Esse livro é resultado de uma pesquisa bem elaborada e desenvolvida pelo bispo Walter McAlister sobre a sua trajetória ministerial até tornar-se um pentecostal reformado. De uma família que viveu muitos dos importantes momentos do pentecostalismo moderno desde o seu início, McAlister escreve e fala com autoridade e conhecimento de dentro desse movimento. São muitos os nomes, as datas, os lugares, as obras e os detalhes cuidadosamente mencionados. O autor não encobre a sua indignação com os excessos que se multiplicam na maioria das vertentes evangélicas de nossa nação. Sua voz soa profética ao conclamar a todos para viver e promover uma teologia e uma práxis religiosa que contribuam para o progresso do reino de Deus em toda parte. Ao abraçar a teologia reformada, Walter McAlister não se desfaz de sua abundante herança pentecostal, adquirida por doutrina e vivida por experiência própria. O que recebeu de seus antepassados, principalmente de seu pai, o bispo Roberto McAlister, fundador da Igreja de Nova Vida no Rio de Janeiro, tornou-se um tesouro perene em sua vida. Esse livro provocará inquietações, polêmicas e desafiará muitos a pensar e a repensar suas posições doutrinárias. É isso, porém, que o torna atraente. Por se tratar de uma obra rica de informações, amplamente documentada e atual em relação ao que se passa no campo religioso brasileiro, torna-se indispensável para os que buscam compreender os fatos e os desafios sobre a relação entre o pentecostalismo e a teologia reformada. Paulo Romeiro, professor de Teologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, fundador e pastor da Igreja Cristã da Trindade, em São Paulo As reflexões de O pentecostal reformado evidenciam que o diálogo com a herança dos reformadores enriquece e aprofunda a percepção pentecostal ao mesmo tempo que a experiência pentecostal desafia “herdeiros” da Reforma a sair de sua zona de conforto e a questionar sua falta de fervor e seu engajamento missionário. Faço votos de que a leitura encoraje o diálogo franco e fraterno. Temos muito a aprender um com o outro. Martin Weingaertner, pastor luterano jubilado, professor de Teologia Bíblica e Ministerial na Faculdade de Teologia Evangélica, em Curitiba, e
editor do devocionário Orando em família Esse livro deve ser lido por todo aquele que ama ao Senhor e sua Palavra. O autor brinda a igreja de Cristo com informações ricas e profícuas sobre a história do pentecostalismo brasileiro. Além disso, Walter discorre sobre as antigas doutrinas da graça demonstrando não só conhecimento bíblicoteológico, mas também piedade e temor ao Senhor. Tenho certeza de que a leitura dessa obra abençoará não somente pastores e líderes das mais variadas denominações, mas todo aquele que deseja aprender mais sobre o pentecostalismo e a Reforma. Minha oração é que a leitura do livro O entecostal reformado possa de forma efetiva auxiliar o leitor a crescer no conhecimento do Senhor, levando-o de forma plena e eficaz a expressar um estilo de vida que glorifique àquele que nos salvou. Boa leitura! Soli Deo gloria! Renato Vargens, escritor e pastor titular da Igreja Cristã da Aliança, em
Niterói, Rio de Janeiro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 McAlister, Walter O pentecostal reformado / Walter McAlister, com John McAlister. -- São Paulo : Vida Nova, 2018. 264 p. Bibliografia ISBN 978-85-275-0855-1 978-85-275-0855-1 1. Pentecostalismo 2. Igreja Pentecostal 3. Reforma protestante 4. Teologia I. Título
18-1305
CDD 289.94 Índices para catálogo sistemático: 1. Pentecostalismo
©2018, de Edições Vida Nova
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br |
[email protected] 1.a edição: 2018 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21. As citações bíblicas com indicação da versão in loco foram extraídas da Almeida Revista e Corrigida (ARC) e da Nova Versão Internacional (NVI). Todo grifo nas citações bíblicas é dos autores.
DIREÇÃO EXECUTIVA Kenneth Lee Davis GERÊNCIA EDITORIAL Fabiano Silveira Medeiros EDIÇÃO DE TEXTO Marisa Lopes Abner Arrais PREPARAÇÃO DE TEXTO Victória Cardoso Marcia B. Medeiros REVISÃO DE PROVAS Aldo Menezes GERÊNCIA DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura DIAGRAMAÇÃO Sandra Reis Oliveira CAPA Souto Crescimento da Marca
Para JAMES, JOHN, WALTER, ALFRED, ROBERTO, ISAAC E SUAS AJUDADORAS IDÔNEAS, sem as quais eles, como nós, não teriam sido quem foram nem teriam feito o que fizeram. Estamos de pé sobre os seus ombros e seguimos nos seus passos. Somos gratos por sua fidelidade e seu espírito pioneiro. Que os nossos descendentes possam ver em nós a mesma fidelidade e o mesmo compromisso com a verdade que vimos neles. Que esta corrente não se rompa até a segunda vinda do nosso Senhor.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Quando pentecostais encontram reformados INTRODUÇÃO O porquê e o como deste livro 1.
COMO CHEGUEI ATÉ AQUI Uma vida de confluência de Azusa com Genebra
2.
AFINAL, O QUE É UM CRISTÃO PENTECOSTAL? As muitas vertentes do pentecostalismo e a necessidade de arrumar a casa
3.
A ESSÊNCIA PENTECOSTAL O que significa ser pentecostal?
4.
A ESSÊNCIA REFORMADA O que significa ser reformado?
5.
AS DOUTRINAS DA GRAÇA Como um reformado enxerga a salvação?
6.
OS CINCO SOLAS Por que não somos católicos romanos?
7.
NEM TUDO É CALVINISMO As distinções dentro da teologia reformada
8.
A HERMENÊUTICA REFORMADA Nossa leitura das Escrituras Sagradas como um todo
9.
EM DEFESA DO CREDOBATISMO REFORMADO Quem é membro do povo da nova aliança?
10. BATISMO NO ESPÍRITO SANTO Uma doutrina que divide e une 11. DONS ESPIRITUAIS São possíveis ainda hoje? 12. A ALMA PENTECOSTAL REFORMADA Como tudo aponta para a glória de Deus? BIBLIOGRAFIA
APRESENTAÇÃO Quando pentecostais encontram reformados Escrita pelo bispo Walter McAlister em coautoria com seu filho, o pastor John McAlister, esta obra é um testemunho da vitalidade da fé reformada e ajuda a responder à pergunta sobre por que tantos pentecostais têm aderido a essa antiga e venerável tradição, que poderia ser mais bem descrita como “agostinismo reformado”, cujas origens remontam ao bispo africano Agostinho de Hipona, que tanto influenciou a fé cristã. Este livro pode e deve ser lido como um testemunho da fé pregada, ensinada e celebrada na Igreja Cristã Nova Vida — nascida do ministério do bispo Roberto McAlister no Rio de Janeiro, em 1960 —, mas também como um guia para aqueles que quiserem saber o que é ser um “pentecostal reformado”. Os autores são claros e honestos em reconhecer que “há pontos de divergência inconciliáveis” entre pentecostais e reformados. O seu intento é, por assim dizer, diminuir a distância entre as duas tradições por meio de um cuidadoso estudo histórico e teológico. Os autores, com muito tato, deixam claros os seus alvos neste livro: 1)
2) 3) 4) 5)
entender o que é propriamente um pentecostal e o que é o pentecostalismo, ou pelo menos o que ele se tornou ao longo desses últimos cem anos; entender a diferença entre pentecostal e neopentecostal, e entre pentecostal e carismático; mostrar qual foi seu ponto de partida ao abraçar a teologia reformada; explicar o que é absolutamente imprescindível para alguém poder se declarar reformado; explicar o que não necessariamente significa ser reformado, mostrando as distinções existentes dentro da tradição reformada;
6) 7) 8)
trabalhar alguns pontos de convergência, de divergência e de redefinição entre as tradições reformada e pentecostal; mostrar como a Reforma protestante nos força a repensar certos conceitos, doutrinas e práticas pentecostais; finalmente, mostrar como o pentecostalismo contribui para o mundo evangélico e reformado.
Para aqueles que são críticos do movimento pentecostal, os capítulos 2 e 3 serão de imensa ajuda para entender as diferenças, nuanças, distorções e divisões ocorridas nesse movimento. Os capítulos de 4 a 8 são uma apresentação da tradição reformada, dando especial atenção a algumas distinções dentro dessa tradição. Os autores destacam e reforçam que um dos principais elementos de distinção entre o protestantismo e o catolicismo romano é a soteriologia reformada — o que lembra que o arminianismo é um tipo de “protestantismo sem reforma”. O capítulo 10 trata do que pode ser considerado o elemento diferenciador da teologia e da espiritualidade pentecostal: a noção de que a vida cristã é caracterizada por dois estágios, ou seja, que “o batismo no Espírito Santo é […] uma experiência posterior à conversão a Cristo, de aprofundamento espiritual”. Esse capítulo pode ser surpreendente para muitos, e não quero estragar a surpresa. Portanto, leia-o! Além disso, este livro também é um testemunho de como muitos de nós chegaram à fé reformada em meio a uma crise de fé. No caso dos autores, essa crise os levou em busca de fontes bíblicas e teológicas que pudessem ajudá-los a compreender o que eles percebiam como erros nos círculos pentecostais. Esta obra que o leitor tem em mãos não é para aqueles que estão prontos a rotular de herética qualquer divergência teológica em relação ao seu ponto de vista e, portanto, não conseguem distinguir entre heresia e erro. Também não é uma obra para aqueles que acham que a tradição reformada é uma estrutura teológica monolítica e não existem diferenças de ênfases, métodos e mesmo de doutrinas não essencias nessa comunidade.
Mesmo aqueles que não concordam com todas as premissas defendidas pelos autores precisarão lidar com esta obra por causa de seu ineditismo. O texto é claro, direto, ponderado, muito bem documentado, e seu tom irênico é semelhante ao de uma conversa pessoal e pastoral. Em suma, é leitura necessária e imprescindível em época de dicotomias e polarizações passionais, mesmo entre os evangélicos. “Deus não é Deus de desordem, mas, sim, de paz” (1Co 14.33). FRANKLIN FERREIRA, pastor da Igreja da Trindade, em São José dos Campos, SP, e diretor e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no Seminário Martin Bucer, na mesma cidade
INTRODUÇÃO O porquê e o como deste livro Por muitos anos costumava pular a introdução e ir diretamente para o primeiro capítulo dos livros que lia. Imagino que muitos façam a mesma coisa por achar que a introdução tenha apenas alguns comentários e agradecimentos sem importância para o leitor. Presumo que os agradecimentos de fato não sejam relevantes para o leitor, mas somente para mim e para os que ajudaram a produzir este livro. Todavia, há comentários que eu e John consideramos importantes e que, segundo cremos, também o ajudarão a ler este livro e a compreendê-lo melhor. Comecemos, portanto, pelo que talvez seja do interesse de todos. Este livro é a quitação de uma dívida, assim como o resumo de mais de vinte anos de estudo, luta e reflexão. Foram necessários cada um desses anos todos para chegar ao ponto de poder reunir em um só lugar o resultado da dialética entre a tradição pentecostal — na qual nasci, cresci e fui ordenado ao ministério — e a tradição reformada, que me deu uma matriz segura, uma teologia robusta e um referencial para reavaliar muitos conceitos que me incomodavam em minha tradição de origem. Assim como fiquei em crise com meu pentecostalismo, sei que há muitos que compartilham dessa inquietação que me levou de volta ao estudo. Tenho recebido inúmeros pedidos de conselho e principalmente de recomendação de livros sobre o que significa o termo “pentecostal reformado”. Nunca pude recomendar um livro que tratasse especificamente do tema. Ao longo dos anos, tenho lido centenas de livros e nenhum deles aborda tudo o que este volume contém. Por isso, de certo modo, senti-me no dever de compartilhar um resumo do meu trabalho de pesquisa. Vi a necessidade de escrever principalmente para pentecostais em crise, de elaborar um roteiro que pudesse ajudá-los a navegar pelas águas densas da teologia reformada sem terem de negar tudo o que receberam de
seus pais na fé. Que há muitos pentecostais buscando uma teologia mais robusta e mais histórica, não há dúvida. Louvo a Deus pelo que estamos presenciando em nossos dias! Confesso nunca ter esperado que isso acontecesse. Muitos líderes tradicionais da tradição reformada estão impressionados com o crescente interesse entre os pentecostais pela teologia de Calvino, Owen, Edwards, Stott, Packer, Piper, Sproul e Washer. Mas engana-se quem imagina que esses navegantes estejam dispostos a abandonar tudo o que viveram na igreja da sua juventude. Eles, assim como eu, têm em sua criação e história pentecostal muitas coisas que não estão dispostos a abandonar, pois são verdadeiras e preciosas. Não vamos simplesmente lançar tudo ao mar e começar de novo. Não vamos nos fazer órfãos para depois buscar adoção numa nova linha teológica que, em muitos arraiais, despreza as nossas tradições pentecostais. Sem sombra de dúvida, nós, pentecostais, temos lá nossos problemas. Mas nem por isso somos histéricos ou desmiolados. Há verdadeiros heróis da fé entre os nossos ancestrais, assim como grandes líderes, mestres e teólogos pentecostais de destaque em décadas mais recentes, como Donald Gee, Stanley Horton, Vinson Synan, William e Robert Menzies, Jack Hayford, Gordon Fee e Craig Keener, sem esquecer dos nossos aqui no Brasil, como Paulo Macalão e meu pai Roberto McAlister, entre tantos outros. Assim, temos pontos positivos em nossa tradição, e por isso o fiel que recebeu o dom de línguas não está disposto a simplesmente descartar essa dimensão da sua vida de oração, rotulando-a de histerismo ou balbucios acéfalos. Tampouco estamos dispostos a negar que um dia fomos curados milagrosamente mediante a oração da fé, ou que participamos da expulsão de um espírito maligno, ou de um mover sobrenatural do Espírito Santo que nos deixou de oelhos, orando até o sol raiar. Essas coisas são reais e não seremos dissuadidos disso em nome da boa teologia. Afinal de contas, a boa teologia não anula essas manifestações. Pelo contrário, a boa exegese nos leva a afirmá-las sem receios. A despeito desses pontos positivos, reconhecemos que o movimento pentecostal moderno não anda bem. Já tendo passado dos cem anos de idade,
o estado de saúde da nação pentecostal em nossos tempos inspira cuidados. Notam-se sinais de abusos, títulos, práticas e doutrinas que em nada se relacionam com as Sagradas Escrituras, a despeito dos milhões de convertidos sob a sua influência e do enorme bem que possam ter trazido a outras parcelas da igreja. Como então separar o joio do trigo? Por onde começar? Foi a partir desses questionamentos que nasceu a ideia deste livro. Ele foi escrito, a princípio, para a família da Igreja Cristã Nova Vida, denominação que lidero na qualidade de bispo primaz, ou seja, pastor regente. 1 Toda terçafeira de manhã eu me reúno com os missionários, pastores e bispos da denominação que estão ao alcance da nossa sede nacional, no Rio de Janeiro, para compartilhar a Palavra de Deus e encorajá-los no ministério pastoral, enquanto os demais nos acompanham à distância pela internet. Ao longo dos anos, eles têm sido os primeiros com quem tenho compartilhado boa parte do que está contido aqui. Esse esforço, porém, não tem sido sistemático; afinal, trata-se de uma obra em progresso, de uma dialética que não nasceu pronta. Os pastores têm sido pacientes comigo. Inicialmente os conceitos aqui contidos representaram um enorme desafio e até motivo de consternação para muitos líderes. Batiam de frente com o que críamos, embora talvez nem soubéssemos articular como viemos a formar o que antes chamávamos de “teologia da Nova Vida”. 2 Sou grato pela paciência e fidelidade dos bispos que me apoiaram e dos pastores que ficaram a meu lado. Alguns poucos não reagiram bem e nos deixaram. Não os recrimino por isso. O Espírito Santo coloca cada membro em seu lugar e no arraial que Deus quer. Por isso, vejo a mão de Deus na permanência de cada um que ficou conosco, assim como na saída de cada um que se foi. À luz dessa trajetória, este livro será uma referência da teologia defendida e ensinada hoje em nossa denominação. No futuro, peço somente que ele seja sempre examinado à luz da Bíblia, para que, caso se note qualquer divergência com a Palavra de Deus, também tenhamos sempre abertura e coragem para repensar e modificar o que for necessário. Este livro, contudo, também responde à pergunta que já me fizeram inúmeras vezes nesses últimos anos: “Que livro você recomendaria para
quem quisesse entender o que é um pentecostal reformado?”. Hoje, eu diria: este livro. Para o pentecostal ou o neopentecostal que quer saber como transitar pelas máximas da teologia reformada sem ter de negar tudo o que já aprendeu e experimentou de sua herança pentecostal, este livro é ideal. Ele o ajudará a navegar pelas águas conturbadas dos inúmeros argumentos lançados pelos “teólogos de internet”, que mais confundem do que esclarecem e que, frequentemente, geram um festival de brados desinformados por parte de pessoas que imaginam saber muito mais do que realmente sabem. Espero que a reflexão contida neste livro possa ajudá-los a compreender um pouco melhor as coisas e lhes apontar um caminho mais claro e seguro em sua jornada de fé. O livro pretende ajudar também na definição de termos, ou seja, fornecer um vocabulário e uma gramática apropriada, e assim promover um pensamento mais lúcido sobre o pentecostalismo reformado. Incentiva, ainda, a adoção de uma lógica teológica para poder destrinchar os argumentos falaciosos que acabam nos tornando reféns e nos levando a extremos. Finalmente, espero que, uma vez tendo adquirido uma gramática e uma lógica teológicas, o leitor alcance a capacidade de falar a respeito da sua fé, ou seja, ganhe uma retórica teológica. Este livro foi escrito com grande preocupação pelo rigor acadêmico, ou seja, pelas credenciais necessárias para fundamentar argumentos e referenciar fontes para os que queiram se aprofundar no assunto. Portanto, ele está dividido em duas partes: texto principal e texto em notas de rodapé . O texto principal, de maior tamanho, é o que todos precisam ler. Procurei escrevê-lo de forma simples e acessível a todos. Recomendo que primeiro leiam esse texto de ponta a ponta. Nas notas de rodapé, o leitor encontrará detalhes sobre pessoas mencionadas no texto principal, definições de termos teológicos, históricos e filosóficos, além de referências bibliográficas — isto é, outros textos em que o leitor poderá encontrar bem mais informações sobre determinado assunto do que conseguimos expor resumidamente neste livro. Tais referências incluem artigos, livros e até sites na internet. Ao longo desses anos, tenho lido tanta coisa, que chego a esquecer onde as li pela primeira vez. Para isso, contamos com a ajuda preciosa de Gabriel Carvalho,
colaborador e pesquisador de muitas das notas de rodapé e das informações adicionais nelas contidas. Além disso, recebi a contribuição crítica de Martin Weingaertner, que fez observações importantes para a integridade do texto, pelas quais sou grato. Também contei com a ajuda do meu filho mais velho, John McAlister. Ao longo do projeto, contudo, sua ajuda foi se avolumando. Além de verificar referências, acrescentar mais fontes dignas de estudo adicional e aprofundar e opinar sobre o conteúdo, ele acabou escrevendo dois capítulos inteiros, além de acrescentar e até reescrever boa parte de vários outros. Sua participação fez deste livro uma obra muito melhor do que teria sido sem a sua ajuda. Por isso, não poderia deixar de compartilhar a autoria com ele, pois, de fato, seu trabalho assumiu a proporção de coautoria. Sou grato, ainda, pelo apoio e trabalho do meu filho mais novo, Andrew McAlister, um dos grandes incentivadores deste projeto. Seu apoio pessoal foi imensurável. Também sou grato por Marta, minha esposa, que, ao longo desses anos de jornada, foi uma guerreira de oração e um apoio imprescindível, especialmente no período em que estudei no Reformed Theological Seminary, assim como durante os conflitos que assolaram a nossa denominação nos primeiros anos de meu episcopado, após a morte de meu pai, o fundador da denominação que hoje lidero. Acima de tudo, reconheço quanto Deus foi e tem sido fiel e misericordioso para com este miserável pecador. Não fosse por seu sustento e sua direção, certamente me perderia e nada disto viria a se realizar. Por sua graça e seu amor fiel, tenho motivos de sobra para exaltá-lo e bendizer seu santo e precioso nome por toda a eternidade. A ele seja toda a glória para todo o sempre. WALTER MCALISTER Rio de Janeiro Setembro de 2018 1 Em maio de
2008, o Colégio de Bispos de nossa denominação ratificou a mudança do nosso nome de Igreja Pentecostal de Nova Vida para Igreja Cristã Nova Vida. O texto do comunicado oficial dessa
mudança encontra-se disponível na íntegra no link: http://www.icnvcatedral.com.br/novo/ipnv-ouicnv/, acesso em: 22 mai. 2018. 2 Para conhecer a Nova Declaração de Fé e Prática da Aliança das Igrejas Cristãs Nova Vida, ratificada em agosto de 2015, confira: http://www.icnv.com.br/conheca-a-icnv/declaracao-de-fe/, acesso em: 13 jul. 2018. Para um breve relato sobre a trajetória histórica e teológica da nossa denominação, desde seu fundador até os dias presentes, confira a minha obra Neopentecostalismo: a história não contada: quem foi Roberto McAlister, conhecido como o pai desse movimento (Rio de Janeiro: Anno Domini, 2012).
COMO CHEGUEI ATÉ AQUI Uma vida de confluência de Azusa com Genebra Ao redor do mundo há um movimento que está trazendo um número imenso de cristãos de volta às doutrinas da graça. 1 Há poucos anos, a revista americana Time declarou que uma das dez ideias mais relevantes da atualidade é o ressurgimento do calvinismo.2 Em grande parte, isso se deve à influência de pregadores e mestres de grande projeção, como John Piper,3 Albert Mohler,4 Timothy Keller,5 R. C. Sproul,6 D. A. Carson7 e muitos outros. Na última assembleia geral da Comunhão Reformada Mundial, 8 fui informado de que os três países que mostram um crescimento extraordinário nas doutrinas da graça são a África do Sul, a Austrália e o Brasil. 9 Assim, o movimento de volta à teologia reformada 10 é fato indiscutível, para consternação de muitos e para alegria nossa. Esse movimento torna-se ainda mais interessante ao constatar que é, em grande parte, impulsionado pela internet — o que, em contrapartida, gerou muita confusão em torno de termos empregados e da clareza sobre o que exatamente significam os conceitos em debate. Muitos se chamam “reformados” porque passaram a crer na doutrina da predestinação. Outros acham que o termo se refere apenas a um modo mais civilizado de cultuar a Deus. Ainda outros resumem tudo ao presbiterianismo ou, até mais restritamente, a uma releitura do puritanismo. 11 Meu encontro com as doutrinas da graça começou há mais de vinte anos. Na época, experimentei uma crise de fé que me levou a buscar fontes que me ajudassem a compreender o que me parecia errado nos círculos pentecostais, mas não sabia explicar bíblica e teologicamente. Por trilhar essa estrada há duas décadas, tenho sido considerado um pentecostal “diferente”. No início fui duramente criticado por haver me tornado um “calvinista”. Alguns nem sequer me reconhecem como pentecostal. Por isso, é cabível que eu me apresente para os que não me
conhecem, mostrando quanto sou “pentecostal” e quanto posso afirmar ser, igualmente, “reformado”. Minhas credenciais pentecostais têm raízes históricas. Meu avô materno foi o primeiro homem branco a entrar na pequena igreja de negros da rua Azusa,12 em Los Angeles, igreja reconhecida por muitos como o nascedouro do movimento pentecostal moderno.13 A. G. Garr, 14 meu avô, foi um pastor americano de ascendência alemã, oriundo da tradição holiness,15 que teve algo que todos identificaram como “a experiência pentecostal”. Tornou-se o primeiro missionário do movimento para a Índia, em 1906. No Oriente, sua primeira esposa e filha morreram de malária. Ao voltar para a América, casou-se com a minha avó, filha de um de seus melhores amigos e também pioneiro no ministério pentecostal, o reverendo R. L. Erickson. 16 Do lado paterno, meu trisavô, James McAlister, foi presbítero na Igreja Livre Escocesa Presbiteriana do Canadá. Seu filho, R. E. McAlister, 17 foi o primeiro canadense a visitar a igreja da rua Azusa, onde conheceu a dimensão pentecostal da plenitude do Espírito Santo. Juntou-se a outros colegas e foi um dos fundadores das Assembleias Pentecostais do Canadá. 18 Seu irmão, que já exercia o ministério na Igreja Metodista Wesleyana do Canadá, juntouse à nova denominação, tendo também passado pela experiência pentecostal. John McAlister, meu bisavô, teve três filhos: Harvey, Hugh e Walter (meu avô). Harvey e Hugh foram evangelistas pentecostais e eram conhecidos por sua fé na oração pelos enfermos. Segundo meu pai, Harvey chegou a esvaziar uma colônia de leprosos nas Filipinas, pois todos foram curados num só fim de semana, durante sua ministração.19 Walter começou cedo no ministério. Aos dezesseis anos de idade já era conhecido como o “menino pregador”. Casou-se ainda jovem com minha avó, Ruth, e os dois se dedicaram a plantar igrejas pentecostais pelo Canadá. Fundador da Rock Church (Igreja da Rocha), em Toronto, seguiu pelo interior plantando igrejas em cada cidade em que passava. Seu plano era simples: ao chegarem à cidade, seguiam para a praça central. Minha avó tirava o trombone do estojo e acompanhava meu avô, que cantava um hino, o que não seria considerado atualmente uma estratégia de evangelismo,
digamos, muito atraente. Porém, no início do século 20, isso provocava muito interesse, e logo se juntava uma pequena multidão. Em seguida, ele abria a Bíblia e pregava a salvação por Cristo somente. Em menos de um ano, já registrava a primeira ata da congregação, fundando a nova igreja. Então entravam em contato com a sede da denominação para que mandassem um pastor que assumiria a nova igreja, e seguiam para a cidade seguinte. Na década de 1960, tornou-se superintendente geral das Assembleias do Canadá. Entre suas muitas contribuições, meu avô construiu o primeiro lar para anciãos da denominação, além de presidir a Conferência Pentecostal Mundial20 por duas vezes. Seus dois filhos também foram ordenados pastores pentecostais. Jack, o mais velho, foi o fundador da Cruzada Mundial de Literatura, 21 que chegou a ser a terceira maior editora do mundo, depois do Partido Comunista Russo e da Casa Publicadora das Testemunhas de Jeová. Com interesse pessoal pela Índia, Jack foi responsável pela fundação de várias igrejas naquele país. Roberto, meu pai, começou como pregador e evangelista itinerante. Na década de 1950, fez campanhas de pregação e cura divina na Europa e no Oriente, chegando a plantar uma Igreja Nova Vida em Hong Kong. Seu desejo era ser missionário na Índia, mas Deus tinha outros planos; tendo sido convidado pelas Assembleias de Deus da cidade de Santos, sentiu-se chamado para ser missionário no Brasil. Em 1960, a família chegou ao Brasil e começou uma cruzada que, depois, veio a evoluir e se tornou a Igreja Pentecostal de Nova Vida. 22 Meu pai foi um dos líderes que fez parte da segunda onda do pentecostalismo no Brasil, 23 unto com a Igreja do Evangelho Quadrangular,24 de Harold Williams, 25 e a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo, 26 de Manuel de Mello e Silva.27 Roberto McAlister foi um líder muito carismático; nos primeiros anos de seu ministério, muitos que hoje são identificados como neopentecostais28 se converteram debaixo do seu ministério ou aderiram ao pentecostalismo por seu intermédio. Entre eles estão Acioly Brito, 29 Edir Macedo,30 Samuel Coutinho,31 R. R. Soares,32 Miguel Ângelo Ferreira33 e Antônio Carlos Abbud.34 Todos estes que mencionei, exceto o primeiro, são neopentecostais. Em todo caso, não seria exagero reconhecer que grande
parte do movimento neopentecostal no Brasil foi influenciado por meu pai, Roberto McAlister. Se ele foi o pai do movimento neopentecostal é algo discutível. 35 Mas que foi seu precursor, não há nenhuma dúvida. Por exemplo, Roberto foi o primeiro a mandar colocar um copo d’água em cima do televisor — ou a mão no rádio ou na tela da TV — na hora da oração. Começou o primeiro movimento de células no Brasil, influenciado por David Yonggi Cho, 36 pastor da Coreia do Sul. Enfatizou a fé e sua relação com a vida pessoal e a vida financeira da igreja, algo que acabou evoluindo, ou se corrompendo, até chegar ao que hoje conhecemos como teologia da prosperidade. 37 Contudo, essa teologia chegou ao Brasil fortemente influenciada por pregadores americanos, como Pat Robertson,38 Jim Bakker,39 Morris Cerrulo,40 Benny Hinn41 e outros. Meu pai foi também o primeiro pregador no Brasil a comprar uma emissora de rádio, o primeiro a ter um gabinete pastoral, estabelecendo essa cultura país afora, o primeiro a estruturar uma igreja pentecostal segundo o formato episcopal, utilizando-se de paramentos e símbolos mais associados à Igreja Anglicana. Acredita-se que tenha sido o primeiro dentro do círculo pentecostal a questionar línguas estranhas como prova do batismo no Espírito Santo. Ainda é atribuído a ele o pioneirismo entre os pentecostais no que tange ao diálogo com os católicos romanos. 42 Além disso, participou do comitê de espiritualidade do Conselho Mundial de Igrejas. 43 Foi um dos fundadores da Comunhão Internacional das Igrejas Carismáticas. 44 Tenho a impressão até de que meu pai foi o primeiro pastor a permitir que tocassem guitarras elétricas na igreja durante o culto. Foi um pregador como poucos, um comunicador nato, um líder carismático que, mesmo passados muitos anos de sua morte, ainda inspira forte saudosismo nos quadros da Nova Vida e suas muitas ramificações. Homem extraordinário, foi um autodidata que nunca chegou a terminar o ensino médio, mas terminou a vida com dois doutorados honoris causa.45 Que legado, não? Quanto a mim, comecei no pentecostalismo carregando a pasta de meu
pai, antes e depois de cada culto realizado no nono andar da Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio de Janeiro. Ainda criança, vi meu pai pregar, orar por enfermos e expulsar demônios. Em meu décimo aniversário, meu pai me chamou para ficar a seu lado, enquanto orava pela fila de pessoas que se levantavam no corredor do auditório. Em cada oração que fazia, ele me mostrava como deveria orar pelos enfermos. Quando alguém manifestava possessão demoníaca, eu assistia de perto à sua libertação pelo poder do nome de Jesus. Pode-se dizer que aprendi a fé pentecostal desde o berço. O mundo espiritual sempre foi uma realidade para mim, desde pequeno. Quando eu tinha 11 anos de idade, meu pai teve um infarto que nos levou a morar na Califórnia por seis meses, enquanto ele convalescia. A igreja pentecostal que frequentávamos fez um retiro no lago Big Bear, não muito longe de Los Angeles. Todos os dias havia cultos de manhã e de noite. Foi numa daquelas noites que tive uma experiência com Deus. Não entendia muito bem o que estava acontecendo. Só sentia um desejo enorme de conhecer a Deus melhor e tê-lo mais presente em minha vida. Fui para o altar, como a maioria estava fazendo, e alguém impôs as mãos sobre a minha cabeça. Senti algo indescritível. A presença de Deus era palpável, muito forte. Comecei a falar numa língua que não entendia. O impacto emocional foi enorme e fiquei falando naquela língua por horas. Muitos foram dormir e nos deixaram simplesmente deitados nos bancos ou ajoelhados, falando nessa língua nova até que cada um, vencido pelo cansaço, acabava se juntando aos outros no dormitório. Lembro que me disseram que eu tinha sido batizado no Espírito Santo, pois o falar em línguas era prova dessa nova etapa em minha vida. Por muitos anos cri nisso e o ensinei a outros. Orar em línguas faz parte da minha oração diária há quase cinco décadas. Poucas foram as vezes que falei em línguas abertamente, num culto público. Mas nunca deixei de orar em línguas nas minhas orações particulares. Aos 13 anos de idade, já tinha convicção sobre a minha vocação para o ministério pastoral. Mesmo durante anos muito conturbados na escola, e depois na faculdade, essa certeza nunca me deixou. Após concluir meu bacharelado em artes liberais com ênfase em
psicologia, na Universidade Oral Roberts, 46 e ainda muito jovem — tinha apenas 20 anos de idade quando me formei —, meu pai me aconselhou a voltar ao reduto da família e estudar no Eastern Pentecostal Bible College. 47 Aos 23 anos de idade, eu me formei em estudos ministeriais e voltei para o Brasil, tendo logo sido ordenado pastor e sendo incluído no corpo ministerial da igreja sede da Nova Vida, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Com um ano de ministério e já recém-casado, meu pai me enviou para cuidar de uma nova igreja, que estava para ser aberta na rua Dias da Cruz, no Meier, zona norte do Rio de Janeiro. Ficava no imóvel de uma antiga lojinha, de frente para a rua. Lá continuei a pregar, orar pelos enfermos e expulsar demônios, exatamente como tinha aprendido a fazer. Sempre li muito. E, como bom pentecostal, lia tudo o que levava essa identificação. Li principalmente autores pentecostais, como Jack Hayford, 48 David Yonggi Cho, Benny Hinn e Kenneth Hagin. 49 Mentalizava o que queria de Deus, como Cho ensinou no seu livro A quarta dimensão. Dava “bom dia ao Espírito Santo”, como Benny Hinn ensinou, e buscava direção profética segundo a orientação dos livros de Kenneth Hagin. Mas, quem mais me impressionou foi o pastor Jack Hayford. Ele era pastor pentecostal mais centrado e educado, doutor em letras e autor de inúmeros livros. Pastoreava uma igreja de quatro mil membros, em Los Angeles. Era um tipo de pentecostal menos escandaloso e que muito me impressionava pelo seu equilíbrio. Sua ênfase em louvor me marcou e continua a ser referência para minha vida e ministério. Lia sobre os heróis da fé pentecostal, como Agnes Sanford 50 e Smith Wigglesworth.51 Fiquei tão impressionado com a fé de Wigglesworth, que me determinei a ter a mesma fé em meu ministério. Li sobre um homem que chegou a sua tenda de milagres em uma cadeira de rodas, após ter os dois pés amputados. Wigglesworth mandou que ele comprasse um par de sapatos antes de receber a oração da fé. Ao chegar à tenda, na noite seguinte, Smith mandou que o homem calçasse os sapatos nos dois pés postiços. Quando fez isso, testemunhas oculares afirmam que Deus criou dois novos pés no lugar dos de madeira que usava como prótese. Fiquei pasmado! “Isso, sim, é fé”, pensei.
Pouco tempo depois, um homem entrou na igreja que eu pastoreava, um antigo cinema que compramos no Engenho Novo, também na zona norte do Rio de Janeiro. Ele estava de cadeira de rodas e não tinha pernas. Tomei coragem e mandei o homem comprar um par de sapatos. E sabe o que aconteceu? Ele nunca mais voltou para a igreja. Meu entusiasmo beirava a presunção e esse não seria o último “fora” que eu daria no ministério. Houve muitos, por sinal. Mas tentei ser o melhor pastor, dentro do meu entendimento do que seria uma igreja viva e pentecostal. Após dois anos de ministério na igreja que eu pastoreava, meu pai, então o bispo primaz da denominação, chamou-me de volta para a sede em Botafogo, para novamente pastorear ao seu lado. Fui ministro de louvor e pregador na sua ausência, aos domingos, além de conduzir a reunião das quartas-feiras e fazer um programa de rádio diário. Ainda lendo muito, e sempre querendo servir a Deus melhor, tive meu interesse despertado pelo movimento de batalha espiritual, influenciado pelo livro de ficção Este mundo tenebroso, de Frank Peretti, e pelo autor Peter Wagner. 52 Havia representantes desse movimento no Brasil e logo procurei conhecêlos. Ao entrar no escritório de uma das líderes do movimento, fui logo “revelado” como alguém destinado a fazer parte do “Estado maior da rede de guerra”. Sendo pentecostal, aceitei isso como uma verdadeira revelação de Deus e logo me ocupei de assistir a conferências em Buenos Aires, Valinhos, São Paulo e Seul, na Coreia. Todavia, comecei a ficar muito incomodado com a escassa fundamentação bíblica do movimento e o excesso de testemunhos sobre toda sorte de revelação: mapeamento espiritual, quebra de maldições hereditárias, hierarquias demoníacas, conquista de cidades pela declaração de vitória sobre espíritos territoriais, e por aí afora. Também comecei a ficar muito pouco à vontade com o teor antipastoral e antieclesiástico do movimento. Pastores eram considerados estorvos e tratados como os vilões culpados pela situação calamitosa da igreja. Não sabia como reagir. Não tinha fundamentos teológicos nem ferramentas bíblicas para responder. Confesso que lia muito mais os livros de autores pentecostais do que a própria Bíblia. Nesse ínterim, meu pai morreu e assumi a liderança da denominação.
Havia expressado desejo de fazer um mestrado em teologia, mas fui dissuadido de fazê-lo. Meu pai ainda era da velha escola pentecostal que via seminários como fábricas de ateus e céticos. Em virtude dessa confusão que sentia em torno da rede de batalha espiritual e por causa da nova e imensa responsabilidade de liderar a nossa igreja — embora tivesse apenas 37 anos de idade — busquei um lugar para estudar. Meus pontos de referência sempre foram na América do Norte, algo que herdei de meu pai. Por causa disso, e por influência de uma revista de áudio chamada Mars Hill Tapes,53 fui apresentado ao teólogo R. C. Sproul. Comecei a ler suas obras. Aliás, assisti a uma conferência em Orlando, promovida por seu ministério, e comprei uma cópia de cada livro e de cada fita de vídeo e áudio que ele tinha produzido. Li e ouvi tudo. Em pouco tempo, comecei a estudar em um seminário reformado onde ele era professor — o Reformed Theological Seminary. 54 Inicialmente fiquei chocado, embora houvesse várias coisas em comum com o que meu pai lia e pregava ao final de sua vida. Ele já havia lido sobre as alianças (i.e., teologia pactual) 55 e a visão amilenarista do reino de Deus, 56 assuntos extraídos diretamente de autores reformados. Mas, assim como meu pai, eu não sabia o que tudo isso significava. Sendo um autodidata sem preparo formal em teologia, ele lia tudo o que lhe caía às mãos, sem ter, contudo, a menor noção de qual escola teológica cada obra representava. E eu havia seguido o mesmo rumo. Em pouco tempo fui convencido, ou melhor, fui convertido à convicção bíblica sobre a predestinação. Mas sabia que deveria ter cuidado, pois esse assunto nunca havia sido levantado por meu pai em nossa denominação. Nossa igreja nada sabia sobre as doutrinas da graça. Por não termos pensado a respeito, éramos, para todos os efeitos, uma igreja de confissão arminiana. Uma vez perguntei sobre predestinação a meu pai, e ele se limitou a dizer que era algo ligado à “presciência”. Dei-me por satisfeito com a resposta. Já se passaram mais de 25 anos desde que comecei esta jornada. Ao longo desses anos, tenho negociado minhas origens pentecostais com o que tenho aprendido sobre a teologia reformada. Por estar na posição de líder responsável pela denominação, tive de dar cada ponto com nó bem firme, para não embarcar numa aventura que, por fim, poderia ferir muitas pessoas.
Com essa responsabilidade sobre os ombros, estudei, escrevi e dialoguei com os membros do presbitério nacional da Igreja Cristã Nova Vida. 57 Cheguei a fundar um seminário (Instituto Bispo Roberto McAlister de Estudos Cristãos)58 e uma editora (Anno Domini). No início, foi difícil. Afinal, o pentecostalismo não “combina” com teologia reformada. Há alguns pontos de divergência que são inconciliáveis. Fui acusado de tentar levar a denominação para o presbiterianismo. Se meu pai tivesse visto o dia em que fui estudar num seminário presbiteriano, não sei o que pensaria de mim. De uns anos para cá, por falta de categoria histórica para descrever meu posicionamento teológico, tenho me declarado um “pentecostal reformado”. Por um lado, insisto em conservar o nome pentecostal, pois não vou desmerecer meu berço nem desonrar meu pai e meus antepassados. Tampouco posso negar minhas experiências com Deus, ditas “pentecostais”, ao longo da vida e do ministério. Por isso, continuo a insistir em minha identidade pentecostal. Por outro lado, estou plenamente convicto dos fundamentos bíblicos da fé reformada. Além de pentecostal, sou mestre em teologia pelo Reformed Theogical Seminary, em Orlando, na Flórida. Em suma, minhas credenciais e minha experiência como pentecostal são sólidas e têm raízes históricas. Meu conhecimento da fé reformada também. Mas… “Um pentecostal reformado? Que tipo de pentecostal você é agora? Quão reformado é agora? Como assim?” Para muitos, isso não passa de piada, um contrassenso ou oxímoro.59 Reconheço a dificuldade que muitos têm com a expressão. Seria bem mais fácil apenas me declarar um “reformado continuacionista” ou “calvinista carismático”. 60 Em todo caso, comecei a ser procurado por pessoas que se diziam em crise com sua igreja neopentecostal ou mesmo pentecostal. Não viam mais como poderiam aceitar certas práticas de sua igreja e, depois de assistirem a alguns vídeos no YouTube, gravados por Paul Washer,61 Augustus Nicodemus62 ou até mesmo por mim, diziam-se “reformados”. Por tudo o que relatei, sinto ser necessário mostrar o processo pelo qual me tornei um “pentecostal reformado”. Mostrar a dialética necessária entre as duas tradições é algo que não pode mais ser adiado. Este livro, portanto, faz parte desse projeto. Nele temos os seguintes objetivos:
1)
entender o que é propriamente um pentecostal e o que é o pentecostalismo, ou pelo menos o que ele se tornou ao longo desses últimos cem anos; 2) entender a diferença entre pentecostal e neopentecostal, e entre pentecostal e carismático; 3) mostrar qual foi meu ponto de partida ao abraçar a teologia reformada; 4) explicar o que é absolutamente imprescindível para alguém poder se declarar reformado; 5) explicar o que não significa necessariamente ser reformado, mostrando as distinções existentes dentro da tradição reformada; 6) trabalhar alguns pontos de convergência, de divergência e de redefinição entre as tradições reformada e pentecostal, como: a. a continuidade de dons espirituais; b. a escatologia; c. o governo da igreja; d. a igreja e a política; e. a teologia pactual; f. o batismo nas águas — incluindo-se o de infantes (pedobatismo) ou o exclusivo para adultos convertidos (credobatismo); g. a doutrina do batismo no Espírito Santo; h. a espiritualidade individual e coletiva da igreja. 7) mostrar como a Reforma protestante nos força a repensar certos conceitos, doutrinas e práticas pentecostais; 8) finalmente, mostrar como o pentecostalismo contribui para o mundo evangélico e reformado. Esta não é uma obra exaustiva e sistemática. Nosso alvo é buscar sanar as dúvidas mais urgentes e tornar o discurso em torno desse assunto o mais claro possível. Também é ajudar pentecostais — e, quem sabe, reformados — que tenham desejo de aprender e estejam abertos a repensar certos pontos de suas
doutrinas. Espero que este livro ajude as pessoas a pelo menos entenderem quem são os pentecostais, demonstrando que não somos uma ameaça às igrejas tradicionais e que o convívio mútuo não precisa ser difícil. 63 1 Para
um breve relato sobre a jornada de muitos jovens evangélicos nessa direção, confira Collin Hansen, Young, restless, Reformed: a journalist’s journey with the New Calvinists (Wheaton: Crossway, 2008). Para uma apresentação acessível sobre esse conjunto de doutrinas, confira as obras de James Montgomery Boice; Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017) e John Piper, Cinco pontos: em direção a uma experiência mais profunda da graça de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2014). No capítulo 5, faremos uma breve apresentação dessas doutrinas referentes à visão reformada da salvação. 2 “10 ideas changing the world right now”, Time Magazine 173, n. 11 (Mar. 23, 2009). 3 John Stephen Piper é pastor batista americano, nascido em 1946. Fundador do ministério Desiring God, foi líder da Bethlehem Baptist Church por 33 anos e é autor de mais de 50 livros. 4 Richard Albert Mohler Jr. é teólogo batista americano, nascido em 1959. Presidente do Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, Kentucky, escreveu ou editou mais de 10 publicações teológicas. 5 Timothy J. Keller é pastor e teólogo presbiteriano americano, nascido em 1950. Fundador da igreja Redeemer Presbyterian Church, em Nova York, escreveu mais de 20 livros, entre eles o best seller do New York Times A fé na era do ceticismo: como a razão explica Deus , tradução de Regina Lyra (São Paulo: Vida Nova, 2015). 6 Robert Charles Sproul (1939-2017) foi um teólogo americano. Fundador do Ligonier Ministries e prolífico escritor, escreveu mais de 150 títulos. 7 Donald Arthur Carson é um teólogo canadense, professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em Deerfield, Illinois. É autor de mais de 50 livros e comentários bíblicos. 8 A World Reformed Fellowship é uma organização internacional que visa a reunir igrejas e denominações que se identificam como reformadas, tendo como missão promover o entendimento, a cooperação e a troca de informação e recursos entre seus membros para o avanço do evangelho. Para mais informações, acesse www.wrfnet.org. 9 Quarta Assembleia Geral da World Reformed Fellowship, ocorrida de 23 a 27 de março de 2015, em São Paulo, SP, sob o tema “Teologia Reformada e a Missão de Deus no Século 21: Questões Críticas Enfrentadas pela Igreja”. 10 Para quem está à procura de uma apresentação acessível, confira as obras de Hermisten Maia Pereira da Costa, Fundamentos da teologia reformada (São Paulo: Mundo Cristão, 2007) e Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus: uma introdução à fé reformada (São José dos Campos: Fiel, 2010). 11 O puritanismo é uma concepção da fé cristã estabelecida na Inglaterra do século 17 que teve como característica principal a busca pela pureza no culto e na vida cristã. Alguns expoentes desse movimento foram John Owen, Richard Baxter e John Bunyan. Para saber mais sobre o assunto, consulte: Martyn Lloyd-Jones, Os puritanos: suas origens e seus sucessores (São Paulo: PES, 1993); J. I. Packer, Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (São José dos Campos: Fiel, 1996); Leland Ryken, Santos no mundo: os puritanos como realmente eram (São José dos Campos: Fiel, 1992); Joel Beeke; Mark Jones, Teologia puritana: doutrina para a vida (São Paulo: Vida Nova,
2016). 12 Nome do logradouro do edifício que abrigava os cultos e em que teve início o pentecostalismo moderno. Desde esse momento, seu nome tem sido usado como sinônimo do movimento pentecostal. 13 Para uma breve história do movimento pentecostal moderno, confira o artigo de Alderi Souza de Matos, “O movimento pentecostal: reflexões a propósito do seu primeiro centenário”, Fides Reformata XI, n. 2 (2006): 23-50, disponível em: http://www.mackenzie.br/6982.html, acesso em: 27 mar. 2018. 14 Para saber mais sobre A. G. Garr (1875-1944) e sua participação em Azusa Street, consulte http://enrichmentjournal.ag.org/200602/extra_Garr.cfm, acesso em: 27 mar. 2018, e http://www.azusastreet.org/ParticipantGarrAG.htm, acesso em: 27 mar. 2018. 15 O holiness movement , ou “movimento de santidade”, surgiu no século 19 com uma proposta de vivência cristã avivada e de profunda busca pela santidade, alinhada à doutrina da inteira santificação esboçada por John Wesley. 16 Pastor americano de Chicago que viveu no fim do século 19 e início do século 20, empreendendo cruzadas de evangelização com seu genro, A. G. Garr. Algumas de suas publicações e sermões podem ser vistos em: http://ifphc.org/index.cfm? fuseaction=search.morePeriodicalsByCreator&SearchCriteria=Erickson%2C%20R.%20L.&Periodicals acesso em: 27 mar. 2018. 17 Robert Edward McAlister (1880-1953) foi pastor e evangelista canadense. Criado numa família presbiteriana, integrou-se ao movimento holiness antes de descobrir a experiência pentecostal na Rua Azusa. É considerado o primeiro canadense a integrar o movimento pentecostal. 18 Atualmente é considerada a maior denominação evangélica do Canadá. Para mais informações, consulte http://www.paoc.org., acesso em: 27 mar. 2018. 19 Para mais informações sobre a ênfase de cura no ministério de Harvey McAlister, consulte http://endtime.is/TVH/1950_NOVEMBER.pdf, p. 7, acesso em: 27 mar. 2018, e http://ifphc.org/pdf/PentecostalEvangel/1950-1959/1955/1955_01_09.pdf, p. 2, acesso em: 27 mar. 2018. 20 Conferência realizada a cada 3 anos, desde 1947. A 24.ª edição do evento mundial ocorreu entre 7 e 10 de setembro de 2016, em São Paulo, SP. 21 Hoje chamada Every Home for Christ. Para mais informações, consulte: http://www.ehc.org/history, acesso em: 27 mar. 2018. 22 Para mais informações sobre a criação da Igreja Pentecostal de Nova Vida e detalhes da vida do bispo Roberto McAlister nessa época, leia o meu relato em: Neopentecostalismo: a história não contada: quem foi Roberto McAlister, conhecido como o pai desse movimento (Rio de Janeiro: Anno Domini, 2012). 23 Para saber mais sobre as “ondas” do pentecostalismo brasileiro, consulte Elben Lenz César, História da evangelização no Brasil: dos jesuítas aos neopentecostais (Viçosa: Ultimato, 2000). 24 Fundada por Aimee Semple McPherson em 1923, a igreja chegou ao Brasil em 1951, na cidade de São João da Boa Vista, SP. Atualmente está presente em 146 países. 25 Harold Williams (1913-2002) foi o primeiro missionário da Igreja do Evangelho Quadrangular a estabelecer um trabalho no Brasil, por meio de uma cruzada de evangelização na cidade de São Paulo. 26 Estabelecida no ano de 1956 em São Paulo, fruto da visão do missionário Manuel de Mello e Silva, hoje conta com igrejas espalhadas por todo o país. 27 Manuel de Mello e Silva (1929-1990), outrora trabalhador da construção civil, foi milagrosamente curado de uma paralisia intestinal e passou a se dedicar integralmente ao ministério.
Oriundo das cruzadas que viriam a ser a futura Igreja do Evangelho Quadrangular, recebeu de Deus a missão de levar “O Brasil para Cristo”, investindo na construção da denominação e no programa de rádio A Voz do Brasil para Cristo . 28 Para melhor compreensão sobre os neopentecostais, leia Walter McAlister Neopentecostalismo: a história não contada , cit. 29 Acioly Brito foi o fundador da Igreja Missionária Evangélica Maranata, atualmente liderada por seu filho, Paulo Cesar Brito. Para mais informações, consulte http://www.igrejamaranata.com.br, acesso em: 27 mar. 2018. 30 Fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus, maior denominação neopentecostal do país, com aproximadamente 6 mil templos no Brasil e espalhada por 105 países. 31 Cofundador da Igreja Universal do Reino de Deus. 32 Romildo Ribeiro Soares foi um dos fundadores da Igreja Universal do Reino de Deus e posteriormente iniciou a Igreja Internacional da Graça de Deus, da qual é líder até os dias de hoje. Tem um programa de televisão em rede aberta, em horário nobre. 33 Miguel Ângelo da Silva Ferreira é o líder e fundador da Igreja Evangélica Cristo Vive, no Rio de Janeiro. 34 Antônio Carlos Ayres Abbud é o braço direito de Estevam Hernandes, líder da Igreja Renascer em Cristo, sediada em São Paulo. 35 Para um aprofundamento sobre essa discussão, leia Walter McAlister, Neopentecostalismo: a história não contada , cit. 36 David Yonggi Cho, nascido em 1936, é pastor sul-coreano e líder da Igreja do Evangelho Pleno, em Yeouido, Coreia do Sul, considerada a maior igreja do mundo, com aproximadamente um milhão de membros. 37 Para saber mais a respeito do assunto, leia Walter McAlister, O fim de uma era: um diálogo crítico, franco e aberto sobre a igreja e o mundo dos dias de hoje (Rio de Janeiro: Anno Domini 2009). 38 Marion Gordon “Pat” Robertson, nascido em 1930, é um advogado, pastor e político americano, fundador da rede de televisão TBN. Foi candidato à presidência da República dos Estados Unidos em 1988. 39 James Orsen “Jim” Bakker, nascido em 1940, é um televangelista americano ligado às Assembleias de Deus dos Estados Unidos. Foi afastado por um tempo por envolvimento em escândalos sexuais e fraudes contra o governo. 40 Morris Cerullo, nascido em 1931, é um conferencista internacional, apresentador do programa Victory Today. Tem mais de 80 livros publicados, sendo, dessa forma, um dos expoentes da teologia da prosperidade na América. 41 Toufic Benedictus “Benny” Hinn, nascido em 1952, é um televangelista israelense radicado nos Estados Unidos, conhecido por suas “cruzadas de milagres” e por apresentar o programa This Is Your Day. 42 Chegou a ser secretário permanente do diálogo católico-pentecostal no Concílio Vaticano II, considerado o mais importante da Igreja Católica no século 20. 43 O Conselho Mundial de Igrejas é uma organização ecumênica internacional, fundada em 1948, e que hoje conta com mais de 340 igrejas e denominações, representando mais de 500 milhões de fiéis em 120 países. 44 Para mais informações, consulte http://www.theiccc.info/, acesso em: 27 mar. 2018. 45 Segundo o Dicionário Priberam, honoris causa é um grau universitário conferido a título
honorífico, sem exames, geralmente a altas personalidades. 46 Para mais informações, consulte http://www.oru.edu, acesso em 8 ago. 2018. 47 Atualmente chama-se Masters College & Seminary. Para mais informações, consulte http://www.oru.edu, acesso em 8 ago. 2018. 48 Jack William Hayford, nascido em 1934, é pastor e compositor americano que foi líder mundial da Igreja do Evangelho Quadrangular entre 2004 e 2009. É ainda fundador e chanceler da The Kings University, em Los Angeles, Califórnia. 49 Kenneth Erwin Hagin (1917-2003) foi um pastor americano considerado o pai do movimento Palavra da Fé, baseado em princípios de confissão positiva. Foi ainda o fundador da Escola Bíblica Rhema, e seus escritos influenciam boa parte do neopentecostalismo brasileiro até os dias de hoje. 50 Agnes Mary White Sanford (1898-1982) foi uma teóloga chinesa radicada nos Estados Unidos, e uma das fundadoras do movimento de cura interior. Seu livro A luz que cura (São Paulo: Loyola, 1981) é considerado um clássico do movimento até os dias de hoje. 51 Smith Wigglesworth (1859-1947) foi um evangelista pentecostal britânico que realizava grandes cruzadas de cura, tendo diversos relatos de pessoas que receberam curas espetaculares. Para mais informações, consulte http://www.smithwigglesworth.com/, acesso em: 27 mar. 2018. 52 Charles Peter Wagner (1930-2016) foi um teólogo americano, professor do Seminário Teológico Fuller e um dos expoentes do movimento de batalha espiritual e da aceitação da existência de apóstolos nos dias de hoje. 53 Atualmente chamada de Mars Hill Audio. Para mais informações, consulte https://www.marshillaudio.org/, acesso em: 27 mar. 2018. 54 Para mais informações, consulte http://www.rts.edu, acesso em: 27 de mar. 2018. 55 Para maior aprofundamento no tema, verificar o capítulo 8 deste livro. 56 Para maior aprofundamento no tema, verificar o capítulo 7 deste livro. 57 Em maio de 2008, o Colégio de Bispos da denominação decidiu pela alteração do nosso nome de Igreja Pentecostal de Nova Vida para Igreja Cristã Nova Vida. O texto do comunicado oficial dessa mudança encontra-se disponível na íntegra no link: http://www.icnvcatedral.com.br/novo/ipnv-ouicnv/, acesso em: 22 mai. 2018. 58 Para mais informações, acesse http://www.ibrmec.com.br, acesso em: 2 abr. 2018. 59 Segundo o Dicionário Priberam, “oxímoro” é uma combinação engenhosa de palavras cujo sentido literal é contraditório ou incongruente, como, por exemplo, “água seca”, “heresia ortodoxa”, “música silenciosa”. 60 Para um bom exemplo disso, veja o livro de Sam Storms, Convergence: spiritual journeys of a Charismatic Calvinist (Kansas City: Enjoying God Ministries, 2005), além de seu blog http://www.samstorms.com/enjoying-god-blog, acesso em: 27 mar. 2018. 61 Paul David Washer, nascido em 1961, é um pastor americano, diretor da Sociedade Missionária Heart Cry, que serviu por 10 anos no campo missionário no Peru. Ficou conhecido no Brasil por seu vídeo Pregação chocante, que já ultrapassou 2 milhões de visualizações no YouTube. 62 Augustus Nicodemus Lopes, nascido em 1954, é um teólogo e pastor presbiteriano brasileiro. Foi chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie entre 2003 e 2013 e atualmente é o vice-presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil. 63 O respeitado teólogo reformado I. John Hesselink escreveu certa vez a respeito da aproximação entre o movimento carismático-pentecostal e a tradição reformada: “Pode parecer que a tradição reformada e o movimento carismático, com sua abordagem e teologia, são entidades basicamente
diferentes, se não antitéticas, pois em toda a tradição protestante, a reformada tem se destacado por sua ênfase na doutrina e na teologia. Por outro lado, o movimento carismático dá grande ênfase à experiência. As igrejas reformadas destacam-se por seus teólogos, não por seus ‘santos’ ou evangelistas. Nós nos orgulhamos de nossas confissões e catecismos, de nossa sólida teologia e pura doutrina. Por outro lado, os grupos carismáticos e pentecostais gabam-se das curas e das experiências de êxtase. Os cristãos reformados tendem a ser cerebrais, frios e analíticos. Os carismáticos promovem o entusiasmo, o ‘vamos que vamos’ e os sentimentos calorosos”. Apesar dessas divergências aparentes, Hesselink conclui: “É provável que os reformados presbiterianos sejam limitados na experiência da realidade, da alegria e da plenitude do Espírito. É provável que aos pentecostais esteja faltando uma compreensão bíblica adequada da obra do Espírito. Assim, uns precisam dos outros e podem se complementar. A coexistência e não uma guerra quente — ou mesmo fria — parece-nos ser uma resposta lógica e feliz à nossa situação” (“O movimento carismático e a tradição reformada”, in: Donald K. McKim, org., Grandes temas da tradição reformada [São Paulo: Pendão Real, 1998], p. 337-42).
AFINAL, O QUE É UM CRISTÃO PENTECOSTAL? As muitas vertentes do pentecostalismo e a necessidade de arrumar a casa O universo pentecostal é, no mínimo, complexo. Para os pentecostais, saber de quem estamos falando já é problemático. Para os que não são, é uma floresta misteriosa, um labirinto de más impressões geradas por inúmeros vídeos escandalosos que desfilam diariamente pelo YouTube. Muitos chegam a considerar o pentecostalismo uma heresia ou, no mínimo, histerismo, e suas muitas vertentes nada mais do que seitas com fachada cristã. Em parte, essa impressão é merecida; mas somente em parte. É urgente, portanto, que procuremos definir nossos termos, pois, ao empregar o rótulo “pentecostal reformado”, a pergunta que surge é sempre a mesma: “Que tipo de pentecostal é esse?”. Voltemos ao início, então. Quando dizemos que alguém é cristão, estamos falando de um termo abrangente que sofreu diversas mutações ao longo dos séculos. Antes de o imperador Constantino 1 dar proteção aos cristãos e de o cristianismo tornar-se a religião oficial do Império Romano, no início do século 4, ser cristão era bem simples. Uma vez que se tornar cristão poderia custar a vida do fiel, não era algo que as pessoas confessavam levianamente. Quem não fosse cristão de verdade não ousaria afirmar a fé dos perseguidos e mártires. É claro que houve hereges junto aos fiéis, mas havia um consenso muito forte quanto ao que era ortodoxia e ao que era heresia. Não havia muita ambiguidade sobre o assunto. Com a chancela do Império, todo servidor público tinha de ser batizado na igreja para poder exercer sua função. Com isso, criou-se uma enorme casta de
cristãos apenas de nome. Nascia a cristandade, a expressão cívica da fé cristã. O advento da cristandade confundiu o conceito de quem era, de fato, cristão, diluindo-o e, por fim, corrompendo-o. Afirmar-se cristão tornava-se algo conveniente e até vital para se poder transitar livremente pelos corredores do poder. Com isso, a alma da igreja foi tragicamente corrompida. Em todo caso, até cristãos nominais 2 tinham de jurar adesão a algo. Tanto os cristãos verdadeiros quanto os nominais faziam as mesmas confissões. É claro que os nominais não eram cristãos de verdade, mas apenas pessoas que juravam lealdade a uma bandeira. A fé cristã pode ser resumida no ensino dos apóstolos, cuja síntese encontra-se no tão conhecido Credo Apostólico.3 Essa confissão define a igreja. É o que nos separa de todas as outras religiões do mundo. Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador dos céus e da terra, e em Jesus Cristo, seu único filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria. Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos; foi crucificado, morto e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, subiu aos céus e está assentado à destra de Deus Pai, Todo Poderoso, De onde há de vir para julgar os vivos e mortos. Creio no Espírito Santo, na santa igreja de Cristo, Na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, Na ressurreição dos mortos e na vida eterna. 4 O cristão protestante, além de afirmar o Credo Apostólico, também afirma os cinco solas, que são o resumo das crenças que nos distinguem da Igreja Católica Romana. Como vamos examinar os cinco solas mais adiante,5 por enquanto apenas faremos referência a eles: sola fide (somente a fé), sola gratia (somente a graça), solus Christus (somente Cristo), sola Scriptura (somente as Escrituras) e soli Deo gloria (a Deus somente a glória). Antes de prosseguir, gostaríamos de fazer uma breve observação sobre outra expressão: cristão evangélico. É importante frisar que o cristão
evangélico se identifica, acima de tudo, como alguém que crê no evangelho. Isso implica crer em Cristo Jesus como Deus encarnado, cuja morte e ressurreição nos comprou e livrou do pecado e da morte. O evangélico afirma a necessidade de uma conversão pessoal a Cristo pelo poder do Espírito Santo. Afirma ainda que a Bíblia é a Palavra de Deus plenamente inspirada, inerrante e suficiente para nos ensinar tudo o que diz respeito à salvação eterna. Historicamente, o evangelicalismo é um desdobramento do protestantismo.6 Mas as diferenças entre os termos “evangélico” e “protestante” não são fundamentais para a nossa discussão no momento, tampouco para este livro. O cristão reformado, portanto, é um cristão protestante que, embora tenha o evangelho como mensagem diferenciadora, não se identificaria necessariamente como evangélico nos moldes mais recentes. 7 Detém algumas características a mais que serão tratadas ao longo deste livro. Por isso, vamos nos ater, no restante deste capítulo, ao que vem a ser um cristão pentecostal em suas muitas vertentes atuais.
O PENTECOSTALISMO E SUAS VERTENTES ATUAIS O pentecostalismo, como o conhecemos hoje, é um movimento recente na história da igreja. Na verdade, toda a igreja cristã é “pentecostal” no sentido propriamente bíblico da palavra, pois nasceu no Dia de Pentecostes, acontecimento registrado no segundo capítulo do livro de Atos dos Apóstolos. É certo que, ao longo da história, houve movimentos que evidenciaram alguns aspectos mais associados ao que identificamos como pentecostalismo. Por exemplo, um dos pais da igreja, Tertuliano, 8 foi montanista. O montanismo9 foi um movimento no qual podemos identificar pontos de convergência com o pentecostalismo. Todavia, esse movimento foi herético e não pode ser uma referência segura para pentecostais. Ao longo da história, houve outros movimentos pietistas e sobrenaturalistas que se pautaram por ênfases parecidas com as do pentecostalismo moderno, assim como manifestaram dons e uma certa ebulição mais entusiasmada, aspectos bastante identificados com o pentecostalismo na nossa era.10 Antes do século 20, porém, nunca houve outro movimento exatamente como este que identificamos como movimento pentecostal-carismático. Portanto, quando aludimos ao cristão pentecostal, estamos falando de alguém que nasceu na fé cristã evangélica ou a abraçou, mas tem como referencial distintivo o movimento que começou no início do século 20, em Los Angeles, na rua Azusa. Foi nessa igreja pequena e pobre, frequentada quase em sua totalidade por negros americanos, onde começou esse avivamento que cresceu e espalhou-se pelo mundo, chegando até a influenciar outras denominações.11 Hoje há literalmente centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo que são identificadas como descendentes diretos desse movimento. O único grupo cristão maior do que a soma dos pentecostais-carismáticos é a Igreja Católica Romana. 12 O movimento pentecostal moderno começou principalmente entre metodistas pietistas13 — se bem que houve muitos visitantes à rua Azusa,
vindos de outras denominações, que acabaram se juntando aos que afirmavam a experiência pentecostal. A mensagem principal dos primeiros pentecostais era evangelística e pietista (ou seja, preocupava-se com a santificação pessoal), dava ênfase à manifestação do Espírito Santo por meio de sinais e prodígios, bem como à busca pelo “batismo no Espírito Santo” — uma segunda iniciação na vida cristã, após a conversão.14 As reuniões na tenda montada na rua Azusa estendiam-se noite a dentro na busca pelo batismo no Espírito. O pentecostalismo afirmava que essa segunda iniciação, essa plenitude do Espírito, era a porta pela qual o fiel teria acesso à fruição dos dons do Espírito Santo. Mas essa iniciação necessariamente seria marcada pela concessão do dom de falar em línguas estranhas. Não demorou muitos anos para que o dom de línguas viesse a ser destacado não somente como um dos dons do Espírito, mas também como sinal e evidência inicial necessária do batismo no Espírito Santo. Por fim, o movimento nasceu com um forte viés missionário e com uma preocupação por ganhar almas, ou seja, um evangelismo avivamentista. A partir daí, muitos ministérios evangelísticos nasceram e se destacaram nos quadros pentecostais, como os de Billy Sunday,15 Aimee Semple McPherson,16 Oral Roberts,17 T. L. Osborn, 18 Lester Summral,19 Rex Humbard20 e Roberto McAlister. Foram tempos difíceis para a igreja nos Estados Unidos. Os grandes seminários tradicionais, como, por exemplo, Princeton, tinham sido invadidos pelo liberalismo teológico21 vindo da Alemanha. J. Gresham Machen,22 mestre reformado e presbiteriano fiel, reagiu à sua demissão do seminário de Princeton fundando um novo seminário que salvaguardaria a fé dos antigos, o Seminário Teológico Westminster. Em contrapartida, os pietistas denunciavam e rechaçavam a academia por completo. A solução seria o cultivo de uma igreja mais espontânea e movida pelo Espírito, além de uma leitura simples e direta das Escrituras. Os pentecostais, muito influenciados por essa maneira de pensar, diziam que um “homem com uma experiência é mais forte do que um homem com um argumento”. Com isso, o aprofundamento teológico era considerado algo que atentava contra a fé e a liberdade do Espírito.23 Esse preconceito contra o estudo levou muitos anos
para ser identificado como fonte de confusão da fé e da prática cristã. Deu origem a muitos erros, tanto doutrinários quanto práticos. A despeito da volta posterior à academia pelos pentecostais, muitos erros que nasceram nesse período inicial permanecem até hoje. 24 A “primeira onda” de pentecostais seguiu com vigor e se estendeu por toda a primeira metade do século 20. Seu crescimento numérico superou o de todas as outras épocas de crescimento da história da igreja. 25 Várias denominações nasceram desse movimento, como as Assembleias de Deus, 26 a Igreja de Deus em Cristo 27 e a Igreja de Deus, 28 assim como grupos pareclesiásticos como a ADHONEP.29 No fim da década de 1960, surgia nos Estados Unidos a “segunda onda” do pentecostalismo. Houve uma abertura à experiência pentecostal, ou seja, ao batismo no Espírito Santo, entre denominações protestantes tradicionais e até entre católicos romanos. Um dos primeiros a ter essa experiência foi o reverendo Dennis Bennett,30 pastor episcopal da Califórnia. Outros, como Larry Christenson,31 da Igreja Luterana, e Tommy Tyson, 32 metodista da Carolina do Norte, igualmente afirmaram ter recebido o batismo do Espírito com a evidência do falar em outras línguas. Houve ainda muitos outros que, mesmo mantendo sua identidade denominacional tradicional, passaram a se identificar como pentecostais em sua espiritualidade, até mesmo afirmando a “segunda bênção” com a evidência inicial do falar em línguas estranhas. Um pastor sul-africano das Assembleias de Deus, David du Plessis, 33 sentiu-se guiado por Deus a levar a mensagem pentecostal à Igreja Católica Romana. Foi nesse tempo que a Renovação Carismática Católica teve início nos Estados Unidos, chegando rapidamente também ao Brasil. A “terceira onda” do pentecostalismo mundial foi marcada pelo nascimento de igrejas que enfatizavam mais a continuidade de dons espirituais do que a segunda bênção do batismo no Espírito Santo, evidenciado pelo falar em outras línguas. A igreja que mais se destacou nessa última onda pentecostal foi a Igreja Vineyard, fundada por John Wimber, 34 nos Estados Unidos. As ondas do pentecostalismo no Brasil foram um pouco diferentes. 35 A
primeira onda iniciou-se por meio do pioneirismo dos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, das Assembleias de Deus. Não há dúvida de que essa denominação foi uma força evangelística e missionária no Brasil. Sua ênfase recaía tanto no evangelismo como na santificação — demonstrando até mesmo certa preocupação com usos e costumes bem restritos, além, é claro, da busca pelo batismo no Espírito Santo. A segunda onda de pentecostalismo no Brasil, ainda parte do que chamaríamos de “pentecostalismo clássico”, foi marcada por igrejas que, além da busca pelo batismo no Espírito Santo, deram muito destaque à cura divina, à expulsão de demônios e à profecia, conforme defendido por T. L. Osborn em seu clássico Curai enfermos e expulsai demônios.36 Até hoje esse é um livro largamente usado em algumas igrejas pentecostais. Essa onda no Brasil incluiu denominações como a Igreja do Evangelho Quadrangular, o Brasil para Cristo, Deus é Amor, a Nova Vida e a Igreja Missionária Evangélica Maranata. O fundador da Igreja Pentecostal de Nova Vida, Roberto McAlister, foi um pregador e evangelista que ficou muito conhecido a princípio por seu ministério de cura e libertação na década de 1960. Em resumo, portanto, quando alguém se diz um pentecostal “clássico” ou “tradicional”, geralmente o que o distingue é a ênfase evangélica associada à doutrina da “segunda bênção”, ou batismo no Espírito Santo, e à manifestação dos dons espirituais — especialmente o de línguas, com destaque também para cura, exorcismo e profecia. No fim da década de 1970 e início da de 1980, surgiu uma nova onda do pentecostalismo conhecida como neopentecostalismo.37 Inicialmente, era muito parecida com seu berço pentecostal. Todavia, houve uma mudança significativa em sua mensagem e em suas práticas. Destaco as práticas porque é por meio delas que podemos entender no que realmente uma igreja crê. Igrejas como a Universal do Reino de Deus e a Internacional da Graça de Deus, seguidas pela Igreja Apostólica Renascer em Cristo, Projeto Vida Nova38 e Sara Nossa Terra39 partiram para os meios de comunicação em massa com uma mensagem agressiva de poder espiritual ao alcance de todos. Essa mensagem tinha como ponto central combater os poderes opressores do mal com o poder da oração, principalmente no contexto do culto público. É
claro que a segunda onda do pentecostalismo também enfatizava isso. Contudo, o que mais caracterizou essa terceira onda foi o emprego de objetos, frases de efeito (“Está amarrado”, “Eu determino”, “Nascemos para ser cabeça e não cauda”, “Tomemos posse”) e sistemas de culto (como correntes com certo número de semanas, corredores de oração ou cultos temáticos como “a noite do descarrego”), com o intuito de mobilizar e operacionalizar a fé. A isso agregou-se uma ênfase muito forte na “lei de semeadura”, conceito segundo o qual a generosidade para com a obra de Deus implicava retorno direto, abençoando a vida financeira do ofertante. Isso tornou-se o destaque predominante nos anúncios veiculados nos meios de comunicação, principalmente rádio e televisão, por certas igrejas adeptas dessa terceira onda. Com o crescimento explosivo desses movimentos, surgiu uma necessidade urgente de “mão de obra”. Jovens mais dinâmicos e capazes de agregar e levantar fundos foram rapidamente promovidos a posições de liderança. Como não tinham preparo teológico, embora fossem dotados de capacidade para transmitir os pontos cardeais do movimento, qualquer cautela ou zelo por uma pregação fiel às Escrituras foi abandonado, e toda e qualquer campanha, por mais absurda que fosse, era promovida com entusiasmo. Pessoas eram expostas publicamente ao opróbrio, ao terem a imagem transmitida pela televisão enquanto eram libertas de espíritos malignos. Em regra, o exorcismo era prolongado para fazer demonstração da autoridade do nome de Jesus sobre o espírito maligno. Espetáculos degradantes podiam ser vistos diariamente em rede nacional. E os números não paravam de crescer. Ficamos cansados de ouvir, semana após semana, sobre mais um absurdo dos “novos pentecostais”: truques para angariar fundos, objetos mágicos (tinha até cueca ungida para melhorar a vida sexual dos “fiéis”), correntes de oração de toda sorte. Concomitantemente, a identidade da igreja foi se degradando. Até então, a Nova Vida fora a primeira e única igreja pentecostal no Brasil a se organizar de modo episcopal, ordenando o seu fundador como bispo primaz em 1976. As novas igrejas “pentecostais”, principalmente a Universal, passaram a ordenar bispos também. Mas isso foi só o começo.
Hoje vemos de tudo: bispos, bispas, apóstolos, apóstolas, profetas, até arcanjos. A cada dia nasce uma nova categoria de ministério, um novo título. Em cada canto existe um bispo, em cada novo movimento um apóstolo, cada um com a sua revelação de como dar um jeito neste país, conquistando-o para Cristo. Em paralelo ao surgimento das igrejas neopentecostais, as antigas denominações pentecostais também passaram por mudanças e divisões. A primeira e até a segunda geração passaram. Uma nova geração se levantou, e com ela os rumos das igrejas pentecostais mudaram. A maior delas, as Assembleias de Deus, dividiu-se em vários grupos. Alguns partiram para a busca de poder político. Outros se esfriaram, defendendo a doutrina pentecostal sem realmente continuar a praticar o que as gerações anteriores praticavam. Tornaram-se pentecostais apenas no nome. Os cultos continuavam barulhentos, mas não mais movidos por uma busca de Deus como antigamente. Muitos se contentaram com a aparência de poder apenas, sem realmente gastar tempo em oração pessoal, que é o fundamento da espiritualidade pentecostal. Ainda outras igrejas da linha original pouco se distinguem hoje das neopentecostais. No início dos anos de 1990, também surgiu o movimento gospel,40 cujo enorme impacto sobre a igreja transformou-a em evento em vez de comunhão dos santos. O “enlevo” passou a ser o alvo do culto. A emoção seria o selo de autenticidade do “mover de Deus”. Perdeu-se a preocupação com a vida consagrada a Deus, com o evangelismo e com a busca dos dons espirituais. Aliás, falamos muito em dons no meio pentecostal, mas vemos muito pouco da manifestação do Espírito Santo agindo em nosso meio. Também, em meio a luzes coloridas, gelo seco, backing vocal bem ensaiado, um contrabaixo absurdamente opressor, solos de bateria e grupos de meninas dançando pelos corredores, o Espírito Santo teria de promover uma queda de luz no bairro para que qualquer um notasse que o culto é pouco mais do que um show. No contexto das igrejas neopentecostais também surgiram vários outros conceitos duvidosos e nada bíblicos: guerra espiritual, mapeamento espiritual, regressão e quebra de maldições, mentorias opressivas e lideranças piramidais (que oferecem “cobertura espiritual” aos fiéis), retiros intensos
que empregam métodos de lavagem cerebral (como alguns denominados “encontro com Jesus” ou “encontro com Deus”) e coisas do gênero. É provável que a pior novidade do movimento neopentecostal seja a teologia da prosperidade. Isso merece um pouco mais de atenção. Como disse, ela é um desdobramento do conceito chamado “lei de semeadura”. Embora o conceito bíblico de semeadura diga mais respeito às consequências morais dos nossos atos — como exposto por Paulo em Gálatas 6.7,8 —, os expoentes da teologia da prosperidade apontam principalmente para uma espécie de barganha entre o fiel e Deus. A ideia geral é simples: dê um tanto para Deus (leia-se, para a igreja ou o ministério que defende essa teologia) e Deus lhe dará de volta na mesma proporção. A referência às palavras de Jesus em Lucas 6.38 é uma citação comum: “Deem, e lhes será dado: uma boa medida, calcada, sacudida e transbordante será dada a vocês. Pois a medida que usarem também será usada para medir vocês” (NVI), apesar de o contexto imediato deixar claro que a promessa se refere a tratar de forma generosa e longânima o nosso próximo, incluindo os inimigos.41 Há muitos outros erros de interpretação bíblica na teologia da prosperidade, mas não será aqui que desconstruiremos essa doutrina antibíblica. O que importa agora é destacar o que ela fez com a pregação do evangelho: colocou a mensagem da cruz em segundo plano e elevou o benefício material à primeira ordem da fé. Com isso, a igreja perdeu a mensagem da “piedade acompanhada de satisfação” (1Tm 6.6), assim como perdeu todo o sentido e propósito do sofrimento como instrumento da disciplina paternal de Deus (Hb 12.4-13). A teologia da prosperidade transformou a igreja em uma prestadora de serviço, seus membros em clientes e o pastor em um serviçal dos anseios do povo. Enfim, o pentecostalismo no Brasil tornou-se uma fábrica de loucuras, ambições e brigas, para não dizer uma fábrica de denominações. Literalmente, o movimento explodiu em uma constelação de milhares de igrejinhas, cada uma com sua doutrina, suas ofertas, seus títulos (dos mais estapafúrdios), a ponto de um líder decretar que sua mãe doravante deve ser tratada como a “Apóstola do Ventre Profético”. 42 É uma cacofonia ensurdecedora de títulos, posições, ministérios, revelações e práticas
absurdas. Ninguém mais sabe o que é um pentecostal, embora alguns ainda tentem acenar com respeito aos “pentecostais clássicos”. E, quando nos identificamos como pentecostais — algo que muitos sentem vergonha de fazer —, é com um receio compreensível. Ainda mais se você for um bispo pentecostal como eu. É um opróbrio!
DEFININDO OS TERMOS Nesse contexto, vemos o surgimento de uma geração que está começando a se perguntar se tudo isso realmente vem de Deus ou não. Jovens estão questionando mais e mais e já não veem com bons olhos algumas das práticas de suas igrejas. Tampouco veem fundamento nas Escrituras para vários dos ensinos com os quais cresceram. Além disso, estão se valendo de um mundo de informação disponibilizada na internet. Pela internet, temos acesso a verdadeiros mestres da Palavra e a boas pregações expositivas. Claro que há de tudo. Do “alfinete ao foguete”, tem teologia para todos os gostos e anseios possíveis. Mas há uma busca crescente por uma fé robusta e bíblica. Há um anseio por algo que não seja tão escandaloso — não só para o mundo, mas também para outros crentes. Há fome e sede por algo mais substancial, por uma teologia mais consistente, histórica e tradicional. Graças a Deus há pessoas que começam a ler sobretudo a respeito da fé dos antigos. Nas palavras do historiador Philip Jenkins: “No futuro previsível, [a] corrente dominante do cristianismo mundial emergente será tradicionalista, ortodoxa e voltada para o sobrenatural”.43 Meu pai costumava me dizer o que ouvira de meu avô: “Filho, descubra o que Deus está fazendo e faça parte disso”. Creio que Deus está chamando uma igreja que ainda tenha firme convicção sobre o mover de Deus e esteja aberta para o que ele fará agora. Ele está nos chamando para voltar às nossas raízes históricas, para aprender de novo o que nossos antepassados na fé aprenderam e passaram adiante. Na contramão das tendências atuais — isto é, de sempre viver em torno do novo e do inovador —, a igreja mais inovadora não está inovando coisa alguma. Está tentando se encontrar de novo. Diante da confusão generalizada da igreja, principalmente das alas pentecostais, os ovens estão se voltando para aquilo que já se mostrou fiel e confiável ao longo de séculos de heróis da fé cristã. A mesma internet que tem disponibilizado tanta informação proveitosa para essa nova geração de pentecostais também tem sido palco de muita
confusão em torno de certos termos. Em virtude da confusão absurda instaurada por termos que são bradados aos quatro ventos, sem que ninguém consiga entender do que se está falando, teremos de definir bem o significado com que certas palavras serão usadas ao longo deste livro, ainda que esses mesmos termos costumem ser compreendidos de várias maneiras. O que é um evangélico para uns não o é para outros. O que é um pentecostal para uns não o é para os demais. Até entre pentecostais há muitos sentidos diferentes para um mesmo termo. Portanto, em resumo, cremos que, para o propósito deste livro, é preciso definir os termos a seguir. Assim, quando os empregarmos, todos saberão a que nos referimos. O cristão, portanto, é aquele que confessa Deus Pai como Criador, Jesus Cristo como Salvador e o Espírito Santo como Santificador. É aquele que confessa a fé bíblica e apostólica resumida no Credo dos Apóstolos. O rotestante evangélico é aquele que se destaca como cristão que afirma as máximas e as doutrinas — os “cinco solas” — que o distinguem do católico romano. O pentecostal é, minimamente, aquele que afirma um tipo de espiritualidade pietista e sobrenaturalista, conforme detalharemos melhor no próximo capítulo. O neopentecostal difere do pentecostal pelo fato de ter se distanciado do evangelho como a referência principal e central da fé cristã, transferindo sua ênfase a Deus como alguém que concede favores mediante algum tipo de artifício ou oração programada. O carismático, por sua vez, é aquele que está aberto à manifestação dos dons espirituais e engaja-se na busca e no exercício desses dons, tanto em sua vida individual como na coletividade da igreja.44 Por fim, o pentecostal reformado é pentecostal em sua espiritualidade, mas adepto dos antigos mestres da fé reformada no que tange à sua doutrina. Como tal, ele se afasta de algumas das doutrinas mais associadas ao “pentecostalismo clássico” e repudia as tendências dos neopentecostais. É também alguém que anseia por avivamento, mas igualmente anseia por uma nova reforma da igreja. Como tudo isso se encaixa e quais são os seus desdobramentos é objeto do restante deste livro.
1 Constantino I (272-337) foi um
imperador romano conhecido por interromper a perseguição oficial ao cristianismo, abrindo caminho para seu reconhecimento como religião oficial do Império. 2 Afirma-se que cristãos nominais são aqueles que se dizem cristãos sem praticar os mandamentos bíblicos em sua rotina. Também são chamados “cristãos não praticantes”. 3 Documento histórico da igreja que sintetiza os pilares da crença cristã oriunda do ensino dos apóstolos. Para uma excelente apresentação sobre a importância histórica e teológica dessa confissão, confira a obra de Franklin Ferreira, O Credo dos Apóstolos: as doutrinas centrais da fé cristã (São José dos Campos: Fiel, 2015). 4 Essa versão do Credo Apostólico, adotada pela Igreja Cristã Nova Vida, foi adaptada para evitar confusões de interpretação bíblica, como, por exemplo, a retirada da expressão “desceu ao Hades”, ponto teológico discutível, e da utilização dos termos “Igreja Católica” ou “Igreja Universal”, que podem se referir às instituições com tais nomes, e não ao sentido original da expressão, de uma igreja única espalhada por todo o mundo. 5 Trataremos dos cinco solas no capítulo 6. 6 O evangelicalismo é um movimento cristão, surgido no século 17 entre diversos grupos cristãos, que se tornou ainda mais significativo nos Estados Unidos durante o Grande Despertamento dos séculos 18 e 19. No século 21, o movimento continua a atrair adeptos mundialmente, sobretudo nos países em desenvolvimento. David Bebbington, em seu livro Evangelicalism in modern Britain: a history from the 1730’s to 1980’s (Abingdon: Routledge, 1988), aponta quatro aspectos próprios do movimento: conversionismo, biblicismo, crucicentrismo e ativismo, observando que juntos eles formam um quadrilátero de prioridades que é a base do evangelicalismo. Para maior aprofundamento na história do desenvolvimento do movimento evangélico, confira a série de livros A history o Evangelicalism: people, movements and ideas in the English-speaking world, publicado por IVP Academic, incluindo os livros de Mark Noll (The rise of Evangelicalism [2003]), de John Wolffe ( The expansion of Evangelicalism [2007]), de David Bebbington ( The dominance of Evangelicalism [2005]), de Geoffrey Treloar ( The disruption of Evangelicalism [2017]) e de Brian Stanley ( The global diffusion of Evangelicalism [2013]). 7 O termo “evangélico”, em seu contexto atual, apresenta um problema à parte. Isso porque vem sendo usado no Brasil para descrever os cristãos que, embora se identifiquem como não católicos, não seguem uma linha doutrinária que seja comum a todos. Desde os mais tradicionais protestantes aos mais entusiasmados neopentecostais, todos se identificam como “evangélicos”. O resultado é um desgaste do termo, que mais parece descrever um segmento demográfico ou um nicho mercadológico, ou mesmo político, do que propriamente um grupo que se identifica por uma confissão única. 8 Quintus Septimius Florens Tertullianus (160-220) nasceu em Cartago, província romana da África. É famoso por ser o autor mais antigo a utilizar o termo “Trindade” e por frases célebres como “O sangue dos mártires é a semente da igreja”, ou, falando sobre a relação entre cristianismo e filosofia: “Que têm em comum Atenas e Jerusalém?”. 9 O montanismo foi um movimento cristão fundado por Montano, no segundo século, tornando-se conhecido como a “heresia frígia” de acordo com relatos de Eusébio de Cesareia em seu livro História eclesiástica. Entre suas principais características estavam a ênfase em revelações proféticas e extrabíblicas, além de sua contestação à liderança hierárquica da igreja. 10 Confira a obra de Stanley M. Burgess, Christian peoples of the Spirit: a documentary history o Pentecostal spirituality from the Early Church to the present (New York: NYU, 2011). 11 Vinson Synan, The holiness-Pentecostal tradition: Charismatic movements in the twentieth
century (Grand Rapids, Eerdmans, 1997); Jack Hayford; S. David Moore, The Charismatic century: the enduring impact of the Azusa street Revival (New York: Warner Faith, 2006). 12 Estima-se
que, em apenas cem anos do início do movimento pentecostal moderno, o número de cristãos pentecostais ao redor do mundo chegue a pelo menos 500 milhões de fiéis, ou seja, pelo menos um em cada quatro cristãos é pentecostal. Como bem observa Douglas Jacobsen, o paralelo histórico mais próximo desse movimento religioso explosivo e expansivo ocorreu no século seguinte à morte de Maomé (633-732), fundador do islamismo, ressalvando-se o fato de que o pentecostalismo não dispôs de poderio militar e político para espalhar sua influência pelo mundo (edição de Douglas Jacobsen, A reader in Pentecostal theology: voices from the first generation [Bloomington: Indiana University Press, 2006], p. 1). 13 Fundado por Philip Jacob Spener (1635-1705), oriundo do luteranismo, o pietismo é um movimento que valoriza as experiências individuais do crente. Tal movimento influenciou muitos grupos posteriores, como, por exemplo, o metodismo, o evangelicalismo e o pentecostalismo. Para um breve resumo histórico dos antecedentes históricos e teológicos do movimento pentecostal moderno e seus desdobramentos posteriores no mundo, especialmente no Brasil, confira o artigo de Alderi Souza de Matos, “O movimento pentecostal: reflexões a propósito do seu primeiro centenário”, Fides Reformata XI/2 (2006): 23-50. 14 Trataremos mais a fundo dessa doutrina no capítulo 10. 15 William Ashley “Billy” Sunday (1862-1935) foi um jogador de beisebol americano que se converteu ao cristianismo e tornou-se um grande evangelista nas primeiras duas décadas do século 20. 16 Aimee Semple McPherson (1890-1944) foi uma evangelista canadense, fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular, e uma das pioneiras no uso do rádio para a evangelização nos EUA. 17 Granville Oral Roberts (1918-2009) foi um dos maiores televangelistas americanos, tendo fundado a Oral Roberts University, que influenciou toda uma geração de líderes e pregadores pentecostais. 18 Thomas Lee Osborn (1923-2013) foi um evangelista pentecostal conhecido por suas cruzadas de cura que alcançaram milhões de pessoas, e por seu livro Curai enfermos e expulsai demônios , que se tornou um best seller no meio pentecostal. 19 Lester Frank Sumrall (1913-1996) foi pastor e evangelista pentecostal americano, fundador da Lester Sumrall Evangelistic Association (LeSEA), da rádio World Harvest Radio International e do seminário World Harvest Bible College. 20 Alpha Rex Emmanuel Humbard (1919-2007) foi um conhecido televangelista americano, famoso por seu programa de televisão Cathedral of Tomorrow, que era retransmitido em dezenas de países. 21 O liberalismo teológico foi um movimento predominante no século 19 que relativizou a autoridade da Bíblia, estabelecendo uma mistura da doutrina bíblica com a filosofia naturalista e as ciências da religião. Seu maior expoente foi o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que negava a autoridade da Bíblia e a historicidade dos milagres de Cristo. 22 John Gresham Machen (1881-1937) foi um teólogo presbiteriano americano, professor de Novo Testamento na Universidade de Princeton entre 1906 e 1929. Após essa universidade ser tomada pelo liberalismo, fundou o Westminster Theological Seminary. É conhecido por seu famoso livro Cristianismo e liberalismo (São Paulo: Shedd, 2012), que confronta abertamente os ideais do liberalismo teológico. 23 Douglas Jacobsen observa que, apesar de ser visto por outros movimentos cristãos como um movimento antiteológico, o pentecostalismo de fato nasceu como um movimento teológico. Sua
teologia e prática, apesar de fortemente pautadas na experiência com o Espírito Santo, representaram um protesto contra a teologia e a espiritualidade fria e oca das denominações tradicionais dos EUA do início do século 20. Em suas palavras, portanto, o pentecostalismo nasceu de uma teologia consciente, plena e capacitada pelo Espírito Santo (edição de Douglas Jacobsen, A reader in Pentecostal theology: voices from the first generation [Bloomington: Indiana University, 2006], p. 4-6). 24 Para uma tentativa recente por parte de um autor pentecostal de conclamar a igreja a uma volta à academia e ao rigor dos estudos, confira a obra de Rick Nañez, Pentecostal de coração e mente: um chamado ao dom divino do intelecto (São Paulo: Vida, 2005). Para uma fundamentação bíblica e teológica desse mesmo ponto, confira a obra de Craig Keener, A mente do Espírito: a visão de Paulo sobre a mente transformada (São Paulo: Vida Nova, 2018). 25 Vinson Synan, O século do Espírito Santo: 100 anos do avivamento pentecostal e carismático (São Paulo: Vida, 2011). 26 A Igreja Assembleia de Deus foi fundada no Brasil em 1911, com o nome de Missão da Fé Apostólica (alterado em 1918 para Assembléia de Deus), por dois missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, sendo estabelecida primeiramente em Belém, no Pará. Por seu apelo evangelístico e tônica pentecostal, desenvolveu-se rapidamente e é considerada a maior denominação evangélica do país, com suas várias ramificações. Nos EUA, ela surgiu em 1914, pelo ministério de E. N. Bell, em Hot Springs, no Arkansas. 27 A Igreja de Deus em Cristo é uma denominação pentecostal americana, fundada em 1907 por Charles H. Mason (1864-1961). Predominantemente frequentada por negros, é a maior denominação pentecostal dos Estados Unidos. 28 A Igreja de Deus é uma denominação pentecostal americana, fundada em 1886, por Richard Green Spurling (1857-1935) e Barney Creek, em Monroe Tennessee, na Carolina do Norte. Atualmente conta com mais de 7 milhões de membros espalhados por 36 mil congregações em 178 países, incluindo o Brasil. 29 A Associação de Homens de Negócios do Evangelho Pleno (ADHONEP) é uma instituição brasileira, não eclesiástica e interdenominacional, fundada em 1977 por Custódio Rangel Pires e incentivada por Demos Shakarian, que presidiu uma organização semelhante nos EUA. Além de presidente da organização de homens de negócio dos EUA e empresário, Shakarian foi também um facilitador das campanhas evangelísticas de homens como Charles Price, William Branham e Oral Roberts. Sua história está muito ligada ao pentecostalismo, sendo membro do povo armênio, que recebera uma profecia do genocídio vindouro nas mãos dos turcos. Tudo isso aconteceu num contexto de uma igreja pentecostal e, portanto, os refugiados armênios tornaram-se quase na sua totalidade pentecostais. A história dessa profecia foi registrada pelo próprio Demos Shakarian, com a ajuda de John e Elizabeth Sherrill, no livro O povo mais feliz da terra (Rio de Janeiro: CPAD, 1982). 30 Dennis J. Bennett (1917-1991) foi um teólogo episcopal inglês, radicado nos EUA, que se tornou um dos expoentes da doutrina do batismo no Espírito Santo, sendo por isso um dos principais nomes do movimento carismático do século 20. 31 Larry Christenson (1928-2017) foi um teólogo luterano da Califórnia que introduziu o movimento carismático no luteranismo por meio de conferências anuais que fortaleceram a ala renovada da Igreja Luterana nos EUA. 32 Tommy Tyson (1922-2002) foi pastor e evangelista metodista americano, pioneiro na renovação carismática dentro da Igreja Metodista dos EUA, tendo sido muito influenciado pelo ministério de Oral Roberts.
33 David
Johannes du Plessis (1905-1987) foi pastor pentecostal sul-africano, considerado um dos principais fundadores do movimento carismático mundial, que dedicou seus esforços principalmente a compartilhar a experiência pentecostal com o catolicismo romano. 34 John Richard Wimber (1934-1997) foi um músico e teólogo americano, fundador da Igreja Vineyard, uma igreja carismática que investe de forma sistemática na música e no discipulado. 35 Para um relato mais detalhado da evolução do pentecostalismo no Brasil, confira o artigo supracitado de Alderi Souza de Matos, p. 37-44. 36 T. L. Osborn, Curai enfermos e expulsai demônios (Rio de Janeiro: Graça Editorial, 2000). 37 Confira mais uma vez o artigo supracitado de Alderi Souza de Matos, p. 44-7. 38 O Projeto Vida Nova foi um ministério fundado em 1988, por Ezequiel Cortaz Teixeira (1955-), tendo sua sede no bairro de Irajá e sendo famoso por seu grupo de música e esforços evangelísticos. 39 A Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra é um ministério fundado em 1992, em Brasília, por Robson Rodovalho (1955-), sendo pioneira na aplicação do sistema de células em igrejas brasileiras. 40 O movimento gospel teve início na década de 1990 no Brasil, mudando fortemente as ênfases da música cristã contemporânea brasileira com profundos investimentos na composição, gravação, produção musical e lançamento de obras para o nicho evangélico. O termo gospel passou a ser utilizado pela gravadora Gospel Records, pertencente a Estevam Hernandes, embora outras gravadoras, como MK Music, Line Records e AB Records, tenham contribuído para tanto. 41 Lucas 6.35-38: “Pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nada em troca; e a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é bondoso até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai, e vos será dado; recebereis uma boa medida, cheia, generosa e transbordante; pois sereis medidos com a mesma medida com que medis”. Jesus fez também a seguinte comparação: “Por acaso um cego pode guiar outro cego? Ambos não cairão em um buraco? O discípulo não está acima do seu mestre; mas todo o que for bem instruído será como o seu mestre. Por que vês o cisco no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho? Como podes dizer a teu irmão: Irmão, deixa-me tirar o cisco que está no teu olho, e não enxergas a trave que está no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho; e então enxergarás bem para tirar o cisco no olho do teu irmão” (Lc 6.39-42). 42 Para mais informações, consulte a notícia http://www.pulpitocristao.com/2015/03/rene-terranova-consagra-sua-mae-como.html, acesso em: 28 mar. 2018. 43 Philip Jenkins, A próxima cristandade: a chegada do cristianismo global (Rio de Janeiro: Record, 2004), p. 18. 44 No Brasil, o termo “carismático” tem sido mais associado aos membros da Renovação Carismática Católica, apesar de nos Estados Unidos ele estar mais associado a cristãos de denominações protestantes tradicionais (metodistas, batistas, presbiterianas, luteranas) abertos ao exercício dos dons espirituais.
A ESSÊNCIA PENTECOSTAL O que significa ser pentecostal? Quando me afirmo “pentecostal reformado”, é evidente que a dialética entre as duas tradições acaba afetando tanto o tipo de pentecostal quanto o tipo de reformado a que me refiro. Para a maioria das pessoas, a junção das duas tradições representa um oxímoro, ou seja, um termo que carrega em si uma contradição interna que o torna incoerente. Afirma-se que o termo “pentecostal reformado” é um absurdo, assim como dizer “água seca”. “Seguramente, as doutrinas mais associadas ao pentecostalismo são contrárias às doutrinas da graça e à própria hermenêutica reformada”, poderíamos ouvi-las dizer. Defenderei o argumento de que o pentecostalismo não é necessariamente — tampouco essencialmente — uma escola doutrinária, mas por certo foi caracterizado pelas doutrinas mais defendidas pelos pentecostais clássicos, dentre as quais destaco três. A primeira e mais óbvia é o arminianismo. 1 Como o movimento pentecostal-carismático nasceu de raízes metodistas wesleyanas, necessariamente tendeu para o ensino de Wesley, 2 arminiano convicto que se opôs a seu colega George Whitefield,3 calvinista convicto. Aliás, o arminianismo foi apenas uma das duas doutrinas sobre as quais os dois pais da Igreja Metodista não conseguiram entrar em consenso, resultando na ruptura penosa da comunhão entre esses irmãos. A segunda doutrina afirmada pelos pentecostais clássicos é a da “segunda bênção”, também conhecida como “batismo no Espírito Santo”, evidenciado pelo falar em outras línguas — a tão conhecida glossolalia. 4 O terceiro e último fundamento doutrinário mais associado aos pentecostais clássicos é uma hermenêutica que desemboca numa escatologia
dispensacionalista.5 Esses três fundamentos do pentecostalismo clássico são incompatíveis com a teologia reformada. Por isso, serão tratados à medida que os pontos de divergência surgirem ao longo da minha descrição da doutrina reformada. É possível ser pentecostal sem afirmar essas três doutrinas? A resposta depende de que tipo de pentecostal estamos descrevendo. É impossível ser um pentecostal clássico ou tradicional e rejeitar ou redefinir as bases doutrinárias acima mencionadas. Já deve ser algo evidente, porém, que o pentecostal reformado se vê forçado a repensá-las. Como isso é possível, será tratado a fundo mais adiante. Contudo, de acordo com o filósofo e teólogo James K. A. Smith, 6 o pentecostalismo é mais bem definido como uma espiritualidade, e não como uma tradição doutrinária.7 Muitos teólogos pentecostais farão objeção a isso, obviamente; defendo, porém, que somos mais bem definidos por algo que antecede a formulação teológica. Proponho, então, uma releitura do que de fato é o pentecostalismo — algo em geral criticado, mas raramente descrito e, em decorrência disso, raramente compreendido. Para entender a espiritualidade pentecostal, é importante compreender o termo “imaginário social”.8 O imaginário social é algo muito parecido com o termo “cosmovisão”, só que mais abrangente, longe de ficar circunscrito ao âmbito intelectual apenas, e, por isso, mais complexo. O imaginário social descreve os valores, os conceitos elementares, as crenças, as convicções e o etos9 de uma cultura, um povo, uma nação ou, no nosso caso, de uma tradição cristã ou denominação. Em contrapartida, “cosmovisão” é termo rigorosamente racional, podendo ser resumido por uma cartilha de afirmações categóricas, dogmáticas e lógicas. Cremos nisto ou naquilo. Cremos que certas coisas são verdadeiras e outras falsas; umas estão certas e outras erradas. Nossa razão nos leva a entender certas coisas e temos fundamentos claros para isso: referências e autoridades que podemos citar como fidedignas. No caso da cosmovisão cristã, é claro que a nossa referência maior é a Bíblia. Ela é o padrão e o prumo, a lâmpada para os pés e a luz para o caminho, bem como a espada de
dois gumes. Além da Bíblia, estudamos e ensinamos confissões e catecismos10 e também recorremos a livros e cursos que formam a nossa razão redimida e moldam a nossa visão da realidade — a nossa cosmovisão. Não estou dizendo com tudo isso, porém, que a cosmovisão seja o resultado apenas de uma lógica empregada. É certo que o cristão sabe o que sabe por meio da fé e por ter sido objeto da ação do Espírito Santo. Como diz 1Coríntios 2.14: “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois lhe são absurdas; e não pode entendê-las, pois se compreendem espiritualmente”. A própria fé nos leva a saber de coisas que não saberíamos de outra maneira. Hebreus 11.3 diz: “Pela fé, entendemos que o universo foi criado pela palavra de Deus, de modo que o visível não foi feito do que se vê”. E o próprio apóstolo Paulo orou, conforme registrado em Efésios 3.1419, para que tivéssemos um certo tipo de conhecimento que transcende o nosso conhecimento natural: Por essa razão, dobro meus joelhos perante o Pai, de quem toda família nos céus e na terra recebe o nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais interiormente fortalecidos com poder pelo seu Espírito. E que Cristo habite pela fé em vosso coração, a fim de que, arraigados e fundamentados em amor, vos seja possível compreender, juntamente com todos os santos, a largura, o comprimento, a altura e a profundidade desse amor, e assim conhecer esse amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais preenchidos até a plenitude de Deus. Percebe a complexidade da questão? Como conhecer algo que excede todo conhecimento? Esse conhecimento é obra de Deus. Todavia, seu fundamento não deixa de estar nas Escrituras e, portanto, não é um conhecimento esotérico ou irracional. Por um lado, é conhecimento que não fere a nossa razão. Por outro, transcende e forma nossa razão. Voltemos, pois, ao conceito do imaginário social. Blaise Pascal 11 certa vez disse: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Não somos apenas seres pensantes e racionais. Não somos apenas cérebros revestidos de
corpo. Nosso processo de apreensão da realidade — ou seja, nosso processo epistêmico12 — vem por outros meios também: sons, cheiros, um abraço, um gesto de censura, o ato de nos ajoelhar com uma congregação, testemunhos ou uma música que resume o clima de um culto e que nos acompanha para casa. Tudo isso tanto nos informa quanto nos forma. 13 O imaginário social aponta para esse processo mais pleno e abrangente de formação de conceitos, o qual não se restringe apenas ao campo lógico e argumentativo. Compreende aquelas coisas que sabemos sem nunca realmente termos parado para pensar com clareza sobre elas. É um conhecimento que apreendemos no contexto da vivência de um povo e no qual confiamos sem de fato nos ter sido formalmente ensinado. Posso lhes dar um exemplo disso. Quando me casei, há 35 anos, pensei em comprar um carro de quatro portas. Fui aconselhado a não fazer isso, pois “Todo o mundo sabe que carros de quatro portas desvalorizam mais”. Hoje em dia, é a coisa mais comum comprar um carro de quatro portas. Só carros esportivos ou fuscas têm duas portas. Ninguém mais crê que carros de quatro portas desvalorizem mais do que os de duas. Entretanto, pergunto: quando isso mudou? Nunca li um artigo a esse respeito. Não me lembro de ter visto uma reportagem no noticiário ou uma matéria em algum programa de variedades que falasse do assunto. Como aconteceu essa mudança? A partir de que dado esse conceito mudou? Que mudou, mudou. É algo que “todo o mundo sabe”. Mas essa noção foi mudando e sendo absorvida ao longo dos anos, sem que alguém a tenha formalmente incorporado em nossa cosmovisão. Aliás, ela não faz parte da nossa cosmovisão, mas do nosso imaginário social — isto é, do conjunto de crenças e práticas por meio do qual imaginamos o mundo como ele é ou como idealmente deveria ser. Entender o conceito do imaginário social é fundamental para entender qualquer grupo, povo ou nação. Torna-se mais importante ainda para entender o que é de fato um pentecostal. O pentecostalismo é um movimento plural, com inúmeras práticas e crenças que não necessariamente representam ou são sustentadas por todos os que integram o movimento. Aliás, existem muitos pentecostalismos hoje em dia — dos mais tradicionais aos mais periféricos e excêntricos. Portanto, defendo que, para descrever o
pentecostalismo, é necessário adotar certo reducionismo, citando o que mais nos caracteriza em nossa essência, ou seja, apenas o que é comum a todos os pentecostais. Para esse fim, vamos buscar entender seis aspectos do imaginário social pentecostal, embora reconheça que possa haver outros.14 Esses aspectos são fontes tanto das nossas virtudes quanto, paradoxalmente, dos nossos vícios e desvios mais perigosos.
OS SEIS ASPECTOS DO IMAGINÁRIO SOCIAL PENTECOSTAL O primeiro aspecto consiste no fato de que o pentecostal preza pela Bíblia como autoridade divina, inspirada por Deus e, por isso, inerrante e infalível.
Enquanto o liberalismo arrasa denominações tradicionais com seu questionamento da inspiração e da inerrância das Escrituras, é difícil encontrar um teólogo liberal pentecostal (não que não existam, mas representam uma pequena minoria mais atuante nos meios acadêmicos). Somos um povo que ama a Bíblia e a tem em altíssima estima. Tal estima pela Bíblia nem sempre se manifesta necessariamente numa hermenêutica correta, como veremos mais adiante. Contudo, o pentecostal a considera a Palavra de Deus, a ponto de frequentemente errar por excesso, ou seja, adotar uma postura biblicista.15 O biblicismo pode ser resumido na frase: “Nenhum credo se não a Bíblia”. Assim, em regra, ao deparar com uma afirmação ou prática nova, a pergunta que o pentecostal costuma fazer é: “Onde fica isso na Bíblia?”. Embora sua leitura possa às vezes ser desinformada, sofismada e ingênua, o pentecostal crê piamente que a Bíblia é nada menos que a Palavra de Deus. Muitos dos antigos pentecostais mais humildes chegavam a ser alfabetizados com o único propósito de ler a Bíblia. O segundo aspecto do imaginário social dos pentecostais diz respeito a serem radicalmente abertos a um mover de Deus . O pentecostal crê que Deus
está presente e agindo entre as pessoas de fé. Crê que Deus ainda fala, cura e age na vida de quem se abre para isso. O imaginário social do pentecostal entende Deus, principalmente na pessoa do Espírito Santo, como alguém com quem interagimos sempre e que ainda fará muito em nossa vida. Temos a expectativa de ouvir algo novo e ver algo novo da parte de Deus, algo que se inspira nas palavras do apóstolo Paulo: “As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração humano, são as que Deus preparou para os que o amam” (1Co 2.9). Tal abertura para o mover contínuo de Deus é uma convicção indiscutível
na alma pentecostal. Em decorrência disso, a continuidade dos dons espirituais é um pressuposto pentecostal. 16 Os dons são vistos não como uma dinâmica impessoal na igreja, mas como uma ação pessoal e intencional do Espírito Santo em nós e por nosso intermédio — tanto no plano individual quanto no coletivo.17 Para o pentecostal, o livro de Atos dos Apóstolos é mais que um relato histórico dos primeiros anos da igreja; é um exemplo de tudo o que pode acontecer e, de fato, continua a acontecer na igreja, até a volta de Cristo. Profecia não nos assusta, pois cremos que é o mesmo Deus quem fala por meio de alguém cheio do Espírito Santo, e jamais poderá contradizer o que ele mesmo falou por meio dos autores das Sagradas Letras.18 Se houver divergência, certamente a falha parte de nós e não dos autores da Bíblia, pois não cremos que Deus acrescenta nova revelação às Escrituras, as quais em si são suficientes para “ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra” (2Tm 3.16,17). Todavia, afirmar que todos observam as Escrituras com esse rigor seria um erro. Há muitos — especialmente entre os neopentecostais — que levam ao extremo essa abertura para as coisas novas que Deus possa fazer. Chegam a dizer que Deus pode até nos mostrar revelações novas desde que não sejam contraditórias às Escrituras. Em outras palavras, desde que a Bíblia nada fale a seu respeito, não são necessariamente antibíblicas. Mas esse é um terreno minado e perigoso. Frases como “Os teólogos que me perdoem, mas Deus me revelou”, bradadas por Valnice Milhomens 19 já na década de 1980, serviram para escancarar a porta de algumas igrejas para uma série de absurdos que, em essência, ferem a boa e necessária doutrina cristã: quebra de maldições, aspectos de guerra espiritual, hierarquias demoníacas (de autoras como Rebecca Brown)20 e o mapeamento de seus territórios (de Cindy Jacobs 21 e George Otis Jr.), 22 terapias de regressão, agendas apocalípticas prevendo datas da volta de Cristo ou da aparição do Anticristo, e coisas dessa natureza. O fato de muitos pentecostais hoje se voltarem para as antigas confissões de fé e principalmente para a teologia reformada, como no meu caso, é um corretivo e uma reação das mais sadias ao cansaço gerado por essas novidades nocivas entre nós.
Antes de avançarmos mais, permita-me demonstrar como isso afeta uma faceta da nossa relação com as Escrituras Sagradas. Tanto em igrejas tradicionais quanto pentecostais, a leitura diária da Bíblia é encorajada. Contudo, quando comparamos a questão da aplicação das Escrituras, em círculos tradicionais o assunto costuma cair no âmbito do estudo indutivo. 23 São levantadas instruções ou perguntas como esta: “Como essa passagem pode ser aplicada à nossa vida?”. A questão aqui depende de cada um tentar vislumbrar sua aplicabilidade por meio de raciocínio próprio (falo, é claro, em um patamar leigo e devocional). O pentecostal aborda a leitura das Escrituras de modo um pouco diferente. Ele o faz com a expectativa de o Espírito Santo lhe falar por meio das Escrituras. Ao relatar o que entendeu de sua leitura, o pentecostal costuma apresentar o assunto com as palavras: “Deus me falou…”. Isso acontece porque ele vê a iluminação de uma passagem como uma aplicação feita pelo próprio Espírito e por ele transmitida diretamente. Tem a expectativa de ouvir Deus lhe falar pessoalmente, por meio do texto sagrado. 24 Sua abordagem, portanto, é mais mística, vendo a leitura como um encontro pessoal com Deus. 25 O terceiro aspecto do imaginário social pentecostal é a crença em “uma teologia de um mundo encantado”.26 Essa teologia diverge da teologia dos
que veem o mundo como algo dividido em duas esferas — a material e a espiritual. Aliás, o pentecostal se reporta (sem na realidade ter consciência disso) a um tempo que antecede o Iluminismo 27 e seu filho filosófico, o naturalismo.28 É difícil entender e muito fácil subestimar quanto o naturalismo de nossa era moderna afetou o imaginário social da igreja tradicional. Milagres são considerados impossíveis pelos liberais, os primeiros a tentar harmonizar a teologia ao mundo filosófico moderno. No entanto, milagres também são considerados improváveis por muitos dos nossos irmãos tradicionais.29 Afirmações como “A era dos milagres se restringe à época apostólica” não têm fundamento nas Escrituras, mas, sim, na cosmovisão iluminista e moderna. Evidentemente, todos admitem que Deus pode fazer o que bem entender. Afinal, Deus é soberano e pode muito bem fazer de novo o que fez no passado. Contudo, essa afirmação não traz nenhum tipo de expectativa da
ação milagrosa de Deus. 30 O milagre é visto como uma interferência excepcional no mundo natural como Deus o criou — um mundo que funciona por meio das leis naturais que Deus pôs em andamento e que operam com certa autonomia. Um exemplo disso seria a lei da gravidade. Deus não precisa nos jogar ao chão para cairmos. Ele criou a lei da gravidade, a qual opera inexoravelmente quando caímos. Há um deísmo 31 tácito mantido por muitos dos que veem um mundo natural que opera segundo os parâmetros que Deus estabeleceu, mas sem uma conexão contínua com o mundo espiritual. Por isso, muitos evangélicos tradicionais veem a possessão demoníaca como algo que provavelmente não passa de um desvio psíquico, a não ser que haja evidências cabais de que o comportamento estranho de alguém não seja explicável pela ciência. Observe que a ciência é sempre a primeira explicação a ser procurada, com a espiritual vindo a reboque dela, cobrindo o espaço que sobrou. Como um pastor evangélico tradicional uma vez me perguntou: “Você já viu uma pessoa endemoninhada?”. Quando respondi que sim, ele retrucou: “Mas fala sério…”. Sua segunda pergunta foi: “Você já viu um milagre?”. Quando disse que sim, ele repetiu: “Mas fala sério…”. Vi no seu semblante um desapontamento, pois ele me considerava uma pessoa instruída e séria, e minha resposta de algum modo fez com que ele duvidasse da minha integridade mental. Aos olhos dele, de repente, eu não passava de um pentecostal simplório no fim das contas. Nós, pentecostais, entendemos o mundo e o universo não como um relógio que Deus criou e deu corda. Nós o vislumbramos como um mundo repleto da ação constante de Deus. O Criador sustenta o mundo pelo poder da sua palavra (Hb 1.3). Isso quer dizer que o mundo opera segundo leis fixas, porque Deus, que literalmente move tudo, é o mesmo ontem, hoje e sempre. Assim como uma lâmpada fica acesa porque está ligada na tomada, o mundo existe porque está ligado a Deus. É o poder de Deus que sustenta, intencional e perpetuamente, o nosso mundo. Como Paulo falou no Areópago, em Atos 17.28: “pois nele vivemos, nos movemos e existimos”. Literalmente, tudo existe e se move em Deus. 32 Consequentemente, aceitamos todo e qualquer relato de milagres na Bíblia como verídico. Mais que isso, aceitamos esses relatos como exemplos do que
Deus pode fazer e, de fato, ainda faz hoje em dia. Cremos também na interferência de outros poderes espirituais como algo real, esperado e que pode ser combatido em oração. Quando um pentecostal passa por algum problema, sofre um revés ou é afligido por uma doença, é costumeiro interpretar isso como resultado de um possível ataque do Maligno, e mais: que provavelmente Deus tem planos de nos abençoar e o Diabo quer interferir. É igualmente possível interpretar que seja uma provação que Deus permitiu ou decretou. No imaginário social pentecostal, a doença, a aflição ou qualquer mal sofrido são vistos como parte de um mundo natural entrelaçado ao mundo espiritual. Definimos essa noção como “uma teologia de um mundo encantado”. É claro que não vemos o Diabo por trás de cada febre ou Deus nos castigando com cada espirro. Isso seria infantil. Mas nosso imaginário social entende o mundo como algo que é tanto natural quanto espiritual, o que nos motiva a ter certa vigilância que nos faz procurar razões e causas, além das óbvias, para o que está acontecendo. Certamente a passagem de Efésios 6.10-20 é importante aqui, pois afirma que a nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra principados e potestades, os dominadores deste mundo tenebroso. O quarto aspecto do imaginário social pentecostal, resultante do aspecto anterior, é a existência de uma relação de causa e efeito entre os dois mundos. Cremos que a oração move montanhas, expulsa demônios e cura
enfermos. A relação permanece um mistério, mas é algo em que todo pentecostal crê. Essa convicção aparece em corinhos 33 como: Se começarmos a orar, este templo treme. Se começarmos a orar, salvaremos vidas. Elias orou (Elias orou!), e o fogo desceu (Dai glória a Deus!). Josué orou, e o sol parou. Um aparte é cabível aqui. Se o leitor tem alguma vivência no contexto pentecostal deve ter se recordado desse corinho, muito conhecido em nosso
meio. Isso é importante, pois boa parte do nosso imaginário social é formado a partir de nossos corinhos. Essas músicas expressam perfeitamente a convicção de que podemos interagir com Deus e com o mundo espiritual, tanto para o bem como para o mal. Infelizmente, a relação entre as duas faces da nossa realidade às vezes é exagerada e acaba levando a teologias espúrias, como a teologia da prosperidade e algumas das crenças que cercam a tão celebrada “guerra espiritual”. Expressões como “confissão positiva” ou “negativa” nascem da ideia de que há poder em nossas palavras para mudar nossas circunstâncias. Não são ideias que nascem de uma boa exegese 34 das Escrituras, mas de referências bíblicas que são usadas com uma margem muito liberal de aplicabilidade e que são transmitidas por testemunhos ou por corinhos. O quinto aspecto do imaginário social pentecostal diz respeito a nosso rocesso epistêmico. Não vemos a teologia como fonte de nossa fé, mas, sim,
como explicação de nossa experiência com Deus. Isso é problemático, pois o próprio Cristo se preocupou mais em discursar a partir da Lei e dos Profetas aos discípulos no caminho a Emaús do que apenas se mostrar a eles (Lc 24.13-35). Aliás, ele esperou até o momento da comunhão ao redor da mesa para fazê-lo. Todavia, o pentecostal acredita que o verdadeiro cristão é aquele que teve um encontro real e transformador com Deus — uma crise, uma catarse, um verdadeiro encontro semelhante ao que Paulo teve na estrada de Damasco. Essa é uma convicção de todo evangélico também, pelo menos no que diz respeito à conversão. Todavia, ao contar suas experiências com Deus, muitos pentecostais aprendem uns com os outros e constroem uma teologia própria, não raro sem o rigor das Escrituras em mente. Somos movidos por testemunhos e experiências pessoais mais do que pelo estudo cuidadoso da Bíblia. Cremos que um homem que tem uma experiência sabe mais, ou é mais forte, do que um homem que tem uma explicação. Em outras palavras, a experiência é mais crível do que a teologia. É certo que a nossa leitura bíblica é feita com a expectativa de ouvir Deus falar diretamente, como já mencionei. Assistimos a uma pregação esperando ouvir uma palavra de Deus apontada diretamente ao nosso coração.
Pregadores pentecostais esperam que Deus faça um milagre no coração dos que os ouvem e dependem disso. Contudo, somos um povo igualmente movido por testemunhos pessoais. Historicamente, isso levou à formação de conceitos que não são relacionados com o que a Bíblia afirma. Muitas vezes contamos o que nos aconteceu e só depois tentamos encontrar na Bíblia algo que explique a experiência, sem questionar a experiência em si. Ela se torna a heurística35 de nossa leitura bíblica. Na prática, isso tem influenciado a leitura bíblica de muitos pentecostais, levando-os a acrescentar ou introduzir coisas no texto ( eisegese),36 em vez de extrair coisas do texto ( exegese). É frequente pentecostais fazerem uma leitura alegórica 37 de uma passagem bíblica, violando seu sentido original e, por consequência, tirando-a totalmente do seu contexto original. E todo texto fora de contexto é pretexto. Há quem faça coisa pior: a simples aplicação direta de uma passagem para os dias de hoje sem nenhum rigor exegético. O grande perigo dessa tendência é fazer da experiência a regra hermenêutica que servirá de lente através da qual leremos a Bíblia. Sem o devido preparo para entender as Escrituras, elas se tornam um instrumento na mão do cristão, e não uma autoridade sobre a sua vida. Isso leva ao último aspecto do pentecostalismo. Como a experiência é uma das principais vias para a formação de conceitos, o sexto aspecto do imaginário social pentecostal consiste no fato de o movimento pentecostal ser majoritariamente populista. Sua premissa é
que qualquer um pode ter uma experiência com Deus. E, se a prioridade é dada à experiência, qualquer um que a tenha tido pode ensinar, pregar e liderar. Para o pentecostal, mais importante do que um doutor em teologia é alguém que teve uma revelação pessoal de Deus. Se alguém afirmar que morreu, foi para o céu por uma hora e voltou, ou recebeu uma visita de um anjo ou a visão de uma “realidade” sobrenatural, deve ser ouvido antes mesmo que se consulte um acadêmico ou qualquer outra autoridade da igreja. Isso faz dos pentecostais pessoas em geral anti-hierárquicas e antiacadêmicas. Por definição, somos populistas. Daqui nasce boa parte das nossas práticas e conceitos estranhos, pois, se alguém tem um dom de falar, um jeito cativante
e uma boa história, nossa tendência pentecostal é dar mais ouvidos a essa pessoa. Em grande parte, isso se parece em muito com os tempos em que vivemos. Nossa política celebra a ascensão de um operário humilde ao poder sem realmente perguntar se ele foi preparado para governar. Celebramos o matuto e o humilde. Cultivamos uma suspeita da elite, pois a vemos como um grupo alienado e fora de contato com a “nossa” realidade. Esse viés pode ser visto na rebeldia contra pastores e igrejas estabelecidas, bem como no número crescente de desigrejados38 ao redor do país. O movimento pentecostal tem envelhecido e, no decorrer dos anos, tem sofrido as consequências disso, ao mesmo tempo que tem colhido benefícios desses aspectos que formam nosso imaginário social. Creio que nossa ênfase sobre uma teologia de um mundo encantado representa o resgate de um cristianismo mais antigo e bíblico. 39 Ela nos remete a uma espiritualidade que era muito mais comum antes do Iluminismo de Voltaire 40 ou Descartes.41 Creio que a releitura dos pais da igreja, e até dos próprios mestres reformados e puritanos,42 faz muito mais sentido à luz dessa cosmovisão, ou melhor, desse imaginário social. Creio também que o etos pentecostal, que aponta para uma vida vivida na expectativa do mover de Deus, é algo que a igreja toda deve considerar, pois o clamor por avivamento só terá força se, junto com ele, vivermos na expectativa de uma visitação do Espírito Santo. Em contrapartida, creio que o que trazemos de positivo para o cristianismo também é, paradoxalmente, o que mais nos atrapalha. Por sermos um movimento historicamente antiacadêmico, usamos a Bíblia de forma equivocada, embora nos declaremos bíblicos. Por não sabermos ler a Bíblia corretamente, o princípio do sola Scriptura43 torna-se apenas um mote, e não um princípio regulador. A mesma Bíblia que deu fundamento a riquíssimas confissões da fé cristã, usamos como base para defender alguns dos maiores ídolos e falsos cristos de nossa época. Tudo isso porque não nos disciplinamos a estudar com os antigos. Nesse aspecto em particular, a volta do pentecostalismo à leitura disciplinada das Escrituras por meio da teologia reformada é, a meu ver, a salvação de nosso arraial.
Não temos de abandonar o pentecostalismo em si. Temos de arrumar a casa. Apenas se nos submetermos à Bíblia como autoridade máxima nas questões de fé e prática — sem insistirmos na leitura despreparada e ingênua que nasce de nossa orientação antiacadêmica — seremos preservados. Se assim não agirmos, continuaremos a nos fragmentar em inúmeras seitas marginalmente cristãs. Para arrumar a casa, portanto, precisamos voltar a estudar. Continuo a ler a Bíblia como um pentecostal, esperando que Deus fale comigo por suas páginas. Mas não podemos ler a Bíblia somente para receber uma palavra para hoje. Temos de estudá-la para compreender sua mensagem para todos os tempos, até a volta de Cristo. Voltemos ao brado de Erasmo, 44 Lutero45 e Calvino:46 Ad fontes,47 de volta às fontes. Nada é mais importante para o pentecostalismo hoje do que esse chamado histórico. 1 Doutrina
relacionada à salvação. Foi proposta por Jacó Armínio e defendida no movimento denominado “remonstrância”. Historicamente tem se mostrado oposta à visão reformada da salvação. 2 John Wesley (1703-1791) foi um teólogo e pastor inglês, líder do movimento metodista e um dos responsáveis pelo avivamento na Inglaterra do século 18, sendo um grande propagador das ideias arminianas a respeito da salvação. A Igreja Metodista, nascida por influência dele, conta atualmente com cerca de 75 milhões de membros. 3 George Whitefield (1714-1770) foi um téologo e pastor inglês, além de um dos responsáveis pelo Grande Despertamento na Inglaterra e nos Estados Unidos do século 18. Era grande amigo de John Wesley, apesar de ter um entendimento reformado a respeito da salvação, diferentemente do amigo. 4 Termo técnico da teologia que designa o falar em outras línguas. 5 Doutrina relacionada ao tema da escatologia que exige uma leitura mais literal do livro de Apocalipse, bem como da restauração da nação de Israel no fim dos tempos. Seus maiores expoentes foram Cyrus Scofield e John Darby. 6 James K. A. Smith, nascido em 1970, é um teólogo e filósofo canadense e professor de Filosofia na Calvin College, em Grand Rapids, Michigan. Autor de mais de vinte livros, é um dos expoentes da “ortodoxia radical”, movimento teológico-filosófico ligado à defesa do cristianismo na pósmodernidade. 7 James K. A. Smith, Thinking in tongues: Pentecostal contributions to Christian philosophy (Grand Rapids: Eerdmans, 2010), p. 17-85. 8 O conceito do “imaginário social” foi amplamente divulgado pelo filósofo canadense Charles Taylor e adaptado ao campo da teologia e da espiritualidade cristã pelo teólogo e também filósofo canadense James K. A. Smith, em Thinking in tongues . 9 Segundo o Dicionário Priberam, etos é o conjunto dos costumes e práticas característicos de um povo em determinada época ou região, ou o conjunto de características ou valores de determinado grupo ou movimento.
10 Os catecismos são documentos redigidos pela igreja ao longo da história com o
objetivo principal de ser uma instrução religiosa e sistematizar as doutrinas para seus membros de forma mais didática, envolvendo sempre os valores, os princípios e as normas morais a ser obedecidos. 11 Blaise Pascal (1623-1662) foi um físico, matemático e filósofo cristão que criou equações famosas da matemática e da física, como o Triângulo de Pascal e a Lei de Pascal (na hidrostática). Seu nome é dado atualmente a uma unidade de pressão e a uma linguagem de programação. 12 Segundo o Dicionário Priberam, a epistemologia é um ramo da filosofia que se ocupa dos problemas que se relacionam com o conhecimento humano, refletindo sobre sua natureza e validade. 13 Para uma abordagem bem interessante sobre o efeito formativo desses elementos sobre a fé cristã, especialmente no contexto do culto público, confira James K. A. Smith, Você é aquilo que ama: o oder espiritual do hábito , tradução de James Reis (São Paulo: Vida Nova, 2017). 14 Para uma lista semelhante de aspectos distintivos do “imaginário social” pentecostal, confira James K. A. Smith, Thinking in tongues: Pentecostal contributions to Christian philosophy (Grand Rapids: Eerdmans, 2010), p. 31-47. A lista em questão inclui: 1) abertura radical para a ação de Deus; 2) teologia “encantada” da criação e da cultura; 3) apreciação não dualista do mundo físico e material; 4) epistemologia afetiva e narrativa; 5) orientação escatológica para a missão e a justiça. 15 O biblicismo é uma doutrina que defende a Bíblia como a única referência de fé, sendo resistente e por vezes opondo-se a outros materiais como credos, confissões, catecismos, comentários bíblicos etc. 16 Gordon Fee, estudioso do Novo Testamento e teólogo pentecostal, escreveu uma excelente defesa bíblica a esse respeito em seu livro Paulo, o Espírito e o povo de Deus , tradução de Rubens Castilho e Robinson Malkomes (São Paulo: Vida Nova, 2015). Confira também as obras de D. A. Carson, A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14 (São Paulo: Vida Nova, 2013) e Craig Keener, O Espírito na igreja: o que a Bíblia ensina sobre os dons (São Paulo: Vida Nova, 2018). 17 A melhor apresentação desse assunto é o livro de Sam Storms, Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral (São Paulo: Vida Nova, 2016). 18 Confira o livro de Wayne Grudem, O dom de profecia: do Novo Testamento aos dias atuais (São Paulo: Vida, 2004). 19 Valnice Milhomens Coelho, nascida em 1947, é uma ministra evangélica brasileira, líder da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (INSEJEC), sediada em Brasília. É uma das expoentes do movimento de batalha espiritual e também do movimento celular no Brasil. 20 Rebecca Julia Brown, nascida em 1948, é uma escritora evangélica conhecida por livros que abordam o assunto da batalha espiritual. Sua principal publicação é Ele veio para libertar os cativos (Belo Horizonte: Dynamus, 1992), best seller no Brasil. 21 Cindy Jacobs é uma escritora evangélica americana, referência do novo “movimento de reforma apostólica”, bem como um dos expoentes da doutrina da batalha espiritual. 22 George Otis Jr. (1953-) é um escritor evangélico americano ligado ao movimento apostólico de C. Peter Wagner (1930-2016) e à doutrina da batalha espiritual. 23 O método indutivo é uma forma de raciocínio que, após considerar um número suficiente de casos particulares, conclui uma verdade geral. A indução, ao contrário da dedução, parte de dados particulares da experiência sensível. Quanto à aplicação desse método ao estudo bíblico, vemos que esse tipo de estudo leva o aluno a estudar o texto cuidadosamente, para então tirar uma conclusão. São analisados capítulos, parágrafos, frases, expressões e palavras para então se seguirem as conclusões. 24 Para uma defesa contemporânea de uma hermenêutica comprometida com o rigor acadêmico e
com o vigor da espiritualidade pentecostal, confira a obra de Craig S. Keener, A hermenêutica do Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes (São Paulo: Vida Nova, 2018). 25 De uns tempos para cá, líderes evangélicos tradicionais têm resgatado algo semelhante a isso por meio da promoção da disciplina antiga da lectio divina, ou “leitura orante”, das Escrituras Sagradas. Para uma defesa e ilustração dessa disciplina a partir do livro de Salmos, confira o artigo de Franklin Ferreira, “O uso dos salmos na devoção cristã”, Revista Teologia Brasileira 10 (2012). Disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=294, acesso em: 28 mar. 2018. 26 James K. A. Smith, Thinking in tongues: Pentecostal contributions to Christian philosophy (Grand Rapids: Eerdmans, 2010), p. 39-41. 27 O Iluminismo foi um movimento complexo e multifatorial que envolveu a cultura da elite intelectual europeia do século 18, procurando mobilizar o poder da razão a fim de reformar a sociedade em detrimento das fontes tradicionais de autoridade no Ocidente, a saber, a Bíblia e a igreja. 28 O naturalismo foi um dos movimentos oriundos do Iluminismo que, opondo-se ao sobrenatural ou espiritual, defendia a ideia ou crença de que apenas as leis e as forças naturais operam no mundo e, por extensão, a ideia ou crença de que não existe nada além do mundo natural. Ou seja, as leis naturais são as regras que regem a estrutura e o comportamento do universo natural, e cada etapa da evolução do universo é produto dessas leis. 29 Esse receio em relação ao sobrenatural e ao milagre certamente é mais comum nos países do hemisfério norte. Já nos países do hemisfério sul, os tradicionais são majoritariamente mais “antenados” ao mundo espiritual que nos cerca. 30 Segundo D. A. Carson, “o movimento carismático [pentecostal] tem desafiado a igreja a esperar mais de Deus, a esperar que Deus derrame seu Espírito sobre nós por meio de formas que quebrem nossos moldes tradicionais para pôr em xeque uma teologia que, sem garantias exegéticas suficientes, rejeita toda possibilidade do que é miraculoso, com exceção da regeneração” ( A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14 [São Paulo: Vida Nova, 2013], p. 183). 31 O deísmo é uma posição filosófica naturalista que acredita na criação do universo por uma inteligência superior, por meio da razão, do livre pensamento e da experiência pessoal, e não dos elementos comuns das religiões teístas, como a revelação direta ou a tradição. Em outras palavras, o deísta é aquele que está inclinado a afirmar a existência de um Criador, mas não pratica nenhuma religião, privilegiando a ideia de um mundo completamente regido pelas leis naturais e físicas. A interpretação de Deus pode variar de deísta para deísta. 32 É importante não confundir essa visão com o panteísmo, que afirma que tudo o que existe faz parte de Deus ou que Deus é a soma de todas as coisas. 33 Nome coloquial utilizado no meio evangélico para se referir a hinos antigos que não se encontram nos cancioneiros oficiais da igreja. 34 Método de interpretação da Bíblia em que se buscam os escritos originais e seus contextos para entender o que o texto significou para os primeiros leitores, e assim entender o significado do trecho bíblico na época. 35 De acordo com o Dicionário Priberam, heurística é um processo pedagógico que pretende encaminhar o aluno a descobrir por si mesmo o que se quer ensinar, geralmente por meio de perguntas. 36 A eisegese consiste em injetar em um texto alguma coisa que o intérprete quer que esteja ali, mas que, na verdade, não faz parte dele, forçando o texto mediante várias manipulações, fazendo com que uma passagem diga o que na verdade não se encontra lá.
37 A
interpretação alegórica é a abordagem de leitura e interpretação da Bíblia que atribui uma interpretação supraliteral ao conteúdo de um texto. Parte do pressuposto que o autor quis dizer mais do que escreveu. 38 Movimento recente de pessoas desiludidas e/ou maltratadas pela igreja institucional, as quais defendem que podem fazer parte do corpo de Cristo sem pertencer a um grupo institucional estabelecido. 39 Para uma defesa aprofundada desse ponto, que denuncia a influência do Iluminismo e do naturalismo sobre o pensamento cristão moderno, confira novamente a obra de James K. A. Smith, Thinking in tongues: Pentecostal contributions to Christian philosophy (Grand Rapids: Eerdmans, 2010). 40 François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778), foi um escritor e filósofo iluminista francês, e uma das maiores influências do mundo no século 18. Autor de cerca de 70 livros, foi o precursor de ideias como a liberdade de imprensa, a tolerância religiosa e a redução dos privilégios da nobreza e do clero. Suas ideias influenciaram as Revoluções Francesa e Americana, ocorridas no mesmo século. 41 René Descartes (1596-1650) foi um filósofo e matemático francês considerado o pai da filosofia e da matemática modernas, sendo referência na geometria, por exemplo. Mas ficou mais conhecido como o precursor do racionalismo, por meio de seu método de estudo filosófico que resultou na famosa frase: “Penso, logo existo”. 42 Para uma discussão aprofundada a esse respeito, especificamente no tocante à abordagem de estudo e pregação da Palavra de Deus pelos pais da igreja e pelos mestres reformados e puritanos, confira respectivamente as obras de Christopher A. Hall, Lendo as Escrituras com os pais da igreja (Viçosa: Ultimato, 2008) e Joel R. Beeke, Vivendo para a glória de Deus: uma introdução à fé reformada (São José dos Campos: Fiel, 2010), p. 273-92. 43 Termo latino que significa “somente a Escritura”, indicando a supremacia e a suficiência da Palavra de Deus para a definição da fé e da prática cristãs. 44 Erasmo de Roterdã (1466-1536) foi um teólogo holandês, formado na Universidade de Paris e expoente do chamado “humanismo cristão” do século 16. Sua principal obra é Elogio da loucura. 45 Martinho Lutero (1483-1546) foi um monge e teólogo alemão considerado o precursor da Reforma protestante, em virtude da afixação, nas portas da Catedral de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517, de 95 teses contra as práticas da Igreja Romana na época. Seu principal lema era a salvação por meio da fé em Cristo, em oposição às indulgências que predominavam no cenário religioso da época. Após sua morte, teve início o movimento luterano e, em seguida, a Igreja Luterana, ainda hoje presente em diversos países. 46 João Calvino (1509-1564) foi um teólogo e reformador francês que exerceu seu ministério principalmente na cidade de Genebra, na Suíça. Seus ensinos estão registrados nas Institutas da religião cristã, sua principal obra, e em seus comentários bíblicos. 47 O movimento Ad fontes (termo latino que significa “de volta às fontes”) foi iniciado por Erasmo de Roterdã, num esforço para procurar ler, entender e interpretar a Palavra de Deus de acordo com o que buscava transmitir a língua em que foi originariamente escrita. Tal conceito influenciou reformadores como Lutero e Calvino, por exemplo, e foi por eles utilizado.
A ESSÊNCIA REFORMADA O que significa ser reformado? Os internautas falam muito de teologia, posturas ou igrejas reformadas sem que haja uma noção clara e consensual do que significa o termo “reformado”.1 Uns confundem o termo com a Reforma protestante deflagrada, por assim dizer, por Martinho Lutero. Outros acham que se refere a uma maneira mais ordenada de conduzir o culto ou de crer na Bíblia. Todavia, não é bem assim. Uma vez tendo estabelecido o pentecostalismo como uma forma de espiritualidade guiada por um imaginário social, é importante definir o que vem a ser uma cosmovisão reformada. A teologia reformada é uma tradição que tem fundamentos filosóficos, teológicos e, principalmente, bíblicos. Foi construída a partir de pressupostos claros, cuja síntese encontra-se nos grandes catecismos e confissões da fé reformada, como, por exemplo, o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga, os Cânones do Sínodo de Dort e a Confissão de Westminster. 2 Neste capítulo vamos mostrar o ponto de partida e os principais pressupostos teológicos sobre os quais todo o restante da teologia reformada foi construído. Esses pressupostos podem ser resumidos na glória da doutrina do Deus triúno — Pai, Filho e Espírito Santo. Não é necessário tratar de toda a doutrina de Deus aqui, pois, para fazê-lo, teríamos de escrever diversos volumes.3 Vamos apenas prestar atenção aos pontos cardeais que distinguem a teologia reformada.4
PRIMEIRO: DEUS EXISTE POR SI MESMO (A SE )5 E É SUFICIENTE EM SI MESMO Deus criou tudo o que existe como um ato de sua livre e soberana vontade. Isso quer dizer que não teve de criar o que quer que fosse. Deus é suficiente em si mesmo e não criou a nós ou ao mundo por haver nele algum tipo de lacuna ou carência. Ele não nos criou porque estava só ou porque podíamos lhe oferecer algo que ele não teria em nossa ausência. Como diz Atos 17.24,25: O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens. Tampouco é servido por mãos humanas, como se necessitasse de alguma coisa. Pois é ele mesmo quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas. Deus é absolutamente completo em si e, portanto, não muda nem precisa mudar. Como diz Tiago 1.17: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação”. E como disse C. S. Lewis: “Ele [Deus] pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido todo o seu amor é infinitamente desprendido por sua própria definição; ele tem tudo a dar e nada a receber”.6 Deus é absolutamente além de tudo o que possamos imaginar. Não podemos assemelhá-lo a quem quer que seja, pois sua existência é diferente da nossa. Ele é insondável e inescrutável, podendo ser conhecido somente à medida que se revela a nós. Em resumo, ele é Santo. Como Moisés mesmo disse: “Quem entre os deuses é como tu, ó S ENHOR? Quem é como tu, poderoso em santidade, admirável em louvores, capaz de maravilhas?” (Êx 15.11). A resposta é clara: ninguém. Essa única verdade tem várias implicações, quando tentamos dimensionar outras questões teológicas. Afeta o que vamos concluir sobre a salvação, os eternos desígnios de Deus, o que
vem a ser o amor de Deus, a própria relação entre a lei e a graça, e até a função da oração.
SEGUNDO: DEUS É TRIÚNO Embora a palavra “Trindade” não exista nas Escrituras, os pais da igreja sempre reconheceram que Deus é único, mas existe de uma maneira que nunca vamos compreender completamente, em três pessoas: o Pai Criador, o Filho Salvador e o Espírito Santificador. Ao longo destes dois mil anos, a Santíssima Trindade foi estudada e discutida por Tertuliano, 7 Agostinho,8 os Capadócios (Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo), 9 Tomás de Aquino,10 Karl Barth 11 e muitos outros. A doutrina da Trindade é de especial importância à luz da enorme ênfase sobre a pessoa do Espírito Santo em círculos pentecostais. Justamente por enfatizarem a continuidade dos dons espirituais, muitos pentecostais consideram-se os mais zelosos em valorizar a terceira pessoa da Trindade. Contudo, no estudo da doutrina da Trindade, há uma distinção importante entre a Trindade em sua essência e a ação trinitariana de Deus. 12 Ao olharmos esse segundo aspecto da Trindade, temos de entender que Deus não pode ser compreendido como alguém que tenha três “agendas” separadas. Pelo contrário, as três pessoas agem em total união de propósito. Um episódio crucial no ministério de Jesus ilustra isso de maneira muito nítida. No batismo de Jesus, vemos na descida de Cristo às águas, na manifestação do Espírito Santo em forma de pomba e nas palavras do Pai a respeito do Filho o retrato de um Deus que age dentro de um propósito único, embora cada membro tenha um papel diferente a cumprir dentro desse propósito (Mt 3.13-17). O propósito único de Deus, como bem resume a teologia reformada, é sua própria glória, que se manifesta pela criação do mundo, queda do ser humano, sua redenção na cruz e reconciliação de todas as coisas em Jesus Cristo (Cl 1.15-18). O Filho age em total e absoluta harmonia com o Pai, como ele mesmo disse em João 5.19b: “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer por si mesmo, senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto ele faz, o Filho faz também”. Concomitantemente, o Espírito
Santo segue na mesma linha única de propósito e missão. Jesus disse em João 16.5-16: Agora, porém, vou para aquele que me enviou; e nenhum de vós me pergunta: Para onde vais? O vosso coração encheu-se de tristeza, porque eu vos disse essas coisas. Todavia, digo-vos a verdade; é para o vosso benefício que eu vou. Se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, eu o enviarei. E quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para meu Pai, e não me vereis mais; e do juízo, porque o príncipe deste mundo já está condenado. Ainda tenho muito que vos dizer; mas não podeis suportá-lo agora. Quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá a toda a verdade. E não falará de si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará, pois receberá do que é meu e o anunciará a vós. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso eu vos disse que ele, recebendo do que é meu, o anunciará a vós. Um pouco, e já não me vereis; mais um pouco, e me vereis.
Como a glória de Deus tem como pivô a redenção, algo já previsto desde o início — sim, pois Cristo é chamado o “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13.8) —, a economia ou agenda trinitariana é também chamada a “economia cristológica” ou “cristocêntrica”. Os três — Pai, Filho e Espírito — têm a mesma agenda: a redenção da humanidade caída e corrompida pelo pecado, para a glória de Deus. Por isso, é impossível separar a ação do Espírito Santo dessa prioridade redentora. As implicações não poderiam ser mais óbvias: se o evangelho não estiver no centro da proclamação da igreja, então qualquer outra ênfase atribuída ao Espírito Santo representa um desvio doutrinário no que diz respeito aos propósitos de sua manifestação. Dons não podem ser tratados de forma independente da graça salvífica em Cristo Jesus. Contudo, essa redenção não é o final da história.
TERCEIRO: A GLÓRIA DE DEUS É SEU PROPÓSITO FINAL O telos13 da criação e da redenção operadas por Deus na história é muito claro na Bíblia. Vamos tentar entender tal conceito usando uma ilustração: nossa vida é dividida em muitas partes e etapas. Posso estar no carro, a caminho de algum lugar, sem que o ato de dirigir em si seja meu propósito final. Ele pode ser um passo na direção de meu propósito, mas ainda não é o propósito final. Posso estar a caminho de uma farmácia. Mas guiar até uma farmácia, embora seja um alvo, não é meu propósito, meu telos. A razão que me leva à farmácia pode ser comprar um analgésico e, com isso, por fim a uma dor de cabeça. Comprar o comprimido é um alvo, mas também não é o telos. Dar um jeito em minha dor de cabeça também não é o telos. Talvez eu esteja tentando escrever um livro e a dor de cabeça esteja dificultando meu trabalho. Mas pode ser outro o alvo que me leva a escrever o livro. Talvez seja ganhar dinheiro para poder alimentar minha família. Ou seja, se pararmos por aqui — sim, porque essa cadeia de alvos costuma ir longe — poderíamos dizer que o propósito final ou telos que me motiva a tirar o carro da garagem e dirigi-lo até a farmácia é alimentar minha família. Assim, podemos afirmar que Deus fez, faz e ainda fará muitas coisas ao longo da história da criação e da redenção. Entretanto, o fim de todas elas é um só: a própria glória de Deus. A glória de Deus é o telos de tudo o que ele faz, como diz 1Coríntios 15.25-28: Porque é necessário que ele reine até que tenha posto todos os inimigos debaixo de seus pés. E o último inimigo a ser destruído é a morte. Pois sujeitou todas as coisas debaixo de seus pés. Mas, quando diz: Todas as coisas lhe estão sujeitas, é claro que isso não inclui quem lhe sujeitou todas as coisas. E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos .
Como diz também Filipenses 2.5-11: Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, que, existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser igual a Deus algo a que devesse se apegar, mas, pelo contrário, esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo e fazendo-se semelhante aos homens. Assim, na forma de homem, humilhou a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus também o exaltou com soberania e lhe deu o nome que está acima de qualquer outro nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai. Por fim, como diz Efésios 1.3-7,12-14: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para si mesmo, segundo a boa determinação de sua vontade, para sermos filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, para o louvor da glória da sua graça, que nos deu gratuitamente no Amado. Nele temos a redenção, o perdão dos nossos pecados pelo seu sangue, segundo a riqueza de sua graça, […] a fim de sermos para o louvor da sua glória, nós, os que antes havíamos esperado em Cristo. Nele, também vós, tendo ouvido a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, e nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança, para a redenção da propriedade de Deus, para o louvor da sua glória. No primeiro capítulo de Romanos, Paulo mostra claramente que a essência do pecado humano foi a rejeição da glória de Deus (Rm 1.18-32). A partir do momento que trocamos a glória divina por qualquer outra coisa, caímos sob a condenação de Deus. Ele é zeloso por sua glória e faz tudo convergir para esse fim. E como diz um colega meu, “tudo inclui tudo e não exclui nada”.
Tudo aponta para esse único fim, a glória de Deus. Esse é o telos do universo e de todos os atos divinos. Qualquer doutrina, milagre ou missão precisa necessariamente ter em mente o fato de tudo existir para esse fim. Entender que tudo existe para a glória de Deus 14 — até mesmo nossa salvação em Cristo — representou para mim uma revolução copernicana. Assim como Copérnico15 foi forçado a repensar o universo a partir da noção de que a terra girava em torno do sol, e não o contrário, temos de entender que o Universo, o mundo, o evangelho e nossa vida toda giram em torno de Deus e da sua glória, e não o contrário. Eu não sou o centro, tampouco o alvo final do evangelho. Deus é o centro de todas as coisas. Ele não vive em torno das minhas necessidades. Eu existo — em minha salvação, meu sofrimento, meu triunfo ou até mesmo em minha perdição — para a glória de Deus. Afinal de contas, ele é glorificado em todos os seus atributos — não somente em seu amor, mas também em sua justiça e santidade. Nem mesmo a existência do mal e a justa ira de Deus diminuem sua glória. Em tudo Deus é glorificado, pois como diz Salmos 76.10: “Até a ira contra os homens será para teu louvor” (cp. Ap 19.1-8).
QUARTO: DEUS É ABSOLUTAMENTE SOBERANO SOBRE SUA CRIAÇÃO Como disse, para falar sobre a doutrina de Deus eu me estenderia por muitos volumes. Mas para nosso governo e no que diz respeito aos pressupostos fundamentais de uma verdadeira teologia reformada, temos de entender a doutrina da soberania de Deus. Tudo existe, de fato, porque foi criado por Deus a partir do nada (Hb 11.3). Além de Deus e de sua criação, nada existe. Conforme escreveu o evangelista João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito existiria” (Jo 1.13). Nas palavras do apóstolo Paulo: “porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam poderes; tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1.16). Sabemos que Deus também sustenta tudo o que criou (Sl 104; Mt 6.25-34; Hb 1.3). Ele sabe quantos fios de cabelo temos na cabeça, quantos grãos de areia existem no mundo inteiro, o nome a a trajetória de cada estrela, pois ele mesmo as ordenou (Is 40.26). Não só isso, Deus também ordena os assuntos do mundo segundo sua vontade, como vemos em Daniel 4.33-35: Na mesma hora, a palavra se cumpriu sobre Nabucodonosor: ele foi expulso do meio dos homens e começou a comer grama como os bois, e o seu corpo foi molhado pelo orvalho do céu, até que lhe cresceram pelos como as penas da águia, e as suas unhas, como as das aves. Mas ao fim daqueles dias, eu, Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu e voltou a mim o meu entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei e glorifiquei ao que vive para sempre; porque o seu domínio é um domínio eterno, e o seu reino é de geração em geração. E todos os moradores da terra são considerados nada; e ele age no exército do céu e entre os
moradores da terra segundo sua vontade; ninguém pode deter sua mão,
nem lhe dizer: Que fazes? O fato de Deus ter criado o mundo, sustentá-lo e controlá-lo por inteiro, em todos os aspectos, é inicialmente muito fácil de entender. Quando John Piper chega a dizer que Deus ordena a trajetória de cada partícula de poeira que flutua no ar, ficamos pasmados, senão incrédulos. Imagine isso! Todavia, uma vez que aceitamos essa verdade, logo surge a pergunta: “E o mal? Ele controla o mal também? Ele ordena os tsunamis? Permite desastres que ceifam milhares de vidas? Deus também controla o mal?”. É o que parece ensinar a passagem de Deuteronômio 32.39, que diz: “Vede agora que eu, eu o sou, e não há outro deus além de mim. Eu faço morrer e faço viver. Eu firo e curo; e não há quem possa livrar-se da minha mão”. Além disso, 1Samuel 2.6-8 diz: O S ENHOR é quem tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz ressurgir dali. O S ENHOR faz empobrecer e enriquecer; abate e também exalta. Levanta o pobre do pó, ergue o necessitado do monte de cinzas, para fazêlos sentar entre os príncipes, para fazê-los herdar um trono de glória; porque as colunas da terra são do S ENHOR; estabeleceu o mundo sobre elas. A passagem de Isaías 45.5-7, no mesmo sentido, diz: Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus. Eu te capacito para a batalha, embora não me conheças. Para que se saiba, desde o nascente do sol até o poente, que além de mim não há outro; eu sou o S ENHOR, e não há outro. Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu sou o S ENHOR que faço todas estas coisas.
Essa é uma verdade estarrecedora. É difícil entrar em nossa cabeça, pois sabemos que Deus é bom. As Escrituras falam isso com muita clareza. Vemos em 1João 1.5: “E a mensagem que dele ouvimos e vos anunciamos é
esta: Deus é luz, e nele não há treva alguma”. Em Salmos 5.4 também lemos: “Porque tu não és um Deus que tenha prazer na injustiça, nem o mal habita contigo”. A única via de consolo que encontramos nessa junção de afirmações aparentemente contraditórias é que Deus sabe o que faz, tudo realiza para um fim bom e proveitoso e, acima de tudo, para sua própria honra e glória. Não vamos entender porque Deus permite tanta injustiça e maldade no mundo, até que chegue o fim da história. 16 Então, saberemos que Deus fez tudo com perfeição. Ele orquestra tudo para o bem final (Gn 50.20). Essa é uma certeza de quem crê em Deus. Embora não entendamos tudo, sabemos em quem temos crido. Ele é perfeito e está perfeitamente no controle de tudo. Se não estivesse no controle, soberanamente, como poderíamos afirmar que o próprio Deus faz tudo cooperar para nosso bem? (Rm 8.28). Contudo, ainda surge a questão da responsabilidade humana. Afinal, se Deus ordena e controla tudo, podemos ser culpados pelos nossos atos? Temos aqui um grande mistério. Mas veja o que José disse a seus irmãos, conforme registrado em Gênesis 45.5-8: Agora, não vos entristeçais, nem guardeis remorso por me terdes vendido para cá; pois foi para preservar vidas que Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na terra, e ainda restam cinco anos sem lavoura e sem colheita. Deus enviou-me adiante de vós, para vos conservar descendência na terra e para vos preservar a vida com um grande livramento. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas, sim, Deus… Misteriosamente, vemos que houve uma confluência entre a vontade de Deus — que faz tudo para o bem — e a vontade dos irmãos de José, que agiram por mal. Na absoluta soberania de Deus, até o mal que os homens praticam serve ao bem de Deus. Até a ira dos homens e sua perdição servem para a glória do Deus Criador. Ele não exime o homem de culpa, porém, pois Gênesis 50.20 conclui: “Certamente planejastes o mal contra mim. Porém Deus o transformou em bem, para fazer o que se vê neste dia, ou seja,
conservar muita gente com vida”. E tudo isso, é claro, fica ainda mais evidente no resumo do evangelho, conforme exposto na pregação do apóstolo Pedro, que exalta a soberania de Deus sobre a culpa e o pecado dos executores do Redentor, Jesus Cristo: Homens israelitas, escutai estas palavras: Jesus, o Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós com milagres, feitos extraordinários e sinais, que Deus realizou entre vós por meio dele, como bem sabeis; ele, que foi entregue pelo conselho determinado e pela presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pelas mãos de ímpios (At 2.22,23).
Pois, nesta cidade, eles de fato se aliaram contra o teu santo Servo Jesus, a quem ungiste; não só Herodes, mas também Pôncio Pilatos com os gentios e os povos de Israel; para fazer tudo o que a tua mão e a tua vontade predeterminaram que se fizesse (At 4.27,28). Em resumo, Deus criou tudo o que há e tem absoluto direito de fazer com sua criação o que bem entender. Para a visão reformada, isso é absolutamente fundamental.17 A aplicabilidade desse princípio desemboca no processo de quem é salvo e de quem se perde para sempre. Como estudaremos o assunto a fundo mais à frente, vou limitar-me a citar as palavras de Paulo em Romanos 9.19-22: Então me dirás: Por que Deus ainda se queixa? Pois, quem pode resistir à sua vontade? Mas quem és tu, ó homem, para argumentares com Deus? Por acaso a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou o oleiro não tem poder sobre o barro, para com a mesma massa fazer um vaso para uso honroso e outro para uso desonroso? E que direis se Deus, querendo mostrar sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, prontos para a destruição…? Lembremo-nos de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Jó 28.28; Pv 9.10). Especular sobre Deus ou tentar reduzi-lo a nosso nível,
ulgando-o por padrões humanos, é um dos erros de quem tenta compreendêlo sem uma dependência absoluta das Escrituras Sagradas. Isso requer reflexão e rendição à autoridade absoluta das Sagradas Letras. Não podemos formular uma doutrina de Deus a partir das nossas percepções democráticas, de nossa noção contemporânea supervalorizada do homem, independente de Deus. Ele não vem a nós como um forasteiro oferecendo o que quer que seja. Ele é nosso Criador e, como tal, deve ser compreendido à luz da revelação de si mesmo nas Escrituras. Sobre esses alicerces construiremos um conceito sólido do que seja a teologia reformada, sempre na dependência das Escrituras Sagradas e em submissão a elas. 1 Para
um bom ponto de partida sobre os distintivos históricos, culturais e doutrinários da tradição reformada, confira o artigo de Valdeci da Silva Santos, “Quem é realmente reformado? Relembrando conceitos básicos da fé reformada”, Fides reformata XI, n. 2(2006): 121-48, disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_XI__2006__2/Valdeci.pdf, acesso em: 28 mar. 2018. Para uma descrição mais aprofundada dessa tradição, confira a obra de Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus: uma introdução à fé reformada (São José dos Campos: Fiel, 2010). 2 Para uma descrição e comparação muito útil desses documentos, confira a obra organizada por Joel Beeke e Sinclair Ferguson, Harmonia das confissões reformadas (São Paulo: Cultura Cristã, 2006). 3 Para um excelente ponto de partida, confira a obra de Alan Myatt; Franklin Ferreira, Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 153-382, e as respectivas indicações bibliográficas no texto. 4 Como bem colocou Valdeci da Silva Santos: “O aspecto mais importante da fé reformada é sua doutrina sobre Deus. Warfield costumava dizer: ‘É a visão de Deus e de sua majestade […] que jaz no fundamento da plenitude do pensamento calvinista’. A verdade é que o modo de entender a natureza e o caráter de Deus influencia a perspectiva que se tem sobre o próprio ser humano, sobre a obra de Cristo, sobre a natureza da salvação e uma miríade de considerações teológicas, pois cada doutrina está conectada à outra. A teologia reformada aplica a doutrina da majestade de Deus integralmente a todas as outras doutrinas, tornando-a seu princípio fundamental” (ibidem, p. 133). 5 O termo em latim a se (em português “por si”) e o substantivo aseitas (em português “asseidade”) descrevem o atributo divino da plena suficiência de Deus em si mesmo, independentemente de qualquer fonte externa, para sua própria existência e perfeição. 6 C. S. Lewis, O problema do sofrimento (São Paulo: Vida, 2009). 7 O primeiro a propor a fórmula “uma só essência em três pessoas”. 8 Sua obra A Trindade (São Paulo: Paulus, 1997) é texto obrigatório no assunto. 9 Os pais capadócios foram três notáveis teólogos que viveram na região da Capadócia, no período entre os concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381), sendo especialmente relevantes suas contribuições para o Concílio constantinopolitano. 10 Tomás de Aquino ou Tommaso d’Aquino (1225-1274) foi um frade italiano da Ordem dos
Pregadores, cujas obras tiveram enorme influência na formação da tradição conhecida como Escolástica. Ele foi um dos expoentes da teologia natural e sua influência no pensamento ocidental é considerável, particularmente na ética, lei natural, metafísica e teoria política. 11 Barth “ressuscitou” o assunto no século 20, após muitos anos sem nenhum teólogo de peso ter escrito a respeito disso. 12 Também chamada Trindade econômica, é um dos tipos de avaliação e estudo da Trindade que difere da Trindade ontológica (que diz respeito à essência), pois tem como objetivo entender como a Trindade age em relação à criação. 13 Essa palavra grega tem o significado de fim, terminação, consumação, conclusão, bem como pode significar meta, alvo, finalidade, propósito, objetivo. 14 Para um relato semelhante, inspirado na ênfase do teólogo puritano Jonathan Edwards sobre a centralidade da glória de Deus para a correta vivência cristã, confira o livro de John Piper, A paixão de Deus por sua glória: vivendo a visão de Jonathan Edwards (São Paulo: Cultura Cristã, 2008). 15 Nicolau Copérnico (1473-1543) foi um astrônomo e matemático polonês que desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar (o Sol como o centro da Terra), em oposição à teoria geocêntrica (que considerava a Terra como o centro), dominante à época. Trata-se de uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia. 16 Para mais conteúdo a esse respeito, confira a obra de Heber Carlos de Campos Jr., Triunfo da fé: lidando com o problema do mal — um estudo em Habacuque (São José dos Campos: Fiel, 2012). 17 Como bem resumiu Joel Beeke: “A soberania de Deus é o âmago do calvinismo doutrinário. […] A doutrina de Deus — um Deus soberano e amoroso em Jesus Cristo — é, portanto, o centro da teologia reformada” (ibidem, p. 56-8).
AS DOUTRINAS DA GRAÇA Como um reformado enxerga a salvação? O termo “calvinismo” pode ser compreendido de duas maneiras. A primeira refere-se ao conjunto de todos os ensinamentos de João Calvino: sua hermenêutica, suas ênfases teológicas, sua visão sobre a igreja e a sociedade, além de seu sistema de governo eclesiástico. A segunda diz respeito aos cinco elementos que coletivamente são conhecidos como as “doutrinas da graça”. Esses cinco pontos tratam apenas da soteriologia de Calvino, ou seja, da doutrina crucial da salvação. O conjunto dos cinco pontos da soteriologia calvinista é conhecido pelo acrônimo TULIP, cada letra correspondendo a uma das seguintes doutrinas em inglês: Total depravity (depravação total), Unconditional election (eleição incondicional), Limited atonement (expiação limitada), Irresistable grace (graça irresistível) e Perseverance of the saints (perseverança dos santos). O teólogo e pastor reformado James Montgomery Boice preferiu os seguintes termos: depravação radical, eleição incondicional, redenção particular, graça eficaz e graça perseverante.1 São esses os termos que empregaremos para conduzir nossa discussão neste capítulo. Quem afirma crer nos cinco pontos citados costuma identificar-se como “calvinista”. A rigor, o calvinismo é um sistema doutrinário muito mais abrangente; mais adiante, discutiremos a diferença entre essa definição reduzida do sistema calvinista e seu sentido mais pleno. Ironicamente, quem lê as Institutas da religião cristã2 não achará esses cinco pontos discriminados como um conjunto à parte. Embora os cinco pontos estejam presentes nos escritos de Calvino, eles nunca foram organizados dessa maneira por ele. O sucessor de Calvino à frente da Academia de Genebra, 3 Teodoro de
Beza,4 trabalhou na sistematização das ideias de Calvino, inclusive nos “cinco pontos” do calvinismo. Ele também contribuiu para a formação de um esquema soteriológico complexo chamado lapsarismo.5 Tal esquema visava explicar como os desígnios de Deus no tocante à salvação se operacionalizaram no tempo e no espaço, apesar de suas origens na eternidade passada. Lembre-se do que falamos anteriormente: Deus existe de maneira diferente de nós. Ele existe por si mesmo ( a se), é eterno, infinito, insondável e inescrutável. Sua interação com uma humanidade limitada, falha e presa às dimensões do tempo e do espaço é essencialmente um mistério, e só pode ser apreendida em parte e à medida que ele se revelou a nós pelas Sagradas Letras, e nada mais. Todavia, Beza arriscou especular sobre o que aconteceu fora do tempo, ou seja, na eternidade antes do tempo, criando uma teoria que de algum modo resolveria o mistério. Entre os alunos de Beza na Academia destacou-se um jovem promissor, Jacó Armínio.6 Este, porém, não concordava com a teologia de seu mentor. Após a formatura e enquanto era pastor em Amsterdã, na Holanda, Armínio levantou vários pontos de divergência com Beza. Após sua morte, quarenta dos alunos de Armínio escreveram um manifesto chamado remonstrância 7 e o enviaram às autoridades civis holandesas. Naqueles dias, questões teológicas eram debatidas e decididas por governos locais, e divergências eram tratadas como uma questão de ordem civil. Por isso, a resposta dos calvinistas, que levou à rejeição e à condenação da remonstrância, redundou não somente em um documento teológico reconhecido pelo Estado holandês — conhecido como os Cânones de Dort 8 —, mas também no banimento dos arminianos da Holanda. Anos depois, a doutrina de Armínio foi revista e abraçada por muitos grupos evangélicos diferentes, a saber: metodistas, batistas e, bem mais tarde, pelos pentecostais. Nesse sentido, vemos claramente que o pentecostal reformado não pode ser considerado um pentecostal clássico, pois rejeita os ensinamentos de Armínio e afirma os Cânones de Dort. A resposta à remonstrância acha seu resumo nos cinco pontos, isto é, nas doutrinas da graça. Nosso propósito não é destrinchar todas as objeções levantadas contra
esses pontos, algo que já foi feito com excelência no livro As doutrinas da graça, de James Boice9 e Philip Ryken.10 Contudo, como esta obra pretende demonstrar claramente os contornos da dialética entre as visões reformada e pentecostal, bem como a harmonização da doutrina reformada com a espiritualidade pentecostal, vamos apresentar aqui um breve resumo das doutrinas da graça. Afinal de contas, não é possível ser calvinista ou reformado sem afirmar esses cinco pontos. Em outras palavras, não existe um “arminiano reformado”, como muitos já me perguntaram e assim até se definem.
DEPRAVAÇÃO RADICAL A primeira objeção de Jacó Armínio diz respeito à sua perce pção do efeito da queda de Adão e do efeito da obra da cruz sobre a humanidade nascida debaixo do pecado original.11 A pergunta é formulada, primeiramente, desta maneira: “Até onde a capacidade do ser humano, sua percepção das coisas do Espírito e sua liberdade para escolher o bem foram afetadas pelo pecado original?”. Afinal de contas, Deus havia dito que, se comesse da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão certamente morreria (Gn 2.17). Todavia, após seu castigo, é evidente que Adão ainda viveu por algum tempo antes de morrer. A pergunta, então, poderia ser reformulada assim: Em que sentido Adão morreu ao comer do fruto? Pois, após sua desobediência, algo aconteceu. Tanto ele como Eva tiveram seus olhos abertos para o fato de estarem nus e passaram a ter medo de Deus. Quando ele disse para Deus que havia percebido sua nudez, a pergunta que Deus lhe devolveu foi: “Comeste da árvore da qual te ordenei que não comesses?” (Gn 3.11). É claro que Deus sabia que ele havia comido da árvore. O que importa aqui é o medo de Adão e Eva e a percepção de sua nudez, consequências diretas de sua rebeldia contra Deus. O que isso quer dizer, então, sobre o efeito dessa desobediência e como isso afeta a nós, que somos seus descendentes? Enfim, até que ponto o pecado original nos afetou? É importante frisar que tanto Armínio quanto Calvino (e Beza, obviamente) concordavam que o pecado de Adão foi avassalador. O homem morreu para as coisas de Deus. Ele se tornou incapaz de escolher o bem. Muitos acusam Armínio de ter sido adepto da heresia de Pelágio 12 — um monge que viveu séculos antes de Armínio e afirmou a capacidade do homem para fazer o bem, negando a existência do pecado original, a não ser no sentido de ter sido o primeiro entre muitos. Alguns acusam o arminianismo de ser um tipo de neopelagianismo. Mas não é bem assim. O arminianismo reconhece o efeito radical do pecado sobre o homem, diferentemente de Pelágio. Todavia, ele afirma que a graça de Jesus, operada
na cruz do Calvário, restaurou à humanidade a plena capacidade de escolher o bem, independentemente de sua decisão favorável ou contrária a Deus. Os arminianos chamam esse conceito de “graça preveniente” 13 — graça suficiente para o homem enxergar a salvação que lhe foi assegurada na cruz, mas insuficiente para salvá-lo, a não ser que se arrependa de seus pecados. O problema é que simplesmente não há fundamento bíblico suficiente e necessário para defender o conceito de “graça preveniente”.14 Os Cânones de Dort afirmaram, em contrapartida, a “depravação radical”. Esta diz respeito ao fato de o homem ter morrido, moral e espiritualmente, no momento de sua desobediência no Éden, tornando-se incapaz de escolher o bem. Sua livre escolha continuou. Mas sua capacidade para escolher o bem se perdeu. Por isso, é incorreto dizer que o calvinismo nega o livre-arbítrio. A humanidade continua a ter livre-arbítrio, mas não continua livre em todos os sentidos. Assim como um ser humano pode escolher viver no fundo do mar, mas é incapaz de fazê-lo, pois não consegue respirar debaixo d’água, o homem não consegue sequer enxergar o bem e, portanto, não tem como escolher o bem. As coisas de Deus lhe são loucura, pois seu entendimento foi obscurecido. Mesmo após Cristo já ter completado sua obra na cruz, o homem não regenerado ainda continua cego e morto. Essa visão sobre o efeito do pecado original conta com ampla sustentação bíblica. Veja, por exemplo, Jeremias 17.9: “O coração é enganoso e incurável, mais que todas as coisas; quem pode conhecê-lo?”. Em Romanos 3.10-12, Paulo nos diz: “Não há justo, nem um sequer. Não há quem entenda; não há quem busque a Deus. Todos se desviaram; juntos se tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, nem um sequer”. Ele também acrescenta em 1Coríntios 2.14: “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois lhe são absurdas; e não pode entendê-las, pois se compreendem espiritualmente”. Isso fica ainda mais claro na conversa entre Jesus e Nicodemos, em João 3. Jesus disse que, para poder ver o reino, o homem tem que nascer de novo (Jo 3.3). Mais adiante, em João 6, ele afirmou: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer” (6.44). Por fim, Paulo novamente nos diz em Efésios 2.1-5:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nas vossas transgressões e pecados, nos quais andastes no passado, no caminho deste mundo, segundo o príncipe do poderio do ar, do espírito que agora age nos filhos da desobediência, entre os quais todos nós também antes andávamos, seguindo os desejos carnais, fazendo a vontade da carne e da mente; e éramos por natureza filhos da ira, assim como os demais. Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo imenso amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossos pecados, deu-nos vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos). Em suma, quem está morto não tem reação à vida. Não vê, não ouve, não sente, não compreende e não pode agir. A morte prenunciada por Deus a Adão de fato aconteceu. Todos nós nascemos espiritualmente mortos. O pecado nos afetou radicalmente. Nossa depravação foi radical. Isso não quer dizer que ela foi absoluta. Não somos tão maus quanto poderíamos ser. 15 Ainda resta em nós algum bem. A “imagem e semelhança de Deus” permanece, embora deformada e chamuscada, pois o pecado permeia e afeta todo nosso ser, nosso entendimento e nosso espírito. Nascemos no pecado, filhos das trevas, filhos da desobediência, inimigos de Deus. Todos precisamos nascer de novo para poder ver o Reino de Deus. Se isso não acontecer, permaneceremos nas trevas. A fé salvífica em Cristo não é uma capacidade natural, é um dom de Deus, como Paulo mesmo disse em Efésios 2.4,5,8,9: Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo imenso amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossos pecados, deu-nos vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos) […] Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. A fé é um dom, não vem de nós, para que ninguém se orgulhe, ou seja, para que ninguém ache que foi por escolha própria que sua salvação se deu (Jo 1.12,13). A fé é o meio, a agência pela qual a salvação se manifesta em
nós. Mas a fé não é um dispositivo que faça parte do homem natural, pois este rejeita as coisas de Deus e não as entende. É certo que Jesus chamou a todos com as palavras: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Mas ele também disse no versículo anterior: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27). O convite ou a pregação do evangelho a todos os homens não implica na certeza de que todos possam ouvir e responder. Entretanto, são esses os instrumentos por meio dos quais Deus chama aqueles que pretende salvar, pois a fé, que é um dom de Deus, vem pelo ouvir a mensagem, a qual, por sua vez, é a palavra de Cristo pregada (Rm 10.17). Quando um eleito por Deus ouve a pregação do evangelho, portanto, Deus lhe concede a fé, pelo poder do Espírito Santo. É o Espírito que convence; logo, a conversão é uma obra do Espírito (Jo 16.8). Se uma pessoa rejeitar o evangelho, isso é obra natural da carne e resulta do fato de não ter havido um milagre iniciado e operado pelo poder de Deus no coração desse ouvinte. Essa pessoa, então, permanece morta — cega, surda e totalmente insensível às coisas de Deus, que são loucura para ela. Como Paulo mesmo disse em 1Coríntios 1.21-24: Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo por sua própria sabedoria não o conheceu, foi do agrado de Deus salvar os que creem por meio do absurdo da pregação. Pois, enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos Cristo crucificado, que é motivo de escândalo para os judeus e absurdo para os gentios. Mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. Veja que o diferencial aqui não é a fé, embora esta seja o meio pelo qual a salvação se efetua. O diferencial, de acordo com Paulo, é o fato dos que creem terem sido chamados.16 Isso nos leva, necessariamente, ao segundo ponto.
ELEIÇÃO INCONDICIONAL Para iniciar esse assunto da eleição, conhecido por muitos sob a rubrica de “predestinação”, temos que voltar por um instante ao ponto de partida de toda a cosmovisão reformada.17 Lembremo-nos de que Deus é o Criador de tudo o que existe e, por isso, é absolutamente soberano sobre todas as coisas. Cabe a Deus dispor de tudo o que fez como lhe aprouver. Somos dele, o céu é dele, tudo é dele. Como disse Abraham Kuyper, 18 no discurso inaugural da Universidade Livre de Amsterdã: “Na extensão total da vida humana não há nenhum centímetro quadrado acerca do qual Cristo, que é o único soberano, não declare: Isto é meu!”. Lembremo-nos também de que Deus não existe da mesma maneira que nós. Portanto, sua relação com o tempo e o espaço é algo que extrapola nossa capacidade cognitiva. É algo que está literalmente além de nossa imaginação. Portanto, a interação entre nós e Deus é, por definição e necessariamente, um mistério. É fundamental lembrar enfaticamente que estamos limitados às Escrituras Sagradas ao formularmos nossos conceitos sobre como Deus age neste mundo que ele criou. Não nos é possível especular ou teorizar sem errar o alvo. E um erro fatal que muitos cometem é tentar “entender” Deus ou explicar Deus, justificando-o à luz dos nossos valores humanos, quando o caminho da sanidade teológica só pode ser um: submetermo-nos à sua autorrevelação, isto é, à Bíblia, que é sua Palavra. Predestinação, portanto, é um conceito vazio, e facilmente se confunde com fatalismo, a não ser que seja claramente proposto pelas Escrituras. Ela tem seu lugar como um pressuposto na lista de teologia sistemática tão somente porque, de fato, trata-se de um conceito eminentemente bíblico. A expressão correta a ser usada, como já falamos, é eleição incondicional. Em termos bem simples, essa doutrina afirma que Deus escolhe a quem salvar e os escolheu desde de antes do início de tudo, independentemente de qualquer previsão de fé ou boas obras de nossa parte (Rm 9.11-13). A consequência de Deus ter escolhido alguns (aqueles a quem quer salvar)
implica em Deus não ter escolhido outros, que estão fadados à perdição (1Pe 2.8; 2Pe 2.1-3). Tal eleição dos que foram, são e ainda serão salvos, repito, não foi baseada em mérito nosso. De fato, as razões da escolha de Deus são tão misteriosas quanto o próprio Deus. Suas razões não fazem parte de sua autorrevelação. Como não sabemos as razões que movem Deus, ficamos limitados a afirmar a ausência de mérito nosso nessa escolha. Todo o ônus da escolha pertence a Deus, assim como toda a glória. Ninguém pode citar um só fator que atribua ao eleito algum mérito, para que “ninguém se orgulhe” (Ef 2.9). A eleição divina, contudo, não é caprichosa, mas movida por seu amor soberano. Como Paulo deixa bem claro em Efésios 1.3-6: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para si mesmo, segundo a boa determinação de sua vontade, para sermos filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, para o louvor da glória da sua graça, que nos deu gratuitamente no Amado. Antes de prosseguir, vale a pena registrar a tentativa dos arminianos de explicar o critério da eleição divina. Sim, porque eles reconhecem que há uma eleição para a salvação. Só que essa eleição, segundo a ótica da remonstrância, foi fundamentada na presciência de Deus, que escolhe os salvos mediante o pré-conhecimento da fé em Cristo. Tanto calvinistas quanto arminianos concordam que Deus é eterno e, portanto, tem plena presciência de tudo o que acontecerá até o fim dos tempos. O problema da solução arminiana é que a eleição dos salvos é fundamentada no mérito da fé de cada um. Isso não significa que o arminianismo dispense a graça de Deus para a salvação do pecador. Ainda que certamente necessária, essa graça é insuficiente por si só para salvar o pecador, pois depende do empenho humano (e não do dom divino) de fé em Cristo. Segundo a visão arminiana, é na presciência divina desse exercício de fé no evangelho que se baseia o decreto eletivo de Deus para a salvação, o que torna a eleição divina
condicionada à ação humana. Todavia, tal qual no caso do conceito arminiano da graça preveniente, exposto anteriormente, resta saber se há respaldo bíblico suficiente e convincente para tal entendimento. Em contrapartida, o conceito calvinista da eleição incondicional conta com ampla fundamentação bíblica. O apóstolo João, na abertura de seu Evangelho, escreveu: “Mas a todos que o receberam, aos que creem em seu nome, deu-lhes a prerrogativa de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram de linhagem humana, nem do desejo da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.12,13). O próprio Jesus disse aos seus, em João
15.16: “Não fostes vós que me escolhestes; pelo contrário, eu vos escolhi e vos designei a ir e dar fruto, e fruto que permaneça, a fim de que o Pai vos conceda tudo quanto lhe pedirdes em meu nome”. Mais tarde, em sua oração sacerdotal, Jesus disse ao Pai, em João 17.6-12: Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste a mim; e eles obedeceram à tua palavra . Agora sabem que tudo
quanto me deste vem de ti; porque lhes transmiti as palavras que tu me deste, e eles as acolheram e verdadeiramente reconheceram que vim de ti e creram que tu me enviaste. Eu rogo por eles. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus. Todas as coisas que me pertencem são tuas, e as que te pertencem são minhas; e neles sou glorificado. Não estarei mais no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda-os no teu nome que me deste, para que sejam um, assim como nós. Enquanto eu estava com eles, eu os guardei e os preservei no teu nome que me deste. Nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. Jesus — em vez de apenas identificar seus seguidores como pessoas que haviam feito a escolha de segui-lo — afirmou não somente que eles lhe foram dados pelo Pai, mas também que Judas havia sido destinado à perdição, algo previsto nas Escrituras. Temos, portanto, uma afirmação de predestinação dupla — tanto para a salvação quanto para a perdição (cf. 1Pe 2.8; 2Pe 2.3). Mais adiante, Lucas disse em Atos 13.48: “Ouvindo isso, os gentios
alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor. E todos os que haviam sido destinados para a vida eterna creram”. Paulo, como já vimos, foi ainda mais claro em Efésios 1.4-6: … como também nos elegeu nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para si mesmo , segundo a boa determinação de sua vontade, para sermos filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, para o louvor da glória da sua graça, que nos deu gratuitamente no Amado. Por toda a Bíblia, o princípio da eleição é inerente à maneira pela qual Deus lida com a humanidade — seja na escolha de uma nação como Israel (Dt 7.7,8; 9.1-6), seja na de um indivíduo como Abraão (Gn 12.1-3; Js 24.24; At 7.2,3). Mas nenhuma discussão sobre o princípio da eleição pode deixar de fora o capítulo 9 da Carta de Paulo aos Romanos. Os versículos 1 a 13 nos dizem: Digo a verdade em Cristo, não minto. Minha consciência dá testemunho comigo, no Espírito Santo, de que tenho grande tristeza e incessante dor no coração. Porque eu mesmo desejaria ser amaldiçoado e excluído de Cristo, por amor de meus irmãos, meus parentes segundo a carne. Eles são israelitas, e deles são a adoção, a glória, as alianças, a promulgação da lei, o culto e as promessas; deles são os patriarcas, e deles descende o Cristo segundo a carne, o qual é sobre todas as coisas, Deus bendito eternamente. Amém. Não é o caso de a palavra de Deus ter falhado. Porque nem todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos seus filhos; mas: Por meio de Isaque a tua descendência será chamada. Isto é, não são os filhos naturais que são filhos de Deus; mas os filhos da promessa é que são contados como descendência. Porque a palavra da promessa é esta: Por este tempo virei, e Sara terá um filho. E não somente isso, mas também a Rebeca, que concebeu de Isaque, nosso pai (pois os gêmeos ainda não tinham nascido, nem praticado o bem ou o
mal, para que o propósito de Deus segundo a eleição permanecesse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), se disse: O mais velho servirá ao mais novo. Como está escrito: Amei a Jacó, mas rejeitei a Esaú. O dilema de Paulo residia no fato de que os judeus, o “povo escolhido”, rejeitaram seu Messias. Ele se perguntou, então, se essa eleição divina havia falhado. E sua resposta foi “não”, pois nem todos os descendentes de Abraão faziam parte de Israel. Aqui ele usa o caso de Jacó e Esaú. Antes de eles terem nascido, ou seja, antes de merecerem qualquer coisa, Deus amou Jacó, mas rejeitou Esaú. Parece injusto, não? Paulo estava bem ciente do fato de, aparentemente, Deus ter cometido uma injustiça por ter escolhido um e rejeitado o outro. Por isso Paulo continuou seu raciocínio, como vemos nos versículos 14 a 18: Que diremos? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum. Porque ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e compaixão de quem eu quiser ter compaixão. Assim, isso não depende da vontade nem do esforço de alguém, mas de Deus mostrar misericórdia. Pois a Escritura diz ao faraó: Para isto mesmo te levantei: para mostrar em ti o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. Portanto, ele tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer.
A objeção, então, é que Deus é injusto ao condenar uns e salvar outros. Todos merecem uma chance, segundo reza a filosofia de nossa época. Contudo, a condenação da humanidade é merecida, segundo Romanos 1.18— 3.20, pois todos rejeitam a Deus, todos pecam, todos ficam aquém da glória de Deus. Então, com que direito Deus escolhe uns para salvação e não outros? Com base em quê? Afinal, para que seja um ser justo, Deus precisa se conformar a algum sistema de justiça que possamos compreender. Mas a resposta é clara: misericórdia não é injustiça. De fato, é um dispositivo da ustiça praticar a misericórdia (algo que vemos no sacrifício de Jesus, que
satisfez todas as exigências da Lei, incluindo a de tomar sobre si a pena de nós todos). Mas o argumento avança mais um pouco, pois Paulo está prevendo as objeções de seus leitores, como vemos nos versículos 19 a 24: Então me dirás: Por que Deus ainda se queixa? Pois, quem pode resistir à sua vontade? Mas quem és tu, ó homem, para argumentares com Deus? Por acaso a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou o oleiro não tem poder sobre o barro, para com a mesma massa fazer um vaso para uso honroso e outro para uso desonroso? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, prontos para a destruição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que preparou de antemão para a glória, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? A objeção que costuma ser feita é esta: “Então, somos todos robôs, somos apenas fantoches e, portanto, não somos responsáveis. Se é assim, não é bem a salvação que é imerecida, mas a perdição”. Sim, porque se é Deus quem elege, então não somos nós os culpados pela perdição. Na pergunta de Romanos 9.20, Paulo antecipa o raciocínio dos que culpam a Deus por praticar uma injustiça. E sua resposta é avassaladora: “Mas quem és tu, ó homem, para argumentares com Deus?”. É certo que essa passagem apresenta muitos desafios, 19 mas, em síntese, traz essa certeza de que o direito soberano de Deus sobre tudo o que criou, inclusive sobre todos nós, é uma humilhação. O ego, a autonomia humana, o suposto direito a tudo o que quisermos, tudo isso é arrasado na presença de um Deus a se, infinito, eterno, insondável e inescrutável. Nessa questão, quem abraça a fé reformada sofre uma nova conversão e adquire um temor e uma gratidão pelo que Deus fez em sua vida. Poderíamos nos perder, se assim Deus tivesse permitido. Mas ele não o fez. Ele nos escolheu. Incondicionalmente. Há uma tentação que sobrevém a todo aquele que se depara com essa
doutrina pela primeira vez. Queremos tentar descobrir quem é predestinado, pois supomos que não podemos desperdiçar nossa pregação e nosso testemunho com alguém que não for eleito por Deus. Mas esquecemos de um detalhe crucial: nossa pregação não vislumbra resultados. Ela não pode ser motivada pelo “sucesso”. Pregamos para glorificar a Deus. E nossa pregação será o instrumento do Espírito Santo para o convencimento do pecador, ou servirá de testemunho contra ele no dia em que for julgado por sua rejeição do Filho de Deus. Portanto, contar o número de convertidos sob nosso ministério é algo hediondo, pois atribui ao homem os resultados, em vez de atribuir a Deus toda a glória. 20 Antes de prosseguir, gostaria de dizer que é notável o quanto essa única questão pode ser decisiva sobre quem abraça ou não as doutrinas da graça. Para mim representou uma nova conversão, por assim dizer. Até meu coração se render perante a verdade das Escrituras, resisti e me debati. Mas, no fim, meu coração achou abrigo em Deus e em sua Palavra. Por isso, não menosprezo a consternação que vejo em tantos que demonstram a mesma dificuldade pela qual eu mesmo passei.
REDENÇÃO PARTICULAR Dos cinco pontos, o menos discutido e até o menos conhecido é este: a redenção particular. Ela traz a resposta a uma pergunta aparentemente fácil de responder: Por quem Jesus morreu?21 Sua resposta está contida na correlação das outras doutrinas da graça — a começar por seu fundamento, que é a soberania de Deus. Contudo, veremos também que ela se encontra exposta claramente nas Escrituras. Deus não tenta fazer o que quer que seja. Tudo o que ele se determina a fazer, ele faz. Como bem disse o profeta Isaías: “… agindo eu, quem impedirá?” (Is 43.13). Sua soberania implica no fato de que Deus é absolutamente poderoso e capaz de realizar toda a sua vontade, sem que nada nem ninguém possa frustrá-lo. Por isso, Deus não desperdiça esforços. Seus desígnios e desejos são cumpridos até a última vírgula. Isso quer dizer que tudo o que fez em Cristo Jesus, Deus fez completamente. Seus propósitos eternos foram perfeitamente cumpridos na obra de Cristo na cruz. Não houve nada que pudesse ser feito que Deus não tenha feito. Não houve excesso, nem carência nos atos de Deus, que se cumpriram ao pé da letra em Cristo Jesus. Resta, então, perguntar: O que Cristo realizou na cruz? Vejamos o que as Escrituras dizem sobre esse assunto. Em Isaías 53.8 lemos: “Foi levado por juízo opressor; e sua descendência, quem a considerou? Pois ele foi tirado da terra dos viventes, ferido por causa da transgressão do meu povo”. Mateus 1.21 diz: “Ela dará à luz um filho, a quem darás o nome de Jesus; porque ele salvará seu povo dos seus pecados”. Em João 10.11, achamos as palavras de Jesus: “Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá a vida pelas ovelhas”. E em sua oração sacerdotal, Jesus intercedeu da seguinte forma junto ao Pai (Jo 17.1,2,9): Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho, para que também o Filho te glorifique, assim como lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, para que conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. […] Eu rogo por
eles. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus. Finalmente, Paulo afirma claramente em Romanos 8.28-32: Sabemos que Deus faz com que todas as coisas concorram para o bem daqueles que o amam, dos que são chamados segundo o seu propósito. Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, a eles também chamou; e os que chamou, a eles também justificou; e os que justificou, a eles também glorificou.
Portanto, que poderemos dizer diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou nem o próprio Filho, mas, pelo contrário, o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas? Há muitas outras referências que poderíamos citar. Todavia, destaco que as poucas passagens citadas anteriormente nos ensinam de forma clara que o objeto e alvo da obra de Cristo foi o povo escolhido de Deus. Cristo veio morrer somente pelos seus. Evidentemente, sua morte na cruz foi suficiente para pagar a pena de todos os pecados do mundo. Contudo, o sacrifício de Cristo no Calvário é eficiente para perdoar somente os pecados dos que ele veio salvar, conforme o próprio desígnio de Deus. Consequentemente, Cristo não veio morrer indiscriminadamente por todos, como defende o arminianismo. Ele não veio pagar a pena pelos pecados daqueles que serão condenados à perdição eterna. Isso seria um contrassenso. Pense a partir deste ângulo: se Jesus pagou pelos pecados de todos, então todos estão perdoados. Se Jesus cumpriu a pena de todos, ninguém pode ser condenado à perdição eterna. Pois, se Deus condenasse um só dentre aqueles por quem Jesus morreu, ele invalidaria a obra da cruz, pelo menos em parte — na parte que diz respeito aos que serão condenados eternamente. Isso quer dizer que a obra de Cristo na cruz seria uma vitória em potencial apenas e, por isso, em parte frustrada. Do ponto de vista bíblico, teológico e racional,
isso é insustentável. Visto a partir de outro ângulo, se Jesus anulou a dívida escrita contra todos os homens, onde fica a necessidade da fé? Se, de fato, independente da fé, todos já estão perdoados, então o evangelho também fica sem mensagem e sem urgência. Todos os caminhos acabam levando a Deus, no fim das contas. Mas a Bíblia diz que a fé é o meio pelo qual a obra de Cristo nos é aplicada, como vemos em Colossenses 1.21-23: A vós também, que no passado éreis estrangeiros e inimigos no entendimento por causa das vossas obras más, agora ele vos reconciliou no corpo da sua carne, pela morte, a fim de vos apresentar santos, inculpáveis e irrepreensíveis diante dele, se é que permaneceis na fé, fundamentados e firmes, sem vos afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, do qual eu, Paulo, me tornei ministro. Veja que a condição necessária para a salvação é a fé, a qual, como já dissemos, é um dom de Deus e não vem de nós (Ef 2.8,9). Há passagens que parecem sugerir que Cristo morreu pelo mundo inteiro como, por exemplo, João 1.29: “Este é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!”; e 1João 2.2: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo mundo”. Entretanto, sem pretender entrar em detalhes, eu me limito apenas a mencionar que essas passagens mostram a abrangência do evangelho para além dos limites da nação de Israel, alcançando também os gentios, como bem argumentado por outros autores.22 Em resumo, a redenção é particular porque Jesus morreu pelos seus (cf. Jo 17.9). Sua morte na cruz não foi pelo mundo inteiro, como defendiam Armínio e seus sucessores. Foi uma morte dirigida a um objetivo predeterminado pelo Pai. Sua obra se aplica a todos os que Deus escolheu desde antes da fundação da terra. Não há, por assim dizer, uma “sobra” do poder redentor da cruz que vá além da companhia dos eleitos. Não há necessidade disso, uma vez que tudo já faz parte de um plano perfeito do Pai em favor dos seus.23
GRAÇA EFICAZ A graça eficaz é, por assim dizer, o outro lado da moeda da doutrina da depravação radical. O ponto anterior responde à pergunta se o homem é naturalmente capaz ou não de escolher a salvação, sem que Deus aja em sua mente e coração pela regeneração. A pergunta inversa a que a graça eficaz responde é: Quando Deus age, tenho como não escolher a salvação? Em outras palavras, quando a graça de Deus opera por meio do Espírito Santo para trazer a regeneração e o novo nascimento, tenho como não me arrepender dos meus pecados e não me submeter a Cristo como meu Salvador e Senhor? O homem volta a ser uma tabula rasa,24 uma folha em branco que a si mesmo preenche, ou o Espírito Santo o submete à vontade de Deus, a ponto de ele não poder resistir? A resposta, como veremos, é não: quando Deus age, não tenho como não escolher a salvação. Ninguém pode resistir a essa obra, uma vez que é feita pelo poder de Deus, o qual, por definição, é irresistível. Daí vem o termo alternativo, graça irresistível. Mesmo tendo optado por seguir os termos sugeridos por James Montgomery Boice — que, neste caso, usa “graça eficaz” — confesso que, no que diz respeito a essa doutrina, prefiro o termo histórico, graça irresistível. Em todo caso, vejamos as evidências bíblicas que a sustentam. Como bem demonstrado por Boice,25 a obra que o Espírito efetua em nós é uma mudança de natureza. Nosso arrependimento e nossa conversão são expressões necessárias dessa nova natureza. Em outras palavras, Cristo nos salva e passamos a agir como pessoas salvas, com fé, arrependimento e o abandono de obras mortas. Trata-se de uma ação direta do Espírito Santo sobre o coração humano. Essa ação também é conhecida como “regeneração”. A regeneração antecede a fé, que é a consequência necessária da regeneração. O eleito por Deus ouve sua Palavra e o Espírito Santo vem e lhe concede vida para ver o reino e crer em Cristo. Como Jesus disse a Nicodemos, em
João 3.3: “Em verdade, em verdade te digo que ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo”. O arminianismo afirma que o homem vê a verdade do evangelho e crê, para só depois nascer de novo — ou seja, nesse caso, a fé antecederia a regeneração. Todavia, isso não condiz com as Escrituras. Em João 5.24,25 Jesus falou: Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que virá a
hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão. Quem ouve e crê tem a vida eterna. Portanto, a vida eterna virá para quem ouve, é regenerado pelo Espírito Santo e, então, “ crê naquele que me enviou” (Jo 5.24). O sentido aqui é claro. A vida vem pela regeneração que antecede a fé. A passagem de João 1.12,13 também diz: Mas a todos que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes a prerrogativa de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram de linhagem humana, nem do desejo da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
A vida que temos em Cristo não é algo que recebemos porque a aceitamos. Nossa vontade não é o fator determinante de nossa salvação. É Deus quem decide nos salvar e nos salva. Ninguém nasce por sua própria vontade, mas pela vontade de outro. Quem pensa que o exercício da fé é o que nos dá vida ignora que a fé é um dom de Deus. A própria capacidade de crer é obra dele, como diz mais uma vez em Efésios 2.1-5: Ele vos deu vida, estando vós mortos nas vossas transgressões e pecados, nos quais andastes no passado, no caminho deste mundo, segundo o príncipe do poderio do ar, do espírito que agora age nos filhos da
desobediência, entre os quais todos nós também antes andávamos, seguindo os desejos carnais, fazendo a vontade da carne e da mente; e éramos por natureza filhos da ira, assim como os demais. Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo imenso amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossos pecados, deu-nos vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos). Em seguida, Paulo continua dizendo: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Ef 2.8,9). Aqui pode surgir a seguinte dúvida: se a fé vem primeiro, então sou salvo por causa de minha fé? Não, pois a causa de minha salvação não é a fé, mas, sim, Deus. A fé é o meio ou o canal necessário para o ser humano colocar em ação a salvação efetuada pela graça divina. Mas até essa fé que nós exercitamos em Cristo é dom de Deus. Não somos salvos pela fé mediante a graça, mas pela graça mediante a fé — e tudo isso é um dom de Deus. Por isso Filipenses 2.12,13 diz: Assim, meus amados, como sempre obedecestes, não somente na minha presença, porém muito mais agora na minha ausência, realizai a vossa salvação com temor e tremor; porque é Deus quem produz em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. Portanto, a obra é de Deus, do princípio ao fim, assim como Paulo brilhantemente nos explica em Romanos 8.28-30: Sabemos que Deus faz com que todas as coisas concorram para o bem daqueles que o amam, dos que são chamados segundo o seu propósito. Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, a eles também chamou; e os que chamou, a eles também justificou; e os que justificou, a eles também glorificou.
Essa obra, que começou na eternidade pela eleição imerecida, expressa-se na chamada eficaz do Espírito Santo. Deus nos justifica e um dia nos glorificará para sermos como seu Filho amado. Essa obra, do início ao fim, é divina. Não é uma negociação ou uma cooperação entre Deus e o ser humano. Por isso, nós a chamamos de obra monergista, 26 pois é uma pessoa que está efetuando tudo: Deus. Os sinergistas 27 veem a salvação como uma cooperação entre a vontade divina e a vontade humana. Mas essa própria vontade humana é transformada mediante a obra eficaz e irresistível do Espírito, quando a Palavra é anunciada a um de seus eleitos. É por isso que Jesus disse em João 10.25-30: Eu já vos disse, mas não credes. As obras que eu faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim. Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. Estas ouvem a minha voz, eu as conheço, e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrancará da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que
todos; e ninguém pode arrancá-las da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos um. O fato de a obra da salvação ser, do início ao fim, uma obra que Deus efetua em nós — primeiramente, pela eleição dos filhos a serem adotados pelo Pai; em seguida, pela obra do Filho na cruz, que fez a paz entre nós; e, em terceiro lugar, pela aplicação irresistível dessa obra ao coração do eleito, pelo poder do Espírito Santo — é o que nos conduz inexoravelmente para o último ponto das doutrinas da graça: a perseverança dos santos.
GRAÇA PERSEVERANTE Para muitos essa doutrina se resume ao chavão “uma vez salvos, sempre salvos”. Acabamos de ler a afirmação de Jesus sobre o fato de que aqueles que o Pai lhe deu “jamais perecerão”. É uma promessa e uma certeza, pois aquilo que Deus faz ninguém desfaz. Podemos ter essa certeza, então? Podemos ter certeza de nossa salvação? Para quem já compreendeu os primeiros quatro pontos, este último é uma conclusão de inescapável coerência lógica e teológica. Mas vejamos as evidências bíblicas a respeito da graça perseverante. Mais uma vez insisto em recomendar a excelente leitura As doutrinas da graça, pois há muitas ressalvas e qualificações que acompanham a doutrina da graça perseverante.28 Vou me limitar aqui a apenas três passagens que apontam de maneira clara e inequívoca para nossa segurança eterna em Cristo. Mas, primeiro, lembremo-nos de que nem todos que parecem ser cristãos de fato o são. Sobre estes, João é muito claro em 1João 2.18,19: Filhinhos, esta é a última hora; o anticristo está vindo, já muitos anticristos se têm levantado, conforme ouvistes; por isso, sabemos que é a última hora. Eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos, pois se fossem dos nossos teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram, para que se manifestasse que não são dos nossos.
Literalmente, os que são de Cristo perseveram. Diferentemente do que ensinavam Armínio e seus seguidores, quem não persevera nunca foi de Cristo. Contudo, voltemo-nos para as promessas de Deus a esse respeito, como em Filipenses 1.6: “E estou certo disto: aquele que começou a boa obra em vós irá aperfeiçoá-la até o dia de Cristo Jesus”. Veja que, como já dissemos, a segurança que Paulo expressa a respeito dos filipenses fundamenta-se no fato de a salvação ser obra de Deus em nossa vida, e não algo que nós operamos.
O fato de Deus ser o autor de nossa salvação, do início ao fim, é o firme fundamento de nossa segurança eterna. Mais uma vez voltamos a uma passagem já citada, João 10.27-30: Estas ouvem a minha voz, eu as conheço, e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrancará da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; e ninguém pode arrancá-las da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos um. Embora aqui só se mencionem o Pai e o Filho, não podemos menosprezar o fato de a salvação ser uma obra completa por um Deus triúno. Pai, Filho e Espírito Santo agem em uníssono para salvar os que são eleitos para a vida eterna. Por isso, podemos descansar na certeza da vida eterna. Por último, vejamos Romanos 8.31-39: Portanto, que poderemos dizer diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou nem o próprio Filho, mas, pelo contrário, o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas? Quem trará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica; quem os condenará? Cristo Jesus é quem morreu, ou, pelo contrário, quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou privação, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todos os dias; fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Mas em todas essas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois tenho certeza de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem autoridades celestiais, nem coisas do presente nem do futuro, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Não há dúvida de que há muito a ser dito no tocante à grande diferença
entre a segurança dos santos e a presunção dos que se acham salvos, mas não o são. Ainda há inúmeras considerações a serem feitas sobre o processo de mortificação do pecado e a obra de santificação que leva uma vida inteira — e que só será completada no momento em que formos glorificados com Cristo. Por ora, vamos nos contentar com uma fórmula muito útil proposta por Agostinho. Antes da queda de Adão, a humanidade era uma tabula rasa, por assim dizer. Agostinho resumia essa condição original do ser humano com o termo posse peccare, posse non peccare que, em latim, significa “capaz de pecar e de não pecar”. Após o pecado original e antes de ser salvo, o ser humano nascia escravo do pecado, o que Agostinho descreveu como non osse non peccare, ou seja, alguém “incapaz de não pecar”. Após o novo nascimento, o ser humano volta, até certo ponto, ao estado de posse peccare, osse non peccare, mas com uma grande diferença. Em Adão, não havia a tendência ao pecado que nos acompanha, embora tenhamos o poder do Espírito Santo agindo em nós para contrapor essa inclinação (Gl 5.16-25). Entretanto, na consumação dos tempos, quando Cristo voltar e formos glorificados, nossa condição se resumirá a non posse peccare, ou seja, a ser alguém “incapaz de pecar”. O pecado e a morte terão sidos expulsos e lançados no lago do fogo eterno, junto com Satanás e seus anjos. Por isso, sabemos que ainda pecamos, e precisamos confessar nossos pecados ao Senhor e lutar contra eles sempre — até o fim de nossa vida ou até que Cristo volte. Todavia, essa luta é sinal de que o Espírito Santo age em nós. Quem não dá a mínima para o pecado não tem o Espírito Santo agindo em sua vida. Essa luta pode nos deixar desanimados, especialmente em épocas de grandes derrotas. Contudo, é justamente nessas horas que temos de nos apegar à promessa de que a obra que Deus começou em nós, ele levará a um bom fim (Fp 1.6). Em suma, os cinco pontos do calvinismo são todos fundamentados na graça soberana de Deus. Tudo o que somos, somos pela graça. Se fomos eleitos para a salvação, isso foi fruto da graça soberana de Deus. Se cremos em Cristo, isso é prova de uma obra da graça de Deus. Se perseveramos em Cristo, isto se deve também à graça de Deus. Ao adentrarmos o céu, ninguém
poderá dizer: “Cheguei”. Sua confissão terá de ser: “Cheguei até aqui com a ajuda de Deus”. E assim deve confessar também todo aquele que se diz um pentecostal reformado. 1 Para uma explicação mais aprofundada da nomenclatura proposta por James Montgomery Boice e
Philip Graham Ryken, veja As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017). 2 Principal obra de João Calvino na qual está exposta grande parte da teologia ensinada pelo reformador francês. 3 Seminário teológico fundado por João Calvino em 1559, que formou toda uma geração de pregadores reformados na Europa, sendo o embrião da atual Universidade de Genebra. 4 Teodoro de Beza (1519-1605) foi um reformador francês, considerado um dos maiores acadêmicos da época da Reforma. Auxiliou Calvino na Reforma em Genebra, escrevendo comentários bíblicos e tornando-se o primeiro reitor da Academia de Genebra. 5 O lapsarismo é uma doutrina referente à ordem lógica do decreto de Deus de permitir a queda do homem em relação ao decreto de redimir os eleitos. Esse pensamento tem duas vertentes: o supralapsarismo, segundo o qual os decretos de Deus da eleição e da reprovação precederam logicamente o decreto da queda do primeiro homem, e o infralapsarismo, posição na qual se afirma que os decretos de Deus da eleição e da reprovação logicamente sucederam o decreto da queda. Para um breve resumo e comparação desses sistemas de pensamento, confira Sam Storms, Escolhidos: uma exposição da doutrina da eleição (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 235-42. 6 Jacó Armínio (1560-1609) foi um teólogo holandês contemporâneo da Reforma protestante. Aluno da Academia de Genebra de Calvino, trabalhou em 1603 como professor de teologia na Universidade de Leiden e escreveu muitos livros; sua visão tornou-se a base do arminianismo, com soteriologia divergente do pensamento reformado, influenciando o movimento remonstrante. 7 A remonstrância foi uma reunião de mais de quarenta líderes da cidade de Leiden, ocorrida em Haia, no ano de 1610, que teve por intuito expor por escrito suas opiniões sobre todas as doutrinas calvinistas que deveriam ser contestadas. Desse encontro resultaram os cinco artigos da remonstrância, proposições teológicas resumidas que sintetizavam as discordâncias doutrinárias apresentadas e discutidas pela Igreja Reformada Holandesa. Tais proposições, em contraponto com os cinco pontos do calvinismo, defendiam: 1) a depravação parcial da raça humana (em virtude da graça preveniente); 2) a eleição condicional (mediante a presciência de Deus); 3) a expiação ilimitada; 4) a graça resistível; 5) a possibilidade da apostasia dos genuinamente salvos. 8 Os Cânones de Dort, redigidos entre 1618-1619, foram o resultado do sínodo internacional convocado pelas igrejas reformadas da Inglaterra, Escócia, França, Suíça e Holanda, a fim de rebater as proposições apresentadas pelos remonstrantes. Dessa reunião nasceram os conhecidos “cinco pontos” do calvinismo. 9 James Montgomery Boice (1938-2000) foi um teólogo americano, pastor na Tenth Presbyterian Church por mais de 30 anos, autor de mais de 30 livros e comentários bíblicos e fundador da Aliança dos Evangélicos Confessionais. 10 Philip Graham Ryken, nascido em 1966, é um teólogo americano, sucessor de James Boice na liderança da Tenth Presbyterian Church e atual presidente da Wheaton College, em Wheaton, Illinois.
11 Pecado
original é o termo teológico que define o primeiro pecado cometido pela humanidade, qual seja a decisão de Adão e Eva de comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, da qual Deus havia ordenado que não comessem. O termo também descreve os efeitos duradouros sobre a posteridade de Adão e Eva decorrentes da rebelião do primeiro casal. 12 Pelágio da Bretanha (350-423) foi um monge asceta, nascido provavelmente na Britânia, autor da doutrina que passou a ser conhecida como pelagianismo e que negava o pecado original, negava que a graça de Deus é essencial para a salvação e defendia que o homem detém a capacidade de decidir seu futuro por livre-arbítrio sem necessariamente depender da graça de Deus. 13 De acordo com Armínio, “Concernente à graça e ao livre-arbítrio, isto é o que eu ensino conforme as Escrituras e o consenso ortodoxo: o livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar alguma bondade verdadeira e espiritual, sem a graça… Essa graça vem antes de nossa vontade, bem como a acompanha e a segue; anima-a, assiste-a, opera em nossa vontade, e coopera para que ela não se torne vã” (James Arminius, The works of James Arminius [Auburn: Derby and Miller, 1853], 4: 472). 14 Para uma exposição e crítica mais detalhada desse conceito, confira Sam Storms, Escolhidos: uma exposição da doutrina da eleição (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 23-92. 15 Na tradição reformada, a ação sobrenatural de Deus sobre a humanidade caída, ação que impede que ela se corrompa de forma absoluta e irremediável, é conhecida como graça comum — conceito que será apresentado e defendido adiante, no capítulo 7. 16 Para mais detalhes sobre esse assunto, confira John Piper, Deus deseja que todos sejam salvos? (São José dos Campos: Fiel, 2014). 17 Empregamos esse termo, e não o termo “imaginário social”, por se tratar, aqui sim, de um preceito formal e doutrinário. 18 Abraham Kuyper (1837-1920) foi um teólogo e estadista holandês que chegou a ocupar o cargo de primeiro-ministro dos Países Baixos, entre os anos de 1901-1905, e fundou a Universidade Livre de Amsterdã. 19 Para uma exposição detalhada das diferentes interpretações históricas de Romanos 9.1-23 sob o ponto de vista calvinista, confira Storms, Escolhidos: uma exposição da doutrina da eleição (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 123-56. 20 Para mais a esse respeito, confira a obra de J. I. Packer, Evangelização e a soberania de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2012). 21 Uma excelente referência sobre esse ponto teológico é esclarecida no livro de John Owen, Por quem Cristo morreu? (São Paulo: PES, 2011). 22 Confira os argumentos de James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 129-52. 23 Ao expor o entendimento de Charles Spurgeon acerca desse ponto doutrinário, Steven Lawson faz a seguinte observação perspicaz: “Embora alguns chamem essa doutrina de Expiação Limitada, Spurgeon insistia que tanto arminianos quanto calvinistas limitavam a expiação. Aqueles que ensinam que a morte de Cristo tornou possível a salvação limitam seu efeito, enquanto os que creem em uma expiação definida limitam sua extensão. Noutras palavras, os primeiros enxergam uma extensão ilimitada, mas um efeito limitado. Os últimos enxergam uma extensão limitada, mas um efeito ilimitado”. Em suma, Spurgeon concluiu: “Prefiro crer em uma expiação limitada que é eficaz para todos quantos ela foi intencionada, do que uma expiação universal que não seja eficaz para qualquer pessoa, a não ser que a vontade humana se junte a ela” (Steven Lawson, O foco evangélico de Charles Spurgeon [São José dos Campos: Fiel, 2012], p. 64-5).
24Tabula rasa é
uma expressão latina que significa literalmente “tábua raspada”, e tem o sentido de “folha em branco”. Como metáfora, o conceito de tabula rasa foi utilizado por Aristóteles para indicar uma condição em que a consciência é desprovida de qualquer conhecimento inato — tal como uma folha em branco, a ser preenchida. Já na modernidade, o argumento da tabula rasa foi usado pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado o protagonista do empirismo. Para ele, todas as pessoas nascem sem conhecimento algum (a mente seria inicialmente como uma “folha em branco”) e todo o processo do conhecer, do saber e do agir é aprendido por meio da experiência. 25 James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 153-76. 26 O termo monergismo descreve a visão de que a salvação, do início ao fim, é uma obra exclusivamente oriunda de Deus, ou seja, impossibilita a iniciativa conjunta de Deus e do ser humano no processo da salvação. 27 O termo sinergismo descreve a visão de que a salvação origina-se tanto em Deus como no ser humano, ou seja, impossibilita a livre e exclusiva iniciativa de Deus na salvação. 28 James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça, p. 177-202.
OS CINCO SOLAS Por que não somos católicos romanos? Entre as muitas vertentes do pentecostalismo, algumas têm se mostrado estranhamente abertas ao novo ecumenismo1 promovido pelo papa Francisco, pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). O discurso desses segmentos pentecostais apela para uma unidade no Espírito, argumentando que as causas doutrinárias que deram origem ao Protestantismo não nos dividem mais. Tal afirmação baseia-se, principalmente, na assinatura da Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação 2 por representantes da Federação Luterana Mundial e da ICAR, na cidadã alemã de Augsburgo, em 31 de outubro de 1999.3 O documento em questão afirma, entre outras coisas, que a salvação é, afinal, pela fé em Cristo Jesus — independentemente de como cada lado define a questão nos mínimos detalhes. “Somos um”, segundo eles, e nada mais resta a protestar. Segundo esse movimento, devemos reconhecer que há uma unidade no Espírito, pois o Espírito é quem une a igreja. Tenho visto lideranças “pentecostais” que publicamente aceitaram esse argumento, ao menos em tese. 4 Por isso, ao reafirmar nossa espiritualidade pentecostal reformada, vejo a necessidade de também reafirmar nossa identidade protestante. Sim, pois o pentecostal reformado não pode abraçar esse ecumenismo sofismado. Como reformados, temos de nos reportar à fé protestante, que é afirmada há quinhentos anos e se mostra refratária a essas novas investidas, as quais não passam de uma nova Contrarreforma5 feita pelas mãos de um papa jesuíta. 6 É importante lembrar que os jesuítas — membros da ordem fundada por Inácio de Loyola, 7 logo após o início da Reforma Protestante — tinham, dentre muitos outros objetivos, a missão de estancar a sangria dos quadros da ICAR e inibir o crescimento exponencial do protestantismo. Já afirmei em meu livro O fim de uma era8 que é possível ser cristão e ser
católico romano. Essa afirmação, no entanto, precisa de algumas qualificações e tem encontrado muitas resistências compreensíveis à luz do fato de o Catolicismo Romano, com todos os seus dogmas e acréscimos históricos, não poder ser visto como uma fé inteiramente cristã. O que nos distingue, portanto, da ICAR? E por que isso é importante? Dentro da tradição reformada e, consequentemente, da dialética pentecostal reformada, é fundamental estabelecer essas diferenças, pois isso envolve a centralidade do evangelho. É necessário, portanto, rever as cinco questões — conhecidas como os “cinco Solas” — que nos separam de maneira irreconciliável de Roma. O apelo ao Espírito Santo como mediador de uma união entre protestantes e católicos romanos sobrepõe-se à centralidade do evangelho e ignora a unidade de propósito da Santíssima Trindade, divorciando a ação do Espírito da economia trinitariana ou cristológica. 9 Em outras palavras, o papel central do Espírito Santo é promover a união da igreja em torno da pessoa e da obra consumada e aplicada de Jesus Cristo, por meio da ação soberana de Deus, conforme exposto no evangelho da graça soberana.10 Qualquer alternativa ou revisão dessa verdade é trágica e precisa ser reavaliada. Assim como Calvino não foi o organizador dos cinco pontos do calvinismo, tampouco podemos atribuir os “cinco Solas” a um único teólogo. É claro que todos esses pontos podem ser encontrados nas obras de vários autores reformados, a começar por Lutero e o próprio Calvino. A lista dos cinco Solas não aparece como uma confissão única ou característica da tradição protestante e reformada, apesar de estar presente nas diferentes confissões de fé oriundas da Reforma protestante. O conjunto dessas afirmações serve de resposta aos “anátemas” do Concílio de Trento, 11 organizado pela ICAR para declarar dignos de perdição eterna quem defendesse a posição protestante. Foi a partir desse concílio que a divergência entre Roma e a Reforma protestante foi institucionalizada. Desde então, os cinco Solas da Reforma têm servido como um divisor de águas entre cristãos protestantes e católicos romanos — tanto quanto os cinco pontos do calvinismo têm servido de divisor de águas entre cristãos reformados e arminianos.12
SOLA FIDE O primeiro “sola” refere-se à nossa justificação perante Deus. Isso diz respeito ao fundamento de nossa salvação eterna. A igreja na qual Lutero foi formado havia criado uma série de doutrinas e práticas que mostravam como alguém poderia assegurar sua entrada no céu. Para que o fiel fosse aceito por Deus — isto é, justificado — ele teria de acumular virtude que lhe seria acrescentada mediante certas práticas. Essa virtude ainda se fundamentava no mérito de Cristo. Contudo, esse mérito divino seria recebido não pela fé somente, e sim pelos diferentes “meios da graça” ou sacramentos, a saber, batismo, confirmação, eucaristia, penitência, unção de enfermos, ordem e matrimônio, ou então pelas “formas de piedade”, ou “exercícios espirituais”, a saber, romarias, jejuns, vigílias, caridades e ofertas para Roma. Em outras palavras, a vida de devoção tinha como alvo tornar a pessoa boa o bastante para ir para o céu. Quem morresse sem ter alcançado o tanto que era necessário de virtude salvífica seria consignado ao purgatório. No entanto, sua alma poderia ser promovida ao céu, se alguém perseverasse nas práticas religiosas em seu favor, intercedendo por essa alma e dando ofertas para a igreja em seu nome. Na campanha para a construção da Basílica de São Pedro foram constituídos vendedores de indulgências — documentos legais que continham garantias de perdão por pecados ainda a serem cometidos. O mais famoso desses vendedores, Johann Tetzel, bradava o seguinte lema: “Quando uma moeda cai na caixa de oferta, uma alma é liberta do purgatório”. Com isso, muitos dos príncipes da Europa doaram fortunas ao papa, sob a convicção de que sua oferta seria fundamental para livrar seus antepassados, bem como a si mesmos, do purgatório, assegurando-lhes a entrada no céu. Era um “evangelho de obras”, como os protestantes costumam chamá-lo. Quem conhece a história de Lutero sabe que ele foi um dos monges agostinianos mais fervorosos na busca pela justificação. Ele vivia torturado por seu sentimento de culpa e se dedicava a práticas — principalmente as da confissão e da penitência — na tentativa de se justificar perante Deus. Essa
vida de angústia foi abruptamente interrompida quando ele leu a passagem de Romanos 1.17 (NVI): “Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”. Nossa salvação eterna depende de sermos justificados perante Deus. A dívida pelos nossos muitos pecados tem de ser quitada, paga e zerada. Lutero entendeu, a partir do dia em que Deus iluminou as Escrituras para ele, que isso dependia apenas de nossa fé em Cristo. Somos justificados pela fé e pela fé somente. Nada do que pudéssemos fazer acrescentaria uma vírgula ou um til à obra já completada por Cristo na cruz. Nenhuma penitência ajudaria e, portanto, seria desnecessária. Nenhum sacrifício ou oferta ou romaria ou prática religiosa poderia melhorar nosso status perante Deus. Justificação não é uma virtude a ser acumulada, mas, sim, uma sentença decretada por Deus. Somos justificados em Cristo pela fé somente. Toda essa constelação de práticas religiosas tendo em vista a justificação representa uma corrupção do evangelho e, portanto, um antievangelho. A ICAR afirma que somos salvos pela fé também, mas sua afirmação não é a salvação pela fé somente. É claro que a fé que salva é uma fé operante, consequência necessária da salvação, tal qual defendia Calvino. Como Tiago á disse, a fé sem obras é morta (Tg 2.17). Contudo, ele não estava dizendo que as obras façam parte do processo de nossa justificação. O que ele quis dizer é que o tipo de fé que salva necessariamente se expressa por boas obras. Portanto, obras são uma consequência necessária da salvação, e não um prérequisito para a salvação. Em resposta a Lutero, o Concílio de Trento afirmou que quem confessasse a salvação pela fé somente, negando a necessidade dos meios da graça para a justificação, seria condenável à perdição eterna. Esse abismo entre a ICAR e a igreja protestante nunca foi resolvido, nunca foi fechado. E, portanto, qualquer pretensão a um ecumenismo que não leve em conta que o pronunciamento do Concílio de Trento jamais foi oficialmente revogado por Roma é um engodo, e tenta tapar o sol com a peneira. União de verdade não é possível, se não for fundamentada na verdade.
SOLA GRATIA Nossa justificação, portanto, não tem base em nenhuma obra nossa. É algo concedido por Deus. É favor imerecido de Deus. O ser humano não pode se escorar em nada que ele mesmo seja, tenha feito ou venha a fazer para alcançar segurança perante Deus. Tudo o que temos ou recebemos é fruto da graça de Deus (Tg 1.17). No que diz respeito ao céu, é algo que o ser humano amais poderá reivindicar com base em algo que tenha feito. Até mesmo protestantes erram por fazer distinção entre pessoas aparentemente espirituais e cristãos aparentemente menos espirituais. Julgam que uns parecem mais merecedores do céu, enquanto outros chegarão lá “só pela graça”. Entretanto, tal conceito é carnal e não tem fundamento nas Escrituras. O próprio mundo imagina que muitos irão para o céu porque são pessoas boas. Recentemente surgiu na internet uma discussão a respeito da possibilidade de Gandhi13 estar ou não no céu. Afinal, como argumentam alguns, um Deus bom jamais mandaria para o inferno alguém que fez tanto bem para tantas pessoas. Independentemente de ter crido ou não em Cristo, Gandhi merecia um lugarzinho no céu, segundo eles. O surpreendente é que essa discussão não aconteceu no contexto secular, mas no âmbito da igreja. Até mesmo líderes cristãos de projeção nacional e internacional afirmaram que não conseguiam imaginar que Deus, em sua infinita bondade, condenaria alguém como Gandhi ao inferno. Tudo isso mostra o quanto a igreja protestante precisa voltar às suas bases e reafirmar a salvação pela fé somente e pela graça somente. Essa graça só tem um endereço: Cristo. Isso nos leva ao terceiro sola.
SOLUS CHRISTUS Não é verdade que todos os caminhos levam a Deus. Aliás, de certo modo levam, se considerarmos o fato de que todos ficarão de pé perante o trono do uízo final, para ouvir o veredito sobre seu destino eterno. No entanto, nem todos os caminhos levam à salvação. O contexto deste “ sola”, no entanto, não é um argumento contra o universalismo, 14 e sim um argumento sobre quem determina nosso destino eterno. Quem é o redentor? Quem é a porta? Quem é o caminho? Quem pode nos ajudar a conseguir de Deus o que precisamos? Quando se trata dessa figura do redentor, no contexto da ICAR, Maria ocupa um lugar todo especial. Isso já sabemos. Muitos afirmam que a ICAR cultua Maria como alguém mais do que humano. Ela foi chamada “mãe de Deus” por razões históricas que não vêm ao caso. 15 Os católicos, por sua vez, negam que adoram Maria, mas simplesmente a veneram. Ela já foi declarada por muitos como “corredentora”, junto com seu filho Jesus. 16 De fato, na entrada da Basílica de São Pedro, em Roma, há um afresco que a mostra no trono da igreja, tendo Jesus de um lado, o Pai do outro, e o Espírito Santo acima dela. A igreja protestante rechaça por completo a alegação de Maria ter algum peso em nossa redenção, embora a honremos como mãe de nosso Salvador. A redenção foi assegurada não apenas pelo nascimento de Jesus Cristo, mas por sua obra redentora que compreende sua vida, morte e ressurreição. Ele é o único mediador entre Deus e o homem, segundo as palavras de Paulo em 1Timóteo 2.5,6a: “Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem. Ele se entregou em resgate por todos”. Ele também diz em Efésios 1.7,8: “Nele [em Cristo] temos a redenção, o perdão dos nossos pecados pelo seu sangue, segundo a riqueza da sua graça, que ele fez multiplicar-se para conosco em toda sabedoria e prudência”. Ao mesmo tempo, o artigo solus Christus também rejeita o sacerdotalismo da ICAR, pois nenhum homem pode se interpor na relação entre o fiel e Deus. É certo que podemos orar uns pelos outros. Também pode haver
líderes — apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres —, os quais Deus concede à igreja “tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos para a obra do ministério e para a edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.12,13). No entanto, somos todos sacerdotes ou representantes de Deus, como diz 1Pedro 2.9: “Mas vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. Todos nós temos acesso ao Pai por meio de Cristo somente. Por fim, solus Christus também responde à prática de pedir a santos já falecidos que intercedam por nós perante Deus. Devemos orar uns pelos outros, certamente. É até recomendado, inclusive por Tiago, que se houver alguém enfermo, que os líderes da igreja orem por eles mediante a unção com óleo (Tg 5.14). Todavia, a oração de uns pelos outros não tem o mesmo peso que muitos atribuem a “sacerdotes” constituídos na igreja. Solus Christus, portanto, rejeita a afirmação de Maria como corredentora, o culto aos santos e o sacerdotalismo, que considera padres ou quaisquer outras lideranças religiosas como mediadores da salvação eterna.
SOLA SCRIPTURA Ao afirmarmos as verdades da sola fide, sola gratia e solus Christus, a pergunta que não cala é: Com base em que podemos afirmar que esses solas são verdadeiros? De onde tiramos essas verdades e que autoridade dá fundamento à sua afirmação? Quando alguém diz, por exemplo, que um país está passando por uma crise, quem tem autoridade para dizer isso? Quem pode dizer que o país não está bem? Com que autoridade alguém fala sobre um país ou sobre qualquer outra verdade? Vemos, portanto, que é impossível falar sobre uma verdade sem entrar no mérito de sua fonte. Quem pode dizer se algo é ou não a verdade, afinal? Talvez maior do que a desavença entre Lutero e Roma, no que tange ao artigo sola fide, tenha sido a diferença entre as fontes defendidas como autoridades suficientes para estabelecer o que era ou não a verdade sobre a fé e a prática cristãs. Afinal, em que se apoiavam as crenças sobre o purgatório, o direito do papa de condenar uma alma à perdição ou a concessão de indulgências? E baseado em que Lutero pôde rejeitar essas crenças? Se fé somente, graça somente e Cristo somente são máximas da fé cristã, porque Roma não as afirmava? A resposta diz respeito às fontes de autoridade tidas como infalíveis por Roma. Ela havia colocado em pé de igualdade, de um lado, as Escrituras e, do outro lado, a tradição da Igreja e a interpretação do Magistério17 e do papa, quando falava a partir do trono papal (ou seja, ex cathedra). Uma vez afirmadas certas interpretações da Bíblia por uma dessas autoridades, tais afirmações assumem a mesma força da Escritura Sagrada na tradição católica romana. Tanto Lutero como todos os outros reformadores rejeitaram essas fontes e afirmaram que somente as Escrituras Sagradas são a autoridade absoluta e final na formação de um dogma cristão. Por isso, esse princípio é conhecido como sola Scriptura. A Bíblia é a autoridade máxima e final de fé e prática cristãs. Qualquer outra fonte é subserviente à Bíblia e, portanto, passível de ser questionada. Só a Bíblia é infalível. Só a Bíblia é inerrante. Só a Bíblia é a
Palavra de Deus. E, para ser ainda mais preciso, só a Bíblia — em sua forma original canônica, composta de 66 livros, sem o acréscimo dos livros Apócrifos — é, de fato, Escritura inspirada por Deus (2Tm 3.16,17). Além de afirmar a Bíblia como a única fonte de autoridade infalível, os reformadores afirmaram que todo cristão precisa ter acesso à Bíblia e ser capaz de compreendê-la. É claro que é necessário estudá-la. Isso não quer dizer que qualquer tipo de leitura da Bíblia seja legítima. Os reformadores entenderam a necessidade de preparação teológica para o estudo da Palavra. O próprio Calvino defendia um diálogo, sempre à luz das Escrituras, com a sua época e com os antigos autores cristãos. Ele era perito em literatura patrística,18 a qual estudou a fundo na Universidade de Paris. Nas Institutas, o autor mais citado por Calvino foi Agostinho de Hipona, que viveu no quarto e quinto séculos. Diferentemente de alguns teólogos atuais, que acham que precisam descartar toda a tradição cristã, os reformadores citavam os antigos e tinham suas obras em alta estima; em casos de divergência de interpretação, porém, eles se reportavam à autoridade máxima da Bíblia. Mesmo os mais estudiosos e criteriosos podiam ser questionados. Só a Bíblia é o crivo, o prumo e padrão. Não é de surpreender que a Reforma protestante tenha liberado uma energia espetacular sobre a disciplina de estudos bíblicos, inclusive no que diz respeito a uma retomada das línguas originais (principalmente o grego e o hebraico). Desse interesse e esforço surgiram várias novas traduções ou versões bíblicas nas línguas dos povos da época, a começar pelas de Lutero e Tyndale19 — responsáveis, respectivamente, pelas primeiras traduções das Escrituras para a língua alemã e a inglesa. Daí também surgiu um interesse renovado por comentários bíblicos, inclusive os escritos por Lutero e Calvino. Teologicamente tudo era passível de reformulação, exame ou rejeição. À luz desse único princípio, o sola Scriptura, doutrinas como as do purgatório, a veneração dos santos e de Maria, a infalibilidade do magistério e tantas outras crenças foram abandonadas. Já os antigos credos da fé cristã — o Credo dos Apóstolos, o Credo de Niceia20 e o Credo de Calcedônia 21 — foram reafirmados como fiéis resumos da fé cristã ensinada pelas Escrituras
Sagradas. Alguns até se surpreenderão com o fato de ter sido nessa época que a igreja começou a colocar grande ênfase na formação teológica de todos os seus membros. A partir dessa preocupação surgiram tanto as confissões como os catecismos protestantes, que visavam a definição das doutrinas protestantes bem como sua defesa, mediante a instrução e a preparação dos fiéis por meio do estudo aprofundado das Escrituras. Desde cedo, os líderes da Reforma preocuparam-se em informar e treinar seus membros no estudo da Bíblia e no conhecimento dos contornos de sua fé.
SOLI DEO GLORIA De acordo com o apóstolo Paulo em 1Coríntios 1.26-29: Irmãos, observai o vosso chamado. Não foram chamados muitos sábios, segundo critérios humanos, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas absurdas do mundo para envergonhar os sábios; e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que são nada para reduzir a nada as que são, para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus. Ainda hoje temos pessoas notáveis entre nós. Há mestres cuja contribuição é inegável, cujos talentos são surpreendentes e cuja fé é conhecida por muitos. Antigamente, os monges chamavam uns aos outros de “veneráveis”. Um dos grandes historiadores da igreja foi conhecido como o Venerável Beda.22 Contudo, fora algumas considerações naturais que podemos fazer sobre as virtudes de uns e outros, a glória — isto é, o valor de alguém — nunca se acha na pessoa em si. Todos nós somos apenas pó, meros vasos de barro. Todos nós somos pecadores. Todos os nossos talentos são dádivas de Deus. Todas as nossas realizações são fruto do poder e da graça de Deus. Não fosse por sua infinita misericórdia, não haveria um entre nós que não se autodestruiria. Por isso, tudo o que há de bom, tudo o que há de nobre, tudo o que há de espiritual, em qualquer um de nós, tem sua origem em Deus. Assim, a canonização de alguém, que constitui essa pessoa como um santo separado dos demais, nega o fato de que somos santos pela graça de Deus somente. Como bem expressou Paulo na continuação do texto que citamos anteriormente: “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como está escrito: Quem se gloriar, glorie-se no Senhor” (1Co 1.30,31). Portanto, não podemos enaltecer quem quer que seja sem negarmos, em
última análise, a glória de Deus. Ele é o Criador, o autor de nossa fé, e dele vem tanto o querer como o realizar (Fp 2.12,13). Por isso, o protestante afirma que todos são homens sujeitos às “mesmas paixões”, como Elias (Tg 5.17, ARC). A canonização, seja lá de quem for, é um projeto que atribui a alguém uma qualidade que está acima dos outros. Isso significa tributar-lhe uma espécie de glória que legitimamente pertence somente a Deus. Como já vimos, Deus é soberano, somente ele criou os céus e a terra e conduz a história, fazendo com que tudo coopere para o bem dos que o amam e foram chamados segundo seu propósito (Rm 8.28-30). A soberania de Deus é absolutamente central para o cristão reformado. Seus propósitos são absolutamente preeminentes em todas as nossas considerações. Além do mais, sabemos que tudo o que Deus faz, ele o faz para sua própria honra e glória. Novamente, como Paulo resume bem: “Porque todas as coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém” (Rm 11.36). Nisso Deus confirma sua justiça, pois atribuir glória a qualquer outro seria um ato de idolatria, ação que Deus é incapaz de praticar. Precisamos apenas lembrar que tudo existe para esta finalidade: a glorificação de Deus. Atribuímos toda virtude, todo o bem, todo o poder, toda a glória, toda a majestade a ele somente. Enfim, soli Deo gloria. A afirmação dos cinco solas é fundamental para a cosmovisão protestante e reformada. O pentecostal que está em processo de reforma precisa voltar a essas fontes para melhor entender as bases e as fronteiras de sua fé. Não somos anticatólicos no sentido beligerante. Contudo, não há como negar que, à luz dos cinco solas e das Escrituras Sagradas, reconhecemos no conjunto de crenças e práticas católicas romanas elementos suficientes para considerar a Igreja Romana uma igreja que não é inteiramente cristã. Com isso, temos de reconhecer que não há meios de reconciliar as duas igrejas com base apenas em um suposto “mover” do Espírito. Um católico verdadeiramente cristão virá a ser, no fim, um ex-católico ou, no mínimo, um católico inconformado com sua tradição. Tendo dito isso, reconheço que há muitos que estão na Igreja Romana, mas desconhecem ou não avaliaram pormenorizadamente todas as implicações dos dogmas de Roma. Por isso, creio que muitos deles conhecem a Cristo, nem que seja somente em parte, assim como conhecem
sua própria igreja, mas somente em parte. Nem todos os católicos precisam se converter a Cristo — apesar de muitos carecerem de uma genuína conversão —, mas todos precisam renunciar aos acréscimos da ICAR que representam um evangelho falso e estranho às Escrituras Sagradas. 1 A
palavra “ecumenismo” é utilizada aqui com o sentido de tentativa de compatibilização e unificação das doutrinas das diferentes religiões, conceito este que se distancia do real significado do ecumenismo, qual seja, o diálogo interreligioso, buscando o bem-estar e convivência em sociedade, sem contudo envolver unificação doutrinária e institucional. 2 O texto está disponível na íntegra em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/documents/rc_pc_chrstuni_doc_31101 luth-joint-declaration_po.html, acesso em: 28 mar. 2018. 3 Recentemente, uma declaração de reconciliação entre as duas igrejas foi assinada e celebrada em Lund, na Suécia, em 31 de outubro de 2016, em antecipação da celebração dos quinhentos anos da Reforma protestante. 4 A aproximação recente de segmentos pentecostais com a ICAR tornou-se manchete internacional, após a visita do papa Francisco à Igreja Pentecostal da Reconciliação, liderada pelo pastor Giovanni Traettino, em Caserta, na Itália, em 28 de julho de 2014. Desde então, o mesmo pastor Giovanni capitaneou uma audiência de vários representantes pentecostais com o papa, no Vaticano, em 8 de maio de 2015. Confira: http://br.radiovaticana.va/news/2015/05/08/o_encontro_do_papa_com_pastores_pentecostais/1142696, acesso em: 28 mar. 2018. 5 A Contrarreforma foi um conjunto de medidas da ICAR em resposta ao avanço da Reforma protestante na Europa, durante o século 16. Dentre essas medidas destacaram-se a renovação das antigas ordens monásticas e o surgimento dos jesuítas (vide acima), o Concílio de Trento e a profissão de fé tridentina (vide nota abaixo), o estabelecimento da Inquisição e a criação do Índice dos livros proibidos, além da perseguição ativa aos cristãos protestantes em terras dominadas por regentes leais à Roma. 6 Mario Jorge Bergoglio, o papa Francisco, nascido em 1937, é o 266. o papa da Igreja Romana. É o primeiro papa nascido no continente americano e também o primeiro latino-americano, o primeiro pontífice do hemisfério sul, o primeiro papa a utilizar o nome de Francisco, o primeiro pontífice não europeu em mais de 1.200 anos e também o primeiro papa jesuíta da história. Era arcebispo de Buenos Aires desde 28 de fevereiro de 1998 e foi eleito papa em 13 de março de 2013. 7 Iñigo López (ou Inácio de Loyola, 1491-1556) foi uma das figuras mais proeminentes da Contrarreforma católica ao criar a Companhia de Jesus, cujos discípulos foram chamados “jesuítas”. 8 Walter McAlister, O fim de uma era: um diálogo crítico, franco e aberto sobre a igreja e o mundo dos dias de hoje (Rio de Janeiro: Anno Domini 2012). 9 Para mais detalhes sobre o assunto, consulte o capítulo 4 deste livro. 10 Para uma defesa histórica — mas ainda muito atual — desse ponto, confira a obra de Jonathan Edwards. A verdadeira obra do Espírito: sinais de autenticidade (São Paulo: Vida Nova, 2010). 11 Foi o 19.o Concílio Ecumênico da Igreja Católica, realizado entre 1545 e 1563, em resposta ao crescente movimento da Reforma protestante à época. O Concílio de Trento deu origem à profissão de
fé tridentina que declarou “anátema” ou digno de perdição qualquer um que discordasse dos seguintes pontos cardeais da ICAR: 1) a defesa da tradição cristã, na figura do magistério romano — tendo o papa como seu representante-mor — como autoridade igual às Sagradas Escrituras; 2) o reconhecimento da Vulgata como a tradução oficial das Escrituras, bem como o reconhecimento dos livros apócrifos como canônicos; 3) a rejeição da doutrina protestante da justificação pela fé somente, com essa justificação se dando conjuntamente pela fé e pelas obras; 4) a oficialização dos sete sacramentos da ICAR (i.e. batismo, eucaristia [santa ceia], crisma, penitência, extrema unção, casamento e ordenação); 5) a existência do purgatório; 6) a defesa da prática da invocação aos santos, bem como do uso de imagens, relíquias e a venda de indulgências. 12 Para uma defesa mais aprofundada dos pontos a seguir, com amplo embasamento histórico, teológico e bíblico, além de aplicações atuais, confira a obra de Franklin Ferreira, Pilares da fé: a atualidade da mensagem da Reforma (São Paulo: Vida Nova, 2017). Confira também o excelente ensaio de Michael Horton, Evangélicos, católicos e os obstáculos à unidade (São Paulo: Vida Nova, 2017). 13 Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) foi o idealizador e fundador do atual Estado indiano, e mentor do Satyagraha , o princípio da não agressão como forma de revolução. 14 Doutrina que tem como conclusão a salvação de todos os homens, em todos os tempos e eras, independentemente de sua confissão religiosa. 15 Nas discussões cristológicas dos primeiros concílios ecumênicos surgiu a questão se seria melhor chamar Maria de “mãe de Deus” ou “mãe de Cristo”, visto que se debatia se as naturezas divina e humana de Jesus Cristo foram dissolvidas uma na outra na encarnação do Filho de Deus (conforme defendido por Êutiques de Alexandria) ou se elas permaneceram separadas uma da outra (conforme defendido por Nestório de Antioquia). Os que defendiam a separação das duas naturezas de Cristo advogaram a favor do título “mãe de Cristo” para Maria, enquanto seus opositores, que defendiam a dissolução dessas duas naturezas, defenderam o título “mãe de Deus”. No fim, o Concílio de Calcedônia (451) decidiu pela afirmação da união das duas naturezas de Cristo “sem confusão, sem mudança” e “sem divisão, sem separação”. Para melhor defender a união indissolúvel das naturezas humana e divina em Jesus Cristo, optou-se pelo título “mãe de Deus” para Maria. Ironicamente, tal título foi conferido a ela pela igreja mais para salvaguardar a divindade de Jesus Cristo do que propriamente para enaltecer a figura e a importância de Maria. 16 Apesar de ainda não constar como um dogma oficial da ICAR, vários cardeais e bispos têm solicitado repetidamente à Santa Sé, nas últimas décadas, a inclusão desse dogma entre os demais artigos marianos já reconhecidos pelo Vaticano como dogma oficial, por exemplo: a concepção imaculada de Maria, sua maternidade divina, sua virgindade perpétua e sua assunção aos céus. 17 O Conselho de Interpretação Bíblica e Doutrina do Vaticano. 18 Período inicial da história da igreja que compreende a vida e a obra dos pais da igreja dos primeiros cinco séculos, como Policarpo, Tertuliano e Agostinho, por exemplo. 19 William Tyndale (1484-1536) foi pastor e teólogo inglês, o primeiro a traduzir toda a Bíblia para o inglês moderno, e um importante reformador na Inglaterra. 20 O Credo Niceno é uma profissão de fé adotada pelo Primeiro Concílio Ecumênico que se reuniu na cidade de Niceia da Bitínia (atual İznik, Turquia), em 325, e respondeu ao arianismo, reafirmando a divindade de Cristo em consubstância com o Pai e o Espírito Santo. 21 O Concílio de Calcedônia foi realizado em 451 em uma cidade da Bitínia, na Ásia Menor, em frente a Constantinopla. Foi o quarto dos primeiros sete concílios ecumênicos da história do
cristianismo, no qual foi declarada a dualidade humana e divina de Jesus e repudiada a doutrina de Êutiques relativa ao monofisismo. 22 Beda, o Venerável (673-735) foi um monge inglês, escritor da História eclesiástica do povo inglês, trabalho que lhe rendeu o título de Doutor da história inglesa.
NEM TUDO É CALVINISMO As distinções dentro da teologia reformada Há uma tendência de entender os termos “reformado” e “calvinista” como sinônimos. Até entre reformados e calvinistas é comum ver os termos sendo usados de maneira intercambiável. 1 Para muitos, a distinção é ignorada ou até mesmo negada. Por isso, este capítulo não representará um consenso sobre o que os termos significam. Será uma tentativa de mostrar que não são termos exatamente equivalentes e, sobretudo, que a tradição calvinista-reformada não é, de fato, uma teologia monolítica. Afora as doutrinas de Deus, da graça salvífica e os cinco solas, que examinamos nos últimos capítulos, há no campo calvinista-reformado muitas divergências que merecem nossa atenção. Por exemplo, há pessoas que presumem que todos os reformados são necessariamente cessacionistas, isto é, que todos negam a continuidade de dons espirituais após a era apostólica. Isso, porém, não é verdade. Outros defendem que o termo “reformado” só pode ser aplicado àqueles que creem no pedobatismo, isto é, no batismo infantil. 2 Isso tampouco é verdade, como veremos mais adiante. Entre os mais informados, há quem ache que todo reformado é necessariamente adepto de uma única teologia pactual ou aliancista, apesar de no campo reformado haver distinções dentro dessa leitura pactual da Bíblia. 3 É importante examinar todas essas diferenças para entender a legitimidade do termo “pentecostal reformado”. Pois, se todos os pressupostos acima mencionados forem necessariamente aplicáveis a todos os cristãos reformados, o termo de fato é um oxímoro, uma contradição, e, portanto, inútil. O primeiro esclarecimento a ser feito sobre o termo “reformado” diz respeito ao fato de ele não se aplicar a todos os protestantes. Nem todo protestante é necessariamente um cristão reformado. Lutero foi o pioneiro do que veio a ser conhecido como a Reforma protestante. A teologia reformada,
porém, foi majoritariamente influenciada por João Calvino, que só publicou a primeira edição de suas Institutas dezenove anos após Lutero ter pregado suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, no ano de 1517. Em menos de 25 anos, houve uma ruptura entre os seguidores de Lutero e outros reformadores, principalmente por suas diferenças de convicção no tocante aos sacramentos.4 Historicamente, portanto, luteranos não são reformados nem se consideram como tal, embora estejam entre os herdeiros legítimos da Reforma protestante.5 Não confundamos, portanto, a Reforma protestante com a teologia reformada; não são exatamente a mesma coisa. Dito isso, vamos examinar algumas das áreas nas quais os próprios reformados demonstram diferenças entre si, embora sejam todos membros legítimos da mesma tradição reformada.
CESSACIONISMO A convicção de que os dons espirituais — descritos em Romanos 12.4-8, 1Coríntios 12—14, Efésios 4.11 e 1Pedro 4.10,11 e relatados no livro de Atos dos Apóstolos — cessaram após a geração dos apóstolos é comum entre os reformados.6 Tidos pelos reformados cessacionistas como sinais exclusivos de validação do ministério apostólico e fundamentais para a corroboração da pregação dos apóstolos da igreja primitiva, esses dons supostamente não ocorrem mais. A postura cessacionista tem como defensores mais ferrenhos em nossos dias teólogos como John MacArthur Jr.,7 Steve Lawson8 e Richard Gaffin Jr., 9 que reputam o movimento pentecostal-carismático uma aberração e um abandono da sã doutrina. 10 Contudo, alguns membros do campo reformado mostram-se mais abertos para a possibilidade de certos dons carismáticos ainda se manifestarem em nossos dias, se assim o Espírito desejar concedê-los. Estes, todavia, não demonstram necessariamente uma expectativa de que os dons ainda operem, mas se limitam a reconhecer a soberania de Deus e sua liberdade em fazer o que bem entender.11 Não obstante, ainda dentro do campo reformado, há um terceiro grupo que defende a continuidade dos dons. Teólogos como Wayne Grudem, 12 C. J. Mahaney13 e Sam Storms14 — todos declarados “calvinistas carismáticos” — encorajam a busca e o exercício dos dons espirituais, entre eles o de falar em outras línguas. Claramente, o pentecostal reformado também afirma a continuidade desses dons, com algumas diferenças expressivas das convicções dos pentecostais clássicos, especialmente na questão do dom de línguas como evidência inicial de uma “segunda bênção” ou batismo no Espírito Santo.15 Esse assunto será tratado com mais aprofundamento adiante.16 Contudo, desde já temos de abandonar o pressuposto de que todo aquele que afirma ser um reformado legítimo deve necessariamente negar a continuidade da operação dos dons espirituais, tais como cura divina, profecia ou até mesmo o falar em outras línguas.
MILENARISMO Como veremos logo adiante, existem diferentes convicções dentro da teologia reformada acerca do plano de Deus para o reino milenar de Cristo e a consumação da história (Ap 20.1-10). Entretanto, existe uma convicção básica e fundamental à teologia reformada que a distingue de uma importante e influente escola de interpretação escatológica dentro do pentecostalismo clássico: o pré-milenarismo dispensacionalista ou, simplesmente, dispensacionalismo.17 Enquanto esta última escola de pensamento defende a distinção absoluta entre o povo de Israel e a igreja — duas entidades distintas com propósitos distintos dentro do plano redentivo de Deus —, a teologia reformada defende a continuidade dos propósitos de Deus entre Israel, no Antigo Testamento, e a igreja, no Novo, representando não dois povos distintos, mas um único povo de Deus ao longo da história. Diferentemente do que pode parecer para muitos, o que distingue o dispensacionalismo — tão influente entre pentecostais — não é a divisão da história em dispensações. Afinal de contas, todos os cristãos reconhecem a progressão e o desenvolvimento do plano de Deus ao longo das diferentes épocas da história. O que torna o dispensacionalismo único é sua divisão da história a partir de um dualismo redentivo que enxerga Israel e a igreja como dois povos distintos, com propósitos distintos na agenda de Deus. 18 De forma bastante resumida e simplificada, o dispensacionalismo parte do pressuposto de que as promessas feitas a Israel, no Antigo Testamento, de um reino terreno, geográfico, social e político são eternas e incondicionais. Assim, Deus constituiu o povo de Israel como mediador das bênçãos do Senhor às nações mediante sua posse da Lei Mosaica, aliado a todo o sistema sacrificial centrado no Templo em Jerusalém, cuja observação traria bênçãos de natureza social, política e econômica à toda a terra. Segundo o dispensacionalismo, uma vez que tais promessas jamais foram literalmente cumpridas em sua totalidade, elas ainda aguardam cumprimento no futuro. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Deus ofertou o cumprimento
dessas promessas a seu povo escolhido, mas a rejeição de tal oferta pelos udeus resultou na postergação de seu cumprimento. A partir de então, a oferta de outro reino — não terreno, mas espiritual — foi entregue a outro povo, a igreja, que representa uma espécie de “parêntese” nos propósitos redentivos de Deus. Após ter cumprido seu propósito para a igreja nesta terra e tê-la reunido para si, por meio do arrebatamento espiritual — antes, durante ou depois de um grande período de tribulação que antecederá a volta de Cristo — Deus, enfim, cumprirá suas promessas pactuais ao povo de Israel em um reino milenar terreno, centrado no Templo restaurado em Jerusalém e no domínio geopolítico do povo escolhido sobre a terra. As demais escolas de interpretação escatológica 19 — o pré-milenarismo histórico, o pós-milenarismo e o amilenarismo —, todas bem representadas na tradição reformada,20 têm em comum a mesma rejeição do dualismo redentivo do dispensacionalismo, ao afirmarem que existe um único povo de Deus ao longo da história. Segundo essas diferentes escolas, esse único povo consiste nos eleitos de Deus espalhados pelas diferentes épocas da história humana. Na época do Antigo Testamento, tal grupo consistia basicamente no povo étnico de Israel e naqueles membros de outros povos que foram incluídos neste povo por meio da mesma fé no Deus de Abraão, Isaque e Jacó e da observação da Lei Mosaica. Desde o chamado de Abraão — o “pai” da nação de Israel — e a entrega da Lei a Moisés até a época de Cristo, esse povo organizou-se dentro das fronteiras étnicas e geográficas do povo de Israel. Contudo, a partir de Cristo, esses elementos étnicos, sociais e geográficos foram removidos para incluir a igreja, composta de judeus e gentios unidos pela fé no mesmo Senhor e Redentor. Como essas escolas divergentes do dispensacionalismo entendem, porém, as promessas feitas a Israel no Antigo Testamento acerca de uma descendência numerosa, uma terra fértil e próspera, além de um reino soberano sobre as demais nações da terra? Segundo essas correntes, as promessas concernentes ao reino vindouro do Messias prometido a Israel não foram postergadas nem deixaram de ser cumpridas na primeira vinda de Cristo. Ele mesmo veio anunciando a chegada do reino de Deus em seu ministério terreno (Mt 3.2, 4.17,23, 10.7; Mc 1.14,15; Lc 4.43, 10.9).
Contudo, diferente das expectativas dos judeus do primeiro século, que aguardavam um Messias do tipo libertador nacional e algoz militar de seus opressores políticos, Cristo veio como um Messias do tipo Servo Sofredor, para libertar seu povo de seus principais algozes — o pecado, a morte, Satanás e o mundo (Mt 16.13-28). O reino prometido, de fato, foi inaugurado na primeira vinda de Cristo, embora ainda aguarde sua consumação em sua segunda vinda. Portanto, o reino prometido de Deus tem dois grandes momentos na história: um cumprimento na primeira vinda e uma consumação na segunda vinda. Em seu cumprimento inicial na primeira vinda, o reino manifestou-se no presente de forma espiritual; mas, em sua consumação na segunda vinda, ele será manifesto com poder e glória. O mais importante em tudo isso é que, diferentemente do que ensina o dispensacionalismo, nada foi postergado no tocante às promessas feitas ao povo de Israel. Deus jamais teve a intenção de ofertar um reino terreno e nacional ao povo de Israel na primeira vinda de Cristo, que, uma vez rejeitado, foi postergado para uma era por vir, resultando na oferta presente do reino espiritual à igreja. Seu plano sempre foi oferecer um reino espiritual na vinda de Cristo a todos os que nele cressem — muitos deles judeus convertidos ao evangelho, dentre os quais os primeiros discípulos e apóstolos —, para depois consumar esse reino numa dimensão gloriosa e terrena no futuro.21 Portanto, os críticos do dispensacionalismo sustentam uma visão comum da igreja como o verdadeiro Israel de Deus. Uma vez que muitos judeus responderam com fé à mensagem pregada por Cristo de um reino espiritual, eles formaram o remanescente fiel ou o núcleo do povo de Deus reconstituído pelo Senhor Jesus, a saber, a igreja. Logo, a igreja não existe em oposição a Israel, mas em continuidade com os propósitos de Deus para aquela nação. Como mostra claramente o Novo Testamento, há somente um povo de Deus, uma “oliveira”, uma nação escolhida, representada por aqueles que creem no senhorio de Jesus Cristo, sejam eles de origem judaica ou gentílica (Rm 11; Ef 2.11-22; Gl 3.16-29; 1Pe 2.4-10). Todas as bênçãos de Deus a Israel no Antigo Testamento são aplicadas à igreja no Novo Testamento, pois ela é a “semente de Abraão”, a “circuncisão”, o “sacerdócio real” e a “nação santa”
(Gl 3.16; Fp 3.1-3; 1Pe 2.9,10). As diferenças entre as diversas correntes escatológicas presentes na teologia reformada e contrárias ao dispensacionalismo dizem respeito, principalmente, à interpretação da consumação do reino de Deus na história. Uma vez que ainda resta a consumação do reino de Deus de maneira visível e terrena, como isso acontecerá? De forma figurada e simbólica ou de forma literal? É nesse ponto que moram as divergências entre os pós-milenaristas, os pré-milenaristas históricos e os amilenaristas. Segundo os defensores do pós-milenarismo, essa manifestação pendente do reino de Deus na história acontecerá principalmente de forma espiritual, no coração das pessoas. Logo, o reino de Deus faz-se patente já nesta era presente e de forma visível, por meio do testemunho da igreja. Ou seja, o reino faz-se presente de maneira espiritual e real sempre que o evangelho é pregado e pessoas rendem-se à soberania de Cristo. Somente quando esse reino estiver presente em toda a sua plenitude sobre a terra, avançando de forma gradual até o fim da história, é que Cristo voltará. 22 A marca distintiva dessa escola, portanto, é o otimismo quanto ao sucesso do reino de Deus na presente era, por meio da influência abrangente e crescente do evangelho e do testemunho da igreja, que se manifesta tanto em sua influência espiritual como em seu testemunho público e visível sobre a terra. 23 Segundo os pré-milenaristas históricos, por mais que a igreja possa exercer alguma influência espiritual sobre a sociedade deste lado da eternidade, isso não configura ainda o reino milenar final prometido pelo Senhor a ser estabelecido na terra, após a volta de Cristo. 24 Diferente do prémilenarismo dispensacionalista, porém, o pré-milenarismo histórico não entende esse reino vindouro como algo de natureza essencialmente judaica sob a administração da Lei Mosaica e a restauração do culto no Templo. O reino milenar vindouro abrangerá todo o povo de Deus — tanto crentes de origem judaica como de origem gentílica — reunido sob o senhorio de Cristo, até que ele estabeleça os novos céus e a nova terra (Ap 21 e 22). Por fim, os amilenaristas argumentam que o reino milenar de Cristo já foi inaugurado de forma simbólica e espiritual na primeira vinda de Cristo e será
consumado em sua segunda vinda. Ou seja, segundo o amilenarismo, existe sim um reino milenar, mas de natureza simbólica e espiritual já presente na vida da igreja, entre a primeira e a segunda vinda. Por um lado, embora os pós-milenaristas creiam em algo semelhante, os amilenaristas não compartilham do mesmo otimismo quanto à influência abrangente e profunda do evangelho por toda a sociedade humana. Em outras palavras, acreditam que o reino de Cristo e o reino deste mundo conviverão em tensão até a segunda vinda, sem que exista nenhuma “era semidourada” para a igreja antes da volta de Cristo. Por outro lado, enquanto os pré-milenaristas defendem um reino visível e terreno de Cristo entre a segunda vinda e a ressurreição dos mortos, o juízo final e a eternidade, os amilenaristas não veem a necessidade disso, visto que o reino já foi inaugurado de forma espiritual na primeira vinda, e está aguardando tão somente sua consumação visível e terrena na segunda vinda. Logo, os amilenaristas creem no cumprimento literal das promessas de Deus quanto à consumação de um reino terreno nos novos céus e nova terra — ou seja, na eternidade, logo após Cristo voltar.25 Em suma, não existe uma única alternativa de interpretação escatológica para um cristão reformado, quanto menos para um pentecostal reformado. É possível ser um pentecostal reformado de linha amilenarista, pós-milenarista ou pré-milenarista histórica. Contudo, como já vimos, à luz da convicção em comum dessas escolas quanto à continuidade dos propósitos redentivos de Deus para Israel e a igreja, creio que seja incompatível para um pentecostal reformado identificar-se com a escola dispensacionalista. 26
GOVERNO DA IGREJA De modo geral, os reformados levam muito a sério a organização da igreja local. Contudo, não há unanimidade quanto à forma de governo de uma igreja reformada. Historicamente, há três formas de governo praticadas pelos reformados. A primeira, e talvez a mais conhecida, é o governo presbiteriano.27 Esse modelo de governo provém diretamente dos ensinamentos e dos exemplos de Calvino, tendo sido desenvolvido e aplicado em Genebra. Atualmente há muitas vertentes do presbiterianismo ao redor do mundo, e todas observam o governo de cunho parlamentarista desenvolvido por Calvino. O modelo presbiteriano de governo ganhou maior notoriedade fora de Genebra, graças aos esforços de um dos discípulos de Calvino, John Knox, fundador do presbiterianismo na Escócia, no século 16. 28 Tal modelo ganhou maior expressão, porém, mediante seu reconhecimento oficial na Assembleia de Westminster,29 no século 17. Essa é, portanto, uma tradição rica e que tem sido um esteio de defesa do evangelho por quase cinco séculos. Líderes e teólogos como Timothy Keller, R. C. Sproul, Hernandes Dias Lopes30 e Augustus Nicodemus são todos da linha mais historicamente fiel ao presbiterianismo. Contudo, podemos perceber que há alas reformadas que se organizaram de forma congregacional.31 Essa também é uma forma de governo que teve seus representantes na Assembleia de Westminster — mesmo que em menor número — e que pratica a condução democrática da congregação, mediante a assembleia dos membros da igreja. Todos os membros efetivos têm direito, por meio de eleições gerais e diretas, de escolher seus pastores e diáconos e definir os rumos da congregação. Muitas igrejas de origem reformada — como as batistas32 e as congregacionais33 — seguem esse tipo de governo. Atualmente as igrejas batistas reformadas são representantes dessa vertente, com destaque a um de seus líderes mais conhecidos, John Piper. No Brasil, há batistas reformados como Franklin Ferreira, 34 Jonas Madureira,35 Wilson Porte36 e muitos outros.
Há uma terceira forma de governo também representada dentro da tradição reformada. Trata-se do governo episcopal.37 Ao contrário de um governo formado por aclamação popular — e, portanto, democrático —, este último modelo é um governo regido pelo prelado — ou seja, por bispos. Significativamente, defensores desse modelo de governo estiveram presentes na mesma Assembleia de Westminster, junto com outros puritanos de convicção presbiteriana, batista e congregacional. Contudo, o episcopalismo dentro da tradição reformada encontrou sua maior expressão na Igreja Anglicana. Hoje, podemos citar muitos autores influentes da tradição reformada oriundos do episcopalismo anglicano, como Alister McGrath, 38 John Stott39 e J. I. Packer. 40 A Aliança das Igrejas Cristãs Nova Vida, da qual sou bispo primaz, estruturou-se de maneira episcopal em 1976, antes mesmo de abraçar as doutrinas da graça. Inicialmente, os contornos do governo da Nova Vida não eram bem definidos, pois ainda dependiam muito de um modelo de governo vindo da Missão Fé Apostólica — oriunda do movimento pentecostalcarismático da rua Azusa — e muito comum entre igrejas pentecostais independentes. Esse modelo de governo afirma a soberania da igreja local debaixo de seu fundador, que é líder vitalício da igreja. Logo, o episcopado foi uma adaptação difícil e confusa no caso da Nova Vida, só achando solução no início da década de 1990, após o falecimento do meu pai, o bispo Roberto McAlister, fundador de nossa denominação. Como seu sucessor, reconhecido inclusive pelos demais membros do Colégio de Bispos, redefini os contornos da denominação como uma aliança voluntária de igrejas independentes que reconhecem o bispo primaz como pastor da congregação ministerial. Como tal, tenho a responsabilidade de liderar, ordenar, admitir ou excluir membros dessa congregação e velar pela doutrina e ética de seus membros, com o auxílio dos demais bispos, membros do Colégio Episcopal.41 Nesse modelo, cada pastor é responsável por sua igreja local, mas reconhece o pastoreio do Primaz e, ao fazê-lo, compromete-se a firmar uma aliança de cunho teológico, ético e financeiro, que é renovada anualmente.42 É um episcopado incomum, mas que ainda se pauta pelo princípio de a autoridade ser algo que vem “de cima para baixo” e não “de
baixo para cima”, por assim dizer. Esse modelo de governo caminha na contramão da via democrática. Tudo isso é necessário para dizer que o conceito de pentecostal reformado não encontra expressão em uma única forma de governo da igreja. É perfeitamente plausível que, dentro dessa tradição doutrinária, haja igrejas sendo governadas de formas diferentes, segundo um dos modelos anteriormente mencionados.
A IGREJA E A POLÍTICA Assim como não existe uma única linha escatológica dentro do campo calvinista-reformado, tampouco existe uma única resposta dessa tradição quanto à extensão e aos limites do envolvimento da igreja com a vida pública e política. Contudo, há dentro dessa tradição alguns princípios comuns a respeito do engajamento civil da igreja que merecem nossa atenção. Tanto por convicção teológica como por prática histórica, a tradição calvinista-reformada é unânime em sua visão positiva acerca do envolvimento cívico e público da igreja.43 Dentre os pilares de sustentação dessa visão, podemos destacar: o conceito bíblico do mandato cultural, o entendimento das “esferas de soberania”, a crença na graça comum e a busca pela glória de Deus em todas as áreas da vida. Primeiramente, desde Calvino, os o s reformados têm enfatizado a importância do mandato cultural, conforme expressado na ordem de Deus ao primeiro casal para serem férteis, multiplicarem-se e dominarem a terra (Gn 1.28). Entende-se por isso que Deus ordenou à raça humana que ela não apenas cuidasse da ordem criada, mas também a cultivasse em obediência a seu Criador (Gn 2.15). Desse mandato originou-se a ideia correlata de que Deus é soberano sobre todas as diferentes esferas da vida cotidiana — a família, a igreja, o trabalho e a sociedade civil e política — e que ele deve ser reconhecido e obedecido em cada uma dessas áreas. A partir da entrada do pecado no mundo, cada uma dessas esferas foi corrompida e deturpada pela rebeldia do ser humano. Entretanto, graças a uma provisão especial da graça de Deus — isto é, a graça comum, distinta da graça salvífica tanto por seu escopo mais abrangente quanto por sua eficácia limitada à preservação da ordem decaída44 —, o Senhor ainda mantém um mínimo de ordem social e moral neste mundo, agindo de forma soberana e providente, mesmo no coração dos não regenerados, para que o mundo não caia em um caos absoluto (Rm 2.14,15). Por meio do testemunho da igreja — isto é, daqueles que foram alcançados pela graça salvífica e redentora — Deus ordena que
seus filhos mantenham uma presença fiel neste mundo, agindo em cada uma das esferas da vida cotidiana, inclusive nas esferas civil e política, para a glória de seu nome (1Co 10.31). Essa visão positiva do engajamento cristão na vida civil e política é um das características distintivas da tradição calvinista-reformada, como bem descreveu H. Richard Niebuhr em seu famoso tratado Cristo e a cultura.45 Especificamente, tal ênfase é bastante diferente daquela de muitos evangélicos contemporâneos — inclusive de muitos pentecostais — que enxergam a vida pública e política como “carnal”, “mundana” e “secular”, dissociada da vida espiritual voltada para o cultivo da devoção e santificação pessoal.46 Contudo, tal dicotomia da vida cristã não é possível nem desejável, segundo uma ótica reformada. Como bem expressado por Abraham Kuyper — um dos maiores expoentes da visão calvinista quanto ao engajamento social e político cristão — não existe um só canto do universo que não pertença a Deus.47 Todo o universo criado e toda a sociedade humana existem para glorificar a Deus. Portanto, confiante na soberania do Senhor e dependente de sua graça, todo cristão deve exercer uma mordomia e um testemunho fiel neste mundo, em todas as esferas da vida — na educação, no comércio, no lar e na política também —, confiando os resultados de seu esforço e trabalho ao Senhor. Dito isso, cabe observar que na tradição reformada não existe um modelo ou fórmula única para o engajamento cristão da sociedade. Ao olhar para a história da igreja, encontramos diversos modelos e experiências resultantes das convicções da visão reformada, com resultados bastante diferentes: desde as consequências terríveis da imposição do governo puritano na Inglaterra, sob a regência de Oliver Cromwell, no século 17; até os esforços valorosos de outros puritanos ao colonizarem a Nova Inglaterra e formarem todo um continente sob uma forte ética protestante; passando pelas propostas congregacionais de Thomas Chalmers, na Igreja Livre da Escócia, com o intuito de aliviar a pobreza e promover a educação dos marginalizados por meio da agência das igrejas locais; chegando à formação de um partido político conservador e a condução da Holanda sob a regência do primeiroministro Abraham Kuyper, no início do século 20. 48
Nem todos os cristãos reformados foram igualmente politizados, apesar de todos compartilharem dos mesmos pressupostos teológicos. Logo, é possível compartilhar desses pressupostos sem, contudo, concordarmos sobre todas as maneiras possíveis e desejáveis de exercer nosso papel cívico e cristão neste mundo.49 Entretanto, alguns outros cuidados importantes devem ser tomados por pentecostais que tomam contato com esses pressupostos reformados. Primeiro, temos que diferenciar o papel da igreja enquanto instituição de seu testemunho coletivo por meio dos membros espalhados pela sociedade. Como bem defenderam os pais da Reforma, as marcas da verdadeira igreja são a correta pregação da Palavra de Deus, a correta celebração dos sacramentos e a prática da disciplina eclesiástica. Enquanto igreja reunida, devemos nos concentrar em nossas atribuições únicas ligadas ao ministério da Palavra de Deus, sem atrelar nosso testemunho à defesa de uma ideologia política, a um programa de governo e, muito menos, a uma candidatura político-partidária. Pessoalmente, como já afirmei em outros lugares, creio que seja incompatível para um ministro do evangelho exercer simultaneamente o ofício pastoral e um cargo político, como se tornou costume em muitos círculos pentecostais. 50 Contudo, não vejo impedimento para a atuação social, civil e política dos membros da igreja como forma de testemunho cristão em uma sociedade carente de referências éticas e morais sadias. Segundo, temos que nos resguardar de todo utopismo social e político.51 Nenhuma geração de cristãos reformados, muito menos a nossa, conseguiu ou conseguirá salvar o mundo. Por mais que possamos exercer alguma influência benéfica e saudável sobre nossa sociedade, mediante nosso engajamento ponderado e alicerçado nos preceitos da Palavra de Deus, não podemos confiar mais nisso do que no poder transformador da proclamação do evangelho. Em outras palavras, o reino de Deus não será estabelecido na terra por meios políticos. Somente Cristo, por meio de seu glorioso evangelho, pode salvar o ser humano de sua mazela espiritual e somente ele tem poder e autoridade para renovar todo o universo criado e a sociedade humana, quando ele estabelecer os novos céus e a nova terra em sua segunda vinda (Ap 21 e 22). Tal realismo cristão, contudo, não deve servir de
desculpa para um pessimismo cultural e uma preocupação exclusiva com a vida espiritual, resultando na negligência de nossa vida civil e pública. Em suma, devemos estar vigilantes tanto no tocante ao otimismo quanto ao pessimismo, primando por um realismo cristão. 52 Como bem resumiu Martyn Lloyd-Jones: A falta de um interesse político e social da parte dos cristãos pode alienar definitivamente as pessoas do evangelho e da igreja. […] O cristão deve agir como um cidadão e cumprir sua parte na política e em outras questões, a fim de ter as melhores condições possíveis. Mas precisamos sempre lembrar que política é a ‘arte do possível’; por isso, o cristão deve lembrar, quando começa, que ele só pode conseguir o possível. E, porque ele é um cristão, tem de trabalhar em favor do melhor possível e contentarse com aquilo que é menos do que plenamente cristão. 53 Essa discussão superficial pelo menos deixa algumas coisas claras. Primeiro, como já disse antes, a teologia reformada não é monolítica. Nem todos os reformados são cessacionistas, pós-milenaristas, presbiterianos e igualmente politizados. Segundo, justamente por isso, creio que a dialética entre a cosmovisão reformada e o imaginário social pentecostal pode abrir um leque de muitas possibilidades que, entre si, podem render um diálogo sadio e de benefício mútuo. Terceiro, dito isso, considero que existam algumas outras doutrinas pontuais que, por força da dialética, precisam ser esclarecidas, pois dizem respeito ao que creio ser inegociável debaixo da rubrica pentecostal-reformado. Mas, antes de prosseguirmos para essas doutrinas pontuais, passemos para mais um ponto crucial entre os reformados: a leitura aliancista da Bíblia. 1 Confira,
por exemplo, Hermisten Maia, Fundamentos da teologia reformada (São Paulo: Mundo Cristão, 2007), p. 9. Contudo, como o próprio autor reconhece, o termo “reformado” ainda é preferível ao termo “calvinista”, visto que a teologia reformada, como veremos adiante, não se resume apenas aos ensinamentos de João Calvino, apesar de sua enorme influência sobre o pensamento reformado. Nesse sentido, confira Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica (São Paulo: Shedd Publicações, 2005), p. 99.
2 O
pedobatismo afirma que a Bíblia orienta a aplicação do sacramento do batismo nas águas a bebês e crianças de pais cristãos sob o fundamento da teologia pactual ou aliancista, que defende a exata correspondência entre o sinal da circuncisão no Antigo Testamento e o sinal do batismo no Novo Testamento. Para mais conteúdo sobre esse assunto, confira o capítulo 9 deste livro. 3 O assunto da teologia do pacto será tratado mais a fundo no próximo capítulo. 4 A ruptura inicial deu-se pelo embate entre Martinho Lutero e Ulrico Zuínglio acerca da interpretação do sacramento da santa ceia. Lutero cria que o corpo e o sangue de Cristo eram acrescentados aos elementos do pão e do vinho no momento da consagração da ceia, entendimento esse conhecido como consubstanciação, que se diferenciava da visão Católica Romana da transubstanciação transubstanciação — isto é, a transformação real dos elementos do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. Já Zuínglio cria na santa ceia como um simples memorial da morte de Cristo, desprovido de qualquer presença física de Cristo. Calvino ensinou uma visão intermediária, pleiteando a real presença espiritual de Cristo na ceia. Mesmo assim, tal entendimento não foi suficiente para evitar o cisma entre cristãos luteranos e “calvinistas” ou “reformados”. 5 Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica (São Paulo: Shedd Publicações, 2005), p. 98-100. 6 É importante notar o quanto essa posição histórica foi fortemente influenciada pela reação de vários dos principais reformadores — incluindo Lutero e Calvino — aos extremos cometidos por uma ala radical da Reforma, os anabatistas. Dentre esse grupo surgiram alguns mestres que se diziam “inspirados” e autorizados pelo Espírito Santo para acrescentar revelações ao cânon das Escrituras Sagradas — daí a forte resposta dos demais grupos da Reforma protestante em negar não só a possibilidade de tal revelação, como também qualquer manifestação carismática semelhante a manifestações dos tempos dos apóstolos. Até hoje, o receio entre muitos reformados de que o reconhecimento de qualquer palavra profética ou dom de profecia ameace a integridade e a finalidade da autoridade das Sagradas Escrituras é uma das causas principais da defesa do cessacionismo. Para uma crítica bíblica, teológica, histórica e pastoral dessa posição, confira especialmente os livros de Sam Storms, Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral (São Paulo: Vida Nova, 2016), D. A. Carson, A manifestação do Espírito: a contemporaneidade contemporaneidade do dons à luz de 1Coríntios 12—14 (São Paulo: Vida Nova, 2013) e Max Turner, The Holy Spirit and spiritual gifts: in the New Testament Church and today (Grand Rapids: Baker Academic, 1997). 7 John Fullerton MacArthur Jr., nascido em 1939, é um teólogo americano, pastor da Grace Community Church, em Sun Valley, na Califórnia, e apresentador do programa de rádio Grace for You . Autor de aproximadamente 30 livros, é também presidente do The Master’s Seminary, em Los Angeles, na Califórnia. 8 Steven J. Lawson, nascido em 1951, é um teólogo americano, pastor na Christ Fellowship Baptist Church, em Mobile, Alabama, por mais de 25 anos, presidente do Ministério New Reformation, professor de pregação e diretor do The Master’s Seminary, em Los Angeles, Califórnia. 9 Para uma defesa acadêmica do cessacionismo, confira seu capítulo em Wayne Grudem, org., Cessaram os dons espirituais? 4 pontos de vista (São Paulo: Vida, 2003), p. 23-98. 10 Tal afirmação foi defendida na Strange Fire Conference, realizada em outubro de 2013, pelo ministério Grace to You, presidida por John MacArthur Jr. 11 Tome, por exemplo, a afirmação do teólogo reformado cessacionista cessacionista Michael Horton: “a despeito do uso que o Espírito ainda possa fazer deles em sua maravilhosa liberdade, os dons de sinais de cura, línguas e profecia já não são o padrão” ( Redescobrindo o Espírito Santo Santo [São Paulo: Vida Nova, 2018],
p. 238). 12 Wayne Grudem, nascido em 1948, é um teólogo americano, pesquisador de teologia e Bíblia pelo Phoenix Seminary e autor de diversas obras influentes no mundo evangélico, entre elas sua Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2011). 13 Charles Joseph (C. J.) Mahaney, nascido em 1953, é um teólogo americano, fundador de Sovereign Grace Churches — uma família de igrejas de confissão calvinista continuacionista —, pastor da igreja Sovereign Grace Chuch, em Louisville, Kentucky, e um dos membros fundadores da conferência de pastores Together for the Gospel, nos EUA. 14 C. Samuel Storms, nascido em 1951, é um teólogo americano, pastor da Bridgeway Church, em Oklahoma City, Oklahoma e, autor de diversos livros de linha calvinista carismática. 15 Para uma defesa atual e recente desse entendimento pentecostal clássico, confira a obra de Robert Menzies, Pentecostes: essa história é a nossa história (Rio de Janeiro: CPAD, 2016). 16 Trataremos mais dessa questão no capítulo 10. 17 Segundo essa escola de interpretação bíblica, as Escrituras não podem ser lidas corretamente sem o reconhecimento de certas “eras” ou “dispensações” nos propósitos redentivos de Deus para a humanidade. Todos os adeptos dessa corrente reconhecem ao menos três dispensações: 1) o período antecedente ao Pentecostes (a era da aliança mosaica); 2) o período entre o Pentecostes e a volta de Cristo (a era da igreja); 3) o período entre a volta de Cristo e a eternidade (o “milênio”). Dispensacionalistas clássicos, influenciados pelo fundador dessa escola — John Nelson Darby (18001882) — reconhecem mais quatro “eras”, totalizando assim sete dispensações: 1) da Criação à Queda (dispensação da inocência); 2) da Queda até Noé (dispensação da consciência); 3) de Noé até Babel (dispensação do governo humano); 4) de Abraão até Moisés (dispensação da promessa); 5) de Moisés até Jesus (dispensação da Lei); 6) de Pentecostes até o arrebatamento (dispensação da graça); 7) o milênio (dispensação do reino). 18 Uma variação recente dessa escola — o dispensacionalismo progressivo, representado por autores como Craig Blaising e Darrel Bock, além de pregadores influentes como John MacArthur Jr. — distanciou-se do dispensacionalismo clássico ao enxergar uma certa dose de continuidade entre Israel e a igreja, o que, na prática, representa uma ruptura com o ponto fulcral de todo o sistema dispensacionalista. 19 Ramo da teologia destinado ao estudo do fim dos tempos e da consumação dos propósitos de Deus para a História. 20 Para uma apresentação aprofundada de cada uma dessas escolas, confira Darrell Bock, org., O milênio: 3 pontos de vista (São Paulo: Vida, 2005). 21 Para uma defesa mais detalhada desses pontos, confira especialmente os livros de George Eldon Ladd, O evangelho do reino: estudos bíblicos sobre o reino de Deus (São Paulo: Vida Nova, 2008) e sua Teologia do Novo Testamento (São Paulo: Hagnos, 2003). 22 Daí o termo “pós-milenarismo”, ou seja, o retorno de Cristo após o estabelecimento do reino milenar de Deus sobre a terra. 23 Apesar de contar com uma grande representatividade de intérpretes ao longo da tradição reformada — especialmente entre os puritanos — tal escola perdeu grande parte de seu apoio após os reveses morais e espirituais das grandes guerras mundiais do século 20, abrindo espaço para interpretações escatológicas alternativas, como o pré-milenarismo histórico e o amilenarismo. 24 Daí o termo “pré-milenarismo”, ou seja, o retorno de Cristo antes do estabelecimento do reino milenar de Deus sobre a terra.
25 Confira mais a esse respeito na obra
de Anthony Hoekema, A Bíblia e o futuro, 3. ed. (São Paulo:
Cultura Cristã, 2013). 26 Para uma avaliação crítica de cada uma das quatro correntes de interpretação escatológica apresentadas aqui, com uma defesa contundente e persuasiva da posição amilenarista, confira a excelente obra de Sam Storms, Kingdom come: the amillennial alternative (Cornwell: Mentor, 2013). 27 Sistema de governo em que a liderança é exercida por um grupo representativo de membros da igreja local, os presbíteros. 28 John Knox (1514-1572) foi um teólogo e pastor escocês que liderou a Reforma em seu país e influenciou toda a geração seguinte de pregadores britânicos. 29 Convocada pelo parlamento britânico, em 1643, contou com aproximadamente 120 pastores e teólogos, tendo como principal resultado a Confissão de Fé de Westminster, conhecida e seguida até os dias de hoje por diversas vertentes do movimento reformado. 30 Hernandes Dias Lopes, nascido em 1962, é pastor e teólogo brasileiro, líder por mais de 30 anos na Igreja Presbiteriana de Vitória, no Espírito Santo. É autor de mais de 100 livros, e suas pregações têm influenciado muitas lideranças no país, tanto no ramo reformado quanto no pentecostal. 31 O sistema de governo congregacional envolve toda a membresia da igreja nas deliberações e decisões da congregação, diferente do modelo parlamentar presbiteriano, que concentra essas ações na figura representativa dos presbíteros. 32 Originariamente organizadas em torno da Confissão Batista de Londres de 1689, de cunho calvinista-reformado. 33 Originariamente organizadas em torno da Declaração de Savoy de 1658, também de cunho calvinista-reformado. 34 Franklin Ferreira é pastor e escritor batista, diretor e professor do Seminário Martin Bucer, bem como consultor acadêmico de Edições Vida Nova. 35 Jonas Madureira é pastor, teólogo e filósofo batista e consultor de Edições Vida Nova. É ainda conferencista e professor em diversos locais do país. 36 Wilson Porte Jr. é pastor batista brasileiro, líder da Igreja Batista Liberdade, em Araraquara, São Paulo, e professor no Seminário Martin Bucer. 37 Sistema de governo baseado na supervisão dos bispos sobre as igrejas. Para uma defesa histórica, bíblica e teológica desse modelo de governo, confira a obra de Michael Ramsey, The gospel and the Catholic Church (Peabody: Hendrickson, 1999). 38 Alister McGrath, nascido em 1953, é teólogo anglicano, apologista e professor de Teologia, Religião e Cultura na King’s College, em Londres. É autor de diversos livros, incluindo vários títulos sobre o pensamento reformado ( Origens intelectuais da Reforma [São Paulo: Cultura Cristã, 2007] e O ensamento da Reforma [São Paulo: Cultura Cristã, 2014]) e sobre figuras proeminentes da Reforma protestante ( A vida de João Calvino [São Paulo: Cultura Cristã, 2004]). 39 John Robert Walmsley Stott (1921-2011) foi um teólogo e pastor britânico, líder da All Souls Church por mais de 50 anos. Por sua liderança no Congresso Mundial de Evangelização, em 1974 (e o consequente documento oriundo do evento, o Pacto de Lausanne), a influência de seus mais de 40 livros escritos e a fundação do ministério Langham Partnership, é considerado um dos teólogos mais influentes da igreja no século 20. A Revista Time, em uma edição do ano de 2005, considerou John Stott como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo no século 20. Você pode consultar tal indicação a seguir: http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1972656_1972717_1974108,00.html,
acesso em: 28 mar. 2018. 40 James Innell Packer, nascido em 1926, é teólogo britânico, professor no Regent College, em Vancouver, Canadá. Foi editor da revista Christianity Today e membro de comissão de novas traduções da Bíblia, além de ter escrito diversos livros e comentários bíblicos. 41 Para um relato mais pormenorizado sobre o fundador da ICNV e a mudança de rumos desde seu falecimento, confira meu livro Neopentecostalismo: a história não contada. Quem foi Roberto McAlister, conhecido como o pai desse movimento (Rio de Janeiro: Anno Domini, 2012). 42 Para mais informações: http://icnv.com.br 43 Ray Pennings, “Serviço Político para Deus”, in: Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2010), p. 380; Valdeci dos Santos, “Quem é realmente reformado? Relembrando os conceitos básicos da fé reformada”, Fides reformata XI, n. 2 (2006): 121-48. 44 Para uma discussão mais detalhada do conceito da graça comum, confira o artigo de Arley Preto Gomes, “A ação graciosa de Deus sobre a vida dos não eleitos como efeito colateral da obra redentora reformata de Cristo”, Fides XII, n. 2 (2007): 9-25, disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_XII__2007__2/arley.pdf, acesso em: 29 mar. 2018. 45 Nessa obra de 1951, Niebuhr avalia cinco modelos históricos de interação entre a igreja e a cultura ou a sociedade humana: 1) Cristo contra a cultura; 2) o Cristo da cultura; 3) Cristo acima da cultura; 4) Cristo e a cultura em paradoxo; 5) Cristo transformando a cultura. O quinto modelo é melhor defendido, segundo o autor, pela tradição calvinista-reformada. A obra em questão está disponível online em: http://www.metodistavilaisabel.org.br/docs/Cristo-e-Cultura-de-Richard-Niebuhr.pdf, acesso em: 29 mar. 2018. Para uma releitura do paradigma proposto por Niebuhr, consulte a obra de D. A. Carson, Cristo e cultura: uma releitura (São Paulo: Vida Nova, 2012). Para outras obras importantes acerca do assunto a partir de uma perspectiva reformada, confira: Cornelius Plantinga Jr., O crente no mundo de Deus: uma visão cristã da fé, da educação e da vida (São Paulo: Cultura Cristã, 2008); Michael Horton, O cristão e a cultura (São Paulo: Cultura Cristã, 1998); Henry R. Van Til, O conceito calvinista de cultura (São Paulo: Cultura Cristã, 2010); P. Andrew Sandlin, Cultura cristã: uma introdução (Brasília: Monergismo, 2016). 46 Segundo John MacArthur Jr., o ativismo político cristão é fortemente desaconselhado visto que: 1) denigre a soberania de Deus nos acontecimentos e na história humana, 2) promove valores bíblicos na cultura usando meios carnais e egoístas, 3) cria um falso senso de moralidade e 4) arrisca alienar os incrédulos por categorizá-los como inimigos políticos. (cf. Ray Pennings, “Serviço político para Deus”, in: Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus [São José dos Campos: Fiel, 2010], p. 383-4). 47 Confira a exposição plena que Kuyper faz da cosmovisão calvinista-reformada em seu livro Calvinismo, 2. ed. (São Paulo: Cultura Cristã, 2015). 48 Para uma melhor descrição e avaliação de cada um desses personagens e momentos da história, confira Ray Pennings, “Serviço Político para Deus”, in: Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2010), p. 386-8. 49 Para um relato interessante da nova cara do pentecostalismo global e seu engajamento na sociedade, confira Donald E. Miller; Tetsunao Yamamori, Global Pentecostalism: the new face o Christian social engagement (Los Angeles: University of California Press, 2007). 50 Walter McAlister, O fim de uma era: um diálogo crítico, franco e aberto sobre a igreja e o mundo dos dias de hoje (Rio de Janeiro: Anno Domini 2009), p. 107-36. 51 Confira Franklin Ferreira, Contra a idolatria do Estado: o papel do cristão na política (São
Paulo: Vida Nova, 2016). 52 Tal realismo cristão está respaldado pela convicção reformada apresentada anteriormente acerca do cumprimento e da consumação do reino de Deus na história. Ou seja, não nos desesperamos neste mundo e tampouco nos rendemos ao pessimismo, pois Cristo já veio inaugurar o reino de Deus na terra, representado especialmente pela presença e pelo testemunho da igreja neste mundo. Contudo, tampouco nos vangloriamos como igreja neste mundo ou nos rendemos ao otimismo, pois Cristo ainda não veio consumar seu reino. Para mais conteúdo a esse respeito, confira o capítulo “Culture and eschatology”, in: R. Michael Allen, Reformed theology (New York: T&T Clark, 2010). 53 Citado em Ray Pennings, “Serviço Político para Deus”, in: Joel Beeke, Vivendo para a glória de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2010), p. 384-5. Para uma apresentação acessível e mais aprofundada do assunto, confira o livro de Wayne Grudem; Barry Asmus, Economia e política na cosmovisão cristã: contribuições para uma teologia evangélica (São Paulo: Vida Nova, 2016).
A HERMENÊUTICA REFORMADA Nossa leitura das Escrituras Sagradas como um todo A igreja tem as Escrituras Sagradas como fundamento. Há, paradoxalmente, algumas seitas que também se reportam à Bíblia para suas doutrinas e crenças. Entre os cristãos, há várias escolas teológicas, cada uma com sua maneira de interpretar a Bíblia. Portanto, sua leitura e interpretação nascem de uma orientação fundamental que serve de lente pela qual as Escrituras são lidas. Essa lente se chama hermenêutica. Como exemplo, vejamos alguns pressupostos do dispensacionalismo. Segundo essa escola, a Bíblia deve ser interpretada literalmente. Cada número e cada imagem deve ser compreendida como algo concreto. Mil anos são literalmente mil anos. Uma marca na mão e na testa deve ser compreendida como uma espécie de tatuagem. Sete dias da criação são literalmente sete períodos de 24 horas. O trono de Deus é literalmente um assento celestial. Nessa mesma linha de interpretação, Israel é literalmente o povo de Deus que receberá a herança de um reino terreno e Jesus voltará para reinar no trono de Davi, na cidade de Jerusalém. As promessas feitas a Abraão serão cumpridas de maneira literal e física. A igreja, porém, não faz parte dessas promessas; ela é, portanto, um povo à parte, pois suas promessas são espirituais, e não literais e físicas. Seu destino e sua herança são diferentes. Assim, essa hermenêutica dispensacionalista norteia a leitura da Bíblia inteira; ela integra o que os dispensacionalistas veem como a espinha dorsal da Bíblia.1
A HERMENÊUTICA REFORMADA E A LEITURA PACTUAL DAS ESCRITURAS Sob esse aspecto, é relevante entendermos a importância da estrutura. Pense nos animais, por exemplo. Cada um tem uma estrutura diferente, embora as partes que a compõem possam ser bem parecidas com as de outros animais. Os mamíferos, por exemplo, têm órgãos semelhantes em geral. Mas o que nos ajuda a diferenciar uns dos outros é sua forma, especialmente sua estrutura óssea. Pelos esqueletos encontrados em explorações arqueológicas, cientistas identificam os vários tipos de dinossauros. Sua estrutura faz com que seja possível identificar as partes encontradas e entender como estas se relacionam a outras partes de seu corpo. Assim também, para entender as partes da Bíblia e como cada uma se relaciona às outras, temos de ter uma noção de sua estrutura, de seu “esqueleto”, por assim dizer. Temos de discernir a espinha dorsal da Bíblia. Cada livro seria uma vértebra dessa espinha dorsal, uma parte de um todo. 2 Isso é verdade porque a Bíblia é um livro único, composto por 66 partes. Todas as partes têm um único autor e, consequentemente, um fio condutor único. Esse fio condutor é o plano da redenção, que tem seu ápice e cumprimento na pessoa de Jesus Cristo. Foi na estrada de Emaús que Jesus afirmou isso. Após sua ressurreição, ele encontrou dois discípulos arrasados. Quando falavam de sua tristeza, ele respondeu: Ó tolos, que demorais a crer no coração em tudo o que os profetas disseram! Acaso o Cristo não tinha de sofrer essas coisas e entrar na sua glória? E, começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a seu respeito em todas as Escrituras (Lc 24.25b-27). Toda a Escritura aponta para Jesus Cristo. A Bíblia é a história da salvação em Cristo Jesus. Mas essa história não começou com sua encarnação. Começou na criação e no jardim do Éden. Foi no jardim que Deus começou a
mostrar seu propósito para a criação, tanto para a natureza como para aquele que ele colocou como vice-regente de tudo o que criou. Ele criou esse viceregente à sua imagem e semelhança (Gn 1.27). Essa expressão fala de um relacionamento sacerdotal. Adão foi posto num jardim que servia não só como morada, mas também como templo — um lugar onde Deus seria adorado. Sabemos disso pelo que Paulo falou em Romanos 1. Mas o homem rejeitou Deus e deixou de glorificá-lo. Veja a descrição da queda em Romanos 1.20-23: Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas, de modo que esses homens são indesculpáveis; porque, mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e substituíram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao homem corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis. Deus fez do homem seu adorador e vice-regente na terra, 3 a quem cabia multiplicar-se, ocupar a terra e dominá-la (Gn 1.28). Vemos isso claramente ao constatarmos que Adão deu nome aos animais. Dar nomes é um sinal de regência: assim como Deus mudou o destino de Abrão e lhe deu o nome de Abraão; ou como Jesus deu o nome a Pedro, que antes era chamado Simão Barjonas. Determinar o nome de algo ou alguém é um ato típico de um soberano, de um regente.4 Adão, o sacerdote de Deus, deveria reger toda a terra sob a regência do Criador. A Queda, portanto, resultou na sujeição de toda a criação à escravidão. Foi isso que Paulo afirmou em Romanos 8.19-21: Pois a criação aguarda ansiosamente a revelação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à inutilidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria
criação seja libertada do cativeiro da degeneração, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
O relacionamento entre Deus e Adão no jardim é conhecido como aliança adâmica.5 A violação dessa aliança deu início a uma série de alianças que progressivamente revelaram o plano de Deus — conhecidas como a antiga aliança — e culminaram na nova aliança, que tem sua conclusão na redenção de todas as coisas nos novos céus e nova terra (Ap 21 e 22). Sob a ótica da hermenêutica reformada, a espinha dorsal da Bíblia, portanto, consiste nessa história aliancista ou pactual.6 Cada etapa mostra a progressão dos planos de Deus por meio das alianças estabelecidas entre ele e sua criação, particularmente sua criação especial, a raça humana. Se entendermos esse princípio, entenderemos como as diferentes partes se relacionam com o enredo maior da Bíblia.7 De forma bastante resumida, vamos fazer um voo panorâmico pelas principais alianças registradas na Bíblia. 8 A primeira, como já mencionamos, foi celebrada com Adão, embora a palavra “aliança” não tenha sido usada até a segunda aliança, que Deus fez com Noé. 9 Este foi uma espécie de sucessor de Adão, recebendo de Deus instruções e deveres semelhantes. Veja o que diz Gênesis 6.17,18: Porque estou trazendo o dilúvio sobre a terra, para destruir de debaixo do céu todo ser em que há fôlego de vida; tudo o que há na terra expirará. Mas estabelecerei contigo a minha aliança; tu entrarás na arca, e contigo, teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos. Em seguida, como sabemos, a terra foi destruída pelas águas. Após as águas recuarem, Deus voltou a falar com Noé e lhe disse: Sai da arca, juntamente com tua mulher, teus filhos e as mulheres de teus filhos. Traze para fora todos os animais que estão contigo, de toda criatura, tanto aves como grandes animais, e todo animal rastejante que se arrasta sobre a terra, para que nela se reproduzam, frutifiquem e se multipliquem (Gn 8.16,17). Notavelmente, essas palavras são uma reedição do que Deus ordenou ao
primeiro casal no Éden (Gn 1.28). Contudo, há um elemento a mais no relato de Noé. Em Gênesis 9.1-3 lemos: Deus abençoou Noé e seus filhos; e disse-lhes: Frutificai, multiplicai-vos e enchei a terra. Todo animal da terra, toda ave do céu, tudo o que rasteja sobre a terra e todos os peixes do mar terão medo e pavor de vós; são entregues nas vossas mãos. Tudo quanto se move e vive vos servirá de alimento, bem como a planta verde; eu vos dei tudo. Observe nas palavras de Deus a Noé a presença de uma bênção, de ordens e também de certos direitos, assim como nas palavras ditas a Adão. A bênção sempre acompanha a aliança de Deus com seus representantes humanos. Toda aliança compreende também certas responsabilidades, assim como certos direitos. Contudo, sabemos que a maldade do homem não terminou com o Dilúvio. Noé se embriagou e assim se sujeitou à natureza que Deus lhe ordenara que sujeitasse. Com isso, o pecado surgiu em sua própria família, levando-o a amaldiçoar sua descendência por meio de seu filho Cam, pai de Canaã (Gn 9.18-28). Eles não obedeceram a Deus e não se espalharam; ao contrário, ficaram todos num lugar somente e ergueram uma torre para trazer glória ao próprio nome. Em Babel, Deus teve de confundir suas línguas e forçá-los a se espalharem por toda a terra (Gn 11.1-9). Deus celebrou sua próxima aliança com Abrão. Novamente, vemos a questão da fecundidade em jogo. Ao contrário de Adão e Noé, Abrão e Sarai eram estéreis. Deus teve de abençoá-los para que tivessem filhos. Ao firmar uma aliança com Abrão, Deus revisitou seu plano original. Ele lhe prometeu uma terra, uma descendência e domínio, em forma de bênção e maldição (Gn 12.1-3). Vejamos os termos dessa aliança em Gênesis 17.4-14: Quanto a mim, esta é a minha aliança contigo: serás pai de muitas nações; não serás mais chamado Abrão, mas o teu nome será Abraão, pois te coloquei por pai de muitas nações; eu te farei frutificar imensamente; de ti farei nações, e reis procederão de ti. Firmarei minha aliança contigo e
com tua descendência, como aliança perpétua em suas futuras gerações, para ser o teu Deus e o Deus da tua descendência. Darei a terra das tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, a ti e à tua futura descendência, como propriedade perpétua; e serei o Deus deles . E Deus também disse a
Abraão: Quanto a ti, guardarás minha aliança, tu e tua futura descendência por suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim, vós e tua futura descendência: todo aquele do sexo masculino dentre vós será circuncidado. Fareis a circuncisão na pele do prepúcio; este será o sinal da aliança entre mim e vós. Com a idade de oito dias, todo menino dentre vós será circuncidado, por todas as vossas gerações, incluindo o servo nascido em casa e o comprado por dinheiro de algum estrangeiro, que não for da tua linhagem. De fato, o servo nascido em tua casa e o comprado por dinheiro serão circuncidados; assim a minha aliança estará na vossa carne como aliança perpétua. Mas quem for incircunciso, quem não tiver sido circuncidado na pele do prepúcio, será extirpado de seu povo, pois violou a minha aliança. Em seguida, após Abraão mostrar-se disposto a sacrificar o filho da promessa, Isaque, Deus lhe falou novamente, confirmando sua aliança: Por mim mesmo jurei, diz o S ENHOR, porque fizeste isso e não me negaste teu filho, teu único filho, que com certeza te abençoarei e multiplicarei grandemente a tua descendência, como as estrelas do céu e como a areia na praia do mar; e a tua descendência dominará a cidade dos seus inimigos; e todas as nações da terra serão abençoadas por meio da tua descendência, pois obedeceste à minha voz (Gn 22.16-18). Portanto, a bênção se estenderia a todos os povos da terra. Já vemos sinais de que a descendência de Abraão faz referência a todos os povos, não apenas à sua família biológica, isto é, à sua linhagem de sangue. Isso ecoa depois em Paulo, que chamou Abraão o “pai de todos os que creem” tanto dos circuncisos quanto dos incircuncisos (Rm 4.11-16; Gl 3.6-14). Os descendentes de Abraão se multiplicaram. Sabemos que o neto de
Abraão, Jacó, teve doze filhos e que eles foram forçados a descer para o Egito onde, ao longo de quatrocentos anos, tornaram-se um povo numeroso que foi escravizado pelos egípcios. Deus levantou Moisés para ser seu libertador e levá-los para a terra que havia prometido ao patriarca Abraão. Conhecemos a história do confronto com o faraó e da libertação milagrosa que Deus operou. O povo de Israel saiu do Egito e foi guiado até o monte Sinai. Foi no Sinai que a aliança com os descendentes de Abraão assumiu novos contornos. Ali, Deus celebrou uma aliança com a família escolhida, que se tornara uma nação. E essa aliança compreendia novas leis que a regeriam. Após quatrocentos anos no Egito, esse povo tinha se tornado excessivamente idólatra. Eles tinham que voltar a cultuar o único e verdadeiro Deus. Suas vidas teriam que ser regradas de ponta a ponta. Teriam de aprender a obedecer e a cultuar o único e verdadeiro Deus em todos os detalhes de sua vida. Entra em cena a aliança mosaica. Receberam, portanto, a Lei de Deus. As “dez palavras” — como ficaram conhecidos os Dez Mandamentos (Êx 20.1-23; Dt 5.1-22) — serviriam de base desta Lei e das demais que viriam a formar sua estrutura legal cívica e cúltica. De dias de trabalho e descanso a termos de retribuição por ofensas pessoais, até normas a serem seguidas na petição por perdão, tudo seria regulamentado pela Lei. Além do mais, Deus habitaria entre eles — primeiro em um tabernáculo, depois em um templo. Assim, Deus apontou o caminho de volta para ele. E o povo então seria numeroso, abençoado e uma bênção para todos os povos da terra (Êx 19.4-6). Contudo, o povo acabou fazendo o que bem queria. O livro de Juízes relata como o povo se perdeu e como o pecado acabou pondo fora tudo o que Deus lhes dera na Terra Prometida (Jz 2.6—3.6). Eles seguiram outros deuses e foram subjugados pelas nações vizinhas. Atendendo ao pedido deles, Deus lhes deu um rei para conduzi-los e para ser um instrumento de bênção, tanto para eles como para todos os povos da terra. Deus celebra, então, uma aliança com o rei Davi, seu servo. Davi foi um homem segundo o coração de Deus e por ele escolhido para um propósito singular. Após consolidar seu reinado, Davi desejou erguer um templo, uma morada para que Deus habitasse no meio de seu povo. A
resposta de Deus encontra-se em 2Samuel 7.1-17. Nesse capítulo, Deus prometeu fazer da “casa” de Davi um reinado eterno. Além disso, prometeu que um descendente dele seria rei para sempre. Ou seja, a aliança feita com Abraão e regulamentada na aliança com Moisés e o povo de Israel agora seria regida por um rei, da linhagem de Davi, que governaria para todo sempre. Desde o início dessa história, Deus prometera que um dia viria o “descendente” ou a “semente” da mulher que feriria a cabeça da serpente, Satanás (Gn 3.15). Essa promessa aponta para a restauração da regência de toda a terra, que jaz no poder do maligno. Em Abraão, temos o pai da fé que creu em Deus e isso lhe foi creditado como justiça (Gn 15.6; Rm 4.3; Gl 3.6). No Sinai, temos a orientação ao povo de Deus sobre como viverem na Terra Prometida sob a Lei de Deus. Mas a lei que foi dada a esse povo seria somente um tutor, até que viesse aquele que é perfeito. Isso fica claro em Gálatas 3.23-25: Mas, antes que viesse a fé, éramos mantidos debaixo da lei, nela confinados para a fé que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso guia para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, tendo chegado a fé, já não estamos sujeitos a esse guia.
Por isso mesmo, o Concílio de Jerusalém não pôde impor sobre os novos cristãos nem sequer a circuncisão,10 tampouco a observância do Sábado11 — elementos-chave da antiga aliança celebrada com Abraão e Moisés (Gn 17.12-14; Êx 31.12-17; At 15.1-35). Essas coisas serviram apenas de tutor e de sombras de Cristo (Cl 2.11,12,16,17). Agora vigora uma nova lei — a lei de Cristo (1Co 9.21), com muitos pontos de semelhança com a Lei de Moisés, mas com alguns pontos importantes de dessemelhança 12 —, pois vivemos debaixo da nova aliança. Essa aliança foi prometida desde Jeremias 31.31-34: Dias virão, diz o S ENHOR, em que farei uma nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Ela não será como a aliança que fiz com seus
pais, quando os peguei pela mão para tirá-los da terra do Egito, pois eles quebraram a minha aliança, mesmo sendo eu o senhor deles, diz o SENHOR. Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o S ENHOR: Porei a minha lei na sua mente e a escreverei no seu coração. Eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E não ensinarão mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhecei o S ENHOR; porque todos me conhecerão, do mais pobre ao mais rico, diz o S ENHOR. Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados.
Quem faz parte, portanto, desse povo? Somente os que conhecem o Senhor e cujos pecados foram perdoados por ele. Nossa justiça foi assegurada pelos méritos de Cristo, não pelos nossos méritos, pois nenhum pecador é capaz de cumprir toda a lei de Deus. Como diz Gálatas 2.17-21: Mas se, procurando ser justificados em Cristo, nós mesmos também fomos encontrados pecadores, seria por acaso Cristo ministro do pecado? De modo nenhum. Ora, se reconstruo aquilo que destruí, demonstro que sou transgressor. Pois, pela lei, eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo. Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Assim, não cancelo a graça de Deus; pois, se a justiça vem por meio da lei, então Cristo morreu inutilmente. Em suma, a nova aliança é a aliança completa. Somos um povo, filhos de Abraão pela fé, comprados com o sangue de Cristo, que nos justificou e nos livrou das exigências da Lei de Moisés. Contudo, tendo cumprido essas exigências em nosso lugar, Cristo nos manda viver pela lei que ele mesmo escreveu em nosso coração (1Co 7.19; 9.20,21; Rm 8.3,4; Gl 5.6; 6.15). Podemos viver de qualquer maneira? De modo nenhum. Paulo responde a isso claramente. Em Romanos 7.7-20, ele deixa claro que a lei é perfeita, apesar de sermos incapazes de cumpri-la por nós mesmos. Em Cristo, porém,
não há mais condenação, pois ele nos livra da lei do pecado para vivermos em novidade de vida, pelo poder do Espírito Santo (Rm 8.1-4). Vivemos pelo poder dele, que vai nos lapidando e nos aperfeiçoando. Um dia Cristo voltará e, então, seremos transformados como num piscar de olhos e seremos como ele é (1Co 15.35-58; 1Jo 3.2,3). O pecado, a tentação e a morte terão sido lançados no lago de fogo eterno para sempre (Ap 20.7—22.21).
CONCLUSÃO Com essa breve síntese, podemos ver claramente que a história da Bíblia é uma só. A Bíblia não é composta por uma série de épocas ou dispensações desconexas. Não se trata de várias histórias, mas de uma só. Do início ao fim, Deus revela seu poder, sua graça e seus propósitos. Tudo achará sua conclusão na redenção de todas as coisas, quando Jesus Cristo retornar com poder e glória à terra para inaugurar os novos céus e a nova terra. Ele mesmo proclamou e inaugurou o reino de Deus. Sua regência foi sinalizada primeiro por meio de Adão, que fracassou. Ela continuou por meio de um homem, Abraão, e de seus descendentes, o povo de Israel, que também fracassaram. Em Davi, Deus estabeleceu um rei segundo seu propósito para abençoar seu povo e, por meio deste povo, todos os povos da terra. Contudo, a antiga aliança só se consumou na nova aliança em Jesus Cristo, o verdadeiro Rei, perfeito e eterno. Quando João Batista começou seu ministério, sua mensagem foi absolutamente coerente com a expectativa do restante da Bíblia: “Arrependei-vos, porque o reino do céu chegou” (Mt 3.2). Esse reino englobaria o mundo todo. Os filhos do reino — inseridos na aliança pela graça mediante a fé em Cristo, o Rei prometido — seriam os novos corregentes com o novo e eterno Rei, Jesus Cristo. As alianças bíblicas encontram conclusão e manifestação plena em Cristo somente. Como bem concluiu o autor aos Hebreus: “Por isso, recebendo um reino inabalável, sejamos gratos e, dessa forma, adoremos a Deus de forma que lhe seja agradável, com reverência e temor” (Hb 12.28). 13 Assim, essa visão da estrutura da Bíblia é fundamental para sua boa interpretação e, portanto, para a formulação da sã doutrina. É um assunto muito mais complexo do que este capítulo descreve. Por isso nos limitamos apenas a contar a história das Escrituras de forma panorâmica. O entendimento da espinha dorsal da Bíblia fundamenta uma série de considerações doutrinárias, como o papel das leis veterotestamentárias em nossos dias — que diz respeito, por exemplo, à prática da circuncisão e à
guarda do Sábado, que já mencionamos —, além da questão do batismo nas águas, que examinaremos mais a fundo logo em seguida. 1 Para
uma descrição mais aprofundada das implicações da hermenêutica dispensacionalista para o campo da escatologia, confira o capítulo 7 desta obra. 2 Discernir esse relacionamento é o assunto da disciplina da teologia bíblica, termo que diz respeito ao estudo de cada parte da Bíblia à luz e no contexto do todo. Isso é diferente do estudo da teologia sistemática, que é uma teologia regida por categorias próprias. A teologia sistemática busca responder o que a Bíblia diz sobre vários temas, como Deus, o homem, a salvação, a igreja etc. A teologia bíblica procura deixar a Bíblia falar “nos seus próprios termos”. Ou seja, em vez de levar perguntas para a Bíblia e fazer com que ela as responda, o campo da teologia bíblica tenta ver quais as perguntas que a própria Bíblia faz e como ela as responde. Isso requer sensibilidade à estrutura do texto, a suas formas literárias e aos elementos que apontam para sua coerência interna e sua metanarrativa. Para mais a esse respeito, confira a obra de D. A. Carson, Teologia bíblica ou teologia sistemática: unidade e diversidade no Novo Testamento , 2. ed. (São Paulo: Vida Nova, 2008). 3 Para uma elaboração desse tema, confira a obra de G. K. Beale, Você se torna aquilo que adora: uma teologia bíblica da idolatria (São Paulo: Vida Nova, 2014). 4 Outro exemplo seria a mudança de nome de Daniel e de seus amigos na Babilônia pelo rei Nabucodonosor, Nabucodonosor, conforme relatado em Daniel 1. 5 Alternativamente conhecido na tradição reformada como pacto natural ou pacto das obras, em contrapartida ao pacto da graça, que o sucedeu após a Queda. Para uma apresentação inicial a essas categorias, com boa fundamentação bíblica e histórica, confira os artigos de Mauro Meister, “Uma breve introdução ao estudo do pacto (I)”, Fides Reformata III, n. 1 (1998), e, “Uma breve introdução ao estudo do pacto (II)”, Fides Reformata IV, n. 1 (1999). Disponíveis em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedo http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUM ra/CPAJ/revista/VOLUME_III__1998_ E_III__1998__1/uma_breve… _1/uma_breve… acesso em: 29 mar. 2018); http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedo http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUM ra/CPAJ/revista/VOLUME_IV__1999__ E_IV__1999__1/Mauro.pdf, 1/Mauro.pdf, acesso em: 29 mar. 2018. 6 Segundo John Hesselink, citado por R. Michael Allen, “Teologia reformada é teologia pactual”, ou seja, é a tentativa de interpretar as Escrituras Sagradas à luz do tema central e dominante do pacto. Confira o capítulo “Covenant” em Allen, Reformed theology (New York: T&T Clark, 2010). Para um estudo mais aprofundado das alianças a partir de uma ótica reformada, confira as obras de Michael Horton, O Deus da promessa: introdução à teologia da aliança (São Paulo: Cultura Cristã, 2010); O. Palmer Robertson, Alianças (São Paulo: Cultura Cristã, 2010) e O Cristo dos pactos (São Paulo: Cultura Cristã, 2002); Geerhardus Vos, Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos (São Paulo: Cultura Cristã, 2010); Gerard Van Groningen, Criação e consumação: o reino, a aliança e o mediador (São Paulo: Cultura Cristã, 2002, 2006, 2008), vols. 1-3. 7 Essa não é uma questão secundária, como pode parecer à primeira vista. Foi uma preocupação desde o início da igreja. Isso fica claro quando vemos as questões que surgiram no Concílio de Jerusalém, quando os líderes daquela igreja se depararam com o fato de gentios se converterem a Cristo (At 15.1-35). Enquanto a igreja era composta de judeus e prosélitos, não havia dúvida sobre as fronteiras do povo da aliança. Todos se reuniam diariamente no templo e de casa em casa (At 2.42-47). Todavia, quando o evangelho chegou aos gentios, os novos membros do povo de Deus não eram mais
circuncidados, não observavam mais o Sábado, nem as leis cerimoniais. Comiam alimentos impuros e não lavavam as mãos cerimonialmente antes de sentar à mesa. O que fazer com estes? Será que para fazer parte do povo de Deus não precisavam observar as antigas leis de Israel? Quando a questão chegou a Jerusalém e aos apóstolos, tiveram de definir o que seria um verdadeiro cristão e quais seriam as exigências que teriam de observar. Em Atos 15.5, vemos a objeção dos judaizantes: “É necessário circuncidá-los e exigir deles que obedeçam à Lei de Moisés”. Essa é uma referência à aliança feita entre Deus e seu povo no monte Sinai. A questão é simples: essa aliança ainda vigora para os que estão em Cristo? A resposta vem em Atos 15.8-11: E Deus, que conhece os corações, testemunhou a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo, assim como a nós; e não fez distinção alguma entre eles e nós, purificando-lhes o coração pela fé. Agora, por que quereis colocar Deus à prova, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar? Pelo contrário, cremos que somos salvos pela graça do Senhor Jesus, do mesmo modo que eles. O concílio se limitou a dizer, conforme registrado em Atos 15.19,20: Por isso, penso que não se deve perturbar os que dentre os gentios se convertem a Deus, mas escrever a eles que se abstenham das contaminações dos ídolos, da imoralidade, da carne de animais sufocados e do sangue. Por isso Paulo pôde dizer em Colossenses 2.16: “Assim, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa de dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados”. O sábado não é mais uma obrigação do povo de Deus. Aqui vemos um problema que nem sempre é óbvio à primeira vista. A observância do sábado faz parte dos Dez Mandamentos. Dentro da teologia aliancista (ou pactual) tradicional, os Dez Mandamentos são eternos, pois resumem a lei moral de Deus. Na teologia pactual, existe uma distinção entre a lei moral e eterna de Deus (os Dez Mandamentos), a lei cultual (ou cerimonial) e a lei cívica, cumpridas por Cristo, tendo sido as duas últimas também abolidas por ele. Mas, após a primeira vinda, vemos a própria lei “eterna” cumprida e consumada em Jesus Cristo (Mt. 5.17). Para mais conteúdo a esse respeito, confira o importante capítulo “Progressive covenantalism and the doing of ethics”, in: Stephen Wellum; Brent E. Parker, Progressive covenantalism: charting a course between dispensational and covenant theologies (Wheaton: Crossway, 2016), p. 215-33. 8 O resumo a seguir acompanha de perto o raciocínio desenvolvido por Stephen Wellum e Peter Gentry em seu livro Kingdom through covenant: a biblical-theological understanding of the covenants (Wheaton: Crossway, 2012), lançado em versão condensada: God’s kingdom through God’s covenants: a concise biblical theology (Wheaton: Crossway, 2015). A obra em questão faz uma releitura da teologia reformada pactual tradicional, defendendo uma via media entre o pactualismo reformado e o dispensacionalismo — isto é, uma espécie de “aliancismo ou pactualismo progressivo”. Para mais sobre essa releitura bíblica, teológica e histórica, confira também a obra editada por Stephen Wellum; Brent E. Parker, Progressive covenantalism: charting a course between dispensational and covenant theologies (Wheaton: Crossway, 2016). 9 Confira, porém, a referência explícita à aliança adâmica em Oseias 6.7: “Eles, porém, a exemplo de Adão, transgrediram a aliança; nisso eles me traíram”. 10 Sobre a descontinuidade da circuncisão e sua relação com o sinal do batismo nas águas, confira o capítulo 9. 11 Sobre a descontinuidade do Sábado e sua relação com o domingo, confira a obra organizada por
D. A. Carson, Do Shabbath para o Dia do Senhor (São Paulo: Cultura Cristã, 2006). 12 Enquanto o dispensacionalismo tradicional argumenta que nenhuma parte da lei mosaica aplica-se à igreja, a não ser aquilo que foi explicitamente ensinado por Cristo a seus discípulos, e o pactualismo reformado tradicional ensina que toda a lei mosaica aplica-se à igreja, salvo aquilo que foi explicitamente abolido por Cristo, o pactualismo progressivo ensina que toda a lei acha seu cumprimento e objetivo final em Cristo e que toda ela deve ser interpretada e aplicada a nós pela lente da obra redentora do Calvário, o que acarreta tanto em continuidade como em descontinuidade entre a Lei de Moisés e a lei de Cristo. Nesse sentido, confira o importante capítulo, “Progressive covenantalism and the doing of ethics”, in: Stephen Wellum; Brent E. Parker, Progressive covenantalism: charting a course between dispensational and covenant theologies (Wheaton: Crossway, 2016), p. 215-33. 13 Para uma excelente apresentação do desenvolvimento do tema do reino de Deus como um elemento unificador das etapas da revelação progressiva do plano da redenção nas Escrituras, confira a obra de Graeme Goldsworthy, Introdução à teologia bíblica: o desenvolvimento do evangelho em toda a Escritura (São Paulo: Vida Nova, 2018).
EM DEFESA DO CREDOBATISMO REFORMADO Quem é membro do povo da nova aliança? Ao lermos o enredo das Escrituras Sagradas como um todo, sob a ótica das alianças bíblicas, esbarramos com as seguintes perguntas: “Quem é membro do povo da nova aliança em Cristo Jesus? Somente os discípulos professos de Jesus ou os filhos recém-nascidos desses discípulos também? Por conseguinte, quem deve receber o sinal de membresia no povo da nova aliança: somente aqueles discípulos professos de Cristo ou seus filhos recémnascidos também?”. A resposta a essas perguntas é fundamental para nossa definição do que vem a ser um pentecostal reformado.
UMA DISCUSSÃO HISTÓRICA É possível defender o credobatismo — a prática do batismo exclusivamente para os discípulos professos de Jesus Cristo — e ainda assim identificar-se como pentecostal reformado ou até mesmo como cristão reformado?1 A ulgar por um rápido exame das principais confissões e dos catecismos reformados dos séculos 16 e 17, aparentemente tal conciliação é impossível. As respostas do Catecismo de Heidelberg (1563) e do Breve Catecismo de Westminster (1647), reproduzidas abaixo,2 são representativas da convicção majoritária da tradição reformada no sentido da validade e da normatividade do batismo de crianças recém-nascidas de pais cristãos (isto é, do pedobatismo).3 P. 74: As crianças pequenas também devem ser batizadas? R.: Sim, elas devem, porque as crianças, assim como os adultos, estão
incluídas na aliança e na igreja de Deus; e, desde que a redenção do pecado pelo sangue de Cristo e pelo Espírito Santo, o autor da fé, são prometidos a elas não menos quanto aos adultos, elas devem, portanto, ser batizadas, também ser admitidas na Igreja Cristã e ser distinguidas dos filhos dos incrédulos, como era feito no Antigo Testamento pela circuncisão, em lugar da qual o batismo foi instituído na nova aliança (Catecismo de Heidelberg). P. 95: A quem o batismo deve ser ministrado? R.: O batismo não deve ser ministrado àqueles que estão fora da igreja
visível enquanto eles não professarem sua fé em Cristo e obediência a ele, mas os filhos daqueles que são membros da igreja visível devem ser batizados (Breve Catecismo de Westminster). Apesar desse consenso, uma voz discordante destaca-se por sua fidelidade às doutrinas centrais da teologia reformada e sua defesa contundente do credobatismo: a Primeira e a Segunda Confissões de Fé Batista,
respectivamente de 1646 e 1677 (posteriormente reconhecidas de maneira mais ampla em 1689).4 Redigidas pelos representantes batistas do puritanismo — movimento dissidente da Igreja Anglicana fortemente influenciado pela teologia de João Calvino —, tais confissões defendem unanimemente que: O batismo é uma ordenança do Novo Testamento, dada por Cristo, que deve ser dispensado a pessoas que professam a fé ou que são feitas discípulos; estas, depois da profissão de fé, devem ser batizadas e depois devem participar da ceia do Senhor. 5 Em virtude de tal precedente, seria ao menos possível defender historicamente a posição credobatista reformada. Contudo, ao divergir da convicção majoritária da tradição reformada pedobatista e de sua interpretação da continuidade dos sinais dos pactos entre a antiga e a nova aliança, será que a posição defendida pelas confissões batistas supracitadas ainda pode ser considerada reformada?6 A verdade é que não existe uma resposta única a essa pergunta oriunda da tradição reformada. Entretanto, é extremamente relevante notar a posição adotada pela Fraternidade Reformada Mundial (World Reformed Fellowship) — coligação de centenas de milhares de cristãos, igrejas, denominações e organizações cristãs, espalhadas por todo o mundo, que subscrevem às doutrinas centrais da Reforma protestante. Em sua declaração de fé, redigida em 31 de março de 2011 e ratificada na 4.a Assembleia Geral, realizada na cidade de São Paulo, em 26 de março de 2015, a referida fraternidade procurou resumir os principais pontos de convergência doutrinária entre as confissões reformadas históricas. Dentre as confissões citadas estão os Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana, a Confissão Belga (1561), a Confissão de Westminster (1648) e também a Segunda Confissão Batista de Londres de 1689.7 Ou seja, tal reconhecimento, vindo de um grupo abrangente e representativo do cristianismo reformado mundial, em pleno século 21, demonstra ao menos a legitimidade da credencial reformada dos credobatistas solidários às doutrinas da graça e aos cinco solas da Reforma protestante.
Cremos que tal reconhecimento é correto por diversos motivos. Primeiro, os autores das primeiras confissões batistas reformadas, conforme já indicamos, eram adeptos do arcabouço doutrinário costumeiramente associado ao calvinismo ou à tradição reformada. Logo, eles concordavam com seus contemporâneos reformados de convicção pedobatista em boa parte de suas doutrinas cardeais referentes à soberania de Deus na salvação dos eleitos. Tal concordância pode ser vista ainda hoje em parcerias como The Gospel Coalition [Coligação pelo Evangelho], que reúne pastores e teólogos americanos solidários às máximas da tradição reformada e oriundos tanto de círculos pedobatistas (Timothy Keller) quanto credobatistas (D. A. Carson e John Piper). Segundo, dois outros princípios da Reforma protestante parecem substanciar a posição credobatista reformada. O primeiro é o famoso lema ecclesia reformata semper reformanda est , isto é, “a igreja reformada está sempre em reforma”. Tal posicionamento revela que a reforma da igreja não é um fato consumado e alcançado por determinada parcela ou por uma geração específica do povo de Deus. Por mais que sejamos devedores da reflexão, da devoção e da piedade dos teólogos de Heidelberg e Westminster nos séculos 16 e 17, não somos obrigados a afirmar que eles tenham interpretado todo o conselho de Deus perfeitamente. Aliás, eles mesmos defenderam um segundo princípio caríssimo à Reforma: sola Scriptura. Por mais válidos e importantes que sejam os credos, as confissões e os catecismos produzidos pela igreja ao longo de sua rica história, eles são autoridades subordinadas à autoridade final das Escrituras Sagradas. Logo, se e quando ulgarmos que tais documentos não foram fiéis ao conselho pleno de Deus em sua Palavra, é nosso dever questioná-los à luz do testemunho claro da Bíblia. No tocante à prática do batismo de crianças recém-nascidas e filhos de membros da igreja, cremos que nossos antecessores, responsáveis pelas confissões batistas do século 17, tomaram a decisão acertada ao divergirem da convicção reformada majoritária, como veremos em seguida. 8
UMA DEFESA BÍBLICA9 Podemos resumir em quatro teses o padrão bíblico defendido pelos expoentes do credobatismo:10 1.
As Escrituras Sagradas ordenam somente que os discípulos professos de Jesus Cristo sejam batizados
Não existe um mandamento bíblico direto, ou mesmo indireto, ordenando que cristãos batizem seus filhos recém-nascidos. Curiosamente, todos os nossos irmãos reformados pedobatistas concordam com essa afirmação, apesar de atribuírem esse silêncio bíblico à continuidade entre os pactos do Antigo e do Novo Testamento e à correspondência dos ritos da circuncisão e do batismo nas águas. Contudo, esse é um “argumento do silêncio”, ou seja, ele pressupõe a própria conclusão que intenciona provar. Se tratássemos o silêncio das Escrituras como uma prova de práticas que desejamos defender, a lista poderia crescer e incluir muitas outras coisas sobre as quais a Bíblia não discursa diretamente. Todavia, existe um mandamento bíblico direto e claro a respeito do batismo exclusivo de discípulos professos de Cristo. Nas palavras da Grande Comissão, Jesus ordenou a seus discípulos: “Portanto, ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Algumas questões merecem especial consideração nessa ordem de Cristo. Primeiro, o que Jesus ordenou que seus discípulos fizessem? Que fizessem novos discípulos de Jesus, mediante sua identificação pública com o Deus triúno — Pai, Filho e Espírito Santo — por meio do batismo nas águas, para uma vida de crescente obediência aos mandamentos de Cristo. Segundo, e mais importante, a quem se destina o batismo nessa ordem? Evidentemente, somente aos discípulos de Cristo. Das 261 ocorrências do termo “discípulo” no Novo Testamento, nenhuma delas se refere a um
seguidor em potencial do evangelho, mas a um seguidor comprometido com o senhorio de Cristo.11 Por fim, o que mais essa ordem subentende? À luz de seu antecedente histórico mais próximo no batismo de João Batista, 12 podemos inferir legitimamente a continuação da prática do batismo exclusivo de discípulos convictos e convertidos, ou seja, de pessoas arrependidas de seus pecados e decididas a dar fruto de arrependimento mediante a resposta de fé à pregação da Palavra de Deus. Caso Jesus tivesse em mente a ampliação do batismo para os filhos recém-nascidos de seus discípulos, seria esperado que ele incluísse uma instrução a esse respeito, o que ele não fez. Logo, concluímos que os apóstolos deveriam simplesmente praticar aquilo que tinham testemunhado em vida: batizar aqueles que se arrependiam de seus pecados, criam no Senhor e decidiam segui-lo e viverem em obediência a seus mandamentos, e nada mais. Outra ordem clara a esse respeito encontra-se na conclusão do sermão do apóstolo Pedro, em Jerusalém, no Dia de Pentecostes: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. Porque a promessa é para vós, para vossos filhos e para todos os que estão longe, a quantos o Senhor nosso Deus chamar” (At 2.38,39). Novamente, faz-se necessário examinar alguns pontos-chave dessa ordem apostólica. Primeiro, qual foi o significado do batismo na ordem de Pedro, no Dia de Pentecostes? Evidentemente, a submissão à pregação do evangelho, mediante a identificação pública com Cristo no batismo para o recebimento do perdão dos pecados e do dom do Espírito Santo. O que isso subentende? Ora, a necessidade antecedente de arrependimento dos pecados e fé na proclamação do evangelho, sem os quais o batismo nas águas não faria sentido. Mais importante, a quem se destina a ordem e a promessa do batismo? Numa leitura simples do texto, ela não parece se aplicar indiscriminadamente a todos os filhos dos discípulos de Cristo, tampouco a todos os que apenas ouvirem o evangelho, mas, sim, a todos a quem o Senhor chamar eficazmente dentre os ouvintes do evangelho para a salvação, inclusive dentre os filhos dos discípulos de Cristo. 13 Esse parece ser o referente mais plausível da promessa citada por Pedro, ao final de seu sermão, ou seja, a promessa do
profeta Joel de que seria salvo todo aquele que invocasse o nome do Senhor, mediante o chamado eficaz e o convencimento soberano do Espírito Santo. 14 Segundo, ambos os mandamentos bíblicos citados acima e que fazem referência direta ao batismo exclusivo de discípulos de Cristo estão ligados ao próprio significado do batismo, a saber, a união com Cristo em sua morte e ressurreição mediante um compromisso de fé. 15 O comentário do próprio apóstolo Pedro nesse particular é bastante relevante: “… que, prefigurando o batismo, agora também vos salva, o qual não é a remoção da impureza da carne, mas a promessa de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo” (1Pe 3.21). O que Pedro quis nos ensinar? Ora, que o batismo não tem eficácia própria para nos salvar por meio da lavagem externa com água.16 Na verdade, o batismo aponta para nossa salvação “pela ressurreição de Jesus Cristo”, ou seja, mediante nossa identificação com o Cristo crucificado e ressurreto e a atuação do poder da ressurreição em nós. Mas como isso é verificado publicamente? Mediante “a promessa [apelo, súplica] de uma boa consciência para com Deus” do próprio discípulo batizado. Em suma, as Escrituras Sagradas ordenam somente que os discípulos professos de Jesus Cristo sejam batizados, o que é corroborado pelo próprio significado do batismo. 2.
As Escrituras Sagradas relatam somente o batismo de discípulos professos de Jesus Cristo
Todos os batismos relatados nas Escrituras são de discípulos professos de Cristo, como, por exemplo: a. b. c. d. e. f. g.
os três mil convertidos em Pentecostes (At 2.41); os “homens e mulheres” convertidos em Samaria (At 8.12); o eunuco etíope (At 8.36-38); os “muitos coríntios” (At 18.8); os discípulos de João Batista (At 19.5); o apóstolo Paulo (At 22.16); Gaio e Crispo em Corinto (1Co 1.14).
Curiosamente, os próprios defensores do pedobatismo aliancista reconhecem essa hegemonia bíblica. Vejamos alguns exemplos:17 a. John Murray: “Não existe uma única instância explícita e comprovada de batismo infantil no Novo Testamento”. b. Louis Berkhof: “O Novo Testamento não contém evidências diretas da prática do batismo infantil nos dias dos apóstolos”. c. Charles Hodge: “Em todos os casos registrados da administração do batismo pelos apóstolos, a condição necessária era a profissão de fé do batizado”. d. B. B. Warfield: “É verdade que não existe um único mandamento explícito no Novo Testamento para batizar infantes, um único registro do batismo de infantes, tampouco uma única inferência bíblica exigindo o batismo de infantes”. e. Bryan Chapell: “Nós, que reconhecemos o batismo de infantes, temos de reconhecer que a ausência de exemplos claros de batismo infantil nas Escrituras é um forte argumento contra nossa posição”. Contudo, e quanto aos batismos “domiciliares” ou “familiares” relatados no livro de Atos dos Apóstolos? Eles apontam para o batismo de todos os membros da casa, incluindo bebês que não podiam professar fé em Cristo? Cada um desses casos merece atenção à parte: a. Na casa de Cornélio, a Bíblia diz somente que foram batizados os que ouviram a pregação de Pedro, arrependeram-se dos seus pecados e receberam o dom do Espírito Santo (At 10.44-48; 11.15-18). b. Na casa de Lídia, a Bíblia diz somente que ela creu e que todos de sua casa foram batizados, sem citar explicitamente a presença de marido, crianças ou bebês, tornando esse exemplo inconclusivo (At 16.14,15). c. Na casa do carcereiro em Filipos, a Bíblia diz que todos os da casa que ouviram a Palavra, creram e se alegraram com ele também foram batizados, o que parece excluir crianças recém-nascidas incapazes de crer e alegrar-se com o líder da casa (At 16.31-34, esp. os v. 31 e 34).
d. De forma semelhante, Crispo e os de sua casa, junto com muitos coríntios, creram e foram batizados (At 18.8); e. Por último, os membros da casa de Estéfanas foram batizados, ou seja, todos os que creram e dedicaram-se ao serviço da igreja (1Co 1.16; 16.15). Logo, todos os cinco exemplos citados consistem em conversões domiciliares que resultaram em batismos domiciliares, em cumprimento à promessa citada por Pedro no Dia de Pentecostes. 18 Salvo uma indicação clara da presença de crianças recém-nascidas e do batismo de infantes incapazes de professar fé em Cristo, não há como sustentar que o batismo familiar é justificável pela fé representativa do cabeça da família. Até porque, se todos da casa fossem batizados somente com base na fé representativa do cabeça do lar (por exemplo, o carcereiro de Filipos, Crispo ou Estéfanas), como sustentam os pedobatistas aliancistas, então até os demais adultos da casa poderiam ter sido batizados sem professar fé em Cristo, o que nenhum pedobatista defende.19 3.
As Escrituras Sagradas não trazem evidências convincentes da prática do batismo de infantes
Defensores históricos e contemporâneos do pedobatismo aliancista costumam elencar outros textos, além dos exemplos de batismos domiciliares tratados acima, como suporte para sua posição. Por exemplo, é comum esses irmãos associarem a já citada promessa de Pedro no Dia de Pentecostes, em Atos 2.38,39, à promessa feita a Abraão em Gênesis 17.7,8. Como no contexto dessa passagem veterotestamentária a promessa feita a Abraão foi associada à exigência da circuncisão de todos os descendentes masculinos da família do patriarca,20 e como a promessa feita por Pedro foi associada ao batismo nas águas, deduzem que um sinal deu lugar ao outro — no caso, a circuncisão deu lugar ao batismo — na sinalização dos herdeiros da promessa feita ao povo da aliança. Todavia, como já foi assinalado anteriormente, a promessa feita por Pedro,
em Atos 2.39, diz respeito claramente à concessão do Espírito Santo aos que respondessem ao chamado de Deus no evangelho, mediante arrependimento e fé.21 Logo, os recipientes da promessa foram apenas aqueles a quem Deus chamou eficazmente dentre os primeiros ouvintes, seus respectivos filhos e os que ainda viriam de longe — todos os que também se arrependessem e cressem no evangelho.22 Como o texto deixa claro, somente foram batizados os que, de fato, creram e se arrependeram. 23 Por todas essas razões, constatase que o referente mais próximo e plausível da promessa citada por Pedro, em seu sermão de Pentecostes, não é a promessa feita por Deus a Abraão, em Gênesis 17, mas, sim, aquela feita pelo profeta Joel e mencionada explicitamente pelo apóstolo, logo na abertura de sua pregação. 24 É costumeiro também ouvir defesas do pedobatismo aliancista pautadas na bênção conferida por Jesus às crianças que lhe foram apresentadas (Mc 10.13-16). Segundo essa linha de raciocínio, quando Jesus conferiu sua bênção sobre aquelas crianças, ele sinalizou a seus discípulos a inclusão delas na comunidade da aliança do Novo Testamento, tal qual a inclusão dos descendentes biológicos de Abraão na comunidade da aliança no Antigo Testamento. Portanto, se as crianças foram assim admitidas no Antigo Testamento e sinalizadas pelo rito da circuncisão, o mesmo deveria aplicar-se para os filhos dos discípulos de Cristo por meio do batismo nas águas, a partir do Novo Testamento. Em resposta, precisamos notar que não há indicação alguma, na passagem citada acima, de que os pais dessas crianças eram exclusivamente judeus piedosos e, portanto, praticantes da circuncisão. Aliás, isso é muito improvável à luz da natureza mista das multidões que costumavam seguir Jesus. Logo, a associação sugerida pelos defensores do pedobatismo entre a bênção de Jesus sobre as crianças e a bênção de Abraão sobre seus descendentes é implausível com base nesse texto. Segundo, não há indicação alguma nas palavras de Jesus de que essas crianças, pelo simples fato de serem crianças, foram admitidas como membros do reino de Deus e, por conseguinte, da igreja. Aliás, é bastante improvável que esse seja o caso, pois, do contrário, existiriam nos Evangelhos duas maneiras de entrar no reino de Deus: uma por nascimento natural e outra por nascimento espiritual.
Além do mais, o fato de Jesus receber as crianças, orar por elas e abençoá-las não indica que elas eram membros do reino de Deus nem sequer que foram batizadas. Afinal de contas, por que os discípulos proibiriam o acesso delas a Jesus, se essa fosse sua convicção e prática habitual? Por fim, precisamos notar que o foco da passagem está no recebimento do reino de Deus “como uma criança”, ou seja, de maneira simples, dependente e humilde, o que deve ser o caso com todo verdadeiro discípulo de Cristo. 25 Essa foi a intenção original desse ensino de Jesus Cristo, que em nenhum momento cita a prática do batismo em associação com sua bênção proferida sobre aquelas crianças. 26 Outra evidência neotestamentária citada a favor do pedobatismo é a referência de Paulo à “santificação” dos filhos de um cônjuge crente, em 1Coríntios 7.14. Segundo nossos irmãos pedobatistas, o fato de Paulo declarar os filhos de um cônjuge crente “santos”, mesmo que o outro cônjuge não partilhe da mesma fé no evangelho, parece sinalizar a inclusão desses filhos na comunidade da aliança — a igreja — e, por isso, considerá-los passíveis do recebimento do sinal do batismo nas águas ainda recémnascidos. A dificuldade com esse raciocínio, porém, é que Paulo também se refere ao cônjuge descrente como “santificado” por meio de sua esposa crente (1Co 7.14a). Logo, se os filhos “santos” podem ser recipientes do sinal do batismo somente pela fé representativa de um dos pais, o mesmo não deveria ser dito do cônjuge incrédulo “santificado”? Será que ele ou ela pode ser batizado ou batizada em uma profissão de fé, somente com base na fé representativa de seu cônjuge? É evidente que não. O que Paulo provavelmente tinha em mente é que o cônjuge e os filhos descrentes são “santificados” pela influência abençoadora do testemunho cristão do cônjuge convertido, e não devem ser desprezados, apesar de a lei mosaica exigir a emancipação de cônjuges e filhos incrédulos.27 Por fim, podemos mencionar brevemente a referência às crianças em Éfeso, citadas por Paulo em sua carta àquela igreja (Ef 6.1-3). Diz-se que, por terem sido citadas por Paulo, o apóstolo provavelmente as considerava membros da igreja pelo simples fato de pertencerem a lares cristãos e, por conseguinte, tais crianças teriam recebido o sinal do batismo nas águas. Contudo, é necessário notar que Paulo menciona tais crianças como parte da
companhia dos “santos”, a quem ele se endereçava, e que eram salvos pela graça de Jesus Cristo mediante a resposta de fé ao evangelho. 28 Além do mais, é inconcebível imaginar Paulo instruindo crianças recém-nascidas e supostamente batizadas a obedecerem a seus pais no Senhor. 4.
As Escrituras Sagradas não ensinam a correspondência exata entre o rito da circuncisão no Antigo Testamento e a ordenança do batismo nas águas no Novo
De acordo com os nossos irmãos pedobatistas, o batismo representa no Novo Testamento exatamente o que a circuncisão representava no Antigo Testamento, a saber, a inclusão ou admissão de alguém à comunidade da aliança.29 Contudo, não existe um único texto bíblico que defenda tal correspondência. Aliás, o único texto na Bíblia que menciona circuncisão e batismo simultaneamente parece ensinar exatamente o contrário. Em Colossenses 2.11,12 (NVI), Paulo diz: Nele também vocês foram circuncidados, não com uma circuncisão feita por mãos humanas, mas com a circuncisão feita por Cristo, que é o despojar do corpo da carne. Isso aconteceu quando vocês foram sepultados com ele no batismo, e com ele foram ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos. Segundo a interpretação pedobatista aliancista, o fato de Paulo mencionar o rito da circuncisão e o rito do batismo no mesmo argumento aponta para a correspondência exata entre esses sinais. De acordo com esse raciocínio, por um lado, a circuncisão física apontava para a circuncisão espiritual do coração.30 Por outro lado, Paulo parece dizer que o batismo nas águas também aponta para uma circuncisão interna e espiritual. Logo, como ambos os ritos apontam para as mesmas coisas, eles são exatamente correspondentes e devem ser aplicados aos mesmos grupos, inclusive a crianças recémnascidas. Contudo, na passagem destacada, é importante notar que Paulo cita a
circuncisão física externa (“circuncisão feita por mãos humanas”), mas faz questão de esclarecer que não é a ela que está se referindo quando diz que os colossenses “foram circuncidados”, e sim à “circuncisão feita por Cristo”, uma circuncisão interna, espiritual, realizada por Cristo, não por mãos humanas (Cl 2.11). Portanto, como o próprio Paulo esclarece que está se referindo a uma circuncisão interna, espiritual, realizada por Cristo, não há como traçar um paralelo claro entre o rito externo da circuncisão e o batismo nas águas a partir dessa única passagem. Além do mais, de acordo com as palavras de Paulo, a circuncisão espiritual operada por Cristo é evidenciada por dois outros marcos externos: o batismo e a fé do batizado, o que evidentemente exclui infantes recém-nascidos (Cl 2.12). Outro texto de Paulo citado a favor da correlação entre a circuncisão física e o batismo nas águas é Romanos 4.11,12: E [Abraão] recebeu o sinal da circuncisão, como selo da justiça da fé que teve quando ainda não era circuncidado, para que fosse pai de todos os que creem, estando estes na incircuncisão, a fim de que a justiça seja atribuída em favor deles; ele é pai dos circuncisos, dos que não somente são da circuncisão, mas que também andam nas pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, antes de ser circuncidado. Argumenta-se que, se a circuncisão representava a justiça que Abraão tinha pela fé, ela representaria o mesmo para seus descendentes biológicos, circuncidados antes de exercerem a fé. Logo, o mesmo poderia ser dito de crianças recém-nascidas de filhos cristãos e batizadas como sinal de uma ustiça a ser recebida pela fé. Além da ausência completa de uma referência clara e direta ao batismo nas águas nessa passagem, pelo menos duas outras dificuldades surgem nessa linha de raciocínio. Primeiro, o texto não fala do rito da circuncisão em geral, mas tão somente da circuncisão individual de Abraão, o que impossibilita uma dedução generalizada do significado da circuncisão para todos os herdeiros do patriarca de Israel. Segundo, o texto não fala de uma justificação potencial com base na fé futura de Abraão, mas, sim, da justificação presente
que Abraão já tinha por uma fé que antecedia o ato da circuncisão. Logo, se um paralelo for traçado a partir desse texto entre a circuncisão e o batismo, ele favorece a posição credobatista mais do que a pedobatista. Por último, o silêncio de Paulo quanto à correspondência entre circuncisão e batismo é gritante em momentos em que seria muito oportuno mostrar tal correspondência. Por três vezes em suas cartas, o apóstolo relativiza o rito da circuncisão à luz de uma realidade superior: A circuncisão nada é, e também a incircuncisão, mas o que importa é a observância dos mandamentos de Deus (1Co 7.19).31 Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão nem a incircuncisão valem coisa alguma; mas, sim, a fé que atua pelo amor (Gl 5.6). Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão são coisa alguma, mas, sim, o ser nova criação (Gl 6.15). Notoriamente, em nenhuma dessas ocorrências Paulo correlaciona o rito da circuncisão ao rito do batismo nas águas. Nas duas últimas referências, extraídas de sua Carta aos Gálatas, seria extremamente oportuno traçar tal correspondência à luz da polêmica do apóstolo contra os judaizantes, que assediavam os cristãos gentios a submeterem-se à circuncisão. Caso Paulo cresse na correspondência exata entre circuncisão e batismo, quão mais simples e direta teria sido sua resposta se tivesse dito aos gálatas que eles não precisavam ser circuncidados, visto que já tinham sido batizados nas águas. O fato de Paulo não argumentar dessa forma não só depõe contra tal correspondência, mas também demonstra qual é o sinal verdadeiro e exclusivo de admissão de uma pessoa à comunidade da aliança no Novo Testamento: o novo nascimento e a fé em Cristo para uma nova vida de amor e obediência ao Senhor. Em virtude da falta de evidências satisfatórias, portanto, o máximo que podemos afirmar é que tanto a circuncisão como o batismo representavam ritos de admissão na comunidade da aliança do Antigo e do Novo
Testamentos, respectivamente. Todavia, nem por isso eles são ritos análogos ou que guardam entre si uma exata correspondência. Em suma, por um lado, as Escrituras Sagradas ordenam somente que os discípulos professos de Jesus Cristo sejam batizados e relatam somente o batismo de discípulos professos de Jesus Cristo. Por outro lado, a Bíblia não traz evidências convincentes sobre a prática do batismo de infantes recémnascidos, tampouco reconhece a correspondência exata entre o rito da circuncisão no Antigo Testamento e a ordenança do batismo nas águas no Novo Testamento. Portanto, a igreja não pode batizar quem quer que seja, qualquer que seja sua idade ou condição, sem que antes essa pessoa demonstre sinais suficientes de que é um discípulo de Jesus, arrependido de seus pecados e crente no evangelho para uma vida de submissão e lealdade exclusiva ao senhorio de Cristo. Nesse particular, os autores das primeiras confissões batistas reformadas foram mais fiéis ao conselho de Deus nas Escrituras Sagradas do que os autores dos catecismos de Heidelberg e de Westminster.
UM ESCLARECIMENTO TEOLÓGICO Por último, é necessário tratar aqui de um equívoco comum, cometido por cristãos reformados de convicção pedobatista em relação a seus irmãos credobatistas. É costumeiro ouvir daqueles irmãos que a tradição pedobatista enfatiza a soberania de Deus no chamado de uma criança recém-nascida consagrada como membro da comunidade da aliança, enquanto os adeptos do credobatismo enfatizam a resposta voluntária do ser humano no batismo por profissão pública de fé. Nas entrelinhas de comentários dessa natureza observa-se a tendência de contrapor a crença na soberania de Deus na salvação à prática do credobatismo e de defender o pedobatismo como mais coerente com as doutrinas reformadas históricas e mais fiel a elas. Precisamos reconhecer que, atualmente, a maioria dos praticantes e defensores do credobatismo não se identifica com a teologia calvinista, tampouco se alinha com o posicionamento doutrinário das primeiras confissões batistas reformadas. É verdade: a maioria dos credobatistas hoje rechaçaria a soberania de Deus na eleição e na salvação dos cristãos! Contudo, a despeito desse fato, como já defendemos ao longo deste capítulo com base em argumentos históricos, bíblicos e teológicos, isso não significa que a crença na soberania de Deus e a prática do batismo por profissão de fé sejam contraditórias e inconciliáveis. Dentro do campo reformado, portanto, o que distingue irmãos pedobatistas e credobatistas não é o fato de os primeiros terem uma convicção maior da soberania de Deus, nem de os últimos terem uma convicção maior da resposta voluntária humana ao evangelho por meio da fé. A verdade é que ambos os grupos realçam as duas coisas no tocante ao batismo. Ambos concordam que Deus é soberano na consagração de um cristão nas águas do batismo. Contudo, enquanto os pedobatistas defendem a responsabilidade e a iniciativa dos pais cristãos ao batizarem seus filhos, os credobatistas defendem a responsabilidade e a iniciativa individual de cada filho ao buscar o batismo nas águas. Ou seja, enquanto o primeiro grupo ressalta a fé dos
pais, o segundo sublinha a fé dos filhos e de cada indivíduo que professa Cristo como Senhor e Salvador. Em outras palavras, um grupo não reforça mais do que o outro nem a soberania de Deus, nem o exercício da fé no ato do batismo. Em suma, por todas as razões expostas, é possível, sim, ser um credobatista reformado. Mais do que isso, cremos que essa seja a posição preferível para os que desejam honrar suas raízes protestantes e reformadas em consonância com a autoridade final das Escrituras Sagradas. 1 Para outra
resposta positiva a essa pergunta — com as devidas qualificações históricas próprias da tradição reformada — confira o excelente artigo de Kevin DeYoung, “Is John Piper really reformed?”, disponível em: https://blogs.thegospelcoalition.org/kevindeyoung/2013/11/07/is-john-piper-reallyreformed, acesso em: 24 mai. 2016. 2 Cf. Joel R. Beeke; Sinclair B. Ferguson, orgs., Harmonia das confissões reformadas (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 213-4. 3 Para um estudo perspicaz de como o pedobatismo aliancista defendido por Zuínglio e seus sucessores na Reforma protestante representou uma ruptura com o entendimento histórico da união indissolúvel entre o sinal do batismo e a fé do batizando, confira o capítulo de Jonathan H. Rainbow, “‘Confessor baptism’: the baptismal doctrine of the early anabaptists”, in: Thomas R. Schreiner; Shawn D. Wright, orgs., Believer’s baptism: sign of the new covenant in Christ (Nashville: B&H Academic, 2006). Rainbow demonstra que a tradição medieval manteve tal união entre o batismo e a fé por meio do ensinamento da graça infusa pelo sacramento, que comunica a fé ao infante, enquanto Lutero revisou tal entendimento enfatizando o poder da Palavra de Deus proclamada no ato do batismo para despertar a fé no infante. Para resolver as tensões inerentes à doutrina da regeneração batismal, Zuínglio e os demais reformadores aliancistas mantiveram a prática do pedobatismo, mas descartaram sua teologia, cunhando o pedobatismo aliancista que abole a necessidade da fé do recém-nascido no ato batismal. Já os anabatistas mantiveram o entendimento histórico da união indissolúvel entre o batismo e a fé do batizando, mas descartaram a prática do batismo de recém-nascidos e decidiram pelo batismo por confissão própria. 4 Para uma defesa da incompatibilidade entre a definição reformada e bíblica dos sacramentos e a prática do pedobatismo, confira o capítulo de Shawn D. Wright, “Baptism and the logic of reformed paedobaptists” in: Thomas R. Schreiner; Shawn D. Wright orgs., Believer’s baptism: sign of the new covenant in Christ (Nashville: B&H Academic, 2006). 5 Edição de Henry Bettenson, Documentos da igreja cristã, 5. ed. (São Paulo: ASTE, 2007), p. 3445. 6 Para um resumo bastante acessível da diferença central entre a interpretação pedobatista e a credobatista da continuidade e descontinuidade entre os pactos do Antigo e do Novo Testamento, confira o capítulo de John Piper “Irmãos, exaltem o significado do batismo”, in: Irmãos, nós não somos rofissionais (São Paulo: Shedd, 2009), p. 143-52. Para um tratamento mais acadêmico e profundo do assunto, veja o ensaio de Stephen J. Wellum, “Baptism and the relationship between the covenants”, disponível em: https://kingdomresources.files.wordpress.com/2007/08/wellum_baptindd.pdf, acesso
em: 29 mar. 2018. 7 Confira http://wrfnet.org/about/statement-of-faith#.V0SkFza9jCc, acesso em: 29 mar. 2018. 8 O mais famoso credobatista reformado, o evangelista calvinista Charles Haddon Spurgeon, chegou à mesma conclusão, conforme ilustrado nas perguntas 76 e 77 de seu Catecismo Puritano de 1855, disponível em: http://www.monergismo.com/textos/catecismos/Catecismo_Spurgeon.htm, acesso em: 29 mar. 2018. 9 Há excelentes defesas acadêmicas do batismo exclusivo de discípulos professos de Jesus Cristo. Apesar de ainda não ter sido traduzido para o português, recomendamos fortemente a leitura do clássico de Paul Jewett, Infant baptism and the covenant of grace (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), que traz tanto uma crítica contundente à prática do pedobatismo bem como uma defesa convincente do credobatismo a partir de uma leitura pactual das Escrituras Sagradas. Um volume mais recente que traz uma defesa do credobatismo do ponto de vista bíblico, histórico, teológico e até pastoral é o excelente volume organizado por Thomas R. Schreiner; Shawn Wright, Believer’s baptism: sign of the new covenant in Christ (B&H Academic, 2006). A defesa bíblica apresentada no presente ensaio resume os pontos principais expostos pelos autores da obra supracitada, especialmente os capítulos “Baptism in the gospels”, de Andreas J. Kostenberger; “Baptism in Luke-Acts”, de Robert H. Steine; e “Baptism in the Epistles: an initiation rite for believers”, de Thomas R. Schreiner. 10 As seguintes teses seguem, em boa parte, a ordem do raciocínio de Matt Waymeyer em seu livro biblical critique of infant baptism (Peabody: Kress Christian, 2008). 11 Para alguns poucos exemplos representativos, cf. Lc 14.25-34; Jo 13.35; 15.8; At 11.26. 12 Curiosamente, os defensores do pedobatismo aliancista fazem pouco caso da proximidade histórica do batismo ordenado por Jesus ao batismo praticado por João Batista, optando por correlacionar a ordenança do batismo nas águas com a prática da circuncisão exigida por Deus de Abraão e seus descendentes, séculos antes (Gn 17.12-14). 13 Cf. At 2.39b. 14 Compare. Jl 2.32 com At 2.21,39. 15 Cf. Rm 6.3-7; Gl 3.27. 16 Contra os expoentes da doutrina da regeneração batismal. 17 As citações a seguir (de minha tradução) com as devidas referências bibliográficas foram extraídas de Matt Waymeyer, A biblical critique of infant baptism (Peabody: Kress Christian Publications, 2008), p. 14. 18 Cf. At 2.39. 19 Waymeyer, op. cit., p. 22-3. 20 Cf. Gn 17.12-14. 21 Cf. At 2.17,33,38,39; cp. Lc 24.49; At 1.4,5. 22 Cf. At 2.39b. 23 Cf. At 2.40-47. 24 Compare At 2.17-21 com Jl 2.28-32. 25 Cp. Mc 10.15; Mt 18.3. 26 Eu devo tais argumentos aos pontos apresentados por Waymeyer, op. cit., p. 36-43. 27 Cf. Êx 34.11-16; Dt 7.1-5; Ne 13.23-30; Ed 10.1-17. 28 Cf. Ef 1.1,13-14, 2.1-10. 29 Curiosamente, apesar de afirmar a correspondência exata entre os sinais da antiga e da nova
aliança, nenhuma família ou igreja de convicção pedobatista pratica isso sistematicamente. Por exemplo, todo membro da família nuclear e todo servo ou empregado de um cristão deve ser batizado, independente de sua idade ou profissão de fé? Por que não, se todo membro masculino da casa de um hebreu — incluindo seus servos, e não somente seus filhos — deveria ser circuncidado? (cf. Gn 17.1214) Além do mais, todo filho de um casal cristão, tendo sido batizado quando bebê, pode e deve batizar os seus filhos, independente de sua própria conversão pessoal ao evangelho? Por que não, se todo descendente de Israel deveria circuncidar seu filho independentemente de ele servir fielmente ao Deus de Israel? 30 Cf. Dt 10.16, 30.6. 31 Manifestamente, Paulo, nessa referência, considera que a prática da circuncisão não figurava mais entre os mandamentos a serem obedecidos pelos cristãos, o que depõe contra o raciocínio pedobatista de que a instituição permanente da circuncisão estabelecida na antiga aliança exigiria um rito exatamente correspondente na nova aliança, a saber, o batismo nas águas.
BATISMO NO ESPÍRITO SANTO Uma doutrina que divide e une Explicar a doutrina do batismo no Espírito Santo é uma tarefa simultaneamente gloriosa e inglória. É gloriosa porque, biblicamente falando, essa doutrina serve para unir a igreja em seu testemunho e serviço a Cristo. Ao mesmo tempo, porém, é inglória porque, historicamente falando, é uma das doutrinas que mais têm dividido a igreja, especialmente desde a chegada do movimento pentecostal moderno, no início do século 20. Não só isso, mas a resposta à pergunta “O que é o batismo no Espírito Santo?” tem servido quase como um divisor de águas entre cristãos de origens e convicções pentecostais e seus demais irmãos evangélicos. Por isso, ao buscarmos definir claramente qual seria a posição pentecostal reformada a esse respeito e compreender melhor a doutrina do batismo no Espírito Santo, precisamos tanto considerar suas interpretações divergentes na história recente da igreja quanto expor o testemunho bíblico nesse particular. Ao final, desejamos concluir com algumas aplicações práticas e relevantes para o ensino e o testemunho da igreja.
O TESTEMUNHO HISTÓRICO Como bem resume Sam Storms, 1 o debate histórico acerca do batismo no Espírito Santo pode ser organizado a partir da seguinte pergunta: “A vida cristã é caracterizada por um único estágio ou por dois estágios distintos?”. Em outras palavras, o batismo no Espírito Santo é uma experiência de iniciação para todos os crentes, por ocasião de sua conversão a Cristo, ou é uma experiência posterior à conversão a Cristo, de aprofundamento espiritual, para alguns cristãos somente?
De acordo com a primeira tese, o “batismo no Espírito Santo” é simultâneo e praticamente equivalente à experiência de regeneração e conversão. Ou seja, o fenômeno do batismo no Espírito ocorre na vida de todos os cristãos, no momento de seu novo nascimento em Cristo Jesus. Dentro dessa interpretação — defendida pela maioria das vertentes protestantes e evangélicas — a única divergência diz respeito à consciência desse fenômeno na vida do cristão convertido. Enquanto alguns defendem que o batismo no Espírito é uma experiência inconsciente ou até subconsciente, outros já defendem que se trata de uma realidade consciente e fortemente experimental.2 Dentro da linha da segunda tese, em contrapartida, existe uma enorme variedade de interpretações acerca do que seria a experiência distinta e posterior à conversão chamada de “batismo no Espírito”. Dentre elas, podemos destacar as principais: 1. Uma ala do puritanismo reformado, da qual Martyn Lloyd-Jones foi herdeiro, defendia que a experiência do batismo no Espírito equivaleria ao “selo do Espírito”, mencionado pelo apóstolo Paulo em Efésios 1.13. Tal experiência representaria uma certeza direta, íntima e profunda da salvação em Cristo, por intermédio do testemunho interno do Espírito Santo, acompanhada de poder para o testemunho e o serviço cristão. É importante
observar que nessa interpretação não existe um vínculo necessário dessa
experiência com os dons carismáticos citados por Paulo em 1Coríntios 12— 14. 2. Uma segunda interpretação advém dos escritos e ensinos de John Wesley, o famoso pregador do avivamento metodista na Inglaterra. Segundo Wesley, é possível o cristão experimentar o que ele chamava de “inteira santificação” — uma experiência instantânea e subsequente à conversão, em que é extirpada do coração do crente regenerado toda motivação ou inclinação pecaminosa, ainda nesta vida. Por mais que o cristão que
houvesse passado por essa experiência pudesse errar e cometer algumas falhas, a inteira santificação o isentaria da motivação ou da intenção de cometer esses delitos. Ainda segundo Wesley e alguns de seus discípulos, era necessário que o cristão regenerado buscasse esse estágio avançado de inteira santificação — um aprimoramento do amor por Deus e pelo próximo —, o que muitas vezes era chamado de “batismo no Espírito Santo”. 3. Uma terceira linha de interpretação originou-se no movimento Keswick de santidade, primeiro na Inglaterra e depois nos Estados Unidos da América. Esse movimento manteve o conceito wesleyano dos dois estágios na vida cristã, mas rejeitou a definição do batismo no Espírito como uma purificação interna das motivações e inclinações pecaminosas do coração. Em seu lugar, os adeptos desse movimento definiram tal experiência como uma capacitação de poder espiritual visando ao serviço e ao ministério cristão fiéis. A ênfase, portanto, passou da purificação do pecado do coração para o oder visando ao serviço cristão.
4. Chegamos, enfim, à visão do pentecostalismo clássico acerca do batismo no Espírito, mais bem representada em nosso tempo pela declaração de fé das Assembleias de Deus. Segundo os artigos 7 e 8 da Declaração de Verdades Fundamentais do Conselho Geral das Assembleias de Deus: Todos os crentes têm o direito e devem ardentemente esperar e sinceramente buscar a promessa do Pai, o batismo no Espírito Santo e com fogo, segundo a ordem do nosso Senhor Jesus Cristo. Essa era a experiência normal de todos na igreja cristã primitiva. Com ele vem a capacitação poderosa para a vida e o serviço, a concessão dos dons e seu
uso no trabalho do ministério. Tal experiência é distinta e posterior à experiência do novo nascimento. […] O batismo de crentes no Espírito Santo é testemunhado pela evidência física inicial do falar em outras línguas conforme a capacitação do Espírito Santo. 3 Como bem observado por Sam Storms,4 os três elementos cruciais desse entendimento do batismo no Espírito são sua subsequência à conversão, podendo ocorrer pouco ou muito tempo após o novo nascimento, sua condicionalidade, a saber, a necessidade de uma busca ativa e pessoal pela experiência, e sua evidência inicial necessária, a saber, a manifestação do dom de línguas.5 5. Finalmente, o movimento carismático contemporâneo, disseminado pelas diferentes vertentes do protestantismo histórico, também adotou a visão dos dois estágios na vida cristã, característica das interpretações anteriormente descritas do batismo no Espírito. Ao mesmo tempo, os expoentes desse movimento rejeitaram toda noção de condicionalidade ou evidência inicial necessária do dom de línguas. Em linhas gerais, a ênfase recaiu sobre a capacitação para o serviço cristão por meio de uma nova visitação do Espírito Santo sobre a vida do cristão regenerado.6 À luz de todas as interpretações distintas desse fenômeno, será que temos que escolher entre um lado e outro? Será que precisamos escolher o lado do estágio único ou o lado do estágio duplo na vida cristã? Com base no testemunho bíblico, que examinaremos em seguida, cremos que há uma terceira opção possível. Cremos que o batismo no Espírito Santo é uma metáfora que descreve o novo nascimento — isto é, a “imersão” de todos os cristãos verdadeiramente regenerados na vida do Espírito Santo. Portanto,
todos os que são verdadeiramente convertidos a Cristo e habitados pelo Espírito Santo são “batizados no Espírito”. 7 Contudo, existem múltiplas experiências, posteriores à conversão, de preenchimento e capacitação para o testemunho e o serviço cristão mediante a busca pelo Espírito e o derramamento do Espírito sobre nós. 8 Em suma, existe apenas um único batismo inicial no Espírito Santo, comum a todos os cristãos, mas existem
múltiplos preenchimentos do Espírito.9
A EVIDÊNCIA BÍBLICA No Novo Testamento existem apenas sete referências ao “batismo no Espírito Santo”, as quais podemos classificar da seguinte forma: a) A promessa (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33). As quatro primeiras referências ao batismo no Espírito Santo são paralelas entre si e referem-se à promessa feita por João Batista a respeito daquele que o sucederia e o superaria em seu ministério: “Eu, na verdade, vos batizo com água, tendo por base o arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu; não sou digno nem de carregar suas sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3.11). No contexto histórico de sua pregação, a promessa de João Batista diz respeito claramente à vinda e à obra de Jesus Cristo, quando este derramaria sobre toda a sua igreja a bênção prometida e tão aguardada do Espírito Santo. 10 O mais importante a observar aqui é a natureza provisória do batismo de arrependimento praticado por João Batista. O que ele ensinou e realizou serviu como uma transição entre as promessas do Antigo Testamento, que falavam a respeito do derramamento universal do Espírito Santo sobre todo o povo de Deus, e seu cumprimento na vida e na obra de Jesus Cristo. 11 Logo, com base na pregação de João Batista, não há como estabelecer uma distinção absoluta entre um batismo inicial na vida cristã para o arrependimento e um batismo posterior no Espírito com poder. Como o próprio João testemunhou, ele não tinha envergadura espiritual para realizar as duas coisas; tampouco era sua a responsabilidade de fazê-lo. Contudo, com a chegada de Jesus Cristo, ambas as coisas seriam possíveis, pois sua morte, ressurreição e ascensão tornariam possível o derramamento pleno das bênçãos prometidas da nova aliança — inclusive o derramamento do Espírito ou “batismo no Espírito” — sobre aqueles que se convertessem ao evangelho com arrependimento e fé.12 b) O cumprimento (At 1.5; 11.16). As duas referências seguintes ao
batismo no Espírito testificam do cumprimento da promessa feita anteriormente por João Batista. O próprio Senhor Jesus disse: “Porque, na verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias” (At 1.5). O referente específico da promessa supracitada claramente é o Dia de Pentecostes — o acontecimento-chave que marcaria a transição na história da redenção e da própria igreja — relatado no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos. Tal acontecimento foi único — tanto quanto o nascimento de uma criança —, pois representou o nascimento da igreja neotestamentária, por ocasião do derramamento do Espírito Santo por Jesus Cristo sobre aquele primeiro grupo de discípulos, reunidos em Jerusalém. Dito isso, cabe observar que não podemos fazer da experiência dos apóstolos — ou seja, o nascer de novo primeiro para depois ser revestido de poder pelo Espírito para o testemunho e o serviço cristão —, ali presentes naquele dia de transição dos tempos, uma experiência normativa para nós. A experiência normativa para nós encontra-se na experiência daqueles que ouviram o evangelho pregado pelo apóstolo Pedro, no Dia de Pentecostes, arrependeram-se de seus pecados, creram na mensagem e receberam o dom (“batismo”) do Espírito Santo (veja At 2.38). 13 Isso fica mais claro no testemunho de Pedro acerca da conversão de Cornélio e dos de sua casa, por ocasião da pregação do evangelho e do derramamento do Espírito sobre eles: Logo que eu comecei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles, como também sobre nós no princípio. Lembrei-me então da palavra do Senhor, que disse: João, na verdade, batizou com água; mas vós sereis batizados com o Espírito Santo. Portanto, se Deus lhes concedeu o mesmo dom que concedera também a nós, ao crermos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu, para que pudesse me opor a Deus? (At 11.15-17) De acordo com esse relato de Pedro, o mesmo dom que Cristo concedeu aos apóstolos e discípulos no princípio, quando eles creram, foi derramado sobre os gentios, quando estes também creram no evangelho. Especificamente, o que João Batista e Jesus haviam prometido, o Senhor
cumpriu — tanto na vida dos judeus convertidos ao evangelho no Dia de Pentecostes, quanto na vida dos gentios a partir da conversão de Cornélio e dos de sua casa. Em suma, o que havia sido prometido, o “batismo no Espírito Santo”, foi concedido justamente quando estes creram no evangelho com arrependimento e fé. c) O padrão (1Co 12.12,13). A última referência ao “batismo no Espírito” corrobora o padrão proposto acima. De acordo com o apóstolo Paulo: Porque, assim como o corpo é uma só unidade e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, ainda que muitos, formam um só corpo, assim também acontece com relação a Cristo. Pois todos fomos batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito (1Co 12.12,13). Apesar de a linguagem de Paulo apontar naturalmente para a experiência do batismo no Espírito, compartilhada por todos os cristãos, existem várias interpretações distintas desse texto. 14 Uma possibilidade é que Paulo esteja descrevendo uma “segunda bênção” ou um segundo estágio na vida cristã (isto é, o batismo no Espírito e o beber do Espírito), compartilhado por todos os cristãos em Corinto, mas não por todos os cristãos em geral. Contudo, o próprio contexto da passagem milita contra essa visão, pois Paulo aqui fala da experiência comum a todos os membros do corpo de Cristo (isto é, “todos nós”), independentemente das diferentes experiências e dons espirituais, o que serve de correção para o orgulho espiritual da “elite carismática” na igreja em Corinto.15 Outros defendem que Paulo esteja descrevendo aqui não a inclusão dos cristãos no corpo de Cristo por meio do batismo comum no Espírito, mas sua capacitação para a vida e o serviço no corpo de Cristo por meio de um batismo no Espírito posterior à conversão. Contudo, será que podemos separar uma coisa da outra? Será que Paulo cogitaria a possibilidade de um cristão que pertencesse ao corpo de Cristo, mas que não fosse capacitado para o serviço no corpo de Cristo? Ele não defende algo bem diferente versículos
antes, ao afirmar que o Espírito Santo é comum a todos os cristãos e age por meio de todos, para o bem de todos, se bem que de formas diferentes? 16 Logo, à luz do contexto, parece-nos incoerente e desnecessário criar uma distinção entre os que são e os que não são capacitados para servir no corpo de Cristo mediante uma “segunda bênção” na vida cristã. Há ainda quem defenda que Paulo esteja descrevendo um batismo pelo Espírito para a salvação, que seria distinto do batismo por Jesus com poder para o serviço cristão. 17 Tal interpretação não convence porque, gramaticalmente falando, o texto não apoia essa interpretação. No grego, a expressão original “no Espírito” (en pneumati) descreve a esfera ou o instrumento pelo qual o cristão foi batizado, não o agente que batiza. Isso ocorre porque, em todos os textos que já examinamos, é sempre Jesus quem batiza no/com o Espírito Santo. Portanto, não existem duas pessoas (Jesus e o Espírito) que batizam com duas finalidades diferentes (poder e salvação), mas um único que batiza (Jesus) com o Espírito para a salvação e para a inclusão em seu corpo, que é a igreja. Finalmente, há alguns que defendem que Paulo esteja descrevendo duas experiências distintas em um único versículo — tanto a conversão (batismo em um único Espírito; 1Co 12.13a) como a capacitação para o serviço (beber do único Espírito; 1Co 12.13b). Contudo, o paralelismo da passagem sugere que as duas metades desse versículo falam da mesma experiência e do mesmo grupo de pessoas. Em outras palavras, Paulo aqui empregou duas metáforas expressivas — o “batismo” (imersão) no Espírito e o “beber” do Espírito — para descrever aquela experiência que nos une como membros do único corpo de Cristo, a saber, nossa salvação comum em Cristo pela ação sobrenatural do Espírito Santo. No contexto da passagem, é isso que deve sustentar e nortear a identidade, o testemunho e o serviço da igreja — nossa confissão comum de Cristo e nossa experiência comum no Espírito. 18
BATIZADOS NO ESPÍRITO, E AGORA? Cristãos de origens e convicções pentecostais talvez se perguntem: “Ora, se o batismo no Espírito descreve a experiência comum a todos os cristãos, por ocasião de sua conversão a Cristo, o que resta fazer após isso? Não há nada que devemos buscar de Deus e do Espírito após a conversão?”. Muito pelo contrário, ainda há muito que os cristãos podem e devem fazer no tocante à busca pelo Espírito Santo, mesmo após o novo nascimento em Cristo. Até aqui, examinamos apenas a evidência bíblica a respeito do batismo no Espírito, uma experiência instantânea, coincidente com a conversão, universal (isto é, comum a todos os crentes), irrepetível e permanente. Contudo, as Escrituras também descrevem a “plenitude” ou o “preenchimento” do Espírito Santo, uma experiência contínua e crescente de submissão ao Espírito e apropriação da vida no Espírito . Ser “cheio” ou “pleno” do Espírito aponta para uma influência intensa, íntima e progressivamente crescente do Espírito na vida cristã. Tal experiência pode ser negligenciada e abandonada e, após algum tempo, ser experimentada novamente, em múltiplas ocasiões ao longo da vida cristã. 19 De acordo com Sam Storms, há duas maneiras de alguém ser “cheio do Espírito”. Primeiro, existem textos bíblicos que descrevem pessoas que estão “cheias do Espírito Santo” como se isso fosse uma condição ou qualidade própria do caráter cristão, uma disposição moral resultante em maturidade cristã.20 Essa é a condição ideal de todo cristão, ser permanentemente cheio do Espírito. Mas, segundo, existem outros textos que descrevem pessoas sendo “cheias com o Espírito Santo”, a fim de capacitá-las para desempenhar uma tarefa especial ou equipá-las para um serviço ou ministério duradouro. 21 Em certas ocasiões, uma pessoa pode ser “preenchida” com uma concessão imediata e especial de poder espiritual para desempenhar uma tarefa importante e urgente. Logo, mesmo quem já é cheio do Espírito Santo pode experimentar um preenchimento adicional do Espírito. O exemplo mais marcante é o de Estêvão, descrito como alguém cheio do Espírito que, mais
tarde, é preenchido com o Espírito a fim de testemunhar corajosamente do evangelho perante seus perseguidores para, em seguida, enfrentar o martírio.22 Em outras palavras, não importa o quanto alguém já tenha experimentado do Espírito, há sempre mais a ser desfrutado. 23 O mais incrível é que, na maioria dessas ocasiões, não há uma indicação clara de que essas pessoas pediram para serem preenchidas ou capacitadas pelo Espírito. Foi uma obra soberana de Deus em suas vidas, à medida que elas caminhavam em obediência e submissão ao Senhor.24 Como bem resume mais uma vez Sam Storms: Ser “cheio com o Espírito” é diferente de ser “batizado no Espírito”. Há um único batismo, mas existem múltiplos preenchimentos. Em nenhum texto do Novo Testamento recebemos uma ordem para sermos batizados no Espírito Santo. Não existe apelo algum para fazer algo a fim de ser batizado [no Espírito]; não existe exortação nem imperativo. Em compensação, recebemos uma ordem para nos enchermos do Espírito Santo (Ef 5.18). Portanto, é possível ser batizado no Espírito Santo, experimentar a habitação permanente do Espírito Santo, mas não estar preenchido pelo Espírito Santo. Finalmente, ser “cheio do Espírito Santo” significa refletir uma maturidade de caráter; é a condição ideal de todo crente. Ser “cheio com o Espírito Santo” representa uma unção de poder, pureza, proclamação e louvor.25
CONSIDERAÇÕES FINAIS À luz das evidências bíblicas, cremos que as Escrituras exigem que apliquemos a terminologia do “batismo no Espírito Santo” exclusivamente à experiência da conversão e universalmente à conversão de todos os crentes verdadeiros. Ao mesmo tempo, esse uso específico do termo “batismo no Espírito Santo” de forma alguma restringe a ação do Espírito Santo ao momento da conversão. Portanto, os nossos irmãos protestantes tradicionais e os evangélicos em geral estão corretos em afirmar que todos os cristãos genuínos receberam o batismo no Espírito Santo no momento de sua conversão. Contudo, eles estão errados se e quando negam a realidade e a necessidade de experiências posteriores com o Espírito, ao longo da carreira cristã. 26 Em contrapartida, os nossos irmãos carismáticos e pentecostais estão corretos em afirmar a realidade e a importância das experiências com o Espírito Santo, posteriores à conversão, que capacitam, iluminam e transformam a vida do crente. Entretanto, eles estão errados em chamar essa experiência de “batismo no Espírito Santo”.27 No fim das contas, será que faz tanta diferença assim argumentar sobre o referente específico do termo “batismo no Espírito Santo”? Será que não estamos usando palavras e termos diferentes para descrever experiências semelhantes, verdadeiras e bíblicas? Por um lado, devemos ser zelosos em respeitar e preservar o sentido bíblico de expressões bíblicas tais como o “batismo no Espírito”. Deixar de fazê-lo não só acarreta em descuido com o testemunho bíblico, como pode resultar em desdobramentos imprevisíveis e indesejáveis. Somos responsáveis não só por nossas formulações e definições teológicas, mas também por suas repercussões. Ensinar que o “batismo no Espírito” representa um segundo estágio na vida cristã, exclusivo apenas para alguns cristãos que o buscam e cumprem com as condições necessárias para alcançá-lo, pode acarretar tanto em
elitismo espiritual por parte daqueles que se julgam maiores detentores e possuidores do Espírito quanto em uma noção fictícia de que a salvação venha pela graça, mas a capacitação para o testemunho e o serviço cristão venham por nosso esforço e empenho. Todo cuidado é pouco para evitarmos as armadilhas do orgulho espiritual em relação a outros irmãos na fé, supostamente “menos espirituais” ou “menos cheios do Espírito”, e no tocante a nosso próprio serviço a Deus. Por outro lado, por mais que alguém insista em usar a expressão “batismo no Espírito” de forma diferente daquela defendida aqui, é importante reconhecer que não estamos questionando a legitimidade de experiências com o Espírito Santo após a conversão. Mesmo a imprecisão teológica humana não é capaz de desqualificar a ação sobrenatural do Espírito Santo na vida de cristãos genuinamente convertidos ao evangelho.28 Seria melhor que todos nós concordássemos em usar a expressão bíblica “batismo no Espírito Santo” com o mesmo significado. Contudo, mesmo na ausência de tal concordância, não deixemos todos nós de buscar uma comunhão maior com o Espírito e uma capacitação maior do Espírito para fazermos a obra de Deus neste mundo. 1 O breve resumo a seguir segue o esboço histórico “What is baptism in the Spirit, and when does it
happen?”, in: Sam Storms, Tough topics: biblical answers to 25 challenging questions (Wheaton: Crossway, 2013), p. 252-75. Esse material também está disponível na forma de dois artigos no blog do próprio autor, disponível em: http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holy-spirit--part-i, acesso em: 29 mar. 2018. http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holy-spirit--part-ii, acesso em: 29 mar. 2018. A argumentação histórica a seguir depende, em grande parte, da análise de H. I. Lederle, Treasures old and new: interpretations of ‘Spirit-baptism’ in the Charismatic renewal movement (Peabody: Hendrickson, 1988), conforme a indicação bibliográfica do próprio autor. 2 Um bom exemplo da tese do batismo consciente e experimental no Espírito por ocasião da conversão a Cristo é o testemunho de conversão do famoso pregador do Primeiro Grande Avivamento, George Whitefield, conforme relatado em seu diário pessoal, citado por Sam Storms (vide nota anterior). Para um exemplo da tese do batismo inconsciente ou subconsciente no Espírito, confira a obra de John Stott, Batismo e plenitude do Espírito Santo: o mover sobrenatural de Deus (São Paulo: Vida Nova, 2007). 3 Tradução própria do texto, disponível em: http://ag.org/top/Beliefs/Statement_of_Fundamental_Truths/sft.pdf, acesso em: 29 mar. 2018. 4 Sam Stormns, Tough topics: biblical answers to 25 challenging questions (Wheaton: Crossway, 2013), p. 256-7. É importante ressaltar que nem todos os teólogos afiliados a essa denominação
pentecostal clássica aderem aos pontos descritos acima. O exemplo mais importante e relevante é o de Gordon Fee, estudioso do Novo Testamento que, apesar de afiliado às Assembleias de Deus, questionou todos os pontos acima referentes à subsequência, condicionalidade e evidência física inicial do dom de línguas. Cf. Gordon Fee, “Baptism in the Holy Spirit: the issue of separability and subsequence”, Pneuma 7, n. 2 (1985): 87-99. Para um tratamento mais recente e completo desse e de outros pontos importantes, confira a excelente obra de Gordon Fee, Paulo, o Espírito e o povo de Deus (São Paulo: Vida Nova, 2015). 5 Com base nas observações de Gordon Fee, Sam Storms aponta possíveis razões que levaram ao desenvolvimento da visão pentecostal clássica acerca do batismo no Espírito Santo. Os primeiros participantes do movimento pentecostal moderno estavam profundamente insatisfeitos com a letargia e a frieza espiritual do cristianismo nominal das denominações históricas, no início do século 20 nos EUA. O desejo por uma busca renovada por Deus e pelo Espírito resultou em novas experiências espirituais profundas, genuínas e dramáticas — muitas delas marcadas por uma nova apreciação do amor, da santidade e do poder sobrenatural de Deus. Tais experiências evidentemente ocorreram muito tempo depois da conversão daquela gente. Por fim, esses crentes formaram um grupo que tivera uma experiência e estava à procura de uma teologia que explicasse tal fenômeno. Ao se voltarem para as Escrituras — principalmente para o testemunho do livro de Atos dos Apóstolos —, muitas dessas pessoas simplesmente identificaram sua experiência com o “batismo no Espírito Santo” do Dia de Pentecostes. Cf. Sam Storms, op. cit., p. 263. 6 Existe uma última tese defendida pelos expoentes da Renovação Carismática Católica, isto é, a visão sacramental do batismo no Espírito. Segunda essa linha, a criança recém-nascida é infundida com o Espírito Santo por ocasião de seu batismo na Igreja Católica Romana. O Espírito Santo permanece em estado dormente, tal qual a semente plantada sob a terra, até que no momento oportuno ele desperta na vida da criança batizada e manifesta-se em poder para o testemunho e serviço cristão. Cf. Storms, op. cit., p. 257. 7 Cf. Rm 8.9; 1Co 12.1-3,12-13. 8 Cf. Lc 11.13; Ef 5.18. 9 Em linhas gerais, esse é o mesmo argumento apresentado por John Stott, op. cit., p. 21-77. 10 Cf. At 1.5, 2.17-21 (Jl 2.28-32), 2.33. 11 Cf. Is 32.15; 44.3; Jr 31.31-34; Ez 36.26,27; 39.29; Jl 2.28-32; Jo 7.37-39; At 1.5; 2.38,39. 12 Atos 2.33,38: “Portanto, exaltado à direita de Deus e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou o que agora vedes e ouvis. […] Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo.” 13 Defensores do batismo no Espírito Santo como uma “segunda bênção” ou segundo estágio na vida cristã costumeiramente citam outros três episódios no livro de Atos dos Apóstolos, além do Dia de Pentecostes, para fundamentar sua posição: a experiência dos samaritanos (At 8), dos da casa de Cornélio (At 10) e dos discípulos batizados pelo apóstolo Paulo em Éfeso (At 19). Como trataremos do caso da casa de Cornélio em outra seção, teceremos alguns breves comentários aqui sobre os outros dois episódios no livro de Atos. O caso dos doze discípulos batizados por Paulo em Éfeso é o mais simples de ser explicado (At 19.1-7). Naquela ocasião, quando estava de passagem por Éfeso, Paulo deparou-se com alguns homens que conheciam somente o batismo provisório e preparatório de arrependimento ensinado por João Batista. Eles nem sequer haviam ouvido falar da existência do Espírito Santo — uma possível
referência ao Dia de Pentecostes (At 19.2). Ou seja, eles nem sequer tinham experimentado a “primeira bênção” do Espírito mediante a conversão ao evangelho de Jesus Cristo. Tanto que Paulo imediatamente passou a lhes falar sobre Jesus e os batizou em seu nome, após o que receberam o Espírito Santo (At 19.4-6). Portanto, o texto narra o estágio inicial da vida cristã daqueles discípulos, por ocasião de sua conversão a Cristo pelo poder do Espírito, e não um segundo estágio de capacitação com poder. O caso da conversão dos samaritanos ao evangelho e de seu recebimento posterior do Espírito é, de longe, o mais difícil de ser explicado (At 8.4-24). Contudo, a natureza peculiar desse relato por si só deve conduzir à cautela quanto à sua normatividade para a vida cristã. Em outras palavras, temos aqui um caso excepcional e único no Novo Testamento que foge à regra ilustrada e descrita no restante da Bíblia. No caso em questão, os samaritanos são o único grupo descrito na Bíblia como tendo crido no evangelho antes de ter recebido o dom do Espírito Santo, mediante a imposição de mãos dos apóstolos Pedro e João (8.14-17). Várias interpretações existem acerca desse episódio. Como já mencionamos, esse é um texto clássico para os defensores da “segunda bênção” ou do segundo estágio da vida cristã. Contudo, o texto nem sequer relata uma primeira experiência do Espírito por ocasião de sua conversão ao evangelho, que seria sucedida por uma segunda experiência de poder no Espírito. É justamente isso que torna o texto tão excepcional e de difícil interpretação! Alguns alegam que o Espírito foi retido dos samaritanos, enquanto eles não recebessem a imposição de mãos dos apóstolos. Contudo, tal condição não é normativa na experiência de outros que receberam o “batismo no Espírito” (cf. Cornélio em At 10.44-46; 11.15-17). Outros alegam que os samaritanos não haviam recebido os dons do Espírito até a chegada dos apóstolos, apesar de o texto não indicar isso claramente. Por fim, alguns ainda questionam a legitimidade da conversão dos samaritanos antes da chegada de Pedro e João. Contudo, o texto deixa claro a submissão deles à Palavra pregada por Filipe, tanto que os apóstolos não tiveram de complementar a pregação do evangelho aos samaritanos antes que eles recebessem o dom do Espírito. A interpretação mais provável — apesar de não ser isenta de dificuldades — é a de que Deus soberanamente e intencionalmente adiou o derramamento do Espírito Santo sobre os samaritanos, até a chegada dos apóstolos Pedro e João, com o propósito de impedir a perpetuação da divisão histórica entre judeus e samaritanos dentro da igreja primitiva. Ou seja, esse episódio representa um caso excepcional, dadas as circunstâncias excepcionais. Deus orquestrou assim o derramamento do Espírito sobre os cristãos samaritanos, diante dos pilares judeus da igreja cristã vindos de Jerusalém (Pedro e João), com a intenção de impedir o questionamento da experiência cristã dos samaritanos e a posterior aceitação na comunhão cristã. Cf. Storms, op. cit., p. 267-71; Stott, op. cit., p. 33-6. 14 A seguinte análise segue de perto a exposição de Sam Storms, op. cit., p. 258-61. Confira também as observações de D. A. Carson, A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14 (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 44-51. 15 Como bem apontado por Sam Storms, mesmo que Paulo estivesse descrevendo aqui em 1Coríntios 12.13 uma “segunda bênção” ou um segundo estágio na vida cristã chamado de “batismo no Espírito”, isso poria fim à necessidade da evidência física do falar em línguas como sinal necessário dessa experiência, visto que nem todos em Corinto exercitavam esse dom (1Co 14.5). Como bem observa Craig Keener: “A asserção de que o dom de línguas sempre acompanha o batismo no Espírito talvez represente a diferença principal e irreconciliável entre pentecostais tradicionais e aqueles que discordam deles, como D. A. Carson observa: ‘Se o movimento carismático rejeitasse firmemente, com base bíblica, não o dom de línguas, mas sim a ideia de que ele constitui sinal especial de uma segunda
bênção, parte considerável do muro entre carismáticos e não carismáticos ruiria. Será que 1Coríntios 12 exige algo menos que isso?” ( O Espírito na igreja , p. 194). 16 Cf. 1Co 12.4-11. 17 Alguns estudiosos pentecostais contemporâneos argumentam que o protestantismo tradicional e os evangélicos em geral têm priorizado o papel soteriológico do Espírito Santo com base nos escritos de Paulo às custas do restante da evidência neotestamentária, especialmente nos escritos de Lucas em seu Evangelho e em Atos dos Apóstolos, que tratam da capacitação sobrenatural dos cristãos para o testemunho e o serviço pelo poder do Espírito Santo (cf. William W. Menzies; Robert P. Menzies, No oder do Espírito: fundamentos da experiência pentecostal [São Paulo: Vida, 2002]). Ao avaliarmos toda a evidência da Escritura sobre este ou qualquer outro tema, devemos ter o cuidado de não homogeneizar o testemunho dos diferentes autores bíblicos em suas ênfases distintas. Tampouco devemos priorizar a ênfase de um autor bíblico acima de outro. No tocante ao batismo no Espírito Santo, cremos que Paulo e Lucas concordam sobre essa experiência única e comum a todos os cristãos por ocasião de sua conversão a Cristo, conforme exposto na seção acima (cf. At 1.5, 2.38; 1Co 12.12,13). Contudo, como veremos adiante, não cremos que isso encerre a questão do papel contínuo e crescente do Espírito Santo na vida e no serviço da igreja. Nisso, cremos que Paulo e Lucas também estejam de acordo, pois ambos tratam da necessidade da busca contínua do Espírito, inclusive no tocante à capacitação com poder e dons espirituais para o serviço e testemunho cristão. (cf. Lc 11.13; Gl 3.1-5; Ef 5.18; 1Co 12-14). Em suma, concluímos que tanto Lucas como Paulo apontam para a ação plena do Espírito Santo na vida da igreja — desde a conversão a Cristo até a capacitação para o serviço a Cristo —, embora um autor bíblico possa enfatizar uma parcela dessa ação mais do que outro. Nesse particular, confira o excelente conjunto de ensaios de Craig Keener, O Espírito nos Evangelhos e em tos: pureza e poder divino (São Paulo: Vida Nova, 2018). 18 Cf. 1Co 12.1-13. 19 Sam Storms, op. cit., p. 262. 20 Cf. Lc 4.1; At 6.3,5; 11.24; 13.52. 21 Cf. Lc 1.15-17; At 9.17. 22 Cp. At 6.3; 7.55. 23 Cf. Lc 1.41,67; At 4.8,31; 7.55; 13.9. 24 Sam Storms, op. cit., p. 262. 25 Sam Storms, op. cit., p. 262-3. 26 Seguindo nessa linha, D. A. Carson coloca da seguinte forma em seu livro A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14 , tradução de Caio Peres (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 162: Apesar de não encontrar apoio bíblico para a teologia da segunda bênção, encontro apoio para uma teologia da segunda, terceira, quarta ou quinta bênção. Apesar de não ver nenhum charisma estabelecido biblicamente como critério para um segundo revestimento do Espírito, vejo que existem níveis de unção, bênção, serviço e alegria santa junto a outros dons mais celebrados atualmente, associados àqueles cujos corações foram tocados especialmente pelo soberano Deus. Embora eu ache extremamente perigoso buscar uma segunda bênção que seja atestada pelo falar em línguas, também acho que não anelar profundamente por Deus seja algo tão perigoso quanto isso, tornando-se satisfeito com um cristianismo meramente teórico que seja seguro, mas também complacente; ortodoxo, mas também engessado; sensato, mas também adormecido. 27 Sam Storms, disponível em: http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holyspirit---part-i, acesso em: 29 mar. 2018.
28 Outro
exemplo disso é a eleição incondicional e a salvação exclusiva pela graça de Deus de cristãos genuínos que discordam das doutrinas da graça expostas e defendidas pela tradição reformada. A nosso ver, não é preciso concordar com a doutrina da eleição segundo a tradição reformada e calvinista para ser um eleito de Deus — embora fosse melhor ser um eleito em concordância com tais doutrinas. Em outras palavras, não é defender a formulação teológica perfeita que torna alguém um dos eleitos.
DONS ESPIRITUAIS São possíveis ainda hoje? Qualquer discussão em torno de algum “ismo” apresenta uma série de dificuldades, sendo a principal delas a diferença entre o que ele realmente significa e como é compreendido popularmente. Segundo Jacques Ellul, 1 todo “-ismo” acaba traindo sua origem (p. ex., o cientificismo, o comunismo, o cristianismo etc.). Todo sistema de pensamento, ideologia ou movimento sofre acréscimos, mudanças e um processo que o deixa engessado, e até distorcido, ao longo do tempo. O pentecostalismo não foge a essa regra. Hoje, ele compreende uma série de doutrinas e práticas que não fizeram parte do ímpeto inicial do movimento pentecostal moderno. Por ser um movimento populista, de uns tempos para cá ele vem sofrendo acréscimos constantes, tais como: frases de efeito (“Está amarrado!”), práticas como orar no monte e crenças como a confissão positiva. Isso faz parte, então, do movimento? De certo modo, sim, mas não necessariamente. Essas coisas representam desdobramentos possíveis — embora não necessários — do imaginário social pentecostal, conforme o definimos anteriormente neste livro. Uma das áreas de maior confusão entre pentecostais diz respeito a dons espirituais. Como o pentecostalismo é um movimento que não se pautou pelo rigor do estudo bíblico, há equívocos embutidos até na sua “cesta básica” teológica, que vêm desde os primeiros anos do movimento. Faz-se necessário, portanto, repassar tudo à luz das Escrituras — até mesmo os dons carismáticos, tão defendidos pelos pentecostais desde suas origens — e reter o que é bom. Só há quatro passagens bíblicas que tratam de dons espirituais, a saber: Romanos 12.4-8; 1Coríntios 12 e 14; Efésios 4.11 e 1Pedro 4.10,11. Os dons de línguas e profecia são tratados em apenas uma dessas passagens: 1Coríntios 12 e 14. Todavia, mesmo antes dessas passagens, existem alguns
relatos em Atos dos Apóstolos que descrevem sua manifestação na igreja primitiva. E, mesmo antes dessas narrativas, há uma passagem do Novo Testamento que aparentemente prevê sua continuidade além da era apostólica, como veremos logo em seguida.
O DOM DE LÍNGUAS A primeira menção ao dom de línguas encontra-se em Marcos 16.15-20: E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado. E estes sinais acompanharão os que crerem: em meu nome expulsarão demônios, falarão novas línguas, pegarão em serpentes, e se beberem alguma coisa mortífera não lhes fará mal algum; imporão as mãos aos enfermos, e estes serão curados. Depois de lhes ter falado, o Senhor foi elevado ao céu e assentou-se à direita de Deus. Então, saindo os discípulos, pregaram por toda parte, e o Senhor cooperava com eles confirmando a palavra com os sinais que os acompanhavam.
Essa passagem é largamente citada, há pelo menos quatro gerações, como padrão do que seria o ministério pentecostal normal. Contudo, ela apresenta um problema: não está presente em alguns dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Alguns pais da igreja — Orígenes 2 e Clemente de Alexandria,3 por exemplo — não fizeram menção a ela. Eusébio 4 e Jerônimo5 também afirmaram que essa passagem não se encontrava na maioria dos manuscritos disponíveis em sua época. Entretanto, houve pais da igreja, como Ireneu, que a mencionaram. A referência aponta para novas línguas que seriam faladas e são incluídas numa lista de evidências miraculosas que acompanhariam a proclamação do evangelho. Ou seja, trata-se do dom de línguas, e não apenas de pregação a povos de outros idiomas, isto é, povos estrangeiros. O resumo da questão, porém, é este: não é uma passagem que, em si mesma, possa ser considerada evidência cabal e argumento suficiente para a continuidade do dom de línguas. Precisamos usar essa passagem com muito cuidado e nos perguntar se sua promessa de ministério milagroso futuro encontra sustentação em outras passagens.6
No livro de Atos dos Apóstolos, há três ocasiões que mencionam a manifestação milagrosa de pessoas falando em novas línguas que não haviam aprendido. A primeira encontra-se em Atos 2.1-13: Ao chegar o dia de Pentecostes, todos estavam reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. E apareceram umas línguas como de fogo, distribuídas entre eles, e sobre cada um pousou uma. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem. Estavam em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu. Quando o som foi ouvido, a multidão se aglomerou. E todos ficaram confusos, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. E, perplexos e admirados, diziam uns aos outros: Por acaso esses que estão falando não são todos galileus? Como, então, cada um de nós os ouve falar em nossa língua materna? Partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas a Cirene, e romanos aqui residentes, tanto judeus como convertidos ao judaísmo, cretenses e árabes, todos nós os ouvimos falar das grandezas de Deus em nossa própria língua. E perplexos e pasmos, todos diziam uns aos outros: O que isto quer dizer? Mas outros, zombando, diziam: Eles estão embriagados com vinho! Embora seja a primeira ocorrência de línguas estranhas no Novo Testamento, é de fato a segunda vez que o fenômeno da glossolalia aparece na Bíblia. A primeira ocorrência encontra-se em Gênesis 11.1-9, quando Deus confundiu as línguas dos homens em Babel, provocando a dispersão da humanidade pelo mundo antigo. Essa confusão das línguas em Babel foi tão traumática, que as pessoas literalmente fugiram umas das outras. No Dia de Pentecostes, ao contrário de Babel, a confusão acabou sendo um fator de agregação. Todos que se ajuntaram em Jerusalém, por ocasião da festa do Pentecostes, mesmo sendo de povos e línguas diferentes, acabaram ouvindo a
mesma proclamação das grandezas de Deus. Foi uma espécie de Babel às avessas, que redundou na conversão de três mil pessoas em um só dia. O ponto-chave que precisamos frisar do texto é este: essas línguas foram dadas pelo poder do Espírito Santo e as pessoas que as falaram claramente não tiveram oportunidade de tê-las aprendido antecipadamente, por se tratarem de pessoas humildes. Como se trata de um acontecimento único na história da redenção, dificilmente podemos extrair dele regras sobre o dom de línguas, com base nessa única ocorrência. Mesmo assim, fui criado na tradição pentecostal que extraiu uma fórmula dos versículos 38 e 39 desse mesmo capítulo de Atos: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. Porque a promessa é para vós, para vossos filhos e para todos os que estão longe, a quantos o Senhor nosso Deus chamar. A fórmula era simples: creia, seja batizado e você receberá o dom do Espírito Santo. Tão simples quanto uma sequência de passos: um, dois e três. Fui instruído que esse era o ideal — até mesmo o padrão — e era assim que Deus faria. Pregaríamos o evangelho, as pessoas creriam e seriam batizadas nas águas. Em seguida, receberiam o dom do Espírito, falando em outras línguas. Tudo isso foi tirado diretamente de Atos 2. Ao seguir na leitura de Atos, porém, encontramos problemas com essa fórmula. A segunda vez que deparamos com o dom de línguas no livro de Atos é na casa de Cornélio (At 10.23-48). Claramente instruído pelo Espírito Santo, Cornélio pediu a visita do apóstolo Pedro. Movido por uma visão, Pedro aceitou o convite e foi pregar sobre Cristo naquela casa de gentios tementes a Deus. Enquanto Pedro pregava, o Espírito Santo “desceu” sobre eles e começaram a falar em outras línguas, exaltando a Deus (At 10.46). Fui ensinado que nessa passagem houve uma exceção à regra. Na casa de Cornélio, a ordem foi passos um, três, dois, ou seja, creram, receberam o dom do Espírito Santo e foram batizados. Nesse caso, o batismo nas águas veio depois do dom do Espírito e das línguas estranhas. Todavia, no fim das
contas, o que vemos nessa passagem é que o Espírito Santo seguiu a ordem que bem quis. E fez isso para mostrar aos judeus que o evangelho também seria para os que não eram descendentes étnicos de Abraão. Quando Pedro voltou para Jerusalém, defendeu a oferta do evangelho aos gentios, fundamentando-se no fato de eles terem recebido o dom do Espírito Santo (At 11.1-18). A terceira vez que encontramos o dom de línguas em Atos é na visita de Paulo a Éfeso (At 19.1-7). Havia lá alguns “discípulos”. Ao questioná-los, Paulo descobriu que eles só haviam recebido o batismo de João Batista, dando a entender que eram discípulos de João somente, e não de Cristo. Eles receberam as boas-novas de Cristo, foram batizados e receberam a imposição de mãos. Veio sobre eles o Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas e a profetizar. Nessa passagem, muitos pentecostais veem a fórmula funcionar, mas ignoram que a suposta “evidência” da presença do Espírito — isto é, o dom de línguas — é mencionado ao lado do dom de profecia também (At 19.6). Somando-se os três acontecimentos, fica muito difícil fazer a defesa de uma fórmula rígida sobre a ordem do recebimento do Espírito Santo, e mais ainda sobre o dom de línguas como sua única evidência necessária. Em cada caso, parece que o Espírito fez algo um pouco diferente e por razões diferentes. Longe de nos ajudar a enquadrar o dom de falar em línguas, o livro de Atos parece se limitar a registrar a manifestação desse dom. Os discípulos que estiveram com Pedro na casa de Cornélio viram na glossolalia uma prova de que os gentios poderiam legitimamente ser incluídos na igreja, pois sua manifestação era igual àquela presenciada no Dia de Pentecostes. Todavia, em Éfeso, as línguas foram apenas registradas e não houve sinal de que serviram para a mesma função das línguas que foram ouvidas na casa de Cornélio. Temos que ter cuidado com o que fazemos com o texto, no sentido de nos limitarmos ao que ele claramente ensina, e não atribuirmos a essas narrativas funções que elas não têm. Certamente a “fórmula 1-2-3” não tem base muito segura, se considerarmos apenas esses três exemplos. Para que servem, então? Por que o Espírito concedeu esse dom àqueles discípulos, e será que
podemos esperar que ele tenha ainda relevância em nossos dias? Para responder a isso, temos de apelar para Paulo e para o único tratamento que ele deu ao dom em 1Coríntios 12 e 14.
O DOM DE LÍNGUAS EM CORINTO A passagem de 1Coríntios 12 começa com as palavras: “A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes”. O capítulo se divide em duas partes. A primeira parte limita-se a listar diversos dons espirituais; a mostrar que a espiritualidade de alguém não depende exclusivamente da manifestação de um desses dons, e sim de sua confissão de Jesus como Senhor; e a pontuar que esses dons são distribuídos pelo mesmo e único Espírito, visando ao bem comum (1Co 12.1-11). 7 A segunda parte do capítulo mostra a importância de entender a igreja como uma unidade, um corpo (1Co 12.12-31). O bem de um, portanto, redunda no bem de todos, e vice-versa. O capítulo termina fazendo uma série de perguntas retóricas: “Acaso são todos apóstolos? São todos profetas? São todos mestres? Todos realizam milagres? Todos têm dons de curar? Falam todos em línguas? Todos as interpretam?” (1Co 12.29,30). A resposta é óbvia: “Não”. Nem todos são apóstolos, nem profetas ou mestres. Nem todos realizam milagres ou têm dons de curar. E nem todos falam em línguas ou as interpretam. Para um pentecostal clássico, esse conceito é problemático, pois o dom de línguas — ainda segundo o pentecostalismo clássico — é a evidência do “batismo no Espírito Santo”. 8 Ou seja, esse dom serve de evidência necessária do cumprimento da “fórmula 1-2-3” descrita acima. Quem não fala em línguas é deficiente e incompleto em sua vivência cristã. Mas o texto em si não sustenta essa doutrina. Em nenhum momento ele reconhece o dom de línguas como evidência necessária do recebimento do Espírito Santo. É um dom como os outros, mas nem todos recebem esse dom. Quantos pentecostais abandonaram a igreja por acharem que tinham sido desprezados pelo Espírito Santo? Não falavam em línguas e ficaram magoados pela exclusão. Ou quantos pentecostais “falam” em outra língua que não passa de uma imitação de algo que ouviram. Quantos já não fizeram isso para não se sentirem “inferiores” a seus irmãos, que claramente receberam o dom? O tão comentado “ralabaxi”9 pentecostal é uma das aberrações que surgiu por não
entendermos que esse dom não se aplica a todos e certamente não é uma evidência necessária da presença do Espírito Santo em nossa vida. Conheço pastores que, até hoje, oram por alguém com uma enxurrada de meras sílabas claramente ensaiadas, e que não são línguas concedidas milagrosamente pelo Espírito Santo. Essa é uma das tragédias do pentecostalismo, que tem causado dor a tantos e tem sido motivo de escárnio e censura por parte de irmãos não pentecostais. Mas se não se trata de uma evidência necessária, do que se trata então? O que é o dom de línguas, afinal? No capítulo 14, Paulo foi bem claro quanto a esse dom tão polêmico, seja em Corinto ou em nossos dias. Em 1Coríntios 14.2 temos uma definição clara de seu propósito: “Pois quem fala em uma língua não fala aos homens, mas com Deus”. Sabemos para que serve o dom de mestre. O dom de socorros é igualmente fácil de entender. Paulo afirma que o dom de línguas serve para falar com Deus. É, portanto, uma linguagem de oração. Os cuidados de Paulo nesse capítulo deixam bem claro que muitos excessos eram cometidos em Corinto. Pessoas estavam irrompendo em línguas no meio do culto. Estavam criando confusão e se orgulhando disso. Paulo deixou claro que o dom de línguas não tem como contexto principal o culto público. Vemos o esforço do apóstolo para tentar limitar e cercar de cuidados a eventual manifestação desse dom no contexto do culto público. Ele não proibiu nem desestimulou o falar em outras línguas. Pelo contrário, vemos entusiasmo pelo dom. Ele procurou esclarecer seu propósito como uma linguagem de oração e, ao mesmo tempo, dissuadir os coríntios de abusar dele. Mais ainda: defendeu que era preferível profetizar, falando palavras que todos pudessem entender. Gostaria de frisar, no entanto, que Paulo não desestimulou a busca desse dom. Pelo contrário, ele afirmou: “Gostaria que todos vós falásseis em línguas…” (1Co 14.5). Há benefícios em orar no poder do Espírito Santo? Sem dúvida alguma. Todavia, em se tratando do culto público, não existe benefício, salvo pela interpretação dessas línguas (1Co 14.13). Adiante, Paulo mostrou que orar em línguas é algo que parte do Espírito e que não é uma expressão da razão humana (1Co 14.14). Ele fez um contraste entre falar com entendimento e falar com o Espírito (1Co 14.15). Quem fala
numa língua fala em mistérios. O idioma falado é desconhecido e é uma língua de verdade. Dizer que falar em línguas é apenas balbuciar significa fazer uma leitura falha do texto, pois ignora que a língua em questão é passível de interpretação, segundo Paulo (1Co 14.13). Imagino que o Espírito Santo jamais nos faria balbuciar bobagens em oração. Ele nos dá capacidade de orar de uma maneira que extrapola a nossa compreensão (Rm 8.26,27). É uma linguagem compreensível para o Espírito, mas não é fruto da razão humana. O fato de a pessoa não entender o que fala não significa que esteja falando bobagem ou balbuciando como um neném. O que Paulo deixa claro é que esse dom permite que o meu espírito ore (1Co 14.14). Essa oração parte de mim, pelo poder do Espirito Santo, embora minha mente não a compreenda, salvo quando houver interpretação. Veja que Paulo fez uma afirmação surpreendente aqui. Ele afirmou que falava em línguas mais do que todos os seus leitores (1Co 14.18). Por que foi necessário que ele informasse aos coríntios que falava em línguas? Como não saberiam disso? A resposta é óbvia. Ele não exercia esse dom publicamente. Provavelmente, fazia parte de sua vida particular de oração. Pessoalmente, posso fazer minhas as palavras de Paulo. Não se passa um dia sem que eu ore em línguas. É algo que faz parte da minha vida com Deus. Mas não faço isso publicamente. Em algumas ocasiões, dependendo do motivo específico de oração, tenho notado uma mudança da língua na qual oro. E, embora não entenda o que estou orando, o tom e a expressão verbal mudam bastante. Não sei por que isso acontece. Às vezes parece uma língua oriental, outras vezes uma língua indígena, segundo minha percepção. Realmente não sei. Mas tenho aceitado isso como parte de minha conversa com Deus. Pela fé, creio que o Espírito me capacita a pedir e a dizer coisas que não saberia dizer ou pedir por minha própria iniciativa. Creio que o Senhor me edifica dessa maneira, assim como Paulo afirmou: “Pois quem fala em uma língua não fala aos homens, mas com Deus, porque ninguém o entende, mas pelo Espírito fala mistérios” e “O que fala em uma língua edifica a si mesmo” (1Co 14.2,4a). Por causa de tantos abusos e piadas em torno desse dom, tenho observado algo muito desolador na igreja. Muitos defendem dons espirituais e são
continuacionistas em teoria, mas não exercem nem buscam os dons na prática. Isso os torna, na prática, cessacionistas. Creio que precisamos voltar a buscar os melhores dons, incluindo o de falar em outras línguas. Defendo esse dom, pois creio na imperiosa necessidade de orarmos mais e com mais profundidade do que temos feito.10
O DOM DE PROFECIA Tão polêmico quanto o dom de línguas — e provavelmente mais problemático — é o dom de profecia. Quantos pentecostais já não foram vítimas das tão conhecidas “profetadas” proferidas por irmãos e irmãs que imaginavam ter uma revelação para eles? Em Atos dos Apóstolos temos exemplos de profecias e de profetas cristãos. É certo que se trata da época apostólica e muitos afirmam que os dons espirituais cessaram após a primeira geração da igreja. Vou tratar disso mais adiante. Contudo, vamos tecer alguns poucos comentários sobre profecia e a sua possível função em nossos dias. Em Atos 11.27,28, é citado um profeta chamado Ágabo, que previu uma grande fome no mundo romano. Isso motivou a igreja a mobilizar esforços para socorrer os irmãos na Judeia. Ele aparece novamente em Atos 21.10,11, prevendo a prisão de Paulo, que de fato veio a acontecer. Contudo, nem toda profecia prediz o futuro nem prescreve uma ação. No primeiro exemplo citado, a igreja se mobilizou por causa da palavra de Ágabo. No entanto, da segunda vez em que Ágabo profetizou, Paulo ignorou seu aviso sobre sua futura prisão. É possível que ainda haja momentos nos quais o Espírito fale sobre acontecimentos que estão por vir? Certamente. No caso da nação da Armênia, por exemplo, houve uma profecia entre os cristãos pentecostais que apontou para um genocídio vindouro das mãos dos turcos, no início do século 20. Muitas famílias deram ouvidos a esse aviso e fugiram para os Estados Unidos. Um dos refugiados, Demos Shakarian, viria a se tornar o fundador mundial da ADHONEP. A sobrevivência da família de Shakarian deve-se a essa profecia.11 Contudo, voltemos a 1Coríntios 14 para entendermos o que Paulo define como profecia. No versículo 3 ele diz: “Mas quem profetiza, fala aos homens para edificação, exortação e consolação”. Edificação já é uma função das Escrituras (2Tm 3.16,17). Encorajamento e consolo não deixam de ser
funções das Escrituras também. Em nenhum lugar a profecia neotestamentária é claramente definida como um instrumento de instrução e direcionamento individual. Mas, voltando ao texto de 1Coríntios 14, uma coisa é mais do que clara. Toda palavra proferida “profeticamente” deve sofrer o escrutínio da assembleia dos santos (1Co 14.29). Tudo deve transcorrer debaixo de certo rigor, pois toda palavra proferida é passível de erro (1Ts 5.20,21). Só as Escrituras Sagradas são infalíveis. Entende-se que, na coletividade, há uma sabedoria e uma segurança para que a palavra profética não corra solta e sem disciplina. O exemplo de Ágabo não parece ter qualquer relação com a descrição de Paulo em 1Coríntios 14. Resta perguntar se há ou não algum exemplo, no livro de Atos, do tipo de profecia mencionada pelo apóstolo. E de fato há. Em Atos 15, encontramos a descrição do concílio de Jerusalém e suas medidas para fortalecer os cristãos em Antioquia. Entre as medidas tomadas, foi decidido que vários irmãos seriam enviados a eles. A partir do versículo 32 lemos: Em seguida, Judas e Silas, que também eram profetas, exortaram os irmãos com muitas palavras e os fortaleceram. E, tendo-se demorado ali algum tempo, partiram com a bênção dos irmãos, a fim de retornar aos que os haviam enviado. Mas Silas achou melhor permanecer ali. Paulo e Barnabé demoraram-se durante algum tempo em Antioquia, ensinando e pregando a palavra do Senhor juntamente com muitos outros (v. 32-35). Veja que o trabalho dos profetas tinha o efeito de encorajar e fortalecer, enquanto outros foram instrumentos no ensino e na pregação da palavra do Senhor. Diferentemente de Ágabo, vemos em Judas e Silas um exemplo mais próximo do que Paulo descreve como a função normativa da profecia neotestamentária. Ao falar de profecia atual, portanto, não podemos excluir nenhum desses modos de expressão profética. O problema maior, quando tratamos da contemporaneidade de profecias, encontra-se no fato de o mundo pentecostal ter sofrido uma influência devastadora da cultura de vidência. Pessoas querem ser “reveladas”. Pessoas
querem um guru, alguém que possa ser consultado. Uma espécie de cartomante cristã — alguém que tenha uma “linha direta” com Deus. Certa vez, uma pessoa me parou na porta da igreja e disse que Deus havia lhe revelado que eu tinha uma palavra para a sua vida. Minha resposta foi que deixasse seu nome e telefone que, assim que eu recebesse a palavra, entraria em contato. Ela despediu-se satisfeita com a minha resposta. Mas, até hoje, depois de duas décadas, aguarda uma palavra minha. A maioria dos pentecostais se limitam a “revelar” uns para os outros uma passagem bíblica que acreditam ser para alguém naquele dia. Fui interpelado por uma irmã no shopping outro dia. Ela me disse que a Palavra de Deus para mim naquele dia era Deuteronômio 28 (as bênçãos e as maldições da lei). Acho a prática inofensiva. E houve ocasiões em que confesso ter recebido uma “palavra” dessas que muito me abençoou. Nem todas são tiros no escuro. Há pessoas que ouvem de Deus e são usadas por ele. Mas, em todas as coisas, a grande preocupação que deve ser frequente em nossa mente e coração é a de submeter tudo ao crivo das Escrituras Sagradas. Qualquer “palavra” ou prática precisa ser examinada na coletividade da igreja e debaixo de uma leitura cuidadosa das Escrituras. Os grandes problemas acabam surgindo quando pessoas profetizam ao pé de ouvido. “Revelam” de modo particular e de maneira tão absolutista que não se submetem a qualquer tipo de exame. Chegam a introduzir sua revelação com a fórmula: “Eu, o Senhor, vos falo…”. Isso é quase uma chantagem para quem ouve e certamente não cria a possibilidade de aquilo ser examinado, para saber se é algo inspirado por Deus ou não.12 Melhor seria compartilhar a sua impressão no contexto de uma reunião menor com outros cristãos — de preferência sob a supervisão de uma liderança pastoral —, na qual as pessoas possam avaliar e acatar ou não a palavra em questão, com graça e com paciência. Mas quantos pentecostais já não se casaram com alguém porque lhes foi “revelado” que era da vontade de Deus? Isso quase sempre acaba em tragédia e desastre. Quantos não vivem uma vida de frustração e medo por não terem atendido ao chamado missionário ou para o ministério pastoral que alguém lhes “revelou”? Tais pessoas passam o resto da vida se sentido culpadas por seguirem outra carreira que não seja o ministério em tempo integral. Por
existirem tantos casos desastrosos de abusos e erros nessa questão, a tendência da nova geração de pentecostais é de fugir completamente de qualquer pretensão ao exercício de dons espirituais, principalmente os de línguas e de profecia. É triste. E desnecessário. À igreja mais problemática do mundo antigo, isto é, Corinto, Paulo ainda teve coragem de dizer que deveriam buscar os melhores dons: “Portanto, irmãos, desejai intensamente o dom de profetizar, e não proibais o falar em línguas” (1Co 14.39). Ao contrário do que fazemos hoje, evitando os dons por completo, precisamos dar ouvidos aos conselhos e às instruções de Paulo, a fim de desejarmos, pedirmos e buscarmos a fruição dos dons.13
A CONTINUIDADE DOS DONS Por um lado, a continuidade da manifestação dos dons espirituais é um pressuposto defendido por todos os pentecostais. Apesar dos inúmeros casos de abuso nessa área — não só nos últimos tempos, mas ao longo de mais de um século do movimento pentecostal moderno — continuamos a afirmar o imperativo de Paulo de buscarmos os melhores dons (1Co 12.31; 14.1). O próprio apóstolo Pedro, em seu grande sermão no Dia de Pentecostes, afirmou, com base na profecia de Joel 2.28-32, que o Espírito Santo concederia dos seus dons, inclusive o de profecia, a todos — independentemente de gênero, idade ou classe social — como parte da evidência da chegada dos “últimos dias” inaugurados pela morte e ressurreição de Jesus Cristo (At 2.17-21). Até que Cristo volte, portanto, para encerrar esse tempo com sua segunda vinda, espera-se que esses dons — inclusive línguas e profecia — continuem em operação no meio da igreja (1Co 13.8-13).14 Logo, todo pentecostal, seja ele clássico ou reformado, é um defensor do continuacionismo, pelo menos na teoria. Por outro lado, temos visto uma expressiva diminuição da manifestação equilibrada de dons espirituais na igreja. Temos ouvido pouca instrução sobre línguas e profecia, sobre os dons de discernimento de espíritos ou até mesmo de cura divina. Paradoxalmente, temos visto uma crescente tendência de lançar mão de coisas sem relação alguma com o exercício sadio de dons espirituais: terapias espirituais de toda sorte, correntes de oração temáticas, além da transposição de certas narrativas do Antigo Testamento com aplicações, no mínimo, estranhas. Lamentavelmente, do que mais se ouve falar nos arraiais pentecostais é de práticas absurdas, leitura dos tempos e previsões estapafúrdias, títulos malucos e ministérios sem pé nem cabeça. Parece que a cada semana alguém reinventa a roda, com novas revelações e novidades espiritualistas que em nada dizem respeito às Sagradas Escrituras. É como se o campo pentecostal tivesse se transformado numa versão religiosa do livro O senhor das
moscas,15 no qual a anarquia e a maldade humana se multiplicam mais e mais
até que tudo acabe em ruína. Por que essas coisas prosperam? Por que ainda há pessoas que atribuem alguma virtude a esses líderes que claramente não vivem debaixo da autoridade da Bíblia, mas apenas usam as Escrituras como desculpa para seus voos de imaginação e sua vã ambição? Tenho pensado muito sobre isso. E creio que, em parte, a proliferação dessas coisas se deve a dois fatores. O primeiro é que somos um país espiritualista e desamparado. O próprio papa Francisco afirmou que, quando as pessoas deixam a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e ingressam na igreja evangélica, e mais especificamente no campo pentecostal, elas continuam com as suas imagens de santos “dentro do armário”, por assim dizer. Para ele, trazê-las de volta para a ICAR é algo razoavelmente fácil, porque seu processo cúltico, de fato, não mudou. Continuam a buscar benesses de Deus por meio de rituais e sacrifícios, de promessas e processos que espelham um catolicismo medieval e até beiram à magia. Antes acendiam velas aos santos, agora fazem outros tipos de oferendas, obedecendo a outros tipos de rituais, mas com o mesmo propósito e a mesma mentalidade. Esse propósito é alcançar, de alguma maneira, uma vantagem que supra as suas reais e urgentes necessidades. Somos um país de necessitados, digamos a verdade. Não temos nossos direitos assegurados pelos governantes. Pessoas morrem na fila do hospital público com frequência. E quando alguém nos lesa — uma prestadora de serviços, um ladrão ou até um servidor público — não temos a quem recorrer sem que tenhamos de seguir um longo caminho, num labirinto armado para nos desestimular e nos convencer de que não há esperança para nós. Em contrapartida, sabemos que, se conhecermos alguém numa posição de acesso ao poder — o tão conhecido “pistolão” —, nosso problema será resolvido “por fora”, ou seja, por vias não oficiais. Quem vende esperança, ou um caminho, ou “poder” para dar jeito nas coisas é visto como um “pistolão espiritual” — alguém que conhece os meandros do poder espiritual. Os que estão de posse desses meios são celebrados como arautos de um poder concedido por Deus. E submetemos a
esses “líderes” nossas mentes e carteiras, pois, de que outra maneira poderíamos encarar a dura realidade do nosso dia a dia? Vivemos tempos medievais, de serviços públicos que não prestam contas aos que os financiam, de um Estado que vive na dependência dos poderosos e dos que vivem a lucrar com os rios de dinheiro que passam pelas suas mãos. Se formos assaltados, somos apenas mais um em meio a uma multidão que sofre o que sofremos ou até pior. Então, o cidadão se desespera. Ele quer poder. Quer um redentor, hoje. Quer um profeta que mostre como “dar jeito no Brasil” ou, pelo menos, na sua situação. E não são poucos os que querem isso. Basta ver como enormes multidões enchem galpões em busca de mais um patuá, mais uma oração “tiro e queda” para melhorar, pelo menos um pouquinho, sua miserável existência. O segundo fator que contribui para a proliferação dessas práticas absurdas, o qual é muito ligado ao primeiro, é que buscamos um líder que seja o portavoz de todos os nossos anseios e que nos traga a solução do alto; é a tão celebrada figura do “salvador da pátria”. Por isso, o Brasil é marcado — em especial no campo pentecostal — por líderes carismáticos que acabam exercendo uma influência avassaladora sobre multidões de pessoas. Não nos importamos com seu estilo de vida ou seus excessos, sejam eles de raiva, de estilo de vida ou até de imoralidade. Se derem conta do recado, “pelo menos algo de bom estão fazendo”, como tantos dizem. Mas essas condições não são apropriadas para o exercício sadio de dons espirituais. Afinal de contas, dons existem onde há ensino equilibrado, submissão mútua, disciplina coletiva e um compromisso de andar em união. Eles exigem uma liderança equilibrada e piedosa que se dedica ao ensino da Palavra. Contudo, vivemos numa época de analfabetismo bíblico, de confusão teológica, de flacidez moral e espiritual e de uma cacofonia de vozes que contaminam os frequentadores da internet. Poucos se dão ao trabalho de ler a sua Bíblia, muito menos de estudá-la; limitam-se a serem seguidores do seu guru pentecostal predileto. Vejamos o que Paulo disse sobre os dons espirituais. Em Romanos 12,
dons fazem parte de uma discussão sobre o nosso culto “racional” a Deus (Rm 12.1). Esse culto compreende a renovação da nossa mente, para que não sejamos moldados ao mundo e não tenhamos um conceito exagerado de nós mesmos (12.2,3). Paulo segue falando sobre a natureza orgânica da igreja: somos membros de um corpo e cada membro tem a sua função (12.4-5). Cada membro também contribui segundo os dons que o Espírito lhe confere (12.6). Aqui, Paulo menciona os dons sem, contudo, explicá-los; mas mostra claramente a necessidade do seu exercício em espírito de amor para com a coletividade (12.9). Em sua lista ele inclui profecia, serviço, ensino, o dom de dar ânimo, contribuir, liderar e mostrar misericórdia (12.6-8). E termina o capítulo colocando tudo no contexto de um amor verdadeiro ao próximo (12.9-21). O que podemos tirar dessa primeira passagem? Dons não existem para o bem dos que os exercem, mas para o bem dos outros. Literalmente, o Espírito nos capacita para melhor servirmos uns aos outros. E isso é possível, quando cada membro entende seu lugar no corpo e serve ao próximo de coração e por amor. Os dons são listados sem instruções ou explicações em relação à dinâmica da sua operação. Em outras palavras, não há instruções sobre como receber esses dons. Não há instruções sobre como reconhecê-los. Simplesmente são tratados como algo cuja existência e operação Paulo constatou na igreja, sabendo que todos entenderiam do que se tratava. A mesma coisa acontece em 1Coríntios 12 e 14. Novamente, Paulo não fala sobre como receber o dom de línguas nem o dom de profecia. Ele simplesmente tratou de disciplinar o seu uso, principalmente no culto público. Os dons haviam surgido no contexto da igreja local, que andava em união e se dedicava ao ensino dos apóstolos. Nesse particular, é importante lembrar a descrição da igreja primitiva que encontramos em Atos 2.42-47: E eles perseveravam no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada um havia temor, e muitos sinais e feitos extraordinários eram realizados pelos apóstolos. Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e os repartiam com todos, segundo a necessidade de cada um. E
perseverando de comum acordo todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e contando com o favor de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos. Numa igreja saudável, os dons são distribuídos segundo a vontade do Espírito e para o bem da igreja. Foi assim que Lucas descreveu a primeira geração de cristãos: tinham compromisso com o estudo de doutrina apostólica (a Bíblia), havia união entre os irmãos, ajuda mútua, um compromisso com a assembleia dos santos, a ministração do sacramento da ceia (sempre que pudessem), uma comunhão sincera e generosa, além de uma vida de louvor a Deus. Em decorrência disso, eles ganharam a simpatia do povo e Deus lhe acrescentava pessoas regularmente. Lamentavelmente, isso não descreve a igreja dos nossos dias. Não vou entrar no mérito dessa questão enumerando nossas lacunas. Mas a simples lembrança dessa lista já provoca dores e constrangimentos em qualquer um de nós, por entendermos o quão aquém do alvo estamos na igreja atual. Em Efésios 4, na terceira e última vez em que menciona os dons espirituais, Paulo fala de cinco dons ou ministérios: apóstolo, 16 profeta, evangelista, pastor e mestre (Ef 4.11). Esses dons são dados à igreja também para promover a união e ensinar a sã doutrina aos fiéis, a fim de que não sejam vítimas fáceis de toda onda de doutrina que tenta abalar a assembleia dos santos (4.12-16). Novamente, ficamos tristes ao constatarmos quanto as ondas e os ventos de doutrinas dúbias têm adentrado os arraiais pentecostais. Por termos pastores ordenados que mal sabem a língua materna, muito menos estudam com afinco as Escrituras Sagradas, somos vítimas até dos nossos próprios pastores, que acabam repassando aos fiéis qualquer bobagem que leem ou que veem no YouTube. Não alimentam o seu povo, que anda voluntarioso, autoindulgente e ignorante do que a Bíblia ensina. Aliás, o próprio conceito de igreja parece estar falido em nossa geração. Muitos alimentam uma verdadeira hostilidade ao conceito de liderança ou até mesmo de assembleia dos santos. Acham que a igreja é um lugar em que somos meros espectadores, desde que nos agrade o que estiver ali acontecendo. E no
momento em que não nos agradar tanto, procuraremos outras pastagens. Em contrapartida, há muitos que deixam a igreja porque estão feridos. Foram manipulados e explorados. São mal pastoreados e mal amados. Infelizmente, existem pastores que nem deveriam ter sido ordenados, pois são inaptos, inescrupulosos e ignorantes a respeito do verdadeiro pastoreio. Com tudo isso, o movimento pentecostal está em agonia; de fato, parece estar morrendo. Quase não há mais grandes líderes movidos por paixão pelas almas perdidas. Quase não há mais lideranças castas e piedosas. Hoje muitos arraiais pentecostais assistem a um desfile de vaidades e de absurdos, liderados por “nuvens sem chuva” (Jd 12). Quase todas as maiores e mais tradicionais denominações pentecostais estão se partindo em mil pedaços. Algumas são lideradas por pastores ambiciosos e até mesmo perigosos — vivem nababescamente e chegam a andar armados. Também já ouvi, e não foram poucas as vezes, histórias de igrejas que recorreram à violência para destituir um pastor querido pela congregação, ou remover um pastor que não agradou a sua conjuntura superior. E quantos “pastores” não abandonaram o púlpito para ocupar um cargo político, ou, se ficaram, alugaram seus púlpitos e a sua credibilidade a partidos políticos em campanha? É uma tragédia nacional. E ainda falamos em dons espirituais? Como podemos? Em geral, parece não haver mais piedade ou amor pelo rebanho. Parece não haver mais compromisso com a igreja local ou dependência de Deus somente. Em geral, não há mais paixão pelas almas perdidas, nem dentro nem fora da igreja. Os dons são uma expressão da graça de Deus. O Espírito Santo age por intermédio de filhos e filhas que amam o seu próximo e submetem-se a fiéis lideranças que dedicam a sua vida ao ensino das Escrituras. Vejamos a última passagem bíblica que menciona os dons espirituais, registrada em 1Pedro 4.711: Mas já está próximo o fim de todas as coisas; portanto, tende bom senso e estai alertas em oração. Antes de tudo, tende profundo amor uns para com os outros, porque o amor cobre um grande número de pecados. Sede hospitaleiros uns para com os outros, sem vos queixar. Servi uns aos outros conforme o dom que cada um recebeu, como bons administradores
da multiforme graça de Deus. Se alguém fala, fale como quem comunica as palavras de Deus; se alguém serve, sirva segundo a força que Deus concede, para que em tudo Deus seja glorificado por meio de Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o domínio para todo o sempre. Amém. Mais uma vez, vemos como esse assunto está inserido em um contexto de vida piedosa, oração e amor para com o próximo. Na história recente do movimento pentecostal, tem havido muito furor em torno dos dons espirituais. Ficamos ressentidos com os irmãos cessacionistas, pois alguns chegam a fazer pouco caso de nós. Quando brincam sobre os nossos abusos, ficamos irritados; mas, convenhamos que até as piadas têm seu fundamento. Deveríamos ouvir os que nos criticam e pôr a mão na consciência. A igreja que procura poder, sinais e prodígios, sem antes priorizar as Escrituras, o compromisso com a igreja, a piedade e o amor para com os irmãos e até para com as almas perdidas que convivem conosco a cada dia, é uma igreja reduzida a um balcão de ofertas, benefícios e vantagens, impulsionada por truques, patuás, correntes e cultos especiais que não passam de paganismo disfarçado de igreja. Não é por menos que muitos pentecostais dessa nova geração andam em busca de uma teologia mais robusta. Não é de surpreender que tantos pentecostais estejam bebendo de fontes históricas, na voz dos seus representantes atuais como John Piper, Paul Washer, Timothy Keller, Augustus Nicodemus e tantos outros. As igrejas pentecostais e muitas das neopentecostais estão agonizando. Estão experimentando esvaziamento e descrédito por parte de seus próprios filhos e filhas, diáconos e jovens pastores. Se voltarmos aos fundamentos, creio que os dons espirituais não serão um problema. Se a igreja for avivada, com um interesse renovado pelo estudo da Palavra e o compromisso de ter uma vida de oração verdadeira, creio que veremos “naturalmente” um fluir sobrenatural em nosso meio, sem os abusos e absurdos que desfilam a cada dia pela internet. 17 1 Jacques
Ellul (1912-1994) foi um filósofo protestante francês, participante da resistência francesa
na Segunda Guerra Mundial, e um destacado teólogo no movimento ecumênico do século 20. 2 Orígenes (185-253) foi um dos principais teólogos patrísticos, escreveu mais de 600 obras teológicas, dentre as quais se destaca a famosa De principiis. Seus escritos influenciaram toda a geração seguinte de teólogos da igreja. 3 Clemente de Alexandria (150-215) foi um teólogo patrístico, eficaz apologista contra o gnosticismo que rondava a igreja à época. Entre seus diversos escritos, destacam-se Exortação aos gregos e Pedagogo. 4 Eusébio de Cesareia (265-339) foi um teólogo e historiador patrístico, considerado o pai da história da igreja por seu famoso livro História eclesiástica. 5 Jerônimo (347-420) foi um teólogo patrístico conhecido por sua tradução das Escrituras para o latim, a Vulgata, e por seu extenso comentário à Epístola aos Hebreus. 6 Mesmo não se tratando de uma passagem original ao Evangelho de Marcos, os versículos em questão — corroborados por manuscritos bastante antigos — minimamente atestam a expectativa, se não a própria observação da manifestação dos dons espirituais em associação à pregação do evangelho, mesmo após a passagem da geração apostólica. 7 Curiosamente, apesar de reconhecerem esse ponto, os teólogos cessacionistas costumam reduzir a manifestação dos dons espirituais aos “sinais, maravilhas e milagres” que marcaram o testemunho apostólico do evangelho (cf. 2Co 12.12). Logo, segundo os cessacionistas, com a passagem dos primeiros apóstolos, devemos reconhecer a passagem também dos dons espirituais. Reconhecemos que tais sinais serviram para corroborar a pregação dos apóstolos (2Co 12.12); porém, eles também foram concedidos para o “bem comum” da igreja, ou seja, para a sua edificação (1Co 12.7). Mas o “bem comum” da igreja não continua sendo uma necessidade perene da igreja, mesmo após a morte dos primeiros apóstolos? Então, por que deveríamos esperar a passagem dos dons espirituais e dos sinais que os acompanharam? E mais: se até mesmo a igreja apostólica careceu desses sinais para confirmar a pregação dos apóstolos — que foram testemunhas oculares autorizadas por Cristo Jesus — quanto mais a igreja de hoje carece desses sinais para confirmar a mensagem do evangelho na ausência dos apóstolos! 8 Para ler mais a esse respeito, confira o capítulo 10 deste livro. Novamente, como bem observa Craig Keener: “A asserção de que o dom de línguas sempre acompanha o batismo no Espírito talvez represente a diferença principal e irreconciliável entre pentecostais tradicionais e aqueles que discordam deles, como D. A. Carson observa: ‘Se o movimento carismático rejeitasse firmemente, com base bíblica, não o dom de línguas, mas sim a ideia de que ele constitui sinal especial de uma segunda bênção, parte considerável do muro entre carismáticos e não carismáticos ruiria. Será que 1Coríntios 12 exige algo menos que isso?” ( O Espírito na igreja , p. 194). 9 Este termo é o que muitos empregam para resumir o que parecem ser línguas estranhas. Geralmente é usado de maneira pejorativa — uma tipificação das balbúcias irracionais de pessoas histéricas. 10 Para uma discussão mais aprofundada do dom de línguas e de interpretação para os nossos dias, consulte Sam Storms, Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 143-86. Veja também os comentários de D. A. Carson, A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14 , tradução de Caio Peres (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 79-119. As observações de Craig Keener a respeito desse dom também são dignas da nossa atenção. Segundo Keener, o Novo Testamento atesta claramente que “(1) falar em línguas é uma evidência bíblica de capacitação do Espírito para o evangelismo (mesmo que muitos de nós não
estejamos convencidos de que todos que são capacitados pelo Espírito experimentem esse dom); (2) o dom de línguas constitui uma forma válida de adoração a Deus; (3) devemos desejar esse dom com o propósito de adorar a Deus, e não visando o elitismo espiritual; e (4) o dom de línguas usado para a adoração nas devoções pessoais pode fortalecer a vida de oração. Ainda que alguns cristãos tenham enfatizado excessivamente o dom de línguas em reação a outros que o minimizaram, pelo menos chamaram a igreja de volta à valorização bíblica do dom e, o que é mais importante, levaram muitos a ansiar por intimidade mais profunda com Deus. À luz de toda a perspectiva bíblica a respeito do Espírito, nosso foco deve estar voltado para a provisão, pelo Espírito, de um relacionamento íntimo com nosso Senhor Jesus ressurreto e o poder que nos concede tornar Cristo conhecido e colocar em prática o fruto do caráter de Deus. Precisamos que o Espírito transforme nosso coração a fim de imitarmos o caráter de Cristo e perseverarmos em meio às provações. O dom de línguas é útil para a oração e pode ajudar a desenvolver nossa sensibilidade ao Espírito Santo; por esse motivo, podemos pedir que Deus nos conceda esse dom, bem como outros. Embora Deus, em sua sabedoria, não atenda a todos os pedidos, geralmente ele tem prazer em nos abençoar com dons que nos aproximarão dele. Devemos, portanto, orar com expectativa, e então adorá-lo, qualquer que seja a capacitação que venhamos a receber dele” ( O Espírito na igreja , p. 208-9). 11 A história dessa profecia foi registrada pelo próprio Demos Shakarian, com a ajuda de John e Elizabeth Sherrill, no livro O povo mais feliz da terra (Rio de Janeiro: CPAD, 1982). 12 Sim, porque o mero fato de Paulo dizer em 1Coríntios 14.29 que a palavra precisa ser examinada implica na possibilidade de erro na palavra profética. Quem não admite que pode estar enganado, pelo menos de vez em quando, não se submete à disciplina bíblica, tampouco à assembleia dos santos. 13 Para uma discussão mais aprofundada do dom de profecia e suas semelhanças e diferenças dos dons de sabedoria e conhecimento, consulte Sam Storms, Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 41-54, 127-42. 14 Significativamente, até mesmo a maioria dos teólogos cessacionistas hoje concorda que Paulo não estava se referindo em 1Coríntios 13.9 ao fechamento do cânon (i.e. “o que é perfeito”), mas, sim, à volta de Jesus Cristo, o que, em tese, deveria levar ao reconhecimento da continuidade e da validade dos diferentes dons espirituais — inclusive línguas e profecia — até a segunda vinda, e não até a morte da geração apostólica. 15 William Golding, O senhor das moscas (Rio de Janeiro: Alfaguara/Objetiva, 2014). 16 Para saber mais sobre o dom do apostolado e sua relevância para os dias de hoje, especialmente à luz da sua relevância no movimento pentecostal, consulte a obra de Augustus Nicodemos Lopes, póstolos: a verdade bíblica sobre o apostolado (São José dos Campos: Fiel, 2014). 17 Para uma excelente defesa da necessidade do resgate dos dons espirituais para a vida congregacional, pautado pelo estudo das Escrituras e uma busca intencional da ação sobrenatural de Deus, confira o livro de Sam Storms, Dons espirituais: uma introdução bíblica, teológica e pastoral (São Paulo: Vida Nova, 2016). Confira também a obra de Gordon Fee, Paulo, o Espírito e o povo de Deus, tradução de Rubens Castilho e Robinson Malkomes (São Paulo: Vida Nova, 2015). Para uma abordagem de como buscar os dons carismáticos de forma bíblica, equilibrada e intencional, tanto no âmbito individual como congregacional, confira o outro livro de Sam Storms, Practicing the power: welcoming the gifts of the Holy Spirit in your life (Grand Rapids: Zondervan, 2017).
A ALMA PENTECOSTAL REFORMADA Como tudo aponta para a glória de Deus? Em Mateus 16.13-18, acompanhamos a seguinte conversa entre Jesus e seus discípulos: Tendo chegado às regiões de Cesareia de Filipe, Jesus perguntou aos discípulos: Quem os homens dizem ser o Filho do homem? Eles responderam: Alguns dizem que é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias, ou algum dos profetas. E Jesus lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Respondendo, Simão Pedro disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. E Jesus lhe disse: Simão Barjonas, tu és bemaventurado, pois não foi carne e sangue que te revelaram isso, mas meu Pai, que está no céu. E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
A “pedra” que Israel rejeitou é a “pedra angular” da igreja, a qual encontramos no ensino dos apóstolos e profetas: Assim, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a principal pedra de esquina. Nele, o edifício inteiro, bem ajustado, cresce para ser templo santo no Senhor, no qual também vós, juntos, sois
edificados para morada de Deus no Espírito (Ef 2.19-22).
Assim, é crucial que a igreja tenha seus pés firmemente plantados em teologia sã e verdadeira. A teologia é importante, pois é por meio e a partir dela que a igreja se ajusta, se acerta e se dimensiona. Sua prática, sua proclamação, seu culto, enfim, tudo o que a igreja faz tem como referencial supremo sua identidade em Deus, a começar pela própria identidade do Deus verdadeiro encarnado na pessoa de Jesus Cristo. Este livro tem como alvo principal ajudar pentecostais a resgatar uma teologia robusta e, assim, ajustar suas crenças e práticas de acordo. Temos tratado, embora não exaustivamente, tanto de teologia histórica, sistemática e bíblica quanto do próprio contexto e imaginário social do universo pentecostal. Não podemos fechar este livro sem entrar na questão da teologia prática, ou seja, às consequências diretas e concretas do que já tratamos até aqui para o culto público, a devoção pessoal e familiar e, finalmente, para a proclamação e a missão do evangelho. Os críticos das doutrinas da graça apontam para a tentação de achar que, mediante a soberania de Deus, tanto a oração quanto o evangelismo são desnecessários, uma vez que Deus já elegeu a quem salvará e já sabe o que acontecerá, pelo fato de estar conduzindo todas as coisas para o louvor de sua glória. Todavia, a crença na soberania de Deus não leva inexoravelmente à complacência, tampouco ao silêncio.1 Pelo contrário, a fé reformada deve nos levar a uma vida vigorosamente piedosa e marcada por um temor profundo de Deus, testemunhado pelo culto público que treine seus membros para a vida cristã, uma vida de devoção individual e familiar deliberada e repleta de fé, e para um imperativo evangelístico e missionário.
O CULTO PÚBLICO É fundamental para a saúde de qualquer corpo, seja de uma pessoa, seja de uma organização, ser fiel à sua natureza e não tentar ser o que não foi criado para ser. Assim também, para entender o propósito do culto público e saber conduzi-lo corretamente, temos de voltar ao entendimento do que vem a ser a igreja, a assembleia dos santos. A Reforma protestante afirmou que a igreja verdadeira se distingue pelo ensino correto das Escrituras, a ministração correta dos sacramentos e a aplicação correta de disciplina. 2 Não discordamos dessa definição. Todavia, Paulo sugeriu outros parâmetros para definir o que é a igreja verdadeira. Contudo, eles não invalidam as máximas eclesiásticas da Reforma. Mas creio que é urgente atentarmos para eles, ainda mais. Em Filipenses 3.3, ele disse: “Porque nós é que somos a circuncisão, nós, os que servimos a Deus em espírito, e nos orgulhamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne”. Essa afirmação acrescenta algo fundamental aos critérios formais defendidos pelos reformadores protestantes: uma dimensão intencionalmente espiritual, a centralidade do evangelho e a dependência total de Deus, isto é, de sua ação milagrosa. A igreja é muito mais do que uma associação agremiativa formada por pessoas que creem nas mesmas coisas. Ela é um corpo sobrenatural ligado a Cristo, que é a cabeça (Rm 12.1-5; 1Co 12.12-27; Ef 1.23; 2.11-16; 3.6; Cl 1.18; 2.18,19). Ela é “a menina dos olhos” de Deus, sua presença evangélica sobre a terra, o objeto de sua ação redentiva e o meio pelo qual o mundo todo ouve falar das boas-novas. Ela é o instrumento de Deus por meio do qual as nações serão discipuladas, conforme as palavras do próprio Mestre: E, aproximando-se Jesus, falou-lhes: Toda autoridade me foi concedida no céu e na terra. Portanto, ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; ensinandolhes a obedecer a todas as coisas que vos ordenei; e eu estou convosco
todos os dias, até o final dos tempos (Mt 28.18-20). Esse imperativo de discipular as nações no poder e na autoridade de Cristo é o mote principal e prioritário da igreja. Tudo o que ela faz deve apontar pessoas para uma vida radicalmente redefinida por Cristo. Isso encontra sua expressão principal no culto público. Para muitos pentecostais, o culto público é um contexto no qual pessoas têm o objetivo principal de se expressar a Deus em ações de graças e celebração, seguidas por uma proclamação das Escrituras; também é salpicado por iniciativas ocasionais do Espírito Santo, que se manifesta principalmente por meio de dons revelatórios como profecia, línguas estranhas e interpretação. Para os não pentecostais, o culto é majoritariamente, em nossos dias, visto como ocasião para encorajamento e expressão coletiva por meio de músicas cristãs, bem como para a pregação da Palavra de Deus. A dialética entre a tradição pentecostal e o rigor da teologia reformada nos leva a uma visão bastante diferente do culto público. Assim, para o pentecostal reformado, o culto público é um instrumento de discipulado, o contexto no qual pessoas aprendem a ser cristãs. Isso requer um culto centrado na Palavra de Deus e conduzido de modo que pessoas sejam treinadas a ser discípulos de Cristo. 3 O culto público não é, principalmente, o meio pelo qual pessoas expressam sua espiritualidade; é onde aprendem a ser espirituais e são formadas em sua espiritualidade. 4 Isso claramente contraria a visão que a maioria tem do culto público. A maioria quer um culto emocionante, um louvor contemporâneo e cativante e uma palavra “relevante” que nos traga alguma novidade para a nossa vida. Todo culto tem de ser “bom”. Esse conceito de um “bom culto” parte de uma mentalidade de consumo. O pastor que faz um “bom culto” é aquele que terá mais sucesso em promover o crescimento da igreja. Contudo, o propósito da igreja não é crescimento. Isso até pode acontecer. Mas o ministério cristão não pode ser pautado pela quantificação dos resultados. Não, a igreja precisa ser fiel na formação de cristãos.5 Afinal, como Paulo bem disse:
E ele designou uns como apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, e ainda outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos para a obra do ministério e para a edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo; para que não sejamos mais inconstantes
como crianças, levados ao redor por todo vento de doutrina, pela mentira dos homens, pela sua astúcia na invenção do erro; pelo contrário, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo. Nele o corpo inteiro, bem ajustado e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a correta atuação de cada parte, efetua o seu crescimento para edificação de si mesmo no amor (Ef 4.11-16). O ministério da igreja tem este propósito, portanto: promover o equilíbrio, uma vida à altura de Cristo, a união entre irmãos, a comunhão pacífica, o amor verdadeiro. Em resumo, o propósito do ministério cristão é o discipulado. Discipulado não é um curso extracurricular para alguns “supercrentes”. Discipulado é a vida cristã; portanto, é a missão da igreja. Tudo o que a igreja faz deve promover esses objetivos que se resumem sob a rubrica do discipulado.6 Vejamos como isso funciona na prática. O culto deve começar com a leitura das Escrituras e com oração. Suas músicas devem ser absolutamente fiéis às verdades bíblicas. Isso fará com que seja necessário reexaminar muitas das músicas que cantamos atualmente, pois algumas delas são bobagens ou coisa pior. O recebimento dos dízimos e das ofertas deve ser colocado no contexto de uma vida que reconhece que Deus é dono de tudo, pois cada centímetro quadrado pertence a ele. A pregação deve ser expositiva, sendo rigorosamente fiel às Escrituras. 7 O culto deve, sempre que for possível, incluir a ministração da santa ceia, conforme a orientação de Paulo: “Porque todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes do cálice proclamais a morte do Senhor, até que ele venha” (1Co 11.26). Esse é o anúncio, feito em memória, da centralidade do evangelho. Ao longo da história, esse tem sido o momento também em que a igreja relembra e
confessa novamente sua fé nas doutrinas centrais do cristianismo, conforme resumida nos antigos credos, especialmente no Credo Apostólico e Niceno. 8 O culto, portanto, é o lugar que forma a nossa mente e traz à memória as verdades que devem servir de alicerce para toda a nossa vida. Por sua pontualidade, aprendemos a ser pessoas de palavra. Por sua ordem, aprendemos a ser pessoas que sabem viver em submissão mútua. Pela presença das Escrituras, aprendemos a viver de “toda palavra que sai da boca de Deus”. Por suas orações, aprendemos que a oração não é uma atividade de natureza meramente individual, mas também coletiva. Sim, pois o próprio Senhor nos ensinou a orar “Pai nosso”, e não “ Meu pai”. As músicas gravam as verdades bíblicas em nosso coração. Portanto, não precisamos necessariamente cantar as “paradas de sucesso”, pois o alvo não é entreter ou emocionar espectadores, mas, sim, formar discípulos. Sim, o culto público é um instrumento essencialmente formativo. É como um pelotão em marcha. A marcha militar disciplina os soldados a agir como um só corpo. Sua sincronia serve de preparação para a batalha. E a pregação é, afinal, o conjunto de verdades que libertam, norteiam e nos levam a pensar como Cristo. Se pensarmos como Cristo, então, certamente viveremos como Cristo. Contudo, o culto público depende também da ação do Espírito Santo. Até aqui parece que o culto é apenas um exercício de proclamação e memória. Mas entendemos, também, que o culto depende da presença de Deus. É claro que temos a promessa de Jesus, que afirma que onde houver dois ou três reunidos em seu nome, ali ele estará presente (Mt 18.20). E sem dúvida Deus estará presente. Mas o que esperamos dele? O culto público é o lugar em que as pessoas podem “fazer tabernáculo” com o Senhor, ou seja, servir de lugar para um encontro real com Deus. É o contexto no qual pessoas podem ser curadas, transformadas, libertas, convertidas e reconciliadas a Deus e uns aos outros. Para esse fim, o pentecostal reformado vislumbra para além de todos os seus preparativos para o culto público e as disciplinas coletivas de adoração. Ele depende de Deus e rega seus preparativos com oração. A preparação do esboço de sua mensagem segue o rigor da exegese e do estudo, mas também precisa ser submetido ao Senhor, pois só o Espírito Santo
convence do pecado, da justiça e do juízo vindouro (Jo 16.8). Por melhor que seja o pregador, suas palavras serão palha seca se não houver uma intervenção divina.9 Isso nos remete de volta ao que Paulo fala sobre não depositar confiança alguma na carne (Fp 3.3). A verdadeira igreja não é um local de convencimento humano, mas da manifestação sobrenatural do poder de Deus. Cada culto precisa ser um milagre. As orações do pastor são fundamentais. Mas é igualmente fundamental que os membros aprendam a ser pessoas de oração, pois a oração é o ambiente no qual Deus age. Quem vem para o culto com a mentalidade de um freguês ou de um consumidor voltará para seu lar sem um encontro real com Deus. É necessário que todos se preparem para o momento do culto público.
ORAÇÃO SEM CESSAR: UMA VIDA CORAM DEO O pentecostal reformado deve aprender a orar sem cessar. Isso requer um diálogo constante com Deus. Ora, um diálogo constante não quer dizer um monólogo ininterrupto. Quem pensa que orar sem cessar é viver falando com Deus não entende que há muitas formas de oração, dentre as quais temos: a adoração, a confissão, a súplica e a ação de graças. Além do mais, há necessariamente um elemento de sensibilidade ao Espírito Santo, a fim de aprender a ouvi-lo. Ele nos guiará, se aprendermos a viver uma vida em sintonia com ele. Essa sintonia requer, é claro, um ponto de partida. Cada dia deve incluir um tempo para sua própria leitura das Escrituras, pois é ali que Deus nos fala mais claramente. Sem isso, você será repetidamente derrotado em seu modo de pensar pela enxurrada de ideias que invadem sua mente pela mídia. Somos uma sociedade midiática. Por isso é impossível menosprezar a influência cumulativa que o mundo tem sobre nós, por meio de televisão, rádio, internet, smartphone, revistas e conversas no dia a dia. Como peixes no mar, somos seres que estão mergulhados nas águas deste mundo e nem notamos o quão molhados estamos. O mundo nos é familiar. O mundo é nosso ambiente “normal”. Mas este mundo caído não é apropriado para a vida humana. Mata a todos. Mata tudo o que nos é sagrado e precioso. Tira nossa paz. Tira nossa saúde. Tira nosso temor a Deus. Tira nossa pureza. Tira nossa própria vida. Se não tivermos o hábito de intencionalmente renovar nossa mente, seremos inexoravelmente formados pelo mundo (Rm 12.1,2). A leitura diária das Escrituras é fundamental, e quanto mais cedo no dia, melhor. Oração é igualmente fundamental. Mas como orar? Sim-plesmente seguindo a escola deixada por nosso Senhor, conhecida como Pai-Nosso (Mt 6.9-13).10 Começamos pedindo que Deus glorifique seu nome e faça sua vontade na terra — em nossa vida, em nosso lar, em nossa igreja, em nosso país — assim como ela é feita no céu. Em seguida, pedimos o pão de cada dia, perdão pelos nossos pecados e a proteção de Deus. Precisamos que ele
nos proteja contra o mundo para não cairmos em tentação e abandonarmos o caminho. Também precisamos de sua proteção contra o mal que nos rodeia. Nesse ímpeto, oramos pelas pessoas que prezamos. Para tanto, é fundamental que você tenha uma lista de oração. Quando uma pessoa lhe pede que ore por ela, é inaceitável que você responda que vai orar e depois simplesmente esqueça de seu compromisso. Temos de planejar nossa vida de oração.11 É algo tão simples assim. Quem não planeja sua vida de oração não terá uma vida de oração. Assim como quem não seguir um plano de leitura bíblica não lerá a Bíblia. 12 Se cultivarmos uma vida de oração certamente estaremos mais atentos às inclinações do Espírito Santo. Não só na hora de uma grande decisão, mas também no dia a dia teremos mais cuidado em não magoar o Espírito. Ao cultivarmos uma vida piedosa, teremos cada vez mais a clara consciência de que estamos vivendo coram Deo — isto é, perante a face de Deus — e contra o mundo. Afinal, somos peregrinos neste mundo, que não é nosso destino final. Temos que andar em sabedoria e temor santo. Entretanto, orar não serve apenas para nossa edificação pessoal. A oração “move montanhas”. O pentecostal reformado crê que a oração é eficaz, pois Deus ainda age em nossos dias. Por isso, oramos pelos enfermos, por governos, por qualquer desafio — por maior que seja —, pois nosso Deus é infinitamente maior do que todos eles. Oramos por um avivamento na igreja, pois sabemos que a igreja precisa ser vivificada a cada geração. 13 Oramos por um mover novo de Deus em nossa geração. Oramos com fé, pois Deus promete atender às nossas orações individuais e coletivas. Boa teologia sem piedade é como um vale de ossos secos, todos em seu devido lugar, mas sem vida. Não podemos cair no erro de achar que basta saber a verdade e saber debatê-la pela internet que isso fará de nós “bons reformados”. Não. O bom reformado é alguém que vive humildemente perante a face de Deus. Ele sabe que sua vida em Cristo é uma realidade que depende sempre da graça poderosa de Deus. E se conduz de modo humilde para com seus irmãos, pois mais vale uma vida de submissão a Deus do que um argumento “tiro e queda” em defesa das doutrinas históricas da
Reforma.14
O CULTO FAMILIAR Para muitos evangélicos hoje, a vida espiritual concentra-se em sua expressão no culto público aos domingos e, quando muito, num encontro no meio de semana — seja no templo da igre ja local ou numa reunião doméstica. Para alguns poucos, sua espiritualidade alcança também o “quarto secreto de oração”, isto é, a vida devocional individual. No entanto, para uma parcela ainda menor da igreja da atualidade, a devoção abrange a adoração da família no próprio lar. Nisso também precisamos resgatar o conselho pleno da Palavra de Deus, inclusive com a ajuda da tradição reformada. Além do forte apelo da teologia reformada centrada na glória de Deus, existe um apelo igualmente cativante da espiritualidade reformada centrada na vida familiar. Sim, pois a espiritualidade reformada é, por definição, uma espiritualidade doméstica. Desde Lutero e Calvino, no século 16, passando pelos grandes mestres puritanos a partir do século seguinte, grandes esforços foram empreendidos a fim de treinar os pais para discipularem seus filhos nas doutrinas cardeais da fé cristã e na prática da vida piedosa. Esses pastores e pregadores compreenderam que, sem a reforma do lar, seria impossível reformar a igreja. Portanto, eles vislumbraram cada lar como uma pequena igreja, cada pai como um sacerdote e cada família como um pequeno rebanho. Pois, como fosse a vida no lar, assim seria na igreja e, consequentemente, na sociedade.15 A fim de que o evangelho fosse resgatado e preservado pela igreja e por seus membros, era necessário que ele fosse corretamente ensinado e transmitido nos lares dos cristãos pelos pais a seus filhos. Claramente, isso não começou com a Reforma protestante. O próprio Deus havia estabelecido esse princípio desde o início da história de seu povo, ao escolher o patriarca Abraão para que este ordenasse a seus filhos e descendentes que se conservassem no caminho do Senhor (Gn 18.19). Séculos depois, após conduzir a libertação de Israel de seu cativeiro no Egito, Moisés relembrou aos pais da nação sua responsabilidade de ensinar com persistência a seus
filhos a Palavra e os caminhos do único e verdadeiro Deus (Dt 6.4-9). Josué, sucessor de Moisés, exigiu o mesmo compromisso de devoção exclusiva ao Senhor das famílias de Israel (Js 24.14,15). Asafe e sua família reafirmaram essa exigência às gerações seguintes, exortando-as a não esconderem de seus filhos os louváveis feitos do Senhor, mas a lhes ensinarem os mandamentos de Deus, a fim de que seus descendentes o conhecessem e o obedecessem (Sl 78.3-7). Quando chegamos no Novo Testamento, o apóstolo Paulo reafirma essa exigência, ao ordenar aos pais cristãos que ensinassem e instruíssem seus filhos no conselho do Senhor (Ef 6.4). À luz do testemunho bíblico, os reformadores e seus sucessores municiaram suas congregações para instruírem seus filhos no evangelho de maneira deliberada, intencional e explícita. Por meio de seus sermões expositivos, Lutero e Calvino ensinaram sistematicamente a Palavra de Deus às suas congregações, a fim de que elas não só conhecessem e compreendessem a Bíblia, mas aprendessem a ler e estudar a Palavra de forma regular, contínua e sistemática junto com sua família no lar. Tanto os pioneiros da Reforma protestante como seus sucessores em Heidelberg e Westminster também redigiram diversos catecismos — manuais de discipulado pastoral e familiar — em linguagem acessível aos pais, para que estes soubessem transmitir os contornos da fé a seus filhos por meio de perguntas e respostas encharcadas em linguagem bíblica. Significativamente, tais catecismos estão em circulação até os dias de hoje, séculos depois de sua confecção original, mostrando o poder e a eficácia desses instrumentos de discipulado familiar até os nossos dias. Entretanto, nenhuma herança desse período é mais importante do que o culto doméstico. Nesse particular, os grandes campeões da devoção familiar foram os puritanos, conforme exemplificado pelo ministério pastoral de Richard Baxter no pequeno vilarejo de Kidderminster, na Inglaterra do século 17. Por anos a fio, Baxter instruiu cada família de seu rebanho por meio da visitação pastoral regular e da exemplificação do culto doméstico, que consistia em leitura e reflexão bíblica, orações em família e cânticos familiares. Em poucos minutos diários, cada lar poderia exercitar-se na santidade e crescer na piedade lendo a Bíblia juntos, orando com base nela e
cantando as verdades dela.16 Tão importante em nosso tempo quanto a reforma do culto público e da devoção individual dos cristãos é o resgate e o despertamento da espiritualidade doméstica. Em nosso tempo, os lares dos cristãos deixaram de ser centros de formação moral e espiritual e tornaram-se centros de lazer e entretenimento mundanos. Basta comparar quanto dinheiro e tempo gastamos em nossos hometheaters, centros de multimídia e demais aparelhos conectados à internet nas diferentes redes sociais em detrimento do investimento familiar na Palavra de Deus, em oração, na adoração doméstica e no compartilhamento dos clássicos da literatura cristã, antigos (catecismos reformados e puritanos; O peregrino) e recentes ( As crônicas de Nárnia e O senhor dos anéis). Novamente, para que haja uma reforma da igreja, será indispensável também a reforma dos nossos lares. Parafraseando A. W. Tozer, a família que não louva a Deus sete dias por semana não o louvará um único dia por semana. Para tanto, o resgate da devoção familiar e do culto doméstico é imprescindível e inadiável.17 Pentecostais reformados, em especial, devem ansiar não só por templos e vidas cheios do fogo do Espírito Santo, mas também por lares repletos da presença calorosa e santificadora do Espírito.
EVANGELISMO E MISSÕES O que podemos esperar de lares, igrejas e vidas cheias do Espírito Santo? Exatamente o que foi testemunhado no Dia de Pentecostes e que está relatado no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos: o testemunho abundante, corajoso e poderoso do evangelho de Jesus Cristo! Foi justamente para esse fim que o Senhor Jesus Cristo prometeu o derramamento de seu Espírito sobre a igreja, para que ela proclamasse, perto e longe, as boas-novas do evangelho, conforme relatado por Lucas: “Mas recebereis poder quando o Espírito Santo descer sobre vós; e sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1.8). Ademais, é somente pelo poder do Espírito Santo e na autoridade do nome do Cristo crucificado e ressurreto que podemos sair ao mundo para fazer novos discípulos do Mestre (Mt 28.18-20). Portanto, para esse mesmo fim, devemos buscar do Senhor um novo preenchimento do Espírito Santo, a fim de cumprirmos o imperativo missionário e evangelístico do Senhor. Nesse particular, há muito preconceito e desentendimento da parte dos evangélicos em geral e dos pentecostais em particular sobre o casamento entre a soberania de Deus e a responsabilidade da igreja em evangelizar e fazer missões. Pensa-se e ouve-se com frequência que as doutrinas da graça e o ensino da predestinação em particular são incompatíveis com o fervor evangelístico e missionário. Contudo, à luz da Bíblia, da sã doutrina e da própria história da igreja, nada poderia estar mais longe da verdade. Ninguém resumiu melhor o imperativo evangelístico e missionário da igreja, por meio de seus ensinos e de sua própria vida, do que o apóstolo Paulo. Foi ele quem resumiu tão precisamente a necessidade e a urgência da pregação do evangelho: Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Assim como está
escrito: Como são belos os pés dos que anunciam coisas boas! (Rm 10.14,15). Paulo não apenas lançou esse apelo, mas também o fundamentou com suas orações incessantes e fervorosas em favor da salvação de seus contemporâneos israelitas, zelosos por suas tradições, mas ignorantes e resistentes quanto à mensagem do evangelho (Rm 9.1-3; 10.1-4). Em tudo isso, porém, Paulo jamais deixou de adorar ao Senhor por sua soberania e sabedoria, tanto em seus juízos como em seus caminhos (Rm 11.33-36). Todavia, foi esse mesmo apóstolo Paulo quem, no mesmo contexto da Carta aos Romanos, expôs com extrema clareza e fidelidade as doutrinas concernentes à soberania de Deus na salvação de seus eleitos. É o mesmo Deus quem predestina, chama, justifica e glorifica os eleitos, pois o que o Senhor começa, ele leva a bom termo (Rm 8.28-30; cf. Fp 1.6). O mesmo Deus que decreta a eleição para a salvação, independentemente das obras ou de qualquer previsão de fé da parte dos eleitos, também ordena a pregação do evangelho ao mundo perdido e pecador (Rm 9.6-29; 10.14,15). Como reconciliar essas verdades aparentemente antitéticas? Como bem respondeu Charles Spurgeon — um dos grandes, senão o maior evangelista da história da igreja, e um pregador reformado convicto: “Não precisamos reconciliar amigos”. Como assim? Por incrível que pareça, são justamente as doutrinas da graça e a confiança na soberania de Deus que fundamentam o imperativo evangelístico e missionário da igreja.18 De forma bastante resumida, é a convicção acerca da depravação radical da raça humana que revela a necessidade da evangelização, pois sem o evangelho todos estão perdidos e mortos em seus pecados. É justamente o entendimento da eleição incondicional, da redenção articular e da graça eficaz que garante o resultado de nossa evangelização; pois, do contrário, não haveria garantia alguma de que alguém se arrependeria de seus pecados com fé em Cristo, visto que isso é impossível para o pecador escravizado a este mundo. Por fim, é a confiança na erseverança dos santos que confirma que os frutos iniciais de conversão genuína ao evangelho não serão eliminados pelas muitas provações, tentações
e aflições dos eleitos neste mundo. Por mais surpreendente que seja, portanto, é justamente a confiança na soberania de Deus que sustenta a proclamação do evangelho neste mundo caído.19 Somente porque Deus é soberano sobre o coração humano e detém o poder para converter almas ao evangelho, por sua graça sobrenatural, é que podemos orar pela salvação dos perdidos. Sim, precisamos e devemos orar pelos perdidos e proclamar-lhes o evangelho pelo simples fato de que Deus assim nos ordenou, tanto quanto ele ordena a salvação de seus eleitos. Mais que isso, em sua absoluta soberania, Deus ordenou que a oração e a evangelização servissem de instrumentos para a realização de seus decretos eletivos soberanos. O mesmo Deus que ordena o fim de tudo orquestra os meios para esse fim. Por último, os pentecostais reformados devem desejar orar e evangelizar, na autoridade do nome de Cristo e no poder do Espírito Santo, principalmente porque ainda existem multidões mundo afora que não conhecem e não se curvaram à glória de Deus. Como bem resume John Piper, missões existem porque a adoração a Deus ainda inexiste em muitos cantos da terra. 20 Se nosso desejo for pela glória de Deus, acima de tudo, então desejaremos levar adiante a glória de nosso Deus por meio de vidas consagradas e dedicadas ao evangelho. Curiosamente, à luz da história, nesse aspecto os pentecostais e os reformados têm mais em comum do que imaginam. Se, por um lado, o século 18, conhecido como “o século das missões modernas protestantes”, foi marcado pelo testemunho e serviço de cristãos de convicção reformada, como William Carey e Henry Martyn, além dos grandes reformados que pregavam o avivamento, como George Whitefield e Jonathan Edwards, por outro lado, o século 20, conhecido como “o século do pentecostes moderno”, também viu um grande despertamento evangelístico e missionário vindo principalmente dos arraiais pentecostais. Isso não deveria nos surpreender, pois desde o início do livro de Atos dos Apóstolos, onde o Espírito Santo e soberano de Deus sopra, ali haverá amplo testemunho do evangelho de Cristo. Não apenas isso, mas, junto com a evangelização abundante e corajosa promovida pelo Espírito Santo, haverá também o serviço amoroso, misericordioso e sacrificial do povo de Deus, especialmente entre os mais
carentes e menos favorecidos entre nós e a nosso redor. Foi assim já na época dos apóstolos, em que a igreja repartia tanto a Palavra e as orações quanto seu pão e suas posses uns com os outros (At 2.42-47; 4.32-37). Vez após vez os apóstolos se esmeraram na defesa da necessidade conjunta de a igreja proclamar as boas-novas acompanhadas de boas obras, especialmente entre os mais pobres — sobretudo, embora não exclusivamente, aos da família da fé, a igreja (Gl 2.10; 6.9,10; Hb 10.32-34; Tg 2.14-26; 1Jo 3.11-18; cf. Mt 25.31-46; Lc 6.36). Na missão de Deus, portanto, uma coisa não deve conflitar com a outra nem existir às custas da outra. Aliás, uma coisa fortalece e enriquece a outra: enquanto as nossas boas obras recomendam e dão integridade ao evangelho da graça que pregamos, são as boas-novas que distinguem o verdadeiro evangelho da graça dos demais evangelhos das obras existentes neste mundo, mostrando o único caminho da salvação em Jesus Cristo. Como pentecostais reformados, devemos ser ricos tanto no ministério da evangelização quanto na compaixão, submissos à Grande Comissão e ao Grande Mandamento, fiéis em palavra e em ação, pela graça e para a glória de Deus.21
POST TENEBRAS LUX Os dias em que vivemos são por demais sombrios e terríveis, a começar pela própria situação decadente na qual se encontra a igreja. Em nossos cultos públicos, em nossa devoção pessoal e familiar, em nossa evangelização e missão, somos hoje apenas uma sombra do que já fomos um dia. Contudo, na absoluta soberania de Deus, são justamente nesses momentos de maior escuridão na história que a luz do evangelho tem brilhado mais forte. Foi assim quando os pioneiros da Reforma protestante entraram em cena, há mais de quinhentos anos, e observaram, como Calvino, Post tenebras lux, que significa: “Após as trevas, a luz”. Após séculos e gerações de trevas que cobriram e oprimiram a face da Europa dominada por um cristianismo corrupto e moribundo, aprouve a Deus lançar a luz de sua graça soberana sobre aquele continente. Queira Deus que o mesmo aconteça novamente em nosso tempo e em nosso canto do mundo. Deus é soberano para fazê-lo. Cremos que ele esteja desejoso por isso também. Portanto, como pentecostais reformados, oremos e trabalhemos por isso. E, aconteça o que acontecer, a glória será toda do Senhor. 1 Para
uma excelente defesa da compatibilidade bíblica e teológica entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, com aplicações específicas à vida de santidade, oração, pregação e evangelismo, confira a obra editada por Thomas Schreiner; Bruce Ware, Still sovereign: contemporary erspectives on election, foreknowledge and grace (Grand Rapids: Baker Academic, 2000). 2 Mark Dever, Nove marcas de uma igreja saudável (São José dos Campos: Fiel, 2007), p. 22-4. 3 Na tradição reformada, esse entendimento é expresso pelo princípio regulador do culto, isto é, a máxima de que Deus deve ser adorado somente da maneira que ele mesmo ordenou nas Escrituras Sagradas. Para mais a esse respeito, confira Mark Dever; Paul Alexander, Igreja intencional: edificando seu ministério sobre o evangelho, 2. ed. (São José dos Campos: Fiel, 2015), p. 101-14. 4 Para uma elaboração do contraste entre o culto público voltado para a expressão individual e/ou coletiva e o voltado para a formação espiritual, confira a obra de James K. A. Smith, Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito , tradução de James Reis (São Paulo: Vida Nova, 2017). 5 Dever; Alexander, op.cit., p. 37-42. 6 Colin Marshall; Tony Payne, A treliça e a videira: a mentalidade de discipulado que muda tudo (São José dos Campos: Fiel, 2015). 7 David Helm, Pregação expositiva: proclamando a Palavra de Deus hoje (São Paulo: Vida Nova,
2016). 8 Franklin Ferreira, O Credo dos Apóstolos: as doutrinas centrais da fé cristã (São José dos Campos: Fiel, 2015). 9 E. M. Bounds, Poder através da oração (São Paulo: Editora Batista Regular, 2009). 10 Walter McAlister, Pai nosso: desvendando a mais importante oração da história do cristianismo (Rio de Janeiro: Anno Domini, 2015). 11 Confira as obras de D. A. Carson, Um chamado à reforma espiritual (São Paulo: Cultura Cristã, 2007); Timothy Keller, Oração: experimentando intimidade com Deus (São Paulo: Vida Nova, 2016). 12 Há inúmeros planos de leitura excelentes disponíveis gratuitamente na internet para programas de estudo bíblico em computador, tablet e smartphone. Confira a lista do blog Voltemos ao Evangelho, disponível em: http://voltemosaoevangelho.com/blog/2016/12/10-planos-de-leitura-biblica-e-orantepara-2017, acesso em: 29 mar. 2018. 13 Franklin Ferreira, Avivamento para a igreja: o poder do Espírito Santo e da oração na renovação da igreja (São Paulo: Vida Nova, 2015). 14 Para uma breve, mas riquíssima exposição da espiritualidade reformada centrada tanto na sã doutrina quanto na vida piedosa e humilde, confira James Montgomery Boice; Philip Graham Ryken, s doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 205-28. 15 Tad Thompson, Pais discipuladores: um guia para o discipulado em família , Série Cruciforme (São Paulo: Vida Nova, 2011), p. 11-7. 16 Packer, Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (São José dos Campos: Fiel, 1991), p. 279-94; Leland Ryken, Santos no mundo , 2. ed. (São José dos Campos: Fiel, 2013), p. 137-60. 17 Confira a excelente literatura publicada nos últimos anos a esse respeito: Jason Helopoulos, Culto em família: uma bênção à sua espera (São Paulo: Vida Nova, 2016); Tad Thompson, Pais discipuladores: um guia para o discipulado em família , Série Cruciforme (São Paulo: Vida Nova, 2011); Joel Beeke, Adoração no lar (São José dos Campos: Fiel, 2012); Jerry Marcellino, Redescobrindo o tesouro perdido do culto familiar (São José dos Campos: Fiel, 2012). Confira também o excelente recurso de W. A. Criswell; Timothy Keller, Catecismo nova cidade (São José dos Campos: Fiel, 2017). 18 Para uma abordagem aprofundada, confira a obra de J. I. Packer, Evangelização e a soberania de Deus, 2. ed. (São Paulo: Cultura Cristã, 2012). 19 James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 215-20; 235-41. 20 John Piper, Alegrem-se os povos (São Paulo: Cultura Cristã, 2001). 21 Para um relato breve e comovente de uma igreja local (10. a Igreja Presbiteriana de Filadélfia, nos EUA) alinhada com a tradição reformada e as doutrinas da graça e comprometida com um ministério vibrante tanto de evangelização como de misericórdia (p. ex., mães solteiras e carentes, moradores de rua, comunidades de homossexuais e soropositivos, crianças em situação de risco), confira James Montgomery Boice; Philip Graham Ryken, As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 230-5. Para outras obras que lidam com a conjunção entre a evangelização e o ministério de misericórdia, confira Timothy Keller, Ministérios de misericórdia: o chamado para a estrada de Jericó (São Paulo: Vida Nova, 2016); Timothy Keller, Justiça generosa (São Paulo: Vida Nova, 2013); Greg Gilbert; Kevin DeYoung, Qual a missão da igreja? Entendendo a ustiça social e a Grande Comissão (São José dos Campos: Fiel, 2012); John Stott, A missão cristã no
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Esta obra foi composta em Adobe Caslon Pro, impressa em papel off-set 75 g/m 2, com capa em cartão 250 g/m 2, na Imprensa da Fé, em setembro de 2018.
Lutero como conselheiro espiritual Ngien, Dennis 9788527507660 256 páginas
Compre agora e leia Lutero era um verdadeiro teólogo, um teólogo da cruz atuante no contexto pastoral. Como conselheiro espiritual, Lutero ensinou, por meio de seus escritos, a meditar corretamente sobre a Paixão de Cristo, a preparar-se para enfrentar o horror da morte, a aconselhar os enfermos, a tratar corretamente do sacramento do altar, a orar da forma correta, a extrair benefícios da Oração do Senhor e a viver uma vida de discipulado sob a cruz. Seus escritos têm formato e propósito devocional e catequético, mas estão repletos de substância teológica, fruto de rigorosas reflexões. Refletem a vocação fundamental de Lutero como pastor-teólogo e são exemplos concretos da interface entre teologia e piedade. Compre agora e leia
Inteligência humilhada Madureira, Jonas 9788527507745 336 páginas
Compre agora e leia Inteligência humilhada é fruto de uma cuidadosa reflexão sobre como se relacionam o conhecimento de Deus e os limites da razão humana. Além disso, é o resgate de uma tradição do pensamento cristão que sempre se recusou a reduzir o debate entre fé e razão nos termos do racionalismo ou do fideísmo. A finalidade do conceito de "inteligência humilhada" é despertar o interesse por uma razão que ora e uma fé que pensa. Seguindo o conselho de João de Salisbúria, Jonas Madureira subiu nos ombros de cinco gigantes da tradição cristã: Agostinho de Hipona, Anselmo da Cantuária, João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd. Todos eles serviram de ponto de partida e fundamentação do conceito. Ao longo deste livro, essas cinco vozes, sobretudo a de Agostinho, são ouvidas nos mais diversos assuntos: teologia propriamente dita, revelação natural, problema do mal, gramática da antropologia bíblica, formação de um teólogo entre outros. Compre agora e leia
Desintoxicação sexual Challies, Tim 9788527505109 112 páginas
Compre agora e leia Você não aguenta mais tanta pornografia? É hora de se desintoxicar. Este livro apresenta um retorno à saúde, um retorno à normalidade. Uma alta porcentagem de homens precisa se desintoxicar da pornografia, ou seja, recomeçar do zero do ponto de vista moral e psicológico. Seria o seu caso também? Se for, ainda que nem saiba disso, a pornografia corrompeu sua maneira de pensar, enfraqueceu sua consciência, distorceu seu senso de certo e errado e deformou seu entendimento e suas expectativas a respeito da sexualidade. Você precisa de um recomeço conduzido por Aquele que criou o sexo. "Numa época em que o sexo é venerado como um deus, um livro pequeno como este é capaz de dar uma grande contribuição, ajudando os homens a superar o vício do sexo." Pastor Mark Driscoll, Mars Hill Church Compre agora e leia
Você é aquilo que ama Smith, James 9788527507899 256 páginas
Compre agora e leia Você é aquilo que ama. Mas pode ser que você não ame o que pensa que ama. Nosso coração é moldado fundamentalmente por tudo o que adoramos. Talvez sem perceber, somos ensinados a amar deuses rivais em lugar do verdadeiro Deus para o qual fomos criados. Embora tenhamos a intenção de moldar a cultura, nem sempre temos consciência de quanto a cultura nos molda. Em Você é aquilo que ama, James K. A. Smith nos ajuda a reconhecer o poder formador da cultura e as possibilidades transformadoras das práticas cristãs, redirecionando nosso coração para o que de fato merece nossa adoração. Smith explica que a adoração é a "estação da imaginação", capaz de incubar nossos amores e anseios de tal modo que os nossos engajamentos culturais tenham sempre Deus e o reino como referenciais. É por essa razão que a igreja e o culto em uma comunidade local de crentes devem ser o centro da formação e do discipulado cristãos. O autor engaja o leitor fazendo um uso criativo de filmes, obras de literatura e músicas e trata de temas como casamento, família, ministério de jovens, fé e trabalho. Além de tudo, também sugere práticas individuais e comunitárias para moldar a vida cristã. Livro premiado na categoria de melhor livro de 2016 por The Word Guild Canadian Writing Awards Compre agora e leia