A PROSA POÉTICA NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR
José Eugênio das Neves (PG-UEL) No ano de 1944, uma jovem autora fez sua estréia na Literatura Brasileira com um título que lembrava um verso poético: Perto do Coração Selvagem . A autora em questão, com o passar dos tempos, transformou-se em uma das mais cultuadas escritoras brasileiras, utilizando-se de seu próprio nome, que aos olhos do crítico Sérgio Milliet parecia um pseudônimo: pseudônimo: Clarice Lispector. Lispector. Logo de início, alguns críticos se aperceberam de uma característica especial de sua obra. Sérgio Milliet, através da série de volumes de seu Diário Crítico, fornece um dos primeiros documentos críticos importantes acerca da produção literária de Lispector. Milliet (apud SÁ, 1979, p. 26-27), escrevendo sobre Perto do Coração Selvagem , confessa que, inicialmente, não havia dado grande importância à obra e já ia atirá-la de lado, quando resolveu ler uma página ao acaso. A escolhida foi a de número 160 e causou tal impressão no crítico que o convenceu a ler a obra inteira. Nessa leitura, ele se depara com uma linguagem que envereda por atalhos inesperados e atinge o poético. Clarice possui a capacidade ou dom de associar um conteúdo inesperado às palavras, dando-lhes vida própria. Para o autor, essa característica é típica da poesia. Outro crítico, Álvaro Lins (1963, p. 186-193), no artigo “A experiência incompleta: mortos de sobreca sobrecasaca saca, ainda que Claris Clarisse se Lispe Lispecto ctor”, r”, incluí incluído do em seu seu livro livro Os mortos
considere os livros já lançados da autora, Perto do Coração Selvagem e O Lustre, como obras “inacabadas”, “inacabadas”, reconhece nela a capacidade de mesclar o mundo real com outro da psicologia, do sonho e da imaginação, eliminando as fronteiras que os dividem. Em síntese, Clarice realiza uma união entre o realismo e o lirismo. Para realizar essa ligação, ela, muitas vezes, lança mão dos recursos da poesia, o que é alvo de uma séria reprimenda do estudioso, que julga que tal escolha faz com que perca seu contato com a terra, com o gênero humano. É fácil compreender esse juízo de Lins, quando se verifica que, na época, a tendência dominante estava voltada para um realismo nu e cru, que constituía as obras de nosso regionalismo. O estudioso admite certo distanciamento desse padrão, mas condena o que considera ser um excesso no romance de Clarice.
Juntando as opiniões dos dois estudiosos, constatamos que os escritos literários de Lispector diferenciam-se dos demais pela mescla de realidade e lirismo, cosidos através de generosas pitadas de linguagem poética. Ora, essa definição enquadra-se bem naquilo que, em literatura, convencionamos chamar de “prosa poética”: uma obra composta em prosa narrativa (conto, novela, romance, crônica) que, no todo ou em algumas partes (trechos, capítulos), deixa-se permear por soluções poéticas. (MOISÉS, 2004, p. 373). É o que reconhece Milliet (apud SÁ, op. cit., p. 31), ao analisar O Lustre, quando, à parte das censuras que faz à obra, reconhece que Clarice Lispector possui “[...] uma espontaneidade que a valoriza e faz de sua prosa uma prosa poética cheia de surpresas (grifo nosso). O uso da prosa poética não se restringe apenas a seus romances. Moisés (apud SÁ, op. cit., p. 43), em crítica ao livro de contos Laços de Família, descreve a autora como portadora de um caráter “surrealista e poético”. Ora, eis aqui uma característica da prosa poética que se apresenta nos escritos clariceanos: a narrativa transcorre na mente de quem a vai tecendo, como se esse se abandonasse ao sonho. (MOISÉS, 2005, p. 29) Em outras palavras, transcorre num clima onírico, daí Moisés ter se apercebido do caráter surrealista da obra da autora. Constata-se, assim, que a obra de Clarice está vazada em termos de prosa poética. Com relação à prosa poética, Moisés (op. cit., p. 26) recorda-nos que esse rótulo destaca a presença conjunta de duas formas de expressão: a do “eu” (poesia), que se centra no pensar e sentir do sujeito e a do “não-eu” (prosa), que se volta, obviamente para os aspectos externos (cenário, personagens, etc.). Ora, essa é justamente a estrutura sobre a qual se constrói toda a obra de Lispector. Ao mesmo tempo, em que procura narrar uma história convencional, a autora tenta, através dos personagens, expressar o seu “eu”. Esse desejo é expresso já no primeiro livro, Perto do Coração Selvagem , quando a escritora revela um costume da personagem principal, Joana, ao brincar: Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o corpo de Arlete, matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário seria pau a brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel
principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura. (LISPECTOR, 1992, p. 21)
Já nessa obra, localizam os estudiosos essa simbiose entre personagem e autor. Manzo (1998, p. 6) destaca que Clarice empresta sua voz a cada um dos personagens. Ressalta também que não há diferença entre a voz da narradora em terceira pessoa e a de seus personagens, pondo em relevo o fato de que Clarice e Joana são almas gêmeas, que partilham a mesma visão de mundo. A partir dessa constatação, a estudiosa levanta a hipótese de que é possível compreender a vida de Clarice através de seus escritos, que se constituiriam em uma forma da escritora despir-se de seus segredos, revelando seus mistérios e dilemas. Outra pesquisadora, Sá (op. cit., p. 219), chama a atenção para o fato de que o narrador de tal forma se identifica com a protagonista, que o foco narrativo denuncia a presença de uma primeira pessoa. Isso ocorre devido à utilização de monólogos diretos, discursos indiretos livres e verbos no presente do indicativo. Nesse ponto, é interessante destacar que, Moisés (op. cit., p. 361), ao descrever as características da poesia, chama a atenção para o fato de que ela organiza-se em torno de uma única personagem, o poeta; o “outro”, quando aparece, resulta de uma duplicação narcisista do próprio poeta. O “outro” não é um terceiro, mas um “outro-eu”. Essa confusão pode ser percebida no seguinte trecho que focalizava a personagem Joana: Amava sua escolha e a serenidade agora alisava-lhe o rosto, permitir vir à consciência momentos passados mortos. Ser uma daquelas pessoas sem orgulho e sem pudor que a qualquer instante se confiam a estranhos. Assim antes da morte ligar-se-ia à infância, pela nudez. Humilhar-se afinal. Como pisar-me bastante, como abrir-me para o mundo e para a morte? (LISPECTOR, op. cit., p. 219)
Até a última frase, o texto apresenta um narrador em terceira pessoa, como demonstram os pronomes pessoais empregados, que relata fatos acontecidos no passado. É nesse momento, que ocorre uma reviravolta na narração, os pronomes de terceira pessoa são bruscamente substituídos por outro de primeira, no caso o “me”, mudando o foco narrativo de terceira para primeira pessoa. Na verdade, o que se verifica, nesse trecho, é a ocorrência de dois tipos de monólogo interior ou fluxo de consciência: o indireto, representado pelas frases em que há o
emprego da terceira pessoa do singular e o tempo verbal no passado, e o direto, que se encontra na última frase, e em que há a utilização da primeira pessoa e o tempo verbal no presente. Eis aqui um típico exemplo de prosa poética, já que, segundo Moisés (op. cit., p. 29) uma das características da prosa poética é que mesmo quando o foco narrativo encontrase na terceira pessoa, o tom é de primeira. Isso pode ser percebido em boa parte do fragmento acima em que predomina a focalização do tipo onisciência seletiva em que, embora o narrador empregue a terceira pessoa, os pensamentos, sentimentos e percepções são transmitidos ao leitor diretamente e sem mediação de espécie alguma. (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 42) As personagens são, portanto, máscaras, atrás das quais se esconde a voz clariceana. As faces são múltiplas, mas a voz por detrás delas é única. Tal disfarce aparece também em seus contos, como se pode perceber em “Felicidade Clandestina”, “Os Apuros de Sofia” e “Restos de um Carnaval”, dentre outros. No final de sua carreira, Clarice assume uma máscara mais próxima de seu rosto: a de personagem-escritor. Isso ocorre em dois romances: A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida. A Hora da Estrela
começa com uma declaração inédita na obra da autora:
DEDICATÓRIA DO AUTOR (Na verdade Clarice Lispector). Ou seja, logo de início, a autora assume abertamente o uso da máscara. No decorrer do romance, através da personagem do escritor Rodrigo S.M., ela discute o seu fazer literário, propondo-se a realizar um desafio: [...] vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. .Eu, Rodrigo S.M. [...] Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale" seguido de silêncio e de chuva caindo. (LISPECTOR, 1997, p. 27)
Para alcançar esse objetivo, Rodrigo pretende contar a história de Macabéa, uma nordestina sem sorte que tem uma existência apagada na cidade do Rio de Janeiro. O resultado, no entanto, não se afasta das obras anteriores. Manzo (op. cit., p. 210) destaca como, mais uma vez, Clarice faz de sua existência matéria-prima para esse romance. Entre as duas histórias, a da nordestina Macabéa e a do escritor Rodrigo S.M., predomina a do segundo, que não consegue levar adiante a história que se propõe a
construir. Em outras palavras, trata-se, na verdade, da história de Clarice e sua inabilidade para escrever romances de forma tradicional. Mas, a identificação da autora não ocorre apenas com o personagem Rodrigo S.M., ela aproxima-se também de Macabéa, conforme atesta o testemunho de Olga Borelli, amiga de Clarice, acerca da relação escritora/obra: [...] ela [...] em vida, próxima ao fim, reevoca toda a herança, o passado dela, nordestino. Ela se coloca na figura da personagem central, a Macabéa, que morre. Esse livro saiu na véspera da morte da Clarice. Ela era uma grande profetiza de si mesma. Ela dizia que o futuro é um passado que ainda não aconteceu no tempo. (BORELLI apud MANZO, op. cit., p. 204)
Essa proximidade autora/personagem pode ser vislumbrada, além disso, no próprio nome escolhida para a jovem migrante nordestina que vem para o Rio de Janeiro: Macabéa. O nome relembra os macabeus, heróis judeus que se bateram pela independência de seu povo. A ironia salta aos olhos. Macabéa não tem nada de heróico e é apenas mais uma nordestina anônima e sem importância a se movimentar em meio a milhões de outros que vivem nas grandes metrópoles. A tragédia da vida e morte de Macabéa ilustra o drama vivido por Clarice, que assim como a nordestina terá uma morte trágica depois de uma existência que julga apagada e infeliz. Por fim, em Sopro de Vida , Clarice coloca um personagem denominado de “Autor” em conflito com sua criação, “Ângela Pratini”. Mais uma vez, porém, os perfis dos personagens conduzem-nos à Clarice. Ou seja, trata-se como observa sabiamente Manzo (op. cit., p. 220) de Clarice Lispector escrevendo Clarice Lispector. Em suma, ainda que a ficção de Clarice oscile entre a primeira e a terceira pessoa, ela desvenda os segredos interiores das personagens e, assim, soa como se fosse narrada em primeira. E é através desse recurso, o fluxo de consciência, que Clarice pode revelar muitos aspectos de sua identidade. Outro detalhe da obra de Lispector enquadra-se bem em outra característica da prosa poética mencionada por Moisés (op. cit., p. 29). Trata-se do amortecimento da intriga, que se transforma, muitas vezes, em um fio débil e subterrâneo, opondo-se, dessa forma, ao enredo linear e explícito das narrativas realistas ou não poéticas.
O mesmo autor (op. cit., p. 145) destaca que o termo “enredo” pode ser empregado num sentido próximo ou equivalente a “intriga”, “assunto”, “argumento”, plot, “trama”, “fábula”. Lembra-nos, porém, que, no caso de obras de caráter psicológico ou introspectivo, “intriga” deve ser considerada como sinônimo de “história” ou “episódio”, referindo-se a uma narrativa em que o vínculo causal ou a profundidade analítica predomina sobre a sucessão de fatos ou acontecimentos. Sá (op. cit., p. 157) concorda com essa última afirmação de Moisés. Em nota de rodapé ao capítulo III de sua obra A Escritura de Clarice Lispector , que trata da linguagem da escritora, a estudiosa destaca que, em sua análise, empregará o termo “trama”, não utilizando os similares “intriga” ou “enredo” por estarem comprometidos em demasia com os “romances de intriga” e os lineares em suas sobrevivências modernas, que colocam em relevo o episódio e a ação, em detrimento da penetração no “eu” das personagens. Para a autora já citada (op. cit., p. 131-132), Clarice parece desinteressar-se da fábula, como material factual em favor da trama, isto é, dos recursos expressivos, das digressões, dos processos de composição, etc. No caso das digressões, elas caem como uma luva para o propósito de Lispector de realizar uma sondagem introspectiva em seus personagens. Para exemplificar, tomemos como modelo o romance A Paixão Segundo G.H . O enredo ou intriga gira em torno de uma mulher identificada apenas como G. H., que dirige ao quarto de sua ex-empregada para arrumá-lo. Ali, encontra uma barata, que esmaga com a porta do guarda-roupa. Em seguida, sente um grande desejo de devorar o que restou do inseto. Há uma concordância de alguns analistas quanto à fragilidade dessa intriga. Moisés (op. cit., p. 48) fala-nos de enredo cifrado e quase imperceptível; Sá (op. cit., p. 257) descreve o romance como uma longa introspecção, cujo objetivo é tratar de uma indagação metafísica. Em outras palavras, as digressões predominam sobre os fatos. Nos escritos clariceanos, no entanto, alguns fatos podem servir como detonadores de uma descoberta surpreendente do “eu”. Trata-se daquilo que se convencionou denominar de “epifania”. James Joyce (apud Moisés, op. cit., p. 156) define “epifania” como uma súbita manifestação espiritual a qual se chega através de um gesto ou fala comum ou, ainda,
por meio de uma frase memorável da própria mente. Em outras palavras, Joyce admite duas origens para a epifania, uma externa (fatos e palavras) e outra, interna (frases da própria mente). Em sua obra, Clarice recorre ao primeiro tipo, preferindo a utilização de fatos bastante prosaicos. Tomemos como exemplo, o conto “Amor”. Em uma viagem cotidiana de bonde, Ana, uma dona de casa comum, depara-se com uma visão que lhe causa desconforto: O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que estava realmente parado. De pé, suas mãos mantinham-se avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não se vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento de mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, 1998, p. 21-22)
Duas características chamam a atenção no personagem que desperta a descoberta de Ana: é cego e feliz. Ora, se analisarmos a descrição da vida de Ana, podemos identificar uma existência asséptica, voltada unicamente para a família e cuja marca principal é a fuga do pensar. Em outras palavras, Ana está desligada do mundo real (uma cegueira simbólica). A personagem, no entanto, é feliz. A visão do cego detonará sua descoberta do mundo que a cerca, um mundo perigoso, mas atraente. No final, a personagem opta por voltar ao mundo imaginário em que vive. Isso é simbolizado pelo apagar de uma vela. Em outras palavras, a iluminação é temporária. Tal qual um cego que recuperasse a visão e, estranhamente, preferisse voltar à cegueira
por se chocar com o mundo que acaba de descobrir, Ana retorna à sua cegueira simbólica. Verificamos, então, nesses e outros casos da literatura clariceana, em que a epifania apresenta-se, que a importância não recai sobre o fato em si mesmo, mas sobre os efeitos que provoca na personagem, gerando uma descoberta interior, que é o principal destaque da obra. Por fim, há a questão da linguagem. Por conta de buscar a melhor descrição para os sentimentos do “eu”, a prosa poética, assim como a poesia, lançará mão de uma linguagem carregada de simbolismos. Descrevendo as características da linguagem poética, Moisés (op.cit., p. 361) alista como seus atributos: a utilização acentuada de metáforas e o caráter polissêmico das palavras empregadas. Assim, a linguagem poética provoca no leitor, a princípio, um “estranhamento”. Acostumado a desvendar o significado do que lê com facilidade nos textos do dia a dia, ele depara-se agora com uma linguagem a ser decifrada. Muitas dessas características apresentam-se nos textos de Clarice. Desejosa de representar da melhor forma possível o seu “eu” na escrita, a autora busca uma linguagem que a auxilie a fazer isso. Antônio Cândido (apud Sá, op. cit., p. 25) percebeu isso e no artigo “No raiar de Clarice Lispector”, em julho de 1944, faz referência à busca de um vocabulário, imagens e torneios que se amoldassem a uma expressão sutil e tensa, de tal forma que a língua tivesse o mesmo caráter dramático do entrecho. Outro crítico, Sérgio Milliet (apud Sá, p.31) percebe um desses artifícios, uma estranha técnica de adjetivação. Cita como exemplos as expressões “grito de café fresco”, em que “grito” significa “cheiro repentino” e “tomava o seu sábado”, na qual “tomar” adquire o sentido de “viver” e o “sábado” transforma-se em uma “bebida sorvida lentamente”. Percebemos nos exemplos levantados pelo estudioso, que Clarice, ao invés, de trabalhar a polissemia com termos já existentes, cria outros novos, o que empresta um caráter insólito à sua linguagem. Daí, muitas pessoas encontrarem dificuldades na leitura de suas obras, já que o significado não está na superfície e é preciso mergulhar mais fundo no mar das palavras para alcançar sua compreensão.
Além disso, no termo “grito de café fresco”, percebemos a ocorrência da sinestesia, isto é, da combinação ou fusão de dois sentidos: a audição e o olfato. Trata-se de mais um recurso poético de que se vale a escritora. Dois outros críticos, Luís Costa Lima e Benedito Nunes (apud Sá, op. cit., p. 49), chamam a atenção para outro aspecto interessante da linguagem, que pode ser percebido, por exemplo, no trecho final de Perto do Coração Selvagem: o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante: sempre fundido, porque então viverei só então viverei maior do que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e tudo que venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo. (LISPECTOR, op. cit., p. 224)
Percebe-se no trecho a repetição persistente de certas expressões. Exemplo semelhante pode ser verificado no romance A Paixão Segundo G.H. em que a expressão do final de um capítulo é repetida no início de outro. Para os dois autores acima citados, essa repetição constitui-se em um aspecto poético que marca presença no texto. O que acabamos de ver demonstra claramente que, dentro da Literatura Brasileira, Clarice Lispector foi um dos autores cuja obra apresenta as características da prosa poética de forma mais acentuada. Outro autor que pode ser colocado no mesmo patamar é Guimarães Rosa, que também mereceria uma análise quanto à presença das características da prosa poética no interior de sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de Leitura da Narrativa. In: Org. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literaria: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2003.
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