Livros publicados nesta CoÍeção sob os auspícios da Socieda Sociedade de Brasil Brasileir eiraa de Direi Direito to Público Público - sbdp
CARLOSARISUNDFELD
Comentários à Lei -de -ppp ~_Fundamentos Econômico-Jurí Econômico-Jurídicos dicos (sbdp/Malheiro (sbdp/Malheiross Editore Editores, s, P. ed ed .• 2a tir. tir., São Paulo, Paulo, 2010) 2010) - MAURÍCIo MAURÍCIo PORTUGALRIBE PORTUGALRIBEIRO IRO e LUCAS NA VA RR OP RA Do Concessão (sbdpl (sbdplMalh Malheir eiros os Editore Editores, s, São Paulo Paulo,, 2010) 2010) - VERA VERA MONTEIRO MONTEIRO Contratações Contratações Públicas Públicas e seu Controle Controle (sbdplDireito (sbdplDireito GV /Malhei /Malheiros ros Editor Editores, es, São PauPau10,2013) 10,2013) - Org. CARLOSAro CARLOSAro SUNDFELD SUNDFELD
Direito Administrativo
Econômico (sbdp/Malheiros Editore Editores, s,
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2006) 2006) - Coord. Coord. CARLOSAro CARLOSAro SUNDFE SUNDFELD LD
Direito Administrativo para Céticos (sbdplDireito GV lMalhei lMalheiros ros
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2' ed., 2014) 2014) -CARLOS -CARLOS Aro SUNDFELD SUNDFELD
Direito da Regulação
e Políticas Públicas' (sbdplMalheiros Editore Editores, s,
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Direito das Concessões de Se",iço Público - Inteligência da Lei 8.987/ 8.987/199 19955 (Parte (Parte Geral)(sbdplMalheiros Editores Editores,, São Paulo, Paulo, 2010) - EooN BOCKMANNMOREI BOCKMANNMOREIRA RA Direito Processual Público - A Fazenda Pública em Juízo (sbdplMalheiros Editores, la 00., 00., 2a tir. tir.,, São Paulo, Paulo, 2003) 2003) - Coords Coords.. CARLOS ARI SUNDFELD SUNDFELD e CÁSSIO SCARPISCARPI NE LL AB uEN O Estatut Estatutoo da Cidade Cidade (sbdpl (sbdplMalh Malheir eiros os Editor Editores, es, 3 ed., ed., São Paulo, Paulo, 2010) 2010) -:- Coords Coords.. ADILSON ABREU ABREU DALLARIe SÉRGIO FERRAZ Improbidade Administrativa - Questões Polirnicas e Atuais (sbdp/Malheiros Editores, 2 1 1 ed., ed., São Paulo, Paulo, 2003) 2003) - Coords. Coords. CÁSSIO CÁSSIO SCARPlNELLA SCARPlNELLABUENO BUENO e PEDRO PAULO D E R E zE N D E P O R T O F IL H O Jurisprudência Constitucional: Como Decide o STF? (sbdplMalheiros Editor Editores, es, São Paulo, Paulo, 2009) 2009) - Coords. Coords. DIOGO R. CmJTINHO e ADRIANA ADRIANA VOJVODIC VOJVODIC Jurisdição Constitucional no Brasil (sbdplMalheiros E d itit or or es es , S ã o P au au lloo , 2 01 01 2) 2) Orgs: ADRIANAVONODIC, HENRIQUEMOTIA PINTO, PAULA GORZONI e RODRIGO PAGA NI DE SO UZ A As Leis de Processo Administrativo - Lei Federal 9.784/1999 e Lei Paulist Paulistaa 10.17711998 10.17711998 (sbdplMalheiro (sbdplMalheiross Editores Editores,, l' ed., ed., 2' tir., r ., São Paulo, Paulo, 2006) - Coords. CARLOS ARI SUNDFELDe GillLLERMO ANDRÉ MuNOZ Licitação no Brasil (sbdplMalheiros Editore Editores, s, São Paulo, Paulo, "2013) "2013) - ANDRÉ ROSILHO" ROSILHO" lM a lhlh eiei ro ro s E d itit or or es es , 2 a ed., ed., São Paulo, Paulo, Parcerias Parcerias Público-Privadas Público-Privadas (sbdplDireito (sbdplDireito G V lM 11
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DIREITO ADMINISTRATIVO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS
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Comunidades Comunidades Quilombolas: Quilombolas: Direito Direito à Terra (Artigo (Artigo 68 do ADCT) ADCT) (sbdp/Centro (sbdp/Centro Pesquis Pesquisas as Aplicad Aplicadasl aslFun Fundaç dação ão Cultura Culturall Palrnar Palrnaresl eslMini Ministé stério rio da Cultur CulturalE alEdit ditora ora Abaré, Abaré, Brasíl Brasília, ia, 2002) 2002) - Coord. Coord. CARLOSAR! SUNDFELD SUNDFELD im on on ad ad , S ão ão P a ul ul o,o, 1 99 99 9) 9) Direito Global (sbdp/School of Global Law/Max L im Coords. Coords. CARLOS AR! SUNDFELDe OSCAR VILHENA VIEIRA
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DIREITO DIREITO ADMINISTRATIVO ADMINISTRATIVO
PARA CÉTICOS
o primeiro colocou em xeque muitas das ideias sobre a especialidade lidade desse direito, direito, atingiu atingiu o conceito conceito de serviço serviço público e introduziu introduziu as novi novida dade dess da regu regula laçã ção. o... . . O segund segundo o critic criticou ou o model modelo o burocr burocráti ático co que havia havia inspir inspirado ado as reform reformas as a partir partir da Era Era Vargas Vargas e que teve tanta tanta influê influênci nciaa em temas como como servid servidore oress públic públicos, os, regime regime da Admi Adminis nistra tração ção indire indireta ta e licita licita-ção. ção. A refo reforma rma da gestão gestão públic públicaa propõe propõe introd introduzi uzirr certas certas flexib flexibili ili-dades e trocar trocar alguns dos controles controles formais formais por controles controles de result resultado, ado, dentro dentro de um enfoqu enfoquee de adminis administraçã tração o gerencial. gerencial. Por último, último, tem-se tem-se vivido, desde o surgim surgimento ento da Consti Constituiçã tuição o de 1988, 1988, uma maré maré montan montante te na judici judiciali alizaç zação ão de ques questõe tõess envolv envolvend endo o a administraç administração, ão, com o frequente frequente uso de princípios princípios bastante bastante imprecisos imprecisos para controlá-la (como o prin princíp cípio io da dignida dignidade de da pesso pessoa a humana humana). ). Isso Isso de algum algum modo modo coloca coloca em questão questão a própr própria ia noção noção de Direit Direito o (afina (afinal, l, ele agora agora inclui inclui esses esses princíp princípios ios todos, todos, assim assim aberto abertoss e indeindetermin terminado ados, s, com força força normat normativa iva?) ?) e, porta portanto nto,, também também de direit direito o administrativo. Por certo tudo isso é objeto objeto de intenso intenso debate debate no mundo mundo jurídico, jurídico, com choques choques releva relevante ntess de visão visão.. Mas ainda ainda não parece parece muito muito claro claro como como é que as coisas coisas vão se estabili estabilizar zar.. De modo que devo encerrar encerrar esse relato relato sobre a formação formação do direidireito administra administrativo tivo brasileiro brasileiro chamando chamando a atençã atenção o para a caracter característica ística do período período que estamos estamos vivend vivendo. o. As visões visões estão estão mudand mudando, o, há novos novos conceitos conceitos a elaborar, elaborar, há experiênc experiências ias a consol consolidar idar e muito muito debate ainda a fazer. fazer. Não é um moment momento o fácil fácil para quem quer quer entend entender er o direito direito administra administrativo, tivo, mas é fascina fascinante nte para influir influir em sua construção construção..
Capítu Capítulo lo 2
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS /DElAS ] . Introduçã Introdução. o. 2. Direito Direito administr administrativo ativo,, alicerce alicerce do País. 3. Osjuris tas brasileiros e a mentalidade do Estado administrativo. 4. Direito administrativo, ferramenta do desenvolvimento. 5. Um sistema sistema de princípios contra a pluralidade do direito do desenvolvimento. 6. Di reito administrativo, engrenagem da democracia. 7. O "jurista cor dial" e sua peculiar visão de direito administrativo na democracia.
1. Introdução Este Este ensaio ensaio procur procuraa mostra mostrarr como, como, no curso curso da História História,, novos novos objeti objetivos vos,, não exclude excludente ntes, s, foram foram sendo sendo incorp incorpora orados dos pelo pelo Direit Direito o Brasileiro Brasileiro relativo relativo à Administra Administração. ção. Os tópicos tópicos a seguir destacam destacam estes três: primeiro, primeiro, o objetivo objetivo de construir construir um Estado administrativo administrativo,, em seguida o de desenvolv desenvolver er o País, País, depois depois o de controlar controlar a AdminisAdministração tração e democrati democratizar. zar. Portanto, Portanto, as figura figurass para iniciar iniciar a exposiç exposição ão de nosso direito administra administrativo tivo são as de alicerce alicerce do País, ferramenta ferramenta do desenvolvi desenvolvimento mento e engrena engrenagem gem da democrac democracia ia 1 Entremeada Entremeadass à exposi exposição ção mais factual, factual, são destacad destacadas as e discutidiscutidas as ideias que, em conjunto conjunto com as personalid personalidades ades dos administr administraativist tivistas, as, deram deram format formato o às concep concepçõe çõess doutri doutrinár nárias ias que vingar vingaram am e ainda influem na atualidade atualidade no Brasil. Brasil. 1. Para uma perspectiva perspectiva distinta distinta sobre a história do direito direito administra administrativo tivo no Brasil, Brasil, v. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Pietro, "500 anos de direito administrati administrativo vo brasileiro", leiro", in Maria Sylvia Zanella Zanella Di Pietro e Carlos Carlos Ari Sundfeld (orgs.), Direito Admi nistrativo - Doutrinas Essenciais, vaI. I, São Paulo, Ed. RT, 2013, pp . 121-147.
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DIREITO DIREITO ADMINISTRATI ADMINISTRATIVO VO
PARA CÉTICOS CÉTICOS
2. Direito Direito administrat administrativo, ivo, alicerce alicerce do País
Na medida em que ia' sendo inventado entre nós, o 'direito administra nistrativ tivoo foi servi servindo ndo de alice alicerce rce da obra obra de constru construção ção do Estado Estado ' Brasileiro Brasileiro e do País. País. O Impéri Impérioo do Brasil Brasil surgiu surgiu formalmente formalmente com a Independên Independência cia em 1822, herdando herdando alguma alguma estrutura estrutura administra administrativa tiva que ha havia via sido criada criada após após a trans transfer ferênc ência ia da sede do Reino Reino de Portug Portugal al para para o Rio de Janeiro, neiro, em 180 1808. 8. Mas, Mas, além além de precá precária ria,, era uma estrutur estruturaa do An Antig tigoo Regime, Regime, que a nova ordem tinha de superar. superar. Ademais, tomaria tomaria tempo para, por meio do Estado e do Direito, reunir em um só País, bem amarra amarrados dos,, regiõe regiõess e grupos grupos que no pa passa ssado do tinham tinham tido tido escasso escasso vínvínculo entre si. A tarefa tarefa consumiu consumiu 110 anos: atravessou atravessou todo o período período do ImpéImpério Brasileir Brasileiroo (até 1889) e a primeira primeira República República (até 1930) e termino terminouu simbolicam simbolicamente ente quand quandoo da vitóri vitóriaa do Govern Governoo Federal Federal sobre a Revolução Constitucio Constitucionalis nalista ta do Estado Estado de São Paulo Paulo (em 1932). A partir partir daí se deu a nacionaliz nacionalização ação definitiva definitiva do Estado Estado BrasileiBrasileiro, pela pela consolidação consolidação de uma estrutura estrutura federal federal abrangente abrangente e forte, forte, que não teve teve mais oposição oposição regional. regional. Também Também ficou sepultada sepultada uma visão visão mais liberal, liberal, menos estatista, estatista, que tentara tentara influir influir na organiza organização ção política do Brasil Brasil nas décadas décadas anteriores anteriores,, quand quandoo da passagem passagem do Impéri Impérioo para a República. ' De outro lado, em todo esse século século de iniciação iniciação pouco a pouco se haviam haviam definido definido os papéis papéis e a organi organização zação das instituiçõe instituiçõess públicas públicas brasileiras, sileiras, segundo as orientaçõ orientações es de Estado Estado contemporâ contemporâneo, neo, e disso resulresultou nosso estilo de Administ Administração ração Pública Pública e seu corresponden correspondente te direito. direito. O estabele estabelecimen cimento to do direito direito administr administrativo ativo brasileiro brasileiro,, no decordecorrer desse desse período, por certo não foi uma uma reação ao Estado, Estado, seus poderes poderes e excesso excessos, s, mas um esforço esforço desse Estado por se estabel estabelecer ecer e impor. impor. Nesses primeiros tempos era preciso inventar juridicamente a Admini Administr straçã açãoo Públic Pública, a, em bases bases consti constituc tucion ionais ais e como como parte parte espeespecífica e fundamenta fundamentall de um um novo Estado Estado soberano. soberano. Natural, Natural, então, então, que a atenção atenção dos juristas juristas se voltasse voltasse para os problema problemass da estrutura estrutura e das relaçõ relações es intern internas as das insti institui tuiçõe çõess púb públic licas, as, de modo modo a defi definir nir para para a Administraç Administração ão um espaço espaço próprio próprio no interio interiorr da máquina máquina estatal estatal e um conjunto conjunto de poderes poderes no confronto confronto com os particulare particulares. s.
A CONSTRUÇ CONSTRUÇÃO ÃO DO DIREITOADMINlSl DIREITOADMINlSlRATIVO RATIVO BRASILEIRO BRASILEIRO E SUAS lDEIAS lDEIAS
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Esse esforço de criação veio desde o ato fundador: a Constituição de 1824, com separação separação de Poderes Poderes e Conselho Conselho de Estado, Estado, e também também Com uma Declaração Declaração de Direitos. Direitos. Passou em 1827 pela pela instalação instalação de duas Escolas de Direito Direito para gerar uma elite jurídica, jurídica, que deveria deveria ser a responsáve responsávell peÍo novo novo Estado e por carregar carregar sua ideolog ideologia. ia. Chegou Chegou em Ensaio de Di1862 a seu primeiro primeiro livro importante importante em nossa área, o Ensaio reito Administrativo, do Visconde do Uruguai, à época uma das personalidades nalidades públicas públicas centrais centrais do País, País, cuja declara declarada da preocupaçã preocupaçãoo era organizaci organizacional, onal, era colocar colocar "cada uma das peças da nossa organizaçã organizaçãoo administrat administrativa iva (...) no lugar que lhe corresp corresponde" onde".'.' Depois, Depois, quand quandoo da implantaçã implantaçãoo da Repúbli República, ca, no final final do século XIX, foram estabeleci estabelecidas das novas bases para a Justiça Justiça e para o controle controle da Adminis Administraçã tração. o. Daí se seguiu uma sucessão de iniciativas iniciativas (normativa (normativass e intelecintelectuais) tuais) para para organi organizar zar a Admi Adminis nistra tração ção como como alicer alicerce ce do Estado Estado e do País, aÍmnar suas competênc competências ias e estabele estabelecer cer suas formas formas jurídicas. jurídicas. Nesse longo período, sem contar as Constituições de 1824 e 1891, que trataram trataram das estrutura estruturass mais gerais gerais do Estado, Estado, algumas algumas leis influíram influíram na construção construção das instituiçõe instituiçõess e no arranjo arranjo político. político. Nos primeiros anos da República, a Lei da Justiça Federal (Lei 22111894), 22111 894), dispondo dispondo sobre controie controie judicial, judicial, adotou adotou noções noções técnicas técnicas em que o papel e O espaço espaço da Admini Administraçã straçãoo Pública Pública já estavam estavam bem estabelecid estabelecidos os (e, não por acaso, acaso, essas noções ainda hoje estão no re pertório do direito administrativo). Para definir definir as competênci competências as judiciais judiciais em relação relação à Adminis Administratração Pública, Pública, a lei lei (art. 13) falou em "atos "atos administrativo administrativos", s", "autorida"autoridades administ administrat rativa ivas", s", "lesão "lesão de direito direitoss indivi individua duais" is" e "anulaç "anulação" ão":: "Os juízes juízes e tribuna tribunais is federais federais processarã processarãoo e julgarão julgarão as causas causas que se fundarem fundarem na lesão lesão de direitos individuais individuais por atos atos ou decisão das au,toridades administra administrativas tivas da União" União";; "Verifican "Verificando do a autórida autóridade de judiciária ciária que o ato ou resolu resolução ção em questão questão é ilegal, ilegal, o anulará anulará no todo todo ou em parte, parte, para para o fim de assegu assegurar rar o direito direito do autor" autor";; "Consi "Considederam-se ram-se ilegai ilegaiss os atos atos ou decisõe decisõess admini administr strati ativas vas em razão razão da não aplicação aplicação ou indevida indevida aplicação aplicação do Direito Direito vigente". Visconde do Uruguai, Uruguai, São 2. José Murilo Murilo de Carvalho Carvalho (org. e "Introdução "Introdução"), "), Visconde Paulo, Editora 34, 2002, p. 70.
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DIREITO AD1fiN1STRATIVO
A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINISTRATIVOBRASILEIROE SUAS IDEIAS
PARA CÉTICOS
De outro lado, para preservar a autonomia da Administração, a lei adotou a ideiade discricionariedade: "A autoridade judiciária fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportnnidade"; "A medida administrativa tomada em virtnde de uma faculdade ou poder discricionário somente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou do excesso de poder".
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regulamentar, e no seu mecanismo administrativo é mola essencial o Poder Judicial. "A francesa parte em geral do princípio oposto: regular para prevenir que O abuso se dê, removê-lo antes que apareça. Por isso é muito regulamentar, e o Poder Judicial reduz-se em geral a julgar questões privadas e criminais. (...). "O sistema francês, inteiramente diverso do anglo-saxônico, mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais claro e compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um País que arrasa, de um só golpe, todas as suas antigas institnições, para adotar as constitucionais ou representativas, e isto muito principalmente quando esse País larga as faixas do sistema absoluto, e, abrindo pela primeira vez os olhos à luz da liberdade, está mal ou não está de todo preparado para se governar em tndo e por tudo a si mesmo."3 A partir de então, a mentalidade jurídica brasileira pareceu se acomodar a esta ideia: a de que seria necessário um Estado administrativo como centro do País (disse o Visconde do Uruguai: "As necessidades comuns ... o Poder Público deve satisfazer"),' com seu direito próprio, especial, viabilizando essa missão essencial (mais uma vez Uruguai: "O exercício da Administração, o direito administrativo, é portanto uma condição essencial de toda a existência coletiva"'). A influência francesa na adoção, desde as primeiras décadas do século XIX, dessa ideia de Estado administrativo não foi destruída pela Constituição da República, de 1891,de espírito norte-americano. É verdade que nesse momento o 'Brasil deu uma guinada para o modelo jurisdicional à americana, de Justiça Comum, abandonando o Conselho de Estado, que tinha sido tomado da França. Também incorporou o presidencialismo e o federalismo. Ademais, o debate jurídico foi apimentado com teses mais liberais em matéria econômica e de liberdade pessoal (teses para limitar as medidas de.autoridade administrativa). Mas, no caminhar dos anos, a base "à francesa" - o estatismo, a superioridade do Estado administrativo e a especialidade de seu direi-
3. Osjuristas brasileiros e a mentalidade do Estado administrativo
Todavia, a consolidação do direito administrativo no Brasil nesse período, com seu vasto leque temático, provavelmente foi obra menos legislativa do que intelectnal e jurisprudencial. O direito que, nesse século inicial, de fato se consolidou pela via legislativa foi o privado, com a edição, em 1916, do primeiro Código Civil brasileiro - o que, aliás, teria impacto no campo público: primeiro, porque o Código tratou não só da propriedade privada, mas das espécies e regimes dos bens públicos; depois, porque a consolidação do direito civil estimularia os publicistas a fazerem esforços de inter pretação para afastar a incidência de certos dispositivos do Código a problemas da Administração Pública. . Esse movimento veio de uma visão bem menos liberal que a dos mgleses e norte-americanos quanto ao papel da Administração na SOCIedade; no Brasil, a visão que acabaria por prevalecer seria mais estatista, de privilégio e superioridade do Estado, a sugerir um direito especial, administrativo. Nessa longa fase de construção, a influência francesa foi decisiva, especialmente na absorção da ideia de Estado e de direito administrativo "à francesa" como melhor solução para um País novo, sem tradição de liberdade. Aliás, é simbólico que o Visconde do Uruguai, pai fundador, tivesse nascido na França (em 1807), escrito seu famoso livro com bi bliografia francesa e defendido com ênfase a aplicação entre nós do que chamou de "sistema francês". Suas ideias eram enfáticas: "A legislação inglesa e americana parte em geral do seguinte princípio: deixar toda a liberdade e punÜ"o abuso. Por isso é pouco
3. J o s é Murilo de Carvalho (org. e "Introdução"), Visconde
t
474 e 502. 4. Idem, p. 86 5. Idem, p. 110.
1
do Uruguai, cit.,
pp.
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DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS IDEIAS
to - iria permanecer como predominante na ideologia do direito administrativo substantivo do Brasil Já, quanto ao direito administrativo contencioso, à organização da Justiça, aos tipos processuais, prevaleceu a base norte-americana, acrescida da noção de direito público subjetivo de inspiração alemã.
(as terras devolutas) e a aquisição das propriedades pelos particulares, definindo a estrutura fundiária que marcaria a história econômica brasileira. Da mesma época, a Lei das Estradas de Ferro (Lei 641/1852) regulou o contrato de concessão de serviço público e seus privilégios, com certas características que ainda hoje conserva, e deu início a uma história de parcerias contratuais de investimento entre particulares e Estado que seria decisiva no desenvolvimento do País. A vinculação do direito administrativo com a questão do desenvolvimento iria se tornar bem mais intensa a partir dos anos 1930. Logo nos primeiros anos desse período, a Administração Federal passou por grande transformação. De um lado, pela absorção de novas soluções de administração burocrática: organização das carreiras públicas (com concurso público e regime jurídico funcional especial), planejamento, primeiras entidades administrativas autônomas (as autarquias) etc. Para tanto, reformas legislativas foram feitas, inclusive com pretensões parcialmente sistematizadoras . Os marcos legais iniciais da organização burocrática foram estes: o primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Decreto-lei 1.713/1939), que sistematizou o regime especial do trabalho na esfera pública; a primeira grande lei de direito financeiro, sobre a ela boração e controle dos orçamentos públicos (Lei 4.320/1964, cujos conceitos ainda hoje são aplicados); e a lei que estabeleceu a organização geral da Administração da União e O primeiro conjunto de normas gerais nacionais de licitação (Decreto-lei 200/1967, hoje afetado em muitas de suas disposições, mas com conceitos atuais, como os de Administração direta e indireta, sociedades de economia mista etc.). De outro lado, houve aumento da presença estatal na economia, com a criação de empresas estatais (a Cia. Siderúrgica Nacional, inaugurada em 1946, e depois, entre os anos 1950 e 1970, as grandes estatais nas áreas de petróleo, energia elétrica e telecomunicações) e a expansão dos bancos públicos (os mais antigos o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal e, desde 1952, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e SocialIBNDES, todos controlados pela União), entre outras medidas. Por certo que as tendências em matéria de organização e atuação administrativa para o desenvolvimento, nos campos tanto econômico como social, foram se alternando nas muitas décadas seguinte~.
6
Um sistema jurídico com essas características merece bem a descrição que lhe deu Michel Fromon!: "O direito administrativo brasileiro é um pouco como uma abelha. Ele foi bicar em todas as flores do mundo, tanto sobre as flores da Common Law norte-americana como sobre as dos direitos romanistas do Continente Europeu".' 4. Direito administrativo, ferramenta do desenvolvimento
Na segunda fase, a partir mais ou menos da década de 1930 a legislação administrativa brasileira assumiria de modo mais intens~ a feição de ferramenta do desenvolvimento, apoiando a articulação do Estado com o setor privado e também a modernização e o crescimento da Administração. Verdade que desde os primórdios a legislação administrativa já mostrara preocupação em viabilizar empreendimentos econômicos. Logo no início do Império, a lei de 9.9.1826 tratou da desapro priação de imóveis privados para empreendimentos de necessidade ou utilidade pública, prevendo suas hipóteses, garantindo ampla indenização e dispondo sobre a intervenção judicial, em um estilo normativo que se manteria nas atualizações legais posteriores. Anos após, a im portante Lei de Terras (Lei 601/1850) disciplinou o domínio público 6. A análise da jurispru~ncia do STF sobre temas administrativos do período entre 1891 e 1930, com o ambIente aberto às teses liberais norte-americanas, mostra a Corte pouco propensa a afInnações radicais em favor de um principio geral de su premacia do interesse público sobre o privado, especialmente em matéria contratual. Mas o discurso dos administrativistas, de invocar O interesse público para reconhecer caso a caso poderes para a Administração, esteve presente em boa parte das decisões. A respeito, José Guilherme Giacomuzzi, "A supremacia do interesse público na juris prudência do Supremo Tribunal Federal durante a República Velha", Revista de Direito Administrafivo/RDA 263/251-290, Rio de Janeiro, maio-agosto/20l3. 7. Michel Fromont e outros (dirs.), "Le reoard d'unjuriste européen sur le Droit Perspectives Nationales et Compa~ Brésilien", in Droit Français ef Droit Brésilien rées, Bruxelas, Bruylant, 2012, p. 53. . 0 _
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DIREITO ADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos
o papel empresarial dos Estados da Federação foi crescendo _ atingindo seu auge durante o período militar (1964-1985), sobretudo com bancos oficiais estaduais, empresas estaduais de energia elétrica e empresas estaduais de saneamento - para recuar parcialmente a partir da década de 1990, com desestatizações (energia elétrica), federalizações (bancos) e, mesmo, algumas liquidações (saneamento). Também algumas empresas estatais da União viriam a ser desestatizadas na década de 1990 (especialmente em telecomunicações, siderurgia, petroquímica e indústria aeronáutica). Mas outras foram ampliadas e seguem importantes, como os Bancos e a PETROBRAS e mesmo a ELETROBRAS, do setor elétrico. ' Tem sido sempre crescente, em todo o período, a atuação das Administrações Estaduais em segurança pública e serviço penitenciário, bem como das Estaduais e Municipais em serviços sociais como saúde, educação e transporte público, e ainda na construção de moradias e grandes obras públicas (rodovias estaduais, infraestrutura urbana municipal). Mais voltados para a elite do País, os serviços de educação superior tomam impulso com a criação da Universidade de São Paulo/USP em 1934 (pelo Governo do Estado, que a mantém desde então) e, a partir do início da década de 1950, de universidades federais, que se expandem continuamente até hoje. . A presença e o crescimento da União na área social também são fortes nesse largo período, sobretudo em previdência, cujas primeiras entidades oficiais aparecem no início dos anos 1930, para serem fundidas em 1966, levando à universalização paulatina dos benefícios, reforçados com a Constituição de 1988. Nos anos 1990 o Poder Público incrementa seu esforço de regulação e de contratação, com particulares, de novos empreendimentos e da prestação de serviços públicos e sociais. Surgem aí as fortes agências reguladoras federais, aprofundando um modelo burocrático para a regulação que havia sido iniciado em 1964 com o Banco Central do Brasil. Agências reguladoras também surgem nos Estados e mesmo em alguns Municípios maiores.' 8. Um panorama sobre o perfodo in Carlos Ari Sundfeld (org.), Direito Admili ! ed., 3~tir., São Paulo, Malheiros Editores, 2006.
nistrah'vo Econômico,
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISlRATIVO BRASILEIRO E SUAS IDElAS
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Todas essas iniciativas dependeram de formas jurídicas sofisticadas, capazes de organizar uma atuação estatal bem diversificada. O direito administrativo foi se renovando e ampliando, tornando-se mais complexo, para atender a essa demanda, sobretudo pelo impulso de novas normas constitucionais e de leis.' Nesse período, a legislação administrativa iria claramente se transformar em ferramenta pragmática do desenvolvimento. Sendo O poder de contratar de enorme relevãncia para o Estado direcionar a economia e gerar desenvolvimento, era natural que se fizesse esforço legislativo também quanto a isso. Várias leis setoriais, tratando de contratos de concessão e formas alternativas de negócios público-privados, vieraro se sucedendo desde a década de 1930, a partir do pioneiro Código de Águas (Decreto 24.643/1934), fundamental às concessões de geração de energia hidrelétrica. Nos anos 1990, com os programas de privatização, iniciou-se nova onda de leis federais em muitos setores - portos, energia, telecomunicações, petróleo, gás, saneamento, transporte etc. -, sempre
apostando nas contratações públicas. Surgiram também leis gerais de concessões, para aplicação multissetorial (as Leis 8.987 e 9.074, am bas de 1995, e a Lei 11.079/2004). Além disso, foi sendo construída, a partir do final da década de 1960, ampla legislaçãO sobre contratos de obras, compras e serviços, bem representada pela Lei 8.666/1993, com constantes alterações posteriores .10 5. Um sistema de princípios contra a pluralidade do direito do desenvolvimento
A sistematização geral do direito administrativo e sua autonomia como ramo jurídico - especialmente pela contraposição ao direito 9. Floriano Azevedo Marques Neto, "Os serviços de interesse econômico geral e as recentes transformações dos serviços públicos", in Fernando Dias Menezes de Almeida e outros (orgs.), Direito Público em Evolução - Estudos em Homenagem à Professora Odete Medauar, Belo Horizonte, Fórum, 2013, pp. 531-547. 10. Para. a análise desse movimento legislativo, v.: Carlos Ari Sundfeld (erg.), Contratações Públicas e seu Controle, São Paulo, Malheiros Editores, 2013 (em es pecial Carlos Ari Sundfeld, "Contratações públicas e o princípio da concorrência", pp. 15-41); e Carlos Ari Sundfeld (org.), Parcerias Público-Privadas, 2 ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2011. B
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DIREITO ADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos
A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADtvUNlSTRATIVOBRASILEIROE SUAS mElAS
privado - jamais foram" projetos importantes do direito positivo brasileiro, antes, ao contrário; o legislador tem sido sempre muito pragmático, pouco simpático a fórmulas fechadas.
mesmo tempo, usá-los como principal utensílio da prática juridica (preocupação operacional).
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Isso muitas vezes provoca tensão e insegurança, pela falta de aderência entre o que o direito positivo efetivamente contém e o que os juristas dizem que ele é, ou deveria ser.
Em virtude, mesmo, da ampliação e dos objetivos desenvolvimentistas, o repertório do Direito aplicável à Administração se tomou sempre mais variado e eclético (quanto aos modelos de organização das entidades estatais, aos tipos de contratos, às soluções para a regulação econômica, aos regimes funcionais dos servidores públicos etc.).
Por outro lado, o certo é que, tanto por razões políticas como pelas preferências doutrinárias, ainda se mantém viva uma tendência mais estatista, pouco liberal, dos primeiros tempos de uosso direito administrativo. E isso apesar da abertura a modelos privados (caso das empresas estatais, por exemplo) e das reformas regulatórias (introduzindo flexibilidade e competição em serviços públicos, por exemplo). Boa parte da ação do Estado tem sido sustentada por exclusividades, privilégios, superioridades e especialidades, e isso está refletido no campo administrativo também nessa nova fase.
Os juristas, sim, têm se preocupado em defender e construir o direito administrativo como ramo autônomo e sistemático, e em seus tratados e manuais buscam estabilizar teorias e conceitos li Esse tra balho de identificar e descrever institutos próprios dialoga talvez mais com a tradição doutrilJária do que com o direito positivo e a experiência jurídica, de modo que teorias e conceitos vêm deduzidos de ideias e valores muito abstratos: interesse público, oposição entre público e privado etc.
Esse reflexo pode ser medido pelo prestígio da doutrina que defendeu a supremacia do interesse público sobre o privado não só como princípio geral, mas como verdadeira base de todo o direito admi"nistrativo. Pode parecer intrigante essa doutrina ter feito sucesso justamente nas décadas finais do século XX, quando o Estado já estava envergando trajes empresariais e, por isso, a legislação administrativa ficara mais eclética.
Desde a década de 1960 a opção doutrinária comum é enunciar mais e mais princípios, na esperança de obter deles a identidade e a autonomia do direito administrativo (preocupação teórica)12 e, ao 11. Para uma visão de conjunto a respeito dessas construções
teóricas na história
brasileira, v. Fernando Dias Meneze~ de Almeida, Fornwção da Teoria do Direito Administrativo
no Brasil, tese de titularidade,
Mas o fato é que essa doutrina vingou, e só recentemente surgiu no Brasil um movimento forte para contestá-la."
São Paulo, Faculdade de Direito da
USP,2013. 12. José CretelIa Ir., Professor da Faculdade de Direito da USP, radicalizando a defesa da construção "científica" do direito administrativo pela identificação de seus princípios, deu início no Brasil, em 1966, à "onda principiológica" que viraria epide~
mia nas décadas seguintes. Disse ele: "Cabe ao cultor do direito público reformular a experiência jurídica
à luz de princípios próprios, estremando o público do privado, submetendo a um tratamento adequado de direito público os institutos que lhe são típicos" ("As categorias jurídicas e o direito administrativo", RDA 85/28-33, Rio de Janeiro, FGV, juIho-setembro/1966) . Em outro trabalho da época insistiu na necessidade dos princípios: "Inúmeros institutos de direito administrativo têm sido mal-entendidos porque prevalece ainda a mentalidade privatística, que equaciona os problemas do direito público em termos próprios do direito comum, levando para o novo campo os próprios resultados alcançados" ("Regime jurídico das fundações públicas no Brasil", RDA 90/459-469, Rio de Janeiro, FGV, outubro-dezembro/1967). Logo a seguir, em J 968, no artigo "Princípios informativos do direito administrativo" (RDA 93/1-10, Rio de Janeiro, FGV, outubro/1968), o autor lamentou o casuísmo doutrinário dominante: "Não se empreendeu ainda estudo sistemático dos pressupostos
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fIlosóficos do direito administrativo, subordinado ao título princípios informativos do "direitoadministrativo, encontrando~se apenas, de maneira esparsa e assistemática, conforme as circunstâncias, a referência específica a um determinado princípio, que se põe na raiz do tema desenvolvido, garantindo-lhe a validade" (p. 2). E aí propôs: "Cumpre, então, descobrir uma série de princípios exclusivos do direito administrativo, proposições que fundamentem os institutos deste ramo jurídico e que lhe confiram traços inequívocos, que os estremem dos congêneres de outros campos" (p. 5). O lamento e as ideias encontraram um seguidor fiel e entusiasmado em Celso Antônio Bandeira de Mello, então Professor iniciante, que, em seu livro Natureza e Regime Jurídico das Autarquias, usaria termos muito semelhantes para divulgá-las, embora sem citar o precursor (São Paulo, Ed. RT, 1968, pp. 292 e ss.). 13. Cretella Jr., o iniciador da "onda principiológica", perguntou: "Quais são os princípios informativos do direito administrativo?" - para logo constatar: "Uma primeira proposição acode à mente dos administrativistas que cogitam do tema - o inte resse público prepondera sobre o interesse privado". Conquanto o autor argumentasse não se tratar de princípio setorial, mas comum a todo o direito público, não deixou
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DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS
6. Direito administrativo, engrenagem da democracia
A rejeição do poder autocrático, com o duplo condicionamento da ação administrativa pela legalidade e pelo controle dos juízes, esteve presente desde o início do Estado Brasileiro, com a adoção da separação dos Poderes e de uma Declaração de Direitos pela Constituição imperial de 1824. Mas foi longo e cheio de acidentes O percurso do direito administrativo brasileiro em direção à democracia. Nos primeiros anos, limitar juridicamente a Administração não era fácil: pelas heranças políticas e sociais, pelas fragilidades institucionais, pelo Poder Moderador reservado ao monarca, entre outras causas. Depois, a República viria a institucionalizar em bases modernas o controle judicial da Administração, como vimos, e nas décadas seguintes surgiriam instrumentos processuais importantes (como o mandado de segurança), além de discursos doutrinários contra as imunidades da Administração.!4 Só que houve muitos períodos de exceção, em que os condicionamentos legislativos e judiciais à Administração ficaram bastante comprometidos, ao menos em temas politicamente mais sensíveis. de reconhecer: "Este princípio, princípio da supremacia do interesse público (...) informa todo o direito administrativo" ("Princípios informativos do direito administrativo", cit., RDA 93/4). Bandeira de Mello, discípulo de Cretella Jr. quanto a isso, acabou sendo o vulgarizador do princípio da supremacia, por conta de obra didática que lançou posteriormente (Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Ed. RT, 1980, pp. 3-34). Tempos depois, quando já virara moda a "principiologia", o tal princípio seria contestado de modo consistente por Humberto Bergmann Á vila ('
A CONSTRUÇÃO DO I?IREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS mEIAS
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Isso ocorreu especialmente nas frequentes crises da Primeira Re pública, com a decretação de estados de sítio (que duraram 2.278 dias, pouco mais de 6 anos, distribuídos pelos vários Governos eutre 1889 e 1930); na ditadura do Presidente Getúlio Vargas, entre 1937 e 1946; e na ditadura militar, entre 1964 e 1985.I' De qualquer modo, e apesar dos percalços, no decorrer da história brasileira pouco a pouco foram crescendo - e acabaram por se estabilizar - mecanismos variados de condicionamento. Por um lado, surgiram sempre mais e mais normas, de muitas fontes (constitucionais, legais e, mesmo, administrativas), em constante mudança. Por outro, mais oportunidades para o controle externo: mais atuação dos Tribunais de Contas, mais controle de constitucionalidade, mais soluções em matéria de processo judicial, mais legitimação para acessar a Justiça (Ministério Público. e associações, em defesa de interesses difusos ou coletivos, por exemplo), etc. Por fim, os controles internos também foram encorpando, por meio dos controles hierárquicos e de processos administrativos específicos (com participação dos interessados e, mais recentemente, também com participação popular), e ainda pela atuação das corregedorias internas da Administração. Depois da instauração da democracia, a Constituição de 1988 viria a ser o marco -dessa face do direito administrativo, ligada ao condicionamento da autoridade. Novas normas valorizaram o Legis15. É significativo que nesses períodos de exceção, além de muitos intelectuais do direito administrativo terem se colocado próximos ou dentro do regime (casos de Francisco Campos na ditadura Vargas e de Carlos Medeiros Silva no período militar), a generalidade deles se absteve de qualquer atuação política contestat6ria. A Carta aos Brasileiros, lançada corajosamente por professores e outros profissionais do Direito em 1977, e que se tornaria simbólica da crítica à ditadura militar, não teve professores de direito administrativo entre os subscritores iniciais (para o teor da carta, a lista dos subscritores e a história do período, v. Cássio Schubsky e outros, Estado de Direito Já - Os Trinta Anos da Carta aos Brasileiros, São Paulo, Leltera.doc,2007). Um deles - que ap6s o fIm da ditadura assumiria retórica mais agressiva na crítica às autoridades - explicou o medo e a timidez anteriores: "Durante todo o período militar, todos estivemos reprimidos"; a alternativa "se restringia a questionar o regime dentro de um limite do que podia ser questionado"; "eu procurava, na medida do possível, revelar o meu desgosto pelo golpe"; "tive, ao longo desse período, uma militância discreta, contida, mas procurando resistir até o lintite" (Celso Antônio Bandeira de Mello, depoimento in Cássio Schubsky e outros, Estado de Direito Já - Os Trinta Anos da Carta aos Brasileiros, cit., p. 156).
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DIREITOADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos
i A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINIS1RATIVO BRASILEIROE SUAS IDEIAS
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lativo, consolidaram e ampliaram o controle pelo Judiciário e pelos Tribunais de Contas, constitucionalizaram o processo administrativo - e assim por diante.
bém para gerar um diálogo entre eles, levando a um fluxo interminável de decisões e reações.'6 Essa é a face do direito administrativo como engrenagem da democracia.
Nos anos posteriores, com o desdobramento legislativo e os em bates sobre questões administrativas nos órgãos controladores, veio se acentuando uma mudança importante, que já vinha se esboçando mesmo antes. O espaço Da administração e das autoridades administrativas, que a tantos juristas parecia bem claro nos tempos iniciais, passou a ser muito disputado por outras instituições públicas (Legislativo, Judiciário, Tribunais de Contas, Ministério Público, entidades paraestatais), e mesmo por organizações não governamentais.
Quem sabe a ironia faça sentido: o direito administrativo talvez já não se possa explicar pela noção de interesse público, e sim pela de conflito público. Será ele, agora, o direito dos conilitos públicos em arena democrática?
A par disso, a Administração cresceu e se fragmentou em muitos órgãos e entidades, cuja coordenação é cada vez mais difícil e cujos objetivos e competências se chocam todo o tempo.
E qual tem sido a postura dos administrativistas nesse novo período?
Que Administração, agora, é essa? A pnlverização, com o surgimento de muitos núcleos de poder e influência, no Executivo ou não, afetou a noção inicial de Administração Pública como organização autônoma e específica (bem distinta e separada das outras integrantes da máquina estatal e das situadas fora dela). Já não parecem tão claros os limites entre agentes e atividades administrativas, legislativas, judiciais, controladoras e privadas. Também não é mais tão convincente a figura do interesse público aos cuidados da Administração (tudo no singular: um interesse e uma Administração). Nas situações que se apresentam é normal o conflito plural: entre muitos interesses públicos, aos cuidados de muitos órgãos e entidades, públicas e semipúblicas. Tudo isso parece fruto do aprofundamento da democracia e da complexidade da sociedade contemporânea, com uma infinidade de interesses, todos de algum modo legítimos e importantes, organizados e atuantes, em todos os espaços possíveis, dentro e fora do Estado, para obter vantagens e barrar mudanças. O mundo mudou, e a Administração
mesma; nem, claro, o direito administrativo.
não poderia continuar a
O direito administrativo reúne hoje um grande conjunto de engrenagens organizacionais e processuais para viabilizar o choque tanto
quanto possível ordenado dos interesses, individuais ou não, e tam-
7. O 'Jurista cordUtl" e sua peculUtr visão de direito adm inistrativo na democracUt
Sem surpresas, eles reforçaram ou incorporaram discursos de elogio à democracia, às sujeições do administrador, aos controles internos e externos sobre a Administração,. aos direitos etc. Quanto a isso, a sensação é de unanimidade." Mas houve espaço para nossas contradições de sempre: a chegada da democracia não ter levado os administrativistas a valorizarem O direito positivo mais do que haviam feito no passado. Pela ótica racional, era de se esperar o aumento do prestígio das instituições: da legislação, agora vinda da representação popular, e também das políticas e procedimentos da nova Administração Pública, legitimada por eleições e por outros mecanismos de participação. Os administrativistas, hoje todos democratas, na democracia haveriam de, em uníssono, aumentar a militância institucionalista, se mesmo em épocas autoritárias já se vinculavam por definição à legalidade (afinal, submissão à lei é da lógica do próprio ramo jurídico),
não é mesmo?
16. Juliana Bonacorsi de Palma, "Direito administrativo e políticas públicas _ O debate atual", in Fernando Dias Menezes de Almeida e outros (orgs.), Direito Público em Evolução - Estudos em Homenagem à Professora Odete Medauar, Belo Horizonte, Fórum, 2013, pp. 177-201. 17. Só que, quanto às bases teóricas e operacionais do direito administrativo, parte deles milita ainda pela supremacia do interesse público sobre o privado - agora argurnen~ tando que só o Estado é capaz de defender os direitos humanos elc. -, enquanto a outra parte a teme corno autoritária, ao menos perigosa. e incompatível com a garantia consli~ tucional dos direitos e da dignidade humana etc., e prefere outros princípios.
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Aconteceu o contrário. ..Como se explica isso? A"onda principiológica" pusera uma série de princípios vagos e superficiais em hábeis mãos profissionais; dissera estar neles, e não nas instituições e nas quotidianas deliberações políticas das leis e atos da Administração, a verdadeira essência do direito administrativo; legitimara o jurista a tentar corrigir por si mesmo os defeitos todos que imaginasse haver nas organizações, nas leis e nas decisões administrativas -etambém quantas injustiças ele visse no mundo.
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Fiel às raízes brasileiras profundamente plantadas ao longo de nossa história colonial, o "jurista cordial" aplica-se ainda em construir um Direito que se molde muito mais por sua personalidade individual do que por valores institucionais de um Estado de Direito e de uma democracia. Nosso.desafio contemporâneo é, com as esporas duras das instituições, conseguir domar esse humanista emotivo, esse campeão da cordialidade, esse personalista cheio de vontades, que sobrevive ao passado carregando os seus valores. Não tem sido fácil.
Pois justamente essas ideias dariam cobertura retórica para que sobrevivesse, mesmo com a novidade da democracia, a figura, tão brasileira e conhecida, do "jurista cordial", um ser mais de coração que de razão. O "jurista cordial" é todo "exaltação dos valores cordiais": trata o Direito com "uma intimidade quase desrespeitosa", ao qual dedica um "culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar", um res peito "de superfície" e de "pouca devoção"; ele é "indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas"; é "livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades", O "jurista cordial" tira suas opiniões de um "fundo emotivo extremamente rico e transbordante", apela sempre para "os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade"; sua "personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador" ,18 18. Essa descrição zes do Brasil. descreveu
é adaptada
de Sérgio Buarque de Holanda, que, em seu Raícom alguma ironia a "contribuição brasileira para a civiliza-
ção"; o "homem cordial" (26' ed., São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p. 141 e ss.).
O autor nos diz outras coisas que vale a pena ouvir: entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. (...). "De qualquer modo, ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências. (...). "Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com "É frequente,
a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confmnando nossO intuitivo horroràs hierarquiase permitindo tratarcom familiaridade os governantes. A democra~ cia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido" (ob. cit., pp. 155-160).
Capítulo 4
CRÍTICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1. Para quê serve um ramo do Direito para a Administração? 2. A visão do prático do direito administrativo. 3. A visão do pensador do direito administrativo. 4. Empirismo e racionalismo no direito admi-
nistrativo.
5. Modelos
ideais de direito para a Administração. 6.
Pluralidade no direito positivo ou nas visões sobre direito administrativo? 7. Uma ciência universal do direito administrativo? 8. Um dogma e duas classificações por trás da afirmação do direito administrativo como ramo do Direito. 9. Colocando em dúvida o dogma e as classificações. lO. Insuficiências conceituais do direito administrativo da autoridade.n. Função prescritiva dos conceitos e o direito administrativo da autoridade. 12. Um direito administrativo do interesse público oposto ao privado? 13. Possíveis utilidades da distinção entre direito administrativo e direito privado. 14. O conceito de direito administrativo no Brasil não precisa da dicotomia público e privado. 15. O direito administrativo como antftese do privado é concepção estatista e antiliberal.16. Contra a contaminação ideológica do conceito de direito administrativo.
1. Para quê serve um ramo do Direito para a Administração? Ramos do Direito são conjuntos de normas com alguma identidade comum. Só que não existe fórmula exata apontando o tipo e o grau de identidade indispensáveis para um punhado de normas ser considerado um ramo. Os ramos aparecem por razões diferentes, além de relativamente arbitrárias. Boa parte deles veio das grandes leis, que, dando tratamento ordenado a um numero de questões, chamaram a si mesmas de "códigos" (exemplos no campo privado são os Códigos Civil, Comercial e do Consumidor; no campo estatal, os Códigos Tributário e de Processo
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D I R EI T O A D M I NI S TR A T IV O
P A R A C ÉT I C OS
Civil) ou, sem esse nome, tiveram a clara pretensão de fundar ou sistenüitizar uma área importante' (casos recentes no campo estatal no Brasil são: o Estatuto da Cidade, a lei nacional que sistematizou o direito urbanístico; e a Lei de Responsabilidade Fiscal, dando nova sistematização ao direito financeiro). Os ramos mais conhecidos não são fruto de uma classificação só, nem de um só critério; eles vêm mais do caos das necessidades práticas que de alguma ordem racional. A classificação mais antiga e conhecida divide o Direito inteiro em público e privado, nos quais estariam os ramos menores. Mas o direito constitucional não cabe entre eles: seu surgimento está ligado a um grande código normativo (a Constituição), não à arrumação global do Direito em classes. Já, o direito econômico - como, de resto, ocorreu com o direito urbanístico, o direito ambiental, o direito do consumidor, entre outros - afirmou-se como ramo totalmente à margem da classificação público x privado, justamente para tratar de questões e regulações jurídicas novas, surgidas sobretudo a partir dos anos 1930. As dúvidas interessantes que as divisões do Direito nos propõem são as de saber se é útil ou não - e para quê - a identificação de um ramo jurídico. E mais: saber o que há por trás, quais os critérios usados na identificação - e que valores os inspiram. Para quê serve afirmar que o direito administrativo é um ramo do Direito? Feita essa pergunta, provavelmente a primeira resposta dos administrativistas viria em coro, ao menos no Brasil e nos Países em que ele se inspirou quanto a isso: a existência do direito administrativo como ramo jurídico é importante, se não indispensável, para assegurar a efetiva submissão da Administração Pública ao Direito. Mas daí em diante provavelmente começariam as divergências. Na visão mais velha o ordenamento jurídico estaria construído sobre a oposição radical entre o privado e o público, de modo que um valor fundamental da ideia de direito administrativo seria afirmar e defender essa oposição como base da vinculação geral do Estado ao Direito. O direito em princípio aplicável ao Estado (direito administrativo em sentido estrito) seria, então, um oposto do privado, o reverso deste. O grande projeto de vincular o Estado ao Direito seria totalmente dependente dessa oposição.
CRíTICA À DOUnuNA
ANTlLIBERAL E ESTATISTA
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Mas essa visão, elaborada por juízes e intelectuais em certo contexto histórico (no século XIX, logo em seguida ao surgimento do Código Civil francês, que buscara sistematizar o direito privado), foi se tomando disfuncional na medida em que a legislação se desenvolvia e tomava outros caminhos. Hoje, o direito aplicável ao Estado certamente não é, em seu conjunto, o reverso do privado. É verdade que algumas normas aplicáveis ao Estado podem de fato ser descritas como opostas a algumas normas da legislação privada; mas não é uma oposição geral, de todas as normas aplicáveis ao Estado com todas as normas da legislação privada. O direito do Estado não é um direito de oposição. A vinculação geral do Estado ao Direito não é dependente da oposição público x privado.
Manter hoje o velho conceito de que o direito administrativo seria essencialmente o reverso do privado é cair em urna de duas possíveis distorções. Uma é a crença de que as normas para o Estado teriam de ser algo que elas simplesmente não são; e aí a expressão "direito administrativo" terá deixado de referir um ramo do Direito propriamente dito, para nomear um ramo da ficção científica. A outra distorção seria reservar a expressão "direito administrativo" apenas para a parte do direito do Estado que de fato se opõe frontalmente a algo da legislação privada; e aí, tendo se salvado aquela pureza conceitual do público contra o privado, quase desaparecerá a utilidade que havia justificado a invenção do direito administrativo como ideia jurídica (utilidade que era a de garantir a vinculação geral do Estado ao Direito). Como atualizar a definição de direito administrativo, superando a oposição público e privado? É importante, em primeiro lugar, manter fidelidade ao grande ob jetivo de fazer esse ramo servir à vinculação efetiva e global do Estado ao Direito. Em segundo lugar, é indispensável respeitar as opções do direito positivo, que vem submetendo o Estado a um direito plural.
2. A visão do prático do direito administrativo
Como o prático do direito administrativo, entrevistado por um amigo, explicaria sua área de atuação?
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Ele diria que seu trabalho é lidar com o conjunto de normas que viabilizam,organizam e.condicionam.a ação da Adnúnistração Pública e tratam das competências, direitos e deveres vinculados a essa ação. Para ele, estas são as ideias que representam mais diretamente sua área: as de norma jurídica e de ação da Adnúnistração. As normas são as ferramentas básicas, quase palpáveis, de seu trabalho; é natural tomá-las como centro de tudo. Daí o direito adnúnistrativo ser definido singelamente como "conjunto de normas". Natural também seu critério de delinútação ser o visível e evidente: a Administração, o sujeito cujas ações são objeto das normas. E o que é a Administração Pública para ele? O conjunto de órgãos e entidades que, no dia a dia, ele conhece e reconhece como tais. O prático aprendeu nas normas que autorizações normativas são sempre necessárias à ação administrativa; a qual, assim, é viabilizada por elas. Sabe também que a ação administrativa é a ação de certos sujeitos, órgãos e entidades integrantes da Adnúnistração Pública, cuja organização é definida por normas, pois são criações delas. Sabe, ainda, que as normas fazem mais do que autorizar e organizar: elas condicionam de muitos modos a ação administrativa, exigindo-a, limitando-a, onerando-a. As normas definem competências dos agentes administrativos e também atribuem direitos e deveres. Tendo surgido timidamente, as normas sobre ação administrativa foram aumentando de volume no decorrer do século XX, na medida em que as leis criavam novas entidades estatais ou paraestatais, em que as ações administrativas cresciam, e iam sendo pouco a pouco instituídos para elas mais e mais regimes jurídicos próprios. O intervencionismo estatal foi se tornando um fato, mesmo em Países mais liberais, e trouxe com ele a inflação de normas sobre a ação administrativa. O direito administrativo em sentido mais estrito, como sinônimo de legislação administrativa, acabou se impondo, até nos Países que demoravam a reconhecê-lo como área específica. E isso como vitória inclusive da quantidade: se muitas normas vão sendo editadas sobre um assunto qualquer, inevitável os profissionais se especializarem nelas; a quantidade gera o especialista; e o especialista, a especialidade. Hoje, a maioria dos Países mais ou menos desenvolvidos afirma ter direito administrativo corno um conjunto vasto e especial de normas jurídicas sobre Administração Pública.
CRíTICA
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O prático é sempre atento ao modo como funcionam as coisas, à parte técnica, ao dia a dia da operação. Ele conbece bem as leis, as práticas jurídicas, as orientações dos tribunais, os fatos. O seu é um direito administrativo .de minúcias, circunstâncias e detalhes. Falta-lhe paciência para abstração em excesso, para procurar causa última nas coisas,.para debates~ito conceituais. Em função disso tudo, o prático, com sua experiência, considera artificial a tentativa de encaixar as normas todas de direito administrativo em modelos ideais, em sistemas conceituais fechados, construídos a partir de ideias gerais. O prático, que conhece as normas e não se constrange por conceitos, vê que elas são produzidas de modo incremental, ao longo do tempo, sem um plano muito coerente. Vê também como elas vão sendo amoldadas pelas práticas jurídicas. Entende perfeitamente que, em todo esse processo de produção jurídica, os problemas reais e os interesses em disputa têm peso decisivo e acabam gerando soluções heterodoxas.
3. A visão do pensador do direito administrativo Mas, ante aquela pergunta sobre direito administrativo, O que responderia um pensador das instituições estatais clássicas, que se ocupasse em imaginar o funcionamento geral das engrenagens do Direito a partir das referências teóricas fundamentais?! . Se fosse brasileiro, por exemplo, o pensador certamente lembraria que a autonomia da Administração, por um lado, e a legalidade e o controle judicial, por outro, foram determinantes para o direito administrativo existir como conjunto de normas jurídicas vinculantes para a Administração. Para explicar o direito administrativo ele realçaria a submissão ao Direito, a ligação da Administração com o legislador e ojuiz independente, mas também não deixaria de afrnnar a autonomia da Administração como organização. 1. Essa foi a perspectiva, por exemplo, do clássico administrativista francês Hemi Berthélemy. Já no "Prefácio" a seu famoso Traité Élémentaire de Droit Admi nistratif, escrito em 1900, ele esclarecia que, em seu esforço de sistematização, buscara mais a explicação do que a descrição do direito administrativo, e que essa explicação estava nas "verdades de que os filósofos do século XVIII proclamaram o alto significado social: o princípio da separação dos Poderes Legislativo e Executivo, o princípio da independência recíproca dos administradores e juízes" (lIa ed., Paris, Rousseau & Cie., 1926).
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Grande parte dos Países relativamente desenvolvidos adotou a separação dos Poderes Executivo,.Legislativo e Judiciário e garantiu direitos frente ao Estado: a liberdade pessoal, a liberdade de iniciativa econômica, a propriedade etc. Brotou dessa raiz a legalidade, a dependência de lei: a exigência de ser feita por lei a outorga inicial de competências para a ação administrativa, podendo O legislador condicioná-la mais e mais, segundo seus critérios políticos. Daí veio também o controle jurisdicional de validade dos atos, contratos, processos e normas produzidos pela Administração. Daí se extraiu, ainda, a ideia de autonomia da Administração frente às outras unidades do Estado. Assim, nosso pensador das instituições clássicas deixaria claro que foi justamente essa combinação da autonomia da Administração com a amarração externa ao legislador e ao juiz independente (uma amarração jurídico-institucional, baseada em normas e em órgãos produtores e aplicadores de normas) a base histórica inicial da submissão à ordem jurídica e do movimento que gerou o direito administrativo. Para definir direito administrativo, nosso pensador, usando a mesma língua do prático, falaria em direito da Administração Pública. Mas ele descreveria a Administração de outro jeito, mais abstrato: como organização estatal autônoma que, em seu contexto institucional, tem de se equilibrar em meio a sofisticadas relações de troca e vigilãncia com as outras grandes organizações estatais, que legislam, julgam, controlam. 4. Empirismo e racionalismo no direito administrativo
Portanto, as Administrações Públicas que estão nas cabeças do prático e do pensador clássico podem não ser exatamente as mesmas. Não tanto por crerem em coisas opostas; o foco deles é que é distinto. O primeiro pensa em uma organização concreta, que conhece a partir das normas e da realidade; o segundo, em um modelo institucional abstrato, que procura elaborar e valorizar. Para o prático aexperiência é muito; para o pensador o modelo é tudo. O prático foca nos textos normativos, opções pragmáticas; o pensador, em ideias, construções em tese.
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o pensador, homem antes de ideias que de observação, tem mais gosto por abstração e por sistemas conceituais que por atentar para a sucessão incremental das leis no tempo, os detalhes dos textos, para a variação das práticas jurídicas, o dia a dia, as minúcias e circunstâncias. Ele pode se aborrecer com as normas que teimem em fugir dos modelos, e aí reagirá a elas, minimizando, desprezando; ele militará pelo modelo. Só que nenhum administrativista se encaixa perfeitamente no prático ou no pensador. Cada um de nós é uma bela mistura, em doses desiguais, das duas figuras .. De modo que, ao invés de separar radicalmente um do outro, o melhor talvez seja falar de ênfases: certos administrativistas tendem a olhar o Direito mais pelos modelos, a encaixar as normas nas ideias, a priorizar a razão sobre a experiência; outros são empiristas, menos racionalistas, tendem a ver as ideias pelo ftltro da prática e do direito legislado. Diferenças importantes de visão quanto ao direito da Administração Pública têm a ver com as tendências mais empiristas ou mais racionalistas presentes em cada ambiente jurídico. Os norte-americanos são empiristas e indutivos: formam suas opiniões antes pelas características dos fatos que por influência de teorias abstratas. Os continentais europeus e os brasileiros, ao contrário, tendem ao racionalismo, à dedução e ao pensamento sistematizador. Essas diferenças aparecem com nitidez no modo como o direito administrativo é explicado e compreendido nesses Países. 2
5. Modelos ideais de direito para aAdministração
Em qualquer lugar - e na cabeça de qualquer intelectual ou prático - a expressão "direito administrativo" refere estas coisas misturadas: a ideia de submissão da Administração ao Direito e a prática profissional com o conjunto das normas administrativas. Mas, para além dessas identidades, podem ser bem variados os direitos adminis2. José Guilherme Giacomuzzi, Estado e Contrato - Supremacia do Interesse Público sobre o Privado x Igualdade - Um Estudo Comparado sobre a Exorbitância no Contrato Administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 2011, pp. 95 e 55.
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trativos das normas de cada País e das cabeças de quem com eles lida. Nilii só porque os direitos posifivosdiferem; também porque os pensadores variam. São muitos os possíveis modelos ideais do direito daAdministração. No Reino Unido do final do século XIX já havia Administração Pública, e com certeza ela estava submetida ao legislador e a juízes independentes. O que, então, certos juristas ingleses estavam querendo dizer quando, estranhando o entusiasmo de seus vizinhos para com o jovem direito administrativo francês, insistiam na tese de que no Reino Unido não havia, nem deveria haver, algo parecido? O que os ingleses rejeitavam na noção de direito administrativo, se estavam perfeitamente felizes com a submissão da Administração ao Direito - portanto, com o direito para a Administração?' Em primeiro lugar, havia entre eles certa desconfiança quanto ao grande Estado que os livros franceses vinham descrevendo; suas extensas competências, suas interferências na vida privada. Esses ingleses eram menos estatistas e levavam mais longe a ideia de liberdade individual; receavam um direito extenso, não queriam um Estado administrativo. Estranhavam a visão, que na França tomava corpo, quanto a ser melhor o Estado sujeitar-se a diretrizes ou normas especiais em matérias como contratos e processo contencioso. Por que deixar o Estado fora das normas comuns? Por que os privilé,gios? Enquanto franceses começavam a achá-los justificáveis, e necessários para construir o Estado administrativo, juristas ingleses resistiam, sem muito entusiasmo por um Estado assim. Seriam ficção os relatos que, naqueles primórdios, juristas franceses e ingleses faziam das respectivas ordens jurídicas nacionais? É possível. Franceses influentes talvez tenham induzido os pares a aceitar, pará questões administrativas, soluções sem tanta base normativa, tiradas de um sistema de ideias (deste modelo ideal: "é preciso um direito especial para a Administração, mais forte e diferente do comum, 3. Para a análise das razões e confusões da influente opinião do inglês Dicey a respeito dos Direitos Francês e Inglês do final do século XIX, v. Sabino Cassese, La Construction du Droit Administratij- France et Royaume-Uni, Paris, Montchrestien, 2000, pp. 52 e
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um direito administrativo"). Possível também que juristas ingleses, com outro modelo na cabeça ("o direito comum deve ser para todos"), minimizassem soluções sobre Administração Pública que já estavam no direito positivo inglês, e não lhes agradavam. O debate sobre se existia, ou não, direito administrativo talvez tenha sido em seu tempo um confronto mais de pensamentos que de direitos positivos. Em qualquer época o mesmo se repete com os relatos dos diferentes juristas sobre o direito administrativo de seus Países. Dois juristas, olhando para normas e problemas pelos óculos de modelos diferentes, dificilmente verão as mesmas soluções. Administrativistas com modelos distintos nos olhos descreverão direitos diversos, apesar de olharem as mesmas normas. 6. Pluralidade no direito positivo ou nas visões sobre direito administrativo?
Para certos intelectuais brasileiros mais antigos o direito administrativo tinha é que assegurar poderes ao Estado' Para outros, que vieram depois, o que o direito administrativo devia era garantir su premacia ao interesse público, mas sem violar direitos dos administrados.' Para outros mais recentes, o importante é o direito administrativo servir aos direitos fundamentais.' 4. Hely Lopes Meirelles, O mais lido dos administrativistas brasileiros a partir de 1960, afrnnava com ênfase que "na interpretação do direi,to administrativo, tam bém devemos considerar, necessariamente, três pressupostos: (lO) a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados; (2°) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; (3°) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público" (Direito Administrativo Brasileiro, 4 .oa ed., São Paulo, Malheiros Edilores. 2014, p. 50). 5. Em seu curso, surgido .em 1990 e hoje provavelmente o mais adotado no Brasil, Maria. Sylvia Zanella Di Pietro afmna que "as normas de direito público, embora pro~eJam reflexamente o direito individual, têm o objetivo primordial de atender ao mteresse público, ao bem-estar coletivo", donde o "princípio que hoje serve de fundam~nto para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas deCIsões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais" (Direito Administrativo, 25 ed., São Paulo, Atlas, 2012, p. 66). 6. ~m ~anUal lançado em 2005 e que vem alcançando boa aceitação, Marçal Justen Filho diZ: "A atividade administrativa do Estado Democrático de Direito subora
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o desacordo não é exatamente sobre as peças: todos concordam que o Estado deve ter. poderes;. que interesses públicos devem ser cuidados, que direitos devem ser respeitados e concretizados.
inglesas (algumas já vinham criando regimes especiais para a Administração). Todos esses desgostos entraram na visão com que eles tentaram caracterizar o direito positivo de seu País.
O desacordo é quanto ao arranjo das peças. É isso que levou à variação de discursos sobre o direito administrativo brasileiro: o primeiro valorizou o poder e a autoridade, o segundo priorizou o interesse público, o terceiro milita pelos direitos fundamentais; são modelos em alguma medida diferentes de direito administrativo.
Gostos e tendências também contaram para juristas brasileiros diversos, em suas descrições do direito administrativo, ora priorizarem os poderes da Administração, ora os interesses públicos, ora os direitos fundamentais.
Quando defendem ideias assim alternativas, os juristas afIrmam apenas descrever o que veem no próprio direito positivo. Pode parecer estranho, mas eles são sinceros, a seu jeito (embora outros possam ter visão diversa). Mesmo quando ignora ou inventa certas normas, o homem do Direito não se sente um traidor, mas tradutor de algo que crê superiormente exigido pelo ordenamento - ou pela idealização que fez dele. De modo que haverá tantos "direitos administrativos" quantas forem as visões sobre o conjunto das normas aplicáveis à Administração. É natural que, a despeito das normas, os intelectuais e os práticos do direito administrativo tenham suas convicções sobre como o Estado deve funcionar, as autoridades agir, os particulares se comportar etc. Essas convicções influem na leitura, descrição e aplicação das normas e produzem variantes do direito administrativo, transmitidas nos livros e documentos profIssionais. No extremo, o Direito que se impõe pelas mãos do especialista pode vir menos de normas positivas que dos modelos ideais usados para lê-las. Nesse sentido, o direito administrativo é a ideia que se faz dele. Naquela época em que juristas ingleses andaram desdenhando do direito administrativo, o que estavam querendo dizer era, ao menos em parte, que não haviam gostado da ideia de direito administrativo que estava nas cabeças francesas. A outra parte é que eles também não gostavam das normas francesas e não as queriam para si (como a que criara a Justiça Administrativa, separada do Judiciário, e dera gás à ideia de direito administrativo), e sequer gostavam de todas as normas então, a um critério fundamental, que é anterior à supremacia do interesse Trata-se da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais" (Curso de Direito Administrativo, ga ed., São Paulo, Ed. RT/Thomson Reuters, 2013, p. 158). dina-se, publico.
Variações assim são inevitáveis: nem todo mundo atua igual, nem todo mundo pensa igual. Uma descrição honesta do estágio atual do direito administrativo brasileiro tem de reconhecer que nenhum dos três discursos - o dos poderes da Administração, o dos interesses públicos e o dos direitos fundamentais - pode ser considerado vencedor. Primeiro porque juristas com essas distintas orientações têm leitores e adeptos bem posicionados, que comungam de suas convicções para a globalidade do direito administrativo. Mas sobretudo porque, na vida real, o mesmo órgão jurídico - um juiz, por exemplo - usará qualquer dos discursos dependendo do terna, sem nenhum constrangimento. Se o caso for de sanção militar, o juiz valorizará os poderes do administrador. Se o debate for de licenciamento ambiental, invocará a supremacia do interesse público sobre o privado. Se alguém buscar medicamentos caros, o juiz, agora adntinistrativista dos direitos fundamentais, condenará o Estado. Essa flutuação talvez mostre não a falta de personalidade do prático do direito administrativo - que inclusive flutua sob o estímulo do pró prio direito positivo -, mas o artifIcialismo das teorias e princípios muito gerais e de suas pretensões de unifIcação do direito administrativo.
7. Uma
ciência universal do direito administrativo?
O repertório de direitos adntinistrativos não é infinito. Com o tempo e as modas, ideias e soluções normativas se consolidam e via jam de País a País (sobretudo dos centrais para os periféricos). É conhecida, por exemplo, a influência intelectual dos administrativistas franceses clássicos (do final do século XIX e primeiras décadas do século XX) sobre seus colegas de tantos lugares, e tam-
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bém do Brasil. Mais recentemente, impressiona como os espanhóis Eduardo García de Enterría e Tomás-Rámon Femández (cujo famoso Curso foi lançado em 1974) viúàm: dando o tom do direito administrativo em toda a América Latina, inclusive no Brasil. Assim, não é totalmente sem razão que, ao menos para justificar a importação de doutrina estrangeira, o direito administrativo nacional seja às vezes visto como um simples lote do grande latifúndio jurídico universal. 7
Há mesmo um razoável diálogo entre as várias línguas jurídicas, que de resto não é só diálogo internacional, mas também intergeracional: juristas estrangeiros antigos, mesmo mortos e esquecidos em suas pátrias, podem seguir conservados em outras terras, vagando pelas escolas de Direito e pelas Câmaras dos tribunais, participando dos debates como se falassem do lugar e do presente. Mas seria tolice extrair daí a crença em uma ciência universal do direito administrativo e sair buscando alguma explicação definitiva a seu respeito. É
certo: manuais, cursos e tratados podem ser bem repetitivos (por vezes, meio insonsos). Mas, para além do superficial, das aparências, das citações repetidas de juristas vivos e mortos, pulsam divergências profundas e ricas sobre o direito administrativo: não só por as leis mudarem tanto, e não só por alguns juristas serem mais racionalistas e outros mais empiristas; também por ninguém ter a chave do modelo ideal definitivo, pois o direito administrativo é coisa de gente, não de deuses. 8. Um dogma e duas classificações por trás da afirmação do direito administrativo como ramo do Direito
Uma ideia abstrata de direito adminislrativo cujo peso ainda é enorme no Brasil surgiu como produto de um dogma e de duas classificações. O dogma trativo.
é o
da unidade e coerência interna do direito adminis-
7. Eduardo García de Enterría e Tomás~Ramón Femández, Curso de Derecho 1& ed., 2 vaIs., Navarra,AranzadilThomson Reuters, 2013.
Administrativo,
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Para influentes administrativistas brasileiros o direito administrativo não seria simples conjunto de normas agrupado a partir de algum critério pertinente. Ele seria bem mais: um "conjunto sistematizado de princípios e regras", dotados de "relação lógica de coerência e unidade", de "unidade sistemática", formando, assim, o "regime juridico-administrativo" .' Para esses administrativistas trata-se de um dogma, que não é questionado nem testado, apenas demonstrado pela enunciação de caraterísticas e princípios supostamente capazes de commná-lo. Praticamente todos os livros didáticos brasileiros atuais aceitam sem hesitação a tese de que O direito administrativo é um ramo do Direito com unidade interna muito forte, instituidor de um "regime jurídico-administrativo" sistemático para o Estado, e que essa unidade vem justamente da existência dos princípios gerais do direito administrativo .10-11 8. As expressões são de Celso Antônio Bandeira de Mello, que, pela influência de seu texto entre os administrativistas a partir da década de 1980, será citado diver~ sas vezes a seguir (Curso de Direito Administrativo, 3}i ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2014, p. 53). Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu estilo mais contido, não chega a defender de modo expresso o caráter sistemático, mas aceita a noção de "regime jurídico~ -administrativo", em que ele está implícito (Direito Administrativo, cit., 25a ed., pp. 61 e ss.). Esse caráter é também pressuposto por autores mais recentes, mesmo seguindo referências outras para indicar o "critério fundamental" do sistema; no caso de Marçal Justen Filho, por exemplo, o critério seria a "supremacia e indisponibilidade dos di~ reitos fundamentais" (Curso de Direito Administrativo, cit., 9a ed., p. 158). 9. Bandeira de Mello limita-se a lembrar que é "questão. assente entre todos os doumnadores a existência de uma unidade sistemática de princípios e normas que fonuam em seu todo o direito administrativo" (Curso de Direito Administrativo, cit., 31a ed., p. 53). Daí o autor já vai direto para a discussão sobre quais seriam os critérios por trás dessa unidade. A conclusão é que ela viria dos "princípios do direito administrativo" (princípios cujo sentido e fundamento o autor procura, então, expor em seus detalhes). A construção do autor em nenhum momento envolve o questionamento propriamente dito dessa "unidade sistemática", a qual permanece pressuposta na constatação de que o direito administrativo é um ramo do Direito. 10. Embora nos últimos anos se venha discutindo bastante no Brasil quais se~ riam os "verdadeiros" princípios do direito administrativo (por exemplo: se os da "supremacia e indisponibilidade do interesse público sobre o privado", como disse Bandeira de Mello, ou da "supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamen~ tais", como preferiu Justen Filho), nem por isso os autores deixaram de vincular o conceito e a unidade do direito administrativo à existência de princípios gerais.
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Quanto às classificações que estão na base da ideia de direito adlIlinistrativo, a primeirad(vi>lJu atot;J.1idade do ordenamento jurídico em duas metades opostas: o direito privado, que disciplina relações igualitárias entre sujeitos livres, os particulares; e o direito público, para a organização interna do Estado e a disciplina de suas relações com os particulares, baseadas na supremacia e na autoridade.
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O direito administrativo seria, então, um dos ramos deduzidos da classificação subsequente, que fatiou esse direito público da supremacia usando o facão da separação de Poderes. Cada Poder teria sua função típica -legislativa, jurisdicional e administrativa -, produzindo seu tipo próprio de ato: lei, sentença e ato administrativo (em sentido amplo).
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Segundo essa visão, o direito administrativo formaria um sistema unitário, articulado e coerente de princípios e regras, constituindo o ramo do direito público específico da função administrativa, isto é, da produção de regulamentos, contratos e atos administrativos, todos dotados de prerrogativas públicas.12
r
2012, p. XV).
11. Para a descrição e crítica contundente dessa construção doutrinária no Brasil, v. o Capítulo 7, "Crítica à Doutrina dos Princípios do Direito Administrativo" neste livro. ' 12. Bandeira de Mello definiu o direito administrativo como "o ramo do direito público que disciplina o exercício da função administrativa. bem como pessoas e órgãos que a desempenham"; afmnando que a função administrativa "no sistema
Desde a metade do século XIX a ideia de direito administrativo foi recebida como natural no mundo jurídico brasileiro, de onde nunca mais saiu. No curso deste século e meio não se tem duvidado de sua pertinência ou de seu valor para nosso desenvolvimento institucional. Só que a ideia original - que tanto nos ajudou na passagem para a Modemidade e no aprendizado da submissão estatal ao Direito está cada vez mais desajustada do direito positivo brasileiro, além de contaminada por uma ideologia antiliberal e estatista, quando não autoritária.
constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante com~ portamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário" (Curso de Direito Administrativo,
E
se, 2013, pp. 23 e 25).
Essas classificações são conhecidas. Mas será que se justifica mesmo, ainda hoje, basear nelas um ramo específico (o direito administrativo), e ainda considerá-lo como dotado de coerência e unidade interna?
A tese aqui defendida é que, hoje, o direito administrativo tem de ser visto em sentido amplo, como a área do conbecimento que estuda as normas jurídicas que se aplicam à Administração, independente-
.
a doutrina do "neoconstitucionalismo" só fez reforçar a "onda principiológica". Em um manual bem recente, surgido em 2013, as primeiras frases do capítulo dos "Princípios do Direito Administrativo" dizem justamente que "o neoconstitucionalismo, ao aproximar o Direito e a Moral, abre caminho para superação da visão positivista e legalista do Direito", e "cede espaço a um novo paradigmajusfIlosófico; o 'pós-positivismo''', cujo "traço característico" seria a "normatividade primária dos p~cíp~os~c~nstituci~n~s". A s~~ir, o.livro, sem muita novidade, indica "os principaIS pnncIpIos do direIto admimstratlvo: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, finalidade pública (supremacia do interesse público sobre o interesse privado), continuidade, autotutela, consensualidade/participação, segurança jurídica, confiança legítima e boa-fé" (Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Foren-
9. Colocando em dúvida o dogma e as classificações
O presente ensaio critica os conceitos de direito administrativo predominantes no Brasil, construídos sobre o dogma da harmonia e unicidade.
a propósito, que uma relevante coletânea, conquanto abrisse É significativo, espaço para as divergências de visão sobre o conteúdo dos vários princípios, não contenha qualquer estudo crítico à postura "principiológica" em si - a qual, como bem destacou o organizador na "Introdução" da obra, é uma originalidade dos administrativistas brasileiros (Thiago Marrara (org.), Princípios de Direito Administrativo, São Paulo,Atlas,
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cit., 3P ed., pp. 29 e 36). Essa formulação faz o conceito de direito administrativo depender totalmente da separação de Poderes, pois é dela que .vem a ideia de "função administrativa" . A seguir, o autor aludiu ao "regime jurídico-administrativo" (p. 53), que estaria assentado sobre os "princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração" (p. 57). Em coerência, ao tratar das vias técnico-jurídicas da ação administrativa, explicou o ato administrativo como produzido "no exercício de prerrogativas públicas" (p. 389) e o contrato administrativo como sujeito às "cambiáveis imposições de interesse público" (p. 634). Portanto, o autor vincula com toda clareza a noção essencial de "regime jurídico-administrativo" à de "prerrogativas públicas", que estariam presentes nos regulamentos, nos atos e nos contratos ~ enrno, em todas as vias técnico-jurídicas da ação administrativa. O fato de esse autor, seguindo inclusive a tendência da época em que escreveu, haver aderido ao discurso de defesa dos administrados contra os abusos da Administração de modo algum significou rompimento com a concepção segundo a qual o direito administrativo é o direito das prerrogativas públicas e da autoridade.
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mente do ramo a que se ligam. Reduzir o direito administrativo ao sentido mais restrito ~ isto é, ao <:onjunto da legislação exclusivamente administrativa - é deixar de lado e minimizar grande parte das normas que se aplicam à Administração e que são fundamentais para a vinculação dela ao Direito. Mas, tanto se for tomado em seu sentido amplo como em sentido mais estrito, o direito administrativo não pode, salvo um grande artificialismo, ser visto como um sistema. A ideia de direito administrativo só terá verdadeira utilidade, além de correspondência com o direito positivo, se reconhecermos sua pluralidade, se aceitarmos que ele designa a confederação assimétrica de regimes jurídicos singulares e heterogêneos que, como direito comum das entidades, órgãos e Poderes estatais, efetiva a vinculação geral do Estado ao Direito. De qualquer modo, mesmo em seu sentido estrito, como sinônimo apenas de legislação administrativa, direito administrativo não é sempre direito da autoridade e das prerrogativas estatais. Essas prerrogativas não se presumem: têm de ser conferidas pontualmente pelo ordenamento. Muitas leis administrativas conferem prerrogativas em muitos assuntos, mas tantas outras as negam em tantíssimos outros. O direito
administrativo em sentido estrito também não é um direito oposto ao direito privado e ao mundo privado. As concepções que o veem assim desprezam as escolhas do direito positivo - que são bem variadas em seu conjunto, já que a legislação é resultado dos embates políticos cotidianos -, além de fazerem uma caricatura do direito privado e do mundo privado. As normas jurídicas que regulam o funcionamento das entidades do mundo privado (as empresas e as entidades não lucrativas), e que constituem hoje a parcela mais significativa das leis civis e comerciais, têm lógica substancialmente semelhante à aplicável à Administração Pública." 13. É o que acentuou com ênfase Ruy Cirne Lima, jurista gaúcho nascido em 1908 e falecido em 1984, em seu famoso livro Princípios do Direito Administrativo, cuja P edição é de 1937. Após explicar que o direito administrativo rege o sujeÍto "Administração Pública", o qual tem de ser caracterizado por sua atividade (a "ativi. dade de administração pública"), o autor definiu "administração" como "conceito antagônico é
ao de propriedade",
senhor absoluto".
de modo que administração
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"atividade do que não
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D O U T R IN A
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A N T I LI B ER A L
E E ST A T IS T A
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Tanto as entidades do setor privado como as entidades estatais ~ãc;totalmente depentientes do Direito: todas elas são criadas por atos j~dlcOS (atos, esses, regulados por normas jurídicas prévias) e ficam vlllc~l~das seja aos fins que ditaram sua criação, seja às formas cujo uso e jundlcamente admitido para a concretização desses flllS. Em sum~: a dependência ao Direito ("princípio da legalidade") não é exclusiva das entidades estatais nem do direito do Estado, pois todas as entidades do setor privado também se sujeitam a ela. , Longe de ser oposta ao direito privado, a legislação administrativa e substancialmente semelhante aos pressupostos da importantíssima legIslação sobre entidades privadas (direito societário direito das fundações e direito das associações não lucrativas). ' . Direito administrativo, segundo o conceito útil hoje, é um con junto detenmnado não pela divisão completa do Direito em classes excludent~s, tampouco pela oposição do público ao privado, mas por um especifico recorte. Esse recorte é feito com o critério subjetivo, reurundo as mm s diversas normas a que o Estado pode se sujeitar (e mesmo que, por outros critérios, essas mesmas normas sejam vistas como mtegrantes de vários ramos: o comercial, o trabalhista etc.). Para a visão aqui defendida, direito administrativo é o direito comum do Estado, fC!rmadopor normas e regimes de muitas origens e tipos. Não é um conjunto unitário e homogêneo. Alguém poderia objetar que, dessa forma, direito administrativo se transforma em "saco de gatos", mistura de coisas totalmente divers~s; além disso, de tão amplo, vira quase um sinônimo de ordem jurídica. Essas duas características - a heterogeneidade e a vastidão do conjunto de normas reunidas sob o nome "direito administrativo" fariam o conceito perder a utilidade. O que dizer dessa possível crítica? . Em boa medida ela diz a verdade: visto por essa perspectiva, o drrelto adrmmstrativo e mesmo imenso e heterogêneo. E daí? Se o EsM ~.0 aut~r fez ~uestão de dizer que no direito administrativo exprime "a palavra adnnnIstraçao noçao semelhante à que lhe é conteúdo em direito privado" dando
das sociedades civis", "do p a i ou da aos bens dos fIlhos", "dos tutores relativamente ao patrimônio dos
ex:mplo~: a atividade "dos órgãos executivos
mae relatlvamente
tutelados" ~ ~os "m~ndatários"(58 ed., São Paulo, Ed. RT, 1982, .20-21). PP . . Na VIsao de C. rrne.L.lma, portanto. o d"" lrelto ~d~mlstrativo não é o oposto do pnvado,
antes tem Identidade profunda com parte sIgmficativa
deste.
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tado é imenso e heterogêneo, não faz sentido querer simplificar artifi.Cialmente as coisas, fmgindo que um ramo do Direito reduzido e homogêneo seria capaz de assegurar sua completa submissão ao Direito14
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autoritário.!' Além disso, boa parte de suas atividades não envolve diretamente exercício de autoridade, de modo que, se o conceito de direito administrativo estivesse necessariamente vinculado a esse critério, muitas daquelas atividades cairiam fora desse ramo. São muitos os exemplos de atividades estatais que não envolvem uma relação de autoridade. O mais clássico é o da celebração, entre as pessoas públicas e os particulares, de contratos sob o regime da legislação civil ou comerciaI, que continuou sendo admitida como possível mesmo em confronto com a ideologia segundo a qual o natural seria o Estado ter um direito próprio, só dele, oposto ao privado. Alguns especialistas tentaram resolver essa contradição admitindo, muito pragmaticamente, que toda regra tem exceção, e que uma delas seria o uso do direito privado pelo Estado. De qualquer modo, disseram eles, a existência do direito administrativo como ramo do direito da autoridade (do direito público) em nada ficaria prejudicada por isso. I '
lO. Insuficiências conceituais do direito administrativo da autoridade
A ideia de que o direito administrativo é o direito das prerrogativas públicas, dos atos de autoridade, continua muito forte no BrasiL" O que se pode dizer dessa concepção? Conhecer e entender o regime jurídico do exercício, por agentes administrativos, do poder de autoridade nos casos em que a legislação o prevê - seus condiCionamentos, sua extensão, seus limites - é, por certo, algo bem importante.16 Faz sentido também, em certos casos, alguma comparação com as relações jurídicas nascidas do acordo de vontades entre sujeitos iguais. Mas não há fundamento jurídico-constitucional ou legal para presumir poderes para o Estado, presunção que vem de um paradigma 14. Ademais, Q fato de se reconhecer a existência de ramos jurídicos especiais para as atividades legislativa e jurisdicional obviamente não basta para afIrmar a unidade e a homogeneidade, sob o nome de direito administrativo, da disciplina jurídica das atividades gerais (as não legislativas e não jurisdicionais). Essa unidade e homogeneidade não existem. 15. 'Prova disso é que mesmo Alexandre Santos de Aragão, autor de um Curso em que se critica a ideia de "supremacia do interesse público sobre o privado" (disse ele que "não existe uma norma geral constitucional ou legal de prevalência do interesse público"), não deixou de incluir em seu livro o tradicional capítulo sobre princípios do direito administrativo, escrevendo, logo em sua "Introdução": "O regime de direito administrativo estabelece para a Administração um conjunto de prerrogativas especiais sobre os particulares para dar conta do atendimento do interesse público, e, concomitantemente, um conjunto de sujeições, a fim de que o exercício destas prerrogativas não seja arbitrário e violador da segurança jurídica. Tanto estas prerrogativas como as sujeições/controles são expressas sob a forma de 'princípios da Administração Pública', razão pela qual seu estudo é essencial" (Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Forense, 2012, pp. 83 e 54). 16. por exemplo, F1oriano Azevedo Marques Neto, "A efetividade das decisões. A execução forçosa", in Diego Zegarra Valdivia e Víctor Baca Oneto (coords.), La Ley de Procedimiento Administrativo General. Diez Afias Después - Libro de Ponencias de las Jornadas por los lO Aíios de la Ley de Procedimiento Administrativo General, Lima (Peru), Palestra Editores, 2011, pp. 175-185.
lo
. 17. Floriano Azevedo Marques Neto, "Interesses públicos e privados na atividade estatal de regulação", in Thiago Marrara (org.), Princípios de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2012, pp. 419-440. 18. Maria Sylvia, .embora conceitue o direito administrativo como "ramo do dir~ito público" - o que tradicionalmente remete à ideia de prerrogativas -, parece aceItar com alguma naturalidade os regimes privado e administrativo como possíveis para a Administração Pública, o que, a rigor, levaria o direito da Administração a ser composto de ambos: "A expressão regime jurídico da Administração Pública é utilizada para designar, em sentido amplo, os regimes de direito público e de direito privado a que pode submeter-se a Administração Pública. Já a expressão regime jurídico-administrativo é reservada tão somente para abranger 0 conjunto de traços, de conotações, que tipificam o direito administrativo, colocando a Administração Pública numa posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa" (Direito Administrativo, ciL, 25 ed., pp. 48 e 61). 19. Hely Lopes Meirelles tratou o.uso do direito privado pela Administração como uma excepcionalidade. Após haver definido o direito administrativo brasileiro como ~ '~conjunto..h~rmônico de principi?s jurídicos que regem os órgãos, os agentes 11
e as atiVIdades publicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado", esclareceu que "atividades públicas" seriam "atos da Admi-
nistração. P3blica, .praticados nessa qualidade, e não quando atua, excepcionalmente, em. ~ndlçoe~ ~e 19~aldade com o particular, sujeito às normas de direito privado" (D/relia Adn.unlstra17vo Brasileiro, cit., 40 ed., p. 40). _ Bandelfa de MeU?, ~ambém apegado à ideia de que o Direito para a Administraça0 tem de ser um dlIelto de prerrogativas, procura minimizar a incidência do di~ reito privado na esfera estatal. a
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Essa resposta, porém, trazia duas incógnitas. A primeira é que, se 6 dlreli6pará o Estado não é só o administrativo, mas também seu oposto, o privado, seria preciso que as muitas dúvidas quanto ao direito possivelmente aplicável nas relações do Estado fossem resolvidas por uma espécie de direito prévio, que fixasse os critérios para a escolha entre O público e o privado e resolvesse os conflitos. Essas dúvidas, lógico, não seriam assunto do próprio direito administrativo visto como direito da autoridade, pela razão evidente de que lhe seriam anteriores. Então, em que ramo se poderia buscar res posta a essas dúvidas fundamentais, se o próprio direito maior, o direito público, de que o administrativo seria derivado, também seria um direito da autoridade, e por isso não poderiam sair dele os critérios para optar pelo não público? Em suma, para que o sistema fosse completo seria preciso haver para o Estado um direito anterior ao público e ao privado, em que estivessem definidas as possibilidades de uso de um ou outro. Mas que direito anterior seria esse? Algumas teorias, apesar de inspiradas na ideia de sistema, de sugerirem o caráter exaustivo da classificação do Direito em ramos e de afirmarem a obrigatoriedade, para a Administração, do regime jurídico-administrativo formado de prerrogativas e sujeições, não dão resposta substantiva completa a essa dúvida.20
20. Bandeira de Mello não dedica grande atenção ao problema, embora afIrme, citando como exemplo as empresas estatais, que: "O Estado, no exercício da função administrativa, pode desenvolver atividades sob um regime parcialmente sujeito ao direito privado". caso em que "tais sujeitos não desfrutarão nem de uma posição privilegiada, nem de uma posição de supremacia em suas relações com os particulares". Mas o autor sustenta, a seguir, que isso "evidentemente não significa elisão do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, nem exclusão, para elas, do enquadramento em todas as demais características, a seguir mencionadas, próprias do regime jurídico-administrativo". O autor sintetiza essas características enunciando o princípio da "indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos" (Curso de Direito Administrativo, cit., 3l ed., p. 76). Em outro ponto da obra o autor também admite que as entidades públicas celebrem contratos que sejam regidos pelas normas de direito privado "em seu conteúdo", mas não "quanto às condições e formalidades para estipulação e aprovação" (ob. cit., B
p.628).
A orientação do autor é claramente a de minimizar ao extremo a influência do direito privado nas entidades estatais (inclusive nas empresas estatais), o que talvez
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A segunda incógnita é que, com a.criação e o crescimento das empresas estatais, inspiradas nos modelos empresariais comuns, o uso das fórmulas da legislação privada pelo Estado não pode mais ser considerado uma exceção. - E daí? - perguntaram muitos especialistas -, se nós podemos, em nossos tratados de direito administrativo, abrir capítulos para tratar das empresas estatais e de outros casos de uso do direito privado pelo Estado, criando inclusive um sub-ramo, o direito administrativo privado? A solução parece boa e prática, mas justamente se ela abandonar a ideia original de direito administrativo como direito da autoridade, e aí ele passará a ser algo bem distinto, um direito estatutário, isto é, próprio de uma categoria de sujeitos (no caso, todas as entidades estatais). A solução inclusive traria para o interior desse direito estatutário os critérios de distinção dos diferentes regimes possíveis para o Estado (o regime público, das relações de autoridade, e também o privado, das relações de igualdade), e resolveria a insuficiência da teoria anterior.21 Mas aí, então, a incógnita é outra: por que continuar falando de direito administrativo se ele deixa de ser direito da autoridade e se torna algo mais amplo? O fato é que a solução, para ser boa, importaria, mesmo, trocar a ideia original de direito administrativo (direito da autoridade) por
justifique que sua obra não se dedique a deduzir critérios gerais para determinação dos casos em que essa influência seria possível, tampouco a discutir se tais critérios fariam, ou não, parte do direito administrativo ou de algum outro ramo jurídico, superior ou lateral. 21. Em alguma medida, parece ser a tentativa de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que admite os "regimes de direito público.e de direito privado" paraa Administração. Quanto ao critério da aplicabilidade desses regimes, a autora afIrma que ele depende de decisão constitucional ou legal, argumentando: " O que não pode é a Administração Pública, por ato próprio, de natureza administrativa, optarpor um regime jurídico não autorizado em lei; isto em decorrência de sua vinculação ao princípio da legalidade". A seguir, acrescenta: "Não há possibilidade de estabelecer-se, aprioristicarnente, todas as hipóteses em que a Administração pode atuarsob regime de direito privado; em geral, a opção é feita pelo próprio legislador, como ocorre com as pes~ soas jurídicas, contratos e bens de dOIJÚnioprivado do Estado. Como regra, aplica-se a regra de direito privado, no silêncio da nonna de direito público" (Direito Adminis trativo, cit., 25 a ed., p. 61).
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outra: a de direito comum do Estado. Não seria s6 um novo rótulo, pois se estaria reconhecendo que ..oconteúdo desse direito comum do Estado é de fato bem mais abrangente, incluindo todas as normas jurídicas aplicáveis às entidades estatais, estando ou não em pauta a autoridade pública, donde também a heterogeneidade desse direito. -Essa ampliação tem a vantagem suplementar de suprir uma insuficiência da explicação que tende a descrever como de direito privado a generalidade dos casos em que o Estado não usa poder de autoridade. Ora, as atividades de fomento, a assistência social, os serviços culturais e educacionais, mesmo a gestão de seu patrimônio, e outros tantos casos em que não entra o poder de autoridade no regime jurídico em que atua O Estado, tudo isso normalmente tem suas leis e características específicas, feitas sob medida para O Estado e para as situações, constituindo uma legislação administrativa, não se cogitando de aplicar a legislação dita privada (Código Civil e legislação esparsa). Não há autoridade nesses casos, certo, mas não dá para dizer que o Estado está agindo pela lógica do Código Civil e de outras normas equivalentes, pois isso não é verdade. O Estado está simplesmente agindo pelo direito comum do Estado, que nesse caso nem é direito da autoridade, nem é lá totalmente comparável com regras privadas; é um regime em alguma medida próprio, fruto de opções legislativas casuísticas, s6 isso. 11. Função prescritiva dos conceitos e o direito administrativo da autoridade
A ampliação conceitual, para aceitar com clareza que O direito administrativo é um direito comum do estado, nem sempre envolvendo relações de autoridade, tem outro efeito positivo: o de evitar que, como é frequente, a impropriedade conceitual acabe por contaminar a interpretação e a aplicação nesse campo. A verdade é que os conceitos jurídicos nas áreas dogmáticas como o conceito de direito administrativo - não servem apenas à descrição do direito positivo. Sua principal função acaba sendo a de influir na interpretação e na aplicação. São conceitos com funções prescritivas.
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Assim, os destinatários que se aproximam do direito administrativo mirando-o instintivamente como direito da autoridade irão, com alguma naturalidade, aplicá-lo sob a influência dessa ideia, e escorregarão para as soluções autoritárias. Quando se diz que o direito da Administração é em princípio o administrativo e que ele é normalmente um direito dos atos de autoridade, as pessoas são induzidas com facilidade a aceitar a tese de que a supremacia e os poderes do Estado sobre os particulares se presumem?' Daí é só um pequeno passo até aceitar - ou, mesmo, exigir - que, em nome de valores supostamente transcendentes, haja um regime jurídico único para as relações do Estado com os particulares, no qual esteja sempre embutido o signo da autoridade, mesmo à míngua de lei. 23 12. Um direito administrativo do interesse público oposto ao privado?
O fato é que o critério da autoridade para definir o direito administrativo (ou para definir o próprio direito público, mais amplo), embora ainda surpreendentemente vivo, já desde cedo vinha sendo bastante contestado. 22. É no mínimo imprudente afirmar, por exemplo, ainda mais quando se descreveu como unitário o caráter do direito administrativo, que a "supremacia do interesse público sobre o privado" é "verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público", e que isso "significa que o Poder Público se encontra em situação de autoridade, de comando, relativarpente aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses públicos postos em confronto" (Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, CiL, 3P ed., pp. 70-71). 23. A constatação desse risco não é original do presente estudo. Viveiros de Castro, figura importante do mundo jurídico brasileiro nos primei. TOS anos do século XX (nascido em 1867, foi nomeado ministro do STF em 1915 e faleceu em 1927), em seu Tratado de Sciencia da Administração e Direito Administrativo, cuja l edição é de 1906, tratando do conceito de direito administrativo e da classificação dos ramos em público e privado, já ponderava: "O caráter de público, aplicado em seu significado tradicional ao Direito do Estado, em oposição ao direito privado dos particulares, produz uma sugestão muito perniciosa, tanto no direito político como no administrativo", pois com isso O funcionário público acaba por se considerar "como o órgão imediato do interesse supremo", olvidando que "ele não é mais que um representante do Estado" e que toda relação jurídica que envolve o Estado "está absolutamente submetida à lei" (3 ed., Rio de Janeiro, Jacintho Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro-Editor, 1914, pp. 101-102). i1
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A alternativa dos críticos fora sustentar que o Estado, usando ou não autoridade, estaria de qualquer modo submetido a um regime jurídico especial, de sujeições, exigidas pela presença do interesse público, pela prestação de um serviço à comunidade (um serviço público).
Justiça dos particulares e a Administração ganhara a Justiça administrativa - dualidade que não se estava imaginando abandonar -, manter alguma dicotomia seria indispensável, pois do contrário não se teria como distinguir as competências de cada jurisdição.
Essas sujeições, que são limitações ou condicionamentos à atuação dos agentes estatais (dever de impessoalidade, de publicidade, de motivar os atos, de fazer concurso público, de licitar etc.), não seriam próprias do direito privado, que é ligado aos interesses privados, donde a utilidade de um ramo todo especial- o direito administrativo para as relações em que as sujeições públicas estivessem presentes, ainda que ausentes os poderes de autoridade.
Mas por que a dicotomia não podia ser apenas subjetiva, isto é, considerar somente o sujeito envolvido no litígio? Por que a Justiça administrativa não poderia ser a competente para todos os processos envolvendo a Administração (este sujeito, independentemente da norma aplicável), ficando os demais casos com o Judiciário tradicional?
Essa postura de abandonar com coragem a identificação conceitual entre o direito administrativo todo e o poder de autoridade é mesmo algo importante, teórica e politicamente. Tentando fugir dos perigos autoritários, esta seria uma possível explicação alternativa para o direito administrativo: um direito do interesse público, um ramo do direito público específico da Administração, isto é, dos atos estatais dotados de prerrogativas (aqui, a autoridade pública) e condicionados sempre por sujeições (aqui, o interesse público); ou apenas condicionados por sujeições, quando as normas não previrem as prerrogativas. Só que essa modificação conceitual também teria seus defeitos, pois, embora deixasse de exigir sempre o requisito da autoridade para caracterizar o direito administrativo, preservaria tudo o mais. O direito administrativo, visto, agora, como direito do interesse público, continuaria a ser considerado como oposto do direito privado (direito dos interesses privados). Assim, esse conceito alternativo tentaria salvar a primeira classificação (público x privado), só com o pequeno ajuste de prescindir da autoridade. Mas por que tanto empenho em garantir a sobrevida dessa classificação como base essencial do direito administrativo? Que razões haveria para se aferrar a ela?
13. Possíveis utilidades da distinção entre direito administrativo e direito privado Nos Países em que se tinha adotado a dualidade de jurisdição, como a França, em que o velho Judiciário ficara em princípio como
A razão nada tem de teórica no caso da França, por exemplo: é que a Justiça administrativa nunca fora competente para todos os processos envolvendo a Administração; parte deles ia mesmo para o Judiciário. E não se estava pensando em mudar isso, que parecia funcionar a contento na vida real. Para esse fim prático, portanto, a linha que separava o público do privado, que fora a linha tradicional de divisão de competências jurisdicionais, precisaria ser mantida. Isso era uma razão, então, para conservar a dicotomia público e privado que esteve na base na identificação do direito administrativo como ramo jurídico. Sendo preciso conservá-la, mas não se mostrando consistente, suficiente ou prudente o critério da autoridade, que a viabilizara de início, uma saída razoável seria salvar a classificação mas trocar o critério. Sairia, assim, o critério isolado da autoridade e entraria o critério mais amplo do interesse público. O direito administrativo, redefinido agora como direito do interesse público e distinto do direito dos interesses privados (direito privado), continuaria a ser útil para identificar a competência da Justiça administrativa. . A utilidade de um conceito do direito administrativo como distinto do direito comum privado também pode existir em Países sem dualidade de jurisdição, e, portanto, sem Justiça propriamente administrativa. No modelo de alguns Países latino-americanos os processos contenciosos envolvendo direito administrativo, mesmo sendo de competência do Judiciário comum, seguem regime processual específico, previsto na lei do contencioso administrativo e distinto do regime dos processos judiciais comuns (processos civis). Nesses Países são necessários critérios para distinguir a matéria contencioso-administrati-
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va das matérias comuns, pois com esses critérios se identifica a lei .processual aplicável,
comum das pessoas jurídicas estatais, e não de um direito administrativo como oposto ao privado.
Para esses Países, assim como para os que adotam a dualidade de jurisdição, faz sentido que o conceito de direito administrativo dê res posta ao problema prático fundamental de saber em cada caso qual o regime processual aplicável (o do processo contencioso-administrativo ou o do processo comum, civil). Logo, para esses Países, distinguir o administrativo do privado é questão central do direito administrativo.
Mas a comunidade jurídica brasileira não parece muito entusiasmada com esse caminho.
E para o Brasil?
Efeito da pura inércia, já que tudo havia começado, no Brasil do século XIX, com a importação das ideias francesas de direito administrativo, calcadas na distinção entre o público e O privado - e é sempre bem difícil convencer as pessoas a trocar modelos estabelecidos? Talvez. Mas isso não explica tudo.
14. O conceito de direito administrativo no Brasil não precisa da dicotomia público e privado Nada disso tem a ver com o Brasil, que não tem Justiça administrativa nem um direito processual específico do contencioso administrativo.
15. O direito administrativo como antítese do privado é concepção estatista e antiliberal A oposição entre o público e o privado contou com outras razões, ideológicas, para ser mantida.
Entre nós, a divisão intema de competências judiciais não usa a dicotomia público e privado; e o regime geral aplicável aos processos das entidades estatais é o do direito processual civil.
No Brasil, onde o estatismo foi forte desde o início - e só fez aumentar com o tempo -, as ideias liberais sempre foram vistas com muita desconfiança.
A Justiça Estadual brasileira (a comum) é competente tanto para processos de pessoas comuns (não estatais) como de pessoas estatais. A Justiça Federal é especializada em processos da União e das demais entidades federais, o que inclui entidades federais de direito privado (salvo as sociedades de economia mista, cujas causas vão para a Justiça Estadual) e processos de qualquer área do Direito e com qualquer questão (não sendo importante saber se está presente ou ausente o interesse público, a autoridade pública ou coisas parecidas).
Nesse prisma ideológico, o público é o bem, o privado é o mal (que, aliás, cabe ao'público consertar). O Estado é o bem; os particulares, o mal. O direito administrativo é o direito do interesse público, o direito privado é o direito do egoísmo privado, o direito do dinheiro. O direito administrativo é o direito do bem, o direito privado é o direito do mal. 24
A verdade é que, no Brasil, mais do que faltar motivo para salvar a todo custo a dicotomia público e privado, havia excelentes motivos para deixar de usá-la como critério de definição de uma área jurídica como a administrativa. Para nós, exatamente por que a divisão de competências judiciais, ao menos no caso da Justiça Federal, baseia-se no critério subjetivo (isto é, no tratar-se, ou não, de uma pessoa jurídica estatal), era este o critério que deveríamos ter usado para reorganizar as áreas do Direito. Deveríamos, então, estar trabalhando na construção de um direito
24. Dois autores brasileiros influentes do final do século XX e início do XXI, Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são muito explícitos na defesa apaixonada da ideia de que o direito administrativo é o antídoto estatal necessário contra os desastres do liberalismo. Maria Sylvia, em artigo de defesa do "princípio da supremacia do interesse público sobre o privado" como base fundamental do direito administrativo, criticou "todos os malefícios" causados pelas "teses contratualistas e liberais de fms do século XVII e século XVIII", disse que o "interesse público a ser alcançado pelo direito administrativo" no Estado Social preocupa-se com "valores considerados essenciais", e "não só com os bens materiais que a liberdade de iniciativa almeja", classificou as críticas ao princípio da supremacia como ligadas aos "ideais do neoliberalismo" e ao "direito administrativo econômico, que se formou e vem crescendo na mesma proporção em que cresce a proteção do interesse econômico em detrimento de outros igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro".
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Em segundo lugar, sustentou-se que o direito para o funcionamento do Estado não podia se parecer com as práticas privadas, egoísticas ou até maliciosas, justificando que as sujeições sobre os agentes estatais fossem sempre presumidas e frequentemente maximizadas; nesse sentido, buscou-se fazer do direito administrativo algo contrário, mesmo, ao direito privado e às práticas do mundo privado." De modo que, por essa visão, o direito administrativo seria definível como a perfeita antítese do direito privado."
Nesse ambiente polarizado, a conservação da dicotomia cumpriu funções políticas antiliberais ..Mesmo porque não era uma dicotomia baseada na simples separação entre público e privado, mas na oposição entre eles, o público contra o privado. Assim, o direito administrativo acabou sendo visto como um direito público contra o privado. E isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, um direito contra os agentes privados, um direito muito forte para (o Estado) combater o generalizado mal privado. Isso acabou dando incrível sobrevida ao critério da autoridade, justificando que os poderes e a supremacia do Estado sobre os privados fossem muitas vezes presumidos ou exacerbados?' A autora arrematou com este trecho bastante expressivo: "A doutrina que se considera inovadora compõe, sob certo aspecto, uma ala retrógrada, porque prega a volta de princípios próprios do liberalismo, quando se protegia apenas uma classe social e inexistia a preocupação com o bem comum, com o interesse público. Ela representa a volta aos ideais de fins do século XVIll. As consequências funestas do liberalismo recomendam cautela na adoção dessas ideias, até porque se opõem aos ideais maiores que constam do 'Preâmbulo' e do título inicial da Constituição, para valorizarem excessivamente determinados princípios do capítulo da ordem econômica, privilegiando a liberdade de iniciativa e de competição" ("O princípio da supremacia do jnteresse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo", in Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Carlos Vinícius Alves Ribeiro (orgs.), Supremacia do Interesse Público e Outros Temas Relevantes do Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2010, pp. 85-102). Bandeira de Mello, justamente no capítulo inicial de sua obra, tratando do "Direito Administrativo e o Regime Jurídico-Administrativo" e de suas "bases ideológicas", após aludir à opção brasileira pelo Estado Social e Democrático de Direito, também fez considerações muito críticas à "privatização", à "reforma do Estado", ao "neoliberalismo", à "globalização", às "forças hostis aos controles impostos pelo Estado e aos investimentos públicos por ele realizados" e ao "ilimitado dOITÚniodos interesses econômicos dos mais fortes, tanto no plano interno de cada País quanto no plano internacional" (Curso de Direito Administrativo, cit., 3}l1 ed., pp. 51-52). 25. Os doutrinadores brasileiros que, na atualidade, defendem o "princípio da supremacia do interesse público sobre o privado" como base fundamental do direito administrativo explicam com ênfase que isso não significa que "o interesse público sempre, em qualquer situação, prevalece sobre o particular", pois isso é coisa de "regimes totalitários"; segundo eles, a prevalência ocorre apenas "nas hipóteses agasalhadas pelo ordenamento jurídico" (Maria Sylvia, "O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo", cit., in Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Carlos Vinícius Alves Ribeiro (orgs.), Supremacia do Interesse Público e Outros Temas Relevantes do Direito Administrativo, pp. 94-97). Mas a explicação não é muito sincera.
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Desde logo porque, se fosse, o tal princípio seria um sinônimo inútil de "legalidade", e esses autores o teriam abandonado sem qualquer receio, dando por suficiente a legalidade. E por que não o abandonaram, por que o elogiam com tanta paixão? Por acreditarem que a "supremacia do interesse público" é norma jurídica geral, acolhida pela "concepção presente na Constituição do Brasil, de 1988, que adota os princípios do Estado Social de Direito" (idem, p. 91), fazendo a "dignidade do ser humano" sobrepor-se ao "liberalismo" (idem, p. 90). Por essa visão, portanto, a "su premacia do interesse público sobre o privado" já estaria agasalhada em princípio e de modo geral no ordenamento, não dependendo de previsões em normas específicas. 26. Em termos práticos, essa sustentação é feita no Brasil por meio de uma conjugação das teorias do "regime jurídico~administrativo", dos "princípios do direito administrativo" e da "constitucionalização do direito administrativo", todas elas calcadas na oposição ao privado. Fernando Dias Me~ezes de Almeida, resenhando as linhas teóricas predominantes entre os autores brasileiros a partir da década de 1980, após notar o prestígio da "visão finalístico-valorativa" (que tende a colocar o direito administrativo a serviço de certos valores políticos), destacou que seu "ponto de convergência" é justamente a teoria do "regime jurídico-administrativo", explícita ou implícita nos vários autores. Na síntese de Menezes de Almeida, os seguintes elementos estão sempre presentes na explicação desse regime: "(a) é inspirado finalisticamente; (b) é emoldurado pela legalidade; (c) possui por conteúdo um conjunto de princípios de regem a Administração e determinam a compreensão do direito administrativo; (d) tais princípios apresentam matriz constitucional; (e) resulta o regime assim definido na unidade, na coerência e na racionalidade interna do direito administrativo" (Formação da Teoria do Direito Administrativo no Brasil, tese de titularidade, São Paulo, Faculdade de Direito da USP, 2013, p. 316). 27. Bandeira de Mello sustentou que um dos "princípios subordinados" da "su premacia do interesse público sobre o privado" seria o das "restrições ou sujeições especiais no desempenho da atividade de natureza pública", explicando que, por força dessa característica, "o direito administrativo desvenda não ser um instrumento de atuação estatal marcado tão só pelas preJTogativ~s de autoridade, conquanto defensivas do interesse público, mas exibe a sua marca mais expressiva: a do comprome~ento co~ os interesses da sociedade (como o queria Duguit), em nome dos quais enge barreIras defensivas contra quem quer que esteja no desempenho de atividade estatal (...)".
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É interessante observar que, com o passar do tempo e a luta pela democracia no Brasil ~ que çhegarüi,por fim, na década de 1980 -, muitos administrativistas, ao contrário do esperado, foram ficando mais e mais radicais na defesa de sujeições sobre os agentes estatais, Essa postura talvez seja a tentativa de repaginar, agora no am biente democrático, a velha visão estatista e antiliberal: a base do direito administrativo seria ainda o antigo princípio da supremacia do. interesse público sobre o privado (com extensos poderes para o Estado desfazer os males do mundo privado), mas seria de algum modo justificado e adoçado pelo aumento das sujeições sobre o exercício da atividade estatal (para manter a máquina estatal vinculada aos interesses públicos, livrando-a dos desvios e da influência privada),.
16. Contra a contaminação ideológica do conceito de direito administrativo
O que dizer dessas concepções? Parte significativa das soluções que o direito positivo concebe para o Estado - inclusive as competências de autoridade e as sujeições - são especiais para ele, exclusivas dele, Constatar e descrever essa exclusividade é útil e relevante. Mas isso não legitima que os intérpretes inventem para o direito administrativo um princípio da antítese ao privado, princípio, esse, de conteúdo prescritivo, para o fim de levar as diferenças do direito estatal bem além do ponto em que o direito positivo as tiver colocado, Por óbvio, é natural e necessário que os administrativistas, olhando o direito positivo, reconheçam que, neste ou naquele caso, as normas deram tais e quais poderes ao Estado ou lhe impuseram esta e aquela sujeição, Isso é o correto. Trata-se de simplesmente aceitar o que o direito positivo dispôs. Mas isso não é razão para administrativistas brasileiros se aferrarem à antítese entre público e privado como alicerce do direito administrativo todo, tampouco para sacarem dela princípios gerais do diA seguir, enfatiza o autor: "Este, de resto, é justamente um traço fundamental na identiftcação da antítese entre direito privado e direito público" (Curso de Direito Administrativo, cit., 31a ed., pp. 70 e 74-75).
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reito administrativo que aumentem artificialmente os poderes do Estado ou as sujeições dos agentes públicos, Em outros Países a distinção público e privado, mesmo tendo seus perigos, podia até se justificar pela necessidade de oferecer critérios gerais para identificar a Justiça competente ou o regime processual aplicável em cada caso, No Brasil, não, Assim, qnem no Brasil, para fms de definição geral do direito administrativo, apegou-se à antítese e a seus princípios gerais estava, conscientemente ou não, tomando partido por interpretações estatistas e antiliberais para o direito administrativo e aceitando que, mesmo sem base em normas específicas, se adotasse alguma presunção em favor de mais poderes para a Administração ou mais sujeições sob os agentes estatais, Afinal, é só para isso que, no plano da conceituação geral do direito administrativo, a antítese serve no BrasiL Afora isso, é também inconveniente e arriscado associar o direito estatal todo a algo em princípio oposto ao privado, Inconveniente, pois essas abstrações, conquanto usadas pelo direito positivo em temas e regulações específicos, não o são para a definição global de regimes jurídicos para o Estado - tanto que, para ficar em dois exemplos, as empresas estatais continuam funcionando segundo as leis societárias e fazendo contratos pela legislação civil e comercial e a própria Administração direta do Estado pode usar contratos sem diferenças substanciais com os privados, Quando, por conta do dogma de que o direito administrativo tem de ser unitário e sistemático, se pressupõe que seus institutos podem ser todos conhecidos sem exame detalhado de suas regras específicas, pois suas características necessárias já estariam delineadas em certos princípios gerais, o que se está propondo é uma rebelião contra o direito positivo," E é também arriscado associar o direito do Estado à rejeição do privado, porque a antítese entre interesse público e interesse privado 28. É de Bandeira de Mello a aftrmação de que, "ao ser conhecido como de direito administrativo um dado instituto, não há necessidade de enumerar e explicar ponnenorizadamente o complexo total de regras que lhe são pertinentes, uma vez que, de antemão se sabe, receberá, in principio, e em bloco, o conjunto de princípios genéricos (...)" (Curso de Direito Administrativo, cit., 314 ed., p. 95).
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é, nesse caso, muito abstrata e artificial. Dizer que o interesse público é oposto ao privado, e que o regime privado é o do egoísmo enquanto o administrativo é o da solidariedade, pode parecer bonito, pode servir às tiradas de estilo do "jurista cordial", pode até ser correto em certos casos, mas é vago, além de falso como regra geral. Em suma, a não ser para os miliUmtes estatistas e antiliberais, não se justifica no Brasil a obsessão de que o direito do Estado só pode ser compreendido como algo oposto ao privado.
Capítulo 5
QUE DIREITO ADMINISTRATIVO?
É preciso que o conceito de direito administrativo evolua para o de um amplo direito estatutário, um direito comum para o Estado, aceitando-se aquilo que já é realidade no direito positivo: a existência de regimes múltiplos, concebidos para as situações de que tratam. Esses regimes, construídos democraticamente pelo legislador, não podem ficar sujeitos ao veto de princípios com origem ideológica radical.
1. Teoria dos antagonismos. 2. Direito administrativo do clipes x di reito administrativo dos negócios. 3. Esse antagonismo e as desesta tizações de gestão. 4. Esse antagonismo na regulação. 5. O caráter bipolar do direito administrativo.
1. Teoria dos antagonismos Até a década de 1970 o jurista quase se ocupava só da moldagem de institutos: atos, contratos, entes, procedimentos. Sobre isso falava a seus alunos ou clientes. Cada aula, cada caso, um exercício de classificação (como distinguir convênio de contrato administrativo?). Nessa perspectiva, cabia-lhe destacar os institutos novos ou a deturpação dos velhos, por obra da lei, da jurisprudência, da evolução doutrinária. Depois, cresceu a produção da fábrica jurídica - mais, mais e mais normas; demandas, juízos; variações e degeneração das fórmulas - e o direito dos institutos saiu de moda. O sucessor foi o direito dos princípios, tímido nos anos 1980, hoje artigo de consumo. O operador tornou-se abstracionista prático, gerindo as dúvidas do cotidiano ("Corta-se a luz do consumidor inadimplente?") com sentenças algo.vagas: tanto as belas ("A dignidade da pessoa humana a tudo prefere") como as rudes ("O interesse público prefere ao privado"). Para tratar de atos administrativos viciados, antes o pensamento focava em nulidade, anulabilidade e inexistência (institutos); agora, em segurança jurídica, proteção da confiança, boa-fé objetiva, improbidade (princípios). O papel do jurista, nesse novo contexto, é saudar - ou sofrer - a positivação
de princípios, descobrir suas novas concreções,
por aí.
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ciência é preciso aposentar o exagero de, por via de interpretações sempre redutoras, querer restringir artificialmente, por princípio, os e~paços de autononua dos legisladores e, na forma da lei, dos adntimstradores públicos . . Em suma, houve uma clara resposta do direito constitucional de usar os princípios como base para a _ à tentati~a dou~ária umficaçao artifiCIal do drreüo para toda a Adntinistração Pública. POSIllVO
Capítulo 7
CRÍTICA À DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS DO DIR EIT O ADMINISTR ATIVO 1. o principio. 2. Uma ideia. 3. De ideia a oficio. 4. Provérbios do direito administrativo. 5. Este texto não é sobre princípios científicos. 6. O direito administrativo como sistema: existe um critério? 7. Prin cipias científicos ou retalhos? 8. Ciência ou convenção? 9. A teoria
não precisa de sistema. 10. Do tubo de ensaio para o mundo da Ciência? 11. Do jurista intérprete para o aplicador. 12. Princípios nos manuais: lwrmas em prosa. 13. Será que esses hiperprincípios vêm mesmo do ordenamento? 14. O que Jazer com eles? 15. O fim.
1. O princípio Ambicioso, o conhecimento clássico ntirou o impossível: costurar uma roupa de ciência para o nosso querido direito adntinistrativo. Ciência, nada menos que ciência! Só que as normas sobre a atividade adntinistrativa nunca foram o corpo de modelo que coubesse nessa roupa. Mais Quasímodo que Esmeralda (estou falando de Natre Dame e do corcunda, antigo leitor; você logo saberá por que evoco Paris ... Ah, Paris!), essas normas nunca chegarão à unidade absoluta, ao círculo perfeito, coerente e lógico. As normas administrativas, tomadas assim em seu imenso todo, serão sempre um conjunto experimental, em fluxo constante, um saco de incoerências, uma coisa torta. As normas vêm das soluções possíveis nos contextos. Não são deduzidas de idealizações, de princípios gerais; nem cabem encaixadas neles. Porém, como era preciso fazer ciência, o conhecimento clássico ignorou tudo. E sonhou com princípios gerais. Em dedução, por indução, tudo valia; o negócio era achar e usar princípios gerais. Ajudou para isso o dogma, vindo da teoria geral, de que o ordenamento jurídico, ele próprio, podia ser visto como unidade; assim, um braço do
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ordenamento (o administrativo) também haveria de ter sua unidade, seus hiperprincípios. Ajudou também que houvesse uma Constituição, co~ suas normas de valor mais alto servindo de boa desculpa para princípios gerais. Predisposto a ver unidade onde ela não surgia, o conbecimento clássico a inventou. Criou-se a tradição, que veio transmitida em manuais, de que o modo certo de entender e aplicar direito administrativo era levar em primeira conta hiperprincípios. Tudo tinha de partir deles, emanar deles. Questão de fé. A hipergeneralização tornou-se um vício, escondido na miragem da ciência. Este ensaio defende a tese de que chegou a hora de o conbecimento sobre direito administrativo abandonar esse classicismo. Parecia boa a ideia de procurar solução para os problemas jurídico-administrativos passando-os sempre, e em primeiro lugar, pelo filtro das hipergeneralizações, pelos princípios. Era coisa de cientistas, não podia ser ruim. Era também um modo prático de preservar os verdadeiros valores, inclusive os constitucionais. Mas a ideia não era boa. Por quê? Porque seus resultados são ruins. E é isto, afinal, que deve valer para julgá-la. Ser sedutora, ser generosa, não faz com que funcione. E, se não funciona, a abandonamos. Por que não funciona? Hiperprincípios são muito vagos. Para usá-los é preciso construir critérios e mais critérios, levando em conta uma infinidade de elementos. Quem toma de hiperprincípios do direito administrativo (o princí pio do interesse público, por exemplo) e quer levá-los pela mão para o primeiro atendimento a um caso concreto (por exemplo: a dúvida sobre se uma prostituta que faz O trottoir pode, ou não, ser detida a cada noite e solta de manhã, para evitar que afete a paz e a moral pú blicas) muito certamente vai desprezar as regras específicas que encontrar pelo caminbo (por exemplo, a norma que proíbe a prisão que não seja por ordem judicial ou em flagrante).' Ofuscado e fascinado pela luz forte do princípio, que o encanta, o sujeito não dá muita atenção ao resto, se sente forte e bom, capaz de resolver tudo sozinbo. Na emoção dos hiperprincípios livrescos, descritos de modo tão bonito e fácil nos manuais, os profissionais do direito administrativo 1. Como fez o STP no HC 59.518-SP, reI. Min. Cordeiro Guerra,j. 26.8.1982.
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brasileiro estão ignorando o direito positivo, desprezando o direito positivo, substituindo-se a ele. O fato é que, para respeitar valores nas situações específicas, não precisamos dar proeminência às hipergeneralizações, começar tudo sempre delas. As hipergeneralizações, as grandes declarações de princí pios, são frequentemente vazias, perigosas, inúteis. Os valores não precisam delas, pois estão espalhados nas normas mais concretas, nas soluções pontuais da Administração e do Judiciário e também na experiência. Se você chegou até aqui, paciente leitor (obrigado, amigo!), você já entendeu que este texto não é o que devia ser. Em um tratado de. direito administrativo há sempre um capítulo sobre o conteúdo dos princípios gerais, em estilo acadêmico, sem surpresas. Eu, do contra, quero dizer justamente que declarar princípios gerais desse jeito é como alimentar vírus em laboratório só para ele fugir, fazer estragos. Então, se você esperava meus princípios, perdão. (É verdade, confesso: já andei escrevendo meus princípios por aí, no passado. Estou sob nova direção, me reinauguro.) Quanto ao estilo da escrita, além de essencial à tese, creio que um tanto de modernismo fará bem a nosso direito administrativo. 2. Umaideia
Um crítico de arte, querendo escrever de modo charmoso sobre a pintura francesa da passagem do século XIX para o XX, poderia juntar um conjunto de artistas e obras atrás de alguma palavra expressiva. Ele diria das características comuns desses artistas e obras, destacaria sua identidade e soltaria no ar a palavra "impressionismo". Se a coisa parecesse verossímil, e se fosse bem divulgada, logo as pessoas iriam se acomodando, repetindo, e o impressionismo se instalava como natural no mundo das Artes; com sorte, virava popular. Bem, como sabemos, isso aconteceu realmente. E os turistas vão hoje a Paris (atenção, leitor: chegamos a Paris) ver um movimento, o "impressionista" - e achar nas obras uns traços comuns: os do impressionismo.
Apressado, o guia turístico explica: - Aqui, nesta tela, os grandes princípios do impressionismo ... Sintam a luz natural, a vida ao ar livre, sintam o movimento, a dança, sintam ... Mas a garota já escapuliu
do grupo, e já levou os pezinhos inchados para andar na loja do mu-
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seu. Já sabe o bastante para gritar às amigas, na volta para casa, como ela aaaama o impressionismo, - Ah,étipo assim, ritmo, natureza, cor... Ela já entende os princípios do impressionismo! Pouco antes da época em que alguém inventou esse impressionismo, na mesmíssima Paris (viu, leitor, como Paris tinha a ver?), magistrados da Justiça administrativa francesa e circunspectos professores de Direito se envolveram em outro movimento. Os professores procuravam descrever as novas pautas que os magistrados vinham usando para decidir processos onde estivesse a Administração Pública. Tiveram, então, esta ideia charmosa: dizer que havia surgido um novo ramo jurídico, o administrativo. Essa figura expressiva (direito administrativo), de uma criatividade de crítico de Arte, foi uma solução teórica; coisa de intelectual, para falar da realidade jurídica que vinha aparecendo na Justiça.
3. De ideia a ofício
A coisa pareceu fazer sentido, os franceses sabiam vender bem suas criações, e não custou para a ideia de direito administrativo sair viajando o mundo. Nas livrarias, logo apareceu a prateleira do direito administrativo; nas escolas, a turma passou a se divertir com os professores de direito administrativo (estranhos ...); e, dali a pouco, o cartão de visitas já tinha impresso, bem abaixo do dourado da balancinba da Justiça, o título pomposo: "Doutor de Tal, Especialista em Direito Administrativo". Não demora muito, e lá estão vários doutores de tal em tomo de um café, perto do fórum, reclamando dos juízes: - Uns ignorantões, em tudo só veem direito civil; de direito administrativo não sabem nada, nem os princípios! No discurso de intelectuais, impressionismo e direito administrativo são abstrações complexas, criadas no mundo teórico para organizar elementos da realidade da Arte ou do Direito. Para esses intelectuais, princípios do impressionismo e princípios do direito administrativo são também abstrações sofisticadas, com que eles imaginam caracterizar bem essas realidades.
Só que os intelectuais, vaidosos, não querem morrer presos nos livros e nos colegas. Ficam exibindo suas abstrações para o deleite do público, e aí elas caem na vida, para a boca dos guias de turismo e dos
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doutores de tal. Ironia: críticos e juristas, essa gente de língua estrangeira, esses intelectuais severos, inventam as abstrações complicadas para elas um dia ... virarem conhecimento vulgar. Ou não é assim? Será que o jovem promotor de justiça, lá na sua comarca de início de carreira, quando desanca a autoridade em uma ação judicial, pedindo que ela seja condenada ao fogo dos infernos (ímproba!), e alega que foi maltratado o princípio da legalidade, e também o da moralidade e o da impessoalidade - e quantos mais houver no manual que ele decorou com tanto empenho para passar no concurso público -, será que esse promotor fala a língua dos intelectuais? Os princípios, que ele tanto cita, e grifa, grifa, serão aqueles mesmos que o velho jurista pronunciara, em seu laboratório austero, enquanto assistia, encantado, com a cabeça no mundo da teoria, aos primeiros passos da sua perigosa criatura, que começava a viver?
4. Provérbios do direito administrativo
Os turistas passeando nos museus de Paris têm a maior convicção de saber do impressionismo e de suas características, e não perdem tempo matutando nis~o. Para comentar a respeito, agarram expressões e ideias que, fugidas de ambientes cultos, viraram lugar-comum, entraram pela orelha do povo. Para os turistas, isso basta. Logo sobem a Torre Eiffel, depois nos aviões, e, tontos de nostalgia, voam para casa. Mas, se um dia forem ler toda a produção intelectual existente sobre história da Arte, descobrirão, bastante surpresos, que os críticos com plicam tudo, falam demais, inventam mil outras ideias e expressões, e não são capazes de acordo sobre quase nada do tal impressionismo. Quer dizer: no mundo da teoria mais sofisticada, aquelas ideias iniciais nem são consensuais, nem talvez sejam tão respeitadas. Com o direito administrativo é também assim. Há ideias, nascidas da cabeça de teóricos, que, com o tempo, na forma de fragmento, viraram lugar-comum. São hiperprincípios teóricos (isto é, invenções de teóricos, tentativas de descrever certa realidade jurídica) que ficaram tão populares como o impressionismo dos guias turísticos. Provérbios. O que os aplicadores comuns normalmente reconhecem como
princípios? Quais são os - por assim dizer - "prinCÍpios turísticos" do direito administrativo, os provérbios?
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Não é nada fácil fazer uma lista de todos os princípios proverbiais que circulam nas discussões de questões administrativas. É que, além de provérbios considerados de aplicabilidade geral (normalmente citados como princípios gerais do direito administrativo, ou como princípios do processo administrativo ou dos atos administrativos), há vários outros, para campos mais específicos, como servidores públicos, contratos administrativos, serviços públicos etc. De qualquer modo, entre os lugares-comuns dos administrativistas, talvez os mais gerais e populares sejam os principias do interesse público (o direito administrativo cuida de garantir a realização do interesse público e dá às autoridades os poderes necessários para tanto) e da legalidade (as autoridades só podem fazer o que a lei autoriza, ao contrário dos particulares, que podem fazer tudo o que a lei não proíbe). São ideias simples, fáceis de entender, acessíveis ao senso comum; "grudam". Mas elas têm o mesmo problema do que dizem os guias para prender passantes nos quadros de Monet e Degas: só funcionam para um giro turístico, superficial. Quem se aprofundar nos debates jurídicos logo verá que as ideias sobre o direito administrativo são bem variadas, que juristas não se entendem, complicam demais. É, portanto, algo curioso: são princípios que, mesmo surgidos como produção de intelectuais, com o tempo saíram recortados dos livros, tomaram a forma de provérbios, puro senso comum, e assim são repetidos pelos guias. Esses princípios têm a mesma circulação e o mesmo valor dos provérbios: sabedoria popular, singela, sedutora, transmitida por tradição, difícil de contestar. Têm, também, todos os inconvenientes dos provérbios: superficiais, conservadores, desatualizados, distorcem as coisas etc. Quando se enfrentam a sério questões de direito administrativo (quando, por exemplo, se tem de resolver no tribunal um conflito entre o Estado e um particular), o ideal seria os debatedores terem noções profundas a respeito, ficarem agarrados ao complexo direito positivo (em vigor, claro), e jamais usarem provérbios como argumento, não é? Mas a vida não é assim, não. Boa parte do que aparece em discussão jurídica é ideia superficial, é lugar-comum, muitas vezes ocupando o espaço de textos normativos.' 2. o STF julgou inconstitucionais leis estaduais que regulamentaram a exceção do art. 164, S 3"',da CF porque entendeu, entre outras frágeis razões, que a contrata-
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A pessoa experiente sabe que na prática jurídica é preciso ficar alerta com os princípios proverbiais. Normalmente eles surgem nos debates como citação de frases ou pequenos trechos cortados de livros (manuais, cursos, tratados) de juristas consagrados, mais ou menos como com os textos sagrados. No caso brasileiro, provavelmente o que por mais tempo se usou como bíblia foi o livro de Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cuja influência direta foi fortíssima da metade da década de 1960 à metade da década de 1990. Embora hoje em dia ele já não seja tão citado diretamente como antes, suas frases ainda são bem presentes, inclusive porque migraram, às vezes literalmente, para livros bem populares. Hely indicou entre os pressupostos ou princípios do direito administrativo os seguintes: "( 1°)a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados; (2°) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; (3°) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público".3 Assim, é bem frequente que, discutindo a viabilidade de uma medida administrativa restritiva da liberdade, o consultor da Administração lembre o princípio do interesse público para dizer que sim, é viável, mesmo a lei nada prevendo a respeito; e que amarre O argumento na opinião de Hely sobre a desigualdade e a discricionariedade em favor da Administração. Quero deixar bem dito que eu não tenho nada contra o velho Hely. Também não sei, claro, se naquele caso fictício - que deixei aí por cima, malformatado - a medida restritiva da liberdade seria viável, ou não. Talvez seja, talvez não. Para saber, seria preciso estudar com bom cuidado o ordenamento jurídico. Mas eú sei que, numa dúvida assim, trazer princípio vago (o interesse público ...), ainda mais na voz de um imortal, é manipulação. ção de Banco privado como depositário de recursos públicos contrariava a "mor~lidade administrativa" (ADIIMC 2.600 e ADIIMC 2.661). Depois, julgou inconstitucional também a lei federal que regulamentou essa exceção, ainda com o argumento da imoralidade, e mais outro desse nível: violação da "razoabilidade", pois a exceção instituída seria ampla demais (ADUMC 3.578). Nesses casos, os princípios soam como argumentos de conveniência, com prestígio popular, que serviram para o Tribunal intervir em questão politicamente delicada, a privatização de Bancos. 3. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 40 ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2014, p. 50. ll
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Isto aqui, fique bem claro, é mesmo uma denúncia. No mundo jurídico prático, citar hiperprincípios é, em geral, o melhor modo possível de trapacear. Um truque para esconder a falta de fundamento dos pedidos, o puro voluntarismo na tomada de decisões e até a mais descarada violação de normas. O truque muitas vezes dá certo, pois o pacote bonito da ciência e a pompa das becas dos autores enganam, mesmo, os ingênuos. Minha opinião é esta: nos manuais de Direito, hiperprincípios até podem ser aceitáveis como retratinhos singelos, que antecipam para o novato, de modo rápido e trellÚdo - às vezes distorcido -, as delícias do mundo que ele vai visitar depois, devagar. Uma amostra grátis, nem sempre de qualidade boa. Mas alguém compra um tour por MiallÚ e Disney e aceita que a agência entregue apenas umas fotos trellÚdas do Pateta passeando na praia? Não. O turista quer, ele próprio, pôr o pé na areia, quer cansar as pernas no parque, quer apertar a mão do Mickey, quer seguir a parada ao anoitecer, quer se esmagar no avião. Portanto, leitor, na prática jurídica nunca aceite hiperprincípio no lugar das detalhadas normas jurídicas vigentes. Não beba café em pastilha. Princípio assim é lesão aos direitos do consullÚdor. 5. Este texto não
é sobre prim;ípios
cientificas
Quem quiser escrever sobre os princípios do direito adnúnistrativo vai ter de fazer uma escolha: ou põe a casaca e debate com os livros severos, tentando fazer arquitetura teórica; ou baixa à rua e vai ouvir a língua comum na boca da gente que passa, e tenta entender como é que ela funciona. Minha tentativa, aqui neste ensaio, é do segundo tipo, como já deu para ver. Não estou muito interessado em arquitetura teórica, na construção abstrata de um direito adllÚnistrativo de linhas perfeitas e harmoniosas. Não acho mais que esse tipo de esforço valha a pena. Mas quero, sim, entender por que se fala tanto de princípio, hoje em dia, entre a gente comum do direito administrativo. O que essas pessoas estão querendo dizer quando falam sobre isso? E para quê elas usam esses tais princípios? Qual o perigo? Quero, sim, produzir algum conhecimento
sobre essas coisas, mas
- você já sabe - não quero ligar isso à orientação que supõe o caráter
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científico do direito adnúnistrativo. Nem todo pensamento precisa ser "científico", nem toda área do conhecimento depende dos modos das "ciências duras". Ao contrário de tantos de meus colegas, hoje eu sou bem cético quanto ao sonho de provar o caráter científico dessa disci plina, ainda mais por meio da proclamação de hiperprincípios. 6. O direito administrativo como sistema: existe um critério?
Os que têm acreditado no caráter sistemático do direito adnúnistrativo pelejam por uma construção muito abstrata dessa disciplina. O desafio é identificar, bem rigorosamente, algum ponto essencial comum nos objetos que a compõem. Entre as soluções mais genéricas que esses pensadores já propuseram para esse problema teórico - o da essência no direito adllÚnistrativo -, surgiram ideias como as de "direito especial" (em contraposição ao direito privado, o comum), "direito da autoridade pública" (diverso do direito privado, que é baseado na igualdade dos sujeitos), "direito do serviço público" (direito em que a autoridade só se justifica como prestação de serviço à coletividade), "direito do interesse público" (diferente do direito dos interesses privados) e de "relação de adllÚnistração" (na relação jurídica de administração, característica do direito administrativo, o agente público cuidaria de interesses de terceiros, não de seus próprios interesses). São propostas alternativas, interessantes. Qual a melhor? A resposta é meio arbitrária. Aqui vai uma charada, leitor: descu bra a ideia capaz de pegar o que há de realmente comum (o mais significativo dos pontos comuns) a todos os compositores da MPB Música Popular Brasileira. É o vocabulário simples, a rima óbvia, a frase curta, como nos incríveis sambas de Cartola ("Alvorada lá no morro, que beleza; ninguém chora, não há tristeza, ninguém sente dissabor. ..")? Bem, há bastante disso, sim, na MPB, mas não nas letras de Chico Buarque, mais elaboradas. Será o ritmo do pandeiro saltitando na avenida, como no maior sucesso de Paulinho da Viola ("Se, um dia, meu coração for consultado, para saber se andou errado, será difícil negar. Meu coração tem mania de amor. ..")? Há isso nos bons sambas de morro, mas ... e as canções de Tom Jobim ("É pau, é pedra,
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é o fim do caminho; é um resto de toco; é um pouco sozinho ...")? Há ritmo aqui, mas não é o das chapinhas do pandeiro. E por aí vai ... É impossível chegar a um critério, a não ser que seja tão amplo que nele cajba qualquer coisa (o que há em toda a MPB é "música"), vago que não signifique muito (só a MPB tem a "alma brasileira") ou artificial (a verdadeira MPB é Jards Macalé; o resto é música étnica). Se não se perde muito tempo com essas polêmicas na MPB é porque ninguém leva a sério o problema conceitual, ninguém, no fimdo, acredita que seja mesmo útil discutir conceitos, precisá-los. Está todo mundo mais ou menos satisfeito com uma noção convencional e imprecisa de MPB. Em suma, ninguém visualiza a MPB como um sistema, e, por isso, ninguém acha relevante buscar o conceito científico, etc. e tal. Mas com o direito administrativo tem sido diferente. Os juristas que sugeriram os critérios de identificação que resumi ajnda agora, embora tenham divergido quanto ao bom critério, estão todos bem seguros quanto à importância de descobri-lo (inventá-lo?) e, assim, chegar ao núcleo essencial da disciplina. Nas várias propostas o pressuposto é igual: o direito administrativo deve ser pensado como um sistema; o direito administrativo não faz sentido se não for um sistema. E você, o que acha: a MPB só pode ser pensada como um sistema? Se não for, nas prateleiras das lojas a MPB vai ser totalmente contaminada por música sertaneja? Não vai dar para publicar um manual decente sobre MPB? Não poderá haver professores de MPB nas escolas de Música? Nenhum profissional terá direito ao título "cantor de MPB"? Você pode me contestar dizendo que essas ideias, embora engraçadinhas, não têm nada a ver: - Direito administrativo é coisa do mundo sério, não faz nenhum sentido tratá-lo como entretenimento, como MPB. Bom, preciso dizer a você que eu adoro MPB, gosto também de direito administrativo (estranho, já sei), torço de verdade pelos amigos que continuam fazendo experiências para descobrir os tais conceitos rigorosos, mas tenho a sensação de que eles estão atrás da pedra filosofaI.
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7. Princípios científicos ou retalhos? Na linha de orientação segundo a qual o direito administrativo tem de ser visto como sistema, alguns pensadores optam por formular hiperprincípios. Imaginam que assim se consiga representar bem es~e direito. Quem busca os princípios (no plural) de uma dlsclplma supoe que a definição não virá de um traço só, mas de mn punhado deles. Princípios do direito administrativo são, para esses Junstas, as IdeJas com que, usando apenas os traços principais, seria possível desenhar teoricamente sua área de conhecimento. Não é má ideia, esta, de resumir o direito administrativo em algumas imagens. Para mostrar Paris (Ah, Paris!) a suas amigas, a garota com certeza não vaj passar um filme completo de todas as 186 horas que passou por lá, tudo em 3 dimensões, e ainda mais .em câmara lenta, não é mesmo? Bastam umas fotos: a Torre, a Avemda, o Arco, o Rio, a Catedral, a Ponte, Mona Lisa, o metrô, a baguette, o free shop, adeus; enfim, os princípios. O direito administrativo também cabe, meio apertadinho, na legalidade, interesse público, publicidade, eficiência .•moralid,ade, fin~lidade, motivação, formalismo etc. - enfun, nos hlperpnnclplOs. Sao fotos da cidade jurídico-administrativa em que eu vivo. Em alguma medida a representam. Não gosto de todas, nem vejo bem todas ~s figuras, mas reconheço o perfil dos prédios. Para ISSOos hiperpnncl pios do direito administrativo me servem: COl~Ofragmentos aprolomativos, como hipergeneralizações para um pnmerro contato. E so. Espero que nenhum jurista amigo meu esteja lendo este texto, pois eles vão ficar muito bravos comigo se me virem rebaixando os princípios do direito administrativo desse jeito (- Retratinhos? Retalhos? Que audácia! São princípios científicos!).
8. Ciência ou convenção? Será que nos tratados, cursos e manuais de direito administrativo por aí, bons ou ruins, os capítulos de princípios são obra de um Doutor Sistemático, cientista espartano, rígido, experimentando e esquadrinhando o Direito com régua e compasso, atrás de conceitos, elementos, princípios exatos? Sinceramente, eu acho que não. Esse à venda
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negócio de listinha de princípios nos capítulos iniciais de qualquer livro de direito administrativo virou uma espécie de sinal da cruz ao entrar na igreja: tem de fazer, é pronto.
Bem, a coisa funciona assim. Imagine que você é escolhido, por um museu importante, para curador da exposição "Panorama da Arte Brasileira do Século XX". Seu papel é reunir umas poucas obras para representar esse universo. O que você vai colocar lá dentro? Qualquer coisa? Não, claro que não: têm de ser objetos que as pessoas recollheçam como Arte, além do mais brasileira, e do século XX.
Lamento dizer que não. Se você levar esse projeto ao diretor do museu, ele, muito amável, vai lhe explicar que as pessoas não estão nem um pouco interessadas no excêntrico gosto do curador fulano, mas na Arte Brasileira do século XX, entende? - Se deixo você montar essa exposição maluca, quantos milhares de pessoas vão passar ali, na bilheteria? São esses os constrangimentos do manualista que com hiperprincípios faz um panorama do direito administrativo. O que ele consegue não é mais que isto: um panorama, uma colcha dos retalhos disponíveis. Ele também não pode ser muito original, senão o livro não vende, nmguém lê. No que ele pode mesmo inovar, como um bom curador de
arte, é na disposição,
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A história desses princípios vizinhos é mais ou menos a mesma dos nossos. Estão em livros de direito constitucional, de introdução ao Direito, de teoria geral etc., e são usados em muitas áreas. Igual aos hiperprincípios administrativos, vão sendo transmitidos como as receitas de bolo da farmlia: do caderno da avó para a mãe, para a filha, para a neta; copiadas, recopiadas, mudam um pouquinho (bem pouquinho) de geração em geração, mas a base se mantém. E como a farrulia gosta!
- Posso pintar um quadro e colocar lá? Não, óbvio: você é curador, não artista.
- Posso arrumar uns quadros que ninguém viu, mas que eu acho o máximo, para fazer uma coisa totalmente diferente, que ninguém nunca fez?
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nas palestras - é comum os princípios da vizinhança também virem participar da conversa. Dignidade da pessoa humana, razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, boa-fé, confiança legítima, ampla defesa, contraditório, são os nomes de alguns desses hiperprincípios vizinhos.' Simpáticos, não são da casa, mas é como se fossem; circulam sem camisa, jantam com a gente.
Você deve estar se perguntando: - Se um dia eu quiser publicar meu manual de direito administrativo, como vou achar os "meus" princípios?
Há outro problema. As obras realmente disponíveis para esse tipo de exposição acabam não sendo muitas: acervos de museus parceiros, colecionadores exibidos, as coisas à mão. Você vai terntinar juntando mais ou menos o óbvio, que já apareceu antes em algum evento semelhante, e alguma pouca novidade.
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Tudo isso, vindo dos manuais de direito administrativo ou da vizinhança, é princípio cômodo, que não estraga na viagem, que mantém sempre o gosto. Por isso, vão sendo degustados por toda parte, tempos afora. No entanto, é meio fmgido, só porque o autor posou na capa do livro com o avental branco da ciência, dizer que a lista e o conteúdo dos seus princípios brotaram de rigorosos ,testes de laboratório. Cá para nós, nós sabemos que tudo não passa de conhecimento convencional. Receitas tradicionais de cozinha, na panela nova do chef da moda. A cozinha tradicional pode ser uma delícia, eu sei. Mas há um perigo grande nesse método de escrever hiperprincípios em manuais de direito administrativo partindo das receitas velhas. O perigo é ignorar, desprezar, rejeitar e esconder o que realmente importa: o direito positivo, seus detalhes, suas contradições e suas mudanças permanentes. E isso acontece não como exceção, mas como regra, pois é doença típica da hipergeneralização. 4. Será preciso explicar dignidade humana, razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, boa-fé, confiança legítima, por exemplo? Só de ouvir as palavras você já intui: se tem de respeitar a dignidade das pessoas, as decisões têm de ser proporcionais e razoáveis, estabilidade e segurança das relações são importante~, quem age com boa-fé tem de ser protegido, quem age de má-fé não pode ~er protegIdo, a confiança que alguém depositou em uma situação tem de ser conSiderada - e por aí vai.
na cenografia, na luz, nas cores, no entorno.
Estive até aqui referindo a lista de princípios com lugar cativo
nos manuais de direito administrativo. Mas nos encontros de administrativistas - nos processos, nos pareceres, em alguns manuais da área, I
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tema. Sua origem não é a ciência. A teoria sobre isso, para ser boa e útil, não precisa e não pode estar vinculada à concepção segundo a qual os princípios, em seu conjunto, têm de formar um sistema. É claro que uma das coisas importantes, nesse esforço teórico, é pensar no modo de compatibilizar a incidência de princípios. Mas nem por isso, repito, a ideia de sistema científico tem razão para aparecer aqui. Até porque seria impossível - excesso de pretensão e inviável na prática - alguém conceber, no plano teórico, um sistema capaz de determinar em abstrato, tudo bem encaixadinho, o conteúdo e o modo de incidência de todos e cada um dos grandes princípios jurídicos, e ainda em conjunto com o restante das normas jurídicas. Na verdade, teórico algum, mesmo anunciando seu apego a sistemas, foi ou será capaz de inventar algo assim. Prometem, mas não fazem. O direito administrativo positivo vigente em cada momento é uma gigantesca nuvem de normas, principiológicas ou não, em permanente movimento, que aumenta e encolhe, adquire novas formas todo o tempo, agrega e solta pedaços, escurece e clareia. Dá para escrever um manual da nuvem capaz de dizer, em cada instante, quais serão seu tamanho, cor e forma? Pois é, nenhum manual de direito administrativo jamais será ca paz de conceber uma teoria sistemática a seu respeito. Os manuais que tentam acabam fazendo uma teoria que quer se impor às normas, que as ignora e as despreza. Com suas hipergeneralizações, esses manuais acabam induzindo a uma prática jurídica que ignora a flutuação do conteúdo das normas, esconde as contradições e que também rejeita ou despreza as novidades normativas.
Você não pense que estou fazendo essas comparações domésticas para ridicularizar os queridos "princípios convencionais. Por acaso eu iria falar mal da vovó só porque faz parte do mundo doce da farmlia, com seu jeito cativante e sabedoria prática, e não de alguma academia alemã de ciências? Uma coisa não tem a ver com a outra. Vovó de fato não é produto da ciência, e sim do que há de mais tradicional; nem por isso é desprezível. É o que estou querendo dizer sobre os hiperprincípios dos livros de direito administrativo. Não são ciência, mas sabedoria de velho. Têm lá o seu valor, podemos respeitá-los. Mas eles ignoram as mudanças do mundo, não servem para elas, querem se impor a elas. Não podem ser o centro do nosso conhecimento. 9. A teorW não precisa de sistema
Há uma imensa experiência jurídica prática se desenvolvendo a partir de certas ideias básicas, algumas das quais circulam por aí como princípios. Há também ótimos juristas, com cabeça boa, muita pesquisa e tanta cultura, escrevendo coisa interessante a respeito disso. Esses juristas fazem teoria, algumas bem sofisticadas e detalhadas, pensando a sério nas possíveis consequências dessas ideias básicas para as diferentes situações, afastando distorções e, muito especialmente, checando se - e como - as normas jurídicas as acolhem ou rejeitam. Os bons juristas relatam e organizam a experiência prática (legislativa, administrativa e judicial), criticam, sugerem. Não ficam nas hipergeneralizações. Fazem distinções, olham a realidade, reconhecem as contradições, conferem resultados. Ler esse material teórico pode ser um prazer, além de útil para quem vive no mundo do Direito e uma ótima fonte para o trabalho. Mas é fundamental perceber que esses livros têm valor justamente quando abandonam as hipergeneralizações e se debruçam sobre a realidade jurídica. Assim, não dá para confundir o que eles fazem - um esforço analítico imenso, com resultados detalhados, específicos, cheios de nuances - com a proposta de enquadrar todo o direito administrativo em uns tantos princípios, supergenéricos. São coisas bem diferentes. Quero também destacar que nem mesmo o fato de poderem servir de base a uma construção teórica árdua e detalhada dá a essas ideias básicas. ou princípios, o caráter de científicos, nem faz deles um sis-
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10. Do tubo de ensaio para o mundo da Ciência? É uma tradição entre adminislrativistas reivindicar o status de cientistas e falar de princípios para provar que também merecem algum Prêmio Nobel. Um jurista brasileiro do passado, fazendo um esforço de conceituação do direito administrativo, disse que sua disciplina tinha "caráter científico", pois constituía um "conjunto harmônico de princípios jurídicos", lembrando que "não há ciência sem princípios teóricos próprios, ordenados, e verificáveis na prática".5 5. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., 40u ed., p. 40.
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Outro autor declarou-se engajado na tarefa de "conhecer o direito administrativo como um sistema coerente e lógico" , por meio da identificação de "noções que instrumentiim suá compreensão sob uma perspectiva unitária". Essas noções seriam os princípios, elementos de síntese de um modelo teórico puramente descritivo; eles tenam, portanto, "funções explicadora e aglutinadora", servindo à "compreensão dos vários institutos".6 Os princípios seriam ferramentas para o conhecimento, a compreensão, a explicação global, do universo esmdado. A levar a sério essa fonnulação, a função dos tais hiperprincípios (da suposta ciência) do direito administrativo seria puramente descritiva, explicativa. Em outros tennos: esses princípios seriam apenas os elementos principais de modelos teóricos construídos para descrever os objetos jurídicos. A ciência do direito administrativo seria um grande conjunto teórico capaz de representar um universo (o direito ad~nistrativo positivo), e os hiperprincípios (da ciência) do drrelto administrativo seriam as fónnulas de síntese desse conjunto teórico.
11. Do jurista intérprete para o aplicador
Mas, quando fala em cavar princípios como cientista, o admin!strativista veste o avental branco do personagem, só que o roteIro completo ele não vai representar. Os princípios (ou leis) da Física não são fonnulados para dirigir 'diretamente O comportamento de seus usuários, para revelar como eles devem agir (ou como podem exigir que os outros ajam); servem apenas ao conhecimento abstrato da realidade correspondente. Com os hiperprincípios
do administrativista
a coisa é um tanto
diferente. As fonnulações teóricas a que se dedicam os juristas são sempre destinadas a influir na produção e aplicação do Direito. Juristas são autores de guias para orientar a ação dos práticos. Portanto, seus hi perprincípios não são "tão teoria" assim. Na verdade, os juristas formulam princípios com função prescritiva, não para a pura descrição do que veem no ordenamento. 6. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito São Paulo. Malheiros Editores. 2014, p p . 55, S8 e 90.
Administrativo.
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O administrativista descreve o mundo do dever-ser (em que estão as nonnas, o direito administrativo positivo) - é verdade -, mas Com a finalidade de influir em seu funcionamento - esse é o complemento indispensável da verdade. Esse objetivo condiciona totalmente o conteúdo daquilo que ele fonnula com o nome bonito de "princípio". Os hiperprincípios do administrativista são, por isso, princípios prescritivos (no sentido de que se apresentam com a estrutura de dever-ser), embora fonnulados no campo do conhecimento, sem a autoridade de quem pode obrigar diretamente. O jurista é um gerador de conhecimento sobre o direito positivo, certo; seu esforço é bem conhecer, sim; mas seus princípios teóricos têm a fonna de nonnas (embora sem a sua autoridade, claro). O fato é que, apesar de fonnalmente anunciado no início dos livros sobre direito administrativo, o projeto puramente explicativo - isto é, de tratar de princípios como os elementos principais de um sistema puramente lógico - é logo abandonado pelos doutrinadores do Direito. Quando se põem a mostrar o que seriam os tais hiperprincípios, aca bam fazendo coisa bem diversa: expõem o conteúdo de certas nonnas jurídicas (muito vagas - mas este é um problema para mais à frente) que, a seu ver, seriam vigentes e teriam muita, muita, importância. O crítico de Arte não elabora teorias para influir no que fazem os pintores, mas no modo como os apreciadores veem as obras de arte. Já, os autores de direito administrativo elaboram seus princípios teóricos justamente para influir sobre os participantes (não sobre os expectadores) da produção de decisões jurídicas. A construção teórica de que resulta a enunciação de hiperprincípios para serem usados na solução de conflitos jurídicos (para influir na "interpretação", como dizem os autores), em verdade, é bem distinta daquela que identifica certas obras de arte como impressionistas, a partir de certos traços definidores. Os juristas fonnulam princípios para servirem de ferramentas na produção do Direito. Écomo se os críticos de Arte inventassem novas tintas ou pincéis e lhes dessem o nome de princípios da Arte.
12. Princípios /lOSmanuais:
/lormas em prosa
Os hiperprincípios de direito administrativo encontrados nos livros só são obra de teoria no sentido de que são feitos ou apresentados por
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teóricos, não pelas autoridades competentes para produzir normas. Mas o verdadeiro objetivo dos autores é igual ao das autoridades que fazem normas: influenciar na tomada de decisões. Embora se possa dizer que, em certo sentido, o jurista que enuncia tais princípios faz teoria, nem por isso ele o faz como parte da construção de uma ciência. Ele faz teoria no sentido de atividade mental, atividade não prática, do mesmo modo que o autor de um livro de receitas faz teoria, não comida. Um importante jurista brasileiro defendeu que o direito administrativo seria um sistema e estaria construído "sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração". Logo depOIs, afirmou
que do princípio da supremacia, vem "a superioridade do interesse ~~ coletividade, firmando a prevalencIa dele sobre o do partIcular, ( ...) . O que o autor está enunciando, embora com um discurso que fala de sistema e de ciência? Está enunciando um dever-ser: para ele, nos casos concretos, cabe ao aplicador fazer prevalecer o interesse da coletividade sobre o do particular. O autor não tem dúvida quanto ao caráter de seus princípios, tanto que, ao final, explica que eles servem não só "para o entendimento", mas sobretudo para a "interpretação do direito administrativo".' Outro administrativista consagrado também atribui aos princípios a função de servir à "interpretação do direito administrativo", como "regras próprias de interpretação e aplicação das leis, atos e contratos administrativos". Ele assume, de modo também bem explícito, que os tais princípios não são simples elementos de um complexo sistema cognitivo; estes têm - isto, sim - função normativa (são "regras", para usar o termo do autor).' Logo, a exposição de hiperprincípios por professores de direito administrativo não é, como se gosta de dizer, para arq;utetar um SIStema teórico complexo com função descritiva global. E para falar do conteúdo de normas, para gerar conhecimento a respeito delas, e, assim, induzir comportamentos. O valor desses hiperprincípios não é exatamente o de erigir bons sistemas de representação e compreensão
ed.,
7. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 3Jll e 70. 8. Idem, p. 97. 9. HeJy Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., 40a ed., p. 50.
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global dos objetos (uma ciência), mas o de conduzir a ações consideradas desejáveis pelo sistema normativo de que esses princípios são (supostamente) sacados. 13. Será que esses hiperprincípios
vêm mesmo do ordenamento?
Há hiperprincípios previstos como tais no ordenamento e outros que vêm da criação da comunidade de intérpretes, aplicadores ou juristas. Dos princípios do direito administrativo expressos como tais, os mais emblemáticos são os do art. 37, caput, da CF (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e os do art. 2", caput, da Lei federal de Processo Administrativo/LPA - Lei 9.478/1999 (os da finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica e interesse público, além dos que já estão na Constituição). Os juristas tiveram influência enorme na edição dessas normas, que são o estilo deles. Ao ver dos juristas, esse tipo de norma princi piológica seria um grande avanço, pois elas serviriam para filtrar as outras normas, depurando-as, e também para orientar a solução de casos concretos. Alguns desses princípios, de fato, tiveram bons efeitos, mas so bretudo por força de ideias ou regras bem mais específicas que a eles estão fortemente associadas, e que lhes dão concreção. Esses princí pios de bons efeitos são menos genéricos, com mais conteúdo, focados em problemas mais determinados, e.,assim, são menos manipuláveis pelos aplicadores. Estão nesse caso os princípios da publicidade,!' da motivação li e da ampla defesa. 12 Mas outros,como os princípios 10. A LPA, além de impor "a divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição" (art. 2 parágrafo único, V), estabelece com detalhe os casos, a formá e o conteúdo da comunicação de atos em processo administrativo (arts. 26 a 28). 11. A LPA, além de impor à Administração o dever de "indicação dos pressu postos de fato e de direito que determinarem a decisão" (art. 2 parágrafo único), diz que "os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos" (art. 50, caput), contém um rol de casos em que esse dever é especialmente indicado (art. 50, I a VIII) e estabelece os requisitos formais da motivação (art. 50, e 99). 12. A LPA, além de prever a "garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações [mais, à produção de provas e à interposição dos recursos, nos pro1 1,
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simples regra, querem impor licitação quando a legislação a dispensa, quando ela não faz nenhum sentido, quando é inviável etc.
da moralidade," impessoalidade,l' razoabilidadel5 e interesse públiCO,16 são hipergeneralizações'" cc'as, meio vazias, aplicáveis a qualquer assunto, um perigo. Eu tenho medo do uso abusivo que se pode
O princípio da supremacia do interesse público opera mais ou menos da mesma forma. O argumento é que, se as normas dão poderes às autoridades para muitas coisas, e se o interesse público é que os justifica, poderes podem ser presumidos em outros casos, quando houver interesse público. Normas específicas, inchadas artificialmente pelos intérpretes, vão dar origem a um hiperprincípio, incrivelmente extenso e poderoso. Atenção!
fazer deles. De outro lado, os juristas consideram haver princípios embutidos em disposições normativas (tomadas isoladamente ou em conjunto) que não falam em princípios, mas cujo conteúdo, por sua extensão, importância ou natureza, seria principiológico. Alguns intérpretes, andando nessa linha, chamam de princípio ao concurso público (CF, art. 37,11) e também à licitação (CF, arts. 22, XXVII, 37, S 6", e 175, caput). Outros, indicando inúmeros preceitos, constitucionais ou legais, que dão poderes de autoridade à Administração em situações específicas, tiram daí um princípio geral da supremacia do interesse
Por fim, fala-se em princípios implícitos na lógica do ordenamento. São aqueles princípios que o sujeito considera importantes por alguma razão' mas para os quais ele não consegue apontar uma base normativa textual qualquer, direta ou indireta. Seria o caso de alguns dos princípios defendidos por autores que já citei. Por exem plo, os princípios da discricionariedade e da indisponibilidade do interesse público.
público sobre o privado. Nesse grupo - o dos princípios embutidos - os problemas são incríveis. Cuidado com eles! Os intérpretes que, inchando artificialmente a regra da Constituição, promovem a licitação à categoria de verdadeiro princípio o que querem é lhe dar importância e efeito maiores do que o ordenamento expressamente lhe deu. Depois, com o argumento impressionante de que ali está um princípio, e não uma parágrafo cessas de que possam resultar sanções e nas situações de litígio" (art. 2fJ., único, X), regula em detalhes como esses direitos são assegurados, em capítulos dedicados à forma, ao tempo e lugar dos atos (Capítulo VIII), comunicação dos atos (Capítulo IX), instrução (Capítulo X) e recurso (Capítulo XV) , afora outros dispositivos. 13. A LPA limita-se a exigir "atuação segundo padrões de probidade, decoro e boa-fé" (art. 2 . 1 1 , parágrafo único, IV), mas nada ajuda na definição do que sejam " probidade" , '''decoro'' e " boa-fé". 14. A LPA nada acrescenta a essa expressão, pois no dispositivo que parece mais ligado a ela limita-se a exigir "objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades" (art. 21 1 , parágrafo único, IlI). 15. A LPA contém em outro preceito a exigência de "adequação entre meios e fins" (art. 211, parágrafo único, Vl), o que alude a um possível sentido de razoabilidade, mas nada contém que impeça um uso abusivo do poder de controle sobre a «razoabilidade". que é na prática o problema atual. 16. Na LPA, afora a enunciação do princípio, o que há é uma previsão exigindo o "atendimento a fins de interesse geral" (art. 21 1 , parágrafo único, 11), um dever de proporcionalidade no "atendimento do interesse público" (art. 21 1 , parágrafo único, VI) e o dever de adotar interpretação "que melhor garanta o atendimento do fim público" (art. 2 11, parágrafo único, XIII). A lei em nada ajuda na definição do que seja o "interesse público" e nada possui para evitar o voluntarismo no uso do poder de controle sobre o atendimento ou não, nos casos concretos, desse interesse.
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Quanto aos princípios desse grupo, o espaço para a arbitrariedade é ainda maior. O jurista que os enuncia assume grandes liberdades em relação ao direito positivo, do qual se desprega, e que ele quer corrigir ou melhorar. Aqui ele já não é bem um intérprete, mas um grão-legislador. Além disso, a norma que ele inventa tem aquela característica terrível, ameaçadora: a hipergeneralidade. Perigo! Os problemas que estou aqui apontando não seriam nem um pouco especiais se não fossem o status e o papel que os manuais de direito administrativo acabaram atribuindo a muito daquilo que eles elevaram aos céus principiológicos. Se não fosse isso, seriam apenas casos corriqueiros de normas já muito vagas em sua origem no ordenamento, que podem gerar distorções de aplicação; ou seriam casos de normas mal-interpretadas ou mal-aplicadas. Isso é o dia a dia da prática jurídica, e problemas do tipo já estão no preço. Mas a questão se torna sim muito séria e grave quando um produto defeituoso desses - um hiperprincípio de origem obscura e conteúdo frouxo - é transformado em dogma, por obra e graça da concepção segundo a qual o direito administrativo, sendo um sistema, depende de princípios gerais. Concepção que leva os hiperprincípios a serem venerados,
dos. Questão de fé.
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muito mais que demonstrados, testados e discuti-
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15. O fim
14. O que jazer com eles?
Já dá para ver otamacl,üàéi desafio que esses princípios nos propõem. O primeiro desafio é, mesmo no caso dos princípios enumerados por textos normativos, saber o que eles querem exatamente dizer. Interesse público, por exemplo, está na linguagem comum, e, por isso, captamos algo de seu sentido geral; mas o que o art. 2" da LPA quis exatamente dizer quando o previu? Quis dizer que a Administração deve fazer os interesses gerais prevalecerem sobre os individuais? (Sempre ou só de vez em quando?) Ou será que não é nada disso, e o que o texto legal está querendo dizer é outra coisa: que nenhum ato administrativo será válido se não estiver ligado a um fim de interesse público? Veja, caro leitor, que as duas interpretações de que cogitei são quase opostas: a primeira (a da supremacia) dá poderes à Administração, enquanto a segunda (a dos fins) os limita. Qual a correta? Complicado, não? O segundo desafio em relação àqueles princípios que o intérprete saca, por dedução ou indução, dos textos normativos ou de sua lógica geral é saber se há, mesmo, base para falar em princípio geral. Assim, por exemplo, o fato de inúmeras regras (constitucionais ou legais) específicas darem poderes a autoridades para restringir direitos dos cidadãos é suficiente para que afirmemos existir um hiperprincípio geral de supremacia da Administração, capaz de fundamentar medidas restritivas em geral, princípio que seria válido, portanto, mesmo para os casos em que não há regra legal que autorize essas medidas? A dificuldade de enfrentar esse segundo desafio é que o formulador, divulgador ou adepto desses hiperprincípios, depois de elevá-los a essas culminâncias, não aceita mais discutir a pertinência deles ao direito positivo, que lhe parece muito chão, inferior. A norma, mesmo inventada, entra para a dimensão principiológica e é como se ficasse ali, a salvo, coroada, acima do bem e do mal, protegida dos ataques do direito positivo. O terceiro desafio é extrair consequências desses princípios todos, para fins de direito. Aí a coisa se complica imensamente. Esses princípios são formulações muito vagas, e, se tiver vontade e autori-
dade para tamo, o aplicador pode sacar deles uma infinidade de consequências concretas. Até que ponto é legítimo que o faça?
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Como ficou claro dos exemplos que mostrei, embora os hiper princípios do direito administrativo sejam ideias com que professores tentam definir o que há de principal em sua disciplina, o debate a seu respeito não é sobre a construção de sistemas teóricos com funções cognitivas globais, mas diretamente sobre o conteúdo de normas jurídicas e sobre a consequente existência de direitos, deveres e poderes. Para quê serve essa constatação quanto ao verdadeiro caráter do trabalho que os juristas fazem na formulação desses princípios? Serve para afastar O engano de que o conteúdo de tal ou qual princípio seria ditado por um supremo esforço de arquitetura teórica, ou pelo método científico, ou por alguma outra lógica complexa e obscura. Os hiper princípios são - isto, sim - puro e simples fruto de interpretação de normas (bem ou mal) feita por quem os enuncia. O jurista que sustenta a existência de um hiperprincípio segundo o qual "a Administração Pública precisa (...) de poderes discricionários na prática rotineira de suas atividades", e que "esses poderes não podem ser recusados ao administrador público",n está manifestando a opinião de que existe norma com esse conteúdo no ordenamento jurídico. Para sustentar essa opinião, o método científico de nada serve como argumento, que tem de ser buscado em outro plano, o normativo. (Mas onde estará a norma que assegura uma discricionariedade geral para os administradores públicos do Brasil? Você sabe, leitor?) É o mesmo quando se defende que, em função de um hiperprincípio (o da supremacia do interesse público), os direitos atribuídos ao concessionário de serviço público podem ser avocados "a qualquer instante pelo Poder Público, como podem também ser modificadas as condições de sua prestação, por ato unilateral da Administração, sem pre que seja do interesse público, (... )"18 Só dá para sustentar esse tipo de ideia com base no ordenamento jurídico. (Mas será que o Direito atual do Brasil tem mesmo uma norma exatamente assim, de aplicabilidade geral? As leis de concessão, gerais ou setoriais,peJo menos as que eu conheço, não dão um poder tão largo.) 17. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., 40a ed., p. 51. 18. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 31~ ed., p. 88.
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Quem defende a existência de u m hiperprincípio desses teria de ser capaz de mostrar que ele ¥em.diretamente do sistema normativo, . do ordenamento jurídico. Ademais, quem sustenta que algo decorre do princípio teria de ser capaz de demonstrá-lo. Se não, não vale. O problema com a doutrina em torno dos hiperprincípios é que, de tão pretensiosos, de tão amplos, tão vagos, tão genéricos, não há '.. como submetê-los ao teste do ajustamento ao direito positivo. A forma e o tamanho desses princípios, hiperbólicos, não se ajustam à do tomógrafo do direito positivo, que é feito de outra lógica. Por isso, esses hiperprincípios nunca se submetem a tomografia alguma, e ninguém nunca vê que estão doentes. Você, leitor, que me seguiu até este ponto (obrigado, obrigado!), certamente já correu os olhos abaixo e, aliviado, viu que O texto está acabando. Não sem tempo (desculpe, desculpe!). Mas você deve estar se perguntando: o que o autor quer, afinal? Boa pergunta. São duas coisas. Primeiro, quero que o capítulo de princípios gerais de direito administrativo (e os princípios gerais disto e daquilo) seja eliminado dos livros e aulas. Ele é perigoso, gera engano e manipulação. Há. muitos anos eu tirei isso dos meus cursos de direito administrativo, e foi um grande bem para os meus alunos. É claro que examino com eles, por exemplo, o tema das fontes normativas, e, poÍtanto, nós discutimos qual o espaço da lei e dos regulamentos. Para tanto, nós percorremos com tranquilidade as muitas normas constitucionais aplicáveis e examinamos sem paixões a experiência jurídica sobre o assunto. O que aconteceria se, ao contrário, eu começasse por enfiar na cabeça deles um dogma: o do santo princípio da legalidade admiItistrativa, amém? Eles teriam medo de descobrir (pecado!) que no ordenamento jurídico atual o espaço da lei não é exatamente aquele que pregavam os nossos velhos manuais principiológicos. O aprendizado não pode começar com um capítulo que, com pretexto de ciência, o que faz é pregação, revelando mandamentos quase divinos do direito administrativo, desconectados da experiência jurídica concreta. Aprender direito é entrar a fundo nos problemas, nas mudanças constantes, nas contradições, imperfeições, nas exceções, nas tendências,
é ser doutrinado.
nas hesitações
normativas. Aprender direito não
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Portanto, abaixo os capítulos de princípios! Chega de doutrinaI' Em segundo lugar, quero que os profissionais de direito administrativo parem de usar hiperprincípios de origem e conteúdo duvidosos e, na solução de problemas jurídicos, usem o óbvio e o justo: o direito positivo. Simples assim. Adeus, arrúgo. Defenda-me por aí.
19. Como esta: Carlos Ari SundfeJd, Fundamentos de Direito Público, 58 ed., 5~ tir., São Paulo, Malheiros Editores, 2014, pp. 129 e 55.
Capítulo 9 ADMINISTRAR
É' CRIAR?
1. As leis são a alma do direito administrativo? 2. A Administração não é o braço mecânico do legislador. 3. Por que a ideia do braço mecânico ainda éforte no Brasil? 4. As leis não são. a única/ante do direito administrativo: 5. A Adm~nistração também se tornou fonte de normas. 6. A ação normativa da Administração é compatível com O Estado de Direito. 7. A ação normativa do Estado está se aprofundando. 8. Não está havendo deslegalização. 9. Está havendo uma intensificação normativa. la. Cresceu a interação do Executivo com o Legislativo. 11. Estamos na era da concorrência normativa.n. No que tudo isso afeta os administrativistas? 13. Graus de vinculação da Administração ao legislador. 14. Primazia da lei. 15. Genérica de pendência de lei para a Administração. 16. Reservas específicas de lei. J7. A relação de adequação entre leis e normas administrativas. J8. Que modalidade de nonna legal pode habilitar o regulamento? J9. O regulamento pode ser condição de aplicabilidade da lei? 20. Dever regulamentar. 21. Cada norma regulamentar em sua individualidade. 22. O poder de legislar é delegável ao regulamento? 23. A lei pode autorizar regulamentos? 24. Regulamentos executivos x regulamentos autorizados. 25. Qual é o mínimo de conteúdo para a lei ser suficiente? 26. O debate sobre a constitucionalidade dos regulamentos autorizados'. 27:0s regulamentos autorizados foram legitimados pela experiência. 28. Mas é preciso defender também o espaço da lei. 29. Conclusão.
1. As leis são a alma do direito administrativo? O direito administrativo foi inventado para servir de instrumento do projeto de direção da Administração Pública pelo Direito, A solu. ção original foi vinculá-la às leis editadas pelo Parlamento, pela seguinte fórmula: os atos e regulamentos administrativos, para serem válidos, precisariam estar autorizados por lei, A isso se chamou princípio da legalidade administrativa, em sua versão inicial.
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Há pensadores do direito administrativo ainda hoje convencidos de que a vinculação tio Parlamento é 'o eixo central da engrenagem que assegura a submissão da Administração ao Direito. Isso se traduz numa desconfiança em princípio contra as competências
1. É o caso do manualista intelectualmente mais influente, das últimas décadas no"direito'administrativo brasileiro, Celso Antônio Bandeira"de Mello, que se mantém fiel à clássica formulação de Carré de Malberg (v. La £Oi, Expression de la Volonté Générale, Paris, Economica, 1984). Para Bandeira de Mello a legalidade .é . ' : 0 princ~ pio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo" e o m:e1to a~nistrativo "é o fruto da submissão do Estado à lei", isto é, da "consagraçao da Idem de que a Administração Pública só pode ser exercida na confo~dade da lei ~ que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, mfralegal, consIste,nte na expedição de comandos complementares à lei". A lei a ~ue o autor se refere ~ a. editada "pelo Poder Legisl::ttivo - que é o colégio representativo ~e todas as tendencias (inclusive minoritárias) do corpo social", de modo que a legalIdade o que pretende é "garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretiza~ão des:a vontade geral" (Curso de Direito Administrativo, 28~ ed., São Paulo, Malherros Editores, 2011, pp. 99-100). Assim, para o autor, administrar é essencialmente executar, é concretizar a vontade do legislador. -Bandeira de Mello insere.se em uma tradição de reduzir enfaticamente o papel do Executivo, que, entre os administrativistas brasileiros, provavelmente nasceu em 1866 na boca de Antônio Joaquim Ribas: "O legislador é a inteligência que formu~a a regra; a Administração é a força mecânic~ que a ex:cut~" -: de mod~ ,qu~ ao adI ? lnistrador éaberia apenas "aplicar sistematicamente, as hlpoteses vanavelS da Vida prátiéa, o pensamento da lei, esclarecendo e completando _aga1a:rra. de que. ~la se serve e decretando as medidas secundárias de mera execuçao (Dlrelfo AdmInistrativo Brasileiro, Rio de Janeiro, F. L. Pinto e C. Livreiros-Editores, 1866, pp. 66-67).
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limitem ao desdobramento analítico de conteúdos sintéticos já contidos em lei).' É ainda uma linha pessimista quanto ao momento atual do Estado de Direito, pois o poder normativo do Legislativo estaria sendo corroído pelas delegações às autoridades administrativas e, com isso, a Admi~ nistração estaria fugindo do Direito. Para esta linha de pensamento o direito administrativo é o direito da execução das leis. Disso resulta que seria fundamental ao administrativista a capacidade de distinguir radicalmente as atividades legislativa e administrativa e que o principal dever dele seria a defesa do caráter não só subordinado como contido da atividade administrativa, a qual teria de se limitar à simples concretização de deliberações legislativas anteriores, não podendo ser juridicamente criativa. O presente ensaio, focado na discussão da experiência brasileira contemporânea, defende uma visão diversa. Como ponto de partida ele reconhece a importância que a Constituição de 1988 atribui à lei formal como mecanismo de submissão da Administração Pública ao Direito.' Reconhece também, claro, que as competências administrativas, inclusive as normativas, têm de encontrar nas leis suas bases e limites. Mas o ensaio contesta a ideia monista de que a vinculação da Administração ao Parlmpento ainda seja a alma do direito administrativo.' 2. Bandeira de Mello vê na outorga legal de competências normativas à Administração um "procedimento abusivo, inconstitucional e escandaloso", descaso de "nossos legisladores (...) na manténça das prerrogativas do Poder em que se encartam" e "olímpica indiferença pela salvaguarda dos direitos e garantias dos cidadãos" (Curso de Direito Administrativo, cit., 2 :8 ed., p. 359). 3. Esta é urna das razões por que este ensaio não adere à linha que propõe substituir, como critério definidor do direito administrativo, a vinculação da Administração à lei (isto é, ao Parlamento) pela vinculação da Administração à Constituição. Gustavo Binenbojrn defende essa linha: "Deve ser a Constituição, seus princípios e especialmente seu sistema de direitos fundamentais o elo de unidade a costurar todo o arcabouço normativo que compõe o regime juódico administrativo. A superação do paradigma da legalidade administrativa só pode dar-se com a substituiçã o da lei pela Constituição como cerne da vinculação administrativa à juridicidade" (Uma Teoria Jl
do Direito Administrativo - Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionali zação, 2a ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 36).
Embpra os adeptos dessa linha não desprezem as leis, tendem a supervalorizar a Constituição em relação a ela;>- o que me parece conduzir a diversos desvios, como procuro explicar no Capítulo 2 deste livro. 4. Entre os manuaJistas brasileiros relevantes, Odete Medauar é exemplo de quem também rejeita explicitamente a "sacralização da legalidade", entendida como
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Como demonstraram os' administrativistas clássicos, o direito administrativo supõe a vinculação do administrador ao legislador.' Este ensaio de modo algum pretende negar essa premissa, que continua sendo correta. O que ele contesta não é a existência da vinculação, mas a ideia de que ainda estaria nela toda a chave da amarração jurídica da Administração. Por isso, o ensaio afasta-se da visão de que os administradores teriam de ser braços essencialmente mecânicos, e vê como natural a outorga, a eles, de competências para criar a partir das leis - isto é, que as leis abram espaço jurídico para os administradores instituírem e conceberem soluções, políticas e programas. As ideias iniciais sobre separação de Poderes não incluíam pro priamente uma Administração Pública, com as dimensões e características que adquiriu posteriormente.'O Executivo original seria de fato acanhado. Afora a função de alto governo, ele se reduziria à im plementação concreta de deliberações já tomadas no plano legal. Mas foi a própria evolução política e jurídica que, a partir dessa costela, construiu um novo ser: a Administração contemporânea; criada e condicionada por leis, sim, mas com atuação jurídica de amplo espectro. A convicção que inspira este ensaio é que os debates jurídico-administrativos não devem ser feitos a partir de idealizações platônicas, e sim a partir da experiência jurídica. A interpretação muito pessoal de normas constitucionais que o jurista baseie nessas idealizações pode, claro, tervalor intelectual ou literário. Mas o conhecimento jurídico que tem interesse social, que deve impactar o funcionamento efetivo do Estado, é o que leva em conta fundamentalmente a experiência jurídica. A opinião deste ensaio é que parte significativa da visão jurídica sobre a Administração pública e da produção sobre direito administrativo no Brasil é fruto de idealizações, despreza e distorce a vinculação da Administração ao legislador (Direito Administrativo Moderno, São em Evolução, 2 ed., Paulo, Ed. RT, 1996, p. 138~v. também O DireitoAdmillistrativo 11
São Paulo. Ed. RT, 2003, p. 144). 5. Visconde do Uruguai, o mais clássico dos administrativistas brasileiros, em sua obra fundadora, o Ensaio sobre o Direito Administrativo, de 1862, assim disse: "O poder adminiStrativo está essencialmente subordinado ao Legislativo. Os seus atos não têm valor senão enquanto são consequências ou estão conformes com as leis que emanam deste último" (Visconde do u~guai, Coleção Formadores do Brasil, org. de José Murilo de Carvalho, São Paulo, Editora 34,2002, p. 97).
experiência histórica e acaba tendo influência negativa no controle jurídico concreto da Administração.' Como a amarração jurídica da Administração contemporânea é realizada, a par da lei formal, por várias outras fontes e mecanismos, a viabilidade do Estado de Direito não é comprometida só pelo fato de a Administração exercer amplas competências criativas por autorização legal. Este ensaio vê o direito administrativo como O direito que condiciona a criação e execução de soluções, políticas e programas pela Administração Pública.O dever básico do administrativista é trabalhar na ampliação do leque de alternativas para a ação administrativa encontrar no Direito sua base e seus limites, mas sem comprometer a extensão da função criadora que a Administração tiver recebido da legislação, nos termos constitucionais. A grande missão do administrativista contemporâneo não é tolher a criação administrativa para defender o espaço do legislador. É assegurar que o Direito, em suas múltiplas formas, influa sobre o espaço de deliberação administrativa, mas sem monopolizá-lo. 6. Uma dessas idealizações
é a
de Estado de Direito, como explica Almiro do
Couto e Silva: "Certo, num modelo ideal, o Estado de Direito estaria a exigir que os executores da lei, fossem eles juízes, administradores ou legisladores (suposta, neste último caso, a existência de uma lei superior), se limitassem a ser aplicadores mecânicos dos comandos contidos na nonua. A metáfora da boca que pronuncia as palavras da lei, da passagem célebre de Montesquieu, exprime esse anseio de onisciência e de onipresença, a um tempo só, do legislador e da lei. Esta, mesmo nas minúcias da sua aplicação concreta, do executor só deveria ter o braço e a voz, mas nunca o cérebro, a colaboração integradora da sua inteligência e da sua vontade. Na submissão dos órgãos e dos agentes à vontade geral expressa na lei estaria assim eliminada (como também, de resto, de toda a superfície do Estado), de forma absoluta, a volulltas individual do governante, do administrador, do juiz e, em certas hipóteses, até mesmo do legislador (quando houvesse uma lei mais alta a respeitar), substituída sempre por uma ratio objetiva, que lhe é preeminente e condicionante, contida na norma legal. "Essa é, no entanto, uma imagem do Estado de Direito que só existe no mundo platônico das ideias puras. O Estado de Direito que é conhecido da experiência histórica é aquele em que a sujeição da ação estatal à lei não significa sempre execução automática dos preceitos que a integram" ("Poder discricionário no direito administrativo brasileiro", RDA 179.180/51-52, Rio de Janeiro, Renovar, 1990).
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DIREITO
ADMlNlSTRATlVO
2. A Administração não
é o
PAltA CÉTICOS
braço mecânico do legislador
A vinculação absoluta da Administração 'ao legislador foi a primeira grande técnica concebida para a direção sistemática da ação adntinistrativa pelo Direito. Mas a experiência foi mostrando gargalos e insuficiências, o que levou ao paulatino enriquecimento do direito adntinistrativo com outras técnicas. Elas alteraram aos poucos as características do sistema, inicialmente concebido como de legalismo formal (em que o legislador faria as escolhas, o adntinistrador as executaria e os juízes corrigiriam as ilegalidades formais), tomando-o muito mais complexo. Uma das mudanças foi o surgimento da Adntinistração Pública como ampla estrutura personificada, com múltiplas e amplas tarefas e fins a perseguir. Isso fez com que a ação administrativa não pudesse mais ser definida como uma singela execução de leis.' A figura do adntinistrador como braço mecânico do legislador era capaz, talvez, de descrever um pouco do Executivo imaginado nos primórdios. Mas não é boa figura para explicar a Adntinistração multifuncional da ex periência jurídica histórica, que foi aparecendo aos poucos. A Administração Pública de cada País, suas estruturas, suas com petências, seus modelos de ação, foram construídos ao longo do tem po. Nisso, as leis tiveram - e têm - o seu papel, claro. Mas as soluções legais foram e são heterogêneas, com modelos e densidades muito variáveis. Grande parte dessas leis não contém a antecipação em abstrato de todos e cada um dos atos da Adntinistração, embora elas se jam as responsáveis pela instituição das organizações estatais e pela autorização e delineamento de sua ação futura. As atividades adntinistrativas escoradas nessas bases não podem ser definidas como mera execução de leis; há nelas, claro, implementação do que as leis preveem, mas a função criadora da Administração nesses casos não pode ser minintizada: essas atividades são muito mais que execução. Adntinistrar é também criar, a partir das leis. Essa Adntinistração criativa, ao atuar, interagindo com o Judiciário e a sociedade, constrói uma história, envolvendo práticas, entendimentos jurídicos, normas administrativas etc., que adquirem algum 7. Sobre os fatores históricos dessa mudança: Eduardo García de EnterrÍa, Revo!ución Francesa y Administraci6n
ContenlJ~oranea, 4D ed., Madri, Civitas. 1994.
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grau de vida própria. Ao fim desse processo toma-se muito irrealista usar a ficção de que a Adntinistração mesma e tudo o que ela faz seriam mecâilicas aplicações de leis.' A lei está na origem de tudo, é verdade, más nem por isso a vida adntinistrativa se reduz à execução' de leis, assim como nenhuma pessoa pode ser compreendida por inteiro pela simples referência a seus ancestrais. 3. Por que a ideia do braço mecânico ainda é forte no Brasil? É justo notar que já no início do século X x havia adntinistrativistas nacionais bastante conscientes da complexidade das funções da Adntinistração e da impossibilidade de descrevê-Ia como uma máquina de execução de leis 9
8. Irrealista e contraproducente, pelo ângulo da submissão da Admil).istração ao Direito. Quem minimiza as normas e atos da Administração, descrevendo-os como mera execução de lei, tem, por dever de coerência, que encarar as invalidades como um simples problema de incompatibilidade com a lei. Mas essa fórmula é claramente insuficiente para explicar, por exemplo, por que há invalidade no caso do ato administrativo concreto incompatível com o regulamento, mesmo que esse ato não seja diretamente contrário à lei. A invalidade, na hipótese, nada tem a ver com a vinculação da Administração ao legislador, mas sim com a vinculação da Administração às suas próprias normas (princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos). Aquela fórmula também não explica a inviabilidade de a nova interpretação administrativa de um texto legal ter efeitos retroativos (proibição hoje positivada I)a Lei Federal de Processo, n. 9.784/1999, art. 21 1, XIII, infine, mas existente antes). A nova inter pretação não invalida os atos anteriores, porque administrar não se reduz a executar materialmente leis; administrar é também interpretar. Incide, então, no caso, a vinculação da Administração a suas próprias interpretações passadas, que é uma aplicação particular da ideia de que a Administração está vinculada às suas próprias normas (interpretar é atribuir sentido ao texto legal; é produzir a norma, que é produto da interpretação). Interessa destacar, aqui, o quanto o direito administrativo seria insuficiente, como instrumento de controle da Administração, se fosse levada realmente a sério a visão que subestima a ação normativa da Administração. Felizmente nem seus próprios defensores vão a tanto, pois, em incoerência saudável, também eles defendem as múltiplas aplicações da ideia de que a Administração se vincula às suas próprias normas. 9. Alcides Cruz, o mais arguto dos administrativistas da P República, é o exemplo a citar. Em seu Direito Administrativo Brasileiro, de 1914 (Rio de Janeiro, Francisco Alves), referiu a Administração como um "conjunto de serviços públicos" (p. 19) e recusou-se a vincular seu conceito de direito administrativo à separação de Poderes (noção "se não incompleta, positivamente obscura" - p. 23). Como fontes do direito administrativo listou as normas constitucionais, as leis, os regulamentos e outras normas administrativas, os princípios, a jurisprudência nacional, o costume e
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Todavia, a visão monista - de que a Administração é uma máquina de executar leis e, portanto, o direito administrativo é só um direito da execução das leis - manteve-se forte no pensamento jurídico brasileiro, e inclusive cresceu nas décadas finais do século XX. Há várias explicações para isso, e a primeira delas tem algo a ver com a resistência às ditaduras. No decorrer dos anos nossa história administrativa foi ficando muito vinculada a períodos de ditadura (a de Vargas, de 1930 a 1946 e a militar, de 1964 a 1985). Aí, vários publicistas adotaram a estratégia de tentar cortar as asas do Executivo e de suas autoridades pelo argumento que as diminuía: elas não poderiam ser mais que fiéis executoras da vontade popular expressa nas leis, cujo sentido e alcance caberia ao mundo dos juristas revelar. Seria um constrangitnento litnitado ao poder das autoridades, mas ainda assim algum constrangitnento. 1O a praxe dos negócios públicos e a doutrina e jurisprudência estrangeiras, especialmente a norte-americana (p. 27). Quanto às condições de validade do ato administrativo, falou em "conformidade" e "submissão" ao "Direito" Cp . 38) e na necessidade de o ato ser "legal" (p. 39). Como se percebe, Alcides Cruz já estava muito longe de uma visão simplificadora da Administração e do direito administrativo. 10. O clássico de referência dessa estratégia é o belo livro O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, não por acaso lançado em 1941, em plena Ditadura Vargas, por Seabra Fagundes, que se tomaria o grande símbolo do publicismo democrata. Sua definição para a Administração estampou com nitidez a visão política que a inspirou: "A Administração tem por finalidade exclusiva os fenômenos de realização do Direito; a legislação é formadora do Direito e a Administração executora" (& ed., São Paulo, Saraiva, 1984, p. 5). O fio dessa meada foi retomado durante a Ditadura Militar por Bandeira de Mello, que lançou seu Elementos de Direito Administrativo em 1980 (São Paulo, Ed. RT) (hoje, Curso de Direito Administrativo, 29.aed., São Paulo, Malheiros Editores, 2012), quando o regime já estava em período fmal, da distensão (mas o livro reunia textos que vinha elaborando desde a década de 1960). Com sua doutrina, Bandeira de Mello acabou celebrizando, como síntese simbólica da corrente monista, uma sentença de Seabra Fagundes: "administrar é aplicar a lei de ofício". A doutrina de Bandeira de Mello conquistou o coração de boa parte dos publicistas teóricos da época. Mas não foi unânime em sua geração. Almiro do Couto e Silva, contemporâneo discreto mas profundamente respeitado, pôs-se enfaticamente em outra ala, como se vê aqui: "A Administração Pública é voltada para o futuro. No Estado contemporâneo, extremamente complexo, seria impensável que a lei sempre detenninasse, até os últimos pormenores, qual deveria ser o comportamento e a atuação dos diferentes agentes administrativos. A noção de que a Administração Pública é meramente aplicadora das leis é tão anacrônica e ultrapassada quanto a de que o
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Este ensaio respeita o espírito democrata que, em sua época, ins pirou tal postura. Mas isso não impede de dizer que essa orientação não serve mais a nosso direito administrativo. Ela, sobre ser tecnicamente inexata e insuficiente, perdeu sua razão de ser: o Brasil vive agora numa democracia. AAdministração atual é um espaço de deliberação pública - feita na forma do Direito, mas não apenas considerando o Direito. O Direito dirige e limita a ação administrativa, mas não predeterrnina por mteIrO todos seus atos. Na deliberação administrativa entram a política, ofl técnica, a subjetividade etc. Sobre a deliberação há controles jurídicos, checando sua compatibilidade com o Direito. Mas há tam bém influências e controles não jurídicos, de dentro ou de fora das instituições estatais, atuando pontualmente ou no longo prazo. Não faz sentido, na vigência do regitne democrático, propor que os controles jurídicos absorvam o campo natural dos controles não jurídicos. O mundo jurídico não tem - e não deve ter - todas as respostas. . Na dinâmica da redemocratização brasileira a partir da década de 1980 foi importante a estratégia de usar instrumentos jurídicos (o Judiciário, os processos, as normas etc.) para forçar o debate sobre questões públicas, que no mundo da Política ainda não se fazia no modo amplo da Democracia. Era o campo jurídico como arena da Política, que fazia sentido incentivar. Mas essa estratégia se tornou anacrônica. Há, por parte dos homens do Direito, um persistente preconceito contra funcionários e dirigentes públicos, estigmatizados 'como autoritários ou patritnonialistas. Isso tem justificado as tendências de restringir o alcance da função criadora e da competência desses agentes públicos para fazer deliberações em nome da sociedade. O Direito precisa ser a base e o limite dessas deliberações, claro. Mas há outros mecanismos institucionais de influência e controle, funcionando sob lógica não puramente jurídica, que também as condicionam. 11 O mun~ireito_ seri~apenas um limite parao administrador.Por certo, não prescinde a Admirustraçao ~bl.1ca de uma base ou.de u~a autorização legal para agir, mas, no exercício da competencIa lega1ment~ defimda, tem os agentes públicos, se visualizado o Estado glob~me?te, ~mdilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora, que e hOJel,lmversalmente reconhecida ao Poder Público" ("Poder discricionário no direito administrativo brasileiro", RDA 179-180/53, Rio de Janeiro, Renovar, 1990). . 11. Um panorama dos controles útil para nosso debate está em Maria'Rita Lourerro, Fernando Luiz Abrucio e Regina Sílvia Pacheco (orgs.), Burocracia e política
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do dos juristas não pode pretender o monopólio da influência na deli beração pública, tampouco a última e verdadeira palavra em todas as , questões. A orientação dos juristas que reserva toda deliberação pública relevante para o Legislativo supõe ser viável retirar a política da administração, reduzir a mera técnica o papel dos dirigentes e funcionários públicos. Mas essa orientação despreza a experiência histórica e não faz sentido no mundo contemporâneo, em que o largo 'espectro de funções assumidas pelo Estado exige uma Administração pública também de largo espectro. É uma orientação preconceituosa, que usa o dogma de que só nos Parlamentos pode haver deliberação democrática e, por isso, estigmatiza a Administração Pública como não democrática. É uma orientação que se recusa a ver a realidade política atual, em que a Administração está impactada por vários mecanismos democráticos. É também uma orientação elitista, que faz o elogio retórico do papel dos Parlamentos como pretexto para, ao fim e ao cabo, valorizar _ isto, sim - o papel da elite de profissionais do Direito, inflando seu poder de veto e influência sobre a Administração. É de se indagar o quanto é mesmo sincera a postura dos juristas ao louvarem a lei do Parlamento como expressão da Democracia. No caso brasileiro essa sacralização foi forte justo nos períodos mais autoritários, época em que nossos Parlamentos sofriam problemas grandes de legitimidade. Quando, ruindo O regime militar em 1985, os parlamentares alcançam uma representatividade que nunca tiveram em nossa história _ e em que a defesa da lei adquiria muito mais sentido _, justamente aí aumenta a desconfiança dos juristas em relação a essas instituições, aparece um amor mais forte e se chega à sacralização da Constituição, como dique às falhas do próprio legislador. Em muitos discursos a Administração começa, então, a ser descrita como braço mecânico da Constituição, como uma máquina de executar normas constitucionais.
É interessante questionar o sentido dessa sacralização, pelos administrativistas, primeiro da lei e depois da Constituição. Defesa do domínio da vontade popular sobre a Administração (pelo Parlamento e pela Constituinte) ou defesa da influência dos profissionais do Di no Brasil-
Desafios para o Estado Democrático no Século XXI, Rio de Janeiro, FGV,
2010, pp. 109-147.
reito sobre a tomada de decisões públicas? Nos debates sobre questões admirústrativas o uso de normas legais e de normas constitucionais para limitar ou dirigir a ação dos dirigentes e servidores públicos é instrumento do mundo jurídico, de profissionais do Direito. Afinal, o verdadeiro sentido e o alcance dessas normas quem fixa são as instituições jurídicas (órgãos de Advocacia pública, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, órgãos de controle interno), isto é, as instituições cuja intervenção nas várias matérias é justificada pelo dever de zelar pela aplicação do Direito. A sacralização da Constituição ocorreu a partir da década de 1980 sem que, em linhas gerais, abrandasse a tendência de supervalorizar a legalidade administrativa. É que havia um sentido comum a aproximar esses dois movimentos: tratava-se em ambos os casos de limitar o espaço de deliheração dos dirigentes e dos funcionários públicos, de negar-lhes competência para a criação jurídica. Hipertrofia constitucional e hipertrofia legal pareceram a muitos publicistas brasileiros como faces de uma só moeda, como parte de um mesmo movimento. Sacralizar a lei e sacralizar a Constituição para diminuir dirigentes e servidores públicos é uma possível estratégia de profissionais do Direito em busca de mais espaço, mais poder, mais prestígio. Por isso que a redemocratização não abalou o monismo no Brasil, antes justificável como resistência ao autoritarismo. Contemporaneamente à redemocratização, e em parte por conta dela, houve um impressionante crescimento e fortalecimento tanto das carreiras jurídicas públicas como das instituições de controle baseadas no Direito. Elas procuraram se legitimar disputando os espaços de deliberação com os dirigentes e os servidores da Administração. Era natural que, em busca de afirmação , elas hipervalorizassem o Direito, isto é, forçassem o sentido de normas constitucionais e legais para usá-Ias como argumentos nos debates sobre questões administrativas. Como o monismo legalista era um discurso ainda com status entre juristas brasileiros, acabou sendo assumido como peça desse esforço de ampliação do estoque de argumentos jurídicos. Negar a viabilidade de a Administração ser criadora, vê-Ia como simples braço do Direito, ~e~ân!co
era um meio de afirmar maior poder para as
InstItUIções incumbidas de dizer o Direito.
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Assim, se é verdade que os adeptos da superconstimcionalização do direito administrativo têm .1;nuitas.v ezes pregado contra as leis, defendendo seu afastamento por suposta incompatibilidade com a Constimição, no geral os dois movimentos têm podido conviver, pois têm um inimigo comum: o administrador público. Assim, o monismo legalista continua forte no Brasil. Por outro lado, o persistente prestígio da visão monista tem razão bem forense. Por décadas o direito público tem sido o objeto da maior parte das ações judiciais do dia a dia, com larga predominância de dois temas: os tributários e as vantagens funcionais dos servidores públicos. No âmbito desses debates judiciais, que são a esmagadora maioria dos que envolvem o direito administrativo, é correto mesmo dizer que a Administração nem pode exigir nem pode conceder o que já não esteja analiticamente previsto em lei, pois as sucessivas Constimições brasileiras vêm se mantendo rígidas quanto à necessidade de a pr6pria lei impor os deveres tributários ou conceder vantagens funcionais. Assim, não espanta a tendência de os publicistas - em geral profissionais largamente amantes nessas causas - generalizarem para todo o direito administrativo a ideia de estrita legalidade, que é específica de algumas de suas partes.
4. As leis não são a IÍnica fonte do direito administrativo Do ponto de vista estritamente técnico, a sacralização da lei não é necessária ao direito administrativo, isto é, não é indispensável ao sucesso do projeto de condicionar juridicamente a Administração. Em seu crescimento hist6rico o direito administrativo foi ampliando enormemente suas bases, e a função tática da lei foi, em muitos casos, sendo assumida por outras fontes normativas.l2 No processo de alargamento das fontes do direito administrativo, o primeiro passo foi o paulatino reconhecimento de força normativa a uma massa de orientações da jurisprudência. A submissão da Administração à Justiça fez dos juízes uma fonte produtora de normas administrativas, ao lado das leis." As teorias dos princípios gerais de
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Direito, dos atos administrativos, dos limites substanciais à discricionariedade etc. foram adotadas pelos juízes, tendo os juristas se encarregado de sistematizá-las e divulgá-las, formando a doutrina do direito administrativo, tudo com O fim prático de dirigir juridicamente a ação administrativa. Depois, em muitos Países, como o Brasil, veio uma sucessão de normas constitucionais substantivas. Elas fizeram toda sorte de definições sobre organização administrativa, políticas públicas, direitos sociais, novos direitos individuais etc. - enfim, sobre matérias que, nos prim6rdios, estavam a cargo exclusivamente do Parlamento. A seguir foi criada ou reforçada a jurisdição constitucional (que no Brasil está nas mãos não s6 do STF, mas de toda a Justiça), o que levou a uma nova onda de orientações jurisprudenciais, fixadas a partir de interpretações' da Constituição." Por fim, surgiu uma infinidade de normaS de origem não nacional, em maior quantidade em alguns lugares que em outros (como a União Europeia), mas relevantes em todo canto (para o caso brasileiro, basta citar as normas internacionais de direitos humanos)" Com tudo isso, foi destruído o monop6lio da função normativa, originalmente pertencente ao legislador, implantando-se um regime concorrencial de normas. Pode-se dizer, assim, que os "interesses do Direito" não estão mais aos cuidados apenas do Parlamento, como se concebeu de início; há muitos outros organismos cuidando deles. Logo, carece de base a visão monista de legalidade, de que a vinculação da Administração ao Parlamento ainda seja a alma do direito administrativo. mann, COllrsde Droil Administrarij, t. I, Paris. LGDJ. 1982 (pp. 451 e 55.). Garcia de Entema destaca o q u a n t o a paulatina substancialização do Direito por obra da jurisprudência provocou a superação da técnica de submissão da ação administrativa ao legislador, que esteve na origem do direito administrativo (Ref/exiones sobre la Ley y los Principias Generales dei Derecho, Madri, Civitas, ]984). 14. No Direito Brasilciro, para um panorama, v. Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo - Direitos Fundamemais, Democracia e Constit"cionalização, 2 ed., cit. No Direito Francês, v. Ahmed Salcm Ould Bouboun, L'Apport d" ConseU Constitucionnel au Droit Administratij. Paris. Economica, 1997. 15. Sobre isto, v. o Capítulo 7 deste livro. Para um panorama mais amplo: Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7 ed., São Paulo, Saraiva, 2006. 1
]2. Sobre o tema V. por exemplo. Tanneguy Larzul, Le s M u t a t; o n s d e s S o u T C e s du Droit Admillisrratij, Lyon, L'Hennês.1994. 13. A discussão quanto à impossibilidade lógica de subsumir essas normas de origem jurisprudencial ao conceito de lei foi adequadamente feita por CharJes Eisen. O
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Na atualidade a amarração jurídica da Administração é garantida por um complexo de normas deJ:tluitas fontes e de mecanismos que elas todas foram desenvolvendo com o tempo (o processo administrativo, por exemplo). A eventual limitação, em alguns ou muitos casos, do peso da atuação do legislador não seria decisiva para destruir a sofisticada engrenagem que conduz juridicamente a Administração. 5. A Administração também se tornou fonte de normas
Rompido o monopólio do Parlamento sobre a função normativa por esses lados (o do constituinte, dos juízes ordinários e constitucionais, dos órgãos internacionais, da doutrina mesmo), mais um movimento o atacaria por outro flanco. A própria Administração Pública tomou-se uma ativa produtora de normas. As razões aqui foram outras, tendo a ver com a ampliação das funções do Estado, sobretudo no decorrer do século XX, pela prestação de inúmeros serviços, pela regulação profunda da economia etc. Essas novas atividades envolveram a intensificação brutal da produção normativa, e os Parlamentos não haviam sido formatados para dar conta disso sozinhos. A Administração foi, então, assumindo o papel de produzir grande parte dessas normas, por regulamentos administrativos.1 6 Em geral isso tem ocorrido sob grande interação com o legislador, que edita leis sobre esses serviços e regulações, as quais a seguir servem de base para o desenvolvimento de uma ampla produção normativa administrativa. Com isso, fica evidente que a teoria do direito administrativo brasileiro não pode mais se assentar no monismo legalista. Mas isso não significa que a lei tenha deixado - ou deva deixar - de ser presente. Também não significa, claro, que a ação normativa da Administração esteja - ou deva ficar - livre do Direito. 16. Algumas pessoas preferem guardar a expressão "regulamento" s6 para os textos normativos administrativos editados pelo Chefe do Executivo. Este ensaio faz um uso mais amplo, para incluir as nonnas administrativas de qualquer origem, inclusive dos órgãos e entes reguladores. Não há muita utilidade no uso limitado, pois
não há matéria reservada ao Chefe do Executivo.
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6. A ação normativa da Administração é compatível com o Estado de Direito
O movimento de expansão da ação administrativa por meio da produção de normas é alvo de diversas críticas, com múltiplas orientações (como a contrária à própria existência ou profundidade da regulação da economia, por exemplo)P O que interessa a este ensaio é um dos argumentos dessas críticas: o argumento de que a ampla ação normativa da Administração seria incompatível com o pressuposto central do direito administrativo, o da vinculação da administração ao legislador, cujo enfraquecimento colocaria em risco o Estado de Direito. O argumento não procede, por se basear em ilação falsa: a de que, como está incumbida da maior parte da produção normativa, a Administração teria, quanto a isso, condicionamentos jurídicos muito fracos. A fragilidade estaria no fato de as leis terem se tomado relativamente tímidas, contidas, justamente para abrir espaço para a posterior ação administrativa normativa. 17. Não cabe aqui a análise de questões e polêmicas que, mesmo envolvendo a ação normativa da Administração, não se liguem ao foco deste ponto do ensaio, que é discutir se o monismo legalista ainda vale para definir a possível extensão dessa ação normativa e, caso não valha, corno se garante sua amarração pelo Direito. Um tema interessante, que foge desse foco, é o relativo à existência, ou não, no interior da Administração, de algum tipo de 'monopólio ou preferência para o Chefe do Executivo editar normas. A -razão do debate é que algumas leis atribuem competência normativa diretamente a certos órgãos ou entidades, alguns deles autônomos frente ao Chefe do Executivo (como as agências reguladoras), excluindo ou limitando, ex pressa ou implicitamente, o espaço potencial de decretos regulamentares. Há quem diga que isso é inconstitucional, pois constrangeria a função de direção do Chefe do Executivo (CF, art. 84, li) e reduziria indevidamente o poder regulamentar a ele outorgado (CF, art. 84, IV - cabe ao Presidente expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis). É uma interpretação de inspiração bonapartista, que vê no Chefe do Executivo o elo necessário entre todas as partes da Administração e que se opõe à tendência contemporânea ao policentrismo da Administração, que as leis vêm impondo e é importante inclusive para evitar a concentração excessiva de poder. Ademais, trata-se de uma leitura por demais literal e estrita, pois a Constituição não diz como e quanto o Chefe do Executivo dirige cada parte da máquina, tampouco que só ele faz normas administrativas (os ministros, por exemplo, também as fazem - CF, art. 87, 11).A leitura redutora é argumento frágil demais para criticar a decisão, que venha da própria lei, de dar autonomia a órgãos e entes, inclusive para o exercício de ação normativa.
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E por que é falsa a ideia de que seriam fracos os condicionamentos jurídicos sobre a ação norrna:t1va da Administração? São duas as razões. Em primeiro lugar, com a concorrência de fontes no direito administrativo contemporâneo, ele deixou de se resumir às leis. Hoje, quando a Administração produz normas, sujeita-se a um amplo controle baseado em fontes jurídicas .extralegais: normas sistematizadas pela doutrina, com origem jurisprudencial comum," normas diretamente da Constituição ou emanadas da jurisdição constitucional,!' .normas não naçionais etc. Logo, ainda que seja relativamente fraca a carga de condicionamentos legais em algum caso, de modo nenhum a ação normativa administrativa será uma operação livre, isenta de condicionamentos jurídicos significativos.'o Em segundo lugar, carece de comprovação a suposição de que a abertura de um amplo espaço para normas administrativas seja produto de leis mudas, que não direcionam a ação administrativa. Isso pode acontecer em algumas situações, claro, mas não há relação necessária entre aumento da atuação administrativa e diminuição da atuação do legislador. Decerto que, se a Administração cria novas normas, não é o legislador quem as faz. Mas isso não significa que O legislador não imponha inúmeros e importantes condicionamentos a essa ação normativa. Ele O faz, sim, por meio de normas substantivas, que orientam 18. Sobre esse controle
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por exemplo, EdU:ardo GarCÍa de Enterría, Legislación Delegada, Potestad Reglamentaria y ContraI Judicial, 3 ed., Madri, Civitas, 1998, e David Blanquer, £1 Contral de los Reglamentos Arbitrarias, Madri, Civitas, 1998. V.,
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19. Sobre esse controle V., por exemplo, Francisco Caamaiio, EI Control de Constitucionalidad de Disposiciones Reglamentarias; Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1994. 20. O caso francês é muito interessante para ilustrar esse fenômeno de condicio-
namento da ação normativa administrativa por outras fontes normativas, quando faltem limites legais. A C~nstituição de 1958 previu os regulamentos autônomos em matérias que seriam do dOTIÚnioda Administração, não do dOTIÚnioda lei. Os regulamentos que surgiram passaram, então, a ser submetidos, pela Justiça administrativa, a controles baseados em normas de outras fontes, como os princípios gerais do Direito. O fenômeno foi muito cedo percebido e descrito pelos analistas, como René Chapus ("De la soumission ao droit des reglements autonomes''", in Recuei! Dalloz de Doctrine, de Jurisprudence et de Législation, Paris, Dalloz, 1960).
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em algum grau o sentido e o conteúdo das ulteriores normas administrativas, sem fechá-las totalmente de antemão; de normas de organi za çã O , que cuidam da construção institucional dos organismos administrativos com competência normativa; e de normas processuais, que disciplinam o modo de produção dessas normas, exigindo estudos prévios de impacto e viabilizando a participação e O controle de interessados e de outros agentes estatais, por meio de consultas e audiências públicas. Em suma, não é de modo algum correta a suposição de que as leis estejam ausentes dos campos em que a Administração tem produzido normas. Existe, sim, ao contrário do que muitos supõem, intenso condicionamento diretamente por lei da ação .normativa da Administração; não é, certo, o tipo de condicionamento que os monistas reclamam-,mas ele existe. Assim, a crítica deste ensaio aos monistas está no fato de eles proporem a defesa do espaço da lei contra a Administração como a missão central dos administrativistas. Essa atitude equivocada gera duas distorções. A primeira é a sabotagem dos espaços de criação administrativa legitimamente abertos pelas leis. A segunda é a insuficiente valorização daquilo que é realmente essencial ao direito administrativo do presente: a construção institucional dos organismos administrativos e os processos administrativos."
7. A - ação normativa do Estado está se aprofundando É um fato a tendência à ampliação da competência normativa de órgãos e entes administrativos, sobretudo nos setores regulados. A criação das agências reguladoras no Brasil durante a década de 1990 levou a um reconhecimento formal, pelas leis - com a aceitação relativamente tranquila de nossa Corte Constitucional e demais instãncias
21. Uma ampla discussão sobre esses diversos controles encontra-se em: Javier Barnes, "La transformación deI procedimiento administrativo", Revista Argentina de! Régimen de la Administración Pública 383/33~76, Ano XXXII, Buenos Aires, RAP, 2010; Alexandre Santos de Aragão (coord.), O Poder Normativo das Agências Reguladoras, Rio de Janeiro, Forense, 2006; Leila Cuéllar e Egon Bockmann Moreira, Estudos de Direito Econômico, Belo Horizonte, Fórum, 2004; e Antônio Carlos de Almeida Amendola, Participação do Contribuinte na Edição de Regulamentação Tributária, dissertação, São Paulo, Faculdade de Direito USP, 2010.
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do Judiciário -, de que a Administração Pública pode ter capacidade normativa, desde que legalmente atribuída. Nas décadas anteriores isto, em geral, não era reconhecido de maneira tão clara ou tão explícita, embora desde o início da década de 1960 já existisse uma autoridade reguladora dotada de poderes normativos extremamente importantes: o Banco Central do Brasil e seu Conselho Monetário Nacional. Hoje, especialmente com o incremento do número de agências reguladoras no âmbito federal, em diversos setores foi inevitável que a legislação dissesse, com muita clareza, que elas exerceriam função normativa. Isso ocorreu inclusive para que a própria lei pudesse, por mecanismos adequados,. disciplinar o exercício dessa competência (por exemplo, exigindo a realização de consulta pública prévia como condição de validade do regulamento, disciplinando o quorum para sua edição etc.). Assim, passaram a ser discutidos de maneira mais explícita os problemas do exercício de competência normativa pela Administração Pública. Em um primeiro momento esse fenômeno gerou reação negativa de juristas e, mesmo, certa desconfiança do STF, por conta dos possíveis riscos no exercício de competência normativa por um órgão sem a mesma legitimidade política do Parlamento. No entanto, a experiência desses anos tem levado a que a atuação regulatória administrativa por meio de normas seja considerada razoável, necessária e compatível com as exigências mínimas do Estado de Direito e do Estado Democrático e que sofra controles jurídicos qualificados." O aumento da competência normativa da Administração vem sendo feito por atribuição expressa do Legislativo - que, em razão disto, mantém sua capacidade de detenninar as matérias e a profundidade dessa competência. O que estamos assistindo no Brasil, como em outros Países do mundo, é a um aprofundamento da ação normativa do Estado e à ampliação das competências normativas da Administração Pública.
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8. Não está havendo deslegalização
Muito se tem falado, entre publicistas de vários Países, de um fenômeno de deslegalização geral no direito administrativo, isto é, da transferência, que estaria ocorrendo com intensidade, de parcelas da competência normativa das mãos do legislador para as da Administração. Entre juristas brasileiros, tanto entre os críticos como entre os defensores do poder normativo da Administração, esse diagnós.tico . vem sendo frequentemente mencionado como aplicável.23 Mas ao menos no casO brasileiro não é correto falar em deslegalização, isto é, não está havendo uma perda significativa do espaço propriamente da lei para o regulamento administrativo. A Administração vem recebendo muitas competências normativas dadas por leis que tratam de regulação, mas isso não significa uma diminuição do espaço da legislação. O avanço da Administração foi feito sobre a liberdade das pessoas e das empresas, e não sobre as competências do Legislativo. Em suma: o que vem se intensificando é a regulação como um todo, tanto legislativa como administrativa. O Legislativo, ao editar as grandes leis de regulação, vem, sim, tomando decisões de conteúdo, decisões substantivas - e também adjetivas -, em inúmeras matérias importantes; a experiência brasileira não é de transferência pura e simples da competência normativa do legislador ao administrador público. Portanto, não faz sentido falar em deslegalização ou em flexibilização da legalidade administrativa. Alguns exemplos tornam isso muito claro. Não existia até a década de 1990 legislação regulando o setor de. assistência à saúde privada (os planos de saúde). Ela surgiu juntamente com a criação de uma agência reguladora, a Agência Na- . cional de Saúde Suplementar/ ANS, à qual foi atribuída competência normativa. A lei que a instituiu não se limitou a lhe dar competências normativas; ao contrário, estabeleceu também o regime jurídico básico de funcionamento dos planos de saúde, de modo que o legislador teve, sim, um papel substantivo na definição de direitos e obrigações dos agentes envolvidos. 23. Entre os cóticos: Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 29~ ed., p. 359. Com outro enfoque: Gustavo Binenbojm, Uma Teoria do Direito
22. Sobre isto: Floriano de Azevedo Marques Neto, "'Pensando o controle da atividade de regulação estatal", in Sérgio Guerra (erg.), Temas de Direito Regulat6rio, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2004, pp. 200~248.
Administrativo I
cito p. 35.
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- Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, 2i!ed.,
r I ;
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DIREITO
ADMINISTRATIVO
Também em relação aos serviços públicos inúmeras leis foram editadas, inclusive em função' dos processos de privatização, de abertura à competição e de desenvolvimento econôrrúco. Estas leis, em campos 'como telecomunicações, energia e saneamento básico, por exemplo, não existiam no passado com a mesma densidade de conteúdo que hoje possuem. No caso de telecomunicações, por exemplo, havia uma lei de 1962, com baixíssima defmição normativa, que pouco mais fazia além de mencionar os mecanismos para a delegação dos serviços. Esta lei foi substituída em 1997 pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei federal 9.472/1997), responsável pela reforma do setor; esta lei é extremamente rica, não só por defrrúr princípios gerais, mas também por estabelecer direitos e deveres dos prestadores e dos consurrúdores.24 9. Está havendo uma intensificação normativa
Em vários setores do direito adrrúnistrativo o que tem ocorrido é um processo de legalização, e não de deslegalização. É o caso dos serviços públicos. Anteriormente à década de 1990 eles eram bem pouco tratados em leis, cabendo à Adrrúnistração discipliná-los por regulamentos adrrúnistrativos ou por contratos de concessão (naqueles setores em que este instrumento era utilizado). Era comum também, no caso das empresas estatais, que os serviços públicos sequer fossem objeto de normas, sendo disciplinados por simples decisões internas, de lógica empresarial ou política, sem força normativa. Portanto, o fenômeno que tínhamos no Brasil era O de prestação de serviços públicos com baixa regulação legal. Com as reformas da década de 1990, em grande medi'da desestatizantes, a necessidade de dar segurança jurídica a investidores privados (ou, mesmo, a empresas estatais) e de proteger os direitos dos consumidores levou à edição de leis em sentido próprio, que permitissem a . construção de um márco normativo estável, coerente e seguro. Esta 24. Carlos Ari Sundfeld, "Meu depoimento.e avaliação sobre a Lei Geral de Telecomunicações", Revista de Direito de Informática e Telecomunicações 2/55-87,
Belo Horizonte, Fórum, 2007.
ADMINISTRAR
PARA CÉTICOS
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foi uma das razões que gerou o movimento de legalização (e não de deslegalização) de serviços públicos, Depois de iniciado este processo de ampliação da cobertura legislativa sobre certos serviços, ou mesmo atividades econôrrúcas, o Legislativo, como órgão político, pôs-se a participar com mais intensidade dos debates sobre como devem ser organizados e prestados os serviços e sobre como devem ser os direitos e deveres de prestadores e consumidores. Isso criou espaço para que ele interferisse mais em matérias regulatórias, inclusive por meio de leis ocasionais e pontuais. O setor elétrico é exemplo marcante de inflação legislativa decorrente da ininterrupta edição de leis tratando de seus mais diversos problemas. A inflação legislativa, aliás, tem feito crescer o número de ações diretas de inconstitucionalidade no STF, sendo a invasão de competência regulatória do Executivo (isto é, da reserva de administração, na linguagem da Corte) um dos fundamentos de inconstitucionalidade. Já há atualmente diversos julgados 'emque se declarou a inconstitucionalidade de leis de regulação de serviços públicos por terem tomado decisões que seriam reservadas à Administração, visto afetarem o equilíbrio econôrrúco dos contratos e o conjunto de direitos e deveres dos prestadores e consurrúdores, que estavam construídos por instrumentos adrrúnistrativos. É curioso observar que o Judiciário, como guardião do Direito e do equilíbrio dos Poderes, vem sendo levado a defender não tanto a competência legislativa do Parlamento, mas a competência da Administração para editar normas. Busca assim o Judiciário evitar que o Legislativo, ao dispor sobre matérias que em princípio estariam em seu campo de atuação, acabe tomando decisões que, em função das circunstâncias, têm de ficar reservadas à Administração. Há um erro de perspectiva quando, só pelo fato de se haver am pliado a competência normativa da Adrrúnistração, se imagina que o legislador esteja inerte ou tenha cedido parcelas muito significativas de poder. Bem diferente disso, o que temos é um fenômeno geral de intensificação normativa, inclusive com as inevitáveis disputas entre os diferentes produtores de normas.'5 25. A inflação propriamente legislativa tem sido notada e seus efeitos têm sido discutidos pelos publicistas. v. , por exemplo, Eduardo García de Entema, Justicia y
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DIREITO ADMINISTRATIVO
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Por tudo isso, não há razão, no âmbito das preocupações com o direito administrativo, para a condenação da tendência contemporânea de a Administração assumii lllais.e mais, por autorização legal, o exercício de tarefas normativas de importância. A dimensão da ação normativa da Administração não é fator de instabilização da máquina do direito público, tampouco de corrosão do sistema de direitos e garantias individuais e coletivos. 10. Cresceu a interação do Executivo
com o Legislativo
É verdade que o exercício da competência propriamente legislativa vem sendo cada vez mais compartilhado, sobretudo no nível do govemo nacional, entre o Legislativo e o Executivo. A Constituição brasileira tem, à semelhança do que ocorre em outros Países, um instrumento específico para permitir que o Executivo edite leis provisórias de urgência: as medidas provisórias. Entretanto, isso é feito com a participação a posteriori do Legislativo, que tem de aprovar as medidas. É verdade que existe no Brasil, como em muitos outros Países, certo domínio do Executivo sobre a atividade legislativa, pois por meio das medidas provisórias, e mesmo pelo mecanismo da iniciativa reservada de lei, ele acaba determinando a agenda do Legislativo. Mas para que as medidas provisórias continuem em vigor após transcorrido certo lapso temporal é indispensável que o Govemo obtenha sua aprovação no Congresso Nacional. O caso brasileiro não é o de usurpação pura e simples do poder de legislar pelo Executivo. O que a Constituição Federal de 1988 acabou produzindo foi uma maior interação, no exercício da compe-
tência legislativa, entre Executivo e Legislativo
.26
Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas, Madri, Civitas, 1999, e José Luis Palma Femández, La Seguridad Jurídica ante la Abundancio de Normas, Madri,
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales,
ADMINISTRAR:É
CÉTICOS
1997.
26. O discurso quase unânime entre parlamentares, políticos na Oposição e publicistas brasileiros é de que seria preciso acabar com os abusos diários na edição de medidas provisórias. É uma visão exagerada, que deve ser questionada sem preconceitos, como faz Marco Aurélio Sampaio (A Medida Provisória no Presidencialismo Brasileiro, São Paulo, Malheiros Editores, 2007). Também sobre isto v. Diogo R. Coutinho e Adriana M. Vojvodic, Jurisprudência Constitucional: Como Decide o
11. Estamos na era da concorrência
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normativa
Nossa Constituição não é de maneira alguma sintética, ou seja, limitada aos temas institucionais. Ela é bastante analítica, tratando de muitos assuntos e de muitos setores, em normas detalhadas. Isso fez com: qúe, de alguma forma, o Legislativo brasileiro tivesse diminuída sua autonomia, dada a existência de um significativo conjunto de definições normativas prévias no próprio texto da Constituição - as quais, de fato, limitam a liberdade legislativa do Parlamento. Neste sentido seria possível falar numa diminuição da importância do Legislativo: não só pelo número de definições prévias impostas pelo constituinte, como por os conflitos entre lei e Constituição serem decididos pelo Judiciário, cada vez mais tendente a intensificar sua atuação no controle de constitucionalidade e na edição de interpretações com valor normativo. Assim, em decorrência da constitucionalização do Direito Brasileiro, o Legislativo encontrou, sim, um novo concorrente: o Judiciário, que também assumiu uma relevante competência normativa. Mas, se esses fatores tomam mais complexa a produção normativa, de modo algum significam uma tendência generalizada à deslegaIização; no Brasil, ao contrário do que se costuma dizer, a lei é hoje muito mais presente e importante do que foi no passado. Vivemos no direito administrativo brasileiro não a era da deslegalização, mas, sim, a era da concorrência normativa. Legislativo, Administração e Judiciário são, hoje, produtores intensivos de normas sobre questões administrativas. Nesse sentido, pode-se dizer que o Legislativo vem perdendo a .centralidade que teve outrora, pois não monopoliza como antes a função normativa. Mas isso não é pela decadência do instrumento lei - cujo espaço inclusive se ampliou, pois mais setores passaram a ser regulados por lei -, mas, sim, pelo aumento do número de centros produtores de normas. Há, sim, uma perda da importância relativa da lei, mas ela não encolheu, inflou. São Paulo, Malherros Editores, 2009, especialmente os estudos de Luciana Silva Reis, "Medidas provisórias no STF: o papel do Tribunal no presidencialismo de coalizão" (pp. 1I7 e 55.) e Lucas de Farias Rodrigues, "SlF, medida provisória, delegação legislativa: análise de algumas decisões" (pp. 142 e 55.). STF?,
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DIREITO DIREITO ADMINISTRA ADMINISTRATIVO TIVO
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Não há elementos indicando que, pela via da abstenção sistemática tica ou da delegaç delegação ão de sua função função normat normativa iva,, o Parlam Parlament ento o venha venha pennitindo a corrosão da legalidade (em sentido amplo), que seria um princípio do direito administrativo. As leis não diminuíram seu espaço; ao contrár contrário, io, aument aumentara aram. m. O que se passa passa é que a legalida legalidade de forformaI já já não é mais mais o bastant bastante. e.
12. 12. No que tudo isso afeta os administrativistas?
A mult multipl iplica icação ção dos centros centros produt produtore oress de norma normass é uma uma das razões para a legalida legalidade de - entendida entendida como vinculação vinculação da Administra Administração ção ao Parla Parlamen mento to - não poder poder mais, mais, na atuali atualidad dade, e, servir servir de eixo eixo centra centrall da engrena engrenagem gem que assegura assegura a submissão submissão da Administra Administração ção ao DireiDireito. Essa Essa vincul vinculaçã ação o existe existe,, sim, sim, e é muito muito relevan relevante. te. Mas não é sufisuficiente ciente.. Não é, em muitos muitos casos, casos, o fator fator decisi decisivo. vo. A concl conclusã usão o é que não há motivo motivo para para o adminis administra trativ tivist ista, a, em nome do projeto projeto de limitar limitar juridicamente juridicamente a Administra Administração ção (e em nome da sobreviv sobrevivênc ência ia do direito direito admini administr strati ativo) vo),, assumi assumirr postur posturaa crític crítica, a, em princíp princípio, io, das outorg outorgas as de competê competênci nciaa para para a Admin Administ istraç ração ão insinstituir tituir e conceber conceber soluçõ soluções, es, políti políticas cas e progr programa amas, s, pela pela edição edição de nornormas mas ou por por outr outras as form formas as.. Nega Negarr essa essa comp compet etên ênci ciaa não não é o modo modo adequado adequado de defender defender o direito direito administrativo, administrativo, é apenas apenas uma negação da realidad realidade, e, inclusive inclusive jurídica. jurídica. O que os administ administrativi rativistas stas têm de fazer fazer é trabalhar trabalhar no aperfeiçoaaperfeiçoamento tanto teórico teórico como normativo normativo dos outros outros mecanismos mecanismos jurídicos jurídicos que não a vinculaç vinculação ão da Admin Administ istraç ração ão ao legisl legislado ador. r. Precis Precisam am concontribui tribuirr mais mais na discussã discussão o sobre sobre quais quais são os arranjos arranjos instit instituci uciona onais is admini administr strati ativos vos capaze capazess de garanti garantirr os valore valoress democr democráti áticos cos e os direitos reitos,, quando quando da tomada tomada de decisões decisões.. Precis Precisam am trabal trabalhar har mais mais sobre sobre a ideia ideia de estudo estudo prévio de impacto impacto regulatório regulatório.. Precisam Precisam investir investir suas energias energias nos debates sobre as várias classes de processo processo administra administratitivo, espec especial ialmen mente te as audiên audiência ciass e consu consulta ltass públic públicas as de projet projetos os de regulamento. Nos tópicos seguintes este ensaio examina, à luz do Direito Brasileir sileiro, o, o proble problema ma da interaç interação ão do legisl legislado adorr e do adminis administra trador dor no tocant tocantee à produ produção ção de normas normas admini administr strati ativas vas:: O ponto ponto a tratar tratar em primeiro lugar é sobre o espaço da lei e das normas administrativas.
ADMlNJSTRAR
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Embora Embora este ensaio ensaio conteste conteste uma das visões correntes correntes a respeito respeito do assunt assunto o - a de que só a lei inova, inova, servin servindo do os regula regulamen mentos tos admiadministra nistrativ tivos os para para simple simpless desdob desdobram rament ento o analít analítico ico dos conteúd conteúdos os legais -, ele não nega, nega, claro, que a Adminis Administração tração esteja vinculada vinculada à lei, lei, tampouco tampouco que existam existam espaços espaços reservados reservados a ela. ela. Logo, ~ preciso preciso discutir como se dá essa vinculação. vinculação.
13. Graus de vincul vinculaçã ação o da Admi Adminis nistra tração ção
ao legisl legislado ador r
Em termos termos gerais gerais,, há três fórmula fórmulass para para defini definirr o papel papel da lei primazia da lei, pela qual a frente à Administr Administração. ação. A primeira primeira é a da primazia ativid atividade ade admini administr strati ativa va não pode pode contra contraria riarr as leis, leis, devendo devendo acatáacatágenérica ca depend dependênc ência ia de lei -las.' -las.'A A segund segundaa é a imposi imposição ção de uma uma genéri para a Administração, pela pela qual qual esta esta em princíp princípio io não é autôno autônoma ma para agir, devendo contar com algum grau de autorização legal. A reservas as especí específic ficas as de lei, lei, para tercei terceira ra fórmul fórmulaa é a instit instituiç uição ão de reserv exigir exigir que certas certas decisõ decisões es bem detennina detenninadas das só possa possam m ser tomada tomadass direta diretamen mente te pelo pelo legisl legislado ador, r, ficand ficando o vedado vedado à lei delegádelegá-Ias Ias à Admidomínio o da lei, são reservad nistração nistração (são decisões decisões do domíni reservadas as a ela). Essas Essas três três fórmul fórmulas as envolv envolvem em formas formas distin distintas tas de vincula vinculação ção da Administra Administração ção ao legislador. legislador. primazi azia a da lei garante Por meio meio da prim garante-se -se uma vinculação vinculação pontual, pontual, limitada limitada aos temas temas e termos em que o legislador quiser quiser intervir. intervir. A genérica dependência dependência de lei produz uma vinculação vinculação extensa, extensa, abrangenabrangendo todas as matérias; matérias; mas a profundidad profundidadee da vinculação vinculação da Adminis Adminis-tração ao legislador legislador em cada hipótese hipótese dependerá dependerá da política política legislativa legislativa,, se mais ou menos menos restri restritiv tivaa da ação admini administr strati ativa. va. Já, nas matéri matérias as reserva específica específica de lei, por objeto de reserva por força constitucio constitucional, nal, o papel da Admini Administr straçã ação o tende tende a ser o de executo executora ra concre concreta ta de decisões decisões perfeitamente delineadas no âmbito legislativo; nesses casos a vinculação é profunda, profunda, forte. 14. Prim Primazi azia a da lei prima mazi zia a da lei lei perm A pri permite ite ao Parlam Parlament ento o impor, impor, segund segundo o seu critério, critério, deveres deveres e limitações limitações à ação administra administrativa. tiva. Como Como o adminisadministrador trador deve sempre respeitar respeitar a lei, se o legisl~d legisl~dor or quiser dirigir intensamente samente a ação ação administra administrativa tiva,,
bastará bastará acrescentar acrescentar na lei lei novos devedeve-
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DIREIT DIREITO O
AD:M1N AD:M1NlSl lSlRAT RATIVO IVO
PARA PARA CÉTICOS CÉTICOS
res e limitaçõ limitações; es; se, ao contrá contrário, rio, preferir preferir dar espaço espaço a certa certa liberdade liberdade admini administr strati ativa, va, pod poderá erá impor impor condi" condi"ion ioname amento ntoss menore menoress às comp compeetências tências que atribuir. atribuir. A prim primazi aziaa da lei é a respon responsáv sável, el, portan portanto, to, pela pela capaci capacidad dadee que tem o legislado legisladorr de, segundo segundo sua política, política, defInir defInir a dimensã dimensãoo do espaespaço de ação administrativa. Não há divergência quanto ao reconhecimento de que a Administração tem de respeitar respeitar a primazia primazia da lei, que os publicistas publicistas brasileiros brasileiros convenciona convencionalment lmentee fundamenta fundamentam m no art. 37, caput, da CF de 1988 ("a Admini Administr straçã açãoo (...) obedec obedecerá erá aos prin princíp cípios ios de legal legalida idade, de, (...)"). (...)"). Assim, Assim, por exemplo exemplo,, como como a lei exige exige que os atos atos admini administr strati ativos vos sejam acompanha acompanhados dos de exposiç exposição ão formal formal de seus motivos motivos (Lei federal 9.784/ 9.784/199 1999, 9, art. art. 50), o administ administrad rador or não pode ignorar ignorar essa essa exiexigência; gência; em o fazendo fazendo seu ato será inválido. inválido. Se o model modeloo consti constituc tucion ional al se limitas limitasse se a isso, isso, a existê existênci nciaa da vincul vinculaçã açãoo seria seria um proble problema ma exclus exclusiva ivamen mente te de opção opção legisl legislati ativa, va, pois bastaria que o legislador fIcasse inerte para a Administração não ter condic condicion ioname amento ntoss à sua sua atuação. atuação. Mas o fato - import important antee para para defInir defInir a legalidade legalidade administrat administrativa iva na atualidad atualidadee - é que que as ConstituiConstituições ções não se conte contenta ntam m com a primaz primazia ia da lei; lei; vão além, sujeit sujeitand andoo a genérica dependência dependência de lei (pode-se Administraç Administração ão a uma genérica (pode-se dizer: a uma reserva reserva geral de lei). lei). 15. Genérica dependência de lei para para a Administração Administração
Para agir, O admini administrado stradorr deve contar com algum tipo de outorga outorga de co competên mpetência cia feita por lei, lei, ainda que de modo relativamente relativamente amplo e aberto. aberto. Em princíp princípio, io, a Admin Administ istraç ração ão não é autônoma, autônoma, não pode agir agir sem base base em lei alguma, alguma, não pode editar editar atos atos 27 e normas" normas" totaltotalmente autônomos. autônomos. 27. Por vezes se reconh reconhece ece poder ao Executivo Executivo para editar atos com base base direta na Constituiç Constituição, ão, mas não se trata trata propriamente propriamente de exceção exceção à genéric genéricaa dependênci dependênciaa de lei para para a Admini Administr straçã ação. o. São casos casos em que a Constit Constituiç uição ão tomou tomou a si a tarefa tarefa,, que normalmen normalmente te fica para o legislad legislador, or, de definir definir e regular regular competênci competências as e atos (exemplo (exemplo:: para o Presidente decretar a inteIVenção federal, o estado de defesa e de sítio - art. 84, IX e X). X). Nessas Nessas situações situações a norma norma constitucional constitucional cumpre cumpre diretament diretamentee a função função da lei. 28. No vocabu vocabulário lário internacio internacional nal do direito direito administra administrativo tivo usa-se usa-se a expressão expressão "regulame "regulamento nto autônomo" autônomo" para designa designarr textos textos normativo normativoss editados editados pela Admini Administrastra-
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Há pouca divergência divergência quanto à existência existência para a Administraçã Administração, o, no regime constitucio constitucional nal brasileiro, brasileiro, dessa genérica genérica dependênci dependênciaa de lei. Na Constituição ela tem três tipos de fundamento. ção sem base em lei, por força força de previsão previsão constitucio constitucional. nal. A França França é caso marcante de País em que se pretendeu pretendeu adotar adotar uma linha divisória divisória nítida nítida entre o espaço espaço da lei e o do regulam regulament ento, o, justam justament entee para para pennit pennitir ir que este tratass tratassee autono autonomam mament entee das matérias matérias a el~ reservadas reservadas.. Mas ~sso não levou à revolução revolução que muitos muitos publicistas publicistas es-
peravam,_pOIsem te~os .p~átIcosa r~lação entre lei e regulamento naquele País acabou nao sendo muito dlstmta da eXIstente no modelo modelo tradicional tradicional como demonsdemonstrou Louis Louis Favoreu, em seu célebre célebre artigo artigo "Les reglements reglements auton~mes auton~mes n'existent n'existent pas", Revue Française 3(6)1871884, 884, Paris, Paris, Sirey. Sirey. 1987 (noFrançaise de Drait Drait Administra Administratij tij 3(6)1871 vembro-d vembro-dezemb ezembro). ro). Um balanço balanço sobre sobre o assunto assunto envolvend envolvendoo outros outros analistas está em Reglement .• 2a 00., Paris, Economica, Louis Favoreu (dir.), Le Domaine de la Loi et du Reglement 1981. 1981. Hoje em dia há certo consenso consenso na França França de que os regulame regulamentos ntos autônomos autônomos são "independ "independentes entes,, mas sempre sempre subordin subordinados ados à lei" lei" (Jacqueline (Jacqueline Morand.De Morand.Deviller viller lIa ed., ed., Pari Paris, s, Mont Montch chre rest stie ien, n, 2009 2009,, p. 385) 385).. ' Cours de D,:oit Administratij, Administratij, lIa . Tem ~ldo.uma ~ldo.uma constante constante o debate debate entre publicista publicistass brasileiro brasileiross sobre sobre se há prepreceIto constItucI constItucIOnal Onal dando poder à Admin Administra istração ção para editar regulament regulamentos os autônoautônomos em alguma matéria. matéria. Exemplos Exemplos de posições posições contrastant contrastantes es à época época da Constitui Constituição ção de 1969 estão em Diógenes Diógenes Gasparini Gasparini,, Poder Regulamentar, 2a ed., ed., São Paulo, Ed. favor) e Luciano Luciano Ferreira Ferreira Leite, O Regulamento Regulamento no Direito Direito Brasileiro, Brasileiro, R : ! " 1982 (a favor) Sao Paulo, Ed. RT, 1986 (contra)-. (contra)-. Editada Editada a Constituiç Constituição ão de 1988, 1988, houve um relativo relativo consenso consenso quanto quanto à negativa, negativa, com uma exceção em favor do Ministé Ministério rio da Fazenda Fazenda que o STF STF identi identific ficou ou com base base no art. art. 237 237 da CF (RE (RE 208.75 208.755-6 5-6,j. ,j. 18.3.1 18.3.1997 997). ). ' Mas a mudança mudança do texto texto do art. 84 pela pela Emenda Constitucio Constitucional32 nal32/200 /20011 reabriu reabriu a di~cussão. O inciso Y I , "a", passou passou a admitir admitir que o Chefe do Executivo Executivo disponha, disponha, mediante mediante _de~ret~, _de~ret~, sobre sobre "organizaç "organização ão e funcioname funcionamento nto da Administ Administração ração Federal, Federal, qu~do qu~do nao lITIphc~ lITIphc~ a~mento a~mento de despesa nem criação criação ou extinção extinção de órgãos públipúblicos . Há Há quem quem veja veja aI espaço espaço para para regula regulamen mentos tos autôno autônomos mos,, mas essa conclu conclusão são pa,:ece exa?erada: se a definição da estrutura básica da Administração continua nas maos da leI (art. 37, XIX e XX, e art. 48) e os regulamentos regulamentos de organização organização e funciofuncionamento namento devem se conformar conformar a essa essa estrutura, estrutura, eles certamente certamente não dispõem dispõem de modo modo autônomo autônomo sobre sobre o assunto. assunto. Continua Continua válida, válida, a meu ver, a análise análise que fiz sobre sobre a lista de medidas medidas viáveis viáveis para a lei e para o decreto decreto nos itens 10 e ss. ss. do artigo "Criação, "Criação, est~turaçã est~turaçãoo e extinç extinçã~ ã~ de órgãos órgãos públicos públicos - Limites Limites da l ei e do decreto decreto regulamen regulamen.. tar tar , RDP 97/43-52, 97/43-52, Sao Paulo, Ed. RT. 1991 (o restante restante do artigo está superado) superado).. Talvez Talvez uma nova norma constitucion constitucional al venha, venha, sim, servindo servindo para a edição de regulamen regulamentos tos autônomos autônomos.. Trata-se Trata-se do art. 103-B, 103-B, oriundo da Emenda Constituci Constitucional onal 61/2009, 61/2009, que c~ou c~ou ~ Conselh Conselhoo Nacional Nacional de Justiça Justiça e lhe permiti permitiuu "expedir "expedir atos reguregulamentares lamentares,, no amblto amblto de sua competência competência"" (2 4 I) - o que inclui, inclui, entre entre outros, "o controle controle da atuação atuação administra administrativa tiva e financei financeira". ra". Há bastante bastante polêmica sobre sobre os condicionamen dicionamentos tos desse poder regulament regulamentar, ar, mas ele vem sendo usado com certa larguelargueza ~elo Cons~lho, Cons~lho, com relativa aceitação do STF, como mostra André Janjácomo Janjácomo ~osIlho ~osIlho n~ a:tlgO "O poder poder nonnativo nonnativo do CNJ e o sistema sistema de justiç justiçaa brasileiro brasileiro", ", ReBelo Horizonte, Fórum, vls~a~rastlelra de Estudos Constitucionais 14/37-83, Ano 4, Belo abnl-Junho/20 10. Q ,
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primeiro ro o primei
está está no art. 48, caput, que autori autoriza za o Legis Legislat lativo ivo a "dispor "dispor sobre todas as matérias matérias de competên competência" cia" do en ente te da Federação Federação li que se vincula vincula.. Cóm isso, "em "em princí princípio pio não bá âmbito âmbito materi material al excluído do poder da lei; ela pode tratar de qualquer qualquer matéria. matéria. O segund segundoo fundam fundament entoo é o art. art. 5", rI: "ning "ninguém uém será será obrigado obrigado a fazer fazer ou deixar deixar de fazer fazer alguma alguma coisa coisa senão senão em virtude virtude de lei". lei". Deve Deve sempre sempre haver haver alguma alguma lei dand dandoo base base para a ação ação admini administr strati ativa va que gere deveres deveres negativos negativos ou pos positivo itivoss aos particulare particulares. s. O tercei terceiro ro fundam fundament entoo está está disper disperso so nos vários vários precei preceitos tos consti consti-tucionais tucionais que exigem exigem lei para para a estruturaçã estruturaçãoo daAdministr daAdministração ação Pública Pública em entes e órgãos, órgãos, o que supõe supõe que a própria própria lei defina defina e reparta reparta com petências (exemplos: art. 37, XIX e XX, e art. 48, XI). Desses Desses precei preceitos tos result resultaa a impo impossi ssibil bilida idade de de existi existirem rem,, para para esses ente entess e órgãos órgãos,, compet competênc ências ias admini administr strati ativas vas autoat autoatrib ribuíd uídas, as, sem base legal alguma. Assim, Assim, uma lei editad editadaa pelo pelo Parlamen Parlamento to deve deve estar na origem origem de qualquer qualquer ação administrat administrativa. iva. Trata-se Trata-se de uma reserva reserva genérica de lei. lei. importantee exigência, exigência, que limita limita extensivamen extensivamente te a AdministraAdministraÉ uma important ção e cria um espaço espaço permanente permanente para o legislado legislador. r. Com essas disposiçõ disposições, es, porém, porém, a Const Constitu ituiçã içãoo não define define o quão quão profundas têm de ser as leis, tampouco as técnicas que elas devem usar para para dirigir a ação ação administrat administrativa. iva. Os condicionam condicionamentos entos adminisadministrativ trativos os de direitos direitos (do direito direito de conduzi conduzirr veícul veículos, os, por exemplo exemplo)) devem ter ter base em lei, mas quanto quanto de defini definição ção normat normativa iva deve deve estar estar na própr própria ia lei e quanto quanto pod podee ficar ficar para decisã decisãoo admini administr strati ativa va posteposterior? É indisp indispens ensáve ávell que as infraç infrações ões de trânsit trânsitoo sejam sejam ~pific ~pificada adass pela própria lei, ou isso pode ser deixado ao regulamento?" E legítimo que o legislador, legislador, ao invés invés de definir definir previamente previamente o conteú conteúdo do dos atos admini administr strati ativos vos,, ocupeocupe-se se sobret sobretudo udo de desenh desenhar ar a estrut estrutura uração ção do 29. Pela Pela abrangênci abrangênciaa e importância importância econômica econômica da ação punitiv punitivaa da Administr Administraação na atualid atualidade ade,, a existê existênci ncia, a, ou não, não, de reser reserva va de lei em matéri matériaa de infraçõ infrações es e sanções administrativas é possivelmente a maior das discussões sobre regulamentos entre publicistas publicistas em geral. O tema ocupa os administrati administrativistas vistas.. (por exemplo exemplo,, AlejanAlejandro Nieto, Derecho Derecho Administr Administrativo ativo Sancionad Sancionador, or, 2a ed., Madri, Madri, Tecnos, Tecnos, 1994) 1994) e vem sendo objeto da jurisdi jurisdição ção constitucio constitucional nal em diversos diversos Países (v. Franc~k Franc~k Modeme, Modeme, San/iolls San/iolls Administra Administratives tives et Justice Justice Constituti Constitutionne onnelle lle - Contributio Contributionn à l'Etueje du Jus Puniendi Puniendi de l'État l'État dans les Démocratie Démocratiess Contempor Contemporaines aines,, Paris, Economic Economica, a, 1993). 1993).
r
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órgão órgão admini administr strati ativo vo respon responsáv sável el e os proces processos sos de tomada tomada de suas decisões? A Consti Constitui tuição ção não respond respondee direta diretamen mente te a essas essas dúv dúvida idas, s, de modo que.o legislador legislador parece ter alguma liberdade liberdade para optar optar entre as duas alternativas. 16. Rese Reserva rvass especi especific ficas as de lei Cumpre Cumpre,, por último, último, destac destacar ar que no Brasil Brasil o debate debate sobre sobre o es paço do legislador em relação à Administração é fortemente impactado pela existência existência de inúmeras inúmeras reservas específicas específicas de lei. Há reserva reserva desse desse tipo tipo quando quando a Consti Constitui tuição ção impõe impõe que certa certa providência ou definição normativa fique a cargo diretamente do legislador, gislador, não podendo, podendo, por isso, ser deixada ou transferida transferida à AdminisAdministração. tração. Em seu conjunto, conjunto, as reservas reservas específicas específicas de lei produzem produzem uma dependência dependência qualificada qualificada da Administ Administração ração em relação relação ao legislador legislador.. Exemplo Exemplo bastante bastante significati significativo vo que vem se repetindo repetindo em nossas nossas Cartas Cartas é o que está no art. 170 170,, parágra parágrafo fo único: único: soment somentee a lei (não, (não, portanto, o regulamento) pode prever os casos em que o exercício exercício de ativid atividade ade econôm econômica ica depend dependerá erá de autorização. Outro campo tradicional de reserva de lei, que foi reforçado reforçado no regime regime atual, atual, é o tributário: tário: só a lei institui institui ou majora majora tribut tributos os (art. (art. 150 150,, I), só a lei os dis pensa (art. 150, ~ 6"), só a lei transfere responsabilidade tributária (art. 150, ~ 7") etc. Mas as reservas reservas específicas específicas de lei não não param param por aí. Na Carta Carta de 1988 elas estão estão previstas previstas em uma infinidade infinidade de situações, situações, o que tem tem um impacto impacto decisivo decisivo na configuraçã configuraçãoo de nosso nosso sistema sistema normativo. normativo. Há aí, sem dúvida, dúvida, uma orientação orientação de fortale fortaleciment cimentoo do papel papel do legisl legislado adorr em face face da Adminis Administra tração ção,, pois pois essas essas reserv reservas as garant garantem em espaços espaços de intervençã intervençãoo do legislado legisladorr que foram foram considerados considerados vitais. vitais. Isso tem o efeito de calibrar calibrar pontualment pontualmentee o crescent crescentee envolvimento envolvimento da Adminis Administraçã traçãoo no processo processo normativo, normativo, obrigando obrigando a que que haja entre entre ela e o Legisla Legislativ tivoo uma interaç interação ão maior maior do que talvez talvez houvesse houvesse se a Constituiçã Constituiçãoo não criasse criasse as reservas reservas específicas específicas de lei. lei. Feita esta breve visita ao campo campo das leis, para para destacar destacar a diferen diferen-ça entre entre as que são reclamad reclamadas as por reservas reservas legais legais específicas específicas e as que que
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condicionam a ação da Administração por força da vinculação gené" rica dela ao legislador, é preciso, agora, olhar para o campo das normas administrativas, dos regulamentos. O objetivo dos tópicos seguintes é, então, fazer uma apresentação do problema lógico das relações entre lei e regulamento, que é vital para qualquer discussão sobre a validade das normas que a Administração edite.
.. 17. A relação de adequação entre leis e normas administrativas Uma vez editada lei cuja aplicação caiba à Administração, surge espaço em tese para a ação administrativa, por seus diversos meios: a edição de regulamentos ou de atos administrativos, a instauração de processos administrativos, a celebração de contratos e, ainda, a atuação material (produção de fatos administrativos). As normas regulamentares são semelhantes às legais quanto a duas características: a generalidade (não são singulares, individualizadas; atingem uma comunidade de sujeitos) e a abstração (não são concretas; descrevem situações hipotéticas, passíveis de se repetir no futuro). Mas as normas regulamentares são distintas das legais quanto à sua origem, pois são editadas por autoridades administrativas. Normas administrativas devem respeitar a primazia da lei, dar "fiel execução" a ela (CF, art. 84, IV), não podendo contrariá-la nem ultrapassar seus limites - como, aliás, acontece com a ação administrativa como um todo. A legalidade impede a edição de normas administrativas contrárias à lei, mas não que a lei outorgue competência normativa à Administração. Há, por certo, limite a essa outorga, pois ela não pode ser feita em relação às decisões que a Constituição reserva à lei; mas fora disso a outorga é juridicamente viável.
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Nos debates jurídicos sobre os limites da competência administrativa de edição de normas não é raro ver a simples invocação do princípio da legalidade administrativa ser usada como' argumento central da defesa de uma visão restritiva, crítica aos regulamentos amplos. Mas este argumento, posto neste nível de generalidade, é insuficiente. Para uma postura restritiva aos regularrientos não basta invocar o princípio da legalidade. Deve-se mostrar que certa norma administrativa é incompatível com a lei ou com alguma reserva constitucional de lei, ou, ainda, que a lei invocada não autoriza aquela norma administrativa. O princípio da legalidade, em sua abstração, não é argumento suficiente nesse debate.
18. Que modalidade de norma legal pode habilitar o regulamento? A edição de regulamentos envolve discussões em grande parte semelhantes às que se' põem sobre a validade de qualquer meio de ação administrativa. É correto dizer que qualquer ação da Administração, inclusive a produção de norma administrativa, depende de habilitação legal; mas isso não responde à questão técnica fundamental do direito administrativo: que modalidade de norma é necessária para dar suporte jurídico a tal ou qual ação administrativa? Essa pergunta propõe dois problemas. O primeiro é 6 da relação de adequação entre o suporte legal e a ação administrativa. Não é qualquer norma legal que pode autorizar não importa qual providência administrativa; para dar cobertura à ação de que se esteja cogitando, a norma legal de suporte deve ter conteúdo compatível e suficiente. A edição de norma administrativa (norma regulamentar) é uma das ações em tese possíveis para o adminIstrador, de modo que seu exercício depende da existência da citada relação de adequação.
Os conteúdos possíveis das normas administrativas são definidos pelo conteúdo da lei a regulamentar e pelo conteúdo das demais leis vigentes. Nas matérias e situações em que o próprio legislador houver normatizado muito o espaço do regulamento será menor. Nos casos em que a lei houver autorizado um exercício amplo de competência regulamentar e em que a legislação for mais aberta o espaço do regu-
Aqui está, portanto, uma pergunta vital para a discussão sobre os limites da competência normativa da Administração: que modalidade de norma legal é capaz de habilitar o administrador a editar certa norma administrativa? No fundo, esta pergunta não é peculiar à ação normativa, pois se põe também na discussão sobre a validade dos atos,
lamento será maior.
contratos e processos administrativos concretos.
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Mas é curioso que a insuficiência da lei como falha da autorização legal da ação administrativa costuma preocupar muito os publicistas quando essa ação énormativa" (edição de regulamentos), mas pouco quando a ação é concreta (edição de atos administrativos). Os juristas discutem bastante como controlar os atos administrativos concretos decorrentes dessas leis abertas (é o famoso controle da discricionariedade administrativa), mas não apontam a insuficiência em si da lei como um vício específico, pois pressupõem que a lei é naturalmente complementada pelos princípios e outras normas, gerando a limitação jurídica dos poderes do administrador. Por dever de coerência, esse pressuposto tem de ser aplicado também na discussão sobre as normas administrativas decorrentes de leis abertas. Ao ver deste ensaio, os críticos das competências normativas amplas da Administração falham justamente quanto a esse dever de coerência.
19. O regulamento pode ser condição de aplicabilidade da lei? O segundo problema quanto ao suporte legal da ação administrativa é o da autoaplicabilidade da lei. Uma norma legal pode ser adequada pelo ângulo substantivo, mas sua eficácia como base de ações individuais e concretas pode estar ainda dependendo da edição de normas administrativas ulteriores, que façam definições necessárias à sua plena operatividade. Aqui está, então, outra pergunta importante sobre a competência normativa da Administração: em que casos a prévia edição de norma administrativa (isto é, a regulamentação) é indispensável à eficácia da lei, e, portanto, é condição de validade de atos, contratos ou processos administrativos concretos? Essa segunda pergunta é especialmente relevante para os setores regulados, em que as autoridades administrativas recebem da lei com petência para regular - para impor deveres, limitar direitos, impor sanções etc. - mas não se encontra na própria lei a normatização suficiente para delimitar seu exercício. A propósito, isso permite apontar um efeito involuntário, mas perverso, da postura doutrinária que nega a viabilidade de competências normativas autorizadas para a Administração. Essa doutrina diz
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que tudo o que interessa já deve estar na lei e, assim, não pode cola borar de modo mais efetivo com o desenvolvimento de teoria, que é fundamental na luta contra a arbitrariedade, para condicionar a aplica bilidade da lei incompleta à prévia edição de normas administrativas. Esse é um problema da doutrina, que, aferrandocse a seus pontos de vista, nega legitimidade à realidade que se lhe opõe e, assim, fica fora do debate sobre sua possível melhoria.
20. Dever regulamentar A prévia regulamentação é condição de validade dos atos regulatórios individuais e concretos, ou a autoridade pode produzi-los caso a caso com base em normas legais incompletas? Este ensaio defende a ideia de que normas legais incompletas desse gênero não podem servir diretamente de base a atos administrativos individuais e concretos. Uma entidade ou órgão administrativo que recebe da lei ampla competência reguladora, a ser exercida no plano administrativo com fundamento em balizas legais de natureza aberta, evidentemente se sujeita ao ônus de normatizar, como condição prévia do exercício concreto de seus poderes. Para uma agência reguladora, muito mais que um poder regula" mentar, existe um dever regulamentar. O fato de, por razões pragmáticas, a lei se abster de formular ela própria a normatização intensiva dos deveres, infrações e sanções relativas a um setor, limitando-se a atribuir poderes regulatórios a uma agência, de modo algum significa o abandono do princípio de legalidade, em seu sentido amplo. O regime de legalidade é aquele em que os direitos e deveres vêm de normas, não da vontade casuística da autoridade, variável para cada situação que aparecer. É possível, conforme o caso, que deveres, infrações e sanções não tenham fundamento imediato, mas apenas mediato, em ato normativo de nível legal (lei em sentido formal). Mas nem por isso se admite que a atividade de regulação administrativa seja exercida diretamente por atos individuais e concretos, produzidos caso a caso pelas autoridades, sem parâmetros abstratos prévios, de índole normativa (lei em sentido material). Há para as autoridades administrativas o dever de normatizar previamente, por regulamentos, as suas ações
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concretas que reflitam na esfera jurídica de terceiros sempre que a disciplina. completa dos atos administrativos já não se encontre na própria lei. . As situações subjetivas administrativas devem ser objeto de tratamento por norma geral e abstrata sujiciellle. Disso resulta a reserva de norma - legal ou regulamentar, conforme os casos - no tocante à criação de situações jurídicas passivas (deveres, obrigações, sanções) e ativas (competências e direitos). Não pode haver infração nem sanção administrativa sem norma legal ou regulamentar sujiciente que as preveja. Não basta haver, em lei ou resolução, um texto principiológico, com um conteúdo embrionário. Para a aplicação de sanções no âmbito da regulação administrativa é preciso haver norma não s6 prévia,
mas também completa. Nonna completa é, neste contexto, aquela que cumpre o dever de especificação, isto é, que seja capaz de antecipar, em abstrato, para os sujeitos envolvidos (regulados, usuários, interessados e reguladores), tanto a qualificação jurldica dos fatos futuros quanto o contelÍdo dos aJos administrativos possíveis. Em suma, a regulamentação prévia tem de atender aos 'requisitos da abrangência, profundidade e consistência.
21. Cada nonna regulamentar
em sua individualidade
No debate doutrinário as polêmicas' mais fortes sobre os regulamentos não têm sido ligadas à questão da autoaplicabilidade da lei, mas à da relação de adequação entre o regulamento e a lei. Para entrar um pouco mais nesse campo, é útil referir que se usa a palavra "regulamento" para designar um conjunto orgânico de normas gerais e abstratas editada pela Administração Pública (exemplos: o regulamento de organização do Ministério da Fazenda, o regulamento das leis de imposto de renda, o regulamento do serviço telefônico, editado a partir da Lei de Telecomunicações). Mas, para enfrentar adequadamente as questões técnicas relevantes, é preciso que a análise considere cada norma regulamentar em sua individualidade. De fato, seria totalmente oca uma discussão sobre a existência de base legal suficiente para a edição do "regulamento sobre propaganda
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comercial de produtos alimentícios". É impossível fazer qualquer exame nesse plano de generalidade, que nada diz sobre o conteúdo do que se está examinando. Importa, então, é verificar as várias normas administrativas que estejam nesse diploma regulamentar para indagar, em relação a cada uma, se contam com suporte legal adequado.
22. O poder de legislar
é delegável
ao regulamento?
Após essas considerações para destacar a complexidade envolvida no exame da validade dos regulamentos (que se assemelha em alguma medida ao que se tem de fazer sobre atos administrativos, contratos e processos), cumpre, agora, olhar para O problema da validade por outro ângulo: o da eventual usurpação do espaço da lei. Isso leva a entrar mais fundo nas polêmicas constitucionais sobre os conteúdos juridicamente viáveis para os regulamentos e sobre os conteúdos juridicamente exigíveis da lei - polêmicas, essas, que são travadas pelos especialistas a partir da tradicional distinção entre regulamentos executivos e autorizados. É esse o próximo tema a examinar. Quando houver reserva específica de lei, caberá ao próprio legislador tomar as decisões que a Constituição lhe tenha reservado; nem mesmo a lei poderá transferi-las para o administrador. E nos casos não cobertos por esse tipo de reserva, que limitação existe à possibilidade de a lei autorizar o exercício de competência normativa pela Administração? As opiniões em geral convergem na afirmação de que mesmo nas matérias em que não haja reserva específica de lei o legislador está proibido de fazer a delegação pura e simples do poder de legislar (salvo nos casos e na forma da lei delegada - CF, art. 68).'0 É que, ao 30. É curioso notar como é diferente a sensibilidade de norte-americanos e brasileiros à fórmula Jinguística "delegação do poder de legislar". Os norte-america. nos a usam tranquilamente para designar a opção, feita pelo Legislativo. de autorizar a Administração a editar normas. a partir de certos parâmetros. Mas os brasileiros. mesmo quando acham viável o legislador fazer o que os norte-americanos descrevem como delegação, em geral ressalvam não se tratar de delegação, que seria inconstitucional (por isso também costumam recusar "regulamentos delegados"). No fundo., estão todos falando de coisas semelhantes. pois os norte-americanos também exigem um mínimo de regulação legal, vetando a delegação total. O estigma brasileiro da expressão "delegação do poder de legislar"' veio da proibição expressa nesse sentido que, entre nós. houve em Cartas anteriores à de
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receber a delegação, a Administração estaria sendo simplesmente li.berada da genérica dependência.de lei, rompendo-se a reserva geral de lei e o esquema da separação de Poderes. 3l
23. A lei pode autorizar regulamentos?
Mas há bastante divergência entre os publicistas quanto à possi bilidade de o legislador atribuir à Administração uma extensa competência normativa. Quem considera inadequado que o administrador exerça uma ampla função normativa tende a ver para o legislador um dever de completude, de modo que os regulamentos editados pela Administração seriam apenas executivos. As leis seriam normativas (poderiam conter norma nova), mas os regulamentos seriam sempre e só executivos (poderiam apenas dar operacionalidade a decisões tomadas em normas legais já existentes)." 1988; a Constituição dos Estados Unidos não tem texto equivalente. Portanto, a diferença dos discursos jurídicos destes Países vem de razão muito trivial, não tendo a ver com questões propriamente substanciais. 31. Ampliar em Clemerson Medin eleve, Atividade Legislativa do P-oder Executivo, 2 .1 1 00., São Paulo, Ed. RT, 2000, e Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Con~ gresso e as Delegações Legislativas, Rio de Janeiro, Forense, 1986. 32. Segundo Bandeira" de Mello, a única função própria ao regulamento seria a de "produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública" (Curso de Direito Administrativo, cit., 29a ed., p. 343). Essas afIrmações são coerentes com a visão do autor de que "administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contém abstratamente nas leis" (ob. cit.,p. 105). Para o autor, "os regulamentos serão compatíveis com o princípio da legalidade quando, no interior das possibilidades comportadas pelo enunciado legal, os preceptivos regulamentares servem a um dos seguintes propósitos: (I) limitar a discricionariedade . administrativa, seja para (a) dispor sobre o modus procedendi da Administração nas relações que necessariam~nte surdirão entre ela e os administrados por ocasião da execução da lei; (b) caracterizar jatos. situações ou comportamentos enunciados na lei mediante conceitos vagos cuja determinação mais precisa deva ser embasada em índices, fatores ou elementos configurados, a partir de critérios ou avaliações técnicas ~egu?do padrões uniformes, para garantia do princípio da igualdade e da segurança J~rídlca; (li) decompor analiticamente o conteúdo de conceitos sintéticos, mediante SImples discriminação integral do que neles se contém" (ob. cit., p. 366).
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Por essa visão, a regulação legal só seria suficiente quando tivesse conteúdo capaz de, por si mesmo, não apenas instituir como tam bém definir, com razoável nível de precisão, os direitos, deveres, condicionamentos, competências, infrações, sanções etc" Mas há sobre o assunto uma visão diferente, sustentando que, além dessas leis exaustivas, que deixam espaço só para regulamentos executivos, poderiam existir leis-quadro, fixando as diretrizes e bases de uma regulação e autorizando a Administração a, dentro desse quadro, exercer competência normativa. Ao usá-la, a Administração produziria regulamentos autorizados." Assim, normas administrativas executivas seriam as que não contêm inovação jurídica, limitando-se a viabilizar a execução material, pela Administração, de decisões já tomadas abstratamente pela lei. Normas administrativas autorizadas seriam as que, desenvolvendo O programa previsto na lei, nos limites nela autorizados, trazem inovações jurídicas. 24. Regulamentos executivos
x regulamentos
autorizados
A oposição, criada teoricamente; entre regulamentos executivos e autorizados é a simplificação de um problema complexo, baseada em fórmula que mais desvia do que ajusta o foco do debate que juridicaComo se vê, o autor visualiza a ação regulamentar como um trabalho essencialmente técnico, em que não há espaço para escolhas políticas, que já estariam feitas antecipadamente na lei. A Administração aparece, aqui, como simples corpo técnico a serviço do poder político (o legislador). . 33. Essa enumeração é uma síntese aproximativa de ilfmnações mais habituais entre publicistas brasileiros. Não seria nada simples tentar alguma fórmula universal capaz de reunir as matérias centrais de reserva legal nos vários Países, pois a variação entre eles é bastante grande, em virtude das peculiaridades dos textos constitucionais e da experiência jurídica. Ainda quando se trate de sistemas próximos ao brasileiro, as diferenças podem ser decisivas sobre o tema da reserva. Para ficar no âmbito de Países com Constituições recentes com semelhanças estruturais, pode-se comparar o caso brasileiro com o espanhol (v. Luis Villacorta Mancebo, Reserva de Ley y Constitución, Madri, Dykinson, 1994) e o português (Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva de Lei - A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de ]976, tese, Porto, Universidade Católica Portuguesa, J 992). 34. Nessa linha, explicitamente contrária à defendida por Bandeira de Mello, posicionou-se Eros Grau, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, gaed., São Paulo, Malheiros Editores, 2011, pp. 222-251.
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mente conta. A classificação faz supor que o elemento decisivo para a análise de validade das leis e regulamentos seja uma única e definitiva posição de princípio. sobre á sentid,{de fórmulas abstratas como se paração de Poderes, legalidade e competência regulamentar. Isso se liga à concepção monista, que vê na máxima vinculação da Administração ao Parlamento a condição de existência do direito administrativo. Dela é que vem a ideia de que a produção normativa do Parlamento deveria ser sempre mais extensa e profunda que a da Administração - pois do contrário não haveria como impedir a fuga da submissão da Administração ao Direito (submissão, esta, que a definiria como mera executora de decisões já perfeitamente tomadas pelo legislador). Mas, como este ensaio vem sustentando, o monismo baseia-se em um pressuposto falso. O direito administrativo é um complexo de técnicas que convergem no propósito de dirigir a ação administrativa pelo Direito, não fazendo mais sentido a supervalorização da vinculação da Administração ao Parlamento. Assim, a discussão sobre o conteúdo llÚnimo exigido para a validade das leis administrativas não tem por que ser decidida por essa orientação geral. Essa análise tem de ser feita - isto, sim -, por um lado, a partir das normas constitucionais instituidoras de reservas específicas de lei e, por outro, pela identificação de soluções jurídicas capazes de dirigir consistentemente a ação administrativa. 25. Qual
é O mínimo
de conteúdo para a lei ser suficiente?
É preciso notar que uma visão de algum modo restritiva quanto à ação normativa da Adntinistração não necessariamente decorre de o intérprete considerar a vinculação da Administração ao Parlamento como princípio definidor do direito administrativo, pois pode ter outras razões.
O ponto de vista deste ensaio também pode ser considerado como bastante restritivo, pois exige do legislador a fixação de parâmetros substantivos (normas de.conteúdo) e adjetivos (normas de processo e de organização adntinistrativa) que, em seu conjunto, orientem de modo consistente a ação normativa administrativa. Ademais, este ensaio identifica a existência de diversos ônuS extralegais para o administra-
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dor exercer de modo juridicamente adequado a competência normativa conferida por lei; afinal, não é somente a lei que vincula a Administração. Seria de supor que, por coerência com as posições de princípio, os que criticam os regulamentos autorizados tendam a ser sempre mais exigentes que os demais quanto à densidade requerida para a validade das diversas leis. Mas as coisas podem não se passar exatamente assim, pois essas discussões sobre cada lei são sempre setorizadas, e a identificação do que é importante em cada situação e setor envolve muitos outros ingredientes. Também não é correto supor que será muito densa uma lei que, para atender aos reclamos dos críticos dos regulamentos autorizados, se ocupe apenas de relacionar direitos e obrigações passíveis de serem conferidos, restringidos ou suprintidos pela Adntinistração. A verdade é que uma lei assim pode resultar bastante esquemática e potencialmente menos capaz de condicionar de modo consistente a ação normativa adntinistrativa que uma lei-quadro, que se preocupe em esta belecer parâmetros substantivos de outra ordem, de desenhar detalhes institucionais e de formular exigências processuais. Não é difícil comprovar essa ideia. A Lei Nacional de Tombamento (Decreto-lei 2511937) especifica exatamente quais são as restrições que a Adntinistração pode impor ao direito de propriedade. Segundo a lei, as coisas tombadas "não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização es pecial do Serviço do Patriruônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas" (art. 17). A solução normativa parece perfeita pela lógica de quem considera que o importante é a própria lei definir as restrições possíveis. De fato, as restrições estão legalmente definidas. Mas a definição é tal, que o poder do órgão administrativo resultou gigantesco. A razão é muito simples: a lei instituiu uma proibição total, transferindo à Administração a tarefa de impô-Ia, ao decretar o tombamento, e de excepcioná-Ia, ao autorizar as modificações no bem tombado. Essa técnica legislativa é muito frequente em matéria regulatória: a lei impõe a proibição geral e autoriza o regulador a abrir exceções
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singulares. Essa solução, se de fato atende aos reclamos dos que querem reservar ao Parlamento a defirrição normativa das restrições de direito, i,no entanto, insuficientépara"condícionar a ação administrativa de modo consistente. Na experiência com o tombamento em todo o Brasil, o que conteve a arbitrariedade administrativa nesses anos todos não foi a densidade substantiva do art. 17 da lei, mas os aspectos institucionais de que a legislação cuidou: o tombamento tem de ser feito por processo admirristrativo, a competência é de um colegiado de especialistas, as competências têm limitações finalísticas etc. A comprovação de que, neste caso, a chave da proteção dos direitos está mais nos aspectos institucionais, e não na densidade substantiva da própria lei, pode ser obtida por comparação. A Lei da Concorrência (n. 8.884/1994), ao definir qual seria o conteúdo das medidas restritivas para o Conselho Administrativo de Defesa EconômicalCADE reagir às infrações da ordem econômica, falou apenas em "providências a serem tornadas pelos responsáveis para fazê-la[s) cessar" (art. 46, I). Para os casos consumados, por exemplo, em que o retomo à situação anterior é impossível ou insuficiente, o Conselho pode impor medidas restritivas de direito de conteúdo e intensidade muito variados. A Lei da Concorrência, ao contrário da Lei do Tombamento, não especificou as medidas restritivas de direito. Definiu apenas sua finalidade (fazer cessar a infração da ordem econômica). Urna avaliação do funcionamento do sistema mostra que nem por isso o Conselho " descambou para a arbitrariedade administrativa, nesses anos de aplicação da lei. A razão é a mesma já apontada na experiência do tombamento: a lei foi cuidadosa com os aspectos institucionais, organizando o CADE corno urna entidade autônoma, sujeita a regras e princípios processuais, prevendo mandato para os conselheiros etc. O que este ensaio critica, portanto, não é a ideia de que a ação normativa administrativa deve ter condicionamentos legais, mas, sim, o pressuposto de que esses condicionamentos deveriam ser construídos sobre o dogma de que a Administração tem de ser sempre e só executora de decisões já tornadas por completo pelo legislador - pois esse dogma não se sustenta. Adernais, a tese do ensaio é que sem o dogma da Administração que só executa perde sustento lógico a ideia de que apenas a lei pode inovar em matéria de direitos e deveres; por
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isso, a restrição à ação normativa administrativa não está nesse ponto, m a s e m o u tr o ,3 5
O elemento de divergência, que tem separado defensores e críticos dos ditos regulamentos autorizados, em verdade se resume à existência, ou não, de urna reserva específica de lei quanto à atribuição de deveres e direitos. Os críticos dizem haver urna reserva abrangente quanto a isso, abarcando qualquer defirrição desse tipo, em relação às pessoas em geral." 35. Na literatura jurídica a visão restritiva quanto à ação normativa da Administração não necessariamente decorre de o intérprete considerar a vinculação da Administração ao Parlamento como princípio defrnidor do direito administrativo. Entre os manualístas destacados que parecem não se alinhar perfeitamente com a visão de Bandeira de Mello quanto ao destaque da vinculação ao Parlamento podem ser citados-Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 19 ed., São Paulo, Atlas, 2006, pp. 101.105) e Marçal Justen Filho (Curso de Direito Administrativo, 5 ed., São Paulo, Saraiva, 2010, pp. 147-161), que, todavia, criticam a outorga de competências normativas para a Administração defInir direitos e deveres, com gradações . entre ambos. O presente ensaio entende que esse tipo de proibição (a que o regulamento inove em matéria de direitos e deveres) seria consequente lógico do pressuposto de que, no Estado de Direito, a Administração é sempre e só executora de decisões já tomadas em lei. Caindo o pressuposto, cai o consequente. 36. Nesse sentido Bandeira de Mello, para quem haveria "delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora do procedimento regular, toda vez que a lei remete ao Executivo a criação das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a restrição à liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento 11
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definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento do direito material ou ao nascimento da obrigação, dever ou reStrição. Ocorre, mais evidente-
mente, quando a lei faculta ao regulamento determinar obrigações, deveres, limita. ções ou res~ções que já não estejam previamente definidos e estabelecidos na própria lei. Em suma: quando se faculta ao regulamento inovar inicialmente na ordem juríd ica. E inovar quer dizer intro duzir algo cuja pree xistê ncia não se possa conc lusivamente deduzir da lei regulamentada" (Curso de Direito Administrativo, cit., 29ª 00., pp.358-359).
O autor parece não valorizar, nesse contexto, as categorias' que os estudiosos do tema normalmente usam para atenuar a rigidez do domínio reservado da lei, como Administração prestadora de serviços, Administração de fomento, relação de sujeição especial etc., em cujo âmbito haveria maior espaço para normas administrativas (sobre isto, v., por exemplo, entre os alemães, Dietrich Jesch, Ley y Administración Estudio de la Evolución dei Principio de Legalidad, Madri, Instituto de Estudios Administrativos, 1978, e Christian Starck, El Concepto de Ley en la Constituôón Alemana, Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1979). Clemerson Merlin Cleve fala em obrigatoriedade de definições legais nos casos em que "a Administração age para restringir os direitos fundamentais" (Atividade
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DIREITO ADMINISTRATIVO PARAcÉTIcos
Já, os defensores negam que haja uma reserva com tais características, pois para eles o próblema é outro: é a necessidade de existirem, na lei, parâmetros suficientes para guiar a ação normativa da Administração." Críticos e defensores estão de acordo em que a validade constitucional da lei depende de sua regulação ser suficiente. Mas o que a lei precisa exatiunente conter para ser suficiente? Este é um debate bom, que não é simples fazer em abstrato, no plano puramente teórico, até porque os termos inevitavelmente abertos da linguagem podem tomar imprecisas as divergências." Como vimos, esse debate tem sido travado entre os que só aceitam regulamentos executivos e os que consideram legítimos também os regulamentos autorizados. São, ao menos em princípio, dois modos de ver a questão da suficiência da lei. Uns cobram do legislador nada menos que a regulação Legislativa do Poder Executivo, cit., 2B 00., p . 306 - grifos nossos). Em uma possível leitura, a reserva de lei quanto a restrições de direitos fundamentais seria relativa
apenas a direitos bem qualificados pela Constituição, nonnalmente direitos da pessoa humana, não a qualquer direito (como a liberdade das empresas, que parece difícil
fundamentar na noção de direitos fundamentais). Mas sempre seria possível dizer que quaisquer exigências nascidas em regulamentos atingem a liberdade genérica (CF, art. 5 0. caput), que seria também um direito fundamental. 37. Exemplo é Alexandre Santos de Aragão. segundo quem "a lei não precisa preestabelecer os elementos das relações jurídicas a serem formadas, ou, em outras palavras, não é necessário que ela tenha que chegar a fIXardireitos e obrigações. (...). Não seria suficiente, contudo, apenas a previsão legal da competência da Administração Pública editar normas sobre determinado assunto. Mister se faz que a lei estabeleça também princfpios, finalidades, políticas públicas ou stalldards que propiciem O controle do regulamento (imelligible principies doctrine), já que a atribuição de poder normativo sem que se estabeleçam alguns parâmetros parao seu exercício não se coaduna com O Estado Democrático de Direito, que pressupõe a possibilidade de controle de todos os atos estatais" ("A concepção pós-positivista do princípio da legalidade", Revista d e Direito Constitucional e Internacional 651l4- 15. São Paulo, Ed. RT. 2008). Em linha semelhante: Eros Grau, O Direito Posto e o Direito Pressuposto. cit., 8' ed., pp. 222-251. 38. José Afonso da Silva. por exemplo, discutindo o sentido da expressão "em virtude de lei" no art. 50 , n , da CF, parece rejeitar a ideia de que sempre "o conteúdo restritivo da ação há que decorrer diretamente da lei", dizendo que apenas "os elementos essenciais da providência impositiva hão que constar da lei". Mas por esses termos é difícil saber quanto o ponto de vista do autor é substancialmente diverso do que ele rejeita, pois ele não deixa de afirmar, a seguir. que "só a lei cria .direitos e impõe obrigações positivas ou negativas" (Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros Editores, 2012, p. 422).
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tCRIAR?
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completa (mas não lhes é nada fácil sugerir critérios para testar a completude), enquanto os outros se contentam com a lei que fixe o quadro da matéria, os parâmetros gerais núnimos (e aí há dificuldade semelhante: que critérios usar na definição desse núnimo?). Há talvez mais convergência entre esses opostos do que possam admitir os contendores. O debate sobre a validade de leis e regulamentos está centrado, tanto para uns como para outros, na definição do conteúdo núnimo exigível da lei. Afinal, quem atribui ao legislador um dever de completude precisa de critérios para distinguir o completo do incompleto, enquanto os demais precisam de critérios para distinguir os parâmetros relevantes dos irrelevantes. O problema de ambos é o mesmo: apontar qual é o conteúdo núnimo indispensável de cada lei para dar suporte legal adequado a certas normas administrativas.39 Há algo de artificial na oposição radical entre regulamentos executivos e autorizados, pois ela se baseia na suposição de que é fácil distinguir normas meramente executivas de normas inovadoras. As coisas não são bem assim. É que o diabo está sempre nos detalhes, e quando os regulamentos tratam deles, ainda que para dar execução a limitações de direitos já previstas de algum modo em lei, podem variar muitíssimo de conteúdo, indo da postura mais liberalizante à mais restritiva. A verdade é que os defensores dos regulamentos só executivos superestimam muito a capacidade que a definição de direitos e deveres pela própria lei tem de bloquear a atuação criativa dos administradores. Ademais, essa categorização (executivos x autorizados) leva em conta apenas as nomzas substantivas: alguns dizendo que elas têm de estar na lei (e os regulamentos seriam só executivos) e outros aceitando que parte delas esteja nos regulamentos (e os regulamentos poderiam ser também autorizados). Acontece que as leis contemporâneas 39. No mesmo sentido Alexandre Santos de Aragão, para quem "a grande questão da.matéria do poder regulamentar da Administração Pública não é propriamente a de se determinar a extensão deste, mas sim definir qual é a densidade norma. liv3 mínima que a sua base legal deve ter para que seja consentânea com o Estado Democrático de Direito e com a natureza subordinada do poder regulamentar" ("A concepção pós-positivista do princípio da legalidade", cit.. Revista de Direito Cons tiwcional e bllemaciona165/13).
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DIREITO ADMINISTRATIVO
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PARA CÉTICOS
E agora? Em situações como essas, o debate jurídico só pode prosseguir se sair do plano das puras ideias, para incorporar a dimen-
A opinião deste ensaio é que a distinção regulamentos executivos x regulamentos autorizados não ajuda muito a entender qual é o papel necessário da lei e quais são os diferentes modos de a lei autorizar a ação administrativa, inclusive normativa. Assim, em verdade, essa distinção não tem a utilidade que supostamente a justifica.
são da experiência. E o que a construção histórica do direito público brasileiro nos diz sobre os limites da ação normativa da Administração? Em tese, a resposta pode vir de dois campos. O primeiro é.o da sucessão de normas constitucionais no tempo. A dúvida é: os sucessivos constituintes adotaram alguma.outra fórmula para impor limites à outorga, pela lei à Administração, de competência normativa? Como? O segundo campo é o da realidade jurídica, isto é, o da postura do legislador, dos Tribunais e dos juristas que influíram de verdade em cada época.
26. O debate sobre a constitucionalidade dos regulamentos autorizados De qualquer modo, é inevitável examinar os argumentos contrários e favoráveis, no Brasil, à outorga de uma ampla competência normativa à Administração. E estes argumentos têm sido apresentados na forma de defesa ou condenação dos regulamentos autorizados.
De outro lado, sempre esteve dito em nossas Cartas que ninguém. seria obrigado a fazer ou a não fazer alguma coisa senão "em virtude de lei". Isso, segundo os contrários aos regulamentos autorizados, excluiria as obrigações "em virtude de regulamento". Mas a esse argumento os favoráveis também objetam com pertinência, na forma mencionada: regulamentos autorizados são editados, e impõem obediência não por força própria, mas sempre em virtude de lei.
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Assim, a grande polêmica sobre a viabilidade de normas regulamentares com algo além de pura execução parece ter ficado sem solução na letra das normas da Constituição que mencionaram especificamente os regulamentos e as restrições legais sobre a liberdade. Não parece que essas normas tenham querido pender de modo inequívoco para um lado ou outro.
dirigem a ação administrativa também por meio de normas legais sobre organização adminis.trativae sobre processo administrativo, que em muitos casos podem ser bastante detalhadas. Será que o regulamento editado sob essas rígidas condições pode ser chamado de executivo, em atenção ao fato de que a lei limitou bastante a Administração, embora não exatamente por normas substantivas?
Os contrários aos regulamentos autorizados sempre usaram como argumento elementos literais de nossas Constituições, desde a Imperial de 1824 até a atual (com a única exceção da de 1937, que foi muito discrepante das demais). As diversas normas constitucionais referiram os regulamentos para a "boa" (1824) ou "fiel execução das leis" (1891, 1934, 1946, 1967, 1969, 1988) - donde a ilação de que seriam viáveis só regulamentos de execução. Mas, no plano mesmo do debate textual, os favoráveis respondem lembrando corretamente que regulamentos autorizados também dão execução às leis, pois são previstos exatamente por elas.
É CRIAR?
A realidade jurídica nos vários períodos pendeu mais para a restrição ou para a ampliação do espaço dos regulamentos? Se é verdade que, historicamente, as normas constitucionais têm procurado valorizar o Legislativo e a lei - e alguns dos elementos textuais invocados mostram isso -, o fato é que nunca houve uma forte cláusula geral de bloqueio contra autorizações legislativas para a Administração editar normas, apesar de essas autorizações sempre terem existido, desde o Império. ,
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Alguns de nossos textos constitucionais proibiram expressamente a delegação de atribuições entre os Poderes (1934, 1946, 1967 e 1969). Mas isto era insuficiente para a eliminação dos regulamentos autorizados. Afinal, para logicamente classificá-los como frutos de delegações proibidas seria preciso que a Constituição tivesse dado ao Parlamento o monopólio absoluto da produção normativa, de qualquer espécie. E isso nunca houve, ao contrário: não só os regulamentos estiveram genericamente referidos nas seguidas Constituições, como a realidade da atividade legislativa sempre incluiu as leis-quadro, até pela inviabilidade de exigir do legislador o esgotamento de todas as matérias.
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A Constituição de 1988 foi mais focada quando, no art. 25, I, do ADCT, revogou "todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder EJ>ecutiv()competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I - ação nonnativa". Agora, ficou proibida especificamente a delegação de ação normativa. Mas seria eJ>agerado e artificial interpretar o dispositivo como uma eJ>igência de que o Legislativo esgote o tratamento normativo de todo e qualquer assunto que esteja em sua esfera possível de regulação. Em termos práticos, a fórmula da proibição de 1988 é semelhante à de Constituições anteriores, e também não eliminou c1usividade". E quando há isso? A atual Carta não contém _ como não tinham as anteriores - norma reservando ao Legislativo o mono pólio de toda e qualquer ação normativa.
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Por isso, a proibição de delegação do art. 25, I, do ADCT só pode estar referida aos (muitos) casos de reserva específica de lei, em que a Constituição assinala como exclusivas do Congresso certas decisões, bem delimitadas. Essas decisões têm de ser tomadas diretamente pelo Parlamento, que não pode .transferi-Ias a outras autoridades. Mas, quando não estiver em pauta uma reserva específica de lei, o regulador poderá, segundo sua política, optar entre uma lei analítica (que admite"apenas normas regulamentares de simples execução) e uma lei-quadro (que comporta normas regulamentares inovadoras). Embora a Constituição de 1988 tenha surgido em um contexto de reação ao regime autoritário militar, no qual o predomínio do Executivo sobre o Legislativo havia sido um elemento negativo óbvio, a revalorização do Legislativo não foi feita pelo bloqueio geral da com petência regulamentar do Executivo. A opção foi por restrições pontuais, pela Criação de reservas específicas de lei para inúmeras decisões, que, assim, ficaram a salvo das autorizações para regulamentos de caráter inovador. De"modo que o atual texto constitucional também não parece decisivo para eliminar o antigo debate sobre o papel do legislador e o espaço da regulamentação.
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27. Os regulamentos foram
autorizados legitimados pela experiência
Se a divergência pode persistir no plano das ideias, o fato é que a realidade jurídica sempre se encaminhou, desde o Império, muito mais pela linha da ampliação que da supressão do espaço regulamentar, como constatou Itiberê de Oliveira Rodrigues no levantamento que fez a respeito. 40 As coisas foram assim também durante o período democrático de 1946 a 1964 e não mudaram Com a ordem constitucionalde 1988 - sob a qual, aliás, ampliou-se a atuaçã() de entes administrativos reguladores, com competências normativas amplas e explícitas. Portanto, o direito administrativo como experiência tem incorporado com naturalidade os ditos regulamentos autorizados. É claro que sempre se pode dizer que estaria justamente aí uma fragilidade institucional brasileira a corrigir, que tudo é vício herdado de um caminho autoritário, de subdesenvolvidos, e que nossa experiência de ação normativa não é para ser aproveitada, mas abando41 nada. É um argumento retórico, que extrai de uma verdade (o passado autoritário) uma ilação que ela não comporta (tudo o que veio do passado seria necessariamente autoritário). O fato é que a ação normativa administrativa ampla não é exclusiva do Brasil, nem só do mundo subdesenvolvido, nem só dos Países com histórico de ditaduras." É um fenômeno abrangente, pois tem 40. ltiberê de Oliveira Rodrigues, "Fundamentos dogmático-jurídicos da história do princípio da legalidade administrativa no Brasil", in Humberto Ávila (org.), Fundamentos do Estado de Direito - Estudos em Homenagem ao Professor A/miro do.Couto e Silva, São Paulo, Malheiros Editores, 2005, pp. 54-89.
41. Assim, José Alexandre Tavares Guerreiro: "A história do regulamento, no Direito Brasileiro, é a história de uma constante transgressão" ("Regulamento e seus pretextos", RTDP 11303, São Paulo, Malheiros Editores). Nesse sentido também Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, cit., 28~ ed., p. 104. 42. E em todo canto são grandes as polêmicas jurídicas sobre os limites da lei e do regulamento. Embora a Constimição dos Estados Unidos não preveja reservas específicas de lei comparáveis à dimensão das brasileiras, quanto à vinculação genérica do Executivo ao Legislativo suas normas são equivalentes, de modo que há boa identidade do debate brasileiro com o norte-americano (v., por exemplo, no Direito Americano: Jerry Mashaw, Richard Merrill e Peter Shane, The Adminisfrafive Law - The American Publie Law System - Cases and Materiais, 3~ed., St. Paul, West
Publishing, 1992, pp. 51 e 55. e 418 e ss.).
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cÉTIcos
mais a ver com as características do Estado contemporâneo e com O alargamento de suas funções que COI11 os períodos ditatoriais." Diante disso tudo, não há por que negar que a Administração pode, sim, receber da lei a função de regular extensivamente, por regulamento, matérias e setores, toman!lo decisões relevantes e significativas e fazendo inovações jurídicas; o que não é viável é ela ser autorizada a fazê-lo sem parâmetros suficientes e controles fixados pela lei, ou fazê-lo naqueles casos em que a Constituição tenha instituído uma reserva específica de lei. A experiência jurídica tem rejeitado a visão daqueles que, quanto à ação normativa, reduzem, para todos os casos, o papel possível da Administração, definindo-o como de mera operacionalização de decisões já tomadas pelo legislador. 28. Mas é preciso defender também o espaço da lei
Mas importa também insistir que o dever de suficiência da lei, derivado da noção de legalidade, exige, sim, dos administrativistas uma postura atenta sobre as outorgas de poder à Administração, que o legislador vai fazendo em cada lei (poder normativo ou de produção de atos individuais). Afinal, há limite constitucional a essas outorgas, embora esse limite seja de contornos relativamente incertos. Este ensaio não se alinha a visões que menosprezam a importância da lei, reduzindo-a à função de mera autorizadora formal da ação administrativa por meio de fórmulas estereotipadas, sem conteúdo substancial. A lei deve dirigir as políticas administrativas. Ela não pode se limitar a criar estruturas ocas, para serem preenchidas depois com qualquer coisa. Ela precisa ter um conteúdo significativo. Este ensaio não defende, portanto, a ideia de que não haveria limites constitucionais à autorização legal para a edição de atos ou re43. Antecipando~se argutamente a esse tipo de constatação, Bandeira de Meno usa palavras duras para condenar como "servilismo intelectual de povos periféricos" qualquer referência a experiências estrangeiras (Curso de Direito Administrativo, cil., 28 ed., p. 340. nota de rodapé 2). É um jogo retórico: a experiência brasileira não é exemplo, porque autoritária; a estrangeira, porque não é nossa. No fundo. O autor. está propondo que o debate seja resolvido no plano das ideias puras, sem a contami. nação da experiência. A este tipo de visão o presente ensaio se opõe. 1
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gulamentos administrativos, ou de que esses limites seriam irrelevantes. Ao contrário, a existêl)cia e a relevância desses limites têm de ser afmnadas. O que este ensaio contesta é, em primeiro lugar, a supervalorização, no debate do tema, do papel do Parlamento, como se a vigência do Estado de Direito ficasse comprometida com a atribuição de um extenso poder, mesmo normativo, à Administração. Em segundo lugar, este ensaio não adere à visão muito comum de que, para todos os casos, a definição na própria lei dos direitos e deveres das pessoas seja o melhor modo de proteção contra a arbitrariedade administrativa. A definição legal dos direitos e deveres das pessoas só é exigível quando decorrer de reserva específica de lei prevista na Constituição e ainda quando, em função das circunstâncias, não houver outro modo de a lei dirigir consistentemente a ação administrativa. Para as demais situações a tarefa do legislador é estabelecer parâmetros legais realmente consistentes para a ação administrativa, o que pode ser feito por diferentes soluções normativas (definição dos tipos de atos administrativos à disposição da Administração, dos objetivos a atingir, das ações a ela proibidas etc.), além de submetê-la a condicionamentos de natureza institucional (definição da composição, estrutura, vinculação e grau de autonomia do órgão administrativo) ou processual (como a exigência de realização de audiência ou consulta pública prévia, a motivação formal das escolhas, a elaboração de estudo prévio de impacto regulatório, o monitoramento posterior dos efeito~ da aplicação das normas etc.). 29. Conclusão
O exercício de competências amplas pela Administração, inclusive normativas, observadas certas condições (o respeito às reservas específicas de lei, a existência de parâmetros legais consistentes, a observância das exigências institucionais ou processuais e dos condicionamentos constantes das diversas fontes normativas do direito administrativo), é perfeitamente compatível com o pressuposto essencial do direito público: o de que a Administração deve ser controlada pelo Direito. O quanto, para além dessas condiçõeS, deve haver de limite - isto é, o quanto o legislador vai chamar a si a normatização