Slides acerca da Metodologias em História da Arte dado pelo professor Luís Gonçalves na disciplina História da Arte I (Pintura) da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Descrição: A autoimagem da sociedade brasileira em O Cortiço.
livroDescrição completa
Fischer, teórico marxista da arteDescrição completa
Descrição: Apostila sobre intercessão
Descrição completa
Descrição: Declamar poemas, parte importante da oratória que se arrisca a cair em desuso se não for cultivada
Descrição: pica
Anotações sobre o livro A Arte da ConversaçãoDescrição completa
A FLUIDEZ DA FORMA: ARTE,
ALTERIDADE
SOCIEDADE
E AGENCIA
AMAZONICA
EM UMA
(Kaxinawa, Acre)
ELS
LAGROU
A FLUIDEZ DA FORMA: ARTE,
ALTERIDADE
SOCIEDADE
lJO -I'
PPGSA·UFRJ
I
E AGENCIA
AMAZONICA
EM UMA
(Kaxinawa, Acre)
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Editor Jose Mario Pereira Editora Assistente Christine Ajuz Revisao Luciana Messeder
Capa Miriam Lerner Diagramat;aO Arce das Letras
TODOS
os
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Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda. Rua Visconde de Inhauma, 58 / gr. 203 - Centro Rio de Janeiro - CEP: 20091-000 Telefax: (21) 2233-8718 e 2283-1039 E-mail: [email protected] Visite 0 site da ed,itora para mais informa~6es www.topbooks.com.br
Agencia dos objetos Agencia do desenho:relacionar, seduzir e capturar Etnografia do gosto: a etica que e uma estetica Trilogia da percep~ao: desenho (kene), figura (dami), imagem (yuxin) e suas rela~6es com 0 corpo Uma perspectiva estetica sobre 0 perspectivismo
II. AL
TERIDADE:
37 54 84 108 137
A SEDUC;AO DO INIMIGO
Alteridade e seus disfarces Se~6es, metades e genera entre os Pano estrangeiro e 0 humano (nawa/huni) CAMINHOS
DA COBRA E DO
A cobra Mito de origem do desenho e do cip6 Matan~a ritual da j ib6ia A jib6ia e a sucuri Fluidos e a forma de urn novo corpo Crian~as misturadas e gemeos
159 171 182
:
o
III. FORMA: os
15 19
~
Inka
. 193 . 201 213
216 223
•
o tempo
e as form as Origem da morte e dos carpos celestes Origem do tempo e 0 roubo do soL diluvio: a rede, a sucuri e 0 arco~fris Encontro das cores: entre a cobra eo Inka
o
IV.
AGENCIA:
FLUIDEZ E FORMA FIXA
o corpo
e seus saberes Nascimento A~5es e emo~5es como conhecimento encorporado Os yuxin dos humanos Morrer, urn processo de tornar~se outro Urn rito funerario endocanibalfstico Yuxin e 0 desejo por urn corpo . E mergencla d 0 yu.:un C6digo culinario e os perigos da hemofagia Os yuxin dos animais Yuxibu, seres sem corpo lnvisibilidade do xama Controle dos encontros com yuxin lnicia~ao do mukaya veneno do dauya A'
o
V.
FABRICANDO
232 236 255 272 281
303 .
309 315 325 329
347 . 350 354 359 366 370 390
.f/J9 5
CORPOS PENSANTES: NIXPUPIMA
Poetica kaxinawa: performance verbal e eficacia estetica 413 Cria~ao da humanidade por Nete :.....•.................... 424 Batismo e 0 despertar da sexualidade ::-:.438 Dentes e contas 447 M ilho e nixpu 457 Agencia ritual: fazer cantando 462 Cantos de abertura 466 Cantos de trabalho 480 Kenan, 0 banquinho 489
Prepara~ao da comida Remodelagem ritual das crian~as A alquimia do cozimento: gesta~ao, nixpu e funeral FIXIDEZ DA FORMA ...................•......•.•......•.........•.....••....•....•............. BIBLIOGRAFIA
~[apas cedidos pelo Programa Monitoramento de Areas Protegidas/lnstituto Socioambiental, 2007.
•
"Sempre pensava que para se ter 0 mundo s6 precisava de dois: a agua e a luz, 0 homem e a mulher. Mas descobri que 0 mundo e feito de tres. Nao basta ter a agua e a luz, precisa ter 0 ar, que faz 0 vento. que da movimento e faz a ligaS;ao. faz com CLuea coisa ande. E 0 terceiro elemento que da a vida. Assim tambem e por causa do filho do casal que 0 mundo continua." Agostinho Manduca
Kaxinawa do rio J ordao, 1991.
ESTE LIVRO
E
0 RESULTADO
DE QUINZE ANOS DE REFLEXAO SOBRE MINHA
experiencia entre as Kaxinawa. Este perfodo abrange praticamente a perfodo inteiro da minha vivencia no Brasil e do meu envolvimento com a antropologia. Neste perfodo muitas pessoas contribufram de maneira direta au indireta para a realiza~ao deste trabalho. Agrade~o a extrema generosidade dos Kaxinawa do Alto Rio Purus que me receberam nas suas casas, me alimentaram, me ensinaram e cuidaram de mim durante as dezoito meses que morei nas suas aldeias com urn carinho e preocupa~ao com meu bem-estar que formaram a base para urn aprendizado e urn afeto que me marcaram para sempre. Meus anfitri6es conhecem a •• te de realmente 'adotar' a antrop6logo, de lentamente fazer acostumar seu 'corpo pensante', como a conhecem, alias, as pr6prios brasileiros com rela~ao aos estrangeiros que aqui chegam. Em Cana Recreio morei na casa de Pancho e Maria Anisa. Em Nova Alian~a foram Manuel Sampaio e Maria das Dares qlJe me hospedaram. A casa de Antonio Pinheiro e Cassilda, Mflton Maia··e Sebastiana Pinheiro, Maria Sampaio, Rosa e Marciano, Marlene e Arlinda, de Abel, Jose Paulo, Gra<;a, Rubin e Fil6 estava sempre aberta para minhas visitas e lhes agrade~o pelo carinho e pelos ensinamentos. Em Moema fui 'adotada' par Augusto Feitosa e sua esposa Alcina, meus pais classificat6rios, e par Laura, Maria Antonia, Denis e Santa, 'irmaos', Edivaldo, cunhado. Na casa deles, tive a sensa~ao de estar realmente em casa. Ainda de Moema,
me lembro com afeto dos jovens Francisco, Delicia, Adao e Maria Elena. Cana Recreio e Nova Alian<;a marcaram 0 primeiro perfodo de aprendi, zado no Alto Purus, Moema, para onde segui acompanhando Augusto, marcou 0 ultimo. Tudo come<;ou no Rio, quando, visitando Berta Ribeiro a procura da 'minha tribo', ela me apresentou a Nietta Lindenberg Monte, entao coor, denadora da Comissao Pr6,fndio do Acre. Agrade<;oa Nietta pelo convite e a ela e aos outros membros da CPI pela boa recep<;ao,pela amizade e pela ajuda. Paulo Alencar pela assessoria em assuntos medicos, Terri Aquino pelos conselhos de veterano, txai dos kaxi, Agostinho Manduca e Sia pelas valiosas conversas antes e depois de chegar da aldeia, assim como Malu, Renato, Marcello Iglesias, Dede, Verinha, Joaquim Yawanawa e mais tarde Ingrid Weber, que veio integrar a nova gera<;ao.Luis e Uta Carvalho me hospedaram em Rio Branco e foram grandes amigos, agrade<;o,lhes pelas conversas estimulantes, pela ajuda, pelo carinho. Em Manuel Urbano re, cebi ajuda de Antonia, das Irmas e de Roberto, da Sucam. Uma vez voltei do campo por Sena Madureira, onde fui apresentada a Padre Paulino que me con tau sua apaixonante hist6ria de vida e me hospedou em sua casa. Jean Langdon, amiga de muitos anos, me colocou no caminho da an, tropologia, me orientou na UFSC e despertou em mim as grandes ques, toes que me acompanham ate hoje. Dos ex,professores, colegas e amigos ~os tempos em que estudei e lecionei na UFSC contribufram diretamente para 0 trabalho Rafael de Menezes Bastos, Miriam Grossi, Ilka Boaventura Leite, Sonia Maluf, Sflvio Coelho dos Santos, Carmen Rial, Gloria Valle, Lufs Euardo Luna, Alberto Groismann, Maria Ines Mello, Acacio Pieda' de, Arist6teles Barcelos, Deise Montardo. . Lux Vidal acompanha meu trabalho com generosidade-e conselhos des, de 0 come<;o,nos tempos da UFSC, quando me cedia pilhas de bibliogra' fia, e depois como orientadora no doutorado na USP. Sua visao crftica e engajada mudou minha percep<;ao do universo indfgena e do lugar nele ocupado pelos Kaxinawa. Na USP marcaram minha trajet6ria intelectual as cursos de Roberto Cardoso de Oliveira, Manuela Carneiro da Cunha e Joanna Overing, assim como a calorosa recep<;ao, a amizade e conversas
estimulantes com Paula Monteiro, Miguel Chaves, Sflvia Caiuby Novaes e Omar Thomas. Agrade<;:o tambem Edilene Coffaci, Martha Amoroso, Flora e Aloisio Cabalzar, Luis Donisete, Denise Fajardo, Paula Morgado e Oscar Calavia, que colaboraram com discussoes sobre 0 trabalho no Laborat6rio de Antropologia Visual e no Nlic1eo de Hist6ria Indfgena. Joanna Overing me convidou como 'Research Assistant' para St. Andrews. A inspira<;:ao e orienta<;:ao informal se transformaram em orienta<;:ao formal. Agrade<;:o pelo convite, pelo entusiasmo e 0 constante estfmulo, pela hospitalidade amerindia e pela amizade. Aos amigos na Esc6cia: Napier Russel, Juliet O'Keeffe, Alan Passes, Karen Jacob, Gisela Pauli, Carlos Londono, Barry Reeves, Guilherme Werlang, Steven Kid, Lindsy, Nick Barker, Rebecca, Gonzalo. Elvira Belaunde, amiga fiel desde os tempos de St. Andrews, acompanhou 0 processo de elabora<;:aodo livro de perto, pelas suas valiosas e entusiasmadas contribui<;:oes, sempre grata. Cecilia McCallum, com generosidade, acompanhou minha pesquisa com os Kaxinawa desde 0 come<;:o,em Londres, em Florian6polis, em St. Andrews. Agrade<;:oKensinger pelas sugestoes dadas durante conversas em St. Andrews e pelo estfmulo e confian<;:aao me ceder suas notas de campo sobre 0 ritual Nixpupima. Outras pessoas contribuiram com discussoes e ideias ao trabalho: Lucia van Velthem, Regina Muller, Robert Crepeau, Nadia Farage, Peter Gow, Steven Hugh-Jones, Eliane Camargo, Philippe Erikson, Sven-Erik Isacsson, Angela Hobart, Bruno Illius, Denise Arnold, Benny Shanon, Gustaaf Verswijver, Bonnie e Jean-Pierre Chaumeil, Philippe Descola, Anne-Christine Taylor. Do grupo de trabalho sobre ~gentivite em Paris: Valentina Vapnarsky, Aurore Monod-Becquelin, IsabeHe Daillant, Patrick Deshayes, Dominique e Jacques. No Rio agrade<;:omeus colegas do Programa de P6s-Gradua<;:ao ~m Sociologia e Antropologia do IFCS (UFRJ), que ajudaram de muitas maneiras: Jose Reginaldo Santos Gon<;:alves,Jose Ricardo Ramalho, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Maria Rosilene Barbosa Alvim, Mirian Goldenberg, Glaucia Villas Boas, Neide Esterci, Peter Fry, e especialmen-
te Yvonne Maggie, Bila Sorj e Beatriz Heredia pela ajuda concreta na viabiliza~ao da publica~ao deste livro. Agrade~o as contribui~5es dos amigos do grupo de discussao dos semi~ mirios de emologia amerfnida no IFCS e dos encomros do NUTI/Abaete: Tania Stoltze Lima, Marcia Goldman, Bruna Franchetto, Aparecida Vi~ la~a, Carlos Fausto, Eduardo Viveiros de Castro, Cesar Gordon, Cristiane Lasmar, Marcela Coelho. Agrade~o tambem as instigames questionamen~ tos dos me us alunos, Luana Wedekin, Maria Acselrad, Ana Amelia Bra~ sileiro, Luciana Barbio, Ana Gabriela Dickstein, Mylene Mizrahi, Rafael Pessoa, Tiago Coutinho, Peter Beysen e Sonja Ferson, que me ajudaram a amp liar as horizomes da pesquisa. Meus pais me deram a gosto pela viagem e me apoiaram em toda esta jornada. Par seu afetuoso apoio logfstico em varios momemos decisivos desta trajet6ria. Meus irmaos (Anneleen, Pieter, David) e amigos pr6ximos na Belgica (especialmeme Karen Phalet e Veerle Fraeters) me mantinham perto deles par vias virtuaisj assim como minha irma gemea, Katrien, que me acompanha sempr~, mesmo quando longe. A Marco Amonio Gon~alves, companheiro de viagem desde St. An~ drews, diretameme envolvido na produ~ao do livro, par tudo e par estar sempre perto, e a Marie, nossa filha, que me ensinou que existe alga mais forte com a poder de fazer a trabalho parar. Recebi financiamemo para a pesquisa das agencias financiadoras CNPq, CAPES, FAPESP e FAPERJ no Brasil; do Vlaams Ministerie voor Kultuur en Wetenschappen na Belgica; da University of St. Andrews e a Sutasoma Trust na Gra Bretanha.
A
DISCUSSAO
TEORICA
PROPOSTA
NESTE LIVRO SE BENEFICIA
DE UMA
saudavel desestabiliza~ao, nos anos noventa, das funda~5es de uma antropologia da arte e da estetica que tinham se firmado como urn campo relativamente autonomo dentro da antropologia, marginal as preocupa~5es teoricas centrais da disciplina. Para alguns a antropologia da arte parecia correr 0 serio risco de desaparecer da agenda da disciplina, somente para reaparecer das cinzas em nova roupagem, com novas quest5es e com uma consciencia renovada, partilhada por autores renomados no campo da teoria antropologica em geral, da centralidade das quest5es colocadas pela forma, pela objetifica~ao e pela visualiz~ao de ideias e rela~5es. Minha propria rela~ao com 0 topico da estetica - ao fazer campo com pessoas que visivelmente partilhavam nossa fascina~ao pelo mundo das imagens, mas lidavam com elas de maneira muito diferente, come~ando por urn interesse muito menos marcado na materializa~ao das imagens percebidas e imaginadas do que nos - levava em cont.a a crise do campo da antropologia da arte e sua subseqilente revitaliza~ao nas ultimas decadas. Iconoclasme e iconofilie sao conceitos que caminham juntos, como sugere Latour (2002), po is lidamos, neste nosso mundo repleto de imagens virtuais e fugidias, com 0 interessante fenomeno dos iconoclashes: 0 encontro das imagens em tensao e em movimento, onde a destrui~ao de uma imagem leva, necessariamente, a cria~ao de outra. Os Kaxinawa estariam sem duvida de acordo com este diagnostico do estado das coisas, sobre 0 poder de fascina~ao das imagens e a ambfgua tensao entre produ~ao e destrui~ao
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das imagens, po is seu mundo fenomenol6gico se constitui em um campo de batalha entre imagens flutuantes e 'corpos pensantes', corp os estes que SaGjustamente a fixa~ao e materializa~ao de determinadas form as que ja foram imagens. Podemos afirmar com Taussig (1993) que tambem para os Kaxinawa identidades SaGconstrufdas a partir de processos complexos de mimese e alteridade, I em constante processo de se fazer a partir do desfazer e refazer o outro dentro de si. Podemos constatar deste modo que se os Kaxinawa nao partilham nossas ideias ou conceitos sobre arte ou estetica possuem nao obstante ideias fascinantes sobre 0 poder das imagens, das palavras e dos objetos. Alfred Gell influenciou 0 debate dos ultimos anos sobre arte e imagens, particularmente com rela~ao a seu poder de agir sobre 0 mundo. Sua obra p6stuma, Art and Agency (1998), causou grande impacto no campo justa~ mente por combinar icnoclasme e iconofilie, explicitando uma ambi~ao de posicionar 0 estudo da eficacia da arte, tanto de imagens quanto de objetos, no centro do debate te6rico na antropologia social britanica. Gell aborda de forma direta a rela~ao ambfgua, expressa nos termos de amor/6dio entre a antropologia social e as disciplinas relacionadas a estetica (a semi6tica e hermeneutica inclufdas), ousando mesmo afirmar que considera as abor~ dagens sobre arte na tradi~ao da antropologia cultural como nao verdadei~ ramente antropo16gicas (Gell, 1998: 1~5). Excessos a parte, a senten~a de morte e sucessivo renascimento do campo propos to por Gell produziram urn efeito revigorador que encontrou solo fertil em to do urn movimento que ha pelo menos quinze anos, trouxe de volta 0 tema dos objetos e das imagens para 0 centro das aten~5es e nao somente ~a disciplina antropo~ 16gica. Deste modo Gell nao estava sozinho na sua insatisfa~ao com 0 culto da beleza numa disciplina .avessa a julgamentos de valor,Jcomo com uma I "Identidade [... ] nao deve ser considerada uma coisa em si, mas uma relac;ao tecida a partir da mimese e alteridade dentro dos domfnios colonia is da representac;ao. Tudo alude a aparencia ... " (Taussig, 1993: 133). Todas as traduc;oes das citac;oes neste livro sao minhas.
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abordagem inspirada nas ciencias da linguagem que procuram explicar fe, n6menos que se caractedzam, justamente, por suas caracterfsticas nao,lin, gufsticas. 0 mesmo argumento dos problemas contidos na avalia~ao estetica transcultural inspirou 0 debate, hoje considerado decisivo para se pensar os rumos que tomou 0 campo da antropologia da arte (Ingold, 1996). Negar aos conceitos de estetica ou de arte uma aplicabilidade univer, sal, n.ao significa declarar esta area da sensibilidade e atividade humanas relacionadas a atribui~ao de sentido ou significancia a qualidades e form as percebidas pelos sentidos e materializadas ou manifestas em imagens, ob, jetos, sons e movimentos como nao representativa para a pesquisa compa, rativa. Pelo co~trario, significa assinalar a importancia destes fen6menos para todo 0 campo da teoria antropologica, subtraindo a antropologia da arte, que tinha sido capturada por armadilhas metodologicas colocadas por outras disciplinas, de seu confinamento a uma subarea especffica da este, tica Ou da arte, redefinindo,a como uma sensibilidade em relafao a forma, enquanto materializafaO de ideias, experiencias e relafoes. Esta renovada aten~ao ao rendimento cognitivo da forma pode ser en, contrada na etnografia da Melanesia e arredores com autores como Wag, ner (1986), Strathern (1988), Munn (1986), Weiner (2001), Kingston (2003) e MacKensie (1991). Strathern afirma que: "Para que um corpo ou uma mente esteja na posi~ao de suscitar um efeito em outro, para evidenciar poder ou capacidade, este precisa se manifestar de maneira concreta, tornando,se deste modo um gatiIho evocativo. Este feito pode somente ser realizado a partir de uma estetica apropriada." (Strathem, 1988: 181)
"Em outras palavras, uma determinada forma de vida ou socialidade se esconde atrei.sdo dia,a-dia do mundo melanesio, como de fato do nosso proprio, e requer 'uma estetica' para revelar seus contomos." (Weiner, 2001: 80)
Sean Kingston retoma a questao chamando a atens:ao para 0 papel onipresente da forma na experiencia subjetiva, sendo que uma das per~ ceps:5es que temos do ambiente envolvente e a de urn mundo de formas, formas significantes, que tern grande importancia nos process os socia is que formam nossos mundos vividos (Kingston, 2003: 681~708).0 tema da forma e, portanto, importante para a antropologia, apesar de ter re~ cebido pouca atens:ao conceitual na disciplina, por dois motivos: em primeiro lugar, 0 conceito tern sido associado a abordagens excessiva~ mente formalistas e objetificantes e, em segundo, autores que voltaram a utilizar a ideia da forma nas suas analises utilizam 0 conceito de forma excessivamente estatico. Assim, segundo Kingston, Gell ( 1998), Ingold (2000), Strathern ( 1988) e Munn (1986) contribufram de modo decisivo para reavivar e revisar 0 tema da farma enquanto topico merecedor de atens:ao na antropologia, mas nao exploraram todo seu potencial dinamico. Com relas:ao a analise da importancia da forma na cognis:ao por Ingold, Kingston ressalta que 0 que interessa nao e somente como a atens:ao aprende a se fixar nela com a emergencia cumulativa de processos evolutivos ou de aprendizado, tao bem demonstrado par Ingold, mas tambem como a propria forma "aumen~ ta e diminui com a volatilidade da subjetividade e das polfticas de sociali~ dade" (Kingston, 2003: 682). No trabalho de Strathern ( 1988~1990), par sua vez, afirma Kingston, U[A] forma e usada como rermo para expressar maneiras reificadas de objerificar rela~6es. Esras formas podem exercer for~a cogniriva e polfrica ao provocar objerifica~6es (formas) similares ou diferenres de conjuntos de rela~6es relacionadas denrro do modo 'esrerico'
..
melanesio de perceber (e, portanto, caregorizar e subdividir) seu ambienre, incluindo, de forma priorireiria, pessoas [...] Na sua exposi~aol formas dependem do ponto de vista. Mas, enquanto leva em considera~ao sua interliga~ao em rermos da moriva~ao social para a percep~ao de uma em vez de outra, a forma em si estei sempre lei no mesmo nfvel. No modelo delineado em The Gender of the Gift
[0 genero da da:diva]formas aparecem a partir de outras formas, mas nunc a surgem enquanto fen6menos relacionados a realidades perceptivas. Nao ha:uma elaboras:aoem geral das experiencias subjetivas de qualidades e graus de forma." (Kingston, 2003: 682) Kingston, por outro lado, lembra a li~ao aprendida com a fenomenologia de que "de uma perspectiva fenomenol6gica, forma e aten~ao sao intrinsecamente ligadas" (Kingston, 2003: 681). Este aporte fenomenol6gico, de pensar forma e atenfllo como intrinsecamente ligados, contribui para urn processo que subtrai 0 estudo da forma da sua conota~ao com abordagens excessivamente reificantes. 0 que acontece com a associa<;ao entre 0 conceito de aten<;ao e 0 conceito de forma e que a forma adquire uma flexibilidade e agencia pr6prias. Nas palavras de Kingston: "Para que a forma tenha importancia antropologica, acredito que temos que continuar 0 processo de abandono de elementos nao desejados de objetivismo, processo iniciado pelos te6ricos mais destacados da disciplina (como Gell, Ingold e Strathem), desenvolvendo modelos fenomenologicamente mais precisos, que nos permitem examinar 0 real engajamento do social com 0 formal." (Kingston, 2003: 682-683)
E em Merleau-Ponty
que devemos procurar as prirneiras forrnula<;6es do papel ativo da atenfllo na fabrica<;ao do rnundo: "Atens:ao [...] e a constituis:ao ativa de urn novo objeto que explicita e articula 0 que era ate entao apresentado como nada·mais que urn horizonte indeterminado." (Merleau-Ponty,1962: 30) <-~E a contribui<;ao esperada dos antrop6logos, ainda segundo Kingston, e de estudar 0 lado social da dinarnica que gere 0 fenomeno da aten<;ao. historiador Jonathan Crary (1999) charnou aten<;ao para urn fenomeno que surgiu na cultura europeia do fin de siecle e que certamente preparou 0 terreno para a importancia dada atualrnente a aten<;ao:
o
"Crary argumenta que a aten~ao surgiu enquanto objeto discursivo quando a percep~ao se separou dos c6digos e praticas hist6ricos que a investiram com urn pressuposto de certeza e naturalidade. Quando se tomou claro que a visao nao era transparente, que urn mesmo objeto era passivel de ser percebido de diferentes maneiras pelo mesmo ou outros sujeitos, tentativas foram feitas para explicar e controlar as varia~6es da forma em termos de aten~ao." (Kingston, 2003: 683)
Os Kaxinawa nunca consideraram as formas das coisas como dadas ou naturais, pois e na pr6pria fluidez da forma perceptivel que se baseia 0 conceito de agencia e de poder kaxinawa. Os seres nao humanos, yuxin e yuxibu, sao os mestres da transforma<;ao da forma e a condi<;ao humana reside na conquista de uma determinada forma fixa no meio de uma multiplicidade de formas possiveis. A cuidadosa produ<;ao da forma apropriadamente kaxinawa de pessoas enquanto 'corpos pensantes', ou seja, de sujeitos com princfpios socia is compartilhados, depende de uma l6gica especffica que rege a aten<;ao dada ao poder das imagens e da forma. E do poder das imagens de criar e destruir as form as na vida kaxinawa que este livro trata. 19ualmente na regiao amazonica Overing (1989, 1991, 2000, 2003) sugere uma explora<;ao sistematica das diferentes esteticas da vida cotidiana, onde forma e sentido estao inextrincavelmente entrela<;ados atraves da produ<;ao de sentido no contexto da intera<;ao. Podemos, desta mane ira, entender forma e estilo como materializa<;6es 'do imp acto da vida sobre as pessoas' ('of the hold life has on people', Malinowski, 1976; Gow, 1999). Uma abordagem que chame a ateh<;ao para a forma ~ as imagens leva automaticamente a poetica da vida cotidiana (Overing, 2000), onde 0 papel inventivo da metafora e do processo continuo da interpreta<;ao enquanto reinven<;ao do sentido num processo continuo de autopoiesis sao fatores que remetem igualmente a dinamica da forma enquanto fenomeno determinado pela aten<;ao. Com rela<;ao a este processo Toren afirma que "a autopoiesis humana implica que no processo de fabrica<;ao de sentido 0 conhecimento e transformado mesmo quando e mantido e que 0 sentido e sempre emergente, nunca fixo" (Toren, 2003: 710).
•
Deste modo uma nova chamada para a importancia da forma que a vida assume significa tomar cuidado em nao separar forma e sentido ou opor agencia e sentido. Entender 0 processo da emergencia do sentido como fenomeno hist6rico significa pres tar aten<;ao nao somente nas formas e rela<;5es entre form as, mas tambem na rela<;ao temporal entre 0 apareci, mento e 0 desaparecimento das formas, na rela<;ao entre forma e ausencia de forma (Kingston, 2003), assim como entre fixidez e fluidez da forma. Esta questao nos remete a crucial rela<;ao entre forma e corporalidade, um tema obsessivamente trabalhado pelos rituais kaxinawa, que visam a fixar a forma corporal no ritual de safda do recem,nascido e desfaze,la no anti, go ritual endocanibalfstico, assim como remodelar a forma e endurecer 0 corpo durante 0 ritual de passagem. A filosofia moral kaxinawa associ a a solidez e a relativa fixidez da forma ao comportamento social, definindo a pessoa pela sua imersao em rela<;5es mutuamente constitutivas, enquanto os seres nao,humanos, yuxibu, SaG definidos pela ausencia de la<;ose rafzes que garantem a constante troca de fluidos e afetos. 0 yuxibu e 0 ser nao localizavel que passa pela aldeia sem destino conhecido nem lugar de origem identificavel. A volatilidade de seus la<;ossocia is e a aleatoriedade de seus deslocamentos significam uma correlata volatilidade das formas potencialmente assumidas por este ser. 0 perigo representado por seres sem forma fixa e que estes podem produzir aI, tera<;5es nas form as dos seres com os quais interagem, humanos ittelufdos. Na Amazonia como na Melanesia, a pessoa nao e concebida como um ser indivisfvel, um 'individuo'. Desde 0 infcio do seculo passado conhe, cemos, atraves da obra de Leenhardt (1971), a pesso~ kanaque enquanto ser relacional de natureza essencialmente processual: a pessoa existe en, quanto lugar de encontro de diferentes tipos de rela<;5eS-:Os especialis, tas da Melanesia batizaram 0 mesmo fenomeno de divfduo em oposi<;ao ao conceito de indivfduo (Strathern, 1988) ou de pessoa fractal (Wagner, 1991). Na Melanesia a troca de valores e bens significa a objetifica<;ao de rela<;5es entre pessoas e grupos de pessoas e implica na concep<;ao divisf, vel da pessoa: pessoas SaGfeitas de partes de outros seres humanos e dos produtos das a<;5esdestas pessoas. 0 conceito de divrduo alude ao carater
divisfvel da pessoa, a pessoa pode circular partes de si entre outras pessoas, ajudando desta forma a criar novos seres e objetos. 0 conceito de pessoa fractal implica igualmente nesta constitui<;ao relacional da pessoa onde a pr6pria existencia da entidade implica sempre em rela<;5es, e onde cada parte contem em si as informa<;5es sobre 0 todo. As ideias implicadas nos conceitos de div(duo e pessoa fractal para dar conta da especificidade do conceito de pessoa na Melanesia ressoam mui, to bem com 0 material amerfndio, onde a pessoa e igualmente concebida enquanto ser relacional, processual e divisfvel, tendo em vista que partes de si que passam para outras pessoas continuam mantendo rela<;ao com a pessoa que as emitiu, ao mesmo tempo em que ajudam na produ<;ao de novos seres. A literatura, no entanto, chama a aten<;ao para uma enfase diferente na constru<;ao da pessoa amerfndia onde a incorpora<;ao do outro segue a l6gica do acumulo em vez de da divisao. Viveiros de Castro fala de urn aumento de poder do matador que in, corpora a alma da sua vftima, tomando,se simultaneamente eu, membro dacomunidade e outro, inimigo (l986a, 1986b) e Taylor fala do aumento da subjetiva<;ao que apodera 0 jovem que estabeleceu uma alian<;a secreta com seres extra,humanos (2003). Em volume dedicado a compara<;ao en, tre Melanesia e Amazonia, Descola (2001) e Hugh,Jones (2001) contras, tam a l6gica da heterosubstitui~iio e troca que rege as rela<;5es na Melanesia com a l6gica da preda<;ao amazonica, onde relagjes geram acumula<;ao corporal e subjetiva das pessoas que vaG incorporando partes de outras pessoas e outros seres no processo da vida. Na me sma linha de raciocfnio McCallum sugere chamar a pessoa ama, :6nica de 'composite being', pessoa composta, em contiasre com 0 'dividual' da Melanesia (2002), colocando a enfase no efeito cumarntivo em vez de distribuidor da fabrica<;ao de pessoas e corpos. A fabrica<;ao da pessoa arne, rfndia foi chamada por Da Matta (1976) de urn processo de consubstancia, li:a<;ao, produzido pela partilha de substancias, como comida e fluidos cor, porais, assim como de cheiros e mem6rias dos cuidados recebidos (Gow, 1991). Os Kaxinawa, como muitos outros povos amerfndios (Viveiros de Castro, 2002; Overing, 1988), enfatizam a interdependencia de processos
corpora is e menta is de crescimento. Rituais como 0 nixpupima, rito de pas~ sagem (analisado na ultima parte deste livro), tem a inten~ao de simultane~ amente moldar 0 corpo, os pensamentos e a capacidade de a~ao da crian~a sobre 0 mundo. Diferentes ritos que marcam 0 cielo vital real~am, todos, a mesma ideia subjacente de que quando as rela~5es e os habitos mudam 0 corpo, os pensamentos e com estes toda a identidade do ser mudam. Oeste modo, em vez de localizar 0 'objeto' e precise examinar as re~ la~5es, as qualidades diferenciadas das rela~5es e as maneiras atraves das quais estas sac tornadas visfveis e significativas pelos e para os Kaxinawa. Conceitos de corpo e corporalidade, de genero e pessoa, de identidade, alteridade e sua rela~ao com 0 conceito do tomar~se outro, serao sistema~ ticamente analisados no contexto de rela~5es qualitativas. Uma aten~ao inicial dada a pintura corporal, ao grafismo, as artes e a estetica na vida cotidiana kaxinawa se traduzini deste modo numa pesquisa da qualidade relacional expressa pela forma, mais especificamente em imagens mate~ rializadas assim como imaginadas, que indicam formas intersubjetivas de relacionar~se com 0 ambiente envolvente, habitado por seres humanos e nao-humanos. 0 pr6prio grafismo kaxinawa aponta para uma agencia essencialmente relacional, onde os tra~os ligam mundos diferentes, mas inter~relacionados. o livro explora, assim, a poetica e a estetica do mundo vivido dos Ka~ xinawa, enfatizando 0 papel ativo d~ diferentes agentes envolvidos neste processo intersubjetivo de cria~ao de sentido atraves do uso cuidadoso de imagens nos mitos, no ritual e no cotidiano. As imagens foram selecio~ nadas por meus interlocutores e retidas por mim em processo seletivo da educa~ao da aten~ao as formas. Algumas formas que meJoram mostradas faziam sentido para mim ou 0 fariam mais tarde, outras'nao puderam ser retidas ou registradas porque minha aten~ao nao as conseguia focarj estas imagens continuaram povoando 0 mundo do outro lado do encontro etno~ grafico, sem forma por enquanto para n6s ate que alguem consiga delinea~ las sobre outro fundo. Tra~amos deste modo 0 quadro de referencia conceitual atraves do qual os Kaxinawa dao forma a seu mundo fenomenol6gico, delineando suas
categorias de percep<;ao e cria<;ao, e nos engajamos no processo de poiesis (Demmer, 2006; Herzfeld, 1991: 81), a produ<;ao de urn sentido partilha, do, a partir da tradu<;ao e exegese dos cantos que acompanham varios mo, mentos da vida ritual e cotidiana dos Kaxinawa, principalmente 0 ritual de passagem, nixupima, de meninos e meninas que ja trocar am seus dentes de leite por uma denti<;ao definitiva. tema central que permeia todo 0 livro e a agencia, 0 poder das ima, gens (graficas, poeticas, materia is e corporais) de dar forma a ideias cen, trais do povo kaxinawa sobre a pessoa humana e suas rela<;6es com outras pessoas (humanas e nao,humanas) e com 0 mundo envolvente. A partir de uma analise da rela<;ao entre a forma e a ausencia da forma, ou entre a cria<;ao e a destrui<;ao das formas, chego a uma teoria nativa da imagem que se produz na tensao entre imagens encorporadas e desencorporadas, imagens s6lidas e imagens fluidas, imagens enraizadas e desenraizadas, visfveis e invisfveis. E na luta pelo controle da forma que se baseia a s6cio,cosmo,polftica kaxinawa. Porque forma, aten<;ao e cogni<;ao saD indissoluvelmente im, bricadas para os Kaxinawa, as transforma<;oes sofridas pelas formas adquirem importancia ontol6gica inestimavel. A forma do ser da acesso a suas inten<;6es agentivas e 0 mundo kaxinawa, como 0 amerfndio em geral, se caracteriza pelo lugar central ocupado pela possibilidade de transforma, <;aodos seres em outro..,eres. Nao todos os seres possuem 0 mesmo poder de agencia, 0 mesmo conhecimento de transforma<;ao. Somente os yuxin, espfritos, estes humanos nao,humanos do universo kaxinawa, possuem 0 poder de transformar sua forma, seu corpo ou sua roup a e e esta fluidez da sua forma 0 verdadeiro perigo que representam para os h\Jmanos. Sao seres sem corpo, porem desejosos dos corpos, seres sem forma:-frxa que desejam transformar e mutilar as formas s6lidas dos corp os humanos. E, portanto, no registro da estetica, enquanto ciencia das formas, das imagens e das suas maneiras de agir sobre 0 mundo, que devemos entender o discurso kaxinawa sobre doen<;a e morte, xamanismo e rituais de passa, gem no ciclo de vida de uma pessoa. Todos estes fen6menos tern a ver com graus diferenciados de processos de tomar,se outro, mesmo se somente
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parcial ou temporariamente, para se tomar pessoa. Alguns processos de altera<;:ao, no entanto, nao tern volta e e desta forma que 0 morto se tor, na outro, assumindo a forma, a imagem, 0 corpo e as inten<;:6es do outro. Pessoas perdidas no caminho do outro tambem adquirirao gradativamente a forma e as disposi<;:6es agentivas deste outro: aqueles no caminho da mi<;:angase tomarao brancos, 0 ca<;:adorno caminho da ca<;:ase tomara ele mesmo ca<;:a,assumindo forma e comportamento do animal. Vemos surgir desta forma uma imagem que se encaixa bem numa visao de mundo que foi recentemente re,conceituada como 'animista' (Descola, 2005) ou 'perspectivista' (Viveiros de Castro, 1996, 2002), onde os dife, rentes sujeitos, ocultados atras de diversos disfarces que sac suas roupas ou corpos, possuem identidades intercambiaveis. A fenomenologia kaxinawa mostra, no entanto, que esta inversao de pontos de vista, onde a ca<;:ase toma ca<;:ador,nao se da de forma aleat6ria, e e por esta razao, como ja 0 alertaram Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, em 1979, que 0 corpo (isto e, as formas) importa tanto aos amerfndios. tropo "da inversao de figura e fundo" (figure,ground reversal), escolhi, do por Roy Wagner ( 1986) cOmo imagem chave para se pensar a condi<;:ao humana em geral, se encaixa como uma luva no estilo kaxinawa de ser. A instabilidade da percep<;:aoda figura e do fundo nao se aplica somente a seu estilo grafico, mas tambem a seu dualismo essencialmente dinamico. Deste modo 0 ~ eo outro do outro, e as rela<;:6espredador,presa, sedutor,seduzido, comedor,comido sac transitivas e intercambiaveis. Neste contexto, a ana, lise e empreendida sobre urn dualismo em que a alteridade e produzida pela semelhan<;:a e a semelhan<;:a pela alteridade, em que cada parte de urn par de opostos (metade dua/metade inu, cobra,agua/lnkaAogo) participa do seu oposto, e a forma reside na interse<;:ao/mistura relativamente fixa e es, tavel de opostos complementares (osso/pele, corpo/alma, masculino/femi' .nino, parente/afim etc.). Neste mundo, 0 corpo, a identidade e o problema da alteridade nao sac quest6es categoriais ou classificat6rias, mas quest6es relacionais. problema da identidade e alteridade reside na rela<;:aodinamica e temporal entre forma fixa e nao,fixa. Ser e devir e a existencia humana
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depende do controle das fronteiras entre fenomenos e estados de ser para produzir 0 equilfbrio entre fixidez e fluidez, estabilidade e transforma<;ao. as poderes fluidos e a fertilidade dos agentes 'sobre,humanos' devem ser controlados e fixados para produzir seres humanos. Humanos, entretanto, somente conseguem se nutrir destes poderes e produzir uma mistura criati, va ao tamar as fronteiras permeaveis. Excesso de fixidez e estagna<;ao este, ril, enquanto sua falta e morte prematura. Ser humano significa engajar,se no ciclo sem fim da troca de elementos e fluidos vitais, ciclo que implica em diferen<;a e e realizado na terra, a meio caminho entre 0 mundo aquati, co enquanto come<;o e 0 ceu como devir. as de uses alcan<;am 0 epftome da fixidez na sua dan<;a circular da etemidade, mas predam 'almas' humanas e saG inimigos avarentos que precisam ser for<;ados a compartilharem seus poderes no mita, por meio da guerra ou do roubo, no rito, por meio da sedu<;ao estetica. as humanos devem cuidar para que as fronteiras entre seres e feno, menos do mundo nao se diluam. Ao mesmo tempo, entretanto, desem, penham diferentes formas de mimese e transforma<;aoj pois, visto que 0 mundo e feito da mistura das diferen<;as, a separa<;ao implicaria no fim de tado movimento e de toda vida. as rituais kaxinawa estao obcecados com a fixa<;ao das farmas, com 0 controle da fluidez e fertilidade dos poderes 'sobre,humanos' e com 0 tamar pesados e s6lidos os corpos. Ao mesmo tempo e no ritual que a pessoa se tom a mais consciente, atraves do espa<;o c6smico, de todos os possfveis outros mundos e corpos a serem vividos, e e tambem nele que a mudan<;a de posi<;5es (entre os generos, par exemplo) ocarre com mais frequencia. As tecnicas femininas de desenho e cozinha sao, similarmente, tecnicas de fixa<;aojem corpos humanos saudaveis saG aplicados desenhos que os delineiam e ordenam (como-as paredes das ca, sas, 0 enquadramento do conhecimento, ou os processos que circunscre, vem rela<;5es interpessoais), enquanto a comensalidade produz a comu, nhao dos corpos. Em ultima analise, no entanto, os Kaxinawa perdem a batalha da fixidez, visto que os corpos humanos continuam seus etemos ciclos de troca de materia e for<;avital com 0 mundo envolvente, vivendo deste modo todos os estados possfveis do ser.
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Os desenhos sac de minha autoria. Caso contr,hio,
indicado na legenda.
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nome dos desenhistas kaxinawa
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Os Kaxinawa sao um povo de lfngua pano com uma populac;ao estimada em 7.000 indivfduos que habitam a floresta amazonica de ambos as lados da fronteiraentre a Leste peruano e a Noroeste brasileiro, no estado do Acre, onde represemam a grupo indfgena mais numeroso do Estado.3 As aldeias kaxinawa no Peru sao localizadas nas margens dos rios Purus e Curanja, enquanto as aldeias no Estado do Acre sao espalhadas ao longo de varios rios importames e seus afluentes (Tarauca, Jordao, Breu, Muru, Envira, Humaita e Purus). Os Kaxinawa vivem da cac;a, pesca e horticultura e nas aldeias onde trabalhei situadas na Area Indfgena do Alto Rio Purus, as pessoas dependiam totalmeme dos produtos destas atividades produtivas para seu-consumo diario, sendo que estes produtos nao eram comercializados. Os unicos produtos comercializados eram artefatos, especialmente as tecidos com desenho, na sua maioria redes e balsas, feitos pelas mulheres. Os Kaxinawa complementam seus proventos mensais com as salarios dos professores, agentes de saude e agemes agro-florestais, assim como com as pensoes dos idosos, aposentados pelo Funrural. Estes recursos sao utilizados na aquisic;ao de munic;ao, querosene, roupas, tecidos, sal, ac;ucar,~~nelas de alumfnio etc. Permaneci entre as Kaxinawa, fazendo pesquisa· de campo, durante um perfodo de um ana e meio, dividido em quatro visitas (marc;o 1989 -agosto 1989, abril1991-julho 1991, outubro 1994-fevereiro 1995, maio +995 - setembro 1995). Durame cada uma destas visitas fiquei hospedada nas aldeias de Cana Recreio, Moema e Nova Alianc;a, enquanto as I.Htimosdais meses foram passados na cidade de Rio Branco, Acre, quando acompanhei Augusto, lfder de canto idoso e meu 'pai adotivo', para a hospital. Este livro baseia-se na reelaborac;ao das duas teses.e dos varios artigos posteriores escritos com base nas notas de campo, prodtrtidas durame estas viagens e em conversas posteriores com Kaxinawa visitando Rio de Janeiro noperfodo subseqileme.
] Dados, recentemente atualizados pela Comissao Pro-Indio - Acre, aumentam para aproximadamente 7.000 os 6,400 registrados par Weber, (2004: 18). Destes, 5.577 moram do lado brasileiro, e entre 1.400 e 1,450, do lado peruano da fronreira.
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As aldeias onde realizei pesquisa de campo, no rio Purus, se encontram pr6ximo a fronteira com 0 Peru. 0 contingente populacional destas aldeias era basicamente compos to por Kaxinawa provenientes do Peru, que, no inf~ cio dos anos setenta, desceram 0 Purus para viverem na recem demarcada Area Indfgena do Alto Purus, do lado brasileiro. Os Kaxinawa peruanos e brasileiros tinham estado separados por urn perfodo de aproximadamente quarenta anos. Esta separa~ao ocorreu no come~o do seculo XX, quando urn grupo que havia sido concentrado num seringal no rio Envira se mudou para as cabeceiras do rio Purus no Peru, ap6s uma rebeliao contra urn seringalista (McCallum, 1989a: 57~58j Aquino, 1977; Montag, 1998,2002). Os grupos oriundos do Peru ligaram~se por casamento aos Kaxinawa brasileiros habitando as margens dos diferentes rios acreanos, porem dife~ ren~as de estilo de vida e sotaque continuam existindo entre os diferentes grupos kaxinawa, dependendo da regHio de moradia, Curanja, Purus pe~ ruano, Purus brasileiro, Jordao, Envira etc. A reserva do Alto Rio Purus e igualmente habitada por grupos kaxinawa que migraram do rio Envira, onde estavam engajados no trabalho da seringa. A maioria destes Kaxi~ nawa do Envira se estabeleceu na aldeia de Fronteira e em varios nucleos (centros, coloca~5es) pr6ximos. Durante estas duas decadas 0 movimento migrat6rio nao cessou. Outros kaxinawa provenientes do Peru, do Envira e do Jordao foram se estabelecer em aldeias no Purus. N a Area Indfgena do Alto Purus, os Kaxinawa tambem coabitavam com seus vizinhos tradicio~ nais, os Culina, para os quais esta reserva foi originalmente criada, assim como com urn reduzido grupo de Yaminawa, recem~chegado, proveniente de outras areas indfgenas, e que ja deixou a area. Os Kaxinawa sao os Pano mais conhecidos e sObre ~les existe copioso material etnol6gico e hist6rico,4 porem este livro visa demonstrar 0 quanto
Gon~alves (1991) compilou uma bibliografia anotada de fontes historicas e etnologicas sobre Acre. Sobre grupo lingulstico pano, e abrangendo todas as areas onde este se encontra, foi produzido outra bibliografia anotada de estudos lingUfsticos e antropologicos par Erikson, Illius, Kensinger e Aguiar (1994). Esta bibliografia continuava ate recentemente sendo completada a medida que surgiam novos trabalhos, mas foi recentemente desativada (www.u-paris10.fr). 4
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ainda permanecia nao explorado. Os primeiros escritos sobre os Kaxinawa apareceram no infcio do seculo da pena do padre Frances Constantin Tas~ tevin (1919,1920, 1925a, 1925b, 1925c, 1926; Rivet & Tastevin, 1921) que des creve os costumes dos Kaxinawa e outros grupos pano que encontra durante suas viagens pela bacia do Jurua~purus. Ainda durante as primei~ ras duas decadas desse seculo, aparece uma cole<;ao extremamente valiosa de narrativas e mitos kaxinawa, uma transcri<;ao e tradu<;ao interlinear, produzida par Capistrano de Abreu (1913, 1941, 1969) em colabora<;ao com dois jovens kaxinawa que haviam deixado suas aldeias para viverem na cidade. Kenneth Kensinger (vide bibliografla e 1995) foi 0 primeiro antropo~ logo a viver com os Kaxinawa, no Peru. Kensinger produziu uma vasta cole<;ao de artigos sobre virtualmente todos os topicos que dizem respeito a vida e sociedade kaxinawa. A gera<;ao de antropologos que sucedeu a Kensinger deu continuidade as quest5es tratadas em seus trabalhos. Igual~ mente no Peru, os ~xinawa foram estudados por Deshayes& Keifenheim (1982, 1994, 2003 e vide bibliografla). Ambos os autores privilegiaram inicialmenteos temas de identidade e alteridade e sistemas classiflcat6rios. Mais recentemente estudaram tambem temas relacionados a antropologia dos sentidos (Keifenheim, 1998, 2002; Deshayes, 2000). Marcel D'Ans (1973, 1975, 1978, 1983) estudou 0 sistema de nomina<;ao e classiflca~ <;aodas cores e elaborou um compendia romance ado sobre mitologia. No Brasil, os Kaxinawa foram estudados por Aquino (1977), Iglesias (1993), Lindenberg (1996) e Weber (2004), nos rios Jordao e Humaita respecti~ vamente, que centraram suas pesquisas nos temas de rela<;oes interetnicas e educa<;ao. Guimaraes (2002) se dedica a uma releitllra dos cantos. Os Kaxinawa do Alto rio Purus, 0 mesmo grupo com quem-obtive os dados para a realiza<;ao deste trabalho, faram estudados por McCallum (1989a; 2002 e vide bibliografla). 0 estudo de McCallum focaliza a organiza<;ao social e as rela<;5es de genero. No contexte das rela<;5esde genero a autora analisa 0 ritual katxanawa. A grafla adotada para as palavras em kaxinawa segue a sugerida por Camargo e segue a pronuncia das letras em portugues (1987,1991,1995).
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(rm.~~)
Podemos notar na teoria antropol6gica contemporanea um renovado interesse pela 'vida dos objetos', assim como pela 'vida das imagens', nos seus respectivos contextos de significa~ao. transformando as rela~6es entre estetica, arte e antropologia em assunto de acalorado debate. Uma abor, dagem da chamada 'cultura material', considerada como excessivamente classificat6ria, tecnica e formal, tinha desviado, por muito tempo, a aten, ~ao da antropologia social dos artefatos para os sistemas de pensamento e organiza~ao social - negligenciando 0 fato de sistemas de pensamento poderem ser sintetizados e expressos, de maneira exemplar, nos objetos produzidos pelos gropos em questao. llustres exce~6es com rela~ao ao descredito intelectual em que se en, contrava 0 estudo da prodw;ao material nativa sac .asreflex6es classicas a ela dedicadas por Boas, Bateson, Geertz e Levi,Strauss, "Ondecada um usuu a 'arte' como campo privilegiado para explicitar suas propostas te6ricas e metodo16gicas mais gerais. Assim, para Boas (1928) os temas da arte e da . estetica foram pe~as'chave na sua argili~ao contra um evolucionismo re, ducionista ou um difusionismo que negava a criatividade a maior parte das ; Este capitulo se baseia em texto publicado na Revista Ilha em (2003a). Outros artigos onde discuto a relac;ao entre arte e antropologia sao Lagrou, 2000c, 2002c e 2002d, 2005.
culturas. E Levi~Strauss (l958) usou a recorrencia da 'representac;ao des~ dobrada' em tradiC;6esartfsticas sem contato historico demonstravel para ilustrar 0 metodo estruturalista. Geertz (l983), por sua vez, prop6e parao estudo da arte uma etnografia do gosto. A arte como materializac;ao nao do que se pensa, mas de como se pensa. 0 gosto compartilhado por um povo sup6e capacidades de interpretac;ao de elementos visuais, para distinguir certos tipos de formas e de relac;6esde formas. Mas em geral, os antropologos da arte nao participavam das prin~ cipais discuss6es teoricas da disciplinaj esta situac;ao comec;ou agora a mudar e a obra de Gell (l993, 1998) teve papel decisivo nesta revirada. A obra de Gell se situa no contexto de um grupo expressivo de estudos etnograficos dedicados ao Pacffico - como 0 de Nancy Munn (l977), Strathern (l988) e muitos outros - que deu novo impulso a reflexao sobre 0 potencial de renovac;ao teorica contido no estudo dos objetosj objetos pensados como extens6es de pessoas e com papel crucial na interac;ao social. Ate recentemente, no entanto, alem de ser associada a uma abordagem excessivamente museologica, resqufcio de uma heranc;a evolucionista da qual a moderna antropologia queria se livrar, 0 tema da 'arte' ou 'produ~ c;ao material' nativa sofria de outro incomodo, que era 0 de se encontrar parcialmente no campo de competencia de outra disciplina academica, totalmente oposta em seus valores e criterios a antropologia: a da estetica. Se a antropologia se define como disciplina nao valorativa por excelencia, desconfiando de qualquer jufzo de valor com pretens6es universalistas, a estetica lida por definic;ao com valores e distinc;ao .desde 0 momenta em que define seu objeto: arte e aquele objeto que responde a determinados criterios mfnimos que permitem que ele seja distinguiao de outros obje~ tos nao produzidos com este fim. E esta foi a razao pela qual a abordagem estetica na antropologia da arte foi atacada de forma tao veemente par defensores de uma nova antropologia da arte, como Gell. Ao acompanhar este debate, e interessante notar que se por um lado a discussao europeia, representada recentemente pela obra de Gell e pelo debate de Manchester (Ingold, 1996), se concentra sobre 0 direito a di~
ferenr;a, 0 debate norte~americano, por outro lado, reclama 0 direito a igualdade na diferen~a. Autores como Clifford (1988) e Marcus e Myers (1995) chamam a aten~ao para a simultaneidade e a interdependencia do nascimento da arte modema e da antropologia enquanto disciplina. A antropologia teria dado aos artistas a alteridade que procuravam para poder se opor ao establishment. Na visao de Marcus e Myers, 0 dever da antropologia nao seria 0 de se abster de qualquer julgamento, mas 0 de se unir a voca~ao da arte modema e contemporanea e de ser 0 motor de uma permanente 'crftica cultural'. J ames Clifford, por sua vez, questiona 0 caniter provocador e 0 potencial revolucionario da exposi~ao no Museu de Arte Modema em Nova York em 1984, que celebrava a influencia da arte primitiva sobre os modemis~ tas. 0 autor acusa a curadoria da exposi~ao de tratar de maneira manifestamente convencional e desigual as artes 'primitiva' e modema, relegando a primeira ao anonimato e a existencia a~hist6rica. Clifford aponta como a exposi~ao cristalizou em tomo de si asopini6es antagonicas de criticos de arte, por urn lado, e antrop6logos por outro com rela~ao ao modo como a arte nao-ocidental deve ser apresentada. Importante contribui~ao a este debate se encontra tambem em Arte primitiva em lugares civilizados, de Sally Price (2000). Price chega a con~ clus6es similares as de Clifford: ha um equivoco nesta celebra~ao pelos connaisseurs das qualidades supostamente inerentes e universalmente reconhedveis que sac encontradas nas 'obras~primas' da 'arte primitiva', selecionadas entre a massa indistinta de curiosidades colecionadas pelos em6logos. Este equivoco, segundo Price, se resume na simples constata~ao de que os produtores destas obras-primas nao foram consultados a respeito nem de seus pr6prios criterios esteticos, nem de sua propria avalia~ao e percep~ao. Mais ainda, para que as obras possam ser reconhecidas como obras~primas primitivas, os produtores das pe~as precisam ser esquecidos, envoltos pela sombra do anonimato atemporal que os toma universais. Como solu~ao, Price defende a inclusao da arte nao~ocidental em exposi~ ~6es de arte, porem segundo os criterios dos pr6prios produtores e recepto~ res originais da estetica local em questao e com 0 mesmo tratamento que
e tradicionalmente dado aos artistas ocidentais, ou seja, com uma circuns~ tanciada identifica~ao do artista e dos estilos locais utilizados, acompanha~ dos de analise hist6rica dos mesmos. A questao da aplicabilidade de nossos valores sobre a importancia da criatividade e da individualidade na produ~ao artfstica, no entanto, per~ manece sem resposta, pois existe uma grande variedade de concep~oes nativas tambem a este respeito. Sera que 'poder estetico' e 'capacidade de inova~ao' sempre andam juntos? E 0 que fazer com 0 'autor' que ve 0 valor da sua obra na supera~ao da criatividade individual por outras entidades consideradas culturalmente mais legftimas? A constru~ao da pessoa do ar, tista e tao espedfica quanto a estetica que produz. Vemos, portanto, que se 0 debate no meio europeu gira em tome de uma questao conceitual e diz respeito a nossa capacidade de conhecer 0 'outro' e as suas produ~oes, no debate norte,americano entram preocupa~6es de natureza pratica e politica, ou seja, a questao para eles e eminentemente relacional: pensa,se a rela~ao 'n6s/outros' e seus efeitos: como incorporar objetos provindos de outros contextos de produ~ao no campo espedfico da aprecia~ao estetica metropolitana. A questao e muito atual, vista que a afirma~ao identitaria de popula~oes nativas no mundo inteiro tende a passar cada vez mais pela visibiliza~ao da cultura, de sua 'autenticidade' e vitalidade. Estas discussoes tem influen, dado curadores de museus.6 Ate hoje permanece uma tensao entre dois caminhos possfveis, 0 da inclusao da arte nao,ocidental em exposi~oes de arte contemporanea, ou seja, a exposi~ao das pe~as como obras de arte Cmicase nao como objetos etnograficos, ou uma eXi1:'i~aomais contextua, lizada que tente dar conta da especificidade dos criteri06 dos pr6prios produtores e receptares originais, que nao necessariamente-seguem os nossos criterios de originalidade e unicidade das pe~as. Vimos, no entanto, que 0 lugar que os objetos poderia~ ocupar na escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pe10s mu~eus nao necessa-
Ver, por exemplo, os textos do curador Jose Antonio Braga Fernandes Dias no Catalogo da Mostra do Redescobrimento, Artes Indfgenas, 2000.
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riamente pertence ao universe das inten<;oes e valores nativos, que podem visar a objetivos muito diferentes daqueles ligados a conquista de visibili, dade ou afirma<;ao de identidade e 'autenticidade'. A fonte de inspira<;ao criadora ou a legitimidade de motivos e form as tradicionais costuma, no pensamento amerfndio, ser vista como originalmente exterior ao mundo humano ou etnico, remetendo a conquistas sobre 0 mundo desconhecido, de vizinhos inimigos ou seres natura is e sobrenaturais hostis e amea<;ado, res. 0 artista, neste caso, seria mais urn mediador do que urn criador. A questao da fante autoral parece ser tao crucial para a nossa defini<;ao de arte que se ela for abandonada enquanto valor fica dificil a valoriza<;ao da produ<;ao alheia pelos centros legitimadores. A sociedade globalizada se move a partir de uma ideologia que deposita a sua fe na hist6ria cumu, lativa, onde, no campo artistico, a criatividade e a exigencia do novo so' brevivem a antiga procura do belo. Sao estes valores que fazem do artista 0 prot6tipo do individuo modemo, que se encontraria, no nivel da ideologia - nao naquele da realidade (Dumont, 1980) -, livre das garras da tradi, <;ao,e cujo genio the permitiria inovar sem precisar submeter,se ao arduo processo de inicia<;ao, pr6prio de profissoes menos glamourosas como as ciencias. Pois 0 artista age no plano das possibilidades e depende, para existir, da aceita<;ao de urn publico restrito de iniciados, e nao necessaria, mente da 'verossimilhan<;a'. Continua, portanto, relevante voltar a nossa aten<;ao para contextos nativos em que a produ<;ao 'artistica' nao segue as mesmas leis, nao entra na l6gica do mercado, as vezes nem da troca, e nao funciona a partir da separa<;ao entre a vida cotidiana e a arte. Estudos sobre a rela<;ao entre a produ<;ao artfstica e 0 quadro conceitual da sociedade .ressaltaram parti, cularidades que contrastam com os canones tradicionais'-da arte ocidental - exemplos, alias, que sao encontraveis tambem nas mais recentes ma, nifesta<;oes da arte conceitual, com obras feitas para nao serem vistas ou ouvidas, ou ainda outras obras produzidas para desaparecerem ao final do processo de sua fabrica<;ao ou performance (Gell, 1998; Carpenter, 1978; Witherspoon, 1977). Esperamos poder demonstrar neste livro que 0 tema da arte na etnologia ainda tern muito a contribuir para os debates contem,
poraneos que visam constantemente
reformular
0
sentido que a arte tern
para nos. Ninguem expressou melhor, em vida e obra, a rela~ao ambfgua existente desde a sua origem entre a antropologia e a arte moderna do que Alfred Gell. Se Marcus e Myers chamam a aten~ao para as suas semelhan~as, pois ambas, a arte moderna e a antropologia, se caracterizariam pela voca~ao crftica e por seu fasdnio pela alteridade, Gell afinna categoricamente em artigo produzido especialmente para urn livro dedicado a antropologia, arte e estetica, e editado pelos especialistas em antropologia da arte, Coote e Shelton, que a antropologia social moderna e "essencialmente, constitucionalmente, anti-arte" (Gell, 1992: 40). Com esta afirma~ao, Gell- em estilo agonfstico muito apreciado pelos intelectuais ingleses - nao visava somente irritar os seus colegas ao subtrair-lhes 0 seu campo de pesquisa, decretando a inexistencia deste ultimo; ele estava, sobretudo, preparando o campo para 0 esbo~o de uma proposta de abordagem totalmente nova do tema e, para tanto, as abordagens anteriores precisavam ser derrubadas com veemencia. Esta nova proposta teorica sera esbo~ada em sua obra postuma Art and Agency (1998), e visara uma abordagem antropologica do tema, pois, segundo Gell, 0 que se fez antes dele nao foi antropologia, pelo menos nao a antropologia social inglesa que ele defende, e sim uma antropologia cultural que sempre teria ido buscar inspira~ao em outras disciplinas tais como a estetica, a semiotic a e a lingufstica, a historia da arte ou a crftica literaria. Mas entre a provoca~ao citada acima e a solu~ao proposta para 0 dilema em Art and Agency, Gell escreveu dois outros trabalhos: urn livro sobre tatuagem, chamado Wrapping in Images (1993), e um a'rtigo que foi traduzido para 0 portugues sob 0 titulo "A rede de Vogel, armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas" (1996, 2001). Em cada urn destes trabalhos que antecederam Art cmd Agency, Gell tenta olhar para 0 tema da arte sob uma atka dessacralisante, pondo sob suspeita a "venera~ao quase religiosa" que a nossa sociedade tem pela estetica e pelos objetos de arte. No texto em que diagnostica 0 antagonismo entre os pontos de vista antropologico e estetico, prop6e uma aproxima-
s:ao entre magia e arte, venda em ambos as fenomenos uma manifestas:ao do 'encantamento da tecnologia'. Estarfamos inclinados a negar este as, pecto de ofuscamento tecnologico, presente na eficacia de certos obje' tos decorados, como a proa da canoa usada em expedis:6es de kula pelos Trobriandeses, porque tendemos a diminuir a importancia da tecnologia na nossa cultura, apesar de nossa grande dependencia dela. A tecnica se, ria considerada um assunto chato e mecanico, diametralmente oposta a verdadeira criatividade e aos valores autenticos que a arte supostamente representaria. Esta visao seria um subproduto do estatuto quase,religioso que a arte detem, como que substituindo a religiao numa sociedade laici' zada pos,iluminista. Assim, Gell se afasta do criteria da fruis:ao estetica para chamar a aten, s:ao para a eficacia ritual de uma proa superdecorada: a decoras:ao nao se quer bonita, mas poderosa, visa a uma eficacia, a uma agencia, a uma pro, dus:ao de resultados praticos em vez de contempla\=ao. A maestria decorati, va cativa e terrifica as que olham, param e pensam sabre as poderes magicos de quem produziu e possui tal canoa. Ou seja, a arte possui uma funs:ao nas relas:6es estabelecidas entre agentes sociais. Neste sentido, a texto ja antecipa a livro sabre agencia. So que fica ainda muito preso a uma ideia que so identifica arte nos fenomenos extraordinarios, magicos, que fogem a compreensao humana e demonstram um domfnio tecnico tao excepcional que parecem nao terem sido feitos par seres humanos. Isto ja nao sup6e uma visao nada universalizavel do campo abrangido pelos objetos de arte? Lembra a classica separas:ao entre objetos cotidianos e as extraordimirios, necessariamente extracotidianos. E as povos que nao valorizam tal estetica do excesso, apreciando, pelo contrario, uma estetica·minimalista?7 Mais convincente, au pelo menos muito mais inovador, e a texto sabre a rede de Vogel, onde Gell prop6e um dialogo direto .entre arte conceitual eprodus:6es nao,ocidentais. 0 que produziu a reflexao foi uma exposi, s:ao onde Suzan Vogel, antropologa e curadora de uma exposis:ao chamada
7 Ver a crftica de Overing ao uso transcultural do conceito de estetica e sua fntima rela~ao com a 'religiao' do sublime, do extraordinario (Overing in Ingold, 1996: 249-293).
Art/Artifact, no Center for African Art, em Nova York, exp6e uma rede de ca~a amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte conceitual. A curadora plantou uma verdadeira armadilha para 0 publico, que se equi~ vocou totalmente acerca do que viu, sem saber se se tratava de uma obra de arte conceitual ou nao. 0 texto de Gell visa mostrar 0 quanto a ideia de armadilha e as engenhosas formas que assume em diversas sociedades se aproxima do conjunto de intencionalidades complexas postas em opera, ~ao em torno de uma obra de arte conceitual. Ou seja, melhor do que pro~ curar aproximar povos nao~ocidentais da nossa arte atraves da aprecia~ao estetica de uma mascara ritual seria identificar 0 que tem em comum mui~ tos artistas contemporaneos trabalhando com 0 tema da armadilha - como Daniel Hirsch, que colocou um tubarao numa piscina com formol - e as armadilhas indfgenas, dando mostra de um mesmo grau de inventividade, complexidade e dificuldade. Ou seja, aqui tambem Gell se afasta do criterio beleza, inclusive porque este tambem nao e mais 0 criterio atraves do qual a arte contemporanea e avaliado, para ver como se poderia melhor colocar em ressonancia produ~ <;:6esnao ocidentais com 0 nosso campo de produ<;:aoartfstica atualmente mais prestigiado, 0 conceitual. Na sua discussao com 0 fil6sofo de arte Arthur Danto, que defende que a rede nao e uma obra de arte porque nao foi feita com esta inten<;:aoe mais ainda porque foi feita para um usa ins~ trumental e nao para a contempla<;:ao, Gell mostra como instrumentalida. de e arte nao necessariamente precisam ser mutuamente exclusivas. Uma armadilha feita especialmente para capturar enguias, por exemplo, poderia representar muito melhor 0 ancestral, dono das enguias, do que sua mas, cara, visto que nao representa somente sua imagem (qpesar da forma da armadilha ter a forma de uma enguia), mas presentifiC", antes de tudo, a a~ao do ancestral, sua eficacia tanto instrumental quanto sobrenatural e a rela~ao complexa entre intendonalidades diversas postasem rela~ao como aquelas da enguia, do pescador e do ancestral. Gell supera, desta forma, a classica oposi<;:aoentre artefato e arte, intro~ duzindo agenda e eficacia onde a defini~ao classica s6 permite contempla~ <;:ao.Mas 0 autor mantem, por outro lado, seu fascfnio pelo diffcil, carac~
terfstica que mais marcaria, segundo Bourdieu (1979), a nossa concep<;ao de arte desde Kant: onde 0 valor e dado aquilo que distingue, ao gosto refinado e informado que nao se deixa levar pelo prazer facil que satisfaz os sentidos. 0 dificil requer esfor<;ointelectual e/ou tecnico e se sobressai, distingue; ou seja, se para Gell a obra de arte teria alguma caracteristi~ ca que a distinguisse de outros objetos, esta pass aria pelo seu carater de alguma maneira excepcional. Muitas produ<;5es analisadas como arte nao~ ocidental, no en tanto, como a pintura corporal, a ceramica e a cestaria, todas de uso cotidiano, nao se encaixariam nesta categoria. Ve~se como e dificil dizer algo com validade universal sobre um fenomeno que em mui~ tas culturas sequer tem nome. Ainda asim, podemos dizer, resumindo a discussao dos dois textos ci~ tados, que estes atacam principalmente a defini<;ao do objeto de arte em termos de estetica, mostrando como esta, por ser essencialmente avalia~ tiva, nao combina com uma abordagem comparativa do tema. Tambem no livro sobre tatuagem (Gell, 1993) nada de estetica. 0 autor provoca inclusive os amantes da tatuagem, afirmando que assim como 0 fenomeno era sinonimo de mau gosto para 0 burgues vitoriano do seculo XIX na In~ glaterra, ele continua mantendo uma liga<;aocom a marginalidade eo mau gosto para os intelectuais de hoje. E claro que 0 autor nao visitou as praias cariocas! Aqui tambem a ideia e a de analisar 0 fenomeno como fenomeno social, mais especificamente na Polinesia, e de ver quais ~deriam ser as rela<;5es entre um tipo de organiza<;ao social, com alta competitividade e pouca hierarquia estavel, e a arte guerreira da tatuagem, que florescia, por exemplo, nas ilhas marquesas, onde a tatuagem funcionava como se fosse um escudo, uma segunda pele. Em Art and Agency (1998), 0 mais visado nao e mais-a estetica. Vere~ mos inclusive que a estetica entrara, disfar<;ada sob 0 manto da analise formal, pela porta detras no capitulo sobre estilo. Nao existe preocupa~ <;ao com 0 estilo de uma obra ou de um conjunto de artefatos possivel sem um minimo de aten<;ao as qualidades da forma, simetria etc.; e Gell acaba dando muita aten<;ao a forma e as varias rela<;5es de transforma<;ao entre as formas. Segundo Nicholas Thomas, que escreve a introdu<;ao da
obra, esta seria a parte menos revolucionaria ou inovadora do trabalho (1998: X). A mim me parece, por outro lado, ser tambem 0 momento em que Gell faz as pazes com urn assunto ao qual dedicou os ultimos dez anos da sua vida com tanta paixao, 0 de entender 0 ser da arte em termos comparativos. Mas as razoes para deixar a estetica relativamente em paz saG tambem outras. Na abertura do trabalho, onde propoe a sua nova teoria, Gell nao revoga seus pontos de vista anteriores - simplesmente os reitera. Tam, bem tinha ocorrido, em 1993, urn debate promovido pela Universidade de Manchester a respeito da aplicabilidade transcultural do conceito 'esteti, ca', onde Overing e Gow defenderam uma ideia similar a de Gell, a de abo, lir 0 conceito de estetica como conceito com aplicabilidade transcultural (Ingold, 1996: 249,293). 0 uso do conceito com fins comparativos foi de, fendido por antrop610gos da arte como Morphy e Coote com 0 argumento de que a aprecia~ao qualitativa de estfmulos sensoriais e uma capacidade humana universal, e que a sua nega~ao seria equivalente a excluir parte da humanidade de uma dimensao essencial da condi~ao humana. Overing e Gow, por outro lado, argumentaram contra 0 uso do mesmo, aporttando para as origens hist6ricas e culturais do conceito 'estetica'. Gow invoca "A Distin~ao", de Bourdieu (1979). Este localiza a ori, gem da estetica ocidental na Cr(tica do ]u(zo, de Kant e explica par que a aplica~ao do julgamento estetico nao pode se~o representar 0 apice do exercfcio da distin~ao social atraves da demonstra~ao de capacidades de discrimina~ao, que nao seriam inatas e universais como queria Kant, mas aprendidas e incorporadas atraves de longo processo de exposi~ao e aqui, si~ao do habitus especffico da sociedade em questao. ·Ov.ering, por sua vez, tomando como exemplo a sociedade Piaroa, demonstra·eomo em contex, tos nao,ocidentais a aprecia~ao do belo e da criatividade nao recai sobre uma areaespecffica da atividade humana, mas engloba todas as areas de produ~ao da sociabilidade, desde a procria~ao ate os proces50s produti, vos da vida cotidiana. Em vota~ao da plateia, que se segue a urn longo debate do qual 0 pr6prio Gell participa, 0 conceito 'estetica' e derrotado enquanto instrumento de analise transcultural e os defensores da estetica,
catedras da antropologia da arte, voltam para casa de maos vazias, com seu objeto de pesquisa declarado inexistente. Nao era mais preciso, portanto, continuar anatematizando a estetica, e Gell dedica agora toda a sua for<;aa outro obstaculo da nova antropologia da arte: a abordagem lingiifstica, semiotica e/ou simbolica. A sua recusa em tratar a arte como uma linguagem ou como um sistema de comunica, <;aoe veemente. "Recuso totalmente a ideia de que qualquer coisa, exceto a propria lfngua, tern 'sentido' no sentido proposto ... No lugar da comunica, ~ao simbolica, ponho a enfase em agenda, inten~ao, caus~ao, resul, tado e transforma~ao. Vejo a arte como urn sistema de a~ao, com a inten~ao de mudar a mundo em vez de codificar proposi~6es simbo, licas a respeito dele." (Gell, 1998: 6) Esta abordagem centrad a na a<;ao seria mais antropologica abordagem semiotica,
do que a
"porque esta preocupada com a papel pratico de media~ao dos obje, tos de arte no processo social, mais do que com a interpreta~ao dos objetos 'como se' fossem textos." (Gell, 1998: 6) Um dos autores visados pela .ftica de Gell, sem, no entanto, ser cita, do, e, evidentemente, Geertz (1983), 0 ultimo a propor antes de Gell um metodo geral de abordagem antropologica da arte. Poderfamos dizer, em defesa de Geertz, que para este autor os sfmbolos e as artes enquanto siste, mas simbolicos agem tanto como modelos de a<;ao quatlto para a a<;ao; ou seja, Geertz seria 0 primeiro a aftrmar que sfmbolos nao··somente represen, tam, mas transformam 0 mundo. Tambem para Levi,Strauss, que trabalha com 0 modelo lingufstico e enfatiza a qualidade comunicativa da arte, atos falam e palavras agem, sendo impossfvel separara<;ao, percep<;ao e sentido (Levi,Strauss, 1958, 1993; Charbonnier, 1961). uso restritivo que Gell faz da ideia de 'sentido' foi recentemente criti, cado por Robert Layton (2003) que revela 0 quanto Gell faz de fato uso da
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semiotica de Peirce para definir seu modelo para a agenda especffica atribufda a arte. Para Layton existe urn problema no uso indiscriminado feito por Gell de conceitos peirceanos distintos, como Icone e Indice. Layton argumenta que, par nao querer pensar ou falar em cultura ou quadros de referencia que guiam a percep<;ao, Gell acaba chamando todos os objetos artfsticos de Indices inseridos em redes de a<;ao;mas e claro que estes Indices so funcionam deste modo porque sao de fato de alguma maneira lcones e que requerem certo tipo de interpreta<;ao informada e contextualizada para desencadearem a rede de intera<;oes nas quais Gell esta interessado. A vantagem da proposta de Gell, par outro lado, esta na significativa amplia<;ao da categoria de objetos que podem ser tratados a partir desta nova defini<;ao: "[A] premissa da teoria se baseia na ideia de que a natureza do objeto de arte e uma fun~ao da matriz s6cio-relacional na qual esta inserido. Nao possui 'natureza' intrfnseca, independente do contexto relacional. [...] Mas, na verdade, qualquer coisa poderia ser pensada como objeto de arte de umpdnto de vista antropol6gico, incluindd-se at pessoas vivas, porque uma teoria antropol6gica da arte (que podemos definir em grandes linhas como 'as rela~5es sodais na vizinhan~a de objetos que mediam agenda social') se funde sem problemas com a antropologia social das pessoas e seus corpos." (Gell, 1998:
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A proposta e, portanto, tratar objetos como 'pessoas', proposta que quando percebida do ponto de vista das cosmologias dos povos sob estudo, - no caso de Gell, os povos melanesios, no nosso caso·,os.amerfndios - parece ser convincente. A aproxima<;ao dos conceitos de arrefato e pessoa se torna ainda menos estranho ao esfor<;ote6rico da antropologia se lembrarmos que esta se debru<;a, desde os seus primordios, sobre discussoes acerca do animismo ("a atribui<;ao de sensibilidade a coisas inanimadas, plantas, animais etc."). De Taylor ate aos dias de hoje, portanto, interessou-se a disciplina na reflexao sobre "as rela<;5especuliares entre pessoas e coisas que de alguma maneira 'se parecem com', ou funcionam como, pessoas".
A proposta deve ser lida em termos maussianos, adverte Gell, onde substituirfamos "prestac;5es" por "objetos de arte" (Gell, 1998: 9). Ou seja, interessa ver 0 que estes objetos e seus variados usos nos ensinam sobr~ as interac;5es humanas e a projec;ao da sua socialidade sobre 0 mundo envolventej e na sua relac;ao com seres e corpos humanos que mascaras, fdolos, banquinhos, pinturas, adornos plumarios e pulseiras tem de ser compreendidas. Do mesmo modo que 0 alargamento do conceito de pessoa esta na base da teoria antropologica desde Mauss (1934), com especial relevancia para a discussao amazonica e melanesia, os diferentes sentidos que a relac;ao entre objeto e pessoa pode adquirir se constitui em problematica legitimamente antropologica. Conceitos de pessoa podem ser unitarios (como no Ocidente) ou multiplos; a Melanesia cunhou 0 conceito de 'dividual' (Strathern, 1988) ou 'distributed person', a pessoa distribufda (Gell, 1998), a pessoa que se espalha pelos trac;os que deixa, pelas partes de si que distribui entre outras pessoaSj do mesmo modo, ainda segundo Gell, existem 'distributed objects' (objetos distribufdos) e a 'extended mind' (mente estendida) que se espalha atraves de um grupo de objetos relacionados entre si como se fossem membros de uma mesma famflia.s A relac;ao entre objetos e pessoas tal como descrita, relativamente ao caso da Melanesia, por Gell e Strathern, entra muito bem em ressonancia co~ material amazonico em geral e kaxinawa em particular. E na relac;ao entre 0 esquema conceitual de um povo, suas interac;5es socia is e a materializac;ao destes em artefatos e imagens que se encontra a fertilidade do novo metodo proposto. E, se relativizarmos os excessos cometidos pelo autor com relac;ao ao sentido dado ao sentido, a proposta de inserir 0 assunto da arte no cerne da discussao teorica da disciplina e evidentemente muito bem-vinda. Um autor que pode nos ajudar a pensar de modo diferente o sentido dos objetos e Daniel Miller (1994) que mostra como e muito
Almeida (2000) produziu uma tese sobre a arte shipibo, inspirada em Gell, onde estuda 0 conjunto de objetos e escritos em torno do estilo shipibo como uma extended mind. 8
mais produtivo procurar entender a significa~ao (significance) do objeto, seu valor, do que tentar encontrar 0 significado do objeto em urn sentido sim, b6lico, denotativo, explfcito. E este ultimo tipo de sentido ou meaning que Gell criticaj nao 0 outro, po is e impossfvel sustentar que e preciso eliminar todo e qualquer sentido, coisa que, alias, nao tenta fazer na pratica. Uma primeira coisa que salta aos olhos, ao abordar a questao da rela~ao entre artefato e pessoa a partir do angulo da etnologia amerfndia, e que pensar sobre arte entre os amerfndios equivale a pensar a no~ao de pessoa e de corpo. Porque objetos, pinturas e corp os sao assuntos ligados no uni, verso indfgena, no qual a pintura e feita para aderir a corpos e objetos sac feitos para completar a a~ao dos corpos. Deste modo, aparecem na produ~ao do corpo da crian~a durante 0 nix, pupima - que e considerado 0 mais import ante dos artefatos produzidos pelos Kaxinawa - outros tantos objetos que com este mantem rela~ao me, tonfmica e metaf6rica. Desta forma, os adere~os e instrumentos ajudam na transforma~ao da pessoa e se cristalizam como modelos reduzidos de deter, minadas caracterfsticas e de futuros desempenhos (performances) do corpo. acesso ao imaginario condensado nos objetos significativos - como 0 banquinho de inicia~ao - se da a partir da tradu~ao e exegese dos cantos rituais do rito de passagem. A vida dos objetos deriva diretamente do universo imaginativo que sac capazes de invocar e condensar. Por esta razao, durante a minha pesquisa, a natureza conceitual do banco ritual nao surgiu com toda a sua nitidez da observa~ao de sua produ<;ao, da decora<;ao nem do seu uso e circula<;ao, como quer Gell - mas da tradu<;ao e exegese dos cantos que acompanhavam cada urn dos atos ligados.ao objeto. Af se explicitou de forma clara a sua natureza de modelo reduzido do ne6fito. A letra do canto mostra a maneira pela qual 0 banco sofre urn proces, so de produ<;ao, decora<;ao e, posteriormente, matura<;ao, paralelo ao corpodos meninos e meninas prestes a ingressarem na categoria de jovens. Outros objetos, como 0 pendente dorsal- feito com as penas do gaviao real-, sofrem 0 mesmo processo de transforma<;ao do significado atraves do canto. A li<;ao metodol6gica tirada desta constata<;ao e a de
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que e impossivel isolar a forma do sentido e e impossivel isolar a<;ao e sentido. 0 sentido muda conforme 0 contexto no qual 0 objeto se insere. E os contextos podem mudar de forma radical, como acontece quando objetos e artefatos entram no circuito comercial interetnico, quando se tornam emblemas de identidade etnica, pe<;as de museus ou 'obras de arte'. No contexte nativo, 0 sentido atribuido a forma pode nao encontrar na perfei<;ao visual, nem na excelencia da sua execu<;ao, 0 seu sentido mais relevante. 0 que caracteriza a pintura ritualmente mais eficaz no rito de passagem kaxinawa, par exemplo, e a sua qualidade de ser malfeita: as li, nhas grossas sac aplicadas nas crian<;as com os dedos ou sabugos de milho, com rapidez e pouca precisao, e permitem uma permeabilidade maior da pele a a<;aoritual do que as pinturas delicadas dos adultos no mesmo ritual, aplicadas com finos palitos enrolados em algodao. Estas ultimas pinturas sao, no entanto, consideradas bem feitas e esteticamente mais agradaveis. As pinturas dos adultos representam a roupa do cotidiano ou das festas, e contrastam com a 'roupagem' liminar dos ne6fitos por causa de sua menor suscetibilidade a processos de transforma<;ao. A aprecia<;ao valorativa nao esta, portanto, necessariamente nos aspec, tos comumente considerados como padroes esteticos nativos; pode estar condensada, pelo contrario, na sua temporaria distor<;ao. Assim, as cria, turas mais decoradas e admiradas no ritual sac as crian<;as que ostentam como dizem os Kaxinawa, a pintura malfeita. Fica claro neste exemplo que tanto quanto expressam tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muito especfficas, que precisam ser analisadas no contexto. Como veremos nos pr6ximos capitulos, a qualidade de agencia do grafismo kaxinawa fica em evidencia tambem em outros contextos. A qualidade de agente pode ser encontrada nao apenas nos adornos graficos - pintadose tecidos nosobjetos e corpos kaxinawa -, mas tambem nos pr6prios artefatos que, como vimos com 0 exemplo do banco ritual, sofrem um processo de fabrica<;ao paralelo ao da crian<;a (Lagrou, 1998a, 1998b). Novos materia is resultantes de pesquisas recentes no contexto amerfndio (Guss, 1989; Van Velthem, 1995,2003; Barcelos, 2002, 2005)
ressaltam 0 fato de objetos serem imbufdos de agencia e serem pensados como 'pessoas' de maneira parecida ao que foi notado para 0 contexto melanesio (Strathern, 1988; Munn, 1986; Gell, 1998). Oeste modo, entre os Waura (Wauja) do Alto Xingu, mascaras e panelas encarnam poderosos seres, chamados de apapaatai. As mascaras sac as roupas e instrumentos destes apapaatai, que precisam delas para se presentiflcar e danc;ar no mundo. 0 proprio ritual que os pee em cena e uma resposta a doenc;a por estes provocados. 0 xama identiflca 0 causador da doenc;a ao ve-lo em miniatura no corpo do doente, que se torna dono de uma festa em homenagem ao seu agressor. Ao dar-lhe a chance de se visualizar com toda presenc;a teatral que uma performance ritual xinguana permite, 0 apapaatai causador da doenc;a se toma 0 aliado de sua vftima, e anfltriao (Barcelos, 2002). Entre os Wayana, Lucia Van Velthem (1995, 2003) descreve como os artefatos tem um tempo e um ritmo de vida iguais aos de uma pessoa, com direito a descanso nas vigas das casas durante a vida, e com a morte anunciada quandoperdem a sua funcionalidade e razao de ser. Os motivos da cestaria tem uma iconografla precisa, que nao omite nem a alimentac;ao dos seres sobrenaturais ali capturados. Arte, para os Wayana e outros grupos karib das Giuanas, e a captura e domesticac;ao dos predadores do cosmos atraves da miniatura. Mais importante do que a maneira como 0 conhecimento e estocado em objetos externos e 0 modo como as pessoas incorporam 0 conhecimento. Para os Kaxinawa a arte e, como memoria e conhecimento, incorporada. Esta prioridade explica por que as expressees esteticas mais elaboradas dos grupos indfgenas saD ligadas a decorac;ao corpor~l: pintura corporal, arte plumaria, colares e enfeites feitos de mic;anga, roupas-e redes tecidas com elaborados motivos decorativos. Os Kaxinawa nao estocam suas produc;ees artfsticas; estaoconvictos, como muitos outros povos amerfndios, de que objetos rituais perdem 0 seu sentido e a sua beleza, a sua 'vida', depois de usados. Se durante 0 ritual 0 banco e belamente pintado e pode somente ser usado pelo(a) iniciando(a), depois ele se toma um simples banco, com a decorac;ao desaparecendo lentamente, podendo ser usado
por qualquer homem (no cotidiano, mulheres nao se sentam em bancos, mas em esteiras). A etnografia sobre objetos na Melanesia e interessante para a etnografia amerfndia, nao somente pelas questoes que sugere, mas tambem pelas grandes diferen<;as entre a vida dos objetos la e aqui. Vimos que entre os Kaxinawa e muitos outros povos amerfndios, 0 importante na vida de um objeto nao e que sobreviva ao seu produtar ou usuario, mas que desapare<;a junto com ele: assim como pessoas e outros seres vivos, 0 objeto tem 0 seu processo de vida, que acaba com 0 envelhecimento e com a sua destrui<;ao.As vezes, este processo ocorre pouco tempo depois de sua fabrica<;ao, outras vezes nao. Mas um objeto em geral nao sobrevivera a marte do seu dono. Os objetos 'morrem' e, na floresta amazonica, costumam cumprir este destino com uma velocidade muito maior do que em outros contextos etnograficos. Quando 0 corpo se des integra e as almas tem de partir, tudo a que lembra 0 dono e que pode provocar 0 seu apego precisa se dissolver ou ser destrufdo. A vida dos artefatos tende a seguir na Amazonia um ritmo diferente do ritmo que segue na Melanesia, onde os colares e braceletes do kula, por exemplo, sobrevivem par muito tempo a morte biologica dos seus donos, tomando-se extensoes do seu corpo e da sua pessoa, man tendo a sua lembran<;a viva (Gell, 1998). Como ja assinalava Malinowski (1976), 0 processo de vida destes objetos de valor ganha uma relevancia toda especial, 0 objeto incorpora uma historia que faz falar e lembrar, e se toma uma extensao do seu dono original, aquele que 0 fez come<;ar a circular. Do mesmo modo que a pessoa pode ser concebida como uma 'entidade distribufda', como sugere Gell, transcendendo ~ espa<;o-tempo de seu carpo biologico atraves dos atos, produtos e lembran<;as-'t}ueproduz, 0 objeto pode se tomar igualmente uma 'entidade distribufda', a medida que 0 campo da sua a<;ao se amplia em termos de tempo e espa<;o. Deste modo, uma canoa usada no cfrculo do kula continuava ligada ao seu dono, mesmo depois de ter sido trocada por objetos de valor, e acabava representando toda a rede de intera<;oes e transforma<;oes que vinha sofrendo no decorrer de sua vida enquanto objeto (Munn, 1977). Deixava, portanto, de ser urn
mero objeto material, agregando em torno de si uma rede densa de rela~oes entre ilhas, pessoas e objetos (Gell, 1992). E e igualmente porque objetos nao sao meros objetos na Amazonia que, em vez de incorporarem a lembran~a do falecido produtor ou possuidor - possibilitando que ele continue vivendo entre os vivos atraves das suas extensoes materializadas -, precisam ser desfeitos para ajudarem vivos e mortos a aceitarem a profunda e inegavel transforma~ao significada pela morte. Nada continua igual depois da destrui~ao dos corpos.
Duas linhas de for~a se entrela~am no material a s~r apresentado com rela~ao a produ~ao de imagens entre os Kaxinawa: 0 terna da alteridade e 0 de agencia. Mostrarei como algumas ideias germinaifcte Gell (1998) receberao necessariamente uma inflexao especffica quando vistas sob a perspectiva da importancia da alteridadepara 0 pensamento amazonico. Como argumentamos acima, 0 que torna Gell tao atrativo para a etnologia e 0 fato de ele propor uma abordagem de objetos, artefatos ou arte "como se fossem pessoas", enfatizando suas qualidades agentivas. Ao traduzir esta proposta para 0 contexto das preocupa~oes te6ricas dos ama-
zonistas, poderfamos formular a questao de forma menos espedfica e perguntar, com Gow (1988, 1999), 0 que poderia ser a rela<;ao entre corpo e produ<;ao de imagens para os amerfndios, e tambem 0 que poderia ser a rela<;ao entre corpo e artefatos para sociedades amazonicas espedficas, no meu casa, os Kaxinawa. Visto que outros seres, especialmente animais, recebem 0 status de gente ou sujeitos no pensamento amazonico, a questao sobre 0 que fazer com artefatos, feitos de plantas e animais par humanos, se coloca automaticamente (Viveiros de Castro, 2004). Mas a questao pode ser aplicada tambem a imagens produzidas pela agencia combinada de plantas, mem6ria, cantos e outras entidades. Devem estes tambem ser cons iderados como agentes, isto e, agentes socia is, ou mesmo pessoas, entidades querendo se tomar pessoas, de determinado ponto de vista? 0 material kaxinawa sugere que este e 0 caso para alguns artefatos e algumas imagens. Mas veremos que apesar de podermos falar de agencia de desenhos e objetos para os Kaxinawa, a rela~ao entre artefatos e pessoas e diferente para a Amazonia e a Melanesia. Esbo<;arei tambem algumas considera<;5es crfticas com rela<;ao aos conceitos de agencia ea rela<;ao de sujeito-objeto usada por Gell. Esta considera<;ao crftica sera empreendida a partir da discussao corrente entre americanistas sobre 0 t6pico animismo ou perspectivismo. E importante frisar que existe urn marcado contraste no livro de Gell, Art and Agency, entre a primeira e a segunda parte, e que cada parte mereceria urn tratamento diferente. Os primeiros capftulos tratam 0 objeto de arte separadamente, como (ndice numa cadeia interativa de tipos muito diferentes de sujeitos, todos ligados, uns aos outros, numa reia<;aounidirecional de causa-efeito, isto e, de agentes cujas a<;5esproduzem padentes, que, por sua vez, podem se tomar agentes, quando reagindo a a<;aoque sofreram. A ultima parte do livro segue urn caminho totalmente diferente, propondo urn metodo quase oposto: isto e, uma vez tendo reconhecido que urn fndice de arte e parte de urn grupo de objetos ou formas relacionados, como uma pessoa e parte de uma famflia, somos obrigados a prestar aten<;ao ao estilo, isto e, as rela<;5esformais entre as formas. Uma vez identificadas tais
rela~oes, algumas hipoteses muito tfmidas sobre rela~oes possfveis entre formas e 0 tipo de sociedade que as produz podem ser formuladas, como a "lei da menor diferen~a" ('the law of least difference') proposta por Gell para 0 corpus das Ilhas Marquesas composto por Karl Von den Steinen no seculo XIX. Gell fala em "correla~oes em termos defor~as culturais e ide, ologicas sincronicas" sem postular qualquer la~o causal; uma abordagem muito diferente da teoria de causa,efeito que propos para a agencia na primeira parte do livro (Gell, 1998: 168). Minha crftica com rela~ao a ultima parte do trabalho de Gell seria que a correla~ao com a qual trabalha foi descoberta a partir de uma visao ex, terior, nao interior; isto e, as conexoes entre padroes de desenhos e sua la, gica gerativa com a lifeworld (0 mundo vivido) da sociedade que as produz nao foram encontradas atraves de uma conversa com as pessoas para as quais significam, mas atraves de correspondencias forma is entre as estrutu' ras sociais da sociedade e as estruturas forma is guiando a produ~ao dos de, senhos. Desta forma, Gell, urn dos mais virulentos crfticos da tradicional antropologia da arte, faz concessoes a forma estudada por conta propria, isto e, a analise formal (apesar de evitar, cuidadosamente, falar em 'bele, za'), mas nao ao conteudo. Ou talvez esta afirma~ao tambem nao esteja correta, ou somente se aplicaria ao capftulo sobre estilo e cultura, porque Gell so foi capaz de tomar seus 'fndices de arte' em agentes porque admitiu algum tipo de sentido e contexto de interpreta~ao, que possibilitaram seus artefatos ou imagens de agir. Uma nova abordagem da arte certamente tera de encontrar uma con, cilia~ao teorica entre essas diferentes partes conflitantes de urn mesmo trabalho. E tal sfntese so pode ser encontrada em um~ etnografia fina onde o papel do discurso nativo e abertamente reconhecido mrprocesso de au, topoiesis (Toren, 2003: 710); isto e, 0 processo constante de produ~ao de novos sentidos. E este processocontinua, no nossocaso, no contexto do encontro etnografico. Neste processo, aten~ao deve ser dada tanto aquilo que e dito quanto ao que e silenciado. Por isso, antes de come~ar com 0 papel da alteridade na produ~ao das imagens pelos Kaxinawa, me deterei urn pouco no que quero dizer com 0
termo 'produc;ao de imagens' (image~making). Falo aqui de imagens (tanto verbais e visuais, quanto virtuais) e nao de artefatos porque estou tao inte~ ressada em imagens veladas e imateriais e com a importancia de experien~ cias as quais apenas se alude, mantendo~as essencialmente secretas, quan~ to em objetos interagindo uns com os outros num mundo imediatamente observavel. Outros autores chamaram recentemente atenc;ao para este mesmo fenomeno. Mentore fala da "glorious tyranny of silence" (Mentore, 2004: 132~156), a tirania gloriosa do silencio, e Anne~Christine Taylor, do segredo em torno do encontro com 0 arutan, onde a interiorizac;ao da relac;ao estabelecida com 0 ancestral e tomada visfvel na pintura corporal, enquanto 0 conteudo do encontro nunca e revelado (Taylor, 2003: 223~ 248). Taussig, em Mimesis and Alterity, tambem aponta para a importancia de se pensar sobre 0 que escapa a 'objetificac;ao'. Quando fala sobre 0 ima~ ginario verbal usado por Florencio, curandeiro colombiano, para esboc;ar sua visao, Taussig afirma: "Parece-me crucial entender que este poder somente pode ser capturado atraves de uma imagem, e melhor ainda, entrando nesta imagem. A imagem e mais poderosa do que aquilo de que e uma imagem." (Taussig, 1993: 62)
Ao escrever sobre urn ritual de cura cuna, onde uma mordida de cobra e curada atraves da queima de imagens de mercadorias, Taussig volta a enfatizar a importancia do efemero: "[...] a cria~ao do poder espiritual como imagem animada pela morte da materialidade da imagem. Dito de outra maneira,:~parencia parece crucial, aparencia pura, aparencia como 0 impossivel - uma entidade sem materialidade. Ecomo seuma l6gica perversamente nostalgica se aplica onde a forma~esp(rito s6 pode existir como agente ativo pelo apagamento cia sua forma material. Cria~ao requer destrui~ao - dar a importancia da terra dos mortos dos Cuna onde imagens flutuam com tanta abundancia; dai a qualidade fantasmag6rica das fotografias." (Taussig, 1993: 135)
As palavras de Taussig aludem a urn tema que tern sido recorrente em escritos recentes sobre a antropologia das imagens, como os de Carlo Severi (2003) e Freedberg (1989); que e 0 de chamar a atenc;ao para 0 poder das imagens de afetar as pessoas emocionalmente. A teoria de Gell sobre agencia, por outro lado, nao exclui absolutamente a emoc;ao como urn dos efeitos possfveis da agencia dos fndices de arte, mas esta mais interessada em entender cognitivamente 0 poder da forma e dos objetos de agirem em relac;6es sociais do que em explorar 0 funcionamento da imaginafao humana. Quando falo em 'produc;ao de imagens' (image,making) quero incluir estas imagens mentais, expressas por meios, as vezes, muito indiretos, aludidas em cantos, por exemplo, mas nunca pintados ou rabiscados de forma representacional em lugar nenhum. 0 que significa nao pintar ou tomar visfvel ou materializar vis6es obtidas e ativamente procuradas em arriscadas empreitadas em busca de vis6es, a famosa vision quest como acontece com a busca pela visao com 0 arutan (Taylor, 2003)? 0 que Taylor diz sobre 0 encontro dos Ashuar com 0 arutan se aproxima muito desta descriC;ao pelo entao jovem cineasta efigura de destaque na regiao do Jordao, Sia Osair, da maneira como os yuxin (espfritos) iniciam urn xama: "Paje da e tira vida. Para virar paje, vai sozinho para a mata e amarra o corpo todo com envira. Deita numa encruzilhada com os bra~os e as pernas abertos. Primeiro vem as borboletas da noite, os httsu, elas cobrem seu corpo todinho. Vem 0 yuxin que come os husu ate chegar a tua cabe~a. Af voce 0 abra~a com for~a: Ele se transforma " em murmuru, que tern espinho. Se voce tiver for~a..e._nao solta, 0 murmuru vai se transformar em cobra que se enrola no seu corpo. Voce aguenta, ele se transforma em on~a. Voce continua segurando. E assim vai, ate que voce segura 0 nada. Voce venceu a prova e daf fala, af voce explica que quer receber muka e ele te da." (Osair Sales Sia in Lagrou, 1991: 36)
o poder
esta relacionado ao poder de transforma<;ao. Este e 0 poder dos seres espirituais chamados de yuxin ou yuxibu, eles tem 0 poder de produzir imagens animadas na mente ou no 'corpo perceptivo' das pessoas. Os yuxibu saD 0 plural ou 0 superlativo dos yuxin, espfrito ou alma, possuem capacidade de agencia e ponto de vista, intencionalidade. Estes seres yuxibu nao saD limitados pela forma, podem se transformar a vontade e podem transformar a forma do mundo a sua volta. Tambem possuem a capacidade de viajar de forma veloz com 0 vento, enquanto sao trazidos de volta de longe pela chuva. A fenomenologia kaxinawa gira em torno desta rela<;ao tensa entre a fabrica<;ao da forma s6lida, onde a pessoa saudavelmente incorporada e enraizada e 0 artefato par excelencia do trabalho coletivo kaxinawa, e 0 poder de imagens livres e flutuantes. Estas imagens se manifestam em tres tipos de form as diferentes: na forma de espfritos ou seus donos (yuxin e yuxibu), na forma de transforma<;oes em imagens e visoes (chamadas dami, estes saD 'suas mentiras'), e finalmente na forma de caminhos esbo<;adosem desenhos (kene). Estes padroes de desenhos saD chamados de "a lfngua dos yuxin ", e podem ser produzidos somente pelas mulheres. Este grafismo e chamado de a arte de escrever a coisa verdadeira: kene kuin. Escrever na linguagem do alfabeto e chamado de nawan kene, a escrita dos estrangeiros, no caso, ados brancos. Todas estas imagens, as desenhadas ou as tecidas para serem contempladas e outras para serem invocadas em cantos, influenciam ativamente e agem sobre as form as assumidas pela vida no mundo kaxinawa. Voltemos agora para uma apresenta<;ao muito sintetica do papel da alteridade na percep<;ao e produ<;ao de imagens e artefatos entre as Kaxina\Va. 0 conceito de alteridade tem sido um conceito central na emologia da regiao desde os escritos de Levi-Strauss, Clastres, <-:)veringe Carneiro da Cunha ate hoje com os escritos de Descola, Viveir~s- de Castro e toda a gera<;ao mais recente.9 Deste modo, condi<;ao e socialidade humanas sao entendidas n~ quase totalidade das sociedades amazonicas como processos cuidadosos de preda<;ao controlada. A preda<;ao precisa ser controlada exatamente porque ela foi reconhecida pelos amerfndios como intrinseca-
mente constitutiva da propria vida em geral e da vida social em particular (Overing, 1985b, 1986b, 1993b). 0 colapso desta precaria 'vida tranquila' esta no horizonte de todo discurso amerfndio sobre doen~a, marte, confli, to e infortunio. Fausto (2004: 172) se coloca a pergunta: "0 q\,le significa nao basear uma cosmologia numa oposi~ao clara entre 0 bem e 0 mal? Que tipo de so' ciedade assim 0 faz?", e conclui com certa ironia que "a'-mesma cultura que baseia sua etica numa distin~ao universal entre 0 bem e omal desenvolveu [...] uma capacidade insuperavel para a violencia e a destrui~ao. Culturas indfgenas que prosperaram em ambivalencia, pelo contnirio, nao tiveram tanto sucesso." A questao sobre a rela~ao entre a capacidade de um grupo ou sociedade de aumentar seu poder de a~ao violenta e a enfase de uma cosmologia na preda~ao recebeu diferentes tratamentos na literatura.
Autores que idemificam a agencia humana com a imen~ao predatoria chegam a paradoxal conclusao de que ninguem seria mais humano que a jaguar e ninguem mais divinameme poderoso que a deus canibal, superlativo do humano. A 'falta de sucesso' dos amerfndios na imposi~ao da sua propria violencia sabre a mundo foi, par outro lado, tambem a pomo de partida de urn outro tipo de reflexao que se ateve as implica~6es marais deste tipo de filosofia social. Nao parece ser urn mero acideme, portamo, que vis6es de mundo maniquefstas levaram a mais destrui~ao em grande escala do que aquelas que colocam a ambiguidade no proprio amago do ser. Reichel-Dolmatoff (1971), Arhem (1993, 1996) e Isacsson (1993) formularam teorias de equilfbrio cosmico e Arhem incorporou a conceito de "ecosofia" de Guattari (1989), enquanto Overing (1993a, 1996, 2000), Belaunde (2001, 2005), Teixeira-Pima (1997) e outros se concemraram nas implica~6es marais e psicologicas de teorias amerfndias de ambigtiidade. Overing sugere uma imerpreta~ao que esta tambem clarameme presente na cosmologia kaxinawa, de que a existencia de 'Fallible Gods', deuses falLveis,pode ser uma mitologia muito mais saudavel para a constrw;ao de sociedades igualitarias que a infalLvel born exemplo de uma so figura paterna poderosa (Overing, 1985b). A ideia da incorpora~ao da alteridade, e sua presen~a dentro do que constitui a mais interior dos imeriores de sociedades e pessoas, nao e, portanto, a monopolio do pensamento psicanalftico. No pensamento amerfndio, entretamo, este processo e realizado sem a correspondente divisao inte~ em natureza e cultura e tern, portamo, resultados diferemes.1O A import
de rela~ao implica em processos de subjetiva~ao, do tomar-se sujeito, atrayeS do processo de tomar-se parcialmente outro, sendo que a subjetividade do eu e significativamente aumentada peio contato fntimo e a eventual incorpora~ao do outro (seja este um inimigo, espfrito, animal ou planta). Esta incorpora~ao pode assumir diversas formas, entre as quais as mais espetaculares, bem conhecidas da literatura, san 0 costume de comer 0 inimigo, tomar sua cabe~a como trofeu, os casos em que 0 matador incorpora a alma, 0 canto ou 0 sangue de sua vftima para sempre em seu proprio corpo; alem dos casos de crian~as inimigas adotadas e mulheres raptadas que san esposadas.ll Se estas praticas, com rela~ao a inimigos humanos, tem, por raz5es obvias, se tornado cada vez mais raras na sua forma mais objetivada, a mesma logica continua valendo com rela~ao a rela~5es estabelecidas com anima is, plantas e outros seres do universo. Esta observa~ao tem conseqiiencias para 0 significado dos artefatos. Todas essas praticas estao mais ou menos relacionadas a um modelo espedfico de preda~ao, onde 0 outro, mesmo quando morto ou capturado, nao e nunca totalmente aniquilado, mas e de alguma mane ira, mantido vivo dentro do proprio matador - como Viveiros de Castro (1986a) foL 0 primeiro a demonstrar para 0 matador-cantor arawete -, ou e incorporado como novo membro dentro da comunidade. Os Pano eram famosos pelo ultimo modelo de preda~ao, 0 de atacar inimigos para raptar suas mulheres. Estas eram em geral ~tuadas com 0 mesmo motivo minimalista que 0 usado por sellS capturadores, para melhor demonstrar a inten~ao de totalmente incorpora-las (Erikson, 1986). Nenhuma marca tinha a inten~ao de marca-las par~ sempre enquanto cativas, como esrrangeiras ou inimigas. Pelo contrario, a ·inten~ao era de se casar com elas. Pessoas de outros grllpos nao eram incorporadas como escravosou para sempre marc ados como estrangeiros, mas eram submetidas II Apenas alguns exemplos deste vasto universo sao: exocanibalismo (Tupinamba - Fernandez, 1970; Viveiros de Castro, 1986a; Viveiros de Castro e Carneiro da Cunha, 1993; Wari - Vila~a, 1992); redu~ao de cabe~as (Jlvaro - Taylor, 1985); fusao matador-inimigo (Arawete - Viveiros de Castro, 1986); rapto (mulheres:Yawanawa - Carid, 1999; Perez, 1999; crian~as: Kadiweu - Levi-Strauss, 1955; Ribeiro, 1980).
a um lemo e cuidadoso processo que visava habituar seus corp os a nova vida, ate se tornarem partes integrantes das suas novas comunidades. Foi atraves deste metodo que 0 falecido chefe fundador dos Yawanawa obteve um respeitavel numero de mulheres (Perez, 1999; Carid, 1999). Todas elas foram raptadas de grupos de nawa vizinhos, muitos deles hoje extintos, ou melhor, misturados com outros grupos nawa. Este exemplo mostra que a filosofia e etnonfmia pano sobre 0 outro sendo constitutivo do eu pode em alguns casos ser entendido de forma bastante literal. Este, no entanto, nao parece ter sido pratica recorrente entre os Ka~ xinawa que eram chamados txananawa, "os numerosos", ja no infcio do seculo XX (Tastevin, 1925a). Os Kaxinawa parecem ter escolhido um modelo endogamico de se casar perto de casa, preferencialmente na mes~ ma aldeia com primos cruzados de primeiro grau, algum tempo antes da chegada dos seringueiros na regiao. Nao se pode decidir pela antiguidade do modelo e existe um debate entre pan610gos com relat;ao a questao se as nawas e sua pratica de captura represemam 0 modelo originalmente pano ou proto~pano, ou se 0 modelo proto~pano deve ser encontrado entre os auto~contidos Kaxinawa. E interessante notar que osCulina, vi~ zinhos e inimigos tradicionais dos Kaxinawa, parecem optar pelo mesmo modelo endogamico de casar com parentes pr6ximos que cresceram jun~ tos (Pollock, 2004). 0 discurso kaxinawa sobre identidade, no entanto, e, como veremos a seguir, 0 dos Pano. 0 outr. e sempre de alguma ma~ neira reconhecido como parte do eu num sentido temporal assim como constitutivo; deste modo todas as coisas pr6prias sac feitas de alteridade, e esta 16gica tambem vale para 'todas as coisas feitas' ('all things made', parafraseando um subtftulo de Guss, 1989), todos ~s sujeitos estao a ca~ minho de se tornarem outros. A produt;ao da sociedade kaxinawa consiste em um tipo de domestica~ ~ao, ou melhor, familiariz~ao ou sedUfao da alteridade. 0 problema com o rermo 'domesticat;ao' e que este termo se refere a domesticat;ao de ani~ mais, algo que os amerfndios explicitameme escolheram nao fazer (Desco~ la, 200 1; Hugh~Jones, 200 1). Erikson (1984) usa 0 termo familiarisation e Fausto familiarizar (1999a; 1999b; 200 1) para falar do processo de habituar
filhotes de animais silvestres a vida na aldeia. Este termo traduz bem a pa~ lavra 'acostumar' usada pelos Kaxinawa para traduzir yudawa, 0 processo de refazer 0 corpo, isto e acostuma~lo a nova situa~ao, a comida, ao ambiente. A tradu~ao literal de yudawa e "fazer 0 corpo". A palavra se refere ao fato de um novo corpo ser produzido atraves do lento processo de se acostumar emocional e corporalmente, senao a pessoa adoeceria e marreria. Este complexo processo de capturar a alteridade conhece diversas estra~ tegias, indo desde a mimese e transforma~ao a preda~ao e captura e, nao menos importante, a sedu~ao. Oanha~se ascendencia ou poder sobre 0 ou~ tro, nao atraves da pacificas;ao das for~as selvagens da alteridade, mas par meio de uma aproxima~ao cuidadosa, diminuindo a distancia em termos espaciais, cognitivas e corporais. Em artigo intitulado "Feito por inimigos", Van Velthem associa igual~ mente 0 estatuto do 'objeto cativo' a pessoa cativa entre os Wayana ( Van Velthem, 2000: 61 ~83). Este objeto, feito pelos brancos com tecnologia desconhecida, e distinguido em termos categorieos dos 'enfeites verdadei~ ros', objetos feitos pelos Wayana atraves de tecniea ancestral. Os objetos industria is, como as pessoas iniinigas, podem ser 'domestieados' atraves de um processo de estetiza~ao, mas nunc a deixarao de ser estrangeiros e perigosos (Van Velthem, 2000: 71). Entre os Kaxinawa 0 impulso de in~ corporar 0 outro, transformando~o em mesmo, parece ser mais forte, tendo em vista a intens;ao de apagar ~marcas da alteridade, apesar de se tratar de uma logiea de "guerra, captura e antropofagia" com relas;ao aos poderes do outro inimigo, que segue logiea similar ados Wayana. Que 0 outro e creditado com existencia propria, resistindo redu~ao em imagens contrastantes e reducionistas, e evidenciaclo oa ambiguidade da categaria do Outro (nawa) no pensamento kaxinawa: rt~o predador ou vf~ tima, mas ambos; nao sovino ou generoso, mas ambos; nao bonito ou feio mas ambos; dependendo do contexto, da qualidade relacional conquistada pela pessoa kaxinawa. Os kaxinawa aplicam a mesma ideia do processo de "se acostumar", ou familiarizar animais de estima~ao ou inimigos, ao pro~ cesso de adapta~ao pelo qual passa 0 antropologo. Este personagem e visto como alguem que se propos, voluntariamente, a habituar seu corpo, que
signiflca seu eu - e habituar signiflca, parcialmente, tornar-se um Kaxinawa. Esta ambic;ao deve ser co-responsavel pelo fascfnio que os Kaxinawa exercem sobre seus antrop610gos. Foi no meio de tal processo de familiarizac;ao, habituando meu "corpo pensante" aos modos kaxinawa, que fui convidada por meus anfltrioes a participar, como ne6flto e pesquisadora, no rito de passagem de meninos e meninas. Este ritual se tomou meu ponto de partida na tentativa de dar forma a fenomenologia kaxinawa, a maneira como a vida e 0 corpo adquirem seu estilo e sua forma especiflcamente kaxinawa, ou seja, sua particular forma perceptiva e signiflcativa. Foi durante este ritual que 0 sentido do desenho, do artefato e sua relac;ao com a fabricac;ao do corpo e das imagens ganharam sentido para mim. Ate aquele momento, parece que tinha feito as perguntas erradas, para parafrasear Gow, como: "quem 0 fez, como se chama, com que se parece e 0 que signiflca?" ( Gow, 1999: 230). As respostas para estas perguntas tinham sido de fato, bastante desencorajadoras: muito curtas e extremamente ambfguas, especialmente enquanto tentava conflrmar a suposta relac;ao entre a divisao da sociedade kaxinawa em metades e secc;oes matrimoniais e 0 uso de certos motivos, certos padroes de desenho na pintura corporal e na tecelagem. Outros especialistas em Kaxinawa e outros grupos pano tinham aflrmado que tal relaC;ao existia para os Kaxinawa sem jamais terem feito mais do que isto, aflrmar 0 a priori da correlac;io. Este e um exemplo dos problemas da prioridade dada a uma abordagem taxonomica ou lingufstica do graflsmo, abordagem esta criticada, dentre outros, por Gell (1998) e Gow (1988, 1999). Uma ressalva deve ser feita com relac;ao ao uso de motivos pintados com urucum durante 0 ritual de fertilidade, onde ~s manchas representam a pele de animais associados as metades. Neste caso-;--quesera tratado adiante, trata-se do uso do urucum em rituais de mascaramento. A pintura e chamada dami, disfarce, transformac;ao e nao kene, desenho, motivo graflco. No caso da pintura com urucum como dami encontra-se a associac;ao com as metades. 0 caso que nos interessa aqui, no entanto, e 0 uso dos motivos graflcos kene. 0 sentido do uso nao estava tanto nos nomes especfflcos dados aos diferentes motivos, nem nas diferenc;as entre categorias de desenho,
mas no padrao uniflcante encontrado na maneira em que 0 estilo espedflco dos Kaxinawa e gerado. Ao observar 0 uso do desenho no nixpupima pude de uma vez por todas descartar esta suposta func;ao da arte corporal kaxinawa de refletir a organizac;ao social, assim como sua suposta func;ao iconogniflca na representac;ao de entidades. Mais adiante mostraremos que os desenhos, enquanto "trac;os", linguagem dos yuxibu remetem a estes seus donos (ibu). Na iniciac;ao feminina na tecelagem existem cantos dirigidos aos yuxibu, donos dos desenhos, para pedir sua obtenc;ao. Nossa enfase aqui, no entanto, e em outro aspecto da agencia do desenho, 0 de ligar universos e abrir caminhos para a transformac;ao perceptiva em vez de funcionar como instrumento de classiflcac;ao sociocognitivo.12 Desenho entre os Kaxinawa e sobre "relaC;5es" (relatedness, 0 estar relacionado). Com isso quero dizer que 0 desenho alude a relaC;5es, ligando mundos diferentes, e aponta para a interdependencia de diferentes tipos de pessoas. Nesta sua qualidade de 'vefculo apontando para 0 estar relacionado' reside sua capacidade de agir sobre 0 mundo: sobre os corp os onde 0 desenho adere como uma segunda pele e sobre as mentes dos que viajam a mundos imaginarios em sonhos e vis5es, onde a visualizac;ao do desenho funciona como mapa, permit indo aos bedu yuxin, alma do olho, de homens e mulheres de encontrar a morada dos yuxibu, donos dos desenhos. uso e a agencia do desenho no rita de passagem se tomaram claros para mim ~ando vi a diferenc;a entre os desenhos usados por adultos e crianc;as passando pela intervenc;ao ritual. Os desenhos do nixpupima nao diferem em padrao ou forma dos verdadeiros desenhos kene kuin, mas diferem na maneira em que sac aplicados, assim como na largura das linhas pintadas. Os desenhos dos ne6fltas sac cham ados "desenho largo" (hu~u kene) ou "desenhos malfeitos" (tube kene). Os desenhos em jenipapo nos'tl1stos dos adultos, por outro lado, sac flnos e bem feitos, kuin. A razao de ser para 0 desenho
o
;2 Em pesquisa em andamento exploro mais a fundo 0 canher cartografico do desenho. Os nomes dos motivos referem a seres e partes dos seus corpos, assim como a relaIYoese caminhos. A traduIYao dos cantos dos desenhos visa revelar a cartografia cosmica presente na descriIYao estilfstica kaxinawa. Veremos assim que nomes de motivos nao representam seus donos, mas levam a eles.
largo tern a ver com a eficacia ritual: quanto mais escuras e grossas as linhas na pintura corporal e facial, mais profunda seria a penetra~ao dos cantos no corpo da crian~a. A agencia do canto dependia, portanto, da intensidade da cor e da largura das linhas. Depois dos cantos terem entrado nos corpos, a crian~a pensara sobre eles, os cantos guiarao seus pensamentos. A pintura corporal funciona como filtro e a diferen~a na distancia entre as linhas tern a ver com a agencia do desenho, dos cantos e dos banhos medicinais que tern de penetrar a pele. 0 desenho chama a aten~ao para a permeabilidade da pele a influencias exteriores. 0 corpo ingere pelos oriffcios e pela pele. Retornando ao desenho em geral, os Kaxinawa partilham com os Shipi, bo,Conibo (Gebhart,Sayer, 1984; Illius, 1987) e com os Piro (Gow, 1988, 1999) a presens:a e a importancia simultanea do desenho nas experiencias visionarias e na vida cotidiana. Os tres grupos tambem partilham uma espe, cializa~ao de genero na sua rela~ao com 0 desenho, onde tomar ayahuasca (uma bebida conhecida por seus efeitos poderosos na indu~ao de visoes) e considerado atividade masculina, enquanto as mulheres se especializaram na execu~ao do desenho.13 Entre os Kaxinawa padroes com desenho sac tan, to tecidos em algodao e cestaria, quanto pintados no corpo e na ceramica.
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Alguns motivos recorrentes na cestaria. entre os quais
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bedu (olho de periquito). 1l Vert entretanto, Colpron (2004) que analisa as condi~5es e 0 contexto do surgimento de xamas mulheres que tomam ayahuasca e curam doen~as entre os Shipibo.
Motivo central: txede bedu. Pintura com guache. Elena Pinheiro Kaxinawa, 1994.
Adiante exploraremos mais extensivamente este tema, visto que 0 de~ senho em si e 0 tecer com desenho mais especificamente parecem se cons~ tituir em metafora~chave para pensar 0 tema de como se produz identidade a partir de alteridade no pensamento kaxinawa. A vida e feita do entre~ la~ar de fios, mas nesta visao os Kaxinawa nao estao sozinhos. Tambem nao SaDos unicos a terem elaborado uma tecnica de tecelagem onde 0 entrela~amento de qualidades contrastantes ganhou a forma de duas cores contrastantes, produzindo figuras e contrafiguras de igual for~a visual com o efeito de os olhos nao poderem decidir onde focar permanentemente a figura e 0 fundo. Poderia se elabarar varias ressonancias entre esta caracterfstica formal do estilo e urn estilo de pensamento, como sugerido por Roe para os Shi~ pibo e par Guss (1989) para os Yekuana, que enfatizaram a rela~ao entre o visfvel e 0 invisfvel, ou a natureza transformacional da realidade para estas cosmologias amerfndias. As ressonancias entre estilo e mundo vi~ vido podem tambem ser estendidas para a maneira como a sociedade e constitufda, nocaso kaxinawa, par exemplo, pelas capacidades produtivas combinadas de homens e mulheres, de pessoas pertencendo a metade dos inu com as pertencendo a metade dos dua. Estas inferencias de correla~5es entre estilo e sociedade explicadas "em termos de far~as ideol6gicas e culturais sincronicas" como Gell sugere (Gell, 1998: 168), entretanto, ainda seriam muito incertas e efemeras e somos imediatamente lembrados do crftico Boas que ja no final do seculo XIX, infcio do seculo XX (1914), olhava com muita desconfian~a estas correla~5es entre forma e conteudo encontradas por.antrop610gos ansiosos por descobrirem sentido onde se supunha que a densidade dos sentidos ainda nao tinha sido 'perdida', ou seja, entre os nativos:Estas correla~5es, portanto, nao seriam mais que conjecturas ou espe~ cula~5es sobre formas silenciosas se as pessoas que as fazem nao tivessem tambem algo a dizer sobre elas. E aqui nos deparamos de novo com a im~ partancia de levar 0 silencio a serio. As mulheres kaxinawa eram muito silenciosas com rela~ao ao sentido do desenho e mesmo assim, no final, muito tinha sido dito por caminhos que para mim, no momento, tinham
parecido como maneiras muito indiretas de conferir sentido. Muitas mu~ lheres ja tinham me dito varias vezes que os desenhos habiaski "sao todos iguais, e tudo um grande desenho." Depois de perguntas demais, a velha Maria Sampaio, minha protetora e uma mulher que sabia do que estava falando (isto e, 0 assunto dos yuxin, pois tinha sido tratado para parar de ve~los), terminou 0 assunto com 0 comentario "keneki yuxinin hantxaki", ou seja, "0 desenho e a linguagem dos yuxin". Voltaremos a esta celebre frase mais de uma vez neste trabalho. Por ora, como introdw;ao ao assunto, e interessante lembrar que yuxin e sua amplificas:ao em yuxibu sao seres a procura da forma, sempre tentando se transformar em algo diferente. Estas imagens flutuantes sao poderosas e pe~ rigosas porque podem causar corpos a mudarem suas formas e adotar outras formas como demonstrado em alguns casos de doens:a, desaparecimento e especial mente por ocasiao da morte. 0 mesmo assunto da transformas:ao corporal esta no amago do rito de passagem, onde corpos sao pintados, mo~ delados e endurecidos, isto e, onde a forma e a fors:a futura dos corpos dos pequenos esta sendo trabalhado. Aqui pode ser util a distins:ao usada por Vi~ veiros de Castro (1979) para os Yawalapiti entre metamorfose e fabrica{:ao. o rito de passagem tern a ver com a fabricas:ao de corpos, enquanto a ingestao ritual da ayahuasca tern a ver com uma metamorfose temporaria, vestindo as roupas, isto e os corpos de outros seres, animais ou outros tipos de pessoas. 0 desenho tern urn papel importante a desempenhar em ambos os processos rituais; urn papel diferente do desempenhado pelo desenho piro em contextos similares de fabricas:ao e metamorfose de corpos, pois se entre estes ultimos 0 desenho somente vem completar ou anunciar uma transformas:ao visual ou corporal quando da safda da mos:apubere (como.no caso xinguano) e como preludio a verdadeira visao (Gow, 1988,1999,20(1), no caso kaxi~ nawa, 0 desenho tem papel de agente ativoe crucial neste processo. Para entender a origem do desenho, diversos mitos san importantes. Para uma primeira aproximas:ao ao tema que nos acompanhara ao longo deste trabalho, comes:aremos no item que segue esta introdus:ao com 0 mito de origem do desenho (kene), por urn lado, e da bebida que revela o mundo das imagens fluidas, por outro, para passar, depois, a analise do
mito de origem do dono do desenho e das imagens. Par ora, resumo as questoes que nos interessam aqui. desenho foi ensinado a uma mulher kaxinawa pelo yuxin da jib6ia, Sidika, na forma de uma senhora de idade. A tecnica atraves da qual os padroes foram ensinados foi a tecelagem (informa~ao de crucial importan, cia segundo a linha boasiana e que nao escapou a aten~ao da muse610ga Dawson, 1975 e de Gow, 1988). Esta tecnica primordial foi responsavel pelas caracterfsticas estilfsticas especfficas do desenho pintado. Encontra, mos 0 mesmo tipo de motivos labirfnticos de gregas e losangos na pintu, ra facial e corporal dos Kaxinawa que os encontrados em muita cestaria amazonica. A originalidade do fazer kaxinawa reside na tecelagem destes padroes em tecidos de algodao. Outra versao do mito, contada por Agostinho Manduca do rio ]ordao, esbo~a outro contexto de aprendizado, 0 da sedu~ao. Uma jovem vai todo final de tarde para a floresta onde se encontra com seu amante, a jib6ia Yube na forma de um belo jovem. Fazem amor e depois Yube se transform a novamente em jib6ia, se enrola no seu corpo todo ate ficar com a lingua na cara da mo<;ae fica nesta posi<;aopor horas, ensinando a ela os segredos do desenho. Este mito demonstra muitas semelhan<;as com 0 mito de ini, cia~ao masculina no mundo das imagens. No mito de origem da ayahuasca, 0 yuxin da cobra aparece na forma de uma jovem mulher belamente pintada para urn ca<;ador kaxinawa. 0 homem queria fazer amor com ela e foi levado para 0 mundo debaixo da agua onde aprendeu a preparar e tomar ayahuasca, chamado dunu himi ou dunaun iSLm, respectivamente sangue e urina da sucuri. Quando morreu, seu corpo interrado deu origem tanto a Psichotria viridis, a folha, quallto ao Banisteriopsis caapi, 0 cip6, que juntos fazem a bebida nixi pae, cip6 embriagante. Resumindo, podemos dizer que 0 yuxibu da jib6ia/sucuri deu ao homem o conhecimento tanto de prepararquanto de tomar a bebida, 0 conhe, cimento de produzir visoes, e as mulheres 0 conhecimento de produzir e gerar desenhos. Todos os desenhos possfveis se encontram virtualmente na pele da cobra, onde um desenho pode ser transformado em outro seguindo certas regras de composi~ao.
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Veremos tambem como 0 paralelismo mftico e corraborado pelo paralelismo ritual: a inicia~ao feminina no desenho equivale a inicia~ao masculina na ca~a e na experH~ncia visionaria ou vice-versa. Isto e, ambos, homens e mulheres podem ritualmente matar jib6ias para se comunicarem com seu yuxin. Dieta e reclusao sac pre-requisitos para 0 born exito destes atos de preda~ao contralada tanto para as mulheres quanto para os homens. E para associar estes rituais com a literatura amazonica sobre 0 sangue do guerreira e 0 sangue menstrual, basta lembrar que a matan~a da jib6ia tern a ver com 0 controle do fluxo de sangue (na ca~a e na menstrua~ao) tanto quanto com 0 contra Ie do fluxo das imagens.14 Estes dois rituais sac poderosos, perigosos e secretos, porque 0 que e dito para 0 yuxin da jib6ia ganha existencia virtual pr6pria e, se revelado a outras, pode se tomar contra 0 pr6prio enunciador originario. Mulheres negociam com a jib6ia a obten~ao de urn "olho para desenho" e 0 domfnio sobre sua pr6pria fertilidade atraves do contrale do fluxo sangufneo. 0 contra Ie do desenho e da fertilidade sac intimamente ligados. Homenspodem obter sorte na ca~a atraves do pacta com a jib6ia, mas podem tambem pranunciar 0 desejo de pravocar a morte de inimigos. E import ante lembrar que a sorte na ca~a e tao associada a visao quanto 0 dom pelo desenho das mulheres. A cobra fita a ca~a e a atrai pelo olhar hipn6tico. A sorte na ca~a esta ligada a cautela do ca~ador que nao se afasta dos caminhos (kene) tra~ados, mas atrai a ca~a, seduzindo-a a se apraximar. 0 poder da visao obtida pelas mulheres, por outra lado, pode tambem ser usado como magia de amor, hipnotizando homens da mesma maneira que 0 desenho da sucuri mulher hipnotizoll Y1.;!be no mito.1s
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14 Para outro contexto em que existe uma associa~ao entre diferen.tes flUXO.S femin.inos ed o desenho ver Gow (1999); para uma analise comparativa do significado cosmol6gico do sangue no pensamento amerfndio, com especial enfase no estatuto do sangue menstrual ver Belaunde (200S). 15 Entre os Culina do Alto Purus, vizinhos dos Kaxinawa. estes ultimos sao famosos par sua magia do amor, que pode levar a morte se nao for curado par urn especialista pano. Tanto a magia quanta sua cura pertencem a esfera de competencias do especialista no preparo e no uso da ayahuasca (Pollock, 2004: 210).
As vezes lembretes destes encontros SaGlevados para casa e guardados na forma de um chapeu feiro do couro da jib6ia, no caso dos homens, ou na forma de um peda~o deste mesmo couro guardado pelas mulheres. Tais itens, indices de um encontro passado, mas duradouro, que intensifi, ca a subjetividade do detentor, tem de ser mantidos escondidos para nao causar a furia do dono, seu yuxin. 0 chapeu e exposto somente durante 0 l
A agenda da jib6ia se manifesta atraves do aumento da capaddade da visao; ela (ou ele) passa aos humanos a capacidade de gerar desenho e 0 desenho fornece a moldura e a condi<;ao para a gera<;aode qualquer tipo de forma. Esta ideia sera extensivamente ilustrada com exemplos no texto a se, guir. Quero por ora questionar a 16gicada preda<;aoaqui proposta: sera que a jib6ia e realmente urn born representante da alteridade para os Kaxinawa? Uma possivel resposta sera encontrada no mito do grande diluvio. En' quanto 0 resto da humanidade e dos artefatos desapareceu ou se transfor, mou em animal, urn casal, deitado em rede com desenho, se transformou em sucuri. Este e tambem 0 mito de origem da humanidade atual. So' mente uma mulher sobreviveu, Nete, que deu a luz aos primeiros novos humanos. A consubstandalidade de humanos e da grande jib6ia/sucuri ja era, portanto, dada no mito. Isto e, a sucuri ja foi humana, e mais, era a combina<;ao de urn homem e uma mulher que estavam fazendo amor quando surpreendidos pelo diluvio: a cobra mitica ou 0 yuxin da jib6ia/su, curi combina agenda feminina e masculina. A humanidade na sua forma atual, por outro lado, s6 foi produzida depois do diluvio. Neste sentido, sucuris e humanos sao realmente coisas muito diferentes; aintera<;ao entre estes diferentes tipos de seres implica em perigos inerentes ao lidar com a alteridade e se da nos term os da preda<;ao: mata,se a jib6ia. Concentrar,me,ei por ora somente num aspecto da agenda do dese, nho: 0 da sedu<;ao. E a luz do mito do grande diluvio sobre 0 casal fazendo amor na sua rede que a frase seguinte de urn canto come<;a a fazer sentido. Enquanto a senhora de idade me explicou que 0 desenho era a linguagem dos yuxin - urn comentario que faz sentido quando entendemos 0 desenho como agente de liga<;ao que tece caminhos entre mundos diferentes -, uma explica<;ao diferente com rela<;ao a qualidade relaciof'lal do desenho me foi dado por urn jovem adulto. "Olha, disse, voce nao ve que as linhas tern que tocar? Em todo born desenho as linhas tern que tocar, nao pode ter linhas soltas, isto e porque as linhas significam'fazeramor', tern que tocar como a junta do joelho." (Paulo Lopes Kaxinawa, 1991)
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tema volta num canto de amor, urn canto sabre fazer amor, em que as movimentos do casal sao descritos em termos de "0 desenho da cobra", seu desenho sendo seus movimentos, as tras:os deixados (pelo casal au pela cobra) na areia: Nabaka debukii ee (2x).
A nascente do rio nabaka. A nascente do rio txanabaka. A nascente do rio badiwaka. Mastigando a nascente da macaxeira. Pensando no cuspe, no cuspe. Com a pena do gaviao real. Tamborilando, Tun! Tun! Tun! • Na areia, desenho da cobra. Desenho do caminho da cobra. Fazendo seu filho ...
sao as cabeceiras dos rios, a fonte aa-agua. Os names dos rios incluem referencias a peixe (baka) e evocam conotas:oes sexuais. Uma das nascentes citadas no canto e a de "macaxeira".Augusto traduziu esta frase da seguinte maneira: "a nascente da macaxeira e a semen e a mastigar significa ter relas:oes sexuais". As frases seguintes completam seu significado: "Pensando no cuspe, no cuspe" e "Pensar no cuspe significa pensar na ejaculas:ao". Ap6s esta descris:ao metaf6rica do evento fertili,
zante, 0 canto menciona a pena do gavHio real, representando neste con~ texto 0 penis. 0 barulho das asas do gaviao real quando pousa e associado ao som emitido pelo tambor. encontro se da na praia. "Na areia, desenho da cobra", "desenho do caminho da cobra". Os tra~os deixados pelo casal na areia sao compara~ dos aos deixados pela cobra que passa. Este e outro argumento para ver no desenho um agente, visto que linhas estao associadas a movimentos. Outro momento em que linhas sao interpretadas como materializando movimentos e quando os componentes do desenho sao descritos como 'rios' (duni) e 'caminhos' (bai). Esta e a fun~ao do desenho na visao, nao somente como descrito nos cantos com ayahuasca, onde se diz que 0 canto pinta caminhos em frente aos olhos fechados do ne6fito (como entre os Yaminawa, Townsley, 1988; 1993), mas tambem na afirma~ao de que uma pessoa doente nao deve dormir em rede com desenho, para que seu yuxin do olho nao se perea no labirinto quando sonha, sob risco de ser levado para 0 outro lado, a aldeia dos mortos, e morrer (Keifenheim, 1996). Exploramos ate agora a questao da agencia da imagem, do tra~o, da for~ ma, sem que esta seja necessariamente materializada. Tratamos do poder da imagem na sua rela~ao com a imagina~ao, uma imagina~ao perceptiva, que ativamente imagina e constr6i um mundo possIvel a partir de percep~ tos informados pela maneira que os Kaxinawa vivem seu mundo. Mas no mundo kaxinawa nao sao somente os desenhos e _ imagens que agem,
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os artefatos sao candidatos a um estatuto equivalente, pois assim como a desmaterializa~ao da imagem e fonte de poder, sua materializa~ao tambem o e. E e para esta qualidade de agente material e par~ 0 poder oculto dos artefatos que nos cercam que Miller (1987, 1994) chama a aten~ao. Eles nos circundam de forma silenciosa quase fazendo com que-fios esque~amos da sua presen~a, mas e exatamente este carater dado, sua caracterfstica de moldura que permite 0 foco, 0 responsavel par seu poder de agir sobre nosso ser de forma tao pervasiva.16 16 Ver Miller (1987) para uma elaborac;ao sobre a importancia da objectifica~ao no processo de construc;ao do sujeito. }vI iller retoma 0 conceito de objectiflcac;ao de Hegel para mostrar 0 quanta 0 surgimento do sujeita coincide com 0 do objeto.
Encontraremos varios exemplos de artefatos e 'coisas' que agem ao longo deste trabalho. Na analise do rito de passagem, a mi~anga e sua associa~ao tanto com a figura mftica do Inka quanto com os brancos, ganhara destaque. Os Kaxinawa usam as contas para a confec~ao de colares de diversas cores para mulheres e crian~as, usadas no cotidiano e em maior quantidade durante as festas. Crian<;as doentes os usam em maior quantidade que crian~as saudaveis. Os Kaxinawa contam que 'antigamente' as crian<;as usavam pesados colares de contas cruzando seu peito. Em fun<;aodas mulheres valorizarem menos os colares de sementes coletadas na floresta do que os de mi~anga obtidas atraves da troca com estrangeiros, usam menos colares do que gostariam. Contas brancas sac usadas para tecer pulseiras, bra~adeiras, tomozeleirase joelheiras. Outro uso da mi<;anga, de origem aparentemente recente e a pulseira tecida com desenho. As mulheres fazem estas pulseiras com vfvidos motivos tirados do estoque de motivos kaxinawa (kene kuin) e as dao de presente aos namorados, maridos ou amantes. Nao sac comercializadas. Foi no contexto da tradu<;ao dos cantos do nixpupima que as 'contas de vidro' chamaram minha aten<;ao para uma reflexao nativa sobre 0 fascfnio e sedu~ao pelo Outro, desde a mftica figura do Inka ao atual nawa, 0 estrangeiro nao-indfgena. Nos cantos, as contas ligam em cadeia associativa, atraves das figuras da linguagem, conceitos-chave como dentes, olhos, sementes, metal, ossos, reilho, kene (desenho), Inka e yuxin. o tema de fios ou desenhos tecidos com mi~anga, como caminhos que ligam mundos distintos (0 que os desenhos de fato sac para os Kaxinawa; Lagrou 1991; 1996a; 1997; 2002a), pode servir con:o uma metafora para csta pesquisa sobre a materializa<;ao ou imagina<;ao das wirias faces da alteridade pelos Kaxinawa hoje em dia, incluindo af 0 fenorii:eho das fronteiras permeaveis entre grupos e pessoas em constante fluxo e 'estar entre' (inbetweenness); pessoas que, no entanto, nao se esquecem da importancia de cecer caminhos, de atar nos e retornar pelos mesmos caminhos que vieram. Os mitos que coletei associam 0 'desejo pelas contas' ao perigo de se perder pelo caminho do inimigo, um caminho da morte ou do tomar-se estrange iro, um caminho pelo qual nao se volta nunca mais.
Vale a pena chamar a aten<;ao aqui para 0 fato de a maior parte dos povos amerfndios atribufrem a inspira<;ao para sua arte, desde a materiaprima ao aprendizado dos grafismos de pintura corporal e facial e motivos tecidos em cestaria ou redes, a conquistas sobre inimigos. Estes inimigos podem ser desde povos humanos vizinhos a seres sobrenaturais como a jib6ia/sucuri mftica, responsavel entre a grande maioria dos povos amazonicos pelos motivos usados na cestaria, tecelagem e pintura, ou 0 Inka, no caso dos Kaxinawa, dono nao dos motivos, mas da arte de desenhar o carpo e das continhas coloridas, a mi<;anga. As contas do Inka tinham em comum com as contas do branco seu carater imperecfvel e as cores brilhantes. E importante salientar que a associa<;ao entre contas e 0 contato com estrangeiros nao e recente, e constitutiva do significado da palavra em kaxinawa para conta, mane, que significa igualmente metal e bens nao-perecfveis obtidos dos nawa, estrangeiros, em geral. Par esta razao, 0 prestfgio da mi<;anga de vidro esta intimamente ligado ao desejo do contato e da troca com estrangeiros, desejo expresso tambem nos cantos rituais e nos mitos.
Este intrigante tema da mi<;anga ilumina bem a rela<;ao entre artefatos e pessoas, sendo uma clara manifesta<;ao do tipo de sfntese que um artefato opera e de como ele pode ser lido como extensao da rela<;ao
entre pessoas. Neste caso se atribui valor estetico especial a mis:anga pela distins:ao que a materia~prima representa, de invocar uma relas:ao com 0 mundo externo, ao mesmo tempo em que reals:a e mostra de forma nova, de um outro ponto de vista, motivos que de longe saD re~ conhecidos como kaxinawa. As pulseiras saD artefatos essencialmente relacionais; fazem pontes entre mundos, entre os rapazes que as usam e que as vezes fornecem a pr6pria materia~prima e as mos:as que as fazem e que fomecem 0 saber do desenho e da tecnica. Estes emblemas da rela~ <;aoamorosa ligam os mundos nos quais os jovens circulam: 0 mundo da viagem e das cidades distantes, de onde vem a mis:anga, e 0 mundo da aldeia para onde sempre retomam. as motivos tecidos pelas mulheres, por sua vez, saD considerados a 'escrita dos yuxin' e remetem ao encon~ tro secreta da desenhista com a jib6ia ancestral, dona dos desenhos. au seja, tanto por parte dos homens que cole tam a materia~prima, quanto por parte das mulheres que as fabricam, as pulseiras com desenho re~ metem a relas:oes com um mundo alem do mundo conhecido, relas:oes que tem profundos efeitos sobre 0 munda intemo das relas:oes socia is. Tambem aqui, como no caso jfvaro (Taylor, 2003), vemos operante uma l6gica de visibilizas:ao e ocultamento de rela<;oes com 0 mundo humano e nao~humano que constituem 0 sentido do eu e a auto~estima, 0 caris~ ma de uma pessoa. Strathe~ (1988) mostra como os melanesios pensam os artefatos na sua capacidade transformacional: assim um instrumento de cavar e 0 cria~ dor potencial dos legumes no ros:ado e 0 colar de conchas atrai outra forma de valor. au seja, os objetos fazem a troca acontecer e um ser ou artefato ajuda na produs:ao de outro. Esta visao esta igualme~te operante entre os Kaxinawa e em varios nfveis. Artefatos saD materializac;-cresde interas:oes entre pessoas e agem sobre estas em redes interativas como agentes secun~ darios (Gell, 1998). Do mesmo modo que 0 grafismo age ao estabelecer relas:oes entre corp os e pessoas, como filtro ou malha protetora no corpo, guia no mundo das visoes ou armadilha da alma no sonho, os fios de mi~ <;angaagem sobre 0 mundo social, objetificando ou tomando visfveis redes de relas:oes. a acesso a mem6ria social ativada por estas imagens~signos
(Severi, 2003) se deu a partir da tradu~ao de cantos ligados aos contextos nos quais os desenhos atuam. Esses novos objetos e imagens que estao sendo fabricados e circulados pelos Kaxinawa de ambos os lados da fronteira nos fornecem informa~6es relacionais e afetivas (Bateson, 1977). Estes chamados objetos 'hibridos' na verdade de hrbrido nada tem, se levarmos em conta que 0 proprio ser da arte ou do agir no mundo pelos Kaxinawa sempre foi movido pelo fasdnio pelo outro, significando um processo de preda~ao, incorpora~ao e transforma~ao do que era do outro. Todo mito de origem de imagens ou artefatos refere a esta origem alienigena, fato este que explica sua "eficacia estetica" (Gell, 1998), sua aura afetiva e sua capacidade de agir ate certo ponto 'por conta propria'. As logicas da agencia, alteridade e relacionalidade tambem sao operativas na fabrica~ao do banquinho ritual usado pelas crian~as para descansar durante 0 ritual de passagem. No caso do banco, a madeira usada e de importancia crucial, visto que 0 banco e esculpido das raizes tubulares da samauma. A samauma nao e derrubada no evento, mas as pessoas a dirigem cuidadosamente a palavra, em canto, para que passe suas qualidades e seu conhecimento de como viver uma vida tranqiiila para a crian~a. Vale a pena frisar, no entanto, que a samauma e uma entidade predatoria, tanto quanto 0 Inka ou a jiboia. A samauma e temida pela sua capacidade de 4iausar tontura e de produzir desmaio em passantes inadvertidos. A samauma e lugar de moradia de poderosos yuxin. Mas tudo isso deveria ser suficiente para atar me us nos, de forma provisoria, neste momento. 0 que pre tendo mostrar aqui e uma ~i~aoaprendida com Bateson (que tambem voltara a nos visitar nas paginas segwintes), que arte, isto e, a produ~ao de imagens no sentido mais amplo da palciWaao qual aludi no come~o, e uma afirma~ao meta - ou nao-linguistica - sobre a qualidade relativa (do estar relacionado). Arte trata de rela~6es de seres humanos entre si e de seres humanos com seres nao-humanos que, como vimos para os amerfndios, podem ser humanos se adotarmos determinado ponto de vista. Artefatos nao representam ou substituem pessoas e rela~6es na Amazonia, pois se tornam seres em si mesmos, com agencia propria, e nao so-
mente com agencia secundaria, como resposta numa cadeia de impulsos e reas:5es automaticas. A agencia do desenho, por exemplo, e considerada intrfnseca, pr6pria do desenho e de sua maneira especfflca de agir sobre o mundo e sobre 0 corpo kaxinawa e deve ser entendida dentro da 6tica das teorias 'internalistas' de agencia, em contraste com as 'externalistas', propostas por Gell (1998: 126~133). Descola (2ool) e Hugh~Jones (2ool) chamaram atens:ao para 0 pen~ samento amerfndio nao dar prioridade a complex a elaboras:ao de siste~ mas de troca com a possibilidade de heterosubstitui~ao, como na Melanesia onde porcos e braceletes podem ser trocados por humanos; por mais que elaborados sistemas de troca existam e existiram nas sociedades indfgenas das Terras Baixas da America do SuI. 17 0 pensamento amerfndio parece valorizar 0 acumulo do conhecimento encorporado, uma forma corporal~ subjetiva de acumulas:ao, ao inves de uma acumulas:ao de relas:5es atraves de artefatos. Este 'saber do corpo' estabelece relas:5esancoradas numa sub~ jetividade que se constr6i a partir do estar e se saber relacionado. Mais importante que as coisas em si e 0 conhecimento de como fazer as coisas. No caso do desenho kaxinawa este credo e ilustrado pelo fato de os desenhos freqilentemente serem interrompidos no meio do padrao, sugerindo sua continuas:ao para alem da superffcie desenhada e para alem do suporte. Tanto ou mais importante do que a materializas:ao do conheci~ mento e 0 de ser capaz de invocar a imagem na mente. Desenhos existem para nos lembrar de ou sugerir sua existenda no mundo, nao para exaurir seu ser na sua visibilizas:ao pelo desenho pintado OU tecido. Nao somente sac os objetos individuados, porque participam da agenda do produtor, mas tambem ganham uma existencia pr6prta que vai alem do tipo de individualidade instaurada pela sinedoque propo~t~ por Gell, onde a parte participa nas caracterfsticas do todo (Gell, 1998: 161~162). Arte~ . fatos e imagens amazonicos, ou mais precisamente kaxinawa, represen~ Ii Sistemas elaboradas de trocas existem no Xingu (Bastos, 1989; Barcelos, 2005 etc.), ao Leste dos Andes (Renard-Casevitz, Saignes, & Taylor, 1988) e nas Guianas (Barbosa, 2005 e outros; Gallois, 1986,2005; Howard, 2000).
tam uma nova sfntese, novos seres capazes de agir sobre 0 mundo, e neste sentido "s8oocomo pessoas." 0 banco ritual recebe 0 mesmo tratamento que 0 milho e 0 amendoim recem-colhidos: SaD assentados nas vigas que sustentam a casa, e a eles SaD dirigidos cantos como se fossem pessoas, com nomes proprios. Isto e assim porque '0 milho queria virar gente' e de certa maneira se transforma em gente. Alguns artefatos e substancias SaD tratados como pessoas sendo atribufdos a eles lugar para descanso, tempo de vida proprio, nomes etc. Oeterminadas substancias e artefatos tern urn ciclo de vida de cria~8oo e destrui~8oo que e paralelo ao de uma pessoa, como no caso dos Wayana Apalai (Van Velthem, 1995, 2003). Outros seres n800 SaD tratados como extensoes, posses de uma pessoa, n800mediam rela~oes entre pessoas, pois tern existencia propria, slio pessoas. Na Amazonia 0 criador tern uma rela~8oocom sua criatura n800em termos de agente primario ou secundario, mas de ibu, 'dono', ou 'gerador', aquele que causou a existencia deste ser, mantendo para sempre uma rela~8oode pai ou m8oe/filhocom os produtos de seus pensamentos (como sugerido por Overing, 1988). Esta rela~8oosignifica que a pessoa foi 0 come~o de algo com inten~oes e destino proprios. E par esta raz800que n800se pode falar de sinedoque, visto que a crian~a e apenas parcialmente uma replica da identidade de urn dos genitores, pois sempre participa na identidade de outros seres, tornando-se unico. Oeste modo, crian~as SaD como artefatos e artefatos SaD como crian~as. Este raciocfnio vale, no caso dos Kaxinawa, para 0 milho e 0 amendoim, e para a madeira da raiz da samauma que sera usada para esculpir 0 banquinho: "eles querem ser gente tambem." 0 milho continuara a viver dentro do corpo do homem ate que 0 semen (feito de milho) prod~za.uma nova crian~a. Estes seres mantem seus la~os com seus donos anteriores;-ou com aqueles que causaram sua existencia. Os cantos para 0 banco ritual 0 transformam em urn ser, a voz do cantoproduz agencia na madeira, uma capacidade de agir e de colaborar com a produ~8oodeste novo ser, 0 ne6fito kaxinawa, que sera a sfntese destes esfor~os combinados. E neste sentido da constru~8ooda agentividade que se diz que uma crian~a que passou pelo rito de passagem ja tern "seus proprios pensamentos" (ma hawen xina hayaki).
Artefatos nao SaGtanto coisas para serem possufdas, acumuladas e passadas adiante, quanto interessantes por causa do conhecimento que foi preciso ter para faze-las. E deste modo que os Piraha SaGcapazes de descrever todo tipo de objetos que conhecem e sabem como fazer sem nunca materializa-los (Gon~alves, 2001). Para os Kaxinawa parece mais importante invocar certos adornos corporais nos cantos rituais do que de fato produzi-los. Esta foi, tambem, 0 motivo da querela com 0 Inka mftico, que as vezes era ate generoso com comida ou fogo, mas nao os deixava adquirir os meios de produzir estes itens por conta propria. 0 Inka torraria 0 milho antes de oferece-lo aos Kaxinawa e os deixava usar seu fogo, mas nunca leva-lo consigo para casa. Esta foi a razao por que mataram 0 yauxi kunawa, este gigante sovino. Poderfamos, portanto, com certa cautela, dizer - com Descola - que nao temos sistemas tao elaborados de troca na Amazonia, ou pelo menos em grande parte dela, quanto em outros lugares como na Melanesia do kula, e sim uma outra logica, a logica da preda~aa e da incorpora~ao: acumulando dentro de si aspectos do outro. Esta enfase na incorporaflio poderia estar intimamente ligadaa falta de acumula~iio. Tambem nao podemos esquecer a muito difundida enfase amazonica na generosidade (Descola, 2001; Overing, 2000; McCallum, 2002 etc.), que, quando generalizada enquanto pratica, torna-se incompatfvel com sistemas elaborados de troca de valores, tendo em vista que um avo ou uma avo simplesmente nao podem negar ao neto ou aneta 0 que quer que seja que tenham na sua posse como preciosidade (um gravador, por exemplo, ou uma quantidade de mi~anga; exemplos tirados da minha convivencia com os Kaxinawa). . Esta especificidade amazonica oponta na direc;ao de uma teoria de poder relacionada ao saber, um saber de como fazer pessoas e artefatos e de como trazer estrangeiros para perto de si, proximo 0 suficiente para deixa-los com vontade de colaborar. 0 ritual kaxinawa pode, portanto, ser resumido como uma elaborac;ao estetica de trazer os inimigos para perto, uma estrategia de alegrar os inimigos predadores (como os Inka, os yuxibu da samauma, os gigantes hidi e outros), pois uma vez alegres doarao volun-
tariamente, durante 0 encontro ritual, exatamente este tipo de conheci~ mento ou saber quenotoriamente se recusaram a ceder no mito. Fa~o minhas as palavras de Biersack "que estas fontes [exteriores] nao sac controladas ou superadas, mas sustentadas para dar evidencia perpetua desta mesma eficacia" (Strathern, [1988], 1990: 130~13l). Apesar de, no caso dos Paiela, tratar~se da complementaridade de genero, podemos dizer que como os Paiela e os Wari os Kaxinawa "olham para alem de si mesmos para fon~ tes que aumentam 0 poder da agencia" (Ibid.). E importante frisar que este estilo de lidar com 0 inimigo nao faz uma equivalencia estrita entre sujeito e predador e presa e objeto. No caso kaxinawa 0 sujeito~pessoa nao reduz sua presa a posi~ao de objeto, mas 0 trata como outro sujeito, seduzindo~o a colaborar, quer se trate de urn animal OUde urn ser 'sobrenatural'.
"0 estilo e 0 homem." Buffon em Bateson, 1977: 168. "Se tivermos que entender as regras eticas que regulam uma sociedade, e a estetica que temos que estudar." Leach, 1954: 12. "0 fenomeno humano e uma s6 e coerente ideia, organizada mental~, ffsica- e cultural mente em torno da forma de percep~ao que chamamos de 'sentido'." Roy Wagner, 1986: XI.
.'
A especificidade da experiencia visual kaxinawa revela as mesmas cate~ gorias fllndamentais que determinam os processos cognitivos encontrados em OlitroS campos da experiencia e da a~ao. Demonstrarei que na trilogia dinamica constitufda por kene (desenho gnifico, padronizado), dami (figu~ ra, modelo, mascara, transforma~ao) e yuxin (imagem, agencia, ser) esta a chave para a compreensao da experiencia visual e da pratica artfstica
kaxinawa. A interconexao destes tres conceitos, intimamente relaciona, dos, constitui um campo de reflexao abstrata sobre a fabrica~ao, muta~ao e desintegra~ao do corpo humano e da pess6a. Isto signiflca que na clas, sifica~ao dos fenomenos visuais e na rela~ao complexa que existe entre estes termos, podemos apreender ideias sobre a estrutura do ser: a dialetica entre identidade e alteridade, entre vislvel e invislvel, peredvel e eterno, vida e morte, feminino e masculino, 0 involucro e 0 envolvido, cria~ao e destrui~ao. que pre tendo demonstrar com a interconectividade dos campos de reflexao e de a~ao e a impossibilidade em apreender 0 estetico enquanto domlnio separado. Ao procedermos desta forma, as qualidades criativas, senslveis e perceptivas de experiencias interpessoais sac concebidas en, quanto 'fatos socia is totais' (Mauss, 2004). Este procedimento nao signifi, ca uma redu~ao do 'estetico' ao 'sociologico' querendo, deste modo, negar sua unicidade e originalidade. Pelo contrario, damos a experiencia esteti, ca sua voz (embora silenciosa) no quadro polifonicode outras vozes que juntas constituem 0 socius, entendido como uma interconexao de visoes e discursos sobre um mundo vivido, refletindo as experiencias do mundo que fazem sentido atraves da repetida interpreta~ao intersubjetiva e da comu, nica~ao contInua no interior de um grupo de pessoas que se reconhecem como seres de um mesmo tipo. A abordagem intersemiotica quer chamar a aten~ao para um universe de interpreta~ao que reconhece discursos distintos embora relacionados (mutuamente 'traduzlveis') em um todo interligado. Evita,se os termos 'cultural' e 'social' por estes transportarem uma conota~ao 'totalizante'. A abordagem intersemiotica da etnoestetica e uma rentativa de analisar a organiza~ao das capacidades de leitura visual das pesso1fsque produzem expressoes esteticas espedficas na sua interdependencia com outros dis, cursos ou praticas (percep~oes nao,visuais, ritual, mito, organiza~ao social, escatologia etc.) que se contradizem ou se refor~am no jogo criativo que e a constante reinven~ao da vida social. A leitura de elementos visuais depende do 'olhar da epoca' (Baxan, dall, 1972) assim como do 'olhar do lugar'. A distin~ao entre form as e as
o
relac;oes entre formas saG detectadas a partir de categorias mentais que estruturam a percepc;ao das formas e das cores associando-as a conteudos semanticos especfficos que enfatizam relac;oes e contrastes cognitivamente significativos para 0 grupo. Nas palavras de Geertz esta abordagem "olha para as rafzes da forma na hist6ria social da imaginac;ao" (1983: 119), enquanto na concepc;ao de Wagner (ver epfgrafe) estamos trabalhando com a "forma de percepc;ao que cham am os de 'sentido"'. Faz-se nftida a influencia de uma abordagem hermeneutica: "Em vez de limitar [...J a estetica a uma descri~ao e determina~ao das caracterfsticas do objeto de um modo particular de experiencia, a estetica, 0 questionamento hermeneutica desafia a propria no~ao de uma experiencia puramente 'estetica'. 0 encontro com a obra de arte e um projeto de compreensao interpretativa, nao somente uma recep~ao e aprecia~ao passivas e distanciadas de um objeto independente ... A tare fa filosof1caao pensar sobre a arte nao e mais explicar a beleza eterna da natureza, mas esclarecer as condi~6es do processo atraves do qual arte e compreendido e interpretado." (Hoy, 1978: 137)
Esta concepc;ao filos6fica se aproxima do que uma antropologia da arte, da estetica, ou do 'estilo' deve ser, ou seja, 0 projeto de entendimento interpretativo do significado das qualidades sensfveis na percepc;ao, expressao e cognic;ao nativa. Esta compreensao progride por meio de urn rnover-se espiralado entre 0 global e 0 particular, sem a lente ou grade de possfveis rnetodos ou conceitos preconcebidos coloclldos entre 0 perceptor e 0 percebido. Conceitos e ideias preconcebidas que determinam e tornarn nossa percepc;ao possfvel sao, portanto, sistematicamen"te- sujeitas a duvida sernpre que a observac;ao e a escuta cuidadosa nao refletirem seu significado original (Gadamer, 1984). Procedendo deste modo, 0 primeiro obstaculo que encontramos e 0 fato de que a maioria das sociedades nao-ocidentais, incluindo-se aqui os Kaxinawa, nao possuem uma palavra para 'arte'. Nem mesmo possuern urn conceito subjacente e equivaleme ao conceito de arte que poderia existir
sem ser nomeado como tal. Precisa~se, entretanto, de pouca familiaridade com a vida destes povos para perceber que este fato nao significa que lhes faha a ideia de 'beleza' ou 0 juizo estetico, ou que nao estao interessados em 'embelezar 0 (seu) mundo' (Witherspoon, 1977). Poder~se~ia na verdade afirmar 0 contnirio, que ao inves de nada, tudo e julgado esteticamente, nao somente prodw;6es materiais, mas tambem as:6es: 0 modo de falar, sentar, comer, os gestos, 0 comportamento social, o cheiro e a textura corporal, a saude. 0 campo inteiro de interas:ao e produs:ao esta sujeito ao juizo estetico, de modo que se poderia dizer que termina por nao caber mais na categoria daquilo que nos chamariamos de 'puramente estetico'. lsto e 0 caso porque nada e produzido ou apre~ ciado pelo unico motivo de ser 'belo' (como acontecia com a arte 'pura' ocidental que obedecia a conceps:ao de l' art pour l' art). Beleza nao existe enquanto campo separado de aprecias:ao, esta associada a outros dominios de perceps:ao, cognis:ao e avalias:aO.18 18 A arte moderna tern sido enfatica na defesa de sua independencia de outros domfnios da vida social. "A arte pela arte" e urn credo tanto de artistas quanto dos que pretendem levar a arte a serio e reflete, segundo Overing (1989), uma dificuldade em pensar a criatividade individual e a autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Na tradi~ao pos-iluminista 0 artista assume a imagem do indivfduo desprendido, livre das limita~5es do "senso comum" sociocentrico. Neste contexto, ha uma associa~ao entre coletividade e coer~ao e 0 poder de criatividade e projetado fora da sociedade. Urn resultado deste estatuto solitario de genio seria que 0 artista moderno perde, atraves de urn uso idiossincratico de signos e sfmbolos, sua capacidade de comunica~ao: nao ha linguagem fora da sociedade. Levi-Strauss reflete sobre a influencia da "arte primitiva" sobre a "arte moderna" (d. Charbonnier, 1961: 63-91). Para 0 autor a tradi~ao intelectual ocidental e responsavel por tres diferen~as entre arte "academica" e arte "primitiva", diferen~as que a arte moderna tenta superar: 1. A individualiza~ao da arte oCidental, especialmente no que diz respeito a sua clientela, que provoca e reflete uma rupt~ra entre 0 indivfduo e a sociedade em nossa cultura - urn problema inexistente para o-pensamento indfgena sobre socialidade; 2. A arte ocidental seria representativa e possessiva enquanto a arte "primitiva" somente pretenderia significarj 3. A tendencia na arte ocidental de se fechar sobre si mesma: "peindre apres les maTtres". Os impressionistas atacaram 0 terceiro problema atraves da "pesquisa de campo" e os cubistas 0 segundo, recriando e significando, em vez de tentando imitar de maneira realistaaprenderam com as solu~5es estruturais oferecidas pela arte african a - ; mas a primeira e crucial diferen~a, a da arte divorciada do seu publico, nao pOde ser superada e resultou, segundo Levi-Strauss, num "academicismo de linguagens": cada artista inventando seus pr6prios estilos e linguagens ininteligfveis.
A beleza nao e considerada como algo externo, existindo em um mundo de objetos independentemente de quem os perceba, mas como algo que pertence a rela<;ao entre 0 mundo e uma capacidade de ver, baseada no conhecimento adquirido. A importancia da rela<;aointersubjetiva de co-presen<;a entre 0 perceptor e 0 percebido e uma compreensao da percep<;ao como um processo ativo e nao passive, aproxima esta visao das abordagens fenomeno16gicas da percep<;ao, como expressa par Heidegger quando faz a seguinte observa<;ao sobre a percep<;ao auditiva: "somente aquele que ja compreende pode escutar" (Heideger, 1927:237). Sobre a percep<;ao visual, declara que e urn processo em que a significa<;aotem prioridade sobre a recep<;ao passiva: "Ao mostrar como toda visao esta enraizada principalmente na compreensao (a circunspec;aoda considerac;aoe compreensao como sensa camum [Verstandigkeit]), privamos a intuic;aopura [Anschauen] da sua prioridade, 0 que corresponde noeticamente a prioridade do que esta a mao (present-at-hand) na ontologia tradicional." (Heidegger, 1927: 219)
o
'present-at-hand'
e a defini<;ao de Heidegger
da Natureza, nao vista como algo que existe la fora sem rela<;aoalguma com a conscH~ncia humana e a a<;ao encorporada, mas algo que existe por causa do nosso envolvimento com ela: "Aquilo que esta a mao (ready-to-hand) e descoberto enquanto tal na sua aproveitabilidade,sua usabilidade, e sua nocividade. A totaHdade dos envolvimentos e revelada enquanto 0 todo categ6rico da interconexao passIve! daquilo que esta a mao. Mas mesmo a 'unidade' deste multiplo que esta a mao, da Natureza, pode-somente ser descoberta se sua passibilidade foi revelada. Sera urn mero acaso que a questao sobre 0 Ser da natureza aponta para as 'condiC;6esde sua possibilidade'?" (Heidegger, 1927: 217) Assim como 0 mundo exterior, ser humano no mundo (Dasein) projeto de tornar-se, constituir-se:
e um
"Como Ser-possfvel [... ] Dasein nunca e qualquer coisa menos isto; isto quer dizer, e essencialmente aquilo que, na sua potencialidadepara-Ser, ainda nao e. Sorriente porque 0 Ser do "la" (there) recebe sua Constitui~ao atraves da compreensao e atraves do carater do entendimento como proje~ao, somente porque e 0 que se torna (ou alternativamente nao se torna) , pode ele dizer para si mesmo 'Tornese 0 que es', e dize-Io com compreensao." (Heidegger, 1927: 218)
o entendimento
fenomenol6gico da Natureza e da existencia humana em termos de possibilidade e de processo, como um 'tomar-se' (becoming), poderia se aproximar mais da visao amerfndia sobre a existencia do que uma ideia classica da Natureza que a percebe como uma realidade objetiva e exterior, a ser revelada e descoberta em seu ser puro e por si. Este poderia ser um dos modos para entendermos 0 significado mais profundo das razoes por que os amerindios entendem natureza enquanto physisl9, um todo interconectado de seres nao-humanos com intencionalidade e agencia semelhantes a nossa, capazes de adotar um ponto de vista. Uma grande diferens:a persiste, no entanto, tendo em vista que Heidegger fala de uma natureza mais passiva do que ativa. Se as realidades a serem percebidas mudam com a agencia encorporada que ve e age de acordo com uma perspectiva, os seres adquirem identidades mliitiplas, apesar de estarem interligados num mesmo campo s~nificante de uma perceps:ao informada pela intens:ao de mutua predas:ao ou cuidado. Oeste modo, Natureza, a soma desta intrincada malha de seres e coisas, toma-se, tambem, multipla. Poderfamos afirmar com Goodman (1978), Overing (1990) e Schweder que "Quando as.pessoas vivem no mundo de maneira diferente, pode ser que vivam em mundos diferentes" (Schweder, 1991: 23).
o que
examinamos acima tem uma relas:ao direta com a teoria kaxinawa da perceps:ao e da cria<;ao estetica, porque a questao da perceps:ao e
19 Como a faziamas gregos antigos. Para esta compara~ao entre 0 pensamento amerfndio e grego sabre a natureza, a terra enquanto ser vivo, ver Bastes (1989).
criatividade somente pode ser entendida se captarmos como 0 pensamento nativo concebe a realidade. Levando em conta a enfase ontologica fundamental da concepr;ao amazonica do mundo na constante transformar;ao de urn ser em outro, somos obrigados a reinterpretar a rela~ao entre, por urn lado, percepr;ao e criar;ao (com a percepr;ao sendo, de alguma mane ira, uma criar;ao) e, por outro, entre aparencia, ilusao e realidade. Esta ultima questao nos leva ao problema dos estados de consciencia. Desde que consciencia e inconcebfvel sem uma considerar;ao do estado do corpo, estados de consciencia tomam-se estados do ser. A classica questao nas teorias da percepr;ao sobre a re1a~ao entre ilusao e realidade e substitufda por uma considerar;ao da relar;ao entre estados diferentes de ser dos humanos e dos nao-humanos. Esta questao sera tratada em maior detalhe na proxima ser;ao quando abordaremos a trfade kene (desenho), dami (transformar;ao), yuxin (ser, imagem no espelho). Neste momento, quero apenas enquadrar esta questao num quadro mais amplo de reflexao teorica. Encontramos nas reflexoes de Schweder (1991) sobre estadosda mente e como estao relacionados, questoes proximas a nossa problemarica: "Alguns argumentam, por exemplo, que a imagina~ao e oposta a percep<;ao [... ] Outros sustentam que percep~ao e uma forma de imagina~ao (como a afirma~ao de que a percep~ao visual e uma 'constru<;ao'), enquanto outros argumentam que imagrna<;ao e uma forma de percep<;ao (por ex., que 0 sonho e 0 testemunho de outro nfvel de realidade). Outros ainda argumentam em ambas as dire<;6es, e dialeticamente, a favor da percep<;ao imaginativ? e da imagina<;ao perceptiva." (Schweder, 1991; 37)
Urn exemplo da relar;ao entre percepr;ao imaginativa e imagina~ao perceptiva pode ser encontrado em uma das caractetfsticas estilfsticas mais marcantes do tecido desenhado feito pelas Kaxinawa: considerando que os padroes SaGinterrompidos imediatamente depois de terem come~ado a ser reconhecfveis no pano tecido, precisa-se da capacidade imaginativa para perceber a continuar;ao do padrao atraves de uma visao mental. A tecnica
sugere que a beleza a ser percebida no exterior esta tanto, ou ate mais pre, sente no mundo invisfvel ou no mundo das imagens a serem visualizadas pela criatividade perceptiva, do que na beleza externalizada pela produ<;ao artfstica. Este dispositivo estilfstico revela um elemento importante do signi, ficado do desenho na ontologia kaxinawa: 0 papel desempenhado pelo desenho na transi~ao entre percep~ao imaginativa e imagina~ao per, ceptiva, ou a transi~ao de imagens percebidas pelos olhos no estado de ser cotidiano para as imagens perceptfveis somente para 0 olho mental ou 0 yuxin do olho. Desenho e um sinal do yuxin. Por esta razao, a (mica resposta que Dona Maria Sampaio - quase cega e, portanto, impossi, bilitada de fazer desenhos - me deu, no final da minha estadia entre eles, a pergunta sobre 0 significado dos desenhos foi que: "0 desenho e a lingua dos espfritos" (kene yuxinin hantxaki). Voltaremos a esta frase mais adiante. Os Shipibo (grupo pano do Ucayali, Peru) vaGmais alem na importan, cia dada a percep~ao imaginativa quando afirmam que 0 corpo humano pode ser visto como estando permanentemente desenhado, quando se tem a capacidade de ve,lo. A pintura invisfvel funciona como armadura con, tra a invasao da doen~a. Gebhart,Sayer (1986) interpreta a transi~ao de visibilidade a invisibilidade na manifesta~ao shipibo da pintura corporal como medida de prote~ao usada pelos Slepibo na sua rela~ao de proximi, dade com nao,nativos. Illius (1987), por outro lado, duvida que a pintura corporal tenha em algum tempo sido usada fora do contexto ritual. Os nao-Shipibo somente tern acesso a manifesta~ao exterior dos belos e complexos padr6es shipibo atraves da pintura na ceramica.e em panos (estes desenhos nao sao, como entre os Kaxinawa tecidos, mas-~plicados sobre 0 tecido pronto) (Roe, 1982). Os proprios Shipibo, entre tanto, podem visualizar estes motivos, com alta significa~ao cultural, sem precisar te,los materialmente na sua frente. Mulheres com conhecimento de desenho podem sonhar sobre 0 assunto (freqiientemente com a ajuda de plantas que induzem sonhos com desenho (Illius, 1987), como 0 fazem as mulheres kaxinawa), en,
quanto homens, mais especificamente os xamas, visualizam, com a ajuda dos seus cantos, 0 desenho invisfvel que cobre a pele de seus pacientes, quando sob a influencia da ayahuasca (Gebhart,Sayer, 1986).20 Illius e Gebhart,Sayer sugerem que a rela~ao sinestesica entre canto e desenho na experiencia com a ayahuasca diz mais respeito a melodia do que as palavras do canto. Mais adiante teremos oportunidade de voltar a esta rela~ao complexa entre os sentidos na experiencia holfstica da percep' ~ao imaginativa. Os Navajo dos Estados Unidos atribuem igualmente grande importan, cia ao lado oculto da beleza. Witherspoon afirma: "Para os Navajo a beleza nao esta tanto no olho do contemplador quanto na mente do seu criador e na rela~ao entre 0 criador e 0 criado (isto e, 0 transformado, ou 0 organizado). 0 Navajo nao procura beleza; a gera dentro de si e a projeta no universo. 0 Navajo diz shil h6zh6 'beleza esta comigo', shii h6zh6 'ha beleza dentro de mim', sMa h6zh6 'beleza irradia de mim'. A beleza nao esta 'la fora', nas coisas a serem percebidas pelo contemplador perceptivo e apreciativo; e uma cria~ao do pensamento. Os Navajo experimentam beleza primariamente atraves da expressao e cria~ao, nao atraves da percep~ao e preserva~ao" (Witherspoon, 1997: 151).
Uma bem conhecida mamfesta~ao da filosofia de vida dos Navajo e da atitude frente a arte que dela decorre sao as pinturas na areia, destrufdas logo depois ou durante os rituais de cura. Os Navajo nao veem sentido na tentativa de tentar fixar ou guarda,las (atraves da fo~ografia, por exemplo) e consideram tal atividade como potencialmente perigasa. 0 perigo e liga' do ao princfpio basico que associa vida ao movimento e-inorte a ausencia de movimento. 0 prazer estetico navajo reside no ato de cria~ao, nao na sua contempla~ao e conserva~ao. Witherspoon completa:
10 Ver, no entanto, Colpron (2004) sobre mulheres xamas shipibo que tomam ayahuasca e nao precisam intermedialY30 masculina.
"A sociedade navajo e uma sociedadede artistas (criadores de arte) enquanto a sociedade Anglo consiste primariamente em nao-artistas que olham arte (consumidoresde arte) [...] 0 nao-artista e uma raridade entre osNavajo. Alem do mais,os artistasnavajo integram suasaspira~6es artfsticasnas suasoutras atividades. A vida nao e uma maneira de fazer arte, mas a arte e uma maneira de viver." (Witherspoon, 1997: 153) Retornando a nossa discussao sobre 0 conceito de estetica, nao ha duvida de que, no sentido amplo da palavra, as sociedades constroem sua 'estetica' ou teoria do gosto ligado a um valor e, consequentemente, a um julgamento. Percep~5es visuais, gostos, cheiros e sons que agradam serao sempre contrastados com outros que desagradam e esta percep~ao implica em interpreta~ao e valor, pressupondo esquemas de significa~ao que prece, dem a mera possibilidade de percep~ao. Percep~5es dos sentidos saD classificadas e julgadas de acordo com 0 que significam para 0 perceptor. Grupos socia is se diferenciam em termos do que gostam, e os criterios variam de acordo com 0 usa polftico ou social do julgamento estetico. Na sociedade ocidental moderna, 0 'gOSto', 0 exercfcio do julgamento estetico, tem sido usado como criterio de distin~ao social e esta ligado aos fenomenos de mobilidade e pertencimento a classes sociais (Bourdieu, 1979).0 gOStotem sido cultivado como campo especializado de julgamento refinado. ~iffcil mudar 0 gOSto porque implica em um processo lento de aprendizado e de 'encorpora~ao' de atitudes, e um tipo de conhecimen, to corporal que se adquire atraves dos habitos compartilhados e do viver junto. E por esta razao que 0 gosto e tao importante na comunica~ao, um pertencer que express a uma filosofia social e uma hist6ria de vida. 0 gosto
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guia a~5es, percep~5es e desejos sem reflexividade conse-iente do sujeito. Visto nesta perspectiva, 0 gosto se torna de importancia crucial para as identidades pessoal e grupal. Por mais que a l6gica da distin~ao estetica entre os Kaxinawa esteja totalmente distinta da l6gica da distin~ao que dita 0 gosto das elites e das classes populares analisadas por Bourdieu, nao deveria surpreender,nos 0 fato de, ao serem perguntados a respeito dos seus 'outros' pr6ximos, meus interlocutores kaxinawa responderem com um
julgamento e valor estetico. A questao que mais os preocupava era 0 'jeito' e a aparencia dos proximos (pessoas que, como os Culina ou os Yaminawa, ocupavam frente ao branco, uma posi~ao equivalente a deles): se usavam ou nao roup as e decora~6es bonitas; se cheiravam bem ou nao; como se alimentavam etc. 0 gosto pelo outro passa pelos sentidos e, como nos alerta Miller, as coisas possuem mais precisao do que as palavras na expressao das pequenas diferen~as (Miller, 1987: 407). Por outro lado, para os Kaxinawa, mais importante que a maneira que o conhecimento era aloe ado em objetos extemos, era 0 modo com que as pessoas incorporam e encorporam (embody) 0 conhecimento, conhecimento social e a arte de viver bem e sem doen~a.Zl Arte e, como memoria e conhecimento, encorporada entre os Kaxinawa, e objetos nao sac senao extens6es do corpo. Esta prioridade explica por que as express6es esteticas mais elaboradas dos gropos indfgenas sac ligadas a decora~ao corporal: pintura corporal, arte plumaria, colares e enfeites feitos de mi~anga, roupas e redes tecidas com elaborados motivos decorativos. Os Kaxinawa nao guardam muitas das suas produ~6es artfsticas. Como os Navajo, estao convictos de que objetos rituais perdem seu sentido e sua beleza (como seu dua, brilho, encanto) depois de terem sido usados. 0 banco ritual, especialmente fabricado para os iniciantes durante 0 rito de passagem e tratado com cuidados especiais, logo apos 0 ritual, cai no uso comum passando a ser urn simples assento . • Povos indfgenas variam muito no valor que atribuem a produ~ao material,zz mas podemos afirmar que, em geral, a produtividade tecnologica e a
21 Sigo a sugestao de Viveiros de Castro (1996: 138) de traduzir 0 conceito antropol6gico de embodiment por encorpara~ao em vez de incorpora~ao. 22 Comparar, por exemplo, os ritualfsticos Kayap6-Xikrin (Vidal;T992; Gordon, 2003), Bororo (Dorta, 1981) ou WayanafApalai (Van Velthem, 1995) com sua exuberante arte plumaria e elaborada cestada, com a sobriedade da cultura material piraha (Gon~alves, 1995).0 interessante no caso dos Piraha e que estes veem seus Deusescomo possuidores de toda qualidade de tecnicas enquanto sao, ao mesmo tempo, incapazes de po-Ias em pratica por causa dos seus corpos inperfeitos (deformados). Para fazerem as coisas precisam da ajuda dos humanos. as humanos, por sua vez, 'nada sabern' mas tern urn corpo perfeito e sao pescadores soflsticados e prendados que, com 0 uso de instrumentos simples mas provenientes de solu~oes sofisticadas, obtem resultados infalfveis.
inova<;ao acumulativa nao tern 0 mesmo valor que para a sociedade indus, trializada. Geralmente, as popula<;oes indfgenas - e os Kaxinawa, em parti, cular - desejam os produtos industrializados. Esta questao ocupa urn lugar central em suas reflexoes sobre a rela<;ao que estabelecem com os brancos. A maiar parte das mitologias levantadas a respeito considera a diferen, <;aem produtividade tecnologica a consequencia de uma escolha feita no passado: a explica<;ao de que 'nos escolhemos arco e flecha, enquanto eles escolheram armas de fogo' e uma conclusao recorrente na reflexao mitolo, gica dos amerfndios a respeito deste topico. Neste contexto, a importancia da sua propria agencia no processo da tomada de decisao e enfatizada, sem, no entanto, defender a decisao como a melhor possfvel.23 Percebemos as vezes urn sentido manifestamente polftico e social nesta enfase dada a escolha que ocorre no mito que, por sua vez, produz a dife, ren<;a entre 0 estilo de vida indfgena e 0 dos brancos. Se nao fosse porque escolheram viver deste modo, poderiam ter migrado para as cidades ou se misturado aos brancos, e a distin<;ao entre eles e os brancos teria sido abolida. Sabe,se, par outro lado, que 0 tradicionalismo ou conservantismo indfgena e mais uma ideia fixa do sensa camum e de muitos antropologos, do que dos nativos. As pessoas nao vivem da maneira que 0 fazem hoje parque sempre 0 fizeram, mas vivem deste modo par causa dos eventos historicos e seus efeitos, aliados a escolhas feitas pelos povos indfgenas na luta pelo 'projeto de continuidade social diferenciado' no qual estao engajados (Albert, 2000: 240,242). Vale no tar que esta e uma decisao que par defini<;ao nao pode ser tomada individualmente. Como 0 caso kaxina, wa nos deixa entrever: a 'vida indfgena' reside exatamente no fato do ser kaxinawa significar viver em comunidade com paren:tes.proximos ao inves de viver em famflias nucleares como os brancos. A filosofia social que resulta da escolha de viver em sociedades de peque, na escala, politicamente autonomas e construfdas ao redor do parentesco, tern conseqiiencias de longo alcance para 0 estilo de vida e para a produ<;ao,
Ver as excelentes analises a respeito deste tema por Albert (2000), Buchillet (2000), Howard (2000) e Van Velthem (2000).
1.J
e por esta razao tambem para a praxis social do julgamento estetico, especialmente quando esta escolha da pratica social tern sido feita desde tempos remotos contra urn fundo alcan<;avel de estilos de vida diferentes. No caso dos Kaxinawa e seus vizinhos pano e aruak a tenta<;ao e a amea<;a do 'Estado Na<;ao' e mais antiga que a primeira chegada dos espanh6is na costa peruana. Sua posi<;ao fronteiri<;a entre 0 altiplano Andino e a floresta Amazonica os colocou em contato pr6ximo com a expansao quechua e incaica, e a pesquisa hist6rica sugere que alguns destes grupos (possivelmente os Kaxinawa e Conibo) trabalharam nas minas de DurOde Potosi quando os primeiros cronistas la chegaram (Renard-Casevitz, Saignes e Taylor, 1988, vol. I: 121-132). contata esporadico com 0 contexto politico do Estado dos Incas onde o poder coercitivo regulava a rela<;ao entre conquistador e vassalo atrafa os povos da montanha (floresta) tanto quanto os repelia. Fontes do primeiro perfodo colonial mencionam que estes povos da floresta nunca foram totalmente subjugados. Vinham e iam, desaparecendo na selva quando queriam e retornando quando precisando de metal, ouro, ou outros bens inexistentes na floresta. Tentau-se muitas vezes manter esta modalidade de rela<;ao com os missionarios e seringalistas: trabalhavam temporariamente para estes, mas podiam a qualquer momenta desaparecer de novo. Foi deste modo que no infcio do seculo urn grupo kaxinawa que trabalhava na area do rio Envira, se rebelou contra 0 seringalista que abusava das suas mulheres. 0 seringalista foi morto, levaram suas armas e desapareceram na floresta. Este grupo migrou para 0 rio Curanja no Peru e deu origem aos Kaxinawa peruanos, contatados por Kensinger nos anos cinquenta (d. Kensinger em Dwyer, 1975; Aquino, 1977; McCallum, 1989a; Montag, 1998). Nas suas rela<;5es com missionarios, seringueiros e amrop610gos se colocava nao somente a questao da diffcil conquista de reciprocidade na rela<;ao de troca de bens, mas tambem a dificuldade de reciprocidade na polftica de alian<;a matrimonial. Nao se sabe se a ideologia endogamica kaxinawa e uma racionaliza<;ao ou resposta a diffcil polftica de alian<;as com outros grupos mais ou menos estrangeiros. 0 problema nao se dava somente na rela<;ao com os estrangeiros brancos, pois os pr6prios vizinhos
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pano sac conhecidos na literatura pela pnitica disseminada de rapto de mulheres de grupos vizinhos. Podemos nos perguntar, no entanto, porque os Kaxinawa escolheram a figura do Inka para dar voz a esta tematica recorrente da alteridade e da dificil conquista de alian~as. A centralidade da figura do Inka no mito e ritual kaxinawa e de fato intrigante. E nao somente entre os Kaxinawa. Em contraste com outros grupos, como os Shipibo que dividem a figura do Inca em duas outras mutuamente exclusivas, 0 canibal e 0 Messias, 0 Inka dos Kaxinawa e somente um. Concentra,se na sua ambiguidade toda a complexidade psicol6gica da rela~ao dos Kaxinawa com 0 poder do Estado e com 0 poder coercitivo. Sabemos da imporrancia da mem6ria do imperio incaico, que entrou em colapso com a chegada dos espanh6is, tanto para as popula~oes nati, vas quanto para a constru~ao da imagem da identidade nacional peruana. Inclusive, a penetra~ao do poder colonial nas areas amazonicas atraves dos seculos que seguiram a chegada dos espanh6is quase sempre teve um rosto quechua, desde os caucheiros aos madeireiros. Os espanh6is tomaram emprestado dos Quechuas e da antiga aristocracia inca seu medo dos ama, zonicos: um contraste entre sedentarismo e Estado par um lado e rebelHio, amor pela liberdade e nomadismo por outro existia muito tempo antes da chegada dos conquistadores Espanh6is no Peru (Renard,Casevitz, Saignes e Taylor, 1988).24 Mas, poder,se,ia perguntar, sao estas informa~oes suficientes para jus, tificar a presen~a da figura do Inka no mito contemporaneo? Sera possivel estabelecer uma rela~ao entre a presen~a do Inka no mito e no ritual e 0 registro de uma mem6ria que perpassa mais de quinhentos anos? Esta ou, sada hip6tese foi de fato farmulada por alguns estudiosos dos Shipibo (ver a polemica: Lathrap, Gebhart,Sayer & Mester (1985); DeBoer & Raymond 24 Ha, eada vez mais, uma ereseente neeessidade de se relativizar os eontrastes e se busear as eontinuidades, as redes de troea e 0 interdimbio de saberes que pareeem ter sempre existido entre 0 mundo andino e amazonieo (Taylor, 1992: 235,236). Reeentemente (2006) esta proposi~ao ganhou eoneretude no seminario organizado por Platt, Daillant, Santos Granero e Gow, na Universidade de St. Andrews.
(l987); Myers (1987).25 Mas b que fazer com a constante transforma~ao do mito, do ritual e da consciencia hist6rica a partir da experiencia vivida e das agencias implicadas em cada transmissao? Calavia (2000) sugere que a oni~ presen~a desta poderosa figura de alteridade e urn fenomeno novo relaciona~ do ao boom da borracha, uma vez que a presen~a desta figura na mitologia nao seria tao conspfcua em documentos mais antigos. E importante lembrar, no entanto, que estes documentos contem em geral informa~5es sucintas sobre a cosmologia e a mitologia e nenhuma informa~ao sobre rituais e seus cantos. Pode~se sugerir, portanto, que a figura do Inka ocupa uma posi~ao rela~ tivamente esnivel em uma estrutura que lida com a questao da alteridade, posi~ao esta que pode igualmente ser ocupada por outras figuras estrutu~ ralmente equivalentes. Deste modo, outros grupos pano, como os Marubo, por exemplo (Melatti, 1985, 1986, 1989a), nao possuem a figura do Inka, mas con tam hist6rias parecidas sobre estrangeiros gigantes e sovinos que tern comportamento canibalfstico semelhante ao jaguar, caracterfsticas que encontramos, todas, na figura do Inka kaxinawa. Oeste modo 0 Inka se tomou para os Kaxinawa uma metafora~chave para juntar numa s6 figura varias linhas de pensamento sobre a alteridade. Nao sabemos 0 suficiente sobre a hist6ria colonial para precisar a profun~ didade temporal dos temas mfticos e dos textos rituais, porem, se quisermos levar a serio a agencia hist6rica de urn povo e sua necessidade de criar urn mundo que fa~a sentido, temos de reconhecer que a rela~ao estabelecida pelos Kaxinawa entre Inka, morte e 0 colonizador branco e significante para eles hoje e 0 tern sido provavelmente por muito tempo. Por esta razao, e compreensfvel, sociologicamente falando, que 0 Inka, figura dos mitos, pre~ encha hoje uma fun~ao cognitiva enquanto imagem 'operativa para a con~ ceitualiza~ao da relal):aoambfgua de atra~ao e resistencm--com rela~ao aos brancos (Kensinger, 1986a; Lagrou, 1991; McCallum, 2000). discurso sobre 0 Inka pode ser entendido como urn discurso sobre a es~ colha kaxinawa em continuar sua vida em comunidades de pequena escala,
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referencias a mitologia pano sobre 0 Inca se encomram em Harner, 1991; Roe, 1988; Instituto Lingi.ifstico de Verao SIL. 1979.
15 Outras
cuja filosofia desencoraja a acumulac;ao de bens e de poder, alem da coerc;ao autoritaria au a limitac;ao da autonomia pessoal. Neste sentido, a resistencia a incorporac;ao ao mundo exterior teve de ser conscientemente elaborada. Isto foi feito no mito e no ritual, e igualmente na praxis e avaliac;ao estetica. Enquanto algumas sociedades indfgenas manifestam sua repulsa ao poder excessivo representada no horror ao exagero ostentativo que recai, sobre~ tudo, nas manifestac;6es materia is, a fascinac;ao dos Kaxinawa com a beleza perigosamente atraente dos seus 'outros' poderosos, como as Inka mitol6gi~ cas, pode ser vista como indfcio do cultivo de uma admirac;ao secreta e urn desejo de fusao com seus emblemas de alteridade e de poder.Z6 A mitologia sabre a mais belo dos seres, a Inka (Inka hawendua), nao se caracteriza pela rejeic;ao, mas pela projec;ao no futuro, em uma escatologia, de uma reuniao final com esta divindade celeste. 0 pova das cobras e igualmente belo e sedutor, como a sao as outros yuxibu quando visitados nas suas casas. Todos eles, dos reinos aquatieos, terrestres e celestes, sao keneya, isto e, decorados com a 'verdadeiro' desenho. Sua beleza e a reflexo do seu poder, conheci~ menta e saude, e e expressa no usa da decorac;ao corporal (especialmente da plumaria, da pintura e dos colares). Sua aparencia e tida comocolorida e luminosa, uma energia visual que deriva do dua, brilho destes seres. Hawendua, termo em kaxinawa para 'bonito' poderia ser interprerado como contendo a palavra dua (brilho), precedido par hawen. 0 significado da primeira parte da palavra ha~wen,nao e clara; hawen poderia significar 'seu' dua au 'aquele' (ha) 'com' (we) dua. Poderfamos igualmente empreender a tentativa de decompor a palavra para bondade, gentileza, 'duapa', que pode igualmente estar ligada a dua, mas estas sao quest6es espinhosas para antrop6~ logos a procura de sentido, que deverfamos deixar aos'culdados dos lingilistas. 16 A estetica piaroa, par outro lado, parece ser uma afirma~ao explfcita sobre os perigos do poder cultural nao controlado. Poder, quando fora do contrClle, se tornarepulsivo em comportamento e forma. A beleza e associada com 0 moralmente correto e socialmente domesticado. 0 poderoso nunca e bonito em sij para tornar-se bonito, precisa ser constantemente limpo no luar pelos cantos do xama. Este entendimento de uma estetica Iigada de perto a uma etica e a vida social e elabarado na mitologia piaroa. Assim, seu Deus mais criativo e poderoso, Kuemoi, era tambem 0 mais repulsivo de todos (Overing, 1985b). Para uma compara~ao entre a estetica piaroa e kaximawa ver Lagrou, 1997.
Se, entretanto, estas tres palavras, dua, hawendua e duapa fossem lexicamente relacionadas, como sua decomposic;ao poderia sugerir, terfamos encontrado na lfngua kaxinawa a confirmac;ao de uma associac;ao do julgamento etico e estetico, notada com freqiiencia em outros contextos nativos. Quando falamos da ligac;ao entre estetica e etica, e importante estabe~ lecer, desde 0 comec;o, a distinc;ao entre pnitica social e imaginac;ao social. A pratica do julgamento estetico e ligada a problemas ontol6gicos que ocupam a reflexao nativa: a natureza do poder como coexistencia inevi~ tavel dos seus lados criativos e canibalfsticos e a recusa de aceitar 0 poder economico e coercitivo no seio da comunidade, ligados a mencionada ob~ sessao amerfndia com "a noc;ao filos6fica do significado do ser similar ou diferente" (Overing, 1986b: 142). No julgamento estetico concreto os Kaxinawa valorizam a moderac;ao, a nitidez e 0 detalhe nos cuidados com 0 corpo, no comportamento e no uso de omamentos e desenhos. A relac;ao da arte com 0 senso de comunidade e com a criac;ao de um modo culturalmente pr6prio de vida e construtiva ao inves de destrutiva. 0 estilo artfstico nao demonstra nenhuma tendencia de quebrar com a tradic;ao, pois a criatividade e considetada possfvel somente dentro e nunca fora da sua rede especffica de sentidos socia is e sensfveis. Vemos deste modo que as regras que guiam a criac;ao e 0 jufzo artfstico saG a visualizac;ao de outro aspecto da imaginac;ao estetica que aquela expressa na descric;ao dos seres poderosos do outro mundo. Em vez de experimen~ tar com as manifestac;6es perigosas do excesso, expressam a l6gica contraria da moderac;ao e da medida, pratica estetica que exprime 0 funcionamento pragmatico de uma filosofia social que nao permite a diferenc;a extravagante e exagerada ao nfvel da vida socialmente desejada. Deste .,modo, enquanto sua vida imaginaria pode visitar todas as possibilidades de-forma e luxuria visualizadas nas cidades coloridas dos nawa feitas de pedra, cristal e ferro, na vida cotidiana, a expressao artfsticaganha valor nao atraves do espetaculo e exuberancia, mas atraves de pequenos detalhes idiossincraticos. conceito de 'tecido da vida' concebido enquanto entretecimento de elementos iguais (seres ocupando a mesma posic;aono sistema), cada um per~ tencendo a uma das duas metades contrastantes (figuras escuras altemadas
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com figuras claras), e evocado no tecido que mostra como 0 entrelas:amento repetido e sistematico de opostos complementares (opostos na cor, mas iguais na forma) pode formar urn padrao infinito. Urn tecido reune 0 que e oposto, mas ao mesmo tempo essencialmente igual em forma, substancia e qualidade: motivos pretos e brancos san feitos do mesmo algodao, e inu e dua, ou homem e mulher san ambos feitos dos mesmos fluidos corpora is e agencia yuxin.
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o tecido desempenha
a funs:ao de uma pe Ie, contendQ 0 espas:o corporal no seu interior, ou de uma placenta e tecido amni6tico, filtfando e protegendo, ao mesmo tempo em que conecta 0 que esta dentro com 0 que esta fora. E seguindo a 16gica do 'inv6lucro protegendo a semente' (onde 'semente' representa a potencialidade de urn conteudo) que as associas:5es simb6licas de desenho com pele, por urn lado, e placenta e tecido amni6tico com desenho, por outro, ganham sentido. A mesma 16gica associa pele com as paredes da casa (chamadas kene) eo teto esferico com a cupula do cosmos.
Se 0 conceito de corpo (yuda) pode ser estendido a nukun yuda (nosso corpo), incluindo parentes pr6ximos que partilham comida e teto (antiga, mente grandes malocas podiam hospedar uma aldeia inteira), 0 fato de a casa ter sido escolhida como metafora daquilo que contem 0 corpo segue como conseqiiencia l6gica. As aldeias dos yuxibu no cosmos SaGimagina, das da mesma maneira como conjuntos fechados de corp os e comunidades: SaGesfericos e fechados e a entrada e uma porta. 0 que liga estes fen6me, nos e 0 conceito de desenho (kene), urn desenho que nunc a existe como conceito abstrato, mas que adere sempre a alguma coisa ou e encorporado em urn suporte. Desenho e aquilo que separa 0 que e dentro daquilo que e fora do 'corpo' (ou mundo), do mesmo modo que e aquilo que constitui 0 meio de comunica~ao entre ambos os lados. Deste modo, voltando a analise formal do estilo e do significado que 0 estilo revela quando a forma e associada as estruturas principais que orien, tam a concep~ao kaxinawa do mundo, chegamos a uma unidade sintetica na dualidade. Esta estrutura basica express a a caracterfstica principal da vida na terra para os Kaxinawa. Da mesma maneira como estae constitufda pela separa~ao e liga~ao simultaneas dos mundos celeste e terrestre, e pelo entrela~amento das qualidades opostas (dua e inu, masculino e feminino), a fabrica~ao de tecido ou a superffcie pintada saG 0 resultado unificado da sistematica repeti~ao das unidades de desenho, identicas e alternadas nas cores claras (inu) e escuras (dua), que represemam respectivamente. o domfnio celeste e aquatico, 0 dia e a noite, 0 masculino e 0 feminino. A unidade do corpo e da vida eo resultado do encontro e da mistura dos princfpios opostos do genera e dos domfnios aquatic os e celestes. Conseqiiememente, 0 padrao englobante do estilo enfatiza a essencial igualdade de todos os elementos, em simonia com uma firosofia social que reage contra qualquer exacerba~ao de diferen~as (todos os humanos SaG mais ou menos iguais como 0 s~o as unidades de desenho) e real~a a liga, . ~ao dos seres humanos com 0 cosmos cujos corpos e seres saGcobertos com a mesma malha de desenho. Visualiza igualmente 0 fato de todo corpo ser composto da uniao das qualidades de inu e dua, e da uniao das qualidades femininas e masculinas. 0 estilo visuaHza a enfase na homogeneidade e
coerencia e expressa a ideia da comunidade como sendo um corpo social (nukun yuda), coberto pela mesma 'pele' (roupa) cultural, ou rede de cami, nhos (as unidades mfnimas de desenho san chamadas de 'caminhos', bai) cobrindo todo 0 mundo explorado, conhecido. detalhe esteticamente agradavel, por outro lado, vem do domfnio dos eventos imprevisfveis e da criatividade pessoal. Por este motivo, um angulo a mais em uma das multiplas gregas que comp6em um padrao per, turbara a simetria perfeita da estrutura e chamara a aten<;ao para a autoria da pe<;a de arte, alem de para 0 fato de que, mesmo num padrao geral de similaridade, nada e produzido duas vezes sem ter sofrido uma pequena transforma<;ao no processo de reprodu<;ao. Do mesmo modo que 0 ser hu, mana e unico por causa da sua hist6ria pessoal e singularidade corporal, todo produto do trabalho humano e unico na tecnica e na concep<;ao, e o artista kaxinawa nunc a deixa de marcar esta singularidade no detalhe sutil. Deste modo a qualidade de ser unico apesar de parecido e consden' temente visualizada atraves da introdu<;ao de pequenas distor<;6es nos pa, dr6es classicos, distor<;6es estas que dao a pe<;aseu carater. Outro fenomeno que aumenta a particularidade e qualidade distinta de uma pe<;ade tecido desenhado e a transforma<;ao suave de um padrao em outro. Transforma<;6es de padr6es ocorrem somente em panos com moti, vos que cobrem uma superffcie extensa.27 Este fenomeno me foi explicado da seguinte maneira:
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•
"Na pele de Yube tem todos os desenhos possfveis.A cobra tern vin, te e cinco malhas, mas cada uma da varios outros desenhos. No fim das contas, todos os desenhos pertencem a mesma pele da jib6ia."
"0 desenho da cobra contem 0 mundo. Cada mancha na sua pele pode se abrir e mostrar a porta para entrar em novas formas. Tem vinte e cinco manchas na pele de Yube, que sao os vinte e cinco desenhos que existem."
Em contraste com 0 desenho na tecelagem, a marca da unicidade na pintura corporal ou facial nao e de diffcil obtenc;ao, surge a partir do suporte e do estilo da mao que pinta: cada face refletifCi 0 mesmo padrao diferentemente, e a superficie complexa forc;a 0 desenho a adaptar seus angulos em curvas, acompanhando 0 relevo do corpo pintado. 0 desafio da pintura corporal ou facial nao reside tanto no detalhe assimetrico (que, no entanto, aparece) e na discreta originalidade escondida em um campo globalmente simetrico, mas na habilidade de cobrir a superficie irregular sem perder a coerencia do desenho e a distancia regular entre as linhas que comp6em 0 padrao.28 Na arte plum aria, por outro lado, assimetria parece ser mais importante que simetria, pelo menos com relac;aoa colocac;ao e tamanho das penas, apesar da necessidade de se obter como resultado final um 'buque' balanceado e harmonioso. As faixas de bambu que servem de suporte ao equilibrio movel das penas, por sua vez, sac caracterizadas por uma disposic;ao do desenho no suporte que e menos dinamico do que a encontrada nas pinturas facia is e nos tecidos, onde 0 centro de gravidade do desenho nunca e no meio do campo. A descentralizac;ao do desenho na tecelagem e na pintura corporal
2~ 0 mesmo desafio na tentativa de manter 0 equilfbrio entre a coerencia do padrao e a aplica<;ao em suporte irregular foi notado por Levi-Strauss em sua analise da pintura facial kadiweu (1955, 1958), e por Go .• (1988) em sua analise do desenho piro. Gow sugere uma correla<;ao entre a complexidade da rela<;ao dinamica entre os elementos graficos e pListicos no estilo artfstico e 0 suporte primario no qual 0 estilo se desenvolveu e conclui que esta poderia ser a explica<;ao para a grande elabora<;ao do desenho na tecelagem kaxinawa, por um lado, e urn sistema de desenho mais complexo na pintura corporal piro, por outro. As mulheres kaxinawa eram principal e primeiramente tecelas, as piro desenhistas. A mesma hip6tese foi sugerida para a tecelagem kaxinawa em rela<;ao a pintura corporal par Dawson (1975:131-150). Este argumento da determina<;ao tecnica de toda elabora<;aoartfstica lembra 0 argumento de Boas em seu classico Primitive Art (1928), estudo que critica 0 cego 'reading~into' de significados simb6licos em unidades de desenho, metodo usa do sem a.valia<;aocrftica nos estudos superficiais pelos estudiosos da arte etnica do seu tempo. 0 tratamento da arte enquanto diretamente denotativa nao leva a resultados com sentido coerente. A razao para este fracasso interpretativista, entretanto, nao reside no fato de as formas serem meras formas sem sentido a comunicar (puramente sensoria is e nao conceituais ou cognitivas), mas reside no fato de a linguagem visual comunicar sua mensagem de modo diferente a 16gica denotativa e 'simb6Iica'.
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Para 0 txidin (festa do gavHioreal) fabrica,se a 'roupa do gaviao real' que cobre 0 corpo inteiro com adomos plumarios feitos com as penas do gaviao: 290
mesmo artiffcio estilfstico foi notado por Muller (1990) entre os Asurini; d. Lagrou,
(1991).
a cabe<;a, 0 peito e as costas. As penas do gaviao real sac diffceis de obter e sac guardadas como possess5es raras e preciosas pelas pessoas que conseguem matar a ave, mas nao por isso serao os usuarios destas. A comunidade inteira contribui com suas penas para a fabrica<;ao do traje do lfder de canto e de seu aprendiz. Cada pessoa que se junta como aprendiz ao lfder tera 0 direito de se cobrir com 0 traje durante 0 tempo da performance. 0 traje e uma roupagem ritual que pertence a comunidade e e montado unicamente por ocasiao do ritual. Eo produto das contribui<;5es de cada ca<;adorda aldeia que teve a sor~ te de obter penas de gaviao real. Oeste modo, 0 traje contribui para a coesao social em vez de se tomar ostenta<;ao de propriedade ou habilidade privada. Cocares sac igualmente usados no ritual de katxanawa (ritual de ferti~ lidade). Aqui cada participante veste seu proprio cocar e por esta razao a ocasiao se presta com facilidade a competi<;ao e demonstra<;ao de prestfgio social. A analise feita por Rabineau de uma cole<;ao de adomos pluma~ rios acompanhada das notas de campo realizadas por Kensinger nos anos sessenta revela interessantes liga<;5es entre 0 julgamento estetico e social (Dawson, 1975: 87~109).30Os cocares feitos pela lideran<;a da aldeia e seu filho eram considerados belas obras, demonstrando domfnio de tecnica e delicadeza na execu<;ao e escolha do material. Especialmente 0 trabalho do filho era "elogiado pela economia de penas e elegancia no desenho" (Dawson, 1975: 96). Seu comportamento era discreto e a ambi<;ao de su~ c~er 0 pai nao tinha sido abertamente expressa. 0 produtor do cocar dominou a estetica da arte plumaria e da etiqueta social. caso de Muiku era diferente. Muiku era 0 rival da lideran<;a da aldeia e parecia nao guardar suas ambi<;5es para si. Usou p:'lra 0 katxanawa penas de gaviao real, cujo uso era apropriado unicamente nocontexto do txidin e do nixpupima, e porque nao possufa penas suficientes'pIlra completar um cocar (outras pessoas evidentemente nao colaborariam com ele neste con~
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J~ Atualmente a produ~ao de adornos plumarios nas aldeias que visitei nao tem sido frequente. Os exemplares encontrados nascole~6es feitas por Schultz e Chiara, em 195051 (Museu Paulista), e Kensinger, nos anos cinquenta e sessenta. SaGmais completos e variados do que as que encontrei na aldeia. Me parece que 0 problema no Purus e a obten~ao de quantidade suficiente de penas. especialmente do gaviao real. aye rara.
texto), teve de mistura-las com as penas de jacamim. Esta mistura e 0 uso de penas demasiadamente prestigiosas no contexto errado faram esteticamente desaprovados pelos parentes. Outro cocar, feito pela me sma pessoa, foi igualmente desaprovado em termos de beleza. Apesar de demonstrar boa tecnica Muiku exagerou desta vez no uso de penas amarelas e pOl'esra razao seu trabalho foi considerado "excessivo". Os exemplos dados pOl' Rabinau ilustram bem a conexao entre regras socia is e gosto estetico. 0 significado da estetica da arte plumaria e, entretanto, mais complexo. Penas tem yuxin (Kensinger, 1991c) e precisam, pOl' isso, ser usadas na combina<;ao e contexto apropriados, e pela pessoa certa. Nao e (como sugere Rabineau) a lideran<;a politica da aldeia que usa as penas do gavHio real como signa de prestfgio e autoridade polftica, mas 0 lider de canto e seu aprendiz (um dos quais pode ser, mas nao necessariamente e a lideran<;a politica da aldeia). 0 uso desta roupa se da em contexto ritualmente controlado. As penas do gaviao real formam parte do traje do representante ritual do Inka no nixpupima e no txidin. Pelo fato de odono das penas, 0 Inka na sua manifesta<;ao de gaviao real, ser chamado para 0 terreiro da aldeiae ser pOl' isso considerado presente durante as festividades, a pessoa que usa 0 traje deste personagem necessita saber os cantos certos que acompanham a performance, senao se expoe aos perigos que acompanham a exposi<;ao ao domfnio dos yuxin e yuxibu. Nao e a lideran<;a da aldeia, nem 0 xama, que se especializa na arte de lidar com as penas de aves e passaros, mas 0 lfder de canto, par causa da 6bvia liga<;ao entre os passaros e sua especialidade: a arte de memorizar e executar os cantos rituais, uma arte que se considera como tendo sido aprendida com os passaros. Estes cantos saGligados a~ Inka e a outros yuxiba dos ceus e da floresta, enquanto outros cantos como oS"yuan entoados durante as sessoes com ayahuasca sao ligados a Yube e a visualiza<;ao ritual das realidades ligadas aos yuxin eyuxibu que aparecem no cip6. Percebemos, desta forma, que as regras que guiam a combina<;ao de cores e de materia is saG mais complexas do que as regras que visam somente a regula<;ao da demonstra<;ao de prestfgio social. Atraves da categoria dau (encanto, remedio, veneno) que se aplica a roupa e as decora<;oes usadas
pelo lfder de canto fica claro que 0 uso de certos emblemas carregados de prestfgio social tem conseqliencias que implicam em compromisso ritual e nao somente em posic;ao social. Objetos e palavras usados para 0 canto agem sobre os seres extra~huma~ nos com 0 qual se quer estabelecer uma conexao. E preciso usar as penas apropriadas em func;ao do seu dau que aumenta 0 dua (brilho) do usu
(dami)
DA PERCEPC;AO:
E IMAGEM
(yuxin)
DEsENHo
(kene),
FIGURA
E SUAS RELAC;OES COM 0 CORPO
"Para cada visao cleve ser trazido um olho adaptado ao que deve ser vista." Plotinus em Furst, 1972: 142. "Arte
e a lente
de aumenta do sol do significado." Roy Wagner, 1986: 27.
"Existem duas maneiras de nao ver a que pode ser visto. Uma e quando voce localiza a a~ao no espa~o apropriado de a~ao, mas nao tem experi~ncia a suficiente, au nao esta (ainda) suficientemente equipado, para captar sua ricl"ueza.Voce nao ve a suficiente daquilo (que pode ser visto). A outra, mais dramatica, e quando voce 0 localiza no espa~o errado de a~ao. Voce esta cego para aquilo (que pode ser vista)". Jakob Mele, 1988: 91.
A sensibilidade kaxinawa para a presenc;a de desenho (kene) no mun~ do envolvente e responsavel pela classificac;ao de seres e coisas (hllma~
nos, animais, plantas e artefatos) em termos de 'com' ou 'sem desenho'. fato de urn ser ter padroes na sua pele e sistematicamente mencionado no seu nome atraves do adjetivo qualificador keneya (com desenho). Os dois tipos de on<;a, par exemplo, sac distinguidos pelo fato de urn deles, o inu keneya, ter desenho e 0 outro, txaxu inu (on<;a veado, ou on<;a vermelha), nao. Entre as folhas de sororoca usadas para fazer 'patrasca' (kawapf existe igualmente urn tipo que se distingue dos outros atraves do seu desenho. 0 nome gene rico para a sororoca se refere a forma que e similar a da folha da bananeira, mani pei (folha da banana), enquanto a folha com nervuras violetas na superffcie verde e qualificada como mani
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pei keneya. A sensibilidade para a existencia do desenho na natureza se liga a alta valoriza<;ao do sistema complexo de desenho que caracteriza sua propria produ<;ao artfstica na pintura e tecelagem. Esta enfase no desenho e tao marcada que foi escolhido como elemento crftico na sua auto,imagem. Em compara<;ao com seus vizinhos, que nao usam um estilo de desenho que segue elaborados padroes (como os Culina ou os Ashaninka, ou que usam motivos menos labirfnticos, como os Yaminawa) os Kaxinawa se distin, guem como "povo com desenho". Os Shipibo sac considerados como sendo igualmente urn povo com desenho (queneya em Shipibo) e esta pode ser uma das razoes par que Augusto os chama de huni kuin, nao obstante sua afirma<;ao de nunca te, los conhecido 0 suficientemente para realmente julgar sua similaridade ou diferen<;a. Por causa do desenho, os Shipibo sao considerados bonitos. Possuem tambem, nos olhos de Augusto, grandes quantidades de cordoes feitos de mi<;anga, que usam ao redor do pesco<;o, dos £~lsos, dos bra<;os, embaixo dos joelhos e ao redor dos tomozelos, como 0 fazem os Kaxinawa e outros grupos pano. Estes cordoes representam a manifesta<;ao de riqueza e beleza para os Kaxinawa.
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'Patrasca' se refere a urn pacote feito com as folhas de sororoca para assar cogumelos, peixe pequeno, miudos de ca~a e folhas medicinais.
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Os Yaminawa, por sua vez, nao sac totalmente considerados 'nukun yuda' (nosso corpo) e sao cham ados de 'outros huni kuin' (huni kuin betsa), nao obstante a similaridade do sistema onomastico e da lfngua. A diferen<;a de seus corp os e marcada pela falta de 'desenho de verdade', kene kuin. Seu desenho se chama yaminawa kene, uma cole<;ao de motivos destacados, nao interligados, alguns dos quais foram incorporados pelos Kaxinawa e sac usados pelas crian<;as, adolescentes e adultos jovens em ocasi5es festivas ou quando celebram 0 retorno dos ca<;adores de uma ca<;adacoletiva.
Desenho executado em conjunto com Maria Moises Crist6ba1 Kaxinawa, que refez os contomos e adicionou os motivos yaminawa kene.
o kene kuin
(desenho verdadeiro), por outro lado, pode ser usado somente por iniciados, jovens que realizaram 0 rito de passagem. Apesar de ser mais comum em ocasi5es rituais ou quando se espera visita do Peru, todo adulto que queira se embelezar pode deixar-se pintar com 0 kene kuin
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pOl'uma parenta feminina pr6xima ou pOl'sua esposa, no caso dos homens, sempre que haja jenipapo a mao. lmimamente ligado a importaneia do desenho na experieneia estetica kaxinawa e a experieneia visiomiria com ayahuasca. Mais do que para curar, toma-se ayahuasca para tel' vis6es.3/ A visualiza~ao bem-sucedida dos mundos dos yuxibu e experimentada como estetica e emocionalmeme imensa. 0 efeito da bebida nao e considerado como algo dado, automatico, mas depende de uma negoeia~ao com 0 dono da bebida. Considera-se a percep~ao imaginativa nao como 0 produto da criatividade do perceptor, mas como a emrada em um mundo com dinamica pr6pria. Se nada e visto durame uma noite imeira, apesar da ingestao de doses substaneiais da bebida, duas hip6teses sac levamadas: a chacruna (Psychotria viridis) era velha demais para produzir a luz que produz a visao, pois 0 eip6 (Banisteriopsis caapi) apenas produz 0 efeito de pae (pulsa~ao, embriaguez, for~a); ou 0 dono da bebida, 0 yuxibu Yube, foi avaro (yauxi) e nao abriu seu mundo de imagens (dami e yuxin) para 0 visitame que nao pode vel' outra coisa que escuridao. Os primeiros sinais da presen~a de Yube no corpo do bebedor - paradoxalmeme tambem 0 momemo em que 0 bebedor entra no 'corpo' (mundo) de Yube - sac sentidos como uma acelera~ao na batida do cora~ao, que e expresso nos termos: "a for~a vem chegando como trovao". Algumas pessoas vomitam, mas a maior parte nao seme nauseas. 0 vomito pode ocorrer em varios estagios do efeito da bebida, nao necessariamente no come~o, e tem 0 poder de liberal' e aliviar os efeitos. Diz-se que a visao fica melhor depois do vomito, pOl' causa da 'limpeza' feita. A chegada da visao e anuneiada pelo apareeimento de pequenas 'figllras luminosas, que sac chamadas hawen kene, 0 desenho dele, isto e, de Yub€~ Depois veem 's6 coisas do eip6' (nixi pae besti), figuras de lagartas e cobras em movimento, e, finalmeme, aparecem cenas mais estaveis nas quais surgem tambem figuras humanas. ~ Oeste modo, 0 uso kaxinawa da ayahuasca difere significativamente do uso feito da bebida pela popula~ao ribeirinha na Amazonia peruana, onde ayahuasca e associada com a figura do xama enquanto especialisra de cura.Ver Gow (1994, 1995) e Luna (1986).
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A experiencia regular de vis5es pela maioria dos homens adultos e por algumas mulheres tern profundas consequencias para 0 significado e 'presentifica~ao' da cosmologia. 0 tempo mftico e os mundos dos yuxibu se tomam acessfveis a experiencia atraves de uma imersao no mundo das imagens, chamadas dami e yuxin. A significa~ao cognitiva e existencial desse contato visionario com 0 mundo dos seres invisfveis nao esta somente na consequente vivifica~ao de suas imagens, mas no conhecimento experimental adquirido do processo constante de transforma~ao do cosmos, ideia que funda a visao de mundo kaxinawa. 0 quadro dessa experiencia visual espedfica circunscreve urn movimento que vai de corp os com ou sem desenho, para 0 desenho se transformando em imagens visionarias e destas imagens para a manifesta~ao visionaria dos yuxin. A presen~a simultanea destas duas manifesta~5es centrais da experiencia estetica kaxinawa assinala 0 grande investimento simb6lico, cognitivo e emocional deste ethos na experiencia visual e aponta para 0 papel importante desernpenhado pela visao na sua percep~ao, classifica~ao e apreensao do mundo. 0 fato de a visao receber grande enfase nao significa, entre tanto, que os outros sentidos sac negligenciados. Para a identifica~ao de plantas na floresta, 0 olfato e 0 gosto sac de crucial importancia. Estas capacidades sensoriais parecem ser muito mais confiaveis do que a visao, visto que a forma e a cor das folhas variam constantemente de acordo com 0 tamanho da planta, sua localiza~ao e sua posi~ao geotr6pica. Para a ca~a, por outro lado, e necessario ter boa audi~ao. A imita~ao de gritos de anima is e cantos de passaros sac truques eficientes para chamar a ca~a. 0 olfato e igualmente importa?te, especialmente a arte de reproduzir cheiros, novamente com a inten~ao de enganar a ca~a. Na floresta, cheiros e sons sao guias, indica~5es da proximidade e identidade de animais ou pessoas. Porem, a confirma~ao da presen~a e verda~ deira identidade de urn ser que e percebido serao confirm ad as somente atraves da combina~ao da visao com 0 tato: capacidades representadas respectivamente pelo yuxin do olho e do corpo. Se a audi~ao e 0 olfato indicam a proximidade de urn ser, a visao define se e animal ou pessoa e a experiencia tactil confirmara sua identidade: se 0 ser percebido e urn cor-
po ou um yuxin. Deste modo, a distinc;ao entre imagens e corp os somente pode ser feita at raves do tato. Nas palavras de Agostinho: "Dami (figura) e como yuda baka (yuxin do corpo). Voce ve, mas nao segura. Desaparece depois do nixi pae (cip6), eo dami (transforma~ao) do nixi pae do yuxibu."
As imagens (dami, yuda baka, yuxibu) pertencem a esfera da visao noturna do yuxin do olho que age nos sonhos e nas vis6es com ayahuasca; enquanto os corpos pertencem ao dia: saD pesados e nao desaparecem ao serem tocados. 0 tempo e espac;o certos para a percepc;ao das imagens e quando 0 corpo descansa, enquanto 0 lugar/tempo de lidar com corpos e quando se esta acordado. desenho e 0 meio de ligac;ao que opera a transic;ao entre estes lados separados dos mundos perceptfveis. Na sua relac;ao com os mundos opostos e complementares representados pelas imagens e os corpos (yuxin/yuda, noite/dia, imortal/mortal), 0 desenho funciona como a "metafora" por excelenciano sentido de ponte e ligac;ao, trac;ando caminhos para e entre mundos separados, ou entre os lados complementares do mesmo mundo, assim como entre os estados complementares do ser ou da consciencia humana. Desenhos saD vistos no estado de vigflia (em corpos e artefatos) e nos sonhos (nos corpos das imagens). Sao guias usados pelo yuxin do olho ao viajar entre a percepc;ao imaginativa diurna e a imaginac;ao perceptiva noturna. A cobra, que possui todos os desenhos em sua pele, e atribufda vida eterna por causa de sua capacidade de trocar a pele, e m\.llh.eresSaDferteis porque trocam sua 'pele interna' durante a menstruac;ao. ,A associac;ao entre desenho e utero, ambos mediadores importantes na concepc;ao kaxinawa, parece ser confirmada pelo significado do verbo xankeikiki, "tecer desenho" (Montag, 1981: 394). A raiz xank- da palavra xankin significa "matriz ou utero" (Abreu, 1941: 616), "buraco e canal" (Montag, 1981: 394) ou "cavidade numa arvore" (Camargo, 1995: 109). Dados emograficos colhidos em outros contextos apontam para a relac;ao entre desenho e placenta, em
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que a placenta aparece como "0 desenho original" que protege ou acompa~ nha 0 carpo do recem~nascido, como entre os Desana (Reichel~Dolmatoff, 1972, 1978) e para os Piro, onde a placenta tern de morrer para deixar 0 bebe viver (Gow, 1999: 238). A placenta e 0 tecido amniotico fazem a media~ao entre 0 feta e 0 cor~ po da mae, filtrando as influencias que vem de fora e protegendo 0 carpo no interior, possibilitando desta forma 0 contata controlado com a for~a exterior que alimenta a vida. A pele da sucuri cosmica, coberta par dese~ nhos, funciona da mesma mane ira, servindo de veu entre os mundos vis(~ veis e invisfveis. Os padroes aparecem no espa~o liminar em que 0 yuxin do olho e levado de urn lado da realidade (0 lado da luz solar) para 0 outro lado, onde as imagens estao prestes a se mostrar na penumbra. Urn motivo recorrente usado em redes e designado xamanti. 0 verbo xaman significa "passar a mao na virilha" (Camargo, 1995: 109). Esta tra~ du~ao encontra confirma~ao na tradu~ao de xamanti que me foi dada por Paulo Lopes, professor kaxinawa de Moema: "colocar as coxas na pessoaj quando coloca, ja esta juntado". Paulo fez urn gesta que cruzava as maos na altura do pubis, indicando que 0 local da jun~ao das coxas com 0 tronco representava a jun~ao ou continuidade das linhas no desenho. Estes ver~ bos descrevem 0 ata de juntar e de envolver: 0 desenho une as linhas (a regiao cia virilha une tronco e pernas), englobando outro desenho em seu interior. Paulo me explicou que "colocar as coxas na pessoaj quando colo~ • ca, ja esta juntado", e urn modo de se referir a rela~ao sexual. Interessante no tar que 0 proprio nome do desenho e a descri~ao do estilo, quando se diz que "tern que juntar as linhas senao 0 desenho ~ao fica born" remetem a uniao sexual, a mesma imagem a qual remete 0 proprio corpo da jiboia: sua pele sendo a rede na qual 0 casal estava deitado 'fHt hora do diluvio (ver adiante mito).
Na discussao sabre a significado do desenho (kene), exploramos a rela, ~ao entre desenho e corpo, entre a percep~ao do desenho e a experiencia visionaria e a fun~ao mediadora do desenho na transi~ao entre as dais lados da realidade, a mundo diurno dos corpos e a noturno das imagens (yuxin, dami). E necessaria, agora, abordar a rela~ao entre as conceitos relacionados, embora distintos, de dami e yuxin. Porem, antes de prosse, guirmos neste caminho, a especificidade do 'desenho' (kene. enquanto alga distinto da 'figura' au 'imagem' (dami, yuxin) requer, ainda, maior elabora~ao. No discurso kaxinawa sabre a percep~ao e produ~ao visual, yuxin e dami sao usados para referir,se a 'imagem' au 'figura', conceit,os opostos ao dese, nho abstrato e geometrico, kene. Os Kaxinawa separam,primeiramente, a fenomeno do kene de outras imagens percebidas au produzidas, para depois associa,lo a'escrita' (0 kene dos estrangeiros). Se kenee associ ado a escrita, a questao a ser formulada e a que pode ter chamado a aten~ao dos Kaxi, nawa para estabelecerem uma similaridade entre kene e escrita e nao, par exemplo, entre kene e outras atividades graficas como a desenho de uma figura au de um retrato.
Come~aremos por abordar a proximidade entre kene kuin (desenho proprio, verdadeiro ou 'nosso') e nawan kene (0 kene (a escrita) dos brancos). Quando da minha primeira viagem aos Kaxinawa logo apos a safda do barco do Porto de Manuel Urbano a caminho da aldeia, enquanto escrevia minhas impress6es, uma senhora kaxinawa tirou a caneta de minha mao e passou a desenhar em sua propria mao padr6es estilizados, desenhos tipicamente kaxinawa que eu conhecia das fo~ tografias. Em seguida, Dona Maria Sampaio, sorrindo, mostrou como fazer 0 mesmo na minha propria mao. Percebendo que queria dese~ nhar, ofereci canetas coloridas e papel. lnstalou~se uma lcompeti~ao' de quem 'escrevia' mais. Dona Maria nao parava de fazer kene, e durante os quatro dias de via~ gem desenhou mais de trinta pranchas, interrompendo 0 desenho somente para comer e dormir. De fata, parou de desenhar apenas quando avistou do barco sua aldeia. Cansada de escrever resolvi, tambem, desenhar rostos e formas humanas de nenhuma pessoa em particular. Perguntei a Dona Maria se 0 que desenhava poderia ser considerado kene. Respondeu negativamente e disse que 0 meu desenho era dami, fi~ guras. Passado urn tempo comecei a desenhar retratos dos Kaxinawa que estavam no barco. Estes desenhos geraram muitos comentarios, pois as pessoas tentavam identificar 0 modelo desenhado e faziam julgamentos sobre a similitude ou falta de similitude entre o.esenho e a pessoa retra~ tada. Urn destes dami era de tal forma considerado semelhante a pessoa retratada que urn observador surpreso exclamou: "Olhem este! Damimaki (este nao e uma 'figura'), yuxinki, hawen yuxinki (e uma imagem, e sua imagem! (seu yuxin) )".
Foi deste modo que obtive, desde 0 comes:o, a chave para a exploras:ao da classiflcas:ao kaxinawa sobre a perceps:ao e expressao visual. Somente muito mais tarde aprenderia a fazer os verdadeiroskene, kene kuin. Mas mesmo se soubesse como produzi-los naquele tempo, senti que nao era apropriado tenta-lo, visto que minhas tentativas tfmidas tinham sido rejeitadas por Dona Maria que, com irritas:ao, dizia nao serem "verdadeiras" (kenemaki (nao e desenho) ou kene kuinmaki (nao e um desenho pr6prio)). Parecia querer me dizer com isso qu~u deveria me ater aos meus pr6prios kene, que visivelmente sabia como produzir em grande quantidade. 0 que interessou aos Kaxinawa, mais do que meus kene, foi minha atividade de produzir yuxin: "representaS:6es", "imitas:6es" de ros~os de pessoas. Soube depois que fotos sao, igualmente, chamadas de yuxin, •.alem da imagem refletida no espelho ou na agua parada. Ao aprender sobre outros usos dos termos yuxin e dami, aprendi que uma das distins:6es cruciais entre estes dois termos de um lado, e 0 conceito de kene de outro, se refere ao volume ou falta de volume, OU, em outras palavras, a sua qualidade de aderencia ou nao. Kene e aplicado a toda sorte de suportes, mas um suporte em si nunca e chamado kene; os conceitos yuxin e dami normalmente signiflcam a entidade em si mesma,
com ou sem corpo. Oeste modo, 0 duplo, a aparencia efemera da imagem de uma pessoa, e yuxin, urn ser que pode ou nao ser percebido como decorado com kene. Uma figura modelada em argila ou esculpida em madeira ou uma mascara po de ser chamada de dami, podendo ou nao ser decorada com kene. Kene e essencialmente grafico, urn padrao desenhado que cobre a pele ou as ceramicas usadas para servir comidaj urn tecido, cesto, ou esteira que serve de parede da casa; enfim algo criado para conter 0 alimento ou os corpos. Yuxin e dami, por outro lado, sac entidades, imagens com agencia propria, com ou sem materia e forma corporal. Yuxin e dami cobrem ambas as categorias de artefatos, "coisas feitas", e de seres ("artefatos animados"), mas nao podem ser chamados de "corpos verdadeiros" (yuda kuin). 'Corp os verdadeiros' (yuda kuin) cobertos com 0 'desenho verdadeiro' (kene kuin) sac a suprema realiza~ao estetica de seres humanos especfficos que preci~ sam dominar outras artes para ser capazes de produzir, modelar e decorar corpos da maneira que gostam, isto e corpos bonitos (hawendua), saudaveis (xua, literalmente gordo, forte) e alegres (benima). Dami e yuxin nao pre~ cisam da perfei~ao, finaliza~ao ou estabilidade de forma e, poresta razao, nao podem ser considerados como 'sendo' corpos. Embora possam Iter' urn corpo, nao e seu corpo, mas sua rela~ao especial com corp os que identifica sua maneira especffica de ser. Com rela~ao a dem~a~ao do campo do kene, entretanto, nao basta afirmar que kene e grafico porque, como vimos no episodio que se pas sou no barco durante a viagem, figuras dami (figura) e yuxin (retrata) podem, as vezes, tambem ser graficos. 0 que torna kene especialmente diferente e 0 fato de ser urn grafismo estilizado, estilo que identific~ todos os produtos e artefatos kaxinawa como pertencendo a mesma tradi~ao~-ao mesmo estilo, ao passo que a expressao bidimensional de dami e yuxin nao e da mesma maneira estilizada pelos Kaxinawa. 0 desenho de figuras em papel foi in~ troduzido por missionarios e nas escolas, e sua execu~ao esta confinada a estas esferas de atividades classificadas como nawa. A unica expressao figu~ rativa tradicionale a tridimensional, mesmo se em baixo~relevo: bonecos em madeira ou argila, mascaras em cuia.
Em estilo e execu~ao, kene e um sistema complexo de desenho, identificcivele estritamente codificado. Kene constitui um sistema coerente que usa as mesmos padroes e motivos sabre todos as suportes em que se aplica (apesar da varia~ao das designa~oes). Este fato, por sua vez, nao desconsidera a influencia do suporte na execu~ao e na forma do desenho. A forma do suporte for~a a desenho a adaptar suas curvas e seus angulos para se ajustar a superffcie. A unidade do estilo, que continua reconhedvel em todos as suportes e corpos em que a desenho se aplica e, entretanto, tao importante quanta sua rela~ao com as superffcies que cobre. Mencionei acima que a unica informa~ao explfcita que obtive de Dona Maria sabre a significado do desenho foi a afirma~ao de que a desenho era a linguagem dos yuxin: "kene yuxinin hantxaki". Desta Frasesurgem questoes como: A que tipo de linguagem ela esta se referindo? Como se relaciona esta afirma~ao com a primeira informa~ao que Dona Maria me deu ao declarar a explfcita associa~ao entre desenho e escrita no momenta que tirava a caneta de minha mao? Esta associa~ao foi reiterada, quando da realiza~ao do rito de passagem, pela a~ao ritual de pingargotas do sumo de plantas medicinaisnos olhos das crian~asneofitos. Se anteriormente estas gotas eram administradas pelas mestras do desenho somente nas meninas de forma que pudessem aprender a desenho (kene), na ocasiao deste ritual, foi incumbida a mim, como antropologa, a tarefa de administrar as gotas nos meni~s e nas meninas com a intuito de que tivessem exito no aprendizado da escrita e da leitura. Outras culturas que possuem sistemas de desenho altamente estilizados tanto na pintura quanta na tecelagem tambem associam seu estilo grafico a escrita (Kayapo-Xikrin, Assurini, Siona. Vidal, 1992). Uma qualidade que a arte grafica e a escrita tern em comum e seu cararerestilizado, naofigurativo au 'nao-representativo'. Com rela~ao ao usa do termo 'nao-representativo' em rela~ao aos padroes graficos podem existir, de acordo com a contexto, limites. Este ponto sera abordado quando considerarmos as aspectos iconicos do kene. Para as Kaxinawa, entre tanto, a escrita e a kene tern mais coisas em comum do que a simples constrangimento estilfstico e a fato de poderem
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ser inscritos em superffcies e corpos. Kene parece estar ligado a linguagem, e, atraves da linguagem, ao conhecimento e ao poder. 0 fato de kene ser considerado a lfngua dos yuxin e nao ados humanos coloca 0 problema de sua tradu~ao, do tipo de linguagem com que estamos lidando e, conse~ quentemente, dos tipos de conhecimento e das diferentes modalidades de comunica~ao existentes na concep~ao kaxinawa. Deste modo, kene e as quest5es que evoca nos levam diretamente para o campo de discussao sobre a arte e 0 que exatamente a arte comunica. A arte nao se expressa do mesmo modo que a linguagem verbal 0 faz, porque se 0 fizesse, nao precisarfamos da expressao artfstica. E pelo motivo de a arte comunicar algo diferente da lfngua falada - e cad a arte 0 faz de ma~ neira espedfica - que 0 artista nao pode explicar ou traduzir em palavras o que acabou de comunicar em imagens, sons ou gestos.3 Por esta razao, a resposta de Picasso a este tipo de pergunta foi: "Todo mundo quer enten, der a arte, por que nao tentar entender 0 canto de um passaro?" (Geertz, 1983: 94), enquanto Isadora Duncan respondeu: "Se pudesse the dizer 0 que significa, nao teria motivos para dan~ar" (Bateson, 1977: 177). No caso da comunica~ao nao~verbal, estamos lidando com um tipo de mensagem que seria falseada se a comunicassemos atraves de palavras (Ba~ teson, 1977: 177). Se desta constata~ao seguisse 'que sobre aquilo que nao se pode falar deve se calar' serfamos obrigados a encerrar a discussao sobre comunica~ao nao,verbal. Porem, como Geertz (1983) observou, experi, encias que nos tocam emocionalmente SaGapreendidas enquanto plenas de sentido, e pessoas SaG tanto movidas a falar sobre a paixao, mesmo quando plenamente conscientes do alcance limitado das palavras neste contexto, quanto 0 SaGa falar sobre performances' ou.cria~5es artfsticas que conseguiram comove,las. Esta necessidade de comunica~ao nao existiria se fosse possfvel per, ceber a 'forma pura', destitufda de significancia·cognitiva ou emocional,
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Para uma demonstra~ao e analise da especi/icidade da mensagem e do c6digo musical, distintos e independentes da mensagem verbal no canto ritual kamayura, ver Bastos (1989).
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pois neste caso uma contempla~ao silenciosa e 'puramente' estetica seria satisfat6ria. Formas e sons expressam para n6s somente porque sac signifi~ cantes desde 0 come~o. Escutamos aquilo que, ate certo ponto, podemos entender e percebemos 0 que de alguma maneira ja conhecfamos, mesmo se nao 'conscientemente'. Porem, e necessaria ainda uma conceitua~ao mais satisfat6ria do que 'consciencia' poderia significar. Do contrario, ar~ riscarfamos projetar 0 problema da comunica~ao nao-verbal no chamado 'inconsciente' ou 'pre~consciente', 0 que queremos a todo custo evitar, pois, deste modo, estarfamos incorrendo no perigo de adotar uma perspectiva que toma 0 'inconsciente' como explica~ao ultima e enquanto chave para a interpreta~ao da manifesta~ao artfstica. Encontrei sugest5es interessantes para esta questao em Bateson (1977) e em Solomon (1976). Come~arei com Solomon, psic6logo cognitivo e fi16sofo, que sugere uma maneira de abordar as emo~5es que sera com~ plementar as considera~5es de Bateson sobre a 'linguagem' ou 0 'c6di~ go iconico' da arte, dos sonhos e de outras mensagens do 'inconsciente'. Solomon nao escreve sobre arte, mas cita Tolst6i para justificar a inclusao da arte na sua reflexaosobre as paix5es. Tolst6i afirma que: "E somente a expressao do sentimento que da as artes seu sentido" (in Solomon, 1993: 132). Se quisermos entender as express5es artfsticas, precisamos entender, nao somente as regras esteticas que cada pe~a de arte tem que de alguma maneira obedecer para ser minimamente 'legfvel', mas antes de mais nada os sentimentos que suscitam. Segundo Solomon, emo~5es devem ser entendidas, nao como impulsos cegos que escapam ao controle da razao, mas como original e essencialmente cognitivas e racionais: "As paix6es sac julgamentos, julgamentos constitittivos atraves dos quais moldamos e estruturamos nossa realidade." (Solomon,
1993: XVII) "A maneira de ser do mundo para nos nunca e simplesmente a maneira de ser do mundo [...] Sao nossas paix6es - e nossas emo~6es em particular - que montam este mundo, constituindo a moldura dentra da qual nosso conhecimento dos fatos adquire algum sentido, al-
guma 'relevancia' para nos. E por esta razao que insisto que emo~6es SaDjulgamentos constitutivosj nao encontram, mas 'constroem' [set up] nossa surrealidade. Nao aplicam, mas fornecem a moldura de va, lores que dao sentido a nossa experiencia." (Solomon, 1993: 135)
Oeste modo Solomon da prioridade aos jufzos de valor sabre qualquer considera<;ao puramente cognitiva, estetica au de outra qualidade. Isto sig' nifica que este modo de pensar filosoficamente sobre as emo<;oes pretende demonstrar seu carater consciente, cognitivo e sintetico. 0 que esta em jogo e a a<;ao proposital em oposi<;ao a atua<;ao cega movida par impulsos desconhecidos. Emo<;oes refletiriam a sfntese de urn processo cognitivo no sentido amplo da palavra, urn processo cognitivo que encontraria seu objeto focal de reflexao e percep<;ao na qualidade de rela<;ao entre a eu e a outro. Solomon inclui nao somente a arte neste campo de jufzo subjetivo e intencional (com inspira<;ao explfcita nos escritos de Nietszche), mas igualmente a mitologia, cuja meta nao seria tanto a de tamar a mundo inteligfvel quanta a de toma,lo plena de sentido (Solomon, 1993: 144). As reflexoes de Solomon e de Bateson sabre 'arte' (au a pens amen, to nao,analftico em geral) se interconectam quando definem a objeto principal e primeiro da 'arte' enquanto uma rela<;ao entre a eu e 0 outro. A este nucleo relacional Bateson adiciona a rela<;ao do eu com seu ambiente (nao,humano). Bateson vai mais alem ao demonstrar 0 carater sistematico desta comunica<;ao nao-verbal sabre a estar relacionado, enquanto Solomon procura amp liar 0 campo de a<;ao do agente intencional. Para Bateson, entre tanto, a misterio nao e a inconsdenre 'desconhecido', mas a eu consciente. Enquanto as metodos combinat6rios-do inconsciente sao entendidos como sendo continuamente ativos, necessarios e universais, a maneira em que coisas e pensamentos surgem para a consciencia e que parece menos 6bvio (Bateson, 1977: 175). Existem muitas maneiras da pessoa se comunicar e para Bateson a modalidade principal de toda comunica<;ao nao e a verbal, mas a corporal, a comunica<;ao atraves da expressao e do gesto. 0 verdadeiro objeto da maior parte das comunica<;oes nao seria tanto
a informa~ao trocada sobre coisas, pensamentos e pessoas, quanto 0 testar e o confirmar a rela~ao da pessoa com 0 outro e com 0 ambiente. Para Bateson, a essencia e raison d' etre da comunica~ao e a cria~ao de redundancia e de sentido, e a redu~ao do acaso atraves da restri~ao (Bateson, 1977: 170). Todo estilo, 0 estilo pessoal do mesmo modo que 0 estilo de uma obra de arte, responde, segundo Bateson, a esta caracteriza~ao da comunica~ao no sentido ample da palavra e, por esta razao, todos os produtos criativos da imagina~ao de uma pessoa comunicam. Para entender uma mensagem e importante distinguir 0 nfvel de comunica~ao e escutar a mensagem da maneira correta. Nao somente a entidade representada, ou 0 componente narrativo (0 nome ou 0 referente) de uma pe~a de arte significam, mas tambem (e de maneira mais importante) 0 estilo, 0 'c6digo iconico' que transformou 0 referente em novo artefato, e 0 meio ou material usado, a composi~ao, 0 ritmo, e a habilidade demonstrada na performance ou na realiza~ao do produto. As ideias de Bateson sobre 0 que e como a arte comunica esclarecem sua qualidade comunicativa, sem cair na armadilha de tratar a arte como urn tipo de lfngua (reduzindo-a ao modelo da representa~ao 'iconica' e narrativa nos moldes da 'alegoria'), ou como urn tipo de escrita (tentando le-Ia enquanto urn c6digo lingiHstico). As mensagens contidas em sonhos, mitos, poesia, percep~6es induzidas par alucin6genos, e artes visuais, comunicam, segundo Bateson, atraves do c6digo iconico de imagens descritivas, e nao atraves do c6digo digital e arbitnirio que caracteriza a parte verbal da lfngua. Uma vez usada na estrutura mais ampla da comunica~ao, entre tanto, a lfngua se torna igualmente iconica, apesar de seu c6digo basica ser digital (Bateson, 1977: 172). . Esta afirma~ao esta de acordo com as pesquisas recentes no campo da metafora que sugerem que, no fim das contas, toda linguagem e figurativa e metaf6rica. Toda linguagem pode ser considerada metaf6rica porque cria, por meio da jun~ao de significados e campos previamente desconectados, urn sentido para realidades previamente desconhecidas. Oeste modo, podemos facilmente entender 0 impulso de uma conversa~ao contfnua entre pessoas (e povos) como a demonstra~ao de um objetivo, qual seja, 0 de
relacionarem-se uns com os outros atraves de uma linguagem evocativa que tenta traduzir em frases as mensagens crfptic~s transmitidas pela linguagem codificada do pensamento iconico, nao-linear. Bateson define 0 objeto de toda comunica~ao artfstica (como dos sonhos e dos mitos) em termos de 'gra~a' (grace). Seres vivos e produtos fabricados tem gra~a (sao graciosos) quando todas as partes da mente, destes seres ou da pessoa que produziu a pe~a, estao integradas. 0 sucesso ou 0 fracasso da integra~ao psfquica seria 0 conteudo da comunica~ao artfstica, e esta seria a razao por que as expressoes culturais que partem de contextos culturais desconhecidos podem ser reconhecidos como tal, mesmo por um olhar desinformado. Quando, entre tanto, a consciencia nao esta em liga~ao com 0 circuito de atividade psfquica que funciona ininterruptamente por baixo do nfvel do estado normal de consciencia, a consciencia se tornaria deformada e estreita. A consciencia, nao assistida pela arte, pelos sonhos, poesia etc. nunca sera capaz de apreciar a natureza sistemica da mente, assim como a liga~ao de uma mente com outra e da pessoa com seu ambiente, conclui Bateson. A ideia posta nestenfvel geral pode parecer problematica uma vez que a arte comunica mais do que uma integra~ao psfquica universalmente reconhedvel ou a qualidade do estar relacionado. Para realmente poder apreciar a qualidade metaforica ou comunicativa de uma expressao artfstica e preciso uma grande familiaridade com as referencias cognitivas e emocionais com as quais 0 trabalho dialoga. E, par outro lado, igualmente certo que obras de arte podem expressar algo para nos, mesmo quando nao sabemos nada sobre o mundo que descrevem ou pintam. Segundo Bateson, tal efeito e possfvel gra~as a certa 'gra~a' (ou certo charme) que, como a de UlU gato ou de um cavalo, fala para nos de um modo particular, intraduzfvel. "-E tambem um fato que a performance de um artista requer certo grau de inconscienciacom rela~ao a maneiraque alcan~a seus feitos, que resulta do habito. Esta e a inconsciencia do saber executar tao bem um ato, que nao e mais preciso pensa-Io enquanto e executado. A a~ao e cria~ao fluem e ganham forma de tal maneira que parecem vir do nada (seria na verdade impossfvel sobreviver se a maior parte das nossas a~oes nao Fosse
executada desta forma). Bateson se refere aqui ao conhecimento incorporado, afinado com seu ambiente humano e nao-humano, como aquele expresso nos gestos elegantes do mestre em alguma forma de arte. Referese tambem a relas;ao do indivfduo com 0 mundo envolvente, urn saudavel saber viver que considera mais pr6ximo da sabedoria (consciencia do estar relacionado) do que do pensamento puramente racional. A abordagem de Bateson repercute bem sobre meus dados. 0 estilo grafico e a arte plumaria kaxinawa correspondem as ideias basicas deste povo sobre 0 significado da similaridade e da diferens;a (a relas;ao entre 0 eu e 0 outro), assim como sobre a relas;ao das pessoas com 0 mundo (a relas;ao entre a pessoa e 0 ambiente). Como no exemplo de Bateson de uma pintura balinesa, estas ideias basicas nao sac expressas de modo unfvoco e denotativo, como seria 0 caso em uma representas;ao aleg6rica de ideias abstratas, mas de modo sintetico e polifonico, permit indo deste modo, simultaneamente, leituras e interpretas;5es diferentes e complementares. No caso da pintura de Bali, apresentada por Bateson, a mensagem mais importante nao esta na procissao de cremas;ao, tema representado no quadro, nem no simbolismo falico subjacente a imagem da torre de cremas;ao, mas na combinas;ao destes nfveis diferentes e na composis;ao global da cena, onde a agitas;ao das figuras no fundo do quadro contrasta com e corresponde a tranquilidade das imagens na parte superior. Conclui Bateson: "Em ultima analise, este quadro pode ser lido como uma afirma
a organiza-
De modo similar, a expressao estetica kaxinawa nao 'fala' especificamente ou exclusivamente sobre as relas:5es socia is (igualitarismo, interde-
pendencia e a hipotetica permutabilidade das posi<;6essociais) ou sobre a complementaridade constitutiva das metades e do genero (0 dualismo do pensamento social expresso nas cores contrastantes das figuras e contra figuras entrela<;adas). A estetica kaxinawa tambem nao e uma referencia exclusiva a interdependencia dos lados visfveis e invisfveis do mundo, ou a uniao sexual (apesar desta ser uma das leituras possfveis (sugeridas por alguns informantes) das linhas de desenho que se unem). A expressao estetica e, entretanto, uma comunica<;ao sintetica que se refere a todos estes nfveis simultaneamente. E esta e, segundo Bateson, a razao por que essas express6es esteticas podem ser chamadas de 'boa arte'j ao inves de serem meras 'representa<;6es, ou ilustra<;6es de urn conhecimento denotativo sobre 0 mundo que pode ser mais bem expresso em palavras, a boa arte cria algo novo, uma nova maneira de perceber a rela<;aoentre 0 eu, 0 outro e 0 mundo. E a consciencia sintetica e referencia simultanea da interconexao de diferentes nfveis existenciais que constitui a especificidade da comunica<;ao nao-verbal. 0 c6digo visual comunica a compreensao e percep<;ao de uma liga<;ao existencial que e consciente em urn nfvel que escapa 0 discurso verbal pela simples razao de ser impossfvel verbalizar tudo de uma s6 vez. A maneira de entender a arte, sugerida por Bateson, e interessante por explicitar sua especificidade e por real<;ar a necessidade de sua tradu<;ao para que possa ser integrada no discurso verbal. Mostra igualmente seu efeito estimulante sobre 0 pensamento analftico por iniciar urn processo de reflexao e associa<;ao que serve para amp liar 0 circuito mental e 0 campo de percep<;ao cognitiva. Penso, entretanto, que nao devemos esquecer outra as.pecto importante da comunica<;ao (nao-verbal), que reside na sua necessaria abertura de sentido (l'oeuvre ouverte). Nenhum trabalho ou expressao carrega em si a totalidade de seus sentidos. Naoha nenhum sentido inerente, secreta ou absoluto a ser encontrado, a nao ser no encontro entre 0 observado e 0 observador. Retomemos a trfade perceptiva dos Kaxinawa: kene, dami, e yuxin. Espero ter demonstrado a especificidade do conceito kene. Resumindo, kene
e urn tipo de c6digo escrito, inscrito em corpos e objetos, e segue regras estritas de composic;ao e execuc;ao. Kene nao e 0 corpo nem 0 yuxin a que refere. E sua 'lfngua', urn c6digo compos to de fndices que aludem a uma presenc;a, a possibilidade de revelac;ao de yuxin em forma encorporada. Kene contem a possibilidade de form as e de seres. Esta interpretac;ao encontra suporte nos comentarios de Agostinho e Edivaldo sobre 0 papel do desenho original (kene) na pele da jib6ia, quando sob a influencia da ayahuasca: a pele da jib6ia, contendo rodos os desenhos, contem igualmente a possibilidade da transformac;ao destes desenhos em imagens e corpos. As manchas na pele da j ib6ia sac seus de, senhos que se transform am em animais, plantas e gente durante a mutac;ao constante do campo visual visionario. Por esta razao, completa Francisco, nao se deve nunca sair do desenho, e preciso usa,lo como guia para nao se perder no mundo dos yuxibu. Desenho, entretanto, tern esta capacidade de multiplicac;ao da forma somente no nfvel do yuxin, mundo de imagens livres, nao restringido pelo lento processo de crescimento de corpos pesados. Este e 0 significado da afirmac;ao que kene e a linguagem dos yuxin, e nao ados humanos: precisa ser 'traduzido' pelos humanos para ganhar seu lugar no mundo humano. Par causa de sua ligac;ao com 0 mundo exterior dos yuxin, desenho pode ser perigoso para a saude da pessoa, nao somente porque pode produzir imagens menta is (e conseqiientemente provocar ou i~iar a percepc;ao de yuxin), mas tambem porque trac;a caminhos a serem seguidos pelo yuxin do olho quando sonha. Informac;ao adicional obtida por Keifenheim (1996) reforc;a esta interpretac;ao: pessoas doemes nao dormem em redes desenha, das porque 0 desenho pode enredar 0 yuxin do olh~ I1.;1 sua teia e guia,lo para 0 caminho da morte de onde nao voltara. o faro de 0 kene ser considerado similar a linguagem e a escrita, no sentido que alude de forma codificada a corpos e yuxinem vez de coincidir com estes, e 0 fato das imagens serem de alguma maneira a efetiva mani, festac;ao da forma atual de yuxin e de corpos, sugere a possibilidade de uma aplicac;ao esclarecedara do modelo, igualmente tripartido, dos signos nao, verbais (nao,lingiifsticos) de Peirce.
Na sua relac;ao semiotica com dami (imagem, transformac;ao), yuxin po de ocupar 0 lugar do "objeto dinamico" de Peirce, no sentido de uma pressuposic;ao metaffsica que indica a verdadeira qualidade do ser; enquan, to dami, na sua qualidade de signo metonfmico, se refere a este, sem jamais com este coincidir. Yuxin e 0 referente de dami, sua imagem mais completa e fiel, invisfvel para os humanos I).Q.estadocotidiano do ser, mas sempre presente; perten, cendo a outro lugar;·porem sempre ativa. A imagem de yuxin coincide com seu ser. Quando yuxin se revela para 0 olhar humano (yuxin do olho) como huni kuin (ser humano proprio), este evento e uma 'revelac;ao', porque ver yuxin implica em conhecimento compartilhado e partilha no ser que deste modo se mostra. "Ver e conhecer" e, deste modo, 0 yuxin que se tornou vi, sfvel em forma humana, falara uma linguagem inteligfvel, comera comida comestfvel, em breve, ter,se,a tornado em urn outro similar. Por esta razao, diz,se 'yuxin' quando se ve a aparic;ao de uma imagem humana movel sem corpo. Neste caso, 0 yuxin pode ser 0 duplo que deixou seu corpo, ou urn ser sem corpo, ou mesmo puraenergia, livre para assumir qualquer forma ou corpo. Esta mobilidade nao e limitada pela inercia da materia. Em outras palavras, para 0 yuxibu (mestre dos yuxin) 0 corpo e como uma pele ou uma roupa que se pode vestir ou tirar a vontade. Isto, no entanto, nao e 0 caso para os yuxin que pertencem a anima is ou seres 'deste mundo', pois estes criaram rafzes no corpo que habitam. A imagem de urn ser nunca e mera aparencia. Neste sentido, yuxin e como 0 psyche na Grecia antiga (Vernant, 1991: 186,191): a manifesta, c;ao do ausente. 0 que se ve 'e', po is se mostra ao olhar em todos os seus detalhes, com 0 movimento, a definic;ao e a grac;a de um ser humano vivo. Mas nao e urn corpo, e nao e deste lugar. Nao pode ser tocado, senao de' saparece imediatamente. Dami, por outro lado, e urn tornar-se ou urn devir (transformac;ao) e co' nota movimento. Dami significa imagem, mas e uma imagem deformada, ou uma imagem no processo de ser formada. Deste modo, a palavra dami e urn termo relacional, urn signo que existe enquanto referencia a algo que e exterior ou que 0 transcende. Yuxin pode, neste sentido, ser lido como a
potencialidade do ser que existe em e para si mesmo, pois quando se manifesta vem a ser algo. Sua manifestac;ao mais reveladora e antropomorfa, pois nesta forma se torna identico a forma e ao ser do humano, uma precondic;ao para a comunicac;ao e 0 entendimento mutuo. Oependendo do contexto, manifestac;5es diferentes do mesmo ser podem, por esta razao, ser chamadas de seus dami, suas transformaC;5es ou 'mentiras' (txani)L9isfarces atraves dos quais 0 yuxibu assusta ou confunde 0 espectador. Esta e a 16gica que subjaz a experiencia com ayahuasca. Primeiramente veem-se as 'mentiras', 'nixi pae besti' (s6 coisas do cip6) , repteis, 'toda qualidade de bichos' e cip6s entrelac;ados. A cobra que engole o iniciante pertence a esta mesma fase de dami (transformac;5es). 0 verdadeiro nome e a verdadeira imagem da bebida, entretanto, e huni, gente, e 0 tomador sera satisfeito com a experiencia somente se conseguiu ver 'gente', huni, 0 povo do cip6 se mostrando como gente.31 0 pr6prio yuxibu, entretanto, em termos de agencia e potencialidade e todas estas coisas ao mesmo tempo. E simultaneamente Yube, 0 xama, e Sidika, a mestre do desenho, e combina, portanto, as capacidades produtivas masculinas e femininas. Usa-se 0 verbodami para descrever a transformac;ao de imagens percebidas na ayahuasca: "dami en uiin" (vejo transformaC;5es); ou para mencionar a transformac;ao que 0 pr6prio tomador percebe em si mesmo: "en damiai" ('Estou sendo transformado' ou 'Estou transformando'). A mesma expressao damiaii, transformar, e usada para expressar 0 processo atraves do qual uma lagarta se transforma em borboleta. Do mesmo modo, os mitos que se referem a transformac;ao de animais em humanos e vice-versa usam 0 verbo damiai. Dami significa modelar, produzir formas. 0 pai modela 0 feto na barriga da mae: damiwai (McCallum, 1989a), e a modelagem de figuras em argila e igualmente chamada de damiwai. As mascaras e 0 disfarce feito de folhas de jarina para esconder os danc;arinos durante a 'invasao da aldeia' (katxanawa) sac dami (transformac;5es). Com 0 mesmo motivo de disfarce, as pessoas podem se pintar com urucum ou jenipapo. Tal pintura consiste em manchas, pontos e trac;os grossos, aplicados com os dedos e evoca as peles dos animais ~ Os Sharanahua cha~ariam a bebida feita do cip6 dami (Siskind, 1973a, 1973b), informas:ao, no entanto, que nao foi confirmada por Delehage (2006, comunicas:ao pessoal).
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que pretende mimetizar. Este tipo de pintura nao e chamado de kene (tra<;ar padroes), mas puxa (manchar ou colorir), e forma urn nitido contraste com os delicados motivos em jenipapo, aplicados pelas mulheres nos corpos e nos rostos das pessoas com finas varetas embrulhadas na ponta com algodao. As manchas sac aplicadas na·floresta pouco tempo antes da 'invasao' pela metade 'visitante' sobre os desenhos anteriormente pintados com jenipapo e sac chamados de oomi, pois significam a mimese e temponiria transforma<;ao das pessoas 'manchada~' em anima is. Os unicos desenhos feitos por meninos e homens sac figuras desenhadas em papel (atividade ligada a contextos de intera<;ao com os nawa), chama~ dos, novamente de dami. Qualquer tentativa dos homens em produzir kene e ridicularizada pelas mulheres como "kenemaki, damiki!" (Nao e desenho, s6 figura!). 0 verdadeiro kene mesma maneira que
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igualmente designada como dami, e a tatuagem. A tatuagem e aplicada na forma de pequenos signos ou tra<;os, na face ou no peito. As unicas
tatuagens que vi eram usadas por tres homens de idade bastante avan~ada. Apesar de esta interpreta~ao precisar alguma confirma~ao, creio que a tatuagem e ligada a guerra. Minha hip6tese e a de que 0 costume era tatuar homens que mataram urn inimigo (os tres homens com tatuagem tinham matadoYaminawa quando jovens). A imposi~ao ritual da tatuagem3 esta relacionada, evidentemente, com a transforma~ao da identidade de modo permanente e p0deria assinalar a transforma~ao que 0 homem sofre ao matar urn inimigo; expondo-se ao yuxin de sua vftima.
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A rela~ao de dami (em seus diferentes usos, desde 0 'fazer de conta' ao 'tornar-se como') com seu yuxin (a forma perfeita e terminada a que refere) e simultaneamente indexical e iconica. A rela~ao e indexical porque dami e 'fisicamente' (ou metonimicamente) ligado ao seu objeto (como pegadas na areia), e iconica porque a rela~ao de dami com seu yuxin nao e somente tatuagem e aplicada por um txai, referido neste caso como sendo um primo cruzado. Para 0 uso da tatuagem entre outros grupos pano e mais especificamente entre os Matis e Mayoruna, ver Erikson (1986; 1996), on de e a pessoa que ocupa a posi~ao de 'sogro' potencial que tatua.
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baseada na contigiiidade e na metonfmia, mas tambem numa similaridade formal. Na sua qualidade de signa concreto e visual, idiossincnitico e sem validade generalizada, dami po de ser classificado sob a categoria dos sinsig~ nos iconicos peirceanos. Sua percepc;.aoe expressao nao sac padronizadas, pois 0 dami nao adere a limitac;.oes e convenc;.oes estilfstieas espedficas companiveis, por exemplo, as regras que guiam a execuc;.aodo desenho pa~ dronizado, kene. IJe.ste modo, se kene e dami estao, ambos, ligados ao yuxin como significantesvisuais, 0 sac de modos distintos. Nao obstante 0 fato de kene ser um sistema complexo e altamente padronizado de desenho, que nao representa, mas significa 0 mundo dos yuxin, kene nao e um sfmbolo, no sentido peirceano de sfmbolo, do seu referente yuxin. 0 sCmbolo peirceano e conectacI. ao objeto por forc;.ade uma ideia e sua associac;.aoa forma do signo e convencional e arbitraria. sfmbolo nao e, neste sentido, da mesma natureza que aquilo que repre~ senta. A escrita e um sistema simb6lico no sentido pleno da palavra, pois representaa palavra falada atraves de um sistema grafico que nao necessita qualquer relac;.ao iconica ou indexieal com seu significado, estando co~ nectado aquilo que representa somente pela forc;.ada ideia. Deste modo, o kene poderia somente ser chamado de "escrita" em sentido metaf6rico, referindo-se ao caniter padronizado e estilizado que ambos os sistemas gra~ ficos compartilham. Por esta razao e mais apropriado chamar kene de legisigno iconico. A categoria peirceana de legisigno diz respeito ao alto grau de focalizac;.aoe abstrac;.ao do grafismo, enquanto 0 adjetivo iconico indica que a relac;.ao entre 0 significante e seu significado nao e arbitraria ou convencional, mas de semelhanc;.a. Entre os Kaxinawa esta semelhanc;.apressupoe metonfmia. As dllas imagens do yuxin, uma figurativa e concreta, 0 dami, outra padro~ nizada e exprimindo qualidades mais abstratas do referente, 0 kene, estao, mesmo assim, ambas ligadas a seu referente de maneira indexical. Ambas, como parte de um todo maior, partilham a qualidade daquilo a que se refe~ rem, invocando~o em vez de 'representaAo' e substituf~lo. Os tres termos usados pelos Kaxinawa para falar da percepc;.ao visual mantem, portanto, estreitas relac;.oesentre sij relac;.oesestas caracterizadas
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pela complementaridade, transi~ao e potencialidade de transforma~ao. Kene pode se transformar em dami durante a experiencia visionaria, en, quanto dami esta a caminho de se tornar yuxin, a manifesta~ao dos verda, deiros seres aos quais alude. Na experiencia visionaria com ayahuasca esta manifesta~ao significa a revela~ao dos yuxibu como humanos. Oeste modo, os termos kene, dami e yuxin, cada urn constituindo urn conceito altamente polissemico, <;mlstituem um discurso complexo sobre a fenomenologia do ser que coloca a tr,ansfonnabilidade do universo no centro de reflexao. Do precedente podemos concluir que para os Kaxinawa todas as imagens saG de algum modo 'duplos' dos seres aos quais se referem. Oeste modo, os Kaxinawa nao se colocam 0 problema de identificar 0 verdadeiro e 0 ilus6rio na percep~ao, do mesmo modo que a tradi~ao filos6fica tem feito desde Platao. Vernant afirma que as imagens come~aram a ocupar urn lugar diferenre no pensamento grego a partir do perfodo em que se democratizou 0 uso da escrita e ilustra esta passagem com os escritos de Platao, que defende, enquantocontemporaneo do processo de mudan<;a, a contempla<;ao distanciada contra 0 sistema educacional tradicional, ba, seado nos metodos da mimese. 0 ideal educacional de Platao era, nas suas pr6prias palavras, somente possfvel atraves d~ uso da escrita. Platao completa a ruptura com 0 sistema de transmissao oral do co' nhecimento que usava como metodo de memoriza<;ao a recita<;ao oral de cantos poeticos, habitualmente acompanhada por dan<;a. Este metodo promovia 0 aprendizado atraves da empatia e identifica~ao do publico com o ator ou cantor que representava os papeis em questao. 0 metodo mime' tico carecia, na visao de Platao, da necessaria distancia para a busca do conhecimento objetivo, distancia esta que somente a escrita poderia criar. A Cfftica de Platao com rela<;ao a mimesis 0 levou a uma reformula<;ao da no~ao de imagem que marcou, nas palavras de Vernant, "uma fase no que pode ser chamado de a elabora<;ao da categoria da imagem no pensamento Ocidental" (Vernant, 1991: 174). A 'imagem' se torna uma pura aparencia superficial que aliena 0 estu, dante da verdadeira 'essencia' do ser, que e estatica. A performance per, sonalizada, usada no processo de memoriza<;ao e transmissao do conheci,
mento oral, mergulharia 0 estudante no fluxo sensfvel do devir, evocado atraves da linguagem dramatica, rftmica e emocional dos sofistas e im, possibilitaria qualquer possibilidade de reflexao e distancia por parte do receptor da informac;ao. Sob a pena de' Platao, sofistas, poetas e atores foram acusados de se perderem na multiplicidade das aparencias sensfveis que pertencem ao domfnio da mera-epiniao (doxa) e estariam cegos para 0 verdadeiro co' nhecimento do set (episteme) procurado pelo fi16sofo. A verdade para 0 fi16sofo residiria na ideia da 'essencia', da estrutura interna do ser, que e unica e permanente e independe do ponto de vista do observador. Esta posic;ao filos6fica pressupoe a existencia de uma realidade objetiva e 16, gica, e!terior ao sujeito e governada por leis universais, conhecfveis uni, camente pelo intelecto. E urn modo de pensar sobre a relac;ao entre ser e parecer que mudou radicalmente 0 status ocupado pela imagem no pensa' mento grego arcaico. Detemos,nos neste t6pico porque clarifica algumas das ideias sobre realidade e ilusao que ocupara~ 0 pensamento ocidental por muito tempo e que foram desafiadas somente pelo advento das teorias psico16gicas sobre 0 papel ativo da imaginac;ao nos fen6menos da percep' c;aoA Cito Vernant: "Para
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pensamento
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arcaico, a dialetica da presen<;:ae ausencia,
igualdade e diferen<;:a,se desenvolve na dimensao extracotidiana que 0 eidolon, sendo um duplo, contem, no milagre de algo in, visfve1 que pode ser vislumbrado somente por um instante. Esta mesma dialetica e reencontrada em Platao. No entanto, uma vez transposta para um vocabulario filos6fico, nao somente muda seu registro e assume um novo significado, mas os termos sac tambem de alguma maneira invertidos. A imagem, um 'segundo objeto similar', sendo definida em alguns sentidos como Igual, tambem refere ao Outro. Nao e confundida com 0 modelo porque, tendo sido denunciada como falso, nao-real, nao mais carrega, como no ~ 0 conceito de 'imagina~ao', enquamo associado a capacidade da mente de produzir imagens, surgiu no segundo seculo da nossa era (d. Vemant, 1991: 185).
caso do eidolon arcaico, a marca da ausencia, do alem e do invisfvel, mas 0 estigma de um nao-ser realmente nao-real. Em vez de expressar a irrup~ao do sobrenatural na vida humana, do invisfvel no visfvel, 0 jogo do Igual e 0 Outro acaba circunscrevendo 0 espa~o do fictfcio e ilusario, entre os palos do ser e nao~ser, entre o verdadeiro e 0 falso. A 'apari~ao', com os valores religiosos que a investem~_~.substitufda pelo 'parecer', uma aparencia, um puro 'visfvel' onde,.a questao nao e a de fazer uma analise psicol6gica, mas de determinar seu status do ponto de vista de sua realidade, de definir sua essencia a partir de uma perspectiva ontolagica." (Vernant, 1991: 168)
o sensfvel
•
se torna ilus6rio e falso, enquanto 0 inteligfvel, seu oposto, se torn a a unica realidade. A ideia da imagem como ilusao e a possibilidade de ver 0 que nao e real estao na base dos conceitos de 'alucina~ao' e 'representa~ao'. A ideia do faux-semblant e da representa~ao artfstica sac conseqilencias dessa "seculariza~ao" da imagem. No momenta desta divisao epistemol6gica a imagem come~a a simular a presen~a de algo sem qualquer partilha metonfmica na qualidade (ou 'essencia') do representado. A no~ao de representa~ao sup5e a ausencia daquilo que substitui, assim como sup5e uma diferen~a qualitativa entre a coisa representada e a imagem que a substitui. A imagem nao tern nenhuma realidade alem de ser semelhante a coisa a que se refere. A busca deste tipo de 'puro espfrito' (ou ideia), presente somente para si mesmo, poluindo-se quando imerso na materia e nas form as cambiaveis da vida, Ocupou 0 pensamento ocidental ate 0 seculo XVIII quando come~a a ser questionado pela hermeneutica e pela emergencia das ciencias socia is. Teorias modernas da percep~ao reintroduziram a no~ao de agencia e a no~ao das capacidades criativas da mente humana no conceito de imagem e desde entao 0 papel da imagina<;ao e a rela~ao entre realidade e aparencia come<;aram a ser reavaliadas. 0 problema do sentido da fic~ao e da mimesis esta na ordem do dia na antropologia, nas artes e em outras areas das ciencias humanas. Deste modo nos tornamos melhor preparados
para aceitar uma leitura e um significado diferentes da vida das imagens sugeridos pelos Kaxinawa. Resumimos, a guisa de conclusao, algumas das caracterfsticas especfficas do pensamento kaxinawa sobre a experiencia visual. A visao e concebida como um processo dinamico e nunca como passivoou estatico. Na produ~ao de desenho nao se procura fixar 0 ponto de vista de quem olha. Visto que nao ha..fundo ou figura em que os olhos possam deter sua aten~ao e sim uma dinam.ica desassossegada da percep~ao alternada de figura e contrafigura, 0 olhar do perceptor e sugado para dentro da kinestesia do desenho geometrico (Guss, 1989: 122).3f A 'escrita' kaxinawa (kene kuin), uma 'inscri~ao' do sentido na acep~ao ampla da palavra (Derrida, 1967), trabalha com um conceito de visao que difer~astante do papel dado a visao, pintura e escritura na cultura classica ocidental, onde a escrita era considerada antes de mais nada a tecnica que permitia fixar 0 fluxo do pensamento e da fala numa forma visual permanente, tornando-o desta forma suscetfvel a observa~ao distanciada e objetivada (Ricoeur, 1981; Vernant, 1991; Lagrou, 1995a). Os Kaxinawa consideram 0 conhecimento como algo encorporado. Quando urn Kaxinawa se refere ao conhecimento contido nos cadernos do etn6grafo, nao se refere as letras (kene) no papel, mas ao papel que contem as letras. Por esta razao chama papel de conhecimento (una).3t Como alusao a sua concep~ao corporal do conhecimento, comentarios ironicos dos Kaxinawa me fizeram entender que a preocupa~ao dos brancos com o armazenamento de conhecimento em objetos fora dos seus corpos fez com que seus corpos parassem de conhecer. Os livros sac contentores de conhecimento, una; as fitas cassetes sac 'captadores da voz', huibiti; e as cameras acumulam imagens perfeitas de corpos, ou seja, yuxin, e sao, por esta
3i Roy Wagner (1986) torna 0 tema do "figure-ground reversal" 0 pivo de sua discussao sobre a condi'Yao humana enquanto uma constante inversao das rela'Yoes entre figura e £Undo na percep'Yao intersubjetiva e encorporada que e a existencia humana, sempre 'inventando' cultura a partir de tropos holograficos, isto e, tropos que giram em torno do englobado que se torna englobante e vice-versa. 11 Ver Gow (1990) para uma abordagem semelhante da escrita por parte dos Piro.
T
8)
t /
'8
I
razao, chamadas de 'captadores de yuxin' (yuxinbiti).3f "Mas para aprender 'de verdade"', segundo Augusto, em uma das ultimas tardes em que trabalhamos juntos, nao havia necessidade dos instrumentos extra corporais, e por isso, em vez de prosseguir sua fala, levantou-se, me pegou pelo brac;o e danc;ando comec;ou a cantar.
J)
"0 olho que existe e 0 que ve." Chico Cesar "Declarar que a propria escrita
e uma
•
troca mimetica com
0
mundo tam-
bem significa que envolve a capacidade relativamente cotidiana, mas pouco explorada de imaginar, senao se tornar Outro." Michael Taussig, 1993: x. "A mente individual e imanente, mas nao somente no corpo. E imanente tambem nos caminhos e mensagens fora do corpo; e existe uma mente maior da qual a mente individual nao e senao urn subsistema." Bateson, G., 1977.
Nos ultimos vinte anos, varios autores chamaram a atenc;ao para 0 caniter nao-essencialista da visao de mundo amerfndia. A inclinac;ao filos6fica amerfndia seria "nominalista" ao inves de "realista" (Overing, 1976, 1985, 1990; Seeger, e outros 1979). A introduc;ao da noc;ao de perspectivismo por Viveiros de Castro (1996) e Stoltze Lima (1996) da urn passo alem no processo de compreender 0 significado das afirmac;5es nativas. Grosso modo, 0 perspectivismo indfgena significa que 0 mundo (realidade) que se J Deshayes e Keifenheim (1982) reportam que as Kaxinawa do Peru interpretaram a causa de uma epidemia de sarampo que as afligiupouco tempo depois de uma visita a suas aldeias do cineasta/antrop6logo Schultz e sua esposa Chiara, em 1950/1951, como efeito da filmagem realizada par estes na ocasiao. A captura do ywla baka, yuxin do corpo, teria reduzido seu tamanho e deixado as pessoas que foram filmadas fracas e suscetfveis a doen<;:a.
,
ve depende de quem 0 ve, de onde se ve e com que inten~ao urn determinado ser olha para outro ser. Neste sentido, 0 fenomeno da perspectiva, bem conhecido pelos americanistas, pode ser colocado do seguinte modo: os animais se veem como humanos enquanto os humanos veem os animais como ca~aj os humanos se veem como humanos e sac vistos por determinados espfritos como ca~a. Os humanos podem, frequentemente, mudar seu ponto de vista em rela~ao aos animafs q).lando diante dos seus olhos, urn animal que esta sendo perseguido numa ca~ada, repentinamente, se transforma em urn ser humano. Essas transforma~oes estao presentes na mitologia amazonica e sac cruciais na experiencia cotidiana, mais ainda durante a noite. Estudiosos do xamanismo amerfndio notaram, desde sempre, essa capacidade. de mudar a percep~ao enquanto capacidade especffica do xama,}t mas, agora, pode-se facilmente reconhecer essa caracterfstica como princfpio estruturante que nao se aplica somente ao xamanismo enquanto campo isolado de pensamento e especializa~ao, mas a ontologia amerfndia como urn todo. Esta ideia sera retomada na se~ao sobre a invisibilidade dos xamas kaxinawa. Esta referencia basica que pressupoe a transformabilidade do mundo pode ser encontrada, no caso kaxinawa, em todos os campos de pensamento e a~ao. Com a morte, a pessoa transforma seu corpo; urn processo expresso em termos de mudan~a de roupa, de transmuta~ao de qualidade durante 0 qual a alma do falecido se transforma em Inka, 0 sfmbolo arquetfpico da alteridade. Nos rituais coletivos de ingestao da bebida psicotr6pica ayahuasca, a floresta e seus animais transformam-se em humanos e espfritos na percep~ao daqueles que ingerem a bebida enquanto as grandes arvores e seus habitantes transformam-se em cidades diante dos olhos fechados daquele que se transformou em sucurifancestral mftico Yube atraves da ingestao do seu "sangue". A 16gica da transforma~ao de uma substancia animada em outra esta presente mesmo nos mais simples dos atos, 0 de comer: quando alguem come milho, por exemplo, transforma-se em milho ~ Baer & Langdon (1992); Chaumeil (1983); Overing (1990); Crocker (1985) e outros.
e 0 milho toma,se parte da pessoa, de urn modo similar ao descrito por Isacsson (1993) para os Embera da floresta colombiana e por Stoltze Lima (1995,2005) para os Juruna. Parece,me possfvel relacionar a percep~ao da 'qualidade perspectiva' (Arhem, 1993, 1996) ou lperspectivista' (Viveiros de Castro, 1996) do pensamento amerfndio a discussao em curso, realizada por antropologos e outros cientistas, -sobre 0 significado e 0 uso proprio da metafora (Overing, 1985a, 1987; Crocker, 1977; Goodman, 1978; Ortony, 1993; Ricoeur, 1981). Na sua formula~ao de uma teoria do perspectivismo amerfndio Vi, veiros de Castro (1996, 2002) observa que 0 pensamento perspectivista opera por uma logica simetricamente inversa da utilizada no relativismo cultural ocidental, onde cada cultura teria seu proprio ponto de vista sobre uma natureza estanque. No caso amerfndio tratar,se,ia de multiplas natu' rezas e corpos percebidos por uma so consciencia, urn so ponto de vista, o do humano enquanto agente. Se se considerasse a metafora como uma figura de linguagem figurativa que so representa e naopresentifica, este instrumento da linguagem pertenceria antes a logica relativista ocidental do que a logica transformacionista amerfndia. Entretanto, a abordagem da metafora que proponho aqui leva em conta 0 valor agencial tanto do pon, to de vista da a~ao quanto da fala, a fala atraves de metaforas, onde estas a~6es sobre 0 mundo (ou os mundos interconectados dos diferentes seres e estados do ser) ajudam a faze,lo(s) em termos bem concretos, moldan, do,o(s) e transformando,o(s). Oeste modo, para os Kaxinawa, 0 mundo se encontra num estado permanente de perigosa fluidez da forma ate que interven~6es decisivas, entre as quais a fala e a voz, deem forma fixa aos perceptos. A discussao em tome da metafora real~a 0 papel cognitivo da simila' ridade na metafora e no pensamento em geral e reavalia neste sentido, embora de forma indireta e implfcita, algumas das contribui~6es contidas na discussao que Levy,Bruhl faz a proposito do animismo no "pensamento primitivo" (Goldman, 1994; Cardoso de Oliveira, 1991; Oescola, 1992; Viveiros de Castro, 1996: 137 (nota 12)).0 uso estruturalista da metafora na tradi~ao levi,straussiana acentuou a capacidade diferencial da metafora
enquanto analogia, deixando de lado a literal e polissemica leitura dos complexos conteudos das afirma~5es indfgenas que encontrarao significa<;:aose levado em conta urn quadro especffico de referenda. Neste sentido, as declara<;:5espodem comunicar mais que equivalencias estruturais quando, por exemplo, urn Bororo diz "meu irmao e urn papagaio" (Crocker, 1977) ou urn Kaxinawa afirma que "a sucuri e nosso ibu (pai/mae)". "Levi-Strauss reve.la urn aspecto proeminente da l6gica classificat6ria tribal: a analogia, onde em suas palavras (1963: 77), 'nao sac as semelhan<;as, mas as diferen<;as que se assemelham' que importam, ou seja, 0 corvo e para 0 gaviao real 0 que cla A e para cla B. 0 'primitivo' nao reivindica uma liga<;ao mfstica nem de sangue com seu totem e, portanto nao acredita na similaridade em que se poderia pensar que acredita quando chama seu vizinho de papagaio ou corvo. Uma conseqiiencia da compreensao levi-straussiana da metafora e a evasao da analise da similaridade (a rela<;ao entre meu vizinho e urn papagaio) que e, afinal, tao crucial para 0 entendimento de afirma<;5es metaf6ricas quanto diferen<;as e analogias." (Overing, 1985c:153)
Estudos recentes sobre a metafora (Ricoeur, 1981; Shanon, 1993; Lakoff, 1990) revelam como toda linguagem e, no final das contas, metaf6rica e polissemica no seu processo contfnuo de atribuir significado a experiencia, conectando imagens conhecidas e conceitos previamente nao relacionados, criando, deste modo, novos campos. 0 processo cognitivo necessita desses instrumentos criativos para ser capaz de cruzar 0 fosso entre realidades conhecidas e desconhecidas e nomear novas experiencias e percep<;:5es.Novos mundos sac imaginaveis atraves da lingua gem metaf6rica e isso atesta porque a metafora e indispensavel tanto para 0 cientista quanto para 0 antrop6logo do mesmo modo que 0 e para 0 artista, que seu trabalho e metaf6rico e metonfmico, associativo e englobante. que une ciencia e arte no seu uso da metafora e a mudanc;:a de nossa percep<;:ao e conhecimento do mundo, e uma vez nossa visao mudada 0 mundo nunca sera 0 mesmo. Este e 0 la<;:operformativo que conecta lin-
o
guagem e percep<;ao ao mundo. Os mundos exteriores podem ser muitos, o mundo no qual vivemos e aquele que e imagimlvel, perceptivel, expe, rimentavel e, portanto, pleno de sentido para nos. Sao nossa perspectiva e agencia encorporadas, contextualizadas e, por isso, cambiaveis sobre 0 mundo que fazem 0 mundo ser 0 que e. E este e uma das rrianeiras de existi, rem multiplos mundos (Goodman, 1978). Como veremos, essa percep<;ao filosofica foi levada bem mais longe pelo pensamento amerfndio do que tern sido usualmen'te J;lanossa propria tradi<;ao de pensamento. Se metaforas representam nossa "abertura para 0 mundo", para usar uma expressao gadameriana, precisamos ser 0 mais reflexivo possivel sobre as metaforas que usamos. Metaforas sac usadas para conectar diferentes do, mfnios, diferentes mundos, criando urn novo mundo atraves da "fusao de horizontes" (essa imagem implica mutualidade e nao urn movimento uni, direcional, portanto, e algo inerentemente intersubjetivo). As metaforas tornam-se uma limita<;ao para 0 entendimento do "outro" se as reificamos, quando se tornam meios para reduzir a ansiedade experiencial e cognitiva provocada pelo defrontamento do nonsense. pesadelo do defrontar-se com a incomensurabilidade e necessa,
o
rio para desvendar novas metaforas e conexoes, inimaginaveis quando se esta em territorio seguro. 4~ As metaforas falham no seu intento de produzir compreensao quando elas aniquilam diferen<;as, reduzindo di, feren<;a a similitude; quando bem escolhidas, as metaforas criam novos mundos, funcionando como "pontes" capazes de ser ao mesmo tempo proximas da experiencia do sujeito que tentamos evocar e possiveis de serem imaginadas pela comunidade de possiveis leitores para quem estamos escrevendo. Em seu artigo sobre 0 perspectivismo amerindio, Viveiros de Castro (1996) situa sua abordagem do fenomeno dentro do paradoxo classico da rela<;ao entre Natureza e Cultura, herdado pelo americanismo de LeviStrauss.
1
Uma reflexao sobre os perigos do uso impr6prio da metafora pode ser encontrada Jackson (1989: 151).
em
1!
I[)
"Antes se observava a recusa, por parte dos indios, de conceder os predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados alem das fronteiras da especie, em uma demonstracrao de sabedoria 'ecos6flca' (Arhem, 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites de nosso objetivismo. Antes, era preciso contestar a ilacrao do pensamento selvagem ao animism~"~arcfsico, est
"animal",
que precisam
como categorias
"alma" sac "categoriasperspectivas"
tais como "hu-
para os amerfndios
ser ana lis ad as em termos de uma teoria dos signos. 0 ponto
de vista define
0
lugar ocupado
pelo sujeito. Usando uma reflexao de De-
leuze, Viveiros de Castro define perspectivismo
do seguinte
modo:
"Tal e 0 fundamento do perspectivismo. Ele nao exprime uma dependencia perante um sujeito deflnido previamente, ao contrario, sera sujeito aquele que aceder ao ponto de vista." (Deleuze (1988: 27) apud Viveiros de Castro, 1996: 138) E do sujeito de um ponto humanidade
a "alma"
nao e mais que um passo: "Tem alma quem e capaz
de vista" (Viveiros de Castro,
1996: 126). Se
0
e a ideia de um sujeito com um ponto de vista, logo
o humano
ao animal nao
manidade.
Inerente
e sua
a capacidade
corpo, situado e encorporado
animalidade
0
que liga
comum, mas uma mesma hu-
de um ponto de vista
de agencia, defininl como
e ter 0
um corpo e este
mundo sera perce-
bido. Nao e apenas a morfologia da on~a que define sua identidade ser-on~a, mas seu comportamento,
que define
como um
sua inten~ao e sua maneira de perceber
0
mundo atraves da perspectiva da preda~ao. E isso 0 que faz com que um ser humano se transforme em on~a: quando adquire 0 "estado" de on~a. "0 que estou chamando de corpo, portanto, nao e sinonimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixaj e um conjunto de afec~6es ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e _~.!Jlaterialidade subsrancial dos organismos, ha um plano imermediario.que e 0 corpo como feixe de afec~6es e capacidades, e que
e a origem
das perspectivas." (Viveiros de Castro, 1996: 128)
Do mesmo modo, 0 largo uso que fazem os amerfndios das autodesigna<;5esreferidas a eles mesmos e aos povos aparentados como "verdadeiros ou propriamente humanos" (no caso kaxinawa, huni kuin) nao tem a inten~ao de denotar humanidade como uma especie natural, mas como uma condi<;ao, a condi~ao da pessoa, do sujeito e do ser social. Neste sentido, os etnonimos devem ser entendidos como pronomes e nao como substantivos (Viveiros de Castro, 1996: 125). A rela~ao de preda~ao e uma das situa~5es em que mais se percebe a contextualidade e reversibilidade de identidade no par predadorjpresa. Um exemplo etnognlfico proximo da abordagem do perspectivismo amerfndio apresentada acima e 0 caso wari (Vila~a, 1992), em que preda~ao aparece como a metafora-chave para as rela~5es e cria~5es de identidades entre humanos e nao-humanos. Para os Wari, ser humano significa estar na posi~ao do ca~ador, enquanto ser animal significa ocupar a posi~ao de presa. Pelos animais e espfritos que predam os humanos, os humanos sac percebidos enquanto animais. Neste sentido, identidade humana e identificada a agencia, e mais, agencia e identificada ao ato da preda~ao. Oeste modo, a oposi<;ao ontologica fund ante na designa~ao dos diferentes seres e constitufda pela oposi~ao de ca~ador e presa, oposi<;ao que define as qualidades contrastivas do sujeito e objeto no interior de uma continua atividade predatoria. Essa atividade e considerada onipresente a qualquer tempo e implica, pela sua propria dinamica de ataque e retalia-
~ao, a inerente possibilidade de inversao das perspectivas e dos papeis, em que 0 ca~ador torna-se presa. Esta mesma l6gica foi observada para a guerra entre alguns povos amerfndios (Fernandes, 1970; Viveiros de Castro, 1986a, 1992). Penso que esta l6gica reHete uma ideologia igualitaria implicando a consciencia da essencial similaridade em qualidade, capacidade e valor do inimigo (ca~a). que e ca~ado ire cedo ou tarde ca~arj 0 que e comido ira querer comer aquele que 0 comeu (qtraves da doen~a, por exemplo). Os Kaxinawa compartilham esta visao perspectiva de ser ca~ador para alguns e ser ca~a para outros, ou, ca~ador e ca~a para os mesmos seres em diferentes momentos e contextos e estendem essa rela~ao para plantas e arvores (como as mulheres achuar fazem com suas planta~5es de mandioca, tidas como "plantas canibais" (Descola, 1987)). Todos os seres estao implicados nesta rede de a~5es e contra-a~5es de preda~ao, alimenta~ao e transforma~ao de seres vivos em materiais para a produ~ao da vida. A ideia abstrata de que para criar vida e necessario a destrui~ao de algo ou alguem, e bastante concreta e viva nos estilos de vida de sociedades ca~adoras e coletoras que precisam matar para comer. Estas for~as interdependentes em luta nao precisam, no entanto, dos termos do par Natureza/Cultura para serem entendidas. Esse entendimento deriva de uma exegese kaxinawa do mundo, considerando-o estar imbufdo de todas as qualidades possfveis ou imaginaveis de agencia, intencionalidade e perspectiva. A seguinte declara~ao feita por Agostinho Manduca ilustra literalmente essa visao: "A terra esta viva, voce sabe; uma coisa esta se transformando em outra". Complementando esta declara~ao acrescento outra, proferida por Augusto Feitosa: "A floresta tern seus ibu (genitor, criador, dono, guardador, plantador), tudo tern seu ibu". Alteridade para os Kaxinawa nao significa a falta de humanidade, subjetividade ou agencia, mas ininteligibilidade e diferentes modos de perceber e olhar as coisas, implicando 0 relacional e nunca 0 essencial e 0 substancial. Os deuses canibais Inka, os brancos e os inimigos nao sac vistos enquanto intrinsecamente canibais incontrohiveis ou bestas-ferasj eles se comportam deste modo nao em fun~ao de qualquer qualidade inerente,
o
mas em virtude de urn determinado tipo de rela~ao, uma rela~ao de excesso de alteridade, mais que urn "eu" pode suportar. Para ser capaz de lidar com a alteridade deve-se aprender a tomar-se outro ou imitar 0 ser outro no sentido de captar seu ponto de vista no mundo e, desta forma, ganhar poder sobre a situa~ao interativa. Apesar de expressar posi~5es reversfveis entre presa e predadar de modo similar aquele expresso pelos Wari, a oposi~ao ontologicamente fundante para os Kaxinawa'dh;ide 0 mundo de urn modo diferente. 0 tema central aqui e a rela~ao entre 0 "eu" e 0 "outro", huni (nos, propria mente humanos) e nawa (outro, inimigo potencial). Esta rela~ao nao denota uma reversibilidade de posi~5es em que sujeito significa agencia e objeto passividade, mas uma intersubjetividade em que ambas as posi~5es apresentam a qualidade da agencia e da subjetividade.4\ lsso parece explicar par que 0 termo nawa pode ser representado, ao mesmo tempo, enquanto 0 predador mais poderoso e como vftima humanizada de uma expedi~ao de ca~a: ele e urn inimigo que significa, ao mesmo tempo, vftima e agressor. Como resultado deste processo percebe-se uma ontologia em que todos os seres assumem uma posi~ao subjetiva; a diferen~a aqui e entre 0 conhecido, agencia propria mente humana (padfica) e 0 desconhecido, a agencia agressiva e predatoria. Em urn nfvel sociologico 0 problema, e mais uma vez, 0 da afinidade virtual. Outro elemento presente em radas as rela~5es, e neste ponto retomamos Levi-Strauss (1991) e Dumont (1980), e que em rela~5es antagonicas entre diferentes seres (e todos os seres sao diferentes) sempre ha urn desequilfbrio de poder, apesar de este ser hipoteticamente reversfvel. Essa visao e expressa pelo lugar que ocupam os gemeos no pensamento amerfndic.
41 Outras vers6es do perspectivismo, como as de Stoltze Lima (1996, 1999) e Gon<;:alves (200l), assim como 0 animismo de Descola (2005), parecem enfatizar mais a desencontro de perspectivas do que a oposi<;:aosujeit%bjeto desenvolvida na chave presa/predador. Oeste modo pensam os queixadas, ao serem ca<;:adospelos Juruna (Yudja), estar fazendo guerra contra as mesmos. A inversao das perspectvas nao e, pananto, completa; o que temos e um desencontro de perspectivas que produzem eventos diferentes, e nao uma rela<;:aoentre objeto/sujeito, passivo/ativo, ca<;:a/presa.
2.
.t.
N a mitologia amerfndia os gemeos nunca sac pensados como identicos. 0 oposto ocone no imaginario indo,europeu e seus mitos sobre gemeos, em que a fascina<;ao pelos gemeos deriva exatamente de sua qualidade de in, tercambialidade hipotetica (Levi,Strauss, 1991: 299,320). A especula<;ao indo,europeia sobre gemeos esta intrigada pela possibilidade da identidade dividida (split identity), enquanto nos mitos amerfndios a ideia de duplici' dade ja carrega consigo a ideia da diferen~a. A diferen~a entre 9S gemeos esta posta desde 0 infcio, considerando,se um fato incontestavel, urn fato pleno de consequencias, ou seja, um dos gemeos nasce primeiro. Oeste fato derivam todos os tipos de diferen<;as nao oposicionais, mas sim graduais. Entre os gemeos existira 0 menor e 0 -maiar, 0 mais forte e 0 mais fraco e, um aspecto que todos os me us interlo' cutores insistiram em frisar, 0 com sorte e 0 azarado. Esta l6gica da diferen, c;:agradual, do mais velho e do mais moc;:o,do menor e maior, repousa na base do dualismo de metades e em toda conceitualiza<;ao de complementaridade nas relac;:oese no mundo. No pensamento amerfndio, a ideia de duplo implica, portanto, diferen<;a. Ouplicidade na singularidade e possfvel, 0 que nao e possfvel e a igualdade duplicada. A ideia e a cria~ao de seres de uma mesma classe, significando similaridade suficiente para garantir 0 entendimento entre eles, nao clones e replicas. Uma simetria perfeita nunca sera encontrada no mundo. Esta ideia encontra-se visualizada na arte kaxinawa. Como salientamos acima, a simetria na arte e retificada par um pequeno deta, lhe assimetrico que transport a a ideia de identidade distinta. E 0 detalhe, a dissonancia que da vida ao trabalho artfstico, assim como a vida em si mesma. Oeste modo, 0 estilo grafico kaxinawa pode ser visto como a visualiza~ao do valor social da autonomia pessoal que se manifesta em suds detalhes idiossincraticos, escondidos no padrao global de simetria e igualdade. 0 efeito studium,punctum descrito por Roland Barthes (1980) ilumina bem este estilo grafico. studium, ou 0 discurso dominante, seria nestecaso a repetic;:ao de ele, mentos iguais num ritmo simetrico e 0 alto valor dado a execuc;:aodelicada de finas linhas paralelas. 0 estilo grafico kaxinawa e caracterizado pelo
o
horror vacui: toda a superffcie dos carpos pintados deve ser caberta com desenhos e nenhuma linha pode ficar aberta. 0 padrao pode ser corrado onde a superffcie pintada termina, sugerindo uma continuas:ao do mesmo padrao para alem daquele suporte. Este recurso demonstra a funs:ao do desenho como algo que une mais do que. separa. 0 desenho visualiza a qualidade yuxin (fors:a animadara) que permeia a mundo kaxinawa separando,o dos povos sem (um olhar para 0) desenho.
o punctum
e a dissonancia proxima do detalhe invisfvel, a surpresa ne, cessaria para a dinamica visual, aquilo que da vitalidade estetica ao todo, que se manifesta como uma pequena diferens:a no padrao repetitivo, um ponto assimetrico no interior de uma simetria. E necessario existir cerra homogeneidade nos elementos visuais para que a pequena diferens:a seja capaz de tocar nossos olhos. A arre kaxinawa explora elegantemente 0 en,
trela~amento do studium e do punctum. Desta forma, para um pano tecido ou para uma face pintada, a primeira impressao sera a de uma superffcie coberta por um padrao geometrico atraves da infinita repeti~ao de unida' des iguais. Um olhar mais acurado percebera que um losango do padrao colmeia tem um angulo a mais que os butros. Este e 0 punctum e sua ocor, rencia na arte kaxinawa e sistematica.4 Outro exemplo deste fen6meno encontra,se nos clJlares. Se urn colar de contas, por exemplo, e composto pela altemancia d~ seis contas vermelhas e seis azuis, em algum lugar no meio do colar se encontrara uma conta branca perturbando, proposital, mente, a perfeita simetria e repeti~ao do padrao. Na arte masculina dos adomos de cabe~a, por outro lado, 0 desequi, lfbrio e assimetria san mais explfcitos. Aqui 0 objetivo parece ser 0 de encontrar um delicado equilfbrio atraves do desequilfbrio, deste modo su, gerindo 0 constante movimento das penas. As penas do cocar san proposi, talmente diferentes em tamanho para sugerir certa ondula~ao, embora se, jam norrnalmente da mesma cor e proveniente do mesmo passaro (apesar de existirem certas combina~5es de penas de passaros diferentes). Caudas compostas de distintos materia is (conchas, unhas de diferentes tipos de mamfferos, penas de cores diferentes) podem estar penduradas no cocar de forma a aumentar 0 carater idiossincratico da pe~a e san designadas como dau (decora~ao ou "remedio" do cocar). Como toque final rabos de arara san postos no topo. Estes longos rabos san presos ao cocar, envergados pelo peso de um pequeno peda~o de cera de abelha atado as suas extremidades. Na cera san fixadas pequenas penas recortadas. 0 resultado e um equilfbrio sutil e m6vel de pe~as desiguais, porem similares. Esta marca sutil da personalidade do artista em pe~as fortemente mar, cadas por um estilo parece congruente com 0 modo que os Kaxinawa ex, perienciam a vida: criar comunidade e fruto do forte desejo de viver tran, qililamente com os parentes pr6ximos, tomando a sociabilidade possfvel atraves da autonomia pessoal e 0 respeito pela autonomia alheia.
l
J
I
•
~ Dawson (1975) nota a ocorrencia de detalhes assimetricos na tecelagem kaxinawa.
c.3}
Motivo central isu meken, (mao de macaco); na lateral, baxu xaka (escama de peixe tamburata).
o estilo de pensamento
Alzira Maia Kaxinawa, 1991.
•
perspectivo implica numa constante conscH~ncia da possibilidade de mudanc;a de pontos de vista, mudando, consequentemente, a olhar sabre a mundo. Como e de se esperar, essa mesma atitude perspectivista pode ser encontrada nos sistemas de desenhos amazonicos. A qualidade cinetica de trocar a perspectiva entre fundo e figura, tfpica dos padroes labirfnticos da tecelagem e da cestaria de muitas sociedades amazonicas, foi percebida na analise da "arte abstrata" amerfndia par Roe e Guss. Peter Roe chamou a atenc;ao para a correspondencia entre este estilo artfstico e urn estilo de pensamento. 0 autar argumenta que a "ambigliidade visual" dos desenhos shipibo (grupo pano do Peru) corresponde em seu sistema de pensamento a uma "enfase na ambigi.iidade mental" (Roe, 1988: 112). "Ambigiiidade mental" e uma expressao um tanto ambfgua, mas pode ser facilmente substitufda par perspectivismo sem, contudo, mudar a significado primordial desta analogia. Para Roe a significac;ao da ambiguidade perspectiva na arte indfgena "abstrata" repousa no que ela nos fala sabre a atitude cognitiva do artista e do publico pretendido. Para as amerfndios a universo e transformativo. Isso significa que a visao pode, repentinamente, mudar diante de nossos olhos. 0 mundo e com posta par muitos mundos, sendo que estes diversos mundos sao pens ados enquanta simultaneos e em cantata, embara nem sempre perceptfveis. 0 papel da arte e a de comunicar uma percepc;ao sintetica desta simultaneidade das diferentes realidades.
Ao analisar os desenhos indfgenas, Roe chama a atenc;ao para 0 padrao estilfstico e nao para unidades isoladas constitutivas do padrao. Minha investigac;ao sobre 0 significado dos desenhos para os Kaxinawa confirma as percepc;oes de Roe. Quando uma leitura iconografica de unidades isoladas parece confusa e contradit6ria, e necessario introduzir uma leitura mais gestaltica ou estrutural dos padroes como um todo, 0 que proporciona, no caso kaxinawa;'uma melhor compreensao dos seus usos e significados. Analogias entre e;se c6digo visual e outros c6digos verbais e nao-verbais, que juntos formam 0 pano de fundo para a significac;ao cognitiva e emocional do estilo artfstico, e conseqilentemente do seu poder agentivo, sac essenciais. Outra ilustrac;ao da presenc;a do perspectivismo na'rte amaz6nica pode ser encontrada no estudo sobre os mitos, cestaria e canc;5es yekuana (grupo karib da Venezuela) realizado por David Guss (1989). Depois de abandonar a procura do grande mito de origem dos Yekuana (que sabia existir em textos antigos), 0 autor decidiu desiludido sentar-secom os mais velhos e aprender a arte de tranc;ar cestos. 0 que descobriu por este modo foi que a vida para os Yekuana e como 0 tranc;ado, ou, em outras palavras, que 0 tranc;ar era a metafora-chave para a vida para este povo, e que fragmentos e partes do mito de origem eram tranc;ados, proferidos e cantados pelos velhos todos os dias, no crepusculo, quando sentavam juntos num cfrculo. Conhecimento nao pode ser adquirido fora do contexto, uma vez que 0 conhecimento nestas sociedades e parte constitutiva da pessoa: conhecimento e mem6ria sac encorporados e sac atualizados na medida em que fazem sentido para a criac;ao da vida cotidiana (Gow, 1991). Neste sentido, nossas valiosas descobertas no campo nao vem de maneira tao acidental quanto possamos pensar. Elas surgem quando nossos professores nos consideram maduros para entende-las, ou simplesmente, quando se presentifica o contexto certo, urn contexto capaz de revelar nao apenas 0 conteudo, mas tambem a significac;ao e 0 sentido pnitico, moral e emocional de um determinado conhecimento. o resultado da iniciac;ao de Guss nas tecnicas de tranc;ado yekuana foi urn profundo entendimento da ontologia yekuana.
"Com os desenhos abstratos este retrato simultaneo de uma realidade dual se torna muito mais complexo [que no caso do desenho figurativo]. Aqui tambem se mostra a imagem e contra-imagem. No entanto, 0 que e realmente representado e a rela~ao dinamica entre os·dois. Diferentemente das imagens estaticas dos desenhos figurativos, a estrutura kinestesica destas formas cria urn movimento sem fim entre_2.~elementos diferentes, puxando 0 espectador para dentro delas. A percep~ao agora se torna um desafio, com 0 espectador sendo for~ado'a decidir qual imagem e real equal uma ilusao. A dualidade significada pela conquista dos cestos e perceptualmente incorporada na estrutura dos seus desenhos. Aqui todas as oposi~6es na cultura (feminino e masculino, visfvel e oculto, criativo e predat6rio, veneno e comida) sao visualmente resolvidas. Mas nao se trata de uma solu~ao estatica. E como a vida cotidiana de todo Yekuana uma constante troca entre as formas visfveis e as invisfveis que as carregam." (Ouss, 1989: 122)
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o estilo
geral de desenho kaxinawa - designado kene kuin (desenho proprio), usado na pintura corporal, cestaria, ceramica e tecelagem - e similar ao estilo do tran~ado yekuana. 0 jogo entre imagem e contra-imagem expressa a ideia de duplicidade e co-presen~a das imagens reveladas e nao-reveladas no mundo. Neste sentido, a ontologia kaxinawa, definindo as condi~oes do ser e nao-ser, e totalmente dependente e ligada ao real processo perceptivo em que urn agente particular esteja engajado. Uma das razoes por que minhas primeiras tentativas de ligar nomes particulares a unidades especfficas do desenho nao foram bem-sucedidas, foi a alternancia cinetica de fundo e figura das imagens. Outra razao foi que os Kaxinawa nao nomeiam unidades, mas padroes globais, rela~oes entre unidades e a aloca~ao do desenho em urn suporte. Do mesmo modo que nao existe pele que nao cubra urn corpo, 0 desenho sem urn suporte nao faz sentido na estetica amerfndia. Observamos, deste modo, que 0 que se passa com os desenhos, ocorre, tambem, com 0 conhecimento em geral: como 0 desenho, 0 conhecimento necessita de urn corpo e de urn contexto proprio como suporte e razao de ser. E e 0 suporte, alem do grafismo em si, que transport a a proprie-
dade do desenho. Para um desenho ser propriamente um desenho (kuin), ele depende nao somente de suas qualidades inerentes, mas, sobretudo, do contexto: e dependente de quem pinta quem ou 0 que e quando.4 Outra conseqiiencia do perspectivismo na arte e na percepC;ao em geral e que a tradicional oposi~ao entre aparencia e essencia ou entre realidade e ilusao deixa de fazer sentido. Toda percepc;ao se refere a algum tipo de existencia espectnca. Isso nao significa que imagens e corpos ocupem a me sma posiC;ao ~a Qntologia kaxinawa. A diferenc;a entre tipos de per, ceptos e produzida no interior de um quadro de referencia que leva em conta os distintos estados do ser. Uso "estado do ser" em substituic;ao para "estado de consciencia" porque deste modo evitamos 0 perigo de inadver, tidamente opor mente e corpo.4f estado do ser relaciona estado do corpo e estado da mente. Por isso, quando alguem, entre as Kaxinawa, ve fantasm as ou yuxin ou outras apari, ~6es que nao pertencem a esfera da percepc;ao cotidiana, ninguem questio, narci 0 fato de ele ou ela realmente ter visto alguma coisa; se apercepc;ao foi ou nao uma ilusao, isto e, uma "alucinac;ao", nao sera passfvel de discus, sao. Etimologicamente, ter alucinac;6es significa perceber (atraves de um ou mais sentidos) 0 que nao existe na "realidade". 0 conceito de "alucina, c;ao" nao existe na lfngua kaxinawa porque sua concepc;ao e percepc;ao da "realidade" sac radicalmente diferentes. conceito kaxinawa mais proximo da nossa noc;ao de "ilusao" e "alu, cinac;ao" poderia ser "mentira" (txaniki) e, dependendo da seriedade da experiencia, "brincadeira" (beyuski). Quando e dito que uma pessoa ou um espfrito da floresta estava somente "brincando", nenhuma conseqiiencia perigosa e esperada. Mentir, por outro lado, pode ser mais perigoso. Sao os estrangeiros, trapaceiros, e espfritos (yuxin) que mentem e enganam. Este e um metodo comum usado para distrair e desviar pessoas que andam sozi,
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1Gow
(1988) retoma em Levi-Strauss uma observa~ao fundamental sobre a rela~ao dinamica entre elementos gnlflcos e plasticos na arte amerfndia. Para maiores detalhes e discussao ver Lagrou, 1995c. 4f Tomei a sugestao para usar 0 conceito de "estados do ser" emprestada de Gon~alves (comunica~ao pessoal).
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nhas, inadvertidamente, por caminhos que iraQextravia~los, fazendo com que percam a orientac;ao e capacidade de retomar ao mundo conhecido. E importante frisar que aquele que 'mente' sobre as percepc;5es que nao se encaixam no mundo cotidiano dos corpos solidos nao e, geralmente, a pessoa que viu algo e relatau 0 que viu aos seus companheiros, mas 0 agen~ te que produziu 0 fenomeno percebido. Esses agentes, designados yuxin, sac seres indefrntdos e mutaveis sem urn corpo solido, mas com a capa~ cidade de produ;ir -imagens, aparic;5es que amedrontam e confundem os humanos. Alguns destes seres tern tanta potencia que sac capazes de transformar~ se a si mesmos no que desejam e ate mesmo de produzir imagens de outros fenomenos. E qualidade de este ser aplicar golpes e trapacear os humanos, capturando~os e transferindo~os para urn outro mundo: urn mundo perce~ bido e experienciado diferentemente. Uma imagem usada para expressar a ultrapassagem deste limiar e a do yuxin que espreme a seiva de uma planta medicinal nos olhos de uma pessoa e a transporta para sua propria aldeia. Desta forma de conceber a percepc;ao resulta que 0 que necessita ser determinado para a compreensao de urn caso extraordinario de percep~ c;ao e 0 estado especffico do ser perceptor, assim como a qualidade do ser percebido e do contexte da percepc;ao. A pessoa pode estar doente ou melancolica ou pode estar num processo de tornar~se xama. Pode, ain~ da, estar num estado perfeitamente normal, mas 0 contexto, como 0 cair da noite ou uma tempestade com relampagos, pode ser propfcio para que os fenomenos normalmente invisfveis se manifestem. Outro contexte em que se podem perceber imagens normalmente invisfveis e durante 0 ritual de ingestao da ayahuasca. Estes exemplos mostram que as diferentes possibilidades de percepc;ao sac ligadas a particulares estados do ser. Alguns destes estados implicam em tao alto grau de mimese e entrada em contata com a alteridade, in~ cluindo a mudanc;a da ac;aoe da forma corporal, que pouco sobrou daquilo que poderfamos designar por "eu real", a pessoa imersa na atividade cor~ poral, na interac;ao social e nas rotinas diarias. 0 chamado da floresta com seus animais/yuxin querendo transformar sua vftima seduzida em urn deles
e igualado em perigo ao chamado da cidade com sua cacha<;a e sua fascinante variedade de habitantes (nawa). Neste sentido, nao e de se surpreender que as viagens a terra dos yuxin e yuxibu da floresta competem agora, na economia das experH~ncias visionarias dos jovens, com as excitantes e perigosas visitas as cidades de Sao Paulo, Lima e as cidades dos huxu nawa, brancos estrangeiros (europeus e americanos) . Deste modo, a'vida e 0 ser de uma pessoa sac vistas como urn processo dinamico com diferentes caminhos e identidades possfveis de serem seguidos e assumidos. Frente a estas multiplas possibilidades de existencia e perigos de transforma<;ao em alteridades incontroladas, e tarefa da comunidade como urn todo encarregar-se da produ<;ao da vida em comunidade. Procura-se transformar jovens em huni kuin, seres humanos propriamente ditas, guiando-os atraves da multiplicidade de percep<;5es, emo<;5es e atividades possfveis e presentes no mundo envolvente, para deste modo moldar suas proprias criaturas em seres de uma me sma dasse, nukun yuda, "nosso corpo". Os adultos kaxinawa trabalham para educar crian<;as com "corpos pensantes", sempre "pensando nos seus corpos (hawen yuda xinankin)", seus proprios e a comunidade enquanto "corpo social". Seus corpos VaGcarregar pensamentos e sentimentos de pertencimento em fun<;ao da com ida, cuidados corpora is, memorias e valores compartilhados durante a vida. Quando longe de casa, os viajantes sentirao falta da comida, da comensalidade, estorias e cuidados daqueles com quem compartilharam a infancia. Os Kaxinawa evitam, a todo custo, 0 uso da for<;ae da agressividade no trata com as crian<;as.4 A autonomia e 0 livre arbftrio das crian<;as sac respeitados. Entre adultos, brigas, gritos e ordens sac igualmente reprovados. Conflitos sac resolvidos atraves da evita<;ao e a mais severa puni<;ao que pode ser infligida a alguem e 0 ostracismo (Kensinger, 1988). Uma arma
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Ver Belaunde (2001) para uma cosmologia que coloca a raiva na origem do mundo e dos seres, ao mesmo tempo condi'rao para a possibilidade do nascimento e for'ra contagiosa que pode produzir a desarticula'rao social.
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eficiente para impor os valores do compartilhar e da reciprocidade e a fofoca. As decisoes sac tomadas somente quando as partes envolvidas concordam e quando 0 acordo parece impossfvel, 0 grupo dissidente decide partir para deixar as coisas esfriarem ou tentar a vida em outra parte. Esta moral social igualitaria e comum a muitas sodedades amazonicas e e um fator importante no modo como estes povos se definem como diferentes de outros povos, e"SVecialmentedos nawa (nao-fndios).41 ~ o processo p~rmanente de cria<;ao e inven<;ao de uma comunidade e estilo de vida especfficos e realizado atraves de uma contfnua negocia<;ao entre 0 novo e 0 velho, fazendo frente as mudan<;asde contexto, incorporando as novas oportunidades que surgem enquanto antigas desaparecem em um mundo em permanente transforma<;ao. Esta constante reinven<;ao da identidade face a alteridade envolvente e outra manifesta<;ao da concep<;ao especffica que os Kaxinawa tern da no<;aode identidade e diferen<;a. Se identidade implica em alteridade, perspectivismo se tom a 0 elemento de liga<;ao entre estas no<;oes, tomando-as interdependentes e intercambiaveis. Os pares dinamicos ou as trfades que fundonam enquanto conceitoschave no quadro de referencia ontol6gica kaxinawa, podem ser somente desenhados sobre 0 fundo do estilo de pensamento perspectivo que nos permite lidar com paradoxos e ambigiiidades na referenda aos seres e naoseres. Depois de ter ficado varias vezes equivocada aprendi que aquilo que chamamos de contradi<;ao pode nos ensinar muito sobre urn estilo especffico de pensamento. A significa<;ao e 0 prop6sito de uma ambfgua distin<;ao entre "eu" e "outro" nos fala mais sobre a visao de mundo kaxinawa do que qualquer tradu<;ao mais ou menos literal ou satisfat6ria da palavra nawa. A polissemia dos conceitos-chave kaxinawa e altamente produtiva em comunicar um todo ontol6gico englobante que faz da duplicidade e da inerente mutabilidade dos seres vivos 0 eixo do seu modus vivendi.
"A capacidade de imitar, e imitar bem e, em outras palavras, a capacidade de tornar-se Outro." Walter Benjamin em Taussig, 1993: 19.
A pnitica diaria e ritual kaxinawa revela urn complexo e dinamico dualismo que questiona, insistentemente, uma defmi<;ao substancialista de identidade e de diferenc;a. Por meio de recorrentes inversoes de papeis e posi<;oes no sistema de nomina<;ao e no ritual e atraves dos persistentes paradoxos elaborados pelo discurso, a questao da identidade e alteridade aparece como tema central na ontologia kaxinawa. Esta questao nao e pertinente apenas para os Kaxinawa, mas pode ser encontrada na quase totalidade dos gropos pano. Os Pano sac conhecidos na literatura etnografica como especialmente "obcecados" pelos estrange iros e por todos os tipos de "outros" (sobre este ponto ver Erikson, 1986; Keifenheim, 1990, 1992; Calavia, 1995).0 intrigante conceito nawa, para o qual ha varia<;oes na maioria dos gropos de lfngua pano, e paradigmatico para a ambigtiidade pano com rela<;ao a defini<;ao de fronteiras entre 0 "eu" eo "outro". Nawa pode ser usado como termo que denota uma "verdadeira" alteridade: inimigos, brancos e os mitol6gicos Inka (deuses canibais). Pessoas
ou animais (ca<;a) aparecem referidos em can<;6es rituais como nawa, significando, aqui, inimigo. Nawa e, tambem, usado para nomear dis, tintos grupos pano (os Nawa da area ]urua'Purus, incluindo Kaxina, wa,Yaminawa, e outros nawas), ou como parte do etnonimo atribufdo aos Pano vizinhos, significando neste contexto "povo":caxi (morcego) ,nawa; yami (machado) ,nawa; mari (cotia) -nawa etc. Nawa, pode, ainda, ser usado para'denotar uma das metades ou se<;6es de doadores de nomes no interior"do.pr6prio grupo (como entre os Yaminawa, Marubo e Amahuaca), apresentando 0 mesmo significado que 0 pluralizador ,bu (os Kaxinawa utilizam este pluralizador para as quatro gera<;6es alternadas de doadores de nomes que constituem seu sistema onomastico: awa, bu (aqueles da anta), yawabu (aqueles da queixada), dunubu (aqueles da cobra), kanabu (aqueles da arara azul); awabuaibu (as mulheres que SaG do tapir), yawabuaibu etc), Este faro demonstra que, nas lfnguas pano, urn mesmo conceito pode ocupar diferentes posi<;5es numa escala que vai do p610 da completa alte, ridade e hostilidade ao p610 do "n6s", incluindo, aqui, 0 "eu", denotando pertencimento a uma subdivisao que define 0 interior da pr6pria cornu, nidade. Isso nao significa, entretanto, que 0 termo nawa perca seu cara" ter relacional intrfnseco. Nao import a quanto nawa se aproxime do "eu", nawa sempre significatei alguem que nao "eu mesmo". Isso explica por que o termo nao pode ser usado para auto,referencia ou para se referir a alguem com quem se deseja estabelecer urn la<;ode proximidade e pertencimento a urn grupo. Neste sentido, nawa permanece sendo 0 "outro", embora urn "outro" que pode, facilmente, ser transformado no "mesmo" se adotado urn "outro" ponto de vista. A "no<;ao filos6fica do que significa ser similar ou diferente" (Overing, 1986b: 142) parece ter especial interesse para os amerfndios e para os arne, ricanistas (Levi,Strauss, 1991; Maybury,Lewis, 1979; Viveiros de Castro, 1986a, 1992; Carneiro da Cunha, 1978; Overing, 1984, 1996; Clastres, 1974a, 1982). Essa no<;ao, enquanto interesse indfgena, aparece em varios sistemas classificat6rios na forma de complementaridade e interdependen, cia entre os sexos, expressando diferentes forma<;6essociol6gicas e cosmo,
l6gicas, em dualismos diametrais e graduais em toda extensao das terras baixas da America do SuI. Os Pano, e os Kaxinawa em particular, apresentam uma variac;ao no colorido mosaico das diferentes maneiras de lidar com a alteridade, po is se situam, segundo Viveiros de Castro (1993 ), em algum lugar entre 0 con~ centrismo tupi e 0 diametralismo je. Ou, em outras palavras, os Pano estao entre os modems socia is construfdos pelos amazonicos e as sociedades do Brasil Central. Seguindo Levi~Strauss em sua caracterizac;ao destas socie~ dades, os Je teriam elabarado urn sistema social dual bastante complexo que se "fecha" para 0 exterior atraves da introjec;ao da diferenc;a. Nestas sociedades, as dinamicas socia is sac desempenhadas atraves de oposic;6es e antagonismos entre metades que, cada uma por seu tumo, herda e fixa atributos. Os sistemas socia is amazonicos e rupi, par outro lado, poderiam ser caracterizados como sociedades "abertas" que reduzem a diferenciac;ao interna para melhor expressar 0 antagonismo extemo. Oeste ultimo tipo de dinamica social resulta uma rede de monad as endogamicas ligadas atra~ yes da guerra e do canibalismo. Viveiros de Castro (1993), constatando a diferenc;a sociol6gica entre estes modelos, renomeia~os como dispositivos para lidar com a alteridade: "dualismo diametral" e "triadismo concentrico". 0 dualismo diametral seria exemplificado pelo caso je, em que 0 exterior e incorporado pelo interior, resultando em urn sistema fechado de metades e em uma rica e elaborada representa<;ao deste dualismo em rituais, na omamentac;ao e nas interac;6es socia is cotidianas. 0 triadismo concentrico, 0 segundo estilo de lidar com a alteridade, po de ser classificado como tipicamente amazonico. Este modelo apresenta um gradiente entre 0 interior e 0 exterior, distinguindo, termino~ logicamente, entre os outros pr6ximos ate 0 estrangeiro absoluto. Este tipo de defini<;ao da identidade e extrema mente contextualizado. Oependendo do contexto de discussao, outro grupo pode ser considerado de mesma iden~ tidade em oposic;ao a urn outro com urn, ou pode ser considerado outro em oposic;ao a uma mais limitada definic;ao do que significa "eu". Os povos pano sac um perfeito elo de ligac;ao considerando, aqui, uma tipologia que contrasta filosofias socia is amazonicas com as do Brasil Cen~
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tral. Os Kaxinawa tem um sistema de metades ritualmeme elaborado, mas seu dualismo nao e diametral: uma das metades parece ser mais exterior que a outra. A diferen~a criada atraves das classifica~5es dualistas entre os Pano e de um tipo gradual e, hipoteticameme, reversfvel, nao dicot6mico ou exclusivo do tipo que "A nao e B". Desta forma, no modelo formulado por Viveiros de Castro, este dualismo concentrico tende para um triadismo concentrico, amDos represemados em sistemas classificatorios cosmologi, cos e sociologicos. Levando,se em coma 0 carater situacional deste modo de definir identidades, pode,se mesmo questionar a utilidade de um esque, ma triadico quando se percebe a importancia do comexto e da perspectiva indfgena para dar conta de e nomear a idemidade e a diferen~a . Entre os Kaxinawa, 0 pertencimemo a uma das metades e as quatro se~5es matrimoniais se da:atraves de nomes pessoais (neste sistema de tipo kariera existem quatro se~5es alternadas, conforme a gera~ao, que produ, zem duas se~5es para cada metade ou oitose cada uma das se~5es e dividi, da pelas linhas de genero). Em virtude dos nomes poderem ser classificados em grupos definidos por gera~ao, sexo e metade, eles funcionam como um guia de englobamento etnico nas escolhas dos termos de parentesco quan, do se classifica um parente previamente desconhecido. Nomes e metades SaDguias importantes para a escolha de parceiros matrimoniais (0 perten, cimento dos nomes as gera~5es alternadas parece ser menos importante que 0 pertencimento a metade, ver McCallum, 1989a).1 Especialmente no primeiro casamento, os jovens SaDencorajados a escolher um parceiro pertencente a metade oposta. A complementaridade emre as metades e profusamente desempenhada nas atividades rituais. Resta ainda, 0 desejado e proibido "outro real" que vem de fora da or, dem social controlada. Esse outro constitui 0 terceiro elemento na escala
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I Este e 0 easo para os Kaxinawa brasileiros da Area Indfgena do Alto Purus, mas nao foi eonfirmado pelos espeeialistas dos Kaxinawa do Peru (Kensinger, 1977; Deshayes e Keifenheim, 1982) que enfatizam urn ideal de troea de irmas, espeeialmente na oeasiao da funda~ao de uma nova aldeia. Para outros grupos pano, entretanto, Erikson meneiona que "0 'ponto fraeo' da estrutura 'kariera' pano [e] a ruptura introduzida pelos easamentos oblfquos com 0 irmao da mae" (Erikson, 1986: 205).
gradativa que deflne "eu" e "outro" e e 0 potencial, hipotetico, aflm, onipresente no mito, no ritual, nas can~oes, nas visoes, nos sonhos e nas fantasias. 0 "outro real" funciona enquanto um valor cosmol6gico e escatol6gico englobante que nunca e, e nunca podera ser presentiflcado atraves de uma alian~a de casamento nesta vida terreha. Os Kaxinawa sac endogamicos, quando possfvel se casam ao nfvel da aldeia. Esta pratica reflete sua ideologia concentrica de casar, acima de tudo, com parentes ao inves de com aflns. Essa p~rspectiva encontra respaldo na ideologia amazonica da consubstancialidade, produzida atraves da co-residencia e da comensalidade fazendo as pessoas sentirem-se como pertencentes a um mesmo grupo.2 A mais inclusiva autodeflni~ao para um Kaxinawa e nukun yuda, que signiflca uma pessoa que perten~ ao "nosso mesmo corpo": um corpo que e produzido coletivamente por pessoas que vivem na me sma aldeia e que compartilham a mesma comida. Sao os parentes pr6ximos que provocam urn forte sentimento de pertencimento a um grupo e, quando estao ausentes, e sentida sua falta, expressa pelo termo manuaii, palavra usada para deflnir a saudadede um parente pr6ximo do mesmo modo que se designa a sensa~ao ffsica e vital da necessidade de agua. Agua e vital para 0 corpo do mesmo modo que parentes sac vitais para constituir 0 "eu". Isso pode ser ilustrado pela seguinte senten~a proferida por Antonio Pinheiro: "Quem nao sente falta dos seus parentes, como se sente falta de agua, nao e genre. E que nem yuxin que flea vagando por af". Os la~os que ligam uma pessoa a seu parente constituem 0 "eu" kaxinawa. Essa rede de la~os vitais e criada no tempo, pelo viver junto, pela comensalidade, por compartilhar determinadas substancias vitais, banhos medicinais e pintura corporal nos rituais. Secre~oes corpora is e cheiros afetam diretamente as pessoas com as quais se vive. Uma interven~ao direta ou indiretamente praticada, que trans forme 0 corpo de alguem, afeta sua mente, pensamentos e sentimentos. Neste sentido, quando os amerfndios
A mesma 16gica de consubstancialidade pode ser encomrada entre os Cubeo (Goldman, 1963), Piaroa (Overing, 1975), Apinaye (Da Matta, 1976), Airo-Pai (Belaunde, 1992), Piro (Gow, 1991), para citar apenas alguns exemplos. 2
estao falando do corpo, estao referindo-se ao "eu" e as transformaC;6esdo corpo, as vezes descritas como "alma". Pode-se dizer deste modo que 0 "eu" taxinawa e inclusivo, nao apenas ao seu proprio corpo, mas ao seu parente proximo.3 Isto explica por que uma pessoa que nao reside mais na aldeia toma-se mais e mais distante e com 0 passar do tempo, torna-se urn nao-parente ou, ate mesmo, urn naoKaxinawa aos othos de quem estava habituado a chamar-lhe de parente. Essa pessoa pode~es.mo ser transformada em nao-indio, nawa, ou ate mesmo perder os atributos humanos, tomando-se, portanto, urn ser que vagueia, yuxin, urn ser sem forma. Sem forma, significa, neste contexto, nao apenas uma mudanc;a na aparencia corporal, mas no comportamento e nos pensamentos. Yuxin, neste contexto, significa~m ser perdido no mundo, sem lac;os,sem urn lugar para ir, sem pessoas que se "lembrem" dele. E importante frisar a importancia cognitiva e emocional desta noc;ao encorporada da pessoa para os Kaxinawa, onde a pessoa e vista como urn corpo pensante, cujo estado, forma e textura dizem respeito a todos, alem do fato da identidade da pessoa depender de e estar circunscrito pela rede de relac;6es que a fomecem urn lugar para chegar a casa. Este e 0 significado da frase citada acima de que "aquele que nao sente falta dos seus parentes como se sente falta de agua nao e gente, mas yuxin." Yuxin sac seres fluidos sem morada ou forma fixa. Pessoas podem se tomar assim ao perderem seus lac;osconstitutivos com outros e comerem qualquer tipo de J A relal):ao entre corpo, pessoa e sociedade entre os Kaxinawa e similar aquela encontrada entre os nativos das ilhas Fiji descritos por Anne Becker (1995). A autora, de acordo com a literatura sobre a Melanesia (Strathern, 1988; Leenhardt, 1971 etc.), demonsrra como em Fiji a 'experiencia encorporada' em ana de uma "nol):ao de pessoa profundamente enraizada numa matriz relacional" (Becker, 1995: 5). Uma vez que pessoa e definida em termos de sua inserl):ao numa rede de relal):oes mais do que em termos de uma entidade fechada sobre as fronteiras de um corpo individual, a identidade pessoal e expressa por meio do cuidado e nutril):ao de outros, em vez de par meio de uma modelagem bem-sucedida do proprio corpo, de acordo com as norm as esteticas de beleza estabelecidas pela comunidade. Disro conclui-se que experiencia encorporada e a forma corporal saG vividas enquanto temas que dizem respeito a comunidade, refletindo a interconectividade social de uma pessoa, mais do que ao indivfduo. A forma corporal em Fiji nao serve, portanto, para se distinguir, mas para se associar aos outros pr6ximos.
com ida, ao compartilhar em pensamentos, cantos e palavras com qualquer tipo de outros seres e ao continuar em mudando lugares e rela<;5es ate es~ quecerem~se daqueles que os modelaram e formaram quando ainda viviam entre os seus. A importancia das rela<;5es interpessoais para a identidade da pessoa me foi revelada quando, poucos dias depois de minha chegada, sentindo-me meio nostalgica-~'melanc6Iica, retirei-me em minha rede. Esta era minha primeira visita ao~ Kaxinawa, razao pela qual tinha levado urn mosquiteiro transparente de nylon, pensando que seu unico motivo era 0 de me prote~ ger das picadas dos mosquitos. Urn mosquiteiro, no entanto, desempenha varias fun<;5es entre os Kaxinawa, dentre as quais a de fomecer privacida~ de ao esconder uma ou varias pessoas da vista de outras pesso~s na casa ou de passagem. Por esta razao os mosquiteiros sac feitos de tecido de algodao, parecendo~se muito mais com barracas do que com mosquiteiros. Mas meu mosquiteiro era transparente e as mulheres presentes na casa me viram pegar da minha bolsa urn pacote defotos.]a conheciam estas fo~ tos, visto que tinha sido requisitada a mostra~las repetidas vezes a pratica~ mente cada novo visitante da casa. As duas mulheres foram a minha rede erne puxaram pelo bra<;o para 0 centro da casa onde me fizeram sentar e mostrar minhas fotos, uma por uma, me perguntando com pacH~ncia ritual quem era cada uma das pessoas retratadas, e desta forma reconstituindo toda a rede de minhas rela<;5es. Quando nao tinha mais fotos para serem vistas, me pediram para cantar 0 canto do meu pai, seguido pelo da minha mae, minha irma, meu irmao etc. Depois deste ritual domestico de recor~ da<;ao, fui considerada curada do meu estado de espfrito saudoso e as duas senhoras me levaram para 0 ro<;ado. Este incidente chamou minha aten<;ao para 0 valor positivo atribufdo pelos Kaxinawa a saudade, sentimento que nao deve ser negligenciado, mas tratado atraves de recorda<;ao cuidadosa. A expressao dos meus sentimentos produziu um reconhecimento das mulheres que puderam, por via das fotos, perceber, atraves de minha rela<;ao com urn conjunto de pessoas, a prova da minha 'humanindade'. 0 contrario ficou provado que era tambem possfvel: urn andarilho barbudo apareceu urn dia na aldeia e
foi recebido pelos gritos das mulheres: "Yuxibu, yuxibu!", significando monstro, espfrito. As mulheres se refugiaram na casa para nao serem vistas pelo yuxibu. Os Kaxinawa conheciam a andarilho que costumava viajar sozinho, pregando. Esses estranhos e solitarios habitos de chegar e sair sem cumprimentos, e suas andai:lc;assem destino sao considerados um comportamento pr6prio para as yuxibu que viajam com a vento, mas nao para humanos. A mesma ideia"da importancia do habito encorporculo e express a na palavra yudawa, "se~costumar", au, literalmente, "fazer 0 corpo". A pessoa se acostuma ao lugar quando a intervenc;ao de outros sabre seu corpo atraves da partilha de alimentos, pintura corporal e banhos medicinais mudou a corpo de tal maneira que se tornou de certa forma similar a suficiente para viver bem no novo ambiente sem desconfortos corporais. Os Kaxinawa sa~ explfcitos a este respeito ao receber visitantes, que sao avisados de nao estranhar a comida para nao adoecer. A doenc;a e entendida como uma reac;ao da pessoa au de seu corp a a invasao de elementos estranhos. Quando,no entanto, a corpo (0 que inclui a vida mental da pessoa) se habitua as novas influencias, as Kaxinawa asseguram que nao adoece. Este "acostumar-se" implica a paladar eo afeto, sendo considerado uma atitude, um estado de espfrito que em kaxinawa e expresso em termos de um estado de corpo. A transformac;ao gradual de um ser propria mente humano em um estranho e, finalmente, em um nao-humano au nao-ser ocorre no tempo, atraves do comportamento e pelo contagia com a alteridade. A mesma l6gica se aplica a doenc;a. Estar doente significa estar em um estado transformativo de perda do "eu", adquirindo alteridade. A fonte da doenc;a nao e produzida par uma unica causa, mas par uma combinac;ao de forc;as internas e externas. As forc;as predat6rias provenientes do exterior tornamse ativas dentro de uma pessoa atraves da comida ingerida au dos adores inalados. Podem entrar, tambem, quando uma pessoa encontra-se em um estado emocional vulneravel, quando se sente triste au s6. 0 processo de tornar-se outro e complexo e e quase sempre reversfvel. Alguem deixa de ser um "verdadeiro" Kaxinawa par nao residir mais em uma aldeia, par viver muito tempo em diferentes lugares, a que resulta em adquirir um corpo diferente e, atraves desta diferenc;a no corpo, ter diferentes sentimentos,
pensamentos, valores e mem6rias. Portanto, ser propriamente humano, no sentido kaxinawa, significa viver em comunidade com os parentes pr6ximos. Esta endogamia de aldeia apoiada na forte ideologia da consubstancia, lidade e complementada por uma cosmologia verticalizada, pr6xima do modelo arawete (tupi), em que 0 desejo da aflnidade potencial e projetado no post,mortem:-Uma vez a pessoa morta, 0 yuxin do olho adquire novo corpo e novas ro~pas capazes de transforma,lo em urn ser imortal que po, dera se casar e viver com aque1es que os vivos representam como 0 p6lo extrema e absoluto do perigo, 0 "inconvivive1" outro: os Inka. Como em outros povos amazonicos, a ordem social e 0 sistema de pa, rentesco, como uma unidade interior composta por "elementos de uma mesma c1asse" (pessoas com urn corpo similar que compartilham pensa, mentos e habitos), sao englobados pe1a ordem cosmol6gica da alteridade, do canibalismo, da predac;aoe sua relac;ao com esta ordem de fenomenos e temporal: humanos estao no caminho de se tornarem outros e este pro, cesso, para as sociedades arawete e kaxinawa, sera somente completado depois da morte. Teremos oportunidade de retornar, ao longo deste texto, a complexidade da relac;ao entre seme1hanc;a e diferenc;a na ontologia kaxinawa, expressa como tema central da mitologia, reve1ada na racionalidade da organiza, c;ao da pratica ritual, no discurso silencioso da arte visual e no quadro de referencia da pratica c1assificat6ria cotidiana dos seres e das coisas. 0 pen, samento social kaxinawa nao projeta a diferenc;a fora da sociedade como fazem muitas sociedades amazonicas quando tentam inventar uma vida vivida somente na companhia dos iguaisfparentes, atraves da evitac;ao da terminologia de afinidade e pe1a domesticac;ao de todos os poderes e subs, tancias tomados do exterior. Em func;ao de uma aguda preocupac;ao com a predac;ao e possive1 retaliac;ao implicada em todos os atos criadores de vida e comunidade, esses povos escolheram neutralizar as express6es imanen, tes de violencia reduzindo, deste modo, 0 perigo implicado em qualquer atividade produtiva (ver Overing (l985a, 1993a, 2003) para os Piaroa). Por outro lado, a ideologia kaxinawa tambem nao introjeta totalmente a
diferen<;a como se ela emanasse do interior, como parece acontecer com a complementaridade do dualismo oposicional do sistema de metades J e e de sua vida social e cerimonial. A ontologia kaxinawa considera alteridade como uma dificuldade, em ultima instancia fatal, urn inescapavel e insoluvel paradoxo: 0 unico modo de concebe,la e tomar,se, a si proprio, "outro". Sem tomar,se outro, ao me, nos temporalmente, 0 ser esta constrangido a permanecer entre iguais e essa possibilidade esta encerrada nos tempos mfticos da semelhan<;a incestuosa e da separa<;13.o dos seres em diferentes tipos. 0 contato com 0 "outro", radical, mente concebido, leva a conflitos e mortes. E apoiado nesta concep<;13.o que os Kaxinawa encontraram modos de "mimese" e transforma<;13.o, diferentes modos de "trocar de pele", atuando esta possibilidade de altera<;13.o que n13.O e mais que a prepara<;13.opara a jomada final e transforma<;13.o depois da morte em sfmbolo de semelhan<;a e de extrema alteridade: 0 deus Inka. Esta figura mftica comporta,se como urn canibal ou on<;a em rela<;13.o aqueles que considera demasiadamente diferentes, enquanto se comporta como c6njuge e for<;acivilizatoria para os Kaxinawa, agora mortos, que se tomaram iguais a ele. Depois de mortos, os Kaxinawa tomam,se bonitos e luminosos como 0 etemo Inka, habitante do mundo celeste. Se os Ka, xinawa, enquanto vivos, sac presas potenciais dos Inka, quando mortos e vivendo nas aldeias celestes sac alimentados pelos Inka. A produ<;13.oe reprodu<;13.oda alteridade atraves da semelhan<;a e da se, melhan<;a atraves da alteridade, fato observado por outros pesquisadores das sociedades pano (ver Erikson, 1986, 1992; Keifenheim 1990, 1992; Calavia, 1995; Townsley, 1988), constitui a base des,ta pesquisa que perce, be, pelo menos para os Kaxinawa, 0 artiffcio do dualismo como urn meio para tornar,se urn ao inves de dois; tornar,se "mesmo"'e"'outro". Divis5es ontologicas sac posicionais e temporais nesta vis13.ode mundo: s13.o. relati, vas e cambiaveis, n13.O essenciais ou substanciais, nunca fixas. As diferen<;as n13.O sac do tipo oposicional, mas de urn tipo gradual. Podemos como exemplo retomar, mais uma vez, para a figura de lin, guagem nawa; nawa significa, em uma sequencia classificatoria, 0 maior representante de uma especie, como nawan tete, a harpia, 0 maior entre as
aves de presaj e a metade associada com 0 exterior e chamada a metade do maior dos elementos que constitui urn par. Podemos retomar aqui tambem o exemplo da compara~ao dos dois tipos de on~a conhecidos pelos Kaxinawa, onde 0 menor, a on~a vermelha, e classificado como dua (a metade do brilho, metade ligada ao mundo da agua), enquanto 0 maior, a on~a pintada, e classificado como inu (a metade da on~a, metade ligada ao Inka /mundo do sol).4 A duplicidade da figura do Inka e outro exemplo de semelhan~a na diferen~a ou dualismo usado para conceitualizar a unicidade de urn ser. No come~o de minha pesquisa, quest5es sobre 0 Inka foram respondidas de urn modo explicitamente dualista: um era 0 Inka pintsi, Inka faminto por came, urn povo do tempo hist6rico/mftico que canibalizava os Kaxinawa; 0 outro, totalmente diferente, foi apresentado como Inka kuin, nosso Inka, 0 real ou 0 pr6prio Inka, em cuja aldeia 0 yuxin do olho passa a viver depois da morte. Com 0 passar do tempo, no entanto, tomou-se claro que a dualidade na figura do Inka nao e relativa a uma duplicidade de personagens nomeados pelo mesmo termo Inka, mase devido a possibilidade de uma duplicidade de pontos de vista e rela~5es, visto que estes dois Inka sac um; nao sac
4 Parece existir uma contradi~ao entre os dados sobre a qualifica~ao das metades kaxinawa obtidos no Peru e no Brasil. Deshayes e Keifenheim (1982,1994), trabalhando no Peru, ligam a metade inu (jaguar) ao p610 do "eu" e do interior, enquanto consideram a metade dua (brilho) como ligada ao exterior e ao p610 do "outro" (l"autre du dedans, 0 outro de dentra). Os dados de McCallum (1989a) e Lagrou (1991) coletados no Brasil, por outro lado, apontam na dire~ao oposta, onde a metade inu, ligada ao Inka, estaria mais ligada ao exterior do que a dua. Erikson (1995: 7) sugere que esta diferen~a em interpreta~ao seja devido ao fato de que os lfderes das aldeias no Peru eram na maior parte da metade inu, enquanto no Brasil eram dua. Neste caso, 0 antrop610go teria' adotado 0 discurso e 0 ponto de vista do lfder da aldeia, associando a metade do lfder ao-p610 do "eu" e aquela dos seus rivais ao exterior. Sugiro que ao inves de questionar a 'norma' podemos entender a inversao dos p610s do interior e exterior na atribui~ao de qualidades as metades kaxinawa como urn sinal do carater dinamico e vital do dualismo que, em vez de fixar esquemas normativos, tenta dar sentido a experiencia social, politica e simb6lica da comunidade. De fato, e urn sinal do sucesso de uma lideran~a quando sua interpreta~ao sobre os fatos ganha a aprova~ao da comunidade como sendo a "verdadeira". Quando 0 discurso do lfder perde este poder de persuasao, ele esta a caminho de perder sua comunidade (cf. Deshayes, 1992: 95-106).
mais que lados diferentes de uma mesma moeda. Inka pode ser tanto 0 avarento canibal quanto 0 conjuge provedor, dependendo da relac;ao que se estabelece: afinidade real ou afinidade potencial. No decorrer deste trabalho este ponto ficara claro com a analise dos mitos e ritos relacionados ao Inka. Ambas as definic;6es de nawa e Inka nos dao uma ideia de como o dualismo kaxinawa precisa ser entendido a partir do ponto de vista do perspectivismo amerfndio. o dualismo e mais urn valor englobante para 0 pensamento kaxinawa que uma discussao sobre identidade. Quando 0 perspectivismo e introduzido nesta discussao, 0 dualismo ganha aspecto contextual e carater dinamico. A ontologia kaxinawa postula 0 intrfnseco, 0 inerente dualismo de todos os seres. Os seres vivos e a pr6pria vida no mundo dependem da mistura de forc;ase qualidades opostas. Todos os seres e coisas do mundo sao 0 resultado do ritmo e controle da mistura e apresentam a dualidade fenomeno16gica do conteudo e do continente, esqueleto e pele, semente e inv6lucro. Qualquer separac;ao absoluta de classes diferentes significa ausencia de vida, enquanto sua mistura induz movimento, 0 que indica, por sua vez, vida. Veremos que as canc;6es rituais podem ser lidas tanto em urn registro social relacionado ao parentesco e a afinidade (os problemas em lidar com a alteridade), quanto em urn registro mais abstrato relacionado a ontologia - a qualidade e estado do ser e dos seres - que apresenta imagens poeticas do valor englobante do intrfnseco entrelac;amento de todos os corpos e materias na terra, atraves da criac;ao e da predac;ao, do connlgio, da mistura das qualidades. "0 que e comido come, no mesmo momenta em que e comido", "0 que come transforma-se no que e comi.do" (ou "voce e aquilo que come ") , mas, tam b"""" em, voce come 0 que voce e"n .•5 que diferencia este processo de vida nao e a diferehc;a entre agencia e ausencia de agencia, sujeito e objetor mas uma diferenc;a de contexto e poder relativo. Em func;ao de cada ser existir simultaneamente em ambos os nfveis da materia e do imaterial, ele e capaz de agencia, percepc;ao e subjetividade. Para ter forma e consistencia, a materia precisa estar imbufda A
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de yuxin, visto que "sem yuxin, todas as coisas se tornam po, somente casca vazia. Voce toea nelas e elas se dissolvem e entao voce ve nada mais que cinzas, po" (Antonio Pinheiro, 1989). A defini~ao deum ser como sendo urn verdadeiro yuxin ou uma mera "coisa" depende, novamente, de uma escala gradual em que A necessaria mente implica B, ao inves de se tratar de urn par diametralmente oposto em que para ser A, A nao po de ser B. que define a situa~ao (e tende a ser urn princfpio que guia a classifica~ao dos seres ao longo de uma escala do menos e mais perigoso) e aquele que inicia 0 processo de troca e/ou preda~ao, processo que transforma as partes envolvidas. Toda a~ao de intercurso, troca de palavras e substancias, desencadeia urn processo que, por sua vez, produz outros processos, fazendo com que 0 mundo esteja em permanente movimento. Podemos concluir que se no dualismo kaxinawa A, necessariamente, implica B, as oposi~5es no pensamento e na a~ao existem apenas para serem dissolvidas. Essa dissolu~ao da dualidade pode ser alcan~ada seguindo a logica temporal (encontrada na mitologia kaxinawa e na escatologia) ou a logica da preda~ao. Neste sentido, 0 problema da semelhan~a e da diferen~a na ontologia kaxinawa parece resultar em uma solu~ao, solu~ao esta encontrada na continuidade dos termos opostos ao inves de sua mutua exclusao. Por isso, diferen~a nao pode ser definida simplesmente em termos de complementaridade de categorias opostas, mas em termos de lIm movimento em dire~ao a integra~ao. 0 dualismo kaxinawa e menos lima classifica~ao das coisas e dos seres que urn problema, uma questao a ser resolvida.
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"0 eu ganha sua existencia como individua, assuminda a papel do autro, venda a si mesma e resparidenda como a autro faria." Shanan, B., 1993: 141.
De urn ponto de vista comparativo, a organiza~ao social pano oscila entre uma enfase em grupos formados pelas se~5es doadoras de nomes (como
entre os Marubo que nao tern urn sistema de metades, Melatti, 1977: 83120) e umaenfase na relac;ao complementar entre metades. Embora os Kaxinawa compartilhem com outros Pano 0 fenomeno de sec;5es, designadas xutabu (grupo de homonimos), resultado de urn sistema onomastico em que os nomes retornam a cada gerac;ao alternada, associado a regras de matrimonio do tipo kariera, na vida ritual assim como no ordenamenta conceitual do universo acentua-se 0 papel complementar e simbolico das metades. Uma razao para esta enfase nas metades as expensas das sec;5es kariera poderia ser encontrada na sociopolftica kaxinawa. Duas metades podem idealmente constituir juntas 0 todo, uma sociedade social mente "auto-suficiente". 0 casamento realiza-se no interior do grupo de parentes (primos cruzados, preferencialmente de primeiro grau) em detrimento de afins nao relacionados ou genealogicamente distantes, construindo urn sistema de matrimonio baseado na prescric;ao do casamento com uma pessoa de uma sec;ao oposta, embora equivalente, no sistema. Este nao parece ser 0 caso de outros grupos pano como os Shipibo-Conibo e Cashibo do rio Ucayali, os varios grupos nawa do Jurua-Purus designados pelos Kaxinawa sob 0 nome Yaminawa (incluindo os de relac;ao proxima (os Sharanahua, Marinahua e Mastanahua), como os de relac;ao mais distante (os Amahuaca e os recentemente contatados Parquenahua referidos como Yora ou Nahua)), ou dos Katuquina (Cofacci, 1994), Yawanawa (Carid, 1999; Perez, 1999), Mayo~una (incluindo Matis, Matses e Korubo) e Marubo da area do Javali. A maioria destes grupos (excluindo os da area do Ucayali) e, de fata, uma mistura de urn numero grande de grupos menores que desapareceram como consequencia das perseguic;5es ("correrias") empreendidas por mateiros. Estes mateiros-precederam a invasao dos seringueiros durante 0 boom da borracha que durou do ultimo quartel do seculo XIX ate a prime ita decada do seculo xx. Ha outro fator que foi responsavel pelo arranjo dos grupos pano nesta vasta area e que parece ser proprio a dinamica dos grupos pano: "0 contraste paradoxal entre a drastica atomizac;ao e a homogeneidade consideravel entre os grupos pano" (Erikson, 1986: 185). Erikson considera que esta e
uma caracterfstica forte dos Pano, ligada ao fato de que "embora 'alterida~ de' e 'violencia' conduzam objetivamente a guerra, san emicamente antes de tudo a base fundamental da ontologia dos povos pano" (Ibid.). Ou seja, a guerra e 0 antagonismo que conduzem a esta extrema diferencia<;ao entre pequenas comunidades que se confundem com as famflias extensas pode~ ria ser 0 idioma sociologico que os Pano compartilham, sendo responsavel, por meio da constante troca antagonica, par uma homogeneidade compa~ ravel ao que foi observado para os casos ]fvaro e Yanomami. Os Mayoruna eram especialmente temidos por sua beligerancia, seqiles~ travam mulheres e crian<;as (a maioria pano) para introduzir e adota~las na sua sociedade. A inicia<;ao dos novos membros no grupo era marcada pela imposi<;ao de uma tatuagem facial, a marca mais importante e visfvel da identidade etnica pano. Os Shipibo seqilestravam mulheres para casa~las e homens para serem trocados por armas de metal com os comerciantes regionais (Keifenheim, 1990: 90). A regra de casamento shipibo e casar com alguem genealogicamente distante, obedecendo, no entanto, os li~ mites etnicos. Os Shipibo incorporavam, tambem, os Conibo e, agora, os extintos Shetebo. A pratica de casar e, com isso, incorporar 0 inimigo nao soa estranho na paisagem pano e amazonica. Os dados sobre os Kaxinawa demonstram que este estado de coisas en~ contrado nos demais Pano esta em forte contraste com a endogamia ka~ xinawa, revelando uma diferen<;a acentuada de ideologia e praxis entre os kaxinawa e os outros grupos pano. Esta diferen<;a no estilo e valor nao precisa ser tao antiga quanto poderfamos ser levados a pensar. Erikson, de um ponto de vista mayoruna ou pano geral, sugere gue 0 isolamento atual ("un repli contemporain sur eux~memes", 1986) dos Ka:liinawa deve ser re~ cente e a pouca enfase dad a as se<;5esem favor das mefades poderia estar . ligada a um isolamento auto~imposto. Keifenheim, abordando a questao a partir de um ponto de vista kaxi~ nawa, sugere que eles e nao os seus vizinhos pano poderi~m ser os mais proximos de um "mode1o proto~pano". Os pano compartilham uma logi~ ca concentrica que divide a humanidade em tres categorias: "nos", "ou~ tros" (semelhante a nos), e "estrangeiros" (os brancos). Keifenheim afirma
que apenas 0 sistema conceitual kaxinawa identifica 0 p6lo do Outro em termos que merecem ser designados como uma categoria. Outros grupos menos homogeneos (Matis, Yaminawa, Amahuaca etc.) subsumiriam a alteridade sob urn unico p6lo bem definido, aquele do "eu", qualificado pela categoria de kuin (pr6prio, verdadeiro) e seus equivalentes em outras lfnguas pano (kikin em Shipibo, kimo em Matis, koi em Yaminawa etc.). o p6lo do Outro entre os Kaxinawa pode ser representado pela cate, goria bemakia ("impr6prio", "outro", 0 que e exclufdo do campo do "eu"). Deste modo 0 estrangeiro absoluto (nawa) seria designado por huni be, makia, urn ser humano com quem nenhuma rela~ao seria possfvel. Atraves da aplica~ao das duas oposi~5es classificat6rias kuin/kuinman (totalmen, te pr6prio/nao total mente proprio) e kayabi/bemakia (bom/impr6prio) ao campo da identidade, a autora obtem, por urn lado, uma dualidade entre eu e nao,eu e, par outro, entre nao,outro e outro.6 Ambos os p6los de referencia, 0 "eu" e 0 "outro", sac considerados "claramente definidos" e "fechados e imutaveis" (Keifenheim, 1992: 80). Na primeira oposi~ao, o termo "eu" esta definido, enquanto na segunda oposi~ao 0 definido e 0 termo "outro". Juntos, ambos os termos definem 0 campo intermediario do nao,eu e nao,outro, 0 campo de transi~ao entre identidade e alteridade. o "empobrecimento da conceitualiza~ao" da alteridade entre os nao, Kaxinawa Pano, em que a unica qualifica~ao para a alteridade seria urn "nao,eu", poderia estar refletido em uma "perigosa permeabilidade" da~ fronteiras e limites etnicos (Keifenheim, 1992: 83). Se este argumento fosse tornado a letra, a maioria das ontologias amerfndias correria 0 risco de dissipa~ao e desaparecimento, devido ao seu difundido carater "cani, balfstico", urn ethos cultural que "consome" alteridade em urn processo constante de se reinventar. Voltaremos ao esquema de Keifenheim mais tarde porque, ao que tudo indica, os Kaxinawa do Alto Purus dao uma ligeira inflexao ao modelo, 0 que os aproxima mais dos seus vizinhos pano do que 0 modelo esbo~ado por Keifenheim sugere. Mas nos atenhamos aqui a l6gica das metades. 0
fata e que os Kaxinawa, como seus vizinhos mais pr6ximos, os Yaminawa do Peru (Townsley, 1988), apresentam um elaborado simbolismo de meta~ des. Um dualismo que e "bom para pensar". Este dualismo da flexibilidade aos limites como e uma reflexao elaborada sobre 0 papel constitutivo da alteridade na construs:ao da sociedade. Em tados os rituais uma metade desempenha, altemativamente, 0 papel de estrangeiro, do inimigo inte~ riorizado, enquanto a outra desempenha 0 papel do anfitriao. Dualismo de genera, jogos de inversao de papeis e antagonismo entre os sexos seguem a mesma l6gica do dualismo de metades, especialmente durante os rituais que tematizam 0 aumento da fertilidade.7 A possibilidade de inversao de papeis de genero e metades reflete uma preocupas:ao com 0 significado da alteridade e uma curiosidade em refletir sobre como alguem se sente quando ocupa 0 lugar de outro. Embora os papeis de genera na vida diaria sejam claramente expressos, essa divisao nunca e representada pelas partes envolvidas como algo dado, mas sim como resultado de escolhas. A enfase e posta na escolha. A mensagem pa~ rece ser que a possibilidade de se transgredir simbolicamente os limites do genera no mito e no ritual, express a a verdadeira possibilidade de exces:6es e invers6es na vida diaria, t6pico ao qual voltaremos adiante. Ser capaz de se engajar em atividades pradutivas marcadas pelo genera implica no pertencimento a um grupo, grupo com autanomia dentro de seu pr6prio campo e orgulhoso de suas realizas:6es. Para pertencer a estGilgrupo, o/a jo~ vem adolescente tem que ganhar domfnio sobre determinadas tecnicas e jogos, e e dentro deste grupo que ele/ela adquirira uma identidade moldada pm meio de um estilo espedfico de comportamento e de fala e aprende a lidar com 0 outra genera, a outra metade indispensa~eLa ser conquistada. paralelo entre genera e complementaridade de metades nao po de ser levado muito longe, pois se as associas:6es simb6licas para 0 pertenci~ mento as metades existem, na vida diaria nao ha nenhuma .diferencias:ao, de fata, no papel desempenhadopor membros que pertencem a metades
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7 Para rituais de fertilidade e simbolismo de genera entre os Kaxinawa ver tambem McCallum (1989a; 2002).
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diferentes. As mUlheres~(a parte feminina da metade da on~a) assim como as8(a parte feminina da metade do brilho), cozinham, flam, pintam, tecem, enquanto os homens.s(a metade da on~a) e@(a metade do brilho), ca<;am,pescam, tecem cestos de carga e confeccionam arcos e flecpas. Algumas especializa<;5esparecem estar associadas as me, tades, mas nunca de um modo rfgido. Mais que 0 vfnculo simb6lico entre, por exemplo, as qualidades de uma pessoa dua e a fun<;ao de xama, e as qualidades de uma pessoGe a de lfder de canto, parece existir uma ne, cessaria complementaridade entre ambas as fun<;5es.
Para uma aldeia ser considerada completa, precisa ter um lfder de canto e um lfder polftico. Normalmente, uma nov:,nlldeia origina,se atraves da jun<;ao destes dois lfderes com seus papeis e habilidades com, plementares. Os tipos de alian<;a i1.aconstitui~ao de uma nova aldeia podem variar. Idealmente, segundo Kensinger (in Dwyer, 1975), os If, deres deveriam ser da mesma gera<;ao e trocar suas respectivas irmas, porem, mais freqilentemente (nas aldeias que observei) 0 nucleo de uma aldeia nova foi construfdo em torno da jun<;ao de urn lfder de canto
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mais velho e de urn genro, lfder polftico, mais jovem. 0 sogro segue 0 genro na abertura de uma clareira para a constru~ao das casas e consti, tui~ao da nova aldeia. Se ogemo "sabe falar com seu povo", deixando a comunidade "alegre e disposta para 0 trabalho", e se 0 sogro e capaz de atrair as pessoas pela performance dos rituais, outros parentes pr6ximos sentir,se,ao motivados a segui-los. Considerando,se que a alian~a entre duas famflias por matrimonio e a pedra de toque de uma aldeia nova e que urn matrimonio formal e contrafdo entre pessoas de metades dife, rentes, ha uma chance signifi.cativa do lfder de canto e do lfder da aldeia pertencer a metades opostas. Dependendo da personalidade, conhecimento e experiencia da esposa dos lfderes polftico e ritual de uma aldeia, uma delas pode se tomar a If, der das mulheres, 0 que implica na incumbencia de organizar 0 trabalho das mulheres, convocando,as para 0 trabalho. A lfder feminina convocara reuni6es apenas para 0 trabalho coletivo de colheita e fia~ao de algodao e para as grandes festas. Q trabalho diario e organizado por meio de convites informais a parentas pr6ximas ou a amigas, que acompanham a dona de uma ro~a para ajudar e compartilhar na colheita. Os homens, par outro lado, encontram,se diariamente ao amanhecer em frente da casa do lfder da aldeia para discutir as atividades que cada membro da comunidade desempenhara naquele dia. Atividades masculi, nas, como ca~a e pesca, sac real~das em duplas, embora algumas tarefas excepcionais, como a constru~ao de uma casa, a limpeza de uma ro~a nova ou a prepara~ao de rituais, sac atividades coletivas. Observa,se que reuni6es forma is masculinas nao refletem uma vida social ou coletiva mais fortemente marcada para homens do que seria 0 cas'o para mulheres, con, sideradas, pela antropologia de genero dos anos sesseri-nre setenta, como limitadas universalmente a esfera do "privado" e do "domestico" (Collier & Rosaldo, 1979).8
" Para uma crftica desta visao reducionista da posi~ao da mulher nas sociedades indfgenas ver Overing (1986a), McCallum (2002), Belaunde (2001, 2005), Lea (1986, 2000), Ladeira (1982), Franchetto (1996), Lagrou (1996a), Lasmar (2005).
Pelo contrario, poder-se-ia dizer que os homens se reunem para compensar 0 relativo isolamento que a maioria de suas atividades diarias lhes imp6ej as mulheres executam todas as atividades, da plantac;ao a preparac;aoda comida e os cuidados com os filhos, em grupo, na companhia de familiares, vizinhas e visitantes. As casas kaxinawa sac parcialmente ou completamente abertas e sac construfdas umas pr6ximas as outras, 0 que possibilita uma intensa comunicac;ao e visibilidade entre casas como se vivessem juntos numa grande maloca. Os Kaxinawa dizem que estas malocas aloj avam aldeias inteiras e comportavam ate cern pessoas. Este estilo habitacional foi abandonado quando se mudaram das cabeceiras dos rios para as margens de rios navegaveis. Especialidades masculinas estao divididas em uma variedade de papeis de lideranc;a, alguns mutuamente exclusivos, como 0 de lfder polftico da aldeia e lfder de canto, outros passfveis de serem acumulados como curador ervanario (ha varios tipos de ervanarios, cada urn especializado em doenc;as diferentes), lfder de sessao de ayahuasca, professor e pastor (quando ha urn). Posic;6es femininas de lideranc;a podem ser ocupadas por varias mulheres proeminentes. E precise que as esposas do lfder de uma aldeia (0 lfder, em geral, tern duas esposas) tenham grandes roc;as para a freqilente preparac;ao de caic;uma e comida para a coletividade. A primeira esposa e quem tern a responsabilidade de convidar e organizar. papel de anfitritll pode tambem ser executado por sua mae (normalmente a esposa do lfder de canto). Este e 0 caso quando a esposa do lfder de aldeia e ainda jovem. Enquanto precisar do apoio logfstico da mae da esposa, 0 casal compartilhara a casa dos pais da esposa (devido a uxorilocalidade nos primeiros anos do casamento). A posic;ao de sogra do lfder de aldeia parece ser estrategica. Enquanto o-S- homens velhos retiram-se da discussao polftica tornando-se, relativamente, silenciosos em publico, as mulheres mais velhas podem ficar bastante influentesj elas falam nas reuni6es das mulheres e dos homens. Uma caracterfstica notavel da fala destas mulheres mais velhas e que falam mais alto que as mulheres jovens, pois estas ultimas, quando em publico, preferem falar baixo, quase sussurrando.
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Somente se a esposa do lfder de aldeia ou lfder de canto e uma reconhe, cida tecela, ela sera a txana ainbu ibu que ira organizar as sessoes de fias:ao coletivas no momenta da colheita do algodao. Parece existir uma associa, s:aoentre 0 tecer e as qualidades de uma pessoa banu, por um lado, e a pin, tura corporal e as qualidades de uma pessoa inani, por outra, apesar desta ser uma informas:ao derivada da cans:ao ritual e da fala masculina, que nao foi confirmada pelas mulheres. Novamente, 0 que parece prevalecer e uma complementaridade nos papeis e habilidades, mais que um vinculo rfgido entre determinados papeis e 0 pertencimento a metades. As metades conceituam a necessidade da alteridade para a identidade existir, nao definindo prerrogativas de grupo ou classificando pessoas em categorias mutuamente exclusivas por meio de definis:oes das especialida, des de cada metade. Deste modo, todo ser e toda forma e considerado 0 resultado da mistura aprapriada da diferens:a. E por meio desta raiz ontol6, gica que sustenta que dois saGnecessarios para fazer 0 um que genera e me, tades se encontram. Neste sentido, nao nos surpreende 0 fato de encontrar entre os Yaminawa, Matses e Matis (Erikson, 1996a,:90,108) a ligas:aoen, tre genera e metades: uma ligada a feminilidade e a outra a masculinidade. Uma associas:ao semelhante entre genera e metade pode ser encontrada, tambem, entre os Kaxinawa (McCallum, 1989a). Segundo Townsley (1988) a metade yaminawa roa representa 0 mundo aqu~ico e celeste, enquanto a metade dawa representa a terra e a floresta. A primeira metade esta qualificada pelo feminino e e ligada ao interior. As qualidades de maciez, apodrecimento, umidade, consanguinidade, e chefia estao sob a rubrica desta metade, e os ancioe~, as crians:as pequenas e as mulheres estao Hgados ao espas:o interno da aldeia. Por outra lado, a metade dawa e ligada de forma explfcita ao exterior, alfUeles que vem de fora (dawa e a varias:ao yaminawa para 0 nawa dos Kaxinawa), a dureza, a secura, a vida adulta masculinae, a sua expressao mais ca,racterfstica, a cas:a. Sao os homens que negociam com 0 mundo estrange ira, com os brancos e com os espiritos da floresta. A floresta e considerada um espas:o masculino e 0 homem, se quer ter exito na expedis:ao de cas:a, deve evitar carregar consigo cheiras da esfera domestica. Neste sentido, a metade mas,
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culina dos estrangeiros (dawa) e perfumada (da mesma forma que 0 morto quando passa a morar nos mundos celestiais), enquanto a metade feminina dos parentes (pr6ximos), 0 lado roa da realidade, exala cheiro de material perecfvel, organico e odores corporais. Entre os Matses da area do Javari (Erikson, 1996a: 90~108), uma metade e chamada bedi (Upintada", designa~ao metonfmica para on~a) e e ligada ao comportamento predat6rio masculino, enquanto a outra e designada macu (fermento (Erikson, 1996a) ou minhoca (Romanoff, 1984» e e ligada a esfera feminina da fermenta~ao. Oeste modo, as metades expressam a complementaridade de genero entre a dadiva da came, masculina, e a da bebida fermentada de milho, feminina. A associa~ao da metade macu a produtividade feminina e expressa pelo fato de que as pessoas desta metade eram responsaveis por manter as minhocas longe das planta~5es de milho, enquanto nao era permitido as pessoas da metade da on~a olhar para 0 milho com medo disto the causar algum dano (Romanoff, 1984: 96). Outro aspecto do dualismo matses (assim como do dualismo matis e yaminawa) e que, em bora 0 casamento com primos cruzados seja recomendado, a exogamia de metades nao parece ser obrigat6ria. Observa-se, entao, que este dualismo e mais "simb6lico" que "pnitico" se comparado as metades kaxinawa que nao servem apenas para conceitualizar for~as c6smicas atuantes no universo ou para estabelecer 0 pertencimento de todo ser humano a uma destas duas dimens5es que dividem todos os seres do mundo, mas, tambem, para organizar a vida social, no nfvel das escolhas matrimoniais. Ha, ainda, outra interpreta~ao para a flexibilidade do sistema de metades em rela~ao as preferencias matrimoniais, interp;et~ao esta que deriva do fato das metades estarem ligadas aos p610s complementares do interior e exterior. Se, como vimos, os Mayoruna e os Yaminawa reproduziam de forma atomfstica suas sociedades pela introdu~ao e ado~ao de cativos, podemos entender por que a alteridade real toma-se mais importante do que a divisao simb6lica da sociedade em interior e exterior. Se para os Yaminawa a metade associada a alteridade e qualificada como masculina, enquanto as mulheres pertencem ao interior, entre os Mayoruna, parece
ocorrer 0 oposto. Mulheres saG cativas e homens saGcapturadores. Deste modo, saGas mulheres, e nao os homens, que estao associadas a alteridade, ao exteriar e a inimizade. Os Matis apresentam um dualismo em latencia. Erikson (1996a: 90) sugere que este fato poderia ser devido, parcialmente, a redu~ao popula, cional dnistica sofrida pelo grupo nas ultimas decadas. Parece ter existido duas metades, uma chamada ayakobo e a outra tsasibo (tsasi: endurecido), e dois motivos recorrentes, losangos e cfrculos, poderiam ter estado, tradi, . cionalmente, ligados as metades. Por dedu~ao e associac;.aocom os dados obtidos entre os Matses, grupo mais pr6ximo dos Matis, 0 autar conclui que ayakobo deve estar relacionado ao feminino, ao perecfvel, a do~ura e fraqueza, enquanto tsasibo estaria ligado a on~a, predac;.aomasculina, amargura e dureza. Porem, hoje em dia nenhum Matis reivindica pertencer a esta metade ayakobo, e todos os ayakobo sao identificados como estran, geiros: Matis Utsi, "outro povo", "mais ou menos ridfculo (ou perigoso) como os Marubo e, acima de tudo, os Korubo", seus inimigos e "pessimos e preguic;.ososcac;.adares"(Erikson, 1996a: 94). costume matis, tanto masculino quanto feminino, de prender longas e finas espinhas aos pequenos oriffcios perfurados nas narinas evoca de urn modo notavelmente vistoso a identifica~ao visual com os "bigodes" da on~a. Ao inves de identificar uma metade com 0 exterior, os Matis parecem ter esvaziado uma de suas metades, aquela vinculada a alteridade, projetando,a sobre 0 exterior. A mesma consciencia da indispensabilidade da alteridade e da necessidade vital de incorpora~ao dos poderes ex6genos para a existencia da sociedade ainda persiste, no entanto, e esta parece ser a mais importante fundamenta~ao 16gicapor tr~s da grande variedade dos dualismos amazonicos. Deste modo, a permeabiltdade das fronteiras pano que separam 0 interior do exterior parece ser entendida pelos nativos como de impartancia vital para a constitui~ao de sua identidade e, conse, quentemente, de sua sobrevivencia social. Entre tanto , temos de lembrar novamente que quando falamos em dua' lismos estamos lidando com grada~6es e nao com oposi~6es mutuamente exclusivas. Para usar urn exemplo kaxinawa, todo ser humano e farm ado
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por substancias masculina e feminina (ossos e pele, respectivamente) e por comida amarga e doce, da mesma maneira que compartilham qualidades dua e inu. Seres humanos e os fenomenos incorporados do mundo foram criados pela mistura apropriada destas qualidades c6smicas. 0 estado de "pureza" primordial era 0 de nao-ser, urn tempo de extremos, de letargia no mundo do ceu e de fluidez excessiva de formas no mundo da agua. Este era 0 tempo de antes do mundo terrestre adquirir a forma e substancia que tern hoje. Esta forma e substancia SaGconseqiiencias da interdependencia das metades e do genero.
"A primeira vez que 0 branco viu urn fndio ele nao tinha roupas e estava brincando com morcego. (...) 0 branco perguntou para 0 indio quem ele era e ele, nao entendendo portugues, respondeu na lingua: estou matando [brincando com] morcego. A gente chama morcego kaxi. Assim 0 branco deu 0 nome: "voce e sua tribo sac Kaxinawa (kaxi-nawa)." Mito Kaxinawa I Lindenberg Monte, 1984: 29.
Esta hist6ria, escrita por um jovem kaxinawa em urn curso de treinamento para professores indfgenas, expressa com humor a l6gica do significado dos etnonimos entre os Pano. 0 etnonimo vem do exterior, dado por urn estrangeiro, urn nawa que chama 0 seu interlocutor, tambem nawa, por urn nome. Por exemplo, kaxi-nawa, "povo do morcego" (Kaxinawa), ou yami-nawa, "povo do machado" (Yaminawa). ...
De acordo com 0 mito, 0 nome e 0 resultado de um.engano, do fato de 0 nawa realmente nao entender (ou querer entender) 0 que esta sendo dito.9 Se nao houvesse problema de comunica~ao,
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estrangeiro te-
A maiar parte dos etn6nimos, dados por grupos pano a outros pano, era ofen siva. Torralba (1986: 12-13) da outra explica~ao ao nome kaxinawa. Os Yaminawa chamariam este grupo de kaxi-nawa (povo do morcego) par causa do suposto h:ibito destes de andar de noite. 0 etn6nimo para os Cashibo (kaxi-bu), grupo pano peruano, recebido dos vizinhos 'i
ria chamado seu interlocutor de huni kuin: "aquele que e propriamente humano", como todos os Pano se referem a si pr6prios. 0 ser humano "verdadeiro" e alguem que se comporta, fala e entende coisas de forma apropriada. Huni quer dizer "pessoa" e kuin constitui uma referencia para a identidade, semelhan~a ou similaridade a si mesmo ou a coisa a que se refere. Deste modo foi traduzido como "real" au "verdadeiro": "povo verdadeiro" (huni kuin); "lfngua verdadeira" (hantxa kuin); "desenho verdadeiro" (kene kuin). Esta tradu~ao pode, entretanto, sugerir um etnocentrismo kaxinawa e, em geral, pano (que usam varia~5es dialetais para a mesmo termo) do qual nao podem ser acusados (ver, tambem, Erikson, 1995: 7; e Keifenheim, 1990: 80). A 'tecelagem verdadeira' (tema kuin) e mais pr6xima do tecer propriamente dito do que a tecelagem com desenho (tema keneya). Do mesmo modo, um ser humano 'verdadeiro', huni kuin, e a mais pr6ximo da referenda a identidade daquele que profere a classifica~ao, do que uma pessoa simplesmente designada huni, nao considerada kuin. Entretanto ambos sao humanos, isto e, esta forma de classifica~ao nao produz uma grada~ao entre mais ou menos humano; a que ela engendra e uma qualifica~ao, sempre suplementar a uma nor;ao de hllmanidade constitufda. exemplo da tecelagem demonstra que a usa do qualificativo kuin nao transporta qualquer jufzo de valor, apenas adiciona uma qualidade a um significado preestabelecido. No caso da diferen~a entre tema kui~ e tema keneya, a prodllto mais valorizado e aquele com desenho, a que
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Shipibo, significa igualmente "povo do morcego", neste caso porque os Shipibo acusayam os Cashibo de serem canibais (Erikson, 1990b). Os Culina (que nao san Pano mas Aruak), par sua vez, san chamados pelos vizinhos Kaxinawa de pisi'rtawa (povo que fede), enquanto Tastevin anota no infcio do seeulo XX (1925a: 34) que osKaxinawa eram chamados de pisinawa pelos Paranawa (grupo pano atualmente inexistente sob este nome). Com rela<;:aoaos Yaminawa, Townsley pareee corroborar a visao express a na epfgrafe, a de que estes nomes se tornaram etn6nimos somente depois da chegada dosbrancos na regiao: "Era na verdade extremamente diffeil de saber quem, exatamente, eram os Yaminawa ... Tornou-se claro tambem que nomes como Yaminawa ou Sharanawa eram inven<;:6esrelativamente recentes e se tornaram designa<;:oesetnicas somente como resultado da imigra<;:aonao-nativa na regiao. Todos os Yaminawa respondiam igualmente a uma variedade de OLltrOSnomes nahua ... " (Townsley, 1988: 8).
demonstra a complexidade e beleza do trabalho de tecelagem, e nao 0 designado kuin.10 . Os criterios mais importantes usados pelos Kaxinawa para incluir urn estrangeiro na categoria huni kuin sao: semelhan<;a lingiHstica, uso correto dos nomes pr6prios (ligados ao sistema kariera de transmissao dos nomes), alimenta<;ao, aparencia ffsica e modo de vestir. 0 lfder de canto Augusto classificou os Yaminawa, Katuquina e Shipibo (povos pano com os quais teve contato pessoal durante sua vida), assim como os Yuda recentemente contatados do Parque Manu no Peru (cujas fotografiasll the lembravam seus antepassados) pelo termo huni kuin (pessoas como n6s mesmos)j porem; qualificou esta inclusao com 0 uso do termo "betsa" (outro): huni kuin betsaki (eles SaG"outros huni kuin"), nukun nabu betsaki ("eles SaGrelacionados a n6s (parentes), mas SaG'outros' (betsa)").12 Esta citac;ao revela uma diferenc;a entre a 16gica classificat6ria escolhida por meu interlocutor kaxinawa do rio Purus no lado brasileiro, e aquela usada pelos interlocutores de Keifenheim do lado peruano. Parece que estamos lidando mais com nuances de estilos e diferenc;as de enfase do que com uma verdadeira diferenc;a no discurso sobre identidade etnica. Em func;ao do intenso contato entre pessoas e famflias que cruzam a fronteira brasileiro-peruana nao existe, de fato, uma divisao que pode ser trac;ada entre eles, todos os Kaxinawa tern parentes pr6ximos em ambos os lados da fronteira. • A 16gica usada para a classitlcac;ao etnica a qual estou recorrendo aqui se torna interessante se a colocamos no contexto mais amplo das etnografias
10 OlltroS exemplos deste tipo san encontrados no sistema taxon6mic~da cllltura material kaxinawa propos to por Kensinger (in Dwyer, 1975). 11 Fot,)S pruvenientes de Verswijver (1987). 12 Quando os Kaxinawa se referem a ·povos pano arredios com os quais frequentemente entram em conflito (nas regi6es do Envira e do Jordao), estes saC>chamados de Yaminawa. E Interessante neste contexto a informa~ao dada por Calavia (1995: 150) com rela~ao ao uso do termo kaxinawa peIos Yaminawa. Um grupo pano arredio encontrado pelos Yaminhua foi classificado como "kaxi Mwa" ("pOVOdo morcego"). Este grupo foi parcialmente incorporado peIos Yaminawa. Segundo os Yaminhua os indios que san designados hoje em dia par Kaxinawa san na verdade os Shaindawa ("pOVOnumeroso").
pano em que se observa maior flexibilidade e ambiguidade na atribui~ao da identidade etnica e alteridade que a sugerida para os Kaxinawa peruanos por Deshayes e Keifenheim (1982; 1994). Ao aplicarem 0 esquema con~ ceitual proposto por Kensinger, kuin/kuinma (eu/nao~eu), kayabi/bemakia (outro/nao~outro) ao modelo tripartite da identidade etnica (eu, domfnio intermediario, Outro), 0 resultado foi uma clara demarca~ao dos limites etnicos. Neste sentido, todos os Kaxinawa seriam incluidos na categoria de "huni kuin" (pessoas que pertencem ao mesmo grupo etnico), enquanto seus vizinhos pano seriam chamados de "huni kayabi" (nao~eu e nao~ou~ tro), e todos os nao~Pano "huni bemakia" (Outros). Para melhor explicar 0 significado contextual de kayabi ("born sem ser o proprio") e bemakia (improprio) aplicarei estas no~5es ao dominio do de~ senho. Quando uma pintura corporal grafica kaxinawa e executada corre~ tamente, isto e, seguindo as regras estilfsticas, e chamada kene kuin ("dese~ nho verdadeiro"). Uma tentativa nao muito bem~sucedida, feita por uma aprendiz que segue as regras do estilo mas nao as executa com perfei~ao, e designada como kene kayabi ("desenho born, mas nao proprio"). Existem ainda mais especifica~5es. Urn desenho pode ser razoavelmente bem feito, mas nao recebera a mesma classifica~ao atribufda aquele grafismo dese~ nhado por uma pessoa qualificada ou que tern 0 "saber" do desenho. Deste modo, quando urn homem tenta fazer urn kene kuin, prerrogativa feminina, sera ridicularizado pelo comentario de uma .ulher: "Na kene bemakiakil" ("Este e urn desenho improprio!") ou ainda, "Kenemaki, damiki!" ("Este nao e urn desenho, e uma figura!", que significa que nao obedece a regra grafica). Do mesmo modo, uma tentativa razoavelmente bem~sucedida de urn nao~Kaxinawa, que imita 0 desenho sem legiti~idade (como aconte~ ceu comigo durante meu aprendizado), e classificada pbi uma especialista como "kene kayabiki!" ("isto e urn desenho, nao 0 'proprio"').]a no final de minha estadia, uma professora menos severa encorajou minhas tentativas, mostrando meus desenhos a outros e dizendo que eu tinha produzido, fi~ nalmente, 0 verdadeiro desenho. Como foi mencionado acima, Augusto nao usou 0 qualificativo kayabi (nao-eu) para seus vizinhos pano do Peru, nem chamou os brancos pelo
termo huni bemakia (Outros). Como p610s extremos da classificayao usou huni kuin ("realmente pessoas como n6s") para aqueles que considerava relacionados e nawa kuin (verdadeiros estranhos, inimigos) para os nao~ relacionados. 0 que ou quem e inclufdo em uma ou outra categoria nao e sempre claro e depende do contexto. Alem disso, a qualificayao pode ser ajustada pelo termo "betsa", outro. Se 0 t6pico Fossea diferenya entre habitos ou costumes indfgenas e nao-indfgenas, alimentayao ou polftica, por exemplo, ate mesmo os Culina poderiam ser inclufdos na categoria kuin (n6s). Porem, quando 0 t6pico e mais especffico elida, por exemplo, com nomes e idioma, os Culina san exclufdos e designados como nao~ huni kuin: huni kuinma. termo, betsa (outro), usado por Augusto para diferenciar os Kaxinawa (huni kuin) de outros grupos pano (huni kuin betsa) segue 0 padrao geral pano da nomeayao dos "outros pr6ximos", ocupando 0 domfnio intermedio. Ponanto, e aqui sigo a comparayao feita por Erikson dos etnonimos pano (1986: 185-209), os Amahuaca (Dole, 1979: 35) referem-se a si mesmos pelo termo namivo ("aqueles que compartilham nossa carne") e aos demais Pano por yoratsa (equivalente de yuda betsa, "outro corpo")j os Sharanahua (Siskind, 1973a: 49-50) se autodenominam pelo termo noko kaifo ("nossos", "os que cresceram juntos", urn equivalente do Kaxinawa nukun nabu, parente pr6ximo) e seus vizinhos por yura futsa ("outro corpo"); os Matis usam 0 termo ~atis para sua auto-referencia ("povo",
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equivalente de huni), enquanto cham am seus vizinhos pano de matis utsi ("outro povo"). "Se nos detivermos apenas nos dais primeiros termos, a imagem utili:ada e aquela de indivfduos ligados par uma rela
sec~ao, de meu genera, e 0 mais freqiientemente de minha gera~ao, a saber, aqueles que possuem uma posi~ao equivalente a minha no sistema de parentesco." (Erikson, 1986: 189)
Na terminologia de parentesco kaxinawa (como entre os demais Pano, Erikson, 1986), en betsa ("meu outro") e usado para designar urn irmao, irma ou primo paralelo do mesmo sexo de ego, significando alguem que embora seja diferente po de ser considerado "alguem como eu" por ocu~ par a mesma posi<;.ao.A diferen<;.aesta no corpo, pois embora 0 corpo seja semelhante a outros corpos, e, por defini<;.ao,linico. Betsa tambem qualifica uma rela<;.aoenquanto diferente da rela<;.ao"pr6pria": ewa kuin (mae verdadeira) e ewa betsa ("outra mae", a irma da mae). A aplica<;.ao do termo betsa pode ser seguida do qualificativo kuin: en betsa significa primo paralelo, enquanto en betsa kuin, irmao para ego masculino e irma para ego feminino. Quando estes termos para "outros similares", que se referem a pessoas que hipoteticamente poderiam ocupar 0 mesmo lugar que ego (como no caso dos gemeos), sac estendidos aos demais Pano resul~ ta uma concep<;.aoflexfvelerelativista da identidade etnica, expressando uma consciencia da possfvel reversibilidade de posi<;.5es. Uma autodenomina<;.ao menos inclusiva que a de huni kuin e nukun yuda, "nosso corpo", urn termo que alude a uma identifica<;.ao mais res~ tritiva, ao fato de tQmpartilhar urn "corpo", aludindo a urn processo de crescimento particular que remete a uma singularidade hist6rica que nao e intercambiavel. Nukun yuda (nosso corpo) nao inclui outros Pano, estes tern 0 "corpo produzido" de forma semelha~te, mas nao identica ao "corpo kaxinawa". Uma defini<;.aoainda mais restrita do pertenci~ mento e sustentada pela expressao, en nabu, meus parentes pr6ximos. A expressao "en nabu" refere a uma consubstancialidade alcan<;.adapelo compartilhar de vida e comida e do contata corporal; define~se, tam~ bern, pelo trabalho partilhado, ao fata de crescer e viver em uma mesma comunidade. Outros povos tern, tambem, urn corpo construfdo e cuidado de urn modo semelhante ao que e considerado "nosso", mas e urn corpo diferente. Ado~
tando~se urn ponto de vista a partir da noc;ao de corpo, 0 outro absoluto e urn ser sem urn corpo e sem urn lugar proprio. Neste contexto, 0 morto e 0 outro real, como os yuxin, familiares do morto. Porque os nawa (verdadeiros estrangeiros) nao vivem seus corpos da mesma forma que os huni kuin 0 fa~ zem, nao ha: 0 compartilhar do mingau de banana, milho, mandioca e cac;a, nem 0 viver entre os parentes proximos, considera~se que seus corp os sac diferentes. Estrangeiros verdadeiros nao sac designados yuda betsa (outro corpo) e nem mesmo yuda bemakia (corpo improprio); nao ha: referencia ao processo de crescimento da came e do corp 0, poderiam ser considera~ dos como yuxin, vagam solinitios e se alimentam de farinha de mandioca e cafe.13 Estas pessoas sac chamadas de nawa, inimigos, uma palavra que conota diferenc;a e antagonismo. Yuxin e cac;a podem ser igualmente desig~ nados como nawa quando sua hostilidade e invocada nas canc;5es rituais. A importancia do corpo e da memoria encorporada, construfda pelo cuidar dos corpos uns dos outros no interior de uma comunidade, 0 que, por sua vez, leva a uma consciencia da identidade compartilhada cria~ da pela circulac;ao simultanea de substancias e de experiencias, tern im~ plicac;5es naoapenas para a constituic;ao da socialidade kaxinawa, mas para uma concepc;ao amerfndia do parentesco (Gow, 1991). Deste modo, Seeger (1981: 283) cunha 0 termo organizac;ao "corporea" ao inves de "gru~ pos corporados" ao se referir as sociedades amerfndias. Viveiros de Castro char~u atenc;ao para a importancia da "fabricac;ao social do corpo" pelos Yawalapiti do Xingu que concebem toda intervenc;ao no corpo como uma modelagem simultanea do corpo e da personalidade social (Viveiros de Cas~ tro, 1979: 40). A formulac;ao original sobre 0 valor social atribufdo ao corpo e sua importancia na constituic;ao de urn socius encontra~se justamente em urn texto que associa, diretamente, corporalidade a constrtlc;aO da pessoa: "Cada regiao etnografica do mundo teve seu momento na hist6ria da teoria antropo16gica imprimindo seu selo nos problemas caracterfstiIJ Diversos especialistas sugerem a possibilidade da oposi~ao entre 'espfrito' e corpo humano ser a principal distin~ao classitlcat6ria para os Pano. Cf. Calavia (1995), Erikson (1996), Deshayes e Keifenheim (1994).
cos de epocas e escolas. Assim, a Melanesia descobriu a reciprocidade, 0 Sudeste asiatico a alian<;a de casamento assimetrica, a Africa as linhagens, a bruxaria e a politica [...]. A originalidade das sociedades tribais brasileiras (de modo mais amplo sul-americanas) reside numa elabora<;ao particularmente rica da no<;ao de pessoa com referencia especial a corporalidade enquanto idioma simb6lico focal. Qu, dito de outra forma, sugerimos que a no<;ao de pessoa e uma considera<;ao do lugar do corpo humano na visao que as sociedades indigenas fazem de si mesmas sac caminhos basicos para uma compreensao adequada da organiza<;ao e cosmologia destas sociedades." (Cf. Seeger, A., Da Matta, R. e Viveiros de Castro, E., 1979: 2-3)
Espero poder demonstrar, a partir do material kaxinawa, que estas ideias semina is ainda estao vivas nas indagac;5es etnol6gicas atuais. As conseqilencias desta problematizac;ao do corpo para uma reflexao sobre a concepc;ao de "socialidade" amerfndia se fizeram sentir apenas recentemente, 0 que conduziu, por exemplo, a uma revisao do significado de "hist6ria" para os amerfndios em termos de uma "hist6ria encorporada" (Gow, 1991: 264) e a uma problematizac;ao dos dualismos Cultura/Natureza e corpo/mente no universe transformacional amerfndio (Overing, 1996; Arhem, 1993, 1996; Isacsson, 1993 e outros). Outro fato etnograficamente recorrente e 0 uso do corpo como metafora para a orientac;ao no mundo. Em uma regiao que se estende da Amazonia ocidental ao Norte oriental, dos Embed da Colombia, passando pelos Marubo e Matis, aos Yekuana, Wayana-Apalai e Barasana, para citar apenas alguns exemplos de um fenomeno largamente dif\mdido, a metafora do corpo e usada na orientac;ao e descric;ao da casa.14 A citSa e vista como um ser organico e suas partes diferentes sao designadas por °rermos que equivalem a partes do corpo: a entrada pode ser sua boca ou vagina, 0 telhado seu cabelo, a safda seu anus. A casa, pOTsua vez; representa uma metafora da 14 Isacsson (1993); Montagner (1985: 470-482); Melatti (1989a); Melatti & Montagner (1986); Erikson (1987,1989,1996); Guss (1989); Van Velthem (1995); Hugh-Jones, C. (1979); Hugh-Jones, S. (1979, 1995).
forma e funcionamento do cosmos, ou as vezes torna-se 0 proprio cosmos, em que a entrada em urn novo mundo e descrita enquanto uma entrada em uma casa. Este tema tern uma importancia crucial na experiencia da "visao xamanica interior", visao em que SaGsobrepostos os nfveis micro e macro, corpo/cosmos, casa/cosmos.
"A ciencia da cobra esta sendo transferida pelo sol." Agostinho do Rio Jordao
o mito
de origem do desenho me foi contado em kaxinawa por Teresa, mae de Pancho, lfder de Cana Recreio, e mulher mais velha da aldeia, durante minha primeira estadia de campo. Seu genro Arlindo ajudou na tradU<;ao. Yube dunuan ainbu, 'Yube a jib6ia mulher', ensinou a Muka bakanku, uma mulher velha, os desenhos de jenipapo, os desenhos da rede, da cestaria e da ceramica. Muka ia toda madrugada para a mata e se
.
sentava perro de sua cunhada, a cobra. Esta estava tecendo e cantava pakadin para Muka:
Vai aprender desenho logo. Nao pisca com os olhos. A mao ligeira faz assim tambem. Coloca rodo tempo 0 fio. Quero olho de desenhar bem.
Txana dua bake ea beduayuwe. Bedu xekatema. Inu meken bisu yumen meken dabi. dabi awe.
Quero olho de japim filha de dua. Nao olha todo canto. A mao de on~a faz, a mao duas vezes, duas vezes faz.
A velha Muka voltava toda madrugada para aprender as artes da jib6ia ate que urn dia a cobra falou: 'Cunhada, me embora', e ela voltou para
0
agora voce ja aprendeu tudo, eu vou-
rio.
Muka s6 tinha urn filho, Napu ainbu. E quando sentia que ia morrer, ela s6 tinha a ele para ensinar
0
que sabia. Ensinou para ele como desenhar, tecer
e cantarj e quando morreu e 0 filho ficou sozinho, ele foi viajar para procurar seus parentes de outra aldeia. Quando chegou
a aldeia,
seus parentes, que nao
0
conheciam,
pensavam
que Napu era mulher, porque Napu estava pintado como mulher, vestido como mulher e agia como mulher. 'Vem ca cunhada', falou para suas primas, 'vamos desenhar'. 'Voce sabel', perguntavam, mulheres
0
'sei', disse. E Napu ensinava as
que tinha aprendido com a mae.
Todos os huni kuin da aldeia ficaram entusiasmados
com e muitos queriam
casar com ele. Certo dia uma das suas primas foi tomar banhocom e voltou surpreendida. mem, eu
.,
Napu
Ela avisou os homens, falando: 'nao e mulher, e ho-
VI.
Mas urn dos homens estava tao apaixonado por Napu que nao quis escutar. Napu falou, 'nao faz ~o comigo', mas a homem insistia e finalmente venceu Napu de ir com ele para a mata, onde
0
con-
namorou (puikini, no anus,
txuwniki, fazer sexo) e assim engravidou Napu. A crian~a cresceu e quando era para nascer, sua cabe~a nao conseguia sair. Napu ~orreu e as huni kuin ficaram com raiva do homem que matou Napu que sabia 'ao bem desenho." (Teresa, in Lagrou, 1991)
o nome
Yube atribufdo
a jiboia que ensinou
re a liga~ao entre a lua - que se chamava a ciclicidade
e a fertilidade.
0
tambem
desenho
para
Muka suge-
Yube - e a pele da cobra:
A origem da lua esta ligada a primeira
mens-
Yube. A menstrua~ao e, para os Kaxinawa, condi~ao sine qua non para engravidar e Yube, a jiboia, deu as trua~ao das mulheres,
uma vingan~a/dom
de
mulheres 0 poder de controle do fluxo de seu sangue menstrual. 0 mesmo ser Yube, enquanto sucuri, "da e tira vida". Alem disso, a jib6ia/sucuri Yube tem 0 segredo da vida etema porque ouviu 0 aviso do pai ancestral Pukan de trocar a pele (veremos adiante que a jib6ia e a sucuri representam para os Kaxinawa uma s6 especie). A jib6ia deu 0 desenho somente as mulheres, mas os homens desejam muito ter 0 desenho. 0 desejo do homem pelo desenho esta intimamente ligado a seu desejo pela mulher. A transgressao no mito, que provocou a morte do her6i, esta na transmissao de um conhecimento fundamental, mente feminino a um homem, 0 unico filho da velha que aprendeu 0 dese, nho. Napu, quase mulher, foi incapaz de parir 0 filho. 0 termo Napu ainbu e usado pelos Kaxinawa para se referir a 'homens que gostam de namorar outros homens'. Outro mito de origem do desenho situa a obten~ao do desenho cor, poral no contexto do encontro amoroso de um homem chamado Basabu keneya com uma mulher inka. Os amantes foram pegos em flagrante pelo marido inka que, enciumado, iniciou um briga corpo a corpo com seu rival. Basabu venceu 0 Inka, deixando,odesmaiado, "como se estivesse morto". Neste momento, antes que 0 marido recuperasse os sentidos, a mulher inka pinta Basabu com desenho, dando origem a seu nome: "Basabu com desenho", Basabu keneya. Este parece ser 0 primeiro evento em que u~ homem foi pintado, 0 que nao quer dizer que aprendeu a arte de desenhar, como aconteceu com Napu ainbu, Napu mulher. A pintura e aqui, no caso de Basabu, como 0 sera no mito de Yube, a marca reve, ladora do encontro amoroso pintada no corpo do, amante, alem de ser a marca de sucesso do guerreiro. A mulher inka marca no corpo de Basabu este encontro secreto, que representara a marca visnrel da experiencia encorporada do aventureiro. Outro mito, registrado por Abreu, fala deste fascfnio do homem pelo desenho, 0 desenho da cobra (1941: 523 ).1 0 evento, porem, nao leva a origem do saber a respeito do desenho: 0 homem 'com inveja' do desenho
recebe de Yube, depois de mataAo, seu nome e com de viajar para outros mundos.
0
nome a capacidade
"Urn caxinaua foi ca~ar. Na mata avistou a sucury, gritou par suas gentes. Suas gentes vieram, perguntaram: Que e? - Avistei a sucury deitada, vamos mata-Ia. Foram: levou-as, mostrou-Ihes. A pintura da sucury era bonita, cubi~osos da pintura mataram-na, esfolaram-na, arrancaram-Ihe 0 cora~ao, penduraram a pelle, da pelle fizeram chapeus. Abandonaram 0 corpo. caxinaua que matou e esfolou a sucury, jejuou, armou a rede alto,
o
deitou-se, sonhou. A sucury veio e perguntou: Que te fiz? Por que me mataste? - Fiquei com inveja de tua pintura, matei-te. - Nao te matei: por que me mataste? Dou-te meu nome: sou i6bo (Yube); agora teu nome e i6bo. Quando acordou disse a suas gentes: chamome i6bo: iObo, que eu matei, me deu seu nome. Depois jejuou, nao comeu ca~a, ficou deitado. A sucury apodreceu, 0 urubu estava comendo, 0 caxinaua fez tapiry para mata-Io. Disse-Ihe 0 urubu: Porque me queres atirar? Nao te atirei. Levo-te para 0 ceu: 0 ceu e muito bonito. 0 urubu tomou-o as costas. '0 caxinaua segurou-Ihe as asas, subiram, entraram no ceu'."
o encadeamento
•
da narrativa citada por Capistrano de Abreu permite supor que 0 Kaxinawa levado ao ceu pelo urubu seja 0 mesmo que matou a sucuri Yube. Sua identidade com a sucuri, transmitida pelo nome, deulhe 0 poder de viajar ao ceu e voltar, pois 0 mito - demasiadamente longo para transcreve-lo integralmente - conta ainda 0 que 0 homem ve no ceu, como ele e levado de volta para sua aldeia e como' ensina aos parentes 0 que viu no ceu. No mito transcrito abaixo veremos como 0 homem e de novo seduzido pelo mundo das sucuris, que percebe na forma de uma linda mulher, coberm com desenhos, e aprende com ela como viajar com nixi pae para desta vez conhecer a vida do povo que vive na agua. A combina~ao dos quatro mitos do desenho mostra bem 0 carater 'feminino' do conhecimento que o homem ali procura, urn conhecimento que a mulher poe em pratica,
desenhando. conhecida completado
0 mito de origem da bebida do nixi pae, ayahuasca ou cipo, porinduzir
vividas vis6es, me foi contado por Milton Maia e foi
por Maria Domingo:
"Urn homem foi ca~ar. Ele construiu urn tapiri perto de urn jenipapeiro para ver se a anta chegava. A anta veio, mas nao comeu os jenipapos. Pegou urn na boca e jogou-o no lago: txibun. Depois jogou outro e depois mais urn: txibun, txibun. Do lago saiu uma cobra que se transformou numa linda mulher, toda desenhada com jenipapo. A mulher procurava a anta que estava escondida atras da arvore. Achou a anta e a anta a pinicou.2 homem, escondido, olhava. 'Que linda mulher', ele falava consigo mesmo, 'eu quero esta mulher, amanha you fazer a mesma coisa que a anta fez'. A cobra voltou para a lago e a anta foi embora. homem voltou para casa. Em casa ele nao conseguia esquecer o que tinha vista. Nao queria comer a comida que sua mulher lhe dava e nao queria con tar 0 que acontecera. Deitou-se na rede, mas nao conseguia dormir. Na manha seguinte, 0 homem voltou para 0 lago. Pegou tres jenipapos e jogou-os na agua: txibun, txibun, txibun. A mulher-cobra saiu da agua pensando que quem estava la era a anta. A cobra era a mesma bela mulher do dia anterior e foi para a arvore onde encontrou 0 hamem. Ela se assustou e perguntou ao homem: '0 que voce veio fazer aqui?' 0 homem falou: 'Estava aqui ontem e vi que a anta pinicou voce. Queria fazer a mesma coisa'.
o
o
'Espere urn pouquinho', falou a cobra-mulher, 'vamos conversar primeiro'. Mas 0 homem era teimoso e agarrou ela. A mulher se transformou em cobra e se enrolou no corpo do homem. Ele ficou apavorado e a cobra falou 'Viu? Somos assim tambe~:Se voce quiser mesmo me pinicar, vai ter que conversar primeiro'. Ela largou 0 homem e era a mulherde novo. 'Voce tern famflia?', perguntou. Eo homem mentiu, 'Nao, nao tenho familia. Sou solteiro'. 'Que born', falou a mulher, 'Sou solteira tambem. Estou procurando urn marido
para levar para casa, para ajudar meus pais. E yOUfazer amor com voce somente se voce me prometer que vai comigo morar no lago'~ E a homem falou:
o homem
HE, queria
isso mesmo, queria me casar contigo".
pinicou a mulher-cobra, e depois ela espremeu a sumo de
uma folha nos seus olhos para ele nao ter medo. Mas ele tinha medo. Mesmo assim a mulher pegou a homem nas costas e pulou com ele na agua. 0 homem foi bem recebido pelas sueur is. Fazia ro~ado para sua mulher e ca~ava com seu sogro. Ele ficou tres anos e fez tres filhos com sua mulher. Urn dia a mulher avisou seu marido que as sueur is iam tomar nixi pae, e que seria melhor ele nao tamar. 'Nao tome, voce vai se assustar. Voce nao vai agiientar e vai gritar a nome da minha gente. Se fizer isso, eles vao te matar.' Mas a homem, teimoso como sempre, quis tomar. Foi junto com seu sogro cortar a cip6 e a folha e de noite sentou junto com a aldeia toda e tomou urn capo inteiro. A visao veio e a homem ficou com medo, gritou: 'As cobras estao me engolindo'. E as cobras ficaram brabas. No dia seguinte ninguem mais queria falar com ele, ninguem b convidou para comer e ele saiu para a mata para ver se ca~ava alguma coisa. No caminho ele encontrou um bodozinho (peixe), que falou para ele: 'Voce esta em perigo, as cobras vao te matar. Vem comigo, you te levar para a igarape onde escutei tua mulher chorar par voce. Ela esta com muita saudade, faz tres anos que voce nao volta para casa e ela nao tem quem cace para ela'. Eo homem se lembrou de sua familia e ficou com muita saudade tambem. 0 bod6 botou remedio nos seus olhos e levou a homem para a igarape de sua mulher. Sua mulher levou um susto porque pensava que seu marido estivesse marta, mas quando viu que era ele mesmo, vivo, ficouTeliz e levou a homem para casa. Serviu cai~uma, macaxeira e banana cozida para ele. 0 homem corneu e quando foi dormir, pendurou sua rede bem alto para as cobras nao acharem ele. Assim ficou escondido durante urn ana, quando seu filho nasceu.
o homem
foi procurar jenipapo para pintar seu filho recem-nascido,
mas come~ou a chover e os rios se encheram de agua. 0 homem caiu
com 0 pe num igarape e uma cobra, seu filho menor, pegou 0 dedao do seu pe. Depois veio sua filha maior que engoliu 0 pe e quando chegou sua mulher, ela engoliu seu corpo inteiro ate os bra<;os;mais nao podia porque ele tinha os bra<;osabertos segurando uma arvore. homem gritava e seus parentes chegaram para salva-lo. Mas seus ossos estavam quebrados e ele ficou rodo mole. Ele queria saber quando ia morrer e chamou os homcns para procurar 0 cip6 e a folha do nixi pae. Os homens trouxeram todo tipo de cip6 ate acertar. 0 mesmo aconteceu com a folha. Ele explicou entao como preparar a bebida e depois de deixa-la esfriar, a tomou de noite com os homens adultos da aldeia. 0 homem cantava os cantos que tinha aprendido
o
com as cobras. Cantou a noite inteira, 0 dia seguinte, mais uma noite e urn dia e no fim da terceira noite ele morreu. Seu corpo foi enterrado e dos seus membros nasceram quatro tipos de cip6: 0 xane huni (passarinho azul-gente), nasceu do seu bra<;odireito; o baka huni (peixe-gente), nasceu do seu bra<;oesquerdo; da sua perna direita nasceu 0 xawan huni (arara-gente) e da sua perna esquerda 0 ni huni (formiga-gente).3 Tinha tambem urn menino pequeno que nao romou nada, mas escutou a noite toda. Quando Yube estava morto, os l Estes quatro tipos de cip6 (Banisteriopsis caapi da familia dos Malpighiaceae, contendo os alcal6ides hannine e hannaline) dao mira<;:6es diferentes em cor e intensidade. Sao quatro "f1tas",uma azul (nanketapa) , outra branca (huxupa), a terceira vermelha (taxipa) e a ultima preta (mexupa). Disseram-me que 0 mais forte e perigoso mesmo era 0 baka huni, e que 0 que se tomava mais porque era bonito, eram 0 xawan e xane huni. As diferen<;:as entre os tipos de cip6 nao se devem a possibilidade de existencia de diferentes especies, mas a rela<;:aodestes com 0 corpo da planta. A qualidade do cip6 depende da anatomia da planta: se 0 cip6 foi cortado na raiz, no meio ou na extremidade. Existem varias especies de folha (chacruna, Psichotria, da familia Rubiaceae) que podem ser usadas na mistura com 0 cip6. Uma especie, 0 kawa matsi, a chacruna £ria,provoca uma sensa<;:aode frio e da pouca visao. Segundo Milton Maia (dono do cip6 em Can~·itecreio) esta folha s6 e usada por engano ou se nao se tiver a outra, porque a outra e a verdadeira, ninkawa. Antonio Pinheiro mencionou, alem destas duas, 0 huni kawa (chacruna gente) nai kawa (chacruna ceu) edami kawa (chacruna transforma<;:ao).Segundo DerManderosian, Kensinger, e outros (1970: 7-14), que identif1caramdois tipos de folha, nai kawa e matsikawa, somente 0 nai kawa seria a Psychotria viridis que tern 0 DMT (N, N-dimethyltripwmine). o DMT em si nao e tido como psicotomimetico por via oral, porque e inativado pelo monoamine oxidase (MAO); a hip6tese dos referidosautores e que este MAO seria inibido pela harmina e harmalina que se encontram no cip6. Da mistura de folha com cip6 I
homens tentaram lembrar 0 canto que ele Ihes havia ensinado. Mas todo mundo esqueceu, somente 0 menino lembrava." (Milton Maia e Maria Domingo, in Lagrou, 1991)
Podemos resumir a sequencia das as:6es no mito da seguinte maneira: 0 ca~ador espera a anta embaixo de urn pe de jenipapo. Para sua surpresa, a anta nao come os frutos; joga-os no lago onde uma mulher pintada e quem os 'fisga'. A anta 'pesca' a mulher e nao e ca~ada pelo cas:ador. 0 jenipapo passa de isca de cas:a a isca sexual. A anta e a mulher-cobra copulam. A cobra nao come 0 jenipapo, 0 usa para transforma-Io em tinta preta para a pintura corporal, pintura que servira, por sua vez, como isca para os homens atraves do poder de sedu~ao do desenho. ca~ador fascinado esquece sua presa, a anta, e retornando de maos vazias para casa, torna-se ele mesmo presa, presa da sedus:ao. No dia seguinte, volta para 0 lago para imitar a anta. Quando a mulher-cobra aparece 0 ca~ador pula sobre ela e a agarra como se Fosse sua presa. Neste momenta a mulher-cobra, invertendo 0 jogo, transforma 0 predador em sua presa, enrolando-se, em forma de cobra, ao red or do seu corpo. Para sair da posis:ao de presa 0 cas:ador fala. Atraves da fala a presa transform a de volta seu predador, a cobra, numa mulher que ace ita fazer sexo com ele. 0 cas:ador, entretanto, nao e menos sua presa. Hipnotizado (a cobra coloca gotas medicinais nos seus olhos), e levado pela mulher-cobra para
o
resulta um alucin6geno forte, combinando tres princfpios psicoativos. Rivier & Lindgren (1972: 101-129) notaram as mesmas folhas entre os Sharanahua (Pano) e la tambem "'Batsikawa' e considerado inferior ao 'Pishikawa' (ou kawa kui): da a impressao de frio e produz menos vis6es". E para completar a revisao do uso da m~sma beberagem entre varios grupos pano, a coloca~ao de Hamer (1973: 4): "No rio Uc~y-;li no Leste peruano, notei que os Shipibo-Conibo adicionama ayahuasca as folhas de uma plama botanicamente nao-identificada chamada cawa, que e provavelmeme a Psychotria .dos Kaxinawa, lingUisticamente pr6ximos. Carneiro relata igualmente [...) que os Amahuaca, vizinhos e muito pr6ximos, usam as folhas kawa como fortalecedor". Antonio Pinheiro Kaxinawa me disse que, alem do cip6 e da folha (a folha eo cip6 batido sac fervidos durante uma hora e tornados quando esfriado, sempre no mesmo dia), a fuma~a da lenha usada para ferver 0 nixi pae e importame para apurar a beberagem assegurando uma viagem segura. E a madeira do yapa (murmuri) que se usa com este fim.
o mundo aquatico. A hipnose somente sera quebrada atraves do uso do cipo, pois uma vez sob 0 efeito da bebida, 0 ca~ador se da conta de que esta vivendo em urn ninho de cobras. o dono do nixi pae e a mesma sucuri/jiboia que deu as mulheres 0 desenho, mas desta vez ela e uma jovem mulher cuja aparencia leva 0 homem a se esquecer da ca~a e da familia para deixaNe levar para 0 mundo embaixo da agua. Atraves da aventura que 0 levou quase a morte, ele aprendeu e trouxe para seu povo 0 conhecimento da bebida que da acesso aos mundos invisiveis dos seres da agua, do ceu e da floresta. A associa~ao com 0 desenho aparece no inicio e no fim do mito: e com jenipapo que as mulheres pintam diariamente os desenhos nos corpos e nos rostos de homens, mulheres e crian~as. A mulher-sucuri era muito bonita; ela estava toda pintada com desenhos de jenipapo. Este foi 0 primeiro contato do homem com 0 mundo do nixi pae, uma visao "alucinante". Eo segredo de chamar a cobra estava tambem nos jenipapos. Foram, desta forma, os mesmos jenipapos os culpados da sua recafda: quando saiu a procura de jenipapo para pintar seu filho as cobras se vingaram. Pancho, lfder de Cana Recreio, me contou que esta cena da cobra que engole 0 primeiro humano a experimentar a bebida e uma passagem caracterfstica da primeira viagem com nixi pae: 0 aprendiz e engolido pela sucuri e faz uma viagem (assustadora) dentro do corpo da cobra, para ser vomitado no final da viagem numa praia, onde escuta de longe, do alto do barranco, as can~5es dos seus parentes do cipo que 0 estao chamando. 0 homem ve, mas a experiencia da viagem, do movimento, da transforma~ao e do perigo, nao se expressa em desenhos; 0 meio de expressao 1Uasculina e a can~ao. As letras elaboram uma linguagem visual que e cantada e nao desenhada. E cantam: "meu canto e urn desenho", "0 desenho e urn caminho".
o processo
ritual de aprendizagem da tecelagem com desenho pela adolescente tern dois momentos. 0 primeiro acontece com a ajuda do marido, segundo alguns, com a ajuda da avo materna, segundo outros, logo depois
do casamento, quando a recem~casada passa grande parte de seu tempo aprendendo a tecer desenhos complicados, de preferencia com sua avo materna. 0 segundo evento ritual acontece sempre sob os auspfcios da mestra da aprendiz. rito do qual participa 0 esposo lembra 0 mito coletado por Abreu em que 0 homem mata a sucuri porque deseja ter seu couro. No caso do rito, o motivo da matan<;a e a inspira<;ao da mulher. 0 homem, ciumento, quer para sua mulher 0 que a cobra tern. Na noite de Yube nawan buxka (cabe<;a de Yube morto: lua nova) 0 casal vai para a floresta a procura da cobra com desenho (dunu keneya), a jiboia. 0 homem mata a jiboia e a mulher leva 0 couro (dunu bitxi) para casa, cantando:
o
Dunu dua waki kene bedu en biai. Cobra me ajuda para pegar olho de desenho. Xamami en biai. Vou pegar xamanti. Txede bedu en biai. Vou pegar txede bedu (olho de curica). sol, 0 sol. Badikedi badikedi. Inka kene yukaiki. Pedindo 0 desenho do Inka.
o
(Teresa in Lagrou, 1991).
o couro
e pendurado no alto do teto onde ninguem 0 Ve, em cima do tear da mulher recem~casada. Nao se pode apomar 0 couro com 0 dedo e perguntar "Quem e que matou esta cobra?" Isto provoca risco de vida, porque "Cobra e paje, cobra e feliz" (Arlindo). A mulher fala para 0 couro: "Que desenho bonito voce tern tsabe (cunhada)! Esta cobra e viva, vou desenhar tambem". A matan<;a da cobra obriga 0 casal a jejuar: "Nao come nada, nem carne, nem agua, nem peixe. Come banana verde, amendoim cru e torr ado durante uma lua, tre~~-quatro luas. Depois come rata, paca, cutia, porque e isso que a cobra come, e rama mabex (cai~uma) de mandioca, milho e amendoim." (Tereza in Lagrou, 1991)
TUP1T/ ~-
/
TEAf'. DoE.. cJHTU~",\
\.// Outra possibilidade, narrada por Rosa da Silva em outra ida ao campo, e que a avo materna (preferencialmente sua xanl (xuta)) acompanhe a jovem e mate uma jiboia. A jovem come os olhos da jiboia e expressa seus desejos para 0 yuxin da jiboia no momenta em que a mata. 0 conhecimento dos padroes complexos da tecelagem e considerado um sinal de inteligencia e dedica<;ao e nem todas as mulheres da comunidade sac capazes de dominar esta arte. A posi<;ao de mestre ~a tecelagem aumenta o prestfgio eo poder econ6mico da mulher (pode vender as redes) e tambem suas chances de se tornar a primeira entre as mliTheres, a lideran<;a feminina, chamada de 'mulher com desenho' (ainbu keneya). Como no ritual narrado acima, quando sai da floresta, a jovem leva 0 couro da jiboia para esconde-lo no teto, acima do tear. Em casa, a jovem e a avo jejuam. A jovem trabalha durante 0 dia e parte da noite no tear ate sonhar com 0 yuxin da jiboia. Tanto 0 sonho posterior a matan<;a quanto 0 sigilo sac fatores decisivos para 0 sucesso do ritual. 0 segredo e importante
•
.
para proteger a pessoa da possibilidade de suas palavras, proferidas no ritual, ~erem invertidaspor pessoas invejosas produzindo desta forma efeito contrario ao desejado. Alem da obten<;ao de desenho, uma jovem pode tambem expressar outros desejos para a realiza<;aodos quais pede a ajuda do yuxin da jib6ia. Urn destes e 0 poder de atrair homens. Os homens brincam com isso, dizendo que quando uma mulher que comeu olho de jib6ia deseja urn homem, ela 0 hipnotiza do mesmo modo que a jib6ia faz com sua presa (Augusto Feitosa). ritual da jib6ia para fins de contra Ie da fertilidade precisa ser executado antes da primeira menstrua<;ao da jovem, de novo na companhia da av6 (ou da mae). A mae ou a av6 passa 0 sangue da cobra sobre a barriga da mo<;ae a mo<;a pranunciara com ela as palavras rituais que pedem 0 adiamento da primeira menstrua<;ao, ou se 0 motivo do ritual for 0 contrario, uma gravidez para 0 futuro pr6ximo. Antonio Pinheiro me contou que 0 mesmo ritual pode tambem ser executado para produzir uma infertilidade definitiva, afirmando que seus pais 0 fizeram com sua irma maior quando era uma mo<;a pre-pubere e que ele mesmo considerava a possibilidade de fazer 0 mesmo com sua filha menor, uma crian<;a de quatro anos. Sua irma mora no Peru e nao tern filhos. A razao para seus pais realizarem 0 ritual da infertilidade com a filha foi, segundo Antonio, 0 fato deles quererem que ela se tornasse uma mestre no desenho (ainbu keneya), uma 'professora'. Sem filhos, teria tempo livre para se dedicar ao aprendizado de uma gra.de variedade de cantos e motivos de tecelagem, que poderia, mais tarde, ensinar as jovens iniciantes. Outra vantagem do seu estado seria 0 fato de poder ajudar as irmas na cria<;aodos filhos. lndependente do que este caso represente, uma interpreta<;ao post-factum de uma vida sem filhos, urn exemplo original de 'controle de natalidade e de especializa<;ao nos papeis sociais, ou uma contribui<;ao criativa do meu interlocutor no esfor<;ode fazer sentido do mundo no qual 0 outro vive (eu era na epoca uma mulher casada e sem filhos), 0 fato desta ideia ter surgido na explica<;ao de Antonio no campo da intera<;ao com a j ib6ia, e significante por si s6. Transa<;6es com a jib6ia tern a ver com 0 controIe do fluxo do sangue, elememo importante na rela<;ao entre homens e
o
mulheres, e com seus poderes de mutua atra<;ao e sedu<;ao. E fato que urn ca<;ador bem~sucedidoe tambem considerado com sorte no amor. Apesar da dadiva da came estar ligada ao sexo e a fertilidade, apos uma ca<;ada triunfante, 0 ca<;ador traz mais do que carne para casaj tern historias para contar e pode ser generoso quando convida pessoas para sua casa. Neste sentido, 0 ca<;ador irradia boa sorte e satisfa<;ao.4 Como vimos os homens podem igualmente matar uma jiboia, desta vez para adquirir sorte na ca<;a. 0 matador da cobra fala para seu yuxin, leva seu couro para casa e pode, eventualmente, fabricar uma coroa de seu COutO para ser usada nos rituais de fertilidade (katxanawa). 0 ca<;ador pode ainda consumir seu cora<;ao e lingua crus.5 Estes atos rituais sao seguidos por uma diem severa e 0 homem que comeu 0 cora<;ao da jiboia deve ficar em reclu~ SaGdurante tres meses. 0 resultado positivo do ritual privado e confirmado por urn encontro com 0 yuxin da jiboia em sonho, em termos bem proximos ao evento narrado acima pelo jovem informante de Capistrano de Abreu. segundo momenta ritual organizado pela mestre da jovem acontece tambem na floresta e igualmente em noite de lua nova. As duas mulheres vaG para a floresta e a mestre espreme 0 sumo de tres folhas nos olhos da mo<;a, nos pulsos e debaixo dos bra<;os. Estas folhas devem ajudar a mo<;a a sonhar com desenho, 0 que aumentara sua capacidade de aprendizagem durante as horas que olha sua avo tecendo.
o
-\A hip6tese de 'sex for meat' foi formulada pela primeira vez por Siskind (1973a). Apesar da polemica causada pela interpreta<;:ao sexista e utilitarista da rela<;:aoentre doa<;:aomaseulina de carne e generosidade sexual feminina, a 'metafora' certamente existe na regiao e voltaremos a encontni-la. ; McCallum (1989a: 148, 153) menciona tambem 0 consumo rifual pelo ca<;:ador da lingua da cobra, seguido por um perfodo de jejum. E interessante notar que entre os Cubeo existe igualmente um ritual que visa a partilha da pessoa na alma da anaconda atraves da ingestao do seu cora<;:ao:"Partilhar 0 cora<;:ao e alma da ariaconda, dizem os Cubeo, signifiea perceber atraves do seu aparato sensorial, pensar atraves da sua mente, e, ate certo ponto, partilhar na sua vontade. Esta anatomia espiritual do cora<;:ao e suas for<;:asvitais tem um analogo preciso nas suas doa<;:5esdo mih( alucin6geno (Bansiteriop~ sis) e dos instrumentos e ornamentos rituais relacionados, que foram dados aos Cubeo." (Goldman, 2004: 33).
Uma das tres folhas usadas, bawe, e uma folha bonita, verde escuro, permeada por veias cor de vinho. Esta folha deu seu nome a um dos motivos basicos do estilo grafico Kaxinawa usado na tecelagem. Alem de bawe, usase a folha dunu make (cobra-piranha). 0 uso triplo da folha e interessante: serve para ver desenho, protege contra a sucuri (dunuan keneya, a dona do desenho) e e bom para matar jabuti. 0 jabuti e dono de um belo desenho na sua casca e e muito diffcil de matar. Por esta razao se diz do jabuti que tem "huinti kuxi", cora<;ao duro, diffcil de sucumbir. 0 jabuti e tambem um animal considerado como tendo muito sangue e muito yuxin.
A terceira folha chama-se manipei keneya (folha de bananeira com desenho). Suas folhas verdes,muitomaiores doque asfolhas do bawe, tambem rem veias cor de vinho visfveis na superffcie, responsaveis pela qualidade keneya da planta, de possuir 0 desenho. Antonio ainda completou a lista com dume (tabaco). Segundo Antonio, 0 sumo do tabaco seria misturado com 0 das tres folhas e com um pequeno peda<;o de couro da cobra.
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No perfodo do rito de pegar desenho, a mulher passa horas olhando como sua avo tece. A avo trata sua neta regularmente com banhos de folhas para aumentar a concentrac;ao e ensina as pakadin, canc;5es com as names dos desenhos que a jovem mulher tern que saber tecer e desenhar. Quando uma mulher pinta alguem, ela pergunta "hawa kene apa?", "Qual desenho fac;o?" Uma canc;ao do txidin "cantada par muitas mulheres huni kuin juntas para aprender muitos desenhos" (Augusto Feitosa) comec;a da mesma maneira: Hawa Eeee.
kene apa? Hawa
kene apa? Que desenho pego? Que desenho pego? Eeee.
Besti besti apa, eee, ee, besti besti apa, eee.
Urn s6 pega urn, eee, ee. Urn s6 pega urn, eee.
Kenedan mani, ee, ee, kenedan mani, ee, ee. Kene aku keneki. Kene katisxinanki, ee, ee. Betsa bemu taema. Hidi xanun manike, eee, hidi xanun manike. Danu abu manike, ee, ee. 4ene aku keneki, kene aku keneki. Xei bai apae, ee, ee. Kenekatisxinanki. Xamanti apa, ee, ee, ee, xarnanti apa.
Junta desenho, ee, ee. Junta desenho, ee, ee. Desenha rnuito desenho. Quero aprender desenho. Nao quem corne~ar a esquecer de novo. Enchendo 0 pote do Hidi, ee, enchendo pote do Hidi.
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Desenha rnuito desenho. Pega carninho de forrniga com asas, ee, ee. Quem aprender desenho. Pega 0 rnotivo xamanti, ee, ee, ee, pega xarnanti.
Hawa kene apa? Ee, ee, ee, hawa Que desenho pego? Ee, ee, ee. Que kene apa? desenho pego? Xeibaiapae, ee, ee, xeibaiapae. Pega caminho de forrniga com asas, ee, ee. Pega caminho de formiga. Pega casca de lagartixa.
Pega pe de nambu, ee, ee, ee. Pega espinho, ee, ee, ee.
~. Maemuxa. Maria Pinheiro Kaxinawa 1994.
Os motivos xei bai, xamanti, xena xaka e umin kene SaGmotivos usados na tecelagem. 0 xena xaka e desenhado tambem na concha para tomar nixi pae para ter vis6es com lagarto. 0 xapu hexe e kuma tae SaGdesenhos usados na testa de meninas e meninos pequenos respectivamente. A "semente de algodao" para aprender a tecer bem e 0 "pe de nambu" para 'correr ligeira', duas qualidades importantes na constru~ao de genera, SaG motivos usados na fase final do nixpupima. 0 repert6rio de desenhos usados em crian~as indui, alem destes dois, 0 bixi (estrela), 0 pei (folha), 0 huinti (cora~ao) e awa bena bena (borboleta grande azul), todos estes chamados de yaminawa kene (desenho de Yaminawa). Os termos bai (caminho) e duni (rio) SaGusados na descri~ao de um desenho, para ajudar as aprendizes a seguir os caminhos do motivo com os olhos.