UNIVERSIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Teatro de Guerra A Importânci Importânciaa Estratégica Estratégica das Artes Artes Cênicas Cênicas para a Política Internacional Bipolarizada da Guerra Fria
Mariana Mariana Carrozzino Carrozzino Guimarães
Rio de Janeiro 2014
UNIVERSIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Teatro de Guerra A Importância Estratégica das Artes Cênicas para a Política Internacional Bipolarizada da Guerra Fria
Mariana Mariana Carrozzino Carrozzino Guimarães
Monografia de Graduação apresentada ao Curso de Graduação em Rela Relaçõ ções es Inte Intern rnac acio iona nais is,, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito requisito parcial parcial para obtenção do grau de bacharel em Relações Internacionais.
Orientador: Prof. Pinheiro Pereira
Rio de Janeiro 2013
Dr.
Wagner
UNIVERSIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Teatro de Guerra A Importância Estratégica das Artes Cênicas para a Política Internacional Bipolarizada da Guerra Fria
Mariana Mariana Carrozzino Carrozzino Guimarães
Monografia de Graduação apresentada ao Curso de Graduação em Rela Relaçõ ções es Inte Intern rnac acio iona nais is,, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito requisito parcial parcial para obtenção do grau de bacharel em Relações Internacionais.
Orientador: Prof. Pinheiro Pereira
Rio de Janeiro 2013
Dr.
Wagner
AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais por todo o apoio, por tudo o que me ensinaram e por tudo o que fizeram por mim. Ao Professor Wagner Pinheiro Pereira, agradeço a orientação para a realização desse trabalho. Ao Professor Leonardo Valente, agradeço a aula que de despertou meu interesse pelo tema abordado, e agradeço à Professora Flavia Guerra pelas contribuições feitas. Agradeço às minhas amigas Alene Botareli, Beatriz Albuquerque, Nata Katsivalis e Thais Vivacqua pela companhia e incentivo. Agradeço a todos meus colegas de turma e a todos os meus professores pelas lições, conversas, debates e trocas de ideias que me trouxeram até aqui. Agradeço à Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo privilégio de ter sido acolhida entre as suas paredes e convivido com todos os seres humanos maravilhosos que essa universidade abriga. Por fim, agradeço a todos aqueles que acreditaram e torceram por mim.
RESUMO A Guerra Fria foi um período de disputas disputas estratégicas estratégicas entre Estados Unidos Unidos e a União Soviética. Durante esse período houve conflitos, mas eles não aconteceram diretamente entre as duas superpotências, e sim nas periferias. Havia o temor de que a ocorrência de uma verdadeira guerra entre os dois país pudesse resultar na destruição de uma parte significativa da Terra, graças graças aos aos seus seus arsena arsenais is atômi atômicos. cos. Dessa Dessa forma, forma, as as dua duass nações nações tent tentaram aram maximi maximizar zar as as suas influências culturais e ideológicas, para fins de legitimização do conflito, e de contenção e dissuasão dissuasão do inimigo. Seguindo Seguindo essa lógica, o objetivo objetivo dessa pesquisa é analisar, analisar, de um modo geral, como os mecanismos de poder e influência associados à cultura e às artes podem ser acionados nas relações internacionais, e, especificamente, a importância estratégica das artes cênicas para a política internacional bipolarizada do período da Guerra Fria.
Palavras-chave: poder brando, cultura, Guerra Fria, artes cênicas, Estados Unidos, União Soviética.
ABSTRACT The Cold War was a period of strategic disputes between the United States and the Soviet Union. During this period there were conflicts, but they did not happen directly between the two superpowers, but on the outskirts. There were fears that the occurrence of a real war between the two countries could result in the destruction of a significant part of the Earth, because of their atomic arsenals. Thus, the two nations have tried to maximize their cultural and ideological influencer, for the purpose of legitimizing the conflict, and containment and deterrence of the enemy. Following this logic, the goal of this research is to analyze, in general, how the mechanisms of power associated with culture and arts can be triggered in international relations and, specifically, the strategic importance of the performing arts to the bipolarized international politics during the Cold War.
Keywords : soft power, culture, Cold War, performing arts, United States, Soviet Union.
SUMÁRIO Agradecimentos...........................................................................................................................p. 4 Resumo........................................................................................................................................p. 5 Introdução...................................................................................................................................p. 9
CAPÍTULO 1 O Impacto da Cultura e das Artes nas Relações Internacionais .........................................p. 12 1.1 O que é arte?............................................................................................................p. 13 1.2 Cultura, Arte e Instrumentos de Poder.....................................................................p. 15
CAPÍTULO 2 A Guerra Fria...........................................................................................................................p. 23 2.1 O conflito ideológico entre Estados Unidos e União Soviética...............................p. 24 2.2 Guerra Fria e Branda................................................................................................p. 26 2.3 Confraternizando com o Inimigo: Diplomacia Cultural na Guerra Fria..................p. 28
CAPÍTULO 3 O Papel das Artes Cênicas no Período da Guerra Fria........................................................p. 32 3.1 Uma Batalha Crítica.................................................................................................p. 36 3.2 Inimigos Infiltrados? - Censura e Caça às Bruxas...................................................p. 43 3.3 Gestos bélicos: a Dança...........................................................................................p. 58
CAPÍTULO 4 A batalha pelo domínio cultural da Alemanha .....................................................................p. 61 4.1 Berlim: Palcos de Guerra.........................................................................................p. 63 4.1.1 Ópera em Berlim: Construindo uma Identidade Russa.............................p. 69 4.1.2 Brecht em Berlim: Aliado ou Inimigo?....................................................p. 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................p. 78 REFERÊNCIAS.......................................................................................................................p. 80
9
Introdução O nome “Guerra Fria” designa designa um período em que houve disputas disputas estratégicas estratégicas entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ela occorreu a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1945), se estendendo estendendo até o colapso colapso da União Soviética Soviética (1991). Durante Durante esse período houve houve conflitos, mas eles não se deram diretamente entre as duas superpotências, e sim nas periferias. Por isso esse evento histórico é considerado peculiar. Os teóricos teóricos construtivi construtivistas stas das relações relações internacionai internacionaiss chamam a atenção para a importância do componente ideológico presente na Guerra Fria, enquanto o neoliberal Joseph Nye Jr. Mostra a relevância r elevância do seu conceito de “poder brando” nesse período histórico em que o “poder duro” poderia se manifestar apenas de uma maneira limitada. Essa pesquisa se baseia no fato de que, durante a Guerra Fria, as duas potências envolvidas buscaram dilatar ao máximo suas influências culturais e ideológicas, para fins de legitimizaç legitimização ão do conflito, conflito, e de contenção e dissuasão dissuasão do inimigo. inimigo. Seguindo essa lógica, lógica, o objetivo é verificar, de um modo geral, como os mecanismos de poder e influência associados à cultura cultura e às artes podem ser acionados acionados nas relações relações internacio internacionais, nais, e, especificam especificamente, ente, a importância estratégica das artes cênicas para a política internacional bipolarizada do período da Guerra Fria. É trabalhada trabalhada a hipótese hipótese de que os líderes líderes políticos políticos dos Estados Estados Unidos Unidos e da União Soviética trabalharam na construção dialética de uma alteridade, definindo uma identidade nacional e a indentidade de um inimigo externo. As artes cênicas foram utilizidas tanto como um instrumento de construção, quanto um instrumento de propaganda dessas identidades, e também também para a afirmação de uma suposta supos ta superioridade ideológica e cultural. A escolha do tema desse estudo estudo atende aos critérios critérios de originalidade originalidade,, importância importância e viabilidade. Recentemente, a importância de aparatos de coerção indireta e de instrumentos sutis do poder tem ganhado destaque destaque nas pesquisas pesquisas das relações relações internacionais, internacionais, entretanto, entretanto, eles ainda são constantemente subestimados e desmerecidos por grande parte dos estudiosos da área, a cultura, por exemplo, é considerada “low politcs” (baixa política) pelos realistas. A Guerra Fria, por todas as suas particularidades, particularidades , se mostra um período histórico relevante r elevante para os estudo desses dispositivos. Apesar dos estudos sobre o papel da cultura, das artes e das formas brandas do poder na Guerra Fria terem se multiplicado nas últimas últimas décadas, é possível notar que o tema ainda não se
10
esgotou. esgotou. Devido a sua complexidade complexidade e a sua extensão, ele ainda demanda demanda novas abordagens. abordagens. Por essa razão, o recorte escolhido foi o da relevância das artes cênicas, uma vez que outras formas de arte, como o cinema, têm sido abordadas exaustivamente. Serão considerados estes procedimentos metodológicos no decorrer da pesquisa:
Leitura e análise de livros de diferentes áreas que tratem da Guerra Fria e/ou das artes cênicas, e/ou trabalhem com os conceitos de cultura, arte, alteridade, poder, imaginário social, identidade nacional e inimigo externo.
Leitura e análise de entrevistas e artigos jornalísticos, pertinentes para a compreensão das artes cênicas e/ou dos acontecimentos políticos que se deram no período da Guerra Fria
Leitura e análise de material empírico das artes cênicas como textos teatrais, letras de músicas compostas ou utilizadas no contexto das artes cênicas, bibliografia pertinente e outras fontes.
Análise de discurso e análise simbólica
No primeiro capítulo, procura-se compreender o conceito de cultura, de arte, e a importância importância desses dois elementos elementos para a dominação, dominação, a hegemoni he gemonia, a, e as relações entre Estados, a partir de ideais de filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores e teóricos das relações internacionais. Constatamos a relevância das contribuições de Foucault, Chartier, Baczko, Bourdieu, Gramsci, Joseph Nye Jr., e da corrente construtivista das relações internacionais como um todo. No segundo capítulo, ainda introdutório, procura-se procur a-se apresentar aprese ntar as origens e a natureza do conflito conflito ideológi ideológico co da Guerra Fria. Observamos Observamos uma contextualiza contextualização ção histórica histórica e esclarecemo esclarecemoss suas implicações. Neste capítulo a teoria do poder brando de Joseph Nye reafirma a sua importância. O terceiro capítulo inicia a explanação do tema de fato. Ele busca mostrar a relevância do papel da mídia impressa e da censura para o controle do conteúdo das artes cênicas. A partir disso podemos compreender como acontecia de fato a manipulação das artes para fins de construção de identidades e de propaganda. Para isso, é analisada a crítica especializada em artes
11
cênicas publicada no período, os eventos ocorridos com o Teatro Sovremennik,com o ator e diretor diretor Yuri Lyubimov, Lyubimov, com o dramaturgo dramaturgo Bertolt Bertolt Brecht e o diretor Joseph Joseph Losey, e com o diretor Elia Kazan e o dramaturgo Arthur Miller. Por fim estudamos o caso da dança soviética e norte-americana. Finalmente, Finalmente, no último último capítulo capítulo lançamos lançamos nossa atenção atenção para as particularida particularidades des da dinâmica da concorrência de influências na Alemanha, um país oficialmente dividido entre a França, Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética. Verificamos um histórico geral sobre as produções teatrais berlinenses no período, investigamos um episódio curioso sobre a ópera encenada na cidade, e mais uma vez nos voltamos para o polêmico Bertolt Brecht.
12
Capítulo I: O Impacto da Cultura e das Artes nas Relações Internacionais “A potência vai v ai muito além do militar, do jurídico, do executivo execu tivo e da administração. Pelas hierarquias complicadas, que se recortam e que fazem com que o poder supremo se espalhe espalhe e se dilua em uma infinidade infinidade de subpoderes, subpoderes, o econômico, econômico, a cultura cultura e os valores valores participam muito para a vontade que têm muitos homens de dominar os outros.”
(Jean-Baptiste Duroselle, “Todo Império Perecerá”)
13
1.1 O que é arte? De início, é necessário esclarecer o sinificado de “arte”. Um dicionário estabelece a seguinte definição: 1. Conjunto de prescrições de um ofício ou profissão. 2. Saber ou perícia em saber uma coisa. 3. Conjunto de obras artísticas de uma época, de um país. 4. Dom, habilidade, jeito. 5. Ofício, profissão. 6. Maneira, modo. (ARTE In: DICIONÁRIO de Português. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002, p. 44)
Para Nietzsche, desde Sócrates e Platão a arte oscila “na direção de uma ordem que ignora sua expressão para se estabelecer no discurso, o logos, no qual se refletirá, mantido a distância pela razão ou mesmo pelo raciocínio”. (CAUQUELIN, 2005, p. 28). Desde a antiguidade, muitos se debruçam sobre essa pergunta, “o que é arte?”, tentando encontrar um conceito que apresente algo de essencial, comum a todas as manifestações artísticas. A estética, como ramo da filosofia, tem se ocupado de esclarecer as propriedades da arte e do belo. Entretanto, a Antropologia desafia a possibilidade de se traçar um conceito único para a arte. O antropólogo cultural Luiz Gonzaga de MELLO (2001) observa que a arte é muito dependente do seu meio, uma vez que ela é parte de uma cultura, sendo ao mesmo tempo tradição cultural e elemento transformador da cultura. “O que é belo para determinado povo pode não sê-lo para outros. Em suma, negar tudo isso é negar à arte sua condição de atividade cultural e social” (MELLO, 2001, p. 430) Podemos notar que o significado de “arte” sofreu muitas transformações com o passar do tempo. Por exemplo, Platão, autor do primeiro registro ocidental sobre uma concepção de arte, a enxergava como uma atividade mimética, uma imitação da realidade. (MELLO, 2001, p.427428) Segundo Cauquelin (2005, p. 27-71), Immanuel Kant, com a publicação de sua “Crítica do Juízo” (1790), se mostrou disposto a encontrar a universalidade da atividade estética, tentando emancipá-la da opinião e do julgamento e percebendo a arte como uma forma autônoma do conhecimento. Essa foi a base para o pensamento estético de Hegel, que propõe uma visão sintomática das manifestações da arte ao fazer delas fenômenos ligados à história. Cada período da arte, com suas produções singulares, é visto como sintoma da vida contínua do espírito que, expressando-se por meio delas, indica o seu próprio desenvolvimento. Um século depois, Nietzsche pensaria a arte seguindo uma perspectiva romântica. Para ele há duas pulsões da
14
natureza: o “apolíneo” conduz à lucidez, ao belo, enquanto o “dionisíaco” conduz à embriaguês, o estado de caos. Nietzsche entende que “o progresso da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, de modo parecido com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas” (CAUQUELIN, 2005. p. 27). Enquanto para Hegel a arte é obra do espírito, para Nietzsche, ela é obra do gênio. Em resumo, posso afirmar que uma infinidade de pensadores, das mais variadas épocas e partes do globo, se ocuparam em atribuir à arte as mais diversas qualidades. Essas qualidades se modificaram de acordo com o repertório, as pretensões, os objetivos, as perspectivas, a cultura de cada um destes pensadores. Desse modo, hoje existem muitas concepções de arte divergentes, ou até mesmo excludentes. Jorge Coli, pesquisador de história da arte e da cultura, verifica esse fato de modo interessante: Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que proferem o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador de museu (...) O estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai. (...) A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o dicurso, o local, as atitudes de admiração, etc. (...) esses instrumentos e a própria noção de arte são específicos de nossa cultura. (COLI, 1995, p. 9-11)
Logo, o conceito de “arte” é plural e dinâmico, uma vez que é essencialmente dependente de uma contextualização cultural. Como Chartier (2006, p. 35) explicou em relação às obras culturais e estéticas: “uma leitura cultural das obras relembra que as formas que as dão a ler, a ouvir e a ver, também participam na construção do seu sentido”. A arte é relevante para a cultura por sua natureza semiótica, uma vez que ela dá a ler um sem número de representações, de signos, de símbolos. Decorrem da arte processos de representação e significação, enquanto ela traz consigo aspectos culturais e histórico-sociais próprios. Portanto, a arte projeta valores e sentidos, gera significados. Por isso a arte é um elemento transformador da cultura, ao mesmo tempo em que é um elemento cultural tradicional.
15
1.2 Cultura, Arte e Instrumentos do Poder Afim de explorar um tema tão complexo quanto o poder, devo começar apresentando as constribuições do filósofo francês Michel Foucault. Segundo Patricia O’Brien (1989, p. 34), o poder em Foucault não é apreendido pelo estudo de conflitos, de lutas ou de resistências, pois essas seriam apenas manifestações limitadas dele. O poder não é característica de uma classe ou uma elite dominante, e nem é atribuível a um indivíduo, ele não se origina e não é fundamentado na política ou na economia, e não se constitui apenas em uma força opressiva. Devemos parar de uma vez por todas de descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele 'exclui', ele 'reprime', ele 'censura', ele 'subtrai', ele 'mascara', ele 'esconde'. Na verdade, o poder produz ; ele produz realidade; produz domínios de objetos e rituais de verdade. 1 (FOUCAULT, 1991, p.194, tradução minha, grifo meu)
O poder produz a verdade e, portanto, sua própria legitimação. Logo, Foucault rejeitava a ideia de que o Estado seria o único responsável pela construção de todos os aparatos e mecanismos de poder que viriam a se abater sobre os civis. Em vez disso, existiriam micropoderes dispersos no interior da própria sociedade, sendo partes constitutivas dela mesma. Por isso, o Estado em si seria o efeito de uma multiplicidade de movimentos, que funcionariam como engrenagens. Para o filósofo, uma série de elementos como o Estado, a sociedade, a economia, não seriam objetos estáveis, e sim discursos . Com essa lógica, ele nega as dicotomias opressores/oprimidos e governantes/governados, posicionando o Estado como apenas mais um entre vários focos de poder. (O’BRIEN, 1989) Foucault tentava reconhecer e justapor diferenças na busca das manifestações de poder que permeariam todas as relações sociais, estudando as interconexões que se configurariam entre essas manifestações. Nesse processo de interconexão, os pequenos focos de poder se difundiriam no corpo social. Enxergar o poder como um fenômeno complexo e analisá-lo sob a ótica do discurso nos permite perceber o momento em que novas tecnologias de poder são introduzidas, e, principalmente, nos permite perceber como a sociedade funciona. (O’BRIEN, 1989)
1
“We must cease once and for all to describe the effects of power in negative terms: it ‘excludes’, it ‘represses’, it ‘censors’, it ‘abstracts’, it ‘masks’, it ‘conceals’. In fact power produces; it produces reality; it produces domains of objects and rituals of truth. The individual and the knowledge that may be gained of him belong to this production”
16
Com similaridades em relação ao pensamento de Foucault, a teoria construtivista das Relações Internacionais também contesta a afirmação dos realistas de que o Estado seria o grande centralizador e detentor do poder. Os pensadores construtivistas, assim como Foucault, veem o poder como algo dinâmico e descentralizado, atribuindo grande importância ao discurso. De acordo com Emanuel Adler, o construtivismo entende que o mundo material forma e é formado pela ação e interação humana, mostrando que as instituições mais duradouras são baseadas em entendimentos coletivos.2 Ele explica que a dinâmica construtivista se dá por meio da chamada “evolução cognitiva”. Esse fenômeno significa que, em algum ponto no tempo e no espaço de um processo histórico, os fatos institucionais e sociais foram construídos por entendimentos coletivos do mundo físico e social que são sujeitos a processos autorizados (políticos) de seleção e, portanto, à mudança evolutiva. Sobre isso ele destaca: Para serem incontestáveis, os fatos institucionais devem apoiar-se em um poder. Em outras palavras, as ideias intersubjetivas devem ter autoridade e legitimidade e evocar a verdade. (...) Portanto, não de todo discordante do conceito de poder de Foucault, que enfatiza os efeitos disciplinares dos corpos de conhecimento e discurso, o poder fixa um campo de possibilidades conceituais, normativas e práticas que definem o que é legítimo e ilegítimo na política internacional. (ADLER, 1999, p. 229)
O acadêmico construtivista Nicholas Onuf destaca o discurso como a categoria essencial de sua análise, ainda que reafirme a importância da racionalidade e do mundo material. Segundo ele, não se trata tanto de negar o mundo material quanto se trata de dar precedência ao social, isto é, àquilo que entendemos e definimos como realidade.3 Portanto, constatamos que chave do pensamento construtivista são as ideias. Para Alexander Wendt, por exemplo, existe um mundo material de fato, mas a sua materialidade seria fruto de uma construção social . O mundo material seria, portanto, um produto das ideias e dos valores dos agentes que o constroem.4
2
ADLER, Emanuel. “O construtivismo no estudo das relações internacionais”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, nº.47, pp. 201-252, Ago. 1999. 3 MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João. “Teoria das Relações Internacionais: Correntes e Debates” Rio de Janeiro: Editora Campus, 2005, p. 175. 4 Ibid, p. 178.
17
Após a introdução dessas ideias, é possível qualificar o entendimento de “cultura” que se insere neste trabalho. Segundo Roberto DaMatta (1986), o conceito de “cultura” é entendido pela antropologia social e pela sociologia como a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. A cultura é um código compartilhado por um grupo de indivíduos. Através desse código os indivíduos pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmos. A cultura é um conjunto de regras que diz como o mundo pode e deve ser classificado. Apesar do fato de todo individuo ter cultura elevar as possibilidades de atualização desta ao infinito, por outro lado a cultura indica limites e aponta elementos e suas combinações explícitas. (DAMATTA, 1986, p. 123-125). Essa ideia converge com a do historiador Roger Chartier. Para Chartier (2002b, p. 17), o objetivo da história cultural é: “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Este objeto decorre de uma definição dupla de “cultura”: A primeira designa as obras e os gestos que, em uma sociedade, tangem ao julgamento estético ou intelectual. A segunda visa as práticas ordinárias, ‘sem qualidades’, que tecem a trama das relações cotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade vive e reflete sua relação com o mundo e com o passado. (CHARTIER, 2002a, p. 93)
Portanto, segundo Chartier, a cultura é um sistema complexo de percepções e representações do mundo social. E sobre isso, ele afirma: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 2002b, p. 17)
Chartier (2002b, p. 30) observa que a historia cultural (o estudo no sentido antropológico) inclui visões do mundo e mentalidades coletivas, pois “a mentalidade de um individuo, mesmo
18
que se trate de um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com outros homens do seu tempo” (CHARTIER, 2002b, p. 41). Para ele, enquanto as ideias são construções conscientes de indivíduos, as mentalidades são construções coletivas, que regem as representações e juízo dos sujeitos sociais, sem que estes o saibam. A chamada “história das mentalidades”, defendida criticamente por Chartier, seria elogiada posteriormente pelo filósofo Bronislaw Baczko, pois esta teria posto em destaque a longa duração em que a imaginação social iria operar, assim como o peso da inércia dos imaginários nos comportamentos econômicos, demográficos, etc., bem como a especificidade dos períodos em que a produção dos imaginários se aceleraria e intensificaria (BACZKO, 1985, p. 308). As ideias de Baczko sobre a chamada “imaginação social” ou “imaginário social” são importantes para esse estudo porque estabelece um diálogo peculiar entre os conceitos de “cultura” e “poder”, esclarecendo perfeitamente os pontos que pretendo investigar. Segundo Baczko, “imaginação” ou “imaginário” remetem a um dado fundamental da condição humana. “Cada geração traz consigo uma certa definição do homem, simultaneamente descritiva e normativa, ao mesmo tempo que se dota, a partir dela, de uma determinada idéia da imaginação, daquilo que ela é ou daquilo que deveria ser.” O adjetivo “social” designa um duplo fenômeno. Por um lado, trata-se da produção de representações da “ordem social”, dos atores sociais e das suas relações recíprocas (hierarquia, dominação, obediência, conflito, etc.), bem como das instituições sociais, em particular as que dizem respeito ao exercício do poder. Por outro lado, o mesmo adjetivo designa a participação da atividade imaginativa individual num fenômeno coletivo. Todas as épocas têm as suas modalidades específicas de imaginar, reproduzir e renovar o imaginário, assim como possuem modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar. (BACZKO, 1985, p. 309) Para Baczko (1985, p. 309), é através do imaginário social que uma coletividade designa a sua identidade, elabora uma representação de si, estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, constrói uma espécie de código de “bom comportamento”, etc. Designar a identidade coletiva corresponde a delimitar o seu “território” e as suas relações com o meio ambiente e, designadamente, com os “outros”; e corresponde ainda a formar as imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados, etc. Baczko (1985, p. 311) explica que o imaginário social torna-se inteligível e comunicável através da produção dos
19
“discursos” nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa linguagem. O imaginário constitui uma vasta rede de signos que correspondem a tantos outros símbolos, assentando num simbolismo que é, simultaneamente, obra e instrumento. A partir de todas essas ideias, é possível compreender a constatação de Baczko sobre a relação entre poder e imaginário social. Segundo ele, é no próprio centro do imaginário social que se encontra o problema da legitimação do poder. Qualquer sociedade precisa imaginar e inventar a legitimidade que atribui ao poder, e qualquer poder precisa reivindicar uma legitimidade. Portanto, qualquer instituição social participa de um universo simbólico que a envolve e constitui o seu quadro de funcionamento. (BACZKO, 1985, 310) Por isso ele afirma: exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potencia “real”, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio. Os bens simbólicos, que qualquer sociedade fabrica, nada tem de irrisório e não existem, efectivamente, em quantidade ilimitada. Alguns deles são particularmente raros e preciosos. A prova disso é que constituem o objecto de lutas e conflitos encarniçados e que qualquer poder impõe uma hierarquia entre eles, procurando monopolizar certas categorias de símbolos e controlar as outras. Os dispositivos de repressão que os poderes constituídos põem de pé, a fim de preservarem o lugar privilegiado que a si próprios se atribuem no campo simbólico, provam, se necessário fosse, o carácter decerto imaginário, mas de modo algum ilusório, dos bens assim protegidos, tais como os emblemas do poder, os monumentos erigidos em sua glória, o carisma do chefe, etc. (BACZKO, 1985, p. 298-299)
As ideias observadas até agora neste capítulo podem ser complementadas ou comparadas àquelas contidas na obra do filósofo Pierre Bourdieu. Para Bourdieu (2001, p. 8-9), existem “sistemas simbólicos” (o mito, a língua, a arte e a ciência) que funcionam como instrumentos do conhecimento, da comunicação e da construção do mundo. Esses sistemas simbólicos são estruturantes porque são estruturados por um poder também nomeado “simbólico”. O poder simbólico constrói a realidade enquanto estabelece uma concepção homogênea do tempo e do espaço, tornando possível a concordância entre as inteligências. De acordo com Pierre Bourdieu (2001, p. 10-11), os símbolos são instrumentos por excelência da integração social e tornam possível a obtenção do consenso acerca do sentido do
20
mundo social, contribuindo fundamentalmente para a reprodução da ordem social dominante. É assim que ele admite que a arte (assim como o mito, a língua e a ciência), enquanto instrumento estruturante e estruturado de conhecimento e de comunicação, cumpre sua função política de instrumento de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica). Segundo ele: A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Este efeito ideológico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a função de divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante. (BOURDIEU, 2001, p. 10-11)
O poder simbólico é definido então como “esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2001, p. 7-8). Ao falar sobre “dominação cultural”, as ideias de Bourdieu encontram às do filósofo Antonio Gramsci. Um dos assuntos mais explorados na obra de Gramsci foram as questões ligadas ao fenômeno chamado “hegemonia cultural”. Nas palavras de Conceição Paludo: A hegemonia, segundo Gramsci, corresponde à direção intelectual e moral (cultural) predominantemente nas sociedades num dado momento histórico e representa a primazia da sociedade civil sobre a sociedade política. Ela se processa na superestrutura e mantém vínculos dialéticos e orgânicos com a esfera econômica (infraestrutura- sua base de classe). A complexa dinâmica hegemonia contempla a utilização de mecanismos de coerção e de consenso para a manutenção da ordem pelas classes dominantes sobre a sociedade. Quando há o predomínio da sociedade política ou do Estado na regulação social, tem-se a intensificação da coerção, que poderá chegar a
21
ditadura, e, quando se tem o predomínio da hegemonia, é maior a direção moral e intelectual (cultural) da sociedade civil. (PALUDO, 2001, p. 37)
Gramsci, assim como Bourdieu e Baczko, vê o poder de forma mais centralizada que Foucault e que os construtivistas, entretanto também o admite como um fenômeno complexo, que não é apenas coercitivo ou material, observando ainda estruturas análogas ao discurso. Para tornar ainda mais clara a maneira como o pensamento de Gramsci dialoga com os outros pensadores citados nesse capítulo, recorro à autora Rosemary Dore: Os grupos dominantes se utilizam de múltiplos e complexos meios na sociedade civil para tornar o seu pensamento hegemônico. Constroem na sociedade civil o que Gramsci chama de complexo de 'trincheiras e fortificações', do qual participam os mais diferentes organismos e procedimentos para compor um 'clima cultural', voltado para produzir e manter concepções de mundo que garantam sua expansão e direção sobre a sociedade. São formas de conceber o mundo e de agir no mundo que envolvem o senso comum, as crenças populares, a religião, os comportamentos, os costumes, os projetos e os ideais das comunidades, os conteúdos e as intenções de anedotas, a música, a literatura, a formação do 'gosto' cultural. (DORE, 2011, p. 84)
Em sua obra “Os Intelectuais a Organização da Cultura”, Antonio Gramsci afirma que cada grupo social cria para si uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade. (GRAMSCI, 1982, p. 3) Diferenciando-se a atividade intelectual em graus, o mais alto grau seria formado pelos criadores das várias ciências, da filosofia, da arte, etc. (GRAMSCI, 1982, p. 11) Sobre a função social dos intelectuais, Gramsci explica: Poder-se-ia medir a "organicidade" dos diversos estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para cima). Por enquanto, pode-se fixar dois grandes "planos" superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é; o conjunto de organismos chamados comumente de "privados") e o da "sociedade política ou Estado", que correspondem à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de domínio direto"ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "jurídico".Estas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são os "comissários" do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso"espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social,
22
consenso que nasce "historicamente" do prestígio (e,portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua .função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 1982, p. 11)
Com uma visão ainda mais centralizada do poder, Joseph Nye Jr., teórico neoliberal das relações internacionais, cunhou o termo “soft power” traduzido como “poder brando” para descrever a habilidade de um Estado para atrair e persuadir. Enquanto o “hard power” ou o “poder duro” é a habilidade de coerção, que se desenvolve paralelamente ao crescimento econômico e militar de uma nação, o poder brando cresce conforme a atração da sua cultura, dos seus ideais políticos, e de suas políticas. (NYE, 2004, p. 9) Para Nye (2004), um país pode obter seus objetivos porque os demais (admirando seus valores, seguindo seu exemplo, aspirando seus níveis de prosperidade e abertura) decidiram segui-lo. Sendo assim, ele destaca em sua obra “Soft Power: the means to success in world politics” a extrema atenção que a capacidade de atração de uma cultura deve receber, uma vez
que esta característica está entre as três únicas fontes possíveis de poder brando. Ele admite que a cultura, como um conjunto de valores e práticas que geram significado para uma sociedade, se manifesta de formas variadas, geralmente classificadas como “alta cultura” ou “cultura erudita”, como literatura, arte e educação, ou “cultura popular”, que foca basicamente o entretenimento de massa. (NYE, 2009, p. 25) Dessa forma, cada uma dessas manifestações culturais pode contribuir para o aumento do poder brando de um Estado. Com base em todas essas ideias, é possível verificar que a arte, como instrumento estruturante e estruturado da cultura, pode ser manejada com o objetivo de perpetuar ou até mesmo de construir determinadas ideais. A arte, como formadora de um sistema complexo de significantes, é linguagem, e como explica Fiorin (1999, p. 52): A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que transmite. A linguagem é sempre comunicação (e portanto persuasão), mas ela o é na medida em que é produção sentido.
23
Capítulo II: Guerra Fria - Disputa Ideológica e Diplomacia Cultural "Juntos, temos de aprender a compor a diferença, não com armas, mas com inteligência e um propósito decente.”
(Dwight D. Eisenhower)
24
2.1 O Conflito Ideológico entre Estados Unidos e União Soviética A partir do lançamento das duas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, até o fim da União Soviética, em 1991, o mundo vivenciu uma situação internacional peculiar conhecida como Guerra Fria. É chamada “guerra” pois “a guerra não consiste só na batalha, no ato de lutar: mas num período de tempo em que vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES apud HOBSBAWN, 1995, p. 224), é dita “peculiar” pois foi muito diferente da Segunda Guerra Mundial (que mal terminara quando esta começou), muito diferente daquilo que costumamos designar “guerra”. Isso porque a Guera Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos foi simultaneamente um confronto político-militar tradicional, e uma disputa cultural e ideológica em escala global sem precedente histórico. (CAUTE, 2003) O conflito entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética (URSS) começou de forma gradual. Durante dois anos as duas nações tentaram discutir e negociar suas diferenças sobre a divisão da Europa, a ajuda econômica pós-guerra, e sobre a bomba atômica. Porém, uma grande modificação ocorreu na política externa americana nos primeiros meses de 1947, quando o General George C. Marshall assumiu o lugar de secretário de Estado, convocando dois homens de confiança: Dean Acheson e George Keenan. Acheson, nomeado sub-secretário de Estado, almejava que os EUA assumissem o papel declinante da Inglaterra como árbrito dos negócios mundiais e opôs-se ao apaziguamento, advogando a política de negociar sempre a partir de uma posição de força. Enquanto Kennan, chefe do recém criado grupo de planejamento de política, havia servido em Moscou como diplomata, adquirindo uma profunda desconfiança pelo regime soviético. (DIVINE et al., 1992) Em fevereiro daquele ano, a Inglaterra informou aos EUA que não poderia mais continuar a ajudar os regimes anti-comunistas da Grécia e da Turquia. Acreditanto que o russos fossem os reponsáveis pelas desordens na Grécia (de fato, não eram), Marshall, Acheson e Kennan decidiram que os EUA deviam assumir o papel da Inglaterra no Leste Mediterrâneo. Acheson alertou que se a Grécia se tornasse comunista, ameaçaria o Irã, todo o Oriente Médio, África, Itália e França.
25
O Senador Arthur M. Vandenberg, republicano, disse que apoiaria o presidente, mas acrescentou que, para assegurar o apoio do público, Truman deveria “amendrontar para diabo” o povo americano. (DIVINE et al., 1992, p. 617)
No dia 12 de março de 1947, Truman pediu ao Congresso uma verba de US$400 milhões para assistência econômica e militar para Grécia e Turquia, deixando claro que a América devia ajudar os povos livres a resistir à sujeição. Ele usou a crise na Grécia para assegurar a aprovação do Congresso e obter consenso nacional para a política de contenção. A guerra civil na Grécia acabou em menos de dois anos, mas a disposição americana de se opôr à expansão comunista colocou os EUA numa rota de coalisão com a URSS. A chamada “Doutrina Truman” marcou a declaração informal de Guerra Fria contra a União Soviética. (DIVINE et al., 1992) Entretanto, apesar do uso de uma retórica apocalíptica por ambos os lados, não existia perigo iminente na Guerra Fria. A União Soviética exercia predominante influência por uma parte do globo (a sua zona de ocupação militar), e não tentava ampliá-la com o uso da força, enquanto os EUA exerciam predominância sobre o resto do mundo capitalista, sem intervir na zona de hegemonia soviética. (HOBSBAWN, 1995) A Guerra Fria foi moldada pelo novo primado da ideologia: pela herança compartilhada e disputada do Iluminismo europeu, e pela ascensão global surpreendente das prensas de impressão, do cinema, rádio e televisão, não esquecendo da proliferação de teatros e salas de concerto abertos ao público em geral, particularmente na URSS. Quando John F. Kennedy ocupava a Casa Branca, em 1961, o sputink russo alertou ao Ocidente que o sistema soviético estava oferecendo um desafio educacional e científico formidável. (CAUTE, 2003) Porém, vinte anos mais tarde, entre 1989 e 1991, o sistema comunista entrou em colapso, culminando na extinção da URSS. A derrota do sistema soviético foi principalmente tecnológico, uma falha em se manter emparelhado em relação à cibernética e aos computadores americanos, em um mundo cada vez mais dependente de chips e softwares, ou o Estado sumcumbiu ao peso do seu próprio exército? Segundo Hobsbawn (1995, p. 247), os EUA gastava com a corrida armamentista cerca de 7% de seu PIB, enquanto os gastos URSS podiam chegar a 25%. Esses fatores foram fortes, entretanto o “golpe mortal” que finalmente derrotou a União Soviética foi tanto moral, intelectual e cultural quanto econômico e tecnológico. (CAUTE, 2003)
26
2.2 Guerra Fria e Branda A Guerra Fria foi um período em que houve intensa hostilidade, mas não uma guerra de fato. Ocorreram lutas, mas elas aconteceram nas periferias, e não diretamente entre as duas superpotências. Por isso esse evento histórico é considerado excepcional. Segundo Nye (2007, p. 116), ele foi possível graças à escolha feita pelos dois países de dissuadir e conter. Segundo Hobsbawm (1995, p. 231) “enquanto os EUA se preocupavam com o perigo de uma possível supremacia mundial soviética num dado momento do futuro, Moscou se preocupava com a hegemonia de fato dos EUA, então exercida em todas as partes do mundo não ocupadas pelo Exército Vermelho”. Além disso, a lógica da Guerra Fria estava extremamente amarrada ao fato de que ambas as nações envolvidas possuíam um grande arsenal atômico. Havia um balanço de poder ao qual Nye chama “balanço do terror”, pois os dois países eram obrigados a organizar e calcular muito bem suas ações graças ao medo de que uma terceira guerra pudesse levar o mundo à destruição. Nesse contexto, os testes de força são mais psicológicos do que físicos. Por isso os Estados Unidos iniciaram uma política extensiva de dissuasão, tentando conter o comunismo enquanto disseminava o liberalismo. (NYE, 2007) Com o objetivo de influenciar o comportamento e os interesses dos demais Estados, e para conquistar o consentimento de sua própria população, os EUA passaram a acionar seu repertório cultural e ideológico, expandindo o seu poder brando. Para fins de contenção e dissuasão, houve a criação de um inimigo com base na sugestão e na auto-sugestão, na confusão entre fato e ficção, e na projeção de medos e desejos coletivos. (ROBIN, 2001) A cultura americana foi politizada. Os valores e as percepções, as formas de expressão, os padrões simbólicos, crenças e mitos que permitiam os americanos a atribuirem sentido à realidade foram contaminados pelo interesse político. A luta contra o comunismo doméstico encorajava uma interpenetração determinada da política e da cultura, de forma que as obras artísticas eram intrepretadas não pelo seu conteúdo, mas pela “politique des auteurs”. (WHITFIELD, 2006, p. 10) A “alteridade” é um conceito presente na psicologia, na antropologia e na filosofia. Ele consiste na ideia de que o indivíduo social se desenvolve a partir do contato com o outro. Segundo o antropólogo antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 7):
27
O diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência da alteridade: a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura para dizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou. Homem e mulher, branco e negro, senhor e servo, civilizado e índio... O outro é um diferente e por isso atrai e atemoriza. É preciso domá-lo e, depois, é preciso domar no espírito do dominador o seu fantasma: traduzi-lo, explicá-lo, ou seja, reduzi-lo, enquanto realidade viva, ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode dizer quem são as pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através das outras. Por isso o outro deve ser compreendido de algum modo, e os ansiosos, filósofos e cientistas dos assuntos do homem, sua vida e sua cultura, que cuidem disso. O outro sugere ser decifrado, para que lados mais difíceis de meu eu, do meu mundo, de minha cultura sejam traduzidos também através dele, de seu mundo e de sua cultura. Através do que há de meu nele, quando, então, o outro reflete a minha imagem espelhada e é às vezes ali onde eu melhor me vejo. Através do que ele afirma e torna claro em mim, na diferença que há entre ele e eu.
Na narrativa da Guerra Fria é muito constante a ideia do “eu versus eles” entre Estados Unidos e União Soviética. Ela está presente nos meios de informação, nas propagandas e em todo o tipo de aparato cultural da época. Para legitimar o conflito, as duas nações se lançaram à uma construção dialética da imagem de um inimigo externo e de uma identidade nacional, com o objetivo de que ela não fosse acolhida somente no âmbito doméstico, mas por todo o bloco aliado, e, por fim, pelo mundo inteiro. Pela impossibilidade de um conflito direto entre as duas potências, devido ao receio do uso de armas atômicas, a Guerra Fria foi um conflito majoriatariamente ideológico. Apesar da inegável importância da força militar e da política americana, muito teóricos das Relações Internacionais como Joseph Nye e Jeffrey Checkel têm levantado a hipótese de que o fator ideológico tenha sido determinante até mesmo para o colapso do comunismo e a vitória americana, e não apenas para fins de legitimização. Mas para analisar essa hipótese, caberia outro estudo.
28
2.3 Confraternizando com o Inimigo: Diplomacia Cultural na Guerra Fria Por mais que pareça contraditório, os Estados Unidos e a União Soviética mantiveram muitos contatos diplomáticos amigáveis durante o período da Guerra Fria, principalmente por meio de acordos bilaterais e intercâmbio culturais. Na verdade, os EUA iniciaram seus eforços para estabelecer intercâmbios culturais com a URSS enquanto a Segunda Guerra Mundial ainda estava ocorrendo. Após a Conferência de Moscou, em outubro de 1943, Averell Harriman, embaixador americano para a União Soviética, propôs um programa de intercâmbios culturais ao Ministro das Relações Exteriores Vyacheslav Molotov, que incluía a distribuição de duas revistas bimentrais (criadas para explicar a natureza dos esforços de guerra dos EUA e aspectos da vida norteamericana ao público soviético), a distribuição de filmes norteamericanos, e propostas de contato direto com editores de notícias soviéticos. A resposta de Molotov foi positiva. (RICHMOND, 2003, p. 10) Segundo Richmond (2003, p. 14-15), em outubro de 1955, durante a Conferência de Genebra, os Estados Unidos, em conjunto com a Grã-Bretanha e a França, propôs um programa de dezessete pontos para remover barreiras a intercâmbios de meios de informação, cultura, educação, livros e publicações, ciência, esportes, e turismo. A iniciativa foi rejeitada por Molotov, que acusou o Ocidente de interferir nos assuntos internos da União Soviética, sugerindo que as nações firmassem acordos bilaterais ou multilaterais que "pudessem refletir os interesses particulares de cada um dos países envolvidos”. Sergei Khrushchev, filho de Nikita Khrushchev, descreveu o encontro de seu pai com o presidente americano Dwight Eisenhower, realizado em julho de 1955, na Conferência de Cúpula de Genebra: Vivendo em lados diferentes da cortina de ferro, não sabíamos de nada uns sobre os outros. Diplomatas e agentes de inteligência forneciam informações a seus líderes, é claro, mas isso não era suficiente para conquistar a compreensão do outro lado. Tivemos que olhar nos olhos uns do outros. 1 (KHRUSHCHEV apud RICHMOND, 2003, p. 14, tradução minha)
Em 1956, durante o Vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Khrushchev criticou Stalin e sinalizou mudanças na política soviética, que incluiu a coexistência 1
“Living on either side of the iron curtain, we knew nothing about each other. Diplomats and intelligence agents supplied their leaders with information, of course, but that was not enough to gain an understanding of the other side. We had to look into each other's eyes."
29
pacífica e aumento dos contatos com o Ocidente.2 A organização responsável por enviar os melhores talentos Soviéticos para o exterior e por receber as delegações estrangeiras, as companhias teatrais, e os times esportivos, era a VOKS (acrônimo russo para “Sociedade de Relações Culturais Com Países Estrangeiros”). Fundada em 1925 como uma sociedade pública independente, a VOKS agora era responsabilidade do Conselho de Ministros para intercâmbios externos nos campos do teatro, cinema, música, arte, literatura, balé, disciplinas acadêmicas e esportes. Segundo Caute (2003, p. 29), ela atuava apoiando e subsidiando sociedades estrangeiras pró-soviéticas para que elas oferecessem hospitalidade às delegações e artistas soviéticos. Enquanto isso, boa parte dos intercâmbios americanos eram responsabilidade do setor privado3, turnês de artistas cênicos soviéticos nos Estados Unidos eram realizadas numa base comercial por empresários americanos, como Sol Hurok e a Columbia Artists Management.4 Conforme relata Richmond (2003, p. 11), ao sediar o Sexto Festival Mundial da Juventude em Moscou, a União Soviética tinha a intenção de mostrar ao mundo as mudanças que haviam ocorrido no país desde a morte de Stalin. Estes festivais já tinham sido promovidos em outros países, onde haviam sido bem administrados por grupos comunistas locais e produzido boa propaganda. Durante duas semanas, entre julho e agosto de 1957, 34.000 delegações estrangeiras e 60.000 soviéticas foram a Moscou para o que Max Frankel, do New York Times, descreveu como "uma rodada estonteante de jogos, conferências, festas e carnavais."5 (RICHMOND, 2003, p. 11, tradução minha). O viés político ficou evidente em muitos dos eventos. Alguns americanos perceberam que nem todas as suas falas eram fielmente traduzidas pelos russos, enquanto outros ouviram denúncias veementes aos Estados Unidos em reuniões onde se pensava não haver americanos presentes. De acordo com Caute (2003, p. 30), o governo de Khrushchev, no final da década de 1950, passou a negociar acordos culturais bilaterais com países ocidentais por meio da VOKS. Isso significava que as portas da União Soviética estavam abertas às bailarinas, mas não às ondas de rádio; às orquestras, mas não aos grupos de jazz; à tradicional Royal Shakespeare Company, mas não aos modernistas Beckett e Ionesco do Teatro do Absurdo; aos retratistas Reynolds e 2
RICHMOND, 2003, p. 15. Ibid., p. 16. 4 Ibid., p. 19. 5 "a dizzying round of games, conferences, parties, and carnivals." 3
30
Hogarth, mas não ao pós-impressionista Van Gogh. Por isso, em 1957, o Congresso americano foi removeu do “Ato de Imigração e Nacionalidade de 1952” a provisão de impressões digitais, detestada pelo governo russo, com o objetivo de ampliar a disputa cultural com a União Soviética. A manobra parece ter sido bem sucedida, pois, em 1958, o primeiro acordo cultural bilateral foi firmado entre as duas nações. Apesar dos contatos culturais já realizados anteriormente, esse acordo certamente acelerou ainda mais o intercâmbio artístico e acadêmico entre elas. O "Acordo entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas sobre Intercâmbios nos Campos Cultural, Técnico e Educacional" é comumente chamado “Acordo Lacy-Zarubin”, pois seus dois principais negociadores foram William Lacy S. B., assistente especial do presidente Eisenhower em Intercâmbios Oriente-Ocidente, e Georgi Z. Zarubin, embaixador soviético para os Estados Unidos. Esse acordo incluiu intercâmbios em ciência e tecnologia, agricultura, medicina e saúde pública, rádio e televisão, cinema, exposições, livros e publicações, governo, juventude, atletismo, pesquisa acadêmica, cultura e turismo. Inicialmente, ele vigoraria ao longo de dois anos, entretanto foi periodicamente renegociado até que, durante a détente, quando ambos os lados se sentiam mais confortáveis com os intercâmbios, a sua validade foi estendida para três anos. O acordo final da série, assinado por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev em Genebra (1985), deveria ter vigorado até 31 de dezembro de 1991, mas a União Soviética deixou de existir no dia 25 de dezembro daquele ano. O acordo não foi renovado com a Rússia. (RICHMOND, 2003, p. 16-17) As renegociações periódicas do acordo cultural e do programa de intercâmbios muitas vezes eram longas e trabalhosas. Por exemplo, a negociação do terceiro acordo, firmado em 1962, demorou três meses.6 No outono de 1965, durante a Guerra do Vietnã, foi determinado que a peça de teatro musical “Hello, Dolly!” não seria recebida em Moscou e nem em Leningrado. Uma exposição americana, a apresentação de um coral, e as turnês de escritores, artistas e educadores foram canceladas, assim como todas as visitas agendadas de artistas soviéticos aos Estados Unidos, como a leitura de poesias no Lincoln Center que seria feita por Andrei Voznesensky. Washington alertou que os cancelamentos soviéticos estavam pondo todo o acordo cultural em risco. Em 1967 o governo soviético adiou indefinidamente uma turnê na América de 6
Ibid., p. 19.
31
mais de 200 artistas, como as estrelas do Bolshoi que iriam abrir o Metropolitan Opera House. Sol Hurok, empresário do Festival Russo de Música e Drama, já havia vendido cerca de $250.000 em ingressos apenas para o evento do Metropolitan Opera House.7 As artes cênicas sempre representavam um intercâmbio difícil, pois os soviéticos resistiam a aceitar produções americanas que julgassem ser vanguardistas ou modernas demais.8 Segundo Richmond (2003, p. 20), os intercâmbios serviam como um termômetro das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética. Quando as relações entre as duas superpotências eram boas, os intercâmbios floresciam e se expandiam; quando as relações eram frias, os intercâmbios sofriam. Além dos vários cortes feitos pelos soviéticos durante a Guerra do Vietnã, a administração Carter também suspendeu intercâmbios de alta visibilidade após a invasão soviética no Afeganistão, como exposições, cooperação em ciência e tecnologia, a participação dos EUA nas Olimpíadas de Moscou de 1980, e, claro, as artes cênicas.
7 8
CAUTE, 2003, p. 31-32. RICHMOND, 2003, p. 19.
32
Capítulo III: O Papel das Artes Cênicas no Período da Guerra Fria “Eu, pessoalmente, atribuo... grande importância ao contato cultural como um meio de combater as impressões negativas sobre este país que marcam tanto a opinião pública mundial. O que temos que fazer, é claro, é mostrar ao mundo do lado de fora, tanto que temos uma vida cultural quanto que nos importamos com isso - que nos importamos com isso o suficiente, na verdade, para dar incentivo e apoio em casa, e ver que isso se enriquece com atividades semelhantes em outros lugares. Se essas impressões só podem ser transmitidas com bastante força e sucesso a países além das nossas fronteiras, eu, de minha parte estou disposto a negociar todo o estoque remanescente de propaganda política para os resultados que podem ser alcançados apenas por esses meios.” (George F. Keenan)
33
Desde a antiguidade, o teatro costumava obedecer à condição da mimese aristotélica, se limitando a ser uma imitação da verdadeira natureza. Porém, a partir do século XIX essa lógica começa a ruir. Pensadores como Marx, Nietzsche e Freud reconduzem o trágico, o sonho e a práxis à ordem da razão, reconfigurando os limites da mesma. Há uma subversão do pensar. Daí
a arte se liberta, permitindo que o teatro se inscreva nesse campo, e não no da representação mimética, passando a buscar uma linguagem própria. No século XX a arte passa a não ser mais pautada numa articulação a um campo exterior, como a realidade, a natureza ou os mitos, ela se tona o seu próprio objeto. “Há uma pesquisa de linguagem onde o teatro pode se fazer não como adequação, mas como pura criação estética.” (GÓES In SILVA, 2009, p.876-877). Uma vez compreendido o fato de que o século XX testemunhou uma libertação estética do teatro, podemos tentar compreender a batalha ideológica que se deu através das artes durante a Guerra Fria. Naquela época, foi construída uma oposição estética entre as expressões artísticas do mundo ocidental e oriental. No mundo ocidental, as estéticas modernistas, livres da rigidez das estéticas clássicas, se expandiam em todas as artes, como o jazz, a dança de Balanchine e Martha Graham, o teatro de Beckett. Enquanto isso, a URSS defendia algo diferente. Anatoly Smeliansky (1999, pp. 1-2), crítico teatral soviético, faz em sua obra uma analogia para explicar a estética socialista: Em 1953, Nikolay Akimov encenou a peça de Mikhail Saltikov-Shchedrin, “Тени” (“Sombras”). Ela tinha sido escrita quase cem anos mais cedo, às vésperas da abolição da servidão na Rússia. Como um prólogo da ação, uma silhueta da famosa estátua equestre de Nicolau I foi projetada sobre uma cortina no palco. Ocasionalmente, a sombra do autocrata parecia vir à vida, o que despertava a sensação de que “o chefe ainda estava cuidando de suas ovelhas". Da mesma forma, Josef Stalin morreu no dia 5 de março 1953, mas a sua sombra continuaria a causar medo no país por muitos anos. Afinal, por que era tão importante erguer os sete famosos arranha-céus acima de Moscou, por exemplo? Do ponto de vista do chefe, eles deviam sugerir que há um acima de todos, que vê tudo e sabe de tudo que aqueles ao nível do solo não podem. Da rua, não se pode ver que o Teatro do Exército Soviético foi construído como uma estrela de cinco pontas, mas de cima é possível. A ideia, então, é que a vida não deveria ser vista de forma pedestre, como a visão do homem na rua ou em um campo de trabalho, mas a partir de uma posição "superior". Essa crença, que se refletiu na arquitetura fálica soviética, encontrou a sua expressão em todas as artes, e foi chamada de "realismo socialista".
34
Segundo Andrei Jdanov (ou Zhdanov) um dos maiores defensores do realismo socialista, essa estética: demanda do artista a representação verdadeira, historicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário. Além disso, a veracidade e a concretude histórica da representação artística da realidade deve ser vinculada à tarefa de transformação e educação dos trabalhadores no espírito do socialismo ideológico. (HOMANS, 2010, p.346)
Declarou-se que o seu inimigo era o "formalismo", que devia ser exterminado a todo custo. Aos poucos, se desenvolveu um estilo cujas principais características eram o racionalismo, o didatismo, a clareza e a simplicidade. Ele estava em toda parte: nos enredos, nas vozes dos atores, nos cenários, e nas coreografias que eram encenadas em diagonal ou de frente, dependendo da posição do camarote especial, onde “Ele” poderia aparecer a qualquer momento. (SMELIANSKY, 1999, p. 2) Na época czarista, o pensador Aleksandr Herzen comparou o teatro ao parlamento que a Rússia Romanov nunca teve. Um século depois, isso seria reiterado por Smeliansky, com o acréscimo da ideia de que o teatro não era só parlamento, mas também igreja. Diretores, atores e público haviam se acostumado a ir ao teatro não somente para fins de entretenimento, mas também para comunhão. Mesmo sendo menos acessível a uma população rural do que a palavra impressa, o teatro costumava ser um mensageiro vital dos imperativos ideológicos. Entretanto, a tradição das trupes itinerantes passou a ser sucumbida à grandeza dos lustres, fazendo com que o teatro se tornasse um espaço reservado às elites. (CAUTE, 2003; SMELIANSKY, 1999) Entretanto, apesar de elitistas, as artes cênicas foram um dos intercâmbios mais visíveis entre EUA e URSS. De acordo com Richmond (2003, p. 123) poucos americanos não conseguiram ver ou ouvir os grupos soviéticos de dança, as orquestras sinfônicas, as óperas, os espetáculos no gelo, os circos, e os artistas solo que visitaram os Estados Unidos anos após ano, muitas vezes em extensas turnês de costa a costa. Em troca, grupos e solistas americanos que foram à União Soviética, frequentemente tocavam, encenavam, e dançavam para casas cheias, sendo igualmente apreciados por intelectuais e pelo público em geral. Os intercâmbios de artes cênicas entre os dois países começaram em 1955, dois anos após a morte de Stalin, quando uma produção de “Porgy and Bess”, com sua companhia de oitenta e
35
cinco membros, foi convidada para se apresentar em Leningrado, Moscou e Stalingrado. A ópera alcançou grande sucesso. Com a assinatura do Acordo de Lacy-Zarubin em 1958, os intecâmbios de artes cênicas se tornaram uma característica recorrente nas relações EUA-URSS. As turnês aos EUA foram uma grande surpresa para os artistas soviéticos. “A América foi simplesmente um outro planeta para nós", disse Galina Ulanova, estrela do Bolshoi, depois de sua primeira visita ao país, em 1959: Nós sabíamos muito pouco sobre o mundo exterior, e ficamos espantados com a dimensão do país. Todas aquelas lojas enormes de cinco e seis andares de altura, com todas aquelas roupas à venda, e os apartamentos inteiros em exposição - nós simplesmente não tinhámos nada como isso. 1 (ULANOVA apud RICHMOND, 2003, p. 124, tradução minha)
Nos Estados Unidos, os espetáculos e os artistas soviéticos eram recebidos com críticas elogiosas e casas cheias. Na URSS, as pessoas formava filas de centenas de metros de comprimento, com a esperança de conseguirem um ingresso para assitir os artistas ocidentais. Quando não conseguiam, havia invasões aos portões dos teatros. As dezesseis performances da peça “Our Town” de Thornton Wilder e “Inherit the Wind” de Lawrence e Lee em Moscou e Leningrado, em 1973, são exemplos do que as artes cênicas podem conseguir. Os ingressos se esgotaram rapidamente e centenas de pessoas tiveram que desistir de assistir às peças. Para tentar suprir parte da demanda, alguns ensaios foram abertos aos estudantes e à classe teatral. Alguns oficiais de cultura soviéticos compararam Wilder a Anton Tchekhov. A diretora artística Zelda Fichandler declarou: Houve um espanto generalizado sobre o fato de que o tipo de teatro representado pelo Arena Stage
sequer existisse nos Estados Unidos. Eles sempre tinha pensado em teatro
americano como comédias musicais, sucessos da Broadway produzido por empresas com o objectivo de obter lucros, o que eles chamavam de 'palhaçada sexual. (FICHANDLER apud RICHMOND, 2003, p. 126, tradução minha)
1
"We knew so little about the outside world, and we were just amazed by the scale of the country. All those huge stores five and six floors high, with all these clothes on sale, and entire apartments on display-we just didn't have anything like that"' 2 "There was widespread astonishment, that the kind of theater represented by Arena Stage even existed in America. They had always thought of American theater as being made up of musical comedies, Broadway hits produced by pick-up companies with the aim of making profits, and what they called `sexual clownery.'”
2
36
3.1 Uma Batalha Crítica Não só a proliferação dos teatros e das salas de concerto em si, mas também a ampla circulação da informação através da mídia impressa, do rádio e da televisão, ajudaram o processo de popularização das artes cênicas durante a Guerra Fria. As críticas especializadas, publicadas incansavelmente em jornais e revistas, representaram um importante meio de propaganda e de formação de opinião sobre aquilo que acontecia dentro dos teatros soviéticos e americanos. Segundo Caute (2003, p. 55) uma resolução sobre teatro do Comitê Central da União Soviética de 26 de agosto de 1946, intitulada “A Respeito do Repertório dos Teatros e dos Meios para Melhorá-lo”, criticava os teatros do país por encenarem peças teatrais de “dramaturgos burgueses estrangeiros”, tecendo a acusação de que: “O erro político mais grosseiro da Comissão de Artes tem sido a sua ampla circulação de tais peças no mundo teatral e a encenação das mesmas.”3 As peças inglesas e americanas publicadas em Moscou eram adjetivadas como “baratas e triviais”, responsáveis pela promoção de um modo de vida prejudicial aos cidadãos soviéticos. Sendo assim, os dramaturgos soviéticos, por sua vez, deviam estudar as demandas do povo e escrever obras que apresentassem “os melhores traços do caráter” dos soviéticos: o otimismo, a devoção à terra natal, e a fé na “vitória da nossa causa”. Esse foi o início do Jdanovismo ou “Zhdanovshchina”, um código ideológico que definia as produções culturais que seriam aceitáveis na URSS por meio de uma de série de rígidas resoluções culturais formuladas por Andrei Jdanov entre 1946 e 1948, que acabaram lançando o teatro soviético em uma crise. Essa crise pode ser bem compreendida com a leitura de algumas palavras escritas pelo autor teatral soviético Nikolai Virta, expressando a lógica do Jdanovismo: “Os nossos dramaturgos devem expor e açoitar impiedosamente os restos do capitalismo, a manifestação de desinteresse político, a estagnação burocrática, a subserviência... (etc.)” Entretanto: “Ninguém pode tolerar peças em que os personagens negativos dominam tudo e, além disso, são representados mais vívida e expressivamente que os heróis.”4
3
“The grossest political mistake of the Arts Committee has been its wide circulation of such plays in the theatre world and their staging.” (CAUTE, David, 2003, p. 55, tradução minha) 4 “Our dramatists must expose and mercilessly scourge the survivals of capitalism, the manifesting of political unconcern, bureaucracy stagnation, servility... [etc.]”; “One cannot tolerate plays in which the negative characters dominate everything and, moreover, are portrayed more vividly and expressively than the heroes.” (CAUTE, David 2003, p. 66, tradução minha)
37
A revista da Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA), Problems of Communism, logo em seu número de lançamento, no ano de 1953, aproveitou o problema para
publicar o artigo “A Crise no Drama Soviético”, de autoria de Paul Willen. Oito anos mais tarde, um desertor da Alemanha Oriental, Jürgen Rühle, escreveria à mesma revista: “De todas as esferas da cultura soviética, o teatro é provavelmente a arte que ilustra de forma mais evidente o hiato entre as esperanças e conquistas do breve período revolucionário da história soviética, e a falência cultural das eras seguintes.”5 Caute (2003, pp. 55-87) analisa que os críticos ocidentais tendiam a desprezar o Jdanovismo e seu caráter propagandístico ao mesmo tempo em que enalteciam o teatro mais experimental dos anos revolucionários, como os trabalhos de Meierhold e de Tairov. Enquanto isso, os críticos soviéticos viam negativamente o teatro ocidental não político, liderado pelos contemporâneos Eugene O’Neill, Jean Anouilh e T.S. Eliot. A rejeição da revista do Ministério da Cultura soviético, Teatr, ainda se estendeu ao “Teatro do Absurdo” de Beckett, Ionesco e Arrabal, um gênero modernista que se espalhou rapidamente nos Estados Unidos e nas capitais europeias em 1950. O modernismo, em todas as suas formas, não era considerado apenas decadente pelos soviéticos, além disso, esse movimento era visto como uma tentativa deliberada de desviar a atenção do público das preparações imperialistas para a guerra. Apenas o realismo e os ensinamentos do mestre naturalista Constantin Stanislavski eram admitidos. No dia 30 de janeiro de 1949, o Pravda, principal jornal do Comitê Central Soviético, publicou o artigo “A respeito de um grupo antipatriota de Críticos Teatrais”, denunciando o cosmopolitismo na crítica teatral soviética. O artigo afirmava que os cosmopolitas eram formalistas, valorizavam o frio esteticismo burguês em detrimento dos valores artísticos das peças “patrióticas e importantes”. Desde meados da década de 1940, uma série de resoluções, como a própria “A Respeito do Repertório dos Teatros e dos Meios para Melhorá-lo”, ou “A Respeito das Revistas ‘Zvezda’ e ‘Leningradskaya’”, publicada no jornal do Diretório de Propaganda do Comitê Central, Kul’tura i zhizn’ , estabeleciam uma campanha contra o cosmopolitismo, o que incentivou a publicação de listas que denunciavam os nomes de inúmeros judeus, que trabalhavam com música, arquitetura, literatura, cinema e filosofia. Para o governo 5
“Of all the spheres of Soviet culture, theatre is perhaps the art which illustrates most glaringly the chasm between the hopes and achievements of the early, revolutionary period of Soviet history and the cultural bankruptcy of succeeding eras” (CAUTE, David, 2003, p. 66, tradução minha).
38
soviético, os judeus, considerados “cosmopolitas sem raízes”, admitiam obras que expressavam preocupações “alienígenas”, isentas de qualquer conteúdo ideológico ou político. Por isso eles eram vistos como lacaios da intriga ocidental, e acusados de conspiração antissoviética. O realismo soviético não admitia a “arte pela arte”. (BARNES, 2004; CAUTE, 2003; DUNHAM, 1990; JOHNSTON, 2011; REE, 2003; SMELIANSKY, 1999) A imprensa ocidental não somente publicou e ridicularizou as imposições do Jdanovismo, como também expediu muitos relatos sobre as peças soviéticas da época que atacavam a traição anglo-americana (tema recorrente a partir de 1947 até a morte de Stalin).6 Por exemplo, a reportagem “Seis Peças Americanas Em Cartaz em Moscou no Momento”, do London Times (14 de abril de 1949), noticiava que uma sétima peça do mesmo tipo, “Por Trás das Portas da Embaixada” , iria estrear logo. A imprensa americana parecia especialmente interessada em “Sob o Farfalhar das suas Pestanas”, uma sátira à Hollywood que retratava os produtores do cinema americano como rudes mercenários. O sucesso mais recente da época, “Rokovoe nasledstvo” (“Herança Fatal”) que estava em cartaz no Teatro de Sátira de Moscou, também foi bastante comentado. A peça retratava simples cidadãos soviéticos que faziam uma viagem de barco em Volga e se deparavam com uma festa de turistas americanos, descobrindo a real moral da sociedade burguesa. Diversas produções soviéticas ridicularizavam Hollywood, o racismo da sociedade norteamericana, a House Un-American Activities Committee (HUAC), o Plano Marshall, a Voice of America, os políticos, e também o jornalismo dos Estados Unidos. Entre elas, “V seredjne veka”
(“Na Idade Média”) escrita por Lev Sheinin em 1950, contava a história de agentes americanos que levavam um físico chamado Berg para fora da Noruega para que ele trabalhasse na bomba atômica. Berg era impiedosamente eliminado do projeto após se associar a um cientista dissidente negro e expressar uma grande desilusão com a destruição de Hiroshima e Nagasaki, se tornando um ativo partidário da paz. Um cientista nazista era então levado aos Estados Unidos para ajudar na conspiração contra Berg, que era acusado injustamente de ter passado segredos a agentes soviéticos. O herói acabava sendo algemado e deportado. No fim da peça ele aparecia num grande congresso internacional de paz, condenando apaixonadamente os belicistas. Muitas peças soviéticas tentavam alertar para os perigos de cooperar com cientistas americanos, como a 6
Ibid, pp. 56-58
39
“Corte de Honra” de Boris Stein, que recebeu a adaptação cinematográfica de Konstantin Simonov, “Alien Shadow”. O jornalista americano, Harrison Salisbury, era correspondente do New York Times em Moscou na época e disse ter assistido a todas as peças antiamericanas em
cartaz. Caute (2003, p. 57) relata que, segundo Salisbury, as 23 companhias de repertório permanentes em Moscou apresentavam cerca de 350 produções por ano, e dessas obras, um terço era composto de clássicos pré-revolucionários, um terço era de trabalhos importados e um terço era de novas peças soviéticas. Para o jornalista, de 1948 a 1952, a maior parte dos novos dramas soviéticos eram peças de propaganda com tramas do Pravda. O New York Times veiculou em 21 de junho de 1949 a notícia “A Broadway Está Morta, Diz a Crítica Soviética”, que se referia a um artigo publicado na Teatr, escrito pela crítica I. Kulikova. Ela citava a revista americana Theatre Arts, reportando o estado da Broadway na época: apenas 37 teatros poderiam ser chamados de “teatros sérios da Broadway”, mas a maioria deles não passava de simples edifícios teatrais que sempre estavam vazios. Kulikova alegava que o que os americanos entendiam por “teatro” era muito diferente do que era entendido não só pelos soviéticos, mas pelos europeus em geral. Não havia nenhuma companhia teatral genuína, nem nenhum repertório na Broadway, apenas empresas arrendatárias especialmente escolhidas para produções específicas. Lá na Broadway, o produtor era o czar. Ele adquiria todos os direitos do dramaturgo, contratava o diretor e convidava uma “estrela” ou duas para os papéis principais. I. Kulikova também reforçava uma declaração feita por Konstantin Simonov ao Kul’tur i zhizn’ : Ao retornar dos Estados Unidos, o dramaturgo tinha afirmado que o teatro contemporâneo americano parecia um hotel: os ocupantes geralmente eram muito famosos, mas não pareciam estar em casa. Além disso, afirmando que Eugene O’Neill era o “corifeu” (“korifei”) do teatro americano, ela também escreveu muitas palavras depreciativas sobre ele, indicando que suas peças eram deprimentes.7 Em 1949 a mesma crítica voltaria a depreciar a Broadway, insinuando se tratar de um lugar decadente e cosmopolita. Além disso, ela também criticaria o “star system” apontando que Lynn Fontanne, por exemplo, ainda estava interpretando jovens moças, quando ela mesma tinha 60 anos. Caute (2003, p. 61) chama atenção para o fato curioso de que, na mesma época, uma
7
Ibid., pp 58-59
40
observação parecida tinha sido feita no ocidente em relação à bailarina veterana do Bolshoi, Ulanova, que interpretava papéis como o de Julieta. Paralelamente, o também crítico soviético Morozov, em seu artigo “Dve Kul’turi” (“Duas Culturas”) publicado na Teatr em novembro de 1947, afirmava a influência e supremacia artística do teatro russo. Segundo Caute (2003, p. 60-61), Morozov dizia nesse artigo que os americanos ansiavam pelo teatro soviético. Para ele, ingleses e americanos aprendiam que o realismo socialista não só interpretava a vida, mas a criava. Ele listou peças de teatro soviéticas que estavam em cartaz no ocidente naquele momento, ou tinham estado recentemente: “O Povo Russo” de Constantin Simonov, “Invasão” de Leonid Leonov, três peças de Aleksandr Afinogenov, e clássicos de Gogol, Ostrovsky, Tolstoi, Tchekhov e Gorki. Ao mesmo tempo, o crítico também reportava a decadência da Broadway, onde a peça “Entre Quatro Paredes” de Jean-Paul Sartre estava em cartaz. Ele via a dramaturgia da peça como monstruosa, enquanto afirmava que o teatro americano admirava todas as formas de crimes vis e cruéis. Segundo ele, não era coincidência o fato de Sartre ter promovido o livro “O Diário de um Ladrão” de Jean Genet, iniciado pelas palavras: “Traição, roubo e homossexualidade - estes serão meus assuntos principais.”8 Mas, na verdade, o texto de Genet começa assim: “A roupa dos condenados é listrada de branco e rosa.”9 Outras críticas soviéticas a obras teatrais que estiveram em cartaz na Broadway são analisadas por Caute (2003, p. 50-65), todas elas são negativas e muitas são baseadas em distorções. O crítico I. Lapitsky da Teatr, por exemplo, afirma em um artigo que o musical de South Pacific possuía um conteúdo racista e fascista que era aprovado pelos “críticos burgueses
americanos”. Segundo Inverne (2009, p. 209-210) e Ewen (1961, p. 159) a peça de fato recebeu apoio massivo da crítica, mas provocou muita controvérsia entre as plateias estadunidenses justamente pela sua mensagem antirracista, a favor da miscigenação e do casamento inter-racial. Caute (2003, p. 65) observa que, de um modo geral, os críticos soviéticos tinham desenvolvido dois critérios para determinar se um autor ocidental era “progressivo” ou “degenerado”: O modernismo era condenado de forma independente das inclinações políticas do autor. Por outro lado, autores realistas como Upton Sinclair, Sinclair Lewis e John Steinbeck, por exemplo, já 8 9
“Treachery, theft and homosexuality- such will be my principle subjects.” (CAUTE, 2003, p. 60, tradução minha) “Convicts’ garb is striped pink and white.” (GENET, 1964, p. 9, tradução minha)
41
tinham sido traduzidos e enaltecidos na União Soviética, mas passaram a ser desprezados assim que se manifestaram contra o regime comunista. Paralelamente, outros autores realistas, como Arthur Miller e Lillian Hellman, eram apreciados no país. Entre 1953-1954 a peça de Leonid Zorin, Gosti (“Os Hóspedes”) receberia muita atenção na parte ocidental do globo. No enredo, o vilão é Pyotr Kirpichev, chefe de um departamento no Ministério da Justiça. Seu pai, Aleksei, um velho bolchevique idealista, e sua irmã, Varvara, condenam a atitude arrogante que Pyotr costuma ter sobre o povo. Ele, que possui um apartamento luxuoso, uma casa de verão, e um motorista, está disposto a esconder um erro judicial em vez de correr o risco da humilhação e da perda de poder. O filho de Pyotr, Tema, de 19 anos de idade, membro da Comsomol, gostava dos luxos que o pai oferecia, entretanto, por fim, ele também se rebela contra a sua corrupção. A peça foi vista pela jornalista francesa Hélène Lazareff como a revelação “dos hábitos, e da própria existência da nova burguesia soviética.” O jornalista alemão Klaus Mehnet citou um trecho da peça: VARVARA: Mas de onde essa “classe alta” do nosso país veio? TRUBIN: (um jornalista): De onde essa “classe alta” veio? Ela é a cria da ganância e da maldade, da ambição excessiva... (ZORIN apud CAUTE, 2003, p.67, tradução minha) 10
Então Varvara conclui que ela veio “do poder”. A peça foi fechada subitamente pelo Ministério da Cultura da União Soviética, embora estivesse sendo sempre apresentada a um teatro lotado. A condenação de Zorin foi impressa no Sovetskaia kul’tura, contendo frases como: “A peça representa mal a própria essência da ordem social e do regime, e enfraquece a fé de sua platéia no ilimitado poder da nossa sociedade de progredir constante e uniformemente na estrada para o comunismo” e “Mais uma vez o Partido aponta que ideologias externas são capazes de influenciar a arte e a literatura soviética, enquanto as forças do capitalismo, a reação imperial e o obscurantismo habitam no mundo.”11 Após o ocorrido, Lazareff voltou a abordar a peça, citando as palavras do jornal Sovetskaia sobre o destino de seu autor, e analisando essa condenação como uma consequência da exposição dos erros do sistema soviético feita por ele. 10
“Varvara: Now where has this ‘upper class’ (vyshii svet) in our country come from? Trubin: [a journalist]: Where did our ‘upper class’ come from? It is the spawn of meanness and greed, of inordinate ambition…” 11 “The play misrepresents the very essence of the social order and the regime, and undermines its audience’s faith in our society’s unlimited power to make even and constant progress along the road to communism....” (CAUTE, David, 2003, p. 67)
42
Segundo Caute (2003, p. 72), as peças favoritas dos teatros soviéticos eram os clássicos incontroversos, russos e ocidentais. Em Londres, 1958, o Teatro Arte de Moscou apresentou “O Jardim das Cerejeiras” de Tchekhov, recebendo do The Manchester Guardian o comentário: Aqui está uma companhia teatral presa rigidamente à roda da ortodoxia comunista, cuja cada decisão está sujeita ao ditado da política do partido, triunfantemente interpretando a inspiração do drama clássico... Provando ao mundo que o bom teatro pode prosperar mesmo nos Estados mais tiranos. O Sputnik aniquilou nossa ilusão sobre a ciência e o Comunismo: a ortodoxia política claramente rígida não sufoca a livre investigação em laboratório. Aparentemente o mesmo também se aplica ao teatro. 12 (CAUTE, David, 2003, p. 81, tradução minha)
Durante as décadas de 1920 e 1930, na Europa e nos EUA o teatro politicamente radical, como os de Meierhold, Maiakovski, Tairov, Vakhtangov, Brecht, Piscator, o do London’s Unity Theatre, o do Jornal Vivo, e o do Group Theatre, tinha atingido alto grau de inovação e
brilhantismo artístico. As convenções realistas, tão queridas por Stanislavski, tinham sido largamente subvertidas por eles. Mas o expressionismo e suas implicações de incontrolável individualidade e de desafio das autoridades, não eram tolerados pela URSS. Meierhold, por exemplo, foi executado pelo governo Stalinista. Uma declaração que ele teria dito poucos dias antes de ser preso, em 1939, foi citada por Jüergen Rühle na Problems of Communism: “Eu, por exemplo, acho o trabalho dos nossos teatros hoje em dia lamentável e terrível... Essa coisa lamentável e estéril que aspira pelo título de realismo socialista não tem nada em comum com a arte.”13 Foi extremamente rara a exibição de qualquer obra ligada a esses nomes na União Soviética. Brecht não seria encenado até a sua morte e uma remontagem de Maiakovski só seria produzida no país após a morte de Stalin, irritando muitos ocidentais pelos cortes feitos no texto. (CAUTE, 2003, p. 73-77)
12
“Here is a theatrical company, rigidly chained to the wheel of Communist orthodoxy, whose every decision is subject to the dictation of party policy, triumphantly interpreting the inspiration of classical drama… proving to the world that goo theatre can proper in even the most tyrannical of states. Sputnik shattered out illusions about science and Communism: clearly rigid political orthodoxy does no stifle free inquiry in the laboratory. Apparently the same is also true in the theatre.” 13 “I, for one, find the work in our theatres at present pitiful and terrifying... This pitiful and sterile something that aspires to the title of socialist realism has nothing in common with art.” (CAUTE, David, 2003, p. 76, tradução minha)
43
3.2 Inimigos Infiltrados? - Censura e Caça às Bruxas Seguindo a tendência de pesquisa de linguagens e de criação estética do século XX, na década de 1960 os encenadores procuravam cunhar encenações que trouxessem a marca indelével de cada um de seus estilos.1 Nessa época, o teatro soviético era ameaçado, pois, internacionalmente, o teatro caminhava em direção à vanguarda de Brecht, do Teatro do Absurdo, do Teatro Pobre de Grotowski, do Living Theatre, do teatro de rua, e do teatro de improviso. Sobre isso, Jürgen Rühle escreveu: “O fato de que a tendência ao ‘teatro teatral’ é agora dominante em todo o mundo ocidental aponta à conclusão de que essa concepção dramática representa a legítima forma de expressão teatral na sociedade democrática contemporânea.”2 Em 1956, um grupo de ex-alunos da Escola do Teatro Arte de Moscou (TAM), liderados por Oleg Yefremov, inaugurou, na União Soviética, um estúdio de teatro inovador chamado Sovremennik Teatr (significa “teatro contemporâneo”). Oleg Yefremov disse que alguns
espectadores e críticos expressaram decepção: "É excelente, é claro, mas tudo o que fizeram foi dar a nós uma boa versão do TAM. É assim que o ‘velho’ TAM costumava ser.”3 Yefremov reconhecia essa observação como um grande elogio. O Sovremennik tinha sido criado para problematizar a crise pela qual o TAM estava passando. Segundo Smeliansky (1999, p.16), em seus primeiros anos, o TAM mantinha vários estúdios, porque os considerava necessários para que o teatro permanecesse vivo. Sangue jovem, novas ideias, experimentação, eram parte integrante de TAM até o final da década de 1920. Seus estúdios produziram grandes atores e diretores, teatros inteiros, que, juntos, ajudaram a determinar a história do palco da Rússia no século XX. O último grande estúdio do TAM foi o primeiro estúdio criado por Stanislavsky antes da Revolução. Em 1924, Michael Tchekhov o usou como base para um teatro que ele chamou TAM2. Em 1928, Michael Tchekhov emigrou, o TAM se transformou em um modelo de teatro do império Stalin, e em 1936, o TAM2 foi 1
GÓES, Clara de. “Teatro” Em: Teixeira da Silva, Francisco. “Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX” Rio de Janeiro: Editora Campus, 2009, p. 877. 2 “The fact that the trend toward the ‘theatrical theater’ is now dominant in the whole Western world points to the conclusion that this dramatic conception represents the legitimate form of theatrical expression in contemporary democratic society.” (CAUTE, David, 2003, p. 82, tradução minha) 3 “It’s excellent, of course, but all you’ve done is give us a good version of MKhAT. It’s what the “old” MKhAT used to be like.” (SMELIANSKY, Anatoly, 1999, p. 16, tradução minha)
44
aniquilado. O TAM pré-stalinista tinha partido, e com ele a inovação. Apesar do fato de que o Sovremennik se autointitulasse um estúdio do TAM, o próprio TAM não compartilhava da
mesma opinião. Smeliansky explica (1999, p. 17) que o TAM considerava o título de “estúdio” ilegítimo, e que só se esperava problemas a partir disso. O Sovremennik era uma lembrança viva de havia algo de errado com o TAM. O Sovremennik tentou reavivar a imagem do velho TAM, com seus ideais artísticos e éticos. Em uma terra e cultura diferentes eles estavam tentando colocar em prática os princípios fundadores lendários do original Teatro de Arte de Moscou. Lembrando que o teatro de Stanislavski era uma "parceria de crença", eles elaboraram artigos especiais de associação destinadas à criação de uma nova fraternidade de atores. O Sovremennik começou a operar não de acordo com os regulamentos que regiam as “empresas teatrais para espetáculo público", como todos os teatros estatais da URSS eram chamados, e sim de acordo com as leis elaboradas por eles mesmos. Foi o primeiro teatro em décadas a não ser criado de cima para baixo na Rússia. Para Smeliansky (1999, p. 19), o Sovremennik era, em uma palavra, anti-stalinista. Suas ideias estéticas eram muito vagas e, por falta de uma terminologia própria, foram resumidas na frase de Stanislavsky "a vida do espírito humano". Eles queriam voltar ao natural do ser humano no palco, com a busca apaixonada da verdade, a capacidade do ator de se reincorporar. Como resultado, muitas de suas produções foram banidas. Muitos jovens do grupo de poetas, músicos, críticos, escritores e pintores que rapidamente se reuniram ao redor do Sovremennik , como Aleksandr Solzhenitsyn, Vasily Aksyonov, Anatoly Kuznetsov e Aleksandr Galich, que posteriormente seria chamado de "geração dos anos sessenta”, se tornariam dissidentes e deixariam o país, voluntariamente ou não Numa posição mais radical, Yuri Lyubimov começou a restabelecer a tradição do expressionismo reprimida por Stalin, trazendo o teatro soviético de volta à cultura internacional.4 Em 1963, ele encenou “A Alma Boa de Setsuan” de Brecht com seus estudantes do Instituto Vakhtangov, montagem que causou furor e recebeu uma avaliação positiva de Constantin Simonov no Pravda5. Lyubimov estabeleceu então a Companhia Taganka de Teatro, que ocupou 4
CAUTE, David, op. cit., p 84 BEUMERS, Birgit. “Yuri Lyubimov at the Taganka Theatre 1964-1994” Amsterdam, Harwood Academic Publishers, 2005, p 10. 5
45
um velho teatro na Praça Taganka. No foyer foram pendurados os retratos de Brecht, Vakhtangov, Meierhold, e pela insistência do comitê do partido, Stanislavski. Em sua adaptação do testemunho de John Reed, “Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo”, Lyubimov usou o expressionismo do Federal Theatre Project (Projeto Federal de Teatro) americano, Living Newspaper (Jornal Vivo), e também Brecht, e acima de tudo, Meierhold. Os prisionairos
segurando os braços um dos outros formando retângulos que emolduravam seus tostos representava o seu encarceramento. Harrison Salisbury elogiou essa montagem e também uma produção sobre Mayakovski, “ Послушайте!” (“Ouça!”), que para ele representavam o conflito entre os artistas livres e vitais e as forças estéreis da banalidade e da burocracia do partido. Mas a partir de 1968 a censura no teatro seria massiva. Em março de 1969, a montagem de Lyubimov para “O Homem Vivo” de Boris Mozhayev, sobre um fazendeiro que entra em confronto contra a corrupção do partido, seria proibida após a visita da Ministra da Cultura Ekaterina Furtseva. Em 1978, Lyubimov apresentou “A Mãe” de Gorki, “Hamlet” e “Os Dez Dias Que Abalarem o Mundo” no Palais de Chaillot em Paris, mas sua encenação de “Dama de Espadas” de Tchaikovsky foi proibida de ser realizada no Ópera de Paris pelos russos. Da mesma forma, as canções de Vladimir Vysotsky (ator, compositor e cantor da Companhia Tangaka) tiveram sua distribuição proibida. Oficialmente, elas eram inexistentes, apesar do fato de que boa parte a população as conhecesse de cor, graças a gravações feitas em fitas cassete. Em 1980, durante as Olímpiadas de Mocou, Vladimir Vysotsy faleceu aos 42, em decorrência ao uso de drogas. Nessa ocasião, até mesmo o espetáculo de Lyubimov fez em sua homenagem foi banido. No mesmo ano, Lyubimov foi convidado para dirigir “Boris Gudonov” de Mussorgsky, na Ópera de Paris, mas foi impedido de deixar o país. Ele foi ironicamente substituído por um exilado dos Estados Unidos, Joseph Losey. Em uma visita à Inglaterra para dirigir “Crime e Castigo” em 1983, Lyubimov contou ao The Times que três das suas produções mais recentes tinham sido banidas, e que ele não podia mais contar com o apoio pessoal do Secretário Geral Yuri Andropov, que agora estava debilitado e tinha deixado tudo a cargo de
46
Konstantin Chernenko, apoiante do Ministro da Cultura Piotr Demichev. Segundo ele, os dois nunca dialogavam com ele, apenas o repreendiam6. O The Times continuou reproduzindo a história, frisando que Lyubimov mantinha um endereço secreto em Londres e que estava correndo o risco de ser raptado ou coisa pior. A esposa do diretor perdeu seu emprego como jornalista em Budapeste. Andropov morreu e Lyubimov foi despedido do seu cargo de diretor artístico do Taganka em março de 1984. Anatoly Efros o substituiu no posto, o que Lyubimov considerou “incrível”, uma vez eu Efros tinha sido diretor artístico do Teatro Comsomol. Lyubimov descreveu o Ministro da Cultura Demichev como um “tolo ignorante” e Mikhail Zimiang, secretário do Comitê Central como “o nosso Goebbels”. Em julho daquele ano, o artista teve sua cidadania soviética cassada. Voltando a Moscou em 1988, na era Gorbachev, ele retornou a diretoria do Tangaka, após a morte de Efros, mas a companhia se dividiu em dois teatros, como ator Gabenko liderando a partilha.7 Práticas associadas à censura são comumente relacionadas a regimes ditatoriais, como aquele instaurado na União Soviética. Entretanto, a democracia liberal americana também apresentou problemas relacionados a esse tema. Nos Estados Unidos, nenhum artista parecia correr um risco literal de morte, como o soviético Yuri Lyubimov correu. Porém, o governo americano podia impossibilitar os meios de vida de seus cidadãos. Durante a Guerra Fria, uma quantidade considerável de artistas sofreram com vigilância, escutas telefônicas, violação de correspondência, listas negras, e perseguição, justamente no país que tanto falava em nome da liberdade de expressão. Entre esses artistas perseguidos, se encontrava o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Brecht fez parte de um movimento teatral que começou a se desenvolver a partir da década de 1930, ganhando mais força nas décadas seguintes. Após as primeiras décadas do século XX, surgiu um teatro modernista que questionava a estabilidade, a lógica, e a racionalidade do realismo tradicional. Começaram a nascer certas propostas de vanguarda como o existencialismo
6
CAUTE, David. “The Dancer Defects: The Struggle for Cultural Supremacy during the Cold War” New York, Oxford University Press, 2003, p 84-86. 7 Ibid., p 86-87
47
de Sartre, o teatro do absurdo de Ionesco, o construtivismo de Meierhold, ou o teatro épico de Brecht.8 Não há artista que tenha relacionado o seu compromisso político tão profundamente com a sua obra. Como John Willett relata em seu “Brecht in Context”: Brecht sistematicamente tornou isso parte de tudo o que fez. Muito mais que Picasso, ou Eluard, ou George Grosz ou André Malraux, ele era parte de um todo, fundindo considerações políticas e estéticas em uma grande série de níveis diferentes. É isso o que faz dele especial para admiradores e críticos... (WILLET, 1998 apud CAUTE, 2003, p. 10, tradução minha)
Ele, um marxista, tinha como pilar central de sua teoria teatral a alienação (“verfremdung”). O teatro radical praticado por ele e Erwin Piscator na Alemanha de Weimar, e por Maiakovski na União Soviética, foi brutalmente silenciado com o assassinato de Sergei Tretyakov (tradutor de Brecht) e Meierhold nos expurgos de Stalin. Apenas o método Stanislavski praticado pelo Teatro de Arte de Moscou era permitido. O realismo socialista insistia que o ator deveria “se tornar” o personagem. Brecht detestava isso9. Uma das bases de sua teoria e estética era o afastamento entre ator e personagem. O ator deveria estar dentro e fora do papel, recorrendo à terceira pessoa e aos comentários e intromissões sobre a encenação, ressaltando sempre a presença de duas personagens, uma que apresenta e outra que é apresentada.10 Segundo Caute (2003, p. 272) foi publicado na revista Inostrannaya Literatura, nº 12, 1956, as peças de Brecht já tinham sido encenadas em todo o mundo, mas nunca na União Soviética, com a exceção de uma produção não muito bem sucedida de “A Ópera dos Três Vinténs” (“Die Dreigroschenoper”) no Teatro Kamerny, por volta de 1930. Uma década depois, essa situação mudou radicalmente, de acordo com o Drama Review (outono de 1967), nove produções de Brecht foram encenadas em Moscou naquela época. Por outro lado, os Estados Unidos já haviam acolhido várias produções de Brecht décadas antes. Em 1946, após não ter sido bem sucedido em recrutar Orson Welles, Brecht escolheu o diretor Joseph Losey para ser o 8
CARDULLO, Bert; KNOPF, Robert. “Theater of the avant-garde, 1890-1950: a critical anthology” London: Yale University Press, 2001, passim. 9 CAUTE, 2003, p. 272 10 BRECHT, Bertolt. “Estudos sobre Teatro” Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1964, passim.
48
primeiro a encenar um texto seu na América com a sua própria colaboração. A história que Brecht viveu nos Estados Unidos se entrelaça com a de Losey. Joseph Losey havia começado sua carreira dirigindo teatro político de esquerda na década de 1930.11 Em 1935, ele dirigiu “Waiting for Lefty” (originalmente encenada pelo Group Theatre) em Moscou, e em 1936, ele dirigiu “Triple-A Plowed Under” e “Injuction Granted!” do Living Newspaper em Nova Iorque.12 Anos mais tarde, ele não se preocupou em aplicar o Ato de Liberdade de Informação para ter acesso a seu arquivo no FBI. Provavelmente ele teria ficado surpreso com as 750 páginas que mostram o alto grau de vigilância a qual ele foi submetido a partir de 1943. Aparentemente, a partir da sua amizade com Hanns Eisler (um dos comunistas mais óbvios entre os compositores alemães, que tinha se mudado temporariamente para Hollywood nesse ano). Segundo Caute (2003. P. 278), caso tivesse entrado em contato com o arquivo, Losey poderia apenas tentar adivinhar os métodos de investigação e as identidades dos informantes, pois daquelas páginas, mais de 200 foram escurecidas para manter essas informações em segredo. Na “escalada comunista” de Losey: Em julho de 1944, a agência observou que ele tinha sido reportado como um agente do soviético NKVD (“Comissariado do povo para assuntos internos”) ou OGPU (“Diretório Político Unificado do Estado”). Segundo Losey, ele se juntou ao CPUSA (“Partido Comunista dos Estados Unidos”) depois da guerra (em 1946). No dia 9 de outubro uma cobertura de correspondências de 60 dias foi renovada. No dia 14 de janeiro de 1946, J. Edgar Hoover assinou um memorando ao procurador-geral que descrevia Losey como um contato de várias agências de espionagem soviética, recomendando que ele fosse vigiado. Em 14 de abril, o FBI reportou que Losey e a sua esposa eram ativos no Hollywood Independent Citizens Committee of the Arts, Sciences and Professions e no movimento Win the Peace. No dia
24 de maio de 1946, Losey entrou em contato com uma mulher não identificada e discutiu a legislação antigreve de Truman: “fantástico, incrível, um passo para o fascismo e levaria à revolução.” 13 Dois dias depois, ele enviou um telegrama ao Senador Downey protestando contra o discurso “fura-greve” do presidente. No dia 3 de julho, em Los Angeles, o FBI, reportou: “O 11
GARDNER, Colin. “Joseph Losey” New York, Manchester University Press, 2004, p. 2 Ibid., p. 278 13 “fantastic, incredible, a step towards Fascism and would lead to revolution.” (LOSEY apud CAUTE, 2003, p. 193, tradução minha) 12
49
sujeito está tentando organizar uma unidade móvel de cinema para lutar contra as atividades da Ku Klux Klan no local. Contatos do sujeito com comunistas foram identificados localmente.” Em 1946, um memorando do FBI mostrava um interesse obsessivo no projeto que Losey tinha de dirigir a peça “Galleleo ( sic) by Bertoldt ( sic) Brecht” que poderia ser um “meio de propaganda comunista”.14 “A Vida de Galileu” (“Leben des Galilei”) é considerada a obra-prima de Brecht. Ele escreveu três versões dela durante dezessete anos, sendo que a primeira versão foi escrita entre 1937/1938. No enredo, Galileu Galilei descobre que Copérnico estava certo: a Terra não gira em torno do Sol, embora a Igreja insista que a Terra ocupe a posição central do universo divino. Determinada a fazer com que Galileu renuncie sua teoria, a Igreja o ameaça com instrumentos de tortura, após todas as outras formas de persuasão terem falhado. Ele é posto em prisão domiciliar, podendo exercer seu trabalho, mas não publicá-lo. Segundo Caute, foi durante o exílio nos Estados Unidos que Brecht acrescentou a seguinte fala de Galileu ao texto: “Eu rendi meu conhecimento àqueles no poder, para usarem, ou não usarem, ou usarem de forma errada, conforme seus propósitos.”15 Foi a marca da guerra fria e dos cientistas atômicos. No dia 24 de setembro de 1947, Hanns Eisler, compositor da trilha incidental de “A Vida de Galileu” compareceu diante da HUAC para prestar depoimento. O próprio Brecht deu seu depoimento no dia 30 de outubro. Brecht andou pelas ruas vazias da cidade à noite discutindo táticas. Temia que os quartos de hotel estivessem com escutas e cheios de informantes. Ele agora era o 11º dos “Dezenove de Hollywood”. Durante o depoimento, as respostas de Brecht para maioria das perguntas foram variações de “não sei” ou “não me lembro”, o que provocou risos nos presentes.16 Robert E. Stripling, o investigador chefe do Comitê, leu a versão em inglês para a letra de uma de suas músicas, “Foward, We’ve Not Forgotten”, perguntando se ele a tinha escrito. Brech respondeu: “Não, eu escrevi um poema alemão, mas ele é muito diferente dessa coisa.”17 Brecht admitiu ter visitado Moscou duas vezes na década de 1930 e ter conhecido o diretor Sergei Tretyakov, mas disse não ter lembranças sobre a entrevista que concedeu a ele, 14
“a Communist propaganda medium” (CAUTE, 2003, p. 194, tradução minha) “I surrendered my knowledge to those in power, to use, or not to use, or to misuse, just as suited their purposes.” (CAUTE, 2003, p. 273, tradução minha) 16 Wikisource . “Brecht HUAC hearing (1947-10-30) transcript”. Disponível em: Acesso em: 23 de dezembro, 2013. 17 “No, I wrote a German poem, but that is very different from this thing” (Wikisource, tradução minha) 15
50
publicada na Inostrannaya Literatura (nº 5, 1937), “isso deve ter sido escrito há uns 20 anos”18 ele disse. No mesmo dia, Brecht pegou um trem em Nova Iorque com a companhia de Losey e de T. Edward Hambleton, após seu depoimento à HUAC. Ele embarcaria num voo à Inglaterra no dia seguinte, e de lá iria à Suíça. Helene Weigel (esposa de Brecht), que logo iria partir também, deu a Losey um presente embrulhado em papel seda: “Você conhece o Brecht, ele nunca consegue fazer essas coisas...”19 Com o presente ("um cachimbo de ópio esculpido em marfim absolutamente requintado, que ele tinha conseguido na China”20), veio uma mensagem do dramaturgo: “Você devia relaxar.”21 Losey nunca mais voltou a vê-lo. Dos onze filmes que Joseph Losey dirigiu entre 1948 e 1960, dez foram escritos por roteiristas de esquerda. Ele continuou sendo alvo de muita perseguição até finalmente ser denunciado como um membro do partido comunista, em 1951. Losey passou 15 meses na Itália, Inglaterra e Espanha, até que arriscou voltar para os Estados Unidos em outubro de 1952 por causa da possibilidade de dirigir a peça “As Bruxas de Salém” (“The Crucible”), mas então, em novembro, um dia após a eleição de Eisenhower, ele partiu definitivamente para um exílio de 15 anos na Inglaterra. Losey seguiu dirigindo conteúdo político no teatro como “The Wooden Dish” (1954) de Edmund Morris, e a ópera “Boris Godunov” (1980).22 Além de Bertolt Brecht e Joseph Losey, outro par de personalidades do teatro que deixou sua marca na história do caça às bruxas americano durante a guerra fria foi Arthur Miller (dramaturgo) e Elia Kazan (diretor). O início da carreira de Kazan foi em 1932, quando se juntou ao Group Theatre, um grupo de teatro de esquerda23. Em sua biografia, “Elia Kazan: A Life”, ele conta que muitos grupos americanos de esquerda tinham uma relação estreita com o partido comunista:
18
“Must have been written twenty years ago or so” (Wikisource, tradução minha) “You know Brecht, he can never do these things himself...” (CAUTE, 2003, p. 194, tradução minha) 20 “an absolutely exquisite carved ivory opium pipe which he had picked up in China” (CAUTE, 2003, p. 194, tradução minha) 21 “You sould relax” (CAUTE, 2003, p. 194, tradução minha) 22 GARDNER, Colin, op. cit., p. 279. 23 KAZAN, Elia. “Elia Kazan: A Life” New York: Alfred A. Knopf Inc; Toronto: Random House of Canada Limited, 2011, p. 57 19
51
Eu não podia esquecer a voz de V.J. Jerome e o seu tom de autoridade absoluta enquanto ele passava instruções do partido para o cubículo do nosso Group Theatre e a sua expectativa de inquestionável docilidade de mim e os outros. Eu ouvi de novo em minha memória a voz, arrogante e absoluta, do Homem de Detroit enquanto ele me humilhava diante dos meus "companheiros" no apartamento de Lee Strasberg sobre a Sutter’s Bakery .24 (KAZAN, 2011, p. 457,
tradução minha)
Pouco depois de estrear “Men in White” (1933) com o grupo, ele próprio entrou para o partido.25Anos mais tarde, ele e Losey, juntamente com Nicholas Ray, foram cofundadores da primeira tentativa de um coletivo teatral comunista em Nova Iorque. Segundo Losey: "Eu dirigi Kazan em uma coisa chamada Newsboy por volta de 1936, que era uma propaganda política altamente esquerdista, mas foi muito bem sucedida. Nunca gostei muito dele.”26 Kazan deixou o partido comunista nessa mesma data, 10 anos antes de Losey entrar nele: Eu pensei que eu devia pensar que eu tinha me proibido a dúvida... Porque eu tinha posado como um esquerdista liberal por tanto tempo? ... Foi só porque, nessa posição, eu estava “dentro”. Dentro de quê? Droga, se eu soubesse. Mas dentro... Para ficar bem com todos os lados, ser apreciado por todos... Assim eu consegui ter tanto a Broadway quanto Hollywood, o sucesso comercial e a eminência artística 27.
Ele apoiou radicalmente os Dez de Hollywood e dirigiu, no México, o filme de esquerda “Viva Zapata!”, em 1952, escrito por John Steinbeck e estrelado por Marlon Brando. Entretanto, na mesma época, Kazan estava se preparando para o ritual de entregar nomes à HUAC. Ele conta como Cecil B. DeMille, estava agindo na Screen Directors’ Guild (Aliança dos Diretores de Cinema): Com sede de sangue, incluindo o meu... Darryl Zanuck, em uma explosão de amigável sinceridade, havia me dito que havia uma suspeita geral - e eu não posso dizer se ele compartilhava dela - que eu tivesse renunciado o partido apenas para jogar as pessoas 24
“I couldn't clear out of my mind the voice of V.J. Jerome and its tone of absolute authority as he passed on the Party's instructions for our Group Theatre cell and his expectation of unquestioning docility from me and the others. I hear again in my memory the voice, arrogant and absolute, of the Man from Detroit as he humiliated me before my 'comrades' in Lee Strasberg's apartment over Sutter's bakery." 25 Ibid, p. 104 26 "I directed Kazan in a thing called Newsboy sometime around 1936, which was highly left-wing agit-prop but very successful. I never liked him much." (CAUTE, David, 2003, p. 200, tradução minha) 27 "I'd thought what I was supposed to think. I'd forbidden myself doubt... why I had posed as a left-oriented liberal for so long?... I was only because, in that position I was 'in'. In what? Damn if knew. But in... to stay in good with all sides, to be liked by everyone... just as I'm managed to have both Broadway and Hollywood, commercial success and artistic eminence." (KAZAN, Elia, 2011, p. 458, tradução minha)
52
para fora do caminho, que eu ainda era, na verdade, um comunista Se eu fosse encurralado, eu decidi, eu tomaria uma posição desafiadora: eu nunca cederia ao DeMille - ou ao Comitê de Atividades Antiamericanas. 28 (KAZAN, 2011, p. 387, tradução minha)
Mas cedeu. Diferente de Losey e de Nicholas Ray, ele não foi um dos 25 diretores que assinaram uma petição contra o juramento de lealdade a DeMille.29 Kazan pediu a seu amigo e colaborador, Arthur Miller, que ligasse a seu país natal onde ele explicou à “Art” a sua decisão de obedecer à HUAC: “Eu disse que eu odiei os comunistas por muitos anos e que eu não acho que é certo desistir da minha carreira para defendê-los.”30 O testemunho de Kazan provocou um grande choque. Década depois, em 1999, quando ele foi premiado com um Oscar honorário, muitas pessoas que tinham sido postas na lista negra e descendentes protestaram contra.31 Ele compareceu à HUAC em janeiro de 1952 e em abril. Além de listar nomes de artistas comunistas, Kazan se referiu ao “Viva Zapata!” como “um filme anticomunista.32 Apesar de não ter estado entre os nomes denunciados por Kazan, Losey nunca viria perdoá-lo.33 E Losey não foi o único, na primeira página do seu script Sherwood’s July 1952, Kazan escreveu o nome de três amigos que se opuseram à sua decisão “Art, Lillian, Kermit” (Arthur Miller, Lillian Hellman e Kermit Bloomgarden). (NEVE, 2009, p. 69) Até o fim da década de 1950, Arthur Miller já tinha sido posto em listas negras na televisão, no rádio e no cinema, mas o teatro da Broadway permaneceu relativamente resistente a elas. Quando a Igreja Católica quis intervir na peça “Todos Eram Meus Filhos” (“All My Sons”, 1947), prestes a estrear no Teatro Coronet, Miller se recusou a ceder à censura, que se detinha a uma única linha: “A man can’t be Jesus in this world.” Dirigida por Elia Kazan, a peça foi apresentada 328 vezes, ganhou o Circle Award da New York Drama Critics e uma versão cinematográfica (1948). 28
"going for throats, including mine... Darryl Zanuck, in a burst of friendly candor, had told me there was a general suspicion - and I couldn't tell if he shared it - that I'd resigned from the Party only to throw people off the track, that I was still in fact a Communist. If I was cornered, I decided, I'd take a defiant position: I'd never bow to DeMille - or to the House Committee on Un-American Activities." 29 MITCHELL, G. “FILM; Winning a Battle but Losing The War Over the Blacklist” The New York Times, New York, 25 jan. 1998. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2013. 30 “I said I’d hated the Communists for many years and didn’t feel right about giving up my career to defend them.” (KAZAN, Elia, 2011, p. 393, tradução minha) 31 CAUTE, 2003, p. 203 32 Ibid., p. 204. 33 Ibid, p. 217-218
53
Assim como em “Espectros” de Ibsen, autor moderno que muito influenciou Miller, “Todos Eram Meus Filhos” progride através de uma sucessão de diálogos reveladores. A peça foi baseada em uma história verídica (da Wright Aeronautical Corporation de Ohio) sobre um empresário do ramo industrial que fabricava produtos para aviões da II Guerra. Tendo deliberadamente vendido um lote defeituoso visando o lucro, acabava provocando a morte de 21 soldados. Seu crime é desmascarado por seu próprio filho. As falas mais anticapitalistas da peça são as justificativas oferecidas pelo empresário Joe Keller a seu filho Chris quando a verdade é descoberta: “Estou no mundo dos negócios, sou um homem de negócios... Você investe 40 anos em uma empresa e eles te chutam de lá em cinco minutos, o que eu poderia fazer?" O filho responde: “Você não tem um país? Você não vive no mundo?” Por fim, Joe dá um tiro em si próprio, convicto de que a família, uma entidade sagrada, havia se desintegrado pelo desprezo de seus filhos, o vivo e os mortos. Para eles, todos os jovens pilotos que tinham morrido por consequência daquele crime eram filhos de Joe. (CAUTE, 2003, p. 205-206) “Todos Eram Meus Filhos” foi encomendada por teatros alemães, o que criou uma crise para as autoridades de ocupação americanas. Elas foram pressionadas para banir a peça pelo Comandante Nacional dos Veteranos de Guerra Católicos, Max Sorensen, pela revista New Leader , pela Associação Nacional dos Manufaturadores, e pela nova lista negra Counterattack .
O Escritório Americano do Governo Militar na Alemanha (OMGUS-Berlin) mandou um telegrama para a Divisão de Assuntos Civis do Departamento de Estado no dia 19 de agosto de 1947 dizendo que a peça só poderia auxiliar a propaganda de Moscou na Alemanha: “O tema da peça é considerado nocivo para o Programa de Reorientação.”34 Miller afirmou mais tarde que a peça tinha sido removida do repertório do Exército Americano na Europa assim como todos os seus outros trabalhos – apesar disso, “A Morte do Caixeiro Viajante” ocupou o segundo lugar entre as peças americanas encenadas na Alemanha Ocidental em 1949/1950.35 Em 194836 a peça foi montada no Teatro Vakhtangov, em Moscou, com Yuri Lyubimov como Chris Keller. Trechos citados em críticas apontavam que a tradução de E. Golyshev e Iu. Semenov não era fiel. Por exemplo, quando Chris descobre a verdade sobre seu pai, ele declara: “Essa é a terra dos cachorros grandes, você não ama os homens aqui, você os come! Esse é o 34
"Play's theme regarded as harmful to Reorientation Program.” (CAUTE, David, 2003, p. 205, tradução minha). Ibid., p. 206 36 BEUMERS, Birgit. “Yuri Lyubimov: Thirty Years at the Taganka Theatre” p. 235 35
54
princípio, o único pelo qual nós vivemos.”37 Na versão russa: “Aqui é a América – América é o país dos cães frenéticos. Aqui as pessoas odeiam, aqui as pessoas devoram. Esse é o código aqui; esse é o único código pelo qual a América vive.”38 Na versão original, quando Chris diz “Essa é a terra” e “nós”, ele pode estar se referindo ao mundo dos negócios, em vez da América. A tradução russa permite uma interpretação menos livre. As críticas em geral tiveram partes padronizadas. Todas começavam elogiando as produções que tinham estado em cartaz no Vakhtangov anteriormente (“A Questão Russa” e “Deep Are the Roots”), contavam que o Ministério da Guerra dos EUA tinha banido a peça da zona de ocupação das forças armadas americanas, lamentavam o fato de Miller ter recorrido ao tradicional “drama familiar”, e elogiavam as atuações. A Trud (27 de novembro de 1948) dizia que a peça expunha o interesse dos magnatas da indústria americana em preparar uma nova guerra. A Izvestiia (24 de novembro) apontou que artistas como Howard Fast, Chaplin e Miller estavam revelando a verdade sobre o “país do dólar”, uma vez que “Todos Eram Meus Filhos” tinha sofrido perseguição não só nos territórios ocupados pelas forças armadas americanas, mas também na Inglaterra.39 A Moskovskii bol’shevik (8 de dezembro), lamentou que a peça estivesse em cartaz em um palco soviético, pois
ela não mostrava a América de Truman, Marshall e Baruch, que era imperialista, fascista, e contrária à paz e à democracia. A crítica mais dura foi a de Abramov do Vechernyaya Moskva (1º de dezembro). Ela dizia que a peça não apresentava motivos para ser temida pelos americanos, uma vez que Miller não desafiava o sistema capitalista. Abramov ainda acrescentou que a imprensa comunista presente nos EUA tinha exposto imediatamente os defeitos ideológicos do texto, questionando a necessidade de encenação de tal retrato idealizado da medíocre burguesia americana.40 No dia 21 de abril de 1949 o jornal internacional Christian Science Monitor anunciou que a peça tinha sido suprimida. Ironicamente, nessa mesma época Arthur Miller foi fotografado ao
37
“This is the land of the great big dogs, you don’t love a man here, you eat him! That’s the principle, the only we live by.” (CAUTE, David, 2003, p. 207, tradução minha) 38 “Here’s America – America is the country of the frenzied hounds (strana ostervenelykh psov) . Here people hate, here people devour. That’s the code here; it’s the code by which America lives.” (CAUTE, David, 2003, p. 207, tradução minha) 39 Segundo Caute (2003, p. 652) “Todos Eram Meus Filhos” parece não ter sido publicada na Grã-Bretanha até 1958. A edição de 1961 da Penguin não menciona qualquer produção britânica ou lista de elenco, enquanto oferece essas informações sobre uma peça mais nova, “Um Panorama Visto Da Ponte”/”Do Alto da Ponte”. 40 Caute, 2003, p. 207-208
55
lado de Dmitri Shostakovich e o escritor Alexander Fadeyev durante a Conferência de Paz de Waldorf em Nova Iorque. Sobre esse assunto, Miller registrou a seguinte reflexão: Joe Keller é denunciado por seu filho por causa do uso de sua posição econômica deliberadamente antiética; e isso, como os russos disseram quando removeram a peça de seus palcos, evidencia um pressuposto de que a norma do comportamento capitalista é, ou pelo menos pode ser, ética, um pressuposto que nenhum marxista pode aguentar. 41
Entre os trabalhos de Arthur Miller, “Todos Eram Meus Filhos” e “A Morte do Caixeiro Viajante” (“Death of a Salesman”) foram originalmente dirigidos por Elia Kazan, mas Kazan não pôde fazer o mesmo com “As Bruxas de Salém” (“The Crucible”, 1953) já que quando esta foi escrita ele já havia entregado nomes à HUAC, o que tinha provocado uma briga entre ele e Miller. “As Bruxas de Salém” se desenvolve a partir de depoimentos e acusações feitos por um grupo de moças acusadas de praticar magia negra por terem sido encontradas dançando nuas em uma floresta. Quando a cadeia de acusações se prolonga, cada acusador se salva, confessando e informando. O tribunal dos magistrados é tão ansioso para achar os culpados, que qualquer um corajoso o bastante para assinar uma declaração para a defesa é preso para interrogatório. Segundo Rast (2010, p. 346), a partir de 1957, uma época já mais segura, o próprio Miller passou a discutir abertamente “As Bruxas de Salém” como uma alegoria à caça às bruxas comunista e ao “medo vermelho” do fim da década de 1940 e do início da década seguinte, o período do macarthismo. Naturalmente, a peça foi recebida com resistência. De acordo com Caute (2003, p. 211), Robert Warshow, editor associado da Commentary, o jornalista Irving Kristol, e Norman Thomans e Ernest Angell, ambos da American Civil Liberties Union Board of Directors, foram alguns dos liberais que criticaram publicamente o conteúdo comunista da peça. Segundo Rast (2010, 339), graças às críticas controversas, “As Bruxas de Salém” teve uma temporada aquém do esperado para uma peça escrita por um autor do porte de Arthur Miller. Caute (2003, 212) relata que Miller, em 1967, contou que as críticas descreviam a peça como fria, anti-macartista, e “mais um desabafo que uma peça”. Mas a sua produção seguinte, uma montagem off-broadway 41
“Joe Keller is arraigned by his son for wilfully unethical use of his economic position; and this, as the Russians said when they removed the play from their stages, bespeaks an assumption that the norm of capitalist behaviour is ethical, or at least can be, an assumption no Marxist can hold.” (MILLER, 1965, apud CAUTE, 2003, p. 209, tradução minha)
56
do Martinique Theatre em março de 1958, recebeu críticas mais positivas e ficou em cartaz por 15 meses, alcançando o número de 633 apresentações (mais que o triplo que a montagem original).42 Para Miller “isso aconteceu simplesmente porque as pessoas não tinham mais medo”43, ao final da década de 1950 o macarthismo já havia passado. Caute (2003, p. 209-210) cita algumas falas da peça que aparentam ter uma ligação direta com a realidade, como a do vice-governador, Thomas Danforth: “ou se está com esse tribunal ou contra ele, não há meio termo.”44 pode lembrar a HUAC, ou o sentimento de “nós e eles”45 imposto pelo medo vermelho, enquanto “há uma conspiração tentando derrubar Cristo nesse país!”46 poderia soar familiar para alguém que tenha vivido essa época. Além disso, Miller acusa alguns dos personagens de lucrar com as mortes de quem eles delatam: “Esse homem está matando os seus vizinhos pelas suas terras!”47 Mas dentre todas as falas, há uma de John Proctor que merece destaque: “Eu falo pelos meus próprios pecados. Eu não posso julgar o outro. Gritando, com ódio. Eu não tenho língua para isso.”48 A atitude da personagem antecipa a que o
próprio Miller iria tomar em 1956.49 Em 1954, quando Miller tentou ir a Bruxelas para assistir uma produção de “As Bruxas de Salém”, a Secretaria de Estado americana negou a concessão do passaporte. Então, em 1955, Miller escreveu “A View from the Bridge” onde o desejo de Eddie pela sua sobrinha adolescente distorce a sua boa natureza, fazendo com que ele chame oficiais da imigração para a sua casa, na presença de dois imigrantes ilegais, os parentes italianos de sua esposa. Em 1956, a HUAC intimou o dramaturgo sob o pretexto de um inquérito sobre o escândalo da concessão passaportes a subversivos. O Comitê começou a investigar a vida do autor, descobrindo que ele tinha se posicionado contra o Smith Act, tinha manifestado hostilidade contra Ezra Pound “este escritor anti-comunista”, tinha assinado o amici curiae ao Supremo Tribunal em nome dos Dez de 42
Segundo a Playbill, a produção original de “The Crucible” foi apresentada 197 vezes, de janeiro a julho de 1953. Disponível em: < http://www.playbillvault.com/Show/Detail/8275/The-Crucible > Acesso em: 22 de dezembro, 2013. 43 “It was simply that nobody was afraid anymore.” (CAUTE, 2003, p. 212, tradução minha), 44 “a person is either with this court or must be counted against it, there be no road between.”, tradução minha. 45 RAST, J. Earen. “Arthur Miller” In: Hobby, Blake “Student’s Encyclopedia of Great American Writers, 1945 to 1970” New York, Facts On File, 2010, p. 346. 46 “there is a moving plot to topple Christ in this country!”, tradução minha. 47 “This man is killing his neighbors for their land!”, tradução minha. 48 “I speak of my own sins. I cannot judge another. Crying out, with hatred. I have no tongue for it.”, tradução minha. 49 RAST, J. Earen, op. cit., p. 346.
57
Hollywood, assinado protestos do Civil Rights Congress contra legislações anti-comunistas e contra a própria HUAC, comparecido a cerca de cinco encontros de escritores comunistas em 1947, e assinado os apelos de Gerhardt Eisler e Howard Fast. Em 1956, quando finalmente foi chamado a depor, a HUAC quis que Arthur Miller delatasse alguns nomes, não porque a HUAC precisasse deles, mas como uma forma de retratação. Ele falou abertamente sobre seu próprio envolvimento com o socialismo durante a faculdade mas se negou a entregar nomes de terceiros. (CAUTE, 2003, p. 215-216) Em 1959, “A Morte do Caixeiro Viajante” foi encenada no Teatro Pushkin, em Leningrado. A HUAC ajudou a reacender o prestígio de Miller na URSS. O crítico Naum Berkovsky apontou que Miller estava longe de um pensamento burguês e mostrava na peça como a vida humana não possuía valor algum no capitalismo. Em janeiro de 1964, voltou a trabalhar com Kazan, que dirigiu sua “Depois da Queda” (“After the Fall”) , para a Companhia de Repertório do Lincoln Center . Essa peça conta a história de Micky, que salva a sua própria carreira delatando velhos amigos. A personagem Lou confessa: “Quando eu voltei da Rússia e publiquei meu estudo sobre o direito soviético- Desaba. Eu deixei pra trás muitas das coisas que eu vi. Eu... menti. Por uma boa causa, eu pensei, mas tudo o que restou foi a mentira... E eu menti para o Partido. De novo e de novo, ano após ano.”50 Lou insiste que deletar colegas não é a solução: “Pois, se todos quebrassem a confiança, não haveria civilização. É por isso que o Comitê é a face da barbárie...”51 Segundo Caute (2003, p. 217), Miller assumia que muitos de seus amigos e ele próprio tinham cometido erros graves, mas, em tempos tão ruins, eles tinham (quase) acertado errando.
50
“When I returned from Russia and published my study of Soviet law- Breaks off. I left out many things I saw. I… lied. For a good cause, I thought, but all that lasts is the lie… And I lied for the Party. Over and over, year after year.” (CAUTE, David, 2003, p. 217, tradução minha) 51 “Because if everyone broke faith there would be no civilization. That is why the Committee is the face of the philistine…” (CAUTE, David, 2003, p. 217, tradução minha)
58
3.3 Gestos Bélicos: a Dança O autor Yale Richmond (2003, p. 124), ao falar sobre os artistas cênicos soviéticos favoritos nos EUA, menciona apenas artistas da dança: a Companhia Estatal de Dança Popular Moiseyev, e os balés Bolshoi e Kirov. Isso justifica a afirmação de Jennifer Homans (2010, p. 342) de que a dança era a arte oficial do Estado Soviético. Uma das razões principais seria o fato de que não seria necessário saber russo para entender os espetáculos russos de dança, ao contrário do que aconteceria com o cinema, com o teatro ou com a ópera russos. A linguagem da dança seria universal, podendo ser compreendida tanto pela população trabalhadora local quanto pelos norteamericanos. A dança clássica era muito fácil de controlar. Uma vasta rede de organizações do Partido Comunista controlavam cada aspecto das produções: enredo, música, cenários, e figurinos eram submetidos a inspeção. O Jdanovismo obrigava o balé a contar histórias simples sobre trabalhadores heróicos, mulheres ingênuas e homens corajosos. Gestos abstratos, ou símbolos complicados e alegóricos, passíveis de interpretações ambíguas, eram banidos. Como resultado, os balés soviéticos eram literários e didáticos, desenhados para retratar a vida como um conto de fadas, um paraíso socialista. (HOMANS, 2010; CAUTE, 2003) Treinados com disciplina militar, todo artista da dança tinha a consciência de que os meses de ensaio poderiam resultar em desastre, e por isso trabalhavam sob o regime da autocensura. Segundo Isaiah Berlin eles possuíam “as mentes menos complexas e intelectuais dentre os artistas”. Mas havia uma recompensa: as escolas de balé, totalmente financiadas pelo governo soviético, traziam crianças das partes mais afastadas do país para o centro, dando-lhes abrigo, alimento, educação, remédios, roupas. Quando formados, os bailarinos eram enviados de volta a regiões mais afastadas, para difundir e elevar a qualidade da arte. A partir desse momento, eles poderiam passar a fazer parte da elite soviética, tendo acesso a privilégios que o cidadão comum não possuía, como datchas ou automóveis. (HOMANS, 2010, p. 343-344) Mas o balé clássico representava tudo aquilo que a América detestava. Uma arte rígida, aristocrática, elitista. Até o final do século XIX, o público americano se interessava apenas pelas dançarinas italianas de “The Black Crook” e das “ Ziegfield’s Follies”. Porém, no início do século XX, muitos dançarinos do Império Russo se instalaram na América, fugindo da Revolução Russa e da Primeira Guerra Mundial, e mudaram tudo. A bailarina Anna Pavlova nos
59
vaudevilles, e outras dezenas de bailarinos do Ballet Russes de Sergei Diaghilev fizeram um estrondoso sucesso e semearam a dança nos EUA, como na Inglaterra. Após a Segunda Guerra, mestres como George Balanchine, Anthony Tudor e Jerome Robbins tinham elevado o balé americano a uma importância surpreendente, tornando-o um símbolo do modernismo. (HOMANS, 2010, p. 448-451) Em 1949, o presidente da Ballet Theatre Foundation, Blevin Davis, se ofereceu para levar a companhia à URSS por sua própria conta, desde que os russos providenciassem uma orquestra. Em resposta, S. Striganov, primeiro secretário da Embaixada Soviética em Washington, disse que achava que seria benéfico para os bailarinos americanos caso eles “se familiarizassem com as conquistas da arte do balé do nosso país, que alcançou um novo patamar de perfeição durante os dias do poder soviético”1 mas o público soviético não estava acostumada a assistir a “fragmentos de balés” como os que a companhia americana estava oferecendo. Poucos anos depois, o crítico soviético V. Gorodinskii declarou: Não existe balé nacional na América. Até o momento o então chamado “balé” na Inglaterra e na América vem principalmente das sobras dos primeiros grupos de balé russos, de cooperativas abandonadas, formado pelo o que restou da anteriormente famosa companhia de Diaghilev e administrado ou por um certo “coronel” Basil ou, na América, pelo dançarino ex-russo Balanchine. (CAUTE, 2003, p. 469-470, tradução minha)
Durante a Guerra Fria, a primeira apresentação de um grupo de dança russo nos Estados Unidos aconteceu em 1958, com a turnê da companhia de Moiseyev. Apesar do grande sucesso de público, a turnê não terminou bem. Durante a estadia de Moiseyev no país, Harrison Salisbury publicou no The New York Times um artigo em que o coreógrafo se dizia impressionado com a qualidade da arte americana. Pouco depois, Salisbury voltou a abordar Moiseyev no jornal, reportando que o Kremlin havia censurado uma apresentação da companhia por causa das declarações favoráveis aos EUA. No ano seguinte, cerca de um milhão de pessoas tentaram conseguir um dos 160.000 ingressos disponíveis para as apresentações do Balett Bolshoi no Metropolitan Opera House. Trezentos mil espectadores assistiram as cinquenta e duas apresentações que aconteceram em Nova Iorque, Washignton, Los Angeles e São Francisco. Salisbury desejou que os bailarinos voltassem à Moscou mais inspirados depois de terem sido 1
“to acquaint themselves with the achievements of the ballet art in our country, which has stepped up to a new high level of perfection during the days of Soviet power.” (STRIGANOV apud CAUTE, 2003, p. 4 69)
60
expostos à criatividade de Balanchine e Jerome Robbins, mas o fato é que a turnê do Bolshoi em 1959 foi triunfal, e em 1962 o sucesso se repetiu. (CAUTE, 2003) No mesmo ano em que o Bolshoi voltava a se apresentar nos EUA, o coreógrafo de balé moderno George Balanchine (nascido Giorgi Balanchivadze, São Petersburgo, 1904) levava o seu New York City Ballet à URSS. Solomon Volkov, um historiador cultural de São Petersburgo escreveu: Eu me lembro da forte impressão causada pela turnê. As pessoas mais velhas rejeitaram: ‘Os norte-americanos não estão dançando; eles estão resolvendo problemas de álgebra com os pés’. Mas os jovens viram nas produções de Balanchine o ápice cultural que a vanguarda Petersburgo poderia ter alcançado se não tivesse sido esmagada pelas autoridades soviéticas. (RICHMOND, 2003, p. 125, tradução minha)
De acordo com Caute (2003, p. 491-492), o New York City Ballet foi ovacionado em todas as suas apresentações, embora os críticos soviéticos reclamassem da falta de humanidade do estilo de Balanchine. Ao longo da Guerra Fria, muitos bailarinos soviéticos como Natalia Makarova e Mikhail Baryshnikov desertaram. Esses episódios acentuavam ainda mais o clima de conflito entre os blocos. Segundo Caute (2003, p. 502) o livro “O Arquivo Mitrokhin” aborda a campanha de intimidação que a KGB iniciou por causa da deserção de Rudolf Nureyev. A cobertura da mídia era particularmente sensacionalista em ambos os lados. Em 1979 o New York Times comentou sobre a deserção de Aleksandr Godunov: “Não se trata de ganância ou de ambição excessiva, é o sistema soviético que obriga os artistas a transformarem decisões de carreira em gestos ideológicos.”2
2
“It is not greed or excessive ambition but the Soviet system that forces artists to turn career decision into ideological gestures.” (CAUTE, 2003, p. 505)
61
Capítulo IV: A Batalha pelo Domínio Cultural da Alemanha “O teatro, a arte, a literatura, o cinema, a imprensa, os anúncios, as vitrines, devem ser empregados em limpar a nação da podridão existente e pôr-se a serviço da moral e da cultura oficiais.”
(Adolf Hitler, “Minha Luta”)
62
Em 1945, na Conferência de Potsdam, a Alemanha foi dividida pelos Aliados em quatro zonas de ocupação militar. As três zonas a oeste, pertencentes à França, ao Reino Unido e aos Estados Unidos, viriam a formar a República Federal da Alemanha (a Alemanha Ocidental), enquanto a área ocupada pela União Soviética se tornaria a República Democrática da Alemanha (a Alemanha Oriental), controlada pelo Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED). (CAUTE, 2003; HOBSBAWM, 1995) Mesmo que as zonas militares estivessem bem estabelecidas, os EUA e a URSS continuariam a lutar pela influência cultural na Alemanha. Ao final da década de 1940, a peça “ Русский вопрос” (“A Questão Russa”) do dramaturgo soviético Constantin Simonov foi produzida em muitas cidades do leste europeu como Berlim, Dresden, Budapeste e Bucareste. O enredo consistia na história de Harry Smith, um jornalista americano que é enviado como correspondente à URSS para escrever um relatório sobre as intenções beligerantes e expansionistas soviéticas, a fim de promover uma ampla campanha de propaganda realizada pelos meios de comunicação norte-americanos e da elite conservadora. Harry se apaixona pela URRSS, um país muito diferente da imagem mostrada pela "imprensa livre" americana. Quando volta aos Estados Unidos, ele se vê num dilema, pois enquanto o seu caráter o induz a dizer toda a verdade, os seus superiores o pressionam para que ele escreva uma inverdade conveniente. No mundo real, o governo e a mída soviética fizeram de tudo para promover a peça anti-americana que foi louvada com um Prêmio Stalin. (CAUTE, 2003, 88-116) Por sua vez, no início da década de 1950, o Departamento de Estado Americano anunciou para toda a mídia que a ópera “Porgy and Bess” de George Gershwin faria uma turnê nas cidades de Viena e Berlim como uma resposta a dois tipos de ataques costumavam se feitos contra os EUA: as afimações de que o país não tinha uma cultura real, ou artistas nativos que fossem criativos, e que as pessoas de cor não tinham oportunidade para desenvolver suas habilidades além do status de escravos. Para atingir esse objetivo, o Departamento investiu uma grande quantia: pouco menos de 100 mil dólares, mais DM 120.000 e mais de 400.000 xelins austríacos. “Porgy and Bess” era uma manifestação do “meltingpot” americano: o elenco afroamericano cantava as músicas e as letras criadas por judeus nova-iorquinos em um enredo baseado no romance de um branco sulista. A companhia foi formada com o único propósito de ir à Europa. Em suma, a ópera, “embora fosse reconhecidamente boa arte”, tinha sido reformada pelo Departamento de Estado para servir como “uma propaganda ainda melhor”. (MONOD, 2003, p. 252) Tanto a peça “ Русский вопрос” quanto a ópera “Porgy and Bess” receberam adaptações cinematográficas, em 1947 e 1959 respectivament.
63
4.1 Berlim: Palcos de Guerra Berlim era uma cidade dividida em quatro setores, e onde a passagem entre eles era livre. Segundo Caute (2003, p. 249), os uniformes de todos os quatro poderes poderiam ser avistados nas plateias de uma peça teatral modernista ou de um concerto de música clássica. Durante o imediato pós-guerra, a cultura do New Deal ainda era imperativa na zona americana, e o antifascismo ainda era mais forte que o anticomunismo. Na zona russa, eles estavam dispostos a abraçar qualquer um. Peças americanas radicais da década de 1930 logo chegaram aos palcos de Berlim. No dia 8 de agosto de 1945, o Herald Tribune noticiou que os russos tinham fechado o Teatro Deutsches na Berlim Oriental após uma temporada de dois dias da peça de Thornton Wilder,
ganhadora do Prêmio Pulitzer, “Nossa Cidade”, por causa do seu tema “derrotista”. O novo administrador do teatro era Gustav Von Wangenheim, que tinha deixado a Alemanha nazista para se tornar um cidadão soviético. A justificativa oficial sobre o fechamento declarava que os atores alemães não tinham conseguido obter a licença apropriada no Escritório de Cultura Soviético, mas ninguém acreditava nessa versão. “Nossa Cidade” é um texto modernista extremamente inovador. Ele traz o desafio de encenar todo o cotidiano de uma democracia humanista, a cidadezinha ficcional Grover’s Corner, com um palco quase nu, uma vez que o autor exigiu expressamente em seu texto que poucos elementos componham o cenário. A peça voltou aos palcos de Berlim com uma produção de Max Kruger no Teatro Schonber Stadt em março de 1946. Até 1948, 295 mil alemães tinham assistido. Em setembro de 1945, o Departamento Soviético de Propaganda e Censura tomou controle direto dos quatro principais teatros da Berlim Oriental. No Teatro Deutches, o último ato de uma peça do comunista húngaro, Julius Hay, foi rescrita. As intenções soviéticas foram escritas em um decreto da Administração Militar Soviética na Alemanha (iniciais em alemão: SMAD), nº 51, quatro de setembro de 1945, Berlim. No dia 6 de novembro do mesmo ano, o correspondente William L. Shirer foi assistir a estreia de “Thuder Rock” (“Leuchtfeuer”), escrita por Robert Ardrey, no Teatro Hebbel: “Foi a primeira peça americana que os habitantes de Berlim viram em mais de dez anos, e a plateia gostou.” 1. O início da peça foi atrasado por causa 1
“It is the first American play the Berliners have seen in more than ten years, and the audience liked it.” (CAUTE, 2003, p. 250, tradução minha)
64
de um grupo de quatro oficiais soviéticos que queriam entrar mesmo com os ingressos estando esgotados. “Eu estava tocado com o fato de que oficiais soviéticos estivessem tão interessados em ver uma peça americana: quantos dos nossos iriam atravessar a cidade para assistir uma peça russa?”.2 Embora os britânicos fossem céticos, e os franceses não tivessem teatros em sua zona, os americanos e russos compartilhavam a crença na reeducação (a famosa “umerziehung”) pelo teatro. Os oficiais soviéticos, muitos deles com laços pessoais com os teatros russos, trabalharam com colegas alemães como Max Valentin, Wolfgang Langhoff, e Herbert Ihering para reconstruir os repertórios dos teatros alemães. Em abril de 1946, mais de cem teatros estavam operando na zona soviética. A maioria era dirigida por autoridades locais sob o controle geral do Comandante Supremo, que determinou um padrão para ser seguido: clássicos “progressistas” alemães e europeus (Schiller, Molière, operetas de Offenbach), peças antifascistas alemães, clássicos russos, e peças contemporâneas soviéticas. Enquanto isso, os norte-americanos começaram encenando os seus dramaturgos modernos mais bem estimados, como uma evidência de que a visão de Goebbels sobre as “megalópoles burguesas” estadunidenses era infundada, embora fosse compartilhada pela maioria dos alemães, incluindo os de esquerda. “Electra Enlutada” (“Mourning Becomes Electra”) , “O Zoológico de Vidro” (“The Glass Menagerie”) e “Um Bonde Chamado Desejo” (“A Streetcar Named Desire”) de Tennessee Williams foram incansavelmente encenadas, assim como “Anna Christie”, de Eugene O’Neill. O ganhador de quatro prêmios Pulitzer, Eugene O’Neill era a ponte entre seus predecessores Ibsen, Strindberg, e Nietzsche, e aqueles que vieram depois, Tennessee Williams, Arthur Miller e Edward Albee. Em 1936, ele ganhou um Prêmio Nobel. Após o sucesso da primeira noite de “Anna Christie” no Teatro Jüergen Fehling, no dia 8 de novembro de 1945, o Governo Militar Americano começou a traduzir uma série de peças do autor. “A Juventude Não é Tudo” (“Ah, Wilderness”) foi elogiada tanto pelo comunista Neues Deutschland quanto por jornais das zonas ocidentais. (CAUTE, 2003, 250) A partir de meados da década de 1940, a guerra fria suplantou a política de combate ao nazismo. Com o decreto de Jdanov em fevereiro de 1946, “O Percevejo” de Maiakovski não 2
“I was touched that Soviet officers should be so interest in seeing an American play: how many of our own would walk across town to see a Russian play?” (CAUTE, 2003, p. 250, tradução minha)
65
seria mais encenado em Berlim. A partir de então, em Turíngia, um oficial soviético de cultura chamado Babenko e seus homens passariam a intervir diretamente na produção de todas as peças russas, sendo elas soviéticas ou clássicas. Tchekhov, Pushkin e Gogol deveriam ser encenados exatamente como na União Soviética. Então a batalha de críticos começaria em Berlim. Caute (2003, p. 252) cita o caso da peça “Colonel Kuz’min”, dos irmãos Tur e Sheinin: segundo o crítico soviético I. Novodvorskaia, ela tinha deixado uma grande impressão, mas os críticos reacionários e a imprensa corrupta que operava sob a licença ocidental tentaram convencer os leitores de que a figura do Coronel Kuz’min era idealizada e que oficiais soviéticos parecidos não poderiam ser encontrados na vida real. Particularmente efetiva era a cena em que Kuz’min e o Professor Dietrich discutiam os princípios fundamentais das políticas soviéticas na zona oriental, isso “invariavelmente provocava aplausos ruidosos do público alemão.”3 Por sua vez, as produções do Teatro Hebbel no setor americano da Berlim Ocidental eram atacadas frequentemente pela imprensa do setor soviético. Em 1945, houve uma produção de “A Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht. O Deutsche Volkszeitung (zona soviética, 18 de agosto) atacou a decisão de encenar uma peça que “cinicamente celebra o lema ‘Erst kommt das Fressen, dann die Moral’ (‘Alimentos vem primeiro, a moral depois’)” diante de plateias alemãs,
um público que precisava de reeducação moral.4 A montagem de “A Pele de Nossos Dentes” (“By the Skin of Our Teeth”) de Thornton Wilder foi acusada pela imprensa soviética licenciada de estar “apodrecendo no pessimismo destrutivo de uma letárgica, cética, decrépita burguesia.” 5 “Stay of Execution” de Paul Osborn, teve um histórico parecido. Além disso, produções de peças
de Sartre, Anouilh e Giraudoux no setor americano inspiraram o crítico stalinista Fritz Erpenbeck a escrever dois artigos no Neues Deustchland (1 de janeiro e 27 de abril de 1947) que lamentavam a enxurrada de peças surrealistas e existencialistas nos teatros da zona ocidental, variações do niilismo que eram oferecidas como narcóticos. Entretanto, ele também declarou que os dramas contemporâneos encenados no setor soviético não eram tão atrativos quanto as produções estrangeiras da Berlim Ocidental. (CAUTE, 2003, p. 281)
3
“invariably aroused stormy applause from the German audience.” (CAUTE, 2003, p. 252, tradução minha) Caute, 2003, p. 281. 5 “rotting in the destructive pessimism of a lethargic, sceptical, decrepit bourgeoisie.” (CAUTE, 2003, p. 253, tradução minha) 4
66
A coexistência pacífica começava a ser ameaçada. No dia 28 de outubro de 1947, o Governo Militar Americano iniciou um programa informacional e educacional para explicar ao povo alemão os conceitos básicos da democracia que se opunham ao sistema comunista. Um relatório da Reuters, publicado no dia 16 de fevereiro de 1948, descrevia Berlim como a melhor demonstração de ideologias contrastantes e culturas de lados opostos na Europa, acrescentando a informação de que, quando o assunto era exibições estáticas de “cultura”, as autoridades soviéticas estavam ganhando. Em julho de 1948, o diretor do Teatro Deutsches, Wilhem Langhoff, retornando de uma viagem à União Soviética, agendou uma conferência entre profissionais do teatro e falou dos méritos da cultura soviética, enquanto Herbert Ihering, do Teatro Max Reinhardt, agradeceu aos russos por ajudarem a poupar o repertório germânico das produções “sem conteúdo, estéreis de ideias, escapistas, banais, e sem ambição” 6 do passado. Na zona americana, autores teatrais como Lillian Hellman e Clifford Odets agora eram considerados como politicamente inaceitáveis e tinham sido banidos por Washington. Gerard Willem van Loon, oficial americano de teatro, reclamou em um memorando: “Essas pessoas despertaram uma crença de que... os americanos são todos milionários iletrados cuja única ambição é a de viver em um arranha-céu com uma dieta de gim e jazz.” Entre os maiores sucessos desse período estão: a comédia “The Voice of the Turtle” de John van Druten, que alcançou 1.085 apresentações na Alemanha pós-guerra; “First Legion”, um drama católico sobre freiras, de Emmet Laverty; e “O General do Diabo” (“Des Teufels General”) escrita nos Estados Unidos pelo exilado Karl Zuckmayer. Essa última, conta a história de um piloto obstinado da força aérea nazista. No fim da história, ele morre nobremente pelos seus próprios erros. “O General do Diabo” tinha sido inicialmente banido pelos aliados, mas após ser montada em Hamburgo no fim de 1947, acabou se tornando o drama mais encenado durante os próximos dois anos. (CAUTE, 2003, p. 254) Também em 1947, o intelectual Melvin Lasky, editor do jornal Der Monat , atacou o clima de censura do estado policial soviético, particularmente as sanções impostas ao escritor Mikhail Zoshchenko e à poeta Anna Akhmtova. Mas essa não foi a atitude de Lasky que mais recebeu a atenção dos soviéticos. No dia 27, poucos dias após a abertura do primeiro congresso de escritores alemães do pós-guerra, promovido pela SMAD, Lasky, entrou na tribuna, o que 6
“the contentless, idea-barren, escapist, banal, unambitious” (CAUTE, 2003, p. 253, tradução minha)
67
dividiu o congresso ao meio e fez a escritora comunista, Anna Seghers, correr para fora da sala para buscar Alexander Dymshits, chefe da seção cultural da SMAD. Os comunistas presentes insistiram em lembrar Lasky da perseguição ao compositor Hanns Eisler promovida pela HUAC nos Estados Unidos, mas ainda assim, Lasky não hesitou a condenar em voz alta “o aparato russo de campos de concentração políticos e trabalho forçado”; “todos nós sabemos o quão esmagador é trabalhar e escrever quando um censor político está atrás de nós, e a polícia está atrás dele”, ele disse aos escritores soviéticos. (CAUTE, 2003, p. 256) Os jornais da zona soviética expressaram indignação, desafiando as credenciais de Lasky como escritor e jornalista. Dymshits afirmou que Lasky tinha uma aparência repulsiva e era uma criatura pertencente ao grupo ligado a Ruth Fischer, que havia delatado seus irmãos, Hanns e Gerhardt Eisler, ambos residentes nos Estados Unidos. O jornal da zona soviética Tägliche Rundschau, no dia 30 de maio de 1948 publicou um artigo intitulado “Hexenjäger als
Theateroffizier” (Caçador de Bruxas como Oficial de Teatro): Uma mudança súbita do pessoal do Departamento de Cultura da Administração Militar Americana está sendo discutida: a posição de administrador do Teatro de Berlim será realocada. Até agora o Sr. Benno Frank tinha ocupado esse posto com a melhor de suas habilidades, mostrando prudência e conhecimento. (...) O real motivo para a surpreendente saída e iminente revogação do Sr. Frank de Berlim deve estar relacionado às suas ocupações democráticas. De qualquer forma, entre os círculos artísticos de Berlim é sabido há tempos que o seu trabalho tem sido entravado por problemas sistemáticos e frequentes e variadas tentativas de intimidação da parte do oficial Josselson. A atual revogação do Sr. Frank, aparentemente, pode ter sido uma iniciativa dele. Os motivos se tornam mais claros quando sabemos que o possível sucessor de Frank será ninguém menos que o estranho Herr Melville (sic: Melvin) Lasky, entre todas as pessoas, cuja capacidade oficial anterior foi a de correspondente do “New Leader”
e do “Partisan Review” em Berlim, dois jornais de má reputação financiados
pela polícia secreta americana. Em sua capacidade oficial como um agente provocador para o seu financiador, Lasky não conseguiu elevar seu nome a uma posição particularmente gloriosa. (...) A sociedade progressiva alemã vê todo o episódio, que culmina na realocação de um homem honrado por um suspeito informante da polícia, como a nova intensificação da dominação cada vez mais evidente da Administração Militar Americana na Alemanha. Muito discutida é a queda dos últimos adeptos do pensamento democrático de Roosevelt e sua substituição por caçadores de bruxas da reação. (CAUTE, 2003, p. 255, tradução minha).
68
Enquanto isso, “Deep Are the Roots”, peça teatral americana de James Gow e Arnaud d’Usseau, estava sendo bem sucedida em Turíngia, contabilizando a maior quantidade de espectadores entre 1948-49: 39.000 pessoas. Essa peça tinha tido a sua licença negada na zona americana da Alemanha por causa “acento desequilibrado a respeito do problema racial americano”. Em Dresden, na Alemanha Oriental, uma encenação foi prontamente produzida. Um protocolo dos funcionários da Divisão de Assuntos Civis dos Estados Unidos (CAD), dizia: A peça aborda o retorno de um herói de guerra negro ao seu lar no Sul e problemas raciais, o que a leva, consequentemente, a uma propaganda antiamericana. Há muito tempo nós desaprovamos a peça de um ponto de vista político. A peça foi previamente montada sem autorização em Moscou (no Teatro Vakhtangov) em abril de ’47. Na época, uma estação de rádio de Moscou citou o Pravda como segue: “Os autores largamente expõem os senhores de escravos americanos que têm mantido o seu ódio racial pelos negros até o presente.”. (CAUTE, 2003, p. 256, tradução minha)
Segundo Caute (2003, p. 256-257), no dia 4 de maio de 1949, John Evarts, chefe da Sessão de Teatro e Música da CAD, escreveu um memorando relatando que havia duas categorias de peças que eram “comumente proibidas de serem realizadas e distribuídas”: “peças que tendem a conter um elemento de crítica à vida na América, ou lidar com problemas maiores enfrentados na América”, e “peças que, independentemente de seu conteúdo, tenham sido escritas por autores considerados comunistas ou simpatizantes aos comunistas”. “Na prática, isso resulta na proibição de uma boa proporção das melhores peças sérias escritas na América”, ele escreveu, comparando a “irônica” situação à “época nazista, quando também havia muitos autores proibidos”. Uma reportagem de 1951, “Teatro e o Povo Alemão, escrita pelo oficial Gilbert Hartke para o Escritório do Alto Comissariado para a Alemanha, dizia: “As peças americanas tendem a criticar muito a vida americana e insistir nos aspectos negativos da vida americana... Casos excepcionais são frequentemente tomados como regra pelas plateias alemãs.”7
7
“American plays tend to criticize American life too strongly and lay have stress on negative aspects of American life… Exceptional cases are frequently taken as the rule by German audiences.” (CAUTE, 2003, p. 257)
69
4.1.1 Ópera em Berlim: Construindo uma Identidade Russa Em um artigo publicado na Sovetskaia muzyka, em dezembro de 1948, Segei Barskii relatou que quanto o “Reich de Mil Anos” de Hitler terminou, o público alemão ignorava tudo a respeito da cultura russa. A música russa foi diminuída, considerada dependente do trabalho dos compositores “europeus”, dos compositores alemães acima de todos. Glazunov se tornou o Brahms russo, Rimsky-Korsakov, o Verdi russo, e Tchaikovsky era elogiado como “o mais ocidental dos compositores russos”. Segundo Caute (2003, p. 257), na visão de Barskii, a missão da imprensa do pós-guerra era introduzir o público alemão à música russa, e principalmente às óperas russas. A primeira produção foi de “Eugene Onegin” na Ópera Municipal em Berlim. A partir dela, a ópera russa se estabilizou firmemente não só na zona soviética, mas também na Alemanha Ocidental. Barskii citou quatorze dessas produções, encenadas durante os últimos três anos. Ele observou que mesmo que o ato de frequentar teatros na zona soviética pudesse ser considerado uma atividade antiamericana, e os convites enviados aos oficiais ocidentais normalmente voltassem com uma orgulhosa rejeição, geralmente esse oficiais instruíam seus mensageiros a irem à bilheteria para obter ingressos em algum lugar que não fosse a fileira da frente. Walter Felsenstein, nascido em Viena (1901), especialista em teatro musical, produziu óperas durante o governo nazista. Depois da guerra, ele trabalhou como diretor do Teatro Hebbel, mas se mudou para o setor russo para fundar a Komische Oper em 1947, produzindo uma sucessão de clássicos: “Falstaff” de Verdi, “Carmen” de Bizet, e “A Flauta Mágica” (“Die Zauberflöte”) de Mozart. Os recursos posto à sua disposição seguiam a mais generosa tradição
germânica: 387 ensaios para “Falstaff”, 375 para “Carmen”, e ele era livre para recrutar cantoras de Munique, Hamburgo, ou Zurique. Walter Ulbricht elogiou Felsenstein em seu quinquagésimo aniversári, por ter transcender seus maus hábitos, as imagens falsas, e as ilusões confortáveis do teatro capitalista reacionário. Os “elementos políticos” de “As Bodas de Fígaro” de Mozart foram acentuados, assim como a alegoria “O Franco Atirador” (“Der Freischütz”) de Weber foi “psicologicamente aprofundada”. Mas, segundo Caute (2003, p. 259), Jürgen Rühle acreditava que o fato da Komische Oper parecer tão interessada montar óperas e operetas mostrava “a absoluta pobreza da vida
70
musical sob o regime comunista” 1. Originalmente, Felsenstein tinha se comprometido a produzir obras contemporâneas como “ Die Kluge” de Carl Orff, que havia ganhado um prêmio nacional em 1948-49, quando a campanha contra o formalismo ainda não havia emergido. Mas, continuou Rühle, “algum tempo depois, o seu ousado trabalho com suas refinadas, primitivas, e clássicas formas não manteve a aprovação dos oficiais do Partido.” 2 A produção de “Antígona” de Carl Orff foi acusada pelo Neues Deutschland de transformar o “conteúdo humanista democrático” de Sófocles em um misticismo arcaico e ininteligível, e acabou sendo banida. Durante o “degelo” de 1954, a Ópera de Dresden tentou montar várias obras de Orff, mas apesar do sucesso de público, elas eram rapidamente suprimidas. O Neues Deutschland também criticou duramente a montagem da Komisches Oper da modernista “ Der Arme Matrose”, libreto do suspeito político Jean Cocteau (colaborador de Stravinsky), o que fez, para Rühle, as óperas contemporâneas desaparecerem da zona soviética. Em 1952, o SED emitiu uma intimação “Für eine deutsche Nationaloper ” (“Por uma ópera nacional alemã”), apontando que a ópera nacional russa deveria ser o modelo para profundas e vitais que refletissem o poder do povo dentro da tradição nacional. Uma versão alemã deveria ser considerada uma tarefa urgente, e poderia ser completada apenas com planejamento e colaboração coletiva entre compositor, escritor, e “cientista” (para informar os artistas a respeito da situação histórica concreta com precisão). A Academia de Arte, a Comissão de Estado para as Artes, e as uniões de músicos e escritores deveriam criam um comitê para realizar o trabalho. O assunto mais oportuno seria a Guerra dos Camponeses do século dezesseis, liderada pelo rebelde Thomas Müntzer. Entretanto, a comissão simplesmente procurou pelo premiado Hanns Eisler, que se encarregou do libreto e da música, aparentemente sem nenhuma intervenção de um escritor ou “cientista”, escrevendo a ópera “Johann Faustus”, sobre um intelectual humanista que rompe com a Igreja Católica, se alinhando a Lutero, e depois ao radical Thomas Müntzer, a quem ele trai quando, corrompido pela ambição, faz um pacto com o Diabo. Felsenstein garantiu os direitos para que a primeira produção de “Johann Faustus” fosse do Komisches Oper . Mas isso foi um pouco antes de Eisler ser considerado suspeito pelo Partido. Os motivos eram os fatos de que ele tinha sido aluno de Arnold Schoenber, e morado nos 1
“the total poverty of musical life under Communist rule” (CAUTE, 2003, p. 259) “Some time later this bold work with its refined, primitive, antique forms scarcely retained the approval of Party officials.” (CAUTE, 2003, p. 259) 2
71
Estados Unidos, como exilado. O Neues Deutschland publicou um artigo lamentando que Eisler não tivesse sido capaz de superar algumas influências formalistas do passado. O ideólogo Wilhelm Girnus acusou a concepção da ópera de Eisler de “pessimista, externa ao povo (volksfremd), incorrigível e anti-nacional”. Citações de Marx, Engels, Goethe, Heine, Stalin e Malenkov foram lançadas contra ele. Um acontecimento do segundo ato foi considerada particularmente ofensiva, refletindo a experiência pessoal de Eisler como um exilado na América. Fautus encontra um lugar chamado “Atlanta”, e então, quando volta à Alemanha, no início do terceito ato, ele reclama do quanto seu lar (“heimat”) parecia cinza, frio e sujo, em comparação com o enorme, e luminoso sol de Atlanta.
72
4.1.2 Brecht em Berlim: Aliado ou Inimigo? O Teatro Hebbel, localizado no setor americano de Berlim, abrigou encenações de quatro textos de Bertolt Brecht entre 1945 e 1946: “A Ópera dos Três Vinténs” (“Die Dreigroschenoper”), “A Vida de Galileu” (“Leben des Galilei”), “Os Fuzis da Senhora Carrar”
(“Gewehre de Frau Carrer”) e “Aquele que Diz Sim” (“Der Jasager”). Nessa época Brecht ainda morava nos Estados Unidos e parecia pertencer ao Ocidente. Entretanto, em 1947, ele fez sua saída apressada dos EUA, mudando radicalmente esse quadro. (CAUTE, 2003, p. 281) Como já vimos, Bertolt Brecht foi um artista peculiar. Ele não se enquadrava na lógica da Guerra Fria: aparentemente, ele era comunista demais para a democracia liberal americana, e contestador e modernista demais para a ditadura soviética. Na URSS suas peças eram censuradas sob a acusação de formalismo, enquanto nos EUA ele foi perseguido pela HUAC. Em 1947, ao retornar para a sua terra natal, ele começaria a vivenciar uma experiência única. Brecht morou em Zurique por um ano. Nessa época, o oficial de cultura do setor soviético, Alexander Dymshits, entregou ao autor suíço Max Frisch um envelope que deveria ser entregue a Brecht e sua esposa Helene Weigel (ela, um membro do partido comunista, ele não), convidando-os a se estabelecerem em Berlim e prometendo a eles um teatro. Em dois artigos publicados em 1947 Dymshits saudava Brecht, o comparando elogiosamente com Maiakovski. O quinquagésimo aniversário do dramaturgo, em fevereiro de 1948, foi comemorado com uma produção de “Terror e Miséria no Terceiro Reich” (“Furcht und Elend des Dritten Reiches”) no Teatro Alemão. (CAUTE, 2003, p. 282) Ainda em 1948, Brecht e Weigel se mudaram para o setor soviético de Berlim, onde morariam por quatro anos. A primeira produção de um trabalho de Brecht feita após sua chegada foi “Mãe Coragem e Seus Filhos” (“Mutter Courage und ihre Kinder”), estreada no dia 11 de janeiro de 1949 com Weigel no papel principal. O Neues Deutschland elogiou Brecht como a personalidade criativa mais significante do teatro moderno. Vladimir Semyonov também pareceu entusiasmado: “Companheiro Brecht, você pode pedir o que quiser. Obviamente, você tem pouquíssimo dinheiro.”3 Em abril daquele ano, uma carta de Walter Ulbricht indicou que a SED 3
“Comrade, Brecht, you must ask for anything you want. Obliviously, you are very short of money.” (CAUTE, 2003, p. 283)
73
havia aprovado a criação da companhia “Berliner Ensemble”, sob a direção de Helene Weigel. Em novembro houve a estreia do grupo com “O Senhor Puntila e Seu Criado Matti” (“Herr Puntila und sein Knetcht Matti”). Brecht escreveu em seu diário: 13 Nov 49 a primeira noite de puntila na noite de ontem foi saudada com riso e muitos aplausos. os russos deixaram o camarote central do novo governo, se juntaram ao riso e ao aplauso. O BERLINER ENSEMBLE – como um símbolo do nosso teatro, nós tivemos a pomba da paz de picasso costurada na cortina do teatro deutches... o modo de interpretar foi completamente aceito pela imprensa (“se isso é teatro épico, está bem”). é claro que isso é somente tão épico quanto eles podem ter (e nós podemos oferecer) hoje. 4
Mas a aprovação não se manteria. Em 1951, Brecht montou “Os Dias da Comuna” (“Die Tage der Kommune”) para homenagear o octogésimo aniversário da Comuna de Paris. O crítico
do Partido Herbert Ihering comentou que a falha fatal da peça era típica de Brecht: ele não representou um conflito humano, e sim um conflito sociológico e doutrinário. O exílio teria exacerbado essa tendência. Para o Comitê Central e a Academia do Partido Karl Marx (“Parteihochschule Karl Marx”) a peça era “objetivista” e “derrotista”. Ela foi banida. Ainda naquele ano, em março, o drama musical de Brecht “O Julgamento de Luculus” (“Das Vehör des Lukullus”) foi fechado após uma única apresentação. O Neues Deutschland atacou a peça pela
sua condenação vulgar da guerra e pelo tom moderna da música de Paul Dessau. No dia 12 de março, Brecht escreveu a Walter Ulbricht: A ópera é uma condenação única das guerras de conquista, e dada a forma desavergonhada como a Alemanha Ocidental está reunindo antigos generais visando uma nova invasão, essa obra... vale a pena produzi-la em uma cidade como Berlim, de onde a sua influência irá irradiar poderosamente para o Ocidente... Posso pedir-lhe para me ajudar? (CAUTE, 2003, p. 286, tradução minha)
No dia 14 daquele mesmo mês, Brecht e Paul Dessau foram levados para conhecer os três comunistas mais antigos, Ulbricht, Otto Grotewohl, e Wilhelm Pieck. Após uma discussão de oito horas, Brecht surgiu com sua famosa sátira: “Onde mais no mundo há um governo que
4
Ibid., p. 285, tradução minha.
74
demonstre tanto interesse e cuidado pelos seus artistas?”5 No dia 19, ele escreveu um agradecimento a Paul Wandel, Ministo da Educação Pública, por autorizar as apresentações de “O Julgamento de Luculus” e disponibilizar os recursos da Ópera Municipal. No mesmo dia, também escreveu a Ulbricht sobre as qualidades da partitura de Dessau que iriam “gerar novos impulsos socialistas”. A versão reescrita da peça não agradou o Partido, tendo apenas duas apresentações formais na Staatsoper . Segundo Caute (2003, p. 286) Brecht era livre para permitir produções da “versão pacifista original” da peça no Ocidente. Para o Festival Mundial da Juventude, em agosto de 1951, Egon Monk, diretor e produtor no Berliner Ensemble, montou “Hermburger Bericht”, uma cantata de Brecht baseada em um acontecimento real: jovens comunistas tinham sido impedidos pela polícia da Alemanha Ocidental de irem a uma exposição na Berlim Oriental. Esse trabalho teve uma recepção bem mais positiva por parte do governo. No fim daquele ano, Brecht recebeu o Prêmio Nacional de Literatura. Porém esse alívio foi passageiro, não iria demorar nem mais dois anos para que outros problemas aparecessem. (CAUTE, 2003, p. 286) No dia 23 de fevereiro, o Stasi prendeu Martin Pohl, um membro do Berliner Ensemble. Ele foi forçado a assinar uma confissão dizendo que era um agente da inteligência americana. Brecht escreveu ao ministro da justiça explicando que a prisão de Pohl provocava grande inquietação na companhia. A peça “Urfaust”, onde Pohl havia trabalhado, foi suprimida após seis apresentações. De acordo com Caute (2003, p. 286), Ulbricht em pessoa entrou na arena no dia 27 de maio de 1953: “Nós não vamos permitir que um dos trabalhos mais importantes do nosso maior escritor alemão, Goethe, seja estuprado formalisticamente...”.6 O ano da morte de Stalin, 1953, foi marcante na história da República Democrática Alemã. Naquela época, as condições socioeconômicas da Alemanha Oriental eram críticas. Especialmente os pequenos e médios produtores e comerciantes sofriam com altos impostos e uma série de outras dificuldades.7 Em maio, o governo (bastante impopular) decidiu aumentar a normas de produção, o que para a população significava uma deterioração ainda maior dos 5
“Wo sonst in der Welt gibt e seine Regierung, die so viel Interesse und Fürsorge für ihre Künstler zeigt” (RÜHLE, Jürgen, 1957 apud CAUTE, David, 2003, p. 665) 6 “We will not allow that one of the most important works by our greatest German writer, Goethe, is formalistically raped…” (CAUTE, David, 2003, p. 287, tradução minha) 7 OSTERMANN, Christian F. “Uprising in East Germany 1953: The Cold War, the German Question, and the first major upheaval behind the Iron Curtain” Budapest: Central European University Press, 20 01, p. 2.
75
padrões de vida. Moscou clamava por reformas liberais, ordenando que os líderes da RDA se preocupassem mais com o bem estar do povo. Ulbricht discutiu longa e intensamente com a SED, estabelecendo uma série de reformas, mas se recusou a mudar de ideia sobre a decisão de aumentar as cotas de trabalho em 10%. Isso enfureceu as pessoas, que foram às ruas num levante conhecido como a revolta de 1953, no dia 17 de junho daquele ano. A multidão atingiu um número próximo 400.000 pessoas.8 Naquele dia, Brecht e seu assistente Manfred Wekwerth viram os tanques russos indo em direção ao local do protesto para somarem-se à repressão violenta. Os tanques foram precedidos por um jipe onde um oficial soviético acenava à multidão. Segundo Caute (2003, p. 290) Wekwerth teria declarado que Brecht acenou em resposta. Brecht escreveu três cartas idênticas, endereçadas a Ulbricht, Grotewohl e ao comandante soviético. O texto nunca foi publicado, com a exceção de uma única frase. Encontrava-se no Neues Deutschland , no dia 21 de junho, a seguinte notícia: “O ganhador do Prêmio Nacional Bertolt Brecht enviou a... Walter Ulbricht uma carta, na qual ele declara: ‘No momento eu sinto a necessidade de expressar minha solidariedade ao Partido Socialista Unificado.”9 Brecht também escreveu um telegrama a Ulbricht, onde expressava sua esperança de que: os provocadores sejam isolados, e suas redes sejam destruídas, mas que os trabalhadores que se manifestaram com suas queixas justificáveis, não sejam colocados no mesmo nível que estes provocadores, de modo que a grande discussão sobre os erros cometidos em ambos os lados não possa ser interrompida no início. (CAUTE, 2003, p. 290, tradução minha)
Esse telegrama não foi publicado. No Ocidente, o apoio de Brecht ao regime causou indignação e boicote ao seu trabalho. O seu editor na Alemanha Ocidental, Peter Suhrkamp escreveu a ele pedindo que esclarecesse a sua posição. No dia 1º de julho Brecht escreveu uma longuíssima carta em que dizia que os trabalhadores tinham razão por estarem amargurados, mas a certa altura, aqueles trabalhadores tinham se misturado a “brutais figuras da era nazista”, “o fogo não é
8
LAAR, Mart. “The Power of Freedom - Central and Eastern Europe after 1945” Unitas Foundation, 2010, p. 85. “National Prize Laureate Bertolt Brecht has sent… Walter Ulbricht a letter, in which he declared: ‘At the moment I feel the need to express my solidarity with the Socialist Unity Party.” (CAUTE, David, 2003, p. 290, tradução minha) 9
76
a arma do povo que constrói.” Brecht apoiava o SED contra “os proponentes do fascismo e da guerra”.10 Ele escreveu o seu famoso poema “A Solução” (“Die Lösung”): Após a revolta de 17 de junho O secretário da União dos Escritores Fez distribuir comunicados na Alameda Stalin Nos quais se lia que o povo Desmerecera a confiança do governo E agora só poderia recuperá-la Pelo trabalho dobrado. Mas não Seria mais simples o governo Dissolver o povo E escolher outro? 11
Em 1954, Brecht foi nomeado ao Prêmio Stalin da Paz, por ter se oposto vigorosamente ao rearmamento da Alemanha Ocidental. Ele havia assinado apelos às pessoas de teatro no Ocidente, pedindo a elas pra que resistissem. Brecht recebeu o prêmio (e os seus 160.000 rublos) em Moscou, no ano seguinte. Foi a sua primeira ida à URSS após quase duas décadas. Lá ele assistiu uma produção de “Os Banhos” de Maiakovski no Teatro de Sátira e ficou positivamente impressionado com os “efeitos de alienação”. Notou que, apesar de que os atores da produção de “Muito Barulho por Nada” do Teatro Arte de Moscou expressassem “emoções ocas”, em “Goryachee serdtse” de Ostrovsky toda a grandeza de Stanislavski se fez aparente.12
Em Berlim, o Berliner Ensemble agora tinha uma provisão de 3 milhões de marcos, sendo cinco sextos disso eram subsidiados pelo governo. Em março de 1954, a companhia passa a ser sediada no Theater am Schiffbauerdamm, um teatro de 890 lugares no qual Brecht tinha
10
“brutish figures from the Nazi era”; “Fire is not the weapon of people who build”; “the proponents of fascism and war” (CAUTE, David, 2003, p. 291) 11 Brecht, Bertolt. “A Solução”. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/10/26/a-solucao bertolt-brecht-512984.asp > Acesso em 26 de dezembro, 2013. 12 CAUTE, op. cit, p. 291-292.
77
conseguido grande sucesso décadas antes13, com a encenação de sua “A Ópera dos Três Vinténs” em 1928.14 Com a aquisição Schiffbauerdamm foi produzida em Berlim a mais complexa das peças não encenadas de Brecht, “O Círculo de Giz Caucasiano” (“Der Kaukasische Kreidekreis”). Essa produção viajou para Paris, em 1955, e para Londres, em 1956, dias após a
morte de Brecht. O Berliner Ensemble conquistou grande prestígio internacional e esplendor para o regime da Alemanha Oriental. Segundo Caute (2003, p. 292-293), visitantes de toda a Europa iam à Berlim Oriental para assistir Brecht trabalhando. “Mãe Coragem e Seus Filhos” recebeu o prêmio de melhor peça no Festival Internacional de Artes Dramáticas de Paris, no verão de 1954, assim como “O Círculo de Giz Caucasiano”, no ano seguinte. Em julho de 1957, o Ensemble chegou a Moscou pela primeira vez, com produções de “Mãe Coragem e Seus Filhos”, “O Círculo de Giz Caucasiano”, e “A Vida de Galileu”, todas muito elogiadas. Segundo Caute (2003, p. 296), após comparecer a uma produção de “A Ópera dos Três Vinténs” no Teatro Lenin Comsomol, em Leningrado, Harrison Salisbury, do New York Times escreveu: “Tão recentemente quanto cinco anos atrás, dificilmente uma única produção de
Brecht poderia ser encontrada em toda Rússia”. Após a sua morte, o tema “Brecht, o artista que pertence a nós” se tornou constante entre os críticos ocidentais que, em outras situações, eram hostis às políticas de Brecht. Ele era “oriental” no contexto germânico, mas “ocidental” no contexto soviético. Na produção de Yuri Lyubimov de “A Alma Boa de Setsuan” (1963), o elemento chinês foi eliminado, as músicas foram transformadas para parecerem mais russas, tudo era reconhecidamente soviético. Lyubimov afirmava que o texto, normalmente tomado como uma reflexão ética a respeito do bem e o mal, na verdade era uma parábola sobre a impossibilidade de existir em uma sociedade de classes injusta, e Constantin Simonov, escrevendo ao Pravda (8 de dezembro de 1963) o chamou de “um frontal – sim, frontal – ataque à ideologia e moralidade capitalista”.
13
Ibidem, p. 292. MELLO, Simone de. “1892: Fundado Theater am Schiffbauerdamm”. Deutsche Welle. Disponível em: Acesso em 26 de dezembro, 2013. 14
78
Considerações Finais Nessa pesquisa se investigou o caso específico da instrumentalização das artes cênicas feita pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética durante o período da Guerra Fria, segundo a lógica da época que demandava uma busca pela legitimização do conflito, e de contenção e dissuasão do inimigo. Através de mecanismos de controle como a mídia impressa e organizações vinculadas aos interesses estatais como a CIA e a KGB, as duas superpotências tentaram limitar o conteúdo artístico produzido internamente, como o objetivo de que ele disseminasse uma única imagem nacional e uma única imagem do inimigo. O American Way of Life propunha uma vida livre. A imagem construída pelos americanos mostrava que os Estados Unidos era o país ideal para se habitar, pois lá havia liberdade de expressão, liberdade de consumo, graças à democracia. Livres de regras opressoras, os cidadãos americanos podiam exercer sua criatividade, descobrindo ritmos, formas e linguagens que ninguém nunca tinha pensando antes. Terra do modernismo e do jazz, a América era um lugar habitado por pessoas que queriam improvisar e romper com tudo aquilo que já havia sido feito antes, o que já cheirava a mofo. Dessa forma, o regime soviético era visto como uma política que se mantinha presa a formas ultrapassadas. O balé clássico e o realismo socialista eram considerados dignos de deboche. Os russos eram rígidos e se mantinham atrasados diante de todo o resto do mundo. Além disso, os soviéticos eram impedidos de se expressar de forma livre, eles não podiam criticar o governo, não tinham o direito de trabalhar e nem de comprar onde quiesessem... Para os americanos, não poderia existir nada mais terrível. Por outro lado, a União Soviética se via como o bastião do progresso. Para os soviéticos, o EUA era uma terra de hipócritas, pois vendiam uma ideia de igualdade enquanto a dinânica do consumo e a segregação racial condenava boa parte da população à miséria. Em vez disso, a Rússia era o lugar onde todos poderiam ser igualmente prósperos de verdade, graças ao comunismo. Além disso, toda a cultura soviética estava amparada por uma consistente e rica tradição, que apontava para a superioridade russa. Na América, pelo contrário, as pessoas não
79
sabiam criar nada digno. O balé americano não parecia nem mesmo se tratar de uma dança, e o teatro era alienígena, bárbaro. Tanto os EUA quanto URSS tinham a intenção de fazer com que o seu próprio povo e todo o restante do universo acreditassem que tais mentiras ou meias verdades se tratavam de fatos inegáveis, e para isso utilizaram as mais variadas estratégias. Dessa forma, foi verificado que de fato os Estados, sejam eles democracias liberais ou ditaduras comunistas, possuem meios para acionar o poder brando em suas relações, tornando reais as influências associadas à ideologia, à cultura e às artes. Nessa pesquisa não cabe medir as consquências secundárias dessas estratégias, pois para isso seria necessária uma nova pesquisa, mas é possível dizer que ambos os lados notaram que essa missão seria muito mais difícil e trabalhosa do que se pensava. A arte segue a uma dinâmica fluida, plural, e por isso é custoso tentar domesticá-la ou manipulá-la. Porém é certo que os Estados continuarão tentando instrumentalizar as artes, portanto os analistas e estudiosos das relações internacionais deveriam se manter bem atentos.
80
Referências BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In Enciclopédia Einaudi, s. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985. BARNES, Christopher. Boris Pasternak: A Literary Biography, Volume 2. New York: Cambridge University Press, 2004. BEUMERS, Birgit. Yuri Lyubimov: Thirty Years at the Taganka Theatre. Taylor & Francis elibrary, 2005. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 2001. BRANDÃO, Carlos R. Identidade e Etnia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CAUTE, David. The Dancer Defects: The Struggle for Cultural Supremacy during the Cold War. New York: Oxford University Press, 2003. CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002. CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. CHARTIER, Roger. A “nova” história cultural existe?. In: LOPES, Antônio Herculano; VELLOSO, Mônica Pimenta; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Orgs.). “História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações” Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/7 Letras, 2006. COLI, Jorge. O Que é Arte?. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. DAMATTA, Roberto. Você tem cultura?. In: Explorações – Ensaios de Sociologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 121-128. DAVEIS, David. Philosophy of the Performing Arts. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011. DORE, Rosemary. Linguagem e técnica de pensar em Gramsci: elevação cultural das massas populares e conquista da hegemonia civil. In: SEMERARO, G.; MARQUES, M.; TAVARES,
81
P.; SEMERARO, GIOVANNI; OLIVEIRA, MARCOS MARQUES DE; SILVA, PERCIVAL TAVARES DA; LEITÃO, SÔNIA NOGUEIRA (orgs.). Gramsci e os movimentos populares. Niterói: Ed. UFF, 2011. DUNHAM, Vera Sandomirsky. In Stalin's Time: Middleclass Values in Soviet Fiction. New York: Cambridge University Press, 1990. EWEN, David. A História do Musical Americano. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 1961. FIORIN, José Luiz. Para uma definição das linguagens sincréticas. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia; TEIXEIRA, Lúcia (orgs.). Linguagens na Comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: the birth of a prison. London: Penguin, 1991. GARDNER, Colin. Joseph Losey. New York: Manchester University Press, 2004. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. GUINSBURG, J; NETTO, J. Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. HITLER, Adolf. Minha Luta. Publiqer editora digital, 2012. HOMANS, Jennifer. Apollo's Angels: A History of Ballet. New York: Random House Publishing Group, 2010. IVERNE, James. The Faber Pocket Guide to Musicals. London: Faber and Faber Limited, 2009. JOHNSTON, Timothy. Being Soviet: Identity, Rumour, and Everyday Life under Stalin 19391953. New York: Oxford University Press Inc., 2011. KAZAN, Elia. Elia Kazan: A Life. New York: Alfred A. Knopf Inc; Toronto: Random House of Canada Limited, 2011. LICHTMAN, Robert M.; COHEN, Ronald D. Deadly Farce: Harvey Matusow and the Informer System in the McCarthy Era. Chicago: University of Illinois Press, 2008.
82
MONOD, David. “He is a Cripple an’ Needs my Love”: Porgy and Bess as Cold War Propaganda. In: SCOTT-SMITH, Giles; KRABBENDAM, Hans (orgs.). The Cultural Cold War in Western Europe 1945-1960. Portland: Frank Cass Publishers, 2003, p. 252-262. MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João. Teoria das Relações Internacionais: Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2005. NEVE, Brian. Elia Kazan- The Cinema of an American Outsider. London: I.B.Tauris & Co Ltd, 2009. NYE, Joseph S., Jr. Soft Power: the means to success in world politics. New York: PublicAffairs, 2004. NYE, Joseph S., Jr. Understanding International Politics: An Introduction to Theory and History. New York: Longman, 2007. O’BRIEN, Patricia. Michael Foucault´s History of Culture. In: Hunt, Lynn “The New Cultural History” London: University of California Press, 1989. PALUDO, Conceição. Educação popular em busca de alternativas: uma leitura desde o Campo Democrático e Popular. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001. RAST, J. Earen. Arthur Miller. In: Hobby, Blake Student’s Encyclopedia of Great American Writers, 1945 to 1970. New York: Facts on File, 2010. REE, Erik van. The Political Thought of Joseph Stalin: A Study in Twentieth Century Revolutionary Patriotism. Taylor & Francis e-library, 2003. RICHMOND, Yale. Cultural Exchange & the Cold War: Raising the Iron Curtain. Edição Kindle: The Pennsylvania State University Press, 2003. ROBIN, Ron. The Making of the Cold War Enemy: Culture and Politics in the MilitaryIntellectual Complex. Princeton: Princeton University Press, 2001. SMELIANSKY, Anatoly. The Russian Theatre after Stalin. New York: Cambridge University Press, 1999.