A UNIDADE TRANSCENDENTE DAS RELIGIões Tradução de Pedro de Freitas Leal PUBLICAÇõES DOM QUIXOTE LISBOA 1991 Schuon, Frithjof, 1907 A Unidade Transcendente das Religiões Public Publicaçõ ações es Dom Quixote, Quixote, Lda. Rua Lucian Luciano o Cordeir Cordeiro, o, 116 - 2.' 1098 Lisboa Lisboa Codex - Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor Título original: De Punité transcendente des refigions 1.0 ediç edição: ão: Julho Julho de 1991 Depósi Depósito to legal legal n.I 47 820191 820191 FOTOCOMPOGRAFICA, LDA. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa e Filhos, Lda
Fotoco Fotocompos mposiçã ição: o:
Digitalização Mediateca da Caixa Geral de Depósitos Uso exclusivo para os seus utentes deficientes visuais íNDICE
Prefácio..... Prefácio........... ............. ............. ............ ............. ............. ............. ............. ....... . 11 1 Das Da s di dime mensõ nsões es conce concept ptua uais is.. .... .... ..... ..... .... .... .... .... .... .... ..... ..... .... .... .. 17 II - A limi li mita taçã ção o do exot ex oter eris ismo mo.. .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .... .. 23 III II I Transcendênci Transcendência a e universalida universalidade de do esoterismo... esoterismo......... ......... ... 45 IV -'A questão das formas formas de arte... arte...... ...... ...... ....... ....... ...... ...... ...... ..... .. 69 V - Dos limite limites s da expansã expansão o religi religiosa. osa.... ...... ...... ...... ....... ....... ...... ..... .. 83 VI - O aspect aspecto o ternári ternário o do monoteísmo.......................... 97 VII - Cristianismo e islão....................................... 105 VIII - Natureza particular e universalidade da tradição cristã... 121 IX - Ser homem é conhecer...................................... 143 *O
Espírito sopra aonde quer: e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai; assim é todo aquele que nasceu do Espírito (João, III, 8) + PREFACIO s considerações deste livro procedem de uma doutrina que não é filosófica, mas sim metafísica. Tal distinção poderá parecer ilegítima aos olhos de quem engloba a metafísica dentro da filosofia. Mas, se já em Aristóteles e nos seus continuadores escolásticos encontr encontramo amos s tal assimi assimilaç lação, ão, isso isso apenas apenas demonst demonstra ra que toda toda a filoso filosofia fia tem limitações que, mesmo nos casos mais benignos como o que acabamos de citar, excluem uma apreciação perfeitamente adequada da metafís metafísica ica. . Esta Esta possui possui, , na verdade verdade, , um caráct carácter er transc transcend endent ente, e, que a torna torna independente de qualquer parecer humano. Para melhor definirmos a diferença que existe entre os dois modos de pensar, diríamos que a filosofia
procede da razão, como faculdade individual, enquanto a metafísica se reporta em exclusivo ao Intelecto. Este último, foi mestre Eckhart quem melhor melhor o definiu definiu: : *Existe na alma algo de incriado e de incriável; se a alma toda fosse isso, seria então incriada e incriável, e isso é o Intelecto. + Achamos no esoterismo, muçulmano uma definição análoga, mas ainda mais concisa e mais rica em valor simbólico: *O sufi (ou seja: o homem identificado com o Intelecto) não foi criado. + Se o conhecimento conhecimento puramente puramente intelectual ultrapassa, por definição, o indivíduo; se esse conhecimento tem uma essência supra-individual, universal ou divina, que procede da Inteligência pura - isto é, directa e não-discursiva conclui-se que tal conhecimento não só ultrapassa o raciocínio, mas também ultrapassa a própria fé, no sentido vulgar do termo. Por outras Frithjof Schuon palavras, o conhecimento intelectual ultrapassa o conhecimento especificamente teológico, já de si incomparavelmente superior ao conhecimento filosófico, nacionalista, pois ele, como o conhecimento metafísico, emana de Deus e não do homem. Só que, enquanto a metafísica procede toda ela da intuição intelectual, a religião procede da Revelação. Esta é a Palavra de Deus que se dirige às Suas criaturas, enquanto a intuição intelectual é participação indirecta e activa no Conhecimento Divino, não participação indirecta e passiva como no caso da fé. Por outras palavras, diríamos que na intuição intelectual não é o indivíduo enquanto tal que conhece, mas sim o indivíduo na sua essência, indistinto do seu Princípio Divino. Assim, também a certeza metafísica é absoluta em razão da identidade entre conhecedor e conhecido, no Intelecto. Se nos é permitido um exemplo de ordem sensível para ilustrara diferença entre o conhecimento metafísico, e o teológico, podemos dizer que o primeiro - a que chamaremos *esotérico + por se mani ma nifes festa tar r me medi dian ante te um si simb mbol olis ismo mo re relig ligio ioso so - tem co cons nsci ciên ênci cia a da es essê sênc ncia ia incolor da luz e do seu carácter de pura luminosidade. Uma crença religiosa admitirá, pelo contrário, que a luz é vermelha e não verde, enquanto qualquer outra afirmará o oposto: ambas terão razão ao distinguirem as trevas da luz, mas não ao identificarem a luz com esta ou aquela cor. Queremos mostrar, através deste exemplo tão rudimentar, que o ponto de vista teológico ou dogmático, pelo simples facto de se fundar numa revelação e não num conhecimento acessível a todos - facto aliás impensável em termos da grande colectividade humana -, confunde necessariamente o símbolo ou a forma com a Verdade nua e supraformal, enquanto a metafísica - a que so a título provisório poderemos chamar *ponto de vista + - pode servir-se do -mesmo símbolo ou forma como simples meio de expressão, sem ignorar o que nele há de relativo. E por esse motivo que todas as grandes religiões, intrinsecamente ortodoxas, podem, através dos seus dogmas, ritos e outros símbolos, servir de meio de expressão de toda a Verdade directamente conhecida pelo olho do Intelecto, aquele órgão espiritual a que o esoterismo muçulmano chama *o olho do coração +. Acabámos Acabámos de afirmar afirmar que a religião religião traduz as verdades verdades metafísicas metafísicas ou universais em linguagem dogmática. Ora, se o dogma já não é acessível a todos na sua Verdade intrínseca, pois só o, Intelecto a ela pode directa 12 A Unidade Transcendente das Religiões
procede da razão, como faculdade individual, enquanto a metafísica se reporta em exclusivo ao Intelecto. Este último, foi mestre Eckhart quem melhor melhor o definiu definiu: : *Existe na alma algo de incriado e de incriável; se a alma toda fosse isso, seria então incriada e incriável, e isso é o Intelecto. + Achamos no esoterismo, muçulmano uma definição análoga, mas ainda mais concisa e mais rica em valor simbólico: *O sufi (ou seja: o homem identificado com o Intelecto) não foi criado. + Se o conhecimento conhecimento puramente puramente intelectual ultrapassa, por definição, o indivíduo; se esse conhecimento tem uma essência supra-individual, universal ou divina, que procede da Inteligência pura - isto é, directa e não-discursiva conclui-se que tal conhecimento não só ultrapassa o raciocínio, mas também ultrapassa a própria fé, no sentido vulgar do termo. Por outras Frithjof Schuon palavras, o conhecimento intelectual ultrapassa o conhecimento especificamente teológico, já de si incomparavelmente superior ao conhecimento filosófico, nacionalista, pois ele, como o conhecimento metafísico, emana de Deus e não do homem. Só que, enquanto a metafísica procede toda ela da intuição intelectual, a religião procede da Revelação. Esta é a Palavra de Deus que se dirige às Suas criaturas, enquanto a intuição intelectual é participação indirecta e activa no Conhecimento Divino, não participação indirecta e passiva como no caso da fé. Por outras palavras, diríamos que na intuição intelectual não é o indivíduo enquanto tal que conhece, mas sim o indivíduo na sua essência, indistinto do seu Princípio Divino. Assim, também a certeza metafísica é absoluta em razão da identidade entre conhecedor e conhecido, no Intelecto. Se nos é permitido um exemplo de ordem sensível para ilustrara diferença entre o conhecimento metafísico, e o teológico, podemos dizer que o primeiro - a que chamaremos *esotérico + por se mani ma nifes festa tar r me medi dian ante te um si simb mbol olis ismo mo re relig ligio ioso so - tem co cons nsci ciên ênci cia a da es essê sênc ncia ia incolor da luz e do seu carácter de pura luminosidade. Uma crença religiosa admitirá, pelo contrário, que a luz é vermelha e não verde, enquanto qualquer outra afirmará o oposto: ambas terão razão ao distinguirem as trevas da luz, mas não ao identificarem a luz com esta ou aquela cor. Queremos mostrar, através deste exemplo tão rudimentar, que o ponto de vista teológico ou dogmático, pelo simples facto de se fundar numa revelação e não num conhecimento acessível a todos - facto aliás impensável em termos da grande colectividade humana -, confunde necessariamente o símbolo ou a forma com a Verdade nua e supraformal, enquanto a metafísica - a que so a título provisório poderemos chamar *ponto de vista + - pode servir-se do -mesmo símbolo ou forma como simples meio de expressão, sem ignorar o que nele há de relativo. E por esse motivo que todas as grandes religiões, intrinsecamente ortodoxas, podem, através dos seus dogmas, ritos e outros símbolos, servir de meio de expressão de toda a Verdade directamente conhecida pelo olho do Intelecto, aquele órgão espiritual a que o esoterismo muçulmano chama *o olho do coração +. Acabámos Acabámos de afirmar afirmar que a religião religião traduz as verdades verdades metafísicas metafísicas ou universais em linguagem dogmática. Ora, se o dogma já não é acessível a todos na sua Verdade intrínseca, pois só o, Intelecto a ela pode directa 12 A Unidade Transcendente das Religiões
mente aceder, também não o é mais pela fé, único modo de participação possív íve el, para a maioria dos homens, nas verdades divin ina as. Quanto ao conhecimento intelectual que, como vimos, não procede nem de uma crença nem de um raciocínio, ele é superior ao dogma, no sentido em que, sem nunca o contrariar, penetra na sua dimensão interior, ou seja, a Verdade infi in fini nita ta qu que e do domi mina na to toda das s as fo form rmas as. . Para Pa ra se serm rmos os to tota talm lmen ente te cl clar aros os, , insistiremos ainda em que o modo racional de conhecimento jamais ultrapassa o domí do míni nio o das da s gene ge nera rali lida dade des, s, nu nunc nca a cheg ch egan ando do a atin at ingi gir r qual qu alqu quer er ve verd rdad ade e tran tr ansce scend nden ente te. . Po Pode de, , po poré rém, m, se serv rvir ir de mo modo do de ex expr press essão ão a um co conh nhec ecim iment ento o supra-racional, como foi o caso da antologia antologia aristotélica aristotélica e escolástica, escolástica, mas sempre ocorrerá em detrimento detrimento da integridade intelectual da doutrina. Alguns talvez objectem que a metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da filosofia; que, como esta, faz recurso a argumentos e parece chegar a conclusões. Mas tal semelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do pensamento humano, que é racional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a proposição metafísica da proposição filosófica é que a primeira e simbólica e descritiva no sentido em que se serve dos modos racionais como de símbolos para descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais certeza do que qualque qualquer r outro outro conhec conhecimen imento to de ordem ordem sensíve sensível l -, enquan enquanto to a filosof filosofia, ia, a que não foi em vão que se chamou ancilla theologiae, nunca é mais do que aquilo que exprime. No facto de a filosofia raciocinar para resolver uma dúvida vê-se que o seu ponto de partida é uma dúvida que ela quer ultrapassar; enquanto o ponto de partida do enunciado metafísico é sempre essencialmente uma evidência ou uma certeza que se pretende comunicar, aos que sejam aptos a recebê-la, por meios simbólicos ou dialécticos capa ca pazes zes de actua actuali liza zar r ne neles les o co conh nheci ecime ment nto o la late tente nte qu que e incon inconsc scie ient ntem emen ente te, , diríamos *eternamente +, trazem trazem em si. Tomemo Tomemos s a ideia ideia de Deus, Deus, a título título de exem ex empl plo o do dos s tr três ês mo modo dos s de pe pens nsam amen ento to qu que e já ab abor ordá dámo mos. s. O co conh nhec ecim imen ento to filosófico, quando não nega pura e simplesmente a Deus - o que equivaleria a dar a este termo um sentido que ele não tem -, tenta demonstrar Deus servindo-se de todo o tipo de argumentos: por outras palavras, este conhecimento tenta provar tanto a *existência + como a *inexistência + de Deus, como se a razão, que 13 Frithjof Schuon não é fonte fonte mas apenas apenas interme intermediá diária ria do conhec conhecimen imento to transce transcende ndente nte, , pudesse pudesse demonstrar fosse o que fosse; aliás, tal pretensão à autonomia da razão, em domínios onde só a intuição intelectual ou a revelação podem ser fonte de saber, caracteriza o conhecimento filosófico, pondo a descoberto toda a sua insuficiência. Quanto ao conhecimento teológico, ele não se preocupa em demonstrar Deus - permite mesmo que se admita que tal é impossível -, mas funda-se na crença; diga-se de passagem que a fé não se reduz, de modo algum, à simples crença, ou Cristo não teria falado da *fé que desloca desloca montanhas montanhas +, já que a crença religiosa não tem essa virtude. Enfim, metafisicamente, não se tratará mais de uma *prova + ou de uma *crença+, mas só de evidên evidência cia direct directa, a, intele intelectua ctual, l, que implic implica a certeza certeza
absoluta, mas que, no estado actual da humanidade, não é acessível senão ' a uma elite espiritual cada vez mais restrita. Ora a religião, independentemente da sua natureza e das veleidades dos seus representantes, que podem não ter disto consciência, contém e transmite, sob o véu dos seus símbolos dogmáticos e rituais, o Conhecimento puramente intelectual, como referimos acima. Contudo, poderíamos justamente perguntar por que razões, humanas e cósmicas, é que verdades, a que chamamos *esotéricas + num sentido muito geral, são trazidas à luz e explicitadas, precisamente, na nossa época tão pouco dada à especulação. Há aí, com efeito, algo de anormal, não tanto no facto de se exporem as verdades, mas sim dadas as condições gerais da nossa época que, marcando o fim de um grande período cíclico o fim de um mahâ-yuga segundo a cosmologia hindu -, deverá recapitular ou manifestar de novo, de uma maneira ou de outra, tudo o que está suposto nesse ciclo. Como diz o adágio: *os extremos tocam-se +. De modo que coisas, que são anormais por si mesmas, podem tornar-se necessárias devido às referidas condições. Dum ponto de vista mais individual, o da simples oportunidade, concordaríamos que a barafunda espiritual da nossa época atingiu um grau tão elevado que os inconvenientes que, em princípio, podem resultar, para alguns, do contacto com as verdades a que aludimos, se acham compensados pelas vantagens que outros poderão recolher das ditas verdades. Por outro lado, o termo *esoterismo + é frequentemente usurpado para esconder ideias tão pouco espirituais quanto perigosas, e o que conhecemos das doutrinas esotéricas é muitas vezes 14 A Unidade Transcendente das Religiões plagiado e deformado (para além de a incompatibilidade exterior, de bom grado amplíficada, das diversas formas tradicionais lançar o maior descrédito na mente de muitos dos nossos contemporâneos, sobre qualquer tradição, religiosa ou outra), de modo que não há somente vantagem, mas até obrigação de definir o que e e o que não e o verdadeiro esoterismo e de explicar em que consiste a profunda e eterna solidariedade de todas as formas do espírito. Para regressarmos ao tema principal, que nos propomos tratar neste livro, insistiremos em que a unidade das religiões não só é irrealizável no plano exterior, o das formas, como não deve mesmo ser realizada - supondo que isso fosse possível neste plano - sem que as formas reveladas se vejam desprovidas de razão suficiente; afirmar que são reveladas é dizer que são desejadas pelo Verbo Divino. Se falamos de *unidade transcendente +, queremos com isso dizer que a unidade das formas religiosas se deve realizar de maneira puramente interior e espiritual, sem traição de qualquer das formas particulares. O antagonismo entre estas formas constitui tanto uma ameaça à Verdade una e universal quanto o antagonismo entre as cores opostas ameaça a transmissão da luz una e incolor, para retomarmos a imagem de ainda há pouco. E, assim como toda a cor, pela sua negação da obscuridade e pela sua afirmação da luz, permite reencontrar o raio que a toma visível e remontá-lo até à sua fonte luminosa, assim toda a forma, símbolo, religião ou dogma, pela sua negação do erro e a sua afirmação da Verdade, permite remontar o raio da Revelação, que não é outro senão o do Intelecto, até à sua fonte divina.
DAS DIMENSões CONCEPTUAIS
compreensão verdadeira e integral de uma ideia ultrapassa em muito o primeiro assenso de inteligência que se impõe em todo e qualquer acto de compreensão. Ora, se é verdade que a evidência que uma ideia nos fornece é, à sua maneira, uma compreensão, não se esgota aí toda a extensão nem toda a perfeição do entendimento, pois tal forma de evidência é para nós, sobretudo, sinal de uma aptidão para compreender integralmente tal ideia. Uma verdade pode, com efeito, ser entendida em diversos graus e segundo diversas dimensões conceptuais: portanto, segundo um sem-fim de modalidades, correspondentes aos aspectos, numericamente indefinidos, da verdade, ou seja, todos os seus aspectos possíveis. Tal forma de encarar a ideia leva-nos, em suma, ao problema da realização espiritual, cujas expressões doutrinais ilustram bem a indefinição dimensional da concepção teórica. A filosofia, no que tem delimitador - e é isso, aliás, que constitui o seu carácter específico -, funda-se na ignorância sistemática do que acabámos de enunciar. Por outras palavras, ignora o que seria a sua-própria negação. Por isso, recorre a esquemas mentais que, na sua pretensão à universalidade, crê serem absolutos quando, do ponto de vista da realização espiritual, não passam de objectos puramente virtuais ou potenciais não utilizados, dado o caso de as ideias serem verdadeiras. Mas quando isso não se verifica, como acontece geralmente na filosofia moderna, tais esquemas reduzem-se a artifícios inutilizáveis do ponto de vista especulativo, portanto desprovidos de todo o valor real. Quanto às ideias verdadeiras - isto é, as que sugerem, de forma mais ou menos implícita, aspectos da Verdade total e, consequentemente, a própria Verdade -, elas são, desse modo, chaves intelectuais e não têm qualquer outra razão de ser: são o que só o pensamento metafísico é capaz de atingir. Pelo contrário, quer na filosofia quer na teologia em sentido comum, existe uma ignorância respeitante não apenas à natureza das ideias, que se crê terem sido integralmente entendidas, mas sobretudo à teoria enquanto tal: a compreensão teórica, com efeito, é transitória por definição e a sua delimitação será aliás, sempre, mais ou menos aproximada. A compreensão puramente teorizante de uma ideia - compreensão assim definida devido ao princípio limitador que a paralisa - poderia muito bem ser caracterizada pelo termo *dogmatismo +. Com efeito, o dogma religioso representa - não em si mesmo, mas enquanto é suposto excluir outras formas conceptuais - uma ideia concebida dentro do princípio teorizante, havendo-se tal forma exclusiva tornado um dos aspectos do pensamento religioso enquanto tal. Um dogma religioso deixa, porém, de ser limitado, desde que é entendido segundo a sua verdade interna, de ordem universal, sendo isso, aliás, o que se passa em todo o esoterismo. Por outro lado, mesmo no esoterismo, como em toda a doutrina metafísica, as ideias formuladas podem, por sua vez, ser entendidas dentro do princípio dogmatizante ou teorizante, resultando daí uma situação perfeitamente análoga à do dogmatismo religioso, a que nos acabámos de referir. Insistamos
ainda, a propósito, que o dogma religioso não é, de maneira alguma, um dogma em si mesmo. Só o é por ser entendido como tal, devido a uma confusão entre a idéia e a forma que ela reveste. Por outro lado, a dogmatização exterior de verdades universais é perfeitamente justificada, visto que tais verdades ou ideias, havendo de ser o fundamento de uma tradição, devem estar ao alcance de todos, a um grau qualquer. O dogmatismo, pelo contrário, não é a simples enunciarão de uma ideia, nem a atribuição de uma forma à intuição espiritual; é, antes, uma interpretação que, longe de ascender à Verdade informal e total, parte de uma das formas da Verdade, paralisando-a, negando-lhe as suas potencialidades intelectuais e atribuindo-lhe um carácter absoluto que só a Verdade mesma pode ter. 18 A Unidade Transcendente das Religiões O dogmatismo revela-se não só na sua inaptidão para conceber a ilimitação interna ou implícita do símbolo - aquela universalidade que resolve todas as oposições exteriores -, mas também na sua incapacidade em reconhecer o elo interior que une duas verdades aparentemente contraditórias, fazendo delas dois aspectos complementares de uma só e mesma verdade. Também nos poderíamos exprimir da seguinte forma: aquele que participa do Conhecimento Universal contempla duas verdades aparentemente contraditórias como se considerasse dois pontos, situados num só e mesmo círculo, o qual, unindo-os pela sua continuidade, os conseguisse reduzir à unidade. Se esses pontos se acham afastados, opostos, portanto, um ao outro, existe contradição; esta é levada ao seu limite quando os dois pontos estiverem em duas extremidades, a todo o diâmetro da circunferência; mas uma tão extrema oposição ou contradição só se manifesta porque isola do círculo os pontos em causa, fazendo abstracção dele, como se não existisse. Podemos concluir que, se a afirmação dogmatizante - que se confunde com a sua forma, sem admitir qualquer outra - é comparável a um ponto que contradiz, por definição, todos os pontos, o enunciado especulativo, pelo contrário, será comparável a um elemento do círculo que, pela forma que lhe é própria, aponta para a sua continuidade lógica e ontológica, logo, o círculo inteiro, ou, por transposição analógica, toda a Verdade. Esta comparação traduzirá talvez melhor aquilo que separa a afirmação dogmatizante do enunciado especulativo. A contradição exterior e intencional dos enunciados especulativos pode aparecer não apenas numa só forma logicamente paradoxal, como é o caso do Aham Brahmâsmi ( *Eu sou Brahma +) védico - a definição vedântica do yogi - ou do Anal-Haqq ( *Eu sou a Verdade +) hafiajiano ou ainda das palavras de Cristo a respeito da sua divindade. Mas, com mais razão ainda, entre formulações diversas, onde cada uma pode ser logicamente homogénea em si mesma. Isto acontece em todas as Escrituras Sagradas, nomeadamente no Alcorão. Recordemos apenas a aparente contradição que existe entre as afirmações feitas sobre a predestinação e o livre arbítrio, que só se contradizem por exprimirem aspectos opostos da mesma realidade. Mas existem teorias que, traduzindo a mais estrita ortodoxia, apresentam contradições exteriores, pela diversidade dos respectivos pontos de vista, que não foram escolhidos arbitrária e artificialmente, mas ad 19 Frithjof Schuon
quiridos espontaneamente, graças a uma verdadeira originalidade intelectual. Para voltar ao que dizíamos sobre a compreensão das ideias, podemos comparar uma noção teórica com a visão de um objecto: da mesma forma que a visão não revela todos os aspectos possíveis - a natureza integral - do objecto, cujo conhecimento perfeito mais não é do que a nossa identidade com ele, também a noção teórica não corresponde à verdade integral, da qual representa forçosamente um só aspecto, seja ele essencial ou não'. Neste exemplo, o erro seria a visão inadequada do objecto, enquanto a concepção dogmatizante se poderia comparar à visão exclusiva de uma só faceta do objecto, supondo-se com isso a imobilidade do sujeito vidente. Quanto à concepção especulativa, intelectualmente ilimitada, ela seria aqui comparável ao conjunto indefinido das diversas visões do objecto em causa, visões que pressuporiam a faculdade de deslocamento ou de mudança de ponto de vista do sujeito, portanto um certo modo de identidade com as dimensões do espaço, que revelam precisamente a natureza integral do objecto, pelo menos no respeitante à forma, que é o que está em jogo neste exemplo. O movimento no espaço é, com efeito, uma participação activa nas possibilidades deste, enquanto a extensão estática no espaço - a forma do nosso corpo, por exemplo - é uma participação passiva nestas mesmas possibilidades. Destas considerações, podemos facilmente passar a um plano superior e falar de um *espaço intelectual + - toda a possibilidade cognitiva que, no fundo, não é mais do que a Omnisciência Divina - e das *dimensões intelectuais + - as mo ' Num tratado contra a filosofia nacionalista, Algazel fala de uns cegos que, não tendo qualquer conhecimento, nem mesmo teórico, do elefante, se encontram um dia na presença deste animal, pondo-se a tactear as diversas partes do seu corpo. Ora, cada um imagina o animal segundo as partes que tocou: para o primeiro cego, que apalpou a pata, o elefante parecia uma coluna; para o segundo, que tocou um dos dentes, o elefante assemelhava-se a uma estaca, e assim por diante. Através desta parábola, Algazel pretende demonstrar o erro que consiste em querer encerrar o universal em visões fragmentárias, em aspectos ou pontos de vista isolados e exclusivos. Shri Râmakrishna retoma a mesma parábola para mostrar a insuficiência do exclusivismo dogmático no que este tem de negativo. Poderíamos, contudo, expressar a mesma ideia servindo-nos de uma imagem ainda mais adequada: a de um objecto qualquer que, para uns, *é+ tal forma, para outros, *é+ tal matéria, para terceiros *é+ tal número ou tal peso, e assim por diante. 20 A Unidade Transcendente das Religiões divindades *eternas + desta Omnisciência. E o Conhecimento pelo Intelecto não é mais do que a participação perfeita do sujeito nestas modalidades, o que, no mundo físico, é bem representado pelo movimento. Falando da compreensão das ideias, podemos portanto distinguir uma compreensão
dogmatizante - comparável à visão que parte de um só ponto de vista e uma compreensão integral, especulativa, comparável à série indefinida de visões do objecto, possibilitadas por modificações indefinidamente múltiplas na perspectivação do mesmo. E, assim como, no caso do olho que se desloca, as diferentes visões de um objecto se encontram ligadas por perfeita continuidade que representa, de algum modo, a realidade determinante do objecto assim os diversos aspectos de uma verdade, por muito contraditórios que possam parecer, contendo implicitamente toda uma infinidade de aspectos possíveis, mais não fazem do que descrever a Verdade Integral que os ultrapassa e determina. Repetiremos o que dissemos acima: a afirmação dogmatizante corresponde a um ponto que, como tal, contradiz, por definição, qualquer outro ponto; enquanto o enunciado especulativo, elo contrário, é sempre concebido como um p elemento do círculo que, pela sua forma, indica a continuidade que lhe é própria e, assim, o círculo inteiro, a verdade total. Daí resulta que, em termos de doutrina especulativa, é o ponto de vista por um lado e o aspecto por outro que determinam a forma da afirmação, enquanto, em termos dogmatistas, esta se confunde com um ponto de vista e com um aspecto determinado, excluindo por isso mesmo todos os outros pontos de vista e aspectos igualmente possíveis. Os Anjos são inteligências limitadas a tal ou tal aspecto da Divindade; um estado angélico é, por consequência, uma espécie de ponto de vista transcendente. Aliás, a *intelectualidade + dos animais e das espécies periféricas do estado terrestre, por exemplo a das plantas, corresponde cosmologicamente - num plano muito inferior - à intelectualidade angélica: o que distingue uma de outra espécie vegetal mais não é do que o modo da sua *inteligência +. Por outras palavras, é a forma ou natureza integral de uma planta que revela o estado - eminentemente passivo - de contemplação ou de conhecimento da sua espécie; dizemos *da sua espécie +, pois, isoladamente tomada, uma planta não constitui um indivíduo. Recorde-se aqui que o Intelecto - diferente da razão, que não passa de uma faculdade especificamente humana, e da inteligência, quer nossa quer de outros seres é de ordem universal e acha-se em tudo o que existe, de qualquer ordem que seja.' 21 A LIMITAÇÃO DO EXOTERISMO
ponto de vista exotérico, que pelo menos no que tem de exclusivo face às realidades superiores - só existe nas tradições monoteístas, é no fundo, apenas, o do interesse individual mais elevado, ou seja, estende-se a todo o ciclo de existência do indivíduo
e não se limita simplesmente à vida terrestre. A verdade exotérica ou religiosa acha-se assim limitada por definição, e isso deve-se à limitação da sua finalidade, sem que essa restrição chegue a ameaçar a interpretação esotérica de que a mesma verdade é susceptível graças à universalidade do seu simbolismo, ou antes, graças à dupla natureza, *interior + e *exterior +, da própria Revelação. Por consequência, o dogma é simultaneamente uma ideia limitada e um símbolo ilimitado. Para darmos um exemplo, diríamos que o dogma da unicidade da Igreja de Deus deve excluir a existência-de outras formas de tradição ortodoxa, porque a ideia da universalidade das tradições não só é inútil para a salvação como pode até prejudicá-la, pois levaria os que não conseguem elevar-se acima deste ponto de vista individual, quase inevitavelmente, a um indiferentismo religioso e à negligência dos seus deveres cujo cumprimento é precisamente a condição principal da salvação. Por outro lado, esta mesma ideia de universalidade das tradições - ideia quase indispensável ao caminho da Verdade total e desinteressada - não se acha menos simbólica e metafisicamente presente na definição dogmática ou teológica da Igreja ou do Corpo Místico de Cristo. Ou ainda, para usar a linguagem das duas outras 23 c,
F -. Frithiof Schuon religiões nionoteístas, o judaísmo e o islão, é respectivamente na concepção de *Povo Eleito +, Israel, e de *Submissão +, El-Islâm, que se acha simbolizada dogmaticamente a ortodoxia universal, a Sanâtana-Dharma dos hindus. Não seria necessário dizer que a limitação *exterior + do dogma, limitação que lhe confere precisamente o seu carácter dogmático, é perfeitamente legítima, já que o ponto de vista individual, a que esta limitação corresponde, é uma realidade no seu próprio nível de existência. É graças a esta realidade relativa que o ponto de vista individual - não no que tem de negativo em função de uma perspectiva superior, mas no que tem de limitado pela sua própria natureza - pode e deve integrar-se, de qualquer modo, em todas as vias de finalidade transcendente. Desta forma, o exoterismo, ou antes, a forma enquanto tal, não implicará mais uma perspectiva intelectualmente restrita, mas desempenhará o papel de um meio espiritual acessório, sem que a transcendência da doutrina esotérica seja por isso afectada, não lhe sendo imposta qualquer limitação por razões de oportunidade individual. Não é preciso confundir, com efeito, o papel do ponto de vista exotérico com o dos meios espirituais do exoterismo: o ponto de vista em questão é incompatível, numa mesma consciência, com o
Conhecimento Esotérico que o dissolve para o reabsorver no centro de onde partiu; mas os meios exotéricos não continuam a ser menos utilizáveis, e são-no de dois modos diferentes, seja por transposição intelectual na ordem esotérica - e serão assim suportes de *actualização + intelectual -, seja pela acção reguladora que exercem sobre a porção individual do ser. O aspecto exotérico de uma tradição é, pois, uma disposição providencial que, longe de ser censurável, é necessária, desde que a via esotérica, sobretudo nas condições actuais da humanidade terrestre, seja apenas a estrada de uma minoria e nada haja de melhor, para o comum dos mortais, do que a via ordinária da salvação. O que é condenável não é a existência do exoterismo, mas sim a sua prepotência autocrática - talvez devida, no mundo cristão, à estreita *precisão + do espírito latino - que faz com que muitos dos que estariam aptos para a via do Conhecimento Puro não só se detenham no aspecto exterior da tradição, mas cheguem mesmo a rejeitar o esoterismo que só conhecem através de preconceitos ou defor 24 A Unidade Transcendente das Religiões mações. A menos que, não achando no exoterismo o que convém a sua inteligência, não se desviem por doutrinas falsas e artificiais, onde pretendem encontrar o que aquele lhes não oferece e crê mesmo poder impedir-lho . O ponto de vista exotérico - desde que não mais animado pela presença interior do esoterismo de que é ao mesmo tempo radiação exterior e um véu - desemboca, com efeito, na sua própria negação, no sentido em que a religião, ao negar as realidades metafísicas e iniciáticas e ao fixar-se num dogmatismo literalista, gera inevitavelmente a descrença. A atrofia provocado nos dogmas pela privação da sua *dimensão interna + recai sobre eles mesmos, do exterior, sob a forma de negações heréticas e ateias. A presença do elemento esotérico numa religião de carácter especificamente semítico garante a esta um desenvolvimento normal e um máximo de estabilidade; esse elemento não é aliás uma parte, mesmo interior, do exoterismo, representa pelo contrário uma dimensão quase independente em relação a este último'. Desde que falte esta dimensão ou este elemento - o que só pode ser efeito de circunstâncias anormais, embora cosmologicamente necessárias -, o edifício tradicional fica abalado, acaba mesmo em parte por ruir, ficando reduzido ao que tem de mais exterior, ou seja, o literalismo e o sentimentalismo'. Por isso, os critérios mais reco 1 Lembremo-nos da maldição de Cristo: *Ai de vós, doutores da Lei, pois roubastes a chave do conhecimento; vós mesmos não entrastes e impedistes aqueles que entravam. + (Luc.,11:52). No que toca a tradição islâmica, citemos a reflexão de um príncipe muçulmano da índia: *A maioria dos não-muçulmanos e mesmo muitos muçulmanos formados em ambiente e cultura europeia ignoram este elemento particular do islão que constitui o seu âmago e centro, que dá verdadeiramente vida e força às suas formas e acções exteriores e que, graças ao carácter universal do seu conteúdo, pode tomar por testemunhas os discípulos das demais religiões. + (Nawab A. Hydari Hydar Nawaz Jung
Bahadur, no seu prefácio aos Studies in Tasawwuf de Khaja Khan.) ' Daí a preponderância cada vez maior da *literatura +, em sentido pejorativo, sobre a verdadeira intelectualidade, por um lado, e a verdadeira piedade, por outro. Daí também a importância exagerada que se dá a todo o tipo de actividades mais ou menos fúteis que sempre têm o cuidado de negligenciar o *único necessários. 25 Frithjof Schuon nhecíveis de um tal processo são, por um lado, o desconhecimento e mesmo a negação da exegese metafísica e iniciática, isto é, do sentido *místico + das Escrituras - exegese que se acha intimamente conexa com toda a intelectualidade da forma tradicional em causa - e, por outro lado, a rejeição da arte sacra, ou seja, das formas inspiradas e simbólicas através das quais irradia esta intelectualidade, para assim se comunicar, por uma linguagem imediata e ilimitada, a todas as inteligências. Mas tudo isto talvez não baste para entendermos por que razão o exoterismo tem necessidade indirecta do esoterismo, não para poder subsistir - pois não está em causa o simples facto da sua subsistência nem a incorruptibilidade dos seus meios de graça -, mas para poder subsistir em condições normais. Ora a presença da *dimensão transcendentes no seio da forma tradicional fornece ao seu lado exotérico uma seiva vivificante de essência universal, *paraclética +, sem o que este mais não faria do que dobrar-se inteiramente sobre si mesmo, entregue aos seus recursos, por definição limitados, tornando-se um corpo maciço e opaco cuja densidade provoca fatalmente brechas, como o mostra a moderna história da cristandade. Por outras palavras, quando o exoterismo se priva das complexas e subtis interferências da dimensão transcendente, acaba por se ver esmagado pelas consequências exteriorizadas das suas próprias limitações, tornando-se estas, por as sim dizer, totais. Agora, se partimos da ideia de que os exoteristas não entendem o esoterismo e têm até o direito de o não entender - por exemplo, tomando-o como inexistente -, também devemos reconhecer-lhes o direito de condenarem certas manifestações de esoterismo com que parecem esbarrar no seu caminho e que provocam neles o *escândalo +, para usar a expressão do Evangelho. Mas como explicar que na maioria dos casos, se não em todos, os acusadores não usem de tal direito, antes procedam com iniquidade? Não é por certo a sua incompreensão mais ou menos natural nem a defesa do seu direito real, mas apenas a perfídia dos -seus meios que constitui neles um verdadeiro *pecado contra o Espírito'. Tal perfídia 'Assim, nem a incompreensão de tal autoridade religiosa nem um certo fundamento da sua acusação perdoam a iniquidade do processo intentado contra o sufi El-Hallâj, não menos do que a incompreensão dos judeus desculpou a iniquidade do processo contra Cristo. Muito analogamente, podemos interrogar-nos por que razão existe tanta estupidez e 26
00~ A Unidade Transcendente das Religiões prova, -aliás, que as acusações que eles crêem dever formular só servem de pretexto para alimentar um ódio instintivo contra tudo o que pareça ameaçar o seu equilíbrio superficial que, no fundo, não passa de uma forma de individualismo e, portanto, de ignorância. Lembramo-nos de ter ouvido um dia alguém dizer que *a metafísica não é necessária à salvação +; ora isto é radicalmente falso quando aplicado em sentido genérico, pois o homem, que é metafísico por natureza e já disso tomou consciência, não pode encontrar salvação na negação do que o atrai para Deus. Aliás, toda a vida espiritual deve fundar-se numa predisposição natural que determina o seu modo - a isso chamamos vocação. Nenhuma autoridade espiritual nos aconselharia a seguirmos um caminho para o qual não somos feitos. É o que ensina, entre outras coisas, a parábola dos talentos; o mesmo sentido se acha ainda nas palavras de São Tiago: *Quem tiver observado toda a Lei, se vier a faltar em um só ponto, torna-se culpado de todos + e *Aquele que, sabendo fazer o que é bem, não o faz, comete pecado +. Ora a essência da Lei, segundo as próprias palavras de Cristo, é o amor de Deus permeando todo o nosso ser, compreendida aí a inteligência, que é a sua parte central. Por outras palavras, como devemos amar a Deus com tudo aquilo que somos, devemos amá-lo também com a inteligência, que é o melhor de nós mesmos. Ninguém contestará que a inteligência não é um sentimento, mas infinitamente mais. É portanto óbvio que o termo *amor+, que as Escrituras usam para designar as relações entre o homem e Deus, acima de tudo, entre má-fé nas polémicas religiosas, mesmo em homens que, de resto, são isentos. Indício certo de que, em muitas dessas polémicas, existe uma percentagem de *pecado contra o Espírito +. Ninguém é repreensível pelo simples facto de atacar, em nome da sua fé, uma tradição estranha, se o faz por simples ignorância. Mas quando não é assim, é culpado de blasfémia, pois - ao ultrajar a Verdade Divina numa forma que lhe é estranha - mais não faz do que aproveitar-se de uma ocasião para ofender a Deus sem problemas de consciência. É esse, no fundo, o segredo do zelo grosseiro e impuro daqueles que, em nome da sua convicção religiosa, consagram a vida a tornar odiosas as coisas sagradas, o que não poderiam fazer se não se servissem de métodos desprezíveis. 27 "as Frithjof Schuon
Deus e o homem, não poderia ter um sentido puramente sentimental, designando somente um desejo de atracção. Por outro lado, se o amor é a tendência de um ser para outro ser, com vista à sua união, é o Conhecimento que, por definição, realizará a união mais perfeita entre o homem e Deus, pois só ela faz apelo ao que, no homem, já é divino, a saber, o Intelecto. Este modo supremo do *amor de Deus + é, pois, a possibilidade humana, de longe a mais elevada, à qual ninguém voluntariamente se pode subtrair sem *pecar contra o Espírito +. Pretender que a metafísica é, por si mesma e para todo o homem, uma coisa supérflua, de modo algum necessária à salvação, equivale não apenas a desconhecer a sua natureza, mas também a negar, pura e simplesmente, o direito de existência aos homens que foram dotados por Deus d o dom da inteligência, a um grau transcendente. Poderíamos ainda observar o seguinte: a salvação é merecida pela acção, no sentido mais largo do termo, e isso explica como alguns chegam a depreciar a inteligência, que pode precisamente tornar a acção inútil e cujas possibilidades põem em evidência a relatividade do mérito e da perspectiva que a ele se refere. Por isso, o ponto de vista especificamente religioso tende a considerar a pura intelectualidade - que não distingue aliás quase nunca da simples nacionalidade - com mais ou menos oposta ao acto meritório e, por consequência, como perigosa para a salvação. É por isso que se atribui facilmente à inteligência um aspecto luciferiano e se fala de um *orgulho intelectual + como se não houvesse contradição de termos. Por isso, também se exalta a *fé de criança + ou a *fé do simples +, que nós certamente muito respeitamos quando é espontânea e natural, mas não quando teórica e afectada. Ouve-se formular com frequência a seguinte ideia: desde o momento que a salvação implica um estado de perfeita beatitude e que a religião não exige outra coisa, porquê escolher a via que tem por fim a *deificação +? A esta objecção responderemos que a via esotérica não poderia ser, por definição, objecto de uma *escolha + para os seus seguidores, pois não é o homem que a escolhe, mas ela que escolhe o homem. Por outras palavras, a questão da escolha não se põe, porque o finito não poderia escolher o Infinito: trata-se mais de uma questão de *vocação + e os que são *chamados +, para empregar a expressão evangélica, não têm como se sub 28 A Unidade Transcendente das Religiões trair a esse apelo, sob pena de *pecado contra o Espírito +, não mais do que um homem qualquer se poderia legitimamente subtrair às obrigações da sua religião. Se é inadequado falarmos de escolha no que respeita ao Infinito, também o é falarmos de um desejo, pois no iniciado não se pode dizer que lhano desabo da ReaMade I)Mria,há @im uma tendência lógica e ontológica no sentido da sua Essência transcendente. Esta definição é de importância extrema. A doutrina exotérica enquanto tal - ou seja, vista fora da influência espiritual que pode agir sobre as almas independentemente desta doutrina - não possui, de modo algum, certezas absolutas. Por isso, o conhecimento
teológico não pode excluir de si mesmo a tentação da dúvida, nem mesmo nos grandes místicos; e quanto' às graças que podem intervir em semelhantes casos, estas não são consubstanciais à inteligência, de modo que a permanência daquela não depende de quem destas beneficia. Limitando-se a um ponto de vista relativo, o da salvação individual - ponto de vista interesseiro que influencia o próprio conceito da Divindade num sentido restritivo -, a ideologia exotérica não dispõe de qualquer meio de prova ou de legitimarão doutrinal proporcional às suas exigências. O que é, com efeito, característico de toda a doutrina exotérica é a desproporção que existe entre as suas exigências dogmáticas e as suas garantias dialécticas: as suas exigências são absolutas, porque derivam de um Querer Divino, portanto também de um Conhecimento Divino, enquanto as suas garantias são relativas, porque independentes desse Querer e fundadas, não nesse Conhecimento, mas num ponto de vista humano, o da razão e sentimento. Se, por exemplo, nos dirigíssemos aos brâmanes para exigir deles o abandono total de uma tradição milenar, de cuja experiência espiritual inumeráveis gerações houvessem usufruído, que produziu flores de sabedoria e santidade até aos nossos dias, os argumentos que pudéssemos aduzir para justificarmos tão inaudita exigência não conteriam nada de logicamente concludente nem proporcionado à amplitude da exigência em questão. A razão que tiverem os brâmanes para permanecerem 29
Num Frithjof Schuon fiéis ao seu património espiritual serão, pois, infinitamente mais sólidas para eles do que as razões pelas quais os queiramos levar a deixarem de ser aquilo que são. A desproporção, do ponto de vista hindu, entre a imensa realidade da tradição bramânica e a insuficiência dos contra-argumentos religiosos é tal que isso deveria bastar para provar que, se Deus quisesse submeter o mundo inteiro a uma só religião, os argumentos desta não seriam tão fracos, nem os de alguns ditos *infiéis+ seriam tão fortes. Por outras palavras, se Deus quisesse, de facto, uma só forma de tradição, o poder persuasivo desta seria tal que nenhum homem, de boa-fé, se -poderia subtrair a ela. Aliás, o próprio termo *infiel +, aplicado a civilizações - com uma ou outra excepção - muito mais antigas do que a cristã, civilizações que têm todos os direitos espirituais e históricos de ignorar esta última, faz ainda pressentir, pela falta de lógica da sua ingénua pretensão, tudo o que há de abusivo nas reivindicações religiosas por referência a outras formas de tradição ortodoxa. A exigência absoluta de crer em tal religião e não em outra não pode, com efeito, tentar justificar-se senão por meios eminentemente relativos:
tentativas de provas filosófico-teológicas, históricas ou sentimentais. Ora, não existe qualquer prova em apoio de tais pretensões à verdade única e exclusiva; e todo o esforço de demonstração só se pode referir às disposições individuais de cada homem, as quais, reduzindo-se no fundo a uma questão de credulidade, são disposições extremamente relativas. Toda a perspectiva exotérica pretende, por definição, ser a única verdadeira e@ legítima e isso porque o ponto de vista exotérico, visando apenas um interesse individual - a salvação -, não tem qualquer vantagem em conhecer a verdade das outras formas de tradição. Desinteressando-se da sua própria verdade, desinteressa-se muito mais da dos outros, ou antes a nega, porque a noção de uma pluralidade de formas tradicionais pode prejudicar a simples busca da salvação individual. Isso põe precisamente a claro o carácter relativo da forma que, ela sim, é de uma necessidade absoluta para a salvação do indivíduo. Poderíamos contudo interrogar-nos por que motivo as garantias, as provas de veracidade ou de credibilidade, que a polémica religiosa se esforça em produzir, não derivam espontaneamente do Querer Divino, como no caso dos imperativos religiosos. É óbvio que a questão só tem sentido quando referida a verdades, pois não se iriam '30 A Unidade Transcendente das Religiões demonstrar os erros. Ora, precisamente os argumentos da polémica religiosa não podem pertencer ao domínio intrínseco e positivo da fé. Uma ideia cujo alcance é apenas extrínseco e negativo e que, no fundo, só resulta de indução - como a ideia da verdade e legitimidade exclusiva de tal religião ou da falsidade e ilegitimidade de todas as outras - não poderia ser objecto de uma prova quer divina quer humana. No que respeita aos dogmas verdadeiros - não derivados por indução, mas de alcance estritamente intrínseco -, se Deus não forneceu as provas teóricas da sua verdade é porque, em primeiro lugar, tais provas são inconcebíveis e inexistentes no plano em que o exoterismo se coloca, e exigi-Ias, como o fazem os não-crentes, seria uma contradição pura e simples. Em segundo lugar, como veremos mais adiante, se tais provas existem, é num plano totalmente diferente, e a Revelação divina supõe-nas perfeitamente, sem qualquer omissão. Em- terceiro lugar, para regressarmos ao plano exotérico, o único em que esta questão se pode colocar, a Revelação comporta, no seu essencial, uma inteligibilidade suficiente para poder servir de veículo à acção da graça' que é a única razão suficiente plenamente válida para a adesão a uma religião. Se a graça for apenas concedida àqueles que dela não possuam o equivalente sob outra forma revelada, os dogmas perdem o seu poder persuasivo, demonstrativo, para os que possuem um tal equivalente. Estes serão, por consequencial, *inconvertíveis + - abstracção feita dos casos de conversão devidos à força sugestiva de um psiquismo colectivo, agindo a graça então a posterior - já que a influência espiri Um exemplo de conversão por influência espiritual ou graça, sem recurso a argumentos de ordem doutrinal, é-nos facultado pela conhecida história de Sundar Singli. Este sikh, de origem nobre e temperamento místico, mas sem grandes qualidades intelectuais, tinha jurado um ódio implacável não só contra os cristãos, mas contra o cristianismo e o Evangelho. Este ódio, graças à sua paradoxal
coincidência com o carácter nobre e místico de Sundar Singli, chocou com a influência espiritual de Cristo e tornou-se desesperante. Sobreveio, então, uma fulgurosa conversão provocado por uma visão. Ora, não houve qualquer intervenção da doutrina cristã e o convertido não tinha sequer em mente procurar a ortodoxia tradicional. O caso de São Paulo apresenta aliás, ainda que a um nível notavelmente superior quanto à personagem e circunstâncias, certa analogia *técnica+ com o exemplo citado. Em resumo, podemos afirmar que, quando um homem de natureza religiosa odeia e persegue uma religião, é porque está muito perto de se converter, ajudando-o para isso as circunstâncias. É o caso dos não-cristãos que se convertem ao cristianismo precisamente como adop 31 Frithjof Schuon tual não terá poder sobre eles, da mesma forma que uma luz não pode iluminar outra luz. Isto é, pois, conforme ao Querer Divino, que revestiu a Verdade una de diferentes formas, repartindo-as por diferentes humanidades, sendo cada uma simbolicamente a única que existe. E acrescentaremos que, se a relatividade extrínseca do exoterismo é conforme ao Querer Divino, que assim se afirma na própria natureza das coisas, é natural que esta relatividade não possa ser abolida por um querer humano. Agora, se não existe qualquer prova rigorosa em apoio de uma pretensão exotérica à detenção exclusiva da verdade, não devemos ser levados a crer que a própria ortodoxia de uma forma tradicional não pode ser demonstrada? Essa seria uma conclusão artificial e, em qualquer caso, completamente errónea: pois toda a forma tradicional comporta uma prova absoluta da sua verdade, portanto da sua ortodoxia. O que não pode ser demonstrado, à falta de prova absoluta, não é a verdade intrínseca - e, assim, a legitimidade tradicional de uma forma da Revelação Universal -, mas somente o facto hipotético de tal forma particular ser a única verdadeira e legítima. E, se isso não pode ser provado, é pela simples razão que isso é falso. Existem, pois, provas irrefutáveis da verdade de uma religião. Mas tais provas - que são de ordem puramente espiritual -, sendo as únicas provas possíveis em apoio de uma verdade revelada, comportam ao mesmo tempo a negação do exclusivismo pretensioso de cada forma. Por outras palavras, quem quiser provar a verdade de uma religião, ou não tem provas porque estas não existem -, ou tem provas que afirmam toda a verdade religiosa sem excepção, qualquer que seja a forma que esta possa assumir. A pretensão exotérica à detenção exclusiva de uma verdade única, ou da Verdade sem epítetos, é pois um erro puro e simples. De facto, toda a tam quaisquer formas da moderna civilizaçã o ocidental. O que, entre os Ocidentais, é sede de novidade, é, entre os outros, sede de mudança, poderíamos dizer, de renegação. Dos dois lados, a mesma tendência para realizar e esgotar
possibilidades que a civilização tradicional havia excluído. 32 A Unidade Transcendente das Religiões verdade expressa reveste necessariamente uma forma a da sua expressão - e é metafisicamente impossível que uma forma tenha um valor único por exclusão de outras formas: porque uma forma, por definição, não pode ser única e exclusiva, não pode ser a única possibilidade de expressão do que ela exprime. Quem diz forma, diz especificarão ou distinção; e o específico só é concebível como modalidade de uma espécie, portanto de uma ordem que engloba um conjunto de modalidades análogas. O limitado, que o é por exclusão daquilo que os seus limites não contêm, compensa esta exclusão reafirmando-se ou repetindo-se fora dos seus limites próprios, o que equivale a dizer que a existência de outras limitadas está, em rigor, implicado na própria definição do limitado. Pretender que uma limitação - por exemplo, uma forma enquanto tal - seja única e' e incomparável no seu género, excluindo portanto a existência de modalidades que lhe são análogas, equivale a atribuir-lhe a unícidade da própria Existência. Ora, ninguém poderá contestar que uma forma é sempre uma limitação e que uma religião é sempre e forçosamente uma forma - não obviamente pela sua verdade interna, que é de ordem universal, supraformal, mas pelo seu modo de expressão que, enquanto tal, não pode deixar de ser formal, portanto específico e limitado. Nunca é de mais repetirmos que uma forma é sempre uma modalidade de uma ordem de manifestação formal, portanto distintiva ou múltipla, e por consequência, como atrás referimos, uma modalidade entre outras, sendo apenas única a sua causa supraformal. E repita-se, pois não convém perder de vista, que a forma, pelo facto mesmo de ser limitada, deixa necessariamente algo fora dela, ou seja, tudo aquilo que os seus limites excluem; e esse algo, se pertence à mesma ordem, é forçosamente análogo à forma em causa. Porque a distinção das formas compensasse por uma indistinção, uma identidade relativa, sem o que as formas seriam absolutamente distintas umas das outras, o que equivaleria a uma pluralidade de unicidades ou de Existências. Cada forma seria então uma espécie de divindade sem qualquer relação com outras formas, o que é absurdo. A pretensão exotérica à detenção exclusiva da verdade esbarra, pois, como acabámos de ver, com a objecção axiomática de que não existe um facto único, pela simples razão que é rigorosamente impossível que um tal facto exista, sendo apenas única a própria unicidade e não sendo o facto a 33 Frithjof Schuon unicidade em si. É o que ignora a ideologia *crente+ que, no fundo, não passa de uma confusão interesseira entre o formal e o universal. As ideias que se afirmam numa forma religiosa, tais como a ideia do Verbo ou da Unidade Divina, não podem deixar de se afirmar, de uma forma ou de outra, nas outras religiões. Do mesmo modo, os meios de graça ou de realização
espiritual de que dispõe tal sacerdócio não podem deixar de encontrar equivalente noutras partes. E, acrescentemos, e precisamente na medida em que um meio de graça é importante ou indispensável, que ele se acha necessariamente em todas as formas ortodoxas, de modo apropriado ao contexto respectivo. Podemos resumir as considerações precedentes nesta fórmula: a Verdade absoluta só se encontra além de todas as suas expressões possíveis. As expressões, enquanto tais, não pretendem ser atributos da Verdade. O afastamento relativo daquelas por referência a esta traduz-se na sua diferenciação e multiplicidade, que forçosamente as limitam. A impossibilidade metafísica da detenção exclusiva da verdade, por uma qualquer forma doutrinal, pode ainda formular-se da seguinte maneira, à luz dos dados cosmológicos que permitem facilmente o recurso a uma linguagem religiosa: não está em contradição com a natureza de Deus que este tenha permitido o declínio e, portanto, o fim de certas civilizações, depois de lhes ter proporcionado milénios de florescimento espiritual. Da mesma forma, o facto de toda a humanidade ter entrado num período relativamente curto- de obscuridade, depois de milhares de anos de uma existência sã e equilibrada, continua a ser conforme ao *modo de agir+ de Deus. Pelo contrário, que Deus, querendo o bem da humanidade, tivesse permitido que a imensa maioria dos homens se corrompesse mesmo os mais dotados desde há milénios, sem qualquer esperança, nas trevas de uma ignorância mortal, e que, desejando salvar a humanidade, tivesse escolhido um meio, material e psicologicamente tão ineficaz como uma nova religião que, muito antes de se dirigir a todos os homens, não só assumisse um carácter muito local e particularizado, mas parcial 34 A Unidade Transcendente das Religiões mente se corrompesse no seu meio de origem, ou, enfim, que Deus pudesse ter agido deste modo, eis uma conclusão abusiva que não tem em conta a natureza divina cuja essência é Bondade e Misericórdia. A natureza de Deus pode ser terrível, mas não é monstruosa. A teologia está longe de o ignorar. Deus permitir que a cegueira humana provoque heresias no seio de civilizações tradicionais, isso é conforme às Leis Divinas que regem a criação inteira. Mas Deus permitir a uma religião, inventada por um homem, conquistar uma parte da humanidade e manter-se, durante mais de um milénio, na quarta parte do Globo habitado, enganando o amor, a fé e a esperança de uma legião de almas sinceras e fervorosas, também isso é contrário às Leis da Misericórdia Divina ou, por outras palavras, às da Possibilidade Universal. A Redenção é um acto eterno que -não podemos situar nem no tempo nem no espaço. O sacrifício de Cristo é disso manifestação ou realização particular no plano humano. Os homens puderam e podem beneficiar da Redenção tanto antes como depois da vinda de Jesus Cristo, tanto fora como dentro da Igreja visível. Se Cristo tivesse sido a única manifestação do Verbo, supondo que tal unicidade de manifestação fosse possível, o seu nascimento teria tido como efeito reduzir num ápice o universo a cinzas.
Vimos acima que tudo o que se pode afirmar sobre os dogmas se deve aplicar igualmente aos meios de graça, como o são os sacramentos: se a Eucaristia é um meio de graça *primordial +, e portanto indispensável, é porque emana de uma Realidade Universal, onde vai buscar toda a sua realidade. Mas se é assim, a Eucaristia, como qualquer outro meio de graça correspondente em outras formas tradicionais, não pode ser única, pois uma Realidade Universal não pode ter apenas uma manifestação, à exclusão de outras, sem o que não seria universal. Aos que objectam dizendo que esse rito se reporta a toda -a humanidade pela simples razão de que, segundo o Evangelho, deve ser levado a *todos os povos +, responderíamos que, no seu estado normal, pelo menos a partir de certa época cíclica, o mundo se compõe de várias humanidades distintas, que mais ou menos se ignoram, sendo sob certos aspectos e em certos casos - a 35 Frithjof Schuon delimitação exacta dessas humanidades uma questão bem complexa, devido à intervenção de muitas condições cíclicas excepcionais. Se sucedeu que grandes Profetas ou Avatâras, conhecendo o valor universal da Verdade, tivessem negado exteriormente tal ou tal forma de tradição, há que considerar, por um lado, a razão imediata de tal atitude e, por outro, o seu sentido simbólico, sobrepondo-se este àquela: se Abraão, Moisés e Cristo negaram os *paganismos + do mundo que os cercava, é porque estes eram tradições que haviam perdido a sua razão de ser, sendo formas sem verdadeira vida espiritual e servindo por vezes de suporte a influências tenebrosas. Ora aquele que é *escolhido +, sendo ele mesmo o tabernáculo vivo da Verdade, não tem de se compadecer de formas mortas, incapazes de desempenharem a sua primitiva função. Por outro lado, a atitude negativa dos arautos da Palavra de Deus é simbólica, e aí se acha o seu sentido mais profundo e mais perfeitamente verdadeiro. Pois se tal atitude não pode evidentemente referir-se aos núcleos esotéricos que sobreviveram no meio de civilizações gastas e vazias de espírito, ela é plenamente justificável quando aplicada a um facto humano comum - o da degenerescência ou *paganismo + que se difunde no mundo inteiro. Para citar um exemplo análogo: se o islão teve de negar de certa maneira as formas monoteístas que o precederam, isso teve uma razão imediata na limitação formal dessas religiões. Está fora de dúvida que o judaísmo já não podia servir de base tradicional à humanidade do Próximo Oriente, visto que a forma desta religião havia atingido um grau de particularização que a tornava inapta a expandir-se. E, quanto ao cristianismo, não só se particularizou muito rapidamente, em sentido análogo, sob a influência do mundo ocidental - talvez sobretudo do espírito roma ' Algumas passagens do Novo Testamento demonstram que o *mundo+, para a tradição cristã, se identifica com o Império Romano, representando o domínio providencial de expansão e de vida para a civilização cristã. Foi assim que São Lucas pôde escrever - ou melhor, que o Espírito Santo pôde inspirar São Lucas a escrever - que *naqueles dias foi promulgado um edicto de César Augusto para que todo o
universo fosse recenseado +, a que Dante faz alusão, no seu tratado sobre a monarquia, ao falar do *recenseamento do género humano + (in illa singulari generis humani descriptione); e no mesmo tratado: *Por estas palavras podemos compreender claramente que a jurisdição universal do mundo pertencia aos Romarios + e ainda: *Portanto afirmo que o povo romano... adquiriu... o império sobre todos os mortais. + 36 A Unidade Transcendente das Religiões no como também originou, na Arábia e em países adjacentes, todo o tipo de desvios que arriscavam inundar o Próximo Oriente, e mesmo a índia, de muitas heresias bem distintas do cristianismo primitivo e ortodoxo. A Revelação islâmica, em virtude da autoridade divina inerente a toda a Revelação, tinha certamente o direito sagrado de pôr de lado os dogmas cristãos, na medida em que estes dessem origem a desvios, que não passavam de verdades esotéricas vulgarizadas e não verdadeiramente adaptadas. Contudo, as passagens corânicas referentes a cristãos, judeus, sabeus e pagãos tinham sobretudo um valor simbólico que não visava atingir, de modo algum, a ortodoxia das tradições, servindo os respectivos nomes apenas para designar determinadas situações comuns da vida humana. Por exemplo, quando se afirma no Alcorão que Abraão não era judeu nem cristão, mas sim hanif ( *ortodoxo + por referência à Tradição Primordial), é evidente que os termos *judeu+ e *cristão+ só podem aplicar-se a atitudes espirituais genéricas, de que as limitações formais do judaísmo e do cristianismo são apenas manifestações particulares, portanto exemplos. Falamos de *limitações formais + e não, como é óbvio, do judaísmo e do cristianismo em si mesmos, cuja ortodoxia não está em causa. Voltando à incompatibilidade relativa entre as formas religiosas - sobretudo algumas delas -, acrescentaremos que é forçoso que umas, até certo ponto, interpretem mal as outras, porque a razão de ser de uma religião reside, pelos menos num certo sentido, no que a distingue das demais. A Providência Divina não admite amálgama entre as formas reveladas desde que a humanidade se dividiu em *humanidades + diferentes e se afastou da Tradição Primordial, a Tradição única possível. Assim, por exemplo, a má interpretação muçulmana do, dogma cristão da Santíssima Trindade é providencial, pois a doutrina encerrada neste dogma é essencial e exclusivamente esotérica e não susceptível de *exoterização + em sentido específico: o islão devia portanto limitar a expansão deste dogma, o que não prejudicou de modo algum a, presença, no islamismo, da verdade universal expressa pelo dogma em questão. Por outro lado, não será talvez inútil precisar aqui que a divinização de Jesus e de Maria, atribuída indirectamente aos cristãos pelo Alcorão, dá lugar a uma *Trindade + que, de resto, este Livro não identifica, em lugar nenhum, com a da doutrina cristã, mas que não menos repousa em realidades como em primeiro lugar a da 37 Iz@ Frithjof Schon
concepção da *Mãe de Deus + *Corredentora + doutrina não exotérica que, enquanto tal, não podia encontrar lugar na perspectiva religiosa do islão - e em seguida a do marianismo de facto que, do ponto de vista islâmico, constitui uma usurparão parcial do culto devido a Deus. Existiu, em algumas seitas do Oriente, certa mariolatria, contra a qual o islão teve de reagir tanto mais violentamente quanto ela se situava muito perto do paganismo árabe. Mas, por outro lado, segundo o sufi Abd-el-Kati^m el-Jili, a *Trindade + mencionada no Alcorão é susceptível de uma interpretação esotérica os gnósticos concebiam, com efeito, o Espírito Santo como *Mãe Divina + - e só então a exoterização ou alteração deste sentido é censurada não só aos cristãos ortodoxos como aos hereges adoradores da Virgem. De outro ponto de vista, podemos afirmar - e a própria existência dos referidos hereges o atesta - que a *Trindade corânica + corresponde no fundo àquilo em que os dogmas cristãos - por inevitável erro de adaptação - se teriam tornado num meio árabe para o qual não haviam sido feitos. Agora, no que respeita ao dogma da Santíssima Trindade, tal como o entende a ortodoxia cristã, a sua rejeição pelo islão é motivada, para além das razões de oportunidade tradicional, por uma razão de ordem metafísica: é que a teologia cristã entende por Espírito Santo não apenas uma Realidade puramente principial, metacósmica, divina, mas também o reflexo directo desta Realidade na ordem manifesta, cósmica, criada. Na verdade, o Espírito Santo, segundo a definição da teologia, compreende, para além da ordem principial ou divina, o cume ou centro luminoso da Criação total ou, por outras palavras, Ele abarca a manifestação informal. Esta é, para falar em termos hindus, o reflexo directo e central do Princípio Criador, Purusha, na Substância Cósmica, Prakriti; tal reflexo, que é a Inteligência Divina manifesta, Buddhi - no sufismo Er-Rúh e El-Aql, ou ainda os quatro Arcanjos que, análogos aos Devas e aos seus Shaktis, representam outros tantos aspectos ou funções desta Inteligência -, tal reflexo, como dizíamos, é o Espírito Santo na medida em que ilumina, inspira e santifica o homem. Quando a teologia identifica este reflexo com Deus, tem razão no sentido em que Buddhi ou Er-Rúh - o Metatron da Cabala - *é+ Deus na sua relação essencial, portanto *vertical +, ou seja, no sentido em que um reflexo é *essencialmente + idêntico à sua causa. Quando pelo contrário a mesma teologia dis 38 A Unidade Transcendente das Religiões tingue os Arcanjos de Deus-Espírito Santo, vendo neles apenas criaturas, tem ainda razão na medida em que distingue o Espírito Santo, reflectido na Criação, do seu Protótipo principial e divino. Mas é inconsequente ao ignorar que os Arcanjos são aspectos ou funções deste centro. supremo da Criação, que é o Espírito Santo enquanto Paracleto. Não é possível, do ponto de vista teológico, admitir, por um lado, a diferença entre um Espírito Santo divino, principial, metacósmico, e um Espírito Santo manifesto ou cósmico, portanto *criado+, e, por outro, a identificação deste último com os Arcanjos. O ponto de vista teológico não pode, com efeito, acumular duas perspectivas diferentes em um só dogma, de onde a divergência entre o cristianismo e o islão: para este último, a *divinização + cristã
do Intelecto Cósmico é o mesmo que pôr em *pé de igualdades (shirk) com Deus algo que é *criado +, mesmo sendo a manifestação informal, angélica, paradisíaca, paraclética. Fora esta questão do Espírito Santo, o islão não se oporia à ideia de que existe na Unidade Divina um aspecto ternário. O que rejeita é a ideia de que Deus é exclusiva e absolutamente uma Trindade, pois isso, do ponto de vista muçulmano, é atribuir a Deus uma relatividade ou atribuir-lhe um aspecto relativo de modo absoluto. Quando afirmarmos que uma forma religiosa é feita, se não para tal raça, pelo menos para uma colectividade humana determinada por condições particulares condições que podem ser, como no mundo muçulmano, de natureza bem complexa -, não negamos o facto de os cristãos se acharem entre quase todos os povos. Para compreendermos a necessidade de uma forma tradicional, não se trata de sabermos se há ou não, no seio da colectividade para a qual esta forma foi feita, indivíduos ou grupos susceptíveis de se adaptarem a tiffia outra forma - o que nunca se poderia discutir -, mas unicamente de sabermos se a colectividade total poderia habituar-se a isso. Por exemplo, para poder pôr em dúvida a legitimidade do islão, não basta verificar que há árabes cristãos, pois a única questão que se coloca é a de saber no que se tornaria um cristianismo professado pela colectividade árabe no seu todo. Todas estas considerações ajudarão a compreender que a Divindade manifesta a Sua Pessoalidade através de tal ou tal Revelação e a Sua Suprema Impessoalidade através da diversidade de formas do Seu Verbo. 39 Frithjof Schuon Chamámos a atenção, mais acima, para o facto de, no estado normal da humanidade, esta se compor de vários mundos distintos. Ora, alguns obJectarão sem dúvida que Cristo jamais mencionou tal delimitação do mundo, nem mesmo a existência de um esoterismo, ao que responderemos que também não explicou aos judeus como deveriam interpretar as suas palavras, que todavia os escandalizavam. De resto, o esoterismo dirige-se precisamente àqueles que têm ouvidos para ouvir + e que, por isso, não têm minimamente necessidade dos esclarecimentos ou provas que podem desejar aqueles para quem o esoterismo não se dirige. Os ensinamentos que Cristo quis reservar para os seus discípulos, ou para alguns deles, não tiveram de ser explicitados nos Evangelhos, pois estão neles implícitos de forma sintética e simbólica, a única que as Escrituras Sagradas admitem. Por outro lado, Cristo, na sua qualidade de Encarnação Divina, falava necessariamente de modo absoluto, devido a uma certa subjectivação do Absoluto, que é própria dos Homens de Deus e sobre a qual não -nos podemos alargar neste momento.' Não tinha, pois, de atender a contingências fora do domínio da sua missão, para especificar que existem mundos tradicionais *sãos+ - para nos servirmos de termos do Evangelho - para além do mundo *doente + a que a sua mensagem se dirigia. Também não havia de explicar que, ao designar-se como *o Caminho, a Verdade e a Vida+, em sentido absoluto, principal, não queria desse modo limitar a manifestação universal do Verbo; afirmava, sim, a sua identidade essencial com este último, cuja vida cósmica vivia de modo subjectivo.' Daí, a Renê Guérion explica esta *subjectivação + nos seguintes termos: *A vida de alguns
seres, na sua aparência individual, apresenta factos correspondentes aos da ordem cósmica, sendo aquela, de algum modo, do ponto de vista exterior, imagem ou reprodução destes. Mas, do ponto de vista interior, a relação é inversa, pois, sendo estes seres realmente o Mahâ-Purusha, os factos cósmicos são realmente modelados sobre a sua vida, ou, mais exactamente, sobre aquilo de que a sua vida é expansão directa, sendo os factos cósmicos por si mesmos apenas expressão por reflexo. + (Études traditionnelles, Março 1939.) Citemos o adágio sufi: *Ninguém pode encontrar Allâh sem antes ter encontrado o Profeta +. Ou seja: ninguém chega a Deus sem ser através do Seu Verbo, qualquer que seja o modo de revelação deste último. Ou ainda, num sentido mais especificamente iniciático: ninguém alcança o *Si+ divino senão através da perfeição do *Eu+ humano. Importa sublinhar que, quando se diz *Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida +, isso é uma verdade absoluta para o Verbo Divino ( *o Cristo +) e relativa para a sua manifes 40 A Unidade Transcendente das Religiões impossibilidade de um taX ser se considerar a si mesmo do simples ponto de vista das existências relativas, embora este ponto de vista se ache compreendido em toda a natureza humana e se deva afirmar com incidência. Mas isso em nada contribui para a perspectiva especificamente exotérica. 'Para voltarmos às considerações precedentes, teremos ainda de dizer que, desde a expansão dos Ocidentais pelo mundo, a compreensão do exoterismo se tornou um facto importante que evitava comprometer a religião cristã aos olhos de quem pensasse que. tudo fora desta religião não passava de um triste paganismo. Não se poderia censurar ao ensinamento de Cristo uma qualquer omissão, pois ele dirigiu-se à Igreja e não ao mundo moderno, que vai buscar o que tem à ruptura com essa Igreja, a sua infidelidade a Cristo. Todavia, o Evangelho contém algumas alusões aos limites da missão de Cristo e à existência de mundos tradicionais não-assimiláveis ao paganismo: *Não são os sãos que necessitam de médico, mas sim os doentes +, e ainda: *Pois não vim chamar os justos, mas sim os pecadores + (Mat.,9:12-13) e, por fim, estes versículos que põem em evidência o que é o paganismo: *Não vos preocupeis, portanto, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou de que nos vestiremos? Pois são os Gentios (os *pagãos+) que buscam todas estas coisas + (Mat.,6:31-32).' Poderíamos citar, no mesmo sentido, as seguintes palavras: *Em verdade vos digo, nem mesmo em Israel encontrei uma fé tão grande. É por isso que vos digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar no banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino dos Céus, enquanto os filhos do Reino (Israel, a Igreja) serão lançados às trevas exteriores + (Mat.,8:10-12) e: *Quem não é contra nós, é por nós + (Marc.,9:40). Dissemos acima que Cristo, na sua qualidade de Encarnação divina e
conforme à essência universal do seu ensinamento, falava sempre de modo absoluto, isto é, identificando simbolicamente certos factos com os princípios que eles traduzem e sem nunca se colocar no ponto de vista daquele para quem os factos apresentam algum interesse em si mesmos .2 po_ tação humana ( *Jesus+). Uma verdade absoluta não se pode limitar a um ser relativo. Jesus é Deus, mas Deus não é Jesus. O cristianismo é divino, mas Deus não é cristão. ' De facto, o paganismo antigo, incluindo o dos Árabes, caracterizava-se pelo seu materialismo prático, não sendo possível em boa-fé apontar o mesmo defeito às tradições orientais que se conservaram até aos nossos dias. Na linguagem de Cristo, a destruição de Jerusalém identifica-se simbolicamente com 41 Friffijof Schuon demos ilustrar uma tal atitude com o exemplo seguinte: quando falamos do Sol, quem vai pensar que o artigo definido colocado antes da palavra *Sol+ implica a negação da existência, no espaço, de quaisquer outros sóis? O que permite falarmos no Sol, sem especificarmos que se trata de um entre outros sóis, é precisamente o facto de, para o nosso mundo, o nosso Sol ser *o Sol+ e só a esse título reflectir a Unicidade Divina. Ora, a razão suficiente de uma Encarnação Divina é o carácter de unicidade que a Encarnação recebe do que ela encarna e não o carácter de facto que ela necessariamente recebe da manifestação? o julgamento final, o que é bem característico do modo de ver sintético e, poderíamos dizer, *essencial + ou *absoluto + do Homem-Deus. O mesmo vale para as suas profecias sobre a descida do Espírito Santo: englobam simultaneamente - mas não ininteligivelmente - todos os modos de manifestação paraclética, donde nomeadamente a do profeta Maomé, que foi a própria personificação do Paracleto ou sua manifestação cíclica. Aliás, o Alcorão é chamado uma *descida+ (tanzil), como o é a epifania do Espírito Santo no Pentecostes. Poderíamos chamar ainda a atenção para o facto de que, se a segunda vinda de Cristo, no fim do nosso ciclo, tiver para os homens um alcance universal, no sentido de que não mais se referirá a *uma humanidades na comum acção tradicional do termo, mas sim ao género humano como a um todo, o próprio Paracleto, na sua grande epifania, deverá manifestar esta universalidade por antecipação, pelo menos em relação ao mundo cristão, e é por isso que a manifestação cíclica do Paracleto, ou a sua *personificação + em Maomé, teve de acontecer fora da cristandade, quebrando assim uma certa limitação *particularista +. ' Foi o que Cristo quis dizer ao afirmar que *só Deus é bom +. Implicando o,
termo *bom+ todos os sentidos positivos possíveis, portanto toda a Qualidade Divina, devemos igualmente entender aqui que *só Deus é único +, o que se conjuga com a afirmação doutrinal do islão: *Não há outra divindade (ou realidade) senão (só) Deus (a Realidade). *A quem quiser confirmar a legitimidade de tal interpretação das Escrituras, responderemos com mestre Eckhart que *o Espírito Santo ensina toda a verdade. Há, de facto, um sentido literal que o autor tem em vista. Mas, como Deus é o Autor da Sagrada Escritura, todo o sentido verdadeiro é ao mesmo tempo sentido literal. Pois tudo o que é verdadeiro provém da própria Verdade, está nela contido, dela deriva e é por ela desejado +. Citemos igualmente esta passagem de Dante por referência ao mesmo assunto: *As Escrituras podem ser entendidas e devem ser expostas segundo quatro sentidos. Um é chamado literal... O quarto é chamado anagógico, ou seja, que ultrapassa o sentido (sovrasenso). É o que acontece quando se expõe espiritualmente uma Escritura que, sendo verdadeira em sentido literal, significa além disso as coisas superiores da Glória Eterna, como podemos ver no Salmo do Profeta onde se diz que, quando o Povo de Israel saiu do Egipto, a Judeia se tornou santa e livre. Embora seja claramente verdade que assim foi segundo a letra, o que se entende espiritualmente 42 A Unidade Transcendente das Religiões As relações entre o exoterismo e o esoterismo reduzem-se, em última análise, às que existem entre a *forma+ e o *espírito +, presentes em todo o enunciado e em todo o símbolo. Tais relações devem evidentemente existir no interior do próprio esoterismo e podemos afirmar que só a autoridade espiritual se coloca ao nível da Verdade nua e integral. O *espírito +, ou seja, o conteúdo supraformal da forma, que é a *letra+, manifesta sempre uma tendência a quebrar as limitações formais e a pôr-se, por consequência, em contradição aparente com estas: é assim que podemos considerar toda a readaptação tradicional, portanto toda a Revelação, como fazendo as funções de esoterismo face à forma tradicional precedente, de modo que, para citar um exemplo, o cristianismo é esotérico por referência à forma judaica e o islamismo por referência às formas judaica e cristã, o que, bem entendido, só vale do ponto de vista particular em que aqui nos colocamos e seria totalmente falso se o entendêssemos literalmente. Aliás, se o islamismo se distingue, pela sua forma, das duas outras tradições monoteístas - enquanto é formalmente limitado -, estas comportam igualmente um aspecto de esoterismo em relação àquele e a mesma reversibilidade de relação existe entre o cristianismo e o judaísmo, embora a relação que indicámos antes seja mais directa que a segunda, desde o momento que foi o islamismo quem quebrou, em nome do *espírito +, as
*formas + precedentes
e que foi o cristianismo quem desempenhou a mesma função face ao judaísmo e não inversamente. Mas para voltarmos à consideração puramente principal das relações entre a forma e o espírito, nada faríamos de melhor do que citar, a título de ilustração, uma passagem do Tratado da Unidade (Risâ1at-el-Ahadiyah) atribuído a Mohyiddin ibn Arabi, mostrando precisamente esta função esotérica que consiste em *quebrar a forma em-nome do espírito +, como dizíamos mais acima. Esta passagem é a seguinte: *A maioria dos iniciados diz que o conhecimento de Allâh vem na sequência da extinção da existência (fanâ el-wujúd) e da extinção desta extinção (fanâ el-fanâ). Ora, esta opinião é totalmente falsa... O conhecimento não exige a extinção da existência (do eu) ou a extinção desta extinção. Pois as coisas não têm existência alguma e o que não existe não pode deixar de existiras Ora, as ideias fundamentais não é menos verdade, ou seja, que quando a alma sai do pecado, ela se torna santa e livre, no seu poder. + (Convívio, 11, l.) 43 Frithiof Schuon tais que Ibn Arabi rejeita, de resto com intenção puramente especulativa ou metódica, são contudo aceites por aqueles mesmos que consideram Ibri Arabi como o maior dos mestres. E, de modo análogo, todas as formas exotéricas são *ultrapassadas + ou *quebradas +, portanto *negadas+ em certo sentido pelo esoterismo que é o primeiro a reconhecer a perfeita legitimidade de todas as formas de Revelação e que é também o único a poder reconhecer tal legitimidade. *O Espírito sopra aonde quer + - e, em razão da sua universalidade, ele quebra a forma. Contudo, é obrigado a revestir-se dela no plano formal. *Se queres atingir o núcleo +, afirma mestre Eckhart, *quebra primeiro a casca. +
44 TRANSCENDENCIA E UNIVERSALIDADE
DO ESOTERISMO
Antes de entrármos propriamente na matéria, pareceu-nos indispensável darmos alguns esclarecimentos sobre as expressões mais exteriores do esoterismo, embora tivéssemos preferido deixar de lado este aspecto contingente da questão para nos atermos unicamente ao essencial. Mas como algumas contingências podem dar origem a contestações de princípio, vemo-nos forçados a debatê-las um pouco, ainda que demorando nisso o menos possível. Com efeito, poderiam surgir dificuldades pelo facto de, ao sabermos que o
esoterismo é - por definição e natureza - reservado a uma elite intelectual forçosamente restrita, constatarmos que as organizaçêos iniciáticas desde sempre contaram com um número de membros relativamente elevado. Foi esse, por exemplo, o caso dos pitagóricos e continua a ser a fortiori o das ordens iniciáticas que, apesar do seu declínio, ainda subsistem nos nossos dias, como acontece com as confrarias muçulmanas. Tratando-se de organizações muito fechadas, serão quase sempre ramos ou núcleos de confrarias mais vastas, e não confrarias no seu todo, salvo excepções sempre possíveis em condições particulares. A explicação desta participação mais ou menos popular no que a tradição comporta de mais interior - e, como tal, de mais subtil - é que o esoterismo deve integrar-se para poder existir num dado mundo ou numa modalidade desse mundo, o que põe inevitavelmente em causa elementos muito numerosos da sociedade. Daí que, em tais confrarias, haja a distinção entre círculos interiores e exteriores, sendo os membros destes úl 45 Frithjof Schuon timos quase impedidos de tomar consciência do verdadeiro carácter da organização a que pertencem, dentro de certo grau, considerando-a simplesmente como uma forma da tradição exterior, a única que lhes é viável. Para retomarmos o exemplo das confrarias muçulmanas, é o que explica a distinção entre o membro que tem simplesmente o grau de mutabârik ( *abençoado + ou *iniciado +), quase não saindo da perspectiva exotérica que se propõe viver intensamente, e o membro de elite que tem o grau de sâlik ( *viajante +) e que segue o caminho traçado pela tradição iniciática. É verdade que, nos nossos dias, os verdadeiros sâlikún ( *viajantes +) que se acham em número reduzidíssimo, enquanto os mutabârikún ( *abençoados +) são muito numerosos dentro das confrarias, contribuindo para abafar a verdadeira espiritualidade, através de incompreensões múltiplas. Em qualquer dos casos, os mutabârikân, mesmo quando ignorantes da realidade transcendente da sua confraria, não deixam, em condições normais, de tirar grande proveito da barakah ( *bênção+ ou *influência espiritual +) que os cerca e protege, na medida do seu fervor. Pois, a expansão de graças no seio do esoterismo, pela própria universalidade deste, atinge todos os graus da civilização tradicional e não se detém no limite das formas, tal como a luz, que é incolor, não deixa de penetrar num corpo transparente só por ele ser colorido. Contudo, esta participação do povo - homens que representam a média da colectividade - na espiritualidade da elite não se explica unicamente por razões de oportunidade, mas também, e sobretudo, pela lei da polaridade ou da compensação segundo a qual *os extremos tocam-se +, e por isso se diz que *a voz do povo é a Voz de Deus + (Vox populi, Vox Dei). O povo, enquanto portador inconsciente e passivo dos símbolos, é como que a periferia ou o reflexo passivo-feminino da elite, que possui e transmite, ela sim, os mesmos símbolos de modo activo e consciente. Isso explica também a curiosa e quase paradoxal afinidade entre o povo e a elite. Por exemplo, o taoísmo é esotérico e popular, enquanto o confucionismo é simultaneamente exotérico e mais ou menos aristocrático e letrado, ou, dando ainda outro exemplo, as confrarias sufi sempre tiveram, a par da sua faceta elitista, uma conotação popular correlativa. Isso porque o povo não tem somente uma função periférica, mas também uma função de totalidade, correspondendo
esta analogicamente ao centro. Poderíamos dizer que as funções intelectuais do povo são o artesanato e o folclore, representando o primeiro o método 46 A Unidade Transcendente das Religiões ou a realização, e o segundo a doutrina. O povo reflecte assim passiva e colectivamente a função essencialmente da elite, ou seja, a transmissão do aspecto propriamente intelectual da tradição, aspecto cujas vestes são o simbolismo em todas as suas formas. Um outro ponto que devemos elucidar, antes de entrarmos mais directamente na matéria, é o da universalidade das tradições, ideia que, sendo de ordem ainda muito exterior, está sujeita a todo o tipo de contingências históricas e geográficas, embora haja quem não hesite em duvidar da sua existência. Assim, ouvimos contestar em algum lado que o sufismo admite esta ideia. Mohyiddin ibn Arabi tê-la-ia negado, pois foi ele quem escreveu que o islão é o eixo das outras religiões. Ora, toda a forma de tradição é superior às outras de uma certa maneira, e tal maneira define mesmo a razão suficiente dessa forma. É sempre essa maneira que aquele que fala em nome da sua religião tem em vista. O que conta, no reconhecimento das outras formas de tradição, é o facto - exotericamente inconcebível - deste reconhecimento, e não o modo ou o grau do mesmo. O Alcorão oferece aliás o protótipo desta maneira de viver: por um lado, afirma que todos os Profetas são iguais e, por outro, diz que uns são superiores aos outros, o que significa, segundo o comentário de lbn Arabi, que cada Profeta é superior aos outros por uma particularidade que lhe é própria, portanto de uma certa maneira. Ibn Arabi era de cultura muçulmana e devia a sua realização espiritual à barakah islâmica e aos mestres do sufismo, numa palavra, à forma islâmica: teve, portanto, de adoptar este ponto de vista, que esclarece como uma forma comporta certa superioridade face às outras formas. Se tal superioridade relativa não existisse, os hindus que se tomaram muçulmanos no decurso dos séculos jamais teriam tido qualquer razão positiva para agir desse modo. O facto de o islão constituir a última forma do Sanâtana-Marma neste mahâ-yuga para falar em termos hindus - implica que esta forma possui uma certa superioridade contingente sobre as formas precedentes. Do mesmo modo, o facto de o hinduísmo ser a forma de tradição mais antiga actualmente viva implica que possui certa superioridade ou *centralidade + em relação às formas posteriores. Não há aí qualquer contradição, pois as maneiras de ver são diferentes de um lado e de outro. Igualmente, o facto de São Bernardo ter pregado as Cruzadas, ignorando a verdadeira natureza do islão, em nada contradiz o seu conhecimento esoté 47 Frithjof Schuon rico. Não se trata de sabermos se São Bernardo entendia ou não o islão, mas sim de sabermos se, em caso de contacto directo e seguido com esta forma de Revelação, ele a teria entendido como a entendeu a elite dos Templários, quando colocada nas condições requeridos. A espiritualidade de um homem não pode depender de conhecimentos históricos ou geográficos ou de outros conhecimentos *científicos + da mesma ordem. Podemos assim afirmar que o' universalismo dos esoteristas é virtual quanto às suas aplicações possíveis e que não se torna efectivo sem que as circunstâncias o permitam ou imponham uma
aplicação determinada. Por outras palavras, só através do contacto com outra civilização é que este universalismo se actualiza. Mas não existe aí qualquer lei rigorosa, e os factores que determinarão em tal esoterista a aceitação de tal forma estranha podem ser muito diferentes consoante os casos. Não é evidentemente possível definir com exactidão o que constitui um contacto com uma forma estranha, ou seja, o que é suficiente para determinar a compreensão de uma tal forma'. Podemos também chamar a atenção para os espirituais que o sufismo designa pelo termo Afrad (*isolados +, sina. Fard): estes, sempre raros por definição, caracterizam-se por possuírem a iniciação efectiva de uma maneira espontânea e sem que tenham de ser iniciados de forma ritual. Ora, tais homens, por terem obtido o Conhecimento sem exercício nem estudo, podem ignorar as coisas de que pessoalmente não necessitam. Não tendo sido iniciados, não importa que saibam o que significa a iniciação em sentido técnico. Por isso, falam ao jeito dos homens da *Idade de Ouro + - época em que a iniciação ainda não era necessária - mais do que à maneira dos instrutores espirituais da Idade de Ferro. De resto, não tendo seguido um cantinho de realização, não podem assumir o papel de mestres espirituais. Da mesma forma, se Shú Râmakrislina não previu o desvio da sua linhagem espiritual, foi porque, ignorando o espírito ocidental moderno, lhe era impossível interpretar certas visões num sentido que não fosse simplesmente o hindu. Acrescentemos aliás que o referido desvio, de natureza doutrinal e de inspiração ocidental moderna, não desfez o efeito da graça de Shri Râmakrishna, mas a esta se somou como simples e supérflua *decoração +, portanto como um nada espiritual. Por outras palavras, o facto de a bhakti do santo ter sido transformada numa pseudo-jnâna de estilo filosófico-religioso, portanto europeia, em nada impediu a influência espiritual de ser aquilo que é. Do mesmo modo, se Shri Rãmakrishna queria no fundo difundir a sua bhakti, de acordo com certas condições particulares de fim cíclico, isso é independente das formas que pôde assumir o zelo de alguns dos seus discípulos. Esta vontade de se entregar totalmente assemelha aliás o santo de Dakshineshwar à família espiritual de Cristo, de modo que tudo o que pode ser dito da natureza particular da radiação crística pode também aplicar-se à radiação do Paramahanua: E a 48 A Unidade Transcendente das Religiões Devemos agora responder mais explicitamente à questão de quais as principais verdades que o exoterista deve ignorar, sem ter expressamente de as negar'. Ora, entre os conceitos inacessíveis ao exoterismo, o mais importante é talvez, pelo menos em certo sentido, o da gradação da Realidade Universal: a Realidade afirma-se por graus, sem deixar de ser una, achando-se os graus inferiores desta afirmação absorvidos nos graus superiores,
por integrarão ou síntese metafísica. É a doutrina da ilusão cósmica luz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam. 1 *O formalismo, instituição do homem médio, permite a este atingir a universalidade... É justamente ele que é objecto da shari'ah ou lei sagrada do islamismo... O homem médio estabelece em redor de cada um uma espécie de neutralidade que garante todas as individualidades, obrigando-as a trabalhar para todos... O islão como religião é a via da unidade e da totalidade. O seu dogma fundamental chama-se Et-Tawhide, isto é, a unidade ou a acção de unir. Como religião universal, supõe graus, mas cada um desses graus é verdadeiramente o islão, ou seja, não importa que aspecto do islão revela os mesmos princípios. As suas fórmulas são extremamente simples, mas o número das suas formas é incalculável. Quanto mais numerosas as formas, mais perfeita é a lei. É-se muçulmano quando se segue o destino, ou seja, a razão de ser... A sentença ex cathedra do mufti tem de ser clara, compreensível a todos, mesmo a um negro iletrado. Ele não tem o direito de se pronunciar sobre outra coisa que não seja um lugar-comum da vida prática. Não o faz nunca, aliás, tanto mais que pode iludir questões que não pertencem à sua competência. É a clara e conhecida limitação entre as questões sufitas e charaítas que permite ao islão ser esotérico e exotérico sem nunca se contradizer. É por isso que nunca há conflitos sérios entre a ciência e a fé nos muçulmanos que entendem a sua religião. A fórmula de Et-Tawhid ou do Monoteísmo é o lugar-comum charaíta. O alcance que se dá a esta fórmula é uma questão puramente pessoal, pois deriva do sufismo. Todas as deduções que se possam fazer desta fórmula são mais ou menos boas, desde momento que não destruam o sentido literal, Pois então estaremos a destruir a unidade islâmica, ou seja, a sua universalidade, a sua faculdade em se adaptar e convir a todas as mentalidades, circunstâncias e épocas. O formalismo é rigoroso. Não existe superstição, mas sim uma linguagem universal. Como a universalidade é o princípio e a razão de ser do islão e como, por outro lado, a linguagem é o meio de comunicação entre os seres dotados de razão, segue-se que as fórmulas exotéricas são tão importantes no organismo religioso como as artérias no corpo físico... A vida não é de modo algum divisível. O que a faz parecer assim é o facto de ela ser susceptível de
gradação. Quanto mais a vida do eu se identifica com a vida do não-eu, tanto mais intensamente se vive. A transfusão do eu em não-eu faz-se pelo dom mais ou menos ritual, consciente ou voluntário. Facilmente se compreende que a arte de dar é o principal arcano da Grande Obra + (Abul-Hadi, *L'Universalité en 'Islam +, em Le Voile d'Isis, Janeiro de 1934). 49 Frithjof Schuon ca: o mundo não e apenas mais ou menos imperfeito ou efémero, e sim desprovido de existência face à Realidade absoluta, pois a realidade do mundo limitaria a de Deus, o único que *é+. Mas o Ser em si, que mais não é do que o Deus pessoal, é por sua vez ultrapassado pela Divindade impessoal ou suprapessoal, o Não-Ser, de que o Deus pessoal ou o Ser é apenas uma primeira determinação a partir da qual se desenvolvem todas as determinações secundárias que constituem a Existência Cósmica. Ora, o exoterismo não pode admitir nem a irrealidade do mundo nem a realidade exclusiva do Princípio Divino nem sobretudo a transcendência do Não-Ser em relação ao Ser, que é Deus. Por outras palavras, o ponto de vista exotérico não pode aceitar a transcendência da Suprema Impessoalidade Divina de que Deus é a afirmação pessoal. Estas verdades são muito elevadas e, por isso, muito subtis e complexas para o simples entendimento racional. Tornam-se de difícil acesso a uma maioria e pouco susceptíveis de formulação dogmática. Outra ideia que o exoterismo não admite é a da imanência do Intelecto em todos os seres, Intelecto esse que mestre Eckhart definia como *incriado e incriável +'. Esta verdade não se pode evidentemente integrar na perspectiva exotérica, não mais que a ideia da realização metafísica pela qual o homem toma consciência do que na realidade jamais deixou de ser, a saber: a identidade essencial como o Princípio Divino, o único que é real. O exoterismo, por seu lado, vê-se obri Sabe-se que alguns textos eckhartianos, que ultrapassam o ponto de vista teológico, escapando assim ao controlo das autoridades religiosas, foram por esta condenados. Se este veredicto podia ser, de algum modo, legítimo por razões de oportunidade, não o era certamente pela sua forma; e, por um curioso feed-back, João XX11, que emitiu essa bula, foi obriga o por sua vez a retractar-se de uma opinião que ele mesmo avia prega n a sua autoridade ameaçada. Eckhart só se retractou por uma questão de princípio, por simples obediência e antes ainda de conhecer a decisão papal. Por isso, os seus discípulos não fizeram muito caso da referida bula, e achamos oportuno acrescentar que um deles, o beato Henrique Suso, teve uma visão, depois da morte de Eckhart, do *Bem-Aventurado Mestre, transformado em Deus, em superabundante magnificência. + ' O sufi Yahya Mu'adh Er~Râzi afirma que *o Paraíso é a prisão do sábio assim como o mundo é a prisão do crente +. Por outras palavras, a manifestação universal (el-khalq,
ou o samsâra hindu), com o seu Centro Beatífico (Es-Samawât, ou o Brahma-loka), é metafisicamente uma (aparente) limitação (da Realidade não-manifesta: A11^ Brahma), tal como a manifestação formal é uma limitação (da Realidade informal, mas ainda manifesta: Es-Samawât, Brahma-loka) do ponto de vista individual ou esoterista. 50 A Unidade Transcendente das Religiões gado a manter a distinção entre o Senhor e o seu servo, para já não falarmos das acusações de panteísmo que os profanos fazem à ideia Meta física da identidade essencial, que os dispensa aliás de qualquer esforço de e compreensão Na verdade, o panteísmo consiste na admissão de uma continuidade entre o Infinito e o finito, que não pode ser concebida sem primeiro admitir mos uma identidade substancial entre o Princípio Ontológico presente em todo o teísmo - e a ordem manifesta, concepção que pressupõe uma ideia substancial, portanto falsa, do Ser; ou, então, sem confundirmos a identidade essencial da manifestação e do Ser com uma identidade substancial. É nisso, e só nisso, que consiste o panteísmo. Mas parece que algumas inteligências são irremediavelmente refractárias a uma verdade tão simples; a menos que alguma paixão ou interesse as leve a agarrarem-se a um i instrumento de polémica tão cómodo como o termo panteísmo, que permite lançar uma dúvida geral sobre certas doutrinas consideradas incómodas sem que alguém se dê ao trabalho de as examinar em si mesmas'. De qualquer modo, uma tal formulação é excepcional; o esoterismo está normalmente implícito e não explícito, isto é, a sua expressão normal tem o seu ponto de partida nos símbolos da Escritura, de modo que, para retomarmos o exemplo do sufismo, falamos de *Paraíso + servindo-nos da terminologia corâníca, para designar estados que se situam - como o *Paraíso da Essência + (Jannat edh-Dhât) @ para além de toda a realidade cósmica e, mais ainda, de toda a determinação individual. Se, portanto,*//* aquele sufi fala do *Paraíso+ como sendo a *prisão do iniciado +, aborda-o do ponto de vista ordinário e cósmico, que é o da perspectiva religiosa, e é obrigado a fazê-lo quando quer pôr em evidência a diferença essencial entre as vias *individual + e *universal + ou *cósmica + e *metacósmica +. Não podemos, pois, esquecer que o *Reino dos Céus + do Evangelho, tal como o *Paraíso + (@ànnah) do Alcorão, não designa apenas estados condicionados, mas também aspectos do 1ncondiciõnado de que tais estados são apenas os reflexos cósmicos mais directos. Para voltarmos à citação de Yahya Mu'adh Er-Râzi, encontramos nas sentenças conde nadas de mestre Eckhart um ensamento análogo: *Os que não procuram nem a fortuna, nem as honras, nem a utilidade, nem a devoção interior, nem a santidade, nem a recom pensa, nem o reino dos Céus, mas a tudo renunciam, mesmo ao que lhes pertence, é em tais homens que Deus é glorificados - Esta sentença, como a de Er-Râzi, não exprime outra coisa senão a negação metafísica da individualidade na realização da União. O *panteísmo + é o grande recurso de todos os que querem sem esforço iludir o esote rismo e pensam entender por exemplo um texto metafísico ou iniciático só porque co nhecem gramaticalmente a lingua em que está escrito. Em geral, que dizer do vazio das 51 Frithjof Schuon
Mesmo que a ideia de Deus mais não fosse do que uma concepção da Substância Universal (matéria-prima) e o Princípio Ontológico estivesse assim fora de causa, a acusação de panteísmo seria ainda injustificada, visto que a matéria-prima permaneceria sempre transcendente e virgem por referência às suas produções. Se Deus é concebido como a Unidade Primordial, a Essência Pura, nada lhe pode ser substancialmente idêntico. Mas, ao qualificar-se como panteísta o conceito da identidade essencial, nega-se ao mesmo tempo relatividade às coisas, atribuindo-se-lhes uma realidade autónoma em relação ao Ser ou à Existência, como se houvesse duas realidades essencialmente distintas, duas Unidades ou Unicidades. A consequência fatal de um semelhante raciocínio é o materialismo puro e simples, pois desde que a manifestação deixa de ser concebida como essencialmente idêntica ao Princípio, a admissão lógica desse Princípio torna-se uma mera questão de credulidade. E, se tal sentimentalismo vai à falência, deixa de haver razão para admitirmos a existência de algo que ultrapassa a manifestação, mais particularmente a manifestação sensível. Mas voltemos à Impessoalidade Divina. Em rigor, esta é sobretudo uma Não-Pessoalidade: não é pessoal nem impessoal, mas suprapessoal. No entanto, não há que entendermos o termo *Impessoalidade + no sentido de uma privação, pois trata-se aqui, pelo contrário, da Plenitude, da flimitação absoluta, por nada determinada, nem mesmo por si própria. É a Pessoalidade que, por referência à Impessoalidade, é um tipo de privação ou *determinação privativas, e não o inverso. Entendemos aqui por *Pessoalidade + apenas o *Deus Pessoal + ou *Ego Divino + - se assim se pode falar -, e não o Si, que é o Princípio transcendente do Eu e a que, sem restrições, poderíamos chamar Pessoalidade por referência à individualidade. O que aqui distinguimos é, pois, a *Pessoa Divina+, Protótipo principal da individualidade, e, por outro lado, a Impessoalidade, que é a Es dissertações que pretendem fazer das doutrinas sagradas um tema de estudo profano, como se não existissem conhecimentos não acessíveis a certas pessoas e como se bastasse ter estado na escola para entender a mais venerável sabedoria, ainda melhor do que os sábios a entenderam? Pois se são *especialistas + e *críticos +, nada está fora do seu ,alcance. É uma atitude que mais parece com a de crianças que, tendo encontrado livros para adultos, os julgassem segundo a sua ignorância, o seu capricho ou a sua preguiça. 52 A Unidade Transcendente das Religiões sência infinita dessa Pessoa. Tal distinção entre Pessoa Divina - que manifesta um querer particular, num mundo simbólico único - e Realidade Divina Impessoal - que, pelo contrário, manifesta a Vontade Divina essencial e universal através das formas do Querer Divino particular ou pessoal, por vezes em aparente contradição com ele - é absolutamente fundamental no esoterismo, não só pela importância que assume na doutrina metafisica, mas porque explica a eventual antinomia entre os domínios exotérico
e esotérico. Por exemplo, na pessoa do rei Salomão, há que distinguir o seu conhecimento esotérico - referente ao que chamámos a *Impessoalidade divina + - e a sua ortodoxia exotérica, a sua conformidade ao Querer da *Pessoa Divina +. Não foi contra tal Querer, mas em virtude desse conhecimento, que o grande edificador do Templo de YHWH reconheceu a Divindade em outras formas reveladas, ainda que decaídas. Não foi a sua degradação nem o seu *paganismo + que o Rei-Profeta abraçou, mas sim a sua pureza primitiva, reconhecível através do simbolismo; de modo que se pode dizer que as aceitou através do véu da sua degradação. Não será, aliás, a insistência, feita no Livro da Sabedoria, sobre a vaidade da idolatria, um desmentido da interpretação exotérica formulada no Livro dos Reis? Seja como for, o Rei-Proféta, ainda que situado para além das formas, havia de sofrer as consequências do que o seu universalismo tinha de contraditório no plano formal. Afirmando essencialmente uma forma - o monoteísmo judaico - e fazendo-o no modo eminentemente formal do simbolismo histórico - preso, por definição, aos acontecimentos -, a Bíblia teve de censurar a atitude de Salomão, pois esta contradizia visivelmente a manifestação pessoal da Divindade. Mas, ao mesmo tempo, fez constar que a infracção não comprometeu a pessoa mesma do Sábio!. A atitude *irregular + de Salomão atraiu sobre o seu 1 Assim, o Alcorão afirma que *Salornão não era um ímpio + (ou *herege+: mâ kafara Sulaymân; súrat el-baqarah, 102) e exalta-o nestes termos: *Que servo excelente foi Salornão! Na verdade, ele estava (no seu espírito) constantemente virado para AIlâh + (os comentadores acrescentam: *glorificando-o e louvando-o sem cessar +; sârat çad, 30). Todavia o Alcorão faz alusões a uma prova enviada a Salornão por Deus, depois de uma oração de arrependimento do Rei-Profeta e enfim a resposta divina (ibid., 34-36). Ora, o comentário desta passagem enigmática concorda simbolicamente com a narração do Livro dos Reis, pois refere que uma das esposas de Salornão adorou um ídolo contra sua vontade e no seu próprio palácio. Salomão perdeu o anel, e com ele o reino 53
X Frithjof Schon Reino o cisma político: Esta, a única sanção reportada pela Escritura, punição desproporcionada se o Rei-Profeta houvesse praticado um politeísmo verdadeiro, o que não foi, de modo algum, o caso. A sanção mencionada refere-se
exactamente à *irregularidade + e não a mais do que isso. Por esse motivo, a memória de Salomão permaneceu venerada não só no judaísmo, nomeadamente na Cabala, mas também no islão charaíta e sufi. Quanto ao cristianismo, são conhecidos os Comentários que o Cântico dos Cânticos inspirou a São Gregório de Nissa, a Teodoreto e a São Bernardo, entre outros. Ora, se a antinomia entre as duas grandes *dimensões + da tradição surge já na própria Bíblia, que é todavia um livro sagrado, é porque o modo de expressão deste Livro, como a própria forma do judaísmo, dá preponderância ao ponto de vista exotérico, quase diríamos *social +, e até *político + - embora não em sentido profano. No cristianismo, a relação é inversa. E no islamismo, síntese dos gênios judaico e cristão, as duas *dimensões + tradicionais aparecem em equilíbrio: por isso, o Alcorão só considera Salomão (Seyidnâ Sulaymân) sob um prisma esotérico e na sua dignidade de Profeta'. Mencionemos, por fim, por uns dias, encontrando em seguida o anel e recuperando assim o reino. Depois, pediu a Deus que lhe perdoasse e obteve dele um poder maior e mais maravilhoso do que dantes. O livro sagrado do islão enuncia a impecabilidade dos Profetas nos seguintes termos: *Eles não O (Allâh) precedem pela palavra (não são os primeiros a falar) e agem segundo o Seu mandamentos (súrat el-anbiyah, 27). O que equivale a afirmar que os Profetas não falam sem inspiração e não agem sem ordem divina. Ora, tal impecabilidade só é compatível com as *acções imperfeitas + (dhunúb) dos Profetas em virtude da verdade metafísica das duas Realidades Divinas, uma pessoal e a outra impessoal, cujas manifestações podem contradizer-se de facto nos grandes homens espirituais, mas nunca no comum dos mortais. O termo dhanb tem igualmente o sentido de *pecado+, sobretudo *pecado por inadvertências, mas sobretudo e originariamente *imperfeição na acçao+ ou *imperfeição resultante de uma acção +. E por isso que só se usa o termo dhanb quando se trata de Profetas, e não o termo ithm, que significa exclusivamente *pecado + com carácter intencional. Se quiséssemos encontrar uma contradição entre a impecabilidade dos Profetas e a imperfeição extrínseca de algumas das suas acções, deveríamos igualmente considerar incompatíveis a perfeição de Cristo e a sua palavra sobre a sua natureza humana: *Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus. + Esta palavra responde também à questão por que David e Salomão não previram um certo conflito entre tal grau da Lei Universal. É porque a natureza individual sempre guarda certos *pontos cegos + cuja presença entra na própria definição dessa natureza. 54 A Unidade Transcendente das Religiões uma passagem da Bíblia onde YHWH ordena ao profeta Natan que leve a
David as seguintes palavras: *Quando os teus dias se cumprirem e fores deitado com os teus pais, enaltecerei a tua posteridade depois de ti, aquele (Salornão) que sairá das tuas entranhas, e conformarei a sua realeza. Será ele quem construirá uma casa para o Meu Nome e eu confirmarei para sempre o trono do seu reino. Serei para ele um pai, e ele para Mim um filho. Se praticar o mal, castigá-lo-eí com verga de homens e golpes de filhos de homens. Mas a minha graça jamais se retirará dele, como a retirei de Saul, que fiz sair de diante de ti + (11 Sam.,7:12-15). Um exemplo muito análogo é o de David, a quem o Alcorão reconhece igualmente a dignidade de Profeta e que os cristãos veneram como um dos maiores santos da Antiga Aliança. Parece-nos evidente que um santo não pode cometer os pecados - não queremos dizer: praticar as acções -de que se acusa David. O que é preciso entender é que a transgressão, que a Bíblia do ponto de vista legal atribui ao Santo Rei, só surge em função da perspectiva essencialmente moral, portanto exotérica, que predomina neste livro sagrado - o que explica aliás a atitude de São Paulo, e do cristianismo em geral, para com o judaísmo, que permite encarar o ponto de vista cristão como eminentemente *interior +; enquanto a impecabilidade dos Profetas, afirmada entre outros pelo Alcorão, é uma realidade mais profunda da que o ponto de vista moral consegue alcançar. Esotericamente, a vontade de David em desposar Betsabé não podia ser uma transgressão, pois a dignidade de Profeta só se concede a homens livres de paixões, quaisquer que sejam as aparências. O que é preciso discernir, antes de mais, na relação entre David e Betsabé é uma afinidade ou complementaridade cósmica e providencial cujo fruto e justificação foi Salornão, aquele que *YHWH-amou + (11 Sam., 12:24). A vinda deste se Esta limitação necessária de toda a substância individual não ameaça, de modo algum, a realidade espiritual à qual esta substância se acha unida de modo, por assim dizer, *acidental +. Pois não existe medida cormun entre o individual e o espiritual, que é simplesmente o divino. Citemos, para terminar, esta palavra do califa Ali, representante por excelência do esoterismo no islão: *A quem vier a contar a história de David como a contam os contadores de histórias (isto é, segundo uma interpretação exotérica ou profana), darei cento e sessenta chicotadas e isso será a punição dos que proferirem falso testemunho contra os Profetas. + 55 Frithiof Schuon gundo Rei-Profeta foi como que uma conformação divina e uma bênção da união entre David e Betsabé, pois Deus não sanciona nem recompensa um pecado. Sgundo Mohyiddin ibn Arabi, Salomão foi para David muito mais do que uma recompensa: *Salomão era o dom de Allâh a David, conforme a Palavra divina: E fizemos dom a David de Salomão (Alcorão, súrat çad, 30). Ora, recebe-se um presente por favor, não como recompensa de um mérito. É por isso que Salomão é a graça superabundante, e a prova evidente, e o golpe aterradoras (Fuçúç el-hikam, Kalimah sulaymâniyah).
Mas consideremos agora a narrativa no que diz respeito a Urias o Heteu: de novo, a atitude de David não deverá ser julgada do ponto de vista moral, pois - já sem falarmos no que a morte heróica representava para um guerreiro e, tratando-se de uma Guerra Santa como a dos Israelitas, tal morte assumia carácter sacrificial imediato - o móbil desta atitude só podia ser uma intuição profética. Contudo, a escolha de Betsabé e a condenação de Urias à morte, ainda que cosmológica e providencialmente justificados, chocavam com o Princípio exotérico. E David - continuando a desfrutar, pelo nascimento de Salomão, do que a sua atitude tinha de intrinsecamente legítimo - teve de suportar as consequências deste choque. Ora disto encontramos eco nos Salmos, Palavra de Deus e prova de que David era Profeta: as acções de David, se comportam um aspecto negativo numa dimensão exterior, não constituem porém pecados em si mes mas; poderíamos mesmo dizer que Deus as inspirou tendo em vista a Revelação dos Salmos que deveriam cantar, de um canto divino e imortal, não apenas os sofrimentos e a glória da alma, sedenta de Deus, mas também os sofrimentos e a glória do Messias. A atitude de David não foi evidentemente contrária ao Querer Divino, pois Deus não só *perdoou + a David - para usar o termo algo antropomórfico da Bíblia -, como não lhe retirou de imediato Betsabé, causa e objecto do pecado, antes confirmou a união dos dois, fazendo-lhes dom de Salornão. E, se em David, como em Salomão, a irregularidade exterior - simplesmente extrínseca de certas acções provocou uma reacção, importa reconhecer que esta se limita estritamente ao domínio dos factos terrestres. Este dois aspectos um exterior ou negativo, outro interior ou positivo - da história da mulher de Urias manifestam-se ainda em dois factos: primeiro, na morte do seu primogénito e, depois, na vida, grandeza e glória do seu segundo filho, aquele que *YHWH amou +. 56 A Unidade Transcendente das Religiões Esta digressão pareceu-nos necessária para ajudar a entender que os dois domínios, exotérico e esotéríco, são profundamente distintos em natureza e que qualquer incompatibilidade só pode derivar do primeiro e nunca do segundo, que se encontra além das oposições, porque além das formas. Existe um dito sufi que esclarece com tanta limpidez quanta concisão as diferenças de ponto de vista entre as duas grandes vias: *A via exotérica é: eu e Tu. A via esotérica é: eu sou Tu e Tu és eu. O Conhecimento esotérico é: nem eu nem Tu, mas Ele. + O exoterismo funda-se, por assim dizer, no dualismo *criatura-Criador + ao qual atribui uma realidade absoluta, como se a realidade divina, que é metafisicamente única, não absorvesse ou anulasse a realidade da criatura, portanto toda a realidade relativa e aparentemente extradivina. Se é verdade que o esoterismo admite a distinção entre o eu individual e o Si universal ou divino, só o faz provisoria e metodicamente, não em sentido absoluto. Partindo desta dualidade, que corresponde a uma realidade relativa, chega a ultrapassá-la metafisicamente, o que seria impossível para o exoterismo, cuja limitação consiste precisamente em atribuir uma realidade absoluta ao que é contingente. Chegamos assim à própria definição da perspectiva exotérica: duafismo irredutível e procura exclusiva de salvação individual - dualismo que implica que Deus seja considerado apenas sob o ângulo das suas relações com
o criado, e não na sua Realidade total e infinita, a sua Impessoalidade que aniquila toda a realidade aparentemente distinta dele. Não é o dualismo dogmático que é em si mesmo censurável - Pois corresponde ao ponto de vista individual em que a religião se coloca -, mas sim as induções que implicam a atribuição de uma realidade absoluta ao relativo. Metafisicamente, a realidade humana reduz-se à Realidade Divina e é, em si mesma, apenas'ilusória. Teologicamente, a Realidade Divina reduz-se aparentemente à realidade humana, no sentido em que não a ultrapassa em qualidade existencial, mas só em qualidade causal.
A perspectiva das doutrinas esotéricas manifesta-se de maneira particularmente clara no seu modo de encarar aquilo a que ordinariamente chamamos o mal. Atribuiu-se-lhes muitas vezes a negação pura e simples do 57 Frithjof Schon mal, mas tal interpretação é rudimentar e imperfeita. A diferença entre'as concepções religiosa e metafisica do mal não consiste no facto de uma ser falsa e a outra verdadeira, mas simplesmente em a primeira ser parcial e individual, enquanto a segunda é integral e universal. O mal ou o Diabo na perspectiva religiosa só corresponde por consequência a uma visão par cial e não é de modo algum equivalente à força cósmica negativa aborda da pelas doutrinas metafisicas e que a doutrina hindu designa pelo termo camas: se camas não é o Diabo - mas mais propriamente o derniurgo co mo a força que dá consistência à manifestação cósmica, atraindo-a para baixo e afastando-a do Princípio-Origem -, a verdade é que o Diabo é uma forma de camas, considerada unicamente nas suas relações com a al ma humana. Sendo o homem um ser individual consciente, a força cósmi ca, em contacto com ele, assume necessariamente uma feição individual, consciente e pessoal. Fora da esfera humana, esta mesma força poderá to mar aspectos perfeitamente impessoais e neutros, por exemplo, quando se manifesta como peso físico ou densidade material, ou sob a aparência de um animal hediondo ou de um metal vulgar e pesado como o chumbo. Mas a perspectiva religiosa, por definição, só se ocupa do homem e não vê a cosmologia senão em função dele. É escusado, pois, criticar esta 4 perspectiva por encarar camas de forma personificada, ou seja, naquilo que atinge precisamente o mundo do homem. Se, portanto, o esoterismo parece negar a existência do mal, não é que ignore ou se recuse a admitir a natureza das coisas tais quais são na realidade. Pelo contrário, penetra -as inteiramente, e é por isso que lhe é impossível isolar da realidade um ou outro dos seus aspectos, encarando um deles do ponto de vista exclusi vo do interesse individual humano. É demasiado evidente que a tendência cósmica de que o Diabo é a personificação quase humana não é um *mal+, pois é esta tendência que condensa os corpos materiais e, se por absurdo desaparecesse, todos os corpos ou compostos físicos e psíquicos instantaneamente se volatilizariam. Mesmo o objecto mais sagrado neces sita desta força para poder existir materialmente. Ninguém ousaria, por exemplo, afirmar que a lei física que condensa a matéria de uma hóstia é uma força diabólica ou um mal de qualquer espécie. Ora,.é devido ao carác ter *neutro + - sem distinção de *bem+ e *mal+ - da tendência demiúrgica que as doutrinas esotéricas, reportando todas as coisas à sua
realidade essen cial, parecem negar aquilo a que chamamos humanamente o mal. 58 A Unidade Transcendente das Religiões Poderíamos todavia perguntar-nos que consequências implica para o iniciado uma tal concepção *não-moral + - embora não *imoral+ - do *mal+. A isso, responderemos que, na consciência e na vida do iniciado, a ideia de pecado dá lugar ao conceito de dissipação - ou seja, tudo o que é contrário à concentração espiritual, digamos, à unidade. Trata-se sobretudo de uma diferença de princípio e de método, que não intervém do mesmo modo em todos os indivíduos. Aliás, o que moralmente é pecado é, do ponto de vista iniciático, quase sempre dissipação. Tal concentração - ou tendência à unidade (tawhid) - exprime-se, no islão exotérico, no acto de fé na Unidade de Deus: a maior transgressão consiste em associar outras divindades a A11^ o que para o iniciado (o faqir) tem um alcance universal, pois toda a afinnação individual traz consigo a mácula de uma falsa divindade. E se, do ponto de vista religioso, o maior mérito consiste em professar sinceramente a Unidade Divina, para o faqir trata-se de realizá-la de um modo espiritual, portanto num sentido que abarca todas as dimensões do universo, e isso precisamente pela concentração de todo o seu ser na única Realidade Divina. Para tornar mais clara a analogia entre pecado e dissipação, diríamos, por exemplo, que a leitura de um bom livro jamais será considerada no exoterismo como um acto repreensível, mas poderá sê-lo no esoterismo, caso se trate de uma distracção ou sempre que esta leve a melhor sobre a utilidade. Inversamente, algo sempre considerado pela moral religiosa como tentação, como via para o pecado e, portanto, começo deste, poderá no esoterismo desempenhar um papel totalmente oposto, não sendo uma dissipação *pecadora +, mas pelo contrário um factor de concentração em virtude da inteligibilidade imediata do seu simbolismo. Há mesmo casos, por exemplo no tantrismo ou em alguns cultos da Antiguidade, em que coisas por si mesmas pecaminosas - não apenas contra a moral religiosa, mas contra as leis da civilização em que se produzem - servem de suporte para a intelecção, o que pressupõe uma forte predominância do elemento contemplativo sobre o elemento passional. Ora, uma moral religiosa nunca existe só para os contemplativos, mas sim para todos os homens. Ter-se-á entendido que não se trata, de modo algum, de depreciar a moral, que é uma instituição divina. Mas o facto de ser divina não impede que seja limitada. Não percamos de vista que, na . maioria dos casos, as leis morais, fora do seu domínio ordinário, se tornam símbolos e veículos 59 Frithjof Schuon de conhecimento. Toda a virtude traz a marca de uma conformidade à *atitude divina +, portanto um modo indirecto, como que existencial, de conhecimento de Deus. O que equivale a dizer que, se podemos descortinar um objecto pela sua simples visão, a Deus só podemos conhecê-Lo pelo *ser+. Para conhecer a Deus, é preciso assemelhar-se-Lhe, ou seja, conformar o nosso microcosmo ao Metacosmo, Divino - e assim também ao macrocosmo - como o ensina expressamente a doutrina hesiciasta. Dito isso, há que sublinhar com veemência que a amoralidade da posição espiritual é uma supramoralidade mais do que uma não-moralidade. A moral, no sentido mais
lato do termo, é ao seu nível o reflexo da verdadeira espiritualidade e deve ser integrada, com as verdades ou erros parciais, no ser total. Por outras palavras, do mesmo modo que o homem mais santo não está totalmente dispensado de agir neste mundo, pois dispõe de um corpo físico que a isso o obriga, também não está nunca totalmente liberto da distinção entre *bem+ e *mal+, a forçosamente em toda a acção. ja que esta se insinu Poder-se-iam, se não definir, pelo menos descrever as duas grandes dimensões tradicionais o exoterismo e o esoterismo - caracterizando a primeira com o auxilio dos termos *moral, acção, mérito, graça +; a segunda com a ajuda dos termos *simbolismo, concentração, conhecimento, identidades. Donde: o homem passional aproximar-se-á de Deus através da acção, cujo suporte é uma moral; o homem contemplativo unir-se-á à sua Essência Divina através da concentração cujo suporte é um simbolismo que, naturalmente, não exclui a atitude precedente dentro dosSmites que lhe são próprios. A moral é um princípio de acção, portanto, de mérito, enquanto o simbolismo é um suporte de contemplação e um meio de intelecção. O mérito, que se adquire por um modo de acção, tem como fim a graça de Deus, enquanto o objectivo da intelecção, se é que a podemos dissociar deste, é a união ou identidade com o que nunca deixámos de ser na nossa Essência existencial ou intelectual. Por outras palavras, o fim supremo é a reintegração do homem na Divindade, do contingente no Absoluto, do finito no Infinito. A moral, em si mesma, não tem sentido fora do domínio restrito da acção e do mérito, e não atinge portanto, de modo algum, realidades como o simbolismo, a contemplação, a intelecção, a identidade pelo Conhecimento. Quanto ao *moralismo +, que, não podemos confundir com a moral, ele não passa de uma tendência a substituir qualquer outro ponto de vista pelo da simples moralidade. Daí resulta, 60 A Unidade Transcendente das Religiões pelo menos no cristianismo, uma espécie de finca-pé ou suspeita contra tudo o que tem um carácter agradável e o erro de crer que todas as coisas agradáveis são apenas agradáveis e nada mais. Esquece-se que a qualidade positiva, e portanto o valor simbólico e espiritual, de uma coisa agradável pode, no caso do verdadeiro contemplativo, compensar o inconveniente do deleite momentâneo da natureza humana, pois toda a qualidade positiva se identifica essencialmente - mas não existencialmente com uma qualidade ou perfeição divina, que é o seu protótipo eterno e infinito. Se pode haver, nas considerações precedentes, alguma aparência de contradição, esta deve-se ao facto de termos encarado a moral, e, por um lado, em si mesma, como oportunidade social óu psicológica, por outro, como elemento simbólico, na sua qualidade de suporte da intelecção. Neste último contexto, a oposição entre moral e simbolismo ou intelectualidade já não faz evidentemente sentido. Agora, quanto ao problema da existência do mal, o ponto de vista religioso só nos fornece respostas indirectas e'evasivas@ ao afirmar que a Vontade divina é insondável e que todo o mal acabará, um dia, por ser vencido pelo bem. Ora, esta segunda afirmação não explica o mal. E, quanto à' primeira, dizer que IYeus é insondável significa que nós não podemos résolver
qualquer qualquer aparência de contradição contradição nos Seus *modos de agir +. Esotericamente, o problema do mal reduz-se a duas questões: a primeira, por que motivo o criado implica necessariamente imperfeição? A segunda, por que razão existe o criado? -A primeira destas questões é preciso responder que, se não houvesse imperfeição no criado, nada o poderia distinguir do Criador. Ou, por outras palavras, aquele não -seria efeito ou manifestação, mas sim Causa ou Princípio. E, à segunda questão, responderemos que a Criação ou manifestação está rigorosamente imphcada na infinitude do Princípio, no sentido em que aquela é um aspecto ou consequência deste, o que equi eq uiva vale le a di dize zer r qu que, e, se o mu mund ndo o nã não o ex exis isti tiss sse, e, o In Infi fini nito to nã não o se seri ria a o Infi In fini nito to, , po pois is, , pa para ra se ser r o qu que e é, o In Infi fini nito to de deve ve ne nega garr-se se ap apar aren ente te e simbolicamente a Si mesmo, e é o que acontece com a manifestação universal. O mundo não nã o po pode de nã não o ex exis isti tir, r, po pois is é um as aspe pecto cto po poss ssív ível el, , po port rtan anto to ne nece cess ssár ário io, , da necessidade absoluta do Ser; a imperfeição também não pode não existir, pois é um aspecto da própria existência do mundo; esta acha-se rigorosamente implicado na infinidade do Princípio Divino e também a existência do mal está implicado na existência do mundo. Deus é Todo-Bondade e o 61 Frithjof Schwn mundo é disso imagem. Mas como a imagem não pode ser, por definição, aquilo que representa, o mundo tem de ser limitado por referência à Bondade Divina, donde se explica a imperfeição na existência. As imperfei-' ções por consequência mais não são do que rupturas na imagem da Perfeição Total da Divindade. Evidentemente não provêm dessa Perfeição, mas do carácter necessariamente relativo ou secundário da imagem. A manifestação implica por definição a imperfeição, como o Infinito implica por definição a manifestação: esta tríade *Infinito, manifestação, imperfeição + co nstitui a fórmula explicativa de tudo o que o espírito humano pode encontrar de problemático nas vicissicutes da existência. Quando somos capazes de ver com o olho do Intelecto as causas metafisicas de toda a aparência, deixamos de nos fixar em contradições insolúveis, como forçosamente acontece na perspectiva exotérica, cujo antropomorfismo é incapaz de abranger todos os aspectos da Realidade Universal. Um outro exemplo de impotência impotência do espírito espírito humano face aos seus próprios próprios recursos é o problema da predestinação. Esta ideia não traduz outra coisa, na linguagem da ignorância humana, senão o Conhecimento Divino que engloba, na sua perfeita simultaneidade, todas as possibilidades sem qualquer restrição. Por outras palavras, se Deus é omnisciente, conhece as coisas futuras, ou antes, as que assim o parecem aos seres limitados pelo tempo: se Deus não conhecesse essas coisas, não seria omnisciente. Desde momento que as conhece, elas aparecem como predestinadas por referência ao indivíduo. A vontade individual é livre na medida em que é real, Se não fosse, em algum grau e de alguma maneira, livre, seria irrealidade pura e simples, portanto, coisa nenhuma. E, de facto, aos olhos da Liberdade Absoluta, não passa disso, ou seja, ela não existe de modo algum. Contudo, do ponto de vista individual, o do ser humano, a vontade é real e é-o na medida em que este participa da Liberdade Divina, de onde a
liberda libe rdade de in indi divi vidu dual al ti tira ra to toda da a sua re real alid idad ade, e, em vi virtu rtude de da su sua a re rela laçã ção o causal. Daí resulta que a liberdade, como toda a qualidade positiva, é divina enquanto tal e humana enquanto não perfeitamente ela mesma, assim como um reflexo do Sol é idêntico a este não como reflexo mas enquanto luz, sendo a luz una e indivisível na sua essência. 62 A Unidade Transcendente das Religiões Pode Po derí ríamo amos s ex expr prim imir ir a re relaç lação ão me meta tafi fisic sica a en entr tre e a pr pred edest estin inaç ação ão e a liberdade comparando esta a um líquido que penetra todas às sinuosidades de um recipiente, sendo este a predestinação: o movimento do líquido equivale ao exercício livre da nossa vontade. Se não podemos querer outra coisa senão o que nos é predestinado, isso não impede a nossa vontade de ser aquilo que é, ou seja, uma participação relativamente real no seu prot pr otót ótip ipo o un univ iver ersa sal. l. E é pr prec ecis isam amen ente te ta tal l pa part rtic icip ipaç ação ão qu que e fa faz z co com m qu que e experim experiment entemo emos s e vivamos vivamos a nossa nossa vontad vontade e como como livre. livre. A vida vida do homem homem - e, por extensão, extensão, todo o ciclo individual, individual, de que a vida e a condição condição de homem mais não são do que modalidades modalidades - está, de facto, contida no Intelecto Divino como um todo finito, ou seja, como uma possibilidade determinada que, sendo aquilo que é, não é em nenhum dos seus aspectos outra coisa senão ela mesma, pois uma possibilidade mais não é do que uma expressão da absoluta necessidade do Ser. Daí deriva a unidade ou homogeneidade de tudo o que é possível, de tudo o que não pode não ser. Dizer que um ciclo individual está definitivamente incluído no Intelecto Divino equivale a afirmar que uma possibilidade está incluída na Possibilidade Total, e é esta verdade que fornece a resposta mais decisiva à questão da predestinação. A vontade individual aparece então como um processo que realiza, de modo sucessivo, o encadeamento necessário das modalidades da sua possibilidade inicial, simbolicamente descrita ou recapitulada. Também podemos dizer que, sendo a possibilidade de um ser uma possibilidade de manifestação, o processo cíclico desse ser é o conjunto dos aspectos da sua manifestação e, portanto, da sua possibilidade; o ser mais não faz do que manifestar em diferido, por meio da sua vontade, a sua manifestação cósmica e simultânea. Por outras palavras, o indivíduo retraça de uma maneira analítica a sua possibilidade sintética e primordial, que encontra o seu lugar inex in expu pugn gnáv ável el, , po porq rque ue ne nece cess ssár ário io, , na hi hier erar arqu quia ia da das s po poss ssib ibil ilid idad ades es. . E a necessidade de cada possibilidade é metafisicamente fundada, como vimos, na absoluta necessidade da Possibilidade Divina Total.
Para concebermos a universalidade do esoterismo, que não é mais do que a da prática metafísica, importa acima de tudo entendermos que o I1,1 63 Frithjof Schon meio ou ou órgão órgão do Conhecim Conhecimento ento metafísi metafísico co é ele ele mesmo mesmo de ordem ordem uni uni versal, versal, e não de ordem individual como a razão. Por consequência, esse meio ou órgão, que é o In Inte telec lecto to, , deve enco encont ntra rar-s r-se e em to todo dos s os esca esca Iões Iõ es da natur naturez eza a e nã não o apenas no homem como é o caso do pensamento discursivo. Se quisermos responder agora agora à questão questão de como como o Intelec Intelec to se manife manifesta sta nos reino reinos s perifér periféricos icos da da natureza, há que recorrermos a considerações algo complexas para quem não tiver o hábito das espe culações metafísicas e cosmológicas. O que vamos explicar é,
em si si, , um uma a ve verd rdad ade e fu fund ndam amen enta tal l e ev evid iden ente te. . Di Dirí ríam amos os po pois is qu que, e, nu num m es esta tado do periférico de existência, na medida em que ele se encontra afastado do estado central do mundo ao qual estes dois estados pertencem - e o estado humano, como qual qu alque quer r outro outro es esta tado do análo análogo, go, é central central em re laçã la ção o aos outros outros estad estados os periféricos, terrestres ou não, portanto, não A, somente em relação aos estados animais, vegetais e minerais, mas tam bém aos estados angélicos, donde a adoração de Adão pelos anjos no Alcorão - na medida, dizíamo dizíamos, s, em que num num estado estado perifé periférico rico, , o Inte lecto lecto se confun confunde de com o seu cont co nteú eúdo do - um uma a pl plan anta ta nã não o sa sabe be o qu que e qu quer er, , ne nem m pr prog ogri ride de em co conh nhec ecim imen ento to, , acha ac hando ndo-s -se e pa passi ssiva vame ment nte e li liga gada da e id iden enti tific ficad ado o co com m o co conh nhec ecim imen ento to qu que e lh lhe e é impo im post sto o po por r na natu ture reza za e de dete term rmin ina a es esse senc ncia ialm lmen ente te a su sua a fo form rma. a. Po Por r ou outr tras as palavra palavras, s, a forma forma de um ser periféri periférico co - um animal, animal, um vegetal, vegetal, um minera mineral l reve re vela la tu tudo do o qu que e es esse se se ser r co conh nhec ece e e id iden enti tifi fica-s ca-se e de al algu gum m mo modo do co com m es esse se conheci conheci mento. mento. Poderí Poderíamo amos s portant portanto o dizer que que a forma de um tal tal ser define define o seu estado ou sonho contemplativo. O que distingue os seres, à medida que eles em estados ca cad da vez mais passiv ivo os ou inconscientes, é o seu modo de conhecimento ou a sua inteligência. Humanamente falando, seria absurdo afirmar que o ouro é mais inteligente do que o cobre e que o chumbo é pouco inteligente. Mas, metafisicamente, não haveria nisso nada de anormal: o ouro repr re pres esen enta ta um es esta tado do de co conh nhec ecim imen ento to so sola lar, r, e é is isso so qu que e pe perm rmit ite e qu que e o asso as soci ciem emos os às in infl fluê uênc ncia ias s es espi piri ritu tuai ais, s, co conf nfer erin indo do-l -lhe he as assi sim m um ca cará ráct cter er eminentemente sagrado. O objecto do conhecimento ou da inteligência é sempre e por po r de defi fini niçã ção o o Pr Prin incí cí pio pi o Dí Dívi vino no e nã não o po pode de deix deixar ar de o se ser, r, pois pois é metafisicamente a única Realidade. Mas esse objecto ou conteúdo pode mudar de forma, con 64 A Unidade Transcendente das Religiões soante os modos e graus indefinidamen indefinidamente te diversos da Inteligência Inteligência reflectida reflectida nas criaturas. Acrescente-se ainda que o mundo manifesto, ou criado, possui uma dupla raiz: a Existência e a Inteligência, a que correspondem analogicamente, nos corpos ígneos, o calor e a luz. Ora, todo o ser revela estes dois aspectos ao nível da realidade contingente. O que diferencia os seres são os seus modos ou graus de Inteligência. Mas o que os une, entre si, e a sua Existência que é a mesma em todos. A relação inverte-se quando deixamo deixamos s de olhar para a contin continuida uidade de cósmica cósmica e *horizontal + dos elementos do mundo manifesto e observamos a sua relação *vertical + com o Princípio Transcendente: o que une o ser, e mais particularmente o espiritual *realizado +, ao seu Princípio Divino, é o Intelecto. O que separa o mundo - o microcosmo - desse Princípio é a Existência. No homem, a inte in teli ligê gênc ncia ia é in inte teri rior or, , e a ex exis istê tênc ncia ia, , ex exte teri rior or. . Co Como mo es esta ta úl últi tima ma nã não o coniporta em si qualquer diferenciação, os homens formam apenas uma só espécie, mas as diferenças de tipos e de espiritualidade são extremas. No ser de um reino periférico, pelo contrário, é a existência que é quase interior, pois a sua indiferenciação não aparece em primeiro plano, e a inteligência ou modo de intelecção é exterior, aparecendo a sua diferenciação nas próprias formas, donde a indefinida diversidade de espécies em todos esses reinos. Também poderíamos dizer que o homem é, por definição primordial, puro conhecimento, e o mineral, pura existência. O diamante, que se acha no topo do reino mineral, integra na sua existência ou manifestação, de modo passivo e inconsciente, a inteligência em si, donde a sua dureza,
transparência e luminosidade. O homem espíritualizado, que se encontra no cume da espécie humana, integra no seu conhecimento, de modo activo e consciente, a existência: total, donde a sua universalidade. A negação exotérica da presença, virtual ou actualizada, do Intelecto incriado no ser criado, está bem patente no erro que exclui, fora da Revelação, qualquer conhecimento sobrenatural possível. Ora, é arbitrário pretender que não temos neste mundo qualquer conhecimento imediato de Deus ou que é impossível que tenhamos algum. É o mesmo oportunismo que, por um lado, nega a realidade do Intelecto e, por outro, nega aos 65 Frithjof Schuon que dela usufruem a possibilidade de conhecerem o que ela os deixa co nhecer. E isso porque, em primeiro lugar, a participação directa no que poderíamos chamar a *faculdade paraclética + não é acessível a todos, pelo menos de facto; e, em segundo lugar, porque a doutrina do Intelecto in criado presente na criatura seria prejudicial à fé do homem simples, pois choca com a noção de mérito. O que o ponto de vista exotérico não pode admitir, nem no islão nem no cristianismo nem no judaísmo, é a existên cia *natural + de uma faculdade *sobrenatural + que o dogma cristão toda via prevê para a pessoa de Cristo. Parece esquecer que a distinção entre natural e sobrenatural não é absoluta - a não ser no sentido do *relativa 112 mente absoluto + - e que o sobrenatural pode também ser chamado natu ral por agir segundo certas leis.'Também o natural não está desprovido de A carácter sobrenatural, na medida em que manifesta a Realidade Divina, sem a qual a natureza não passaria de um puro nada. Dizer que o Conhe cimento sobrenatural de Deus, isto é, a visão beatifica no Além, é um co nhecimento puro da Essência Divina, de que goza a alma individual, equi vale a dizer que o Conhecimento Absoluto pode ser objecto de um ser relativo como tal, quando na verdade esse Conhecimento, sendo absoluto, não e mais do que o Absoluto que se conhece a Si mesmo. Ora se o Inte lecto, sobrenaturalmente presente no homem, pode fazer o homem parti cipar do Conhecimento que a Divindade tem de Si mesma, isso acontece graças a certas leis a que o sobrenatural, por assim dizer, livremente obe dece, em virtude das suas possibilidades. Ou ainda, se o sobrenatural difere do natural em grau eminente obedece, ele também, ou antes ele em pri meiro lugar, a Leis imutáveis. O Conhecimento é essencialmente santo - e, se assim não fosse, como poderia Dante ter falado da *venerável autoridades do Filósofo? -, de uma santidade que é propriamente *paraclética +: *Conhecer-Te é a justi ça perfeita + - diz o Livro da Sabedoria (15:3) - *e conhecer o Teu Po der é a raiz da imortalidades. Esta sentença é de uma extrema riqueza doutrinal, pois trata-se de uma das mais claras e explícitas formulações da realização pelo Conhecimento, ou seja, precisamente, da via intelectual que conduz à santidade *paraclética +. Em outras sentenças, igualmente excelentes, o mesmo livro de Salomão enuncia as virtudes da pura intelec tualidade, essência de toda a espiritualidade. Este texto deixa aliás trans 66 A Unidade Transcendente das Religiões parecer de maneira notável, para além da maravilhosa precisão metafisica
e iniciática das suas fórmulas, a unidade universal da Verdade, e isso pela própria linguagem que lembra em parte as Escrituras da índia, em parte as do taoísmo: *Nela (Sabedoria), com efeito, existe um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, imaterial, activo, penetrante, sem mancha, infalível, impassível, bondoso, sagaz, ilimitado, benfeitor, filantrópico, imutável, seguro, tranquilo, todo-poderoso, vigilante, penetrando todos os espíritos, os inteligentes, os puros e os mais subtis. Porque a Sabedoria é mais ágil que todo o movimento. Penetra e introduz-se em toda a parte graças à sua pureza. Ele é o sopro do Poder de Deus, pura emanação da Glória do Omnipotente. Por isso, nenhuma mancha a pode atingir. Ela é o resplendor da Luz eterna, o espelho imaculado da acção de Deus e a imagem da Sua bondade. Sendo única, tudo pode. Permanecendo a mesma, tudo renova. Difundindo-se de idade em idade pelas almas santas, faz delas amigos de Deus e profetas. Deus, na verdade, só ama quem vive com a Sabedoria. Pois Ela é mais bela do que o Sol e do que a disposição das estrelas. Comparada à luz, leva a melhor sobre ela. Pois a luz dá lugar à noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria. A Sabedoria chega velozmente de um canto ao outro do mundo, e tudo dispõe com doçura + (Livro da Sabedoria, 7:22-30). Falta prevenirmo-nos contra uma objecção frequentemente formulada: há quem acuse de orgulho a inteligência transcendente, consciente de si mesma, como se, por existirem estúpidos que se crêem inteligentes, se devesse impedir os sábios desabarem o que sabem. O orgulho, *intelectual + ou outro, só é possível no ignorante que não sabe que, ele mesmo, nada é. Assim, também a humildade, na acepção psicológica do termo, só faz sentido a quem crê ser aquilo que não é. Os que querem explicar tudo o que os ultrapassa pelo orgulho, que no seu espírito corresponde ao panteísmo, ignoram que, se Deus criou tais almas para ser conhecido e realizado por elas e nelas, os homens nada têm a ver com isso nem podem alterar coisa alguma. A Sabedoria existe porque corresponde a uma possibilidade: a da manifestação humana da Ciência Divina. *Ela é o sopro do Poder de Deus, pura emanação da Glória do Omnipotente. Por isso, nada de maculado cai sobre ela... A luz'dá lugar à noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria. + 67
N IV A QUESTÃO DAS FORMAS DE ARTE
deria alguém admirar-se de nos ver fxtratar um tema que não so parece não ter qualquer relação com os temas dos capítulos precedentes, mas que em si mesmo parece não ter senão uma importância muito secundária. De facto, se nos propusemos examinar aqui
esta questão das formas de arte é precisamente porque está longe de poder ser negligenciada, apresentando relações estreitas com realidades com que deparamos neste livro de um modo geral. Antes de mais, temos de elucidar uma questão terminológica: ao falarmos de *formas de arte+, e não simplesmente de *formas+, queremos especificar que não se trata de formas *abstractas +, mas sim de coisas sensíveis por definição. Se evitamos falar de *formas artísticas +, é porque a isso se associa correntemente a ideia de luxo, de algo supérfluo, que é exactamente o contrário do que temos aqui. No nosso 6entido, a expressão *formas de arte + é um pleonasmo, pois é impossível dissociar tradicionalmente a forma da arte, sendo esta última o princípio de manifestação daquela. Tivemos porem de empregar este pleonasmo pelas razões que acabámos de referir. O que é preciso saber, para entendermos a importância das formas, é que a forma sensível é a que corresponde simbolicamente, de modo mais directo, ao Intelecto. Isso em razão da analogia inversa que existe entre as ordens principial e manifesta.' Assim, as realidades mais elevadas mani *A arte + - diz São Tomás de Aquino - *está associada ao conhecimento. + 69 Frithjof Schuon festam-se de forma mais patente no seu mais distante reflexo, ou seja, na ordem sensível ou material; é esse aliás o sentido mais profundo do adágio: *os extremos tocam-se +. Pelo mesmo motivo, a Revelação desce ao corpo e não apenas à alma dos Profetas, o que pressupõe de resto a perfeição física desse corpo.' As formas sensíveis correspondem pois, exactamente, a intelecções e, por essa mesma razão, a arte tradicional possui regras que aplicam ao domínio das formas as leis cósmicas e os princípios universais que, sob o seu aspecto exterior mais genérico, revelam o estilo de uma civilização, exprimindo este o seu modo de intelectualidade. Quando tal arte deixa de ser tradicional e se torna humana, individual, arbitrária, é infalivelmente sinal, e causa, de um declínio espiritual que, aos olhos de quem sabe *discernir os espíritos + e ser imparcial, se exprime pelo carácter mais ou menos incoerente, espiritualmente insignificante, quase ininteligível, das formas? Para evitar qualquer objecção, im Renê Guénon (Les Deux Nuits, em Études traditionnelles, Abril e Maio 1939), falando da laylat el-qadr, noite da *descida+ (tanzil) do Alcorão, chama a atenção para o facto de *essa noite, segundo o comentário de Mohyiddin ibri Arabi, se identificar com o próprio corpo do Profeta. O que é particularmente notório é que a *revelação + seja recebida não no plano mental, mas no corpo do ser que é *enviado+ a anunciar o Princípio: E o Verbo se fez carne, como diz o Evangelho (came, e não mente), é a expressão própria da tradição cristã daquilo que representa laylat el-qadr na tradição islâmica +. Esta verdade está em estreita conexão com a relação que encontramos entre as formas e as intelecções. ' Fazemos aqui alusão ao declínio de certos ramos da arte religiosa desde a época gótica, sobretudo tardia, e de toda a arte ocidental a partir do
Renascimento. A arte cristã (a arquitectura, a escultura, a pintura, a ourivesaria litúrgica, etc.), que era uma arte sacra, simbólica, espiritual, acabou por ceder perante a invasão da arte neo-clássica e naturalista, individualista e sentimental. Tal arte, que nada tem de *milagroso + - não importa o que digam os defensores do *milagre grego + -, é totalmente inapta a transmitir as intuições intelectuais e já só responde às aspirações psíquicas colectivas. É também o que há de mais contrário à contemplação intelectual, entregando-se exclusivamente ao sentimentalismo. Este vai-se aliás degradando à medida que se adapta às necessidades das massas, para acabar numa vulgaridade patética e adocicada. É curioso verificar que parece nunca nos termos dado conta de quanto esta barbárie de formas, que atingiu o seu auge de profunda e miserável fanfarronada no estilo Luís XV, contribuiu - e contribui ainda - para afastar da Igreja tantas almas, e não das piores. Estas sentem-se verdadeiramente sufocados por um ambiente que já não permite à sua inteligência respirar. Notemos a propósito que as relações históricas entre o acabamento da nova basílica 70 A Unidade Transcendente das Religiões porta referir aqui que, nas civilizações intelectualmente sãs, por exemplo a cristandade medieval, a espiritualidade se afirma muitas vezes através de uma indiferença em relação às formas e por vezes através de uma tendência a desviar-se delas, como o mostra o exemplo de São Bernardo proscrevendo as imagens nos mosteiros, o que não significa a aceitação da barbárie e da feiura, assim como a pobreza não significa a posse de muitas coisas ignóbeis. Mas, num mundo em que a arte tradicional morreu, em que a forma se vê invadida por tudo o que é contrário à espiritualidade e onde quase toda a expressão formal se acha corrompida na sua raiz, a regularidade tradicional das formas reveste uma importância espiritual muito particular, que lhe era originariamente alheia, pois a ausência de espíríto nas formas era então algo de inexistente e inconcebível. O que dissemos da qualidade intelectual das formas sensíveis não nos deve levar a esquecer que, quanto mais remontamos às origens de uma tradição, menos as formas aparecem em estado de desenvolvimento. A pseudoforma, a forma arbitrária, está sempre excluída; mas a forma enquanto tal pode também estar ausente, pelo menos em dominios periféricos. Pelo contrário, quanto mais nos aproximamos do fim de um cicio tradicional, mais o formalismo adquire importância,' mesmo do ponto de vista artístico, pois as formas tornam-se então canais quase indispensáveis para a actualizarão do depósito espiritual da tradição. O que nunca devemos esquecer e que a ausencia do aspecto formal não equivale, de modo algum, à presença do informe e vice-versa; o informe e o bárbaro não atingirão nunca a majestosa beleza do vazio, pense o que pensar quem
justifica as deficiências de um sistema como sinal de superioridade.' Esta de São Pedro em Roma - em estilo renascença, portanto exibicionista, antiespiritual e, *humano +, se quisermos - e a origem da Reforma são factos que estão infelizmente longe de ser fortuitos. 1 É o que ignoram alguns movimentos pseudo-hindus, de origem indiana ou não, que vão para além das formas sagradas do hinduísmo, pensando representar a sua essência mais pura. Na verdade, é inútil conferir a um homem um meio espiritual sem lhe dar antecipadamente uma mentalidade que se harmonize com esse meio, isso independentemente da vincularão obrigatória a uma linhagem iniciática. Uma realização espiritual é inconcebível fora do clima psicológico apropriado, isto é, conforme ao ambiente tradicíonal do meio espiritual em questão. 1 Alguns crêem poder afirmar que o cristianismo, achando-se para além das formas, não se pode identificar com uma civilização determinada. É compreensível querermo 71 Frithiof Schon lei da compensação, em virtude da qual certas relações de proporcionalidade, do princípio ao fim de um ciclo, são alvo de uma intervenção mais ou menos acusada, faz-se sentir aliás a todos os níveis. Assim, chegou até nós esta palavra (hadith) do profeta Maomé: *Nos primeiros tempos do islão, quem omitir um décimo da Lei está condenado. Mas, nos últimos tempos, quem puser em prática um décimo da Lei será salvo. + A relação analógica entre as intelecções e as formas materiais explica como o esoterismo se pode implantar a nível profissional, nomeadamente na arquitectura. As catedrais, que os iniciados cristãos deixaram após si dão o testemunho mais explícito e vigoroso da elevação espiritual da Idade Média.' Tocamos aqui num ponto muito importante da questão que nos ocupa: o da acção do esoterismo sobre o exoterismo, através das formas sensíveis, cuja produção é precisamente apanágio da iniciação artesanal. Através destas formas, que graças ao seu simbolismo se tornam veículos da doutrina tradicional numa linguagem imediata e universal, o esoterismo infunde no domínio propriamente exotérico da tradição uma qualidade intelectual e, desse modo, um equilíbrio, cuja ausencia levaria à dissolução de toda a civilização, como aconteceu no mundo cristão. O abandono da arte sacra roubou ao esoterismo o seu meio de acção mais directo. A tradição exterior insistiu cada vez mais no que tem de particular, de limitador. Enfim, a ausência da corrente de universalidade , que havia vitalizado e estabilizado a civilização religiosa através,da linguagem das formas, provocou reacções em sentido inverso. As limitações formais, em vez de se compensarem e estabilizarem por acção supraformal do esoterismo, suscitaram, pela sua opacidade e massa, negações infraformais, provenientes do arbitrário individual que, longe de ser uma forma da verdade, não passa de um caos informe de opiniões e fantasias. Para
voltarmos à ideia inicial, acrescentaremos que a Beleza de Deus corresponde a uma realidade mais profunda do que a Sua Bondade. Isso talvez surpreenda à primeira vista, mas recordemo-nos da lei metafisica em virtude da qual a analogia entre as ordens principial e manifesta é in -nos consolar da perda da civilização cristã, incluindo a sua arte, mas a opinião que acabamos de citar não passa também de uma brincadeira de mau gosto. Perante uma catedral, sentimo-nos realmente no centro do mundo. Perante uma igreja, de estilo renascença, barroco ou rococó, apenas nos sentimos na Europa. 72 A Unidade Transcendente das Religiões versa: o que é principialmente grande é manifestamente pequeno, o que é interior no Princípio aparecerá como exterior na manifestação, e vice-versa. Ora, é graças a esta analogia inversa que a beleza no homem é exterior, e a bondade, interior - pelo menos no uso ordinário dos termos -, contrariamente ao que acontece na ordem principial onde a bondade é como que expressão da beleza. Muitas vezes nos admiramos de os povos orientais, mesmo os que têm fama de veia artística, carecerem quase sempre de discernimento estético em relação ao que vem do Ocidente. Todas as coisas feias, produzidas por um mundo cada vez mais desprovido de espiritualidade, expandem-se com incrível facilidade no Oriente, não só sob a pressão de factores político-econômicos, o que nada teria de surpreendente, mas sobretudo pelo livre consentimento daqueles que aparentemente haviam criado um mundo de beleza, uma civilização onde todas as expressões, mesmo as mais modestas, traziam a marca de um mesmo gênio. Desde o começo da infiltração ocidental pudemos ver com surpresa os objectos de arte mais perfeitos lado a lado com as piores trivialidades de fabrico industrial. Tais contradições desconcertantes não só se produziram entre os ob ectos de arte, mas em quase tudo, abstraindo o facto de, numa civilização normal, tudo o que é feito pelo homem pertencer ao domínio da arte, pelo menos em algum sentido. A resposta a este paradoxo é contudo muito simples e já a esboçámos acima: e que precisamente as formas, até as mais ínfimas, só são obra humana de modo secundário. Elas derivam da mesma fonte supra-humana donde provém tQda a tradição, o que equivale a dizer que o artista, que vive num mundo tradicional sem rupturas, trabalha sob a disciplina ou inspiração de um gênio que o ultrapassa. Ele é no fundo apenas instrumento deste, quanto mais não seja pela sua qualificação artesanal.' *Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos, mas também o que representa. Os objectos, naturais ou artificiais, não são ... 'símbolos' arbitrários de tal realidade diferente e superior. São sim ... a manifestação efectiva dessa realidade: a águia ou o leão, por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma imagem do Sol, são antes o Sol sob uma das suas aparências (sendo a forma essencial mais importante do que a natureza em que se manifesta). Da mesma forma, toda a casa é o mundo em efígie e todo o altar
73 Frithjof Schuon Daqui se deduz que, na produção de tais formas de arte, o gosto índividual desempenha apenas um papel muito apagado e nada é quando o indivíduo se vê perante uma forma estranha ao espírito da sua própria tradição. É o que acontece entre povos estranhos à civilização europeia, no referente às formas de importação ocidental. Para que isso suceda, é porém necessário que o povo, que aceita tais misturas, não tenha plenamente consciência do seu próprio gênio espiritual ou, por outras palavras, já não esteja à altura das formas de que ainda se faz rodear e no meio das quais vive. Isso prova que esse povo já sofreu um certo declínio e, por isso, aceita as feiuras modernas com tanto maior facilidade quanto elas respondem a possibilidades inferiores que ele procura realizar espontaneamente, não importa como, talvez de modo inconsciente. Por isso, a pressa irracional com que um grande número de orientais, sem dúvida a imensa maioria, aceita tudo o que há de mais incompatível com o espírito da sua tradição explica-se talvez pelo fascínio que exerce sobre o homem ordinário algo que responde a uma possibilidade ainda não esgotada, e tal possibilidade é, nesse caso, simplesmente a do arbitrário ou a da ausência de princípios. Mesmo sem querer generalizar esta explicação do que parece ser uma completa falta de gosto, existe um facto que é absolutamente certo: muitos orientais já não entendem o sentido das formas que eles próprios herdaram, com toda a tradição, dos seus antepassados. Tudo o que acabámos de dizer vale em primeira linha e a fortiori para os Ocidentais que, depois 1 está situado no centro da Terra ... (Ananda K. Coomaraswamy,' *Sobre a Mentalidade Primitiva + em Études traditionnelles, Ag.-Set.-Out. 1939). No sentido mais lato - implicando nisso tudo o que é de ordem exterior e formal, portanto a Jortiori tudo o que de algum modo pertence ao domínio ritual -, só a arte tradicional, transmitida com e pela tradição, pode garantir a correspondência analógica adequada entre as ordens divina e cósmica, por um lado, e a ordem humana e artística, por outro. Daí resulta que o artista tradicional não se detenha a imitar pura e simplesmente a natureza, mas *imi.te a natureza no seu modo de agir + (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1, q. 117, a. 1). É claro que o artista não pode improvisar, com os seus meios individuais, uma tal operaçao propriamente cosmológica. É a conformidade perfeita e adequada do artista a este *modo de agir +, subordinada às regras da tradição, que faz a obra-prima ser o que é. Essa conformidade pressupõe essencialmente um conhecimento, seja pessoal, directo ou activo, seja herdado, indirecto e passivo, sendo este último o caso dos artesãos
que, inconscientes enquanto indivíduos do conteúdo metafisico das formas que aprenderam a fabricar, não conseguem resistir à influência corrosiva do Ocidente moderno. 74 A Unidade Transcendente das Religiões de terem criado - não dizemos *inventado + - uma arte tradicional perfeita, a renegaram perante os vestígios da arte individualista e vazia dos Greco-Rbmanos, desembocando finalmente no caos artístico do mundo moderno. Sabemos que quem não quer reconhecer a ininteligibilidade ou a feiura do mundo actual emprega de bom grado o termo *estética + com uma nuance pejorativa muito próxima da dos termos *pitoresco + e *romântico + - para, à partida, não ter de se preocupar com as formas e se fechar mais à vontade no sistema da sua própria barbárie. Uma tal atitude nada tem de surpreendente vinda de um modernista convicto, mas é ilógica, para não dizer miserável, para quem se reclama da civilização cristã. Pois reduzir a linguagem espontânea da arte cristã - a que não poderíamos censurar a beleza - a uma mundana questão de *gosto+, como se a arte medieval pudesse ser produto de um capricho, equivale a admitir que a marca dada pelo gênio do cristianismo a todas as suas expressões directas e indirectas não foi senão uma contingência sem referência a esse gênio e sem intenções serias ou se deveu a qualquer tipo de inferioridade mental. Pois *só o espírito conta +, segundo a ideia de alguns ignorantes imbuídos de puritanismo hipócrita, iconoclasta, impotente e blasfemo, que preferem pronunciar a palavra *espinito + a reconhecerem o que é, de facto, o espírito. Para entendermos melhor as causas do declínio da arte no Ocidente, há que termos presente que, na mentalidade europeia, existe um certo idealismo, perigoso, nada estranho a este declínio, nem ao da civilização ocidental no seu todo. Esse idealismo encontrou a sua expressão mais brilhante e inteligente em certas formas da arte gótica onde predomina um dinamismo que parece querer roubar à pedra o seu peso real. Quanto à arte bizantina e românica - e também certa arte gótica que desta conservou o poder estático -, trata-se de uma arte essencialmente intelectual, portanto realista. A arte gótica flamejante, por muito apaixonada, é contudo ainda arte tradicional - excepção feita da escultura e da pintura já muito decadentes - ou, mais exactamente, o canto do cisne deste tipo de arte. A partir do Renascimento, verdadeira vingança póstuma da Antiguidade Clássica, o idealismo europeu debruçou-se sobre os sarcófagos desenterrados da civilização greco-romana. Neste gesto de suicídio, pôs-se ao serviço de um individualismo em que creu descobrir o seu próprio gé 75 Frithjof Schon nio, para, através de uma série de etapas, acabar nas suas afirmações mais grosseiras e quiméricas. Houve aqui aliás um duplo suicídio: em primeiro lugar, o abandono da arte medieval, ou simplesmente da arte cristã, e em segundo, a adopção das formas greco-romanas. Ao adoptá-las, intoxicou o mundo cristão do veneno da sua própria decadência. Há todavia que responder a uma objecção muito possível: não era a arte dos primeiros cristãos precisamente a arte romana? A tal há que responder que o verdadeiro
começo da arte cristã são os símbolos inscritos nas catacumbas e não as formas que os cristãos, muitos deles de cultura romana, foram provisoriamente buscar à decadência clássica. O cristianismo foi chamado a substituir a decadência por uma arte saída espontaneamente de um genio espiritual original. Se, de facto, certas influências romanas persistiram na arte cristã, foi em pormenores mais ou menos superficiais. Dissemos mais acima que o idealismo europeu se enfeudou no individualismo para descer por fim às formas mais grosseiras deste último. Quanto ao que o Ocidente acha de grosseiro nas outras civilizações, isso são quase sempre aspectos mais ou menos periféricos de um realismo despido de véus ilusórios e hipócritas. Importa todavia não perder de vista que o idealismo não é mau em si mesmo, pois encontra o seu lugar na mentalidade do herói, sempre inclinado à sublimação. O que é mau, e ao mesmo tempo especificamente ocidental, é a introdução desta mentalidade em todos os domínios, mesmo aqueles a que deveria ter sido alheia. Foi este idealismo desnorteado, tão frágil e tão perigoso, que o islão quis evitar a todo o custo com a sua preocupação de equilíbrio e estabilidade - ou realismo -, tendo em conta as possibilidades restritas da época cíclica, já muito distante das origens. Daí aquele aspecto terra-a-terra que os cristãos crêem dever censurar à civilização muçulmana. Para darmos uma ideia dos princípios da arte tradicional, assinalaremos alguns dos mais gerais e rudimentares: é preciso antes de mais que a obra seja conforme ao uso a que é destinada e traduza esta conformidade. Se existe um simbolismo acrescentado, é preciso que este seja conforme ao simbolismo inerente ao objecto. Não deve haver conflito entre o essencial 76 A Unidade Transcendente das Religiões e o acessório, mas sim harmonia hierárquica, que resulta aliás da pureza do simbolismo. É preciso que o tratamento da matéria seja conforme a essa matéria, como por seu lado a matéria deve ser conforme ao emprego do objecto. É preciso enfim que o objecto não dê a ilusão de ser outra coisa senão aquilo que é, transmitindo a desagradável sensação de inutilidade que, quando é a finalidade da obra - como é o caso de toda a arte clássica -, se torna com efeito na marca de uma inutilidade demasiado real. As grandes inovações da arte naturalista reduzem-se em suma a outras tantas violações de princípios da arte normal: em primeiro lugar, no que se refere à escultura, violação da matéria inerte, seja da pedra, do metal ou da madeira, e, em segundo lugar, no que se refere à pintura, violação da superfície plana. No primeiro caso, trata-se a matéria inerte como se dotada de vida, quando ela é essencialmente estática, só permitindo, por isso, a representação de corpos imóveis ou de fases essenciais e esquemáticas do movimento - não de movimentos arbitrários, acidentais ou quase instantâneos. No segundo caso, o da pintura, trata-se a superfície plana como se fosse um espaço de três dimensões, e isso tanto nos escorços como nas sombras. É claro que tais regras não são ditadas por simples razões de ordem estética. Trata-se sim de aplicações de leis cósmicas e divinas. A beleza será
o resultado necessário disso mesmo. Quanto à beleza na arte naturalista, ela não reside na obra enquanto tal, mas só no objecto dessa obra, enquanto na arte simbólica e tradicional é a obra em si que é,bela, seja abstracta ou vá buscar a beleza em maior ou menor grau a um modelo da natureza. Nada saberia exprimir melhor o que acabámos de dizer do que a comparação da arte grega dita clássica com a arte egípcia: a beleza desta última não está apenas no objecto representado, mas simultaneamente e a fortiori na obra'enquanto tal, ou seja, na realidade interna que a obra manifesta. Que a arte naturalista tenha podido por vezes exprimir uma nobreza de sentimentos ou uma inteligência vigorosa é demasiado evidente e explica-se por razões cosmológicas cuja ausência seria inconcebível, mas isso é totalmente independente da arte enquanto tal. De facto, nenhum valor individual 'oderia compensar a falsificação desta. p A maioria dos modernos, que crêem compreender a arte, estão convencidos de que a arte bizantina ou românica não tem qualquer superioridade 77 Frithjof Schuon sobre a arte moderna e que uma Virgem bizantina ou românica não se parece mais com Maria do que as imagens naturalistas. A resposta, porém, é fácil: a Virgem bizantina - que tradicionalmente remonta a São Lucas e aos Anjos - está infinitamente mais perto da verdade de Maria do que a imagem naturalista, que é forçosamente sempre a de outra mulher. Pois, das duas, uma: ou se apresenta da Virgem uma imagem fisicamente muito semelhante, sendo para isso necessário que o pintor tenha visto a Senhora, condição que evidentemente não pode ser preenchida e portanto a pintura naturalista perde toda a legitimidade, ou se apresenta da Virgem um símbolo perfeitamente adequado e a questão da parecença física, sem estar absolutamente excluída, não se coloca prioritariamente. É esta segunda solução, a única sensata, que os ícones realizam: o que não exprimem pela parecença física, exprimem-no pela linguagem abstracta, mas imediata, do simbolismo, feita ao mesmo tempo de precisão e de imponderáveis. O ícone transmite assim, pela força beatifica inerente ao seu carácter sacramental, a santidade da Virgem, a sua realidade interior e a realidade universal de que a própria Virgem é expressão. O icone, ao consentir num estado contemplativo e numa realidade metafisica, torna-se suporte de intelecção, enquanto a imagem naturalista não transmite, para além da sua mentira evidente e inevitável, senão o facto de que Maria era uma mulher. Poderia acontecer que, num ícone, as proporções e as formas do rosto fossem as mesmas da própria Senhora, mas tal parecetiça, se se produzisse realmente, seria independente do simbolismo da imagem e apenas consequência de uma inspiração particular, sem dúvida ignorada do próprio artista. A arte naturalista teria certa legitimidade se servisse para reter as feições dos Santos, já que a contemplação dos Santos (o darshan dos hindus) é ajuda preciosa na via espiritual, sendo a sua aparência externa como que o perfume da sua espiritualidade. Todavia, essa função limitada de um naturalismo parcial e disciplinado corresponde a uma possibilidade muito precária. Mas voltemos à qualidade simbólica e espiritual do ícone. A percepção
de semelhante qualidade é fruto de inteligência contemplativa e de *ciência sagrada +. Para legitimar o naturalismo, é certamente falso pretender que o povo tenha necessidade de uma arte acessível, pois não foi o *povo+ quem fez o Renascimento, e a arte deste, como toda a *grande arte + que 78 A Unidade Transcendente das Religiões daí derivou, é pelo contrário um desafio à piedade do simples. O ideal artístico da Renascença e de toda a arte moderna está pois muito longe daquilo de que o povo necessita e, de resto, quase todas as Virgens milagrosas para as quais o povo aflui são bizààtinas ou românicas. Quem ousaria dizer que a cor negra de algumas delas corresponde ao gosto popular ou lhe é particularmente acessível? Aliás, as Virgens feitas pelo povo, quando não danificados pela, influência da arte acadêmica, são objectivamente mais verdadeiras do que as desta última. Admitindo mesmo que as multidões precisem de imagens ocas e insensatas, será que as necessidades da elite não têm direito à existência? Pelo que precede, já respondemos implicitamente à questão se a arte se destina à elite intelectual em exclusivo ou se tem também algo a transmitir ao homem de inteligência média. Esta questão resolve-se por si mesma tendo em conta a universalidade de todo o simbolismo, que faz com que a arte sacra - para além de verdades metafisicas e factos da história sagrada não só comunique estados espirituais, mas também atitudes psíquicas acessíveis a qualquer pessoa. Em linguagem moderna, diríamos que esta arte é, a um tempo, profunda e ingénua. Ora, esta simultânea profundidade e ingenuidade são precisamente caracteres muito notórios da arte sacra. A ingenuidade, a candura, longe de serem uma inferioridade espontânea ou afectada, revelam o estado normal da alma hum@na, seja do homem médio ou superior. Pelo contrário, a aparente inteligência do naturalismo, a sua habilidade quase satânica para reprimir a natureza, não transmitindo senão as aparências e as emoções, só pode corresponder a uma mentalidade deformada, desviada da simplicidade, da inocência primordial. É claro que uma tal deformação, feita de superficialidade intelectual e de virtuosidade mental, é incompatível com o espírito da tradição, não encontrando por isso lugar na civilização fiel a esse espírito. Se, portanto, a arte sacra se dirige à inteligência contemplativa, ela orienta-se igualmente para a sensibilidade humana normal. Só essa arte parece possuir uma linguagem universal e nenhuma melhor do que ela pode voltar-se ao mesmo tempo para a elite e para o povo. No que se refere ao aspecto aparentemente infantil da mentalidade tradicional, pensemos nas exortações de Cristo a sermos *corno crianças + e *sim les como pombas +, palap vras que, seja qual for o seu sentido espiritual, correspondem evidentemente também a realidades psicológicas. 79 Frithjof Schuon Os Padres do séc. viii, muito diferentes da autoridade religiosa dos sécs. xv e xvi - que traíram a arte cristã, abandonando-a à impura paixão dos mundanos e à ignorante imaginação dos profanos -, tinham plena consciência da santidade de todos os modos de expressão tradicional. Por isso, estipularam, no segundo Concílio de Niceia, que *só a arte (a perfeição
integral do trabalho) é do pintor; a ordenação (ou seja, a escolha do tema) e a disposição (o tratamento do tema do ponto de vista simbólico, assim como tecnico e material) cabem aos Padres + (Non est pictoris - ejus enim sola ars est - verum ordinaúo et disposiüo Patrum nostrorum), o que significa pôr toda a iniciativa artística sob a autoridade directa e activa dos chefes espirituais da cristandade. Assim sendo, como explicar que na maioria dos meios religiosos se verifique, desde há séculos, uma lamentável incompreensão para com tudo o que, sendo de ordem artística, é na opinião desses apenas algo de *exterior +? Admitindo a priori a eliminação da influência esotérica, existe antes de mais uma perspectiva religiosa que tende a identificar-se com o ponto de vista moral que só aprecia o mérito e crê dever ignorar a qualidade santificante do conhecimento intelectual e, assim, o valor dos suportes desse conhecimento. Ora a perfeição da forma sensível não é moralmente *meritóna + não mais do que a intelecção que esta forma reflecte e transmite - e é lógico que a forma simbólica, quando já não compreendida, seja relegada para segundo plano para ser substituída por uma forma que fala não já à inteligência, mas só à imaginação sentimental, própria a inspirar o acto meritório no homem limitado. Este modo de especular sobre as reacções com auxílio de meios superficiais e grosseiros revelar-se-á em última análise -ilusório, pois na verdade nada melhor do que uma arte sacra para influenciar as disposições profundas da alma. A arte profana, mesmo quando dotada de certa eficácia psicológica em almas pouco inteligentes, esgota os seus meios superficiais e grosseiros, acabando por provocar as reacções de desprezo já nossas conhecidas, que são como que o ricochete do desprezo que a arte profana manifestou inicialmente perante a arte sacra'. É de experiência corrente que ' Da mesma forma, a hostilidade dos esoteristas perante tudo o que ultrapasse o, seu modo de ver traz consigo um exoterismo sempre mais duro, que não pode não sofrer rupturas. Mas, uma vez perdida a *porosidade espiritual + da tradição - a imanência na substância do exoterismo de uma dimensão transcendente que compensa tal dureza as ditas rupturas não podem senão produzir-se a partir de baixo: é a substituição dos mestres do esoterismo medieval pelos protagonistas da descrença moderna. so A Unidade Transcendente das Religiões nada poderia fornecer ao ateísmo um alimento mais imediatamente tangível do que a hipocrisia das imagens religiosas. O que se destina a estimular nos crentes a piedade, confirma nos descrentes a impiedade. Ora, é preciso reconhecer que a arte sacra não tem de modo algum o carácter de uma espada de dois gumes, pois, sendo mais abstracta, dá menos azo a reacções psicológicas hostis. Independentemente das especulações que fazem supor nas massas uma necessidade de imagens ininteligíveis e radicalme ' nte falseados, as elites existem e têm necessidade de outra coisa. A linguagem que lhes convém é a que evoca, não coisas humanas e comezinhas, mas as
profundezas divinas. Ora, tal linguagem não pode emanar do simples gosto profano, nem do gênio, mas procede essencialmente da tradição, o que implica que a obra de arte seja executada por um artista santificado ou *em estado de graça +. Além de servir para instrução e edificação superficial das massas, o ícone, como o yantra hindu e qualquer outro símbolo visível, estabelece uma ponte do sensível ao espiritual: *Pelo aspecto visível + - diz São João Damasceno - *o nosso pensamento deve ser arrastado num élan espiritual e subir à invisível majestade de Deus. + Mas voltemos aos erros do naturalismo: a arte, desde que não determinada, iluminada, guiada pela espiritualidade, encontra-se à mercê dos recursos individuais e puramente psicológicos do artista, acabando tais recursos por se esgotar devido à miopia do principio naturalista que pretende um decalque da natureza visível. Chegado ao ponto morto do seu próprio aviltamento, o naturalismo gerará inevitavelmente as mons-truosidades do *surrealísmo +. Este não passa do cadáver em decomposição da arte e é sobretudo um *infra-realismo +. É na verdade a conclusão satânica do luciferianismo naturalista. O naturalismo é verdadeiramente luciferiano ao querer imitar as criações de Deus, sem falar da sua afirmação do psiquico em detrimento do espiritual ou do invidual em detrimento' do universal, do facto bruto em detrimento do símbolo. Normalmente o homem deve imitar o acto criador, não a coisa criada. É o que faz a arte, simbolista. Daí resultam *criações + que, longe de copiarem as de Deus, Os pintores de ícones eram monges que, antes de se pôrem ao trabalho, se preparavam através de jejuns, oração, confissão e comunhão. Chegavam mesmo a misturar as tintas com água benta e o pó das relíquias, o que não seria possível se o ícone não tivesse um carácter verdadeiramente sacramental. 81 Frithjof Schon reflectem-nas em conformidade com uma analogia real, revelando o aspecto transcendente das coisas. É nisso que consiste a razão suficiente da arte, abstracção feita da utilidade prática dos seus objectos. Existe aí uma inversão metafísica, uma relação que já assinalámos: para Deus, a criatura reflecte um aspecto exteriorizado de si mesmo; para o artista, a obra reflecte pelo contrário uma realidade *interior + de que ele é apenas um aspecto exterior. Deus cria a sua própria imagem, enquanto o homem molda de certa maneira a sua própria essência, pelo menos simbolicamente. No plano principal, o interior manifesta-se pelo exterior; no plano manifesto, o exterior molda o interior. Ora a razão suficiente de toda a arte tradicional é que a obra seja em certo sentido mais do que o artista' e reconduza este, pelo mistério da criação artística, às margens da sua própria essência divina.
É o que explica o perigo que havia, entre os Semitas, de pintarem sobretudo
esculpirem a figura de seres vivos. Se o hindu e o Oriental adoravam a Realidade Divina atravês de um símbolo e sabemos que um símbolo é, na perspectiva da realidade essencial, aquilo mesmo que simboliza -, o Semita era levado a divinizar o próprio símbolo. A proibição da arte plástica e pictórica entre os povos semíticos tinha certamente a intenção de impedir o desvio naturalista, perigo muito real entre homens cuja mentalidade é mais individualista e sentimental. 82 v DOS LImites DA EXPANSÃO RELIGIOSA
epois desta digressão, voltemos aos aspectos mais directos da questão da unidade das formas religiosas: propomo-nos agora mostrar como a universalidade simbólica de cada uma dessas formas im líca limitações da universalidade em sentido absoluto. Afirmações verdadeiras, tendo por objecto factos sagrados e verdades transcendentes como a pessoa de Cristo, podem com efeito tornar-se mais ou menos falsas quando artificialmente retiradas do seu enquadramento providencial; este é, para o cristianismo, o mundo ocidental, onde Cristo é *a Vida+, com artigo definido e sem epítetos. Este enquadramento foi quebrado pela desordem moderna, havendo-se *a humanidades alargado exteriormente de modo artificial e quantitativo. Daí resultou que uma parte não quis aceitar outros *Cristos + e outra parte negou a Jesus qualquer qualidade crística. Foi cojno se, perante a descoberta de outros sistemas solares, uns defendessem que só existe um sol - o nosso -, enquanto outros negassem a existência de qualquer sol, por nenhum deles ter direito à exclusividade. Ora a verdade situa-se entre ambas as teses: o nosso sol é, de facto, *o Sol+; mas só é único por referência ao sistema de que é o centro. Como existem muitos sistemas solares, há muitos sóis, o que não impede que cada um seja único por definição. O Sol, o leão, a águia, o girassol, o mel, o âmbar, o ouro são várias manifestações naturais do princípio solar, cada uma única e simbolicamente absoluta na sua ordem. Ao deixarem de ser únicas - porque subtraídas aos limites das res 83 Frithjof Schuon pectivas ordens que as transformavam em sistemas fechados ou microcos~ mos - e ao manifestar-se o que nessa unicidade há de relativo - nem por isso tais manifestações perdem a sua identificação com o princípio solar, embora revestindo modos apropriados às possibilidades de cada ordem. Seria falso afirmar que Cristo não é *o Filho de Deus + mas apenas *um Filho de Deus +, pois o Verbo é único e cada uma das suas manifestações reflecte, em essência, a divina unicidade. Algumas passagens do Novo Testamento permitem entrever que o *mundo + de que Cristo é *o sol+ se identifica com o Império Romano que representava o domínio providencial de expansão e de vida para a civilização cristã: quando, nestes textos, se fala de *todos os povos debaixo do
céu+ (Act.,2:541), trata-se com efeito apenas dos povos conhecidos do mundo romano'. Do mesmo modo, quando se diz que *não existe debaixo do céu outro Nome pelo qual os homens possam ser salvos + (Act., 4:12), não há razão para admitir que esse *céu+ deva ser interpretado de modo diverso. A menos que se entenda o nome de *Jesus+ como designação simbólica do próprio Verbo, o que equivale a dizer que no mundo existe um só Nome, o do Verbo, pelo qual os homens podem ser salvos, qualquer que seja a manifestação divina que esse nome particularmente designe ou, por outras palavras, qualquer que seja a forma particular desse Nome eterno: *Jesus+, *Buda+ ou outro. Tais considerações levantam um problema que não podemos aqui silenciar: será então a actividade dos missionários, que trabalham fora dos li Ao falar de *judeus piedosos de todos os povos debaixo do céu +, a Escritura não tem certamente em vista os Japoneses ou os Peruanos, embora pertençam também a este mundo terrestre *debaixo do céu +. O rilesmo texto precisa aliás mais longe o que era, para os autores neotestamentários, este conjunto de *todos os povos debaixo do céu+: *Nós, partos e medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e-da Capadócia, do Ponto, da Asia (Menor), da Frígia, da Panfilia, do Egipto e das regiões da Líbia em direcção a Grene, nós, peregrinos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los proclamar nas nossas línguas os prodígios de Deus. + (Act.,2:541). A mesma concepção necessariamente restrita do mundo geográfico e étnico acha-se implicada nestas palavras de São Paulo: *Antes de mais, dou graças a Deus por Jesus Cristo por vós todos (da Igreja de Roma); pois a vossa fé é conhecida no Mundo inteiro +. Ora, é evidente que o autor não quis dizer que a fé da primitiva Igreja de Roma era conhecida entre todos os povos que, segundo os conhecimentos geográficos actuais, fazem parte do *mundo inteiro +. 84 A Unidade Transcendente das Religiões in tes normais do cristianismo, inteiramente ilegítima? A isso há que responder que, embora beneficiando materialmente de circunstâncias anormais pelo facto de a expansão ocidental se ter devido à superioridade material resultante do actual desvio, os missionários trilham uma vida que tem, pelo menos em princípio, um carácter sacrificial. Por consequência, a realidade subjectiva dessa via conservará sempre o seu sentido místico, independentemente da realidade objectiva da acção missionário enquanto tal. O factor positivo, que esta actividade vai buscar à sua raiz evangélica, não pode desaparecer totalmente, pois os limites do mundo cristão foram ultrapassados - o que já havia acontecido antes da era moderna em condições bem diferentes e excepcionais - e foram invadidos mundos que não precisavam de ser convertidos, já que, não sendo *cristãos + em Jesus Cristo, eram-no no Cristo universal, que é o Verbo inspirador de toda a
Revelação. Mas esse aspecto positivo da acção missionário só se manifestará no mundo objectivo em casos mais ou menos pontuais, seja porque a graça que emana de um santo ou de uma relíquia ultrapassa uma influência espiritual autóctone, seja porque a religião cristã se adapta melhor à mentalidade particular de certos indivíduos, o que faz supor que estes não compreenderam a própria tradição ou que o cristianismo corresponde melhor às suas aspirações, espirituais ou não. A maior parte destas reflexões vale também, como é óbvio, em sentido inverso e em benefício das tradições não-cristãs, com a diferença de, nesse caso, as conversões serem muito mais raras, por razões que em nada abonam o Ocidente: em primeiro lugar, porque os Orientais não têm colónias nem *protectorados + no Ocidente nem mantêm aí missões poderosamente protegidas; em segundo, porque os Ocidentais são mais propensos à descrença pura e simples do que a uma espiritualidade que lhes é estranha'. As reservas que se podem formular, quanto à acção missionário, não se referem por certo à evangelização enquanto tal - embora esta tenha sofrido certa diminuição e declínio devido às circunstâncias anormais já por nós assinaladas -, mas apenas à sua solidariedade activa com a moderna barbárie ocidental. Aproveitaremos a ocasião para notar que, na época em que se iniciou a Todavia, desde meados do séc. xx, verificamos que um número crescente de ocidentais se vira para formas de espiritualidade oriental, sejam elas falsas ou verdadeiras. 85 Frithjof Schuon expansão a oriente, já estas paragens haviam entrado em profunda decadência, por certo não comparável ao declínio ocidental moderno cujo princípio é inverso daquele. De facto, enquanto o declínio oriental é pássivo, como o de um organismo físico desgostado pela idade, o declínio moderno é activo, voluntário, cerebral. Isso dá ao Ocidental a ilusão de uma superioridade que - se efectivamente existe a nível psicológico, graças à divergência de modos que acabámos de referir - não deixa de ser muito relativa e tanto mais ilusória quanto se reduz a nada perante a superioridade espiritual do Oriente. Poderíamos também dizer que a deca dência deste é toda feita de *inércia +, enquanto a do Ocidente se edifica sobre o *erro+. Só a predominância do elemento passional os torna solidários, e é aliás tal predominância que caracteriza a *idade sombria + em que o mundo se acha mergulhado e cujo aparecimento foi previsto por todas as doutrinas sagradas. Se a diferença no modo de declínio explica, em parte, o desprezo que muitos ocidentais sentem por certos orientais muitas vezes mais do que um simples preconceito, tornando-se um ódio às tradições orientais - e, em parte, a admiração cega que muitos orientais sentem por alguns aspectos positivos de mentalidade ocidental, é claro que o desprezo que o velho Oriente sente pelo Ocidente moderno tem uma razão não apenas psicológica - relativa e discutível -, mas total, porque fundada em razões espirituais decisivas. Aos olhos de um Oriente, fiel ao seu espírito, o *progresso + dos Ocidentais será sempre um círculo vicioso tentando em vão eliminar misérias inevitáveis ao preço do que pode dar sentido à vida. Mas voltemos à questão missionário: o facto de a passagem de
uma a outra forma tradicional poder ser legítima não impede que, em certos casos, possa haver verdadeira apostasia. É apóstata quem muda de forma tradicional sem razão válida. Pelo contrário, quando existe *conversão + de uma a outra tradição ortodoxa, as razões invocados têm pelo menos certo valor subjectivo. Podemos passar de uma a outra forma tradicional sem nos termos propriamente *convertido +, apenas por razões de oportunidade esotérica ou espiritual. Nesse caso, as razões que determinarão a passagem serão objectiva e subjectivamente válidas, ou antes, deixaremos de,poder falar de razões verdadeiramente subjectivas. Vimos que a atitude do exoterismo face às formas religiosas que lhe são 86 A Unidade Transcendente das Religiões estranhas é determinada por dois factores, um positivo, outro negativo, o primeiro referente ao carácter de unícidade inerente a toda a Revelação e o segundo à consequencia extrínseca dessa unicidade, a rejeição de um *paganismo + particular. Por exemplo, no que se refere ao cristianismo, bastará situá-lo nos seus normais limites de expansão - que jamais haveria transposto, salvo raras excepções, não fosse o desvio moderno - para entender que esses dois factores já não são literalmente aplicáveis fora dos seus limites naturais, devendo pelo contrário ser universalizados, transpostos para o plano da Tradição Primordial que permanece viva em todas as formas ortodoxas. Por outras palavras, é preciso entender que cada forma tradicional estranha pode reivindicar semelhante unicidade e a negação de um *paganismo +. É como dizer que, pela sua ortodoxia intrínseca, cada uma é forma daquilo a que poderíamos chamar, em linguagem cristã, a *Igreja Eterna +. Nunca será de mais insistirmos no facto de o sentido literal ser, por definição, um sentido limitado, que se detém nos confins do domínio particular a que se aplica, segundo intenção divina - situando-se o critério desta, em condições normais, na natureza das coisas -, quando só o sentido puramente espiritual pode reivindicar um alcance absoluto. A exortação de *ensinar a todas as nações + não constitui excepção, assim como outras expressões onde se torna patente a limitação natural da literalidade, sem dúvida porque não existe interesse em conferir a essas um sentido incondicionado. Recordemo-nos, por exemplo, da proibição de matar, da ordem de dar a face esquerda, de não *multiplicar as palavras ao rezar + ou de não nos preocuparmos com o dia de amanhã. O Divino Meste jamais explicitou os limites em@que tais ordens são válidas, de modo que logicamente lhes poderíamos conferir um alcance incondicional, como se faz para a ordem de *ensinar a todas as nações +. Importa porém acrescentar que o sentido directamente literal se acha presente, em certa medida, não apenas na ordem de pregar as naçoes, mas também nas outras palavras de Cristo, a que fizemos alusão. Tudo consiste em sabermos por este sentido no seu devido lugar, sem excluirmos outros sentidos possíveis. Se é verdade que a ordem de ensinar a todas as nações não se pode limitar, de modo absoluto, ao propósito de constituir o mundo cristão, mas deve poder implicar a pregação entre todos os povos alcançáveis, é tam 87
N Frithjof Schuon bém verdade que a ordem de dar a face esquerda se pode igualmente entender de modo literal em certos casos de disciplina espiritual. Mas é claro que esta última interpretação será tão secundária quanto é a interpretação literal de pregar a todos os povos. Para definirmos claramente a diferença entre os sentidos directo e indirecto desta exortação, recordaremos o que já acima deixámos entrever: ou seja, que, no primeiro caso, o fim é sobretudo objectivo, pois trata-se de constituir o mundo cristão, enquanto no segundo caso, o da pregação entre povos de civilização estranha, o fim é sobretudo subjectivo e espiritual, levando o plano interior a melhor sobre o plano exterior, que não é mais do que um suporte da realização sacrificial. Poderia alguém objectar citando as palavras de Cristo: *Este Evangelho do Reino será pregado em todo o mundo, para servir de testemunho a todas as nações. Então virá o fim +. Ao que responderemos que, se tal palavra se refere ao mundo inteiro e não apenas ao Ocidente, é porque não se trata de uma ordem, mas sim de uma profecia que se reporta a condições cíclicas em que a separação entre os diferentes mundos tradicionais será abolida. Significa, por outras palavras, que *Cristo + - que para os hindus é o Kalki-Avatâra e para os budistas o Bodhisattwa-Maitreya restaurará a TradiçãoTrimordial. Dissemos mais acima que a ordem dada por Cristo aos Apóstolos se restringia aos limites providenciais do mundo romano. É claro que uma tal limitação não é particular ao cristianismo: a expansão muçulmana, por exemplo, detém-se forçosamente em fronteiras análogas, e isso pelas mesmas razoes. O princípio, que colocou os politeístas árabes perante a alternativa islão ou morte, foi tão logo abandonado, mal as fronteiras da Arábia se viram ultrapassadas. Assim, os hindus, que não são propriamente *monoteístas +', foram governados por muçulmanos durante vários séculos, sem que estes tivessem aplicado, depois das suas conquistas, a alter Os monoteístas são as *gentes do Livro + (ahl el-Kitâb), ou seja, os judeus e os cristãos, que receberam revelações de espírito abraâmico. Parece-nos quase supérfluo acrescentar que os hindus, se não são monoteístas em sentido especificamente semítico também não são politeístas, pois a consciência da Unidade metafísica através da multi' plicidade indefinida das formas é precisamente uma das características mais evidentes do seu espírito. 88 A Unidade Transcendente das Religiões nativa dantes imposta aos árabes pagãos. Um outro exemplo é o da delimitação tradicional do mundo hindu. Contudo, a reivindicação de universalidade por parte do hinduísino, conforme ao carácter metafisico e contemplativo desta tradição, é repleta de uma serenidade que não se encontra nas religiões semíticas. A concepção de Sanâtana-Narma, *Lei eterna + ou *primordial +, é estática, e não dinâmica, sendo uma constatação de factos, e não uma aspiração, como o é a correspondente concepção
semítica: esta parte da ideia de que é preciso levar aos homens de Fé verdadeira que eles ainda'não possuem, enquanto, segundo a concepção hindu, a tradição bramânica é a Verdade e a Lei Original que os estrangeiros perderam, conservando dela apenas vestígios, tendo-a alterado ou mesmo substituído pelo erro. É todavia inútil convertê-los porque, mesmo decaídos do Sanâtana-Dharma, nem por isso se deixam de salvar, achando-se apenas em condições espirituais menos favoráveis do que os hindus. Este ponto de vista não proíbe que *bárbaros + sejam Yogis ou Avatâras-, e é um facto que os hindus veneram indiferentemente santos muçulmanos, budistas ou cristãos, sem o que a expressão Mlechha-Avatâra ( *descida divina entre os bárbaros +) não teria sentido -, mas a santidade ocorrerá Sem dúvida muito mais raramente nos não-hindus do que no seio do Sanâtana-Dharma, cujo último refúgio é a terra sagrada da índia'. Poderíamos igualmente interrogar-nos se a penetração do islão em terras da índia não deveria ser vista como uma usurparão tradicionalmente ilegítima, podendo a mesma questão estender-se as partes da China e da Insulíndia que se vieram a tornar muçulmanas. Para responder a esta questão, há que nos determos em considerações que parecerão talvez algo longínquas, mas que são aqui indispensáveis. Antes de mais, é preciso ter em conta o seguinte: se o hinduísmo, no que respeita a sua vida espiritual, sempre se adaptou às condições cíclicas com que teve de se defrontar no decurso da sua existência histórica, nem sempre porém conservou o carác Existiu, no Sul da índia, um *intocável + que foi um Avatâra de Shiva: o grande mestre espiritual Tiruvalltivar, o *divino +, cuja memória é ainda venerada na região e que nos deixou um livro inspirado, o Kural. O equivalente da concepção hindu do Sanâtana-Dharma encontra-se nas passagens corânicas que afirmam que não existe povo a que Deus não tivesse suscitado um Profeta; a afirmação exotérica segundo a qual todos os povos teriam rejeitado ou esquecido a Revelação que respectivamente lhes dizia respeito não poderia fundar-se no Alcorão. 89 kI, Frithjof Schon ter *primordial + que lhe é próprio; nomeadamente, na @sua estrutura formal, apesar das modificações secundárias que sobrevieram por força das circunstâncias, como por exemplo a fragmentação quase indefinida das castas. Ora, tal primordialidade, plena de serenidade contemplativa, deu lugar, a partir de certo *mornento + cíclico, a uma maior preponderância do elemento passional na mentalidade genérica, segundo a lei do declínio que rege todo o ciclo da humanidade terrestre. O hinduísmo acabou por perder em actualidade e em vitalidade, à medida que se afastou das origens, e nem as reformulações espirituais, como a eclosão das vias tântricas e bhákticas, nem as readaptações sociais, como a já aludida fragmentação das castas, bastaram para eliminar a desproporção entre a primordialidade inerente à tradição e uma mentalidade sempre mais passional'. Contudo,
a substituição do hinduísmo por outra forma tradicional, mais adaptada às ' Um dos sinais deste obscurecimento parece ser a interpretação literal dos textos simbólicos sobre a transmigração que. deram origem à teoria da reencarnação. O mesmo literalismo, aplicado às imagens sagradas, gerou uma idolatria de facto. Sem este aspecto real de paganismo, patente no culto de muitos hindus de casta baixa, o islão não poderia ter causado uma fenda tão profunda na realidade indiana. Se, para defender a interpretação reencarnacionista das Escrituras hindus, há quem se reporte ao sentido literal dos textos, tudo deveria então interpretar-se de modo literal, chegando-se assim a um antropomorfismo grosseiro e a uma adoração grosseira e monstruosa da natureza sensível, quer se trate de elementos, animais ou objectos. O facto de muitos hindus interpretarem actualmente à letra o simbolismo de transmigraçao só prova o declípio intelectual próprio de kali-yuga e previsto nas Escrituras. Aliás, já nem nas religiões ocidentais os textos sobre a vida depois da morte são entendidos literalmente. O fogo do Inferno não é um fogo físico, o seio de Abraão não é o seu seio corporal, o banquete de que Cristo fala não é constituído de alimentos terrestres, ainda que o sentido literal tenha também os seus direitos, sobretudo no Alcorão. Por outro lado, se a reencarnação fosse uma realidade, todas as doutrinas monoteístas seriam falsas, pois nunca situam os estados póstumos neste mundo. Mas todas estas considerações são vãs se pensarmos na impossibilidade metafísica da reencarnação. Mesmo admitindo que uin mestre espiritual hindu possa fazer sua uma interpretação literalista das Escrituras, no que diz respeito a uma questão cosmológica como a da transmigração, isso nada prova contra a sua espiritualidade, pois podemos conceber nele uma sabedoria que nada tem a ver com realidades puramente cósmicas, consistindo numa visão puramente sintética e interior da Realidade Divina; o caso seria diferente num mestre espiritual cuja vocação consistisse em expor ou comentar uma doutrina especificamente cosmológica, mas tal vocação é quase de excluir na nossa época, devido às leis espirituais que a regem no quadro de uma tradição determinada. 90 A Unidade Transcendente das Religiões condições particulares da segunda metade do kali-yuga, não chegou a estar em causa; o mundo hindu, no seu conjunto, não tem necessidade de transformações drásticas, já que a Revelação de Manu Vaivaswata conserva suficiente actualidade e vitalidade para justificar a persistência de uma civilização. Em qualquer dos casos, há que reconhecer que se produziu uma situação paradoxal no hinduísmo, que poderíamos caracterizar dizendo que ele é vivo e actual no seu conjunto, mas não em alguns aspectos
secundários. Cada um destes aspectos teve a suas consequências no mundo exterior: consequência da vitalidade do hinduísmo foi a resistência invencível que ele opôs ao budismo e ao islão; consequência do seu enfraquecimento foi precisamente a vaga budista, que apenas passou por ele, e o alastramento e estabilização da civilização islâmica em solo indiano. Mas a presença do islão na índia não se explica unicamente pelo facto de, sendo a mais jovem das grandes Revelações', estar melhor adaptada do que o hinduísmo às condições gerais deste último milénio da *idade sombria + - tendo em maior conta o elemento passional nas almas mas ta mbém pela seguinte razão: o declínio cíclico traz consigo um obscurecimento geral, a par de um aumento mais ou menos considerável das populações, sobretudo as suas camadas inferiores. Ora, tal declínio é assistido por uma força cósmica compensadora que actua no interior da colectividade social a fim de restaurar, pelo menos simbolicamente, a sua qualidade primitiva. Em primeiro lugar, a colectividade será como que atravessada por excepções, paralelamente ao seu crescimento quantitativo, como se o elemento qualitativo (ou *sáttwico +, do Ser puro) nela contido se concentrasse para compensar, em casos especiais, a dilatação quantitativa. Em segundo lugar, os'meios espirituais tomam-se de mais fácil acesso para quem for qualificado e tiver aspirações sérias; isso, por uma lei cósmica da compensação que intervém, já que o ciclo humano, para o qual as castas são válidas, chega ao fim. Por isso, a referida compensação tende não apenas a restaurar, simbolicamente e dentro de certos limites, aquilo O islão é a última Revelação deste ciclo da humanidade terrestre, como o hinduísmo representa a Tradição Primordial, sem se identificar com ela pura e simplesmente, sendo apenas o seu ramo mais directo. Existe, portanto, entre estas duas formas tradicionais uma relação cíclica ou cósmica que, como tal, nada tem de fortuita. 91 Frithjof Schuon que as castas eram na sua origem, mas o que era a humanidade antes da constituição das castas. Todas estas considerações permitirão entrever qual o papel positivo e providencial do islão na índia: em primeiro lugar, absorver os elementos que, pelo facto das novas condições cíclicas já refe ridas, não encontram *o seu lugar + na tradição hindu - pensemos aqui particularmente em elementos das castas superiores, os Dwijas; em segun do lugar, absorver os elementos de elite das castas inferiores, assim reabi litadas numa espécie de indiferencíação primordial. O islão, com a simplicidade sintética da sua forma e meios espirituais, é um instrumento N@ providencialmente apto a preencher rupturas que se produzam em civili zações mais antigas e arcaicas ou a captar e neutralizar, pela sua presença, germes de subversão de que essas civilizações sejam portadoras nas di tas rupturas. Ora foi sob esse aspecto - e apenas esse - que certas ci vilizações entraram parcialmente no dominio providencial de expansão islâmica. Para não negligenciarmos nenhum aspecto desta questão, precisaremos ainda estas considerações do seguinte modo, mesmo que nos tenhamos de repetir um pouco: a possibilidade bramânica deve manifestar-se, em todas as castas e entre os próprios Shúdras, não apenas de maneira analógica, como sempre foi o
caso, mas de maneira directa, e isso porque de *par te +, que inicialmente era, a casta inferior tornou-se um *todo+, nos finais do ciclo, sendo esse todo comparável a uma totalidade social: os elemen tos superiores dessa totalidade serão, de algum modo, *excepções nor mais +. Por outras palavras, o estado actual das castas parece copiar, sim bolicamente e em certa medida, a indistinção primordial, sendo as diferenças intelectuais entre as castas cada vez mais diminutas. As castas inferiores, tornando-se muito numerosas, representam de facto todo um povo, comportando por consequência todas as possibilidades humanas, enquanto as castas superiores, que não se multiplicaram nas mesmas pro porções, sofreram um declínio tanto mais sensível quanto *a corrupção do melhor é a pior + (corruptio oprimi péssima). Sublinhemos todavia, para evitar qualquer equívoco, que os elementos de elite das castas inferiores conservam, do ponto de vista colectivo e hereditário, o seu carácter de *excepções que confirmam a regra +, não podendo por isso misturar-se le gitimamente com as castas superiores, o que não os impede de modo al 92 A Unidade Transcendente das Religiões gum de serem individualmente aptos a vias reservadas normalmente às castas nobres. Assim, o sistema de castas, que foi durante milénios um factor de equilíbrio, manifesta forçosamente certas rupturas no fim do mahâ-yuga, à semelhança dos desequilíbrios no ambiente terrestre. Ouanto ao aspecto positivo que estas rupturas implicam, ele tem origem na mesma lei cósmica de compensação que tinha em vista Ibri Arabi quando afirmava,de acordo com diversos ditos do Profeta, que no fim dos tempos as chamas do Inferno esfriariam. É ainda a mesma lei que faz dizer ao Profeta que, no fim do mundo, se salvará quem cumprir um décimo do que o islão exigia de início. Tudo o que acabámos de expor não só diz respeito às castas hindus, mas também à humanidade no seu todo. Por outro lado, quanto às rupturas na estrutura exterior do hinduísmo, em todas as formas tradicionais encontramos factos análogos, em um ou outro grau. No que diz respeito à analogia funcional entre budismo e islamismo por referência ao fiínduísmo - tendo ambas as tradições o mesmo papel negativo e positivo face a este último -, os budistas mahâyânistas ou hinayânistas têm dela plena consciência, pois vêem nas invasões muçulmanas, sofridas pelos hindus, o castigo pelas perseguições que eles mesmos tiveram de sofrer por parte dos hindus. Depois desta digressão, indispensável para mostrar um aspecto importante da expansão muçulmana, voltamos a uma questão mais fundamental, a da dualidade de sentido inerente às exortações divinas quando referidas às coisas humanas. Tal dualidade acha-se prefigurada no próprio nome de *Jesus Cristo +: *Jes'us + - como *Gáutama + e *Maomé+ - indica o que há de limitado e relativo na manifestação do Espírito, e designa o suporte desta manifestação; *Cristo+ - como *Buda+ ou *Rassul AIlah+ (Apóstolo de Deus) - indica a realidade universal da manifestação, ou seja, o Verbo enquanto tal. Embora a teologia não se coloque numa perspectiva capaz de esgotar as suas consequências, tal dualidade de aspectos volta a encontrar-se na distinção entre a *natureza humana + e a
*natureza
divina+ de Cristo. missão em sentido abso 93 Frithjof Schuon
Ora, se os Apóstolos concebiam Cristo e a sua
luto, isso não se devia a limitações de tipo intelectual: de facto, no mundo romano, Cristo e a sua Igreja tinham um carácter único, portantosrelativamente absoluto +. Esta expressão, que parece ser e é logicamente uma contradição de termos, corresponde todavia a uma realidade: o Absoluto deve reflectir-se *corno tal + no relativo; e esse reflexo será, por referência às outras relatividades, *relativamente absoluto +. A diferença entre dois erros será sempre relativa por referência à sua falsidade, sendo uma simplesmente mais falsa - ou menos falsa - do que a outra. A diferença entre o erro e a verdade será, pelo contrário, absoluta, mas apenas de modo relativo, sem sair das relatividades, pois o erro não poderia ser absolutamente independente da verdade, não sendo mais do que uma negação mais ou menos confessada da mesma. Por outras palavras, o erro, nada tendo de positivo, não poderia opor-se à verdade de igual para igual e com plena autonomia. Isto permite entender porque não poderia haver aí um *absolutamente relativo +: esse seria o nada, e o nada nada é de modo algum. Dizíamos que Cristo e a sua Igreja tinham um carácter único, *relativamente absoluto +, no mundo romano. Por outras palavras, a unicidade principal, metafísica e simbólica de Cristo, da Redenção, da Igreja, exprimiu-se necessariamente numa unicidade de facto a nível terrestre. Se os Apóstolos não explicitaram os limites metafisicos que todo o facto naturalmente supõe e a experiência os levou a descorarem o sentido da universalidade tradicional, isso não significa que a sua Ciência espiritual não englobasse, no estado principal, o conhecimento dessa universalidade, ainda que não-actualizado quanto às suas aplicações a contingências determinadas. Da mesma forma, o olho que vê um círculo vê todas as outras formas, ainda que actualmente ausentes e mesmo que a visão se exerça apenas sobre esse círculo. A questão do que teriam dito os Apóstolos, ou o próprio Cristo, se tivessem encontrado um ser como Buda é perfeitamente inútil, pois esse tipo de coisas jamais acontece por ser contrário às leis cósmicas. Dificilmente teremos ouvido falar de encontros entre grandes santos pertencentes a civilizações diferentes. Os Apóstolos eram, no seu mundo, um grupo único. Mesmo admitindo, no seu raio de acção, a presença de iniciados assénicos, pitagóricos ou outros, a luz de tão pequenas minorias acabaria por se diluir na radiação de luz crística. Além disso, os Apóstolos não teriam de se preocupar com estes *homens rectos +, pois 94 A Unidade Transcendente das Religiões disse Jesus: *Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores + (Mat.,9:13). De um ponto de vista algo diferente, mas respeitando o mesmo princípio da delimitação tradicional, notaremos que São Paulo que, no cristianismo, foi o artesão primordial da expansão, como Omar o será mais tarde no isIão, evitará penetrar no domínio providencial desta última forma da Revelação, segundo uma passagem muito enigmática dos Actos dos Apóstolos (16:6-8). Sem insistirmos no facto de os limites da expansão desconhecerem por certo o rigor das fronteiras políticas - as objecções fáceis, que
previmos, não voltem no terreno em que se situa o nosso pensamento limitar-nos-emos a notar que a vinda do Apóstolo dos Gentios para ocidente tem um valor simbólico, mais por referência ao islão do que por referência à delimitação do mundo cristão. Por outro lado, o modo como este episódio foi relatado mencionando a intervenção do Espírito Santo e do *Espírito de Jestis + e passando em silêncio as causas destas inspirações não permite admitir que a abstenção de pregar a volta brusca do Apóstolo só tivesse sucedido por motivos exteriores, sem alcance principíaI, nem permite comparar este episódio a uma qualquer peripécia das viagens apostólicas'. Por fim, o facto de a província onde ocorreu esta intervenção do Espírito ser chamada *Asia+ acrescenta-se ainda ao carácter simbólico das ditas circunstâncias.
Permita-se-nos notar que, se nos referimos a exemplos concretos em vez de conjecturarmos sobre princípios e generalidades, nunca é com a intenção de convencer, mas unicamente para revelar alguns aspectos da realidade a quem assim os quiser entender. É só para esses que escrevemos, recusando-nos desde já a polémicas que não teriam interesse nem para os nossos eventuais contraditores nem, sobretudo, para nós mesmos. Devemos igualmente acrescentar que não é como historiadores que abordamos os factos, citados a título de exemplo, visto que eles não interessam em si mesmos, mas apenas na medida em que podem ajudar à compreensão de verdades transcendentes, verdades essas jamais à mercê dos factos. 95 vi O ASPECTO TERNáRIO DO Monoteísmo unidade transcendente das formas religiosas revela-se de forma particularmente instrutiva na relação recíproca entre as três grandes religiões ditas monoteístas e isso porque só estas fazem questão em se apresentar como exoterismos inconciliáveis. Mas, antes de mais, há que estabelecermos uma clara distinção entre aquilo a que poderíamos chamar *verdade simbólicas e *verdade objectivas. Citaremos, a título de exemplo, os argumentos do cristianismo e do budismo no referente às formas tradicionais que, de algum modo, lhes deram origem, a saber: o judaísmo e o hinduísmo, respectivamente. Tais argumentos são simbolicamente verdadeiros, pois as formas abandonadas não são vistas em si mesmas, na sua verdade intrínseca, mas unicamente nos seus aspectos contingentes e negativos, produtos de um declínio parcial. A reJeição dos Vedas corresponde, portanto, a uma verdade quando esta Escritura é tida exclusivamente como símbolo de uma erudição estéril, muito comum no tempo de Buda, tal como a rejeição paulina da Lei judaica é plenamente justificado quando não passa de um formalismo farisaico sem
vida espiritual própria. Se uma nova Revelação tem autoridade para depreciar valores tradicionais de origem mais remota é por ser independente e não fazer uso dos mesmos, já que, possuindo o equivalente desses valores, se basta totalmente a si mesma. Esta verdade aplica-se ainda ao foro interno de uma mesma forma tradicional, por exemplo, à antinomia entre as Igrejas Grega e Latina: o *cisma+ 97. Frithjof Schuon é uma contingência que não pode afectar a realidade intrínseca e essencial das Igrejas. O cisma entre Igrejas, como o cisma entre muçulmanos, que originou a corrente chiita, não depende apenas de vontades individuais: tem a ver com a própria natureza da religião que exteriormente, e não interiormente, divide. O espírito da religião pode exigir adaptações diversas, mas sempre ortodoxas, de acordo com contingências étnicas ou outras. O mesmo não acontece com as heresias, que dividem a religião por dentro e por fora sem poderem realmente dividi-Ia, pois o erro não é parte da verdade e que, não apenas são incompatíveis, no plano formal, com outros aspectos de uma mesma verdade, mas são em si mesmas falsas. Consideremos agora a questão da homogeneidade espiritual e cíclica das religiões no seu conjunto: o monoteísmo - que engloba as religiões judaica, cristã e islâmica, ou seja, as religiões de espírito semítico - funda-se essencialmente na concepção dogmática da Unidade (ou Não-Dualidade) divina. Ao dizermos que esta concepção é dogmática, especificamos que ela exclui qualquer outro ponto de vista, sem o que se tornaria impossível a aplicação exotérica que dá aos dognias toda a sua razão de ser. Vimos que é esta restrição, tão necessária à vitalidade das formas religiosas, que subjaz à limitação inerente ao ponto de vista exotérico enquanto tal. Por outras palavras, este caracteriza-se precisamente pela incompatibilidade entre concepções dotadas de formas aparentemente opostas, quando nas doutrinas puramente metafisicas ou iniciáticas os enunciados aparentemente contraditórios não se excluem nem se perturbam entre si'. 1 A unilateralidade com que certos factos das Escrituras são interpretados pelos exoteristas prova que o interesse que aqueles têm não é alheio às suas especulações limitadoras, como mostrámos no capítulo sobre o exoterismo. Na verdade, a interpretação esotérica de uma Revelação é admitida pelo exoterismo, sempre que tal interpretação sirva para o confirmar, e é arbitrariamente omitida quando susceptível de prejudicar o dogmatismo exterior por detrás do qual se esconde um individualismo sentimental: assim, há quem se sirva da verdade crística, que pela sua forma é um esoterismo judaico, para condenar o formalismo excessivo do judaísmo; mas não faz a aplicação universal dessa verdade, projectando luz sobre toda a forma sem excepção, incluindo a sua. Segundo a Epístola de São Paulo aos Romanos (3:27 - 4:17), o homem é justificado pela fé, e não pelas obras; para a Epístola Católica de São Tiago (2:14-26), o homem
é justificado pelas obras e não apenas pela fé. Ambos citam Abraão como exemplo. Ora, se esses dois textos pertencessem a religiões diferentes, ou a dois ramos reciprocamente *cismáticos + de uma mesma religião, não há dúvida de que os teólogos de cada uma 98 A Unidade Transcendente das Religiões Esta tradição monoteísta pertencia originariamente a todo o ramo nómada do grupo semítico, saído de Abraão, e que se subdividia em dois grupos, o de Isaac e o de Ismael. Só a partir de Moisés o monoteísmo se torna realmente judaico. Moisés foi chamado a dar ao monoteísmo um forte contributo, associando-o de algum modo ao povo@ de Israel, que se tornava assim seu guardião, enquanto a tradição abraâmica se ia obscurecendo entre os ismaelitas. Mas tal gesto, por muito necessário e providencial, conduziu fatalmente a uma restrição da forma exterior, devido à tendência particularista inerente a cada povo. Podemos dizer que o judaísmo anexou o monoteísmo, tornando-o coisa de Israel, fazendo com que a herança de Abraão se tornasse, desde então, inseparável de qualquer adaptação secundária, de qualquer consequência ri tual ou social implicado na Lei mosaica. O monoteísmo, canalizado e cristalizado no judaísmo, adquiriu, assim, um carácter histórico, embora não em sentido exclusivamente genérico e exterior, o que seria incompatível com o carácter sagrado de Israel. Foi esta absorção da tradição primitiva por parte do povo judeu que permitiu distinguir exteriormente o monoteísmo mosaico do dos Patriarcas, sem que tal distinção atingisse a esfera doutrinal. Esse carácter histórico do judaísmo teve como consequência natural a ideia messiânica, não inerente ao monoteísmo primitivo, mas ligada, enquanto tal, ao mosaísmo. Estas reflexões sobre o monoteísmo original, a sua adaptação por Moisés, a sua anexação pelo judaísmo e a sua concretizarão em ideia messiânica bastarão para passarmos à consideração do papel orgânico do cristianismo dentro do ciclo monoteísta. Diríamos que o cristianismo absorveu, na afirmação messiânica, toda a herança doutrinal do monoteísmo, e fê-lo de pleno direito, sendo ele o legítimo ponto de chegada da forma judaica. delas se afadigariam em demonstrar a incompatibilidade destes textos. Mas como estes pertencem a uma única e mesma religião, os esforços tendem pelo contrário a demonstrar a sua perfeita compatibilidade. Porque não aceitar então as Revelações diferentes daquela a que se adere? *Deus não pode côntradizer-se +, dirão, ainda que isso não passe de uma petição de princípio. Ora, das duas uma: ou admitimos que Deus se contradiz, e não aceitamos nenhuma Revelação; ou admitimos, por impossibilidade cóntrária, que há em Deus aparências de contradição, mas aí já não temos o direito de rejeitar uma Revelação estranha pela simples razão de ela ser, à primeira vista, contraditória por referência à Revelação que admitimos a priori. 99
Frithjof Schwn O Messias, pelo facto de realizar na sua pessoa a Vontade Divina que originou o monoteísmo, vai necessariamente além da forma que não lhe permite realizar plenamente a sua missão. Para dissolver uma forma transitória, é preciso que, na sua qualidade de Messias, goze eminentemente da autoridade inerente à tradição de que se faz última palavra. Por isso é mais do que Moisés e anterior a Abraão: tais afirmações do Evangelho demonstram uma identidade *de força maior + entre o Messias e Deus, que permitem entender que um cristianismo que negue a divindade de Cristo nega a sua própria razão de ser. Afirmámos que a pessoa *avatática + do Messias absorveu inteiramente a doutrina monoteísta, o que significa que Cristo devia ser não apenas o termo do judaísmo histórico, mas o ponto de apoio do nionoteísmo e o templo da Presença Divina. Esta extrema positividade histórica de Cristo arrastou consigo uma limitação da forma tradicional, como acontecera no judaísmo, onde Israel tinha o papel preponderante que deveria mais tarde caber ao Messias, papel forçosamente restritivo e limitador da realização do nionoteísmo inte ral. Aqui intervém o islão, cuja posição e significado 9 no ciclo monoteísta nos falta ainda precisar'. Antes de abordarmos este assunto, consideremos ainda um outro aspecto da questão que acabámos de tratar. O Evangelho refere esta palavra de Cristo: *A Lei e os Profetas vão até João. Depois de João, é anunciado o Reino de Deus, e cada um se esforça por entrar nele + (Luc.,15:16)., Além disso, o Evangelho refere que, no momento da morte de Cristo, o véu do templo se rasgou de alto a baixo, facto que, como a palavra acima citada, indica que a chegada de Cristo pôs fim ao mosaísmo. Ora, poderíamos objectar que o mosaísmo, enquanto Palavra Divina, não é susceptível de 1 A perspectiva que acabámos de enunciar poderia lembrar a descrita por Joaquim de Fiori que atribuía a cada pessoa da Santíssima Trindade uma preponderância particular em cada divisão do ciclo tradicional na perspectiva cristã: o Pai dominava a Antiga Lei, o Filho a Nova Lei e o Espírito Santo a última fase do ciclo cristão que começava com as novas ordens monásticas fundadas por São Francisco e São Domingos. Podemos detectar facilmente a assimetria destas correspondências: o autor desta teoria devia ignorar, real ou formalmente, o islão, que corresponde, segundo o dogma islâmico, ao reino do Paracleto. Mas não é menos verdade que a épocaque Joaquim de Fiori colocava sob a especia1,ipúu@Ucia do Espírito Santo, conheceu no Ocidente uma renovação espiritual. -x P, PA 100 A Unidade Transcendente das Religiões anulação, pois *a nossa Torah é para a eternidade: nada lhe podemos somar ou subtrair + (Maimónides). Como conciliar então a abolição do mosaísmo, ou do
ciclo glorioso da sua existência terrestre, com a *eternidade da Revelação mosaica? Há, antes de mais, que entendermos que esta abolição, se é real na ordem que lhe cabe, não deixa por isso de ser relativa; mas a realidade intrínseca do mosaísmo é absoluta, porque divina. É essa qualidade divina que necessariamente se opõe à supressão de uma Revelação, pelo menos por tanto tempo quanto a forma doutrínal e ritual desta permanecer intacta - o que era o caso do mosaísmo, sem o qual Cristo não se teria podido conformar a ele.' A abolição do mosaísmo, levada a cabo por Cristo, remonta a um Querer Divino; a permanência intangível do mosaísmo é todavia de ordem mais profunda, no sentido que remonta à própria essência divina, de que este Querer é apenas uma manifestação particular - tal como a vaga é manifestação particular da água de que não pode modificar a natureza. O Querer Divino, manifestado por Cristo, só podia afectar um modo particular do mosaísmo e não a sua qualidade Importa notar que o declínio do esoterismo judaico na época de Cristo Nicodemos, doutor em Israel, ignorava o mistério da ressurreição! - permitia ver o mosaísmo na sua totalidade, e por referência à Nova Revelação, como um exoterismo exclusivo e maciço, visão essa de valor acidental e provisório, porque limitada à origem do cristianismo. Em todo o caso, a Lei mosaica não devia condicionar o acesso aos novos Misté~ rios como faria um exoterismo por referência a um esoterismo, de que é complemento. Mas foi um outro exoterismo que se constituiu para a nova religião, com vicissitudes de adaptação e interferências que continuaram durante séculos. Paralelamente, por seu Iado, o judaísmo reconstituía e readaptava o seu exoterismo no novo ciclo da sua história, a diáspora; e parece que houve aí um processo de algum modo correlativo ao do cristianismo, precisamente graças ao amplo influxo de espiritualidade que representava a manifestação do Verbo crístico. Todos os elementos vizinhos dessa manifestação sofreram directa ou indirectamente, aberta ou encobertamente, a sua influência, e foi assim que se deu, no primeiro século do ciclo cristão, por um lado, o desaparecimento dos antigos mistérios, uma parte dos quais foi absorvida pelo esoterismo cristão, e por outro lado, uma irradiação de forças espirituais nas tradições mediterrânicas, por exemplo, no neoplatonismo. No que se refere ao judaísmo, existiu até aos nossos dias, e existe sem dúvida ainda hoje, uma verdadeira tradição esotérica, não importa a época exacta em que se operou essa transformação depois da manifestação de Cristo e do começo do novo ciclo tradicional, a diáspora, e qual tenha sido mais tarde o papel aparentemente análogo do islão face ao judaísmo, assim como face ao cristianismo.
101 IL Frithjof Schon *eterna +.
Portanto, embora a presença real (Shekhinah) já não habite no Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, a Divina Presença permanece sempre em Israel, não já como um fogo ininterruptojocalizado num santuário, mas como uma pedra ardente que, sem manifestar o fogo de modo constante, o contém virtualmente, podendo manifestá-lo em certos períodos ou ocasiões. No judaísmo e no cristianismo, o monoteísmo conheceu duas expressoes antagónicas, que o islão, antagónico por referência a estas formas, de algum modo recapitulou, harmonizando o antagonismo judaico-cristão numa síntese que marcou o termo de expansão e realização integral do monoteísmo. Isso acha-se expresso no facto de o islão ser o número 3 desta corrente tradicional, ou seja, representar o número da harmonia, enquanto o cristianismo, o número 2, o da alternativa, não se basta a si mesmo, devendo ou ser reconduzido à unidade, por absorção de um dos seus termos pelo outro, ou recriar a unidade, pela produção de uma unidade nova. O modo de realização da unidade é precisamente o islão, que resolve o antagonismo judaico-cristão de que, em parte, surgiu e que, em parte, anula, por redução ao monoteísmo puro de Abraão. Poderíamos comparar o islão a um judaísmo que não rejeitou o cristianismo ou a um cristianismo que não renegou o judaísmo. Mas se, por ser produto de ambos, a sua atitude pode ser caracterizada deste modo, o islão coloca-se porém fora da dualidade ao rejeitar por um lado o *desenvolvimento + judaico e por outro a *transgressão + cristã, pondo em relevo não o povo judaico ou a pessoa de Cristo, mas a afirmação fundamental do monoteísmo, a Unidade de Deus. Para ultrapassar o messianismo foi preciso que o islão se colocasse num ponto de vista diferente deste, e o reduzisse, para o integrar, ao seu próprio ponto de vista, donde se explica a integrarão de Cristo na linhagem dos Profetas, de Adão a Maomé. É claro que o islão, como as duas religiões precedentes, nasceu por intervenção directa da Vontade Divina, da qual surgiu o monoteísmo, e que o Profeta reflectia a verdade messiânica essencial, inerente ao monoteísmo original ou abraâmico. O islão pode ser considerado como uma *reacção+ abraâmica à ane 102 A Unidade Transcendente das Religiões xação do monoteismo por Israel, por um lado, e pelo Messias, por outro. Se metafisicamente estes dois pontos de vista não se excluem de modo algum, o dogmatismo não pode entendê-los simultaneamente nem afirmá-los senão por dogmas antagónicos que dividem o aspecto exterior do monoteísmo integral. Se o judaísmo e o cristianismo representam, em certa medida, uma frente única face ao islão, o cristianismo e o islão opõem-se por seu lado ao judaísmo, pela sua tendência à plena realização da doutrina monoteísta. Mas vimos que essa tendência foi limitada, na forma cristã, pela preponderância da ideia messiânica, que é secundária para o monoteísmo puro. O elemento
legislativo do judaísmo foi quebrado por uma *exteriorização +, necessária e legítima, das concepções esotéricas, e absorvido pelo *Além+, de acordo com a fórmula: O meu reino não é deste mundo. A ordem social foi substituída pela ordem espiritual, sendo os sacramentos da Igreja a legislação correspondente a esta ordem. Mas como a legislação espiritual não responde às exigências sociais, houve que recorrer a elementos de legislaçãoheterogéneos, o que gerou um dualismo cultural nefasto para o mundo cristão. O islão restabeleceu uma legislação sagrada para *este mundo +, juntando-se assim ao judaísmo, sem deixar de reafirmar a universalidade que o cristianismo antes dele havia reposto ao quebrar a casca da Lei mosaica. Também poderíamos dizer que o equilíbrio entre os dois aspectos divinos, Rigor e Clemência, constituiu a essência da Revelação maometana, que nisso se harmonizou com a Revelação abraâmica. Se a Revelação crística afirma a sua superioridade face à Revelação mosaica, é porque a Clemência é principal e ontologicamente *anterior + ao Rigor, como o confirma a inscrição do Trono de A11âh: *Na verdade, a Minha Clemência precedeu a Minha Cólera + (Inna Rahmati sabagat Ghadabi). O monoteísmo revelado a Abraão possuía em perfeito equilíbrio o esoterismo e o exoterismo, primordialmente indistintos nas religiões de cepo semítico. Com Moisés, é o exoterismo que, por assim dizer, se torna tradição, determinando a forma desta, sem prejudicar a sua essência. Com Cristo, é inversamente o esoterismo que se torna tradição. Com Maomé, o equílíbrio inicial é restabelecido e o ciclo da Revelação monoteísta encerrado. Tais alternâncias na Revelação integral do monoteísmo procedem da sua 103 Frithjof Schon própria natureza, não sendo exclusivamente imputáveis às vicissitudes da contingência. Sendo a *letra+ e o *espírito + sinteticamente entendidos no monoteísmo integral ou abraâmico, deveriam cristalizar-se sucessivamente ao longo da Revelação monoteísta, devendo o abraamismo manifestar o equilíbrio indiferenciado do *espírito + e da *letra+; o mosaísmo, a *letra+; o cristianismo, o *espírito +; e o islão, o equili 'brio diferenciado destes dois aspectos da Revelação. Toda a religião é forçosamente uma adaptação, uma limitação. Se isso vale para as tradições puramente metafisicas, vale muito mais para os dogmatismos que representam adaptações a mentalidades mais limitadas.' Tais limitações não devem encontrar-se, de algum modo, nas origens das formas tradicionais; manifestam-se, antes, no decurso do seu desenvolvimento, tornando-se mais notórias no fim e concorrendo para esse fim. Se tais limitações são necessárias para a vitalidade das religiões, nem por isso deixam de ser limitações com todas as consequencias. As heterodoxias são consequência indirecta desta necessidade de restringir a amplitude da forma tradicional, limitando-a, à medida que se avança para a idade sombria. E não pode ser de outra maneira, mesmo para os símbolos sagrados, pois só a Essência infinita, eterna e informal, é pura e inviolável, devendo a sua transcendência manifestar-se na dissolução das formas e na sua irradiação através das mesmas.
Se temos fundamentos para afirmar que a mentalidade dos povos ocidentais, incluindo os do Próximo Oriente, tem qualquer coisa de mais limitado que a da maioria dos povos orientais, isso deve-se a uma certa intrusão, nos Ocidentais, do elemento passional na esfera da inteligência, donde a sua propensão a ver as coisas criadas sob um único aspecto, a do *facto bruto +, e a sua inaptidão à contemplação intuitiva das essências cósmicas e universais que se insinuam nas formas. E o que explica a necessidade de um teísmo abstracto que se deve acautelar perante o perigo de idolatria, assim como de panteísmo. Trata-se de uma mentalidade que se expande, há já vários séculos e por razões cíclicas, cada vez mais entre todos os povos, que permite entender por um lado a facilidade relativa das conversões religiosas de povos de civilização não-doginática, mitológica ou metafísica, e por outro lado o carácter providencial da expansão muçulmana nessas civilizações. 104 Vil
CRISTIANISMO E ISLÃO
mos que, de entre as religiões que dão testemunho mais ou menos directo da Verdade primordial, o cristianismo e o islão representam, dentro da herança espiritual dessa Verdade, dois pontos de vista diferentes. Isso levanta-nos a questão do que é, em si mesmo, um ponto de vista. Nada mais simples do que considerá-lo ao nível da visão física, em que o ponto de vista determina uma perspectiva coordenada e necessária, onde tudo muda de figura segundo a posição de quem vê, ainda que os elementos da visão sejam os mesmos - os olhos, a luz, as cores, as formas, as proporções, a situação no espaço. Altera-se o ponto de partida da visão, não a visão em si mesma. Se admitimos isso no mundo físico, que é reflexo das realidades espirituais, como podemos negar a existência ou preexistência de semelhantes relações em tais realidades? O olho é o coração, o órgão da Revelação; o Sol, Princípio Divino, o dispensador da'luz; a luz, o Intelecto; os objectos, as Realidades ou Essências Divinas. Mas se nada nos impede de mudar de ponto de vista, a nível físico, o mesmo não se passa naquele plano espiritual que ultrapassa o indivíduo, tornando a sua vontade determinada e passiva. Para entendermos um ponto de vista espiritual ou religioso, não basta a nossa boa intenção em estabelecermos correspondências entre elementos religiosos extremamente comparáveis. Tal poderia tornar-se uma síntese superficial e pouco útil, mesmo se as comparações têm legitimidade quando não
tomadas como ponto de partida e antepostas a uma análise da 105 Frithjof Schuon constituição interna das religiões. Para chegar ao ponto de vista religioso, há que entrever a unidade em que todos os seus elementos constitutivos se acham necessariamente coordenados. Tal unidade é a do ponto de vista espiritual, em si mesmo, que é germe da Revelação. A causa primeira da Revelação não é, de modo algum, assimilável a um ponto de vista, tal como a luz nada significa para a situação espacial do olho. Mas o que constitui toda a Revelação é precisamente o encontro entre a única Luz e uma ordem contingente e limitada que representa como que um plano de refracção espiritual fora do qual não há Revelação. Antes de considerarmos a relação que existe entre cristianismo e islamismo, seria oportuno notarmos que o espírito ocidental é quase todo de essência cristã no que tem de verdadeiramente positivo. Não está no poder do homem desfazer-se de uma hereditariedade tão profunda, servindo-se de meros artifícios ideológicos. A sua inteligência exerce-se segundo hábitos seculares, mesmo quando inventa erros. Não podemos esquecer a sua formação intelectual e mental, por muito diminuída que seja. Se assim é e se algo do ponto de vista tradicional subsiste inconscientemente em quem pensa ter-se libertado de todos os seus elos ou, por imparcialidade, se coloca fora do ponto de vista cristão, como podemos esperar que elementos de outra religião sejam interpretados no seu verdadeiro sentido? Não é flagrante que opiniões correntes sobre o islamismo sejam sensivelmente as mesmas na maior parte dos Ocidentais, digam-se cristãos ou se gabem de já não o serem? Nem os próprios erros filosóficos seriam concebíveis se não representassem a negação de certas verdades e tais negações não fossem reacções directas ou indirectas a limitações formais da religião. Por aí se vê que nenhum erro, seja qual for a sua natureza, pode aspirar a uma perfeita independência face à concepção tradicional que rejeita ou desfigura. Uma religião é comparável a um organismo vivo, que se desenvolve segundo leis necessárias e precisas. Poderíamos, portanto, chamar-lhe um organismo espiritual, ou social no seu aspecto mais exterior; mas sempre um organismo, e não uma construção de convenções arbitrárias. Não podemos, pois, legitimamente considerar os elementos constitutivos de uma religião fora da sua unidade interna, como se fossem factos sem importância. Esse erro é frequentemente cometido, mesmo pelos mais imparciais, 106 A Unidade Transcendente das Religiões ao estabelecerem correspondências externas sem terem em conta que o elemento tradicional é determinado pelo ponto de partida da religião integral e um mesmo elemento, personagem ou livro, pode ter significados diferentes de uma religião para outra. Ilustrámos tais observações, considerando paralelamente elementos fundamentais das tradições cristã e muçulmana. A incompreensão habitual e recíproca dos representantes das duas religiões revela-se nos mais ínfimos pormenores, como ao chamar *maometano + a um muçulmano, transposição imprópria da apelidarão de *cristão +. Se esta última convém perfeitamente,aos fiéi; da
religião que, fundada por Cristo, o perpetua na Eucaristia e no Corpo Místico, não é correcta quando aplicada aos islamitas, cuja fé não assenta imediatamente no Profeta, mas sim no Alcorão, afirmação da Unidade Divina, que não consiste numa perpetuação de Maomé, mas na conformidade ritual e espiritual do homem e da sociedade à Lei corânica, à Unidade. Por outro lado, o termo árabe mushrikún, *aqueles que associam (falsas divindades a Deus) +, referido aos cristãos, esquece que o cristianismo apenas não repousa imediatamente na ideia de Unidade, já que o seu fundamento é essencialmente o mistério de Cristo, mas sendo mushrikún um termo sagrado - no seu sentido corânico - é evidentemente o suporte de uma verdade que ultrapassa o facto histórico da religião cristã. Os factos têm aliás no islão um papel muito menos relevante do que no cristianismo, cuja base é essencialmente um facto, e não uma ideia, como acontece no islão. É aí que se manifesta, em suma, a divergência fundamental entre as duas formas tradicionais. Para o cristão, tudo gira em torno da Encarnação e na Redenção. Cristo absorve tudo mesmo a ideia de Princípio Divino, que aparece sob um aspecto trinitário, e de humanidade, que se torna seu Corpo Místico ou Igreja militante, padecente e triunfante. Para o muçulmano, tudo se centra em A11^ o Princípio Divino visto no Seu aspecto de Unidade' e Transcendência, e na conformidade, no abandono a ele: el-Islâm. No centro da doutrina cristã está o Homem-Deus: o homem universalizado é o Filho, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Deus individualizado é Cristo Jesus. O islão não atribui tal importância ao intermediário. Não é ele que absorve tudo: só a Afirma-se expressamente, neste credo islâmico, que é o Fikh el-akbar de Abu Hanifa, que Allâh não é um em sentido numérico, mas por não ter quem se lhe compare. 107
119 Frithjof Schuon concepção monoteísta da Divindade está no centro da doutrina islâmica e a comanda inteiramente. A importância dada pelo islão à ideia de Unidade pode parecer, do ponto de vista cristão, supérflua e estéril, ou mesmo um pleonasmo da tradição judaico-cristã. Esquece-se que a espontaneidade e a vitalidade da religião islâmica não pode ser efeito de um empréstimo e que a originalidade intelectual dos muçulmanos só pode provir de uma Revelação. Se no islão a ideia de Unidade é suporte da espiritualidade e, em certa medida, de aplicação social, o mesmo não se passa com o cristianismo: o seu ponto central, como já dissemos, é a doutrina da Encarnação e da Redenção, concebida de modo universal na Santíssima Trindade, não tendo aplicação humana a não ser nos Sacramentos e na participação no Corpo Místico de Cristo. O cristianismo, tanto quanto a história nos permite julgar, jamais teve uma aplicação social no sentido pleno do termo. Nunca integrou em si inteiramente a sociedade dos homens. Colocou-se, como Igreja, acima dos homens, sem os envolver nem lhes atribuir funções que lhes permitissem
participar mais directamente na sua vida interna. Não consagrou os factos humanos de modo suficiente. Deixou os elementos laicos fora de si, reservando-lhes uma participação mais o menos passiva na tradição. É assim que se apresenta a organização do mundo cristão segundo a perspectiva muçulmana. No islão, cada homem é padre de si mesmo, pelo simples facto de ser muçulmano. É o patriarca, o imâm ou o califa da sua família. Esta é reflexo de toda a sociedade islâmica. O homem é uma unidade, ima em do Criador, de quem é *vigário + (khalifah) na Terra. Não poderia 9 portanto ser leigo. Também a família é una: uma sociedade dentro da sociedade, um bloco impenetráveV, à semelhança do homem responsável e submisso, o muslim, e do mundo muçulmano, que é de uma homogeneidade e estabilidade quase incorruptíveis. O homem, a família e a sociedade são forjados na ideia de Unidade como suas múltiplas adaptações. São unidades como Affih e a Sua Palavra, o Alcorão. Os cristãos não podem O símbolo supremo do islão, a ka'bah, é um bloco quadrado, exprimindo o número quatro, o da estabilidade. O muçulmano pode constituir família até quatro esposas: estas representam a substância da família, ou a própria substância social, e são excluídas da vida pública. O homem é, na sociedade islâmica, uma unidade fechada. A casa árabe é traçada segundo a mesma ideia: é quadrada, uniforme, fechada para o exterior, ornada no interior e aberta sobre um pátio. 108 A Unidade Transcendente das Religiões reclamar-se da ideia de Unidade ao mesmo título que os muçulmanos. O conceito de Redenção não se associa necessariamente ao de Unidade Divina. Poderia subsistir numa doutrina politeísta. A Unidade Divina, que o cristianismo teoricamente admite, não aparece nele como um elemento *dinâmico +. A santidade cristã, a participação perfeita no Corpo Místico de Cristo, só indirectamente procede desta ideia. Tal como a doutrina islâmica, a doutrina cristã parte de uma noção teísta, mas insiste expressamente no aspecto trinitário de Deus. É Ele quem encarna e resgata o mundo. É o Princípio que desce ao manifesto para restabelecer nele o equilíbrio interrompido. Na doutrina islâmica, Deus afirma-se pela Unidade. Ele não encarna por uma distinção intrínseca. Ele não resgata o mundo. Ele absorve-o pelo islão. Ele não desce ao manifesto, projecta-se nele, como o sol se projecta pela luz. É essa projecção que permite à humanidade participar nele. Acontece que certos muçulmanos, para quem o Alcorão significa tanto como Cristo para os cristãos, acusam estes de não possuírem um Livro equivalente ao seu, ou seja, um único compêndio doutrinal e legislativo, escrito na língua em que foi revelado. Na pluralidade dos Evangelhos e dos textos neotestamentários vêem a marca de uma divisão, agravada pelo facto de esses escritos não se conservarem na língua em que Jesus falava, mas numa língua não-semítica, ou traduzidos desse para outro idioma, igualmente estranho aos povos saídos de Abraão, e apontam o facto de esses textos serem traduzidos para qualquer língua estrangeira. Postura
tão confusa como censurar o Profeta por ser um simples mortal. De facto, se o Alcorão é Palavra Divina ' também Cristo, vivo na Eucaristia, é o Verbo Divino, e não o Novo Testamento. Este desempenha somente uma função de suporte da mensagem divina, não sendo ele a mensagem em si. A lembrança, o exemplo e a intercessão -do Profeta estão subordinados ao Livro revelado. O islão é um bloco espiritual, religioso e social.' A Igreja é um centro, e não um bloco. O cristão leigo é, por definição, um ser periférico. O muçulmano, pelo seu carácter sacerdotal, é um ser central dentro da sua tra ' Um bloco, imagem da unidade. A unidade é simples e, por consequência, indivisível. Como nota um antigo alto funcionário inglês no Egipto, *o islão não pode ser reformado. Um íslão reformado já não seria o islão. Seria outra coisa +. 109 Frithjof Schon dição e pouco importa que esteja exteriormente separado da comunidade a que pertence. Ele é padre de si mesmo e unidade autónoma, pelo menos do ponto de vista religioso. Daí deriva a convicção profunda do muçulmano. A fé do cristão é de outra natureza: ela *atrai+ e *absorve+ a alma, mais do que a *engloba + e *penetra +. O cristão, segundo o ponto de vista muçulmano, só pelos Sacramentos se liga à tradição. Acha-se sempre relativamente excluído, conservando uma atitude de receptividade. Na Cruz, seu símbolo supremo, os ramos afastam-se indefinidamente do centro, embora a ele sempre ligados. Na ka'bah, símbolo do islão, o todo reflecte-se na mais ínfima parte que, pela sua coesão interna, permanece idêntica às restantes partes e à ka'bah em si mesma. As correspondência entre os elementos tradicionais acima referidos não excluem outras de pontos de vista diferentes. Assim, a analogia entre o Novo Testamento e o Alcorão permanece real na sua ordem, tal como Cristo e o Profeta correspondem analogicamente um ao outro. Se negar tais correspondências é afirmar que existem semelhanças desprovidas de sentido, também proceder de modo exterior ou sincretista às mesmas, quase sempre em prejuizo de um dos elementos em presença, é tirar valor real ao resultado de tais comparações. Existem, com efeito, dois tipos de correspondências tradicionais: por um lado, as fundadas na natureza fenoinénica dos elementos; por outro, as derivadas da estrutura interna de cada religião. No primeiro sentido, será algo como um livro, um rito, uma instituição, uma personagem; no segundo, um ou outro significado orgânico dentro de uma tradição. É a analogia que existe entre os pontos de vista físico e espiritual: para o, primeiro, um objecto permanece sempre o mesmo, podendo mudar de aspecto ou de importância segundo as várias perspectivas - lei facilmente transponível para a ordem espiritual. Importa precisar que, em todas estas considerações, abordamos exclusivamente as religiões enquanto tais, ou seja, enquanto organismos, não nos referindo às suas possibilidades puramente espirituais, que são em princípio idênticas. É evidente que aí não pode intervir qualquer questão de preferência. Se o islão, enquanto organismo tradicional, é mais homogéneo e mais intimamente coerente do que a forma cristã, esse é um fac 110
A Unidade Transcendente das Religiões tor muito contingente. Note-se, por outro lado, que o carácter solar de Cristo não confere ao cristianismo superioridade sobre o islamismo. Mais tarde explicaremos porquê, limitando-nos agora a recordar que cada forma tradicional é necessariamente superior às outras, sob um aspecto determinado quanto à sua manifestação - não quan ' to à sua essência ou possibilidades espirituais. Aos que, para julgar a forma islâmica, se querem apoiar em comparações superficiais e forçosamente arbitrárias, partindo da forma cristã, diremos que o islão, por corresponder a uma possibilidade espiritual, tem tudo o que necessita para manifestar tal possibilidade. Do mesmo modo, o Profeta, longe de ter sido apenas um imitador imperfeito de Cristo, foi tudo o que devia ser para realizar a possibilidade espiritual representada pelo islão. Se o Profeta não é Cristo ou se aparece sob um aspecto mais humano, é porque a razão de ser do islamismo não assenta numa ideia crística ou *avatárica +, mas numa noção que deve mesmo excluir aquela. A ideia, realizada pelo islamismo e pelo Profeta, é a da exclusiva Unidade Divina, cujo carácter de absoluta transcendência implica - para o mundo criado ou manifesto - um correlativo aspecto de imperfeição. Foi o que permitiu aos muçulmanos servirem-se, desde o início, de meios humanos como a guerra para constituir o seu mundo tradicional, enquanto para o cristianismo foi preciso uma distância de séculos, desde os tempos apostólicos, para que se servisse do mesmo meio, tão indispensável na propagação da fé. As guerras, levadas a cabo pelos Companheiros do Profeta, foram ordálios tendo em vista a elaboração ou cristalização dos aspectos formais de um mundo novo. O ódio nada tem a ver com isso e os santos homens, que assim combateram, longe de lutarem contra indivíduospr interesses humanos, agiram dentro do espírito da Bhagavad-Gita: é Krishna quem incita Arjuna a combater; não a odiar nem a vencer, mas a cumprir o seu destino, como instrumento do plano divino, sem se apegar ao fruto das obras. Tal luta de pontos de vista, quando se constitui um mundo tradicional, reflecte a concorrência principal das possibilidades de manifestação que ocorre quando do caos surge um cosmos. Era da natureza do islão ou da sua missão colocar-se, desde início, em terreno político, no que respeita à sua afirmação exterior, o que teria sido não apenas contrário à natureza ou à missão do cristianismo primitivo, mas totalmente irrealizável num ambiente tão sólido e Frithjof Schuon tão estável como o Império Romano. Mas, desde que o cristianismo se tornou religião do Estado, não apenas pôde como teve de se colocar em terreno político, tal como fez o islamismo. As vicissitudes que se deram, no,islão, a partir da morte do Profeta, não são certamente imputáveis a uma insuficiência espiritual, são sim imperfeições inerentes à política enJ@ quanto tal. O facto de o islão se ter imposto exteriormente por meios hu manos tem como único fundamento o Querer Divino que não quis interfe rências esotéricas na estruturação terrestre da nova forma tradicional. Quanto à diferença entre Cristo e o Profeta, podemos adiantar que os grandes mestres espirituais, independentemente dos respectivos graus, manifestaram quer uma sublimação quer uma norma. A primeira, no caso de Buda ou de Cristo, como em todos os santos mon es ou eremitas; a se gunda, no caso de Abraão, de Moisés ou Maorné, como
em todos os san tos que viveram no mundo, por exemplo os santos, monarcas ou guerrei ros. A atitude de uns corresponde à palavra de Cristo: *O Meu Reino não é deste mundo +; a atitude dos outros, à palavra: *Venha a nós o Vosso Reino +. Os que crêem deve negar ao Profeta do islão qualquer legitimidade, in vocando argumentos de ordem moral, esquecem-se de que a única ques tão que se coloca é saber se Maorné foi ou não inspirado por Deus, não se é comparável a Cristo ou se agiu de acordo com uma moral estabelecido. Quando se nos põe o problema de Deus ter permitido aos Hebreus,a poli gamia ou ordenado a Moisés que passasse o povo de Canaã ao fio da es pada, a questão da moralidade de tais modos de agir não se coloca de ma neira alguma. O que conta é exclusivamente a Vontade Divina, cujo fim é invariável, mas cujos meios ou modos variam em razão da Infinidade da sua Possibilidade ou, secundariamente, em razão da indefinida diversida de das contingências. Do outro lado cristão, censuram-se frequentemente ao Profeta factos como a destruição da tribo dos Coraiditas. Mas esquece -se que qualquer Profeta de Israel teria agido mais duramente do que ele. Seria bom lembrarmo-nos de como Samuel, por ordem de Deus, agiu pa ra com os Amalecitas e o seu rei. Tanto o caso dos Coraiditas como o dos Fariseus oferece um exemplo de *discernimento dos espíritos +, quase au tomático para quem em contacto com manifestações de Luz. Por muito neutro que possa parecer um indivíduo colocado no meio do caos ou da 112 A Unidade Transcendente das Religiões indiferença de que o Próximo Oriente do tempo de Maomé fornece uma imagem bem característica - igual à de todos os meios em que se dá uma reforma religiosa -, o seu estado de espírito actualiza-se espontaneamente perante a alternativa de contacto com a Luz. Isso explica por que motivo se abrem as portas do Inferno, sempre que as portas dos Céus se descerram para derramar a Revelação; também na ordem sensível, toda a luz projecta uma sombra. Se Maomé fosse um falso profeta, não entendemos porque Cristo não falaria dele, como falou do Anticristo. Mas se é um verdadeiro Profeta, as passagens sobre o Paracleto devem - não exclusivamente, mas eminentemente respeitar-lhe, pois é impossível que Cristo, ao falar do futuro, tivesse passado em silêncio sobre um fenómeno de tais dimensões. É isso também que exclui a priori que Cristo, nas suas predições, tenha podido englobar Maomé no número dos *falsos profetas +. Maomé não foi de modo algum, na história da nosssa era, um exemplo entre outros do gênero. Foi, pelo contrário, único e incomparável'. Se fosse um dos falsos profetas *Se a grandeza do desígnio, a exiguidade dos meios e a imensidão dos resultados são as três medidas do gênio humano, quem ousaria comparar um grande vulto da história moderna a Maomé? De entre estes, os mais famosos apenas moveram armas, leis e impérios. Se algo fundaram, foi poderios materiais que, multas vezes, desabaram antes deles. Aquele moveu exércitos, legislações, impérios, povos, dinastias, milhões de homens, num terço do globo habitado. Moveu ainda ideias, crenças, almas. Fundou uma nação espiritual sobre um livro, de que cada letra se tornou lei. Entre povos
de todas as línguas e raças imprimiu com carácter indelével o ódio às falsas divindades e a paixão pelo Deus uno, imatería1. + (Lamartine, Histoíre de la Turquie.) *A conquista árabe desencadeado simultaneamente sobre a Europa e a Asia não conhece precedentes. A rapidez dos seus sucessos é somente comparável àquela com que se constituíram os Impérios Mongóis de um Atila, ou mais tarde de um Gengiscão ou de um Tamerlão. Estes, porém, foram muito efémeros, enquanto a conquista do islão foi duradoura. Esta religião conta com fiéis em quase toda a parte onde se impôs desde os primeiros califas. Foi um verdadeiro milagre a sua difusão fulminante, comparada à lenta progressão do cristianismos (H. Pirenne, Mahomet et Charlemagne.) *A força de nada serviu na propagação do Alcorão, pois os Arabes sempre concederam aos vencidos liberdade de religião. Se os povos cristãos se converteram à fé dos vencedores, foi porque os novos conquistadores se mostraram mais justos para com eles do que os antigos mestres e porque a nova religião era mais simples do que a que lhes havia sido ensinada até então... Longe de se impor pela força, o Alcorão difundiu-se pela persuasão... Só esta poderia levar povos que mais tarde venceram os Arabes, 113 Frithjof Schon anunciados, ter-se-iam seguido outros e, nos nossos dias, haveria uma grande quantidade de falsas religiões posteriores a Cristo, comparáveis, pela sua importância e extensão, ao islamismo. A espiritualidade, patente no islamismo, desde as origens até aos nossos dias, é um facto inegável: e *pelos seus frutos os reconhecereis +. Recordemo-nos aliás de que o Profeta deu testemunho, na sua própria doutrina, da segunda vinda de Cristo, sem atribuir a si mesmo qualquer glória, que não seja a de último Profeta deste ciclo. E a história demonstra que falou verdade, pois não houve depois dele manifestação igual à sua. Enfim, é indispensável agora dizer algo sobre o modo como o islão encara a sexualidade: se a moral muçulmana difere da cristã - não quanto à Guerra Santa nem quanto à escravatura, mas só quanto à poligamia e ao divórcio' -, é porque deriva de um outro aspecto da Verdade Total. O cristianismo, como aliás o budismo, vê na sexualidade apenas o lado carnal, substancial ou quantitativo. O islão, pelo contrário, à semelhança do judafsmo e da tradição hindu e chinesa - não de certas vias espirituais que rejeitam o amor sexual por razões de método -, vê na sexualidade o aspecto essencial, qualitativo, cósmico; a santificarão confere ao sexo uma qualidade que ultrapassa a sua dimensão carnal, neutralizando-a ou mesmo abolindo-a, como no caso das cassandras e das sibilas, na Antiguida como os Turcos e os Mongóis, a adoptar o islamismo. Na índia, onde os Arabes não se chegaram a instalar, o Alcorão espalhou-se de tal modo que conta hoje (1884) com mais de cinquenta milhões de adeptos. O seu número aumenta cada dia... A
difusão do Alcorão na China não foi menos considerável. Embora os Arabes não hajam nunca conquistado uma parcela mínima do império Celeste, os muçulmanos formam hoje aí uma população de mais de vinte milhões. + (G. Le Bon, La Civilisation des Arabes.) 1 A poligamia entre os povos do Médio Oriente - povos, por sinal, guerreiros era factor determinante para a subsistência das mulheres, quando os homens morriam dizimados pela guerra. A isso acrescia ainda a grande mortalidade infantil, de modo que a poligamia se impunha mesmo para a conservação da raça. O divórcio deve-se à separação entre ambos os sexos que não permite que os cônjuges se conheçam suficientemente bem antes do casamento. Tal separação justifica-se pelo temperamento sensual dos Arabes e dos povos meridionais em geral. O que acabámos de dizer explica o uso do véu por parte das muçulmanas e também o purdah das hindus de casta alta. O facto de o véu ser usado apenas no islão, a tradição mais tardia, e o purdah só tardiamente ter sido instituído no hinduísmo mostra bem que tais medidas só se explicam pelas condições particulares do fim da *idade de ferro +. Pela mesma razão, as mulheres foram excluídas de certos ritos bramânicos a que primitivamente tinham acesso. 114 A Unidade Transcendente das Religiões de, do Shri Chakra tântrico e de grandes mestre espirituais, de que convém citar o exemplo de Salomão e Maomé. Por outras palavras, a sexualidade pode ter uma conotação de nobreza como de impureza, um sentido vertical como horizontal, para falarmos em simbolismo geométrico. A carne é, por si mesma, impura, quer haja ou não sexualidade, e o sexo, é nobre em si mesmo, tanto na carne como fora dela. A nobreza na sexualidade deriva do seu Protótipo Divino: *Deus é Amor+. Em termos islâmicos, diríamos que *Deus é Unidade +, e que o amor, sendo um modo de união (tawhid), é conformidade à natureza divina. O amor pode santificar a carne, como a carne aviltar o amor. O islão insiste na primeira destas verdades, enquanto o cristianismo insistirá de preferência na segunda, exceptuando, como é óbvio, o Sacramento do Matrimónio, onde forçosa e pontualmente ele se associa à perspectiva judaico-islâmica. Propomo-nos agora mostrar em que consiste na verdade a diferença entre a manifestação crística e a inaornetana. Importa todavia sublinhar que tais diferenças dizem respeito apenas à manifestação dos homens de Deus, e não à sua realidade interior e divina que é idêntica, e que mestre Eckhart enuncia nestes termos: *Tudo o que a Sagrada Escritura afirma sobre Cristo verifica-se igualmente, na totalidade, em todo o homem bom e divino +, ou seja, em todo o homem que possua a plenitude da realização espiritual, segundo a *amplitude + e a *exaltação +. E Shri Râmakrishna:
*No
Absoluto, eu não sou, e tu não és, e Deus não é, porque Ele (o Absoluto) está além da palavra e do pensamento. Mas, enquanto existir algo fora de mim, devo adorar Brafima, nos limites do mental, como algo fora de mim+. Este ensinamento explica, por um lado, como Cristo foi capaz de rezar sendo divino e, por outro, como o Profeta, manifestando-se expressamente como homem, pôde ser divino na sua realidade interior. Nesta ordem de ideias, devemos atender ao seguinte: o dogmatismo funda-se essencialmente num *facto+ a que atribui carácter absoluto; por exemplo, a perspectiva cristã assenta no estado espiritual supremo, realizado por Cristo e inacessível ao individualismo místico, mas atribui-o só a Cristo, donde a negação, pela teologia, da União metafisica ou da Visão beatífica 115 Frithjof Schuon já nesta vida. O esoterismo, pela voz de mestre Eckhart, reconduz o Mistério da Encarnação à ordem das leis espirituais, atribuindo ao homem que atingiu a santidade suprema as características de Cristo, excepto a missão profética, ou antes, redentora. Um exemplo análogo é o de certos sufis que reivindicam para alguns dos seus escritos inspiração idêntica à do Alcorão. Ora, tal grau de inspiração não é atribuído, no islão exotérico, senão ao Profeta, conforme a perspectiva dogmatista que sempre se funda num *facto transcendentes que reivindica exclusivamente para tal ou tal manifestação do Verbo. Aludimos já ao facto de o Alcorão, que corresponde ao Cristo-Eucaristia, constituir a grande manifestação paraclética, a *descida + (tanzio do Espírito Santo (Er-Rúh, designado pelo nome de Jibril na sua função reveladora). O papel do Profeta pode assim ser entendido como análogo ou simbolicamente idêntico ao da Virgem Santíssima, ela também receptara do Verbo de Deus. E tal como a Vir em, fecundada pelo Espí9 rito Santo, é *Corredentora + e *Rainha do Céu +, criada antes de toda a Criação, também o Profeta, inspirado pelo mesmo Paracleto, é *Apóstolo de Misericórdia + (Rasúl Er-Rahmah) e *Senhor das duas existências + (Sayid el-kawnayn) - do *aquém+ e do *além+ -, criado antes de todos os seres. Esta *criação anterior + significa que a Virgem e o Profeta encarnam uma realidade principal ou metacósmica'. Eles identificam-se -- no seu papel receptivo, não no seu Conhecimento Divino nem, no que respeita a Maorné, na sua função profética - com o aspecto passivo da Existência Universal (Prakriti, em árabe: El-Lawh el-mahfúzh, *a Mesa Guardada +). Por isso, a Virgem é *imaculada +, *Virgem+ do ponto de vista puramente físico, e o Profeta é *iletrado + (ummi), como o eram aliás os Apóstolos, puros da mácula do saber humano ou de um saber humana A opinião que faz de Cristo a nona encarnação de Vishnu - a Mleccha-Avatâra, *descida divina entre (ou para) os Bárbaros + - é de rejeitar, primeiro por uma razão de facto tradicional e depois por uma razão de princípio: Buda sempre foi considerado pelos hindus como um Avatâra, mas como o hinduísmo devia excluir o budismo, explicava-se a aparente heresia budista pela necessidade de abolir os sacrifícios sangrentos e de induzir em erro os homens corrompidos a fim de precipitar a chegada fatal do kali-yuga. Em segundo lugar, é impossível que um ser, que encontra o seu lugar *orgânico +
no sistema hindu, pertença a um mundo que não é a índia, sobretudo um mundo tão distante como o mundo judaico. 116 A Unidade Transcendente das Religiões mente adquirido. Tal pureza é condição primordial para a recepção do Dom paraclétíco e, ainda na ordem espiritual, a castidade, a pobreza, a humildade e outras formas de simplicidade ou unidade, indispensáveis para a recepção da Luz Divina. Para precisar ainda a relação de analogia entre a Virgem e o Profeta, acrescentaremos que este último, no estado em que se achava mergulhado ao receber as Revelações, podia ser directamente comparável à Virgem, carregando em si ou dando à luz o Menino-Deus. Mas, devido à sua função profética, Maorné realiza uma dimensão nova e activa, pela qual - ao proclamar os versos do Alcorão ou ao deixar o *Eu Divino + falar pela sua boca - se identifica directamente com Cristo, que é o que para o Profeta é a Revelação e de quem, por consequência, cada palavra é Palavra Divina. No Profeta, só as *palavtas do Santíssimo + (ahâdith quddúsiyah) apresentam, fora do Alcorão, este carácter divino. As duas outras palavras têm um grau de inspiração secundário (nafath Er-Rúh, a Smriti hindu), como certas partes do Novo Testamento, nomeadamente as Epístolas'. Mas voltemos à *pureza+ do Profeta: encontramos nele o equivalente exacto da *Imaculada Concei~ ção+. Segundo a narração tradicional, dois Anjos fenderam o peito do menino Maomé e lavaram-lhe, com neve, o *pecado original +, que apareceu sob a forma de uma mancha negra sobre o coração. Maomé, como Maria ou a *natureza humana + de Jesus, não é portanto um homem comum, e por isso se diz que *Maomé é um homem (simples), não como um homem (vulgar), mas como uma jóia entre as pedras (vulgares) + (Muhammadun basharun lã kal-bashari bal hua kal-yaqúti bayn al-hajar). O que nos faz pensar na fórmula da Ave-Maria: *Bendita sois entre as mulheres +, indicando que a Virgem, em si mesma e independentemente da acção do Espírito Santo, é uma *'jóia+ em relação às outras criaturas, portanto algo como uma *norma sublime +. Em certo sentido, a Virgem e o Profeta *encarnam + o aspecto - ou o *pólo+ - passivo/ *feminino + da Existência Universal (Prakriti). Encarnam, por isso, a fortiori, o lado benéfico e misericordioso de Prakriti', o que explica a sua importante função *intercessora + e os títulos como Opinião do autor, não partilhada por nenhuma igreja cristã (N. do T.). A Kwan-Yin do budismo extremo-oriental, derivada do Bodhisattva Avalokiteshvara, o *Senhor de olhar misericordiosos 117 Il@ Frithjof Schuon *Mãe
de
Misericórdia +
(Mater
Misericordiae.),
*Nossa
Senhora
do
Perpétuo
Socorro + ou, no que respeita ao Profeta, *Chave da Misericórdia de Deus+ (Miftâh Rahmat Allâh), *Misericordioso + (Rahim), *Curador+ (Shafi'), *Consolador + (Kâshif el-kurab), *O que tira os pecados + (Afuww) ou a *mais bela criação de Deus +. (Ajmalu khalq Allâh). Que relação existe entre a misericórdia, o perdão, o benefício e a Existência Universal? Sendo a Existência indiferenciada, virgem e pura, em relação às suas produções, é capaz de reabsorver na indiferenciação as qualidades diferenciadas das coisas. Por outras palavras, os desequilíbrios da manifestação podem sempre ser integrados no equilíbrio principal. Todo o *mal+ provém de uma qualidade cósmica (guna), de uma ruptura no equilíbrio: com ' o a Existência traz em si todas as qualidades em equilíbrio indiferenciado, pode dissolver na sua infinidade todas as vicissitudes do mundo. A existência é realmente *Virgem+ e *Mãe+, já que, por um lado, nada a determina, a não ser Deus, e, por outro, dá à luz o Universo manifesto: Maria é *Virgem-Mãe + pelo Mistério da Encarnação. Maorné é *virgem +, *iletrado +, porque só de Deus recebe inspiração, nada recebendo dos homens; é *mãe+, pelo seu poder intercessor junto de Deus. As personificações, humanas ou angélicas, da divina Prakriti comportam essencialmente aspectos de pureza e amor. Os aspectos de Graça ou de Misericórdia da Divindade, virginal e materna, explicam o gosto desta em se manifestar de modo sensível, sob a forma de uma aparição humana, acessível aos homens: as aparições da Virgem são conhecidas de todos no Ocidente, e quanto às do Profeta, são frequentes e quase regulares entre os muçulmanos mais espiritualizados. Existem mesmo métodos para obter essa graça, que equivale, em suma, a uma concretizáção da visão beatífica'. O Profeta, não ocupando no Islão o lugar que Cristo ocupa no cristianismo, não tem uma situação menos central na perspectiva islâmica. Resta-nos precisar por que motivo pode e deve ser assim e de que maneira o islão integra, na sua perspectiva, a Cristo, reconhecendo-lhe, através do 1 Lembremo-nos a propósito das aparições da Shakti no hinduísmo - em Shri Râmakrishna e Shri Sâradâ Devi, por exemplo - ou a de Kwan-Yin ou Kwannon nas tradições do Extremo Oriente, por exemplo em Shonin Shinran, grande santo budista do Japão. Sabemos, por outro lado, que no judaísmo a Shekhinah aparece sob a forma de uma mulher bela e clemente. 118 A Unidade Transcendente das Religiões nascimento virginal, o seu carácter solar: o Verbo, nesta perspectiva, não se manifesta num homem isolado, mas sim na função profética - no sentido mais elevado do termo - e sobretudo nos Livros revelados. Ora, sendo real a função profética de Maomé, e o Alcorão uma verdadeira Revelação, os muçulmanos, que só admitem estes dois critérios, não vêem razão para preferir Jesus a Maoiné. Dão, pelo contrário, ao último a precedência, pela simples razão que, sendo o último representante da função profética, recapitula e sintetiza todos os modos desta e fecha o ciclo da manifestação do Verbo, donde o nome de *Selo dos Profetas + (Khâtam el-anbiyâ).
É esta situação única que confere a Maomé a posição central que o islamismo lhe reconhece e que permite chamar ao próprio Verbo, Luz maometana (Núr muhammadi). O facto de a perspectiva islâmica só encarar a Revelação enquanto tal e não os seus modos possíveis explica por que motivo esta perspectiva não atribui aos milagres de Cristo a importância que lhes atribui o cristianismo: de facto, todos os *Enviados +, incluindo Maoiné, fizeram milagres (mu'jizât)'; a diferença, neste aspecto, entre Cristo e os restantes *Enviados + é que só em Cristo o milagre tem uma importância central e é operado por Deus *no+ suporte humano, e não apenas *através + desse suporte. O papel do milagre em Cristo e no cristianismo explica-se pelo carácter particular que constitui a razão de ser desta forma de Revelação e que explicaremos no capítulo seguinte. No que respeita ao ponto de vista islâmico, não são os milagres que importam acima de tudo, mas o carácter divino da missão do Enviado, independentemente do grau de importância que o milagre tenha nessa missão. Poderíamos dizer que a particularidade do cristianismo é que este se funda no milagre, perpetuado na Eucaristia, enquanto o islão se funda numa ideia, apoiada em meios humanos, com a A maior parte dos arabistas, se não todos, deduz falsamente a partir de diversas passagens corânicas que o Profeta não teria feito qualquer milagre, o que é contrariado não só pelos comentadores tradicionais do Alcorão, mas também pela Sunnah que constitui o pilar da ortodoxia islâmica. Quanto ao carácter *avatárico + do Profeta, para além dos critérios infalíveis de ordem mais profunda, ele evidencia-se a partir dos sinais que, segundo a Sunnah, precederam e acompanharam o seu nascimento, e que são iguais aos que a tradição faz constar a respeito de Cristo ou de Buda. 119 Frithjof Schuon ajuda divina, perpetuando-se na Revelação corânica, onde a oração ritual é de algum modo a actualizarão incessantemente renovada. Já demos a entender mais acima que, na sua realidade interior, Maorné se identifica com o Verbo, tal como Cristo e - fora da perspectiva especificamente dogmatista - todo o ser que atinge a plenitude da realização metafisica. Donde, estes ahâdith: *Quem me viu, viu a Deus (no seu aspecto de verdade absoluta) + (Man ra'âni faqad rã' al-Haqq), e: *Ele (Maomé) era Profeta (Verbo) quando Adão estava ainda entre a água e a lama+ (Fakâna nabiyen wa Adamu baynal-mâ'i wat-tin), palavras que podemos comparar às de Cristo: *Eu e o Pai somos um só +, e: *Na verdade, antes de Abraão ser, Eu sou +.
120
VIII
NATUREZA PARTICULAR E UNIVERSALIDADE
DA TRADIÇÃO CRISTÃ
Aquilo que, à falta de melhor, somos obrigados a designar por exoterismo cristão não é estritamente análogo aos exoterismos judaico e muçulmano, tanto na origem como na estrutura. Enquanto estes foram instituídos como tais desde o princípio, fazendo parte da Revelação e aí se distinguindo claramente do elemento esotérico, o que viria a tornar-se o exoterismo cristão não aparece como tal na Revelação crística ou manifesta-se aí pontualmente. É verdade que os textos mais antigos, nomeadamente as Epístolas de São Paulo, deixam entrever um modo exotéríco ou dogmatista. É o que acontece quando a relação hierárquica entre o esoterismo e exoterismo como se apresenta como uma relação histórica entre a Nova e a Antiga Aliança, identificando-se uma com a *letra que mata + e a outra com o *espírito que dá vida' +. Tal distinção não tem em conta a realidade integral da Antiga Aliança, nem o que equivale à Nova Aliança que é apenas uma sua variante ou adaptação. Este exemplo mostra como o ponto de vista dogmatista ou teológico', em vez de abranger integralmente a verda A interpretação exotérica desta expressão equivale a um verdadeiro suicídio, pois acaba por se voltar inevitavelmente contra o exoterismo que a anexou. Foi o que demonstrou a Reforma, que avidamente se apoderou de tal palavra (11 Cor., 3:6) para fazer dela a sua principal arma, usurpando assim o lugar que deveria normalmente pertencer ao esoterismo. O cristianismo é herdeiro do judaísmo, cuja forma coincide com a origem deste ponto 121 Frithjof Schuon de, escolhe, por razões de oportunidade, um só aspecto da mesma, atribuindo -lhe um carácter exclusivo e absoluto. Não devemos esquecer que, sem esse carácter do mático, a verdade religiosa seria ineficaz quanto ao 9 fim particular a que o seu ponto de vista se propõe em virtude das ditas razões de oportunidade. Existe pois aqui uma dupla restrição da verdade pura: por um lado atribui-se a um aspecto da verdade o carácter de verdade integral; por outro, atribui-se ao relativo um carácter absoluto. Para além disso, tal perspectiva oportunista traz consigo a negação de tudo o que, não sendo acessível nem indispensável a todos sem distinção, ultrapassa a razão de ser do ponto de vista teológico, ficando fora deste, donde as simplificações e sínteses simbólicas próprias ao exoterismo'. Mencione-se ainda, como característica destas doutrinas, a assimilação de factos históricos a verdades principais e as confusões inevit@eis que daí resultam: por exemplo, quando se afirma que todas as almas, de Adão aos defuntos contemporâneos a Cristo, tiveram de esperar que este descesse aos Infer de vista. A sua presença no cristianismo primitivo em nada atingiu a essência iniciática do mesmo. Afirma Orígenes que *há diversas formas de o Verbo se 'revelar aos
seus discípulos, conformando-se ao grau de luz de cada um, segundo o grau do seu progresso na santidades (Contra Cels., 4:16) Assim, os exoteristas semíticos negam a transmigração da alma, e, por consequência, a existência de uma alma imortal nos animais, ou ainda, o fim cíclico total a que os hindus chamam mahâ-pralaya, fim que implica a aniquilação de toda a criação (samsâra). Tais verdades não são de modo algum indispensáveis à salvação e comportam mesmo alguns perigos para as mentalidades a que as doutrinas exotéricas se dirigem. Um exoterismo vê-se sempre forçado a passar em silêncio ou rejeitar elementos esotéricos incompatíveis com a sua forma dogmática. Todavia, para prevenir qualquer objecção contra os exemplos que acabámos de citar, devemos formular duas reservas: quanto à imortalidade da alma nos animais, a negação teológica tem razão na medida em que um ser não pode com efeito alcançar a imortalidade quando sujeito ao estado animal, já que este, tal como o estado vegetal ou mineral, é periférico, e a imortalidade e a libertação não podem ser alcançados senão a partir de um estado central como o humano. Vê-se, por este exemplo, que uma negação religiosa do carácter dogmático nunca é desprovida de sentido. Por outro lado, no que respeita à negação da mahâ-pralaya, devemos acrescentar que esta não é estritamente dogmática e que o fim cíclico total, que completa uma *vida de Brahmâ +, se acha claramente atestado em fórmulas como as seguintes: *Pois, em verdade vos digo, mesmo que passem o Céu e a Terra, não passará um só iota nem um só traço da Lei antes que tudo se cumpra + (Mat.,5:18). *Eles permanecerão aí (khâlidin) enquanto durarem os 122 A Unidade Transcendente das Religiões nos para as poder libertar, confunde-se o Cristo histórico com o Cristo cósmico e representasse uma função eterna do Verbo como um facto temporal por Jesus ter sido manifestação desse Verbo. O que é dizer que, no mundo em que esta manifestação se produziu, ele foi a encarnação única do Verbo. Um outro exemplo é o da divergência entre cristãos e muçulmanos quanto à morte de Cristo: o Alcorão nega-a aparentemente, para no fundo afirmar que Cristo não foi morto - o que é evidente pela natureza divina do Homem-Deus e pela natureza humana que ressuscitou: os muçulmanos recusam-se a admitir a Redenção histórica e os factos que para a cristandade são a únicia expressão terrestre da Redenção Universal, o que significa em última análise que Cristo não morreu para os *justos +, que são aqui os muçulmanos, que beneficiam de outra forma terrestre de Redenção una e eterna. Por outras palavras, se em princípio Cristo morreu por todos os homens - do mesmo modo que a Revelação islâmica se dirige em princípio a todos eles -, de facto só morreu pelos que beneficiam dos meios de graça que perpetuam a sua obra redentora'. Ora a distância tradicional do islão, em relação ao Mistério crístico, deve revestir
exotericamente a forma de uma negação, tal como o exoterismo cristão Céus e a Terra, a menos que o teu Senhor decida de ' outro modo + (Alcorão, XI, 107). ' Recordemos igualmente, nesta ordem de ideias, a frase de Santo Agostinho: *Aquilo a que hoje se chama religião cristã existià já entre os Antigos e jamais deixou de existir desde as origens do gênero humano. Até que, vindo Cristo, se começou a chamar cristã à verdadeira religião que já existia antes + (Retract., I, XIII, 3). Esta passagem foi comentada por sua vez pelo padre P.4. Jallabert no seu livro Le Catholicisme avant Jésus-Christ: *A religião católica mais não é do que a continuação da religião primitiva restaurada e generosamente enriquecido por aquele que conhecia a sua obra desde o princípio. É o que explica que. o apóstolo São Paulo apenas se considerasse superior aos Gentios por conhecer Jesus crucificado. Com efeito, aos Gentios só faltava que adquirissem o conhecimento da Encarnação e da Redenção enquanto factos consumados. Pois já haviam recebido o depósito de todas as outras verdades... É oportuno notar que esta divina revelação, desfigurada pela idolatria, se conservou porém na sua pureza, e -talvez em toda a sua perfeição, nos antigos mistérios de Elêusis, de Leninos e de Samotrácia. + Tal *conhecimento da Encarnação e da Rendenção + implica, antes de mais, o conhecimento da grande renovação operada por Cristo, de um meio de graça que é, em si mesmo, eterno, como o é a Lei que Cristo veio cumprir e não abolir. Tal meio de graça é essencialmente sempre o mesmo e o único que existe, não importa as diferenças de modo, dependentes dos meios étnicos e culturais em que se revela. A Eucaristia é uma realidade universal como o próprio Cristo. 123 Frithiof Schuon deve negar a possibilidade de salvação fora da Redenção operada por Jesus. Uma perspectiva religiosa, que pode ser contestada ab extra, ou seja, a partir de outra faceta da verdade, não é menos contestável ab intra, pois, podendo servir de meio de expressão da verdade total, é chave desta. Por isso nunca se deve perder de vista que as restrições inerentes ao ponto de vista dogmático são, na sua devida ordem, conformes à Bondade Divina que impede os homens de se perderem, dando a todos o que lhes é acessível e indispensável, tendo sempre em conta as predisposições mentais da colectividade humana em causa'. Estas considerações permitem-nos compreender que tudo o que, nas palavras de Cristo e nos ensinamentos dos Apóstolos, parece contradizer ou depreciar a Lei mosaica, mais não faz no fundo do que exprimir a superioridade do esoterismo sobre o exoterismo', não se pondo a priori no
terreno da Lei', desde que tal relação hierárquica não seja concebida de É em sentido análogo que se afirma no islão que *a divergência dos exegetas é uma bênção + (ffitilâf el'ulamâ'i rahamah). ' Isto é muito claro nas palavras de Cristo sobre São João Baptista: do ponto de vista exotérico, é evidente que o Profeta mais próximo de Cristo-Deus é o maior dos homens, mas, por outro lado, o menor dos Bem-Aventurados no reino dos Céus é maior do que qualquer ser humano na Terra, devido a essa proximidade de Deus. Metafisicamente, esta palavra enuncia a superioridade do principal sobre o manifesto e, iniciaticamente, a do esoterismo sobre o exoterismo, sendo São João Baptista considerado como o auge e o expoente deste último, o que aliás explica por que motivo o seu nome é idêntico ao de São João Evangelista, que representa o aspecto mais interior do cristianismo. ' Encontramos em São Paulo esta passagem: *A circuncisão é útil se observares a Lei. Mas, se transgredires a Lei, a tua circuncisão torna-se incircuncisão. Ora se o incircunciso observar os preceitos da Lei, não será a sua incircuncisão considerada circuncisão? Muito mais o homem, incircunciso por nascimento, se observa a Lei, te julgará a ti que com a letra (da Lei) e a circuncisão transgrides a Lei. Não é judeu o que o é exteriormente e não é circuncisão a que se manifesta na carne. Mas é judeu quem o é interiormente e é circuncisão a do coração, no espírito, e não na letra. Esse recebe o seu louvor, não dos homens, mas de Deus + (Rom. 2:25-29). A mesma ideia volta a surgir, de forma mais concisa, na seguinte passagem do Alcorão: *E eles dizem: Tornai-vos judeus ou nazarenos, para que sejais guiados. Responde: Não, (nós seguimos) a via de Abraão que era puro (ou *primordial +, hanif) e que não era dos que associam (criaturas a A11^ efeitos à Causa ou manifestações ao Princípio), - (Recebei) o baptismo de Allâh. (e não o dos homens). E quem baptiza melhor do que Allâh? É a ele que adoramos + (Alcorão, súrat el-baqarah, 135 e 138). 124 A Unidade Transcendente das Religiões modo dogmático. É evidente que os ensinamentos de Cristo ultrapassam portanto também a Lei e só assim se pode explicar a atitude de Cristo perante a lei do talião, a mulher adúltera e o divórcio. De facto, dar a face esquerda a quem bate na direita não é algo que possa ser posto em prática por uma colectividade social que tem em vista o seu equilíbrio', só fazendo sentido como atitude espiritual. Só o espiritual se acha decisivamente além do encadeamento lógico das reacções individuais, pois para ele a participação nessas reacções equivale a um declínio,'pelo menos quando envolve a parte central ou alma do indivíduo, não como acto exterior e impessoal de justiça da Lei mosaica. Quando o carácter impessoal da lei do talião deixou de ser compreendido, e foi substituído pelas paixões, Cristo veio exprimir uma verdade espiritual que, limitando-se a condenar a pretensão, parecia condenar a própria Lei. Isso é patente na resposta
aos que se dispunham a apedrejar a mulher adúltera, os quais, em vez de agirem impessoalmente em nome da Lei, queriam agir pessoalmente em nome da sua hipocrisia. Cristo não se colocava, @pois, do lado da Lei, mas do das realidades interiores, suprassociais, espirituais, Foi esse também o seu ponto de vista na questão do divórcio. O que, no ensinamento de Cristo, põe talvez mais claramente em evidência o carácter puramente espiritual, supra-social e extra moral da doutrina crística é a seguinte palavra: *Se alguém vem a mim sem odiar o seu pai e a sua inae, a sua esposa e os seus filhos, os seus irmãos e as suas irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulos (Luc.,14:26) É evidentemente impossível opor um tal ensinamento à Lei mosaica. Tal *baptismo + significa, do ponto de vista da ideia fundamental, o que São Paulo exprime por *circuncisão +. Isso é de tal modo verdade que os cristãos nunca fizeram dessa exortação de Cristo uma obrigação legal, o que prova que ela não se situa no mesmo terreno da Lei judaica e não queria nem podia consequentemente substituí-Ia. Existe um hadith que demonstra a compatibilidade entre o ponto de vista espiritual, afirmado por Cristo, e o ponto de vista social, que é o da Lei mosaica: o primeiro Iadrão da comunidade muçulmana foi levado diante do Profeta para que a mão lhe fosse amputada segundo a Lei corânica. Mas o Profeta empalideceu. Perguntaram-lhe: *Tens algo a objectar? + Ele respondeu: *Como não teria algo a objectar! Deverei eu ajudar Satanás na inimizade contra os meus irmãos? Se quereis que Deus vos perdoe o vosso pecado e o cubra, também vós deveis cobrir o pecado dos outros. Pois, quando o pecador for conduzido à presença do monarca, o castigo há-de cumprir-se. + É 125 Frithjof Schon O cristianismo não tem portanto as características normais de um exoterismo instituído como tal, mas apresenta-se antes como uma espécie de exoterismo de facto, não de princípio. Aliás, mesmo sem recorrermos a passagens das Escrituras, o carácter essencialmente iniciático do cristianismo e sempre reconhecível em indícios de primeira ordem, como a doutrina da Santíssima Trindade, o Sacramento da Eucaristia e particularmente o uso do vinho nesse ritual, assim como em expressões puramente esotéricas como *Filho de Deus + e sobretudo *Mãe de Deus +. Se o exoterismo se pode definir como *o que é indispensável e acessível a todos sem distinção', o cristianismo não poderia ser um exoterismo no sentido habitual do termo, pois não é acessível a todos, embora de facto - em virtude da sua aplicação religiosa - a todos se imponha. É em suma essa inacessibilidade exotérica dos dogmas cristãos que exprimimos ao qualificá-los de *mistérios +, termo que só recebe sentido positivo na ordem iniciática, a que aliás pertence, mas que, aplicado de modo religioso, parece querer justificar ou velar o facto de os dogmas cristãos não possuírem qualquer evidência intelectual directa. Por exemplo, a Unidade Divina é uma evidência
imediata, susceptível de formulação exotérica ou dogmática, pois tal evidência é, na sua expressão mais simples, acessível a todo o homem de espírito são. Pelo contrário, a Trindade, por corresponder a um ponto de vista mais diferenciado e representar um desenvolvimento particular da doutrina da Unidade, entre outros desenvolvimentos igualmente possíveis, não e, em rigor, susceptível de formulação exotérica, pela simples 'razão de uma concepção metafisica diferenciada ou derivada não ser acessível a todos. Aliás, a Trindade corresponde forçosamente a um ponto de vista mais relativo do que a Unidade, como a *Redenção + é uma realidade mais relativa do que a *Criação+. Qualquer pessoa normal pode conceber, a qualquer nível, a Unidade Divina, já que esta é o aspecto mais universal e mais simples da Divindade. Pelo contrário, só compreende a Trindade quem compreende a Divindade ao mesmo tempo sob outros aspectos mais ou menos relativos, ou seja, quem, por participação espiritual no Intelecto Divino, se sabe mover de algum modo na dimensão metafisica. Essa é porém uma possibilidade longe de ser acessível a todos, pelo menos no esta Definição dada por Guérion no seu artigo *Création et Manifestation + (Études tradi'tionnelles, Out. 1937). 126 A Unidade Transcendente das Religiões do actual da humanidade terrestre. Quando Santo Agostinho afirma que a Trindade é incompreensível, coloca-se necessariamente - sem dúvida devido aos hábitos do mundo romano - no ponto de vista racional, que é o indivíduo, e que, aplicado às verdades transcendentes, so gera a ignorancia. A luz da pura intelectualidade, só é absolutamente incompreensível o que não tem realidade, o nada identificado com o impossível que, nada sendo, não pode ser objecto de incompreensão. Poderíamos acrescentar que o carácter esotérico dos dogmas e dos sacramentos cristãos é a causa profunda da reacção islâmica contra o cristianismo. Ao misturar a haqiqah (Verdade Esotéríca) com a shari'ah (Lei Exotérica), o cristianismo comportava - certos perigos de desequilíbrio que de facto se manifestaram no decurso dos séculos, contribuindo indirectamente para a terrível subversão que é o mundo moderno, segundo a palavra de Cristo: *Não deis coisas santas aos cães nem pérolas a porcos, para que não as pisem e, voltando-se contra vós, vos agridam. + Se o cristianismo confunde os dois domínios que deveriam estar separados, como confunde as duas Espécies eucarísticas que respectivamente os figuram, perguntamos: teria podido ser de outra maneira, sendo tal confusão produto de erros individuais? Certamente que não. Mas é preciso dizer que a verdade interior ou esotérica por vezes se deve manifestar à luz do dia, em virtude de uma possibilidade de manifestação espiritual que não tem em conta as deficiências do meio humano. Por outras palavras, esta *confusão' é consequência negativa de algo que é, em si mesmo, positivo e que mais não é do que a própria manifestação crística. A ela se refere a palavra inspirada: *E a luz brilhou nas trevas, e as trevas não a A expressão mais geral desta *confusão +, a que também poderíamos chamar
*vacilação +,
é a mistura, nas Escrituras do Novo Testamento, dos dois graus de inspiração que os hindus designam respectivamente pelos termos Shruti e Smriti e os muçulmanos pelos termos nafath Er-Rúh e ilqâ Er-Rahmâniyah: este último termo, como o de Smitri, designa a inspiração derivada ou secundária, enquanto o primeiro, como o de Shruti, se refere à Revelação propriamente dita, ou seja, à Palavra Divina em sentido directo. Nas epístolas, tal mistura aparece mesmo explicitamente várias vezes. O sétimo capítulo da primeira epístola aos Coríntios é particularmente instrutivo a este propósito. 127 Frithjof Schon compreenderam +. Cristo devia, por definição metafisica ou cosmológica, quebrar a casca que era a Lei mosaica, sem todavia a negar. Sendo ele mesmo o núcleo vivo dessa casca, tinha todos os direitos do seu lado. Era, portanto, *mais verdadeiros do que aquela, que é um dos sentidos da sua palavra: *Antes de Abraão ser, Eu sou +. O facto de o esoterismo não se dirigir a toda a gente é comparável à luz que penetra certas matérias e não outras. Se esse por vezes se deve manifestar em pleno dia - como aconteceu com Cristo, e, em menor grau de universalidade, num El-HaIlâj é porque analogamente também o Sol tudo ilumina sem distinção. Portanto, se *a Luz brilha nas trevas +, em sentido principal ou universal, é porque manifesta uma das suas possibilidades: e uma possibilidade é por definição algo que não pode não ser, enquanto aspecto da absoluta necessidade do Princípio Divino. Estas considerações não devem fazer-nos perder de vista um aspecto complementar da questão, mais contingente todavia que o primeiro: deve haver igualmente do lado humano, ou seja, no meio em que tal manifestação divina se produz, uma razão suficiente para essa produção. Ora, para o mundo a que a missão de Cristo se dirigia, tal manifestação desvelada de verdades que normalmente deveriam permanecer encobertas - pelo menos, em certas condições de espaço e de tempo - era o único meio possível de operar o ordenamento de que o mundo necessitava. Isto basta para justificar o que, na radiação crística tal como a definimos, seria anormal, e legítimo em circunstâncias normais. Um tal desnudamento do *espírito + escondido na *letra+ não poderia contudo abolir inteiramente certas leis inerentes a todo o esoterismo, sob pena de retirar a este a sua própria natureza. Assim, Cristo *nada lhes dizia sem parábolas, para que se cumprisse a palavra do Profeta que diz: Abrirei a minha boca em parábolas, proferirei coisas escondidas desde a criação do mundo + (Mat., 13:34-35). Apesar disso, um tal modo de radiação, sendo inevitável neste caso particular, não deixa de ser uma *espada de dois gumes +. Mas há outro aspecto: a via crística, análoga nesse ponto às vias *bhákticas + da índia a a certas vias budistas, é essencialmente uma *via de Graça +. Ora, nestes métodos, em razão da sua natureza específica, a distinção entre aspecto exterior e interior acha-se atenuada e por vezes ignorada, já que a
128 A Unidade Transcendente das Religiões *Graça +,
que é de ordem iniciática no seu núcleo ou essência, tende a dar-se na maior medida possível, o que pode fazer devido à simplicidade e universalidade do seu simbolismo e meios. Também poderíamos dizer que, se a separação entre a *via do mérito + e a *via do Conhecimento + é forçosamente profunda por se referir respectivamente ao acto meritório e à contemplação intelectual, a *via da Graça + ocupa, de certa maneira, uma posição intermédio, As aplicações interior e exterior associam-se aí numa mesma radiação de Misericórdia, de modo que surgem, no domínio da realização espiritual, mais diferenças de grau do que diferenças de princípio. Toda, a inteligência e vontade pode participar, na medida do possível, numa mesma e única Graça, o que faz pensar no Sol que a todos sem distinção ilumina, agindo porém diferentemente sobre as diversas matérias. Abstraindo-se de que o desvelamento de verdades, que deveriam ter ficado encobertas, era o único meio possível para operar o reordenamento espiritual de que o mundo ocidental necessitava, temos porém de acrescentar que esse modo tinha um carácter providencial face à evolução cíclica, achando-se compreendido no Plano Divino do desenvolvimento final de dado ciclo da humanidade. Poderíamos também reconhecer na desproporção entre a qualidade puramente espiritual do Dom crístico e o seu meio por demais heterogéneo de recepção o indício de um modo excepcional da Misericórdia Divina que se renova constantemente na criatura: Deus, para salvar *uma humanidades, consente em ser profanado. Por outro lado, manifestando a Sua Impessoalidade, serve-se dessa profanação pois *é preciso que haja escândalos - para levar a cabo o fim do referido ciclo, fim tão necessário para esgotar as possibilidades que nele estão dadas, necessário ao equilíbrio e cumprimento da gloriosa radiação universal de Deus. O ponto de vista dogmatista, quando os não pode negar, é forçado a qualificar os actos aparentemente contraditórios da Divindade impessoal como *misteriosos + e *insondáveis +, atribuindo naturalmente tais *mistérios + ao Querer do Deus pessoal.
129 Frithjof Schuon A existência de um esoterismo cristão, ou antes, o carácter eminentemente esotérico do cristianismo primitivo, não ressalta apenas do Novo Testamento, onde certas palavras de Cristo não fazem qualquer sentido a nível exotérico, nem se deduz apenas da natureza dos seus ritos - para só falar do que, na Igreja Ocidental, nos é exteriormente acessível. Também o testemunho dos autores antigos dá prova disso. Assim, São Basílio, no seu Tratado sobre o Espírito Santo fala de uma *tradição tácita e mística mantida até aos nossos dias + e de *uma instrução secreta que os nossos Pais observaram sem discussão e que nós seguimos permanecendo na simplicidade do seu silêncio. Pois eles aprenderam quanto o silêncio foi necessário para guardar o respeito e a veneração devidos aos nossos santos mistérios.
E, com efeito, não era conveniente divulgar por escrito uma doutrina contendo coisas que aos catecúmenos não é permitido contemplaras. *Só são aptos à salvação os espíritos deificados + - afirma São Dinis, o pseudo-areopagita - *e a deificarão é a união e semelhança que nos esforçamos por ter com Deus... O que é uniforme e abundantemente repartido pelas Essências Bem-Aventuradas nos Céus a nós é transmitido em fragmentos e na multiplicidade dos símbolos por oráculos divinos. Pois estes são a base da nossa hierarquia. E por isto há que entender não só o que os nossos mestres inspirados nos deixaram nas Sagradas Letras e nos escritos teológicos, mas o que transmitiram aos seus discípulos por um ensinamento espiritual, quase celeste, iniciando-os espírito a espírito, de ' modo corporal, pois falavam, mas também de modo imaterial, pois não escreviam. Ora, devendo tais verdades ser traduzidos para uso da Igreja, os Apóstolos expuseram-nas sob o véu dos símbolos e não na sua sublime nudez. Pois nem todos são santos e, como diz a Escritura, a Ciência não é para todos'. Permita-se-nos citar também um autor católico muito conhecido, Paul Vulhaud: *O processo de enunciarão dogmática foi durante os primeiros séculos o da Iniciação sucessiva. Existia, numa palavra, um esoterismo na religião cristã. Por muito que isso desagrade aos historiadores, encontramos incontestavelmente o vestígio da *lei do arcano + nas origens da nossa religião... Para entender com clareza o ensinamento doutrinal da Revelação cristã, há que admitir um duplo grau na pregação evangélica. A lei que mandava que os dognias só fossem revelados aos iniciados perpetuou-se por muito tempo, facto que impede os cegos ou refractários de negarem a sua existência. Sozómeno, um historiador, escreve a propósito do Concílio de Niceia que era sua intenção en 130 A Unidade Transcendente das Religiões Dissemos mais acima que o cristianismo representa uma *via de Graça + ou de *Amor+ (o bhakti-mârga dos hindus). Tal definição requer ainda algumas precisões de ordem geral que formularemos do seguindo modo: o que mais profundamente distingue a Nova Aliança da Antiga é que nesta o aspecto divino de Rigor predominava, enquanto naquela é o aspecto de Clemência que prevalece. Ora, a via de Clemência é em certo sentido mais fácil que a de Rigor, porque, sendo de ordem mais profunda, benefi trar no pormenor *para deixar à posteridade um monumento público de verdade +. Foi porém aconselhado a omitir *o que só os padres e os fiéis deveriam saber +. A *lei do segredo + perpetuou-se certamente em alguns lugares depois da divulgação universal do dogma conciliar... São Basílio, na sua obra Sobre a Fé Verdadeira e Piedosa, conta que se abstinha de se servir dos termos Trindade ou Consubstancialidade, que não se acham nas Escrituras, embora aí se encontrem as coisas que estes significam... Tertuliano, contra Praxeias, afirma que não é necessário falar claramente da
Divindade de Jesus Cristo e que se deve chamar Deus ao Pai e Senhor ao Filho... Tais locuções habituais não parecerão indícios de uma convenção, já que esta forma de linguagem reti re ticen cente te se ac acha ha em to todo dos s os au auto tore res s do dos s pr prim imei eiro ros s sé sécu culos los, , se send ndo o de us uso o canónico? A disciplina primitiva do cristianismo comportava uma sessão de exame em que os competentes (os que pediam o Baptismo) eram admitidos à eleição. Tal sessão era chamada escrutínio. Traçava-se o sinal da cruz sobre as orelhas dos catecúmenos pronunciando-se as palavras de Jesus: Ephpheta, o que fazia com que a cerimônia se chamasse o *escrut escrutíni ínio o da abertur abertura a das orelha orelhas s +. Os ouvid ouvidos os er eram am ab aber erto tos s à recep recepçã ção o (cabâlâh), à tradição das verda6 divinas... O problema sinóptico-joânico... só se resolve reco re corr rren endo do à ex exis istê tênc ncia ia do du dupl plo o en ensi sina name ment nto, o, ex exot otér éric ico o e ac acro roam amát átic ico, o, histórico e teológico-místico... Existe uma teologia parabólica. Esta faz parte daquele património a que Teod Te odore oreto to ch cham ama, a, no Pr Pref efác ácio io do seu Co Come ment ntár ário io ao Câ Cânt ntico ico dos Câ Cânt ntic icos os, , a *herança paterna +, que significa a transmissão do sentido que se aplica à interpretação das da s Es Escr crit itur uras as.. ... . O do dogm gma, a, na su sua a pa part rte e di divi vina na, , co cons nsti titu tuía ía a re reve vela laçã ção o reservada aos Iniciados, sob *a disciplina do arcano +. Tentzélio queria fazer remontar a origem desta *lei do segredo + aos finais do séc. ii... Emnianuel ScheIstrate, bibliotecário do Vaticano, constatava-a com razão nos séculos apostólicos. Na verdade, o modo esotérico de transmissão das verdades divinas e de interpretação dos textos existiu entre os judeus, entre os gentios, por fim também entre os cristãos... Se nos obstinarmos em não estu es tudar dar os pr proc oces esso sos s in inic iciá iáti ticos cos de Re Reve vela laçã ção, o, ja jama mais is ch cheg egar arem emos os a te ter r um uma a assimilação inteligente e subjectiva do do ma. As litur ias antigas não são suficientemente consideradas e a pró 9 9 pria pr ia er erud udiç ição ão he hebr brai aica ca é ab abso solu luta tame mente nte ne negl glig igen enci ciad ada.. a... . Os Ap Após ósto tolo los s e os Padres Padres conserva conservaram ram em segredo segredo e em silêncio silêncio a *Majestade dos Mistérios +; São Dinis, o Pseudo-Areopagita, buscou com afectação o emprego de termos obscuros. Como Cristo, que se autodesignava como *Filho do Homem +, ele chamou ao baptismo: a Iniciação à Teogénese... A disciplina do arcano era muito legítima. Os profetas e o próprio Cristo 131 Frithjof Schwn cia de uma Graça particular: particular: é a *justificação pela Fé + cujo *jugo é doce e o fardo, ligeiro ligeiro + e que torna torna inúti inútil l o *jugo do Céu + da Lei mosaica. Esta *justifi justificaç cação ão pela pela Fé + é, de resto, análoga à *libert libertaçã ação o pelo pelo Conheci Conhecimen men to+, o que lhe confere o seu alcance esotérico, sendo tanto um quanto ou
não reve não revela lara ram m compreensívei compreensíveis s a to
os
div divin inos os arc arcan anos os com com cla clare reza za tal tal que que se se torn tornas asse sem m dos + (Paul Vulliaud, Études d'Ésotérisme catholique).
Por fim, fim, permi permita-s ta-se-n e-nos os cita citar, r, a títul título o docum document ental al e apesar apesar da exten extensão são do texto, um autor de princípios do séc. xix. *Nas origens, o cristianismo foi uma iniciação iniciação semelhante semelhante à dos pagãos. pagãos. Falando Falando desta religião, religião, Clemente Clemente de Alexandria exclama: *ó mistérios mistérios verdadeiramen verdadeiramente te sagrados! sagrados! ó pura luz! A luz inca in cand ndes esce cent nte e perd perde e o véu véu que que cobr cobre e Deus Deus e o Céu Céu. . Sou Sou sant santo o desd desde e que qu e inic in icia iado do. . O pr próp ópri rio o Se Senh nhor or é o hi hier erof ofan ante te. . Põ Põe e o se seu u se selo lo no ad adep epto to qu que e ilumina. ilumina. E, para recompensar recompensar a sua sua fé, recomendado recomendado eternamente eternamente ao Pai. Eis as orgias dos meus mistérios. mistérios. Vinde e recebemos recebemos vós também. + Poderíamos tomar estas estas palavra palavras s por @im ples ples metáfo metáfora. ra. Mas os factos factos provam provam que as devemos devemos interpretar interpretar à letra. Os Evange lhos estão cheios de reticências reticências calculadas, calculadas, de alusões à iniciação cristã. cristã. Aí se lê: *Quem pode adivinhar, adivinhe. Quem tem ouvidos, ouça. + Jesus, dirigindo-se dirigindo-se às massas, massas, emprega emprega sempre parábolas: parábolas: *Buscai Buscai e encont encontrar rareis eis. . Batei Batei e abrir-s abrir-se-v e-vos-á os-á ... + As assemb assembléi léias as eram eram secreta secretas, s, Só se era admiti admitido do em condiç condições ões determ determina inadas das. . Só Só se se chegav chegava a ao ao plen pl eno o co conh nhec ecim imen ento to da do dout utri rina na pa pass ssan ando do po por r tr três ês gr grau aus s de in inst stru ruçã ção. o. Os iniciados eram por consequência divididos em três classes. A primeira era a dos,ouvin dos,ouvin tes, a segunda segunda a dos catecúmenos catecúmenos ou competentes, competentes, a terceira terceira a dos fiéis. Os ouvintes ouvintes eram uma espécie espécie de noviços que eram preparados, preparados, através através de certas práticas práticas e instru ções, para receber receber a comunicação comunicação dos dogmas do cristianismo. cristianismo. Uma parte desses dog mas era revelada revelada aos catecúmenos, catecúmenos, que, depois depois das purifi purificaç cações ões ordena ordenadas das, , rece recebia biam m o baptis baptismo mo ou a inic iniciaç iação ão da teog te ogéne énese se (g (ger eraç ação ão div divin ina) a), , como como lh lhe e cham chama a São São Di Dinis nis na sua su a Hier Hierar arqu quia ia Eclesiá Eclesiásti stica. ca. Tornav Tornavam-s am-se e desd desde e entã então o domés doméstic ticos os da fé e tinh tinham am acesso acesso às igrejas. Para os fiéis, nada havia de secreto ou de escondido nos mistérios. Tudo se 4 fazia na sua presença. Tudo podiam ver e ouvir. Tinham direito a assistir a toda a litur gia. Era-lhes prescrito que se examinassem atentamente para que não penetrasse penetrasse ent re eles gente profana ou iniciados iniciados de grau inferior. inferior. E o sinal sinal da cruz cruz servia servia para para se reco reco nhecere nhecerem m uns aos outros. outros. Os mistér mistérios ios dividiam-se dividiam-se em duas partes. A primeira primeira era cha mada a Missa dos Catecúmenos Catecúmenos porque os membros dessa classe podiam assistir assistir a ela. Compreendia Compreendia tudo o que se diz desde o começo do ofício divino até à recitação recitação do Cre do. A segunda segunda cham ch amava ava-s -se e Mis Missa sa do dos s Fié Fiéis is. . Com Compr pree eend ndia ia a pre prepa para raçã ção o do do sa sacri crifí fíci cio, o, o sacrifício em si, e a subsequente acção de graças. Quando começava essa missa, um diácono diácono dizia dizia em alta voz: *As coisas santas aos santos. Que os cães se retirem! + Então 132 A Unidade Transcendente das Religiões tra relativamente independentes da *Leí+, ou seja, das obras'. Com efeito, efeito, a Fé não é mais do que o modo *bháktico + do Conhecimento e da certeza intelectual, o que significa que ela é um acto passivo de inteligência, tendo por objecto não imediatamente a verdade enquanto tal, mas um símbolo desta. Tal símbolo revela os seus segredos à medida que a Fé aumenta, e esta só aumenta através de uma atitude confiante de certeza emocional, de um elemento de bhakú, que é amor. A Fé, sendo uma atitu mandava mandavam-s m-se e embora embora os catecúm catecúmeno enos s e os penite penitentes ntes - estes estes últimos últimos eram fiéis fiéis que, tendo cometido falta grave, eram submetidos à expiação ordenada pela Igreja -,
não podendo assistir à celebração, dos terríveis mistérios, como lhes chamava São João Crisóstomo. Os fiéis, uma vez sós, recitavam o Credo, para se assegurarem de que todos os assistentes tinham recebido a iniciação e que se podia falar diante deles abertamente e sem enigmas sobre os grandes mistérios da religião e sobretudo da Eucaristia. Mantinha-se a doutrina e a celebração deste Sacramento em segredo inviolável. E, se os doutores falavam deles nos seus sermões ou livros, só o faziam com grandes reservas, por meias meias palavr palavras, as, enigma enigmatic ticamen amente. te. Quando Quando Diocle Dioclecian ciano o ordeno ordenou u aos cristão cristãos s que entregassem aos magistrados os seus livros sagrados, os que de entre eles, com medo da morte, obedeceram ao edicto imperial, foram expulsos da comunhão dos fiéis e cons co nside idera rado dos s traid traidor ores es e ap apos ostar taras as. . Po Podem demos os ve ver r em Sa Sant nto o Agost Agostin inho ho qu que e do dor r sentiu então a Igreja ao ver as Sagradas Escrituras serem entregues às mãos dos infiéis. Aos olhos da Igre Ig reja, ja, er era a um uma a ho horr rrív ível el pr prof ofan anaç ação ão qu que e um ho home mem m nã não o inici iniciad ado o en entr tras asse se nu num m templo e assist assistiss isse e aos Sagrado Sagrados s Mistéri Mistérios. os. São João João Crisóst Crisóstorn orno o assinal assinala a um facto facto desse género ao papa Inocêncio 1. Soldados bárbaros haviam entrado na Igreja de Constantinopla na vi vigí gíli lia a de Pá Pásc scoa oa. . "A "As s ca cate tecú cúme mena nas, s, qu que e se ha havi viam am de desp spid ido o pa para ra se sere rem m baptizadas, foram obrigadas obrigadas a fugir nuas com o medo. Esses bárbaros bárbaros não lhes deram tempo de se cobrirem. Entraram nos lugares onde se conservam com profundo respeito as coisas santas, e alguns deles, ainda não iniciados aos nossos mistérios, viram tudo o que aí havia de mais sagrado". sagrado". O número de fiéis, que aumentava cada dia, levou a Igreja, no séc. vii, a instituir as ordens menores, entre as quais a dos porteiros, que sucederam aos ao s di diác ácon onos os e ao aos s su subd bdiá iáco cono nos s na fu funçã nção o de gu guar arda dar r as po port rtas as da das s ig igrej rejas as. . Cerca do ano 700, toda a gente foi admitida a assistir à liturgia. E, de todo o mistério que nos primeiros tempos cercava o cerimonial sagrado, só se conservou o uso de recitar secr se creta etame ment nte e o Câ Câno none ne da Mi Miss ssa. a. Co Cont ntud udo, o, no ri rito to gr greg ego o o of ofic ician iante te ce celeb lebra ra ainda hoje o ofíc of ício io di divi vino no po por r de detr trás ás de um uma a co cort rtin ina, a, qu que e só é ab aber erta ta no mo mome ment nto o da elevação. Mas, nesse momento, os assistentes devem prostrar-se ou inclinar-se de tal modo que não possam ver o Santíssimo Sacramento. + (F.-T.-B. (F.-T.-B. Claver, Histoire pittoresque de la Franc-Maçonnerie et des Sociétés secrètes anciennes et modernes.) ' Um Uma a di dife fere renç nça a an anál álog oga a à qu que e op opõe õe a *Fé+ e a *Lei+ encontra-se encontra-se dentro do próprio campo campo iniciátic iniciático: o: à *Fé+ correspondem aqui os diversos movimentos espirituais
fundados na invocação do Nome Divino (o japa hindu, o buddhânusmriti, nien-fo ou nembut 133 Frithjof Schuon de contemplativa, tem como sujeito a inteligência. Pode-se pois dizer que é um Conhecimento virtual. Mas, como o seu modo é passivo, tal passividade deve ser compensada por uma atitude activa complementar, ou seja, por uma atitude voluntária cuja substância é precisamente a confiança e o fervor, graças aos quais a inteligência recebe certezas espirituais. A Fé é a priori uma disposição natural da alma para admitir o sobrenatural. É pois essencialmente uma intuição do sobrenatural, ocasionada pela Graça, su budista e o dhikr muçulmano); um exemplo muito típico é o de Shri Chaitanya deitando fora todos os seus livros para se consagrar apenas à invocação *bliáktica + de Krishna, atitude semelhante à dos cristãos que rejeitaram a *Lei+ e as *obras+ em nome da *Fé+ e do *Amor+. Da mesma forma, para citar um outro exemplo, as escolas budistas japonesas Jôdo e Jôdo-Shinshu, cuja doutrina fundada nos sútras de Amithaba é análoga a certas doutrinas do budismo chinês e procede como estas do *voto original de Amida +, rejeitam as meditações e,as austeridades das outras escolas budistas, praticando apenas a invocação do Nome sagrado Amida: o esforço ascético é substituído pela simples confiança na Graça do Buddha-Amida, que este concede na sua compaixão a quem o invoca, sem qualquer *mérito+ da parte do orante. *A invocação do Nome sagrado deve ser acompanhada de absoluta sinceridade de coração e da fé mais completa na bondade de Amida que quis que todas as criaturas se salvassem. Amida, tendo piedade dos homens dos "Ultimos Tempos", permitiu que as virtudes e o saber fossem substituídos, para os livrar dos sofrimentos do mundo, pela fé no valor salvífico da sua Graça. + *Somos iguais devido à nossa fé comum, à nossa confiança na Graça de Amida-Buddha. + *Toda a criatura, por muito pecadora que seja, pode estar certa'da'sua salvação na luz de Amida e de obter um lugar na Terra eterna e imperecível da Felicidade, se simplesmente crer no Nome de Amida-Buddha e, abandonando as preocupações presentes e futuras deste mundo, se refugiar nas Mãos Libertadoras, tão misericordiosamente estendidas a toda a criatura, recitando o Seu Nome com toda a sinceridade de coração. + *Conhecenios o Nome de Amida pela pregação de Shâkya-Muni e sabemos que, nesse Nome, está a força do desejo de Amida em salvar toda a criatura. Escutar esse Nome, é escutar a voz da salvação, que diz: Tende confiança em mim e certamente vos salvarei, palavras que Amida nos dirige directamente. Este
sentido acha-se presente no Nome de Amida. Enquanto todas as nossas outras acções são mais ou menos manchadas de impureza, a repetição do Namu-Amida-Bu é um acto isento de qualquer impureza, pois não somos nós que o recitamos, mas o próprio Amida que, dando-nos o Seu Nome, no-lo faz repetiras *Quando a nossa fé na salvação de Amida desperta e se fortalece, o nosso destino é fixado: renascemos na Terra Pura, tornando-nos Budas. Então se diz que somos totalmente abarcados pela Luz de Amida e, vivendo sob a Sua direcção, cheia de amor, a nossa vida é preenchida por indescritível alegria, dom de Buddha + (vide Les sectes bouddhiques japonaises por E. Steinilber 134 A Unidade Transcendente das Religiões a actualizar através de uma atitude de fervorosa confiança'. Quando, pela Graça, a Fé se completa, ela dissolve-se no Amor, que é Deus. É por isso que, do ponto de vista teológico, os Bem-Aventurados no Céu já não conservam a Fé, pois contemplam o seu objecto: Deus, que é Amor ou Beatitude. Acrescente-se que, do ponto de vista iniciático, tal visão pode e deve obter-se já nesta vida, como o ensina aliás a tradição hesicasta. Mas há outro aspecto da Fé que convém aqui mencionar: referimo-nos à relação -Oberlin e Kuni Matsuo). *O voto original de Amida é o de receber na sua Terra de felicidade quem quer que pronuncie o Seu Nome com confiança absoluta: felizes pois os que pronunciam o Seu Nome! Um homem pode ter fé, mas se não pronuncia o Nome, a sua fé de nada lhe servirá. Outro pode pronunciar o Nome pensando apenas em si, mas se a sua fé não é bastante profunda, o seu renascimento não ocorrerá. Mas o que crê firmemente no renascimento como fim da nembutsu (invocação) e pronuncia o Nome, esse sem dúvida há-de renascer na Terra da recompensam (vide Essais sur le Bouddhisme Zen, vol. 111, por Daisetz Teitaro Suzuki). Reconhece-se com facilidade a analogia sobre a qual queríamos atrair as atenções: Amida mais não é do que o Verbo Divino. Amida-Buddha pode pois transcrever-se, em termos cristãos, por *Deus Filho, Jesus Cristo +. O Nome de *Cristo Jesus + equivale pois ao de Buddha Shâkya-Muni; o Nome salvífico de Amida corresponde exactamente à Eucaristia; e a invocação desse Nome, à Comunhão. A distinção entre o jiriki (poder individual, ou seja, esforço em vista do mérito) e o tariki ( *poder do outro +, ou seja, graça sem mérito) sendo este último precisamente a via do Jôdo-Shinshu - é análoga à distinção paulina entre a *Lei+ e a *Fé+. Acrescentemos ainda que, se o cristianismo moderno sofre de certa regressão do elemento intelectual, é precisamente porque a sua
espiritualidade original era *bháktica + e a exoterização da bhakti traz consigo inevitavelmente uma regressão da intelectualidade em proveito do sentimentalismo. ' A vida do grande bhakta Shri Râmakrishna oferece um exemplo bem instrutivo do modo *bháktico + do Conhecimento: em vez de partir de um dado metafísico, que lhe teria permitido entrever a vaidade das riquezas, como teria feito um jnânin, ele orou a Kâ1i para o fazer entender por revelação a identidade entre o outro e a argila: *Todas as manhãs, durante longos meses, segurei na inao uma moeda de ouro e um pedaço de argila, e repeti: O ouro é argila e a argila é ouro. Mas este pensamento não fazia em mim qualquer efeito espiritual. Nada vinha demonstrar-me a verdade de tal asserção. Ao fim de meses de meditação, estava eu sentado de manhãzinha, à beira do rio, suplicando à nossa Mãe que me concedesse luz quando, repentinamente, todo o universo me apareceu revestido de um véu de ouro brilhante... Depois a paisagem tomou um tommais escuro, cor de argila castanha, mais bela do que o ouro. E enquanto tal visão se gravava profundamente na minha alma, ouvi como que o rumor de mais de dez mil elefantes gritando aos meus ouvidos: Argila e ouro são o mesmo para ti. As minhas orações tinham sido ouvidas, e eu lançava para longe, no Ganges, a moeda de ouro e o pedaço de argila. + 135 Frithjof Schon entre Fé e milagre, relação que explica a importância capital que este último desempenha não só em Cristo, mas também no cristianismo enquanto tal. Contrariamente ao que acontece no islão, o milagre desempenha no cristianismo um papel Central, quase orgânico, que não deixa de ter relação com o carácter bhakti, próprio à via cristã. O milagre seria inexplicável.sem o papel que desempenha no domínio da Fé. Não tendo qualquer valor persuasivo em si mesmo, sem o que os milagres satânicos seriam critérios de.verdade, existe porém um extremo em relação a todos os outros factores que intervêm na Revelação crística. Por outras palavras, se os milagres de Cristo, dos Apóstolos e dos Santos são preciosos e veneráveis, e unicamente porque se acrescentam a outros critérios que permitem a priori atribuir a tais milagres o valor de *sinais + divinos. A função essencial e primordial do milagre é desencadear, seja a graça da Fé - o que pressupõe no homem, tocado por essa graça, uma disposição natural, consciente ou inconsciente, para admitir o sobrenatural -, seja a perfeição de uma Fé já adquirida. Para precisar ainda melhor o papel do milagre não apenas no cristianismo mas em todas as formas religiosas - pois nenhuma delas ignora os factos milagrosos -, diremos que o milagre, abstraindo-nos da sua qualidade simbólica que o aparenta ao próprio objecto da Fé, está apto a suscitar uma intuição que será, na alma do crente, um elemento de certeza. Enfim, se o milagre desencadeia a Fé, esta pode por sua vez desencadear o milagre, que será assim uma confirmação dessa
*Fé
que desloca montanhas +. Tal relação recíproca mostra ainda que esses dois elementos se acham cosmologicamente associados e que a sua relação nada tem de arbitrário, estabelecendo o milagre um contacto imediato entre a Omnipotência Divina e o mundo, e a Fé, por sua vez, um contacto análogo, mas passivo, entre o microcosmo e Deus. O simples raciocínio, a mera operação discursava do mental, está tão longe da Fé como as leis na Citemos nesta ordem de ideias as reflexões de um teólogo ortodoxo: *Exprimindo o dogma uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, deve ser vivido por nós num processo, ao longo do qual, em vez de assimilarmos o mistério ao nosso modo de entender, há, pelo contrário, que aspirarmos a uma mudança profunda, a uma transformação interior do nosso espírito, para nos tornarmos aptos a experiência mistica + (Viadimir Lossky, Essai sur Ia théologie mystique de VEglise d'Orient). 136 A Unidade Transcendente das Religiões turais o estão do milagre, enquanto o conhecimento intelectual é capaz de ver milagre no natural, e inversamente. A Caridade, que é a maior das três virtudes teologais, comporta dois aspectos, um passivo e outro activo. O Amor espiritual é uma participação passiva em Deus, que é Amor infinito. Mas o amor será, pelo contrário, activo em relação às coisas criadas. O amor ao próximo, como expressão necessária do amor de Deus, e um complemento indispensável da Fé. Estes dois modos da Caridade acham-se presentes no ensinamento evangélico de que só Deus é Beatitude e Realidade e o segundo a consciência de que o ego é apenas ilusório, identificando-se o *eu+ dos outros, na verdade, *comigo mesmo' +. Se deve amar o *próximo+ porque ele sou *eu+, isso significa que devo amar-me a priori, já que mais não sou do que o meu *próximo +. E, se me devo amar, seja em *mim mesmo+ seja no meu *próximo+, é porque Deus me ama e devo amar o que ele ama. E, se ele me ama, é porque ama a sua criação ou, por outras palavras, porque a própria Existência é Amor e o Amor é como que o perfume do Criador inerente a toda a criatura. Tal como o Amor de Deus, a Caridade que tem como objecto as Perfeições divinas e não o nosso bem-estar, é o Conhecimento da única Realidade Divina na qual se dissolve a realidade aparente do criado - conhecimento que implica a identificação da alma com a sua Essência incriada', o que é ainda um aspecto do simbolismo do Amor -., também o amor ao próximo no fundo mais não é do que o conhecimento da indiferenciação do criado perante Deus. Antes de se passar do criado ao Criador, ou do manifesto ao Princfpio, é necessário ter-se realizado a indiferenciação ou o *nada+ desse manifesto. É a isso que visa a moral de Cristo, não só pela indistinção que estabelece entre o *eu>; e o *não-eu+, mas também secundariamente ' Esta realização do desempenha
*não-eu +
explica
o
papel
importante
que
a
humildade
na espiritualidade cristã, a que corresponde na espiritualidade islâmica a *pobreza + (faqr) e na espiritualidade hindu a *infância + (bâlya). Recordamo-nos aqui do simbolismo da infância nos ensinamentos de Cristo. 2 *SOMOS totalmente transformados em Deus + - afirma mestre Eckhart - *e mudados nele. Da mesma forma que, no sacramento, o pão se transforma em Corpo de Cristo, também eu sou transformado nele, de modo que ele faz de mim o seu Ser uno e não apenas uma semelhança. Pelo Deus vivo, é verdade que não há aí qualquer distinção. + 137 Frithjof Schon pela sua indiferença para com a justificação individual e o equilíbrio social. O cristianismo situa-se, pois, fora das *acções e reacções + de ordem humana. Não é primeiramente exotérico na sua definição. A caridade cristã não tem nem pode ter qualquer interesse no *bem-estar + em si, pois o verdadeiro cristianismo, como toda a religião ortodoxa, cre que a unica verdadeira felicidade de que pode usufruir a sociedade humana é o bem-estar espiritual, na presença do Santo: esse o fim de toda a civilização. Pois *grande número de sábios é a salvação da Terra + (Sab.,6:24). Uma verdade que os moralistas ignoram é que quando a obra de caridade está concluída pelo amor de Deus, ou em virtude do conhecimento de que *eu+ sou o *próximo + e que o *próximo + é *eu mesmo + -,conhecimento que aliás implica esse amor -, a obra de caridade terá para o próximo não só o valor de uma beneficência exterior, mas também a de uma bênção. Pelo contrário, quando a caridade não é exercida nem por amor de Deus, nem em virtude do dito conhecimento, mas unicamente em vista do simples *bem-estar + humano, 'considerado como fim em si, a bênção inerente à verdadeira caridade não acompanha a aparente beneficência, nem em quem a exerce nem em quem a recebe. A presença das ordens monásticas só se pode explicar pela existência de uma tradição iniciática, na Igreja do Ocidente, tal como n ' a 1grej a do Oriente, tradição que remonta - confirmam-no São Bento e os hesicastas - aos Padres do Deserto, aos Apóstolos e a Cristo. O facto de o cenobitismo da Igreja Latina remontar às mesmas origens do da Igreja Grega formando este último, aliás, uma comunidade única e não várias ordens distintas - prova precisamente que tanto o primeiro quanto o segundo são de essência esotérica. E, do mesmo modo, o eremitismo é considerado por ambas as partes como o expoente da perfeição espiritual - afirma-o São Bento explicitamente na sua Regra -, o que nos permite concluir que o desaparecimento dos eremitas marca o declínio do florescimento crístico. A vida monástica, longe de constituir uma via que se basta a si mesma, é designada na Regra de São Bento como *um começo de vida religiosas. Para *o que apressa os seus passos na perfeição da vida monástica, existem os ensinamentos dos Santos Padres, cuja observância conduz 138 A Unidade Transcendente das Religiões
o homem ao fim supremo da religião'. Ora, são tais ensinamentos que constituem a própria essência doutrinal do hesicasmo. O órgão do espírito, principal centro de vida espiritual, é o coração. Também aqui a doutrina hesicasta está de perfeito acordo com o ensinamento de todas as outras tradições iniciáticas. É notório o que o hesicasmo fornece ensinamentos acerca do meio de realizar a participação natural do micrososmo humano no Metacosmo Divino, transmutando-a em participação sobrenatural e, finalmente, em união e identidade: esse meio é a *oração interior + ou *oração de Jesus +. Essa *oração + ultrapassa em princípio todas as virtudes, pois é um acto divino em nós e, como tal, o melhor acto possível. Só através dessa oração a criatura se pode unir realmente ao Criador. O fim dessa oração é por consequência o estado espiritual supremo, em que o homem ultrapassa tudo o que pertence à criatura e, unindo-se intimamente à Divindade, é iluminado pela Luz Divina. Esse estado é o *santo silêncio +, simbolizado aliás pela cor negra de certas imagens da Virgem'. Aos que julgam que a *oração espiritual + é coisa fácil e mesmo gratuita, o palamismo responde que ela constitui pelo contrário a via mais es Citemos igualmente a seguinte passagem do último capítulo do livro intitulado: *Que a prática da justiça não está toda contida nesta regra +: *Oual é com efeito a página, qual a palavra de autoridade divina no Antigo e no Novo Testamento, que não seja uma regra muito segura para a conduta do hornem9 Ou ainda, qual o livro dos Santos Padres católicos que não nos ensina elevadamente o caminho recto para chegar ao nosso Criador? Além disso, as Conferências dos Padres (do Deserto), as suas Instituições e Vidas, a Regra do Nosso Pai São Basílio, que outra coisa são senão o exemplar dos monges que vivem na obediência,e documentos autênticos de virtudes? Para nós, relaxados, de má vida, cheios de negligência, existe aí matéria para corarmos de vergonha. Tu, que apressas o teu passo para a pátria celeste, cumpre primeiro, com a ajuda de Cristo, este fraco esboço da regra que traçámos. Chegarás, enfim, sob a protecção de Deus, às mais sublimes alturas da doutrina e das virtudes, que acabámos de recordaras ' Este *silêncio + é o equivalente exacto do nirvâna hindu e budista e do fanâ sufita. Ao mesmo simbolismo se refere a *pobreza + (faqr) em que se realiza a *união+ (tawhid). Mencione-se igualmente, a propósito desta união real ou reintegração do finito no Infinito, o título de um livro de São Gregório Palamas: *Testeinunhos dos santos, mostrando que os que participam na Graça divina se tornam, conforme a Graça, sem origem e infinitos. + Recorde-se aqui o adágio do esoterismo muçulmano: *O sufi não é criado +. 139
Frithjof Schwn treita que existe, conduzindo aos mais altos cumes da perfeição, na condição essencial de o acto de oração se achar de acordo com os restantes actos humanos! Por outras palavras, as virtudes - a conformidade à Lei Divina - são a condição sine qua non para a oração espiritual ter qualquer eficácia. Estamos portanto bem longe da ilusão ingénua dos que pensam poder chegar a Deus através de práticas simplesmente maquinais e sem qualquer outro empenhamento ou obrigação. *A virtude - ensina a doutrina palamita - dispõe-nos para a união com Deus, mas a Graça realiza esta união inexprimível. + Se as virtudes desempenham o papel dos modos de conhecimento é porque representam, por analogia, *atitudes divinas +. Não há na verdade virtudes que não derivem de um Protótipo Divino, sendo esse o sentido mais profundo das mesmas. *Ser+ é *conhecer +. Chamaremos enfim a atenção para o alcance fundamental e universal da invocação do Nome Divino. Este é no cristianismo - como no budismo e em certas linhagens iniciáticas do hinduísmo - o Nome do Verbo Encarnado', portanto, o Nome de *Jesus+ que, como todo o Nome Divino revelado e ritualmente pronunciado, se identifica misteriosamente com a Divindade. É no Nome Divino que ocorre o misterioso encontro entre o criado e o Incriado, o contingente e o Absoluto, o finito e o Infinito. O Nome Divino é assim uma manifestar ão do Princípio Supremo que se manifesta. Não é, primeiramente, manifestação, mas o próprio princípio'. *O Sol mudar-se-á em trevas e a Lua em sangue antes de chegar o grande e terrível Dia do Senhor + - diz o profeta Joel -, *mas todo o que invocar o Nome do Senhor será salvo'. Recordemos igualmente o começo da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, dirigida *a todos os que invocam, onde quer que seja, o Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo + e, também, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, a exortação nestes termos: *Há que aprender a invocar o Nome de Deus mais do que se respi ' Queremos referir-nos aqui à invocação de Amida Buddha e à fórmula Om mani padmê hum e, no que respeita ao hinduísmo, às invocações de Râma e de Krishna. 1 Do mesmo modo, Cristo, segundo a perspectiva cristã, não é primeiramente homem, mas Deus. Os Salmos contêm várias referências à invocação do Nome de Deus: *Invoco o Se 140 A Unidade Transcendente das Religiões ra, a todo o momento, em todo o lugar e durante qualquer ocupação. O Apóstolo diz: Orai sem cessar; ou seja, ele ensina que nos devemos lembrar de Deus a todo o momento, em todo o lugar e durante qualquer ocupação'. Não é portanto sem razão que os hesicastas consideram a invocação do Nome de Jesus como herança deste aos seus Apóstolos: *É assim - afirma a Centúria dos monges Calisto e Inácio - que o nosso misericordioso e bem-amado Senhor Jesus Cristo, ao chegar a hora da Sua Paixão, livremente aceite por nós, e depois da Sua Ressurreição ao mostrar-Se
visivelmente aos Apóstolos, preparando-Se para ascender junto do Pai... legou aos seus estas três coisas (a invocação do Seu Nome, a Paz e o Amor, que correspondem respectivamente à Fé, à Esperança e à Caridade)... O começo de todo o acto de amor divino é a invocação confiante do Nome salvífico de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como ele próprio o disse (Jo.,15:5): Sem mim, nada podeis fazer... Pela invocação confiante do Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, esperemos firmemente obter a Sua Misericórdia e a verdadeira Vida oculta nele. Esta assemelha-se à Fonte Divina inesgotável (Jo.,4:14), que jorra os seus dons sempre que o Nome do Nosso Senhor Jesus Cristo é invocado, sem imperfeições, no coração. + Citemos ainda esta passagem de uma epístola (Epistola ad Monachos) de São João Crisóstomo: *Ouvi dizer aos Padres: quem é este monge que abandona a regra, e a negligencia? Quando come, bebe, se senta nhor com a minha voz e Ele ouve-me desde a Sua montanha santa. + - *Mas eu invoquei o Nome do Senhor: Senhor, salva a minha alma! + - *O Senhor está perto de todos os que O invocam, dos que O invocam em verdade. + - Duas passagens se referem ainda ao modo eucarístico: *Abre a tua boca, quero enchê-la. + - *O que faz feliz a tua boca para que voltes a ser jovem como a águia. + - E Isaías: *Não temas, pois te salvei, chamei-te pelo teu nome, 'tu pertences-Me. + - *Buscai ao Senhor, pois pode ser encontrado. Invocai-o, porque está próximo. + - E Salornão, no Livro da Sabedoria: *Invoquei, e o Espírito da Sabedoria veio a mim. + Neste comentário de São João Damasceno, os termos *invocar+ e *recordar-se + aparecem para descrever ou ilustrar uma mesma ideia. Ora, sabe-se que o termo árabe dhikr significa ao mesmo tempo *invocação + e *lembrança +. Igualmente no budismo e *Invocar+ a Buddha exprime-se com uma só palavra *pensar em Buddha + (buddhânusmriti; o nienfo chinês e o nembutsu 'aponês). Por outro lado, é de notar que os hesicastas e os dervixes designam a invocação pelo mesmo termo: os primeiros chamam *trabalho + à recitação da *Oração de Jesus +, enquanto os segundos chamam *ocupa ção+ ou *tarefa + (Augh0 a qualquer invocação. @I 141 Frithjof Schuon ou serve os outros, quando caminha ou faz o que fizer, deve invocar sem cessar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim'... Persevera sem cessar no Nome de Nosso Senhor Jesus, para que o teu coração beba o Senhor e o Senhor beba o teu coração, e assim os dois se tornem Um!+
Esta fórmula reduz-se frequentemente, sobretudo em homens mais espiritualizados, ao simples Nome de Jesus. - *O meio mais importante na vida de oração é o Nome de Deus, invocado na oração. Os ascetas e todos os que levam uma vida de oração, desde os anacoretas da Tebalda e os hesicastas do monte Atos... insistem sobretudo nesta importância do Nome de Deus. Fora dos Ofícios, existe para todos os ortodoxos uma regra de oração, composta por salmos e diferentes rezas. Para os monges é muito mais considerável. Mas o que mais importa na oração, o que constitui o coração da oração, é aquilo a que se chama a oração de Jesus: *Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo tem piedade de mim, pecador! Esta oração, repetida centenas de vezes ou indefinidamente, forma o elemento essencial de qualquer regra de oração monástica. Pode, em caso de necessidade, substituir os Ofícios e demais orações, pois o seu valor é universal. A força desta oração não está no seu conteúdo, que é simples e claro (é a oração do caminheiro), mas no Nome duIcíssimo de Jesus. Os ascetas dão testemunho de que este Nome encerra a força da presença de Deus. Não é apenas Deus que é invocado por este Nome: está sim presente na invocação. Podemos afirmá-lo certamente de todo o Nome de Deus. Mas há que dizê-lo sobretudo do Nome divino e humano de Jesus, que é o Nome próprio de Deus e do homem. Em suma, o Nome de Jesus, presente no coração humano, comunica-lhe a força da deificarão que o Redentor nos concedeu + (S. Boulgakoff, L'Orthodoxie). *O Nome de Jesus + - diz São Bernardo - *não é apenas luz. É também alimento. Qualquer alimento é demasiado seco para ser assimilado pela alma se não for suavizado por este condimento. É demasiado insípido, se este sal não lhe der sabor. Não gosto dos teus escritos, se não puder ler neles este Nome. Não gosto dos teus discursos, se não o ouvir ressoar. É mel para a minha boca, melodia para o meu ouvido, alegria para o meu coração, mas também um remédio. Algum de vós se sente oprimido pela tristeza? Que experimente Jesus com a boca e com o coração, e eis que à luz do Seu Nome toda a nuvem se dissipa e o céu fica sereno. Alguém se deixou levar pelo erro ou sente a tentação do desespero? Que invoque o Nome da Vida e a Vida o reanimarás (Sermão 15 sobre o Cântico dos Cânticos). 142 IX
SER HOMEM
CONHECER
evidência da unidade transcendente das religiões deriva não só da unidade da Verdade, mas também da unidade do gênero humano. A razão suficiente da criatura humana é saber pensar. Não pensar ao acaso, mas pensar no que importa e, no fundo, na única coisa que importa. O homem é o único ser sobre a Terra capaz de prever a morte e desejar sobreviver. É quem deseja e quem pode saber o porquê do mundo, da alma e da existência. Ninguém pode negar que é da natureza humana pôr essas perguntas, ter direito a respostas e acesso às mesmas, seja por Revelação ou por Intelecção, agindo cada uma dessas fontes segundo leis próprias e no quadro de condições correspondentes. Queríamos talvez desculpar-nos por parecer que *arrombamos portas abertas +, não vivêssemos nós num mundo em que as portas habitualmente abertas são sabiamente fechadas. Isso, cada vez mais, graças aos cuidados de um relativismo psicologistà, subjectivista, biologista, que ainda ousa designar-se por *filosofia +. Com efeito, vivemos numa época em que a inteligência é metodicamente arruinada nos seus próprios fundamentos e em que se torna cada vez mais oportuno falar da natureza do espírito. Nem que fosse a título de *consolação + ou para fornecer argumentos + para os devidos efeitos +. Dizendo isto, recordamo-nos de uma passagem do Alcorão em que Abraão pede a Deus para lhe mostrar de que maneira ressuscita os mortos. Deus responde-lhe, pondo a questão: *Não crês ainda? + Abraão res 143 Frithiof Schuon ponde: *Sim, mas peço-o para que o meu coração fique tranquilo. sentido que sempre é permitido recordar verdades evidentes, conhecidas de todos, tanto mais que as verdades conhecidas são muitas vezes as mais desconhecidas.
+
É nesse
O sinal distintivo do homem é a inteligência total, objectiva, capaz de conceber o absoluto. Dizer que possui tal capacidade equivale a dizer que é objectiva ou total. A objectividade, pela qual a inteligência humana se distingue da inteligência animal, seria desprovida de razão suficiente não fosse a capacidade de conceber o absoluto ou o infinito ou o sentido da perfeição. Afirmou-se que o homem é um animal racional, já que a razão é o seu sinal distintivo. Mas essa não poderia existir sem a inteligência supra-racional, que é o Intelecto, que a prolonga no mundo dos fenômenos sensoriais. Do mesmo modo, a linguagem é o sinal distintivo do homem, pois prova a presença da razão e, a fortiori, a do Intelecto. A linguagem, como a razão, é a prova do Intelecto, tendo tanto uma como a outra a sua motivação profunda no conhecimento das realidades transcendentes e dos nossos fins últimos. A inteligência como tal prolonga-se na vontade e no sentimento: se a inteligência é objectiva, a vontade e o sentimento sê-lo-ão igualmente. O homem distingue-se do animal por uma vontade livre e um sentimento generoso porque se distingue dele por uma inteligência total: a totalidade da inteligência dá lugar, extensivamente, à liberdade da vontade e à generosidade do sentimento e do carácter. Pois só o homem pode querer o que
é contrário aos seus instintos ou aos seus interesses imediatos. Só ele se pode colocar no lugar dos outros, sentindo com eles e neles. E só ele é capaz de sacrifício e piedade. A vontade está presente para realizar, mas a sua realização é determinada pela inteligência. O sentimento está presente para amar - quanto à sua natureza intrínseca e positiva -, mas o seu amor é tambénI determinado pela inteligência, tanto racional como intelectual, sem o que seria cego. O homem é a inteligência, a objectividade, e tal inteligência objectiva determina tudo o que ele é e fez. 144 A Unidade Transcendente das Religiões É lógico que os que se reclamam da Revelação e não da Intelecção tendam a desacreditar a inteligência, donde a noção de *orgulho intelectual +. Têm razão se se trata da *nossa+ inteligência *por si só +, mas não quando se trata da inteligência em si e inspirada pelo Intelecto que, afinal, é divino. Pois o pecado dos filósofos consiste não em fiar-se na inteligência enquanto tal, mas em fiar-se na sua inteligência. E em fiar-se apenas na inteligência desligada das suas raízes sobrenaturais. Há que entender duas coisas: primeiro, que a inteligência não- nos pertence e que o que nos pertence não é toda a inteligência. Segundo, que a inteligência, se nos pertence, não se basta a si mesma, precisa da nobreza de alma, da piedade e da virtude para poder ultrapassar a sua particularidade humana, unindo-se à Inteligência em si. A inteligência, não acompanhada da virtude, carece de sinceridade e a falta de sinceridade limita forçosamente o seu horizonte. É preciso sermos aquilo em que nos queremos tornar ou, dito de outra maneira, é preciso antecipar moralmente *esteticamente + - a ordem transcendente que queremos conhecer, pois Deus é perfeito em todos os sentidos. A integridade moral intrínseca não é certamente uma garantia de conhecimento metafísico, mas e uma condição de funcionamento integral da inteligência com base em dados doutrinais suficientes. O orgulho intelectual - ou, mais propriamente, intelectualista está excluído da inteligência em si e da inteligência acompanhada da virtude. Esta faz supor o sentido da nossa pequenez, assim como o sentido do sagrado. Seria necessário acrescentar que, se existe uma inteligência conceptual ou doutrinal, existe outra existencial ou moral: é preciso ser inteligente não apenas no pensamento, mas também no ser, que é fundamentalmente uma adequação à Realidade Divifia. A inteligência é tanto individual como universal. Ela é razão ou Intelecto. A individual deve inspirar-se na sua raiz universal se pretende ultrapassar a ordem das evidências materiais. Mas é também conceptual e existencial, devendo ligar-se ao seu complemento moral, de modo a ser plenamente conforme àquilo de que pretende dar-se conta. A vontade do Bem e o amor do Belo são as concomitâncias necessárias às repercussões incalculáveis do conhecimento do Verdadeiro. Em princípio, a inteligência é infalível. Mas é-o por Deus, não por nós. 145 Frithjof Schuon Por Deus: pela sua raiz transcendente, sem a qual é fragmentária; e pelas
suas modalidades volitivas e afectavas, sem as quais se condena a não ser mais do que um jogo do espírito. Inversamente e a fortiori jamais se pode dissociar a vontade ou o sentimento da inteligência que os ilumina, determinando as suas aplicações e operações. Disse-se que a razão é uma enfermidade, o que é justo se a compararmos à visão directa que é a Intelecção. A razão é uma enfermidade, mas a contingência também o é, embora não sob o seu aspecto positivo de adequação. A adequação discursava é necessária ao homem, desde que situada entre o exterior e o interior, entre o contingente e o absoluto. Toda a discussão sobre a capacidade ou incapacidade do espírito humano em conhecer a Deus resolve-se no seguinte: a nossa inteligência só pode conhecer a Deus *por Deus+, é portanto Deus que Se conhece em nós. A razão pode participar, instrumental ou provisoriamente, nesse conhecimento se permanecer unida a Deus. Pode participar na Revelação por um lado e na Intelecção por outro, derivando a primeira de Deus *acima de nós + e a segunda de Deus *em nós+. Se entendermos por *espírito humano + a razão cortada da Intelecção ou da Revelação - sendo esta em princípio necessária para actualizar aquela -, é óbvio que este espírito não é capaz nem de nos iluminar nem a fortiori de nos salvar. . Para o fideísta, só a Revelação é *sobrenatural +. A Intelecção, cuja natureza ele ignora, reduzindo-a à simples lógica, é para ele *natural+. Para o gnóstico, pelo contrário, tanto a Revelação como a Intelecção são sobrenaturais, dado que Deus - ou o Espírito Santo - opera em uma como em outra. O fideísta tem todo o interesse em crer que as convicções do gnóstico resultam de silogismos e crê-o tanto mais quanto de facto uma operação lógica, como um qualquer simbolismo, pode provocar a centelha da Intelecção e levantar o véu do espírito. De resto, o fideísta não pode negar totalmente o fenômeno da intuição intelectual, mas evitará associá-lo a essa Revelação *naturalmente sobrenatural + e imanente, que é o Intelecto. Atribuí-lo-á à *inspiração + e ao Espírito Santo, que no fundo é o mesmo, salvaguardando porém o axioma da incapacidade do *espírito humano +. 146 A Unidade Transcendente das Religiões O tomismo distingue o conhecimento *obtido pela razão natural + do *obtido pela graça +, o que sugere que as certezas metafisicas seriam dons pontualmente concedidos', embora haja também no homem aquilo a que paradoxalmente chamaríamos uma *graça naturalmente sobrenatural +, que é o Intelecto. Pois uma coisa é uma luz que nos vem por inspiração subtil e outra coisa é uma luz a que temos acesso pela nossa *natureza sobrenatural +. Todavia, poderíamos designar essa natureza como *imanência divina +, dissociando-a assim do humano, como fazemos ao afirmarmos que só Deus pode conhecer a Deus, seja em nós ou fora de nós. Em qualquer dos casos, o receptáculo *natural+ que é concedido ao *sobrenatural + tem já algo de sobrenatural ou de divino'. A essência da epistemologia constitui a razão de ser e a própria possibilidade de inteligência, a saber: a adequação, o *conhecimento +, por muito
que isso desagrade aos agnósticos. E quem diz adequação, diz prefiguração e mesmo imanência do cognoscível no sujeito cognoscente ou chamado a conhecer. O motivo da polarização do real em sujeito e objecto acha-se no Ser. Não no puro Absoluto, o Sobre-Ser, mas na sua primeira autodeterminação. A Maya divina é a *confrontação + de Deus enquanto Sujeito ou Consciência e de Deus enquanto Objecto ou Ser. É o conhecimento que Deus tem de si mesmo, da sua perfeição e das suas possibilidades. Tal polarização principal refracta-se inumeravelmente no universo, mas Do ponto de vista gnosiológico São Tomás é sensualista, portanto quase nacionalista e empirista. Todavia, segundo ele, os princípios da lógica situam-se em Deus, embora uma contradição entre o nosso conhecimento e a Verdade Divina seja impossível. E esse um dos axiomas de toda a metafísica e de toda a epistemologia. Por analogia, poderíamos dizer que Maria é *divina+ não apenas por Jesus, mas também e a priori pela sua receptividade na Encarnação, donde a sua *linaculada Conceição +, que é uma qualidade intrínseca da Virgem. Assim sendo, o Logos *encarnou + nela ainda antes do nascimento de Cristo, o que é indicado pelas expressões cheia de graça e o Senhor está consigo e que explica que ela tenha podido ser apresentada tanto pelos cristãos como pelos,muçulmanos - como a *Mãe de todos os Profetas +. O Lotus (Padma) não poderia trazer a Jóia (Mani) se não fosse ele mesmo uma teofania. 147 Frithjof Schuon de modo desigual - segundo o que exige a Possibilidade manifestante e por isso as subjectividades não são epistemologicamente equivalentes. Mas dizer que o homem é *feito à imagem de Deus + significa precisamente que ele representa uma subjectividade central, não periférica e por consequência um sujeito que, emanando directamente do Intelecto Divino, participa em princípio no poder deste. O homem pode conhecer tudo o que é real, portanto cognoscível, sem o que não seria essa divindade terrestre que de facto é. O conhecimento relativo é limitado subjectivamente por um ponto de vista e objectivamente por um aspecto. Sendo o homem relativo, o seu conhecimento também o é, pois é humano. E é-o na razão, não no Intelecto intrínseco. É-O'no *cérebro+, não no *coração + unido ao Absoluto. E é nesse sentido que, segundo um hadfth, *o Céu e a Terra não se podem conter (diz Deus), mas o coração do crente, esse contém-me + - esse coração que, graças ao prodígio da Imanência, desemboca sobre o *Si+ Divino e sobre a infinidade extintiva e unitiva do cognoscivel, portanto do Real. Poderíamos perguntar: porquê este desvio pela inteligência humana? Por que motivo Deus, que Se conhece a Si mesmo, Se quer ainda conhecer no homem? Como nos ensina um hadith, *Eu era um tesouro oculto e quis ser conhecido. Por isso, criei o mundo. + O que significa que o Absoluto quer ser conhecido a partir do relativo. Porquê? Porque isso é um possibilidade que deriva da ilimit ação do Possível Divino. Uma possibilidade,
portanto algo que jamais pode não ser, e cujo porquê reside no Infinito.
148
59 FRITHJOF SCHUON
DADOS BIOGRAFICOS
thjof Schuori nasceu em BâIe, no ano de 1907, e é filho de um alemão do Estado de Wurtemberg e de uma francesa natural da Alsácia. Obteve a nacionalidade francesa graças ao Tratado de Versailles; trinta anos mais tarde, depois de haver-se casado com a filha de um diplomata suíço, recebeu a nacionalidade helvética.'De 1930 a 1932, trabalhou como desenhador de arte em Paris, sem com isso haver negligenciado os estudos orientalistas, incluindo a aprendizagem do árabe; pouco depois esteve no Norte de Africa para aprofundar o conhecimento do Sufismo. Fez em seguida toda uma série de viagens a diversos países do Oriente. Visitou Renê Guénon, por duas vezes, no Cairo; e encontrava-se na índia, quando teve início a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, em 1959 e em 1963, Schuon viveu bastante tempo junto dos índios da América do Norte, tendo inclusivamente sido adoptado pela tribo Sioux. Durante cerca de vinte anos colaborou com Guénon na revista Études Traditionnelles. Enfim, após ter vivido durante quatro décadas junto do lago Leman, retirou-se para os Estados Unidos da América.
149 OUTRAS OBRAS
DE FRITHJOF SCHUON