O contrário da idéia-fixa não é a idéia sôlta. João Guimarães Rosa
Sumário
PREFÁCIO A ordem do branco.......................................................................... 11
P RÓLOGO Este livro .......................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 Livro: abrigo da escrita ................................................................... 17
CAPÍTULO 2 O círculo da imensidade ................................................................ 39
CAPÍTULO 3 A escrita, nômade de monotonia ................................................. 61
Epílogo Ausência de livro ............................................................................ 87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 91 PB
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Prefácio
A ordem do branco
O escrito se apaga no escrito.. O negro embranquece no negro. O branco permanece. Edmond Jabès
Permito-me apresentar este texto de Daisy Turrer com as próprias palavras da autora, em um de seus ensaios: Na ordem dos números, o zero é um marco, um pouso para o caminho dos contrários do menos infinito ao mais infinito. Na ordem das cores, o branco é o ponto extremo de qualquer escala cromática que parte em direções opostas, tornando-se marco entre a luminosidade e as trevas. Na ordem das letras, o grau zero talvez esteja no branco que faz lembrar as duas extremidades da linha do horizonte, onde surgem a noite e o dia.1
É talvez essa “ordem do branco” a que melhor define este texto de Daisy Turrer, que se escreve, como poucos, numa espécie de grau zero da escrita. Trabalhando com os quatro prefácios de Tutaméia e com outros de seus paratextos em articulação com a composição do livro de Guimarães Rosa, o pensamento de Daisy Turrer estende-se em direção ao universo infinito da obra sem, contudo, perder de vista a dimensão material do livro. Nessa orla exígua em que o livro e a obra se tangenciam, sem, no entanto, se confundirem, encontram-se também a ensaísta e a gravadora: no ponto branco de uma escrita em seu grau zero. Assim reconhecemos a artista que há tanto tempo vem cunhando, em seu mínimo traço, o branco sobre o branco: na mancha tipográfica das páginas do livro, que se abrem, infinitamente, às estórias por vir, devolvendo, em seu movimento incessante, a ensaísta ao trabalho da criação. TURRER, Daisy. “Maculaturas”. In: MENDES, Lauro Belchior (org.).Memórias do presente: ensaios de literatura contemporânea. Belo Horizonte: POSLIT/FALE-UFMG, 2000, p. 60.
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Poucas vezes temos o prazer de flagrar o artista em seu movimento criador. Mais raras ainda são as oportunidades de flagrarmos, no artista, o júbilo de criar. Esse júbilo, Daisy vem partilhar conosco. Seja através do trabalho de Guimarães Rosa, que ela persegue com rigor, seja através do pensamento de Blanchot que, conjugado ao de Rosa, descortina a nossos olhos o infinito da obra, seja através da presença silenciosa de Joseph Joubert, esse “autor sem livro, escritor sem escrito”, companhia incorpórea de Daisy que perpassa seu texto como o artista por excelência, sujeito “fora das coisas civis e na pura região de Arte”. Esses pensadores e artistas vêm todos se encontrar na orla exígua em que o texto de Daisy Turrer se escreve. Orla em que a própria Daisy se situa, como ensaísta e artista, dando-nos a ver, em seu movimento incessante de escrita, em sua leitura branca de letras sem voz, o júbilo da criação. Lúcia Castello Branco
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Prólogo
Este livro
A hipótese de Guimarães Rosa, em Tutaméia, de que “o livro pode valer pelo muito que nêle não deveu caber” 1 sintetiza o percurso deste livro, abrindo, ela mesma, os dois campos distintos que envolvem o livro como abrigo da escrita – realidade de papel e impressão que circunscreve e veicula a palavra – e o livro imaterial, incircunscrito – que, ao contrário, é desabrigo da escrita, a nascente de todos os livros. Assim, o trajeto que se faz aqui é do esvaecimento do objeto em direção à concretude virtual: tentativa de trabalhar os textos de Tu- taméia em sua disseminação, contornando as suas margens – os prefácios, o itinerário da obra, a pré-publicação de seus textos em revistas e jornais; uma leitura de um “que-livro”, um ensaio de livro, antes de se tornar uma publicação organizada pelo autor, que reuniu os textos dispersos para a primeira edição em 1967. É ainda Guimarães Rosa que nos lança, pela própria escrita do livro Tutaméia, para fora do livro, para o que lhe é exterior. Instiganos, dessa forma, a uma leitura também paradoxal, que consiste em buscar, no livro, o que nele não está narrado em letra de fôrma impressa, para se tentar capturar, de viés, o movimento de vir a ser da escrita: Tutaméia: terceiras estórias ou Terceiras estórias : tutaméia, um livro em devir. Essa tarefa, por si só, desde já se demonstra impossível, mas a ela nos arriscamos, pelo fascínio do mistério nas Letras, mesmo 1
ROSA. Tutaméia, p. 12.
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sabendo que, como adverte Blanchot, esse mistério é de tal natureza que é “degradado se respeitado e escapa quando agarrado”. 2 Dedicamo-nos, portanto, neste livro à experiência dos descaminhos da escrita do livro , por se acreditar, sobretudo, ser esse o lugar em que se deva situar o livro de literatura: “orla exígua”, 3 limite perto do indefinido. Essa tentativa de ler o livro em expansão, em devir, norteou-se inteiramente pelas idéias de Maurice Blanchot, em O livro por vir , que formula a separação do domínio do livro do domínio da obra, do que se pode realizar na escrita do livro e o que nele não se realiza pela matéria das palavras. O livro ausente, formatado e arquitetado no pensamento, pode manter-se como reserva de si mesmo – uma realidade virtual inesgotável – e nem chegar à condição de objeto. Para Blanchot, a obra é o que o artista tem em vista, experiência de criação que toca na ausência, nos tormentos do infinito, na “profundidade vazia do que não começa nem acaba nunca, movimento que expõe o criador à ameaça da solidão essencial, e à entrega ao interminável”.4 Assim, o livro é o que artista escreve, e o que “ele terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destruí-lo-á num outro”,5 pois o escritor pertence à obra, mas o que lhe pertence mesmo e o que ele termina é o livro – arremedo e ilusão da obra. A presença de Joseph Joubert, “autor sem livro, escritor sem escrito”,6 perpassa este livro como aquele que se situa, por excelência, no universo da obra, “fora das coisas civis e na pura região da Arte”.7 É nesse espaço que fazemos dialogar Joubert – em suas reflexões abstratas, nos Carnets , sobre o livro, a obra, a arte e a literatura – e Guimarães Rosa – nos prefácios “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos”, e “Sôbre a escôva e a dúvida”, por meio dos quais divide com o leitor o universo de criação de sua obra, “fora dos duros limites do desejo e de razões horológicas”. 8 BLANCHOT. A parte do fogo , p. 48. 3 BLANCHOT. O espaço literário , p. 256. 4 Ibidem, p. 197. 5 Ibidem, p. 11. 6 BLANCHOT. O livro por vir , p. 59. 7 JOUBERT citado por BLANCHOT. Op. cit., p. 63. 8 ROSA. Tutaméia, p. 150. 2
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Aliados à experiência de Mallarmé e de alguns escritores, eles buscam substituir a leitura comum, seqüencial, em que se é necessário ver uma parte logo após a outra, pelo “espetáculo de uma palavra simultânea”, 9 em que tudo seria dito ao mesmo tempo, sem confusão. Movidos por esse desejo, os escritores aqui evocados terminam por conceber um livro que não se converte apenas “num evento atuante do mundo”,10 mas num evento para além dessa ação, voltado inteiramente para o aberto da obra – transformando-se em um ponto que é, ao mesmo tempo, o centro do círculo e o próprio círculo da imensidade.
BLANCHOT. O livro por vir , p. 70. 10 BLANCHOT. O espaço literário , p. 13. 9
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Capítulo 1
Livro: abrigo da escrita
Todas as obras têm este caráter de coisa. O que seriam sem ele? A pedra no caminho é uma coisa, tal como o outeiro no campo. O cântaro é uma coisa, tal como a fonte no caminho. E o que se passa com o leite no cântaro e com a água na fonte? Martin Heidegger
Martin Heidegger, em A origem da obra de arte , reflete sobre o caráter coisal das obras no vasto mundo das coisas, onde está inserida, de forma indissociável da coisa, a obra de arte. Esta também se constitui e se erige sobre uma coisidade que lhe resta irremediavelmente amalgamada. O caráter de coisa está presente de forma tão incontornável na obra de arte que a constatação de que há pedra no monumento e de que há madeira na escultura talhada pode ser feita de modo inverso: o monumento está na pedra e a escultura está na madeira talhada. As indagações de Heidegger investem numa busca que ultrapassa o caráter óbvio das coisas, na tentativa de encontrar aí, nesse lugar, uma diferença, uma verdade que possa traduzir e reconhecer, entre as obras, a obra de arte, como “algo de outro que a ela se adere” e que a constitui em objeto artístico: A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa; ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. A obra é símbolo.1
Para apreender e caracterizar essa quase tangível realidade de obra, na qual está contido ainda algo de outro, Heidegger investiga HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 13.
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sobre o caráter das coisas num âmbito mais geral, ou seja, procura “conhecer o âmbito a que pertencem os entes e que, desde há muito, chamamos de coisa”.2 Habitualmente chamamos de coisa tanto as coisas inanimadas da natureza – a pedra no caminho, o outeiro no campo, um pedaço de madeira – quanto as coisas de uso – o sapato, o cântaro, o relógio. Essa concepção tradicional, há muito assimilada pelo pensamento ocidental – aquele que crê que na determinação da matéria já está implicada a forma –, tornou-se tão familiar que não se suspeita que por detrás da “coisidade das coisas” há algo que mereça ser indagado. Na realidade, nesse âmbito geral, uma diferença já se instala, pois, embora acreditemos que uma pedra e um pedaço de madeira sejam coisas, não colocamos nessa mesma categoria o sapato, o martelo, o relógio. Para contemplar essa diferença, Heidegger introduz o conceito de “mera coisa”: 3 a pura coisa, que é simplesmente coisa e nada mais. As meras coisas excluem, portanto, as coisas de uso e figuram entre as coisas propriamente ditas. Abandonando a confiança na interpretação corrente de coisa por considerá-la só aparentemente fundada, Heidegger propõe-nos a adentrar na complexidade que a envolve e na difícil tarefa de delimitar o “ente que é no modo de ser da coisa em relação ao ente que é no modo de ser da obra”.4 Heidegger esclarece suas considerações tomando como exemplo um bloco de granito, que consiste em algo material, numa forma5 definida, embora grosseira. Ao se tomar uma matéria numa forma definida – como o cântaro, o machado e os sapatos –, já se está lidando com outra instância de coisa, dado que, nesse caso, é a forma que determina a matéria e, inclusive, prescreve-lhe a sua qualidade: é preciso impermeabilidade para o cântaro, dureza suficiente para o machado, solidez e flexibilidade para os sapatos. Nessa instância, forma e matéria se entrelaçam, a coisa se transforma em apetrecho, possuindo uma função, uma serventia: HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 14. 3 Ibidem, p. 15. 4 Ibidem, p. 14-5. 5 Forma quer dizer aqui, nas palavras de Heidegger, a repartição e a ordenação das partes da matéria nos lugares do espaço, tendo como conseqüência um determinado contorno, a saber, o de um bloco. 2
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Numa tal serventia se funda tanto a doação do tipo de forma como a escolha da matéria que com ela se dá, e com isto o domínio do complexo matéria. 6
Ao salientar essa diferença do ente que, submetido, torna-se produto através de uma fabricação, Heidegger ressalta a afinidade que o apetrecho mantém com a obra de arte, à medida que ambos são fabricados pelo homem. Em seguida, demonstra que essa afinidade é bastante tênue, distanciando-se na própria origem, pois a obra de arte não está submetida a uma mesma ordenação da matéria que lhe preestabeleça uma função, uma serventia. Já o apetrecho tem uma posição intermediária peculiar que o define: Nesse sentido o apetrecho é meio coisa, porquanto determinado pela coisidade e, todavia, mais; ao mesmo tempo é meio obra de arte e, todavia, menos porque não tem a auto-suficiência da obra de arte. 7
Longe de decifrar o enigma existente na obra de arte, enigma que é a própria arte, o texto de Heidegger instrumentaliza, e, ao mesmo tempo, incita o leitor a pensar e a revisitar diferentes coisas na tentativa de configurá-las, segundo seu referencial, sob um outro olhar. Ao se tomar o livro como objeto de análise, a partir das considerações de Heidegger, constata-se que esse objeto, ao longo de sua história, apresenta-se indissociavelmente vinculado ao “caráter instrumental de apetrecho”. Desde o aparecimento da escrita, diferentes formas e materialidades (pedra, entrecasca e casca de árvores, argila, osso, marfim, bronze, ouro, papiro, pergaminho e papel) determinaram-lhe uma função, uma serventia: abrigar as representações gráficas do homem, suas idéias e seus pensamentos, quer por escritas pictográficas e ideográficas, quer por escritas fonográficas. Não obstante o seu caráter instrumental de apetrecho, como matéria enformada, cuja função é abrigar a escrita, é preciso considerar que o livro guarda em si mesmo algo de outra ordem e que diz respeito ao material que abriga. As palavras nele contidas detêm uma forma dada pela materialidade das letras, que, ao se constituírem linguagem, segundo Blanchot, conjugam dois elementos HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 21. 7 Ibidem, p. 21. 6
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distintos: “um material, sopro, som, imagem escrita ou tátil, e o outro imaterial, pensamento, significado, sentimento”.8 A coisidade da letra, portanto, ao incorporar uma materialidade dupla, não se define pela relação forma-matéria, de maneira, por assim dizer, estática. A letra, por ser de outra natureza, material e imaterial ao mesmo tempo, não se molda pelos mesmos princípios e parâmetros pelo qual se molda, por exemplo, o invólucro que a contém, pois escapa às regras que definem a forma submetida apenas “sob o domínio do complexo matéria”. Isso equivale a dizer que a letra, em seu movimento de vir a ser, não pode ser capturada apenas por suas características concretas. Por conseguinte, o livro não se situa entre as meras coisas e, como obra, não se encontra tal um apetrecho entre as simples coisas, requerendo, portanto, que se considerem outros elementos para a sua análise. Na realidade, o livro encarna em si mesmo formas diferenciadas no que diz respeito à sua coisidade. Embora Heidegger não encontre respostas definitivas às suas indagações, buscando a realidade da obra por meio de seu suporte coisal, insiste na validade de sua trajetória. A cada reflexão, entretanto, acrescenta ou exclui algo sobre o já discorrido, demonstrando a multiplicidade de perspectivas através das quais um ente poderá ser analisado em relação a seu “caráter coisal de coisa”, a seu “caráter instrumental de apetrecho”, ou a seu “caráter de obra na obra”. Quanto mais envereda na busca dessa distinção, do algo de outro contido na coisa para identificá-la, mais fugidia a coisa se torna em suas reflexões. A identificação da obra por meio de seu suporte coisal, ou seja, mediante a matéria de que consta, embora seja válida, é, segundo Heidegger, reducionista, pois abandona, no decurso da história da verdade do ente, a possibilidade de as referidas identificações – da coisa, do apetrecho e da obra – combinarem entre si, o que amplia consideravelmente o poder de que se revestem as coisas. O caráter coisal na obra não deve ser negado; mas este caráter coisal, se pertence ao ser-obra da obra, tem de pensar-se a partir do caráter de obra da obra. Se assim é, então o caminho para uma definição da realidade com caráter coisal da obra BLANCHOT. A parte do fogo , p. 49.
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não é um caminho que leva à obra através da coisa, mas, antes, ao invés, um caminho que leva à coisa através da obra. 9
Sobre esse aspecto, Rodrigo Duarte esclarece que a tentativa de determinar o ser-obra da obra a partir da própria obra torna-se inviável. Embora aparentemente o pintor, o oleiro, o escultor tenham o mesmo comportamento relacionado à atividade manual, existe ainda algo que marca a diferença entre o artista e o oleiro. Uma pergunta ainda persiste: “mas através de que, então, a produção como criação se diferencia da produção sob forma de fabricação”? 10 Analisar o livro, sob essa perspectiva, significa situá-lo em um lugar complexo, apresentá-lo pela ambigüidade que o envolve no vasto âmbito das coisas. Tal perspectiva, entretanto, torna-se aqui fundamental, à medida que abre espaço para abordar o livro enfatizando a posição peculiar que ele ocupa: “meio coisa, porquanto determinado pela coisidade e, todavia, mais: ao mesmo tempo é meio obra de arte”.11 No caso específico do livro, as questões suscitadas por Heidegger ressaltam a ambigüidade latente que o envolve, evidenciando, portanto, a dificuldade em situá-lo em um lugar estanque enquanto abrigo da escrita. Por outro lado, é interessante observar que o livro, como objeto das histórias do livro e da leitura, também tem sua análise marcada pelas dualidade e ambigüidade que o envolvem e o caracterizam. Com o advento da imprensa, o livro, antes objeto de uso restrito em uma sociedade de poucos letrados, ganha outra função. A folha impressa a partir de uma matriz original assegura, além da reprodução em série, a legibilidade dos textos, garantindo-lhes a circulação, contribuindo para a disseminação da palavra escrita, como também para a expansão da comunidade de leitores. Multiplicado, o livro adquire um outro estatuto, torna-se objeto passível de permuta e venda. Como mercadoria, abandona as bibliotecas dos mosteiros e das universidades e, em formatos menores e mais leves que os primeiros livros impressos, grandes e pesados, aventura-se a perambular pelas feiras, de aldeia em aldeia, em busca de novas HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 30. 10 DUARTE. O belo autônomo , p. 222. 11 HEIDEGGER. Op. cit., p. 21. 9
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perspectivas, a conquista do espaço privado. Tornando-se uma “especiaria”, não escapa aos fluxos do comércio e do contrabando, revelando, assim, além de manifestações intelectuais, hierarquias socioculturais. A partir de 1495, o livro insere-se num mundo que se diz novo, moderno, participando efetivamente de suas transformações, terminando por se caracterizar como invólucro que guarda a magia dos signos. O livro, portanto, carrega uma dualidade, pois guarda, em si mesmo, no mínimo duas faces possíveis. Uma, que o apresenta como produto fabricado, determina uma abordagem que se refere aos mecanismos dos modos de produção e circulação relacionados à história econômica e social; outra, que descortina os sistemas de pensamentos veiculados pelo livro, é objeto da história das mentalidades. Logo, o livro, sob o ponto de vista da história, encena, em si mesmo, duas peças simultâneas, mas que se desenrolam em tempos diferentes. A primeira diz respeito às estruturas materiais, com rupturas delineadas e maior mobilidade, enquanto a segunda diz respeito à história das mentalidades, lenta e morosa, que caracteriza o pulsar dos sistemas de pensamento. Jacques Le Goff exemplifica com clareza o lugar de ambigüidade instaurado pela dissonância de valores, na qual o tempo age por ritmos diferenciados: Os homens servem-se das máquinas que inventam, conservando as mentalidades anteriores a essas máquinas. Os automobilistas têm um vocabulário de cavaleiros; os operários das fábricas do século XIX, a mentalidade dos camponeses, seus pais e avós. A mentalidade é aquilo que muda mais lentamente. História das mentalidades, história da lentidão da história.12
Na história do livro, essa morosidade se demonstra pelo longo tempo que o livro demorou para se codificar como objeto impresso. Embora o tipo móvel de Gutenberg surja concomitantemente com os ideais humanistas do Renascimento – permitindo, por meio da folha impressa, fazer circularem suas doutrinas e propagarem-se os paradigmas que anunciavam um novo mundo –, o livro, entretanto, permanece na forma precisa do manuscrito. Assim, mesmo já se tendo substituído o ofício do escriba pelo do impressor, e constatando-se a LE GOFF. As mentalidades: uma história ambígua, p. 72.
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vitória do buril, das gravuras, sobre o desenho, as iluminuras, o livro apresenta-se, ainda, como mimese do discurso oral, e somente aos poucos migra para uma nova ordem, assimilando o modelo espacial da escrita, que transforma a arquitetura de suas páginas e confere-lhe o estatuto de produto impresso. O livro poderá ser analisado, assim, por duas instâncias diferentes e, ao mesmo tempo, indissociáveis, sob o ponto de vista da história. É tanto objeto que abriga e veicula a escrita, produto de consumo e, portanto, sujeito às leis do mercado, como também é objeto que dissemina o que emana desse escrito e que influencia ativamente a conduta dos sujeitos. Passível de ser demonstrado sob essa pluralidade de fatores que são intrínsecos à sua própria materialidade, o livro exige que se escolha, então, uma maneira, dentre tantas para abordá-lo. Em qualquer caminho escolhido, deparamos-nos, no entanto, com o seu caráter ambíguo, o que dificulta a apreensão do livro apenas por um único olhar. Como obra, o livro também incorpora, em si mesmo, duas abordagens distintas e inseparáveis: o suporte e a escrita estão incontornavelmente amalgamados desde os primórdios. À representação gráfica das idéias superpõe-se uma matéria prima contigente, superfícies isoladas depois reunidas, que condicionaram a existência dos “primeiros livros”. 13
O livro, desde as tábuas à tabuleta, desde o rolo até a atual superposição de cadernos, sempre evoluiu na busca de uma adequação entre forma e matéria, apoiada, sobretudo, numa particularidade – a capacidade de o olhar efetuar desdobramentos simultâneos, enquanto a escuta só é capaz de apreender uma seqüência de sons sucessivamente. Butor esclarece que esta é a única, mas considerável, superioridade que possui, não só o livro, mas toda escrita sobre os meios de gravação direta, incomparavelmente mais fiéis. Assim, ao escutarmos alguém pronunciar um discurso, “cada palavra segue uma única outra, precede uma única outra”. 14 O discurso apresenta-se, portanto, alinhado por um sentido, ao longo HOUAISS. Elementos de bibliologia, p. 27. 14 BUTOR. Repertório , p. 214. 13
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de um eixo. A melhor maneira de armazenar um discurso oral, tornase, portanto, enrolá-lo, tal como se faz na fita magnética, na película cinematográfica. O inconveniente desse sistema é a dificuldade imposta no caso de se precisar apenas de um trecho desse discurso. Isso exigiria desenrolá-lo inteiramente ou, então, dispor de pontos de referência, isto é, demarcar regiões de maneira que se possa perceber o discurso em simultaneidade, tal como nos sistemas de escrita, o que corresponderia a um catálogo. É exatamente sobre essa particularidade que Butor se apóia para ressaltar a supremacia do livro e da escrita – a capacidade que o olhar tem de captar, de uma só vez, toda uma seqüência: A primeira vantagem da escrita é, como se sabe, a de fazer durar a palavra, verba volant, scripta manent , mas a maravilha é que ela nos permite não só reproduzir o discurso, fazê-lo passar pela segunda ou pela centésima vez, inteiro como um bloco, mas que ela faz com que cada um dos elementos desse discurso subsista quando advém o seguinte, deixando à disposição de nosso olho o que nosso ouvido já terá deixado escapar, fazendo-nos captar de uma só vez toda uma seqüência.15
E é ainda essa particularidade primordial que determinará os saltos significativos que marcam momentos radicais na história do livro. A passagem do volumem, técnica baseada na sucessividade do texto, para o codex , que se fundamenta na simultaneidade, e, ainda, a passagem do manuscrito a objeto impresso, transformarão tanto o livro quanto a arquitetura da página em decorrência da substituição do modelo linear oral pelo modelo espacial da escrita. É possível, portanto, constatar na história do livro como as formas dos suportes influenciaram o desenvolvimento dos sistemas de escrita e como estes, por sua vez, propiciaram novas formas para o livro, firmando-se, assim, uma relação de indissociabilidade entre suporte e escrita, o que leva Chartier a ressaltar que não existem textos em si mesmos, fora das materialidades que são os seus suportes e veículos: Contra a representação, elaborada pela própria literatura, do texto ideal porque desvinculado de qualquer materialidade, é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de 15
BUTOR. Op. cit., p. 215.
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escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega a seu leitor. 16
Escrita e suporte, embora juntos e indissociáveis em um mesmo corpus , determinam, no livro, ainda, outras instâncias distintas: a obra e o texto . Como obra, ele é forma plástica com marcas materiais que lhe são próprias, que se pode tomar nas mãos e a ele se afeiçoar, invólucro do texto que nele se inscreve e que é dado a ler. Como texto inscrito, o livro é forma expressiva verbal, lugar do jogo escorregadio da linguagem, proporcionado pela pluralidade dos significantes que o tecem.17 As perguntas formuladas na epígrafe deste capítulo, se transportadas para o livro, demonstram de imediato a impossibilidade de uma resposta precisa e única que o apreenda em sua totalidade. A primeira, sobre o que seriam das obras sem o seu caráter coisal, permite uma resposta que situa o livro através de seu caráter instrumental de apetrecho, sob “o domínio do complexo matéria”, que lhe determina uma serventia e lhe prescreve uma função: a de abrigo da escrita. Já a segunda pergunta, sobre o que se passa com o leite no cântaro e com a água na fonte, instaura um outro mundo. Não é fácil responder sobre o que se passa com as letras contidas no livro. A imagem da fonte, como coisa a fazer brotar a água, sempre a mesma, sempre outra, será tomada aqui, poeticamente, como uma metáfora para o livro. Como a água, as letras também deslizam do invólucro que as contém, deixando sua realidade de tinta sobre papel e, misteriosamente, transbordando, sob a forma fluida e impalpável dos sentidos que produzem. Desse lugar ambíguo, que sempre o situa em dois espaços simultaneamente, é que se pretende, aqui, abordar o livro. Consciente da impossível tarefa de apreendê-lo para lhe atribuir uma verdade única, o desejo aqui é o de enveredar no livro pelo texto que nele se inscreve em seus deslocamentos, na tentativa de vislumbrá-lo em migração e em permanente travessia. Instigada pelas reflexões de Heidegger, pretendo suscitar o “algo de outro que a ele [ao livro] se CHARTIER. A história cultural , p. 127. 17 Para Barthes, o Texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação. Cf. BARTHES. O rumor da língua, p. 74. 16
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adere”, o mistério que nele se esconde e o diferencia dos demais entes. Um ente que, escorregadio, escapole, tornando-se objeto de fascínio, único e singular, ao longo de sua história: Objeto de inesgotável riqueza, o livro exerce há muito sua fascinação. No tempo de um positivismo triunfante que reduzia a história ao discurso, parecia encerrar, juntamente com o manuscrito, tudo o que o pesquisador devia descobrir para se chegar aos fatos. No momento de abolir essa golilha textual, quando a história se afirmou econômica e socialmente, o livro não foi vítima. Não era uma mercadoria boa de ser produzida e vendida? Não revelava clivagens de uma sociedade? Seu lugar encontrou-se ainda melhor assegurado com a eclosão das “ciências humanas” porque era uma presa fácil para o estudo das palavras e dos signos. Essa eterna juventude que se enraíza nas origens, porque existem discursos sobre o livro desde seu aparecimento, traduz, no fundo, a surpresa feliz de um mundo estupefato de poder ouvir, em seu presente, para além dos espaços e dos séculos, tão velhas linguagens. 18
Destituído hoje do poder de suporte único capaz de fazer durar a palavra escrita, o livro, exatamente por isso, pode, como observa Michel Butor, em sua condição de objeto em alforria, começar a se apresentar verdadeiramente a nossos olhos. Os novos meios de comunicação e difusão social da atualidade que lhe fazem concorrência podem, ao contrário de ofuscar o livro, fazer com que ele se torne um complexo cada vez mais denso, revelando-se não mais tanto em sua funcionalidade quanto em sua potencialidade estética. De objeto de consumo, no sentido mais trivial do termo, passaremos ao objeto de estudo e contemplação, que alimenta sem ser consumido, que transforma o modo como conhecemos e habitamos o mundo. 19
As observações de Butor, analogamente às de Blanchot, entendem o livro não só como realidade de papel e impressão, mas também em sua ambigüidade, ressaltando o caráter instável de sua escrita. Por isso, é possível concluir, com Blanchot, que “o livro, CHARTIER, Roche. O livro: uma mudança de perspectiva, p. 100. 19 BUTOR. Repertório , p. 218. 18
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portanto, aí está, mas a obra ainda está escondida, ausente talvez radicalmente”. 20 Tais considerações fazem emergir do livro algo da ordem do inapreensível e do fugidio, assinalando em sua natureza aquilo “que alimenta sem ser consumido”, já que, embora palpável e concreto, abriga em si uma obra (um texto, diria Barthes) que nele se esconde, mas que dele está, paradoxalmente, ausente. Barthes faz uma distinção entre obra e texto que se articula com as questões acima e oferece uma outra perspectiva para a análise do livro na contemporaneidade. Ao questionar a idéia tradicional de obra, Barthes acena para um outro objeto, obtido por deslizamentos ou inversão das categorias anteriores: o texto . Barthes propõe a seguinte formulação, que diferencia a obra do texto: a obra segura-se na mão, o texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto pelo fato mesmo de o saber); o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto. Ou ainda: só se prova o Texto num trabalho, numa produção . A conseqüência é que o Texto não pode parar (por exemplo, numa prateleira da biblioteca); o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra, várias obras). 21
Ao fazer essa distinção, Barthes reverte o sentido tradicional de livro, permitindo pensá-lo em duas instâncias distintas, conferindo-lhe uma dupla existência: como objeto que abriga a escrita e a conduz, e como texto. As imagens de Butor para o livro, como algo que alimenta sem ser consumido e que se contempla, remetem a algo que transcende o próprio objeto. Para Barthes, o que transcende e atravessa a obra é BLANCHOT. O espaço literário , p. 195. É importante salientar que não são idênticas as distinções estabelecidas por Barthes, Blanchot e Butor entre os conceitos de livro e obra. Barthes refere-se à obra como o livro, como objeto que se vê nas livrarias, enquanto o texto deve ser entendido como objeto não computável, não lhe sendo possível, por exemplo, parar na prateleira de uma biblioteca: o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra, várias obras). Para Blanchot, ao contrário, o livro é que é o objeto, enquanto a obra é sempre inalcançavel, sempre “o livro por vir”: “O escritor nunca sabe que a obra está realizada. O que ele terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destruí-lo-á num outro”. (BLANCHOT. O espaço literário , p. 11.) Butor considera como livro obra e texto em um todo, objeto completo por meio do qual tantos acontecimentos se produziram. 21 BARTHES. O rumor da língua, p. 72-3. 20
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o texto. A obra é geralmente objeto de consumo, e o texto não é consumido, permanece em sua materialidade, tecido plural de significantes, não exatamente porque tem vários sentidos, mas porque realiza o próprio plural do sentido. As considerações feitas por Butor e Barthes conferem ao livro uma especificidade, tornado-se necessário averiguar quais são os elementos que compõem os diferentes discursos abrigados no livro, dado que ambos os autores o caracterizam a partir do aspecto do que se consome, como algo da ordem material e que ultrapassa a concretude da letra: “O texto (mesmo que fosse por sua freqüente ‘ilegibilidade’) decanta a obra (se ela permitir) de seu consumo e a recolhe como jogo, produção e prática”.22 Blanchot estabelece uma distinção entre os diversos tipos de livro quanto à sua especificidade discursiva, separando-os em literários e não literários. O livro literário, que tem sua origem na arte, revela-se, segundo Blanchot, de forma diferente, não se oferecendo como conjunto de significações factuais e, sim, como jogo e prática: antes de ser lido por alguém, o livro não literário já foi sempre lido por todos e é essa leitura prévia que lhe assegura uma existência firme. Mas o livro que tem sua origem na arte não tem sua garantia no mundo, e quando é lido, nunca foi lindo ainda, só chegando à sua presença de obra no espaço aberto por essa leitura única, cada vez a primeira e cada vez a única. 23
Essa presença de obra no espaço aberto por essa leitura “cada vez a primeira e cada vez a única” remete à especificidade do texto literário, que, como obra de arte, tem a liberdade de se apresentar como um jogo, à espera de um jogador, o leitor. Assim, no texto literário, o leitor é trazido à cena como aquele que testemunha essa falta de garantia prévia, pois dele espera-se uma interação, uma cumplicidade, para que o texto se ponha em marcha e adquira não apenas um, mas vários sentidos. É preciso considerar, ainda, como esclarece Chartier, que o livro, além do texto e do suporte que o acolhe, só se torna livro por meio da prática que dele se apodera e que diz respeito ao universo BARTHES. O rumor da língua, p. 76. 23 BLANCHOT. O espaço literário , p. 195. 22
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do leitor, produtor de sentidos livres e autônomos capaz de fazer de um livro outro livro: Os leitores são viajantes: eles circulam sobre as terras de outrem, caçam furtivamente, como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expancionismo da reprodução.24
Para discutir a interação do leitor com a obra, Blanchot faz uma comparação entre os universos da escultura e do livro, demonstrando a separação decisiva que se interpõe entre eles. A escultura, no espaço, dispõe de um outro espaço, evidente e subtraído, “talvez imutável”, “talvez sem repouso” e diante da qual nos sentimos sempre supérfluos e inoportunos: “A estátua que se desenterra e que se apresenta à admiração nada espera, nada recebe, parece, antes, arrancada ao seu lugar”. 25 Diferente é a postura do leitor frente ao livro, que, ao contrário daquele que contempla a estátua imutável, realiza-o com o ato da leitura. Mas o livro que se exuma, o manuscrito que sai do jarro para se expor à plena luz da leitura, não nasce de novo, por uma chance impressionante? O que é um livro que não se lê? Algo que ainda não está escrito. Ler seria, pois, não escrever de novo o livro, mas fazer com que o livro se escreva ou seja escrito – desta vez sem a intermediação do escritor, sem ninguém que o escreva. 26
Embora o objetivo aqui não seja o de adentrar no universo do leitor, este estudo terminará por ressaltar, no livro, o lugar das marcas textuais deixadas pelo autor, na expectativa de fazer falar, em sua ausência, a obra, e compartilhar com o leitor, mesmo que à distância, o seu mundo. Entre suporte e texto, o livro reúne, em sua materialidade mesma, algo de outra ordem e que diz respeito ao conteúdo de que faz provisão, independente do gênero em que se situe. À margem, acompanhando o texto principal, inscrevem-se outros textos: títulos, subtítulos, nome do autor, orelha, prefácio, dedicatória, epígrafe, notas, CHARTIER. A ordem dos livros , p. 11. 25 BLANCHOT. O espaço literário , p. 193. 26 Ibidem, p. 193. 24
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bibliografia, sumário, apêndice, anexos. É nesse espaço circundante que convivem ainda as imagens que ilustram a capa e as folhas internas, a mancha tipográfica, compondo, com o ritmo das entrelinhas, o desenho da página. Esse espaço intermediário, denominado paratexto ou perigrafia,27 tem a função de exibir o texto, apresentá-lo, encená-lo ao leitor. Sua periferia, nas palavras de Compagnon, compreende toda a série de elementos que o envolvem, desenhando-lhe uma perigrafia, os arredores do texto, e é desse lugar que se trama a sua receptibilidade: “são as rubricas de uma dispositio nova que permitem julgar o volume sem o ter lido, sem ter entrado nele”. 28 Eis uma outra via que nos permite adentrar no corpo do livro, seguindo-o, situando-o no intertexto, testemunhando o controle que o autor exerce sobre ele. “É uma cenografia que coloca o texto em perspectiva, cujo centro é o autor.”29 Embora o estatuto do paratexto se faça presente no livro, antes mesmo da chamada cultura do impresso,30 ele só foi realmente codificado no século XVII. Antes, embora impressos, os textos se apresentavam freqüentemente com a disposição textual do manuscrito e não obedeciam a códigos rígidos de pontuação, espalhando-se livremente sobre as páginas dos livros. Eisenstein comenta que, antes de 1500, os impressores já faziam suas experiências e utilizavam vários tipos de dispositivos, como o uso de tipos graduáveis, títulos de páginas, notas de rodapé, índices, cabeçalhos ilustrados, bandeirolas, chaves alfanuméricas, linhas apontando para o desenho, referências cruzadas.31
A partir do século XVII, porém, os textos impressos passam a ser codificados por uma pontuação própria que separa os elementos internos do livro dos externos, delimitando-os mediante um paratexto rígido. Uma regulação interna passa a exercer função demarcatória entre as fronteiras hierárquicas de enunciação, entre o que é margem O termo paratexto privilegia uma abordagem textual, enquanto perigrafia destaca o aspecto gráfico. 28 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 70. 29 Ibidem, p. 70. 30 Segundo Chartier, toda a cultura do Ocidente pode ser considerada, após Gutenberg, uma cultura do impresso. Cf. CHARTIER. A história cultural , p. 139. 31 EISENSTEIN. A revolução da cultura impressa, p. 38. 27
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e o que é texto. Compagnon esclarece ainda que essas normas de regulação interna, que constituem a propriedade pela qual se pode reconhecer um texto ao primeiro olhar, são determinadas por sua compacidade , ou seja, por seu fechamento sobre si mesmas, determinando sua autonomia – um “corolário da unidade e da coesão” exigidas ao texto, sob o domínio de um autor: O texto torna-se corpo, recolhe-se, fecha-se sobre si mesmo, como uma cidade fortificada por Vauban, sem subúrbio nem arrebalde. É um volume fechado, circunscrito em limites estáveis que impedem os excessos; é um espaço em equilíbrio, encerrado em fronteiras rígidas e instâncias de enunciação bem destacadas.32
O campo paratextual, apesar de parecer secundário, exerce papel primordial, pois é através desse aparato que um texto se torna livro, deixa a instância de domínio exclusivo do autor e passa a uma instância maior, que depende do envolvimento de diferentes profissionais e dispositivos técnicos, resultando na empresa de sua fabricação e na complexa passagem de manuscrito – passível de rasuras pela decisão do autor – a impresso – definido pelas decisões editoriais. Esse controle do autor e do editor marcando, no livro, a origem de onde vem, ressalta, por outro lado, como comenta Eliana Muzzi, “a aptidão do paratexto para funcionar como instrumento ideológico, pois é o lugar por excelência de uma ação sobre o público onde se estabelecem critérios de recepção e consumo”. 33 Ao mesmo tempo, o paratexto consiste no espaço reservado ao autor para exercer uma influência sobre o leitor a respeito da concepção da obra criada, refletindo seu desejo de compartilhar, ainda que nesse espaço circunscrito, daquilo que na realidade habita para além de sua cidade fortificada: a cidade dos leitores que, sobre pilotis imaginários, edifica-se segundo seus próprios princípios, meios e fins. Chartier assinala a importância reconquistada, nos últimos tempos, no campo dos estudos literários, pelas disciplinas da paleogra- fia, codicologie (estudo das formas de indexação e codificação) e bibliography , cujo objeto de estudo é justamente a descrição rigorosa das formas materiais que contêm os textos: “o mesmo texto, fixado COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 70. 33 MUZZI. “Paratexto: espaço do livro, margem do texto”, p. 8. 32
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pela letra, não é o ‘mesmo’ se mudam os dispositivos de sua inscrição e comunicação”.34 Essas disciplinas, ao iluminarem o que antes permanecia apagado pelas abordagens clássicas, recuperam os sentidos da margem, ampliando, assim, as vias pelas quais o livro poderá ser analisado, o que significa que também o sentido da margem é redimensionado. Ao considerar todas as marcas materiais que circunscrevem o texto tomado tradicionalmente como principal, essas disciplinas buscam reconhecer, no livro, em seus traços físicos, outros sentidos que lhe estão subtendidos. O paratexto torna-se visível e passa a ocupar lugar de destaque no campo dos estudos literários, imprimindo maior flexibilidade e mobilidade ao texto. Assim, ao contrário de marcar fronteiras entre as instâncias de enunciação, estabelece sua interação, “podendo suprimir ou integrar vários de seus elementos, num espaço lúdico de intercâmbio entre texto e extratexto”. 35 Esse intercâmbio institui, no livro, o espaço para leituras simultâneas e múltiplas, situando o paratexto em uma posição também peculiar, pois, ao mesmo tempo, é e não é texto, o que instaura, por essa indefinição e por sua mobilidade, uma “zona de indecisão”. Eliana Muzzi, em “Leitura de títulos”, detém-se no estatuto es- pacial do paratexto, caracterizado fundamentalmente pela ambigüidade e definido, em diferentes escritores, por metáforas que têm em comum o sema “espaço intermediário”: “vestíbulo”, para Borges, “ante câmara”, para Barthes, “soleira”, “margem”, “zona indecisa entre o dentro e o fora” – o paratexto é um espaço de “transação (e de transição, acrescenta Genette)” entre o extratexto e o texto. 36 Dentro dessa perspectiva que procura caracterizar o livro por meio daquilo que lhe escapa, como resultado do entrecruzamento do que o encerra e do que o perpassa, escolheu-se, para análise neste estudo, um livro especial – Tutaméia: terceiras estórias –, cuja natureza tem sua origem na arte da literatura, e que, portanto, como esclarece Blanchot, tem a liberdade de se demonstrar, como um texto, por outras vias. CHARTIER. “Crítica textual e história cultural: o texto e a voz, séculos XVI e XVII”, p. 67-8. 35 MUZZI. “Paratexto: espaço do livro, margem do texto”, p. 7. 36 MUZZI. “Leitura de títulos”, p. 11. 34
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O livro de Guimarães Rosa será tomado aqui como objeto de estudo literário, no que diz respeito ao texto e à linguagem, que se demonstra pelas vias do “mistério nas letras”, 37 em sua articulação com a representação na contemporaneidade, e, ao mesmo tempo, como operador teórico sobre questões relativas ao livro, tema em torno do qual este estudo pretende se desenvolver. Embora Guimarães Rosa não se propusesse exatamente a teorizar sobre o objeto livro em Tutaméia, podemos aí colher contribuições substanciais sobre essa questão. Tutaméia apresenta-se atípico pela singularidade de seu paratexto, composto de um título e um subtítulo que se revertem ao final do volume, um índice de leitura e outro de releitura, duas epígrafes e quatro prefácios. Como linguagem, o texto de Tutaméia toma o caminho rumo à escrita e à significância, “uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem”,38 libertando-a de seu lugar cativo, na busca de expressar, pelo universo paradoxal das palavras, o verso e o reverso da mesma moeda. Assim, o texto de Guimarães Rosa apresenta-se como “jogo, prática e produção”, no sentido elucidado por Barthes, ao demonstrar-se como travessia: Ergo : O livro pode valer pelo muito que nêle não deveu caber. Quod erat demonstrandum.39
Guimarães Rosa, ao abrigar o texto de Tutaméia, o desabriga, anunciando sua continuidade em um lugar que lhe é ausente e que se torna presente pela ausência, pelo que nele não está, o “que nele não deveu caber”. Assim, faz do livro um outro livro, e ainda outro, sempre por vir.40 Ao apresentar essa sua obra de maneira tão peculiar, Guimarães Rosa conduz o leitor às estórias, através de paratextos, construindo o livro por rotas imbricadas, por uma zona de indecisão limítrofe e ilusória, onde o dentro – as estórias – e o fora – os prefácios – interagem de tal forma que se confundem. Nesse livro, os prefácios, mais do que nunca, estão inseridos nessa zona de indecisão entre o dentro e o fora, pois, no primeiro Cf. BLANCHOT. A parte do fogo , p. 48. 38 BARTHES. O óbvio e o obtuso , p. 94. 39 ROSA. Tutaméia, p. 12. 40 Cf. BLANCHOT. O livro por vir . 37
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índice, eles se encontram misturados aos contos, já no segundo, eles aparecem separados, indiciando grupos de estórias. Os prefácios “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos”, e “Sobre a escôva e a dúvida” delineiam-se, portanto, pela ambigüidade: ora texto, ora extratexto, mesclando, ao mesmo tempo, discurso do criador e criação. Guimarães Rosa insere, então, para o leitor, nas próprias páginas de Tutaméia, outras páginas, nas quais revela o lugar de onde advêm suas imagens, sua paisagem, o segredo de suas epifanias: “A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso”. 41 Ao apontar para o livro como algo capaz de abrigar e desabrigar um texto, Guimarães Rosa reafirma o mistério que o envolve, ressaltando sua duplicidade: pertence a uma ordem finita e estática, enquanto obra, e infinita, enquanto texto que, em permanente travessia, torna-se incapturável. Dessa forma, Tutaméia enuncia-se como objeto privilegiado para análise de questões referentes ao livro, por situar-se nos limites do que, na contemporaneidade, constitui os “impasses da representação”. 42 As questões suscitadas por Tutaméia, embora sobre diferentes perspectivas, são passíveis de serem articuladas às idéias de Barthes, Butor, Blanchot, Heidegger e Deleuze, dentre outros, que buscam, no livro, para além da obra, o “espírito da letra”. 43 Privilegiar, no livro, o “espírito da letra” significa trabalhar sobretudo com a linguagem, com aquilo que não se fixa, que é sempre deslocado, constituindo, assim, paradoxos e ambigüidades capazes de fazer do livro um manancial de imagens: Aqui, o que fala em nome da imagem, “ora” fala ainda do mundo, “ora” nos introduz no meio indeterminado da fascinação, “ora” nos concede o poder de dispor das coisas em sua ausência e pela ficção, retendo-nos assim num horizonte rico de sentido [...]. Aqui, o sentido não escapa para um outro sentido, mas no outro de todos os sentidos e, por causa da ambigüidade, nada tem sentido, mas tudo parece ter infinitamente sentido [...]44 ROSA. Tutaméia, p. 4. 42 Cf. SILVIANO BRANDÃO. “Os impasses da representação”, p. 56-62. 43 Cf. BARTHES. O óbvio e o obtuso , p. 94. 44 BLANCHOT. O espaço literário , p. 265. 41
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Através de Tutaméia, obra da maturidade literária de Guimarães Rosa, atravessada pelas questões da representação na contemporaneidade, pretende-se, aqui, dar ao livro o que é do livro, evidenciando seu poder como objeto: invólucro para a magia dos signos, pouso para a travessia do texto, em permanente errância, que permite resgatar, assim, em meio ao barulho da sociedade atual, o silêncio das letras iluminando a si próprias. A proposta deste estudo é tomar o livro – o livro literário em especial – como uma poética, que ocultam imagens inimagináveis, lugar propício às visões fortificantes , sobre as quais Guimarães Rosa convida à reflexão, em um dos prefácios: “– A coisada que a gente vê é errada... – queria visões fortificantes – Acho que... O borrado sujo, o sr. larga na estrada, em indústrias escritas isso não se lavora”45. O que se lavoura para além das letras de forma impressas encontra-se no entrelugar de onde emana o mistério dos livros, o espírito da letra, tornando-se a grande aventura da página impressa que é a de se ler, num livro, um livro que não foi escrito (“que nele não deveu caber”), o que nele se exuma, um livro ainda por vir, como constata o autor: Só sei que há mistérios demais, em tôrno dos livros e de quem os lê e de quem os escreve [...]. Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente. 46
Guimarães Rosa, ao acenar para esse mistério, refere-se à dificuldade que envolve o escritor em articular a escrita no livro, já que essa o atravessa em direção à infinitude da obra, sempre distante e inalcançável. Essa questão remete-nos à imagem pela qual Blanchot apresenta-nos Joseph Joubert,47 um escritor que dedicou a sua vida à busca de escrever um livro que não pusesse termo à escrita, e que abarcasse também o seu movimento de travesia: ROSA. Tutaméia, p. 164-5. 46 Ibidem, p. 160. 47 “Redigidos entre 1774 e 1824, os Pensées de Joubert só foram publicados em 1838, graças a Chateaubriand. Essa edição, bastante parcial, receberá, ao longo do século XIX, vários acréscimos, até que André Beaunier, em 1938, oferece ao público dois volumes ne varietur dos Carnets . A obra de Joubert acompanha a virada do século tal como o invisível fio de Ariadne. Ela reflete tanto a sua sombra quanto o seu brilho e, sem dúvida, não é um acaso se sua poética, oscilando entre o cheio e o vazio da memória e conduzindo sempre ao cerne do ensaio por meio desse leve tecido que é o fragmento, 45
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Eu queria que os pensamentos se sucedessem num livro como os astros no céu, com ordem, com harmonia, mas à vontade e com intervalos, sem se tocarem, sem se confundirem.48
O investimento de Joubert em direção a esse “livro supremo” e imaterial leva-o à escrita dos Carnets , onde registra anotações esparsas nem sempre vinculadas aos acontecimentos diários, fragmentos sobre suas contemplações noturnas, reflexões sobre a arte, a obra e a literatura, “uma espécie de diário íntimo onde a escrita emerge como processo em contínuo questionamento”. 49 Joubert escreve sem se dar conta que escreve, mas pensando no livro que queria escrever, sempre à frente e distante. Blanchot destaca a sua importância, situando-o como um dos primeiros escritores inteiramente modernos, que, preferindo o centro à esfera, sacrificou os resultados à descoberta de suas condições, escrevendo, “não para acrescentar um livro a outro livro, mas para se tornar senhor do ponto de onde lhe parecia que saíam todos os livros e que, uma vez encontrado, o dispensaria de os escrever”. 50 Nesse ponto limite, chega-se a um espaço, impróprio ao trabalho da literatura tradicional, do qual Joubert se desviava ao caminhar em direção à obra inacabada, reenviando-nos, assim, para a imensidão de um espaço noturno, como “um grande texto de silêncios, e para o livro como para um céu imóvel de astros em movimento”. 51 Embora Guimarães Rosa escreva e demonstre nos prefácios de Tutaméia sobre o livro que escreve, o faz de forma incomum, mesclando o que está escrito com o que se poderia escrever, o que poderia se criar e o criado. Pelo jogo do “fique o escrito por não devolve-nos uma pintura em claro-escuro da época. Essa pintura deixa entrever os meandros de um pensamento que pouco a pouco reconquista seu direito à introspecção e à reclusão. As gotas de luz que Joubert debulha são invisíveis esferas nas quais a literatura, a música ou a pintura refletem o pensamento de cada instante. Atento aos segredos do coração e da alma dos homens, ele consegue capturar um pouco dessa eternidade que gira dentro das palavras e que toda literatura tem por vocação exumar. Dessa efemeridade nasceu a obra daquele que escreveu: “Atormentado pela maldita ambição em colocar sempre todo um livro em uma página, toda página em uma frase e esta frase em uma palavra.” (Jean-Paul Corsetti, 4ª. capa dos Carnets de Joubert) 48 JOUBERT citado por BLANCHOT. O livro por vir , p. 69. 49 BABO. A escrita do livro , p. 64. 50 BLANCHOT. Op. cit., p. 60. 51 Ibidem, p. 69.
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dito”,52 acaba por revelar, através de Tutaméia, um movimento duplo, dado pelo trânsito entre texto e extratexto que se fundem, constituindo a idéia de um livro que se escreve, se reescrevendo. Demonstra, assim, de um outro modo, e pela própria escrita, “a aproximação do que escapa à unidade, a experiência do que é sem consenso, o erro, o exterior, o inapreensível e o irregular”, 53 como caminho que o desvia da obra acabada. Na experiência do que é sem consenso, é possível entrever Guimarães Rosa e Joubert a contemplarem, ainda que sob céus diferentes, a imensidão em que se dispersam. Para Joubert, mais do que os astros que brilham incessantemente, o que lhe agrada, e o que o faz perder-se na imensidão, é o espaço resplandecente, “a luz difusa que lentamente aí se revela e revela essa simultaneidade difícil de perfeições distintas, composição do vago e do preciso”.54 O espaço resplandecente de Guimarães Rosa é a “cinematografia divididíssima dos fatos”, para “traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito”.55 Mais do que o consenso, o que lhe agrada é o suprasenso, o difuso e o inconcluso das verdades e meias verdades que aí se revelam, infinitamente, pela forma dos contrários e na irregularidade dos pensamentos: Relações que escapam, pois, ao que existe de regularidade temporal nas relações lógicas da razão, mas que não escapam aos choques instantâneos da presença sensível: comunicação, à distância e pela distância, do imediato; afirmação finita e como que pontual da imensidade infinita.56
Nesse sentido, talvez possamos considerar que os prefácios de Tutaméia se assemelham aos Carnets de Joubert, pois se dispersam na mesma direção: o reconhecimento da impossibilidade de obra acabada. Ambos se tangenciam pela busca de um texto que se erige no limite do enunciável, na tentativa de capturar o inconce bível, que está fora das relações lógicas existentes. Joubert e Guimarães Rosa se dispersam na captura da palavra poética para que ROSA. Tutaméia, p. 141. 53 BLANCHOT. O livro por vir , p. 216. 54 Ibidem, p. 69. 55 ROSA. Tutaméia, p. 65. 56 BLANCHOT. Op. cit., p. 71. 52
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“na perfeição da sua completude, transporte e suporte o vago, a duplicidade e a ambigüidade de vários sentidos, a fim de melhor representar o entre-sentido e o para-além do sentido na direcção do qual sempre se orienta”.57 Desse lugar poético, passível à representação do entre-sentido, inscrevo-me como leitora do meio a ler o livro Tutaméia. Da soleira, pelos prefácios, a tentativa é de encontrar, aí, “o livro: abrigo da escrita”, para o além da obra e para o além do sentido. Esta leitura orienta-se, então, pelo que a ultrapassa, e a torna desde já indefinível, tal como a luz velada que Joubert tenta capturar para descrever o amanhecer: “O amanhecer é encantador, pois é um dia moderado e diminuído. Mas a aurora é-o menos, pois ainda não é um dia. Ainda é só um começo ou, como muito bem se diz, o ‘romper’, o ‘romper do dia’.”58 Situar-se “numa luz média”, como Joubert, para tentar apreender o livro, é deter-se nesse lugar, não apenas pelo gosto da medida, como assinala Blanchot, mas porque desta posição peculiar torna-se possível vislumbrar a outra metade que nos escapa. Em Tutaméia, é pelo meio, entre o que é e o que não é, que Guimarães Rosa acena para o fora da obra, mas que nela está, paradoxalmente, inscrito dentro: a outra metade que escapa como “algo de outro que a ela se adere”, “comunicação, à distância e pela distância, do imediato; afirmação finita e como que pontual da imensidade infinita”.59
BLANCHOT. O livro por vir , p. 71. 58 JOUBERT citado por BLANCHOT. Op. cit., p. 74. 59 BLANCHOT. Op. cit., p. 71. 57
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Capítulo 2
O círculo da imensidade
Acrescentai: o círculo da imensidade. [...] Terminar! Que palavra! Não se termina quando se pára e se declara ter acabado. As minhas idéias! O que me custa é construir uma casa para as alojar. Joseph Joubert
Essas palavras de Joubert remetem-nos à relação metafórica entre casa e livro, mais precisamente às relações entre espaço e tempo, específicas ao objeto livro como abrigo da escrita. Casa e livro são imagens de espaços traçados e demarcados. Uma vez erigidos, estabelece-se, a partir deles, um referencial de espaço que determinará o que está dentro e o que está fora, submergindo, ainda, da própria forma, as zonas indecisas e limiares que podem pertencer a ambos os lugares simultaneamente. Joubert, ao contrapor casa e idéia, constrói uma imagem precisa, um modelo eficaz, pelo qual é possível perceber a complexidade que envolve o livro com relação a seus diferentes espaços, a sua arquitetura. Como a casa, o livro é um volume fechado, circunscrito em uma dimensão predeterminada que sustenta um outro espaço, o da escrita, movediço e fluido, cuja estrutura própria e singular é resultante da mobilidade da letra e de seu sistema combinatório, oferecendo-se como um jogo de probabilidades da ordem do inumerável, tal como a imensidão do universo das idéias. O livro está indissociavelmente inscrito nessas duas grandezas distintas: como forma, é objeto concreto da ordem do numerável, entre limites determinados; e, como escrita, letra, é da ordem do inumerável, sem limite, tal como o universo. A imagem de Joubert torna visível não só a sua própria impossi bilidade, mas a de todo aquele que, pelo ofício da escrita, se submete ou se confunde nesses dois espaços simultaneamente. As metáforas PB
que relacionam o livro à casa, ao mundo e ao universo, não são aleatórias e sim modelos que tentam abarcar seu próprio universo paradoxal, restrito e irrestrito, finito e infinito ao mesmo tempo. A analogia entre livro e universo, metáfora espacial para a escrita e o conhecimento, é observada por Italo Calvino quando ele toma como referência uma passagem do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo , de Galileu. Na realidade, o que se constata, segundo Calvino, é que a relação metafórica estabelecida por Galileu é muito mais entre mundo e alfabeto do que entre mundo e livro : Tenho um pequeno livro muito menor que o de Aristóteles e de Ovídio, no qual estão contidas todas as ciências, e com pouquíssimos outros estudos se pode formar uma idéia bem perfeita: e isso é o alfabeto; e não há dúvida de que aquele que souber combinar e ordenar bem esta e aquela vogal com essas e aquelas outras consoantes obterá respostas muito verdadeiras para todas as dúvidas e daí extrairá os ensinamentos de todas as ciências e de todas as artes, justamente daquela maneira que o pintor partindo de simples cores diferentes, separadamente colocadas sobre a tela, vai com a mistura de um pouco desta com um pouco daquela e de outra mais, figurando homens, plantas, fábricas, pássaros, peixes e, em suma, imitando todos os objetos visíveis, sem que na tela apareçam nem olhos nem penas nem escamas nem seixos: antes é necessário que nenhuma parte das coisas a serem imitadas ou certas partes delas estejam atualmente entre as cores, querendo que com elas possam ser representadas todas as coisas, e que, se estivessem, por exemplo, penas estas só serviriam para pintar pássaros ou penachos.1
Galileu, ao relacionar a combinação das letras do alfabeto às cores, acredita num sistema combinatório capaz de abraçar a multiplicidade do universo, concedendo à letra, portanto, o estatuto de elemento mínimo: “combinação de elementos mínimos, como as cores simples ou as letras do alfabeto”. 2 Calvino chama a atenção sobre uma citação anterior escrita por Galileu, na qual este analisa, não as letras separadamente, mas um bloco de letras, palavras compostas, utilizando como modelo as pinturas de Arcimboldo. As composições de Arcimboldo nascem diferentemente das de outros pintores, pois são construídas com objetos já dotados de significado: um rosto, CALVINO. Por que ler os clássicos , p. 91. 2 Idem. 1
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por exemplo é figurado a partir de flores, frutos e sementes e não a partir de pinceladas avulsas, pitadas de tintas, que se misturam para figurar uma imagem. As observações de Galileu demonstram a dupla articulação possível à linguagem pictórica. Barthes, séculos depois, toma as telas do mesmo pintor para demonstrar a dupla articulação possível à linguagem verbal, cujo fundo lingüístico permite compor e combinar signos, ao invés de criá-los: Vamos recordar, ainda uma vez, a estrutura da linguagem humana: é duplamente articulada: a seqüência do discurso pode ser recortada em palavras, e as palavras, por sua vez, podem ser recortadas em sons (ou em letras). Todavia, há uma grande diferença entre essas duas articulações: a primeira produz unidades que já têm um sentido (são as palavras); a segunda produz unidades insignificantes (são os fonemas: um fonema, em si, não significa nada). 3
Esse estatuto da letra como elemento mínimo, aparentemente simples, fácil de enumerar, é, na realidade, complexo, e ainda, como elucida Barthes, se por um lado mantém cativa a linguagem em seus vinte caracteres, por outro “é o ponto de partida de um enorme con junto de imagens, vasto como uma cosmografia”,4 espaço em que o criador de textos deve trabalhar. Barthes apresenta-nos, assim, dois caminhos distintos que a letra poderá tomar: editar a lei – manter a linguagem cativa e controlada, não lhe permitindo nenhuma extravagância – ou liberá-la incessantemente, numa profusão de símbolos. Nesse segundo caso, a letra transforma-se em algo mais do que um elemento capaz, apenas, de articular palavras e essas, por sua vez, não são o único resultado, o único contexto, a única transcendência da letra: As letras servem para compor palavras? Sem dúvida, mas tam bém para algo mais. O quê? abecedários. O alfabeto é um sistema autônomo, aqui provido de predicados suficientes para garantir-lhe a individualidade: alfabetos “grotescos, diabólicos, cômicos, novos, encantados” etc. 5 BARTHES. O óbvio e o obtuso , p. 121. 4 Ibidem, p. 93. 5 Ibidem, p. 94. 3
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Barthes, ao citar o livro de Massin como enciclopédia da letra ocidental, quer demonstrar-nos que a letra, esse objeto à primeira vista insignificante, que facilmente identificamos e enumeramos, encarna, por sua vocação de metamorfose figurativa, o espírito que a vivifica, tornando-a diabólica, fazendo-a insinuar-se por todos os lados, numa profusão de sentidos sem fim, que ao subverter a lei escapa de qualquer contexto que a encerre: “o de-venir e o por venir da letra (de onde ela vem, e para onde deve, incansável e infinitamente, ir) independem do fonema”. 6 Nessa perspectiva de subversão em que a letra torna-se algo mais do que um articulador de palavras, situa-se o trabalho de todos os artistas citados por Massin – monges, grafistas, litógrafos e pintores –, que preferiram o caminho da metamorfose figurativa e da metáfora, da liberdade incondicional da letra e de sua autonomia fora da linguagem pragmática. Preferiram, assim, não o caminho do discurso que visa à comunicação, mas o da escrita que busca a significância: “aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem, e, justamente por isso, no centro de sua ação”.7 Aventurar-se pelos desvios da significância e dizer não ao significado, tal como propõe Barthes, implica aventurar-se por uma linguagem não tradicional que, liberada da função de comunicar, demonstra-se pelo poder de subversão da letra. Essa subversão apresenta-se como uma necessidade de ultrapassar os limites da linguagem representativa, ou seja, como o desejo de romper com a linearidade do discurso no espaço e no tempo, por considerá-lo um entrave à própria criação. Nesse contexto em que se rompe com a linearidade do discurso e em que não só as palavras dizem, mas também os espaços em branco, as letras e os demais sinais gráficos, torna-se fundamental a referência à experiência poética de Stéphane Mallarmé, cujo pensamento freqüentemente nos orienta em relação à poesia e ao espaço literário. Mallarmé toma a letra (qual uma pincelada ou uma nota musical) como unidade mínima, e que, portanto, se encontra em estado de mobilidade pura, latente de significação: [...] no sentido profundo segundo o qual as palavras, originalmente, se reduzem ao emprego, dotado de infinidade até BARTHES. O óbvio e o obtuso , p. 94. 7 Idem. 6
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consagrar uma língua, das aproximadamente vinte letras – seu devir, tudo entra aí para, ora jorrar, princípio – aproximandose de um rito a composição tipográfica. 8
Essa experiência assemelha-se à aventura que propõe Barthes: a letra livre, em direção à natureza polissêmica do signo-imagem, que, liberada de sua função lingüística (fazer parte de uma palavra singular), pode dizer absolutamente tudo: “nesta zona barroca onde o sentido sucumbe sob o símbolo, a mesma letra pode significar dois contrários”. 9 Ao considerar silêncio os espaços brancos entre parágrafos e estrofes, e o desenho diversificado dos tipos sobre a página também como forma de expressão para a escrita, Mallarmé cria, inspirado na composição musical, uma nova formulação poética, cuja estrutura, de maneira análoga à música não serial, “repele o lento e monótono silogismo, consagrando o dinamismo do processo de associação de imagens”.10 Mallarmé, ao tomar a letra em sua mobilidade pura, possibilita, através dessa liberdade e dinamismo, a quebra da linearidade do discurso, instaurando, pela fragmentação, a idéia de um espaço de escrita inacabado, que, como um jogo, só se constrói desconstruindo. Conceber o espaço de escrita como inconcluso e em expansão significa dizer, nas palavras de Compagnon, que suas referências ou suas definições estão em movimento, tornando-se ainda necessário situar “a habitação da letra”11 nas formas variadas que tomou historicamente. Compagnon separa essas formas em dois domínios. Na retórica antiga, ou segundo o pensamento da Idade Média, o termo que define a relação da escrita com o espaço é o tópico , ou seja, o texto se pratica a partir de uma tópica, um lugar que não pertence a ninguém: “a tópica é um domínio público indiviso, uma estrutura móvel e habitável por quem quiser, orador ou ouvinte, escritor ou leitor: todos os agentes, todos os depositários da letra a compartilham”.12 MALLARMÉ citado por COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 106. 9 BARTHES. O óbvio e o obtuso , p. 95. 10 CAMPOS. “Poesia, estrutura”, p. 178. 11 COMPAGNON. Op. cit., p. 107. 12 Ibidem, p. 107. 8
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O outro domínio pertence à idade clássica e a noção referencial de espaço passa da topologia para a topografia: [...] o texto clássico, circundado por uma perigrafia, demarcado por ícones, é o mapeamento, o recorte, a representação fina e detalhada de um lugar ou de um terreno escolhido. [...] [No domínio da topografia] o autor citante é aquele que põe ordem nos sistemas citados, que concebe seus cadastros e, retrospectivamente, se identifica com a imagem dessa ordem. 13
Compagnon esclarece ainda que, tanto a citação serial sem espaço preestabelecido (topologia) quanto a citação circundada por uma perigrafia demarcada (topografia) abalam o modelo espacial da escrita, mas não o abolem inteiramente. A maculatura,14 superfície suja de inscrição, não se reduz a um plano, a apenas uma face do livro. Na realidade, ela se constitui de um “agenciamento de espaços, de extratos, de planos, uma geologia complexa”.15 Em meio a essa variedade de formas já não é mais possível um mapeamento, um controle dos registros do texto por parte do topógrafo. O espaço que a escrita executa deixa de ser topográfico, para se situar na ordem da topologia, “lugar comum que não pertence a ninguém”. Nesse lugar indiviso desaparece o sujeito, como o topógrafo, e os objetos, como os topoi . Para Mallarmé, é esse o lugar do livro, um agenciamento de espaços”, numa estrutura móvel e em expansão: “O livro, expansão total da letra, deve tirar dela, diretamente, uma mobilidade e, espaçoso, por correspondência, instituir um jogo, não se sabe, que confirme a ficção. 16 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 107. 14 Maculatura: no sentido dicionarizado significa “folha mal impressa, suja ou repintada, que se aproveita como descarga”. No universo da gravura, significa uma “impressão de imagens superpostas”, tornando possível, assim, à superfície plana do papel, apresentar-se como camadas empilhadas, um “agenciamento de espaços” de superfícies planas diferenciadas. Os deslocamentos dados pela imprecisão dos registros das matrizes, aliados ao fenômeno da transparência da cor, trazem, a cada impressão superposta, uma nova imagem que, espelhada e rebatida sobre a anterior, proporciona uma multiplicidade de leituras: uma imagem da imagem, que, sem se repetir, não se fecha sobre si mesma – metáfora que ilustra a geologia complexa do espaço da escrita tópica, formulada por Compagnon. 15 COMPAGNON. Op. cit., p. 108. 16 MALLARMÉ citado por COMPAGNON. Op. cit., p. 108. 13
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Nessa estrutura móvel, o sujeito da topologia é aquele que flui junto à expansão da letra, em incessante variação, como em um jogo, e, do mesmo modo que o livro “‘deve instituir’ um jogo com a letra, sua expansão total (uma topologia), o escritor ‘deve se instituir’, do livro, seu espirituoso histrião”.17 As escritas tópicas ou topográficas eram pensamentos do tempo, e este a única via possível pela qual se deslocava a referência do discurso. Assim, qualquer princípio de regulação do texto tinha e tem como pretensão controlar o tempo, paralisá-lo, isto é, representá-lo, como na tradição, sob uma sucessão de fatos estáveis e de sentido único. Se esse princípio de regulação tem como finalidade reter o tempo para representá-lo num fio de discurso, o livro, ao contrário, desconhece o tempo e a dinâmica de escrever. O que o livro pretende, como comenta Compagnon, é abolir essa duração: O tempo da escrita, o tempo da leitura, essas durações incalculáveis e sempre desconhecidas, são não-lugares para o livro, não-durações para o tempo, como se o tempo e o trabalho, a dinâmica de escrever, fossem, para o livro, heterogêneos ou forcluídos. O livro pretende estar fora do tempo, o que não quer dizer que ele seja intemporal, mas que ele pretende abolir a duração de sua escrita ou de sua leitura ou, melhor, que seu tempo seja reversível, circular.18
Deparamo-nos aqui, novamente, com a complexidade e a ambigüidade que envolvem o livro em relação ao tempo de execução da escrita – que tem seus princípios de regulação e controle do discurso refutados pelo próprio espaço que a abriga. Compagnon esclarece que COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 108. A palavra histrião , que significa “farsa”, é utilizada por Compagnon para fazer alusão, na novela Os teólogos , à crença dos histriões, pela possibilidade de jogo e de trapaça das letras, em ser possível à escrita, como representação no espaço, escapar ao tempo a que está submetida A heresia dos histriões permite-nos pensar sobre a possibilidade de o livro, de certa forma,desabrigar a escrita, pois ao acreditarem ser o tempo irreversível, no qual nada se repete, os histriões assumem a impossibilidade de um discurso encerrar-se sobre si mesmo. O espaço da escrita, para os histriões, torna-se aberto, mesmo que simulado, não se circunscrevendo, tal como escreve Flaubert ao imaginar a utopia do romance inacabado: “por mais que eu copie, nunca será como a outra vez”. FLAUBERT citado por COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 109. E ainda como escreve Guimarães Rosa: “Tudo está escrito; leia-se, pois, principal, e reescreva-se”. ROSA. Tutaméia, p. 155. 18 Idem. 17
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tanto a escrita topográfica quanto a topológica representam uma heresia, e compara-as, na leitura da novela de Borges, Os teólogos , à crença dos anulares ou monotones, em contraposição à dos histriões, também chamados simulacros. Essas heresias regidas pelo tempo são tomadas, por Borges, como fábulas que traduzem o impasse da escrita em relação ao tempo no espaço do livro. Os monotones acreditavam ser possível anular a duração do tempo e torná-lo reversível e circular, pensando que o tempo, ao se fechar sobre si mesmo, se reduziria a apenas um ponto no espaço. Para os histriões, ao contrário, o tempo era irreversível e, não sofrendo repetições, não se fechava sobre si mesmo: nenhuma duração é anulável, nem a da escrita. Em direção análoga, via Mallarmé, Compagnon anuncia: “o livro rompe com a leitura e com a escrita, pois aceita a duração (expansão da letra), integra a dimensão do tempo, de um tempo irreversível, onde nada se repete”.19 Nessa dimensão, o espaço que a escrita executa não permite um mapeamento prévio, passível de demarcação pelo topógrafo, pois ele se constrói, ainda está se construindo, não se demonstra na totalidade. Compagnon ressalta que, na escrita topológica, a folha e a pena, a maculatura e o espirituoso histrião estão em movimento, em trajetórias diferentes que não convergem nem divergem, mas que, por vezes e ao acaso, como num jogo, encontram-se e se cruzam: “o histrião se afasta da maculatura, depois, no seu jogo aleatório, ele a encontra um instante – poderia igualmente nunca encontrá-la”.20 Nesse movimento, o escritor arrisca-se a uma posição instável diante da obra, à mercê do jogo aleatório da letra e de seu devir, permanecendo numa região de experiências, de buscas e de erros, lugar que antecede a obra em vias de acontecer, espaço onde todos os cruzamentos, a priori , são possíveis e realizáveis. Nessa região, o escritor se desobriga e se exime, como sujeito de um mapeamento topográfico da obra numa ordem preestabelecida e com a qual se identifica. Em movimento e em órbita com a pena e a maculatura, o escritor assume inteiramente o devir da letra que, na busca de encontros fortuitos, se desencaminha da própria obra para caminhar em direção a seu centro, ao que a gera, a sua essência, e que, entretanto, não se sabe de antemão. Esse centro desconhecido, só se conhece à COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 109. 20 Idem. 19
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medida que se busca, não se demonstrando, jamais, na totalidade. Essa região é a da arte, lugar que privilegia a tal ponto as experiências com a letra, que alguns escritores as elegem em si mesmas como obra. Nesse contexto, inverte-se o caminho comum, pois o que passa a ser obra é exatamente o que não se sabe, aquilo que aponta para a impossibilidade do fim e do uno. Esse lugar torna-se impróprio ao trabalho da representação literária, porque o escritor escolhe correr o risco de buscar sempre, independentemente de encontrar ou mesmo de saber o que busca, preferindo a região cambiante e móvel em que se mantém afastado e distanciado da obra. Nessa região, ele poderá se expor à errância junto a seu objeto de criação, também ele errante, reafirmando, assim, pela escrita, tanto a impossibilidade de realização do escritor quanto a da própria obra. Nessa perspectiva em que se operam, de formas diferentes, as dimensões do tempo e do espaço e em que não se quer anular o tempo de duração da escrita, torna-se importante explicitar, aqui, a relação anunciada anteriormente sobre a proximidade entre as reflexões abstratas de Joubert, em seus Carnets , e as formulações teóricas de Guimarães Rosa, nos prefácios de Tutaméia. Na realidade, essa aproximação se deve à possibilidade de se pesquisar espaços onde a escrita se realiza e que são considerados, por assim dizer, intermediários: os Carnets (diários), cujo caráter cotidiano coloca-os entre o que é e o que não é literatura, e os prefácios , em sua condição de paratexto, que os situa entre o que é texto e o que é extratexto. Esses espaços de escrita, em geral, marcam, na própria obra do escritor, o lugar da margem, acenando, assim, para o que está fora, mas que está paradoxalmente dentro, porque a obra está sempre em processo de constituição, fazendo-se da própria matéria que a reflete. Ao se falar desse estudo em constituição, do livro que é feito sen- do ,21 em movimento, torna-se importante, aqui, apresentar e situar a figura de Joubert, considerado por Blanchot como “uma presença antecipada de Mallarmé”. Ainda que distantes no tempo, ambos têm os mesmos pressentimentos e o apelo às mesmas imagens em relação à poesia e à literatura, podendo-se ressaltar os seguintes traços que os identificam: 21
Cf. MALLARMÉ citado por BLANCHOT. O livro por vir , p. 240.
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[...] um grande rigor na busca, uma obstinação lúcida em caminhar para o fim ignorado, uma extrema atenção às palavras, ao seu aspecto, à sua essência e, finalmente, o sentimento de que a literatura e a poesia são o lugar de um segredo que talvez se deva preferir a tudo, inclusivamente à glória de escrever livros.22
É pela busca da essência da literatura e de uma mesma letra que eles se aproximam, e de tal maneira que determinadas frases dos Carnets de Joubert parecem ter sido escritas por Mallarmé: “espaços... eu diria quase... imaginários, a tal ponto há neles existência...”.23 E é pela mesma busca de apreender esse “quase imaginário” por meio da materialidade da escrita que surgem as dessemelhanças que os fazem se distanciar para tão longe um do outro. Embora Mallarmé e Joubert tenham uma profunda experiência da distância e da separação e saibam “que só elas nos permitem falar, imaginar e pensar”, 24 é exatamente pela diferença do olhar que separa essas regiões do pensamento que eles se distinguem. Mallarmé torna-se um poeta da linguagem e do espaço onde esta se inscreve e vê, nessa separação, a possibilidade de circunscrever na obra o que está para além dela, estruturado no pensamento e na imaginação. A proposta de Mallarmé apresenta o livro como um céu móvel, as letras como os astros em movimento e em expansão, fazendo, pela força de subversão da letra, com que o espaço da escrita [o livro] se amplie e capture a experiência dessa separação e dessa distância. O livro de Mallarmé lança-se em um movimento que o remete para fora de si mesmo: “toda escrita é a ocupação de um espaço que não se reduz a um suporte”. 25 Joubert, ao contrário, não consegue separar essas regiões do pensamento das quais precisa se distanciar para criar sua obra e torna-se o poeta de um único espaço: “Todo o espaço é a minha tela. Caem-me estrelas do espírito”.26 Essa tela é o livro de Joubert, “um céu imóvel de astros em movimento”, 27 sobre a qual sonha circunscrever o BLANCHOT. O livro por vir , p. 66. 23 JOUBERT citado por BLANCHOT. Op. cit., p. 66. 24 BLANCHOT. Op. cit., p. 66.. 25 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 106. 26 JOUBERT citado por BLANCHOT. Op. cit., p. 69. 27 BLANCHOT. Op. cit., p. 69. 22
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mundo e o vazio do mundo. Esse empreendimento o leva a investir na escrita de uma obra que permanece na região da experiência da distância e da separação, isentando-se desse lugar de ter que circunscrever e fechar a obra, ou seja, concluí-la em um livro, pois ele via na separação “essa trama de ausência e de vazio a que chama espaço – a parte comum das coisas, das palavras, dos pensamentos e dos mundos”.28 Joubert prefere o espaço tênue do entrelugar, que se traduz não pela distância e pela separação, mas pelo próprio distanciamento, na busca de uma luz média, aquela luz difusa da aurora entre a noite e o dia, pois o que ele quer encontrar através da linguagem – e pela linguagem – é a possibilidade de representar o meio . Situandose nesse ponto e junto a essa luz, torna-se difícil para Joubert “passar da noite da possibilidade ao dia da presença”, ou ainda ter a certeza “de que o que surge na luz é a mesma coisa que dormia na noite”.29 Desse lugar, Joubert torna-se o poeta de uma obra presente pela ausência, incircunscrita: “autor sem livro, escritor sem escrito”.30 É preciso ressaltar, segundo Blanchot, que Joubert tinha um sentimento tão forte do impalpável e uma compreensão tão firme desse vazio a que chama espaço que ele não suspeitava que tudo aí se dispersava e se aniquilava. Ao levar às últimas conseqüências a tentativa de configurar esse vazio, que, para ele, “é ‘a plenitude invisível do mundo’, cuja evidência cabe à palavra revelar”,31 Joubert se dispersa exatamente na busca da palavra revelação . Nessa tentativa, ele esquece seu próprio desígnio – a obra –, tal o desvio a que acaba por ser levado na busca de uma linguagem que preencha esse vazio e essa ausência e que para ele diz respeito a algo que ultrapassa a própria obra: Ao descobrir que, na literatura, todas as coisas se dizem, se deixam ver e se revelam no seu verdadeiro rosto e na sua secreta medida, a partir do momento em que se afastam, se espaçam, se atenuam e finalmente se desenrolam no vazio incircunscrito e indeterminado de que a imaginação é uma das chaves, conclui ousadamente que esse vazio e essa ausência são o próprio fundo das realidades mais materiais, de tal Ibidem, p. 66. 29 BLANCHOT. A parte do fogo , p. 295. 30 BLANCHOT. Op. cit., p. 59. 31 Ibidem, p. 68. 28
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modo, diz, que se apertássemos o mundo para fazer sair o vazio, ele caberia na mão.32
Dentro dessa perspectiva de afastamento que torna possível captar a revelação das coisas em sua secreta medida, é que os Carnets e os prefácios passam a ser, embora distintos como espaço de investimento da escrita, lugares privilegiados pelos quais podemos adentrar numa obra, por onde ela escapa de si própria. No paratexto, o prefácio é o lugar em que o autor se afasta da obra para que ela possa existir – “fim da escrita, começo do livro” –, 33 enquanto os diários constituem-se em um recurso pelo qual é possível ao escritor refugiar-se e manter-se também distante da obra, tal como esclarece Blanchot: Talvez seja impressionante que, a partir do momento em que a obra se converte em busca da arte, se converte em literatura, o escritor sente cada vez mais a necessidade de manter uma relação consigo mesmo. 34
Para Blanchot, o diário é um recuo diante do perigo a que o escritor está exposto, quando compõe e cria, e que, sem apaziguamento, entrega-se perdidamente ao tempo da obra, “potência neutra, sem forma e sem destino, que está por trás de tudo o que se escreve”.35 Fato estranho esse, pois, como comenta Blanchot, no diário o escritor utiliza como instrumento para recordar de si mesmo o próprio elemento do esquecimento – o escrever: O Diário representa a seqüência dos pontos de referência que um escritor estabelece e fixa para reconhecer-se, quando pressente a metamorfose perigosa a que está exposto. É um caminho ainda viável, uma espécie de caminho de ronda que ladeia, vigia e, por vezes, duplica o outro caminho, aquele onde errar é a tarefa sem fim. 36
É interessante observar que é no espaço do diário, no limite entre o que é e o que não é considerado literário, que muitos escritores BLANCHOT. O livro por vir , p. 66-7. 33 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 84. 34 BLANCHOT. O espaço literário , p. 19. 35 Idem. 36 Idem. 32
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escolhem permanecer. Em posição de recuo frente à própria obra, mas em ronda e em vigília, eles situam-se, exatamente, num justo ponto, nessa região de distanciamento e de indeterminação na qual a obra se “converte em busca da arte”, logo, em literatura. Paradoxalmente, é aí nesse lugar que, segundo Blanchot, está o melhor da literatura: Acontece que os escritores que mantêm um diário são os mais literários de todos os escritores mas talvez, precisamente, porque eles evitam o extremo da literatura, se esta é, de fato, o reino fascinante da ausência de tempo. 37
Nesse lugar de indeterminação e liberdade rumo a um fim ignorado, Joubert permanece seguro de seu empreendimento e, sustentado por suas buscas, tem a certeza de que não pode responder sobre o término de sua obra com nenhuma obra visível, pois está ocupado com algo mais que ultrapassa qualquer produção e que diz respeito essencialmente à arte: “Aqui, estou fora das coisas civis e na pura região da Arte”. 38 Joubert, “autor sem livro, escritor sem escrito”, sabe que o que procura é o que ignora, o cerne, a própria criação, advindo daí todas as suas dificuldades, mas também a felicidade de suas descobertas. É precisamente nesse ponto, em que a obra se converte em busca da arte (logo, em literatura), que se torna possível relacionar os Carnets de Joubert aos prefácios de Guimarães Rosa, em Tutaméia. Ambos se mantêm distanciados da obra pelo próprio espaço no qual se inscrevem, entre o que é e não é considerado tradicionalmente texto literário (diários e prefácios) e se entrevêem pela mesma luz difusa, mas de um lugar extremamente determinado, a meio caminho entre o ser e o vir a ser, na metade, lugar em que subsiste, na obra, em igual medida, a não-obra. Tanto Joubert, em suas reflexões abstratas sobre o espaço literário, como Guimarães Rosa, em suas formulações teóricas sobre a literatura, fazem-nos acreditar que existe realmente, nesse espaço de luz média, um segredo, um momento tal, um quase nada, mas que é absolutamente o tudo, no qual a obra expande para se tornar um lugar de cruzamentos e encontros fortuitos, o ponto da felicidade das descobertas. BLANCHOT. O espaço literário , p. 20. 38 JOUBERT citado por BLANCHOT. O livro por vir , p. 63. 37
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Sobre esse aspecto, podemos dizer que Guimarães Rosa sabe, como Joubert, que esse ponto de indeterminação só é possível quando se está fora das “coisas civis” e das “razões horológicas”, 39 ou seja, “na pura região da Arte”. Desse lugar não é possível responder a nenhum movimento apoiando-se numa verdade que se quer comprovar, porque ambos colocam em causa “essa parte de ilusão e esse arredor do imaginário que a dura e firme razão não tem de ter em conta”. 40 Os prefácios de Tutaméia se assemelham aos Carnets de Joubert principalmente no que diz respeito ao investimento da escrita na busca de uma linguagem extremamente precisa, empenhada em abarcar esse arredor do imaginário e da invisibilidade que o envolve, figuras de que ambos querem se apropriar e querem materializar através das palavras. Essa busca os leva coincidentemente à “nascente da escrita”,41 lugar de onde acreditam ser possível reinventar a linguagem para dizer o indizível: vazio chamado espaço, em Joubert, e o quase nada, “a cinematografia divididíssima dos fatos”, em Guimarães Rosa. Eles se encontram nesse lugar de impasse, no limite mesmo da linguagem, ao se depararem face a face com a representação. Isso os faz enveredar, ainda que distantes no tempo, pelas mesmas dificuldades, que consiste em alojar as idéias, ou seja, construir uma morada que, ao abrigá-las, abrigue também a sua mobilidade, e que “respeite e preserve nelas a sua simplicidade de imagens, a sua figura de invisibilidade e a sua recusa de se associarem umas às outras como razões”.42 Ainda que os diários e prefácios pertençam a ordens e situações de investimento de escrita diferentes, ambos marcam, no texto, a possibilidade de o movimento vir a ser e, portanto, deixam uma margem para o que escapa, para o que ali não está, ou seja, para o que está além ou aquém do próprio texto. Essa margem demonstrase – quer pelo inapreensível do dia seguinte no diário, quer pelos desvios do próprio ato de escrever, que fazem com que o prefácio de um livro, ao tentar reparar de alguma forma esses desvios, acabe ROSA. Tutaméia, p. 150. 40 BLANCHOT. O livro por vir , p. 63. 41 Nascente da escrita – expressão utilizada por Blanchot para falar da experiência de Joubert ao tentar capturar o vazio e por Guimarães Rosa para designar a experiência da linguagem que busca representar o que não é consenso e para o qual faltam palavras. 42 BLANCHOT. Op. cit., p. 64. 39
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por acenar para a possibilidade de uma outra obra, em vias de acontecer e em travessia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão de sentidos, de uma disseminação”. 43 Os amigos de Joubert o censuram por permanecer nesse movimento sem fim, numa obra sempre em obra, e sobre a qual, então, ele responde com segurança: “Acrescentai: o círculo da imensidade. [...] Terminar! que palavra! Não se termina quando se pára e se declara ter acabado”.44 O empreendimento de Joubert torna-se a própria disseminação e explosão de sentidos e demonstra, em suas reflexões nos Carnets , a impossibilidade de circunscrever uma obra, pois esta guarda, em si mesma, já uma outra, pelo que nela se poderia escrever. Esse torna-se, em um certo sentido, o próprio empreendimento de Guimarães Rosa, ao escrever, não apenas um prefácio, mas quatro, nos quais discorre, exatamente, sobre os descaminhos da escrita, que se quer lúdica a ludibriar o tempo e o espaço, instaurando, assim, pelo jogo de probabilidades que encerra, a mesma dificuldade: terminar. Desse mesmo lugar e numa explosão de sentidos e não sentidos, Guimarães Rosa constata e reafirma, já no primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”: “O livro pode valer pelo muito que nêle não deveu caber”,45 apontando, tal como Joubert, para a existência de um outro lugar, que está fora, mas que, ao mesmo tempo, está dentro da obra porque é dela recorrente. Esse lugar se demonstra, como comenta Blanchot, pelo desejo de substituir a leitura comum, BARTHES. O rumor da língua, p. 94. 44 BLANCHOT. Op. cit., p. 64. 45 ROSA. Tutaméia, p. 12. Essa constatação de Guimarães Rosa remete-nos diretamente às formulações teóricas de Blanchot sobre a obra, pois é exatamente “o que nele não cabe”, e que está fora do livro, “esse amontoado mudo de palavras estéreis”, que evidencia o espaço da obra, ou seja, a própria extensão latente do livro em outro lugar, que lhe é exterior, sempre por vir: Le Livre . Este, para Blanchot, abre-se à infinitude da obra, elevando o objeto à dignidade de Coisa. É isso o que Mallarmé desejava e é em direção a isso que Guimarães Rosa se lança, na experiência literária de Tutaméia, por meio da decantação da escrita, do jogo e da depuração da linguagem: “O livro, coisa escrita, entra no mundo, onde cumpre sua obra de transformação e negação. Também é o futuro de muitas outras coisas, e não apenas livros, mas, pelos projetos que podem dele nascer, pelos empreendimentos que favorece, o conjunto de mundo do qual é o reflexo mudado, fonte infinita de novas realidades, a partir de que a existência será o que não era”. BLANCHOT. A parte do fogo , p. 303-4. 43
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na qual é necessário ver uma parte depois da outra, pelo “espetáculo de uma palavra simultânea onde tudo seria dito ao mesmo tempo, sem confusão”.46 Nesse espaço, o que o escritor quer, na realidade, é representar a impossibilidade de representar, ou seja, quer a possibilidade de, recusando a linearidade da língua, dizer tudo ao mesmo tempo, sem confusão, assumindo, assim, na dimensão da escrita, a desordem e a liberdade possíveis ao mundo das idéias, onde tudo pode ser dito e realizado simultaneamente ou não. A ordem que apresenta um texto fechado e estruturado no tempo e no espaço, fundado em princípios racionais, que faz seguir uma idéia logo após a outra para formar um sentido único, não é visivelmente o espetáculo oferecido por diferentes escritores da modernidade, que seguiram a trilha iniciada pelas reflexões de Joubert nos Carnets . Para esses escritores, e, em especial, para Guimarães Rosa, a escrita como representação deve-se fundamentar na ordem da topologia, porque propõe a desestruturação do discurso no tempo, o que pressupõe, mais profundamente, nas palavras de Blanchot, “o encontro ou a criação desse espaço de vacância”,47 pelo qual se torna possível apagar a idéia de totalidade e de controle sobre a obra. Assim como Joubert, Mallarmé e diferentes escritores, entre os quais se encontra Guimarães Rosa, passam a incorporar à obra esse espaço de vacância, “onde, se nenhuma coisa particular vier romper o infinito, tudo está como que presente na nulidade, lugar onde nada terá lugar senão o lugar ”.48 A incorporação desse espaço de vacância imprime ao texto, pela errância que provoca, um movimento incessante entre o que está inscrito na obra e o que está em estado de premeditação sobre a obra, inscrito em outro lugar. Dessa maneira, a obra também sobrevive de seu não lugar, na sua nulidade, e, como espaço infinito, abre-se às ressonâncias e aos acoplamentos, marcas identificadoras da escrita topológica, como esclarece Compagnon: Num universo essencialmente móvel, a citação, a repetição, o ciclo não é mais aquilo que põe o texto em movimento; daí as falhas, os acoplamentos, as ressonâncias. A citação é a marca BLANCHOT. O livro por vir , p. 70. 47 Idem. 48 Idem. 46
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de um acoplamento entre a maculatura e o histrião, uma aceleração instantânea do movimento, quando as trajetórias separadas entram em ressonância. 49
É por trajetórias separadas, mas em ressonância, que Guimarães Rosa, em Tutaméia (“terceiras estórias”, numeradas como se viessem depois das “segundas”, quando, na realidade, existem apenas as “primeiras”), introduz o leitor desde o início no universo espacial e paradoxal do livro, para que ele participe da verdadeira festa da palavra – “Aletria e hermenêutica” – convidando-o a adentrar na desordem de seu universo dos contrários. “A gente vai – nos passos da história que vem.”50 Nesse sentido, é interessante observar que tanto os diários quanto os prefácios são espaços privilegiados que abrem a escrita à experiência de subverter a dimensão temporal. Ambos são preservados por uma data, o que pressupõe uma proximidade com a realidade factual, ou seja, “a salvaguarda do evento”, 51 e pela qual se torna possível uma interação maior entre o tempo da obra e o tempo “dos dias verdadeiros”. Esse trânsito mais livre permite ao escritor recortar o discurso temporariamente, e deixá-lo em suspensão, à espera do que se vai dizer no diário, e do que não foi dito ainda, nos prefácios, abrindo, assim, uma margem para o que está, por ora, em outro lugar, e para além do texto presente. Compagnon esclarece que, embora o prefácio seja no livro o que se lê primeiro e o que fala por antecedência, é, em geral, o que se escreve por último: “estranho destino do livro: ele avança, afinal de contas, pelo começo, inverte o sentido do caminho”. 52 Guimarães Rosa, ao compor Tutaméia com quatro prefácios, parece reforçar esse estranho destino do livro, e querer fazer um livro desse caminho invertido, uma outra obra na obra, remetendo, ora para o que está dentro, e que, portanto, pertence ao texto que vem a seguir, ora para o que está fora, extrapolando o texto e lançando-o para um lugar que, no livro, não cabe, porque o atravessa. Assim, termina por demonstrar a impossibilidade de se encerrar, no livro, um livro. COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 109. 50 ROSA. Tutaméia, p. 177. 51 BLANCHOT. O espaço literário , p. 20. 52 COMPAGNON. Op. cit., p. 87. 49
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Entretanto, o prefácio é determinante, e exige um desenlace; é preciso que o autor deixe o livro e o encerre, ainda que seja impossível terminá-lo, pois, como paratexto, o prefácio representa um momento necessário e inevitável de toda a escrita e a ele cabe dar a palavra final: “está findo o sujeito que fui, enquanto escrevi isso que você vai ler”.53 Realiza, por isso, segundo Compagnon, um benefício imenso, pois executando o autor, anula o tempo da escrita, imobiliza-a, ou reverte-a, fechando assim o livro sobre si mesmo, uma vez que ele começa pelo fim. O prefácio é a prova de realidade de um livro e é por isso que é sempre necessário haver um, para pôr fim à escrita, datá-la, e para instaurar, a partir de então, desse fim simulado, o começo do livro e a sua entrada numa outra instância: Desenlace de uma história e liberação de um fantasma, ambos da escrita, ele marca a entrada do livro em um universo diferente, o da alienação, da publicação, da circulação: ele é despossessão, luto, separação. Enfim, o prefácio é a prova de realidade do livro, uma prova ilusória – não escrevo senão um simulacro de prefácio – mas suficiente.54
O prefácio torna-se mais do que uma conclusão: ele é um aca bamento (não uma finalidade) da escrita, “ele é a última palavra e a seguinte, um traço recorrente”. 55 Podemos pensar, com relação ao tempo, que o diário é preservado por uma data e que sua escrita, nesse espaço, movimentandose em direção ao dia seguinte, desloca o ponto de fuga do discurso à frente. O prefácio, ao contrário, é retrospectivo e prescinde de uma data para estancar o texto, que não quer parar, pois corre atrás do que não foi dito e poderia ser dito ainda, deslocando, assim, o seu ponto de fuga para trás. Ainda que o prefácio deva se inscrever como forma recorrente ao texto que vem a seguir, acaba por iluminar ao leitor um outro texto, ausente, sem a presença inscrita e ainda por vir. Paradoxalmente, esse movimento de fuga para trás, característico do prefácio, acaba por acenar também ao futuro, como o diário, em direção à COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 87. 54 Idem. 55 Idem. 53
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uma obra desconhecida, porque ali não está explícita, tal como elucida Compagnon: Trata-se ainda do andamento recorrente do texto: a primeira palavra só é uma angústia (uma vertigem) ex ante . Ex post , desejaria colocar isso antes, e ainda isso, a não acabar nunca, como se cada palavra tivesse um lugar melhor no início, como se, movido pelo desejo, todo o texto se cristalizasse, se precipitasse para trás. Donde a necessidade da data do prefácio para estancar, sobretudo, essa fuga para trás. Senão, tem-se a Obra- primadesconhecida.56
Essas palavras de Compagnon são fundamentais para iluminar as leituras dos prefácios de Tutaméia. Se, no estatuto do paratexto, cabe ao prefácio dar a palavra final – “o fim da escrita, o começo do livro” –, Guimarães Rosa institui, para além das terceiras estórias, nos prefácios “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos” e “Sôbre a escôva e a dúvida”, um jogo com o próprio livro. Nesse sentido, os prefácios de Tutaméia subvertem, por sua mobilidade, o estatuto do paratexto, pois ora o autor os apresenta misturados às estórias, no primeiro índice, ora os apresenta como prefácios mesmo, seguidos do grupo de estórias, no segundo índice, o de releitura. A palavra final, extratexto, que deveria ser dada pelos prefácios, é, então, camuflada, para confundir-se à inicial, com o texto propriamente dito, as estórias, e “o fim da escrita, começo do livro”, em Tutaméia, passa, ao contrário, como numa trapaça, a ser simultaneamente, começo da escrita e começo do livro. Guimarães Rosa, como o “espirituoso histrião”, institui um jogo com o livro e cria, assim, uma possibilidade, mesmo que ilusória, da existência de um livro que não termina quando se declara ter terminado. Tutaméia apresenta-se como o próprio ponto de entrecruzamentos por onde perpassam todas as suas obras e, ainda, o ponto de onde poderão nascer todas as outras. Sob essa perspectiva, o empreendimento de Guimarães Rosa, em Tutaméia, acena para a obra incircunscrita de Joubert, propondonos a mesma idéia sobre a obra, ou seja, a dificuldade de circunscrevê-la, pois esta torna-se o “círculo da imensidade”. Guimarães Rosa simula, nos quatro prefácios, uma demorada despedida do livro, 56
COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 88.
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confundindo-os às estórias propositadamente. Sem dar a palavra final, deixa-se a obra sempre em ponto de um novo começo, que, sem se fechar, recomeça pelas releituras, tal como propõem as epígrafes de Schopenhauer, escolhidas pelo autor para iniciar e fechar o volume. E é pela própria epígrafe que Guimarães Rosa anuncia o universo de Tutaméia, uma forma “orgânica e não emendada do conjunto”, convidando o leitor a ler “duas vezes a mesma passagem”, como possibilidade de se entender tudo “sob luz inteiramente outra”.57 Tutaméia guarda, pela estrutura que encerra, tanto uma obra literária singular, que se destaca dentre todas as outras obras do autor, como também demonstra, pela criação das marcas paratextuais que o autor lhe imprime, a genialidade do livro como objeto. Podemos, assim, pensar em Tutaméia como uma obra que sintetiza o universo paradoxal de Guimarães Rosa e que, pela própria estrutura criada, consegue deslocar o ponto de fuga do discurso em duas direções contrárias ao mesmo tempo: para frente e para trás. Em meio a esse movimento, temos a impressão, ao ler os prefácios, que ora estamos adentrando no livro, nas estórias, ora estamos saindo do livro, em busca de um lugar que o ultrapassa e que lhe é, portanto, exterior. Afinal, o fora do livro é a sua extensão em espaço de premeditação, como o “livro em reserva” de Mallarmé – a obra em sua infinitude: [...] ele vê em primeiro lugar a disposição necessária, livro “ar- quitectural e premeditado, e não um recolha de inspirações de acaso ainda que maravilhosas ”; estas afirmações são tardias (1885), mas, desde 1868, diz da sua obra que está “tão bem preparada e hie- rarquizada” (noutro lugar, “ perfeitamente delimitada”) que o autor não pode subtrair-lhe nada, nem sequer retirar-lhe tal “impressão ”, tal pensamento ou disposição mental. [...] Isto anuncia estranhamente o futuro, pois a exigência de reservar o Livro – que nunca será mais que a sua própria reserva – parece tê-lo destinado a não escrever nada além de poemas nulos, quer dizer a só dar força e existência poética ao que está fora de tudo (e fora do livro que é esse tudo), mas, desse modo, a descobrir o próprio centro do Livro.58 Cf. as epígrafes dos índices. ROSA. Tutaméia, p. V e 193. A epígrafe, no estatuto do paratexto, segundo Compagnon, é uma condensação do prefácio, no qual o autor mostra as suas cartas: “Sozinha no meio da página, a epígrafe representa o livro – apresenta-se com o seu senso ou seu contra senso –, infere-o, resume-o”. COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 80. 58 BLANCHOT. O livro por vir , p. 236. 57
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O livro de Guimarães Rosa – Tutaméia – abriga a obra mas não a enclausura, apresentando-se tanto como “um livro em reserva” – no sentido de ser um reservatório de criação do universo da obra de Guimarães Rosa –, quanto como “um livro reserva”, que jamais será mais que sua própria reserva, em direção à obra-prima desconhecida: o Livro por vir de Mallarmé. Tutaméia abre-se, pelo jogo instituído entre os prefácios, “parâmetros disfarçados”59 que se mesclam às estórias, à infinitude da obra, ou seja, à “intimidade errante do lado de fora” e à experiência da “solidão do escritor”,60 condição essa, que, segundo Blanchot, é o seu risco, e que proviria do que pertence, na obra, ao que está sempre antes da obra: essa necessidade em que aparentemente se encontra de retornar ao mesmo ponto, de voltar a passar pelos mesmos caminhos, de preservar no recomeço do que para ele jamais começa, de pertencer à sombra dos acontecimentos, não à sua realidade, à imagem, não ao objeto, ao que faz com que as próprias palavras possam tornar-se imagens, aparências – e não signos, valores, poder de verdade.61
Os prefácios de Tutaméia remetem-nos diretamente às reflexões de Mallarmé, que almejavam descobrir o próprio centro do livro, fazendo-nos acreditar que Guimarães Rosa se propôs, nos prefácios, a descobrir exatamente esse centro, um mesmo ponto sobre o qual perpassariam não só as estórias de Tutaméia, mas todas as suas estórias, realizando, enfim, o sonho de alguns escritores – como Borges, Mallarmé e Joubert: o de escrever não um livro, mas o Livro de onde pudessem sair todos os outros livros.
SIMÕES. Guimarães Rosa: as paragens mágicas , p. 26. 60 BLANCHOT. O espaço literário , p. 14. 61 Ibidem, p. 15. 59
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Capítulo 3
A escrita, nômade de monotonia
Assim, tudo num dia, nada, não começa. Faço quando foi que fêz que começou. Me culpavam desta à-sòzinha casa, infinito movimento, sem a festa da cumeeira. Guimarães Rosa
A dificuldade de Joubert em construir uma casa para alojar suas idéias leva-o, no limiar da velhice, à identificar o livro com uma casa vazia: “Não tendo encontrado nada que valesse mais do que o vazio, ele deixa o espaço vago”.1 Na realidade, o que Joubert busca, rigorosamente, e não consegue encontrar para circunscrever sua obra, é uma linguagem precisa que cubra e reproduza a imensidão desse vazio. Este torna-se muito maior do que a existência de todas as coisas palpáveis, levando-o a fazer desse vazio e dessa ausência a sua obra, o próprio espaço como experiência literária. Joubert, autor cuja “escrita se impõe como exigência de escrever”, 2 sacrifica os resultados à descoberta das condições ideais em articular a escrita no livro, o que faz com que adie irremediavelmente o próprio livro. Ao buscar as condições acertadas que permitiriam escrevê-lo, Joubert torna-se autor de um livro em potencial, antecedendo-se em suas reflexões ao projeto de Mallarmé de escrever um livro no qual fosse possível ao conteúdo se refazer continuamente, não chegando jamais à realidade de objeto. Como esclarece Augusta Babo, o projeto de Mallarmé, assim como o de Joubert, esbarra na negação do próprio livro, pois, “o livro dar-se-á como sua própria reserva, uma virtualidade inesgotável que não procede à finitude da escrita”, logo à existência do livro, tal como formulado por Compagnon. JOUBERT citado por BLANCHOT. O livro por vir , p. 64. 2 LAPORTE citado por BABO. A escrita do livro , p. 64. 1
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Entretanto, se por um lado a experiência de Joubert se distancia da obra acabada, negando o livro, por outro, a afirma e sustenta até o final, pois acena em igual medida para o espaço vazio desse estudo, que torna-se tão existente quanto o outro, “o próprio fundo das realidades mais materiais”.3 Deixar a casa vazia, ou seja, não terminar a escrita no livro, é a imagem que traduz a saída encontrada por Joubert para permanecer no espaço aberto da obra. Sem realizá-la, ele se permite enveredar por reflexões abstratas que envolvem a arte, a obra e a literatura, e que dizem respeito ao ofício do escritor e à escrita, matéria ambígua que se interpõe entre o livro – “comprado, lido, triturado, exaltado ou esmagado pela cotação do mundo” – 4 e a obra – o que ele bordeja ao escrever e da qual nunca é senhor absoluto. A obra, retomando a concepção de Blanchot, é o que se abre à infinitude, é o círculo da imensidade que Joubert não consegue circunscrever, o que não fecha e não termina quando se declara ter terminado. Entretanto, é desse acervo infinito que Joubert se ocupa como escritor, cuja ambição torna-se, como a de todo artista, não o fim em si mesmo, mas sim a experiência de atingir o inatingível, a totalidade da obra, mesmo sabendo que ela jamais será apreendida: o que atrai o escritor, o que agita o artista, não é diretamente a obra, é a sua busca, o movimento que a ela conduz, é a aproximação daquilo que torna possível a obra: a arte, a literatura e o que essas palavras dissimulam. Daí que o pintor a um quadro prefira os diversos estados desse quadro. E o escritor muitas vezes deseja não acabar quase nada, deixando no estado de fragmentos cem narrativas cujo interesse consistiu em terem-no conduzido a certo ponto e que deve abandonar para tentar ir além desse ponto. 5
Permanecer nesse movimento que conduz à obra é imprescindível à própria criação da obra, o livro, mas é também daí que surge o desafio que a escrita impõe ao sujeito que a escreve: “a consciência de que a obra não poderá se realizar no infinito e que só terá valor de verdade e realidade pelas palavras que a desenvolvem no tempo BLANCHOT. O livro por vir , p. 67. 4 BLANCHOT. A parte do fogo , p. 296. 5 BLANCHOT. Op. cit., p. 209. 3
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e no espaço”.6 Paradoxalmente, é esse o desafio que faz do sujeito um escritor, um escrevente sempre em busca de atingir, por aproximação, aquilo que o incita e o faz criar – o vazio com o qual se depara e que é instaurado pela própria obra, e lá permanece velado e indecifrável: “uma certa opacidade, uma dimensão de ilegibilidade que por momentos invade a obra e que no seu interior cria a ausência”.7 Enfim, é essa ausência, esse ponto de ilegibilidade da obra que conduz o escritor e o guia, sempre em direção ao que, velado, permanece no interior da obra e que lhe escapa, remetendo-o novamente para a margem, para o exterior, para o que está além do que é possível circunscrever. Augusta Babo esclarece, dessa maneira, a razão e o interesse que Blanchot tem por todo livro que não chega a ser livro, por essa criação do vazio da obra, “vazio que trabalha a escrita na escrita”, 8 de onde é possível ao escritor desvencilhar-se da obra como um fim para se dedicar aos diversos estados que a constituem, os fragmentos, e, então, devolver ao livro a sua “natureza insustentável, paradoxal, espaço de coincidência dos contrários”. 9 Essa impossibilia, a convivência com esse espaço dos contrários, impele o escritor a uma questão reincidente, ou seja: como inscrever o inscrito ou, ainda, como articular a escrita no livro? Essa questão encontra-se sintetizada pelo escritor Roger Laporte, que nos esclarece ao se interrogar sobre seus próprios livros: “como fazer com que o escrever seja, ao mesmo tempo, o sujeito e o objecto, o conteúdo, o núcleo e a matéria de um ‘livro’ em que o branco, longe de estar localizado e mantido à margem, se dissemine por toda a página”?10 É a essa disseminação do espaço que Joubert, ao conce ber tudo a um só tempo, entrega-se, na busca de apreender, pela palavra literária, o espaço da margem – não só o mundo, mas o vazio do mundo, não só o pensamento, mas o eco desse pensamento: O espaço, eis com efeito o coração da sua experiência, o que encontra a partir do momento em que precisa escrever e junto BLANCHOT. A parte do fogo , p. 294. 7 BABO. A escrita do livro , p. 59. 8 Ibidem, p. 60. 9 BABO. Op. cit., p. 60. 10 LAPORTE citado por BABO. Op. cit., p. 64. 6
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de toda a escrita, a maravilhosa intimidade que faz da palavra literária ao mesmo tempo um pensamento e o eco desse pensamento (quer dizer, para ele, não um pensamento enfraquecido, mas mais profundo, porque mais tênue, embora redobrado, mais longínquo, mais próximo desse longínquo que designa e de onde brota); e ao mesmo tempo virado para essa reserva de facilidade e de indeterminação que está em nós e que é nossa alma e para essa trama de luz, de ar e de infinito que está acima de nós e que é o céu e que é Deus. 11
Guimarães Rosa aproxima-se de Joubert no que diz respeito à determinação do escritor em permanecer na “pura região da arte”, 12 e na entrega à experiência sem fim da palavra literária. A obra de Guimarães Rosa apresenta-se, também, com uma cosmologia própria, que busca apreender o pensamento mais profundo, essa trama de ar e de infinito que está acima de nós, espaço que as teorias comuns não cobrem, porque estão “fora das coisas civis” e das “razões horológicas”, acenando, como Joubert, para algo que é muito maior e que escapa aos domínios da linguagem: “Para onde nos atrai o azul? – calei-me. Estava-se na teoria da alma”. 13 Entretanto, diferentemente de Joubert, Guimarães Rosa, ao se deparar com certas coisas, sentimentos e com o quase-nada que a linguagem comum não consegue expressar, investe na concretude do trabalho com as palavras, fazendo e refazendo suas formas, distorcendo-as, para que elas possam, “à força de correções, retoques e aproximações”,14 chegar a uma precisão tal que não seja mais possível desvincular a palavra do sentido e do pensamento com os quais o escritor as impregnou. Assim, Guimarães Rosa não deixa o espaço vago e constrói de maneira peculiar “uma à-sòzinha casa” para alojar suas idéias. Esta seria identificada por sua topografia irregular, e pelas estórias que emanariam das estórias de seu traçado às avessas: “de costas para o rual, respeitando frente a horizonte e várzeas”,15 “infinito movimento, sem a festa da cumeeira”. 16 BLANCHOT. O livro por vir , p. 65. 12 Ibidem, p. 63. 13 ROSA. Tutaméia, p. 165. 14 ROSA. “Pequena palavra”, p. XXIX. 15 ROSA. Tutaméia, p. 36. 16 Ibidem, p. 37. 11
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Sobre a relação metafórica entre entre casa, livro e obra, e entre mundo e alfabeto torna-se importante citar a análise feita por Vera Novis da estória “Curtamão”, de Tutaméia Tutaméia.. Dessa estória, Novis ressalta exatamente a associação de imagens que se estabelece na narrativa entre a construção da obra arquitetônica (a casa) e da obra literária, e entre o ofício do mestre construtor e o do escritor. Para além do caráter metalingüístico, já atestado nos prefácios de Tutaméia Tutaméia,, a autora destaca duas estórias, em especial, nas quais esse caráter se manifesta de forma mais acentuado: “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, em que se conta a estória da estória, e “Curtamão”, em que se conta a estória das estórias. Assim, se o que se conta em “Curtamão” é a estória das estórias de Tutaméia Tutaméia,, a imagem da casa colocada ao contrário, “desconforme a reles usos”,17 e erguida à revelia de todos no arraial, “desistidos entes, sem artes”,18 afigura-se-nos, claramente, como uma parábola que ilumina a proposta, também à revelia de Guimarães Rosa, de construir sem desistir e com arte a sua obra Tutaméia Tutaméia:: “‘Morro, “‘Morro, na soleira e no rebôco! ’ – anunciei. – ‘Eu, ‘Eu, não morro ...’ ...’ – ou nem nada”.19 Essa obra, como a casa sem a festa da cumeeira, e que pela ambição do seu construtor não teria portas nem janelas, ergue-se numa perspectiva de radicalidade – tudo ou nada –, exigindo de seu criador a ousadia para torná-la “a “a mais moderna” moderna”20 e diferente entre todas as outras da paisagem. A imagem dessa à-sòzinha casa, erguida em posição contrária ao senso comum, cujos espaços se propõem abertos, remete-nos diretamente à obra Tutaméia Tutaméia e e a seu construtor Guimarães Rosa: “botados o assento e o soco em o baldrame. A obra abria.” – 21 “Só me valendo o extraordinário”.22 Tutaméia Tutaméia destaca-se, destaca-se, na crítica literária, como a mais polêmica e singular dentre as obras de Guimarães Rosa, tanto pela estrutura irregular de seu paratexto, quanto pela radicalidade da linguagem, levada às últimas úl timas conseqüências, e sobre a qual ele próprio confessou: “as palavras todas eram medidas e pesadas, ROSA. Tutaméia Tutaméia,, p. 35. 18 Ibidem, p. 37. 19 Idem. 20 Ibidem, p. 34. 21 Ibidem, p. 36. 22 Ibidem, p. 37. 17
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postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto”. 23 Através de uma linguagem extremamente precisa para traduzir em palavras o mundo das idéias, o autor propõe-se a refletir, na estória “Curtamão”, sobre questões que envolvem o papel do artista e a função da arte e, ao mesmo tempo, nas palavras de Vera Novis, define seu projeto artístico de “construção da grande Obra”.24 Guimarães Rosa, em Tutaméia Tutaméia,, consegue, pelo jogo que institui com o livro e através dos artifícios da linguagem que privilegiam o não dito, evidenciar mais fortemente, no próprio espaço do livro, o vazio da obra, ou seja, o não-lugar de livro. Esse não-lugar é sustentado pelo universo paradoxal criado pela própria linguagem de Guimarães Rosa, que troca o que já é assimilado, comum, por aquilo que é incomum, causando, assim, pelas inversões que propõe em Tutaméia Tutaméia,, um obstáculo e um estranhamento ao pensamento habitual do leitor, tanto nos prefácios – pelos quais aponta para a existência de um outro universo, o do “não-senso, a êle afins”,25 que se demonstra pelo reverso – como nas estórias, em que as situações das personagens se resolvem mesmo em meio ao paradoxo, pelo “contrário do contrário, apenas”,26 ou ainda pela mudança permanente de referencial: “o contrário da idéiafixa não é a idéia sôlta”,27 “o contrário do aqui não é ali ”. ”.28 Esse universo paradoxal dos contrários acaba por deslocar o leitor em diferentes direções que, desestabilizando-o, obrigam-no a se lançar, junto à proposta do autor, para o que está à margem do livro, em busca do que ali só se deixou insinuar pela inversão e pelo paradoxo. Guimarães Rosa cria a possibilidade de dividir, com o leitor, o segredo da obra, que torna-se, vez por outra, transparente. Acentua-se, assim, nesse livro, mais do que nunca, a natureza fugidia da escrita – o “mistério nas letras” –, 29 que, ao se insinuar por toda a parte, não se deixa desvendar e nem se encontrar no que é dado a ler pela mancha tipográfica impressa, mas no que dela escapa e, como que refratada, emerge anunciando-se nos vazios e nas entrelinhas: RÓNAI. “Os prefácios de Tutaméia”, p. 216. 24 NOVIS. Tutaméia Tutaméia:: engenho e arte , p. 24. 25 ROSA. Tutaméia Tutaméia,, p. 4. 26 Ibidem, p. 105. 27 Ibidem, p. 75. 28 Ibidem, p. 121. 29 BLANCHOT. A parte do fogo , p. 48. 23
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O conto pretende revelar dados sobre a atividade do escritorconstrutor, textualmente um ofício sagrado; mas ao mesmo tempo, e exatamente por ser sagrado, o ofício não pode ser totalmente desvelado, deve ser mantido em segredo. O “tenho dito”, lugar comum das expressões conclusivas, é substituído por “e o que não dito”, frase que fecha o conto e que somada às outras afirmações semelhantes semelha ntes (“e o que não digo”, “e o que não digo, meço palavra” e “saiba eu o que não digo”), propõe ao leitor uma releitura dos contos, agora leitura dos vazios, leitura nas entrelinhas, nos interstícios da linguagem. 30
Guimarães Rosa, ao escrever Tutaméia Tutaméia,, subverte, pelos interstícios da linguagem, a lei do livro, e assume, como ele próprio observa, a lei do que não fecha, a obra que se abre em movimento infinito: “o escritor deve se sentir à vontade no incompreensível, deve se ocupar do infinito”.31 Nesse depoimento de Guimarães Rosa, constatase o risco a que ele se submete como escritor ao se lançar em órbita junto à exigência do movimento da obra, obra, sempre sempre inatingível, incompreensível e infinita. Assim experimenta “a solidão do escritor”, 32 pois sabe, como todo artista, que criar é ocupar-se do infinito e do incompreensível, abrir-se à “violência da obra”,33 mas também sabe, como escritor em seu ofício de criar, que não pode permanecer apenas nesse movimento infinito, nessa situação de afastamento, na qual a obra é apenas projetada e de onde, sem pouso, ele poderia se “preservar no recomeço do que para ele jamais começa”. 34 Desse lugar ideal que é sempre começo, e pelo qual se tem em vista a obra e não a sua realização, a idéia do livro, mas não o livro ainda, é possível ao escritor e ao artista manterem-se à distância, e pertencerem “à sombra dos acontecimentos, não à sua realidade, à imagem, não ao objeto”.35 Desse lugar o escritor pode, em abstrações infinitas, isentar-se do desafio de ter que recortar algo da ordem do interminável – a obra em potencial e em reserva –, para abrigá-la e materializá-la através das palavras em um campo de NOVIS. Tutaméia Tutaméia:: engenho e arte , p. 64-5. 31 LORENZ. “Diálogo com Guimarães Rosa”, p. 53. 32 BLANCHOT. BLANCHOT. O O espaço literário , p. 13. 33 Idem. 34 Ibidem, p. 15. 35 Idem. 30
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aproximações, o livro, essa ilusão de obra que sempre lhe escapa, como observa Blanchot: a solidão, se esta é o risco do escritor, não exprimiria o fato de que ele está voltado, orientado para a violência aberta da obra, da qual jamais apreende senão o substituto, a aproximação e a ilusão sob a forma do livro? 36
Guimarães Rosa, com a criação do que se poderia chamar de “estrutura ambígua” do livro Tutaméia, cria um espaço vago cambiante na própria obra, no qual ele mesmo propicia, como escritor, a condição de risco à sua solidão. Por meio dos quatro prefácios que artificiosamente se mesclam às estórias, Guimarães Rosa consegue derrubar as fronteiras rígidas que separam texto e extratexto, confundindo, por essa estratégia, o fim da escrita e o começo do livro, revelando-nos, assim, a regra de seu jogo: “faço quando foi que fêz que começou”.37 Sem começo e nem fim demarcados, estórias e prefácios passam a se reenviar um ao outro como um continuum, garantindo ao autor o deslocamento em duas direções simultâneas: tanto para o interior do livro – as estórias propriamente ditas – quanto para o exterior – os prefácios –, permitindo-lhe, assim, por esse artifício criado, transitar mais livremente e voltar sempre “àquela situação de ‘afastamento’ em que [o escritor] se encontrou inicialmente, a fim de se converter no entendimento do que lhe cumpria escrever”. 38 Sobre esse espaço em que a obra existe, em potencial e em reserva, ainda em campo ideal e abstrato, Blanchot apresenta uma imagem esclarecedora e a compara à diferença que se estabelece entre o desejo de se aquecer e a construção de uma estufa para que esse desejo se realize. A atividade do escritor é reconhecida por Blanchot como um trabalho, cuja força histórica transforma o homem, transformando o mundo. Dentro dessa perspectiva, o escritor produz um objeto, o livro, e esse objeto é a realização de algo que era até então irreal, a obra em potencial e em reserva. Assim, pode-se pensar através dessa imagem que a obra está relacionada ao desejo de se aquecer, ao projeto que antecede a construção da estufa, enquanto o livro está relacionado à execução do projeto, à realização de uma estufa capaz de aquecer concretamente: BLANCHOT. O espaço literário , p. 13. 37 ROSA. Tutaméia, p. 34. 38 BLANCHOT. Op. cit., p. 14. 36
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Por exemplo, tenho o projeto de me aquecer. Enquanto esse projeto for um desejo, posso girá-lo sob todas as suas faces, ele não me aquecerá. Mas eis que fabrico uma estufa: a estufa transforma em verdade o ideal vazio que era o meu desejo; ela afirma no mundo a presença de algo que não estava ali, e o afirma negando o que antes ali se encontrava; antes, eu tinha diante de mim pedras, metal; agora, não há mais pedras nem metal, mas o resultado desses elementos transformados, isto é, negados e destruídos pelo trabalho. Com esse objeto, eis o mundo transformado.39
Se pensarmos, nessa dimensão, a questão da escrita no livro, podemos concluir que o trabalho do escritor é, por excelência, a obra, o imaterial, e é ela que deverá transformar-se, por meio de um estado de coisas e pelo ato de escrever, no objeto livro. Para Blanchot, o livro é, portanto, a obra que o escritor produz pelo trabalho de modificar realidades naturais e humanas, pois ele a escreve a partir de um estado de linguagem, de uma forma determinada de cultura, sob o referencial de alguns livros e, principalmente, de elementos concretos e objetivos, como tinta, papel e impressora. O livro fabricado é, nessa perspectiva, o produto de diferentes elementos transformados, isto é, negados e destruídos, tanto pelo trabalho do escritor ao lidar com os estados da linguagem, quanto pelo trabalho de diferentes profissionais do ramo editorial, que tornam possível a inserção do livro no circuito comunicacional, como um objeto capaz de aceder, veicular e circular a matéria escrita criada. Assim, para escrever um livro, torna-se necessário ao escritor destruir a linguagem tanto quanto realizá-la de outra maneira, “negar os livros fazendo um livro com o que não são”, 40 tornar presente o que, ali, antes, estava ausente. Na concepção de Blanchot, ainda que o novo livro seja uma realidade que se pode tocar e até mesmo ler, ele carrega, em si mesmo, a ausência, o nada, pois entre a idéia do livro e o volume que o realiza, reside a mesma diferença que entre o desejo de calor e a estufa que o aquece. O livro escrito pertencerá, então, à região da diferença entre uma instância e outra, cujo distanciamento escapa ao próprio escritor e, por mais consciência que ele tenha do livro que idealizou e realizou, ainda assim este lhe parecerá novo e abrigará o desconhecido, o imprevisível e o extraordinário. BLANCHOT. A parte do fogo , p. 302. 40 Ibidem, p. 303. 39
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Essa concepção de Blanchot torna-se fundamental para elucidar questões referentes à proposta de escrita do livro Tutaméia, e, em especial, à escrita dos prefácios, através dos quais Guimarães Rosa acena para esse universo extraordinário e desconhecido que sempre escapa ao escritor, refletindo, no próprio livro, sobre a obra, a arte, a literatura. Tutaméia apresenta-se como um livro às avessas, materializando, em si mesmo, o projeto e a execução desse projeto. Guimarães Rosa transforma-se, como escritor, em um ilusionista do próprio espaço no qual inscreve e constrói uma cenografia em trompe l’oeil que, ao confundir texto e extratexto, cria a possibilidade de girar esse livro de todos os lados, preservando, no livro, o ideal vazio da obra. Instaura-se, por meio desse jogo, uma idéia contrária: não a do livro como substituto e ilusão da obra, mas a idéia da obra sob a forma e ilusão do livro. Assim, torna-se possível aglutinar, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, a idéia de calor e o calor simultaneamente, como tentativa de capturar no espaço circunscrito do livro o espaço incircunscrito da obra, ou seja, “a maravilhosa intimidade que faz da palavra literária [...] o pensamento e o eco desse pensamento”. 41 Foi a essa experiência imaterial, em que a obra se dá como reserva, podendo “dirigir-se ao mundo mantendo-se reservada, ser o começo, sempre reservado, de qualquer história”, 42 que Joubert dedicou as suas reflexões abstratas nos Carnets , em torno de que desenvolve suas teorias sobre o livro e a obra e com as quais parece dialogar, também, Guimarães Rosa. O livro Tutaméia acaba por se inscrever em meio ao impasse irrevogável que se estabelece entre a escrita do livro e a obra, impasse a que são levados alguns escritores que aí insistem em permanecer, fazendo desse espaço a própria obra, instaurando, assim, como comenta Augusta Babo, uma imposição: “uma necessidade que o livro comanda, que configura a sacralidade moderna do livro, que institui o livro como objeto por excelência da própria reflexão teórica”.43 É preciso esclarecer que a metáfora da sacralização aqui utilizada não significa, segundo Augusta Babo, de modo algum enquadrar o livro numa dimensão religiosa, ou em “um sentido transcendental BLANCHOT. O livro por vir , p. 65. 42 BABO. A escrita do livro , p. 60. 43 Ibidem, p. 56. 41
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que supostamente veicule”.44 O sagrado remete à idéia de um segredo infinito, que não pode ser revelado, conferindo à escrita “uma opacidade que a transparência comunicativa não desvenda nunca na totalidade”.45 Essa opacidade que não se desvenda torna-se a hipótese pela qual alguns escritores se interessam e trabalham, acreditando ser essa a única maneira possível de salvaguardar a escrita e o livro da série: Tratar a escrita na dimensão da ausência ou diferimento é justamente permitir que ela não venha a ser, no livro, moeda de troca, sentido de finitude. Para tal, é necessário que o livro seja e não seja livro, que ultrapasse e se ultrapasse como objecto de troca, como média no circuito da comunicação. Desafio do sagrado face ao profano. 46
A dimensão simbólica do livro nesse contexto é trabalhada pelo pensamento da negatividade que o toma como objeto que só se constitui pelo fim da escrita. Nessa direção, que relaciona a configuração do livro com a experiência e com os limites da escrita, trabalham autores como Derrida, Compangon e Blanchot, agrupados por Augusta Babo em torno das seguintes formulações: “la fin du livre et le commen- cement de l’écriture ”; “le commencement du livre et la fin de l’éctiture ”; “ruse par laquelle l’écriture va vers l’absence du livre ”.47 Sobre essa abordagem, a autora esclarece-nos ainda que é exatamente acentuando a negatividade da escrita como ausência, em relação à positividade do BABO. A escrita do livro , p. 56. 45 Ibidem, p. 57. 46 Idem. 47 Idem. Augusta Babo esclarece que a dimensão simbólica do livro é trabalhada pelo pensamento da negatividade que tende a denunciá-la como constitutiva do fim da escrita, o que faz com que autores como Compagnon, Derrida e Blanchot relacionem a configuração do livro com a experiência e com os limites da escrita. Em síntese, os pensamentos desses autores cruzam-se em torno das formulações de Hegel ao condenar a forma prefacial, designando-lhe uma função enganadora, já que, sendo um prétexto, ela constitui, no entanto, o termo da escrita, apesar de figurar precisamente no começo do livro. Assim, para Compagnon, ao iniciarmos o livro pelo prefácio, iniciamos sempre a leitura pelo fim do que foi um processo de escrita, daí que o livro como fim da escrita seja mais um objeto de leitura do que seu produto. A relação formulada por Derrida afirma a incompatibildade entre o livro como registro mediático e a escrita e para Maurice Blanchot, também ensaísta e escritor da negatividade, o livro aparece como uma exterioridade aos olhos do leitor, mas vazia aos olhos do artista, ou melhor, a condição sem a qual a obra não poderia caminhar para o seu désouevrement . Cf. BABO. A escrita do livro , p. 58-9. 44
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livro tido como presença, que se desenha “o espaço de esvaziamento que a escrita cava no livro”. 48 Ainda que não se possa ter acesso à escrita sem passar pelo livro, esse pensamento da negatividade acaba por denunciar que nem tudo no livro apresenta-se codificado pela escrita, ou melhor, que “o livro pode valer pelo muito que nêle não deveu caber”, ou seja, pelo vazio e pela ausência que ele jamais vai cobrir. Tal pensamento é formulado por Guimarães Rosa na escrita de Tutaméia, seja pelos prefácios e epígrafes, espaços considerados da margem, seja no texto propriamente dito, como pode ser verificado em diferentes frases que emergem vez por outra no livro e que deslocam o leitor, lançando-o para um outro espaço, o exterior: “Um escrito, será que basta?”,49 “Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente”,50 “Tudo é então só para se narrar em letra de fôrma?”. 51 Dentro dessa perspectiva em que se nega a finitude da escrita no livro, associando-a a um segredo que não se desvenda porque lhe é sempre exterior e à margem, Augusta Babo cita autores como Joubert, Mallarmé, Jabès, Joyce, Borges ou Bataille, e mesmo Blanchot, ressaltando, que para todos esses escritores, a sacralidade do livro não se constitui de um texto depositário da verdade, mas sim de um desafio, “talvez não tanto de escrever sobre o livro mas de escrever O livro , a experiência de escrita libertadora”.52 A relação desses escritores demarca um campo de escrita: a experiência de sujeitos para os quais a escrita “des(cons)trói os limites do livro”, abrindo, assim, a possibilidade de situar, dentro dessa perspectiva, o livro Tutaméia. Ao tomarem a escrita como algo que não finda, e que, portanto, ultrapassa o livro como objeto material, esses escritores assumem trabalhar numa perspectiva de ausência, dando a ver o mistério que do livro emerge, mas que, ao nele ficar implícito pelo próprio vazio que carrega, irá sempre refletir e acenar para o fora do livro, o exterior, o desconhecido, a obra. Assim, pode-se pensar que a escrita de Tutaméia desconstrói o limite do livro à medida que Guimarães Rosa tenta subverter, pelo BABO. A escrita do livro , p. 57. 49 ROSA. Tutaméia, p. 149. 50 Ibidem, p. 160. 51 Ibidem, p. 155. 52 BABO. Op. cit., p. 61. 48
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paratexto, o seu espaço físico, ou seja, a estratégia “discursiva, enunciativa, contextual, dialógica” – 53 que envolve a escrita ao ser abrigada em livro, para que este possa, com todos os seus limites, não aprisioná-la, mas capturar, assim, o movimento constitutivo da escrita em travessia. O livro Tutaméia constrói-se de maneira semelhante à imagem da casa sem a festa da cumeeira da estória “Curtamão”. Esta, ao se propor, à revelia de todos, como espaço semi-aberto e sem a preocupação da funcionalidade de abrigo, induz-nos a pensar na escrita desse livro como a entrega de Guimarães Rosa à experiência literária que não visa aos resultados, mas é um fim em si mesmo. Essa relação pode ser reconhecida na frase do mestre construtor dessa “à-sòzinha casa”, quando revela, diante do desafio a que se propõe, não estar interessado em seu reconhecimento, ficando alheio às “frias sopas e glória”.54 Tutaméia apresenta-se como o investimento de Guimarães Rosa em apreender, no campo finito do livro, o movimento infinito da obra, através da criação de um objeto que possa abrigar e desabrigar o texto e que, portanto, seja e não seja livro. Tutaméia estrutura-se, assim, como um ponto de entrecruzamento, capaz de indiciar e legendar toda a obra de Guimarães Rosa e outras, ainda por vir, desconstruindo, dessa maneira, os limites que determinam o que é dado a ler pelo livro e o que se dá a ler pelo que lá não está escrito, anunciando, por sua estrutura mesma, a experiência do autor diante do desafio de escrever O livro : a grande aventura que a escrita do livro coloca ao sujeito escritor. Guimarães Rosa faz da escrita de Tutaméia um campo que se abre à infinitude da obra, apontando, ao leitor, nesse livro, o não lugar do livro, o que não se apreende em letra de forma impressa, porque se inscreve desabrigado para além das fronteiras do tempo e do espaço. Demonstrando esse não lugar, ele acentua a natureza esquiva e fugidia da escrita, cujo movimento, ao se constituir em travessia, não prescinde de abrigo. Assim, o livro é destituído, finalmente, de seu caráter instrumental de apetrecho, como suporte material que acolhe e conduz a escrita, ao mesmo tempo que a desabriga. Guimarães Rosa, ao iluminar esse espaço, aponta, tal como Mallarmé, para a existência de um outro livro – O Livro virtual, Le Livre a venir – BABO. A escrita do livro . (Orelha.) 54 ROSA. Tutaméia, p. 37. 53
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aquele que se dá como reserva, que permanece arquitetado e em premeditação em outro lugar, formatado no pensamento, nem chegando à realidade de objeto. Em 1946, Guimarães Rosa, solicitado a responder sobre a gênese de Sagarana, contou: “ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E comportar-se-ía de doze novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação”.55 Na realidade, a fase de premeditação da obra Sagarana não terminou conforme o anunciado pelo escritor. Pode-se verificar, pela reconstituição histórica da crítica textual, que essa obra permaneceu, ainda, por muito tempo em seu pensamento, como que para decantar a escrita, sempre em busca de aprimorar, cada vez mais, a forma, a arte de descobrir pela medida a desmedida das palavras, levando o autor a retrabalhá-la e a modificá-la da primeira à quinta edição, em 1958.56 É preciso ressaltar que as diferentes modificações na escrita do livro Sagarana deram-se não para acrescentar algo ao já escrito, mas, ao contrário, para suprimir e subtrair, evidenciando, assim, desde a primeira obra, a predisposição de Guimarães Rosa à entrega absoluta, como artista, à justeza e à adequação da forma das palavras, para retirar de sua mínima condição a possibilidade máxima de expressão. 57 Além do cuidado redobrado com a linguagem, nas edições posteriores de Sagarana, Guimarães Rosa suprime textos, como o posfácio “Porteira de fim de estrada”, presente na primeira versão conhecida do livro (1937), além de substituir títulos, 58 o que demonstra suas ROSA. “Carta a João Condé”, p. 333. 56 Cf. LIMA. Introdução à história de Sagarana, p. 41. A escritura de Sagarana se estendeu por um longo período, que vai até a quinta publicação, quando o autor deixou de modificar os textos desse livro, como pode ser verificado de forma esquemática: 1a edição (1946) – 2a edição (1946) – 3a edição, revista (1951) – originais da 4a edição (1955) – 4a edição, “versão definitiva” (1955) – originais da 5a edição (1957) – provas da 5a edição – 5a edição, “retocada, forma definitiva” (1958). 57 Essa adequação em direção à melhor forma pode ser exemplicada comparando-se uma edição à outra, em que se percebe, desde a primeira obra, o trabalho rigoroso de Guimarães Rosa com a linguagem. Veja-se esta frase, destacada do conto “Sarapalha”, que muda a partir da 2a edição: “Não vem!... Foi e não volta mais... Foi, rio...” – para carregála de expressão com o mínimo: “Não vem!... Foi, rio...”. Cf. LIMA. Introdução à história de Sagarana, p. 30-40. 58 O conto “Envultamento” muda para “São Marcos” e “A opportunidade de Augusto Matraga” muda para “A hora e a vez de Augusto Matraga”. 55
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preocupações e inquietações de escritor na busca do aprimoramento da forma das palavras, exatas e medidas, para expressar, com a maior aproximação possível, o imponderável, o indizível, “a cinematografia dividíssima dos fatos”.59 As diferentes modificações nas edições de Sagarana, registradas pela crítica textual, retratam e documentam a experiência de Guimarães Rosa ao ter de conviver com o esvaziamento reincidente que a escrita cava no livro, impelindo-o, como a todo escritor, a continuamente escrever. Esses procedimentos revelam que o autor acredita, tal como formula Blanchot, que a obra está apenas inaca bada e crê que, com um pouco mais de trabalho terá a chance de terminá-la, voltando, portanto, a por mãos à obra. Mas, na realidade, o que ele quer terminar – a obra – é interminável, tornando o seu trabalho ilusório, pois ele sabe, como todo artista, que o livro é apenas uma ilusão da obra, e que esta, “em última instância, ignora-o, encerra-se sobre sua ausência, na afirmação impessoal, anônima, que ela é – e nada mais”. 60 Ainda que para Guimarães Rosa estejam claras as ordens distintas de espaço que se interpõem entre o campo limitado do livro e o campo ilimitado da obra, pode-se pensar que já em Sagarana o autor permitiu-se escapar à lei do livro, não encerrando o seu ato de escrever, mesmo quando o livro já havia sido publicado e colocado em circulação, denunciando, assim, tal como observa Derrida, a “incompatibilidade [que se interpõe] entre o livro, como registro mediático, e a escrita”.61 Essa postura do autor leva-nos diretamente a averiguar a construção da escrita de Tutaméia, último livro publicado em vida por Guimarães Rosa, considerado pela crítica literária como o mais polêmico e singular no conjunto de sua obra, tanto em relação ao aspecto da linguagem, levada às últimas conseqüências, quanto pela ampla zona da margem, que inclui quatro prefácios, mediante os quais o autor consegue assegurar uma grande mobilidade à escrita. Guimarães Rosa garante, assim, pelo jogo que institui com o livro, um paradoxo: apagar-se como sujeito que nele se inscreveu e, ROSA. Tutaméia, p. 65. 60 BLANCHOT. O espaço literário , p. 13. 61 BABO. A escrita do livro , p. 59. 59
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ao mesmo tempo, nele permanecer presentificado pelo paratexto, no espaço limítrofe “entre o interior – texto – e o exterior – discurso do mundo sobre o texto”. 62 Desse lugar intermediário, ele mesmo comanda a leitura de Tutaméia, demonstrando que o livro, como objeto, jamais vai cobrir a extensão da paisagem da obra, o universo de criação do escritor, e que, portanto, ele sempre carregará, e em igual medida, a ausência do que lhe escapa, do que nele não cabe. A obra Tutaméia confirma a potencialidade do livro imaterial, demonstrando que, para cada livro escrito, um outro submerge, pedindo para ser escrito, e ainda outro, demonstrando a existência de um espaço em que a obra permanece latente e em premeditação, estruturada e arquitetada no pensamento, podendo nem chegar à realidade de livro como objeto que se dá a ler. Sobre esse aspecto, pode-se constatar que, desde Sagarana, Guimarães Rosa transita entre essas duas instâncias que perpassam incondicionalmente a realização de um livro, como nos revela Van Dijck de Lima: Naquele momento, para Guimarães Rosa, o livro estava pronto, pois, apesar de haver “muita moita má” ainda para “ser foiçada”, “melhor rende deixar quieto o matto velho, e ir plantar roça noutra grota”. E anunciava o próximo livro: “Chamar-se-á Tutaméia, e virá logo depois deste. Benza-os Deus!” 63
Guimarães Rosa parece concentrar em Tutaméia todas as questões com as quais se deparou como escritor ao longo de toda a sua obra, relativas à ambigüidade que se instaura entre livro e escrita, quer seja do ponto de vista material, como objeto que a abriga, quer seja do ponto de vista imaterial, mantendo a obra ainda desabrigada, fora do livro, como que impressa por matrizes movediças capazes de gravar a simultaneidade do pensamento – passíveis, portanto, de múltiplas inscrições. Embora as escritas de Sagarana e Tutaméia estejam encerradas em livros que se separam por uma grande distância no tempo, não podemos dizer o mesmo quanto à obra a que se abrem, o que permite que ambas se alinhem, juntas e ao mesmo tempo, ainda que em condições completamente distintas. Na realidade, contrariamente anunciado no posfácio “Porteira de fim de estrada”, Guimarães Rosa BABO. A escrita do livro , p. 127. 63 LIMA. “Introdução à história de Sagarana”, p. 35. 62
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não terminou Sagarana como havia anunciado, nem publicou Tuta- méia logo depois, só chegando à realidade de objeto livro, tal como o conhecemos e o folheamos, a partir de sua edição de 1967. A reconstituição histórica da escrita de Tutaméia pode ser registrada primeiro quando se anuncia em pensamento ao lado de Saga- rana, surgindo, muito tempo depois, e em partes, por meio de publicações avulsas em revistas e jornais. A obra trilha, assim, um caminho inverso: não do livro para o circuito comunicacional, mas do circuito comunicacional para o livro, como informa-nos Irene Gil berto Simões sobre as datas e locais de publicação dos prefácios: “‘Hipotrélico’ foi publicado em 14.01.1961, ‘Nós, os temulentos’ em 28.01.1961 – ambos em O Globo – e ‘Sobre a escova e a dúvida’ na revista Pulso , em 15.05.1965”.64 Tutaméia constituiu-se como livro, portanto, a partir desse acervo de fragmentos lançados em tempos diversos, marcados pelo ritmo esparso e datado dos periódicos. Esse fato adquire, aqui, relevância, à medida que nos remete, embora sob enfoques diferentes, tanto às formulações de Compagnon sobre a função do prefácio como paratexto – “um acontecimento histórico: só o prefácio do livro pode ser datado e localizado: a morte” –65 quanto às de Blanchot sobre a escrita dos diários – espaço em que é possível ao escritor trabalhar com a “salvaguarda do evento”, preservado pelas datas, amparado por “um presente ativo” que “pertence aos negócios, aos incindentes, ao comércio do mundo”. 66 Ainda que essas modalidades de textos – o prefácio e o diário – sejam precedidos de uma data que os designa e os identifica, é preciso ressaltar que Compagnon e Blanchot consideram-nas parâmetros ilusórios, pois elas podem, na verdade, descortinar uma outra face que subverte tanto o prefácio – como “fim da escrita, começo do livro” –67 quanto os diários – como refúgio do escritor para recordar-se de si mesmo, “quando pressente a metamorfose perigosa a que está exposto”,68 diante da solidão da obra, do tempo da ausência de tempo. SIMÕES. Guimarães Rosa: as paragens mágicas , p. 22. 65 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 87. 66 BLANCHOT. O espaço literário , p. 20. 67 COMPAGNON. Op. cit., p. 84. 68 BLANCHOT. Op. cit., p. 19. 64
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Assim, para Blanchot, a sensação de verdade que parece emanar da escrita do diário é ilusória, à medida que as datas só emprestam ao escritor a “salvaguarda do evento”, permitindo-lhe apenas a ilusão dos dias verdadeiros, mas não garantem à escrita refletir a fidelidade aos acontecimentos quotidianos. Essa ilusão, no entanto, é exatamente o que, segundo Blanchot, permite aos escritores que mantêm um diário serem os mais literários de todos, “talvez, precisamente, porque eles evitam o extremo da literatura, se esta é, de fato, o reino fascinante da ausência de tempo”. 69 Compagnon, por sua vez, destaca que o prefácio, como algo que se data para colocar termo à escrita, é também ilusório, pois ele pode produzir posteriormente a origem e esta, diferentemente de começo, diz respeito à outra coisa, ao que não tem fim, pois é “uma imagem, a outra face, a face oculta do livro”,70 o que nele não deveu caber. É exatamente através desse cenário de insinceridades que se constrói apoiado nas datas destituídas de seu tempo verdadeiro, permitindo ao escritor transformar-se em um ilusionista do próprio tempo e do espaço, que se torna possível fazer convergir, pela farsa que se instaura, as formulações de Blanchot às formulações de Compagnon. Nessa convergência, situa-se a leitura que se faz aqui de Tutaméia, como espaço intermediário e difuso, situado no distanciamento entre o desejo de se aquecer e o estar aquecido, o que lhe permite apresentar-se como livro – realidade de papel e impressão que se toma nas mãos e a ele se afeiçoa, e como não livro – imaterial em estado de premeditação, escrita em pensamento. Pode-se, então, pensar que Guimarães Rosa, na escrita de Tuta- méia, trabalhou aliado a essas circunstâncias e com a colaboração das datas não datadas. Por um lado, como nos diários, trabalhou com a “salvaguarda do evento”, atendendo pelo ofício da escrita à demanda da circulação dos jornais e revistas, não prescindindo, portanto, de dar fim à escrita no livro. Escrevia, assim, tendo em vista a paisagem da obra, já que esse livro preexistia arquitetado em pensamento, mantendo-se em reserva e literalmente ainda por vir. Por outro lado, os prefácios “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos” e “Sôbre a escôva e a dúvida” foram lançados inicialmente com a autonomia de contos, fora da função paratextual com que serão apresentados mais BLANCHOT. O espaço literário , p. 20. 70 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 88. 69
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tarde. Quando reorganizados e abrigados em livro, Guimarães Rosa os manteve na ambigüidade, ora mesclados às estórias no índice de leitura, ora separados das estórias no índice de releitura. Nesse contexto, vale a pena, ainda que brevemente, traçar um panorama da publicação de algumas obras do autor, a fim de situarmos questões aqui desenvolvidas, que se referem à construção do livro Tutaméia. Segundo o artigo de Van Dijck de Lima, quando Guimarães Rosa reescrevia a quarta edição de Sagarana, em 1956, já tra balhava na revisão geral de seu romance, Grande Sertão: Veredas , e preparava o lançamento de seu segundo livro, Corpo de baile .71 Pelas informações de Irene Gilberto Simões, os três prefácios de Tutaméia já citados acima foram publicados anteriormente ou concomitantes aos contos das Primeiras estórias . Vera Novis ressalta tam bém que os contos de Tutaméia foram publicados, antes de aparecerem organizados em livro, na revista Pulso , informando-nos que apenas “Aletria e hermenêutica” era inédito e o único que parece ter sido escrito com finalidade mesma de prefácio do livro no volume. 72 Por meio desse panorama, percebe-se uma particularidade, ainda que de forma inversa, com relação ao tempo de articulação da escrita no livro, que perpassa tanto Sagarana quanto Tutaméia. Tal fato permite-nos constatar a efetiva participação de Guimarães Rosa na construção desses dois livros, que pode ser verificada tanto pelas diferentes modificações nas edições do primeiro livro e na complexa cenografia construída por Guimarães Rosa para reapresentar, abrigados em livro, os textos já publicados antes de Tutaméia. Se, por um lado, em Sagarana Guimarães Rosa não consegue parar de escrever, retrabalhando o texto mesmo depois de publicado, em Tutaméia ele parece operar o caminho inverso, antecipando a obra antes de organizá-la em uma edição definitiva, propondo assim, a desarticulação da escrita no livro. Ao derrubar as fronteiras rígidas que demarcam, pelo paratexto, a entrada do livro no circuito comunicacional, Guimarães Rosa abre espaço à escrita para desenvolver-se pelo movimento que lhe é inerente, rumo ao interminável que, sem começo nem fim preestabelecidos, passam a reenviar-se em um pluralidade de direções. LIMA. “Introdução à história de Sagarana”, p. 40. 72 NOVIS. Tutaméia: engenho e arte , p. 25. 71
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Assim, institui-se um espaço, para abrigar a escrita, tão anárquico quanto a linguagem que ele há de abrigar, o que permite ao autor trabalhar não apenas a escrita do livro, mas o livro da escrita em devir, propondo-se à simultaneidade que instaura um paradoxo: 73 parar de escrever e escrever ao mesmo tempo, criando, nesse movimento, um livro sem começo nem fim, aberto e em infinito movimento. Nesse sentido, pode-se pensar que foi essa a estratégia que permitiu a Guimarães Rosa camuflar a palavra final e prolongar-se através dos quatro prefácios na instância de autor, o que caracteriza, ainda que de forma diferente de Sagarana, também uma demorada despedida do livro. Guimarães Rosa faz-nos crer que foi esse o artifício que encontrou para tentar reescrever o livro no próprio livro, sair dele, mas nele permanecer, preparando, assim, a sua melhor retirada: A última palavra colocada no início é também uma consolação, uma revanche (o melhor que guardo para o fim): ela compensa a primeira que foi tão penosa. Faltou-me a primeira palavra, mas terei a última: ela pontifica em lugar soberano, porque decide o destino. É por isso que, apesar do luto que ela carrega, há um júbilo do prefácio, como numa pirueta que me repõe os pés na terra: faço uma bela retirada, acenando com o chapéu.74
Guimarães Rosa, em Tutaméia, burla o estatuto do prefácio como determinante do fim da escrita, pois a última palavra não é colocada apenas no começo, mas disseminada por todo o livro. Ao invés de se localizarem geograficamente no início, os prefácios espalhamse entremeados às estórias, propondo-nos, ao contrário, vários inícios, recomeços; desestabilizando a função do prefácio como prova de realidade do livro; evidenciando, como destaca Compagnon, que o que o “prefácio, como interpretação, como destruição do livro, pode produzir posteriormente é a origem”. 75 O paradoxo é tomado aqui a partir das considerações de Deleuze, na Lógica do sentido , quando esclarece sobre a simultaneidade de um devir: “Na medida em que se furta ao presente o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente. O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”. DELEUZE. Lógica do sentido , p. 1. É esse o raciocínio que é trazido aqui para se pensar de maneira análoga o paradoxo que a escrita instaura no livro: parar de escrever e escrever ao mesmo tempo. 74 COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 88. 75 Idem. 73
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Aqui se torna fundamental esclarecer a diferença que se esta belece entre começo e origem. A situação geográfica do prefácio no início do livro foi refutada, primeiramente, por Hegel, que lhe atri buiu uma função enganadora, já que o que se lê primeiro é o que se escreve por último. Assim, Hegel sempre se questionava sobre o começo: “no prefácio da Lógica, qual deve ser o começo da ciência? Depois, na introdução, qual deve ser o começo da lógica?”.76 Da mesma maneira, Decartes também hesita sobre o começo: “é preciso adotar um modo de expressão analítico ou sintético?”.77 Mas a origem é outra coisa – “uma imagem, a outra face, a face oculta do livro”.78 Assim, Compagnon destaca que essa origem é, também ela, um acidente (como a interrupção, o prefácio): falsa origem, sem dúvida (ele só tem valor retrospectivo), mas mesmo assim origem; ponto de partida numa repetição e que só o prefácio pode suspender. 79
Compagnon ressalta ainda que o prefácio, ao confundir origem e começo, conjura a morte, atenuando o gesto grave pelo qual o autor consente morrer na primeira página do livro e petrificar-se na perigrafia, findando-se junto à escrita no começo do livro. Os prefácios de Tutaméia apresentam, com essa farsa, a idéia de um livro que não se fecha sobre si mesmo e que, não começando pelo fim, subverte totalmente o tempo da escrita no espaço do livro. Assim, o prefácio “Aletria e hermenêutica”, considerado o único inédito e escrito realmente para compor o volume, já começa o livro recomeçando-o, discorrendo exatamente sobre a subversão que habita a linguagem, que ao se repetir não se repete. Através da etimologia da palavra anedota, Guimarães Rosa coloca em pauta a questão do ineditismo. Se, por um lado, esse prefácio permite-lhe exercer a função de autor, referendando a reapresentação – repetição em outro suporte – dos textos já publicados, por outro lado o destitui completamente dessa função, pois ele se mescla às estórias pela própria linguagem em que é escrito, inserindo-se ele próprio como prefácio nos novos mágicos sistemas de pensamento e tornando os espaços de escrita – texto e extratexto – indistinguíveis: COMPAGNON. O trabalho da citação , p. 88. 77 Idem. 78 Idem. 79 Ibidem, p. 89. 76
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A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprêgo a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcedência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentidos de gracejo , de dom sobrenatural , e de atrativo . No terreno do humour , imenso em confins vários, pressentem-se mui há beis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.80
A questão da repetição introduzida em “Aletria e hermenêutica” estende-se por todo o livro, perpassando as epígrafes, prefácios e estórias, por meio dos quais Guimarães Rosa demonstra-nos que nada se repete igual, porque é exatamente na repetição que se produz a diferença – “o mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço” –,81 e pontua todo o livro com um tempo atemporal, que quer se manifestar por uma outra referência, que não a dos relógios: Era noite mais noite e mais meia noite; não consultei quadrante e ponteiros. Os relógios todos, de madrugada, são galos mudos.82 O relógio – seus ocloques: repetiam insistida a mesma hora, que êle descarecia precisar que fôsse. 83 Só para desusar-se era que o relógio batia, aqui e outrures [...]. 84 – Até hoje, para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. É contra êles, também, que teremos de lutar... 85 O tempo não é um relógio – é uma escolopendra.86 ROSA. Tutaméia, p. 3. 81 Ibidem, p. 86. 82 Ibidem, p. 150. 83 Idem. 84 Idem. 85 Idem. 86 Ibidem, p. 151. 80
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Tutaméia demonstra-se, então, por “um modo sem seqüência, desprendido dos acontecimentos” 87 e “fora dos duros limites do desejo e de razões horológicas”,88 em que Guimarães Rosa propõe ao leitor um universo onde “tudo tinha de destruir-se, para dar espaço ao mundo nôvo aclássico, por perfeito”,89 convidando-o a compartilhar da utopia de um livro inconcluso, em infinito movimento: “– Agora, juntos, vamos fazer um certo livro? Tudo nem estava concluído, nunca, êrro, recomêço, reêrro”. 90 Como escritor inclui-se, assim, entre aqueles para os quais a escrita desconstrói os limites do livro, ou seja, os nômades de monoto- nia, que “experimentam a vertigem da repetição e a ausência de qualquer origem”.91 Guimarães Rosa coloca-se ao lado dos “eqüiandantes” que gostavam “de ouvir arte”,92 como Zito, que não recitava trovas, e todos os outros que faziam isso – Aquiles, Bindóia, o próprio Manoelzão –, que iam, “nômades da monotonia”, “enquanto não lidavam ou aboiavam, citando alto cada avistada coisa, pormenor – ave e vôo, nuvem, morro, riacho, poeira, vespa, pedregulho, pau de flor, ou nada – toadamente”, 93 como um índice para o livromundo onde “nada em rigor tem começo e coisa alguma tem fim”. 94 Assim, toma com sua escrita o caminho do descaminho a que se refere Blanchot: O lugar do descaminho ignora a linha recta; nunca se vai de um ponto a outro ponto; não se parte daqui para chegar ali; nenhum ponto de partida e nenhum começo para a caminhada. Antes de se ter começado, já se está a recomeçar; antes de se ter terminado, repisa-se; esta espécie de absurdo que consiste em regressar sem nunca ter partido, ou em começar por recomeçar, é o segredo da “má” eternidade, correspondente à “má” infinitude, e talvez uma e outra encerrem o sentido do devir.95 ROSA. Tutaméia, p. 150. 88 Idem. 89 Ibidem, p. 147. 90 Ibidem, p. 148. 91 BABO. A escrita do livro , p. 61. 92 ROSA. Op. cit., p. 162. 93 Idem. 94 ROSA. Ficção completa, p. 801. 95 BLANCHOT. O livro por vir , p. 104. 87
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Guimarães Rosa, em Tutaméia, repisa “essa espécie de absurdo em regressar sem nunca ter partido”, encarnando inteiramente o sentido do devir – o que faz desse livro um campo finito sem limites, tal como imaginou Borges, “o mundo pervertido na soma infinita dos seus possíveis”.96 Em entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa afirma estar buscando o impossível e o infinito, e orienta-nos sobre o seu trabalho de escritor, revelando-nos que “os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria das palavras”. 97 Se nos é impossível adentrar no pensamento do escritor, a nascente de todos os livros, torna-se possível, entretanto, entrevê-lo através do livro Tutaméia, em que Guimarães Rosa, pelo jogo e pela alegria das palavras, arrisca-se, segundo Blanchot, à solidão essencial do artista, entrega-se ao fascínio, à “ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço”,98 e de onde o seu o olhar está sempre voltado para a paisagem infindável da obra, impessoal e anônima no pensamento, no exterior e fora do livro, do qual o escritor sabe ser apenas uma ilusão, mas pela qual escreve e persevera: Escrever é dispor a linguagem sob o fascínio e, por ela, em ela, permanecer em contato com o meio absoluto, onde a coisa se torna imagem, onde a imagem, de alusão a uma figura se converte em alusão ao que é sem figura e, de forma desenhada sobre a ausência torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há mais ninguém, quando ainda não há ninguém. 99
Estamos novamente diante da complexidade e da ambigüidade do livro – objeto material, realidade de papel e impressão que abriga a materialidade da palavra-coisa, e também imaterial, pelo BLANCHOT. O livro por vir , p. 105. 97 LORENZ. “Diálogo com Guimarães Rosa”, p. 44. 98 BLANCHOT. O espaço literário , p. 24. 99 IDEM. Para Blanchot, “a ausência de tempo não é um modo puramente negativo. É o tempo em que nada começa, em que a que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação, já existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo puramente negativo é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem e o ‘Eu’ que somos reconhece-se ao soço brar na neutralidade de um ‘Ele’ sem rosto”. “É passar do Eu ao Ele, de modo que o que me acontece não acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de que isso me diz respeito, repete-se numa dimensão infinita.” BLANCHOT. O espaço literário , p. 20 e 24. 96
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que emerge da própria palavra e que paradoxalmente age “como um poder obscuro, como feitiço que obriga as coisas, tornando-as realmente presentes fora delas mesmas”. 100 Pode-se, assim, pensar que o livro Tutaméia: terceiras estórias , ao apresentar-se pela escrita do descaminho, nômade de monotonia, sem começo nem fim, sempre recomeça, à deriva de suas infinitas possibilidades, “sob o fascínio da linguagem”, transformando-se, tal como as palavras presentes fora delas mesmas, em um livro fora dele mesmo – uma “imagem feitiça” de livro, “quase, obediente impressão”, “formando-se fugindo-se, o simulacro” da obra: “De que prévios traços, parcelas, recolhidas aqui, onde e lá, que datas?”. 101
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 315. 101 ROSA. Tutaméia, p. 181. 100
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Epílogo
A ausência de livro
“Mas, então, onde começa onde termina a obra? Em que momento existe? Por que torná-la pública?”1 Essas questões levantadas por Blanchot devolvem-nos à complexidade e à ambigüidade que cercam o livro, demarcando e apontando instâncias distintas que o enlaçam ao vasto âmbito das coisas. Assim, ao tentarmos discernir o algo de outro que a ele se adere, para além de seu caráter instrumental de apetrecho, tal como formulou Heidegger, só nos deparamos com o que dele escapa, a obra que nele se esconde e dissimula-se. O livro, ao abrigar as palavras dispostas sob o fascínio da linguagem, mimetiza esse fascínio e transforma-se ele próprio em objeto feitiço. Ao mesmo tempo que é invólucro que veicula a matéria das palavras que nos dizem as coisas em linguagem de ficção, traduzindo-as em idéias e pensamentos, é tam bém invólucro do que essas palavras nos dizem, pois “o mundo em que apenas nos é dado dispor das coisas já se desmoronou, [...] as coisas afastaram-se infinitamente delas próprias e transformaramse no longínquo disponível da imagem”. 2 Essas relações complexas, estabelecidas pela concretude do livro e a imaterialidade da obra, revestem-no de uma amplitude que inviabiliza, segundo as reflexões de Heidegger, o caminho para se chegar ao algo de outro que a ele se adere se o tomamos apenas em BLANCHOT. A parte do fogo , p. 296. 2 BLANCHOT. O livro por vir , p. 218-9. 1
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suas características isoladamente: a coisa, o apetrecho, a obra. Ainda que esse caminho seja válido, como vimos, Heidegger considerao reducionista, pois abandona, “no decurso da história da verdade sobre o ente”,3 a possibilidade dessas três instâncias se combinarem entre si, promovendo relações intrincadas e não mais estanques. Pode-se pensar que o livro, no mundo das coisas, apresenta-se como produto da combinação dos três modos acima referidos; o que permite vê-lo sob um ângulo diferenciado, terceiro, tal como a luz média da aurora que buscava Joubert – “que é-o menos, pois ainda não é o dia”. Não médio entre uma luz e outra, mas um meio como lugar difuso e indiscernível , que confunde a luz que anuncia o começo do dia com a luz que anuncia o seu fim: um meio de margens descentradas e disseminadas, como Tutaméia Tutaméia.. Guimarães Rosa apresenta-nos, por meio de um paratexto atípico e dos prefácios “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos” e “Sôbre a escôva e a dúvida”, um livro que é uma imagem difusa, como um espaço indiviso e sem fronteiras pelo qual o escritor avista à distância – e deixa-nos também entrever – um quasenada da paisagem infinita da obra, a nascente de todos os livros. É, pois, o livro o dispositivo que permite ao escritor o eterno exercício de circunscrever o incircunscrito e a entregar-se, em seu ofício de forjar palavras, à região pura da arte, à experiência literária que consiste em dar corpo ao incorpóreo, forma ao informe, presença ao que está radicalmente fora do livro – a obra: esse círculo da imensidade, espaço que não se fecha e que escapa ao próprio escritor, que, como artista, vislumbra apenas seu horizonte, distante e inatingível, sempre por vir: O escritor nunca está diante da obra e onde existe obra ele não o sabe ou, mais precisamente, a sua própria ignorância é ignorada e unicamente dada na impossibilidade de ler, experiência ambígua que o repõe em atividade. 4
Para Blanchot, “a obra só está ali para levar [aquele que escreve] à busca da obra”;5 para Heidegger, “o artista permanece algo de indiferente em relação à obra, quase como um acesso para o surgimento HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 23. 4 BLANCHOT. O espaço literário , p. 16. 5 BLANCHOT. O livro por vir , p. 210. 3
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da obra, acesso que a si próprio se anula na criação”, 6 o que o leva ao caminho do descaminho, em direção ao désouevrement de de que fala Blanchot: “le “le livre, la ruse par laquelle l’écriture va vers va versl’absence l’absence de livre ”. ”.7 A obra torna-se, pois, o movimento que nos encaminha para o ponto puro da inspiração de onde vem e que aparentemente só pode atingir desaparecendo. Por isso, para Blanchot, “o livro aparece como uma exterioridade presente aos olhos do leitor, mas vazia aos olhos do artista”,8 tornando-se essa a condição mesma para que aconteça o movimento da obra em direção ao seu desaparecimento – condição que, paradoxalmente, faz com que o artista persevere e retorne à obra. Assim trabalham aqueles que, com a escrita, desconstroem os limites do livro e se propõem – como Joubert, Mallarmé, Borges e Guimarães Rosa – a girar no círculo da imensidade, a fazer do livro – campo finito – “a soma infinita dos seus possíveis”, 9 onde nada tem começo nem fim e onde a última palavra torna a obra difícil. 10 Aventuram-se, então, ao desafio de uma escrita libertadora, nômade de monotonia, que não recai mais sobre a escrita do livro, mas na escrita de O livro . Essa experiência imaterializa-o, possibilitandolhe ser, ao mesmo tempo, apetrecho e obra, abrigo e desabrigo da escrita, finitude e infinito. Objeto de fascínio que sempre nos escapa, o livro torna-se, ele mesmo, a sua ausência em presença ou presença ou sua presenç pres ençaa ause ausente nte – – o que confunde irremediavelmente a ilusão ilu são da obra com a própria obra. Portanto, se não apenas o escritor – mas todo artista – está está diante dian te da visão desse horizonte inatingível, sempre lá, que é a obra, da qual ele nunca está seguro e que o impede de reconhecer-se senhor de si, é porque, certamente, “nunca uma obra de arte pode dar-se por objecto a interrogação que a sustenta. Nunca um quadro poderia sequer começar, se se propusesse tornar visível a pintura”. 11
HEIDEGGER. A origem da obra de arte , p. 31. 7 BLANCHOT. L’entretien infini , p. 624. 8 BABO. A escrita do livro , p. 59. 9 BLANCHOT. O livro por vir , p. 105. 10 “Quando a última palavra é sempre a que primeiro se apresenta, a obra torna-se difícil.” Cf. JOUBERT citado por BLANCHOT. Op. cit., cit., p. 64. 11 Ibidem, p. 211. 6
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