TABORDA, J. G. V.; ABDALLA-FILHO, E.; CHALUB, M. Psiquiatria Forense. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. Capítulo 3 – Texto modificado (página 4), sintetizado e repaginado.
EXAME PERICIAL
PSIQUIÁTRICO JOSÉ G. V. TABORDA
O exame pericial psiquiátrico é uma espécie de avaliação psiquiátrica cuja finalidade é elucidar fato de interesse de autoridade judiciária, policial, administrativa ou, eventualmente, particular. Constitui-se, pois, em meio de prova, devendo o examinador prestar permanente atenção a essa singularíssima condição. Neste capítulo, após examinarem-se os conceitos de perícia, perito e assistente técnico, laudo e parecer, semelhanças e dessemelhanças dos contextos criminais e cíveis, serão abordados os principais tipos de avaliações psiquiátricas forenses, suas peculiaridades técnicas e éticas e a forma que o relatório médico deve obedecer. Ao final, em tópico dirigido preferencialmente aos profissionais do direito, serão descritos os principais sistemas classificatórios de transtornos mentais existentes e a forma como estruturam o diagnóstico psiquiátrico. A PERÍCIA E O PERITO Conceito
de perícia e de perito
No contexto forense, o juiz profere sua decisão após ouvir os argumentos das partes e cotejá-los com as provas que apresentam. Na maioria das vezes, a análise da prova é matéria da qual o magistrado pode se desincumbir sozinho, valendo-se apenas de seu conhecimento técnico-jurídico (p. ex., a análise de um contrato de locação e a validade do pagamento efetuado). Há situações, entretanto, nas quais esse conhecimento é insuficiente, sendo necessário buscar auxílio de alguém com
especialização no tema em questão. Essa pessoa é denominada perito, e o trabalho que realiza, perícia. Conceitua-se perícia, pois, como o conjunto de procedimentos técnicos que tenha como finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da Justiça, e, perito, o técnico incumbido pela autoridade de esclarecer o fato da causa, auxiliando, desse modo, na formação de convencimento do juiz. Com base nisso, depreendem-se as seguintes observações: a perícia é um meio de prova, e o perito, um auxiliar do juízo. Como meio de prova, a perícia deverá ser objeto de intenso escrutínio pelas partes, devendo apresentar uma clara descrição dos principais achados, a discussão destes e o porquê das conclusões. Não fora isso, a palavra do perito reinaria soberana — seria a prova em si—, quando, na verdade, é essencial que seja demonstrada a correção de suas afirmativas. (Esse tema será expandido quando for examinada a função do assistente técnico.) Como auxiliar do juízo, o perito está subordinado aos mesmos deveres de isenção e imparcialidade dos juízes e membros do Ministério Público, estando sujeito a impedimentos e suspeições previstos em lei. Os impedimentos
O Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 134, relaciona os impedimentos dos juízes, estendendo-os, por meio do artigo 138, inciso III, aos peritos. De acordo com a norma legal, pois, o médico psiquiatra não poderá atuar como perito nos processos em que: for parte; houver prestado depoimento como testemunha; for cônjuge, parente em linha reta em qualquer grau ou parente em linha
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colateral até segundo grau (irmão ou cunhado) do advogado da parte; for cônjuge, parente em linha reta em qualquer grau ou parente em linha colateral até terceiro grau (tio e sobrinho)da parte; for membro da administração de pessoa jurídica que seja parte no feito. Como se pode constatar, os impedimentos dizem respeito a situações extremamente objetivas, fáceis de demonstrar, as quais, por sua natureza, deixam evidente que o perito não poderá exercer sua função com a imparcialidade necessária. As suspeições
As razões de suspeição estão previstas no artigo 135 do CPC. Da mesma forma que na situação anterior, o psiquiatra não poderá ser perito nas causas em que: for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; for credor ou devedor de qualquer das partes ou o mesmo ocorrer a seu cônjuge, bem como aos parentes em linha reta em qualquer grau ou em linha colateral até terceiro grau (tio e sobrinho); for herdeiro, donatário ou empregador de qualquer das partes; houver recebido presentes de qualquer das partes, aconselhado em relação à causa ou auxiliado financeiramente com as despesas do processo; tiver qualquer interesse no julgamento do feito em favor de uma das partes. Visto que o artigo 135 do CPC é basicamente dirigido aos magistrados, nele não está expressa a suspeição de parcialidade pela condição de empregado de qualquer das partes. Entretanto, por
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analogia, deve-se considerá-la como existente para quem for designado perito. É interessante registrar, também, que o CPC relaciona como razão de suspeição apenas a amizade íntima ou a inimizade capital. Porém, essa restrição não poderá ser considerada se o perito em razão de amizade ou inimizade, mesmo que não íntima ou não capital, perceber que não tenha condições de exercer seu ofício com a neutralidade exigida. Nesse caso, à semelhança de faculdade concedida aos magistrados no parágrafo único do mencionado artigo 135, poderá se declarar “suspeito por motivo íntimo”. Das razões de suspeição mencionadas, a mais corriqueira, principalmente nos centros pequenos ou entre profissionais muito reconhecidos na área forense, diz respeito ao aconselhamento prévio de uma das partes. Em certas causas, os advogados, ou a própria parte, percebendo que o desfecho da lide dependerá da prova pericial que construírem, algumas vezes consultam profissionais antes do ingresso da petição inicial para melhor aquilatarem suas possibilidades e os limites do que poderiam dizer ou requerer. Essa orientação prévia é totalmente válida e moral, mas inviabiliza em definitivo que o profissional seja perito nesse processo. Se vier, então, a ser nomeado pelo juiz, deverá mencionar esse fato e se declarar suspeito. Estará liberado, porém, para intervir como assistente técnico da parte que o consultara. O
assistente técnico
Assistente técnico é a denominação que a lei dá ao profissional especializado em determinado tema, contratado e indicado exclusivamente por qualquer das partes, para que a auxilie durante a elaboração da prova
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pericial. Sua denominação e suas atribuições têm sido modificadas em larga escala ao longo das últimas décadas. A Lei nº 8.455/92, entretanto, trouxe importantes alterações ao CPC no que tange à produção da prova pericial e às atribuições dos assistentes técnicos. Estes claramente perderam seu status de peritos, passando de auxiliares do juízo a auxiliares das partes. O melhor indicativo dessa nova condição encontra-se no dispositivo legal que esclarece serem os assistentes técnicos “de confiança da parte, não sujeitos a impedimento ou suspeição”. Essas modificações, porém, não têm sido bem compreendidas por alguns peritos e mesmo pelos tribunais, o que tem levado a um inegável cerceamento do direito da parte de produzir sua prova e de fiscalizar e criticar a prova carreada aos autos. Essa importante questão — a restrição do âmbito de atuação dos assistentes técnicos —, a depender da natureza da perícia, poderá representar um prejuízo incalculável para a parte. É o que ocorre com as perícias psiquiátricas, como será abordado mais adiante. A ideia norteadora da reforma do CPC de 1992 foi a simplificação da produção da prova pericial. De modo formal, todavia, o CPC, em seu artigo 429, atribui aos peritos e assistentes técnicos os mesmos poderes. Na prática, porém, essa igualdade de poderes inexiste, posto que o prazo de entrega do parecer do assistente técnico é de apenas 10 dias após a entrega do laudo pericial. Ou seja, se o perito promover uma investigação singela, descuidada e rápida, faltará ao assistente técnico tempo suficiente para concluir a sua. Qual o sentido, então, de a lei processual continuar a prever a existência de assistentes técnicos? Ao que tudo indica, em primeiro lugar, cabe ao assistente técnico a relevante
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missão de fiscalizar a produção da prova pericial, verificando se os diversos procedimentos tomados pelo perito o foram de acordo com as normas técnicas vigentes, se não omitiu detalhes relevantes, se viu corretamente o que havia para ser visto e se o reportou de forma acurada em seu relato. Além disso, deverá fazer a crítica das conclusões do perito, apontando se há discrepâncias entre asserção e razão, entre o que foi visto e relatado e o que foi concluído. Secundariamente, poderá também o assistente técnico fornecer suas próprias conclusões sobre o fato em exame, as quais deverão ser recebidas em juízo com muita reserva, dada sua condição de auxiliar da parte. Repita-se, dada a relevância deste ponto: a função precípua do assistente técnico é a de fiscalizar o trabalho do perito. Deve-se ter em mente que, apesar da excelência de seus conhecimentos técnicos, peritos podem fazer apreciações erradas, tanto pela singela razão de que errar faz parte da natureza humana quanto pela remota hipótese de venalidade. Se não houver, então, a rígida fiscalização do trabalho pericial, conclusões errôneas poderão servir de base à decisão judicial, com prejuízo a uma das partes e ao sistema de distribuição de justiça. Correta a assertiva de que ao assistente técnico cabe principalmente a fiscalização dos procedimentos periciais, quais as repercussões desse entendimento na prática da psiquiatria forense? Diferindo de perícias de outra natureza — contábeis, de engenharia civil, de avaliação de imóveis, por exemplo —, nas quais os elementos disponíveis aos técnicos são extremamente objetivos, em psiquiatria há o predomínio de elementos imateriais que devem ser transformados em achados concretos, para
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que, a partir desses dados objetivados, o perito possa atingir conclusões de magnitude probatória. Essa é uma operação complexa e que demanda rigor técnico e precisão. A possibilidade de erros e de falhas de interpretação é enorme, tanto quanto na clínica psiquiátrica. A diferença é que, nesta, a própria sequência do tratamento fornecerá a chave para as correções de rumo, enquanto, naquela, uma apreciação equivocada levará a uma cristalização do erro. Dessa forma, é imprescindível que o assistente técnico observe todos os procedimentos adotados pelo perito, pois só assim poderá verificar suas incorreções, acertos e omissões. Essa observação poderá ser feita diretamente, ao vivo, estando presente na sala de entrevista ou por meio de espelho unidirecional ou, então, pela análise de gravações em vídeo ou em fita de voz. Ressalte-se, por fim, que é dever do perito facilitar o acesso do assistente técnico aos procedimentos que realiza, além de ser uma norma de cortesia entre dois colegas de profissão. Esse tipo de conduta é invariavelmente seguido por todos os psiquiatras forenses experientes e de bom nível técnico, pois com frequência estão se deparando uns com os outros em papéis trocados nos diversos processos. PERÍCIAS CÍVEIS E CRIMINAIS1 As perícias são divididas em cíveis ou criminais de acordo com a lei processual que as oriente. Perícias cíveis
As perícias cíveis devem ou podem ser realizadas em processos envolvendo interdição, nulidade ou anulabilidade de negócios jurídicos, de testamentos, doações, 1
Trecho sintetizado e extraído das partes 2 e 3 deste livro.
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casamentos, processos de aptidão para o trabalho, de capacidade para testemunhar, da capacidade para assumir tutela ou curatela, capacidade de exercer o poder familiar, disputa pela guarda e visitação de filhos. Perícias criminais
As perícias criminais envolvem a avaliação da imputabilidade penal, avaliação de risco de violência e de dependência química e superveniência de doença mental. TIPOS DE AVALIAÇÕES PERICIAIS As avaliações periciais psiquiátricas, cíveis ou criminais, podem ser classificadas em três grandes tipos: avaliações transversais, retrospectivas e prospectivas. Essa divisão tem finalidade puramente didática e serve apenas para enfatizar o objetivo principal da perícia — se dirigida a estabelecer uma situação presente, se voltada a um esclarecimento de fato pretérito ou se visando a prognóstico de risco. Na verdade, como na atividade clínica, encontraremos em quase todas as avaliações a presença de pelo menos dois desses elementos, posto que avaliações do presente imprescindem do passado — e vice-versa —, e a prognose do futuro é fortemente embasada tanto no presente quanto no passado. Avaliações transversais
São aquelas nas quais o examinador tem por objetivo estabelecer o que está ocorrendo no momento presente. Por sua natureza, são as que mais se aproximam da avaliação psiquiátrica aplicada na clínica diária, uma vez que consistem em um exame da situação
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atual, em seu diagnóstico e na indicação de uma medida “terapêutica” jurídica imediata. Na esfera criminal, o exemplo mais notório é a perícia de constatação de superveniência de doença mental (SDM). Considera-se que houve a SDM quando uma pessoa, após cometer um delito, apresenta sinais e sintomas de doença mental. Tal fato, sendo comprovado mediante perícia, terá importantes repercussões jurídicas: se ocorrido antes ou durante a instrução do processo levará a sua suspensão até a plena recuperação do acusado; se após condenação, levará à interrupção do cumprimento da pena e poderá transformála em medida de segurança. Na área cível, o melhor exemplo são as perícias de interdição. Nestas, busca-se estabelecer a presença de um transtorno mental no examinando e se essa condição de alguma forma prejudica seu “necessário discernimento”. Tal ocorrendo, a pessoa deverá ser declarada incapaz para a ética de todos ou de alguns dos atos da vida civil. Ainda no cível, podem ser classificadas como transversais as perícias de constatação de dano psíquico ou de maus-tratos a criança. As avaliações transversais, posto que dirigidas a examinar o “aqui e agora”, costumam ser muito precisas em seus achados e conclusões, em geral não ensejando margem a grandes divergências. Avaliações retrospectivas
São aquelas nas quais, a partir do momento presente, o examinador busca estabelecer com a maior precisão possível qual a condição psíquica do examinando em um determinado momento do passado. São avaliações que exigem muito conhecimento
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técnico e experiência por parte do perito e costumam ter consequências jurídicas muito relevantes. No âmbito criminal, a mais importante dessas perícias é a de “imputabilidade penal”, ou seja, a perícia realizada visando a esclarecer se, no momento do crime, o réu padecia de algum transtorno mental que, de alguma forma, quer total, quer parcial, afetasse sua capacidade de entender o que estava fazendo ou de se determinar de acordo com esse entendimento (CP, art. 26); isto é, se era inimputável ou semi-imputável. Algumas vezes, afirma-se que as perícias de imputabilidade ou responsabilidade penal constatariam a “capacidade penal”, traçando-se um paralelo entre esse conceito e o de “capacidade civil”. É recomendável, porém que não se confunda uma situação com a outra, posto que, em um caso, a perícia avaliará uma situação presente que terá reflexos no futuro (a pessoa poderá gerir livremente ou não sua vida), enquanto, no outro, será voltada ao passado e no passado se encerrará (a pessoa era ou não imputável do ponto de vista penal ao cometer o delito). O Código Penal Militar e a Lei de Tóxicos preveem perícias similares à de imputabilidade penal. Em matéria cível, as mais relevantes perícias retrospectivas ocorrem em processos de anulação de ato jurídico e de anulação de testamento. De forma paralela a sua congênere criminal, visam a estabelecer a condição psíquica da pessoa ao praticar determinado ato em momento preciso do passado. No primeiro caso, em geral o autor do ato está vivo e poderá ser examinado diretamente, buscando estabelecer se padece de algum transtorno mental, como essa
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doença evoluiu ao longo da vida e de que forma teria interferido no ato inquinado de nulidade. Na segunda hipótese, a pessoa já é falecida e deve-se realizar uma perícia indireta, buscando informações com familiares, amigos, médicos e enfermagem, bem como analisando prontuários hospitalares e documentos de qualquer natureza. As avaliações retrospectivas, ainda que tecnicamente difíceis, costumam ser muito precisas e efetivas, sobretudo quando conduzidas por perito experiente. Entretanto, sendo suas conclusões necessariamente de caráter inferencial. A margem de incerteza e de discordância entre peritos diversos deverá ser um pouco maior do que nas perícias transversais. Avaliações prospectivas
São aquelas nas quais, a partir da condição presente e considerando os fatos do passado, o examinador busca estabelecer o risco futuro de que determinado comportamento venha a acontecer. Por sua própria natureza, são bastante imprecisas, mas de forma contraditória, muito valorizadas pelos operadores do direito. Magistrados, promotores e advogados costumam depositar muita fé nos poderes que psiquiatras e psicólogos. Teoricamente profundos conhecedores da alma humana, teriam de avaliar a periculosidade de alguém. As avaliações de risco mais comuns ocorrem em matéria penal, principalmente no âmbito das varas de execuções criminais. Em relação a prisioneiros que estejam no cumprimento de pena privativa de liberdade, as perícias costumam ser multidisciplinares
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e são realizadas no momento em que o detento atinge o tempo mínimo de pena para receber um benefício legal, tal como livramento condicional, progressão de regime ou indulto de Natal. Em relação a prisioneiros sob medida de segurança detentiva, a avaliação é realizada por psiquiatra e visa a atestar se ocorreu a cessação da periculosidade. Na órbita cível, as avaliações de risco são frequentes em direito de família ou em processos movidos sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesses casos, alguns pais são afastados de seus filhos em defesa da integridade física ou moral da criança. Em causas dessa espécie sempre ocorrem perícias, não raro, mais de uma ao longo do feito. A primeira, transversal, para constatar o dano; as demais, prospectivas, para estabelecer se o genitor perigoso já estaria em condições de conviver com o filho e sob quais condições. As avaliações de risco ainda são bastante empíricas em nosso meio, apesar de já existirem instrumentos objetivos validados para uso na população brasileira. Tais avaliações, por exigência legal, incidem em um erro conceitual incontornável, o de que se faça o diagnóstico de ausência de periculosidade, utilizando um formato dicotômico: perigoso ou não perigoso. Nos dias atuais, propugna-se que as avaliações tenham um caráter prognóstico, sendo estabelecida a probabilidade de que um fato possa ocorrer uma vez que seja rigorosamente impossível afirmar que alguém não virá a praticar determinado ato. Por essas razões, as avaliações prospectivas são, de longe, as menos confiáveis das perícias psiquiátricas.
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O EXAME PERICIAL O exame pericial psiquiátrico tem por base e fundamento o exame psiquiátrico clínico. Como este, vale-se do domínio da técnica de entrevista, do conhecimento de psicopatologia e da capacidade diagnóstica do examinador. Cessam aí, entretanto, as semelhanças, posto que se distinguem por um aspecto fundamental: a finalidade da avaliação. Para que se estabeleça um contraponto, será feita antes uma breve revisão dos princípios e das diversas etapas da avaliação psiquiátrica clínica. O
exame psiquiátrico clínico
O exame psiquiátrico é uma avaliação médica cujo objetivo é o estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico, a criação e o desenvolvimento de uma aliança de trabalho, um planejamento terapêutico e o prognóstico do paciente. É um processo estruturado e compõe-se de diversos elementos. Estrutura do exame psiquiátrico
Ao ser realizado um exame psiquiátrico, dois eixos e uma variável devem ser considerados. Ao eixo longitudinal corresponde a linha de vida, iniciando-se no período prénatal, passando pelo nascimento e pela história pregressa e chegando até o momento presente, o da doença atual. Ao eixo transversal corresponde o exame do estado mental (EEM), um corte do funcionamento mental do paciente na ocasião. A variável em jogo é a social. Pode-se considerá-la como o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a situação de doença com suas implicações familiares, interpessoais e econômicas.
EXAME PERICIAL PSIQUIÁTRICO
Conforme se pode visualizar na Figura 3.1, os eixos longitudinal e transversal interseccionam-se à altura da história da doença atual (HDA). Do eixo transversal, por meio do EEM e da HDA, obtém-se o diagnóstico sindrômico, do qual são retiradas as hipóteses diagnósticas. Do eixo longitudinal, pela HDA e história pregressa, às quais deve ser agregada a história familiar, chega-se ao diagnóstico nosológico. Tanto do eixo transversal quanto do longitudinal será possível extrair um plano de trabalho; na primeira hipótese, visando a uma investigação das alternativas diagnósticas e/ou ao tratamento sintomático do paciente; na última, objetivando o tratamento específico necessário. Nesse ponto é que a variável social adquire grande importância, sendo elemento fundamental a determinar a conduta médica, pois da interrelação das forças de apoio àquela pessoa é que se poderá escolher a melhor alternativa terapêutica, desde obviedades, como a de que não se deve prescrever medicação onerosa a quem não a puder adquirir, até situações clínicas mais sutis, como a decisão de hospitalizar ou não um paciente, levandose em consideração a capacidade que teria seu grupo familiar de ampará-lo e/ou contêlo. Instrumentos do exame psiquiátrico
É frequente a confusão entre as noções de exame psiquiátrico e de entrevista psiquiátrica. Aquele é o todo, do qual esta faz parte. Algumas vezes, entretanto, basta a entrevista com o paciente para que os objetivos do exame sejam atingidos. Apenas nesses casos é que se superpõem. Um exame completo necessita em geral dos seguintes elementos: entrevista com o paciente; entrevista com terceiros; exame físico, com ênfase nas avaliações
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neurológicas, endocrinológicas e cardiológicas; exames complementares, item que abrange a rotina laboratorial; exames funcionais e exames de imagem; e testes neuropsicológicos. A entrevista psiquiátrica
É o mais importante dos instrumentos citados. Com ela é possível colher a HDA, os dados da história pessoal e familiar do paciente, realizar um acurado EEM e estabelecer as bases de uma sólida aliança terapêutica. O registro do exame psiquiátrico
Embora não integrante do exame psiquiátrico em si, seu posterior registro é fato da maior relevância, tanto sob uma perspectiva clínica, já que consolida de
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forma ordenada as principais informações sobre o paciente e serve de orientação durante o seguimento do caso, quanto sob uma perspectiva legal, visto que se configura em um dos principais elementos de prova em eventual processo por erro médico. O
exame psiquiátrico forense
Conforme já referido, o exame pericial psiquiátrico é uma espécie de avaliação psiquiátrica cuja finalidade é elucidar fato do interesse de autoridades judiciária, policial, administrativa ou eventualmente de particular, sendo utilizado como prova. Tem por base e fundamento o exame psiquiátrico clínico, valendo-se o examinador do domínio da técnica de entrevista, do conhecimento de psicopatologia e de sua capacidade diagnóstica. Como seu
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paradigma, é também um processo estruturado, dele se distinguindo, entretanto, por aspectos éticos e técnicos que serão discutidos adiante. O exame psiquiátrico forense consiste, em essência, em uma avaliação médica acurada e no registro fiel do que foi observado, bem como na formulação de comentários médico-legais, nos quais se buscará relacionar os achados clínicos com a legislação vigente, e na resposta aos quesitos formulados pelo juiz e pelas partes. Estrutura do exame psiquiátrico forense
O exame psiquiátrico forense estrutura-se, também, ao longo de dois eixos. Da mesma forma que em relação ao exame psiquiátricopadrão, ao eixo longitudinal corresponde a linha de vida do sujeito, iniciando no período pré-natal, passando pelo nascimento e história pregressa e chegando até o momento presente. Ao eixo transversal corresponde o EEM, um corte de seu funcionamento mental, quer no momento presente (diretamente observado, caso se trate de uma avaliação do tipo transversal), quer no passado (inferindo-o, no caso das avaliações retrospectivas). Constata-se, ainda, na Figura 3.2, que os eixos longitudinal e transversal desse exame também se interseccionam à altura da HDA. Do primeiro, por meio do EEM e da HDA, se obtém o diagnóstico sindrômico, do qual são retiradas as hipóteses diagnósticas. Do segundo, pela HDA e história pregressa, as quais deve ser agregada a história familiar, chega-se ao diagnóstico nosológico. Porém, o exame psiquiátrico forense difere de forma fundamental de seu paradigma, porque o resultado final da avaliação será estritamente uma conclusão médico-legal, nada sendo
EXAME PERICIAL PSIQUIÁTRICO
proposto como terapêutica para eventual patologia de que o sujeito em exame esteja sofrendo. A finalidade legal do exame condiciona também outras características de sua estrutura. Diante da necessidade jurídica de certeza — a avaliação pericial é um meio de prova —, é de todo recomendável que sempre se busque um diagnóstico positivo se possível. Por isso, devem-se evitar conclusões com base apenas em diagnósticos sindrômicos, sendo aconselhável que se esgotem as alternativas de investigação. Ademais, uma vez que as conclusões médico-legais independem do contexto socioeconômico, a variável social, no caso, não tem maior relevância. Instrumentos do exame psiquiátrico forense
Utilizam-se no exame psiquiátrico forense basicamente os mesmos instrumentos da avaliação-padrão, sendo o mais importante de todos, também, a entrevista com o examinando. Entretanto, devido às características da cena judiciária, na qual todas as provas colhidas são submetidas ao duplo escrutínio das partes adversas, sendo refutadas com veemência pela que se sentir prejudicada, é interessante que o examinador se valha de elementos objetivos que confortem sua apreciação subjetiva. Assim, o perito forense poderá solicitar exames complementares que, sob uma perspectiva estritamente clínica, seriam desnecessários. Cresce a importância, pois, do uso de entrevistas estruturadas; de instrumentos objetivos para medir funções psíquicas, incluindo risco de violência; de exames funcionais e de imagem, bem como de testes neuropsicológicos. Ainda, quaisquer exames complementares que possam alicerçar
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afirmativas do perito serão, em princípio, bem-vindos. Além das entrevistas, dos testes e dos exames realizados na pessoa sob avaliação, constituem importantes recursos a realização de entrevistas com terceiros (familiares, amigos ou vítimas e também quaisquer pessoas de alguma forma envolvidas com o examinando ou com a situação em pauta) e a análise minuciosa de documentos. Incluemse nestes desde prontuários médicos e carcerários a escritos esparsos produzidos pelo sujeito ou documentos que haja firmado. O objetivo da avaliação é que determinará a extensão e necessidade da busca desses elementos externos. A entrevista psiquiátrica forense
É o cerne do exame psiquiátrico forense quando este não se tratar de avaliação retrospectiva de estado psíquico de pessoa já
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falecida (como é o caso das anulações de testamento). Por sua importância, será examinada em item próprio mais adiante. O relatório médico-legal
É o registro escrito e fiel de todos os elementos de interesse médico-legal observados pelo perito, acrescido de seus comentários, conclusões e respostas a quesitos quando formulados. Denomina-se laudo quando for escrito pelo próprio especialista (distinguindo-se dos autos, que são ditados a escrivães). Poderá serchamado, ainda, parecer, quando elaborado por assistente técnico. Embora de uma certa forma corresponda ao registro do exame psiquiátrico próprio das avaliações clínicas padrão e mantenha alguma similaridade com esse tipo de documento, o laudo se reveste de importância muito maior, posto que
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indissociável da avaliação em si: é por meio dele que a máxima pericial — visum et repertum — se concretiza. Não existe, entretanto, um modelo definitivo para sua apresentação: cada serviço e cada perito terão sua própria forma de ordenar e relatar os dados observados. A seguir, são citados os principais pontos que devem constar de um relatório médico-legal. Contudo, é importante frisar que cada tipo de perícia exigirá tópicos específicos, os quais deverão ser incluídos no registro. Além disso, o relato final deverá variar em razão de ser a perícia criminal ou cível; transversal, retrospectiva ou prospectiva; direta ou indireta; ou de se estar elaborando um laudo ou um parecer. 1. Preâmbulo. Autoapresentação do perito, na qual relaciona seus dados pessoais, principais títulos acadêmicos e experiência profissional. É extremamente importante porque, no contexto forense, o argumento de autoridade tem peso. 2. Individualização da perícia. Item que contém a indicação da comarca e juízo que determinou a perícia, número do processo e nomes das partes. 3. Circunstâncias do exame pericial. Descrição da forma como foram obtidos os dados registrados: número de entrevistas com o examinando discriminando-se sua duração; nomes dos terceiros entrevistados, número de entrevistas e duração; local onde as entrevistas ocorreram; indicação de visitas ou inspeções domiciliares realizadas; indicação das entrevistas realizadas em hospital ou cárcere; indicação da utilização de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas, bem como de instrumentos objetivos de
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EXAME PERICIAL PSIQUIÁTRICO
mensuração psíquica; descrição dos exames complementares solicitados e nome do profissional que os realizou; indicação de documentos pesquisados e examinados; discriminação dos atos realizados sob o escrutínio de assistente técnico das partes; e indicação de quais atos foram filmados ou gravados. A importância deste item consiste em transmitir uma ideia da natureza e magnitude do trabalho realizado, afastando a suspeita de açodamento nas conclusões do laudo. Identificação do examinando. Nome completo, idade, data de nascimento, sexo, profissão, grau de instrução, estado civil, raça, religião, nacionalidade, naturalidade, filiação, endereço e local onde se encontra internado ou detido, se for o caso. Em avaliações ambulatoriais ou realizadas no domicílio, é importante que se registre o número da cédula de identidade do sujeito. Síntese processual. Resumo objetivo da discussão que está ocorrendo nos autos, sem qualquer juízo de valor. Serve para mostrar claramente qual é o foco principal da avaliação que está sendo realizada e qual a querela judicial que a perícia tentará esclarecer. Quesitos. Transcrição dos quesitos formulados pelo juiz e pelas partes. História pessoal. História cronológica da situação atual e vida pregressa do examinando. Deve-se dar atenção a seu padrão habitual de comportamento. Costuma abranger as seguintes etapas evolutivas: pré-natal e nascimento, infância, adolescência e idade adulta. Nesta, incluem-se as
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áreas familiar, social e profissional. A história sexual, a depender do tipo de perícia, poderá ser apreciada neste tópico. Na medida do possível, devese enfocar este item sob a perspectiva da questão pericial central. Em perícias cíveis, por exemplo, nas quais se busque anular ato jurídico praticado por alguém, é muito importante constatar a “coerência biográfica” do ato praticado. 8. História psiquiátrica prévia. Relato dos contatos psiquiátricos prévios, em especial tratamentos e hospitalizações. 9. História médica. Relato das doenças clínicas e cirúrgicas atuais e prévias, incluindo tratamentos e hospitalizações. 10.História familiar. Registro das doenças psiquiátricas e não psiquiátricas nos familiares próximos. 11.Exame do estado mental. Extremamente relevante em perícias transversais, pois consiste na descrição do funcionamento mental do examinando no momento da entrevista. Engloba a análise de diversas funções psíquicas que devem ser observadas e que serão fundamentais para a realização de um diagnóstico sindrômico. Em perícias retrospectivas, na medida do possível se tentará inferir o estado mental do sujeito ao tempo dos fatos em discussão no processo. 12.Exame físico. Descrição da condição clínica geral do examinando, com ênfase para achados relevantes à conclusão pericial 13.Exames e avaliações complementares. Descrição de achados laboratoriais, bem como dos
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QUADRO 3.1
ESTRUTURA DO LAUDO PERICIAL
Preâmbulo Individualização da perÍcia Circunstâncias do exame pericial Identificação do examinando (Elementos colhidos nos autos do processo) (História do crime segundo o examinando) Síntese processual Quesitos História pessoal História psiquiátrica prévia História médica História familiar Exame do estado mental Exame físico Exames e avaliações complementares Discussão diagnóstica Diagnóstico positivo Comentários médico-legais Conclusão Resposta aos quesitos Obs.: Os itens entre parênteses devem constar apenas das perícias de imputabilidade.
resultados de exames funcionais ou de imagem e de testes neuropsicológicos aplicados. 14.Discussão diagnóstica. A partir do diagnóstico sindrômico e das principais hipóteses diagnósticas, apresentando porquê do diagnóstico a ser formulado. 15.Diagnóstico positivo. Segundo a nosografia preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), oficialmente adotada pelo Brasil. 16.Comentários médico-legais. É o mais importante elemento do laudo. Momento no qual se relaciona o que foi constatado no examinando com a
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discussão que ocorre no processo, enquadrando a conclusão médica nas normas legais existentes. Se, por exemplo, a ação em causa for a interdição de uma pessoa que apresente um quadro demencial avançado, o perito deverá se estender sobre a natureza da doença, seu caráter irreversível, as limitações que acarreta para a administração da própria vida e como isso se insere no conceito legal de enfermidade mental que afete o “necessário discernimento”. 17.Conclusão. Frase curta, objetiva e direta que sintetiza todo o pensamento do perito. No exemplo citado no item anterior: “Conclui-se que [nome do examinando] está total e definitivamente incapacitado para a prática dos atos da vida civil”. Ou, se a incapacidade for parcial, discriminar os atos para os quais o examinando estaria impedido. 18.Resposta aos quesitos. Inicialmente são respondidos os quesitos do juiz; a seguir, os do Ministério Público, do autor e do réu. A resposta deve ser clara e concisa. Se for o caso, o perito poderá remeter o entendimento da resposta ao corpo do laudo. Nas perícias de responsabilidade penal, muito comuns na prática forense, é imprescindível que mais dois itens sejam contemplados: 1. Elementos colhidos nos autos do processo. Descrição do fato criminoso de acordo com o relato da vítima e das testemunhas, bem como quaisquer outras informações de relevo constantes do processo.
EXAME PERICIAL PSIQUIÁTRICO
2. História do crime segundo o examinando. Tópico que compreende os antecedentes remotos e próximos do crime, sua preparação e execução e os momentos posteriores a ele, todos de acordo com a perspectiva do autor do delito. É essencial para que se avaliem os elementos cognitivo e volitivo descritos no artigo 26 do CP. A
entrevista psiquiátrica forense
Apesar de, na forma, assemelhar-se à entrevista psiquiátrica-padrão — pois consiste basicamente em um encontro entre um psiquiatra e uma pessoa que pode estar apresentando algum transtorno mental ou alteração comportamental que necessitem ser diagnosticados —, a entrevista psiquiátrica forense (EPF) distingue-se por apresentar questões éticas e técnicas que interferirão nas peculiaridades de suas diversas fases e na organização do setting, bem como pela utilização de recursos eletrônicos. A EPF constitui-se no mais importante dos instrumentos à disposição do psiquiatra forense. Por meio dela é possível obter informações relevantes sobre a história de vida do examinando e realizar um adequado EEM. Além disso, é imprescindível para a correta compreensão das motivações que levaram alguém à prática de determinado ato (em perícias de responsabilidade penal ou de anulação de ato ou negócio jurídico), para se estabelecerem a aptidão e os limites da prática dos atos da vida civil e, mesmo, para o prognóstico de risco.
FUNDAMENTOS
O DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO NO CONTEXTO FORENSE A questão do diagnóstico psiquiátrico e da classificação dos transtornos mentais foi objeto de muita controvérsia ao longo do século XX. As razões para isso foram diversas, tanto tecnológicas, como a escassez de métodos de investigação que pudessem visualizar o funcionamento do cérebro ao vivo e o incipiente desenvolvimento das neurociências, quanto ideológicas, uma vez que as alterações mentais em geral se fazem acompanhar por alterações comportamentais, o que suscitava críticas sobre a validade dos diagnósticos realizados e até sobre a existência das doenças psiquiátricas. Além disso, no início do século XX, surgiu a psicanálise, método de investigação do funcionamento mental que atribuía os sintomas psiquiátricos a fenômenos psicológicos inconscientes. Essa corrente de pensamento pôde se desenvolver fortemente ao longo das décadas subsequentes e ocupar um vácuo deixado pelo incipiente desenvolvimento da psiquiatria. Em alguns locais, sua presença se fez tão forte que psiquiatria e psicanálise eram entendidas como sinônimos, e as pessoas leigas não sabiam compreender a diferença entre uma e outra. E pior: muitas vezes os próprios profissionais também não o sabiam... Em decorrência da fraca compreensão das bases orgânicas das doenças mentais — afinal, com exceção dos quadros infecciosos, os diagnósticos de certeza quase sempre só podiam ser realizados post mortem —, havia uma discrepância muito grande entre os sistemas classificatórios das doenças mentais em cada país e mesmo entre os critérios diagnósticos para uma determinada patologia. Essas discordâncias ficaram muito bem demonstradas por meio de um
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projeto para o estudo do diagnóstico de esquizofrenia nos Estados Unidos e na Inglaterra, no qual se constatou que o conceito norte-americano dessa patologia era bem mais amplo do que o inglês, o que produzia taxas de prevalência maiores da doença. Essa dificuldade de comunicação, associada ao desenvolvimento das neurociências, ao surgimento de métodos de neuroimagem e à síntese crescente de novos psicofármacos, impôs a necessidade de que critérios objetivos e uniformes para a diagnose de transtornos psiquiátricos fossem adotados. Os primeiros conjuntos de critérios diagnósticos surgidos, entretanto, eram eminentemente dirigidos à pesquisa médica e não tinham uma finalidade ordenatória, mas vieram a constituir a base para as atuais classificações. Hoje, existem dois grandes sistemas diagnósticos: o proposto pela American Psychiatric Association (APA), denominado Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, atualmente em sua 4ª edição revisada, DSM-IV-TR; e o patrocinado pela OMS, Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10, conhecido como CID-10, apresentado em duas versões: as Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas (livro azul) e os Critérios diagnósticos para pesquisa (livro verde). O sistema da APA, que remonta a 1980, por meio do DSM-III, seguido por sua edição revisada, DSM-III-R, em 1987, e depois por sua nova edição, DSM-IV, em 1994, apresenta extrema objetividade e é o que melhor atende às necessidades do clínico; contudo, não é oficialmente adotado no Brasil. Assim, ao realizar uma perícia, o médico deverá se valer da classificação proposta pela OMS. O advento de critérios diagnósticos psiquiátricos objetivos, além de sua enorme
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importância para o desenvolvimento da ciência, por favorecer a pesquisa e a comunicação entre os profissionais do campo, trouxe consequências muito positivas à atividade forense. Por meio deles, o diagnóstico deixa de ser inferencial e necessita ser demonstrado com clareza. Se, por exemplo, um perito afirmar que alguém está psicótico, precisa provar em que consiste a quebra do juízo de realidade, quais delírios ou alucinações se fazem presentes. A simples afirmativa de que determinada pessoa estaria “regredida a um nível psicótico de funcionamento” ou de que apresentaria “ansiedades psicóticas” seria insuficiente para esse diagnóstico, posto que não está claro em que consiste um “nível psicótico de funcionamento” ou uma “ansiedade psicótica”. Esse tipo de assertiva é resquício de prática psiquiátrica fortemente baseada nos pressupostos da psicanálise, os quais devem ser evitados com rigor no contexto judiciário pela impossibilidade de serem sustentados de forma concreta. O sistema proposto pela APA, a partir do DSM-III, adota uma formulação semelhante à utilizada nas demais áreas da medicina por meio de um raciocínio conjuntivo: se A + B + C, então D, na qual D seria o diagnóstico clínico e A, B e C seus elementos constitutivos. O psiquiatra, então, somente poderá afirmar a realidade D se, ao mesmo tempo, puder demonstrar com clareza que A, B e C estão presentes. Esse modelo (utilizado também no DSM-III-R, no DSM-IV e na versão atual, DSM-IV-TR) adapta-se muito bem ao contexto forense, visto que retira ao máximo a carga de subjetividade do diagnóstico e principalmente permite que as afirmativas do perito possam ser criticadas ou endossadas de forma objetiva tanto pelos assistentes técnicos quanto por juízes,
EXAME PERICIAL PSIQUIÁTRICO
promotores e advogados. Acima de tudo, torna o diagnóstico psiquiátrico algo compreensível para o leigo, o qual, recebendo noções básicas sobre a estrutura e o funcionamento de dado sistema classificatório, terá condições de se manifestar com segurança sobre as conclusões de uma perícia psiquiátrica. O sistema da APA mostrou-se tão eficaz que, apesar das críticas que recebeu e das discussões que suscitou, acabou servindo de inspiração à OMS ao revisar sua Classificação Internacional de Doenças e publicar a CID-10, em 1992. Até então, as diversas CIDs referiam os distintos quadros clínicos de forma essencialmente descritiva e impressionista, e, apesar do constante aperfeiçoamento havido a cada edição, restava margem para muita imprecisão e divergência. A CID-10 foge por completo do formato de suas antecessoras, busca ser estritamente objetiva, mas, mesmo assim, o livro azul, seu documento fundamental, ainda não consegue alcançar o grau de eficiência do DSM-IV-TR. Isso por uma singela razão: algumas vezes, os elementos A, B ou C que integrarão o diagnóstico D estão mencionados de forma não tão clara e direta quanto em sua congênere norteamericana. Quando essa situação estiver por ocorrer — ou seja, a formulação de um diagnóstico pela CID-10 que não esteja descrito com total objetividade naquele manual —, para prevenir futuro questionamento por parte de assistente técnico ou mesmo objeções e pedidos de esclarecimento pelas partes, os quais talvez não possam ser contestados de forma absolutamente clara, é recomendável que seja também consultado o livro verde da CID-10 para verificar se os critérios diagnósticos ali explicitados estão preenchidos de maneira efetiva. Justifica-se
FUNDAMENTOS
essa providência pelo fato de ser o livro verde tão objetivo quanto o DSM-IV-IR, visto que dirigido essencialmente à pesquisa. A ideia, enfim, que norteia os parágrafos anteriores é que o diagnóstico psiquiátrico deve ser um processo fundamentalmente objetivo, lógico, com base em sinais e sintomas claramente perceptíveis, passível de ser entendido e criticado pelo leigo, em vez de dotado de características fantasiosas, mágicas, pelas quais apenas poderia ser formulado por pessoas que entendessem os mistério da mente e os fenômenos inconscientes. CONCLUSÃO No presente capítulo, procurou-se demonstrar que o exame pericial psiquiátrico é dotado de características especiais, as quais o distinguem sobremaneira do exame psiquiátrico-padrão. A principal delas é sua natureza probatória, o que o torna passível de amplo escrutínio pelas partes e pelos profissionais do direito. Em decorrência disso, há importantes modificações técnicas em sua execução, e deve-se atribuir grande importância a sua objetividade. Observa-se, também, a atuação de diferentes questões de natureza ética, o que demanda a adoção de novos paradigmas, novos referenciais e novas medidas preventivas.
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