STRATHERN, Marilyn. Fora de contexto: as ficções persuasivas em antropologia
A Antropologia depois de Frazer é muito diferente da que era feita antes dele. Em sessenta ou setenta anos, a disciplina teve mudanças fundamentais, que tornaram as ideias de Frazer ilegíveis. Para Lubbock, Fleury e Clarke, entender o outro requer conhecer suas premissas e valores particulares. Para Malinowski, o mesmo ideal, entender os valores dos outros, é pensado diferente: compreender o ponto de vista nativo. Esses diferentes autores, quando falaram em etnocentrismo, não se expressaram sobre a mesma coisa. Isso torna impossível explicar a prevalência de uma ideia apenas pela referência a outras. Apesar de falarem sobre a mesma coisa, diferenças culturais, o abismo que separa Geertz de Malinowski ou esse último de Frazer é muito grande e profundo. Mas como sabemos que realmente há esse abismo? Os escritos de Frazer nos mostram o tamanho do abismo entre sua Antropologia e a posterior e nos ajudam a pensar sobre esses abismos, e a auto-persuassão de que houve uma história da disciplina. Frazer ocupa um lugar dúbio entre os homens. Se foi considerado um homem de grande importância para os seus contemporâneos não antropólogos, ao mesmo tempo foi desconsiderado pelos colegas de profissão, e os trabalhos posteriores procuraram negar seu trabalho. Strathern se interessa em descobrir como os antropólogos modernos construíram Frazer como uma figura que não se encaixava no seu tempo. Para Jarvie, a antropologia das décadas de 1930 e 1940 entrou em discussão sobre a validade das fontes literárias, e a sua substituição pela observação direta em campo. Assim, Malinowski teria assassinado Frazer. A revolução antropológica dessa época teve três objetivos: substituir a antropologia de gabinete pelo trabalho de campo; substituir o estudo das crenças pelo rito no estudo da religião e da magia; substituição das sequências evolucionárias pela compreensão da sociedade contemporânea. Para explicar uma prática, os antropólogos passaram a se voltar para outras práticas da mesma sociedade, e não mais às práticas de outras culturas. Isso os levou a analisar as sociedades em si mesmas, a partir de um contexto social específico, como todos orgânicos. Após essa revolução, o método de Frazer passou a ser considerado ilegítimo e absurdo, além da falta de respeito pela integridade cultural interna, pela falta de encaixe dos elementos em um sistema ou pela falta de consideração do que significam para os nativos. Acima de tudo, o que está em discussão é o tipo de livro que Frazer escrevia. A partir de exemplos bíblicos, Frazer aponta que os costumes observados refletem os costumes de outros povos primitivos em outras partes do mundo. Seu método comparativo mostrava que, por exemplo, a cultura israelita não seria tão estranha se comparada a outras, já que todas as culturas passavam pelos mesmos estágios evolutivos, da selvageria à civilização. Os antropólogos a partir de Malinowski levaram adiante a mesma proposição, mas de modo inverso: detectar a civilização sob a selvageria.
Frazer é comumente acusado de não fazer uma "análise transparente", de adulterar suas fontes para que os dados se encaixem em sua teoria. Há um tipo particular de problema a que a produção literária dos antropólogos está ligada: tentar traduzir uma cultura a outra, sem usar os termos da qual se está ligado. Se o que o antropólogo faz é alargar a experiência de seus leitores, por meio da descrição do que outras pessoas fazem, como fazer para que essa experiência do leitor não seja reforçada, a partir dos preconceitos que o antropólogo possa levar ao campo (subentende-se que antropólogo e leitor estejam numa mesma cultura)? Uma descrição requer uma estratégia literária específica, a construção de uma ficção persuasiva. O antropólogo, quer escolha um modo de escrita mais "científico", quer mais "literário", não consegue fugir da ficção. A aceitação das ideias de Frazer se deu pelo contexto ao qual ele escrevia, pois seu público aceitava suas ideias como verdadeiras: a presença de vestígios do passado no presente, a comparação de práticas contemporâneas com antigas (o Antigo Testamento era como um colecionador dessas práticas), ideia de uma evolução do pensamento humano com estágios definidos. Em suma, o que o fazia se destacar era sua familiaridade de linguagens e temas com seus leitores, do que ele partilhava com eles, e não de seu distanciamento, como seria a marca da Antropologia que o sucedeu. Portanto, a necessidade de uma distância entre escritor e leitor e da criação de ideias novas é um pressuposto da Antropologia "modernista". Esse tipo de mudança traz a necessidade de uma mudança também na escrita e na relação observador-observado, que passa a ser de divisão entre os dois, a partir do trabalho de campo. Malinowski é associado à criação do modernismo na Antropologia, que se instaura com o trabalho de campo como nova e principal ferramenta de pesquisa em um tempo e lugar determinado, deixando de lado o historicismo e a diacronia em favor do holismo e da sincronia. Entretanto, é preciso explicar como Malinowski foi apontado como a figura que revolucionou a Antropologia, já que suas ideias não eram novas: algumas ideias funcionalistas já estavam presentes em Frazer e outros pensadores da época. Firth aponta que antes de Malinowski, outros autores já realizavam trabalho de campo. Qual foi, então, a revolução feita por Malinowski? Strathern aponta que estaria no que ele escreveu, na forma como ele organizava seu texto. Assim, o trabalho de campo se tornou em um novo tipo de ficção persuasiva. Nesse trabalho de campo, as ideias dos "nativos" eram contrastadas com a cultura originária do pesquisador e dos leitores, criando-se assim um "Outro", um sentimento de alheamento e de “outridade” . Agora, a relação entre "nós" e "eles" não era concebida mais como diferenças de estágios evolutivos, mas como diferença de perspectiva, o que Strathern definiu como “a implementação literária do etnocentrismo“. Havia também a demonstração de que havia comum no bizarro, civilidade no selvagem, ou seja, que os nativos não vivem vidas irracionais ou anárquicas, que a vida social deles também é marcada pela ordem e regras. Em resumo, havia um apelo para “dar sentido” às práticas nativas. Assim, criava-se um “outro”, inicialmente bizarro, mas também inserido dentro de um contexto onde suas ações faziam sentido.
Dessa forma, chega-se ao problema central da antropologia modernista, que também era a questão de Strathern: como analisar ideias e conceitos estrangeiros a partir dos originais do pesquisador. O pesquisador de campo modernista se imaginava entre dois mundos, entre o seu e o do nativo. Era pela proximidade de um que ele se distanciava do outro. A principal acusação contra as investigações de Frazer é a de que ele não pensava as coisas em seus contextos históricos e sociais, não o afastava de seu público leitor. Em seus textos, Frazer especula sobre as razões que levam as pessoas a fazer o que fazem, como se elas mesmas tivessem fornecido tal explicação. Isso não é raro entre os modernistas, que utilizam sua presença no campo como um "dispositivo de medida" (Clifford), como prova de veracidade. A autoridade de Frazer estava em seu sentido de história, que ele compartilhava com os leitores da época. A plausibilidade de suas ideias repousava sobre a repetição de exemplos que ele apresentava de costumes que existiam nas sociedades selvagens ou bárbaras e que ainda estavam presentes na civilização. A ideia subjacente a seus textos, e aceita por seus leitores, é a de uma cultura global, diferenciada apenas pelos estágios de evolução em que se encontra uma sociedade. Leitor e escritor compartilham um texto, no sentido que suas ideias são complementares. Nesse tipo de texto, o presente se torna um compósito de possibilidades de práticas que pertenceram a dias antigos e obscuros da sociedade. Ardener defende que o modernismo na Antropologia se localiza entre Malinowski (1920) e o início do declínio do estruturalismo (metade dos anos 1970). A Antropologia pós-moderna questiona a autoridade do pesquisador, que vê a produção de um texto etnográfico como sendo um diálogo entre o antropólogo e seus informantes. Uma reprodução conjunta, e não mais a ilusão de uma "descrição transparente". A "realidade negociada" do texto não corresponde a nenhuma realidade real, de qualquer grupo. A distinção entre "nós" e "eles", criada pelo modernismo, perde sua plausibilidade na Antropologia pós-moderna. Algumas ideias de Frazer o aproximam dos pós-modernos: não se prender aos contextos, juntar as diversas formas e colocá-las em conjunto no texto. A atribuição de sentidos feita pelos modernistas perde o sentido para os pós-modernos; eles agora desejam que o leitor entre em contato diretamente com o exótico. (Como Frazer fazia isso, se não havia qualquer espaço para os nativos em seus textos?). Segundo Strathern, Frazer justapunha melanésios e africanos em seus textos, mas não como "melanésios" e "africanos", deixando de lado seus contextos. Se a relação entre o escritor e os nativos, para a Antropologia pós-moderna, pode ser negociada, o mesmo não se dá com os contextos culturais. Assim, fala-se mais do que se chega à confusão e embaralhamento defendido pelos pós-modernos. Strathern cita o caso de Geertz que, ao mesmo tempo que defende a confusão na antropologia, institui nesse mandamento uma moldura à qual enquadrá-la.
Para a Antropologia pós-moderna, os homens estão lado a lado, todos igualmente diferentes e ao mesmo tempo igualmente os mesmos. Strathern vê nessa ideia uma "sobrevivência" de Frazer. Ela não acredita nem no termo "aldeia global" (fazer uma analogia com a ideia e Frazer de cultura humana única) nem no embaralhamento de contextos. No pós-modernismo da Antropologia, as relações entre escritor, sujeito e público se modificaram, pois eles escrevem para sujeitos que se tornaram um público. As duas correntes de mudança, de Frazer ao modernismo e desse ao pós-modernismo consistem basicamente em como os antropólogos pensam sobre o que fazem, o que dizem e qual o objetivo do que fazem. A grande questão para Strathern é saber se o "falatório" atual conseguirá construir uma nova ficção persuasiva. CALDEIRA, Tereza. Segundo Caldeira, no texto de Frazer, a linguagem era familiar (não científica) e não lhe interessava apresentar o ponto de vista do nativo. Já em Malinowski e outros antropólogos, que praticavam o trabalho de campo, o outro e sua cultura eram apresentados como diferentes, não mais em questão de estágios de evolução, mas de perspectiva. Em consequência disso, o relativismo cultural se torna a marca do modernismo na Antropologia. Entretanto, isso dificultou a possibilidade dos antropólogos em pensar a diferença sem acentuar a distância entre as culturas.