disse Capote. família de agricultores num rincão per“Aquela conversa foi um total prenún- dido do Kansas, Capote convenceu a cio do que seria a vida dele, de tudo o New Yorker a deixar que investigasse que aconteceu com ele até o presente o caso. Seis anos depois, publicava A Sangue Frio (Companhia das Letras, momento. E tudo em 40 páginas.” Embora mais tarde Capote tenha dito 2003), seu relato do crime. O sucesso que o ensaio não fora um ataque preme- foi estrondoso: até hoje, o livro é um
ditado, suas declarações nos anos sub-
sequentes à publicação do texto tendem a reforçar a ideia de Josh Logan de que o escritor armara uma para Brando. Na
entrevista com Andy Warhol, Capote
R J C a d 2 1 0 2 e d o r b m e z e d / o r b m e v o n e d o ã ç i d e a n o d a c i l b u p e t n e m l a
olhar de piedade, como se soubesse
mais do que qualquer outra reportagem da revista desde “Hiroshima”, de John Hersey. Depois de sua publicação, Capote voltou brevemente à fic-
mais de 1,75 metro). Como Capote, foi uma vítima dos excessos. Depois que o perfil foi publicado, Brando raramente voltou a falar com jornalistas. Só consegui achar
uma declaração pública dele sobre o
ricanos ao embargo de petróleo pela
Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (Opep). A certa altura, a conversa rumou para questões pessoais – e foi prontamente cortada por Brando. “Não acredito nessa coisa de
lavar a roupa suja na frente de todos, não estou interessado em confissões como escritor ou jornalista. Nos últi- de astros do cinema.” A maioria das mos 15 anos de vida, dizia estar traba- celebridades, disse Brando, acaba se lhando em uma grande obra, Súplicas enforcando com as próprias palavras. Atendidas. Só um punhado de capítu- “Você sentiu isso com o Capote?”, per-
de algo que você não sabe. Mas o fato é que você sabe algo que ele não sabe: los do romance inacabado foi publiele não é lá tão inteligente”. Menos óbvio, talvez, foi como o encontro de Capote com Brando anunciaria o declínio do próprio escritor. O perfil, que William Shawn classificou de “obra-prima”, repercutiu
pesava quase 160 quilos (media pouco
encontro em Kyoto (o episódio é totalmente omitido da autobiografia do marco na literatura norte-americana. astro). Em 1978, Lawrence Grobel viaMas o processo de escrever a obra, jou para a ilha particular de Brando no de penetrar na mente e no caráter de Taiti para uma conversa que se estenoutros indivíduos (no caso, frios assas- deria por dez dias. Falou-se de tudo um pouco: da obsessão de Brando sinos), tirou Capote do prumo. com os direitos de índios norte-ame-
deu a seguinte declaração: “Para ser um ator, a pessoa não deve ter nenhum Morte na solidão orgulho... Precisa ser uma coisa, um objeto. E quanto menos inteligência A partir dali, Capote aumentou tanto o tiver, melhor será... Para ser ator é pre- consumo de álcool e drogas que, a certa ciso ter uma imaturidade absoluta, uma altura, ficou mais conhecido como a total falta de autorrespeito”. Em outra figura excêntrica que circulava pela entrevista, falando sobre Brando, disse: boate Studio 54 e pelos talk shows que “Ai, meu Deus, o Brando se acha um passavam tarde da noite na TV do que
gênio. Ele olha para você com aquele
papéis coadjuvantes. Já perto dos 80,
cado – e o tumulto causado por per-
sonagens mal disfarçadas e escândalos tirados do mundinho do Upper East Side fizeram Capote ser banido do glamouroso mundo que tanto lutara
guntou Grobel. Brando objetou: “Não, ele é um escritor bom demais para ficar só no sensacionalismo”, disse. “Mas distorcia, mexia nas coisas...
Todo mundo edita. É inevitável...”
O ator acrescentou: “Há algo de
para cultivar. Capote morreu no exí- obsceno em expor seus sentimentos lio – na Califórnia, em 1984. Tinha 59 e suas emoções para que todos vejam. anos. Brando viveu outros 20. Mas, no cômputo geral, não foram anos feli-
De qualquer maneira, quem está inte-
ressado?”.
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Por que os jornais erram ao atacar o Google News Os dirigentes da mídia impressa brasileira mostram que ainda não entenderam a internet e tampouco os ensinamentos do economista Milton Friedman p o r l e ã o s e r v a
, comandados pela entiSegundo a ANJ, o Google News não é essencial para os dade patronal que os representa, a Associação Nacional de veículos jornalísticos do país, porque os jornais brasileiros Jornais (ANJ), exigiram que o Google deixasse de indexar têm como público o leitor fiel, que sabe procurar as informasuas páginas de web no buscador de notícias Google News. ções que deseja e acredita em cada marca. Dessa maneira, a Basicamente, o argumento é o de que o site de pesquisas ferramenta não agregava tanta audiência aos seus sites 1. norte-americano faz dinheiro com o conteúdo alheio. A deci- Assim, os periódicos optaram por desligar seus conteúdos são é de 2011, efetivada em outubro de 2012. do buscador aos poucos, por conta própria 2. Os 154 jornais reunidos na ANJ, cerca de 90% da imprensa Os dois argumentos parecem estranhos a quem observa diária brasileira, afirmam que seu conteúdo é reproduzido o comportamento dos meios de comunicação nas últimas na internet sem remuneração ou autorização dos produ- décadas: o Google é responsável por direcionar um contintores. Querem que o Google pague por indicar seus sites gente muito grande de internautas para sites em geral. Sua nos resultados de buscas dos internautas. Antes de esti- importância como referência para os usuários da rede pode mular tamanho “êxodo”, a ANJ chegou a discutir soluções ser medida pela audiência do buscador, sempre líder entre de parcerias que gerassem receitas com a indexação das buscadores, que por sua vez são endereços de passagem notícias. Algumas reuniões com o Google no Brasil resul- constante de quem navega na web. Sua importância é tanto taram em acordo para produzir o “Projeto 1 linha”, no qual maior quanto menos conhecida a marca de um site. Mas não os resultados da busca feita pelo usuário mostrariam ape- pode ser considerada irrisória por nenhuma publicação. Ao nas a primeira linha do artigo, e não mais quatro ou cinco dizer que os sites dos jornais brasileiros não se beneficiam como hoje. O intuito era fazer com que o internauta não se da audiência gerada pelo Google, a ANJ parece estar represaciasse com as informações do início do texto, exposto no sentando a raposa diante das uvas na fábula de La Fontaine, Google News, e fosse obrigado a acessar o conteúdo ori- fingindo desprezar o que não consegue dominar. ginal nos sites dos jornais, aumentando acesso e audiênDa mesma forma, parece saído da fábula do escritor cia em seus endereços eletrônicos. renascentista francês o segundo argumento usado pela O projeto, entretanto, não foi concluído devido a um entidade representante dos jornais: dizer que o público problema técnico. Segundo a ANJ, “a redução no número dos sites de jornais brasileiros é formado por leitores fiéis de linhas afetou radicalmente o ranqueamento dos resul- que não precisam usar o buscador para chegar a seus endetados exibidos nas buscas”, ou seja, a ordem de apresenta- reços é fingir que está tudo ótimo no front impresso das ção das respostas conforme a pertinência do texto em rela- empresas jornalísticas e que sua audiência é suficiente ção à pergunta do usuário. Constatado o problema, a asso- para sobreviverem no mundo digital. Sabemos que isso ciação sugeriu a possibilidade de saída dos jornais do Goo- não é verdade: as audiências dos sites de jornais ainda têm os principais jornais brasileiros
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Enquanto isso, grandes jornais no exterior têm na inter- acordo com a sua qualidade e produção. Isto é, se o veículo net números dezenas de vezes maiores do que em papel. tem muitos autores de textos opinativos ou pessoais, grande A decisão de sair do Google News é um erro estratégico quantidade de textos publicados, usa linguagem formal e hosque reforça a distância das empresas jornalísticas conven- peda artigos longos (critério utilizado para evitar reproduções cionais em relação ao ambiente digital, em vez de apressar de outras fontes), provavelmente irá aparecer nos primeiros sua adaptação, como seria desejável diante da decadência lugares na busca do Google News. Todas essas características do meio jornal e da explosão vertiginosa da penetração das são típicas de empresas jornalísticas consolidadas, como os novas mídias. A esta altura da era digital, os jornais revelam velhos jornais em papel... Dessa maneira, o boicote da grande com absoluta transparência que ainda não entenderam as imprensa ao buscador é um tiro no pé, uma vez que ele pripeculiaridades do funcionamento da internet, o que explica vilegia a divulgação do jornalismo de qualidade. O autor terem grande medida a situação melancólica que vive a maio- mina seu texto com um lamento em forma de alerta: “A seleria das empresas jornalísticas nacionais, que não consegui- ção natural raramente ajuda os voluntariamente cegos” 4. ram até hoje se adaptar bem ao mundo digital e seguem em Muitos dos que atacam o buscador, reivindicando parte rota cadente de circulação (nas edições em papel) e relevân- das receitas de publicidade em suas páginas, citam em defesa cia (no meio impresso e no digital). de suas decisões o tão famoso quanto surrado pensamento O problema não é exclusivo da imprensa brasileira. Há do economista Milton Friedman, segundo o qual “não há alguns anos a mídia europeia também vem acusando o almoço grátis”, como a dizer que o Google deve pagar pelo Google de “roubar” suas notícias, sob o mesmo argumento conteúdo que indica em seu site de busca de notícias em de que o buscador não paga direitos autorais para divulgar resposta a pesquisas de leitores. O próprio diretor-execuesse conteúdo. Editores franceses ameaçaram a empresa tivo da ANJ, Ricardo Pedreira, deu a entender isso ao afircom punições baseadas em novas leis de direitos autorais. mar, após a resolução de saída dos jornais brasileiros do Em meio à disputa, o Google aceitou, em acordo assinado buscador, que o “Google entende que não deve pagar pelo com o presidente da República, pagar US$ 80 milhões em conteúdo, que pode usá-lo livremente” 5. subsídios para a pesquisa de novas plataformas digitais. O O discurso sugere que o Google seja o comensal. O que é entendimento, feito para aplacar a tensão na região onde revelador de que os dirigentes brasileiros da mídia impressa o Google é ainda mais dominante do que nos Estados Unidos (tem cerca de 90% de share de mercado), foi um enigma: todos os envolvidos comemoraram vitória. No último dia primeiro de março, o Parlamento alemão aprovou lei de direitos autorais que autoriza o Google a reproduzir pequenos trechos das reportagens. A lei pareceu descontentar todos os lados em disputa, mas reconhece que o buscador pode usar parte do conteúdo como referência sem ferir o direito autoral. Deputados alinhados com a reivindicação dos jornais tentarão mudar a lei no Senado alemão. tampouco entenderam o que disse o economista norteHá outras disputas semelhantes em curso em mais paí- -americano, ganhador do Nobel de Economia de 1976. ses da Europa, sempre em torno do argumento comum Friedman dizia apenas que tudo tem um custo e alguém de que o Google se apropria de conteúdos dos jornais ao há de pagá-lo. Praticamente em toda a sua vida adulta, no publicar o início dos textos nas respostas das buscas do entanto, Friedman assistiu à TV aberta e chegou a produusuário e deveria repassar um pedaço das receitas que zir um programa com sua mulher. Sabia que o “almoço não obtém com publicidade em suas páginas 3. é grátis”, mas que ninguém paga para ver o conteúdo da Em artigo recente para a revista Forbes, Jeff Bercovici cri- TV aberta, por exemplo. O consumidor paga a luz (como tica o posicionamento europeu e afirma que as medidas são também acontece com o usuário de internet); paga o apaabsurdas porque o Google News ajuda a imprensa, e não a relho de TV (como o internauta paga o computador e a atrapalha. No texto “Por que editores precisam parar de se conexão). Mas a programação da emissora é remunerada preocupar e aprender a amar o Google”, Bercovici explica pela publicidade. Bingo: o almoço não sai de graça, mas o que o buscador elenca a aparição dos websites de notícias de consumidor não paga a conta do conteúdo.
Os 154 jornais reunidos na ANJ afirmam que seu conteúdo é reproduzido na internet sem remuneração ou autorização
1
http://info.abril.com.br/noticias/internet/foi-bom-sair-do-google-news-diz-anj-28102012-7.shl 2 www.anj.org.br/sala-de-imprensa/noticias/jornais-brasileiros-fora-dogoogle-news-esclarecimento-da-anj-associacao-nacional-de-jornais 3 www.nytimes.com/2013/02/18/technology/a-first-step-on-continent-for-google-on-use-of-content.
O Google também não cobra do consumidor; ganha de
anunciantes pela audiência que gera para seus comerciais. E quanto ao conteúdo? Para seguir na metáfora do almoço,
Globo – segue indexado; enquanto a Folha de S.Paulo retirou-se do buscador, seu irmão mais novo Agora segue rece bendo audiência dirigida pelo Google News.)
o Google tampouco serve refeições. Ao contrário do site Se esses jornalões, em seus sites, não oferecem o conteúdo de postagem de videoclipes YouTube, no qual o usuário premium que poderia distingui-los uns dos outros, não conassiste integralmente a um conteúdo no ambiente do site seguem a fidelidade dos leitores on-line, que por decorrên(e, portanto, o direito do autor precisa ser remunerado cia não respondem como desejado às campanhas de assinapor ele), o Google News não oferece conteúdos noticio- tura on-line (além de tudo, também muito caras). sos, só indica o endereço eletrônico das notícias e suas pri A ANJ acredita ter derrubado o argumento do Google meiras linhas. Na metáfora do almoço, ele é o cardápio. E News de que estar no rol do buscador ajuda a incremenaté Milton Friedman sabia que ler o menu no restaurante tar a audiência. Isso porque, segundo os jornais associanão custa nada (há quem leia e vá embora sem comer). dos à entidade, seu tráfego caiu (à época da decisão) ape A internet gera a cada ano milhares de novos sites jornalísticos, somando
aos outros tantos já existentes para compor milhões de novas páginas diárias. É virtualmente impossível achar algo que
se queira sem mecanismos de busca. O internauta precisa de guias para achar o que quer ou necessita, como um consumidor consulta cardápios para decidir-se diante de uma praça de alimentação em um shopping. Essa é, estrita-
Se uma pequena sinopse exibida na homepage do Google News satisfaz o leitor, significa que o artigo não capta a sua atenção
mente, a carência do usuário da web que o Google sacia. E por que os empresários
brasileiros de jornais acham que o menu deveria pagar a conta do jantar? Não há por quê 6. Assim como cabe aos restaurantes atrair os seus clientes por terem comida de qualidade, sabor único, receitas que não podem ser encontradas em qualquer outro lugar,
nas cerca de 5%. Para o diretor-executivo da ANJ, Ricardo Pedreira, este “é um custo muito pequeno comparado aos
efeitos danosos de ter seu conteúdo distribuído de graça” . 7
Mesmo que não percam audiência significativa (o que parece difícil, dado que o Google gera algo em torno de 4 bilhões de cliques a novos sites por mês, segundo o artigo
cabe aos sites de jornais tornarem-se reconhecidos por sua qualidade única, e diante da adesão de consumidores, atra- citado ), os jornais não entenderam que o problema não gira 8
írem anunciantes e clientes que paguem pela assinatura. Quer dizer, se uma pequena sinopse exibida na homepage do Google News satisfaz o leitor, significa que o artigo não
em torno, somente, desse contingente. Ao pedir sua exclusão do Google News, os jornais perdem a chance de turbinar e revigorar suas marcas na web; deixam de se posicio-
capta a sua atenção. O problema, claramente, não reside no nar bem no ambiente digital. Renunciam a se apresentar aos buscador, mas na indiferenciação do noticiário, que resulta olhos de uma imensa população jovem, que é “nativa digiem indiferença no consumidor. tal” – expressão usada por Caio Túlio Costa em “Analógicos Agora, pergunte-se, leitor, como internauta que certamente versus digitais”, na segunda edição desta Revista de Jornaé: há algo dessa qualidade alta e diferenciadora naquilo que lismo ESPM – e que poderia ser cativada. Além disso, a ideia nos oferecem os sites dos jornais brasileiros reunidos na de que servem a um “público fiel” é contraproducente, uma inglória disputa com o Google? O consumidor parece dizer vez que esse público é restrito (não se renova) e tende a não que não. Desde que os grandes jornais deixaram o Google aumentar. Em um país onde os números de consumidores e
News, a audiência do buscador não caiu; suas páginas seguem trazendo resultados para as consultas dos leitores em busca
de notícias sobre temas de seu interesse, mas as respostas apontam para sites de empresas quase sempre sem ligação com os grandes jornais em papel: são sites independentes, portais, sites ligados às TVs e, às vezes, pequenos jornais do interior. E todos eles têm noticiário completo, semelhante aos sites dos grandes jornais, desde logo porque compram, como commodities, as mesmas notícias de agências que compõem a maior parte do conteúdo dos sites de grandes jornais filiados à ANJ. (Há um aspecto curioso, que sugere que
de internautas crescem e os leitores de jornal somem, parece pouco ambicioso contar somente com seus “leitores fiéis”.
Ao mesmo tempo, ao não oferecer um conteúdo que seja
suficientemente distinto do jornal em papel e dos demais
sites de jornal a ponto de justificar uma fidelização do leitor digital e contrabalançar a perda de audiência do papel, os jornais vão perdendo a onda da história agarrados aos restos de um barco que afunda rapidamente. ■ leão serva é jornalista e escritor, autor de
Jornalismo e Desinformação
(Senac, 2001). O diretor da agência de conteúdo Santa Clara Ideias
Aulas de sobrevivência Repórteres que cobrem cartéis do tráfico no México recorrem a colegas colombianos para formar redes e se manterem vivos
p o r j u d i t h m a t l o f f
os 20 jornalistas mexicanos tinham voado até a fronteira
O D Ú E T N O C O Ã D A T S E / S A T I E R F E D N O S L E V E
da Guatemala para discutir como cobrir as atividades do tráfico de drogas e permanecer vivos, e ouviram atentamente os palestrantes, um após o outro. Quase todo mundo na conferência, tanto do México como de outros países, já tinha perdido um colega ou recebido uma ameaça de morte de gangues de traficantes que têm a imprensa como alvo. Eles estavam ansiosos por dicas de sobrevivência. Um geek de computação falou sobre tigações, coordenaram publicações e encriptação de dados. Veio em seguida até encenaram um blecaute de notíuma palestra sobre como esquivar- cias para protestar contra um assas-se de agressores. A conversa conti- sinato. Eles convenceram as autorinuou, abordando o tema de como agir dades a lhes fornecer guarda-costas. quando o repórter na mesa ao lado “Eu não conseguia mais ficar trabalha para bandidos. calada”, ela comentou, a propósito Ginna Morelo então se levantou, e a da decisão, tomada havia seis anos, de sala ficou em silêncio. A pequena mas fundar com amigos uma rede invesresistente repórter investigativa de El tigativa que agora se espalhava pelo Meridiano de Córdoba, da Colômbia, país. A organização hoje tem 87 memcontou como jornalistas de seu país bros ativos e uma lista de seis mil tinham enfrentado a violência relacio- e-mails. Os repórteres do grupo tranada ao tráfico de drogas duas décadas balham juntos em histórias que seriam antes. Os colegas formaram uma rede perigosas demais ou difíceis de apu-
um movimento nacional”, disse Ginna. “Esqueça a exclusividade.” “Uau”, sussurrou o repórter a meu lado. “Isso é inspirador.” O México é um dos locais mais perigosos para a prática do jornalismo, devido à impunidade dos cartéis de drogas. Até o fechamento da edição de janeiro da Columbia Journalism Review (CJR), mais de 80 jornalistas haviam sido assassinados e 16 sequestrados num período de 12 anos, porque escreveram sobre as atividades de gangues em guerra. Muitos repórteres se tor-
bra no início de abril pela Campanha Emblema de Imprensa (PEC, na sigla em inglês), no primeiro trimestre de 2013, mais um jornalista mexicano foi assassinado. Em meio ao desespero por ajuda, uma rede informal chamada Periodistas de a Pie (www.periodistasdeapie.org.mx – organização que tem por objetivo melhorar a qualidade do jornalismo mexicano oferecendo cursos, discussões e intercâmbio), começou a recorrer a colegas colombianos em busca de dicas e, nos últimos dois anos, especialistas
O idioma comum facilita a comunicação, assim como a compreensão do que é lidar com o mundo sombrio das gangues de traficantes. “Acreditamos que podemos servir como exemplo para os mexicanos”, disse Ignacio Gómez, líder do principal grupo de liberdade de imprensa da Colômbia, a Fundación para Libertad de Prensa (Flip). Ele perdeu a conta de quantos seminários a Flip (www.flip.org.co/) promoveu no México para colegas que enfrentam o perigo. Os workshops geraram uma associação informal, de Juárez a Oaxaca,
Colegas de Armando Rodríguez, repórter policial do jornal El Diario de Juárez morto a tiros em 2008, mantêm sua estação de trabalho como espécie de memorial. Na baia, um vaso com flores murchas e o retrato do jornalista alertam sobre o risco que correm diariamente
sando por um sofá, se alguém preci- trado. Em alguns casos, os chefões sar fugir da cidade, até fotocópias de dos jornais mexicanos vivem do outro guias de contraespionagem. E come- lado da fronteira, nos Estados Uniçaram a discutir como fazer lobby em dos, e têm pouco contato, se é que têm grupo, para receber a proteção oficial algum, com os repórteres. Os jornalisda qual os colegas colombianos des- tas colombianos costumam ser mais frutam. “Precisamos de uma lei como bem conectados. a da Colômbia, que obriga o Estado a Além disso, diferentemente da agir”, disse Brisa Solis, líder do Cen- Colômbia, os gigantes da mídia mexitro Nacional de Comunicação Social cana parecem não ter interesse em um (Cencos – cencos.org/), uma ONG lobby de proteção em grupo, segundo o
Não temos dinheiro para pagar advogados. Não há um número de telefone para ligar quando as pessoas são ameaçadas
que tem como ponta de lança o treinamento de segurança no México. “Não temos uma forma organizada de reagir. Não temos dinheiro para pagar advogados. Não há um número de telefone para ligar quando as pessoas são ameaçadas.” Isso não quer dizer que os casos do México e da Colômbia sejam parecidos. Não são. A Colômbia desfrutava de condições mais favoráveis para construir redes de solidariedade. Para começar, o mundo do jornalismo no México é alienado da sociedade civil; a população geralmente vê jornalistas medíocres como abutres irresponsáveis, o que não acontece na Colômbia. E até essas iniciativas recentes, os trabalhadores da imprensa do interior não
Center for International Media Assistance (Cima – cima.ned.org/), organização sediada em Washington, nos Estados Unidos, que apoia e defende o desenvolvimento da mídia independente em todo o mundo. Isso deixa os repórteres do interior em um limbo de segurança sem nenhum defensor forte com assento no governo. Já a influente mídia nacional de Bogotá uniu forças com a elite política, que de maneira similar tinha sido alvo do cartel de Medellín. Falta estratégia
“Quase todos os ataques no México aconteceram longe da capital, contra alvos locais, e despertaram pouca atenção nacional”, observou um rela-
dos pelos publishers e editores para desenvolver uma estratégia comum para proteger seus jornalistas.” Conversei com dezenas de jornalistas mexicanos país afora, e quase todos disseram que apelos por transferências para sucursais mais seguras ou para a contratação de vigilância armada são recebidos com risos. Os salários são baixos – o salário médio mensal é de US$ 650 – e os empregos são tão escassos que os repórteres geralmente têm medo de lutar por seus direitos. Esqueça a ideia de sindicatos fortes. “Meu editor esperava que eu voltasse a trabalhar logo depois de ter levado uma surra”, disse-me um repórter de uma cidade de fronteira. Pelo menos nesse estágio, é difícil imaginar o México adotando um mecanismo similar ao Comité de Regulamentación y Evaluación de Riesgos, que faz parte do programa de proteção a jornalistas do governo colom biano. Esse grupo, estabelecido em 2000, reúne representantes da Flip, de outras ONGs e do governo. Eles revisam pedidos de proteção de 16 grupos vulneráveis – incluindo jornalistas – e fornecem guarda-costas e carros à prova de balas para quem precisa. Também falta ao México um sistema judicial robusto que faça justiça contra os assassinos. No início deste ano, legisladores mexicanos aprovaram uma emenda à Constituição que torna ataques a jornalistas um crime federal e deu às autoridades federais o poder de processar em áreas geográficas que normalmente estão sob jurisdição local ou estadual. Mas o Poder Legislativo ainda precisa apro var leis complementares para definir o processo. Dois anos atrás, frustrada pela falta de iniciativa federal, a Comissão de Direitos Humanos do estado frontei-
modelo colombiano. Isso incluía fazer um rodízio de repórteres policiais,
para que eles não se tornassem vítimas de fontes corruptas, e instruir a polícia a reagir imediatamente a ameaças contra a imprensa. A comissão diz
que também ajudou 20 jornalistas ao financiar guardas armados ou passagens de avião para que pudessem via jar para outras cidades. Mesmo assim, repórteres independentes dizem que os beneficiários estão amplamente alinhados a autoridades do Estado e que a maioria dos jornalistas só conta consigo mesmos – comunicando-se em
R J C a d 3 1 0 2 e d o r i e r e v e f / o r i e n a j e d o ã ç i d e a n a d a c i l b u p , e v i l a g n i y a t S l a i c e p s e m e g a t r o p e r a d e t n a r g e t n i e t
El Diario implorou
para os barões da droga definirem regras, de modo que seus jornalistas soubessem o que passava do limite
código para evitar escutas clandestinas de oficiais cúmplices, por exem- tórias e convidaram especialistas a nal El Mañana anunciou que pararia plo, ou viajando em grandes grupos explicar coisas como senhas de pro- de cobrir disputas violentas entre gruaté cenas de crime. teção e alteração de rotinas. Regu- pos rivais depois do segundo ataque Uma líder local é Rocío Gallegos, larmente, eles conferem o estado com granada que atingiu seus escria resoluta editora do jornal El Diario emocional um do outro. É um misto tórios em dois meses. Os moradores de Juárez , na cidade fronteiriça que de grupo de apoio com sindicato de da cidade se valem do Facebook para por muito tempo sustentou a distin- desenvolvimento profissional. “Esta- saber a respeito de tiroteios, que geralção dúbia de ser a capital mundial belecemos alianças entre jornalistas, mente são mencionados sob o eufedo homicídio. Ela é lembrada diaria- de maneira que podemos tomar conta mismo “festas”. Os jornalistas se põem mente dos perigos que corre ao colo- um do outro”, explicou Rocío. “Os a pensar em como conseguir voltar a car sua pasta na baia em frente à de furos ficam em segundo plano.” fazer seu trabalho direito.
Armando Rodríguez, um repórter policial morto a tiros em 2008. Sua Imprensa amordaçada estação de trabalho tem servido de memorial, com flores murchas cor de A ideia está se espalhando. Uma repór-
laranja e um porta-retratos empoei- ter da cidade de Chihuahua que parrado. O colega do outro lado de Rocío tinha enfeitado sua mesa com fitas
“A colaboração não funcionaria, porque não cobrimos mais essas notícias”, observou secamente Daniel Rosas, editor on-line do El Mañana.
“Gosto da ideia, porém.” Então ele desistiu totalmente?
do narcotráfico.
ticipou de uma sessão saiu tão entusiasmada que criou a própria seção “De forma alguma”, disse Rosas. “A ao voltar para casa. Os membros são decisão de Ginna Morelo, da Colômchecados para se ter certeza de que bia, de quebrar o silêncio realmente não estão agindo como informantes me impressionou. Temos de encon-
As coisas iam tão mal em Juárez há dois anos que El Diario implorou para
fiança nas redações é uma reclamação
de isolamento policial e cápsulas de
balas encontradas em cenas do crime
dos traficantes, já que a falta de con- trar uma forma de fazer isso aqui.” ■
os barões da droga definirem regras, comum. “Tivemos de tomar a iniciade modo que seus jornalistas soubes-
tiva”, disse Patricia Mayorga, da publicação on-line Omnia. “Ninguém mais
editorial, que saiu na primeira página.
Mesmo assim, medidas como essas ainda permanecem distantes de repórteres em locais como a cidade de fron-
sem o que passava do limite. “O que vocês querem de nós?”, perguntava o está olhando por nós.” Os editores nunca receberam res-
posta, então Rocío tomou o problema para si. No ano passado, ela criou uma
teira de Nuevo Laredo, onde o cartel
é editora
judith matloff
contribuinte da Columbia Journalism Review (CJR). Veterana correspondente estrangeira, ela ministra curso sobre reportagem de conflitos na Columbia University e é autora de Fragments of a Forgotten War (Fragmentos de uma Guerra Esquecida) e Home Girl – Building
ENQUANTO ISSO, NO BRASIL... MILTON BELLINTANI
Compromisso de risco Casos de jornalistas obrigados a exilar-se para se proteger de ameaças acendem o sinal vermelho no Brasil a imagem que abre esta matéria é um retrato da situação do jornalismo
investigativo no Brasil, apesar de mostrar o outdoor de um prédio do South Bronx – área do bairro mais pobre de Nova York, que já foi um dos redutos da violência nos Estados Unidos. A placa alerta a comunidade para denunciar policiais que ajam fora da lei, fotografando, filmando e avisando por celular sobre qualquer excesso cometido por agentes públicos que têm como dever garantir a segurança dos cidadãos. O que isso tem a ver com o nosso país? A foto foi feita com a câmera do celular do repórter André Caramante, do jornal Folha de S.Paulo, durante o exílio de 90 dias que ele e a família viveram entre setembro e dezembro do ano passado, devido a ameaças que passou a sofrer após publicar uma reportagem sobre o então candidato a vereador Paulo Telhada – ex-comandante da Rota – eleito como o quinto mais votado no pleito municipal de outubro, em São Paulo. No texto “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”, publicado em 14 de julho, Caramante escreveu que o policial reformado usava sua página pessoal “para veicular relatos de supostos confrontos com civis (sempre chamados de ‘vagabundos’)”. A reação não tardou. No mesmo dia, Telhada postou críticas ao repórter e sugeriu que se deveria reagir contra os “notórios defensores de bandidos”, como ele qualificou Caramante. Nas semanas que se seguiram, dezenas de apoiadores da página publicaram ameaças ao jornalista. Desde maio de 2012, a violência explodira em São Paulo, com a ocorrência de chacinas em bairros da periferia seguindo um padrão: homens encapuzados chegavam em motos ou carros pretos, desciam e executavam seus alvos. As ações aconteciam sempre após atentados que tiveram como alvos policiais. André Caramante escreveu que se tratava de uma guerra entre o PCC
a afirmação se confirmou nos meses seguintes. Boa parte dos mortos não tinha passagem pela polícia. Em muitos casos, pessoas de fora dos bairros foram vistas recolhendo cartuchos de balas espalhados nas cenas dos crimes antes da chegada da polícia. Em 13 anos de experiência de cobertura da segurança pública, o repórter da Folha denunciou a existência de sete grupos de extermínio formados por policiais. Por causa disso, acumulou processos por “calúnia e difamação” de agentes que se sentiram atingidos. Não foi condenado em nenhum deles, mas viu o time de desafetos crescer. Para Caramante, as ameaças contra ele e a família partiram de simpatizantes de policiais como esses. “Foram feitas ligações anônimas à redação da Folha dizendo que sabiam onde eu moro, onde fica a escola de meus filhos e que a ‘nossa hora’ estava para chegar”, conta. “Além disso, postaram uma foto do diretor de redação
Outdoor em prédio no South
Bronx, Nova York, capturado por André Caramante durante refúgio nos Estados Unidos, alerta sobre excessos cometidos por policiais de lá
I S O I C N A R F A N A I R D A
se apertava. Então, em comum acordo com o jornal, se decidiu que eu deveria trabalhar a distância.” A estratégia durou menos de três semanas. Caramante e a Folha concluíram que não era seguro permanecer na cidade. No dia 11 de setem bro, o repórter, a mulher e os dois filhos – um com menos de 2 anos e a outra com menos de 5 – embarcaram para Nova York. Por causa da data, que remete aos atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center, na Big Apple, ao escritório e residência presidencial da Casa Branca e à sede do Departamento de Defesa americano (Pentágono), em Washington, as tarifas de voos para os Estados Unidos continuam mais baixas no “nine-ele ven”, mesmo tendo se passado 11 anos. Na saída do Brasil, em vez de alí vio, um inesperado momento de tensão. “Fomos retidos por 40 minutos na emigração, aguardando a liberação de nossos quatro passaportes”,
E T N A M A R A C É R D N A O T O F
mos os bilhetes de embarque, fui reti- longa. Em silêncio na maior parte rado da fila, já no finger, por funcio- do tempo, e mal conseguindo dornários da Infraero e da Polícia Fede- mir, Caramante e a mulher tentavam ral. Estava com meu filho mais novo antecipar o futuro se perguntando no colo. Minha mulher ficou com ele quando a vida da família voltaria ao e com nossa filha, aguardando minha normal. Lá fora, embora se sentindo liberação. Fui conduzido para trás de em segurança, o casal de jornalistas um biombo, longe da vista dela. Pedi- descobriu que a democracia brasileira ram que eu levantasse a camisa e apli- produz exílios. caram um produto químico nas barras da minha calça, no tênis, cinto e Ameaças seguem padrão também em minhas mãos. Questionei o procedimento e ouvi que se tra- O jornalista Mauri König, 47 anos, tava de uma verificação de rotina para acompanhou com interesse cada ‘saber se eu transportava algum tipo passo da saga de Caramante. Repórde material ilícito’. Indaguei também ter do jornal Gazeta do Povo , do o motivo de ter sido o único a passar Paraná, e diretor da Associação pelo procedimento, em um voo de Brasileira de Jornalismo Investiga230 passageiros. Responderam que tivo (Abraji), o fez por solidariedade meu filho, um bebê, havia sido ‘esco- profissional e humana, mas também lhido por amostragem’. Como estava porque a experiência do colega o em meu colo, coube a mim passar pela lembrou das duas ocasiões em que averiguação especial. Só então fui libe- esteve frente a frente com o perigo. rado para embarcar. Todos os demais A primeira no ano 2000, quando foi passageiros já estavam acomodados.” detido, espancado e “deixado para
O Estado do Paraná o sequestro e
alistamento forçado de crianças pelo Exército do Paraguai. “Apurei que ao menos 109 morreram tentando escapar, entre elas crianças brasileiras e argentinas”, diz König. “Senti medo de morrer, mas os abusos cessaram
graças à denúncia.” A segunda acon-
teceu em 2003, em Foz do Iguaçu, quando ele publicou na Gazeta do Povo que policiais civis haviam se aliado a ladrões de automóveis que
operavam na fronteira do Brasil com
vivemos. Minha ex-mulher partiu de Foz levando meus dois outros filhos, hoje com 13 e 15 anos. Dessa vez, eles leram que eu teria de sair do país. Fui embora sem conseguir vê-los”, relata König.
México e da Colômbia. Nesses 20 anos, em plena democracia, houve o
Impunidade eleva risco
foram 12, número apurado pelo relatório “Direito à Memória e à Verdade”, produzido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 2007. Na conta bilidade de outras organizações de defesa dos direitos humanos, chega a 20, por incluírem militantes políticos que em algum momento de sua trajetória atuaram na imprensa partidária – legal ou clandestina.
Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), organização não governamental de promoção da liberdade de imprensa sediada em Nova
o Paraguai. “Tive de me mudar para York, o Brasil é um dos países de maior Curitiba para escapar”, explica. risco para a atuação de jornalistas.
Mauri König só não imaginava que se lembraria do exílio da família Cara-
mante menos de uma semana depois de ela voltar ao Brasil, sem alarde. Mauri, a mulher e o filho de 3 anos tiveram de viver seu próprio exílio, ao embarcar para o Peru devido a
novas ameaças que recebera. O repór-
Ficou em 11º no Índice Anual de Impu-
nidade. O indicador leva em conta o número de mortes, prisões, legislação
dobro de execuções de jornalistas do que na ditadura de 1964-1985. Nesse período, segundo a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, da
Assembleia Legislativa de São Paulo,
restritiva, censura estatal, impunidade Os dois jornalistas mortos no períem ataques contra a imprensa e jorna- odo cujos assassinatos tiveram maior listas levados ao exílio. repercussão foram Vladimir Herzog, Só em 2013, três repórteres foram diretor de jornalismo da TV Culassassinados com intervalo de 60
ter acredita que provavelmente vie- dias. Todos em consequência do traram de policiais civis, devido à série balho como jornalistas. O radialista de reportagens “Polícia fora da lei”, Renato Machado Gonçalves, presipublicada em maio pela Gazeta, em dente da Associação A Voz de São que mostrou agentes públicos utili- João da Barra e administrador da zando carros oficiais para fazer com- Rádio Comunitária Barra FM, foi pras, levar os filhos à escola e, alguns, morto no dia 8 de janeiro ao sair de até para frequentar motéis. A série casa, em São João da Barra, Estado teve a participação de Diego Ribeiro, do Rio de Janeiro, por dois pistoFelippe Aníbal e Albari Rosa, mas as leiros que chegaram em uma moto. ameaças se concentraram em König, A polícia investiga as hipóteses de possivelmente pelo conjunto da obra. crime político, vingança por briga e Assim como aconteceu com Cara- crime passional. Em 22 de fevereiro, mante, as redes sociais foram utili- o radialista Mafaldo Bezerra Goes, zadas para potencializar as amea- da FM Rio Jaguaribe, de Jaguaribe, ças. A exemplo do que fez a Folha de no Ceará, foi assassinado por pis S.Paulo, a Gazeta do Povo juntou fotos toleiros com cinco tiros à queima
das postagens e comunicou as autori- roupa. A suspeita é de que tenha sido
dades para que fossem tomadas pro- vítima de traficantes que atuam na vidências legais contra os promoto- cidade. Na madrugada do dia 9 de res das ameaças. E fez mais: contra- março, o repórter Rodrigo Neto, tou seguranças para proteger seus da Rádio Vanguarda AM e do jorquatro jornalistas. “Até ser tomada a nal Vale do Aço, de Ipatinga, Minas
tura, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), morto sob tortura no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-Codi) de São
Paulo, em 1975; e Luiz Eduardo da Rocha Merlino, do Partido Operário Comunista (POC) – com passagens no início da carreia pelo Jornal da Tarde e pela Folha da Tarde –, que morreu em decorrência de torturas sofridas, em 1971, também no DOI-Codi. Essas mortes foram mascaradas como sendo, respectivamente, suicídio por enforcamento e atropelamento por caminhão na rodovia BR-116, após fuga. As duas versões foram desmontadas graças à obstinação das famílias, que jamais acei-
taram os laudos do regime e exigiram na Justiça a investigação completa das circunstâncias em que os jornalistas morreram. Em 23 de junho de 2012, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigia o DOI-Codi paulistano à época, foi condenado a pagar R$ 100 mil de indenização à família de Merlino pela juíza Claudia de Lima
decisão de sair, minha família mudou Gerais, foi executado com três tiros. de hotel regularmente a fim de difi- Recentemente, ele havia denunciado cultar a nossa localização”, diz König. à Comissão de Direitos Humanos a Mas a volta do exílio peruano de participação de policiais em ativida60 dias não significou que a vida do des ilegais. Em 2012, quatro jornalisMenge, da 20ª Vara Cível do foro cen jornalista voltaria ao normal. Assus- tas foram mortos no país. tada, a mulher comunicou a ele que Somados os casos de jornalistas tral de São Paulo. Em 23 de setembro, se mudaria do estado, levando o assassinados desde 1992, o número o juiz da 2ª Vara de Registros Públicos
Vladimir Herzog passasse a constar que a “morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (DOI-Codi)”. O limite do medo
No país em que ao menos 45 jornalistas foram mortos nos últimos 45 anos, seria exagero afirmar que André Caramante e Mauri König podem ser considerados sobreviventes? Antes deles, outros repórteres se viram na linha divisória entre o risco calculado e o imponderável. Foi assim com Caco Barcellos, que teve de deixar o Brasil após a publicação de seu livro Rota 66, em 1992, em que denunciou padrões de extermínio da população jovem, negra e pobre da periferia paulistana – a maioria sem passagem pela polícia e com carteira de trabalho assinada. Na volta, anos depois, mudou o foco de sua atuação na TV Globo. Em Londres, onde atuou como correspondente, Barcellos aprendeu com organizações humanitárias que toda ameaça deve ser tornada pública e que deve haver, sim, um limite para correr riscos. Já o fotógrafo Nilton Claudino e uma colega repórter do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, só descobriram isso depois de cair nas mãos de policiais e ex-policiais que integram as chamadas milícias, grupos paramilitares que disputam território para venda de drogas e proteção com narcotraficantes cariocas. Em 2008, disfarçados para investigar a atuação de milicianos em uma favela do Rio, foram descobertos, torturados e mantidos vivos pelos algozes como forma de mandar um recado aos jornalistas para se manterem longe da disputa nas ruas e morros. Abandonado pela mulher, filhos e amigos próximos, Claudino descreveu a epopeia que viveram em depoimento à revista piauí nº 59, edição de agosto de 2011. No texto “Minha dor não sai no jornal”, ele conta que decidiram morar em uma favela para fazer a reportagem. “Fui descoberto, torturado
mais adiante, resumiu sua situação. apenas 17 anos quando passou no ves“Retomar a vida é difícil. Faço tra- tibular de jornalismo da Uniban, então tamento psicológico e psiquiátrico, um recém-criado Centro Universitátomo uma dúzia de remédios. Quase rio localizado praticamente sob o vianão vejo meus filhos, que estão cres- duto que liga as avenidas Rio Branco, cendo longe de mim. Tenho agora na fronteira do centro paulistano, com um neto que mal conheço. Não soube a Rudge, que faz a ligação com a ponte mais nada da repórter e do motorista, da Casa Verde e de onde se divisa a sumiram. Esqueci dos amigos. Preciso periferia norte de São Paulo. Trabade fotos para me lembrar do rosto de lhava como marreteiro e, depois, office quem gosto. Mas me lembro nitida- boy, e era um dos alunos que tinham mente dos que me torturaram.” sérias dúvidas se o curso seria, afinal, Relatório inédito, divulgado mun- reconhecido pelo Ministério da Edudialmente pela ONG internacional cação e, mais que isso, se faria dife Article 19 em 14 de março, revela que rença em sua vida. Se a faculdade o 52 jornalistas e defensores de direi- decepcionou, o mesmo não acontetos humanos sofreram graves viola- ceu com um grupo de professores que ções à liberdade de expressão no ano o ajudou a dar forma à sua vocação de 2012 no Brasil – e 207 no México. de repórter. Sua banca de trabalho de No Brasil, o levantamento identifi- conclusão, em 1998, diz isso por si só: cou casos de homicídio (30%), ten- dela fizeram parte o repórter Caco tativas de homicídio (15%), amea- Barcellos, a seção brasileira da Anisças de morte (51%) e sequestros ou tia Internacional e a Pastoral Carcerádesaparecimento (4%). As vítimas ria, convidados a avaliar o livro-reporhaviam denunciado publicamente tagem que escreveu a seis mãos com atos de violência praticados por poli- as colegas Kátia Cavalleiro e Solange ciais, originados de conflitos agrários, Facó sobre um ex-preso da Casa de crimes ambientais e casos de corrup- Detenção de São Paulo, o Carandiru, ção. A íntegra do relatório “Graves que escreveu um relato de 140 páginas violações à liberdade de expressão sobre o massacre de 18 detentos em 29 de jornalistas e defensores de direi- de março de 1982 e a vida na cadeia tos humanos” está disponível no site mais famosa da história de São Paulo. www.article19.org. Quem leu o trabalho nunca duvidou No lançamento do relatório, a dire- de aonde Caramante chegaria. tora da Article 19 na América do Sul, Formado em Letras, König resolPaula Martins, afirmou que “o Estado veu cursar jornalismo com a idade não apenas tem se omitido como que Caramante tem hoje, 35 anos. acaba sendo protagonista de certas E já com nove anos de trabalho práações”. De acordo com ela, “embora tico na imprensa de Foz do Iguaçu, não haja uma intenção da institucio- cobrindo a Tríplice Fronteira. Apenalização da censura no Brasil, em sar de certamente ter mais a ensinar boa parte dos casos os processos de do que aprender, não subestimou o intimidação e violência ocorrem por aprendizado que poderia extrair da meio da atuação de representantes experiência. Mas buscou nas redado Estado, seja através da polícia, de ções a sua melhor escola. “Tive a políticos ou agentes públicos”. sorte de conhecer o jornalista Montezuma Cruz, com quem trabalhei na Folha de Londrina e a quem conEscola de jornalismo sidero o meu grande professor. Com Onde nasce o repórter? Quando se ele aprendi que jornalismo é, essenopera o parto que faz emergir de cialmente, compromisso social. E a dentro o compromisso com algo que fazer reportagens mais aprofundaparece infinitamente maior do que a das. Aprendi que o bom jornalismo capacidade individual de fazer alguma vai além do relato dos acontecimen-
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Rodrigo Neto foi executado com três tiros em março
Mauri König, da Gazeta do Povo, foi obrigado a deixar o país
Quando as ameaças a André e A entrevista foi publicada no blog da fissionais de imprensa e assassinatos, Mauri se tornaram públicas, entida- jornalista, no dia 8 de outubro, no site bem como pela impunidade de quem des profissionais de jornalistas de da revista ÉPOCA 1. comete esses crimes”, afirma. todo o país e também organizações Ivo Herzog, diretor do Instituto humanitárias do Brasil, Estados Uni- Vladimir Herzog, tinha apenas 9 anos O maior prêmio de todos dos e Europa logo manifestaram soli- quando o pai, Vladimir, foi morto na dariedade, fazendo ecoar nas redes ditadura. Ele explica que o instituto Mauri König e André Caramante são sociais a denúncia do risco que eles articula, ao lado da Abraji, da Conec- jornalistas premiados. Colecionam sofriam e cobrando das autoridades tas, da organização Repórteres sem reconhecimentos profissionais e tam brasileiras providências no sentido de Fronteiras e do Centro de Informações bém outros que resultam dos comprotegê-los. A Anistia Internacional, o das Nações Unidas no Brasil, a criação promissos assumidos com o interesse Comitê para a Proteção dos Jornalis- de um grupo de proteção a jornalistas público e a defesa dos direitos humatas, a Abraji, o Instituto Vladimir Her- ameaçados. Nemércio Nogueira, dire- nos. Em 2012, König recebeu o Prêzog, o Comitê Paulista pela Memó- tor executivo do Instituto Vladimir mio Internacional de Liberdade de ria, Verdade e Justiça, a Conectas, e Herzog, explica que um dos objetivos Imprensa concedido pelo CPJ, que a Federação Nacional dos Jornalistas é prestar assistência jurídica aos ame- dedicou a colegas perseguidos em (Fenaj), entre outras organizações, açados. “É indispensável que a socie- outros países e à memória do jornainiciaram uma mobilização que deu dade como um todo se conscientize de lista Tim Lopes, morto em 2002 por resultado. No caso de Caramante, ela que, institucionalmente, a população traficantes, no Rio de Janeiro. No ano ganhou escala com a entrevista conce- é a maior prejudicada na medida em passado, Caramante foi lembrado no dida por ele à jornalista Eliane Brum, que seu direito à informação é frus- discurso de abertura do 34º Prêmio já estando fora do país, que recebeu trado ou cerceado, seja por qualquer Vladimir Herzog de Direitos Humamais de 300 mil acessos. O barulho tipo de censura, pela excessiva judi- nos como alguém que deveria estar virtual demonstrou que o tema estava cialização da atividade jornalística, presente à cerimônia, “e não estava nas ruas. Não há como duvidar de que pela intimidação, por manobras decor- ali por se encontrar exilado”. E foi um contribuiu para ambos e suas famí- rentes de corrupção e desvio de fun- dos ganhadores do 16º Prêmio Santo
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Vladimir Herzog, da TV Cultura, morto sob tortura em 1975
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O jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino , assassinado em 1971
são de Direitos Humanos da Assem- melhor roupa e subiu ao púlpito da Caramante não pode exercer o direito bleia Legislativa do Estado de São Assembleia Legislativa, deixou sua constitucional de ir e vir, no que se Paulo, entregue três dias antes de sua dor de lado para engrossar a home- refere ao trajeto casa-trabalho-casa. volta dos Estados Unidos. Para rece- nagem a Caramante. Perguntou se A Folha disponibiliza um carro para ber o diploma em seu lugar, pediu ele e a família estavam bem e quis apanhá-lo e, ao final da jornada, leváque a diarista Maria da Conceição saber quando voltariam. Contou a -lo de volta. Os motoristas do jornal já Ferreira Alves o representasse. Ela todos que nunca antes alguém havia se habituaram ao fato de que ele semé mãe de Antonio Carlos Silva Alves, se referido ao filho dela com o res- pre pede para descer em uma esquina morto aos 31 anos no dia 8 de outubro peito demonstrado pelo repórter. em que não existe nem casa nem préPor causa de compromissos assim, dio. E é também por ali que sabem de 2008, na periferia paulistana, por policiais militares que provavelmente André e Mauri foram convidados a que devem buscá-lo. confundiram a dificuldade dele para participar de uma reunião de um Mauri König ainda não se acostufalar – decorrente de sua deficiência grupo de trabalho criado pela Secre- mou a chegar em casa e não encontrar intelectual – com uma ardilosa estra- taria de Direitos Humanos da Pre- a mulher e o filho. Seu tempo presente tégia para enganá-los. Seu corpo foi sidência da República, em Brasília, é um eterno sonhar com o futuro em encontrado no dia seguinte, a muitos em fevereiro, a convite da ministra que estarão novamente juntos. Os dois repórteres contabilizam as quilômetros de casa, com a cabeça Maria do Rosário. Ali, eles finalmente e mãos decepados para dificultar a se conheceram e tiveram a oportuni- perdas. Sem dúvida, são pequenas, identificação. Os policiais responsá- dade de relatar suas experiências aos comparadas ao que significa imagi veis pelo crime foram identificados, demais presentes – um deles, dele- nar que reportagens poderiam estar presos e expulsos da PM. O advogado gado da Polícia Federal. fazendo se o país fosse capaz de prode defesa conseguiu anular o julgaNa volta ao Brasil, em comum teger do risco máximo os jornalistas mento. Três foram soltos. Na Folha, acordo com os jornais em que tra- que têm compromisso. ■ André Caramante relatou cada passo balham, Mauri König e André Caradessa saga com ares de farsa. Maria mante se afastaram momentanea- milton bellintani é jornalista e da Conceição escreveu uma carta à mente da cobertura de segurança professor. Foi editor de publicações como
Inovação com prazo de validade Incorporadas a grandes estruturas, empresas visionárias começam a cair na repetição de velhos modelos. Há alguma solução para isso? p o r
michael schudson
algu ns me se s atr ás ,
e katherine
no site do Poynter Institute, Bill Adair, do PolitiFact (projeto do Tampa Bay Times
minando o que aconteceu na Nova Orleans pós-Katrina, quando um blog hoje conhecido como The Lens (The-
tava: “Vamos ‘dinamitar’ a matéria jornalística”. O jornalismo tem de ser reimaginado desde as suas bases,
da inovação. Os autores, estranhamente, dão ao Lens um pseudônimo
fink
a investir naquilo que ela frequentemente não faz: reportagem investiga-
tiva. E, mais uma vez, como muitos
que visa verificar a precisão de ale- LensNola.org) ganhou legitimidade outros lançamentos, o Lens afirma gações feitas no meio político), inci- e público, mas talvez em detrimento sua autoridade nesse trabalho con-
argumentava ele, a começar por sua pedra fundamental, a “notícia”. “É tempo de repensar a unidade do jornalismo... Vamos despedaçá-lo. Vamos
reinventar a maneira de dar as notí-
cias e propor algumas formas novas.” Quer este seja um bom ou um mau conselho, é muito mais fácil dizer do que fazer. Essa é a lição que os sociólogos Stephen Ostertag e Gaye Tuchman ensinam em “When Innovation Meets Legacy” (“Quando a Inovação Encontra a Tradição”), um artigo publicado em 2012 no Information, Communication & Society (periódico
tratando repórteres que dedicaram anos de serviço ao jornalismo sério em – The New Orleans Eye (A Visão de empresas convencionais de notícias. Nova Orleans) – sem deixar claro Mas o Lens se tornou um blog de que, de fato, estão fazendo isso. Usa- jornalismo cidadão arrojado, que permos aqui o nome verdadeiro, com seguia obstinadamente o caos burosua permissão. crático nos esforços de reconstrução de moradias da Nova Orleans Jornalismo investigativo pós-Katrina. Quando o blog buscou
crescer como uma empresa de notí-
Como muitas outras novas empresas cias completamente financiada, ele de notícias on-line cheias de vivacidade, o Lens é pequeno (nove funcionários e um orçamento de US$ 480 mil em 2012) e financiado principalmente
se concebeu como “um blog ‘nervoso’ sobre o uso da terra” e se voltou à Open Society Foundations (instituição
O Le ns é também como muitas
A Open Society aconselhou o Lens
filantrópica fundada com o objetivo por fundações (Knight, Open Society de contribuir para o fortalecimento Foundations e outras). da democracia) para obter fundos.
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vencional de notícias, com um sistema de editorias completo, editores profissionais com credenciais do jornalismo impresso e um corpo de diretores (do qual Ostertag se tornou membro depois de completar a pesquisa para seu artigo). O Lens seguiu o conselho e alterou o R J formato, daquilo que o software livre C a d do Google possibilitava fazer para 2 1 0 colunas regradas de jornal; sua prosa 2 e d saiu da primeira para a terceira pes o r b m soa; e sua “voz”, de direta e pessoal, e z e d / para a “voz” objetiva das redações jor o r b nalísticas. Expandiu sua cobertura de m e v notícias do uso da terra à responsabi o n e d lidade geral do governo: “finanças e o ã ç política, pavimentação, ar e água, uso i d e a da terra, escolas, investigação e crime n o d e punição”. A Open Society gostou das a c i l b mudanças e, quando o Lens solicitou u p e uma subvenção maior, conseguiu. t n e m A Open Society e outras fundações, l a
trar competência”. Não exatamente uma descoberta digna de manchete principal, essa é mais uma confirmação de que sociólogos às vezes reafirmam o óbvio. Mas Ostertag e Tuchman colocam o óbvio em um contexto que lhe dá alguma sustentação. Sem surpresas
Para eles, a ênfase das fundações em “competência” no âmbito da experimentação produz um resultado irônico: os financiadores que defendem a inovação acabam por bloqueá-la. Eles dão às jovens empresas jornalísticas os meios para crescer, mas, ao pressioná-las a contratar profissionais para produzir jornalismo de qualidade da forma convencionalmente entendida, eles também dão pouco espaço para as surpresas. Quando o Lens se tornou parceiro
da NPR), ganhou legitimidade com as fontes, uma presença no ar e uma grande quantidade de espectadores. E isso deu à boa reportagem investigativa uma nova aceitação, porém mais uma vez restringiu a nova publicação a objetivos jornalísticos facilmente reconhecíveis. Adeus à ideia de “dinamitar notícia”. O Lens acumulou prêmios locais de jornalismo e até mesmo notáveis prêmios nacionais, mas se um novato no ramo jornalístico não consegue ganhar força com financiadores, fontes, parceiros e audiência quando se distancia dos elementos básicos da cobertura de notícias convencional, ele tem de abandonar o sonho da inovação? Ou deveríamos começar a nos perguntar se “inovação”, em si, longe de ser um sinônimo para liberdade, é uma nova camisa de força conceitual? ■
PARA LER e PARA VER TITO MONTENEGRO
SERIADO
House os Cards
Beau Willimon e David Fincher
Netflix Remake de uma série britânica dos anos 1990, House of Cards tem como protago-
nista o veterano congressista norte-americano Francis J. Underwood, interpretado por Kevin Spacey. A nova versão, adaptada pelo roteirista Beau Willimon (indicado ao Oscar por Tudo pelo Poder ), tem entre os produtores o cineasta David Fincher (de A Rede Social), que também dirigiu os dois primeiros episódios. No capítulo inicial, o deputado sente-se traído ao saber que não será indicado secretário de Estado pelo presidente que ele ajudou a eleger. A decepção transforma Underwood no pior tipo de inimigo – aquele que parece estar a seu lado. O deputado dá início a uma série de manobras, com o objetivo de voltar ao centro das decisões. Para levar seu plano adiante, conta com a ajuda de Zoe Barnes, jovem repórter do fictício The Washington Herald, que se oferece para publicar no jornal qualquer “notícia” repassada pelo deputado “sem fazer debate tão velho quanto o nenhuma pergunta”. Assim, ela jornalismo, claro, mas com dá alguns furos e torna-se uma novos desdobramentos. Em aspirante a estrela jornalística. tempos de blogs e tuítes, House A promíscua relação entre fonte of Cards apresenta o Washington e jornalista é um dos destaques Herald como um jornal alheio às da série, que ainda aborda mudanças que a internet vem negociatas de lobistas e trazendo para a imprensa. financiamento de campanhas. Rígido nos métodos, o A ascensão de Zoe no jornal editor-chefe parece enxergar cria suspeitas, especialmente em Zoe e na internet o inimigo
Kevin Spacey é o congressista Francis J. Underwood na série do Netflix
ele está parcialmente correto. No entanto, é difícil acreditar que ainda existam grandes jornais com aquele nível de resistência ao mundo virtual, o que torna por vezes caricaturais os embates entre repórter e editor. Zoe acaba saindo do Herald para se juntar ao site Slugline, uma espécie de cooperativa de blogueiros com
esse o futuro do jornalismo? Outra pergunta que se pode fazer é: será esse o futuro da televisão? Isso porque House of Cards, uma produção original do serviço on-line de filmes e seriados Netflix, inaugurou um formato de veiculação. Além de ser transmitida apenas pela internet, a série teve os 13 episódios da primeira
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LIVRO
O Silêncio Contra Muamar Kadafi Andrei Netto
Companhia das Letras, 368 páginas Correspondente em Paris do jornal O Estado de S.Paulo , Andrei Netto esteve por três vezes na Líbia cobrindo as revoltas contra o ditador Muamar Kadafi. Já na primeira incursão, em março de 2011, foi sequestrado, agredido e mantido preso num calabouço do regime nas proximidades de Trípoli. Libertado após intermediação do governo brasileiro, Netto ainda voltaria duas vezes à Líbia. Na última delas, em outubro do mesmo ano, chegou ao país na véspera do dia em que Kadafi foi capturado e executado sumariamente pelos rebeldes, num dos episódios marcantes da chamada Primavera Árabe.
É justamente pelo fim do regime, e do ditador, que tem início O Silêncio contra Muamar Kadafi , livro de estreia de Andrei Netto, repórter que também passou pelas redações dos jornais Zero Hora e Gazeta Mercantil . Nas primeiras páginas da obra, o jornalista reconstitui os últimos momentos do homem que dominou a Líbia por 42 anos – e também a tétrica exposição dos cadáveres de Kadafi e de seu filho Mutassim. As imagens – vídeos e fotos feitos por revoltosos e civis em seus celulares – mostraram ao mundo que o desejo de vingança contra décadas de opressão foi mais forte do que a intenção dos líderes rebeldes de levar o déspota a julgamento. Enquanto o povo comemorava a libertação e a transição de poder dava os primeiros passos, Netto relata a experiência de ir atrás de informações precisas num momento singular, e especialmente violento, da história líbia. ■
SITE
Pulitzer Prize
http://www.pulitzer.org Ganhar prêmios não é o objetivo final de um jornalista, claro, mas é um incentivo e tanto. Nos Estados Unidos, o mais conceituado é o Pulitzer Prize, criado em 1917 em homenagem ao magnata das comunicações Joseph Pulitzer – morto cinco anos antes –, com recursos deixados por ele. Hoje em dia, o prêmio destaca os melhores trabalhos não apenas em jornalismo, mas também nas artes. No site do Pulitzer, é possível ter acesso à relação completa dos premiados em toda a história do prêmio. No entanto, a melhor parte disponível é a íntegra dos trabalhos vencedores a partir de 1995 nas categorias jornalísticas – nas áreas de Letras, Teatro, Música e Prêmios Especiais, apenas trechos do material estão on-line. É uma grande chance de conhecer o que de melhor o jornalismo americano produziu – como a série
Gettleman para o New York Times sobre a miséria e os conflitos armados no Leste da África, que deu ao jornalista o prêmio de “reportagem internacional” em 2012. Vale dar atenção especial aos premiados na categoria “fotografia jornalística”, criada em 2000. Em 2002, sagrou-se vencedora a equipe de fotógrafos do New York Times , com a cobertura dos ataques terroristas ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. No ano passado, quem levou o prêmio foi o fotógrafo afegão Massoud Hossaini, pela imagem de uma menina desesperada após o ataque de um homem-bomba em Cabul, em dezembro de 2011. Setenta pessoas morreram no atentado, entre elas parentes da garota. Graças ao prêmio inspirado e bancado por Joseph Pulitzer, cenas como estas não serão esquecidas. ■
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FILME
A Montanha dos 7 Abutres Paramount
Roteiro e direção: Billy Wilder 111 minutos O decadente repórter Charles Tatum, interpretado por Kirk Douglas, já havia sido demitido de 11 jornais das maiores cidades norte-americanas quando chega à provinciana Albuquerque, no Novo México, disposto a refazer o caminho rumo ao topo do jornalismo. A chance se apresenta quando um homem fica preso no interior de uma mina abandonada e Tatum é o primeiro repórter no local. O jornalista enxerga na situação uma grande história, e com ela imagina voltar às manchetes. Para isso, precisa de tempo. A maneira encontrada por Tatum para prolongar o drama – e, consequentemente, aumentar a visibilidade de suas reportagens – é manipular os responsáveis pelo salvamento.
Quanto mais demorar, melhor. Aos poucos, o propositalmente lento resgate ganha a forma de um circo midiático do qual Tatum é o mestre de cerimônias e o principal beneficiário. Suas reportagens correm o país e ele já se imagina de volta a Nova York. Enquanto isso, o homem soterrado aguarda o desfecho. Lançado em 1951, o filme A Montanha dos 7 Abutres tornou-se um clássico não apenas por ser magistralmente executado, mas também por sua crítica mordaz ao sensacionalismo da imprensa. Merecidamente, está na maioria das listas dos grandes filmes que retratam o jornalismo. Escrito e dirigido por Billy Wilder – ele mesmo um ex-jornalista, diga-se –, a obra apresenta uma visão amarga, e talvez cínica, do metiê. Para quem pratica o jornalismo, no entanto, evoca uma reflexão imprescindível e diária: até onde um repórter pode ir na sua busca pela notícia? ■
LIVRO
A Poeira dos Outros Um Repórter na Casa da Morte e Outras Histórias
Ivan Marsiglia Arquipélago Editorial 168 páginas O repórter Ivan Marsiglia acaba de lançar uma coletânea de 20 textos produzidos desde a década de 1990. O cardápio temático percorrido pela pena do jornalista é amplo, narrando histórias que vão desde o cotidiano de uma praia de nudismo até os horrores da Casa da Morte, aparelho clandestino usado pela ditadura para a tortura e extermínio de dissidentes políticos. O assunto abre o volume, na reportagem “A Memória das Paredes”, que rendeu ao autor o Prêmio Estadão de Jornalismo de 2012. O retrato da dor e da indignação é alvo de outras narrativas de A Poeira dos Outros, como a do imigrante taiwanês Feng Ming Hsueh, que morreu de desgosto à espera de justiça para o caso do filho Edison Tsung Chi
Paulo (USP), encontrado morto em 1999, após o trote. A perda de um filho, durante a guerrilha do Araguaia, compõe, ainda, a pauta que encerra o livro: “A Longa Viagem da X2”. O jovem era o militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) desaparecido em 1972, de nome Bergson Gurjão Farias, cujos restos mortais foram entregues à família em 2009. Já em “Viagem ao Centro da Guerra”, o repórter chega ao fundo do poço de sangue de um pronto-socorro municipal durante um fim de semana, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. A realidade da periferia transborda de sua narrativa, regada a tiros, facadas e fraturas expostas. Embora predomine o tom de crítica, não falta bom humor. A veia desponta em “Sou Suçuarana”, em que a própria onça desfia suas desventuras por conta do desmatamento. Ou em “Ele Fez a Cabeça da Dilma”, no qual o autor perfila o cabeleireiro Celso Kamura, responsável pela repaginação da então candidata, que deixou o artista das tesouras “bege” no primeiro encontro, diante do desafio de torná-la fotogênica. Mais um exemplo? “Com a Palavra, a Faixa”, que traz a faixa presidencial como narradora das suas agruras de centenária. Como diz Humberto Werneck na apresentação da obra, “o preciso e precioso ‘modo de ver’ de Ivan Marsiglia transparece em tudo que ele escreve”. E o melhor é que o leitor pode agora saborear essa visão neste livro, que reúne
CREDENCIAL JORGE TARQUINI
Todo poder às quatro rodas Uma “revista de carros” dos anos 1960 ainda pode nos ensinar bom jornalismo
criar uma revista de carros em um
país sem carros e sem jornalistas especializados em carros pode significar ao menos três coisas: uma ousadia cultural no Brasil de 1960, onde havia um carro para cada 138 habitantes e uma linha imaginária a dividi-lo entre o rural e o urbano – coronelismo, carroças e doenças infecciosas de um lado, com classe média, arranha-céus e doenças cardíacas de outro; uma guinada sem precedentes para uma editora que publicava gibis, principalmente da Disney, moldes de costura de Manequim e fotono velas italianas na Capricho; e um tema e tanto para a dissertação de mestrado de um ex-diretor da revista. Para a Abril, Quatro Rodas foi mais do que apenas uma revista: foi o passo que reescreveria o destino da editora, ao lançar seu primeiro título jornalístico, pioneiro no segmento. Para dar conta do recado, Victor e Roberto Civita reuniram em torno da ideia uma seleção de nomes oriundi, dignos da squadra azzurra: os irmãos Carta, Luís e Mino, chefiariam a redação, enquanto o paulistano de primeira geração Attilio Baschera emprestava sua elegância ao design da publicação. Auguri! O primeiro ano da revista, aos olhos de hoje, revela contornos quase pueris e até equivocados na abordagem
dos órgãos de trânsito e até a venda de carteiras de motorista. Sim, já se passaram mais de 52 anos desde então... Ao retratar (sem concessões) não apenas o cotidiano dentro dos carros, mas se posicionando politicamente, Quatro Rodas mostrou que não era apenas uma “revista de carros”, em que máquinas reluzentes, unhas sujas de graxa ou discussões sobre velocidade e desempenho poderiam servir de cortina de fumaça para temas mais importantes. Criou um jeito próprio de fazer “Imprensa Especializada” (sim, em caixa alta e baixa), mostrando que, por mais que o brasileiro tenha se apaixonado por carro (assim como se apaixonou por futebol ou novelas), o espaço ali era para jornalismo de verdade. O talento e a autoridade adquiridos pela revista para ser veículo de transformação do Brasil viram-se cerceados após 1964. Além do ambiente político cruel, com a imprensa amordaçada, como manda a cartilha da ditadura, os poderosos de plantão acharam por bem declarar a indústria automobilística de “segurança nacional”. Iriam mais longe: a tecnologia seria proibida de entrar no país pela Lei da Informática e feudos de poder se instalariam em órgãos públicos como parte do aparelhamento do Estado pelos militares. A resistência oferecida pela Quatro Rodas, indo além do que era permitido pelo controle dos censores, foi memorável. A ponto de jornalistas da revista serem comumente “convidados a prestar esclarecimentos” em órgãos da repressão. Quem diria que, além de criar a cultura do automóvel no brasileiro, uma revista de carros poderia assustar os tiranos de plantão? Ah, como é perigoso o bom jornalismo... ■
da época filosofando sobre mulheres ao volante, era um caminho suave na alfabetização da sociedade que logo iria de 0 a 100 km/h rumo ao conhecimento (e à paixão) do automóvel. Nos três anos seguintes, porém, ao mesmo tempo que seria criado o “jeito Quatro Rodas” de fazer jornalismo (ensaiando, sim, um “jeito Realidade” de ser), suas páginas se tornariam o espaço para um jornalismo veemente, aguerrido e que rapidamente assumiu para si a função de “comprar brigas”. Fosse com os governos, fosse com a indústria. Fosse até com os leitores, motoristas que contribuíam para tornar o trânsito caótico. Na lista de jornalistas que ganhavam autoridade para esses confrontos figuram José Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra – e, alguns anos depois, nomes como o de Audálio Dantas e Woile Guimarães. Com tanta gente boa praticando um estilo de reportagem e texto que se consagraria na casa com Realidade, ainda hoje há quem acredite que uma foi apenas o laboratório da outra. Roberto Civita jura que não foi a intenção. Fato é que Quatro Rodas passou a mostrar suas garras: textos envolventes em pau- jorge tarquini foi diretor de tas que tratavam de modelos de carro, redação de Quatro Rodas de 1994 a 98, sim, falavam de turismo, sim, mas criti- é coordenador da Pós-Graduação em cavam enganos da indústria, denuncia- Jornalismo com ênfase em Direção Editorial
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