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____________________________________________ Copyright © 2011 by Thiago Fantinatti
Capa, artes e diagramação Thiago Fantinatti Foto da capa Thiago Fantinatti Revisão Bruno Fantinatti Maria Renata Corrêa (primeiro capítulo) Luciane Fantinati Corrêa
www.trilhasulamericana.com.br www.cicloviajante.com.br
Segunda edição (jan/2013) Primeira edição (ago/2011) Impressão e publicação desta edição: CLUBE DE AUTORES – www.clubedeautores.com.br (Brasil) España, Italia, France, Deutschland, Nederland, United Kingdom, United States: www.trilhasulamericana.com.br/international www.lulu.com
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Para Valentina.
Desejo-lhe um mundo repleto de buscas e descobertas.
“Yo ya no soy yo, por lo menos no soy el mismo yo interior. Este vagar sin rumbo por nuestra “Mayúscula América” me ha cambiado mas de lo que creí” “Eu já não sou eu, pelo menos não sou o mesmo eu interior. Este vagar sem rumo por nossa “Maiúscula América” me mudou mais do que acreditei” Ernesto Guevara – “Notas de Viaje” ~3~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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“Mais que descobrir a América, acabei descobrindo gente! Isso me marcou profundamente. O que me dava forças para seguir depois de uma despedida era justamente o fato de saber que a próxima pessoa importante, o próximo personagem do meu livro, estaria esperando para ser descoberto nos próximos quilômetros. E sempre aparecia alguém, sem pre. No meio de tantas variáveis desconhecidas, esta era uma constante que eu entendia cada vez melhor. Ainda sinto muita saudade dessas pessoas especiais que cruzaram meu caminho. Quem seria e onde eu encontraria o próximo personagem?” Thiago Fantinatti
“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arro gância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não sim plesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver” (Mar sem fim)
“Para o Thiago da terra um abraço do mar” Amyr Klink
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América, não invoco teu nome em vão. Quando sujeito ao coração a espada, quando aguento na alma a goteira, quando pelas janelas um novo dia teu me penetra, sou e estou na luz que me produz, vivo na sombra que me determina, durmo e desperto em tua essencial aurora... Pablo Neruda
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ÍNDICE Prefácio ..................................................................
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1. Sul do Brasil .......................................................... 12 2. Uruguai .................................................................. 53 3. Província de Buenos Aires .................................... 69 4. Norte da Patagônia e Valdes ................................. 91 5. A pampa patagônica e seus ventos ........................ 121 6. El fin del mundo .................................................... 137 7. Sul chileno e argentino, aventura .......................... 165 8. Chiloé e a carretera austral .................................... 192 9. Região dos lagos andinos ...................................... 215 10. Chile central .......................................................... 227 11. Pela panamericana ................................................. 242 12. O deserto de Atacama ........................................... 269 13. Altiplano boliviano ............................................... 298 14. Sul do Peru ............................................................ 318 15. Amazônia .............................................................. 348 O sonho trilhado ................................................... 363 Lista de dias e quilometragens .............................. 369 O viajante .............................................................. 374 Agradecimentos .................................................... 375 Créditos das imagens e textos ............................... 376 Leitura sugerida .................................................... 377
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Em 2007, durante um momento de lucidez absoluta, decidi realizar meu sonho. O que segue é um relato detalhado do que aconteceu depois disso. Criei um jeito de escrever, o de quem nunca escreveu um livro antes, e o faço descrevendo detalhadamente primeiro os fatos que mais marcaram. Colocando no papel, além do que vi também o que senti e inicio minhas experiências ainda viajando, aqui nesta mágica e pequena cidade no meio dos Andes chilenos. Depois de 265 dias sinto maturidade suficiente na viagem para isso. Uma viagem através do surpreendente, uma viagem através da surpreendente América do Sul; feita de sonho, de superação, descobertas e principalmente de autoconhecimento. Durante estes últimos meses vivi como um nômade, sempre seguindo de um lugar para outro, assim como meus pensamentos e sentimentos. Do sonho um pouco lúdico e até infantil à realização que se sente na pele. Do extremo sul do mundo aos trópicos; do calor extremo ao frio congelante da cordilheira dos Andes. Da gente cosmopolita das grandes capitais às pessoas simples do campo; de bairros nobres a lugares que parecem esquecidos por todos nós; da solidão, do isolamento e da distância entorpecente à hospitalidade sem explicação das pessoas de bom coração com histórias de vida fantásticas. Da despedida de todos os dias à chegada de todos os dias. Dasaocoisas quedeeuchegar sonhava às que nem imaginava sonhar. Da dor física clímax onde se eu sonhou chegar. Desta forma, encontrei força. Uma coisa que ainda não sei explicar. Um poder de realização imenso e intenso movido por um sonho simples. Descobri que não é e nem foi uma questão física e sim uma certeza de que quando se sonha e se busca o que se sonhou, ele também busca você. Te leva, te carrega nos braços e tudo que você tem a fazer é deixar ser levado. Sem medo e sem muito que está fazendo. Hoje sou mais forte do quequestionar antes. Sinto que oagora posso realizar tudo o que realmente queira. Divido o prazer das passagens, paragens, muitas vezes escritas aleatoriamente, antes de ordená-las cronologicamente numa história que fizesse sentido em todas a linhas. San Pedro de Atacama, Chile, 20 de agosto de 2009
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Enquanto escrevo vou relembrando, revivendo cada momento e enfrento o novo desafio: o de escrever. Talvez tão difícil quanto cruzar um continente numa bicicleta. Escrevo. Revivo exatamente o medo do inicio; a solidão de quando tive que enfrentar a estrada por mim mesmo; o calor de 45º no norte da Patagônia argentina e o vento forte que quase nunca para no Sul. Sinto novamente o vento frio no meu rosto, avisando que não seria fácil. Também a sensação da neve quando a toquei pela primeira vez e o cansaço extremo ao subir a cordilheira dos Andes – até quase 5000 metros de altitude –, bem como o calor abafado da selva amazônica e sua refrescante chuva tropical. Sinto de novo a dúvida sobre quando, como e qual caminho seguir. Sinto meus pés frios enquanto acampava nas noites de temperaturas negativas no deserto. A dor e o cansaço dos dias mais difíceis e as realidades distintas da minha. Lembro que a solução mais simples sempre era a correta: seguir minha intuição. Cruzo de novo todos os rios que cruzei. Escuto o som da bicicleta enquanto pedalava. Visualizo a distância e o horizonte das paisagens por onde passei. Um horizonte que nunca é alcançado. Reencontro a liberdade, no mais intenso e real sentido da palavra. Reencontro todas as pessoas que cruzaram meu caminho e que se transformaram nas coisas mais preciosas da viagem. Reencontro emoção e lágrima. Reencontro a saudade da viagem, o motivo pelo qual viajei tanto.e o amor. E redescubro, no final Confesso que a viagem começou tímida, mas à medida que fui despertando para a minha realização e me envolvendo de cabeça neste imenso mar de descobertas, ela se transformou numa sequência contínua e alucinante de acontecimentos surpreendentes e reveladores. Não escrever seria um ato totalmente egoísta e pessoalmente frustrante. Como me disse, por e-mail, o argentino Herman Zapp, autor do livro tu libro Sueño” em português “Agarre seua sonho” –: “Sí, que por favor “Atrapa escriba tu que– tenemos que demostrarles los soñadores se puede!” (Sim, por favor escreva seu livro porque temos que mostrar aos sonhadores que se pode!). E para escrever, descrever, recordar e dividir, procurei não buscar referências em histórias similares, como livros de outros cicloturistas, pois não quero sofrer influência na minha escrita, aliás, para não dizer que fui totalmente autêntico, a única coisa que fiz foi assistir – enquanto ainda viajava – o filme de Walter Salles “Diários de Motocicleta”, o qual conta a história do jovem argentino Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado em sua viagem pela América do Sul realizada há quase 60 anos.
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Do filme e do museu de Che, que visitei em San Martín de los Andes, na Argentina, apenas resgatei algumas poucas e pequenas passagens que invariavelmente relacionam-se com fatos que vivi e lugares por onde passei, embora sejam viagens bastante diferentes entre si. Abril de 2010 – Cinco meses após a viagem
O plano simples
Percorrer a América do Sul de bicicleta numa viagem de no minimo oito meses através de seis países: Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Peru. Queria conhecer de verdade, tocar e sentir, o que somente via pela televisão. Queria também uma mudança na minha vida. Não que não fosse boa, mas sabia que haveria possibilidades quase infinitas, se saísse um pouco do meu mundinho. Além do mais eu já tinha construído uma página na internet e minha ideia era atualizá-la quase diariamente. Iria fazer o que a maioria dos viajantes não faz: entreter as pessoas com a viagem enquanto viajava. Acredito que tenha funcionado, já que tive mais de 20 mil acessos e mais de 50 mil pageviews nos primeiros 15 meses a partir de quando foi colocada no ar pouco antes da viagem. Minha página segue online – www.trilhasulamericana.com.br – e pretendo mantê-la funcionando enquanto for possível. A motivação
A mesma motivação que todo mundo que viaja tem, somada a um desejo enorme de conhecer lugares e culturas distintas do meu cotidiano. Eu sempre soube, pela experiência de outros que já fizeram algo parecido, que o resultado seria positivo para mim, principalmente no que diz respeito realizar memorável, algoaodo autoconhecimento. qual me lembrasse Também pelo restoqueria da minha vida, algo encarado como um desafio pessoal e que viveria intensamente mesmo tendo a certeza de que não seria fácil. Este livro fazia parte dos planos desde o início. Por esse motivo, foi escrito lentamente, primeiramente apenas dentro de meus pensamentos, dia após dia na estrada e guardado, cultivado até que pudesse se libertar e pular para o papel. De fato, esta tarefa também foi uma de minhas principais motivações. Minha longa viagem só terminaria quando estivesse publicada, como agora, em suas mãos. ~ 11 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Seis de setembro de 2008 Km zero Ourinhos, São Paulo, Brasil
– P
ronto! – disse, com expressão de espanto, quando terminei de colocar o último item na bagagem da bicicleta, na noite anterior à partida. Naquele momento percebi uma coisa: o tamanho do ato que estava me propondo. Também o quanto – até certo ponto – prepotente eu era. E que havia colocado coisas demais na minha bagagem. Sentia um aperto no peito e isso não estava nos meus planos. Mais tarde, minha namorada chorou mais um pouco e depois dormiu. Naquela noite quase não dormi. Não consegui pregar os olhos. Dentro de algumas horas iniciaria a viagem que havia sonhado por anos e planejado efetivamente por mais de um ano. Havia treinado por mais de um ano com meu amigo Martinho Herkrath pelas estradas da região de Ourinhos, interior de São Paulo, cidade onde vivia. Acordando cedo nos finais de semana para pedalar, enfrentando o calor e testando os limites do corpo toda semana. Não é necessário treinar um ano todo para fazer uma viagem assim, mas era a melhor maneira de manter-me focado no objetivo. O dia da partida
Domingo, 7 de setembro de 2008, 7 horas da manhã. Dia da independência do Brasil, manhã fria. Não acordei bem. Sentia o destino me empurrando como um pai que leva seu filho à escola pela primeira vez deixa lá. Era como se eu não tivesse ir e ponto final.e oMas a sensação de impotência dianteescolha. do que Tinha havia que escolhido não estava me fazendo bem. Tive a sensação que este dia havia chegado rápido demais. Cuidado com o que você deseja. Seu sonho pode se transformar em realidade. Na hora que sai de casa, vi como a bicicleta estava difícil de manejar e extremamente pesada. Já havia pedalado com bagagem, mas não com tudo aquilo. Senti seu peso e pesando ainda mais estava a minha responsabilidade. Tinha muita gente acreditando em mim naquele momento e isso me deixou um pouco preocupado.
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Combinamos - eu e Martinho - de sair de uma praça da minha cidade. Ele faria apenas os primeiros 15 dias da viagem comigo. Nosso outro amigo chamado Sandro, seguiria só os primeiros quilômetros. Enquanto seguia de casa até a praça, milhares de coisas passaram pela minha cabeça. Alguns amigos e minha família foram até lá para a despedida. Ninguém está emocionalmente pronto para uma coisa assim. Deixar tudo. Amigos, trabalho, família, namorada, enfim, meu cotidiano em busca de algo incerto. Sabia que fisicamente estava preparado, mas a pressão da despedida foi forte demais. Senti medo como nunca havia sentido antes na vida. Na hora da partida não conseguia olhar no rosto de ninguém. Se o fizesse, talvez não fosse capaz de seguir. Tinha vontade de chorar, mas respirei fundo, me despedi e subi na bicicleta. Precisava acordar e entender minha nova realidade, afinal já vivia esta partida há mais de um ano. Neste momento me lembrei de uma regra importante que tinha aprendido durante o ano de treinos: sempre cruzar um quilômetro de cada vez. Isso mesmo: pensar pequeno, mas com um objetivo grande. O resto iria aprender na estrada. Eu tinha que aprender. No primeiro dia seguimos por caminhos que já havíamos passado inúmeras vezes. Pedalar não era mais novidade há muito tempo. Sabíamos nos comportar na estrada e conhecíamos bem os caminhos da região, pois no último ano havíamos cruzado quase 7000 quilômetros juntos. 120 quilômetros neste – sempre quando inicia umà dia bemFizemos cedo é comum fazer uma boadia quilometragem – e se chegamos cidade de Ibaiti, no Paraná – a hospedagem foi num hotel. Havíamos começado muito bem. Fizemos um longo trecho e me senti mais confiante. Martinho sempre foi um guerreiro. Nunca o vi descer da bicicleta numa subida. Eu sim já havia feito isso algumas vezes. Lembro-me de um dia que fomos até Iaras, uma cidade próxima, mais ou menos 100 quilômetros de Ourinhos. Fazia um insuportável. Já na Estava volta, depois de 162 quilômetros pedalados, eu calor não tinha mais forças. totalmente desgastado. Derrubei minhas luvas no chão e exausto tentei vestilas, mas desisti e sentei no chão. Às vezes o cansaço chega a níveis que afetam a capacidade intelectual, ainda que vestir luvas não seja uma tarefa que demande tanto raciocínio assim. Sou magro, não tenho reservas energéticas e quando minha energia acaba, preciso me alimentar e descansar. Liguei para o meu pai e ele foi me buscar de carro. Martinho conseguiu voltar e fez mais de 200 quilômetros – seu recorde de pedaladas num só dia.
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De agosto de 2007 a agosto de 2008 passou exatamente um ano de treino e esta experiência serviu para sabermos até onde poderíamos ir. Aprender a reconhecer os limites do corpo foi fundamental. Inclusive, fizemos uma viagem de uma semana de Curitiba até Florianópolis (506 quilômetros pelo caminho escolhido por nós). Precisávamos saber como era viajar dias seguidos na estrada. Foi um ótimo teste para ambos. Há um link no final do livro, um “capítulo especial”, um trecho do meu diário escrito sete meses antes da grande viagem, onde conto esta aventura de uma semana em fevereiro de 2008. As pedras no caminho, deixe para trás
No segundo dia saímos de Ibaiti e 40 quilômetros depois paramos num restaurante à beira da estrada chamado “Favo de Mel”. Logo depois do almoço seguimos. Estava prestes a passar pelo primeiro grande teste da viagem. Poucos minutos depois, numa curva, em alta velocidade, eu caí. Caí de um jeito que nunca havia caído em mais de um ano andando de bicicleta. Neste momento tudo mudou. Levantei pulando num pé só e sentei a beira da rodovia. Não pensava em nada. Apenas me sentei e logo compreendi o que havia acontecido. Minha bicicleta ficou sobre a pista e os carros tinham desviare um pouco passar. Não do conseguia esticar minha pernaque esquerda sentia fortespara dores no braço mesmo lado, além do mais estava com todo o lado esquerdo do corpo ralado. Martinho estava mais à frente e logo voltou. Ficou apavorado. Foi avisado do acontecido por um caminhoneiro que passava no momento que caí. Ele retirou a minha bicicleta da rodovia e perguntou: – O que aconteceu? – Caí cara, caí. Acho que estou machucado. Umanão ducha água fria Fui caiuderrubado sobre a minha cabeça naquele momento. Eu podiadeacreditar. por uma distração e uma imperfeição no acostamento. Pensei: É isso? Só isso? Assim termina o meu grande sonho? Tudo me pareceu uma grande piada. Logo em seguida, um motorista parou o carro e perguntou se estávamos precisando de ajuda. Martinho levou minha bicicleta até o restaurante onde havíamos almoçado e fui de carro. A todo o momento me lamentava e dizia: – Pelo menos oito meses de viagem e caio no segundo dia! Não pode ser! Tenho que voltar! ~ 15 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Estava claro que tinha fraturado o braço. Nunca me quebrei até então, mas meu braço estava com uma aparência horrível. Sentia fortes dores na perna também e isso me deixava realmente preocupado. Uma fratura na perna é um pesadelo para qualquer ciclista. Enquanto estava no restaurante, Martinho tentou chamar uma ambulância. Até conseguiu, mas foi em vão. A ambulância nunca chegou. O lugar era um pouco isolado, não havia telefone e somente havia sinal de celular de cima de um morro. Em seguida apareceu um rapaz chamado Maurício, que nos levou de volta a Ibaiti para que eu pudesse ser atendido. Deixamos as bicicletas e quase toda a bagagem no restaurante e seguimos com ele. Em Ibaiti fui atendido no pronto socorro. Fiz radiografias e o médico que estava de plantão concluiu que não havia fraturas, tanto na perna, como no cotovelo e punho. Voltamos para casa de ônibus. Totalmente frustrante para mim. Sair de casa para viajar pelo menos oito meses e voltar no segundo dia foi devastador. No meu pensamento tudo era transitório. Não tinha outro objetivo naquele momento. Eu voltaria. Apenas não sabia quando, mas tudo seria uma questão de tempo para mim. Dois dias depois, já em casa, ainda sentia fortes dores no braço esquerdo. Não entendia o que estava acontecendo. Não tinha posição boa para acomodar. Estava inchado e dolorido. Foi então resolvi ir a meu me médico de confiança, o Dr. Antônio Tavares, que jáque havia cuidado do meu joelho no passado. Ele me atendeu com atenção especial e assim que olhou a radiografia me disse: – Seu braço está doendo porque está quebrado! – Agora sim isso faz sentido! – brinquei. Agora sabia a causa da dor e podia ficar mais tranquilo. Sabia que tudo era mesmo uma questão de tempo e o médico me tranquilizou ainda dizendo que não precisaria cirurgiamilímetros alguma. Apenas 28 dias demais, imobilização. Fraturei o punho de a poucos da articulação. Se tivesse fraturado a articulação, talvez fosse preciso abandonar o projeto da viagem, pelo menos neste ano. Escrevi em minha página na internet o que tinha ocorrido comigo, deixando muito claro o meu retorno assim que possível: Ontem, 8 de setembro, segundo dia dos 250 dias previstos da minha viagem, sofri uma queda um pouco feia , às 14h, nas proximidades da cidade de Ventania/PR, cerca de 160 quilômetros de Ourinhos. Após almoço e descanso numa lanchonete à beira da estrada saímos e cerca de um quilômetro adiante
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numa forte ladeira me distraí por um segundo e o degrau do acostamento me derrubou. Eu estava a uns 50 km/h e uma queda nesta velocidade com toda aquela bagagem pode ser comparada a uma queda com uma moto pequena. Tive ferimentos nas costas, lateral do quadril e tornozelo. Torci o tornozelo esquerdo e bati forte meu joelho esquerdo. Fui atendido no pronto Ibaiti/PR e fiz raios-X do braço quee parecia fraturado, mas socorro por sortedenão houve fratura, apenas luxaçãoesquerdo no punho cotovelo. Fui medicado e estou tomando remédios. Hoje vou consultar meu médico pra ter uma segunda opinião. O braço não foi imobilizado. Quando caí, Martinho, que estava à minha frente, não me viu e foi avisado por caminhoneiros um quilômetro depois. Fiquei sentado esperando socorro, pois estava com muitas dores. Logo em seguida parou um carro com duas pessoas e Martinho voltou. Levantaram a bike, que teve o aro traseiro bem danificado e Martinho me ajudou a pôr de volta a bermuda e um dos tênis que foi arrancado. Nos levaram até a lanchonete e um rapaz chamado Maurício que pas sava de carro nos levou até Ibaiti para atendimento médico cerca de 1h30min depois, pois o resgate demorou. As bikes e a maior parte da bagagem ficaram na lanchonete e hoje, dia 9, Martinho vai buscá-las de carro. Minha perna “acordou” bem hoje e teoricamente já pode pedalar, mas o braço pode demorar de três a cinco semanas. A partir da semana que vem vou iniciar um treino para as pernas numa academia para não perder o condicionamento. que estiver recuperado sairei, de Ourinhos novamente e desta vez pra Assim fazer certo. Este foi o primeiro acidente sério causado por imperfeições no acostamento em mais de um ano e quase 7000 quilômetros pedalados. Sempre tiro coisas boas dos acon-tecimentos: não bati a cabeça e caí perto de casa. E algumas lições: não correr tanto nas descidas com bagagem e tomar mais cuidado com as imperfeições do acostamento. Lições aprendidas na hora certa. Pretendo reiniciar assim que tiver condições. Com mais cuidado e mais devagar. Como diz o personagem principal do filme "À procura da felicidade": Esta parte da minha vida chama-se "aprendizado". Obrigado a todos! Thiago - 09/09/2008 ~ 17 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Amigos, Fui ao meu ortopedista de confiança hoje e ele viu que realmente meu punho esquerdo está quebrado. Viu a fratura que o médico de Ibaiti não viu! O osso rádio foi Gostaria lascado na Ficarei comvai gesso 28 dias. de de ponta. dizer que o gesso ser deixado bicicleta no mesmo lugar que caí....Um obstáculo a mais ou a menos não faz diferença. Um abraço a todos! Thiago - 10/09/2008
Eu estava tenso e nervoso com a situação. Fui motivo de piada e sei que muita gente que nunca sequer saiu da cidade me criticou duramente por ter retornado. Isso só me deixava com mais gana de continuar. Minha maior preocupação era o tempo. Eu não tinha muito tem po. Planejei a data da partida para que pudesse chegar ao extremo sul do continente exatamente no verão. Se atrasasse demais iria ter grandes pro blemas com frio e neve no sul. Iniciei treinos, pelo menos para as pernas, numa academia. E assim se passaram os 28 dias de recuperação. Renata
Durante as sete semanas que fiquei parado muita coisa passou pela minha cabeça. Acabei aceitando a situação e encarando somente como um desafio a mais. Por outro lado sabia que teria que usar este tempo para realmente ou seja, seguiria com meusdecidir planos.o que Durante este queria períodofazer, pensei muitose na minhaadiante namorada Renata que sempre foi fundamental. Ficamos três anos juntos e durante o último ano – antes da viagem – ela sempre apoiou minhas ideias malucas. Aventureira como eu, já havíamos viajado muito de carro. Quando comecei a planejar efetivamente a viagem pela América do Sul, ela estava do meu lado mesmo sabendo que a viagem significaria ficarmos separados por muito tempo e claro que isso nos deixava muito tristes e preocupados. Sem titubear continuou me apoiando e acho que apesar do apoio verdadeiro, tinha uma esperança que eu desistisse da “loucura” pouco antes de começar.
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Ter o apoio dela e dos meus pais era o que me sustentava. No inicio da ideia chegamos a pensar em viajar juntos e iniciamos um treinamento, mas infelizmente não foi possível. Com alguns problemas res piratórios logo percebemos que seria muito difícil para ela. Durante o treinamento deixava de passar os domingos com ela para sair de bicicleta pelas estradas. Não era fácil. E quando voltava totalmente desgastado, dormia... Claro que isso, aos poucos foi deixando a relação um pouco complicada. Mas o que eu podia fazer? Não tinha outra alternativa. Uns dias antes da minha partida ela organizou uma festa surpresa com vários de nossos amigos. Fizeram cartazes me desejando boa sorte e estavam todos lá, foi realmente muito emocionante e especial. Neste momento, mais uma vez, senti que minha ideia já havia saído do imaginário e afetava diretamente as outras pessoas. Era praticamente um ponto sem retorno. E foi durante a minha recuperação que decidimos terminar nosso relacionamento, seria melhor para ambos. Não era justo ficarmos assim como estávamos. Teria que deixá-la livre para poder ter minha liberdade também. Foi melhor assim. A recuperação
Os 28 dias seguintes foram duros. Via a cada dia o condicionamento físico adquirido durante o último ano todo ir embora como se não fosse nada. Assim que retirei o gesso, iniciei a fisioterapia. Banhos com água quente, massagem, exercícios com a mão e muita paciência. Os braços são fundamentais para o ciclista, embora isso não seja óbvio. Precisava me recuperar para poder voltar a pedalar, ainda que minhas pernas já estivessem em perfeitas condições. Estava mal, além da que fratura, tinha a fratura luxaçãonodopulso, meu cotovelo e isso memuito incomodava mais a própria mas lentamente fui me recuperando. Entre a fisioterapia e o tempo ocioso até minha nova partida, tratei de consertar a bicicleta. Tive que trocar o aro traseiro que ficou parcialmente destruído na queda e repensei muita coisa. Principalmente em relação à quantidade de bagagem que estava levando. Teria que reduzir e melhorar de alguma forma a estabilidade da bicicleta. Como estava, não poderia seguir. Reduzi minha bagagem quase pela metade. Retirei tudo o que não era extremamente necessário, isso incluía os alforjes dianteiros e muito do meu equipamento de fotografia e vídeo. Também fiz um reforço ~ 19 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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no bagageiro traseiro para que ficasse mais rígido e mudei a forma de colocar a bolsa de guidão para que ficasse mais baixa e balançasse menos. Todas estas mudanças deixaram a bicicleta muito mais estável. Estava recuperado e apenas cinco semanas depois da fratura voltei a pedalar, ainda com dores e uma proteção no pulso. Fui até a cidade de Jacarezinho/PR, cerca de 25 quilômetros – desde minha casa – de Ourinhos. Fui e voltei com dores, muito calor, furo no pneu e chuva. Estava pronto novamente. Pronto e feliz de estar vivendo estas coisas de novo. Em mais duas semanas eu estaria pronto para “cair” de novo na estrada. Em meu diário na web, falei um pouco sobre essa ex periência: Ontem, 8 de outubro, um mês após minha queda, retirei o gesso. Se eu fosse dar uma nota de zero a 10 para o estado do meu braço seria assim: na hora que caí, -1; com o gesso, zero; e agora eu daria nota 4 para ele. Não está quebrado, mas não serve para quase nada! O médico disse que em dez dias estarei fazendo todos os movimentos. Quando eu conseguir me apoiar com o braço esticado será hora de pegar a estrada novamente. Devo sair do mesmo lugar que caí. Após pensar um pouco achei essa uma boa ideia já que o trecho de quase 160 quilômetros até lá já foi feito. Assim o Martinho ganha mais dois dias de pedalada e pode ir mais longe também. Devo iniciar com alguma proteção para o punho. Não tenho tempo pra esperar estar 100% que verão chegando enovamente. depois do Natal começa a corrida contra o sol, já pois os odias vãoestá se encurtando Quem já se quebrou, sabe como é. Levaria mais de 60 dias até ficar perfeito. Pretendo sair com 45 dias contados a partir do dia do tombo. quinta-feira, 23 de outubro de 2008, 16h31min Conversando com alguns ciclistas experientes e descrevendo meu tombo, cheguei à conclusão que, provavelmente, quebrei o braço esquerdo antes mesmo de cair no chão. Quando caí não haviam marcas de pancada e minha mão estava limpa, não tocou o chão, assim como o braço todo. Acho que quebrei o punho quando o guidão girou e voei por cima dele. Deve ter torcido meu braço. Isso explica também a luxação no cotovelo. Finalmente voltei a pedalar! Quarenta e três dias depois de bater de frente com a Lei de Murphy numa curva e fraturar meu braço no segundo dia da viagem, finalmente consegui pedalar... Queria ir até Santo Antônio da Platina, que daria uns 98 km ida e volta, mas meu pneu furou em Jacarezinho, em frente a um borracheiro, entãodedeixei pra Foram mim... 52km. resolviNão voltar dali porque não daria tempo chegarelee remendar voltar de dia. é nada,
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mas pra quem quebrou o braço não ta tão ruim. Tá doendo muito, mas dá pra aguentar.
Dois de novembro de 2008 – Um difícil recomeço “Quando a hora chegar eles dirão coisas vazias, não ouça! Eles proclamarão os flagelos da vida, mas tudo isso se dissolverá no ar quando você começar a suar. O tempo se encarregará dos que ficaram a imaginar as possibilidades. Enquanto eles sonham, você dispara. Não pare! Ao partir, você descobre que tudo aquilo que sempre disseram sobre o mundo estava errado. Quando é você que está lá tudo ganha um olhar novo. Qualquer sonho sem um passo é só um delírio, mas se você der o primeiro, já não precisa sonhar.” Renato Cabral, Adriano Fernandes e Leonardo de Agostini (Cicloturistas)
Dia 3, 269 km pedalados Castro, Paraná, Brasil
Considero este dia como a verdadeira data de início da viagem. Apesar de não estar tão bem fisicamente quanto estava da primeira vez, a cabeça estava um pouco mais preparada. Cinquenta e seis dias haviam se passado desde meu acidente. Como sair no dia da independência do Brasil não funcionou, desta vez sairíamos no dia de finados! Claro que a data foi meramente uma coincidência. Decidimos recomeçar exatamente do ponto onde paramos, ou seja, do restaurante “Favo de Mel”. Preciosismo ou não, não importa. O fato é que eu não queria pedalar de novo o que já havia cruzado. Meu pai e o Eduardo, pai de Renata, nos levaram até o lugar onde me acidentei. Neste momento deixei um presente para a estrada que me derrubou. O gesso ficoupara exatamente lugar que cai. Não precisava mais dele e estava preparado esquecernoeste acidente. Agora tínhamos a companhia de outro amigo chamado Armando, que nos acompanharia por 600 quilômetros até a cidade de Florianópolis. Tinha vencido o primeiro grande desafio físico e mental da viagem. Já esperava pelos próximos. As alterações que fiz na bagagem e na bicicleta deram resultado. Estava mais leve e muito mais fácil de lidar.
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Durante os treinos usei uma bicicleta antiga que tinha. Uma mountain bike convencional. Dois meses antes da viagem e depois de algumas – poucas, é verdade – tentativas de patrocínio junto a alguns fabricantes, resolvi comprar uma nova. Optei por uma mountain bike Sundown de fabricação brasileira, com quadro de alumínio, suspensão dianteira e componentes Shimano Deore LX super resistentes. Não queria ter surpresas desagradáveis no caminho. Uma bike intermediária é suficiente. Às vezes quando digo que fui com uma Sundown as pessoas me dizem: “Nossa, uma Sundown!?”. Mas o fato é que comparada com bikes importadas da mesma faixa de preço, esta opção oferecia componentes – câmbio e outros acessórios – muito superiores. Escolhi o quadro de alumínio, pois queria uma bicicleta leve. Afinal de contas, a diferença de peso eu poderia levar a mais em bagagem. Sou leve, peso 60 kg e já saio em vantagem sobre a maioria dos ciclistas, pois exerço menos estresse sobre a bicicleta. O alumínio seria resistente o suficiente. Somente estaria em maus lençóis se o quadro recebesse um qualquer impacto muito se rompesse.Junto Nestecom caso, soldar o alumínio em lugar forte seria eimpossível. a bicicleta comprei algumas ferramentas básicas, um pneu reserva dobrável de kevlar para ser meu estepe e uma corrente extra idêntica à da bike com a qual eu faria um rodízio a cada 1.500 ou 2.000 quilômetros, para ter sem pre duas correntes em condições similares de uso. No terceiro dia corrido de viagem ainda tinha que lidar com as dores no pulso e o cotovelo que não esticava completamente. Além do mais, falta de condicionamento me deixavaAum poucoestava desconfortável, mesmoa assim percorremos 109 quilômetros. viagem me testando sem piedade. A retomada foi realmente dura. Ainda tinha milhares de dúvidas na minha cabeça. Quando chegamos ao planalto paranaense estávamos pedalando ao redor de 1000 metros de altitude. O tempo virou e começou a chover. Choveu muito, esfriou bastante e ficamos molhados. Eu não estava com a roupa de proteção contra chuva, porque quando começou não fazia frio, mas depois, completamente ensopado senti muito a temperatura baixa e bastante frio.
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A chuva forte seguia, e num momento olhei ao lado da estrada e vi um cachorro, sujo e doente, totalmente molhado e tremendo de frio. Não podia fazer nada para ajudá-lo, porque também estava numa situação difícil. Não parei de pedalar. Seguia lentamente. Neste momento comecei a chorar e a pensar que talvez eu não tivesse forças para realizar o que queria. Quanto mais chovia, mais eu chorava – acho que naquele momento, eu estava precisando daquilo – e ainda estava no inicio da viagem, passando por tantos testes! Realmente, neste momento pensei em desistir. Foi um dos poucos momentos que cheguei a cogitar esta possibilidade. Olhava a rodovia e pensava que ainda teria todo um continente para cruzar! Parecia pretensão demais! Estava muito assustado, mas aos poucos fui percebendo que os testes passam e tudo termina. No final tudo se tranquiliza e tudo que eu tinha a fazer era simplesmente seguir e manter a calma. Fizemos uma parada num pequeno restaurante à beira da estrada e quando paramos tivemos a constatação que realmente estávamos em más condições. Faltou muito pouco para ficarmos hipotérmicos. Tremia compulsivamente de uma maneira que quase me impedia de realizar coisas simples. Minhas mãos estavam geladas e as unhas e lábios completamente roxos. O Martinho não estava melhor. Nos secamos como foi possível e tomamos um café bem quente. Logo sem seguida a chuva diminuiu muito foi possível seguir. Foitoda até um pouco irônico, pois foi um dos dias emeque senti mais frio em a viagem. Ainda perto de casa e cruzando o “cálido” Brasil subtropical. No final deste dia chegamos à cidade de Castro. Novamente não quisemos perder muito tempo buscando um lugar para dormir e fomos direto a um hotel. Armando já havia desaparecido. Viajando quase sem bagagem, ele não conseguiu permanecer no mesmo ritmo que eu e o Martinho. Assim que chegamos a Castro tentamos localizá-lo, mas foi em vão. Fiquei No preocupado, pois tive meu meu saco primeiro de dormirfuro estava dia seguinte no com pneu.ele. E foi um furo espetacular, com um prego enorme atravessando de um lado a outro. Trocar o pneu ainda sem muita experiência, com aquele calor e com Martinho falando o tempo todo não foi uma tarefa das mais simples. Esse foi o primeiro de muitos furos. Mais um dia de pedalada se foi. Acampamos pela primeira vez atrás de uma base operacional dos funcionários da rodovia. Minutos antes, havíamos feito uma parada no posto de combustíveis que ficava bem ao lado da base dos bombeiros e embora o plano fosse seguir mais um pouco, Martinho percebeu que eu estava cansado. ~ 23 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Foi um dia em que não me senti bem o tempo todo. Minhas pernas não estavam no seu melhor desempenho. Martinho respeitou totalmente minha condição. Jantamos no restaurante do posto e pudemos tomar uma ducha também, mas mesmo havendo hospedagens ali, escolhemos acampar. Compartilhar a barraca pequena com o Martinho, que nunca foi muito esbelto, não foi fácil. Mas, no fundo, eu estava tentando desfrutar cada minuto com ele, pois sabia que seguiria somente mais uns dias comigo. Martinho também estava muito envolvido com o sonho da viagem e visivelmente triste em não poder seguir toda a viagem. Acampar é sempre divertido, além do mais, o pessoal da base nos convidou para tomar um cafezinho e jogar um pouco de conversa fora. Foi muito agradável. Chegamos em Curitiba no final do quinto dia e fomos procurar a casa de uma amiga do Martinho, chamada Andrea, que acabou nos hospedando por uma noite o que foi muito bom. Fomos muito bem recebidos. Andargrande. de bicicleta em Curitiba é uma perigosa como em toda cidade Há muitas ciclovias nasaventura ruas principais, mas são irregulares e cheias de obstáculos (pelo menos as que conheci). Ainda sim, Curitiba é uma das cidades onde me senti mais seguro. Visitamos alguns pontos turísticos como a Ópera de Arame e o Jardim Botânico. No dia seguinte fomos até a cidade de Colombo, que faz parte da grande Curitiba para passar uma noite na casa dos tios do Martinho, Saleme e Cármen, que nos receberam de braços abertos. No caminho a Colombo pudemos relembrar de sete dias que fizemos sete meses antes. Pedalamos novamentea viagem um pequeno trecho pela movimentada BR 116. Nesse trecho da viagem encontrei e conversei com várias pessoas sobre o projeto e quando detalhava o pretendido, sentia que na maioria das vezes não me davam muito crédito. De fato, às vezes, nem eu mesmo acreditava muito. A próxima grande aventura seria descer a serra do mar até a cidade de Joinville, já encostada no mar. Diferentemente da viagem de fevereiro, quando optamos descer pela belíssima e tranquila estrada da Graciosa, desta vez escolhemos a perigosa e movimentadas BR 376 e BR 101, pois queríamos velocidade e
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um caminho mais curto para tentar chegar até Joinville ainda neste dia, pois não era muito perto. Deu tudo certo. Percorremos 150 quilômetros e a descida ajudou. O caminho foi perigoso, pois é necessário dividir a rodovia com caminhões enormes, às vezes com pouco ou quase nenhum acostamento. Em alguns momentos passamos apuros. Lembro-me de um momento que tive de ter muito sangue frio. Enquanto ultrapassava um caminhão na descida veio outro enorme por trás de mim. Tive que manter a calma, encostar devagar no canteiro central e dar espaço para o “monstro”. Na descida é quase impossível frear uma coisa tão grande, haja visto que muitas vezes são caminhões carregados, neste caso a responsabilidade é toda do ciclista. É comum ultrapassar caminhões em situações assim, pois eles normalmente descem a serra lentamente. Mesmo assim, às vezes a bicicleta chega a velocidades muito perigosas muito rapidamente e temos que nos policiar o tempo todo quanto a isto. Chegamos em Joinville são e salvos, apesar das altas doses de adrenalina – este dia foi um dos poucos que fiz 150 quilômetros num único dia na viagem. Quilometragens assim são um pouco demais para o meu tipo de ciclismo. Ainda meio perdidos na chegada paramos para comer alguma coisa e logo conhecemos uma moça que nos passou seu telefone e disse que acampar no seu de quintal, mas de acabamos hotel,poderíamos pois estávamos precisando um pouco conforto.dormindo Confessonum que ainda me sentia um pouco preguiçoso em buscar lugares grátis para dormir. Ficar no hotel em Joinville foi muito bom, pois conhecemos muita gente bacana e recebemos a visita de um velho amigo do Martinho chamado Marquesani, que trabalha como professor de dança na cidade. Quando estávamos num lugar assim, com bastante gente, até tentávamos cervejadurante e dormir mas confesso que nunca consegui ter não muitabeber disciplina todacedo, a viagem. Santa Catarina
Teríamos pela frente o magnífico litoral norte de Santa Catarina. Uma região linda que já havia visitado inúmeras vezes de carro e uma vez de bicicleta, quando fizemos uma viagem “teste” por esse litoral e sendo teste, seguimos por caminhos secundários, muitas vezes sem pavimento, mas desta vez seguiríamos pela BR 101, a principal rodovia ~ 25 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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do litoral sul. Obviamente, seguir pela BR não seria tão emocionante quanto foi o caminho alternativo que fizemos antes, pois na ocasião, passamos e visitamos praticamente todas as praias que haviam pelo caminho, porém a decisão de pedalar pela estrada principal agilizaria muito nossa viagem. O verão nesta região é exuberante. Praias e mais praias limpas – exceto poucos lugares – e lindas... O litoral Catarinense sempre foi o meu favorito e ter a oportunidade de percorrê-lo novamente era espetacular. Estávamos muito animados. Durante este trecho, em alguns momentos, cheguei a entrar em conflito com o Martinho. Apesar de nos conhecermos há muito tempo a realidade do dia-a-dia na estrada às vezes nos deixava muito suscetíveis a discussões sem sentido. Muitas vezes Martinho tinha uma postura de pai comigo e isso me irritava profundamente. Eu não estava aberto a seguir muitas regras. Nunca é muito fácil estar com alguém numa viagem assim. A personalidade aflora em situações de estresse e a paciência realmente se torna uma grande virtude – eu diria vital. Durante o caminho pelo litoral catarinense comecei a sentir dores no joelho direito e pouco antes de chegarmos à linda e agitada cidade de Camboriú lutamos contra um vento persistente que vinha de encontro e nesta hora senti muitas dores. Quando caí havia golpeado o outro joelho e essa estava me deixando um pouco preocupado e confuso, pois não sabiador a causa. Chegamos a Camboriú e fomos direto à orla. Fizemos umas fotos na praia e Martinho telefonou para nossa amiga Denise. Logo “descolamos” um lugar muito bacana para ficar. Ela nos emprestou seu apartamento para passarmos a noite. Resolvi ficar duas noites na cidade para dar tempo de recu peração ao meu joelho que doía um pouco e também por já ter visitado inúmeras vezes este lugar maravilhoso, de onde tenho boas lembranças. Gosto muito do agito noturno e do ambiente multicultural. Movimentado, mas sem estresse. Num dia comum da temporada de verão o idioma que se fala na cidade muda para o espanhol, claro que não oficialmente, mas somente se ouve espanhol pelas ruas. A quantidade de turistas argentinos é enorme. Curtíssima estada desta vez e já pé na estrada, ou melhor, pé no pedal e para isso, antes de saírmos da cidade, fizemos uma parada numa bicicletaria. O dono, ao ver minha bolsa de guidão da marca Ararauna me disse: “Ah, eu conheço o Rodrigo e a Eliana – donos da empresa –, os
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encontrei faz pouco tempo, “tá” tendo um encontro de cicloturismo aqui na região esta semana”. Pensei: “Poxa, que mundinho pequeno mesmo”. Eliana e Rodrigo me ajudaram muito durante os preparativos para a viagem vendendo seus equipamentos praticamente a preço de custo. Foi uma pena estarmos de saída. Seria interessante visitar um evento assim, mas tudo que queríamos era seguir até Floripa – nome carinhoso dado a Florianópolis. Acredito eu que conhecido por todo o Brasil, ou quase todo. Nosso próximo destino.
Dia 11, 834 km pedalados Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
No caminho a Floripa, visitamos muitas outras cidades litorâneas, sempre visitando belas praias. Meu joelho seguia doendo demais! Estava se tornando uma situação muito complicada de suportar e a chegada em Floripa não foi fácil. Mesmo antes de simplesmente chegar, ainda não no caminho, senti dores eterríveis. alguns momentos era possível pedalar tinha queEm parar alguns minutos para poder seguir mais alguns metros. Era como se algo estivesse machucando meu joelho por dentro. A sensação era de uma articulação seca por dentro. Para piorar nossa situação estava chovendo muito. O desânimo da dor somado à chuva, estava se tornando um obstáculo gigantesco, mas Martinho mostrou-se muito paciente e preocupado comigo. ruim, tive a numa minhasituação correntenormal arrebentada e o mais surpreendente Dia é que aconteceu de pedalada, quase sem esforço algum. Por sorte foi bem ao lado de uma bicicletaria e neste caso eu não quis sujar as minhas mãos, além de não ter experiência na troca ou manutenção de correntes. Decidi deixar para aprender a prática quando arrebentasse num lugar mais isolado. A teoria eu sabia bem e tinha a ferramenta adequada. Continuei muito preocupado com as dores e cheguei a comentar com Martinho que estava pensando em voltar para fazer algum tratamento médico. Não entendia a dor e milhares de coisas passavam pela ~ 27 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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minha cabeça, inclusive se realmente eu era capaz de realizar a viagem completa. Cheguei literalmente me arrastando em Florianópolis. Passamos no batalhão dos bombeiros, no centro da cidade, pois o Armando havia deixado meu saco de dormir por lá. Sua pressa sem explicação o impediu de aproveitar a viagem acompanhado de Martinho e eu. A chuva seguia e decidimos ir logo à rodoviária, pois Martinho já queria pesquisar os horários de ônibus de volta a Ourinhos. Não fazia muito sentido para ele ficar mais tempo na cidade. Estava muito preocupado com seus filhos e sua empresa. Ficou muito claro para nós que a viagem seria mesmo inviável para ele. Assim que Martinho comprou sua passagem de volta, nos des pedimos e o deixei na rodoviária Eu tinha que procurar um amigo ainda antes que ficasse muito tarde. Deste momento em diante eu teria que enfrentar o mundo sozinho. Meu caminho agora seria desconhecido. Nunca tinha viajado mais para o sul além de Floripa. O desconhecimento me causava medo, mas também excitação. Telefonei para meu amigo e ex-aluno Eugênio, pedalei à noite até o campus da Universidade Federal de Santa Catarina, onde ele estudava e estaria com seus amigos e até lá foram 105 quilômetros percorridos, mesmo contrabem dores, problemas com a bike, eu estava fisicamente muito e mechuva sentia eprofundamente orgulhoso. Ficamos num barzinho próximo ao campus tomando cerveja com seus amigos e apesar de estar cansado, com dores e sujo, não estava preocupado com estas coisas e aparentemente ninguém estava preocu pado com isso também. Estava feliz de ter chegado a Floripa e estar rodeado de gente bacana. Todos fazendo muitas perguntas sobre a viagem. Diziam que era incrível que eu tivesse chegado até ali de bicicleta.Segui com Eugênio até a república onde morava com mais cinco amigos. Todos me receberam muito bem e logo me senti em casa. Havia um rapaz gaúcho, que me ofereceu chimarrão e acabei tomando gosto. Eu já tinha uma cuia que comprei na passagem por Camboriú, mas deste momento em diante tomava quase todos os dias. O mate amargo e quente era uma boa companhia nos momentos de solidão na estrada.
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Eugênio, de boné branco, e seus amigos
Neste local fui roubado pela primeira e única vez na viagem. Deixei meus tênis secando no quintal e desapareceram rapidamente! Durante minha estada em Floripa pude descansar muito e princi palmente tomar antiinflamatório para o joelho. Minhas dores desapareceram completamente e nunca mais – durante a viagem – voltei a sofrer com dores nos joelhos. Apesar da automedicação, cheguei à conclusão que se tratava apenas uma tendinite. Certamente meu corpo ainda estava num processo de adaptação, pois o dia-a-dia da viagem é completamente diferente de apenas treinar duas ou três vezes por semana. O ritmo na estrada é forte e muitas vezes o corpo demora um pouco a se adaptar. Osetrês dias que parado respirar um pouco relaxar. Até fiquei ao cinema fui.foram Ficar fundamentais. com o pessoalPude da república foi maravilhoso. Especialmente rever Eugênio foi bastante interessante. Sempre foi um de meus alunos favoritos – quando ministrava aulas de “desenvolvimento web” em uma escola particular de Ourinhos, há cinco anos – que acabou tornando-se um amigo. Havia chegado muito desanimado por conta das dores e saí de espírito renovado. Minha aventura estava apenas começando e eu podia sentir isso. Ainda na ilha tinha um desejo de percorrê-la toda de bicicleta. É um lugar cheio de praias lindas, mas a persistência das chuvas me fez desistir desta ideia. Me parecia mais fácil me afastar da chuva de bicicleta do que esperar que o tempo melhorasse. Teria sido muito interessante ficar uns três ou quatro dias desbravando-a, mesmo já conhecendo muito bem este lugar. De Florianópolis em diante tudo seria uma grande descoberta. Seguir para o sul através de território totalmente desconhecido. Minha meta podia ser resumida em uma única palavra: sul. Estar na estrada sozinho foi uma coisa nova para mim. Um sentimento de liberdade ~ 29 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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extrema e para minha surpresa, nada de medo! Começava sentir as amarras que ainda existiam ficarem cada vez mais frouxas e quanto mais longe para o sul eu seguia, mas me sentia realizando um grande sonho, despertando. Agora eu não precisava me preocupar com a segurança de ninguém além de mim mesmo e nem se quer ter que tomar decisões em grupo. Era minha hora e eu era senhor de mim. Não vou negar que minha saída de Floripa, foi ainda “pisando em ovos”, ou seja, seguia com um cuidado quase exagerado por causa do joelho. Devagar e sem forçar, mas depois de algumas dezenas de quilômetros, quando a “máquina” esquentou, ficou claro que as dores e o desconforto na articulação haviam desaparecido completamente. Cerca de 70 quilômetros através da caótica BR 101 – em obras de duplicação – cheguei a uma pequena cidade chamada Paulo Lopes. Ali, me hospedei num hotel de caminhoneiros que ficava às margens da rodovia. Enfim, depois de um dia de pedaladas, meu joelho estava funcionando perfeitamente. Estava radiante de felicidade e agora tinha certeza que nada iria atrapalhar meus ambiciosos planos. Segui depois de perder o primeiro pneu por causa de um rasgo enorme. A chuva deu trégua logo que cheguei à praia de Imbituba depois de mais 40 quilômetros. O dia seguinte amanheceu lindíssimo. Creio que tenha sido o primeiro dia de sol realmente forte até então. Não havia que pudesse vir a chover e então fui à praia. Depois de centenas de sinal quilômetros pelo litoral catarinense, era a primeira vez que aproveitava uma praia num dia ensolarado. Acabei ficando um dia todo em Imbituba. A praia estava fenomenal, mas confesso que me senti um pouco solitário. Ainda não sabia como lidar com o fato de estar sozinho. Depois que sai de Imbituba, uns quinze quilômetros à frente, cruzei Hamburgo, com um viajante ciclo-turista. Seu nome Alegre era Leonardo – dee Novo nas proximidades de Porto – muitoEsch gentil tranquilo, o “louco” Leonardo estava levando pelo menos três vezes mais bagagem que eu, inclusive tinha uma espécie de carretinha atrelada à sua bicicleta. Disse-me que seguia até Balneário Camboriú para o encontro de cicloturismo. Depois de trocarmos umas “figurinhas” para seguir adiante ele me passou o contato de um alemão, de quem eu poderia comprar pneus alemães muito resistentes, em Porto Alegre.
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Litoral sul de Santa Catarina
Cheguei à cidade de Laguna. Parei num posto de combustíveis para pedir informações e abastecer minha garrafa de um litro com álcool – nos primeiros seis meses de viagem usei um fogareiro a álcool –, pois estava pensando em acampar, já que se tratava de uma cidade litorânea e certamente haveria um camping . Surpresa! Assim que completaram minha garrafa com álcool e perguntei o preço, me disseram que seria por conta deles. A bicicleta sempre sensibiliza as pessoas, é impressionante! Em alguns momentos da viagem o que mais me impressionava era a situação das pessoas e dos animais. Algumas vezes me provocava profunda tristeza. Aqui foi a vez de uma cachorrinha filhote sentada à margem da avenida – que fazia ligação com a rodovia. Estava quietinha, olhando para o nada. Gosto muito de cachorros e principalmente depois que desci da bike e fiz contato com ela, não consegui deixá-la sozinha, ainda mais sabendo que tinha uma chance enorme de ser atropelada. Fiquei sentado ao lado dela por mais de 20 minutos. Não sabia o que fazer. Não havia como levá-la e realmente fiquei preocupado. Não acredito em destino ou coisas do gênero, mas logo em seguida apareceu um senhor com um carrinho de mão. Perguntei se ele sabia quem era o edono, se tinha umdodono ou sedeelemão poderia dali. Então ele a pegou colocou dentro carrinho e me levá-la disse que a levaria para um lugar seguro. Deste modo pude seguir tranquilo. Entrei na cidade e pedi informações para um casal muito simpático sobre campings. A resposta não foi o que esperava ouvir. Por estar fora da temporada de verão ainda não havia começado o funcionamento de nenhum. Decidi então buscar uma hospedagem. Depois de rodar um pouco pela cidade e fazer umas fotos do mar, encontrei muito consegui atrativo: um umapreço pousada. a temporada ainda não um tinhalugar começado muitoComo especial. Era uma casa enorme, com cozinha, lavanderia, TV e café da manhã por apenas R$ 18,00. Obviamente um bom negócio, muito melhor que acampar por aí, ficar sem banho e ter que cozinhar em qualquer lugar. Pedalei somente 40 quilômetros neste dia, mas estava bem cansado. Todo o tempo havia vento contra e isso me incomodou muito. Mas o que me deixava muito feliz era o fato de não estar mais com dores no joelho. Isso sim era um alívio. No dia seguinte, segui viagem através da estrada em construção. Em alguns momentos era necessário tomar muito cuidado, pois devido às ~ 31 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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obras na pista, havia pouco espaço para viajar com segurança, além de uma quantidade enorme de desvios e longos trechos sem acostamento, – o que se transformava num perigo em potencial –, o fluxo de caminhões é enorme. Por outro lado, em muitos momentos, tive longos trechos de asfalto novinho só para mim, pois ainda não haviam sido liberados para o tráfego pesado. Durante minha passagem por um destes trechos meu pneu traseiro estourou. Rasgou bem próximo do aro e era impossível reaproveitá-lo. Neste caso usei pela primeira vez meu estepe. A única coisa que me atrapalhava um pouco era a chuva. Quase todos os dias choveu em Santa Catarina. Na verdade estas chuvas eram apenas o início de uma catástrofe climática que se desenrolava no litoral do Estado todo. Até que tive sorte e passei ainda no início delas. O final de 2008 foi duro para a população Catarinense, registrado na história e na memória como um dos seus piores verões. No início da viagem eu ainda não me sentia tão à vontade para acampar em qualquer lugar, fui bem receoso em relação a este assunto. Por muitas vezes acabei me hospedando em pequenas pousadas usadas por caminhoneiros. Em uma destas ocasiões, depois de pedalar 90 quilômetros, parei num posto de combustíveis perto da cidade de Criciúma, no sul de Santa Catarina. Minha ideia inicial era seguir até a cidade, mas fica localizada um pouco distante da BR 101 – talvez uns 15 quilômetros – e seria perda tempo atéalimentar lá, embora quisesse conhecer o lugar.depo No de posto fui seguir logo me e comer numa churrascaria is dos quilômetros percorridos é uma das melhores coisas e mais prazerosas que alguém pode fazer. Estava celebrando também os mais de 1000 primeiros quilômetros pedalados. Até então, minha média geral – contando os dias parados – era de quase 60 quilômetros por dia, o que pode parecer pouco, mas na verdade não estava dando atenção para estas estatísticas e só pensava em seguir e desfrutar cada momento. Enquanto comia feitas pedi informações sobre a hospedagem quepedida, havia ali. Estas hospedagens para caminhoneiros são uma boa pois são mais baratas que hotéis convencionais. Não são luxuosas, mas só precisava de uma cama e uma ducha. Pouco antes de subir minha bagagem para o quarto, um ciclista me chamou atenção. Era um senhor com uma bicicleta embaixo de uma árvore. Aproximeime para conversar e fiquei surpreso. Viajava com sua “magrela” levando dois cachorros, que não eram muito pequenos! Os levava enrolados num lençol, como uma pequena
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trouxa improvisada. Simples e muito simpático me disse que estava viajando pelo Brasil e até ofereceu-me comida. Não tinha muitos recursos certamente, mas mesmo assim fazia questão de cuidar destes dois cães que encontrou pelo caminho. Convidou-me para acampar ali, mas eu não achei o lugar muito seguro, pois era muito movimentado. No mesmo lugar haviam dois gaúchos de Porto Alegre, que tinham chegado até ali a pé! Os dois “coitados” estavam com os pés horríveis, cheios de bolhas. Obviamente não eram turistas. Isso sim é loucura! Despedi-me deles e subi para meu quarto. Enquanto tomava meu chimarrão, olhava pela janela e via aquele senhor debaixo da árvore com seus cães. Ele tratava os cães com todo carinho e cuidado. Isso me impressionou bastante. Mais tarde começou a chover e passei boa parte da noite imaginando como estaria a noite daquele homem. Pela manhã a chuva já tinha parado e o senhor e seus cães haviam desaparecido. Escrevi um pouco no blog : segunda-feira, 17 de novembro de 2008 Hoje eu acordei mais cedo / Tomei sozinho o chimarrão / Procurei a noite na memória / Procurei em /vão / Hoje eu acordei mais levecoisa / Nem li o jornal / Tudo deve estar suspenso Nada deve pesar / Já vivi tanta / Tenho tantas a viver / Tô no meio da ESTRADA / E nenhuma derrota vai me vencer / Hoje eu acordei livre / Não devo nada a ninguém! / Não ha nada que me prenda AQUI / Ainda era noite / Esperei o dia amanhecer / Como quem aquece a água / Sem deixar ferver / Hoje eu acordei / Agora eu sei, viver no escuro / Até que a chama se acenda / Verde quente erva dentro ventre entranhas / Mate amargo, noite a dentro / Estrada estranha Ilex paraguariensis (Engenheiros do Hawaii) Obs: Este é o nome científico da erva mate e escrevi a letra de cabeça...
Era hora de seguir. Meu destino agora era a divisa com o Rio Grande do Sul. Só pensava nisso. Estava ansioso por visitar um estado que ainda não conhecia. O vento seguia contra, mas agora que não tinha mais dores, nem me importava com o vento. Seguia determinado e sempre olhando a divisa gaúcha se aproximando no mapa do GPS. ~ 33 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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No caminho, parei numa gruta. Era um local cheio de imagens de santos e visitantes. Assim que desci da bicicleta uma senhora veio falar comigo. Vera. Perguntou o que eu estava fazendo e logo em seguida disse: “Olha, gostei de você. Toma aqui o número da minha casa em Porto Alegre. Me liga quando chegar. Meu filho vai adorar ter um aventureiro hospedado em casa”. Nem soube como agradecer direito. “Isso é muito bom”, pensei. Três jovens que estavam num carro próximo, ouviram a história e também se aproximaram. Para variar fizeram um monte de perguntas e eu começava a encurtar as respostas. Aos poucos, responder sempre as mesmas questões estava começando a me cansar e, em vez de dizer que estava pretendendo dar praticamente uma volta na América do Sul, passei a dizer que estava indo até Porto Alegre! Mesmo assim, algumas pessoas ficavam muito entusiasmadas com a viagem e às vezes pediam-me para tirar uma foto com elas. Claro que quando isso acontecia, eu era forçado a contar a versão longa da história. Pouco antes de chegar à cidade de Passo de Torres, já no extremo sul do Estado, uma pick-up parou na minha frente e o motorista me ofereceu carona. Confesso que achei um pouco suspeita sua abordagem e além do mais não queria. Mesmo sabendo que o dia estava terminando, uma carona não fazia parte dos meus planos. De qualquer forma, já estava próximo e mesmo cansado, estava vivendo um dos melhores dias da viagem até então. Passo de Torres é o município mais ao sul no estado de Santa Catarina e tem cerca de 6.000 habitantes. Faz fronteira com o estado do Rio Grande do Sul, onde imediatamente após o rio Mampituba, já se encontra a cidade gaúcha de Torres. Assim que cheguei fui logo à divisa de estados de onde se pode ver as duas cidades. Torres é uma cidade grande e optei pela hospedagem em Passo de Torres, pois poderia encontrar opções mais baratas. Segui dois o rio faróis Mampituba até suasuafoz. Este lugar é muito especial, pois existem sinalizando foz. O primeiro fica nos últimos metros de Santa Catarina e o outro nos primeiros metros do Rio Grande do Sul. Uns 100 metros dali encontrei uma pousada e um restaurante. O preço era bom e as instalações bem simples, mas estava de bom tamanho, já que planejava seguir no dia seguinte. Nesta noite comi algo por ali mesmo e fui ao mercado repor alguns itens alimentícios na minha “despensa”. Também visitei – a pé – Torres e suas praias. Caminhei vários quilômetros por essa bonita cidade. As ruas ainda tranquilas, pois a temporada de verão ainda não havia começado. O sol estava fortíssimo, mas não pude aproveitar muito bem a
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praia por causa do vento. Durante a noite começou a chover e não parou mais. Chovia e fazia muito frio, embora já fosse final de novembro. Pela manhã a chuva continuava e não tive coragem de enfrentá-la. Resolvi ficar abrigado e esperar passar. Mas que nada de chuva parar e continuou chovendo forte e frio por dois dias. Acabei ficando preso dentro de um quarto minúsculo sem distração alguma. Não foi tão ruim assim. Pude descansar e aproveitei para lavar umas peças de roupa. O “hotel” tinha uma diária de R$ 12,00, então ficar mais não era um grande problema. Nesta estadia perdi duas cuecas. Deixei secando na janela e quando percebi o vento havia levado. Foi uma situação muito engraçada, em que acabei fazendo malabarismos no telhado do lugar para resgatar uma pelo menos. Para quem carrega uma quantidade mínima de peças de rou pa, perder qualquer coisa se transforma num grande problema. Em Passo de Torres resolvi provar o famoso “Xis” – escrito assim mesmo – que se come nesta região. É um sanduíche enorme, que de tão grande é servido no prato e não tem nada em comum com os lanches que eu estou habituado a comer. Comi no “Xis do Zeca” e acabei fazendo amizade com os donos do local. Zeca, Débora e sua filhinha Yasmin foram muito carinhosos comigo e adoraram ouvir minhas histórias da viagem. O último dia em Passo de Torres, 21º da viagem foi em 20 de novembro – meu aniversário de 29 anos. Infelizmente passei meu aniversário sozinho dentro do quarto do hotel enquanto chovia lá fora. Neste dia eu também resolvi parar de tomar o antiinflamatório para o joelho. As terras gaúchas
Depois da chuva, a bonança: veio o sol e foi a deixa para seguir. Cruzei a ponte que liga Passo de Torres a Torres e entrei ao Estado do Rio Grande do Sul. Abandonei a movimentada BR 101 e resolvi seguir pela rota costeira, a tranquila RS-389. No caminho fiz uma parada num posto de combustíveis porque ~ 35 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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voltou a chover forte. Um casal de Porto Alegre parou o carro e veio falar comigo. Na mesma hora Ligia e Sandro passaram seus telefones e disseram que eu poderia ficar hospedado em sua casa sem problema algum. Lígia disse: “Olha, eu sou uma bruxa, de verdade! Se você não tiver medo de bruxa pode ficar lá em casa”. O pior é que ela era bruxa mesmo e até me deu seu cartão de visitas! Tinha contatos de três pessoas em Porto Alegre. Isso me dava uma segurança tremenda, pois se trata de uma cidade grande e movimentada. Estava propenso a ficar na casa de Lígia e Sandro se fosse a Porto Alegre. Gostei muito deles e como conversamos bastante, deu para saber como são. Mais 65 quilômetros cheguei à cidade costeira de Capão da Canoa e desta vez acampei na praia. Não havia ninguém, pois o tempo estava fechado, então achei que pudesse ser bem seguro e realmente passei uma noite bem tranquila. Na saída da cidade, parei numa loja qualquer para pedir informação sobre a rodovia que seguia até a cidade de Osório, caminho de Porto Alegre, e logo uma roda de gente se formou ao meu redor. Neste momento pude provar um pouco da simpatia gaúcha. Enquanto garoava um pouco, ficamos jogando conversa fora por mais de uma hora. Diziam-me: “Tu vieste de São Paulo até aqui de bici? Tá louco!”. E agora? decisão importante: se seguisse até Porto Alegre, iriaPrecisava me afastartomar mais uma de 100 quilômetros do litoral e gastaria mais quatro dias no mínimo, para ir e voltar; se seguisse direto pela rota litorânea ganharia tempo e em breve estaria saindo do país, porém não conheceria Porto Alegre. Pensei um pouco e tomei rumo a capital gaúcha, pois fazia parte dos meus planos há muito tempo. Outra coisa que pesou a favor foi o fato de ter vários contatos na cidade. Depois de Capão da Canoa passei por Xangri-Lá e segui para Osório. caminho pude uma usina eólica.fiquei Esta região é conhecida por seusNoconstantes fortesver ventos. Realmente impressionado na entrada de Osório, quando o vento me empurrava fortemente. Na praça central da cidade havia um monumento onde estava escrito: “Osório, capital nacional dos ventos”. Eu não duvido nem um pouco depois do que vi. É até engraçado, pois em alguns momentos fica difícil andar na rua. O vento é incrível. Passei a noite numa pousada perto de um posto de combustíveis já na saída de Osório. No dia seguinte segui para o oeste, em direção a Porto Alegre através da BR 290, também conhecida como Freeway .
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Dia 24, 1.322 km pedalados Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Lígia e Sandro
Pela Freeway o vento a favor – e forte – me fez companhia todo o tempo. Por esse motivo, este trecho ficou marcado como recorde de velocidade. Fiz os 108 quilômetros, saindo do posto nas proximidades de Osório até o centro de Porto Alegre em apenas 3 horas e 50 minutos. Tempo que me deu a mais alta velocidade média de toda a viagem, mais de 28 quilômetros por hora. Foi realmente incrível. Estou dizendo que a velocidade média foi de 28 quilômetros por hora! A máxima às vezes passava dos 45 e num caminho totalmente plano. A rodovia é perfeita. Duplicada e com asfalto impecável em três pistas para cada lado. Quando passei por Gravataí, minha água acabou. Infelizmente não existem muitos postos de combustíveis nesta rodovia e tive que sair uns quatro quilômetros até encontrar um posto, já na cidade. Sair da rodovia não foi uma boa ideia, pois acabou quebrando meu ritmo e o calor estava fortíssimo. Nessas horas uma coca-cola gelada cai muito bem e foi exatamente o que fiz. Sei que não é a melhor bebida para um ciclista, mas também não é a pior. Tem muita energia e se você toma água depois, não temaproximando problema algum. Conforme fui me da região metropolitana de Porto Alegre comecei a perceber o tamanho da cidade e também o tamanho de seus problemas. A periferia próxima à rodovia certamente não é um dos lugares mais bonitos que conheci na viagem. Como não conhecia absolutamente nada, resolvi sempre seguir as placas que apontavam para o centro. No momento que saí da Freeway , passei um dos maiores perrengues toda a viagem. As rodovias de acesso da cidade Não não oferecemde sequer meio metro de espaço paraà entrada uma bicicleta. recomendo a ciclista algum entrar em Porto Alegre no horário de pico e através das vias principais de acesso. Isso pode ser fatal. Quase fui atropelado. Foi certamente o maior risco que corri por causa do trânsito em toda a viagem, superando até a entrada em Santiago do Chile, La Paz e o trânsito caótico de Buenos Aires. Como não conhecia nada, fui exatamente para onde não deveria ir. O centro velho da cidade é uma região um pouco perigosa, mas isso só descobri depois, quando um homem que passava por mim disse: “Fica esperto aqui hein. Levam tudo e você junto!”. Bom, pelo menos me ~ 37 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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deram uma dica, mas na verdade eu já estava me enturmando com o pessoal que vivia por ali. A bike muda até mesmo a maneira como as pessoas te olham, é impressionante. Liguei para Lígia, que conheci na estrada e ela perguntou onde eu estava. Disse que estava bem no centro, e então escuto: “Ah meu Deus! Não fica aí que vão assaltar você. Me espera na frente do terminal de ônibus que tem aí na sua frente”. Em 20 minutos ela chegou e depois de alguma demora, conseguimos colocar a bicicleta dentro de seu carro. Lígia foi muito atenciosa comigo desde o início. No caminho até sua casa foi me mostrando um pouco da cidade. Passamos por alguns pontos turísticos e depois me mostrou o bairro boêmio. Em sua casa, encontrei seu marido Sandro, que é cantor e compositor. Sandro me ofereceu um chimarrão e ficamos conversando por horas. Os dois me deixaram muito à vontade. Foram realmente muito agradáveis os dois dias que passei com eles. Ao mesmo tempo em que estava à vontade e começando a me acostumar com a ausência total de rotina, ainda era um pouco estranho estar como hóspede na casa de pessoas que mal conhecia. A maneira como me Ereceberam como houve melavar impressionou bastante. desta boae acolhida pude confiança relaxar ummútua pouco, roupas e atualizar meu website com novas fotos. A partir daqui comecei a receber depoimentos de muitas pessoas pela internet. Algumas eu nem conhecia. Tratava-se, muitas vezes, de gente que simplesmente encontrou minha página na internet e passou a acompanhar minha viagem semanalmente. O legal eram as palavras de motivação e elogios vindas de várias partes do Brasil e também eram o que me mantinha em movimento fazendo website. com que me dedicasse, sempre que possível, na atualização do segunda-feira, 24 de novembro de 2008, 12h17min Aonde ir?
Uma coisa estranha mas muito interessante é o fato de eu estar me acostumando em não saber onde passarei a próxima noite. Acabei de almoçar aqui na casa dos meus novos amigos. Fica em Porto Alegre, perto da cidade de Alvorada. Daqui pouco de vouPorto ligarAlegre para meu aqui, só vou saber se volto proa centro ou seoutro sigo contato pra Capivari do então Sul, onde
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pretendo passar a noite. O que antes era um dilema, não saber quando e pra onde ir, agora me deixa bastante confortável. Não me importo se vou hoje ou não. O importante é sempre estar abrigado quando a noite chega.
A ideia de uma viagem longa de bicicleta mexia demais com a maioria das pessoas. Era muito prazeroso ver o interesse que isso gerava. Desde as crianças até os mais idosos, todos demonstravam alguma forma de curiosidade ou admiração pela bike. Cada vez mais eu sentia de fato que estava realizando meu sonho e cada vez mais pensava na sequência de eventos que propiciaram que tudo isto viesse a se tornar realidade. Lembro-me do dia que contei sobre meu sonho aos meus pais – mais de um ano antes de iniciá-lo. Sem o apoio deles, acredito que não teria conseguido. Me apoiaram assim que contei sobre o projeto. Isso me deu mais realizá-lo. Quando abri o foi: jogo“Filho, a eles,sedizendo que ainda largaria tudoforça parapara viajar de bicicleta a resposta é isso mesmo que você quer, vai em frente”. Assim ficou fácil! Na hora de sair de Porto Alegre resolvi voltar mais pelo sul, passando por Viamão e assim evitando voltar pela Freeway. Não peguei nenhuma via principal e acabei cruzando alguns bairros. Foi bem interessante, ver a reação das pessoas ao verem uma bicicleta, como a minha, passando em frente dedesuas casas. Quando Viamão, ainda do na região metropolitana Porto Alegre, semcheguei querer,em passei na frente autódromo de Tarumã, onde havia ocorrido, um dia antes, a final do campeonato de Stock Car . Vi os portões abertos e entrei. Pude ver a pista e a movimentação das equipes retirando todos os carros e equipamentos. Em seguida um dos seguranças pediu educadamente que me retirasse. Apesar de ter uma meta e saber que deveria sempre seguir meu caminho planejado, também estava começando a aprender a mudar de caminho. Aprendendo a mudar os planos e fazer o que me desse vontade de fazer. Acho que aos poucos passei a aproveitar mais minha liberdade. Ao sair da região metropolitana logo percebi que aquele vento fortíssimo que havia me levado em tempo recorde a Porto Alegre agora seria meu pior pesadelo. Não conseguia desenvolver boa velocidade. Neste dia, mesmo estando descansado, fiz somente 42 quilômetros e acabei pernoitando numa pousada a alguns quilômetros da pequena cidade de Águas Claras. Nesta noite pude assistir um pouco de televisão e os noticiários só falavam da tragédia provocada pelas chuvas no litoral de Santa Catarina. Se eu tivesse passado por lá apenas uma ou duas semanas ~ 39 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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depois, teria tido muitos problemas. A chuva que me acompanhou por lá já era o começo de toda a tragédia catarinense, como já dito antes. segunda-feira, 24 de novembro de 2008, 22h40min Qual você acha que é o pior inimigo do cicloturista? a) O calor / b) A ressaca de uma bebedeira / c) A má alimentação / d) As subidas / e) A preguiça / f) Os buracos / g) Os caminhões / h) O vento Acertou quem respondeu a letra “h”. Otávio Bittencourt
O dia 25 de novembro de 2008 foi um tanto peculiar. Era o vigésimo sexto dia da viagem, no qual as dificuldades físicas foram extremas. As piores da viagem até então. Por outro lado este dia teve boas surpresas que eu nem imaginava. Foi o dia mais intenso que vivi, ainda em território brasileiro. Pude provar um pouco de tudo: cansaço, hospitalidade e ver realidades muito diferentes da minha. Saí das proximidades da cidade de Águas Claras em direção às cidades de Capivari do Sul e Palmares do Sul. Imaginava que o vento pudesse me causar problemas, mas não pensava que seria tanto. Seguia lentamente contra o vento. Aos poucos percebi que o mesmo vento que tinha me levado em velocidade recorde pela Freeway até Porto Alegre, agora seria meu pior pesadelo. Iniciei o dia saindo de um hotel à beira da estrada – onde tinha passado a noite – e após pedalar apenas doze quilômetros, perto de uma localidade chamada “Capão da Porteira”, ouvi alguém gritar: –Olhei Querpara almoçar? o lado, vi um homem na beira da estrada e disse: – O que tem aí? Lanchonete? – Não, eu moro aqui! Vamos almoçar! Esse foi o começo da primeira grande surpresa do dia. O exsargento dos bombeiros e assistente de árbitro de futebol José Otávio Bittencourt convidou-me a entrar e fui almoçar com sua família. Foi incrível sua hospitalidade. Vinha lutando contra o vento num dia muito duro e deApós repente ganho um assim!(esposa e filha), e um bom e o almoço compresente sua família
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longo bate-papo, ele me presenteou com um calção oficial de árbitro, uma blusa, uma faca gaúcha e uma medalha dos bombeiros. Em seguida tirei umas fotos de sua família, inclusive uma de Bittencourt com bombachas – a roupa típica do gaúcho –, que fez questão de vesti-las. No fundo de sua casa havia um lugar espetacular. Um “cantinho gaúcho” ímpar. A decoração cheia de coisas de madeira, facas, espetos de churrasco e fotos. Fotos dele como bandeirinha de jogos importantes como Grêmio versus Internacional, clássico gaúcho e apesar de eu ter perguntado, ele não me disse que time mais lhe agradava. Passei umas duas horas na casa deles. Este tipo de hospitalidade eu já havia provado em Porto Alegre, mas em circunstâncias um pouco diferentes. Desta vez eu apenas estava passando e simplesmente fui convidado. Foi impressionante e incrível estar com essas pessoas. Despedimo-nos e segui. Tinha um longo caminho a seguir apesar do convite que me fizeram para passar a noite. Mas só havia percorrido doze quilômetros neste dia e essa quilometragem era muito baixa. Sei que se aceitasse ficar, talvez tivesse feito uma amizade muito especial, mas tudo que eu queria naquele momento era seguir para o sul o mais rápido possível. Segui meu caminho em direção a Capivari do Sul e o vento contra foi piorando. Às vezes chegava a ser engraçado. Nunca havia sentido ventosa assim, nem9 mesmo em tempestades. Simplesmente não dá para pedalar mais de km por hora. Fiquei esgotado e ainda bem que tinha alimentos. Além disso, meu bagageiro frontal se rompeu logo em seguida. Tive que pararuma e reparálo, colocando nova braçadeira de metal. O dia tinha me presenteado com um belo almoço e boa companhia, mas nem por isso deixou de me castigar. Hoje sei que estes dias de vento no Rio Grande do Sul apenas estavam me preparando, me treinando, para coisas mais desafiadoras no futuro. Mesmo com toda dificuldade, pedalei 40 quilômetros com este vento inacreditável contra e precisei até empurrar a bike por uns quatro ~ 41 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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quilômetros. Estava completamente desgastado. Até então a parte mais dura da viagem. Depois da cidade de Capivari do Sul, enquanto seguia pela estrei-ta faixa de terra entre o mar e a Lagoa dos Patos, a estrada virou para o sul e passei a enfrentar o vento de lado. Assim é melhor, porém é necessário cautela para não ser empurrado para fora da estrada. Meu próximo destino: a cidade de Palmares do Sul, onde pensava em passar a noite. Anderson e Luana
Logo que cheguei à cidade pretendida fui procurar hotéis ou pousadas e depois de pesquisar um pouco os preços, fiquei frustrado, porque que não estavam muito baratos. Antes de me instalar, fui ao mercado comprar alguma coisa para cozinhar e de repente: a próxima grande sur presa do dia. Um casal se virou pra mim e perguntou de onde eu era. Me apresentei. Disseram que eram de um circo que tinha acabado de chegar na cidade. Seus nomes: Anderson e Luana. Convidaram-me para acampar ao do seu onde o circo estava montado. pensei trailer duaslado vezes. Achei a ideia o máximo! E por sendo sorte ou por estarNão livre sem qualquer amarras, ou julgamentos, por estar aberto mesmo a viver, mais uma vez fui excepcionalmente bem recebido em seu modesto trailer minúsculo de uns três metros quadrados, que na realidade era uma carroceria pequena tipo “furgão” onde viajam seguindo a trupe do Circo Italiano. Montei minha barraca ali ao lado. Fizeram um jantar delicioso e ficamos assistindo alguns DVDs do “Cirque du Soleil”. Contaram-me muito de num suas circo. vidas Mais itinerantes e também algo sobre a realidade se trabalhar tarde nos banhamos num centro esportivode e fui visitar o lugar onde estavam levantando a grande tenda do circo. O trabalho desta gente não é fácil. Cada família que trabalha ali tem que acompanhar o circo com seus próprios meios, ou seja, há uma hierarquia como em qualquer outro trabalho, o dinheiro ganho nessa vida nômade, é salário como numa empresa, em grau de responsabilidade, assim sendo num mesmo espaço existem realidades muito diferentes entre os trabalhadores. Anderson é o responsável pela montagem do som do circo e Luana é sua esposa. Inclusive, na época ela estava grávida de dois meses e a grande preocupação deles era em comprar um novo trailer com
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mais espaço para a criança. Durante o período que estive com eles conheci outras pessoas que também trabalhavam ali. Um senhor argentino, depois que ficou sabendo que eu iria visitar a Argentina, me perguntou se já falava alguma coisa de espanhol. Tive que dizer a verdade: não falava absolutamente nada. Visitar este lugar e conhecer essa gente foi muito interessante e enriquecedor. Pela manhã ainda estava muito cansado e resolvi passar uma noite num hotel, pois os dias anteriores haviam sido muitíssimo duros comigo. Ainda me rendia ao conforto eventual que o dinheiro pode pagar. Ainda tinha muito o que aprender. De Palmares do Sul segui direto os 120 quilômetros até a cidade de Mostardas, cruzando uma região absurdamente plana. Mesmo estando numa faixa relativamente estreita de terra, em momento algum durante o percurso pude ver o mar ou a Lagoa. No dia seguinte fui um pouco preguiçoso e fiz somente 30 quilômetros até a cidade de Tavares. Foi uma das menores quilometragens que percorri num dia durante toda a viagem. Claro que não fiz somente por preguiça também porque sabia que a próxima cidade depois de Tavares estaria a muito mais de 100 quilômetros e não queria arriscar em ficar pelo caminho num lugar desconhecido. Meu mapa era extremamente simples No e continha somente principais cidades. novamente e fiz os 134 outro dia resolviasdar uma “esticada” quilômetros até a cidade de São José do Norte, que se localiza bem na pontinha da faixa de terra que existe ao longo da Lagoa dos Patos, formação natural que dá uma aparência peculiar ao mapa do Rio Grande do Sul e ao sul do país. Agora teria de cruzar os três quilômetros da foz do Rio Grande até a cidade de Rio Grande. Mas deixei a emoção para o dia seguinte. Os 134 foram bem cansativos por causa do calor excessivo. O verãoquilômetros estava se aproximando. Já em Rio Grande, resolvi descansar e me hospedei num hotel simples. Fiquei um dia todo descansando. Pé no pedal e bunda no selim. No dia seguinte saí para enfrentar definitivamente o extremo sul do Brasil. Infelizmente o vento começou a soprar forte de novo e o dia acabou se transformando num enorme desafio físico. Ficou claro que não conseguiria cobrir uma grande distancia neste dia e me voltei para o mapa à procura de uma cidade próxima. ~ 43 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Antônio Xavier
No meu mapa havia um lugar chamado Sarandi, quase no extremo sul do Brasil. Conforme fui me aproximando foi ficando evidente que não se tratava de uma cidade e sim somente uma área rural cheia de pequenos sítios. Como tinha saído da rodovia principal para procurar o lugar e o dia chegou ao final, fui obrigado a acampar – este dia não havia sido um dos melhores, fiz somente 34 quilômetros – num lugar gramado ao lado de uma cerca. Era um pasto e a uns 100 metros havia duas casas. Em uma delas uma placa: “Vendemos pães”. Resolvi comprar alguns, pois minha comida já estava no final. Assim que terminei de armar a barraca recebi a visita de um cachorro que sentou ao lado e ficou por ali pelo menos por uma hora. Era como se estivesse montando guarda e me dando boas vindas. Passei uma noite tranquila acampado ali. Meu único problema é que não tinha mais comida para preparar e passei a noite comendo pão somente. O lugar não era muito confortável. O chão era muito irregular. Como Amyr Klink, eu tampouco tinha um travesseiro. Como ele diz em seu livro, um "protótipo de travesseiro" somente. Geralmente enrolava minha e pronto. tinha um descanso pra cabeça. Engraçado. Levava blusa mais de 1,5 kg deJáequipamentos "desnecessários" como câmeras, baterias, carregadores, cabos e até um tripé, mas não tinha sequer uma almofada inflável para usar como travesseiro. Na manhã do dia seguinte levantei acampamento para seguir viagem. Esperava encontrar algum lugar para tomar um bom café pelo caminho, mas ao passar à frente de uma casa um senhor idoso se aproximou e disse: “Quer acampar aqui?”. Chamava-se Antônio Xavier – um solitário morador daquelameu região Na hora respondi que de não, poise estava apenas começando dia,rural. mas logo em seguida mudei ideia resolvi aceitar seu convite. Depois de seguir por só 100 metros eu apeava novamente. Antônio me disse que há alguns meses atrás havia acampado em seu quintal um casal de norte-americanos que também viajavam de bicicleta e que achava interessante abrigar viajantes, pois assim tinha companhia. Acho que fiquei porque fui comovido por este homem sim ples e solitário.
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Num casebre extremamente sim ples, Antônio vivia há muitos anos. Disse que eu poderia dormir em um de seus quartos e que havia uma cama disponível. Estava cheia de excremento de cupim, mas estava disponível. Fiz companhia para aquele pacato homem que me contou uma infinidade de histórias. Me mostrou seus animais. Uma quantidade enorme de patos de todas as cores e tamanhos que tinha no quintal e então uma forte chuva começou. Senti-me afortunado por ter aceitado seu convite, pois se não fosse assim teria pegado toda a chuva na estrada. Me disse que não tinha o costume de jantar, mas mesmo assim fez questão de preparar algo para mim. Comi arroz com carne de porco frita. Neste momento percebi o quanto bom ela era. Como é saborosa a comida feita de coração! Provava um tipo de hospitalidade sem explicação e voltava a me perguntar: Quantas pessoas são capazes de fazer o que ele havia acabado de fazer por mim? Eu mesmo penso que jamais levaria um estranho viajante para dentro da minha casa facilmente. Fatos como este, mudaram muito minha maneiraDepois de olhardeasficar pessoas. Cada dia uma página uma liçãoprecisava aprendida. um dia parado na casa de eAntônio, seguir e foi isso que fiz no dia seguinte. Todas as estradas vão para o sul
O tempo virou, começou a ventar frio e em seguida uma garoa fina fria me mas pegou. dia havia sidonão muito cansativo. tinha muito ventoe contra, meuO desempenho esteve bom. ÀsNão vezes o rendimento cai simplesmente porque o corpo pede um pouco de descanso. Já estava na BR-471, também conhecida como “Rota Extremo Sul”, vi uma placa escrita: “Reserva Ecológica do Taim” – esta reserva tem quase 35.000 hectares e situa-se numa estreita faixa de terra entre o oceano Atlântico e a Lagoa Mirim, ao Sul da Lagoa dos Patos – ou seja, tinha menos de 200 quilômetros de estradas brasileiras pela frente. E assim entrei pedalando na reserva. Uma região plana e parcialmente alagada. Cheguei a me deparar com um pequeno jacaré que andava próximo da rodovia. A essa altura, já estava louco por encontrar ~ 45 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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um bom lugar para acampar, pois havia cruzado 58 quilômetros, mas sinceramente a ideia de acampar dentro da reserva cheia de animais não me animava muito. Foi então que encontrei um pequeno quartel da brigada de incêndio da reserva. E como estava cansado me aproximei lentamente. Vi um bombeiro e perguntei se havia possibilidade de acampar ali. Tinha um gramado perfeito e além do mais estaria perto de gente e isso, às vezes, é extremamente importante. O pessoal do quartel permitiu que eu passasse a noite com eles. Geralmente os militares são muito receptivos com os viajantes, especialmente os bombeiros. Montei minha barraca enquanto me enchiam de perguntas sobre a viagem. Também me diziam para tomar cuidado durante a noite com as cobras do local. Depois, o Sargento me convidou para um café. Acabei jantando com eles e depois ainda assistimos uma partida de futebol na televisão. Disseram-me que apesar de estarem com camas vazias o regulamento interno não permitia que estranhos fossem hospedados ali. Foi muito divertido estar com eles. Todos, sem exceção, foram muito simpáticos comigo. A noite foi muito tranquila. De manhã, tomei café com eles e segui viagem, mais uma vez, grato pela ajuda e apoio. Antes de seguir, deixei o endereço de meu website com eles para que pudessem acompanhar minha aventura pela internet. Na parede do quartel havia uma longa mensagem que me chamou a atenção, segue um pequeno trecho: “Que eu tenha sempre certeza do retorno ao aconchego do meu lar. Mesmo que eu ande pelo vale das sombras da morte, não deixes que mal algum venha cair sobre mim”.
Eu ainda não sabia, mas o simples fato de passar essa noite no quartel dos bombeiros da reserva iniciaria uma cadeia de eventos que moldaria totalmente o futuro de boa parte da viagem. Este dia foi determinante e a viagem teria sido totalmente diferente se não tivesse conhecido estas pessoas. Segui viagem. Parei para almoçar num restaurante de posto de gasolina. Para relaxar um pouco, de barriga cheia, deitei-me embaixo de uma árvore que havia na frente do lugar. Tinha uma boa, gostosa e convidativa sombra para digerir a quantidade enorme de carne que comi. Ali também conheci
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dois primos – José e Dário – que viajavam de carro até Montevidéu, no Uruguai. Eram de Criciúma/SC, e disseram que estavam realizando um grande sonho indo até o Uruguai de carro. Após uma breve conversa eu segui. Meia hora e alguns quilômetros depois, os viajantes passaram por mim e pararam o carro no acostamento, desceram e pediram que eu tirasse uma foto com eles. Fiquei feliz com suas palavras sobre mim e dentre tantos elogios, um deles foi que eu era muito corajoso por estar fazendo uma viagem deste modo. Quando nos despedimos, um deles estendeu a mão, me deu R$ 50,00 de presente e disse: “Olha, não é muito, mas eu quero te ajudar de alguma forma”. Foi a primeira vez que um desconhecido me deu dinheiro na estrada. Igor e Juliane
O caminho estava preparando uma nova surpresa. Depois de pedalar apenas 40 quilômetros comecei a me preocupar sobre onde passar a noite, aliás, era o que sempre me preocupava. Havia saído tarde do quartel dos bombeiros e por isso não pedalei muito. O lugar era completamente deserto. havia muita vivendo porEalimais e ainda me restavam mais de 100Não quilômetros até agente próxima cidade. uma vez: posto de gasolina, um oásis para mim. Óbvio que eu iria acampar por ali. Como sempre – pelo menos até aqui – me aproximei do rapaz que estava trabalhando, contei minha história e pedi um lugar para montar minha barraca. Seu nome era Igor e enquanto eu olhava a quantidade enorme de adesivos que muitos viajantes colocaram aos poucos na porta do posto, conversava com ele. Aos poucos contei um pouco da viagem e ganhei a confiança Igor. Naeuverdade pude operceber sua disposto expressãoa mudando aos poucosdeenquanto falava sobre que estava fazer. Ficou admirado e me confessou que seu grande sonho era viajar também, mas até então não havia encontrado tempo para poder sair dali. Perguntei se era possível acampar ao lado do posto e ele me sugeriu uma construção abandonada que há muitos anos foi um enorme restaurante. Coloquei a bar-raca dentro da construção. Apesar de o lugar estar um pouco sujo, havia teto e assim poderia usar somente a parte de dentro da
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barraca - a barraca era constituída de duas partes principais: a parte de dentro, com o chão, mosquiteiro e estrutura de alumínio; e a parte de fora, que era basicamente uma proteção contra vento, chuva e sol - pois não teria problemas com vento ou chuva. Voltei para a loja do posto e então a esposa de Igor, Juliane, apareceu e começamos conversar. Mais tarde, uma surpresa. Me convidaram para acampar em sua garagem. Viviam numa casa ao lado do posto. Igor, bem espontâneo falou: “Coloca sua barraca na minha garagem vai! A gente janta e assiste a novela juntos”. Incrível, pensei. Transferi na mesma hora e sentei à sua mesa para jantarmos. Depois conversamos por horas e horas. O mais surpreendente foi que confiaram tanto em mim que em momento algum trancaram a porta que dava acesso à cozinha, pelo contrário, disseram que poderia entrar se sentisse sede. A hospitalidade de Igor e Juliane me deixou até um pouco sem jeito. Ser acolhido por gente assim me fazia sentir muito especial. Gente simples, mas com corações enormes. Como aprendia em momentos assim! No dia seguinte, estava pedalando num ritmo muito forte e passei ao lado de um casco de tartaruga bem na faixa central da rodovia. No momento não dei muita atenção, mas depois de uns trinta metros parei e resolvi voltar para ver se ela ainda estava viva. Vi que se tratava de um animal apavorado. Quando os carros passavam por cima, ela se encolhia toda e obviamente correndo risco aode lado morte. Peguei oEmbora bicho indefeso e coloquei estava gentilmente no mato da rodovia. estivesse viva, estava morrendo de medo e deve ter demorado um pouco para colocar suas patinhas para fora novamente. Amo as estradas, mas só são boas para os seres humanos. Todo o resto sofre muito com elas. Geralmente levam lixo, barulho, poluição, causam atropelamentos de animais e servem de escoamento dos recursos naturais. Bom, pelo menos na reserva este último item não existe. Segui minhacontra. viagemFizpara sul. O solparada estavanum muito forte havia um pouco de vento umao pequena ponto de eônibus para comer alguma coisa e então vi um ciclista se aproximando. Logo percebi que se tratava de um tipo de ciclista totalmente diferente do meu. Obviamente era um viajante, mas não estava fazendo turismo e sim seguia com sua bicicleta extremamente simples, sendo este seu único meio de transporte. Tinha uma “montanha” de coisas amarradas dentro de um saco enorme na garupa e vinha de longe. Parou e começamos a conversar. O senhor de mais de sessenta anos não me pareceu hostil e então acabamos seguindo juntos durante umas duas horas até a entrada da cidade de Santa Vitória do Palmar, a apenas 30 quilômetros do Chuí.
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Durante o caminho ele fumou vários cigarros fortíssimos e me assustei ainda mais, quando de repente, retirou de sua bagagem uma garrafa de cachaça tomando um belo gole. Gentilmente a chamava de “metanol”. Também tinha um corte realmente grande na panturrilha. Incrivelmente tinha um ritmo tão forte quanto a quantidade de cigarros que fumava e me dizia que a melhor forma de pedalar contra o vento era forçar ainda mais a pedalada. Chegamos à entrada da cidade e precisei despistá-lo. Inventei uma história e assim nos separamos. É sempre interessante conhecer este tipo de personagem. Assim como o senhor que encontrei perto de Criciúma, ainda em Santa Catarina, este homem não estava viajando por diversão. Quando entrei em Santa Vitória ainda não sabia se seguiria direto ao Chuí ou se ficaria por ali mesmo. Queria descansar e logo relaxei e quando isso acontece, geralmente tenho que parar. Passei pelo escritório de informações turísticas. Buscava informações sobre hospedagens e assim que consegui, segui pela avenida principal desta cidade de menos de 35 mil habitantes. E mais uma vez o acaso deixaria sua marca: no meio da rua encontrei um dos bombeiros da Reserva Ecológica do Taim, que estava em seu dia de folga. Novamente o agradeci pela ajuda e ele ficou surpreso que eu já estivesse ali. Nesta pacata cidade, tive um daqueles dias de preguiça e acabei ficando precisasse de um mim, sozinhoe dentro deduas um noites. quarto Talvez de hotel, para refletir um tempo pouco pra sobre a viagem principalmente sobre o fato de eu estar praticamente na fronteira com o Uruguai. Dali para frente estaria em território ainda mais desconhecido e me sentia um pouco apreensivo. Os últimos 30 quilômetros até o Chuí foram muito especiais. A cada quilômetro eu me aproximava do ponto mais meridional do Brasil. à aduana brasileira. Era recomendação a primeira vez que numa aduana. Cheguei O processo foi simples e por dos entrava funcionários, somente fiz uma declaração de alguns itens que levava como câmera fotográfica e filmadora, para não ter problemas quando voltasse ao pais. Mais alguns quilômetros e já estava entrando na cidade do Chuí. O que mais me chamou atenção foi o fato da fronteira ser demarcada apenas por uma avenida no meio da cidade, sendo o lado brasileiro, tudo em português e o lado uruguaio, tudo escrito em espanhol, inclusive o nome da cidade; do lado brasileiro, Chuí e do lado uruguaio a cidade se chama Chuy – um pequeno contraste. Outra observação foi que logo na primeira esquina uruguaia já havia um cassino – proibidos no Brasil. ~ 49 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Com a ajuda de um uruguaio fiz uma foto minha bem no canteiro central da avenida, exatamente na fronteira e em seguida fui almoçar pela última vez do lado brasileiro, a apenas alguns metros da fronteira. Dia 38, 1965 km pedalados Chuí, Rio Grande do Sul, Brasil Barra do Chuí
Depois do almoço, segui em direção à Barra do Chuí, que, de fato, é o ponto mais ao sul do Brasil. Queria caminhar pelos últimos metros das praias brasileiras e passar a noite nesta cidade. Pedalei uns 10 quilômetros e logo cheguei na entrada do povoado costeiro. Parei para relaxar um pouco e tomar um sorvete. Estava feliz de ter chegado até ali e adorei a atmosfera tranquila deste lugar. Segui à praia. Precisava sentir e pisar os últimos metros de litoral brasileiro de qualquer forma. Fui com bicicleta e tudo. Uma linda e tranquila praia de areias brancas. O calor estava forte e não resisti a um banho de mar, que não estava necessariamente quente. A sensação foi indescritível. Olhava a praia para o sul e podia ver os primeiros metros do litoral uruguaio. Olhava para o norte e ficava imaginando os mais de 7000 quilômetros de praias brasileiras que havia a partir realmente momento Caminhei até odaquele ultimo ponto. metro Foi brasileiro e fizum uma foto dosmuito meus especial. pés, ali, pisando a areia, com as marcas evidentes de sol de meus chinelos. Sempre vi e busquei muito simbolismo durante a viagem e estar neste lugar tinha toda simbologia possível para mim. As fronteiras são tema interessante, um tipo de coisa paradoxal. Ao mesmo tempo existem de fato e causam, às vezes, um contraste tremendo entre os lados, mas por outro lado não existem de maneira alguma e são apenas convenções que todos, ouSentia-me a maioria,muito aceitam. distante de casa e de fato estava, mas também sentia que aquilo era só o começo. Estava me preparando para cortar as últimas amarras que me restavam. Depois de conversar com alguns brasileiros e uruguaios, decidi voltar à cidade para procurar um lugar e passar a noite.
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Norman Yelland
Conheci o próximo personagem assim que voltei à entrada de Barra do Chuí. Parei à frente da placa de boas vindas da cidade para tirar uma foto, e neste momento apareceu um senhor bigodudo bonachão aparentando uns 60 anos, com pinta de “gringo”, seguido de um menino. Falando um bom português, o canadense Norman me perguntou o que eu estava fazendo e me ofereceu uma de suas casas, que alugava para turistas. Fez um preço muito especial, apenas R$ 20,00. A casa era espetacular, impecavelmente limpa, com uma varanda enorme e aconchegante. Uma casa completa só pra mim. Afinal, às vezes um pouco de conforto não faz mal a ninguém. Mais tarde, Norman voltou e bateu à minha porta. Estava com livros e uma quantidade enorme de mapas nas mãos. Começou falando que já havia viajado todo o continente americano várias vezes em seu trailer e no momento estava vivendo em Barra do Chuí. Pegou meu mapa da Patagônia e fez inúmeras anotações sobre lugares interessantes para visitar e também me deu uma lista grande de campings grátis e parques nacionais, especialmente em território argentino. Passou também, muitas informações sobre a Patagônia e fez uma recomendação de um ótimo camping municipal na cidade de Santa Lucia, no sul do Uruguai. Me emprestou, por uma anoite, um guiae de viagem sobre América do de Sul.vida Empolgado me ajudar compartilhar suaa experiência comigo, disse que seu lugar preferido das Américas era o Brasil e que iria permanecer por muito tempo ali, segundo ele, “até cansar do lugar”. Já havia percorrido todo o litoral brasileiro e acabou se apaixonando pelas praias brasileiras. Ficou em Barra do Chuí porque encontrou bons negócios e principalmente tranquilidade. Fiquei muito grato por todas as informações compartilhadas, afinal eu sabia muito sobre os caminhos – . Acho que este lugar foi um dos pouco mais tranquilos que visiteivindouros durante toda a viagem. Tive vontade de ficar mais tempo, mas no fundo estava louco para entrar definitivamente no Uruguai. No dia seguinte, tomei café-da-manhã com Norman e segui meu caminho rumo a fronteira. Voltei ao Chuí, fui até a última – ou primeira – agência do Bradesco e assim que cruzei a fronteira, além de ir a uma casa de câmbio, onde troquei R$ 600,00 em pesos Uruguaios, quantia com a qual eu havia planejado cruzar todo o país, o que é mais que suficiente, pois o Uruguai é um país bem pequeno. O câmbio estava mais ou menos dez para um, ou seja, cada real me renderia cerca de 10 pesos Uruguaios. ~ 51 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Poucos minutos depois, cheguei à aduana Uruguaia. Como meu passaporte estava bem no fundo da bagagem, resolvi usar apenas minha identidade – um acordo entre os países membros e parceiros do MERCOSUL garante o direito de ingresso aos países somente com a carteira de identidade, o que garante, na maior parte dos casos, 90 dias de permanência. Não há burocracia alguma e poucos minutos depois eu já estava portando um documento que me dava o direito de permanecer no Uruguai. Esta foi a primeira vez que saí do meu país. Por ironia do destino, o fazia de bicicleta! Até então isso era a coisa mais demente e insensata que havia feito na vida. Mas era tudo que queria e meu coração me dizia que este era o caminho certo a seguir.
Fotos do capítulo 1: www.trilhasulamericana.com.br/1
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A
pesar do calor eu estava muito animado. Finalmente estava seguindo por estradas de fora do país. Não posso dizer que houve uma mudança drástica. A impressão que eu tinha era de uma transição suave de um país para o outro. A mesma pampa e o mesmo povo do sul do Brasil. A única coisa que me fazia lembrar onde estava era a língua. Naturalmente, no norte e leste do Uruguai, tão acostumados a receber visitas de brasileiros, todo mundo acaba entendendo um pouco de português. Bom para mim, pois não falava quase nada de espanhol até o momento. Hugo
Ao passar pela rodovia vi uma placa que dizia: “Fortaleza de Santa Tereza”. Não sabia nada sobre esta região e meu mapa era extremamente simples, contendo somente as principais cidades uruguaias. Então, resolvi explorar o lugar apesar do calor terrível que fazia. Ao sair da rodovia principal e ingressar ao caminho à tal fortaleza, pude ver do que se tratava. Poucos quilômetros à frente havia um enorme e lindo forte. Era realmente uma visão intimidadora no horizonte. Quando me aproximei um pouco mais da da fortaleza meEra deparei com uma moto muito bonita estacionada à frente entrada. uma velha moto BMW enorme e tinha placas do estado do Colorado, Estados Unidos. Paguei o barato ingresso e entrei na fortificação. Assim que entrei me deparei com um personagem totalmente incomum. Com um chapéu de couro, cabelos compridos, barba, cheio de colares e vestindo uma roupa surrada. Tinha uma enorme câmera de vídeo e uma câmera fotográfica. Eu disse que vinha do Brasil e perguntei se ele era o dono da moto e se vinha dos Estados Unidos. Então ele me disse: - Ah, então podemos falar português! Sou argentino, mas vivi três anos com uma tribo no interior da Amazônia. - Você mora na Argentina? - Mais ou menos. Não tenho residência fixa. Eu trabalho para o Discovery Channel ! –me disse orgulhoso. - Você esta indo para onde? - Punta del Diablo e você? –respondeu. - Eu também.
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- Bom, podemos marcar de nos encontrar lá e conversar mais. O que você acha? - Ótimo, mas vou chegar muito depois de você, com certeza. - Lá tem um restaurante muito bom e barato chamado “Capitán Gancho”. Estarei lá às 9h da noite. - Ok, até lá então! –eu disse e ele se foi. Continuei minha visita ao forte. Foi realmente impressionante. Havia canhões por todo lado, uma capela, um museu com armas e armaduras, alguns objetos de uso da época, roupas religiosas e até uma pequena sala de tortura que continha alguns mecanismos bem sinistros. Depois de 58 quilômetros cheguei à primeira cidade uruguaia. Um lugar totalmente “zen”. Punta del Diablo não tinha nada de “diablo” e era um lugar extremamente tranquilo. Talvez porque a temporada de verão ainda não tivesse começado. Parei num bar para tomar um refrigerante e descansar um pouco. Em seguida fui em direção à praia. Na praia acabei conhecendo dois fotógrafos de Nova York, que ficaram muito interessados em minha história. Tiraram várias fotos minhas. Em seguida me sentei num tablado que havia na praia. Quatro jovens uruguaios se aproximaram e então perguntei se podia me juntar a eles. Eram dois rapazes e duas garotas, todos muito simpáticos. Com partilhamos um autêntico mate uruguaio durante quase uma hora sentados na areia.atéFaziam todo tipo o Brasil. que As meninas falavam bem alguma coisadedeperguntas português.sobre Disseram-me assistem as novelas brasileiras e quando o fazem pela parabólica, podem assistir em português. Também cantaram muitas músicas brasileiras. Tentava me comunicar como dava com meu pobre portunhol, mas isso não é uma barreira tão grande assim em países de língua espanhola para um brasileiro. Marcos
Ainda não fazia ideia de onde iria me hospedar. No momento minha única preocupação era curtir um pouco a belíssima praia de Punta del Diablo. O pessoal acabou indo embora e fui caminhar nas pedras próximas à praia. Neste momento, enquanto fazia umas fotos um casal puxou papo comigo. Era o uruguaio Marcos e sua esposa. Na mesma hora ele me disse que, se eu quisesse, poderia me hospedar em sua casa. Disse que tinha um lugar simples, mas muito confortável para pernoitar. ~ 55 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Falavam um pouco de português também, como quase todas as pessoas que encontrei por ali. Anotei seu endereço e disse que provavelmente ficaria em sua casa. Segui a procurar um restaurante e acabei comendo uma pizza num lugar próximo à praia. A cidade parecia um lugar totalmente alternativo, meio hippie, algo assim... Ruas de areia e um pouco desorganizado, mas limpo e tranquilo... Alguns turistas iam e vinham a todo o momento. Havia muitos norte-americanos, brasileiros e franceses ali. Denis
Foi então que olhei para a rua e vi alguém caminhando enquanto empurrava uma bicicleta cheia de bagagem. Na hora não dei muita atenção, mas logo em seguida ele me viu e veio conversar. Seu nome era Denis, brasileiro, e me disse que estava viajando pelo mundo há oito anos! Disse-me que visitou todos os países europeus e que viveu por lá muitos anos. Viajando de “polo a polo” ele dizia: “De Ushuaia à Noruega”. Agora vinha da Patagônia argentina e tentava chegar ao Brasil. Denis não viajava com muitos recursos financeiros. Disse-me que eventualmente buscava trabalho para continuar sua viagem. Olhando sua bicicleta ficouextremamente claro que elecarregada! deveria mesclar carona com pedalada. Era uma bicicleta Embora eu estivesse seguindo para o sul e ele para o norte, achamos conveniente ficarmos juntos ali em Punta, desta forma poderíamos acampar com mais segurança. Às 9h da noite, fui ao encontro de Hugo no restaurante “Capitán Gancho”, onde havíamos combinado. Denis me acompanhou. Quando cheguei ele já estava lá com toda sua parafernália de foto e vídeo. Ele parecia umpele personagem tipoe Indiana com suaFez roupa surrada, mais chapéu, queimada do de sol um ar deJones, tranquilidade. um vídeo meu e de Denis. Fazia questão de colocar sua enorme câmera de vídeo com um adesivo com “ Discovery Channel ” à vista de todos – até hoje eu não sei se realmente ele era um repórter do Discovery. Sentamo-nos e começamos a conversar. Hugo ficou bastante im pressionado com as histórias de Denis também. Depois nos mostrou uma pasta cheia de fotos. Havia fotos de Hugo no topo do Aconcágua – montanha mais alta das Américas – e também em lugares como Zim bábue e Amazônia, onde viveu com os índios. Realmente se travava de um aventureiro. Na mesa atrás de nós havia uma família de canadenses,
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de Quebec, e logo Denis soltou um pouco de seu impecável francês com eles. Um dos principais pontos positivos de viajar é, sem dúvida nenhuma, poder aprender outra língua. Despedimo-nos de Hugo e seguimos rumo a casa de Marcos. Eu estava preocupado. Marcos havia convidado a mim e não a duas pessoas. Então abri o jogo com Denis e disse: “Cara, não sei se “rola” ficar com você lá. Sabe como é, ele não sabe de você.” Ele ficou tranquilo e disse que tudo bem se não fosse possível. Decidimos ver a reação de Marcos primeiro. Minha preocupação foi em vão. Ambos fomos muito bem recebidos. Fomos convidados a entrar numa espécie de garagem onde havia dois beliches. Passamos uma noite muito tranquila ali. Denis me mostrou um pouco de suas fotos de vários anos de viagem. Tinha uma coleção im pressionante de emblemas e fotos de mais de cem batalhões de corpo de bombeiros por onde havia passado em sua estada na Europa. Foi interessante passar essa noite com ele. Apesar de ele ser um pouco louco demais, pôde me passar um pouco da vivência na estrada. Eu ainda era um mero amador inexperiente. Denis, Marcos e eu
resolvemos ficar mais No umdia dia.seguinte O ambiente de Punta del Diablo era convidativo demais para sair com pressa. Aproveitei um dia na praia e à noite resolvemos acampar na varanda de uma casa à beira mar – a poucos metros do mar – que aparentemente estava desocupada há um certo tempo. Fizemos um churrasco, pois também havia uma churrasqueira ali. Acampar com Denis foi divertido. Ele me contou um pouco mais das suas “trapalhadas” pela Europa e falava com orgulho que era paulistano e torcedor do São Paulo Futebol Clube. Com seu boné do São Paulo ele dizia: “Ninguém, nem o Boca Juniors com toda sua pompa, chega perto da história deste clube! A hora de sair deste paraíso da tranquilidade estava chegando. Na manhã do dia seguinte eu e Denis fizemos umas trocas de algumas peças de roupa. Eu tinha uma calça que ele havia gostado e ele tinha uma camiseta de ciclismo muito bonita. Trocamos e acabei usando esta camiseta praticamente por toda a viagem. ~ 57 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Saímos de Punta e seguimos juntos até a estrada. No trevo da entrada da cidade nos despedimos. Denis seguiu para o norte, rumo ao Brasil e eu segui para o sul, rumo ao desconhecido. Pedalar pelo Uruguai é muito fácil. O terreno é sempre plano e não há, pelo menos não havia, ventos fortes. Apenas 41 quilômetros depois eu chegava à cidade de Castillos. Uma cidade tranquila a alguns quilômetros do litoral. Era a primeira cidade “comum” que eu visitava, ou seja, não se tratava de uma cidade turística típica. Aos poucos eu construía a imagem que passei a ter do país: um lugar extremamente tranquilo onde o tempo parece passar num outro ritmo. Assim que entrei em Castillos fui procurar algo para comer. Fiz uma parada numa padaria. Ainda era um pouco estranho me comunicar e como não dominava a língua tinha que abusar do famigerado “portunhol” que é amplamente usado pela imensa maioria dos turistas brasileiros. No meu caso era muito mais português que espanhol, mas a simpatia e a receptividade do povo uruguaio facilitavam demais minha vida. Esta noite passei num pequeno hotel no centro da cidade e pela primeira vez pude assistir um pouco da TV uruguaia e as novelas brasileiras dubladas em espanhol. No dia seguinte segui meu caminho pela estrada costeira até a importante Rocha. Cidade um pouco maior que Castillos, ainda assimcidade é um de lugar muito tranquilo e minha passagem por alimas foi igualmente calma. Passeei um pouco e fui a um restaurante, onde provei uma cerveja uruguaia. Uma coisa que me impressionou bastante foi a arquitetura. A parte central da cidade é cheia de construções antigas e muitíssimo bem conservadas. Na praça central da cidade encontrei um casal colombiano. Ficaram muito excitados com minha bicicleta e pediram para tirar uma foto comigo. Nesta parte da viagem, acho que comecei a me acostumar com o fato de estar sozinho. Às vezes me sentia realmente sozinho e aos poucos tive que me adaptar. Foi um grande aprendizado, principalmente quando ficava sozinho num quarto de hotel. Acho que o que me mantinha de pé era realmente a meta que tinha pela frente. Mariana, Teresa e Pablo
Agora, à minha frente eu tinha a famosa Punta del Este. Tudo que
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sabia sobre este lugar era que se tratava de um dos destinos mais visitados por turistas no litoral sul da América do Sul. O calor deu uma trégua e segui num ritmo forte para o sul. Logo cheguei a grande cidade de Maldonado. Aos poucos fui entrando na parte mais movimentada do Uruguai: o litoral sul. Maldonado é uma cidade agitada e a cruzei através de uma via expressa. O trânsito estava bem caótico, mas ainda assim fluía facilmente. Umas das coisas que mais me chamou a atenção foi o fato de boa parte dos motociclistas não usarem capacete. Mais alguns quilômetros à frente cheguei à belíssima Punta del Este. Fui direto à praia e pensei que não seria um lugar fácil. Extremamente turística, a cidade me assustou um pouco, apesar de ser linda. Era a primeira vez que visitava uma cidade deste porte fora do país. Pensava que seria uma daquelas passagens sem brilho, pois minha preocupação era principalmente os custos de hospedagem ali. Infelizmente, neste lugar eu não fazia ideia de onde iria me hospedar, não tinha um contato sequer nesta região e para piorar, meu espanhol ainda estava engatinhando. Foi então que deixei a preocupação de lado. Peguei minha câmera fotográfica. Tirei os tênis e fui à praia. Relaxei e deixei as coisas acontecerem. Por acaso havia chegado ao mais famoso ponto turístico de Punta del Este:seTratava-se mão na areia da praia, de onde vê apenas de as uma pontas dosgigantesca, dedos paraenterrada fora. Fiz umas fotos daquele dia de muito vento e ao voltar para a bicicleta, me deparei com três turistas que estavam ainda na areia da praia. Um deles me pediu que tirasse uma foto deles. Percebi que falavam francês. Eu ainda não falava sequer o espanhol, muito menos francês, mas um deles viu a bandeira do Brasil na bike e me perguntou em “portunhol” se eu era do Brasil. Este viria a ser um personagem e responsável pelo Sanches desenrolar de muitas situaçõesimportantíssimo durante a viagem, seu nome direto era Pablo e era equatoriano. Logo Pablo me apresentou seus dois amigos franceses, Amelie e Ian. Pablo falava bem o francês porque já havia estudado na França e “arranhava” no português porque havia iniciado sua viagem no Brasil. Tiramos uma foto de todos juntos sentados na areia da praia e logo nos despedimos. No momento que Pablo se despediu e seguiu caminhando. Pensei: “Poxa, já estou sozinho de novo. Preciso decidir o que vou fazer nesta cidade”. Mas então, sem aviso, Pablo se vira e grita: “Ei cara, quer vir com a gente?”. ~ 59 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Bom, deste momento em diante minha viagem tomaria um rumo totalmente influenciado por este convite. É incrível como fatos pequenos como este podem transformar completamente o rumo de uma história. Não consigo imaginar como teria sido a história da viagem se Pablo não tivesse dito esta frase. Alguns minutos depois e Pablo estaria me apresentando o primeiro hostel da viagem! Essa foi sua principal contribuição em relação à minha viagem. Uma contribuição importantíssima. Hostels ou “Albergues da Juventude”, como são conhecidos no Brasil, são lugares muito especiais. Você paga muito menos que em um hotel e compartilha seu quarto com outras pessoas. Há cozinha e geralmente internet. E o melhor de tudo, são lugares perfeitos para se conhecer gente. Nem sequer imaginava um lugar assim. Não fazia ideia que existiam. Como todo bom brasileiro que nunca havia viajado, pensava que “albergue” era coisa para mendigos. Apaixonei-me pelo lugar assim que entrei. Todos diziam que parecia “casa de avó”. Um lugar tranquilo onde ninguém fica dizendo o que você tem que fazer. Os quartos eram mistos e cheios de turistas de todo o mundo. Era a primeira vez que visitava um lugar assim e também a primeira vez que tinha contato com estrangeiros nessa quantidade. Tive então queque tirarserve da gaveta aquelecoisa. inglês às “internacional” vezes a gente acha que não tem, mas para muita O que inglês é inevitável e é comum ver espanhóis falando com franceses em inglês, por exemplo, embora isso me pareça um pouco estranho. O mais interessante de lugares assim é que a grande maioria das pessoas está totalmente aberta a conhecer outras pessoas. Não estão ali somente por conta dos preços atrativos, mas também por causa da possibilidade de intercâmbio com diferentes culturas e idiomas. Depois instalado eu járealmente estava adorando a cidade. uma volta a pé pelos de arredores e fiquei impressionado comDei a beleza da cidade. Um lugar tranquilo e organizado, mas ao mesmo tempo extremamente turístico. Pensei: “Acho que isso aqui vai ser bem divertido”. Agora já tinha amigos. Com Pablo, principalmente, tive uma empatia muito forte desde o início. Mais tarde fui tomar um banho, e pelo caminho do corredor cruzei com uma garota muito bonita, enrolada numa toalha e com uma tatuagem no alto das costas. Não sei se fui eu ou ela primeiro, mas acabamos nos saudando em inglês. Ela me parecia “gringa” e pelo que parece ela deve ter pensado que eu era europeu, já que a maioria das
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pessoas que eu tinha visto até então não era de países próximos. Tivemos uma conversa rápida: - The shower is hot? (O chuveiro é quente?) - perguntei - Ah, Yeah, hot enough. (É quente o bastante) - I really need take a shower! (Eu preciso muito de um banho!) Já estava há uns dois dias sem banho. E o calor não estava dando mole. Depois ela me perguntou: - Do you know how I can turn off that light? (Você sabe onde posso apagar essa luz aqui?) - I’m sorry, I just arrived! (Desculpe, acabei de chegar!) Somente depois de alguns minutos resolvi perguntar de onde ela era: - Excuse me. Where are you from? (Com licença. De onde você é?) - Brazil! –me disse. Era brasileira! Eu ainda disse: “Me too” (Eu também), mas antes que conseguisse dizer qualquer outra coisa caímos na gargalhada. Foi assim que conheci a simpática e bonita carioca Mariana Oliveira. Começamos de uma forma muito divertida e incomum. Logo no meu primeiro dia já havia “descolado” mais uma nova amiga. Mais tarde a convidei para comer. Ela já tinha comido algo, mas resolveu me acompanhar até um restaurante. Sua companhia estava muito agradável e foi a primeira vez que falei de como estava me sentindo emocionalmente em relação à viagem. bre viagens e de como era estar viajandoTivemos sozinho.uma longa conversa soMariana havia chegado de Buenos Aires e estava de férias. Era sua primeira viagem sozinha – no autêntico estilo “mochilão” –, e como era de se esperar e é comum entre viajantes solitários, ela estava gostando muito da nova experiência. Também ficou muito entusiasmada ao ouvir minhas histórias. Afinal já estava na estrada há mais de 40 dias e já tinha algo para contar. foi totalmente às avessas! Ele, paulista, encontra carioca Nosso - eu! - encontro e tenta arriscar um inglês para saber se há água quenteuma no chuveiro! Apesar de toda essa confusão, a mistura deu certo. Punta del Este era a última parada da minha viagem, mas apenas o início da dele. Divertimo-nos muito, nos identificamos e criamos uma amizade que pretendo levar para o resto da minha vida. Conhecer suas histórias, só me incentivou a querer aproveitar a vida, a conhecer o mundo e, principalmente, outras pessoas. Nosso encontro me ajudou a me libertar do sentimento de dependência dos outros. Mesmo tendo viajado desacompanhada, não me senti sozinha em nenhum momento. O que comprova que a amizade, literalmente, não tem fronteiras. Mariana Oliveira ~ 61 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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De volta ao hostel conheci a figurativa baiana Teresa. Uma moça que me cativou pela sua extrema autenticidade e por seu sorriso. Era uma maravilha escutar aquele sotaque baiano depois de cruzar o sul do Brasil e metade do Uruguai. Nossa turma estava crescendo e logo conhecemos um argentino a quem chamávamos carinhosamente de “Maradona”, dois paulistas que estavam no meu quarto e duas garotas inglesas, das quais eu não entendia sequer uma palavra que diziam por conta de seu forte sotaque. Uma das coisas que mais gostei em Punta del Este foi a noite. Bares e discotecas com entrada franca, boa música e gente animada e bonita. Estava viajando de bicicleta, mas nem por isso deixava de ter uma vida social às vezes e curtir a noite quando tinha uma oportunidade. Numa dessas noites saímos todos juntos e depois de uma “balada” ótima, e em plena madrugada, tomamos um ônibus até a cidade vizinha de Maldonado. Estávamos procurando algo diferente. Não conhecíamos absolutamente nada e nem mesmo sabíamos se era um lugar seguro. Ninguém estava preocupado. Descemos em Maldonado e ficamos perambulando pelas ruas durante a madrugada até entrar num bar qualquer para beber e jogar sinuca. Éramos um bando de turistas perdidos no meio de uma cidade comum pudemos provar e conhecer um pouco do povo uruguaio uruguaia, fora dos eixos mais turísticos. Para mim, e creio que para os outros também, estar ali, cercado de autênticos jovens uruguaios era incrível. Este tipo de experiência não se compra em “tours” ou pacotes de viagem. A partir deste momento passei a buscar cada vez mais lugares como este. Todos sempre ficavam muito excitados ao saber que havia cinco brasileiros no grupo e nos enchiam de perguntas sobre o Brasil. Estava interessantíssimo estar com os “brazucas” e também com Pablo e suas histórias. Pablo e eu já éramos praticamente amigos, mas havia um tema no qual não entrávamos num acordo: Mariana. Ele gostou muito dela e confesso que eu também! Seu sotaque carioca, nem tão neutro e nem tão marrento, e seu sorriso nos deixavam literalmente de boca aberta. No dia seguinte eu queria seguir viagem. Arrumei toda a bagagem, fiz uma pequena manutenção na bike e o checkout no hostel . Tomei o café da manhã e coloquei a bicicleta para o lado de fora. Sentia uma sensação de estar saindo sem vontade. Parecia que ainda não era hora de ir embora e então Pablo, Mariana e Teresa decidiram ir à praia e me
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convidaram. Que obrigação em partir eu tinha? Decidi cancelar minha saída e ficar mais um dia, foi bem engraçado. Fomos à praia. Ficamos num lugar chamado “La Boca”, que não era bem uma praia, mas sim um lugar com água calma e rasa, onde pudemos nos banhar. Dizer que a água da costa uruguaia estava quente é uma grande mentira. Sempre muito fria, mas tudo era motivo de festa e todos se renderam ao mar. Fizemos um castelo de areia enorme. Foi um dia inesquecível na companhia de meus novos amigos. À noite visitamos um cassino enorme. Era a primeira vez que eu entrava num cassino. Não joguei, mas comprei uma moeda por um dólar para guardar de recordação. Foto: Eu, Mariana, Teresa e Pablo
Mais tarde, em meu site, escrevi: “Nossa amizade de três dias é como o castelo de areia que fizemos em La Boca. Ficou muito bonito e talvez dure somente até a próxima maré... ou talvez dure pra sempre! Quem sabe?”
Punta del Este faz parte de uma pequena lista de lugares para os quais tenho que voltar um dia. É uma daquelas lembranças que se destacam e que deram brilho à minha viagem. Obrigado Punta! No dia da minha partida, Teresa me presenteou com um guia de viagens da América do Sul e escreveu uma mensagem na capa do guia, que dizia: “Thiago, este guia te acompanhará levando contigo meu desejo de aventura. Divirta-se e aprenda!”
Teresa Bahia - 13 de dezembro de 2008
Ainda pela manhã me despedi de Pablo, que seguiu caminhando com seus amigos franceses. Mariana, Teresa e eu acompanhamos Pablo com os olhos até que virou a esquina. Depois foi a minha vez. Depois de dias maravilhosos ali, tive que organizar minha bagagem novamente. Sempre foi muito estranha a hora da partida. Dei um abraço forte em Mariana e Teresa e segui. Podia sentir o olhar forte de Teresa, me desejando sorte, enquanto me afastava. O sentimento que tinha em momentos assim é extremamente ~ 63 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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difícil de descrever. Ao pisar na rua de novo, ao sair da cidade e entrar na rodovia, sentia uma mescla de coisas que faziam um barulho tremendo dentro da minha cabeça. Era medo, confusão, excitação, preguiça, espírito de aventura, enfim, uma mescla louca de sentimentos. Acho que estes momentos eram o que realmente me mantinham na estrada. Faziam-me sentir vivo como nunca antes havia sentido. O sangue borbulhava. No quadragésimo sexto dia, Punta del Este ficou para trás e talvez este tenha sido o ponto em que definitivamente “despertei” para o que estava fazendo. Ansiava por mais momentos agradáveis como os que havia vivido em Punta. Estava começando a abrir a caixinha surpresa – a viagem – que tinha nas mãos e dando uma espiada dentro em busca de... mais surpresas, mas eu iria ter que ser paciente. Só descobriria uma de cada vez! Texto escrito por Teresa, especialmente para o livro: Assim o vi partir: franzino e com a bicicleta pesada. As lágrimas tomaram conta dos meus olhos. Como gostaria de acompanhá-lo! Teresa Bahia Onde a vida ainda é vida
Seguia pedalando através daquele dia de sol escaldante do sul do Uruguai através da “Ruta interbalnearia”. Pelo litoral podia ver o mar e passei por várias entradas de balneários lindos da região. Creio que tenha me precipitado um pouco com minha pressa neste trecho e hoje penso que talvez tivesse sido muito proveitoso se tivesse visitado mais praias desta parte. Às vezes fico pensando em tudo que poderia ter acontecido num determinado lugar se o tivesse visitado. Num determinado momento encostou um carro, um homem desceu e fez um “T” com as mãos, como um pedido de tempo, para que eu parasse. O brasileiro Pietro ficou muito entusiasmado ao saber que eu também era brasileiro. Disse-me que vivia no Uruguai há muitos anos e era dono de uma pousada chamada Kururú numa das praias próximas. Após alguns minutos de conversa ele me presenteou com 1000 pesos uruguaios, o equivalente a cerca de R$ 100,00 e disse: “Hoje seu almoço é por minha conta!”. Agradeci e disse que me sentia encantado com a tranquilidade e com as belezas naturais do seu litoral. Então ele definiu o Uruguai em uma frase: “O Uruguai é um desses cantinhos do mundo onde a vida ainda é vida. Aquele tipo de lugar de que ninguém
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fala, mas que não precisa de publicidade”. Era a frase que eu vinha buscando nos últimos dias. Para mim foi a melhor definição que podia ouvir e concordei totalmente. Senti exatamente isso nos poucos dias que estive neste país. Realmente este país havia me mostrado uma tranquilidade impressionante e apesar de muito pequeno, era encantador. Parece que o tempo tem realmente outro ritmo neste lugar. Isso, de certa forma se refletia em meu estado de espírito. Ao mesmo tempo que ficava mais longe de casa e me sentia mais livre, também me sentia extremamente tranquilo. Este pais é muito mais que um paraíso fiscal! Uns 20 quilômetros antes de chegar à capital Montevidéu parei num posto de combustíveis para comer algo e então encontrei um senhor paulista que estava viajando pelo Uruguai de moto sozinho. Fiz uma foto dele e aproveitei para perguntar algumas coisas sobre a cidade. Dia 46, 2356 km pedalados Montevidéu, Uruguai
Conforme fui me aproximando ficou claro que era uma cidade grande, principalmente para os padrões uruguaios. A zona metropolitana de Montevidéu tem aproximadamente milhão de habitantes, o que representa aproximadamente a metade da1,7 população uruguaia. Seguindo pela via expressa o que mais me assustou foi uma quantidade enorme de fumaça no ar. Boa parte da frota de automóveis é a diesel e isso aumenta consideravelmente a poluição local, mas como a cidade está perto da costa a fumaça é facilmente dissipada e desaparece longe das vias expressas. Cheguei ao centro da cidade num ritmo forte. Estava feliz de haver chegadomas à capital primeira vez. Até ali percorri 140 quilômetros, apesar uruguaia disso mepela sentia bem, estava muito bem físicamente. A cidade é movimentada, totalmente distinta das outras capitais que visitei. Extremamente peculiar. Fica difícil fazer qualquer tipo de comparação pois o lugar me pareceu único. Obviamente, se tratando de uma capital sulamericana deve haver criminalidade, mas acho que foi a capital que mais me passou segurança em toda a viagem. Não podia acreditar que aquela atmosfera calma daria lugar a qualquer tipo de violência. ~ 65 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Logo chegava à praça da independência, bem no centro da cidade. Neste momento percebi como meu espanhol não me servia para quase nada. Falava só o básico e quando precisei de informação, ninguém me entendia muito bem. Como alguém pode perguntar o endereço de algum lugar ou o nome de uma rua sem saber que rua é calle e endereço é direccíon? Nem os deuses do portunhol poderiam me salvar! Apesar de tudo, as pessoas tentavam me ajudar e foram muito educadas quando fazia minhas perguntas enigmáticas. Tudo que queria era saber onde ficava o Hostel International de Montevidéu. Por conta de meu espanhol extremamente básico demorei meia hora para encontrar o lugar. Inclusive, enquanto buscava, cheguei a passar inúmeras vezes à frente do local. Acabei me hospedando num hostel chamado Che Lagarto e não no International, mas o lugar era incrível. No meu quarto havia uma moça alemã e uma outra, creio que americana, que somente aparecia de manhã para dormir e passava toda a noite fora. Havia um grupo de brasileiros que estava viajando de carro desde Curitiba e como todos, eles ficaram muito espantados em saber que eu estava viajando de bicicleta. Um deles era estudante de medicina e iria se especializar em ortopedia. Quando contei a ele sobre as dores que havia sentido no joelho no início da viagem ele confirmou que havia uma grande possibilidade de ser tendinite, como eu pensava. Fiquei somente duassomente noites uma em Montevidéu e apesar de ser uma cidade muito agradável, minha passagem por ali não teve muito brilho. Na hora da saída da cidade resolvi seguir rumo ao norte, rumo a cidade de Canelones. Assim, por um breve momento abandonaria a rota litorânea. A saída da cidade foi fácil e poucos minutos depois de começar a pedalar já estava fora da cidade. Meu plano era visitar a cidade de Santa Lucia só para conhecer o municipal quePassei o canadense havia me recomendado camping ainda na Barra do Chuí. direto porNorman Canelones e segui rumo a Santa Lucia. Realmente o camping era fabuloso, exatamente como Norman havia descrito. Talvez um dos melhores campings que estive em toda a viagem. O Caminho até Colonia del Sacramento
Saí de Santa Lucia e não sabia exatamente a distância que teria até Colônia del Sacramento, que seria a última cidade uruguaia que visitaria e que seria meu ponto de partida à Argentina. A única coisa que
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sabia era que seria possível tomar um barco até Buenos Aires, cruzando a foz do Rio da Prata. Meus R$ 600,00, ou melhor, meus 6000 pesos uruguaios, já estavam quase acabando. Tinha gastado bastante em Punta e Montevidéu. Tinha somente uns trocados para almoçar e percebi que não teria outra escolha além de ir direto à Colônia. No caminho não encontraria cidades grandes e consequentemente casas de câmbio, o que deixava irrelevantes os 1000 dólares em notas de 100 que levava na bagagem. Obviamente nenhum restaurante de beira de estrada trocaria uma nota de 100 dólares. No Uruguai não existem grandes churrascarias na estrada como no Brasil. Existem somente pequenos e extremamente simples restaurantes familiares, ou seja, nem mesmo meu cartão de crédito seria útil. Depois de Santa Lucia fiz uma parada num modesto restaurante nas proximidades da cidade San José de Mayo para comer algo e enquanto comia um senhor gritou: - Ah mira! Hay otro ciclista! Havia outro viajante ciclista passando a frente do restaurante e pude vê-lo de relance. Estava tão cansado por causa do calor que nem me apressei em tentar falar com ele. Quando saí do restaurante, em meio ao sol escaldante, ele já havia desaparecido. Meu dia de luta estava só começando. Depois do almoço o calor aumentou e deveria algo próximo dos 40º, e quando passei por um pedágio, já estar com fazendo 70 quilômetros pedalados, fiquei sabendo que teria mais exatos 70 quilômetros quando vi uma placa. Neste momento tive que estabelecer a meta na cabeça. Somente desta forma conseguiria percorrer 140 quilômetros naquele calor insuportável. Coloquei meus fones de ouvido e, ao som de Infinita Highway, dos Engenheiros, segui sem questionar a situação. Não estava tão ruim assim. De fato estava desfrutando a paisagem e o fato de pedalar por estradas tranquilas não me causava qualquer tipo decom preocupação. depois o caminho Nesta ficou um pouco complicado, um longoSomente trecho sem acostamento. hora optei por seguir pela contramão, às vezes até atrapalhando um pouco o tráfego. Estava tão concentrado no fato de ter um longo caminho a percorrer que acho que me arrisquei um pouco. Queria chegar, me alimentar e descansar. No final, até a entrada de Colonia del Sacramento, percorri exatamente 150 quilômetros. Novamente quase cheguei ao limite físico. Quando cheguei à parte central da cidade fui logo gastar meus últimos trocados para comer um lanche enorme. Depois segui para um hostel . Estava precisando de um bom banho e uma cama. Novamente o ~ 67 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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ambiente do lugar era incrível, mas creio que já estava me acostumando e já não dava tanta atenção ao fato de estar cercado de turistas o tempo todo. Ali conheci outro grupo de brasileiros. Até chegamos a fazer um pequeno churrasco juntos e depois eles me passaram o endereço de um hostel em Buenos Aires chamado Rancho Urbano. Este passaria a ser o único endereço que teria na capital argentina. O dia seguinte todo passei em Colonia. A cidade é da época da colônia e sua arquitetura é fantástica. Caminhei vários quilômetros visitando alguns pontos turísticos. Um fato curioso é que esta região já pertenceu à colônia portuguesa e espanhola, então é possível notar muito a influência de ambas as culturas, embora não sejam muito diferentes. Um bom exemplo é o calçamento das ruas. Disseram-me que as ruas planas são espanholas e as ruas arredondadas são de origem portuguesa, mais eficientes para escoar a água da chuva. Outra coisa muito visível são os azulejos, que existem por todos os cantos nas fachadas. Nesta cidade, minha passagem pelo Uruguai chegou a seu fim. Foi rápida e tranquila. O que mais me impressionou neste trecho foi justamente a atmosfera deste país. Foram somente 12 dias, mas certamente é um lugar que jamais esquecerei. Tampouco me esquecerei do calor dos dias que antecediam o verão. Pude visitar desde os pontos mais turísticos até lugares parte dos pacotes de viagem. Do que altonão de fazem um farol turístico em Colonia já podia observar, de forma tênue, os edifícios de Buenos Aires, do outro lado da foz do Rio da Prata, a mais de 40 quilômetros de distância. Minha ideia era fazer o caminho que a imensa maioria das pessoas faz para seguir do Uruguai para a Argentina. Cruzando a foz do Rio da Prata evitaria uma enorme volta por terra. Cruzar a foz do imenso rio foi tranquilo. O processo foi simples e sem burocracia. mais difícil foi conseguir colocar a bicicleta com toda a bagagem dentroOdo enorme Ferry Boat . A cada minuto podia ver Buenos Aires ficando maior na janela. Uma visão impressionante!
Fotos do capítulo 2: www.trilhasulamericana.com.br/2
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Dia 51, 2587 km pedalados Buenos Aires, Argentina Mi Buenos Aires querido!
Q
uando desci do Ferry , já do lado argentino, me senti deslocado e sozinho. Mil coisas passaram pela minha cabeça assim que toquei o asfalto da rua em frente ao porto. Era a primeira vez que pisava na Argentina e já tinha a pretensão de cruzá-la quase inteira! Por alguns segundos, antes de iniciar a pedalada “sem destino definido”, parei e olhei ao meu redor. Pensei: “Estou em Buenos Aires e cheguei aqui de bicicleta”. Então um breve e tímido sorriso de satisfação surgiu em meu rosto. Está certo que não havia cruzado um quilômetro sequer em solo argentino, mas achei interessante ter a capital federal como ponto de partida. Ao mesmo tempo era um êxtase e um grande desafio. Para onde deveria seguir? Tinha o endereço do hostel numa avenida chamada Corrientes, a qual já sabia que se tratava de uma das principais da cidade, mas antes de procurar, decidi visitar um dos principais símbolos da cidade e do país: a Casa Rosada. Depois perambulei um pouco pelo centro até chegar à avenida que procurava cerca de uma hora mais tarde. No caminho cruzei com com um japonês quemas tinha umaestava bicicleta típica de longas viagens. Não estava bagagem, a bike preparada para isso e sua aparência deixava claro que não era dali. Por mais incrível que pareça, nós não conversamos. Passamos um ao lado do outro e apenas acenamos. Foi engraçado, mas estava louco para chegar a um lugar mais calmo. Quando enfim encontrei o endereço foi um alívio. Queria sair o mais rápido possível daquele caos urbano, seu barulho e fumaça.
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Como sempre, conheci muitos turistas no hostel e inclusive me convidaram para uma festa, mas estava querendo descansar. Havia um inglês totalmente louco hospedado lá. Toda hora ele me perguntava se eu estava louco e se achava normal alguém vir a Buenos Aires de bicicleta desde o Brasil. Perguntava: “E as suas bolas, cara?!” Uma figura muito engraçada. O encontro com Vincent Degove
No segundo dia em Buenos Aires eu já estava instalado. Ainda não sabia quantos dias permaneceria na cidade. Ficar sozinho numa cidade grande assim não é fácil. Posso ficar sozinho no campo ou num lugar deserto durante dias, mas ficar sozinho numa cidade grande ainda era um sacrifício tremendo para mim. Ficava deprimido rapidamente. Além do mais, aquele calor de inicio de verão numa cidade daquele tamanho já estava me estressando. Foi então que fui acessar meus e-mails e havia uma mensagem de um tal de Vincent Degove. Me dizia num português razoável que havia iniciado sua viagem de bicicleta no Rio de Janeiro e ao passar pela Reserva Ecológica do Taim, no extremo sul do Brasil, havia conhecido uns bombeiros da reserva que o passaram o endereço do meu .A mensagem que segue está escrita exatamente como Vincent me website escreveu: sábado, 20 de dezembro de 2008, 11h56min Olá, Muito prazer de conocer seu viagem e seu site! Sou francês e estou fazendo exactamente o mesmo viagem de bicicleta em America do Sul. Comenze em Rio de Janeiro e viaje ao largo da costa, passando pelo Uruguay. Estou agora em Buenos Aires, Argentina. Gente me falou de você durante minha viagem, por ejemplo na reserva ecologica do Tain, cerca da frontera BrazilUruguay... Seria possivel de vernos em Buenos Aires, para falar, e quizas fazer uma parte do viagem juntos? (tambem vou até Patagônia). Chao, Vincent Degove Buenos Aires: Hostel Inn, Humberto Primo 820, San Telmo
Ele queria me encontrar. Achei realmente uma coincidência incrível, mas no momento não dei muita atenção. Queria dar uma volta e caminhar um pouco pelas ruas de Buenos Aires. Gosto de caminhar sem rumo por um lugar desconhecido. Geralmente faço isso até me perder! ~ 71 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Na rua descobri que cartão é tarjeta e fui comprar um. O dono da banca foi legal comigo e disse: “Cuidado com essa bolsa aqui em Buenos Aires, hein!” Não consegui fazer o cartão funcionar. Depois de perder um bom tempo no orelhão - que estava lotado de anúncios de prostitutas e afins - desisti. Voltei ao hostel e então consegui usar o cartão pra ligar pra casa. Queria dar um alô porteño . Queria falar com meus pais e com Renata. Era aniversário dela. Respondi o e-mail de Vincent, passei o endereço de onde estava hospedado e perguntei se havia problema se seguíssemos falando em português. Num segundo e-mail, me disse que viria me visitar. Disse também que em seu hostel ele conheceu uma francesa e um equatoriano que eu havia encontrado em Punta del Este, no Uruguai. Às vezes é incrível como este mundo é pequeno. Minha viagem está cheia de encontros, desencontros e coincidências absurdas. Deixei o texto como foi escrito por Vincent: Olá Thiago, Nenhum problema pra entender o português, mas muito mais dificultades para escreverlo bêm! Vou ir a seu hostel numa hora o dois mais o menos, esperando que você esta lá. Não se cuando vou partir, quizas vou ficar em Buenos Aires para o Natal para pasarlo com unos amigos, quizas vou pegar a ruta [estrada] antes... Em meu hostel tem uma francesa e um ecuatoriano que me falaram também de você, que encontraram em Punta del Este! Você é conocido [conhecido] ;-) Até mais, abrazo Vincent
Dei uma saída e então, ao voltar, um cara magro, de cabelos arrepiados e um jeito“Oi desengonçado veio falar comigo. Esticou a mão e disse em português Thiago, eu sou Vincent!”. Fiquei bastante surpreso, mas é claro que ele já me conhecia através das fotos do meu site. Neste momento acabara de conhecer meu com panheiro de viagem pelos próximos 45 dias. Mudei-me para o hostel onde estava hospedado Vincent, a quatro quilômetros de onde eu estava. Minha passagem solitária por Buenos Aires estava terminada e muitos bons acontecimentos estavam prestes a acontecer. Cruzar quatro quilômetros em pleno centro de Buenos Aires correndo como um louco de bicicleta atrás daquele francês foi talvez a maior aventura da viagem até então.
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Ao chegar ao hostel de Vincent encontrei o equatoriano Pablo, com quem havia feito uma amizade muito grande no Uruguai. Quando me viu disse: "Ah cara! É você mesmo!". Ainda estava no inicio da viagem, mas aos poucos estava descobrindo que encontros como esse ficariam pra sempre na memória. A noite de Buenos Aires é agitada. Todas as noites saíamos para pelo menos tomar uma cervejinha. Nestes momentos todo o esforço em economizar dinheiro vai por terra. Não queríamos nem saber se as ruas eram perigosas no meio da madrugada. Nós estávamos sempre ali, descobrindo os lugares mais inusitados de Buenos Aires. Estar conhecendo Vincent e ter reencontrado Pablo foram coisas marcantes na minha passagem pela capital argentina. Cintia e Priscila
No dia seguinte duas garotas muito assustadas chegaram ao hostel . Eu estava na recepção e percebi que algo errado havia acontecido. A moça loira me parecia “gringa”, mas a morena tinha algo de brasileira. Então deixei as "antenas" ligadas esperando escutar algo claro de português. Logo saiu um pouco de português e aí entrei na conversa. Quem é que não As quergaúchas ajudar duas bonitas?! Cintiagarotas e Priscila tinham acabado de serem roubadas. Estavam fazendo umas fotos num ponto turístico da cidade e um rapaz armado acabou levando um pouco de dinheiro, sua câmera fotográfica e todas as fotos que tinham de Buenos Aires. Elas ainda tremiam de susto, então eu disse: - Vamos sair pra fazer de novo as fotos que vocês perderam, ok? Elas adoraram a ideia e então, no dia seguinte, visitamos alguns lugares como a Casa o Obelisco, Café Tortoni e fizemos algumas fotos pelas ruas Rosada, da cidade que estavao muito tranquila no domingo. Não havia tráfego e estavam ocorrendo alguns eventos no centro da cidade. Mais tarde saímos pela noite de Buenos Aires. Agora éramos seis, pois havíamos conhecido outro brasileiro chamado André. Eu, Vincent, Pablo, Cintia, Priscila e André nos divertimos muito nesta última noite. Visitamos a bonita região do Porto Madero e acabamos a noite num outro hostel jogando sinuca até altas horas da madrugada. Na minha cabeça havia todo um continente para cruzar e sabia que teríamos que seguir, mas aproveitava cada segundo com essas pessoas. Não sabia quando teria momentos assim novamente. ~ 73 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Agora teria meu segundo companheiro de viagem. Sentia que estávamos ansiosos para conhecer a Argentina de verdade. A Argentina que existe fora de Buenos Aires e principalmente o povo que existe fora de Buenos Aires. Embora tivesse gostado muito da cidade, ainda tinha todo um país a cruzar. Cintia, Priscila, Pablo e Vincent, na noite de Buenos Aires
Como sempre, as despedidas não foram fáceis. Deixar para trás pessoas conhecidas em fácil para mim. momentos tão especiais nunca foi Havia chegado a Buenos Aires de barco, mas tinha que sair de bicicleta. "Obrigado Buenos Aires", eu dizia. Estava feliz de haver tido uma passagem tão tranquila, feliz e, sobretudo sem problemas, por esta cidade maluca. No primeiro dia com Vincent já estávamos começando de ressaca. Essa não foi a única vez que isso aconteceu com a gente. Difícil saber se éramos dois boêmios ciclistas ou dois ciclistas boêmios! Nosso próximo caminho seria pela costa argentina. Nossas ca beças estavam focadas em dois lugares: Mar del Plata e a grande aventura através da Patagônia que nos aguardava. Mas muitas surpresas nos esperavam pelo caminho. Palavras de Pablo – traduzidas do espanhol –, escritas para o livro: Pode ter sido o destino ou simplesmente as coisas da vida que nos fizeram encontrar. O importante é que vê-lo montado em sua bicicleta me surpreendeu, mas ainda não conhecia o verdadeiro propósito da sua viagem, até o momento em que começamos a interagir, e cheguei a entender o quanto impressionante era seu projeto. O admirável desta história é que quando nos encontramos, cada um de nós estava buscando seu próprio destino. O que mais admiro no Thiago são suas ambições e sua força para lutar pelo que realmente quer. Esta força que cada pessoa deveria ter para cumprir seus objetivos. A principio pensei que, para mim, seria impossível realizar algo assim. Ao analisar melhor a situação me dei conta que sim, poderia realizar se fosse uma de minhas aspirações.
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Penso que esta é a essência da vida, aprender a nos conhecer e a conhecer o lugar onde vivemos. Romper essas barreiras culturais e alguns tabus que ainda estão presentes. Saber que se pode contar com as pessoas, inde pendente de sua raça, cultura ou religião. Pablo Sánchez
Saímos de Buenos Aires em meio ao trânsito caótico. Logo seguíamos por uma das principais saídas da cidade rumo a La Plata. Ao passar pela belíssima cidade, decidimos seguir mais um pouco. Estávamos descansados e vivendo os dias mais longos do ano, pois nestas latitudes e próximo ao solstício de verão osOdias muitas horas de sol. queganham mais nos impressionou foi o fato de estarmos muito perto da capital argentina e numa região mais povoada que a maior parte do país e ainda sim estávamos cruzando uma região quase totalmente rural. Havia campos e mais campos a nosso redor. Vincent estava radiante. Estudante de Agronomia ele é um aficionado por agricultura e estava aproveitando sua viagem para aprender um pouco sobre este tema nas localidades por onde passava. Depois de 85 quilômetros, o fim de tarde chegou e então começamos a procurar um lugar para acampar. A melhor parte de estar acompanhado é o fato de poder acampar praticamente em qualquer lugar. Não estar sozinho possibilita muito mais segurança. Buenos Aires ficou para trás [...]. À nossa frente estende-se toda a América Latina. [...]. Parecemos aventureiros... Inspiramos admiração e inveja por toda parte”. Estou contente por deixar para trás o que chamam de civilização, e estar um pouco mais perto da terra. Diários de Motocicleta (Film Four, baseado em “Notas de viaje”, de Ernesto Guevava)
Encontramos um restaurante, mas estava fechado. Mesmo assim chamamos os donos. Ao lado havia umas árvores e um belíssimo grãmado, perfeito para acampar. Perguntamos aos donos se era possível acampar por ali e se era possível que nos vendessem algo simples para comer, mesmo o restaurante estando fechado. Foram extremamente simpáticos conosco. Na mesma hora nos disseram que iriam abrir o restaurante e preparar algo para comermos. ~ 75 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Olhava para a cara de Vincent e sua expressão era de surpresa extrema. Não podíamos crer em tamanha hospitalidade. Aqueceram uma “parrilla” – o churrasco argentino – e até trouxeram uma Quilmes. Então ficamos de papo um pouco. Durante a conversa, não me lembro de onde, mas surgiu o tema “Chile” e os argentinos aproveitaram para falar um pouco sobre seus “queridos” vizinhos. Certamente Vincent não gostou muito de escutar algumas coisas e disse: “Sou metade chileno, minha mãe é chilena!”. E então, por alguns segundos, fez-se o silêncio. Logo em seguida disseram: “Ah, mas é claro que não estamos falando mal de todos. Só de alguns!”. Foi bem engraçado. Colocamos as barracas no gramado. Estávamos muito bem alimentados e tranquilos, afinal novamente gente de bom coração havia nos ajudado sem pedir nada em troca, bom, pelo menos até perguntarmos o valor da conta. Assim que perguntamos sobre o preço do que havíamos consumido ficou claro o que estava ocorrendo. Disseram-nos que a “conta” seria de 120 pesos, o equivalente a um jantar completo para duas pessoas num bom restaurante. Nossa cara caiu! Toda aquela agilidade e paciência em nos ajudar vinham exclusivamente do fato de quererem o dinheiro de dois turistas. Foi decepcionante, como já estávamos as barracas tadas, resolvemos ficar. Já mas estava escuro e sair não com resolveria nossomonpro blema. Pagamos o que pediram e nos deitamos. Para mim, pessoalmente, faltou comunicação. Ainda não tinha argumentos em espanhol para demonstrar minha insatisfação, então minha postura foi ficar calado. Vincent estava mais irritado e foi reclamar. Perguntou ao dono do lugar se este era o preço habitual cobrado por ele. Então a pessoa respondeu: veitando de “Si nós.quieres, devolvo la plata”... Óbvio que estava se aproVincent é como eu. Faz questão de pagar, mas quer pagar o preço justo. Sair sem pagar não cabia em nossa postura. Não cogitávamos esta ideia. Achamos melhor deixar como estava para evitar maiores pro blemas. Afinal estaríamos dormindo em seu quintal. De manhã nos ofereceram um café da manhã. Imaginamos que já tivéssemos pagado, que o café já havia sido incluído na conta paga anteriormente, mas não! Tiveram a cara-de-pau de cobrar mais 25 pesos. Foi a primeira vez que alguém tentou me passar para trás na viagem. Sentia-me pessoalmente magoado com a situação. Eles foram tão
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absurdamente amáveis com a gente! No final acabamos aceitando aquilo como aprendizado e deste dia em diante passamos a perguntar o valor das coisas sempre com antecedência. Este fato apenas nos serviu para ficarmos mais atentos, mas em nada mudou em nossa postura com o querido povo argentino. Sabíamos que se tratava de um caso isolado, uma peça pregada pelo acaso que poderia acontecer em qualquer lugar, nada além disso. Para ser sincero, lições aprendidas, fizemos questão de esquecer completamente o ocorrido. Laura de Verónica
Seguimos nosso caminho. Ainda estávamos aprendendo sobre o ritmo de cada um. Pelo que percebi teríamos grandes possibilidades de conseguirmos ficar bastante tempo juntos. A companhia de Vincent era bastante agradável e sempre tínhamos muito assunto para conversar. Quando entramos na pequena cidade de Verónica fizemos uma parada num posto de combustíveis para comer. Ali tiramos nossa primeira foto com as bicicletas. Em seguida, uma moça parou seu carro e disse Vincent queviahavia parado porque achou que ele era um antigo amigo,a seu que não há muito tempo. Conversamos um pouco com a simpática Laura e então ela nos perguntou se já tínhamos onde nos hospedar por ali. Dissemos que ainda não sabíamos onde dormiríamos e então ela nos convidou a acampar nos fundos de um terreno de seu pai. Topamos e a seguimos até o lugar. Havia uma construção, como um depósito e ao fundo um gramado com uma mesa de madeira. Colocamos nossas barracas ali e Laura se foi. Disse-nos que voltaria mais tarde. terça-feira, 23 de dezembro de 2008, 23h43min Estou escrevendo da minha barraca aqui na cidade de Verónica, na Argentina. Não sei se o Boca Juniors foi campeão, mas acho que sim. Há muita festa nas ruas.
Em nossotudo acampamento resolvi umagíria: entrevista com Vincent. Respondeu em português e até gravar usou uma ~ 77 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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- Quero que você fale algo de improviso. Algo sobre você e sua viagem. - Ok... Bom, bom dia! Me chamo Vincent, sou meio chileno e meio francês, mas nasci e cresci na França, em Paris. Sempre quis fazer uma viagem de bicicleta pela América Latina e penso nisso desde os dezessete anos, agora tenho 22. Queria fazer com um amigo, mas ele não pôde. Estou na há dois de meses. Comecei viagem no Rio agora estamos aquiestrada na Província Buenos Aires...a Que mais?... Atédeo Janeiro momentoe a viagem foi boa. Parei muito no Brasil, que foi um lugar que gostei demais! Também viajar sozinho é uma coisa muito boa. Facilita muito, principalmente para conhecer gente. Às vezes também é como: "O que estou fazendo aqui nesta bicicleta?", mas de maneira geral é uma experiência realmente muito boa. Estou muito contente de ter encontrado alguém para fazer alguns quilômetros juntos. Penso que vai dar certo, já estamos juntos há dois dias... e... é isso! (risos) “Fechou!” - Gracias Vincent! Muito bom!
À noite fizemos uma fogueira e Laura voltou. Tomamos um vinho ao lado do fogo e depois ela nos convidou a sair para tomar uma cerveja com seus amigos. Saímos os três de bicicleta e alguns minutos depois chegamos à casa de seus amigos. Ali ficamos algumas horas jogando conversa fora ao redor de uma mesa. Foi muito interessante. Foi a primeira vez que tivemos a oportunidade de estar rodeados de jovens argentinos. Na manhã da véspera de Natal compartilhamos um autêntico mate com Laura e seguimos viagem. Ela chegou a nos convidar a ficar mais tempo, mas queríamos mesmo seguir. Como bons viajantes, tínhamos que seguir nosso caminho. Setenta e sete quilômetros depois já estávamos bem cansados e chegamos a um pequeno povoado chamado Cerro de la Glória. Passaríamos o natal acampados sozinhos. Passamos numa despensa para comprar pelo menos um vinho, já que se tratava de uma ocasião especial e então, em seguida, pedimos informação a um morador sobre a possibilidade de acamparmos num campo de futebol que havia à frente. Queríamos saber se era suficientemente seguro ficar por ali. O morador nos disse que não havia problema algum, pois se tratava de um lugar muito tranquilo e acabou nos presenteando com um rocambole doce! Disse-nos que era “un regalo de Navidad” (um presente de Natal). Montamos nossas barracas atrás das traves do gol onde havia uma árvore e uns carros velhos abandonados. Estávamos felizes, afinal era Natal. Creio que tenha sido a primeira vez que passei a noite de Natal longe de meus amigos ou família.
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À noite, enquanto eu cozinhava um pouco de macarrão, Vincent fez uma fogueira. Nossa ceia foi extremamente simples, mas foi uma das melhores noites da viagem. Tomamos no gargalo toda uma garrafa de um bom vinho argentino e ficamos conversando ao lado da fogueira, que nos mantinha aquecidos, durante horas. Neste momento passei a conhecer muito da personalidade de Vincent. Descobrimos que tínhamos cabeças parecidas sobre a maioria dos temas. Encontrei uma pessoa muito inteligente e “antenada”. O fato de ambos estarmos realizando uma “loucura” parecida era apenas uma coincidência a mais. Esta noite foi uma passagem especial e reforçou nossa amizade. Éramos humanos em sua essência máxima, dividindo o calor do fogo, a comida e a bebida ao relento. Sem carro, sem estatus, sem uma reputação ou “imagem” a zelar. “Lo que teníamos en comum: nuestra inquietud, nuestro espíritu sueñador y un incasable amor por la ruta...”
“O que tínhamos em comum: nossa inquietude, nosso espírito sonhador e um incansável amor pela estrada...” Diários de Motocicleta (Film Four - 2004, baseado em “Notas de viaje”, de Ernesto Guevava)
Dona Joana e a Guerra das Malvinas
O dia de natal não estava fácil. O calor estava implacável, mas decidimos tentar pedalar o mais longe possível. Ao passar em frente a um sítio, havia uma plaqueta onde estava escrito “Hay huevos” (Há ovos). Pensei que seria uma boa oportunidade de comer algo bom, afinal estávamos cansados e com fome. O calor tinha nos castigado bastante e Vincent gostou da ideia. Paramos para comprar. Minutos depoisalguns uma senhora nos atendeu. semos que queríamos ovos e, muito ao ver simpática que estávamos viajandoDisde bicicleta, sugeriu cozinhar os ovos, assim poderíamos levar mais facilmente, sem ter risco de quebrá-los. Assim que foi em direção à sua modesta casa, se virou e nos perguntou se precisávamos de mais alguma coisa. Olhei para Vincent e me deu um sorriso. Neste ponto da viagem já o conhecia razoavelmente bem e sabia que ele estava pensando o mesmo que eu: uma oportunidade para acampar com segurança. Dissemos à simpática dona Joana que estávamos buscando um lugar para acampar e perguntamos se era possível acampar em seu gra~ 79 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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mado. Nos disse que estávamos a apenas três quilômetros de uma pequena cidade chamada General Conesa, mas que se quiséssemos ficar acampados em seu sitio não seria problema e ficaria feliz em poder nos ajudar. Joana tinha um jeito de “tia”, daquelas que sempre querem agradar os sobrinhos. Acolheu-nos com um sorriso enorme no rosto. Antes de acampar, resolvemos seguir até a cidade para comprar alimentos e conhecer o lugar. Ao chegar à praça central, nos deparamos com um grupo de jovens argentinos. Logo nos enturmamos e acabamos compartilhando um mate. Na turma havia uma única menina, chamada Mariana. Também me recordo do nome de um dos rapazes: “Sebas”, Sebastian. Foi muito divertido estar ali. Todos estavam muito excitados em receber em sua pacata cidade um brasileiro e um francês errantes. Combinamos de nos encontrar mais à noite para jogar sinuca num bar e voltamos à casa de dona Joana. Vincent e eu com os jovens argentinos na praça central de General Conesa
Acampamos em seu gramado, ao lado de sua Casa. Em seguida seu marido chegou do trabalho e veio falar conosco. Também muito simpático, nos convidou a tomar ca-fé e comer à mesa com eles. Novamente encontrávamos apoio de gente desconhecida. Antes de comer, nos banhamos. A casa de Joana era extremamente e não havia luz elétrica. Toda iluminação feita com velas esimples luminárias a gás. A água do banho era aaquecida comera a queima de lenha e usamos latas e uma pequena bacia. Durante nossa conversa, a luz de velas, descobrimos que mesmo a poucos metros da rodovia e da rede elétrica, haviam cobrado uma quantia absurda de dinheiro para a instalação e eles não tinham condições de pagar. Não me recordo exatamente da quantia, mas lembro muito bem que naquele momento havia me parecido totalmente abusiva. Conversamos esta gente simples conversando e acolhedora.com Era um prazer tremendo por parahoras mimcom e Vincent estarmos
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gente simples. Mais uma vez tendo a oportunidade única de conhecer o povo argentino de verdade, como poucos viajantes têm a chance de ex perimentar. Vincent parecia estar em total estado de êxtase. Eu sabia que este tipo de experiência era justamente o que ele estava buscando em sua viagem. Durante nossas conversas surgiu o tema “política” e obviamente falamos sobre política argentina. Todos, sem exceção parecem discordar totalmente do governo de Cristina Kirchner e a maioria das pessoas tem uma imagem positiva do Brasil e principalmente relativa ao presidente Lula. E seguindo o rumo, Joana acabou entrando no famoso tema sobre a Guerra das Malvinas. A Guerra das Malvinas foi um conflito entre Argentina e o Reino Unido que durou doze dias durante o mês de junho de 1982. As ilhas, que ficam próximas à costa sul da Argentina, haviam sido “conquistadas” pelo Reino Unido no inicio do século XIX, foram reclamadas pela Argentina, com o argumento que haviam sido invadidas. Este assunto é controverso e complicado. O fato é que somente em doze dias 649 soldados argentinos e 255 ingleses morreram no conflito que foi vencido pelo Reino Unido. Durante nosso papo ficou evidente o que a maioria dos argentinos pensa sobre este tema. Sentíamos um fervor nas palavras de Joana quando falavatotalmente sobre isso.osOchilenos que maispela nosperda chamou a atenção o fato de Joana culpar da guerra. Elafoidizia: “Las Malvinas son argentinas!” e dizia que os chilenos eram todos traidores. Dizia que perderam a guerra somente porque os chilenos ajudaram os ingleses. Vincent, desta vez, ficou quieto e omitiu o fato de ser metade chileno. Parece-me que houve participação dos chilenos, mas não sei se isso foi decisivo. Além do mais, como um brasileiro, não sou a pessoa mais indicada para falar sobre estea um assunto, masestá achoa mais que asde ilhas devem pertencer à Argentina e não país que 14.000 quilômetros de distância. O francês também respeitou a opinião de Joana e ficamos apenas ouvindo suas lamentações. Percebemos o quanto este tema mexe com os argentinos. Princi palmente os mais velhos, que têm este momento bem fresco em suas memórias. O fato é que chilenos e argentinos sempre tiveram conflitos no passado e estávamos apenas começando a descobrir parte disso. Dois países vizinhos, que falam a mesma língua, mas que parecem muito dis~ 81 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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tantes na verdade. Mais tarde, já completamente escuro, saímos em direção à cidade. Esperávamos encontrar o grupo de argentinos que tínhamos conhecido à tarde. O caminho de três quilômetros através de uma estrada de terra e da escuridão foi extraordinário. Estava fazendo muito frio e o céu estrelado era a única coisa que podíamos ver. Após rodar pelas ruas escuras acabamos encontrando o bar onde eles estavam. Ficamos jogando sinuca e tomando cerveja até tarde. Todos estavam muito entusiasmados em ter dois viajantes estrangeiros ali. Certamente não era um fato comum naquele pequeno lugar. Durante a noite olhava para o Vincent e dizia: “Cara, temos que parar de beber e ir dormir. Amanhã não vamos conseguir seguir viagem!”. Eu sempre era o mais preocupado e Vincent o mais relaxado em relação a esse tipo de situação. Ele sempre ficava com uma expressão típica de tranquilidade e prazer, e sempre acabava me convencendo. O modo como aquele grupo de jovens nos aceitou nos deixava muito felizes. Era como se estivéssemos cercados de velhos amigos. Como se estivéssemos cercados de brasileiros. A todo o momento pensava: “Nossa, como somos parecidos!”. Realmente somos muito parecidos, brasileiros e argentinos. É uma pena, mesmo tão próximos, sejamos tão ignorantes uns em relação aos outros, desconhecemos praticamente tudo uns dos outros. A única diferença clara é o fato dos amigos homens também se cumprimentarem com um beijo no rosto. Para mim não era assim tão estranho pois venho de uma família de origem italiana e temos esse costume entre os parentes mais próximos. Mariana se aproximou muito de mim e foi uma pena não podermos ficar mais tempo juntos. Gostei muito de conhecê-la. Num determinado momentonome disse que tinha que ir embora. Sentou-se do meu lado e colocou meu pescoço um pequeno colar. Disse que era para me proteger durante a viagem. Às vezes sentia que algumas pessoas passavam muito rapidamente por mim. Ou será que era eu que seguia rápido demais? Na verdade, na maior parte do tempo sentia isso. Tudo era incrível e ao mesmo tempo um grande paradoxo. Era como se tivesse provando as pessoas apenas por um lapso de tempo, vivendo de forma intensa, mas em contrapartida, tudo acontecia muito rápido. Se não tivesse iniciado minha viagem, nada disso teria acontecido. E quando chegava a um lugar assim, e cercado de gente como
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esta, sentia vontade de ficar mais tempo, mas por outro lado, sabia que tinha que seguir. Sabia que mais pessoas extraordinárias estavam me esperando pelo caminho. Nunca foi fácil dizer “oi” num dia e no dia seguinte dizer “adeus”. Acho que nunca consegui me acostumar muito bem com isso. Mais tarde tiramos uma foto à frente do bar com todos aqueles jovens argentinos. Todos nos deram abraços fortes, nos desejando sorte, e então seguimos madrugada adentro rumo a casa de Joana. Pela manhã conhecemos os dos dois filhos de Joana. Presentearam-nos com algumas peças de artesanato e nos convidaram a andar a cavalo. Foi quando me dei conta que me sentia muito mais a vontade montado em minha bicicleta que em cima daquele cavalo! Seguimos nosso caminho com o espírito renovado e um pouco de ressaca, que invariavelmente seria curada durante a pedalada. Quando falo sobre este assunto estou sendo sincero. Pode parecer um absurdo para alguém que está viajando de bicicleta, mas o que podia fazer? Estava vivendo cada dia sem pensar muito no dia seguinte. E não era assim tão extremo, só uns copos de cerveja. O dia estava muito divertido. Pedalar pelas estradas argentinas era uma curtição tremenda. Enquanto pedalávamos tivemos a ideia conectar um pequeno painel solar que eu tinha ao ipod e a pequenas caixas ou de som que tínhamos. Assimdeu poderíamos um somficou sem gastar pilhas baterias. A experiência resultado curtir e a pedalada ainda mais divertida. Éramos dois loucos cantando e balançando os corpos em cima das bicicletas. Estávamos pedalando num ritmo forte e num momento fomos surpreendidos por um senhor argentino que começou a gritar à beira da rodovia. Ele viu minha bandeira e disse: - Vamos brasileño, vamos! Fuerza, Fuerza! –enquanto aplaudia incessantemente. Depois que passamos ele ainda gritava e dizia: - Vamos, vamos! Vamos... Lula! É sempre bom ver este tipo de reação. O dia já estava bom e os aplausos nos deram ainda mais energia para pedalar. Depois de um longo dia de pedalada sob forte calor chegávamos à cidade costeira de Pinamar.
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Jorge de Pinamar
Quando estávamos entrando na cidade cruzamos com um ciclista que vinha no sentido contrário. Ele fez uma volta, cruzou o canteiro central da rodovia e gritou para que o esperássemos. Seu nome era Jorge e assim que ficou sabendo de nossa história nos convidou a ficar em sua casa. Quase não podíamos acreditar. O seguimos até sua casa e ele logo começou a preparar um churrasco. À noite comemos junto com sua esposa e filho e assistimos um pouco da TV argentina: os mesmos programas estúpidos que entopem a TV aberta brasileira. Dormimos na sala de sua casa, em colchões no chão e ficamos muito bem abrigados. Passamos uma noite bem tranquila. Mais uma vez estávamos colecionando gente simples de bom coração. Sua casa era simples e ficava um pouco longe da melhor parte da cidade, mas para nós era um verdadeiro palácio. De manhã prepararam um delicioso café e nos despedimos. Nosso próximo destino seria o mais famoso balneário argentino. Estávamos ansiosos, pois sabíamos que a cidade deveria estar cheia de turistas, afinal era fim de ano e início do verão. Depois de Pinamar passamos rapidamente pela belíssima praia de que Mar saímos Azul, onde almoçamos. Mar del Plata
A chegada à Mar del Plata foi alucinante! Depois de 140 quilômetros estava me sentindo muito bem. Minha velocidade estava alta e por alguns momentos Vincent para trás. Geralmente no fimficou da tarde, quando o calor diminui meu ritmo aumenta muito e neste caso o terreno plano e o visual do mar ajudavam muito. Outra coisa que nos animava é que no mesmo momento em que chegávamos à cidade uma quantidade enorme de carros cheios de turistas argentinos também chegava. Todos dando muita força e acenando para estes dois intrépidos viajantes. Realmente foi inesquecível! Chegamos a um hostel , a umas duas quadras das praias. Fomos muito bem recebidos e o lugar estava cheio de turistas, inclusive muitos brasileiros. Só queríamos descansar. No dia seguinte eu precisaria substituir um raio da roda traseira que tinha se rompido em Buenos Aires.
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Este foi o primeiro problema deste tipo na viagem. Fomos a uma bicicletaria e fomos atendidos por um senhor chamado Juan Merlos, que para nossa surpresa era ex-campeão mundial de ciclismo e já havia defendido a Argentina em Olimpíadas por duas ocasiões. Ao voltar ao hostel pensávamos que iríamos embora no dia seguinte, mas acabamos conhecendo vários brasileiros e um grupo de australianas. Tinha tantos brasileiros ali que, num momento, contei 28 somente na cozinha do hostel . Às 5 horas da manhã ficou claro que não iríamos embora de jeito nenhum. Mais um dia, e resolvemos passear um pouco pela cidade, mas não nos arriscamos ir à praia. O vento e a água fria não nos animava. Uma coisa que nos causava certo estranhamento era justamente a praia. Havia uma quantidade enorme de barracas e boa parte da areia é dividida em pequenas partes onde é necessário pagar para ficar. Como se a praia fosse privada, realmente incomum. Encontramos dois periodistas de um jornal de Buenos Aires chamado “Crítica de la Argentina” e fomos convidados a participar de uma reportagem sobre o turismo na cidade. Junto com as moças australianas, aparecemos no jornal que saía em todo o território argentino. Segue um trecho da reportagem com algumas palavras traduzidas: “Mar del Plata es linda, aunque el mar está bastante frío. Lamento decirlo, pero me quedo [Lamento dizer, mas fico] con Pelé y las playas de Río. Ustedes quedense [Vocês ficam] con Maradona en sus costas” bromea [brinca] Thiago Fantinatti, un fotógrafo de 29 años que llegó de “Ouriños”, Brasil. A diferenciaendebicicleta. otros turistas, propone cumplir un desafío: conocer Sudamérica No estáThiago solo, loseacompaña su amigo Vincent Degove, um parisino [parisiense] de 22 años: “Recorrimos [Percorremos] 3000 kilómetros. Nuestro desafío es demostrar que la mejor forma de vida es la naturaleza y el deporte. Mar del Plata tiene playas y mucha noche. Hemos conocido [conhecemos] a chicas muy lindas”, afirmó Vincent. Los dos llegaron a Mar del Plata por un mapa que les regalaron [presentearam] en un hostel de San Telmo [em Buenos Aires].
Eles ainda tiraram uma foto nossa com as praias de Mar del Plata ao fundo. Eu não disse exatamente isso sobre a praia e sobre Maradona. ~ 85 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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Apenas respondi suas perguntas. Somente disse que preferia Pelé a Maradona e que havia achado as águas um pouco frias. O resto, inclusive sobre o mapa, veio da imaginação dos periodistas! De volta ao hostel , Vincent acessou o website do Rally Dakar para saber o trajeto que fariam. Por coincidência o rally estava acontecendo pela primeira vez na América do Sul e havia possibilidade de cruzar nossos caminhos. Seria interessante poder ver de perto um evento desses, mas de acordo com nossa distância e o cronograma do evento ficou evidente que dificilmente conseguiríamos ver alguma coisa, a menos que apertássemos o passo. Enfim, depois de quatro noites, saímos de Mar del Plata. Estava muito bom, mas também era muito caro. Tudo fica muito mais caro na temporada de verão. Apesar dos convites para passarmos o ano novo por ali, resolvemos seguir. Realmente não estávamos a fim de festejar o réveillon de uma maneira convencional neste ano. A ideia de ter uma virada de ano totalmente diferente do convencional combinava mais com o espírito de nossas viagens. Réveillon em Mar del Sur
No de diaonde 31 deiríamos dezembro, pedalávamos, não fazíamos ideia virar enquanto o ano. Não importava deainda verdade. Éramos dois viajantes totalmente despreocupados e não havia qualquer tipo de obrigação. Palavras como “onde” ou “quando” não faziam muito sentido na maioria das vezes. Depois de pedalar algumas dezenas de quilômetros encontramos um casal argentino. Eles estavam viajando numa van e tinham bicicletas dentro. Haviam parado para comer e descansar. Ficamos um tempo debaixo umaalgumas árvore frutas com eles. Depois de um descanso eles nos presentearamdecom frescas e seguimos. O litoral desta parte da argentina nos impressionou bastante. De pois que passamos pela cidade de Miramar a costa se transformou totalmente. O mar estava um pouco revolto e não havia praias, somente rochas e uma costa totalmente irregular e deserta. A paisagem im pressionava, pois era totalmente distinta de qualquer outra que havia visto até então. Poucos quilômetros depois chegamos à pequena cidade de Mar del Sur. Fomos direto à praia, mas apesar de estarmos no verão havia um vento frio irritante. Realmente comecei a perceber que não encontraria
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mais praias quentes pelo caminho. Ainda na praia, embora estivéssemos pensando em seguir mais um pouco, nossa vontade de seguir se foi. Depois que nos alimentamos e sentamos um pouco na areia da praia decidimos procurar um camping para passar a noite ali mesmo em Mar del Sur. Encontramos um camping muito barato e montamos nossas barracas. Incrivelmente o lugar estava cheio. Havia muita gente disposta a passar a virada do ano em suas barracas. À noite começamos a preparar nossa modesta ceia. Enquanto eu cozinhava Vincent começou a conversar com uns argentinos que estavam acampados ao lado. A conversa deu resultado e logo nos convidaram a sentar com eles e tomar um pouco de vinho. Levamos nossa comida e todos acabaram compartilhando o que tinham. Havia dois casais sendo que um deles tinha um pequeno filho. Todos eram de Mar del Plata e nos disseram que estavam ali para fugir do agito de fim de ano na cidade. Foi bem interessante esta passagem de ano. Comecei o ano de 2009 num camping numa pequena cidade do litoral argentino com meu novo amigo francês e quatro argentinos desconhecidos. Não poderia ser mais inusitado e incomum. Vincent, como sempre, estava adorando estar ali, era possível notar isso claramente em seu jovens rosto. Depois ele megente disse:simples, “Cara, passamos o réveillon com autênticos argentinos, trabalhadores. Isso é incrível!”. Como eu já disse, ele desfrutava demais o contato com as pessoas. Admirava muito isso em Vincent, sua capacidade de aprender muito em praticamente qualquer tipo de situação. Costumo dizer que sinto que aprendi tanto que é como se tivesse feito o equivalente a uma faculdade de geografia e ciências humanas durante a viagem, tamanha a quantidade de informação neste período. que recebi. Vincent provavelmente cursou duas faculdades Um ano novo! Um ano só meu!
O ano começava e sabia que passaria a maior parte dele na estrada. Isso me fazia sentir muito feliz. Era uma sensação de liberdade extrema. Sentia que este novo ano marcaria minha vida para sempre e ainda me reservava muitas boas surpresas. Havia entrado no “mar” da minha viagem só até os tornozelos e a água estava muito convidativa. ~ 87 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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O primeiro dia de 2009 não foi fácil. De novo chegamos à marca de 140 quilômetros. Parecia um número mágico para nós dois e sentia que havia chegado ao auge de minha forma física. No final deste dia de muito calor encontramos um posto de combustíveis a poucas centenas de metros de uma localidade chamada Energia. Conversamos com os donos do local e armamos as barracas ao lado, numa espécie de oficina mecânica que havia ali. No dia seguinte seguimos até a cidade de Três Arroyos, já um pouco longe da costa. Como sempre, na estrada, o calor era um desafio a mais. Nossa ideia era seguir até a cidade, mas poucos quilômetros antes encontramos um clube balneário muito estruturado e bonito. Entramos com nossas bikes carregadas e expressões de cansaço. Logo o responsável pelo local veio falar conosco. Disse-nos que poderíamos acampar por ali sem problema algum e que não precisaríamos pagar. Somente pagaríamos cerca de 10 pesos se escolhêssemos usar a piscina! Foi muito bom ficar por ali. Comemos como reis e depois tomei uma ducha. Estava precisando de um banho, meu último banho havia sido em Mar del Plata. Não usamos a piscina, mas ficamos sentados à sombra de um guarda-sol por horas. O longo dia de verão estava muito agradável e só pensávamos em aproveitar aquele momento. Apesar dos desafios físicos, estávamos Tentávamos aproveitar ao máximo cada momento e registrarmuito o quefelizes. acontecia, sempre que possível. As melhores fotos que tenho de mim foram tiradas por Vincent. Especialmente no sul da província de Buenos Aires e depois, no norte da Patagônia, o calor estava muito forte e praticamente chegava aos meus limites físicos durante estes dias quentes. Vincent aproveitou e registrou muito bem este trecho com ótimas fotografias, pois sempre estava à minha frente e assim tinha mais tempo para descansar e fotografar. Na maioria das estradas do litoral argentino, inclusive a principal rodovia – Ruta Nacional 3 – praticamente não há acostamento, isso torna a viagem muito mais complicada e insegura. Nossa postura era a seguinte: como tínhamos retrovisores podíamos acompanhar o movimento dos veículos que vinham por trás de nós. Assim podíamos saber se havia necessidade de sair da rodovia ou não, de acordo com a trajetória dos carros. O que fazíamos com mais frequência era ficar na rodovia e deixar os veículos que vinham de trás desviarem. Somente saíamos da
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estrada caso viesse outro veículo em sentido contrário. Neste caso, se ficássemos na estrada, estaríamos colocando em risco, além de nossa própria vida, a dos motoristas também. Pode parecer loucura permanecer na pista mesmo quando há um carro vindo de trás, mas não é. A pista, apesar de não ter acostamento é uma reta quase interminável e totalmente plana. A visibilidade é total. Isso diminui muito os riscos. Sair da rodovia cada vez que um carro surgisse por trás seria inviável e tornaria a viagem extremamente lenta. Os dias 65 e 66 foram talvez os mais quentes de toda a viagem. Para exemplificar nossa luta contra o calor vou citar alguns números: no dia 65 chegamos a um posto de combustíveis nas proximidades da cidade de Coronel Dorrego. Neste dia ficamos em movimento por 6 horas e 22 minutos, sendo que, devido ao calor, ficamos parados 3 horas e 49 minutos. O tempo total na estrada neste dia foi de 10 horas e 11 minutos com 111 quilômetros pedalados. Creio os números falam por si e mostram nossa luta contra o calor e a baixíssima média de velocidade. Obviamente chegamos ao posto totalmente exaustos. Sempre gostei muito de estatísticas e esses dias duros era um prato cheio para mim. Tenho anotações de quilometragem e tempo de todos os dias da viagem. Assim que chegamos resolvemos esbanjar um pouco. Pedimos uma – churrasco argentina completa bebemos várias cervejas “parrilla” geladíssimas. Era nossa– recompensa máxima. eFoi muito bom! Acampamos ao lado do posto e despertamos pela manhã com um vento fortíssimo que rapidamente encheu nossas barracas com muito pó e areia. Foi um começo de dia difícil e apenas anunciava o dia duro que teríamos pela frente. Neste dia, o dia 66, o calor e as estatísticas pioraram um pouco: 7 horas e 10 minutos em movimento e 5 horas parados, num total de 12 horas 12 minutos na ruta . Rodamos 98 quilômetros. Foi sem dúvidae nenhuma o maior desafio físico apenas que passei até este dia. Cheguei ao limite, mas consegui. No início da noite chegávamos à grande e desenvolvida cidade de Bahia Blanca. Ali, pela primeira vez, conversamos sobre o futuro. Vincent me mostrou seu grande mapa da América do Sul e falou de seus planos de ir ao Chile. Ele não queria ir muito para o sul pois queria alcançar o Chile o mais rápido possível. Já havia visitado o extremo sul do continente e não queria cruzar essa inóspita região numa bicicleta. Chegou a me convidar a ir com ele, mas de maneira alguma abandonaria meu grande sonho de chegar à Terra do Fogo numa bicicleta. Era a parte ~ 89 ~ http://slide pdf.c om/re a de r/full/tr ilha ndo-sonhos
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mais importante do meu projeto. Combinamos de seguir juntos até as proximidades da cidade de Comodoro Rivadavia, quase 2000 quilômetros mais ao sul, então depois disso nos separaríamos.
Fotos do capítulo 3: www.trilhasulamericana.com.br/3
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como um tumulto, como um vapor pesado
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