Milton Santos
1
2
Milton Santos
Milton Santos
3
MILTON SANTOS
"Estamos convencidos de que a mudança histórica em perspectiva provirá de um movimento de baixo para cima, tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas; o indivíduo liberado partícipe das novas massas e não o homem acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único. Os pobres não se entregam e descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho e de luta; a semente do entendimento já está plantada e o passo seguinte é o seu florescimento em atitudes de inconformidade e, talvez, rebeldia."
Milton Santos em Por Uma Outra Globalização Do Pensamento Único à Consciência Universal
Textos compilados e formatados por: Eduardo Dutenkefer em dezembro de 2002 e janeiro de 2003 dos sites: http://www.madson.hpg.ig.com.br/index.html (acesso em 5/12/2002); http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/mst.html (acesso in 9/12/2002); Portal Milton Santos em: http://www.campinas.sp.gov.br/portal_milton_santos/principal.htm (acesso em 26/08/2002); http://www.gilbertogil.com.br/santos/milton_0.htm (acesso em 22/08/2002) entre outros
4
Milton Santos
Milton Santos
5
PARTE I - SOBRE MILTON SANTOS (ARTIGOS E RESENHAS)
MILTON SANTOS: ASPECTOS DE SUA VIDA E OBRA Wagner Costa Ribeiro
pág. 11
MILTON SANTOS: INTELECTUAL, GEÓGRAFO E CIDADÃO INDIGNADO Marcos Bernardino de Carvalho
pág. 14
UN PENSAMIENTO SOBRE LA CIUDAD: ALGUNAS REFLEXIONES Ana Fani Alessandri Carlos
pág. 22
MILTON SANTOS EN NEUQUÉN, ARGENTINA UNA PRESENCIA QUE MARCÓ RUMBOS María Nélida Martinez
pág. 27
A REGIÃO COMO PROBLEMA PARA MILTON SANTOS Ina Elias de Castro
pág. 33
MILTON SANTOS: A TRAJETÓRIA DE UM MESTRE Maria Auxiliadora da Silva
pág. 38
MILTON SANTOS: A CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA CIDADÃ Denise Elias
pág. 47
GLOBALIZAÇÃO E GEOGRAFIA EM MILTON SANTOS Wagner Costa Ribeiro
pág. 56
CONTINUAR Y SUPERAR A MILTON SANTOS Horacio Capel
pág. 64
POR OUVIR DIZER E POR QUERER SABER: CONVERSANDO COM MILTON SANTOS Maria Adélia Aparecida de Souz
pág. 74
MILTON SANTOS, CIDADÃO DO MUNDO Odette Seabra
pág. 79
UM CAFÉ COM MILTON SANTOS Fernando Conceição
pág. 81
A SOMBRA DO SEU SORRISO Sueli Carneiro
pág. 84
MESTRE DE VERDADE José Antonio Toledo
pág. 86
A CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS PARA A GEOGRAFIA Francisco Scarlato
pág. 88
MILTON SANTOS, COMBATENTE INTELECTUAL Jair Borin
pág. 89
RESENHA – POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO José Luís Fiori
pág. 90
GLOBALIZAÇÃO: DO DESPOTISMO À EMANCIPAÇÃO? Zander Navarro
pág. 93
O MILITANTE DE IDÉIAS Raquel Aguiar
pág. 95
6
Milton Santos
MILTON SANTOS: POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO - A DE TODOS Délio Mendes
pág. 99
VIVE MILTON SANTOS Júlia Andrade
pág. 103
A GRANDE MUTAÇÃO – MILTON SANTOS REINTERPRETA O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO José Luís Fiori
pág. 104
SOBRE OS LUGARES DO MUNDO: FALANDO DOS SANTOS Maria Adélia Aparecida de Souza
pág. 107
DISSERTANDO MILTON SANTOS Pablo A. Maurutto
pág. 109
OS MIL... TONS DE MILTON SANTOS Ariovaldo Umbeiro de Oliveira
pág. 111
A GENTE NÃO MORRE, ENCANTA Fábio Gomes Pinto Rodrigues
pág. 111
MILTON SANTOS: AMIGO, MESTRE, COMPANHEIRO!!! Emir Sader
pág. 113
MAIS QUE UM MESTRE, UM AMIGO Autor(a) Desconhecido(a)
pág. 114
MILTON SANTOS – A FORÇA DA PÁTRIA Procópio Mineiro
pág. 116
MINHAS LEMBRANÇAS DE MILTON SANTOS Sebastião Nery
pág. 118
MILTON SANTOS: O SILÊNCIO SEM GEOGRAFIA Marilene Felinto
pág. 120
MILTON SANTOS UNE GEOGRAFIA E REFLEXÃO HAROLDO CERAVOLO SEREZA
pág. 121
MILTON SANTOS MORRE DE CÂNCER AOS 75 Folha de São Paulo
pág. 123
LIVROS E TÍTULOS 'HONORIS CAUSA' Folha de São Paulo
pág. 126
UM FILÓSOFO DA GEOGRAFIA AZIZ AB'SABER
pág. 129
GEOGRAFIA MORAL Cristóvam Buarque
pág. 130
O TEMPO, NO ESPELHO DO ESPAÇO (MUNDO) www.clubemundo.com.br
pág. 132
Milton Santos
7
PARTE II ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1999-2001)
OS DEFICIENTES CÍVICOS - 24/01/99
pág. 137
O CHÃO CONTRA O CIFRÃO - 28/02/99
pág. 139
O PAÍS DISTORCIDO - 02/05/99
pág. 141
A VONTADE DE ABRANGÊNCIA - 20/06/99
pág. 143
GUERRA DOS LUGARES - 08/08/99
pág. 145
A NORMALIDADE DA CRISE - 26/09/99
pág. 147
UMA METAMORFOSE POLÍTICA - 17/10/99
pág. 149
NAÇÃO ATIVA, NAÇÃO PASSIVA - 21/11/99
pág. 151
O RECOMEÇO DA HISTÓRIA - 09/01/00
pág. 153
DA CULTURA À INDÚSTRIA CULTURAL - 19/03/00
pág. 155
SER NEGRO NO BRASIL HOJE - 07/05/00
pág. 157
REVELAÇÕES DO TERRITÓRIO GLOBALIZADO 16/07/00
pág. 160
ALTOS E BAIXOS NA POLÍTICA - 01/10/00
pág. 162
O TEMPO DESPÓTICO DA LÍNGUA UNIVERSALIZANTE - 05/11/00
pág. 164
O NOVO SÉCULO DAS LUZES - 14/01/01
pág. 167
ELOGIO DA LENTIDÃO - 11/03/01
pág. 169
PARTE III - OUTROS ARTIGOS
POR UMA GEOGRAFIA CIDADÃ: POR UMA EPISTEMOLOGIA DA EXISTÊNCIA Boletim Gaúcho de Geografia - Agosto de 1996
pág. 175
O LUGAR E O COTIDIANO INTRODUÇÃO DO LIVRO "A NATUREZA DO ESPAÇO"
pág. 181
DO MEIO NATURAL AO MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL Do livro "A Natureza do Espaço - Abril de 1998
pág. 190
POR UM MODELO BRASILEIRO DE MODERNIDADE Jornal da Ciência 17 de Outubro de 2000
pág. 197
O INTELECTUAL ANÔNIMO Expresso Vida
pág. 199
QUE PARLAMENTO PARA O SÉCULO XXI? DESAFIOS E PERSPECTIVAS FRENTE À MUNDIALIZAÇÃO Discurso feito na Câmara dos Deputados por ocasião da mesa "Que Parlamento para o Século XXI? Desafios e Perspectivas frente à Mundialização"
pág. 201
8
Milton Santos
A UNIVERSIDADE: DA INTERNACIONALIDADE À UNIVERSALIDADE Discurso de aceitação do título de professor Honoris Causa na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1999.
pág. 205
CONFERÊNCIA MAGNA DR. MILTON SANTOS USP - I SEMINÁRIO NACIONAL - SAÚDE E AMBIENTE NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO - 12 - 07 – 00
pág. 207
A TRANSIÇÃO EM MARCHA sites.uol.com.br/isabelapa/geral/5miltonsantos.htm acesso in 30/08/2002)
pág. 214
PARTE IV - ENTREVISTAS
UM OLHAR DISSONANTE Folha de São Paulo - 07/03/00
pág. 231
GRANDES EMPRESAS DOMINAM POLÍTICA, DIZ MILTON SANTOS Folha de São Paulo - 08/01/01
pág. 235
O BRASIL (SEGUNDO MILTON SANTOS) Folha de São Paulo - 02/02/01
pág. 238
GEÓGRAFO ATACA O USO POLÍTICO DE ESTATÍSTICAS Folha de São Paulo - 27/03/01
pág. 241
A UNIVERSIDADE SE BUROCRATIZOU Jornal do Brasil - 27/08/2000
pág. 243
ENTREVISTA COM MILTON SANTOS por Carlos Tibúrcio e Silvio Caccia Bava - 28/06/01
pág. 246
MILTON SANTOS: PENSAMENTO DE COMBATE por Cláudio Cordovil
pág. 253
ENTREVISTA COM MILTON SANTOS: "O SONHO OBRIGA O HOMEM A PENSAR" por Maurício Silva Junior - Boletim da UFMG
pág. 256
ENTREVISTA MILTON SANTOS por José Corrêa Leite Revista Teoria & Debate - fev/mar/abr de 1999
pág. 258
ENTREVISTA MILTON SANTOS Revista Caros Amigos - Agosto de 1998
pág. 267
UM ENCONTRO Gilberto Gil e Milton Santos - 01/08/1996
pág. 281
MILTON SANTOS Revista Democracia Viva n0 2 – fev. 98
pág. 289
NÃO SOU MILITANTE DE COISA NENHUMA, EXCETO DE IDÉIAS Revista ADUSP – junho 1.999
pág. 312
ATÉ SEMPRE, MILTON Revista ADUSP – setembro 2.001
pág. 320
Milton Santos
9
PARTE I SOBRE MILTON SANTOS (ARTIGOS E RESENHAS)
10
Milton Santos
Milton Santos
11
MILTON SANTOS: ASPECTOS DE SUA VIDA E OBRA
Wagner Costa Ribeiro - Departamento de Geografia - Universidade de São Paulo
Discutir
a
obra
de
um
intelectual
com
as
da prisão carregava consigo uma decisão: era
qualidades de Milton Santos exige um esforço
preciso partir. O geógrafo ganhava o mundo.
coletivo e abrangente. Coletivo dada a diversidade
O começo de sua carreira internacional forçada
de disciplinas que fazem uso de suas idéias. Abrangente graças aos diversos aspectos que ela abordou durante uma carreira que alcançou mais de 50 anos. Esta série de artigos apresenta uma visão
panorâmica
brasileiro
da
produção
procurando
indicar
do
geógrafo
seus
marcos
temáticos e teóricos.
ocorreu na França, onde trabalhou em diversas universidades, como as de Toulouse (1964-1967), de Bourdeaux (1967-1968) e de Paris (19681971). Durante esses anos realizou estudos sobre a geografia urbana dos países pobres e produziu vários livros como Dix essais sur les villes des pays-sous-dévelopés (1970), Les villes du Tiers
Falar da obra de um homem é falar do próprio
Monde
homem. Por isso alguns dos artigos abordam
traduzido
passagens
circuitos da economia urbana, em 1978). Este
da
vida
de
Milton
Santos
que
(1971) como
e
L'espace
O
espaço
partagé dividido:
(1975, os
dois
marcaram os autores dos trabalhos.
último marca a expressão de uma de suas idéias
Nascido em Brotas de Macaúbas, no interior da
originais:
Bahia, em 03 de maio de 1926, esse brasileiro ganhou o mundo por razões alheias a sua vontade. Porém, soube manter seus olhos nos arranjos sociais contemporâneos para construir uma teoria original que serve à interpretação do
a
existência
de
dois
circuitos
da
economia. O primeiro constituído pelas empresas, pelos bancos e firmas de seguros, ao qual chamava de rico. O segundo expressado pela economia
informal,
por
meio
do
comércio
ambulante e dos demais circuitos pobres da
mundo que parte da geografia, do território,
economia.
envolvendo os habitantes dos lugares.
Da França partiu para vários outros países,
Embora tivesse concluído o curso de Direito em
vivendo de maneira itinerante e como professor
1948, Milton Santos ministrava aulas de Geografia no ensino médio na Bahia. Daí seu interesse pela disciplina que o lançou ao mundo das idéias e da reflexão política. Em
1958
Geografia,
obteve na
seu
título
de
Universidade
de
Doutor
em
Strasbourg
(França), passando a ensinar na Universidade Católica de Salvador e, depois, na Universidade Federal da Bahia, na década de 1960. Sua habilidade com as palavras e seu texto vigoroso rendeu-lhe a participação em jornais, como A Tarde, em Salvador na década de 1960 e, na de 1990, na Folha de S. Paulo, em São Paulo. Homem de ação política, aceitou o convite para participar de governos no início da década de 1960 que culminou com sua prisão em 1964 por ocasião do golpe de estado implementado pelos militares ao Brasil. Foram 3 meses difíceis. Ao sair
convidado. Atuou em centros universitários, da América do Norte (Canadá, University of Toronto 1972-1973;
Estados
Unidos,
Massachusetts
Institute of Technology, Cambridge - 1971-1972 e Columbia University, Nova York - 1976-1977), da América Latina (Peru, Universidad Politécnica de Lima - 1973; Venezuela, Universidad Central de Caracas - 1975-1976) e da África (Tanzânia, University of Dar-es-Salaam - 1974-1976). Seu
retorno
ao
Brasil
decorreu
de
um
acontecimento especial ao geógrafo baiano: a gravidez de sua segunda esposa, Marie Hélene Santos. Milton queria que seu segundo filho, Rafael dos Santos, nascesse baiano, como seu primogênito, o economista Milton Santos Filho, que faleceu poucos anos antes que o pai. Em 1978 estava de volta à vida universitária brasileira. Mas trazia na bagagem uma obra que marcou sobretudo aos geógrafos marxistas do
12
Milton Santos
país:Por uma geografia nova, que foi traduzida
ciência(Organização das Nações Unidas para a
para vários idiomas em diversos países. Neste
Educação, a Ciência e a Cultura, em 2000).
trabalho Milton Santos preconiza uma geografia
Ampliou
voltada para as questões sociais.
também
sua
série
de
honrarias
universitárias como os títulos de Doutor Honoris
Entre 1978 e 1982 trabalhou como professor
Causa em universidades como a Université de
visitante
Toulouse (1980), Universidad de Buenos Aires
na
Faculdade
de
Arquitetura
e
Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP.
(1992),
Atuou também como professor na Universidade
(1994), Universidad de Barcelona (1996), entre
Federal
tantas outras, incluindo mais de uma dezena no
do
Rio
de
Janeiro
-
UFRJ,
onde
Universidad
Complutense
de
Madrid
permaneceu até 1983.
Brasil, onde ainda recebeu o título de professor
Em 1983 ingressa em uma nova instituição de
Emérito
ensino e pesquisa: o Departamento de Geografia
da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
em 1997.
Humanas da USP, onde organizou congressos,
Conheci o professor Milton Santos em Paris, por
ministrou
ocasião de uma visita de estudos, em 1988.
aulas
na
graduação
e
na
pós-
graduação, pesquisou, produziu livros e formou
Naquele
alunos.
pesquisando na França e me recebeu em sua
A
produção
intensa
desenvolvida
no
Departamento de Geografia da USP resultou na indicação para receber o prêmio Vautrin Lud, que é considerado o Prêmio Nobel no âmbito da Geografia. Em 1994 Milton Santos foi o primeiro intelectual de um país pobre e o primeiro que não tinha o inglês como língua pátria agraciado com tal distinção. O
prêmio
internacional
redescobrimento de
Milton
promoveu Santos
no
um Brasil.
Passou a ser requisitado por órgãos de imprensa para entrevistas e depoimentos. Mas mantinha seu senso crítico a isso, afirmando que "um intelectual não pode falar todos os dias. É preciso tempo para amadurecer as idéias". Depois de 1994 sua vida foi marcada pelo reconhecimento de sua produção como geógrafo e intelectual
crítico.
Recebeu,
entre
outras
premiações, o de Mérito Tecnológico (Sindicato de Engenheiros do Estado de São Paulo, em 1995), Personalidade do Ano (Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, em 1997), 11 Medalha Chico Mendes de Resistência ª
(Grupo
Tortura
Nunca
Mais,
em
1999),
O
ano
o
professor
também
estava
casa, sem nunca termos nos falado antes, a partir de em telefonema. De maneira direta indicou colegas franceses que me receberam com muita atenção, grande parte deles ex-alunos de Milton. A partir daí recebi seu renovado apoio em diversas ocasiões, como quando solicitei artigos para publicações da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB, entidade que presidiu, ou quando aceitou vários convites para participar em eventos científicos ou ainda quando compareceu à homenagem que lhe foi concedida pelo Centro Interunidades de História da Ciência da USP, na qual participei diretamente, em 1996. Esta reunião de artigos é mais uma homenagem a Milton Santos, cuja obra merece uma leitura e avaliação crítica mais ampla que a promovida aqui. Entretanto, diversos aspectos das idéias de Santos foram analisados nesta série de textos produzidos por geógrafos da Argentina, do Brasil e da Espanha. Marcos
Bernardino,
professor
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, destaca um tema central na obra de Milton Santos: o cidadão, comentando inclusive o engajamento político do
Brasileiro do Século (Isto é, 1999) Multicultural
autor.
2000 Estadão (O Estado de S. Paulo, em 2000).
Ana Fani Carlos da USP, ressalta a articulação
Fora do país, recebeu, entre outros prêmios, a
entre o local e o global promovida por Milton
Medalha de Mérito (Universidad de La Habana -
Santos em seus estudos sobre o urbano.
Cuba, em 1994) e o prêmio UNESCO, categoria
Milton Santos
A
Argentina
13
Maria
Universidad
de 1960, envolvido em temas como aridez, rede
Nacional del Comahue, de Neuquén, expõe o
urbana e países subdesenvolvidos. Ele encerra
impacto da presença do autor em seu país,
seu artigo apontando a necessidade em superar
comentando suas interpretações sobre a categoria
criticamente a obra de Milton Santos, adotando a
território.
irreverência do professor baiano na análise de sua
A professora da UFRJ Ina Castro discorre sobre a
obra. Esse é outro objetivo dessa coletânea.
categoria região em sua dimensão teórica, tema
São Paulo, agosto de 2002.
que percorreu a obra de Milton em diversos livros.
Bibliografia
Maria
SANTOS, Milton. Dix essais sur les villes des pays-sous-dévelopés. Paris : Ed. Ophrys, 1970.
Auxiliadora
Martínez,
da
Silva,
da
da
Universidade
Federal da Bahia onde Milton também atuou como professor, geógrafo
descreve
sua
brasileiro
convivência
destacando
com
o
aspectos
biográficos e da sua produção. Denise
Elias,
que
trabalha
na
Universidade
Estadual do Ceará, apresenta uma classificação ampla da produção de Milton Santos, distinguindo 4 partes: estudos epistemológicos em geografia, análises sobre a cidade em países pobres, estudos sobre o território brasileiro e, por fim, sobre a globalização econômica. Minha
contribuição
analisa
a
globalização,
indicando a crítica do autor ao modelo proposto mas, também, sua proposta de uma globalização solidária. O
professor
Universidad
de
espanhol Barcelona
Horacio destaca
Capel que
da teve
contato com a obra de Milton Santos quando preparava seus estudos sobre Murcia na década
SANTOS, Milton. Les villes du Tiers Monde. Paris : Ed. Genin, Librairies Techniques, 1971. SANTOS, Milton. L'espace partagé. Paris : Ed. Librairies Techniques, 1975. SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana. Rio de Janeiro : Livraria Francisco Alves, 1978. SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo : HUCITEC, 1978. © Copyright Wagner Costa Ribeiro, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: RIBEIRO, W. C. "Milton Santos: aspectos de sua vida e obra". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn124.htm[ISSN: 1138-9788]
14
Milton Santos
MILTON SANTOS: INTELECTUAL, GEÓGRAFO E CIDADÃO INDIGNADO
Marcos Bernardino de Carvalho - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Milton Santos: intelectual, geógrafo e cidadão indignado (Resumo) O geógrafo Milton Santos foi um desses raros pensadores brasileiros cujas reflexões e produção teórica repercutiram não só além das fronteiras de seu país, como também além do âmbito de sua comunidade profissional. Intelectual comprometido com os grandes problemas e questões de seu tempo, sobretudo com aquelas parcelas da população marginalizadas pelo perverso processo de globalização ora em curso, deixou sua marca de indignação e revolta por todos os meios e instrumentos nos quais teve a oportunidade de manifestar suas idéias, fossem eles textos acadêmicos, aulas na universidade, artigos de jornais ou entrevistas nos programas de televisão. Palavras-chave: Milton Santos, Intelectual, Indignação, Filósofos, Geografia Milton Santos: intellectual, geographer and indignated citizen (Abstract) The geographer Milton Santos was one of those rare Brazilian thinkers whose reflections and theoretical production had echoed beyond the borders of his country and also beyond the scope of his professional community. An intellectual compromised to the great issues and contemporary problems, mainly with the situation of the victims of the perverse globalization process, nowadays in course, he left his mark of in dignation and revolt by all ways and instruments -academic papers, university lectures, articles in news paper or interviews in TV- through which he had the chance to express his ideas. Key-Words: Milton Santos, Intellectual, Indignation, Philosophers, Geography
"Outrora, os intelectuais eram homens que, na Universidade ou fora dela, acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com o seu tempo e não devem traí-lo." (Milton Santos)
Edgar Morin em seu livro autobiográfico, Os Meus
colocam
Demônios, no capítulo dedicado à memória e à
formulação teórica, a reflexão, o discurso e o
reflexão de sua trajetória intelectual, indaga:"Que
ensaio reflexivo-, muito a favor da existência
é um intelectual? Quando é que uma pessoa se
humana e muito pouco a favor de sua própria
torna intelectual?" E é o próprio Morin quem
profissão.
responde:"Quer
O intelectual verdadeiro, portanto, dedica-se, na
seja
escritor,
universitário,
cientista, artista ou advogado, só se passa a ser intelectual, no meu sentido, quando se trata por meio de ensaio, de texto de revista, de artigo de jornal de forma especializada e para além do campo
profissional
estrito
dos
problemas
humanos, morais, filosóficos e políticos. É então que o escritor, o filósofo, o cientista se autoinstituem intelectuais."[1] Ou
seja,
segundo
essa
ótica,
o
"título"
de
intelectual só deveria ser concedido aos que tomam partido no tempo em que vivem, aos que falam para fora do âmbito das academias e das universidades, aos que prestam atenção ao que se passa além dos muros corporativos, aos que
o
seu"instrumento
de
trabalho"
-a
maior parte do seu tempo, às grandes questões e a dialogar com pessoas que não seus "colegas de profissão". Por conseguinte, sua atuação e seu grau de excelência não se avaliam mais pelas contribuições
prestadas
à
essa
ou
àquela
corporação profissional. Sua contribuição dá-se numa escala mais ampliada. Condições como as de pertencer à qualquer parcela da elite pensante ou a fragmentos da intelligentsia institucional não lhes são motivo de orgulho. Prefere ver ressaltada a sua condição de intérprete e cúmplice de seu tempo, do que ser reconhecido apenas através do título profissional que eventualmente ainda ostente. Seus títulos
Milton Santos
15
acadêmicos e vínculos corporativos diluem-se
Inconformado com certa intelectualidade, omissa
naquilo que lhe é mais amplamente reconhecido:
e silente, que diante das injustiças se cala e
a
diante da confusão global nada oferece, em uma
condição
de
sábio
e
de
pensador
da
contemporaneidade. Nesse sentido, lembram-nos
de suas últimas obras declarava:
mais os artistas e os filósofos de outras épocas,
"O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta
outros séculos, aos quais se recorria para ter ciência deste e dos outros mundos. Milton
Santos,
personalidade
o número de letrados e diminui o de intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade
que
aqui
se
brasileira?
Tais
letrados,
equivocadamente
homenageia, foi um destes raros pensadores que
assimilados aos intelectuais, ou não pensam para
por suas atividades, suas reflexões e pelos textos
encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade,
que produziu, adquiriu o direito de ser promovido
não a dizem. Nesse caso, não se podem encontrar
a filósofo do nosso tempo. Essa rara condição,
com o futuro, renegando a função principal da
intelectual
posturas
intelectualidade, isto é, o casamento permanente
indignadas que normalmente lhe correspondem,
verdadeiro,
aliada
às
com o porvir, por meio da busca incansada da
são, em nossa opinião, algumas das principais
verdade"[3].
características presentes na trajetória, na obra e
Evidentemente, as universidades e os processos
nas diversas manifestações do velho professor de geografia.
Ao
características
realce, -de
portanto,
intelectual
dessas
indignado-,
pretendemos dedicar essa breve homenagem.
educacionais que as alimentam, dando guarida ou sendo
dirigidos
por
(e
para)
essas
mencionadas"deformações letradas", não seriam poupados desse mesmo tom de críticas Há tempos, Milton Santos voltava sua"artilharia"
O combate à"universidade de resultados"
contra as armadilhas produzidas pelas políticas e
e seus"pesquiseiros"
gerências
A indignação e o compromisso com seu tempo
haviam desviado a universidade, as escolas e toda
levaram Milton Santos a esgrimir palavras e compor manifestações apaixonadas contra todo o tipo
de
injustiça,
recentemente,
de
contra
desigualdade o
que
e,
ele
mais
próprio
denominava de a grande e global"confusão dos espíritos"[2]. Em praticamente nenhuma dessas manifestações o professor foi leniente com o incômodo silêncio e a omissão conivente, diante dos grandes temas e urgências da atualidade, a que muitos de seus pares e as respeitadas (e lentas) instituições que os albergavam costumavam se entregar. Daí, sem muito esforço, é possível observar um traço
a
equivocadas
estrutura
que, em
educacional,
de
sua
opinião,
propósitos
mais
nobres e conectados com os valores profundos da existência
humana,
amesquinhados
para
pelas
os
urgências
itinerários do
chamado
mercado. Nesse desvio de metas se poderia encontrar, segundo o prof. Milton, uma das principais razões da inépcia intelectual e da inércia
social
que
normalmente
lhe
é
correspondente. Em um seu livro de 1987, O Espaço do Cidadão, tais denúncias e análises praticamente costuram o conteúdo que ao longo de toda obra se expõe e podem ser muito bem sintetizadas pelo seguinte
comum às indignadas manifestações com que
trecho:
sempre nos brindou, pois mesmo que tratassem
"A educação corrente e formal, simplificadora das
dos
produziam
realidades do mundo, subordinada à lógica dos
uma"geografia" que, antes de mais nada (e
negócios, subserviente às noções de sucesso,
parafraseando o título que Yves Lacoste deu a um
ensina
de seus mais famosos livros), travava batalhas
destinado
em seu próprio território: o meio intelectual e as
independente do mundo real que nos cerca,
universidades.
condenado
mais
variados
assuntos,
um
humanismo a a
ser ser
um um
ultrapassado,
incapaz
sintética
coisas
das
de
sem
coragem,
corpo
de
doutrina
humanismo atingir
mais
uma
silente, visão
que existem, quando
o
16
Milton Santos
humanismo
verdadeiro
constantemente
tem
renovado,
para
de
ser
temas centrais. As referências e citações que aqui
não
ser
fizemos,
por
exemplo,
foram
extraidas
de
conformista e poder dar resposta às aspirações
contextos dedicados à discussão de temáticas
efetivas da sociedade, necessárias ao trabalho
específicas, tais como, as características gerais do
permanente de recomposição do homem livre,
atual processo de globalização, uma avaliação
para que ele se ponha à altura do seu tempo
geográfica da condição da cidadania no Brasil e
histórico."[4]
reflexões sobre a questão ecológico-ambiental na
Por outros meios, diferentes da interlocução fria,
atualidade.[6]
com público incerto, que as páginas de livros e textos acadêmicos proporcionam, as denúncias e o combate não arrefeciam. Pelo contrário. Nas oportunidades em que podia expor suas idéias olhando nos olhos de seus interlocutores, muitas vezes
seus
pares,
freqüentadores
colegas,
de
seu
alunos
espaço
e
de
outros trabalho
cotidiano, Milton Santos, tornava-se ainda mais contundente nas críticas a uma universidade que se
deixava
corromper
dos"resultados"
e
nas
pela
urgência
denúncias
de
uma
certa"intelectualidade" que a tudo assistia calada, pois, desse processo se beneficiava. Numa aula inaugural
para
alunos
de
sua
faculdade
na
Universidade de São Paulo, disparou: "Em
nome
do
cientismo,
comportamentos
pragmáticos e raciocínios técnicos, que atropelam os
esforços
realidade,
de
são
entendimento impostos
universidade
de
e
abrangente
premiados.
‘resultados’,
é
da
Numa assim
escarmentada a vontade de ser um intelectual genuíno,
empurrando-se
espíritos
para
a
mesmo os
pesquisa
melhores
espasmódica,
Globalização reversível, cidadania por inteiro e um convite a filosofar Os assuntos recorrentes e a forma contundente com que a eles Milton Santos se refere, em cada contexto e a cada nova vez, parecem querer produzir o efeito de compartilhar o profundo desapontamento
com
algumas
instituições,
lugares e personagens dos quais se esperariam papel
protagonista
no
encaminhamento
de
soluções e idéias mobilizadoras, mas que, ao contrário, vinham crescentemente convertendo-se em alguns dos principais obstáculos a serem enfrentados. A combatividade e a indignação do professor, no entanto, não se esgotavam na abordagem dos assuntos recorrentes e, é claro, não arrefeciam, nem
mesmo
quando
ele
se
dedicava
ao
desenvolvimento dos tais temas centrais que os contextualizavam. Apenas com mais
algumas
referências aos exemplos que já mencionamos seria possível constatar isso.
estatisticamente rentável. Essa tendência induzida
Em O espaço do cidadão, por exemplo, numa
tem
época em que muitos acreditavam estar trazendo
efeitos
caricatos,
burocrática
dessa
como
ridícula
a
produção
espécie
de
grandes contribuições, apenas por enaltecer a
verbas
que
conquista
relações
que
chamados"direitos do consumidor", Milton Santos
entretêm com o uso dessas verbas, e que ocupam
denunciou o reducionismo e as consequências
assim a frente da
o saber
nefastas de tais atitudes. Para começar, chamou-
verdadeiro praticamente não encontra canais de
nos a atenção para o fato de que por trás desse
expressão."[5]
enaltecimento e dessa adesão a um conceito
‘pesquiseiros’, manipulam,
Apesar
fortes
pelas
prestigiosos
destas
pelas
cena,
denúncias
enquanto
e
temas
-a
instrumentalização da universidade, a educação simplificadora, a conivência e a omissão dos falsos
intelectuais-,
serem,
como
dissemos,
assuntos recorrentes e obrigatórios em muitas de suas obras, raramente se constituiam nos seus
vazio,
e
a
promoção
estava
em
do
curso
respeito
uma
aos
tentativa
avassaladora de reduzir o sentido da cidadania e a luta por sua conquista (com suas implicações jurídicas, políticas e sociais), a um mero jogo de relacionamentos
de
mercado
e
de
conexões
comerciais:"Em lugar do cidadão formou-se um consumidor,
que
aceita
ser
chamado
de
Milton Santos
17
usuário"[7]. Mas, tomar uma coisa pela outra,
com que muitos tem se entregado ao tratamento
seguia dizendo o velho professor, reduz a idéia de
do tema, apela para a capacidade heróica, que
cidadania a uma mera realização pessoal e,
ainda acredita resistir em alguns dos seus pares,
conseqüentemente,
de desviar esse tratamento para uma rota mais
esvazia
seu
sentido
e
desmobiliza as pessoas, que abdicam dos seus
coadunada
relacionamentos
emprega:
aprimoramento
sociais, dos
da
seus
construção
espaços
e
coletivos
(países, Estados, nações, comunidades etc.), em prol de um falso e irrealizável jogo de conquistas individuais:
com o
espírito
da
Casa
que
os
"O empenho com que nos convocam para tratar, seja como for, as questões do meio ambiente, sem que um espaço maior seja reservado a uma reflexão mais profunda sobre as relações, por
"Quando se confundem cidadão e consumidor, a
intermédio da técnica, seus vetores e atores,
educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem
entre a comunidade humana assim mediatizada e
como conquistas pessoais e não como direitos
a natureza, assim dominada, é típico de uma
sociais. Até mesmo a política passa a ser uma
época e tanto ilustra os riscos que corremos,
função do consumo. Essa segunda natureza vai
como a necessidade de, em todas as áreas do
tomando lugar sempre maior em cada indivíduo, o
saber, agir com heroísmo, se desejamos poder
lugar do cidadão vai ficando menor, e até mesmo
continuar a perseguir a verdade."[11]
a vontade de se tornar cidadão por inteiro se
Por fim, concluindo essa breve série de exemplos,
reduz."[8]
ilustrativos da combatividade com que Milton
Já, na mencionada aula inaugural, 1992: A
Santos se entregou ao tratamento acadêmico de
redescoberta
determinados
da
natureza,
Milton
Santos
temas,
individualmente
midiática
globalização. Aí, em um momento de quase
tem
emprestado
ao
seu
seu
nos
perigo de banalização do tema, a superficialidade se
ao
haviamos
proposto,
que
voltemos
como
aproveitou o ensejo para nos alertar quanto ao
elaborado
último
livro,
uma
outra
-Por
tratamento, além do servilismo oportunista com
rendição
de
tudo
e
que muitos têm se entregado ao filão ambiental,
globalização,
que
muitos
prenhe de verbas, de possibilidades empregatícias
inexorável, inelutável e irreversível, Milton Santos
e comerciais. De saída, anuncia que abordar a
chama a atenção para o caráter perverso e
sério o tema proposto, significa, ao contrário do
totalitário do processo em curso -"vivemos numa
que muitos poderiam pensar, predispor-se a
época
abraçar um nível profundo de reflexão. Nesse
globalização"[12]-,
sentido, convida-nos, antes de mais nada, a
modismos, aposta e deposita suas fichas de
filosofar -"estamos chamados a filosofar e a
esperança
filosofia
conduzir-nos ao conhecimento de uma saída
não
é
mais
um
privilégio
dos
todos
ao
de globalitarismo muito
na
dos
todos pobres
em
alternativa
instalada: "Miseráveis são os que se confessam
atualidade nos impõe, mas deve ser abordado
derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles
cautelosamente, já que nesse assunto a força das
descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho
imagens ameaça aposentar prematuramente os
e de luta. Assim, eles enfrentam e buscam
conceitos.
remédio para suas dificuldades. Nessa condição
cumpre,
urgentemente,
de
tarefa, não nos devemos deixar circunscrever
intelectual."[13] Como não podia deixar de ser,
pelos
de
uma
pesquisa
permanente
não
globalmente
retomá-los e , eventualmente, refazê-los. Nessa ditames
alerta
perversidade
os
a redescoberta da Natureza) é um desses que a
isso,
a
mais que de
ignorando
criatividade
de
consideravam
filósofos"[9]-, e justifica o convite:"O tema (1992:
Por
para
e,
processo
já
têm
repouso
automática,
nesse momento da abordagem, Milton Santos,
instrumentalizada, nem aceitar o pré-requisito de
retorna ao seu tema recorrente, acusando a
nenhum enunciado."[10] Ao encerrar sua aula,
incapacidade dos setores pensantes e vigilantes
após desenvolver as críticas, a que já fizemos
em perceber o potencial de criatividade dos
referência, ao oportunismo e à superficialidade
pobres: "A socialidade urbana pode escapar aos
18
Milton Santos
seus intérpretes, nas faculdades; ou aos seus
Por outros meios, não propriamente acadêmicos,
vigias, nas delegacias de polícia. Mas não aos
mas apropriados e obrigatórios para completar o
atores ativos do drama, sobretudo quando, para
circuito de difusão das idéias e reflexões que
prosseguir vivendo, são obrigados a lutar todos os
identificam
dias."[14] Na conclusão dessa sua derradeira
Santos seguia ousando e debatendo com igual
obra, sugere já haver, em parte graças ao curso
rigor
da própria globlalização, os meios, as técnicas e
Seguia"casado com seu tempo".
as
Na conversa com o grande público, em debates e
idéias
para,
se
quisermos,
tal"irreversibilidade" contemporâneo,
do
processo
dotando-o
efetivamente
mais
subverter
de
a
global
caraterísticas
globalizadas,
isto
é,
menos"globalitárias", e mais sintonizadas com aspirações que conduzam a espaços de vida decentes para todos: processo e a forma atuais da globalização seriam (...)
No
entanto,
essa
visão
repetitiva do mundo confunde o que já foi realizado com as perspectivas de realização. (...) O mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das nova técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso. A dialética entre essa universalidade empírica e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela ideologia dominante, e a possibilidade
de
intelectual
seriedade
de
as
verdade,
suas
Milton
convicções.
diálogos com outros campos do conhecimento, outros poderes e outras instituições, ou em artigos de jornal e, até mesmo, em entrevistas concedidas
aos
programas
de
TV,
o
inconformismo, a indignação e a combatividade emprestada aos temas jamais arrefeceram.
"É muito difundida a idéia segundo a qual o irreversíveis.
e
o
ultrapassar
o
reino
da
necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. (...) Diante do que é o mundo atual,
E apenas considerando as suas manifestações dos últimos anos, já se poderia ter uma ampla confirmação disso, tanto com relação àqueles temas que há pouco chamamos de recorrentes, como em relação a diversos outros assuntos sugeridos pelos momentos ou pelos espaços de divulgação que o instavam a se manifestar. Em
diversos
artigos
e
ensaios
publicados
especialmente em jornais de grande circulação no Brasil, a questão da educação, da universidade e do papel dos intelectuais, jamais deixou de merecer aquele mesmo tratamento, de seriedade indignada,
que
poderíamos
manifestações
e
encontrar
produções
nas
chamadas
acadêmicas.
possibilidade,
Dos intelectuais, por exemplo, seguiu cobrando
acreditamos que as condições materiais já estão
atitudes menos fugazes, menos conjunturalmente
dadas para que se imponha a desejada mutação,
partidarizadas, e mais fundadas nas estruturas de
mas
como
permanência que interessam às aspirações de
serão
conjuntos mais ampliados da população:
como
disponibilidade
seu
destino
disponibilidades
e
como
vai e
depender
de
possibilidades
aproveitadas pela política. Na sua forma material,
"Como no mundo atual nada se faz sem o
unicamente corpórea, as técnicas talvez sejam
respaldo de idéias, é aí que aparece o novo papel
irreversíveis, porque aderem ao território e ao
do intelectual na reconstrução democrática do
cotidiano. De um ponto de vista existencial, elas
Brasil. O intelectual não pode ser dúbio nem
podem
oportunista. Mas, nas circunstâncias atuais, a
obter
significação.
um A
outro
uso
globalização
e
uma
atual
irreversível."[15]
outra
não
é
intelectualidade
é
chamada
a
exercer
uma
militância ambigua, quando voltada a repetir discursos fátuos, slogans e palavras de ordem
Além dos muros da universidade, o circuito se completa
mais destinados à mobilização do que à produção gradual de uma consciência coletiva. (...) Aí entra o papel independente dos intelectuais. Na medida em que estes façam eco às demandas profundas
Milton Santos
das
19
movimentos
quitado porque nomeou um bravo general negro
populares (organizados ou não), servirão como
populações,
expressas
pelos
para a sua Casa Militar e uma notável mulher
vanguarda na edificação de projetos nacionais
negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu
alternativos."[16]
de que falta nomear todos os negros para a
Dos projetos educacionais subordinados às lógicas
grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o
perversas do"pragmatismo triunfante", com sua pressa
por
resultados
e
suas
perspectivas
mercantis, Milton Santos seguiu denunciando suas
ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como
conseqüências nefastas para as escolas e as
se criam reservas indígenas."
universidades, transformadas por esses projetos
E,
em
acrescentou:"Peço
verdadeiros"celeiros
de
deficientes
com
relação
aos
convites
oportunistas,
desculpas
pela
deriva
cívicos."[17]
autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo
Mas, além dos chamados temas recorrentes,
neste ano de comemorações, de vigorosamente
diversos outros também foram abordados nesses meios
não
acadêmicos,
particularmente
em
artigos de jornal. Entre eles, a questão da linguagem,
do
território,
da
tecnologia,
da
globalização, da população negra, da história ou da
geografia,
professor
enfim[18].
seguiu
Para
todos
imprimindo
sua
eles
o
recusar
a
participação
em
atos
públicos
e
programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro - imagem fácil- e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva."[19]
marca
Esse espírito, avesso às tergiversações, franco e
registrada: denúncia, combatividade e indignação,
certeiro quanto aos alvos, pode ser conferido
aliados ao necessário tratamento de rigor e de
também
reflexão aprofundada que os assuntos exigiam.
proporcionadas por outros meios que não só a
O tema do preconceito racial, particularmente
imprensa escrita. Em seminários, palestras ou
sobre a questão do negro no Brasil, não mereceu por
parte
do
professor
nenhum
tratamento
nas
manifestações
diretas,
entrevistas na TV e outros veículos, a presença de Milton Santos passou a ser também bastante
especial. Apesar das expectativas, muitas delas
requisitada nos últimos anos.
alimentadas
em
Nesses casos, dependendo do contexto e da
poucas ocasiões esse tema foi alçado à condição
interlocução, o velho professor temperava suas
de assunto preferencial. E, quando isso acontecia,
manifestações com estilos que poderiam variar da
recebia o mesmo tratamento dispensado aos
ênfase
demais, apenas acrescido de alguma referência
contradições
direta
permitissem apurar.
às
por
tais
vieses
preconceituosos,
expectativas
que
alguns
cortante
à
ou
afabilidade,
identidades
segundo
que
os
as
diálogos
preconceitos ainda alimentavam.
Houve situações que o professor foi bastante duro
Ambos -tratamento e acréscimo-, podem ser
no diálogo, tanto para defender seus pontos de
conferidos em um artigo -"Ser negro no Brasil
vista, sobre quaisquer um daqueles temas acerca
hoje"- em que Milton Santos faz referência ao
dos quais costumava dissertar, como para criticar
mea-culpa da Igreja Católica, por suas atitudes
o próprio papel da mídia ou da instituição que o
com
acolhia.
relação
à
população
negra
e
indígena
durante o período colonial, e também aos convites oportunistas que crescentemente vinham sendo dirigidos ao próprio professor. Com relação ao mea-culpa Católico, afirmou:
Em pelo menos duas ocasiões, mais ou menos recentes,
que
ficaram
marcadas
até
pela
repercussão que provocaram, essas situações de aspereza puderam ser verificadas. Uma delas,
"Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de
num famoso programa de entrevistas da TV
desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um
brasileira[20],
ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica!
proferida na Câmara dos Deputados, quando esta
O próprio presidente da República considera-se
promoveu uma série de seminários por acasião
e,
outra,
em
uma
palestra
20
Milton Santos
dos 500 anos de descoberta do Brasil. Desta
Hoje, completa-se já quase um ano da morte
última, vale à pena, para ilustrar, destacar os
daquele
seguintes trechos:"(...) com a globalização, não
intelectuais. O impacto de sua morte, a triste
são os políticos que fazem política. A política é
perspectiva de sua ausência e a interrupção do
feita pelas grandes empresas. Os políticos são, de
fluxo normalmente impactante de suas idéias,
maneira quase geral, porta-vozes. Eles elaboram
além, é claro, da volumosa produção que deixou
os discursos de interesse da grande empresa,
registrada em dezenas de livros e centenas de
sobretudo
convencidos,
artigos, geraram, ao longo desse último ano,
outros são convencidos, e outros sem estar
inúmeras e justas homenagens. Nelas, diversos
convencidos, falam assim mesmo. Só há uma
aspectos da contribuição teórica de Milton Santos
solução na cabeça e no coração dessas pessoas: é
foram examinados: a condição de geógrafo, a
essa globalização perversa, que modifica o caráter
carreira
da nação."[21]
recebidas, a discussão metodológica, o rigor
Aproveitando o ensejo para reforçar o papel das
científico e a dedicação à reflexão epistemológica.
atitudes e dos personagens nos quais mais
Sobretudo, como sói acontecer nessas ocasiões,
acreditava afirmou, nessa mesma ocasião:"Que
destacou-se reiteradamente a contribuição que o
os deputados não nos ouçam, está bem, mas os
ex-advogado
intelectuais não são feitos para audiência dos
profissional
poderosos. Jamais houve conciliação, por mínima
conseqüentemente,
que fosse, entre alguém que se imagine um
significou para a ciência que praticam.
verdadeiro intelectual e o trabalho cotidiano do
Na sua"cerimônia de adeus", à beira de seu
porque
muitos
estão
homem de poder. Há mesmo uma contradição. O trabalho do intelectual é feito para ser entregue à população, se possível, por meio da sociedade civil e organizada, que inclui os partidos, e, se não possível, de forma selvagem como a presença aqui..."[22] Estilos mais afáveis e receptivos, Milton Santos reservava para aqueles momentos em que os diálogos,
meios
conspirar
para
e a
interlocutores construção
de
pareciam caminhos
favoráveis às novidades, aos vínculos com as tradições e necessidades populares, às conexões dos intelectuais e seus tempos e às percepções integrais dos seres humanos. Exemplos bastante ricos e ilustrativos dessas situações, podem ser claramente observados nas ocasiões em que Milton Santos teve a oportunidade de dialogar com artistas de expressão no Brasil. Em um desses diálogos o próprio Milton Santos sintetiza as razões dessas sintonias: "Quem pensa o novo são os homens do povo e seus filósofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes artistas e alguns intelectuais."[23] ***
que
foi
um
acadêmica
nossos
brilhante,
trouxe de
do
para
a
adoção, a
as
sua
os
perda
principais
láureas
comunidade
geógrafos, que
sua
e,
morte
túmulo, no entanto, os geógrafos se calaram. Respeitosamente
escutaram
artistas,
políticos,
sindicalistas e militantes de movimentos sociais, falarem da importância do velho professor. Para
quem, como Milton Santos, em várias
ocasiões fez questão de deixar clara sua opção pela conduta intelectual que mais admirou, a do filósofo Jean-Paul Sartre, a amplitude dos setores sociais ali presentes e representados, bem como as manifestações que a partir daí se seguiram, indicam claramente que nessa opção, sartriana, ele
logrou
sucesso.
E
lograr
sucesso
nesse
caminho, como aprendemos nas próprias aulas do prof. Milton, equivale a ser reconhecido como alguém que foi"casado com seu tempo" e com as grandes causas da existência humana, a serviço das quais os intelectuais de verdade colocam suas melhores idéias e convicções. Intelectuais assim não existem a rodo. Pelo contrário. Nos tempos que correm, pressionados pelo chamado mercado, pelas"universidades de resultados", desprestígio hegemonia grandes
pela dos da
confusão
valores economia,
corporações,
da
global,
pelo
existência,
pela
pela pela
ditadura
das
urgência
da
Milton Santos
21
instantaneidade, pelo pragmatismo irresponsável, etc., grassam os oportunistas, manipuladores de verbas
e
pensadores
de
ocasião.
Tudo
que
almejam, esses "acadêmicos de resultados", com suas reflexões rápidas, superficiais e descartáveis, é
o
reconhecimento
midiático
e
o
sucesso
financeiro, que aos mais competentes (quer dizer, aos mais competitivos), o tal mercado oferece de bom grado e instantaneamente. Portanto, diante de um ambiente nada propício para os adeptos de uma conduta sartriana e diante da crescente escassez de pensadores que assim se conduzem, a consciência de que se perdeu mais um deles é dolorosa. Talvez para amenizá-la é que nos propusemos a ressaltar aqui, nesta breve homenagem, a faceta de indignação,
presente
nas
obras
e
nas
manifestações apaixonadas do professor Milton Santos. Essa indignação, sobretudo contra a perversidade e a injustiça que submetem grande parte
das
pessoas,
é
que
conduz
alguns
pensadores a abraçarem as grandes causas de seu tempo e se tornarem perenes nos corações e nas mentes daqueles que costumam vivê-lo e sofrê-lo com mais intensidade. Em
tempos
atitudes
mais
fugazes,
de
reflexivas,
desvalorização de
das
baralhamento
e
inflação de signos, de confusão produzida, de banalização dos conceitos e de desrespeito aos que pensam e aos que existem, observar as trajetórias percorridas e indicadas por alguns daqueles raros pensadores, que ainda ousaram propor a desconfusão, subordinar-se aos seus próprios
relógios,
estabelecer
seus
próprios
caminhos, reabrir a história e reafirmar utopias, é nossa obrigação. Notas [1]Morin, 1995, p. 176. [2]Milton Santos em uma de suas últimas obras, em um capítulo destinado à crítica do conteúdo totalitário do atual processo de globalização, exortava:"Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um novo discurso, capaz de desmistificar a competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos." (Santos, 2000, p. 55). [3]Ib., p. 74. [4]Santos, 1987, p. 42 [5]Santos, 1992, p. 11.
[6]São esses os três conjuntos de assuntos que caracterizam os contextos de onde extraímos as três últimas citações mencionadas neste artigo. Os temas referem-se, respectivamente, aos textos mencionados nas útlimas três notas. [7]Santos, 1987, p.13. [8]Ibid. p. 127. [9]Santos, 1992, p. 3 [10]Ibid. [11]Ibid., p. 11 e 12. [12]Santos, 2000, p. 55. [13]Ibid., p.132. [14]Ibid. [15]Ibid., pp 160, 168, 173 e 174. [16]Jornal Folha de São Paulo (FSP), 07/12/97:"As duas esquerdas". Ver também FSP, 20/06/99:"A vontade de abrangência" [17]FSP, 24/01/99:"Os deficientes cívicos". [18]ver, por exemplo, os artigos publicados ao longo dos anos 90, 2000 e 2001, no jornal FSP, especialmente"O recomeço da história" (09/01/2000) ,"Ser negro no Brasil hoje" (7/5/2000),"O tempo despótico da lingua universalizante" (5/11/2000),"O novo século das luzes" (14/01/2001) e"Elogio da lentidão" (11/03/2001) [19] FSP, 7/5/2000. [20]Aqui nos referimos especificamente a uma entrevista concedida por Milton Santos a um dos mais famosos jornalistas da televisão brasileira, Boris Casoy, exibida em rede nacional pela TV Record em 23/04/2000. [21]Santos, M."Que parlamento para o século XXI? Desafios e perspectivas frente à mundialização", 04/04/2000 . Disponível em: http://www.camara.gov.br/ [22] Ibid. [23]Declaração extraída de entrevista concedida a Gilberto Gil, compositor e cantor popular brasileiro, disponível em http://www.gilbertogil.com.br/. V. também diálogo entre Denise Stoklos, atriz e dramaturga brasileira, e Milton Santos, disponível emhttp://www.teatrobrasileiro.com.br/entrevistas/stokl os-santos.htm. Bibliografia MORIN, E. Os Meus Demônios. Lisboa: Publicações Europa-América, 1995. 233 p. SANTOS, M. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 142 p. SANTOS, M. 1992: A Redescoberta da Natureza. São Paulo: FFLCH/USP 1992, (mimeo). 12 p. SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000. 174 p. © Copyright Marcos Bernardino de Carvalho, 2002 - © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: CARVALHO, M. B. "Milton Santos: intelectual, geógrafo e cadadão indignado". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Uni versidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septi embre de 2002 http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
22
Milton Santos
UN PENSAMIENTO SOBRE LA CIUDAD: ALGUNAS REFLEXIONES Ana Fani Alessandri Carlos - Departamento de Geografia - Universidad de São Paulo Un pensamiento sobre la ciudad: algunas reflexiones (Resumen) La obra de Milton Santos no excluye un pensamiento sobre la ciudad y, particularmente, de la metrópoli del tercer mundo - caso de São Paulo (Brasil) que es el foco de su atención en varios libros. La metrópoli es analizada como ejemplo de lugar complejo donde es posible entender el modo como la globalización se realiza, esto porque el proceso de modernización crea las posibilidades de globalización de los lugares como consecuencia de la generalización de las técnicas y de la información. En ese contexto, la ciudad mundial sería aquella que dispondría de instrumentos de comando de la economía y de la sociedad mun dial, tanto por los objetos en que se apoya, cuanto por las relaciones que crea dentro de la nueva división internacional del trabajo. Palabras clave:metrópoli, lugar, globalización A thought on the city: some reflections (Abstract) The work of Milton Santos does not exclude considerations about the city and particularly the Third World metropolis, which is the case of São Paulo, that the focus of attention in his many books. The metropolis is analyzed as a complex place where the globalization process occurs because of the fact that is engen ders the generalization of the techniques and the information, creating the possibility of the globalization of the places. In this context, the world city would be the one that would make use of instruments of command of the economy and the world society, not only through the supporting objects but also through the relationships it creates within the new international division of labour. Key words: metropolis, place, globalization
En la obra de Milton Santos la preocupación con la
de los lugares. En este sentido, la ciudad, como
constitución de un sistema teórico de análisis del
plano vinculado a lo local, se revela, mostrando el
mundo moderno no excluye la lectura crítica de la
movimiento de la globalización, que aparece, para
urbanización brasileña y de la metrópoli de São
el Autor, como nuevo paradigma. Desde el punto
Paulo, en particular[*]. Este análisis se incluye,
de vista metodológico significa que la "era de la
desde mi punto de vista, como un momento de
globalización mucho más que cualquier otra antes
constitución del concepto de "medio técnico-cien
de ella, exige una interpretación sistémica cuida
tífico-informacional" – categoría de análisis de
dosa de modo que permita que cada cosa sea re
manifestación del espacio geográfico en el período
definida en relación con el ámbito planetario"[2].
de la globalización. El desafío del entendimiento
La orientación de las reflexiones de Milton Santos
del mundo, en el final del siglo XX, al cual se de dica el Autor, señala la constitución de una racio nalidad del espacio como consecuencia de las condiciones del mundo contemporáneo y coloca una interrogante importante: ¿qué es lo que mue ve al mundo en su proceso de transformación?
plantea que la Geografía no puede ignorar la constitución de un espacio planetario complejo, sobre todo delante de las profundas y serias transformaciones globales; por lo tanto, se vuelve necesario reflexionar sobre las formas como esos procesos mundiales se constituyen en el espacio
En el centro del proceso, la globalización. Sin em
brasileño, ya que el geógrafo debe contribuir, a
bargo, la globalización es, para Milton Santos, una
través de su trabajo, para profundizar el análisis y
metáfora, cuyo contenido se realiza concretamen
la comprensión de la realidad en lo que ella tiene
te en el plano de los lugares. Ese proceso que
de global y de específico.
permite la creación de una nueva división interna
En su obra, el sentido de la globalización ilumina
cional del trabajo necesita "volver aún más artifi cial el ámbito de la vida y del trabajo, así como la propia vida"[1], lo que lleva a la mundialización
el papel central que el espacio tiene en la explica ción del mundo moderno, oponiéndose a la idea común de que ella viene acompañada por un pro
Milton Santos
23
ceso de desterritorialización. En este sentido, el
eva realidad que sobrepasa la idea de existencia
orden global busca imponer en todos los lugares
particular. En primer lugar, porque la propia idea
su racionalidad, mas este proceso es profunda
de globalización aparece como metáfora, puesto
mente desigual y contradictorio, reproduciéndose
que favorece la espacialización. En este sentido,
en el tercer mundo "como una perversidad"; con
el lugar tiene la dimensión de la realización de un
esto amplía los términos del debate sobre el modo
proceso que se configura por la articulación
como se realiza el proceso capitalista.
local/global; "como cuadro de una referencia
Este proceso se presenta de modo contradictorio,
pragmática del mundo"[4]. En segundo lugar,
pues, para Santos, la globalización viene de afue ra como un dato absoluto, por lo tanto, abstracto, impuesto brutalmente, de modo indiscriminado a las sociedades y a los territorios, instalándose como una nueva forma de usos del territorio, "im poniéndole modificaciones súbitas a los conteni
porque el mundo aparece como algo que no se concretizó completamente, el "mundo no es ape nas un conjunto de posibilidades cuya realización depende de las oportunidades ofrecidas por los lu gares"[5]. El lugar en esta dinámica ofrece al mo vimiento del mundo la posibilidad de su realiza
dos cuantitativos y cualitativos y alterando todas
ción más eficaz.
las relaciones mantenidas dentro de un país, ya
La metrópoli
que el territorio es siempre unitario", en este sen
En este movimiento, las metrópolis son analizadas
tido, "las tensiones ahora reveladas por el territo rio resultan de un conjunto de fuerzas estructura les actuando en los lugares. Por eso, el desorden general se instala, como venganza del territorio contra la perversidad de su uso"[3].
como ejemplos de lugares complejos donde es posible entender el modo como la globalización se realiza. Por lo tanto, podemos afirmar que la obra de Santos revela un contenido y un camino para el análisis de la ciudad, particularmente en el "ter
De este modo es que el análisis de lo local gana
cer mundo", pues el "ciudadano del mundo", al
una nueva realidad ultrapasando/reafirmando la
lanzarse al entendimiento del mundo contemporá
idea de existencia particular, no obstante, sin de
neo, lo hace con los pies puestos en su país, situ
jar de realizarse como posibilidad. Esto porque, la
ación que lo obliga a pensar la realidad brasileña
lectura del espacio, en el plano del lugar, revela
en sus especificidades. Esta condición, de haber
que existe una racionalidad que se pretende he
nacido en un país subdesarrollado, lo llevó a en
gemónica, aumentando la pobreza y la desigual
carar de frente las profundas contradicciones que
dad social, sin dejar de revelar, de forma contra
emanan de la "historia selectiva del espacio" y,
dictoria, la posibilidad de la "insurrección" a partir
con esto, brindó una contribución inestimable
de la cual la acción humana se realiza como posi
para el análisis de la condición del ciudadano en
bilidad creando la base de la constitución de la
los países periféricos.
ciudadanía. En este contexto, la ciudadanía se
De esta manera, el proceso actual de moderniza
constituiría por la acción de los involucrados; aquí el uso, la identidad, la memoria, la emoción, como elementos de lo cotidiano, ganan una di mensión especial en el análisis espacial. A partir de esta lectura, la globalización no es irreversible para Santos.
ción que estamos viviendo como consecuencia de la generalización de las técnicas y de la informa ción, crea para Santos las posibilidades de globali zación de los lugares. La metrópoli como punto de la red, en el territorio más amplio, aparece, por lo tanto, como lugar complejo que se constituye
En su reflexión, la sociedad en proceso se realiza
como medio técnico-científico-informacional, pro
sobre una base material, de este modo, el análisis
ducto de la modernización que lleva los lugares a
del lugar gana una atención especial como cate
globalizarse gracias a la difusión de la informa
goría de análisis; es el lugar que atribuye a las
ción. En este contexto, la ciudad mundial sería
técnicas el principio de realidad histórica relativi
aquella que dispone de instrumentos de comando
zando su uso e integrándolas al conjunto de la vi
de la economía y de la sociedad mundial. Con
da. Por otro lado, la categoría lugar gana una nu
esto, la ciudad gana una nueva dimensión con el
24
Milton Santos
proceso de globalización, tanto por los objetos en
toria general de la urbanización del tercer mundo
que se apoya, como por las relaciones que crea
en relación con las particularidades de la historia
dentro de la nueva división internacional del tra
del país y del lugar. São Paulo, como metrópoli,
bajo que lleva a la mundialización de los lugares
es definida por la historia de un país subdesarrol
(que son las metrópolis). Así, las metrópolis apa
lado en una situación de modernización incomple
recen como "lugares complejos" donde el medio
ta y selectiva, como producto de una yuxtaposi
permitiría la afloración de una multiplicidad de ac
ción de trazos de opulencia y carencias profundas,
tividades localmente complementarias en los di
donde el contraste marca la vida urbana. El peso
versos subespacios metropolitanos, en este senti
de la historia explica la metrópoli de hoy. São
do el medio técnico es diferenciado y adaptado
Paulo sólo se transforma en lo que Milton Santos
para recibirlo.
llama de metrópoli informacional porque antes
El análisis de la metrópoli en el tercer mundo re
conquistó la posición de ciudad industrial. En este
vela, para Santos, la cristalización de una nueva lógica en "puntos del territorio", correspondiente al modo como el período histórico se realiza en esta parte del planeta como "resultado contradic torio de un proceso de modernización que impone nuevas formas de atraso"[6]. En este contexto, las metrópolis aparecerían como lugares de complejos globales articulados por una red; ésta, a su vez, es marcada por una cantidad y calidad que va a distinguir regiones y lugares como condición de la globalización que tiene en la red "la quintaesencia del medio técnico-científicoinformacional". En esta dimensión el territorio brasileño presenta ría una oposición entre el medio técnico-científicoinformacional, que es el espacio del artificio for mado por sobre todo por el sur y por el sureste, y el resto del territorio nacional, revelando la desi gualdad del proceso.
sentido, São Paulo acumularía tres fases históri cas distintas: comercial, industrial, corporativa, capaces de crear las bases para un cambio cuali tativo (en su condición de proceso que se realiza a lo largo del tiempo), permitiendo en la fase ac tual la concentración de "nuevas actividades terci arias" necesarias para la constitución de la metró poli informacional. En este cuadro, el análisis de la metrópoli paulis tana actual revelará algunos elementos importan tes. El primero es la constatación de que el interi or del país, modernizado, se desarrolla, mientras las metrópolis experimentaron un crecimiento re lativamente menor, situación que lleva a Santos a definir este proceso como "involución metropolita na", como resultado de una modernización selec tiva. Significa que "al mismo tiempo en que se puede constatar que en la metrópoli existe mo dernización de las actividades, se verifica la ex pansión de la pobreza". La adaptación de la eco
La metrópoli en Brasil es analizada en dos planos:
nomía a esa involución metropolitana se caracteri
a) la metrópoli como integrante de una red – las
za por una proliferación de actividades con los
metrópolis son "los mayores objetos culturales ja
más diferentes niveles de capital, trabajo, organi
más construidos por el hombre" y deben ser ana
zación y tecnología, menores que en el sector mo
lizadas según "parámetros globales" donde la
derno, que surgen como una forma de suplir la
gran ciudad es un fijo enorme cruzado por flujos
demanda de empleos y servicios provocada por
enormes.
aquella modernización que la economía monopo
b) la metrópoli en su "historia local"; en este pla no la metrópoli es analizada en el cuadro de la economía política revelando la especificidad del lugar en aquello que tiene de específico. Su análisis tiene a la metrópoli de São Paulo como centro y en este estudio de caso va revelando el contenido de la urbanización brasileña; de la his
lista no consigue atender[7]. En esta condición, para Santos, esos sectores absorben un porcenta je significativo de población "marginalizada"; por lo tanto la segmentación de la economía urbana sería una "respuesta sistémica a la involución me tropolitana"[8]. Santos retoma en 1994, en el libro Economia Polí tica da Cidade, su análisis sobre los dos sectores
Milton Santos
25
de la economía de las metrópolis del tercer mun
las actividades del sector de trabajo informal, en
do realizado en la obra Os Dois Circuitos da Eco
conjunto con las dificultades de locomoción en la
nomia de 1979 (circuitos inferior y superior de la
metrópoli, en función de la distancia al centro, del
economía urbana de los países subdesarrollados),
precio y de la extrema deficiencia del sistema de
desarrollando mejor la idea de la existencia de un
transporte colectivo. Tal hecho refuerza la "ten
circuito superior marginal (que funcionaría bajo
dencia a la extensión territorial cada vez mayor
los parámetros modernos compuesto por firmas
del organismo urbano"[10]. La enorme extensión
que operarían en los intersticios de las firmas del
de la ciudad con el crecimiento de las periferias se
circuito superior), y en este sentido revela un
realiza en ritmo rápido, acentuado por la existen
análisis proficuo que permite un entendimiento de
cia de vacíos especulativos urbanos, en las áreas
los conflictos en la metrópoli de São Paulo, entre
centrales de la metrópoli, y en esta localización
el crecimiento de la riqueza y el desarrollo de la
periférica una inmensa población se ve delante de
pobreza, definida en el marco de la existencia de
la accesibilidad diferencial a los servicios urbanos.
una estructura socioeconómica desigual que le
Con esto, la inmovilidad de un gran número de
impide a la metrópoli estallar.
personas lleva a la ciudad a tornarse un conjunto
El análisis sobre la metrópoli paulistana revela el
de guetos, situación que transforma su fragmen
hecho de que la pobreza, para el Autor, no tiene
tación en desintegración. Así, el modelo centro –
apenas una causa económica, sino que también
periferia fundamenta la segregación socioespacial.
geográfica, apoyado en el esquema centro – peri
Sin embargo, el análisis de la metrópoli de São
feria. Este raciocinio revelaría que las áreas de la
Paulo todavía no estaría completo sin la conside
metrópoli se diferencian por los servicios fijados
ración del papel del Estado, cuya acción revelaría
en cada lugar (camas de hospital, escuelas, uni
la "constitución de la metrópoli corporativa" de
dades de salud, etc.) creando:
terminada en el modo como el Estado organiza su
una externalidad en torno del punto donde están
presupuesto y aplica sus recursos para el "estímu
localizados y en función del hecho de ser bienes de consumo positivos o negativos. Bienes de con sumo positivos son los que favorecen y valorizan las localizaciones, y los bienes de consumo nega tivos, por el contrario, son aquellos que desvalori zan o desfavorecen (...). La forma como la ciudad es geográficamente organizada hace con que ella no apenas atraiga personas pobres, sino que ella misma cree más gente pobre. El espacio es, de este modo, instrumental a la producción de po bres y de pobreza: un argumento más para que consideremos el espacio geográfico no sólo como un dato o un reflejo, mas como un factor activo, una instancia de la sociedad, como la economía,
lo de las actividades económicas hegemónicas apoyado en la estricta racionalidad capitalista en nombre del aumento de la producción nacional, de la capacidad de exportación, etc."[11], en de trimento de las aspiraciones sociales, que "condu cen a la formación del fenómeno que llamamos de metrópoli corporativa, orientada esencialmente a la solución de los problemas de las grandes firmas y considerando los demás como cuestiones resi duales"[12]. Este hecho también caracteriza a la urbanización brasileña. De este modo, la posición de São Paulo obliga a la concentración de capital infraestructura económica, en detrimento de las inversiones sociales – lo que estaría en la esencia
la cultura y las instituciones[9].
de la crisis.
Otro desdoblamiento del análisis del esquema
Mas el análisis urbano que deducimos en la obra
centro – periferia se refiere a la idea de inmovili dad relativa a la cual está sujeta una gran parte de la población periférica; o sea, el modelo econó mico
y
lo
que
Santos
llama
de
"modelo
territorial", basado en la fragmentación de la me trópoli, que afectan a los más pobres, acaban fi jando a la población pobre en la periferia, presa a
de Milton Santos, si de un lado muestra una radi ografía sobre la metrópoli del "tercer mundo", re velando sus especificidades y contradicciones pro fundas, de otro lado, la revela como el "único lu gar en que se puede contemplar el mundo con la esperanza de producir un futuro"[13].
26
Milton Santos
Pero, ¿qué es lo que esto significa? Significa que
[7] idem, ibidem, p.94.
el método impone el proyecto, este surge como
[8] idem, ibidem, p.95.
resultado del hecho de que la metrópoli trae en su
[9] Milton Santos, Metrópole Corporativa Frag mentada: o caso de São Paulo, p.59.
proceso de desarrollo el movimiento de las con frontaciones, de los enfrentamientos de las fuer
[10] idem, ibidem, p.90.
zas desencadenadas en el proceso violento de la
[11] idem, ibidem, p.95.
transformación. Así puede nacer un proyecto que
[12] idem, ibidem, p.95-96.
suponga "el pleno reconocimiento de los valores
[13] Milton Santos, O País Distorcido, p.71.
humanos que deben inspirar la elaboración de una política fundada en la justicia social y no en las
[14] Milton Santos, Metrópole Corporativa, op cit, p.112.
consideraciones del lucro"[14].
[15] idem, ibidem, p.110.
En este contexto el profesor Milton Santos trae una contribución significativa al entendimiento de la metrópoli en el "tercer mundo" y al hacerlo pro duce una crítica radical sobre el modo como la globalización se reproduce en el mundo moderno con la primacía de lo económico sobre lo político, de lo instrumental sobre la finalidad, y del dinero sobre el hombre. Revela, en este sentido, el papel del territorio como cuadro de la vida social, de las tensiones y de las acciones que estimulan las transformaciones. De esta forma, la "realidad apunta el futuro como tendencia"[15] capaz de hacernos pensar la globalización en su reversibili dad. Notas [*] Este texto ha sido traducido del portugués por Oscar Alfredo Sobarzo Miño) [1] Milton Santos, Economia Política da Cidade, p.17. [2] Milton Santos, O País Distorcido, p.151. [3] idem, ibidem, p.86. [4] Milton Santos, A Natureza do Espaço, p.258. [5] idem, ibidem, p.271. [6] Milton Santos, A Economia Política da Cidade, p.80.
Bibliografía SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. São Paulo: Hucitec /Educ, 1994. SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora Huci tec, 1996. SANTOS, Milton. (Organização RIBEIRO, Wagner Costa). O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002. © Copyright Ana Fani Alessandri Carlos, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: CARLOS, A. F. A. "Un pensamiento sobre la ciu dad: algunas reflexiones". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geo grafía y ciencias sociales, Universidad de Barcelo na, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
Milton Santos
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MILTON SANTOS EN NEUQUÉN, ARGENTINA: UNA PRESENCIA QUE MARCÓ RUMBOS María Nélida Martinez - Universidad Nacional del Comahue. Neuquén - Argentina Milton Santos en Neuquén, Argentina: una presencia que marcó rumbos (Resumen) Milton Santos ha sido un verdadero ciudadano del mundo. Desde este artículo se presenta una visión de su paso por Argentina, y en especial se reivindica aquel "2° Encuentro Latinoamericano de la Nueva Geo grafía", en 1974, en la ciudad de Neuquén. Este evento no sólo marcó una inflexión entre la Geografía Tradicional y la Geografía Crítica Latinoamericana sino que también fue el inicio de una fecunda relación académica y de amistad, sólo interrumpida en el proceso militar de 1976/83. Fue una reunión científica donde se encontraron geógrafos comprometidos con la realidad social, luego de una larga historia de exi lios. También se recrea la trascendencia que tuvieron los eventos científicos organizados en la Universidad de Sao Paulo, como así también su paso por distintas universidades de Argentina en la década de los años 90. Finalmente se expone un análisis en torno a una de las temáticas que Milton desarrolló en uno de sus últimos libros: el territorio. Palabras clave: eventos científicos, geografia crítica latinoamericana, seminarios, territorio Milton Santos in Neuquén, Argentina: a figure that marked a course (Abstract) Milton Santos has been a true world citizen. This article, presents a vision about his pass through Argenti na, specially recovering that "2° Meeting Latin-American of New Geography", in 1974, en Neuquen's city. This event, not only marked an inflexion between the traditional geography an the critic Latin-American geography, but it also was the start of a prolific academic and friendly relationships, just interrupted in the military process in 1973/83. It was a scientific meeting where were geographers compromised with the social reality, afterwards a large exile history. It also recreates the transcendence that had the scientific events, organized in the Sao Paulo's University, like this, was also his pass through different Argentinean universities in the '90. Finally, there was ex posed an analysis, about one of the themes that was developed by Milton in one of his last books: the territory. Keys words: scientific events, critic Latin-American geography, seminaries, territory El pensamiento de Milton Santos sobre la Geogra
En este trabajo, que constituye un aporte más en
fía -y las Ciencias Sociales- ha marcado una con
homenaje a Milton, queremos compartir la visión
tribución muy importante para la disciplina, por su
que fuimos construyendo de él, a partir de su
rigor y por su original mirada de las problemáticas
paso por la Universidad Nacional del Comahue,
socio-territoriales, desde América Latina. Fue un
desde el "2° Encuentro Latinoamericano de la Nu
intelectual comprometido y crítico que recorrió el
eva Geografía", en 1974, hasta los seminarios,
mundo, aportando con su conocimiento nuevas
conferencias y charlas que mantuvo en distintas
ideas, particularmente pensadas hacia la confor
ocasiones con profesores y alumnos en esta casa
mación de un mundo más solidario. Desde su in
de altos estudios. Por otra parte, también hay que
cursión punzante en los ámbitos académicos eu
destacar la buena predisposición que siempre ha
ropeos y anglosajones denunció y fundamentó en
bía en Milton para responder a nuestros cuestio
conferencias, cursos, artículos y diversas obras, la
namientos o para compartir un momento de ca
desigualdad manifiesta entre los pueblos más ri
maradería. Así, se fue gestando una cercana
cos y los más pobres.
amistad basada en lazos académicos y afectos
Por medio de sus conceptos, teorizaciones y cono
humanos.
cimientos, nuestros aprendizajes ya no se limita
Su legado intelectual a la disciplina y a las Cienci
ron a ideas y ejemplos europeos. Sino que encon
as Sociales ha sido muy extenso: el avance sobre
tramos una estructura conceptual y empírica
la epistemología de la Geografía, la comprensión
acorde a nuestras realidades. Ello nos permitió re
del espacio geográfico dentro del proceso de glo
forzar la forma de producir y transmitir conocimi
balización, el problema de la diversidad regional,
ento en esta parte del continente latinoamericano.
las potencialidades y las posibilidades de la ciuda danía y de los lugares han sido, en términos ge
28
Milton Santos
nerales, algunas temáticas desarrolladas en su
profesional, y nuevos temas que marcaban la rea
obra. Es por ello, que en la última parte de este
lidad, lo que indicaba la preocupación de los que
espacio, y siguiendo su línea de trabajo, se incor
participaron en el evento, para gestar otra Geo
pora un análisis acerca de algunas cuestiones ter
grafía más comprometida.
ritoriales, inspirado en uno de sus libros publica
Hay que destacar que este II Encuentro de
dos recientemente: "La esquizofrenia del territo rio".
Neuquén marcó un hito en la historia de la Geo grafía Latinoamericana, y especialmente en la Ge ografía argentina, ya que por primera vez se esta
El II Encuentro Latinoamericano de la Nueva Geografía, (1974) En Febrero de 1.974 se realizó el "II Encuentro Latinoamericano de la Nueva Geografía", en el marco de la Universidad Nacional del Comahue, Neuquén, Argentina. El Dr. Alfredo Tróccoli More no, geógrafo uruguayo de destacada trayectoria, era en ese entonces el director del Departamento de Geografía, anfitrión del evento. Fue una reu nión científica donde se encontraron geógrafos comprometidos con la realidad social, luego de una larga historia de exilios. Estuvieron invitados el Dr. Pierre George, como referente europeo y propulsor de estas ideas en los jóvenes geógrafos de esa época, y el Dr. Mil ton Santos como referente latinoamericano. La imposibilidad de la presencia de George hizo que Milton Santos destacara la realidad latinoamerica na, en el contexto del Tercer Mundo, fundada en la desigualdad. Esta visión que marcaba la dife rencia socioeconómica del mundo occidental, la perfeccionó en los años de exilio en Tanzania (Africa) y en Francia. Comenta B. Saint Lary que "...en ese momento estaba exiliado de su país por persecución política, y desde entonces ha mante
blecía un contacto humano directo con quienes estaban iniciando otra visión en la disciplina. Sin duda esto permitió la apertura del conocimiento geográfico hacia otra forma de construir la cien cia, ya que sólo conocía autores y científicos tradi cionales como Federico Daus y Rey Balmaceda. En este contexto, Milton mostró la necesidad de construir un cuerpo teórico desde Latinoamérica, que permitiera analizar, comprender y denunciar los complejos procesos territoriales que estaban en marcha. La efervescencia que caracterizó a la Geografía en ese período, quedó trunca con el proceso militar (1976/83), y así se interrumpió una línea de tra bajo y una nueva forma de pensar y hacer la Geo grafía. Esto marcó el estancamiento y la regresión de la disciplina con el consecuente retorno a los viejos enfoques. No obstante quedó marcada la relación y el cariño que Milton Santos tenía por Neuquén. El "I Encuentro de Geógrafos Latinoa mericanos" de 1987, desarrollado en Aguas de Sao Pedro, Brasil, fue el evento en el cual se res tableció nuevamente dicha relación, que perduró, con los geógrafos de Neuquén, hasta su desapari ción física.
nido lazos profesionales y de amistad con los do centes e investigadores del Departamento de Ge
La significación de los eventos
ografía de la UNCo. Fue numerosa la delegación
científicos organizados en la Universidad de
uruguaya que asistió al encuentro, entre cuyos
Sao Paulo
miembros cabe destacar la presencia de Germán
La necesidad de hacer real una discusión discipli
Wettstein, profesor uruguayo. Resulta también importante destacar, al grupo de geógrafos de la Universidad de Buenos Aires, con la presencia de los
profesores
Elena
Chiozza
y
Carlos
Reboratti"[1]. También asistieron colegas de la Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, con la presencia del Dr. Capitanelli. Los temas que se trataron giraron en torno al rol del geógrafo como
nar para la construcción de una Geografía Crítica desde Latinoamérica, con el objeto de compren der los cambios del mundo contemporáneo en el proceso de globalización, llevó al Departamento de Geografía de la Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias Humanas de la Universidad de Sao Paulo, bajo la dirección de Milton Santos, a organizar un
Milton Santos
29
proyecto ambicioso, con distintas actividades que
prender el mundo contemporáneo a través de la
se concretaron en los siguientes eventos:
Geografía.
1. Encuentro Internacional "El nuovo mapa del mundo", en 1992;
El contacto con Milton
2. Seminario "Territorio. Globalización y fragmen
en jornadas y seminarios en Argentina
tación, en 1993;
El primer contacto directo que un grupo de docen
3. Encuentro Internacional "Lugar, formación soci
tes de la Universidad Nacional del Comahue tuvo
oespacial, mundo", en 1994.
con Milton Santos (luego del 1974), fue en Octu
4. Encuentro Internacional . El mundo del ciuda
bre de 1992, cuando el Departamento de Geogra
dano. Un ciudadano del mundo, el cual fue un ho menaje para discutir el pensamiento y la obra de Milton Santos. Milton Santos, profesor titular de esa casa de al tos estudios, fue el ideólogo junto a sus colabora dores, de este movimiento Latinoamericano que nos reunió para reflexionar sobre los procesos ac tuales que estaban transformando a los territori os. La convocatoria a estos encuentros siempre tuvo una respuesta masiva en todos los casos. Ci entíficos y profesores de todo el mundo concurrie ron a ellos, exponiendo sus conferencias y traba jos metodológicos o regionales. Eran verdaderos laboratorios de trabajo intelectual donde se cons truía la Geografía. El Departamento de Geografía de la Universidad Nacional del Comahue, estuvo presente en cada uno de ellos a través de docen
fía de la Facultad de Filosofía y Letras de la Uni versidad de Buenos Aires organizó el Seminario "Sociedad - Naturaleza. La acción del Hombre, las Técnicas. La Producción Social del Tiempo y Espa cio". Cabe aclarar que en esa ocasión, la UBA le otorgó la distinción de "Doctor Honoris Causa". En esa oportunidad fuimos sus alumnos. Eramos un joven grupo de geógrafos de Neuquén, entre otros, quienes estábamos sorprendidos ante la nueva estructura conceptual y metodológica que nos transmitiera Milton. Esa visión, aún inacabada para nosotros y en parte incomprendida en ese momento, fue el comienzo real de nuestra bús queda y compromiso con un trabajo geográfico reflexivo y crítico de la realidad, que se concretó en nuestras investigaciones y actividades docen tes inmediatas.
tes-investigadores que concurrieron con distintos
Sus enseñanzas continuaron luego, en:
trabajos referidos al área Norpatagónica.
- Mayo de 1993, en el Seminario "Globalización y
Así, se produjo un fértil intercambio entre nues
Medio
tras investigaciones y los conocimientos de aquel los geógrafos que hasta ese entonces, y en el nor
Técnico
Científico",
desarrollado
en
el
IDEHAB, Instituto de Estudios del Habitat, de la Facultad de Arquitectura y el Departamento de
te de la Patagonia, sólo teníamos acceso a las nu
Geografía de la Universidad Nacional de La Plata.
evas ideas críticas, a través de sus libros de texto
- Junio de 1993, en el Seminario"Do Meio Natural
y publicaciones. En los encuentros estaban pre
ao Meio Técnico-Científico", organizado por la Uni
sentes Paul Claval, Oliver Dollfus de Francia, Ho
versidad Nacional del Sur, Dto de Geografía,
racio Capel, Joan-Eugení Sanchez, Joaquín Bos
Bahía Blanca.
que Maurel y Aurora García Ballesteros de Es
- Octubre 1993, en el Seminario "Del Paisaje al
paña, Richard Peet, Neil Smith, Saskia Sassen y Eduard Soja de Estados Unidos, Renato Ortiz, Otavio Ianni y Manoel Correia de Andrade de Bra sil, Graciela Uribe Ortega de México, entre otros. Este contacto directo significó presenciar la cons trucción de una nueva manera de hacer Geogra fía. Sin duda, estas reuniones nos marcaron otra forma de estudiar, investigar, transmitir y com
Espacio", dictado en la Universidad Nacional del Comahue, Neuquén. - Diciembre de 1994, en el Seminario "Los Nue vos Mundos de la Geografía", organizado por el Departamento de Geografía de la Universidad Na cional del Sur, Bahía Blanca. - Marzo de 1.997, en el VI Encuentro de Geógra fos Latinoamericanos (EGAL), en Buenos Aires,
30
Milton Santos
donde dictó la conferencia referida a "La fuerza
El territorio gana nuevos contornos, nuevas carac
del lugar. Orden Universal. Orden Local".
terísticas y definiciones. No sólo es un escenario
- Setiembre de 1997 - VIII Jornadas Cuyanas,
donde hay sucesiones temporales de acontecimi
"Pensamiento y Acción", organizadas por el De partamento de Geografía e Instituto de Geografía de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universi dad Nacional de Cuyo, en Mendoza. En esa opor
entos, sino que es un todo que "revela los movi mientos de fondo de la sociedad ... donde los ac tores sociales más poderosos se reservan los me jores pedazos y dejan el resto para los otros",
tunidad se le otorgó el título "Doctor Honoris Cau
(Santos, 2000:79).
sa" y el Prof. Milton ofreció un discurso en torno
"El territorio no es un dato neutro ni un actor pa
al"Espacio Geográfico y su nueva definición".
sivo. Se produce una verdadera esquizofrenia, ya
- Septiembre de 2000, Jornadas de Investigación
que los lugares escogidos acogen y benefician los
en la Universidad Nacional del Sur en Bahía Blan ca, donde se le otorgó el título "Doctor Honoris Causa". Este ha sido nuestro proceso de aprendizaje a tra vés de las enseñanzas de Milton Santos. Hemos compartido sus preocupaciones, sus reflexiones y su contribución teórica-metodológica orientadas hacia las cuestiones actuales y diversas de la Ge ografía. Nos enseñó ha construir una forma de rehacer la geografía, comprendiendo otra inter pretación del mundo, que luego nos facilitó el pro ceso
de
enseñanza-aprendizaje
con
nuestros
alumnos.
vectores de racionalidad dominante, pero también permiten la emergencia de otras formas de vida. Esa esquizofrenia del territorio y del lugar tiene un papel activo en la formación de la conciencia. El espacio geográfico no sólo revela el transcurso de la historia, sino que indica a sus actores el modo de intervenir en él de manera consciente" (Santos, 2000:80). El penúltimo libro que escribió en el año 2000, lo denominó"Por uma outra glo balizcao. Do pensamento único a consciencia uni versal". A un año de su desaparición física quere mos compartir a través de este artículo, algunas de las ideas principales que desarrolla en ese tex to.
Su intervención permanente en los distintos even tos fue de avanzada. Su línea de trabajo, de ca rácter revolucionaria y en ocasiones provocativa,
La violencia de la información
nos dejó las mentes pensantes e inquietas. En
Según el profesor Milton Santos, una de las carac
este marco y como ya se adelantara, se presenta
terísticas del período histórico actual, es el papel
a continuación, una reseña y análisis en torno a
despótico que tiene la información.
una de las temáticas que Milton desarrolló:el ter
El avance de la tecnología en comunicación debe
ritorio..
ría posibilitar el conocimiento del planeta real, sus sistemas sociales, sus sistemas artificiales. Pero
La esquizofrenia del territorio El profesor Milton Santos, geógrafo y pensador brasileño, nos legó con su vasta obra intelectual, una propuesta de interpretación multidisciplinar del mundo contemporáneo. Ideología, globaliza ción perversa, tiranía de la información y el dine ro, confusión de los espíritus, empobrecimiento creciente de las masas son algunos de los concep tos, que entrelazados y contextualizados en nues tra realidad, nos permiten construir un bagaje de ideas para comprender parte de nuestra existen cia.
en realidad los que producen la información, ge neralmente están lejos de que así sea. Por un lado la información es manipulada en función de objetivos particulares y hegemónicos. Y por el otro, la facilidad o la dificultad en la obtención de sucesos de la realidad de los países "libres" o de los "menos libres", hace que se informe una parte del mundo, que al decir verdad, en su funcionami ento constituye un todo interrelacionado. Por lo tanto, sólo se muestra en su parcialidad, lo cual significa mostrarlo a medias. "El evento se le en trega maquillado al lector, al oyente, al telespec tador, y es también por eso que en el mundo de
Milton Santos
31
hoy se producen simultáneamente, fábulas y mi
ternos pasan a participar de la lógica financiera y
tos" (Santos, 2000:40).
del trabajo financiero de esa multinacional. Cuan
Actualmente la información es esencial, impres
do el dinero es expatriado luego puede volver al
cindible. Pero lo que abunda es la noticia manipu lada y superficial que en vez de esclarecer, con funde. "Los eventos se falsifican, porque no es el hecho verdadero lo que los medios nos dan, sino que es una interpretación, esto es, la noticia (...) marcada por los humores, visiones, preconceptos e
intereses
de
las
agencias"
(Santos,
M.,
2000:39). La producción, el poder y el consumo necesitan de la información como propaganda para "vender", es por eso que el discurso antecede a las accio nes, dirigidas a tal propósito. Por ello hay una presencia generalizada de lo ideológico, hecho que confunde ideología con realidad. " Estamos delante de un nuevo "encantamiento del mundo", en el cual el discurso y la retórica son el principio y el fin. Ese imperativo y esa omnipresencia de la información son insidiosos, porque la información actual tiene dos rostros, uno por el cual busca ins truir, y otro, por el cual busca convencer. Este es el trabajo de la publicidad. Si la información tiene hoy, esas dos caras, la cara de convencer se tor na mucho más presente, en la medida en que la publicidad se transformó en algo que anticipa la producción. Las empresas luchan por la supervi vencia y la hegemonía, en función de la competiti vidad, no pueden existir sin la publicidad, pues ella se tornó el nervio del comercio", (Santos, 2000: 39/40).
país de origen en forma de crédito y de divisa, es decir, por intermedio de grandes empresas globa les. Lo que sería impuesto interno se transforma en impuesto externo, por el cual los países deudo res deben pagar cuotas extorsivas. Lo que sale de un país como royalties, inteligencia comprada, pago de servicios o remesa de lucros vuelve como crédito y deuda. Esa es la lógica actual de la in ternacionalización del crédito y de la deuda. La aceptación de un modelo económico en que el pago de la deuda es prioritario implica la acepta ción
de
la
lógica
de
ese
dinero"
(Santos,
2000:43). El sistema financiero internacional no sólo cuenta con la base de megaempresas productoras de bie nes y servicios, sino que también se reproduce con el "blanqueo" de dinero sucio, y viceversa, de los capitales destinados al terrorismo, la venta ile gal de armas, el tráfico de drogas. Los hechos re cientes los confirman. La ausencia de control del origen y destino de estos capitales se ha transfor mado en una nebulosa y en una amenaza para la paz mundial. La suma de dinero que manipulan las redes terroristas es cuantiosa. Para 1990 osci laba entre 800.000 y 900.000 millones de dóla res. Como dato ilustrativo de la magnitud del tema, los expertos han creado un instrumento es tadístico denominado PBC, Producto Bruto Crimi nal. En los últimos 10 años las mafias han acumu lado más de 3.300 millones de dólares, que están esparcidos por el mundo en el sistema financiero.
La violencia del dinero
"Las finanzas mueven la economía y la deforman,
El circuito del capital financiero no tiene fronteras,
llevando sus tentáculos a todos los aspectos de la
ni territorio. Es el compañero inseparable de las
vida. Por eso, es lícito hablar de tiranía del dinero.
grandes empresas porque distribuye y organiza el
Si el dinero en estado puro se tornó despótico,
uso financiero del dinero que ganan. Las empre
eso también se debe al hecho de que todo se tor
sas se mueven en el mundo, en torno a una red
na valor de cambio. La monetarización de la vida
interconectada, cual si fuese un flujo de energía
cotidiana ganó en el mundo entero, un enorme
constante, con un lógica común aplicada en todos
terreno en los últimos 25 años. Esa presencia del
los lugares donde se asienta. El profesor Santos
dinero en todas partes acaba por constituir un
por ejemplo, describe a este movimiento econó
dato
mico global a partir del usufructo de impuestos
cotidiana", (Santos, 2000:44).
que realizan las multinacionales. Al respecto afir ma que "... Cuando una empresa de cualquier país se instala en un país C o D, los impuestos in
amenazador
de
nuestra
existencia
32
Milton Santos
La globalización del terrorismo
referencia a que en el desorden aparente de las
y el territorio
cosas y las personas, siempre se trasluce en
Los territorios de Oriente y Occidente son diferen
esencia la lucha por el poder económico y financi
tes por su pasado histórico, su cultura, su identi dad... Pero con el acto terrorista de New York y Washington, quedó demostrado, que el sistema fi nanciero, y la información ubicó a estos dos mun dos, tornándolo uno. El dinero unificó al planeta en una aldea global, al tomar conciencia que la fi nanciación de los atentados fue concretada con los depósitos de células terroristas en plazas fi
ero en los territorios, ahora, encubierta por pre textos religiosos, y con actores buenos y malos... Ambos, producto de una globalización perversa, que también dejó entrever la peligrosidad de sus excesos y extremismos. Seguramente nos repeti ría incansablemente, que la lucha de los pueblos conscientes unidos por la fuerza de la coopera ción, debería tender a buscar otra globalización.
nancieras de ciudades más importantes del mun do. Desde las capitales europeas a las principales ciudades de EE.UU. La lógica capitalista detallada anteriormente, esparció sus tentáculos en entida
Notas [1] Saint Lary, B: "1972 -1997. Una Historia de 25 años".
des financieras de escala nacional, regional y lo cal. Así por ejemplo, hasta los bancos destinados al fomento de desarrollo local, según la informa ción reciente, no escapan a esta red especulativa que siempre tiene a mano formulas "imaginosas", para seguir reproduciendo las tasas de ganancias de sus inversores. Hasta el lugar menos imagina do del globo está impregnado con este sistema fi nanciero perverso. La creación de paraísos financieros permitió la aplicación de la velocidad e instantaneidad de las técnicas comunicacionales y operativas, posibili tando desde distintos y distantes territorios rea les, realizar operaciones financieras virtuales en apenas 20'. El "nuevo orden mundial" al que habíamos asisti do en los años 90, se ha transformado en un "nu evo desorden". La información y el sistema finan ciero han jugado un papel muy importante en la construcción, casi instantánea, de las conciencias colectivas. Nos preguntamos, cómo interpretaría el Prof. Milton los hechos actuales?. Quizás, haría
Bibliografía SAINT LARY, Beatriz. El Departamento de Geogra fía, Facultad de Humanidades. Un cuarto de siglo de vida universitaria. In Universidad Nacional del Comahue1972-1997. Una Historia de 25 años. Neuquén: Ed EDUCO, 1998. SANTOS, Milton. Por uma outra globalizacao. Do pensamento único a consciencia universal.Sao Paulo: Ed. Record, 2000. SANTOS, Milton. O Brasil. Território e sociedade no inicio do século XXI.Sao Paulo: Ed. Record, 2001. © Copyright María Nélida Martínez, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: MARTÍNEZ, M. N. "Milton Santos en Neuquén, Ar gentina: una presencia que marcó rumbos". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Home naje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista elec trónica de geografía y ciencias sociales, Universi dad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septi embre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn124.htm [ISSN: 1138-9788]
Milton Santos
33
A REGIÃO COMO PROBLEMA PARA MILTON SANTOS Ina Elias de Castro - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Pesquisadora do CNPq A região como problema para Milton Santos (Resumo) Percorrendo alguns trabalhos considerados fundamentais na obra de Milton Santos, a questão que temos em mente para este percurso é: até que ponto suas reflexões sobre a região resultaram objetivamente das mudanças concretas deste objeto de análise geográfica; ou se estas reflexões foram prioritariamente influenciadas pelos parâmetros do modelo de análise de base materialista adotado pelo autor. Esta discussão será balizada pela corrente teórico metodológica que mais fortemente influenciou as reflexões e as posições críticas do autor e também pela tentativa de compreender de que modo a região, um conceito central da geografia, permaneceu como vocábulo em seus trabalhos mas esvaziou-se do seu conteúdo explicativo original. Palavras chave: Milton Santos, região, geografia crítica, modo de produção, espaço geográfico.
Sendo aceito que a diferenciação espacial é uma
passaram
questão central para a geografia, é possível ainda
materialização dos diferentes modos de produção.
pensar a região como um recorte significativo
Neste sentido, a análise da categoria de formação
para a reflexão, análise e pesquisa em geografia? Qual seria a resposta de MS para a questão? Um percurso através de alguns de seus trabalhos nos ajudaria a delinear as possíveis respostas. Este percurso
será
balizado
pela
corrente
teórico
metodológica que mais fortemente influenciou as reflexões e posições críticas do autor e pela tentativa de compreender de que modo a região, um conceito central da geografia, permaneceu em seus trabalhos como vocábulo mas esvaziou-se do seu conteúdo original. A questão que temos em mente neste percurso da obra de Milton Santos é: até que ponto suas reflexões sobre a região resultaram
objetivamente
das
mudanças
concretas deste objeto de análise geográfica; ou se
estas
reflexões
foram
prioritariamente
influenciadas pelos parâmetros do modelo de análise de base materialista utilizados. Os pressupostos conceituais da geografia crítica
a
ser
interpretadas
como
a
econômico social da vertente marxista tornou-se central
na
sua
ambição
de
compreender
o
significado da dimensão espacial nela contida. A partir desta compreensão o autor pôde questionar o
esquecimento,
por
tanto
tempo,
da
"inseparabilidade das realidades e das noções de sociedade e de espaço inerentes à categoria da formação social" e desenvolver uma reflexão original, visando conduzir a uma teoria do espaço, apoiada nos supostos da construção intelectual de uma outra categoria: de formação sócio-espacial (Santos, 1979:p.19). Na construção desta nova categoria para a análise geográfica,
apoiada
nos
fundamentos
da
economia política e do materialismo dialético de Marx,
"a
seqüência
de
relações
econômicas
inelutáveis representavam o motor preponderante do desenvolvimento sócio histórico e a principal chave para compreendê-lo" (Elias, 1994:p.66). Na perspectiva do método marxista adotado então,
Não é possível, pois, situar as reflexões de Milton
"o espaço é fundamentalmente social e histórico,
Santos sobre a região sem situá-lo no paradigma
evolui no quadro diferenciado das sociedades e
da geografia crítica que se impôs à geografia
em relação com as forças externas, de onde mais
brasileira a partir dos anos 70. Esta nova corrente
freqüentemente
realizou uma profunda crítica dos fundamentos
(Santos,1979:p.10).
positivistas tanto dos pressupostos naturalistas da
aponta que "todos os processos que juntos
geografia clássica como das pretensões teoréticas
formam
da revolução quantitativa a partir dos anos 60.
propriamente
Com forte influência da economia política de
consumo)
Marx, as divisões e diferenciações do espaço
determinados num movimento de conjunto, e isto através
o
lhes
modo são de
provém O de
dita,
autor
impulsos"
coerentemente
produção
circulação,
históricos uma
os
e
(produção distribuição,
espacialmente
formação
social"
34
Milton Santos
(Santos,1979:p.14). determinado
Porém,
histórica
e
apesar
espacialmente,
de
sociedade total" (1978, p176). Neste sentido, a
nas
medida que a totalidade e o tempo eram eleitas
versões geográficas o modo de produção tornou-
como categorias
se cada vez mais determinante da história e da
espaço, mais complexa tornava-se sua tarefa de
sociedade e, consequentemente, das diferenças
incorporar às suas reflexões um conceito de
no espaço. Pois, embora "o espaço não [seja]
região
uma simples tela de fundo, inerte e neutro, [as
diferenças do espaço. A categoria escala, por sua
suas] "formas-conteúdo são subordinadas e até
vez, tomada como uma fração do espaço dentro
determinadas pelo modo de produção" (Santos,
do espaço total reforça a perspectiva de um
1979:p.16).
recorte espacial subordinado a um espaço total.
Na perspectiva da determinação histórica, as
Os limites de um conceito de região na
diferenças espaciais explicam-se, portanto, como
vertente marxista
resultado inescapável
Na realidade, ao considerar a totalidade espacial
"do arranjo espacial dos modos de produção
como uma
particulares. O de cada local depende de
lugares e os subespaços, foram considerados
níveis qualitativos e quantitativos dos modos de
como as "áreas que na linguagem tradicional dos
produção e da maneira como eles se combinam.
geógrafos chamam-se mais freqüentemente de
Assim, a organização local da sociedade e do
regiões, [e] devem ser tratados em termos de
espaço reproduz a ordem internacional" (Santos,
subestrutura (são subestruturas para a sociedade
1979:14 apud Santos, 1974:8).
como um todo; para a totalidade espacial são
Neste
sentido,
cada
forma
geográfica
é
representativa de um modo de produção, mas estas
formas
tornam-se
formas
conteúdo,
subordinadas e até determinadas pelo modo de produção. Este constitui, portanto, uma unidade que torna inseparáveis as noções de sociedade e o processo histórico de produção e "abarca a totalidade da unidade da vida social" (Santos, 1979:17) Como pôde ser observado acima, na perspectiva materialista da análise geográfica do autor duas questões
tornaram-se
centrais:
a
formação
econômico social como a totalidade da unidade da vida social e a possibilidade de apreensão do significado particular para cada lugar apenas ao nível desta totalidade (Santos, 1979:18). Nosso autor explicita esta subordinação quando afirma que a noção de lugar e de área se impõem, uma vez que "o acontecer sobre o espaço não é homogêneo".
Mas,
para
compreender
esta
diferença impõe-se "a categoria da escala, isto é, a noção de fração do espaço dentro do espaço total, [pois] o acontecer próprio a um lugar não é indiferente ao acontecer próprio a outro lugar, exatamente pelo fato de que qualquer que seja o acontecer
é
um
produto
do
movimento
da
com
fundamentais
possibilidade
das
do estudo do
explicativa
estruturas
da
para
as
sociedade,
os
simplesmente estruturas)" (Santos, 1978:p.176). Continuando sua argumentação, o autor afirma que
como
o
acontecer
sociedade
como
um
particular
representa
social
todo, uma
depende
cada
da
acontecer
determinação
da
sociedade como um todo em um lugar próprio que o define. Neste caso, é acrescentado "à sua dimensão social original, uma dimensão que é, de uma só vez, temporal e espacial. Lugares e áreas, regiões e subespaços são, pois, unicamente áreas funcionais,
cuja
escala
real
depende
dos
processos" (Santos, 1978:p.176). Em
suas
reflexões
mais
recentes,
Santos
(1996:196-197) destaca a universalidade atual do fenômeno de região e critica a vertente que a nega, uma vez que "nenhum subespaço do planeta pode escapar ao processo conjunto de globalização
e
fragmentação,
isto
é,
individualização e regionalização." Sua crítica se estende também àqueles que acreditam que a expansão do capital hegemônico por todo o planeta teria eliminado as diferenças regionais, o que impediria de se prosseguir pensando em região.
Contra
argumentando,
ele
aponta
a
velocidade das transformações mundiais deste século
como
causa
do
desmoronamento
da
Milton Santos
35
configuração regional do passado e demonstra
Se a noção de região resultante dessa vertente
que esta mesma aceleração do tempo aumenta a
analítica se propôs romper com o naturalismo da
diferenciação dos lugares, pois, já que "o espaço
geografia clássica e com os modelos de análise
se torna mundial, o ecúmeno se redefine, com a
regional da economia neo-clássica, incorporados
extensão a todo ele do fenômeno de região".
pela geografia, deste último ela reproduziu o
Continuando, ele acrescenta que "as regiões são o
critério funcionalista de divisão do espaço, como
suporte e a condição de relações globais que de
bem percebeu Gomes (1995:65). A determinação
outra forma não se realizariam". No entanto, para
da categoria de modo de produção, da forma
ele, a região continua sendo "um espaço de
como
conveniência", pois o que "faz a região não é a
niltoniana,
longevidade do edifício, mas a coerência funcional
qualquer
que a distingue das outras entidades, vizinhas ou
política ou histórica dos recortes regionais. Na
não."
realidade, a centralidade da noção de totalidade
Estas reflexões contêm os problemas fundadores
nas
de um novo olhar para a região como categoria de
análise
da
geografia.
Como
problema
epistemológico a região é tomada como recorte espacial
de
reprodução
da
totalidade;
como
problema empírico ela é vista como expressão das diferenças entre os lugares, diferenças estas provocadas
pelos
globalização, e
eventos
comandados
pela
constitui um recorte espacial
foi
assimilada levou
a
pela
romper-se
possibilidade
reflexões
de
geografia
de
Milton
crítica
também
densidade
Santos
com
cultural,
impediu
a
possibilidade ontológica de pensar a região como um recorte significativo para qualquer nível de explicação em geografia. No entanto, a região tornou-se
uma
noção
paradoxal:
esvaziou-se
como conceito empiricamente útil para explicar as diferenças,
mas
permaneceu
como
vocábulo
indicativo de um recorte espacial tomado para um determinado fim analítico.
funcional às formas de produção. Afetada pela
Na
aceleração dos tempos atuais as formas e os
afetadas por dois cenários importantes: o da crise
conteúdos das regiões mudam repetidamente,
da geografia clássica, que coincidiu com uma
sendo possível que a sua vida seja muito curta.
grande rediscussão da noção região (Gomes,
Após
1995:62),
este
percurso
através
de
algumas
proposições de Milton Santos sobre como refletir e atualizar o conceito de região, dois problemas devem ser aqui apontados. Em primeiro lugar, a perspectiva do fenômeno regional como resultado de uma determinação do alto, o que estabelece por definição uma impossibilidade ontológica de qualquer nível explicativo do recorte regional. Neste caso não é possível falar numa natureza do fenômeno regional, uma vez que o fenômeno real é o modo de produção. A região seria então apenas
um
epifenômeno.
Em
segundo,
a
exigência de o recorte regional ser definido pela funcionalidade dos fenômenos, ou eventos, que podem
ser
breves.
Duas
questões
surgem
realidade,
as
e
reflexões
com
o
do
autor
foram
aprofundamento
das
diferenciações espaciais num mundo globalizado, afetado
pelo
avanço
tecnológico,
pela
competitividade e pela aceleração dos eventos. No primeiro cenário, na ambição de munir a reflexão geográfica de teorias e de modelos analíticos cientificamente consistentes, a região não mais podia ser aceita como uma evidência do mundo
real,
como
produto
de
processos
localizados, auto-referenciados e diferenciadores. No segundo, se não era possível ignorar as diferenças espaciais - antigas e recentes, não era mais possível, no modelo analítico materialista centrado no modo de produção adotado pelo autor,
atribuir
a
esta
categoria
qualquer
imediatamente: sofrendo mudanças na forma e
pressuposto fenomenal ou de temporalidade.
no conteúdo e tendo vida curta, é possível pensar
Há, porém, que se fazer justiça à originalidade da
em região? Qual o valor explicativo para a
obra de Milton Santos, cujas questões centrais
geografia de um conceito que define um recorte
das suas reflexões diziam respeito à elaboração
espacial tão mutante e tão volátil?
da categoria de formação sócio espacial e à discussão
da
idéia
de
meio-técnico-científico-
36
Milton Santos
informacional,
ambos
enriquecedores
da
construtos
analíticos
positivista. No caso da primeira, a qual se filiou
corrente de preocupação com os macro processos
nosso autor, concordamos com Gomes (1995:66)
que
e
quando aponta que "do enxerto dos instrumentos
consequentemente o seu espaço, a região não era
teóricos do materialismo dialético não surgiu um
um problema central. Muito ao contrário, ela já
conceito de região efetivamente operacional e,
tinha se tornado, no debate entre as correntes
muitas vezes, a idéia evolucionista e mecanicista
positivistas e destas com a corrente crítica da
predominou
geografia, um problema menor (Gomes, 1995),
marxista."
ou mesmo um não problema, ou seja, algo sobre
Porém, a realidade é sempre mais complexa do
a
história
geográfica.
economia política como daquela da renovação
Nesta
moldam
análise
da
humanidade
o qual não vale a pena pensar.
revestida
de
um
vocabulário
que nossa capacidade de apreendê-la e tomar
Conclusão
modelos
Respondendo às questões propostas no início,
sempre em empobrecimento disciplinar. Neste
acreditamos
que,
como
um
pensador
da
geografia, Milton Santos foi impactado pelos debates metodológicos ocorridos na disciplina ao longo das décadas de 1960 e de 1970; a partir da
conceituais
como
unívocos
resulta
sentido, a região, definida pelas práticas sociais duráveis em um território, está longe de estar conceitualmente mesmo
se
e
estas
empiricamente práticas
são
esgotada,
definidas
por
década de 1980 ele foi também confrontado com
pertencimentos simbólico em múltiplas escalas.
as profundas transformações da ordem econômica
Como a complexidade do real nos coloca cada vez
e política mundial, afetadas pelas mudanças
mais diante do particular que se articula com o
tecnológicas. Consequentemente, ele foi sensível
geral, da unidade contida no todo e do singular
ao modo como estes macro processos afetavam o
que
espaço, moldavam territórios e influenciavam os
geográfico implica considerar estes paradoxos. Na
lugares e as sociedades locais (Santos, 1988).
realidade, a identidade sócio espacial, o espaço do
Na realidade, por todos os impasses conceituais e
cotidiano,
metodológicos
da
dimensão
regional
dos
fenômenos, a região deixou de ser um problema para
uma
parte
importante
da
comunidade
geográfica (Castro, 1993:60). Alguns geógrafos chegaram mesmo a propor sua substituição por
se
multiplica,
o
problematizar
espaço
da
o
espaço
participação,
da
mobilização e da decisão política, o espaço da administração pública e outros mais definem novas
questões
para
a
investigação
e
estabelecem o desafio metodológico da escala dos fenômenos que dão sentido ao território regional
outros termos. Ann Markusen (1981), integrante
(Castro, 1993:61).
da corrente marxista, propôs substituir o termo
Desde
região por regionalismo; Roger Brunet, geógrafo
individualismo, a existência de múltiplas escalas
francês, organizador da enciclopédia francesa
de relações de poder, o aparecimento de novas
Géographie
passada,
o
retorno
ao
qualquer
estratégias de centro-periferia, os novos arranjos espaciais das solidariedades propiciadas pelas
definiu região comoun mot vide (uma palavra
mudanças
vazia) e propôs substituí-la porcontrée, cuja
novos
etmologia
interlocutores das relações supra-nacionais, a
designa
"um
espaço
origina-se
opposé(oposto),
sem
década
identificação com essa corrente de pensamento,
palavra
Universelle,
a
diferente".
A
decontre(contra),
do
meio
fortalecimento e
ambiente
locais nas
dos como
escalas
é,
planetária e do cotidiano, reclamam da geografia um novo olhar para o território regional, não
1993:61).
apenas como uma engrenagem de uma totalidade
região,
como
problema
para
a
isto
valorização
o
regionais
colocado em frente, sem mediação (Apud Castro, A
immédiate(imediato),
tecnológicas,
poderes
reflexão
geográfica, esteve portanto no centro das críticas, tanto da corrente que elegeu os pressupostos da
impositiva,
mas
como
conteúdo significante.
o
continente
de
um
Milton Santos
Respeitando
a
37
coerência
dos
engajamentos
GOMES, Paulo César da Costa. O conceito de
filosóficos e metodológicos das reflexões de Milton
região e sua discussão. In: CASTRO,I.E. et al.
Santos, bem como sua militância como cidadão, é
(Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de
compreensível o lugar secundário reservado em
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, pp. 49-76.
sua obra para o conceito de região. No entanto,
MARKUSEN, Ann. Região e regionalismo. Um
para avançar a partir do seu legado, melhor que discutir se há ou não validade explicativa para o conceito de região, pois este é um falso debate circunscrito
pelas
correntes metodológicas
da
disciplina, é fundamental buscar um olhar capaz
enfoque marxista. Espaço e Debates, São Paulo, 1(2), 1981, pp. 63-100. SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: HUCITEC, 1978.
de visualizar fatos novos que nos permitam
SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis:
compreender a realidade, projetada em diferentes
Vozes, 1979.
escalas e que se reflete em cada uma delas,
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço
configurando "campos experimentais" (Ferrier,
habitado. São Paulo: HUCITEC, 1988.
1984) para a análise regional.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço habitado. São Paulo: HUCITEC, 1996.
Referências bibliográficas CASTRO, Iná Elias de. Problemas e alternativas
© Copyright Ina Elias de Castro, 2002
metodológicas para a região e para o lugar. In:
© Copyright Scripta Nova, 2002
SOUZA, M.A. et al. (Orgs.).Natureza e sociedade hoje: uma leitura geográfica. São Paulo: HUCITEC/ANPUR, 1993:56-63.
Ficha bibliográfica: CASTRO, I. E. de. "A região como problema para
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio
Milton Santos". In: El ciudadano, la globalización
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta
FERRIER, Jean-Paul. La géographie, ça sert
Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias
d'abord à parler du territoire, ou le métier des
sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm.
géographes. Aix-en-Provence: EDSUD, 1984.
124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
38
Milton Santos
MILTON SANTOS: A TRAJETÓRIA DE UM MESTRE Maria Auxiliadora da Silva - Departamento de Geografia - Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia Milton Santos: a trajetória de um mestre (Resumo) Decorrente da convivência cotidiana ao longo de quase quarenta anos entre a professora Maria Auxiliadora da Silva e o professor Milton Santos, este ensaio é o testemunho da vida de um homem que soube transcender o grau de advogado, de geógrafo e de pesquisador, para se tornar O Cidadão do Mundo, alcunha que lhe é atribuída, afetivamente, por todos aqueles que tiveram o privilégio de desfrutar de sua companhia. Os dados biográficos, ao traçar o perfil de Milton Santos, revelam a figura de um intelectual com profundo domínio da geografia e da produção de uma ciência crítica, bem como seu otimismo e coragem como referenciais maiores do seu compromisso com a construção de uma sociedade livre e despojada de preconceitos. Palavras-chave: Milton Santos, pensamento crítico, geografia brasileira
Brotas de Macaúbas, Chapada Diamantina, 3 de
O curso primário, Milton o fez em Alcobaça, sul do
maio de 1926, nasce Milton Santos, filho de
estado da Bahia, com os pais, que lhe ensinaram
Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco
o francês, entre os oito e dez anos. Ali nasceram
Irineu dos Santos, ambos professores primários
Nailton e Yeda, seus irmãos. Aos 10 anos, prestou
formados
pelo
exame
Educação
Isaías
ICEIA
(Instituto
Alves).
No
Central
ano
de
de
de
admissão
no
Instituto
Baiano
de
seu
Ensino, tradicional colégio de Salvador, dirigido
nascimento, o Brasil passa por uma grande
pelo Professor Hugo Balthazar da Silveira. Passou
agitação política e social, com a impopularidade
em primeiro lugar e foi aceito como aluno interno.
do então Presidente da República do Brasil, Artur
Pela primeira vez longe da família, conhece o
Bernardes e a eleição de Washington Luís. É a
significado da palavra saudade. Foi colega e
época da Coluna Prestes.
amigo
A família de sua mãe, cujos pais eram também
como: Dr. Geraldo Milton da Silveira, Dezildo
professores primários, gozava de prestígio por onde passava. Já a família paterna era mais humilde e descendia de escravos. Os pais de Milton sabiam que o caminho para a liberdade era a educação. Conheceram-se em 1921, a poucos dias da festa de formatura do Sr. Francisco, na escola
Normal
de
Salvador.
D.
Adalgisa
ingressaria na mesma escola em 1924, casandose nesse mesmo ano. Partiram, então, para Brotas de Macaúbas, região da Chapada Diamantina, no estado da Bahia, onde
morava
um
irmão
mais
velho
de
D.
Adalgisa, Dr. Agenor, advogado brilhante na região, conhecedor do latim e do grego. Sua clientela era importante, e seu projeto de vida deu certo, a ponto de ser proprietário de um automóvel,
Ford
Bigode,
que
às
vezes
desaparecia de circulação, já que a gasolina vinha da cidade de Salvador e nem sempre chegava regularmente.
de
Menezes
personalidades Pereira,
ilustres
Methódio
da
Coelho,
cidade, Bernardo
Leone, entre outros. Criou e dirigiu o jornal O Farol, que promovia debates literários e difundia conceitos filosóficos. Mais tarde fundou O Luzeiro, para o qual "redigia textos, incentivava os colegas a fazê-los, revisava-os, fazia a paginação e distribuía o jornal", segundo Geraldo Milton, que acrescenta:
"Nele
eram
publicadas
obras
de
romancistas, contistas, poetas pobres e iniciantes e literatura de cordel." "Na minha geração, ser cultivado fazia parte da vida". Havia o culto a escritores e intelectuais, como Castro Alves, Rui Barbosa, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Eça de Queiroz, cujas obras eram lidas e comentadas. Milton Santos sempre se distinguiu em Matemática e Filosofia. Na Geografia, era admirador de Josué de Castro, que descobriu através de seu professor do curso secundário, Oswaldo Imbassay. Bem mais tarde, os dois, Milton e Josué, exilados na França, reencontraram-se, infelizmente pouco tempo, pois
Milton Santos
39
Josué veio a falecer, sem receber as homenagens
regime político do Estado Novo e da 2ª Guerra
que o Brasil lhe devia. Nessa época, como Milton
Mundial.
costumava dizer, a Bahia era uma ilha, uma
Os pais de Milton, após a longa estada no interior,
cultura não industrializada.
voltaram para Salvador em 1940, estabelecendo-
Terminado o curso no Baiano de Ensino, Milton se
se na casa de D. Maria José, tia de Milton, no
preparava, no Colégio da Bahia, para entrar na
Gravatá, localidade no entorno da Baixa dos
Universidade. A influência do tio Agenor foi
Sapateiros.
fundamental na escolha da carreira. Milton fez a
financiamento
Faculdade de Direito. O Brasil declarava guerra
compram a casa da Estrada da Rainha, onde
aos países do eixo, Alemanha, Itália e Japão.
fundaram uma escolinha que até hoje funciona
Nessa época, criou o Partido Estudantil Popular-
sob a direção da Profª. Altair Gabrielli, prima de
PEP e a Associação Brasileira de Estudantes
Milton.
Secundaristas-ABES, uma alternativa da União
Depois
Nacional
dos
candidato
à
Estudantes-UNE.
Chegou
presidência
UNE,
da
a
ser
mas
foi
aconselhado a trocar sua candidatura para vice, deixando a presidência para um amigo comunista, Mário Alves, com o argumento de que um negro teria
dificuldades
em
interagir
com
as
autoridades. A chapa foi eleita, Milton aceitou o cargo de vice, mas nunca esqueceu esse fato. Participa também da embaixada pró-construção do mausoléu do poeta Castro Alves, e sai com caravana de estudantes pelo interior do Estado, para arrecadar fundos. Foi seu companheiro, entre outros, Geraldo Milton. Nessa ocasião, ministrava
aulas
de
Geografia
Humana,
explicando aos alunos "os novos rumos das relações
políticas
que
a
guerra
vinha
determinando no planeta."
de
Poucos da
anos
Caixa
formado,
depois,
Econômica
Milton
foi
com Federal,
professor
do
segundo grau de Geografia do ICEIA e do Colégio Central. Submeteu-se a concurso com a tese Povoamento da Bahia, passando, então, a ocupar, como catedrático, a cadeira de Geografia Humana do Ginásio Municipal de Ilhéus, na zona do cacau, sul
do
estado,
ocasião
em
que
já
era
correspondente do jornal A Tarde. A maneira como descrevia os fatos e a elegância dos textos fez de Simões Filho, um seu admirador. Auta Rosa Calazans Neto, em conversa informal, conta que, ainda menina, no colégio das freiras, ela e suas colegas, em Ilhéus, admiravam aquele professor que dava aulas no Ginásio Estadual, sempre elegantemente vestido, sem dispensar o colete. Uma dessas meninas, Maria da Conceição Malta morta recentemente, veio a ser, posteriormente, uma das suas colaboradoras no Laboratório de
Já na Faculdade de Direito, Milton empolgava seus
Geomorfologia e Estudos Regionais, que mais
colegas com discursos pela democracia. De seu
tarde seria fundado para os trabalhos de pesquisa
grupo
em Geografia da Universidade Federal da Bahia -
de intelectuais
Santana,
Jacó
Fernando entre
UFBA. Incentivada por ele, como o foram muitos outros, seguiu à França, para curso de Pós-
com a morte do seu tio Agenor, numa travessia
Graduação,
do
Lecarpentier.
São
Falcão,
parte
outros. O término do curso de Direito coincide Rio
João
faziam
Francisco,
Gorender,
quando
voltava
de
onde
se
Recebeu
casa, apoio
tornando-se intelectual
e
Salvador, onde fora articular sua campanha para
financeiro do Dr.Milton e da equipe do Laboratório
deputado estadual. Um episódio entre dois grupos
para a primeira viagem à França. Durante todo
pela disputa do grêmio estudantil da Faculdade de
tempo, permaneceram sempre amigos.
Direito, fez com que Simões Filho, ex-ministro da
Ilhéus foi fundamental para Milton. Lá ele escreve
educação
do
governo
brasileiro
e
dono
do
poderoso jornal A Tarde, conhecesse Milton e o convidasse para trabalhar na redação do jornal quando terminasse a Faculdade. Esse foi o início de uma amizade profunda e duradoura entre os dois. Era uma época movimentada, com o fim do
artigos de grande importância para o jornal e publica o livro A Zona do Cacau, onde já aconselha veementemente as autoridades e os proprietários
de
terra
a
abandonarem
a
monocultura, sob pena de sofrerem um desastre econômico mais tarde. Nessa época, começa a se
40
Milton Santos
interessar pela AGB - Associação de Geógrafos
tarde, esse exemplo seria seguido por Milton
Brasileiros, após uma das viagens ao Rio de
Santos, junto com sua equipe no Laboratório de
Janeiro para curso de férias promovido pelo
Pesquisa em Geografia, fundado em 1959.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Em 1956 por ocasião do Congresso Internacional
-IBGE e onde conhece o geógrafo Aroldo de Azevedo e outros grandes nomes da Geografia da época.
de Geografia no Rio de Janeiro, Milton encontrase com os grandes geógrafos que já conhecia por suas
obras,
tais
como
Orlando
Ribeiro,
de
É em Ilhéus também que conhece Jandira Rocha,
Portugal, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines,
com quem se casa e tem o primeiro filho, Milton
Pierre Birot, André Cailleux e o seu mestre maior
Santos Filho mais tarde, brilhante professor da
Jean Tricart. "Com ele aprendi o rigor, a vontade
Faculdade de Economia da UFBA e ex-Secretário
de disciplina, a obediência a projetos e o gosto de
de Finanças de Salvador, da prefeita Lídice da
discutir"
Mata
-
1993-1997.
Milton
Filho,
dizia
Milton.
Impressionado
com
a
falecido
inteligência e a cultura do jovem professor,
prematuramente em plena fase de produção
Tricart, convida-o para um curso de Doutorado no
intelectual, foi casado com a Ana Fernandes,
Instituto
professora doutora, atual diretora da Faculdade
Strasbourg, um dos mais renomados da Europa.
de Arquitetura da UFBA com quem teve dois
Assim, Milton Santos fez a sua primeira grande
filhos, Nina e Alei. A morte de seu filho, bem
travessia do Atlântico, em direção ao que seria,
como a de seu irmão Nailton, pouco depois, é um
mais tarde, seu segundo país, ao recebê-lo, anos
duro golpe para esse homem tão ligado aos dois.
depois, como exilado.
Por volta de 1955 ou 56, Milton já casado retorna
Em Strasbourg, apesar de ser tratado como
a Salvador, e assiste à formatura de Nailton, seu irmão, também bacharel em Direito. Yeda, sua irmã, então estudante de Medicina, ministrava cursos de inglês, alemão, latim, e espanhol na casa da Estrada da Rainha. Milton aluga um apartamento no Loteamento Lanat, muda-se em seguida para o Tororó, localizado nas imediações do bairro de classe média alta de Nazaré, e, posteriormente para a avenida Centenário, no bairro do Chame-Chame.
de
Geografia
da
Universidade
de
professor, tinha contatos diretos e agradáveis com
os
estudantes
do
mundo
inteiro
que
freqüentavam essa grande Universidade. Sobre ele, escreveu o professor Tricart: "O humor, a alegria, e o sorriso de Milton, classificado como inimitável, conquistaram a simpatia de toda a equipe
da
Universidade".
Milton
Santos
costumava dizer que essa primeira longa viagem foi a "grande mudança da sua visão de mundo em sua concepção política". A partir da Europa,
A essa época, ocupava o cargo de editorialista do
seguiu para o seu primeiro contato com a África,
jornal
Faculdade
e a compreensão dos dois continentes o inspirou a
Católica de Filosofia, cujo diretor, Irmão Gonzaga,
A
Tardee
escrever Marianne em preto e branco- Marianne,
dedicava uma grande amizade e admiração ao
figura feminina, que simboliza a França, publicado
jovem professor. Do jornal A Tarde tinha como
em 1960. Diz Milton, "...a herança francesa é
amigos
o
de
professor
professor
Ari
da
Jorge
muito forte, embora eu tente me libertar dela até
Calmon, esse último, redator chefe do jornal.
Guimarães
e
com certa brutalidade. Mas ela é responsável por
Nesse tempo, as amizades tinham um significado
um estilo independente que aprendi com Sartre,
maior. Durante o tempo em que permaneceu
distante de toda forma de militância, exceto a das
nesse jornal, escreveu 116 artigos versando sobre
idéias".
a zona do cacau, a cidade do Salvador, Europa e
Volta a Bahia, após defender com brilhantismo
África e Cuba e outros temas locais e globais. A formação de Milton muito se deve a Simões Filho, cuja
admiração
era
mútua.
Uma
grande
e
afetuosa família: esse era o caráter que Simões Filho quis imprimir à redação do seu jornal. Mais
sua tese de doutoradoO Centro da Cidade do Salvador, um clássico da Geografia, tão atual como se fosse hoje escrito. Ainda como professor da
Faculdade
Católica
de
Filosofia,
trazia
Milton Santos
professores George,
41
franceses
Jacqueline
-
Jean
Tricart,
Beaujeu-Garnier,
Pierre
e Estudos Regionais da Universidade da Bahia, em
Etienne
1º de Janeiro de 1959. A França – com o General
Juillard, Michel Rochefort, Pierre Monbeig, Guy
De
Lassèrre,
Bernard
Presidência
e
o
Ministro
da
outros,
Educação, André Malraux – abria-se, sobretudo para a América Latina. A essa altura, com equipe
Brito, Fernandes Martins e outros e brasileiros -
já
Manoel Correia de Andrade, Araújo Filho, Aziz
professoras acima citadas, por jovens estudantes
Ab’Saber, Aroldo de Azevedo, Orlando Valverde,
de Geografia e de História e por recém-formados,
Penteado,
Nilo
inicia-se a fase da pesquisa de Geografia da
conferências
Bahia, cujo ensino, na Universidade da Bahia, já
Bernardes, abertas
Rodrigues
entre
ao
e
outros,
público.
dentre
na
portugueses -Orlando Ribeiro, Raquel Soeiro de
Luís
Kayser,
Gaulle
Lyzia
para
Entre
esses
e
professores
organizada,
contava
com
formada
nomes
de
pelas
três
peso
jovens
como
o
dos
encontravam-se também as jovens professoras
professores Dalmo Guimarães Pontual e Waldir
Teresa Cardoso da Silva, Nilda Guerra de Macedo
Freitas Oliveira. Para sediar os trabalhos do
e Ana Dias da Silva Carvalho, as duas primeiras
grupo, o professor de Letras, Hélio Simões cedeu
também recém-doutoras por Strasbourg. Em fins
um
da década de 50, Milton inscreve-se no concurso
Portugueses,
para livre docência da Faculdade de Filosofia da
Filosofia.
Nesse
mesmo
Universidade da Bahia, mas surpreendentemente,
organiza
o
Colóquio
o concurso não se realiza, por razões que o
Brasileiro, com o patrocínio da Universidade da
professor Délio Pinheiro classifica como vinculadas
Bahia e da UNESCO. Nessa ocasião, professores
a uma "oligárquica e segregacionista sociedade
vindos de várias partes do mundo trocaram idéias
baiana de belas gravatas e verdades encobertas."
no campo da Geografia e das ciências sociais.
Milton Santos recorre à justiça, tendo como
A década de 60 pode ser considerada como a
advogado o então Deputado Federal e futuro Senador Nelson Carneiro, vencendo em todas as instâncias e tendo se submetido com brilhantismo ao concurso em 1960, com a tese Os Estudos Regionais e o Futuro da Geografia.
espaço
do
seu
nos IV
laboratório
fundos
da
de
Estudos
Faculdade
ano,
Milton
de
Santos
Internacional
Luso-
época áurea de Geografia na Bahia, pois o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais representou uma proposta acadêmica renovadora. Nele, a ciência geográfica era tratada não apenas como técnica, mas como reflexão. Além de atrair
Após a chegada à Bahia, em 1958, vindo da
jovens vindos de todo o Brasil e da França, no
França, instala seu escritório no Edifício Antônio
Laboratório a motivação era constante: trabalhos
Ferreira,
de campo, seminários, cursos, apresentações de
na
rua
Chile,
centro
histórico
e
administrativo da cidade de então. Nessa ocasião,
trabalhos,
conhece, numa cerimônia, o então reitor da
científicas, enfim, um ambiente de efervescência
Universidade, Edgard Santos. Como é de costume
cultural e científica. Estudos e diagnósticos sobre
na França o cumprimento com um aperto de mão,
Salvador e o estado da Bahia foram realizados
Milton faz esse gesto em direção ao reitor, tido
pela
como aristocrata, que fica impressionado com o
organismos administrativos. O ambiente era de
gesto, com a simpatia e elegância do jovem
troca
professor e, por isso, num encontro dias depois,
Dessa forma, Milton Santos promove a Geografia
encarregou-o de organizar um grupo de pesquisa,
ao status de disciplina nobre, aproximando-a de
em cujo nome, entretanto não deveria figurar a
outras
palavra Geografia, já que a direção não seria dos
sociologia e filosofia.
professores da Faculdade. Assim, com o apoio do
É desse tempo -entre 1959 e 1964-, o trabalho
reitor Edgard Santos e do encontro como o professor Tricart, no Hotel da Bahia, hoje Hotel Tropical - único hotel moderno da cidade daquele tempo,
representando
a
Cooperação
Técnica
Francesa, cria-se o Laboratório de Geomorfologia
leituras
equipe,
a
intelectual
ciências:
exaustivo
comentadas,
partir sem
de
denominado
solicitações
competições
política,
reuniões
negativas.
economia,
Programa
de
de
história,
Estudos
Geomorfológicos e de Geografia Humana da bacia do Rio Paraguaçu da Bahia, estudo que teve o objetivo
de
contribuir
para
a
melhoria
das
42
Milton Santos
condições de vida das populações locais, realizado
eleito presidente da AGB não sem enfrentar, em
por solicitação da Comissão de Planejamento do
Penedo – estado de Alagoas, sede da reunião da
Estado e com o apoio do Instituto Joaquim
AGB
Nabuco de Pernambuco. Um outro grande projeto,
candidatura, sendo veementemente defendido, na
foi o estudo sobre o uso da terra nas zonas
ocasião, por Caio Prado Júnior, então editor da
cacaueira e ocidental do recôncavo baiano, para o
Brasiliense.
Serviço
grande
Social
Rural,
já
com
análise
em
1962,
preconceitos
quanto
à
Um ano depois, realizou-se
sucesso
a
AGB
em
Jequié,
sua
com
sob
a
aerofotogramétrica. Entre 1958 e 1964 foram
presidência de Milton.
publicados mais de 60 títulos, livros e artigos de
A brilhante carreira do Professor tomou vários
revistas, de autoria de professores brasileiros e estrangeiros. Os deslocamentos eram feitos em um Citroën deux-chevaux, modelo especial para trabalho de campo, oferecido pela Cooperação Francesa, que também doou equipamentos para o LGERUB, e no ônibus da recém fundada Escola de Geologia da Universidade.
rumos quando Jânio Quadros, eleito Presidente da República em 1961, mostrou desejo de levar, na sua viagem a Cuba, um dos redatores do jornal A TARDE, e o professor Jorge Calmon, redator-chefe do jornal, indicou Milton Santos. Essa viagem aproximou os dois, Jânio e Milton, e, logo após ser
empossado,
Jânio
o
convidou
para
ser
Era nessa época que o Dr. Thales de Azevedo,
subchefe da casa civil na Bahia, cargo que
então
o
exerceu durante o curto mandato do presidente,
Desenvolvimento da Ciência, na Bahia, mantinha
que renunciou após nove meses. Nessa ocasião,
um
propôs a Jânio, medidas como punições a bancos
diretor seminário
geógrafos,
da
Fundação
freqüentado
economistas,
por
para
sociólogos,
antropólogos.
Nele,
e exportadores, e imposto sobre as grandes
distinguiam-se intelectuais como Jorge Calmon,
fortunas, o que foi acatado pelo presidente.
Frederico Edelweiss, Raymond Vander Haegen,
Logo depois, o governador da Bahia, Lomanto
cônsul da França e diretor da excelente Casa da França, Clarival do Prado Valadares, Pinto de Aguiar, Luis Navarro de Brito, Valentin Calderon, José Calazans, Luis Henrique Tavares, Edite da Gama e Abreu, Isaias Alves, Lísia e Vital Duarte, Fernando Santana, e os muito jovens Fernando Pedrão, Severo Salles e Remy de Souza, entre outros. Nesse ambiente, cria-se o Boletim Baiano de Geografia, que se manteve até 1969, e publicava artigos de geógrafos do Brasil e da França.
Júnior o nomeou presidente da Comissão de Planejamento Econômico - CPE, cargo que ele deixou em 1964. Durante o exercício desse cargo, entre 1963 e 1964, Milton Santos tratou de temas de política econômica e planejamento regional, a partir de uma perspectiva científica, utilizando-se da
linguagem acadêmica. Apesar de exercer
cargos tão importantes, nunca negligenciou seu trabalho no Laboratório. Aquela casa de pesquisa e de trabalho funcionava como uma grande família, onde a confiança, a solidariedade e o
Nessa época, destacam-se, ainda outros centros
companheirismo
de ensino e pesquisa, tais como o Instituto de
desejaram tiveram a oportunidade de realizar
Economia e Finanças, o Gabinete de Estudos
cursos de pós-graduação na França ou na África,
Portugueses,
desenvolvendo
o
Laboratório
de
Fonética
e
o
Gabinete de Filologia Românica. Durante
todo
esse
período,
eram
suas
a
tônica.
aptidões,
Todos
que
sempre
estimulados pelo professor Milton Santos, que a
equipe
do
Laboratório participava ativamente das reuniões anuais da Associação de Geógrafos Brasileiros -AGB, nas quais se estudava, exaustivamente, a
transmitia, além de ensinamentos, motivações e autoconfiança, através do pensamento autônomo, crítico e criativo. Com sua capacidade inconteste de gestor, compreendia diferenças e incentivava a
cidade sede do encontro e seu entorno.Durante
produção.
15
intelectual
A implantação de uma nova filosofia de trabalho
importante na época. Em 63, Milton Santos foi
em Geografia, até então inexistente no Brasil,
dias,
a
AGB,
era
o
espaço
Milton Santos
43
abre espaços para
a geração de pesquisas,
cidadão e de intelectual, mas o Brasil fechou-lhe
capazes de movimentar outras mentes e acionar
as fronteiras. Em dezembro, conheceu uma das
novas idéias.
suas experiências mais dolorosas: deixar o Brasil,
Em meio a esse clima, é colhido pela longa noite
seu
iniciada em 1964. Avisado de que corria perigo, é convidado pelo professor Van der Haegen, cônsul honorário da França, para abrigar-se em sua casa, ao tempo em que Nailton, seu irmão, é acolhido na casa de Celso Furtado. De nada adiantou para Milton: enquanto Nailton, ainda em abril, partia para o México de onde, só lá
filho
Miltinho
–
o
casamento
já
tinha
terminado –, sua família, seus amigos, suas raízes. Partiu para a Universidade de Toulouse Le Mirail,
onde
o
professor
Bernard
Kaiser,
o
esperava, tentando proporcionar-lhe um ambiente de trabalho favorável e oferecendo-lhe amizade de irmão. Mais tarde, na mesma Universidade, recebeu o título de Dr. Honoris Causa, o primeiro
chegando, comunicou-se com a família, Milton era
dos 20 que receberia durante toda a sua vida.
preso e enviado para o quartel militar do 19º BC,
É preciso dizer que, embora afastado fisicamente,
no bairro do Cabula, um fim de mundo, na época,
Milton esteve intelectual e emocionalmente ligado
onde parte de sua equipe do Laboratório e seus
à Bahia, e foram muitos os trabalhos que aqui
amigos iam diariamente visitá-lo, sem poder
continuaram a se realizar sob sua orientação. As
aproximar-se muito. Com ele, na cela, no espaço
professoras
doméstico, ficaram Auto de Castro, professor de
posteriormente, Tereza Cardoso da Silva, no
Filosofia da Universidade da Bahia, e o engenheiro
Laboratório, continuavam o trabalho de Milton,
Ernesto Dremher, superintendente da Refinaria de
dirigindo a equipe por ele formada.
Petróleo da Bahia, Landulfo Alves.
De Toulouse, onde ficou por três anos, Milton
Sobre Milton, diz Auto de Castro:
Santos fixa-se em Bordeaux. Lá, entre os seus
"Em 1949, conheci Milton. A Bahia, nessa época,
alunos, havia uma que se distinguia dos demais,
era muito pequena. Havia uma convergência social para a rua Chile; a elite da Bahia se reunia no Café de Bernadete, que era a sede do Partido Socialista. Era uma portinha junto a Livraria Civilização Brasileira, mais tarde sede da Viação Aérea São Paulo - VASP. Intelectuais, poetas, gente da Academia de Letras e políticos aí se reuniam, enquanto moças casadouras, senhoras da sociedade e até a burguesia baiana desfilavam entre às 16:00 e 18:30 na rua famosa. Naquela época, havia um espirito na cidade: comentários, anedotas
e
imediatamente
todos
os
fatos
conhecidos
políticos na
rua
Antônia
Déa
Erdens
e,
Marie Hélène Tiercelin, que mais tarde viria a ser sua mulher, nos últimos quase trinta anos, mãe de seu segundo filho, Rafael. Marie Hélène foi um marco
em
sua
vida
pessoal
e
intelectual.
Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranqüilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele idéias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros. Observa-se que a fase de grande produção intelectual de Milton começou em início de 70,
eram
com Marie Hélène.
Chile,
A partir de 1964, também começa a sua longa
devidamente desdobrados e criticados. Hoje não
trajetória pelo mundo. De Bordeaux, onde fica
existe mais isso – a cidade cresceu muito e
durante um ano vai para Paris, onde convive com
perdeu esse espírito."
amigos
Enquanto esteve na prisão, chegavam cartas e
Rochefort,
convites de várias Universidades francesas. O próprio Van der Haegen serviu de intermediário entre o governo francês e o Coronel Humberto Melo, responsável pelo 19º BC, segundo ainda Auto de Castro. Na véspera de São João, devido a um inicio de derrame, foi levado ao hospital e depois solto. Tentou ainda continuar sua vida de
franceses, Jacqueline
entre
os
quais
Beaujeu-Garnier,
Michel Pierre
George, Guy Lassère, George e Niki Coutsinas, Oliver Dolffus, Jacques Levi e brasileiros entre os quais Miota e Luís Navarro de Brito, Miguel Arraes – ex-governador do estado de Pernambuco, Celso Furtado
–
fundador
da
Superintendência
de
Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, além de alunos brasileiros que se encontravam cursando o
44
Milton Santos
doutorado nas diversas universidades francesas.
Brasil num curso de extensão sobre A Cidade
Para a Venezuela, onde foi contratado para
Mundial de Nossos Dias. Nasce Rafael, em julho
estudar Caracas no programa Venezuela Hoje,
de 1977.
financiado pelo governo da Venezuela e pela ONU,
A Universidade Federal da Bahia, entretanto, não
segundo informações da professora Drª Antônia Déa Erdens, leva consigo alguns colaboradores: dois brasileiros, a própria Antônia Dea e Lícia do Prado Valadares, e duas francesas: professora Hélène Lamicq – da Universidade de Creteil - FR – e Marie Hélène Tiercelin. Antes de seguir para Toronto, casa-se, no Haiti, em 1972, com Marie Hélène.
Viajam,
assim,
para
a
Universidade
Politécnica de Lima - 73, Dar-es-Salaam - 74-76, onde se torna amigo do então presidente Nyerere. Daí segue para a Columbia - NY 76-77 e volta à Venezuela
-
75-76.
Foi
também
professor
pesquisador durante dois anos do Massachuselts Institute of Technology, quando
então
é
Cambridge
convidado
para
- 71-72,
fundar
um
Laboratório de Geografia na Nigéria, África.
se interessa por reintegra-lo como professor. Em anos anteriores, vários reitores foram procurados para
que
trouxessem
Milton
do
seu
exílio.
Algumas promessas foram feitas, em vão. A Universidade
Federal
da
Bahia,
em
1977,
continuou em silêncio, assim como as demais universidades do Brasil, com exceção do Rio Grande do Sul. Milton Santos vai para o sul, trabalha entre São Paulo e Rio de Janeiro como consultor. Em São Paulo, é convidado por sua amiga Maria Adélia Aparecida de Souza, na época coordenadora de Ação Regional do governo Paulo Egydio Martins, para trabalhar como consultor, enquanto
não
conseguia
uma
função
na
Universidade. Em 1979, vai para o Rio de Janeiro onde é contratado como professor assistente, ou
Marie Hélène está grávida de Rafael. Como um
seja, com função de um iniciante de carreira.
presente para Milton, para que seu filho nascesse
Continuou
baiano, Marie Hélène decide vir à Bahia. Era o
Foram anos difíceis, pelo fato de não saber o que
pretexto
em
lhe reservava o futuro, para ele e sua pequena
definitivo ao Brasil, já que as duas vezes que aqui
família. Finalmente,em 1984, com o apoio de
esteve, antes de 1977 – uma das quais para a
jovens professores, submete-se ao concurso para
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência -
titular na Universidade de São Paulo - USP. Foi
SBPC, e a convite da professora Maria de Azevedo
fundamental, nesse momento, o apoio dos amigos
Brandão
que
–
ele
foram
precisava
para
esporádicos.
Milton
Maria Adélia Souza e Araújo Filho, da mesma forma que a professora Maria do Carmo tinha
Bahia pois, não sabia como iria reagir aos abraços
sido, na Universidade Federal do Rio de Janeiro
daqueles que em 64 lhe viraram as costas.
-UFRJ.
Durante os treze anos que esteve fora do país,
pesquisadores nos mesmos moldes do antigo
estruturou a base do pensamento que analisa o
Laboratório de Geomorfologia, os quais continuam
impacto social provocado pelo desenvolvimento
até hoje. A partir daí, a carreira brilhante de
urbano
volta,
Milton Santos começou a decolar no Brasil, apesar
conhecido e admirado mundialmente, já com
de já ser conhecido no mundo inteiro. Os convites
várias obras publicadas. Trazia um novo livro que
do exterior continuaram.
iria revolucionar a Geografia pelos seus conceitos,
Foi
e
econômico.
rápidas.
trabalhos
costumava dizer que tinha receio de voltar à
político
passagens
voltar
realizando
Milton
Por uma Geografia Nova, dedicado a geógrafa Lígia Ferraro, sua amiga, morta prematuramente. O lançamento do livro aconteceu na Livraria Civilização Brasileira da Avenida Sete, nas Mercês, centro histórico de Salvador. No mesmo ano, professor Milton enche um auditório do Instituto de Geociências da UFBA, com cerca de 200 pessoas vindas de todas as partes da Bahia e do
Na
professor
USP,
manteve
visitante
da
um
grupo
Universidade
de
de
Stanford, na Cátedra de Joaquim Nabuco - 97-98. Foi Diretor de Estudos em Ciências Sociais, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais- Paris 1998. Consultor das Nações Unidas, OIT, OEA e UNESCO. Consultor junto aos governos da Argélia e
Guiné
Federal
Bissau. da
Consultor Venezuela
junto para
ao
Senado questões
metropolitanas. Membro do comitê assessor do
Milton Santos
CNPq
e
45
ex-coordenador
de
20 personalidades; Prêmio Jabuti - melhor livro
Coordenação dos Comitês Assessores do CNPq -
de Ciências Humanas - 1997, com A natureza do
82-85. Coordenador da área de Arquitetura e
Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção,
Urbanismo
da
da
a
Hucitec, São Paulo, 1996; Prêmio UNESCO na
Pesquisa no Estado de São Paulo - FAPESP - 91-
categoria Ciência, 2ª edição, Organização das
94.
Nações
Membro
Fundação
Comissão
da
para
o
Amparo
Comissão de Alto
nível
do
Unidas
para
a
Educação,
Ciência
e
Ministério da Educação, encarregada de estudar a
Cultura, Brasília, 2000. Seu último prêmio foi o
situação de ensino no país - 98-90. Membro da
Multicultural Estadão Cultura, em junho de 2000,
comissão especial da Assembléia Constituinte do
concorrendo
estado da Bahia, encarregado de redigir um ante-
sendo votado por milhares de brasileiros. Numa
projeto de Constituição Estadual - 89. Presidente
cerimônia carregada de emoção e beleza, disse:
da
"Considero a indicação do prêmio Multicultural
Associação
Nacional
de
Pós-graduação
e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR - 91-93. Presidente da Associação de Pósgraduação e Pesquisa em Geografia – ANPEGE 93-95.
com
inúmeras
personalidades
e
Estadão Cultura como um presente expressivo que coroa, de alguma forma, o meu trabalho intelectual [...] Meu desejo secreto, o desejo dos pensadores, e é difícil confessa-lo, é que o seu
Em 1994, recebeu o Prêmio Internacional Vautrin
trabalho possa ter alguma repercussão, sobretudo
Lud, correspondente ao Nobel da Geografia, tendo
quando ele ultrapassa os limites da sua própria
como proponente o professor Jorge Gaspar, da
área e da universidade. O fato de seu o trabalho
Universidade de Lisboa. Costumava dizer que, a
ter uma visibilidade em camadas mais amplas da
partir desse prêmio, a mídia brasileira lhe abrira
sociedade dá ao seu autor, não a certeza que ele
as portas. Recebeu-o na pequena cidade de Saint-
tenha o aplauso geral, mas um certo conforto de
Dié des Vosges, coincidentemente na região da
ver que o seu discurso não é um discurso
cidade de Strasbourg onde havia defendido, na
fechado. Agradeço a todos que votaram em mim,
década de 50, o seu doutorado. Pela primeira vez
aos meus amigos e ofereço esse prêmio a todos
na história desse prêmio, ele era outorgado a um
os
geógrafo que não era nem francês nem norte-
intelectuais."
americano.
Entre 1980 e 2000, Milton recebeu vinte títulos de
Milton
Santos
recebeu
esperam
de
seus
dezenas de medalhas, tais como: Medalha de
América Latina e da Europa. Publicou mais de
Mérito, Universidad de La Habana, Cuba, 1994;
quarenta livros e mais de 300 artigos em revistas
Colar do Centenário - Conjunto de Obra em
cientificas, em português, francês, espanhol e
Geografia - Instituto Histórico e Geográfico de São
inglês. Seu último livro, publicado em 2001 pela
Paulo, 1997; Ordem 16 de setembro – Primeira
editora
Classe, Estado de Mérida, Venezuela, 1998; 11ª
Sociedade no Inicio do Século XXI. Organizou
Medalha Chico Mendes de Resistência, Grupo
diversos livros, números especiais de revistas
Tortura
1999;
cientificas em português, francês e inglês. Fez
Medalha do Mérito, Fundação Joaquim Nabuco,
pesquisas e conferências em diversos países,
Recife, 1999, entre outras. Dentre os prêmios
dentre os quais: Japão, México, Colômbia, Costa
destacam-se:
Vozes
Rio
de
de
tanto
Dr. Honoris Causa de Universidades do Brasil, da
Mais,
mais
que
duas
Nunca
ainda
brasileiros
Janeiro,
Brasil:
Território
e
do
Rica, Índia, Argentina, Uruguai, Tunísia, Argélia, Costa do Marfim, Benin, Togo, Gana, Panamá,
1997;
Nicarágua,
Espanha,
Dominicana,
Cuba,
Personalidade do
Brasil,
do
Ano,
Rio
de
do Final
foi:O
Milênio, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, Arquitetos
Expressivas
Record,
Instituto Janeiro,
de
1997;
Venezuela,
Portugal,
República
Estados
Unidos,
Peru,
Inglaterra,
França,
Homem de Idéias, 1998, Caderno Idéias, Jornal
Tanzânia,
do Brasil, Rio de Janeiro, 1998; O Brasileiro do
Bélgica, Senegal e Itália. Concedeu inúmeras
Suíça,
Século, Revista Isto É, 1999 - laureado na
entrevistas à mídia falada e escrita, a entidades
categoria Educação, Ciência e Tecnologia, entre
diversas, a estudantes, etc.
46
Milton Santos
Em 1996, para os seus 70 anos, amigos se
vida e nas universidades brasileiras. Apesar das
reuniram para prestar-lhe uma homenagem, no
vicissitudes,
Seminário
construir,
Internacional,
em
São
Paulo,
procura
aí
sim,
exercer um
o
seu
profundo
labor
e
pensamento
denominado - O mundo do Cidadão. Um cidadão
teórico e político que o Brasil e os brasileiros
do mundo. Nessa ocasião, foi lançado o livro com
necessariamente, aos poucos estão tendo de
o
67
conhecer e admirar. Milton se instala, não como
intelectuais e amigos de todas as partes do
herói que volta carregado nos braços do povo
mundo, acolhidos na ocasião pela USP, entre os
mas, difícil, cautelosa e profundamente vai se
quais,
mesmo
nome,
Manoel
com
depoimentos
Correia
de
Maurício
impondo como um dos principais pensadores e
Abreu, Aurora Garcia Ballesteros, Paul Claval,
intelectuais brasileiros, com um pensamento e
Leila Dias, Inês Costa Ferreira, Octavio Ianni,
uma posição política profundos e inarredáveis. No
Rosa Ester Rossini, Armen Mamigonian, Joaquim
exílio, se dedica obstinadamente aos estudos. É aí
Bosque Maurel, Rui Moreira, Aldo Paviani, Richard
que fundamenta, sem dúvida nenhuma, sua obra
Peet, Ana Clara Torres Ribeiro, Teresa Barata
posterior."
Salgueiro,
Além das universidades francesas, americanas e
David Slater,
Andrade,
de
Neil
Smith,
Marlene
d`Aragão Carneiro, Teresa Cardoso da Silva, José Estebanez Alvarez, Jacques Lévy, Creuza Santos Lage, Neyde Maria Gonçalves, Sílvio Dvorecki, Saskia Sassen, Maria Azevedo Brandão, Délio Ferraz Pinheiro, Carlos Reboratti, Graciela Ortega, Daniel
Hiernaux-Nicolas,
Jorge
Gaspar,
Pedro
Geiger, Ruy Moreira, Adir Rodrigues, Ana Fani Carlos, Pablo Ciccolella, José Borzacchiello, Ana Clara Ribeiro, José Estabanez Álvarez, Miguel Panadero, Ana Maria Gicoechea, Terence McGee, Germân Wettstein, Maria Auxiliadora da Silva, Remy Knafou, Pedro Vasconcelos, Sílvio Bandeira de Melo entre tantos outros. A professora Maria Adélia Aparecida de Souza e o grupo de jovens mestrandos e doutorandos do professor Milton Santos na USP, organizaram a cerimônia. O livro foi organizado pela professora Maria Adélia de
latino-americanas, da África e da Ásia, Milton Santos colaborou ainda com a Complutense de Madrid, de Barcelona e de Lisboa. Na trajetória de Milton Santos é importante relembrar
sua
disponibilidade
para
com
os
amigos, para com os jovens, seu interesse por eles, sua percepção aguçada que fez de cada um que privou de sua amizade, sentir-se o único. Essa
afeição
também
atingiu
amigos
como
Octávio Ianni, Gervásio Neves e Michel Patty, Joaquim Bosque Maurel, Paul Claval, Jacques Hubschman. Estar ao lado do professor Milton Santos traz a segurança de estar perto da sabedoria. Sua presença é forte e ao mesmo tempo suave e sua energia, vontade e alegria são contagiantes.
dos
Em 24 de junho de 2001 a saudade toma o lugar
professores George Benko, de Paris-Sorbonne;
de sua presença generosa, do seu sorriso aberto,
Hélène Lamicq, da Universidade de Creteil; Milton
de sua fala firme e suave, ficando a certeza de
Santos Filho, da Faculdade de Economia da UFBA;
termos convivido com quem soube, mais do que
Luiz Cruz Lima, da Universidade do Ceará e Maria
ninguém, defender a construção de um mundo
Auxiliadora da Silva, da UFBA. Esta cerimonia
mais humano.
marcou o reconhecimento pleno da importância
© Copyright Maria Auxiliadora da Silva, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: SILVA, M. A. da. "Milton Santos: a trajetória de um mestre". In: El ciudadano, la globalización y la geogra fía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
Souza,
que
contou
com
a
colaboração
do professor Milton Santos. Segundo
Maria Adélia
de Souza,
"Milton
foi
exilado político. Mas, como poucos não tira proveito disso, exerce vivamente a ética na política. Jamais se comportou como vitrine do regime militar [...] Sofreu todas as dificuldades para se estabelecer e sobretudo reingressar na
Milton Santos
47
MILTON SANTOS: A CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA CIDADÃ
Denise Elias - Departamento de Geociências - Universidade Estadual do Ceará Milton Santos: a construção da geografia cidadã (Resumo) Milton Santos foi o geógrafo que mais visibilidade deu à Geografia brasileira. Sua militância permanente em prol da cidadania e da ética extrapolou os muros acadêmicos. Produziu um obra numerosa e complexa, uma verdadeira teoria geográfica do espaço, que apresenta diferentes fases e faces e reclama ainda muita reflexão. O presente texto apresenta uma das muitas possibilidades de classificação de sua obra. Considera, para tanto, que seu pensamento e a organização de seu trabalho percorre dois caminhos básicos, desde o campo das reflexões filosóficas sobre a natureza do espaço geográfico, até trabalhos de natureza empírica, quando buscava a reconstrução intelectual do mundo a partir das experiências específicas, dando destaque à categoria lugar. Palavras-chave. Milton Santos, epistemologia do espaço, teoria geográfica, filosofia das técnicas Milton Saints: the construction of citizen geography (Abstract) Milton Santos was the geographer who gives more visibility to the Brazilian geography. His militancy in name of the citizenship and ethic extrapolated the academic frontiers. He wrote a complex and numerous literary work, elaborating a real geographic theory of the space, presenting different faces and phases that still asks for more reflection. This paper intends to show one possibility to classify his work. There fore, it considers that his thinking and the way his work could be organized followed two basic directions, since the field of philosophical thoughts about the nature of the geographic space, up to the empirical works, in which he was looking for the intellectual re-built of the world through specific experiences, giv ing emphasis to the place as a category. Keywords: Milton Santos; spatial epistemology; geographical theory; philosophy of the technics
Em muitos aspectos, Milton Santos foi um homem
São muitas as lições que Milton Santos nos deixou
à frente de seu tempo. Na era na qual muitos
e com ele aprendíamos não só sobre a geografia
proclamavam o 'fim da história', ele introduziu o
mas sobre a vida, como a de que o talento para a
pensamento geográfico no centro do pensamento
vida acadêmica é construído com muito trabalho
social
metódico e cotidiano; que o verdadeiro intelectual
do
brasileira
país,
deu
visibilidade
auto-estima
geografia
não cede aos modismos da época e aos 'cantos de
própria visibilidade e de sua obra extrapolaram os
sereia' do sucesso fácil; que devemos lutar por
muros acadêmicos em 1994, quando ganhou o
uma universidade não atrelada ao mercado ou à
maior
prêmio Lud,
especialidade,
aos
à
Sua
Vautrin
e
internacional uma
da
espécie
atribuído
Geografia,
de
Nobel
técnica e que sem a curiosidade, o homem não chegará a lugar nenhum. Enumerá-las exige a
de
reflexão de toda uma vida. De suas metáforas, conceitos e categorias ainda há muito por ser
atingiu
processado.
antes
universidades
o da
vários países. Naquele momento, sua visibilidade campos
por
geógrafos.
não
imaginados,
ultrapassando em muito o da Geografia e o do mundo acadêmico.
Sua colaboração para a construção epistemológica da ciência geográfica é nítida. Pensar o espaço, o
Privilegiados fomos os que pudemos desfrutar, de
território, o território usado era o objeto de seu
alguma forma, do seu cotidiano. A dor da partida
trabalho. O uso da periodização; o imbricamento
é forte. Mas, ele continua vivo em sua obra.
do teórico com o empírico, já que 'é através do
Resta-nos, assim, o consolo de senti-lo presente
estudo do lugar que o mundo é empiricamente
em cada um dos seus escritos e sua vasta obra
percebido'; o estudo dos sistemas técnicos e dos
continua nos instigando à descoberta, à pesquisa,
sistemas normativos; assim como a idéia de que
ao novo e esta é uma forma de encontrá-lo, de
o mundo não se explica sem as suas diferentes
aplacar as saudades e de ter esperança.
partes
são
algumas
das
ferramentas
imprescindíveis para o estudo da empiricização do
48
Milton Santos
tempo
no
espaço,
nas
diferentes
escalas
Dentre algumas das idéias tanto memoráveis e,
geográficas.
por vezes, polêmicas, citaríamos a consideração
Aprendemos com ele que o mais importante é
do 'espaço como instância social'; 'o espaço
olhar para frente, é pensar o futuro. Assim, homenagea-lo é seguir seu exemplo de coragem, dedicação e perseverança, intensificando o uso e aperfeiçoando sua vasta obra, incorporando sua bibliografia em nossas disciplinas e em nossas reflexões sobre a Geografia e sobre o mundo. É seguir os ensinamentos que ele nos deixou, o seu exemplo
de
trabalho
sério
e
cotidiano;
de
militância no campo das idéias; de liberdade de pensamento;
de
ideais
de
solidariedade
e,
especialmente, de otimismo e esperança quanto ao futuro da Geografia, da sociedade e do homem. É acreditar que um outro mundo é possível. Um mundo no qual certamente vingarão
urbano como sendo dividido pelos dois circuitos da
economia';
'a
categoria
de
formação
socioespacial'; 'a geografia como filosofia das técnicas'; 'o presente como a dialética de uma ordem global e de uma ordem local; 'a força da solidariedade
organizacional
destruindo
a
solidariedade orgânica', tornando o espaço cada vez mais racional; as normas como o veículo de homegeneização técnica e organizacional; a face material da globalização refletida na expansão do meio
técnico-científico-informacional;
as
três
unicidades como os dados constitutivos do atual sistema temporal; a periodização, um dos signos de seu método de trabalho, somente para citar
os ideais de solidariedade e cidadania.
algumas.
Indicamos aqui uma das muitas possibilidades de
Por uma Economia Política da Urbanização
classificação de sua obra.
do Terceiro Mundo
A obra: uma classificação possível
Uma das veias que percorrerá toda sua obra
Milton Santos produziu uma vasta e complexa obra que está aí posta para quem queira decifrála
em
suas
diversas
fases
e
faces.
Seu
pensamento e a organização de seu trabalho percorre dois caminhos básicos, desde o campo das reflexões filosóficas sobre a natureza do espaço geográfico, até trabalhos de natureza empírica,
quando
buscava
a
reconstrução
intelectual do mundo a partir das experiências específicas, dando destaque à categoria lugar. Na
produção
teórica
de
Milton
Santos,
enxergamos uma teoria geográfica do espaço, um conjunto coerente que nos permite ultrapassar a forma e compreender a essência, a estrutura e os processos, as formas-conteúdo. A elaboração de novos conceitos e categorias foi deveras frutífera e reclama ainda muita reflexão. Alguns
aspectos
da
sua
refere-se às formulações sobre os aspectos e faces da desigualdade no Terceiro Mundo e os impactos e repercussões sobre o território. São características desse momento os estudos sobre a estrutura
interna
da
cidade,
o
processo
de
urbanização e o estudo da rede urbana nos países pobres. O grande destaque é para os países da América Latina, onde fundamenta as bases de seu trabalho, mas há também exemplos dos outros continentes subdesenvolvidos, especialmente de países africanos. São vários os exemplos da fertilidade dessa fase. Poderíamos
citar
A
Cidade
nos
Países
Subdesenvolvidos (1965), que deu início a uma série de publicações sobre as especificidades e características
próprias
da
urbanização
no
Terceiro Mundo. A publicação deste livro traz ao debate alguns dos problemas principais dessas
obra
promoveram
cidades,
convidando
os
geógrafos
e
demais
metamorfoses no pensamento e nos estudos
leitores 'à meditação sobre o que esses grandes
geográficos,
objetos
tendo
outros
gerado
muitas
construídos
pelo
homem
podem
polêmicas. As flores das homenagens após a sua
representar na transformação que se deseja da
morte não estiveram sempre presentes em sua
fisionomia do mundo em que vivemos'.
vida, tendo o confronto das idéias novas por ele produzidas conhecido momentos duros.
Seguem-se
A
Urbanização
Desigual
(1980);
Geografia y Economia Urbanas en los Países
Milton Santos
49
Subdesarrollados
(1973);
Pobreza
Urbana
Para
Milton
Santos,
a
categoria
formação
(1978); Economia Espacial: críticas e alternativas
econômica e social parecia adequada para ajudar
(1978); Manual de Geografia Urbana (1981);
à formulação de uma teoria válida do espaço.
Ensaios sobre a Urbanização Latino-americana
Para ele, não se podia falar de uma lei separada
(1982); O Trabalho do Geógrafo do Terceiro
da evolução das formações espaciais, mas de
Mundo (1971); Espaço e Sociedade (1979) e O
formação socioespacial.
Espaço Dividido: os dois circuitos da economia
Com a publicação dePor uma Geografia Nova
urbana (1978), dentre os principais.
(1978),mergulha na epistemologia da Geografia e
A publicação deste último livro é o exemplo maior
na dialética, marcando um tempo de mudança na
e mais significativo dessa face de estudos. Com
Geografia, um período de renovação, de busca de
esse livro, Milton Santos desenvolve uma teoria
novos paradigmas, traduzido no próprio subtítulo
sobre
o
do livro 'Da Crítica da Geografia à Geografia
a
Crítica'. A partir de então, ganha força a idéia da
o
espaço
geográfico
subdesenvolvimento,
urbano
e
tendo
interdisciplinariedade
intensificado,
Geografia com bases interdisciplinares, a crença
constituindo uma das principais características de
se
numa 'geografia refundada, instrumento teórico e
sua obra e de seu trabalho.
prático para a transformação do mundo'.
Em O Espaço Dividido (p. 23-27), chama a
Os livros Pensando o Espaço do Homem (1979);
atenção para o fato de que devemos considerar as
Espaço
e
modernizações como o único modo de levar em
Espaço
Habitado
conta as implicações temporais da organização do
Tempo (1994) e, finalmente, a obra síntese A
espaço, especialmente no Terceiro Mundo. Por
Natureza do Espaço (1996) mostram uma face de
modernização entende-se a generalização de uma
grandes elocubrações teóricas, de multiplicação
inovação vinda de um período anterior ou da fase
de conceitos e de categorias, da revisão de
imediatamente
precedente.
(1985); (1988);
Metamorfoses Técnica,
do
Espaço
e
que
conceitos clássicos da Geografia. Esses livros
cada período é caracterizado pela existência de
estão entre as principais referências do corpo
um conjunto coerente de elementos de ordem
epistemológico da Geografia elaborado por Milton
econômica,
Santos.
social,
Considerando
Método
política
e
moral,
que
constituem um verdadeiro sistema, sugere que devemos realizar uma divisão do tempo em períodos
para
reconhecer
a
existência
da
sucessão de modernizações, que seria a própria história das modernizações.
Com a publicação de Pensando o Espaço do Homem
ganha
força
a
totalidade
como
componente do método; a idéia da epistemologia do espaço; a necessidade de compreensão das principais características da contemporaneidade,
Por uma Epistemologia do Espaço
da
Uma outra face se afirma e caracteriza-se pelo
destaca a importância de que o espaço seja
mergulho na epistemologia da Geografia, do espaço, pela busca da compreensão da totalidade e do período histórico vigente desde o final da Segunda Guerra mundial. São
muitas
as
obras
nessa
linha
e
não
poderíamos deixar de citar a publicação do texto 'Sociedade e Espaço: a formação social como teoria e como método', publicado pelo Boletim Paulista de Geografia, de 1977. A partir desse momento, o espaço como instância social se impõe. Seu esforço caminha no sentido de que a Geografia se preocupe mais com a formação do território do que com sua forma.
aceleração
contemporânea.
Milton
Santos
estudado não somente na sua forma mas também na sua estrutura, no seu processo e na sua função, caso contrário, ao invés de espaciólogos, teríamos espacialistas, que estudariam o espaço em si mesmo. Nesse
momento,
ganha
força
o
estudo
das
relações entre técnica e espaço, das repercussões espaciais da revolução tecnológica, consagrando o período
histórico
como
técnico-científico-
informacional, cujo registro no espaço é o meio técnico-científico-informacional,
conseqüência
espacial do período marcado pela globalização da produção e do consumo.
50
Milton Santos
Para
Santos,
o
meio
técnico-científico-
mundo atual e rediscute categorias tradicionais,
informacional explicaria o impacto do processo de
sugerindo
globalização
no
composição
técnica
metodológica.
Reforça o papel da ciência, da tecnologia e informação como a base técnica da vida social
constituído como o conjunto técnico inerente ao
atual e que, desse modo, deveriam participar da
novo ciclo da civilização mundial, com conteúdo
construção
crescente de ciência, tecnologia e informação. 'É
Geografia.
nele que se instalam as atividades hegemônicas,
conceitos
aquelas que têm relações mais longínquas e
movimento
participam do comércio internacional, fazendo
geográfico.
com
Com
orgânica
determinados
do
lugares
se
a
reflexão
nova
e
revelando
de
espaço,
que
território,
linhas
tornem
mundiais.' Essas idéias ganham força e derivações meia década depois com a publicação de Espaço e Método, onde muitas das questões apresentadas em
Pensando
o
Espaço
do
Homem
são
complementadas.
epistemológica Com de
este
fixos das
Técnica,
e
renovadora
livro,
reforçam-se
fluxos
no
contradições Espaço,
da
Tempo
os
estudo do
do
espaço impõe-se,
definitivamente, a força da técnica como parte de sua epistemologia do espaço. Nessa obra destaca que, muito embora esteja longe de ser uma explicação da história, a técnica constitui uma condição fundamental para a sua explicação. Esse
Nessas obras, defende que qualquer lugar do
livro traz em seu âmago o fato de considerar o
planeta deve ser estudado à luz das novas
presente período histórico como algo que pode
condições históricas reinantes desde meados do
ser definido como um sistema temporal coerente,
século XX, em especial da globalização do espaço
cuja explicação exige que sejam levadas em conta
e
as características atuais dos sistemas técnicos e
da
aceleração
contemporânea,
cuja
compreensão está pautada na caracterização da
as suas relações com a realização histórica.
contemporaneidade
Apresenta mais um de seus pares dialéticos de
como
pertencente
a
um
período técnico-científico-informacional.
explicação do espaço: sistemas de objetos e
Desde então, a inserção da ciência, da informação
sistemas de ação. O espaço seria, então, o
e da tecnologia, em todos os níveis da produção e
conjunto indissociável de sistemas de objetos
da vida social, forneceriam as bases para um
naturais ou fabricados e de sistemas de ações,
estágio superior do desenvolvimento capitalista,
deliberadas ou não.
influenciando,
Reforça a idéia de que o espaço não se extinguiu
direta
ou
indiretamente,
a
realidade econômica, social, política e territorial de
todos
os
países,
sendo
relevantes
à
compreensão das condições e tendências da utilização do território brasileiro e, sobretudo, de suas áreas economicamente mais desenvolvidas.
com a aceleração contemporânea, mas apenas mudou de qualidade. Segundo Santos, viveríamos um momento da história no qual chegamos à possibilidade de uma totalidade empírica e de um contexto em que, paralelamente, se instala um
A crescente artificialização do meio ambiente
novo sistema da natureza, onde o que conta é a
resultaria, assim, na tecnoesfera, marcada pela
natureza artificializada.
presença
São apresentadas, também, as três unicidades
de
grandes
objetos
geográficos,
idealizados e construídos pelo homem, articulados entre si em sistemas. Isto justificaria, então, que as técnicas constituem um bom caminho para a explicação do espaço e, conseqüentemente que uma direção epistemológica para a Geografia é pensá-la como Filosofia das Técnicas. Em Metamorfoses do Espaço Habitado continua trilhando a busca do caminho analítico para a geografia crítica. Situa a geografia no contexto do
como dados constitutivos do período: a unicidade técnica,
a
convergência
dos
momentos
e
a
unicidade do motor. 'Esses três dados, a um só tempo causas e efeitos uns dos outros, são solidários em escala mundial'. Destaca ainda que, como a dialética está presente em tudo e a contradição a rege, o mundo da globalização doentia é contrariado no lugar e o espaço mundial existe apenas como metáfora.
Milton Santos
51
Para ele, quanto mais os lugares se globalizam,
Essas três obras apresentam, ao mesmo tempo,
mais se tornam singulares, no sentido de que o
discussão teórico-metodológica, ou seja, o uso do
arranjo
método e da metodologia para casos vertentes
que
os
elementos
componentes
do
território têm em um determinado lugar, não será
como
encontrado em nenhum outro. Assim, a própria
metrópole paulistana, em particular, e do Brasil
globalização acaba por produzir a fragmentação.
como um todo, resultados de um processo de
Com
observação e leitura analítica da urbanização
A
Natureza
do
Espaço
reforça
sua
epistemologia do espaço, contribuindo para a teoria social. Multiplicam-se e reforçam-se os conceitos e categorias: tecnoesfera e psicoesfera; tempos rápidos dominantes e tempos lentos hegemonizados; redes, produto das condições contemporâneas distinguem
da
técnica;
pela
intencionalidade;
sua zonas
ações
que
se
racionalidade opacas
e
e
zonas
luminosas; tecnificação do território redefinindo a divisão
do
trabalho
mediada
pela
técnica;
da
urbanização
e
da
morfologia
da
brasileira em geral. Se os resultados aparecem de forma separada, não são, todavia, propriamente fragmentários,
já
que,
entre
eles,
guardam
coerência e são fruto de uma fase bastante frutífera
de
pesquisas
com
alguns
de
seus
principais interlocutores e orientandos do Instituto de Geociências da UFRJ, onde lecionara logo que regressara ao Brasil, em 1978 e, principalmente, do Departamento de Geografia da USP, a partir de 1983.
horizontalidades e verticalidades, como recortes
Embora já conhecido internacionalmente há duas
territoriais no tempo da globalização etc.
décadas, é a partir de então que conquista
Um Modelo de Análise
visibilidade nacional, fato que se acirra na década de
e de Síntese do Brasil Uma primeira fase de estudos sobre o Brasil iniciou-se antes do exílio. Abrangendo a escala local e mais empírica, foi voltada à realidade baiana. A Bahia era o centro das preocupações, tendo estudado a região cacaueira e Salvador, na década
de
1950.
Priorizava
o
estudo
dos
problemas urbanos e regionais. Milton Santos insistia no fato de que a geografia crítica, para ser útil e utilizada, tem que ser analítica e não apenas discursiva. Dessa forma, de volta ao Brasil, após uma longa fase de exílio, intensificou a observação e a leitura analítica do território brasileiro, uma vez que o considerava como o melhor observatório do que se passa no país.
1990.
O
aparato
institucional
uspiano
possibilitou galgar ou aprofundar conexões, como a do intercâmbio, da interdisciplinaridade, do debate com intelectuais de outras áreas do conhecimento. Um dos marcos primeiros deste momento
foi
a
organização
do
simpósio
'A
Metrópole e a Crise', em 1985, ao qual se seguiram outros de igual magnitude. Foi um período de muitas atividades de pesquisa e simpósios organizados por Milton Santos e sua equipe, da qual tive o privilégio de participar, ainda como graduanda. Eram reuniões com a participação
limitada
aos
componentes
permanentes do seu grupo de pesquisa, além de professores brasileiras
convidados, e
de
européias.
O
universidades grupo
era
interdisciplinar, pois contava com a participação
O Estado de São Paulo e a metrópole paulistana
de geógrafos, sociólogos e arquitetos, desenvolvia
tiveram destaque particular. Os esforços para a
projetos financiados pelas principais instituições
compreensão da maior cidade brasileira ficam
de fomento à pesquisa do país.
registrados corporativa
quando
publica
fragmentada
SP: (1990),
metrópole estudo
posteriormente complementado com Por uma Economia Política da Cidade (1994). Em 1993, publica A Urbanização Brasileira, obra síntese para pensar o processo da urbanização no Brasil.
Dentre
os
primeiros
projetos,
tínhamos
o
intitulado 'O Centro Nacional: crise mundial e redefinição da Região Polarizada'. Como objetivo principal apresentava o estudo do impacto da crise econômica mundial na organização territorial das
atividades
econômicas,
nos
recursos
financeiros e na população do Brasil. Compreendia
52
Milton Santos
a crise mundial como constituindo um momento
dava a reorganização do espaço geográfico à luz
de clivagem, no qual poderiam ser observados os
das
rumos assumidos pela penetração de uma nova
período técnico-científico. O objetivo principal era
frente tecnológica e científica de consequências
o entendimento do que era então, de um modo
marcantes para a divisão territorial e social do
geral, a urbanização brasileira, suas realidades,
trabalho. A preocupação do projeto com o centro
seus processos e suas tendências, buscando,
nacional implicou na adoção de uma perspectiva
sobretudo, o reconhecimento dos elementos de
metodológica através da qual o centro foi definido
estruturação do espaço, em suas diversas escalas
dentro de um contexto de relações econômicas
de ação.
integradas, uma sub-totalidade de um mundo
Outro
globalizado.
novas
condições
projeto
que
históricas
deu
geradas
origem
aos
pelo
livros
supracitados compreendia o estudo de alguns
Como um dos resultados deste projeto, Santos
aspectos do uso do território como decorrência do
sugere uma revisão dos critérios de divisão
papel que a ciência, a tecnologia e a informação
regional do país, por considerá-la ultrapassada.
passaram a ter, direta ou indiretamente, como
Propõe
em
dados fundamentais da realização econômica,
consideração o impacto da modernização ocorrida
uma
social e política e da reelaboração dos espaços
no território, uma vez que a urbanização poderia
geográficos,
ser
Procurava,
mais
classificação
que
inteligentemente
levava
descrita
se
fosse
sobretudo assim,
nos
últimos
reconhecer
e
decênios.
dimensionar,
considerada a base da organização da produção
qualitativa e quantitativamente, os vetores de
atual,
modernização
resultado
da
herança
histórica
e
da
com
incidência
direta
ou
velocidade das inovações. Propõe, então, três
indiretamente espacial no Estado de São Paulo. A
grandes regiões, e apresenta o conceito de Região
pesquisa apresentava recortes na escala regional,
Concentrada, onde a difusão de inovações foi
especialmente na Região Metropolitana, e nas
mais
contínua
regiões de Ribeirão Preto, Campinas e Sorocaba,
renovação das forças produtivas e do território,
de forma a reconhecer, de um ponto de vista
que
às
sistêmico, o conjunto de fatores locais e extra-
necessidades colocadas pelos agentes econômicos
locais e o resultado de sua ação transformadora,
hegemônicos.
no campo e na cidade. Outro projeto preocupava-
veloz
e
complexa,
responderam com
com
uma
grande
Compunha-se
velocidade pelas
Regiões
Sudeste, Sul e partes da Centro-Oeste.
se
Para Santos, a Região Concentrada do Brasil é
espacial recente do interior do Estado de São
aquela na qual, desde o primeiro momento da mecanização do território, ocorre uma adaptação
fundamentalmente
hegemônico,
Em
presente
imagem
do
técnico-científico-informacional,
reorganização
urbanização e os novos papéis no presente sistema temporal.
à
a
Paulo, incluída a redefinição do fenômeno da
progressiva e eficiente aos interesses do capital reconstituindo-se
com
São
Fragmentada,
Paulo:
Metrópole
mostra
como
de
dos fixos artificiais e dos fluxos de todas as
internacional
naturezas.
técnico-científico-
mundializados, onde se destacam as denominadas
informacional se dá como área contínua, embora
metrópoles globais, das quais São Paulo é uma
apareça como manchas e pontos nas outras áreas
das principais referências no Terceiro Mundo.
do território nacional.
Alinha, nesse livro, as razões pelas quais essa
A partir de 1986, iniciaram-se alguns outros
metrópole brasileira pode ser considerada uma
meio
projetos que deram parte do sustentáculo dos livros sobre São Paulo e sobre a urbanização brasileira.
Um
deles
inscrevia-se
em
uma
temática mais ampla, isto é, a forma como se
do
uma
processo
globalização
o
a
'o
transformando-se na área com maior expansão Nela,
conduz
Corporativa
trabalho
e
nova
divisão
cria
lugares
cidade mundial, mostrando o seu desempenho nas
diversas
atividades
características
da
modernidade contemporânea. O papel da ciência, da tecnologia e da informação é devidamente
Milton Santos
53
destacado como resposta às novas exigências da
como locus de regulação do que se faz no campo
produção' contemporânea.
moderno; a migração descendente; as regiões do
Em
Por
uma
Economia
Política
da
Cidade,
fazer e do mandar etc.
'continua seu processo de observação e leitura
O esforço para a compreensão do território
analítica da urbanização brasileira em geral e da
brasileiro se completa com a publicação do último
metrópole paulista em particular, através de uma
livro Brasil: sociedade e território no início do
análise empírica, que é, por sua vez, uma
século XXI (2001), que é praticamente um 'guia
continuação de uma reflexão teórico-metodológica
de trabalho', como está posto na sua introdução,
mais ampla e antiga'.
uma continuação de sua interpretação geográfica
A Urbanização Brasileira, obra basilar para quem
do Brasil, um esforço de análise e de síntese do
quer
entender
como
se
construiu
o
Brasil,
país.
especialmente em sua fase mais recente, uma vez
A quantidade e complexidade das elaborações
que é, ao mesmo tempo, um estudo de análise e
teóricas de Milton Santos fazia com que muitas
de síntese sobre a evolução do território e da
das questões, conceitos e categorias fossem
urbanização do país, urbanização que se mostra
apresentados, mas nem sempre trabalhados em
corporativa, refletindo-se na desigual distribuição
toda a sua complexidade. Dentre as questões
do
que
trabalhadas em O Brasil: território e sociedade no
uma
início do século XX, destacaríamos a retomada de
meio
reforça,
técnico-científico-informacional, ainda
mais,
a
construção
de
sociedade dual e de um espaço seletivo.
alguns dos conceitos apresentados anteriormente,
Defende, nesse livro, que a complexidade das
mas ainda pouco trabalhados, que são retomados,
variáveis que compõem a urbanização do país é tamanha, que não seria mais possível continuar pensando o Brasil como dividido em rural e urbano, mas que diante da revolução urbana que
tornando-se mais complexos e mostrando um série de derivações. Lembraríamos especialmente os conceitos de circuitos espaciais da produção, que formam um par dialético com os círculos de
nele se processa, desde a década de 1980, seria
cooperação, e o da Região Concentrada.
mais correto pensar em um Brasil urbano com
O conceito de circuito espacial da produção foi
áreas agrícolas e em um Brasil agrícola com áreas
tratado num texto pouco lido, publicado em 1986,
urbanas.
num livro organizado por ele e Maria Adélia
Dentre os elementos explicativos dessa nova
Aparecida de Souza. Neste explicita que 'os
realidade,
teríamos
metropolitana,
o
em
processo
de
contraposição
involução ao
de
metropolização, que caracterizava a urbanização até então, quando passam a crescer não somente algumas poucas grandes cidades, mas também as cidades médias e locais criando um verdadeiro 'exército industrial de reserva de lugares', com a proliferação lugares
de
uma
propícios
hegemônicos,
enorme
ao
quantidade
exercício
permitindo
a
dos
de
capitais
fragmentação
do
território e uma nova divisão social e territorial do trabalho. Como
característica
brasileira,
destaca:
da o
nova
aumento
urbanização do
trabalho
intelectual não só na cidade mas também no campo; o crescimento do consumo produtivo e consumptivo; a existência do agrícola não rural, das indústrias agrícolas não urbanas; a cidade
circuitos espaciais da produção nos dão a situação relativa dos lugares, isto é, a definição, num dado momento, da respectiva fração de espaço em função da divisão do trabalho sobre o espaço total de um país. Aí se conjugam as relações de produção
social,
que
os
circuitos
de
ramos
tipificam, as relações sociais de produção, dadas pelas
firmas,
mas
também
as
relações
de
produção do passado, mantidas ou rejuvenescidas pelas
relações
atuais
e
representadas
por
relíquias ou heranças, tanto na paisagem quanto na própria estruturação social' (p.130) Enquanto alguns livros são voltados totalmente para
a
reflexão
teórica,
à
reflexão
da
epistemologia do espaço e da Geografia, esses últimos livros citados poderiam ser utilizados como uma espécie de 'guia de trabalho', esforços de análise e de síntese, exemplos importantes de
54
Milton Santos
como imbricar o teórico com o empírico, tarefa
caminhos,
das mais difíceis e uma das marcas importantes
totalidade.
da obra de Milton Santos.
Dessa forma, esses dois livros colaboram, entre
Por uma outra Globalização
muitas outras coisas, para a desalienação do
É
imperativo
citar
as
duas
obras
que
são
exemplos maior de militância pela construção da cidadania e da ética, como é o caso do livro O Espaço do Cidadão (1987) e Por uma outra globalização (2000). O Espaço do Cidadão foi escrito no calor dos debates sobre a nova Constituição Brasileira e é um excelente começo para os não geógrafos que querem
se
iniciar
nas
leituras
miltonianas.
Discorre sobre a supressão sistemática e brutal da cidadania à maior parte da população brasileira, que se dá concomitantemente à evolução da sociedade
de
consumo,
o
verdadeiro
ópio
contemporâneo, regredindo na escala de valores. Põe a nu o processo de transformação do cidadão em
simples
consumidor
insatisfeito,
que,
alienado, aceita ser chamado de usuário, servindo ao economicismo reinante, mostrando a vitória do consumo como fim em si mesmo e das empresas no comando do território. Na construção da sociedade corporativa, da qual o Brasil é um exemplo, 'reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura
de
massas
como
caldo
de
cultura
fabricado e a burocracia como instrumento e fonte de alienação'. No livro Por uma Outra Globalização disserta sobre
os
pilares
da
globalização,
suas
conseqüências territoriais e sociais e desenha um futuro cheio de esperança, conclamando todos
auxiliada
pela
empirização
da
indivíduo, a partir do ponto que acreditemos que uma outra globalização é possível. Não temos que acreditar que as formas-conteúdo do presente são inevitáveis, incontestáveis, mas que podem e devem ser recusadas e que este novo momento da
revolução
burguesa,
marcada
pelo
globalitarismo, será substituído por um outro, no qual
predominará
solidariedade verticalidades
a
horizontal
solidariedade em
opressivas
local,
substituição das
a às
empresas
hegemônicas, quando a luta cotidiana do povo abrirá novos caminhos. Acreditar nestes novos caminhos é que nos faz seguir em frente, mesmo com a ausência de quem
assim
nos
ensinou,
pois
com
ele
aprendemos que só o trabalho de compreensão do presente é que nos ajudará a construir um outro futuro. Dessa forma, apesar de ausente, ele está
presente
quando
nos
ajuda
na
leitura
analítica do mundo, contribuindo para criar a consciência do presente período histórico. Sua obra constitui-se, então, num dos caminhos para a construção de uma outra globalização. Seguindo uma das muitas lições que aprendemos com nosso mestre, terminaríamos, então, como ele ao final das reuniões de trabalho, desejandolhes coragem, coragem para o trabalho, coragem para a construção de uma outra globalização. 'O cotidiano será, um dia ou outro, a escola da desalienação'. Saudades do futuro.
para a busca de uma outra globalização, na qual não
haja
lugar
para
o
globalitarismo.
Sua
esperança reside no fato de que ao mesmo tempo em
que
se
exploração,
globalizam a
miséria,
a
taxa a
de
exclusão
lucro,
a
social,
globalizam-se as lutas sociais, os ideais contra a globalização, o conhecimento e a vontade de mudar o mundo. Na sua idéia de futuro, traço marcante de sua personalidade, acreditava na construção
do
período
demográfico-popular,
quando a luta cotidiana do povo abrirá novos
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Milton Santos
55
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SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. Paulo: Hucitec, 1988.
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© Copyright Denise Elias, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: ELIAS, D. "Milton Santos: a construção da geo grafia cidadã". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
56
Milton Santos
GLOBALIZAÇÃO E GEOGRAFIA EM MILTON SANTOS
Wagner Costa Ribeiro - Departamento de Geografia - Universidade de São Paulo
Globalização e geografia em Milton Santos(Resumo) Em seus últimos livros, Milton Santos tratou da globalização. Ele abordou seus aspectos econômicos, analisando o papel das empresas na internacionalização do capital, mas também os fluxos financeiros e suas implicações na cultura local. O geógrafo brasileiro teorizou e criticou sobre estes aspectos do mundo contemporâneo, propondo, ao final de sua vida, uma globalização solidária, baseada em outros valores que a da hegemônica. Estas idéias são tratadas em um diálogo com autores que também estudaram a globalização e suas conseqüências. Palavras-chave: globalização, cultura contemporânea, geografia, Milton Santos Globalization and geography in Milton Santos (Abstract) In your last books, Milton Santos treated the globalization. He approaches her economics aspects, analy ses the role of enterprises in the capital’s internalization, but also the financial fluxes and their implica tions in the local culture. The Brazilian geographer theorethicalied and criticized about this aspects of contemporary world, proposing, in the end of her life, a sympathetic globalization, establish in other val ues than the hegemonic view. Those ideas are treating making a dialog with authors who too study the globalization and her consequences. Key words: globalization, contemporary culture, geography, Milton Santos
"O espaço se globaliza, mas não é mundial como um todo senão como metáfora. Todos os lugares são mundiais mas não há um espaço mundial. Quem se globaliza mesmo são as pessoas" (Milton Santos, 1993).
Globalizar o conhecimento e seu uso. Definir a
diálogo com outros autores que trataram do
inserção dos lugares em uma rede de relações
tema.
humanas de modo a valorizar a singularidade em
O que é globalização?
meio à totalidade. Viver um mundo mais solidário. Essas possibilidades de pensar, representar e propor
relações
humanas
caminham
na
contramão da história. Infelizmente verifica-se a predominância da competição desenfreada por mercados e tecnologias, a busca incessante por recursos naturais e a intensa exploração do trabalhador, mesmo diante da diminuição de postos de trabalho. A obra de Milton Santos pertence ao grupo de intelectuais que buscam o pensamento crítico a esse estado da vida contemporânea. Em diversas passagens de seus livros e artigos ele afirmou pretender construir um mundo diferente daquele em
que
vivemos.
interpretação
do
Este
geógrafo
artigo
aborda
brasileiro
sobre
a a
globalização, tratada em sua dimensão cultural, econômica e por fim, solidária, promovendo um
A difusão do termo globalização ocorreu por meio da imprensa financeira internacional, em meados da
década
de
1980.
Depois
disso,
muitos
intelectuais dedicaram-se ao tema, associando-a à difusão de novas tecnologias na área de comunicação, como satélites artificiais, redes de fibra ótica que interligam pessoas por meio de computadores,
entre
outras,
que
permitiram
acelerar a circulação de informações e de fluxos financeiros. Globalização passou a ser sinônimo de aplicações financeiras e de investimentos pelo mundo afora. Além disso, ela foi definida como um sistema cultural que homogeneíza, que afirma o mesmo a partir da introdução de identidades culturais indivíduos.
diversas Por
que
fim,
se
houve
sobrepõem quem
aos
afirmasse
estarmos diante de um cidadão global, definido
Milton Santos
57
apenas como o que está inserido no universo do
compreender suas possibilidades de interação
consumo, o que destoa completamente da idéia
com as ações solidárias hierárquicas.
de cidadania (Ribeiro, 1995). Porém "No debate
É no lugar que a cultura vai ganhar sua dimensão
sobre
a
globalização
não
temos
encontrado
análises que consideram os fragmentos que ele acarreta. Ao contrário, ressaltam-se as suas vantagens aparentes, porém sem configurá-la com maior precisão" (Ribeiro, 1995:18). A globalização é discutida, segundo as categorias tempo/espaço, no âmbito do sistema-mundo, na pós-modernidade e à luz dos conceitos de nação, mercado mundial e lugar. Tornada paradigma para a ação, a globalização reflete nos Estadosnação exigindo um protecionismo que em tese se contradiz
com
a
demanda
"livre
e
global"
apregoada pelos liberais de plantão. Porém, ao olhar para o lugar, para onde as pessoas vivem seu cotidiano, identifica-se o lado perverso e excludente da globalização, em especial quando os lugares ficam nas áreas pobres do mundo. Ao reafirmar o mesmo, a globalização econômica não consegue
impedir
resultando
em
dissimular
como
que
conflitos
aflorem que
os
outros,
muitos
tentam
competitividade
entre
os
Estados-nação e/ou corporações internacionais, sejam financeiras ou voltadas à produção. A globalização é fragmentação ao expressar no lugar
os
religiosos econômicos
particularismos e
os com
étnicos,
excluídos objetivo
de
nacionais,
dos
processos
acumulação
de
riqueza ou de fomentar o conflito (Ribeiro, 2001). A obra de Milton Santos contribuiu para precisar o fenômeno da globalização. Mas o autor queria mais.
Ela
chegou
a
propor
uma
outra
globalização, baseada na solidariedade, embora reconhecesse que ela afetou a cultura atual.
simbólica
e
material,
combinando
matrizes
globais, nacionais, regionais e locais. Mas nem todos pensam assim. O sociólogo brasileiro Renato Ortiz (1994) afirma que existe uma cultura mundializada que se expressa na emersão de uma identidade cultural popular, cujos signos estariam dispersos pelo mundo. Como exemplos cita redes de alimentos e marcas de produtos de consumo que seriam facilmente identificáveis de um estilo de vida global. A apropriação da cultura pela esfera do consumo foi analisada por muitos autores, como o francês Jean Baudrillard (1991), para quem a lógica do consumo esta baseada no uso planejado de signos que destituem o objeto de finalidade tornando-o simplesmente algo a ser comprado. Esse processo ocorre baseado na subjetividade, na
interiorização
de
valores
externos
aos
consumidores, que acabam seduzidos por apelos da propaganda, definidora mesmo de uma nova subjetividade estimuladora da compra do bem divulgado por ela. Para Baudrillard "o objeto perde a finalidade objetiva e a respectiva função tornando-se o termo de uma combinatória muito mais vasta de conjuntos de objetos, em que o seu valor é a criação" (1991:120). Outro autor relevante na análise da cultura contemporânea é o professor de literatura Fredric Jameson, que afirma estarmos diante de uma completa estetização da realidade, resultado do mosaico
pós-moderno
lançado
nas
últimas
décadas. Jameson demonstra preocupação com
Globalização e cultura
os efeitos desse processo na cultura, que tenderia
Diferente do que afirmam alguns pesquisadores,
a ser homogênea. Crítico a quem interpreta o
que
mundo por essa via, escreve:
acreditam
homogeneização
no da
estabelecimento cultura,
do
de
sistema
uma de
valores, a partir da globalização, Milton Santos concebe que "cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente" (Santos, 1996:273). Para ele, a importância de estudar os lugares reside na possibilidade de captar seus elementos centrais, suas virtudes locacionais de modo a
"se tudo é estético, não faz muito sentido evocar uma
teoria
distinta
do
estético;
se
toda
a
realidade tornou-se profundamente visual e tende para a imagem, então, na mesma medida, tornase
cada
experiência
vez
mais
específica
difícil da
conceituar imagem
que
uma se
distinguiria de outras formas de experiência" (Jameson, 1994:120-121).
58
Milton Santos
O geógrafo David Harvey participa deste debate
dia mais, o resultado do trabalho de um maior
polemizando com Baudrillard. Ele acredita que o
número
francês
individualizados
exagera
em
sua
representação
do
de
pessoas. de
Partindo
grupos,
de
hoje
trabalhos todos
os
simulacro por meio das imagens caricaturando a
indivíduos trabalham conjuntamente, ainda que
sociedade dos Estados Unidos. Mas concorda com
disso
a subjetivação da cultura, marcada pela facilidade
desenvolvimento humano, não há uma separação
com
do homem e da natureza. A natureza se socializa
que
a
informação
chega
às
pessoas.
não
se
apercebam.
No
processo
de
Reafirmando idéias de Walter Benjamin, escreve
e o homem se naturaliza" (Santos, 1988:89).
que
A tecnificação a que se refere Santos permite o
a
facilidade
entendida
como
de
reprodução
expressão
da
da
"arte",
cultura,
pode
representar uma transitoriedade permanente, um novo
estado
de
apreender
a
cultura
e
o
conseqüente abandono da busca da singularidade na produção cultural. Harvey indica que não se pode esquecer que o capital também circula com o objetivo de ampliar-se nesse segmento da atividade humana, montando um imenso sistema de produção cultural baseados na produção de subjetividade por meio da propaganda. Isso leva a geografia de todos os lugares a cada lugar do mundo, reduzindo a geografia a um simulacro, como entende Baudrillard. Para Harvey "por meio da
experiência
culinários,
de
música,
tudo
–
comida,
televisão,
hábitos
espetáculos
e
cinema –, hoje é possível vivenciar a geografia do mundo vicariamente, como um simulacro. O entrelaçamento
de simulacros da
vida
diária
reúne no mesmo espaço e no mesmo tempo diferentes mundos (de mercadorias). Mas ele o faz de tal modo que oculta de maneira quase perfeita
quaisquer
vestígios
de
origem,
dos
processos de trabalhos que os produziram ou das relações sociais implicadas em sua produção" (1992:270-271). Para Santos, "o homem vai impondo à natureza suas próprias formas, a que podemos chamar de formas ou objetos culturais, artificiais, históricos" (Santos, 1988:89). Estes objetos culturais fazem com que "a natureza conheça um processo de humanização cada vez maior, ganhando a cada passo elementos que são resultado da cultura. Torna-se
cada
dia
mais
culturalizada,
mais
artificializada, mais humanizada. O processo de
simulacro geográfico que Harvey discrimina. Ela configura um meio-técnico-científico internacional "no qual a construção ou reconstrução do espaço se dará com um conteúdo de ciência e de técnica" (Santos,
1991:11),
formando
uma
paisagem
estética, em meu entendimento. O que seria essa paisagem estética? Um tecido urbano
que
contém
valores
culturais
transpassados pela afirmação do mesmo, que oprimem o singular, sintetizados, por exemplo, em formas urbanas reproduzidas a partir de modelos
de
arquitetura
hegemônicos,
uma
contemporâneas,
oriundos
das
de
críticas
como
aponta
às
países cidades
o
geógrafo
espanhol Horacio Capel (2001). Isso é facilmente observável na paisagem de São Paulo, uma megacidade brasileira localizada em plena faixa tropical,
na
prédios
envidraçados,
qual
arquitetura
de
identificam-se tal
países
qual
milhares preconiza
temperados.
Ora,
de a os
ambientes produzidos por tal concepção resultam extremamente quentes, gerando a necessidade do
uso
de
aparelhos
para
resfriar
o
ar,
aumentando o consumo energético. Seria muito mais simples edificar prédios segundo a boa arquitetura colonial brasileira, com seus tetos elevados e amplas janelas que permitem desde a entrada de luz natural, abundante nos trópicos, quanto
a
circulação
do
ar,
refrescando
o
ambiente. Mas o esteticismo a que se refere Jameson
prevalece
e
a
paisagem
paulistana
aquece quem vive nela... Globalização econômica
culturalização da natureza torna-se, cada vez
Neste aspecto a contribuição de Milton Santos foi
mais, o processo de sua tecnificação. As técnicas,
bem mais ampla que no caso anterior. Quando
mais e mais, vão incorporando-se à natureza e
afirma, como consta na epígrafe deste artigo, que
esta fica cada vez mais socializada, pois é, a cada
"quem se globaliza mesmo são as pessoas"
Milton Santos
59
(1993:16), o geógrafo brasileiro dá pistas de
como poder autônomo, retém mesmo assim
como conduz sua reflexão sobre a globalização
grande poder de disciplinar o trabalho e de
econômica. Ele está interessado no fluxo que o
intervir
sistema de objetos, expressão que vai trabalhar
enquanto se torna muito mais vulnerável a crises
em diversos livros, permite fluir e conduz, na
fiscais e à disciplina do dinheiro internacional.
forma de espaço geográfico.
Estou, portanto, tentado a ver a flexibilidade
Para
Santos,
o
espaço
geográfico
é
uma
funcionalização da globalização (1994:48). Ele vai ser produzido de acordo com as demandas de quem
o
idealiza,
para
permitir
fluir
suas
necessidades. Para ele o espaço geográfico é um "conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados e de sistemas de ações, deliberadas ou não" (1994:49). O espaço geográfico viabiliza a globalização, dado que ele materializa três de seus pressupostos: "a unicidade técnica, a convergência dos momentos e a unicidade do motor" (1994:49). A
unicidade
capacidade
técnica
de
é
instalar
entendida qualquer
como
a
instrumento
técnico produtivo em qualquer parte do mundo. A convergência dos momentos é possibilitada pela unificação
técnica,
pela
capacidade
de
comunicação em tempo real. Por fim, a unicidade do motor é a direção centralizada, exemplificada pela direção do mundo econômico e das finanças pelos executivos que atendem aos interesses dos donos das empresas transnacionais e do sistema financeiro
internacional.
Estes
temas
são
amplamente tratados pelo autor em sua obra A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção (1996), na qual propõe "um sistema de idéias que seja, ao mesmo tempo, um ponto de partida para a apresentação de um sistema descritivo e de um sistema interpretativo da geografia" (Santos, 1996:15).
nos
conseguida
fluxos
na
de
mercados
produção,
nos
financeiros,
mercados
de
trabalho e no consumo antes como um resultado da
busca
de
soluções
financeiras
para
as
tendências de crise do capitalismo do que o contrário. Isto implicaria que o sistema financeiro alcançou
um
grau
de
autonomia
diante
da
produção real sem precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos financeiros igualmente inéditos" (Harvey, 1992:181). O geógrafo Edward Soja (1993) assinala que as mudanças no padrão produtivo mantiveram as desigualdades geográficas e a manutenção de lucros imensos por parte das transnacionais, como vem ocorrendo desde o segundo pósguerra. Para Soja, isso reafirma a geografia por meio
da
emergência
regionalização capital a
e
do
da
que
da
regionalismo,
levando
o
estratégias
espaciais
e
rever suas
locacionais,
espacialidade,
podem
ser
facilmente
apreendidas. Para ele "A instrumentalidade das estratégias espaciais e locacionais da acumulação do capital e do controle social está sendo revelada com mais clareza do que em qualquer época dos últimos cem anos. Simultaneamente, há também um
crescente
reconhecimento
de
que
o
operariado, bem como todos os outros segmentos da
sociedade
que
foram
periferalizados
e
dominados, de um modo ou de outro, pelo desenvolvimento precisam
e
reestruturação
procurar
criar
capitalistas,
contra-estratégias
Muitos outros autores discutiram o tema da
espacialmente conscientes em todas as escalas
globalização econômica, porém, desconsideram a
geográficas, numa multiplicidade de locais, a fim
dimensão geográfica nos termos propostos por
de competir pelo controle da reestruturação do
Santos. É o caso, por exemplo, de Harvey, que
espaço" (Soja, 1993:210).
analisa o mundo contemporâneo por meio da criação
de
novos
coordenados
em
acumulação
capitalista
mercados
escala
global, por
financeiros, permitindo
meio
de
a
uma
flexibilidade geográfica e temporal. Ele entende que apesar disso resta uma função importante ao estado-nação que "embora seriamente ameaçado
Esse
entendimento
geógrafo, combinação inerente
Neil de ao
é
Smith
partilhado (1988).
desigualdades
por
Para
outro ele,
a
geográficas
é
desenvolvimento
capitalista,
resultando no desenvolvimento desigual como produto e premissa para o capital. Assim, "o
60
Milton Santos
desenvolvimento desigual é a desigualdade social
definição particular. Sua significação é dada pela
estampada
totalidade de recursos" (Santos, 1996:131).
na
paisagem
simultaneamente
a
geográfica
exploração
e
é
daquela
desigualdade geográfica para certos fins sociais determinados" (Smith, 1988:221).
Para o geógrafo brasileiro Armando Correa da Silva, conhecer os recursos e potencialidades de um estado-nação passam a ser vitais para a
Santos entende que o desenvolvimento desigual é
inserção no cenário da "globalização relacionada à
combinado é resultado de "uma ordem, cuja
esfera do capital" (Silva, 1993:77). Ele escreveu
inteligência é apenas mediante o processo de
que "o capitalismo se defronta com sua própria
totalização, isto é, o processo de transformação
criatura, ou seja, quanto mais se mundializa
de
valor, mais necessários se tornam os mecanismos
uma
totalidade
em
outra
totalidade"
(1996:101).
nacionais e, mesmo, regionais, em alguns casos.
Já o sociólogo brasileiro Otávio Ianni, interlocutor
A atual centralização descentralizada do Globo
de Milton Santos, destaca que a sociedade civil ganhou uma dimensão mundial tratando de temas como "direitos humanos, narcotráfico, proteção do
meio
ambiente,
dívida
externa,
saúde,
educação, meios de comunicação de massa, satélites
e
outros
itens.
Assuntos
sociais,
tem algo a ver com isso. De uma parte, a centralização dá origem ao seu contrário: os movimentos
separatistas
e
regionalistas.
De
outra, obriga a formação de grandes alianças territoriais,
ampliando
espacialmente
os
mercados"(Silva, 1993:77).
econômicos, políticos e culturais que sempre
Esse
pareceram nacionais, internos, logo se revelam
contemporâneas afirmado por Silva produz blocos
internacionais, externos" (Ianni, 1992:43).
de países como a União Européia, o Mercosul, o
Mas ele entende que ocorre um esvaziamento do
Nafta,
estado-nação pelo capital, que transforma "as sociedades
nacionais
em
dependências
da
rearranjo
entre
território
outros,
apenas
das
que para
relações
buscam a
sociais
ampliar
circulação
o de
mercadorias, restringindo o fluxo de pessoas ao
sociedade global" (1992:44). Em outra obra,
limite do desejável.
afirma
novo
A retomada do papel do estado é partilhada pelos
paradigma (Ianni, 1995), pois gerou um modo de
geógrafos espanhóis Joan Font e Joan Rufí,
produção e de gestão da política inovadores.
quando escrevem que "Podría decirse que en
O professor Milton Santos discorda dos que viram
muchos casos se asite a una renacionalización de
que
a
globalização
seria
um
um esvaziamento da função do estado. Para o geógrafo brasileiro o que existe é um "mercado hierarquizado hegemônicas,
e
articulado
nacionais
e
pelas estrangeiras
firmas que
comandam o território com apoio do Estado" (Santos, 1991:13). Porém, não deixa de reconhecer uma certa subordinação aos imperativos externos ao afirmar que "os recursos totais do mundo ou de um país, quer seja o capital, a população, a força de trabalho,
o
excedente
etc.,
dividem-se
pelo
movimento da totalidade, através da divisão do
los estados. Las formas que toman estos procesos pueden ser muchas y más o menos explícitas, dependiendo de las circunstancias de cada estado y de cuál sea el adversario al que se quiere dar respuesta: la globalización o la, presunta o efectiva, fragmentación interna" (Font e Rufí, 2001:90). Para Santos, a tensão entre o local e o global é um fato que deve ser entendido por meio do papel da formação social nacional, que "funciona como uma mediação entre o Mundo e a Região, o Lugar. Ela é também mediadora entre o Mundo e
trabalho e na forma de eventos (...). Cada
o território" (1996:270).
momento
uma
Na formação social nacional verifica-se uma fusão
diferenciação no interior do espaço total e confere
histórico
(...)
acarreta
de acontecimentos, como expressa a seguinte
a cada região ou lugar sua especificidade e
passagem da obra do geógrafo brasileiro:
Milton Santos
61
"Não existe um espaço global, mas, apenas,
chamada indústria cultural, aqueles que imaginam
espaços da globalização. (...) O Mundo, porém, é
estar fora do reino dos mortais haja visto estarem
apenas
focados em bens imateriais, em manifestações do
um
conjunto
de
possibilidades,
cuja
efetivação depende das oportunidades oferecidas
espírito por meio das artes e da informação.
pelos lugares. (...) Mas o território termina por
Em sua argumentação não restava lugar entre os
ser a grande mediação entre o Mundo e a sociedade nacional e local, já que, em sua funcionalização, o ‘Mundo’ necessita da mediação dos lugares, segundo as virtualidades destes para usos específicos. Num dado momento, o ‘Mundo’ escolhe alguns lugares e rejeita outros e, nesse movimento, modifica o conjunto dos lugares, o espaço como um todo. É o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua
cidadãos nem mesmo para o eleitor, que "não é forçosamente cidadão, pois o eleitor pode existir sem que o indivíduo realize inteiramente suas potencialidades
como
participante
ativo
e
dinâmico de uma comunidade. O papel desse eleitor não-cidadão se esgota no momento do voto" (Santos, 1987:41). Quem seria, então, o cidadão para Milton Santos?
realização mais eficaz. Para se tornar espaço, o
"O cidadão é multidimensional. Cada dimensão se
Mundo
articula com as demais na procura de um sentido
depende
das
virtualidades
do
Lugar"
para a vida. Isso é o que dele faz o indivíduo em
(Santos, 1996:271).
busca do futuro, a partir de uma concepção de
A globalização solidária Menos
que
ser
contrário
à
globalização,
o
geógrafo brasileiro estava mais preocupado em construir
um
sistema
teórico
que
permitisse
elaborar outra maneira de congregar pessoas em escala internacional. Propunha a solidariedade como medida para a relação, que deveria ser praticada em prol da cidadania. Já
em meados da
década de 1980 Santos
apontava
sua
compreensão
da
cidadania.
Distinguia
os
consumidores
dos
cidadãos,
escrevendo que "o consumidor não é cidadão. Nem o consumidor de bens materiais, ilusões tornadas
realidades
como
símbolos;
a
casa
própria, o automóvel, os objetos, as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imateriais ou culturais, regalias de um consumo elitizado como o turismo e as viagens, os clubes, e as diversões pagas; ou de bens conquistados para participar
ainda
mais
do
consumo,
como
a
educação profissional, pseudo-educação que não conduz ao entendimento do mundo" (1987:41). Em suas palavras encontra-se um posicionamento claro contra o consumismo que conduz o modelo de
reprodução
do
capital.
Ainda
que
tenha
afirmado em mais de uma vez que não gostava do
tema,
pode-se
identificar
também
uma
inquietação ambientalista em seu posicionamento claro contra o desperdício de material. E ele atacava ainda os consumidores de artigos da
mundo" (1987:41-42). Poder projetar o futuro, vislumbrar perspectivas dignas
da
existência,
poder
expressar
sua
maneira de entender o mundo, por meio de crenças, manifestações culturais e práticas sóciopolíticas, com qualidade de vida, isto é, habitando um ambiente agradável e sustentável, provido de água, calor e energia na medida adequada, com assistência médica e alimento de qualidade são características que sintetizariam o cidadão do mundo contemporâneo, em meu entendimento. Neste sentido, não há cidadão no mundo entre os que apregoam os valores da sociedade ocidental, ocaso e criação da cidadania. Construir
relações
humanas
baseadas
na
solidariedade era um desejo de Milton Santos. Ele propunha deveria
uma
revisão
da
ser
"mais
humana"
a
base
técnica
descartar
globalização
econômica
globalização,
que
(2000:20),
sem
que
e
sustenta
financeira:
a "a
materialidade que o mundo da globalização está recriando permite um uso radicalmente diferente daquele
que
industrialização
era
o
e
do
da
base
material
imperialismo"
da
(Santos,
2000:164). Essa é a proposta do geógrafo baiano: alterar o uso da base técnica criada para a circulação de capital
para
veicular
valores
humanos,
para
permitir uma efetiva integração de laços culturais
62
Milton Santos
distintos
que
permitam
a
construção
do
Bibliografia
(Santos,
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa : Edições 70, 1991.
Enfim, Milton Santos queria um mundo diferente.
CAPEL, Horacio. Dibujar el mundo: Borges, la ciudad y la geografía del siglo XXI. Barcelona : Ediciones del Serbal, 2001.
"acontecer
solidário",
como
definiu
2000). Sua visão otimista do futuro é expressa no trecho abaixo: "Não cabe, todavia, perder a esperança, porque os
progressos
técnicos
(...)
bastariam
para
produzir muito mais alimentos do que a população atual
necessita
reduziriam
Um
entre
as
mundo
empregos,
pacífico
aplicados
drasticamente
mortalidade. muitos
e,
medicina,
doenças
solidário
ampliando
os
à
povos
um e
e
a
produzirá intercâmbio
eliminando
a
belicosidade do processo competitivo, que todos os dias reduz a mão-de-obra. É possível pensar na realização de um mundo de bem-estar, onde os homens serão mais felizes, um outro tipo de globalização" (Santos, 2002:80). Aproveitar a base material da existência é algo coerente com sua maneira de pensar. Já em 1978, em obra que marcou sua inserção teórica entre os geógrafos brasileiros, escrevia que "o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem tanto domínio sobre o homem, nem está presente de tal forma no cotidiano dos indivíduos" (Santos, 1978:137). São as rugosidades, as marcas do tempo por meio
do
material
trabalho difícil
de
reaproveitamento
que ser da
instituem rompida.
inércia
uma Por
espacial,
base
isso
o
outro
conceito de 1978. Deste modo, a mudança tem de vir pela política. Embora expressando otimismo, não perde a visão de geógrafo ao indicar que as mudanças não virão "dos Estados Unidos ou da Europa. Virá dos pobres, dos ‘primitivos’ e ‘atrasados’, como nós, do Terceiro Mundo, somos considerados. Estas não poder vir das classes obesas. Estas não podem ver muito. São os pobres os detentores do futuro. O problema de todas as épocas é saber como vai se dar a ruptura. E as rupturas se deram antes que todos soubessem como elas iam se dar..." (Santos et al., 2000:66).
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Milton Santos
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63
Ficha bibliográfica: RIBEIRO, W. C. "Globalização e geografia em Mil ton Santos". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta No va. Revista electrónica de geografía y ciencias so ciales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
64
Milton Santos
CONTINUAR Y SUPERAR A MILTON SANTOS
Horacio Capel - Universidad de Barcelona
Quiero unirme al homenaje que desde Scripta
estudios sobre el aumento de dotación de aguas a
Nova rendimos al profesor Milton Santos, una de
la región, y en concreto sobre la viabilidad del
las grandes figuras de la geografía brasileña y
trasvase Tajo-Segura, y se había creado un orga
mundial. Los textos que Wagner Ribeiro ha podido
nismo el SEMZASE (Servicio de Experimentación y
reunir para este homenaje, y las obras que reci
Mejora de las Zonas Áridas del Sureste) que tra
entemente se han dedicado a su figura y a sus
taba de abordar de forma integrada los problemas
trabajos, permiten tener una idea completa de la
del desarrollo de una región de fuerte emigración.
trayectoria de un geógrafo comprometido con su
En ese contexto los estudios del profesor Juan Vilá
tiempo, que ha ido construyendo lenta e incansa
Valentí, que llegó a la cátedra de Geografía de
blemente un cuerpo teórico de gran importancia
Murcia en 1958, delimitaron una región del Sures
para comprender el mundo contemporáneo y los
te con unas claros rasgos de aridez, a la vez que
problemas de los países iberoamericanos, y espe
permitían tener un panorama de conjunto de los
cialmente Brasil. El impacto de su obra ha sido in
problemas que planteaban las políticas de desar
menso y se ha extendido a los científicos sociales
rollo en medios áridos.
de diversos países, siendo hoy reconocido como
Las experiencias de las políticas de desarrollo re
uno de los maestros de la geografía contemporá nea. A partir de su obra los geógrafos disponen de teorías, ideas y materiales que pueden servir de punto de partida para nuevas investigaciones, las cuales deben realizarse prescindiendo de cualqui er actitud de reverencia beata hacia él, revisando y reformulando una y otra vez sus ideas, tal como él haría si viviese, para lograr una mejor compre sión de la realidad. El objetivo debe ser seguir su obra, interpretarla, completarla y superarla.
gional que se intentaban aplicar en el Mezzogiorno italiano y la actuación de SUDENE a partir de 1955 en el Nordeste de Brasil eran ejemplos que se esgrimían a comienzos de los sesenta en Mur cia, ya que se trataba de regiones que tenían ras gos que se consideraban semejantes a esa región española y, de forma más general, a lo que en tonces se consideraba el Sureste. No ha de ex trañar que en ese contexto tuviéramos conocimi ento de las experiencias de SUDENE y, en relación
Mi contacto con Milton Santos
con ello, de la obra de algunos geógrafos brasi
Mi primer contacto con la obra de Milton Santos
leños, entre los cuales Milton Santos que desde
se realizó cuando yo realizaba mis estudios de ge ografía en la Universidad de Murcia. Puede ser de interés aludir a ello como un dato más que contri buya a mostrar la difusión de la obra del gran geógrafo brasileño. Tres temas me hicieron conocer su obra, y la de otros geógrafos y pensadores brasileños; en el or den cronológico de su conocimiento fueron: los problemas de la aridez, el del subdesarrollo, y el de las redes urbanas. Cuando yo empecé a estudiar en la Universidad de Murcia, en octubre de 1958, el tema de la ari dez interesaba mucho en esa región de escasas lluvias. Se estaban realizando en aquel momento
mediados de los años 1950 se dedicaba a estudiar los problemas agrarios de Bahia y al Reconcavo. Vilá Valentí había asistido al XVIIIº Congreso In ternacional de Geografía celebrado en Rio de Ja neiro, y eso nos permitió tener información de pri mera mano de los trabajos que allí se realizaban. En todo caso, recuerdo bien que las iniciativas de SUDENE eran conocidas, y a través de ellas nos pusimos en contacto con las investigaciones geo gráficas económicas y sociales sobre Brasil y el Nordeste de Brasil (por ejemplo, el libro de Josué de Castro sobre Una zona explosiva, el Nordeste de Brasil, que sería publicado también en español en 1965, y el de Celso Furtado sobre La forma ción económica del Brasil). De hecho también en
Milton Santos
65
España estuvo a punto de ocurrir algo parecido a
trabajos dirigidos por Pierre George, y en especial
lo que luego escribió Milton sobre el Nordeste,
los que realizaba Michel Rochefort, que publicó su
donde gracias a SUDENE el Nordeste de ser una
Tesis sobre L'organisation urbaine de l'Alsace
región-programa se había convertido "en una re
(1960), y luego la Tesis de Raymond Dugrand so
gión para los habitantes" (Santos 1968, cit. en
bre Villes et Campagnes dans le Bas-Languedoc
Capel 1969). También en el Sureste de España el
(1963). Milton Santos, que había pasado a traba
programa de SEMZASE y de la Confederación Hi
jar sobre cuestiones urbanas conocía muy bien
drográfica del Segura -así como la actividad de
esa línea de investigación desde sus años de es
una caja de ahorros interprovincial con sede en
tancia en Estrasburgo, donde coincidió con Roche
Alicante (la Caja de Ahorros del Sureste de Es
fort. Recuerdo bien que algunos de los artículos
paña)- estuvo a punto de crear una región del Su
que Santos publicó en revistas francesas sobre el
reste. Casi treinta años más tarde, cuando en
papel de Salvador en la red urbana de Bahia fue
1988 tuve ocasión de tratar a Milton Santos más
ron leídos en aquellos años por mi, aunque soy
ampliamente -con ocasión de su visita a Barcelo
ahora incapaz de decir en qué año y en qué orden
na invitado por Lía Osorio Machado, que estaba
exactamente.
realizando su doctorado en esta universidad-, y
De todas formas el problema del subdesarrollo fue
luego durante visitas mías a São Paulo, volví a hablar con él de esas experiencias de desarrollo y sobre algunos parecidos que encontrábamos entre el Nordeste de Brasil y Murcia y esas conversacio nes nos hicieron coincidir en muchas cosas; el Nordeste y el Sureste casi nos hicieron paisanos y, desde luego, facilitaron mucho nuestra relación personal
el fundamental, tanto para mi dedicación a la ge ografía como para el conocimiento de Milton San tos. He hablado ya de ello en un artículo sobre el magisterio del profesor Vilá Valentí en aquellos años en la Universidad de Murcia (Capel 1999). Mi aproximación al tema tiene que ver esencialmente con un seminario del profesor Vilá Valentí en el año 1961, cuando yo realizaba la especialidad de
A través de Annales de Géographie, de L'Informa
Historia y Geografía. Para ese seminario y las
tion Géographique y de Cahiers d'Outre Mer cono
conferencias que impartió en un Colegio Mayor,
cí también algunos trabajos de Milton Santos, so
Vilá nos pidió a tres estudiantes de su curso de
bre otros dos temas que asimismo me interesaron
Geografía (Francisco Calvo, Francisco Lara y yo
cuando yo realizaba los años de la especialidad de
mismo) que elaboráramos unos datos estadísticos
Geografía e Historia en la Universidad de Murcia,
y documentales. En lo que a mí respecta recuerdo
entre 1960 y 1963, y durante los dos años sigui
que preparé unos sobre la pobreza en España y
entes en que, acabada la licenciatura, fui nombra
en otros países, y leí en aquel momento el libro
do profesor ayudante y encargado de curso en di
que Yves Lacoste había publicado en 1960 con el
cha universidad –esencialmente debido al hecho
título Les pays sous-développés así como los de
de que el número de estudiantes empezaba a cre
Josué de Castro sobre La alimentación en los tró
cer y se necesitaban nuevos profesores. Me refie
picos (de la que existía una edición mexicana en
ro a los temas del subdesarrollo y el de las redes
español de 1946) y Géopolitique de la faim (ed.
urbanas.
francesa 1952), la Geografía del hambre (ed.
Las redes urbanas, como entonces se denominaba
francesa de Hachette 1949), El libro negro del
a la jerarquía de las ciudades, sus áreas de influ
hambre (1957, con traducción en España 1962).
encia y el papel de ellas en la organización regio
En el campo de las ciencias sociales el tema del
nal, fue el tema elegido por mí para mi Tesis Doc
subdesarrollo fue uno de los realmente innovado
toral cuando acabé la licenciatura en Murcia. Ade
res en la década de 1950 y 1960. Un buen núme
más del libro de Dickinson sobre Ciudad, región y
ro de libros de economistas, antropólogos y soció
regionalismo(del que había una edición española
logos fueron traducidos en aquellos años en Es
de 1961) la bibliografía que utilicé en un primer
paña y estaban disponibles. Recuerdo los de Rag
momento estuvo constituida esencialmente por
nar Nurske, Gunnar Myrdal, Pierre Moussa, Paul
66
Milton Santos
A. Baran y otros -todos ellos traducidos al castel
seguido poco después por el que dedicó a "Quel
lano por el Fondo de Cultura Económica o Editorial
quesproblèmes des grandes villes dans les pays
Aguilar- que yo leí con pasión y que abordaban un
sous-developpés" (1961). Sin duda buscaba un
problema intelectual apasionante y de gran tras
marco teórico que le permitiera dar nuevos vuelos
cendencia social. En lo que se refiere a la geogra
al estudio de la ciudad de Salvador. Esa evolución
fía, el tema del subdesarrollo fue introducido en
explica que su primera obra de importancia fuera
Estados Unidos por Norton Ginsburg y en Francia
A cidade nos países subdesenvolvidos (1965), al
por Yves Lacoste en el libro citado y, sobre todo,
que seguirían otras varias aportaciones sobre el
en un artículo especialmente importante publicado
mismo tema, cada vez más amplias. En 1973 por
en Annales de Géographie (1961) en el que pre
iniciativa de Enric Lluch fue traducido al castellano
sentaba de manera general la bibliografía básica
su libro Geografía y economía urbana de los paí
existente sobre el subdesarrollo y que fue una uti
ses subdesarrollados, una obra en la que muestra
lísima guía de lectura para mí y otros estudiantes
las amplias lecturas geográficas, económicas y so
de mi generación.
ciológicas que había ido realizando.
Por aquellos mismos años Milton Santos empezó a
Las teorías sobre el subdesarrollo y luego sobre el
interesarse por los problemas del subdesarrollo.
intercambio desigual y el imperialismo fueron en
Examinado ahora su bibliografía he visto que el
los años 1960 profundamente renovadoras en el
primer trabajo en que habla explícitamente de de
campo de las ciencias sociales. Permitían disponer
sarrollo económico es de 1960. Hasta ese mo
de un marco general que explicaba los problemas
mento él había tenido la formación típica de un
del desarrollo y subdesarrollo, los desequilibros a
geógrafo que, influido por la concepción francesa
escala internacional e incluso en el interior de un
–dominante en Brasil desde la estancia de Pierre
mismo Estado. Es cierto que desde la perspectiva
Mombeig y Pierre Deffontaines, y reafirmada du
de un país como España y en cierto número de
rante su estancia en Estrasburgo-, y se preparaba
países iberoamericanos (como Argentina o Chile)
para hacer una Tesis doctoral sobre su región de
no todos los rasgos del subdesarrollo encajaban.
origen, la cual se convirtió –como también ocurrió
Otros países eran mucho más subdesarrollados o
a otros geógrafos de la época- en un estudio más
más pobres. Pero había un rasgo - el que se refie
especializado. Como ya he dicho, había ido publi
re a la existencia de una economía dual-
cando trabajos sobre la estructura agraria de al
que se incluía siempre en las caracterizaciones del
gunos municipios bahianos, sobre el hábitat rural, el cultivo del cacao, la geografía urbana, el puerto ferroviario de Nazaré, la población, las caracterís ticas de la Baixa dos Sapateiros, la industria, los climas del estado de Bahía, los cambios en el cen tro de Salvador...; estaba adquiriendo y practi cando, en fin, toda esa amplia formación que se exigía a un geógrafo de la época que debía prepa rarse para realizar una buena Tesis regional, que era la capacitación esencial que debía mostrar el especialista en esta ciencia. De todas maneras, Milton Santos empezó a tener desde mediados de la década de 1950 una creci ente inclinación hacia los temas urbanos y, espe cialmente, hacia el estudio de Salvador, que sería el tema de su Tesis Doctoral, presentada en Es trasburgo en 1958. Su artículo "Geografia e de senvolvimento económico" publicado en 1960 fue
subdesarrollo y era especialmente oportuno, ya que hacía aplicable ese marco teórico también en nuestros países. Yo mismo utilicé la expresión región subdesarrol lada con referencia a la región de Murcia cuando realicé mi Tesis de Licenciatura sobre "La pobla ción y los movimientos migratorios en el munici pio de Lorca, Murcia", presentada en la Universi dad de Murcia en 1964, y luego en algún artículo que aprovechaba los materiales de esa Tesina. El término economía dual, que fue utilizado también por determinados historiadores, me parecía en tonces apropiado para caracterizar a la economía española que se fue desarrollando en el siglo XIX, y parecía dar argumentos para afirmar que Es paña, y mucho más ciertas regiones como las del sur de España, eran subdesarrolladas.
Milton Santos
67
Con referencia al estudio de los países, el marco
que las soluciones políticas debían ser las mismas
teórico del subdesarrollo permitía también una in
en todos ellos; y eso en el contexto de la guerra
terpretación de las diferencias a escala mundial y
fría dio lugar a movimientos revolucionarios que,
de los desequilibrios regionales en un momento
en el caso de los países iberoamericanos, contri
en que el mismo concepto regional estaba en cri
buyeron a crear un enfrentamiento radical y una
sis y se trataba de complementar añadiendo al
grave fractura social, cuyas negativas consecuen
estudio geográfico de la región un hilo argumental
cias todavía se sufren.
con la incorporación de una "dominante" que per
La región y la ciudad de los
mitía organizar el estudio (Reynaud 1976). Recu erdo bien que cuando ya en la Universidad de Barcelona tuve que dar un curso sobre "Geografía de los países iberoamericanos", utilicé ese marco teórico como hilo conductor y titulé el curso "Ibe roamérica, un continente subdesarrollado"; se ha referido a ello un alumno de aquel curso y hoy profesor en la Universidad de Barcelona, Joan Ma teu, en un artículo en el que alude al programa del mismo durante sus estudios en la licenciatura de Geografía. El subdesarrollo proporcionaba en aquel momento un marco general explicativo de gran eficacia. Fa cilitaba, además, una denominación muy expresi va para designar a los países que no estaban de sarrollados, a la que se unieron luego otras, como la de Tercer Mundo, que muchos países no alinea dos habían adoptado como suyo poco después de la conferencia de Bandung para significar que no formaban parte ni del bloque capitalista occidental ni del bloque comunista. A todo ello se unieron lu ego cronológicamente (al menos en el caso es pañol) las teorías sobre el intercambio desigual, el imperialismo y la dependencia. Obras como las de A. Gunder Frank, Samir Amin y otros fueron de gran importancia en la formación de muchos estu diantes de mi generación. Y entre ellas las obras de Milton Santos ocupaban también un lugar des tacado.
países subdesarrollados En 1968 e invitado por el profesor Pierre Deffon taines tuve ocasión de asistir al coloquio sobre la regionalización del espacio en Brasil, que se orga nizó en Burdeos con motivo de la inauguración del Centro de Estudios de Geografía Tropical. El Colo quio fue dirigido por los profesores Guy Laserre y Milton Santos y constituyó un encuentro de gran importancia para la discusión del concepto de re gión en los países desarrollados y subdesarrolla dos, en un momento en que este concepto estaba siendo ya claramente impugnado. Regiones histó ricas, regiones homogéneas, regiones polarizadas, y regiones operacionales se enfrentaban como po sibilidades de definición y sistematización del es tudio regional. La imposibilidad de definir regiones homogéneas que lo fueran a la vez desde los pun tos de vista físico y humano representaba una di ficultad apreciable que había intentado ser supe rada con el concepto de región funcional o polari zada. Trabajos sobre las redes urbanas, como los que antes he citado, ofrecían una alternativa muy sugestiva, y podían apoyarse en los que había re alizado Etienne Juillard en Estrasburgo sobre el tema. Se discutía también la validez de estos con ceptos en países como Brasil, con espacios geo gráficos tan diferenciados como los de la Amazo nia y el área centro sur polarizada por SãoPaulo. El tema de las ciudades en la organización de la
Pero el subdesarrollo tuvo también a la larga con
región era en aquel momento de gran actualidad
secuencias negativas, de las que sólo fui consci
y Milton Santos tenía ya una larga experiencia in
ente algo más tarde. Simplificaba situaciones que
vestigadora sobre ello, por lo que no extraña el
eran muy diversas y muy complejas: todos los
protagonismo que tuvo en el Coloquio de Burde
países de África, de Asia y de América del Sur se
os.
unificaban en esas teorías, fueran cuales fueran
El libro Geografía y economía urbana en los paí
sus características específicas. Lo cual tuvo impli caciones políticas muy negativas, ya que precisa mente por esa unificación que se hacía de los paí ses subdesarrollados algunos llegaron a pensar
ses subdesarrollados fue, sin duda, un hito impor tante en la bibliografía sobre el tema. Un científico de un "país subdesarrollado" abordaba sin com plejos un tema de interés general, apoyado en
68
Milton Santos
sus propios trabajos sobre ciudades de esos paí
nes de Engels sobre las ciudades británicas del si
ses y en una bibliografía general amplia y rele
glo XIX o las que hoy se realizan sobre la situa
vante. Los trabajos que años más tarde realizó
ción social de Atlanta, Nueva York o Chicago para
Milton Santos sobre otras metrópolis, y especial
darse cuenta de que la pobreza, la infravivienda,
mente sobre São Paulo le permitirían matizar y
la exclusión social y la fragmentación han estado
profundizar todo lo que entonces decía en aquel
y siguen estando también presentes en ellas. Es
libro.
toy firmemente convencido de que la comprensión
Milton Santos nunca ha abandonado la idea de
de la realidad urbana y no urbana de Brasil sería
que Brasil es un país subdesarrollado y que las metrópolis de ese país son características de esa situación de subdesarrollo. Es indudable que eso, y su decisión de contribuir a cambiar las situacio
más profunda si en el estadio actual se abandona ran los esquemas tradicionales del subdesarrollo y se adoptaran otros, semejantes a los que se em plean para estudiar las ciudades de los países de
nes injustas, le ha permitido encontrar vías inte
sarrollados.
resantes de reflexión, de gran influencia entre los
De la misma manera, estimo que la aplicación de
científicos brasileños y de otros países.
los esquemas centro-periferia parece insostenible
De todas maneras, es posible que la utilización
y ha de modificarse. Creo que una perspectiva di
sistemática de ese marco conceptual, si por un lado permite descubrir rasgos interesantes, por otro impida ver otros también significativos. Creo que a partir de cierto momento la insistencia en que las ciudades brasileñas son ciudades subde sarrolladas impide entender la realidad de las mismas. Discutiendo una y otra vez en Buenos Ai res, en México o en SãoPaulo con geógrafos de esos países he tenido muchas veces la impresión de que la aceptación del concepto de subdesarrol lo les lleva a ver sesgadamente su propia realidad
ferente, la de considerar a Brasil como un territo rio y una sociedad que va formando progresiva mente parte de la nueva Europa ultramarina des de el siglo XVI y lo es plenamente desde el siglo XVIII o XIX , permitiría entender mucho mejor as pectos esenciales de la evolución de este país así como de otros países iberoamericanos. Es un ver dadero contrasentido aceptar ese carácter euro peo y occidental en el caso de Estados Unidos (que también conoció la esclavitud hasta el siglo XIX) y negárselo a Brasil y a los países hispanoa
desde esa perspectiva, lo que tal vez les vela la
mericanos.
comprensión de otros rasgos muy importantes.
Una obra ambiciosa y coherente
Muchas veces he pensado que sería más útil la
Lo que más impresiona de la obra de Milton San
utilización de otros marcos conceptuales, y en concreto la aproximación a su realidad con los mismos presupuestos que se utilizan para estudi ar las ciudades de los países llamados desarrolla dos.
tos es su búsqueda continuada y sistemática de una teoría coherente de la geografía, una teoría que trata de utilizar categorías generales pero que se construye a partir del conocimiento directo de la realidad de los países llamados subdesarrolla
Tengo la impresión de que muchos rasgos que
dos. Muchos conceptos han sido elaborados por el
Milton Santos y otros geógrafos iberoamericanos
autor lentamente, en un itinerario intelectual se
consideran típicos de las metrópolis brasileñas, o
guido desde los años 1950 hasta al momento de
del llamado Tercer Mundo en general, se dan
su muerte, en un proceso incansable de enrique
también en las de los países desarrollados. La
cimiento continuado y una fértil integración de
"modernización incompleta y selectiva", la "yuxta
numerosas aportaciones intelectuales, tratando
posición de trazos de opulencia y carencias pro
siempre de intervenir en la realidad brasileña con
fundas" la segregación o la exclusión social, y
vistas a su transformación. La convicción que ha
otros muchos rasgos se dan también de una u
dado fuerza a su trabajo intelectual es la de que
otra forma en las grandes ciudades de los países
la ciencia geográfica puede servir para transfor
desarrollados. No hay más que leer las descripcio
mar Brasil y para transformar el mundo.
Milton Santos
69
Su gran conocimiento de la realidad brasileña y su
neras, no dejó de criticar, cuando hizo falta, las
paso por instituciones educativas, académicas y
exageraciones de un cierto sociologismo barato o
de desarrollo de diversos países de Europa, Amé
de un ecologismo bisoño que utiliza caminos fáci
rica y África, le permitió ser consciente de la gran
les favorecidos por la moda" (en 'Relações do ter
cantidad de estereotipos e ideas equivocadas que
ritorio globalizado', incluido en O país distorcido,
existían sobre la realidad iberoamericana. Por eso
p. 99). Conociendo su talante abierto y compren
insistió tanto en la necesidad de partir de la pro
sivo, es posible que haya que cargar dichas llama
pia realidad, sobre la necesidad de construir (o
das de atención no sólo al miedo de los excesos
reconstruir) marcos teóricos específicamente lati
que denunciaba, sino también al temor de que los
noamericanos para estudiar la realidad de esos
geógrafos perdieran sus propias señas de identi
países, un aspecto esencial en el que siempre
dad.
coincidí con él.
La globalización
Su trayectoria intelectual fue enriqueciéndose
Milton Santos tuvo siempre una visión negativa de
continuamente e incorporando nuevas ideas de procedencias diversas, integradas en un todo coherente, con énfasis siempre en el espacio. En los años 1970 y 80 -paralelamente y de forma in dependiente a lo que hacían en Estados Unidos David Harvey y otros- Milton Santos realizó un gran esfuerzo para incorporar a la geografía la concepción marxista (modo de producción, forma ción social, etc.) con el fin de fundamentar una nueva teoría de la geografía. Armado con ello abordó el estudio del proceso de globalización, y de las transformaciones del mundo contemporá neo en las dos últimas décadas del siglo XX y su impacto en Brasil. Mostró siempre también un gran interés por las herencias del pasado, por las permanencias histó ricas de las formas pasadas y su influencia en la acción humana. Esas formas pasadas incorporan la dimensión temporal al espacio y le dan su es pecificidad y sus 'rugosidades'. Sin duda en ello han influido rasgos básicos de su formación inte lectual inicial, los cuales han persistido durante toda su vida. Las relecturas que continuamente fue haciendo de obras clásicas, como la de Max Sorre y otras le han permitido obtener ideas váli das en su intento de fundamentación de la geo grafía.
ciertos rasgos de la evolución contemporánea y en especial del proceso de globalización, al que se refirió en numerosas ocasiones. Tengo la impre sión, de todas maneras, que en los últimos años había ido matizando sus propias posiciones. Así de unas iniciales en las que la globalización apare cía como la expresión de todos los males pasó a otra más suave en la que reconocía aspectos posi tivos de este proceso y se concentraba en denun ciar ciertas formas de globalización al tiempo que abogaba por "otra globalización". No estoy seguro de que todos sus juicios pesimis tas hayan sido siempre correctos. Por ejemplo, los que se refieren al papel de la información en esta fase
científico-técnica-informacional.
No
cabe
duda de que tiene razón al insistir en la manipula ción y la violencia de la información que se difun de. Es cierto que en el momento actual no sabe mos con mucha frecuencia si la información que se nos presenta está manipulada o no. El ejemplo de aquellas imágenes de la fauna afectada por la Guerra del Golfo y que luego supimos que corres pondían al vertido del Exon Valdes es una prueba de ello, particularmente impactante y significati va. Y desde los sucesos del 11 de septiembre la manipulación se ha convertido en una estrategia sistemática cada vez más conscientemente utiliza
Al mismo tiempo, realizó un enorme esfuerzo por
da. A ello podríamos añadir otros muchos datos
conocer lo que se hacía en otras disciplinas. Sus
sobre la manipulación informativa y de las conci
lecturas en este sentido fueron muy amplias, y
encias, de lo que la propaganda religiosa, tan in
aparecen bien reflejadas en la bibliografía que uti
fluyente en el Brasil antiguo y contemporáneo, fa
lizó y citó en sus trabajos científicos, en sus con
cilita muchos ejemplos.
ferencias e incluso en sus artículos periodísticos
Pero existe otra dimensión que nos permite com
publicados en Folha de São Paulo. De todas ma
plementar lo anterior, y que es necesario dar
70
Milton Santos
también. Nunca ha habido tanta población absolu
dad de las personas para elegir y discriminar, y
ta y relativa de personas alfabetizadas, nunca
que me cuesta admitir las tesis que presentan a
tantas personas con estudios secundarios y uni
los ciudadanos actuales como totalmente someti
versitarios como hoy. Ni tampoco nunca ha habi
dos a la insidiosa y ubicua acción del poder disci
do tantas fuentes de información. A lo largo de los
plinario. Eso es así porque tengo confianza en la
siglos XIX y XX la prensa se diversificó y los lecto
capacidad de los ciudadanos para elegir y discri
res han tenido numerosas opciones para elegir.
minar. Creo que la gente discrimina más de lo que
Luego, la radio supuso una nueva fuente de infor
piensan los políticos y los intelectuales. Incluso
mación, que llegaba a cualquier rincón del mundo,
los que ven programas basura de la televisión sa
y a las sociedades iletradas, permitiendo también
ben bien lo que ven y eligen verlo por razones di
elegir entre numerosas emisoras con un simple
versas (distracción, curiosidad, necesidad de eva
movimiento del dial. A partir de los años 1950 se
sión...).
fue difundiendo la televisión. Es cierto que al prin
En relación con todo ello resulta muy útil una ade
cipio cada país tenía sólo un canal, pero a partir de los años 1970 éstos se han ido diversificando de forma asombrosa. Hoy en cualquier país existe al menos media docena de canales de acceso gra tuito, a lo que hay que añadir los canales de pago, que pueden ser de todo el mundo, y los ca nales locales que se van multiplicando. Finalmen te Internet ha supuesto otro aumento de la posi bilidad de acceso a la información todavía más re volucionario.
cuada perspectiva histórica de lo que ha ocurrido en otras épocas anteriores, donde la opresión, el disciplinamiento y el peso del poder eran más in mediatos, opresivos y determinantes, donde la segregación y la exclusión tenían unos rasgos mu cho más decisivos y sin posibilidad alguna de me jora social, de aumento del bienestar, de emanci pación y libertad individual. La perspectiva históri ca corta, la incorporación de una dimensión tem poral que tiene en cuenta lo que ha sido el mundo
No puede decirse que no haya información dispo
no ya desde hace tres o cuatro mil años o desde
nible. Todo eso es una diferencia esencial respec
la misma fundación histórica del Brasil sino inclu
to al pasado y no puede desconocerse y desvalo
so desde el siglo XIX, permite tener una visión
rarizarse. Podría argumentarse que el exceso de
menos negativa
información también es una estrategia de domina
Es cierto que los espíritus sensibles y que poseen
ción, pero no estoy de acuerdo con esa interpre tación. En este campo siempre es preferible el ex ceso que la falta.
conciencia ética se inquietan y desearían acelerar dichos cambios. Pero a veces hay que evaluar el coste social que eso representa y las posibilidades
Es indudable que en numerosos aspectos está
de éxito para conseguirlo. En todo caso, la idea de
justificada la imagen negativa que a veces se tie
que el pasado fue mejor, de que el tiempo ha ido
ne de la industria de los medios de comunicación
decayendo desde una edad de oro anterior, impi
y de la industria cultural actual. La dictadura del
den ver los cambios positivos que se están produ
consumo, la fusión entre publicidad y diversión in
ciendo y dificulta disponer del optimismo y la pru
dustrializada producida por las grandes empresas,
dencia necesarios para acometer los cambios que
la manipulación de la información es una realidad
se necesitan.
bastante evidente. Es desde luego útil la crítica
Criticar a Milton Santos
que autores como Habermas han hecho a las difi cultades de elección racional de los consumidores a partir de la publicidad, y la denuncia de la alie nación que todo ello produce. Pero dicho eso, confieso que muchas veces tengo dificultades para aceptar ciertas visiones negati vas de la modernidad que insisten en la incapaci
La influencia de Milton Santos ha sido sin duda extraordinariamente positiva. En numerosas disci plinas sociales, y especialmente en el mundo ibe roamericano su obra ha permitido el desarrollo y consolidación de una poderosa corriente de geo grafía crítica. Y también para otros especialistas su voz ha sido muy influyente, como muestran las
Milton Santos
71
distinciones y los premios que le han otorgado di
Y es urgente pasar de la hagiografía a las investi
versos grupos de científicos sociales, los arquitec
gaciones rigurosas sobre su pensamiento y su
tos y algunos movimientos comprometidos con la
evolución, ahora que quedan muchos testigos que
lucha contra la injusticia. No hace falta insistir en
lo han conocido y que pueden facilitar testimonios
ello, y en este número se dan muchos ejemplos.
de primera mano. Se han de tener en cuenta sus
Milton ha tenido la enorme fortuna de ver también
estudios iniciales de derecho, las razones de su
como se le reconocía su esfuerzo por conseguir
conversión a la geografía, su formación geográfica
una geografía brasileña autónoma de las escuelas
en el marco del paradigma regional e historicista
de los países dominantes. En suma ha contribuido
dominante en la geografía francesa cuando él es
de forma destacada a popularizar la geografía en
tudió, su conocimiento de los nuevos caminos que
los ambientes intelectuales y entre el gran públi
emprendían los geógrafos franceses a finales de
co.
los años cincuenta y comienzos de los sesenta,
Pero tan importante como valorar su figura y su
cuando se elaboraban nuevos marcos de estudio
obra es huir de una actitud beata y reverencial hacia ella. A él que tanto le gustaba la irreveren cia y la búsqueda de nuevos caminos, que estaba dispuesto a discutir con pasión sus puntos de vis ta, estoy seguro de que no le gustarían las citas reverenciales y acríticas que a veces se hacen de su pensamiento, especialmente por intelectuales de origen marxista que parecen haber sustituido las citas canónicas de los clásicos del marxismo (los que tocaban en cada momento, según la frac ción y las tendencias) por la cita reverencial del pensamiento del maestro. Creo que es fácil po nerse de acuerdo en que es probable que no todo lo que ha escrito una persona que ha vivido largo tiempo y en circunstancias tan diversas ha de ser necesariamente bueno. Tal como decía al principio, la obra de Milton San tos ha de ser seguida, interpretada, completada y superada. Seguida porque tenemos en él un ejemplo de vida y de compromiso intelectual y so cial que debe ser imitado; y porque hay en su obra ideas muy valiosas que nos ayudan a enten der los cambios del mundo contemporáneo. Inter pretada, porque en una obra que se ha desarrolla do durante medio siglo es posible que existan contradicciones,
incoherencias
y
oscuridades.
Completada, porque su pensamiento puede ser el punto de partida para nuevas interpretaciones. Y superada, porque es una ley esencial de la ciencia el que las teorías cambien y las obras, incluso de los grandes maestros, sean superadas y den lugar a nuevos desarrollos. La obra de Milton Santos, con sus grandezas y sus carencias, ha de ser interpretada históricamente.
regional y se realizaban las investigaciones sobre redes urbanas y sobre su papel en la organización regional. Su vinculación a la geografía francesa le hizo tener las mismas reticencias que otros geó grafos de esa nacionalidad respecto a la revolu ción cuantititativa que se desarrollaba desde los años 1950 en el mundo anglosajón. Hemos de re cordar que en Francia, a pesar del sentimiento creciente de crisis de la concepción regional, du rante toda la década de 1960 -y por tanto cuando Milton Santos permaneció en las universidades de Toulouse, Burdeos y París después de 1964- la geografía historicista y antipositivista dominó con gran fuerza y que solamente después de mayo de 1968 y en relación con la crisis de la universidad algunos se atrevieron a introducir decididamente las ideas de la geografía teorética y cuantitativa. Sin duda el espectacular desarrollo de la geografía cuantitativa en un país como Estados Unidos, que había apoyado la Dictadura militar, y la utilización del utillaje técnico y pretendidamente objetivo y neutro de estas técnicas por los gobiernos de di cho periodo hizo a Milton Santos reticente a esa corriente. Luego en los años 1970 la crítica de la geografía neopositivista por los geógrafos radica les, y el desarrollo de la geografía crítica le afirmó en una vía que seguían también otros geógrafos anglosajones en su cuestionamiento del paradig ma anterior cuantitativo. En esa geografía marxis ta encontró conceptos válidos para interpretar la situación de Brasil y otros países del llamado Ter cer Mundo, y no cabe duda de que el resultado de su esfuerzo ha sido muy rico y fructífero.
72
Milton Santos
Pero es evidente que su evolución podría haber
que en este sentido es posible que, si se leen bien
sido otra en un contexto diferente. Una obra como
sus textos, es posible que el maestro tenga una
la de Milton Santos debe ser interpretada y situa
visión menos pesimista que muchos de sus lecto
da históricamente. Estuvo sometido a muchas in
res e intérpretes. Milton ha mostrado muchas ve
fluencias, y su historia personal explica ciertas re
ces su confianza en las grandes metrópolis, en las
ticencias y ciertas actitudes. A partir de ahí se en
posibilidades de Brasil. En todo caso, la visión un
tiende, por ejemplo, su posición contra la geogra
tanto pesimista que encuentra a veces uno en
fía cuantitativa en el contexto del debate antiposi
Brasil creo que tiene que ver, ante todo, con un
tivista de los años 1970, sus denuncias contra las
talante ético de lucha contra la injusticia, y en ese
pretensiones de neutralidad de los cuantitativos.
sentido es admirable. Pero también tiene que ver
Pero no hay que olvidar que no todos los cuantita
con el hipernacionalismo y la conciencia de ser
tivos eran reaccionarios, y que algunos señalaron –como hizo Morril en las páginas iniciales de Anti pode- que los métodos cuantitativos se convierten en radicales cuando se aplican a problemas radi
una superpotencia incompleta, con la falta de una visión verdaderamente mundial de los problemas, con la aceptación de marcos conceptuales como el del subdesarrollo, que impiden ver la propia reali
cales. No es seguro que en ese sentido la influen
dad.
cia de Milton Santos en la geografía brasileña
Siempre que voy a Brasil me hablan de la pobreza
haya sido totalmente positiva, aunque resulte ex
y de los numerosos problemas que, evidentemen
plicable. El rechazo de todo lo que suponga cuan
te, existen. No me hablan tanto de la segregación
tificación o aproximaciones teoréticas en la actual
racial, que también existe, como el mismo Milton
geografía brasileña, tal como he podido ver, por
comentó muchas veces y señaló en alguno de sus
ejemplo en el XIII Encontro de Geografía de la
escritos en Folha deSâo Paulo, o se observa sim
AGB, celebrado en Joâo Pessoa, y la reducción del
plemente utilizando los aeropuertos. Y no se habla
aparato matemático simplemente a los aspectos
casi nunca de la riqueza, del dinamismo de la vi
técnicos del uso de SIG, creo que es algo clara
talidad y la creatividad de ese nuevo Brasil que
mente negativo. Una buena formación teorética y
puede superar crisis coyunturales como la que
cuantitativa sería de gran utilidad a los estudian
está en estos momentos padeciendo.
tes de geografía para abordar los problemas a que
Desde hace veinte años vengo oyendo a muchos
han de enfrentarse profesionalmente.
amigos brasileños repetir que las cosas van cada
Es posible que otro aspecto negativo de la influen
vez peor en su país. Lo que es manifiestamente
cia de Milton haya sido su insistencia en la teoría
falso y tal vez refleja la incapacidad que a veces
geográfica, que puede dar a los geógrafos un ca
tenemos los intelectuales para juzgar correcta
rácter aislado y solipsista. Sin duda tiene que ver
mente la realidad. Yo creo que en estos últimos
con su voluntad de prestigiar la geografía brasi
veinte años Brasil ha mejorado de forma clara, y
leña, y es indudable que ese esfuerzo ha tenido
he sido testigo de esas mejoras. Lo impresionante
resultados notables. Pero tal vez los jóvenes de
es darse cuenta de que existen intelectuales que
berían tener con Milton Santos la misma actitud
vienen repitiendo la misma cantinela desde los
que los hijos tienen con los padres. Lo importante
años 1930, aunque algunos de ellos más tarde se
muchas veces no es lo que éstos dicen, sino lo
den cuenta de su error y hayan reconocido que se
que hacen. Y es indudable que Milton siempre
equivocaron, como hizo Rangel en una entrevista
tuvo una actitud abierta hacia otras ciencias, lo
memorable que le hicieron en la revista Geo Sul
que hizo que su trabajo intelectual resultara parti
hace ya unos años.
cularmente fructífero.
Lo que yo creo que ocurre es que entre las clases
Finalmente, tampoco estoy de acuerdo con la vi
medias y altas, a las que pertenecen en general
sión un tanto pesimista sobre Brasil, que Milton
los profesores universitarios, son cada vez mayo
comparte con tantos geógrafos brasileños. Aun
res las aspiraciones y las expectativas de mejora,
Milton Santos
y cada vez mayores también las desviaciones en tre ellas y las posibilidades reales de conseguirlas. De ahí nace una frustración que produce esa vi sión negativa de la realidad. Un verdadero maestro Sin duda Milton Santos fue un ciudadano y un ci entífico ejemplar. Preocupado por los problemas de su tiempo, interviniendo activamente en la so ciedad, en un intento de transformarla. Es eso esencialmente lo que nos ha de quedar de él. Como escribió Jorge Luis Borges, "maestro es qui en enseña con el ejemplo a tratar con las cosas, un estilo genérico de enfrentarse con el incesante y vario universo". Sin duda Milton fue en toda su acepción un verdadero maestro y es ese ejemplo el que hemos de seguir. Sus teorías, sus libros, sus conceptos y sus datos servirán mientras sir van, mientras podamos utilizarlos para entender mejor la realidad. Cuando eso no ocurra deberán ser superados, y esa es la tarea que tienen los jó venes geógrafos y científicos sociales brasileños. Estoy convencido de que el mejor homenaje que debemos hacer a la obra de Milton Santos es par tir de ella, leerla desde posiciones no dogmáticas, cuestionarla y superarla. Sólo de esa manera su trabajo será fructífero y tendrá incidencia en el fu turo de Brasil. Bibliografía BORGES, Jorge Luis. Pedro Henríquez Ureña. In Prólogos con un prólogo de prólogos(1975).Obras completas. Vol. IV 1975-1988. Barcelona: Emecé Editores, 1997. CAPEL, Horacio. La regionalización de los países en vías de desarrollo: el caso de Brasil. Revista de Geografía, Universidad de Barcelona, vol. III, nº
73
1-2, 1969, p. 108-129. Reproducido en CAPEL, H. Estudios sobre el sistema urbano. Barcelona: Edi ciones de la Universidad de Barcelona, Col. Pensa miento y Método Geográficos nº 3, 1974; 2ª edi ción, 1982, p. 99-120. CAPEL, Horacio. Los años murcianos de Juan Vilá Valentí. In Professor Joan Vilá Valentí. El seu Mes tratge en la Geografía Universitaria, Barcelona: Universidad de Barcelona (Col.lecció Homenatges), 1999, p. 89-102. CARLOS, Ana Fani Alessandri. Ensaios de Geogra fía Contemporánea. Milton Santos. Obra revisita da. Sâo Paulo: Editora Universidade de Sâo Paulo/Editora Hucitec, 2001. 333 p. REYNAUD, Alain. El mito de la unidad de la geo grafía. Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geogra fía Humana, Universidad de Barcelona, nº 2, mar zo 1976. 40 p. SANTOS, Milton. Geografía y economía urbana en los países subdesarrollados. Traducción de Rosa Ascón. Barcelona: Oikos-Tau, 1973. 281 p. SANTOS, Milton. Espacio y método. Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana, Univer sidad de Barcelona, nº 65, septiembre 1986. 57 p. SANTOS, Milton. O país distorcido. O Brasil, a glo balizaçâo e a cidadanía. Organizaçâo, apresenta çâo e notas de Wagner Costa Ribeiro. Ensaio de Carlos Walter Porto Gonçalves. Sâo Paulo: Publi folha, 2001. 223 p. © Copyright Horacio Capel, 2002 © Copyright Scripta Nova, 2002 Ficha bibliográfica: CAPEL, H. "Continuar y superar a Milton Santos". In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos.Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Uni versidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]
74
Milton Santos
POR OUVIR DIZER E POR QUERER SABER: CONVERSANDO COM MILTON SANTOS Por Maria Adélia Aparecida de Souza Fonte: http://www.paulodimas.com/biblioteca_outros_002.htm Título da matéria: Por ouvir dizer e por querer saber: conversando com Milton Santos Autora: Maria Adélia. São Paulo, setembro de 1996. Fonte: (Do Livro: O mundo do cidadão / Um cidadão do mundo Organizado por : Maria Adélia Aparecida de Souza Editora: Hucitec - São Paulo, 1996)
Apesar daquilo que deveria obviamente revelar a
Tricart foi seu mestre. Impossível questionar essa
sua cor negra e o que significa ser negro no Bra
influência. - Aprendi com Tricart o rigor, o gosto
sil, há um grande mistério e uma enorme curiosi
de discutir. A capacidade de contrariar aquele que
dade de todos por saber, finalmente, quem é Mil
trabalha comigo...
ton Santos. Em conversas, Milton sempre faz re
Afinal, quem é Milton Santos? Certa vez me disse
ferência a um tio que conhecia grego, à refinada educação e o rigor na formação do seu "compor tamento" social e dos 'bons modos' que recebeu de seus pais. Este fato é inusitado, especialmente em São Paulo, quando confrontado com a imagem que aqui se tem dos negros...
que vem de uma época em que, para prosseguir na vida, os negros quase precisavam metamorfo sear-se em brancos. Milton para mim é branco na aparência mas é negro em tudo mais: na inteli gência viva, na consciência sobre sua própria ne gritude, na sua forma requintada e sinuosa de
Milton é extremamente generoso com amigos, al
pensar, de relacionar-se, enfim de ser. Milton não
guns (poucos) mestres aos quais também faz in
é linear, como são so brancos, com sua arrogân
sistentes referências a algo de bom que eles lhe
cia e tranqüilidade milenar dada pela pretensa su
ensinaram 'para viver'. Como característica da
perioridade racial. Daí, para mim, Milton Santos
baianidade, tem sempre uma fábula, uma história
ser Milton Santos, exatamente porque é negro e
a contar sobre cada um deles que estão ou esti
não branco, superando, no meu entender, todos
veram na Bahia, na França, ou em algum lugar do
aqueles de quem se julga aprendiz.
mundo. Mas o que impressiona em Milton é exa
É curiosa sua ligação com a Bahia. Ela é uma re
tamente o seu talento para, refinadamente, apre ender sobre a vida, com rigor absoluto e recrian do-a com esse mesmo rigor, porém com uma energia, vontade e alegria contagiantes.
ferência permanente. Isto se deve provavelmente mais ao fato de ter vivido lá a melhor parte de sua vida, forjado seus relacionamentos duradou ros, iniciado sua vida profissional, acadêmica, en
Apesar da sua marca e identidade sempre presen
fim, seus laços importantes. Ou será, mais uma
tes (afinal o seu estilo é inconfundível no mundo
vez, a negritude o liame dessa inquebrável rela
todo), Milton sempre se refere a esses persona
ção? Então por que São Paulo para permanecer?
gens, dando-lhes importância. Para mim, Milton é
São Paulo é, penso eu, a razão de Rafael. Mas
o que é, por ele mesmo. Mas insiste sempre que
também a maior facilidade para o prosseguimento
Milton Santos
75
dos contatos com o mundo. Apesar da Bahia dos
Nestas lições sobre o olhar para trás, sobre suas
netos, de Miltinho.
origens Milton tem opinião que se junta a de
Mas Milton tem uma intrigante maneira de viver e
Darcy Ribeiro. Segundo ele no Brasil há sempre
uma afeição que se transbordam em amizades e as ata, em todos os lugares. Por isso pode viver (e viveu), em muitos cantos do mundo. Mas sem pre o retorno à sua querida Bahia. Mas há tam bém uma relação forte com a França. E isto tem a ver com sua formação, com a educação legada pelos pais, desde sempre. Tendo saído de casa aos dez anos de idade para estudar como interno em colégio freqüentado pelos filhos de judeus, de espanhóis, levou consigo pela vida afora aquela herança, que se unirá mais tarde à cultura france
uma preocupação, e muito especialmente em São Paulo, de se conhecer as origens. Você é filho de quem? De que família você é, pergunta-se sem pre. Rindo muito, Milton exclama: "- Imagine, até para mim, perguntavam na Bahia, de que família eu era!" Mas na Bahia, esse é um questionamento diferente daquele aqui do Sul. Lá, essa questão era normalmente feita entre os brancos, jamais entre brancos e negros. Na Bahia isso tem mais a ver com posição social, ao passo que aqui no Sul ela significa a recusa ao Brasil. É prazeroso e es
sa. Assim, segundo ele, vai forjando sua persona
nobe dizer-se filho de alemão, de italiano.
lidade com uma dada forma de individualismo,
Darcy Ribeiro chocou os paulistas e os sulistas
melhor dizendo, de independência pessoal ou,
quanto se referiu também a essa recusa ao Brasil.
como diz Milton, de desconfiança. Também, a sua
A recusa à mistura brasileira. Há a busca de uma
capacidade de solidão, o ajudou muito na vida. E
'branquitude, de uma branquidade autêntica que
tudo isso começou quando menino, em um colé
o português não confere'. Vide os preconceitos re
gio da Bahia.
velados a todo instante com relação aos brasilei ros pelo mundo afora. Muitos ainda não nos consi
Mas quem é Milton Santos?
deram como muitos brancos. Assim, português e espanhol, é a África. "- Mas minha família me
Milton vem de uma família cujos avós paternos
educou para mandar." Talvez aí esteja o seu traço
eram de origem humilde, possivelmente escravos;
branco. Esta foi a grande preocupação de seus
o avô agricultor urbano e a avó vendia verduras
pais, dar-lhe uma educação para o mando e não
pelas ruas. Diferentemente do lado materno. Do
para ser mandado. Ser alguém que manda. Esta
avô, lembra-se pouco. A memória do avô é aquela
era, sem dúvida, a maneira de seus pais verem a
do retrato na sala, das conversas sobre a amiza
sociedade. E, para mandar, diz Milton, você tem
de, com Rui Barbosa e que também possuía bens.
de parecer com os que mandam - a sociedade
O bisavô, maestro, era dono de escravos. A mãe,
branca.
mulher extremamente inteligente, bonita, com enorme vocação para a organização material da vida. O pai, mais contemplativo, seduzido pela atividade intelectual. Estes foram, sem dúvida os ingredientes para uma harmonia muito grande na família Santos.
Em sua casa, quando menino na Bahia, não eram os brancos que vinham. Eram negros de um certo nível intelectual ou social e alguns poucos brancos com um nível parecido. Por ter saído muito cedo de casa, não desenvolveu como seu irmão Nailton Santos uma maior proximidade com a família. É o
Mas Milton revela que em sua família não se fala
que ele chama de produção da individualidade
va muito de 'para trás'. Não havia essa preocupa
pela proibição do afeto familiar. Nailton é mais
ção com os antepassados. Talvez isto tenha de
próximo da família, é mais capaz de se manifes
ver com sua enorme preocupação com o futuro
tar. Em Milton esta impossibilidade gerou um tra
que, segundo ele, é o norte de tudo o que faz. -
ço seu: a desconfiança.
"Para que olhar para trás? Estou muito contente de ser filho de quem fui, neto de quem fui. Mas isto não me ajudaria na construção nem da minha personalidade, nem de um lugar."
É bom lembrar que a permanente baianidade em Milton se deve a uma série de fatores. A Bahia, na sua juventude, como ele mesmo diz, era uma "ilha". Era uma cultura não industrializada. Então,
76
Milton Santos
diferentemente de São Paulo que atrai gente do
repentinamente desprovido da função política!
mundo todo, na Bahia, a cultura é que será o
Mas a política é fascinante e sempre se tem von
grande caldeador, uma cultura secular que se
tade de voltar. Provavelmente isto foi assim tam
mantinha e que vai chegar até mesmo depois dos
bém com Milton, até a madurez, como ele mesmo
anos cinqüenta. Essa cultura possibilita a criação
diz.
de relações muito fortes e que tem, até hoje, o
Mas creio eu que essa madurez tem também mui
apoio e a imposição pela burguesia. Aí nasce a su tileza do preconceito racial na Bahia, o qual só re centemente começa a ser rompido. Mas há algo mais na baianidade de Milton: sua fina ironia. En tender o texto de Milton é algo fantástico. A ironia se mistura com as metáforas. Sinuoso, irônico, metafórico, sábio, profundo, cordial, sutil. Este é Milton Santos.
to a ver com sua mulher, Marie-Hélène que tem uma visão muito particular e rigorosa sobre os ca minhos da Política. Mas o não retorno à política tem muito a ver com o fato de Milton Santos ter deixado a Bahia. Procurou em outros afazeres o reconhecimento e uma maneira de também sen tir-se socialmente útil, fazendo, como ele mesmo diz, 'coisas importantes'. Mas toda essa interpre tação tem a ver com a condição de ser baiano. Há
O desprezo pelo poder Curiosa é a relação de Milton com o poder. O po der instituído, digamos assim. Milton exerce com mestria um outro tipo de poder, ditado por seu próprio talento. Jamais me esquecerei de uma de suas frases lapidares: "não é o poder que impor
um divórcio físico entre Milton Santos e a Bahia, mas nenhum rompimento com o elo afetivo que mantém com sua terra. Insiste sempre que os baianos são como são, a Universidade da Bahia é o que é, pois soube 'aproveitar a coisa cultural', antes de o industrialismo tentar chegar.
ta, mas o prestígio e a prosperidade." Quando jor nalista, por conseguinte como político, todos te miam a sua pena. O jornal foi o primeiro inspira dor da sua autoconfiança e conseqüentemente a sua lida com o poder. Tratava-se de um poder lo cal, com valor muito precário, efêmero. Mas claro está que a visão de mundo já começava a ser de lineada. Mas como perceber o mundo no seu pro cesso de reflexão? Milton já elaborava uma das suas categorias de análise mestras, aquela de for mação sócio espacial que viria a formular muito tempo depois, na década de setenta. A lucidez de Milton no trato com o poder sem dúvida jamais permitiu que se equivocasse a esse respeito. Ela não permitiu aquilo que é extremamente usual para todos os que já o exerceram: a dificuldade de viver sem o poder instituído. Curiosas histórias são contadas por ele quando do exercício de uma cargo político importante no go verno Jânio Quadros. Não fora essa sua lucidez sobre o poder e na sua perspicácia em interpretar até mesmo os telefonemas do então presidente, sua vida teria sido bastante diferente após a re núncia de Jânio. Imaginem os leitores o que signi fica, em face das características da Bahia, estar
Sobre o exílio Há algo de extremamente curioso com Milton que viveu exilado, por razões políticas, em tantos lu gares do mundo, durante um momento da sua vida e da vida do nosso país, extremamente difí cil. Milton Santos, é bom que se repita, foi exilado político. Mas, como poucos não tiram proveito dis so, exerce vivamente a ética na política. Jamais se comportou como vítima do regime militar, ou guarda amarguras. Aliás este é um traço que não se observa em seu modo de viver. Ao contrário, é no exílio que constrói um pensamento teórico-crí tico, muito mais forte do que a construção políti ca. Explico-me. Milton não monta no exílio o discurso heróico da volta. Conheço sobejamente o seu pro cesso de volta e todas as dificuldades para se es tabelecer e, sobretudo, reingressar na vida e na universidade brasileiras! Apesar das vicissitudes, procura exercer o seu labor e construir, aí sim, um profundo pensamento teórico e político que o Brasil e os brasileiros necessariamente, aos pou cos estão tendo de conhecer e admirar. Milton se
Milton Santos
77
instala, não como herói que voltou carregado nos
Fala-nos de verticalidades, 'esse espaço de fluxos
braços do povo mas, difícil, cautelosa e profunda
formado por pontos' e de horizontalidades, 'os es
mente vai impondo-se, como um dos principais
paços da contiguidade'. Em suas formulações,
pensadores e intelectuais brasileiros, com um
centradas em um humanismo irrepreensível há lu
pensamento e uma posição política profundos e
gar também para os homens lentos e pobres do
inarredáveis. No exílio, se dedica obstinadamente
planeta e que se situam diante da volúpia dos
aos estudos. É aí que fundamenta sem dúvida ne
tempos acelerados. Nos introduz, assim nas 'zo
nhuma sua obra de posterior.
nas opacas e nas zonas luminosas', para alertarnos sobre a tecnificação do território nesta nova divisão do trabalho mediada pela técnica. Mas, o
A explosão de sua obra
que é mais importante, nos faz revisitar velhos
Procuro acompanhar de perto a produção científi
conceitos da geografia - região, lugar, território -
ca e acadêmica de Milton Santos; seu pensar é
ajustando-os ao mundo de hoje. Milton faz assim,
profundo, erudito, sinuoso como o 'caminho do
renascer a geografia.
campo', na metafísica de Heidegger. Sua obra se confunde no meu modo de ver com a história do pensamento geográfico brasileiro: empirista no
As construções são longas e lentas...
início - vide os seus primeiros trabalhos; fórmula
Ouvindo Milton falar de seu trabalho, percebe-se
depois, sob inspiração do método indutivo deduti
de imediato a alegria em seus olhos. A obstinação
vo - o Espaço Dividido e outros textos sobre a
pela busca, pela compreensão, pela reflexão, uma
Economia Urbana, e entra plenamente na dialética
curiosidade incontida. Sempre tive enorme curio
a partir da Geografia Nova. Estamos na totalidade
sidade em conhecer o processo de trabalho inte
mundo,
lectual e acadêmico de Milton. Um dia, revelou-
na
aceleração
contemporânea,
enfim
mergulhamos no movimento do mundo.
me parte dele: disciplina, organização, trabalho e
Assim, Milton vai transformar-se em um geógra
uma enorme curiosidade, uma busca permanente.
fo-filósofo solto, ético, completamente comprome tido com o seu tempo, com o seu povo, mas so bretudo com o mundo. Tem a ousadia de propor que a geografia 'é a filosofia das técnicas!' Ele nos
Revelou-me parte da sua forma de trabalhar e isto é um segredo nosso... Mas, da escolha do pa pel, a escolha da caneta, ou das canetas, de dife rentes cores. A busca, a escolha da palavra, a
ensina que 'a paisagem é uma acumulação de
música da frase, o rigor dos significados.
tempos' e que o 'espaço geográfico é um sistema
Seu novo livro, cuidadosa e longamente trabalha
de objetos e de ações' em que a técnica tem um
do em geografias distantes. Um primor! A grande
papel central. Vai nos introduzir nesta 'aceleração
obra! A preocupação com a referência bibliográfi
contemporânea' cuja compreensão está pautada
ca correta, tudo severamente feito e organizado.
na caracterização desta contemporaneidade como
Um pensamento que avança, pouco a pouco, cau
pertencendo a um 'período técnico científico e in
telosa e firmemente. Será, sem dúvida uma mar
formacional', não se esquecendo das lições de um
ca de Milton. Pelo seu conteúdo sem dúvida ne
de seus grandes mestres que foi Max Sorre.
nhuma, mas sobretudo porque revela um imenso
Fala-nos do tempo e nos introduz no conceito de
e cotidiano trabalho. Mas, já há novos projetos, fi
evento, 'o tempo empiricizado, portador de um
lhotes que vão sendo retomados.
acontecer histórico'. Desenvolve os conceitos de sistema, isto é, o funcionamento da técnica - no seu aspecto material e imaterial - em diversas épocas e que hoje possibilita a criação daquilo que Milton denomina de 'inteligência planetária'; de redes, 'produto das condições contemporâneas da técnica' e de ações que se distinguem pela sua racionalidade e intencionalidade.
Fantástico e rico projeto que prossegue, desde o exílio. É chegada a hora de pensar na história do territó rio brasileiro. Pura especulação minha. Porém essa idéia deve ter por trás uma interpretação nova da globalização. A reflexão de um geógrafo
78
Milton Santos
sobre a sociedade brasileira. E tem mais... No sa
isso a geografia foi invadida por metáforas. Assim
bor das conversas surge nova epistemologia da
nos chega uma enorme influência vinda antes dos
existência, a questão da emoção. E a técnica per
geógrafos franceses, depois dos anglo-saxões,
manece como a questão central e esta é a enor
disseminando o poder de alguns poucos geógra
me contribuição de Milton Santos para a compre
fos: o deslocamento do interesse dos hegemôni
ensão desta Contemporaneidade. Daí a sua avan
cos em relação aos hegemonizados se amplia. O
çada proposição da geografia como sendo a filo
resultado desse processo é que a geografia, em
sofia das técnicas. Uma visão da técnica que não
vez de se tornar universal, se torna provinciana.
suprime a história, isto é, a técnica usada de uma
Além disso, há uma institucionalização crescente
outra forma. Há uma preocupação firme de rom per com a aparente impossibilidade de mudança, especialmente dos processos de compreensão desta contemporaneidade, e conseqüentemente do Brasil, hoje. A técnica, a cultura técnica. E é este desenvolvimento que permite ir além das proposições
homogeneizantes
da
globalização
como produto de tecnologização. esta visão diz ele, suprime a história e conseqüente suprime a emotividade.
da disciplina: seu prestígio é ligado a departa mentos, a revistas. Isto vai criar uma enorme ca pacidade de reprodução sem discussão do objeti vo mesmo do que se está fazendo. E isto é o que Milton denomina de 'moda'. Elaborando uma pro funda reflexão sobre o movimento da geografia na América Latina que ele próprio criou, Milton teme que ele venha a não durar muito. Pois, la mentavelmente aqui, para que as coisas vinguem, alguém sempre quer criar alguma instituição, ins
Milton Santos entende a técnica usada de outra
titucionalizar os processos: criar uma associação
maneira, mediante outras combinações e com
de geógrafos da América Latina, para se associar
uma crença da história. Imensos projetos, filhotes
a UGI - União Geográfica Internacional e posteri
do maior - a absoluta necessidade de compreen
ormente solicitar financiamentos de preferência a
der o mundo e o seu país, pelo olhar de um geó
alguma instituição internacional. Assim, a geogra
grafo. Mas o que permanece é o desesperado
fia se fragmenta cada vez mais. O movimento que
apelo para o pensar, o novo pensar para construir
Milton Santos indubitavelmente lidera na América
o novo e não confundi-lo com a novidade. Aí
Latina se opõe a isto: nele a geografia se globali
emerge novamente o professor, o mestre. A bus
za, assume uma forma de expressão diferente,
ca de discípulos, poucos, é bem verdade. Dois em
procura manter um estreito laço cultural e esta é
duzentos. Mas é preciso chamar a atenção para
também uma forma de expressão diferente.
este repensar o Brasil e o mundo, ainda que com
Milton nos revela sempre a sua visão sobre a geo
poucos. É preciso ensinar a perceber a diferença não apenas entre o rico e o pobre, mas entre o pobre e o ser humano. Provavelmente aí está a epistemologia da existência a que Milton Santos se tem referido ultimamente, insistentemente.
grafia, sobre o Brasil e sobre o mundo. Seu sinuo so pensar pode vislumbrar coisas que nós ainda certamente não estamos vendo. Assim tem sido a sua vida... No entanto, seu pensamento nos deixa atento para procurar compreender nosso país. Ve rificar se o Brasil só está impregnado da novidade
Quanto à Geografia... refletindo e aprendendo com Milton Para Milton a geografia nunca teve momento tão promissor. Ao peso das metáforas se associa o peso da desconfiança dos geógrafos na força do espaço. Essa desconfiança levou o geógrafo a
(a política neoliberal) ou se efetivamente já fomos emprenhados pelo 'novo no mundo: a possibilida de de, com a técnica, construir esse "admirável mundo novo"' e a tão perseguida civilização do ócio, resgatando a plenitude do homem universal. Milton, sua lucidez, sua obra e a história da sua
adotar a primeira idéia mais próxima, entre geólo
vida nos permitem, ainda, construir utopias.
gos, antropólogos, cientistas políticos, filósofos,
Um beijo. Continue a ser feliz.
do que assumir a geografia propriamente dita. Por
Maria Adélia.
Milton Santos
79
MILTON SANTOS, CIDADÃO DO MUNDO
Por Odette Seabra* Fonte: http://www.fpabramo.org.br/leiamais/homenagem_miltonsantos.htm
Foram perto de vinte anos de convívio acadêmico
agora suas idéias mas vale lembrar que depois
no Departamento de Geografia. Conhecemo-nos
desse episódio o vi, cada vez mais, como um críti
bem. O Professor Milton Santos tinha a autoridade
co das tecnologias incorporadas diuturnamente ao
de um intelectual militante. Nas nossas lides, a
modo de vida.
ele recorríamos em função das mais diversas cir
Os anos de estudos e de trabalho pelos quatro
cunstâncias, e quaisquer que fossem elas, sobre os caminhos da Geografia, sobre a Universidade em suas relações com a sociedade ou sobre co nhecimento, havia sempre uma disposição, um "plus" que o movia no sentido de uma crítica inci siva, contundente. Ficamos mais pobres pela sua ausência. Não obstante, vivenciamos certas divergências, as quais, até onde posso compreender, eram de mé todo. Nunca divergimos em relação aos propósitos de nossa prática como professores na universida de. Recordo-me que, em certo momento, na condição de Presidente da Associação dos Geógrafos Brasi leiros, intrigava-me com aquilo que parecia ser um grande paradoxo: uma entidade capaz de reu nir mais de duas mil pessoas, estudantes e pro fessores de Geografia, nos seus simpósios e con
cantos do mundo – Europa, América, África e Ásia – valeram-lhe enorme experiência. Costumava di zer que ao ganhar distância do seu meio sociocul tural, pôde ver a si próprio melhor, mais profun damente. Como outros intelectuais de sua época, viveu as lutas por um projeto nacional que estava centrado nas estratégias da industrialização brasileira e que reunia um conjunto de idéias capazes de entusi asmar várias gerações. De volta ao Brasil, parece não ter parado um só dia. Estávamos diante de um pensamento que se mo via levando consigo tudo aquilo que encontrasse pela frente. Encontrava seus interlocutores pelos corredores, pelo café, tinha sempre algo a dizer, a perguntar e a ouvir.
gressos, ter que viver cotidianamente um grande
Tornou-se não só um analista audacioso da globa
esvaziamento. Discutindo isto que me parecia ser
lização, da ideologização do processo social como
uma questão crucial, vinha a idéia de diversificar
da pobreza em nosso país.
as publicações, de promover atividades culturais e
Identificou a globalização como globalitarismo,
políticas, entre outras tantas.
porque além de pressupor a não democracia – o
Foi então que organizamos em São Paulo um de
que se está dando agora – representa, ao mesmo
bate sobre as associações científicas e, em 15 de
tempo, essa vocação atual para seguir a vontade
novembro de 1996, como parte das atividades, o
de um grupo de empresas e de países hegemôni
Professor falou sobre a relação entre ciência e
cos; a globalização é ela própria um sistema tota
técnica. Raciocinou profundamente sobre a ciên
litário que chega à vida cotidiana. No caso do Bra
cia, sobre o conhecimento e o sentido de finalida
sil, por exemplo, nos dizia o Professor, o discurso
de estrito que conduz à funcionalidade técnica.
do chefe da nação deveria ser pedagógico. E, no
Discutiu seus efeitos na vida social porque condi
entanto, o nosso chefe da nação diz que todos os
cionava a cotidianidade moderna. E assim condu
que não pensam como ele são canalhas, burros,
zia, de modo exigente, a uma compreensão da
estúpidos, vagabundos, não admite nenhuma dis
sua posição contra os tecnocratas. Era, enfim, o
crepância com o que ele próprio pensa.
caminho de discussão do paradoxo que nos envol
É a eliminação do debate. E mais, nos dizia, a glo
via. Não conseguiria, obviamente, reconstituir
balização não subsistiria sem sua própria fabula
80
Milton Santos
ção. Condena-se a população brasileira a morrer
Mas, ao mesmo tempo, conseguia ser otimista,
sem cuidados médicos e dizem que estamos ca
como dizem os alunos, e pensar pra frente. Pen
minhando para uma saúde pública melhor. A glo
sava que o pobre enfrenta o mundo todos os dias;
balização é fábula porque quando nos falam sobre
a cada manhã tem uma longa jornada para che
a aldeia global querem dizer que todos sabem o
gar ao dia seguinte, que esse enfrentar o mundo
que se passa no mundo.
é sua conquista. Como são muitos os conquista
A globalização só se tornou possível nesta época
dores eles estão tecendo uma história da qual
dos mercados financeiros globais, sob coordena ção das respectivas instituições financeiras, que
nem sempre nos damos conta. É por isso que eles têm a História nas mãos e que mostrarão isso de
articulam esses mercados financeiros globais no
alguma forma.
interior do sistema de Estados. Antes, os merca
Pensando amplamente e em profundidade sobre o
dos nacionais eram mais ou menos regulados pela
mundo, o Professor Milton deu grande visibilidade
política nacional.
à Geografia como campo de conhecimento, e pro
E assim as grandes empresas escolhem os lugares
porcionou a todos que com ele puderam privar de
que lhes interessam; o Estado, através de suas
sua inteligência momentos de inquestionável va
estruturas de gestão, geralmente, ratifica tais es
lor.
colhas.
*Odette Seabra é professora do departamento de
Mas há nessa desordem a oportunidade intelectu
Geografia da USP; realizou juntamente com Môni
al e política de nos deixar ver como o território re vela o drama da nação, porque ele é, eu creio, di zia o Professor, muito mais visível através do ter ritório do que por intermédio de qualquer outra instância.
ca de Carvalho e José Corrêa Leite entrevista com Milton Santos publicada no livro "Território e Soci edade" da Editora Fundação Perseu Abramo.
Milton Santos
81
UM CAFÉ COM MILTON SANTOS Por Fernando Conceição* Fonte: http://www.uol.com.br/fsp - 08/07/2001 Editoria: MAIS! Página: 10 Edição: Nacional Jul 8, 2001 Foi o marxismo como método de análise que possivelmente consagrou e impôs restrições polí ticas e acadêmicas a Milton Santos - Fernando Conceição - especial para a Folha
Há pouco mais de um mês fui generosamente re
O sujeito que, no início dos anos 60, como secre
cebido pelo professor Milton Santos em sua casa,
tário de governo do Estado da Bahia, na presidên
por um par de horas. Talvez tenha sido a última
cia da Comissão de Planejamento Econômico,
entrevista longa que concedeu a alguém, ali como
propôs a criação de um imposto sobre a fortuna
jornalista e admirador. Para quem o viu forte e
_o que provocou a ira dos golpistas_ era inicial
com perfil assemelhado a uma esfinge talhada em
mente execrado pelas lideranças do Partido Co
pedra, agora estava visivelmente em declínio físi
munista Brasileiro, que combatia.
co. Mas plenamente lúcido e, apesar da dor, em
Na Faculdade de Direito da Universidade Federal
certos momentos bem-humorado.
da Bahia, Milton Santos liderou a criação do Parti
Esse encontro foi precedido dos cuidados que um
do Estudantil Popular, que funcionou entre 1943 e
paciente consumido pelo câncer, submetido à qui
45, num período de forte oposição ao getulismo.
mioterapia, requer. Sua querida e dedicada mu
"A gente tinha todas as idéias democráticas, libe
lher, Marie Helène, fez-me antes recomendações
rais, mas não éramos de esquerda", relembrou.
para que não demorasse mais de meia hora, por
"O marxismo veio lentamente, principalmente de
que invariavelmente ele se cansava e precisava
pois que fui fazer meu doutorado na França, nos
repousar. Qual nada! Milton Santos abriu o verbo
anos 50, com o professor Tricart."
naquela tarde por quase duas horas, entre xícaras
Foi o marxismo como método de análise histórica
de café, suco e pamonhas.
que possivelmente consagrou e impôs restrições
Lembrou do tempo das férias de juventude, quan
políticas e acadêmicas a Milton Santos. Expurgado
do ia para a casa do tio Agenor Santana, na cida
do Brasil, perambulou pelo mundo.
de de Barra do Rio Grande. "Tomava um trem em
Entre 64 e 76 morou em várias cidades da Fran
Salvador, tinha de fazer o transbordo. Antes, per noitava em Bonfim. No dia seguinte, ainda de ma drugada, tomava de novo o trem e em Juazeiro fi cava esperando o navio. Era um outro mundo. Meu tio era advogado de um grande chefe da re gião. O sonho dele era ser deputado, morreu em campanha. Tinha um jornal. Possivelmente, o pri meiro jornal no qual escrevi regularmente." A vida política de Milton Santos iniciou-se pelo que, se ainda vivêssemos num mundo ideologica mente bipolar, poderia ser rotulado de "direita" do espectro político. "Eu tinha esquecido disso. Quem me lembrou foi o amigo Methódio Coelho, que te lefonou de Salvador um dia desses." Isso mesmo.
ça, dos Estados Unidos, do Canadá, da Venezuela, do Peru, da Tanzânia... Deu aulas e até foi asses sor parlamentar de uma polêmica (em suas pala vras) senadora venezuelana, Mercedes Fermin, com quem acabou brigando: "Muito danada essa mulher, muito mandona, fortíssima: beleza de mulher". As mulheres, aliás, são um capítulo à parte em sua vida. Como Einstein, ele gostava muito delas e há boatos na Bahia sobre o fascínio que exercia a partir do seu charme particular. Mas não tive a pachorra de entrar nesse campo seria uma indis crição imperdoável no contexto desse que veio a ser o nosso derradeiro encontro.
82
Milton Santos
Entramos noutras conversas. Recusou diversas
Dessa sua passagem por Columbia (início dos
vezes colaborar com estudos de instituições dos
anos 70), lembra que o contrato previa duas con
EUA, como a Fundação Ford ou consulados norte-
ferências públicas. Na primeira que fez, atacou a
americanos, das quais mantinha certa desconfian
política norte-americana: "E aí não houve a se
ça. Sobre sua experiência como professor convi
gunda, eles a cancelaram".
dado da Universidade Stanford (EUA), em 1998,
Tinha recentemente sido convidado para um en
comenta: "Foi um tormento, foi horrível. Porque eu esperava ter discussões intelectuais, mas o que enfrentei foi uma coisa burra. Era para ficar um ano, somente quis ficar três meses". "As dire toras do centro latino-americano onde fiquei não perdiam a oportunidade de fazer propaganda para o governo de Fernando Henrique. Muitos desses centros de estudos latino-americanos nos Estados Unidos viraram isso: lugar de propaganda dos go vernos: convidam embaixadores, ministros... Eu expliquei a elas que não estava ali para isso. Dos alunos, eu nada tinha o que tirar. Fiz questão de dizer que tinha perdido o meu tempo."
Professores e agentes
contro com o embaixador da África do Sul. "Para mim a África do Sul é importante porque pode ter uma diplomacia ativa em relação aos problemas raciais no Brasil." Até certo outono de 1992, quando o conheci (membros do Núcleo de Consciência Negra, na USP, do qual fazia parte, o procuraram para soli citar apoio), se dizia que "Milton Santos não se sentia negro". O que naquele primeiro contato ele deixou explícito é que não poderia aceitar a idéia de que a questão racial no Brasil devesse ser dei xada apenas para os negros resolverem ou discu tirem. Era e é, no seu entendimento, um problema de toda a sociedade, e ele se recusava a tratá-lo
Nesse momento, empolgou-se em falar em diplo
como uma questão exclusivista. A questão racial
macia: "Quando o seu amigo (Thomas Skidmore)
brasileira passou a fazer parte da agenda de Mil
me fez o convite para almoçarmos juntos, recusei.
ton Santos, de forma intensa, nos anos 90. Ele a
Desconfio dos latino-americanistas, sem contar
entendia como um problema de falta de políticas
que são meio agentes, o que para eles é normal,
públicas a serem implementadas por ações de um
nós é que estranhamos. Há anos, num congresso
governo que não fosse tão afastado dos interes
de geografia a que fui nos Estados Unidos, muitos
ses sociais quanto o comandado por Fernando
dos colegas participantes usavam o dístico da CIA
Henrique Cardoso, ao qual fazia sérias restrições,
(agência de inteligência norte-americana). E tem
principalmente no que diz respeito à forma como
outra coisa: quando você trabalha para um orga
se entregou ao chamado Consenso de Washing
nismo desses, sua aposentadoria é aumentada".
ton.
Relembra que, quando trabalhou na Universidade
Sentado, com uma bengala recostada ao lado do
Columbia, em Nova York, lotado no Centro de Ci
sofá e com as pernas envoltas por um grosso co
ências Políticas, "o grande sonho" dos colegas era
bertor, Milton Santos tem brilhos nos olhos ao re
passar um ano no Departamento de Estado.
lembrar esse e outros episódios de sua vida. Dá-
"Nós é que temos vergonha de ser agentes, o que
me nomes de pessoas por quem devo procurar na
de certo modo é um erro, porque o trabalho do geógrafo é meio esse, ser agente. Desde Heródo to, a geografia é isso. No Canadá, nos Estados Unidos, se estimulam os sujeitos que vão estudar
Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em To ronto, em Buenos Aires, em Caracas, em Borde aux _local onde conheceu Marie Helène, da qual foi professor e com quem se casou pela segunda
os outros países, não o sujeito da embaixada,
vez, tendo um filho, Rafael.
porque o tipo de relação deste não é aquele que
Do filho do primeiro casamento, também chama
tem o sujeito que está nas universidades. No Bra
do Milton Santos _morto em 1996, um profundo
sil, o Itamaraty tem ciúmes se outros fazem o
trauma para o pai, nos lembramos ao final da
trabalho de conhecimento de outros países."
Milton Santos
83
conversa, quando o geógrafo passa o telefone da
teontem fui ao médico e ele passou outros óculos.
ex-nora. Fala dos dois netos.
Disse que a visão vai voltar lentamente".
No final da tarde, Milton Santos faz a sua única
*Fernando Conceição é jornalista, doutor em ciên
queixa durante todo o nosso encontro: "Acho que
cias da comunicação pela USP e professor da Fa
tem pouca luz... Eu não posso mais ler, não tenho
culdade de Comunicação da Universidade Federal
trabalhado, não tenho escrito nem lido nada. An
da Bahia. Está escrevendo a biografia autorizada do geógrafo Milton Santos.
84
Milton Santos
A SOMBRA DO SEU SORRISO
por Sueli Carneiro* Fonte: http://www.afirma.inf.br/miltonsantos.htm
Milton Santos ousou ser um intelectual no sentido
coordenador. Ela consulta a agenda e pergunta o
mais pleno da palavra; um produtor de conheci
seu nome. Ele diz: Milton Santos. Como ''amare
mento de alta excelência, numa terra em que pre
lar'' ela não podia, simplesmente ''acinzentou'' e,
to deveria contentar-se em ser apenas objeto de
toda nervosa, oferece-lhe água, café e a melhor
estudo.
poltrona da recepção. Pede licença e corre para
Era final da década de 70 e durou por toda a dé
avisar ao chefe. Este imediatamente vem recebê-
cada de 80. Vivíamos o auge da efervescência das teses e dos grandes programas de planejamento urbano e da engenharia de tráfego. Emergiam
lo com toda a pompa. Ele, como sempre, sorrindo docemente com profunda compreensão e sereni dade do espanto dela e das mesuras de seu che
grandes técnicos, grandes planejadores urbanos
fe.
que pareciam capazes de tornar uma cidade como
Fecha-se a porta atrás de ambos e ela, afoita, me
São Paulo viável em termos de qualidade de vida,
liga. Eufórica e orgulhosa diz: ''Sueli, ele é preto!''
de uso do solo e de organização do tráfego. Arqui
É verdade. Durante anos, ouvindo falar dele nun
tetos, engenheiros, cientistas sociais, gente de to
ca soubemos que era preto. Se alguém nos disse,
das as colorações políticas e ideológicas empe
não creio que estávamos prontas para ouvir e re
nhava-se no desafio de planejar a maior cidade
alizar em nossas mentes, à época, ainda condicio
da América Latina. As disputas teóricas e práticas
nadas pelo racismo, que um negro era a grande
em especial, entre arquitetos e engenheiros, e as
referência teórica de todos aqueles brancos. Tal
diferentes visões que os orientavam em relação à
vez, de fato, tenha também havido muitos silênci
concepção e ao futuro da cidade tinham em co
os em relação à sua cor, pois para alguns referir-
mum apenas um nome, presente em todas as bi
se a ela poderia parecer rebaixá-lo à moda de um
bliografias dos planos e projetos urbanos: Milton
grande poeta brasileiro, frente a Machado de As
Santos. Uma unanimidade, referência obrigatória
sis, que no esforço de enaltecê-lo grafou: ''Macha
para todos os que se dispunham a pensar e a agir
do de Assis não é negro, é um grego''.
sobre aquele território.
Transitava, consciente dos contorcionismos que
Trabalhei durante dez anos na área de planeja
provocava, pela incorrespondência entre os estig
mento e acostumei-me também, sem conhecê-lo
mas que aprisionam o corpo negro e sua condição
pessoalmente, a citar recorrentemente o mago
de scholar, ícone de excelência acadêmica, supos
dos ''planejeiros'' como todos os outros. Certo dia,
tamente um atributo de corpos e mentes brancos.
minha irmã, então secretária de departamento na
Tive a oportunidade de contar a ele essa historie
Coordenadoria Geral de Planejamento do Municí
ta idiota sobre a minha descoberta de sua cor.
pio de São Paulo (Cogep), recebe a ligação de um
Ele, com a complacência que só os sábios têm di
homem de fala mansa e educada. Era Milton San
ante dos néscios, sorriu uma vez mais mansa
tos solicitando uma reunião com o seu coordena
mente...
dor. Consciente da fama e da importância de
Foi e é muito respeitado. Mais pela impossibilida
quem estava do outro lado da linha, ela pronta mente o atende e reserva o horário.
de de subtrair-lhe o reconhecimento à sua extra ordinária produção. Mas pagou o preço pela inteli
Dias depois, entra em sua sala um senhor muito
gência rara, pela originalidade de seu pensamento
preto de voz mansa e educada. Ela lhe pergunta o
e independência intelectual. Ousou ser um inte
que deseja. Ele diz que tem hora marcada com o
lectual no sentido mais pleno da palavra; um pro
Milton Santos
85
dutor de conhecimento de alta excelência, numa
tora da expressão de sua inteireza humana como
terra em que preto deveria contentar-se em ser
prefeririam muitos.
apenas objeto de estudo. Por isso as principais
Nas poucas vezes em que tive o privilégio de en
homenagens que recebeu por sua contribuição ao pensamento mundial lhe foram feitas fora do país, em contraste com a bajulação constante de que gozam muitos intelectuais de menor porte ou sem o seu prestígio e importância internacional. Mas isso também evidencia um tipo de autonomia e de rigor acadêmico e intelectual que, ao não compor tar o elogio fácil e servil a si mesmo e aos outros, o situou sempre na direção oposta desse senso comum.
contrá-lo e ouvi-lo sobre a questão racial, havia um não-dito no qual reverberava para mim a cé lebre frase do poeta nigeriano Soyinka: ''O tigre não alardeia a sua tigretude, ele simplesmente ataca''. Negritude, no seu caso, não carecia de afirmação, era pura expressão de racionalidade e sensibilidade humanas em sua acepção maior, construídas possivelmente graças à ''permanente vigília'' que, conforme ele enfatizava, ''o fato de ser negro o conduzia''. Negritude concebida e ma
A serenidade permanente, o sorriso manso e a
nejada como um instrumento de refinamento da
fala educada contrastavam com a radicalidade das
percepção, apropriação e projeção do território e
idéias e posições. Radicalidade entendida como o
do humano em toda a sua complexidade.
''tomar as coisas pela raiz'' e não se permitir con
Senhor dos espaços, confiante, dizia: ''Há dois
cessões teóricas que conspurcassem princípios ci entíficos e éticos. Igualmente, nenhuma condes cendência ou confinamento a uma negritude redu
abrigos para o homem, um é a Terra; o outro, o infinito''. *Sueli Carneiro é pesquisadora do CNPQ e Direto ra do Guéledes Instituto da Mulher Negra.
86
Milton Santos
PERFIL MESTRE DE VERDADE
Por José Antonio Toledo * Fonte: http://www.spbancarios.com.br/rb/index.htm - Revista dos Bancários – edição 69 – Agosto de 2001
Como seria bom se todos os acadêmicos e estudi
ruas. Sobre esse ciclo cruel, e o que ele acabará
osos brasileiros tivessem parte da dignidade e dos
suscitando, Milton Santos afirmou no programa
compromissos do professor Milton Santos. Mas,
Roda Viva, da TV Cultura, exibido em 1998: "Há
dá para entender, para chegar a ser como ele é
um turbilhão, uma efervescência, de baixo, que a
preciso conhecer na pele seu povo
gente não está podendo captar completamente
As idéias revolucionárias do geógrafo Milton San
ainda, mas que há e que vai, um dia ou outro,
tos renderam-lhe, entre um punhado de láureas pela vida, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud em 1993 – espécie de Nobel dessa ci ência. O professor emérito da Universidade de
confluir com a produção de idéias para forçar um outro caminho". O momento político atual, no Brasil e no mundo, corrobora cada vez mais essa tese.
São Paulo, USP, tinha como uma de suas convic ções que os pobres, por conhecerem a "experiên cia da escassez", têm de ser necessariamente cri ativos para sobreviver. Por esse raciocínio, Milton Santos via nos excluídos os legítimos portadores da "visão do real e do futuro", pois sentem cotidi anamente na pele as mazelas da globalização e do neoliberalismo. Identificava neles os protago nistas de uma grande virada nesse jogo e, no Brasil, país que ostenta uma das piores distribui ções de renda do mundo, um palco privilegiado para a guinada. Não à toa, nutria grande simpatia por movimentos como o MST. Quem transita pelo centro de uma metrópole bra sileira entende porque o geógrafo rebatizou a glo balização da economia de globalitarismo, neolo gismo que agrega ao termo o sentido de totalita rismo. Isso porque a situação atual obriga o cida dão a submeter-se às regras do tal mercado para sobreviver. Umas das caras visíveis do globalita rismo é a multidão de ambulantes no centro de São Paulo, na maioria retirantes nordestinos, ven dendo a preço de banana produtos high-tech fa bricados, muitas vezes, com mão-de-obra semies crava no Sudeste Asiático. Concomitantemente, escancaradas as portas do país aos produtos estrangeiros, a indústria nacio nal vai a pique, jogando mais desempregados nas
Biografia incomum. Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 1926. Os pais, professores primários, o alfabetizaram em casa. Aos 8 anos, já havia concluído o equivalente ao curso primá rio. Neto de escravos por parte de pai, foi incenti vado a estudar sempre e muito. Dos 8 aos 10 anos, por exemplo, quando vivia em Alcobaça, aprendeu francês e boas maneiras, sempre em casa, enquanto aguardava o tempo para ingressar no ginasial. Os benefícios de sua aplicação nos es tudos o país nunca poderá negar, mas o geógrafo confessava uma frustração: embora Alcobaça seja um pedaço de terra entre o Oceano Atlântico e um rio, Milton, sempre às voltas com livros, nunca aprendeu a nadar. Da mesma forma, nunca parti cipou das peladas e jamais entrou num estádio de futebol. Já em Salvador, custeava suas aulas no colégio lecionando Geografia na própria escola aos alunos do que seria atualmente o ensino médio. Depois, incentivado por um tio advogado, cursou Direito. Diplomado, não chegou a exercer a profissão; prestou concurso público para professor secundá rio e foi lecionar Geografia em Ilhéus. Iniciou, en tão, carreira repleta de desafios, não raro impos tos pela sua condição de negro. Rodou o mundo,
Milton Santos
87
estudando e lecionando, numa trajetória impressi
caras de chá que tomamos juntos. Uma tarde
onante. Aprendeu e ensinou na Europa, Américas
inesquecível.
e África. Fez trabalhar em seu favor o doloroso
Que o Brasil também não se esqueça dele e de
exílio que a ditadura militar lhe impôs por treze anos.
suas lições. Num embate que durou sete anos, a morte acabou levando a melhor contra o geógra fo, no último dia 24 de junho. Cedo ou tarde, ela vence, mas teve em Milton Santos um adversário
Xícaras de chá Em setembro de 2000 encontramos o geógrafo na USP para uma entrevista que a sua agenda, re pleta de compromissos pelo Brasil afora, houvera adiado diversas vezes. Precisávamos, João Spósi to, Patrícia Leite e eu, quartanistas de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, de mais um depoi mento
de
Milton
Santos
para
arrematarmos
exaustivo trabalho sobre sua vida e obra. Fomos recebidos em sua modesta sala, no Departamento de Geografia. Ele cumprimentou-nos amavelmen te e perguntou: "Quando eu me cansar, nós pode mos parar?". Paramos três horas depois, mas ain da conversamos animadamente sobre algumas passagens da sua vida, em meio ao tilintar das xí
incomum. Após o diagnóstico de um câncer, em 1994, ao contrário de esmorecer intensificou seu trabalho de intelectual, para a perplexidade dos que o acompanhavam de perto. Adepto da geo grafia humana, a que insere – e sublinha como principal objeto de estudo – o ser humano no mapa frio da matéria que aprendemos na escola, seus últimos anos de vida foram dedicados a dis secar a globalização da economia, enfatizando seu efeito devastador no Brasil, e propor saídas para que a população pobre não seja mais parte desse jogo apenas como vítima. * José Antonio Toledo é bancário do BB e Jornalis ta. Fez um livro-reportagem na conclusão do cur so sobre Milton Santos.
88
Milton Santos
A CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS PARA A GEOGRAFIA
Por Francisco Scarlato (FFLCH) Fonte: http://www.adusp.org.br/noticias/informativo/100/10007.htm7 Informativo ADUSP – 06 de Julho de 2001
A grandiosidade do Pensamento do professor Mil
de forma obstinada, a construção e reconstrução
ton Santos para as Ciências Humanas vai muito
de conceitos e categorias analíticas que dessem à
além do número de suas publicações e títulos re
sua ciência visibilidade de método nesta leitura.
cebidos. Seu maior legado se manifesta nos ensi
Comprometido com uma visão totalizadora e di
namentos de um pensamento crítico, instigante e engajado com a sociedade na busca da justiça so cial. Sua marca foi sempre fugir das explicações simplista e demagógicas na análise das transfor mações sociais.
nâmica das transformações da sociedade, cons truiu um de seus conceitos-chave para a geogra fia, o de Formação Sócio-espacial. Neste, espaço e tempo fundem-se como uma totalidade dialéti ca, sem a qual dificilmente poderíamos estruturar
A universalidade do seu pensamento e a lucidez
qualquer forma de ação conseqüente e transfor
de suas análises da realidade sempre se funda
madora desta sociedade.
mentaram no rigor metodológico, o que lhe ga
Intelectual independente, mas sempre atento
rantiu o reconhecimento das sociedades científi cas e instituições acadêmicas no Brasil e no mun do.
àqueles que procuraram pensar o mundo de for ma ousada – porém sem cair nos modismos que muitas vezes invadem a academia –, conseguia
O convívio com o professor Milton Santos no coti
em cada livro produzido superar seu próprio pen
diano da vida da universidade, sua constante pre
samento. Poucos foram os geógrafos contemporâ
sença e seu compromisso com a qualificação no
neos que conseguiram, como ele, aprofundar o
desempenho acadêmico permitia-nos visualizar
debate sobre a epistemologia da Geografia.
neste homem uma referência forte de comporta
Os conceitos de espaço e território, centrais para
mento ético. A firmeza e lucidez de suas decisões fundiam-se a uma atitude de respeito e serenida de, mesmo quando tinha que se colocar frente a posições divergentes às suas.
a afirmação da especificidade desta ciência, com Milton Santos alcançaram visibilidade, retirandoos do limbo das indefinições ou generalizações que tanto fragilizaram seu avanço como área de
A sociedade e a Universidade perdem muito com
conhecimento.
a morte do professor Milton Santos, porém é a
Nada melhor para compreendermos a profundida
Geografia quem mais perde. No processo histórico de renovação do pensamento geográfico, entre tantos que desempenharam importante papel para consolidar a Geografia como ciência, Milton Santos alinha-se a eles neste compromisso.
de desta contribuição do que parafrasear o pro fessor Milton: "A Geografia deve estar atenta para analisar a realidade social total a partir de sua di nâmica territorial, sendo esta proposta um ponto de partida para a disciplina, possível a partir de
Preocupado em dar à Geografia contemporânea
um sistema de conceitos que permita compreen
um instrumental teórico-metodológico capaz de
der indissociavelmente objetos e ações".
realizar uma leitura crítica do mundo, perseguiu,
Milton Santos
89
MILTON SANTOS, COMBATENTE INTELECTUAL Por Jair Borin (ECA) Fonte: http://www.adusp.org.br/noticias/Informativo/100/10006.htm Informativo ADUSP – 06 de Julho de 2001
Tive a distinção e o prazer de privar da amizade do professor Milton Santos. Não vou descrever aqui suas qualidades como pensador original, cri ador de uma nova Geografia centrada no espaço e território usado. Conheci pouco o professor de Geografia, mas desfrutei em várias ocasiões do convívio deste grande combatente da cidadania plena. Defendia a causa dos excluídos com vee mência, embora visse a militância com reservas, por uma postura sartreana, de independência to tal, que todo intelectual deve ter. Mas alertava: "O fato de ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir a uma condição de per manente vigília" (Revista Adusp 19, junho de 1999). E foi nessa vigília constante que nos reunimos, lá nos meados dos anos 90, na busca de uma saída para o processo que a USP movia contra Fernando Conceição, também baiano, como o professor Mil ton, aluno do Mestrado da ECA, preso quando pi chava paredes da USP clamando por vagas para os negros. Bem humorado, sempre com um sorri so franco, o professor Milton assumia a defesa do gesto militante do aluno. Para sua tristeza, apesar de seus esforços e de outros professores que se somaram à luta, o aluno acabou sendo condenado a pagar uma indenização à USP para cobrir os gastos de reparação da pintura das paredes. Seu amor à docência e à pesquisa se diferenciava em cada gesto, em cada iniciativa que tomava com os seus alunos e orientandos. Pouco antes de rece ber o título de Professor-Emérito, que lhe foi atri buído pela Congregação da Faculdade de Filosofia da USP, conversamos por um bom momento. Ele estava feliz pela homenagem, porém contrariado pelo que chamava de excludência compulsória, após ter completado os 70 anos de idade. Lem bro-me de que isto o marcou indelevelmente, pois queria continuar na docência plena, porque acha
va que ainda tinha muita disposição para continu ar o seu trabalho. E, nessa circunstância, a apo sentadoria compulsória não deveria ser aplicada ao professor. Em 1998, um mês depois da eclosão da guerra ci vil em Guiné-Bissau, fomos procurados por vários alunos bolsistas daquele país, que, de repente, vi ram-se sem recursos para continuar seus estu dos. Novamente recorremos à força de Milton Santos e organizamos um ato expressivo, no au ditório da Geografia. Sua intervenção foi decisiva para que a CCint ouvisse os bolsistas com dificul dades, proporcionando-lhes alguma ajuda, en quanto perdurou o conflito. Outro grande momento do professor militante que eu conheci, sem nunca ter assumido a militância (talvez o niilismo sartreano o explicasse), foi quando lhe telefonei para compor a comissão dos professores notáveis, para superarmos o impasse a que havia chegado a greve dos docentes, funci onários e alunos da USP, da Unesp e da Unicamp, em junho do ano passado. Embora sentindo o peso da doença que lhe acometia, disse que aten deria um pedido meu. Procurei deixá-lo à vonta de, mas acho que, no fundo, o jovem jornalista que ele havia sido na Bahia, às vezes, falava mais alto do que o geógrafo. Pediu-me que lhe munisse de dados sobre o movimento. Conversamos du rante quase duas horas, em sua casa e, à noite, apesar do frio, lá estava ele lutando para que a greve fosse vitoriosa. Do professor e amigo, que resistia à doença com um humor peculiar, só ouvi uma reclamação: a indignação que ele sentia por ter que comprovar a cada novo ano, junto à Dire toria de Pessoal da USP, que ainda estava vivo, exigência que ela faz a todo aposentado. No domingo, dia 24, com pesar, perdíamos o geó grafo criador, o amigo combatente e o grande de fensor dos excluído
90
Milton Santos
RESENHA – POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO
Por José Luís Fiori * Fonte: http://sites.uol.com.br/globalization/Resenha_Fiori.htm Por uma Outra Globalização - Do Pensamento Único à Consciência Universal Milton Santos - Record (Tel. 0/xx/21/585-2047) 174 págs., R$ 20,00
Milton Santos reuniu e reescreveu conferências,
desta segunda "grande transformação" do século
artigos de jornal, aulas e entrevistas em um livro
20. Para eles, trata-se de uma consequência ne
de reflexão e combate que, sem abdicar do rigor,
cessária e inapelável das transformações tecnoló
inscreve-se no campo do pensamento crítico e da
gicas que, somadas à expansão dos mercados,
produção intelectual que chamamos de "publicísti
derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam
ca". Seu ponto de partida é uma releitura da ori
os projetos econômicos nacionais, promovendo
gem técnica e política do fenômeno da globaliza
uma redução obrigatória da soberania dos Esta
ção, como ideologia de um presente perverso e
dos. A partir daí, a própria globalização econômi
horizonte de um futuro que pode ser promissor.
ca e a força dos mercados promoveriam uma ho
Seu ponto de chegada é a convicção de que "di
mogeneização progressiva da riqueza e do desen
ante do que é o mundo atual, as condições mate
volvimento por meio do livre comércio e da com
riais já estão dadas para que se imponha a dese
pleta liberdade de circulação dos capitais priva
jada grande mutação, mas seu destino vai depen
dos, o que acabaria conduzindo a humanidade na
der de como disponibilidades e possibilidades se
direção de um governo global, uma paz perpétua
rão aproveitadas pela política. A globalização atu
e uma "democracia cosmopolita".
al não é irreversível".
O problema, como demonstra Milton Santos, é
O livro apresenta duas faces: um diagnóstico das
que esta utopia vem sendo insistentemente nega
transformações contemporâneas, centrado na re
da pelos fatos, já que as consequências sociais e
lação entre os espaços verticais e horizontais (dos
econômicas do processo real de globalização são
opressores e oprimidos) e na dos territórios sobe
completamente distintas, dependendo do territó
ranos com o dinheiro global; e um prognóstico em
rio e do poder dos Estados. A globalização não é
que sustenta uma nova utopia global dos pobres e
uma imposição tecnológica nem tampouco apenas
oprimidos.
um fenômeno puramente econômico, que envolva
A maioria dos analistas está de acordo, com pe
somente novas formas de dominação, estratégias
quenas variações, quanto às principais transfor mações que, neste último quarto de século, alte raram a face do capitalismo, tal como foi organi zado depois do fim da Segunda Guerra sob a égi de da competição entre os EUA e a União Soviéti ca. As diferenças residem na forma como cada um interpreta o movimento geral, hierarquizando de terminações e extraindo consequências propositi
e imposição vitoriosa de determinados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço in terno dos Estados nacionais. Como diz Milton San tos, a história "mostra não ser certo que haja um imperativo técnico. O imperativo é político. Desse modo, não há uma inelutabilidade face aos siste mas técnicos, nem muito menos um determinis mo. Aliás, a técnica somente é um absoluto en
vas. É aí que a posição de Milton Santos se indivi
quanto irrealizada".
dualiza.
Outro ponto decisivo que diferencia o diagnóstico
A interpretação liberal
de Milton Santos é a centralidade atribuída às
Os liberais, subscrevendo a interpretação he gemônica, privilegiam os aspectos econômicos
transformações no campo monetário-financeiro, no qual se concentra, de nosso ponto de vista, o núcleo duro do que se nomeia por globalização. E
Milton Santos
91
também aqui a política teve um papel decisivo,
nas, levantam-se problemas cruciais para Estados
sobretudo na alteração das regras, iniciada com a
e municípios".
criação do euromercado de dólares, que culminou
Como se sabe, no caso brasileiro, a globalização
no fim do sistema de paridade cambial firmado em Bretton Woods.
trouxe consigo uma mudança radical da estratégia de desenvolvimento seguida desde os anos 1930.
Foram os primeiros passos do processo de "globa
Uma mudança de rumo imposta pela renegocia
lização do dinheiro", que avançou velozmente nos
ção da dívida externa brasileira, que nos anos
anos 80, associado de forma íntima e inseparável
1990 obrigou o país a submeter-se às políticas de
das políticas iniciadas pelos governos anglo-sa
ajuste de corte neoliberal, desenhadas pelos cre
xões e que depois se universalizaram por obra da
dores, organismos internacionais e alguns gover
"desregulação competitiva". Decisões políticas que
nos centrais, em troca do retorno ao sistema fi
recolocaram, de certa forma, o capitalismo deste
nanceiro internacional. É nesse contexto que cabe
final de século nos trilhos da "civilização liberal"
apreciar o argumento de Milton Santos e sua con
do século 19.
vicção de que o atual imobilismo do governo bra sileiro deverá estender-se cada vez mais às ou
Dinheiro global
tras instâncias federativas do poder estatal. Se esse fenômeno não for revertido, deverá aprofun
Entretanto, essa aparente volta às origens liberais
dar as desigualdades territoriais preexistentes e
do sistema não deve ser confundida com um sim
acirrar o conflito (a guerra fiscal) de todas contra
ples retorno. As atuais relações do governo norte-
todas as unidades da Federação, em nível estadu
americano com o novo sistema monetário interna
al e municipal.
cional são completamente diferentes das relações que a Inglaterra manteve com o sistema do pa drão-ouro. O novo sistema permite aos EUA de terminar a dinâmica de curto prazo da economia mundial, por meio do mero manejo de sua moeda -que não obedece a nenhum outro padrão de re ferência que não seja o poder político, econômico e financeiro norte-americano. É isso que diz Mil ton Santos quando afirma que "o dinheiro global autonomizado torna-se hoje o principal regedor do território, tanto o território nacional como suas frações (...). É aliás a partir deste caráter que o dinheiro global é também despótico". Ainda no plano do diagnóstico, Milton Santos cha ma a atenção para outro aspecto da globalização, decisivo no caso de países, como o Brasil, que se incorporaram ao processo, fragilizados pelo endi vidamento e pelas desigualdades sociais. Nesses casos, "a vocação homogeneizadora do capital global é exercida sobre uma base formada por parcelas muito diferentes umas das outras e cujas diferenças e desigualdades são ampliadas sob tal ação unitária (...); é por este prisma que deve ser vista a questão da federação e da governabilidade da nação: na medida em que o governo da nação se solidariza com os desígnios das forças exter
O dito "bom comportamento macroeconômico" da União pressiona as demais instâncias da Federa ção a adotarem um "mau comportamento", do ponto de vista da solidariedade nacional. Compe tindo pelos mesmos investimentos e dependentes dos mesmos detentores de decisão e mercados -na medida em que não dispõem mais, ou não querem fazer uso, de sua capacidade de iniciativa própria-, acabam transferindo para terceiros o ônus das responsabilidades ou funções básicas de qualquer Estado nacional, contribuindo para mul tiplicar os regionalismos. E o que é pior, de um outro ponto de vista, mas na mesma linha de argumentação, é que essa es tratégia de incorporação ao processo de globaliza ção tem muito a ver com as dificuldades que os países latino-americanos vêm enfrentando para consolidar suas novas instituições democráticas. Por quanto tempo será possível manter coesa e democrática uma sociedade em que se multiplica geometricamente a riqueza financeira ao mesmo tempo em que se expandem o desemprego e a exclusão social, enquanto o Estado é submetido a periódicas sangrias fiscais que vão paralisando lentamente sua capacidade de responder aos no
92
Milton Santos
vos desafios sociais criados pelo aumento da mi
tamos convencidos de que a mudança histórica
séria?
em perspectiva provirá de um movimento de bai xo para cima, tendo como atores principais os
Resistência crescente
países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos e ou
A despeito de tudo, este quadro não retira o oti
tras classes obesas; o indivíduo liberado partícipe
mismo do grande geógrafo brasileiro. O caráter
das novas massas e não o homem acorrentado; o
perverso e os efeitos destrutivos da globalização,
pensamento livre e não o discurso único. Os po
segundo Milton Santos, irão gerando resistências
bres não se entregam e descobrem a cada dia for
crescentes dos "espaços banais" e horizontais em
mas inéditas de trabalho e de luta; a semente do
que se encontra a grande massa do povo, contra
entendimento já está plantada e o passo seguinte
os espaços integrados, verticais e excludentes dos
é o seu florescimento em atitudes de inconformi
fluxos globalizados do dinheiro e da informação. É
dade e, talvez, rebeldia".
nestes espaços -onde se desenvolvem as cidades e as culturas populares- que, segundo ele, estão sendo tecidas as bases de uma nova utopia globa litária, que deverá ser cidadã e democrática: "Es
* José Luís Fiori é professor de economia na Uni versidade Federal do Rio de Janeiro e autor, entre outros livros, de "Os Moedeiros Falsos" (Vozes)
Milton Santos
93
GLOBALIZAÇÃO: DO DESPOTISMO À EMANCIPAÇÃO?
Por Zander Navarro* Especial para *Gramsci e o Brasil Fonte: http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv180.htm
"[...] a impressão que eu tenho é de que há uma aceleração muito forte na produção de um ente político no Brasil. A consciência está em gestação. Creio que há uma espécie de revolução que nem sempre é silenciosa, que se está dando e nós não temos as antenas para captar por que nos acostumamos a um outro tipo de raciocínio sobre o que é fazer política [...]" Milton Santos (1926-2001), entrevista à Folha de S. Paulo, 8 jan. 2001
As mudanças e os processos normalmente associ
mente à riqueza mundial então existente, tais re
ados à mágica palavra dos anos recentes, globali
lações eram ainda mais intensas do que em nos
zação, são irreversíveis e imunes a algum tipo de
sos dias. Mesmo assim, diferentes analistas, se
controle social e político e, desta forma, somos
guindo orientações diversas, concordam que vive
impotentes para a eles nos contrapormos? Ou
mos uma "era específica" e, seja qual for a sua
ainda, como exigência preliminar para conhecer
denominação, necessitamos interpretá-la (se de
os tempos modernos, o que é exatamente "globa
sejamos transformá-la, como nos ensinava um
lização"? Este notável livro de Milton Santos (Por
outro influente cientista social, cuja análise acerca
uma outra globalização. Do pensamento único à
da lógica do emergente sistema social, no mesmo
consciência universal. Rio de Janeiro, Record,
século XIX, a tantos de nós ainda inspira).
2000), professor emérito da Universidade de São
Mas o que é globalização? Apoiando-se em uma
Paulo e geógrafo internacionalmente conhecido, responde, como um forte e esclarecedor clarão que a tudo ilumina, a estas perguntas, e muitas outras. E, obra destinada ao "vasto mundo", como acentua o autor, não nos aborrece também com inúmeras citações protocolares, estatísticas repe tidas à exaustão e, ainda menos, informa-se atra vés do discurso, às vezes impenetrável, que mar ca o debate acadêmico sobre globalização.
definição mais direta (e talvez quase simplória), trata-se meramente de um conjunto de mudanças através do qual diminuem os constrangimentos geográficos (e seus vetores de tempo e de espa ço) sobre os processos sociais, econômicos, políti cos e culturais, redução esta sobre a qual os indi víduos cada vez são mais conscientes. A compre ensão deste processo estende-se, primordialmen te, em torno de duas classes principais de fenô
Globalização não é palavra nova, pois o famoso
menos, que se tornaram crescentemente signifi
dicionário editado pela Universidade de Oxford já
cativos, em especial, na segunda metade do sécu
identificou o aparecimento em inglês do termo
lo 20. São, de um lado, a emergência de uma
"global" há, pelo menos, 400 anos. Os processos
economia crescentemente globalizada, fundada
identificados com tal palavra, no entanto, são re
em novos sistemas de produção, finanças e con
centíssimos, pois apenas nos últimos quarenta
sumo e, de outro lado, a idéia, extremamente
anos é que globalização passou a descrever um
controvertida, de uma "cultura global" (que al
conjunto relativamente inédito de novas transfor
guns
mações. Aliás, a própria existência dessas mudan
mundo").
ças, para alguns autores, ainda é sequer reconhe
Estes são alguns dos grandes balizadores do terri
cida como relevante. No caso da intensificação das relações comerciais, por exemplo, sempre se ressalta que no final do século XIX, proporcional
já
intitulam
de
"macdonaldização
do
tório analítico de Por uma outra globalização. Mil ton Santos, agudo leitor da realidade e uma espé cie (rara entre nós) de genuíno pensador, capaz
94
Milton Santos
de situar as idiossincrasias nacionais à luz da uni
cresceu de pouco menos de 10 para quase 70,
versalidade dos processos investigados, nos ofe
nos últimos trinta anos). Entretanto, a informa
rece uma contribuição a este debate que talvez
ção, produto das empresas globalitárias, segue a
seja inteiramente singular, pois sua análise per
férrea lógica dos tempos, pois seleciona os desti
passa os elos diacrônicos, que se iniciam no diag
natários, recorta a natureza da informação e con
nóstico da globalização (como se deu a gênese do
trola sua difusão, produzindo, como resultado,
processo, discutido na parte II do livro, seguindo-
apenas um "novo encantamento", que pode ser
se à introdução), até as suas marcas atuais, que
inclusive alterado com a sofisticação e a freqüên
são dissecadas na parte seguinte. Nesta última
cia que as novas tecnologias viabilizam, em escala
seção, ressalta a emergência da faceta perversa
incessante de multiplicação.
da globalização, decorrente da dominação tirânica
Em sua última parte, a análise de Milton Santos
da informação e do dinheiro, da exacerbação da competição, da contínua confusão de idéias e o desbaratamento de paradigmas antes tão respei táveis (à direita e à esquerda), da violência estru tural e, finalmente, do que intitula de "desfaleci mento" do Estado e sua capacidade de formulação de políticas.
identifica os sinais da mudança, o nascimento das "variáveis ascendentes" que podem estar prenun ciando uma "nova história". O desencantamento com as técnicas, a crescente percepção da seleti vidade social que se associa à globalização, a so brevivência de técnicas não hegemônicas, os limi tes desta (ir)racionalidade contemporânea, entre
Todos esses ângulos são analisados com uma lin
tantos outros sinais, parecem ser apenas o leito
guagem que é, às vezes, quase poética (pois ad
do desencadeamento de novos projetos emanci
verte, já no início, que não se trata de "obra aca
patórios que estão sendo gerados. Se assim for,
dêmica"), mas conformando-se sempre à rigorosa
será talvez possível escapar, reconstruindo-o, do
esquadria do interpretador-cientista de nossos
mundo que ilusoriamente nos é atualmente apre
tempos que, se escancara os impactos e con
sentado, pois não querendo, como o autor nos
seqüências da globalização, também aponta os
adverte, "admitir a permanência de sua percepção
desafios e, ao final, igualmente as oportunidades
enganosa, devemos considerar a existência de
de nossa era para os projetos emancipatórios e
pelo menos três mundos em um só. O primeiro
contra-hegemônicos.
seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globa
Quanto ao despotismo da informação, a título de
lização como fábula; o segundo seria o mundo tal
ilustração, Santos nos lembra que jamais em ou tra época a cognoscibilidade do planeta esteve tão
como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo tal como ele pode ser: uma
próxima de nossas mentes e sua difusão tão rapi
outra globalização".
damente estimulada (o número de aparelhos de
*Zander Navarro é sociólogo e professor da Uni
televisão por mil pessoas, no Terceiro Mundo,
versidade Federal do Rio Grande do Sul.
Milton Santos
95
O MILITANTE DE IDÉIAS
Por Raquel Aguiar Geógrafo Milton Santos criticou a globalização mas acreditava em transformação social Fonte: http://www.uol.com.br/cienciahoje/perfis.htm Revista Ciência Hoje/RJ - dezembro de 2001
"O sonho obriga o homem a pensar" - Milton Santos
Milton nasceu em Brotas de Macaúbas (BA) a
lente ao Nobel na Geografia, a láurea marcou o
3/5/26 e faleceu em São Paulo a 24/6/01
reconhecimento de suas idéias no Brasil.
Milton Santos (1926-2001) é considerado o maior
Milton foi consultor da Organização das Nações
geógrafo brasileiro pelos colegas de profissão. O
Unidas, da Unesco, da Organização Internacional
professor de voz calma e olhar tranqüilo sublinhou
do Trabalho e da Organização dos Estados Ameri
o aspecto humano da geografia e criticou a globa
canos. Também foi consultor em várias áreas jun
lização perversa. Via na população pobre o ator
to aos governos da Argélia, Guiné-Bissau e Vene
social capaz de promover uma outra globalização,
zuela. Possuía 13 títulos de doutor honoris causa,
que defendeu em livros e conferências pelo mun
recebidos no Brasil, França, Argentina e Itália, en
do.
tre outros. Foi membro do comitê de redação de
Milton introduziu importantes discussões na geo
revistas especializadas em geografia no Brasil e
grafia, como a retomada de autores clássicos, e foi um dos expoentes do movimento de renovação
exterior. Fez pesquisas e conferências em mais de 20 países, dentre eles Japão, México, Índia, Tuní
crítica da disciplina. Preocupado com a questão
sia, Benin, Gana, Espanha e Cuba.
metodológica, construiu conceitos, aprofundou o
Recebeu em 1997 o prêmio Jabuti pelo melhor li
debate epistemológico e buscou na transdiscipli
vro em ciências humanas: A natureza do espaço:
naridade uma visão totalizadora da sociedade.
técnica e tempo, razão e emoção. Em 1999 rece
Esquerdista convicto, não se filiou a partidos:
beu o Prêmio Chico Mendes por sua resistência.
"não sou militante de coisa alguma, apenas de idéias", diz em uma de suas frases mais divulga das. O estilo independente revela a influência sar treana desse brasileiro que se celebrizou na Fran
Foi condecorado Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico em 1995. Hoje, o geógrafo tantas vezes laureado empresta seu nome ao Prê mio Milton Santos de Saúde e Ambiente, criado
ça, onde obteve o doutorado e lecionou durante a
pela Fundação Oswaldo Cruz.
ditadura.
Milton Santos nunca participou de movimentos
Apesar da complexidade de seu pensamento, o al
negros - acreditava que deveriam conquistar re
cance das idéias de Milton pode ser medido pela repercussão de uma entrevista concedida ao pro grama Roda Viva em 1998: os telefones ficaram congestionados com pessoas emocionadas, agra decendo a emissora pela transmissão. Sua produ
conhecimento em atitudes como, por exemplo, in gressar na universidade. "Minha vida de todos os dias é a de negro", declarou. "Mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis."
ção acadêmica não permite modéstia: são cerca de 40 livros e 300 artigos científicos. Foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o mais alto prêmio internacional em geografia, o Prêmio Vautrin Lud (1994). Considerada equiva
Geógrafo precoce Embora formado em direito, Milton Santos come çou a lecionar geografia aos 15 anos
96
Milton Santos
Milton de Almeida Santos nasceu em Brotas de
de Geógrafos (AGB), então concentrada no eixo
Macaúbas no sertão baiano dia 3 de maio de
Rio-São Paulo. Milton resolveu participar de uma
1926. Seus avós maternos eram professores pri
reunião da AGB, que acontecia em Uberlândia
mários mesmo antes da abolição. "Do lado pater
(MG), para perplexidade dos não mais de 30 pro
no, devem ter sido escravos", declarou certa vez.
fissionais reunidos. Nessa ocasião conheceu Aziz
"Não sei muito bem porque em minha casa me
Ab'Sáber, de quem se tornaria amigo. Ab'Sáber
ensinaram a olhar mais para frente do que para
recorda-se que Milton insistia em discussões teóri
trás." Seus pais também eram professores primá
cas entre determinismo e possibilismo enquanto
rios, uma família "humilde mas não pobre, e que
problemas analíticos estavam em pauta. "Demos
tentou me dar uma educação para mandar, para
risada, mas ele era simpático e inteligente, eu e
ser um homem que pudesse, dentro da sociedade
alguns professores nos aproximamos dele."
existente na Bahia, conversar com todo mundo".
Milton passou a convidar professores de geografia
Concluiu o curso primário em casa aos oito anos
paulistanos para dar conferências e cursos de féri
de idade. Como faltavam dois anos para ingressar
as aos alunos da Universidade Católica de Salva
no ginásio, seus pais lhe ensinaram álgebra, fran
dor, onde atou entre 1956 e 1964. Também era
cês e boas maneiras. Aos dez anos tornou-se alu
correspondente na região do cacau para o jornal A
no do tradicional Instituto Baiano de Ensino em
Tarde, o mais lido na Bahia à época.
Salvador. Pagava o internato onde moraria por uma década com o dinheiro que recebia lecionan do geografia na própria escola. Milton atuou no
Cidadão do mundo
jornalismo estudantil e foi um dos criadores da
Exílio voluntário afastou Milton de questões empí
Associação de Estudantes Secundaristas Brasilei
ricas e ampliou debate teórico
ros. Seus colegas se opuseram à candidatura de
Numa poltrona do Hotel Nacional de Salvador Mil
um negro para presidente - alegaram a dificulda
ton Santos recebeu um conselho que talvez tenha
de para discutir com autoridades. "E eu, menino,
selado seu futuro. O amigo Aziz Ab'Sáber (foto)
tolo e inexperiente, acabei perdendo a eleição."
acreditava que, como ele próprio fizera, Milton se
Milton era ótimo aluno em matemática e queria
dedicava demais a questões teóricas. Aconselhou-
seguir engenharia, mas acreditava-se que a Esco
o a se ater à análise -- estudo de casos e regiões.
la Politécnica não aceitaria negros com facilidade.
À questão de Milton sobre que tema abordar, Ab'
Como um tio seu era advogado, foi aconselhado a
Sáber deu uma resposta fundamental para a pro
estudar direito. Formou-se na Universidade da
jeção do colega: por que não estudar o centro ur
Bahia em 1948 mas nunca exerceu a profissão.
bano de Salvador?
Dedicou-se à geografia, que ensinava desde os
Junto a um grupo de universitários e um profes
quinze anos. "A noção de movimento de idéias
sor paulistano, Milton empreendeu a pesquisa so
veio depois, mas a das mercadorias, das coisas,
bre Salvador, que redigiu e apresentou com su
das pessoas talvez tenha me levado para a geo
cesso como tese de doutorado na Universidade de
grafia", declarou. Também foi fundamental o con
Estrasburgo (França) em 1958. De volta ao Brasil,
tato com o livro Geografia Humana, de Josué de
permaneceu na Universidade Federal da Bahia
Castro. "Era uma espécie de história contada
(UFBA) onde fundou o Laboratório de Geomorfolo
através do uso do planeta pelo homem. Aquilo me
gia e Estudos Regionais.
impressionou."
Acompanhou o presidente Jânio Quadros em via
Em 1948 Milton Santos publicou seu primeiro li
gem a Cuba como jornalista e foi nomeado repre
vro: O povoamento da Bahia. Prestou concurso
sentante da Casa Civil na Bahia, com poder para
público para professor secundário e foi lecionar
lelo ao do governador.
em Ilhéus. Nesse período conheceu livros e revis tas de geografia, alguns da Associação Brasileira
Despedido da UFBA à época do golpe de estado, Milton esteve preso por 3 meses em um quartel
Milton Santos
97
de Salvador, onde agressões físicas quase lhe
Pobres seriam o agente político da nova globaliza
custaram um olho. Só foi libertado após um prin
ção proposta por Milton Santos
cípio de infarto.
"Essa globalização não vai durar. Primeiro, ela
Partiu para o exterior a convite de amigos france
não é a única possível. Segundo, não vai durar
ses. Por 13 anos lecionou na França, Canadá, Rei
como está porque como está é monstruosa, per
no Unido, Peru, Venezuela, Tanzânia e EUA. Se
versa. Não vai durar porque não tem finalidade."
gundo o próprio Santos, o "exílio voluntário" afas
- Milton Santos
tou-o do Brasil -- até então objeto principal de
No livro Por uma outra globalização - do pensa
seus estudos, que eram sobretudo empíricos. O interesse por questões teóricas cresceu até o re torno ao Brasil em 1977.
mento único à consciência universal, Milton San tos observa a globalização sob três óticas: como fábula, perversidade e possibilidade para o futuro.
Um de seus maiores desejos era tornar-se profes
A fábula é propagada por Estados e empresas,
sor na Universidade de São Paulo (USP), onde mi
que colocam a globalização como fato inevitável.
nistrava aulas como visitante. Ab'Sáber lecionava
A imposição desse "pensamento único" naturaliza
na USP e garante ter feito o que pôde para satis
o caráter perverso do fenômeno e constitui o que
fazer a vontade do baiano. Milton só ocuparia
Milton chamava "violência da informação". A per
uma vaga após a aposentadoria de Ab'Sáber. Ao
versidade da globalização se revela na medida em
se aposentar compulsoriamente aos 70 anos -
que seus benefícios não atingem sequer um quar
fato que o contrariou -, tornou-se o primeiro ne
to da população mundial, ao custo da pauperiza
gro a obter o título de professor-emérito da USP.
ção de continentes inteiros. Vista como possibili
No seu aniversário, geógrafos de vários países
dade para o futuro, ela passaria a empregar as
participaram de um simpósio organizado pela pro
técnicas de forma mais solidária, de modo a der
fessora Maria Adélia de Souza, que reuniu os de
rubar o globalitarismo -- termo cunhado por Mil
poimentos na obra Cidadão do Mundo.
ton que agrega ao conceito de globalização a no
Milton Santos faleceu aos 75 anos a 24 de junho
ção de totalitarismo.
de 2001 após uma semana de internação em de
Milton acreditava que os pobres seriam o agente
corrência de um câncer de próstata diagnosticado
político dessa nova globalização, sobretudo nas ci
em 1994. Desde então, o professor intensificara
dades onde há pessoas de todos os tipos e inten
seu trabalho. No ano em que faleceu publicou O
so debate. Os pobres passam pela experiência da
Brasil, obra que considerava síntese de suas idéi
escassez, conceito resgatado do escritor francês
as. Preparava um livro sobre Salvador, que reuni
Jean-Paul Sartre: o mundo dos objetos se amplia
ria pesquisas feitas na juventude e reflexões re
e o pobre descobre que jamais vai possuí-los. A
centes. Estruturava também O mundo pós-globa
classe média se acomoda com o conforto do con
lização - o período popular da história.
sumo - que substitui a cidadania e amortece a
Milton deixou esposa - Marie, uma aluna francesa
opinião pública -, mas já experimenta a escassez.
dos tempos da Sorbonne - e filho - Rafael, que nasceu pouco após o falecimento do primogênito
Como possui maior instrução, pode vir a deflagrar o movimento social que transformaria a globaliza
Miltinho. Na 53a reunião da SBPC, em julho de
ção.
2001, estava programada uma homenagem ao
Santos era crítico contundente da noção de aldeia
professor, mas a idéia foi abandonada com a notí
global: preferia dizer que o mercado nacional é o
cia de seu falecimento. Inconformado, Ab'Sáber
nome de fantasia do mercado global. O geógrafo
convocou alunos e amigos para realizar uma ho
também rejeita a noção de desterritorialização.
menagem improvisada mas emocionante.
Para ele, a globalização tornou o território ainda mais importante porque a concentração da tecno
Contra o globalitarismo
logia de informação e comunicação diferencia os espaços em função de sua capacidade produtiva.
98
Milton Santos
As maiores empresas atingem somente os pontos
Em geografia, o conceito de território considera
competitivos do território e trazem desordem para
seu uso: é o conjunto indissociável de sistemas
o resto, formando o que Milton chamava zonas
naturais – substrato físico -- e instrumentos ma
opacas e zonas luminosas. As empresas exigem
teriais impostos pelo homem. No livro de Santos,
do Estado o aparelhamento das áreas privilegia
o país é analisado de forma teórica e empírica sob
das para que se adeqüem aos imperativos técni
viés multidisciplinar. Dados sobre o Brasil e o bra
cos, mas uma adaptação das leis também se faz
sileiro - concentração de bancos, shopping cen
necessária. Assim, as empresas acabam por ditar
ters, meios técnicos, como se trabalha, gasta,
a política nacional. O país se torna "ingovernável"
planta – foram levantados por uma equipe de 20
porque nem o Estado nem as empresas assumem
pesquisadores e apresentados em mapas. Milton
o controle total. O território acaba esquizofrênico,
Santos se orgulhava do fato de a pesquisa não ter
porque nele existem vetores da globalização, que
sido arquivada em computadores: está armazena
impõem uma nova ordem, e vetores da contra-or
da na Universidade de São Paulo, em dezenas de
dem, baseada na exclusão social.
caixas de papelão etiquetadas.
A globalização paradoxalmente incita à violência,
No livro, os autores mostram a transformação do
por exigir competitividade sem ética, e também
território brasileiro a partir do meio natural, quan
incentiva a solidariedade mundial a partir da faci
do a natureza comandava as ações do homem, e
lidade de comunicação. Cabe aos intelectuais pro
analisam os sucessivos meios técnicos que pro
pagar a realidade contraditória do território e ofe
moveram a mecanização tradicional de ilhas den
recê-la à reflexão da sociedade.
tro do território. O meio técnico-científico-infor
Na luta por uma outra globalização, Milton Santos
macional surge na década de 1970 e se concentra
correu o mundo participando de debates. Esteve presente no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2001 – encontro que se contrapôs ao fórum econômico de Davos, na Suíça.
Uma teoria do Brasil
nas áreas privilegiadas no período anterior, o que acentua as desigualdades territoriais. Assim, sur gem áreas de globalização absoluta e relativa, o que gera espaços que mandam e espaços que obedecem. Atualmente a informação fundamenta o trabalho e orienta sua divisão global e local. Os autores su
Última obra de Milton Santos sintetiza a realidade
gerem uma divisão do Brasil em quatro regiões,
nacional diante da globalização
baseada na difusão da informação. No nordeste, a
O Brasil: território e sociedade no início do século
rede fundiária concentrada impõe resistência às
XXI foi a última obra de Milton Santos, escrita
novas técnicas informacionais. O centro-oeste e
com a professora María Laura Silveira. "Esse livro
região amazônica, como não possuíam o meio
reúne todo o estudo de geografia que venho fa
técnico tradicional do período anterior, estão
zendo e tenta aplicá-lo ao Brasil", o geógrafo de
abertos para as novas técnicas. Na região concen
clarou por ocasião do lançamento. "É o resultado
trada houve simplesmente a agregação das inova
de pelo menos 25 anos de elaborações teóricas."
ções técnicas, em paralelo a uma crise da indús
O Brasil oferece visão totalizadora do país; apesar
tria.
das mais de 500 páginas, não pretende ser um
A globalização é o momento da ocupação do terri
compêndio exaustivo da geografia nacional. Se
tório brasileiro que mais acentuou as desigualda
gundo o professor, o livro não se dirige apenas a
des sociais e as diferenças regionais brasileiras. A
cientistas humanos, mas pretende atingir o gran
concentração do meio técnico-científico-informaci
de público. O livro realiza ''uma teoria do Brasil a
onal dificulta o acesso a bens e serviços e gera
partir do território'' e busca redefinir, diante da
vazios de consumo representados pela pobreza,
globalização, as relações entre terra e gente.
sobretudo urbana, que reúne todo o conteúdo ex plosivo do território hoje.
Milton Santos
99
MILTON SANTOS: POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO – A DE TODOS
Délio Mendes Délio Mendesrprofessor Dr. do Departamento de Sociologia da Universidade Católica de Pernambuco UNICAP Este texto foi originalmente publicado na Revista Política Democrática, Brasília, Ano 1, n.2, p.191-197, 2001.
Para o mundo intelectual brasileiro entrou em en
são. “Indubitavelmente, o tom de certos traba
cantamento um dos seus principais pensadores. E
lhos, nos quais o jogo conhecido das referências
se encantou em plena produção, no seu momento
recíprocas entre autores "freqüentemente substi
mais fértil. Produzia uma crítica à globalização
tui uma análise dos fatos, tem contribuído para a
considerando que a mesma tem sido levada a
perpetuação do debate, que, embora pretenda
efeito do ponto de vista do capital financeiro. Pro
atacar o problema em profundidade, perde-se
punha uma outra globalização. Intelectual estudi
numa guerrilha semântica confusa.”[2] Esta críti
oso do espaço e do tempo, compreendeu, em seu
ca direta acompanha uma análise da produção in
tempo, o espaço como produção do homem na re
telectual da pobreza que, segundo Milton, pouco
lação com a totalidade da natureza e a intermedi
tinha contribuído para a resolução dos problemas
ação da técnica. Técnica que corresponde a um
da pobreza. Para este jogo de vaidades não se
tempo determinado pela produção dos homens.
contava com a sua participação.
Homem do seu tempo, Milton Santos se fez pre
A história do homem, compreendida como a his
sente em todos os grandes embates intelectuais da última metade do século passado. O seu tem po e o seu espaço foram o tempo e o espaço da globalização. Que ele queria que fosse outra. Ou melhor, a outra, a globalização de todos os excluí dos, resgatados em uma sinfonia de humaniza ção. Milton se fez maestro da paz e da felicidade. Felicidade de todos. Buscou uma globalização que unisse todas as mulheres e todos os homens, sob égide do encontro.
tória da superação, faz do autor de Pobreza urba na, um profeta da evolução. “A história do ho mem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e o entorno. Esse pro cesso se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder dominá-lo. A na tureza artificializada marca uma grande mudança na história da natureza humana. Hoje, com a tec
Conheci Milton, no Recife, em 1978, quando esta
nociência, alcançamos o estágio supremo dessa
va às voltas com Pobreza urbana. Inovava ao
evolução.”[3] A visão da técnica, do espaço e do
compreender o mundo formal e informal, como
tempo, assume, nesta compreensão, um caráter
duas faces de um circuito comandado desde a
inovador, na medida em que passa a apreender a
acumulação ampliada do capital.[1] Inovava e
dimensão da história, da história de temporalida
agitava. Milton era, sobretudo, um agitador. Agi
des técnicas que permite produzir uma sociedade
tador de idéias, no melhor sentido de um intelec
determinada, empregando, de acordo com a téc
tual da sua estatura. Avesso aos partidarismos,
nica predominante, uma certa quantidade de tra
falava da isenção do intelectual para exercitar a
balho humano. Milton abre o conceito de territó
crítica. Por isso, sempre esteve radicalmente ao
rio, mostrando-o como o lugar do drama social
lado do seu povo. Em Pobreza urbana se faz críti
“Bom, há nessa desordem a oportunidade intelec
co de um debate sobre a desigualdade que se
tual de nos deixar ver como o território revela o
presta, mais e muito mais, à louvação mesquinha
drama da nação, porque ele é, eu creio, muito
de intelectuais vazios entre si, do que a colocação
mais visível através do território do que por inter
correta e crítica dos grandes problemas da exclu
médio de qualquer outra instância da sociedade. A
100
Milton Santos
minha impressão é que o território, revela as con
dade do ser humano. Para modificar o mundo.
tradições muito mais fortemente.”[4] Da relação
Para que o conhecimento se produza no interior
técnica, espaço e tempo, revela-se a história, ou
da crítica, sem abstrações alienantes, sem reco
melhor, uma outra história, no palco iluminado
nhecimentos incompletos que produzem falsas
expresso no território. Esta outra história aponta
compreensões e encobrem os verdadeiros dramas
para as desigualdades. Faz emergir a exclusão da
sociais. E assim, pode-se evitar a espera para que
maioria da população concentrada em um territó
cresça o bolo, evitando a indigência de uma quan
rio degradado, onde pobres de todas as naturezas
tidade grande de seres humanos.
lutam contra todos os carecimentos.
É o início de uma outra cognoscibilidade do plane
Milton se mostra mais crítico no livro recente Por
ta. Um planeta que conta com todas as possibili
uma outra globalização - do pensamento único à
dades de ser desvendado. Mas, nem sempre o co
consciência universal[5], onde nos aponta para
nhecer é possível. A informação nem sempre se
um mundo de difícil percepção por conta da con
propõe a informar, e sim a convencer acerca das
fusão reinante que nos tem levado à perplexida
possibilidades e das vantagens das mercadorias.
de. Portanto, toma para análise a realidade relaci
"O que é transmitido à maioria da humanidade é,
onal do ser humano, e a esta realidade relacional
de fato, uma informação manipulada que, em lu
perversa atribui os males revelados pelo territó
gar de esclarecer, confunde.”[8] A contradição se
rio. Não aceita explicações mecanicistas pelo seu
faz e se refaz na impossibilidade de se produzir,
caráter insuficiente. Atribuindo ao desenrolar da
de imediato, uma informação libertadora. A alie
história, capitaneada por determinados segmen
nação é a face que brota aguda da globalização fi
tos da sociedade, os males que tornam difícil a
nanceira, da globalização do dinheiro. Encanta-se
vida da maioria das mulheres e dos homens. Co
o mundo. O princípio e o fim são o discurso e a
loca na base deste processo confuso a tirania do
retórica. Então o que fica para o ser comum é a
dinheiro e da informação, transcende a Marx, e o
farsa do consumo. Não há referência à transfor
dinheiro passa a produzir dinheiro, dominando o
mação do espaço e do tempo. O homem consumi
mundo da produção de mercadorias. Especulação,
dor caminha no espaço do desconhecimento do
financeirização. A globalização é feita menor, sob
mundo relacional e do falso e alardeado conheci
a égide dos bancos e dos banqueiros, criando
mento do mundo das mercadorias. O fetiche,
uma fábrica de perversidades. “O desemprego
como e desde sempre, se realiza no ocultamento
crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e
do valor de troca e no falso evidenciamento do
as classes médias perdem em qualidade de vida.
valor de uso. É a utilidade que aparece, e que é
O salário médio tende a baixar. A fome e o desa
proclamada em todo o universo informacional.
brigo se generalizam em todos os continen
Fala-se ao peito sangrando das mulheres e ho
tes.”[6]
mens que não são consumidores. Para a competi
Caminhando no terreno da mais valia global, Por
tividade, tem-se de chamar os consumidores,
uma outra globalização apreende o papel dos in telectuais. Todos trabalhando a ampliação desta mais valia. Trabalhando para ampliar a produtivi
tem-se que oferecer o melhor, o mais barato, pro duzido desde a produtividade aumentada pelo tra balho dos intelectuais. Tudo para melhorar a com
dade como se este fosse um trabalho abstrato, e
petitividade.
não a produção de urna vantagem para o capi
Para Milton, a competitividade é ausência de com
tal.[7] É preciso reconhecer este momento e a
paixão. Tem a guerra como norma, e privilegia
sua peculiaridade. A de ser um momento para o
sempre os mais fortes em detrimento dos mais
capital. E todas as ações movem-se na direção do
fracos. Busca fôlego na economia e despreza os
reproduzir para os ricos. Entretanto, se esta é
que pensam mais para além. "Para tudo isso,
uma constatação, não é, felizmente, uma fatalida
também contribuiu a perda da influência da filoso
de. Milton nos aponta para um outro conhecimen
fia na formulação das ciências sociais, cuja inter
to. Para a possibilidade de conhecer, para a liber
disciplinaridade acaba por buscar inspiração na
Milton Santos
101
economia.”[9] Esta é uma das mais importantes
Mas estes homens são apenas consumidores, pois
reflexões levadas a efeito no interior de Por uma
a cidadania depende de sua generalização. Não
outra, na medida em que coloca um ponto focal
existem cidadãos num mundo apartado. Não se é
que não é localizado costumeiramente no campo
cidadão em um espaço onde todos não o são. São
da ideologia. Cientistas sociais dos mais diferen
consumidores os que expressam direitos e deve
tes matizes sucumbem aos encantos da facilidade
res no âmbito do mercado e não no âmbito do es
dos números e do falso realismo de uma formula
paço público, onde a política é realizada e o poder
ção econômica ideologizada, que esquece os seres
distribuído. Portanto, este é um mundo de alguns
humanos e os substitui pelas equações e as tabe
consumidores e poucos, pouquíssimos cidadãos. É
las estatísticas que ilusionam os dirigentes e me
preciso construir a cidadania.
tem medo a todos os que não querem padecer no inferno apontado pelos proclamadores da nova única. Se não aceitas as premissas e as evidênci
A transição (conclusão)
as das projeções estatísticas da nova única, serás
O novo nasce sem que se perceba. Quase na
responsável pelo caos que há de vir.
sombra, o mundo muda de maneira imperceptí
Empobrece a ciência social em geral, nada para além da numerologia estatística. Investir nos se tores sociais acarreta um custo que o capital não se propõe a pagar, e a ciência se curva, entra em letargia, deixa o mundo nas mãos dos economis tas que vão levá-lo adiante de mãos com a lógica da relação produto capital e da competitividade. A ciência humana se faz pobre para interpretar um mundo confuso e conturbado e, desde logo, tudo a ciência econômica. Este enfoque modernoso atinge por caminhos nunca dantes navegados a maioria das falas e dos discursos. Grandes farsas são inventadas e reinventadas. O privilégio conti nua privilegiando o privilegiado. "Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território.”[10] Inclusive do território do pensar para impedir o pensar. Apoderam-se das mentes e dos corações e, por conseqüência, das vidas no
vel, todavia constante. Neste início de século, te mos a consciência de que estamos vivendo uma nova realidade. As transformações atuais colocam os homens em permanente estado de perplexida de. A poluição e a desertificação se alastram, a super população e as tecno-epidemias etc., tor nam o mundo diverso negativamente. A pobreza e a desigualdade, são produtos desta forma da produção do modo civilizatório capitalista. Este novo apresenta diferentes faces. Tudo isto como conseqüência da desestruturação da ordem indus trial. O atual período histórico não é apenas a continuação do capitalismo ocidental, é mais. Me lhor, é muito mais, é a transição para uma nova civilização. Esta transição que está em curso é preocupante para determinadas sociedades, des protegidas na guerra das nações pela primazia na história
pleno movimento da vivência. Tudo isto no mundo
Milton chama atenção para esta realidade. "No
da competitividade. A competitividade revela a
caso do mundo atual, temos a consciência de vi
essência do território, os lugares apontam para as
ver um novo período, mas o novo que mais facil
lutas sociais, trazendo a tona virtudes e fraquezas
mente apreende-se diz respeito à utilização de
dos atores da vida política e da sociedade.
formidáveis recursos da técnica e da ciência pelas
A cidadania se torna menor do que sua percep ção. O cidadão pretende transcender o seu espaço primitivo. Todavia, o mundo, expresso desigual mente, não tem como regular os lugares em suas diversidades e, por conseqüência, a cidadania se faz menor. A desigualdade aponta a impossibilida de da generalização da cidadania. O espaço é es quizofrênico na expressão da exclusão social. Uns homens sentem-se mais cidadãos do que outros.
novas formas do grande capital, apoiado por for mas institucionais igualmente novas. Não se pode dizer que a globalização seja, semelhante às on das anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram radicalmente. É so mente agora que a humanidade está podendo contar com essa nova realidade técnica, providen ciada pelo que se está chamando de técnica infor macional. Chegamos a um outro século e o ho
102
Milton Santos
mem, por meio dos avanços da ciência, produz
social, mostrando que a atual forma de globaliza
um sistema de técnicas da informação. Estas pas
ção não é irreversível e a utopia é pertinente. ” É
sam a exercer um papel de elo entre as demais,
somente a partir dessa constatação, fundada na
unindo-as e assegurando a presença planetária
história real do nosso tempo, que se torna possí
desse novo sistema técnico."[11]
vel retomar, de maneira concreta, a idéia de uto
É necessário, para compreender esse novo, o co
pia e de projeto.”[13] Desde esta compreensão, a
nhecimento de dois elementos fundamentais na formação social das nações: a formação técnica e
globalização é um projeto irreversível da humani dade. Entretanto, não é esta a globalização dese
a formação política. Uma permite a compreensão
jada, e sim uma outra, a de todos.
dos elementos tecnológicos que formam as com
Sobre o livro: SANTOS, Milton. Por uma outra
posições necessárias à produção, e a outra indica
globalização - do pensamento único à consciência
que setores serão privilegiados com a organização
universal. São Pauto: Record, 2000. [1]SANTOS,
possível da produção. “Na prática social, sistemas
Milton (1978) Pobreza urbana,
técnicos e sistemas políticos se confundem e é por
Hucitec/UFPE/CNPU, São Paulo, Recife.
meio das combinações então possíveis e da esco
[2]SANTOS, Milton, Pobreza urbana, op. cit. p.29.
lha dos momentos e lugares de seu uso que a his tória e a geografia se fazem e refazem continua mente.”[12] Desde esta compreensão, esta nova
[3]SANTOS, Milton (1994), Técnica espaço tem po, Hucitec, São Paulo, p. 17.
sociedade pode, inclusive, abrir uma nova época
[4]SANTOS, Milton (2000) Entrevista com SEA
com a colocação de um novo paradigma social.
BRA, Odete, CARVALHO, Mônica e LEITE, José
Este paradigma pode ser posto como: a supera
Corrêa, Editora Fundação Perseu Abramo, São
ção da nação ativa pela nação passiva.
Paulo, p. 21.
Ou melhor, voltando ao velho Marx: a nação em
[5]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globali
si é superada pela nação para si. Para isto, é ne
zação - do pensamento único à consciência uni
cessário que o velho/novo mundo periférico reto
versal, Record, São Paulo.
me um projeto político de independência, fora dos
[6]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globali
moldes de projetos como o Mercosul, que nada
zação - op. cit. p. 19
mais representam do que a dependência em blo co, na medida em que este tipo de associação só serve à subserviência coletiva, levando grupos de países periféricos a deixar de submeterem-se iso
[7]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globali zação - op. cit. p. 31 [8]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globali
ladamente, para cair em bloco nos ardis do capital
zação - op. cit. p. 39
financeiro.
[9]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globali
Finalmente, utilizando a dialética como referência,
zação - op. cit. p. 47
Milton mostra a batalha travada entre a nação
[10] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra glo
passiva e a nação ativa, em uma transição políti
balização - op. cit. p. 79.
ca que envolve todos os espaços do viver, desde
[11] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra glo
o espaço da vida cotidiana. A nação ativa, ligada aos interesses da globalização perversa, nada cria, nada contribui para a formação do mundo da felicidade, ao contrário da outra nação dita passi
balização - op. cit. p. 142. [12] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra glo balização - op. cit. p. 142
va que, a cada momento, cria e recria, em condi
[13] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra glo
ções adversas, o novo jeito de produzir o espaço
balização - op. cit. p. 160
Milton Santos
103
VIVE MILTON SANTOS
Júlia Andrade (04 - 08 - 2001)
Combativo, o geógrafo levou a sério sua missão
Professor com camisas de mangas compridas e
de homem de idéias e encarou a atividade de pro
gravatas vermelhas, vestido com a mesma serie
fessor com a importância que ela pode ter.
dade com que lidava com o conhecimento.
No último dia 24 de julho (na verdade foi em ju
Em 1996, a geógrafa e amiga Maria Adélia Apare
nho – nota do compilador) morreu em São Paulo
cida de Souza organizou um evento internacional
o geógrafo Milton Santos. Um intelectual de gran
para discutir a obra de Milton e comemorar seus
de importância para as ciências humanas brasilei
70 anos. O nome do encontro: "Cidadão do Mun
ras. Professor da Universidade de São Paulo, re
do e o Mundo do Cidadão". Este título reflete bem
cebeu vinte títulos "honoris causa" e o prêmio
a obra e a vida deste homem. Uma homenagem
Vautrin Lud, - equivalente a um "Nobel" de geo
belíssima e em boa hora. Lígia Fagundes Teles
grafia. Conquistas raras para os pensadores latino
disse, em uma entrevista, que as homenagens
americanos.
póstumas já chegam frias... Eis uma grande sabe
Milton Santos escreveu mais de quarenta livros
doria. Devemos reconhecer, em vida, os grandes
em diversas línguas, sua obra é uma referência para todos aqueles que pretendem compreender de maneira crítica o mundo atual. Um pensador
homens, e Milton o foi. Por Adélia, pelos políticos, pelos intelectuais, por seus alunos e por todos que acompanhavam seus textos densos nos jor
otimista, antes de mais nada, que conseguiu dis
nais de domingo.
tinguir o novo da novidade, conceitos que ele di
Milton Santos foi um homem essencialmente de
ferenciava radicalmente.
idéias. E as idéias não morrem, elas continuam
Um geógrafo sério e combativo. Não poupou nin
ressoando na mente daqueles que buscam o co
guém de suas severas críticas. Políticos, intelectu ais, colegas de departamento e até mesmo seus
nhecimento do Mundo Novo. Sendo assim, ele es tará sempre vivo no seu mais sublime significado.
alunos mais fiéis (inclusive esta que vos escreve).
Ele sempre viverá entre nós!
Todos passaram por sua pena precisa ou por suas
In:
palavras duras. Palavras que eram pronunciadas
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/
por uma voz mansa, entre um sorriso bonito de
mst.html (acesso in 9/12/2002)
um negro de 75 anos. Os cabelos brancos apare ceram nos últimos tempos, mas sempre víamos o
104
Milton Santos
A GRANDE MUTAÇÃO – MILTON SANTOS REINTERPRETA O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO
José Luís Fiori (Professor de Economia na UFRJ)
Milton Santos reuniu e reescreveu conferências,
desta segunda "grande transformação" do século
artigos de jornal, aulas e entrevistas em um livro
20. Para eles, trata-se de uma consequência ne
de reflexão e combate que, sem abdicar do rigor,
cessária e inapelável das transformações tecnoló
inscreve-se no campo do pensamento crítico e da
gicas que, somadas à expansão dos mercados,
produção intelectual que chamamos de "publicísti
derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam
ca". Seu ponto de partida é uma releitura da ori
os projetos econômicos nacionais, promovendo
gem técnica e política do fenômeno da globaliza
uma redução obrigatória da soberania dos Esta
ção, como ideologia de um presente perverso e
dos. A partir daí, a própria globalização econômi
horizonte de um futuro que pode ser promissor.
ca e a força dos mercados promoveriam uma ho
Seu ponto de chegada é a convicção de que "di
mogeneização progressiva da riqueza e do desen
ante do que é o mundo atual, as condições mate
volvimento por meio do livre comércio e da com
riais já estão dadas para que se imponha a dese
pleta liberdade de circulação dos capitais priva
jada grande mutação, mas seu destino vai depen
dos, o que acabaria conduzindo a humanidade na
der de como disponibilidades e possibilidades se
direção de um governo global, uma paz perpétua
rão aproveitadas pela política. A globalização atu
e uma "democracia cosmopolita".
al não é irreversível".
O problema, como demonstra Milton Santos, é
O livro apresenta duas faces: um diagnóstico das
que esta utopia vem sendo insistentemente nega
transformações contemporâneas, centrado na re
da pelos fatos, já que as consequências sociais e
lação entre os espaços verticais e horizontais (dos
econômicas do processo real de globalização são
opressores e oprimidos) e na dos territórios sobe
completamente distintas, dependendo do territó
ranos com o dinheiro global; e um prognóstico em
rio e do poder dos Estados. A globalização não é
que sustenta uma nova utopia global dos pobres e
uma imposição tecnológica nem tampouco apenas
oprimidos.
um fenômeno puramente econômico, que envolva
A maioria dos analistas está de acordo, com pe
somente novas formas de dominação, estratégias
quenas variações, quanto às principais transfor mações que, neste último quarto de século, alte raram a face do capitalismo, tal como foi organi zado depois do fim da Segunda Guerra sob a égi de da competição entre os EUA e a União Soviéti ca. As diferenças residem na forma como cada um interpreta o movimento geral, hierarquizando de terminações e extraindo consequências propositi
e imposição vitoriosa de determinados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço in terno dos Estados nacionais. Como diz Milton San tos, a história "mostra não ser certo que haja um imperativo técnico. O imperativo é político. Desse modo, não há uma inelutabilidade face aos siste mas técnicos, nem muito menos um determinis mo. Aliás, a técnica somente é um absoluto en
vas. É aí que a posição de Milton Santos se indivi
quanto irrealizada".
dualiza.
Outro ponto decisivo que diferencia o diagnóstico de Milton Santos é a centralidade atribuída às transformações no campo monetário-financeiro, no qual se concentra, de nosso ponto de vista, o
A interpretação liberal
núcleo duro do que se nomeia por globalização. E
Os liberais, subscrevendo a interpretação he
também aqui a política teve um papel decisivo,
gemônica, privilegiam os aspectos econômicos
sobretudo na alteração das regras, iniciada com a criação do euromercado de dólares, que culminou
Milton Santos
105
no fim do sistema de paridade cambial firmado
Uma mudança de rumo imposta pela renegocia
em Bretton Woods. Foram os primeiros passos do
ção da dívida externa brasileira, que nos anos
processo de "globalização do dinheiro", que avan
1990 obrigou o país a submeter-se às políticas de
çou velozmente nos anos 80, associado de forma
ajuste de corte neoliberal, desenhadas pelos cre
íntima e inseparável das políticas iniciadas pelos
dores, organismos internacionais e alguns gover
governos anglo-saxões e que depois se universali
nos centrais, em troca do retorno ao sistema fi
zaram por obra da "desregulação competitiva".
nanceiro internacional. É nesse contexto que cabe
Decisões políticas que recolocaram, de certa for
apreciar o argumento de Milton Santos e sua con
ma, o capitalismo deste final de século nos trilhos
vicção de que o atual imobilismo do governo bra
da "civilização liberal" do século 19.
sileiro deverá estender-se cada vez mais às ou tras instâncias federativas do poder estatal. Se
Dinheiro global
esse fenômeno não for revertido, deverá aprofun dar as desigualdades territoriais preexistentes e
Entretanto, essa aparente volta às origens liberais
acirrar o conflito (a guerra fiscal) de todas contra
do sistema não deve ser confundida com um sim
todas as unidades da Federação, em nível estadu
ples retorno. As atuais relações do governo norte-
al e municipal.
americano com o novo sistema monetário interna cional são completamente diferentes das relações que a Inglaterra manteve com o sistema do pa drão-ouro. O novo sistema permite aos EUA de terminar a dinâmica de curto prazo da economia mundial, por meio do mero manejo de sua moeda -que não obedece a nenhum outro padrão de re ferência que não seja o poder político, econômico e financeiro norte-americano. É isso que diz Mil ton Santos quando afirma que "o dinheiro global autonomizado torna-se hoje o principal regedor do território, tanto o território nacional como suas frações (...). É aliás a partir deste caráter que o dinheiro global é também despótico". Ainda no plano do diagnóstico, Milton Santos cha ma a atenção para outro aspecto da globalização, decisivo no caso de países, como o Brasil, que se incorporaram ao processo, fragilizados pelo endi vidamento e pelas desigualdades sociais. Nesses casos, "a vocação homogeneizadora do capital global é exercida sobre uma base formada por parcelas muito diferentes umas das outras e cujas diferenças e desigualdades são ampliadas sob tal ação unitária (...); é por este prisma que deve ser vista a questão da federação e da governabilidade da nação: na medida em que o governo da nação se solidariza com os desígnios das forças exter nas, levantam-se problemas cruciais para Estados
O dito "bom comportamento macroeconômico" da União pressiona as demais instâncias da Federa ção a adotarem um "mau comportamento", do ponto de vista da solidariedade nacional. Compe tindo pelos mesmos investimentos e dependentes dos mesmos detentores de decisão e mercados -na medida em que não dispõem mais, ou não querem fazer uso, de sua capacidade de iniciativa própria-, acabam transferindo para terceiros o ônus das responsabilidades ou funções básicas de qualquer Estado nacional, contribuindo para mul tiplicar os regionalismos. E o que é pior, de um outro ponto de vista, mas na mesma linha de argumentação, é que essa es tratégia de incorporação ao processo de globaliza ção tem muito a ver com as dificuldades que os países latino-americanos vêm enfrentando para consolidar suas novas instituições democráticas. Por quanto tempo será possível manter coesa e democrática uma sociedade em que se multiplica geometricamente a riqueza financeira ao mesmo tempo em que se expandem o desemprego e a exclusão social, enquanto o Estado é submetido a periódicas sangrias fiscais que vão paralisando lentamente sua capacidade de responder aos no vos desafios sociais criados pelo aumento da mi séria?
e municípios". Como se sabe, no caso brasileiro, a globalização
Resistência crescente
trouxe consigo uma mudança radical da estratégia
A despeito de tudo, este quadro não retira o oti
de desenvolvimento seguida desde os anos 1930.
mismo do grande geógrafo brasileiro. O caráter
106
Milton Santos
perverso e os efeitos destrutivos da globalização,
países subdesenvolvidos e não os países ricos; os
segundo Milton Santos, irão gerando resistências
deserdados e os pobres e não os opulentos e ou
crescentes dos "espaços banais" e horizontais em
tras classes obesas; o indivíduo liberado partícipe
que se encontra a grande massa do povo, contra
das novas massas e não o homem acorrentado; o
os espaços integrados, verticais e excludentes dos
pensamento livre e não o discurso único. Os po
fluxos globalizados do dinheiro e da informação. É
bres não se entregam e descobrem a cada dia for
nestes espaços -onde se desenvolvem as cidades
mas inéditas de trabalho e de luta; a semente do
e as culturas populares- que, segundo ele, estão
entendimento já está plantada e o passo seguinte
sendo tecidas as bases de uma nova utopia globa
é o seu florescimento em atitudes de inconformi
litária, que deverá ser cidadã e democrática: "Es
dade e, talvez, rebeldia".
tamos convencidos de que a mudança histórica
In
em perspectiva provirá de um movimento de bai xo para cima, tendo como atores principais os
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
Milton Santos
107
SOBRE OS LUGARES DO MUNDO: FALANDO DOS SANTOS
Maria Adélia Aparecida de Souza (Profª Titular de Geografia Humana da USP e Profª Concursada do Insti tuto de Geografia da UNICAMP)
Incrível e triste coincidência esta. Incrível pois,
cidade, essa massa física oriunda do embate de
neste ano de 2001, tinha eu a enorme esperança
interesses de toda ordem. Aprendi com Milton a
de promover o encontro de dois SANTOS: um de
ser rigorosa nos conceitos. É a cidade e não o lu
les, velho e querido amigo, o Milton, mestre sobre
gar, quem mata.
a vida e a Geografia, que nos deixou. O outro, o
Para Toninho a POLÍTICA foi sua razão de ser e de
Toninho, que conheci neste ano e que aprendi a respeitar não apenas por ser um prefeito exemp lar, mas por ter me cativado pela sua proposta para governar Campinas e por ser um leitor cui dadoso de Milton.
viver e o LUGAR ele pretendia ajudar a construir em Campinas. A cidade, no entanto, executou sua sentença de morte. Mas, o lugar, como nos ensi na Milton Santos, se constitui também no princi pal fundamento para a compreensão (não a acei
O que une os dois é sem dúvida a POLÍTICA e o
tação) de seu desaparecimento: ele indica que as
encantamento pelo LUGAR, este espaço do acon
solidariedades sociais que necessitam ser gesta
tecer solidário, fragmento do mundo e fundamen
das para a construção de uma sociedade digna
to da resistência de toda ordem.
em Campinas, ainda não foram construídas. Esta
Coincidentemente, o lugar como fragmento está
gestação se dá historicamente pelos pactos que a
marcado na colcha de retalhos símbolo do movi mento recém lançado pela Prefeita Izalene - COS TURANDO A PAZ em Campinas, onde cada retalho representa esta solidariedade dos lugares, este fragmento do mundo, esta forma de resistência. Para Milton, estamos vivendo o mundo da racio nalidade política em substituição a esgotada raci onalidade econômica. Nesta perspectiva, o lugar passa a ser o principal na construção de uma nova ordem, neste período popular da história. Sua obra nos dá pistas importantíssimas para es tudar Campinas. Ensina Milton Santos que as me trópoles do Terceiro Mundo são uma cristalização de nova lógica em pontos de território, correspon dente ao novo momento histórico. É aí que con fluem resultados contraditórios de um processo de modernização que impõe novas formas de atraso. Por isso, diante dessas enormes máquinas, em que a existência é penosa para a maioria da po
sociedade, no lugar, vai amealhando, através da construção histórica do poder político, através das transparências dessas ações que realiza em nome do povo. A situação em que nos encontramos em Campinas demonstra que a cidade é palco de lu tas sem lei e que o lugar, está abandonado. A so ciedade campineira abandonou o lugar e a cidade, que ficaram sob os cuidados da violência. Conheci pouco TONINHO, pois estive com ele pes soalmente apenas quatro vezes neste ano de 2001. Mas, impressionou-me seu estilo político: em público fugia ao tradicional discurso para o aplauso. Corajoso e destemido dizia o que preci sava ser dito e não o que a platéia adoraria ouvir. Assim o vi, firme, em uma reunião do Conselho Municipal do Meio Ambiente. Campinas perdeu um de seus filhos queridos. O Brasil perdeu um político sério, um de seus esta distas. Eu certamente perdi mais um amigo que
pulação pergunta-se por que tais cidades não são
pretendia guardar e com ele me solidarizar.
ainda mais críticas, por que ainda funcionam rela
Toninho insistia em dizer que a Cidade de Campi
tivamente bem? Por que essas metrópoles defini
nas queria homenagear Milton Santos, o grande
tivamente não explodem?
geógrafo brasileiro. Insistia sempre, nas poucas
Quando a cidade mata seu Prefeito, será que ela
vezes em que nos encontramos, que eu trouxesse
não começou definitivamente a explodir? Falo da
Milton para ser festejado em Campinas.
108
Milton Santos
Nem um, nem outro puderam me dar este privilé
Prosseguiremos festejando, como ambos gosta
gio de vê-los juntos. Decidiram se homenagear no
vam de ser.
céu, com nossos aplausos eternos e repletos de
Certamente os SANTOS, nos dirão AMÉM.
gratidão, daqui de Campinas, dos nossos lugares à partir dos quais forjamos nossa incansável re sistência. Para isso, antes de deixar-nos, Toninho criou o
*Portal Milton Santos em: http://www.campi nas.sp.gov.br/portal_milton_santos/principal.htm
PROJETO MILTON SANTOS* que prossegue com o
In
apoio firme, decidido e feminino de Izalene, nossa
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/
Prefeita e da Comunidade Negra.
mst.html (acesso in 9/12/2002)
Milton Santos
109
DISSERTANDO MILTON SANTOS Pablo A. Maurutto A compreensão do conceito de espaço para a aná
feixe de forças sociais se exercendo em um lu
lise da diluição espaço-sociedade se faz essencial
gar." Isso caracteriza o lugar como estático e a lo
sob a ótica do todo ou de sistema. Dentro desse
calização como dinâmica.
conceito o espaço expressa-se, segundo Milton
Roberto Da Matta , em A Casa & A Rua, exemplifi
Santos, como instancia da sociedade; e, como tal, interage num conjunto de instancias ( economia, política, cultura) agindo dialéticamente como con tinente e conteúdo, paradigma e sintagma.
ca esses conceitos segundo as diferenças das no ções básicas de endereço ou da localização crono lógica entre diferentes grupos sociais. Em cidades pequenas ou vilas brasileiras, por exemplo, os en
O espaço é muito mais um evento que um ele
dereços são especificados popularmente segundo
mento físico. Ele define-se segundo uma multipli
relações socio-culturais : "...fica numa casinha
cidade de conceitos que interagem na e com a
amarela ao lado da casa de D. Maria, a doceira,
forma. É como se forma tivesse corpo e alma. Ela
na primeira esquina depois do cajueiro." e essa
é resultante e resultado de um conteúdo e é alte
explicação ,sem dúvidas, esclarece de maneira
rada com o movimento social de modo que um
muito mais satisfatória do que ,por exemplo,
conteúdo se encaixa e interage a cada nova forma
"SMIN ,ql. 02, conj. 12, casa 14, lago norte" en
que por sua vez renova a sua concepção formal.
dereço convencional em Brasília. Podemos obser
Isso exemplifica-se na transgressão tipológica que
var como o primeiro exemplo é suscetível à trans
se deu na cidade do Salvador. Quando ela era tida
formações em função do movimento social, ou
como Cidade do Comércio, nos sobrados estabele
das mudanças dos "feixe de forças sociais" de que
ciam-se moradias e comércio numa ocupação
fala Milton Santos, e portanto tal especificação
mista. Com a dinâmica urbana, o centro da cidade
está mais relacionada ao conceito de localização.
passou a adquirir uma especificação como zona
Já o segundo exemplo apresenta uma predetermi
do trabalho. Essa passagem da Cidade do Comér
nação nominal rígida e a priori sem nenhuma re
cio para Cidade do Trabalho modificou o contexto
lação com as interferências sociais.
social na região do centro e os donos dos estabe
Da Matta ainda exemplifica o conceito de localiza
lecimentos comerciais deslocaram-se para outras áreas e passaram a habitar os solares. Os antigos sobrados tornaram-se exclusivamente reservados ao comércio, sugerindo uma nova concepção tipo lógica e formal dentro e fora dos seus limites físi cos. Essa segregação se deu em forma e função e ocasionou um novo conteúdo social. A interação é a essência do conceito de espaço, é o seu movimento dialético que o define como sis tema. Essa capacidade de transformação e reconceituali zação de um espaço justifica a localização como algo dinâmico. Deve-se entender que o conceito de localização e de lugar são distintos . A localiza ção é uma apreensão categórica ou conceitual de um lugar em meio a uma rede de interferências relacionais. Segundo Milton Santos "lugar é o ob jeto ou o conjunto de objetos. A localização é um
ção cronológica ou histórica ao comentar a tribo dos Apinayés cuja noção de tempo se dá através de relações ou eventos socio-culturais: "... no tempo que meu Geti (avô) era vivo...". Essa noção de localização nos vai permitir, por tanto, que um mesmo lugar mude de localização através dos movimentos sociais na história. A localização seria portanto pontos de intercessão das relações e valores sociais ou humanos, dila tando-se à níveis sistêmicos enquanto os lugares definem-se pontualmente por relações físicas. Essa complexa estrutura do espaço sugere que ,para a sua análise, seja utilizado um método que é baseado na apreensão de paradigmas e ,num confronto inverso, na decomposição do sintagma. Essa decomposição resulta no que M. Santos cha ma de elementos. Os elementos do espaço são os
110
Milton Santos
homens, as firmas, as instituições, o meio ecoló
Um elemento sob as mesmas condições, em luga
gico e as infra-estruturas. Esses elementos não
res diferentes desenvolve-se de formas diferen
são rígidos; eles podem intercambializarem-se e
tes.
reduzirem-se. Assim, os homens podem agir
Deve-se frisar que na análise do espaço ou da so
como firmas, as firmas como instituições, etc. Essa intercambialidade salienta o caráter sistêmi co do espaço, seu funcionamento polimórfico é re flexo da polivalência de seus elementos.
ciedade não são os elementos na natureza que lhes dará forma. Para sair do nível do abstrato e compreender o espaço como um sistema e como um todo deve-se compreender os elos entre os
Dentro das interações dos elementos, M. Santos
elementos ou suas estruturas. Esses elos ocorrem
polemiza o meio ecológico afirmando que este de
de várias maneiras e são categorizadas de duas
fine-se em parte como meio técnico ou infra-es
formas: "relações simples" e "relações globais".
trutural e até mesmo a dita "natureza selvagem"
As relações simples estruturam-se segundo causa
ou "cósmica" já foi substituída pela artificial. Isto
e efeito, são definidas por David Harvey como re
porque, a partir do momento que o homem tor
lações seriais. Nesse tipo de relação os elementos
nou-se "homem social" com a produção social, o
interagem uns nos outros de forma sucessiva e cí
raio de ação da sua interferência no espaço extin
clica.
guiu qualquer suspiro da natureza primeira.
As relações globais são definidas por elementos
Chegamos então à conclusão que os elementos
que influenciam relações pré-existentes , no caso
que compõe o espaço são estruturados pelos seus
das paralelas, segundo D. Harvey ou quando a es
papéis, seus estados, relações e condições e não
trutura interna do elemento é quem modifica o
pela sua representação particular e física. O ex
próprio elemento, que é mais recente, e chamada
emplo de Kuhn ilustra com clareza essa definição:
por Harvey de Feed Back.
"em sistemas que envolvem pessoas não é a pes
Devemos compreender essa constituição sistêmi
soa que é um elemento, mais os seus estados de fome, de desejo, de companheirismo ,de informa ção ou um outro traço de qualidade relevante para o sistema". O que reafirma uma outra colo cação de Milton Santos de que o homem mesmo sem participar diretamente da produção (aposen tado, desempregados e crianças) caracteriza-se como elemento do espaço já que estruturam o contexto social, o que representa sua condição de elemento. Isso nos leva a concluir que o elemento está sujeito a transformações no momento em que desloca-se no tempo. Isso porque o movi mento histórico lhe soma qualidades e quantida des segundo essa ordem, segundo Milton Santos. Os valores qualitativos são os primeiros que de vem ser captados pois são as necessidades sociais que resultam numa expressão quantitativa. Os elementos são mutáveis no tempo assim como transformam-se com o deslocamento do lugar.
ca , com as relações ocorrendo simultaneamente e em conjunto estruturando uma enorme teia de relações de elementos que por sua vez desdo bram-se em sub-sistemas. O que complexibiliza mais o espaço já que estes sub-sistemas estão conectados às relações gerais. Por isso podemos afirmar que o nível de abstração, ao contrário do que parece, é muito maior na análise empírica e pontual daquilo que é fisicamente concreto e que as evidências e a concretização da análise de um fenômeno está na compreensão de um todo ou de um sistema que extravasa os limites físicos e al cança horizontes cósmicos. In http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
Milton Santos
111
OS MIL... TONS DE MILTON SANTOS Ariovaldo Umbeiro de Oliveira A GENTE NÃO MORRE, ENCANTA Fábio Gomes Pinto Rodrigues
Falar do intelectual MILTON SANTOS é falar de
eternamente gratos por tê-lo conosco nestes tem
quem estudou o mundo e o Brasil, o Brasil e o
pos de certo obscurantismo.
mundo. MILTON resgatou a visão terceiro mundis
Falar do amigo MILTON SANTOS, é falar daquele
ta de compreensão do mundo globalizado. Não a visão de um mundo cheio de cataclismas e arma dilhas, mas de um mundo cheio de forças econô micas e regras de dominação. Regras que a cons ciência e a ação dos atores sociais poderiam e de veriam removê-las no encontro com o futuro.
que fez parte intensa de nossa vida pessoal. Foi nosso crítico severo. Falou-nos de tudo e de to dos. Aconselhou-nos nas horas difíceis e nos ilu minou na escuridão. Foi muito bom poder encon trá-lo neste mundo. Foi muito bom conviver com ele, e será tarefa nossa cotidiana colocar sua obra
MILTON resgatou também a visão brasileira do
no centro de nossas vidas.
Terceiro Mundo, encontrando aqui as alternativas
MILTON,
para a superação da globalização. Encontrou no Brasil os instrumentos e meios para entender o
Mil ...Tons vão colorir o mundo e o Brasil
espaço, o território e sobretudo a NAÇÃO. O reen
E como disse o poeta:
contro com a nação brasileira foi possível pela sua
"A Gente Não Morre, Encanta"
vivência mundial. Talvez por ter se tornado CIDA DÃO DO MUNDO, reencontrou a nação, os pobres deste país gigante de uma elite cega e de muitos intelectuais igualmente cegos. Por isso MILTON
Obrigado por ter encantado todos nós geógrafos brasileiros e do mundo ... EMOÇÃO NA HOMENAGEM PÓSTUMA
tornou-se um intelectual que não se calou diante
A MILTON SANTOS
dos mitos e dos mecenas. Ergueu sua voz, criti
O auditório do Departamento de Geografia foi,
cou e deixou um legado teórico que os homens e
nesse último dia 02 de julho, palco para uma ho
mulheres do início do século XXI terão que ler e
menagem póstuma ao Prof. Dr. Milton Santos,
compreender para poderem entender o Brasil e o
que veio a falecer em 25 de junho, aos 75 anos,
mundo. MILTON como intelectual colocou a Geo
vitimado pelo câncer. O professor dava aulas na
grafia brasileira na maioridade, como ele gostava
Universidade desde 1977, ano em que regressou
de anunciar.
ao Brasil após passar anos lecionando em faculda
Falar do professor e colega MILTON SANTOS é fa
des estrangeiras para fugir às perseguições pro
lar daquele que fez de suas aulas verdadeiros tex
movidas pelo regime militar.
tos e escola de aprendizado. MILTON não minis
Baiano, descendente de escravos, negro e orgu
trava aulas como a maioria de nós. Ele fazia con
lhoso de suas origens, Santos sempre foi um refe
ferências, ditava cátedra, mostrava os problemas
rencial de sucesso e resistência de um represen
e indicava soluções. Os alunos inquietavam-se,
tante dos grupos minoritários dentro do fechado
queriam ouví-lo mais, mas ele prontamente anun
universo científico e acadêmico. Tudo isso foi lem
ciava "é preciso estudar mais... vocês têm que ler
brado, em tom emocionado, nos discursos proferi
mais e mais ...". Foi sempre um colega intransi
dos por parentes, amigos, colegas de trabalho.
gente com a burocracia universitária e avesso aos
Entre os pontos, a respeito da personalidade e da
colegiados administrativos. O Departamento de Geografia-FFLCH-USP jamais poderá esquecê-lo, pois ele é parte da Geografia que aqui se produz, ele é uma de nossas estrelas maiores. Nós somos
obra
do
Professor
Santos,
destacados
como
exemplares estão seu grande carisma e generosi dade pessoal, além do seu rigor científico, e a grande erudição que ajudaram a confirmá-lo
112
Milton Santos
como o filósofo da geografia. Como bem recorda
Em seu discurso, o Prof. Dr. Francis Henrik Au
ram seus alunos e colegas de profissão, tal rigor o
bert, Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e
fazia avesso aos modismos teóricos e aos elogios
Ciências Humanas, ressaltou que a perda de Mil
que recebia por sua obra, encarava ambos com a
ton Santos é inegável no nível da vida pessoal da
ironia e o deboche conhecidos por todos aqueles
FFLCH, mas que a perda acadêmica só acontece
que tiveram a oportunidade de conhecer a intimi
ria se a obra de Santos não fosse continuada de
dade de Milton Santos.
forma fiel, e que esta continuação deveria ser
Encarando com verdadeira devoção as atividades
uma responsabilidade coletiva.
de ensino e pesquisa, ele aplicava sua capacidade
Fábio Gomes Pinto Rodrigues
de indignação e suas armas intelectuais para de
In
nunciar as distorções que as tecnologias e a glo balização estão impondo ao mundo atual.
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
Milton Santos
113
MILTON SANTOS: AMIGO, MESTRE, COMPANHEIRO!!!
Emir Sader (13 - 07 - 2001)
Milton Os que lutamos por um mundo melhor,
os valores, o estudo, o conhecimento assentado
trazemos conosco o teu sorriso tímido, o teu sor
na prática e nos interesses dos pobres da cidade e
riso confiante. Trazemos conosco tuas idéias de
do campo, são a matéria prima da dignidade e do
que um outro mundo é possível. Possível e neces
decoro. Porque assim foi tua vida e assim foi a
sário. Trazemos, Milton, tua esperança e tua ra
obra que você construiu com o melhor de você
dicalidade, porque só a crítica radical do mundo
mesmo. Com todos os esforços, inclusive aquelas
existente permite alimentar a esperança e o so
parcas horas que você conseguiu dedicar até
nho. Nós, Milton, que desejamos ser herdeiros da
aquele último dia, lendo, escrevendo, ensinando,
tua vida e da tua obra, nós buscamos trazer co
anotando, pensando. Milton Os que lutamos por
nosco tua tenacidade e teu rigor, tua generosida
um mundo melhor, trazemos conosco tua via e
de e teu elan, teu afã e tua elegância. Porque o
tua obra, teu exemplo e teu sorriso. Eles nos fa
que você deixou em nós, Milton, foi a vontade de
zem mais humanos, mais felizes, mais seguros
cada vez mais estar com os de baixo, com os ex
que um outro mundo - solidário e justo - é possí
plorados, os oprimidos, os ofendidos, os humilha
vel. Possível, porque saberemos construi-lo à tua
dos, os discriminados, os excluídos. De lutar com
imagem e semelhança, Milton amigo, mestre,
eles e por eles, por um mundo em que não haja
companheiro.
exploração, opressão, ofensa, humilhação, discri
In
minação, exclusão. A tua vida e a tua obra, Mil ton, demonstram como a verdade, a consciência,
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
114
Milton Santos
MAIS QUE UM MESTRE, UM AMIGO
Autor(a) Desconhecido(a)
Eu tive a oportunidade de conhecer o professor
pesquisa, os demais alunos estavam envolvidos
Milton Santos na segunda metade da década de
em uma pesquisa do próprio professor Milton San
1980 quando ele ainda não era a unanimidade dos
tos sobre a modernização agro-industrial de São
últimos anos de sua vida. Como o Muro de Berlim
Paulo e ele definia quem iria estudar a agroindús
ainda não havia desabado, muitos alunos e pro
tria canavieira, a da laranja e assim por diante.
fessores o consideravam "carreirista", ou seja, al
Com meu espírito espanhol e anarquista ou com a
guém preocupado apenas em fazer palestras e es crever anualmente um novo livro. O "bom" profes sor, naquela época, era aquele "engajado" nos movimentos sociais e que utilizava a sala de aula para fazer propaganda de partidos políticos. E o professor Milton Santos não compartilhava dessa "práxis". Ele até costumava ironizar os "engaja dos" e "militantes" alunos que esbanjavam nos discursos pedantes - quase sempre autoritários e fascistas - e se esqueciam que precisavam tam bém fincar a bunda nas cadeiras da biblioteca e estudar. Apesar de, durante a graduação, eu me encaixar mais no primeiro grupo, nós construímos uma boa relação afetual e eu me tornei seu aluno de inicia ção científica no ano de 1989 ou 1990, não me lembro ao certo. Com aquela bolsa de iniciação ci entífica fornecida pelo CNPq eu imaginava que fi nalmente teria um pouco de segurança econômica para poder estudar, porém, estávamos em um momento em que a bolsa costumava atrasar e muito, e às vezes ficávamos dois ou três meses sem receber um tostão. Quando tentávamos conversar com o professor Milton Santos sobre isso ele nos dizia: "para que vocês querem dinheiro? para consumir?" Na ver dade, agíamos com duplicidade. O atraso na bolsa era um álibi perfeito para esconder a nossa in competência pelos relatórios sofríveis que escre víamos.
teimosia taurina, eu passei a defender a autono mia dentro do grupo e que cada aluno trabalhasse no seu próprio ritmo. O professor aceitou a minha proposta talvez para testar aquele jovem ingênuo. Como nem sempre a autonomia é acompanhada pela responsabilidade o resultado no final do ano foi catastrófico: poucos alunos entregaram o rela tório final dentro do prazo estabelecido e ele ficou furioso. Da última reunião que participei como membro da equipe me lembro perfeitamente da bronca que levamos e de suas palavras: "a partir do ano que vem será diferente. Eu digo o quê e como deve ser feito o trabalho. E quero que todos elaborem uma agenda semanal para me entregar colocando os dias e as horas dedicadas ao proje to. E quem não estiver contente com a mudança que saia!" Como um jovem Prometeu egocêntrico, levantei as mãos e disse que não me sentia bem continu ando na equipe já que a proposta de trabalho que não funcionou foi minha. É claro que eu falei aqui lo esperando por uma outra resposta, algo mais ou menos assim: "Você não vai sair. Você é indis pensável para a equipe!" Mas é claro que ele ja mais falaria isso. Sua resposta foi seca: "tudo bem, pode ir embora!". A partir daquele momento não havia mais alternativas e me afastei da equi pe de pesquisa. Eu não sei se ele implantou aque la linha dura que havia dito ou se tentava apenas intimidar aqueles jovens prepotentes e incompe
Sua equipe de pesquisa era formada por uns três
tentes.
ou quatro alunos de iniciação científica, um de
O tempo foi passando e nossa amizade permane
aperfeiçoamento e por seus mestrandos e douto randos. Se não me engano, fora os mestrandos e doutorandos que já tinham um projeto próprio de
ceu intacta apesar desse "incidente". Assim, sem pre que nos encontrávamos na faculdade ele me convidava para bater um papo em sua sala. Nosso
Milton Santos
115
último encontro foi no 2o semestre de 2000 quan
professor Milton Santos e ouvi a resposta mais ób
do eu estava coordenando um curso de Geografia
via possível. Ele deveria viajar por sua própria
em uma faculdade particular no interior do estado
conta, guardando todas as notas de despesas para
de São Paulo e aquele seria o último ano do curso.
um posterior reembolso. O problema é que eu já
Como a procura era pequena, desde 1999 não ha
havia vivido a mesma situação com uma amiga
via mais vestibulares e, com a formação daquela
fotógrafa que lá foi expor. O reembolso das des
última turma, o curso seria fechado definitivamen
pesas para levar os quadros saiu três ou quatro
te.
meses depois. Resultado: eu fiquei com vergonha
Nós estávamos em sua sala e ele estava muito
de falar isso para ele e nem me preocupei em ligar
abatido. Mesmo assim o convidei para fazer uma palestra na faculdade. Como os alunos foram obri gados a ler vários de seus livros, eu acreditava que a palestra poderia ser uma forma mais nobre de terminar um curso. Apesar da saúde bem debi
para a sua secretária. Possivelmente ele até acei tasse, mas a falta de consideração e o desrespeito por sua pessoa eram difíceis de engolir. Assim, deixei para lá a palestra e passei a esperar pelo último suspiro do curso para eu começar uma vida
litada, ele disse: "eu vou! mas é por você e pelos
nova a partir de 2001.
alunos..."
Hoje, porém, se eu soubesse como terminaria
Depois de algumas digressões contra as faculda
essa fase de nossa amizade, eu teria insistido e
des particulares ele me pediu para agendar a data
realizado a palestra e diria, seguindo os seus pas
com a sua secretária e deixou claro também que
sos: "em respeito aos alunos".
não cobraria nada, mas que a faculdade deveria
São Carlos, junho de 2001
se responsabilizar pelas despesas de viagem. Eu
In
peguei o telefone dela e disse que conversaria pri meiro com a direção antes de marcar uma possí vel data. Lá chegando, apresentei a proposta do
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
116
Milton Santos
MILTON SANTOS – A FORÇA DA PÁTRIA
Procópio Mineiro (Cadernos do Terceiro Mundo, n°233 – 2001
O geógrafo e humanista deixa lições para se pensar o Brasil com esperanças. Crítico da globa lização, confiava na capacidade do povo brasileiro em forjar nova realidade
"O mercado não resolve tudo", foi a mensagem
mo tempo singular, em virtude de seu desenvolvi
do professor Milton Santos na entrevista que con
mento relativo, e é típico, já que as atuais formas
cedeu a cadernos do terceiro mundo, quando a
de sua inserção na globalização supõem o aban
revista comemorava sua ducentésima edição,
dono da idéia de projeto nacional e produzem um
exatamente quatro anos atrás, em junho de
claro retrocesso econômico e social", definia.
1997. No último dia 24 de junho, em São Paulo,
A força do lugar
Milton Santos morreu, vítima de câncer, aos 75 anos. O baiano do interior, de Brotas de Macaú bas, há muito se tornara um cidadão do mundo, vislumbrando, por entre as regras e leis da Geo grafia, uma humanidade que caminha e anseia por espaços de justiça e solidariedade. "Um discurso de baixo contraria o discurso de cima e produz a semente da força com que o Bra sil já começa a enfrentar e recusar a atual globali zação perversa", disse Milton Santos naquela en trevista a cadernos. Os conceitos aí expressos – o divórcio entre a maioria da cidadania e os dirigen tes, o caráter desumano das práticas globalizan tes – demonstram bem a percepção de quem afir mava, categoricamente, que "Estado mínimo" e "mercado" jamais atenderão às necessidades bra sileiras por desenvolvimento. O professor da Universidade de São Paulo distin guia a onda globalizante de outras épocas de ex pansão planetária dos centros mais desenvolvi dos, como o colonialismo e o imperialismo. A dife rença residiria na "nova qualidade da técnica, pro videnciada através do que se está chamando de técnica informacional. Essa técnica, isto é, essas técnicas da informação (por enquanto) são apro priadas por alguns Estados e por algumas empre sas, aprofundando assim os processos de criação de desigualdades. É assim que a periferia do sis tema capitalista acaba sendo ainda mais periféri ca, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a pos sibilidade de controle. O caso do Brasil é ao mes
Dos conceitos da Geografia, Milton Santos filtrou princípios que lhe demonstravam que "o lugar re cria cultura, ele o faz a partir de um cotidiano vi vido de modo distinto, mas coletivamente, por to dos. Este cotidiano é um reflexo das condições de cada lugar e tem suas raízes fincadas no trabalho em todas as suas modalidades", refletia o profes sor. Como é fácil entender, o lugar aí não é só o "topos", o terreno, um local qualquer, mas o lugar da comunidade que vive e interage, que cria uma identidade – um lugar que costumamos chamar pátria. "É nesse aspecto, no entanto, que o cotidiano ter ritorializado ganha um papel novo, ou seja, atribui às comunidades a possibilidade de se reverem e se redefinirem face à globalização, além de ampli ar os horizontes de sua consciência, impondo no vas visões de mundo, de cada nação, de cada lu gar ou região, e se transformando, dessa forma, numa força política incontornável." O mestre ensinava ainda, na entrevista a cader nos, que, "no caso brasileiro mais especificamen te, é o território, com todos os seus lugares, mas sobretudo por suas grandes cidades, que revela a profunda crise da nação e o mal-estar que o pro cesso de globalização está criando em toda parte. Esta descoberta já vem sendo feita por numero sos atores da sociedade. Além disso, esta mensa gem está se difundindo com grande rapidez". Nessa crescente conscientização, ele antevia o
Milton Santos
117
germe da recusa aos novos padrões desumani
"Afora a União Européia, os blocos regionais têm
zantes.
como meta essencial facilitar o comércio entre um
Globalização, blocos, as gentes
grupo de empresas privilegiadas. E no caso do
Ao participar do lançamento da Enciclopédia do mundo contemporâneo (co-edição da Editora Ter ceiro Milênio com a Publifolha), no ano passado, em São Paulo, Milton Santos reafirmou: "Creio fir memente que a globalização que aí está não é para durar. Caberá ao Terceiro Mundo um papel decisivo, não ao Primeiro Mundo. O maior desafio da América Latina é espanar a dependência inte lectual." Naquela entrevista a cadernos, o pensador volta va as vistas também para os blocos econômicos:
Mercosul e da América Latina, a idéia de cidadania é praticamente desconhecida. Desse modo, a for ma como se desenvolvem atualmente os blocos econômicos regionais favorece a expansão e o fortalecimento do chamado mercado global e não a criação e fortalecimento de uma comunidade humana universal". In http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
118
Milton Santos
MINHAS LEMBRANÇAS DE MILTON SANTOS
Sebastião Nery
BRASÍLIA - Na madrugada de 31 de março para
nos encontramos trabalhando ambos em "A Tar
1º de abril de 64, o ex-capitão do Exército Victor
de" e na CPE (Comissão de Planejamento Econô
Hugo, reformado por "insanidade mental" mas en
mico), precursora da Sudene, criada por Romulo
carregado de "missões especiais" no golpe, na
Almeida para pensar e construir a moderna Bahia.
Bahia, de arma em punho e aos berros, invadiu o
Em 60, Jânio Quadros o conheceu na viagem a
10º andar do edifício Napoli, bem em frente ao fa rol da Barra, em Salvador, para prender os mora dores de seus quatro apartamentos:
Cuba e, eleito, nomeou sub-chefe da Casa Civil na Bahia. Continuou fazendo pesquisas e livros ("Lo calização Industrial", "A Cidade como Centro de
O professor da Universidade Federal da Bahia e
Região" e outros). Em 63, no governo Lomanto
editorialista de "A Tarde", Milton Santos, o colu
Junior, presidiu a CPE.
nista social dos "Diarios Associados" Silvio Lame
Solto por Braudel
nha, o jornalista de "A Tarde" (depois diretor da Norberto Odebrecht em Brasília) Guilherme Si mões, e eu, jornalista e deputado. Guilherme estava em Porto Alegre, eu tinha ido para o Comício de 13 de março no Rio e ficado lá, dentro da crise das duas últimas semanas do go verno de João Goulart, e passei a madrugada na Radio Mayrink Veiga. O capitão maluco levou pre sos Milton Santos e Silvio Lamenha. Quando voltei do Rio, de caminhão, para tentar reassumir o mandato, já estava cassado e reencontrei o Mil ton, sereno, sorridente e sábio, na prisão. Um negro surpreende a Bahia Em 64, Milton Santos já era mito e símbolo, na nossa Bahia tão disfarçadamente racista. Negro (e não mulato, como a maioria dos baianos), des cendente de escravos, desde cedo surpreendeu a preconceituosa província. Nós o chamávamos de Noite Ilustrada, porque falava francês como um gaulês.
No "Globo", o Emir Sader diz que "Lomanto Juni or, seu colega de juventude, foi preso (sic) com ele". Nada disso. Lomanto, governador do PTB, aderiu ao golpe logo na madrugada e Milton foi para a cadeia sozinho. A "Folha" diz que, "preso 60 dias em Salvador, só foi libertado porque sofreu um princípio de infar to". Errado também. Passou mal lá na prisão, mas não foi infarto. Foi solto porque professores e in telectuais franceses, seus colegas em Estrasbur go, acionaram o historiador francês Fernando Braudel, um dos fundadores e pioneiros da USP (Universidade de São Paulo). Cabelos brancos, rosto corado, incrivelmente jo vem para seus então 70 anos, o mestre Braudel me contou em 73, em Paris, em sua biblioteca imensa, com 4 mil volumes sobre o Brasil e a América Latina. Ensinou em São Paulo de 33 a 37, onde foi colega de Levi Strauss, Caio Prado Junior e outros, "Gosto muito do mundo de vocês. Quan
Formado em Direito em 48, na UFBA, fez-se logo
do Caio Prado foi preso, em 64, passei um tele
professor, em Ilhéus e depois em Salvador, e co
grama ao presidente Castelo Branco e ele me te
meçou a publicar seus livros, que surpreenderam
legrafou dizendo que tinha mandado soltar o Caio
os geógrafos brasileiros, pela originalidade e au
Prado.
dácia: "O Povoamento da Bahia" (48), "O Futuro
O Castelo foi adido militar aqui na França. Quando
da Geografia" (53), "Zona do Cacau" (55) e ou tros.
vinha a Paris, me procurava. Em 48, estive no Brasil e ele me convidou para fazer uma conferên
Em 58, já voltava da Universidade de Estrasbur
cia na Escola Superior de Guerra, sobre Napoleão.
go, na França, com o doutorado em Geografia. E
Mostrei documentos provando que um dos objeti
Milton Santos
119
vos do programa da Revolução Pernambucana de
A imprensa refletiu bem a grande perda que foi a
1817, a Confederação do Equador, era libertar
morte de Milton Santos. Exilado, passou de 64 a
Napoleão prisioneiro em Santa Helena. Vocês bra
77 ensinando na França, Estados Unidos, Canadá,
sileiros são uns românticos. Nem barco tinham e
Peru, Venezuela, Tânzania. Escrevendo e lutando
queriam soltar Napoleão em pleno mar".
por suas idéias.
E contou que, através da embaixada francesa no
Foi o único brasileiro e receber um "prêmio
Brasil, encaminhou ao governo brasileiro um pedi
Nobel", o Vautrin Lud, que é como um Nobel de
do de professores franceses para soltar "um geó
Geografia. Ainda bem que a "Record", editora de
grafo ilustre lá da Bahia, doutor de estrasburgo".
seus magistrais "Por Uma Outra Globalização" e
Era Milton Santos. Na saída deu, a mim e à minha
"Território e Sociedade no Século XXI", vai reedi
mulher, aluna dele, um livro sobre seus 70 anos e
tar toda sua obra. Um grande homem.
disse, "Nada disso tem importância. A única im
In
portância é ser feliz" (Tudo isso está em meu livro "Socialismo com Liberdade", de 74). O nosso único Nobel
http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
120
Milton Santos
MILTON SANTOS: O SILÊNCIO SEM GEOGRAFIA Marilene Felinto (26 - 06 - 2001) A morte do geógrafo Milton Santos, 75, que fale ceu domingo em São Paulo, não deixou um vazio apenas na cena intelectual do país: deixou um va zio bastante físico também. Sobretudo é impor tante que Santos tenha sido um homem negro, nordestino, descendente de escravos, que supe rou o destino de discriminação racial, social e de idéias que lhe estaria reservado nesta terra ingra ta chamada Brasil. Sobretudo é importante que ele tenha resistido ao bom-mocismo demagogo da elite econômica branca, dos partidos políticos e das condutas equivocadas do debate étnico-racial no país. Com seu ideário humanitário e original é que o profes sor se propunha ao apoio dos verdadeiros neces sitados sociais. Sua morte deixa mais pobre a crítica a esta era de neoliberalismo dilapidador -"tirania do dinheiro e da informação está na base do atual desarranjo do capitalismo global", dizia ele. E deixa mais de samparados os sem-economia, os sem-geografia: os sem-terra, os sem-teto, os negros, os índios, a horda de pobres que perambulam do território das secas, no norte, às favelas do sul, vítimas da globalização que ele chamava de "uma fábrica de perversidades". Não conheci o professor Milton Santos na intimi dade, admirava-o de longe, como quem admira um livro que leu na adolescência e foi marcado por ele. Não tive a sorte de ter sido aluna sua. Descobri-o mais tarde, quando já tinha saído da Universidade de São Paulo, onde ele foi professor emérito de geografia e eu, aluna de graduação e pós-gradua ção em letras. De todas as poucas ocasiões em que tive o prazer de conversar com ele, saí com a sensação boa de quem aguardaria, sem ansiedade, reler um dia aquele precioso livro da adolescência, guardado ao alcance dos olhos na estante -conversar mais, conhecê-lo melhor-, adiando a experiência de pro pósito, só para desfrutá-la no momento certo.
Mas como a gente se esquece de que não há mo mentos ideais, não deu tempo. A última vez que vi pessoalmente o professor foi assistindo a uma palestra sua na Folha sobre a ocupação do territó rio nacional. O corpo já debilitado pela doença re sistia no espírito lúcido, na inteligência genial. A um jovem negro que se levantou na platéia e lhe perguntou, em tom militante, o que fazer con tra a discriminação que "nós, os negros, sofremos nesta sociedade" e blablablá, Milton Santos res pondeu sábio e duro, mas com toda a delicadeza que lhe era peculiar: estude, trabalhe, busque o seu caminho; nós, negros, precisamos parar de apenas nos lamentar (não me lembro das pala vras exatas). Houve outras lições que aprendi assim, num áti mo, mas o espaço aqui é curto para contar. A últi ma vez que falei com o professor foi por telefone, no início deste ano, para agradecer sua interfe rência pessoal a meu favor num caso jurídico. O agradecimento não disse, entretanto, tudo o que eu gostaria de ter dito a esse homem que foi puro "pensamento vivido". Como afirmava Her mann Hesse, um dos meus autores preferidos na adolescência, "só o pensamento vivido tem valor". A vida de cada homem -Hesse completava- é um caminho para si mesmo, a tentativa de um cami nho, um esboço de via. "Nenhum homem chegou a ser completamente ele próprio. Uns não chegam nunca a ser homens, ficam em rã, lagarto ou for miga." Milton Santos foi um desses raros homens por inteiro. O território que se cale em respeito si lencioso. In http://geocities.yahoo.com.br/jorgematheus2002/ mst.html (acesso in 9/12/2002)
Milton Santos
121
Segunda-feira, 5 de junho de 2000
MILTON SANTOS UNE GEOGRAFIA E REFLEXÃO Professor emérito da USP afirma estar em excelente companhia na premiação HAROLDO CERAVOLO SEREZA Com Milton Santos, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), a geografia é tão humana que não quer ser uma ciência. É uma visão de mundo que tenta ser uma arte, mas que, para isso, tem de ser uma filosofia das técnicas. "É uma espécie de filosofia menor", ava lia. Assim, Santos acredita estar em excelente companhia entre os vence dores do Prêmio Multicultural 2000 Estadão Cultura: ao lado da filósofa Marilena Chauí e o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar. Além de rela cionar a produção de Marilena e de Gullar a sua geografia, diz que elas são duas pessoas de sua grande admiração. Segundo ele, são também nomes cuja forma de ver o mundo é próxima, em especial no momento da ação pública. "Foi o exercício do trabalho que conduziu os três a essa aproximação", diz. Aos 74 anos, Santos é considerado o mais importante geógrafo brasi leiro. Formado em Direito, em 1948, pela Universidade Federal da Bahia, doutorou-se em Geografia pela Universidade de Estrasburgo (França). Aliou o estudo do território com o da economia, da antropologia, da po lítica e do desenvolvimento urbano, reforçando o papel da reflexão na construção de sua geografia. Viveu por 13 anos no exterior, de 1964 a 1977, em um "exílio voluntário", provocado pelo regime militar. Deu aulas, nesse período, na França, no Canadá e na Venezuela, além de passar pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e pela Uni versidade de Columbia, ambos nos Estados Unidos, e pela Tanzânia. Teoria - Segundo o próprio Santos, foi esse afastamento do País e, por conseqüência, do seu mais caro objeto concreto de trabalho que ampli ou o seu interesse pelas questões teóricas e epistemológicas. Entre os prêmios que já recebeu, está o Vautrin Lud (1994), o mais importante da geografia mundial, uma espécie de Nobel da área. Em toda a sua carreira, publicou mais de 40 livros e 300 artigos, em português, fran cês, inglês e espanhol. Atualmente, Santos prepara um livro sobre Salvador. No trabalho, cujo projeto pretende concluir "em breve", reunirá o resultado das pesqui sas que fez durante a juventude sobre a capital de seu Estado natal (como O Centro da Cidade de Salvador), com as mais recentes refle xões sobre a cidade. Discutir o significado das cidades, aliás, é um dos temas preferidos de Santos. Nascido na pequena Brotas de Macaúba, no interior baiano, acha que os grandes centros não são os responsáveis pela deterioração da experiência humana. A civilização que adotamos, sim, é que provo
122
Milton Santos
caria essa degradação. "Os grandes centros despontam como acelerador da produção, do con sumo; assim, se a população brasileira não fosse tão aglomerada, o acesso à produção e ao consumo seria menor", afirma. Solidão - Apesar do reconhecimento que sua obra obteve, Santos res salta que a lógica da vida acadêmica não é a mesma da vida mundana. O trabalho do intelectual, defende, realiza-se por meio da solidão. "É importante dizer isso aos jovens: a vida acadêmica é feita tanto de êxitos quanto de dificuldades. Elas podem ser silenciosas, mas são sempre significativas. É um equívoco não computar as derrotas como degraus alcançados. É preciso tirar partido delas." A aprovação pública tem um outro papel: o de evitar que o intelectual se torne uma pessoa amargurada por essa solidão, diz ele. "Recebo com orgulho e humildade, sem a qual o trabalho acadêmico não progri de." O futuro da universidade é uma das preocupações de Santos, que vê a instituição sendo "chamada" a atuar como porta-voz da globalização. "A universidade merece ser tomada a sério", afirma o autor de Por uma Outra Globalização (Record). "Hoje, há um enorme descuido em rela ção a seu papel. Corremos o risco de ficar com a palavra, mas sem a coisa", acredita. Parte dessa crise credita à pressão que a rotina exerce também sobre a vida acadêmica. "Ela não permite ver isso", diz, ao comentar a greve de professores das universidades públicas estaduais. Segundo ele, as greves têm sido os momentos de sistematização de uma visão crítica sobre os problemas por que passa a academia, além de alertar a socie dade para a crise da instituição. Santos defende o ensino público como indispensável para assegurar a possibilidade de pensar - e de dizer - livremente, diante da globaliza ção. Se o ensino ficar atrelado à técnica e ao mercado, argumenta, reforça rá a subserviência. A ciência, crê, também está atualmente cada vez mais atrelada ao mercado e à técnica, e seus objetivos estão, portanto, cada vez mais estreitos. O geógrafo critica a redução, em termos proporcionais, do número de vagas em universidades públicas, se comparado com o das escolas privadas. Para Santos, são os pobres os principais atores soci ais do País. Sobretudo os pobres urbanos, que não têm o conforto da rotina do cotidiano e não têm emprego, mas são obrigados a descobrir formas de trabalho todos os dias.
Milton Santos
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MILTON SANTOS MORRE DE CÂNCER AOS 75 Origem do texto: Folha de São Paulo - Da Reportagem Local - Editoria: BRASIL Página: A6 - Edição: São Paulo Jun 25, 2001 Geógrafo convivia com a doença havia sete anos; enterro contou com a presença da prefeita Marta Suplicy O corpo do geógrafo Milton Santos foi sepultado às 16h de ontem no cemitério da Paz (zona sul de São Paulo), na presença de cerca de 150 pessoas. Professor emérito da USP (Universidade de São Paulo) e um dos mais renomados intelectuais do país, Santos morreu às 3h10 de domingo, no Hos pital do Servidor Público Estadual, Vila Clementina (zona sul). Santos, que tinha 75 anos, sofria de um câncer de próstata diagnosticado havia sete anos. Sua mor te foi atribuída a uma insuficiência respiratória provocada por carcinomatose, quando o câncer já atinge vários órgãos. Apesar do diagnóstico da doença, Santos manteve um ritmo de trabalho intenso nos últimos anos. Continuou dando aulas na USP até o ano passado, quando lançou dois novos livros. Reclamava de dores aos amigos, mas dizia que deixar o trabalho seria uma "concessão à doença". Continuou a freqüentar a universidade até março e pretendia escrever um novo livro sobre o urba nismo de Salvador, tema de sua tese de doutora do nos anos 60, durante exílio na França. No último dia 16, Santos recebeu em casa a ami ga e discípula Maria Adélia, professora da Uni camp (Universidade Estadual de Campinas). "Ele me disse: vamos continuar. Era uma despedida". No domingo retrasado Santos teve seu estado de saúde agravado. Foi internado na quarta-feira, dia 20, já com um quadro bastante crítico. A doença tinha atingido os ossos e a medula óssea, o que provocava dores intensas que não cessavam nem com analgésicos. Na noite da quinta-feira, diante do quadro termi nal, a família e os médicos decidiram sedá-lo, de forma a evitar mais sofrimentos. Santos se despediu da mulher, Marie-Hélène, do filho, Rafael, e de alguns poucos amigos antes de ser sedado. Segundo os médicos, Milton Santos permaneceu no leito número 8, da hematologia,
no 13º andar do Hospital do Servidor, sem a aju da de aparelhos. De acordo com Rafael Santos, que estava a seu lado na madrugada de ontem, seu pai teve "uma morte tranqüila". O enterro reuniu ex-alunos, colegas e amigos. Professores das universidades federais da Bahia, Ceará, Santa Catarina e Rio de Janeiro viajaram para o enterro. A prefeita de São Paulo, Marta Su plicy, que havia convidado Santos a organizar um grupo de estudos sobre o impacto da globalização nos centros urbanos, também compareceu. Esta va acompanhada do ex-marido e senador, Eduar do Suplicy (PT-SP). O corpo de Santos foi velado em cerimônia reser vada. O presidente Fernando Henrique Cardoso enviou nota à família, mas decidiu não se mani festar publicamente.
FRASES 25/06/2001 – Folha de São Paulo - Editoria: BRA SIL Página: A6
"O fato de eu ser negro e a exclusão correspon dente acabam por me conduzir à condição de per manente vigília" "Não sou militante de coisa nenhuma. Essa idéia de intelectual, apreendida com Sartre, de uma in dependência total, distanciou-me de toda a forma de militância" "A cultura oficial brasileira (...) nutriu-se de uma visão vesga do mundo." "Havia um autoritarismo explícito que convocava à oposição da inteligência, mas hoje há um auto ritarismo encapuzado, mais eficaz, porque nasce niilista e termina niilista" "O debate atual do Brasil é esse: não dá para dar as costas à globalização, só que ela está sendo descrita de maneira incorreta"
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MILTON SANTOS - depoimento à revista Adusp, nº 17
REPERCUSSÃO 25/06/2001 – Folha de São Paulo - Editoria: BRA SIL Página: A6 MARTA SUPLICY, prefeita de São Paulo: "São Paulo perde um colaborador que organizava um grupo para pensar o impacto da globalização nos grandes centros urbanos, mas o Brasil perde mui to mais. Perde um dos seus grandes pensadores, alguém que não tinha o medo de pensar o novo, uma pessoa como Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro". ANTONIO CANDIDO, crítico literário, professor emérito da USP: "A morte de Milton Santos é uma perda irreparável. Ele representava nas ciências humanas o que se pode chamar de ala combaten te. O que foi Florestan Fernandes na sociologia, ele foi na geografia humana. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a uma cons ciência social desenvolvida e profundamente ar raigada nos problemas do Brasil. Era um cientista de vanguarda e um grande cidadão". CELSO FURTADO, economista e ex-ministro do Planejamento (63-64) de João Goulart: "Conheci o Milton na Europa, no exílio, depois do golpe de 64. Era uma pessoa modesta, muito simples, e só aos poucos fui percebendo a grandeza de seu pensamento. Não era apenas um cientista social, era um homem de pensamento muito rico e abrangente. Nunca tinha visto um geógrafo com tamanha amplidão de vista e percepção dos pro blemas maiores da sociedade". MARCO AURÉLIO GARCIA, secretário da Cultu ra de São Paulo: "O país perde um de seus últi mos intelectuais com visão abrangente e profunda do Brasil. A inteligência sofreu um golpe. Mas as idéias e o exemplo de Milton perdurarão''. PAULO SÉRGIO PINHEIRO, coordenador do Nú cleo de Estudos da Violência da USP: "Conheci o Milton em setembro de 1967, em Paris, na casa de Celso Furtado. Era um mestre e um grande hu manista. Foi um dos maiores geógrafos do século 20. Para a USP e a cultura brasileira, é uma perda chocante''.
Milton Santos
CARLOS LESSA, economista, professor da Uni versidade Federal do Rio de Janeiro: "O Milton era uma figura de proa do país. Ele está para a geo grafia moderna no mesmo nível que o Fernand Braudel [historiador francês] está para a história. Era um intelectual engajado nas causas sociais e democráticas". MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, economista, professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro: "Milton Santos morreu? Ai, mas que má notícia você me deu agora. É uma mágoa ter rível. Eu queria muito bem a ele. Ia deitar para dormir um pouco, mas agora não vou mais conse guir. Eu o prezava muito. É só o que tenho condi ções de dizer agora".
Geógrafo publicou mais de 40 livros e rece beu 20 títulos 'honoris causa' 25/06/2001 – Folha de São Paulo - Origem do texto: Do Banco de Dados - Editoria: BRASIL Pá gina: A6
Um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil, o geógrafo Milton Santos, 75, recebeu 20 títulos "honoris causa" pelo mundo. Foi o único pesquisa dor fora do mundo anglo-saxão a receber, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, o "Prêmio Nobel" da geografia. Publicou mais de 40 livros (veja quadro ao lado) e 300 artigos. Foi consultor da OIT (Organização In ternacional do Trabalho), OEA (Organização dos Estados Americanos) e Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Conciliava seu trabalho acadêmico com a partici pação na Comissão de Justiça e Paz da Arquidio cese de São Paulo, da qual fazia parte desde 91, e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urba no. Escrevia regularmente na seção "Brasil 501 d.C." do Mais!. Milton de Almeida Santos nasceu a 3 de maio de 1926, em Brotas de Macaúba, na Chapada Dia mantina (BA). Filho de professores primários, aprendeu a ler e a escrever aos cinco anos. Só foi matriculado num ginásio aos dez anos _o Instituto Baiano de Ensino, em Salvador. Aos 15 anos, de dicava suas horas de folga a ensinar colegas me nores do colégio.
Milton Santos
Descendente de escravos emancipados antes da Abolição, Santos chegou a pensar em cursar en genharia, mas desistiu quando o alertaram que havia resistência aos negros na Escola Politécnica. Isso não impediu que enfrentasse várias manifes tações de racismo. Durante a fundação da Associ ação dos Estudantes Secundários da Bahia, da qual Milton Santos participou ativamente, foi con vencido a não se candidatar ao cargo de presiden te: seus colegas argumentaram que, como ele era negro, não seria capaz de conversar com as auto ridades. Terminado o ginásio, Milton seguiu para a Univer sidade Federal da Bahia, onde formou-se em di reito, em 1948. Dez anos depois, Milton Santos tornou-se doutor em geografia, pela Universidade de Estrasburgo (França). Milton Santos também atuou como jornalista, ten do acompanhado Jânio Quadros numa viagem a Cuba, em 1960, época em que já era um geógra fo conhecido em seu Estado. Tornou-se amigo e profundo admirador de Jânio, chegando a ser sub
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chefe da Casa Civil e representante do governo federal em seu Estado. Mas se decepcionou com a renúncia, em 61. Em 1964, presidiu a Comissão Estadual de Plane jamento Econômico, órgão do governo baiano. Durante sua permanência na comissão, Milton Santos foi autor de propostas polêmicas, como a de criar um imposto sobre fortunas. No regime militar, Milton Santos combinava as atividades de redator do jornal "A Tarde", de Sal vador, e a de professor universitário, defendendo posições nacionalistas. Acabou sendo demitido da Universidade Federal da Bahia e passou 60 dias preso em Salvador. Só foi libertado porque sofreu um princípio de infarto. Aconselhado por amigos, aceitou convite para le cionar no exterior. Foi professor das universidades de Toulouse, Bordeaux e Paris (França); Toronto (Canadá); Lima (Peru); Dar Assalaam (Tanzânia; Columbia (EUA); Central de Venezuela e Zulia (Venezuela). Voltou definitivamente ao Brasil em 1977, para lecionar na USP.
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Milton Santos
LIVROS E TÍTULOS 'HONORIS CAUSA' por Folha de São Paulo Fonte: http://www.uol.com.br/fsp 25/06/2001 - Origem do texto: Do Banco de Dados - Editoria: BRASIL Página: A6
Um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil, o
negro, não seria capaz de conversar com as auto
geógrafo Milton Santos, 75, recebeu 20 títulos
ridades.
"honoris causa" pelo mundo. Foi o único pesquisa
Terminado o ginásio, Milton seguiu para a Univer
dor fora do mundo anglo-saxão a receber, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, o "Prêmio Nobel" da geografia. Publicou mais de 40 livros (veja quadro ao lado) e 300 artigos. Foi consultor da OIT (Or ganização Internacional do Trabalho), OEA (Orga nização dos Estados Americanos) e Unesco (Orga nização das Nações Unidas para Educação, Ciên cia e Cultura). Conciliava seu trabalho acadêmico com a partici pação na Comissão de Justiça e Paz da Arquidio cese de São Paulo, da qual fazia parte desde 91, e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urba no. Escrevia regularmente na seção "Brasil 501 d.C." do Mais!. Milton de Almeida Santos nasceu a 3 de maio de 1926, em Brotas de Macaúba, na Chapada Diamantina (BA). Filho de professores primários, aprendeu a ler e a escrever aos cinco anos. Só foi matriculado num ginásio aos dez
sidade Federal da Bahia, onde formou-se em di reito, em 1948. Dez anos depois, Milton Santos tornou-se doutor em geografia, pela Universidade de Estrasburgo (França). Milton Santos também atuou como jornalista, tendo acompanhado Jânio Quadros numa viagem a Cuba, em 1960, época em que já era um geógrafo conhecido em seu Es tado. Tornou-se amigo e profundo admirador de Jânio, chegando a ser subchefe da Casa Civil e represen tante do governo federal em seu Estado. Mas se decepcionou com a renúncia, em 61. Em 1964, presidiu a Comissão Estadual de Plane jamento Econômico, órgão do governo baiano. Durante sua permanência na comissão, Milton Santos foi autor de propostas polêmicas, como a de criar um imposto sobre fortunas.
anos _o Instituto Baiano de Ensino, em Salvador.
No regime militar, Milton Santos combinava as
Aos 15 anos, dedicava suas horas de folga a ensi
atividades de redator do jornal "A Tarde", de Sal
nar colegas menores do colégio.
vador, e a de professor universitário, defendendo
Descendente de escravos emancipados antes da Abolição, Santos chegou a pensar em cursar en genharia, mas desistiu quando o alertaram que havia resistência aos negros na Escola Politécnica. Isso não impediu que enfrentasse várias manifes tações de racismo. Durante a fundação da Associ ação dos Estudantes Secundários da Bahia, da qual Milton Santos participou ativamente, foi con vencido a não se candidatar ao cargo de presiden te: seus colegas argumentaram que, como ele era
posições nacionalistas. Acabou sendo demitido da Universidade Federal da Bahia e passou 60 dias preso em Salvador. Só foi libertado porque sofreu um princípio de infarto. Aconselhado por amigos, aceitou convite para le cionar no exterior. Foi professor das universidades de Toulouse, Bordeaux e Paris (França); Toronto (Canadá); Lima (Peru); Dar Assalaam (Tanzânia; Columbia (EUA); Central de Venezuela e Zulia (Venezuela). Voltou definitivamente ao Brasil em 1977, para lecionar na USP.
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Livros de Milton Santos 25/06/2001 Editoria: BRASIL Página: A6 Edição: São Paulo Jun 25, 2001
1. O povoamento da Bahia: suas causas econômicas (Salvador, 1948)
20. Por uma geografia nova (São Paulo, 1978)
2. Estudos sobre geografia (Salvador, 1953) 3. Os estudos regionais e o futuro da geo grafia (Salvador, 1953)
21. O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (São Paulo, 1978) 22. Pobreza urbana (São Paulo, 1978)
4. Zona do cacau, introdução ao estudo geo gráfico (Salvador, 1955) 5. Estudos de geografia da Bahia (Salvador, 1958) 6. Localização industrial (Salvador, 1958) 7. A cidade como centro de região (Salvador, 1959)
23. O espaço dividido (Rio, 1978) 24. Economia espacial: críticas e alternativas (São Paulo, 1978) 25. The Shared Space: the Two Circuits of the Urban Economy and its Spatial Repercus sions (Londres, 1979) 26. Espaço e sociedade (Petrópolis, 1979)
8. Marianne em preto e branco _ Viagens (Salvador, 1960) 9. A rede urbana do Recôncavo (Salvador, 1959) 10. O centro da cidade de Salvador (Salvador, 1959) 11. A cidade nos países subdesenvolvidos (Rio, 1965) 12. Croissance démographique et consomma tion
19. L'espace partagé (Paris, 1975)
alimentaire
dans
les
pays
sous
développés (Paris, 1967) 13. Aspects de la géographie et de l'économie
27. A urbanização desigual (Petrópolis, 1980) 28. Manual de geografia urbana (São Paulo, 1981) 29. Pensando o espaço do homem (São Paulo, 1982) 30. Ensaios sobre a urbanização latino-ameri cana (São Paulo, 1982) 31. Pour
une
géographie
nouvelle
(Paris,
1985) 32. Espaço e método (São Paulo, 1985) 33. Espacio y método (Barcelona, 1986)
urbaine des pays sous-développés (Paris,
34. O espaço do cidadão (São Paulo, 1987)
1969)
35. Metamorfoses do espaço habitado (São
14. Dix essais sur les villes des pays-sousdéveloppés (Paris, 1970) 15. Le métier du géographe en pays sousdéveloppés (Paris, 1971) 16. Les villes du Tiers Monde (Paris, 1971) 17. Geografía y economía urbanas en los paí ses subdesarrolados (Barcelona, 1973) 18. Underdevelopment and Poverty: a Geog rapher's view (Toronto, 1975)
Paulo, 1988) 36. Novos rumos da geografia brasileira (São Paulo, 1988) 37. Por una geografía nueva (Madri, 1990) 38. Metrópole
corporativa
fragmentada:
o
caso de São Paulo (São Paulo, 1990) 39. Espace et méthode (Paris, 1990) 40. A
urbanização
1993)
brasileira
(São
Paulo,
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Milton Santos
41. Por uma economia política da cidade (São Paulo, 1994) 42. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional (São Paulo, 1994) 43. De la totalidad al lugar (Barcelona, 1996) 44. Metamorfosis del espacio habitado (Barce lona, 1996) 45. A natureza do espaço (São Paulo, 1996)
46. Metamorfoses do Espaço Habitado (São Paulo, 1996) 47. Fim de século e globalização (São Paulo, 1997) 48. Pensando o espaço do homem (São Paulo, 1997) 49. Por uma outra Globalização (Rio, 2000) 50. Território e sociedade (São Paulo, 2000) 51. Brasil: Território e Sociedade no Início do século 21 (Rio, 2001)
Milton Santos
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UM FILÓSOFO DA GEOGRAFIA 25/06/2001 -Autor: AZIZ AB'SABER - Origem do texto: Especial para a Folha Editoria: BRASIL Página: A6 - Edição: São Paulo Jun 25, 2001
Milton Santos foi um filósofo da geografia. Foi um
carreira internacional, recebendo o espaço que
intelectual comprometido com a sociedade e com
havia sido negado no Brasil.
os excluídos. Um cidadão que reuniu o conheci
Uma vez, Milton nos disse que inspirava o seu
mento do mundo do seu tempo para pensar as necessidades do Brasil.
comportamento no ideário de Jean-Paul Sartre: o intelectual tem conservar toda a independência
Eu digo isso com sinceridade porque o conheci
imaginável.
quando ele veio da Bahia como advogado e pro
Milton foi assim. A sua militância não era a da po
fessor secundário de geografia. Tivemos uma lon ga
convivência.
Ele fez toda a sua trajetória dentro das universi dades. Primeiro, na PUC de Salvador, depois na Universidade Federal da Bahia e, depois de 1964, no exílio. Vivendo em condições sofridas, Milton se retirou para a França. Lá, ele teve a idéia de buscar um estudo seu so bre o centro urbano de Salvador e transformá-lo em uma tese de altíssimo nível. Aí começou a sua
litica partidária, mas no campo das idéias. Por isso, ele se diferenciou dos demais. Tinha uma energia permanente e se desdobrava em brigas do cotidiano pelas idéias originais. AZIZ NACIB AB'SABER, 76, geógrafo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciênci as Humanas da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.
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Milton Santos
GEOGRAFIA MORAL Cristovam Buarque in http://aprendiz.com.br (acesso20/01/2003) A imprensa costuma apresentar epitáfios de políti
Segundo, o da ética da alienação. Os indiferentes
cos, artistas, atletas, raramente de geógrafos. Na
que não percebem a tragédia do mundo em que
semana passada isso mudou: o Brasil inteiro la
vivem, não defendem a civilização da destruição
mentou a morte de Milton Santos, um homem co
ecológica e da construção da apartação, mas a
nhecido apenas como geógrafo.
tudo assistem alheios, beneficiando-se da moder
Milton Santos conseguiu mostrar a beleza de uma
nidade excludente, sem respeito aos excluídos
ciência que não apenas descreve os fenômenos do
nem à vida no planeta.
relevo da Terra: mas que opta moralmente pela
Terceiro, o continente da ética dos acomodados.
maneira como os homens transformam a Terra.
Aqueles que percebem o desastre para onde ca
Milton Santos fez uma geografia total, da qual os
minhamos, não concordam com esse rumo, até
seres humanos fazem parte e fez uma escolha
denunciam o risco do trágico e vergonhoso mundo
moral sobre o propósito das mudanças que os ho
que se avizinha, mas nada fazem no dia-a-dia
mens provocam. Com isso ele se fez parte da pró
para mudar esse destino trágico da civilização.
pria geografia viva e tentou influenciar os rumos
Não são indiferentes, são acomodados.
da evolução dessa geografia. Esse foi o seu pri
Quarto, o da ética da espera. A que norteia aque
meiro grande mérito.
les que não ficam indiferentes, que estão contra o
O segundo foi sua opção por um mundo onde as
desastre em marcha da globalização excludente,
mudanças servissem a todos, onde a globalização
mas assumem a posição da espera do dia em que
não destruísse nações, onde todas as raças fos
o capital internacional vai fazer todos os seres hu
sem consideradas sem preconceitos mútuos, onde
manos ricos, ou daqueles que em nome de uma
a vida na Terra fosse maior do que a vida dos ho
revolução imprevisível, esquecem a necessidade
mens, levando em conta todo o processo ecológi
de agir imediatamente para erradicar a pobreza e
co.
proteger o meio ambiente. É a ética da mentira
Nesse exercício de uma geografia viva e com um
dos que prometem o mundo radiante que não virá
propósito, Milton Santos nos provocou a construir, como homenagem a ele, uma geografia moral do
pelo capitalismo global, ou da mentira de que vale a pena morrer hoje na pobreza em nome de uma
mundo moderno e global. Onde pelo menos cinco
revolução anti-capitalista no futuro.
continentes morais aparecem.
Finalmente o quinto, que é o da ética dos militan
Primeiro, o continente da moral neoliberal. Dos
tes, que agem, participam do mundo querendo
indecentes que comemoram a riqueza econômica do século XXI, sabendo que ela ocorre ao mesmo tempo que aumenta a brecha social entre ricos e pobres, provocando uma desigualdade que dentro de alguns anos se transformará em dessemelhan ça. A ética daqueles que defendem este como o caminho brilhante para a humanidade. A ética da destruição ecológica e da ruptura da espécie hu
fazê-lo melhor e mais belo, desde já. Aqueles descontentes com o rumo das coisas, crentes em uma alternativa de civilização e ativos na procura de impedir o desastre e reorientar as energias do mundo para fazê-lo diferente. Sobretudo, aqueles que agem desde já na luta pela abolição da po breza e na proteção do meio ambiente. Sem es perar para o dia de amanhã. Usando os recursos
mana entre os modernos e os excluídos. Uma éti
de que o Brasil já dispõe.
ca sem solidariedade entre os seres humanos no
Milton Santos fazia parte deste último continente
mundo de hoje, nem entre os vivos de hoje com
da geografia moral de nossos tempos.
as futuras gerações.
Milton Santos
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Por isso ele vai fazer muita falta no cenário nacio
levar adiante o seu brado contra a insensatez do
nal dos próximos anos. Sua voz que nos alertava,
processo civilizatório atual. Seria um grande ser
que denunciava, usando a cortante lucidez de
viço o Correio republicar muitos de seus artigos.
suas críticas será substituída por um silêncio in
Como se ainda estivesse tão vivo quanto estão
quietante, silêncio em ouvidos órfãos. Nesta pági
suas idéias e pensamentos, naquilo que escreveu
na do Correio Braziliense ele deixa um vazio. Por
e ensinou.
isso, a melhor homenagem que podemos fazer é
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Milton Santos
O TEMPO, NO ESPELHO DO ESPAÇO (MUNDO) A aventura geográfica de Milton Santos conduziuo da cidade ao território. Sua herança teórica é um ra dar, capaz de desvendar as estruturas sócioespaciais da nossa época
Milton Santos, o mais influente geógrafo brasilei
de serviços de tipo familiar, realizadas pratica
ro, faleceu em junho, aos 75 anos, depois de lon
mente sem capital. Na época e que a obra foi es
ga luta contra o câncer. Produziu até o fim. Nos
crita, o pensamento econômico e social ainda en
últimos anos, dedicouse inteiramente a completar
contravase preso ao dualismo, ou seja, à contra
seu derradeiro projeto, a obra O Brasil: território
posição do “moderno” ao “tradicional”. Milton
e sociedade no início do século XXI (Rio de Janei
Santos não caiu na armadilha. Mostrou que os
ro, Record, 2001), resenhada na edição de maio
dois circuitos são frutos da modernização econô
de Mundo. Não é nenhum exagero afirmar que
mica e que participam, como pólos opostos e
seu trabalho, vasto e profundo, continuará por
complementares, de um único sistema de merca
muito tempo a inspirar a reflexão geográfica. Nas
do. Nesse sistema, o circuito inferior orbita em
cido em Brotas de Macaúbas, na Chapada Dia
torno do superior e proporciona os meios de vida
mantina, Bahia, Milton Santos graduouse em Di
para a vasta população pobre das metrópoles do
reito. Doutorouse em Geografia na França, na
Terceiro Mundo.
Universidade de Estrasburgo. Lecionou em univer
A crítica da modernização
sidades da Europa, África, América do Norte e América do Sul. Publicou mais de quarenta livros. De volta ao Brasil, tornouse professor no Departa mento de Geografia da USP. Ganhou o prêmio Vautrin Lud, algo como um Nobel na área da Geo grafia. A cidade foi o primeiro grande objeto de investigação de Milton Santos. Sua dedicação ao processo de urbanização e às estruturas espaciais e sociais das cidades representou, na década de 1960, uma dupla ruptura. De um lado, ruptura com a tradição geográfica dos estudos regionais, limitados pelo método descritivo. De outro, ruptu ra com a escola de Geografia quantitativa, que se desenvolvia nos Estados Unidos e funcionava como instrumento de apoio ao planejamento esta tal e aos investimentos empresariais. O geógrafo queria produzir um conhecimento crítico, um bis turi teórico afiado, através do qual fosse possível enxergar as vísceras da sociedade. A obra funda mental desse período é O espaço dividido, publi cada originalmente na França, em 1975. O seu foco é a caracterização dos “dois circuitos da eco nomia urbana dos países subdesenvolvidos”. O circuito superior abrange as instituições financei ras, a grande indústria, o comércio e os serviços organizados em bases empresariais. O circuito in ferior, as atividades manufatureiras, comerciais e
O espaço geográfico é tempo histórico coagulado. Esse conceito proporcionou a Milton Santos o ho lofote capaz de iluminar os fios da trama da geo grafia. A indústria e a agricultura modernas pou pam trabalho, não geram empregos suficientes para sustentar a população dos países subdesen volvidos. A massa de pobres, excluída do circuito superior e do consumo da maior parte dos bens e serviços gerados pelas tecnologias contemporâne as, é o alicerce sobre o qual se ergue o circuito in ferior. Da cidade, Milton Santos transferiu se para o território. Nesse trajeto, revisou os fundamen tos teóricos e o método da Geografia. Por uma Geografia nova, espaço e método e A natureza do espaço são os marcos do segundo período da vida do geógrafo. Os dois períodos estão, porém, uni dos por um cabo que entrelaça a crítica da mo dernização e a consciência do lugar do tempo na reflexão geográfica. A crítica da modernização tem como ponto de partida a análise da tecnolo gia. Mas a tecnologia não é interpretada como um mero conjunto de processos e equipamentos pro dutivos. A tecnologia é um produto da História, das sociedades e da cultura. Seu controle por em presas monopolistas, na moldura de uma econo mia que se globaliza, reproduz a desigualdade e a pobreza em escalas ampliadas. A perversidade da
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modernização está à espreita, atrás de cada onda
ou da qual ela participa: O enfoque geográfico su
de inovação tecnológica. Milton Santos jamais
põe a existência dos objetos como sistemas e não
perdeu de vista aquilo que distingue o trabalho do
apenas como coleções: sua utilidade atual, passa
geógrafo – a dimensão espacial dos fenômenos. O
da, ou futura vem, exatamente, do seu uso com
ponto de chegada da crítica da modernização foi
binado pelos grupos humanos que os criaram ou
um conceito de território que recupera o sentido
que os herdaram das gerações anteriores. Seu
da unidade da Geografia e incorpora o sistema
papel pode ser apenas simbólico, mas, geralmen
técnico: Os objetos que interessam à Geografia
te, é também funcional. (A natureza do espaço, p.
não são apenas objetos móveis, mas também
5960). •Em sua trajetória, Milton Santos ocupou
imóveis, tal uma cidade, uma barragem, uma es
parte do tempo com a crítica da tradição geográfi
trada de rodagem, um porto, uma floresta, uma
ca. Mas dedicou tempo e esforço maiores para er
plantação, um lago, uma montanha. (...) Esses
guer uma nova plataforma para a disciplina. Os
objetos geográficos são do domínio tanto do que
mais descuidados podem imaginar que se trata de
se chama a Geografia Física como do domínio do
uma plataforma universitária, destinada unica
que se chama a Geografia Humana e através da
mente à pesquisa geográfica sofisticada. Não é:
história desses objetos, isto é, da forma como
essa plataforma também funciona como base
oram produzidos e mudam, essa Geografia Física
para a renovação crítica da Geografia escolar.
e essa Geografia Humana se encontram. (A natu reza do espaço, p. 59). Não se deve confundir, como já se fez, a narrativa geográfica de Milton Santos co uma “história das técnicas”. Pois o sen tido da tecnologia está na sociedade que a criou
In: http://www.clubemundo.com.br (acesso20/01/2003)
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Milton Santos
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PARTE II
NO JORNAL
ARTIGOS PUBLICADOS FOLHA DE SÃO PAULO (1999-2001)
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OS DEFICIENTES CÍVICOS 24/01/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-8 1/9151 - Seção: BRASIL 500 D.C. Mundo do pragmatismo triunfante pode destruir o equilíbrio educacional entre a formação para uma vida plena e a formação para o trabalho
Em tempos de globalização, a discussão sobre os
vilização se confundiria com a busca, sempre re
objetivos da educação é fundamental para a defi
novada, e o encontro das formas práticas de atin
nição do modelo de país em que viverão as próxi
gir aqueles mencionados princípios fundamentais
mas gerações.
da educação, sempre a partir de uma visão filosó
Em cada sociedade, a educação deve ser concebi
fica e abrangente do mundo.
da para atender, ao mesmo tempo, ao interesse
Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos,
social e ao interesse dos indivíduos. É da combi
pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir
nação desses interesses que emergem os seus
como pilares centrais do sistema educacional: o
princípios fundamentais e são estes que devem
ensino universal (isto é, concebido para atingir a
nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as
todas as pessoas), igualitário (como garantia de
práticas pedagógicas e a relação da escola com a
que a educação contribua a eliminar desigualda
comunidade e com o mundo.
des), progressista (desencorajando preconceitos e
O interesse social se inspira no papel que a edu
assegurando uma visão de futuro). Daí, os postu
cação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na idéia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levan do o indivíduo a uma realização plena e a um en riquecimento permanente. Juntos, o interesse so cial e o interesse individual da educação devem
lados indispensáveis de um ensino público, gratui to e leigo (esta última palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas do mundo) e, dessa forma, uma es cola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de soli dariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às
também constituir a garantia de que a dinâmica
tentações da barbárie.
social não será excludente.
A globalização, como agora se manifesta em to
Em todos os casos a sociedade será sempre to
das as partes do planeta, funda-se em novos sis
mada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteú dos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios funda mentais permanecem intocados ao longo do tem po. Foi dessa forma que se deu a evolução da idéia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de con vivência civilizada, alicerçadas em uma solidarie dade social cada vez mais sofisticada. As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social-democracia. A história da ci
temas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a in dividualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, en quanto são outros os valores da nova ética, fun dada num discurso enganoso, mas avassalador. Em tais circunstâncias, a idéia de emulação é compulsoriamente substituída
pela
prática
da
competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo do
138
Milton Santos
pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do
de treinamento, a uma instrumentalização das
"salve-se quem puder", do "vale-tudo", justifica
pessoas, a um aprendizado que se exaure preco
dos pela busca apressada de resultados cada vez
cemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais
mais autocentrados, por meio de caminhos sem
das formas técnicas e organizacionais do trabalho
pre mais estreitos, levando ao amesquinhamento
exigidas por uma implacável competitividade.
dos objetivos, por meio da pobreza das metas e
Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a
da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexi dade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada. É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes exis tente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca do saber prático.
uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e à educação oferecida segundo dife rentes níveis de qualidade, situação em que a pri vatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos. É a própria realidade da globalização _tal como praticada atualmente_ que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram idéias so bre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da eco nomia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de
Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garan
adaptá-la para que se torne ainda mais instru
tia da renovação das possibilidades de existência
mental à aceleração do processo globalitário. O
de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao
debate deve ser retomado pela raiz, levando a
mesmo tempo em que se preparavam as pessoas
educação a reassumir aqueles princípios funda
para o mercado. Hoje, sob o pretexto de que é
mentais com que a civilização assegurou a sua
preciso formar os estudantes para obter um lugar
evolução nos últimos séculos _os ideais de univer
num mercado de trabalho afunilado, o saber prá
salidade, igualdade e progresso_, de modo que
tico tende a ocupar todo o espaço da escola, en
ela possa contribuir para a construção de uma
quanto o saber filosófico é considerado como resi
globalização mais humana, em vez de aceitarmos
dual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a
que a globalização perversa, tal como agora se
médio prazo, ameaça a democracia, a República,
verifica, comprometa o processo de formação das
a cidadania e a individualidade. Corremos o risco
novas gerações.
de ver o ensino reduzido a um simples processo
Milton Santos
139
O CHÃO CONTRA O CIFRÃO 28/02/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-3 2/9734 - Seção: BRASIL 500 D.C. Noção de território nacional desponta hoje como único limite à ação cega do mercado
O debate que atualmente comove o país é muito
O problema é esse. Enquanto o dinheiro, na sua
mais que uma queda-de-braço entre governos es
forma pura, busca se impor como um dado abso
taduais e governo federal. Também não pode se
luto,
limitar a uma discussão técnica para saber quem
misto_, o resultado de todas as relações entre a
deve arcar com o ônus das atuais dificuldades fi
existência dos homens e as suas bases físicas e
nanceiras da maioria dos 27 Estados e dos 5.507
sociais. Levando-se em conta o processo históri
municípios. O que está em jogo, na Federação, é
co, o território não pode ser considerado uma tá
o próprio sistema de relações em que se deveria
bula rasa, uma tela neutra, um espelho, porque é
fundar uma coexistência harmoniosa das ativida
indissociavelmente integrado a todas as pessoas,
des, das população e da administração.
empresas, instituições que o habitam, e assim di
A discussão sobre se há ou não crise institucional
namizado é, por sua vez, tornado atuante.
não se pode contentar com o argumento simplório
As soluções às possíveis derrapagens do funciona
de que as instituições, isto é, o Legislativo, os tri
mento do financeiro são buscadas no interior do
bunais e os governos, estão funcionando. O pro
próprio sistema, para substituir uma lógica con
blema é a qualidade desse funcionamento. Se Es
juntural por outra lógica conjuntural, considerada
tados e municípios tornam-se incapazes de bem
mais perfeita do que a precedente e legitimada
exercer o seu papel social e se a União, engessa
por um discurso repetitivo e ruidoso. No mundo
da por compromissos externos, apenas reconhece
atual, o despotismo do dinheiro está ligado a uma
esses compromissos, o resultado substantivo é
lógica auto-referida e auto-explicativa, uma espé
um empobrecimento institucional, que pode con
cie de cachorro dando voltas e mordendo o rabo,
duzir à ingovernabilidade e à deterioração dos la
razão pela qual busca remédio aos seus próprios
ços sociais.
tropeços mediante novas construções matemáti
Tudo isso tem que ver com a maneira como o país
cas. Sem dúvida, a ortodoxia do sistema financei
decidiu participar do processo de globalização. Erigido em dado supremo das vidas econômica, social, cultural e política do nosso tempo, o di nheiro funciona como motor e como ator, impon do sua lei e invadindo tudo. Ele se comporta como se fosse dotado de uma racionalidade pura, exer cendo-se, de modo inflexível, sobre as outras ra cionalidades. A questão está nas outras formas de vida: há, de um lado, a chamada economia real, com todas as produções, todos os consumos, todo o movimento das pessoas e das mercadorias, e, de outro lado, a prestação de serviços socialmente devidos às populações e o próprio exercício da cidadania. Es tes últimos são dependentes do fiel cumprimento
o
território
é
sempre
impuro
_porque
ro casa-se bem com os setores da economia igualmente tributários de lógicas quantitativas, que potencializam a sua inflexibilidade. Mas a pró pria economia abriga setores que estranham es ses rigores e envolvem a parcela maior da vida social e a prática existencial da maioria das pes soas. Por isso, quando tais lógicas são impostas a todas as situações, agudizam heterogeneidades e assimetrias e provocam fraturas e fragmentações. Quando o subsistema financeiro se apresenta como se fosse o sistema econômico e social todo inteiro, revela a sua cegueira quanto ao resto da sociedade e desestrutura, ao mesmo tempo, os demais subsistemas. É assim que, ruptura após ruptura, brutalidade após brutalidade, a uma crise
de suas obrigações, pelas diversas instâncias polí
sobrevém outra, sempre mais aguda.
tico-territoriais, a União, os Estados e os municí
O dinheiro em estado puro dá as costas à realida
pios.
de do ambiente em que se instala. Ele somente se
140
Milton Santos
preocupa com "outros dinheiros", cada pedaço
O território acaba sendo um limite à ação cega da
das finanças buscando se harmonizar com outro
finança, inclusive porque as suas crises e tremo
pedaço _câmbio, juros, taxa de inflação, a caterva
res facilitam uma tomada de consciência dos pro
dos déficits e outros símbolos contábeis_, mas
blemas nacionais, regionais e locais, sobretudo
não com os demais setores da vida social. Mas es
quando o discurso do dinheiro, brutal e reiterado,
tes têm como base a existência real das pessoas
deixa de ser eficaz e, oferecendo-se como carica
sobre territórios reais e não apenas uma repre
tura, torna-se cínico. Fica evidente que a relação
sentação estatística e simbólica da vida, como nos
belicosa entre o dinheiro e o território revoluciona
comunicados do Ministério da Fazenda e do Banco
relações estabelecidas, altera equilíbrios recentes
Central.
ou pacientemente adquiridos, sepulta valores,
É por tudo isso que, hoje, seja qual for a escala, o
amplia o desemprego e afeta o orçamento das fa
território constitui o melhor revelador de situa ções, não apenas conjunturais, mas estruturais e
mílias e dos municípios e Estados, desorganizan do, profundamente, o cotidiano das pessoas e das
de crise, mostrando, como no caso brasileiro, me
instituições locais.
lhor que outra instância social, a dinâmica e a
A briga entre o chão e o cifrão, da qual está resul
profundidade da tempestade dentro da qual nave
tando uma sociedade fragmentada e uma Federa
gamos.
ção ingovernável, não pode ser resolvida como se
O território é onde vivem, trabalham, sofrem e
o dinheiro em estado puro fosse o único pressu
sonham todos os brasileiros. Ele é, também, o re positório final de todas as ações e de todas as re lações, o lugar geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos muitos perdedores reniten tes, para quem o dinheiro globalizado _aqui deno minado "real"_ já não é um sonho, mas um pesa delo.
posto da vida nacional. Urge encontrar um cami nho que nos leve a uma outra Federação, um re começo a ser buscado com altivez cívica, humil dade intelectual e sabedoria política e cujo ponto de partida seja o bem-estar da população e a so brevivência da Nação.
Milton Santos
141
O PAÍS DISTORCIDO 02/05/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-7 5/676 Tensão entre o universal e o internacional se encontra na raiz de nossa necessidade em legitimar a cultura brasileira
Há, em toda parte, no país, um certo alvoroço,
Quando o parâmetro é a universalidade, o pensa
para festejar os chamados 500 anos de Brasil.
mento começa e termina com o pensamento filo
Esse é um grande pano de fundo. Como nele en
sófico; quando, porém, trata-se de internacionali
quadrar manifestações, como, por exemplo, esse
dade, internacionalismo ou globalismo, a centrali
questionário distribuído pelo Mais! de 11 de abril
dade vai à economia. O internacional e a moder
a dez dos mais importantes intelectuais nacionais
nidade sempre estiveram na raiz da nossa busca
para que, indicando 30 títulos, opinassem sobre
intelectual, ambos significando a Europa e, mais
as cem melhores obras mundiais de não-ficção
recentemente, também os Estados Unidos. Mas,
neste século e as 30 melhores obras brasileiras de
era um internacional que se queria mundo e, pela
não-ficção em todos os tempos, isto é, 500 anos?
força da economia, da política e das armas, ofere
Entre os escolhidos cem melhores livros de não-
cia-se equivocadamente como mundo, no proces
ficção do século 20, há apenas um de autor brasi leiro, Euclides da Cunha. E a lista contempla outro latino-americano: Jorge Luis Borges. Cabe, desse modo, admitir nossa inapetência ou incapacidade de ser intelectualmente universais ou, mesmo, in ternacionais? Que país é esse, o Brasil, nos seus
so de pensar o planeta, o continente e o país. O próprio ensino da filosofia, além de um passeio superficial sobre diversos continentes, apenas se aprofundava nos pensadores e nas idéias oriundas daquelas áreas geográficas constitutivas do que admitíamos como internacional, deixando para
500 anos? Podemos, a partir desses fatos, inda
trás tudo o mais, considerado como irrelevante.
gar-nos sobre esses 500 anos de formação de
Esse caminhar acarretou pelo menos dois proble
uma idéia de Brasil? Ou seria melhor debruçar-
mas. O primeiro, a partir da nossa construção via
nos sobre a interpretação, a partir do fato nacio
colonização, levava a limitar o pensamento na ór
nal, de expressões como internacional, global,
bita de uma história que já havia sido feita por
universal, noções que se prestam a confusão?
outros, como se a história nova fosse mera repeti
O chamado internacional seria modelado pela
ção ou herança obrigatória do passado alheio. O
economia e pela política, criando relações que acabam por supor pontos de vista seletivos e por impor idéias e ações que, na origem ou nos des dobramentos, são marcadas por pragmatismo. Pensou-se que o global seria abarcativo, demo cratizante. Mas na prática atual, ao contrário do que se podia sonhar, reduz ainda mais o escopo
segundo problema vem de fato da mesma coloni zação, atribuindo ao ensino das idéias um certo caráter instrumental, na medida em que outras formas de pensar eram excluídas. No fundo, essa atitude acaba por produzir, perto ou longe, direta ou indiretamente, uma certa legitimação à instru mentalidade da economia na produção do pensa
das trocas, abastarda as comparações e aprofun
mento social.
da a visão pragmática, na medida em que convo
As consequências dessa visão distorcida do mun
ca todas as forças a buscar um único caminho. Já
do são, na realidade, devastadoras para as ciênci
o universal, que é independente de realizações
as humanas, na medida em que adotem pontos
práticas imediatas, é encontrado na busca de uma
de partida redutores e, neutralizando o ímpeto da
generalidade significativa e representa não ape
crítica e aceitando raciocínios estabelecidos em
nas as quantidades do mundo, mas as qualidades
função de outras realidades, conduzam a fornecer
e valores. Por isso é abrangente de tudo e de to
exegeses e exemplos resignados. Quando o parâ
dos, a despeito de hierarquias.
metro é a universalidade, as idéias começam e
142
Milton Santos
terminam com um pensamento filosófico, que
te adjetivação, geralmente diminutiva ou depreci
pode ser procurado e encontrado, não importa
ativa, do que na realidade é substantivo. Isso,
onde estejamos.
aliás, é válido para todo tipo de trabalho intelec
Tal atitude tem reflexos sobre a conformação do
tual, não apenas o acadêmico.
gosto e das escolhas, conduzindo, de forma talvez
A questão central que nos ocorre, sobre a nossa
imperceptível, a reproduzir, com exemplos novos,
interpretação de nós próprios, nesses chamados
formulações alheias, aceitas como se fossem uni
500 anos de Brasil, é a seguinte: é possível opor
versais.
uma história do Brasil a uma história européia do
Os mencionados desvios são limitadores na elabo
Brasil, um pensamento brasileiro em lugar de um
ração dos pensamentos brasileiro e latino-ameri cano e em nossa própria visão de nós mesmos e
pensamento europeu ou norte-americano do Bra sil, ainda que conduzido aqui pelos bravos "brazi
do continente. É como se todos quiséssemos ser
lianists" brasileiros?
europeus e agora um pouco mais, porque tam
Não se trata de inventar de novo a roda, mas de
bém queremos ser norte-americanos. Até mesmo
dizer como a fazemos funcionar em nosso canto
a elegância no dizer é copiada.
do mundo; reconhecê-lo será um enriquecimento
Quem é levado a uma atividade intelectual verda
para o mundo da roda e um passo a mais no co
deiramente transnacional (não nos referimos à ro
nhecimento de nós mesmos.
tina de congressos pré-concluídos nem às coletâ
Ser internacional não é ser universal e para ser
neas de textos encomendados sob medida) des
universal não é necessário situar-se nos centros
cobre, de modo esporádico ou sistêmico, que um
do mundo. Inclusive pode-se ser universal ficando
grande número de formulações genuínas, provin
confinado à sua própria língua, isto é, sem ser
das de uma interpretação universal de situações
traduzido. Não se trata de dar as costas à realida
específicas _continentais, nacionais, locais_, aca
de do mundo, mas de pensá-la a partir do que so
ba por ser avaliada em função de outras formula
mos, enriquecendo-a universalmente com as nos
ções, igualmente emanadas de situações específi
sas idéias; e aceitando ser, desse modo, submeti
cas, ditas internacionais e tornadas cânones pelo
dos a uma crítica universalista e não propriamen
simples efeito de autoridade. É como se o traba
te européia ou norte-americana.
lho acadêmico devesse constituir uma permanen
Milton Santos
143
A VONTADE DE ABRANGÊNCIA 20/06/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-3 6/7209 É cada vez mais árduo o trabalho do intelectual que tenta se manter, ao mesmo tempo, íntegro e público
Qual o papel do intelectual nessa encruzilhada
dismos, militantismos, unilateralismos e sloganis
turbulenta da história? Pode ele contribuir, pela
mos, caminhos de facilidade que atropelam a pos
reflexão, ao aperfeiçoamento da vida democrática
sibilidade de um pensamento livre.
e das instituições? Cabe fazer tais perguntas no
Para completar, provisoriamente, essa lista, lem
Brasil deste fim de século, onde, aparentemente, homens de estudo se instalaram no poder?
bremos que a institucionalização crescente da vida universitária acaba por forjar uma teia, cada
O antigo debate sobre o papel social dos intelec
dia mais sólida e visível, em que o trabalho rastei
tuais, mais vivo em países como a França, mais
ro é deixado a alguns assessores, que recrutam
débil noutros como os Estados Unidos, onde a fi
subserviências no baixo e médio clero, editando
losofia dominante do pragmatismo constitui por si
medidas ditas saneadoras da administração e das
mesma uma dificuldade, merece ganhar nova for
finanças, cujo resultado final é a limitação à liber
ça com a emergência do fenômeno da globaliza
dade do pensar e do dizer, enquanto, esperta
ção. Diante do papel político das empresas e do
mente, autoridades superiores cada vez mais
mercado global, frequentemente mais ativos que
comprometidas com os meios e mais descompro
os Estados e os partidos na formação da opinião,
missadas com as finalidades da educação inun
as massas atônitas reclamam explicações mais
dam o mercado com discursos eloqüentes, mas
consistentes. Estarão os intelectuais preparados e
vazios.
dispostos ao enfrentamento dessa tarefa?
Esses riscos, que já se vinham delineando havia
A questão essencial é que a centralidade do tra
algum tempo, agravaram-se com a globalização,
balho dito intelectual tem, hoje, como eixo a téc
momento da história que consagra o reino do efê
nica e o mercado, ambos planetários, pois consti
mero e abre espaço, tornado excessivo, às de
tuem os esteios centrais da própria globalização.
mandas de um saber prático em detrimento do
Enquanto a velha oposição entre trabalho manual
saber filosófico, daí a confusão cada vez maior
e trabalho intelectual se torna insuficiente, a tec
entre ser letrado e ser intelectual.
no-ciência acaba por obter um comando excessivo
Nas condições atuais, quando, no dizer de Ram
nas tarefas de elaboração das idéias. Pede-se, agora, aos homens do saber a elaboração das so luções mercantis e o respectivo discurso, a ser utilizado pelos governos e empresas. Não é essa a cantilena dos Ministérios da Educação e da Ciên cia? Desse modo, levantam-se graves riscos às ativi dades de pensar, graças, sobretudo, às armadi lhas da instrumentalização. Esta é cada vez mais presente, crescentemente exercida pelo mercado; mas, também, pela reclamada busca de sucesso; pela substituição do modo, isto é, a busca inces sante da verdade, pela moda, com a qual a noto riedade é garantida à custa da inteireza; e até mesmo por toda sorte de ativismos, isto é, parti
sey Clark, pensamos com um revólver apontado contra nossa cabeça, o exercício das idéias genuí nas pode até parecer uma inutilidade. Tudo cons pira para a primazia do pensamento calculante, a começar pelas próprias dificuldades de difusão de idéias fundamentais. Para isso, aliás, contribui uma indústria editorial cada vez mais inclinada à busca do lucro, em de trimento da qualidade das obras e ao elogio da banalidade, com a fabricação de best sellers de retorno garantido e, também, com a síndrome do "show business" que agora acompanha as ativida des propriamente intelectuais, ameaçando-as de prostituição desde a origem. São, também, cada vez mais frequentes as manifestações organiza
144
Milton Santos
das como grandes promoções e nas quais é difícil
mente banal, mas solidamente ancorada nos fatos
às estrelas escapar à condição de um produto ofe
e na reflexão, que permite encontrar, ao mesmo
recido, uma marca, uma grife, cuja presença ape
tempo, as idéias, abertas a um público maior, e
nas legitima a ocasião. Hoje, a moda cruel no
as respectivas palavras: simples, precisas, inteli
marketing de idéias é dar a palavra a um oponen
gíveis. Daí seu papel pedagógico e, às vezes, pro
te, a pretexto de democratizar o debate, enquan
fético. As metáforas não serão um artifício merca
to o grosso da tropa fala de outra coisa, isto é, do
dológico, mas o resultado de uma pesquisa fre
que realmente conta.
quentemente longa, tanto das idéias como do dis
Nessas condições, o intelectual trabalha sobre o
curso que as exprime. Cabe, todavia, na busca
fio da navalha, já que aos jovens se torna difícil ser autêntico, e os intelectuais estabelecidos, fre quentemente atraídos por prementes solicitações para aparecer, estão sob a mesma ameaça. É normal que os produtores de idéias aspirem a que o seu trabalho seja conhecido: é a forma pela qual podem, ao mesmo tempo, influenciar a evo lução da sociedade e obter aquele reconhecimento indispensável à continuação da sua tarefa. O peri go é que o mundo do marketing, sob diferentes disfarces, e a vontade, escancarada ou secreta, de ser um intelectual "bem-sucedido" levem à confusão entre o exercício do papel de intelectual e o mero desempenho como um ator de vaudevil le. O intelectual público tem como ponto de partida uma vontade de abrangência, uma filosofia certa
das palavras justas e do discurso acessível, fugir ao escorregão nas banalidades e chavões, isto é, escapar ao panfleto. É, talvez, esse o limite à ação do intelectual público, uma fronteira de reco nhecimento difícil, inclusive porque é difícil avaliar a priori o jogo de influências entre um autor e o seu público. Cabe, mesmo, indagar sobre o que é esse público e como ele é conduzido, a partir da própria forma de sua convocação. As cascas de banana no caminho daqueles que se querem manter, ao mesmo tempo, intelectuais ín tegros e intelectuais públicos são numerosas, obrigando a um permanente estado de alerta para obedecer, ao mesmo tempo, ao imperativo da crí tica da história e ao da sua própria autocrítica, como seu intérprete.
Milton Santos
145
GUERRA DOS LUGARES 08/08/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-3 8/2775 Áreas inteiras do Brasil têm sido retiradas do controle do país
Cada época tem suas verdades e cria os seus mi
dade e funcionava como uma região do Estado.
tos. A época atual é, por definição, mitológica e
"Regio" tanto significa região quanto reger, gover
dificulta o encontro da verdade.
nar.Com a globalização, o território fica ainda
O imperativo da exportação, sugerido a todos os
mais importante, ainda que uma propaganda insi
países como uma espécie de solução salvadora, é uma verdade ou apenas um mito? Afirma-se, com muita força, que os países que não exportam não têm presente nem futuro, sem explicar cabalmen te por quê. A doutrina é tão forte que, embora isso não seja sempre reconhecido, chega-se ao paroxismo de agir como se o próprio território de vesse também ser exportado. Comecemos pela definição de território, na verda de uma redefinição. Consideremos o território como o conjunto de sistemas naturais mais os acréscimos históricos materiais impostos pelo ho mem. Ele seria formado pelo conjunto indissociá vel do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e de política. Os acréscimos são desti nados a permitir, em cada época, uma nova mo dernização, que é sempre seletiva. Vejam-se os exemplos das ferrovias na segunda metade do sé culo 19 e das infovias hoje. A partir da constituição do Estado moderno, tudo isso era considerado como base da soberania na cional e da competição entre nações. O exemplo mais eloquente é o de Colbert, ministro de Luís 14, engenheiro, geógrafo, economista, estrategis ta e estadista, preocupado com o traçado das es tradas e canais na velha França, base, ao mesmo tempo, do crescimento do país e da sua competi ção com os vizinhos e com a Inglaterra. O territó rio, assim visto, constituía um dado essencial da regulação econômica e política, já que do seu ma nejo dependiam os volumes e os fluxos, os custos e os preços, a distribuição e o comércio, em uma palavra, a vida das empresas e o bem-estar das populações. Era por meio desses instrumentos in corporados ao território que o país criava sua uni
diosa teime em declarar que as fronteiras entre Estados já não funcionam e que tudo, ou quase, se desterritorializa. Na verdade, se o mundo tor nou possível, com as técnicas contemporâneas, multiplicar a produtividade, somente o faz porque os lugares, conhecidos em sua realidade material e política, distinguem-se exatamente pela diferen te capacidade de oferecer às empresas uma pro dutividade maior ou menor. É como se o chão, por meio das técnicas e das decisões políticas que incorpora, constituísse um verdadeiro depósito de fluxos de mais-valia, transferindo valor às firmas nele sediadas. A produtividade e a competitivida de deixam de ser definidas devido apenas à estru tura interna de cada corporação e passam, tam bém, a ser um atributo dos lugares. E cada lugar entra na contabilidade das empresas com diferen te valor. A guerra fiscal é, na verdade, uma guer ra global entre lugares. Por isso, as maiores empresas elegem, em cada país, os pontos de seu interesse, exigindo, para que funcionem ainda melhor, o equipamento local e regional adequado e o aperfeiçoamento de suas ligações mediante elos materiais e informacionais modernos. Isso quanto às condições técnicas. Mas é também necessária uma adaptação política, me diante a adoção de normas e aportes financeiros, fiscais, trabalhistas etc. É a partir dessas alavan cas que os lugares lutam entre si para atrair no vos empreendimentos, os quais, entretanto, obe decem a lógicas globais que impõem aos lugares e países uma nova medida do valor, planetária e implacável. Tal uso preferencial do território por empresas globais acaba desvalorizando não ape nas as áreas que ficam de fora do processo, mas também as demais empresas, excluídas das mes mas preferências.
146
Milton Santos
Como as situações se alteram rápida, repetida
de modo a manter desigualmente repartidos, na
mente e de forma inesperada, o território, sobre
escala planetária, a produção, o emprego, a mais-
tudo nas áreas mais afetadas pela modernidade
valia, o poder econômico e político. Escolhem-se,
globalizadora, torna-se instável, nervoso e, tam
também, pela mesma via, os lugares que devem
bém, ingovernável. As crises territoriais revelam,
ser objeto de ocupação privilegiada e de valoriza
brutalmente, as crises _nem sempre imediata
ção, isto é, de exportação.
mente percebidas_ da economia, da sociedade e
Não é simples metáfora dizer, a partir desse raci
da política. O caso brasileiro ilustra de forma ex plícita essa entrega ao privado da regulação dos usos do território, sobretudo naquelas suas fatias, pontos e articulações essenciais. A privatização extrovertida das vias e meios de transporte e de comunicação agrava o conjunto de crises.
ocínio, que está havendo uma entrega acelerada do território, já que o modelo econômico consa grado recusa ao país as ferramentas da sua regu lação, pondo-as em mãos outras (geralmente es trangeiras), cujos projetos e objetivos podem ser inteiramente estranhos ou adversos ao interesse
Importam-se empresas e exportam-se lugares.
nacional. É desse modo que áreas inteiras perma
Impõe-se de fora do país o que deve ser a produ
necem nominalmente no território, fazendo parte
ção, a circulação e a distribuição dentro do país,
do mapa do país, mas são retiradas do controle
anarquizando a divisão interna do trabalho com o
soberano da nação.
reforço de uma divisão internacional do trabalho que determina como e o que produzir e exportar,
Milton Santos
147
A NORMALIDADE DA CRISE 26/09/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-3 9/10313 A tirania do dinheiro e da informação está na base do atual desarranjo do capitalismo global
A história do capitalismo pode ser dividida em pe
nou-se possível por meio das técnicas contempo
ríodos, pedaços de tempo marcados por uma cer
râneas. O computador é o instrumento de medida
ta coerência entre as suas variáveis significativas,
e, ao mesmo tempo, o controlador do uso do
que evoluem diferentemente, mas dentro de um
tempo. Essa multiplicação do tempo é, na verda
sistema. Um período sucede a outro, mas não po
de, potencial, porque, de fato, cada ator _ pes
demos esquecer que os períodos são, também,
soa, empresa, instituição, lugar_ utiliza diferente
antecedidos e sucedidos por crises, isto é, mo
mente tais possibilidades e realiza diferentemente
mentos em que a ordem estabelecida entre as va
a velocidade do mundo. Por outro lado, e graças
riáveis, mediante uma organização, é comprome
sobretudo aos progressos das técnicas da infor
tida. Torna-se impossível harmonizá-las quando
mática, os fatores hegemônicos de mudança con
uma dessas variáveis ganha expressão maior e
tagiam os demais, ainda que a presteza e o alcan
introduz um princípio de desordem.
ce desse contágio sejam diferentes segundo as
Essa foi a evolução comum a toda a história do
empresas, os grupos sociais, as pessoas, os luga
capitalismo, até recentemente. O período atual escapa a essa característica porque ele é, ao mes mo tempo, um período e uma crise, isto é, a pre sente fração do tempo histórico constitui uma verdadeira superposição entre período e crise, re
res. Por meio do dinheiro, o contágio das lógicas redutoras, típicas do processo de globalização, leva a toda parte um nexo contábil que avassala tudo. Os fatores de mudança acima enumerados são, pela mão dos atores hegemônicos, incontro
velando características de ambas essas situações.
láveis, cegos, egoisticamente contraditórios.
Como período e como crise, a época atual mostra-
O processo da crise é permanente, o que temos
se, aliás, como coisa nova. Como período, as suas variáveis características instalam-se em toda a parte e tudo influenciam, direta ou indiretamente. Daí a denominação de globalização. Como crise, as mesmas variáveis construtoras do sistema es
são crises sucessivas. Na verdade, trata-se de uma crise global, cuja evidência tanto se faz por meio de fenômenos globais como de manifesta ções particulares, neste ou naquele país, neste ou naquele momento, mas para produzir o novo es
tão continuamente chocando-se e exigindo novas
tágio de crise. Nada é duradouro.
definições e novos arranjos. Trata-se, porém, de
Então, neste período histórico, a crise é estrutu
uma crise persistente dentro de um período com
ral. Por isso, quando se buscam soluções, o resul
características duradouras, mesmo se novos con
tado é a geração de mais crise. O que é conside
tornos aparecem.
rado como solução parte do exclusivo interesse
Este período e esta crise são diferentes daqueles
dos atores hegemônicos, tendendo a participar de
do passado, porque os dados motores e os res
sua própria natureza e de suas próprias caracte
pectivos suportes, que constituem fatores de mu
rísticas.
dança, não se instalam gradativamente como an
Tirania do dinheiro e tirania da informação são os
tes, nem tampouco são o privilégio de alguns con
pilares da produção da história atual do capitalis
tinentes e países, como outrora. Tais fatores dão-
mo globalizado. Sem o controle dos espíritos seria
se concomitantemente e se realizam com muita
impossível a regulação pelas finanças. Daí o papel
força em toda parte.
avassalador do sistema financeiro e a permissivi
Defrontamo-nos, agora, com uma subdivisão ex
dade do comportamento dos atores hegemônicos,
trema do tempo empírico, cuja documentação tor
148
Milton Santos
que agem sem contrapartida, levando ao aprofun
nomia, aumenta a flexibilidade dos comportamen
damento da situação, isto é, da crise.
tos, acarretando um mal-estar no corpo social.
A associação entre a tirania do dinheiro e a tirania
A isso se acrescente o fato de que, graças ao ca
da informação conduz, desse modo, à aceleração
samento entre as técnicas normativas e a norma
dos
pelo
lização técnica e política da ação correspondente,
"pensamento único", enquanto os demais proces
processos
hegemônicos,
legitimados
a própria política acaba por instalar-se em todos
sos acabam por ser deglutidos ou se adaptam
os interstícios do corpo social, seja como necessi
passiva ou ativamente, tornando-se hegemoniza
dade para o exercício das ações dominantes, seja
dos. Em outras palavras, os processos não he
como reação a essas mesmas ações. Mas não é
gemônicos tendem ou a desaparecer fisicamente,
propriamente de política que se trata, mas de
ou a permanecer, mas de forma subordinada, ex
simples acúmulo de normatizações particularistas,
ceto em algumas áreas da vida social e em certas
conduzidas por atores privados que ignoram o in
frações do território onde podem manter-se relati
teresse social ou que o tratam de modo residual.
vamente autônomos, isto é, capazes de uma re
É outra a razão por que a situação normal é de
produção própria. Mas tal situação é sempre pre
crise, ainda que os famosos equilíbrios macroe
cária, seja porque os resultados localmente obti
conômicos se instalem.
dos são menores, seja porque os respectivos
O mesmo sistema ideológico que justifica o pro
agentes são permanentemente ameaçados pela concorrência das atividades mais poderosas.
cesso de globalização, ajudando a considerá-lo como o único caminho histórico, acaba, também,
No período histórico atual, o estrutural (dito dinâ
por impor uma certa visão da crise e a aceitação
mico) é, também, crítico. Isso se deve, entre ou
dos remédios sugeridos. Em virtude disso, todos
tras razões, ao fato de que a era presente se ca
os países, lugares e pessoas passam a se compor
racteriza pelo uso extremado de técnicas e de
tar, isto é, a organizar sua ação, como se tal "cri
normas. O uso extremado das técnicas e a proe
se" fosse a mesma para todos e como se a receita
minência do pensamento técnico conduzem à ne
para afastá-la devesse ser geralmente a mesma.
cessidade obsessiva de normas. Essa pletora nor
Mas a única crise que se deseja afastar é a crise
mativa é indispensável à eficácia da ação. Como,
financeira, não qualquer outra. Aí está, na verda
porém, as atividades hegemônicas tendem a uma
de, uma causa para maior aprofundamento da cri
centralização, consecutiva à concentração da eco
se real _econômica, social, política, moral_ que caracteriza o nosso tempo.
Milton Santos
149
UMA METAMORFOSE POLÍTICA 17/10/1999 - Editoria: MAIS! Página: 5-3 10/6596 A classe média ferida de morte nos seus interesses é um dado novo da vida social
O
chamado
milagre
econômico
brasileiro
foi
Tudo o que alimenta a classe média dá-lhe, tam
acompanhado de muitas "explosões", dentre elas
bém, um sentimento de inclusão no sistema polí
um crescimento contínuo das classes médias, pri
tico e econômico e um sentimento de segurança,
meiro nas grandes cidades e depois nas cidades
estimulado pelas constantes medidas do poder
menores e no campo modernizado. Como essa
público em seu favor. Tratava-se, na realidade, de
expansão foi acelerada, é lícito falar em explosão
uma moeda de troca, já que a classe média cons
das classes médias, que, neste meio século,
tituía uma base de apoio às ações do governo. Tal
acompanha a explosão demográfica, a explosão
classe média, ao mesmo tempo em que se diver
urbana e a explosão do consumo e do crédito.
sifica profissionalmente, aumenta o seu poder
Esse conjunto de fenômenos tem relação com o
aquisitivo e melhora qualitativamente, por meio
aumento da produção industrial e agrícola, como também do comércio, dos transportes, das trocas de todos os tipos, das obras públicas, da adminis tração e da necessidade de informação. Há, para
das oportunidades de educação que lhe são aber tas, tudo isso levando à ampliação do seu bemestar (o que hoje se chama de qualidade de vida), conduzindo-a a acreditar na garantia de preserva
lelamente, uma expansão e diversificação do em
ção das suas vantagens e perspectivas.
prego, ainda que uma parcela importante dos que
Forma-se, dessa maneira, uma classe média mais
se dirigiram às cidades não pudesse ser assalaria
apegada ao consumo que à cidadania, sócia des
do formal, só encontrando trabalho no circuito in
preocupada do crescimento e do poder, com os
ferior da economia.
quais se confundia. Eram essas, aliás, condições
Um sentimento de segurança é infundido na clas
necessárias a um crescimento econômico sem de
se média pelos programas governamentais que lhe facilitam a aquisição da casa própria, progra mas de que foram os beneficiários privilegiados, enquanto os brasileiros mais pobres apenas foram incompletamente atendidos nos últimos anos do regime autoritário. Vale realçar que no Brasil do milagre, e durante boa parte dos anos 80, a classe média se expan diu e se desenvolveu sem que houvesse verdadei ra competição dentro dela quanto ao uso dos re cursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria do seu poder aquisitivo e do seu bem-estar material. Daí a sua relativa coesão e a consciência de haver tornado um poderoso esta mento. A competição é, na realidade, com os po
mocracia. Quando esta se instala incompletamen te nos anos 80, guarda esses vícios de origem, sustentando um regime representativo falsificado pela ausência de partidos políticos consequentes. Seguindo essa lógica, as próprias esquerdas são levadas a dar mais espaço às preocupações elei torais e menos à pedagogia propriamente política. Tal situação tende agora a mudar, quando a clas se média começa a conhecer a experiência da es cassez, o que poderá levá-la a uma reinterpreta ção de sua situação. Nos anos recentes, primeiro de forma lenta ou esporádica e já agora de modo mais sistemático e continuado, a classe média co nhece dificuldades que lhe apontam uma situação existencial bem diferente daquela que conhecera
bres, cujo acesso aos bens e serviços torna-se
há poucos anos.
cada vez mais difícil, na medida em que estes se
Tais dificuldades chegam num tropel: a educação
multiplicam e diversificam. A classe média é a
dos filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição ou
grande beneficiária do crescimento econômico, do
o aluguel da moradia, a possibilidade de pagar
modelo político e dos projetos urbanísticos adota
pelo lazer, a falta de garantia no emprego, a de
dos.
terioração dos salários e o crescente endivida
150
Milton Santos
mento estão levando ao desconforto quanto ao
meiro degrau, a preocupação de defender situa
presente e à insegurança quanto ao futuro, tanto
ções individuais ameaçadas e que se deseja re
o futuro remoto quanto o imediato. Tais incerte
constituir, retomando o consumo e o conforto ma
zas são agravadas pelas novas perspectivas da
terial como o principal motor de uma luta, que,
previdência social e do regime de aposentadorias,
desse modo, pode se limitar a novas manifesta
da prometida reforma dos seguros privados e da
ções de individualismo.
legislação do trabalho. A tudo isso se acrescen
É num segundo momento que tais reivindicações,
tam, dentro do próprio lar, a apreensão dos filhos em relação ao seu futuro profissional e as mani festações cotidianas desse desassossego.
fruto de reflexão mais profunda, podem alcançar um nível qualitativo superior, a partir de um en tendimento mais amplo do processo social e de
Já que não mais encontram os remédios que lhe
uma visão sistêmica de situações aparentemente
eram oferecidos pelo mercado ou pelo Estado
isoladas, levando à decisão de participar de uma
como solução aos seus problemas individuais
luta pela sua transformação, quando o consumi
emergentes, as classes médias ganham a percep
dor assume o papel de cidadão.
ção de que já não mandam, ou de que já não
Seja como for, as classes médias brasileiras, já
mais participam da partilha do poder. Acostuma das a atribuir aos políticos a solução dos seus pro blemas, proclamam, agora, seu descontentamen to, distanciando-se deles. Instalam-se num de sencanto mais abrangente quanto à política pro priamente dita, justificado, em parte, pela visão de consumidor desabusado de que se alimentou durante décadas, agravada com a fragmentação pela mídia, sobretudo televisiva, da informação e da interpretação do processo social. Tudo isso for talece nas classes médias a certeza de não mais influir politicamente, levando-as, não raro, a rea gir negativamente, isto é, a desejar menos políti ca e menos participação, quando a reação correta poderia e deveria ser exatamente a oposta. É certo, pois, que a atual experiência de escassez não conduza necessariamente à desejável expan são da consciência. Quando esta se impõe, não o faz igualmente, segundo as pessoas. Visto esque maticamente, tal processo pode ter, como um pri
não mais aduladas e feridas de morte nos seus in teresses materiais e espirituais, constituem, em sua condição atual, um dado novo da vida social e política. Mas seu papel não estará completo en quanto não se identifique com os clamores dos pobres, contribuindo juntos para a regeneração dos partidos, inclusive os partidos do progresso. Enquanto estes aceitarem as tentações do triunfa lismo oposicionista e do oportunismo eleitoreiro, limitando-se às respectivas mobilizações ocasio nais, estarão desgarrados do seu papel de forma dores não apenas da opinião, mas da consciência cívica sem a qual não pode haver neste país polí tica verdadeira. As classes médias brasileiras, mais ilustradas e, também, mais despojadas, têm agora a tarefa histórica de forçar os partidos a completar, no Brasil, o trabalho, ainda não termi nado, de implantação de uma democracia que não seja apenas eleitoral, mas, também, econômica, política e social.
Milton Santos
151
NAÇÃO ATIVA, NAÇÃO PASSIVA 21/11/1999 - Editoria: MAIS! - Página: 5-3 11/10711 Os verdadeiros agentes do futuro do país encontram-se entre os que estão sendo excluídos da contabilidade da globalização. A idéia de história e destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas
A globalização atual e as formas brutais que ado
graves quanto mais abertos e obedientes se mos
tou para impor mudanças levam à urgente neces
trem os países.
sidade de rever o que fazer com as coisas, as idéi
Tomemos o caso do Brasil. É mais que uma sim
as e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação clara e coe rente dos seus termos, sem o que se pode facil mente cair no vazio ou na ambiguidade.
ples metáfora pensar que uma das formas de abordagem da questão seria considerar, dentro da nação, a existência, na realidade, de duas nações. Uma nação passiva e uma nação ativa. A grande
É o caso do próprio debate nacional, exigente de
ironia vem do fato de que as contabilidades nacio
novas definições e vocabulário renovado. Como
nais, sendo globalizadas _e globalizantes!_, o que
sempre, o país deve ser visto como uma situação
se passa a considerar como nação ativa é aquela
estrutural em movimento, na qual cada elemento
que obedece cegamente ao desígnio globalitário,
está intimamente relacionado com os demais.
enquanto o resto acaba por constituir, desse pon
Agora, porém, no mundo da globalização, o reco
to de vista, a nação passiva. A fazer valer tais
nhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo
postulados, a nação ativa seria a daqueles que
modo que a visualização de um projeto nacional
aceitam, pregam e conduzem uma modernização
pode se tornar obscura. Talvez por isso, os proje
que dá preeminência aos ajustes que interessam
tos das grandes empresas, impostos pela tirania
ao dinheiro, enquanto a nação passiva seria for
das finanças e trombeteados pela mídia, acabem,
mada por tudo o mais.
de um jeito ou de outro, guiando a evolução dos
Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou
países, em acordo ou não com as instâncias públi cas, frequentemente dóceis e subservientes, dei xando de lado o desenho de uma geopolítica pró pria a cada nação, que leve em conta suas carac terísticas e interesses. Assim, as noções de destino nacional e de projeto nacional cedem frequentemente a frente da cena a preocupações menores, pragmáticas, imediatis tas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto. A idéia de história, sentido, destino é amesquinha da em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única preocupação é o conformismo diante das determinações do processo atual de globaliza ção. Daí a produção sem contrapartida de dese quilíbrios e distorções estruturais, acarretando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais
aquilo que, desse modo, se está chamando de na ção ativa seria, na realidade, a nação passiva, en quanto a nação chamada passiva seria, de fato, a nação ativa? A chamada nação ativa, isto é, aquela que compa rece eficazmente na contabilidade nacional e na contabilidade internacional, tem o seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas burguesias nacionais associadas. É verdade, tam bém, que o seu discurso globalizado, para ter efi cácia local, necessita de um sotaque doméstico e por isso estimula um pensamento nacional associ ado, produzido por mentes cativas, subvenciona das ou não. A nação chamada ativa alimenta a sua ação com a prevalência de um sistema ideológico que define as idéias de prosperidade e de riqueza e, paralela mente, a produção da conformidade. A "nação ati va" aparece como fluida, veloz, externamente ar ticulada, internamente desarticuladora, entrópica.
152
Milton Santos
Será ela dinâmica? Como essa idéia é muito difun
projeto conjunto. Aliás, o império dos interesses
dida, cabe lembrar que velocidade não é dinamis
imediatos que se manifestam no exercício prag
mo. Esse movimento não é próprio, mas atribuído,
mático da vida contribui, sem dúvida, para tal de
tomado emprestado a um motor externo; ele não
sarticulação. Mas, num segundo momento, a to
é genuíno, não tem finalidade, é desprovido de te
mada de consciência trazida pelo seu enraizamen
leologia. Trata-se de uma agitação cega, um pro
to no meio e, sobretudo, pela sua experiência da
jeto equivocado, um dinamismo do diabo.
escassez, torna possível a produção de um proje
A nação chamada passiva é constituída pela gros
to, cuja viabilidade provém do fato de que a nação
sa maior parte da população e da economia, aque les que apenas participam de modo residual do mercado global ou cujas atividades conseguem
chamada passiva é formada pela maior parte da população, além de ser dotada de um dinamismo próprio, autêntico, fundado em sua própria exis
sobreviver à sua margem, sem participar cabal
tência _daí sua veracidade e riqueza.
mente da contabilidade pública ou das estatísticas
Podemos desse modo admitir que aquilo que, me
oficiais. O pensamento que define e compreende
diante o jogo de espelhos da globalização, ainda
os seus atores é o do intelectual público engajado
se chama de nação ativa é, na verdade, a nação
na defesa dos interesses da maioria.
passiva, enquanto o que, pelos mesmos parâme
As atividades dessa nação passiva são frequente
tros, é considerado como a nação passiva consti
mente marcadas pela contradição entre a exigên cia prática da conformidade, isto é, a necessidade de participar direta ou indiretamente da racionali dade dominante, e a insatisfação e o inconformis mo dos atores diante de resultados sempre limita
tui, já no presente, mas sobretudo na ótica do fu turo, a verdadeira nação ativa. Sua emergência será tanto mais viável, rápida e eficaz se se reco nhecerem e revelarem a confluência dos modos de existência e de trabalho dos respectivos atores e a
dos. Daí o encontro cotidiano de uma situação de
profunda unidade do seu destino.
inferiorização, tornada permanente, o que reforça
Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito
em seus participantes a noção de escassez e con
mais do que promover um simples combate às
voca a uma reinterpretação da própria situação in
formas de ser da "nação ativa" _tarefa importan
dividual diante do lugar, do país e do mundo.
te, mas insuficiente, nas atuais circunstâncias_,
A "nação passiva" é estatisticamente lenta, colada
devendo empenhar-se por mostrar, analiticamen
às rugosidades do seu entorno, localmente enrai zada e orgânica. É também a nação que mantém relações de simbiose com o entorno imediato, re
te, dentro do todo nacional, a vida sistêmica da nação passiva e suas manifestações de resistência a uma conquista indiscriminada e totalitária do es
lações cotidianas que criam, espontaneamente e
paço social pela chamada nação ativa.
na contracorrente, uma cultura própria, endógena,
Tal visão renovada da realidade contraditória de
resistente, que também constitui um alicerce, uma
cada fração do território deve ser oferecida à re
base sólida para a produção de uma política. Essa
flexão da sociedade em geral, tanto à sociedade
nação passiva mora ali onde vive e evolui, en
organizada nas associações, sindicatos, igrejas,
quanto a outra apenas circula, utilizando os luga
partidos etc., como também à sociedade desorga
res como mais um recurso a seu serviço, mas sem
nizada, que encontrará nessa nova interpretação
outro compromisso.
os elementos necessários para a postulação e o
Num primeiro momento, desarticulada pela "nação
exercício de uma outra política, mais condizente
ativa", a "nação passiva" não pode alcançar um
com a busca do interesse social.
Milton Santos
153
O RECOMEÇO DA HISTÓRIA 09/01/2000 - Editoria: MAIS! Página: 10 As novas condições materiais, base da globaliz ação perversa, poderão alavancar a mutação filosófica do homem
Vivemos em um mundo complexo, marcado na
A vez da humanidade - O que até então se cha
ordem material pela multiplicação incessante do
mava de história universal era a visão pretensiosa
número de objetos e na ordem imaterial pela infi
de um país ou continente sobre os outros, consi
nidade de relações que aos objetos nos unem.
derados bárbaros ou irrelevantes. O ecúmeno era
Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo
formado de frações separadas ou escassamente
tempo, graças à força com a qual a ideologia pe netra nos objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização, mais do que qualquer outra antes dela, exige uma interpretação sistêmica cuidado sa, de modo a permitir que cada coisa seja redefi nida em relação ao todo planetário. A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica planetária, direta ou indiretamente presente em todos os lu gares, e de uma política planetária, que une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autori zam uma leitura ao mesmo tempo geral e especí fica, filosófica e prática, de cada ponto da Terra. Emerge, desse modo, uma universalidade empíri ca, de modo a ajudar na formulação de idéias que exprimam o que é o mundo e o que são os luga res. Cria-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição téc nica e à existência de um único motor das ações hegemônicas, representado pelo lucro em escala global. É isso, aliás, que, junto à informação ge neralizada, assegura a cada lugar a comunhão universal com todos os outros. Ao contrário do que tanto se disse, a história uni versal não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo, con tinentais, em função dos impérios que se estabe leceram em uma escala mais ampla.
relacionadas do planeta. Somente agora a huma nidade faz sua entrada na cena histórica como um bloco, entrada revolucionária, graças à interde pendência das economias, dos governos, dos lu gares. O movimento do mundo conhece uma só pulsação, ainda que as condições sejam diversas segundo continentes, países, lugares, valorizados pela sua forma de participação na produção dessa nova história. Um dado importante de nossa época é a coinci dência entre a produção dessa história universal e a relativa liberação do homem em relação à natu reza. A denominação de era da inteligência pode ria ter fundamento nesse fato concreto: os mate riais hoje responsáveis pelas realizações prepon derantes são cada vez mais objetos materiais ma nufaturados e não mais matérias-primas naturais. Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza, ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações já realizadas, em curso ou meramente imaginadas. As pretensões e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos. Todavia a mesma materialidade, atualmente utili zada para construir um mundo confuso e perver so, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se comple tem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana. A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as quais, ao contrário das técnicas das máquinas, são cons titucionalmente
divisíveis,
flexíveis
e
dóceis,
adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que o seu uso perverso atual seja subordinado aos in
154
Milton Santos
teresses dos grandes capitais. Mas, quando sua
própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
utilização for democratizada, essas técnicas doces
atuais como pelas perspectivas de futuro.
estarão a serviço do homem.
As ricas dialéticas da vida nos lugares criam, pa
Por outro lado, muito falamos hoje nos progressos
ralelamente, o caldo de cultura necessário à pro
e nas promessas da engenharia genética, que
posição e o exercício de uma nova política.
conduziriam a uma mutação do homem biológico.
Ousamos, desse modo, pensar que a história do
Isso, porém, ainda é do domínio da história da ci ência e da técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições ainda hoje presentes, que podem asse gurar uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e também do planeta. Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual es tamos vivendo, o homem descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato pode ser me nos aleatório. Aumenta a previsibilidade e a eficá cia das ações. Ampliam-se e diversificam-se as escolhas, desde que se possa combinar adequa damente técnica e política. O mundo misturado - O mundo fica mais perto de cada qual, não importa onde esteja. Criam-se, para todos, a certeza e a consciência de ser mun do e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares, sobretu do nas grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações va riadas e múltiplas que ao mesmo tempo se cho cam e colaboram na produção renovada do enten dimento e da crítica da existência. Assim, o cotidi ano de cada qual se enriquece, pela experiência
homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de fixar datas para as etapas ou o início do processo e, nessa ordem de idéias, o ano 2000, o novo século, o novo milênio são apenas momentos da folhinha, marcos num calendário. Ora, a folhinha e o calendário são outros nomes para o relógio, por isso são convencionais, repeti tivos e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente cria das, a que chamamos tempo empírico, cujas mu danças são marcadas pela irrupção de novos ob jetos, de novas ações e relações e de novas idéi as. As condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas o seu destino vai depender de como serão aproveitadas pela política. O que, talvez, seja irreversível são as técnicas, porque elas aderem ao território e ao cotidiano. Mas a globalização atual não é irrever sível. Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana, finalmente, está começando.
Milton Santos
155
DA CULTURA À INDÚSTRIA CULTURAL 19/03/2000 - Editoria: MAIS! Página: 18 O Brasil é um dos países onde a indústria cultural deitou raízes mais fundas e, por isso mesmo, vem produzindo estragos de monta; tudo se tornou objeto de manipulação bem azeitada, em bora nem sempre bem-sucedida
Neste ano 2000, muitas iniciativas podem apenas
de corrompê-los, isto é, de fazer com que rene
encobrir uma vontade festeira, permanecendo na
guem a sua autenticidade, deixando de ser eles
superfície das questões em lugar de aprofundá-
próprios.
las. Como a festa faz parte da vida, pode-se até
Ao longo dos séculos, a cultura se manifesta pelas
aceitar que certos temas ganhem esse tratamen to. Há outros, no entanto, que exigem uma atitu de mais severa, por exemplo a cultura.
mais diversas formas de expressão da criatividade humana, mas não apenas no que hoje chamamos "as artes" (música, pintura, escultura, teatro, ci
Nesse último caso, o debate tem que ir mais lon
nema etc) ou através da literatura e da poesia em
ge que os comentários encomiásticos ou acerbos
todos os seus gêneros, mas também por outras
que se fazem em torno dos espetáculos e pesso
formas de criação intelectual nas ciências huma
as, como se pudesse ser transformado em "show
nas, naturais e exatas. É a esse conjunto de ativi
business" o capítulo destinado a uma apreciação
dades que se deveria denominar de cultura.
mais sisuda da questão.
As culturas nacionais desabrocham como reflexo
Puro e profundo
do que se convencionou chamar de gênio de um
O momento parece propício para enfrentar o ne
povo, expresso pela língua nacional, que é tam
cessário balanço da forma como evolui, no país, a própria idéia de cultura, sobretudo neste último meio século. Esse debate deve, necessariamente, incluir, a partir das definições encontradas _múlti plas definições e não apenas uma_ a determina ção das tarefas também múltiplas, que devere mos enfrentar nesta passagem de século, para ajudar a retratar a sociedade brasileira naquilo que ela tem de mais puro e mais profundo. O conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do pre sente e aspirações, isto é, o delineamento do fu turo desejado. Por isso mesmo, tem de ser genuí na, isto é, resultar das relações profundas dos ho mens com o seu meio, sendo por isso o grande ci mento que defende as sociedades locais, regionais e nacionais contra as ameaças de deformação ou dissolução de que podem ser vítimas. Deformar uma cultura é uma maneira de abrir a porta para o enraizamento de novas necessidades e a criação de novos gostos e hábitos, subrepticiamente ins talados na alma dos povos com o resultado final
bém uma espécie de filtro, veículo das experiênci as coletivas passadas e também forma de inter pretar o presente e vislumbrar o futuro. É verda de que na sociedade babelizada que é a nossa, as contaminações de umas culturas pelas outras tor naram-se possível industrialmente, dando lugar a uma mais forte influência daquelas tornadas he gemônicas sobre as demais, que assim são modi ficadas. É por isso que toda controvérsia sobre o assunto deve ser atualizada e, para ser conse quente, tem de ser começada e terminada com a difícil, mas escorregadia, discussão sobre a indús tria cultural: o que é, como se dão seus efeitos perversos em termos de lugar e de tempo. Sem isso o debate pode se dar hoje, mas é como se ainda estivéssemos vivendo em outro século e em outro planeta.Sem essa precaução, corremos o risco de colocar no mesmo saco as diversas mani festações ditas culturais e de avaliar com a mes ma medida os seus intérpretes. Condições particulares O Brasil, pelas suas condições particulares desde meados do século 20, é um dos países onde essa famosa indústria cultural deitou raízes mais fun
156
Milton Santos
das e por isso mesmo é um daqueles onde ela, já solidamente instalada e agindo em lugar da cultu ra nacional, vem produzindo estragos de monta. Tudo, ou quase, tornou-se objeto de manipulação bem azeitada, embora nem sempre bem-sucedi da. O Brasil sempre ofereceu, a si mesmo e ao mundo, as expressões de sua cultura profunda através do talento dos seus pintores e músicos e poetas, como de seus arquitetos e escritores, mas também dos seus homens de ciência, na medici na, nas engenharias, no direito, nas ciências soci ais.
artista ou cientista para que se tornem funcionári os de uma dessas indústrias culturais. A situação que desse modo se cria é falsa, mas atraente, porque a força de tais empresas instila nos meios de difusão, agora mais maciços e impenetráveis, mensagens publicitárias que são um convite ao triunfo da moda sobre o que é duradouro. É assim que se cria a impressão de servir a valores que, na verdade, estão sendo negados, disfarçando através de um verdadeiro sistema bem urdido de caricaturas, uma leitura falseada do que realmen te conta.
Hoje, a indústria cultural aciona estímulos e holo fotes deliberadamente vesgos e é preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural não é apenas formado por produtores e atores que vendem bem no mercado. Ora, este se auto-sustenta cada vez mais artificialmente man tido, engendrando gênios onde há medíocres (embora também haja gênios) e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sem pre as mais desejáveis. Por estar umbilicalmente ligada ao mercado, a indústria cultural tende, em nossos dias, a ser cada vez menos local, regional, nacional.
No arrastão suscitado pelo bombardeio publicitá rio, o que não é imediatamente mercantil fica de fora, enquanto a sociedade embevecida mistura no seu julgamento valores e autores. Quem é gê nio verdadeiro, quem é canastrão diplomado? Há quem possa ser gênio e mercadoria sem ser ao mesmo tempo gênio e canastrão, mas essa distin ção não exclui a generalidade da impostura com que alhos e bugalhos se confundem.
Nessas condições, é frequente que as manifesta ções genuínas da cultura, aquelas que têm obri gatoriamente relação com as coisas profundas da terra, sejam deixadas de lado como rebotalho ou devam se adaptar a um gosto duvidoso, dito cos mopolita, de forma a atender aos propósitos de lucro dos empresários culturais. Mas cosmopolitis mo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas servilidade a modelos e modas importados e rentáveis.
Como, porém, subsistir enquanto se espera? Como assegurar aos jovens que o seu esforço re ceberá, um dia, o reconhecimento? Esse é um grave problema do trabalho intelectual em geral e das tarefas especificamente culturais em particu lar, em tempos de globalização, sobretudo nos re gimes neoliberais como o nosso.
Sistema de caricaturas Nas circunstâncias atuais, não é fácil manter-se autêntico e o chamamento é forte, a um escritor,
A pedra de toque do êxito legítimo, que não se mede pelo resultado imediato ou pelo sucesso apenas mercantil, estará em saber distinguir trigo e joio, cultura autêntica e indústria cultural.
O Ministério da Cultura deveria promover uma re flexão nacional e pluralista sobre a questão. Em sua falta, as universidades públicas bem poderiam fazer jus à sua vocação e corajosamente assumir a responsabilidade da iniciativa. Não dá mais para fazer de conta que o problema não existe.
Milton Santos
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NO BRASIL, HIPOCRISIA MARCA QUESTÃO RACIAL
No Brasil, predomina a ambivalência com que a sociedade reage quando há um problema negro. Esse engano se resume no raciocínio pelo qual feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo. É a hipocrisia permanente, fruto de ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada.
07/05/2000 - Editoria: MAIS! Página: 14 a 16 - Seção: + BRASIL 501 D.C. Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro
Há uma frequente indagação sobre como é ser
acolhera nenhuma forma de discriminação ou pre
negro em outros lugares, forma de perguntar,
conceito. 500 anos de culpa Agora, chega o ano
também, se isso é diferente de ser negro no Bra
2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente
sil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em
a construção unitária da nação. Então é ao menos
quatro continentes, Europa, Américas, África e
preciso renovar o discurso nacional racialista.
Ásia, seja como quase transeunte, isto é, confe
Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de
rencista, seja como orador, na qualidade de pro fessor e pesquisador.
desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica!
Desse modo, tivemos a experiência de ser negro
O próprio presidente da República considera-se
em diversos países e de constatar algumas das
quitado porque nomeou um bravo general negro
manifestações dos choques culturais correspon
para a sua Casa Militar e uma notável mulher ne
dentes. Cada uma dessas vivências foi diferente
gra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de
de qualquer outra, e todas elas diversas da pró
que falta nomear todos os negros para a grande
pria experiência brasileira. As realidades não são
Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da
as mesmas.
Educação, basta que continuem a frequentar as
Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha
piores escolas e, para o ministro da Justiça, é su
sido, desde os inícios da história econômica, es
ficiente manter reservas negras como se criam re
sencial à manutenção do bem-estar das classes
servas indígenas.
dominantes deu-lhe um papel central na gestação
A questão não é tratada eticamente. Faltam mui
e perpetuação de uma ética conservadora e desi
tas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e
gualitária. Os interesses cristalizados produziram
os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política
convicções escravocratas arraigadas e mantêm
consequente. Ou os negros deverão esperar mais
estereótipos que ultrapassam os limites do simbó
outro século para obter o direito a uma participa
lico e têm incidência sobre os demais aspectos
ção plena na vida nacional? Que outras reflexões
das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente,
podem ser feitas, quando se aproxima o aniversá
a ascensão, por menor que seja, dos negros na
rio da Abolição da Escravatura, uma dessas datas
escala social sempre deu lugar a expressões vela
nas quais os negros brasileiros são autorizados a
das ou ostensivas de ressentimentos (paradoxal
fazer, de forma pública, mas quase solitária, sua
mente contra as vítimas).
catarse anual?
Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco
Hipocrisia permanente No caso do Brasil, a marca
séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não
predominante é a ambivalência com que a socie
tolerar manifestações de inconformidade, vistas
dade branca dominante reage, quando o tema é a
como um injustificável complexo de inferioridade,
existência, no país, de um problema negro.
já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais
158
Milton Santos
Essa equivocação é, também, duplicidade e pode
Costuma-se dizer que uma diferença entre os Es
ser resumida no pensamento de autores como
tados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha
Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem,
de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é
entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas
pouco mais do que alegórica, pois não podemos
manifestá-lo.
aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a
Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do
verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pes
problema torna-se uma situação escorregadia, so bretudo quando o problema social e moral é subs tituído por referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discrimina ção, racismo e quejandos, com os inevitáveis ape los à comparação com os norte-americanos e eu ropeus. Às vezes, até parece que o essencial é fu
soa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro. Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é pre
gir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o
conceituosa.
que é?
A individualidade é uma conquista demorada e so
Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa
frida, formada de heranças e aquisições culturais,
problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequente mente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso indi vidualmente repetido é, também, utilizado por go vernos, partidos e instituições. Tais refrões cansa tivos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica. Marcas visíveis Que fazer? Cremos que a discussão desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a in dividualidade e a cidadania. A corporeidade impli ca dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objeti vamente. Com a verdadeira cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indiví duo, seja ele quem for, iguala-se à força do Esta do ou de outra qualquer forma de poder: a cida dania define-se teoricamente por franquias políti cas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social.
de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mes mo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrín seco não muda a avaliação extrínseca, nem a va loração objetiva da pessoa, diante de outro olhar. No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutila da, o caso dos negros é emblemático. Os interes ses cristalizados, que produziram convicções es cravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialida de e da sociabilidade. Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de come morações, de vigorosamente recusar a participa ção em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro _imagem fá cil_ e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua cons ciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidada nia. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o de
Milton Santos
159
bate sobre os negros é prisioneiro de uma ética
Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser
enviesada. E esta seria mais uma manifestação da
objeto de um olhar enviesado. A chamada boa so
ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira
ciedade parece considerar que há um lugar prede
consequência é esvaziar o debate de sua gravida
terminado, lá em baixo, para os negros e assim
de e de seu conteúdo nacional.
tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incô
Olhar enviesado Enfrentar a questão seria, então,
modo haver permanecido na base da pirâmide so
em primeiro lugar, criar a possibilidade de ree
cial quanto haver "subido na vida".
quacioná-la diante da opinião, e aqui entra o pa
Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam
pel da escola e, também, certamente, muito mais,
com jogos de palavras, que aqui não há racismo
o papel frequentemente negativo da mídia, con
(à moda sul-africana ou americana) ou preconcei
duzida a tudo transformar em "faits-divers", em
to ou discriminação, mas não se pode esconder
lugar de aprofundar as análises. A coisa fica pior
que há diferenças sociais e econômicas estrutu
com a preferência atual pelos chamados temas de
rais e seculares, para as quais não se buscam re
comportamento, o que limita, ainda mais, o en
médios.
frentamento do tema no seu âmago.
A naturalidade com que os responsáveis encaram
E há, também, a displicência deliberada dos go
tais situações é indecente, mas raramente é adje
vernos e partidos, no geral desinteressados do
tivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de
problema, tratado muito mais em termos eleito
uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual
rais que propriamente em termos políticos. Desse
é urgente reagir se realmente desejamos integrar
modo, o assunto é empurrado para um amanhã
a sociedade brasileira de modo que, num futuro
que nunca chega.
próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.
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Milton Santos
REVELAÇÕES DO TERRITÓRIO GLOBALIZADO 16/07/2000 - Editoria: MAIS! Página: 16 A geografia brasileira foi a primeira a se aperceber da relação entre a globalização e a necessi dade de atribuir novos fundamentos filosóficos e epistemológicos, o que a estabelece como in térprete autorizada da realidade nacional
Hoje, em Florianópolis, instala-se o 12º Encontro
exageros de uma certa sociologização barata ou
Nacional de Geógrafos. O programa da reunião
de um ecologismo bisonho, utilizando caminhos
prevê a realização de intensos debates sobre o fu
fáceis, buscam, favorecidos pela moda, impor-se
turo da disciplina, na universidade e na sociedade
como modelo, ainda que cientificamente ineficaz.
brasileiras. Também está previsto o lançamento
O saldo geral é, todavia, positivo, pois nesses vin
de um manifesto, por um grupo de geógrafos da
te e poucos anos tanto a geografia chamada hu
Universidade de São Paulo, acerca do papel ativo
mana quanto a geografia chamada física instala
da geografia, isto é, "a possibilidade de uma in
ram-se definitivamente como ciência social.
tervenção válida dos geógrafos no processo de
É possível que a disciplina da descrição e da expli
transformação da sociedade e a sua relação com a maneira como a disciplina e o seu objeto são conceituados". A intenção dos seus autores é pro vocar uma discussão que se prolongue no tempo, alcance todas as escolas e instituições de pesqui sas e influencie na reformulação dos currículos, alguns dos quais estão sabidamente inadequados.
cação das relações entre a humanidade e o plane ta esteja conhecendo, na passagem do século, o mesmo conjunto de circunstâncias favoráveis que, mais de cem anos atrás, iria justificar a emergên cia da psicologia. Todos, então, reconheciam a distinção substantiva entre o corpo e a mente, apesar da profunda imbricação entre os dois. Mas,
Em 1978, no encontro realizado na cidade de For
no início, ia-se pouco além dessa constatação.
taleza, um grande movimento lançou as bases de
Foram as novas circunstâncias históricas e o pró
uma notável renovação da disciplina, ao mesmo tempo em que se buscava uma saída para o im passe com o qual a subordinação aos interesses do regime militar e a grande dependência do mo delo quantitativista haviam limitado o desenvolvi mento da geografia como um campo do saber so cial.
prio desenvolvimento da vida interpessoal que im puseram uma visão menos simplista e mais autô noma do que viria a ser o objeto da nova discipli na, tornada fundamental para explicar, de forma menos empírica e aleatória, os sentimentos, as volições, os impulsos, a orientação do acontecer pessoal como dados importantes das ações dos
Já agora é possível, sobretudo por intermédio das
homens, individualmente uns sobre os outros e
teses e dissertações defendidas nos diferentes
sobre a sociedade como um todo.
programas de pós-graduação, mas também no
Agora, quando a constituição do território é um
exercício do ensino, verificar os progressos obti dos.
dado essencial na produção da história, nesta era da globalização, também não basta proclamar que
Una e bifurcada
o espaço geográfico existe como um dado insepa
É verdade que uma certa morosidade em nossa
rável do resto da vida social. Lugares e regiões
vida acadêmica, acarretando uma menor densida de no debate de problemas substantivos, tem o papel de frear o movimento renovador. Herdeira de uma tradição tenaz, a geografia con tinua querendo ser una, mas ainda se exerce mais frequentemente de forma bifurcada, mesmo se os
tornam-se tão fundamentais para explicar a pro dução, o comércio, a política, que se tornou im possível deixar de reconhecer o seu papel na ela boração do destino dos países e do mundo. O es paço geográfico torna-se algo dotado de grande autonomia no processo histórico e é exatamente
Milton Santos
161
esse fato _essa maturidade histórica_ que leva a
quanto o direito internacional e a ciência política
uma reafirmação da geografia no rol dos saberes.
costumavam trabalhar com uma noção de territó
Assim, não basta descrever como são o mundo, o
rio como se ele fosse uma forma vazia, uma espé
país, os lugares e impõe-se ir mais longe, deta lhar suas interinfluências recíprocas com a socie
cie de receptáculo, mesmo ao considerar o papel da população e seus movimentos, da produção e
dade, seu papel essencial sobre a vida do indiví
suas etapas e da lei.
duo e do corpo social, tarefas que exigem uma re
Cuida-se agora de reconhecer a inseparabilidade
visão aprofundada dos fundamentos e dos méto
estrutural, funcional e processual entre sociedade
dos da geografia.
e espaço geográfico, no presente como no passa
Barreiras metodológicas
do e no futuro. Desse modo o território é visto
A geografia brasileira foi, certamente, a primeira a se aperceber da relação entre essa grande mu dança histórica _a globalização_ e a necessidade profunda de atribuir novos fundamentos filosófi cos e epistemológicos. Dessa forma é que, entre nós, nos dois últimos decênios, a disciplina, antes limitada às escolas e, às vezes, a certas áreas do governo, ganha ao mesmo tempo um público mais amplo que os seus limites disciplinares e ob tém uma relevância política que a estabelece como intérprete autorizada da realidade nacional. Foi, para isso, necessário ultrapassar algumas barreiras metodológicas mantidas durante prati camente todo o século nos países que, fundadores do campo de estudo, se constituíam até então nos principais exportadores das idéias mestras e da metodologia a utilizar.
como um palco, mas também como um figurante, sociedade e território sendo simultaneamente ator e objeto da ação. Só desse modo a geografia pode alcançar um enfoque totalizador que autori ze uma intervenção política interessando à maior parte da população. O território, tomado como um todo dinâmico, é, hoje, o principal revelador dos grandes problemas nacionais, já que ele permite uma visão não-frag mentada e unificada dos diversos processos soci ais, econômicos e políticos. Por exemplo, gover nantes talvez bem-intencionados, mas simplistas, continuam batendo na tecla já gasta da guerra fiscal, quando a questão é estrutural e substanti va, ligada ao modelo de país que continuamos abraçando. Não é à toa que as grandes empresas (incluindo os bancos) governam mais a vida e o destino das pessoas e coletividades lá onde mo
Não é preciso dizer que esse processo é o mesmo
ram e trabalham do que mesmo os governos elei
que, apesar de bolsões persistentes de resistên
toralmente constituídos. Mas, políticos e adminis
cia, vai permitir a constituição de uma geografia
tradores de todos os partidos ainda crêem que,
brasileira autônoma no fim do século 20.
mudando as regras de um jogo equivocado, vão
Duas idéias-força são basilares na produção dessa
suprimir essa famosa "guerra fiscal", quando o
evolução. De um modo geral, a geografia tanto
verdadeiro problema é a crise da nação, mostrada pela estrutura e o funcionamento do território.
162
ALTOS
Milton Santos
E BAIXOS NA POLÍTICA
01/10/2000 - Editoria: MAIS! Página: 20-21 O fato de que hoje tudo é política traz consigo consequências positivas, entre elas a aceleração na formação da consciência das camadas populares
É pelo menos insólita a insistência dos nossos cír
Essa relação entre o mundo do trabalho e o mun
culos oficiais em querer separar, de modo absolu
do da política, ampliada com a generalização da
to, o que é político do que não é. Assim, toda
técnica, fica ainda mais clara numa situação em
ação sindical, toda reclamação da igreja, em
que o emprego se tornou crítico, levando a uma
suma, todo movimento social, ao postular mudan
ânsia de entender melhor por que as coisas são
ças, é criticado como inadequado e até mesmo
assim. As "ideologias" que se interpõem entre o
hostil à democracia, já que não lhe cabe fazer o
trabalho e o capital, o trabalho e as coisas, o tra
que chamam de política. Ao contrário, as ativida
balho e a vida existem para mascarar essa situa
des dos lobbies e as exigências de reforma do Es
ção. Mas já não conseguem enganar. É desse
tado feitas pelas empresas não são tidas como
modo que se alimenta o processo que leva à
atividades políticas. Essa parcialidade é tanto
conscientização.
mais gritante quando todos sabemos que o essen
Nesse processo, o território tem um papel privile
cial na produção da política do Estado tem como atores principais as grandes empresas, cabendo aos políticos propriamente ditos e ao aparelho do Estado um papel de figurantes secundários, quan do não de meros porta-vozes.
giado porque, hoje, um dado central da explica ção do trabalho é dado pelo que chamamos de tecnoesfera _a esfera do mundo técnico que se superpõe e tantas vezes substitui a natureza_, que passa a ter um grande significado na redefini
A política se caracteriza como exercício de uma
ção do fenômeno político. Por isso cada pedaço do
ação ou defesa de uma idéia destinada a mudar o
território tem uma relevância política específica,
curso da história. No mundo da globalização, onde
exigindo um discurso específico.
a técnica e o discurso são dados obrigatórios das
Em todos os casos, duas situações-limite são pos
atividades hegemônicas, o induzimento à política é exponencial. O mundo da técnica cientificizada é também o mundo das regras, de cujo uso ade quado depende a maior ou menor eficácia dos instrumentos disponíveis.
síveis. Uma é a descoberta completa do que, nas situações vividas, é o verdadeiro. A outra é o en venenamento dos espíritos pela ideologia e a pro paganda e a turvação da consciência. Essas são situações ideais. A realidade é a multiplicidade de
Técnica e política
combinações que caracterizam a geografia política
Nas condições atuais, as técnicas presentes na fá
de um país, de um lugar e do mundo.
brica e no escritório ou incorporadas ao próprio
Paralelamente, são dois os comportamentos polí
solo como infra-estruturas acabam por condicio
ticos, igualmente esquemáticos. Vamos simples
nar as formas de trabalho, as relações sociais e a
mente chamá-los de política dos de cima e política
vida cotidiana, já que constituem condições para
dos de baixo. No primeiro caso, que reúne as
os comportamentos, permitindo ou proibindo as
questões das grandes empresas e do aparelho do
ações, segundo a posição de cada qual na escala
Estado, se trata geralmente de uma atividade
social e segundo a cota de cidadania que lhe ca
sem preocupação com a busca de um destino. Ela
be. Tudo isso é política. As técnicas sugerem o
se constitui dentro de um sistema que é solida
que é possível fazer, mas é a política que define a
mente estabelecido, funcionalmente autônomo e
participação efetiva dos trabalhadores (e do capi
auto-referido. Daí a verdadeira arrogância com a
tal) no produto final.
qual se impõe à nação, dizendo representá-la,
Milton Santos
163
numa atividade dominadora, articulada e legiti
pria política dos de cima revela um movimento di
mada pelas formas jurídicas.
alético. O conjunto de circunstâncias que vivemos
Mas trata-se da política como um simples jogo de
provoca impotência e revolta, ressentimento e de
poder, um vale-tudo, em que o essencial são os resultados imediatos, movidos no plano econômi
sesperança, mas também abre a porta para uma nova visibilidade do verdadeiro significado das re
co pela busca do ganho desenfreado e no plano
lações sociais dominantes.
político por preocupações partidárias, setoriais e
Os pobres e grande parcela das classes médias
por interesses frequentemente anti-sociais.
ganham consciência de que a manutenção do atu
Trata-se de mera politicaria, ainda que, para se
al estado de coisas é apenas possível porque vio
identificar, na propaganda oficial ou oficiosa, usurpe e utilize a palavra política. No segundo caso, há uma busca de coerência en tre o interesse do maior número de pessoas e a elaboração de novas idéias e novos projetos. A atividade correspondente reúne movimentos for mais ou informais, entidades estruturadas e tam bém vozes dissonantes, todos empenhados, fer vorosamente, numa atividade nobre, generosa, pedagógica, mas sem os meios materiais, jurídi cos e políticos de sua realização política. É a razão pela qual os de baixo mostram-se fre quentemente incapazes de uma articulação mais ampla e continuada e, em consequência, encon tram dificuldades tanto para propor como para le var adiante ações políticas mais válidas. O jogo de forças é claramente hostil a esta última, pois os instrumentos de poder são legalmente reservados a um certo tipo de atores e recusados aos outros, inclusive com o argumento de que a estes não cabe fazer política, devendo se contentar com postulações corporativas, portanto ainda mais iso ladas. Pode-se, todavia, acreditar que uma outra situa ção pode ser criada. O fato de que hoje tudo é política traz consigo consequências positivas, en tre elas a aceleração na formação da consciência das camadas populares. O Brasil dos últimos anos vem revelando movimentos ainda desconexos, mas profundos, de recusa à aceitação do modelo imposto. Uma outra evolução
lências novas são inventadas, ainda que venham revestidas com a capa da legalidade. Todavia o discurso que as legitima é cada vez menos aceito. A reação inclui manifestações de negatividade e de positividade. A negatividade em estado puro é a violência em suas diferentes denominações. E há, também, formas mistas, como o voto útil, a demanda por realizações materiais etc. Tais mani festações de negatividade são geralmente anima das pelo sentido de urgência que a precariedade da vida impõe aos que estão embaixo e não en contram a forma ou a força para se juntar às ma nifestações de positividade. Estas começam geralmente por uma reflexão, es pontânea ou induzida, quanto à sua própria situa ção na sociedade, e tanto podem ter a forma de uma procura por novas formas de ação como por uma reflexão silenciosa, que é promessa de uma ação política diferente. As manifestações de posi tividade podem, porém, tomar forma de ação or ganizada, como nas igrejas, nos sindicatos e em outras instituições da sociedade civil, como as as sociações de bairro, nos grupos de sem-teto, sem-emprego, sem-escola, entre os quais o movi mento dos sem-terra ganhou um valor emblemá tico. Parece evidente que a descoberta de outros valo res, outras possibilidades e o desejo de uma vida política mais digna ganha corpo na sociedade bra sileira. As formas tradicionais de fazer política são um modelo de atraso, pois a canalização eficaz das queixas e reivindicações dos de baixo é impe dida pela política dos de cima. É a partir dessas
As próprias formas recentemente adquiridas pelo
constatações que os partidos do progresso e os
trabalho e pelo não-trabalho, a maneira como a
setores de boa vontade de alguns outros podem
vida cotidiana se dá, o uso contraditório da infor
entregar-se à uma tarefa de renovação, facilitada
mação e o papel revelador dos lugares apontam
pelo fato de que, em tempos de globalização,
para uma outra evolução, na qual o papel da pró
tudo é política.
164
Milton Santos
O TEMPO DESPÓTICO DA LÍNGUA UNIVERSALIZANTE 05/11/2000 - Editoria: MAIS! Página: 16-17 A nova arquitetura do mundo se funda na universalidade de um único sistema técnico; tudo o que se refere a ações hegemônicas na vida econômica, política e cultural se diz em inglês
Formas de expressão tão velhas quanto a história,
A nova arquitetura do mundo, da qual resulta a
as línguas nasceram da interação com o espaço
globalização a que estamos assistindo, se funda
da vida. Tempo houve em que todas as línguas
na universalidade de um único sistema técnico. E,
eram, por assim dizer, "naturais", territorializa
nas condições atuais, tudo o que se refere a ações
das, produtos do ambiente social. Mais tarde, o
hegemônicas na vida econômica, política e cultu
comércio e as conquistas tanto foram elementos
ral parece se dizer em inglês. Mas, da mesma for
de desagregação quanto de enriquecimento lin
ma que não existe espaço global, senão apenas
guístico.
espaços de globalização, também não existe lín
Alguns países e nações construíram sua unidade
gua universal, senão apenas uma língua universa
graças ao concurso de línguas transplantadas de
lizante.
outras geografias. Pode-se então falar de desterri
Atualmente os espaços linguísticos hegemônicos
torialização. É o caso, por exemplo, do português
estão incluídos nos espaços geográficos e de certo
no Brasil ou do francês no Canadá. Em outros ca
modo os englobam, por sua vez. Mas eles já não
sos, a língua importada impunha-se exatamente
se superpõem. Esses novos espaços linguísticos
como intermediário entre o exterior e o interior e
são espaços instrumentais, e não espaços vitais,
dominava as intersecções que eram as cidades,
no sentido próprio: são espaços de organização, e
os núcleos rurais de modernização, os grupos so
não espaços orgânicos.
ciais relacionados etc.
Os continentes lógicos, fundados nas relações in
As mediações se faziam por meio da religião, do
dustriais, comerciais e estratégicas do nosso tem
ensino e do dinheiro. E a língua da transação bus
po, podem prescindir de território, pelo menos se
cava igualmente se impor como língua de cultu
empregarmos esse termo tal como a modernidade
ra... moderna. Todavia os domínios linguísticos
européia o definiu, a saber, uma extensão contí
nunca foram universais, ecumênicos. Nem o latim
nua, marcada pela presença de uma sociedade
nem o árabe, apesar do vigor com que se propa
que o torna coerente. O espaço de pontos, isto é,
garam, conseguiram ocupar a totalidade do mun
o não-espaço, eis a base geográfica desse novo
do habitado. E o sonho de uma língua única, en
império linguístico.
carnado por uma língua artificial, o esperanto,
Seja como for, convém reconhecer, em primeiro
não logrou concretizar-se. É uma língua natural que, neste fim de século, parece conseguir se im por a um mundo artificializado. Mas então já não se faz necessária a presença de um
lugar, a importância desses fluxos verticais e des sa ação vertical na vida econômica, nas transa ções culturais, na modelação dos espíritos, na produção calculada de uma geopolítica planetária
colonizador. É essa, talvez, a diferença entre os
fundada na informação.
fluxos linguísticos comandados pela Grã-Bretanha
Essas novas verticalidades confundem os espíri
em direção a alguns pontos e zonas de diversos continentes e os fluxos mais localizados e precisos provenientes dos Estados Unidos. Espaços instrumentais
tos. Mesmo entre os geógrafos, muitos desespe ram do próprio objeto de sua pesquisa e não pa ram de repetir, de modo um tanto temerário, que o espaço já não existe. Em verdade, a apreensão das divisões do espaço passa hoje pelo reconheci
Milton Santos
165
mento da existência de dois cortes simultâneos e
Trata-se de superpor ao espaço rugoso, vivido,
complementares. Designo esses cortes geográfi
um espaço liso, matematizado, apto para o cálcu
cos pelos termos verticalidade e horizontalidade.
lo, em que a duração suprime a extensão. Como
As verticalidades são formadas por pontos, as ho
prognosticava Sorel, estamos a um passo de so
rizontalidades por planos. As verticalidades dãonos o que se denomina espaço dos fluxos, a pai sagem eficaz, o reino do cálculo, o domínio da ra cionalidade cega e triunfante. As horizontalidades
brepor à natureza "um laboratório ideal". A utili zação prática dessas novas paisagens supõe, to davia, a existência de uma linguagem matemática veiculada por uma língua instrumental, uma lín
dão-nos o espaço banal, o espaço da vida, do co
gua vertical que ameaça as linguagens territoriais.
tidiano compartido por todos, o reino em que to
O que se diz ser a supressão do espaço pelo tem
das as emoções são permitidas. Mas não existe
po nada mais é do que a afirmação de um tempo
separação real entre essas duas realidades. Suas
despótico, medido por um relógio mundial que só
racionalidades coexistem e se interpenetram, mo
funciona plenamente nos espaços desse tempo
dificam-se mutuamente, cada qual se afirmando,
despótico que designamos por espaços de globali
a cada instante, em função de seus próprios obje
zação. Essa temporalização e essa espacialização
tivos.
não existem, contudo, senão para alguns atores
Sucederá o mesmo com a confrontação entre a
da cena mundial.
língua tornada vertical e as línguas que permane
Que dizer, por exemplo, de Michael Jackson? Se
ceram horizontais? Um filósofo francês, Bernard
gundo seu empresário Marcel Avram, em entre
Stiegler ("La Technique et le Temps", A Técnica e
vista à Folha, em 9 de outubro de 1993, o mais
o Tempo, Galilée, 1994), rememorando a lição de
moderno dos "pop stars" globalizados "não se
André
Techniques",
lembra da América do Sul. Ele achava que Cara
Meio e Técnicas, Albin Michel, 1945), lembra a re
cas ficava na Jamaica". No hotel cosmopolita que
lação íntima que no passado existia entre a tecno
teria feito nascer nele essa idéia, um dos mem
logia e a etnologia. Evoluindo, então, de comum
bros da equipe usava uma "t-shirt" com a seguin
acordo, elas formavam juntas uma espécie de ge
te frase: "Meu trabalho é tão secreto que nem sei
ografia social.
o que faço". Então, de que metáfora, de que ex
Delírio de rapidez
periência se trata?
A idéia de "meio-associado", tomada de emprésti
O "speaker" da Câmara dos Deputados america
Leroi-Gourhan
("Milieu
et
mo a Simondon ("Du Mode d'Existence des Objets Techniques", Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos, Aubier, 1958), vem a propósito para compreender melhor ainda esse processo. Hoje, porém, as técnicas não buscam se amoldar a esse "meio-associado", que no entanto foi indispensá vel para a sua implantação. Elas pretendem insta lar-se na indiferença e transformam o seu conti nente sociogeográfico. À semelhança da informa
na, o republicano Newt Gingrich, em artigo publi cado no mundo inteiro (ver "Le Monde" de 2 de março de 1995), fala sem pudor da vocação de seu país para mostrar o caminho à humanidade. Um de seus argumentos se baseia no papel que esse país deve desempenhar na revolução da in formação. De que projeto, de que realidade se trata? O fato é que, em passado recente, também a Europa fora vista como preceptora do universo,
ção hegemônica que ela transporta, será que a
porque detentora da rapidez.
língua hegemônica desempenha esse papel? Tra
Mas o espaço-tempo desses atores hegemônicos
ta-se de mais um episódio daquela busca deses
da cena atual, repousando em pontos isolados da
perada de unificação da racionalidade que visa à
ação, se funda sobretudo na técnica, enquanto os
construção de instrumentos de ação que assegu
demais pontos assistem a uma recriação não pla
rem a implantação generalizada da fluidez a servi
nejada da história. Confundir esse espaço e esse
ço do pragmatismo. Daí o delírio de rapidez, do
tempo hegemônicos com o tempo e o espaço dos
qual as rodovias da informação, aparentemente
6 bilhões de homens e mulheres que povoam a
imateriais, são o aspecto concreto.
Terra é um grave equívoco. Principalmente por
166
Milton Santos
que, como dizia Gaston Berger ("Phénoménologie
Por mais que se procure nos fazer acreditar no
du
PUF,
contrário, não existe uma racionalidade única,
1964), nosso mundo novo se caracteriza também
nem uma única forma de pensar e de viver no
pelo fato de que as massas entraram em movi
mundo. A descoberta de novas formas de coexis
mento.
tência é uma tarefa urgente que não pode ser
As massas se mobilizam nos lugares, nos espaços
abandonada à mera espontaneidade, porque exi
Temps",
Fenomenologia
do
Tempo,
de horizontalidade e de emoção, em que produ
ge um mínimo de organização.
zem a linguagem com a qual elas afrontam o
Saber técnico ou mundial
mundo. Nesse caso, a criação territorial de novas
A história das relações internacionais dos últimos
coerências horizontais aparece como fundamen tal. Trata-se de estimular essa criação em todos os domínios, pois só assim o domínio linguístico não ficará isolado. A música já nos fornece algumas respostas que pertencem mais ao domínio do espontâneo que ao do organizado. O rap, criado no meio urbano dos Estados Unidos como forma de expressão da ju ventude, se propaga no mundo inteiro e assume localmente uma fisionomia própria, sem perder o seu conteúdo universal. O rap brasileiro é diferen te do rap americano, como o é também do rap francês. Algumas celebridades da canção brasilei ra de renome internacional, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, dão espetáculos muito aplaudi dos em que a música técnica abre espaço para que as canções se imponham por seu conteúdo melódico e não por sua tecnicidade.
três séculos é também uma história de desvalori zação do saber dos outros. Com a globalização to talitária a que assistimos, esse processo se acele ra. No mundo atual, vetores verticais _que incluem a língua vertical_ instalam-se como fatores entrópi cos que ameaçam todos os equilíbrios estabeleci dos porque afetam o meio ambiente, a economia e a cultura. Um saber vertical _que é saber técnico_, que se pretende saber mundial, tenta se impor aos sabe res horizontais autênticos. Isso permite dizer que a famosa distância cultural assim gerada pertence mais ao domínio da fábula que ao da realidade, já que esse saber vertical, tão eficaz, carece de sen tido. Na verdade o saber local, horizontalizado, pode ser mais universal que esse saber pretensa mente mundial destinado a criar um mundo uni forme e sem objetivo.
Milton Santos
167
O NOVO SÉCULO DAS LUZES 14/01/2001 - Editoria: MAIS! Página: 14 Temos fundadas razões para acreditar que é pos
tesanato, à criatividade, à beleza, ao sentido da
sível uma outra globalização, diferente da atual.
vida.
Em primeiro lugar, os seus principais fundamen
Em primeiro lugar, graças à presença de grande
tos materiais são sistemas técnicos dóceis, diver sos daqueles de épocas anteriores e cuja perfor mance exige inteligência, e toleram diversificação de uso. É fato que, nas condições de hoje, há um uso hegemônico desses sistemas técnicos basea dos na informação, mas eles também são adequa dos _compatíveis, como atualmente se diz_ com formas de utilização que respeitem as peculiarida des de cada sociedade. Falta somente que os da dos materiais já existentes sejam empolgados por novas formas políticas.
número de pobres e de uma população intelectua lizada, nota-se uma espécie de rejeição do mode lo hegemônico, um dado mais ou menos geral, mesmo se as reações particulares são específicas. Cada lugar é constitucionalmente diferente dos outros, pela sua história e pela sua condição atu al, mas todos são exigentes de soluções aos pro blemas emergentes, remédios que os poderes lo cais raramente têm meios para oferecer. Como o fenômeno é geral, tantas carências reunidas tor narão necessária a reconsideração da arquitetura
A própria dinâmica da globalização leva a uma
política de cada país, porque na situação atual
grande turbulência das populações, entre conti
apenas os governos centrais têm condições para
nentes e dentro deles, um caldeamento nunca
negociar com o "mundo".
visto de culturas, línguas, religiões e manifesta
Todavia o atendimento aos reclamos dos lugares
ções existenciais. E, paralelamente, a população humana revela uma tendência a aglomerar-se em certos pontos do planeta. As grandes aglomera ções são o lugar por excelência de uma humani dade misturada e é na grande cidade que esse papel de cadinho se dá com mais força.
pelos poderes centrais torna-se imperativo, já que esses lugares, onde se dá o essencial da vida econômica e social de cada país, são a sede de crises permanentes, características da nova civili zação. A busca de remédios eficazes não parece possível sem que o modelo global imposto a cada
Nação localizada
país seja revisto. Assim, mais cedo ou mais tarde,
Não há dúvida de que as condições atuais da glo
todos os países submetidos ao jugo da globaliza
balização conduzem a uma fragmentação, mas as
ção perversa serão forçados a rever os termos
metrópoles resultantes do mesmo movimento le
atuais de sua dependência.
vam, praticamente, a uma espécie de reconstitui
Certamente o desengajamento diante da globali
ção localizada da nação, com uma realidade pró
zação atual não se mostrará necessário aos diver
pria, uma cultura específica, uma vontade particu
sos países ao mesmo tempo, mas constituirá um
lar de ser mundo.
processo inevitável. E a partir dessa evolução his
A dinâmica dessas grandes cidades é relacionada
tórica podemos acreditar na inversão gradativa do
com a dos países em que se inserem, mas tam bém é dotada de autonomia. Nesses lugares, há
processo atual, mediante a construção de uma globalização de baixo para cima, uma globalização
uma produção própria de sentido, que não é obri
verdadeiramente humana.
gatoriamente o mesmo da nação como um todo.
Novas condições materiais _como as enumeradas
Num "mundo" que se deseja impor sobre cada um
acima_ e novas condições filosóficas devem cons
dos seus pontos, as cidades, sobretudo as mais
pirar para levar à nova grande transformação, à
populosas, realizam uma espécie de "revanche do
maneira do que o sociólogo americano Thorstein
lugar". É aí onde estão as maiores possibilidades
Veblen (1857-1929) pensou no alvorecer do sécu
de uma utilização mais racional e humana das no
lo 20. O século 21 será certamente o novo século
vas tecnologias, numa espécie de regresso ao ar
das luzes.
168
Milton Santos
Pela primeira vez na história o novo deixa de ser
as anima_, a qual oferece a todos a possibilidade
apenas uma referência ao amanhã; ele é também
de reconhecer ao planeta a condição de ser uni
constituído do que hoje ainda não se realizou,
versal, já que a facticidade das ações encontra
mas a partir de possibilidades atuais concretas.
um denominador comum, unindo todos os fatos
Tudo o que nos rodeia, aqui e em outras partes
numa só lógica. Agora que o capitalismo é a única
do mundo, sugere a possibilidade de realizações viáveis, mas ainda não presentes. A história atual é, em si mesma, uma matriz de novidades. Cada coletividade e cada pessoa são testemunhas integrais do presente, ainda que nem sempre pos sa avaliá-lo. E, paralelamente, cada pessoa (ou grupo) é também um testemunho vivo de um mundo tornado próximo. Somos contemporâneos do verdadeiro milagre pelo qual cada geração entende _ou, ao menos, é capaz de entender_ o universo como um todo e percebe cada qual de suas partes como parte do mundo. E _outra novidade_ a consciência de ser mundo é dada, concomitantemente, ao lugar e ao indivíduo. Nova inteligência
forma político-econômica dominante sobre a face da Terra, alcançamos também uma nova qualida de da dialética, agora empiricamente realizada e manifestada como contradição em estado puro; tudo o que é vivido pelos homens participa dessa condição dialética. Como cada pessoa pode entender o mundo como um todo, a dialética se torna um patrimônio co mum: todos de alguma forma a vivem; muitos a reconhecem como oposição, contraste ou parado xo; alguns a definem e identificam como condição existencial. Mas, nessa mesma sequência, essa é também a ordem lógica da produção de uma nova inteligência do mundo. A dialética se confunde com o presente vivido e o apego ao passado pode significar uma identidade com as raízes, mas a escolha do futuro vai, sobre
Essa nova iluminação _sobre o mundo e sobre si
tudo, depender desse entendimento do mundo
mesmo_ tem muito que ver com a ubiquidade das
atual. Nossa grande esperança vem do fato de
técnicas, base material da universalidade empírica
que a partir deste século é a vida, isto é, a pró
_dada pela unicidade das técnicas e do motor que
pria existência, que ilumina o futuro.
Milton Santos
169
ELOGIO DA LENTIDÃO 11/03/2001 – Editoria: MAIS! Página: 14-15 O mundo de hoje parece existir sob o signo da ve
das de adaptação urgente _técnica ou organizaci
locidade. O triunfo da técnica, a onipresença da
onal_ cada vez que uma nova conquista científica
competitividade, o deslumbramento da instanta
é obtida.
neidade na transmissão e recepção de palavras,
A necessidade, sempre presente, de competir por
sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a idéia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, den tro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluí dos, é como se apenas fossem arrastados a parti cipar incompletamente da produção da história. Sem dúvida, a maioria das pessoas, das empresas e das instituições não se utiliza das velocidades exponenciais tecnicamente possíveis e muitos continuam a sobreviver na lentidão, mas isso não impede que o ideário dominante, em todos os ar canos da vida social, sugira uma existência com ritmos cada vez mais acelerados. Paralelamente, aquela questão do "fixo tecnológico", fulcro de tantas discussões teóricas nos anos 60 e 70, reto ma atualidade. Dizia-se que a entrada de um país na linhagem das nações desenvolvidas dependia da aceitação de condições tecnológicas então consideradas mo dernas, sem as quais a presença atuante no plano internacional seria impossível. Mas havia, tam bém, os que discutiam e recusavam essa premis sa, afirmando que tecnologias intermediárias seri am capazes de dar conta, satisfatoriamente, do processo de crescimento de um determinado país. Era um tempo diferente do atual e no qual o de bate civilizatório impedia o triunfo do pensamento único. Fuga para a frente
um mercado que é uma permanente fuga para a frente conduz a essa espécie de endeusamento da técnica, autorizando os agentes vitoriosos a man ter sua posição de superioridade sobre os demais. Na medida em que as grandes empresas transna cionais ganharam dimensões planetárias, a tecno logia se tornou um credo generalizado, assim como a velocidade. Ambas passam a fazer parte do catecismo da nova fé. Todos acabam aceitando como verdade essa pre missa. Ser ultramoderno impõe-se como uma ilu são generalizada, e o tempo desejado é o tempo da nova técnica. Seu ideário se alimenta de uma construção ideologia elaborada de forma sistêmi ca, mas que é apenas diretamente funcional para um pequeno número de atores privilegiados. De fato, somente algumas pessoas, firmas e institui ções são altamente velozes. O resto da humani dade, em todos os países, vive e produz de uma outra maneira. Essa velocidade exacerbada, própria a uma mino ria, não tem e nem busca sentido. Serve à com petitividade desabrida, coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de vista moral ou social. Fruto das necessidades empresa riais de apenas um punhado de firmas, tal veloci dade põe-se a serviço da política de tais empre sas. E estas arrastam a política dos Estados e das instituições supranacionais. E aí se situa a matriz de um grave equívoco. Porque, vista historica mente, a técnica não é um absoluto. Aliás, em seu estado absoluto, a técnica jamais foi realizada. Todas as vezes em que deixa de ser um
Hoje, graças às novas realidades da presente glo
capítulo da ciência para transformar-se em histó
balização, aquela tese do "technological fix" se ro
ria, ela se relativiza. Por isso, a velocidade he
busteceu e se impõe com muito mais força, já que
gemônica atual, do mesmo modo que aquelas que
a batalha encarniçada entre os agentes dominan
a precederam _e tudo o que vem com ela e que
tes da economia os leva à busca desesperada de
dela decorre_ é apreciável, mas não imprescindí
tecnologias "up-to-date", por sua vez necessita
vel. Não é certo que haja um imperativo técnico,
170
Milton Santos
o imperativo é político. A velocidade utilizada é
progressos políticos. Assim, o problema funda
um dado da política, e não da técnica.
mental é o de retomar o curso dessa história, re
Daí a emergência possível de uma pergunta de
colocando o homem em seu lugar central no pla
ordem prática: será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais for tes? Ou, em todo caso, poderíamos limitar essa
neta. Uma das condições para alcançá-lo parece ser o reconhecimento da realidade dos territórios tal como sempre foram utilizados pela população
força dos mais fortes?
como um todo.
No passado, a ordem mundial pôde, em diversos
São usos múltiplos marcados por diferentes velo
momentos da história, construir-se mediante a não-obediência aos ditames da técnica mais mo derna. Os cem anos que se confundem com o século do imperialismo abrigaram grandes conjuntos políti cos territoriais vivendo e convivendo segundo "idades" técnicas diversas, ou melhor, segundo combinações desiguais dos avanços técnicos pos síveis. O Império Britânico estava à frente quanto à posse e ao uso das tecnologias então mais mo dernas, e os outros impérios vinham na rabeira, depois e depois. Mas isso não os impedia de con viver. O exercício da política permitia enfrentar os conflitos internos e sugerir, cada vez, novas for mas de equilíbrio. Aliás, de um ponto de vista internacional, o que se passa dentro de cada império parece se espe lhar em relação ao que se verificava externamen te. A política comercial aplicada no interior desses grandes conjuntos territoriais, fragmentados e es palhados em diversos continentes, é que acabava
cidades e pela utilização de técnicas as mais di versas, maneira de deixar que o território nacio nal constitua uma verdadeira casa coletiva, um abrigo para todos, empresas, instituições e ho mens. Somente dessa forma, soluções de convi vência plenas ou sequiosas de humanidade são possíveis. Não se trata de pregar o desconhecimento da mo dernidade _ou uma forma de regresso ao passa do, mas de encontrar as combinações que, segun do as circunstâncias próprias a cada povo, a cada região, a cada lugar, permitam a construção do bem-estar coletivo. É possível dispor da maior ve locidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz. Numa situação em que se combinam técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um de les obrigatoriamente arraste os demais, se im põem forçosamente soluções políticas que não passem obrigatoriamente pela economia e suas
permitindo a possibilidade de sua harmonização,
conhecidas paixões inferiores.
malgrado suas diferenças de poder, dentro do
A velocidade não apenas se define a partir do
conjunto do mundo ocidental (1). O notável é que
tempo utilizado para superar as distâncias. A
o balanço desses cem anos que precedem a atual
questão é a de encontrar, para a palavra veloci
fase de globalização permite, apesar das guerras
dade, equivalentes na prática social e política.
que os marcaram, reconhecer, junto aos inegá
Acreditamos que a noção de cidadania se possa
veis progressos técnicos e ganhos econômicos, a manifestação também de progressos políticos e éticos, com a ampliação da idéia de humanidade solidária e de sociedade nacional solidária, medi ante a conquista e a busca de aperfeiçoamento de um estatuto político eficaz na construção de uma vida social civilizada, nos planos nacional e inter nacional.
prestar à discussão aqui proposta, desde que a consideremos em sua tríplice significação: cidada nia social, econômica e política. Quanto mais se afirmam essas diversas vertentes da cidadania, maior é a garantia de que a "velocidade" pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os benefícios da modernidade encontram a possibilidade de uma difusão democrática. Será dessa forma que,
Casa coletiva
num primeiro momento, serão reforçadas as indi
O progresso técnico não constituía obstáculo ao
vidualidades fortes, provocando a necessidade de
progresso moral, quando havia, paralelamente,
uma informação veraz, criando limites à propa
Milton Santos
171
ganda invasora e enganosa, tudo isso se dando
papel da cultura localmente constituída como um
paralelamente a uma renovação do papel do Esta
cimento social indispensável a que cada comuni
do nacional.
dade imponha sua própria identidade e faça valer,
Será, também, por meio desse processo que o
a um ritmo próprio, o seu sentido mais profundo.
mercado interno será revigorado e os mercados
Será um mundo no qual os que desejarem ter
comuns
horizontalizados,
pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os
abrindo caminho para que o dinheiro regresse à
que não são apressados serão fortalecidos, de
sua condição histórica de equivalente universal e
modo a poder pensar na reconstrução da paz
abandone a sua função atual de regedor exclusivo
mundial e na luta por uma convivência social dig
e despótico das relações econômicas. Pelas mes
na e humana dentro de cada país.
mas razões, aquilo a que chamamos de "informa
Nota
entre
países
serão
lidade da economia" melhor cumprirá suas fun ções econômica, social e política sem a necessida de de formalizações alienantes e fortalecendo o
1. Milton Santos, "A Natureza do Espaço" (ed. Hu citec), págs. 36, 37 e 152, 153.
172
Milton Santos
Milton Santos
173
PARTE III OUTROS ARTIGOS
174
Milton Santos
Milton Santos
175
POR UMA GEOGRAFIA CIDADÃ: POR UMA EPISTEMOLOGIA DA EXISTÊNCIA*
(*) · Artigo publicado originalmente no "Boletim Gaúcho de Geografia - Associação dos Geógrafos Brasi leiros – Seção Porto Alegre - Porto Alegre - Agosto 1996. Endereço eletrônico da AGB - Seção Porto Alegre
Vou começar como faço sempre, dizendo o se
cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e ha
guinte: as aulas fáceis não têm o menor interes
vendo os que não querem ser cidadãos, aqueles
se; os livros fáceis não têm o menor interesse; as
que buscam privilégios e não direitos.
conferências fáceis são um chantagem em relação
Duas questões aqui se colocam do ponto de vista
aos que se dispuseram a escutá-las. Estou dizen do isto com o temor de que para certos dos pre sentes algo do que vou dizer possivelmente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitan do-lhes a tolerância, mas também a atenção.
da nossa disciplina: a primeira é como ajudar a construir a cidadania através da Geografia e a se gunda é como construir a Geografia através da idéia de cidadania, tarefas inseparáveis. O que se ria esta geografia do cidadão? Seria uma geogra
O tema que me foi encomendado é "Por Uma Ge
fia engajada? Cabe conversar um pouco sobre
ografia Cidadã". Tomei a liberdade de atribuir-lhe
essa palavra. Quando utilizamos a expressão "ge
um subtítulo e esta conferência vai se chamar
ografia engajada", estaremos falando de uma ge
"Por Uma Geografia Cidadã. Por uma Epistemolo
ografia engajada a priori, decidida a encetar a ta
gia da Existência". Esta conferência vai se proces
refa da crítica, mesmo antes de concluir a tarefa
sar em quatro tempos ou pontos. Primeiro Ponto:
da análise. Mas isto pode ser apenas uma geogra
Por um Geografia Cidadã - por que uma Geografia
fia com um discurso vazio e vadio, incapaz de ofe
Cidadã? Em outras palavras, para que trabalha
recer aqueles instrumentos analíticos de que ne
mos intelectualmente hoje? Pela necessidade da
cessitamos para enfrentar a dura tarefa de inter
volta ao Homem. Segundo ponto: Geografias e
pretar a realidade social.
Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal.
A análise tem que ser pertinente. Análise perti
Já falamos nisto em outro lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geografia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espaço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o va lorativo e não sobre o adjetivo. Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de co tidiano que os geógrafos freqüentemente incorpo ram a partir da Sociologia, quando é possível fazê-lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Ge ografia, o que nos deveria permitir enriquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Episte mologia da Existência. Em outras palavras, tratase da reconstrução do método através da vida, isto é, do Homem vivendo. Por uma geografia cidadã. Por que uma geografia cidadã? Como primeira observação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste país, todos não são igualmente
nente significa que o analista sabe claramente o que está fazendo. Aliás, a dificuldade da participa ção da Geografia nas interdisciplinaridades vem do fato de que raramente uma certa geografia sabe o que está fazendo. Se os próprios geógrafos não são capazes de oferecer às outras disciplinas uma visão clara da sua pertinência, todo debate se torna impossível. O debate só é possível quan do o que fala ou escreve oferece claramente o sis tema que preside a indagação feita à realidade. Ora, esta geografia do cidadão, como a geografia tout court, necessita de uma análise fundada nes sa noção de pertinência. Poderia também fazer uma outra pergunta: será que a geografia do cidadão se opõe à geografia dos experts? Creio que sim. E aí perguntaria, em adição, se pode haver um expert generalista? Pode ser que haja. O problema com o expert, pessoa geralmente externa às coletividades às
176
Milton Santos
quais vem estudar, é a sua freqüente incapacida
co. Estas espacializações singulares, como os
de em participar do cotidiano e em perceber, sem
transportes que fluem numa área, ou como o co
partis pris, o funcionamento político das coletivi
mércio, alteram o significado de uma região. Não
dades. Na medida em que, a partir do cotidiano, o
é o espaço que se estuda assim, mas sim frag
lugar hoje se impõe como dado central das pes
mentos dele. Quando me refiro à realização da
quisas em ciências sociais, daí vem a fragilidade
economia, da sociedade, da cultura, da política, o
da geografia dos experts.
que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço
Não esqueçamos esta verdade cristalina: o valor
econômico, o espaço cultural, o espaço político, o
do homem depende do lugar onde está. Nossa di ficuldade em relação às outras ciências sociais é exatamente esta, porque o lugar é praticamente desconhecido de disciplinas sociais, como a eco nomia, a sociologia e outras. É que a noção de es paço praticamente escapa a estas disciplinas. O lugar deve ser considerado como um conjunto de objetos e, ao mesmo tempo, o receptáculo de um feixe de determinações, não apenas de algumas, como na economia (determinações econômicas); ou na sociologia (determinações sociais); ou na antropologia (determinações culturais); ou nas ci ências política (determinações políticas); mas de todas as determinações. Então, a geografia do ci dadão começa por recusar o economismo triun fante, que faz do economista não um especialista
espaço social, mas o que quero entender e preci so entender, é o espaço banal. O espaço banal é o espaço de todos os alcances, de todas as determi nações; o espaço banal é o espaço de todos os homens, não importam as suas diferenças; o es paço banal é o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espa ço de todas as empreas, não importa o seu poder. O espaço desta cidade de Passo Fundo, onde to das as pessoas - não importa a sua riqueza, a sua origem - participam, onde todas as instituições presentes participam da vida, assim como todas as empresas presentes, a isto se chama o espaço banal. E é este espaço banal que é o espaço da Geografia, diferente, pois, dos espaços adjetiva dos. E existe este espaço banal? Posso significá-lo
da sociedade, mas um servo da técnica, um tra
através de um discurso como um dado objetivo?
balhador em benefício da administração dos negó
O que é essencial, a partir desse espaço banal, é
cios aos quais as técnicas se aplicam, como se
encontrar a forma de analisá-lo, isto é, de chegar
fossem absolutas, sem necessidade de relativizá-
à produção dos conceitos que permitam dividi-lo
las.
em pedaços, autorizando uma correta tarefa de
A geografia do cidadão sugere, também, o aban
análise.
dono do sociologismo simplório. De uma maneira
Diante de um sociólogo, de um economista, de
geral, os sociólogos não oferecem metáforas es
um cientista político, de um químico, etc..., pode
paciais. Temos que agradecer-lhes, já que as me
mos dizer que a Geografia estuda o espaço, mas
táforas chamam a atenção para aspectos das
a nós mesmos é insuficiente dizer isto. Porque di
questões e os põem em relevo. Só que as metáfo
zer isso, entre geógrafos, significa, de alguma
ras não constituem sistema e, por conseguinte,
maneira, erigir uma tautologia em regra de traba
não ajudam na produção de conceitos e nem de
lho, o que leva a nada. Isto é, tal esforço, pura
teorias, fora das respectivas disciplinas.
mente tautolófico, deve ser substituído por um
Geografia e geografias, espaços adjetivados e es
esforço analítico. Isto é, temos de encontrar os
paço banal - As diversas geografias, isto é, a geo grafia dos transportes, a geografia do comércio, a geografia da população, a geografia da indústria, etc... são parcialidades que levam em conta as pectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar para análise; fazêlo, também, para síntese, o que é um grande ris
elementos suscetíveis de permitir que, diante do que estou chamando de espaço, possamos enten dê-lo e, eventualmente, construir o discurso polí tico da sua intervenção. E aí vem de novo a ques tão que me preocupa há alguns anos: o que inte ressa à Geografia, é menos a geografia e mais o espaço.
Milton Santos
177
Enquanto os geógrafos discutem entre eles, sobre
do homem, do princípio de liberdade. Isto não
a geografia, não estão andando para lugar ne
tem nada que ver com a cidadania, nem com o
nhum. O debate que permite avançar é a discus
corpo do homem.
são sobre o espaço, discussão que permite desco
Creio que estas três dimensões ajudam o estudo
brir quais são as subdivisões pertinentes do obje to que nos interessa.
do cotidiano do ponto de vista espacial. Devemos ver, daqui há pouco, que o fato de estar juntos
O cotidiano - Gostaria de sugerir, para começar
dentro de uma área contínua tem reflexos na ma
esta discussão do cotidiano que, por gentileza, os
neira como a espacialidade se dá, como a indivi
senhores admitissem comigo que há possibilidade
dualidade evolui e como a corporeidade é sentida.
de trabalhar três dimensões do homem: a dimen
Outras dimensões do cotidiano são, todavia, cen
são da corporeidade, a dimensão da individualida
tradas numa compleição geográfica de cotidiano.
de e a dimensão da socialidade. A corporeidade
O cotidiano supõe o passado como herança. O Co
ou corporalidade trata da realidade do corpo do
tidiano supõe o futuro como projeto. O presente é
homem; realidade que avulta e se impõe, mais do
estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja
que antes, com a globalização.
definição depende das definições de passado e de
A outra dimensão é a dimensão da individualida
futuro; desta existência do passado, da qual não
de. Enquanto a corporalidade ou corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu me apresento e me vejo, que dá con ta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade, há di mensões que não são objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os graus diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciên
nos podemos libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas esperanças, exatamente porque ainda não existe. É que a base do fato é que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de corporeidade, individualidade, sociali
cia do outro, consciência de nós. Todas estas for
dade e espacialidade.
mas de consciência têm que ver com a individuali
O cotidiano também nos põe diante de outras ca
dade e lhe constituem gamas diferentes, tendo
tegorias, como a da materialidade e a da imateri
também que ver com a transindividualidade, isto
alidade. O cotidiano são os dois, ele não é dado
é, com as relações entre indivíduos; relações que
apenas pela materialidade que nos cerca. A ima
são uma parte das condições de produção da soci
terialidade também é um constrangimento às ve
alidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse
zes mais forte do que a materialidade: essa idéia
fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluí
de tecnosfera e de psicosfera que andamos ten
do pelo espaço.
tando difundir, de um lado esta esfera técnica que
Há uma relação entre corporeidade, individualida
envolve o homem no fim do século, e, de outro, a
de e socialidade. Essa relação vai também definir a cidadania. Neste país, por exemplo, a cidadania
esfera das paixões, das crenças, dos desejos, tão objetiva em nossa vida quanto objetiva é a esfera
dos negros é afetada pela corporeidade. O fato de
da materialidade.
ser visto como negro já é suficiente para inferni
Mas o cotidiano também sugere um outro par de
zar o portador desse corpo. Por conseguinte, a di
dimensões: de um lado as normas e, de outro
ferenciação entre "cidadanias", dentro de uma
lado, a espontaneidade. O mundo de hoje é o
mesma sociedade, é relacionada com a corporei
mundo de normas. A propaganda do neo-liberalis
dade. É evidente que há individualidades fortes,
mo fala de desregulação, mas nunca o mundo foi
permitindo uma tomada de consciência mais am
tão regulado, tão normado: normas públicas, nor
pla. É, desse modo, que há uma produção, dentro
mas das empresas que se impõe, por sobre ou
178
Milton Santos
que orientam as normas do poder público; nor
calidades formadas por pontos discretos povoados
mas formais, normas informais, normas sempre.
por agentes hegemônicos desinteressados da vizi
Tudo ou quase tudo é feito a partir de normas, o
nhança, despreocupados da co-presença. Este es
que já indicativo da tendência ao empobrecimento
paço contínuo, que é quadro de ação e que é limi
simbólico que estamos vivendo: esta proliferação
te à ação; esse espaço contínuo é o quadro de um
e esta hegemonia da norma. Mas, felizmente, o
funcionamento harmônico de tantos desiguais -
cotidiano também nos apresenta possibilidades
ainda que não seja um funcionamento harmonio
para a espontaneidade. E tanto a norma como a
so. Se os agentes são tão diversos, e as empresas
espontaneidade têm que ver como o espaço, com
e as instituições tão desiguais, se o seu trabalho
a forma como o espaço se constitui.
não é harmonioso - mas apenas harmônico -, o
Ainda há outro par de dimensões. De um lado, os
que comanda este trabalho harmônico não é so
pragmatismo indicando, sugerindo, propondo, exi gindo comportamentos verticais. E, do outro lado, a originalidade, a inventividade: essa oposição entre a rotina e o novo, entre a repetição do pas
mente o mercado, é também o território. Não fôra o território, da forma como está organizado, o mercado não poderia sozinho exercer esse papel de forçar a "harmonia funcional" - não a harmonia
sado e a produção do futuro. Também por aí
teleológica – de todos estes atores.
pode-se e deve-se estudar a questão do cotidia
Dir-se-ia, em resumo, que, em tais circunstânci
no, opondo, de um lado, a preocupação com o re
as, assistimos a um conflito na cooperação e a
sultado que leva ao utilitarismo, à competitivida
uma cooperação no conflito. É a isso que nós pre
de, ao egoísmo, e, de outro lado, à generosidade,
senciamos nos espaço geográfico, sobretudo no
à busca dos valores, ao projeto, à comunhão.
espaço urbano. Esta cooperação no conflito e este
Esses pares de variáveis nos ajudam a enfrentar
conflito na cooperação levam à negociação per
uma outra questão. O espaço considerado primei ro como tendo duas dimensões, depois como ten do três, depois conforme Einstein, como tendo quatro dimensões, tem também uma quinta di mensão que é o cotidiano. O espaço tem esta quinta dimensão. Mas, sobretudo, o cotidiano tem
manente, explícita ou implícita, mas negociação sempre. Negociação onde uns perdem sempre; negociação onde outros ganham sempre; negoci ação em que alguns ganham às vezes; negocia ção em que alguns perdem às vezes; mas negoci ação sempre, que tem a ver com a maneira como
como dimensão essencial no mundo de hoje a di
o espaço se dá.
mensão espacial. A dimensão espacial é a dimen
Por quê? Cada homem, cada empresa, cada insti
são talvez central do cotidiano do mundo de hoje.
tuição se define em relação com o que pode usar
Como trabalhar a dimensão espacial do cotidiano
de um espaço dado. As instituições, as empresas,
e o cotidiano como quinta dimensão do espaço? Tudo isto tem que ver com a questão da cidada nia, com a questão do espaço do cidadão, com a questão do espaço banal. O cotidiano é marcado, sobretudo nas cidades, com aquilo que Sartre chamou de efeito de residência. Esse cotidiano é delimitado pelo espaço contínuo e não por um es paço de pontos, ou de fluxos. É no espaço contínuo, onde todos os tipos de ho mens, todos os tipos de empresas, todos os tipos de instituições trabalham juntos, funcionam jun tos e juntos estruturam a vida da comunidade e o espaço ao mesmo tempo. É o que estou chaman do de horizontalidade e se completa com as verti
os homens não encontram no mesmo espaço três respostas iguais aos seus desígnios e é isto que faz a diferença entre as pessoas. Esta diferença em relação ao espaço criando esta cooperação no conflito e este conflito na cooperação, porque numa cidade estamos condenados a viver juntos. A cidade produz um destino coletivo que vem do fato exatamente desta cooperação no conflito e deste conflito na cooperação. É curioso que o pa pel privilegiado do ponto de vista do presente é dado aos atores hegemônicos, mas do ponto de vista do futuro o papel privilegiado é dado aos atores não hegemônicos. São os pobres, são os migrantes, as minorias que são mais capazes de ver, porque mais capazes de sentir. Por conse
Milton Santos
179
guinte, é um equívoco imaginar que o futuro é
teoria está feita. Creio que essa pode ser uma for
portado pelos mais fortes. São os mais fracos, no
ma de enfrentar geograficamente a questão do
espaço, que têm a força de portar o futuro.
cotidiano.
Uma forma de enfrentar a questão é a partir do
Os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles que não têm a possibilidade de exercer plenamen te a modernidade, colocam-se mais facilmente com a possibilidade de perceber as situações, ain da que confusamente, e devem ser ajudados pe los que sistematizam o conhecimento relativo ao mundo de hoje. E este conhecimento, já vimos, necessita da categoria "espaço geográfico" para ser corretamente sistematizado. Daí o papel do geógrafo neste fim século. O papel do geógrafo também se estende à produção do político. O coti diano é um produtor do fenômeno político na me dida em que mostra como as diferenças se esta belecem aconselhando a tomada de posições. É o caso dos agricultores, que se reúnem para defen der interesses territoriais. Tal comportamento é a priori economicista, mas para ter eficácia, deve ser, em seguida, um comportamento político. É essa produção do político mediatizada pelo espa cial que permite, a partir das metamorfoses do setorial em geral, do particularismo em generalis mo, as negociações explícitas e implícitas que permitem avançar, primeiro na construção de um ente explicativo e, segundo, na construção de um projeto.
fenômeno de rede, que entrou em moda na Geo grafia, uma moda que pode ser devastadora se nós rapidamente não antepusermos às metáforas os conceitos. A rede é global, mas também é lo cal. Ela é global, porque no mundo onde a produ ção se internacionalizou de forma extrema, no mundo onde a própria técnica se unicisou, no mundo onde a informação é mundializada, tudo isto sendo possível a partir das redes. Mas a rede também é local, porque em cada lugar há troços destas redes globais. O trabalho de cada um de nós se realiza sobre os pedaços localizados das redes globais, que são a condição e o limite do trabalho e do capital do mundo de hoje. Só que cada lugar exerce, ao mesmo tempo, um trabalho local e um trabalho global. Cada lugar exerce, ao mesmo tempo, estas duas formas de trabalho. Localmente, é aquilo a que Marx chamou de tra balho direto, quer dizer, a forma técnica do traba lho: a pequena agricultura, a pequena produção do pequeno industrial, a produção de serviços ur banos, que são formas diretas de produzir condi cionadas pelos traços locais das redes globais, en quanto as redes globais presidem a cooperação e a divisão do trabalho, presidem a definição do va lor universal dos capitais e dos trabalhos. Isto é, no lugar, através da rede e de sua utilização coti diana o homem descobre outra vez que são dois: aquele que exerce o trabalho local, material, dire to, que ele localmente sente e sofre todos os dias, e aquele outro homem que é objeto de uma divi são do trabalho, vítima de uma cooperação que afinal descobrirá um dia, ainda que não a entenda completamente. É este o cotidiano dos homens neste fim de século, neste período de globaliza ção, frente às redes que são globais e são locais. Ora, cuidem que estou falando da maneira como o espaço se organiza, como os subespaços se ar ticulam, e como cada espaço é constitucionalmen te. E a qualidade dita ativa do espaço inclui a sua capacidade de relação. Por conseguinte o que es tamos propondo é a construção de conceitos que se encaixam uns nos outros. E quanto é assim a
Uma Epistemologia da existência - E aí chega a questão da epistemologia da existência, forma, talvez, de enfrentar a questão sob um outro pris ma. Seja qual for o momento da história, o mun do se define como um conjunto de possibilidades. Isto é que é o mundo. O mundo do tempo de Co lombo ou de Cabral era formado por um conjunto de possibilidades diferentes do mundo de Voltaire ou de nosso mundo. Isto é o mundo: um conjunto de possibilidades. Estas possibilidades que estão por aí boiando sobre nossas cabeças; que formam um universo e que são, um dia ou outro, colhidas por atores que as realizam, transformando-as em fatos sociais, econômicos e, certamente, num dia ou noutro, em fatos geográficos. A totalidade do mundo é formada dessas variáveis que jamais estão em todas as partes e, em ne nhum momento, dão-se de maneira total. E é isto que faz a diferença entre os homens, que também são a sede destas possibilidades realizadas, e é isto que faz a diferença entre os lugares, que são a sede destas diferentes possibilidades realizadas.
180
Milton Santos
Cada homem realiza um feixe de possibilidades, dadas num momento.
autorizados a fazer o caminho entre o ser e o existir.
Cada lugar realiza um feixe de possibilidade pre sentes num dado momento. A totalidade das pos sibilidades existentes somente se dá de forma parcial, nunca de forma total, e é por isso que não há o espaço total. E se dá como função, como função do todo, sobretudo nesta fase da globali zação. O lugar é uma funcionalização do mundo; o espaço é uma funcionalização do mundo, atra vés de suas formas materiais e de suas formas não materiais. E é por isso, também, que através do espaço nós podemos abraçar de uma só vez o ser e o existir. Aliás, é considerando o espaço como uma funcionalização do mundo que ficamos
A sociedade global dos sociólogos existe através do espaço geográfico. É o espaço geográfico que transforma em existência a sociedade global, este ser que é um todo, mas todo em potência. O exis tir, ser em ato, oferece esta idéia de epistemolo gia da existência, porque existindo estão todos. Existem todas as empresas, existem todas as ins tituições, e todos os homens juntos existem, não importam as suas diferenças. E os geógrafos não devem escolher entre empresas, e instituições e muito menos entre pessoas. Todos constituem este espaço banal que é o centro de nosso traba lho e por intermédio do qual nós mostramos nos so interesse pelo Mundo e pelo Homem.
Milton Santos
181
O LUGAR E O COTIDIANO INTRODUÇÃO DO LIVRO "A NATUREZA DO ESPAÇO"
Do livro: "A natureza do espaço" - Milton Santos, ed. Hucitec, São Paulo - 1996
Nas atuais condições de glo
uma realidade tensa, um dinamismo que
balização, a metáfora pro
se está recriando a cada momento, uma
posta por Pascal (1) parece
relação permanente instável, e onde glo
ter ganho realidade: o uni
balização
verso visto como uma esfera
fragmentação são termos de uma dialélica
infinita, cujo centro está em
que se refaz com freqüência. As próprias
toda parte... O mesmo se po
necessidades do novo regime de acumula
deria dizer daquela frase de
ção levam a uma maior dissociação dos
Tolstoi, tantas vezes repeti
respectivos
da, segundo a qual, para ser
essa multiplicidade de ações fazendo do
universal, basta falar de sua
espaço um campo de forças multicomple
aldeia...
xo, graças à individualização e especializa
Como nos lembra Michel Ser
ção minuciosa dos elementos do espaço:
res, "[...] nossa relação com mundo mudou. Antes, ela era local-local; agora é local-global[...]". Recorda
e
localização,
processos
e
globalização
e
subprocessos,
homens, empresas, instituições, meio am biente construído, ao mesmo tempo em que se aprofunda a relação de cada qual com o
esse filósofo, utilizando um argumento aproxima
sistema do mundo.
tivamente geogreáfico, que "hoje, temos uma
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como
nova relação com o mundo, porque o vemos por
afirma M.A. de Souza (1995, p.65), "todos os lu
inteiro. Através dos satélites, temos imagens da
gares são virtualmente mundiais". Mas, também,
Terra absolutamente inteira". (2)
cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comu
Na verdade, a globalização faz também redesco
nhão com o mundo, torna-se exponencialmente
brir a corporeidade. O mundo da fluidez, a verti gem da velocidade, a freqüência dos deslocamen tos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por con traste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo di fícil de apreender. Talvez, por isso mesmo, possa mos repetir com edgar Morin (1990, p.44) que "hoje cada um de nós é como um ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que o contém". Os lugares, desse ponto de vista, podem ser vis tos como um intermédio entre o Mundo e o Indiví duo, lembra-nos Z. Mlinar (1990, p.57), para quem a lógica do desenvolvimento dos sistemas sociais se manifesta pela unidade das tendências opostas à individualidade e à globalidade. Essa é
diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma maior individualidade. É a esse fenômeno que G.Benko (1990, p.65) denomina "glocalidade", chamando a atenção para as difi culdades do seu tratamento teórico. Para apreen der essa nova realidade do lugar, não basta ado tar um tratamento localista, já que o mundo se encontra em toda parte. Também devemos evitar o "risco de nos perder em uma simplificação cega", a partir de uma noção de particularidade que apenas leve em conta "os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais globais" Georges Benko (1990, p.65). A história concreta do nosso tempo repõe a questão do lugar numa posição central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos. A.Fischer (1994, p.73), por exemplo, refere-se à "redescoberta da dimensão local".
182
Milton Santos
Impõe-se, ao mesmo tempo, a necessidade de,
comunicação. Ele nos lembra de que "podemos
revisitando o lugar no mundo atual, encontrar os
nos comunicar com o mundo que nos rodeia, com
seus novos significados. Uma possibilidade nos é
os outros, e até mesmo conosco, sem proceder
dada através da consideração do cotidiano (A.
mos à transmissão de quaisquer informações, tal
Buttimer,
Damiani,
como podemos transmitir informações sem criar
1994). Esta categoria da existência presta-se a
1976;
A.
Garcia,1992,
A
mos ou alimentarmos quaisquer laços sociais".
um tratamento geográfico do mundo vivido que
Para este autor, "na experiência comunicacional
leve em conta as variáveis de que nos estamos
inter vêm processos de interlocução e de intera
ocupando neste livro: os objetos, as ações, a téc
ção que criam, alimentam e restabelecem os laços
nica, o tempo.
sociais e a sociabilidade entre os indivíduos e gru
Atividade racional, atividade
pos sociais que partilham os mesmos quadros de
simbólica e espaço É largamente conhecida a tipologia da ação social proposta por Weber, segundo a qual se podem distinguir uma atividade racional visando a um fim prático e uma atividade comunicacional, medi ada por símbolos. J. Habermas (1968, 1973, 1981, 1987) e outros autores retomaram essa quetão, em extensão e em profundidade, para re alçar o papel da interação na produção dos siste mas sociais. Partindo do fenômeno técnico, G.Si mondon (1958) já havia proposto distinguir entre, de um lado, uma ação humana sobre o meio e, de outro, uma ação simbólica sobre o ser humano. Sem o escrever explicitamente, B. Stiegler (1994,
experiência e identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passado comum". "Comunicar", lembra-nos H.Laborit (1987, p.38) "etimologicamente significa pôr em comum". Esse processo, no qual entram em jogo diversas inter pretações do existente, isto é, das situações obje tivas, resulta de uma verdadeira negociação soci al, de que participam preocupações pragmáticas e valores simbólicos, "pontos de vista mais ou me nos compartidos", em proporções variáveis, diz S. van der Leecew (1994, p.34). Nessa construção, pois, além do próprio sujeito, entram as coisas e os outros homens. Segundo ainda G. Berger (1943, 1964, p.15) "a idéia dos outros implica a
p.25) aproxima essas duas propostas, quando
idéia de um mundo".
reinterpreta Gehlen e Habermas, ao realçar a
A seguir Tran-Duc-Thao (1951, 1971, p.260), os
oposição entre uma interação mediada pelas téc
"esboços simbólicos", providos pelo movimento de
nicas e sua racionalidade e uma interação media
cooperação, prolongam a atividade própria do su
da pelos símbolos e pela ação comunicacional.
jeito e abarcam a totalidade da tarefa comum, le
Uma dada situação não pode ser plenamente
vando cada sujeito a tomar consciência de que a
apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua
universalidade é o verdadeiro sentido de sua exis
objetividade, deixamos de considerar as relações
tência singular.
intersubjetivas que a caracterizam. G. Berger
"A práxis se revela também como totalidade" diz
(1964, p.173) já nos lembrava de que "o caráter
H. Lefebvre (1958, p.238), e por isso "a análise
humano do tempo da ação é "intersubjetivo". E
da vida cotidiana envolve concepções e aprecia
Bakhtin (1986, 1993, p.54), mais perto de nós,
ções na escala da experiência social em geral" (H.
afirma que a arquitetura concreta do mundo atual
Lefebvre, 1971, p.28), o que inclui, paralelamente
dos atos realizados tem três momentos básicos: o
"uma apropriação profunda e uma compreensão
Eu-para-mim mesmo; o outro-para-mim; o Eu-
imediata" (J.-P. Sartre, 1960, p. 207).
para-o outro (basic moments: I-for-myself, the
O mundo ganha sentido por ser esse objeto "co
other-for-me, and I-for-the-other). É desse modo que se constroem e refazem os valores, através de um processo incessante de interação.
mum", alcançado através das relações de recipro cidade que, ao mesmo tempo, produzem a alteri dade e a comunicação. É desse modo, ensina G.
A.D. Rodrigues (1994, p.75) nos convida a esta
Berger (1964, p.15), que o mundo constitui "o
belecer uma clara distinção entre informação e
meio de nos unir, sem nos confundir". Essa tran
Milton Santos
183
sindividualidade, definida por Simondon (1958,
representação, é inteligível como um princípio de
p.248), é constituída pelas relações inter-huma
coexistência da diversidade", e constitui uma ga
nas que incluem o uso das técnicas e dos objetos
rantia do exercício de possibilidade múltiplas de
técnicos. A territorialidade é, igualmente, transin
comunicação(3).
dividualidade, e a compartimentação da interação
Os economistas também se preocupam com essa
humana no espaço (Sanguin, 1977, p.53; C. Raf festin, 1980, p.146; Soja, 1971) é tanto um as pecto da territorialidade como da transindividuali dade.
questão da proximidade, a distância sendo consi derada como um fator relevante na estruturação do comércio internacional (Y. Berthelot, 1994, pp.15-16). Mas a proximidade que interessa ao
A relação do sujeito com o prático-inerte inclui a
geógrafo - conforme já vimos - não se limita a
relação com o espaço. O prático-inerte é uma ex
uma mera definição das distâncias; ela tem que
pressão introduzida por Sartre, para significar as
ver com a contigüidade física entre pessoas numa
cristalizações da experiência passada, do indiví
mesma extensão, num mesmo conjunto de pon
duo e da sociedade, corporificadas em formas so
tos contínuos, vivendo com a intensidade de suas
ciais e, também, em configurações espaciais e
inter-relações. Não são apenas as relações econô
paisagens. Indo além do ensinamento de Sartre,
micas que devem ser apreendidas numa análise
podemos dizer que o espaço, pelas suas formas
da situação de vizinhança, mas a totalidade das
geográficas materiais, é a expressão mais acaba
relações. É assim que a proximidade, diz J.-L.
da do prático-inerte.
Guigou (1995, p.56) "pode criar a solidariedade ,
O papel da proximidade
laços culturais e desse modo a identidade". O pa
No espaço - que é uno mas diferenciado - impõese com mais força a unidade prático-inerte do múltiplo a que se refere A. Gorz (1959, 1964), essa "unidade exterior da atividade de todos em sua condição de outros". O espaço se dá ao con junto dos homens que nele se exercem como um conjunto de virtualidades de valor desigual, cujo uso tem de ser disputado a cada instante, em função da força de cada qual. Podemos comparar essa situação àquela com que Sartre (1960, p.210) define o fenômeno da escassez. No dizer de Sartre, nessa situação "cada qual sabe que fi gura como objeto no campo prático do outro" e "isso mesmo impede os dois movimentos de unifi cação prática de constituir com o mesmo entorno (environnement) dois campos de ação diferentes".
pel da vizinhança na produção da consciência é mostrado por J. Duvignaud (1977, p.20), quando identifica na "densidade social" produzida pela fermentação dos homens em um mesmo espaço fechado, uma "acumulação que provoca uma mu dança surpreendente" movida pela afetividade e pela paixão, e levando a uma percepção global, "holista", do mundo e dos homens. Quando ele se refere a "espaços fechados" (espace clos, huisclos), uma primeira leitura do seu texto pode le var a crer que a situação descrita estaria limitada àqueles lugares fortificados, medrosos do inimigo exterior, protegidos atrás de muralhas, dos quais as cidades medievais são o melhor exemplo. O fato, porém, é que, pela estruturação do seu ter ritório e do seu mercado - uno e múltiplo -, as ci dades atuais, sobretudo as metrópoles, abertas a
A noção de socialidade, difundida entre os sociólo
todos os ventos do mundo, não são menos indivi
gos, encontra em geógrafos como Di Meo (1991)
dualizadas. Esses lugares, com a sua gama infini
e J. Lévy (1994), uma explicitação. Tal socialidade
ta de situações, são a fábrica de relações numero
lembra Schutz (Schutz, 1967) será tanto mais in
sas, freqüentes e densas. O número de viagens
tensa quanto maior a proximidade entre as pesso
internas é muitas vezes superior ao de desloca
as envolvidas. Simmel (1903, p.47) já o havia sa
mentos para outros subespaços. Em condições se
lientado, ao distinguir entre os extremos da dis
melhantes, as grandes cidades são muito mais
tância espacial e da proximidade espacial (B. Wer
buliçosas que a médias e pequenas. A cidade é o
len, 1993, p.170). É apropriado dizer, como Muniz
lugar onde há mais mobilidade e mais encontros.
Sodré (1988, p.18), que " a relação espacial, ina
A anarquia atual da cidade grande lhe assegura
preensível pelas estruturas clássicas de ação e de
um maior número de deslocamentos, enquanto a
184
Milton Santos
geração de relações interpessoais é ainda mais in
p.249) assinala que " ao mesmo tempo [....] au
tensa. O movimento é potencializado nos países
mentam a agitação, o raio de ação e as relações"
subdesenvolvidos, graças à enorme gama de situ
entre os homens e compara esse fato com o fenô
ações pessoais de renda, ao tamanho desmesura
meno físico pelo qual a pressão de um gás depen
do das metrópoles e ao menor coeficiente de "ra
de do número de moléculas comprimidas, e au
cionalidade" na operação da máquina urbana.
menta também com o aumento da temperatura,
Nelas, a co-presença e o intercâmbio são condici
isto é, com a agitação das partículas. É bom pen
onados pelas infraestruturas presentes e suas
sar, ainda com G. Berger, que "entram em cena,
normas de utilização, pelo mercado territorial
hoje, massas que estavam estacionárias".
mente delimitado e pelas possibilidades de vida
Este último fenômeno é tanto mais significativo
cultural localmente oferecidas pelo equipamento
porque em nossos dias a cultura popular deixa de
existente. A divisão do trabalho dentro dessas ci
estar cantonada numa geografia restritiva e en
dades é o resultado da conjugação de todos esses
contra um palco multitudinário, graças às grandes
fatores, não apenas do fator econômico.
arenas, como os enormes estádios e as vastas ca
O intercâmbio efetivo entre pessoas é a matriz da
sas de espetáculo e de diversão e graças aos efei
densidade social e do entendimento holístico refe ridos por Duvignaud (1977) e que constituem a condição desses acontecimentos infinitos, dessas solicitações sem-número, dessas relações que se acumulam, matrizes de trocas simbólicas que se multiplicam, diversificam e renovam. A noção de "emorazão" (S.Laflamme, 1995), encontra seu fundamento nessas trocas simbólicas que unem emoção e razão. A noção de co-presença, de que a sociologia vem servindo-se desde os seus fundadores, noção re alçada por Goffman (1961) e retomada por Gid dens (1987), ganha uma nova dimensão quando
tos ubiqüitários trazidos por uma aparelhagem tecnotrônica multiplicadora. Sob certos aspectos, a cultura popular assume uma revanche sobre a cultura de massas, constitucionalmente destinada a sufocá-la. Cria-se uma cultura popular de mas sas, alimentada com a crítica espontânea de um cotidiano repetitivo e, também não raro, com a pregação de mudanças, mesmo que esse discurso não venha com uma proposta sistematizada. "A cultura de massas "permissiva" do século XX ex traiu uma nova liberdade de um sistema cultural anteriormente repressivo e hierárquico" (Silvio Funtowicz, Jerome R. Ravetz, 1993).
associada à noção e à realidade geográfica da vi
A dimensão espacial do cotidiano
zinhança, essa "condição de vizinhança" referida
Com o papel que a informação e a comunicação
por Sartre em "Questions de Méthode". O territó
alcançaram em todos os aspectos da vida social, o
rio compartido impõe a inter dependência como
cotidiano de todas as pessoas assim se enriquece
práxis, e essa "base de operação" da "comunida
de novas dimensões. Entre estas, ganha relevo a
de" no dizer de Parsons (1952, p.91) constitui
sua dimensão espacial, ao mesmo tempo em que
uma mediação inevitável para o exercício dos pa
esse cotidiano enriquecido se impõe como uma
péis específicos de cada qual, conforme realça B.
espécie de quinta dimensão do espaço banal, o
Werlen (1993, p.190). Nas cidades, esse fenôme
espaço dos geógrafos.
no é ainda mais evidente, já que pessoas desco
Através do entendimento desse conteúdo geográ
nhecidas entre si trabalham conjuntamente para alcançar, malgrado elas, resultados coletivos. Tei lhard de Chardin(4) já se referia ao que chamava de "pressão humana" resultado da acumulação crescente dos homens em espaços limitados, como uma fator de mudança qualitativa e rápida das relações sociais no mundo contemporâneo. Comentando essa idéia, Gaston Berger (1964,
fico do cotidiano poderemos, talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teori zação) dessa relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando na materialidade, esse com ponente imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um
Milton Santos
185
convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a
ros apenas alguns vetores da modernidade atual
partir dos objetos que nos cercam.
se instalam. Nos lugares complexos, que geral
E enquanto outros especialistas podem escolher,
mente coincidem com as metrópoles, há profusão
na listagem de ações e na população de objetos, aqueles que interessam aos seus estudos setori ais, o geógrafo é obrigado a trabalhar com todos os objetos e todas as ações. O espaço inclui, pois, essa "conexão materialística de um homem com o outro" de que falam Marx e Engels na "Ideologia Alemã" (1947, pp.18-19), conexão que "está sempre tomando novas for mas". A forma atual, conforme já vimos, supõe informação para o seu uso e ela própria constitui informação, graças à intencionalidade de sua pro dução. Como hoje nada fazemos sem esses obje tos que nos cercam, tudo o que fazemos produz informação. A localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência, ele pode esconder-se, não pode fazê-lo pela sua exis tência, que se dá nos lugares. No lugar, nosso Próximo, se superpõem, dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos inter nos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e de tempo.
de vetores: desde os que diretamente represen tam as lógicas hegemônicas, até os que a elas se opõem. São vetores de todas as ordens, buscando finalidades diversas, às vezes externas, mas en trelaçadas pelo espaço comum. Por isso a cidade grande é um enorme espaço banal, o mais signifi cativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organi zaçnao podem aí se instalar, conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande é o espaço onde os fracos podem subsistir. Durante muito tempo, a metrópole foi definida, nos países subdesenvolvidos pelo menos, como o lugar em que se concentravam os recursos da Na ção e a densidade capitalista era mais alta. Essa era a base da teoria do pólo e da periferia de G. Myrdal (1957), A. Hirschman (1958), J. Fried mann (1963), F. Perroux (1961) e J. Boudeville (1964). Hoje, graças ao fenômeno das redes e à difusão da modernidade no território, sabemos que o capital novo se difunde mais largamente, mais profundamente, e mais rapidamenter, no campo do que na cidade. E nesta, o próprio meio ambiente construído freqüentemente constitui um obstáculo à difusão dos capitais novos. Graças à sua configuração geográfica, a cidade, sobretudo
No lugar - um cotidiano compartido entre as mais
a grande, aparece como diversidade socioespacial
diversas pessoas, firmas e instituições - coopera
a comparar vantajosamente com a biodiversidade
ção e conflito são a base da vida em comum. Por
hoje tão prezada pelo movimento ecológico. Palco
que cada qual exerce uma ação própria, a vida
da atividade de todos os capitais e de todos os
social se individualiza; e porque a contigüidade é
trabalhos, ela pode atrair e acolher as multidões
criadora de comunhão, a política se territorializa,
de pobres expulsos do campo e das cidades médi
com o confronto entre organização e espontanei
as pela modernização da agricultura e dos servi
dade. O lugar é o quadro de uma referência prag
ços. E a presença dos pobres aumenta e enrique
mática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e
ce a diversidade socioespacial, que tanto se mani
ordens precisas de ações condicionadas, mas é
festa pela produção da materialidade em bairros e
também o teatro insubstituível das paixões huma
sítios tão constrastantes, quanto pelas formas de
nas, responsáveis, através da ação comunicativa,
trabalho e de vida. Com isso, aliás, tanto se am
pelas mais diversas manifestações da espontanei
pliam a necessidade e as formas da divisão do
dade e da criatividade.
trabalho, como as possibilidades e as vias da in
Os pobres na cidade
tersubjetividade e da interação. É por aí que a ci
Com a modernização contemporânea, todos os lu
dade encontra o seu caminho para o futuro.
gares se mundializam. Mas há lugares globais
Não pretendemos aqui reproduzir um velho es
simples e lugares globais complesos. Nos primei
quema de análise da economia urbana, esquema
186
Milton Santos
dual, mas não dualista, utilizado primeiro para os
riedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de
países do Terceiro Mundo (Santos, 1979) e hoje
combinações em movimento permanente, dotadas
ampliado aos países ricos, com o reconhecimento
de grande capacidade de adaptação, e sustente
da existência de um setor dito informal ao lado de
das no seu próprio meio geográfico, este sendo
um setor dito formal da economia. Pode-se, en
tomado como uma forma-conteúdo, um híbrido de
tretento, admitir que, nas condições atuais - e
materialidade e relações sociais. Desse modo, as
permeadas por uma infinidade de situações inter
respectivas divisões proteiformes de trabalho,
mediárias - existem duas situações tipo em todas
adaptáveis, instáveis, plásticas, adaptam-se a si
as grandes cidades. Há, de um lado, uma econo
mesmas, mediante incitações externas e internas.
mia
de
Sua solidariedade se cria e se recria ali mesmo,
cima, e um setor produzido de baixo, que, nos
enquanto a solidariedade imposta pela coopera
países pobres, é um setor popular e, nos países
ção de tipo hegemônico é comandada de fora do
ricos, inclui os setores desprivilegiados da socie
meio geográfico e do meio social em que incide.
dade, incluídos os imigrantes. Cada qual é res
No primeiro caso, avultam as relações de proximi
explicitamente
globalizada,
produzida
ponsável pela instalação, dentro das cidades, de divisões de trabalho típicas. Em todos os casos, a cidade é um grande sistema, produto de superpo sição de subsistemas diversos de cooperação, que criam outros tantos sistemas de solidariedade. Nas atuais condições de globalização, todos esses subcírculos ou subsistemas de solidariedade ten dem a especializações que não tem a mesma na tureza. Pode-se, também, dizer que há uma espe cialização de atividades por cima e uma especiali zação de atividades por baixo. Mas a primeira é rígida, dependente de normas implacáveis, de cuja obediência depende a sua eficácia. Diz-se destas normas que são complexas por causa do seu conteúdo científico e tecnológico e de sua busca de precisão no processo produtivo. Mas, também, pode-se dizer que, na economia mais pobre, as divisões do trabalho consideradas mais simples pelo discurso dominante, são, de fato, as mais complexas? Nas grandes cidades, sobretudo no Terceiro Mundo, a precariedade da existência de uma parcela importante (às vezes a maioria) da população não exclui a produção de necessida des, calcadas no consumo das classes mais abas tadas. Como resposta, uma divisão do trabalho imitativa, talvez caricatural, encontra as razões para se instalar e se reproduzir. Mas aqui o qua dro ocupacional não é fixo: cada ator é muito mó vel, podendo sem trauma exercer atividades di versas ao sabor da conjuntura. Essas metamorfo ses do trabalho dos pobres nas grandes cidades
dade, que também são uma garantia da comuni cação entre os participantes. Nesse sentido, os guetos urbanos, comparados a outras áreas da ci dade, tenderiam a dar às relações de proximidade um conteúdo comunicacional ainda maior e isso se deve a uma percepção mais clara das situações pessoais ou de grupo e à afinidade de destino, afi nidade econômica ou cultural. Durante séculos, acreditáramos que os homens mais
velozes
detinham
a
inteligência
do
Mundo(5). A literatura que glorifica a potência in clui a velocidade como essa força mágica que per mitiu à Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a "sua" civilização para o resto do mundo(6). Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Nagrande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detêm a velocidade elogia da por Virilio em delírio, na esteira de um Valéry sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. sua comunhão com as imagens, freqüentemente prefabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam per der, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. os homens "lentos", para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário per verso e acabam descobrindo as fabulações.
cria o que, em um outro lugar (Santos, 1991) de
É assim que eles escapam ao totalitarismo da ra
nominamos de "flexibilidade tropical". Há uma va
cionalidade, aventira vedada aos ricos e às clas
Milton Santos
187
ses medias. Desse modo, acusados por uma lite
uma herança, mas também um reaprendizado das
ratura sociológica repetitiva, de orientação ao
relações profundas entre o homem e o seu meio.
presente e de incapacidade de prospectiva, são os
"De que cultura estaremos falando? Da cultura de
pobres que, na cidade, mais fixamente olham
massas, que se alimanta das coisas, ou da cultura
para o futuro.
profunda, cultura popular, que se nutre dos ho
Na cidade "luminosa", moderna, hoje, a "naturali
mens? A cultura de massa, denominada "cultura"
dade" do objeto técnico cria uma mecânica roti neira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa historicização da metafísica crava no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da modernida de e que se justapõem, superpõem e contrapõem
por ser hegemônica, é, freqüentemente, um emo liente da consciência. O momento da consciência aparece quando os indivíduos e os grupos se des fazem de um sistema de costumes, reconhecen do-os como um jogo ou uma limitação" (M.San
ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zo
tos, 1987, 1992, p.64).
nas urbanas 'opacas'. Estas são os espaços do
As classes medias amolecidas deixam absorver-se
aproximativo e da criatividade, opostos às zonas
pela cultura de massa e dela retiram argumento
luminosas, espaços da exatidão. Os espaços inor
para racionalizar sua existência empobrecida. Os
gânicos é que são abertos, e os espaços regulares
carentes, sobretudo os mais pobres, estão isentos
são fechados, racionalizados e racionalizadores.
dessa absorção, mesmo porque não dispõem dos
Por serem "diferentes", os pobres abrem um de
recursos para adquirir aquelas coisas que trans
bate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já presen tes. É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articula
mitem e asseguram essa cultura de massa. É por isso que as cidades, crescentemente inegalitárias, tendem a abrigar, ao mesmo tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e
ções práticas e novas normas, na vida social e
se subtraem, num jogo dialético sem-fim.
afetiva. Diante das redes técnicas e informacio
A cultura de massa é indiferente à ecologia social.
nais, pobres e migrantes são passivos, como to
Ela responde afirmativamente à vontade de uni
das as demais pessoas. É na esferas comunicacio
formização e indiferenciação. A cultura popular
nal que eles diferentemente das classes ditas su
tem raízes na terra em que se vive, simboliza o
periores, são fortemente ativos.
homem e seu entorno, encarna a vontade de en
Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado
frentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali
como carência a satisfazer - carência de todos os tipos de consumo, consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de
obter a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas
participação e de cidadania. Esse futuro é imagi
seu alcance é o mundo.
nado ou entrevisto na abundância do outro e en
Essa busca de caminhos é, também, visão ilumi
trevisto, como contrapartida, nas possibilidades
nada do futuro e não apenas prisão em um pre
apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar.
sente subalternizado pela lógica instrumental ou
Então, o feitiço se volta contra o feiticeiro. O con
aprisionado num cotidiano vivido como preconcei
sumo imaginado, mas não atendido - essa "carên cia fundamental" no dizer de Sartre -, produz um desconforto criador. O choque entre cultura obje
to. É a vitória da individualidade refortalecida, que ultrapassa a barreira das práxis repetitivas e se instala em uma práxis libertadora, a práxis inven
tiva e cultura subjetiva torna-se instrumento da
tiva de que fala H. Lefebvre (1958, p.240).
produção de uma nova consciência.
Os migrantes no lugar:
Segundo P. Rimbaud (1973, p.283) "a cidade
da memória à descoberta
transforma tudo, inclusive a matéria inerte, em
Vivemos um tempo de mudanças. Em muitos ca
elementos de cultura". A cultura, forma de comu
sos, a sucessão alucinante dos eventos não deixa
nicação do indivíduo e do grupo com o universo, é
falar de mudanças apenas, mas de vertigem. O
188
Milton Santos
sujeito no lugar estava submetido a uma convi
a esquecer, seu discurso é menos contaminado
vência longa e repetitiva com os mesmos objetos,
pelo passado e pela rotina. Cabe-lhes o privilégio
os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja
de não utilizar de maneira pragmática e passiva o
construção participava: uma familiaridade que era
pratico-inerte (vindo de outros lugares) de que
fruto de uma história própria, da sociedade local e
são portadores.
do lugar, onde cada indivíduo era ativo.
Ultrapassado um primeiro momento de espanto e
Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma
atordoamento, o espírito alerta se refaz, reformu
regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A
lando a idéia de futuro a partir do entendimento
circulação é mais criadora que a produção. Os ho
novo da nova realidade que o cerca. O entorno vi
mens mudam de lugar, como turistas ou como
vido é lugar de uma troca, matriz de um processo
imigrantes. Mas também os produtos, as merca
intelectual.
dorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a
O homem busca reaprender o que nunca lhe foi
idéia de "desterritorialização". Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para signi ficar estranhamente, que é, também, desculturi zação. Vir para a cidade grande é, certamente, deixar atrás uma cultura herdada para se encon trar com uma outra. Quando o homem se defron ta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas, num mundo do movimento, a realidade e a noção de residência (Husserl, Heidegger, Sartre) do homem não se esvaem. O homem mora talvez menos, ou moras muito menos tempo, mas ele mora: mesmo que ele seja desempregado ou mi grante. A "residência", o lugar de trabalho, por mais breve que sejam, são quadros de vida que têm peso na produção do homem. Como escreveu Husserl (1975, p.26) "[...] o fundamento perma nente do trabalho subjetivo de pensar é o entorno vital". Segundo Lowenthal (1975), o passado é um outro país... Digamos que o passado é um outro lugar, ou, ainda melhor, num outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o fu turo: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação. Para os migrantes, a memória é inútil. trazem consigo todo um cabedal de lembranças e experiências criado em função de outro meio, e que de pouco lhes serve para a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de en tendimento da cidade. Suas experiências vividas
ensinado, e pouco a pouco vai substituindo a sua ignorância do entorno por um conhecimento, ain da que fragmentário. O novo meio ambiente opera como uma espécie de detonador. Sua relação com o novo morador se manifesta dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem reciproca mente, mudando-se paralelamente territorialidade e cultura; e mudando o homem. Quando essa sín tese é percebida, o processo de alienação vai ce dendo ao processo de integração e de entendi mento, e o indivíduo recupera a parte do seu ser que parecia perdida. Em que medida a "territorialidade longeva" seria mais importante que a "efemeridade"? A memória coletiva é apontada como um cimento indispensá vel à sobrevivência das sociedades, o elemento de coesão garantidor da permanência e da elabora ção do futuro. Essa tese ganhou tal força que hoje, diante de uma sociedade e uma cultura em perpétua agitação, a cultura do movimento é apontada como o dado essencial da desagragação e da anomia. Mas sabemos também que os eventos apagam o saber já constituído, exigindo novos saberes.(7) Quando, como nos dias atuais, os eventos são mais numerosos e inéditos em cada lugar, a rein serção ativa, isto é, consciente, no quadro de vida, local ou global, depende cada vez menos da experiência e cada vez mais da decoberta.
ficaram para trás e nova residência obriga a no
Não importa que, diante da aceleração contempo
vas experiências. Trata-se de um embate entre o
rânea, e graças ao tropel de acontecimentos, o
tempo da ação e o tempo da memória. Obrigados
exercício de repensar tenha de ser heróico. Essa proibição do repouso, essa urgência, esse estado
Milton Santos
de alerta exigem da consciência um ânimo, uma disposição, uma força renovadora. A força desse movimento vem do fato de que, en quanto a memória é coletiva, o esquecimento e a conseqüente (re)descoberta são individuais, dife renciados, enriquecido as relações interpessoais, a ação comunicativa. Assim, o que pareceria uma inferioridade, na realidade é uma vantagem. Ao contrário do que deseja acreditar a teoria atual mente hegemônica, quanto menos inserido o indi víduo (pobre, minoritário, migrante...), mais facil mente o choque da novidade o atinge e a desco berta de um novo saber lhe é mais fácil. O ho mem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação. A memó ria olha para o passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo, futuro imediato e pas sado imediato, um presente ao mesmo tempo concluído e incluso, num processo sempre reno vado. Quanto mais instável e surpreendedor for o espa ço, tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. A consciência pelo "lugar" se superpõe à consciência no "lugar". A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova histó ria. O presente não é um resultado, uma decorrência do passado, do mesmo modo que o futuro não pode ser uma decorrência do presente, mesmo se este é uma "eterna novidade", no dizer de S. Bo relli (1992, p.80).(8) O passado comparece como uma das condições para a realização do evento, mas o dado dinâmico na produção da nova histó ria é o próprio presente, isto é, a conjunção sele tiva de forças existentes em um dado momento. Na realidade, se o Homem é Projeto, como diz Sartre, é o futuro que comanda as ações do pre sente. Notas: (1) Citado em Jean-Claude Beaune, 1994, p.54.
189
(2) Michel Serres, entrevista a Bernado Carvalho, Folha de S. Paulo, 21/4/1990. (3) É também nesse sentido que Muniz Sodré (1988, p.15) reconhecia uma "dimensão territori al" ou uma "lógica geográfica" da cultura. (4) "[...] No mundo, atualmente, entram em ação massas humanas que até há pouco eram relativa mente estacionárias. Trata-se de um fenômeno de importância considerável, pois o padre Teilhard tomou consciência dessa pressão humana que au menta cada vez mais e mostrou, de forma muito convincente, que tal pressão, ao criar estruturas novas, força a criação de organizações que, se gundo nossa habilidade ou generosidade, serão ou exclusivamente medidas coercitivas ou, ao contrário, pontos de apoio para um desenvolvi mento mais amplo de nossas liberdades. Mas, como quer que seja, já não temos escolha. Pode mos, sim, escolher entre escravidão e liberdade, mas não evitar a pressão: ela é um fato, ela exis te, ela se dilata, ela crescesem parar. Queiramos ou não, estamos cada vez mais uns com os outros - e a pressão humana não pára de aumentar." G. Berger, 1964, pp.249-250. (5) "Com a realização de um progresso de tipo dromocrático, a humanidade perderá a diversida de; para assumir um estado de fato, ela tenderá a cindir-se unicamente em "povos que esperam" (a quem é permitido esperar, em futuro, chegar à velocidade que capitalizam dando-lhes acesso ao possível, isto é, ao projeto, à decisão, ao infinito; "a velocidade é a esperança do Ocidente" ) e "po vos que desesperam", bloqueados pela inferiori dade de seus veículos técnicos, que moram e sub sistem em um mundo finito." Paul Virilio, "Vitesse e politique", 1977, p.54. (6) "Onde quer que o espírito europeu domine, vemos surgir o máximo de "necessidades", o má ximo de "trabalho", o máximo de "capital", o má ximo de "rendimento", o máximo de "ambição", o máximo de "poder", o máximo de "modificação da natureza exterior", o máximo de "relações" e "tro cas"." Paul Valéry, 1922, in "Oeuvres", La Pléiade, vol. I, p. 1014 (grifo do autor). Citado por Michel Beaud (frontispício), Le Système national mondial hiérarchisé, 1987, p.4, que tirou a citação de Pier re Pascallon, Cahiers d'économie personaliste, nº4, 1986, p.23. (7) "Hoje [...] é o presente que assume todo o es paço e se dá como representação global do tempo [...] que se substitui à profundidade da duração." Roger Sue, 1994. (8) A esse respeito, e mais especificamente sobre as periodizações, ver Ernest Gellner, "El Arado, la Espada u el Libro", mencionado po José Luiz Ro drigues Garcia, "Nuestros magníficos pasados", in La Esfera, "El Mundo", Madri, 9 de abril de 1994, p.
190
Milton Santos
DO MEIO NATURAL AO MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL
Fonte: http://www.moderna.com.br/novageo/ngnatura.htm A natureza do espaço (São Paulo, Hucitec, 1996, pp. 187-197), de Milton Santos - Abril/98
O meio natural (1)
territoriais, tendentes a conciliar o uso e a "con
Quando tudo era meio natural, o homem escolhia
servação" da natureza: para que ela possa ser,
da natureza aquelas suas partes ou aspectos con
outra vez, utilizada.
siderados fundamentais ao exercício da vida, va
Esses sistemas técnicos sem objetos técnicos não
lorizando, diferentemente, segundo os lugares e
eram, pois, agressivos, pelo fato de serem indis
as culturas, essas condições naturais que consti
solúveis em relação à Natureza que, em sua ope
tuíam a base material da existência do grupo.
ração, ajudavam a reconstituir.
Esse meio natural generalizado era utilizado pelo
O meio técnico
homem sem grandes transformações. As técnicas
O período técnico vê a emergência do espaço me
e o trabalho se casavam com as dádivas da natu reza, com a qual se relacionavam sem outra me diação.
canizado. Os objetos que formam o meio não são, apenas, objetos culturais; eles são culturais e téc nicos, ao mesmo tempo. Quanto ao espaço, o
O que alguns consideram como período pré-técni
componente material é crescentemente formado
co exclui uma definição restritiva. As transforma
do "natural" e do "artificial". Mas o número e a
ções impostas às coisas naturais já eram técnicas,
qualidade de artefatos varia. As áreas, os espa
entre as quais a domesticação de plantas e ani
ços, as regiões, os países passam a se distinguir
mais aparece como um momento marcante: o ho
em função da extensão e da densidade da substi
mem mudando a Natureza, impondo-lhe leis. A
tuição, neles, dos objetos naturais e dos objetos
isso também se chama técnica.
culturais, por objetos técnicos (3).
Nesse período, os sistemas técnicos não tinham
Os objetos técnicos, maquínicos, juntam à razão
existência autônoma. Sua simbiose com a nature
natural sua própria razão, uma lógica instrumen
za resultante era total (G. Berger, 1964, p. 231;
tal que desafia as lógicas naturais, criando, nos
P. George, 1974, pp. 24 e 26) e podemos dizer,
lugares atingidos, mistos ou híbridos conflitivos.
talvez, que o possibilismo da criação mergulhava
Os objetos técnicos e o espaço maquinizado são
no determinismo do funcionamento.(2) As moti
locus de ações "superiores", graças à sua super
vações de uso eram, sobretudo, locais, ainda que
posição triunfante às forças naturais. Tais ações
o papel do intercâmbio nas determinações sociais
são, também, consideradas superiores pela cren
pudesse ser crescente. Assim, a sociedade local
ça de que ao homem atribuem novos poderes — o
era, ao mesmo tempo, criadora das técnicas utili
maior dos quais é a prerrogativa de enfrentar a
zadas, comandante dos tempos sociais e dos limi
Natureza, natural ou já socializada, vinda do pe
tes de sua utilização.
ríodo anterior, com instrumentos que já não são
A harmonia socioespacial assim estabelecida era,
prolongamento do seu corpo, mas que represen
desse modo, respeitosa da natureza herdada, no processo de criação de uma nova natureza. Pro duzindo-a, a sociedade territorial produzia, tam bém, uma série de comportamentos, cuja razão é a preservação e a continuidade do meio de vida.
tam prolongamentos do território, verdadeiras próteses. Utilizando novos materiais e transgre dindo a distância, o homem começa a fabricar um tempo novo, no trabalho, no intercâmbio, no lar. Os tempos sociais tendem a se superpor e contra
Exemplo disso são, entre outros, o pousio, a rota
por aos tempos naturais.
ção de terras, a agricultura itinerante, que consti
O componente internacional da divisão do traba
tuem, ao mesmo tempo, regras sociais e regras
lho tende a aumentar exponencialmente. Assim,
Milton Santos
191
as motivações de uso dos sistemas técnicos são
Neste período, os objetos técnicos tendem a ser
crescentemente estranhas às lógicas locais e,
ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já
mesmo, nacionais; e a importância da troca na
que, graças à extrema intencionalidade de sua
sobrevivência do grupo também cresce. Como o
produção e de sua localização, eles já surgem
êxito, nesse processo de comércio, depende, em
como informação; e, na verdade, a energia princi
grande parte, da presença de sistemas técnicos
pal de seu funcionamento é também a informa
eficazes, estes acabam por ser cada vez mais pre
ção. Já hoje, quando nos referimos às manifesta
sentes. A razão do comércio, e não a razão da na
ções geográficas decorrentes dos novos progres
tureza, é que preside à sua instalação. Em outras
sos, não é mais de meio técnico que se trata. Es
palavras, sua presença torna-se crescentemente
tamos diante da produção de algo novo, a que es
indiferente às condições preexistentes. A poluição
tamos chamando de meio técnico-científico-infor
e outras ofensas ambientais ainda não tinham
macional.
esse nome, mas já são largamente notadas — e
Da mesma forma como participam da criação de
causticadas — no século XIX, nas grandes cidades inglesas e continentais. E a própria chegada ao campo das estradas de ferro suscita protesto. A reação antimaquinista, protagonizada pelos diver sos ludismos, antecipa a batalha atual dos ambi entalistas. Esse era, então, o combate social con tra os miasmas urbanos.
novos processos vitais e da produção de novas espécies (animais e vegetais), a ciência e a tecno logia, junto com a informação, estão na própria base da produção, da utilização e do funciona mento do espaço e tendem a constituir o seu substrato. Antes, eram apenas as grandes cidades que se apresentavam como o império da técnica,
O fenômeno, porém, era limitado. Eram poucos os
objeto de modificações, supressões, acréscimos,
países e regiões em que o progresso técnico podia
cada vez mais sofisticados e mais carregados de
instalar-se. E, mesmo nestes poucos, os sistemas
artifício. Esse mundo artificial inclui, hoje, o mun
técnicos vigentes eram geograficamente circuns
do rural. Segundo G. Dorfles (1976, p. 39), este é
critos, de modo que tanto seus efeitos estavam
marcado pela presença de "materiais plásticos,
longe de ser generalizados, como a visão desses
fertilizantes, colorantes, inexistentes na natureza,
efeitos era, igualmente, limitada.
e a respeito dos quais, de um ponto de vista or
O meio técnico-científico-informacional
ganolético, táctil, cromático, temos a nítida sen
O terceiro período começa praticamente após a segunda guerra mundial e, sua afirmação, incluin do os países de terceiro mundo, vai realmente dar-se nos anos 70. É a fase a que R. Richta (1968) chamou de período técnico-científico, e que se distingue dos anteriores, pelo fato da pro funda interação da ciência e da técnica, a tal pon to que certos autores preferem falar de tecnociên cia para realçar a inseparabilidade atual dos dois conceitos
e
das
duas
práticas.
Essa união entre técnica e ciência vai dar-se sob a égide do mercado. E o mercado, graças exata mente à ciência e à técnica, torna-se um mercado global. A idéia de ciência, a idéia de tecnologia e a idéia de mercado global devem ser encaradas conjuntamente e desse modo podem oferecer uma nova interpretação à questão ecológica, já que as mudanças que ocorrem na natureza tam bém se subordinam a essa lógica.
sação de que não pertencem ao mundo natural". Num verbete da Encyclopédie Universalia 1981, dedicado
aos
camponeses
franceses, Bernard
Kayser mostra como os seus investimentos em bens de produção — terra, edifícios, máquinas, fertilizantes, pesticidas etc. — passaram, recente mente, de 20 para 50 por cento. Cria-se um verdadeiro tecnocosmo (J. Prades, 1992, p. 177), uma situação em que a natureza natural, onde ela ainda existe, tende a recuar, às vezes
brutalmente.
Segundo
Ernest
Gellner
(1989), "a natureza deixou de ser uma parte sig nificativa do nosso meio ambiente". A idéia de um meio artificial, avançada por A. Labriola em 1896 (em seu estudo intitulado "Del Materalismo Stori co") faz-se uma evidência. A técnica, produzindo um espaço cada vez mais denso, no dizer de N. Rotenstreich (1985, p. 71), tranforma-se no meio de existência de boa parte da humanidade.
192
Milton Santos
Podemos então falar de uma cientificização e de
arada etc.) e dos capitais constantes (maquinário,
uma tecnicização da paisagem. Por outro lado, a
veículos, sementes especializadas, fertilizantes,
informação não apenas está presente nas coisas,
pesticidas etc.) aumenta também a necessidade
nos objetos técnicos, que formam o espaço, como
de movimento, crescendo o número e a importân
ela é necessária à ação realizada sobre essas coi
cia dos fluxos, também financeiros, e dando um
sas. A informação é o vetor fundamental do pro
relevo especial à vida de relações.
cesso social e os territórios são, desse modo,
Rompem-se os equilíbrios preexistentes e novos
equipados para facilitar a sua circulação. Pode-se falar, como S. Gertel (1993), de inevitabilidade do "nexo informacional".
equilíbrios mais fugazes se impõem: do ponto de vista da quantidade e da qualidade da população e do emprego, dos capitais utilizados, das formas
Os espaços assim requalificados atendem sobre
de organização, das relações sociais etc. Con
tudo aos interesses dos atores hegemônicos da
seqüência mais estritamente geográfica, diminui a
economia, da cultura e da política e são incorpo
arena da produção, enquanto a respectiva área se
rados plenamente às novas correntes mundiais. O
amplia. Restringe-se o espaço reservado ao pro
meio técnico-científico-informacional é a cara geo
cesso direto da produção, enquanto se alarga o
gráfica da globalização.
espaço das outras instâncias da produção, circula
A diferença, ante as formas anteriores do meio
ção, distribuição e consumo. Essa redução da área
geográfico, vem da lógica global que acaba por se impor a todos os territórios e a cada território como um todo. O espaço "no qual o homem so brevive há mais de cinqüenta mil anos […] tende a funcionar como uma unidade" (J. Bosque Mau
necessária à produção das mesmas quantidades havia sido prevista por Marx, que a esse fenôme no chamou de "redução da arena". Graças aos avanços da biotecnologia, da química, da organi zação, é possível produzir muito mais, por unida
rel, 1994, p. 40). Pelo fato de ser técnico-científi
de de tempo e de superfície.
co-informacional, o meio geográfico tende a ser
O processo de especialização, criando áreas sepa
universal. Mesmo onde se manifesta pontualmen
radas onde a produção de certos produtos é mais
te, ele assegura o funcionamento dos processos
vantajosa, aumenta a necessidade de intercâm
encadeados a que se está chamando de globaliza
bio, que agora se vai dar em espaços mais vastos,
ção.
fenômeno a que o mesmo Marx intitulou "amplia
Como em todas as épocas, o novo não é difundido
ção da área".
de maneira generalizada e total. Mas os objetos
Como se produzem, cada vez mais, valores de
técnico-informacionais
difusão
troca, a especialização não tarda a ser seguida
mais generalizada e mais rápida do que as prece
conhecem
uma
pela necessidade de mais circulação. O papel des
dentes famílias de objetos. Por outro lado, sua
ta, na transformação da produção e do espaço,
presença, ainda que pontual, marca a totalidade
torna-se fundamental. Uma de suas conseqüênci
do espaço. É por isso que estamos considerando o
as é, exatamente, o aprofundamento das especia
espaço geográfico do mundo atual como um meio
lizações produtivas, tendentes a convocar, outra
técnico-científico-informacional (Santos, 1985 e
vez, mais circulação.(4) Esse círculo vicioso — ou
1994).
virtuoso? — depende da fluidez das redes e da
Quanto mais "tecnicamente" contemporâneos são
flexibilidade dos regulamentos.
os objetos, mais eles se subordinam às lógicas
As possibilidades, técnicas e organizacionais, de
globais. Agora, torna-se mais nítida a associação
transferir à distância produtos e ordens, faz com
entre objetos modernos e atores hegemônicos. Na
que essas especializações produtivas sejam soli
realidade, ambos são os responsáveis principais
dárias no nível mundial. Alguns lugares tendem a
no atual processo de globalização.
tornar-se especializados, no campo como na cida
Ao mesmo tempo em que aumenta a importância
de, e essa especialização se deve mais às condi
dos capitais fixos (estradas, pontes, silos, terra
ções técnicas e sociais que aos recursos naturais.
Milton Santos
193
A nova fruticultura no vale médio do rio Negro
natural, mas que não dispõem desses recursos de
provoca o que se chamou de big-bang de inver
conhecimento. Imaginando duas regiões com as
sões em Chimpay, na Patagônia norte argentina
mesmas virtualidades físicas, aquela mais bem
(Ana M. Correa et al, 1993, p. 6).
equipada cientificamente será capaz de oferecer
O conhecimento como recurso
uma melhor relação entre investimento e produto,
A expressão meio técnico-científico pode, tam bém, ser tomada em outra acepção talvez mais específica, se levarmos em conta que, nos dias atuais, a técnica e a ciência presentearam o ho mem com a capacidade de acompanhar o movi mento da natureza, graças aos progressos da te ledeteção e de outras técnicas de apreensão dos fenômenos que ocorrem na superfície da terra. As fotografias por satélite retratam a face do pla neta em intervalos regulares, permitindo apreciar, de modo ritmado, a evolução das situações e, em muitos casos, até mesmo imaginar a sucessão dos eventos em períodos futuros. Os radares me teorológicos, cada vez mais poderosos e precisos, são colaboradores preciosos nessa tarefa, porque permitem que as previsões se realizem com inter valos ainda menores. Cientistas puros e aplicados valem-se desses instrumentos de acompanha mento e previsão, para aperfeiçoar o conhecimen to das leis da natureza física, antever o respectivo comportamento e, de posse dessas preciosas in formações, alcançar uma implementação con seqüente das atividades econômicas e sociais. As áreas em que tal instrumentação é disponível po dem permitir aos seus usuários um maior grau de certeza e sucesso na realização de operações, sa bido que, em muitos casos, na agricultura e na in dústria, certas etapas do processo produtivo al cançam maior rentabilidade, quando empreendi das em condições meteorológicas favoráveis. A preparação das terras, a sementeira ou o plantio, a utilização de adubos ou de fungicidas podem ter mais ou menos eficácia segundo as condições de tempo em que são feitas. Tudo isso tende a favo recer os empresários, uma vez que tenham prévio conhecimento das condições meteorológicas em que cada fração do trabalho e cada fração de ca pital serão utilizadas. Pode-se, de um modo geral, dizer que as porções do território assim instrumentalizadas oferecem possibilidades mais amplas de êxito que outras zonas igualmente dotadas de um ponto de vista
graças ao uso just-in-time dos recursos materiais e humanos. Numa região desprovida de meios para conhecer, antecipadamente, os movimentos da natureza, a mobilização dos mesmos recursos técnicos, científicos, financeiros e organizacionais obterá uma resposta comparativamente mais me díocre. Tomemos o exemplo do radar meteorológico da Universidade, em Bauru, no Estado de São Paulo, Brasil, durante muito tempo o único existente no país. Seu raio de ação virtual é de 400 km, mas sua captação de sinais é economicamente eficaz num raio de 300 km. Isto significa que as empre sas que se encontram nesse perímetro — e po dem, desse modo, beneficiar-se de suas informa ções —, têm condições de operação muito superi ores às daquelas localizadas em outros lugares. As atividades que mais se aproveitam das infor mações são ligadas à cana-de-açúcar e à laranja (D. Elias, 1996). Tais informações são precisas mas genéricas, cabendo a cada firma ou conjunto de empresas (é o caso das Cooperativas) retraba lhar os dados obtidos, em função de objetivos es pecíficos. Uma nova dinâmica de diferenciação se instala no território. Em primeiro lugar, distinguem-se zonas servidas pelos meios de conhecimento e áreas desprovidas dessa vantagem. E dentro das própri as áreas "conhecidas" as empresas se distinguirão pela sua maior ou menor capacidade de utilização das informações. É possível imaginar que tal sele tividade espacial e socioeconômica conduza a mu danças rápidas na divisão territorial do trabalho, com as firmas mais dotadas do ponto de vista técnico e financeiro tendendo a buscar uma locali zação onde o lucro potencial será mais forte, dei xando o resto do território, ainda que com virtua lidades naturais semelhantes, a firmas menos po tentes. O mesmo raciocínio conduz a admitir que, numa mesma área assim instrumentalizada, a di ferença de oportunidades entre produtores tende a aumentar rápida e brutalmente, após a instala
194
Milton Santos
ção dos novos recursos técnico-científicos de co
Tal atuação das grandes empresas "por cima dos
nhecimento. Aliás, o rearranjo de atividades e do
Estados" permite pensar que "presentemente os
respectivo poder econômico seria duplo: na escala
mercados estão triunfando sobre as políticas dos
da área instrumentalizada e na da região de que
governos, enquanto o controle do mercado está
tal área é uma parte privilegiada.
sendo apropriado pelas empresas que dispõem
O conhecimento exerceria assim — e fortemente
das tecnologias de ponta" (Ph. Cooke, 1992, p.
— seu papel de recurso, participando do clássico processo pelo qual, no sistema capitalista, os de
205). A globalização, diz P. Veltz (1993, p. 51), deve ser entendida como "uma gestão global de
tentores de recursos competem vantajosamente
múltiplas diferenciações territoriais".
com os que deles não dispõem.
Sob esse aspecto, os negócios governam mais
O espaço nacional
que os governos (E. Laszlo, 1992) e, com a globa lização da tecnologia e da economia, os Estados
da economia internacional Agora, os atores hegemônicos, armados com uma informação adequada, servem-se de todas as re des e se utilizam de todos os territórios. Eles pre ferem o espaço reticular, mas sua influência al cança também os espaços banais mais escondi dos.
aparecem como servos das corporações multinaci onais (R. Petrella, 1989). Nessas condições, lem bram Warf (1989, p. 265) e C. A. Michalet (1993, p. 19), o Estado não seria mais necessário para gerir
as
transformações
internacionais.
Verifica-se uma verdadeira "erosão da soberania nacional", conforme realçado por H. I. Schiller
Eis por que os territórios nacionais se transfor
(1986, pp. 21-34). Acreditar, todavia, que o Esta
mam num espaço nacional da economia internaci
do se tornou desnecessário é um equívoco. Na re
onal e os sistemas de engenharia mais modernos,
alidade, a emergência de organizações e firmas
criados em cada país, são mais bem utilizados por
multinacionais realça o papel do Estado, tornado
firmas transnacionais que pela própria sociedade
mais indispensável do que antes (A. Giddens,
nacional. Em tais condições, a noção de territoria
1984, p. 135, H. Silver, 1992; G. Boismenu,
lidade é posta em xeque e não falta quem fale em
1993, p. 13, Groupe de Lisbonne, 1995).
desterritorialização. (O. Ianni, 1992, p. 94; J. L. Margolin, 1991, p. 100) atribuindo-lhe alguns sig nificados extremos, como o da supressão do es paço pelo tempo (Virilio, 1984) ou o da emergên cia
do
que
chamam
"não-lugar"
(M.
Augé,
1992).(5)
"Se o capitalismo tem hoje dimensões internacio nal, multinacional, mundial, ele também não per deu sua dimensão nacional", diz M. Beaud (1987, p. 50). Segundo Hisrt & Thompson (1992) "não temos uma economia completamente globalizada, mas uma economia internacional, cujas respostas
Segundo A. Mamigonian (1994, p. 1), referindo-
são dadas pelas políticas nacionais". Para Peter
se aos E.U.A. e à América Latina, a globalização
Dicken, 1994, pp. 103 e 146, que os cita, "não
"visa conseguir a abertura indiscriminada dos
apenas os Estados ainda são atores importantes,
mercados nacionais e assim a quebra da reserva
como têm a capacidade de encorajar ou inibir a
de mercado, a desindustrialização e a diminuição
integração global ou nacionalmente responsável
da soberania […]". Daí, também, a freqüente
frente
menção de um espaço sem fronteiras (J. Ellul,
transnacionais".
1977, p. 17; Y. Masuda, 1982, p. 90, e a um "ca pitalismo sem fronteiras" (P. Ciccolella, 1993), onde as empresas multinacionais curto-circuitam os Estados (R. Petrella, 1989, M. C. Andrade, 1994), exercendo o que A. Paviani e N. Pires (1993, pp. 125-136) chamam de "gestão externa dos territórios".
aos
desígnios
das
empresas
Assinalando essa passagem de uma economia in ternacional para uma economia global, Savy & Veltz (1993, p. 5) nos convidam "a repensar a re lação entre as entidades territoriais nacionais, as estratégias e as organizações das empresas em via de mundialização". Diversas soluções são aventadas, desde o reforço dos blocos regionais
Milton Santos
195
(P. Geiger, 1993, pp. 104-106, M. Arroyo, 1994,
paço se torna mundial, o ecúmeno se redefine,
P. Ciccolella, 1994) à confederação de estados
com a extensão a todo ele do fenômeno de re
semi-autônomos (B. Barber, 1992, p. 19). A ne
gião. As regiões são o suporte e a condição de re
cessidade de intervenção nos setores estratégicos
lações globais que de outra forma não se realiza
é evocada, com exemplos, por J. L. Whiteman
riam. Agora, exatamente, é que não se pode dei
(1990), a essencialidade do Estado para assegu
xar de considerar a região, ainda que a reconhe
rar o bem-estar social numa época de globaliza
çamos como um espaço de conveniência e mesmo
ção é lembrada por J. Delcourt (1992) e a ineluta
que a chamemos por outro nome.(6)
bilidade de uma resposta popular internacional
Acostumamo-nos a uma idéia de região como su
prevista por S. Picciotto (1991), o que legitima a imperiosidade da elaboração de um projeto nacio nal (G. Neves, 1994, p. 275) para cada país que deseje ter algum comando no processo de sua in serção na nova ordem global que se desenha.
bespaço longamente elaborado, uma construção estável. Agora, neste mundo globalizado, com a ampliação da divisão internacional do trabalho e o aumento exponencial do intercâmbio, dão-se, pa ralelamente, uma aceleração do movimento e
Universalidade atual
mudanças mais repetidas, na forma e no conteú
do fenômeno de região
do das regiões. Mas o que faz a região não é a
Na mesma vertente pós-moderna que fala de fim
longevidade do edifício, mas a coerência funcio
do território e de não-lugar, inclui-se, também, a negação da idéia de região, quando, exatamente,
nal, que a distingue das outras entidades, vizi nhas ou não. O fato de ter vida curta não muda a
nenhum subespaço do Planeta pode escapar ao
definição do recorte territorial.
processo conjunto de globalização e fragmenta
As condições atuais fazem com que as regiões se
ção, isto é, individualização e regionalização.
transformem continuamente, legando, portanto,
No decorrer da história das civilizações, as regiões
uma menor duração ao edifício regional. Mas isso
foram configurando-se por meio de processos or gânicos, expressos através da territorialidade ab soluta de um grupo, onde prevaleciam suas ca racterísticas de identidade, exclusividade e limi tes, devidas à única presença desse grupo, sem
não suprime a região, apenas ela muda de con teúdo. A espessura do acontecer é aumentada, di ante do maior volume de eventos por unidade de espaço e por unidade de tempo. A região continua a existir, mas em um nível de complexidade ja
outra mediação. A diferença entre áreas se devia
mais visto pelo homem.
a essa relação direta com o entorno. Podemos di
Notas:
zer que, então, a solidariedade característica da
(1) "Os meios naturais são, desde as origens da pré-história e por definição, meios relativamente técnicos: Homo faber. A partir do Paleolítico supe rior, os trabalhos do homem para defender-se, alimentar-se, alojar-se, vestir-se, decorar seus abrigos ou seus lugares de culto implicam técni cas já complexas. Inversamente, não conhece mos, mesmo nos centros mais urbanizados, meio técnico 'puro', do qual esteja excluída qualquer ação de elementos naturais (se bem que em últi ma instância isto se possa conceber)." G. Fried mann, 1966, p. 186.
região ocorria, quase que exclusivamente, em função dos arranjos locais. Mas a velocidade das transformações mundiais deste século, aceleradas vertiginosamente no após-guerra, fizeram com que a configuração regional do passado desmoro nasse. Da mesma forma, como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço, também se afirma, nas mesmas condições, que a expansão do capital hegemônico em todo o planeta teria eliminado as diferencia ções regionais e, até mesmo, proibido de prosse guir pensando que a região existe. Quanto a nós, ao contrário, pensamos que: em primeiro lugar, o tempo acelerado, acentuando a diferenciação dos eventos, aumenta a diferencia ção dos lugares; em segundo lugar, já que o es
(2) "[…] a natureza não era apenas um quadro fixo, ela era também um regulador constante. As nossas ações se incorporavam rapidamente e tudo se podia experimentar sem grandes riscos, porque os equilíbrios naturais, fracamente modifi cados pela intervenção do homem, logo retoma vam seu papel." G. Berber, 1964, p. 231. (3) "A mecanização do espaço técnico é muito mais recente do que a 'mecanização da imagem
196
do mundo', retomando o livro de Dijksterhuis. Ela somente se impôs ao longo dos dois últimos sécu los, dos quais ela constitui o traço dominante, nos países ocidentais e no Japão. Ela se tornou um fenômeno planetário. Ela se metamorfoseia de 'geração' em 'geração'. Ela povoa o imaginário co letivo: a ciência-ficção somente imagina o futuro como sendo invadido e saturado por máquinas, às vezes dominado e às vezes aniquilado por elas." J.-P. Séris, 1994, p. 154. (4) A esse respeito, P. Geiger (1993, p. 108) refe re-se à "[…] divisibilidade das operações e sua dispersão geográfica, conduzindo a maiores espe cializações […]". A esse respeito, ver, também D. Trinca (1993, p. 199).
Milton Santos
(5) A propósito do tema territorialidade-desterri torialidade, tanto para o caso brasileiro como em geral, ver M. Correia de Andrade (1994), Gervásio Neves (1994), R. Lobato Corrêa (1994), Pedro Geiger (1994) e outros. (6) Embora seja difícil estabelecer com precisão o significado da palavra região, é certo que, seja qual for a sua definição, ela está intimamente li gada às formas de produção que vigoram em de terminado momento histórico." M. A. Faggin Pe reira Leite, 1994, p. 14.
Milton Santos
197
POR UM MODELO BRASILEIRO DE MODERNIDADE
Fonte: http://www.fsc.ufsc.br/~marilena/milton.html Publicado no Jornal da Ciência, JC e-mail 1648, de 17 de outubro de 2000.
A história pode ser vista como um fluxo ininter
Como essa abertura foi quase sempre ilimitada e
rupto, onde passado e futuro se entrelaçam num
sem freios, a modernidade à moda brasileira e'
presente mais ou menos revelador dos processos
igualmente sinônimo de abandono. E' como se
responsáveis pelas grandes mudanças.
aqui nao fosse possível adotar as inovações cria
Estas nem sempre sao percebidas, porque tem
das no mundo se nao como cópia do polo criador
suas origens em movimentos de fundo, acelera
e difusor de novidades (Europa, depois os EUA...).
ções ate' entao desconhecidas e com a entrada
Esse comportamento reiterado pode dar a impres
em cena de novos atores.
sao a quem o observa de que a modernidade e'
E' assim que se dao as rupturas e novos objetos,
sempre imitativa. Uma análise ainda mais profun
novas paisagens, novas relações, novos modos de fazer, de pensar e de ser se levantam e difundem. A marcha da civilização e' caracterizada, exata mente, por semelhantes situações, a que generi camente podemos chamar de modernizações. Tais modernizações, a princípio isoladas e lentas, tornam-se depois mais rápidas e espalhadas, com o advento do capitalismo. Este e' marcado pela tendencia à internacionaliza ção e depois à universalização das conquistas ma teriais e espirituais que, há cinco séculos, vem al terando o sentido da vida em todos os continen tes, ainda que de forma desigual. Talvez por isso mesmo a idéia de progresso está sempre sujeita à reflexao e à crítica. O processo capitalista une, de forma desigual e combinada, paises ativos, dos quais se irradiam as grandes mudancas e que delas se beneficiam, e paises passivos, onde a grande maioria da hu manidade vive na pobreza, segundo diversos graus de intensidade. Modernizacao e agravamento da desigualdade tem sido uma constante, constituindo, aliás, o lado perverso da difusao do progresso sobre a face do planeta. O Brasil e' um exemplo de pais para o qual a mo dernidade, em todas as fases de sua história nos ultimos cinco séculos, impoe-se, sobretudo, como abertura aos ventos de fora.
da a partir do caso brasileiro levara' a pensar que a idéia de adotar a modernidade tal qual postula da no centro seria tambem preconceituosa. Não se imitam culturas consideradas inferiores, enquanto são aceitos sem reflexão os princípios e as consequências daquelas consideradas superio res. No caso brasileiro, tal modernidade se impos, ao longo dos seculos, aos modos de fazer, de ser e de pensar. Quanto ao fazer, e' comum que se pre firam impor distorções a imaginar práticas menos danosas na condução dos destinos nacionais. Quanto ao ser, uma espécie de complexo de cul pa, nem sempre confessado, marca frequente mente os comportamentos, quando por exemplo não se pode fazer tudo previsto no modelo, ou se guir toda a prescrição. Os responsáveis não se acham falaciosos ao de fender formulaçes absurdas, no afã de adequar o pais aos modelos exógenos. O proprio pensar nao escapa dessa evolução dis torcida, pois as elites intelectuais são instante mente convidadas a negligenciar as pretensões de elaboração de um pensamento próprio, limitandose, com exceções valiosas - e agora crescentes ao mísero papel de repetidoras do modelo consa grado la' fora. Recentemente, com o neoliberalismo, e' frequente o abandono da ideia do nacional brasileiro, com a seducao de um imaginário influenciado por forte
198
Milton Santos
apelo da técnica e aceitação tranquila da força to
A grande originalidade do presente periodo histo
talitária dos fatores da globalização.
rico e' a visibilidade, em todos os cantos do mun
Em todos os casos, avulta como corrente condu
do, das novas possibilidades oferecidas por ele e a
tora a modernidade alienígena e alienante como
consciência de que e' possível uma multiplicidade
força propulsora e indiscutível.
de combinações.
Que seria uma modernidade 'a brasileira e como
Estas nao tem que ser obrigatoriamente conduto
poderemos alcançá-la? Cumpriria, em primeiro lu gar, não enxergar a modernidade como dogma, uma obrigação, um credo. Em duas palavras, isso implicaria não seguir o conselho do poeta Rimbaud para quem a moder nidade era algo a tomar a qualquer preço. Ao con trário, o que se postula e' a predicação de uma modernidade guiada por um objetivo nacional brasileiro. Se antes isso ja' era possivel, agora o e' muito mais, embora nos facam crer que ha' apenas uma opção, um caminho, com vistas 'a construção do futuro.
ras de alienação, podendo construir-se a partir de um modo de ser caracteristico da nação conside rada como um todo, uma edificação secular onde as mudanças nao suprimam a identidade, mas re novem o seu sentido a partir das novas realida des. Nao se trata, assim, de recusar o mundo, mas de assegurar um movimento conjunto, em que o país nao seja exclusivamente tributário, mas sobera namente participe na produção de uma história universal. Milton Santos e' geografo, professor emérito da USP. Este artigo saiu no "Correio Braziliense" no dia 15/10/2000.
Milton Santos
199
O INTELECTUAL ANÔNIMO
Fonte: Expresso Vida © ( nº 73 - 15 de Junho de 2001 - ano 2 ) São Francisco do Sul, Sc, Brasil
A atividade intelectual jamais é cômoda e a exi
que o debate possível torna-se, por natureza, fal
gência de inconformismo, que a acompanha, faz
so.
com que a sociedade reconheça os seus portado
Essa poderia também ser a definição mais deseja
res como porta-vozes das suas mais profundas aspirações e como arautos do futuro – Por Milton Santos
da da vida acadêmica em todos os lugares. Mas a verdade é que a forma como, nos últimos tempos, se está organizando a convivência universitária
Por definição, vida intelectual e recusa a assumir
acaba por reduzir dentro dela o número de verda
idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço dis
deiros intelectuais, mesmo se aumenta o de cien
tintivo entre os verdadeiros intelectuais e aqueles
tistas e de letrados de todo tipo. A vida universi
letrados que não precisam, não podem ou não
tária é cada vez mais representativa de uma bus
querem mostrar, à luz do dia, o que pensam.
ca de poder sem relação obrigatória com a procu
O intelectual verdadeiro é o homem que procura,
ra do saber. E isso corrompe, de alto a baixo, as
incansavelmente, a verdade, mas não apenas para festejar intimamente, dizê-la, escrevê-la e sustentá-la publicamente. É um fato conhecido
mais diversas funções da academia, inclusive ou a começar pela trilogia agora ambicionada pelas ati vidades de ensinar, pesquisar e transmitir à socie
que, em épocas de obscuridade, os mandões do
dade o trabalho intelectual.
momento o proíbam ou o inibam de fazê-lo, ge
Um primeiro resultado é, sem dúvida, o encolhi
rando como conseqüência a listagem daqueles
mento do espaço destinado aos que desejam pro
que se tornam mártires do seu próprio pensamen
duzir o saber, e não é raro que esse movimento
to, como Unamuno, durante a Guerra Civil Espa
seja acompanhado por uma verdadeira hostiliza
nhola, e dos que não renunciam ao dever da ver
ção, da parte dos que mandam, em relação aos
dade,
pronunciá-la
que teimam em colocar em primeiro plano a bus
quando retornam os regimes de liberdade. Mas é
ainda
que
deixando
para
ca da verdade. Constata-se, desse modo, uma se
isso mesmo o que distinguiu a universidade de
paração, cada vez maior, entre estes e o conjunto
outras instituições. Por isso, a atividade intelectu
de docentes viciados em poder e que a ele se
al jamais é cômoda e a exigência de inconformis
agarram por longos e longos anos, formando um
mo, que a acompanha, faz com que a sociedade
grupo com tendência ao isolamento e à auto-sa
reconheça os seus portadores como porta-vozes
tisfação, bem mais preocupado com as perspecti
das suas mais profundas aspirações e como arau
vas de manter esse poder do que com a constru
tos do futuro. Por isso mesmo, observadores da
ção de uma universidade realmente independente
universidade, no passado e no presente, temem
e sábia. A esses colegas preferimos chamar de
por seu destino atual, já que são raras as mani
buroprofessores. Na medida em que a noção de
festações de protesto oriundas de suas práticas,
poder se arraiga como algo normal, tais compor
deixando, às vezes, a impressão de que a acade
tamentos parecem banalisar-se, tomando diferen
mia pode preferir a situação de mera testemunha
tes feições no processo de reduzir as possibilida
da história, em lugar de assumir um papel de guia
des de um trabalho independente e de convocar,
em busca de melhores caminhos para a socieda
até mesmo, espíritos promissores para a aceita
de.
ção de um trabalho viciado, exatamente pela in
Quando os intelectuais renunciam a esse dever -
gerência cada vez mais generalizada das lógicas
sejam quais forem as circunstâncias -, um manto de trevas acaba por cobrir a vida social, uma vez
de poder. Não sabemos em que medida será útil buscar a relação entre as ações acima enumera
200
Milton Santos
das e incluí-las no conjunto das realidades que
de morte sempre que a idéia e a prática do espíri
atualmente produzem o grande mal-estar ressen
to acadêmico são abandonadas em favor de con
tido nas universidades brasileiras. O certo é que
siderações pragmáticas. Na grande crise em que o
esse conjunto de fatos conduz, com mais ou me
país agora se confronta, torna-se evidente e cla
nos força, segundo os lugares, ao enfraquecimen
morosa a ausência de uma discussão mais intensa
to do espírito acadêmico, e isso acaba por conta
e mais profunda, partindo da academia, em suas
minar o ensino, a pesquisa, as relações entre co
diversas instâncias, e que, como em outras oca
legas e as relações das faculdades frente à socie
siões na vida de todos os povos, mostra o papel
dade. A força autêntica da universidade vem do
pioneiro da universidade na construção dos gran
espírito acadêmico partilhado por professores e
des debates nacionais. A apatia ainda está pre
alunos e cuja preservação seria de esperar que as
sente na maior parte do corpo professoral e estu
autoridades universitárias sejam capazes de con
dantil, o que é sinal nada animador do estado de
duzir. É essa fortaleza da instituição acadêmica o
saúde cívico dessa camada social cuja primeira
garante da autonomia na produção do saber, as
obrigação é constituir, como porta-voz, a van
segurada através da liberdade de cátedra e da li
guarda de uma atitude de inconformismo com os
berdade acadêmica efetiva, conferida a cada pro
rumos atuais da vida pública.
fessor, a despeito da vocação, às vezes, autoritá
Milton Santos, geógrafo, é professor emérito da
ria dos colegiados e da prática de falsificação da democracia acadêmica. A força exterior da univer sidade deriva de sua força interior e esta é ferida
Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de Por uma outra globalização (Record, 2000)
Milton Santos
CÂMARA
NOS
500
201
ANOS
PARLAMENTO BRASILEIRO HISTÓRIA E PERSPECTIVAS QUE PARLAMENTO PARA O SÉCULO XXI? DESAFIOS E PERSPECTIVAS FRENTE À MUNDIALIZAÇÃO
Fonte: http://www.camara.gov.br/intranet/camara500/Seminarios/PB_MiltonSantos.htm Endereço da Câmara dos Deputados: http://www.camara.gov.br
Milton Santos - Quero agradecer a todos a oportu
O presidente desta Casa tem de tomar conheci
nidade de estar presente para, em companhia de
mento do que foi dito pelo Emir Sader, pelo Cícero
pessoas tão ilustres, participar desta mesa, que
Sandroni, meu velho amigo e companheiro de
entendo como ocasião de trabalho. Nas ocasiões
Brasília há quarenta anos, quando servi ao gover
de trabalho, cada qual funciona em função de
no da República, aqui mesmo. O que tenho de di
suas competências. Nesse caso, cabe-me falar
zer, o geógrafo pode dizer em época de globaliza
como aquele que aparentemente sou, isto é, um
ção a respeito da representatividade dos que são
geógrafo. É evidente que me sentiria mais à von
eleitos.
tade no tema exatamente anterior ao de hoje,
As Constituições brasileiras, copiando ou não ou
mas já que me puseram neste tema, vou fazer um esforço, como se dizia antigamente, transido de medo. Medo que me acompanhou na prepara ção dessa viagem e que foi agravado ontem quando, recebendo este caderno, soube que quem organizou esta audiência está pedindo aos assistentes que avaliem o desempenho dos pales trantes. Não sabia disso e me sinto como há 56 anos, quando fui fazer vestibular. Somente para mostrar que não gostei dessa forma de convidar as pessoas, por isso, vou fazer o pior que me for possível.
tras, pretenderam incluir território no pensamento da nação. E pretendendo fazê-lo inclusive pela forma de como o Poder Legislativo se organiza, referiram-se ao Senado Federal como símbolo da Federação. Por isso, há uma representatividade homogênea. Não importa o tamanho, a popula ção, a riqueza, o Senado Federal é formado por igual número de senadores de cada estado; a Câ mara dos Deputados, que aparentemente repre senta a nação — aí entra a discussão do geógrafo —, é formada por representantes do povo. Mas o que é o povo? O que é a nação? Quem jamais deu
O assunto que nos trouxe aqui é a discussão do
bom-dia à nação? Quem jamais se encontrou com
Parlamento brasileiro, sua representatividade; isto
a nação? A nação é uma intellectia vista por inter
é, a maneira como um conjunto escolhido de cida
médio do território. Isto é, se a vida local não tem
dãos representa a totalidade de uma nação. Aqui,
como se mostrar, a Federação, como tal, pode
o assunto foi tratado segundo a ótica do Direito
automaticamente se opor à globalização.
internacional público, segundo a ótica do povo e
E a discussão que se põe; por conseguinte, a dis
seu dinamismo e do divórcio existente entre o povo e seus representantes, e também entre os representantes e aqueles que são pagos para pensar o país, que são os intelectuais. Algo grave do Brasil é essa incapacidade de a área política prestar atenção ao que propõem os estudiosos.
cussão proposta que nos trouxe aqui — aliás, mi nha vinda aqui foi só por isso, além de atender ao convite tão amável, insistente, delicado e sensível dos que organizaram esta reunião, e que parece que não foram os deputados, mas um grupo que decidiu exercer sua vontade de civismo indepen
Mesmo assim, confio nos que organizaram esta
dentemente de seus chefes — é o Parlamento.
reunião, sei que vão fazer uma súmula para en
Neste lugar, não há chefe nem patrão. Estamos
tregar ao presidente da Casa. Peço que a façam
aqui por espontânea vontade. Não vou mais adi
com cuidado, que façam um resumo, porque pre
ante porque não quero criar problemas para nin
sidentes de Casas não têm tempo para ler muito.
202
Milton Santos
guém, muito menos para os funcionários que or
Digo isso porque o território acaba por ser o dado
ganizaram esta reunião.
essencial da condição da vida cotidiana. Essa vida
A República brasileira, de alguma forma ou de ou
cotidiana é contraditória por definição, porque une
tra, era de lugares. Gente como Celso Furtado chegou a dizer, em relação ao Nordeste, que o poder não se centrava nas cidades, mas nas fa zendas. É evidente que não havia representativi dade do povo, mas alguém representando a eco nomia e a política dominantes e não a cultura do minante. Nessa República da enxada alguns vi nham para o Congresso legislar em nome próprio, ainda que dizendo legislar em nome do povo bra sileiro. O conjunto de conteúdos dos lugares tem de levar em conta as pessoas, tem de considerar como elas se organizam, produzem e trabalham. Enfim, os ocupantes desses lugares devem rever defini ções externas do que é o país e do que é o mun do.
o passado e o futuro na figura do presente fugaz, obriga às obediências, estimula a revolta, mas conduz ao entendimento do papel das coisas que nos cercam e limitam nossa ação. Obriga-nos a pensar. E não há outra maneira de viver, isto é, outra vez nos conduzindo a revalorizar as possibi lidades de produção de outro futuro. Ora, a políti ca não é outra coisa senão isso mesmo. Dir-se-ia que o cotidiano é conjuntural. Não o é na medida em que cada um de nós vive fazendo coisas que dependem da maneira como nos inferimos em dada estrutura. Cada um de nós faz coisas que nos são permitidas ou não em cada lugar. Daí essa relação inseparável entre cotidianidade e lu gar, relação pouco explorada pelos geógrafos, o que desculpa os cientistas políticos de modo geral e, mais do que os cientistas políticos, os juristas,
Queria fazer uma ou duas observações de ordem
que são os homens da forma, às vezes, fria e tor
conceitual. Peço desculpas por aborrecê-los com
nada autônoma em relação a um movimento. Se
esse tipo de preocupação, mas sem isso não sa
os próprios geógrafos não tratam as coisas da
beria o que desejam. A idéia de território — que é
maneira que deveriam ser tratadas, por que os
aliás a idéia com a qual trabalha o Direito público,
outros poderiam fazê-lo?
os chamados cientistas políticos — não leva a lu gar algum no território em si, razão pela qual nem o Direito público nem a Ciência Política incorpo ram território na sua formulação. A meu modo de ver, o que deve ser levado em conta não é o terri tório em si, mas a maneira como ele é cheio de ações, que redefinem o território, que lhe dão seu verdadeiro conteúdo. A legislação para ser eficaz, se não incluir conteúdo, será algo apenas formal, como os conselhos dos cientistas políticos, que não incluem o conteúdo de território, serão igual mente formais. O conteúdo da nação, o conjunto de conteúdos dos lugares não se envolve real mente com algo que tem dinamismo, vida, se não se levar em consideração as pessoas que estão no lugar. Conhecemos esse lugar pela maneira como ele se organiza e produz a possibilidade de traba lho, da circulação e certamente produz também em cada pessoa, além da visão própria desse lu gar, uma possibilidade de rever as definições ex ternas do que é o país e o mundo.
Minha sugestão é exatamente que comecemos daí. A partir daí, entenda-se ou busque-se enten der como a globalização tem um novo papel na renovação do pensamento do Direito público constitucional, como a globalização obriga a uma nova forma de pensar a organização dos países. No caso brasileiro, estamos assistindo a quê? Es tamos assistindo a uma reforma da Constituição. O professor Emir Sader mostrou como essa refor ma vem sendo feita por intermédio do trabalho das assembléias representativas da sociedade brasileira, desta Câmara por exemplo. Só que cada uma das reformas é apresentada como algo autônomo. E, se o território tivesse sido levado em conta, isso seria impossível, pois este, incluin do os homens, com o seu dinamismo, obrigaria a que essas reformas — sejam quais forem —, a fis cal, por exemplo, levassem em conta a "empirici zação" dessa coisa metafísica que é a nação, atra vés do enraizamento nos lugares ou, pelo menos, do uso diferenciado feito dos lugares, por frações
Milton Santos
203
da sociedade que se definem cada qual de modo
com a globalização, não são os políticos que fa
específico em função disso.
zem política. A política é feita pelas grandes em
A globalização permite reviver um antigo sonho
presas. Os políticos são, de maneira quase geral,
de alguns constitucionalistas brasileiros que nunca foi muito adiante quando se tratou de traduzir ideais em direito positivo. Na Constituição que su cede o regime autoritário do anteguerra e durante a guerra, foi possível incluir um terceiro nível na Federação, dando ao município um papel impor
porta-vozes. Eles elaboram os discursos de inte resse da grande empresa, sobretudo porque mui tos estão convencidos, outros são convencidos, e outros, sem estar convencidos, falam assim mes mo. Só há uma solução na cabeça e no coração dessas pessoas: é essa globalização perversa, que
tante. A globalização vai obrigar à criação de um
modifica, inclusive, o caráter da nação.
quarto nível. Vou tentar explicar por quê.
O que se passa é que, além do município, dentro
Peço que me perdoem a aridez do que vou trazer
do estado, mas além do estado federado, dentro
agora, mas estamos aqui para trabalhar juntos. A tarefa de professor é trazer o seu trabalho, ainda
na nação, mas além da nação, há pedaços do ter ritório convocados a comportamentos indispensá
que possa parecer aborrecido aos ouvintes, para
veis, se querem continuar trabalhando.
que possamos trabalhar juntos agora ou depois. O
Há regras extremamente rígidas no processo pro
que acontece com a globalização? Ela acaba privi
dutivo, o que também me faz perguntar-lhes por
legiando certas áreas dentro do território como
que as coisas devem ser assim. É a porta aberta
um todo, áreas que acabam sendo utilizadas por
para uma espécie de conscientização, que será
atores hegemônicos de natureza global, que se
tanto mais eficaz quando os partidos se derem
apossam. E a legislação não cuida deles, porque o
conta de que as coisas assim são, e há con
fenômeno não é bastante analisado até agora.
seqüências geográficas e políticas que deverão ser
Faço uma pequena observação: esse fenômeno
consideradas quando a Constituição, que está
foi analisado no livro que, juntamente com a pro fessora Maria Laura Silveira, estamos publicando na editora Record. Cheguei a essa conclusão devi do a uma apresentação generosa do professor
sendo reformada agora, for reformada novamen te, porque a globalização está criando no país uma série de condições que obrigarão a uma re forma da Constituição novamente daqui a alguns
Emir Sader.
anos.
O que a globalização faz é como que entregar cer
Quando penso no que está sendo feito agora no
tas áreas, na sua função e na sua dinâmica pró pria, a um motor externo ao país, que regula a vida de cada região em função de interesses "pri vatísticos". As empresas muito grandes mandam
Congresso, fico estarrecido. Essa é mais uma ra zão para que nos disponhamos a repensar o país a partir da sua realidade, de modo a oferecer, da qui a pouco, possibilidades para que outras coisas
em pedaços do Brasil cada vez mais numerosos,
sejam feitas.
aqueles pedaços que necessitam de infra-estrutu
Que os deputados não nos ouçam, está bem, mas
ras modernizadas. Empresas, quando se instalam,
os intelectuais não são feitos para audiência dos
pedem aos governos federal, estadual e municipal
poderosos. Jamais houve conciliação, por mínima
que lhes ofereçam infra-estrutura. Essas empre
que fosse, entre alguém que se imagine um ver
sas, de produção seja de porcos, seja de frangos,
dadeiro intelectual e o trabalho cotidiano do ho
seja de soja, seja lá do que for, estabelecem uma
mem de poder. Há mesmo uma contradição. O
disciplina extremamente rígida, como se fosse re
trabalho do intelectual é feito para ser entregue à
criada a figura do servo e da gleba outra vez. Os
população, se possível, por meio da sociedade ci
agricultores guardam a propriedade da terra. O
vil e organizada, que inclui os partidos, e, se não
uso da terra é regulado pelos interesses dessas
possível, de forma selvagem como a presença
empresas, criando uma fragmentação do territó
aqui, que, aparentemente, é burocrática. Se fizer
rio, uma alienação do território, um descontrole
mos uma análise superficial, é evidente que va
do território pelo Estado, o que permite dizer que,
mos imaginar que a organização da reunião foi
204
Milton Santos
extremamente burocrática. Imagino que boa par
tam por meio não apenas de representantes legis
te das pessoas presentes é independente ou de
lativos, mas também da imprensa local. Há, por
seja ser. O fato de essas portas se abrirem para
isso, má representatividade, na medida em que
eles e para nós cria um diálogo que, daqui a pou
ela é a caixa de ressonância tanto dos grandes in
co, será frutuoso.
teresses, que pagam a mídia, como também dos
O município já não dá conta da representatividade
interesses dos leitores, que exigem uma forma de
do cotidiano, porque o que produz no homem o
reação da mídia local e regional, representativa
ente filosófico que o faz saber-se no mundo, en
de uma área que não é o município nem o estado.
tender sua função, seus limites e as esperanças
A realidade já mostra uma nova divisão territorial
possíveis senão o cotidiano, que é melhor visto
do Brasil, que, creio, vai exigir representatividade
por meio do trabalho, as formas de trabalho que
política, reclamar e participar do jogo das deci
acorrentam ou liberam?
sões que concernem à construção do futuro.
Por isso, as classes médias são, ao mesmo tem
Tenho outros temas para trazer aqui, mas prefiro
po, as mais acorrentadas. No país, são as que
ficar neste, isto é, a globalização, que é perversa,
têm maiores dificuldades para entender o proces
mas também traz, a partir da contradição ofereci
so do mundo. É função do seu trabalho. Agora
da pela vida, novas formas de realização da con
que os trabalhos começam a faltar às classes mé
vivência social. É necessário que a estudemos
dias e são remunerados de forma incorreta, ape
mais profundamente e transmitamos os resulta
nas como miragem para seus filhos, elas estão
dos de nossos estudos à população, na medida do
conhecendo também uma formidável metamorfo
possível, com debates como esse que daqui. Não
se política, que terá grande importância no Brasil
importa que as pessoas não falem. O debate está
que se está reconstituindo.
aí. Às vezes, é no silêncio que acontecem os de
O cotidiano do trabalho. O trabalho é acorrentado
bates mais frutíferos.
ao interesse das grandes empresas. Estas reorga
Nesse particular, outra vez, agradeço aos organi
nizam o território ao seu talante e fazem-no de
zadores desta reunião o convite e felicito-os. Mui
forma ainda não regulada, para mostrar à comu
to obrigado.
nidade interesses que, por enquanto, se manifes
FIM
Milton Santos
205
A UNIVERSIDADE: DA INTERNACIONALIDADE À UNIVERSALIDADE Discurso de aceitação do título de professor Honoris Causa na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1999.
Nos dias atuais, é praticamente comum, quase
e dentro da Universidade por sua inspiração direta
em toda parte, a perda progressiva, pelas Univer
ou indireta, é subordinado a objetivos externos à
sidades, da meta do conhecimento genuíno, o que
busca do conhecimento verdadeiro. Daí o papel
contribui para despojar a instituição universitária
hoje determinante, das Fundações corporativas
de sua principal razão de ser.
internacionais, na produção e na circulação das
Será essa uma evolução inelutável e irreversível?
idéias. Veja-se, também, nas ciências sociais, o
Talvez valha a pena, para fixar as idéias, retraçar, ainda que brevemente, a história geral do traba lho intelectual. Primeiro houve o sábio individual, aquele cujo conhecimento era elaborado em co munhão integral com a Natureza total. Era uma busca localizada, talvez inconsciente, de universa lidade. O sábio individual foi substituído pelas cor
papel das redes, financiadas por convênios inter nacionais, tanto mais exitosos, no geral, quanto menos relevantes são os seus objetivos. A função desse pseudoconhecimento - fabricado sob enco menda - é construir, sob o selo do cientificismo, um discurso universitário cujo pecado de origem elimina a possibilidade de o associar à noção de
porações de sábios, nas escolas e nos conventos:
verdade científica.
o saber se tornava um atributo específico de um
De um modo mais ou menos geral, a Universidade
grupo, treinado para exercê-lo. Chega-se, depois,
aceita esse papel sem glória de produzir um co
com as Universidades, à figura do "scholar", mis
nhecimento comprometido, acorrentado ao que
tura de professor e pesquisador, pago pela socie
hoje se chama "o prático", "o objetivo", "o prag
dade como um todo para "produzir" livremente o
mático", vocábulos que ganharam um novo con
saber, isto é, codificar, do seu ponto de vista, o
texto para significar o que é capaz de dar maior
saber coletivo, inventar individualmente, novos
lucro, seja como for.
saberes, ou simplesmente fabricar um conheci
Por isso, a universidade é chamada a realizar uma
mento a ser transferido à comunidade como edu cação. Mais recentemente, essa figura do "scho lar" foi parcialmente substituída pela dos "funcio nários da educação", sem maior compromisso com a pertinência dos temas. Os sábios, as corpo rações de sábios, assim como a produção de um saber desinteressado e verdadeiro acabam se tor nando coisa rara, quando a ciência, como serviço às coisas, matou a filosofia como serviço ao ho mem. O sábio é substituído pelo erudito, o cien tista pelo mero pesquisador, o intelectual pelo profissional, se a grande preocupação não é mais o encontro e o ensino da verdade, em todas as suas formas, mas uma atividade parcelisada, do minada por um objetivo imediato ou orientada para um aspecto redutor da realidade. Em tais circunstâncias, a Universidade corre o ris co de abandonar a busca do saber abrangente, substituído pela tarefa de criação e de transmis são de um saber prático. Este saber prático, ela borado fora da Universidade pelas grandes firmas
produção comercial do saber, um conhecimento adredemente planejado como um valor de troca, destinado desde a sua concepção (que é inspira da, cada vez menos, nas Universidades e cada vez mais nas grandes firmas) a criação de um va lor mercantil. O conhecimento assim produzido é uma mercadoria sujeito à lei do valor econômico. É um mundo de cabeça para baixo que as Univer sidades estão ajudando a criar e difundir, onde o meio passa ele mesmo a ser um fim. Quando a Universidade se transforma em uma oficina do utilitarismo, ela é, ao mesmo tempo, esterilizada e esterelizante. Torna-se um corpo morto e um corpo morto não cria coisa alguma. O conheci mento produzido como meio de produção nasce para morrer quando se torna funcional. É o saber do fazer coisas, um processo finito, Ora, a busca do conhecimento é um processo infinito, o proces so de criação que é, ele mesmo recriador. O seu centro de interesse é no homem e não nas coisas.
206
Milton Santos
Quando a Universidade decide institucionalizar a
voltar a ganhar dimensão, pelo fato de que são os
primazia outorgada ao estritamente técnico sobre
esquemas sociais de uso das técnicas e dos obje
o mais amplamente filosófico, entroniza o instru
tos que alicerçam o discurso de justificação das
mental e minimiza o teológico. Quando as ciênci
novas dependências e desigualdades. O esforço
as, quaisquer que sejam, são tratadas como se
dos países subdesenvolvidos como o nosso deve
não devessem ter uma filosofia própria, integra
ria, pois, se orientar principalmente na direção do
dora, os objetos são colocados acima do homem.
estudo das suas próprias realidades sociais como
A Universidade que cria e difunde esse tipo de sa
um todo. Esse, desgraçadamente, é também um
ber entre aspas perde seu conteúdo e sua finali
domínio onde a imitação passou a ser uma regra
dade, e os professores e alunos vão fazendo coi
e a mania dos títulos (mestria, Phd, etc) substitui,
sas, mas não sabem mais exatamente o que es
nas universidades burocratizadas, o saber genuí
tão fazendo. Por isso, ao mesmo tempo em que
no.
as disciplinas chamadas científicas afundam num
A universidade internacionalizada "a priori" só
imediatismo confrangedor ou numa futurologia cega, as ciências sociais e humanas são subalter nizadas, reduzidas a um papel de justificação ou de codificação de uma interpretação unilateral da sociedade.
serve a alguns, cada vez menos numerosos. Por que não sendo universal também não é propria mente Universidade. Mas não seria justo concluir com uma nota pessimista. Com todos os seus de feitos atuais, tão parecidos em quase todo o mun
Essas tendências gerais, hoje comuns a quase to
do, as Universidades geram o veneno e o antído
das as Universidades, em quase todos os países,
to, mesmo se em doses diferentes. Lugar de um
são um resultado do fato de que o saber se trans
saber vigiado e viciado, elas são, também e ain
formou numa força produtiva direta. Como ao
da, o único lugar onde o contra-saber tem a pos
mesmo tempo a economia se internacionalizou. O
sibilidade de nascer e às vezes prosperar. Isto
saber-mercadoria tinha que acompanhar a ten
pode ser o resultado de esforços de cientistas pio
dência, razão pela qual as universidades, por ini
neiros, agrupados ou não. Mas para guardar e
ciativa própria ou por contaminação, aceitam se
manter o pensamento independente e indispensá
guir essa mundialização unilateral. Adotando um
vel que a instituição universitária aceite desinsti
modelo externo às realidades nacionais ao serviço
tucionalizar-se, caminho único para evitar que o
da produção das coisas, elas se tornam medío
excesso de regras e de mandos acabe por esterili
cres, graças, também, ao desajustamento entre
zar as suas possibilidades de um trabalho real
um saber cada vez mais transferido e as realida
mente livre, voltado para o interesse geral.
des profundas das nações e graças à contradição
A tarefa de incorporar a Universidade num projeto
entre os meios, universalizados pelas necessida des produtivas de caráter internacional, e os fins próprios a cada coletividade nacional, minimiza dos estes por uma globalização perversa, coman dada por uma economia mundial perversa e uma informação
internacional
igualmente
perversa.
Sob esse ponto de vista, a situação dos países do Terceiro Mundo é dramática. Porque o saber já chega de fora incorporado nos objetos, na tecno logia,
no
"management"e
inclusive
nos
"scholars"importados, ainda que haja exceções. Nessa situação, a produção de um saber nacional autêntico torna-se assim dispensável. É exata mente por isso que as ciências sociais deveriam
social e nacional impõe primeiro a criação e de pois a difusão de um saber orientado para os inte resses do maior número e para o homem univer sal. Não há contradição entre nacionalidades e universalidades, entre as busca do nacional popu lar e o encontro com o universal. Devemos estar sempre lembrados de que o internacional não é o universal. O trabalho universitário não é propria mente uma tarefa internacional, mas precipua mente nacional e universal, dependendo, desde a concepção à realização efetiva, da crença no ho mem como valor supremo e da existência de um projeto nacional livremente aceito e claramente expresso. É a tarefa que nos aguarda.
Milton Santos
207
CONFERÊNCIA MAGNA DR. MILTON SANTOS - USP I SEMINÁRIO NACIONAL - SAÚDE E AMBIENTE NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO - 12 07 - 00
Sou extremamente sensível à enorme delicadeza
do, limita o raciocínio e pode trazer um perigo de
do convite que Dra Minayo me estendeu para es
equívoco que desejamos ultrapassar, uma acep
tar aqui presente e falar, e talvez fosse mais pro
ção puramente técnica do que vive, e alcançar
veitoso para todos que eu estivesse presente ape
essa visão global sem a qual o humanismo pode
nas para escutar. Foi aliás a minha primeira deci
ficar no discurso e ser portador de uma moralida
são, a de escutar, porque o convite me trouxe um
de, mas não de uma moral. O que distingue a
grande medo. Os que trabalham questões episte
moral da moralidade é que a moral é o fundamen
mológicas, isto é, a filosofia particular a cada
to da política, e nada se resolve, mas nada, a par
ramo do saber, sabem que, é extremamente peri
tir mesmo do domínio da técnica, sem que o dado
goso, perigoso é um termo, falar diante de espe
político seja posto em primeiro lugar. Quando eu
cialistas, ainda que, filósofos de outro ramo de sa
falo em política não estou me referindo à política
ber.
com o p minúsculo da qual estamos desgraçada
A única justificativa para minha ousadia é em pri
mente muito longe, mas aquela outra que é o de
meiro lugar a minha ousadia. Mas é também o fato de que, o que une as disciplinas todas, é o mundo, e o mundo se havendo tornado acessível a todos nós nesse fim de século, a filosofia, de al guma maneira, se cientificiza e se coloca à dispo sição não dos filósofos, alguns dos quais decidi ram tornar-se técnicos em filosofia, abrindo espa ço para que a filosofia produzida em cada campo de saber seja operacional, é com essa desculpa que vou falar. Espero que aceitem a desculpa agora e sobretudo depois. Tenho que o convite que me foi feito, vem do fato de que, não sou outra coisa que um geógrafo. Um geógrafo que se dedicou ao longo da vida com a sorte de viver até o fim do século às coisas do mundo, agora que o mundo decidiu colocar-se ao alcance da nossa mão. Isso me permite alguns atrevimentos. Primeiro vai ser exatamente o de expor o que eu penso dessas palavrinhas aí, meio ambiente, que me incomodam profundamente. Não é uma ques tão profissional, agora chamam corporativo, é que o meio ambiente é apenas uma metáfora. Não é possível teorizar a partir do meio ambiente, quan do é só uma metáfora. O que há é o meio, que por simplificação às vezes se chama meio ambi ente, mas o que constitui também uma redução. Uma redução que, como a expressão está dizen
sejo dos homens que pensam e que desejam e que pretendem com seu trabalho, melhorar o mundo para que melhore o seu país e o seu lugar. Na realidade, a geografia e minha disciplina tem algumas responsabilidades nisso, porque traba lhamos durante o século a partir da vertente eu ropéia, com visões que, na realidade mais preju dicam que iluminam o debate da história do pre sente. Uma dessas visões é a visão do território freqüentemente confundida com a visão do ambi ente. Na realidade, o território tão pouco é uma categoria analítica. A categoria analítica é o terri tório usado pelos homens, o território utilizado pelos homens, tal qual, tal qual ele é, o espaço vi vido dos homens, mas de todos os homens, que também é o teatro da ação, de todas as empre sas, de todas as instituições, esse espaço banal, de que as cidades são hoje, é a grande represen tação e a grande esperança. Eu queria fazer essa primeira aclaration, o que eu imagino que ela se impõe para que não tenha eu que recorrer a cada vez a uma nota infra-paginal, essas famosas notas infra-paginais, tantas vezes chatas, no decorrer da minha breve, espero que breve, exposição. Como viram essa foi uma intro dução. O que eu quero dizer mesmo, é que a busca da utopia, é algo de ancestral e companheiro do ho mem, porque o que distingue o homem dos ou
208
Milton Santos
tros animais não é esse dedão, é exatamente o
A discussão hoje presente da ética no trabalho do
fato de que ele é portador de utopia. Eu sei que
cientista, não se imporia como hoje da forma que
hoje se costuma ridicularizar quem fala em uto
começa a se impor, exatamente porque o cientis
pia, mas não me preocupo em insistir que sem ela
ta era cauteloso diante do que produzia, difundia,
não vale a pena viver, e sem ela tão pouco é pos
propunha, a moral era a grande fiscal das realiza
sível pensar porque o pensamento não é produzi
ções intelectuais. Isso também tinha relação, não
do a partir do que houve, nem do que há.
vou desenvolver isso agora, com o fato de que o
O pensamento portador de frutos é apenas produ
mercado que existia, já que o capitalismo, este
zido a partir do que pode, é isso que nos reúne aqui, nessa sala, é isso que reúne os homens de boa vontade em toda parte. Ora, essa utopia se cular, milenar, expressa de diferentes maneiras, pelas diferentes civilizações, codificadas pelos filó sofos, acaba nesse século que agora se escoa de encontrar um reforço graças ao fato de que, o prometido casamento entre técnica, isto é, modos de fazer, e a ciência, produção na mente dos mo dos de fazer a partir dos modos de ser, começa a se tornar algo impossível. Esse século conhece e foi, depois da evolução separada do que era pro priamente técnico, fundado na experiência, e do que era científico fundado na reflexão, esta con vergência entre uma coisa e outra, essa conver gência que deu sempre ao homem a possibilidade de pensar que amanhã teremos um mundo me lhor. Ora, os homens e mulheres, perdão, as mu lheres e os homens, que se ocupam da questão da saúde são possivelmente, entre todos nós, aqueles que mais claramente devotam-se a essa questão do bem estar da dignidade da vida do ho mem. Esses sonhos e essas visões poderiam, e essa era a esperança dos cientistas no começo do século, tornar-se coisa viável num presente a construir a partir do pensamento científico. Era um belo momento da história da humanidade, belíssimo momento na história da ciência, ciência voltada para o homem, para humanidade, para a produção da dignidade, para alicerçar as condi ções pelas quais a vida se tornaria não apenas mais longa, mas digna de viver. Essa busca de possibilidades de que a medicina, as medicinas, todas são representativas se baseavam numa ci ência respeitosa, as medicinas, todas são repre sentativas e se baseavam numa ciência respeitosa da moral, havia um encontro entre preocupações morais e preocupações científicas.
breve momento da história da humanidade, dura 500 anos, por conseguinte mais velho do que a institucionalização da ciência, o mercado era cir cunscrito pelas fronteiras e regulado por um esta do, era um monstro domado, era esse grande sel vagem todavia domesticado. E as ideologias ti nham livre curso e buscavam sem precisar tanto que, as grandes revoluções foram presididas pelas grandes produções de idéias políticas, que prece diam elas, idéias políticas, a produção da política. Por isso talvez que é a gente revendo essa histó ria sabe que, uma idéia que brota aqui ou ali, e se mostra como se fosse coisa frágil, tem força, a força da qualidade, que é esse o único alento que tem os que trabalham a coisa intelectual, essa consciência de que podem ficar sozinhos, porque sozinhos não estão, eles tem a companhia do fu turo, que ajudam a gestar através exatamente do discurso produzido a partir da produção de idéias generosas. Essas idéias libertárias, igualitárias, essa ambição universalista que levaram, depois da guerra sobretudo, a que se tornassem gêmeas as místicas do desenvolvimento e da civilização, momento que tive a oportunidade de assistir e vi ver, batalhando com tantos outros na busca dessa civilização nova, desse desenvolvimento que ga nha então uma expressão contraditória em rela ção com o crescimento econômico, essa distinção necessária entre os dois e que vai marcar a histó ria do mundo na metade do século XX. Esse momento, é um momento muito rico, porque permite afloração de quantidade de postulções, que levam ao debate mais filosófico da questão da vida, e aí que incluo a saúde como um dado apenas na questão da vida que é o que nos peo cupa fundamentalmente, a saúde é um instru mento dessa coisa mais ampla. Evidente que pode ser tratada do ponto de vista técnico, mas é me lhor que seja do ponto de vista filosófico, antes de
Milton Santos
209
que o tratamento técnico, a técnica se subalter
dizer, na explicação que era fornecida, com a
nam, e venham acloparem e acomodarem-se às
questão da regionalização. Então havia regiões fa
exigências ditas da prática. Não esqueçamos que
dadas a ter fome e outras fadadas a ter uma certa
a palavra recurso não tem valor por si própria, a
abundância.
palavra recurso é um termo do vocabulário da po
É evidente, e aliás é normal, por que não, que os
lítica, não tem autonomia a palavra recurso. Cada vez que tratamos a questão dos recursos com au tonomia, estamos abandonando a utopia, por conseguinte estamos renunciando a sermos, sim plesmente homens Ora, a questão da saúde, como a questão da ali mentação, como a questão do bem estar,foi no primeiro momento tratado segundo critérios de terministas, e essa é uma das razões pelas quais a palavra ambiente me choca, me aborrece, é que, com frequência ela conduz a uma deriva de terminista, não tenho medo dos adjetivos, mas é preciso que a gente retome o debate pela raiz. Essa questão de determinismo que levou por ex emplo a conceituação das chamadas doenças tro picais. Tive há alguns anos um privilégio, digamos assim, de haver ensinado na Universidade de Bor deux, cujo o Instituto de Geografia Tropical, como se houvesse uma ciência social tropical e uma ci ência social temperada. Formas de raciocínio pró pria do racismo, mais ou menos velado europeu, constante também na vida acadêmica e na produ ção intelectual, vontade de dizer: "as culpas das dores são suas. Nós pretendemos aliviá-las, mas vocês são como são". Essa idéia da Geografia Tropical que me conduziu, eu tive sorte de estar lá durante aquele movimen to de 1968, a escrever um livro, do qual cada ca pítulo se tornou depois, um novo livro, esse livri nho que se chama "O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo". E hoje, esse livro, eu devo dizer isso agora, penso que devo fazê-lo, esse livro é a crítica que eu fazia à geografia ensinada naquela faculdade. Essa idéia de doenças tropicais que também levou a um certo paralelismo entre a no ção de trópico e as dificuldades, quando eu era jovem se falava ainda na expressão higiene, a hi giene dificultada pela tropicalidade. Da mesma forma, a questão alimentar, que já então preocu pava as pessoas de boa vontade e que também era apontada como um problema em parte por que a alimentação tinha muito de ver com, quer
europeus se organizassem inteligentemente, e nós naturalmente, em parte em culpa de nossa tropicalidade, e em parte devido a nossa precari dade intelectual, "que todo mundo sabe disso", não poderíamos ultrapassar esse patamar. É aí que surge Josué de Castro, jamais suficiente mente lembrado por nós, ele teve a má sorte de morrer quando o Brasil era um país em pleno ca minho para um regime autoritário, e de morrer na França,que, nesse momento deixava, abandona va, sua vocação universalista, e dava a sua diplo macia como fanal o comércio, então ele morreu sem o brilho que se costuma dar aos grandes ho mens quando eles desaparecem, e até hoje nós não conseguimos resgatá-lo. Só quero dizer que, Josué de Castro sugeria uma mudança fundamen tal na visão do mundo, e das coisas inclusive na questão da saúde, deslocando o problema do cha mado ambiente e recolocando a questão no domí nio da sociedade, e da sociedade internacional, é razão pela qual ele acusava o ocidente do que hoje acusamos nós, isto é, essa vontade delibera da de genocídio através da vontade esopitável de poder. Não é de estranhar que ele não tenha tido o prê mio nobel. Prêmios Nobel são geralmente outor gado a quem faz o possível para dar impressão que está cuidando da humanidade, mas não faz realmente. Essa idéia da natureza natural, ela iria nos perseguir permanentemente a despeito de que a história comprovasse que a natureza natu ral tem um papel, evidentemente, ninguém vai desconhecer esse papel, mas não um papel cen tral na posição da história, cada vez menos, so bretudo hoje. Ao mesmo tempo como a universi dade era livre-pensar, coisa que é cada vez me nos, como a cooperação internacional em matéria de pensamento era possível, o que cada vez é menos possível. Nós sabemos que hoje é quase impossível cooperar com os nossos colegas do norte, por razões que não vou analisar agora, mas cada um deve ter sua pequena história a
210
Milton Santos
contar, talvez não conte, porque as nossas uni
de parte, se deixa comandar por interesses das
versidades nos pedem que sejamos cada vez mais
grandes potências.
amiguinhos dos colegas do norte para aumentar
Basta ver o tratamento dado à questão da fome,
os nossos títulos. Não é? Então somos convidados a um expediente de safadeza cotidiano para obter as promoções, porque não sei o que acontece no Equador, Cuba, mas no Brasil é muito freqüente, que o que você faz seja distinguido entre nacional e internacional, não é isso? Quando, na realidade, nacional é estrangeiro, não é? E não nacional e internacional, mas os valores são atribuídos a quem, como nós sabemos que a vida acadêmica podia ser transferido para o ministério do turismo em vez de permanecer no ministério da educação ou da ciência.
na África subsalariana: comandava esse trata mento em função da política dos novos grandes impérios, o tratamento de diversas questões no subcontinente Asiático, tantas outras questões consideradas de ajuda internacional que foram tratadas de forma egoística de tal maneira que as pessoas bem pensantes, sempre passaram desde então a desconfiar da palavra ajuda. Mas também as idéias, a timidez das idéias provenientes das instituições internacionais, a prudência com a qual os seus representantes tomam a palavra nas oca siões que lhe são oferecidas, o escamoteamento
Essa época leva uma imbricação crescente e uma
da centralidade do problema social e político que
vontade de teorizar, que se mostra profundo em
se tornou mundial, a prevalência dos enfoques
todos os domínios, e teorizar a população, de teo
tecnicistas que também dominam situações de
rizar a urbanização, de teorizar a nutrição, de teo
grande relevo para a vida do homem como a pró
rizar a saúde pública, de teorizar o desenvolvi
pria medicina em todos os seus aspectos e que
mento. Essas teorias eram imbricadas umas com
mostram esse distanciamento entre uma produ
as outras porque o elo central era exatamente o
ção intelectual que se amplia e para a qual os re
mundo, que é a unidade de pensamento de pro
cursos são abundantes, desde que, os esforços se
blemas são formidáveis. Isso tudo era baseado
dirijam nesta direção vesga e a realidade que
numa solidariedade internacional que deixou de
avoluma a necessidade de enfoques mais abran
existir, numa luta civilizatória que também deixou
gentes.
de existir.
Naquele tempo, gabávamos-nos dos efeitos, das
Daí a contribuição fundamental da questão da
políticas, mas também dos efeitos do desenvolvi
saúde, dada por desenvolvimentistas terceiro-
mento, sobre os índices vitais, mortalidade geral,
mundistas, anti-imperialistas, nessa época, no fim
mortalidade infantil,
dos anos 60, começo dos anos 70, me perdoem
vida, nutrição. Essa combinação entre minorias e
se apenas têm essa idade, cometi um livro que
condições gerais, e de efeitos do desenvolvimento
não está traduzido para o português, um livro
sobre a vida individual e das famílias.
muito grande, um livro que discutia a questão da
Esses anos 70 marcam a emergência tímida e de
alimentação e da população, e, evidentemente passando pela questão da saúde a partir de uma visão de um geógrafo.
fertilidade, esperança de
pois agressiva de aspectos chamados qualitativos, mas que, como agente, todo mundo sabe que o qualitativo mostra-se com sua cara quantitativa, e
É dessa época também que se notam progressos
variáveis novas entre as quais a tecnociência, que
médicos, conducentes a uma melhor saúde indivi
tem um papel desgraçadamente muito importante
dual e coletiva, e havia avanços ainda que não
nas questões que interessam os senhores.
homogêneos na questão do enquadramento, da
Esses progressos da ciência e da técnica estimula
prevenção, e da informação, uma tomada de consciência. Então, a ajuda internacional tinha um papel positivo, que depois deixou de ser norma, a ajuda internacional a partir dos anos 70, em gran
riam produzir as pragmáticas. Vamos fazer assim para obter tal resultado, a tal ponto que, as for mulações ditas gerais começam do resultado e não das causas, o que é sempre um empobreci mento do ponto de vista da posição do pensa
Milton Santos
211
mento. Os resultados são postos em xeque, avan
O que permite ao CNPQ, etc de se retirar do pro
çados como algo a desejar, mostrados como se
cesso de financiamento. Só que em dados que
fosse algo moral, mas na realidade são um resul
tem relação com a vida, o resultado é oque a gen
tado que não tem base no processo. Então os
te começa a ver. Levando aquilo que a gente pod
processos que levam os problemas são escamote
se chamar de corrupção da pesquisa. A corrupção
ados, inclusive essa questão do meio ambiente,
da pesquisa e a desconfiança justificada em rela
nós veremos que isso não tem um papel relativa
ção aos homens de ciência, que são cada vez me
mente cada vez menor na produção de quantida
nos, por isso, os homens da verdade. Uma meia
de de problemas, já que as dificuldades da maior
verdade serve a objetivos pragmáticos mas uma
parte da população não vem do fato de estar aqui
meia verdade não é a verdade. E todas as meias
e ali, mas do fato de ser assim ou assado.
verdades possíveis reunidas não produzem a ver
Um saber e uma prática bem colocados de preo
dade. As verdades parciais podem ser eficazes no
cupações humanísticas, é a principal marca do do mínio da técnica sobre a ciência que estamos ago ra assistindo, a técnica que também dita as esco lhas possíveis para os remédios. É curioso que a nova ciência, acabe semi imposta pela via da técnica, pelos portadores de uma filo sofia pragmática dos Estados Unidos, que hoje tem o comando absoluto no debate das questões por exemplo da saúde, tanto do social quanto do individual. Isso se dá em paralelismo com a busca de uma nova ordem da economia. Quando os pro gressos técnicos-científicos ganham autonomia, e é o que nós estamos assistindo hoje, na vida aca dêmica com profundas repercussões negativas na produção da política, eles tenderiam a aconselhar ou justificar visões de buscas parciais, cada vez mais parciais, cada vez mais isoladas, cada vez mais penetrantes e cada vez mais autônomas, de tal forma que a produção de conhecimento ganha autonomia sobre a vontade de humanização da vida sobre o planeta. Sou apenas um observador das questões médi cas, quem sou eu para ter um juízo definitivo ou mesmo próximo disso, a respeito disso, confesso que tenho muito medo do que leio, sobretudo, sou um homem assustado porque chego à idade que tenho, quase a obrigação de ser também do ente, e me vejo cada dia cotejado com manchetes contraditórias que as mesmas revistas publicam, dando conta do trabalho já não tanto das univer sidades, mas das empresas ou das empresas den tro das universidades. A grande moda agora é pe dir às universidades que devem pedir às empre sas que digam o que elas devem fazer. É chique.
interesse daqueles a quem interessem, mas não conduzem à verdade, e cedo ou tarde conduzirão a desastres como é o caso do Brasil, cujo o pri meiro grande desastre vai ser o da saúde, que já está se mostrando, exatamente porque o modelo foi aceito tranqüilamente pelo estado, mas tam bém por nós, os homens da universidade, por nós os cientistas que não levantamos suficientemente a nossa voz para protestar, que não cumprimos devidamente o nosso dever. Isso tem que ser dito, essa universidade dos resultados com esse auto controle suicida, mas também assassino de cientistas, que dá prevalência na elaboração de textos, ao poder, e ao mercado, um círculo fecha do, do qual os progressos atuais da medicina tan to ressentem. É evidente que, as questões técnicas do como fa zer são importantíssimas, mas que faço delas se não obtiver antes esse dia mais amplo, de recolo cá-las dentro de um quadro, no qual as coisas to das possam ser cotejadas, revistas, produzindo uma idéia generosa do que o mundo pode ser, responsabilidade que é nossa. A globalização vai deixando para traz as grandes questões civilizatórias, humanísticas, basta ver o debate que se dá no Brasil atual, e no qual a pala vra civilização é quase como se fosse uma palavra obscena, mas também obscena para os adultos, não é que seja proibida aos menores de 14 e 15 anos, é uma palavra que se tornou proibida neste país, e o que é grave é que não é apenas isso um dado do oficialismo, é também um dado das opo sições. Eu ia dizendo das esquerdas, poderia in sistir nisso somente acrescentando que ser de es querda hoje é de novo ser diferente de ser de di
212
Milton Santos
reita, só que a direita dá centralidade a isso que
mido, mas que é corajoso pela sua subserviência
passamos a adorar, a moeda estável, o fim da in
ao sistema, e que dá prioridade ao que não tem.
flação, os equilíbrios macroeconômicos e toda
Aumentou-se a produção alimentar - quando dei
essa coisa repetindo sem saber para que, porque, e a esquerda seria aquela parte da sociedade pre ocupada com essa coisa tão insignificante, mas que é a única justificativa real de que o mundo prossiga, isto é, o homem. A globalização veio sem que viesse junto um mundo só. Busca-se abreviar o tempo do traba lho, mas não é para socializar o lazer, é pra fazêlo mais mercantil. Acredita-se que atécnica con duz ao desemprego, que horror! A técnica jamais existiu historicamente sem a política, não existe isso, é um equívoco imaginar que se pode conce ber a presença histórica da técnica se não fosse, em qualquer que fosse o momento da história, tendo como paralelo a política, que é o que decide o que fazer da técnica, em todos os tempos foi assim. Conquistamos tempo e espaço, mas não para enriquecer a vizinhança, o vizinho, sabemos
esse curso, de que resultou nesse livro de mil pá ginas, felizmente não traduzido para o português - havia ainda crença de que se produzisse alimen tos todos comeriam. Então a grande luta era para aumentar a produ ção alimentar, aí houve os que toleraram a revo lução verde - como agora se está justificando os trangênicos, como se a questão da fome e todas as questões sociais, fossem derivadas de soluções técnicas, quando não são. O que vimos é que primeiro a produção alimentar ultrapassou a produção, a necessidade alimentar do mundo tomado como um todo, basta ver o ar dor com que os europeus arrancaram as suas plantações alimentares para garantir o preço, isso não tem relação uma coisa com a outra realmen te.
todos, ao entrar nos elevadores, o vizinho é o
A questão não é técnica, e quando a gente fala
nosso inimigo. Inventam novas formas construti
em natureza está falando também em técnica, em
vas, mas não para humanizar a cidade, não é a
última análise. Então a questão é muito outra. E a
cidade que é responsável, como tantas vezes se
própria doença reduzida nos laboratórios, os anais
diz, a urbanização, esse mal, mal ao contrário.
dos congressos como esse mostram como a doen
A urbanização é que permitiu inclusive avanços formidáveis em todas as áreas, inclusive da saú de, não foi a urbanização que os países subdesen
ça pode ser atacada, mas o ataque à doença é igualmente algo que privilegia uma parte da soci edade em detrimento da outra.
volvidos tiveram muito maiores dificuldades para
A discussão que agora timidamente se dá no Bra
enfrentar as questões de saúde, tanto do ponto
sil, quanto a questão da distribuição de remédios,
de vista individual quanto do ponto de vista cole
é bem explicativa dessa situação. Isso tem que
tivo. Quem disse, quem escreveu isso tem provas
ver, em grande parte, pelo fato de que a técnica
que a cidade é por si mesma, causa de qualquer
passou a Ter comando sobre a ciência, e como a
que seja o mal, é a maneira como organizamos a
técnica é cada vez mais comandada pelo mercado
sociedade, separando os que podem e os que não
que comanda a ciência, os senhores sabem disso
podem, e dizendo que os que não podem vivem
melhor do que eu, porque a minha disciplina não
em bairros que adjetivamos de forma pejorativa,
me obriga a produzir produtos-somente- idéias, e
e nos quais, bairros pobres, o ambiente é hostil.
os senhores são obrigados a produzir produtos-re
Não é isso que dizemos e às vezes escrevemos.
sultados.
Grande equívoco é a sociedade na sua organiza
São cobrados por isso e quantas vezes os senho
ção, que acho que mudêmo-la e a produção do
res são apressados porque tem que oferecer re
bem estar, inclusive da saúde, terá um outro ca
sultados, se não os oferecem são considerados
minho. Mas não se quer falar em mudanças soci
como lerdos no cumprimento das suas obriga
ais, queremos falar das mudanças dos organogra
ções. Mas é dessa maneira também que tranqüi
mas, mas não da sociedade, daí esse enfoque tí
lamente sintoniza a barbárie. Quando esse pro cesso evolutivo se dá ao mesmo tempo que as
Milton Santos
213
empresas concentram, elas se concentram em to
não sei o que, entendeu, também incluam pontos
dos os domínios, elas se concentram no domínio
como esse, e não apenas coisas utópicas, água na
da alimentação, produção, distribuição, circula
baía de não sei o que, o rio tal na cidadezinha de
ção, consumo, ela se concentra no domínio dos
Paracatú, mas os grandes problemas de socieda
remédios, ela se concentra no domínio da saúde,
de que em um país como o Brasil tem gravidade
mas ela se concentra também nos domínios dos
irrecusável. E aí comparece o papel crítico das ci
serviços urbanos.
ências humanas, e entre elas as ciências sociais
A cidade está ameaçada de privatização, o que vai
da saúde, que tem de ser um trabalho com uma
ser um grande problema nas questões de saúde
certa valentia.
pública, privatização em marcha da cidade, o que
É evidente que a estrutura da universidade atual
no Brasil não tem, a nossa análise está faltando -
é hostil, a qualquer exercício do pensamento livre,
a dos senhores e as nossas, os geógrafos - a res
esse que talvez seja o maior problema da univer
peito disso, tem uma análise prospectiva desse
sidade brasileira, e essa que talvez seja o maior
processo de privatização que vai agravar ainda
desmentido da universidade pública brasileira,
mais questões de saúde pública: a privatização da
que se quer pública, mas não chega a sê-lo, inclu
água, dos esgotos, e tudo mais o que concerne a
sive não o é, porque o pensamento que se elabo
vida urbana. No mundo em que a cidade tendo
ra em nossas universidades públicas é cada vez
crescido tendo crescido de tamanho, os proble
menos público, porque cada vez menos livre.
mas se avolumando com esse crescimento de ta
Por conseguinte, já que me convidaram, eu lhes
manho da cidade, são as grandes empresas filia das aos grandes bancos que são chamadas para resolver as questões urbanas, mesmo num país grande como o Brasil os capitais que são chama dos já agora para resolver as questões urbanas são cegos para a vida social, são cegos para as questões
humanitárias,
por
conseguinte
vem
agravar problemas como esse que vão entreter os senhores durante esses dias aqui.
venho fazer esse apelo, evidente que nem preci sava fazê-lo, porque essas idéias estavam presen tes nas mentes e nos corações. Todavia é sempre bom que alguém venha e produza algum discurso de conjunto oferecendo uma provocação no caso dispensável, que amplie as vozes e que, eventual mente as façam entendidas. As vozes não são en tendidas quando se dirigem às autoridades, esse tempo acabou. As vozes tem que se dirigir à soci
Será que, essa técnica, assim comandante da ci
edade em geral, que se incube depois de impor
ência, essa técnica assim comandada pelo merca
aos ouvidos das autoridades, essa voz, se ela
do, esse mercado comandante da ciência, decre
condiz com que profundamente sentem as pesso
taram uma vez por todas a maldição dos homens
as. Essa esperança que os senhores me dão, com
de ciência ou podem eles ainda erguer a sua ca
a qual esperança me despeço, e com a qual agra
beça, e dizer: não? É evidente que não peço a um
deço a generosidade do convite. Muito obrigado.
e outro que o faça. Mas, aqui estamos isolados.
Site: www.campinas.sp.gov.br/portal_milton_san
Espero que, essa famosa lista com que os con gressos terminam vota nisso, vota naquilo, apelo,
tos/principal.htm (acesso em 26/08/2002)
214
Milton Santos
A TRANSIÇÃO EM MARCHA
Introdução
lha dos momentos e lugares de seu uso que a his
A gestação do novo, na história, dá-se, freqüente
tória e a geografia se fazem e se refazem continu
mente, de modo quase imperceptível para os con
adamente.
temporâneos, já que suas sementes começam a
26 — Cultura popular, período popular
se impor quando ainda o velho é quantitativamen
Para a maior parte da humanidade, o processo de
te dominante. É exatamente por isso que a "quali dade" do novo pode passar despercebida. Mas a história se caracteriza como uma sucessão inin terrupta de épocas. Essa idéia de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade. É dessa forma que os períodos nascem, amadure cem e morrem.
globalização acaba tendo, direta ou indiretamen te, influência sobre todos os aspectos da existên cia: a vida econômica, a vida cultural, as relações interpessoais e a própria subjetividade. Ele não se verifica de modo homogêneo, tanto em extensão quanto em profundidade, e o próprio fato de que seja criador de escassez é um dos motivos da im
No caso do mundo atual, temos a consciência de
possibilidade da homogeneização. Os indivíduos
viver um novo período, mas o novo que mais fa
não são igualmente atingidos por esse fenômeno,
cilmente apreendemos é a utilização de formidá
cuja difusão encontra obstáculos na diversidade
veis recursos da técnica e da ciência pelas novas
das pessoas e na diversidade dos lugares. Na rea
formas do grande capital, apoiado por formas ins
lidade, a globalização agrava a heterogeneidade,
titucionais igualmente novas. Não se pode dizer
dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutu
que a globalização seja semelhante às ondas an
ral.
teriores, nem mesmo uma continuação do que
Uma das conseqüências de tal evolução é a nova
havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo contar com essa nova qualidade da técnica, providencia da pelo que se está chamando de técnica informa cional. Chegamos a um outro século e o homem, por meio dos avanços da ciência, produz um sis tema de técnicas presidido pelas técnicas da in formação. Estas passam a exercer um papel de
significação da cultura popular, tornada capaz de rivalizar com a cultura de massas. Outra é a pro dução das condições necessárias à reemergência das próprias massas, apontando para o surgimen to de um novo período histórico, a que chamamos de período demográfico ou popular (M. Santos, Espaço e sociedade, 1979). Cultura de massas, cultura popular
elo entre as demais, unindo-as e assegurando a
Um exemplo é a cultura. Um esquema grosseiro,
presença planetária desse novo sistema técnico.
a partir de uma classificação arbitrária, mostraria,
Todavia, para entender o processo que conduziu à globalização atual, é necessário levar em conta dois elementos fundamentais: o estado das técni cas e o estado da política. Há, freqüentemente, tendência a separar uma coisa da outra. Daí nas cem as muitas interpretações da história a partir das técnicas ou da política, exclusivamente. Na verdade, nunca houve, na história humana, sepa ração entre as duas coisas. A história fornece o quadro material e a política molda as condições que permitem a ação. Na prática social, sistemas técnicos e sistemas de ação se confundem e é por meio das combinações então possíveis e da esco
em toda parte, a presença e a influência de uma cultura de massas buscando homogeneizar e im por-se sobre a cultura popular; mas também, e paralelamente, as reações desta cultura popular. Um primeiro movimento é resultado do empenho vertical unificador, homogeneizador, conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos lugares e das sociedades. Sem dúvida, o mercado vai impondo, com maior ou menor força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da cultura de massa, indispensá vel, como ela é, ao reino do mercado, e a expan são paralela das formas de globalização econômi
Milton Santos
215
ca, financeira, técnica e cultural. Essa conquista,
de técnica, de capital e de organização, daí suas
mais ou menos eficaz segundo os lugares e as so
formas típicas de criação. Isto seria, aparente
ciedades, jamais é completa, pois encontra a re
mente, uma fraqueza, mas na realidade é uma
sistência da cultura preexistente. Constituem-se,
força, já que se realiza, desse modo, uma integra
assim, formas mistas sincréticas, dentre as quais,
ção orgânica com o território dos pobres e o seu
oferecida como espetáculo, uma cultura popular
conteúdo humano. Daí a expressividade dos seus
domesticada associando um fundo genuíno a for
símbolos, manifestados na fala, na música e na ri
mas exóticas que incluem novas técnicas.
queza das formas de intercurso e solidariedade
Mas há também — e felizmente — a possibilidade,
entre as pessoas. E tudo isso evolui de modo in
cada vez mais freqüente, de uma revanche da
separável, o que assegura a permanência do mo
cultura popular sobre a cultura de massa, quando,
vimento.
por exemplo, ela se difunde mediante o uso dos
A cultura de massas produz certamente símbolos.
instrumentos que na origem são próprios da cul
Mas estes, direta ou indiretamente ao serviço do
tura de massas. Nesse caso, a cultura popular
poder ou do mercado, são, a cada vez, fixos.
exerce sua qualidade de discurso dos "de baixo",
Frente ao movimento social e no objetivo de não
pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das mi
parecerem envelhecidos, são substituídos, mas
norias, dos excluídos, por meio da exaltação da
por uma outra simbologia também fixa: o que
vida de todos os dias. Se aqui os instrumentos da
vem de cima está sempre morrendo e pode, por
cultura de massa são reutilizados, o conteúdo não
antecipação, já ser visto como cadáver desde o
é, todavia, "global", nem a incitação primeira é o
seu nascimento. É essa a simbologia ideológica da
chamado mercado global, já que sua base se en
cultura de massas.
contra no território e na cultura local e herdada.
Já os símbolos "de baixo", produtos da cultura po
Tais expressões da cultura popular são tanto mais fortes e capazes de difusão quanto reveladoras daquilo que poderíamos chamar de regionalismos universalistas, forma de expressão que associa a
pular, são portadores da verdade da existência e reveladores do próprio movimento da sociedade. As condições empíricas da mutação
espontaneidade própria à ingenuidade popular à
É a partir de premissas como essas que se pode
busca de um discurso universal, que acaba por
pensar uma reemergência das massas. Para isso
ser um alimento da política.
devem contribuir, a partir das migrações políticas
No fundo, a questão da escassez aparece outra vez como central. Os "de baixo" não dispõem de meios (materiais e outros) para participar plena mente da cultura moderna de massas. Mas sua cultura, por ser baseada no território, no trabalho e no cotidiano, ganha a força necessária para de
ou econômicas, a ampliação da vocação atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos, raças, religiões, gostos, assim como a ten dência crescente à aglomeração da população em alguns lugares, essa urbanização concentrada já revelada nos últimos vinte anos.
formar, ali mesmo, o impacto da cultura de mas
Da combinação dessas duas tendências pode-se
sas. Gente junta cria cultura e, paralelamente,
supor que o processo iniciado há meio século le
cria uma economia territorializada, uma cultura
vará a uma verdadeira colorização do Norte, à
territorializada, um discurso territorializado, uma
"informalização" de parte de sua economia e de
política territorializada. Essa cultura da vizinhança
suas relações sociais e à generalização de certo
valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da es
esquema dual presente há mais de meio século
cassez e a experiência da convivência e da solida
nos países subdesenvolvidos do Sul e agora ainda
riedade. É desse modo que, gerada de dentro,
mais evidente.
essa cultura endógena impõe-se como um alimen
Tal sociedade e tal economia urbana dual (mas
to da política dos pobres, que se dá independen
não dualista) conduzirão a duas formas imbrica
temente e acima dos partidos e das organizações.
das de acumulação, duas formas de divisão do
Tal cultura realiza-se segundo níveis mais baixos
trabalho e duas lógicas urbanas distintas e associ
216
Milton Santos
adas, tendo como base de operação um mesmo
puro sustentado por uma informação ideológica,
lugar. O fenômeno já entrevisto de uma divisão
com a qual se encontra em simbiose. Daí a brutal
do trabalho por cima e de uma outra por baixo
distorção do sentido da vida em todas as suas di
tenderá a se reforçar. A primeira prende-se ao
mensões, incluindo o trabalho e o lazer, e alcan
uso obediente das técnicas da racionalidade he
çando a valoração íntima de cada pessoa e a pró
gemônica, enquanto a segunda é fundada na re
pria constituição do espaço geográfico. Com a
descoberta cotidiana das combinações que permi
prevalência do dinheiro em estado puro como mo
tem a vida e, segundo os lugares, operam em di
tor primeiro e último das ações, o homem acaba
ferentes graus de qualidade e de quantidade.
por ser considerado um elemento residual. Dessa
Da divisão do trabalho por cima cria-se uma soli
forma, o território, o Estado-nação e a solidarie
dariedade gerada de fora e dependente de veto
dade social também se tornam residuais.
res verticais e de relações pragmáticas freqüente
A primazia do homem supõe que ele estará colo
mente longínquas. A racionalidade é mantida à
cado no centro das preocupações do mundo,
custa de normas férreas, exclusivas, implacáveis,
como um dado filosófico e como uma inspiração
radicais. Sem obediência cega não há eficácia. Na
para as ações. Dessa forma, estarão assegurados
divisão do trabalho por baixo, o que se produz é
o império da compaixão nas relações interpesso
uma solidariedade criada de dentro e dependente
ais e o estímulo à solidariedade social, a ser exer
de vetores horizontais cimentados no território e
cida entre indivíduos, entre o indivíduo e a socie
na cultura locais. Aqui são as relações de proximi
dade e vice-versa e entre a sociedade e o Estado,
dade que avultam, este é o domínio da flexibilida
reduzindo as fraturas sociais, impondo uma nova
de tropical com a adaptabilidade extrema dos ato
ética, e, destarte, assentando bases sólidas para
res, uma adaptabilidade endógena. A cada movi
uma nova sociedade, uma nova economia, um
mento novo, há um novo reequilíbrio em favor da
novo espaço geográfico. O ponto de partida para
sociedade local e regulado por ela.
pensar alternativas seria, então, a prática da vida
A divisão do trabalho por cima é um campo de
e a existência de todos.
maior velocidade. Nela, a rigidez das normas
A nova paisagem social resultaria do abandono e
econômicas (privadas e públicas) impede a políti
da superação do modelo atual e sua substituição
ca. Por baixo há maior dinamismo intrínseco, mai
por um outro, capaz de garantir para o maior nú
or movimento espontâneo, mais encontros gratui
mero a satisfação das necessidades essenciais a
tos, maior complexidade, mais riqueza (a riqueza
uma vida humana digna, relegando a uma posição
e o movimento dos homens lentos), mais combi
secundária necessidades fabricadas, impostas por
nações. Produz-se uma nova centralidade do soci
meio da publicidade e do consumo conspícuo. As
al, segundo a fórmula sugerida por Ana Clara Tor
sim o interesse social suplantaria a atual prece
res Ribeiro, o que constitui, também, uma nova
dência do interesse econômico e tanto levaria a
base para a afirmação do reino da política.
uma nova agenda de investimentos como a uma
A precedência do homem
nova hierarquia nos gastos públicos, empresariais
e o período popular Uma outra globalização supõe uma mudança radi cal das condições atuais, de modo que a centrali dade de todas as ações seja localizada no ho mem. Sem dúvida, essa desejada mudança ape nas ocorrerá no fim do processo, durante o qual reajustamentos sucessivos se imporão. Nas presentes circunstâncias, conforme já vimos, a centralidade é ocupada pelo dinheiro, em suas formas mais agressivas, um dinheiro em estado
e privados. Tal esquema conduziria, paralelamen te, ao estabelecimento de novas relações internas a cada país e a novas relações internacionais. Num mundo em que fosse abolida a regra da competitividade como padrão essencial de relacio namento, a vontade de ser potência não seria mais um norte para o comportamento dos esta dos, e a idéia de mercado interno será uma preo cupação central.
Milton Santos
217
Agora, o que está sendo privilegiado são as rela
qualquer fração de mercado, não importa onde
ções pontuais entre grandes atores, mas falta
esteja, se torna fundamental à competitividade
sentido ao que eles fazem. Assim, a busca de um
exitosa das empresas. Estas põem em ação suas
futuro diferente tem de passar pelo abandono das
forças e incitam os governos respectivos a apoiá-
lógicas infernais que, dentro dessa racionalidade
las. O limite da cooperação dentro da Tríade (Es
viciada, fundamentam e presidem as atuais práti
tados Unidos, Europa, Japão) é essa mesma com
cas econômicas e políticas hegemônicas.
petição, de modo que cada um não perca terreno
A atual subordinação ao modo econômico único
frente ao outro.
tem conduzido o que se dê prioridade às exporta
Entretanto, já que nesses países a idéia de cida
ções e importações, uma das formas com as quais
dania ainda é forte, é impossível descuidar do in
se materializa o chamado mercado global. Isso,
teresse das populações ou suprimir inteiramente
todavia, tem trazido como conseqüência para to
direitos adquiridos mediante lutas seculares. O
dos os países uma baixa de qualidade de vida
que permanece como lembrança do Estado de
para a maioria da população e a ampliação do nú
bem-estar basta para contrariar as pretensões de
mero de pobres em todos os continentes, pois,
completa autonomia das empresas transnacionais
com a globalização atual, deixaram-se de lado po
e contribui para a emergência, dentro de cada na
líticas sociais que amparavam, em passado recen
ção, de novas contradições. Como as empresas
te, os menos favorecidos, sob o argumento de
tendem a exercer sua vontade de poder no plano
que os recursos sociais e os dinheiros públicos de
global, a luta entre elas se agrava, arrastando os
vem primeiramente ser utilizados para facilitar a
países nessa competição. Trata-se, na verdade,
incorporação dos países na onda globalitária. Mas,
de uma guerra, protagonizada tanto pelos Estados
se a preocupação central é o homem, tal modelo
como pelas respectivas empresas globais, da qual
não terá mais razão de ser.
participam como parceiros mais frágeis os países
27 — A centralidade da periferia
subdesenvolvidos.
A idéia da irreversibilidade da globalização atual é
Agora mesmo, a experiência dos mercados co
aparentemente reforçada cada vez que constata mos a inter-relação atual entre cada país e o que chamamos de "mundo", assim como a interde pendência, hoje indiscutível, entre a história geral e as histórias particulares. Na verdade, isso tam bém tem a ver com a idéia, também estabelecida, de que a história seria sempre feita a partir dos países centrais, isto é, da Europa e dos Estados Unidos, aos quais, de modo geral, o presente es tado de coisas interessa. Limites à cooperação
muns regionais já mostra aos países chamados "emergentes" que a cooperação da tríade, em conjunto ou separadamente, é mais representati va do interesse próprio das grandes potências que de uma vontade de efetiva colaboração. Nessa guerra, os organismos internacionais capitanea dos pelo Fundo Monetário, pelo Banco Mundial, pelo BID etc., exercem um papel determinante, em sua qualidade de intérpretes dos interesses comuns aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão. Tais realidades levam a duvidar da vontade de cada um e do conjunto desses atores hegemôni
Quando, porém, observamos de perto aspectos
cos de construir um verdadeiro universalismo e
mais estruturais da situação atual, verificamos
permite pensar que, nas condições atuais, essa
que o centro do sistema busca impor uma globali
dupla competição perdurará.
zação de cima para baixo aos demais países, en quanto no seu âmago reina uma disputa entre Eu ropa, Japão e Estados Unidos, que lutam para guardar e ampliar sua parte do mercado global e afirmar a hegemonia econômica, política e militar sobre as nações que lhes são mais diretamente tributárias sem, todavia, abandonar a idéia de ampliar sua própria área de influência. Então,
O desafio ao Sul Os países subdesenvolvidos, parceiros cada vez mais fragilizados nesse jogo tão desigual, mais cedo ou mais tarde compreenderão que nessa si tuação a cooperação lhes aumenta a dependên cia. Daí a inutilidade dos esforços de associação dependente face aos países centrais, no quadro
218
Milton Santos
da globalização atual. Esse mundo globalizado
ção, 1999). Tornam-se evidentes os limites da
produz uma racionalidade determinante, mas que
aceitação de tal situação. Por diferentes razões e
vai, pouco a pouco, deixando de ser dominante. É
meios diversos, as manifestações de irredentismo
uma racionalidade que comanda os grandes negó
já são claramente evidentes em países como o
cios cada vez mais abrangentes e mais concentra
Irã, o Iraque, o Afeganistão, mas, também, a Ma
dos em poucas mãos. Esses grandes negócios são
lásia, o Paquistão, sem contar com as formas par
de interesse direto de um número cada vez menor
ticulares de inclusão da Índia e da China na glo
de pessoas e empresas. Como a maior parte da
balização atual, que nada têm de simples obedi
humanidade é direta ou indiretamente do interes
ência ou conformidade, como a propaganda oci
se deles pouco a pouco essa realidade é desven
dental quer fazer crer. Países como a China e a
dada pelas pessoas e pelos países mais pobres.
Índia, com um terço da população mundial e uma
Há, em tudo isso, uma grande contradição. Aban
presença internacional cada vez mais ativa, dificil
donamos as teorias do subdesenvolvimento, o terceiro-mundismo, que eram nossa bandeira nas décadas de 1950-60. Todavia, graças à globaliza ção, está ressurgindo algo muito forte: a história da maioria da humanidade conduz à consciência da sobrevivência dessa tercermundização (que,
mente aceitarão, uma ou outra, assim como a Rússia, jogar o papel passivo de nação-mercado para os blocos economicamente hegemônicos. Uma reação em cadeia poderá ensejar o renasci mento de algo como o antigo élan terceiro-mun dista tal como o presidente Nyerere, da Tanzânia,
de alguma forma inclui, também, uma parte da
havia sugerido em seu livro O desafio ao Sul.
população dos países ricos) (Samuel Pinheiro Gui
Além dessa tendência verossímil, considerem-se
marães, Quinhentos anos de periferia, 1999).
as formas de desordem da vida social que já se
É certo que a tomada de consciência dessa situa
multiplicam em numerosos países e que tendem a
ção estrutural de inferioridade não chegará ao mesmo tempo para todos os países subdesenvol vidos e, muito menos, será, neles, sincrônica a vontade de mudança frente a esse tipo de rela
aumentar. O Brasil é emblemático como exemplo, não se sabendo, porém, até quando será possível manter o modelo econômico globalitário e ao mesmo tempo acalmar as populações crescente
ções. Pode-se, no entanto, admitir que, mais cedo
mente insatisfeitas.
ou mais tarde, as condições internas a cada país,
As potências centrais (Estados Unidos, Europa,
provocadas em boa parte pelas suas relações ex
Japão), apesar das divergências pela competição
ternas, levarão a uma revisão dos pactos que atu
quanto ao mercado global, têm interesses comuns
almente conformam a globalização. Haverá, en
que as incitarão a buscar adaptar suas regras de
tão, uma vontade de distanciamento e posterior
convivência à pretensão de manter a hegemonia.
mente de desengajamento, conforme sugerido
Como, todavia, a globalização atual é um período
por Samir Amin, rompendo-se, desse modo, a
de crise permanente, a renovação do papel he
unidade de obediência hoje predominante. Jungi
gemônico da tríade levará a maiores sacrifícios
dos sob o peso de uma dívida externa que não
para o resto da comunidade das nações, incenti
podem pagar, os países subdesenvolvidos assis
vando, assim, nestas, a busca de outras soluções.
tem à criação incessante de carências e de pobres
A combinação hegemônica de que resultam as
e começam a reconhecer sua atual situação de in governabilidade, forçados que estão a transferir para o setor econômico recursos que deveriam ser destinados à área social.
formas econômicas modernas atinge diferente mente os diversos países, as diversas culturas, as diferentes áreas dentro de um mesmo país. A di versidade sociogeográfica atual o exemplifica. Sua
Na verdade, já são muito numerosas as manifes
realidade revela um movimento globalizador sele
tações de desconforto com as conseqüências da
tivo, com a maior parte da população do planeta
nova dependência e do novo imperialismo (Rei
sendo menos diretamente atingida — e em certos
naldo Gonçalves, Globalização e desnacionaliza
casos pouco atingida — pela globalização econô
Milton Santos
219
mica vigente. Na Ásia, na África e mesmo na
Agora, porém, no mundo da globalização, o reco
América Latina, a vida local se manifesta ao mes
nhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo
mo tempo como uma resposta e uma reação a
modo que a visualização de um projeto nacional
essa globalização. Não podendo essas populações
pode tornar-se obscura. Talvez por isso, os proje
majoritárias consumir o Ocidente globalizado em
tos das grandes empresas, impostos pela tirania
suas formas puras (financeira, econômica e cultu
das finanças e trombeteados pela mídia, acabam,
ral), as respectivas áreas acabam por ser os luga
de um jeito ou de outro, guiando a evolução dos
res onde a globalização é relativizada ou recusa
países, em acordo ou não com as instâncias públi
da.
cas freqüentemente dóceis e subservientes, dei
Uma coisa parece certa: as mudanças a serem in
xando de lado o desenho de uma geopolítica pró
troduzidas, no sentido de alcançarmos uma outra
pria a cada nação e que leve em conta suas ca
globalização, não virão do centro do sistema,
racterísticas e interesses.
como em outras fases de ruptura na marcha do
Assim, as noções de destino nacional e de projeto
capitalismo. As mudanças sairão dos países sub
nacional cedem freqüentemente a frente da cena
desenvolvidos.
a preocupações menores, pragmáticas, imediatis
É previsível que o sistemismo sobre o qual traba
tas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os
lha a globalização atual erga-se como um obstá culo e torne difícil a manifestação da vontade de desengajamento. Mas não impedirá que cada país elabore, a partir de características próprias, mo delos alternativos, nem tampouco proibirá que as sociações de tipo horizontal se dêem entre países vizinhos igualmente hegemonizados, atribuindo uma nova feição aos blocos regionais e ultrapas sando a etapa das relações meramente comerciais para alcançar um estágio mais elevado de coope ração. Então, uma globalização constituída de bai xo para cima, em que a busca de classificação en
partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto (Cesar Benjamin e outros, A opção brasileira, 1998). A idéia de história, sentido, destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única preocupação é o confor mismo frente às determinações do processo atual de globalização. Daí a produção sem contraparti da de desequilíbrios e distorções estruturais, acar retando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se
tre potências deixe de ser uma meta, poderá per
mostrem os países.
mitir que preocupações de ordem social, cultural e
Alienação da nação ativa
moral possam prevalecer.
Tomemos o caso do Brasil. É mais que uma sim
28 — A nação ativa, a nação passiva
ples metáfora pensar que uma das formas de
A globalização atual e as formas brutais que ado
abordagem da questão seria considerar, dentro da
tou para impor mudanças levam à urgente neces sidade de rever o que fazer com as coisas, as idéias e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode fa cilmente cair no vazio ou na ambigüidade. É o caso do próprio debate nacional, exigente de no vas definições e vocabulário renovado. Como sempre, o país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento, na qual cada elemento está intimamente relacionado com os demais. Ocaso do projeto nacional?
nação, a existência, na realidade, de duas nações. Uma nação passiva e uma nação ativa. Do fato de serem as contabilidades nacionais globalizadas — e globalizantes! —, a grande ironia é que se passa a considerar como nação ativa aquela que obede ce cegamente ao desígnio globalitário, enquanto o resto acaba por constituir, desse ponto de vista, a nação passiva. A fazer valer tais postulados, a na ção ativa seria a daqueles que aceitam, pregam e conduzem uma modernização que dá preeminên cia aos ajustes que interessam ao dinheiro, en quanto a nação passiva seria formada por tudo o mais.
220
Milton Santos
Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou
riorização, tornada permanente, o que reforça em
aquilo a que, desse modo, se está chamando de
seus participantes a noção de escassez e convoca
nação ativa seria, na realidade, a nação passiva,
a uma reinterpretação da própria situação indivi
enquanto a nação chamada passiva seria, de fato,
dual diante do lugar, do país e do mundo.
a nação ativa?
A "nação passiva" é estatisticamente lenta, colada
A chamada nação ativa, isto é, aquela que com
às rugosidades do seu meio geográfico, localmen
parece eficazmente na contabilidade nacional e na
te enraizada e orgânica. É também a nação que
contabilidade internacional, tem seu modelo con
mantém relações de simbiose com o entorno ime
duzido pelas burguesias internacionais e pelas
diato, relações cotidianas que criam, espontanea
burguesias nacionais associadas. É verdade, tam
mente e à contracorrente, uma cultura própria,
bém, que o seu discurso globalizado, para ter efi
endógena, resistente, que também constitui um
cácia local, necessita de um sotaque doméstico e
alicerce, uma base sólida para a produção de uma
por isso estimula um pensamento nacional associ
política. Essa nação passiva mora, ali onde vive e
ado produzido por mentes cativas, subvenciona
evolui, enquanto a outra apenas circula, utilizando
das ou não. A nação chamada ativa alimenta sua
os lugares como mais um recurso a seu serviço,
ação com a prevalência de um sistema ideológico
mas sem outro compromisso.
que define as idéias de prosperidade e de riqueza
Num primeiro momento, desarticulada pela "na
e, paralelamente, a produção da conformidade. A "nação ativa" aparece como fluida, veloz, externa mente articulada, internamente desarticuladora, entrópica. Será ela dinâmica? Como essa idéia é muito difundida, cabe lembrar que velocidade não é dinamismo. Esse movimento não é próprio, mas atribuído, tomado emprestado a um motor exter no; ele não é genuíno, não tem finalidade, é des provido de teleologia. Trata-se de uma agitação cega, um projeto equivocado, um dinamismo do diabo.
ção ativa", a "nação passiva" não pode alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império dos interes ses imediatos que se manifestam no exercício pragmático da vida contribui, sem dúvida, para tal desarticulação. Mas, num segundo momento, a tomada de consciência trazida pelo seu enraiza mento no meio e, sobretudo, pela sua experiência da escassez, torna possível a produção de um projeto, cuja viabilidade provém do fato de que a nação chamada passiva é formada pela maior parte da população, além de ser dotada de um di
Conscientização e riqueza
namismo próprio, autêntico, fundado em sua pró
da nação passiva
pria existência. Daí, sua veracidade e riqueza.
A nação chamada passiva é constituída pela gros
Podemos desse modo admitir que aquilo que, me
sa maior parte da população e da economia,
diante o jogo de espelhos da globalização, ainda
aqueles que apenas participam de modo residual
se chama de nação ativa é, na verdade, a nação
do mercado global ou cujas atividades conseguem
passiva, enquanto o que, pelos mesmos parâme
sobreviver à sua margem, sem, todavia, entrar
tros, é considerado a nação passiva, constitui, já
cabalmente na contabilidade pública ou nas esta
no presente, mas sobretudo na ótica do futuro, a
tísticas oficiais. O pensamento que define e com
verdadeira nação ativa. Sua emergência será tan
preende os seus atores é o do intelectual público
to mais viável, rápida e eficaz se se reconhecem e
engajado na defesa dos interesses da maioria.
revelam a confluência dos modos de existência e
As atividades dessa nação passiva são freqüente
de trabalho dos respectivos atores e a profunda
mente marcadas pela contradição entre a exigên
unidade do seu destino.
cia prática da conformidade, isto é, a necessidade
Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito
de participar direta ou indiretamente da racionali
mais do que promover um simples combate às
dade dominante, e a insatisfação e inconformismo
formas de ser da "nação ativa" — tarefa impor
dos atores diante de resultados sempre limitados.
tante mas insuficiente, nas atuais circunstâncias
Daí o encontro cotidiano de uma situação de infe
—, devendo empenhar-se por mostrar, analitica
Milton Santos
221
mente, dentro do todo nacional, a vida sistêmica
É muito difundida a idéia segundo a qual o pro
da nação passiva e suas manifestações de resis
cesso e a forma atuais da globalização seriam ir
tência a uma conquista indiscriminada e totalitária
reversíveis. Isso também tem a ver com a força
do espaço social pela chamada nação ativa. Tal
com a qual o fenômeno se revela e instala em to
visão renovada da realidade contraditória de cada
dos os lugares e em todas as esferas da vida, le
fração do território deve ser oferecida à reflexão
vando a pensar que não há alternativas para o
da sociedade em geral, tanto à sociedade organi
presente estado de coisas.
zada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos
No entanto, essa visão repetitiva do mundo con
como à sociedade desorganizada, que encontra rão nessa nova interpretação os elementos neces sários para a postulação e o exercício de uma ou tra política, mais condizente com a busca do inte resse social.
funde o que já foi realizado com as perspectivas de realização. Para exorcizar esse risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe (aqui, ali, em toda parte), mas pelo que pode efetivamente existir (aqui, ali, em
29 — A globalização atual não é irreversível
toda parte). O mundo datado de hoje deve ser
A globalização atual é muito menos um produto
enxergado como o que na verdade ele nos traz,
das idéias atualmente possíveis e, muito mais, o resultado de uma ideologia restritiva adrede esta
isto é, um conjunto presente de possibilidades re ais, concretas, todas factíveis sob determinadas
belecida. Já vimos que todas as realizações atu
condições.
ais, oriundas de ações hegemônicas, têm como
O mundo definido pela literatura oficial do pensa
base construções intelectuais fabricadas antes
mento único é, somente, o conjunto de formas
mesmo da fabricação das coisas e das decisões de
particulares de realização de apenas certo número
agir. A intelectualização da vida social, recente
dessas possibilidades. No entanto, um mundo
mente alcançada, vem acompanhada de uma for
verdadeiro se definirá a partir da lista completa
te ideologização.
de possibilidades presentes em certa data e que
A dissolução das ideologias
incluem não só o que já existe sobre a face da
Todavia, o que agora estamos assistindo em toda parte é uma tendência à dissolução dessas ideolo gias, no confronto com a experiência vivida dos povos e dos indivíduos. O próprio credo financei ro, visto pelas lentes do sistema econômico a que deu origem, ou examinado isoladamente, em
Terra, como também o que ainda não existe, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ain da não realizadas, já estão presentes como ten dência ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas.
cada país, aparece menos aceitável e, a partir de
A pertinência da utopia
sua contestação, outros elementos da ideologia
É somente a partir dessa constatação, fundada na
do pensamento único perdem força.
história real do nosso tempo, que se torna possí
Além das múltiplas formas com que, no período
vel retomar, de maneira concreta, a idéia de uto
histórico atual, o discurso da globalização serve de alicerce às ações hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o papel da ideologia na produção das coisas e o pa pel ideológico dos objetos que nos rodeiam contri buem, juntos, para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como ou tra coisa. Daí a pesada onda de conformismo e
pia e de projeto. Este será o resultado da conjun ção de dois tipos de valores. De um lado, estão os valores fundamentais, essenciais, fundadores do homem, válidos em qualquer tempo e lugar, como a liberdade, a dignidade, a felicidade; de outro lado, surgem os valores contingentes, devidos à história do presente, isto é, à história atual. A densidade e a factibilidade histórica do projeto, hoje, dependem da maneira como empreendamos
inação que caracteriza nosso tempo, contaminan
sua combinação.
do os jovens e, até mesmo, uma densa camada
Por isso, é lícito dizer que o futuro são muitos; e
de intelectuais.
resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso
222
Milton Santos
grau de consciência, entre o reino das possibilida
das pela propaganda ostensiva ou pela ideologia
des e o reino da vontade. É assim que iniciativas
contida nos objetos e nos discursos opõem-se as
serão articuladas e obstáculos serão superados,
visões propiciadas pela existência. É por meio
permitindo contrariar a força das estruturas domi
desse conjunto de movimentos, que se reconhece
nantes, sejam elas presentes ou herdadas. A
uma saturação dos símbolos pré-construídos e
identificação das etapas e os ajustamentos a em
que os limites da tolerância às ideologias são ul
preender durante o caminho dependerão da ne
trapassados, o que permite a ampliação do campo
cessária clareza do projeto.
da consciência.
Conforme já mencionamos, alguns dados do pre
Nas condições atuais, essa evolução pode parecer
sente nos abrem, desde já, a perspectiva de um
impossível, em vista de que as soluções até agora
futuro diferente, entre outros: a tendência à mis
propostas ainda são prisioneiras daquela visão se
tura generalizada entre povos; a vocação uma ur
gundo a qual o único dinamismo possível é o da
banização concentrada; o peso da ideologia nas
grande economia, com base nos reclamos do sis
construções históricas atuais; o empobrecimento
tema financeiro. Por exemplo, os esforços para
relativo e absoluto das populações e a perda de
restabelecer o emprego dirigem-se, sobretudo,
qualidade de vida das classes médias; o grau de
quando não exclusivamente, ao circuito superior
relativa "docilidade" das técnicas contemporâne
da economia. Mas esse não é o único caminho e
as; a "politização generalizada" permitida pelo ex
outros remédios podem ser buscados, segundo a
cesso de normas (Maria Laura Silveira, Um país,
orientação político-ideológica dos responsáveis,
uma região. Fim de século e modernidades na Ar
levando em conta uma divisão do trabalho vinda
gentina, 1999); e a realização possível do homem
"de baixo", fenômeno típico dos países subdesen
com a grande mutação que desponta.
volvidos (M. Santos, O espaço dividido, 1978),
Lembramos, também, que um dos elementos, ao
mas que agora também se verifica no mundo cha
mesmo tempo ideológico e empiricamente exis
mado desenvolvido.
tencial, da presente forma de globalização é a
Por outro lado, na medida em que as técnicas
centralidade do consumo, com a qual muito têm a
cada vez mais se dão como normas e a vida se
ver a vida de todos os dias e suas repercussões
desenrola no interior de um oceano de técnicas,
sobre a produção, as formas presentes de exis
acabamos por viver uma politização generalizada.
tência e as perspectivas das pessoas. Mas as atu
A rapidez dos processos conduz a uma rapidez
ais relações instáveis de trabalho, a expansão de
nas mudanças e, por conseguinte, aprofunda a
desemprego e a baixa do salário médio constitu
necessidade de produção de novos entes organi
em um contraste em relação à multiplicação dos
zadores. Isso se dá nos diversos níveis da vida
objetos e serviços, cuja acessibilidade se torna,
social. Nada de relevante é feito sem normas.
desse modo, improvável, ao mesmo tempo que
Neste fim do século XX, tudo é política. E, graças
até os consumos tradicionais acabam sendo difí
às técnicas utilizadas no período contemporâneo e
ceis ou impossíveis para uma parcela importante
ao papel centralizador dos agentes hegemônicos,
da população. É como se o feitiço virasse contra o
que são planetários, torna-se ubíqua a presença
feiticeiro.
de processos distorcidos e exigentes de reordena
Essa recriação da necessidade, dentro de um
mento. Por isso a política aparece como um dado
mundo de coisas e serviços abundantes, atinge
indispensável e onipresente, abrangendo pratica
cada vez mais as classes médias, cuja definição,
mente a totalidade das ações.
agora, se renova, à medida que, como também já
Assistimos, assim, ao império das normas, mas
vimos, passam a conhecer a experiência da es
também ao conflito entre elas, incluindo o papel
cassez. Esse é um dado relevante para compreen
cada vez mais dominante das normas privadas na
der a mudança na visibilidade da história que se
produção da esfera pública. Não é raro que as re
está processando. De tal modo, às visões ofereci
gras estabelecidas pelas empresas afetem mais
Milton Santos
223
que as regras criadas pelo Estado. Tudo isso atin
de distância cultural, subjacente à teoria e à prá
ge e desnorteia os indivíduos, produzindo uma at
tica do imperialismo, atinge, também, seu limite.
mosfera de insegurança e até mesmo de medo,
As técnicas contemporâneas são mais fáceis de
mas levando os que não sucumbem inteiramente
inventar, imitar ou reproduzir que os modos de
ao seu império à busca da consciência quanto ao
fazer que as precederam.
destino do Planeta e, logo, do Homem.
As famílias de técnicas emergentes com o fim do
Outros usos possíveis para
século XX — combinando informática e eletrônica,
as técnicas atuais
sobretudo — oferecem a possibilidade de supera
Os sistemas técnicos de que se valem os atuais
ção do imperativo da tecnologia hegemônica e pa
atores hegemônicos estão sendo utilizados para reduzir o escopo da vida humana sobre o planeta. No entanto, jamais houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a feli cidade dos homens. A materialidade que o mundo da globalização está recriando permite um uso ra dicalmente diferente daquele que era o da base material da industrialização e do imperialismo. A técnica das máquinas exigia investimentos ma ciços, seguindo-se a massividade e a concentra ção dos capitais e do próprio sistema técnico. Daí a inflexibilidade física e moral das operações, le vando a um uso limitado, direcionado, da inteli gência e da criatividade. Já o computador, símbo lo das técnicas da informação, reclama capitais fi xos relativamente pequenos, enquanto seu uso é
ralelamente admitem a proliferação de novos ar ranjos, com a retomada da criatividade. Isso, aliás, já está se dando nas áreas da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo para cima. Aqui, a produção do novo e o uso e a difu são do novo deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais concentrado para pertencer ao domínio do maior número, possibilitando afinal a emergência de um verdadeiro mundo da inteli gência. Desse modo, a técnica pode voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado da natureza — cada vez mais modificada —, permitindo que essa relação seja fundada nas virtualidades do entorno geográ fico e social, de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência.
mais exigente de inteligência. O investimento ne
Geografia e aceleração da história
cessário pode ser fragmentado e torna-se possível
A própria geografia parece contribuir para que a
sua adaptação aos mais diversos meios. Pode-se
história se acelere. Na cidade — sobretudo na
até falar da emergência de um artesanato de
grande cidade —, os efeitos de vizinhança pare
novo tipo, servido por velozes instrumentos de
cem impor uma possibilidade maior de identifica
produção e de distribuição.
ção das situações, graças, também, à melhoria da
Dir-se-á, então, que o computador reduz — ten
informação disponível e ao aprofundamento das
dencialmente — o efeito da pretensa lei segundo a qual a inovação técnica conduz paralelamente a uma concentração econômica. Os novos instru mentos, pela sua própria natureza, abrem possi bilidades para sua disseminação no corpo social, superando as clivagens socieconômicas preexis
possibilidades de comunicação. Dessa maneira, torna-se possível a identificação, na vida material como na ordem intelectual, do desamparo a que as populações são relegadas, levando, paralela mente, a um maior reconhecimento da condição de escassez e a novas possibilidades de ampliação
tentes.
da consciência.
Sob condições políticas favoráveis, a materialida
A partir desses efeitos de vizinhança, o indivíduo
de simbolizada pelo computador é capaz não só de assegurar a liberação da inventividade como torná-la efetiva. A desnecessidade, nas socieda des complexas e socioeconomicamente desiguais, de adotar universalmente computadores de última geração afastará, também, o risco de que distor ções e desequilíbrios sejam agravados. E a idéia
refortificado pode, num segundo momento, ultra passar sua busca pelo consumo e entregar-se à busca da cidadania. A primeira supõe uma visão limitada e unidirecionada, enquanto a segunda in clui a elaboração de visões abrangentes e sistêmi cas. No primeiro caso, o que é perseguido é a re construção das condições materiais e jurídicas
224
Milton Santos
que permitem fortalecer o bem-estar individual
dia trabalha com o que ela própria transforma em
(ou familiar) sem, todavia, mostrar preocupação
objeto de mercado, isto é, as pessoas. Como em
com o fortalecimento da individualidade, enquan
nenhum lugar as comunidades são formadas por
to a busca da cidadania apontará para a reforma
pessoas homogêneas, a mídia deve levar isso em
das práticas e das instituições políticas.
conta. Nesse caso, deixará de representar o senso
Frente a essa nova realidade, as aglomerações
comum imposto pelo pensamento único. Desde
populacionais serão valorizadas como o lugar da densidade humana e, por isso, o lugar de uma co abitação dinâmica. Será também aí, visto pela mesma ótica, que se observarão a renascença e o peso da cultura popular. Por outro lado, a precari edade e a pobreza, isto é, a impossibilidade, pela carência de recursos, de participar plenamente
que os processos econômicos, sociais e políticos produzidos de baixo para cima possam desenvol ver-se eficazmente, uma informação veraz poderá dar-se dentro da maioria da população e ao servi ço de uma comunicação imaginosa e emocionada, atribuindo-se, assim, um papel diametralmente oposto ao que lhe é hoje conferido no sistema da
das ofertas materiais da modernidade, poderão,
mídia.
igualmente, inspirar soluções que conduzam ao
Um novo mundo possível
desejado e hoje possível renascimento da técnica,
A partir dessas metamorfoses, pode-se pensar na
isto é, o uso consciente e imaginativo, em cada lugar, de todo tipo de oferta tecnológica e de toda modalidade de trabalho. Para isso contribuirá o fato histórico concreto que é, ao contrário do pe ríodo histórico anterior, o grau de "docilidade" das técnicas contemporâneas, que se apresentam mais propícias à liberação do esforço, ao exercício da inventividade e à floração e multiplicação das demandas sociais e individuais. Se a realização da história, a partir dos vetores "de cima", é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir dos vetores "de baixo" é tornada possível. E para isso contribuirão, em todos os países, a mistura de povos, raças, cultu ras, religiões, gostos etc. A aglomeração das pes soas em espaços reduzidos, com o fenômeno de urbanização concentrada, típico do último quartel de século XX, e as próprias mutações nas relações de trabalho, junto ao desemprego crescente e à depressão dos salários, mostram aspectos que poderão se mostrar positivos em futuro próximo, quando as metamorfoses do trabalho informal se rão vividas também como expansão do trabalho livre, assegurando a seus portadores novas possi bilidades de interpretação do mundo, do lugar e da respectiva posição de cada um, no mundo e no lugar.
produção local de um entendimento progressivo do mundo e do lugar, com a produção indígena de imagens, discursos, filosofias, junto à elaboração de um novo ethos e de novas ideologias e novas crenças políticas, amparadas na ressurreição da idéia e da prática da solidariedade. O mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso. A dialética entre essa universalidade empírica e as particula ridades encorajará a superação das práxis inverti das, até agora comandadas pela ideologia domi nante, e a possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. Nas condições históricas do presente, essa nova maneira de enxergar a globalização permitirá distinguir, na totalidade, aquilo que já é dado e existe como um fato consumado, e aquilo que é possível, mas ainda não realizado, vistos um e outro de forma unitária. Lembremo-nos da lição de A. Schmidt (The concept of nature in Marx, 1971) quando dizia que "a realidade é, além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tor namos, ou seja, tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por inter
As condições atuais permitem igualmente antever
médio dos mitos, das escolhas, das decisões e das
uma reconversão da mídia sob a pressão das situ
lutas".
ações locais (produção, consumo, cultura). A mí
Milton Santos
225
A crise por que passa hoje o sistema, em diferen
A reconstrução vertical do mundo, tal como a atu
tes países e continentes, põe à mostra não ape
al globalização perversa está realizando, pretende
nas a perversidade, mas também a fraqueza da
impor a todos os países normas comuns de exis
respectiva construção. Isso, conforme vimos, já
tência e, se possível, ao mesmo tempo e rapida
está levando ao descrédito dos discursos domi
mente. Mas isto não é definitivo. A evolução que
nantes, mesmo que outro discurso, de crítica e de
estamos entrevendo terá sua aceleração em mo
proposição, ainda não haja sido elaborado de
mentos diferentes e em países diferentes, e será
modo sistêmico.
permitida pelo amadurecimento da crise.
O processo de tomada de consciência — já o vi
Esse mundo novo anunciado não será uma cons
mos — não é homogêneo, nem segundo os luga
trução de cima para baixo, como a que estamos
res, nem segundo as classes sociais ou situações
hoje assistindo e deplorando, mas uma edificação
profissionais, nem quanto aos indivíduos. A velo
cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.
cidade com que cada pessoa se apropria da ver
As condições acima enumeradas deverão permitir
dade contida na história é diferente, tanto quanto a profundidade e coerência dessa apropriação. A descoberta individual é, já, um considerável passo à frente, ainda que possa parecer ao seu portador um caminho penoso, à medida das resistências circundantes a esse novo modo de pensar. O pas so seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizá-
a implantação de um novo modelo econômico, so cial e político que, a partir de uma nova distribui ção dos bens e serviços, conduza à realização de uma vida coletiva solidária e, passando da escala do lugar à escala do planeta, assegure uma refor ma do mundo, por intermédio de outra maneira de realizar a globalização. 30 — A história apenas começa
los como um todo, mostrando sua interdependên
Ao contrário do que tanto se disse, a história não
cia. A partir daí, a discussão silenciosa consigo
acabou; ela apenas começa. Antes o que havia
mesmo e o debate mais ou menos público com os
era uma história de lugares, regiões, países. As
demais ganham uma nova clareza e densidade,
histórias podiam ser, no máximo, continentais,
permitindo enxergar as relações de causa e efeito
em função dos impérios que se estabeleceram a
como uma corrente contínua, em que cada situa
uma escala mais ampla. O que até então se cha
ção se inclui numa rede dinâmica, estruturada, à
mava de história universal era a visão pretensiosa
escala do mundo e à escala dos lugares.
de um país ou continente sobre os outros, consi
É a partir dessa visão sistêmica que se encon tram, interpenetram e completam as noções de
derados bárbaros ou irrelevantes. Chegava-se a dizer de tal ou tal povo que ele era sem história...
mundo e de lugar, permitindo entender como
A humanidade como
cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa,
um bloco revolucionário
cada relação dependem do mundo.
O ecúmeno era formado de frações separadas ou
Tais raciocínios autorizam uma visão crítica da
escassamente relacionadas do planeta. Somente
história na qual vivemos, o que inclui uma apreci
agora a humanidade pode identificar-se como um
ação filosófica da nossa própria situação frente à
todo e reconhecer sua unidade, quando faz sua
comunidade, à nação, ao planeta, juntamente
entrada na cena histórica como um bloco. É uma
com uma nova apreciação de nosso próprio papel
entrada revolucionária, graças à interdependência
como pessoa. É desse modo que, até mesmo a
das economias, dos governos, dos lugares. O mo
partir da noção do que é ser um consumidor, po
vimento do mundo revela uma só pulsação, ainda
deremos alcançar a idéia de homem integral e de
que as condições sejam diversas segundo conti
cidadão. Essa revalorização radical do indivíduo
nentes, países, lugares, valorizados pela sua for
contribuirá para a renovação qualitativa da espé
ma de participação na produção dessa nova histó
cie humana, servindo de alicerce a uma nova civi
ria.
lização.
226
Milton Santos
Vivemos em um mundo complexo, marcado na
ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas
ordem material pela multiplicação incessante do
ações já realizadas, em curso ou meramente ima
número de objetos e na ordem imaterial pela infi
ginadas. Por isso, tudo o que existe constitui uma
nidade de relações que aos objetos nos unem.
perspectiva de valor. Todos os lugares fazem par
Nos últimos cinqüenta anos criaram-se mais coi
te da história. As pretensões e a cobiça povoam e
sas do que nos cinqüenta mil precedentes. Nosso
valorizam territórios desertos.
mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo,
A nova consciência de ser mundo
graças à força com a qual a ideologia penetra ob jetos e ações. Por isso mesmo, a era da globaliza ção, mais do que qualquer outra antes dela, é exi gente de uma interpretação sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou ar tificial, seja redefinida em relação com o todo pla netário. Essa totalidade-mundo se manifesta pela unidade das técnicas e das ações. A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica globalizada, direta ou indiretamente presente em todos os lu gares, e de uma política planetariamente exerci da, que une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autorizam uma leitura, ao mesmo tempo ge ral e específica, filosófica e prática, de cada ponto da Terra.
Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o resto da humanida de, parece estar próximo. Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser mun do e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares, sobretu do as grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações va riadas e múltiplas, que ao mesmo tempo se cho cam e colaboram na produção renovada do enten dimento e da crítica da existência. Assim, o cotidi ano de cada um se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual es
atuais como pelas perspectivas de futuro. As dia
tamos vivendo, o homem pouco a pouco descobre
léticas da vida nos lugares, agora mais enriqueci
suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada
das, são paralelamente o caldo de cultura neces
vez menos natural, o uso do entorno imediato
sário à proposição e ao exercício de uma nova po
pode ser menos aleatório. As coisas valem pela
lítica.
sua constituição, isto é, pelo que podem oferecer.
Funda-se, de fato, um novo mundo. Para sermos
Os gestos valem pela adequação às coisas a que se dirigem. Ampliam-se e diversificams-se as es colhas, desde que se possam combinar adequada mente técnica e política. Aumentam a previsibili dade e a eficácia das ações.
ainda mais precisos, o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição téc
Um dado importante de nossa época é a coinci
nica e à existência de um único motor para as
dência entre a produção dessa história universal e
ações hegemônicas, representado pelo lucro à es
a relativa liberação do homem em relação à natu
cala global. É isso, aliás, que, junto à informação
reza. A denominação de era da inteligência pode
generalizada, assegurará a cada lugar a comu
ria ter fundamento neste fato concreto: os mate
nhão universal com todos os outros.
riais hoje responsáveis pelas realizações prepon
Ousamos, desse modo, pensar que a história do
derantes são cada vez mais objetos materiais ma nufaturados e não mais matérias-primas naturais. Pensamos ousadamente as soluções mais fantasi osas e em seguida buscamos os instrumentos adequados à sua realização. Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza,
homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer datas, nem de fixar momentos da folhinha, marcos num calendá
Milton Santos
227
rio. Como o relógio, a folhinha e o calendário são
confuso e perverso, pode vir a ser uma condição
convencionais, repetitivos e historicamente vazi
da construção de um mundo mais humano. Basta
os. O que conta mesmo é o tempo das possibili
que se completem as duas grandes mutações ora
dades efetivamente criadas, o que, à sua época,
em gestação: a mutação tecnológica e a mutação
cada geração encontra disponível, isso a que cha
filosófica da espécie humana.
mamos tempo empírico, cujas mudanças são
A grande mutação tecnológica é dada com a
marcadas pela irrupção de novos objetos, de no vas ações e relações e de novas idéias.
emergência das técnicas da informação, as quais — ao contrário das técnicas das máquinas — são
A grande mutação contemporânea
constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis,
Diante do que é o mundo atual, como disponibili
adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que
dade e como possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas seu
seu uso perverso atual seja subordinado aos inte resses dos grandes capitais. Mas, quando sua uti lização for democratizada, essas técnicas doces
destino vai depender de como disponibilidades e
estarão ao serviço do homem.
possibilidades serão aproveitadas pela política. Na
Muito falamos hoje nos progressos e nas promes
sua forma material, unicamente corpórea, as téc
sas da engenharia genética, que conduziriam a
nicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem
uma mutação do homem biológico, algo que ainda
ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista
é do domínio da história da ciência e da técnica.
existencial, elas podem obter um outro uso e uma
Pouco, no entanto, se fala das condições, também
outra significação. A globalização atual não é irre
hoje presentes, que podem assegurar uma muta
versível.
ção filosófica do homem, capaz de atribuir um
Agora que estamos descobrindo o sentido de nos
novo sentido à existência de cada pessoa e, tam
sa presença no planeta, pode-se dizer que uma
bém, do planeta.
história universal verdadeiramente humana está,
sites.uol.com.br/isabelapa/geral/5miltonsan
finalmente, começando. A mesma materialidade,
tos.htm – (acesso in 30/08/2002)
atualmente utilizada para construir um mundo
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Milton Santos
Milton Santos
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PARTE IV ENTREVISTAS
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Milton Santos
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UM OLHAR DISSONANTE
Fonte: http://www.uol.com.br/fsp 07/03/2000 - Autor: VALMIR SANTOS - Editoria: ILUSTRADA Página: 5-1
Legenda Foto: A atriz Denise Stoklos e o geógrafo Milton San tos, que trocaram impressões sobre a perspectiva humanista dos seus trabalhos; Stoklos em cena da peça "Vozes Disso nantes", que estréia dia 22 no Festival de Teatro de Curitiba Crédito Foto: Eduardo Knapp/Folha Imagem; Divulgação
Atriz Denise Stoklos encontra o geógrafo Milton Santos para conversar sobre os 500 anos do Brasil e sobre a peça 'Vozes Dissonantes', destaque do Festival de Curitiba
O mineiro João Guimarães Rosa (1908-67) escreveu que "a vida traz a esperança mesmo no fel do desespero". Em tempos de ideologias flutuantes e muros invisíveis, suas palavras são como estacas _metáfora perfeita para o diálogo que se segue entre o geógrafo Milton San tos, 73, e a atriz Denise Stoklos, 41. Santos é um dos autores que Stoklos cita em seu novo espetáculo, "Vozes Dissonantes". A montagem teve sua estréia nacional adiada em SP, duas vezes, por causa de uma contusão que a atriz sofreu no pé esquerdo. Virá a público finalmente nos dias 22 e 23, no Festival de Teatro de Curitiba. Reunidos a convite da Folha, no final do ano passado, Santos recebeu uma Stoklos bem di versa daquela que se vê nos palcos: ela estava com o pé engessado e apoiava-se em mule tas. A conversa aconteceu na modesta sala de Santos na USP, onde é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. "Vozes Dissonantes" recorre a filósofos, políticos, escritores e cidadãos que brandiram, cada um a seu modo, um tanto da dignidade que é possível vislumbrar nesses 500 anos de Brasil. Estão lá, por exemplo, Filipe dos Santos, Manuel Beckmam, Maria Quitéria, Antonio Bento, Luiz Gama, Frei Caneca, Lauriana Maria e Vicente Tavares da Silva. O baiano Santos e a paranaense Stoklos falaram de teatro, universidade, cultura e proble mas sociais, sem esmorecer a esperança no "presente do futuro". *
Milton Santos - Quando é que você formulou
difícil, pequeno e limitado. E isso me acompanhou
essa idéia de que o Brasil tem de ser repensado
por todo o tempo, desde que sai da universidade
de forma autônoma?
e comecei minha vida teatral, vindo para São Pau
Denise Stoklos - Eu tive sorte de ter 18 anos em
lo e Rio. Quando comecei a ser vista como uma
68, de estar na universidade naquela época.Nun ca fui líder estudantil, nunca fui presa, torturada ou exilada por imposição. Mas convivi com cole gas que tinham liderança e com os quais eu en tendi que não era possível pensar o Brasil de uma forma macro, porque tudo naquela época era tão
boa atriz na juventude, o único caminho era tor nar-me intérprete de novela de sucesso. Não ha via possibilidade de encontrar companhias ou gru pos que desenvolvessem uma linguagem própria, o medo era grande...
232
Milton Santos
Santos - ...Era a manifestação da cultura própria
como se apregoa por aí, porque comunicação é
dificultada pela emergência da indústria cultural...
emoção.
Stoklos - ...Exatamente. Repetir a indústria cul
Santos - Esse aspecto mostra também a diferen
tural era o único desenvolvimento aceito, apropri
ça entre o artista e o homem da universidade na
ado a qualquer ator, diretor ou autor que quisesse
direção da verdade. O grande artista é livre e
continuar aqui. Era muito insatisfatório para mim,
sabe que, se não houver emoção, ele não se
que escrevi minha primeira peça aos 18 anos, so
aproxima da verdade. E o homem da universidade
bre o tema da mais-valia. E não poderia escrever
imagina que tem de reprimir a emoção para pro
sobre outra coisa: aquilo era fruto da minha gera
duzir. As ciências humanas, brasileiras e latino-
ção, não da minha autoria.
americanas, acabam não interpretando os respec
Santos - Quer dizer, era a vontade de afirmação
tivos países porque olhamos para a interpretação
da cultura nacional como afirmação do povo bra sileiro. Talvez esses 500 anos pudessem ser úteis para isso... Stoklos - ...Ou pelo menos que a gente não pu desse passar por isso tudo de novo...
que é dada a outra história. Como está claro no seu texto "500 Anos - Um Fax de Denise Stoklos para Colombo" (1982), por exemplo, a troca do espelhinho pelo ouro. Quer dizer, a gente busca se espelhar apenas e toma isso como se fosse uma riqueza intelectual. Seu trabalho no palco é
Santos - É curioso. Penso que nas ciências huma
uma cruzada. Minha impressão é que ele repercu
nas temos o mesmo problema. A diferença é que
te algo que é profundo na alma brasileira e está
eu levei meio século para descobrir isso, e você
buscando intérpretes... A cultura tem de vir com o
descobriu mais rapidamente... A maneira como
território,
interpretamos o Brasil e o mundo é empobrecida
fazendo.... É um conjunto que inclui possivelmen
na universidade porque somos extremamente co
te essa preguiça intelectual, essa comodidade de
piadores _primeiro da Europa e agora dos EUA.
pegar os espelhos e usá-los adequadamente.
Não se trata de recusar o pensamento que vem de outros países, mas há uma maneira própria de ver o mundo e a si mesmo. É isso que distingue as culturas e dá nervo aos povos. Nós não chega mos a ser universais porque não somos suficien temente brasileiros. Relendo suas peças, encon trei esse ponto que nos aproxima, que é retirar do país as suas próprias forças para entender o mun do e melhorar o Brasil. Estamos atravessando uma fase de desmanche de muita coisa. Isso nos deixa preocupados e, ao mesmo tempo, nos dá força para enfrentar a tarefa.
com
o
povo,
com
a
história
se
Stoklos - E a gente raspa, assim, as palavras su as... Pega aquilo e se agarra como se fosse uma bóia no naufrágio. Quantas vezes um simples pensamento nos conduz a praias mais ilumina das... Volto ao seu pensamento da emoção, de que o pobre, o destituído, ele se comunica por causa da emoção, por estar com a emoção... Eu não fui instruída para trabalhar com isso. Era complicado lidar com a emoção, principalmente porque vivíamos uma época difícil. As coisas nes se país têm a aparência e o significado fica por baixo, que é muito mais forte. Só que as coisas
Stoklos - Quando li pela primeira vez o seu livro
não mudaram, mesmo com essa chamada demo
"A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e
cracia legitimada pelo voto, que não significa na
Emoção" (ed. Hucitec, 1996), tentei captar o seu
da. É pior, porque traz o fantasma desse "legíti
raciocínio de geógrafo e descobri verdadeiras epi
mo"...
fanias. Por isso que eu cito tanto o seu pensa mento, mesmo com receio de fazer uma interpre tação errada ou superficial da sua obra. O senhor proporciona ao mesmo tempo o rigor do pensa mento e o convite à análise crítica. Acho muito in teressante, por exemplo, quando o sr. diz que não estamos vivendo uma época da comunicação,
Santos - ...É um consumo eleitoral... Stoklos - ...Esse distanciamento entre a emoção e a leitura do real também nos criou uma dificul dade para se aproximar da nossa própria emoção. Houve essas pequenas sequelas, mas dá para re ajustar. É a emoção, afinal, que está determinan
Milton Santos
233
do que a gente não queira desistir e se entregar
Não só a emoção, claro, mas por meio dela é
ao cinismo que todos os convertidos ao neolibera
mais depressa. Propor uma coisa nova na univer
lismo assumiram, de que "é assim mesmo", "é
sidade é muito difícil, embora seja o lugar da pro
mais um passo", "estamos evoluindo", "esse é o
posição do novo. Essa força, digamos, de esque
movimento global", "as novas leis são assim mes
cer, de ser original, só a emoção permite. E ela
mo", enfim, é um cinismo absoluto. Não tem gra
então passa a ser um dado do pensamento, não é
ça não ser cidadã, não ter compaixão, não ter re
a razão que produz o grande pensamento. E aí é
verência, enfim, tudo que nos é dado como único
preciso caráter. Uma reinterpretação da sociedade
patrimônio, único no sentido de bom, de uno, não
brasileira em movimento permite ver, digamos,
de pouco, de menos. E seu trabalho, professor,
uma outra coisa, um futuro mais perto. Nós fo
também nos pede essa emoção.
mos tratados e educados para examinar o chama
Santos - Aliás, foi uma descoberta recente. A
do presente, não imaginando que o futuro está aí,
maior parte do tempo eu era refreado. Recordome dos anos em que ensinei na França e nos EUA,
embutido no presente. Na realidade, cada ato nosso é presente, agimos em função do futuro. A
entre as décadas de 60 e 70, e a minha volta ao
ação é presente, mas a aspiração dela é o futuro.
Brasil, quando retomei contato com as pessoas
Stoklos - O educador Paulo Freire já falava disso:
daqui. Fui intelectual na Europa e nos EUA sem
só tem futuro quem tem presente. Essas pessoas
ser cidadão, era regido pela razão, pelo esquema.
são mutantes. Não estou falando daqueles que
A descoberta dessa nova condição, dessa episte
queimam índios ou dos chamados "mauricinhos",
mologia da existência, como estou chamando
"patricinhas", que são apenas uma reprodução
agora. Quer dizer, o existir como condição para
dos modelos que se conhece. Mas estou falando
ver o mundo, e isso inclui, em primeiro lugar, a
dos novos, que têm compaixão... Num país como
emoção. Porque a razão reduz a força de desco
o nosso, quem não tem compaixão está morto, li
brir, porque só a emoção nos leva a ser originais.
teralmente.
07/03/2000 - Autor: VALMIR SANTOS - Editoria: ILUSTRADA Página: 5-6 Na continuação da conversa com Denise Stoklos, Milton Santos define ofício da arte de repre sentar
"Teatro é fome de aperfeiçoamento" Acompanhe a sequência do diálogo entre Milton Santos e Denise Stoklos, que não se conheci am pessoalmente. Durante mais de duas horas, não se serviu café ou água, tão envolvidos que estavam. (VS) Folha - Essa aceleração do presente, da qual o
nos pobres. Mas na minha juventude, nem dinhei
sr. fala, ficou muito clara no final do ano passado,
ro para comer tínhamos. Agora, a classe média
com a ansiedade em torno da chegada do novo
"refabrica" o futuro com cartão de crédito, com
milênio.
inadimplências. O pobre não, ele tem pouco. Ele
Milton Santos - O que chamamos de presente
sabe que amanhã não será igual a hoje. E isso
não existe. É um momento fugaz da realização de um futuro sonhado. O melhor gesto seu é basea
está chegando, está subindo até a gente também. O drama dos filhos sem perspectiva, o drama de
do no futuro, não no presente. Então, acho que a
quem quer se educar e não consegue.
primeira condição para a gente acreditar que o
Denise Stoklos - Mas essa aceleração é dramáti
mundo vai mudar é descobrir que o presente não
ca...
existe. Hoje já tem cartão de crédito para os me
234
Milton Santos
Santos - ...É dramática sim. Por isso, o papel de
informalidade americana é absolutamente regulá
gente como eu, você e muitos outros _somos um
vel. E faltava aquilo que tinha na França, que é
certo número de pessoas que não nos conhece
jantar a quatro, a seis. Isso estimula você a falar,
mos_, volta a ser central.
a dizer o que pensa. Foi aí que senti a diferença
Folha - No ano passado, o sr. participou de um
entre o encontro e o parto. Quando retornei ao
seminário do movimento "Arte contra a Barbárie", organizado em São Paulo por grupos como o Tapa, Folias D'Arte e Companhia do Latão. Como
Brasil, vi que tinha acabado também essa coisa da entrega do tempo como vida ao outro. O que talvez não aconteça com as pessoas pobres, se
foi a experiência de conversar com a classe tea
não elas deixariam de viver...
tral?
Stoklos - ...Elas só têm a própria presença...
Santos - Eu sentia falta desse contato com os ar
Santos - ...E a do vizinho. Quando não existe a
tistas. Afinal, teoricamente eles são livres. Quer
possibilidade do conflito criador e enriquecedor,
dizer, podem não ser na prática (risos). Bem, eu
quando não querem falar um com o outro, aí você
coloquei para eles um pouco do que estamos fa
é usado para falar pelos outros... Aliás, como é a
lando aqui. O que já não acontece com os colegas
competição no meio artístico?
da universidade, pois estamos mais propensos à
Stoklos - Eu tenho a sorte de não entrar nesses
censura. A universidade possui uma estrutura de enquadramento que isola.
embates. Escolhi um caminho isolado, tenho consciência disso. Faço questão de falar, para
Stoklos - No solo, por exemplo, você não está
quem chega perto de mim, que isso não faz parte
sozinho no palco. No meu caso, não se trata de
do ofício do artista.
um monólogo de ficção no qual você vai lá e re
Folha - Como o sr. vê a representação no teatro?
presenta exatamente, e é aquilo. O espectador vai dizer: "Oh, que virtuosismo, como faz bem!". E vai embora como entrou. Aliás, para ir embora exatamente igual, nenhuma experiência de en contro vale a pena. O verdadeiro encontro é quando você se transforma. Talvez por isso nossa sociedade se prove tão injusta, porque a gente não se transforma ao encontrar o outro. Santos - Quando fui trabalhar nos EUA, eu acha va que tudo era espontâneo, até descobrir que a
Santos - A minha educação artística é muito po bre. Ainda não me sentei para fazer a exegese dessa pobreza. O teatro constitui, vamos dizer as sim, por destino, uma exposição de idéias univer sais. Acho que esse é o teatro genuíno. É daí que vem, consequentemente, a sua postura crítica. E foi assim durante séculos, a busca de coisas que são próprias do homem, essa fome de aperfeiçoa mento. O teatro é ético, em suma.
Milton Santos
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GRANDES EMPRESAS DOMINAM POLÍTICA, Fonte: http://www.uol.com.br/fsp 08/01/2001 - Autor: CÉLIA CHAIM - Editoria: BRASIL Página: A8 O geógrafo Milton Santos, 74 anos, é um dos poucos brasileiros cuja especialidade é pensar com inteli gência. Pensar o Brasil e suas mazelas; pensar o brasileiro e suas carências. Ele agora faz parte de uma comissão que promove uma inovação na vida pública brasileira. Independente e sem compromisso com as idéias do governo, a comissão vai estudar os resultados até agora obtidos pela globalização e seu impacto em São Paulo. Quando tudo estiver pronto, a comissão entrega o trabalho para a prefeita Marta Suplicy. Milton Santos está mais magro e, por conta de um tratamento de saúde, faz várias vezes ao dia o que os baianos, como ele, adoram fazer: merendar, panetone com suco, por exemplo. E está cada vez mais perspicaz. A cabeça quase branca de Milton Santos, que viveu na França por muitos anos voluntária e involuntariamente, o leva à condição de um dos poucos negros intelectuais que o Brasil permitiu ascen der. Na marra. Ele fez o primário em casa, com os pais, professores. Era bom aluno em matemática, mas foi demovido da idéia de estudar na Escola Politécnica por sua família, que sabia que os negros não eram bem recebidos na instituição. Foi assim que o Brasil ganhou o geógrafo Milton Santos. O mesmo Brasil que, ele acredita, sorrateira mente começa a tomar consciência de que a convivência entre dois países dentro de um mesmo territó rio é inviável. "A gente conversa com o tipo mais humilde, mais pobre, e toda a gente tem consciência de que a educação é essencial para seus filhos", diz. Milton Santos é o típico aposentado brasileiro. Con tinua trabalhando. Dá aulas nos cursos de mestrado e doutorado da Universidade de São Paulo e lidera um grupo de pesquisas que reúne 20 estudiosos. Nos próximos dias, lança o livro "O Brasil: território e sociedade no início do século 21", da Editora Record, assinado com Maria Laura Silveira e vários de seus alunos.
se realizam completamente. Não há um mercado Folha - O que a comissão vai estudar? Milton Santos - Tem dois aspectos principais: a própria organização da cidade, como ela é, como é a situação, qual a sua relação com o processo de globalização e a outra é a relação da cidade com a federação. Somos um grupo de pessoas vindas de diferentes horizontes intelectuais. Mas
global e é por isso também que não há uma regu lação global. A prova disso é que as crises estou ram umas atrás das outras, e aí se buscam expli cações parciais, quando a explicação é o próprio sistema -a globalização, que é uma provedora permanente de crises. Folha - E os avanços tecnológicos, a facilidade de
ainda não há nada a falar. É um plano.
comunicação?
Folha - O que o senhor pensa sobre a inserção do
Santos - A globalização é mais um momento da
Brasil no movimento de globalização? Santos - A maneira como o país se deixou inserir nesse processo, de forma um pouco atabalhoada, conduz a uma grande desordem no meu modo de ver. Na verdade, sempre houve dois brasis. O que a globalização fez foi dar a esse fenômeno uma dimensão maior porque ela conduz à exclusão.
condução da história da humanidade e um mo mento muito importante porque é como se os so nhos que a humanidade acalentou durante sécu los estivessem a ponto de se realizar. Nós alcan çamos uma aceleração das técnicas, uma acelera ção das relações interpessoais, uma aceleração na produção de conhecimento. É um momento que privilegia a nossa geração e que resulta, de um
Folha - O que o senhor pensa sobre o mercado
lado, nesse domínio sobre as forças naturais e, de
global?
outro, no uso político dos recursos técnicos dispo
Santos - Não existe isso. O que existe são em
níveis.
presas com vocação planetária, mas que jamais
Folha - É aí que começam os problemas?
236
Milton Santos
Santos - Exatamente. A política deixou de ser fei
melhor cidadão, para entender mais e melhor o
ta por institutos, instituições, governos e passou a
mundo, para se tornar um ser humano na sua
ser feita por grandes empresas. É evidente que
plenitude. Nas condições atuais há uma insistên
ainda há governos, é evidente que organismos in
cia nesse aspecto instrumental da educação, em
ternacionais buscam criar uma moralidade inter
detrimento do aspecto propriamente formativo e
nacional, é evidente que a globalização permitiu
isso se vê na proliferação de cursos noturnos, os
que se criasse no mundo inteiro uma enorme pos
cursos por correspondência, os telecursos, que
sibilidade de movimentos independentes, que dis
são formas simplórias que podem enganar as pes
cutem e defendem amplas causas humanitárias.
soas durante algum tempo, mas não facilitam a
Mas o poder sobre a produção, sobre o trabalho e
incorporação a uma vida plena, que é o objetivo
a vida das pessoas é potencializado nas mãos de
da educação.
um número de empresas cada vez menor. Esse é
Folha - Assim como a educação, a saúde, habita
que é o problema. E aí essa globalização que de veria ser democrática entre aspas, com uma pro dução da humanidade igualitária, acaba sendo exatamente contrário. Alguns países têm os meios de comandar e os outros ficam na periferia. Folha - É o caso do Brasil, por exemplo?
ção... Santos - Há uma certa anuência no sentido de que certos problemas somente podem ser enfoca dos em conjunto e a partir de uma idéia de futu ro, um projeto de civilização. O Brasil nunca teve um cidadão brasileiro mesmo. Algumas pessoas
Santos - A globalização, tal como ela se relacio
recebem tratamentos privilegiados e as outras
nou com o Brasil, criou uma seletividade maior
são coisas.
ainda no uso dos recursos públicos que se torna
Folha - O senhor não viu essa perspectiva mais
ram muito mais orientados para a vida produtiva do que para a problemática social. A educação, por exemplo, é um dado da problemática social. É evidente que o ministro da Educação pode se van gloriar de haver aumentado o número de matrícu las, mas a questão não é estatística e sim que tipo de educação se oferece e para quê? O que parece existir no Brasil é uma educação em duas
próxima quando Fernando Henrique Cardoso as sumiu a presidência? Santos - Não porque nos anos anteriores ao pro cesso de sua eleição eu não estava aqui, não es tava contaminado pelas simpatias pessoais que o presidente inspira. Raras são as pessoas tão se dutoras quanto ele. Não tive nenhuma ilusão.
ou três velocidades diferentes: segundo, o lugar
Folha - E agora, o senhor tem alguma esperança
que estou na sociedade posso receber uma edu
em relação a um projeto de civilização para o
cação qualitativamente boa ou qualitativamente
país?
ruim, e aí as minhas oportunidades no mundo do
Santos - Nós estamos retomando, com menor
conhecimento são condicionadas por essa forma
evidência, com menor força, o exercício de pensar
ção.
porque esse exercício não é muito ajudado pela
Folha - O que o senhor acha da ênfase ao estudo
formas de institucionalização da vida intelectual.
técnico?
Essa formidável burocratização das universidades,
Santos - Há um entendimento da coisa técnica que me parece equivocado no trabalho do minis tério da Educação. É a valorização da técnica em si e não do fenômeno técnico. Isso conduz a dar ênfase ao treinamento, que não é educação. O treinamento consiste em preparar rapidamente a mão de obra para tarefas que às vezes deixam de ter razão de ser, enquanto que a educação é algo que instrumentaliza o homem para ser mais e
essa idéia de que a universidade é uma instituição como qualquer outra, o que inclui até mesmo a sua associação com o mercado, tudo isso constitui uma atitude de dificuldade muito forte para a pro dução desse pensamento. Paralelamente, consti tui um estímulo muito forte para quem decide re sistir. Folha - O senhor, por exemplo...
Milton Santos
237
Santos - A impressão que eu tenho é de que há
Santos - Os negros têm medo sim. Não é só dis
uma aceleração muito forte na produção de um
criminação. Discriminação tem nos Estados Uni
ente político no Brasil. A consciência está em ges
dos, só que lá o negro iria quebrar o restaurante,
tação. Creio que há uma espécie de revolução que
o que seria considerado justo; aqui a polícia seria
nem sempre é silenciosa que se está dando e que
convocada para conter qualquer manifestação. Eu
nós não temos as antenas para captar porque nos
me lembro de duas pessoas importantes, o Flo
acostumamos a um outro tipo de raciocínio sobre
restan Fernandes e Celso Furtado, em duas oca
o que é fazer política. Há toda uma produção da
siões diferentes, uma em Nova York e outra em
política que é paralela às atividades dos partidos e
Paris, de onde ambos me disseram: daqui a al
vai confluir para alguma coisa que pode ser orien
guns anos vamos ter no Brasil reações muito vio
tada no sentido de melhoria das condições gerais
lentas da parte dos negros em relação à situação
do país.
em que eles se encontram. Isso eles me disseram
Folha - Orientada por quais lideranças?
há vinte anos.
Santos - Religiosos, políticos, intelectuais, sobre
Folha - Mas não aconteceu.
tudo artistas, que são os grandes líderes hoje em
Santos - Está perto de acontecer, espero que
dia. Compositores como Gilberto Gil, por exemplo.
aconteça. Creio que inclusive processos como o
E há toda uma sociedade desorganizada que cada
da distribuição da educação vão ajudar porque os
vez mais começa a descobrir o seu lugar. Quando
negros que conseguem estudar descobrem que
eu falo políticos, estou incluindo as igrejas, que
não têm igual acesso às oportunidades e, sobre
são cheias deles, os sindicatos e pessoas que se
tudo, eles sabem que raramente estarão em
esmeram em purificar a sua vontade de ser con
grandes escolas. Há algo que vai acelerar. São
sequente. A confluência não virá da mobilização,
grupos poucos numerosos e alguns deles se dei
mas da possibilidade de conscientização; daí o pa
xam cooptar de uma forma ou de outra. Mas essa
pel da universidade pública. A universidade não é
cooptação vai se tornar impossível daqui a algum
o lugar para mobilização, nós não somos nem agi
tempo e daí o vaticínio de Florestan Fernandes e
tadores e nem militantes; nosso trabalho é de
Celso Furtado vai se realizar.
pensar e exprimir com força esse pensamento.
Folha - O seu novo livro é uma discussão sobre o
Creio que é esse elo que está se criando hoje no Brasil. Folha - Quais seriam os políticos?
Brasil? Santos -Uma das dificuldades de se discutir o Brasil é que não se fazem mais estudos de con
Santos - Uns que são iluminados e aqueles que
junto. Há uma especialização, uma pontualização
se preocupam com visões fundadas nas análises
que não permite um debate mais fecundo. A par
concretos. Hoje há um certo nível de exigência
tir de um certo número de premissas, nós decidi
ética do político que não se discute mais. A desco
mos fazer uma análise do Brasil da globalização,
berta de certas formas de hipocrisia no comporta
seus efeitos no país e no território brasileiro, con
mento político, apesar do mascaramento pelo
siderado o lugar da vida da sociedade. A conclu
marketing e pela mídia, já está se dando. Tam
são essencial é que um território reflete a dificul
bém por isso eu creio que há alguma coisa em
dade de se governar o país. São as grandes em
plena gestão.
presas que governam o território e os governos
Folha - Perguntado certa vez pela revista "Caros
perdem a autonomia de decisão. Há uma forma
Amigos" se teria medo de entrar num restaurante chique e ser olhado com desdém por ser negro, o senhor respondeu que sim. É isso mesmo em 2001?
de ingovernabilidade que nós vamos mostrar através dessa questão. Por exemplo, a geografia da publicidade, que repete a concentração de ren da; a informação e como ela modela a vida nacio nal; as periferias urbanas. O Brasil, daí a preten são do título.
238
Milton Santos
O BRASIL (SEGUNDO MILTON SANTOS)
Fonte: http://www.uol.com.br/fsp 02/02/2001 - Autor: CASSIANO ELEK MACHADO - Origem do texto: Da Reportagem Local Editoria: ILUSTRADA Página: E1 Em "O Brasil", geógrafo baiano faz o primeiro grande retrato nacional posterior à globalização - CASSIA NO ELEK MACHADO - DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil globalizado está ganhando seu primeiro retrato de corpo inteiro. O responsável pela fotografia fez bem mais do que um Oiapoque ao Chuí intelectual antes de bater essa chapa. Nascido na cidadezinha baiana de Brotas de Macaúbas, Milton Santos começou a lecionar aos 15 e já espalhou suas idéias tanto em salas da Universidade de Sorbonne, em Paris, quanto da Universidade Dar Assalaam, na Tanzânia. Em meio a essas e outras expedições, Santos atingiu o Everest de sua disciplina. Ganhou em 1995 o Prêmio Vautrin-Lud, considerado o Nobel da geografia. Aos 74, ele chega agora ao provável pico de uma carreira pontuada por "uns 50 livros". O professor emérito da Universidade de São Paulo, o primeiro negro a conseguir esse título, está lançando pela editora Record o livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século 21". No trabalho assinado junto com a pesquisadora argentina María Laura Silveira, o geógrafo segue a picada aberta por um seleto grupo de intelectuais. Assim como os "bandeirantes" Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior, ele fez a sua interpretação do Brasil, a primeira a pesar os efeitos da globalização. "Esse livro reúne todo o estudo de geografia que venho fazendo e tenta aplicá-lo ao Brasil. É o resultado de pelo menos 25 anos de elaborações teóricas", explica à Folha o geógrafo. Para "fazer o território falar pela nação", ele mergulhou em um trabalho de equipe. Apoiado por 20 pesquisadores, fez os mais diversos possíveis levantamentos de dados sobre como o brasileiro trabalha, se locomove, gasta, poupa, planta, colhe _assim vai. O resultado das pesquisas "não está em computador não", diz orgulhoso o crítico ácido da globalização, que garante que nunca vai usar a Internet ("pressa para quê?"). Está tudo ar mazenado em dezenas de caixas de papelão com etiquetas como "agricultura", "telecomuni cações" e "educação". Foi em uma sala repleta delas, escondida em "uma catacumba" do prédio de geografia da Universidade de São Paulo, que o pensador recebeu a Folha para mostrar flashes desse seu retrato do Brasil. Folha - No início de "O Brasil", o sr. escreve que
Milton Santos - Interpretei o Brasil a partir do
Darcy Ribeiro interpretou o país a partir de seu
seu território. Ele é a personagem central dessa
povo, Florestan Fernandes, a partir da cultura, e
leitura. Quero mostrar que o território permite fa
que Celso Furtado buscou um retrato com uma
zer falar a nação. Um intelectual com ambição
matriz econômica. Gostaria que o sr. falasse so
globalizante pretende que seu discurso seja re
bre a moldura que o sr. usou para seu retrato do
presentativo da realidade. A pretensão é igual à
Brasil.
de Sérgio Buarque de Hollanda e de Celso Furta
Milton Santos
239
do. A diferença é que o resultado é menor. Mas
benefício de um pequeno número de atores. A in
assim como acontece com Celso, Buarque ou Flo
tegração é mais possível do que era antes. As no
restan, quero que um sujeito que leia essa obra
vas tecnologias são uma formidável promessa. A
no Japão ou na Cochinchina entenda o Brasil.
globalização é uma promessa realizável e a inte
Folha - Como o sr. definiria o conceito de territó
gração será realizada.
rio de "O Brasil"?
Folha - Que mudanças mais radicais os avanços
Santos - No começo da história, havia a nature
tecnológicos causam do ponto de vista geográfi
za. Vem o homem, se instala e começa a agregar
co?
novas coisas. Ele produz o território, dessa forma.
Santos - A mais radical é a tecnização da nature
Pode-se definir o território a partir do Estado,
za. A substituição cada vez maior de uma ordem
como na ciência política, ou pelos acidentes geo
natural para uma ordem técnica, com todos os
gráficos, como fazia outrora a geografia. Aqui na
seus constrangimentos, seu discurso, sua sedu
USP trabalhamos com a idéia de que o território é
ção. É uma produção ao mesmo tempo do real e
a construção da base material sobre a qual a soci
do mitológico. Ao longo dos séculos, as mitologias
edade produz sua própria história.
eram produzidas pelos povos. Hoje não. Três ou
Folha - Quais os maiores desafios em discutir as
quatro marqueteiros se juntam, produzem uma
questões territoriais em um momento em que a
mitologia e vendem. A cidade, por exemplo, é tida
globalização torna os limites geográficos cada vez
por aqui como um lugar miserável.
mais permeáveis?
Folha - E o que o sr. acha disso?
Santos - Um dos grandes desafios é da própria
Santos - As cidades não são nada disso. A cidade
tradição da geografia. Durante sua vida, ela trata
é o único lugar em que se pode contemplar o
o território como um quadro negro sobre o qual a
mundo com a esperança de produzir um futuro.
sociedade reescreve sua história. A ambição des
Mas se criou toda uma liturgia anticidade. A cida
se trabalho é negar essa visão do território. Ele
de, porém, acaba mostrando que não existe outro
também é dinâmico, vivo. A sociedade incide so
caminho senão o socialismo. Para evitar que as
bre o território e esse, na sociedade. Com relação
pessoas acreditem nisso, há todo um foguetório
à pergunta, podemos falar daquilo que sociólogos
ideológico para dizer que a cidade é uma droga.
chamam de desterritorialização, que viria da glo
Imagine ir morar num campo. Só um louco quer
balização. É o contrário. Nunca o território foi tão
morar em uma cidadezinha do interior.
importante para a economia, para a sociedade e
Folha - Qual opinião exposta em "O Brasil" o sr.
até para a cultura. Folha - Qual momento específico da ocupação do território brasileiro acentuou de modo mais rele vante as desigualdades sociais?
acredita que vai causar mais polêmica? Santos - Gostaria que fosse a ingovernabilidade. O modo como o território é usado aponta a ingo vernabilidade da nação, dos Estados e das cida
Santos - A globalização. Ela representa mudan
des. Existe um despreparo político e intelectual
ças brutais de valores. Os processos de valoriza
para enfrentar contradições.
ção e desvalorização eram relativamente lentos.
Folha - Quais as soluções para essa ingovernabi
Agora há um processo de mudança de valores que não permite que os atores da vida social se reor ganizem. Até a classe média, que parecia incólu me, está aí ferida de morte. Folha - Em "O Brasil" o sr. diz que a globalização agrava as diferenças regionais brasileiras. Até que ponto ela também integra? Santos - Ela unifica, não integra. Há uma vonta de de homogeneização muito forte. Unifica em
lidade? Santos - Creio que é preciso ampliar a produção do discurso. Depois deve se reequacionar as rela ções sociais no território. Folha - O sr. diz: "A territorialidade humana pressupõe a preocupação com o destino". Qual deve ser o nosso destino?
240
Milton Santos
Santos - Você está me lançando a presidente da
Folha - E por que as interpretações amplas sobre
República (risos)? Creio que o que está aconte
o país, que foram relativamente comuns até os
cendo já é a produção de um outro tipo de massa,
anos 50, entraram em desuso?
sobretudo na cidade. Por aí a coisa vai. Contatar
Santos - Acredito que a culpa é da universidade.
essa busca de sentido das massas é o caminho. Quem não for um bom rapper ou algo assim vai ficar na rabeira. A população quer novos intérpre tes para essa questão.
Tanto ela quanto as instituições que financiam pesquisas querem respostas rápidas, trabalhos de curtos prazo.
Milton Santos
241
GEÓGRAFO ATACA O USO POLÍTICO DE ESTATÍSTICAS Fonte: http://www.uol.com.br/fsp – 27/03/2001 - Autor: ANA GABRIELA ROIFFE Origem do texto: Da equipe de Trainees - Editoria: CADERNO ESPECIAL Página: Especial-4 Edição: Nacional Mar 27, 2001 A educação mínima hoje não é mais a alfabetização: é preciso um npivel mais elevado, diz Milton Santos - DA EQUIPE DE TRAINEES
"O que está havendo no Brasil é uma preocupação estatística de educação." Dessa forma o geógrafo Milton Santos vê as ações do governo para erradicar o analfabetismo. Maioria po pulacional do país (54%, leia o quadro abaixo), os brancos têm apenas uma pequena quanti dade de analfabetos (8,4%). Entre os pardos (39,5% da população brasileira) e pretos (5,7%), o índice de analfabetismo chega a 20,7% e 21,6%, respectivamente. Juntos, eles somam 21.836.051 pessoas, segundo o Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) de 1998, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Os quesitos sobre cor e instrução foram introduzidos no censo de 1940. Todas as perguntas são autoclassificatórias. Cabe aos entrevistados determinar se são brancos, pretos, pardos ou amarelos. Primeiro negro nomeado professor emérito da USP, Santos acredita que as pessoas ficam "felicíssimas" com os índices do IBGE. Para ele, os números forçam um tipo de debate dis tante daquele que deveria ser o central: a discussão sobre o lugar de cada um na sociedade. O geógrafo diz ainda que a educação de hoje seria apenas um treinamento para retardar a distribuição de renda da população. "Educação é um instrumento, mas não é algo que, sozi nha, seja uma produção." Para que se altere o quadro brasileiro de exclusão e injustiça, o geógrafo, que lançou no iní cio do ano o livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século 21", defende a revolu ção social. "Como não se quer fazer esse combate, o limite está chegando. Estamos chegan do a todos os limites", afirma na entrevista a seguir. (ANA GABRIELA ROIFFE) Folha - A diminuição do analfabetismo entre ne
tem esse discurso de glorificação. Não é pela edu
gros, principalmente nos centros urbanos, pode
cação sozinha que se vai a algum lugar. Isso é
reduzir a diferença de oportunidades entre eles e
uma grande balela.
os brancos?
Folha - A que outros fatores a educação precisa
Milton Santos - Existem duas questões: primeiro
estar aliada para se tornar eficiente?
é a da estatística. A outra é: o que é que eu faço
Santos - A uma revolução social. Primeiro educar
com a minha alfabetização? Essa questão é que é importante. Hoje, a educação mínima não é ape nas a alfabetização, você precisa ter um nível mais elevado de educação para melhorar. Eu pos so fazer uma distinção puramente estatística ou fazer uma distinção metodológica. A alfabetização custa barato, custa pouco tempo. Rapidamente, as condições de alfabetização são mais universais. Sobre a pergunta, acho que sim. Mas como o Bra sil quer retardar a distribuição de renda, há um esforço para deixar os pobres como pobres. Aí
num outro nível. Se você compara o Brasil que eu estudei com o atual, dá para ter mais negros na faculdade. Mas para qual a faculdade eles irão? E, depois que forem, quantos deles ficarão nos em pregos? Muito poucos. E, se ele obtém o empre go, qual será o salário? Acho que essas são as questões. Eu não resolvo isso com educação. Edu cação é um instrumento, mas não é algo que so zinho seja uma produção.
242
Milton Santos
Folha - O sr. acredita que a "cruzada" do governo
renda. É pelo poder, é a posição que você tem na
pela alfabetização seja uma maneira de desviar
sociedade. Se você só é treinado, você não está
de questões prioritárias?
apto a discutir o seu lugar na sociedade, e esse é
Santos - O que está havendo no Brasil é uma
o debate central. A estatística simplifica tudo. As
preocupação estatística da educação. Nós devía
pessoas ficam felicíssimas com os índices.
mos ter uma cruzada pela ascensão social, que
Folha - De que forma os números simplificam?
está em baixa e só seria possível com a mudança
Santos - Os números aparentemente são concre
de estrutura dentro da sociedade. Teríamos que ter uma preocupação sistêmica com a melhoria das condições de todos os brasileiros.
tos, mas na verdade são abstratos. Você pode ter, inclusive, no uso deles, uma escolha que já é polí tica. Você escolheu os índices que quer. Joga cer
Folha - Por que o sr. considera a educação de
tos índices no mercado, no mercado adverso tam
hoje como simples valorização da técnica?
bém. Pré-seleciona e obriga a discutir esses da
Santos - Você é treinado, mas não é educado. A
dos, forçando um tipo de debate. O que eu faço
produção do cidadão não deve ser só do cidadão. Deve resultar de uma dupla formada pela cidada nia completa e pela individualidade forte, com a listagem de direitos à igualdade efetiva, e não pu ramente essencial. Eu creio que é para isso que a gente luta. Como não se quer fazer esse combate, o limite está chegando. Estamos chegando a to dos os limites. Nada é feito para que você seja igual, porque a pobreza não é definida só pela
com isso? Não vou muito longe. O que eu vou fa zer? Eu posso dizer que são 40% de negros. Mas como isso vai melhorar as condições? Esse é um problema fascinante. Por enquanto não tem ne nhuma importância, mas daqui a pouco terá. Poli ticamente não tem, ainda. Os brasileiros conside ram que está tudo ótimo, mas em breve eu creio que essas coisas mudarão.
Milton Santos
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A UNIVERSIDADE SE BUROCRATIZOU Por Martha Neiva Moreira - Fonte: Jornal do Brasil, em 27/08/2000
Um dos mais respeitados pensadores do país, o geógrafo Milton Santos, 74 anos, é um críti co da globalização. Ao abordar as conseqüências desse processo para humanidade, ele põe em prática o que considera ser a função do intelectual: "Ser humilde frente à realidade, mas corajoso para criticá-la". Professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), com mais de 40 livros publicados, faz uma profunda reflexão sobre o Brasil e o mundo atual. Algumas de suas idéias, presentes em Por uma outra Globalização, editado pela Record, destacam os efeitos desta nova ordem para o desenvolvimento do debate intelectual brasileiro. Milton diz, por exemplo, que na universidade, local por excelência do livre pensar, a pluralidade de idéi as vem sendo substituída pelo pensamento único. Na opinião do geógrafo, o contexto atual não favorece a liberdade de pensamento. "Nesta fase de globalização, onde as coisas mais importantes são precedidas por um discurso ideológico, as idéias são apresentadas de forma confusa. Fica difícil criticá-las", diz. Ao explicar as causas do "enfraquecimento da universida de", surpreende. "Uma das razões de hoje existir a tendência ao pensamento único, está dentro da própria instituição de ensino". Para ele, a crescente burocratização instaurada na universidade, que submete professores à regras, cria obstáculos a produção de novas ideolo gias. O resultado é a profusão de letrados - sujeitos que, ao contrário dos intelectuais, são incapazes de ampliar e aplicar os conhecimento que possuem. A globalização também contri bui, segundo o professor, para o aumento da violência. Sua idéia parte do princípio de que as pessoas sejam competitivas. Ao aceitarem a competição, elas são, naturalmente, estimu ladas a ter um comportamento violento. "A regra vigente é a regra do resultado. Não existe ética nesse contexto".
- O senhor costuma dizer que os intelectuais, ao
doença da globalização, isto é, a tendência a um
contrário dos letrados - definidos como aqueles
pensamento único. E a universidade não tem de
que não são capazes de ampliar e aplicar o co
fesa completa contra essa doença. Nesta fase de
nhecimento apreendido -, estão cada vez mais ra
globalização, onde a realização hegemônica e as
ros. De que forma o sistema universitário estaria
coisas mais importantes que são feitas são prece
contribuindo para a profusão de letrados?
didas por um discurso ideológico, o trabalho de
- A universidade é o lugar de intelectuais, o sujei
análise e crítica fica muito mais difícil. O aparelho
to que dedica todo o tempo a busca da verdade, e também de letrados. Você pode ser um bom pro
do estado decidiu adotar, sem críticas, o processo globalitário e busca aplicar os princípios dessa
fessor e um pesquisador. Tem espaço para os dois
globalização perversa na universidade.
na universidade. Mas, é verdade também que,
- Por que a universidade virou o alvo?
embora ela esteja formando intelectuais, ela tem
- Nesse processo as realizações dependem da fa
produzido em maior número letrados. O espaço universitário se define por ser o lugar do livre pensar, de criar idéias e discutí-las. Esse é sentido real da vida universitária. No entanto, acho que o clima atual não favorece a liberdade de pensar.
bricação de idéias. A universidade, a fábrica de idéias por excelência, torna-se, então, um lugar estratégico. Só que para a produção da globaliza ção. Em países onde há cidadania, uma idéia de democracia social e onde a vida intelectual tem
- Por que?
mais densidade, é mais fácil a universidade resis
- O sistema universitário, no qual deveria prevale
tir a essa tendência. Em lugares onde a idéia de
cer a diversidade de idéias, tem sido vítima da
cidadania e a preocupação com o bem estar das
244
Milton Santos
maiorias nunca existiu, como aqui no Brasil, a
- O Ministério da Educação (MEC) prega a idéia de
universidade se enfraqueceu. A burocracia tam
autonomia universitária, cuja principal proposta é
bém contribuiu para enfraquecê-la.
a liberdade para gerar recursos, como sendo uma
- O senhor quer dizer que a universidade estaria
das principais soluções para o sucateamento do
se burocratizando? - É isso. A forma como as universidades estão sendo geridas atualmente é burocrática, amarra da a regras. Em cada departamento, que deveri am gerir as coisas e não as pessoas, vigoram leis, às quais os professores devem se submeter, e prêmios, concedidos àqueles que cumprem as re gras. A cooptação é feroz. O resultado disso é a redução da autonomia intelectual do corpo docen te e da capacidade de se fazer uma autocrítica. Os professores estão imobilizados. Cada vez que um colega passa para o lado da burocracia é um caminho sem volta. Eu costumo dizer que o "bu roprofessor" é pior do que o burocrata simples.
ensino superior. O senhor acredita nessa propos ta? - O discurso do MEC é hipócrita. O Ministério pre ga autonomia, mas faz ao contrário. A verdadeira autonomia só pode ser exercida se o professor for autônomo, mas hoje as próprias instituições de ensino se opõem à liberdade de cátedra. A auto nomia pregada pelo MEC é financeira, quando te ria que ser de pensamento. Se nós formos nos aprofundar neste debate vamos chegar a conclu são que uma das saídas para os problemas da universidade, hoje, é desenvolver a autocrítica. Somente voltando o olhar para dentro dos campi é que será possível restaurar o clima de liberdade,
Isso porque ele detém o conhecimento. A buro
de criar e pensar.
cracia dentro da universidade tem a tendência de
- Algumas universidades do país já estão seguin
dar mais importância aos meios do que aos fins,
do a tendência de se organizar em núcleos sobre
de privilegiar o resultado ao invés do conjunto.
os mais variados assuntos, envolvendo conheci
Isso a universidade não suporta. Ela é a única ins
mentos de vários departamentos. O senhor acre
tituição que não suporta ser institucionalizada.
dita que a implantação da interdisciplinaridade
- Ao se burocratizar, a universidade brasileira es
poderia ser a chance de se estimular a diversida
taria deixando de cumprir sua principal missão,
de de pensamentos na universidade?
que é a de criticar o seu tempo e a ela própria?
- Da forma como está sendo implantada, sem de
- Ela não abandonou sua missão. O que ocorre é
bate, a estrutura interdisciplinar só barateia o en
que, no atual contexto, ela apenas ficou menos capaz de cumpri-la. - Embora reconheça que o debate intelectual bra sileiro está enfraquecido, o senhor é otimista em relação ao futuro da universidade?
sino. A interdisciplinaridade pressupõem investi mento para se conhecer bem uma determinada área do conhecimento. Para se trabalhar de forma interdisciplinar é necessário que o professor co nheça profundamente o seu domínio, do contrário não tem o que dizer aos outros. O que ocorre é
- Sei que não será nada fácil reverter o processo
que existe aqui uma tendência à pressa, à ligeire
de burocratização. A universidade vive um debate
za, em detrimento da calma, da profundidade.
que se refere ao outro, quando deveria se voltar
Qualquer um pode dar aula sobre qualquer coisa.
para suas próprias questões. Embora esteja te
Isso é um risco.
meroso e preocupado, acredito que os movimen tos de fundo da sociedade, que passavam desper cebidos, estão explodindo na superfície e deman dando mudanças de atitude. Isso é o resultado do processo social, que vai exigir que a universidade amplie seu universo de preocupações. Já existe em muitos grupos a esperança de mudança.
- O senhor acha que as formas de acesso à uni versidade são segregadoras? - O vestibular é um exame sócio-econômico, quem entra são alguns poucos favorecidos que freqüentaram boas escolas. Por outro lado, o au mento do número de vagas para a universidade não acompanha o aumento da população em ida de universitária. Isso institui o nexo-sócio econô
Milton Santos
245
mico. A universidade tem que ser para todos,
é só isso. Existem outros aspectos que ajudam no
quanto mais diversidade existir, mais rica é a pro
entendimento da violência nas grandes cidades.
dução do saber.
- Quais são eles?
- O senhor diz que o processo de globalização é
- O desencanto com o resultado do esforço, de
um convite à violência, principalmente nas metró poles. Por que?
pois que se descobre que os espertos são os vito riosos. A desesperança de um trabalho regular, o
- O caldo de cultura que baliza a vida já é violento
incitamento ao consumo - que também é desa
em si. A globalização exige de todos os atores, de
gregador -, a falta de certeza na justiça social. Se
todos os níveis e em todas as circunstâncias, que
vive hoje em um mundo de temores e incertezas
sejam competitivos. Esse processo exige que em
que conduz a um estado de permanência.
presas, instituições, igrejas sejam competitivas. A
- O senhor acha que a violência chegou a um es
competição estimula a violência porque a regra que vigora é a regra do resultado. Não existe éti ca. Quando, por exemplo, se privilegia, no ensino secundário, a formação técnica, sem nenhum con teúdo humanístico, está se criando mais um caldo de cultura que estimula atitudes violentas. - Como isso acontece?
tágio incontrolável? - A violência dá impressão de ser incontrolável, mas não é irreversível. Hoje, nós temos um mun do, quero dizer com isso que ao mesmo tempo que a globalização incentiva a violência, ela favo rece sua extinção. A facilidade de comunicação fa vorece a construção de um sentimento de solida
- Deixando de lado o conteúdo humanístico, não
riedade mundial. Essa é a contradição do processo
se vê o conjunto. Esse estilo fragmentador, que
de globalização. Nós temos que engrossar o lado
está presente em outros setores da vida, desman
positivo do processo globalitário, usar a idéia de
cha as pessoas, sem contruí-las depois. Mas, não
civilização em benefício da humanidade. Isso não é impossível.
246
Milton Santos
ENTREVISTA COM MILTON SANTOS Por Carlos Tibúrcio e Silvio Caccia Bava Fonte: http://www.polis.org.br/publicacoes/artigos/entrevistamiltao.html Carlos Tibúrcio é jornalista e coordenador do Le Monde Diplomatique – Brasil e Silvio Caccia Bava é soció logo, fundador e pesquisador do Instituto Pólis. 28 de junho de 2001 Entrevista publicada originalmente no Caderno Especial "Um Outro Mundo Urbano é Possível", co-edição Instituto Pólis e Le Monde Diplomatique, por ocasião do Fórum Social Mundial - 2001.
Silvio: a cidade é assunto para quem professor ?
exemplo, onde é que eu vou? O futuro é uma
MS: Eu não sou planejador, fui quando era jovem,
construção, um desafio do presente. É a novida
aí eu me meti a planejador. Depois, quando eu
de. O que interessa para vocês é o futuro, não é
deixei a política para estudar, descobri que o im
mesmo?
portante é fazer análises, olhar as cidades como
Silvio: Pensando o problema urbano, professor,
objeto de análise. Os primeiros urbanistas eram
ele vem se caracterizando de uma maneira dife
grandes analistas do fenômeno urbano. Todos
renciada ao longo do tempo...
eles. A crítica que eu faço à esquerda nessa rela
MS: Isto sempre foi assim, isto não é novidade. A
ção com a cidade é a que faria também à direita, agora à esquerda a gente faz com mais força críti ca. Porque os planejadores de esquerda de um modo geral não se preocupam com a análise do fenômeno urbano. Eles já postulam soluções. En tão o conteúdo da cidade é deixado à margem. São as propostas que tomam a frente da cena. E mais recentemente estas propostas são propostas neoliberais.
novidade é que nós estamos em outro período histórico e a visão tradicional trata o presente como se fosse o passado. Então não vai alcançar o futuro. Esse me parece que é o drama que vive mos. As perguntas que vocês me fizeram são muito tradicionais, expressam uma posição velha, sem imaginação, é a repetição de um velho dis curso que parece que funcionou quando não havia necessidade de planejamento. Tanto que nunca
A esquerda não sabe muito o que fazer com o ur
tivemos planejamento urbano, tivemos alguma
bano. E com freqüência a esquerda realiza o tra
coisa no passado, mas nos últimos 30, 40 anos o
balho da direita quando chega ao governo. O pla
planejamento urbano não existiu.
nejamento urbano da esquerda facilita a expan
Carlos Tiburcio: Como é que se rompe com essa
são mais rápida do neoliberalismo. Possivelmente isto vem do fato de que o planejamento urbano não é entregue a estudiosos da cidade. Em vez do planejamento urbano ser responsabilidade de ur banólogos, ele é responsabilidade de urbanistas. E a cidade não é assunto para urbanistas. Carlos Tiburcio: Eu achei uma abordagem ótima para começar, mas o senhor poderia ilustrá-la? Há exemplos de políticas que materializam isso?
situação? MS: Estudando. Porque eu acho que na área de planejamento urbano, planejamento das cidades em geral, há um conjunto do de preconceitos que impedem de pensar. Eu não sei como convencer um administrador a estimular as pessoas a pen sar. Um prefeito teria de ter dois organismos de estudos diferentes. Teria de ter um organismo como a Sempla, por exemplo, e um grupo de pes
MS: Não, porque eu não desejo trabalhar com
soas que pensa independentemente da Sempla. E
exemplos. O exemplo é a chantagem. No exemplo
isto não é contemplado em nenhuma das munici
a gente toma o que interessa. O domínio da idéia
palidades nem de direita nem de esquerda.
é o domínio do pensamento puro. Se eu parto do
Milton Santos
247
Silvio: Curitiba manteve o IPUC durante quase
nada a ver com a cidade de trinta anos atrás. No
trinta anos...
meu modo de ver a cidade é um campo de forças,
MS: Mas pensar o status quo não tem problema.
como todo território ela é um campo de forças, é
Silvio: Como abordar o novo nesta discussão?
o lugar primordial da contradição com que o mun do se debate hoje. Ela deve ser vista assim se a
MS: A partir dos materiais que a história fornece,
gente quer ter uma visão progressista, se a gente
de um lado. De outro lado, no caso urbano, há
quer pensar o futuro. O futuro é a escolha de ca
uma confusão entre as coisas e a cidade. As cida
minhos para enfrentar as contradições.
des seriam coisas somente e de fato são as coisas movidas pela a ação humana. A abordagem urba nística é uma intervenção sobre coisas, vamos fa zer uma ponte, vamos fazer uma nova autopista, vamos fazer um túnel , vamos construir casas, essa atitude – que é dos urbanistas de uma ma neira geral diante da cidade – ela impede o co nhecimento do que é o organismo urbano, ela im pede o plano, daí a renúncia ao plano urbano. Porque o plano diretor não é plano urbano, o pla no diretor é algo que não tem maior significado para a construção do futuro. Carlos Tiburcio: saiu nos jornais há pouco uma declaração do futuro secretário de planejamento de São Paulo de que a necessidade é fazer um novo plano diretor...
O fenômeno urbano nacional não pode ser estu dado fora do território. No caso do Brasil a especi ficidade ela é de cada organismo urbano. O pro blema central que eu vejo é que a questão das ci dades, ela é tratada fora do território. Esse é o problema que eu estou apontando na maior parte dos urbanistas. Aí você acrescenta o discurso da pobreza, da desigualdade, mas que não é intrín seco, é o chantili e a cereja em cima do bolo já feito. Isso quando a questão é o próprio bolo. Se rompêssemos com essa visão da cidade como apenas um dado da dinâmica territorial, isso nos levaria a uma outra visão dos problemas, inclusi ve da construção da política e da federação. A fe deração atual é hostil a soluções urbanas, não ur banísticas. As questões urbanísticas, elas se fa
MS: O grande risco deste enfoque das coisas é
zem independentes, tanto que os modelos atuais,
que a gente pode descambar para a estética ur
hegemônicos, eles são estrangeiros de um modo
bana, não é isso? E para a cosmética urbana, que
geral. Eles são importados assim como são impor
é a grande moda atual. E para o divertimento das
tados os pensadores estrangeiros que vêm aqui
pessoas. E com isso se desvia a direção política.
dizer que devemos fazer assim, devemos fazer
Você não enfrenta os problemas e oferece cristali
assado.
zados os espaços. E aí também ajuda os escritóri os. Aos grandes você dá as grandes obras e aos pequenos e médios você dá as renovações locais. 80, 100 pracinhas. E diz que está planejando a ci dade toda para os pobres e para o futuro. Silvio: Mas professor, pensando a cidade como um campo de relações sociais, em um Brasil que é 80% urbano, em quê a especificidade do urbano difere da problemática geral brasileira? O que tem o urbano de específico? MS: Essa é uma questão de uma vida. Você não responde isto em uma frase. Essa é minha obra. Um trabalho contínuo de análise do urbano. As idéias de hoje são uma cristalização de um pensa mento que poderá ter sido válido há 40 anos atrás mas não é uma posição que leva em conta a história atual. Eu acho que a cidade hoje não tem
Silvio: O senhor se refere por exemplo ao plane jamento estratégico de cidades? MS: Que ninguém sabe o que é! Ele não pode ser estratégico se não corresponde à verdadeira dinâ mica, que é a do território nacional. Silvio: Pensando a produção do urbano como uma resolução permanente de um campo de conflitos, se a equação resultante destes conflitos de algu ma maneira mudasse as tradicionais elites que se apropriam do espaço público, não poderia haver uma ampliação da cidadania e aumento da quali dade de vida? O senhor vê alguma mudança nes se passado recente na dinâmica do conflito que configura o urbano? MS: A questão urbana, como a questão territorial, ela tem o seu próprio vocabulário, que a gente re
248
Milton Santos
cria com a história. É um vocabulário que não se
e a realidade brasileira não fosse trepidante, de
pode deixar envelhecer. O fenômeno urbano ele é
cidades sem cidadãos. Tudo isso vem também de
separado desta problemática geral da cidadania,
um déficit de análise. Continuamos adotando mo
da chamada qualidade de vida, essa expressão
delos estrangeiros e mesmo dentro da esquerda
que eu não gosto. Qualidade de vida, desenvolvi
há um bom número de administradores que to
mento sustentado, são termos neoliberais. Matam
mam exemplos estrangeiros e os aplicam servil
qualquer discussão. Porque são terminais. São
mente, tranqüilamente, sem a crítica das esquer
termos utilizados pelos políticos que na hora de
das.
implementá-los, não sabem como fazê-lo. Não sa
Silvio: Mas professor, não é à toa que o pensa
bem como fazê-lo porque não querem estudar. Ou não podem estudar. Então eu considero que a questão é de análise, isto é, tem que dar o lugar aos analistas. E os urbanistas, eles têm de obede cer. Eles são executantes. Eles não são mais idea lizadores, exceto se forem as duas coisas ao mes mo tempo. Se eles não forem capazes de pensar, tem de se recolher ao papel de meros executores, que são os técnicos. Carlos Tibúrcio: Essa é uma a problemática mun dial?
mento único ganha esta força. Será que nós te mos a capacidade da produção de um conheci mento, nós temos uma capacidade de análise que possa estruturar o debate em torno desses temas de outra maneira? MS: Quando se tem o poder é também possível orientar a produção das idéias. Não é verdade que não haja referências para isso no Brasil. Eu acho que temos que sentar, buscar, produzir, criar, in ventar com as pessoas. Parece ser mais simples copiar. Nesse elenco de perguntas que vocês fize
MS:-Ela é menos mundial do que parece. Em ou
ram, não há traço de leitura do que eu escrevi. De
tros países sempre houve respeito pelos que pen
meu trabalho de 40 anos. O que há é uma vonta
sam. A partir do momento que a questão urbana
de deliberada de desconsiderar o que é feito, as
começou a ser estudada, e nesta época os urba
perguntas todas elas escapam do que eu introduzi
nistas eram urbanólogos também, eles reuniam
na disciplina. Me pedem para falar sobre outras
de um lado essa vocação para a análise, e de ou
coisas e desconhecem minha contribuição. O que
tro lado o comando da técnica para soluções de
é uma prova que mesmo entre os intelectuais há
problemas concretos. Eu creio que no resto do
um descolamento que é típico da academia brasi
mundo a idéia do conhecimento da cidade como
leira. Minha recente exposição à mídia tem pro
um todo sempre foi presente. Grandes estudos de
movido alguns escritos menores, mas minha obra
interpretação de cidades como Londres, como Pa
mesmo, aquela que tem substância, ela não é dis
ris, sempre foram feitos. No Brasil até 40 anos
cutida.
atrás se faziam esses estudos também, há exce
Carlos Tiburcio: Esse isolamento professor, ele é a
lentes estudos sobre a própria São Paulo. Houve o abandono desta tradição, que traz como con seqüência a própria fragmentação da administra ção urbana. Sem querer citar este ou aquele nome, a gente vê essa fragmentação. Eu tenho que confiar que a prefeita faça o trabalho filosófi co, da síntese. No Brasil, como na América Latina, e hoje na Áfri ca e na Ásia, a urbanização se dá em uma veloci dade que nunca houve na Europa. E nós adota mos um modelo de uma evolução lenta, gradual, domesticada
pela
eficiência
da
cidadania,
exemplos que copiamos tranqüilamente como se
expressão do quê na sua opinião? MS: É expressão de muitas coisas, entre as quais a desimportância que se dá ao pensar as questões urbanas. Eu acho que no Brasil é considerado que não é preciso se pensar realmente sobre as ques tões urbanas. Já se deixou de planificar há muito tempo. As pessoas escrevem centenas de pági nas, chamam isso de plano diretor. Há escritórios repetindo a mesma coisa, só mudando o nome da cidade, sem um esforço de compreensão, de cap tação da dinâmica real de cada pedaço do territó rio.
Milton Santos
249
O que cada um produz não é discutido. As nossas
Nunca houve uma produção tão acentuada de ca
revistas científicas não têm páginas para discutir
rências como agora. Nos países mais pobres isso
nada! O livro sai e pronto, acabou. Tem aquela
se nota mais ainda. Só que a análise do fenômeno
festa, os amigos vão e acabou. Uma vida política
não é feita por aí. Existem conflitos populares,
saudável, ela precisa de uma base intelectual for
existem conflitos gerais. As manifestações popula
te.
res são incompletas, às vezes incorretas, mas são
Silvio: Já houve uma época no Brasil em que os e
frutos, como diria o Marx, que eu creio que a glo
especialistas em relações de trabalho, analistas
balização está trazendo.
da questão sindical, tinham decretado o fim do
Acho isso fundamental. É dessas manifestações
sindicalismo brasileiro. Isto ocorreu em 1979.
populares que eu acho que vem a saída. Essa é a
Logo em seguida nos anos 80, 81 e seguintes nós
saída. E ela será tanto mais rápida e eficaz quanto
assistimos toda a mobilização operária e sindical
mais a gente ajude esse povo a entendê-la. É ou
que vai originar o pólo combativo, vai dar origem
tra razão pela qual se eu fosse prefeito de uma ci
à CUT, etc. Naquela época, me pareceu que estes
dade grande primeiro ajudaria a criar nos próprios
especialistas não tinham instrumentos analíticos
organismos de planejamento, ou paralelamente a
para dar conta do reconhecimento das mudanças
eles, grupos de estudo com independência, para
que se operavam na realidade brasileira, por isso
abastecer de idéias a partir desse novo e encora
que estes estudiosos, ilusoriamente, identificavam
jar pesquisas na Universidade, que cada vez me
um tipo de tendência que não se configurou...
nos é o lugar da pesquisa do novo. A Universidade
MS: Mas quando a gente descobre isso, já desco
é cada vez mais requisitada, solicitada, a reprodu
briu quase tudo... Silvio: Eu queria perguntar ao senhor se é possí vel reconhecer um momento de ruptura com uma tradição teórica anterior no campo da análise do urbano? MS: Se vocês tivessem lido o que eu escrevi, a sério, não me fariam essa pergunta. Essa respos ta está lá. E a cada novo livro eu venho renovan do, apresentando novas propostas. A vida política, essa vontade de fazer democracia que agora afi nal está se manifestando, poderia ser revigorada se os partidos tivessem uma noção da importân cia do trabalho nesse campo. Carlos Tiburcio: Está parecendo que o neolibera lismo está sofrendo derrotas justamente na locali dade, nas cidades, na base da sociedade. Porque aí forças as mais variadas de oposição estão, pe las vias democráticas, conquistando novos espa ços. Isso desde Londres até Manágua, Cidade do México, São Paulo...Isso é um fenômeno, é espe rado que a coisa venha assim de baixo para cima, que ali na localidade onde as pessoas vivem suas
zir modelos velhos. Isso pela maneira de como a pesquisa é estimulada e financiada. Carlos Tiburcio: O Sr. falou sobre importantes es tudos urbanos que se fazem sobre cidades como Londres e Paris. Em termos mais contemporâneos o senhor identifica algum lugar do mundo onde esteja havendo essa conjugação entre o incentivo ao estudo e o urbano não sendo visto como coisa? MS: Eu, como todo mundo, faço um esforço para me atualizar, mas nós somos perturbados pela leitura dos colegas ocidentais, dos colegas do Norte, que tem toda a produção dos nossos is mos. Sempre foi assim e continua sendo. O que nós fazemos aqui neste centro de pesquisa é bem diferente. Silvio: A situação recente provocada no Brasil pe las imposições do ajuste estrutural de nossa eco nomia acabou fazendo com que o conflito social explodisse no campo em primeiro lugar. O que permitiu a constituição de novos atores políticos, o crescimento do MST. Existem analistas que apontam que o conflito social agora vai explodir
contradições é que surja o novo?
no meio urbano. O que o senhor acha disso?
MS: Eu acho que as forças políticas hoje estão
MS: Simplesmente as pessoas não querem ver,
atrasadas. Eu acho que quem está na frente é o povo mesmo. São duas coisas diferentes.
querem olhar com as lunetas dos anos 40, 50, 60. São muitos os conflitos que a gente não está ha bituado a ver. Porque temos uma dificuldade de
250
Milton Santos
aceitar o novo. A gente identifica uma miríade de
dicações do novo, mas os partidos estão sendo
conflitos que a gente não nomeia porque são no
capazes de absorver isso?
vos. Os conflitos agrícolas são urbanos, no fundo.
MS: Eu acho que estão. Na minha experiência es
Há também solidariedade, não é só conflito, não é só violência.
tão. Não os partidos como estruturas maciças, os aparelhos. Mas o que a gente vai fazer com os
Silvio: O senhor sugere em algum dos seus textos
aparelhos? O que intelectual tem que ver com
que nós precisamos fazer uma pesquisa mais pro
aparelhos de partidos? Intelectual só pode ser ou
funda das formas de solidariedade no meio popu
vido por fragmentos de partidos, que estão se
lar. O senhor pode desenvolver um pouco mais
multiplicando. Nós estamos tendo no Brasil uma
essa idéia?
evolução revolucionária da vida política.
MS: Eu creio que é preciso mapear essas formas
Carlos Tiburcio: Como o senhor identifica isso?
de solidariedade e encontrar, digamos, a lógica da
MS: Aí eu vou dar os nomes. Um partido político
sua espontaneidade. Isso para que essa lógica possa entrar na programação dos partidos e eventualmente no projetamento dos governos. É uma perspectiva de se contrapor à lógica de hoje, que é não querer o povo, a lógica dos pobres, e promover a sua substituição pela lógica dos pode rosos. Que é o que está vendido no caso brasileiro de alto a baixo, de leste a oeste, na panóplia ide ológica.
como o PFL, ele cristaliza as ambições do neolibe ralismo. Inclusive com a sua veia mais recente, que é a veia caritativa, pregada pelos organismos internacionais. No PT, de outro lado, instala-se um debate interno intenso entre grupos que eu não saberia nomear. Esses fragmentos de parti dos estão se levantando com muita força . Existe também a tendência de fragmentação dos apare lhos dos partidos progressistas, de todos. Eu creio
Por exemplo, essa luta encarniçada contra o cha
que isso é novo no Brasil. Essa é que é a novida
mado setor informal. Esse setor informal, que eu
de. Quando só tinha o PT, só tinha um lado, não
chamo de circuito inferior, ele é o lugar da liber
tem debate. O problema é que surge uma certa
dade, da inventividade, da originalidade, é o lugar
confusão, algumas pessoas do PT imaginam que
onde tudo pode estar presente. A racionalidade do
podem confraternizar com a direita que está no
chamado setor formal, ela mata o futuro. Então,
PFL. Só que o tema da cidade não pôde ser incor
como é que eu vou estimular essas forças sociais,
porado ainda. Então isso é um freio a que essa
essa forma de vida interpessoal, sem que isso
evolução política se dê.
seja corrompido pela formalidade? Acho que esse
Silvio: Seria possível pensar, a partir dos sinais
é o problema a ser tratado. Mas aí você teria de ter um pensamento geral, mas capaz de captar a sua dinâmica em cada localidade, porque o fenô meno se dá igualmente mas assume configura ções territoriais particulares. Acho que de novo, são as idéias que podem mudar essa realidade, o que é abominado pelos políticos e administrado res. As idéias, os pensadores mais gerais, são chamados para ajudar os candidatos a fazer dis cursos, mas não para fazer uma política. Silvio: É que a política supõe mediações instituci onais e supõe um certo pragmatismo de resulta dos, não é? Como combinar a produção desse co nhecimento com a constituição de novos atores capazes de mudar o que aí está? O senhor está atribuindo aos partidos o papel de absorver as in
presentes hoje, que um novo mundo urbano é possível, aqui no Brasil? MS: Eu acho que sim. Essa realidade está se pro duzindo. Em primeiro lugar, a cidade tomou o lu gar da nação. E a nação, pela mão do aparelho de Estado,foi escangalhada. A cidade, ela é que se apropria das possibilidades do futuro, não é o campo. A cidade, no seu funcionamento, hoje é menos capitalista do que o campo moderno. Ela é mistura. Ela é criativa porque é mistura. O que falta é aumentar a consciência desses fatos todos de modo a reduzir o jogo de cabra cega. O que é um trabalho em primeiro lugar dos intelectuais, dos para-intelectuais. Esse termo não é pejorati vo. É pára-intelectual porque está preocupado com resultados. E o intelectual não tem que estar
Milton Santos
251
preocupado com isso não. É também um trabalho
zação. Nunca houve um período histórico cons
dos políticos, mas também dos não-políticos por
truído a partir de idéias. Esse é o primeiro. Ele foi
que as instituições, elas limitam o debate.
ideado há 40, 50 anos.
Silvio: Nós estamos assistindo hoje uma crise
Silvio: Minha pergunta é sobre a nossa possibili
crescente nas cidades, que se expressa no au
dade de reconhecer a partir das práticas, das ex
mento da violência, da privatização do espaço pú
periências em curso, sinais de mudança. Eu reco
blico, do domínio do narcotráfico, de uma falta de
nheço nesse mundo das cidades uma fragmenta
regulação da vida pública. O contrato social aca
ção muito grande nos setores populares, uma difi
bou se precarizando cada vez mais. Eu vejo que
culdade muito grande de estabelecer redes, fó
não está garantido um futuro com uma mutação
runs de ação conjunta. Já houve no passado pe
como o senhor aponta como uma possibilidade.
ríodos em que essas manifestações eram mais vi
Nós podemos estar indo para uma situação de
síveis, mais articuladas. E hoje não, há uma gran
barbárie. Nós podemos estar indo para uma situa
de dificuldade para atuar em conjunto. Há sinais
ção de decomposição da nação como vive a
de mudança a partir das práticas populares?
Colômbia hoje. Para cidades como a Los Angeles
MS: Por que eu vou partir do passado para discu
do filme Blade Runner. O que o senhor acha des sas possibilidades?
tir essas coisas? Que o pobre queira consumir é absolutamente normal no período atual. E uma
MS: Eu acho um equívoco culpar a cidade por um
boa parte da sociedade de mutação deixa a von
fenômeno de civilização. É um ponto de partida
tade de consumo, essa compulsão ao consumo
equivocado. Não é a cidade, é a civilização. De
que é típica do nosso período. Eu tenho que levar
novo, ou a gente trabalha as coisas, ou a gente
em conta isso. Acho que esse é o problema nosso.
trabalha as pessoas nas relações com as coisas. A
E aqui eu volto à minha tese central: nós temos
violência também existe, mas é só isso que exis
que distinguir, como dizem os filósofos, entre a
te? Como é que eu vou analisar o fenômeno urba
ação contingente e a ação possível. Se eu não re
no? Esse é que é o meu problema. Não é me fi
conhecer essa dualidade do ser humano, eu não
xando naquilo que a imprensa bate todo dia. Ela
tenho futuro. Porque nós somos condicionados
transforma a violência numa questão policial em
por forças que nunca foram tão fortes também no
vez de produzir um debate civilizacional. Não hou
constrangimento ao pensamento.
ve nenhum momento em que surgiu a palavra ci
Carlos Tiburcio: De onde nós podemos esperar
vilização.
que surja de uma maneira mais articulada esse
Carlos Tiburcio: Em Porto Alegre, o prefeito Raul
tipo de questionamento ao pensamento único?
Pont aponta como objetivos últimos de seu gover
MS: Eu acho que ele já existe. Da parte dos po
no a justiça, a equidade...
bres. Dos pobres imigrantes, das minorias. E há a
MS: Eu não queria citar facções, mas é nítida em
codificação, que é trabalho nosso, codificar e in
Porto Alegre a emergência de uma vontade políti
ventar, porque o pensamento também é cultivo.
ca...
Essa invenção a par da codificação, do que a soci
Silvio: Mas se a questão é civilizacional, ela toca
edade descobre de novo. No caso do Brasil isso é
todas as formas de vida em sociedade, e aí não perdemos a especificidade do urbano? MS: Eu tenho que voltar à minha primeira crítica, de que nós não sabemos trabalhar os dados. É essa procura que eu acho que tem de ser feita. Porque as categorias de análise são velhas e você não pode trabalhar o novo com categorias episte mológicas superadas. Eu acho que esse é o dra ma, se não houvesse idéias, não haveria globali
muito difícil porque o Brasil é sempre hostil com seus intelectuais. Não gosta deles. Os intelectuais sempre tem poucos recursos, são chamados para enfeitar acontecimentos e depois são mandados embora. Hoje os aparelhos partidários colocam um cordão sanitário em torno dos intelectuais, eles prescindem deles, trabalham sem de um modo geral. Silvio: Há hoje no Brasil uma valorização de cer tas práticas, como programas de renda mínima,
252
Milton Santos
bolsa-escola, incubadoras de empresas, economia
só tem um efeito multiplicador nos lugares de ex
solidária, micro-crédito, e numa outra vertente,
trema pobreza.
por exemplo, o Orçamento Participativo. À parte o
Quanto à participação, é difícil discutí-la porque
Orçamento Participativo, eu poderia dizer que to dos esses programas são políticas de corte keyne siano, voltadas para atender os mais pobres, sem maiores alcances estratégicos...
mobilizar as pessoas para discutir parte do gasto público não modifica a minha visão sobre a cida de, mas está bem, eu acho bom que se comece a preparar as condições para poder mudar. Só que
MS: Porque você coloca à parte o Orçamento Par
é um desafio passar da discussão da distribuição
ticipativo?
do gasto público para a discussão da cidade. Es
Silvio: Porque eu tenho dúvidas se podemos in
pero que em Porto Alegre, o novo prefeito cuide
cluir o OP com a mesma qualidade que as demais
da cidade, paralelamente à participação.
políticas que eu citei. Essas políticas, nesse senti
O que acontece quando não se pensa a cidade, o
do, não teriam nada de inovador. Nós estaríamos
prefeito pode melhorar as condições de arrecada
apenas reproduzindo formas complementares de
ção, ele pode eventualmente dar a impressão de
atendimento aos bolsões mais vulneráveis de po
progresso, mas está simplesmente entregando a
breza gerados pelos próprios efeitos do ajuste. O
cidade à lógica do neoliberalismo, como nós esta
que colocaria em questão uma afirmativa corrente
mos assistindo em algumas municipalidades pro
de que através destas práticas estaria se produ
gressistas. É a lógica do grande capital, do capital
zindo o empoderamento destes setores mais po
bancário, que vai predominar na evolução urbana.
bres, sua inclusão no mundo de uma cidadania
Então o problema que está se colocando é: o quê
mais ativa. Isso ficaria em questão, não é mes
a esquerda tem a fazer na cidade?
mo?
Eu acho que enquanto as esquerdas não compre
MS: Para um intelectual que se pretende de es
enderem que não são os discursos, ou os urbanis
querda, a resposta para estes exemplos que com
tas, que vão mudar as cidades, a lógica continua
põem os primeiros casos é um sorriso mesmo. A
a mesma. Tanto que eles podem circular livre
adoção desses programas é a prova da falta de
mente em todos os governos com as mesmas
vontade de enfrentar a tarefa da transformação
propostas. Com a mesma tranqüilidade. Quer di
social. É o neoliberalismo que põe pó-de-arroz
zer que a esquerda é cega, inteiramente perdida
aqui e ali, ajeita uma coisinha aqui, uma ali, dá
na questão urbana e tem que se reencontrar rapi
uma esmola. A prova é que a renda mínima, ela
damente. Porque o futuro não espera.
Milton Santos
253
MILTON SANTOS: PENSAMENTO DE COMBATE Por Cláudio Cordovil Fonte: http://www.terravista.pt/copacabana/3103/artigos/milton/combate.htm
Um momento de vida inteligente na televisão brasileira. A entrevista do geógrafo Milton Al meida dos Santos, na segunda feira passada(31/03), exibida no programa Roda Viva (uma produção da TV Cultura, retransmitida pela TVE), revelou a milhares de telespectadores o vi gor do pensamento de um dos mais respeitados intelectuais brasileiros. Professor titular da USP e considerado por seus pares um dos mais conceituados geógrafos vivos do mundo, Mil ton Santos quase se compara ao intelectual americano Noam Chomsky, em termos de radi calidade de sua original reflexão de resistência em tempos de "pensamento único". Com 12 títulos de doutor honoris causa de respeitadas universidades estrangeiras, esse baiano afável é um escritor prolífico, com mais de 40 livros publicados. Homem que sempre cultivou mais discípulos do que parceiros, pelo grosso calibre de suas denúncias da cooptação de intelectu ais que emudecem diante das tentações do mercado e dos riscos da globalização. Milton Santos foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o que pode ser considera do o Nobel da Geografia pelo conjunto de sua obra o prêmio Vantrin Lud. Durante a exibição de sua entrevista no Roda Viva, os telefones do programa não pararam de tocar. "Muitas pessoas ligaram emocionadas e entusiasmadas, vibrando e agradecendo a emissora pela transmissão. O teor das declarações do público se assemelhou ao verificado com a entrevista de Noam Chomsky", comenta Marco Nascimento, diretor de jornalismo da TV Cultura. É ele quem dá a boa notícia: "Já estamos programando a reprise".
Em entrevista no programa Roda Viva, o senhor
Em A natureza do espaço falo um pouco sobre
afirmou que observamos atualmente uma capitu
essa idéia. As classes médias são confortáveis de
lação dos intelectuais brasileiros diante da situa
um modo geral. O conforto cria dificuldades na vi
ção do país. Como define essa capitulação?
são do futuro. O conforto quer estender o presen
A capitulação dos intelectuais é um fenômeno in
te que está simpático. O conforto, como a memó
ternacional já antigo e que se agravou com a glo balização. Isso de alguma maneira perdura com a democracia de mercado de hoje. A intelectualida de brasileira se organiza através de grupos fecha dos que necessitam mais de fazer pressão, para sobreviver, do que de se reunir para pesquisar. Por isso tendem a se aproximar do establishment,
ria, é inimigo da descoberta. No caso do Brasil isso é mais grave, porque esse conforto veio com a difusão do consumo. O consumo é ele próprio um emoliente, Ele amolece. Os pobres, sobretudo os pobres urbanos, não têm o emprego, mas têm o trabalho, que é o resultado de uma descoberta cotidiana. Esse trabalho raramente é bem pago,
o que reduz a sua força de pensamento, imagina
enquanto o mundo dos objetos se amplia.
ção e crítica. Isso equivale a capitular. No Brasil,
O senhor fala da sabedoria da escassez...
há exceções, mas essa síndrome precisa de uma
Exatamente. Fui buscar esse conceito em Sartre,
cura urgente.
quando ele fala da escassez que joga uma pessoa
Em uma de suas declarações mais contundentes
contra a outra na disputa pelo que é limitado.
no programa Roda Viva, o senhor afirmou que o
Essa experiência da escassez é que faz a ponte
pobre é neste momento o único ator social no
entre a necessidade e o entendimento. Como a
Brasil com o qual podemos aprender algo de ver
escassez sempre vai mudando, devido a acelera
dadeiro. Poderia explicar?
ção contemporânea, o pobre acaba descobrindo que não vai nunca morar na Ipanema da novela,
254
Milton Santos
que jamais vai alcançar aquelas coisas bonitas
por políticos, não tem mais qualquer substância".
que vê. Ele continua vendo, mas está seguro hoje
Ela anuncia que uma nova civilização já se iniciou
de que não as alcançará. Gostaria de dizer que a
e nela só uma pequena parcela da população
classe média já começa a conhecer a experiência
mundial encontrará trabalho. O que pensa dessa
da escassez. E isso ode ser bom. Como a classe
afirmação?
média, na sua formação, tem uma capacidade de
Há anos eu já afirmava que a globalização, tal
codificação maior, isso vai nos levar a uma preci pitação do movimento social, da produção da consciência, ainda que seja de uma maneira in completa.
como era considerada, começa por ser uma fábu la. Essa fábula se tornou possível exatamente pela violência da informação. Produzem-se idéias que são impostas. Nesse sentido, o que Forrester
Pesquisa divulgada mês passado na França reve
afirma a propósito da "magnífica ilusão" me pare
lou que 72% dos franceses oscilam entre o medo
ce correto. Mas é a partir dessa ilusão e dessa fá
e a revolta com relação ao atual modelo econômi
bula que são impostas fórmulas que conduzem os
co. Acredita que a situação francesa seja muito
países em sua economia, política e relações soci
distinta da brasileira? Como explica a aprovação
ais. São fábulas perversas, como essa que fazem
popular da política econômica brasileira?
com que não discutamos a solidariedade. Toda a
Essa questão pode ser desdobrada em duas. No
discussão sobre a previdência se faz em bases
Brasil, a expansão do consumo veio com o regime autoritário e continua com a democracia de mer cado. Por conseguinte, essa expansão do consu mo junto a essas duas estruturas de controle faz com que a opinião pública seja amortecida. Há muito mais espaço para o consumidor, esse espa
contábeis e não levando em conta que a nação tem que ser solidária e todos temos de estar jun tos. Todos os debates são feitos naturalizando a perversidade, através da naturalização da desi gualdade social. É uma tristeza que a discussão sobrfe o desemprego se limite a uma relação
ço legitimado agora com o código do consumidor,
mensal de números falsos.
e nada para o cidadão. Dessa forma, torna-se
Como assim?
mais fácil aceitar um mundo onde são as coisas
Vivemos uma fase de politização das estatísticas.
que comandam, e não os valores.
Isso se dá de forma descarada no Brasil em todos
O que acontece no caso do Brasil?
os campos da vida social e econômica. Há uma
Esse apego enorme às coisas faz com que a coisa
distribuição de estatísticas de forma maciça, mas
mais representativa, que atualmente é o Real, a coisa que faz adquirir coisas, interfira no resultado das pesquisas favoráveis à moeda. Mas, a mesma pessoa que gosta do Real não gosta do desempre go, não gosta da insegurança. De modo que vive mos esse paradoxo que está rebaixado na consci ência das pessoas. O que aparece lá em cima é o Real, a satisfação com a moeda, mas há uma infi nidade de situações, que não são latentes, mas reais, embora não apareçam como sistema na consciência. Por isso temos a impressão de que o
que não permite análise porque não há desagre gação que conduz a uma interpretação. a apre sentação da estatística já é enviesada. Não se pode atribuir às pesquisas de opinião tão dissemi nadas hoje em dia a qualidade de fornecer o en tendimento das estruturas e processos sociais. A estatística é retrato encomendado de apenas uma parcela do social, mas não é o social. Essas pes quisas têm um papel de deformação da vida polí tica e degradação da vida partidária. Na última campanha foi curioso ver como os candidatos de
Brasil não está reagindo, mas penso que há um
cidiam ir mudando em função das pesquisas.
vulcão adormecido.
Parece que vivemos um paradoxo na era da infor
Viviane Forrester, em seu best seller francês inti
mação: a sociedade parece cada vez mais opaca,
tulado O horror econômico, afirma que vivemos no meio de uma "magnífica ilusão". "Nossos con ceitos de trabalho e de desemprego, manipulados
menos decifrável. Temos mais estatísticas, mas entendemos menos a sociedade. A que atribui esse fenômeno?
Milton Santos
255
A violência da informação também se deve ao
bal travestido de mercado nacional não tem um
fato de que a grande indústria da comunicação é
reflexo, nem obrigatório nem imediato, sobre a
extremamente concentrada. é concentrada nas
maior parte da população. Ele se amplia com o
mesmas mãos que concentram a competitividade.
desemprego, com a fome, sem que a maior parte
Esta não tem qualquer finalidade. Até hoje não se
da população seja beneficiária, enquanto o mer
descobriu por que as grandes empresas globais
cado territorial é o que tem a ver com a maioria
competem. Todos os dias nos defrontamos com
da população e acaba sendo o sustentáculo do Es
uma interpretação já feita, mas que é simplista,
tado.
ilusória e produz uma fábula. Isso gera esse efeito
No programa Roda Viva o senhor sugeriu que o
de opacidade. Ela é menor nos países onde a figu ra do cidadão pôde se cristalizar ao longo dos sé culos e maior nos países onde a cidadania não se concretizou, como na África e na América Latina. A globalização parece haver reduzido a influência dos mercados nacionais que constituíam um dos fundamentos do poder do Estado-nação. O que é feito de noções tão caras à geografia, como Esta do, nação e território?
prefeito Celso Pitta está sofrendo um linchamen to, que o senhor parece atribuir ao racismo. E se as denúncias se provarem verdadeiras? Acredita que sua crítica foi feita em momento oportuno? Na sociedade da informação em que vivemos há linchados e linchados. O caso dos precatórios mostra que há linchamentos de graus variáveis. Minha colocação tem um caráter político no senti do maior. Desejo a aceitação mais tranqüila do
Prefiro dizer que o mercado nacional é o nome
negro na sociedade brasileira.
fantasia do mercado global. Esse mercado global
Que dificuldades lhe trazem sua condição de inte
trabalha com alguns pontos do território e exige que os estados nacionais aparelhem esses pontos. As empresas globais ali se instalam. É nesses pontos privilegiados que elas produzem nacional mente uma produção global. Mas há também o território: todo o resto utilizado pelas outras em presas e pela maioria esmagadora dos homens que não vivem sem esses território. Podemos en carar de outra maneira a questão do território, do mercado e do Estado nacional. Esse mercado glo
lectual negro e o tom destoante de seu pensa mento no establishment acadêmico? Pude me manter como outsider. Em que medida ser outsider no meu caso não se deve ao fato de eu ser negro? Os prêmios são um dia e vivem no círculo que sabe deles. A minha vida de todos os dias é a de negro. como tal, mantenho com a so ciedade uma relação de negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis.
256
ENTREVISTA
Milton Santos
COM
MILTON SANTOS:
"O SONHO OBRIGA O HOMEM A PENSAR" Por Maurício Silva Junior Fonte: http://www.icb.ufmg.br/lpf/Entrevista-com-Milton-Santos.html Entrevista dada ao Boletim da UFMG
Doutor Honoris Causa em 14 universidades do Brasil e do mundo, ganhador do Prêmio Inter nacional de Geografia Vautrin Lud, tido como o Nobel da área, o geógrafo Milton de Almeida Santos não se conforma com a supervalorização que a humanidade dá à tecnologia. "As pes soas têm atribuído vida à técnica, mas as coisas não nos comandam", defende com ênfase. Autor de mais de 40 livros e 300 artigos em revistas científicas da vários países, o professor esteve este mês na UFMG, convidado para ministrar a aula inaugural da Escola de Engenha ria, no auditório da Reitoria. Em seguida, Milton Santos concedeu a seguinte entrevista ao BOLETIM:
BOLETIM - O senhor tem feito severas críticas à
discurso que as pessoas desejam, necessitam. É
globalização. Como a conceituaria?
preciso produzir algo que seja crível, audível, utili
Milton Santos - A globalização, parafraseando o
zável e eficaz politicamente. Muitos economistas
compositor Lenine, é a face suprema do imperia
que escrevem em jornais publicam diariamente o
lismo. A humanidade esperou milênios para se
desejo de empresas das quais são consultores.
globalizar, o que não aconteceu antes porque não
B - O senhor diz que passamos por um período
havia as condições materiais necessárias. Com o
em que? só as grandes corporações fazem políti
aumento da produção e o desenvolvimento de
ca. E o que realizam os políticos atualmente ?
técnicas avançadas, um pequeno grupo de em
MS - O que falta aos políticos de hoje é a contri
presas as seqüestrou. As corporações usam estes recursos extraordinários em seu próprio benefício e em prejuízo da humanidade. B - O acirramento da crise brasileira pode tornar a população mais consciente da realidade? MS - Isso já está acontecendo. Há uma sede mui to grande de entender. É o que vejo sobretudo entre os jovens. Os interesses da classe média, por exemplo não coincidem mais com globalização e com as ações dos partidos. Ela já não se reco nhece nem mesmo na ação das facções progres sistas. Se a classe média não se vê nos partidos, as coisas ficam sem estruturação. E por que não acreditar que os partidos podem mudar, para se rem capazes de acolher os anseios da sociedade?
buição dos intelectuais. Não estamos oferecendo um conjunto de idéias a eles. B - Como o senhor analisa a utilização de tecnolo gias e meios de comunicação na atualidade? MS - Quando eu falo meio, estou me referindo a território. E acho que o território é a mensagem. Nele, estamos todos juntos e separados. Somos conduzidos igualmente a um destino e obtemos resultados diferentes. Em Belo Horizonte, por ex emplo, estão todos juntos: ricos, pobres, classe média, brancos, negros, índios. A técnica em si não é a mensagem. Ela só é utilizada por quem tem poder: as grandes agências de notícias, uni versidades, editoras e as igrejas locais. São essas instituições que seqüestram os meios.
B - Qual o papel da Universidade nesse contexto?
B - Como o senhor analisa a excessiva difusão de
MS - A Universidade é importante na medida em
informações?
que é capaz de codificar e entregar à sociedade o
Milton Santos
257
MS - Não há produção excessiva de informação,
B - Como viver no mundo da pressa e criticá-lo ao
mas de ruído. Existem o fatos. As notícias são in
mesmo tempo?
terpretação deles. Como as agências de notícias
MS - O que se pode fazer é viver apressado, para
pertencem às grandes empresas, os acontecimen tos são analisados de acordo com interesses predeterminados. Muitos economistas que escrevem em jornais, por exemplo, publicam diariamente o desejo de empresas das quais são consultores. As
garantir a subsistência, mas sem perder de vista a construção de um sonho. É sonho que obriga o homem a pensar. B - O homem de hoje é um ser ético?
notícias são publicadas como expressão da reali
MS - O ser humano agora é convocado a não ser
dade e o discurso acaba se tornando hegemônico.
ético. E às vezes as pessoas seguem essa tendên
É essa mesma indústria que transforma em best
cia porque precisam sobreviver, criar os filhos,
seller um livro do Jó Soares, antes mesmo do lan
sustentar a família. Mas, no fundo, todos guardam
çamento. E aí de novo eu convoco a Universidade,
a consciência do que é bom, com a esperança de
como espaço alternativo para difundir nossas idéi
utilizá-la um dia.
as. A palavra é uma paulada. Eu venho até a UFMG, falo para 200 pessoas e o resultado é for midável.
258
Milton Santos
ENTREVISTA MILTON SANTOS
por José Corrêa Leite* Fonte: http://www.fpabramo.org.br/td/nova_td/td40/td40_entrevista.htm Revista Teoria & Debate (fev/mar/abr 1999)
Milton Santos é geógrafo, professor da Universidade de São Paulo e autor de mais de quarenta livros. Um dos intelectuais brasileiros de maior projeção internacional, vem realizando importante reflexão sobre as conseqüências da globalização para a humanidade, que foi sistematizada em seu livro A natureza do es paço: técnica e tempo, razão e emoção, que recebeu o Prêmio Jabuti de 1997
TD - O senhor sofreu uma influência importante
de renovação intelectual muito grande e consis
do existencialismo sartriano na sua formação?
tente.
MS - Com certeza. A leitura que pude fazer de
MS - É difícil falarmos de nós mesmos, mas pouco
Sartre ajudou muito na minha produção geográfi
a pouco já vinha se dando, na minha obra, uma
ca.
separação das prisões do empírico e a busca de
TD - Quais figuras o senhor destacaria como im
uma construção mais filosófica. Quando escrevi
portantes para a produção de sua obra? MS - Primeiro os clássicos, que aprendi no giná sio: Aristóteles, Platão, Leibnitz, Whitehead. É evidente que Marx teve um papel destacado. E também Henri Lefèbvre, embora eu o considere mais fácil do que Sartre e por conseguinte menos instigante, menos provocativo.
Por uma geografia nova, vivia fora do país há muito tempo e a partir de um certo momento não conhecia mais o Brasil, porque o país mudou mui to depois de 64, tanto em termos de materialida de como de relações sociais. Então, a filosofia era o único refúgio para mim, a única forma de conti nuar vivendo. O Brasil se distanciava e havia a in capacidade de apreender intelectualmente os ou
TD - Quando o senhor fez o doutorado na França,
tros países onde trabalhei e sobre os quais escrevi
teve contato com essas pessoas?
muito pouco. Escrevi um pouco mais sobre a Tan
MS - Não, o contato que tive com o grupo de Sar
zânia, sobre a África Ocidental, porque era uma
tre foi depois, a partir de 1964. As idéias que ex
história capitalista menos complexa e com as si
ponho atualmente apareceram em embrião há
milaridades dadas pela condição de Terceiro Mun
vinte anos em um artigo na revista Les temps
do, questão que era central na minha base teóri
modernes.
ca. Isso me levou a Por uma geografia nova, que
TD - E dos intelectuais que pensam a condição do Brasil, o senhor destacaria alguém? MS - Não poderia deixar de mencionar Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. TD - O senhor registraria uma ruptura entre a re flexão empreendida no diálogo com essas figuras, que marca toda sua contribuição anterior para a renovação da geografia e sua reflexão mais atual? Confrontando Por uma geografia nova e A nature za do espaço me passa a idéia de um movimento
era expressão de uma linha de duplo combate: em relação aos meus colegas do Norte e em rela ção ao Brasil, onde eu estava pisando de volta. Aí eu passei quinze anos trabalhando na prepara ção desse outro livro, A natureza do espaço, no qual queria mostrar que a geografia também é uma filosofia. Eu tinha uma inconformidade com a minha disciplina e com o que havia escrito antes sobre ela. Empreendi então a fundamentação da idéia de que a geografia é uma filosofia das técni cas. E como tal, ela somente podia se tornar teó rica com a globalização, porque antes não havia
Milton Santos
259
técnicas planetárias e a universalidade dos filóso
coisa tão boba como a geografia! Mas cada disci
fos não havia se tornado empírica. Acho que a mi
plina, olhando a realidade a partir de um prisma,
nha pequena contribuição à filosofia é a idéia de
tem, ela própria, sua rede e seus pontos nodais,
universalidade empírica, que só podia brotar da
que formam a rede. E a teoria é uma rede. A teo
cabeça de um geógrafo, vendo como os lugares
ria não é um conceito solto, é um sistema de con
se tornaram parecidos, na sua enorme diferencia
ceitos. Então, os filósofos acabam sendo os inspi
ção, com a globalização. Mas o que eles têm de
radores e depois, lá adiante, os fiscais.
parecido não são só os vidros fumés das grandes
Mas cada disciplina tem que elaborar a sua filoso
cidades. Essa psicosfera tem uma base técnica, a produção, as condições de vida das pessoas. Eu tive essa idéia da geografia como filosofia das téc nicas há 35 anos. Mas esta elaboração só podia se tornar concreta e sistematizada num livro com a globalização. Aí é visível a inseparabilidade do in dividual e do universal, através do lugar e do mundo.
fia. No caso da geografia, ela alcançou agora a sua maturidade histórica. Não podia ser antes. A universalidade empírica da globalização, graças a essa onipresença das técnicas da informação, das técnicas da produção, da circulação, do comércio etc. acaba fazendo com que cada lugar se reco nheça no mundo. Seria uma forma particular de exercício do mundo. Isso garante essa integração
Em alguns textos meus de mais de vinte anos já
entre lugar e mundo, que é a base de uma teoria
aparece a palavra globalização. Mas acho que
geral do mundo, vista a partir de lugares, do uni
como fruto dessa solidão enorme que foi minha
versal e do particular, que é a ambição filosófica
trajetória, a partir da ausência da condição cida
suprema. E que para nós não era possível antes,
dã, porque não estava no meu país, estava longe
na geografia.
do embate político e incapaz de participar dele. E
TD - Como o senhor vê o processo de globaliza
absolutamente convencido de que era por meio das idéias que poderia ter um papel. Isso me faci litou a decisão de não participar da vida partidária quando voltei. Eu tinha a certeza de que um dia os intelectuais iam ter voz no Brasil. E hoje estou orgulhoso e feliz de poder participar do debate político, sem nenhuma vinculação a partidos, ain da que não esconda as minhas simpatias, que vão para o seu partido. TD - Esse tratamento da geografia, que permite retirar as contribuições que ela pode oferecer para a ação política, significa abordá-la de forma inter disciplinar? MS - A interdisciplinariedade não se produz a par tir das disciplinas. Ela se produz a partir das me tadisciplinas. Eu converso com os outros colegas a partir da minha filosofia e da deles. Mas não da minha disciplina. Se eles não tiverem a filosofia, se eles não forem capazes de produzi-la, não há possibilidade de diálogo. Outro problema é que a filosofia não está sendo capaz de ajudar na produção das filosofias parti culares. Os filósofos me ajudaram, mas nenhum deles foi capaz de me entregar um esquema. E não podiam. Imagine um filósofo se ocupar de
ção? MS - A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capita lista. Para entender esse processo, como qualquer momento da história, há dois elementos funda mentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política. Há uma tendência em separar uma coisa da ou tra. Daí muitas interpretações da história a partir das técnicas. E, por outro lado, interpretações da história a partir da política. Na realidade, nunca houve na história humana separação entre as duas coisas. As técnicas são oferecidas como um sistema, utilizado através do trabalho e das for mas de escolha dos momentos e dos lugares de uso das técnicas, das combinações entre elas. É isso que fez a história. Chegamos ao fim do século XX e o homem, por intermédio dos avanços da ciência, produz um sis tema de técnicas presidido pelas técnicas da in formação. Elas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a pre sença planetária desse novo sistema técnico.
260
Milton Santos
Só que a globalização não é apenas a existência
permissão para falar o que quiserem, para legiti
desse novo sistema de técnicas. Ela é também o
mar o discurso da democracia. Só que a estrutura
resultado dos processos políticos que conhece
do processo de produção das idéias se opõe e
mos. Com freqüência ouvimos a pergunta: "mas
hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por
não tem alguma coisa de bom na globalização?"
conseguinte, de alternativas.
ou "será que é tudo ruim?". A discussão não é es
É uma forma de totalitarismo muito forte, insidio
sa. A discussão é: há um conjunto, um sistema de técnicas baseado na ciência, e há uma forma de utilizar esse sistema presidida por essa mulasem-cabeça chamada mercado global. Um merca do global utilizando esse sistema de técnicas avançadas, repito, presididas pelas técnicas da in formação, resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. E quando digo uso político, digo uso econô mico e cultural, porque neste fim de século tudo se tornou político; a economia é feita a partir da política, a cultura é base para a política e resulta da política. Esse é o debate central, o único que
sa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia – li berdade de opinião, de imprensa, tolerância – uti lizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo. TD - Essa tirania da informação se opõe, portan to, à produção de um conhecimento que poderia gerar uma alternativa distinta do mercado à orga nização desse meio técnico-político?
nos permite ter a esperança de utilizar o sistema
MS - Creio que sim. Na medida em que o mundo
técnico contemporâneo a partir de outro paradig
se globaliza, eu apenas posso entendê-lo como
ma.
um todo. E cada coisa a partir do mundo. Se me
TD - O senhor tem falado em globalitarismo. Po deria nos explicar esse conceito? MS - Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totali tarismo. O sistema político utiliza os sistemas téc nicos contemporâneos para produzir a atual glo balização, conduzindo-nos para formas de rela ções econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou perma necem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o siste ma econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político. Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obede cem, de alguma maneira, aos parâmetros estabe lecidos. Se estes não são respeitados, os trans gressores são marginalizados, considerados resi duais, desnecessários ou não-relevantes. É o cha mado pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm
retiram a possibilidade de compreender o mundo como ele é, se me bombardeiam todos os dias com informações que não são corretas, estão me tirando a possibilidade de entender não só o mun do como a mim mesmo. Isso é terrível, porque mata a possibilidade de de senvolvimento de alternativas. Esse mundo globa lizado produz uma racionalidade determinante, mas que vai, pouco a pouco, deixando de ser do minante. É uma racionalidade que comanda os grandes negócios, que são cada vez menos nume rosos mas cada vez mais abrangentes. Esses grandes negócios são de interesse direto de um número cada vez menor de pessoas, embora a maior parte da humanidade seja concernida por eles. Mas não pode se interessar por eles já que, embora sofra suas conseqüências, não tem condi ções de interferir. Mas pouco a pouco essa realidade é desvendada pelas pessoas e pelos países mais pobres. Essa é uma contradição maior. Nós abandonamos as teo rias de desenvolvimento, o terceiro-mundismo, que era a nossa bandeira dos anos 50 e 60. A no ção política de Terceiro Mundo foi produzida em grande medida graças à existência da União So
Milton Santos
261
viética; se ela não existisse, não haveria essa
MS - Os ideais universalistas nunca tiveram uma
idéia política.
oportunidade tão grande de se afirmar. A constru
Todavia, graças à globalização está surgindo uma
ção desse mundo novo, dessa outra globalização
coisa muito mais forte: hoje é a história da maio
se dará por baixo, a partir de cada país e em cada
ria da humanidade que conduz à consciência da
país, e não de cima para baixo.
existência dessa tercermundização (que de algu
No caso do Brasil em particular não há saída para
ma forma inclui também uma parte da população
a Nação fora de um modelo que possa abarcar a
dos países ricos). Há uma formidável contradição
maior parte da população. A noção de desenvolvi
em busca dos seus intérpretes, em busca de um
mento com a qual se trabalha hoje é puramente
discurso mais planetário e também nacional e lo
ideológica, não tem fundamento na busca do
cal. Esse discurso é dificultado por esse pensa
bem-estar. Ela não nos diz como vai ser esse
mento único, mas ele pode se fazer.
bem-estar, não nos diz quanto tempo vamos es
Há algo de extraordinário nesse momento da his
perar por isso, não nos indica quais são os veto
tória, que é essa produção limitada da racionali dade capitalista extrema e uma produção ilimita da do que seria a "irracionalidade". A racionalida de é resultado de um controle férreo, mas esse controle joga fora do trabalho que admite controle um grande número de pessoas. Se o trabalho é o lugar da descoberta da situação de cada um, o trabalho no fim do século revela uma possibilida de de fugir ao controle. A exclusão e as formas de trabalho relativas à ex clusão, que chamo de "circuito inferior" – num li vro que nunca conseguiu ter voga no Brasil, mas que é muito usado na África e na Ásia, O espaço dividido –, é exatamente uma discussão dessa
res que vão ser postos em ação para chegarmos a isso. Acenam de maneira vaga com a retomada do emprego e do crescimento, mas não dizem muito mais. E toda essa formidável produção que existe hoje no Brasil e que impede que o país se torne um vulcão ainda mais explosivo do que já é, tudo isso não é contabilizado como economia. A economia é aquilo que se refere a uma contabili dade imaginosa, imaginária, fruto da ideologia da globalização. Esse é o debate que estou recla mando e para o qual alguns economistas poderi am trazer a sua contribuição. TD - O que seria a mudança civilizacional neces sária para organizar uma outra lógica econômica
contradição dentro do sistema capitalista, entre
capaz de abarcar a maioria da população?
uma visão do trabalho por cima e uma visão do
MS - Seria deslocar a centralidade do dinheiro em
trabalho por baixo. Essa obra tem vinte anos, mas
estado puro para o homem. Todo esse debate,
já indicava essa tendência.
quando não há crise, gira em torno do dinheiro
O trabalho que é feito pelos pobres, pelos "margi
em estado puro, o homem sendo um elemento re
nalizados", é portador da liberdade. Diferente do nosso trabalho, que é portador de uma necessida de de enquadramento de cima para baixo, do qual vem nosso sucesso. Esta produção limitada de ra cionalidade é a mesma produção de menor núme ro de empregos e de atividades ligadas a essa ra
sidual. E o homem sendo residual, o território, o Estado-nação e a idéia de solidariedade social também se tornam residuais. O que é privilegiado são as relações pontuais entre grandes atores, cuja lógica escapa a um raciocínio que tenha a menor base filosófica, porque falta sentido ao que
cionalidade. Enquanto que eles chamam de "irra
fazem.
cionalidade" outras formas de racionalidade, que
O regresso à idéia do homem como o porquê de
criam outras formas de trabalho, essas sim porta
trabalharmos está junto e por conseguinte busca
doras do novo.
estabelecer formas de convivência. É o que está
TD - Existe, nesse cenário, possibilidade de de
fazendo falta na formulação dos políticos e de
senvolvimento nacional concebido como um pro cesso que integraria nações, como ocorria no mo mento em que existiam os projetos terceiro-mun distas?
uma grande parcela dos intelectuais. Isso empo brece o debate e impede que avancemos; busca mos soluções dentro de um círculo fechado, den tro dessa racionalidade viciada.
262
Milton Santos
O ponto de partida para se pensar alternativas se
não era o que levava às técnicas. A tecnociência
ria então a prática, a vida, a existência de todos,
representa essa indispensabilidade da ciência num
uma política existencialista. Todos existindo e, por
momento em que a própria natureza é um pouco
conseguinte, exigentes de respostas às suas ne
dispensada. A história que estamos fazendo é
cessidades existenciais básicas, redefinidas com a
sempre precedida por uma posição de idéias. As
globalização. Voltamos, assim, à idéia do começo:
idéias têm um papel-motor e o discurso também.
os sistemas técnicos do presente são utilizados
Daí a força da retórica. Creio que não acreditamos
para reduzir o escopo da vida humana. Nunca
bastante na força das idéias.
houve na história sistemas tão propícios a facilitar
No caso do Brasil isso é muito claro porque as coi
a vida e a felicidade do homem. Descobrimos os sistemas técnicos mais dóceis e doces que já exis tiram e os empregamos no sentido da perversida de! Nunca a inteligência foi tão necessária para fazer funcionar a técnica como hoje, nunca a in ventividade foi capaz de se multiplicar, explorar milhões de possibilidades e todavia só as utiliza mos de uma única forma. Porque não há flexibili dade. Está tudo aí, do ponto de vista da materiali dade, para que a gente promova um outro mun do. Está faltando o dado político. Mas, de alguma forma, também ele já está surgindo, de baixo para cima. Temos 6 bilhões de pessoas no mun
sas foram se dando de tal maneira que o intelec tual não é apreciado. Vivemos num país que ainda não elaborou seu código de aceitação, de apreço do intelectual. Porque ele é queimado rapidamen te e "se dá" àquele deputado, senador ou minis tro, terminando por se tornar incapaz de exercer seu papel de crítica, que é o papel central do inte lectual. De crítica e de apego aos que estão por baixo. TD - Pode-se dizer que hoje abandonamos a idéia de natureza, com o ser humano cada vez mais vi vendo no meio por ele produzido?
do, mas na realidade 4,5 bilhões não são concer
MS - É curioso que neste fim de século, com a
nidas por essa globalização.
globalização, a natureza tenha ganho tantos holo
Num país como o Brasil, a população pobre não tem como participar da globalização e é a primei ra a recusá-la. Primeiro porque não tem os meios materiais para isso e segundo pela recusa do tra balho.O trabalho é fundamento da originalidade das soluções. Nós intelectuais temos essa possibi lidade, mas as outras pessoas do nosso nível soci al não têm. Nós, intelectuais, temos mas não que
fotes, mas não é gratuito. Quando temos uma globalização totalitária, utilizando um arsenal de técnicas extremamente poderoso, a natureza é atacada com muita dureza. Ao mesmo tempo, a sociedade que era contida pela natureza nos pri meiros milênios, hoje é quem contém a natureza. O que quero dizer é que cada pedaço de natureza vale pelo seu valor social, se tornou global.
remos. Essa é a coisa nova que está surgindo e
A Amazônia é muito diferente nos anos 20, 60 ou
da qual os partidos até agora não quiseram tirar
90 em função do uso efetivo, potencial, ou imagi
partido. Porque recusam o seu papel pedagógico e
nado, desse pedaço de natureza. Então, ao mes
supervalorizam as preocupações eleitorais. Essa é
mo tempo em que é verdade que os agravos à
uma das dificuldades de não se reconhecer a pre
natureza se amplificaram, é também verdade que
sença de uma outra lógica, contra-hegemônica, se
não posso interpretá-los fora do quadro da uni
manifestando no dia-a-dia. As pessoas descobrem
versalidade hoje dado pela globalização.
que são conduzidas e recusam a globalização, po
Esse é o problema central que eu gostaria que
bremente, mas recusam.
perturbasse um pouco o trabalho dos ecologistas,
TD - Em sua obra, o senhor destaca bastante o
que nem sempre estão abertos a essa discussão.
papel das idéias nesse fim de século...
Eles se tornam muito naturalistas, frente a um
MS - Em toda a história do homem havia as idéi as. Mas hoje as técnicas são todas precedidas por idéias, enquanto antes não era assim, a ciência
dado cujo entendimento é apenas possível a partir da história. Numa cidade como São Paulo, o tra balho é a inteligência da inteligência. Porque o que está aí é tudo inteligência e nós não trabalha
Milton Santos
263
mos sobre a natureza. Mas o marxismo renitente,
insurreição em relação à globalização, essa desco
não renovado, insiste ainda na idéia de que a his
berta de que somos outra coisa e podemos conti
tória é feita da relação do homem com a nature
nuar sendo outra, ainda que mudando todos os
za, quando na verdade ela é toda mediada pelas
dias. E com esse número de pessoas aumentando
idéias e pelo meio técnico-científico.
em um espaço reduzido e fazendo todo dia a des
TD - Mas o senhor destaca que as alternativas es
coberta da sua incompatibilidade com o que está
tão sendo construídas a todo momento à nossa frente! MS - E não as vemos em função do nosso apare lho epistemológico. Todos somos de tal maneira subordinados à episteme norte-ocidental, que te mos enorme dificuldade para pensar diferente. Esse é um problema para as ciências sociais lati no-americanas e brasileiras. São por demais es cravizadas pelo paradigma do Norte e pela política
aí. Elas têm dificuldade de exprimir essa inconfor midade, em função do peso do discurso que todos os dias atravessa a vida de todo mundo. O subtítulo de A natureza do espaço faz referência a essa distinção. É opondo técnica e tempo, que estão juntos, e razão e emoção, que se opõem, mas também estão juntos. Porque essa razão emotiva, a inteligência emocional de que falam os livros que compramos nos aeroportos, é baseada
que daí decorre.
na vida, na existência.
Nunca pensamos o mundo a partir da América La
TD - O senhor procura articular em sua obra um
tina. Quem entre nós, intelectuais, pensou o mun do? A gente pensa Europa, Estados Unidos e ex
esforço universalista, muito bem concretizado, di alogando muito com questões irredutíveis ao uni
clui a África e a Ásia. A própria construção territo
versal...
rial da realidade nos escapa com muita freqüência
MS - Essa irredutibilidade hoje é dada, entre ou
na nossa elaboração intelectual. Essa é a realida
tras coisas, pelo corpo e pelo território, os dois
de que cobra de nós uma outra epistemologia.
grandes irredutíveis do mundo contemporâneo. O
TD - Sua obra enfatiza que o território é o local
corpo é uma herança e, ao mesmo tempo, o de
onde os seres humanos podem ter uma vivência integrada. Mas hoje a globalização o fragmenta e impede essa vivência. Qual a importância da idéia de território para se construir uma alternativa a esse processo de fragmentação? MS - O território tanto quanto o lugar são esqui zofrênicos, porque acolhem os vetores da globali zação, que passam por eles para impor essa nova
positário da esperança, do futuro, ainda que so framos a pressão do presente. E o território tam bém, porque ele realiza anastomoses, uma pala vra da bioenergia, que significa que ele realiza as combinações próprias dele, que fazem com que ele mude em função do global e a despeito do global. TD - Isso afeta de forma diferente o campo e a ci
ordem – que eu espero seja passageira. Mas, de
dade?
outro lado, produz-se a partir de cada lugar a
MS - É outra vez a esquizofrenia do território. A
contra-ordem, porque há uma produção acelerada
globalização torna o campo muito vulnerável. O
de pobres, excluídos, marginalizados, isto é, de
campo moderno é obediente, a cidade, não. Esta
pessoas que não têm como se subordinar perma
resiste, inclusive porque, voltando a Marx, o capi
nentemente à racionalidade hegemônica e que es
tal físico, fixo, não se moderniza rapidamente, en
tão juntas, como parte de uma vizinhança. Em al
quanto no campo sim. É por isso que a cidade
guns filósofos, sobretudo em Sartre, essa catego
atrai tanta gente pobre, produz tanta gente pobre
ria de vizinhança surge autorizando manifestações
e se fortalece do ponto de vista da produção do
da emoção que adoçam o rigor do pragmatismo
futuro, da produção política. Porque isso leva a
na busca da sobrevivência.
uma produção econômica, a uma produção cultu
Temos, na base da sociedade, um pragmatismo
ral variável e a uma produção política na cidade.
mesclado com a emoção a partir dos lugares e das pessoas juntos. Esse é hoje o mecanismo de
A cidade é um ente econômico cuja existência é menos dependente, seja da globalização, seja do
264
Milton Santos
Estado central. É nisso que ela faz renascer a Na
ainda que aparentemente futuristas, recusam a
ção.
palavra. Já estamos atingindo os limites do dis
TD - Celso Furtado diz que a globalização repre
curso ideológico da globalização e do dinheiro. A
senta uma interrupção do processo de construção nacional. O senhor destaca o processo de frag mentação do território. São duas facetas do mes mo processo? MS - Creio que sim. Eu parto do território, o Cel so, apesar do seu talento multiforme, parte da economia e da filosofia, porque não é um econo mista vulgar. Então, são os dois complementares. Há uma fragmentação à medida em que o Estado torna-se incapaz de administrar em conjunto os pedaços do território. Essa administração em con junto é impossível ao Estado, mas também é im possível aos vetores globais. Cria-se, então, uma desordem no território. A cidade é uma desordem também. Mas ela tem a sua ordem, econômica, cultural, política, olhando de múltiplas formas o futuro.
imprensa começa a dar estatísticas que não surgi ram durante quatro anos. As pessoas começam a não mais considerar o real como um dado isolado e a colocá-lo num sistema. E quando colocamos as coisas num sistema, o nível de consciência au menta. A primeira reação da população pobre, como qualquer outra, é a do consumo também. Está brigando para ser cidadã, mas primeiro quer consumir. Isto é normal. Depois é que se desco bre que não basta consumir, ou que para consu mir de forma permanente, progressiva e digna, é necessário ser cidadão. Dizem com desdém: "o pobre quer televisão" – e por que não? Na verda de, um mínimo de consumo é condição indispen sável para ser cidadão. Agora, isso deve conduzir a outra organização política do Estado, a outra ar quitetura política. O que estamos vendo é uma re forma da Constituição de cima para baixo, para
O campo olha muito mais para o presente. Tenho
responder aos imperativos do ajuste neoliberal.
uma visão otimista, porque creio que a Nação –
Mas haverá outra etapa, que é o encontro desses
despedaçada sobre o território como um todo – se
vetores de cima para baixo com os vetores de
refugia nas grandes cidades. E acaba por impor
baixo para cima.
ao país a sua cultura e a política da sua cultura. É uma construção da vontade de ser cidadão e que deverá se materializar em participação política, em uma retomada do processo de construção na cional. Essas são as forças centrípetas. O processo da globalização, tal como se dá hoje, é centrífugo. Ele é produtor de uma fragmentação crescente em todos os níveis: os jovens contra os velhos, os funcionários públicos contra os priva dos, uma região contra outra etc. Temos uma multiplicação de fragmentações que se acumu lam. Ninguém fala mais do mercado nacional; quando os industriais se reúnem hoje com os ope rários, eles falam da produção, não falam do mer cado nacional. A palavra foi banida do vocabulá rio. TD - Teria deixado de existir um espaço de inte gração nacional que esse mercado propiciava?
TD - O senhor destacou inclusive a necessidade de outra forma de organização da Federação... MS - Acho que isso vai acontecer. Meu medo é que não estejamos preparados para o debate, como não estivemos em 1988. Não tínhamos, en tão, o fundamento "acadêmico" para fornecer aos políticos. Os políticos não são obrigados a ter idéi as coerentes, mas nós – intelectuais – somos, e não estávamos em condições de lhes oferecer. O meu medo é que continuemos sem ter esse mate rial para entregar aos sindicatos, às igrejas, aos partidos, aos grêmios etc. Essa nova forma de organização da Federação partiria dos de baixo, dos excluídos pelo processo da globalização. Quem se comunica pela Internet não são os de baixo. Essa comunicação distante não é própria deles. Os lugares são feitos sobre tudo pelos de baixo, são eles que se comunicam
MS - Essa ideologia do mercado nacional, que na
nos lugares, são eles que estão reclamando ali
minha geração era apontada como a grande saída
mentação correta, saúde, educação para os filhos,
para melhorar a vida de todo mundo, ficou em se
lazer, informação e consumo político – que é uma
gundo lugar. Então, os discursos pragmáticos,
Milton Santos
265
reclamação também não muito clara, mas que vai
rio reunido ou a do comitê central dos partidos.
aparecer daqui a pouco, a partir de uma base lo
São as pessoas vivendo, existindo e falando umas
cal. Uma nova distribuição de atribuições, de re
com as outras, pessoas que têm necessidade da
cursos, a consideração dos novos direitos que a
codificação e da síntese política em novas institui
globalização e suas técnicas levantam, uma nova
ções.
idéia de democracia, tudo tem que ser retrabalha
Nós estamos fazendo aqui uma síntese política
do a partir de lugares.
que não é comprometida com nenhum partido.
A política local hoje não é obrigatoriamente caipi
São dois momentos políticos: um do intelectual
ra. Antes da globalização, nas fases em que os lu
público, outro dos partidos. O intelectual público é
gares não se comunicavam, em que os lugares
cada vez menos o intelectual cosmopolita, inter
eram locais mas não globais como hoje, as visões
nacionalizado. Este está ameaçado de apodreci
eram caipiras, ou tendiam a ser provincianas.
mento, porque é sempre obrigado a ceder, a não
Hoje não, podemos ter todas as visões, mundial,
se aprofundar, a aceitar uma linguagem mais ra
nacional, local, a partir do lugar. São condições
cional, enfim, a ser traduzido. Enquanto o intelec
que o mundo da globalização oferece para essa
tual público tem um discurso forte, um discurso
reforma política e que não eram possíveis antes.
político. E aí vêm os partidos, que correspondem
São fenômenos como essa multiplicação de tele
a outro momento, o momento da conversa orien
fones, rádios, imprensa local, as dezenas de re
tada, da discussão medida, do acordo, do encon
vistas como a sua, que encontram clientela, se
tro, da votação. Nosso trabalho é sermos radicais.
guidores.
E o político tem como seu trabalho central negoci
TD - Essa nova arquitetura política teria como re
ar. O problema é que, por enquanto, não há como
ferência o terreno local das grandes metrópoles? MS - Em parte. Mas as cidades médias são portavozes igualmente importantes dessa esquizofre nia. Porque elas recebem de fora as instruções para acorrentar os que trabalham em suas re giões e ao mesmo tempo elas transmitem deman das, inclusive aquelas que vêm do fato de as pes soas não entenderem mais os processos onde es tão inseridas. O produtor de frango faz o frango como a Sadia manda fazer, mas não entende por
os intelectuais e os partidos trabalharem no mes mo terreno. Uma síntese política tem que ocorrer também no Estado, porque em última instância novas rela ções têm que se materializar em organização polí tico-jurídica, no sentido estatal. E isso implica em cristalização de correlação de forças, mudança de instituições. Uma mudança profunda. Uma coisa que me choca é que percebo, pelos contatos obri gatórios com as empresas, que elas legislam mais
que fica pobre, porque não cresce. Daí essa de
fortemente o meu cotidiano do que o Estado.
manda de compreensão que a cidade intermediá
A noção de democracia, de cidadania, tudo isto
ria de alguma maneira fornece, através de veícu
tem que ser revisto. Essa discussão de mudança
los de imprensa transversais como o seu, como
do Estado, sem discutir como o poder se exerce, é
Caros Amigos ou Carta Capital, como de certo
vazia. Nos venderam a idéia de que as empresas
modo a República. A materialidade que o mundo
são a economia e o Estado é o poder. Não é nada
da globalização está recriando permite um uso di
disso, as firmas são o poder.
ferente daquele que era o da base material da in
Quando a Sadia estabelece uma rede de fornece
dustrialização.
dores, ela está mudando a economia dessa parte
A informação e as indústrias da informação exi
do território, estabelecendo novas relações socie
gem mais inteligência, permitem mais flexibilida
tais. Ela está imprimindo uma direção aos orça
de e com pouco recurso você comunica, pode ter
mentos públicos.
uma Internet democratizada. É por isso que sou
Não estamos discutindo no Brasil essas questões,
otimista em relação ao potencial emancipador dos meios técnicos utilizados a partir da política de baixo. A política dos de baixo não é a do ministé
ou em todo caso, não temos trabalhado de ma neira sistemática para oferecer os elementos que
266
Milton Santos
podem servir de base ao discurso político dos par
mas empresas sejam vigorosas e o homem torne-
tidos.
se residual. Mas se partirmos do território, é im
Meu grupo de pesquisa está trabalhando, a partir
possível excluir o homem, porque o território não
deste ano, sobre o que chamamos de "empresas territoriais", sobre a relação das empresas com o território, estudando como elas acabam gover nando o território, por sobre os municípios, esta
exclui ninguém. Estão o rico, o pobre, o negro, o branco, o culto, o analfabeto, a grande empresa, o ambulante, todo mundo junto. Este existencia lismo territorial pode oferecer análises úteis para
dos e até mesmo a Federação. Se chegarmos a
que o especialista da coisa política reelabore.
algumas idéias, não digo nós, mas cem ou duzen
Essa é a nova geografia que estamos tentando
tos grupos como os nossos, ofereceremos uma
instalar, que é mais complexa e mais humilde
radiografia do país, uma contribuição a essa pro
também, porque parte das coisas simples. Mas
dução de um novo tipo de Estado, com outra for
creio que pode ajudar.
ma de organização da economia e outro recorte das atribuições do Estado e das empresas em fun ção do homem e não das próprias empresas. O problema hoje é que tudo é feito para que algu
*José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de TD.
Milton Santos
267
ENTREVISTA COM O PROFESSOR MILTON SANTOS
Por: Marina Amaral, Sérgio Pinto de Almeida, Leo Gilson Ribeiro, Georges Bourdoukan, Roberto Freire, João Noro, Sérgio de Souza. Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~imprimat/entrevista/milton-santos.htm Publicado na Revista Caros Amigos, Agosto de 1998, Número 17
A placidez, a serenidade, a fala lenta e pausada, os gestos naturais, os silêncios, o sorriso permanente, a risada aberta e gostosa , tudo nele irradia humanidade. Estar ao seu lado traz a segurança de estar perto da sabedoria. Milton Santos é o retrato da própria frase que disse a certa altura da entrevista, referindo-se a outra pessoa: "Quem ensina, quem é professor, não tem ódio". Por isso, mesmo ao dizer coisas explosivas como as que deixou aqui registra das, ele não perde a ternura. E não pára de trabalhar, ensinando geografia na USP, fazendo conferências e estruturando um livro promissor: O mundo Pós-Globalização - O Período Po pular da História.
Mestre Milton
primária. E, como para ir para o ginásio tinha de
Sérgio de Souza. - Professor, usualmente pedimos
esperar dois anos, meus paus ficaram me ensi
ao convidado que comece falando sobre sua ori gem, seu caminho inicial. Milton Santos - Não tenho muita simpatia por essa forma de começar, primeiro por achar que é
nando álgebra, francês e boas maneiras. Aos dez anos fui ser aluno interno num colégio na capital da Bahia, naquele tempo havia talvez seis cidades que tinham ginásio em todo o Estado.
um pouco estilo americano (risos); segundo, por
Leo Gilson Ribeiro - Internato religioso?
que obriga a gente ficar nu (risos); o que pode
Milton Santos - Não, leigo, freqüentado por uma
ser perigoso. Sou baiano, venho de uma família
classe média. Daí, lá mesmo comecei a ensinar,
de professores do lado materno, meu avô e minha
antes de ir para a faculdade. Morei nesse colégio
avó eram professores primários, mesmo antes da
dez anos - quando terminei, continuei morando
abolição. Do lado paterno, devem ter sido escra
lá, ensinando, e fui para a faculdade de direito, da
vos, não sei muito bem, porque em minha casa
qual saí formado a exatamente cinqüenta anos,
me ensinaram a olhar mais para frente do que
em 1948. Fui aluno forte em matemática, mas
para trás. Meu pai também acabou sendo profes
havia uma notícia generalizada de que a Escola
sor primário, de modo que nasci numa família que
Politécnica não tinha muito gosto em acolher ne
- antes da criação do que se chama hoje classe
gros, então fui aconselhado fortemente pela famí
média - era uma família remediada, humilde mas
lia - tinha um tio advogado - a estudar direito, e
não pobre, e que tentou me dar uma educação
daí mudei para geografia, que comecei a ensinar
para mandar, para ser um homem que pudesse,
desde os quinze anos.
dentro da sociedade existente na Bahia, conversar
Leo Gilson Ribeiro - O preconceito era tão forte
com todo mundo.
assim a ponto de haver uma divisão de escola?
Sérgio Pinto de Almeida - Em Salvador?
Milton nascimento - Havia essa idéia. Na realida
Milton Santos - Em Salvador. Que dizer, nasci no
de, alguns negros conseguiram entrar, mas havia
sertão, porque naquele tempo tinha que ir che
a crença na sociedade baiana, na sociedade negra
gando devagar para a capital, nasci no sertão por
em particular, de que os obstáculos na Politécnica
acaso, porque estavam lá meus pais, ensinando
eram maiores. E, como eu ia estudar direito, dei
em Brotas de Macaúbas. Aos oito anos terminei
xe de lado a matemática, mas ela não me deixou,
meu primário em casa, nunca segui uma escola
porque, quando a gente aprende bem alguma coi
268
Milton Santos
sa, aquilo fica. E passei para a geografia, que aca
sio. Era ao mesmo tempo um debate filosófico so
bou sendo a minha atividade central. Terminada a
bre o destino do homem, a presença do homem
faculdade de direito, onde os meus professores,
na Terra e o se destino, e a história do mundo se
todos, de um lado empregavam os filhos e de ou
fazendo através da produção do espaço geográfi
tro nos diziam que não devíamos ser funcionários
co.
públicos porque era feio ser funcionário público,
Leo Gilson Ribeiro - Mas havia também uma confi
me levaram a acreditar nisso, e decidi fazer con curso para professor secundário. Naquele tempo, professor não era funcionário, não se comportava como funcionário, queria ser intelectual. Isso aca bou, mas naquele tempo era assim. Ai fui ser pro fessor secundário em Ilhéus, que era a cidade mais promissora... Leo Glson Ribeiro - Cacau...
guração ideológica, de como a sociedade estava estruturada do ponto de vista econômico, social? Milton Santos - O Josué imprimia isso, porque to mava partido claramente pela noção do possibilis mo, quer dizer, o homem capaz de, frente ao meio, mostrar-se forte e modificá-lo. Toda a teo ria de Josué, que nunca teve no Brasil um reco nhecimento cabal, porque os geógrafos oficiais
Milton nascimento - Tinha o cacau, eu era melhor
não gostavam muito dele. Outra coisa importante
pago do que se tivesse na capital. Fiquei lá alguns
no Josué era o domínio da palavra, a elaboração
anos, já escrevendo no jornal, porque o dono do
do discurso, que é a forma de chegar mais adian
A Tarde, o ministro Simões Filho, me havia desco
te.
berto, e me levou ser a ser correspondente do
Roberto Freire - Isso tudo acabou...
jornal em toda região do cacau, aí comecei a es crever. Pouco depois fui para Salvador, onde con tinuei ensinando no ginásio e comecei a ensinar na Universidade Católica, me preparando para en trar na Universidade Pública Federal, onde fiz con curso em 1960, depois de terminar meu doutora do em geografia na França. Leo Gilson Ribeiro - O que levou o senhor à geo grafia era mais o conhecimento físico da geogra fia, ou o sociológico?
Milton Santos - Acabou, e a geografia aparecia em tudo isso. E aparecia juntamente com a filosofia, a Psicologia. Meu professor foi Herbert Parente Fortes, impressionante figura, grande professor, sobretudo porque não dava muita aula, e um grande professor não pode dar muita aula, tem de dar algumas aulas que marquem os seus alunos, era o caso dele. Então, toda essa confluência, his tória da filosofia, lógica, história da literatura, his tória das idéias e econômicas etc. que a gente
Milton santos - Sociológico. Desde de Menino, a
aprendia antes de ir para a faculdade, isso consti
noção de movimento me impressionava, ver as
tuiu um embasamento às humanidades de então,
pessoas se movendo, as mercadorias se moven
que, me levando para a faculdade de direito, me
do. A noção de movimento de idéias veio depois,
ajudaram no apego à geografia.
mas as das mercadorias, das coisas, das pessoas
Georges Bourdoukan - O livro Geografia da Fome
talvez tenha me levado para a geografia. Também um fato, e muito importante: no ginásio, o livro de texto era o Geografia Humana, de Josué de Castro,. Era uma espécie de história contada atra vés do uso do planeta pelo homem. Aquilo me im pressionou. Eu tinha tido um professor muito im portante, também, Oswaldo Imbassay, então a confluência de um professor importante, de um li vro importante, as explicações do mundo, de como a sociedade se relacionava com o meio, a
também o influenciou? Milton Santos - Muito, Geografia da Fome, Geopo lítica da Fome. Esse, vamos dizer assim, aprendi zado da generosidade, que aparece em Josué de Castro, e essa vontade de oferecer uma interpre tação não-conformista, isso cala no espírito do menino e do jovem, essa vontade de buscar outra coisa. Acho que ele teve sobre mim uma influên cia extremamente grande.
teoria do possibilismo, determinismo, tudo isso a
Leo Gilson Ribeiro - Era, digamos assim, precoce
gente aprendia no segundo, terceiro ano de giná
mente uma visão terceiro-mundista?
Milton Santos
269
Milton Santos - Claramente terceiro-mundista. E
rente daquele que eu lia nos jornais brasileiros,
outra coisa que ele introduziu na literatura foi a
inclusive o meu mesmo.
idéia, a noção de consumo, que vai aparecer mais
Sérgio de Souza - Inclusive A Tarde.
tarde com outras roupas. Ele dividia as pessoas em função de consumir ou não consumir comida, e que tipo de comida. Chegava até a dizer a dife rença de quem comia trigo, quem comia milho... (risos) Acho que o Josué foi um gênio. Sérgio Pinto de Almeida - Professor, a observação que o senhor fez, do jovem, o menino olhando o movimento das pessoas, das mercadorias, e de pois essa riqueza da escola pública, que certa mente não há mais, já não começa a surgir aí o seu interesse muito mais do que pela geografia, o
Milton Santos - Inclusive A Tarde. Quer dizer, ir para a França, ler o El Monde, mesmo o Le Mon de, e descobrir que o mundo era outra coisa, isso teve um papel muito grande. Marina Amaral - Interessante, o senhor falou tan to do Josué de Castro, no Rio Grande do Sul os sem-terra têm uma escola de capacitação profis sional dos jovens que se chama Escola Josué de Castro. Esse menino intelectual pouco mostrado para a minha geração é estudado por eles.
movimento, a coisa técnica, mas pelo embate ide
Milton Santos - É que Josué morreu na hora erra
ológico, com as leituras do Josué?
da. Ele morreu na França, no momento em a
Milton Santos - (pausa) Quer dizer, parei um pou co porque é a reinterpretação do que nos aconte ceu. As provocações são boas, porque às vezes a gente nem se deu conta de como as coisas nos aconteceram. Eu imaginava que a minha posição progressista, entre aspas, tivesse chegado muito mais tarde, agora estou vendo, pela sua pergun ta, que não foi bem assim. Na faculdade da Bahia, como na maior parte das faculdades de direito, o ensino era extremamente conducente a uma
França estava preocupada em vender, em ampliar o comércio, os funerais deles foram muito aca nhados, os franceses não queriam chocar o go verno brasileiro, porque queriam vender, estavam chegando já à pré-globalização. E como o ensino hoje em grande parte não tem muita vocação para o começo das idéias, as origens dos concei tos, é muito mais pacotes do presente, então as gerações como a sua devem ter tido esse handi cap desfavorável.
aproximação liberal do mundo. Então acho que
Georges Bourdoukan - As universidades não de
deve ter havido certo curto-circuito na ocasião,
veriam resgatar o trabalho do Josué de Castro,
somando a aspectos biográficos. Quer dizer,
porque ele continua mais atual do nunca?
quando criei a Associação de Estudantes Secunda
Roberto Freire - E desconhecido, não é?
ristas Brasileiros na Bahia, os meus amigos do Partido Comunista se opuseram à minha eleição para presidente, o medo deles era que não seria conveniente que um negro fosse presidente de uma associação tão importante, porque ele iria ter dificuldade de discutir com as autoridade. (risos) E eu, menino, tolo e inexperiente, acabei perden do a eleição. Possivelmente, isso teve um efeito, quer dizer, eu na faculdade de direito, cercado de
Milton Santos - Creio que sim. Mas as universida de, a cada dia que passa, têm a vocação do ins tantâneo. Os estudantes são conduzidos a uma atitude igualmente produtivista. Então esse re gresso às fontes se torna difícil, mas não impossí vel, porque na juventude atual, de alguma forma, a gente sente uma curiosidade pelo passado. Roberto Freire - O senhor trabalha com o Josué
gente da elite baiana, com vontade de triunfar, e
com seus alunos?
aí vem um sujeito e diz: "Olhe, você não pode".
Milton Santos - Quando cai dentro da temática. O
Então o meu caminho para o progressismo oficial
meu trabalho central hoje é de um lado tentar ex
- lá dentro tinha essa formação -, possivelmente,
plicar o mundo, e fazê-lo a partir de uma vontade
fazendo essa análise agora, tenha tido esse es
de afirmar a minha disciplina, que é geografia hu
barrão, essa coisa. E esse progressismo meu vai
mana. A minha energia vai toda nessa direção, e
desabrochar quando vou para a França e descu
os autores aparecem como nota infra-paginal.
bro, lendo os jornais, que havia um mundo dife
270
Milton Santos
Georges Bourdoukan - Dentro de suas explica
manda o chamado mercado global. Vejam, por
ções, o senhor poderia eleger os problemas prin
exemplo, as áreas agrícolas mais modernas, como
cipais do Brasil?
o Estado de São Paulo, que funcionam segundo
Milton Santos - Como geógrafo, creio que o terri
um regime militar, no sentido de ter de fazer
tório brasileiro é o melhor observatório do que está se passando no país. Se olho o território na cional brasileiro hoje, vejo primeiro que é um ter ritório nacional mas da economia internacional. Quer dizer, o esforço de quem manda, no sentido de moldar o território - porque o território vai
aquilo que lhes é ordenado - ou dá ou desce, or dem unida -, seguindo o que é necessitado por essas ordem global. Digamos que a globalização dê n'água, como vai dar, como o interior de São Paulo vai reagir? Quais seriam os cenários? Uma enorme área vendendo suco de laranja, o que
sendo sempre moldado por quem manda -, é no
acontecerá?
sentido de favorecer o trabalho dos atores da eco
Georges Bourdoukan - É monocultura isso? O Es
nomia intencional. Não são apenas as multinacio
tado de São Paulo estaria repetindo o que fez o
nais estrangeiras, mas todas as grandes firmas
Nordeste no passado?
estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem
Milton Santos - Uma monocultura ligada a uma
para o território uma lógica globalizante. Na reali dade, uma lógica globalitária, há mais do que glo balização, há globalitarismo. Então, temos o terri tório brasileiro trazendo esses nexos, que são ce
ordem global que não existia antes, muito mais constrangedora do que as ordens internacionais. Sérgio de Souza - Seria programada agora?
gos, e que criam uma ordem para tudo o mais.
Milton Santos - Programada, é a primeira vez que
Desordem criada para as empresas não envolvi
a divisão do trabalho é programada, nunca foi an
das, que são atingidas por ela, por essa entropia
tes. Isso é um problema, Então, quando a gente
negativa dentro do território, que alcança toda a
faz falar o território - que é um trabalho que creio
sociedade. Então, o território revela também a in
que é o nosso, fazer falar o território, como os
capacidade de governo, quer dizer, a não-gover
psicólogos fazem falar a alma, como o Darcy Ri
nabilidade do país, porque o Brasil é um país não-
beiro quis fazer falar o povo, como o Celso Furta
governado. Ao mesmo tempo em que o território
do quis falar a economia -, o território também
revela que o governo, a política, se faz pelas
pode aparecer como uma voz. E, como do territó
grandes empresas. São as grandes empresas que
rio não escapa nada, todas as pessoas estão nele,
fazem a política. Isso se vê no uso do território
todas as empresas, não importa o tamanho, estão
brasileiro.
nele, todas as instituições também, então o terri
Roberto Freire - O estático é nosso, o funcional é deles. Milton Santos - Oferecemos mais que o estático, porque oferecemos aquilo que não pode - isso se ria a segunda parte do meu discurso- ser objeto de redução. Que são os corpos, os nossos corpos como gente, que não são redutíveis. E o território que também é o nosso corpo, porque o território nos inclui. Então isso leva a uma fragmentação, o território brasileiro é fragmentado.
tório é um lugar privilegiado para interpretar o país. E uma boa parte dos brasileiros não se dá conta de que o país está cada vez mais sendo fragmentado, e numa fragmentação que não pos sibilita a reconstituição do todo. Porque o Estado nacional se omitiu, e o comando do território, na quilo que há de hegemônico, é entregue às gran des empresas. Então, a reconstituição do todo na cional, que os franceses chamam de lien social, a solidariedade, não existe mais no Brasil. Vejam a maneira como se discute a previdência social,
Georges Bourdoukan - É um novo tipo de feuda
desculpem usar esse argumento terrível, a forma
lismo?
como se trata os aposentados - há um contrato
Milton Santos - Há um novo tipo de feudalismo, e
da nação, tenho de dizer isso porque sou velho
de militarização do território ao mesmo tempo. Porque tem de obedecer, tem de fazer aquilo que
(risos), há um contrato da nação que cada pessoa cumpriu a vida inteira, e no fim dizem a ela:
Milton Santos
271
"Esse contrato não vale mais". E isso é aceito! En
porque o consenso no interior da nação resulta de
tão os diversos capítulos do que seria a solidarie
um trabalho desses empresários brasileiros que
dade são bafoués, largados, e uma parte da soci
estão de acordo com isso, para sobreviver. E com
edade aceita normal porque estamos "no caminho
a vocação, que imagino que tenham, de ser tam
da modernidade, para ser primeiro mundo". En
bém globais. Então, as grandes empresas, para
tão, há uma fragmentação da sociedade, do terri
exercer seu papel econômico, necessitam fazer
tório, junto com a governabilidade, que os prefei
política. É um dado do fim do século. Com essa
tos, sem saber muito que se trata disso, estão
globalização, elas fazem política através da pro
descobrindo lentamente, tanto que foram para
dução da imagem, através da necessidade de es
Brasília reclamar. E foram recebidos por cachorros
tabelecimento de regras, normas - na medida em
policiais, mas não pelo presidente da República.
que a técnica tem um comando geral na vida pro
Sérgio de Souza - Um número espantoso.
dutiva, e a técnica, ela própria, já é uma norma,
Milton Santos - Espantoso, mas é isso: com o ter ritório se fragmentando, a governabilidade se tor na impossível. E aí a gente já entra na segunda parte, que é a esquizofrenia do território. O terri tório brasileiro é esquizofrênico. Por quê? Porque de um lado, recebendo esses insumos de moder nização globalitária, ele se fragmenta, se fragiliza. De outro lado, descobre que esse processo não lhe convém, e talvez lhe falte descobrir qual é a lógica mais geral que permite a produção de um discurso novo. Primeiro acadêmico, quando possí vel também de mídia, e depois o discurso político. Leo Gilson Ribeiro - Pelo que o senhor está dizen do, voltamos a ser uma espécie de entreposto imenso, uma senzala, regida por uma pequena casa-grande em que na parte de cima estão os estrangeiros e na de baixo os testas-de-ferro bra sileiros? Milton Santos - Eu preferiria pô-lo juntos, na me dida em que neste fim de século a economia é su bordinada à política, as empresas fazem política, sem aquela velha distinção anglo-saxã entre po licy e politics. A policy é como organizar a coisa
não é isso? A técnica é uma norma exigente de normas. Então as empresas precisam de normas.falo de território, que é também normado - para que as empresas possam tirar um melhor provei to. Então, a política é a condição de realização da economia. E a razão pela qual a gente não pode tocar um esparadrapo na boca dos economistas, mas também não pode deixá-los falar sozinhos, porque eles conduzem o debate para um canto, o que não permite ver o funcionamento global. Roberto Freire - O senhor usou a palavra esquizo frenização - na psiquiatria, o conceito de esquizo frenia é de divisão, o senhor coloca muito bem essa divisão, é mesmo um processo esquizofrêni co do ponto de vista social. Milton Santos - Mas tem outro lado, que os parti dos ainda não foram capazes de descobrir: essa união que está despontando entre todos os excluí dos de diversos níveis. Porque há o excluído do comércio, há o excluído da pequena indústria, quer dizer, na economia, na sociedade, na cultu ra. Georges Bourdoukan - Qual poderia ser esse traço
para chegar a objetivos individuais. E a politics é
de unidade?
algo mais geral, filosófico, englobante. Só que as
Milton Santos - Acho que é essa exclusão, que
empresas acabam fazendo política, porque a sua
aparece no primeiro momento como provisória e
policy, a sua politiquinha particular, privatística,
que na verdade é definitiva, porque aparece como
cega, envolve todas as outras áreas da vida soci
algo que tem remédio mas de fato não tem, exce
al. As áreas todas são envolvidas por elas, então
to se houver uma mudança civilizatória. Acho que
elas fazem politics. E o Estado - a política do Esta
há muito o que caminhar. Mas já há uma...
do, que também há uma - é forte por se abster,
Leo Gilson Ribeiro - Consciência...
essa abstenção é que o faz mais forte do que nunca, a serviço das empresas. E essas empresas nacionais que antigamente eram chamadas de testas-de-ferro são hoje muito mais importantes,
Milton Santos - Não sei se uma consciência, mas já há uma percepção. E o caminho a fazer é pas sar da percepção à consciência.
272
Milton Santos
Sérgio de Souza - É aí que entraria, por exemplo,
pecto é que a organização é importante, e a de
o MST, que com organização própria, independen
sorganização também. A organização conduz obri
te de um poder maior, está não só reivindicando,
gatoriamente a palavra de ordem, a certa neces
mas agindo? É uma mudança que estamos notan
sidade imposta. Tem de ter as duas coisas. E,
do e que talvez surja na periferia, com esse movi
para voltar ao que o Sérgio sugeriu, o que as pe
mento hip hop. Não sei se é espontâneo, mas pa
riferias revelam é um pouco isso. Só que não es
rece que aí estaria a novidade. Como o senhor vê
tamos preparados para entender, porque nosso
o MST?
aparelho cognitivo...
Milton Santos - Primeiro vejo como esse grito que
Roberto Freire - Está preparado para entender a
a maior parte de nós não pode dar, não quer dar,
forma tradicional, que está na mão dos poderes.
que não nos convém dar. E creio que esse fim de
Milton Santos - Está na mão nossa também, da
século é dos paradoxos. Paradoxo é a contradição em estado puro, não é? Então, ao mesmo tempo em que o MST é criticado, ele é apreciado, pelo que contam as pesquisas.
universidade, da faculdade. A gente quer repetir a interpretação do Brasil através do que aprendeu na Europa e nos Estados Unidos com a classe mé dia, porque pobres não havia. Na Europa em que
Marina Amaral - As pesquisas de opinião mostram
essa geração estudou quase não tinha pobre, e a
uma simpatia até entrar no saque, daí já não há
classe média era defensora da democracia e do
mais simpatia.
seu aperfeiçoamento. Tanto que houve a expan
Milton Santos - Porque nos dizem que o direito é
são da social-democracia, que era uma forma de
para ser obedecido, quando na realidade ele é para ser discutido, pois o direito é o resultado de um equilíbrio provisório que se cristaliza - mas a sociedade continua dinâmica, então não se pode imaginar o direito assim imóvel como querem. São chavões. Como dizer, e se diz, e a própria es querda fica calada: "Sindicato não pode fazer polí tica". Marina Amaral - É um absurdo dizer isso. A greve é política.
aperfeiçoamento da democracia. E os pobres são tratados por nós, que aprendemos a epistemolo gia européia na universidade, como o chantilly no bolo. A gente faz a construção, depois coloca o pobre em cima. Partidos de esquerda também fa zem isso. Quer dizer, a construção toda é de clas se média, e depois os pobres são colados lá em cima, porque resta aquela idéia de que a classe média queria defender os princípios fundamentais da humanidade e que os pobres, coitados, não têm nenhuma possibilidade de ser visionários,
Milton Santos - A greve é política! Essa agora dos
porque estão no dia-a-dia, "vivendo da mão para
professores, o ministro disse, reclamando: "Está
a boca". O dia-a-dia era considerado pela antro
claro agora que a greve é política". (risos)
pologia e sociologia oficiais como algo que impe
Georges Bourdoukan - Mas é que a palavra "polí
dia qualquer vocação para o futuro. Quando é o
tica", hoje, políticos oficiais sujaram de tal manei
contrário, porque quando tenho todos os dias que
ra, que quando se fala "a coisa é política" pode
renovar o meu estoque de impressões, de conhe
parecer uma coisa mal-intencionada.
cimentos, de luta, que é o que o povo faz, sou
Milton Santos - É que não são políticas. Não ter minei a lista. A política é feita pelas grandes em presas. Os políticos não fazem política, o aparelho de Estado não faz política, são porta-vozes. O povo faz política, os pobres é que fazem política. Porque conversam, porque conversando eles de frontam o mundo, e buscam interpretar o mundo. E agem, quando podem, em função do mundo. Creio que essa é a questão do MST. O outro as
obrigado a renovar também a minha filosófica, vamos dizer assim. Quer dizer todos os dias o povo se renova, e num país como o Brasil, essa urbanização tão galopante, tão rápida, essa mu dança de lugar (reivindico o assunto para a minha área) tem um papel extraordinário na produção desse outro homem, já não tão seguro, ainda que ao mesmo tempo lhe ensinem que o consumo é bom, e o façam crer que ele vai poder consumir. Há o bombardeio da informação, a tirania da in
Milton Santos
273
formação, que é um dos esteios centrais da glo
falou aquilo, teve uma revista que publicou tal
balização. Nunca foi assim. E essa tirania da infor
coisa....". Dá a sensação de que é tão avassalador
mação, essa ditadura da informação...
o globalitarismo, são tão avassaladoras as teorias
Sérgio de Souza - Da má informação, digamos, ou
neoliberais, a reengenharia e todos esses termos
da informação em geral? Porque a informação não
que surgiram, que a gente fica: "Tudo bem, va
pode ser má.
mos continuar".
Milton Santos - Esta é minoritária. A própria uni
Milton Santos - Vou discordar da sua opinião. Não
versidade faz parte desse processo, porque ela le gitima, ela santifica aquela informação doentia... Roberto Freire - Deformada...
é assim. Ao contrário. Primeiro, que as idéias ger minativas sempre foram corajosamente sustenta das por poucos. Segundo, que há uma grande de manda dessas idéias. Não gosto de dizer, parece
Milton Santos - Deformada, mas que é geral.
vaidade, mas é uma informação: todos os dias
Sérgio de Souza - O senhor seria uma exceção.
sou convidado a falar aqui, ali, acolá, em todo lu
Milton Santos - Acho que há muitas. Sérgio de Souza - Mas são minoria também den tro da universidade.
gar do Brasil. E como eu, vários outros. Quer di zer, há uma demanda disso e, na realidade, a au sência da grande mídia não é um problema, por que há consciência de que o trabalho tem de pas
Milton Santos - Claro. Porque deve ter muita gen
sar por um grupo pequeno de pessoas nesta fase.
te que não é conhecida, mas como saem dali as
Aí eu entraria noutra coisa, que é a ditadura da
idéias? A gente já escreve numa língua própria,
informação, e informação criadora de mitos e de
que é o facultês, e às vezes escreve numa língua
símbolos que são a base da globalização. Ela é
ainda mais restrita, que é o coleguês. A gente es
fundada num sistema mitológico. Isso é menos vi
creve para ser apreciado pelo colega que vai nos
sível porque as próprias coisas são portadoras da
julgar, que vai nos dar promoção. Isso é uma pri
ideologia de hoje. A gente é cercado na vida coti
são muito forte.
diana por esses portadores de ideologia que são
Roberto Freire - O carreirismo, a necessidade de
as coisas: o dinheiro, como a coisa que compra as
se manter protegido dentro da universidade. Se a pessoa sai muito, acaba sendo criticada. O senhor não recebe críticas? Milton Santos - Essa coisa civilizada da vida aca dêmica tem uma grande dose de hipocrisia, às vezes a gente nem sabe da crítica, nem tampouco vai se preocupar com isso, porque a decisão de dizer o que pensa já inclui a possibilidade da críti ca.
outras coisas; o Real, que é mitológico e sobre o qual os partidos ainda não conseguiram encontrar um sistema de discussão. Porque não produziram um sistema. Agora, o que acontece? A sociedade tem um movimento. O símbolo não, o símbolo é estático. E o movimento da sociedade desprende o mito, desprende o símbolo. Tanto que os outdo ors são mudados com o propósito de recriar a propaganda eficaz. Então, há um limite à vida dessas ideologias, e será que esse limite está che
Roberto Freire - Mas o senhor pensa, diz o que
gando? Qual é o limite do Real? Qual é o limite,
pensa, e incomoda as pessoas.
por exemplo, do cálculo da inflação? A classe mé
Milton Santos - O papel do intelectual é esse.
dia vive do crédito. Ela deve, todos devem. Todos
Sérgio Pinto de Almeida - Professor, a sua obra, a sua produção; e nós, que estamos fazendo uma revista cuja tiragem perto da Veja é ínfima, são coisas tão pequenas comparadas à avalanche em contrário, me dá a sensação de um deserto onde pipocam alguns pontos. Claro, são importantes e tal, mas me dá a impressão de que no futuro vão consultar e dizer: "Um dia teve um professor que
devemos. A gente paga. O custo do dinheiro é o custo da inflação oficial? Outra coisa, a cesta bási ca. Vivem falando dela. Mas e os desejos? Sou chamado a ter mais desejos, pela publicidade in cessante. Mais coisas foram criadas para me se rem oferecidas. E a cesta básica fica imóvel. O resto, não. Então, haveria que produzir outros discursos para apressar o limite da saturação do sistema ideológico que está por trás da globaliza
274
Milton Santos
ção e do sucesso dos governos globalitários. Só
Esse atendimento será tanto mais rápido quando
que os partidos partem da análise dos economis
houver a produção, por nós, de sistemas de expli
tas.
cação.
Marina Amaral - Professor, de que maneira os ob
Georges Bourdoukan - Professor, estamos num
jetos contêm essa ideologia de que o senhor fala?
ano eleitoral, e o governo lança uma nova moeda,
Milton Santos - Vamos começar do começo.
dourada etc. Pelo que o senhor falou, devo enten
Quando eu era maduro... (risos) a gente lia mui tas coisas da literatura marxista soviética - por
der esse gesto como uma propaganda eleitoreira, para lembrar que o Real existe de fato, que é con
que era mais barata, não é? (risos) -, então tinha
creto, o governo está usando esse símbolo, certo?
o bem e o erro, a verdade e a mentira. A verdade
Milton Santos - Sim. Esses objetos que são exata
e a ideologia. Mas a ideologia também é "verda
mente portadores de uma ideologia. É típico de
deira", ela produz coisas que existem, que são os
nossa época. Durante a história, o homem tinha
objetos. Esse é um primeiro ponto de partida. Um
comando sobre os objetos. Eram poucos, na mi
outro ponto de partida é o seguinte: a produção
nha própria infância e juventude eram poucos ob
de idéias precede a produção das coisas, hoje.
jetos, e eu os comandava. Hoje, são eles que me
Não era assim há cinqüenta anos. Com a cientifi
comandam. E a gente acaba sendo perseguido
zação da produção, com a cientifização da técni
pelos objetos, você tem fax em casa, e-mail, é
ca, tudo o que é produzido é precedido de uma
um inferno... (risos)
idéia... científica. É por isso que a publicidade
Marina Amaral - A questão seria a recusa ao con
também precede a produção material. Quer dizer, antes de jogar um produto, faço a propaganda dele. O remédio é um exemplo, 1 por cento de matéria e 99 por cento de propaganda. Então tudo é feito assim, e a produção da política tam bém. A política cientificamente feita, como agora, é precedida pelos marqueteiros. Então, tudo no mundo de hoje tem essa produção ideológica, ou de idéias - para ser neutro - que precedem. Por conseguinte, há um mercado de idéias que anteci pa a produção de tudo, pelo menos do que é he gemônico. E o consumo é o grande portador de tudo isso. Por isso, ele é o grande fundamentalis mo hoje. Não é o do Kohmeini o grande funda
sumo ou a reivindicação coletiva pelo direito de consumir tudo? Milton Santos - Acho que há uma contradição en tre a produção do consumidor e do cidadão, a idéia de cidadania é ligada à idéia de indivíduo forte. E a idéia de consumidor ligada à de indiví duo débil. Objeto forte, indivíduo fraco, débil. E às vezes debilóide. (risos) Essa contradição às vezes nos parece difícil de ser superada, a gente tem a impressão que está chegando a um mundo onde uma reversão se torna impossível. Mas não é isso, não creio que seja isso. A gente vê aqui e ali es ses movimentos...
mentalismo, é o do consumo, porque é portador
Sérgio Souza - Que papel a religião teria num
do meu impulso para essa forma de vida, que
quadro novo, ou está tentando no atual?
acaba me transformando numa coisa, num obje
Milton Santos - A religião tem um papel globalitá
to.
rio, globalizante. A gente que manda está usando
Marina Amaral - E de que maneira a sociedade re
a própria religião para encobrir uma porção de
sistiria a esse processo?
coisas. Então, há um processo deliberado de difu
Milton Santos - Creio que a resistência vem de dois lados. De um lado - tomo isso de Sartre e deve estar em outros autores também - a questão da escassez. A escassez, o fato de eu não poder alcançar essas coisas e a repetição dessa sensa ção de falta me convocam a perguntar: "Mas por quê?" E num segundo momento busco entender.
são de religiões, seitas, que são destinadas a am parar o processo de globalização. E são muito for tes, a gente vê, Tem um outro lado, que é o lado de fazer descobrir que a filosofia, o pensamento, não é algo apenas europeu e ocidental. Essa inva são de palavras orientais e outras tem um papel importante também. Uma coisa que andei que rendo trabalhar, mas que não avancei muito ain
Milton Santos
275
da, é que há uma evolução por cima e por baixo,
Georges Bourdoukan - Professor, qual seria a so
que vai continuar durante um tempo, porque a
lução para a seca do Nordeste?
impressão que tenho é que a nova globalização,
Milton Santos - Sobre a seca fiz recentemente um
essa que queremos, e que vai chegar, ela vai par tir de soluções particulares, de explosões que não vão se dar ao mesmo tempo. E o que a gente chamaria de cultura, para unir tudo isso, vai ter um papel muito forte. Quer dizer, essa coisa do Japão, já que se fala da crise japonesa, é a crise da globalização, não é a crise japonesa. E tem muito haver com a cultura do Japão que recusa a aceitar a globalização tal como ela é. A maior par te do Brasil, como população, como território, não aceita a globalização. O que falta é propor uma outra globalização. Esta havendo até agora uma certa insistência nesse processo de cima para bai xo. Haverá também um processo de baixo para cima, que coincide um pouco com o que já vem
artigo para Carta Capital. A discussão é que, pri meiro, a questão é social, e não natural. Aí, outra vez Josué de Castro primeiro, e depois Celso Fur tado. Ambos levantaram essa questão, que não é questão da natureza, é questão da sociedade, uma questão política. Num mundo globalizado, o governo está preocupado com as áreas que res pondem à globalização e não como antes, com a unidade nacional. Então, a fragmentação do terri tório também se revela aí, na seca, e há pouca vontade de voltar atrás, senão se buscaria uma solução nacional para a questão. Marina Amaral - Solução nacional em termos téc nicos mesmo, de fazer obra?
acontecendo. E aí essas crenças vinda da ingenui
Milton Santos - A técnica vem depois, sempre. Os
dade popular. Ingenuidade tem que ver com cria
técnicos são pessoas subalternas, é o político que
tividade. Ingenuidade e engenho são vizinhos..
tem de decidir. É a idéia de nação que precisa
Porque o que vem de cima não tem engenhosida
prevalecer. Isso é central, ver o que deverá ser
de, por ser uma regra indiscutível, mas chamam
feito a partir de uma dada idéia de nação. Com
isso de "flexibilidade". E a gente repete - a "flexi
isso não existe, quando há muita crítica eles man
bilidade", quando a economia dominante não fle
dam remédios provisórios e tudo o mais. Agora, o
xível, porque só há uma forma de fazer! Ou faz
Nordeste vai reagir com grande brutalidade à bru
daquela forma ou cai fora. Os economistas do PT
talidade da globalização. Como a região é atrasa
repetem: "flexibilização", quando isso não existe.
da, o impacto vai ser muito forte, as cidades vão
Quer dizer, nosso próprio discurso é inadequado
ficar cheias de gente, lá em cima e aqui em baixo
para a gente se opor à globalização. Voltando a
também, e os conflitos vão ser muito grandes. É a
religião - ela é produtora de discursos, tem esse
minha visão do que vai acontecer no Nordeste,
papel, quer dizer, é também produtora de pala
quer dizer, a globalização vai ser muito brutal e o
vras de ordem.
esvaziamento do campo também, nos próximos
Roberto Freire - Sintetizando, seria uma globaliza
dez anos.
ção via econômica esta que está aí, e a outra cul
Marina Amaral - Falando em território, é melhor
tural. A palavra seria cultural?
manter a população no campo ou não dá para fa
Milton Santos - Eu diria via gente, povo. Por ex
zer isso?
emplo havia um projeto de controle demográfico,
Milton Santos - Por que vou condenar as pessoas
aí mandaram pílula anticoncepcional para diminuir
a ficar no campo?
a população, mas o projeto foi contrariado, por
Marina Amaral - Por exemplo, o MST acha que a
que foi todo mundo para a cidade! E o fato é que
saída seria as pessoas ficarem no campo.
empobreceram a população, no caso do Brasil. A urbanização se deu de forma tão concentrada que cria condição territorial e política de mudança. Não tem jeito. Tem povo pobre demais, está bom do ponto de vista histórico. Se fosse todo mundo classe média, a mudança iria ser lenta.
Milton Santos - É complicado, porque o Brasil é muito grande. Creio que tem duas coisas. Primei ro, mesmo a globalização com sua brutalidade não vai levar o país a mudar todo da mesma for ma. As mudanças serão mais lentas em certas áreas. Segundo, a globalização, de forma ou de
276
Milton Santos
outra, vai exigir uma certa qualificação para o
Georges Bourdoukan - Essa foi uma das razões do
acesso ao trabalho rentável. Já hoje, no caso de
fracasso das agrovilas.
São Paulo, por exemplo, uma boa parte das ativi
Milton Santos - Exato. Então, teria de ver isso.
dades urbanas paga menos do que as atividades rurais. Esse é outro argumento, digamos, no sen tido de ficar no campo. Quando falo campo não é cidade do campo, é o campo mesmo, e isso é condenar o sujeito a te menos consumo de saúde, porque é mais difícil, mas caro oferecer saúde quando a população é dispersa. É mais difícil ofe recer consumo de educação, e também o consu mo político, consumo de política. Marina Amaral - Mas é diante dessas condições, ou será sempre uma condenação?
Mas, como instituir a população vai demorar, a presença no campo ainda é possível durante al guns anos. Sérgio Pinto de Almeida - Professor, o processo da globalização é um processo sem cara, não tem face pessoal, mas de qualquer maneira tem algu mas expressões, e eu queria colocar uma, que é o presidente da República. Ele veio do meio da re flexão, da universidade, não quero particularizar nele uma coisa maior, que enfim envolve o mun do, mas a atuação de um homem que tem essa
Milton Santos - A partir das condições que tiver
origem, chega a esse posto e de repente, no caso
mos hoje.
do Norte-Nordeste, da seca, quase vira as costas
Leo Gilson Ribeiro - E por causa da mecanização
para o problema, ou faz subterfúgio? Queria que o
da lavoura, também? Milton Santos - Sim, porque, quando mecanizo a lavoura, mecanizo o território também. Quer di zer, crio estradas, e aí as pessoas podem se mo ver, aí vão para a cidade. Como é o caso de São Paulo, cerca de 7 por cento das pessoas vivem na área rural, mas o número de trabalhadores agrí colas é maior. A pessoa vive na cidade e trabalha no campo. Assim consome melhor saúde, melhor educação, melhor informação, e melhor política. Marina Amaral - Então a reforma agrária não con tribuiria muito para a melhoria da vida dessas pessoas?
senhor falasse um pouco de um homem que che ga a essa função tendo esse background. Milton Santos - A resposta tem de ser filosófica. A ação é sempre presente, não há ação passada, nem ação futura, há apenas ação recente. E ação, de alguma forma, resulta de escolhas. A escolha pode ser resultado de uma convicção profunda ou de um escorrego na vaidade, na vontade de estar presente, o que a gente dizia da imagem - de aparecer. E aí volto ao começo de sua pergunta, que é não ter cara - começa a ter cara a globali zação. Acho que 1998 é um ano importante por causa dessas grandes fusões do domínio da pro dução, do dinheiro e da informação - a cara vai
Milton Santos - Só contribuiria num primeiro mo
aparecer. Então, o que acontece é que esse siste
mento, porque a produção hoje é comandada pela
ma da ideologia, que é também o sistema da per
circulação. Então, se entrego a terra sem cuidar
versidade, ele escolhe os homens, os seus repre
do resto, aquilo dura uma geração ou alguns
sentantes e os suplentes. É uma escolha. Na cam
anos, e depois a pessoa vai ser espoliada da mes
panha eleitoral, a gente vê claramente. Os titula
ma maneira. Mas, ainda aqui, a minha resposta
res e os reservas aparecem, é a produção das fi
vai um pouco além. Parto do homem que vive em
guras necessárias, que é um dado do mundo ho
São Paulo, ou de um baiano, mas não é a mesma
je. Quer dizer, não há uma escolha nacional do lí
coisa em relação ao Nordeste ou ao Norte, onde a
der nacional. Há uma escolha internacional, glo
mobilidade dos homens e das coisas é menor.
bal, do líder nacional. Acho que esse é o jogo, e
Num território fluido, não adianta entregar ao po
essa escolha é em grande parte feita entre pesso
bre a produção, ele não tem comando sobre o
as que um dia foram suspeitas.
resto, quer dizer, sobre a circulação, sobre a co mercialização.
Marina Amaral - E esse processo tem o mesmo peso em todos os países, ou o senhor acha que
Milton Santos
277
nos países do terceiro mundo a globalização im
anos vai haver outra, feita por baixo, porque essa
põe ainda mais os escolhidos?
por cima não vai funcionar. Isso vai acontecer em
Milton Santos - Acho que são as sociedade locais,
alguns ou todos os países. Aí, depois que fizemos
como elas funcionam face à política. Nos países onde a política nunca existiu, ou existiu menos,
a nossa federação por baixo, haverá a produção da globalização por baixo também, com novas
nos países onde a cidadania nunca existiu, ou
instituições internacionais.
existiu menos, num país onde os indivíduos fortes
Marina Amaral - Esse processo é pacífico, profes
nunca existiram - perdão, existir sempre existi
sor?
ram, mas com menor força, menor presença - é
Milton Santos - Não, não é pacífico.
mais fácil. Porque esses países são muito mais dependentes do sistema da ideologia. Na Turquia foi assim, também foi escolhido um intelectual, na
Leo Gilson Ribeiro - E leva a um desmembramen to do Brasil, ao separatismo?
Grécia, no Peru Vargas Llosa... é um fenômeno
Milton Santos - Ao contrário, porque é por baixo.
global.
Vem de baixo para cima, vem com emoção, com
Marina Amaral - O Tony Blair parece uma pessoa semelhante ao Fernando Henrique. A sociedade inglesa não teria condições de reagir de outra ma neira? Milton Santos - Não sei se o Tony Blair foi grande
menos cálculo. E vai incluir os negros, as minori as, quer dizer, as minorias, porque não são mino ria... Marina Amaral - A questão negra terá uma impor tância muito maior?
professor ou foi tornado professor. Mas em certos
Milton Santos - Claro. Já está tendo maior que na
casos o prestígio intelectual também é produzido.
minha maturidade (risos), do que na minha ju
Há pessoas que são escolhidas para ter prestígio
ventude, e terá muito maior, porque os negros
intelectual internacional.
não vão para lugar nenhum! E com a globalização
Marina Amaral - Mesmo num país desenvolvido como a Inglaterra? Milton Santos - Que está dando importância à re tórica. A retórica ganhou uma enorme importân
eles serão... nós seremos - ato falho - (risos) ain da menos atendidos. Marina Amaral - E que prazo o senhor prevê para essa outra globalização?
cia hoje, e talvez por isso a gente deveria aprimo
Milton Santos - Não tem prazo. Depende de um
rar o nosso discurso também, não é?
conjunto de circunstâncias, não sei como a coisa
Marina Amaral - O senhor acredita que os orga
vai evoluir na Índia, na China, no Irã, no Iraque.
nismos internacionais possam ter força no futuro?
Georges Bourdoukan - Professor, a semana pas
Pode existir uma ONU que funcione mesmo?
sada, nos Estados Unidos, a Ku Klux Klan e os ne
Milton Santos - Quando se fizer a globalização por baixo, sim, porque haverá outra realidade. Mas , do jeito que está, há uma poluição dos organis mos internacionais, acabam poluídos. Marina Amaral - Essa globalização por baixo seria via ação local de todos os povos? Milton Santos - Acho que vai haver, no caso do Brasil, primeiro, uma outra federação. Vamos pro duzir uma outra federação. Os lugares vão se mostrar insatisfeitos, vão entender por que estão insatisfeitos, o que não sabem completamente ainda. Daqui a pouco vai haver uma reforma na Constituição, feita por cima, mas daqui a alguns
onazistas fizeram uma série de manifestações, não querendo mais que os negros circulassem na ruas. Aí, de repente, ressurgiram os Panteras Ne gras, desfilando armados. Como o senhor analisa esse fato? Milton Santos - Passei agora uns meses ensinando lá, e uma coisa que me espantou e atribuí, como sempre olho as coisas, ao território californiano, que é exatamente fluido, bem organizado, bonito do ponto de vista material, com urbanismo aceitá vel, mas com extrema aridez da vida social e das relações interpessoais, ligadas ao fato de que é creme do mundo moderno, informatizado etc. En tão é o lugar da ordem, da necessidade da obedi
278
Milton Santos
ência a regras, do pragmatismo, e também o lu
tra coisa, só excepcionalmente não se será o po
gar onde as conquistas sociais estão em regres
bre. É muito diferente.
são muito grande. O Estado suprimiu, via plebisci
Sérgio Pinto de Almeida - Só excepcionalmente
to, aquela coisa da discriminação positiva, depois, a língua espanhola, que era tratada com certa igualdade com a ex-língua nativa, também foi su primida, com outro plebiscito, quer dizer, uma volta atrás. Então, essa reação eu imaginava. É nesse sentido que digo que no Brasil os negros vão deixar de ter a posição que têm hoje, pois
não será. Milton Santos - Não será pobre, não será humi lhado, porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico. E daí o medo, que também tenho, de circu lar. Acredito que tenham medo.
ainda sorriem, e vão começar a ranger os dentes.
Marina Amaral - O senhor tem medo?
O que é preciso é que os negros queiram ser a
Milton Santos - Claro. Esse medo da humilhação.
nação brasileira. Não tem de imitar América, nem querer ser africano. Porque, quando quero ser africano - ou africano brasileiro -, acabo sendo menos político. Sou político no meu país, porque
Marina Amaral - O senhor tem medo de entrar num restaurante chique e alguém olhar torto por que o senhor é negro?
não há política global, por enquanto. Então, esses
Milton Santos - Tenho, tenho sim.
atos de violência nos Estados Unidos vão ter o
Sérgio de Souza - Todos os negros têm medo?
correspondente no Brasil em atos de revolta, de
Milton Santos - Todos têm. Posso fazer uma con
rebelião, de manifestações grandes, em outra es cala e com mais força.
fissão? Tenho uma certa simpatia por esse rapaz, o Pitta. Esse ataque todos os dias, isso me choca,
Georges Bourdoukan - O senhor sente isso mes
me dói também. Nunca votaria nele, não vou visi
mo?
tá-lo até que acabe o governo dele, mas no fundo
Milton Santos - Prevejo.
sou solidário, porque sei que uma parte disso vem
Marina Amaral - Como o senhor vê a evolução do movimento negro no Brasil, é rápida ou lenta? Milton Santos - Se eu olhar para trás, há um cres cendo, tanto na velocidade quanto na intensidade. Pode estar misturado com vontade de ser classe média, que polui um pouco as coisas, mas há um crescendo. O fato de que os negros tenham ido para a faculdade também é importante - desco brem também que não vão conseguir emprego. Ou os que conseguem são de menor remunera ção. Quando estou pensando na classe média, penso na minha solução individual, que é o pen samento da classe média típico, não é? Mas está havendo uma tomada de consciência, digamos as
do fato de ele ser negro. Pisado como ele é pisado todos os dias, quando não se faz isso com nin guém! Sérgio Pinto de Almeida - O senhor fala as coisas mais duras e pesadas e mantém o seu sorriso. Uma vez eu entrevistei o Antônio Callado e, abor dando o assassinato dos meninos da Candelária, ele falava com uma virulência, uma dureza, e no entanto com um ar espantosamente sereno. Per guntei com se dava isso, ele falou: "É a idade, é a sabedoria,
a
dignidade
não
pode
perder
a
clareza", algo assim. O senhor lembra ele. Milton Santos - Isso é ligado também a quem en sina. Porque quem ensina não tem ódio, quem é
sim, do fato de ser relegado. Porque os negros
professor mesma não tem ódio nenhum.
não fazem parte da nação brasileira, isso é outra
Sérgio de Souza - Por falar em ensino, o senhor
coisa. Sinto isso. Pessoalmente é minha experiên
teria uma visão do ensino público superior, uma
cia.
crítica, diante do que todos estão vendo?
Sérgio de Souza - Na cabeça do pobre?
Milton Santos - Creio que o ensino público é indis
Milton Santos - Não, na cabeça dos outros. Quan
pensável, e com a globalização torna-se mais in
do se é negro, é evidente que não se pode ser ou
dispensável para assegurar a possibilidade de pensar livremente, e de dizer livremente. Não
Milton Santos
279
basta pensar, tem de poder dizer. Por conseguin
mandar o filho à escola boa, não pode mais cuidar
te, se o ensino ficar atrelado ao mercado, ou à
da saúde, não pode mais envelhecer, não pode
técnica, ele será cada vez mais canalizado para a
mais ficar doente. Também no caso da USP, que é
subserviência, sobretudo porque a ciência tende
uma universidade que somente conheceu cresci
cada dia a ficar mais longe da verdade. Porque a
mentos, engrandecimentos, e que evoluiu nessa
ciência é feita para responder à demanda da téc
idéia da sua própria grandeza, a pré-crise que
nica e do mercado. Por conseguinte, ela estreita o
está vivendo agora vai despertá-la para um deba
seu objetivo. Só o ensino público pode restaurar
te mais amplo. Que ainda não está sendo feito.
isso. Dito isso, as universidades públicas teriam
Marina Amaral - A impressão que dá às vezes é
de ser um pouquinho mais públicas, na medida em que elas estão abertas. O número de matrícu las diminui proporcionalmente todos os anos. Em São Paulo, a evolução das vagas no ensino públi co é diminuta, e a expansão é do ensino privado. Então, a universidade pública para aumentar, di gamos assim, a sua legitimidade, tem de se tor nar um pouco mais pública. Tanto na aceitação de alunos quanto na escolha dos professores. Sérgio de Souza - Mas esse modelo que está aí, esse ministro, o que significa o Paulo Renato?
que é muito corporativo o debate, que os profes sores estariam mais preocupados com o próprio salário do que com o que acontece na universida de. É uma visão maldosa essa? Milton Santos - Creio que a enorme dificuldade é ser intelectual neste fim de século. Uma enorme dificuldade, que na verdade está incluindo nessa globalização, porque a universidade é chamada a ser porta-voz. Quer dizer, os apelos todos da glo balização, aumentando os contatos entre as uni versidades e indicando as universidades que são
Milton Santos - Bom, esse ministro é um porta-
faróis, ela acaba corrompendo as universidades
voz do processo de globalização perversa. Então,
subordinadas, como a USP e as outras, do tercei
ele não merece entrar no debate. A questão é
ro mundo, que não são universidades portadoras
mais em cima. Porque de gente como ele os ôni
de teorias do mundo.
bus aí estão cheios. (risos) Então acho que o de
Georges Bourdoukan - Não haveria mais pensado
bate tem de ser outra vez sobre a nação, outra vez com o mundo. Acho que a gente tem sempre de partir do mundo como ele está intermediado pela nação que a gente quer. Acho que é um pou co isso que está nos faltando, e deixar esses de funtos (risos) - foi Hegel quem disse isso, não foi?
res? Milton Santos - Acho que há um certo número, mas é mais difícil, hoje do que antes, primeiro pensar e, segundo, ter o seu pensamento difundi do.
-, deixar que esses defuntos descansem em paz.
Leo Gilson Ribeiro - Quando o senhor diz que a ci
Não vamos perder tempo discutindo essas pesso
ência está se afastando da verdade, isso indica
as, porque a gente tem tão pouco tempo, tão
que ela está também no caminho do lucro?
pouco espaço.
Milton Santos - A serviço do lucro. Quer dizer, a
Sérgio de Souza - Eu estava perguntando do mo
descoberta gratuita ou de um futuro diferente da
delo mesmo, a pessoa esta envolvida. Mas dentro
quilo que já está traçado - por conseguinte, não é
da universidade, da USP, essa discussão se dá en
mais futuro, porque já está traçado, não é isso? -
tre os mestres?
não está acontecendo. Acho que esse é o proble
Milton Santos - Ela se dá entre alguns mestres. Vai se dar com mais força agora, porque está ha vendo um estreitamento dos recursos, a universi dade está empobrecendo, os salários estão dimi nuindo. Então, ela vai começar com a perspectiva de - como na classe média - se transformar numa discussão filosófica. A classe média está sendo chamada a uma outra discussão: não pode mais
ma da ciência hoje. Quer dizer, de um lado as ci ências humanas são comandadas pela moda, en tão a gente faz aquilo que está na moda, que está na mídia. Dá-se mais valor à moda do que ao modo, porque a moda é que assegura a promo ção, o status, a moda vem das universidade he gemônicas, que sabem por que estão impondo as modas. Então, você passa quinze anos estudando
280
Milton Santos
dependência, passa quinze anos estudando setor
que, se fosse eleito o Antônio Carlos Magalhães,
informal... veja, nestes últimos quarenta anos os
ou Covas, a opinião seria: "Mas como vai falar
temas centrais foram dois ou três. Que não leva
mal dele, está chegando!" Esse está chegando.
ram ao progresso do conhecimento, levaram para
(risos)
trás. E nas ciências exatas e nas outras é o mer
Georges Bourdoukan - Gostei muito da entrevista.
cado que escolhe o que fazer. Com a globalização, a escolha é cada vez mais estreita. Por conseguin te, o campo de pensamento se afunila e a distân cia em relação à busca da verdade aumenta. E hoje há uma tecnização da pesquisa, quer dizer,
Finalmente sentou na nossa frente um filósofo. Milton Santos - Mas não oficial. Fiquei muito feliz com essa conversa, ela me fez avançar. E vamos ver se a gente toca o país.
há uma necessidade de dinheiro, a maior parte
Obras e Títulos
das pesquisas precisa de dinheiro, isso complica,
O curriculum vitae de Milton Santos: professor
porque o dinheiro é mais freqüentemente dado
emérito da faculdade de Filosofia, Letras e Ciênci
para os centros de pesquisa que aceitam essa ins
as Humanas da USP, pesquisador 1.A do CNPq,
trumentalização. E pensar livremente se dá a par
visiting professor, Stanford University, 1997/98;
tir de um certo estágio, uma certa experiência ou
bacharel em direito, Universidade Federal da
um certo gênio - gênio em qualquer idade -, o
Bahia, 1948; doutor em geografia, Univesité de
que significa um número menor de pessoas, que
Strasbourg, França, 1958; doutor honoris causa
tem público por isso mesmo menor. E o público
das universidades de Toulouse, Buenos Aires,
vai exatamente para o outro lado. A universidade
Complutense de Madri, Barcelona, Nacional de
pública seria o lugar do intelectual público. Mas
Cuyo-Barcelona, Federal da Bahia, de Sergipe, do
hoje a possibilidade de ser intelectual público é
Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Estadual de
cada vez mais limitada, por essas condições todas
Vitória da Conquista, do Ceará, Unesp e de Passo
sobre as quais falamos aqui.
Fundo.
Sérgio de Souza - E o senhor falava de mitos. O
Prêmios: Internacional de Geografia Vautrin Lud,
mito maior hoje seria o mercado.
1994; USP/1993 (orientador de melhor tese em
Milton Santos - Exato. Porque ele sobrevive a par
ciências
tir disso. Começa pelo próprio nome, "mercado
(Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Pau
global"- não existe isso. Onde há esse mercado
lo); Personalidade do Ano, 1997 (Instituto dos Ar
global? Mas tudo é mandado fazer em função do
quitetos do Rio de Janeiro); Jabuti, 1997 (melhor
mercado global. Eu ainda ouvia essa manhã no
livro de ciências humanas: A Natureza do Espaço,
rádio: "Ah, porque a exportação é que garante o
Técnica e Tempo).
crescimento". Será?
Medalhas: Mérito, Universidade de La Habana,
Georges Bourdoukan - Professor, o que muda se o
1994; Comendador da Ordem Nacional do Mérito
PT ganhar a eleição?
Científico, 1995; Colar do Centenário, do Instituto
Milton Santos - Não sei, porque, quando a gente lê um economista do PT, é quase a mesma coisa. Acho que vários trabalhos estão sendo feitos, um é o deles, os políticos, outro é o nosso, os intelec tuais; não se confundem. E o nosso trabalho real mente vai começar depois das eleições, seja
humanas);
Mérito
Tecnológico,
1997
Histórico e Geográfico de São Paulo, 1997; Anchi eta, da Câmara Municipal de São Paulo, 1997; Di ploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, 1997. Lecionou nas universidades toulouse, Bordeaux, Paris, Lima, Dar-es-Salaam, Colúmbia, Venezuela e Rio de Janeiro.
quem ganhar. Se o presidente atual ganhar, o
Consultor da ONU, OIT, OEA e UNESCO, junto aos
processo histórico será acelerado, isso eu sinto.
governos da Argélia e Guiné Bissau e ao senado
Sérgio Pinto do Amaral - A crise se aprofunda. Milton Santos - A visibilidade da crise vai aumen tar. Acho que é isso, como dado pedagógico. Por
da Venezuela. Publicou mais de quarenta livros e trezentos artigos em revistas científicas em portu guês, francês, inglês e espanhol.
Milton Santos
281
UM ENCONTRO – GILBERTO GIL E MILTON SANTOS
Fonte: http://www.gilbertogil.com.br/santos/entre_0.htm São Paulo, 01 de setembro de 1996
Gilberto Gil - Profes
GG - Essa contextualização nova
sor Milton, eu não
do interesse geográfico lhe ocor
preparei nenhum ro
reu a partir de Estrasburgo, ou já
teiro
da Bahia, ou possivelmente no
especial,
até
porque não me sinto
professorado aqui no Brasil?
capaz
MS - A Bahia é sempre o centro,
de
especular
sobre a sua área de
mas eu creio que essa ruptura
conhecimento e tra
ocorre a partir do fim dos anos 70.
balho, mas como te
Até os anos 70 eu estava na Fran
nho interesse em que seu
ça. Não era minha terra mas era
pensamento,
suas idéias estejam divulgadas no nosso site, eu ainda assim quis conversar consigo e saber algu mas coisas. Gostaria primeiro que o senhor nos desse uma idéia da sua formação, o início, os pri meiros tempos na Bahia, como intelectual e em sua disciplina universitária.
um pouco minha terra. Depois eu tive que trabalhar nos Estados Unidos, no Cana dá, na Tanzânia, na América Latina. É uma forma de desagregação e a vontade de evitar a desagre gação, essa retomada da unidade do homem, é que me jogou, no caminho da filosofia, junto à minha ignorância crescente do Brasil. Acho que foi
Milton Santos - Eu estudei Direito e já estudante
sobretudo isso.
de direito ensinava geografia, que descobri ser re
GG - Nesse percurso, nesses lugares que o senhor
almente o meu grande interesse. Foi isso que me levou a fazer um doutorado em geografia na Uni versidade de Estrasburgo, na França, e daí por di ante comecei uma carreira de pesquisa, na Bahia mas também em outros países, que me conduziu a diversas aventuras intelectuais que se amplia ram a partir de 1964, por razões conhecidas, quando eu tive que deixar o Brasil. Creio que mi nha carreira começa com estudos empíricos, isto é, tentar descrever simplesmente o que era a rea lidade territoral e social aqui e alí, na Bahia sobre
mencionou, França, Estados Unidos, Tanzânia, Brasil, incluindo Bahia e São Paulo, o senhor este ve nesses lugares sempre na situação de aprendiz e mestre, professor e estudioso? Aonde o senhor esteve como professor, aonde o senhor esteve es tudando? MS - Eu estive como estudante somente em Es trasburgo, nos anos 50. A partir de 64, na França, sempre como professor, que passou a ser a mi nha atividade central praticamente única.
tudo, mas também no Brasil e fora do Brasil. De
GG - Nesse conjunto pensando sempre e escre
pois, passei a ter um interesse mais teórico, mais
vendo, e também professor?
epistemológico. Isso coincide com a minha distân
MS - Ah sim, o tempo todo.
cia do Brasil, quando o objeto concreto de traba lho não estava presente, a possibilidade de infor mação reduzida. Há dois abrigos para os homens,
GG - Quantos livros? MS - Creio que são uns 40. E uns 300 artigos ci
um é a terra e o outro o infinito. Então eu me
entíficos.
abriguei nessa área mais de pensar o mundo, de
GG - Eu gostaria que o senhor me falasse um
pensar os lugares, e tentar uma geografia mais
pouco de um conceito, que eu sei que está nos
abrangente, mais uma metageografia do que
seus livros, eu não o li, mas o senhor mencionou
mesmo geografia.
numa palestra que fez na Câmara de Vereadores
282
Milton Santos
de Salvador, onde eu era vereador alguns anos
As novas tecnologias empurram o homem para as
atrás, que é o conceito de fase popular da histó
grandes cidades, porque o campo se moderniza
ria. De onde o senhor tirou isso? Porque estaría
...
mos, segundo o seu sentimento, seu conhecimen
GG - Ele próprio se torna praticamente uma ex
to, numa Fase Popular da História, o que quer di zer isso com relação a outras fases que a história humana tenha vivido? MS - Eu creio que o homem ocidental se acostu mou a pensar a história a partir de um processo, que é dito ás vezes revolucionário, mas que é li near, porque o homem ocidental pensa a história a partir da técnica, cujas grandes mudanças prati cadas são sobretudo quantitativas, e só aparente mente qualitativas. É a quantidade de razão in cluída nos objetos que permite ao homem o cha mado progresso, uma outra visão do mundo, uma outra possibilidade de atacar a natureza e de, as sim, produzir relações etc. Eu creio que nós esta mos entrando em uma fase diferente, porque vai haver uma mudança qualitativa extremamente forte, onde tudo vai se submeter ao homem e não à técnica, ela própria comandada pela produção como tem sido até hoje. Bom, essa tese nova é de difícil aceitação, porque de um lado ela parece se chocar com a maneira de pensar que nos foi ensinada pelos europeus, diante dos quais nós te mos tendência a ser muito reverentes, mas por outro lado essa nova tese resulta não apenas de
tensão da cidade. MS - O campo se esvazia e, é a cidade que tem muitos e diversos empregos e o campo gravita em tôrno de uma ou algumas atividades, então ele expulsa as pessoas, que vêm então para a ci dade. Vêm para a cidade para serem pobres. Al guns melhoram de vida, mas a grande massa per manece pobre, e este fenômeno de pobreza na ci dade hoje esta também presente no hemisfério norte. Cada dia eu me convenço mais que os po bres são mais fortes do que nós da classe média e do que os ricos, porque os pobres é que tem a possibilidade de sentir e pensar. O nosso pensa mento é enquadrado, primeiro pelo nosso interes se, mas também pela forma como nós instrumen talizamos tudo, até mesmo os nossos bairros, as nossas casas. Tudo isso é uma prisão para o pen samento. Ora e aí entra uma outra discussão filo sófica, epistemológica: a necessidade que eu es tou sentindo agora de recusar a epistemologia do iluminismo que nos ensinou a fraqueza dos po bres. GG - O chamado conforto burguês.
uma vontade de esperança e de uma crença no
MS - O grande conforto burguês, traz uma pregui
futuro, mas de uma leitura diferente do fenômeno
ça intelectual.
técnico, uma leitura mais filosófica do que prag
GG - É a renúncia a isso, renúncia a atividade pul
mática. O fenômeno técnico é por definição tam
sante da mente e do corpo no sentido mais rigo
bém uma forma de produção da inteligência do
roso.
homem...
MS - Exato. E o conforto supõe pragmatismo, su
GG - É como uma extensão da mente.
põe um investimento cada vez maior em pragma
MS - Exato.
tismo. Quem pensa o novo são os homens do
GG - Dos corpos e das mentes. Mecanismos e pensamentos... MS - ...ligados á forma de viver que vai se modifi cando a partir das formas do fazer. Nesse sentido,
povo e seus filósofos, que são os músicos, canto res, poetas, os grandes artistas e alguns intelec tuais. GG - O bardo.
creio que a urbanização e a urbanização acelera
MS - O bardo e alguns intelectuais, num mundo
da, urbanização devastadora e, sobretudo no nos
que está assassinando os intelectuais. É muito di
so país, a forma como as nossas cidades cresce
fícil ser intelectual hoje porque os intelectuais
ram, assim como as africanas e também as asiáti
querem ser "establishment". Então eles perdem a
cas, são um estouro, criado a partir das novas
possibilidade de interpretação do movimento, per
tecnologias e cheio de consequências inesperadas.
dem a possibilidade de se casarem com o povo, e
Milton Santos
283
de se casarem com o futuro. Creio, porém, que
comunica mais do que em outra parte. Esta pre
apesar disso, apesar do peso da ciência, nós esta
sença dessas massas que se levantaram com uma
mos nos encaminhando para uma outra era no
força não conhecida em nenhuma outra fase da
mundo inteiro, em grande parte por causa das
história, essa mobilidade, esse roçar cotidiano que
novas tecnologias. Um pequeno exemplo: não há
constitui um debate diário dissimulado ou ostensi
nenhum milagre maior do que a forma como a
vo ...
cultura popular está tomando revanche sobre a
GG - Uma caixa de fósforos ali onde se risca --
cultura de massa. Há 20, 30 anos atrás, a gente se preocupava com a idéia de que a cultura de massa iria esmagar a cultura popular. Nada disso, estamos vendo... GG - a cultura popular se apropriando das ferra mentas possíveis... MS - ...isso é objeto de uma entrevista sua que eu li recentemente.
faíscas a qualquer momento! (risos) MS - E como manifestação que a gente não está ainda consciente... Mas eu creio que isso tudo vai ser canalizado, porque o horror não pode ser per manente, a barbárie que nós vivemos, o horror que nós vivemos não pode durar indefinidamente. GG - O senhor sente indícios desses encaminha mentos? A perspectiva futura esta colocada clara
GG - Sim, de vez em quando eu toco nesse as
mente como o senhor diz, e os indícios? O senhor
sunto, porque é um tipo de pensamento, tipo de
diz: a informação ainda encobre tudo, ainda afas
reflexão que me ocorre, não com rigor que o se
ta a visão mais clara desse brotar, dê exemplos,
nhor tem e com a persistência, a perseverança.
dois ou três indícios.
MS - Eu sou pago para fazer isso. (risos)
MS - Eu creio que um deles é a forma de solidari
GG - Também me interessa, e sem dúvida aqui e
edade, muito numerosa entre os pobres, que nós
alí eu menciono esses arroubos de sentimentos. E quais seriam as consequências básicas que o se nhor antevê, para essa fase, essa apropriação? MS - Acho que vai haver uma grande mudança política, mas nós não temos noção dessa possibili dade, dessa enorme mudança política, por causa da violência da informação que é um traço carac terístico do nosso tempo. A brutalidade com que a informação inventa mitos, impõe mitos e suprime
não vemos porque a universidade se interessa pelo escândalo, que mesmo pelo fato. A universi dade se tornou, também ela, subordinada à mídia e à moda, porque a carreira em grande parte é subalterna à moda. Como a universidade estimula o carrerismo, em vez de estimular a profundida de, a maior parte das pesquisas não é para as coisas desse gênero. GG - O que está vindo. Para tentar manter o que
o que a gente chamava antigamente de verdade,
já está.
essa violência da informação e das finanças, criou
MS - Ou diabolizar certas manifestações.
uma certa idéia tão forte do mundo atual que a
GG - No sentindo de neutralizá-las, como emer
gente fica desanimado diante da possibilidade de um outro futuro. Mas se a gente se detem a pen sar na maneira como o mundo está funcionando, na maneira como os pobres se apropriam da tec nologia... Os pobres e oprimidos estão fazendo, de uma maneira extraordinária, o uso das novas tecnologias, no seu trabalho e em seus assaltos, por exemplo, e estão encontrando e defendendo idéias aí pelo mundo afora e de que a gente fala pouco... GG - As várias formas de pirataria. (risos)
gência. MS - Eu creio também que há novas formas de produção econômica na cidade. Que 16 milhões de pessoas, em São Paulo, subsistem. Mas ape nas se fala em estrupos, assaltos. Quero dizer que há uma produção econômica a partir da copresença e da solidariedade entre os homens e há por outro lado formas de produção autônoma como creio que seja seu trabalho, como creio que sejam, em grande, esses 500 mil -- há 500 mil sujeitos que saem todo fim de semana de São
MS - A cidade é o lugar ideal, porque é o lugar
Paulo! -- meio milhão de pessoas e que vão para
onde todo mundo se comunica. Em todo caso se
bares e festinhas tudo isso são forma de organi
284
Milton Santos
zação econômica, produto da adaptação às novas
atual, está havendo todos os dias avanços na tec
condições. Quero dizer que tudo isso é um sub-
nologia. Na organização o que está havendo é o
produto da informação. A informação ela é con
avanço do comando unificado porque se diminui o
trolada no topo, mas deixa escorregar outras for
número de empresas e se fortalece o papel de or
mas que são aproveitadas pelo que se chama de
ganismos centrais, de finanças...
periférico, mas que, na verdade, é a grande maio
GG - De políticas econômicas, de políticas de pro
ria da sociedade. O drama é que tudo isso vem com a morte da política, pois os partidos se recu sam a ser políticos, e querem ser apenas eleito rais, mesmo os partidos de esquerda se recusam
dução... MS - E como essas políticas são cada vez mais globais, por conseguinte cada vez mais verticais..
a discutir a sociedade a partir do que ela é.
GG - Portanto não são mais políticas.
GG - E quando o senhor diz a morte da política,
MS - Não são mais políticas e elas não estão se
por consequêcia a morte do Estado, que está sub
preocupando com quem vai ser objeto dela. E daí
metido ao jogo político. O Estado é administrado,
é uma das razões porque a gente acredita outra
nutrido, gerido, é processado pela política. São os
vez na coisa do tempo popular.
políticos que se elegem aos cargos de governo,
GG - Eu gostaria que o senhor insistisse aí: por
são os presidentes eleitos que nomeiam os minis
que a palavra popular?
tros, os deputados que legislam em função do que é proposto pelo executivo etc.. Esse grande orga nismo chamado Estado que esteve historicamente incubido de arbitrar e mesmo de administrar mui
MS - Eu não quiz usar democrático porque é uma palavra que ...(risos) GG - Já foi e está apropriada, já foi desapropria
to da vida social, estabelecer os fluxos, abrir os
da. (risos)
canais as possibilidades de interação entre os vá
MS - Popular porque, cada vez menos as coletivi
rios conjuntos sociais, produzir a distribuição da
dades são chamadas a ter a palavra. Não é possí
riqueza, produzir os elementos que vão dar su
vel! Porque a forma como a tecnologia é utilizada
porte a produção, ao fazer humano no sentido so
por grupos cada vez menos numerosos para bus
cial moderno. Esse tal Estado evidentemente com
car unicamente lucro ou mais valia, não tem fina
a morte da política também...
lidade. Qual a finalidade, de que uma grande em
MS - Se enfraquece.
presa bancária quebre a outra? Hoje nós estamos
GG - Se enfraquece, desaparece.
no reino da "nonsense" total e global. As massas estão de alguma maneira contidas pela informa
MS - Passa a ser instrumento do mais forte com o
ção, elas também estão contidas pela produção
neo-darwinismo social a que nós estamos assis
abstrata das universidades. Não é que a gente
tindo agora. O processo atual de globalização
não vá ver o povo, só que o pensamento não par
agrava essa problemática. Essa globalização não
te daí porque a nossa maneira de começar a pen
vai durar. Primeiro, ela não é a única possível, se
sar é inadequada. Acho que tudo depende de
gundo, não vai durar como está, porque como
como começar a pensar. Mas voltando à questão,
está é monstruosa, perversa. Não vai durar, por
o fato é também que as classes médias no mundo
que não tem finalidade. Para que nós estamos
inteiro começam a descobrir que não mandam na
globalizando, para aumentar a competividade?
da. Isso pode ser importante.
Para que serve isso? O mercado global, o que é isso? Quem já viu esse mercado global? É o ca chorro correndo atrás do rabo. E há o que, quem trabalha com a técnica chama de disfunção da técnica. Todo o processo tecnológico produz suas disfunções e convida a um novo avanço, tanto na tecnologia como na organização. Então, no caso
GG - Definitivamente proletarizadas nesse sentido político, ainda que não no econômico ( também já começam a estar), mas no político sem dúvida al guma. MS - Mesmo na Europa as classes médias estão perdendo poder...
Milton Santos
285
GG - Até porque na Europa, eu acho que o que se
do tipo ecologia, problemas nas reservas ecológi
chama de povo é todo da classe média, basica
cas, que são de interesse internacional, proble
mente.
mas do tipo tráfico de drogas, que são problemas
MS - Exatamente. Só que agora estão perdendo
que não podem ser solucionados parcialmente por
as vantagens sociais, perdendo o emprego. GG - Portanto estão se tornando povo no sentido simples. MS - Eu creio que essa cortina de fumaça extre mamente densa que se estabeleceu pelo que es tou chamando vilolência da informação, nesses úl timos 30 anos, é que está chegando ao limite. En tão há uma busca de outra coisa, uma busca que é confusa por enquanto. Eu acho o que a gente chama de povo tem uma enorme sensibilidade mas não pode ter o entendimento, porque o mun do é muito complexo.
nenhuma nação e nem mesmo por pequenos con juntos de Estados. O que o senhor acha disso? MS - Na realidade, são duas tendências que vão terminar se chocando. De um lado esse governo das coisas que busca verticalizar tudo, como o Banco Internacional de Berna que disciplina o tra balho bancário no mundo inteiro, e, de outro lado, uma certa vontade de moralidade internacional que seria o apanágio do homem outra vez. A difi culdade é que nós ainda estamos confundindo di reitos do Homem com direitos humanos. Os direi tos humanos estão indo bem, agora quanto aos direitos do Homem ainda estamos muito atrasa
GG - Professor, uma questão no meio. O senhor não acha que esse processo todo do sistema, en fim, as relações corporação para corporação, a troca dos interesses fechados, a alienação absolu ta do que seja o interesse coletivo, a morte da política, a morte do Estado, etc., antes do desem bocar nesse oceano da novidade, popular, da cria
dos. GG - Faça um pouco a distinção. MS - Os direitos humanos estão ligados à espeta cularização do sofrimento de algumas pessoas, bem colocadas para produzir o espetáculo, e aí há uma mobilização espetacular mas que não resolve
ção, do fôlego, da ânsia, do desejo da sobrevivên
o caso de cada indivíduo.
cia popular, através da criação de uma novidade
GG - Não chega lá.
qualquer, de um novo Estado, das novas institui
MS - Mas uma coisa da nossa área que estive
ções, o que quer que seja, o senhor não acha que antes disso tudo esse velho sistema, o "ancien re gime", não vai passar pela fase da hipertrofia fi nal, a fase hipertrofiada do sistema, como uma coisa do tipo "governo mundial", por exemplo? MS - Há essa busca, e já está se dando, de algu ma maneira, nas finanças. GG - Nas finanças já existe, sem dúvida alguma. No campo mesmo das organizações, com o cresci mento e fortalecimento dessas organizações do tipo ONU, até de outras; fundação de congressos in ternacionais, Parlamento Europeu, primeiro as configurações
regionais,
planetárias-regionais
desse processo, e depois uma configuração final, realmente global através de um governo mundial, com
congressos
onde
corporações
nacionais
econômicas e políticas tenham representações, nações com senados e câmeras constituídos glo balmente, internacionalmente para gerir questões
pensando recentemente: o número de estádios de futebol que se criaram no mundo nos últimos anos, isso junta ao número de enormes clubes ... GG - Esses são os indícios nesse sentido contrá rio, no sentido da reação, como o organismo hu mano reage. MS - Nessas casas de diversão paulistas, cariocas, etc., onde eu infelizmente não vou mais, há quan tas pessoas? São milhares. GG - Uma nova sinergia, uma massa crítica que está se formando. E nesse sentido, o paradoxo não se instala de novo de uma forma dramática para o sistema? Quanto mais verticalizado se tor na o sistema mais horizontalidade ele promove potencialmente? MS - A horizontalidade, aí é um outro problema para a epistemologia, porque nos ensinaram, e, nós continuamos ensinando, que nós pensamos com o cogito - "eu penso, eu existo". Não é nada
286
Milton Santos
disso. A verticalidade exacerba essa idéia do pen
o paradoxo moderno que me interessa profunda
samento calculante, racional.
mente, o sistema ele precisa de otimização, ele
GG - O controle.
precisa cada vez mais de mercado, ele precisa
MS - E a emoção? E é isso que eu acho que está voltando, o poder da emoção que se dá no hori zontal, porque são os homens que se encontram, é o mundo das surpresas, e surpresa é sinônimo de futuro. O problema é que a codificação dessa situação é difícil. GG - Mas que havendo um vertical, o que seja, o que se manteve, ele vai ter que cair. (risos)
cada vez mais de ampliações, ele precisa outorgar a massa, ao povo, a condição: seja a cidadania, seja renda, seja acessos a conhecimentos, tecno logias etc, etc, etc.. Como é que ele se sustenta então, se na verdade o que ele faz é alimentar o inimigo? MS - E há uma outra coisa que eu queria incluir na nossa conversa, é que pela primeira vez na história da modernidade o homem é o senhor da
MS - Acho que já começa a cair, mas se
técnica, coisa que ele nunca foi, durante o tempo
restaura...
da chamada natureza que sempre foi hostil ao ho
GG - Se restaura sempre na mesma altura ou ele
mem. O homem não mandava em nada pois as
vai perdendo? É como se essa mundialização geri
suas descobertas eram subordinadas as condições
da a partir desse sentido criptocrático dos peque
ambientais, hoje é que o homem começa a ser
nos grupos cada vez menores e cada vez mais po
autônomo.
derosos, será que também eles não estão vivendo
GG - Criou suas segundas, terceiras, quartas na
uma ilusão e que de fato o que está acontecendo
turezas. Próximas, intocáveis por eles.
seja o estender desse lençol horizontalizante da sociedade?
MS - Hoje, a "natureza" cada vez mais se retira, este desencantamento do mundo, que a globaliza
MS - Acho que a questão crucial é o trabalho, por
ção acelerou, criando cada vez mais diversidades
que é pelo trabalho que a gente vai chegar lá.
baseadas no artifício de que as cidades são exem
Porque cada um de nós é dois, então nós somos o
plo e permitindo uma fluidez fundada em pontos
homem que tem que trabalhar para alimentar a
do planeta devidamente equipados e produzindo
família, pagar o aluguel, educar os meninos etc.,
relações verticais. ÉSó que paralelamente haveria
e aí a gente se subordina ao comando de quem
de se descobrir como utilizar essa diversidade: os
produz o emprego. Na medida em que o emprego
ecologistas falam de biodiversidade, e eu estou
deixa de existir, deixa de ser permanente, deixa
chamando a cidade grande de o lugar da sociodi
de ser suficiente, e na medida em que eu começo
versidade, quero dizer quanto mais sociodiversi
a descobrir o mundo e vejo que as coisas se pas
dade mais riqueza.
sam mais ou menos igualmente por toda parte,...
GG - Sociodiversidade, vários microorganismos
GG - Cá embaixo.
em interatividades.
MS - Eu creio que algo está se gestando com a di
MS - Em profissões, em formas de trabalho.
ficuldade, de um lado de uma quantificação, de entendimento codificado, porque contraria todas as teorias e práticas vigentes nesses séculos to dos, que nós adoramos, e de outro a dificuldade de transcrever isso na política, que deixou de existir. GG - Como é que o sistema que trabalha para manter esses instrumentos de controle de vertica lidade etc, etc. como é que ele vai sustentar o fato de que é ele próprio que provoca cada vez mais a aglutinação do pensamento oposto? Esse é
GG- Sociais, operacionais, técnicos, vivenciais etc.. MS - O dia em que descobrirmos a fórmula de po tencializar as relações, porque é isso que cria a ri queza. A grande riqueza hoje é gente, é o ho mem. A partir das novas tecnologias, esse poder do homem aumenta, só que atualmente, se privi legia sempre a tecnologia mais recente, que não é necessária para o bem estar da maior parte da
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população. Então o acesso fica cada vez mais li
todo mundo, melhorar o nível de vida das pesso
mitado.
as. Não é obrigatóriamente reforma agrária.
GG - Vou dar um saltozinho, mas está nisso tudo
GG - Com a fixação obrigatória da família àquele
-- e a reforma agrária? O senhor falava em algum
pedaço, e à determinadas tecnologias que devem
momento na tendência para a reunião, muito ao
permanecer por toda vida, e coisas desse tipo.
contrário do que almeja a reforma, no sentido idí
Porque a pequena gleba, de uma certa forma,
lico de reforma agrária que é a divisão tranqüila,
nesse sentido clássico, acaba levando a isso.
equânime da terra etc, etc.. Como o senhor vê
MS - É um obstáculo à inserção no progresso téc
isso hoje? MS - Eu acho uma coisa muito difícil de falar no Brasil.
nico e mesmo no progresso organizacional. GG - Agora como se explica por exemplo o fenô meno dos sem-terra, o fenômeno ambulante, o
GG - Porque o politicamente correto exige por um
fenômeno político nesse sentido. Essa circulação
lado...
dos sem-terra, que aparecem dos vários lugares,
MS - Mas uma análise digamos fria, não descom
que se multiplicam, que se organizam, que se
prometida, leva a pensar que a reforma agrária é uma herança romântica. Corresponde ao mundo
submetem aqui e ali as manipulações de outros interesses; o que é esse fenômeno dos sem-
que não existe mais, que no Brasil ainda se justi
terra?
fica porque tem muito analfabeto no campo.
MS - Na realidade, eu não os estudei de perto.
GG - Quando o senhor diz que ainda se justifica,
GG - Eu sei, mas a sua percepção à distância...
significa que no Brasil ainda é possível pensar de
MS - É uma forma dessa mobilidade atual dentro
alguma maneira na reforma agrária para alguns setores, num sentido parcial, numa escala menor, que dure o que possa durar?
do mundo, favorecida por uma vontade política, legítima, porque eu creio que os sem-terra consti tuem uma boa coisa no Brasil, são os únicos que
MS - Exato. Mas parte da esquerda, e entre meus
ainda podem protestar, os outros brasileiros tem
colegas e meus alunos, alguns ficaram zangados,
dificuldades de protestar por causa da relação de
porque há toda uma forma de pensar obediente
emprego.
ao politicamente correto, á necessidade de slo
GG - Patronal. (risos)
gans... GG - Então esse mito da reforma agrária, tal como ele vem sendo sustentado até aqui, não tem futuro.
MS - Eles são como se tivessem procuração do resto do país para protestar. Daí a simpatia. Vejo muita gente que não está de acordo com eles mas tem simpatia porque eles fazem por nós o traba
MS - Ele tem que ser revisto se a gente quer tra
lho de protesto. Mas eu não creio que a reforma
tar a questão seriamente, porque o mundo de
agrária como colocada romanticamente, tenha
hoje é o mundo da circulação, não é o da produ
muito futuro não, porque...
ção. Antigamente a produção se servia da circula
GG - O objeto da questão que está por trás, a ter
ção, hoje é o contrário: é a circulação que decide da produção. Por conseguinte é pouco entregar terras. A fixação na terra é ilusória porque não re solve realmente o problema. Quem ainda encon tra solução são as cooperativas, que já são uma tendência à conservação. A reforma agrária tam bém é um fator de modernização, então ela vai acelerar uma série de outros processos moderni zadores que levarão à sua desagregação também. O que é que, a médio prazo, nós queremos no país? Dar comida a todo mundo, dar emprego a
ra, o pedaço de terra que é o objeto da conquista, é uma coisa que também não tem futuro. MS - O que é curioso é que na Europa, o vigente no momento atual é a concentração das terras ou o convite a plantar menos, ou mesmo a não plan tar. Mas os Estados, preocupados com a seguran ça nacional, estimulam a permanência de uma certa quantidade de produção. Cada país quer ter a sua produção nacional estratégica. No Brasil, onde essa idéia de nação esta sendo rapidamente
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assassinada pelo aparelho do Estado, donde apa
MS - E se tornou uma frase política, respeitada
rece como extremamente contraditório, porque
até pelas direitas.
nós produzimos para vender e aceitamos tranqüi
GG - Muito mais por eles do quem quer que seja.
lamente comprar maciçamente também quando a ocasião se apresenta; então essa idéia de relação obrigatória, entre um dado homem, e um dado
(risos) MS - Só a extrema direita é que ...
pedaço de terra me parece ter muito pouca espe
GG - Rejeita.
rança. Tudo desemboca nas cidades. Há cidades
MS - Mas todo mundo quer a reforma agrária, en
que são chamadas de inchadas, não sei até que
tão não há mal nenhum. Você divide a terra mas
ponto são realmente inchadas, não sei até que
não tem que entregar daqui a pouco. O politica
ponto há uma saturação real ou não, mas apare
mente correto.
cem como um problema essas cidades. Depois os mais baixos salários hoje tendem a ser urbanos, não são rurais. De modo que o mito da cidade não aparece mais como aquele eldorado que era ...
GG - Professor, uma última coisa, dentro desse conjunto de variáveis; população, é um tema de recente popularidade com o tal Summit internaci onal que houve agora promovido pelos grandes organismos internacionais, essa coisa da explosão
GG - Há 30, 50 anos atrás.
demográfica.
MS - Há 50 anos atrás. A tendência da agricultura
MS - Não me assusta a explosão demográfica.
é rapidamente se mecanizar, se capitalizar. O campo aceita mais rapidamente o capital novo do que a cidade. O campo é mais receptivo, permeá vel ao grande capital, então rapidamente as famí
GG - O senhor duvidava um pouco do inchaço da cidade. MS - Não me assusta. São Paulo cresceu enrique
lias vão se estabelecer e vão descobrir que não
cendo todo mundo.
tem muita chance. Exceto se se incluirem em um
GG - O senhor acha que o grande capital do futu
processo centralizador, como no caso dos frangos
ro é gente?
etc., onde o pequeno produtor está ali, mas é ver
MS - Eu creio que é isso mesmo: gente.
ticalmente obediente até nos processos, do cotidi ano da produção. GG - Planejamento da cidade, da indústria do ca pital. MS - Do grande capital. Então manter essa ilusão da reforma agrária como solução me parece ina
GG - A fase popular da história quer dizer tam bém isso. MS - Mais gente. E haverá um processo de aco modação. GG - A taxa de crescimento brasileiro esta caindo.
dequada.
MS - Baixou muito.
GG - Eu tinha esse sentimento.
GG - É um dado da fase popular da história, tem
MS - Pensando no atual mais do que no futuro. Pensar hoje centenas e milhares de pessoas. GG - Por isso que eu coloquei a questão do sem-
que ter gente. MS - Tem que ter gente, é o que dá a possibilida de da efervescência.
terra. A terra e o sem-terra, mas os sem-terras
GG - Encher os estádios de futebol. (risos)
são a circulação. Há uma certa demanda reprimi
MS - E também as casas de diversões. Quanto
da que precisa ser satisfeita. É preciso dar um
mais cheias, melhor.
pouco de reforma agrária.
GG - Muito obrigado, professor.
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