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PREFAÇAo A
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lido quase todos os Manuais, e todos os Cursos de Uteratura. São bons guias, mas nenhum ensina, técnica e préticemente, a arte de escrever. Nenhum fez ainda as demonstrações do estilo. É uma lacuna, que eu procurei preencher. Creio que se pode ensinar a ter talento, a descobrir imagens e boas frases; e que, com uma reguler aptidão, se pode cheqer a formar estilo. O meu alvo é mostrar no que consiste a arte de escrever; decompor os processos de estilo; expor tecnicamente a arte da composição; ministrar os meios de aumentar e ampliar as aptidões do estudioso, isto é, duplicar-lhe triplicer-lhe o talento; numa palavra. ensinar a escrever quem quer que o não saiba. mas que tenha o que é preciso para o saber. Aos novos. aos principiantes. à gente de sociedade. a todos os que amam as letras e possuem o gosto do estilo. deve interessar uma obra que lhes proporcione a demonstração clara dos processos da arte de escrever. Nada se encontrará nestas páginas. que se pareça com a antiga rotina. Pus de parte os preconceitos doutrinários. as apreciações tímidas. os métodos consagre-
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dos; e é inútil procurarem-se aqui as velhas clessiiiceções, as divisões arbitrárias, os rançosos exemplos. Terminando, devo prevenir os leitores de que me não assaltam pretensões de estiliste: que me propus escrever chêmente, secamente, uma obra, que é uma tentativa de demonstração, e que reservo quaisquer esforços de estilo para obras de pura imaginação ou de crítica propriamente dita.
Lição Primeira o
dom de escrever
Toda a gente pode escrever? - Poderemos ensinar a escrever? - Como nos tornamos escritores. - Prim~iras condições para escrever.
Uma pergunta nos ocorre desde já: devemos escrever? Não será mau serviço favorecer as tendências para se cobrir de letras o papel? Não haverá bastantes escritores? Será preciso avisarmos os que escrevem mal? Estamos inundados de livros. Que será a literatura, quando toda a gente a praticar? Ensinar a escrever não será impelir o próximo a publicar tolices? Não será rebaixar a arte o pô-la ao alcance de todos, e não a amesquinharemos, tornando-a mais acessível? Eu próprio protestei numa obra especial contra essa doença de escrever, que nos invade e que fez desanimar o público. Há nisso evidentemente um perigo, mas o abuso de uma coisa não prova que ela seja má. Toda a gente fala e nem todos são oradores. A pintura vulqarizou-se, mas nem todos são pintores. Nem todos os músicos fazem óperas.
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8 É excelente
ensinar-se a escrever; tanto pior para aqueles que degradem o mester. Demais, aqueles que quiserem seguir os conselhos dados nesta obra, deverão aplicar-se a escrever bem, e aqueles que se aplicarem serão obrigados a escrever pouco. Estamos, portanto, ao abrigo de qualquer censura. Depois, podemos escrever, não só para o público, mas para nós próprios, para satisfação pessoal. Aprender a escrever bem é aprender também a julgar os bons escritores. Primeiramente, haverá a vantagem da leitura. A literatura é um atractivo, como a pintura e a música, uma distracção nobre e permitida, um meio de dulcífícar as horas da vida e os enfados da solidão. Outra objecção talvez me façam: os teus conselhos serão bons para as pessoas de imaginação, visto que a imaginação é faculdade essencial; mas dará acaso imaginação àqueles que não a têm? e esses como terão estilo? A resposta é fácil. Aqueles que não tiverem imaginação passarão sem ela. Há um estilo de ideais, um estilo abstracto, um estilo seco, formado de nítida solidez e de pensamento puro, que é admirável! É a questão de se escolherem outros assuntos. Pascal, ainda que tivesse apenas escrito as Províncias, seria grande escritor. O Emílio, de Rousseau, é uma obra-prima de língua literária. La-Bruyêre e principalmente Montesquieu são, neste género, modelos imortais.
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Cada um pode, portanto, escrever conforme as suas faculdades pessoais. Esta poderá apresentar discussões abstractas. Aquele poderá descrever a natureza, abeirar-se do romance, dialogar situações. Se não vê claramente as suas aptidões, se se embaraça na alocuçâo, consultará amigos competentes e, em último caso, este livro, que foi feito para o ajudar, para o formar e para o revelar a si próprio. Quem souber redigir uma carta, isto é, fazer uma narrativa a um amigo, deve ser capaz de escrever, por~ que uma página de composição é uma narrativa feita ao público. Quem pode escrever uma página, pode escrever dez. E quem sabe fazer uma novela deve saber fazer um livro, porque uma série de capítulos é uma série de novelas. Portanto, qualquer pessoa que tenha mediana aptidão e leitura, poderá escrever, se quiser, se souber aplicar-se, se a arte a interessar, se tiver o desejo de emitir o que vê e de descrever o que sente. A leitura não é uma ciência inatinqível, reservada a raros iniciados e que exija grandes estudos preparatórios. É uma vocação, que cada um traz consigo e que desenvolve, mais ou menos, segundo as exigências da vida e as ocasiões favoráveis. Há muita gente que escreve mal. E muita há, que poderia escrever bem, mas que não escreve e não pensa em tal. Pessoas ordinárias, mordomos como Gourville, criadas de quarto como a senhora Hausset, como [ulião,
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criado de Chateaubríand, velhos soldados, Marlob, Bernal Díaz. deixaram-nos descrições vivas e interessantes. O dom de escrever, isto é, a facilidade de exprimir o que se sente, é uma faculdade tão natural ao homem como o dom da fala. Ora, se toda a gente pode contar o que viu, por que não poderá rescrevê-lo? A escrita não é senão a transcrição da palavra falada, e é por isso que se diz que o estilo é o homem. O estilo mais bem descrito é, as mais das vezes, o estilo que se poderia falar melhor. Assim o entendia Montaigne. nastes
com o desembaraço,
Nunca
vos ímpressío-
que os aldeões
empregam
nas suas narrativas, quando se servem da sua linguagem natal? As pessoas do povo, para exprimir coisas por que passaram, têm certas palavras e originalidades de expressão e uma criação de imagens, que espantam os profissionais. Se qualquer mulher de coração, a primeira que se encontrar, escrever a alguém sobre a morte de uma pessoa querida, fará uma admirável narrativa, que nenhum escritor poderá imitar, quer seja Chateaubriand, quer seja Shakespeare. Afonso Daudet e Goncourt procuraram por toda a parte, em volta de si, esse som do verdadeiro inimitáveI. Goncourt copiava servilmente os diálogos que ouvia. As mais belas palavras de Manon Lescaut foram pronunciadas certamente. Uma ocasião, ouvi um camponês comparar o ruído
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do trovão com o ruído que fazia «um bocado de pano que se rasgava». As nossas antigas canções populares. de que G. Doncieux nos prepara uma sábia reconstituição e uma edição definitiva. são obra anónima de poetas obscuros. Portanto. se toda a gente pode escrever. com muita mais razão o podem fazer as pessoas medianamente cultas. as pessoas que têm leitura e que amam o estilo. a gente moça que faz versos elegantes ou regista os seus pensamentos num diário íntimo. Há certa classe de gente. que. dirigida e ensinada, poderia determinar e aumentar as suas aptidões. e ter talento. até. Muitos ignoram as suas forças. porque nunca as experimentaram. e estão mesmo longe de imaginar que poderiam escrever. Outros. mal ajudados ou dissuadidos da sua vocação. desanimam por se reconhecerem medíocres, sem um guia que 'os aperfeiçoe. Conheci três mulheres. que nunca tinham escrito uma linha e que sorriam de incredulidade. quando as aconselhei a escrever. Supunham-se incapazes de ter talento. Decidiram-se a começar o seu diário. segundo preceitos e fórmulas técnicas. e hoje fazem descrições vivas. em relevo. muito notáveis. que sõmente a sua modéstia se obstina em conservar inéditas. Quase todas as pessoas escrevem mal. porque não se lhes demonstrou o mecanismo do estilo. a anatomia da escrita. nem como se encontra uma imagem e se constrói uma frase. Impressionei-me sempre com a quantidade de pessoas que poderiam escrever e que não escrevem. ou escrevem
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mal. por não terem alguém que as desimpedisse das ligaduras, em que 'estão comprimidas. Há estilos ínexperientes, que espalham pérolas e ouro e fazem surgir plantas vivazes por entre as ervas incultas. Descobrir nada
o Filão, tirar o diamante.
sachar
a terra,
é, e é tudo.
Quando se refazem as frases, quando se descobrem as imagens, quando se limpa o estilo e quando se reunem as palavras, que estupefacção! «Nunca
ninguém
nos disse tal!»
E ficam maravilhados
de ver o precipitado
verda-
deiro. sólido. brilhante. que é só deles. e que se mostra no fundo do cadinho, depois da operação. A necessidade
de um guia é absoluta
para as nature-
zas vulgares. porque então não se trata de génios. nem de futuros grandes homens. aos quais nada se ensina, porque prescindem de tudo, mas daqueles que têm uma vocação vulgar, e que podem duplicar o talento pelo esforço
e pelos conselhos . a sua criada; Racine consultava
Molíére interrogava Boileau. Flaubert
ouvia Bouilhet.
Chateaubriand sujeitava-se a Fontanes. Resolvi ser guia, para aqueles que não podem ter outros. Há quinze anos que luto com as palavras e que escrevo romances, novelas e artigos de crítica, feitos e refeitos, com encarniçamento. A minha experiência pessoal pouco vale certamente. Parece contudo que eu poderia ser útil a outros
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e que haveria proveito em publicar o que eu tinha aprendido por mim só. O resultado destes anos de leitura e de trabalho servirá certamente àqueles que principiam a estudar a arte de escrever, àqueles que se preparam para isso profissionalmente e àqueles que querem gozar essa arte, como amadores.
Lição Segunda Os Manuais de Literatura Os Manuais de Literatura. - O que eles deveriam ensinar.Ensinam a escrever? - As demonstrações técnicas. - Há um estilo único? - Como conhecer as nossas próprias aptidões?
Os antigos Manuais de literatura alongavam-se desmedidamente em frisar as diferenças dos diversos estilos, o estilo simples, o estilo figurado, o estilo moderado. Pesavam e discutiam a força das expressões, a qualidade das imagens. Ensinavam a distinguir o género épico do género dramático, lírico, dídáctíco, Insistiam sobre os caracteres da ode ou da epopeia. Nada disto tem proveito, nem vale a pena ocuparmo-nos de tal. Também insistiam muito sobre o estudo dos modelos, dizendo:
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eFormat-vos, estudando-os: tratai de escrever tão bem como eles.» Decerto é excelente coisa estudar as obras-primas. A admiração conduz à imitação, e a imitação é um meio de assimilar as belezas alheias. Mas apontavam-se mais as perfeições que os defeitos. Como o leitor se inclina para escrever coisas medíocres, é o exemplo das coisas mediocremente escritas que se lhe deve apresentar para as evitar. que se lhe deve mostrar são as frases más que se podem tornar boas, e dizer por que é que elas são más e como se tornam boas. Não compreenderão o que é escrever bem, senão depois de lhe terem exposto o que é escrever mal. A verdade é que é preciso desarticular o estilo e os processos, ir ao fundo, fazer sair o músculo, decompor a sensação e a imagem, ensinar como se constrói um período, mostrar principalmente os resultados que se podem obter pelo esforço, pelo trabalho e pela vontade. Nisso é que está tudo. Não se calcula o partido que se pode tirar de um pedaço de prosa ordinária, repelindo-lhe a feitura, refazendo-a, aperfeiçoando-a. É no que se cifra toda a ciência de escrever; e é nisto que vem a propósito o papel de um guia prático. É verdade que é melindroso o quererem ensinar-nos a escrever, quando quem ensina não é escritor, consagrado pela admiração que desperta. Em tais condições, porém, poucas pessoas seriam capazes de tal papel, .. Decerto nos perdoareis que o tentemos, a julgar pela quantidade de pessoas que se inculcam professoras de estilo.
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Quantos Manuais! Quantos Conselhos! Quantos Cursos! Quantos volumes profissionais! Consultem os catálogos das livrarias clássicas. A maior parte dos autores, que empreendem tal tarefa. estão longe de ser notáveis escritores. Têm apenas erudição, um juízo claro e gosto. Visto que isto basta para justificar a pretensão deles. não vejo motivo para me abster de publicar também um Manual prático e técnico de literatura. Eu sei que muita gente supõe a arte inacessível e
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indemonstréoel, «Ensinar a escrever!» Que loucura! Não se ensina a escrever! O estilo é um dom. Ou se possui ou se não possui. Cada um sente como pode. Escrever é um caso de inspiração. A criação das palavras e a arte das expressões são qualidades inatas. Os conselhos podem alimentar o fogo sagrado. preparar a cultura das qualidades. dispor um pouco o terreno produtivo. Mas nunca se aprenderá a descobrir belos pensamentos ou frases originais. Há nisto porém uma confusão. Não se ensinará. a ninguém, a ser Bossuet ou Ésquilor mas há na arte de escrever uma parte demonstrativa. um lado profissão, de uma extrema importância, uma ciência técnica. uma espécie de trabalho minucioso
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e profundo, que fornece quase tantos recursos como a inspiração. Admiram-se muitas vezes belezas, que são devidas a combinações de palavras, à habilidade da estrutura, assim como a acasos e impressões inesperadas. Os resultados de uma longa experiência, podem formar, portanto, um curso de lições aproveitáveis. Há qualidades adquiridas e qualidades a adquirir. Aquelas que se podem adquirir ultrapassam talvez
aquelas que se possuem. Sem dúvida, uma parte da arte de escrever não se aprende, mas outra parte aprende-se. É por falta de trabalho que tanta gente escreve mal. O trabalho ajuda a inspiração. Foi ele que a fez frutificar e é por ele que se consegue progredir. Se é verdade que o génio não é mais que uma longa paciência, digamos em alta voz que a arte de escrever se pode aprender com tempo, pacientemente! Não se trata, bem entendido, de dar fórmulas exactas, regras matemáticas, receitas infalíveis para conjurar as dificuldades e encontrar as belezas fictícias. Trata-se de decompor a forma, de analisar os amba'ges e as expressões, de fornecer aos leitores a verdadeira revelação do estilo, o ãngulo onde é preciso vê-Io. O ensino, que nós concebemos, lucraria sem ser dado de viva voz; mais resultado alcançaria, se nós mesmos corrigíssemos as .composíções, feitas pelos discípulos e não extractadas dos autores, porque os exer-cícíos dos que aprendem contêm erros e inexperiências, que escassamente aparecem numa obra impressa. É fácil mostrar os processos, sobre um assunto sim-
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ples: e é difícil encontrar exemplos. inventar erros. preparar assuntos para correcção. Procuraremos desviar. o melhor possível. esse ínconveniente. Poderão dizer-nos também: «a tua pretensão de ensinar o estilo é quimérica: que estilo vais ensinar? Não há um só padrão de estilo. Cada autor tem o seu. Míchelet não escreveu como Guízot, e Bossuet não escreveu
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como Fênelon: Montesquíeu não se assemelha
a Chateaubriand. Com que direito poderás impor tal forma em vez de outra? Mas conv'irá esta ao meu temperamento? Aconselhar-me-eis estilo regularmente construido. a mim. cujo estilo é incisivo e rápido? E apontaríeis Bossuet, como modelo. a quem tenha o temperamento
de Míchelet?»
Sem dúvida.
há tantos estilos como autores.
e seria
absurdo querer impor um deles. fosse qual fosse. Não é um estilo especial que queremos propor; queremos ensinar cada estudioso a escrever bem no seu próprio estilo. Há uma arte comum a todos os estilos. São os princípios. as graduações e as consequências desta arte o que desejamos desenvolver. É essa arte o que constitui a ciência de escrever. Posto que as qualidades de escrita não sejam as mesmas em todos os autores. um bom verso de Boileau é bom pelo mesmo motivo por que é bom um verso de Vítor Hugo. Dizia Flaubert: --- « Um bom verso não tem escola.» Também um bom estilo a não tem.
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As nossas razões para admirar os mestres são sem-, pre as mesmas. Quando falo de Ésquilo, podeis crer que falo de Bossuet. Pascal não é, na maior parte dos casos, mais que um Guez de Balzac, com génio. E, à parte a eloquência, descobre-se perpetuamente Montaigne por trás de Rousseau. Certamente que não queremos obrigar ninguém a adoptar tal ou tal estilo. O que aconselharemos é que se decomponham e assimilem todos os estilos, e que depois se forme um deles. Tratai primeiro de escrever bem, e a originalidade do vosso estilo chegará por si mesma. Em todo caso, há uma tradição de estilo da língua: é a tradição clássica, a mola regular e compassada, a estrutura acadêmica e lógica, de que usou Fénelon, Rousseau, Chateaubriand, Flaubert. É uma ficção geral, e domina tudo. Eis, à priori, a forma que é preciso propor para modelo. Tranquilizai-vos, porém, que o vosso temperamento a modificará, se nascestes para a modificar, e sem esforço quebrareis esse molde, se for estreito de mais para as vossas qualidades. O epíteto trasbordará, se tíverdes a vocação do epiteto: a cor aparecerá, se tíverdes o gosto pela cor; e carreqá-la-eis, sem o querer. se amardes o empastamento. Criareis por vós próprios, o pormenor, o cambiante, a florescência do vosso talento; mas, primeiro, adoptai
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os moldes clássicos, a forma prevista e sóbria, a linha literária, a temperança, a probidade, o plano. Se as vossas qualidades contêm, em germes, florescências futuras, deixai-as germinar. Não entreis com o pé esquerdo, como se costuma dizer, e não vos estreeis com o excepcional, o exagerado, o violento e o rutilante. Se tendes vida, rompereis o ovo; mas sabei que não há desenvolvimento possível. fora do embrião ordinário. O que é preciso pois ter em mira, o que se deve atingir, é a forma resultante do génio da língua. Esta forma bastou aos mais diversos autores, aos temperamentos mais difíceis, a quem nós devemos obras como Salambô e Três Contos de Flaubert e os contos de Daudet. Esta forma acadêmica não impede Bossuet de ser um criador incomparável de palavras, e Chateaubriand de escrever, nas suas Memórias, páginas de um colorido e de uma ousadia, em que se encontra o futuro pincel de Gautier, Saint-Victor e Goncourt. Portanto, um Manual sobre a arte de escrever é possível, necessário e lógico, tomando-se por modelo a construção geral da frase, tal qual saiu do latim e tal qual a exploraram excelentes literatos durante séculos. É, em suma, a forma latina, ampliada e transformada; o estilo francês sai do latim por Amyot e Montaigne. e, como o das outras línguas românicas, pelos seus respectivos clássicos. Isto é tão certo que, mesmo em nossos dias, os nossos melhores escritores conservam, sob as suas expressões originais e as suas audácias de artistas, qualquer coisa
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do latim, uma resistência de músculos e uma nitidez de traços, que vem da língua romana universal.
A primeira condição preparatória, para escrever, conhecermo-nos, e, para isso, segundo diz Horácío, preciso examinar, estudar, saber com que fardo rão os nossos ombros. Qual é a vossa vocação?
é é
pode-
Quais são os vossos gostos? De que sois capaz? Quais são as vossas preferências? Tendes aptidão para o romance, para o diálogo. para a poesia, para a descrição? Nada é mais difícil que conhecermo-nos literàríamente. A nossa imaginação O verdadeiro
tem miragens,
que nos iludem.
germe é muitas vezes sopitado.
aparece tardiamente. Gautier e Goncourt
supunham-se
nascidos
e só
para
a
pintura. Rousseau só aos quarenta anos é que compreendeu que era escritor. H. de Balzac procurou o seu norte durantes anos. fazendo romances de aventuras. [ulqais-vos coloristas e nascestes para a análise. Éreis marinheiro, como Lati. e nascestes para escrever. Um caso nos revela a nós próprios. Nem sempre temos bom êxito naquilo que mais nos agrada. Ledes comédias. eis-vos apaixonados pelos diálogos: mas. residis na província, má condição para fazer peças teatrais. O espírito curioso faz muitas vezes o percurso dos
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conhecimentos, antes de saber com que pode, e de conhecer o seu valor. Há assimilações passageiras, que são meras ilusões. É preciso, para termos completa certeza de vocação, repetir as experiências, recomeçar as provas, mudar de exercício, passar de uma leitura a outra. Por fim, acentua-se desses
uma predilecção, traça-se um atalho em meio diversos caminhos, e, graças à intervenção de
um amigo. ao auxílio dos conselhos' e das opiniões de um companheiro inteligente, sabeis, finalmente, pouco mais ou menos, o que quereis fazer e o que podereis fazer. É preciso
sobretudo
aquilo que mais prezamos nossos defeitos.
ver bem, porque
sucede
em nós, são exactamente
que, os
Deveremos reagir, violentar-nos, contrabalançando as más tendências e dirigindo as disposições de ínteligência para o lado das qualidades reais. É raro
que se tenha
o discernimento
e a coragem
de sermos pura e simplesmente o que somos. Devemos examinar primeiramente a influência do meio em que se vive, pois é muitas vezes ele que determina e desenvolve as nossas faculdades. Se viveis na aldeia, tereis probabilidades de ser apto para descrever os costumes rústicos e incapaz para descrever os mundanos. Quando estamos muito perto das coisas que se vêem, acabamos por as não ver e não pensamos em exprimir o que melhor sabemos. É necessário um esforço, um recuo, para as notar. Se conversais bem, se possuís o espírito da conver-
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saçâo, há toda a probabilidade de que sereis orador e não escritor, e é para aquele lado que vos deveis voltar. Seria extenso enumerar as diversas hipóteses a encarar, para chegarmos ao discernimento de nós próprios. As observações e os conselhos variam para cada pessoa. E, depois, o meio, que mais luz vos ministrará a tal respeito, é a leitura.
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Lição Terceira .•...
A leitura A leitura. ~ Consequências da leitura. ~ A assimilação pela leitura. ~ A leitura é uma criação. ~ Como se deverá ler: ~ Devem ler-se muitos livros? ~ Quais os autores que se podem assimilar. - Estudo dos processos pela leitura. - Homero, . Montaigne, Balzac, Saínt-Evremond, Bossuet. Rousseau.v-> Como devemos ler? ~ Como tomar notas? - A anatomia do estilo. - A falsa análise literária. - O estilo, o oficio, o talento. - Pastichos (') e comparações técnicas.
BuHon, no seu imortal disse judiciosamente:
Discurso
acerca do estilo.
(') Não conheço em português expressão ou termo, que corresponda precisamente ao italiano pesticcio, que, propriamente, é termo de pintura, e que, afrancesado, deu pastiche. Paródia seria termo vernáculo, mas, como envolve sempre a ideia de burlesco ou ridículo, não representaria com exactídão o italiano pesticcio. Acho portanto preferível o aportuguesamento pasticho. (Nota do tredutor ),
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- «Os nossos conhecimentos são os germes das nossas produções». O talento não se inventa. - «Transfunde-se sempre por infusão». acrescenta Flaubert, que lera tudo. Rousseau. antes de escrever, lera e relera Montaigne e Plutarco. Bcssuet conhecia profundamente a Bíblia e os Padres da Igreja. É proverbial a imensa leitura de Montaigne: escrevia e falava o latim. antes de saber o francês. Chateaubriand confessa que relia continuamente Bernardim de Saínt-Píerre. Todos os grandes escritores proclamam a necessidade de ler. de ler bem. A leitura é a base da arte de escrever. Sem dúvida. pode haver excepções, exemplos de génio. uma G. Sand, escritora de improviso. Mas devemos olhar ao que é geral. Proveitosa a todos os grandes talentos. cuja vigorosa personalidade ela provou. a leitura. com mais forte razão nos é necessária a nós. os medíocres 'e os retardatários. que tanta necessidade temos de fortificar a nossa inspiração. de auxiliar a nossa cultura e de ampliar. alimentare transformar as nossas ideias. Para todos nós. o campo da imaginação está por cultivar; pode produzir. mas deve ser adubado. É quase sempre após uma leitura que se declaram as vocações literárias. porque é por ela que o nosso espírito se abre aos múltiplos recursos da arte de escrever. A leitura mostra-nos. postos em prática. os meios de execução. faz-nos ver como se trata uma situação
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difícil. como se põe comoção nas frases, como se variam as expressões. Alternadamente, passam-nos por diante dos olhos cenas bem executadas, descrições fortes, diálogos perfeitos, maleabilidades de espírito; os processos de estilo, os efeitos idênticos, obtidos por combinações diversas; os exemplos dos estilos mais opostos, os infinitos cambiantes de uma dissemelhantes.
ciência,
aplicada
por
temperamentos
Despertam-se as subtilezas na nossa inteligência: a nossa imaginaçãoexcita~se; opera-se a assimilação. É uma longa criação, uma segunda natureza que nos advém, o desabrochar motivado e fecundo das nossas
qualidades
nativas.
Pode-se afirmar que o homem que não lê é incapaz de ccnhecer as suas forças e ignorará sempre o que pode produzir. Não me cansarei de repetir: é preciso ler, ler sempre. Desconfiai daqueles que dizem: «Nada quero conhecer; nada quero ler: basta-me a natureza». Arriscam-se a nunca produzir coisa boa e a refazer o que já está feito; porque há-de confessar-se, ao menos, nos põe em guarda
contra
e processos já explorados. Quereis saber se tereis talento?
que a leitura
Lede!
os assuntos
Os livros vo-lo dirão. Escreveis, mas suspendestes a escrita? Ledel Os livros vos inspirarão. Lede, quando quiserdes escrever; lede, quando não puderdes escrever. O talento não é mais que uma assimilação.
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É preciso ler o que os outros escrevem, a fim de escrevermos para ser lidos também. A leitura dissipa a monotonia. activa as faculdades, descrisalída a inteligência e põe em liberdade a imaginação. Sei de alguns literatos abalizados, que nunca se entregam ao trabalho sem ter lido algumas páginas de um' grande escritor, -- meio excelente para encontrar a inspiração. A leitura é o grande segredo. Ensina tudo, desde a ortografia até às construções de frases. Devem ler-se muitos livros ou poucos? Pergunta importante e delicada. As leituras dispersas não têm proveito, assim como a leitura de um só autor, por uma estreita assimilação, faz cair no pasticho e transfunde-nos os defeitos de um escritor. Foi o que sucedeu a Lamennaís, no seu Ensaio sobre a Indiferença, em que a imitação de Rousseau é frisante. As mesmas frases, os mesmos rodeios, as mesmas antiteses, as mesmas veemências, a mesma linguagem. O timeo hominem unius libri é um velho adágio. Eu receio o homem que lê só um livro: Sem dúvida, se esse livro é a Bíblia ou Homero, vastas florestas inesgotáveis de variedades e profundezas, em que se encontram todos os gênios e todas as escolas, o perigo não é sensível. Mas, fora essas grandes obras, é preciso, creio, muita prudência e tacto, se vos quereís prender à leitura de um só livro, para não cairdes nos inconvenientes que assinalamos. Demais, como disse Spencer, há estômagos que con-
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A ARTE DE ESCREVER
têm muitos alimentos e nada digerem. enquanto outros absorvem pouco e digerem tudo. Séneca não queria que se lesse muito. Via uma depravação de apetite numa curiosidade muito complexa. e entendia que querer ler tudo é correr o risco de apenas percorrer tudo. Segundo ele. não se pode entrar na substância de um autor, se não com uma Irequência assídua. cujo proveito só se desenvolve demoradamente; e conclui os seus conselhos a Lucílío, ensinando-lhe que faça escolha entre os melhores autores. É a regra mais sensata e devemos quíar-nos por ela. Mas, que autores deveremos escolher? Aqui é que as opiniões divergem. Em primeiro lugar, para se formar a aptidão, para se possuir lance de olhos literário, completo. para despertar as faculdades criadoras e as disposições imaginativas, é necessário absolutamente ler muito, ler todos os bons autores, que possamos ler. Depois, escolhem-se os melhores e. entre os melhores, não os primeiros. nem ainda os mais puros e os mais simples, mas aqueles que estão em mais relação com as nossas tendências, principalmente aqueles que nos podem aproveitar dírectamente, aqueles que se podem assimilar, porque há autores que são essimiléveis e outros que o não são. Esta distinção tem extrema importância para quem quer aprender, pràticamente, a escrever e não a atacar durante anos, através dos autores. É preciso ler os mestres. mas que mestres? Vamos tratar de os indicar. sem nos preocuparmos com os assuntos, com o lado social ou moral. com o
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valor filosófico ou com a influência das obras. tendo aqui em vista apenas a profissão. a arte de escrever. o proveito imediato. que se pode tirar da leitura. Até agora. tem-se desprezado o lado da utilidade prática; só se vêem na leitura modelos de elevação geral. mais proposto à admiração do espírito. do que à efectívação da faculdade de escrever. Costumam dizer: Para vos ilustrardes. lede La-Fontaine, Molíêre, Corneille, etc. Eis aqui quatro autores que nos mostram até que perfeição se elevou a arte literária. mas cuja leitura. receio eu. se arrisca a ficar sem proveito imediato. quanto à formação do vosso estilo. Passaríeis anos a ler La-Fontaíne, que nada lucraríeis com isso. e por uma razão bem simples: é que La-Fontaíne é inimitável: levou consigo. para a sepultura. o segredo da sua arte; é impossível saber-se como ele construiu as suas frases. com que engenho e com que trabalho (1) ele obteve tal concisão e tal relevo. Além disto. há ainda nele um requinte. uma malcabílidade de espírito original, um não sei quê de humorismo. que ninguém poderá jamais decompor nem apropriar. Quanto a Boíleau, há nele uma perfeição de justeza e de síntese admiráveis. Mas a linguagem literária progrediu, ampliou-se. O verso clássico já não é possível; os rios não sobem para as suas nascentes. A arte não é estacionária; o molde de Boileau foi
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Ele refazia dez ou doze vezes cada fábula.
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posto de lado; quem o imitasse cairia na insipidez e no anacronismo. Quanto a energia e sobriedade, podemos achá-Ias noutros. Relativamente a Molíêre, este oferece mais vantagens na essência, do que na forma, pela profundeza da sua observação assombrosa, e pelo seu diálogo eternamente humano, --- ainda que contornando embora rudemente o verso, talvez tenha feito, a par de Comeílle. os versos mais felizes, mais belos e os mais surpreendentes da língua francesa. A admiração que tivermos por Corneílle é igualmente mais objectiva. Nós é que vamos para ele, e ele não vem para nós. De um modo geral é melhor começar por ler o que é simples, clássico, sincero, puro, de pensamento e sentimento recto, para dar ao gosto e às ideias a rectídão e a clareza que são a base das grandes obras. Mas, quanto à prática, para a assimilação técnica e proveito urgente, devemos ler principalmente os autores que nos deixam ver os seus processos, em que possamos discernir os meios de trabalho, os artifícios de estrutura, os pormenores do estilo, a ciência da expressão; em que possamos avaliar o esforço representado nas justaposições empolgantes; ver como se obtém a intensidade e o relevo; o ponto, em que nos devemos colocar, para fazer ressair as idéias: a habilidade necessária para ampliar, imprimir movimento, etc. Saber ver é a grande palavra da escrita literária; e saber como é preciso ver, é quase o mesmo que saber como é necesserto exprimir. À frente dos autores que podem ministrar este
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género de ensino, deve colocar-se Homero, que é sempre o maior escritor de todos os tempos. É nele que se encontra o primeiro modelo de vida na descrição. Se não lestes Homero. não sabereis nunca o que é o verdadeiro realismo e a arte de escrever. Voltemos a este ponto, analisando as suas descri-ções; mas, fiquemos sabendo, desde já, que nunca ninguém excedeu Homero a tal respeito. Há nele germes de todas as escolas; tem comoção, elcquência, piedade, observação, pintura' e colorido, a tal ponto, que Homero é o eterno modelo da arte de escrever. Homero porém não produz todo o seu efeito, senão numa boa tradução. As de Bítaubé e de M.me Dacier são frouxas. Há apenas uma tradução, que dá a sensação de -o seu relevo, o seu realismo, o seu vigor e suavidade, e que o torna vivo para nós, como um livro contemporãneo : é a tradução de Leconte de Lísle, apesar das suas infidelidades, das suas manias bárbaras, das suas aíectações de arcaísmo, das suas durezas de construção, e apesar até dos seus contra-sensos. Para vos convencerdes disto, bastará que compareis aquelas traduções entre si, como nós fizemos. Cotejámos a de Leconte de Lisle com o texto grego, palavra por palavra. Nenhuma tradução dá melhor do que esta a sen.sação do original. posto que o estilo de Homero tenha uma fluidez, que ninguém poderá exprimir. Montaigne é igualmente um tesouro de desc~bri~ mentes e de ensinos; nunca ninguém praticou o francês
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com mais fecundidade; encontram-se nele todos os gêneros e todos os estilos. Rousseau, Pascal, Balzac, Saínt-Bvremond estão em Montaigne, que mostra em cada página o partido que se pode tirar de um pensamento, como este se desenvolve, como se exprime todo o valor dele, fazendo-o brilhar nas suas facetas, decompondo-o, partindo-o, em embates e faíscas. Nenhuma leitura pode substituir a leitura de Montaigne. Guez de Balzac é também muito útil, é o Malherbe da prosa; fixou o estilo francês antes das Provinciais e antes dos Pensamentos de Pascal. Posto que insuportàvelmente pretensioso por vezes, é um curioso escritor, mais brilhante que profundo, mais espirituoso que eloquente, mas de um extremo relevo de pensamentos e de uma harmonia delicada. Aqueles que o desdenharam leram-no mal. O seu estilo produz tal efeito, que o acusaram de ser apenas retórico, e Saínt-Beuve disse que o poderiam imitar perfeitamente. Mais uma razão para o lerdes bem e o assimilardes. Compete-vos a vós não ficar no seu molde. uma vez recebida a impressão. Não deixarei de recomendar também a leitura de Saínt-Evremond, embora autor secundário; mas não deveis demorar-vos com ele, e bastará limitar-vos a alguns dos seus Entretenimentos, e às suas Considerações sobre os Romanos, que parecem preanunciar Montesquieu. Temos o divino Bossuet, o maior criador de palavras e de expressões, o mais admirávelestilista, que
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existe na língua francesa. Verbos. substantivos. epitetos, união de palavras. imagens formidáveis. tudo extrai do seu engenho. Ê um deslumbramento em cada página. um trajo fulgurante com que veste pensamentos colossais. Suscitar-vos-à a imaginação. despertará em vós os ger~ mes do estilo e dará à vossa faculdade de escrever permanente ebulição. Devem ler-se principalmente os seus Sermões. Em seguida. temos Rousseau, um autor eminentemente assimilável. Acautelaí-vos com os seus paradoxos; o erro tem nele visos de verdade; mas a sua forma é admirável e o processo sem disfarces. Ponhamos de parte a Profissão de fé do Vigário Seboieno, as mais belas páginas da nossa literatura. talvez, mas que contém confissões de incredulidade. que não estão ao alcance de todos os olhos. Uma boa compilação dos seus fragmentos escolhidos é um livro indispensável. cujo estudo vos formará melhor o estilo que os melhores tratados teóricos. Depois destes autores. como a cor e a imagem são necessárias, aconselharemos a leitura de Chateaubríand, pai de toda a nossa escola contemporânea e dos nossos mais recentes escritores. Há nas suas obras uma parte que envelheceu, como os N etchez: mas uma parte permaneceu jovem e nunca envelhecerá: é o que ela tem de pessoal e descritiva. Atala. Renato e principalmente as suas Memórias de elém-túmulo, em que o talento atinge uma extraordinária intensidade. É o melhor livro do seu século. Eis aqui. creio eu. a escolha que há a fazer entre os autores que se devem ler tecnicamente. para proveito da forma.
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A leitura dos bons autores é, portanto, índíspensável para a formação do estilo; mas surge aqui uma pergunta importante: Como se deve ler? O proveito da leitura depende da maneira como se lê. Goethe disse: - «Não há mau trabalho, que não tenha alguma coisa de bom.» Ler, sem tomar notas, é como se nada se houvesse lido. Decorridos seis meses, não vos lembrareis do que lestes. Devorarmos tudo, vermos desfilar tudo, não nos determos em coisa nenhuma, é trabalho indigesto e confuso. E mais diríamos: «Li isso algures ... ; de quem será este trabalho? este pensamento?» Rumina-se. procura-se. fica-se aborrecido; seria necessário reler tudo. Que curiosas aproximações, que lindas paqinas se escreveriam, se pudéssemos precisar o que agita a memória, fixar o que se entrevê, localizar o que flutua! A memória é coisa oscilante. Não haveria sábios, se nos fiássemos nela. A verdadeira memória consiste, não no recordar. mas em ter, ao alcance da mão, os meios de encontrar. A primeira condição para ler bem é portanto fixar o que se quer reter, e tomar notas. Um livro que se deixa, sem ter extraído dele alguma coisa, é um livro que se não leu. Insisto na necessidade da leitura, para se criar uma
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forma. um estilo. Quanto à essência. o proveito é igual: o mesmo recordar servirá para as ideias: a inteligência assimilará os pensamentos. a imaginação reterá as ímagens e o senso estético abrangerá os contornos. os moldes. as formas. Para obter este tríplice proveito. é absolutamente necessário ler. tomando notas; e. para as tomar. há apenas um modo prático. Alguns autores aconselham que se faça escolha de trechos. para comparar os pensamentos dos escritores sobre a mesma matéria; ou escolha dos pensamentos mais salientes de tal ou tal escritor. para nos saturarmos do seu espírito e compenetrarmo-nos deles o mais possível. Estes meios. não os acho práticos; têm qualquer coisa de fictício e de insuficiente. O perigo de tal trabalho é descambar em mania. acabar por copiar tudo. o bom e o mau. e coleccionar agendas. Os espíritos medíocres imaginam que aprendem muito. copiando tudo; é um engano. Mas esse trabalho de cópia pode tornar-se excessivo. se se faz com um fim técnico. Copiar um bom fragmento de um autor é um exercício útil para a ciência da construção. O estilo. em letra redonda. embeleza-se. lisonjeia a vista e ilude; o mesmo estilo. manuscrito. produz diverso efeito; dir-se-ia que é da própria pessoa que manuscreve; parece um exercício de composição; é uma pérola que caiu de um estojo. e que se avalia em cima de um papel. Otil exercício. que me não cansarei de recomendar. Voltemos ao nosso assunto.
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Para se ler bem, devem tomar-se apontamentos; mas como? Sobre linguados de papel ou de cartão fino, díspostos alfabeticamente pelos nomes dos autores. É o único meio prático. Uma classificação por ordem de ideias dá resultados confusos; poucos cambiantes separam as ídeias: encadeiam-se, confundem-se e não nos podemos nhorear delas. Os linguados podem ter três objectivos: 1.o Notas de erudição.
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2.0 Citações notáveis. 3." A apreciação, feita por quem lê. Os linguados são indispensáveis à erudição; os sábios
os têm; sem eles, nada
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meio, num dado momento, de nos recordarmos temos lido. Resumem-se os nomes das obras, notam-se
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dos autores, as coisas que com eles se relacionam, aproximações e as recordações; são tesouros que
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amontoam; bastará relê-los, mais tarde, para que tudo, que aí apontamos, nos volte com nitidez. Graças a este meio, não é difícil ser instruído. Os sábios não o ignoram e é por isso que são modestos. Conheceís as inumeráveis notas, colocadas ao fundo das páginas, em trabalhos de erudição? É o resultado dum sistema de linguados, longa e pacientemente acurnulados. Podem-se também registar nos linguados citações notáveis, frases típicas, extractos empolgantes, expres-
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sões estudadas. o lado profissional do estilo; é nisso que estará o proveito de copiar bons autores. Depois. escrever nos linguados a própria crítica. o próprio conceito. constitui um exercício. cujas vantagens verifícareís. de dia para dia. Ledes um livro ... Que deveispensar dele? Se não tomardes apontamentos logo. esquecer-vos-eis dele. Na ordem intelectual ou puramente artística. é importante ir escrevendo. à medida que se lê. Repetímo-lo: ler. sem empregar este método. é como não haver lido. É ler como faz toda a gente. sem aspirar a ser alguém. A regra que deve dominar a preparação literária é ver tudo. tomar conta de tudo e avaliar tudo directamente. Não creiam que. para conhecer uma obra. bastará ler histórias literárias ou livros de crítica. Nenhum crítico. por mais forte que seja. substituirá jamais a leitura de um trabalho. porque são os processos. os métodos e a anatomia do estilo que diferenciam os autores. e muito poucos críticos se preocupam de nos mostrar esse lado profissional. É. pois. para isto que deveis dirigir a vossa atenção. se quiserdes examinar e analisar os escritores nas vossas notas. Notai num (Míchelet ) o emprego da síntese. para exprimir o que outro (Bossuet) dirá em longos períodos. Um procede por empastamento ou justaposições (Taíne. Goncourt. Zola); outro tem a frase colorida. mas clássica (Cha tea ubriand, FIa ubert) .
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Este (Montesquíeu}, aperta e liga frases bastante curtas. que ele faz esbarrar espiritualmente; aquele (Rousseau). tem a paixão da antítese; e aquele outro tem harmonia e majestade na sua calma (BuHon. etc.). Muitos professores aconselham que se façam análises literárias. que se resumam os assuntos. que se reduzam os desenvolvimentos à ideia-mãe, que se exponham paralelos. que se assinalem as belezas, que se examinem os caracteres, que se desenvolva o plano, que se caracterize o estilo, que se exponha a acção, que se aprecie o título. etc. Tal trabalho poderia ser frutífero, se fosse bem feito; mas os exemplos de análises literárias, que nos dão como excelentes. são executados com processos de retórica, tão superficial, que é inútil aconselhar tais exercícios. É perder tempo obrigar os principiantes a torturar o espírito. num género de estudo. que não transpõe os moldes de La Harpe. Lemos essas espécies de análises literárias, propostas pelos mestres. ou publicadas por alunos. em fragmentos de composição: análises da fábula O Carvalho e o Canavial. Os Animais Doentes de Peste, A Andorinha e os Passarinhos. Tudo se limita a repetir apreciações. como esta que é textual: -- «O plano é bem seguido ... Estes oito versos são um retrato ... É um retrato bem desenhado Eis aqui as palavras de uma pessoa idosa e prudente O poeta põe-nos a andorinha sob os olhos. Que delicadeza ele expressões naqueles dois versos! Este incidente é de um efeito encantador!. .. Escutemos os argumentos da andorinha ... Esta exclamação tem uma vivacidade empol-
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gante ... O drama vai precipitar-se
... Aquela linguagem é bem a do jovem presunçoso! Como o carácter dos passarinhos se encontra descrito ali tão naturalmente e de uma maneira empolgante!... Estes versos são encantadores! As suas expressões são cheias de delicadeza ... Esta comparação está cheia de apropósitos ... » Estas linhas são assinadas por um estudante de retórica de um liceu de Paris, aprovadas pelo mestre num dos mais modernos Cursos de Literatura escolar, aprovado pela Academia. Vede que modelos de análises! e publicadas
Tudo se reduz ali a uma paráfrase do autor; segue-se a narrativa, enqrínaldando-a de reflexões aprovadoras; é o que se chama fazer sobressair as belezas. Dão-vos
duas
ou
três
chaves,
algumas
palavras:
plano, narrativa, rapidez, cerécter, composição, andamento geral. estilo, figura, unidade de acção, etc. Experimentais as vossas chaves, uma por uma e, logo que elas serviram e todos os compartimentos ficaram fechados, está jogada a partida. É assim que se aprende a fazer análises, um padrão único, estreito e insignificante. Eis aqui outra análise,
feita também
segundo,
por um retórico:
Exame do sonho de Paulina e do sonho de AtaZia. Como estes dois sonhos se não assemelham, indicaram a diferença que há no seu alcance e nas suas consequêncías, em que intenção diferem e quais os seus efeitos. Um «põe a acção em movimento»; no outro, «gira sobre o sonho a tragédia inteira»; ambos excitam o terror e despertam funestos pressentimentos: tudo isto, pre-
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cedido de um lance de vista sobre o papel dos sonhos no teatro. Tantas reflexões, e nada de execução artística e de mérito literário! Respondereís: mas, que se há-de exigir de um mancebo, de um estudante, de uma criança? Não se lhe pode exigir um profundo conhecimento das coisas, um estudo aturado e minucioso, considerações transcendentes. Por que haveis de substituir este método? O que eu digo é que é preciso dar outra direcção às ideias do estudante, aos seus esforços, às suas aptidões de examinando. Deve-se-lhe proibir que escreva essas banalidades de apreciação, essas puerilidades, esses chavões fáceis, esses moldes, prontos a receber a forma dos pensamentos vulgares. Então, que lhe deveremos pedir? É bem simples. Isto: «Que pensais deste estilo? Donde vem a sua força? Que diria, em tal caso, um escritor ordinário? Por que processo de execução suporides que o autor tenha atingido a concisão? Em que consiste a concisão? Que frases seriam essas, se não fossem concisas? Como e porquê há vida em tal narrativa? Que é o que constitui relevo de estilo? Reconstituí esses versos, para mostrar como eles seriam, se não tivessem relevo. Em que é que o autor faz dizer às personagens o que devem dizer, e que diriam elas, sem o engenho do autor? Onde está o colorido desta narrativa? Onde está o movimento? Onde supondes que haja transições? Qual é, na vossa opinião, a passagem mais difícil de tratar? Que maleabilidade de espírito se prova nesse fragmento? De que outra forma se poderia compor? etc., etc.».
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Poderíamos enumerar um longo questionário deste género, visando essencialmente a arte de escrever. o mister. o talento. e atirando para o segundo plano a apreciação das ideias, dos sentimentos e dos pensamentos, o que é contudo necessário e que tem também a sua importância. É neste sentido prático que se deve dirigir o julgamento e as opiniões de um aluno, em vez de restringir o seu espírito a um trabalho de ideologia. Não se pensa nisso, porque ninguém pe~sa em fazer a crítica da profissão, e contentam-se em examinar as cercanias de um livro, de um fragmento, rondando em volta da casca, sem tocar na madeira, examinando a casca sem a abrir, despojando o osso «sem partir a medula». A leitura bem feita compreende não somente os linguados, notas, análises, mas uma grande quantidade de outros exercícios aproveitáveis, como as comparações, o pasticho e a transposição. Comparando fragmentos semelhantes, tratados por autores diversos, verífícar-se-á a diversidade de execução, a oposição dos estilos, as vantagens que um pode ter sobre o outro. o que será preciso acrescentar, a duplo aspecto que pode ter um assunto. Lede a tempestade, que termina Paulo e Virgínia; comparaí-a à tempestade de Chateaubriand nas suas Memórias e, para terdes uma ideia nítida da evolução da linguagem literária, ajuntai a de um escritor contemporâneo, Pedro Loti, no Pescador de Islândia. Renovai esses exercícios. Quando, nas vossas leituras, tiverdes encontrado fragmentos já discutidos, notai-os, para os terdes à
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vossa disposição e fazer sobre eles o trabalho que aconselhamos. Seria prático este género de extractos. O pasticho é igualmente um bom meio de nos prepararmos para a arte de escrever. Quando se tem aptidão para assimilar e um reflectido gosto de leitura, depressa se consegue imitar certas maneiras de estilo, as dos retratos de La-Bruyêre. por exemplo, e fazer retratos moldados sobre aqueles. Imita-se assim Rousseau, Bossuet, La-Bruyêre, Montesquieu. Saber imitar é aprender a não imitar mais, porque é habituarmo-nos a reconhecer a imitação e a passar sem ela, quando já não for precisa. O funâmbulo serve-se da maromba, para a poder deixar. A transposição é ainda um modo de assimilação e de maravilhosa lucidez. Pôr em prosa o que está em verso, pôr em verso o que está em prosa. Assim, convencer-se-ão de que todas as palavras, que compõem os versos de Racíne, são palavras simples, vulgares, absolutamente próprias, não rebuscadas, que se não devem substituir, e verão como se pode fazer boa poesia com as palavras usuais da nossa língua. Mais adiante demonstraremos a eficácia desses exercícios técnicos. Por agora, contentar-nos-emos com indicâ-los como aplicações de leitura, visto que é da leitura que ainda se trata.
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Lição Quarta Do estilo
Que é o estilo? - A cnaçao das palavras. - A magia das palavras. - O «Díscursos de Buffon. - A ideia e a forma são essencialmente uma só coisa. - A forma modifica sempre a ideia. - A importância da for~a. a forma que dá vida. - A forma de Homero, - O que é bem escrito e o que é mal escrito. É
Que é o estilo? estilo é a maneira privativa, que cada um tem, de expttmir o seu pensamento pela escrita ou pela palavra. Pela escrita, no escritor. Pela palavra, no orador. estilo é o cunho pessoal do talento. Quanto mais original é o estilo, quanto mais empolgante ele é, mais pessoal é o talento. estilo é a expressão, a arte da forma, que torna sensíveis as nossas ideiase os nossos sentimentos; é o meio de comunicação entre os espíritos. Não é somente o dom de exprimir os nossos pensamentos, é a arte de os tirar do nada, de os fazer nascer, de ver as suas relações, é a arte de os fecundar e de os evidenciar. estilo abrange a ideia e a forma.
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Devemo-nos persuadir de que as coisas que se dizem não impressionam senão pela maneira como se dizem. Todos nós pensamos. pouco mais ou menos. as mesmas coisas. de um modo geral; a diferença está na expressão e no estilo; este eleva o que é comum. encontra novos aspectos para o que é banal. engrandece o que é simples. fortifica o que é fraco. Escrever bem é pensar bem, sentir bem e reproduzir bem tudo ao mesmo tempo. Dizia Racine: --- «O que me distingue de Pradon é saber eu escrever.» La-Bruyêre disse: --- «Homero, Platão, Vergílio e Horácío, não estão acima dos outros escritores, senão pelas suas expressões e pelas suas imagens.» E Chateaubriand escreveu: --- «Nada vive, senão pelo estilo; embora protestem contra esta verdade, a melhor obra, cheia das melhores reflexões, morre à nascença, se lhe falta o estilo.» O estilo é a arte de aprender o valor das palavras e as relações das palavras entre si. As ídeias simples, representadas pelas palavras do dicionário, em número somente de umas 17.000, não bastam para fazer um escritor. Aquele que conhecer essas 17.000 palavras poderá. não obstante, ser incapaz de traçar uma frase. O talento não consiste em nos servirmos secamente das palavras. mas em descobrir as imagens. as sensações e os cambiantes, que resultam das suas combinações. O estilo é pois uma criação de [arma pelas ideias e uma criação de ideias pela forma.
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escritor chega a inventar palavras para indicar novas relações. O estilo é uma criação perpétua: criação de combinações. de ambaqes, de tom. de expressão. de palavras e de imagens. Quanto mais essa criação se reconhece na leitura. melhor é o escritor. A aproximação. o emprego de certas palavras dá-lhes uma magia especial. uma poesia particular. uma siqnificação nova. Guy de Maupassant diz em qualquer parte: - «As palavras têm uma alma. A maior oarte dos escritores e dos leitores só lhes pedem um sentido. É preciso encontrar essa alma. que aparece ao contacto de outras palavras. que ilumina certos livros. com uma luz desconhecida. bem difícil de fazer brotar. «Há nas aproximações e combinações da língua. escrita por certos homens. toda a evocação de um mundo poético. que o vulgo não sabe ver nem adivinhar. Quando se fala disso. zanqa-se, raciocina. argumenta. nega, grita e quer que lhe mostrem esse mundo. Seria inútil tentá-lo. Não sentindo. nunca compreenderá. Homens instruidos. inteligentes. escritores. até. admiram-se também. quando lhes falam desse mistério. que ignoram. e sorriem. encolhendo os ombros! Que importa! Eles não percebem. É como falar em música a quem não tem ouvido.» Bossuet disse: - «A graça. divina tanto chove sobre o rico como sobre o pobre.» Eis uma palavra. tomada em acepção nova e que produz uma imagem soberba. Assim este pensamento também:
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«Dormi o vosso sono, grandes da terra!» E este: «Derramar lágrimas e orações sobre um túmulo.» A palavra indeterminede, por exemplo, é uma palavra qualquer, geometricamente empregada, sem eloquêncía, sem brilho. Sob a pena de Chateaubriand, vai tomar relevo e pintará uma paisagem longínqua: - «A claridade da Lua, a sua claridade pardacenta, descia sobre os píncaros indeterminados das florestas.» A palavra repousar é trivialíssima; mas, aplicada a um objecto que não repousa, pode tornar-se magnífica: - «A lua repousava sobre as colinas longínquas» (Chateaubriand) . Há até palavras de uma frivolidade técnica, oficial, que causam grande efeito, quando um artista lhes encontra uma relação imprevista. Que haverá de mais incolor que a palavra anunciador? Eis como Pedro Loti se serve dela: - «Os tristes maçaricos, anunciadores do outono, tinham aparecido às primeiras chuvas.» Outro poderia ter dito: - «Os maçaricos, como tristes pássaros que anunciam outono, tinham aparecido ... » Era outro estilo, que não valeria o primeiro. O estilo é portanto a maneira de cada um criar expressões para patentear seu pensamento. Pode ser largo, curto, colorido, seco, abundante, vivo, periódico, conforme os temperamentos. É difuso, pálido, incolor, freixo, nos maus escritores; incisivo, nervoso, relevado, nos bons.
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É tão completa a união, entre o carácter e o estilo de um indivíduo, que bem se pode dizer realmente: o estilo é o homem. A vivacidade de palavras, a energia das concepções, o tom da própria conversação falada, a originalidade da imaginação, tudo isto se junta exactamente no estilo de um homem. O estilo é o reflexo do coração, do cérebro e do carácter. Diz Blair: - «Os povos do Oriente, em todo o tempo, carregaram os seus estilos de figuras fortes e híperbólícas: os Ateníenses, povo subtil e delicado, tinham o estilo claro, puro e correcto. Os Asiáticos, amigos do fausto e da nobreza, tinham um estilo pomposo e difuso. Notam-se hoje as mesmas diferenças entre o estilo dos Franceses, dos Espanhóis, dos Alemães e dos Ingleses.» Saber muitas coisas não basta para ser bom escrítor; o estilo é independente da erudição; por isso, dizendo que precisamos de ler muito para sermos bons escritores. .supomos. já se sabe que temos aptidões para o estilo, pelo menos uma vocação razoável e um gosto determinado. Sem isto, a maior erudição não fará encontrar um torneio de frase. Há pessoas sábias, que nunca serão escritores; e há escritores brilhantes, que pouco sabem. O saber e a arte de escrever são coisas distintas, -que não andam sempre a par. O Discurso sobre o Estilo, de Buffon, contêm as melhores páginas que temos sobre tal assunto. Nunca ninguém explicou melhor os processos de uma arte, que podemos considerar como uma ciência, nem
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expôs melhor as diversas operações do espírito. pelas quais se conseguem boas frases. Contudo, há nesse Discurso de Buffon uma tendência visível para aconselhar o emprego dos termos gerais e dar ao estilo uma espécie de andamento sintético e vivo, que constitui certos lados belos do estilo, mas que não é todo o estilo. Villemain teve razão em assinalar o carácter altamente pessoal desse Discurso. Mas que profundo sentido da beleza escrita, e que conselhos práticos! Diz Buffon que as obras bem escritas serão as únicas que passarão à posteridade. E acrescenta: - «Todas as belezas que ali se encontram, todas as relações de que o estilo é composto, são outras tantas verdades, tão úteis e talvez mais preciosas para o espírito humano, do que as que podem constituir o fundamento do assunto.» E Buffon diz ainda: - «O estilo é a ordem e o movimento, que se dão aos pensamentos.» A ordem quer dizer a lógica das ideias, o seu encadeamento, o seu fundo; o movimento quer dizer a vida, a forma; a ordem é a concentração, o andamento, o conjunto; o movimento é a imaginação, o agrado e o relevo. Aqui vem a pêlo a famosa distinção da ídeia e da forma. Uns separam-nas e diferenciam-nas. A ideia são os materiais, os pensamentos, a substância, o assunto. A forma é a expressão, o revestimento, o trajo. Donde concluem que são duas coisas separadas.
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Outros dizem: a ideia e a forma são uma só coisa; não se podem separar, como se não separa o músculo da carne, É impossível exprimir uma ideia que não tenha uma forma, como se não pode conceber que uma criatura humana não tenha alma e corpo. Quando se muda a forma, muda-se a ídeia, e, assim, a modificação da ideia arrasta a da forma. Trabalhar a forma é trabalhar a ideia: a forma cola-se à idéia. Esta teoria é verdadeira e cumpre tê-Ia presente. Em certos casos muito raros, efectívamente, a mudança da forma não altera a 'ídeía. Assim, se eu digo: chove em vez de cai água: chorar em, vez de derramar lágrimas: ajoelhar-se em vez de pôr-se de joelhos; ressoou um ruído em vez de um ruído se fez ouvir, teria empregado a melhor forma, sem ter mudado a ideia: e seria antes um sinónimo, que uma modificação de forma. Afora este género de correcções, puramente gramaticais. a ideia suporta sempre as alterações da forma. Escrevo esta frase: «Os nossos corações inebriedos do amor mundano.» Estudo-a e ponho: «Os nossos corações encantados com o amor do mundo» (Bossuet). A ídeía modificou-se segundo os matizes de uma nova forma. Encanto não é o mesmo que inebriemento, e amar o mundo não é a mesma coisa que sentir o amor mundano. Se, em vez de dizer: «Os mártires estavam animados pelo desejo de sofrer» eu digo: «Os mártires estavam animados pela avidez de sofrer» (Bossuet}, terei encon-
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trado uma expressão soberba, que alterará a ideia. porque o desejo não é a avidez (1). Em vez de se fazer essa demonstração apenas sobre .alqumas linhas, pode ser feita sobre uma página inteira, sobre duas páginas, três, etc. Eis aqui uma frase de que ressalta uma linda imagem, a propósito da noite, nas solidões da América: - «O génio dos ares sacudia nas trevas a sua .cabeleira. » Esta frase não me satisfaz; cerra-se bruscamente de mais; queria temeté-le com uma palavra, com um epiteto, que a arredondasse e a concluísse ... Procuro ... penso no céu azul e acho: - «O gênio dos ares sacudia, nas trevas, a sua .cabeleíra azul...» (Chateaubriand). O esforço, a preocupação da forma fez-me assim descobrir uma imagem, que dá, por si própria, um encanto imprevisto à ideia primitiva. Eis aqui outro pensamento. Trata-se de exprimir que as mulheres romanas são tão belas como as estátuas dos seus templos. - «Dír-se-íam estátuas dos seus templos, descidas dos seus pedestais ... » Bonita imagem, mas não me satisfaz. Quero estendê-Ia e embelezá-Ia, Ora, tudo o que eu ali acrescentar será um trabalho .de forma sobre a ideia.
(') Não quero dizer que Bossuet tenha encontrado esta expressão com um trabalho de embelezamento e um esforço extraordinário. Suponho o facto, para mostrar que modificar a forma é modificar a ideia. '",'(! li.
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Eis o que obterei: - «Dir-se-Iam as estátuas dos seus templos, descidas de seus pedestais e que em volta deles deambulassem» (Chateaubriand). E é justamente este último membro de frase o que dá à imagem todo o prestígio, todo o seu efeito. Direis que a ideia não mudou ... Oh! sim! A primeira frase é conhecida, já a lemos algures: mas a segunda, que constitui o quadro e a vida, essa é a nova e foi criada. Portanto, a forma e a ideia constituem uma só coisa. Não se pode, em geral e de maneira definitiva. tocar numa. sem alterar a outra. Quando se diz de um fragmento: - «A ideia é boa, mas a forma é má», - isto nada significa, porque o valor da forma é que torna boa a ideia. Deveria d izer-se : - «A ide ia poderia ser excelente, se a forma tosse boa», - pois é a forma que faz valer a ideia. Se exclamo: - «o Jesus! Deus crucificado!» - é um estilo nobre. mas muito conhecido. Procuro e encontro: - «o Jesus; Deus aniquilado!» (Bossuet). A expressão é magnífica, mas a ideía mudou logo, explodiu, é outra. Todos nós temos observado: trabalhando. refazendo is frases. supúnhamos nada mudar. só melhorar a forma, e eis que tudo se organiza de novo: as ideias multiplícam-se: surgem incidentes, as proporções aumentam; hmos imagens inesperadas, relações novas; tanto é
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verdade que se não pode tocar na forma sem alterar a ideia. A forma é de tal maneira separada da ideía, que a última encarnação da forma chega a não ser senão a expressão da ideía pura. Tentaí, pois, exprimir de outro modo certos pensamentos, certos versos, literàríamenteexactos, como estes:
o que bem se concebe, bem se exprime E fàcilmente ocorrem as palavras ... A razão do mais forte a que prevalece ... Nada serve o correr a quem não parte a tempo. é
A brandura faz mais do que a violência ... Parece alguma coisa, ao longe, e é nada ao pé ... Em tudo que se faz cumpre atender ao fim...
Entre outros conselhos notáveis e que se devem reter para avaliar o estilo, Buffon recomenda «que se adicione o colorido à energia do desenho». Ele quer «que se dê a cada objecto luz forte»; e exprime o desejo de que cada pensamento seja lima
imagem. Foi este último conselho que prevaleceu, quando chegou Bernardin de Saint-Píerre, Chateaubríand, Teófilo Gautier, e quando a literatura francesa estava fatigada da beleza sem colorido. Resumamos. O estilo é o esforço, com que a inteligência e a imaginação encontram matizes, relações, expressões, imagens, nas ideias e nas palavras ou na relação que elas têm entre si.
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Há neste trabalho do estilo (e é trabalho consíderável), um lado que é a ordem. a disposição, a correcção, as proporções, o equilíbrio, a boa colocação de todas as peças desse xadrez, que se chama uma frase, uma página, um capítulo. Há também outro lado, que é o movimento, a criação das palavras. das imagens, a sua combinação, donde precede a intensidade. o efeito, a energia, o jacto de luz, o relevo. Mesmo o lado disposição. a arte de colocar as palavras e de combinar as frases, é ainda uma criação. O sabor dessa criação múltipla evapora-se muitas vezes numa tradução, justamente porque constitui a essência do estilo. É o que fazia dizer a Lamotte: - «Um grande número de belezas dos antigos autores estão ligadas a expressões, que são peculiares à sua língua, ou a relações, que, não nos sendo tão familiares como a eles, nos não causam o mesmo prazer.» O cuidado da forma deve portanto preocupar. primeiro que tudo, aqueles que têm o gosto de escrever. visto que ela compreende a ideia, e é nela que está o valor de uma obra. Um autor contemporâneo, Emílío Zola, que só tem uma feição brutal de escrever, e que nunca se dignou aperfeiçoar a sua forma, protestou contra esta teoria . Diz ele: - «Não é verdade, - apesar do que diz Buffon, Boileau, Chateaubriand e Flaubert, que se obstinaram. em repetir o contrário, - não é verdade que basta possuir um estilo muito cuidado para que alguém assinale para sempre ., a sua passagem numa literatura. A forma
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A ARTE DE ESCREVER
é o que muda e o que passa mais depressa. Primeiro que tudo. é preciso que um trabalho seja vivo e só o pode ser. com a condição de ser verdadeiro. Ganha-se a imortalidade. pondo de pé criaturas vivas.» Tudo isto é falso. A criação desses seres vivos não irá à posteridade. se não foi servida por uma forma irrepreensível. Zola replica: - «Podemos julgar a perfeição do estilo de Homero e de Vergílio 1» Que o Sr. Zola não possa julqá-la, é possível. mas há quem o possa fazer e não é preciso ter estudado muito para ler Vergílio no texto. Em todo o caso. uma tradição ininterrompida de hístoriadores e de antigos autores ensina-nos que o seu estilo fazia a admiração do seu tempo. E foi justamente essa superioridade de forma que os imortalizou. Se os seus versos tivessem sido maus. os seus contemporâneos não os teriam fixado; e. se o seu estilo tivesse sido medíocre. as suas obras não chegariam até nós. Não existe nenhuma obra-prima sem forma cuidada; e um trabalho mal escrito não pode subsistir. pela razão de que até nós nada chegou que fosse mal feito. Dom Ouixote, que é um modelo de obra viva. é também um modelo de estilo. um modelo de perfeição escrita. única no seu género em Espanha. Objectam ainda: «Quando lemos Homero, não é a sua forma que lemos. é uma tradução. Só temos a sua ideía. A forma não se identifica com a ideia.»
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A ARTE DE ESCREVER 'O
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Mas, pelo contrário: foi precisamente a forma o que salvaguardou a ideia; e não possuiríamos provàvelmente a ideia, se a forma não tivesse sido perfeita. Neste caso, se quiserem, podem separá-Ias um pouco, visto tratar-se de uma tradução. Fica sempre o que se pode conservar. As melhores traduções são as que mais observam o original. Em todo caso, quando se trata de obras-primas. a forma está de tal maneira ligada com a ideia, que até a ideia fica prejudicada, logo que desaparece o encanto do texto. Eis por que, numa boa tradução, as descrições de Homero são tão vivas como qualquer página dos nossos melhores autores contemporâneos. Afora estes princípios, que é preciso olhar como verdades absolutas, não se pode ministrar senão uma vaga apreciação do estilo. É preciso termos, como diz Pascal, acertado o nosso relógio, e não fazer caso daqueles que regulam mal. La-Bruyére disse: - «Há bom gosto e mau gosto, e pode, a tal respeito, discutir-se.» Nada há de mais vulgar que os juizos e frases Icitas. Julgamos dizer bem, quando dizemos por acaso: - «Isto está bem escrito; isto está mal escrito; Fênelon escreve bem; Díderot escreve mal; Merimée é grande escritor», etc. Que é o que está bem escrito? Que é o que está mal escrito? Eis aqui três citações tiradas de três autores diferentes, e que podem, desde já, dar a impressão geral de um estilo bem escrito.
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Sobre o homem Desejamos a verdade. e só encontramos incertezas em nós. Procuramos a felicidade e só encontramos a miséria e a morte. Somos incapazes de não desejar a verdade e a ventura. e não somos capazes de certeza nem de ventura. O homem não sabe em que ponto se deverá fixar. E: claramente transviado. e cai do seu verdadeiro lugar (') sem poder tornar a encontrá-lo. Procura-o por toda a parte. com inquietação e sem resultado. em trevas impenetráveis. Se se lisonjeia. abato-o eu; se se abate. lisonjeio-o eu. E contradigo-o sempre até que ele compreenda que é um monstro incompreensível.
i
Pensamentos).
(PASCAL.
o
nascer do Sol
Na planície de Sallsburqo, no dia 24. de manhã (Setembro. 1833). o Sol apareceu a Leste das montanhas que eu deixava para trás de mim. Alguns cabeços de rochedos. no Ocidente. iluminavam-se com os seus primeiros clarões. extremamente suaves. A sombra pairava ainda na planície. meio verde. meio lavrada. O castelo de Salísburqo, ampliando o cume do montículo, que domina a cidade. incrustava no céu azul o seu relevo branco. Com a ascensão do Scl, emergiam do seio da fresca evaporação do orvalho as avenidas. os bosques. as casas de tijolos vermelhos. as cabanas revestidas de cal brilhante. as torres da Idade Média. acuminadas e Iencstradas, velhos campeões das idades. feridos na cabeça e no peito. ali sozinhos e de pé. no campo de batalha dos séculos.
(')
,
~
«O homem é um Deus caído. que se lembra dos céus»
(LAMARTlNE)
•
-"--- .. -----------_.
L
A ARTE DE ESCREVER
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A claridade outonal daquele cenarro tinha a cor víolácea dos cólquicos, que se ostentam naquela estação e de que estavam exornados os campos de Salza, Os corvos em bando, deixando as heras e as ruínas, desciam sobre os alqueives; e as suas asas, de reflexos ondeados, recebiam da alvorada cambiantes de rosa. Memórias de Além-Túmulo. a Praga, de 20 a 26 de Setembro de 1833).
(CHATEAUBRIAND,
Pádua
A
Diário
de
beira de um lago
Quando se aproximava a noite, eu descia da cumeeira da ilha ia sentar-me, de bom grado, à beira do lago, sobre a praia. nalgum sítio oculto; ali, o ruído das vagas e a agitação da água, atraindo-me os sentidos e expulsando-me da alma qualquer outra agitação, mergulhava-a num delicioso devaneio. em que a noite me surpreendia muitas vezes, sem que eu desse por tal. O fluxo e o refluxo da água. o seu ruído continuo. mas a!teado a reveses, ferindo sem cessar o meu ouvido e os meus olhos, substituíam os movímentos interiores, que o devaneio apagava em mim, e bastavam para me fazer sentir com prazer a mínha existência, sem me incomodar a pensar. De vez em quando. surgia em mim alguma froixa e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo. de que a superfície das águas me exibia a imagem. Mas logo essas impressões ligeiras se apagavam na uniformidade do movimento contínuo, que me embalava, e que. sem nenhum concurso activo da minha alma, não deixava de me prender, a pontos de que. chamado pela hora e pelo sinal combinado, não podia arrancar-me dali. sem esforço. I'
(RoUSSEA U.
Devaneios).
p A ARTE DE ESCREVER
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lição Quinta A originalidade do estilo
Falsa
divisão os
dos
trivialidade. O
estilos
estilo
~ de
expressões
O
estilo
Merimée. vulqares.
esforço. ~ A palavra para
e dos
estilos. ~ Or iqínalidade
adquirir
pensamentos. do
falso. ~
~ Como
~ As simples
~ Por
estilo. ~ A
frases
O
estilo
corrigir
variam e
inex prcssivo.
o mau
feitas. ~ O
e a palavra
que
originalidade
natural.
a ~
estilo? ~ As natural
e
o
~ Processo
originalidade.
A maior parte dos tratados de literatura contêm a respeito do estilo exposições e análises teóricas. Imaqina-se fazer obra de ensino prático. decompondo. como dizem. os elementos do estilo e as suas qualidades. elementos gerais. elementos particulares. qualidades gerais. qualidades particulares: a claridade,' a pureza, a correcção, a elegância, a força, a neturelidede, a nobreza, a riqueza, a magnificência. Há também figuras de palavras e figuras de pensamentos; temos pensamentos vigorosos. justos. delícados, naturais; depois a catacrese, a alegoria. a elipse, a sinédoque, a prosopopeia, a onomatopeía, o pleonasmo, a antonomásia. É inútil procurar coisas dessas neste nosso trabalho. Evitamos. com cuidado. tudo que se assemelha a
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p
A ARTE DE ESCREVER
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uma divisão fictícia, toda a espécie de classificação e de repartição. Este livro não se fez para ensinar o que é um pensamento vigoroso ou um pensamento delicado, o que é a clareza, o que é o mimo e a naturalidade. Estas distinções sobrecarregam a memória. nada ensinam e são essencialmente arbitrárias. Porque enfim, um pensamento vigoroso é também um pensamento verdadeiro e não conheço pensamento justo. que não seja ao mesmo tempo um pensamento natural; nem pensamento sublime. que não seja ao mesmo tempo um pensamento vigoroso. verdadeiro. natural e justo . Sucede o mesmo com os estilos. É falso que sejam restritos, numerados e classificados em estilo simples, estilo moderado, estilo sublime, etc, Muitas vezes o estilo é simples, porque é sublime; em todo o caso, simples ou sublime, deve ser sempre natural. Não há estilo [lorido, como não há estilo temperado. São invenções gramaticais, de que se deveria, de uma vez por todas desembaraçar o ensino. Que há estilos apropriados ao assunto, é tudo que se pode dizer; ou tons de estilo, tons pessoais, tons diversos, segundo a elevação, a inspiração, o autor, o assunto, o fim que se tem em mira. É supérfluo ensinar que as principais qualidades do estilo são: 1.o a clareza: 2. a pureza. etc. Isto é: deve-se escrever para se compreender, deve-se escrever em boa linguagem, duas coisas evidcntissimas. O estilo difere, con forme os assuntos. e alqumas 0
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A ARTE DE ESCREVER
vezes. conforme os géneros; mas os géneros têm uma tendência para se confundir. Se os queremos distinguir. acabam por se juntar. O espírito clássico não admitia o estilo familiar nas tragédias. Contudo. vemo-lo em Shakespeare, que vale bem Corneille. Condilac observa: - «O estilo varia infinitamente, e varia algumas vezes por meio de cambiantes tão imperceptíveis, que não é possível marcar a transição de uns para os outros. Em tal caso, não há regras para nos certificarmos do efeito das cores. que se empregam; cada qual forma diversamente o seu conceito. porque este se forma segundo os hábitos que temos contraído; e. muitas vezes. custa bastante rejeitar os juizos que ocorrem. «Supomos que temos ideías absolutas acerca de tudo de que falamos. a ponto de ser preciso reflectir, para notar que as palavras grande e pequeno não significam senão ideias relativas. «Assim. quando dizemos que Racine, Boileau, Bossuet e Sevigné escreveram naturalmente, somos levados a tomar esta palavra num sentido absoluto, como se a naturalidade fosse a mesma em todos os géneros, e supomos dizer sempre a mesma coisa, porque nos servimos sempre da mesma palavra.» Entretanto. algumas grandes ideías, alguns princípios gerais abraçam todos os outros, dominam a questão e devem guiar~nos no estudo dos diversos caracteres do estilo. As três qualidades. que deve ter o bom estilo e que abrangem as outras qualidades são. na minha opinião:
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A ARTE DE ESCREVER
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1.0 __ A originalidade. 2.° -- A concisão. 3.° -- A harmonia. A originalidade do estilo
-
Há o estilo vulgar. o estilo trivial. no uso de toda a gente; um estilo de chapa, cujas expressões neutras e usadas servem para todos; estilo incolor. constituído apenas de palavras de dicionário; estilo morto, sem chama. sem imagem. sem colorido. sem relevo. sem imprevisto; um estilo terra-a-terra, elegante. gramatical e inexpressivo; o estilo dos escritores que não são artistas. estilo burguês e correcto, irrepreensível e sem vida. Não é com esse estilo que se deve escrever. Se tendes de escrever como toda a gente. é inútil pegar na pena. Ora. se há estilo trivial. deve haver também estilo original. visto que a originalidade é o contrário da trivialidade. Diz-se correntemente: -- «Jogo de frases originais. expressões oriqínais, imagens originais». qualidades que constituem precisamente o estilo original. aquele que surpreende. que impressiona. que seduz. que tem o seu cunho pessoal. A originalidade está principalmente na maneira de dizer as coisas, de exprimir as ideias. de fazer valer a ideia. A originalidade deve ser, portanto. considerada como a grande. a geral. a essencial qualidade do estilo. É preciso. pois. desde já. abandonar os preconceitos escolares e fazer nova idéia do estilo.
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P
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A ARTE DE ESCREVER
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Nos colégios, dizem o que ele deve ser, mas não o mostram. Bem sabemos que devemos escrever como Bossuet (pouco mais ou menos, bem entendido), e não corno Fénelon. no seu Telémaco; mas como? Rondaríamos em volta da casa, sem nunca lá 'poder entrar. Boa ou má, temos uma chave. Abramos a porta. Eis aqui uma descrição de Nisard, citada como modelo num Curso Prático do estilo (10.a edição), cujo autor é professor de Retórica: Descem da colina
bosques até à beira do caminho,
e se dobra
em todas
que sobe
as suas sinuosidades;
ao longo
um pequeno
rio, oculto sob os salgueiros, corre no fundo do vale paralelamente à estrada. de forma que o viajante caminha sempre entre duas
frescuras, Há
a da sombra
também
não descem,
detêm-se
e a das águas.
na montanha
bosques
a meia encosta;
oposta; mas esses bosque : vinhas
ou prados,
espalha-
com uma extremidade, tocam nas á.quas do rio, e com a outra péo reunir-se à orla daqueles bosques. Nada mais flexível que os movimentos dessas duas pequenas montanhas; são sinuosas como o rio; ora as vedes reentrar e como que cavarem-se; ora salientarem-se em cotovelos; ora traçarem uma linha recte, que quebram bruscamente com um desvio. Afasdos
pela
tam-se,
encosta
de novo,
aqui,
esperada,
que ocultasse
abrem-se
de
repente,
e deixam
outra
como
uma
ver o Pico do
que conserva todo o ano as suas neves. Depois, fecham-se cercam-vos,
isto durante Mais
vale
aproximam-se;
decoração Meio-Dia,
ou pelo
reduzem
o vosso
céu e o vosso
horizonte,
e
léguas. longe,
Deixais
transmuda-se
o vale,
para
entrar
o caminho. num desfiladeiro.
Outra cordilheira forma essa garganta; outro rio COrre ao fundo; a linda estrada branca mete-se por ele, apertando-se, adelgaçando-se, e continua a andar de companhia como o rio. pois é O mesmo quadro de há pouco, mas ('1:1 n~in:~tu~.1 e C0Dl (!;uer~i... dades encantadora.'.
b
l
A ARTE DE ESCREVER
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Depois de termos lido esta descrição, não ficamos mais adiantados; nada se vê, nada está pintado. É uma página do guia Baedeker; não uma descrição, mas uma enumeração geográfica; à direita há isto, à esquerda aquilo; depois sobe-se, depois desce-se, depois volta-se, a estrada muda, entra-se numa garganta, etc. Depois de ter citado este extracto, o professor observa: -- «Este fragmento não reúne acaso todas as qualidades que se exigem na descrição? É tão claro, tão nítido, que nos parece estar viajando. Vêem-se os objectos, tocam-se. Há uma verdade, uma exactidão irrepreensível em todo o quadro; sente-se isso sem ter feito a jornada, pela exactidão dos pormenores. Na sobriedade o mesmo mérito.» Pergunto eu, com toda a boa fé: como há-de um aluno aprender a escrever, quando lhe apresentam, como excelente, o que é detestável. e quando lhe propõem como modelo o que deveria, a todo o custo, repudiar? Eis portanto ali um exemplo de trivialidade autêntica. Toda a gente pode escrever assim, sem cor, sem evocação, sem imagens, sem pintura. É este um exemplo de estilo trivial. que se poderia chamar ordinário, e que se nos depara no mais baixo grau da escala literária. Mas há outro estilo mais distinto, elegante, cuidado, brilhante, imaginoso até, e que é também detestávelmente trivial. Eis aqui dois exemplos. Tirei o primeiro de um livro de Júlio Sandeau. e poderiam extrair-se passagens idênticas em todas as páginas dos seus livros.
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A ARTE
Vede
este
homem:
tem
DE
ESCREVER
vinte
que atê aqui só entrevia através
não mais. Entra
anos.
na vida,
dos sonhos encantados da solidão
infância decorreu à sombra do tecto peierA natureza embelou-o no seio. Deus só colocou. em torno dele. nobres e piedosos exemplos. Eí-lo que avança. escoltado por todo o ridenie cortejo. que a juventude arrasta consigo. A graça reside na sua fronte. a ilusão habita no seu seio ('); como uma flor desabrochada sob o cristal das águas, no fundo do seu olhar vê-se ::J beleza da sua alma. Crê ingenuaem que cresceu.
A sua
na! na profundeza
mente.
sem
dos vales.
esforço.
em
todas
as paixões
honestas.
nas
ternuras
sem fim, que se perpetuam para além do túmulo, nos juramentos trocados clandade das noites serenas. Só tem uma ambição, é à
o amor. sopro
Pois tão
ostentar
...
rompido.
bem!
enquanto
tudo As
Beatrizes
anjo se apresenta.
I í
demónio
ceifou
perguntais
a vós
mesmos
sob
que
preciosos tesouros acabarão de se isso é já presa de algum coração vicioso e cor-
embalsamado
esses
não nada
chegam mais
lhe
nunca resta
a tempo senão
e, quando
respigar
onde
o o
(').
Parece uma aposta ou propósito. Dír-se-ia que Júlio Sandeau procurou expressamente reunir naquela página toda a fraseologia inusitada. de par com as expressões mais repisadas e as mais rãncidas, que constituem o estilo mais trivial. Abri um livro ordinário, um romance, mais ou menos contemporâneo. É nesse estilo ómnibus que está escrito, menos a elegância, a condensaçâo. o tom, a harmonia e as qualidades que lhe pode ajuntar um autor como Sandeau, para suprir a qualidade intrínseca que lhe falta.
(')
«A
f: um belo (') t, n, pág.
fecunda verso,
Passagem 215.
ilusão
habita
principalmente citada
nas
por
no
seu
causa
Memórias
seio»,
disse
do adjectivo de
Philarete
Chéníer.
fecundo. Chasles,
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A ARTE DE ESCREVER
Eis aqui um segundo exemplo, em que esse cesso de trivialidade chega a efeitos grotescos:
pro-
Esta região montanhosa e erborizede, que se chama a Floresta Negra, em volta da qual o Reno gira, sem penetrar nela, e da qual se afasta. correndo para o Norte, esta região produz, sob a forma de um simples regato, um rio muito modesto na sua nascente, posto que destinado a tornar-se um dos dois maiores rios do mundo: é o Danúbío, Empurra-o para Leste para onde ele se dirige inclinando-se contudo um pouco ao Norte projectado nesta . última ditecçêo pelo pé estendido dos Alpes, que ele percorre até Viena. Recolhe no seu curso todas as águàs que descem dessa comprida cordilheira o que é a causa da sua súbita grandeza após tão medíocre origem. (THIERS,
Consulado,
1,
m).
Esta «reglao. que produz um rio», «sob a forma de um regato», «destinado a tornar-se ... », «o que é a causa da sua grandeza», «apesar de tão medíocre origem ... » É a última palavra de insipidez! Enfim, eis aqui uma página de outro escritor, que passa por admirável e que o foi algumas vezes. É o triunfo da chapa: Todas as suas ideias eram contusas e sucediam-se com tanta rapidez, que não tinha tempo de se deter numa só (?). Era como essa continuação de imagens, que aparecem e desaparecem à portinhola de uma carruagem, arrastada sobre uma linha férrea. Mas, assim como em meio da corrida mais impetuosa, a vista, que não distingue todos os pormenores, chega contudo a colher o cerécter geral dos lugares que atravessamos, assim também, no meio deste caos de pensamentos, que a assaltavam, M.rne Píenncs tinha uma impressão de susto e sentia-se como que arrastada num declive rápido, no meio de precipícios horríveis.
--
r 64
A ARTE DE ESCREVER
De que Max ~ amava, não podia ela duvidar. Esse amor (ela dizia: essa feição), datava de longe; mas até ali ela não se assustara com isto: entre uma devota como ela, e um libertino, como Max, elevava-se uma barreira insuperável, que a fortaleceria outrora. Posto que não fosse insensível ao prazer ou à vaidade de inspirar, um sentimento sério a um homem tão leviano, como era Max em sua opinião, ela nunca pensara que aquela afeição se pudesse tornar um dia perigosa para o seu repouso.
Ainda uma vez, eis o estilo trivial, que se deve evitar, a todo o custo. Deve euiter-se o escreverem expressões já feitas. O cunho do verdadeiro escritor é a palavra própria e a criação da expressão. Os fragmentos, que acabamos de citar, embora passem por bons, estão e ficarão mal escritos, enquanto não substituírem as suas expressões vulgares por outras mais exactas; enquanto se não puser uma só palavra, em vez de duas, duas em vez de três, três em vez de quatro, etc. Finalmente, esse estilo será mau, enquanto pudermos Iazê-lo melhor. -- Mas então, -- díreis vós, -- não há meio de escrever; as pessoas, que citais, são escritores; e a língua não se pode refundir. A crítica é fácil. Como remediar isso? Tentemos. Tomemos o último fragmento. Vamos pôr o estilo à direita, e as passagens corrrqidas à esquerda, sublinhando o que é trivial ou inútil.
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Texto
Estilo que se propõe
Todas as suas ídeias eram confusas e sucediam-se com tanta rapidez, que ela não tinha tempo de se deter numa SÓ (Quem? a rapidez?)
As suas ídeías eram tão confusas, tão rápidas, que Ela não tinha tempo para reter uma.
Era como essa continuação de imagens, que aparecem à portinhola de uma carruagem. arrastada sobre uma linha térrea.
Dir-se-ia uma continuação de imagens, desfilando à portinhola de uma carruagem de caminho de ferro.
Mas, assim como em meio da corrida mais impetuosa. a vista, que não distingue todos os pormenores, chega. contudo. a colher o carácter geral dos lugares, que a t r a v e s s a mos. assim também, no meio deste caos de pensamentos. que a assaltavam. M.me Piennes tinha uma impressão de susto e sentia-se como que arrastada num declive rápido. no meio de precipícios horríveis.
Mas, assim como em meio de uma corrida louca. a vista não distingue os pormenores e só colhe o conjunto, assim no meio deste caos de pensamentos, M.me de Piennes tinha o terror de se sentir arrastada para um precipicio.
De que Max a amasse, não podia ela duvidar. Esse amor (ela dizia: essa afeição), datava de longe: mas até ali ela não se assustara com isso.
Que Max a amava, não o duvidava. Esse amor datava de longe; mas não a assustara até ali.
Entre uma devota como ela. e um libertino como Max, elevava-se uma barreira ínsuperável, que a fortaleceria outrora.
Entre uma devota. como ela. e um libertino, como Max, elevava-se um obstáculo, que a fortaleceria outrora.
A ARTE DE ESCREVER
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Posto que não fosse insensível ao prazer ou à vaidade de inspirar um sentimento sério a um homem tão leviano, como. Max em sua opinião, ela nunca
afeição
pensara
gosa.
que
aquela
afeição
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Sensível seriamente quistar), ela
ao prazer (de seduzir,
de atrair de con-
um homem tão leviano,
nunca
pensara
se pudesse
que tornar
aquela peri-
pudesse tornar um dia perigosa para o seu repouso.
Seria mais cómodo ainda refazer os dois outros fragmentos antecedentes de Thíers e de Sandeau. É um género de demonstração, que renovaremos muitas vezes, no decurso desta obra, trabalho que é absolutamente impossível fazer-se, tomai nota, quanto ao estilo de Pascal ou de La-Bruyêre. - Mas, - observará alguém, -- na refundição que propondes, não entram senão palavras vulgares. Precisamente as verdadeiras palavras são as palavras próprias, as palavras naturais, aquelas que se não podem
substituir. O cunho da chapa, da expressão feita não é o ser simples, ordinária, já empregada; é que pode ser substituída por outra mais simples; é que, por detrás dela, há a verdadeira, a única, aquela que é preciso empregar a todo o custo. Para se dizer: chove, há-de dizer-se sempre: chove. Quanto à questão de saber por que é que Merimée, G. Sand, Feuíllet, etc., se conservaram escritores, apesar dos defeitos que assinalamos, havemos de falar nisso. É que eles tinham outra coisa para resgatar aquilo. Quanto a nós, se quisermos saber escrever, renunciemos para sempre à expressão trivial. Deve ser isto princípio absoluto.
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A ARTE DE ESCREVER
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Se adoptarmos esse estilo feito, que passa por ser estilo, podemos sem dúvida escrever como toda a gente, mas não nos tornaremos nunca escritores. Teremos os defeitos dos autores que indicamos, sem nos podermos convencer de que temos as suas qualidades. É preciso, pois, evitar, quando se escreve, toda a expressão trivial P) ou toda a perífrase, no género destas, que encontramos em escritores contemporâneos de nomeada: As expressões triviais Derramar lágrimas. Provocar
uma
Por: chorar.
discussão.
Tomar uma resolução.
Idem: Tomar uma decisão, tomar conselho, etc.
Presa de uma súbita resolução.
reinava
Por : vido.
bruscamente
resol-
Verbo para tudo: inspirar uma resolução, uma paixão; inspirar uma ideia, um pensamento, confiança.
Inspirar um sentimento.
A serenidade seu rosto.
Verbo, que serve para tudo: provocar lágrimas. provocar um incidente, provocar para duelo...
no
Idem: a abundância reinava nos seus Estados ... Luís XIV reinava na França. A ordem reina em Varsóvia.
(') Veremos mais adiante como elas se podem engrandecer e empregar.
A ARTE DE ESCREVER
68
Levar uma acusação.
Como se leva a espingarda ou um embrulho.
Fazer uma violência.
Por: violentar.
Perder o hábito.
Por:
Adquirir o hábito.
Por: acostumar-se.
A tristeza no seu rosto.
estava
pintada
Uma vermelhidão -lhe as faces.
coloriu-
desabítuar-se.
Pintada mente.
a
óleo, provável-
Por: ela corou.
Por um desses fenômenos tão frequentes.
Qual?
Obedecer apenas à sua fantasia.
O que nada significa.
Prestar
ouvido atento.
Abandonar-se sespero. Não
tardou
Por: escutar com atenção.
ao seu de-
em descobrir.
Abandonar-se à sua dor, à esperança, ao desespero. Por: reconheceu logo.
ma g n if ic a men t e
Dizeí em que consiste essa decoração. Sem isso, a expressão é nula nada mostra.
Os princípios que ele abra-
Abraçar a sua carreira, abraçar os seus pais, etc.
Salão decorado.
çara. Chegara seus desejos.
ao
Redobrar portes.
os
cúmulo
seus
dos
trans-
Ao cúmulo da felicidade, ao cúmulo da miséria, ao cúmulo do desespero! Sem significação.
A ARTE DE ESCREVER A febre da demora devorava-o.
69
Por: desesperado de esperar, a inveja devorava-o, a ambição devorava-o, a demora devorava-o!
Ele retomou o curso dos seus pensamentos.
Como fazem os rios, que retomam o seu curso.
Nenhum incidente quebrar a monotonia.
slqnifícante
vinha
Conceber por alguém uma afeição.
Ele tInha a perspicecie penetração do amor.
e a
Abandonar alguém aos rigores do seu destino.
o
seu coração despertava.
Vencer
a
sua
resistência.
Esses pensamentos, que se haviam sucedido no seu espí-' rifo. Uma
atracção
Manifestar-se
misteriosa. abertamente.
Abrir o seu coração.
Desvendar o estado da sua alma,
Linguagem abstracta, e pretensiosa.
ín-
Conceber um desí g n i o , conceber um pensamento, uma dúvida. Substantivos idênticos.
Grandes p a I a v r as, pressívas e ocas.
ínex-
A natureza desperta, a vingança desperta; a paixão, que dorme ... Chapa
de primeira ordem.
Fraseologia
inútil.
Complemento obrigatório. Servilismo. Como uma porta.
Isto nada quer dizer, se não dísserdes mais nada; e, se dízeís outra coisa, é inútil aquela.
1I
A ARTE DE ESCREVER
70 Um inimrqo encarniçado.
Epítetos obrigatórios!
implacável,
Respirar honradez.
Respirar ar puro.
Apresentar o aspecto.
Como maçã.
amor, respirar
se
apresenta
o
uma
Os seus olhos traduziam os seus pensamentos.
Os resultados que se traduzem, como se traduz Shakespeare ...
Estas palavras revelavam toda a importância que ...
Revelar a importância, como se revela um mistério ou um segredo.
Este projecto correspondia às suas ídeías.
A correspondência projecto com ideias!!!
Acariciar projecto.
um
Isto nunca significou coisa nenhuma.
Os seus olhos possuíam o poder.
Como um déspota possui o poder, em vez de: os seus olhos podiam.
.~
vagamente
Envolver numa doce atmos-
Estilo oco.
Sofrer uma impressão.
Por: experimentar.
de um
fera.
A esse primeiro sentimento sucede ...
Como Luís XIII a Henrtque IV.
O encanto .resídía em...
Como Luís XIV salhes.
do seu
Sob essa frivolidade rente dissimulavam-se .
.L...---.-.----
__
.
.~.
rosto
apa-
"--".--...-
em Ver-
F r a s e o I o g i a para dizer; essa frivolidade ocultava.
-
--
-
~~ ~;
...~.
..
~-
A ARTE DE ESCREVER Produzir
uma
71
Por impressionar.
impressão.
Cem vezes dito.
Adornada de toda a sedução,
Imprimir a dírecção da sua vida.
Imprimir uma d r e c o, imprimir um movimento. imprimir uma obra. í
Insignificante.
Adoràvelmente linda.
Mostrai
ç
ã
em
quê. Uma expressão... nos seus olhos.
se
lia
Um gosto perfeito presidirá à instalação deste aposento. Oferecer o espectáculo. A recepção que lhe estava reservada.
Insignificante.
Como a uma distribuição de prêmios. Como se oferecem confeitos. Estilo oficial.
Alegria exuberante.
Sempre!
O brilho da sua tez.
Cem vezes dito.
Uma
Epíteto obrigatório.
irresistivel
atracção.
O plano não prosseguia sem reais dificuldades. Era o complemento obrigatório de ... Despertar sões.
as suas apreen-
Delicadeza de feições.
Palavras inúteis. visto que. riscando-as. a ideía fica intacta. Estilo abominável.
Como se desperta quem dorme. Ver mais alto: o remorso desperta-se. etc. Meu Deusl Sim?
, A ARTE DE ESCREVER
72
o
encanto inesperado, que se revelava.
Ainda mais! Veja-se o que se disse acima.
Presa de uma exuberância.
Presa da alegria, presa da dor, etc.
Formavam os traços característicos da sua natureza.
Estilo estúpido.
A nova perspectiva que acabava de surgir a seus olhos.
Faustoso e prudhommesco.
Por
Indagar a hora.
perguntar
que
horas
são. Não desejo.
dissimulou o secreto
Manifestou a intenção de ...
o
Para dizer: confessou que desejava. Por: declarou que ...
conjunto das suas qualidades físicas e morais.
Como fazer uma ideia desse «conjunto»?
A sua delicadeza tornava um dever ...
Por: julgou delicadeza.
Declinar toda a responsabilidade. Ele, dever...
a
quem
incumbe
o
Assumir para si. Esse projecto, que germinava no seu espírito.
dever,
..
por
Por: recusar, abster-se.
Estilo prémios.
de
distribuição
de
Idem. Por: esse projecto, em que pensava. Poderá germinar um proiecto num espírito ou num cérebto?
:. I
+
.p
73
A ARTE DE ESCREVER Ele mente.
adivinhou
instintive-
Esses sentimentos amanheciam. A sua vida de obstáculos. Executar
Tratar
...•...
compunha-se
a sua resolução.
de
se
convencer.
Para que serve isto? é pelo instinto que se adivinha? Estilo sem nome.
Vê-se sição.
daqui essa compo-
Por: fazer resolvido.
o
que
tinha
Meu Deus. sim!
Dissipar as ilusões.
Como o vento dissipa o nevoeiro. como o fumo se díssipa, etc,
Assinar
Por: plana.
o primeiro lugar.
na
primeira
Conservar o seu ardor.
Como se conserva a cútis, a discórdia, os cabelos. ou as ilusões.
Conceber receios..
Como se concebe um pro[ecto, ou uma esperança, ou uma empresa.
Recorrer dade.
a
esta
exiremi-
Experímentava-se dia n te dessa criatura a impressão de que ela era ... Boca encantadora.
=.õllJi-. IC==--_._
colocar
-_. __ .-
Por: servir-se desse expediente. Por: essa criatura ser ...
Sempre!
-~-
parecia
·24
74
A ARTE DE ESCREVER
Um ar d~ distinção estava como espalhado por toda a sua pessoa. Exercer
sua
apresentação
Como se exerce uma profíssão.
influência.
Todas e s s a s constituíam.
Por: a era distinta.
qualidades
o
Estilo parlamentar.
desprezo que ele professava pelas mulheres.
Como se professa Matemática numa escola.
As linhas harmoniosas sua beleza.
Por: a sua beleza harmoniosa.
da
o
Sempre!
Suportar a influência.
E bordão.
Enunciar teorias.
Idem.
azul dos seus olhos. a transparência da sua tez.
Esses sentimentos nham de...
provi-
Aliviar de um peso.
Conduzir o discurso um terreno ardente.
Que peso? e por que sãmente um? por
Esgotar as conjecturas. Acaba nomia.
de dar à sua Iísío-
Um eflúvio de paixão.
Como o ouro que provém de uma mina.
Conduzí-lo pela mão. provàvelmente. Como se esgota uma fonte. Frase sem Significação.
Estilo de todos os romances; eflúvío de primavera. eflúvio de desejo ...
A ARTE DE ESCREVER Levantar mistério.
tava
uma
ponta
do
Como tampa.
75 a
ponta
de
Uma altivez que se enxersobre aquela melancolia.
Estilo de horticultura.
Por condição primeira.
Estilo de manual.
uma
Uma expressão indefinivel animou-lhe o rosto.
Deveis definir esta expressão. ou não falar dela.
Lance de olhos sedutor. espectáculo encantador. vaI e delicioso.
Em quê? Isto são epítetos nulos. enquanto não tiverdes mostrado em que consiste a sedução. a delícia ou o encanto.
Isto não quer dizer que se devem prescrever aquelas expressões. Há casos em que são necessarias, em que são belas e em que não podem ser substituídas. Assim. nestes versos célebres sobre a morte de Orfeu: «E nos antros. que gemeram. o leão derramou lágrimas ... »
Também Lefranc de Pampíqnan, duma ode célebre. atinge o sublime com expressões. que. de por si só. seriam triviais. como «o astro brilhante (o Sol). elemores insolentes, monstros bárbaros, prosseguir na car-
reira, torrentes de luz ... »
o Nilo viu os negros do deserto insultar. com os gritos mais selvagens. o astro que ilumina o universo. Gritos em vão! extravagante fúria!
A ARTE DE ESCREVER
76
Ao passo que tais bárbaros soltavam seus impotentes gritos e clamores, o Sol continuava no seu curso, difundindo torrentes de esplendores sobre aqueles obscuros blasfemadores!
Eis por que seria de uma desesperadora o primeiro verso do Lago, de Lamartine:
trivialidade
ú lago! O ano acaba de atingir o termo do seu curso,
se não fosse logo realça da pelos belos versos, seguem:
que
Perto das ondas, que ela amava tanto e que ela havia de tornar a ver, etc.
A mesma ideia, em Florian, é insípida: O Sol não começara ainda o seu percurso. (FLORIAN,
Ruth).
Já censurámos acima o emprego do verbo reinar: -- «A sequídão reina no seu rosto», como Luís XIV reinou na França, etc.». Isto não impede que o verso seguinte seja um belo verso. Trata-se
da lua:
Essa brilhante paz que reina no seu rosto. (JoÃo MORI!AS).
Deveís abster-vos também dos epítetose
__~~~
__~ •• ••__~
-==s~
~__~
frases fel-
••~
A ARTE DE ESCREVER tas, dos epítetos obrigatórios, que se julgam sáveis para acompanhar certas palavras.
77 indíspen-
Exemplos de eprtetos sabidos e insignificantes
A ironia amarga. Lágrimas amargas, etc. Expediente favorável. Horror indescritível. Um olhar frio e severo. Um delicioso devaneio. Um surdo rumor. Rosto fresco e vermelho. Sombras magníficas. (Em quê?) Um doce êxtase. Uma repulsão instintiva. (Ela é sempre instintiva). Um inimigo implacável. encarniçado. (Sempre!). Uma comoção represada. Uma tristeza grave. (Poderia ser uma tristeza alegre?) Impaciência febril. Boca bem arqueada. Doçura singular. (Em quê?) Cólera implacável. Irresistível impulso. Doçura afectuosa, bondade verdadeira (1). Altivez legítima. Excessiva reserva. Calor benéfico. Odiosos contrastes.
C) Qual é a doçura que não é afectuosa e qual a bondade que não é verdadeira?
r
78
A ARTE DE ESCREVER As alegrias inesperadas. Espírito penetrante. Progressos assustadores. Cabeleira abundante. Imperiosas exigências. Perversidade precoce. Recordação odiosa. Desespero supremo. Delicadeza nativa. etc.
•
I.
-,
.
Não se verá talvez. à primeira vista de olhos. quanto importa a abstenção de tais locuções. Mas. pegai num livro ordinário e verificareis que está escrito nesse estilo e que é por isso. apenas por isso. que ele não impressiona e que. apenas lido. é esquecido. Podem. uma ou outra vez, adoptar-se essas locuções. e achamo-Ias em bons escritores. Mas a continuidade é que produz a trivialidade e o carácter incolor de um estilo. Mas. permitido uma vez. mais vezes será permitido. E. arrastados no declive. deixamo-nos ir. pois é mais fácil escrever no estilo de toda a gente. do que ter estilo pessoal. É isso o que Bonhours chamava «falar por frases» como estas. que ele cita:
\
,. ts.1
t
·í '~
.. ,
,i.
Introduzir a desordem em ... Lançar o facho da discórdia. Ouvir a voz da honra. A severidade da justiça. Sujeito ao dominio das paixões ... A hídra da anarquia ...
A ARTE DE ESCREVER
79
Frases entanguidase ridículas, que se empregam à míngua de palavras próprias, e que conduzem a expressões grotescas, como estas: No seio da academia, no seio da assembleia... As desordens que minam a Igreja. Assediado por um dilúvio de heresias ... O horizonte político . O sol do Progresso . O campo das conjecturas . O terreno das hipóteses . O arsenal das leis... A corrente da opinião ... A aurora das nossas liberdades ...
Boileau, na sua segunda sátira, zombou aqradàvelmente deste estilo obrigatório, e do costume, que há, de reunirem estas palavras: Se a Fílís eu louvasse,
Em milagres fecunda, Junto a nenhuma outra, Seria ela. segunda. Se eu quisesse louvar objecto sem igual. Diria que é mais belo Que o asrro triunfal.
Eis aqui um exemplo do que nos daria o estilo trivial, de que citámos algumas locuções. Vamos tratar de escrever uma página, servindo-nos das expressões que assinalámos: Sem se deter em derramar lágrimas, dominado de uma resolução súbita e querendo raciocinar friamente, o Conde jurou a si mesmo não voltar a casa de seu amigo. contra quem acabavam
-rI
80
A ARTE DE ESCREVER
de formular tão terrível acusação. Compreendeu que seria obrígado a violentar-se para perder o hábito daquela casa. «Terei eu tal coragem?» Esta hesitação traduzia o seu pensamento. Consultando a dignidade do seu cerécter, à força de interrogar com ansiedade, ele, que até ali não obedecera senão à sua fantasia, não tardou em descobrir a chave dessa natureza excepcional, pela qual havia concebido desde logo tão viva admiração. Depois de se ter alargado com complacéncia sobre esses dolorosos pensamentos, que se haviam sucedido no seu espírito, seguro de vencer a atracção misteriosa que o conduzia invencioelmente para casa daquele homem, encontrou-se de súbito seu inimigo implacável, e tomou a decisão formal de se dirigir a casa da Marquesa, para lhe desvendar o estado da sua alma e pinier-lhe o seu intolerável sofrimento. Ali, envolto numa atmosfera mais doce, depois de ter suportado a desastrosa impressão dessa luta, sentiria o encanto inesperado, que aquela adorável mulher desenvolvia, para a qual o levava sempre uma invencivel atracção e cujo domínio ele suportava contra vontade, etc., etc.
Se quereis ter um longo catálogo das expressões corriqueiras, que constituem o estilo estereotipado, bastará que abrais o nosso «imortal cançonetista Béranger». Foi nesse estilo que ele escreveu as suas canções.
I I
\ Como vai devagar este navio, A que foi confiada a minha sorte! Como ele tarda em encontrar um porto, Nas praias a que aspiro! Respeitem-me a independência Os escravos da vaidade; Foi à sombra da indigência Que eu achei a liberdade. Para apagar do bárbaro os vestígios Impressos em teus campos profanados, Nunca te foi avara a Providência?
r
?••------------------------\
A ARTE DE ESCREVER
81
Contempla estes campos. Coroado de espigas numerosas, Pronto a vingar a ofensa, Tu vês que as belas artes. Honrando os seus altares. Ali gravam em traços indeléveis: _ Honra aos filhos da França. Escuta a voz da história: Que o povo antigo não terá tremido Perante ti? Qual o moderno povo. Que. invejoso da tua excelsa glória,. Por tal glória mil vezes esmagado Não tenha sido? Em balde o inglês enchera Tua balança do ouro. que os monarcas. Mendigam. por vencer seus inimigos. Ouves a voz da história? Honra aos filhos da França! Deus castiga os tiranos e os escravos: Não te sirvam de empeço, os teus prazeres; Deve sorrir ao amor a Liberdade. Ergue o teu facho e deixa Dormir a sua lança, etc. (BÉnI\NGER).
Os Filhos da França.
A originalidade é pois condição primordial. essencial. no estilo. Para a obter. é preciso evitar, absolutamente. o estilo trivial e saber bem o que é esse estilo. Acabamos de: mostrar em que ele consiste. Primeiro. no «falar por frases». nas expressões estereotipadas, que se podem substituir pela expressão justa. Com tais defeitos. ainda que haja elegância, correcçâo, pureza, só se obterá um estilo fastiento. fictício, neutro. inexpressivo e sem relevo.
82
A ARTE DE ESCREVER
Este VICIO acarreta outro, não menos perigoso: é a perífrase, que é uma círcunlocução, um circuito de palavras, para dizer extensamente uma coisa que poderia ser dita com brevidade. Perdemos um pouco, na nossa maneira actual de escrever, aquela mania da perífrase, que grassava nos séculos XVII e XVIII, e que tornou célebres Saínt-Lambert e Delille. O conhecimento de Shakespeare, e principalmente a revolução romântica, inaugurada por Vítor Huqo, desernbaraçaram, pouco a pouco, a nossa literatura da obrígação, que ela adquirira, de não chamar as coisas pelo seu nome. Hesitava-se em traduzir Otelo para o teatro, com receio do emprego da palavra lenço; e Alfredo de Vigny teve de se arrepender de a riscar, contra vontade de Ducis. João Aicard é que ousou escrever uma boa tradução do Oteio. Hoje o terreno está limpo, a palavra própria triunfa, posto que o emprego da perífrase, em certos casos, seja legítimo e bastante literário. O excesso, como sempre, é o que se deve evitar, a não ser que o pensamento nada lucre nisso, em intenção, em vivacidade ou em cor. Questão de tacto. Se Racine tivesse observado tal prudência, não teria feito versos destes: Entanto, sobre o dorso Da líquida planície. Ergue-se relervendo Uma montanha húmida.
A ARTE DE ESCREVER
83
Uma montanha húmida, que se eleva em grandes bolhas, sobre o dorso de uma planície líquida, é um anfiguri. Há pensamentos insignificantes, que não merecem, na verdade, a honra e a solenidade de uma perífrase. Levanta-te, Laódíce, E vai deitar azeite em tua lâmpada.
Seria talvez um pouco brusco e prosaico em verso. Mas é admissivel o dizer-se com Ponsard: Laódíce se ergueu e foi buscar à bilha O azeite que há-de arder na lâmpada nocturna.
Para nomear o bicho-da-seda, perífrase ridícula:
Lebrun
emprega
Apraz-rnc ainda alimentar o amigo Das ramagens de Tisbela.
E designa
assim o queijo e a porcelana: Vanves, lá onde habita Galateia, Sabe espessar as ondas, escumosas, Da 10 como leite de Amalteía: E Sevres, com mão ágil, Em que Moca nos presta o seu calor, Endurece o alabastro, branco e frágil.
Casimiro
DeJavigne,
falando
dum fiacre,
disse:
Eí-lo, incomodamente, a balouçar, sentado Sobre os nobres coxins de um carro numerado!
esta
A ARTE DE ESCREVER
84 E outro
Clássico, para
exprimir
que o rei 'vem:
Ouvem-se, então, do rei os passos imperiosos.
~
.. .\
l i· :
~
f
I
...
Buffon tinha razão em dizer: - «Nada é mais oposto ao belo natural, que o trabalho que se tem para exprimir coisas ordinárias ou comuns, de uma maneira singular ou pomposa; nada avilta mais o escritor. Lamentamo-lo por ter passado tanto tempo a fazer novas combinações de sílabas, para afinal dizer o que toda a gente diz.» Eis aqui, em compensação, uma soberba perífrase de Bossuet. para designar o confessionário: - «Estes tribunais purificam os que se acusam.» Portanto, e desde sempre, deve-se evitar a expressão e a perífrase triviais. A principal originalidade consiste em escrever com a palavra natural. com a palavra própria, a palavra simples e exacta, Essa palavra será talvez mais conhecida, mais empregada ainda que uma locução falsamente elegante, mas não será substituivel, não se poderá passar sem ela; e é o emprego dessa palavra própria, seja qual for, que IJroduz a nitidez, a correcção, o brilho do estilo e a sua energia. Alguns estilos, como os de La-Bruyêre, La RocheFoucauld, Fênelon. Montesquieu, devem todo o seu êxito àquele grande mérito. Vejam o que diz La-Bruyêre, e o exemplo que ele nos dá no seu imortal conselho: Que quereis dizer? Como? Agradar-vos-ia recomeçar?
A ARTE
85
DE ESCREVER
Adivinho finalmente; quereis dizer-me, Acis, que está frio. Por que não dízeis: está frio? Quereís significar-me que chove ou neva; dízei: chove, neva. Achaís-me de cara alegre e quereis felicitar-me por isso; dizei: acho-lhe boa cara. Mas respondereis que isto é corrente e bem claro; e que, de facto, quem não poderá dizer outro tanto? Que importa, Acis? Será grande mal ser ouvido, quando se fala, e falar como toda a gente? Uma coisa vos falta. Acis, a vós e aos vossos semelhantes; não ca\culais o que seja, e vou causar-vos espanto; uma coisa vos falta: é o espírito. Além do quê, há em vós uma coisa a mais, que é a opinião de ter mais espírito que os outros. Eis a origem do vosso pomposo qalimatias, das vossas frases confusas e das vossas grandes palavras, que nada significam. Aproxímaís-vos de um homem, ou cntrais no seu quarto; puxo-vos pelo casaco e digo-vos ao ouvido: «Não penseis em ter espírito; não o tendes nunca; é o vosso papel; tende, se puderdes, uma linguagem simples, tal qual a têm aqueles em que não encontrais nenhum espírito; talvez que então se creia que o tendes».
,.
Não se pode dizer melhor. E La-Bruyêre prega com o seu exemplo. Eis um estilo sem frases feitas. Há nele a palavra própria, a palavra que se não pode substituir. Só se atinge originalidade pela expressão criada.
pela palavra
natural
ou
As duas fazem apenas uma, nos grandes escritores: a expressão criada é neles sempre natural. parque é a palavra que era preciso encontrar, para caracterizar um cambiante novo, uma relação inédita, um pensamento raro. São ambas precisas para se ser perfeito. O inimitável La-Fontaíne é um incomparável criador do estilo.
I
,
í
I
I 1
i, i
t
86
A ARTE DE ESCREVER
A simplicidade, só por si, é que muitas vezes não tem cor, corre (I risco de se tornar pálida, Exemplo, o Telémeco, tão uniforme de tom. sem relevo. posto que bem escrito (1). Ter a simplicidade e o relevo, eis o ideal. Falaremos mais tarde do relevo. Eis aqui uma passagem de Bossuet, escrita com as palavras mais ordinárias, mais simples. menos procuradas, com palavras quase prosaicas e que ninguém pensará substituir; primeiro. porque seria difícil. e depois porque o ressalto da ideia compensa tudo. Ah! como tinhamos razão em dizer que passamos o tempo! Na verdade, passárno-lo, e passamos com ele. Todo o meu ser tem por alvo um momento; eis o que me separa do nada; esse momento decorre, e prende-me a outros; passam uns após outros; reúno-os uns após outros. tratando de me assegurar; e não reparo que me arrastam insensivelmente com eles e que faltarei ao tempo e não o tempo a mim. Eis o que é a vida; e o que é espantoso é que isso passa. em relação a mim: perante Deus, isso permanece por parte dos seus tesouros. O que eu lá tiver posto, encontrá-Ic-ei. Não gozo dos momentos desse prazer, senão durante a passagem deles; quando passam, é preciso que eu responda por eles, como se ficassem. Não basta dizer que passaram; não pensarei mais neles; sim, passaram para mim: mas, para Deus, não; ele pedirá contas deles. (BOSSUET, Sermões).
Como se vê, o natural a verdadeira energia.
e a simplicidade
constituem
C) Telémaco é um livro negativamente bem escrito, mais notável pelos defeitos, que não tem, que pelas qualidades que possui. Tem elegância sem brilho. nitidez sem relevo, correcção sem cor, a facilidade que não é original, a clareza que não brilha, etc.
A ARTE DE ESCREVER
87
Cícero disse: - «É uma arte. parecer que não temos arte. Assim como há mulheres. a quem fica bem a falta de enfeites. a elocução simples agrada-nos. mesmo sem ornatos. É uma beleza descuidada. que tem as suas graças. tanto mais comoventes, quanto menos se pensa nela... Este género não admite o ornato nem o brilho: é uma refeíção sem maqnificência, mas onde o bom gosto reina com economia: o bom gosto é a selecção.»
o
dom de escrever naturalmente não é uma aptidão inconsciente. O natural conquista-se e é quase sempre pelo trabalho que ele se cbtém. Pode até dizer-se que o natural é resultado do esforço. La-Fontaíne, por exemplo, não atingiu o inimitável natural do seu estilo. senão à força de trabalho obstinado: riscava continuamente e refazia dez a doze vezes a mesma fábula. Podeis convencer-vos disto, como Taíne, lendo os manuscr-itos do fabulista, que estão na Biblioteca Nacional. Condillac tem pois razão em dizer que "O natural consiste na facilidade de realizar uma coisa. quando. depois de ela se ter estudado, conseguimos realizá-Ia por fim. sem estudar muito. É a arte convertida em
hábito». A ilusão, que dá o natural, é que se escreveu custo. Dir-se-ía que não foi procurado e parece cada um poderia escrever assim. Ora. é o contrário que sucede .
.
~
.
~--_.-.--- -.••...
sem que
88
--
.
A ARTE DE ESCREVER
Imaqína-se poder escrever como La-Bruyêre, Pascal ou La-Fontaíne. Quando se trata disso, nove vezes sobre dez, o que se encontra é o estilo estereotipado, o estilo ordinário, que já mencionámos. Porquê? Porque foi esse o estilo mais lido, porque está na cabeça, porque não há o instinto ou a arte de nos livrarmos dele, porque se não sabe, como diz Pascal, que «a eloquêncía dispensa eloquência», e porque o melhor estilo, segundo Montaigne, vai ao fundo da ídeía, é quase «falado, quase soldadesco». Procure-se muito, para escrever. É preciso procurar, efectivamente, mas é também preciso procurar não escrever. Que fazer, para evitar o estilo trivial e atingir o relevo? Indicaremos os processos no capítulo da composição . Em todo o caso, é preciso encontrar outra coisa, escrever outra coisa, ver a ideia de outra forma, tomar outro tom. Não é muito difícil. uma vez adaptado o processo, desde que se entrou num certo trena de espírito. Vejamos, por exemplo, estas linhas de George Sand: Havia no seu rosto, de um amarelo trigueiro, na sua pupila negra e ardente, na sua boca fria e desdenhosa, no seu aspecto impassível, e até no movimento imperativo da sua mão, comprida e magra, ornada de diamantes, uma expressão de altivez arrogante e de rigor inflexível que eu nunca tinha encontrado .. (G.
Relede este fragmento. Notareis um insuportável
SAND,
A última Aldini).
balancear
de epítetos ince-
A ARTE DE ESCREVER
89
lores; cada palavra tem o seu adjectivo, que lhe pende ao lado; «rosto amarelo trigueiro. pupila negra e ardente. aspecto impassível. movimento imperativo; mão comprida e magra. altivez arrogante. rigor inflexível. É intolerável! Em primeiro lugar. rosto trigueiro era suficiente: amarelo bastaria também; impassibilidade poderia substituir aspecto impassível; movimento imperativo da sua mão quer dizer provavelmente o gesto autoritário. A sua
arrogância, simplesmente. substituiria a expressão de altivez arrogante (pois que é a mesma ·coisa). e rigor inflexível é uma parelha muito usada. Tentemos
Havia
no seu
dém da sua boca. rio da sua tinha
refazer.
mão,
rosto na sua
magra,
moreno,
na sua
ímoassibilldade uma
;,rwqfmci"
pupila E'
até
ardente,
no des-
no gesto
3I1tO,·;t"-
inflexível,
qUE'
pu nunca
encontrado.
Mesmo assim. não ficaria muito bem, porque isto quer dizer: «Havia arrogância no seu desdém e rigor na sua impassibilidade», o que não é vigoroso, e quase nada significa. Por aqui se vê, tanto quanto o podemos com uns traços preliminares. como se deverá
exprimir proceder
para evitar a vulgaridade do estilo e dar-lhe a originalidade, que é inseparável do verdadeiro dom de escrever. Um último exemplo, para concluir esta entrada em matéria. É um fragmento
Não o refaremos.
e
de Lamennais.
90
A ARTE
DE
ESCREVER
Acentuaremos somente o que se deveria cortar ou mudar. O autor descreve a visão. que nos sugere a sinfonia pastoral de Beethoven: Um canto o
e doce se faz ouvir
simples
seria mais simples).
os ecos repetem-no
dos vales. seria
eco
sobre
a relva.
húmida
relva ainda fresca. prados. os campos indeiinivel (quando monioso. será mais bordão!
harmonioso).
mais
exalam
que
(julgar-se-ia
ainda...
teria
(repete-o
vagueais ceminhsr sobre a quando os bosques. os Parece
relevo).
como
que
um
vapor
de
harmonia
do campo se eoole como que um vapor harbem escrito).
de luz se desenrolam aos vossos olhos (Oh!
Mil acidentes velho
mais
(por que não se eleva?
de vale em vale
procurai
outra
o
mostram-se ... ) para dizer: cenas
coisa:
desvendam-se.
quadros variados (que horrível vulqandade, imprevistas); o som invisível. estranho mistério (epíteto obrigatório) afroixa ou se reveste de um vipo brilho (um som que se reveste de um vivo brilho é a última palavra da mediocridade). Pouco
a pouco.
o Sol eleva-se.
o ar abrasa-se.
Aos trabalhos
sucedem-se as danças alegres (estilo
interrompidos
de
tradução
bucólíca] . Entretanto. para
as nuvens
as nuvens,
a tempestade;
(se engrossa,
não
isto tem pouco
as nuvens
(estilo
com horrível
se: vê
é porque se aproxima.
sou. Tudo
relevo.
dos exercícios
ruído.
As danças
(antigo
verbo
obrigatório
sob a pena de todos os alunos).
surdo e longínquo (sempre!)
um ruído anuncia
amontoam-se
que se encontram
saído
ainda;
não se sabe de onde.
engrossa
e se se aproxima vê-se
pouco!)
de meninas). interrompem-se.
e aproxima-se é que enqros-
o relâmpago
sulca
o raio despedaça-as etc.
E Lamennais acrescenta esta frase. que encerra. por si só. toda a lição que nós queremos dar:
Os pastores dispersem-se assustados ... O autor julgou escrever bem. empregando estas palavras genéricas e inexpressivas. As pessoas habitua-
A ARTE DE ESCREVER
91
das a frases feitas, talvez se contentem com elas e digam: «que se há-de pôr no lugar delas?» Que se há-de pôr? Simplesmente as palavras verdadeiras, aqueIas que Herédía emprega num caso idêntico:
o
pegureiro eierredo,
Que foge para Tirinto ...
.!
Fugir é mais forte que dispersar; aterrado tem mais relevo que assustado; e pequreiro é a palavra própria, muito melhor que pastor (pastor de' homens. pastor evangélico, etc.). A originalidade é pois, repetimo-lo, a primeira qualidade do estilo. É por ela que nos afastamos do que está muito visto, com ela evitamos as perífrases e as expressões estudadas; com ela achamos força e vida. A originalidade é um esforço contínuo. Consiste em dizer melhor, em dizer com energia, em procurar a palavra própria, em encontrar a imagem nova. Se tívésseis esta qualidade, escreverieis descuidadamente como Saint-Simon, seríeis escritor, independentemente dos cursos de literatura, das gramáticas e das ortografias .
.._-d...·---~
92
A ARTE DE ESCREVER
Lição Sexta A concisão de estilo Processos para adquirir a concisão. ~ Locuções viciosas. ~ Prolixidade. ~ Sobriedade. ~ Condensação. ~ Acumulação e repetição de palavras. ~ Emprego dos auxiliares ter e ser. ~ Os equivalentes. ~ As transições fictícias.
A segunda qualidade essencial do bom estilo é a concisão, isto é, a arte de encerrar um pensamento no menor número de palavras possível '(1). Uma grande causa de fraqueza literária, o que tira ao estilo a sua força e lhe tira todo o seu efeito. é a difusão. Nunca nos cativam frases, em que há palavras a mais. Um crítico disse: ..- «A clareza é o verniz dos mestres.»
(') Dissemos na lição precedente que é preciso empregar a palavra própria. exacta, imaginosa, com relevo, e não a palavra trivial e a expressão vulgar. Estes conselhos, para se atingir a originalidade. compreendem, pois, implicitamente a precisão, a correcção, a clareza, a justeza, o natural, etc., de qUI! me não parece precíso formar qualidades separadas. Na presente lição. é evidente também que a concisao encerra a sobriedade, a temperança, a força, o brilho, ctc.
A ARTE DE ESCREVER
93
Ora, a clareza é o brilho que a concisão produz. Não consiste mais em frases curtas, do que em frases longas. Cada qual tem a sua medida; o molde pouco importa. ou seja a frase curta dos retratos de La-Bruyêre, ou sejam os belos períodos dos discursos de Bossuet. A concisão é a arte de se restringir, de fazer ressaltar a ideia, de condensar os elementos de uma frase numa forma incisiva 'e concreta. É o horror ao estilo frouxo. A eloquência não está na quantidade das coisas ditas, mas na sua intensidade. A falta de concisão é o defeito geral daqueles que começam a escrever e que não tomam cuidado. As três quartas partes dos autores contentam-se com uma forma. que supõem definitiva e que se refaz por si própria na leitura. A concisão é, pois, uma questão de trabalho. É preciso limpar o estilo, joeírá-lo, peneirá-lo, tirar-lhe a palha, clarificá-lo, Iortalecê-lo, até que deixe de ter lascas de madeira. até que a fundição fique sem rebarba e se tenham tirado todas as escórias do metal. Lede Pascal, La-Bruyêre, Montesquieu; não se pode tirar uma palavra às suas frases. Enquanto não tiverdes chegado a este estado fixo. sólido, índestrutível, o vosso estilo não estará apurado. Numa palavra, é preciso que se não possam dizer de uma maneira mais concisa as coisas que dissestes. É que Flaubert exprimia nesta frase: - «A prosa nunca está concluída.» Acrescentemos que ela se não pode concluir. No ponto em que detíverdes, vós, que sois Chateaubriand
Q
94
A ARTE DE ESCREVER
ou La-Bruyêre, outro se pode apresentar, outro gemo maior que vós, que verá mais longe que vós e que realizará outra forma mais perfeita. Os nossos grandes escritores representam a expressão mais alta da arte de escrever; mas esta expressão não é a última; poderia existir outra mais elevada. Empregamos muitas palavras, porque estamos embaraçados para exprimir uma ideia; fazemos círcunlóquíos e, quando as palavras estão escritas, tornam-se infelizmente inseparáveis da ideia; já se não pode ver o pensamento senão com os seus fílamentos: seria preciso separar brutalmente aquilo que se quer dizer e sacudir a terra que adere às raizes da planta. Falta eloquência a certos estilos, por causa do des •. graçado defeito da difusão. As mesmas coisas seriam empolgantes, se fossem resumidas. O leitor vulgar não pode dizer por que é que se não sente atraído pela leitura de tais ou tais páginas. O profissional verá nelas o que é preciso, ou antes o que há a mais. O mesmo pensamento torna-se fraco ou forte, segundo a compreensão que se lhe dá. Serei frouxo e dífuso, se disser: - «As mulheres não têm limites nos seus sentimentos; umas vezes valem mais, outras vezes menos do que os homens.» Mas, tornar-me-ia atraente, se dissesse como La-Bruyêre: - «As mulheres são exageradas; são melhores piores que os homens.» Ninguém estranhará que eu diga:
ou
J I
A ARTE DE ESCREVER
95
- «Os pensamentos elevados, aqueles que enobrecem e exaltam os homens, têm a sua origem e a sua fonte no fundo do vosso coração.» Mas a concisão tornará a ideia soberba, se digo com o célebre moralista: - «Os grandes pensamentos vêm do coração.» Um estilo espesso e sem firmeza suporta-se um momento, mas depressa fadiga. Podem pôr-se no estilo todos os incidentes que se queiram, ornando-o, embelezando-o. cortando-o em pequenos períodos, canalizando-o 'tão longamente quanto se julgar necessário. Poderá realmente haver concisão em cada pormenor. O que se deve evitar é o supérfluo, a acumulação. o palavrório, o acrescentamento de ídeias secundárias, que nada ajuntam à ídeía mestra e que só a enfraquecem. Assim. nesta frase: -«Não se podem ver tais desgraças noutrern, sem que tenhamos um sentimento de compaixão. de receio, de apreensão, por nós próprios. sentimento que nos faz saborear melhor a alegria e a satisfação de estarmos isentos.» A palavra apreensão nada ajunta à ideia de receio e a palavra satisfação é muito fraca após a palavra alegria. Assim também nesta frase de Fléchier: Lamento neste púlpito um homem e virtuoso capitão. cujas intenções eram puras e cuja virtude parecia merecer uma vida mais longa e mais ampla. (Oração fúnebre de
Este aditamento
TURENNE).
de epitetos é indigno de um escritor.
p
\
i
A ARTE DE ESCREVER
96
Quando se diz que uma vida é mais longa. é inútil ajuntar que é mais ampla. O mesmo defeito se nota nestes versos de Corneille: Três ceptros, que em seu trono 'eu pus por minha mão, Por ela falarão E não se calarão.
Há frases que parecem cerradas, e que se podem tornar mais concisas, tais como estas: - «O senhor tinha dito que a duquesa ficaria descontente, se ela soubesse que nós estemos sos.s Deveria escrever-se antes: - «O senhor dizia que a duquesa Iícarra descontente de nos saber sós.» Tereis substituído sete palavras por quatro, e isto será mais elegante. Parece sem importância, mas este gênero de correcção tem grande alcance, quando feito sobre páginas e páginas. Empregam-se demasiadas palavras, porque se repete o pensamento por diversas formas. Acumulam-se em torno dele pensamentos similares, que, destinados a Iazê-lo ressaltar, não fazem, pelo contrário, senão enfraquecê-Io. Assim, no seguinte I" .emplo, citado por Deltour (') a frase de Henrique 1\ «Quero que o camponês meta, todos os domingos, galinha na panela», acha-se desfigurada e difusanestes versos de um escritor do século passado: é
(')
Princípios
de composição
francesa.
•
A ARTE DE ESCREVER
97
Eu quero que nos dias de descanso O trenquilo habitante de uma aldeia Tenha na sua mesa. Então menos humilde. Alguns daqueles pratos. Próprios da confortada medíania.
Eis ainda um exemplo desse repisar ideias. copiado do padre Du-Guet:
das mesmas
Toda a gente é capaz de compreender que ela seria a felicidade de uma nação. em que toda a [oeçe- e toda a autoridade seriam concedidas à virtude. em que todas as ameaças e todos os castigos seriam contra o vício; cujo príncipe não seria terrível senão para quem praticasse o mal e nunca para aqueles que amam e fazem o bem; em que a espada. que Deus lhe confiou. seria a protecção dos justos e não faria tremer senão os seus InImigos; em que a verdade e a clemência se uniríam; em que a [ustiçt: e a paz se beijariam. e em que se veria cumprir o que disse o Apóstolo: a virtude respeitada e cheia de honras e o vicio humilhado e coberto de ignvminia.
Estes sobrecargos. este desdobramento de cada ideía, nada ajuntam à ideia principal. que se perde no caminho, por falta de concisão. Há escritores, que não podem abandonar uma ideia, sem a ter mastigado em todos os sentidos, até que ela deixe de ter gosto. Quantas frases não temos 0S lido no género destas, que cita o atilado crítico Blair: - «Cometer uma acção má é, em primeiro lugar, afastar uma amizade boa e pacífica, para a substituir por outra, má e desordenede: ou ainda: «g cometer uma acção iníqua, imoral e injusta .. .:
;A ARTE. DE ESCREVER
98
enfim, é proceder tude ... »
contra a justiça, a natureza
e a vir-
É principalmente na oratória que esta prolixidade se torna abusiva. Quase todos os oradores caem neste vício; é o que torna os seus discursos insignificantes para a leitura (1). Nos versos célebres de Casimira Delavigne sobre a morte de [oana d'Arc, esse processo é ,impressionante, porque o autor acrescentou-lhe ainda a trivialidade das frases feitas: Para quem se destinam Estes aprestos fúnebres? Por quem se acendem tochas? Tremem sinos e agitam-se ... Donde vêm estes lúgubres murmúrios? Aonde vão guerreiros, Precipitando-se em compactas ondas? A alegria ilumina-lhes o rosto; Sem dúvida o dever os entusiasma. Irão formar fileiras Para um assalto heróico? Não! aqueles guerreiros são ingleses, Que correm para ver Morrer uma mulher!
Tremem sinos e sqitem-se ... , um dos dois verbos é inútil.
(') Demóstenes é contudo um modelo de concisao. Quanto a Cícero, encarna a difusão. mas encarna-a com talento. Adorna tudo e repete tudo. Procede por multiplicidade de nomes, de verbos e de adjectivos.
A ARTE DE ESCREVER
99
E. logo que se diga: Aonde vão guerreiros, .é inútil ajuntar-se: precipitando-se em .xompectes ondas. . Há apenas os três últimos versos irrepreensíveís de que se não pode substituir nem cortar palavra nenhuma. Ê pela concisão, repetimo-lo, que se obtém a clareza, a sobriedade, a propriedade, a correcção, a brevidade e a pureza, qualidades que seria de mau aviso querer demonstrar separadamente, pois estão contidas na concisão; como vimos que o relevo. a força, a expressão. a energia; o natural. a riqueza. a clareza. que estão contidas na originalidade do estilo: Aqueles que se exercitam em escrever, verificarão quanto é lógica esta observação. Muitas vezes, sem que se queira ser mais claro, estende-se o que se quer dizer, ao passo que isso seria luminoso. tendo-se sido conciso. Prova-o esta passagem do padre Du-Bos, que não é. contudo. um mau crítico: Os
pintores
apresentando paixões
a impressão.
do mesmo gênero faria
produz.
não
diferente
duziria.
senão
tado
uma
é
excitar
impressão
de
que
imitações
artificiais.
excitar
produzem
que o objecto
é menos
em nós
o poeta
o próprio
objecto
por
imitação. teria
ou o pintor
imitou.
pro-
em nossa
o objecto por
assim
teria
imidizer.
excitado.
não é tão causaria.
desaparece
a impressão
imitado
excitar
que o objecto produz.
nós.
pelo poeta
que a imitação
que
deve.
a imitação
que que
deve
àquela
obiecto
da paixão que
feita
duradouras.
do
sobre
imitado
que o objecto forte.
se assemelha
a cópia
a impressão.
superficial.
consequêncías objecto,
que
excitar:
a impressão.
como
essas
da impressão.
em nós uma cópia
Mas. como funda
em nós paixoes capazes
sobre nós; como a impressão,
em que ela
paixão.
poderia
que
da impressão.
ou pelo pintor
alma
excitam
dos objectos,
verdadeiras.
Como é
e os poetas
imitações
sem ter
produzida
pro-
aquela as pelo
100
A ARTE DE ESCREVER
o bom padre Du-Bos cai no palavrório e chega a não saber o que diz, por ter querido exprimir-se mais claramente, mais tecnicamente, de uma maneira muito chão Deve-se observar a concisão, não só nas palavras. reduzindo-as ao menor número, mas também no torneio das frases. empregando de preferência as construções rápidas, aquelas que aliviam o estilo, em vez de o carregar. Locuç6es
viciosas
A manhã estava soberba ... O seu procedimento foi admirável. .. Não é preciso acrescentar nada ... Com o único fim de ... De forma que ... Ele não respondia, tão fatigado começava a estar ... M. X ...• de cuja morte se tinha espalhado o boato.
Não vos esqueçais de que as frases são feitas umas para as outras. c de que é o seu encadeamento cerrado que constitui uma das belezas gerais do estilo. Não pareçam enxertadas, mas engendradas as vossas frases; não justapostas ficticiamente. mas lógicamente deduzidas. Eis aqui um exemplo, em que parece que a ídeía principal vai acabar. e em que ela recomeça sempre. arrastando uma sequência de reflexões inúteis, como uma cauda. que se dividisse infinitamente. Os ferimentos eram mais mortíferos para os Mouros, porque eles se contentavam em os lavar na água do mar e diziam. numa maneira de provérbio ou de anexim do seu país. que Deus. que
A ARTE DE ESCREVER
101
lhos dera. lhos havia de tirar; isto menos pelo desprezo. que pela ignorância dos remédios. pois estimavam bastante um renegado. o seu único cirurgião. a quem. por uma política excêntrica. a cada ferido de importância. que morria entre as suas mãos. davam primeiro um certo número de bordoadas, para o castigar mais ou menos. segundo a importância do morto; depois umas tantas peças de oito reales, para o consolar e o exortar a proceder melhor para o futuro.
Parece que se não chega a sair desta frase desenrolada. como essas serpentes de papelão. C0111 que se entretêm as crianças. É composta de excrescêncías' intermináveis. Examinai bem se as frases, que ali se agregam, significam alguma coisa mais que as precedentes. Sede imparcial e rigoroso e riscai implacàvelmente, à menor dúvida. O fragmento lucrará com isso. Há expressões que, por si só, nada significam. O vício da falta de concisão é talvez o mais difícil de verificarmos, no nosso próprio estilo. É necessário um recuo incessante, uma vigilância sempre alerta, para se notar a falta de brevidade. Este defeito universal é o que torna as traduções enfadonhas. porque a dificuldade de exprimir exactamente um pensamento, comprimido no texto, força o tradutor a empregar muitas palavras. Daqui, uma forma extensa e frouxa, que não prende o espírito e revolta o gosto. A brevidade é a última qualidade que se aprende, no mecanismo da arte de escrever. Devemos, portanto, persuadir-nos de que se deve sempre resumir e aclarar o estilo. Pode dizer-se que há sempre necessidade disso. Quando julgardes ter já escrito um fragmento defí-
A ARTE DE ESCREVER
102
tratai de descobrir Iórnitivo. retomai-o, emendai-o: porque mulas mais rápidas: e tratai de as encontrar, existem. O que produz. na maior parte dos casos. a difusão. é o emprego das ideias semelhantes. que se sobrepõem ou se justapõem no calor da composição. Tírai de uma ideia tudo que a não fortifica. tudo que é matiz idêntico. tudo que não tem relevo, tudo que pode ficar para trás. E o que restar, o que guardardes. tratai de o exprimir com o menor número possível de palavras. Acusaram de prolixidade o historiador Guichardini e Gassendi. As arengas de Títo Lívío são modelos de taqarelices heróicas, pedaços de retórica parafraseados, ampliações laboriosas. A narrativa de Théraméne, na Fédore de Racine é o mais belo exemplo dessa arte de escrever longa e inutilmente. Com que minúcia está pintado o dragão que sai das ondas! Como o autor nos descreve a tristeza dos guardas de Hipólito e a tristeza dos cavalos! E. todavia. esses trechos são admiráveis em si próprios. e andaríamos mal, se os considerássemos mal escritos. Não nos esqueçamos nunca dos versos de Boileau:
o
que se diz de mais é sempre fastiento. E o espírito, enfadado. enjeita-o num momento.
Como declara Boíleau. é preciso mo-nos para sabermos escrever.
saber
restringir-
I
A ARTE DE ESCREVER
103
A arte de desprender o pensamento. de o tirar do seu embrião. a arte de o insular; e de o apresentar em relevo. só é difícil. por se empregarem muitas palavras. Há autores. como A. de Pontmartin, por exemplo. em que tal processo é visível em cada página. Escritor elegante. que atrai pelo seu perfeito aticismo. pela sua distinção e o seu belo tom. aquele autor não pode enumerar sem acumular; procede somente com epítetos múltiplos; repisa no mesmo lugar e. como não avança. ímpacienta-se. Esta repetição das palavras. està insistência em tocar a mesma áría, tiram toda a espécie de efeito a frases destas: Camílo Desmoulíns aspirava com o ar tudo que pode perturbar e perverter a consciência humana: paixão. ebriedede, terror. chama. furor. ódio. esperança. febre. anarquia moral. espírito de áesfruição e morte. A faculdade de sobreexcitação nervosa. perigoso privilégio da nossa profissão. era continuamente prooocede, exaltada. exacerbada. azedada. decupliceda pelos acontecimentos (').
Enfiar serres de palavras: paixao, embriaguez. terror. chama. furor. ódio. esperança. febre (por que não: dor. vício. angústia. miséria. desespero. inveja, revolta. etc.. etc.?). provocada. exaltada. azedada. exacerbada. decuplicada, etc., tudo isto, apesar de uma ilusória aparência de graduação. nada acrescenta à ideia. É a difusão. é a prolixidade fácil. não é verdadeira
(') retie.
Pontrnartin. Novos
Sábados.
12." séríe,
art. [úlio Cle-
+'
104
A ARTE
agudeza
DE
nem verdadeira
ESCREVER
inspiração.
porque
não há ali
energia nem sobriedade. A verdadeira Pontmartín,
-
Bela. -se-ia
poética. pela
também
plangente.
o fantasma
povoada
de Iêené, -
heroína
chamava-se da
inquieta
sociedade
Revolução.
diz
Viva.
mais
Noutra gante:
passagem
o mesmo
vagueando
enérgica,
ainda,
alucínada,
visionária.
morta.
na
apaixonada.
Lucílía, Lucília Desmoulíns, personifica
outra
adiante
Lucílía,
heróica,
a jovem
o exemplo
dír-
necrópole. a
liberdade.
é mais empol-
foi ela a Musa. a confidente. a companheira.
A curiosidade!
a alegria. o tormento. a amante. o [lagelo. o refúgio. o bom e o
mau génio de Saínt-Beuve. Se nos concedem
que.
para
desde logo sob a asa do seu anjo de uma sentidos,
noiva.
esta
e que
curiosidade
tem
toda
as almas da guarda se torna
a aparência
que
se não
fãcilrnente
do
abrigaram
ou nas castas amor
carícias
cúmplice
ou desejo
dos
vago.
agitado. inquieto. precoce. [uqitioo, misturado de ignorância e de candura e de impudor, de timidez e de ousadia. tal qual o pinta
Beaumarchais
tir-me
que
sob
eu acrescente.
os
traços
de
Querubim,
hão-de
j
Eis aqui uma frase de Alfredo de Vigny. por causa de uma palavra inútil: A grande
estrada
permi-
etc.
de Artois
e de Flandres
No mês de Março
de 1815. passei por esta estrada
tro de que nunca
mais
me esqueci (VIGNY,
mal feita,
é longa
e triste.
e tive um encon-
depois.
Servilismo e Grandeza).
A palavra depois é inútil e fica no ar. Nada acrescenta, nem ídeía, nem matiz. e segura, perdoaí-me a expressão, a frase pelas patas .
A ARTE DE ESCREVER E assim também temporâneo:
esta frase de um romancista
10~ con-
o seu corpo esguio fazia-o parecer mais alto e mais novo do que ele era na realidade. Evidentemente do que ele era na realidade é de mais. A frase ficava completa até novo. A propósito de um polemísta, li isto: Ninguém caluniou tanto os seus adversários como ele o fez.
_.
É a última palavra da superfetação insípida... e incorrecta. A obrigação de ser conciso não significa que tenhamos de cortar as asas à fantasia e à imaginação, e renunciar à cor ou à magia das palavras; mas é preciso que essas palavras sejam mágicas, que enriqueçam o que já se disse; e, se essas mesmas são ínexpressívas. incolores e triviais, como: ousadia, timidez, mau génio, musa, flagelo, tormento, paixão, embriaguez, terror, chama, furor, ódio, tornam-se inúteis e devem ser suprimidas. Um exemplo ainda tirado de um autor ccntemporâneo, que passa por bom escritor. Se o leitor suprimir tudo que vamos pôr em itálico, como similar, repetido ou já dito, verá que o que resta do fragmento pode constituir estilo honroso.
o doutor, seu velho amigo, aconselhou-lhe ares mais suaves, clima mais quente, céu mais puro, luz mais tépida, vida mais tranquila. O inverno é rigoroso, áspero, bravio, nas costas da Bretanha, ao longo daquelas penedies abruptas, naquela fria região. Seria tão bom. tão trenquiliztmte, tão reconfortante, um raio de
A ARTE DE ESCREVER
106
sol meridional! Mas o doutor diz
O
que lhe parece! O seu doente
é um padre. um servidor do altar. edstrito a um serviço piedoso.
,-
e que não pode deixar o seu posto. desertar do seu dever. abandonar a casa de Deus. onde os seus ouvintes se vão agrupar. reunir-se e confortar-se. Quantos obstáculos e dificuldades para viajar! quantos pormenores. imperceptiveis para nós. penosos. alarmantes. inquietadores e dolorosos para um padre! Pode ele percorrer hotéis. sentar-se às mesas-redondas. habitar um quarto estranho. ouvir conversas insolentes. aventurar a sua muita idade e os seus. cabelos brancos ao meio daquelas colónias mundanas. em que cada um faz exibições de luxo. de entusiasmo e de frivolidade. de elegância?
Suprimidas
as palavras
em itálico. eis o que ficaria:
O doutor. seu velho amigo. aconselha-lhe ares mais suaves. O inverno e rigoroso nas costas da Bretanha, naquela fria região. Seria tão bom um raio de sol meridional! Mas o doutor diz o que lhe parece! O seu doente é um padre. que não pode deixar o seu posto, Quantos obstáculos para viajar! Ouantos pormenores imperceptíveis para nós. penosos para um padre! Pode ele percorrer hotéis. sentar-se às mesas-redondas. aventurar os seus cabelos brancos ao meio daquelas colónias mundanas. em que cada um faz exibições de luxo e de frivolidade? "
/
rr ,.,1"
I 1
A-
Certos espíritos. apaixonados por ouropeis e penduricalhos. preferirão o primeiro texto. diluído: mas um «bom espírito». um espírito são. não hesitará. Empregar muitas palavras é um defeito grave; mas repetir canhestramente as mesmas palavras é enfraquecer o estilo de cutra maneira; contra isto. devemos ser implacáveis. Nada revela tanto a pobreza de imaqínação e nada fatiga tão depressa o leitor; dedicai ao caso a maior atenção, pois é fácil deixar passar uma expressão já empregada. ou muito parecida, sem que se, veja,
I
«
A ARTE DE ESCREVER
--
107
Não falamos aqui das palavras correntes. que se não podem evitar. como ele, ela, onde, em, a, que são necessárias a cada instante; mas. se encontrardes uma palavra. um epiteto, empregado algumas linhas mais longe. eliminai-o ou substituí-o. Alguns autores. como Chateaubriand e Flaubert, enjeitaram com ardor as repetições. a ponto de as não tolerarem na mesma página. O limite desta exigência é questão de gosto. mas vale mais pecar por severidade. É ~m ponto importante no estilo. Os bons prosadores conhecem-se nisso. Não há necessidade de numerosos exemplos para demonstrar em que consiste a repetição de palavras; bastará abrir um autor vulgar. para se colher dele quanto se queira. Encontram-se também repetições nos melhores escritores. de tal forma a atenção naturalmente se iludiu. Esta frase de Philarete Chasles, extraída das suas Memórias, que têm. contudo. bastante vida e relevo. parece-me típica. Pinta ele o retrato de um autor: Passando tudo em revista. encarnando-se em tudo por um momento. para tudo destruir. naturalmente falso. insincero, palavreador, apaixonado das pequenas coisas; capaz de transformar para penetrar tudo; incapaz de colher qualquer coisa no coração. de atingir o centro e a essência seja do que for; fino até à fraude: atingindo uma solidez aparente ...
Um pouco de atenção teria apagado estas nódoas. E o mesmo nesta passagem de Bernardím de Saint- Píerre:
";
.. Q
A ARTE DE ESCREVER
108
Apesar desta situação perigosa. os nossos marinheiros puseram-se a beber e a divertir-se, supondo-se ao abrigo de todo o perigo. porque se viam rodeados pela terra de todos os lados. Em seguida foram deitar-se sem que ficasse um só para velar a manobra. Tinhamos ficado sobre a ponte. Cefas e eu. sentados num banco de remadores (').
E mais adiante: Minha filha. é tempo de irdes descansar. Pensa i que vos deveís levantar amanhã. antes da aurora. para irdes à festa do meu Liceu (').
Há aqui negligências imperdoáveis. Gustavo Flaubert, na sua correspondência. censura Chateaubríand, porque. ao pintar nos seus Mártires a chegada de Eudoro a Roma. deixou passar duas ou três repetições. que o crítico. no lugar dele. não teria permitido. Efectívamente, nota-se isso pouco em Flaubert. Contudo. eis aqui uma. que encontrámos na Salambó e que teria desgostado o autor. se lha houvessem mostrado (3). A estrada atravessava um campo. chaquetado de compridos lajedos, agudos no cimo. tais como pirâmides. e que tinham. gravado ao meio. uma mão aberta, como se o morto, deitado em baixo, a houvesse estendido para o céu, suplicando alguma coisa. Em seguida, viam-se. disseminadas. cabanas de terra. de ramos. de caníçados, de juncos, todas de forma cónica. Pequenos muros de pedra. regueiras de água viva. cordas de esparto, sebes de (') (') (')
A Arcádia. pág. 223, ed. Delagrave. Ibid., pág. 239. Selsmbô, ed. Charpentier, pág. 138.
-
A ARTE DE ESCREVER
109
nopais separavam irregularmente essas habitações, que se amontoavam cada vez mais, elevando-se para os jardins de Súpeta. Mas Amílcar estendia os olhos para uma grande torre, etc.
Esta repetição, posto que afastada, é curiosa num escritor, tão exigente a tal respeito. Há repetições absolutamente inadmissíveis no gé~ nero desta: Defendeu-se duas vezes contra os ataques publicados contra ele na imprensa. (G.
CLAUDIN).
Encontram-se, a cada passo, repetições em Saínt-Simon. Eis aqui uma, cuja intenção é duvidosa. Talvez fosse propositada: Eí-lo que atravessa a avenida. Em breve, a encontra longa; depois, dirige-se às árvores, mas não as encontra já; nota que chegou ao fim e volta às apalpadelas a procurar as árvores; segue-as ao acaso, e depois cruza, e não encontra a sua casa. Nada compreende de tal aventura.
Ti tando-se de uma repetição, que o leitor notará, é preciso procurar outra palavra, ou outra construção até, se for necessário. Custa sacrificar certas palavras, mas a ausência de repr ' ções é beleza superior à indicação de pormenores. Empreqaí, portanto, grande vigilância, porque sucede muitas vezes que, para tirar uma palavra repetida, se põe outra, que se encontra algumas linhas mais abaixo. Começa-se assim uma caça, que conduz longe. Mas não se deve recuar.
A ARTE DE ESCREVER
110
Certa escola contemporânea, que só procura o impressionismo em literatura, afecta não se preocupar com as repetições; deixa-as, acentua-as e vanqloria-se delas. Cícero notava que não há absurdo, que não tenha sido dito por filósofos. Poderia estender a sua reflexão à literatura. Deí-
xá-lo.
As
grandes
regras
da
arte
de
escrever
são
eternas. Há também repetições desculpáveis. Em vez de mudar o sentido a uma frase.
em vez
de introduzir nela uma palavra frouxa ou atenuar uma passagem, convirá conservar as repetições quando são exactas, nítidas. luminosas e quando não podem substituídas, senão por expressões mais frouxas. Foi linhas,
o que
sentiu
tição que poderia , .\<
d
,
It ~
\:
Li
Pascal,
quando
em que ele mesmo dá o exemplo
escrevia
ser estas
de uma repe-
ter evitado:
Quando, num discurso, se encontram palavras repetidas, e quando, procurando corrigi-Ias, se encontram tão correntias, que prejudicariam o discurso, é preciso deixá-Ias. E: o quinhão da inveja, que é cega e não sabe que tal repetição não é erro naquele passo, pois que não há regra geral.
Sim, há regras As excepções das circunstâncias.
gerais, são
mas há também
questões
de tacto
excepções, e dependem
As regras gerais resumem os preceitos da arte de escrever. É certo que as repetições seguintes podiam ser Iàcilmente eliminadas desta frase de Montesquíeu :
A ARTE
Cômodo que seguia
sucedeu todas
seus
cortesãos.
seu
lugar
DE
a Marco-Aurélio,
as suas Aqueles
paixões
que
Pertinace,
que
seu Péli: era
e as dos
livraram os
111
ESCREVER
um. monstro,
ministros
e dos
o mundo puserem
dele
soldados
seus
pretorianoslogo
em
truci-
Puseram o império em almoeda e Dídto Júlio obteve-o isto revoltou todo o mundo, pois, que, ape-
daram. pelas
suas promessas.
sar de o império,
etc.
Grandeza e Decadência dos Romanos, capo XVI, 5.° parág.).
(MoNTE~QUJEU,
Bastaria um pouco frases de F énelon : Estas como
um
travam uma
armas raio
entre
vila
sol.
si. sobre
nascente.
e via-se sair espuma
eram de
dela
polidas,
Via-se
como ali
quem teria
Neptuno, um
de atenção
cavalo
com
um
Neptuno a glória o seu
íoqoso:
I?ara corrigir
espelho,
e
e Palas, de dar
estas
brilhantes que
pales-
o seu nome
trídente,
feria
saía-lhe fogo
dos
a
a
terra,
olhos
e
da boca. (FÉNELON,
Telémaco).
Entre as repetições, que se 'permitem correntemente, e que prejudicam o estilo, nota-se o emprego epidêmico dos auxiliares ser, ter, haver, estar. .. Todos os escritores, e não dos menores, abundam nestas repetições. Não se lhes dá importância, e nada é tào pobre, nada revela tanto a esterilidade, a difusão, a dispersão. Porquê? Porque os auxiliares de um particípio são palavras cómodas, já encontradas para substituir os verbos próprios, para nos dispensarmos de procurar a palavra verdadeira. a única que diria tudo e diria melhor. o verbo estreme e coesivo, o verbo que arredondaria a frase.
I
A ARTE DE ESCREVER
112
~ assim que se escreve: Ela receío.
estava
de
Por: ela receava; ou: tomava-a o receio; ou: tinha apreensões.
persuadida
de
Por: persuadir-se de que ...
o horizonte estava .de vapores.
velado
Por: o horizonte velava-se de vapores .
Era de mais afinal: estava disposto a falar.
Por: era de mais: resolvia falar.
Visto que o acaso lhe tinha proporcionado essa ocasião, iria ...
Por: visto que o acaso lhe proporcionava essa o c a s i o, iria ...
Sentiu que estava nada pelo céu.
Por: sentiu que o céu a abandonava; sentiu-se abandonada pelo céu.
Estava que ...
tomada
abando-
ã
Quase sempre se podem substituir estes auxiliares pelo verbo próprio, cujo emprego dará força ao estilo e terá evidente valor, como se vê nesta frase de um autor contemporâneo, frase que nada quer dizer: Os seus cabelos e as suas sobrancelhas eram castanhos-escuros, e o seu bigode era louro-claro, o que dava ao seu rosto uma doçura singular.
Quando
era tão simples dizer-se:
Os seus cabelos e sobrancelhas castanhas, o seu bigode louro.-claro, davam à sua fisionomia uma doçura singular.
A ARTE
DE ESCREVER
113
E assim, nas seguintes linhas de um autor contemporâneo, podemos suprimir os auxiliares inúteis, e o estilo (irremediàvelmente banal, aliás), não ficará mal de todo: Era um homem de cerca de quarenta anos, alto e magro, com feições fatigadas, mas regulares, talvez finas. O carácter efeminado desse belo rosto era ainda acentuado pela estranha lan!;uidez dos olhos negros. muito escuros; os cabelos. igualmente negros e sedosos. tornavam-se raros; a barba. que ele usava crescida. era vaporosa e ondeada naturalmente. Toda a sua pessoa tinha um raro cunho de elegância com alguma coisa de inquietador e de perturbador, que teria impressionado os menos hábeis em perceber o jogo das almas. sob as aparências flsíonómicas.
o
autor podia dizer. dispensando todos liares. excepto o primeiro. se quiserem:
os auxi-
Era um homem de cerca de quarenta anos. alto e magro. com feições íatíqadas, mas regulares. talvez finas. A estranha languidez dos seus olhos negros. muito escuros. mais acentuava o carácter efeminado daquele belo rosto; os cabelos igualmente negros e sedosos tornavam-se raros: a barba. que ele usava crescida. ondeava naturalmente. Toda (') a sua pessoa tinha um ar de elegância excepcional. com alguma coisa de ínquíetador e de perturbador, que poderia impressionar (ou: ou que poderia ser notada por) os menos hábeis em perceber. ete.
Como se o estilo fica Quem é continuado estilo? (') 8
vê. todos os auxiliares desapareceram. mas trivial? que não vê a importância de tal trabalho. em muitas páginas. para a concisão do
Por que toda? Bastaria a sua pessoa.
114
A ARTE DE ESCREVER
Empregando-se os auxiliares à farta. caí-se na difusão. na má qualidade do estilo. E escrevem-se páginas. como esta. extraída de um autor contemporâneo de grande nomeada: Quanto a Antónía, apesar do ensinamento irregular da tia Isabel. tinha-se convertido numa simples e moderna criatura. Não se mostrava nada Marquesa. nas suas maneiras. que eram doces e calmas, tanto quanto as do irmão eram vivas e desordenadas. Ela era alta e maravilhosamente bem feita. O seu rosto, de tez fresca. era iluminado por olhos negros. brilhantes e profundos.
Quase todos os escritores abusam dos auxiliares. Bastará abrir um livro para se encontrarem logo. ao acaso. linhas destas: Eu estava muito perturbado e convencido de que me seria impossível articular um som. porque havia bem um ano que me tinham avisado daquilo. Eu tinha então dezassete anos. A minha voz tinha voltado; não havia que duvidar. (G.
S.I\ND.
A última Aldini).
Esta repetição dos auxiliares afeia o estilo de alguns escritores do século XVII. É impossível deixar de notar frases destas que se encontram em cada página de Fénelon. Descreve ele o carro de Anfitrite: Os tritões rodeavam o carro de Anfítrite, puxado por cavalos-marinhos. mais brancos do que a neve. e que fendendo as ondas salgadas. deixavam longe. por detrás deles, um vasto sulco no mar; os seus olhos estavam inflamados e as suas bocas estavam fumegantes. O carro da deusa era uma concha. de forma maravilhosa; era de uma brancura mais brilhante que o marfim. e as rodas eram de ouro.
A ARTE DE ESCREVER
115
Ou se deve renunciar à arte de escrever, ou nunca se devem aprovar tais negligências. Eis uma frase, ainda mais característica, de Duelos, o autor das Considerações sobre os Costumes, livro um pouco seco mas bem escrito: Ele tinha o como era incapaz joso do duque de tudo o senhor de (DueLOS,
•
título de chefe do Conselho das Finanças; e, de compreender disso qualquer coisa era inveNoailles, que sendo apenas presidente, ere contoda a administração.
Memórias sobre a Regência. págs. 104, 185).
Aqueles que querem baralhar escolas e processos não deixarão de fazer aqui a objecção, já refutada a propósito do estilo trivial. Dirão que se pode ser um grande escritor, cometendo embora negligêncías. E nós responderemos: ~ Sois acaso grande escritor? Podeis sê-Ia, efectívamente, e continuar a sê-lo, apesar dessas negligências; mas, se o não puderdes ser, tereis de vos coibir rigorosamente das negligências, que não podereis compensar com qualidades superiores (1). Ninguém tem a certeza de possuir talento bastante, para que se lhe perdoe aquele defeito. Quem começa por contrair maus costumes e vícios literários, verá sufocadas as suas boas aptidões ou reduzidas à mediocridade. A proscrição das repetições, sejam elas quais forem, é pois um princípio absoluto da arte de escrever. (') Por exemplo, dísponde-vos a ser um escritor de gênio, como Saínt-Sirnon, e já não precisareis de conselhos sobre a arte de escrever.
116
A ARTE DE ESCREVER
É preciso subordinarmo-nos a ele, desprezar qualquer concessão, qualquer transigência. Há até ocasiões, em que um solecismo e uma incorrecção são preferíveis a uma repetição. Quanto mais a vossa prosa for castigada, trabalhada, irrepreensível, mais deveís evitar as repetições. Não seria preciso mais nada, para estragar um trecho excelente. O célebre soneto de Arvers, que passa por um dos melhores que se têm feito, e que tornou famoso o seu autor, seria obra-prima, o ideal do soneto, sem mancha. se não fosse lesado por nele se repetir três vezes o particípio feito. Para substituir as repetições, podemos recorrer aos sinónimos e aos equivalentes. Discutir agora sinónimos não teria utilidade prática. De uma maneira absoluta, pode-se dizer que não há sinónimos. Preguiça, ociosidade, indolência, mendiiice têm umsentido diferente; inquietação, susto, perturbação, agitação, não exprimem as mesmas ídeias, assim como fugir, sair, eoedir-se, ir-se embora, escapar, esquiasr-se. Mas no estilo, que vive de combinações de palavras e de valores de ídeias incessantemente, tais palavras podem passar por sinónimas e abundam, como tais, em qualquer língua. Quanto aos equivalentes, pede-se dizer que constituem precisamente a variedade da arte de escrever. Encontramos em Massilon um pensamento expresso sob quatro formas: Tudo retoma o seu lugar num estado em que sobretudo 05 grandes e o príncipe adoram o Senhor. A piedade está acreditada. desde que há grandes exemplos para ela.
-, l
A ARTE
I." ~ O
culto
ímpeto,
mas,
pelo
pode
DE
ainoa
desforra-se,
117
ESCREVER
ser pelo
menosprezado menos,
sccretamente
com
a
magnificência
pública.
2.° ~ O templo res, pecadores
3.° ~ Ainda negam
se
pode
ainda
mas não
podem
o seu coração
as suas
ver,
encontrar
a Deus,
aos pés dos seus
alta-
vê profanadores. homens
corrompidos,
mas não se atreveriam
que
a recusar-lhe
homenagens.
4.° - Numa ção,
santo
e incrédulos,
pelo
palavra,
menos,
não
pode
ser
fácil
a perdição,
mas
a salva-
é vergonhosa.
É pela leitura que nos familiarizamos com estes processos e que o espírito se habitua a ver as relações das coisas e a descobrir a expressão conveniente. Eis aqui como Montesquieu varia a ideia de que, em todos os empreendimentos, era preciso recorrer a Pompeu: Foi bência Foi
preciso
fazer
guerra
a Sócrates,
e dava-se
essa
incum-
a Pompeu. preciso
fazê-Ia
a
Mítridates,
e toda
a
gente
bradou:
Pompeu!
-
Foi preciso perdido,
se
Querem E brada:
importar
disso
não
destruir
quando Pompeu;
É preciso
César
cereais fosse
os
piratas.
ameaça
para
Roma,
encarregado
e o povo
e lembram-se invadir
e só tem esperanças
julgar-se-ia
Pompcu. Roma,
logo
de Pompeu!
o Senado
também
em Pompeu.
proscrever
do estilo o que eu chamo os de que se abusa, para estade frases, como: ejectioemente, certe-
parasitas, essas ligações,
belecer transições mente, de resto, tanto mais, por outro lado, definitiva~ mente, por um lado a dizer a verdade, pois, pela sua parte, de seu lado, na verdade ... As frases devem liqar-se, não com atilhos fictícios, mas com 3 lógica da ídeía, com a força do pensamento.
~.r;;;:::~-""""'------~-=-,;---'--""'~-""---
~-=--'-==---""-
A ARTE DE ESCREVER
118
Devem prosseguir a par, indissolúveis, mas parecendo que não estão ligadas. Há casos, já se vê, em que tais ligações são índispensáveís e produzem o melhor efeito; é somente contra o abuso que protestamos. Supõe-se que essas partículas encadeiam as frases, as tornam mais correntias ou mais sólidas. Pelo contrário, vê-se-lhes a fraqueza, porque é evidente a soldadura, e porque a verdadeira transição depende do espírito de uma frase e não de uma junção mecânica. Os estilistas inexperientes abundam nestas espécies de vegetações parasitárias. As boas frases não precisam de cavilhas; formam bloco. O verdadeiro escritor assenta-as direitas. Uma vez de pé, já não oscilam. Disto nos convencerá a leitura dos mestres. Vede esta frase de Montesquieu: Os vícios de Alexandre era
terrível
na sua cólera,
os pés. o nariz numa
gaiola
e as orelhas
de ferro
eram
extremos
e esta
tornava-o
a Calístcncs,
e o levassem
como as suas virtudes: cruel.
Mandou
ordenou
assim
atrás
do exército.
Lisímaco).
(MONTESQUIEU.
Ou ainda de Mato: Os Alguém barra
seus foi
de
esta
passagem
de Salambó,
joelhos
dobraram-se
e caiu
buscar
ao
do
ferro
peristilo
encandecido
no primeiro
grilhão.
a algazarra
do povo
por
encostou-a
carvão à chaga.
abafou-lhe
a voz;
(F!.AUBERT.
o suplício
brandamente
templo
cortar
que o metessem
de
ardente. Viu-se
no lajedo.
Mclkarth, e.
fumegar
ele estava
Seíembo,
uma
insinuando-a a carne:
de pé. pág. 350).
~.
A ARTE DE ESCREVER
119'
A concisao aprende-se, não só à força de trabalho, mas principalmente pela leitura dos escritores clássicos. Pascal. La-Bruyêre são, a este respeito, muito aproveitáveis e, entre os contemporâneos, figura Gustavo Flaubert. principalmente nos seus Três Conte-s.
Lição Sétima A harmonia do estílo
~.'
__
Da harmonia. - Necessidade da harmonia. -' Harmonia das palavras. - Harmonia natural: Chatcaubriand. - Trabalho de harmonia: Flaubert. - Harmonia imitativa. - Harmonia pueril.
Explicámos sumàriamente em que consistem as duas grandes qualidades gerais do estilo: a originalidade e a concisão. Há ainda outra qualidade muito importante e necessária: a harmonia, isto é, o sentido musical das palavras e das frases e a arte de as combinar agradàvelmente para o ouvido. A harmonia, para as palavras. consiste no seu próprio som. A harmonia, para as frases. consiste na sua cadência e no seu equilíbrio. Boileau disse e com razão: Não apraz ao espírito A ideia mais sublime, Quando os ouvidos Estão feridos.
120
A ARTE DE ESCREVER
Em nosso tempo, a anarquia dos processos literários e a extravagância dos gostos estéticos criaram uma reacção injusta, contra a arquitectura do estilo e a necessidade da harmonia. Parece haverem convencionado que se escreva como se quiser; que já não há ordem lógica; que se podem permitir todas as inversões, fazer esperar a regência, pô-Ia no fim de uma frase; acumular os seus incidentes; em suma, que se escreva como se quiser. Não nos deixemos influenciar por estas declarações de decadência. Os maus pintores passarão; o impressionismo só terá a sua época; as obras-primas ficarão. Conservemos, portanto, a harmonia como qualidade essencial da arte de escrever. Veremos em que caso e por que é preciso por vezes desprezá-Ia; e mostraremos as qualidades, que se devem colocar acima dela. Em princípio, a harmonia faz parte do bom estilo. Todos os grandes escritores a têm procurado; aqueles até, que zombam dela, não a enjeitaram; e nas suas obras se encontram, a cada passo, exemplos de frases com ritmo, ligações de palavras agradáveis, jogo metódico de sílabas. A harmonia é tão necessária à prosa como à poesia. É o ritmo, que tão amado era pelos Gregos, o número oratório, o numetus dos latinos. A harmonia não é um agregado arbitrário; baseia-se no génio da língua, nas exigências do ouvido, que tem gosto próprio, como a imaginação tem o seu. O sentido do ouvido era para Cícero «um juiz altivo e desdenhoso».
A ARTE DE ESCREVER
121
Toda a força do estilo, pelo menos uma parte da sua força, reside na disposição das palavras. Ora a harmonia não é senão a arte suprema da disposição das palavras, o cuidado dessa disposição. em vista da cadência e do som. Foi Guez de Balzac o primeiro que deu à prosa francesa a suavidade, a doçura, o número, o equilíbrio. a ordem, a harmonia. O seu êxito foi considerável. o seu nome mereceu contar-se entre os grandes nomes da literatura. Desde Balzac, não houve um só prosador, cuidadoso da arte de escrever, que não procurasse a harmonia da forma, como a originalidade das ideias. Este cuidado conservou-se até Chateaubriand e Flaubert, que escreviam as suas frases, como se as destinassem a serem lidas em voz alta,
Harmonia das palavras
Falando de Flaubert, diz Guy de Maupassant: - «Algumas vezes, deitado num grande prato oriental, cheio de penas de pato, cuidadosamente aparada a pena que ele segurava na mão, tomava a folha de papel. elevava-a à altura dos olhos e, apoiando-se num dos cotovelos, lia em voz alta e vibrante, Escutava o ritmo da sua prosa, detinha-se, como para apanhar uma sonoridade fugidia, combinava os tons, afastava .as dissonãncias, fazia a pontuação conscienciosamente. como se fossem descansos de uma longa carninhada.»
122
A ARTE DE ESCREVER C'artas de Flaubert a G. Sand
l
i
[ t
t'.
Dizia Maupassant: -«Uma frase viverá, se corresponde a todas as necessidades da respiração. Sei que é boa, quando pode ser lida em voz alta.» No prefácio das Últimas Canções de Luís Bouílhet. acrescentou: - «As frases mal escritas não resistem a tal expe-riência; oprimem o peito, incomodam o pulsar do coração e encontram-se assim fora das condições da vida.s Sem largas explanações, que aliás seriam muito fáceis, trataremos, primeiramente, da harmonia das peleures. e, seguidamente, da harmonia das frases. Boileau tem razão: Haja escolha de sons harmoniosos, Evitando-se os sons desagradáveis.
Certas palavras, insuladamente, não têm característica, nem som agradável. e só se tornam harmônicas pela sua aliança com outros sons; e outras há até que, conjugadas, produzem durezas insuportáveis. Regra geral: é preciso abstermo-nos de toda a aspereza de som, de toda a dissonãncia notável. a não ser que haja razões de relevo de originalidade, ou outros motivos de beleza literária para conservar certos sons de palavras. Evitai, pois, os choques como estes: Não há nada no mundo, Que Nenine não honre. (VOLTAIRE)
•
...
/'j
A ARTE
DE
ESCREVER
123
E se os seus súbditos, se os seus aliados, sal
aproveitou
as suas
grandezas
se a Igreja
univer-
... (BOSSUET)
.
Se vós vos ooteis à educação ...
Evitai não só o predomínio das consoantes fortes, mas também a repetição muito frequente de certas vogais, a acumulação de monossílabos, de nasalações, etc. A junção do que é doce, e do que é suave, convém sempre à formação do estilo (1). Que negligência ínexplícável dos bons autores pode obrigá-Ias a cometer frases como esta? Por
que é que o rei do mundo.
Tão livre e tão prudente, Suporta tantas vezes Tão dura escravidão? (VOLTAIRE)
(1) Rena.
Boíleau, conseguiu
..•.
na
Epístola ao Rei sobre
sua
adoçar
e fazer
Os nomes Das
E Para
duros.
Cidades.
Só nos exibem
praça. Vai
exóticas;
uma palavra desde
brigar
do seu nome.
contra
Destruindo-lhe
Que
de Waõrden?
não caísse
o verso.
a harmonia.
E sem estremecer Abeirar-se
boa. Issel,
ao menos.
vestida
quem
com o estranho
De Hcusden?
é que pode
E onde
há verso nome
passagem
assaz
indignado.
de correr,
Até Tesscl Cada
a
bárbaros •
sílabas
encontrar
palavras
que tomas.
o ouvido
Tem
tolerar
.
do
rebeldes:
A ARTE DE ESCREVER
124
Há por vezes consonâncias desgraçadas, que o autor teria evitado, se houvesse relido a sua frase em voz alta. Tendo o padre Maury elogiado não sei que fragmento de Arnaud, Saínt-Beuve termina assim as suas reflexões: Não
se pode
deixar
de admirar
do padre Maury
o entusiasmo
por tão pouco. (Port-l(oyal). I
Outra
o não
consonância
Cardeal.
duvidou
vendo
de que
I
censurável:
o cavaleiro ele vinha
Marcieur
para
vir
o observar
ao seu
encontro,
e tomá-lo
à sua
conta. (DueLOS.
o
Memórias
emprego
Secretas,
pág.
257).
dos «ques>
Uma das grandes causas de dureza no estilo é o emprego frequente dos «ques», e aqui esbarramos num hábito inveterado nos bons autores do século XVII. O seu estilo está repleto de ques, o que os não impede de que fossem excelentes escritores os que puseram a firmeza e o vigor acima da harmonia. Pascal multiplicava os ques. La-Bruyêre serve-se deles a cada passo. Num dos seus prefácios, o prefácio da Mulher de Cláudio, Dumas filho justifica Moliêre de ter abusado das conjunções e dos pronomes, sob pretexto de que.
,J
A ARTE DE ESCREVER
125
escrevendo para o teatro. e para o diálogo. eles desaparecem com o modo de dizer. A desculpa não é acertada. visto que todos os autores daquela época. fosse qual fosse o seu género. empregaram correntemente os ques, em detrimento da harmonia. É certo que este defeito se não nota em cena. quando se lêem estes versos de Racine: que/que annui qui le presse, moi qui 's'ínteresse. li n'a pour tout plaisír, seiqneur, que quelques pleurs Qui lui font quelque [ois oublíer ses malheurs ('). Britanicus
est
Il ne voít
à son
E fica-se
seul:
sort que
contrafeito. Igual
quando
ao grande
se lê em Lamartine:
César.
Que, quando soava
a hora ...
Bastará folhear qualquer autor do século XVII. Corneille e Racíne nos seus prefácios. Boileau nas suas Cartas. Bossuet nos seus Sermões, para se verificar aquela epidemia. que só abranda um pouco a partir de Rousseau, para desaparecer com Chateaubriand. à medida que a língua se afasta do génio latino.
(') podem lição
Como ser
todas
representem,
a lição
se cifra
substituidas reproduzimos
nas
por
palavras
palavras
o texto,
grifadas. nossas.
que
e elas não a mesma
sem o traduzir.
(Nota do tradutor).
A ARTE
126
DE
ESCREVER
Eis aqui duas passagens. uma de La-Bruyêre, a outra de Pascal. que caracterizam o abuso dos ques, tal qual o encontramos em todos os seus contemporâneos: Comparaí-vos, homens
se vos
dedicados
particulares
vos
públicos;
que
julgais
vos
que nada
dizeis para
indicar
aos outros. Richelieu
dos homens lhes
reuniu
numa
a
intrepidez
frutos
ao
coisas
dever
formar
os homens.
são
todos
agradam
por
solenidades. não
ignorava
procureis
os
bela
templos. algures.
que são
os
da gramá-
vantajosas
levar-
à Repú-
o plano ... de talento.
que
por
se vêem
espalhadas
que tenham e todas
selecção
semeado
do púlpito
porque
sã moral,
as subtilezas
de palavras.
e que os estão
entre
vós.
que com uma
os circunlóquios uma
o que
e que, para
ciências;
nos
do soldado
populares.
o que é a necessidade
que as torne
o poder
que insinua
ao coração
os
Francesa.
eloquência,
valer.
comoções
outras
que
a Academia
as
oradores.
da eloquência,
e favoreceu;
pensões;
não
perfeição
ou
que ele se afastasse
multidões; das
lereis,
que nada sabei que o
acarínhou
da
e a faz
que leva
compartilhadas
Se quiserdes as flores
fez
que
cabeças;
parecer
dava
e a utilidade
e da poesia.
as espécies
boas
negócios
os negócios
que nunca
que acalma as
a grande
e
digo
lhes
Richelíeu:
confiem
ou para
que
a razão
e audácia
é preciso Todas
gado
a força
grande
dos vossos
de vós próprios;
que
célebre;
e fundamento
base
tirastes
e a probidade.
da história
estas blica.
qual
seu
tica.
lestes.
privilégios;
a justiça
excita
felizes
mas que os estimou.
que auxilia
palavra.
homens
génios
ql:e leu; não
companhia
ao
vos
que nunca
mas tudo
tributou
de que
das ciências.
soube
de letras.
Ele sabia da
inculcais
a inutilidade
deveis
a isso.
que pelo êxito
dignos
sabeis,
Cardeal que
atreveís
à fortuna
fazem entre
tenham
da língua.
que fazem
encher:
todas empre-
cumpre
que
amar
as
que
os
vós.
(LA-BRUYF.RE. Discurso na Academia).
-A ARTE DE ESCREVER
Eis aqui uma passagem
127
de Pascal tomada ao acaso:
E assim, quando se lhes censura que o que eles procuram com tanto ardor os não satisfaria, se eles respondessem, como deveriam, que eles pensavam bem nisso, que eles não procuram assim senão uma ocupação violenta e impetuosa, que os distrai de pensar em si, e que é por isso que eles procuram um objecto atraente que os encanta e os atrai com ardor, deíxarram os seus adversários sem réplica. Mas não respondem assim, porque se não conhecem a si próprios; não sabem que não é senão a caça e não a presa o que eles procuram ... Têm um instinto secreto que os leva aprccurar a diversão e a ocupação exterior que provém do sentimento das suas misérias continuas; e têm outro instinto secreto que lhes foi deixado pela grandeza da nossa natureza primitiva, que lhes faz conhecer que a felicidade só reside efectivamente no repouso e não no túmulo; e desses dois instintos contrários se firma neles um projecto confuso, que se oculta a sua vista no fundo da sua alma, que os leva a tender para o repouso pela aqitação e a imaginar sempre que a satisfação que não têm lhes aparecerá se, vencendo algumas dificuldades que encaram, puderem abrir por ali a porta à tranquilidade. (PASCAL,Pensamentos, capo v).
Entre os escritores de segunda ordem, este abuso atinge um processo seco e uma aspereza desagradável. como podereis avaliar por estas linhas: Será possível que se não possa encontrar ninguém que represente ao Rei o miserável estado em que está o Padre Du-Breuíl, para obter que se trate ao menos com indulgência um homem de bem, como a que têm por um padre tão ruim, como é o que está, presentemente, tão à sua vontade no seu mester em Paris? (Carta de Arnaud, SAINTE-BEUVE,Port-Roçei, t. v, capo VI).
128
A ARTE
DE
ESCREVER
É justo
dizer-se que os referidos escritores têm milhares de páginas, onde quase se não encontram os ques, e que tais páginas são as melhores das suas obras. Quase todos tinham na cabeça a construção lata e preferiram soldar os seus pensamentos com aquelas duas cavilhas a fazer com elas muitas frases. O abuso dos ques acabou por desaparecer da nossa literatura. Flaubert proscrevia-os, como ao maior escolho da harmonia. É preferível não os multiplicar e servir-nos deles sobriamente; mas não há que hesitar, quando a clareza e a originalidade se impõem. Não obstante, podem suprimir-se, em muitos casos, como nas frases seguintes: que achavam
Este costume -ridículo ...
o
mancebo
que avistara
na
véspera... Esta
Por: este ridículo ... Por: na
passagem
em tal livro ...
que é citada
o
costume
mancebo
julgam
avistado
véspera ... Por:
em tal
Esta
passaqern
citada
livro ...
O que relativo e o que regime podem substituir-se -quase sempre. É preciso, pois, quando se escreve, não só evitar o encontro de sons desagradáveis e as más dissonãncias. mas também procurar a fluência musical. Pode-se, assim, precavendo-se, "acostumar o ouvido ao estilo harmonioso e obter, em verso ou prosa, belíssimos efeitos.
..•.
A ARTE DE ESCREVER
129
Escutai os conselhos, que nos dá um poeta, versos de uma cadência muito variada:
em
Se queres descrever ligeiros zé firas, Murmure o suave arroio Em versos suavissimos. Se referem as ondas agitadas O verbo trocará como torrentes Correndo em catadupa. Se Ajax ergue um penedo. E o arremessa, com custo. Pesada é cada sílaba. E as palavras arrastam-se. Mas. se vires Camila Aflorar a serena superfície Das águas prateadas. O verso voa e ergue-se. Ligeiro, como as aves. (DELlLLE)
•
Quantos exemplos harmoniosos se não podiam tirar dos bons autores. quase em cada página! Um marido chora aos pés do leito onde agoniza sua mulher: Ela já não ouvia de dentro todos os ruídos da terra. senão o intermitente lamento daquele pobre coração. lamento doce e indistinto. como os últimos ecos de uma sinfonia, que se afasta. (FLAtlBERT.
Madame
Bovary).
O astro-rei inclina-se ao poente E desce do seu carro vitorioso. A nuvem flamejante. que o esconde. Mantém no espaço, em sulcos coloridos, Os vestígios do astro e a flux espalha
130
A ARTE DE ESCREVER Revérberos purpúreos. No horizonte, Campeia a lua, como áurea lâmpada, No azul suspensa, e os seus froixos raios Alastram-se no campo, e o véu da noite Estende-se nos montes. (LAMARTINE) . Ouvir das harpas o gemer saudoso, Vaguear, cismando, quando as andaluzas Assomam à janela e atiram flores! (VíTOR HUGo).
Há palavras que, pela sua cor antiga, grega, latina ou exótica, têm uma harmonia própria, e que, aplicadas num bom estilo. produzem maravilhosos efeitos. Ê o que torna encantador o fragmento seguinte, um dos melhores, que se poderão ler:
Uma noite em Roma Escuta! a minha Egéria canta à beira da sua fonte; ouve-se o rouxinol na vinha do hipogeu dos Cíptões: a brisa lânguida da Síria traz-nos indolentemente o perfume das túberas selvagens ... Os manes de Délía. da Lálaqe, de Lídia, de Lésbía, de cima das cornijas desmanteladas. murmuram em volta de ti, palavras misteriosas. Os teus olhares cruzam-se com os das estrelas e confundem-se com os seus raios. Uma nuvem vaporosa ergue-se e envolve o olho da noite. de retina prateada. O pelicano grita e volta para os areaís: a galinhola desce sobre as fontes diamantínas: o sino tange na cúpula de S. Pedro; o cantochão nocturno, voz da Idade Média, entristece o mosteiro insulado de Santa-Cruz; o monge salmodía, de joelhos, o laudes sobre as colunas derruidas de S. Paulo; prostram-se vestais sobre a laje gelada que cerra as suas criptas.
A ARTE
Ventos
dos laranjais
Círce: brisa,
que passas
ninfas
e os amores
entre
as virgens
molhais que
viveis
ESCREVER
de
de PaI ermo,
que soprais do Tasso,
túmulo
Rafael
asas
131
pelo
da Farnesina;
as vossas
sómente
DE
vós,
e
nas
as
de obras-primas
que doidejais
estátuas
cascatas
de
com
que inspireis
a ilha de
acaricias
génios
vós das
as recordações,
o sono
as
no Vaticano,
Musas;
de Tívoli;
e adejais
a vós eu permito
sobre que
que artes,
vinde;
de Cintia.
Memórias).
(CHA TEA UBRIAND,
Evidentemente, todo o efeito harmônico deste fragmento procede da magia das palavras. Algumas palavras têm uma particular sedução, que, aliada a brilhantes epítetos, produz singular encanto musical. Relede, por exemplo, na Salambó: Em
Cartago,
mocidade, ximo
ninguém
estudara
da Babilónia;
a Tessálía,
a
persos
areais,
nos
tando
sua
viu
girar
haste
tantas
sábio
as
dos
que
galo
preto
quinhentas quantos
que o mar,
coberto
uma Desceu
colunas dias
do
do
o
Ânio
de linguagem inda
Aos rochedos Um
doce
Vauclusa
segreda de Tíbur
nome. inda
Cintia; conserva
Efeso,
estão
dís-
percorreu, fogueira
de
às cavernas labirinto
de
que sustinha
na
ano.
(FLAUBERT.
E estes belos versos
sua pró-
de um véu e agi-
sobre
de Tarento, os
Na
Pessínonte,
até
mãe do Terror.
ele.
em Borsípa,
Nabateus,
cataratas
o candelabro
lâmpadas,
do
Mogbedes,
Com o rosto
um
da Esfinge,
e resplandecer
as
do Sumo Pontífice,
Samotrácia,
templos
desde
deitara
diante
Prosérpina;
Lemnos
e,
mais dos
visitara
os
do Nilo.
archotes
sandáracas,
era
colégio
depois
[udeia,
a pé, as margens
de
no
o retrato
Salambó).
tão doce:
A ARTE DE ESCREVER
132
Outro nome querido. que é o de Laura, E Ferrara. nos séculos futuros. Há-de repetir sempre O nome de Leonor. Oh! ditosa a beleza. Que os poetas adoram!
Há um encanto. uma música especial. não somente nas palavras exóticas e raras. mas até nas palavras ordinárias da língua. segundo o emprego que se faz delas. A prova de que há certa harmonia nas palavras. consideradas em si próprias ou conjugadas. é que se obtêm com elas. muito Iàcilmente, efeitos de harmonia imitativa. As palavras vêm alinhar-se por si mesmas debaixo da pena: O reboar surdo do trovão ... O leão redobra os seus rugidos ... Ela ouvia ainda o movimento rítmico dos mil pés que dançavam ... (FLAUBERT)
O rugido do leão. rouco e cavernoso. aqueduto.
•
como um eco num (FLAUBERT)
•
Os peitos estalavam como caixas. sob os pés dos elefantes. que os esmagavam. (FLAUBERT)
O vento
áspero
soprava
.
sobre aqueles crânios insepultos. (V. HUGo).
A tristeza salta-lhe para a garupa e galopa com ele. (BOlLEAU).
e-
·L _
A ARTE DE ESCREVER
133
A fadiga: Num íngreme caminho pedregoso Em que o sol dardejava, Seis valentes cavalos Puxavam por um carro. Mulheres. frades. velhos. Todos ali se tinham apeado. Os cavalos suavam. Arquejavam e o passo suspendiam . . (LA-FoNTAlNE).
A preguiça: Ouvindo tais palavras. a preguiça Sente a língua qelar-se-lhe na boca. Escusava de ter falado tanto; Boceja. estende os braços. Fecha os olhos e dorme. (BoILEAu).
o
vento: Enche-se de pavores Como um balão. fazendo Burburinho infernal; sopra. ruge. estrondeia ... (LA-FONTAlNE) .
Há um século que a prosa francesa é manejada por artistas, que a solidificaram de uma forma admirável e lhe fizeram emitir novas sonoridades (Chateaubríand, Gautíer, Huqo, Flaubert, Leconte de Lísle, Heredia, etc.}. A linguagem, com efeito, tem evidentes harmonias. Pode exprimir a rapidez. por uma sequência de sílabas breves:
"'-----
A ARTE DE ESCREVER
134
o
momento, em que falo, está já longe de mim;
ou a lentidão,
por uma seqüência
Traçam
de sílabas
longas:
difícil sulco os passos vagarosos.
É preciso
um esforço para ler tal verso. Também Boileau dá uma impressão de luta e de obstáculo nestes versos sobre a tomada de Namur: ... Sobre montões de lanças, Cadáveres e penedos, Abrir caminho largo.
Um crítico, para caracterizar estrofe a Vttor Hugo:
a dureza,
dirigiu esta
Onde haverá quem bem te exalte, Hugo? Quem te íará justiça? De rochedo em rochedo, Quando subirás tu, homem raro, Ao monte, que se chama Academia? ó
ó
Não obstante, esse mesmo Vítor Hugo escreveu milhares de versos, de uma ir repreensível harmonia: Na sombra nupcial. solene e augusta, Os perfumes da noite Pairavam sobre Gálgala; E dos moitedos de albas Iiláceas, Um fresco e doce aroma se evolava.
o
emprego da harmonia imitativa só pode ser passageiro. Seria um abuso procurá-Ia sempre, e caie-se-ia no
...
"'~
A ARTE DE ESCREVER
135
artificial e no pueril, como nestes versos, em que Ronsard quis imitar o voo da andorinha: Guiada pelo zéfíro Sublima-se no espaço. Volteia. revolteía, E solta um lindo grito. Em que há risos e tais bálsamos Para os nossos espíritos. Que não sei descrevê-los.
o
que se deve realizar, o que se deve procurar,
é a harmonia geral das palavras, por uma feliz mescla
---~
-to'
de vogais e consoantes, de longas e breves. como nos versos seguintes, que têm uma flexibilidade e uma variedade notáveis: Como nuvem que passa. Desvaneceu-se a minha primavera! E nunca mais meus olhos Verão os traços da fugaz ventura. Arrebatados à terra Pelo sopro cruel da tua cólera Irei adonde nunca mais se volta. Os meus vales. a minha moradia, E estes olhos que choram. Não mais verão os meus passos. (LAMARTlNE)
•
Marmontel diz: - «As vogais não são todas iguais e bilhantes; a voz agrada mais no som do a e do 0, que nas outras vogais.» Compete a um ouvido exercitado distinguir todos esses cambiantes e evitar as palavras que produzam som desagradável e repreensível.
136
A ARTE DE ESCREVER
A prosa oferece tão belos efeitos como a poesia na arte de dar vida a uma imagem pelo som das sílabas: A coruja voa silenciosamente. como enchumaçada de algodão em rama. A comprida doninha introduz-se no ninho sem tocar numa folha. A Iuínha fogosa, de sangue quente, é tão rápida, que num momento sangra pais e filhos, degola toda a família. (MICHELET)
•
Ainda uma vez, não vos deveis preocupar com as dificuldades, que pode apresentar a procura da harmonia imitativa. Fàcilmente a encontrais. Todas as línguas têm os sons necessários para produzir um movimento, ou uma impressão física. Pouco é preciso juntar a palavras como assobiar, murmurar, gritar, estalar, uivar, mugido, uivo, eco, gorjeio, murmúrio, clamor, burbuiinho, gemido, para obter a harmonia imitativa. Disse Villemain:
o carácter primitivo das línguas está em fazer-se ouvir, o mais que se possa, o objecto e a ideia pelo som; e esse carácter é-lhe tão essencial, que resiste a todas as épocas ... A língua figurativa, aquela que pinta pelo som, ficou sendo a força e a vida de toda a linguagem humana; e o espírito do homem nunca renunciará a ela. Esta relação do som com o objecto não é limitada a alguns casos, em que nos impressiona por uma forte onometopeie, encontra-se em toda a parte; nas palavras compostas da nossa língua, como nos derivados das línguas estrangeiras, para a expressão das ídeías, como para a expressão das coisas. Tal relação é, a certos respeitos, a primeira etimologia das palavras.
A ARTE DE ESCREVER Não
é somente
que fizemos
por
a palavra
imitação
[remir;
de grego.
que se exprime. Horror, terror, meigo, suave,
não
vieram
que
reconheceu
para
nós e
do latim
adaptou
ou do latim
é pela relação
ção
corar,
somente,
esses
137 tremere,
do som com a como--
suspirar, pesado, leve, mas
termos.
do
sentido
análogos
íntimo
à impressão
do objecto.
Lição Oitava A harmonia das frases A
harmonia
das
períodos. porâneos. monia
frases. -
-
Como
-
A
por
O
equilíbrio.
construir
Proposição.
coesão. -
uma -
-
Digressões
Importância
A
frase? da
construção. Processos e
desvios.
harmonia.
-
-
Os
contem-
Har-
A
falsa
harmonia.
Assim como as palavras. segundo os sons e as suas combinações. produzem uma harmonia. que anima o estilo. assim a construção das frases produz uma harmonia geral. que domina o estilo e lhe dá a sua cadência. o seu aspecto definitivo. Uma frase tem número, quando está construí da e se desenvolve num ritmo largo segundo as exigências da respiração. Um período é uma frase. dividida entre alguns membros (os quais se podem subdividir em frases incidentes) e cujo sentido completo está suspenso até a última e
perfeita pausa.
A ARTE DE ESCREVER
138
A construção das frases é o segredo da arte de escrever. Como há uma infinidade de maneiras de construir frases. o que depende da maleabílídade pessoal do espírito seria difícil dar conselhos minuciosos. Fixemos observações gerais. alguns princípios. que explicam a maior parte dos casos. Seja qual for o assunto de que se tratar. não é necessário escreverem-se sempre longos períodos. Não se deve adoptar mais o estilo de frases longas. do que o estilo de frases curtas. A mescla é que produz a variedade. Nada é mais agradável. do que descansar o espírito em frases breves. depois de termos lido frases majestosas. Um estilo amplo e firme é todavia mais sedutor. de mais relevo e mais estimado. do que um estilo de fôlego curto. Os belos períodos
provam
que se tem fôlego. Com
igual mérito. as frases curtas serão sempre de mais difícil realização. Os belos períodos exigem trabalho complicado. ao passo que um artigo de jornal se pode fazer sem grande esforço. O período da arte
constitui
de escrever.
o mecanismo É uma
parelha
mais importante que tem de se
guiar. Não se devem perder as guias de nenhum dos cavalos que governamos; cumpre caminhar sempre para um alvo, obviar os obstáculos, alinhar bem as regências. conservar a clareza e a lógica, prodigalizando imagens. Não há grande dificuldade em explicar as diversas formas, que um período pode tomar. Convém todavia
A ARTE DE ESCREVER
139
que o leitor, que decerto as conhece, tão bem como nós, tenha sob os olhos alguns exemplos de períodos, com o auxílio dos quais poderá avaliar o alcance dos nossos conselhos. Perlodo de dois membros sem incidentes Seja qual for a indiferença do nosso século pelos talentos que o honram, ~ presta, pelo menos, justiça àqueles que já não existem. (TOMÁS).
Poderia juntar-se um incidente a cada um dos dois membros daquele período simples, e ter-se-ia um período de dois membros com incidentes. Podemos, como é fácil ver-se, juntar a cada membro um ou dois incidentes. Perlodo de dois membros com Incidentes Aquele que reina nos Céus, e de quem dependem todos os impérios e a quem só pertence a glória, a majestade e a independência, ~ é também o único que se glorifica de fazer leis para os monarcas, e de lhes dar, quando lhe apraz, grandes e terr iveis lições. (BOSSUET) .
Perfodo de três membros Se a equidade reinasse no coração dos homens; se a verdade e a virtude lhes fossem mais queridas do que os prazeres, a fortuna e as honras, nada poderia alterar a sua felicidade. (MASSILON)
o
.
que produz o encanto e o brilho de um período é o andamento progressivo das palavras e das idéias.
A ARTE DE ESCREVER
140
Perlodo de quatro membros Amar-vos um pai - é um sentimento que a natureza inspira; - mas ter-nos um pai, tão esclarecido, testemunhado essa confiança, até ao último suspiro, é o mais belo testemunho que a vossa virtude poderia lograr. (BoSSUET) .
Há longas frases, que nem por isso são períodos mas simplesmente frases inumerativas:
r,
Vereis numa só existência todos os extremos das coisas humanas; a felicidade sem limites, assim como as misérias; uma longa e tranquila fruição de uma das mais nobres coroas do Universo; tudo que de mais glorioso pode dar o nascimento e a grandeza, acumulados sobre uma só cabeça, que, em seguida, é exposta a todos os ultrajes da fortuna, etc, (BOSSUET).
A primeira condição para se escrever uma frase, seja qual for a sua extensão, é observar-lhe bem a lógica, o equilíbrio e a proporção.
A lógica. Devem construir-se as frases, segundo a ordem natural dos pensamentos e das regras gramaticais; o sujeito, o verbo e o atributo. Não se deve dizer: Deus deu a todas as criaturas humanas a sua graça. Mas: Deus concedeu a sua graça a todas as criaturas
humanas. Também
se não deverá dizer: Esta prova pareceu a todos os filósofos insuficiente;
J.""
~
A ARTE DE ESCREVER mas sim:
141
esta prova pareceu insuficiente a todos os
filósofos. E assim, numa frase mais longa, em vez de: Como ousar crer, após tais ameaças, que ele volte? Dír-se-á : Como ousar crer que ele volte depois de tais ameaças? Os complementos estavam muito afastados dos verbos que os regem; era preciso colocá-Ios mais próximos. Falta de lógica, que é também falta de harmonia. A prova é que podeis, alongando o defeituoso membro da frase incriminada, empregar o mesmo arredou
~
Defeito de disposição e de lógica, de que resulta um estilo estropiado. é o que se nota nesta frase de um autor contemporâneo: Fora atingido por uma dessas febres terríveis. cuja extraordinária violência só se pode avaliar. experimentando-as.
esta
Lemos ultimamente. na Revista dos Dois Mundos, frase de um acadêmico ilustre:
Passou em revista o dogma católico. com uma se.gurança de doutrina. igual ao brilho da sua palavra.
I
A ARTE DE ESCREVER
142
São construções
dissonantes,
que raiam pela incor-
recçâo. Saínt-Beuve
descreve
uma procissão
das raparigas
de Pon-Royal. Eram mais brilhantes de caridade, que os círios que levavam nas mãos.
Dír-se-ía que um círio pode ser também brilhante de caridade. Construindo bologia:
melhor a frase, ter-se-ia
dito sem anfi-
A caridade tornava os seus rostos mais brilhantes. que os cirios que levavam nas mãos.
A proporção dos membros de frases entre si produz o equilíbrio e a harmonia de um período. É preciso que os incidentes ou as proposições príncipais sejam, entre si, pouco mais ou menos, de comprimento igual, e que a frase termine em sonoridade extensa. Noutros termos, é preciso que a construção sustente a voz sem a fatigar; que haja nela, de distância em distância, pausas de sílabas, com bastante variedade na cadência, para evitar a monotonia de estrutura; e, Finalmente, que tudo isto se observe, sem detrimento reza e da concisão.
da ela-
Bossuet possuiu, no mais alto grau, esse dom admírável, já nas suas frases simples, já nos seus períodos complicados.
"
"-T
A ARTE DE ESCREVER
143
Eis aqui uma frase simples que é modelo monia, de talhe, de pausa e descanso final:
de har-
Esta orgulhosa sabedoria do século, que, não podendo compreender a justiça das vias de Deus, emprega todas as suas falsas luzes em contrariá-Ias, é maravilhosamente confundida pela doutrina do Evangelho e pelos sagrados mistérios do Salvador Jesus. (BOSSUET) •
Lede também em voz alta o seguinte trecho de Bossuet, mais complicado, mas requintado no desenvolvimento e na pausa harmônica das vogais: Multiplícai os vossos dias, como os veados e os corvos que a Fábula ou a história da Natureza faz viver, durante tantos séculos; durai tanto como esses grandes carvalhos, sob os quais os nossos antepassados descansaram e que darão ainda sombra à nossa posteridade; amontoai nesse espaço, que parece imenso, honras, riquezas, prazeres; de que vos servirá esse amontoamento, visto que o último sopro da morte, tão fraco, tão débil. abaterá de repente essa pompa vã, com a mesma facilidade com que se desfaz um castelo de cartas, fútil entretenimento de crianças?
Para se obter harmonia, não há melhor regra, que o conselho dado por M. A. Henry, no seu Curso de
Literatura: Fazeí que o som se sustente ou vá mesmo em crescendo até o fim da frase e que esta termine com os membros mais extensos e as palavras mais sonoras. É preciso, noutros termos, que a melodia vá crescendo e se vá ampliando, como neste exemplo:
A ARTE DE ESCREVER
144
A quem impende tocar os corações. senão à verdade? Ela é que há-de aparecer a todos os corações rebeldes no dia final. Sim. deparar-se-lhe-à, até no fundo do abismo; espectéculo horrível a seus olhos; peso insuportável sobre as suas consciências; chama sempre deooredore em suas entranhas. (BOSSUET).
Quintíliano
preceituou:
- «Não haja nada de duro nem de precipitado. no final do período. Ê aí que o espírito respira e se desafoga; o descanso do discurso.» A maior parte dos escritores da nossa época perderam o gosto das belas construções clássicas. dos díseretos preceitos da frase bem feita. Tem-se abusado dos incidentes. deploràvelmente. Em vez de se cuidar da arquitectura da frase. como fez Flaubert, com uma consciência a que a crítica deve prestar justiça. hoje em dia gostam mais de escrever. como direi? confusamente. fazendo seguir os incidentes. uns após outros. de forma que as frases se sobrecarreguem de palavras e fiquem longas sem ficarem equílibra das. Há um defeito de proporção e uma falta de lógica. a que é difícil habituarmo-nos, quando acabamos de ler grandes escritores clássicos. Fingem desdenhar da forma. para se não preoeu parem senão da sensação. Os Goncourts principalmente foram os mais audaciosos desarticula dores do antigo estilo; tudo partiram. misturaram. confundiram e trituraram.
+i
I
r
1
A ARTE DE ESCREVER
145
Eis aqui uma frase característica, que representa bem a acumulação e o abuso dos incidentes, de que falámos. Trata-se da passagem por Paris, de uma famosa pintora: La-Tour pudera assistir a esse triunfo do pastel. a essa fortuna dos carvões da Veneziana, visitada pelo Regente, procurada pela alta sociedade, cheia de comendas e de dinheiro, solicitada, exorada, para um retrato pelos Paraberes e pelos De-Príes, pelas mais nobres damas da corte, apaixonadas pelo encanto dessa arte, que dá à mulher não sei que tênue 'Vida de nuvem, um quê de semelhança com uma flor colorida. (E.
T i
I
I I
i
E
J.
DE
GoNOOURT,
A Arte do século XIX
1.& série,
pág. 324).
Como se vê, os incidentes e os particípios estão ligados seguidamente, como um rosário. Ora se referem à «Veneziana», ora às grandes «damas da corte», ora ao «encanto daquela arte», e tudo na mesma frase, por um escandaloso processo de mistura acumulativa. Zola não escreve de outra forma. Uma escola inteira se pôs a explorar esse género de impressionismo descritivo, que consiste em desconstruir a frase e o estilo. Em verdade diremos que será sempre mais difícil, mais estético e mais meritório fazer um belo período; e depois, as descrições de Chateaubriand, principalmente nas Memórias de Além-Túmulo, posto que de um estilo clássico e regular, não têm menos intensidade e são tão vivas, tão modernas, como as descrições de hoje. 10
-T·
...••.
A ARTE DE ESCREVER
146
Pedro Loti, o autor comovente do Pescador de Islândia, é também um dos que mais empregaram neste proveito da sensação crua, o estilo descrito: Todas as minhas impressões cambiantes desta noite se fundem agora neste desejo enternecido de a tornar a ver, em impulso, quase sem esperança, para ela. (LOTI. Fantasma do Oriente, pág. 39).
Ou ainda: Somente na sua visão final ele imaginara ... ~ Da primeira vez que ela o avistou, aquele Yann ... ~ Aquele pequeno Silvestre tornara-se desde logo numa espécie de irmão... E. nas suas bodas, estavam lá todos, aqueles que ele tinha convidado outrora, todos, excepto Silvestre, que fora dormir para os jardins encantados, muito longe do outro lado da terra. (LeTI,
Pescador de Islândia).
Mas daqui não se conclua que autores, como Loti, não são escritores notáveis. Seria cair num preconceito e condenar, ao mesmo tempo, o estilo desordenado de Saínt-Símon, que não brilha pela harmonia, nem pela ordem, nem pela construção. O estilo, que se observa em nosso tempo, é o resultado da própria evolução da arte de escrever, nos últimos trezentos anos. Demais, cada um escrever como pode e como quer, visto que o estilo é a expressão individual do pensamento. Num livro contudo, como este, num livro de teorias e de demonstrações, é preciso aconselhar que se remonte às origens, à unidade, à tradição da língua. aos pro-
A ARTE DE ESCREVER
147
cessos lógicos e clássicos da verdadeira e grande arte de escrever. Observemos o desleixo, a afectação, a extravagância dos processos; e desculpemo-nos, porque isso também é estilo; mas não os tomemos como lição ou exemplo. Em resumo, a proporção, o equilíbrio, a lógica são o que deve determinar a priori, a harmonia de uma frase; e é cuidando especialmente dos finais que se obterá o efeito musical, completo. A frase deve ser cadenciada, bem terminada, bem proporcionada. Se, num primeiro membro, pusestes dois ou três epítetos, é preciso pôr igualmente dois ou três no segundo membro. Sem isso, o estilo tem qualquer coisa de casual, de incompleto, um andamento de quem cavalga.
I
Impressionável e viva na juventude, indiferente e pesada na velhice, a imaginação diminui e perde-se, à medida que o corpo enfraquece.
Eis aqui uma frase que não é harmoniosa, quer se leia com os olhos, quer se diga em voz alta. Emparelhemos outro verbo com enfraquece. e teremos esta frase: Impressionável e viva na juventude, indiferente e pesada na velhice, a imaginação diminui e perde-se, à medida que o corpo se gasta e enfraquece.
O perigo está em que, quando se quer balancear o equilíbrio das palavras, se juntem palavras inúteis e inexpressivas.
148
A ARTE DE ESCREVER
É o pior defeito; antes a dureza e a dissonância, o enfado e a vulgaridade. Os membros de frases, o número dos verbos ou dos epítetos devem, portanto, corresponder-se sempre; e devem as frases terminar, quanto possível. musicalmente, como nestas melodiosas linhas:
o justo considera a sua vida, ora como o fumo, que se eleva, que se rarefaz elevando-se. que se desvanece nos ares; ora como a sombra que se estende, se contrai, se dissipa, escura, viva e figura fuqidía. (FLÉCHIER)
.
Evitai acumular, numa só frase, pensamentos que não têm relação bastante entre si e com os quais se possam formar algumas frases separadas. Assim, esta frase de uma tradução de Plutarco, citada por Blair: Os Gregos (comandados por Alexandre), marchavam através de uma região inculta, cujos habitantes selvagens não tinham outra riqueza. senão uma raça de carneiros de má qualidade. cuja carne era insípida porque se alimentavam continuamente de peixe do mar.
Como se vê. passa-se aqui de um sujeito a outro, as ídeías acumulam-se, atropelam-se, sem razão. Seria necessário fazer duas ou três frases e dizer: Os Gregos marchavam através de uma região inculta. Os selvagens. que habitavam essa região. não tinham outra riqueza. 'senão uma raça de carneiros ruins; além de que a carne desses animais era insípida. porque se alimentavam. etc.
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A ARTE DE ESCREVER
149
Devemos evitar também as digressões e os parêntesis. Por digressões, compreendo os caminhos de través, os desvios que a ídeía principal pode tomar, passando bruscamente de um objecto para outro, como neste exemplo:
Logo que deixei a carruagem, os meus amigos acompanharam-rne e apresentaram-me ao dono da casa, que me recebeu com a amável solicitude. cujo segredo ele e os seus possuíam, desde que habitavam aquela velha casa ediiicede garridamente à beira do mar, cujas águas azuis se viam agitar e brilhar, à luz do sol.
Exageramos talvez o processo, para que ele ímpressione os vossos olhos. Uma frase é um pensamento capital. Para sermos fiéis ao sentido, à lógica, à harmonia. é necessário que os acessórios a não apouquem, e a não façam nunca perder de vista. Os parêntesis prejudicam igualmente a harmonia das construções. Eis uma frase de La-Bruyêre : A maior parte dos homens para conseguirem seus fins, são mais capazes de um grande esforço, do que de uma longa perseverança.
Bastaria um parêntese sem os por exemplo:
para
a estragar
se díssês-
A maior parte dos homens. para conseguirem os seus fins (cada qual tem um fim em vista). são mais capazes de um grande esforço, do que de uma longa perseverança.
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150
A ARTE DE ESCREVER
Sobretudo não acrescenteís nada às frases, quando se vêem concluídas, como neste exemplo aduzido por Blair: Alguns espíritos presumidos censuram tão grosseiramente a poesia antiga, para dar preferência à poesia moderna, que se não pode ler nem o elogio de uma nem a crítica da outra, sem indignação, sentimento que é vivamente despertado pela arrogância.
Este último membro juntou-se à frase, para a arredondar; mas, realmente, é inútil, porque nada acrescenta. Examinando de perto o tom e o som dos estilos dos diversos escritores, pode dizer-se que há duas espécies de harmonias: uma é ampla, voluntàriamente extensa. majestosamente solene, produzida, não só pela combinação das frases, mas em que também entra o efeito musical de certas palavras imaginosas, coloridas e excepcionais. Cabe nesta categoria aquele fragmento célebre que Fontanes nunca podia reler sem chorar: Ligeiros barcos da Ansónia, sulcai o mar calmo e brilhante; escravos de Neptuno, desfraldai a vela, ao sopro amoroso dos ventos ... Voai, aves da Libia, cujo colo flexível se curva graciosamente; voa i para a cumeada de Itome c ide contar que a filha de Homero vai tornar a ver os lauréis da Messéníal Quando encontrarei eu o meu leito de marfim. a luz do dia tão querida dos mortais. os prados matizados de flores, e regados de água cristalina ... (CHATEAUBRIAND.
Os Mártires).
A poesia não tem música mais divina, do que uma prosa assim.
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.
A ARTE DE ESCREVER
151
Há um segundo género de harmonia. peculiar aos escritores. que a não procuram precisamente nas palavras e na fisionomia das palavras. Esta harmonia resulta apenas da coesão. Em geral, quando se não pode cortar uma palavra numa frase. e as palavras dela se mostram estreitamente unidas. acha-se harmonioso o estilo. apenas pela força da concisão. Assim escrevem Montesquieu, La-Bruyêre e PascaI. Toda a harmonia que se não identifica com a frase. que não é resultado da precisão do estilo cerrado. é apenas harmonia artificial. Diga-se. desde já. que a harmonia faz parte do gosto de escrever; não é uma coisa absoluta, matemática. A combinação dos sons realiza-se à medida que se escreve: a escolha das palavras majestosas ou musicais produz-se instintivamente. O dom da harmonia adquire-se à medida que se toma cuidado com ela e que se relê o que se escreve. A cadência de uma frase é apenas questão de construção. É preciso possuir fôlego e escrever largamente. E então se poderão dar ao assunto proporções harmoniosas. Para ver se se obteve o equilíbrio musical, é preciso reler em voz alta o que se escreveu. Não se diga que os livros são destinados a ser lidos e não ouvidos! Os olhos também 'Ouvem os sons. E assim como o músico ouve a orquestra. percorrendo uma partitura. bastará ler-se uma frase, para se lhe saborear a cadência.
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A 'ARTE DE ESCREVER
152 Contudo,
devemos convencer-nos
de que a harmonia
não é uma qualidade, senão quando associada às outras qualidades do estilo. Moliere e Racíne são dois exemplos notáveis da necessidade relativa da harmonia. Racine fez certamente os versos mais harmoniosos da língua francesa. É o poeta por excelência. Molíere escreveu os versos mais felizes, os mais bem concatenados, os mais inesperados, os mais enérgicos, que se podem ler. E, não obstante, os seus versos são ásperos, dissonantes, escritos ao acaso dos sons e da cadência. É que há uma certa beleza de pensamento absoluto, que está acima até da harmonia e que a pode dispensar. La-Fontaíne não teve receio de escrever versos extremamente duros, como estes dos Animais Doentes de
Peste: ... Mas
eu penso,
Que é bom que cada um acuse assim como eu.
Em nossos dias, desde o romantismo, com a cultura da fluência, da elegância, da ponderação musical das frases, habituaram-se. e muitas vezes com razão, a pôr a ideia e a imagem acima de tudo. É assim que Vítor Hugo escreveu tantos e belos versos, já no teatro, já nas outras suas obras, sem se preocupar do som das sílabas. Apesar disso, o cuidado da harmonia, deslocado talvez e modificado pela poesia, que se chamou livre, não abandonou Vitor Hugo, mais que a Leconte de l'Isle, a Herédía e aos nossos modernos poetas.
A ARTE DE ESCREVER ia
Opor-nos-ão
o exemplo
veu à toa, e quis fazer
iS
génio e a realidade que o que se deve
Ia
de Saínt-Símon,
realidades.
Ê certo
m
que escre-
Isto prova
que o
vão adiante e dispensam tudo: ver primeiro é a originalidade,
dom de pintar, o dom de imaginação A harmonia vem depois.
)S
153
que a harmonia,
e o
e de criação.
só por si, quando
não há
fundamento para ela, só serve para tornar fastiento o estilo, e que se torna então uma qualidade insuportável.
s,
Só é essencial
ao estilo, quando
tira o seu encanto
do valor das palavras e não do seu manejo, sempre fácil de se obter, e que algumas vezes ramente oco.
),
r.
que é é ela-
Diz Buffon: 'e
--- «Bastará possuir-se um pouco de ouvido, para evitar as dissonâncias, e tê-lo exercitado e aperfeiçoado com a leitura dos poetas, para que, mecânicamente, sejamos levados à imitação da cadência poética e do torneado
oratório.»
Nada
a s 'r
s e
é mais acertado.
Uma frase parecerá não forem empolgantes. houver
palavras
harmoniosa; mas se os termos se a idéia não tiver relevo. se
de mais, a harmonia
fazer sobressair
a trivialidade.
O Visconde
de Arlíncourt,
talento,
é disso memorável
só servirá
para
esse Chateaubriand
sem
exemplo.
o
A sua prosa é harmoniosissima, mas como nada tem dentro dela, dá vontade de rir, apesar do inexplicável
e
êxito que ele logrou com os seus romances
e Os Três Castelos.
O Solitário
154
A ARTE DE ESCREVER
A valiem-se as minhas tomadas ao acaso:
palavras
por
estas
linhas.
o dia tinha sido sufocante e a brisa da noite estava ainda impregnada desses pesados calores de Junho, que parecem preludia r as tempestades. Os jardins do solar acabavam de se iluminar com vidros coloridos. Os tablados de um belo fogo de artifício elevavam-se sobre um dos relvados do parque; e os bosquetes de Suzannin tomavam um ar festivo, de encanto, e enchiam-se de uma rnultidão, ávida de comoções. Uma brilhante orquestra fora colocada. não longe do castelo, ao fundo de uma sala de baile campestre. disposta sob uma tenda de lona vermelha, ao centro de um grande maciço de árvores. Aquele retiro, guarnecido de flores, donde saíam ondas de harmonia, era rodeado de palanques, ladeados de espelhos, sobrecarregados de candelabros e coroados de lustres. Pleiteavam ali preferências a graça e a riqueza, o esplendor e a elegáncia. Por toda a parte, aspectos encantadores, novas surpresas; aqui, um pavilhão de música, onde jovens cantores entoavam árías modernas; além, um teatrinho de folhagem, onde distintos actores deveriam, alternadamente, cantar uma opereta e executar um bailado. De todos os lados, os brasões da Marquesa, em pintura e iluminações. Tudo isto só tinha um defeito, mas um defeito cruel e mortal: muita pretensão e pompa, um exagero contínuo em todas as coisas, ruído fatigante, e um alvo constantemente transposto. (ARUNCOURT.Os Três Castelos,
I,
...
pág. 140).
Este texto é tão harmonioso como oco. As cinco primeiras linhas do segundo parágrafo são admirávelmente musicais. Mas a harmonia
é um ornato, que mais faz sobres-
sair a miséria daquele Devemos portanto
--,-,--c--
estilo. amar
a harmonia,
~
procurá-Ia,
------~----
••• -_ . ••••
A ARTE DE ESCREVER
155
cultivá-Ia. mas nunca em detrimento da vida. do relevo. da observação. da originalidade. Deve ser uma qualidade por acréscimo. É preciso colocar acima dela o valor da ideia e a qualidade das palavras. Os autores franceses. cuja leitura é. a tal respeito. mais proveitosa. são Chateaubriand. Bossuet. Buffon e Flaubert.
Lição Nona
...•.
A Invenção
I
Como se inventa. ~ A gestação. ~ A sensação pessoal. - Escolher assuntos verdadeiros.
Já dissemos quais são as condições fundamentais da arte de escrever. Examinámos as três grandes qualidades que deve ter o estilo e que. em nossa opinião. resumem todas as outras. Sem nos demorarmos em rotular o que se chama as figuras e as imagens. de que falaremos pràticamente em próximas demonstrações. tratemos de explicar como se pode aprender a escrever e a pôr em prática as aptidões, com que a natureza nos dotou. Principiaremos pelo estudo da composição. A composição literária pode definir-se: a arte de desenvolver um assunto; ou. por outras palavras. a arte de encontrar ideies, de as combinar, e de as exprimir.
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-
--.-------
A ARTE DE ESCREVER
156
Daqui esta divisão lógica e natural:
Invenção. Disposição. Elocuçêo. Estas três operações não são rigorosamente distintas; pelo contrário. não se podem separar. Encontrar um assunto é já díspõ-lo ou pô-lo em ordem. desde que o observemos e o estudemos. As vezes. no próprio momento em que se descobre uma situação. uma cena. vem-rios a expressão e tomamos nota dela. para não nos esquecermos. Em tal caso. a elocução antepõe-se à invenção e à disposição. Aquela divisão porém é boa. geralmente falando. Trataremos da elocução em último lugar e demo-
--::~
radarnente, porque ela engloba também a invenção e a disposição. visto que faz descobrir coisas novas. que se devem pôr em ordem.
A Invenção
A invenção é o esforço de espírito. com que se encon-
tra um assunto com ele.
e
os desenvolvimentos
que
se
relacionam
Para descobrir um assunto e os recursos que ele sugere. a primeira condição é reflectir nele. amadurecê-lo para romance. fábula. diálogo. descrição. narrativa ou discurso. Disse Buffon: «:É por não ter reflectido bastante sobre um assunto que um autor se vê embaraçado para escrever.» Portanto. deve sentir-se o assunto.
l
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A ARTE DE ESCREVER
157
o
difícil não está no escrever, mas no sentir. Eis um grande princípio: só se escreve bem. quando
se sente bem. Sucede-vos um acidente, uma dor; Ferve-vos um episódio da vossa vida. Nada mais fácil do que sentir tais assuntos; e, se quereis descrevê-los, Iá-lo-eis excelentemente. A dificuldade está em escolher um assunto estranho, atraí-lo, assimilá-lo, torná-lo familiar, para o poderdes explorar
sob todas as faces, até qu~ dele fiqueis cheio,
saturado. Se as ideías não vierem, é que o assunto não está bem amadurecido. É preciso pensar nele bem, demoradamente, até que se fique num estado de efervescência tal, que se sinta a necessidade de nos desembaraçarmos dele. Só então é que virá a verdadeira fluência; a verdadeira inspiração. A necessidade de trazer muito tempo um assunto. a gestação,
numa
palavra,
do dom de escrever. Evidentemente, cada
é uma condição
absoluta
um tem o seu processo
dife-
.rente para operar. Há quem, como Rousseau, não possa escrever senão depois de ter pensado demoradamente; de forma que as suas páginas estavam traçadas na sua cabeça, antes de o estarem no papel. Outros, pelo contrário, como Chateaubriand, não podem pôr-se em ebulição, senão sentados à sua secretária; e tanto, que de Chateaubriand se disse que «a sua pena fazia fogo sobre o papel».
A ARTE DE ESCREVER
158
Da escolha do assunto e da sua incubação preparatória depende o valor do trabalho. A invenção consiste em sentir um assunto e dar a impressão que ele produz na vossa imaginação e na vossa sensibilidade. Pela imaginação e pela sensibilidade, aplicadas e encontradas num tema, é que se descobrem as relações, as ideias, as aproximações e as imagens que o tema encerra. Levais uma ideia a um autor dramático. Ele exclama: - «Aí dentro, está uma peça; não vejo,
mas há
uma peça.» Trata-se de a ver. Para isso, que fará o autor dramático? Insular-se-à, meditará, aprofundará a ideia, até que entre nela, até que lhe descubra todas as consequências, todas as estradas, todos os atalhos, todas as clareiras. Perguntareis: - «Como vedes essa cena? Como a sentis? É que, na verdade, o grande caso está no sentir, seja ele de que forma for, não segundo as regras e segundo um modo individual.
obrigatório,
Um assunto coisa simples.
mas
segundo
é uma ídeía,
o temperamento
uma unidade,
é alguma
Se a imaginação e a sensibilidade não desdobram essa ídeía descrevendo os aspectos que ela pode ter, as formas que poderá tomar, diz-se tudo em poucas palavras, e não se passa disso. Trata-se, por exemplo, de descrever as sensações Ol':fVE"S!OADE
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A ARTE DE ESCREVER
159
de um homem, que caiu a um poço, onde esteve vinte e quatro horas. Ponde-vos no lugar desse homem. Mas, se isso me não aconteceu, como posso adivinhar as sensações que aquele homem teria? Mas é nisso que está o dom da criação. A arte não é mais que uma substituição. Trata-se, como se disse, de nos pormos no lugar de outro. Pensai nisto durante muito tempo, evocai essa situação e notaí, gradualmente, ideias que' tiverdes: o frio, a água, a noite, a sufocação, o afundamento progressivo, a duração das horas, o som da voz, o eco, a abolição do tempo, o silêncio, a vista lá de baixo, o clamor do desespero, o abandono das forças, a extenuação lenta, os movimentos inúteis do homem que se conserva à tona da água e que mergulha quando se agita; lá em cima, o ar puro, alguns gritos de aves, o voo de uma coruja. vida das coisas lá fora, aquele contraste com a angústia do paciente, aqueles ruídos de piscina sonora, etc. Numa palavra, procurar-se-à ter a ilusão do facto em todas as suas circunstâncias, com a graduação, o crescendo doloroso, necessário ao efeito, isto é, ao interesse. O importante não está em descrever minuciosamente todos os pormenores de um facto, mas em ter desse facto uma sensação pessoal e viva. E evocação voluntária dará essa sensação; e. se tendes a sensação, os pormenores virão por si mesmos. É pelo trabalho, sensibilidade e imaginação que se conserva e fortifica a faculdade da invenção. A arte de escrever é um perpétuo esforço, salvo
160
A ARTE DE ESCREVER
para grandes génios, que, não obstante, também trabalharam muito. Entre a escolha de um assunto e a sua execução pela escrita, passa-se um lapso de tempo, uma incubação mais ou menos longa, conforme as pessoas, e é talvez esse o mais doloroso momento, a parte mais penosa do labor literário. Há então uma espera e um mal-estar intoleráveis. Nada ocorre, é preciso arrancar do espírito ideias que não existem, e dominar a apatia do cérebro. É preciso insulamento, concentração, para esse grande esforço. Sonha-se, medita-se, Se a visão tarda, não desanimeis. No dia seguinte procurá-Ia-eis. Recomeça-se e vão-se tomando notas. Disse acertadamente Buffon: .- «É por não ter reflectido muito, que um autor se embaraça.» Quanto mais longe o assunto estiver dos vossos hábitos e da vossa maleabilidade de espírito, mais necessitareis de trabalho e de vontade. Trazei convosco o vosso assunto, trazei-o muito tempo e por toda a parte; ele acabará por se encarnar em vós. Concebe-se que a inspiração seja sempre um esforço. visto que é uma criação. Tem-se mais ou menos imaginação, mas pode-se sempre apurar, desenvolver, aperfeiçoar a parte que nos toca. Se a vossa imaginação se conservar fria, alimentai-a com excitantes. Lede coisas, que se refiram ao vosso assunto.
l
A ARTE DE ESCREVER
161
Quereis 'escrever para o teatro, combinar cenas, fazer dialogar as personagens? Lede os vossos autores dramáticos e observaí-vos nas suas obras. Quereis pintar uma floresta, que já não tendes à vista? Então lede, para vos encamínhardes, a descrição da floresta de Fontainebleau, na Educação Sentimental de Flaubert, a dos Goncourts, em Manette Selomon, a Viagem aos Pirenéus, de Taíne, as de Chateaubríand, Bernardím de Saínt-Pierre, etc. Despertai com a leitura a vossa imaginação entorpecida; é processo que dá sempre bom resultado. Quantas vezes vos não sucedeu estardes frios, indiferentes, sem expansões imaginativas, sem ideias do cérebro, sem saber se podereis sentir alguma coisa! Mas passais à esquina de uma rua; ouvis uma música, um piano, um órgão: acabais de ouvir uma orquestra, ou de ver uma paisagem, e, de súbito, as ideias surgem, a imaginação muda de estado e de disposição. Basta qualquer coisa para modificar o nosso ser mental e intelectual. Para excitar e modificar a imaginação, não há nada melhor do que a leitura, porque tem a vantagem de se adaptar às nossas exigências e podemos escolher as páginas de que necessitamos. A cultura da imaginação é de uma importância extrema. É preciso que ela seja permanente, conservada, inínterrupta, pois tudo depende da imaginação. A própria sensibilidade, sob o ponto de vista literário, não é senão a arte de nos impressionarmos pela
imaginação. Que é a imaginação?
l
11
r 162 É o
quadros
A ARTE DE ESCREVER
poder de representar os objectos, sob forma de e com os seus pormenores.
A memória tem grande influência na imaginação literária. Se Iazeís, no mês de Agosto, uma descrição de uma queda de neve, é a memória que entra em jogo. Descrevereis então o que vistes; evocareis recordando. O nosso espírito é uma lâmina fotográfica, em que fica impresso, mais ou menos tempo, tudo quanto vimos. É um tesouro que se acumula continuamente e aonde vamos buscar recursos.' Devemos portanto enriquecer o mais possível esse tesouro; reparar bem no que vemos, notar o que sensibiliza, observar minuciosamente, salientar as circunstâncias, fixar e armazenar bem as sensações de toda a espécie, natureza, carácter e arte, pensando que é ali que se deverá recorrer, e que a memória combinará aqueles elementos sob o nome de imaginação. Quanto mais dificilmente o assunto for assimilável, mais esforços serão necessários para chegar a senti-Io. Deve-se, pois, tanto quanto possível, escolher um assunto que tenheis vivido, ou que pudésseis observar. Tereis cem vezes menos trabalho em evocá-lo: senti-lo-eís mais depressa; os desenvolvimentos virão por si. A sua investigação terá um atractivo, que vos animará. A escolha de um assunto é portanto de uma impor. tãncía considerável. Nem todos os assuntos convêm; devem ser proporcionados às nossas forças; devemos pesar aquilo que se pode fazer e de que somos capazes. Depende disso o valor do trabalho, o talento que
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r A ARTE DE ESCREVER
163
nele se empregar, a excelência da arte de escrever 'e o êxito final. Agrada-nos um assunto e imaginamos poder tratá-lo, Quando o tentamos, «aquilo não vem», não se pode apanhar, não sai nada. Às vezes, é por o não termos meditado muito; mas muitas vezes também, é porque o assunto não é para nós. Reconheçamos a nossa incompetência. Escolhamos, pois, coisas verdadeiras, vividas ou
obseroéoeis. A verdade, a vida, a observação são condições fundamentais de toda a obra literária. O verdadeiro tem, por si mesmo, uma força contagiosa; a vida comunica a vida; a observação conserva o estro, a veia. Ainda quando inventardes, deve haver pontos de contacto na verdade das coisas; aditai circunstâncias e digressões, tiradas da vida real e que vos ajudarão a tratar o assunto; socorreí-vos dos meios e dos seres que vedes, e Fazei-os coincidir com os raios da vossa lente. Procurais um carácter, um retrato? Tíraí-os dentre as pessoas que conheceis: descrevei-os tais quais são; ou tirai uma feição a um, uma feição a outro, para assim formardes um todo. Molíêre fez a sua comédia dos Importunos, observando o que diziam os maníacos da Corte. É assim que procedia Afonso Daudet, que deveu a este método o ter produzido obras cheias de vida. Não nos esqueçamos de que o próprio Luís XIV também indicou a Moliere certos modelos dos Impor-
tunos.
• A ARTE DE ESCREVER
164
A cena dos Advogados, de Racíne, entre Chícaneau e a Condessa, era a narrativa de uma aventura recente. A Metromenie, peça clássica de Píron, é baseada numa anedota verdadeira. A sociedade, que se reunia no palácio de Rambouíllet, foi posta em cena por Molíêre. Os retratos da comédia de Destouches, O Meldizente, eram copiados do natural. Manon Lescaut é a história do Padre Prévost. Etc. Um carácter, extraído da realidade, é uma chave que facilita os desenvolvimentos. Se estamos embaraçados para descrever uma cena ou fazer dialogar personagens, carácter conhecido a priori cortará a dificuldade. Desde que está em jogo um indivíduo, que vós conheceis, sabereís como ele tomará caso, como se portará, o que responderá. É condição importante; Iíxaí-a bem. Precisais de uma paisagem? Ide vê-Ia e tomai apontamentos no local, a não ser que tenhais bastante memória plástica para a reproduzir. (Voltaremos a este ponto; v. descrições). Desejais uma intriga? É que mais abunda na vida. Só tereis a dificuldade da escolha. Medítaís num diálogo? Ide ouvir os verdadeiros conversadores, principalmente as mulheres, e retende-
°
°
°
°
-lhes tom. A escolha de um meio, exacto, conhecido, é iqualmente decisivo. Tendes o plano de uma novela; mas estais ernbaraça dos, porque meio, em que a colocais, é vago. Localizais a vossa novela em ponto conhecido e não
°
I I ';ao
, A ARTE DE ESCREVER
165
a
imaqínârío. plano logo tomará corpo e desenvolver-se-à. Experimentai e vereis. Quereis escrever literatura imaginosa, idealista, romântica? Ainda neste caso, não sentireis o assunto e só o tratareis bem, transpondo-o, dando-lhe ilusão, a aparência de vida. D. Quixote é um exemplo notável. Tudo ali é imaginado e tudo parece verdadeiro. Se a vossa personalidade é o assunto que melhor sentís, falaí-nos de vós.
a
Vede quanto Montaigne deveu ao seu eu. a Padre Prêvost, que escreveu tantos livros, fez uma obra-prima no dia em que escreveu a sua própria história em Manon Lesceut. A melhor obra de Alfredo de Vigny é aquela que ele viveu pessoalmente, Servilismo e Grandeza Militar.
a
~.
segredo
do talento
de Afonso
Daudet
e Pedro
Loti é. naquele. a observação rigorosa. e neste a força das coisas vistas ou vividas. Verdade. vida, observação. eis as três qualidades que dominam a arte literária e a que se devem subordinar todas as operações do espírito. Como só se fazem narrações para agradar e para convencer. perde-se o alvo. se caminhamos contra a verdade, a verosimilhança e a experiência. Assim o autor da Henriede andou mal-avisado. fazendo viajar Henrique IV até Inglaterra, visto que se sabe que aquele rei não pôs lá os pés nem teve nunca entrevistas com a rainha Isabel. Seja qual for o assunto de que se trate, teatro, poesia ou prosa, devemos conservar sempre a cor local,
A ARTE DE ESCREVER
166
isto é. os pormenores. o tom. as circunstâncias e os cambiantes da época. em que o facto se passa. Somos decerto muito exigentes neste assunto muito descurado até agora. apesar dos bons conselhos de Boileau. Temos um belo exemplo da cor local. como tom (pois a cor local não existe somente na pintura). no Camponês do D.anúbio, de La-Fontaíne. Salambó, de Flaubert. é obra que se deve reler muítas vezes. por causa da pintura local. Tais são as condições gerais. sob que se pode considerar a invenção.
lição
Décima
A disposição Da
disposição.
~ Importância
tação
das
ideias. ~ O plano
do plano. ~ O
resse
e a acção.
plano
e as regras. ~ O
e a
fermen-
plano.
o inte-
Entende-se por «disposição». a ordenada colocação dos materiais. a arte de bem dispor o que se vai escrever. o que deve suceder primeiro. o que se deve colocar depois. a vista do conjunto. segundo as proporções. 'Trata-se de reconhecer a medida. a importância. o valor e a extensão dos diversos elementos. de que se compõe um trecho; de apresentar as diversas partes. ministradas pela invenção, de uma maneira progressiva. encadeada, lógica e interessante.
.-_._._--~---I.
\
A ARTE DE ESCREVER
161
É da disposição que depende o plano, o interesse e a acção. Um trecho de literatura, seja qual for, discurso, descrição, carta ou narrativa, faz-se, tendo em mira a unidade. Deve tender para um efeito geral. Mas os pormenores são ali necessários; os incidentes agradam; é necessário que haja muitas ídeias, muitas imagens, numa palavra, variedade. Conciliar a variedade com a unidade é uma questão de tacto e de gosto. Existe, pois. uma arte especial para ponderar tudo isso, uma ciência particular para o dosear, para distribuir e proporcionar a sua matéria. Bons espíritos .têm caído em prolixidades imperdoáveis, por não serem rigorosos neste assunto. O próprio Racine mostrou na sua narrativa de Terêmenes uma prolixidade e uma falta de equilíbrio, que se tornaram lendárias. Richardson poderia ter feito de Clerice Harlowe uma obra-prima, se não repetisse tudo continuamente "e não tivesse acumulado cartas sobre cartas, com o fim de estender o interesse do romance. que se tornou monótono e sem sabor. No D. Quixote há contradições de factos e inverosimilhanças inadmissíveis. O Édipo, de Sófocles, está cheio de impossíveis materiais, que o autor dissimulou. à força de génio. Devemos pois. já que não temos o talento dos grandes escritores, respeitar as regras racionais e as exigências de estrutura. necessárias ao plano. ao interesse. à acção. Na nossa época de improviso e de ímpressionísmo, Iinqe-se desprezar o plano.
~----.-------'---
168
A ARTE DE ESCREVER
Em compensação, vê-se felizmente um artista, como Goethe, assinalar a cada instante a importância. do plano. Dizia ele muitas vezes: - «Tudo depende do plano.» Ê que, efectívamente, um bom plano é a base de uma boa execução. Geralmente, não se vê neste conselho de mestre senão um exagero de método, um preconceito de escolástica literária. Contudo, nada é mais sério. A vantagem que daí se tira não é imediata; mas, pela continuação, é imensa. Escreva-se o que se escrever, devemo-nos cingir a um plano severo, o mais desenvolvido possível. e donde nos não possamos desviar. Não devemos sair das proporções que se nos impõem. porque foram estabelecidas pela razão, pela lógica. Quanto mais se escreve mais se estuda; quanto mais se lêem as obras dos mestres, mais se adquire a convicção de que num bom plano está a resistência e o valor de uma obra, tanto como o estilo. A composição é um sinal de superioridade 'e de firmeza. Todas as obras-primas são bem compostas. Racine dizia que, quando acabava o seu cenário em prosa, estava feita a sua peça. Ê exagero, mas nada nos mostra melhor a importância que Racine dava ao plano e ao seu desenvolvimento. Se a imaginação não é inflexivelmente encaminhada. quem pode saber onde ela se deterá? O melhor talento se deixa arrastar.
A ARTE DE ESCREVER
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Que obras brilhantes. desregradas. cheias de magníficas intemperanças, e que seriam superiores. tendo mais ordem. plano e método! Poetas deslumbrantes. como Saínt-Arnaud e Gauthíer, ficaram esquecidos. porque produziram mistifórios, ao acaso da inspiração. Malherbe, posto que melhor poeta do que eles. ficou, porque soube escolher. reqrar-se, desbastar e ordenar. Não observamos que se cai fatalmente na confusão pelo simples facto de não estar bastante desenvolvido um plano; mas é verdade absoluta que. entre duas maneiras ou 'estilos iguais. a superioridade de execução pertencerá àquele que formar o seu quadro. que souber o que deverá dizer ou tudo que é preciso dizer. só o que deverá dizer. A gente moça não faz ideia bem nítida desta obrigação. Há em todo o trabalho paração. ._-"
de amadurecimento.
à boa execução da obra. Deveis saber construir.
literário
uma parte de pre-
de reflexão. Sem isso nada
necessárias se conser-
vará
de pé. Este trabalho parece árido a alguns espíritos. que preferem confiar-se à sua Iecundidade, Supõem poder
dirigir a parelha. sem segurar as rédeas. Incita-vos a avidez de escrever; o estilo quer sair. o cérebro referve. Demoras.
para quê?
Mas não! As ideias nada perdem em ser comprimidas; o líquido. que fermenta. torna-se mais forte. Abrindo-se
L.:
170
A ARTE
DE
ESCREVER
muito depressa o frasco, sai muitas vezes dele apenas a espuma que se evapora. Sem um plano determinado, pormenorizado, a rexecução é problemática. Corre-se o risco de dar importância a certa passagem, porque sairá como se deseja; e, comprazendo-se nessa, o escritor descurará outra que é mais difícil. Não percamos nunca de vista estas palavras de Buffon: pela
É
sobre
ausência
o assunto,
não
sabendo
tempo,
por
grande
onde
Mas
assunto,
ter reflectido se sente
principiar
a escrever. e como
o obriga
a preferir
Entrevê,
ao mesmo
comparou, nem
as não
umas
bastante
embaraçado,
às outras;
fica,
tiver esboçado um plano, quando
quando
notará
não
de talento
de ídeias:
e posto em ordem
nido
é por
um homem
número
subordinou, nada perplexo,
de plano,
que
todos
fàcilmente
os pensamentos
o momento,
tiver reu-
essenciais
em que
..~
pois,
deverá
ao seu pegar
na
sentirá o ponto de maturação da produção do espírito, apressar-se-à a fazê-lo desabrochar e terá prazer em escrever ...
pena,
Para
escrever
bem,
é
preciso,
portanto,
estar
plenamente
senhor do seu assunto; é preciso reflectir bem nele, para ver claramente a ordem dos pensamentos e formular deles lIma sequêncie,
uma cadeia. em que cada tivermos sobre
pegado
lhe dar outro que
na
esse primeiro deverá
Não
pena,
traço,
movimento.
representa
devemos
uma
conduzi-Ia
sem a firmar
muito
ideia;
e, quando
sucessivamente
desigualmente,
além do que for determinado
sem
pelo espaço
percorrer.
E Fénelon
parte
ponto
acrescenta:
há verdadeira
alguma,
sem
ordem, enfraquecer,
senão
quando
sem
se não pode deslocar
obscurecer,
sem
alterar
o
todo ... O
autor,
;......
que
não
dá esta
ordem
ao
seu discurso,
~--------.
não
está
..,.
A ARTE DE ESCREVER
171
senhor do seu assunto; terá apenas gosto imperfeito e um semígénio. A ordem é que há de mais raro nas operações do espírito; quando a ordem. a justeza a força e a veemência se encontram reunidas. o discurso é perfeito.
Ao passo que a elocução, isto é. a forma, constituem a magia de uma obra literária. o interesse e a acção dependem do plano. da distribuição da matéria. isto é. da ordem e da disposição. O interesse vem da relacionação das partes. da sua graduação. ao seu agrupamento. da arte com que se colocar cada facto no lugar que lhe convém. É a ciência da composição. É necessária. pois. muito tacto e reflexão na escolha e sucessão das idéias, visto que estas podem ter tão graves consequências. Para isso. mcstrai-vos inflexível. sabei cortar. montar. dividir no vosso próprio terreno. Quando um assunto 'está ainda em pedaços. em materiais. é que se deve talhar e cortar. Não espereis que vos paralise a redução da forma. O sacrifício seria tão árduo. que vos faria recuar. Prevede a vossa fraqueza. e. desde logo. rejeítai, sem piedade. o que não é de absoluta utilidade. Ainda que tenhaís semeado pérolas. monda i as que são supérfluas e renunciai aos pormenores. que não concorram para o conjunto, que não tendam para o fim e nada acrescentem à unidade. Tenhamos sempre presente a frase de Pascal: -«Não basta que uma coisa seja bela. é preciso que ela seja própria do assunto. que nada haja a mais nem a menos.»
4~
A ARTE DE ESCREVER
172
Os que têm a experiência do estilo sabem quantas coisas inúteis, cenas, palavras, diálogos, excesso de descrição ou de análise, se podem eliminar em cada página de uma peça ou de um livro que se escreve.
Lição Décima Primeira A elocução A
elocução visar? -
e
a
expressão.
Como
expressões.
-
se
dá
-
O
relevo
trabalho. às
-
Dever-se-à
idéias. -
O
impro-
relevo
das
As refundições,
Encontrastes O assunto; dispusestes a matéria; sabeis como haveis de principiar, como acabareis, está completo o vosso plano, está tudo em ordem, princípio, meio, desenvolvimento, conclusão. Trata-se agora de escrever. O estilo, isto é, a expressão, varia infinitamente e muda, não só segundo as pessoas, mas também segundo o género e o assunto; daqui a diversidade de tom, que se nota nas obras literárias. Os conselhos, que se podem dar acerca da maneira de escrever, têm pois de se modificar, consoante os assuntos, e são variáveis, segundo se trata de narrativas, de descrições, de discursos, de uma peça teatral, de uma poesia ou de uma fábula. Entretanto, escreva-se seja o que for, a expressão, a boa elocuçâo, o estilo valioso, só se obtém, segundo as leis gerais, comuns a todos os géneros.
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.
..
•••
A ARTE DE ESCREVER É destas
173
leis e destas condições que vamos falar. que vamos dizer lembrará talvez certas demonstrações, que já fizemos a propósito das qualidades do estilo. Um tratado da arte de escrever tem o inconveniente de se não poderem delimitar bem certos capítulos, que, pela sua própria natureza, se assemelham e se confundem. A invenção, a disposição, a elocução relacionam-se intimamente entre si. Aelocução não passa de uma invenção; é a invenção das palavras, em vez de ser a invenção do assunto. Trata-se de procurar a ideia; trata-se agora de pro-curar a forma. Estávamos na preparação; agora estamos na execução técnica do estilo. Estais com a pena na mão, diante de uma folha branca de papel. Que vai suceder? Tudo depende da maleabilidade de espírito, da incubação anterior, actividade imaginativa, numa palavra, de boas disposições 'em que vos encontrais, se rneditastes bem o assunto. Mas, seja qual for a aptidão de cada um, o bom e o mau escritor procedem, pouco mais ou menos, da mesma forma. plano está traçado, trata-se não só de 'exprimir pensamentos, mas também de os inventar, à proporção 'que se opera esse trabalho de elocuçâo. É a operação mais importante, visto que a força de um pensamento é que produz a sua expressão, e visto que a própria imagem não é senão um pensamento.
a
a
174
.
"i
A ARTE DE ESCREVER
Demais, desde que se começa a escrever, todas as operações, que constituem a arte de escrever, entram em jogo simultãneamente : criação, disposição, colorido ..• Alguns professores aconselham que se escreva tudo que nos passa pela cabeça. que dêmos livre curso à inspiração, que lancemos no papel todas as ideias que ocorrem. dispostos a fazer escolha e aproveitar o que é bom, no segundo jacto. Creio que é método perigoso. Não é prudente escrever coisas, que se não julgam completamente boas. Não nos devemos habituar a escrever no primeiro jacto, senão o que se supõe bom. Ê o único meio de não repetir o que se disse e de evitar a vulgaridade. Devemos decidir-nos a não traçar desde logo senão o que nos parece novo. pouco mais ou menos. É nisto que reside o relevo e o talento. Por conseguinte, desde o começo, esforçaí-vos por não escrever senão pensamentos que ressaltem; e tomaí a resolução formal de rejuvenescer as ídeías, procurando oê-les de outra maneira. a fim de as exprimir de outra
forma. Talvez se não dê todo o valor a esta necessidade de ideias novas, num primeiro jacto. Ficam sempre bastantes correcções para se fazerem. pelo que devemos procurar evitá-Ias logo, o mais possível. Não sujeitar nada ao acaso é economizar trabalho. Escolher bem o que se vai dizer não significa que se devam dizer poucas coisas. Pelo contrário, são precisas muitas, porque há sempre que cortar. Mais vale pecar por excesso, que por escassez.
.....
..,/ "
A ARTE DE ESCREVER
175
o
essencial é nada arriscar de vulgar, de medíocre ou de incolor. Quanto melhor for o primeiro jacto, mais perfeitos serão os outros, visto que serão a correcção, a refundíção, a perfeição do primeiro. Compenetrai-vos da ideia de que a boa execução literária e o bom estilo se obtêm pelo trabalho, e de que se pode, pela insistência e pela perseverança, duplicar a força do próprio talento. Há uns versos, que se deveriam inscrever no Irontispício de todos os manuais de literatura:
o
tempo não respeita O que se faz sem tempo; Retocai vinte vezes vossa obra, Límaí-a e relimai-a, sem descanso; Acrescentai, às vezes, E riscai, muitas outras.
o
talento não é senão uma aptidão que se desenvolve. Poderá duplicar-se e triplícar-se o que se tem. Dizia Buffon: - «Todos os dias aprendo a escrever. O gênio é uma longa pacíêncía.» Quem mais do que Boileau recompunha o seu estilo? La-Fontaine não atingia o natural senão refazendo quase dez vezes a mesma fábula. Taíne, que folheou os seus manuscritos na Biblioteca Nacional. ficou admirado de os ver cheios de emendas. Voltaire, Guez de Balzac e outros autores não se imortalizaram senão pela sua profunda consciência de estilistas e pela sua insaciável sede de perfeição. La-Bruyêre só publicou um livro perfeito.
A ARTE DE ESCREVER
176
Pascal é a última palavra de clareza concisa. o que só se consegue pelo trabalho. Montesquieu emendava-se constantemente. Chateaubriand ensina-nos que refundiu. até dez vezes. a mesma página. Buffon recopiou dezoito vezes as suas Épocas da
Natureza. Flaubert,
como se sabe. matou-se
com trabalho.
Pascal diz-nos que escreveu quinze vezes as Cartas
Provinciais. Se todos os nossos clássicos houvessem repetido os seus processos de composição. veríamos que Flaubert não foi o único que lutou contra as torturas da frase. O estilo da maior .denuncía trabalho. O trabalho
parte
é visível
dos
grandes
em Boíleau,
prosadores
Montesquieu
e
Buffon. Não só entendo que não devemos censurá-los por isso, mas até ousarei dizer que aquela constante aplicação. que se manifesta em todas as suas páginas. adiciona mais um encanto à sua leitura. assim como a ciência da orquestração aumenta para os entendidos. o atractivo de uma audição musical. Somente La-Fontaíne escapou a esta lei. porque nele o trabalho mal se percebe. Ora. foi precisamente ele o que mais trabalhou! A lei do esforço. do trabalho. da emenda constante. é pois indiscutível. É preciso adoptá-la ra priori, cegamente. Não é menos verdade que temos na nossa literatura páginas admiráveis. que saíram de um primeiro jacto;
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I
A ARTE DE ESCREVER
r
177
soberbos trechos, produzidos num só fôlego, e tão perfeitos, que não foram retocados. Mas é privilégio do génio encontrar às vezes a Beleza imutável, a expressão" superior, que se não pôde exceder. E não nos esqueçamos de que um livro sobre a arte de escrever é para aqueles que têm talento ordinário ou simplesmente vocação literária. Atendamos, pois, à regra geral, nós, que não somos excepções. Em matéria de arte, os preceitos são para a maioria dos escritores, em cujo número nos devemos modestamente contar. Seria imodéstia insensata revoltarmo-nos e dizermos: - Mas Byron, Shakespearee Corneille procediam de outra forma! Não podemos iqualar-nos àqueles cuja sublime vocação não necessitou de processos nem de trabalho. [ulquemo-nos felizes, se encontrarmos, também, ideias, imagens e até páginas, que não sejamos obrigados a retocar. E talvez que isso possa suceder ... Há certamente escritores, que pouco ou nada corrigem às suas obras. Emílio Zola não poderia escrever todos os anos um volume de quinhentas páginas se refundisse as suas frases. O romancista Balzac só corrigia o seu estilo nas provas; e Stendhal afectou sempre o mais profundo desprezo pela perfeição literária. Mas ponderemos: É certo que, se Balzac não tivesse escrito senão l~
178
i ~ ,, !
A ARTE DE ESCREVER
dois ou três volumes perfeitos na forma, como M adame Booenj, teria sido tão célebre, como com os cinquenta volumes que deixou. La-Bruyére fez um, que há-de durar mais que os de Zola. E depois, visto que se trata da arte de escrever e de conselhos literários, ninguém sustentará que se deve escrever como Balzac e que se não pode escrever melhor que Zola ou Stendhal, Com os grandes mestres da forma é que é preciso aprender o estilo. Ora, como sabemos, eles trabalharam. tressuaram, recomeçaram, corrigiram. Portanto a teoria é inatacável. A primeira escrita não pode ser definitiva, porque: a cabeça está quente, e os olhos não vêem nitidamente o que se escreve. A ciência do estilo só se exerce verdadeiramente sobre uma inspiração que já arrefeceu. Persuadi-vos de que nada é definitivo, nas páginas. que esc revestes primeiro; mas escrevei-as, ainda assim, com a maior aplicação e o relevo possíveis, para que se vos facilite a tarefa ulterior. Se a vossa primeira escrita é má, não tereis de fazer mais duas ou três, mas seis ou sete. Suponhamos que ides descrever uma manhã de primavera. Tendes pressa, possuis talento de improvisador, e fiando-vos nessa qualidade, traçais no papel as ídeias seguintes (aliás extraídas de George Sand): Eis-me na culminante altitude. A manhã está deliciosa. o ar está impregnado do perfume das macieiras novas.
..
•
A ARTE DE ESCREVER
179
Os prados. declivosos sob os meus pés. desenrolam-se brandamente lá em baixo. Estendem pelo vale o seu tapete branqueado ainda pelo orvalho congelado da manhã. As árvores das margens do Indre desenham meandros. de um verde-brilhante. e cujos cimos o sol começa a dourar. Acabam de abrir a comporta do rio. Quebra o silêncio um ruído de cascata. que me recorda a contínua harmonia dos Alpes. Por seu turno. despertam as vozes das aves. Eis aqui perto a cadência voluptuosa do rouxinol; além. no moutedo. o trilo escarninho da toutinegra; lá em cima. nos ares. o hino da andorinha. que sobe com o sol (').
I
i
Com tais ideias.expressas daquela forma. não podereis ir longe. Precisais de outra urdidura, se quereis entretecer coisa com jeito. Neste fragmento apenas ressai o perfume das macieiras novas, o orvalho congelado e a contínua
hermonie dos Alpes.
••
Tudo mais já foi dito e redito, e talvez melhor. Portanto, deveremos poupar aquelas três idéias e eliminar as outras. ou, pelo menos. dar-lhes mais relevo . Isso se poderá fazer num segundo jacto; mas. se já estivesse feito melhor seria. Mas como substituir aquelas fracas imagens. ou como dar-lhes relevo? Seria necessário procurar outra coisa. falar de outra maneira. dizer. por exemplo. como Amyot: ~ «As abelhas começavam a zumbir. as aves a chil-
(') Esta descrição não é pior que qualquer outra. como efeito geral. porque está escrita com elegância; mas tem frases e imagens de convenção. que já serviram de outras vezes.
180
A ARTE DE ESCREVER
rear e os rebanhos a saltar; os cabritos pulavam pelas montanhas, as abelhes murmuravam pelos prados e os passarinhos faziam ressoar as sarças com os seus cantos.» Estas duas últimas ideías. aquelas «abelhas que murmuram pelos prados» (em vez dos insectos e das aves que despertam, frase geral), aqueles passarinhos que fazem ressoar os bosques, são duas ideias que, pela sua expressão, produzem efeito absolutamente novo. Que se poderá dizer então? Tudo que dizem sobre este assunto aqueles que disseram coisas melhores, Vítor Hugo, por exemplo:
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Entre todos os rumores da floresta, da aldeia, da vaga, da atmosfera, havia um arrulho. As primeiras borboletas pousavam nas primeiras rosas. Tudo era novo em a natureza, as ervas, os musgos, as folhas, os perfumes, as irradiações. Parecia que o sol nunca tinha servido. As pedras estavam lavadas de fresco. A íntima canção dos arvoredos era interpretada pelas avezinhas, nascidas na véspera. provável que ainda estivessem no ninho as casquinhas de ovo, partidas pelos seus bicos. Havia frémitos de asas, que tentavam voos, nas franças trémulas. Aquelas avezinhas soltavam o seu primeiro canto, voavam pela primeira vez. É
Atentemos neste exemplo, e ponhamos ao lado desta descrição alguns traços, extraídos de um romance contemporâneo, que causou sensação:
o céu espraiava-se, docemente azul. Uma débil viração agitava a folhagem e refrescava o ar. Urna sensação de beatítude delicada enchia o coração e dominava o pensamento. O horizonte estava velado de uma ligeira bruma, em que se fundiam os longes, levemente esfumados. Subiam do vale ruídos confusos, animando a solidão dos soutos profundos que se encrespavam, como um mar negro, lá em baixo, ao fundo do terraço.
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"
A ARTE DE ESCREVER
181
Estes pormenores, assim apresentados, são indignos de figurar até num primeiro jacto. Não há ali uma exposição nem uma ídeía nova. É a vulgar expressão de coisas mil vezes ditas. É evidente que numa linda manhã há sempre um pouco de «viração débil», que «agita a folhagem», que há os «longes que se fundem», e que há «ruídos confusos que sobem dos vales». De que serve pegar na pena para fazer tais descebrimentos? Escreve-se assim, nos colégios, aos dezassete anos. A deficiência e a vulgaridade de tal estilo são incontestáveis. Mas eis aqui outros traços, extraídos de um escritor melhor. Sob aparência de fantasia, mais bem descrita, encerram o mesmo vácuo e a mesma nulidade. Esta passagem éextracto de Uma manhã na lndie, A campina espalhava a alegria matinal; as árvores e as flores selvagens pareciam estremecer às primeiras carícias do sol e puríficar-se sob o orvalho nocturno; o ar enchia-se da harmonia produzida pelo canto das avczínhas, pelo arrulhar das rolas, e pela alegre sinfonia das águas vivas, que brincavam com as hastes das ervas e com os ramos flutuantes das íris. Com a noite viera a tempestade; e o dia, ao nascer, só encontrava a verdura calma da paisagem, o brilho de todos os cambiantes de flores, esmeraldas, safiras, topázios, rubis alados, que cantavam sobre todas as folhas. no horizonte uma faixa de ouro, e no fírmamento o azul da lndia.
Isto é cintilante, variado, mas é apenas uma Iumarada, que fadiga a vista, e, em vez de mostrar, não deixa ver. Uma descrição da índia!
-
A ARTE DE ESCREVER
E nada de cor local, nenhum traço de região. nada de particular! Salvo o purijicer-se sob o orvalho nocturno, a sinfonia das águas vivas e a faixa de ouro no horizonte. mais nada se aproveita. Alegria matutina, flores selvagens. carícias do sol. hastes de ertzas, verdura calma, esmeraldas. safiras. topázios. tudo são velhas roupagens. Numa palavra. é preciso procurar traços novos. novidade verdadeira. observação inédita. evocar as coisas em que se não pensa. dar relevo àquelas que já foram ditas. renovar a descrição velha. por meio da visão pessoal e imprevista. Eis aqui como J. J. Rousseau deu novidade a uma descrição do nascer do Sol (à .parte as repetições): Verno-lo anunciar-se de longe por traços de fogo que ele projecta adiante de si. O incêndio aumenta. o Oriente parece todo em chamas; pelo seu brilho. espera-se o astro. muito tempo antes que ele surja; a cada instante supomos oê-lo aparecer: vemo-lo finalmente. Um ponto brilhante ressalta como um relâmpago e enche logo tudo o espaço. É empolgante.
A não serem as repetições do verbo ver. nada mais lá se desaproveita. O princípio que domina a composiçao, o estilo e a elocução. é que é preciso escrever com relevo pensamentos e imagens novas. salientes, empolgantes. Para chegar a este resultado. é necessário trabalhar e refazer duas. três. quatro vezes a mesma página. Mas. que vem a ser escrever com relevo?
--,:,,-~,.~-,.:..,-,----
A ARTE DE ESCREVER
183
É achar coisas que os outros não disseram, e é dizer de outra maneira o que se disse já. Ê relacionar palavras
imprevistas! é empregar digressões inesperadas e vivas, uma forma variada e atraente, que prenda a atenção pela vibração da ideia e pela vida das palavras. l\ssim, não há relevo em se dizer: Estou cansado da vida. vou arrastando por toda a parte o meu aborrecimento. Ao menos. quando a eternidade me houver deitado entre aqueles que já não ouvem nada. ninguém me importunará mais. Ê preciso dizer-se isto de outra forma, encontrar-se uma imagem que seduza o leitor, empregar outras palavras, avivar o estilo, aquecê-Io, torná-lo febril, e eis aqui no que tal frase se poderá converter, sob a pena de um verdadeiro escritor: Desalenta-me a existência. e vou deixando apagar-se a minha vida. Ao menos. quando a Eternidade me tiver cerrado os ouvidos com as suas duas mãos. na família dos surdos que são pó. já não ouvirei ninguém ... (CHATEAUBRlAND, Memórias).
A propósito da mágoa de Rancé, fidalgo mundano. que chorava uma mulher amada, que falecera, Chateaubriand escreveu: Chamava-a em vão. a Senhora Montbazon tinha ido para a infidelidade eterna.
Não é pensamento e tem relevo.
de grande
preço.
mas é novo
~VEftSIOAOEFE'o~RALf.it
~STlTUTO
DE LEnU~SE
_----_ .._ ~-~--.......-,~
..
..
'3EiI!GI I' ~ {Y'
---_._--_.
A ARTE DE ESCREVER
184 Chateaubriand
disse de Napoleão:
Águia, deram-lhe um rochedo, no cimo do qual ficou, ao sol. até à morte, e donde ele era visto de toda a terra.
E noutro
ponto, referindo-se
também a Napoleão:
Sentou-se sobre aquele magnífico pedestal, estendeu os braços, segurou com eles os povos, reunindo-os em torno de si; mas perdeu a Europa, tão depressa como a adquirira; fez que duas vezes os aliados entrassem em Paris, apesar dos milagres da sua inteligência militar. Tinha o mundo debaixo dos pés e só tirou dele uma prisão para si, um exílio para sua família, a perda de todas as suas conquistas e de uma parte do velho território francês, (CHATEAUBRIAND,
E mais adiante, popular:
falando
Memórias, m).
da lenda napoleónica,
tão
o mundo pertence a Bonaparte; aquilo que o assolador não pôde acabar de conquistar, usurpa-o a sua fama; vivo, faltou-lhe o mundo; morto, possui-o. Vê-se bem o que é um estilo com relevo. Algumas citações o evidenciam melhor do que as teorias. Tal estilo, talvez até em Chateaubriand, que trabalhava tanto as suas frases, pode ser o resultado de várias refundições. Em Bossuet, encontra-se em todas as páginas, principalmente nos seus Sermões, que não foram, contudo.
• A ARTE DE ESCREVER
185
trabalhados (1). É a sua maneira vulgar de escrever. É~lhe familiar o relevo e a criação do estilo. Lede ao acaso as suas obras. Encontram-se nelas, a cada passo, frases que seduzem o leitor, como estas, extraídas dos seus Sermões: Elanguescemos no amor das coisas mortais ... Alma, toda abismada. toda submerqida, nas afeições sensuais ... O seu estado era uma dor mortal, uma dor assassina e crucificante ... Os mártires eram animados pela avidez dos sofrimentos! ... 6 J esusl Deus aniquilado! Estaremos sempre encantados com o amor desta vida passageira? A morte abísma-nos no nada ... O amor impuro tem as suas agitações violentas, as suas resoluções irresolutas, o inferno dos seus ciúmes, e o mais que eu não digo.
Já demos uma lista-espécime das expressões triviais, que se devem evitar. Podemos vevitá-las com o estilo de Bossuet, e extrair deste uma lista de expressões empolgantes, no gênero das que vamos designar e que tiramos, ao acaso, dos seus Sermões: As veemências do desejo. As ondas da dor. As expressões da alegria mundana. Esses desvarios agradáveis. As nossas alegrias perniciosas.
(') Não obstante, há nos Sermões de Bossuet emendas e aumentos, que provam que ele encontrava belas expressões, apenas com trabalho de refundição.
--~
186
A ARTE DE ESCREVER As nossas cobiças indomáveis. Os nossos corações desencantados do mundo. As nossas alegrias corrompidas. As nossas sedes insaciáveis. O coração desembaraçado e desenganado de tudo. A profusão do amor. Atordoado de desejo. A magnificência do seu amor. As delicias desse devaneio. A afluência de recordações. As sublimes baixezas do Cristianismo. A mobilidade das paixões. O homem apaixonado por Deus ... Extenuado de ventura. Etc.
Era este o vocabulário habitual de Bossuet. Vê-se em que consiste o estilo criado. Isto não quer dizer que toda a gente deva ou possa escrever assim: mas toda a gente deve ter o brio de não escrever trivialmente e tratar de escrever com relevo. Como consequi-lo? Trabalhar, recomeçar, procurar, rever, encarníçar-se. Está concluído o primeiro acto. Há certamente coisas que ficarão; mas há muitas que não devem ficar. Cumpre ver bem o que deve ser aproveitado e o que deve ser tirado ou substituído. Emendareis logo o primeiro jacto, ou recopiá-lo-eís. emendando-o gradualmente. Não percais nunca de vista, durante esse trabalho, o que dissemos da concisão do estilo, condição tão importante como a procura de expressões, a criação de imagens, e a vivacidade dos ornatos. Para exprimir as mesmas ideias de maneira mais intensa, procura i ser um pouco brutal, dizer as coisas'
..
A ARTE DE ESCREVER com mais crueza, rário e retóríco,
tirar a ideia do seu sobrescrito
187 lite-
Tende a audácia de empregar as palavras que ressaltam. Vale mais o barbarismo do que o tédio. Pensai em palavras inesperadas e experimentai-as : procurai emparelhar epitetos que brigam, e que dão muitas vezes efeitos surpreendentes; mudai o adjectivo em advérbio, o verbo em substantivo, e vice-versa. Se escrevestes: «Tinha soluços convulsivos», pende: «Chorava convulsivamente». Se Iizestes uma sequêncía
de verbos, refazei a frase
substantivamente. E tereis: «A imolação precoce do seu coração», em vez de «Imolava precocemente o seu coração». «A dependência», em vez de «Dependia». O que vos dará também: «O seu servilismo
1"-
para
com ele»; os verbos
antó-
nimos: «Agarrar-se, desaqarrar-se: enganar-se, desenganar-se». Tende, sobretudo, presente ao espírito, grande quantidade de palavras, como se têm números num saco de lotaria: as três quartas partes servirão, não só para ser empregadas, mas para nos fazer descobrir outras. É necessário remexer tudo isso, para que a ídeía que quereis exprimir, se agite, numa constante efervescêncía. Esta efervescência, esta afluência das palavras e das imagens, fornecê-les-á a leitura. O principal meio de obter a variedade do estilo ou de o melhorar, quando não estamos satisfeitos com ele, é refundir a matéria dele pela substituição das pala-
'* A ARTE DE ESCREVER
188
vras e a transposição dos epítetos: mudar tudo de lugar expressamente, alterar tudo: Frase boa, que pode ficar, mas que se pode refundir ainda: Sem
pensar
lanceava-se, ciado
e rítmico
cadeirinha, cabeça
em
ao
para
nada,
andar
ba-
Sem
caden-
balava-se
dos
moços
da
deixando
cair
a
trás
a cada
A mesma frase, refundida:
sola-
dos
dos
com
a
soante
vanco mais rude, seguida do povoléu, que os garotos aumen-
e
tavam
continuamente,
de passagem, de que no
cães se
pelo
saudada,
rouco
pensar nos moços
seguida
garotos,
de
latido cães
que
seguiam
e
pelados,
a
meter-se
uma
da
em-
cadenciacadeirinha, con-
do andamento,
saudada,
dos
nada
inclinada,
o balouço
pelo
amarelos
da
cabeça
latido
dispunham
em passos
nuvem
canzoada
amarelos
de
de passagem, e
rcuca, pelados.
o cortejo.
cortejo.
f
\
I
Os substantivos tornaram-se adjectivos e vice-versa, Transpusemos epítetos: «o latido da canzoada rouca», em vez de: «latido rouco dos cães»; comprímimos a forma, suprimimos os particípios: «deixando cair a cabeça», etc. Procurai sempre interverter as correlações, o que dará combinações agradáveis e inesperadas. Dante fala do sol que se cela: encontra-se nele um lugar mudo de luz, um brilho rouco; como há em Ver~ gílio silêncios da lua, sons que se aclaram. -- «Este artifício do estilo .....•disse Rívarol -- não é senão uma feliz permuta de palavras, feita pelos nossos sentidos: a vista aprecia o som, dizendo-se: um som brilhante; a garganta aprecia a luz, dizendo-se: brilho rouco.»
_.."...~,-•• ...~~.-=-''::'''==========~---~-
A ARTE DE ESCREVER
189
desta expressão de Dante: O ar não tinha estrelas - diz Rívarol: - «Pode fazer-se uma observação a respeito desses mistérios, a que chamam caprichos da língua, a respeito dessas relações secretas, que fazem que as palavras se atraíam ou se repilam, entre si» (1). Rívarol acha que tal expressão não tem fisionomia. Diz ele que preferia noite sem estrelas, o que aliás já se tem dito muitas vezes. O ar estava sem estrelas é mais novo e mais impressionante, porque a palavra ar le~bra aqui o vácuo, e porque se julga ler, como se lá tivesse: O infinito ou a imensidade estava sem estrelas. Os conselhos, que poderíamos dar, são inumeráveis e encheriam volumes. Saínt-Beuve tinha razão, resumindo-os na necessidade de pintar as coisas concretamente: - «Em vez da palavra abstracta, meta física e sentimental, empregais a palavra própria e pinturesca. «Em vez de céu irado, ponde céu negro c tempestuosol em vez de lago trenquilo, pende lago azul; preferi aos dedos delicados os dedos afusados, ou magros; ou compridos. Só o Padre Delílle poderia dizer, julgando pintar alguma coisa: E a propósito
.•
Cai por terra, altivas colunatas; Soberbos capitéís, desrnoronai-vos: Prostrai-vos, orgulhosas arcarias!
«Racine
(')
não pinta
vantajosamente,
quando
Rívarol, tradução de Dante, O Inferno.
m.
faz de
A ARTE DE ESCREVER
190
um monstro marinho um indomável touro, um dragão impetuoso. Parny fala do temo fogo que brilha nos olhos de Eleonora. Fénelon era daqueles que cantavam os bosques cheios de atractivos» (1).
Lição Décima Segunda
i
L Processo das refundições Processo das refundíções. - Exemplos de refundíções. - Mau estilo corrigido. - Larnartine. - O terceiro jacto. - Exemplos do bom estilo, obtido por três jactos sucessivos. - O esforço e o trabalho. - Mau estilo, louvado sem razão . .:....Corríqk-se continuamente.
É preciso pensar nos milhares de combinações que as palavras podem ministrar, pelos seus encontros, pelo embate, pela sua deslocação; partir as frases longas, soldar as frases curtas para as tornar longas, mudar os indicativos em particípios enumeratívos e vice-versa: ver pela leitura os recursos, de que lançaram mão os brilhantes escritores. O primeiro trabalho frutífero a fazer, sobre um primeiro jacto, é a limpeza; joeirar, comprimir, limpar o estilo, passar por água o filão, desembaraçá-Io das impurezas.
(')
Saint-Beuve, Pensamentos de José Delorme, xv.
...
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....----------A ARTE
DE
191
ESCREVER
Eis um exemplo dos resultados. que se obtêm pelo processo da eliminação. Tomemos um fragmento de um escritor contemporâneo. Poderia considerar-se um primeiro jacto ruim. Consideremo-lo pois em primeiro jacto. Só cortaremos aquilo que é inútil, e faremos interverter o que pode ser transposto. Um aspecto de feira Texto
Impresso
Texto corrigido
Nada mais interessante do que a chegada das carrlolas dos saltimbancos. Entre esses ueiculos, alguns há que são de um luxo inaudito; notam-se cortinas
bordadas
e no interior espelhos
um
brilha
com
Mas o que
clássica
verde nas de
e sobre
os varais
com
paninho
algumas
Na
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um
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das
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Há-as
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de
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interior
brilhante
e dourados. é a antiga. carríola, rodas.
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mal
varais.
de
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nas
suas
fechados
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um
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rodas.
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bravo.
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janelas
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e
assente os
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e dourados.
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nas
Nada gada
qual se
rodilhas.
pendurada
uma
gaiola amolgada, onde um periquito depenica uma folha de alface. Este queiro
veículo
é o do
ban-
boêmio. - pois o banco
É o veiculo boêmio
tem os seus boêmios.
do mesmo
boêmios.
modo
e a litera-
literatura).
que a política
(o
do
banco
como Essa
a
banqueiro
tem os política carriola
seus e a atrai
'1
I
r l
192
A ARTE DE ESCREVER
muito mais que o casinhoto do tura, - mas atrai-nos mais que o casinhoto do saltimbanco resaltimbanco instalado no meio mediado, que vai instalar-se da feira. orgulhosamente no belo centro do campo da feira. A miserável carriola do A miserável carriola do palhaço da velha sonâmbula palhaço da velha sonâmbula extra-lúcida, do pobre diabo extra-lúcida. do pobre diabo do azteca, essa procura os do azteca, procura os cantos, recantos, as esquinas das vieas esquinas das ruas; e encoslas, encostada a uma velha tada a uma velha parede à parede, à beira de um terreno beira de um terreno baldio, baldio, e calçam as suas rodas calça as suas rodas com alguns com alguns pedaços de tijolo pedaços de tijolo, apanhados apanhados num monte de entuno entulho. Procura a sombra. lho. Procura a sombra, a solia solidão; e denuncia-se pelo dão e não trai, as mais das fio de fumo, que sai da cobervezes. a sua existência (lI) tura. senão pelo delgado fio de fumo, que se espirele por cima do seu tecto. Outro espectáculo que nos Outro espectáculo é o da carriola do dírector do carrodetém, é o da carriola do director do carrocel. A outra cel. Noutra noite um desses noite, um desses v e í c u Ias veículos, abria-se junto a um abria-se junto a um passeio, passeio, e pela abertura distine pela sua abertura distinguiam-se, empílhados, os cavaguiam-se os cavalos de pau, los de pau. Aqui e ali, viam-se empilhados uns sobre os outros. cabeleiras amarelas e o veludo Aqui e ali. viam-se cabeleiras desbotado de um selim. Diante amarelas ou o veludo desbodo carro, tinham-se agrupado tado de um selim. Diante do os garotos do bairro, uns de carro, tinham-se agrupado os boca aberta, outros imóveis, garotos do bairro. Entre estes. tomados de admiração, cabecíuns tinham a boca muito aberta, tas mal penteadas. cheias de os outros o I h a v a m imóveis curiosidade. Um rapazito de como tomados de admiração. camisola rota, aproximou-se da Todas aquelas cabecítas, mal carriola e tentou puxar a cauda
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A ARTE DE ESCREVER
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penteadas. estavam cheias de curiosidade. Um rapazito, que tinha a camisola toda rota. aproximou-se da carriola e procurou atrair a si a cauda de um dos cavalos de pau. O empresário chegou. de gesto irado. soltando ameaças; logo os garotos fugiram como por encanto. e nós oimo-los ir reunir-se um pouco mais longe. em todo comprimento de uma trave. numa estância de madeira. Dír-se-ía a distância. uma fileira de pardais. à beira de uma cornija.
193
a um dos cavalos de pau. O empresário chegou. de gesto irado. ameaçador. e os garotos fugiram logo. para se irem reunir mais longe. sobre uma trave. numa estância de madeira; dir-se-ia uma fileira de pardais. na beira de uma cornija.
Tal como está refundido neste segundo jacto, o trecho ainda não está bem, porque a matéria era medíocre. É uma narrativa correcta, sem relevo. sem traços que deleitem, sem incidentes, sem partícularidades. Seria necessário refundir tudo, o que seriam já três jactas. Eis por que é importante meditar muito, antes de pegar na pena. Outro exemplo daremos: Um autor faz o retrato de sua mãe; é definitivo; mas poderia ser apenas um primeiro jacto, medíocre. O trecho está escrito com expressões feitas, vulgares, que já indicámos serem documento do mau estilo: elegância de estatura. finura de pele. pureza
das feições. cabelos sedosos atracção. etc, 13
e brilhantes.
irresistivel
r A ARTE DE ESCREVER
194
Eis aqui a passagem: Na altura e elegância da sua estatura, na flexibilidade do pescoço, na atitude da cabeça, na finura da sua pele rosada como aos quinze anos, na pureza das feições, na flexibilidade sedosa dos cabelos negros, brilhantes sob o seu chapéu, e principalmente na radiação do olhar, nos lábios, no sorriso, tinha aquela irresistivel atracção, que é ao mesmo tempo o mistério e o complemento da verdadeira beleza. É
difícil haver
coisa
uma pessoa. Só se notam que pertencem a todas.
mais incolor; não se vê ali ali qualidades superficiais,
Pode dizer-se aquilo de todas as mulheres. Pintar a sua estatura esbelta. e ágil, elogiar os seus
magníficos cabelos, o brilho da sua tez, a frescura das suas faces, o fogo do seu olhar, a graça do seu sorriso, a nobreza do seu porte, a distinção da sua pessoa, é tudo a mesma coisa. Mas então que se há-de dizer em vez daquilo? Ora! deverá dizer-se o que é que caracterizava aquela mulher e não outra. Pintá-Ia, não pelo que ela tinha de comum com as outras, mas pelo que tinha de excepcional, pelos pormenores que a diferençavam, pelas coisas que só se viam nela. Deveria dizer-se aquilo de outra forma ou vê-lo de outra forma. Flaubert diz algures. com originalidade: - «Tem os olhos tão cheios de languidez, que parece cega!» E noutro lugar: - «Os seus dois olhos brilhavam como duas Iãmpadas muito suaves.»
L
A ARTE DE ESCREVER Eis aqui de Míreílle:
como
Magistral
nos apresenta
195 a pessoa
Mireille estava nos seus quinze anos. Outeiros de Fontevíeílle, e vós, colinas dos Baux, nunca vistes uns quinze anos mais belos. Fê-Ia desabrochar o sol festivo; e o seu rosto ingénuo e fresco tinha duas covinhas à flor das faces. O brilho das estrelas era menos d~e que o seu olhar; os seus cabelos caiam-lhe em tranças negras; e o seu seio arredondado era um duplo pêssego. ainda pouco maduro.
I i
~
Esta vê-se! Tem vida, posto que geral. Embora! Se vos ocorrem, num primeiro jacto, frases como as que vimos no penúltimo trecho que citámos, e que passam por bem escritas, devereís partir logo esse molde; e, se não descobrírdes outra coisa, procurai mudar a forma. Rigorosamente, seria preferível qualquer coisa ordinária e sim pies, como isto: Texto citado Na altura e elegância da estatura, na flexibilidade do pescoço, na atitude da cabeça, na finura da sua pele rosada como aos quinze anos, na pureza das feições, na flexibilidade dos seus cabelos negros e sedosos, brilhantes sob o seu chapéu e principalmente na radiação do olhar. nos lábios, no sorriso, tinha aquela irresistivel atracção. que é ao mesmo tempo o mistério e o complemento da verdadeira beleza.
Texto proposto N a sua erecta estatura, no seu pescoço altivo, na sua fina pele de jovem corada, nas suas puras feições, na negra cabeleira, que brilhava sob o seu chapéu, e principalmente na doçura do seu sorriso e dos seus olhos, tinha aquela enigmática atracção, que completa a verdadeira beleza.
•
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A ARTE DE ESCREVER
196
Tirámos pelo menos a altura, a eleqãncie, a [lexibilidade, a finura, a pureza, o brilho, a itresistioel atrecçêo, conjunto de palavras incolores, que nada justifica. .
,,"
Em todo o caso, isto seria mais conciso, menos enfadonho, menos amplificado . Mas deveriam procurar-se outras ideias. A primeira condição do estilo é ser fácil. desimpedido, ir até o fundo da ideia e brotar naturalmente. Uma vez escrita a segunda inspiração, é necessário deixá-Ia em descanso; depois se retomará. Ê necessário recuar, para se ver bem; e esse recuo só se produz, quando a matéria arrefece. Muda-se, sacode-se, refunde-se: aplica-se a esse segundo jacto a mesma operação que se aplicou ao primeiro. O que produz a magia de um estilo, não o esqueçamos, é a condensação, a força, a originalidade, o relevo, qualidades que se não obtêm senão por meio de refundíções sucessivas e por correcções continuas. Simplificai
também
as vossas
fórmulas,
calculai
as
vossas expressões, mostrai-vos mais rigorosos, não deixeis passar nada do que vos possa parecer trivial. Vede bem se, a cada palavra. não podereis empregar locução mais forte. Pensai no valor dos verbos. no efeito dos substantivos; são os verbos e os substantivos que engrandecem o estilo de Bossuet. Procura i a palavra justa. apropriada. cavai a ideia, não superficialmente. mas por forma que bem se veja o que está dentro, o que se não viu ainda e o que ainda se não disse.
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A ARTE DE ESCREVER
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197
Não abandoneis uma frase, senão depois de lhe dardes toda a perfeição possível. pela justeza, pelo brílho e pelo natural. Quando estiver concluído esse trabalho, depois de recopíado, vereis se não há que empregar terceiro esforço. e quase sempre sentireis necessidade disso. Deveis antes examinar as coisas mais gerais. o equilíbrio do trecho. a variedade das digressões. a fluência. a harmonia definitiva. Não se aprecia bem um trecho, senão quando já não tem rasuras. Conviria que a obra fosse recopiada por mão estranha. Ê o que explica a obrigação. que Balzac criou. de corrigir o seu estilo nas provas tipográficas. A nitidez da imprensa. fazendo sobressair os defeítos da execução. obrigava-o a ver que o seu trabalho não estava perfeito. e o escritor via-se na necessidade de fazer mais correcções. Atentai na execução geral. revede o conjunto. notai continuamente as repetições. Ê preciso recomeçar o mesmo esforço. até que se fique satisfeito. Ter talento é compreender que se pode escrever melhor, e possuir os meios intelectuais para realizar a perfeição que se procura. Os verdadeiros artistas não desanimam. e só esta perseverança é que constitui a pedra-de-toque do estilo. Um estilo está bom. quando já se: não pode retocar mais; uma frase é definitiva. quando se não pode corrigir mais. O limite desse esforço é evidentemente individual. A exigência parou. ou acabou o talento.
-!!!!!"-
198
A ARTE DE ESCREVER
A minha prosa parece-me excelente: outro porém a pode corrigir. Mas quê! cada um escreve segundo os seus meios. As operações do espírito são as mesmas em todos. mas nem todos têm o mesmo talento. A unanimidade da admiração e a impotência universal para conceber de outra forma um estilo. são. por assim dizer. a consagração desse estilo. O melhor escritor não poderá melhorar o estilo de PascaJ. Pode-se desafiar quem quer que seja. a que lhe ajunte ou tire uma palavra. O carácter do Belo é ser indestrutíveJ. Agora vamos dar um exemplo de refundição e de trabalho literário. para mostrar aonde se pode chegar. de um vulgar ponto de partida. Um passeio a S. Dinis, depois da exumaçlo dos restos de Luls XVI
Quero evocar as ídeías do nada. Impressionou-me a ironia da morte. através da história. Pergunto a mim próprio para que tende tudo isto. esta sucessão de séculos. desfeitos em pó. Perante estes túmulos. estes crânios. estas caveiras. pensa-se: que foi feito dos seus pensamentos. das suas almas? Que é a vida? Quero algumas linhas rápidas. um parágrafo. um fragmento. para acabar um capítulo e que seja enérgico; algumas ídeías grandes resolvidas.
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A ARTE DE ESCREVER
Primeiro
Jacto
Eis aqui o que eu encontro
.-
199
para o primeiro jacto:
Quando terminou a cerimônia, pus-me a caminhar pela igreja, donde se despregavam os paramentos. Pensava na vaidade da vida, perante aqueles túmulos profanados; reflexão que se impunha por si própria. e aprofundava aquela ideia horrivel. O abismo da morte só contém o nada? A alma humana. por sua natureza. seria destinada a perecer i- Não haverá na. morte mais nada de existência? Não estremeceriam mais aquelas ossadas? As paixões deste mundo. a glória. a inteligência, a virtude. desapareceriam. para sempre. com a vida? O eco do túmulo não é mais que o riso de Hamlet? Mais vale não reflectír, fechar os olhos. perante esse abismo. e elevar para Deus o grito da fé!
Se releio este primeiro jacto. não fico descontente. mas acho-o seco. sem imagens. sem grandeza. Seria necessário desenvolver tudo aquilo. procurar expressões com relevo, dar às frases o aspecto e a elevação que tal assunto comporta. Mais vale não escrever, que limitarmo-nos a expor pensamentos medíocres, a que nada dá relevo. Se eles não têm relevo. que haverá de mais insípido que um lugar-comum? Tentemos pois. e refundamos aquilo. Segundo
Jacto
Acabara a cerimónia. Dispus-me a passar pela igreja sombria, que desguarneciam. pouco a pouco. dos seus paramentos. Como se não há-de pensar na vaidade das coisas humanas perante estes túmulos saqueados e violados? E. como se não há-de ir mais
•
A ARTE DE ESCREVER
200
longe, como se não há-de reflectir, nem perscrutar o nosso destino e a nossa natureza? Na morte, haverá só o vácuo? Não conterá nada o túmulo realmente? O nada não tem vida? Os mortos não têm a sua existência? As suas paixões e os seus ideais desapareceram, para sempre, com eles? A glória deste mundo, o crime e a virtude, os amores e as riquezas, a inteligência e o génio, tudo isto não será mais que uma sensação momentânea, que se aniquila com o coração que as concebeu? No silêncio dos túmulos. só se ouvirá o riso zombeteiro? Este riso será a única realidade que deverá sobreviver à mentira deste universo? Curvemos a cabeça e respondamos ao abismo com este grito dos primeiros mártires: «Sou cristão!»
Isto agora
já vai melhor;
já tem mais amplitude;
mas é preciso
que sejam mais empol-
gantes, mais originais. Aquele molde elegante e convencional.
estilo não sai bem do
temos imagens,
•..••
E se eu pudesse produzir o embate de palavras? Se eu pusesse a par algumas Ihantes? Há ali matéria para antíteses, Primeiro,
igreja poderá
expressões e o assunto
substituir-se
dessemeé fértil.
por expressão
menos vulgar. Em vez de desquemeciem, seria melhor um particípio, o que me tornaria a frase mais bela. A segunda frase está prejudicada por saqueados e violados. Como é uma transição, mais valia expô-Ia simples e harmoniosamente. Há duas ou três frases, em que se poderiam pôr antíteses; tirar novos efeitos; introduzir palavras que tenham magia. A propósito do riso e do túmulo, seriam necessárias expressões mais incisivas ou, se quiserem, mais macabras.
•.•
A ARTE DE ESCREVER
201
Esta «realidade do riso», de que falo, é uma detrisêo. Conserve-se esta palavra. Espalhemos, finalmente, alguns epítetos vibrantes e interpelemos as coisas, com mais eloquêncía, segundo for preciso. Torno a refundir o trecho, frase por frase, e obtenho a redacção seguinte, que é a de Chateaubríand (subli~ nhamos as expressões que têm novidade e relevo): Terceiro jacto Concluída a cerimônia, pus-me a passear na besilice, quase áesarmada. Pensar na vaidade das grandezas humanas, entre aqueles túmulos devastados, seria natural: moral vulgar, que dimanava do próprio espectáculo; mas o meu espírito não se limitava a isto, e penetrava até a natureza do homem. Será tudo vazio e ausência na região dos sepulcros? Não haverá nada nesse nada? Não haverá existência de nada, pensamentos de pó? Aquelas ossadas não terão formas de vida, que se ignoram? Quem conhece as paixões, os prazeres, os abraços daqueles modos? As coisas que eles idealizaram, criaram e esperaram, serão, como eles, idealidades abismadas juntamente com eles? Sonhos, futuros, alegrias, dores, liberdades e escravidões, poderes e fraquezas, crimes e virtudes, honras e infâmias, riquezas e misérias, talentos, génios, inteligências, glórias, ilusões, amores ('), - sois acaso, percepções momentâneas, percepções extintas com os crânios destruidos em que elas se engendraram, com o peito aniquilado em que pulsou outrora um coração? No vosso eterno silêncio, ó túmulo, se vós sois túmulos - não se ouve senão um riso irónico e eterno? Esse riso será o Deus, a
(') Notai como ali se evita bem a monotonia da enumeração; o centro equilibra-se por palavras ligadas por um e: depois continua a frase e precipita-se, para ir descansar nas últimas sílabas de amores.
202 I
i
1
A ARTE DE ESCREVER
única realidade derrisàrie, que sobreviverá à impostura deste universo? Fechemos os olhos; enchamos o abismo desesperado da vida com estas grandes e misteriosas palavras do mártir: «Sou cristão!» (CHATEAUJJJW\ND.
Memórias,
m, pág. 300).
Desta vez, está admirável. Pínturesco, relevo, imagem, atracçâo, originalidade. elevação de pensamentos, variedade. harmonia. há ali de tudo. Chateaubriand era homem para escrever aquela página de um só jacto; mas era bem capaz de a não ter concluído. senão depois de cinco ou seis refundições. Já sabemos que ele corrigia largamente o que escrevia. A este esforço de escrever deveriam tender os conselhos de certos professores de literatura. em vez de se declararem satisfeitos. quando os alunos conseguem realizar uma forma fácil e corrente entre o vulgar e o elegante. De forma que aqueles que não pensam em se líbertar das faixas infantis, e que não podem voar por si próprios. ficam condenados ao estilo medíocre. escravos de uma forma ordinária e correcta em que o seu talento dormitará durante anos. acabando por se apagar. Dír-se-ía que há medo da originalidade. As cópias de alunos. premiados ou não. publicadas em certos Manuais. têm todas o mesmo estilo morno. a mesma forma invertebrada, a mesma frieza imaqinatíva, o mesmo processo inexpressivo e sorna! E. não obstante, os alunos não têm o mesmo temperamento! Ainda uma vez, devemos mostrar-nos muito severos
203
A ARTE DE ESCREVER
em matéria de refundição e de emendas, e recomeçar, até que se tenha atingido a expressão que cativa, que seduz, que atrai a vista. Em vez disto, imprimem-se nos Manuais de Literatura, a título de boas composições, trechos de alunos, em que o mestre deixa passar, sem correcçâo, sem protesto, frases de uma experiência e dissonãncia infantis, como esta: Tal é o crime que perpetrais, julgando que dais apenas lugar à vossa curiosidade. Pensai bem nisto, todos vós que me escutais. Pensei nisto, vós principalmente, etc. (Discurso do aluno H.
J ...
Retórica, Iíceu"?"}.
Assim, não vale a pena ensinar harmonia. Apresentam-nos, como cópias definitivas, trechos que se deveriam considerar somente como primeiros jactos insuficientes, e em que se vêem repetições imperdoáveis, como este exemplo: .••
Não tenho nunca, bem o sabeís, mostrado nos meus versos um sentimento que não tinha; não tenho cantado nunca o amor quando não amasse: como teria eu podido escrever cantos de ódio, não tendo ódio? Porque eu não odiava os Franceses, apesar de agradecer a Deus o ter-nos livrado deles! Não terie podido dar senão conselhos de moderação; mas qual é o alemão que, em 1814 e em 1815, pensaria na moderação? Em vão eu teria, inútil Cassandra, feito ouvir prudentes conselhos; em vão eu teria falado de justiça, de fraternidade e relembrado o inevitável, etc. (Carta de Goethe a Guilherme de Hurnboldt, por P ... , aluno de Retórica, no liceu" *) .
Em vez de se elogiarem
.
tais trabalhos.
.._--.-----------------._--_.
deviam-se
204
A ARTE
DE ESCREVER
classificar como ruins, e notar, pelo menos, os graves defeitos, que eles contêm. Como ensinareis a escrever, se tolerais tais neqlígências? Ainda mais: a forma vulgar e incolor, contra a qual acautelamos o leitor, é aceita como satisfatória, e até se lhe concedem menções oficiais: A independência da América! Que grandes ideias desperta esta palavra! Quantas mudanças pressagia aquela assembleía. não só naquela parte da terra, mas em todo o mundo civilizado! Pois quê! duzentos homens, que não recebem a sua autoridade senão do povo! duzentos homens, sem [eusto, livres de toda a ambição pessoal. que no poder só procuram nobres fadigas e a ocasião de fazer bem! Que mernvilhoso espectéculo! E como, em face daqueles modestos plebeus. parecem miseráveis os congressos dos príncipes, que se reuniam para suprimir uma nação! (Discursos
I
~)
de alunos,
J. J.
W ... Retórica, liceu"'*).
Poderá ímaqinar-se estilo mais ordinário; mais charro? Depois, todos estes trechos são escritos num estilo incolor, com as detestáveis expressões estereotipadas, que se devem evitar a todo o custo. As passagens, que citamos, são tomadas ao acaso. Eis aqui outra: Caro amigo, sempre coragem e generosos sentimentos! Sempre a mesma dedicação à nossa infeliz pátria! Poderei eu queixar-me disso, eu, que a amo como vós, eu, que desejaria compartilhar as vossas esperanças e aprovar a prudência dos vossos planos, como lhes admiro o heroismo? Mas, ai se eu vos dissesse que tentásseis sempre, convencido como eu estou, de que os vossos esforços seriam inúteis, combater pela liberdade da Grécia, quando
._'"
A ARTE DE ESCREVER
205
as vossas armas não fariam senão agravar a sua escravidão e precipitar-vos a vós mesmo num abismo de males, dízeí-me, provaria eu assim o meu amor para com ela e para convosco? (Carta de Políbio a um amigo. F. D ... Retórica. liceu***).
Enquanto nos não revoltarmos contra esta deplorável maneira de escrever, o ensino do estilo será estéril; nada se ensinará; os conselhos serão inúteis. Em vez de aprovadas com indulgência, tais expressões deveriam ser notadas como o avesso da arte de escrever. Tais trechos seriam apenas bons como primeiros [ectos, como matéria para desbastar! Deparam-se-me estas linhas num Manual muito vulgar:
Se a mendicidade encobre a maior miseria, encobre também. às vezes. eu/posa ociosidade! A esses pobres. que poderiam trabalhar. não nos devemos contentar em lhes dar uma pequena esmola. que não poderá fazer-lhes nenhum bem duradouro; devemos, se queremos íazer-lhes bem ir-lhes em auxílio. procurando arranjar-lhes trabalho, tiré-los da miséria e [ezec-lhes sentir o que há de vergonhoso e de humilhante em viver à custa da caridade alheia, quando se poderia ganhar a vida com qualquer ocupação.
Este estilo é tão ruim, que o professor pôs à margem esta nota indulgente: Um pouco pesado! quando deveria ter escrito: «Péssimo: deve refundir-se». Vergonhoso é o mesmo que humilhante . . Tirar da miséria é um estilo de noticiário. Fazer nenhum bem, fazer bem, é de uma pobreza abominável.
206
A ARTE DE ESCREVER
Culpose ociosidade, ir em auxílio, viver à custa da caridade, estilo todo feito. estilo gasto. Resumamos. Deve-se trabalhar o estilo. refazer as frases. até que fiquemos satisfeitos com elas e se não possam fazer melhor. Entretanto. devemo-nos conter. Haveria graves escolhos em corrigir indefinidamente. A correcção deverá ter um termo. Pode-se estragar uma obra. à força de a emendar. Diz Quintiliano:
Há pessoas que nunca estão satisfeitas com o que escrevem; nunca supõem boas as primeiras ideias: cada vez que põem mãos na sua obra. mudam. riscam e procuram sempre qualquer coisa melhor. Sucede então que esses escritos ficam. por assim dizer. cheios de cicatrizes. e mais fracos do que eram. Admitamos portanto que chegue enfim a agradar-nos o que tivermos escrito pois que a lima deve polir a obra. mas não gastá-Ia.
Está muito bem. Gustavo Flaubert é um exemplo característico. Dotado de grandes qualidades de imaginação. escritor superior na Salambó e nos Três Contos, acabou. à força de trabalho e de exigências. por se dissecar numa espécie de jansenismo literário, e por não ter já carne nem músculos. mas apenas a magreza e a linha. Devemos portanto conter-nos, e ficar satisfeitos connosco. Para saber se tendes o direito de ficar satisfeito, escolhei um mestre esclarecido. um amigo perspicaz; lede-Ihe a vossa obra. subrnetei-vos às suas apreciações.
A ARTE DE ESCREVER
207
escutai-lhe os conselhos, e fazei as alterações que ele vos indicar. Nenhum escritor, salvo os grandes génios, consegue conhecer-se a si próprio. Os melhores espíritos não estão em circunstâncias de julgar as suas próprias obras. Uma crítica sincera é tesouro precioso; devemos julgar-nos muito felizes em a encontrar. Não vos rebeleís contra os reparos que vos fizerem. É sinal de talento a maior ou menor aptidão em reconhecer os defeitos que vos apontarem. Se, como diz o adágio, é difícil conhecermo-nos a nós próprios, mais difícil é ainda o conhecermo-nos líteràríamente. A docílidade gueza de espírito, nada custa tanto eliminar o que se
aos conselhos de outrem prova larsenso prático e inteligência, pois que como sacrificar o que se escreveu e julgava bom.
Lição Décima Terceira Da narração Da narração. - A arte de contar. - A verdadeira narração.A narração rápida. - O interesse na narração. - Nada de digressões - A brevidade pode parecer longa. - As boas narrações.
A elocução, isto é, O que literária. tem principalmente contar e descrever.
diz respeito à execução em mim duas coisas:
.-•• A ARTE DE ESCREVER
208 Falaremos
principalmente
da narração
e da des-
crição. Ambas se confundem
muitas vezes, posto que a des-
crição seja antes uma pintura e a narração um recitativo. A narração é um género de composição índependente, é um todo completo. Sem ·entrar no exame de diversas especies de narrações, de que os Manuais se comprazem em multiplícar divisões arbitrárias, -- narrações oratórias, históricas, anedótícas, poéticas, etc., -- falaremos das condições que convêm a todas, e das leis gerais que as regem. O talento de narrar é o mais sedutor, porque base da arte literária. Ainda
é a
que toda a gente o veja em si, é mais raro
do que se pensa; e, se é inato em alguns, maior número muita aplicação e cultura.
exige para o
Só se escuta de boa vontade o que é bem contado. Não basta só dispor de um assunto atraente, é preciso também apresentá-lo com beleza e dar-lhe interesse. Algumas pessoas são excelentes contistas, conversando, e chegam a encantar o seu auditório. Daí-lhes uma pena e ei-los embaraçados:
Ialta-lhes
veia, e deploramos que eles não escrevam como falam. Outros, como George Sand, não sabem conversar, e só quando fazem estilo se sentem à vontade. Não é novidade que todo o valor da narração está no interesse, hàbilmente distribuído, isto é, na qraduação, com que se encaminha e se aumenta a curiosídade do leitor, prendendo-o aos acontecimentos que se expõem, e dando-lhe o desejo de chegar ao desfecho. O interesse de uma narração depende da maneira
.a
A ARTE DE ESCREVER
de tratar.
de coordenar.
de alongar.
209
de desenvolver
a
exposição. o entrecho, o desenlace. A exposição faz conhecer o assunto e os acontecimentos. Deverá ser tão rápida quanto possível; abreviar os preliminares; ir direita ao fim; não produzir enfado; evitar toda a superfluidade; entrar depressa na matéria. sacrificar o inútil e desprezar os preâmbulos. Síqa-se o preceito de Boileau: Seja simples o exórdio e jamais aíectado.
Antes uma frase dramática. ex-ebtupto, do que muitas precauções. que paralisam à força de habilidade. Se a importância do começo não é proporcional aos desenvolvimentos que seguem. a narrativa já não terá unidade. Ora. é a unidade que produz o efeito total. Racine zombou espirituosamente desses contistas pretensiosos. que começam sempre as coisas de muito longe e aos quais poderíamos gritar: - «Ah! passemos ao dilúvio!» Ségur principia assim o seu Incêndio de Moscovo: Dois oficiais tinham-se aquartelado num dos edífícíos do Kremlin. Dali. podiam abranger. com a vista. o norte e o leste da cidade. Por volta da meia-noite. uma claridade extraordinária os desperta. Olham e vêem as chamas encher os palácios. cuja arquitectura. nobre e elegante. em breve se desmoronará. Saltavam já para cima do telhado do Kremlin faíscas e destroços ardentes.
Este começo tem a própria rapidez do incêndio. Numa exposição. cumpre atender principalmente à simplicidade. não elevar o tom. nem prometer muito. 14
210
A ARTE DE ESCREVER Nunca digais à gente: «Vínde ouvir uma frase deliciosa, Escutar maravilhas»; Quem sabe se os ouvintes Farão conceito igual ao que supondes? (LA-F
•
Eis aqui como o inimitável La-Fontaíne, o contista por excelência, anuncia que vai falar da peste: Mal. que o terror espalha, E que o céu inventou, como castigo Dos delitos humanos, A peste, -- é necessário dar-lhe um nome, -Capaz de encher num dia O reino de Aqueronte, Fazia guerra aos seres animados.
Cícero diz que a exposição deve sair do assunto. como uma flor da sua haste. A rapidez e o movimento são, em suma, duas qualidades que devem dominar a narração. Eis aqui, em algumas linhas, como Fênelon conta a morte de Bócorís, rei do Egipto: Vi-o morrer; o dardo de um fenício atravessou-lhe o peito; as rédeas escaparam-lhe das mãos, e caiu do seu carro para debaixo dos pés dos cavalos. Um soldado cortou-lhe a cabeça, e, pegando nela pelos cabelos, mostrou-a corno em triunfo, a todo o exército.
Fénelon não teria pintado melhor este quadro numa página inteira. O nó da acção é o momento, em que o interesse-
A ARTE DE ESCREVER
211
avulta, redobra, se enreda e se complica: em que os acontecimentos, as personagens. as circunstâncias. o diálogo. tudo se mistura e se funde. a fim de seduzir. de transviar o leitor. sem que este possa prever no que aquilo dará. Tal é aquela passagem dos Mártires, tantas vezes citado. O cristão Eudoro, disposto a sofrer antes o último suplício. do que a renunciar à sua fé. é informado de que sua mulher acaba de ser condenada a entrar num lugar infame e que ele a não pode salvar, senão sacrificando aos falsos deuses.
Uma tentação horrível se apodera do coração de Eudoro: Címodoceía nos lugares infames! O peito do mártir arqueja. partem-se as ligaduras das suas feridas. e o sangue corre-lhe abundantemente. O povo. cheio de piedade. cai também de joelhos e repete com os soldados: Secrtiicei! Sacrificai! Então Eudoro, com voz surda: Onde estão as águias? Os soldados batem nos escudos:" em sinal de triunfo. e apressam-se a ir buscar as insígnias. Eudoro levanta-se. amparado pelos centuriões, e avança até junto das águias. Reina o silêncio entre a turba. Eudoro empunha a taça; os Bispos cobrem a cabeça com as suas vestes; os confessores soltam um grito; Eudoro larga das mãos a taça; lança por terra as águias. e. voltando-se para os mártires. diz: Sou cristão!
Há poucas narrações. em que o interesse. que constitui o nó da acção, seja tão sabiamente encaminhado. como naquela. Citemos ainda a admirável narração da morte de Turenne, por Sêvíqnê:
212
A ARTE DE ESCREVER
Montou a cavalo. no sábado. às duas horas. depois de ter comido; e. como iam muitas pessoas com ele. deixou-as todas. a trinta passos do cabeço aonde ele queria ir. e disse ao pequeno Elbeuf: Fica aí. meu sobrinho; não fazes senão andar à roda de mim e [ar-me-ies reconhecer. Hamilton. que se encontrava próximo do sitio. onde ele ia. disse-lhe: Senhor venha por aqui; poderão disparar para esse lado. - Tendes razão, -lhe disse ele. - Não quero ser morto hoje! - Mal voltava o cavalo. avistou Saínt-Hílaíre, que de chapéu na mão. lhe disse: Senhor, tenha a bondade de ver esta beterle, que eu acabo de mandar assentar ali. Turenne voltou-se e naquele mesmo instante. foi-lhe despedaçado um braço e o corpo pelo mesmo tiro. que levou o braço e a mão. que seguravam o chapéu de Saint-Hrlníre. Este fidalgo não o vê cair; o cavalo leva-o para onde deixara o pequeno Elbeuf: tinha a cabeça inclinada sobre o arção: naquele momento. o cavalo estaca e o herói cai entre os braços da sua gente; abre muito os olhos e a boca por duas vezes e fica tranquilo para sempre. Estava morto e fora-lhe arrebatada uma parte do coração ...
Todas as circunstâncias. que a escritora expõe. e até as próprias palavras de Turenne, se encaminham a afastar a ideia da morte. que chega como um raio. irónica e desesperada. O desfecho é o ponto. em que o interesse está satísfeito e em que se resolve o nó da acção. Ele deverá estar preparado por tudo que precede e nunca fazer-se pressentir. Se o leitor o adivinha. cessa a sua curiosidade e quebra-se o encanto. O trecho. que acabamos de citar, pode considerar-se um modelo de desenlace. Eis aqui outro. igualmente bem traçado. Trata-se de uma aventura. sucedida ao imperador Galiano:
1
A ARTE DE ESCREVER
1
I !
213
Um mercador tinha vendido à imperatriz pedras falsas por verdadeiras; a princesa, irritada, quis que se desse castigo exemplar ao burlador. Galiano anuiu, e deu ordem para que conduzissem o mercador à arena. onde seria entregue às feras. O joalheiro tremia todo. Os espectadores, ansiosos, nem respiravam; supunham ver sair de um momento para outro, da sua jaula, - um leão. um tigre ou um urso; mas qual não foi a surpresa. quando viram aparecer ... um carneiro. Toda a gente se pôs a rir. e Galiano disse: Visto que ele enganou. enganaram-no também.
A primeira condição de um bom desfecho é não lhe acrescentar nada. porque o leitor. logo que saiba o que esperava. já não tem vontade de saber; desde que o principal desaparece. já o acessório não interessa. Após a queda da Bilha do Leite. o leite entorna-se: Adeus bezerro. vaca. porco e ninhada. La-Fontaine andou mal em acrescentar: Deitando um triste olhar 20S seus haveres Assim desperdiçados Foi desculpar-se com o seu marido. Em risco de uma sova. Contou cõmicamente a sua história E a história se chamou Bilha do leite. É preciso atender a estes princípios. para escrever narrações interessantes; o que não impede que os mestres tenham pecado contra os mesmos princípios. O génio toma liberdades, que se recusam ao simples talento. Por exemplo. está assente que devemos ir dírectamente ao fim e evitar as digressões. E. contudo. o D. Juan de Byron está cheio delas.
214
A ARTE DE ESCREVER
No Gil Bles os episódios ocupam quase tanto espaço como o ponto principal. Nada de digressões. poucos episódios. nada de prolixidade. mas vigor. sobriedade e rapidez: eis as qualídades da narração. A concentração. a brevidade. não deve todavia degenerar em sequidão. A narrativa deve ter movimento. variedade. atractivo. Evidentemente. tudo isto depende do talento. que nisso se emprega. Uma narração longa pode parecer curta. e uma narração curta pode parecer longa. As digressões de Saínt-Símon não aborrecem. Em matéria de literatura. e à parte os géneros e as regras. tudo se reduz a este aforismo: «Tende talento». Disse um crítico latino: - «A narração. por ser curta. não deve deixar de ter atractivos; do contrário. seria sem arte ... Um caminho alegre e plano. posto que longo. não fatiga tanto como um caminho mais curto. mais acidentado ou Iragoso.» Eis aqui uma fábula de Boíleau, A Morte e o Lenhador, que é de uma concisão rara:
Sob um molho de lenha. recurvado, E de suor banhado. Um velho lenhador Caminhava ofegante ... Até que já cansado E oprimido de dor. Lançou o molho ao chão. Querendo antes morrer;
~
, r
A ARTE
DE ESCREVER
E cem vezes chamando pela morte. A morte enfim chegou e, com voz forte: ~ Visto que de mim gostas, Que pretendes de mim ~ ~ Quem? eu? ~ disse ele, arrependido enfírru Que me ajudes a pôr o molho às costas!
215
->
Vede agora como La-Fontaíne tratou o mesmo assunto. A sua fábula tem o dobro do comprimento e, não obstante, parece mais curta: Um pobre lenhador cansado e velho, Sob um molho de lenha que o cobria, Vergando ao duplo peso Dos anos e do molho, Procurava chegar à sua choça, E, a custo, os passos arrastava, triste. Deitou ao chão o fardo e meditava Na sua triste sorte: Que prazeres teve ele, Desde que veio ao mundo? Quem há mais pobre que ele, sobre a terra? Às vezes não tem pão e não tem nunca Um pouco de descanso. jua mulher. seus filhos, os tributos, E os credores, completam-lhe Um quadro de desgraça. Invoca então a morte, e esta acorre, Perguntando-lhe o que é que ele deseja. ~ Era, ~ respondeu ele. Que viesse ajudar-me, sem demora A pôr o molho às costas. Tudo acaba na morte, Mas não lhe demos pressa; Antes sofrer do que morrer, é esta A divisa dos homens!
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A ARTE DE ESCREVER
Entretanto. as condições e as qualidades. de que falávamos ainda há pouco. subsistem e devem ser tomadas a sério. É preciso termos para nós que somos humildes, modestos. e que. não possuindo génio. precisamos de trabalho e de cultura para desenvolver as nossas aptidões. Não prolongaremos mais este assunto. Os nossos leitores aprenderão nos Manuais de Lite"ratura que se deve respeitar na narração a verdade. a verosimilhança. Não tenhamos a pretensão de dizer o que outros disseram melhor do que nós. Poremos de lado a narração oratória. que deve ser «verdadeira. ordenada. imparcial e moral». Bossuet tem-nas admiráveis. Alguns escritores do nosso tempo elevaram a arte de contar a uma rara perfeição. e bastará mencionar as Cartas do Meu Moinho, de Afonso Daudet, que deveriam ser clássicas nas escolas.
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~."
• A ARTE DE ESCREVER
217
Lição Décima Quarta Da descrição A arte de escrever. - A descrição deve dar a ilusão do verdadeiro. - A descrição deverá ser «materíal». - O verdadeiro realismo. - Copiar a natureza. -- Haverá inconvenientes? A descrição sem vida. - Telémaco. - Descrição víva.o=Homero. - Realismo e processo de Homero. - O relevo a todo o custo.
~.
A arte de descrever constitui um pouco o próprio fundamento da literatura. Nem toda a gente trabalha para o teatro; o diálogo é o apanágio do menor número; mas, já em verso, já em prosa, desde que tomemos uma pena, somos chamados a descrever. É a qualidade necessária por excelência e é sobre esta matéria que se pode, frutuosa e pràticamente, ensínar a ter estilo. Todo o homem que escreve qualquer coisa. que não seja filosofia. deverá ser pintor. e artista, isto é. deverá ter talento descritivo pessoal. A descrição é a pinturaanim.ada dos objectos. Não enumera. não faz meras indicações: pinta. Não se contenta em caracterizar o que se vê; mostra-o aos olhos. e dele forma um quadro. A descrição é um quadro que torna visíveis as coí-
sas materiais.
218
A ARTE DE ESCREVER
Numa palavra, o fim da descrição é dar a ilusão da vida. A sua razão de ser, o seu esforço, a sua ambição, é fazer viver, tornar vivos. materiais e tangíveis os pormenores, as situações. os seres. tudo que é físico, principalmente a natureza. Aqui é sobretudo a imaginação que está em jogo. uma certa força de ressurreição que evoca o que se viu ou que cria o que não existe . . A descrição é a pedra-de-toque do talento. É ela que distingue os bons e os maus escritores. Alguns autores, por mais que acumulem os pormenores e exornem as suas frases. nada vêem; lêem-se palavras. e isso não impressiona. Outros há que, apenas com uns traços. são evoca dores admiráveis. É que uns não sabem e os outros sabem descrever. Pode saber-se escrever e não se saber descrever. Há bons escritores. que não são descritivos. como Guez de Balzac e Saínt-Evremond: e outros que são sõmente descritivos. como Teófílo Gautier. A descrição deve ser viva. É a sua essência. Como ela é a arte de animar os objectos inanimados, depreende-se daqui que a descrição é quase sempre uma pintura material, uma visão que se ministra, uma sensação que se impõe. seja paisagem ou seja retrato. Poremos de lado os conselhos e as considerações supérfluas dos Manuais de Literatura. Não vale a pena ensinar «que se deve escolher bem o objecto que se quer pintar. o ponto de vista mais Iavorável, o momento mais vantajoso, as circunstâncias. os contrastes. etc.». Além disso. o conhecimento da etopeia, prosopopeía,
\
) •.
A ARTE DE ESCREVER
J /
219
hipotipose, etc .. não habilita a descrever bem nem a saber o que é uma boa descrição. Deixemos a outros o cuidado de dividir a descrição em «corografia. topografia. prosopografia. etopeia». Não faltam livros. que podereis consultar sobre aque~ Ias categorias estéreis. embora bem aceitas de certos metodistas. Contentemo-nos em fixar apenas duas divisões: a descrição prõpciemente dita e o retrato, que é uma espécie de descrição reduzida e de qualidade especial. Dar a ilusão da vida pela imagem sensível e o pormenor material. eis o fim da descrição. Quanto mais relevo tiverem os traços. melhor se vêem; quanto mais perto estíverdes da verdadeira natureza. mais vida tereís. Dar aparência de realidade a uma coisa fictícia é colocar sob os nossos olhos a própria visão da natureza. suplantá-Ia pela evocação. torná-Ia palpável e tangível. Este ponto é extremamente importante. Nenhum Manual, nenhum ensino nos explica por que é que uma descrição é boa. e porque é que uma descrição é má. Saibamo-Io nós de uma vez para sempre e não nos esqueçamos mais. porque todas as obras-primas descritivas. desde Homero, podem atestar a verdade do que vamos dizer. Uma descrição é boa. quando é viva; e não é viva. senão quando é real. visível. material. A realidade e o relevo são as duas qualidades principais. necessárias. dominantes, da descrição. Mas, dir-nos-eís. é a descrição realista que nos ensinais?
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A ARTE DE ESCREVER
Eu respondo: não há outra descrição, senão a descrição realista, bem compreendida. A tomar-se o realismo como rótulo de escola, poderá recusar-se, se ele representar as reivindicações de um processo sobre outro, o verdadeiro exagerado, o monopólio da fealdade, o preconceito de não mostrar senão o que é baixo, violento, repelente e indecoroso. Nesse caso, é tão falso, como a escola oposta, aquela que só desejaria pintar o romanesco, o convencional, o fictício, o belo no mais alto grau, o heroísmo sem mesela, o que é irreal, desnatural, quimérico, não observado. O verdadeiro realismo, o dos mestres, desde Homero, não é mais que o cuidado de interpretar o verdadeiro pelo belo, a vontade imparcial de pintar o bom e o honesto como coisas também reais, como o feio e o mau, Este realismo, que sabe ver os dois lados da verdade, o lado real e o lado moral, deverá ser considerado como o próprio fim da arte de escrever e a base eterna das literaturas. É esta confusão que ocasiona tantos mal-entendidos. Este nobre realismo, aspiração da arte, poderia assim definir-se: Método de escrever, que consiste em dar a ilusão
da verdadeira vida, moral ou plástica.
com
o
auxílio da observação
Ver só o lado desagradável ou feio da vida e das coisas é reduzir a arte, é falsear a própria realidade, que tem coisas agradáveis e belas, é cair no fictício e no convencional. O realismo é um processo. com que se devem tratar segundo a realidade das coisas que se querem pintar.
sejam elas queis forem.
A ARTE DE ESCREVER
221
A descrição deve ser principalmente real. viva, verdadeira, material e com relevo. Para isso, é preciso, o mais possível; tirá-Ia do natural. Quereís traçar um carácter? Tomaí-o de entre aqueles que conheceis. Quereis pintar um retrato? Escolheí-o em volta de vós. Mas é sobretudo em matéria de descrição que se deverá
copiar a natureza.
Trata-se de pintar uma paisagem. Se a vistes, se a tendes perante a imaginação, isso bastará; mas, se a não vístes, íde vê-Ia, descrever-a -c-,
no próprio local e notai aquilo que vos ocorrer, cação, o tom, a sensação, os pormenores . Deveria Fazer-se tudo, segundo o natural.
a evo-
A imaginação não é senão uma memória evocadora. Objectar-me-ão : -- «Não, a arte não é uma cópia, a descrição não é uma simples fotografia. Se se não escolhe o que é preciso dizer-se, se se não transforma, se se não transfiguram as coisas, através da sensibilidade pessoal, o quadro será inexpressívo e estranho ao ideal. A arte e, antes de tudo, uma interpretação.» Vai nisto uma confusão de ideías. Colocaí-vos diante de uma paisagem e descrevei-a, É impossível que façais pura e rigorosa fotografia. A vossa imaginação é uma lente involuntária, através da qual. o que se vê, não pode passar sem se transformar, sem ser interpretado. sintetizado, aumentado ou reduzido, embelezado ou entristecido, comentado ou apresentado.
A ARTE DE ESCREVER
222
o
cérebro humano não é aparelho fotográfico e, se quiser, nunca fotografará. Portanto, quando dizemos:......- «Copiai as vossas descrições, os vossos caracteres, os vossos assuntos, os vossos quadros, os vossos retratos», não vos preocupe a falta de interpretação. Ela há-de produzir-se por si, e com tanta segurança, quanto melhor tiverdes sentido o vosso assunto. Para o sentir bem, é preciso vívê-Io, é preciso vê-Ia. Quando uma descrição não ressuscita materialmente as coisas, é porque não foi vista ou porque o artista não soube ver. Ter a visão e mostrá-Ia real. é nisto que está toda a força descritiva. Não receeis fazer apenas a semelhança; é impossível a exactídão, porque a alma humana vê com a sua unidade, isto é, com a sua sensibilidade, a sua imaginação e o seu pensamento. Os pintores, com a sua paleta e o seu pincel, não farão o mesmo? Velásquez e Van Díck desceram acaso, por terem executado retratos? O que ressalta das suas telas, o que mais nos sensibiliza, é justamente aquela semelhança que se supõe. Fizeram obras eternas, copiando o que era fugitivo. Assim, em literatura, é fazer um retrato o pintar uma árvore, uma paisagem, um tipo, uma figura, uma região. Reconstituir pela recordação o que se observou, ou observar no local o que é preciso pintar, não há outro processo a empregar na arte de escrever. Portanto, fazei viva, fazei ver o que desejaís pintar.
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Ob"
A ARTE
DE
223
ESCREVER
Eis aqui uma descrição que não é vista, que nada mostra e que é, contudo, citada como modelo, nos cursos de literatura. É a descrição da gruta de Calipso, extraída do
Telémeco. Esta
gruta
pedrinhas que
era
talhada
e conchas;
estava
estendia
as
suas
na
rocha,
com
etepeteda
hastes
flexíveis,
para
zéfíros
conservavam naquele do sol, uma deliciosa frescura.
brandos
As fontes,
que
nos semeados lugares
corrlam
de amarantos
banhos,
gruta.
Aqui
maçãs
de
derrama coroar
havia
ouro,
um bosque
o mais
flor,
suave
que
de todos
dessas
penetrar;
os
apesar
murmúrio
lados.
árvores
mil flores rodeada a
copa das,
em todas
os perfumes;
terre-
em diversos
de que estava
se renova
Os
ardores
sobre
formavam
de
videira.
dos
como o cristal;
verdes,
aqueles belos prados e formava
sol não podiam ruído
os tapetes
cuja
um doce
e de violetas,
cheias
pequena
todos
lugar,
e tão claros,
tão puros
nascentes esma/tavam
com
abóbadas
com uma
que
as
esse bosque
dão
estações.
parecia
uma noite, que os raios
além só se ouvia
o canto
das aves,
de
ou o
que, precípitando-se do alto de um rochedo. bolhas cheias de espuma, e fugia através do
de um regato
caía em grandes prado. A gruta
da deusa
estava
no declive
de uma
colina.
Dali
se
descobria o mar, algumas vezes claro e plano como um espelho, algumas vezes loucamente irritado contra os rochedos, onde se quebrava,
gemendo
De outro
lado.
de tilias
floridas
e elevando
via-se
as
um rio, onde
e de altos
olmeiros,
suas
vagas,
como
se formavam
montanhas.
ilhas.
que elevavam
bordadas
as suas cebe-
ças soberbas
ate às nuvens. Os diversos canais, que separavam pereciem brincar nos campos: uns rolavam as suas águas claras com rapidez; outros tinham água serena e dormente; outros, por longos desvios, voltavam sobre os seus passos, etc. (FÉNELON, Telémaco). essas
ilhas,
É inútil ir mais longe:
é a última palavra
da vulqa-
224
ínexpressíva, o tipo da descrição florida, poética, imaginosa, em que nenhum pormenor é vivo, em que nada impressiona e nada se fixa. É a insipidez risonha de um estilo incolor e límpído. Encontra-se ali todo o «velho jogo», que, como vimos, e veremos ainda. persistiu até nós. Aquela gruta «atapetada de videiras», e aquelas «flores que esmaltam os tapetes verdes», «aqueles brendos zéfiros», aqueles «doces murmúrios», aqueles «suaves perfumes», aquele regato «que foge através do prado», aquele mar que «se descobre», e que está «loucamente irritado contra os rochedos», aquelas «ilhas», que se «formam», este verbo formar repetido várias vezes; aqueles «canais» que «rolam águas claras. serenas c dormentes» e que «voltam sobre os seus passos», tudo isto nada faz ver, porque não foi visto. É uma paisagem, feita de elegância, e com as Iórmulas genéricas, que se usam nos colégios. E eis os trechos. que se consideram bem escritos. É descrição, como a pode fazer, no seu gabinete, um homem de imaginação vulgar, que não sente a natureza. A noção do verdadeiro. do real. da vida observada, tirada dos factos e reproduzida tal qual. é que dá valor às boas descrições, como sucede em Homero, o inimítável pintor, em Teócrito, em Vergílio e, mais tarde, em Bernardim de Saínt-Pierre e principalmente em Chateaubriand, que deve ser considerado como pai da descrição, na literatura do último século. Taíne notou acertadamente: - «Quando Menelau é ferido por uma frecha Homero compara o seu corpo branco, manchado pelo rídade
! ..
A ARTE DE ESCREVER
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A ARTE DE ESCREVER
225
sangue vermelho, ao marfim, que uma mulher de Cáría molhou em púrpura ... » E depois acrescenta: - «Aquilo é visto, visto como por um pintor e por um escultor: Homero esquece-se da dor, do perigo, do efeito dramático, tão impressionado está com a cor e a forma. Flaubert e Gautier, a quem consideram singuIares e inovadores, fazem hoje descrições muito semelhan tes ... » (1) . Todas as boas descrições com relevo recordam Homero. Os grandes pintores literários, seja qual for a sua escola e os seus processos, têm um pouco de Homero. Em todos os escritores ilustres. Dante, Verqílío, Cervantes, Teócrito, Chateaubriand, os melhores traços descritivos têm o cunho de Homero. Ora a descrição em Homero é a visão pela cor, a notação pela materialidade, a observação brutal dos pormenores visíveis. O cunho de Homero, aquilo que o caracteriza, à parte a sua elevação moral, o seu alento épico e a noção que ele tem das coisas da alma e do ser interior, é que ele é um fotógrafo da natureza e das comoções humanas. A sua descrição é a análise, a decomposição levada ao último grau, de um acto físico, de um facto observado, de um efeito rápido: uma transcrição verdadeira das coisas, não sõmente sem intervenção aparente de personalidade, mas também com a falta de intenção e ausência absoluta de ornatos.
(')
15
TAINE,
Viagem na Itália. t.
I.
pâg.
131.
A ARTE DE ESCREVER
226
Noutros termos, Homero é um realista de gênio, um fotógrafo impassível, que desbasta e que avoluma, que faz baixo-relevo, que modela e que esculpe, mais do que pinta. Não é assim que ele nos aparece 'em todas as traduções, mas é assim que um artista, como Leconte de Lisle, no-lo soube dar, e é assim que o deveremos elassííícar. Vede
este recontro,
extraído
da llíada:
Idomeneu feriu Crimante na boca com a sua lança, e o bronze da lança penetrou até o cérebro, quebrando os ossos brancos; e todos os dentes ficaram abalados, e os dois olhos encheram-se de sangue, e o sangue soltou da boca e do nariz. e a sombra da morte o envolveu.
Outro: Peneleu e Lícon, atacando-se. deixaram as suas lanças e combateram com as espadas. Lícon partiu o capacete. de penacho de crina. e a espada espedaçou-se: mas Peneleu feriu-o no pescoço. abaixo da orelha. e a espada entrou toda nele. e a cabeça ficou suspensa da pele. e Licon foi morto.
Pátroclo
ataca
Testor:
E Testor estava curvado sobre o assento do carro. com o espírito abatido; tinham-lhe caído as rédeas das mãos. Pátroclo feriu-o com a sua lança na face direita. e o bronze passou através dos dentes e, arrastando-o. tirou o homem do carro. Tal como um homem que, sentado no cume de alto rochedo. com o auxílio da cana brilhante e da linha. tira um grande peixe para fora do mar. Pátroclo tirou do carro, com o auxílio da lança brilhante. Testor, de boca aberta; e este. caindo. expirou.
E por toda a parte o mesmo processo.
A ARTE DE ESCREVER
Bastará
227
ler, ao acaso, a Iliede ou a Odissele:
Recuou, caiu sobre os seus joelhos, apoiou contra a terra a sua mão robusta e expirou ... Atravessou com uma frecha o pé direito de Díómedes: e a frecha atravessando o pé, enterrou-se na terra ... Quando saltava do carro, o outro feriu-o por baixo do escudo, no umbigo, e o troiano rolou no pó, agarrando a terra com ambas as mãos. A alma escapou-se-lhe por entre os seus dentes ... Pátrcclo, pondo-lhe o pé sobre o peito, atravessou-o com a sua lança; depois, retirou a lança e os intestinos seguiram-na. Foi ferido na última vértebra e os dois músculos foram cortados, e a sua cabeça, a sua boca e o seu nariz tocaram na terra, primeiro que os seus joelhos... Foi ferido na testa, por cima do nariz, e os seus ossos estalaram, e os seus olhos ensanguentados caíram a seus pés, no pó ... Caiu do alto da muralha, como um mergulhador ... A frecha entrou-lhe no pescoço e ele caiu do carro, e os cavalos recuaram, sacudindo o carro vazio ... Caiu, uivando, sobre os joelhos (ferido no ventre) e curvado para o solo, sustinha os intestinos com as mãos abertas.
Está-se vendo o processo; pintar as coisas fisicamente, fotogràficamente. Homero é fiel a este processo, não só na descrição das batalhas, mas também quando pinta a dor de Andrómaca; o terror de Astianacte perante o elmo de seu pai; o velho Príamo na tenda de Aquiles; as viagens de Ulisses, Caribde e Scila; as jogos e as corridas que fecham a llíada. Em face de uma personagem ou em face da natureza, descreve para fazer ver. e a sua visão é material. Citemos ainda a inolvidável descrição da morte dos pretendentes, na Odisseie:
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Puxou pela sua espada de dois gumes e arremeteu contra Lllísses gritando horrivelmente. Mas Lllisses, prevenido, atirou uma frecha e feriu-o no peito, junto ao mamilo, e a Irecha, rápida, enterrou-se no fígado, e a espada caiu da sua mão contra a terra, e ele andou à volta de uma mesa, deitando ao chão as iguarias e as taças cheias; e ele próprio caiu, contorcendo-se e gemendo, e bateu com a cabeça no chão. empurrando um escabelo, com os pés, e as trevas estenderam-se sobre os seus olhos ... Dirigiu a frecha contra Antínoo, e este ia erguer com as duas mãos uma bela taça de ouro, de duas asas, a fim de beber vinho. Mas Ulisses feriu-o na garganta com a frecha e a ponta traspassou o pescoço delicado. Ele caiu para trás, a taça escapou-se-lhe da mão inerte, e um jacto de sangue saiu das narinas, e empurrou a mesa com os pés, e as iguarias caíram espalhando-se pelo chão. E os outros, erguendo-se em tumulto, olhavam para todos os lados, procurando agarrar escudos e lanças.
Homero mostra-nos a noite que chega, dizendo: - «Os caminhos encheram-se de sombra.» Para exprimir que Ulisses tinha saudades da sua pátria, disse: - «Tinha vontade de tornar a ver o seu país e o fumo que sai do telhado natal.» Se fala do escudo de Aquíles, parece que estamos a vê-lo: - «Aquiles pegou no seu enorme escudo, donde saía uma longa claridade, como a da lua, etc.» Insistamos sobre a necessidade de dar relevo às coisas, cruamente, porque se os nossos autores realistas contemporâneos, como Zola, Goncourt e Flaubert. abusaram disso, pode dizer-se que é 'O que mais falta àqueles que principiam a cultivar a arte de escrever, aos moços que ensaiam o seu talento, a todos aqueles que estão seduzidos de perífrases, escravos da retórica
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dos colégios, ainda hesitantes no estilo inerte 'e sem audácia. Portanto, para descrever bem, isto é, para dar a sensação da natureza, é preciso copiar a natureza.
Lição Décima Quinta A observação directa Descrição por observação dírecta. - A intensidade. - Procurar força e não extensão. - Exemplos de sensações fortes. - Como se movimenta uma ídeia ou uma imagem. - Como se obtém o relevo.
Há duas maneiras de escrever naturalmente: 1.° -- Por observação directe. 2.° -- Por observação indirecte.
A observação
É a copia tirada
directa
no próprio local, de lápis na mão. Tendes uma paisagem para pintar, um rio, um pôr de sol, um sítio. Ide lá; tomai os vossos apontamentos, não simples notas fotográficas, a vista das coisas e das cores, e notai também a impressão que sentírdes, a vossa melancolia, o vosso estado de alma.· Regressando a casa, ainda que seja no dia seguinte,
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recopiareis, poreis em ordem as vossas notas; dareis ao esboço a sua significação total, sintética, geral. Igual processo para uma personagem, para uma figura, para um carácter. Estais diante da natureza e quereis descrever uma floresta. Que pormenores escolhereis? Que coisas se deverão ver e mostrar? Que é o que se há-de reter, de preferência? É o grande ponto, o grande problema, problema que subsiste aliás, se fazeis a vossa descrição no vosso gabinete, de memória e por imaginação. As rninúcias, que se hão-de empregar, dependem da vossa maleabilidade de espírito, e da sensação que quereis produzir. Na descrição de uma floresta, por exemplo, apresenta-se um mundo de sensações: sensações de silêncio, de verduras, variedade de árvores, vegetações enormes, fresquidão, luz principalmente. Podeis ver a floresta apenas sob uma ou duas destas sensações; podeis confundi-Ias todas, insular os desenhos, variar as tintas, ou pintar por grupos, com a cor geraL rutilante, faiscante. Tudo depende do género da vossa imaginação, sóbria ou exuberante. A melhor descrição não é a que emprega mais coisas, mas a que dá a sensação mais forte. Não se trata de acumular os pormenores; trata-se de exprimir os mais salientes, os enérgicos e os definitivos. A intensidade está na qualidade e na escolha do que se diz. Devem-se, portanto, escolher traços em relevo, que sejam de uma observação interessante, inesperada, que
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façam imagem e quadro, que mostrem o que há de mais verdadeiro, de mais visível e de mais impressionante. Para mostrar o silêncio de uma floresta, Flaubert exprime-se assim: Quando a carruagem parou, havia um silêncio universal; apenas se ouvia o cavalo arquejar entre os varais, e um grito de ave, muito fraco, repetido ...
E mais adiante:
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o silêncio era cortado, com rápidos intervalos, pelo ruído de uma vaca, que pastava e se não via . (FLAUBERT.A Educação sentimental. 1." parte. I).
Bastam alguns traços do mesmo autor, para nos descrever o fim do dia. à medida que o sol se põe: Flutua no espaço um pó de ouro, tão fino, que se confunde com a vibração da luz ... O céu está vermelho, a terra completamente negra. Sob as rajadas de vento, a areia levanta-se, como grande mortalha, e cai depois. De repente, numa clareira, passam aves, que formam um batalhão triangular, semelhante a um pedaço de metal. do qual só fremem as bordas. (FLAUBERT,A Tentação de Santo Antônio. p. 1).
Há duas espécies de descrições: aquela que. condensando as coisas, se contenta em dizer pouco. escolhendo os pormenores mais fortes. como Homero; e a que acumula. liga. multiplica, desenvolve e amontoa: é o processo dos líricos, dos imaginosos: Vítor Hugo, Teõfilo Gautier, Barbey d'Aurevilly. Zola.
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A condensação e a simplicidade produzem mais efeito que as amplificações sistemáticas. Quando Tourgueneff, o escritor russo, autor de descrições admiráveis, para descrever a imobilidade da morte, nos pinta o cadáver exposto sobre o seu leito, com os olhos entreabertos, com «uma mosca que anda entre as sobrancelhas», temos uma sensação tão profunda da morte, como se ele houvesse empregado uma página inteira a descrevê-Ia. Lembram-se decerto da admirável sessão nocturna da Assembleia dos Anciães, em Cartago, na Selembô, de Flaubert. A discussão interrompe-se. Há um intervalo de descanso, - «E o silêncio torna-se, de súbito, tão profundo, que se ouve o ruído do mar.» O mesmo autor, para pintar a sonoridade das eisternas, diz: - «O menor ruído tornava-se num. grande eco.» Eis aqui como Tourgueneff faz sentir a grande paz, a tranquilidade de uma floresta, em Setembro:
o sossego era tão grande, que se podia ouvir, a mais de cem passos, saltitar um esquilo sobre folhas secas, que juncavam já o solo; ou então um ramo seco, que, soltando-se de cima duma árvore, batia, mansamente, nos outros ramos, ao cair, caía, caía, para não mais se mover, na erva fanada ... .,_ Como se vê, estes pormenores parecem copiados do natural, com o lápis na mão, olhando e escutando a natureza. É a transcrição da realidade.
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Não se pensava em tais coisas, e, contudo, ao lê-Ias, parecem as mais empolgantes, as únicas aproveitáveís. Eis aqui uma sensação de água fria: Há o viveiro por onde corre toda a água da montanha, espumando, e tão fria. que queima os dedos ... O rio está cheio de trutas. Entrei uma vez nele. até às coxas; pareceu-me que tinha as pernas cortadas com uma serra de gelo.
(J ÚLlO
V ALLÉS. A Criança).
Numa palavra, a arte de descrever consiste na escolha de certos pormenores empolgantes. com certas ídeías de relevo e força. Não se devem procurar muitas; fortes, sim, e, para que sejam fortes. é necessário somente que sejam observadas. Devemos também reforçá-Ias, valorizando-as, insulando-as, frisando-as. fazendo-as ressaltar. Em Homem é que se deverá aprender essa arte de preparar o relevo. Eis aqui um exemplo: Trata-se dos jogos, que cerram a lliada:
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Fez erguer um mastro de um navio, e no cimo do mastro mandou prender, por um fio delgado, uma pomba trêmula. alvo das frechas. Aquele que atingir a pomba levará os machados grandes; aquele que, errando o tiro cortar o fio, levará os machados pequenos. O príncipe Teacro disparou uma frecha com vigor. Errou o tiro, mas atingiu o fio que prendia a ave, por baixo do pé, e a irecha cortou o fio, e a po.nbe voou para o céu, enquanto o fio caía.
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Não há aqui nenhuma nenhuma imagem grandiosa,
ídeía de primeira ordem, nada de genial, mas uma
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arte particular de descrição. que consiste em ver fotogràficamente as coisas. em transcrever. passo a passo. a realidade. com uma verdade tal. que nem sequer se perde de vista o fio que cai. quando tudo se acaba e a pomba foge. Mais outro exemplo do relevo que este processo produz: Apolónío de Tiana e seu discípulo Dãmíde apre-
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sentaram-se a Santo Antônio e tiveram com ele uma conversação. em que contaram incríveis milagres. Depois. foram-se embora. Recuando. aproxima-se da escarpa, transpõe-na e fica suspenso. Ambos. a par. se elevam nos ares suavemente. Antônio. sobraçando a cruz. vê-os subir. Eles desaparecem. (FLAUBEn.
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Tentação
de Santo António).
Outrem diria: - «Elevam-se nos ares e desaparecem. enquanto Antônio os vê subir.» Flaubert preferiu separar cada ideia, fortalecê-Ia, insulá-Ia a fim de nos dar a sensação do tempo e da importância que tiveram. para Santo Antônio. esses diversos movimentos. Suponhamos que eu quero descrever um duelo à faca. Escrevo isto: Precipitou-se sobre mim. Voltei-me. desviei o rosto. e. graças a este gesto. o meu adversário já não encontrou obstáculos
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diante de si. Mas. no mesmo instante. atingi-o na garganta e enterrei-lhe a arma até ao cabo. Revolvi a lâmina na chaga. onde se quebrou. e saiu com o sangue que refervia; e o meu adversário caiu.
Este texto satisfaz, mas não é suficiente para que as Ideias, que contém, produzam todo o seu efeito. A forma é ainda muito froixa. Vejamos agora o texto de Merimée. que desta vez é vigoroso, condensado, írrepreensível e recorda as melhores páginas de Homero: Atirou-se contra mim. como uma frecha; virei o pé esquerdo. e ele nada mais encontrou diante de si; mas atingi-o no pescoço. e a faca entrou tanto. que a minha mão lhe pOl1S0Uno queixo. Revolvi a lârnina com tanta força que se partiu. E acabou-se. A lâmina saiu da chaga impelido por uma onda de sangue. da grossura de um braço. Ele caiu para a frente. inteiriçedo como uma estaca. (MERIMÉE. Cármen. pág. &).
É lacónico. violento.
imaginoso. empolgante. O modo de dizer uma coisa duplica-lhe a intensidade. Se eu digo: - «Cortou-lhe a cabeça. enquanto ele falava». está muito bem e parece que não há outro modo de dizer. E todavia tornarei mais dramática a idéia, se disser como Homero (Morte de Dôlon}: «Falava ainda. quando a cabeça lhe caiu». Assim. vê-se melhor o facto. E o fim da descrição é fazer ver as coisas. Esta frase: - «Surge o dia. a aurora vai apareceu. é a ideia sem a visão.
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Mas se eu digo: -- «Uma faixa de ouro se formou no horizonte» (Chateaubriand). a visão está aí. Se eu escrever: «Vi as nuvens passarem sobre a lua. que parecia correr atrás delas». terei exprimido uma coisa bem observada. mas que não terá tanta íntensídade, como se eu dissesse: -- Vi as nuvens voarem no céu sobre a face da lua. que parecia correr ràpidamente ( Cha teaubriand) . Temos agora duas frases, que ainda mostram melhor quanto pode aproveitar a uma ideia o realismo da expressão e a energia crua do estilo. Chateaubríand. descrevendo a batalha dos Francos. escreve: -- «Os cornos dos touros levavam fragmentos horrorosos». Esta maneira inexpressiva é insuficiente. Levavam é um termo geral; e fragmentos horrorosos são igualmente palavras gerais do antigo estilo. recordações de Atália, de que se servia quem não ousava servir-se da expressão própria. Eis como Flaubert. mais próximo de Homero desta vez. exprime a mesma imagem. a propósito de uma batalha, falando dos elefantes: -- «Longos intestinos lhes pendiam dos harpões de marfim. como rolos de cordame. pendentes de mastros.» É com este esforço que se deve descrever. Sentireis uma impressão de violência um pouco íncomodativa, quando quiserdes pintar quadros realistas; mas este processo não impressionará desaqradàvelmente, quando pintardes a natureza, as coisas belas. os qrandes espectáculos, tudo que nada perde com ser salíentado, tudo que o processo contrário poderia tornar froixo e ordinário.
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Resumindo: Para se descrever bem, é preciso fazer viver, pintar com relevo, com realidade. Para isso, é preciso observar bem, e, para observar bem, é preciso copiar da natureza, da verdade. A observação direcie é o primeiro género de observação. Passemos agora à observação indirecta.
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Lição Décima Sexta A observação indirecta Descrição por observação indirccta. - Necessidade de evocar o verdadeiro. - Flaubert. - Exemplos empolgantes de observação evocada, - Descrições de memória. - Chateaubríand. Identidade dos dois métodos. - Evocar a vida ou copiá-lav-eDescrever o que se viu. - Idealizar o verdadeiro. - A descrição de fantasia. - Barbey d'Aurevílly. - Mostrar imaginação não é descrever. - A fantasia arrasta à puertlídadec -> Exemplos de descrições fantasistas. - A escolha das sensações. - Difusão e longuidão. - O abuso da descrição.
Há paisagens, lugares e coisas, que se podem copiar no próprio local; e há outras, que não estão à vista, ou que não existem sequer. É por um esforço de imaginação que se pintará o que não existe, e é pelo esforço da memória que se descreverá o que já não temos à vista.
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1- Deseriçio
Imaginada
Suponhamos que eu quero descrever os antigos Campos Elísíos, a região das sombras, como no Telémaco; o Inferno, como na Divina Comédia; a queda de um homem no vácuo, como no Bug-Jargal (o anão Habribrah) e em Nossa Senhora de Paris ( Cláudio FroIlo); a morte de um homem, que se deixa submergir pelo Oceano, como nos Miseráveis; as batalhas dos mercenários e as ruas de Cartago, como na Salambó; etc. É preciso. ainda neste caso. procurar auxílio no que se viu, recordar tudo que se pode relacionar com o assunto. e, pelo verdadeiro, dar as aparências do verdadeiro ao que o não é. Irão procurar-se ídeias e sensações a situações análogas; poderemos transportar ou adaptar ao nosso assunto o que se observou já. Rousseau incluía na sua Nova Heloísa as paisagens que amava. Bernardim de Saint-Píerre serviu-se de um naufrágio verdadeiro para a morte de Virgínia. Chateaubriand transportava para os seus Mártires as viagens que fizera, e os lugares que tinha percorrido. Até quando o assunto e os desenvolvimentos de uma descrição são imaginários, deve-se proceder sempre segundo a verosimilhança, a verdade suposta e a observação aparente. Na sua viagem a Lílípute, Swift é admirável. neste sentido; pinta com um cuidado. uma minúcía, uma seriedade. uma observação calculada e persistente, quadros que são impossíveis e fabulosos:
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e é por aquele lado que a vida aparece e que surge a ilusão. Quero pintar o Inferno. Evidentemente, eu nunca vi o Inferno, mas sei que é um lugar de tormentos e posso colocar nele suplícios, gente que sofre. Ora, gente que sofre posso eu vê-Ia
e observá-Ia.
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Por outro lado, disseram-me que a privação de Deus deverá ser um dos suplícios dos condenados. Eu posso imaginar esse género de dores, a avidez írrealizável, o desejo impossível, o írreparável pesar. É o domínio da humanidade. Podem-se observar coisas similares. Porei as minhas cenas em tenebrosos vales, que descreverei tão bem, como se os tivesse visto. Colocarei ali pessoas famosas pela sua vida e a sua lenda e, se eu tiver génio, farei obra-prima. Na Selembo, Flaubert reconstituiu uma cidade que não existe e de que há muito poucas informações. Mas há coisas eternas, sempre as mesmas, analogias de assuntos na história dos povos, certas reconstituições análogas, a natureza que não muda, os exércitos e os campos antigos, acerca das quaisexistem documentos, assédios conhecidos, factos assimiláveís, batalhas, aspectos de algumas terras actuais de África, certos estados imutáveis de civilização. Neste caso ainda, observa-se com verdadeiro, em nome do verdadeiro, evocando verdadeiro, procurando precisamente dar aos outros a sensação de que se não imaginou e de que deve ser assim. Vítor Hugo descreveu algures o desaparecimento de um homem nas areias do deserto.
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Evidentemente, foi obrigado a imaginar o facto, a imaginar sensações, que tivessem a aparência da realida de. Eis como ele pinta a cena sem a ter visto: Sente alguma coisa, como se o peso dos seus pés aumentasse a cada passo que dá. A súbitas, enterra-se, duas e três polegadas. Decididamente não está em bom caminho; pára, para se orientar. Neste momento. olha para os pés; os pés desapareceram. e a areia cobre-os. Retira os pés da areia; quer voltar para trás. mas ainda mais se enterra. A areia chega-lhe ao tornozelo. Procura arrancar-se. lançando-se para a esquerda e a areia chega-lhe às canelas; lança-se para a direita. e a areia chega-lhe aos joelhos. Então. reconhece. com indizível terror. que está metido em areia movediça e que tem debaixo dele o meio horrível. em que o homem não pode caminhar. nem o peixe pode nadar. Lança fora o seu fardo. e alivia-se. como um navio em perigo. Mas já é tarde; a areia chega-lhe acima dos joelhos. Chama. agita o seu chapéu ou o seu lenço; a areia sobe cada vez mais. Se o areal estiver deserto. se a terra estiver muito distante. se o banco de areia é dos de pior nomeada. se não houver heróis nos arredores. acabou tudo. Está condenado àquela sepultura. àquele horrível enterro. infalível. implacável. impossível de retardar ou apressar. que dura horas. que não acaba nunca. que vos apanha de pé. livre. cheio de saúde; que vos arrasta pelos pés; que a cada esforço que tentaís, a cada clamor que soltais. vos arrasta mais para o fundo; que parece punir-vos da vossa resistência com um novo abraço. que faz penetrar lentamente o homem na terra. deixando-lhe todo o tempo preciso para ver o horizonte. as árvores. os campos verdes. os fumos das aldeias nas planícies. as velas dos navios no mar. as avezinhas, que voam e que cantam. o sol e o céu. Tal desaparecimento é o sepulcro. transformado em maré. que sobe do fundo da terra para um ser vivo. Cada minuto é um desenrolar de mortalha. O mísero procura sentar-se. deitar-se. trepar, mas todos os movimentos. que faz. mais o enterram. Endireita-se. enterra-se;
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sente-se deslizar. uiva. implora. grita às nuvens. torce os braços. com desespero. Eí-lo metido na areia até ao ventre; a areia atinge o peito. Não ficou agora mais do que o busto. Ergue as mãos. solta gemidos furiosos. crispa os dedos na areia. quer segurar-se àquelas cinzas. apoia-se sobre os cotovelos para se arrancar àquela espécie de bainha flexivel; soluça freneticamente. A areia sobe. a areia atinge-lhe os ombros. o pescoço. Agora. somente o rosto está visível. A boca solta gritos e enche-se de areia. Silêncio. Os olhos ainda olham; a areia fecha-os; noite. Depois. a fronte desce; à superfície da areia estremecem os cabelos: uma mão surge. fura a superfície do areal, mexe, agita-se e desaparece. - sinistro desaparecimento de um homem! (VÍTOR
Huoo).
Esta descrição é bela. porque o autor dá a ilusão do verdadeiro. Acumulou uma sequêncía de sensações reais. Colocou diante de si o seu assunto e pintou tão bem o que quis ver, que iríamos jurar que o viu! O autor copiou a seu modo o que imaginou. sem frases. sem fantasias. sem lirismo. Assim compreendida e disposta. a descrição por observação indirecta pode atingir o mesmo efeito que a descrição à vista, ou como a descrição de memória, de que vamos falar. II -
Descrição de mem6rla
Há espíritos que são rebeldes à notação imediata, e que nada sabem reter, nada sabem escolher momentâneamente 'e só depois se recordam do aspecto e dos pormenores. Tudo lhes ocorre. logo que deixem de ter os objectos à vista. Ou seja por necessidade ou seja por gosto. desde 16
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que já não estiverdes
perante
o assunto
da vossa des-
cnçao, tereis de evocá-lo. Já não tereis a visão imediata, mas procurareís ressuscitá-Ia pela evocação, e não a descrevereis bem, senão quando a ilusão for completa, isto é, quando a tíverdes presente à imaginação e quando a vírdes, por assim dizer, diante de vós, com os olhos do espírito. Os pormenores, que não tiverdes notado na própria ocasião. voltar-vos-ão nítidos e salientes, com o relevo de uma coisa, vista no próprio momento. Alguns cérebros são acumuladores, que armazenam e guardam as impressões. Vamos reproduzir uma descrição de tempestade, de Chateaubriand, que não é muito citada e que deveria ser célebre. Em toda a nossa literatura, não temos páginas mais belas. Notai que o autor não a pôde escrever, assistindo a ela. Quando a vida está em perigo, não se pensa em pegar no lápis nem no papel. Foi, pois, após o drama, e de memória, que Chateaubriand escreveu; mas a impressão recebida foi tão profunda, que a evocação tem o vigor de um instantâneo. Eu tinha levado duas noites a passear sobre a tolda, a ouvir o marulho das ondas nas trevas, o sussurro do vento no cordame, e debaixo dos assaltos do mar, que cobria e descobria a ponte. Em torno de mim era uma sublevação de vagas. Fatigado dos balanços e dcs encontrões, no começo da terceira noite fui-me deitar. tempo estava horrível. meu beliche estalava e abanava, com as investidas das ondas que caíam sobre o navio.
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Dentro em pouco senti correr gente de um "lado para o outro, c caírem rolos de cordame; senti a impressão, que se sente, quando um barco vira de bordo. Abre-se a cobertura da escada da entreponte e uma voz assustada chama pelo capitão. Aquela voz no meio da noite e da tempestade, tinha qualquer coisa de formidável. Aplico o ouvido e parece-me ouvir os marinheiros discutirem sobre a situação de uma terra. Salto abaixo da minha cama. Uma vaga inunda o castelo de popa, entra no camarim do capitão, derruba e faz rebolar, mescladamente, mesas, camas, caixas, móveis e armas. Alcanço a tolda, encharcado. Ao meter a cabeça na entreponte, presenciei um espectáculo sublime. A embarcação tentara virar de bordo, mas, não o tendo conseguido, tinha amainado sob o vento. A claridade da lua, que emergia das nuvens, para logo se esconder nelas, descobria, sobre os dois lados do navio, através de uma bruma amarelada. colinas eriçadas de rochedos. O mar erguia ondas, como montanhas, para o canal em que parecíamos ençoljndos, e as ondas ora se desfaziam em espuma e faiscas. ora exibiam uma superfície oleosa e vítrea. com manchas negras. acobreadas, esverdeadas, segundo a cor dos baixios, sobre que .agiam. Durante dois ou três minutos, confundiam-se os vagidos do abismo e os do vento. Da concavídade da embarcação saiam rui dos. que faziam pulsar o coração dos mais intrépidos marinheiros. A proa do navio cortava a massa espessa das vagas com rangido horrível; e, ao leme. precipitavam-se torrentes de água. e escorriam. redemoínhando, como à saída de uma comporta. No meio de tudo. nada era mais alarmante que um certo murmúrio surdo, semelhente ao de uma vasilha que se enche ... Restava uma experiência a tentar; a sonda não marcava mais que quatro braços sobre um banco de areia. que atravessava o canal; era possível que a vaga nos fizesse transpor o banco e nos levasse para água profunda; mas quem ousaria tomar o leme e incumbir-se da salvação comum? Um errado movimento da cana, e estaríamos perdidos!
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Um marinheiro de Nova Iorque toma o lugar que o piloto abandonara. Parece-me estar ainda a vê-lo, em camisa. calças de lona. descalço. os cabelos esparsos e encharcados. segurando o timão com as suas fortes garras. enquanto. com a cabeça voltada, olhava à popa. a onda que devia salvar-nos ou perder-nos. Eis que chega a vaga. em toda a largura do estreito. rolando muito alto sobre si mesma. como se um mar invadisse as ondas de outro mar. Grandes aves brancas. de voo sereno. precedem essa vaga. como aves da morte. O navio tocava no recife. tacteava ... Houve profundo silêncio: todos os rostos empalideceram. Chega a esperada onda. No momento em que ela nos ataca. o marinheiro dá volta ao leme; e o navio. prestes a cair de lado. apresenta a ré; e a vaga. que parecia tragar-nos. levanta-nos. Lançam a sonda; traz vinte e sete braças. Um hurra sobe até ao céu. (CHATEAUBRIAND.
Memórias).
É esta uma pagma que pode passar por modelo de toda a espécie de descrição. Vê-se o processo. Parece que nada se concedeu ali à imaginação. Dír-se-ía fotografia. São sensações verdadeiras. que se sucedem. E tal é a força dos pormenores. que se diria que ali não há imagens. pois que a metáfora se confunde com a ídeía, e a intensidade da visão absorve tudo. [urar-se-ía que o autor notou as coisas. à medida que se produziam. E. graças ao poder de imaginação pessoal. cada sensação é exprimida numa forma absolutamente nova. com uma propriedade e ressonância extraordinárias. No lugar de Chateaubriand. qualquer Saínt-Lambert ou Delílle. pintando a mesma tempestade. teria descrito
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«uma tempestade» qualquer, como se descreve um nascer do sol, uma batalha, um tremor de terra, uma epidemia. Pelo contrário, a tempestade de Chateaubríand, é a sua e não outra. Não se assemelha àquelas que tendes lido, porque ele não disse senão o que ele próprio sentiu: nada lhe juntou por fantasia: não lhe deu nenhum desses traços, que se lêem em toda a parte e que relembram exercícios de colégio. . Ali, tudo é particularizado, com a tecnicidade de um corpo-de-delito, porque tudo foi vivido. Como os realistas aplicaram este método e só se serviram dele para pintar exclusivamente o trivial. o baixo e o repugnante, confundem este processo com a sua escola e acusar-nos-âo de sermos realistas. Dír-nos-ão : - «Aconselhais a fotografia material: mas o que será então da imaginação, da fantasia, da moralídade, do bom e do belo?» Responderemos: - «O que é censurável é a escolha do assunto, a disposição para só se tratar do mau e do vulgar. Descrevei o que é bom, o que é belo, o que é moral, o que é elevado e nobre, mas descrevei-o com esse senso do real, do verdadeiro, fora do que, nada é duradouro.» Uma descrição não deve nunca parecer imaginada. Eis o grande princípio. Empregai nela o vosso coração, os vossos impulsos, as vossas aspirações imaginativas: reabilitai o ideal. pintai a virtude, desprezai a baixeza e o vício; mas sede fiel àquela virtude de escrever exactamente, foto .•
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gràficame'nte e em relevo. que faz de Paulo e Virgínia. uma obra-prima de verdade e um livro magnificamente ideal. Dois escolhos há. que sobretudo se devem evitar sempre na descrição: a vulgaridade e a fantasia. Não falaremos mais da vulgaridade. Bastará que atendais a certas páginas deste livro. para aprender a fugir do estilo. que nade mostra .. A vulgaridade consiste em dizer o que já se disse. mostrar apenas pormenores ordinários, como neste retrato: Era bela, mas. poste que loura e branca. de uma beleza própria para inspirar o amor do que o respeito. Os seus cabelos. de rara maqnificência, coroavam uma lisa. O nariz era aquilino e orgulhoso. o olhar imperioso e a boca fàcrlmente desdenhosa. Sem deixar de ter elegância. busto nada tinha das formas etéreas ... (JÚLIO
menos fronte altivo. o seu
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SANDEU).
Isto são descrições de passaporte. sinais ínsíqnifícantes. É bastante vulgar o dizer de uma mulher que é bela, loura e branca; que a sua beleza inspira respeito; que os seus cabelos são magníficos; lisa a sua fronte; o seu olhar imperioso e altivo; a sua boca desdenhosa, etc, O segundo escolho é a fantasia ou antes o excesso
de fantasia. A imaginação é uma doida, que é preciso guiar. amparar, servindo-nos dela como de um instrumento; mas não a empregando só por si ou convertendo-a no alvo, da inspiração e da arte de escrever.
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Se a não dirigirmos. habituamo-nos a ouvir só a ela; escrevemos com elegância. deixamos correr o marfim. deitamos fogo de artifício. enfeitamos. queremos entontecer. e entontecemo-nos, Numa palavra. é a fantasia; e. para se brilhar na descrição. não se chega sequer a mostrar o que se descreve. Lede este retrato de mulher. feito por um escritor. que é rei da fantasia: Era morena. mas morena nos cabeios até o negro de azeviche. o mais belo espelho de ébano que ainda vi brilhar na voluptuosa convexídade lustrosa de uma cabeça de mulher; mas era loura na epíderrne, e é pela epiderrne e não pelos cabelos que se deve julgar se uma mulher é loura ou morena... Tinha cabelos da cor da noite. mas sobre um rosto de Aurora. pois que o seu rosto resplandecia com aquela frescura rosada. estonteante e rara. que resistira a tudo. naquela vida nocturna de Paris. que ela vivia havia muitos anos e que tantas rosas queima à luz dos seus candelabros. Parecia que as suas se haviam apenas esbraseado, pois que nas suas faces e nos seus lábios o carmim era quase luminoso; demais este duplo brilho harmonizava-se com o rubi que ela trazia habitualmente na fronte. o que produzia no seu rosto. com os seus dois olhos incendiários. cuja chama impedia de se Ihes ver a cor. como que um tríânqulo de três rubis. Alta. robusta. e até majestosa. talhada para mulher de um coronel de couraceiros, tinha. ainda que dama nobre. a saúde de uma camponesa. que bebe sol pela pele. e tinha também o ardor desse sol bebido. tanto na alma como nas veias ... (BARBEY O·AUREVILLY. As Diabólicas).
Isto não é vulgar. é fantasia: não se vê nada. Pura ornamentação literária. arabesco recreativo. prurido de estilo, descrição arborescente, virtuosidade e fogo de artifício .
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Aqueles espelhos, os azeviches, as convexidedes lustrosas, aquelas Auroras, aquelas frescuras rosadas, aquelas rosas queimadas, aquele carmim luminoso, aqueles olhos incendiários, aqueles rubis, aqueles ardores de sol bebido, etc., nada disto pinta uma mulher ou qualquer pessoa. E, não obstante, Barbey d'Aurevilly é um escritor; tem fogo, o ressalto, a cintilação, a expressão atraente, a sedução do estilo, um estilo enflorado, colorido, íncísivo, flamejante ... Mas nele tudo proveio da imaginação, da fantasia e do capricho. Vejamos ainda este retrato:
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A sua testa, regular, mas estreita, mostrava audácia. Os seus lábios eram de uma imobilidade, que desesperaria Lavater e todos aqueles, que julgam que o segredo da natureza de um homem está mais expresso nos traços móveis da sua boca, do que no aspecto dos seus olhos. Quando ele sorria, o seu olhar não sorria, e então mostrava dentes de um esmalte de pérolas, como aqueles Ingleses, filhos do mar, os têm às vezes, para os perder ou enegrecer, à chinesa, nas ondas do terrível chá. O seu rosto era comprido, de faces cavadas, de certa cor escura, que lhe era natural, mas tisnado pelos raios de um sol que, para o ter queimado tanto, não podia ser o sol débil da nevoenta Inglaterra. (BARBEY
D'AuREVILLY,
As Diabólicas).
Tais descrições não são mais que um brilhante movímento de palavras. :.;: falar muito, para dizer pouco ou nada. Por baixo daquelas linhas, não se vê ninguém, não se distingue rosto algum; é apenas fantasia, a propó .• sito das feições de uma cara.
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Citamos Barbey d'Aurevílly, porque ele encarna uma escola completa de 'descrição fantasista. Se Homero tivesse empregado este processo, as suas obras dariam cem volumes e não teriam chegado até nós. Os ornatos vaporosos ter-se-iam dissipado pelo caminho. Imaqine-se o que a fantasia pode inspirar aos díscípulos, quando os mestres abusam dela a tal ponto. Evitai, pois, a todo o custo, esse género de descrição;evitai~o, porque tem todos os defeitos da imaginação e nem uma só das suas virtudes. A verdade não é aquilo; o caminho directo da arte está em Homero e naqueles que observam o processo deste. Tocadores de flauta, enreda dores de palavras, malabaristas líricos e coloristas, executantes de variações sedutoras. sabeí que não é com subtílezas nem com fantasia que se fazem descrições vivas. As vezes, é um perigo escrever com muita facilidade; não se pode parar, mete-se poesia em tudo, persequem-se borboletas, pulveriza-se o estilo. Por exemplo, tenho de falar de uma linda tez e improviso isto: Tinha a pele transparente c cor-de-rosa, dessa cor-de-rosa de flor fresca, fechada, onde a alma, com um hábito de primavera, insinua a sua frescura embalsamada. Era o tom mate dos lilás, dos belos lilás pendentes. quando o dia enxugou as suas lágrimas de ouro; uma brancura. em que se mesclaria o carmim das rosas de Maio; havia ali transparência e macieza. neve purpúrea de um sol moribundo. etc., etc.
Pode-se
continuar
indefinidamente
neste tom e fazer
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mil descrições neste género: mas afinal de contas terei desfeito a cor, terei feito poesia pateta, mas nada terei mostrado, nem criado. Muitos escritores acumulam frases sobre cada feição de um rosto, sobre cada pormenor de um carácter. Por exemplo: Os olhos tinham aquela fixidez que revela pensamento profundo, energia interior. Eram negros, daquela cor que absorve o brilho, do negro de ébano na sombra, do azeviche, etc. A dilatação das pupilas. a claridade irradiada, quando sorriem ... , a água vista de noite, estrelas afogadas. etc., etc.
o
abuso da fantasia inspirou muitas vezes puerilidades a bons escritores, como Chateaubnand, quando descreve o nariz do padre Aubry, aquele nariz que «se inclinava para o túmulo!. .. » (Atala, L'" ed.). Encher-se-iam volumes com as extravagâncias Iantasistas de Vítor Hugo e de Saínt-Amand. Um escritor, que Rousseau estimava, supunha comover, escrevendo isto: Vejo, com prazer a minha barba grisalha flutuar em ondas esbranquiçadas sobre o meu peito e testemunhar a constante bondade dos deuses. Brandos zéfiras, que murmurais em torno de mim, não vos dedigneis de vir brincar nos refegos prateados, que a minha barba forma debaixo do queixo. (GESSNER).
Entre os imitadores. a descrição de fantasia chega a não ser mais que uma figura com papelotes. Imprimem um traço em cada ídeía, e caem no mau
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gosto, supondo-se oriqinais e variados. Vejam esta descrição, extraída de um escritor conhecido:
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o mar sorria ainda ao sol desaparecido. O grande indolente abraçava amorosamente os rochedos, e retraía-se nas enseadas, oferecendo o seu espelho aos pinheiros inclinados para ele. O atalho, que descia até à água, contornava a colina, ocultava-se um momento, reaparecia mais longe, formava caprichosamente circuitos imprevistos ao longo dos pinhais, sempre verdes, que lhe serviam de cortejo, de espaço a espaço, e que a brisa balouçava, como saudação monótona à natureza. Caíra a noite. A cúpula infinita do céu bordava de estrelas o seu véu azul, diamantes longínquos, entressachados, aquém e além, pela pérola branca de um planeta. Ao poente, as colinas longínquas, barreira ideal, fechavam o horizonte da terra, evaporando os seus perfumes, como uma boca embalsamada, que adormece. E aquela hora tinha uma lentidão estranha naquelas trevas Iroixas, em que amortecia o balouçar da vaga, em débeis amortecimentos sem fim, etc., etc. Tudo isto pouca coisa revela. Nada ali é vivo; são flores, frioleiras, guizos atados às palavras e que se agitam para os pacóvios; má literatura, que se não deve imitar. Posso dizê-lo, sem receio, visto que não foi nenhum escritor conhecido, mas sim eu, quem improvisou aquele trecho. As sensações simples, sóbrias, escolhidas e limitadas, devem preferir-se sempre. Uma donzela lacrimosa:
Os seus olhos brilhavam corno chamas sob as ondas. (FLAUBERT)
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Vinte linhas Iantasístas, acerca da chuva, não produzem sensação tão forte como esta imagem: Adormeci, ao ruído da chuva, que tamborilava na capota da minha cabeça. (CHATEAUBRIAND)
Nenhuma página de Barbey d'Aurevilly comparação, a propósito da lua:
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valerá esta
Semelhante a grande pedaço de gelo, cheio de luz imóvel. (FLAUBERT)
•
E ainda isto: 1:: uma morena alta, de grandes olhos, olhos negros, muito negros, e que ardem; fá-Ias mover, como eu movo, no escritório, um espelho partido, para lançar relâmpagos; e rolam, nas órbitas, sobem ao céu e levam-nos consigo. (JÚUO
VALLES,
A Criança).
Censura-se à descrição com relevo o pôr tudo no primeiro plano e não ter perspectiva. ~ o defeito de Homero (se isso é defeito). Homero fez sempre baixo-relevo, Mais vale cair neste inconveniente, do que descrever com prolixidade. A descrição longa afoga as coisas, em vez de as salientar. Toda a arte está na sobriedade e na energia.
o
segredo de enfadar é o de dizer tudo. (VOLTAIRE)
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Evitai a profusão e a fadiga, tão justamente crítícadas por Boileau: Salto vinte folhetos Para Ihes ver o fim, E salvo-me, fugindo para o campo. Fujam todos da estéril abundância De tais autores. O que longamente Se exprime é sempre, sempre fastiento ... Quem não sabe ou não pode restringir-se, Escrever nunca soube!
Aos verdadeiros grandes mestres basta uma pínceIada, alguns traços artisticamente escolhidos, para pintar vivamente os objectos e pô-los diante dos olhos. Vede a pintura do gato em La-Fontaíne: Este é terno, gracioso, aveludado, Mosqueado, humilde em sua cauda longa, Olhar modesto em olhos luminosos ...
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1
Depois o galo: O outro, inquieto, sempre turbulento, Tem voz cortante e rude, Um pedaço de carne na cabeça, E uma cauda em penacho, Com que se eleva, como que voando.
Para uma festa de igreja: Ouvem-se os sinos do lugarejo; os camponeses largam os seus trabalhos; o vinhateíro desce da colina; o lavrador acorre da planície; o lenhador sai da floresta; as mães, fechando as suas cabanas. chegam com os seus filhos; e as raparigas deixam as suas coces, os seus rebanhos e fontes. para assistir à festa.
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Mas, dízeís que Homero também caiu na prolixidade. que tem enumerações fatigantes, repetições enfadonhas, comparações de «longa cauda», como lhes chamava Perrault. Certamente; mas no que é bom é que nos devemos assemelhar a ele, e não seguir o exemplo de Chateaubríand, que algumas vezes imitou Homero desastradamente nos Mártires como, entre outras, na passagem seguinte (combate dos Francos e dos Romanos):
A cavalaria romana move-se para aniquilar os Bárbaros. Clodião precipita-se ao seu encontro. O rei cabeludo cavalgava uma égua estéril. meio branca, meio preta, criada entre rebanhos de renas e de esquilos, nas coudelarias de Faramundo: os Bárbaros entendiam que ela era da raça áe Rinfax, cavalo da Noite, de crinas geladas, e de Siliniex, cavalo do Dia, de crinas luminosas. Quando durante o inverno transportava seu dono num carro de cortiça, sem eixos e sem rodas. nunca os seus pés se enterravam na neve; e mais ligeira que a folha de videira, arrastada pelo vento, roçava levemente a face das neves recentemente ceidss. Um combate violento se trava. entre os cavaleiros, nas alas dos dois exércitos, etc.
Esta genealogia do cavalo de Clodião retarda a marcha da narrativa, com que nada temos, e faz perdê-Ia de vista, Em nosso tempo tem-se abusado da descrição, que está em risco de morrer de afectação alambicada, como morreu de sensaboria e de vulgaridade no século XVlII. depois de Saint-Lambert, Roucher e Delille, Este género persistiu em prosa; e, na última metade do século findo, recrudesceu furiosamente. Zola fez dele a sua especialidade.
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Evitai tal abuso. Sobretudo, não façais trechos separados, colocados de propósito em tal ou tal ponto, como fez Zola. Fazei, pelo contrário, que as vossas descrí-. ções não sejam nunca longas, que penetrem a urdidura dos factos, que façam corpo com o resto; que estejam em toda a parte e não numa parte determinada, perdidas, por assim dizer, na substância da obra, como os nervos na carne. Afonso Oaudet teve esse raro mérito. As suas Cartas do meu Moinho, os seus Contos e o Evangelista são modelos de fusão descritiva. A descrição contínua não se pode admitir, senão nas narrativas de viagem, como o Verão no Sehers, de Fromentin; o Deserto, de Lotí, etc.
Lição Décima Sétima As imagens As imagens. - Necessidades das imagens. - O que é uma ímagemo- Imagens forçadas. - Imagens sobrecarregadas. - Ima·gens afectadas e empoladas. - Imagens muito sucessivas.O gosto é o limite das imagens. - As imagens são o encanto do estilo.
Como dissemos, não trataremos de examinar as Iiquras de palavras e as figuras de pensamento. O leitor encontrará nos manuais de literatura os mais abundantes pormenores, sobre a significação e o
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valor dos tropos, cuidadosamente catalogados, classificados, circunstanciados, segundo o processo dos antígos métodos literários. Bastará abrir o primeiro compêndio, que nos apareça, para saber o que é a prosopopeie, a exclamação, a apóstrofe, a reticência, a preteriçêo, a interrogação, a graduação, a antítese, epiioneme, a hipérbole, a silepse, a entonomésie; o pleonesmo, a alegoria, a catacrese, a sinédoque. Nada disto tem importância. Só falaremos das metáforas ou antes, das imagens, pois que a metáfora é sempre uma imagem. A metáfora consiste em transportar uma palavra, de sua significação própria, para outra significação, em virtude de uma comparação, que se faz no espírito e que .se não indica. É uma transposição por comparação instantânea. Se dizeis, falando de Condé: Este leão precipita-se, Iazeís uma metáfora. Mas diz eis : Condé precipita-se, como um leão, e fazeis então uma comparação. Quando o Profeta-Rei disse ao Senhor: a vossa palavra é uma lâmpada adiante dos meus passos.! fez uma metáfora; se tivesse dito: A vossa palavra ilumina os meus passos, como uma lâmpada, teria exprimido comparação e não teria havido figura nenhuma. A metáfora é uma imagem, resultante de uma comparação subentendida. Mas uma imagem nem sempre é uma metáfora. A imagem é uma maneira vigorosa de escrever • .é a maneira de tor~r um objecto mais sensível. Quando Bossuet disse que os homens «se iam enter-
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rando na iniquidade», não fez nenhuma comparação: disse, de uma maneira mais enérgica, imaginosa, que os homens se tornavam cada vez piores. E pinta-nos a iniquidade, como um abismo, por onde o homem desce gradualmente. Pelo contrário, esta frase de Delavigne é uma imagem que contém comparação: A vida é um combate, cujas palmas estão nos céus.
II
Estes versos de J. J. Rousseau apresentam que não são metáforas:
1
Sua voz formidável No inferno reboa; Rumor pavoroso Os ares atroa; A terra, agitada. Treme de terror; A lua sangrenta Recua de horror!
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imagens
A metáfora faz parte do próprio estilo; é inerente, não só ao estilo, mas até à língua. Não se pode escrever sem ela; e, falando, empregamo~la continuamente. Fervendo em cólera, voar ao combate, falar com sequidêo. a penetração do espírito, a rapidez do pensamento, calor do sentimento, a cegueira da alma, a torrente das paixões. o fogo da juventude, a primavera da vida. a flor da idade. os gelos da velhice, o inverno da vida. o peso dos anos. ébrio de glória, gelado de susto. embalado de esperança. etc. 17
l
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São isto metáforas, ou, falando mais simplesmente, é nas imagens que reside a grande força do estilo. Em vez de dizer que Deus amparará uma pessoa fraca e desgraçada, Volta ire diz na Zaira: Deus. que dá força a todo o pusilânime. Ampara a própria cana. Que o vendaval curvara.
Esta ideia: morro prematuramente, reveste-se rica metáfora. neste verso de Lamartine.
de uma
Partiu-se ainda cheia, a taça dos meus dias.
Racine. em vez de dizer: da raça de David, diz: E do extinto Dooid
impediu-se
se rcacendeu
a destruição
o facho.
A ciência de escrever não consiste toda na imagem: mas o encanto de estilo, a sua cor. o seu brilho. o seu efeito e a sua vida. residem certamente na imagem. Falaremos, pois, das imagens, em que se compreendem as metáforas. Não se deve abusar das metáforas. porque. com a continuação, cansam. como ornamentações exageradas; mas não se deve recear multiplicar as imagens. Segui o conselho de Buffon, que chegou a dizer. a propósito do estilo: - «Seja cada pensamento uma imagem.» Há metáforas atrevidas, que se vão buscarem objectos muito pouco semelhantes àqueles que se querem exprimir. como se chamássemos ao trovão a trombeta
do céu.
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Não se devem tolerar tais metáforas, senão quando as atenue um por assim dizer, ou outro qualquer rodeio: Apesar, pois. de todos os cuidados, Não logrou escapar à acção do tempo; Pode reconstruir-se Uma casa em ruínas; E pena é que o mesmo não suceda Às ruínas do rosto.
Devemos evitar as imagens (imagens ou metáforas): 1.°...- Quando são forçadas, tiradas de muito longe, e cuja relação não é bastante natural nem a comparação bastante sensível; como quando um poeta chamou relva aos cabelos de Ceies. 2.° ...- Quando são tiradas de objectos ordinários e desagradáveis, como quando Tertuliano diz, falando do dilúvio universal:
o
dilúvio foi a barrela geral da natureza.
3.°...- Quando os termos metafóricos despertam ideias que se não podem ligar. como nesta metáfora de Malherbe: Levanta-te. Luís. E vai, como um leão, Levar o último golpe à última cabeça Dessa rebelião!
Luís é sucessivamente comparado a [úpiter, senhor do raio, a um leão, e a Hércules, que derruba a hídra de Lerna.
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cometeu
erro igual na seguinte
estrofe:
o
longo inverno. que branqueou os campos. [á não impede o curso dos regatos; E o tépido hálito dos brandos zéfíros Foi derreter a crosta Das águas.
A crosta das águas. em vez do gelo. é metáfora pouco natural. Evitai todas as imagens forçadas. como a de Vítor Huqo, quando descrevia a brancura de uma tez de menina: Esta criança parecia neve petrificada.
Seria esta uma imagem admissivel. mas prejudicou-a a expressão. A imaginação é que faz encontrar as imagens. Ora a imaginação desregra-se fàcilmente; e. se nos deixarmos arrastar por ela. esmaltaremos o estilo com uma ornamentação excessiva. que raia pelo grotesco e pelo incoerente. Afonso Karra escreveu: - «Sucedeu-nos um dia pedir a um nosso amigo. que. sob a nossa dírecção, pintasse. ditando nós. um retrato de mulher; e. pegando num livro. cujo autor não importa nomear. lemos: «Ela tinha uma testa de marfim. olhos de safira. sobrancelhas e cabelos de ébano. faces rosadas. boca de coral. dentes de pérolas e um pescoço de cisne». Pois bem! este conjunto formava a coisa mais hedionda do mundo.» Um retórico antigo. Quintiliano, chamava às Fiqu-
•
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ras os próprios olhos do discurso, mas pedia, continuando a sua comparação, que esses olhos não estivessem aqui e ali, por todo o corpo. Afonso Karra tem razão. A profusão das imagens violentas ou atrevidas deforma a visão, falseia a cor e desagrada ao gosto. Fàcilmente se cai na extravagância, quando se pro~ cura a originalidade. É forçar uma imagem o dizer-se: Embrenha-se nas negras cavernas do crime...
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É trivial
quem descreve:
[úpiter, vomitando neve sobre os Alpes ...
Há um livro de Vítor Hugo, em que abundam as imagens extravagantes. É as Canções das Ruas e dos
Parques. Em quase todas as suas páginas se vê a que excessos pode chegar a imaginação desenfreada, abandonada à fantasia. O perigo da fantasia, em matéria de imagens, é cair no preciosismo ou na insipidez. Vítor Hugo escreve: «Nevam borboletas»! é mais feliz, quando compara as árvores floridas à «neve perfumada da primavera»; mas está em maré de mau gosto, quando põe em cena irmãos que assassinam sua irmã. por esta ter tirado o seu véu. Eu.: Sobre os meus olhos ... Estende-se um véu de morte:
A ARTE DE ESCREVER
262
ELES:
Ao menos esse, não o tirarás!
Pala também algures da «tosse lúgubre» dos vulcões, do «bocejo negro do Etna». Depois, temos os soldados de uma companhia, que perderam o seu capitão em batalha, e que, pensando nele, por uma linda e clara noite, julgam tornar a ver, ao avistarem o crescente da lua, a «gola do capitão». O preciosismo e a afectação das imagens são insuportáveis; todo o escritor razoável as deverá evitar. Molíêre deixou-nos belos exemplos dessa gíria: Trezei-nos as comodidades da conversação; em vez de: aproxima i as poltronas. Satisfazei a vontade, que essa poltrona tem, de vos abraçar; em vez de: sentai-vos, O conselheiro das graças; em vez de: um espelho. La-Motte chama a uma sebe: a Suíça de um jardim. Lemoine, descrevendo o desembarque do exército francês, diante de Damieta, conta assim a coragem, com que S. Luís se atirou ao Nilo: Luis, impaciente, Salta do seu navio; O fogo do seu peito Faz que despreze a água.
Nada é mais pueril que esta oposição do fogo e da
água. Balzac escrevia
a um homem amargurado:
A vossa eloquência torna contagiosa a vossa dor; e que gelo se não derreterá, ao calor das vossas belas lágrimas?
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,. A ARTE DE ESCREVER
Um poeta disse à Virgem As tuas lágrimas apaqaríam
263
Maria:
todo o fogo dos infernos.
Nada é mais vulgar em nossos dias, do que estas aproximações forçadas. Eis aqui uma metáfora, que foi admirada pelos retóricos dos séculos clássicos, como exemplo de figura oratória: ó Deus! que é o homem? é um prodígio? é um conjunto monstruoso de coisas incompatíveis? é um enigma inexplicável? ou não será antes, se assim posso falar, um resto de si mesmo, uma sombra do que foi a sua origem, um edifício arruinado, que, nos seus compartimentos derruídos, conserva ainda alguma coisa da beleza e da grandeza da primeira forma? Caiu em ruínas pela sua vontade depravada; o vértice caiu sobre as paredes e sobre os alicerces: mas, revolvam-se essas ruínas, e encontrareis nos restos desse edifício desmoronado os vestígios das formações. a idéia do primeiro desenho e o sinal do arquitecto. Em nossa humilde opinião, tal imagem, tão demoradamente mantida, destrói e nem sequer deixa ver o objecto que se quer pintar. Acabamos por não saber se se trata do homem ou de um velho edifício; só se notam destroços materiais. um aspecto de coisas físicas, que faz esquecer a ideia principal. As regras literárias afroixaram muito, há cinquenta anos para cá, e hoje há muito menos rigor em questão de imagens e de metáforas. Apesar da opinião de Condillac, segundo o qual se não devia acrescentar nada, que não tivesse analogia com a primeira imagem, poderiam citar-se muitos exem-
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A ARTE DE ESCREVER
plos de metáforas. que se relacionam e nem sempre se seguem lógicamente. Nada de excessos rigoristas. O talento tudo pode salvar. A imagem muito longa. e fielmente continuada. foi ridicularizada por Molíére, nas suas Sabichonas: FILAMlNTE:
Servi-nos prontamente A refeição amável. TRISSOTIN:
--
Para esta grande fome. Que expõem aos meus olhos. Parece-me ser pouco Um prato de oito versos; Creio que mal não faço, Juntando ao madrigal ou epigrama O oportuno guisado de um soneto, Que, no conceito de gentil princesa. Passou por ser um tanto delicado.
As imagens são como aqueles meteoros, que embelezam as noites de verão e sulcam os belos céus puros; devem ser numerosas, brilhar e apagar-se depressa. Há imagens. que os clássicos. sem-razão, condenavam. No Hernêni de Vítor Hugo, Dona Sol diz a Hernâni: Vós sois o meu leão soberbo e generoso ...
O que desesperou. antiga tragédia .
•...-
como se sabe. os amadores
da
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A ARTE DE ESCREVER
Contudo, Malherbe:
aquela
palavra
encontra-se,
não
só em
Toma o raio, Luís, e vai como um leão ...
Mas precisamente numa tragédia de Racíne, naquela súplica, feita por Ester, antes de ver Assuero: Acompanha os meus passos à presença Do leão altivo. que te não conhece; Faze que o seu furor acabe ao ver-me.
Por meio da metáfora ou da imagem dá-se vulto e cor às coisas mais abstractas, e apresentam-se os objectos sensíveis sob traços mais enérgicos e mais graciosos. A metáfora personifica as paixões, dá reflexão aos animais e sentimento e acção às coisas inanimadas: A onda, que o trouxe, recua, aterrada. (RACINE).
A clareza e a verdade das imagens dependem, mais ou menos, das relações, que existem entre um sentimento ou uma ídeía e o objecto físico, a que se comparam. Se, por exemplo, o génio ou a eloquêncía de um orador dissipam a obscuridade das minhas ideias, ocorre-me que o sol produz o mesmo efeito sobre a natureza, e digo daquele orador que é um génio luminoso. Uma imagem é forte, quando é ao mesmo tempo imagem e metáfora. Perguntavam a Agesilau por que era que Lacedemónia não tinha muralhas.
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E ele. mostrando
os seus soldados.
dizia:
Eis aqui as muralhas de Lacedemónia!
Como dissemos já. o encanto do estilo está nas imagens. A poesia. principalmente a poesia. vive de imagens; não se concebe sem elas. Moliêre contudo tem pouco disso; mas Racine, que só fez teatro, cultivou muitas imagens, e Shakespeare está cheio delas. Vítor Hugo foi o rei da imagem, e Sully-Prudhomme quase que a não conhece. Boileau também possui essa virtude. Por isso é que classificaram os poetas, talvez injustamente, em poetas propriamente ditos e versífícadores. O próprio Pascal, mais prosador profundo do que colorísta, encontrou imagens empolgantes, quando disse algures: «Assusta-me o silêncio dos espaços infinitos»: e noutro sítio: «Os rios são caminhos que andam».
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Lição Décima Oitava A criação das imagens A criaçao das imagens. ~ Como se encontram e se produzem imagens. ~ Imagens de fantasia. ~ Imagens verdadeiras.
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Estamos hoje em dia. de' tal forma habituados à necessidade das imagens no estilo. que não podemos passar sem elas, e até o seu excesso nos não desagrada. A imaginação emancipou-se. Passaram-se todas as marcas. sem olhar à qualidade. Aceita-se tudo. admira-se tudo. contanto que seja uma imagem. As puerilidades. que Boíleau apontava em Saint-Amand. são tidas como fantasias de génio. entre os nossos escritores contemporâneos. A falta de gosto precipitou-nos no que se poderia chamar a anarquia da imaginação. Bastará que folheeis dois volumes de Vítor Hugo. um em verso de que já falámos: As Canções das Ruas e dos Bosques, e outro em prosa. intitulado William Shekespeere. Ambos são típicos e revelam o estado da alma. literário e imaqínativo, da nossa época. Isto não impede que a leitura de Vttor Hugo seja infinitamente proveitosa para o estudo e criação de imagens. Como havemos de encontrar imagens. e tomá-Ias salientes. quando elas o não são?
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Vamos ver o que o trabalho e a refundição são os dois meios, afora o gênio natural. que as fazem descobrir. A primeira condição da imagem, como do estilo, é ser nova, com relevo, original. criada e empolgante. É preciso evitar, a todo o custo, empregar imagens usadas, que serviram a toda a gente, como: o veneno da lisonja; o facho da discórdia; a corrente da democrecie: a espada da lei: a balança da justiça; os etminhos da realeza; a águia de Meaux; o cisne mantuano; a pérfida Albion: a moderna Babilónia; a lusa Atenas; a tirania das paixões; os raios da eloquêncie ... Noutros termos, preciso renovar as imagens; sem isso, o estilo não mais que o «vestuário de uma retôrica, feita em pedaços, à força de ter servido a toda a gente». Barbey d' Aurevílly, que teve o dom da imagem estonteante e fantasista, censura George Sand de só ter usado imagens antigas, e nota nas Cartas a Márcia, da autora da Indiana, este gênero de imagens, que constitui a feição de George Sand: é
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Trata-se sempre de tempestades, de ruínas que desabam, de folhas secas, que o vento da morte dispersa, da pomba que constrói o seu ninho solitário (para dizer: celibato), de vulcões entreabertos do solo (para dizer: paixões acalmadas), do anjo do destino, da lámpada da fé; do reinado da verdade que se anuncia no horizonte; do vulcão, do eterno vulcão, que vomita pelas suas mil crateras lava e lodo; e finalmente do escudo, para dizer o sentimento que defende o coração! Pois bem! - haverá um só destes tropos decrépitos e solenes que. francamente. esteja acima do alcance de um Prudhomme qualquer. que queria dizer as mesmas coisas que George Sand? (BARBEY
D'AUREVILLY.
Les Bas Bleus, pág. 60).
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Por outro lado. há imagens. que se podem rejuvenescer. Shakespeare disse: - «Olhai este luar. que dorme sobre este banco». (Mercador de Veneza). Chateaubriand repetiu: - «O mar que dormia.» E Lamartine por sua vez: Na fímbria do horizonte A Lua se balança; E sobre a verde relva Dormem seus froixos raios.
A palavra «dormir» sempre produziu imagem. e tiraram dela lindos efeitos:
o
largo clarão da lua. A beira da água dormente... (V. HuGO). E despertou os filhos que dormiam...
(V. HUGo). Aprazem-se as florestas. Tenebrosas. suaves Onde o silêncio dorme No veludo dos musgos. (V. HuGO).
Pascal chamou ao sol «essa brilhante luz. lâmpada eterna para iluminar o universo».
A ARTE DE ESCREVER
270
Após ele, Lamartine
disse:
Como áurea lâmpada, no azul suspensa, Vê-se a Lua, no extremo do horizonte.
E depois Leconte
de Lísle:
Sozinha, a Lua pálida, Iluminando nuvens, Oscila tristemente, Como -lêmpede moma ... É assim que cada qual pode renovar uma mesma imagem. Criar imagens é uma arte. A sua originalidade e a sua vivacidade dependem evidentemente da imaqinação pessoal de cada um; mas há uma espécie de imagens, que se podem descobrir, mais Iàcilmente do que outra. É preciso aplicar atenção, pensar nas diversas relações que os objectos podem apresentar; nas ideias de [lenco, que lateralmente evocam; nas semelhanças, nos contrastes, nas antíteses. Processo excelente, para encontrar imagens, é desenvolver a ídeia. exaqerá-la propositadamente. Ernesto Dupuy fez curiosas observações sobre o manuscrito da primeira Lenda dos Séculos, de Vítor Hugo. O simples aspecto dessas páginas, o estado do texto, as adições que estão à margem demonstram os processos do poeta. Nota-se que o seu constante cuidado era chegar à imagem forte, alargando a expressão que não era bem
expressiva.
A ARTE DE ESCREVER - Vítor
Hugo
escrevera
271
primeiro:
o
demônio batia em sua forja; Bramia ...
«Mas a palavra bater parece-lhe pouco expressiva. Retoma a sua ídeia, aquece-a na forja e faz saltar estas faíscas: E, batendo cinzel, pilão e malho, Estremecer fazia Toda a horrível caverna. Os martelos, ferindo, Expediam relâmpagos, Formando tempestade. Os olhos chamejantes, Dir-se-íarn duas brasas na cabeça. E ele bramia ...
«Em Bioer, o primeiro esforço tinha produzido este retrato de Cíd, quase todo feito de epítetos morais e de abstracções: Absoluto imperáveis. Poderoso, brilhante. Tendo nas mãos a lança, Penacho na cabeça ...
«o
poeta sente a necessidade de alargar, esclarecer e animar esta definição do herói das Espanhas, e a fórmula primitiva transforma-se nesta: Tudo quanto não fosse O comandar exércitos, J ulgáveis fumo e nada,
~
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A ARTE DE ESCREVER
I I
E vós só aceitáveis Que o Cíd heróico fosse A magistral figura. Sem chefes e sem jugo. Vós do:nináveis tudo. Altivo. lança em punho. Penacho na cabeça.
«No Ano Novo da Heqice, que desde os primeiros versos nos apresenta um retrato expressivo do profeta do Islão, a fisionomia moral de Mafona cifra-se apenas em dois traços: Ante o pilar sagrado. Rezava Iongamente E jejuava por inaís tempo. que outrem. Nos dias de jejum.
«Estas refundições do pensamento não são reais. mas o manuscrito demonstra principalmente até que ponto Hugo possuía o cuidado e a ciência da palavra. «O que o poeta procura. nos seus numerosos reto.ques, que influem nos pormenores da expressão. é o relevo. ou a cor. ou a harmonia. «Quem tiver o ouvido exercitado na harmonia do verso, sente a diferença de sonoridade. que existe entre esta forma de alexandrino: Que sabemos nós! Quem conhece o fundo às coisas? .e esta que substituiu
a primeira:
Mas que sabemos nós? Quem sonda o fundo às coisas?
I
I I
A ARTE DE ESCREVER
cHugo apaga frequentemente
273
a palavra mais nobre:
Sonhou BOO2: que um carvalho lhe saia Do ventre e se elevava até aos céus.
«Hugo a
escreveu
sua ilharga.
o
sucessivamente
as suas ilhargas.
seu ventre.
«Poderá dizer-se que aquilo não é mais que uma característica de escola; mas há casos, em que a simples aparição do termo trivial transfigura o verso: Aquela, com quem eu dormia, há muito que abandonou meu leito, Fugindo para vós, Senhor! E, todavia, Ainda nos sentimos Impregnados Um do outro, mas ela meio viva, E eu, Senhor, meio morto.
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I 1 i \
Esta
magnífica
outro. foi substituir
expressão - impregnados esta forma trivial:
um do
E um e outro formamos inda um par.
«Coisa curiosa I Hugo, que não é capaz ou que não sente a necessidade de pôr diques à sua fluência, encurta com cuidado a expressão e expulsa do seu verso os termos de recheio. «O famoso filólogo Darmesteter (1) observa: - «Vede o que Vítor Hugo tirou da palavra [uiva. que efeitos inesperados ela lhe fez produzir, unicamente pela maneira como ele a incluiu na contextura da frase:
(') 18
Vie des Mots.
.
·
274
A ARTE DE ESCREVER A morte, esqueleto calvo. Atrás deles caminhava. Nas narinas dos seus cavalos fulvos Díríeís que ressoava O Oceano ou a floresta ...
«Aqui [uivo é tomado no sentido próprio: pelo ruivo (falando-se de animais).
que tem
Gabam muito Eviradno. Se ele se deita e sonha, Dír-se-ía Carlos Magno, Já cabeludo e fulvo, Como se fosse um lobo, Mas lobo inofensivo.
«Aqui [uloo está entre o sentido próprio e o figurado. «Significa, acaso, o pêlo ruivo ou bravio, como o das feras que habitam a floresta? «Finalmente, nos seguintes versos, [ulvo toma uma acepção nova, extraordinária: A tempestade é irmã Da [ulo« batalha.
«Eis como Vítor Hugo chega a dar à palavra [uivo todo o horror grandioso das forças misteriosas.» Quando lemos em Lamartine: «Os leitos múrmuros dos regatos», as ondas «harmoniosas», são imagens criadas, para que nada nos prepara, nem nos faz supô-Ias. Assim Vítor Hugo. descrevendo o céu ao fim do dia, diz que. de espaço a espaço, se vê um clarão ~omo se «algum gigante dos ares houvesse desembainhado a sua espada».
A ARTE DE ESCREVER
o mesmo poeta. descrevendo tão puras e tão claras:
as noites
275 de Junho.
A alvorada. esperando a sua hora. Parece andar vagueando. Toda a noite. por baixo do horizonte.
Eis aqui imagens. que se podiam chamar essencialmente imagens de imaginação. que surpreendem pelo seu imprevisto. de uma qualidade que sentimos difícil encontrar por nós próprios. que revelam o génio. e de que se não pode ensinar a arte. Mas a aplicação do espírito. o esforço do trabalho, podem fazer-nos descobrir certas imagens. Uma imagem é uma relação de comparação e essa relação varia infinitamente, conforme o cérebro que pensa e os olhos que vêem. É preciso pois ler os escritores imaginosos, embora tenham só esse mérito. À força de compreendermos as suas metáforas. encontramos em nós próprios o mesmo género ou aproximações. Pode suceder que não deis muito, no primeiro e segundo jactos; e então podereis refundir o vosso trabalho, reflectir, comparar e distribuir. Se pinto um raio no outono e se comparo os olmeiros, envoltos em bruma. a «lustres de igreja em dias de semana», será isto uma linda imagem. do género daquelas que se podem encontrar com talento e disposição imaginativas. Talvez me tenha lembrado, sem dar por isso, do que diz Chateaubriand, quando compara o pôr do sol
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A ARTE DE ESCREVER
ao «lustre, que se desce, quando está concluído o espectáculo». Um dos frutos da leitura bem feita é ministrar, por transposição, coisas similares às quais ajuntamos alguma coisa nova. A Lua abre. na onda. O seu leque de prata. (V. Huoo).
Eis aqui uma imagem, que poderia ocorrer a muitos poetas, e Herédía recordou-se talvez dela, quando escreveu. acerca do pôr do sol. uns versos, que lhe são aliás tão pessoais: O sol.,; Fecha as varetas de ouro Do seu leque vermelho.
Assim como num poeta. Vítor Hugo principalmente. uma imagem traz outra, assim pela leitura a imagem do outro desperta as nossas. O que constitui a má qualidade das imagens é o seu carácter fantasista e exagerado. O sol inflamando as evaporações da cidade. parecia oscilar lentamente num fluido de ouro, como pêndulo do relógio dos séculos. (CHATEAUBRlAI':D)
.
As vezes. uma alta coluna se mostrava só, de pé. num deserto. como um grande pensamento se eleva, com intervalos, numa alma que o tempo e a desgraça devastaram. (CHATEAUBRlAND)
.
~.
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Eis aqui a comparação, ou antes a imagem de Iantasía, a imagem bela; não se baseia na realidade das coisas, é um pouco fictícia; e só fracamente se relaciona com a semelhança aparente. Seduz e surpreende, mas é por esse caminho que se cai no preciosismo, no requintado. Pelo contrário, eu diria: Avista o Nílo onduloso e claro, sob a alvura da Lua. como uma serpente no meio das areias. (GUSTAVO
FLAuBERT,
A Tentação).
Ou então, para descrever o rugido do leão, compara-o a «um longo mugido, forte e cavernoso, como o ruído da água num aqueduto» (Flaubert). E ali temos dois exemplos de imagens verdadeiras: nem o tempo nem a moda poderão influir sobre eles; e não serão excedidos, porque dão sensações exactas. La-Fontaíne faz que a andorinha diga aos seus filhinhos descrevendo as sementeiras: Vedes aquela mão, que caminha nos ares?
Há aqui uma imagem verdadeira, a visão do gesto do semeador, visto por baixo, num campo. Assim como este pôr do sol. no mar, que desdobra o astro: Sobre as ondas profundas, Sobre as ondas vermelhas, Como dois reis amigos Foram vistos dois sóis aproximar-se, Um em frente do outro! (V. HuGO).
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1 Em resumo, dois conselhos se devem observar, na arte de criar imagens. Primeiro, ser exigente com a qualidade da imagem, para evitar o preciosismo e o mau gosto. Em segundo lugar, habituarmo-nos a conservar apenas as imagens verdadeiras. isto é, as metáforas. que em vez de provocar a imaginação, se impõem a ela. A leitura de Chateaubriand, de Bernardim de Saínt-Píerre, de Vítor Hugo, de Leconte de Lísle, será, a tal respeito, altamente proveitosa.
Lição Décima Nona o diálogo Do diálogo. - A arte do diálogo. - O diálogo escrito e o diálogo falado. - O diálogo literário. - O diálogo convencíonalv--> Deverá fazer-se diálogo fotográfico? - O diálogo falado e verdadeiro. - Diálogo justo. - Octávío FeuilIet. - Diálogo do autor. - Sardou, Augier. - Como escrever bom diálogo.O bom e o mau diálogo.
A questão do diálogo ocupa, na arte de escrever, quase tão amplo lugar, como a descrição. Não é raro introduzirem-se numa narrativa personagens que falam; o movimento de uma acção depende disso, às vezes completamente. Pode-se até tratar um assunto exclusivamente em diálogos, sem obrigação de fazer teatro. A arte do diálogo merece, pois, algumas reflexões
.JI.
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gerais. à míngua de estudo profundo. que nos levaria muito' longe e se referiria sobretudo à arte dramática. Não há nada mais difícil. do que o diàlogo! O bom diálogo é a última coisa que se aprende; é quase um dom. Exige qualidades de movimento. de rapidez. de elegância concisa e impulsiva. que constituem precisamente a vocação dramática. Há duas espécies de diálogos: um literário. Iraseado, arquítectado, próprio do livro; e outro que é a reprodução fotográfica da palavra falada. na sua concisão imprevista. elíptico, febril. saltitante ... Ora. nada é mais difícil que a arte de equilibrar estes dois extremos. visto que há romancistas. que patentearam excelentemente o som da palavra falada. como Flaubert, Daudet, Goncourt, e nunca foram bem sucedidos no teatro. em que aliás triunfou Scribe, Feuillet, Sardou, Dumas filho. Augier. Há. para isto. razões de execução. que seria curioso estudar numa obra especial. Neste momento. só examinaremos os meios a empregar. para atingir a boa qualidade do diálogo. Em geral. o diálogo não pode ter a vivacidade. a vida. a ilusão do verdadeiro. se estiver escrito no próprio estilo da narrativa. São precisas outras frases. diferentes das frases de um livro ou de um trecho literário; frases concebidas de outra forma. mais curtas. mais ofegantes. mais incisivas. É necessário que cada personagem diga poucas coisas ao mesmo tempo. pela razão de que, numa conversação. cada um quer falar e não ouve. durante muito tempo. o seu interlocutor.
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.Salvo as tiradas voluntárias e preparadas, a resposta rápida é que constitui o interesse de um díâloqo. Mesmo concedendo algumas linhas a cada personagem. a qualidade das frases é que determinará o movimento e o atractivo do diálogo. Nada é pior nem mais oposto ao verdadeiro diálogo. que os supostos Diálogos dos Mortos, de FonteneIle e de Fênelon. É retórica fria e ínexpressiva, uma seqüência de frases literàriamente escritas. postas na boca de certas personagens convencionais. Já se sabe que isto é um género. uma série de Iraqmentes demonstrativos. que nada têm de comum com a conversação falada; forma antiga de composição. que permite desenvolver uma tese. expondo-se razões a favor e contra. Tais são os Diálogos de Platâo e o Tratado dos Deveres, de Cícero; os Diálogos sobre a Eloquéncie, de Fênelon: os Entretenimentos sobre a Pluralidade dos Mundos, de FonteneIle; os Entretenimentos Metafísicos, de Malebranche; Os Serões de Sen-Petersburqo, de JOSé de Maistre. Estas espécies de trabalhos podem abranqer-se sob a denominação geral de diálogos filosóficos. à imitação dos famosos Diálogos de Lucíano, que tinha. a mais, a réplica temível e o relevo da graça. Vejamos esta passagem de um diálogo de Fénelon: Bordão ~ Sinto-me vitorioso de um inimigo. que me ultra[ou: vingo-me dele; expulso-o do Mílanês. Faço sentir a toda a França quanto ela é infeliz em me ter perdido. levando-me a tais extremos; dizes tu que isto é para lamentar? Bayard ~ Sim: devemos sempre lamentar aqueles que vão
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contra os seus deveres; mais vale morrer. combatendo pela pátria. que vencê-Ia e triunfar dela. Ah! que horrível glória a de destruir o seu próprio país! Boedão - Mas a minha pátria foi ingrata depois de tantos serviços que lhe prestei. A Rainha fez que me tratassem indignamente. por um despeito de amor! O Rei. por fraqueza para com ela. fez-me injustiça enorme. despojando-me dos meus bens; até me tirarem os criados. Matignon e Argougesl Para salvar a vida, fui obrigado a fugir quase só. Que querias tu que fizesse? Bayard - Que sofrêsseis toda a espécie de males. antes que faltar aos vossos deveres para com a França e a grandeza da vossa casa! Se a perseguição era bastante violenta. retirásseís-vos: mas mais valia ser pobre, obscuro, inútil para tudo, que tomar armas contra nós. A vossa glória chegaria ao cúmulo, na pobreza e no mais miserável exílio. Bordão - Mas. não vês tu que a vingança se aliou à ambição para me lançar em tal extremidade? Eu quis que o Rei se arrependesse de me ter tratado tão mal. É isto O contrário do verdadeiro diálogo dramático. Falta-lhe vida, movimento. Desembaraçai a frase da sua estrutura escrita. e dai-lhe o aspecto que ela tem na conversação. Vamos ver um diálogo. que possui o tom da própria realidade. e que é extraído da Eoenqeliste, de Afonso Daudet. A senhora Antheman, a Evangelista. arrebatou a jovem Lina a sua mãe. A mãe procura a filha, lamenta-se, faz pesquisas por toda a parte. Sabedor do caso, o velho sacerdote Aussandon conta a sua indignação a sua mulher, Bonne: - «Orgulho, não há senão o orgulho naquela mulher! Nem coração. nem entranhas... A peste anglicana tudo lhe devorou ..• tão fria e gelada! Olha. como este mármore ... »
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o velho deão. sentado diante da chaminé. bateu violentamente no fogão com as tenazes. que Bonne, silenciosa. lhe tirou das mãos. Ele não deu por isso. tão animado estava. e continuou a narrativa da sua visita ao palácio de Antheman: - «Supliquei. ameacei. procurei chamá-Ia à razão..; Nada obtive. serão frases de sermão. a insipidez da fé. a utilidade dos grandes exemplos ... S que ela fala bem. a mestiça ...• muito sotaque de Canaan ... Mas eloquente. convencída ... Não me admiro de que houvesse transtornado aquela cabecinha ... Olha o que ela fez de Crouzat!. .. Ah! mas também. disse-lhe tudo que eu pensava dela.s E levantou-se. caminhando. com grandes passadas ... - «Finalmente. quem é a senhora? Em nome de que autoridade fala?.. Não é Deus que a conduz ... Nas suas acções, não vejo senão a sua alma ruim e fria. que parece aborrecer a vida e procurar sempre alguma coisa para vingar. - O marido estava presente? - perguntou a velha. espantada. - E ele não dizia nada? .. - Nem uma palavra... Apenas um sorriso contrafeito. e aqueles olhos. que queimam. como uma lente ao sol... _ Mas. senta-te., , estás num tal estado!. ..» De pé. por detrás da cadeira. onde descansava finalmente o seu grande homem. a senhora Aussandon enxugava-lhe a fronte. inteligente. ampla e cheia; tirava-lhe o agasalho que ele tinha ao pescoço. e que conservava. desde que entrou. - Ora. vamos. afliges-te de mais ... - Por que não? Tão grande desgraça. tal injustiça ... Faz-me pena aquele pobre Loire. - Oh! esse ... - disse ela. com um gesto de rancor contra o homem que tinham. por um momento. preferido a seu filho. - Mas a mãe! aquela mãe. que nem sequer pode saber onde está sua filha... Supõe-te em frente daquela mulher e do seu silêncio. que a cobardia dos homens autoriza ... ; que fazias tu1 - «Eu? Comia-lhe a cabeça Isso foi dito com tão terrível gesto do queixo para a frente. que o deão pôs-se a rir; e animado pela cólera de sua mulher: - «Ohl mas não acabaram aínda comigo... Nada me impedirá de falar. de os denunciar à consciência pública ... ainda que eu tenha de perder o meu lugar ... »
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Palavra desastrada, que de repente acordou a dona da casa para a gravidade das circunstâncias; ah! ah! desde que corria perigo o seu lugar ... - «Vais dar-me o prazer de estar sossegado ... Ouves, Alberto? - Bonne! Bonne!. .. - suplicou o pobre Alberto, Bonne nada queria escutar. Ainda se fossem sós, poderiam arriscar a partida. Mas havia filhos; Luis, que ia passar a subchefe; a colocação de Frederíco, o mais velho ... Poderosa, como era aquela gente, bastaria que fizesse um sinal..; - E o meu dever? .. - murmurou o deão, que afrouxava. - Já o fizeste, e até de mais! Julgas acaso que os Anthemans te perdoarão as palavras duras, que Ihes dirigiste hoje? Ora ouve ... » Tomou-lhe as mãos e convenceu-o com razões. Naquela idade, gostaria ele de correr aventuras? .. Ele dizia sempre: no alto da colina... no alto da colina ... Mas devia recordar-se bem do trabalho que haviam tido para subir ... E aos setenta e cinco anos cair sobre os joelhos, era duro! - Bonne ... Era a última resistência pela honra; pois que os argumentos de sua mulher acabavam de confirmar os dos seus colegas ...
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Eis aqui verdadeiro diálogo falado e não diálogo escrito. Não esqueçamos, contudo, que há na fotografia pura e simples da conversação um escolho a evitar: é a rudeza e a vulgaridade; acaba-se por não ser eloquente, à força de ser terra-terra. São exemplos os diálogos de Henrique Monnier, conversações vulgares, sobre qualquer assunto, e que não têm outro valor, senão o da reprodução fiel do calão vulgar. Numa palavra, nada de construções fraseadas, nada de rodeios afectados, nem de molde literário.
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Soltai a frase, deíxaí-lhe a espontaneidade, o porte vivo, a oportunidade do momento, a crítica e o impre ... visto da réplica; o diálogo entretanto deve ser dirigido com tacto, sabendo ainda a estilo, não estilo narrado, expositivo e aplicado, mas estilo discreto, uma intenção de eloquência; cumpre que se sintam as rédeas, sem que se veja a mão. Os diálogos dos romances de Octávio Feuillet são modelos, sob este ponto de vista. Devem-se ler constantemente. Eis aqui um exemplo. tirado, ao acaso, de um dos seus livros menos célebres. A senhora Rias recebe a visita de sua prima, a senhora Estrêny, que procurara, embora baldadamente, atrair a si o senhor Rias. A conversação estendeu-se largamente sobre assuntos vulgares; depois, fez-se silêncio. apenas interrompido pelo crepitar da lenha do fogão e pelos suspiros da Duquesa. - Estás incomodada? - perguntou secamente a senhora Rias. sem erguer os olhos do seu bordado. - Por que me perguntas tu isso? - Não fazes senão suspirar ... - Símv.., não me sinto bem... e depois tenho vontade de chorar ... - Por que é que tens vontade de chorar? .. - Que queres? .. sempre a mesma coisa? .. - Que coisa? - Sou tão infeliz com o meu marido! - E esperavas, então, ser mais feliz com o meu? - disse a senhora Rias, erguendo subitamente a cabeça e olhando de frente para a Duquesa. A senhora Estrény, após alguns segundos de muda confusão. deixou-se cair aos pés de sua prima e, envolvida nas suas amplas roupagens, rompeu em soluços e murmurou:
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-- Que pensarás tu de mim? -- Penso que não és boa amiga ...• eis o que eu penso. -- Asseguro-te que sim. asseguro-te ... Foi um momento de loucura... eu tinha-te inveja... invejava a tua felicidade. confesso ...• mas fui tão castigada. tão humilhada! Eu vi bem que teu marido me não amava! -- Suponho que não sou eu quem te deve consolar disso I -- Tranquilíza-te ... , ele só te ama a ti! - Não é por tua vontade. francamente!. .. Vamos, levanta-te. Sabina... Disse-te o que sentia no coração; não falemos mais em tal. -- Afligi-te muito. Maria? r: disse a Duquesa. cujas lágrimas redobraram. - Muito! - respondeu Maria. que principiava a enternecer-se também. - Minha pobre querida! - Eu tinha tanta confiança em ti! - tornou a senhora Rias com voz sufocada, - Meu Deus. meu Deus! disse a Duquesa. E o fim desta cena perdeu-se num ruído confuso de lágrimas e de beijos. Quando o senhor Rias regressou à noite para casa. encontrou sua mulher bordando com frenesi. E exclamou: - Céus! minha filha! que vejo! que estás fazendo? -- Bordo um cabeção para minha mãe ... - Ah! é um cabeção ... para tua mãe? está bem... é muito bonito... Como tu sabes fazer coisas tão bonitas! ignorava esta tua habílidade...., mas. vejamos.... está já muito adiantado ... Trabalhaste nele todo o dia? - Todo o dia. - Como! nem saíste? -Não. -- Não foste ao Petít-Saínt-Thomas? -Não. - Nem ao Louvre? -Não. - Mas então. é o fim do mundo! - disse o senhor Rias.
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pagando a sua mulher um beijo, que lhe pareceu delicioso. Mas também te não deverás enclausurar! deves tomar ar ... E ficaste aqui sozinha todo o dia? - Esteve cá a Duquesa, - respondeu Maria, num tom negligente. - Ah! deveras? a Duquesa veio? Ah! deveras? .. Pois muito bem... e corno se despediram? - Como de costume ... - Prudente mulherzinha! disse Leonel, beijando-a de novo. - O que é, que ambas chorámos um pouco ... - Oh! sim... devia ser isso. ê
Os autores realistas acusam o diálogo do teatro de ser literário, fictício, convencional. Há verdade nesta consura; mas os diálogos de autores dramáticos. como Sardou, Dumas filho, Augier, Paílleron, Halévy, têm outra coisa, afora o lado mundano, calculado, fictício. Têm o movimento, a vida, o lance que se precipita e que produz a ilusão. Mas é realmente verdade que o diálogo dos nossos autores dramáticos contemporâneos muitas vezes não é senão um diálogo de teatro, em que a réplica se dá em vista do efeito, em que a resposta é produzida pela última palavra do interlocutor e não pela verdade da personagem e da lógica dos sentimentos; é um diálogo, cujo laço não está senão no espírito, e só se dirige ao
espírito. Esta espécie de diálogo, diálogo com fogo de artifício, veio, em linha recta, de Beaumarchais e brilha nas peças de Dumas filho e de Sardou. Bastará relerdes os actos principais das suas mais brilhantes peças, o primeiro acto da Pernanda, por exemplo, ou o do Amigo das Mulheres: e continuamente sentireis o autor por detrás das personagens.
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Ê uma espécie de aparato, que agrada pela sua sonoridade, mas que nada tem de profundo nem de humano; e todavia é diálogo vivíssimo. Só em Molíere é que se encontra o diálogo em estado de réplica verdadeira, humana, eterna, de todos os tempos, sem palavras do autor. Abri-o ao acaso. O que as personagens dizem saí-lhes do fundo dos seus seres e dos seus pensamentos. Não ouvem o que se lhes diz e não respondem aos seus interlocutores. Seguem as suas ídeías com uma inconsciência, que nos faz esquecer totalmente de Molíêre. Ê a obra do génio. Em suma, para o bom êxito do diálogo, é preciso trabalhá-lo o mais possível; cortar todas as excrescências: atender à concisão; variar o arredondamento da frase; perguntar como se diria aquilo em voz alta, vazar as frases no molde falado. Se não há vocação para o diálogo, certa disposição para relevo das réplicas, e para o espírito cênico, qualidades impreteríveis no autor dramático, é inútil fazer teatro. Mas, com trabalho e aptidões regulares, podeis aprender a dialogar suficientemente para escrever romances ou novelas. Para isso, devereis ler muitos diálogos de teatro e peças de bons autores, Labiche principalmente, que é maravilhoso em rapidez e naturalidade. O estilo da conversação é conciso. Não nos esqueçamos disto. Em geral, o desejo de brilhar prejudica o verda-
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deiro diálogo; não nos podemos decidir a interromper uma personagem, detê-Ia nas suas réplicas naturais. e o bom gosto é prejudicado. A facilidade, com que o público aplaude as tiradas. as argúcias de espírito, fez das nossas comédias fogos de artifício, deslumbrantíssimos, mas que se apagam com as luzes da ribalta.
Lição Vigésima Do estilo epistolar
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estilo epistolar. ~ As cartas de mulher. ~ A carta é uma sensação individual. ~ Escrever como se fala. ~ Conselhos gerais.
Não nos deteremos muito, falando do estilo epistolar e da carta. Nenhum assunto, como este, torna inútil qualquer desenvolvimento, pela razão de que se exprime sempre bem o que se sente, e de que uma carta é, em geral. uma coisa que se sente, porque é pessoal. E a prova é que as mulheres escrevem admíràvelmente cartas. La-Bruyêre disse: - «Este sexo vai mais longe do que nós nesse género de escrever. As mulheres, ao pegar na pena, encontram rodeios e expressões, que muitas vezes, em nós, são efeitos de um longo e aturado trabalho; são felizes na escolha dos termos, e colocam-nos com tal 'propriedade, que, por mais conhecidos que sejam, têm
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o encanto da novidade e parecem feitos apenas para o uso que elas lhes dão. Só elas têm o privilégio de fazer ler. numa só palavra. um sentimento completo. e de representar delicadamente um pensamento. que é delicada; possuem um inigualável encadeamento de frases. que se seguem naturalmente e que são apenas ligadas pelo sentido. Se as mulheres fossem sempre correctas, ousaríamos dizer que as cartas de algumas delas seriam talvez o que temos de mais bem escrito.» La-Bruyêre, ao escrever estas linhas. não pensava evidentemente em Madame· de Sêvíqné, visto que as cartas dessa dama foram publica das muito tempo depois da morte de La-Bruyêre. Pensava nas mulheres em geral. Aqueles que tiverem entre mãos muitas correspondências femininas sabem que as mulheres. seja qual for a sua classe e condição. escrevem cartas superiormente. Há centenas de mulheres. cujas cartas mereceriam ser impressas e admirariam o público. Li algumas. escritas por mulheres do povo. que eram cheias de naturalidade e aticismo. É inútil ensinar-se às mulheres o estilo epistolar; sabem-no por instinto e elas é que no-lo poderiam ensinar. Quanto aos homens. têm menos delicadeza e naturalidade; mas pede dizer-se que cada um sabe escrever uma carta. cujo assunto sentiu. É inútil ensinar a escrever uma carta. sobre um assunto que se não sente. Primeiro. está o sentimento. Concebe-se o ensino do estilo. em geral. uma demonstração da arte de escrever. tratando-se de uma
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descrição. de- um artigo. de um livro; mas a carta. no uso ordinário. não um gênero voluntário. um trabalho que se escolha. É uma obrigação. Há uma missiva qualquer a enviar. há uma correspondência a fazer. segundo os acasos da vida. ou porque sucede isto ou aquilo. Numa palavra. o fim. o assunto. as razões. as circunstâncias da carta são eminentemente individuais. Nestas condições. toda a gente vê o que tem de fazer. Há apenas um conselho a seguir: ler muitos medelos. A simples leitura das cartas ensina a escrevê-Ias. Demais, existem bons Manuais de arte epístolar, destinados a mostrar o tom. as fórmulas. o cerimonial. relativo aos diversos gêneros de cartas. Sendo a carta uma ccnversação por escrito exige as qualidades da boa conversação. e a naturalidade acima de tudo. Deverá ser espontânea. ingênua. não estudada. a não ser que seja o contrário por sistema. como as cartas de Voíture e de Balzac, denominados os grandes epistológrafos da França. Esses escreviam de propósito sobre ninharias para ostentação do seu espírito e distracção da alta sociedade. Faziam assaltos de galantaria. de afectação. E mesmo então as suas cartas eram uma espé-cie de conversação escrita. visto que era pouco mais ou menos assim que se falava nos salões do palácio de Rambouíllet, em que o preciosismo substituíra a simplicidade. Evitai. pois. nas vossas cartas. o trabalho. o esforço. a ciência do estilo. é
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Expressai-vos simplesmente. Deve-se escrever como se fala, quando se fala bem; é preciso mesmo escrever um pouco melhor do que se fala, visto que há tempo para se pôr em ordem o que se diz. A Sévigné escrevia à filha: - «Dizes-me complacentemente que supões tirar-me alguma coisa. polindo as tuas cartas. Não lhes toques; convertê-Ias-ias em .peças de eloquência. Essa pura naturalidade. de que me falas. é precisamente o que é belo e que exclusivamente agrada. «Sê tu e não sejas cutra; a tua carta deverá abrir-me a tua alma e não a tua biblioteca. Por mim. escreveria até amanhã; os meus pensamentos. a minha pena e a minha tinta. tudo voa.» Nada desagrada tanto como a vontade de querer brilhar. As cartas não devem ser carregadas de ornatos; basta que sejam correctas, escritas sem preocupação de períodos sonoros. com a espontaneidade do coração. Recordo-me de que eu e os meus rivais. quando estive em Paris, éramos todos pouca coisa, grandes compositores de bagatelas, que pesávamos gravemente ovos de mosca em balanças de teia de aranha. (VOLTAIRE).
Contava-se, ontem à mesa, que Arlequim há dias, em Paris, trazia uma grande pedra debaixo da capa. Perguntaram-lhe o que queria ele fazer daquela pedra, e ele respondeu que era uma amostra de uma casa, que queria vender. Ri-me. Se julgares, minha filha, que esta invenção é boa para venderes a tua propriedade, poderás aproveitá-Ia. (SÉVIGNÉ) •
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A ARTE DE ESCREVER
Quando diziamos às vezes: «Não há nada que mais arruine do que a falta do dinheiro». bem sabiamos o que dizíamos. (SÉVIGNÉ).
A eloquência, ainda a mais sublime. pode encontrar-se em cartas. A Sévíqné rivaliza. por vezes. com Bossuet. Vamos ver uma carta. em que ela. entre outras coisas. conta a Coulanges a morte de Louvois. Dír-se-ía uma página do ilustre e grande bispo: Sinto-me tão atordoada com a morte repentina de Louvoís, que nem sei como começar a falar-vos dela. Ei-Io, pois. morto. aquele grande Ministro. aquele homem. tão eminente. que ocupava tão grande lugar. e cujo eu. diz o Sr. Nícole, era o centro de tantas coisas! Quantos negócios. quantos planos. quantos segredos. quantos interesses a deslindar! Ouantas guerras começadas, quantas intrigas. que belos golpes de xadrez a dar e a aconselhar! Ah meu Deus! dai-me algum tempo! gostava tanto de dar um xeque ao Duque de Sabóia e um mate ao Príncipe de Orenqe! Mas não! não terei um só momento! Que pensar de tão estranho acidente? Nada, na verdade: é preciso reflectirmos no gobinete. Eis o segundo ministro. que vedes morrer. desde que estais em Roma. Nada é mais diferente que a morte deles. mas nada é mais igual que a sua fortuna c os cem milhões de cadeias que os prendiam à terra.
A grande máxima que se deve fixar. aquela em que resumiremos os nossos conselhos epistolares. é que devemos deixar ir a pena e exprimir sem afectação o que se sente. Ao pegarmos na pena para escrever a alguém. já devemos saber o que queremos dizer. Quanto à maneira de exprimir tudo isto. não vos
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A ARTE DE ESCREVER
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ocupeis de tal, dizeí-o em voz alta. e a expressão chegará
por si.
Sobretudo não vos incomodeis para entrar destramente no vosso assunto. O começo de uma carta deve ser rápido e sem preparação. Sévigné é informada de que sua filha correu perigo e diz: - «Ah! minha filha! que carta! Que pintura tu fazes do estado em que te viste!» É preciso também que' os finais de cartas sejam simples. sem esforço. A Sévigné nunca se embaraçou para concluir: - «Adeus. minha muito querida e encantadora filha; não acho ninguém que não suponha que tens razão para me amar. sabida a maneira como eu te amo.» Ou então: - «Adeus. beijo-te; mas. quando poderei eu beijar-te de mais perto? A vida é tão curta! Ah! mas não pensemos nisso: agora são as tuas cartas que eu espero com impaciência.» A propósito de cartas. esta frase de Buffon é mais verdadeira que nunca: - «O estilo é o homem.» Em resumo. é preciso ler muitas cartas. para aprender a escrevê-Ias. Tratámos sumàriamente da doutrina destes dois últimos capítulos. Mais de espaço nos ocupamos dela. no livro A Formação do estilo, pela assimilação dos
autores. FIM
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INDICE
Pãg.
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dom de escrever. . Os Manuais de Literatura A leitura Do estilo A originalidade do estilo A concisão do estilo A harmonia do estilo . A harmonia das frases A invenção .
A-dispOSiÇãO A elocução . Processo das refundíções Da narração Da descrição . . . . A observação directa . A observação índírecta As imagens. . _ . . A criação das imagens O diálogo ... Do estilo epistolar .
7
13 22 41
56 92 119
137 155 166 172 190
207 217
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