UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE HISTÓRIA/ LICENCIATURA PLENA DISCIPLINA: HISTÓRIA MODERNA PROF.º PÁDUA SANTIAGO ALUNA: GEÓRGIA CHAVES MOURÃO Resenha do Livro: BURKE, Peter. A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
Em A Fabricação do Rei, Peter Burke coloca em discussão o funcionamento da máquina de propaganda real (oficial) na construção da imagem pública de Luís XIV, o “rei Sol”, durante os 72 anos que compuseram o seu longo reinado (1643-1715), bem como os meios, mecanismos e estratégias utilizadas para a melhor recepção por parte do público. A problemática do texto gira em torno da relação bastante estreita entre a arte e o poder, ou ainda, até que ponto a arte foi utilizada pela máquina de propaganda do poder real para divulgar e construir um “retrato” desse soberano lembrado ainda hoje como símbolo da monarquia absolutista francesa. No capítulo I, Apresentação a Luís XIV, o autor esclarece o objetivo do trabalho de não ser mais uma das várias biografias desse monarca, e sim, de colocar o foco da pesquisa sob a imagem pública de Luís, considerando-a como um todo, através da análise de imagens individuais, como centenas de pinturas, medalhas e gravuras, as quais estão muito bem documentadas. A relação entre a máquina de construção da imagem de Luís no século XVII e a venda das imagens através da propaganda, bem característica dos dias atuais, também é trabalhada por Burke, contudo com grande cuidado para não cometer anacronismos, tendo em vista que as diferentes representações exprimem também a diferença entre os tempos. Conceitos como propaganda, opinião pública e ideologia não existiam no século XVII, contudo serão utilizados pela função de contribuir com o estudo da comunicação que o autor pretendia dar a obra e para facilitar o entendimento dos leitores de hoje.
Em seguida Burke demonstra a relação entre arte e poder através do “Estado de teatro”, metáfora conhecida não somente pelos antropólogos atuais, mas também por Luís e parte de seus contemporâneos, onde os rituais eram considerados uma peça de teatro a serem ensaiados e bem representados, com a intenção óbvia de causar um impacto na platéia. As representações do soberano iam além das representações que ele próprio fazia de si mesmo, por vezes objetos inanimados, porém recheados de significado, o representavam, tais como medalhas, tapeçarias, estátuas e pinturas, analisando os usos da arte na manutenção e consolidação do poder. Mas o que Luís representava enquanto representava a si mesmo? O autor nos conta que Luís XIV representava o papel de rei, o qual por vezes tomava o lugar de Deus e se confundia não raramente com o próprio Estado. Por fim, o autor coloca-se entre duas visões opostas, a visão cínica, na qual todas representações se dariam como forma de manipular e persuadir os observadores; e a visão inocente, onde os rituais e representações atendiam a uma demanda psicológica da platéia, consciente disto ou não. No capítulo II, Persuasão, é apresentada a descrição dos meios de persuasão, gêneros e estilos, utilizados no processo de construção da imagem real tais como: medalhas, tapeçarias, estátuas, pinturas, panegíricos, periódicos, rituais, peças de teatro, balés, óperas, retratos solenes e muitos outros. Em destaque, observam-se os meios de comunicação passíveis de reprodução mecânica, por proporcionarem maior “visibilidade ao rei”; e os rituais, excepcionais ou recorrentes, como a coroação e sagração do rei, o seu casamento em 1660, o toque dos doentes para curar uma doença de pele chamada escrófula, a recepção de embaixadores estrangeiros, entre outros, pois tratariam da “imagem viva” do soberano em eventos que o autor designou como “eventos multimídia”, nos quais a teatralidade nas cerimônias reais tornou-se óbvia, até mesmo as cerimônias do lever e do coucher (levantar pela manhã e ir se deitar à noite), poderiam ser consideradas como encenações, visto que obedeceriam a critérios já estabelecidos, seriam desse modo “minipeças teatrais”. Dessa forma, o autor esclarece que a vida cotidiana de Luís XIV seria também um teatro, ao menos enquanto houvesse público.
Outro tópico que merece destaque é a composição feita no final desse capítulo das imagens reais, o que viria a ser o retrato de Luís, no qual se expressa a conciliação entre idealização e realidade, e entre formalidade e informalidade, e a associação da sua imagem a heróis do passado, como Alexandre, Carlos Magno, Augusto, Constantino, Clóvis e outros.Nota-se que o retrato trata sempre da expressão do caráter elevado, especial, digno e por que não, divino do rei. Em O Nascer do Sol, capítulo terceiro do livro, é apresentado um primeiro momento da vida de Luís e de seu governo, iniciando com seu nascimento em 1639, passando pela vitória sob a Fronda (revolta do Parlamento de Paris que durou de 1648 a 1652), sua coroação e sagração (1654), pelas comemorações do tratado que estabeleceu a Paz dos Pirineus (1659) por ocasião de seu casamento com a infanta Maria Teresa, até a morte do cardeal Mazarin em 1661, seu ministro, mentor e diretor do roteiro de sua encenação real. Durante esse período a imagem do jovem rei é admirada por seus contemporâneos pela maturidade e seu porte. Após a morte do cardeal, assunto tratado no capítulo IV, A Construção do Sistema, Luís inicia seu governo pessoal, no qual revela sua intenção de governar sem primeiroministro. Peter Burke observar que o fato do rei ser representado a partir de então como governante absoluto, não significava que o mesmo não possuísse orientadores e auxiliadores, e nos apresenta Jean-Baptiste Colbert que foi nomeado em 1664 como surintendant des bâtiments, ou superintendente das edificações reais.
Observa-se a burocratização crescente da produção artística e do uso do patrocínio para a glorificação do rei, através da criação e reorganização de academias como a Académie Royale de Peinture et de Sculpture, fundada em 1648 mas reorganizada em 1663,
a Académie des Sciences (1666), além da Académie Française, onde uma variedade de artistas eram mobilizados a trabalhar pela glória real. Luís XIV era visto como patrono das artes e das ciências, havendo intermediários até os artistas e escritores, de um modo simples, o sistema fora criado para glorificar a imagem do soberano, e isto moveria toda a máquina de fabricação da imagem real. É interessante observar que durante a crescente burocratização do sistema, ao longo do período estudado, também é crescente o número de funcionários públicos na administração das artes, os quais conviviam com o sistema tradicional de protetores e protegidos tão em
voga no início do período moderno, no entanto o autor não aprofunda na análise dessa rede de relações que envolviam protetores, intermediários e protegidos. O capítulo V, Auto-Afirmação, trata da imagem que Luís assumiu durante seu governo pessoal, a qual deve ser encarada segundo o autor como uma “ação coletiva” da qual participaram todos os envolvidos no projeto de construção de sua imagem, a exemplo disso, a aparente falta de interesse do rei por sua biblioteca e sua coleção de estátuas, que se fizeram, no entanto, representações de sua magnificência, foram parte de sua “personalidade oficial”. Entre os eventos citados como marcos desse período, está a decisão real de governar pessoalmente, esta que mereceu uma série de comemorações, através de medalhas, pinturas, textos e anúncios na publicação oficial a Gazette, a fim de projetar Luís como um soberano excepcionalmente dedicado ao Estado e aos seus súditos. O capítulo VI, Os Anos de Vitória, tratará da imagem do rei como “herói conquistador” particularmente em duas campanhas: a Guerra da Devolução (1667-8) e a Guerra Holandesa (1672-8). É importante perceber que nesse momento do livro, e em outros, a exemplo quando se trata da Fronda, o autor não contextualiza muito bem certos fatos históricos, dificultando a análise proposta. A discussão acerca das vitórias de Luís é percebida como alimento para diversas comemorações através de produções artísticas variadas e para o uso do epíteto Louis le Grand,
embora o autor ressalve que houveram certas discrepâncias entre os fatos ocorridos
durante algumas campanhas e o relato produzido pelos historiadores e artistas oficiais. Em A Reconstrução do Sistema, capítulo VII, analisa-se o grande investimento possível na máquina de propaganda do rei por se tratar da chamada década de paz (16781689), na qual o palácio de Versailles foi reconstruído e tornou-se o abrigou oficial da corte do rei sol. A análise proposta nesse ponto é muito interessante e importante para a compreensão da Fabricação do Rei. A grandiosidade e riqueza de Versailles, demonstrada na descrição da sua ornamentação, revela o interesse primeiro do autor nesse estudo: apresentar a ritualização da vida cotidiana do rei. Os afazeres cotidianos foram transformados em cerimônias, nas quais havia regras de conduta a serem seguidas pelos observadores, atitudes realizadas para confirmar a acessibilidade do rei aos seus súditos, ao menos aos membros das classes altas.
No final desse capítulo, Burke apresenta Louvois, que assumira o cargo de surintendant des bâtiments
outrora ocupado por Colbert, e relata a mudança de pessoal, ou
melhor, a substituição dos protegidos de Colbert por seus protegidos. Além disso, observase a mudança de estratégia percebida no incentivo de uma série de publicações, da campanha das estátuas e da organização da história metálica, contudo permanece o objetivo de glorificação do rei. O Pôr-do-Sol,
capítulo VIII, abordará como os fabricantes da imagem real lidaram
com os 25 últimos anos do reinado, período caracterizado pelo declínio físico e político de Luís. Ao que parece, não somente Luís declinara, a produção artística também, quer pela “escassez de talentos” quer pelo decrescente patrocínio real, após a morte de Louvois, a administração das obras reais foi dividida. Ao tratar das representações das guerras num período sem vitórias significativas, o autor percebe um louvor tímido a eventos poucos significativos, e um silêncio sobre as derrotas. Nesse momento, quando havia tão pouco a celebrar, as realizações de dois grandes projetos para a glorificação do rei, a estátua para a Place Louis le Grand e a história metálica oficial do reinado, são entendidas como meios de uma compensação psicológica, ou ainda, meios de desviar a atenção. A Crise das Representações,
trabalhada por Burke no capítulo IX, é a parte mais
interessante desse estudo, e sofre dois desdobramentos: o declínio da Antiguidade como modelo cultural da França, e o declínio das correspondências. O primeiro caso se referia à superioridade da cultura moderna sobre a cultura antiga no campo literário, porém que significou muito além disso, as implicações políticas eram reconhecidas pelos próprios participantes, e a aparente “vitória” dos modernos retratava também a vitória de Luís XIV. O segundo caso observa o crescente declínio na crença das analogias como paralelos objetivos, místicos e inacessíveis a observação graças à revolução intelectual ocorrida durante o século XVII em algumas partes da Europa Ocidental, o chamado “declínio da magia”, resultante da crescente secularização das sociedades. Ocorreu uma mudança no status
da analogia, a qual passaria a ser progressivamente mais uma metáfora subjetiva,
onde pouco a pouco os rituais e os símbolos foram perdendo seu espaço, ou ainda, foram resignificados.
O autor observa que, por volta de 1680, o mito de Luís XIV também foi reconstruído, tendo em vista a rejeição acentuada à mitologia clássica. A representação de Luís passou a ser mais literal, os heróis e imperadores foram substituídos por dados estatísticos. O Reverso da Medalha,
capítulo X, trata das imagens alternativas do rei, bem
distintas das oficiais e com o objetivo totalmente oposto, em geral, expressos através da paródia e da inversão, sendo concebidas por dois grupos de indivíduos, um composto de súditos “leais” do rei, os quais desejavam alertar o monarca; e outro representado por inimigos declarados, cujo objetivo obviamente era denegrir a imagem real, ou ainda desconstruí-la, através de medalhas, gravuras, poemas e textos em prosa. Tratando dos meios divulgados pelos inimigos reais, Burke observa que alguns “defeitos” do rei são recorrentes, como a vaidade, a ambição, a falta de escrúpulos morais e religiosos e a tirania. Ao observar o discurso dessa impressa alternativa e contrária à imagem real oficial, o autor se exime de analisar a reação dos construtores oficiais dessa imagem e a reação pessoal de Luís, aliás, em poucos trechos da obra o autor se detém na opinião pessoal do monarca, escolha talvez determinada pelo próprio objeto da pesquisa. No capítulo XI, A Recepção da Imagem de Luís XIV, o publico do “Estado de teatro” francês, os receptores da imagem difundida do monarca, é dividido em receptores domésticos e receptores estrangeiros. Ao analisar os meios utilizados para essa divulgação torna-se nítido que a população pobre, a gente comum, não fazia parte, ou ao menos não deveria fazer, do público alvo, não significando que os mesmos não tivessem uma imagem “própria” do seu monarca. Embora as representações de Luís tenham se concentrado nas elites, algumas poucas cerimônias permitiram a gente do povo certa acessibilidade; a cerimônia do toque real, já comentada anteriormente, revela a possibilidade de um grande número de franceses comuns encontrarem seu rei e de serem agraciados com, além da benção real, 15 sous. Quanto às reações, o autor as analisa de modo individual em relação às elites, e de modo coletivo à medida que se desce a escala social, tendo em vista a escassez de fontes individuais entre as esferas mais pobres. Isto, na minha opinião, no entanto, não significa que a analise do coletivo represente uma opinião única do rei Luís e de seu reinado pelos pobres.
A opção feita pelo autor em tomar as reações às representações reais como ambíguas se mostra adequada ao observar a análise dos documentos trabalhados no texto. O modelo de auto-representação adotado por Luís despertou tanto opositores quanto admiradores ou imitadores em todas as esferas, atraindo inclusive para o campo da arte disputas entre reinos que não puderam ser resolvidas por meio de diplomacia ou guerra. No último capítulo dessa obra, Luís em Perspectiva, Burke toma a imagem de Luís XIV em três perspectivas: em meio aos soberanos de seu tempo, em meio a soberanos anteriores e em meio aos chefes de Estado do século XX. Através das semelhanças e das diferenças, Burke contribui de modo bastante interessante para o estudo da comunicação, ao trabalhar a importância do símbolo, do ritual e do mito ao longo da história da sociedade ocidental.