Sobre as coisas políticas (I) Recebi email indignadíssimo de um leitor nosso que, pelo visto, não aceita de forma alguma que anulemos, eu e o Nougué, o voto nestas eleições presidenciais. Antes de tudo, vale dizer que não me ofendem o tom exaltado e a superioridade pontifical do referido email deste nosso amigo, movidos decerto por uma justa ira em relação à desgraça política nacional, e nem o fato de o seu texto chamar-nos de “omissos”, citando como apoio o excelente teólogo Jean Ousset (que, segundo o missivista, pediria “ação” diante da presente situação do país) e fazendo referência ao princípio da “escolha do mal menor”, nas coisas humanas. Não pude, contudo, ao ler esta mensagem, deixar de lembrar-me do que diz o Pe. Calderón: o tema da política foi o que mais suscitou erros no pensamento católico. católico. Vale, pois, remeter-nos a alguns princípios, antes de apresentar a razão de anularmos o voto (observe-se, porém, que não fazemos apologia do voto nulo, pois esta é uma matéria opinável a ser decidida por cada um, de acordo com a sua consciência. Com exceção, obviamente, dos casos em que votar neste ou naquele candidato implica ir diretamente contra as leis de Deus, e omitir-se torna-se então pecado grave. Veremos adiante que não há propriamente um mal menor, no atual quadro da política brasileira, do ponto de vista da fé). Subordinação do temporal ao espiritual O princípio reitor da ação católica nas coisas políticas, de acordo com a doutrina tradicional da Igreja, é o da subordinação da ordem temporal à espiritual . Em resumo, o espiritual está para o temporal: > assim como a alma está para o corpo; > assim como a graça está para a natureza, na alma do homem justificado; > assim como a fé está para a razão, na teologia.
Quando precisa explicar a intervenção do poder espiritual nas coisas temporais, Santo Tomás — lembra-nos Calderón, no livro El Reino de Dios —
recorre às três analogias acima. Mas adverte o Santo Doutor: não há nenhuma usurpação se porventura a Igreja se intromete nas coisas temporais naqueles assuntos em que o poder secular lhe está submetido. Em suma, de fato não cabe ao poder espiritual imiscuir-se na arrecadação fiscal, na engenharia de tráfego, etc. Mas ele pode, por direito divino inusurpável, meter-se nas coisas temporais em todas as ocasiões em que este se transforme num empecilho à consecução do fim espiritual superior custodiado pela Igreja, o que na verdade pode acontecer em inúmeras ocasiões, sobretudo quando Deus e a religião são banidos do Estado na forma da lei.
No livro De regimini principum (lib. I, cap. 15), o Aquinate afirma: “O juízo que se faz sobre o fim do homem deve fazer-se, igualmente, sobre o fim de toda a sociedade” (idem oportet esse iudicium de fine totius multitudinis et unus ). Daí formular ele este maravilhoso princípio que o Nougué escolheu para pôr no pórtico da sua apresentação ao livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, do filósofo Jorge Martínez Barrera: “(...) E, dado que o homem, ao viver segundo a virtude, se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina (...), é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”. Comentando esta passagem, diz Calderón: “A argumentação de Santo Tomás é impecável. Dotado de natureza e tendo recebido a graça, o homem tem um único fim — não imanente, mas transcendente, não natural, mas sobrenatural —, e todos os bens de sua natureza devem estar subordinados ao movimento da graça, de modo que ele não busque a saúde, a riqueza, a ciência ou a virtude, etc., senão enquanto lhes servem para salvar a alma. Afinal, de que adianta ganhar o mundo e perder a alma? (cfme. Mt. XVI, 26)”. Nas passagens citadas e em outras, em que faz uso de argumentos preciosos, Santo Tomás nos demonstra que a política é tão-somente um fim intermediário instrumental em relação ao fim último, último , e, ademais, deve estar dirigida pelo poder espiritual em todas as coisas em que lhe esteja naturalmente sujeita . Não custa aqui lembrar o que diz Leão XIII na Encíclica Immortale Dei, no tópico intitulado Princípios Fundamentais Fundamentais da Doutrina Católica . 44. Sobre a Autoridade da Igreja , pois adiante este trecho nos será útil: “Os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar nenhum dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo (grifo nosso!)”.
Neste ponto, vale destacar que o poder espiritual não pode lograr o seu fim sem a cooperação do secular, da mesma forma que a alma não consegue atualizar suas potências mais excelentes senão em conjunção com o corpo, que lhe serve de instrumento nos atos da inteligência e da vontade. Estabelecidos estes princípios, é conveniente frisar ainda que a política não se restringe ao poder, mas abrange um grande conjunto de relações sociais a que hoje chamaríamos infrapolíticas.
—— Sobre as coisas políticas (II) No Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, texto comentado pelos principais pensadores medievais a partir do final do século XII, um dos problemas subjacentes às questões compiladas pelo notável magister catedralício da escola de Notre Dame era saber o que o homem deve usar e o que deve gozar. Em resumo, o uso está para o gozo assim como o instrumento do talhador está para a madeira; o pecado estaria justamente em inverter esta ordem, ou seja, gozar o que é para usar, e usar o que é para gozar . A propósito, um dos artigos do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo escrito por Santo Tomás começa assim: Deus usa o homem ou goza com o homem? Deixemos a resposta a este instigante problema para outra ocasião, pois interessa-nos por ora a aplicação deste princípio de causalidade instrumental às coisas políticas, para seguir o que se prenunciou no texto anterior: a política é, em relação ao fim último do homem, um simples meio. Noutras palavras, o homem deve usar das coisas políticas com o intuito de gozar da bem-aventurança perfeita que o espera, no céu. Sendo assim, enxergar em qualquer âmbito da Pólis o ápice da realização dos anseios humanos é esquecer-se de Deus, preterir a Cristo em favor de Barrabás, subjugar o espírito à matéria, a qualidade à quantidade. Pois muito bem, nestes tempos de contornos apocalípticos, entre católicos amantes da Tradição é grande o risco do milenarismo, essa louca esperança de uma felicidade perfeita na terra. E isto num duplo viés: milenarismo político e milenarismo religioso. O primeiro é bastante encontradiço entre católicos de formação liberal que vêem o bem político como algo autônomo ou, na melhor das hipóteses, apenas acidentalmente subordinado ao fim último do homem: Deus. Haveria, para estas pessoas seduzidas pela hidra liberal, uma separação
entre os poderes espiritual e material, e nisto são elas herdeiras distantes das obras como De Monarchia, de Dante, e Utopia, de Thomas More — durante séculos constantes do Index Librorum Prohibitorum. Por sua vez, o milenarismo religioso é mais comumente encontrável entre católicos que, apesar de sua melhor formação doutrinal — não contaminada pelo espírito do Concílio Vaticano II —, esperam com inabalável convicção o ressurgimento da Cristandade no mundo, como se lessem nas entrelinhas dos desígnios da Providência o que está selado para os tempos atuais. Parecem esquecer-se da terrível pergunta de Cristo: “Quando vier o filho do Homem, acaso encontrará a fé sobre a terra?” (Lc. XVIII, 8). Não aprofundaremos este último tipo de milenarismo, pois o foco no momento são as coisas políticas, mas vale remeter os nossos leitores a um trecho do escrito Reflexões sobre o Apocalipse, originalmente publicado no blog católico A Casa de Sarto e traduzido pela Permanência. Ali se ensina, entre outras coisas, que o milenarismo espiritual é a materialização da esperança, ou seja, o retirar da Esperança cristã o seu caráter sobrenatural. É verdade de fé que, desde o pecado original, o mundo pertence ao Maligno, que para perder as almas se aproveita da desordem instaurada por três grandes seqüelas decorrentes da queda de Adão: a concupiscência da carne (tendência à luxúria), a concupiscência dos olhos (amor às riquezas) e a soberba da vida (desobediência, proveniente do orgulho). Tendo isto em vista, Santo Agostinho afirmava que, desde Caim, fundaram-se no mundo apenas Cidades do Amor Próprio, as quais viriam a ser combatidas com a manifestação, na plenitude dos tempos, da verdade do Evangelho, que, por intermédio da Igreja militante, procurará estabelecer entre nós uma prefiguração da Cidade de Deus. Não à toa afirmava, em tom de lamento, Leão XIII, na Encíclica Immortale Dei: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho pairava sobre as nações”. Aqui chega-se ao ponto nevrálgico da questão: ou as sociedades pagarão ao Criador o seu débito de justiça, dando-Lhe o culto público devido, ou legislarão totalmente à margem de Deus, conformando-se assim às Cidades do Amor Própio de que falava Agostinho, onde os homens são carniça do demônio. Ora, legislar à margem de Deus será exatamente o que farão as sociedades modernas instigadas pela reação da carne às duras exigências do espírito cristão. Com elas se inaugura, na prática, o Estado ateu, ou melhor, um tipo de ateísmo oficial camuflado, que, sob o demagógico pretexto de respeitar as liberdades individuais, propugna — com o Estado laico — uma neutralidade em relação às questões que desde sempre
foram a base da civilização. O que muitos ingênuos não percebem é que o Estado laico moldado pela intelligentzia maçônica dos séculos XVIII e XIX — e consagrado no século XX como verdade pétrea das constituições mundo afora, a pretexto de respeitar as consciências individuais — foi a brecha para o surgimento do Estado ateu; este não existiria se não tivesse havido aquele, pois o comunismo e todos os seus matizes socialistas são filhos robustos do liberalismo antieclesiástico. Na verdade, o comunista e o liberal são como o sádico e o masoquista: odeiam-se por se mostrarem complementares em suas patologias. O sádico perderia todo o seu prazer ao inflingir dor a quem sente prazer na dor; e algo semelhante pode-se dizer do masoquista. Se por desgraça a Igreja já não age apostolicamente para converter o mundo à verdade evangélica, pois o discurso oficial, na melhor das hipóteses, aborda questões relativas à lei natural (ou seja: colocar-se contra o aborto; contra a política gayzista; contra o ateísmo; etc.), dado o ecumenismo em que jazem as autoridades; se ela já não propõe nenhum remédio a ser aplicado no plano político, para conformar as sociedades à lei do Evangelho; se ela já não se assume como a única religião verdadeira; tudo isso não implica que: a) o mundo não precise ser convertido; b) a Igreja não deva intrometer-se nas
coisas políticas, inoculando nos costumes a caridade evangélica e condenando os erros contra a fé no seio da Pólis (e não apenas intra Ecclesiam) que possam interpor-se entre os homens e Deus; c) o catolicismo não seja a única verdadeira religião, fundada por Deus Encarnado. Antes de encerrar este segundo texto da presente série, vale indagar: entre os nossos presidenciáveis há, ainda que palidamente, alguém cujo grupo político represente a defesa dos princípios aqui arrolados? Há, de fato, do ponto de vista da fé, o menos pior? Concedo que pode haver o menos pior (mas não muito, diga-se) de uma perspectiva meramente política — mas de uma política que só pode ser assim chamada por uma analogia de atribuição extrínseca. Isto porque, em sua verdadeira acepção, a política acabou. E acabou porque os valores sem os quais não há sequer resquício de civilização estão enterrados. Não sabemos até quando.
—— Sobre as coisas políticas (III): parênteses para o segundo turno das eleições presidenciais Sidney Silveira Proponhamos a seguinte questão: alguém pede a um cristão que escolha, entre dois deuses pagãos, o menos pior — ao qual deverá acender um incenso, caso queira manter-se vivo. Quemós, deus dos moabitas a quem se sacrificavam menininhas virgens; ou Dagon, deus dos filisteus, metade peixe, metade homem, a quem nos tempos bíblicos foi oferecido um grande sacrifício público pela captura de Sansão (Juízes, XVI, 23). Que fazer? Dobrar-se aos ídolos ou abraçar o martírio dizendo um veemente “não” a ambos? Analogamente, procuremos saber se há, do ponto de vista da fé, o menos pior a quem o cristão* deva incensar com o seu voto democrático, neste segundo turno das eleições presidenciais em terras tupiniquins: Serra ou Dilma? A dificuldade maior dos católicos tradicionais que caíram no milenarismo a que se aludiu anteriormente é a seguinte: na maioria das vezes sem o saber, estão impregnados da visão liberal que separara totalmente as coisas políticas das espirituais, como se pertencessem elas a ordens incomunicáveis entre si. Portanto, a sua firme esperança em evitar o presumível mal menor no plano político se apóia no fato de que não conseguem vislumbrar o mal maior espiritual em que todas as correntes da política contemporânea — sem nenhuma exceção! — se enquadram. Assim, embora intuam o movimento em direção à tragédia universal no qual o mundo contemporâneo atola, só conseguem vislumbrar placebos e imaginam com eles combater um câncer com metástase múltipla. Estão agora estes nossos amigos vibrando por haver segundo turno nas eleições para presidente. Parecem ver em Serra uma real alternativa à esquerdização absoluta do país. Ó quimera das quimeras! De onde diabos porventura saiu o candidato do PSDB? Não foi da esquerda dos anos 60? E não foi o governo a que ele pertenceu o primeiro a financiar o MST com recursos vultosíssimos do contribuinte, além de levar em frente políticas que estão na agenda das esquerdas internacionais, como por exemplo o sistema de cotas da affirmative action? Ademais, qual o item da lei natural que ele defende em relação aos outros candidatos e, particularmente, a Dilma Roussef? Será ele por exemplo contra o aborto? Bem, a título de informação, foi Serra quem instituiu o aborto estatal no Brasil, ou seja: como ministro da Fazenda de FHC, em 1998 ele aprovou a Norma Técnica do Aborto no Sistema Único de Saúde (SUS), que propiciou a realização de abortos em
mulheres (presumivelmente) estupradas. Na gestão de José Serra, o SUS providenciou material para curetagem e kits de aspiração uterina — manual e elétrica —, além do abortivo microprostol. Leiam aqui a íntegra do texto assinado pelo tucano que tantos abortos já tornou possíveis com a chancela do Estado brasileiro. Ademais, é o nosso candidato um notório incentivador das políticas gayzistas que, dentro de muito pouco tempo, estarão consagradas pelo PL 122; este, transformado em lei, instituirá entre nós o crime de homofobia. Outra coisa de relevância: com os candidatos eleitos ontem (03/10), a base do atual governo chegará a 55% na Câmara e no Senado. Ora, como nestas questões citadas (e em muitas outras) não há diferença essencial entre os candidatos e as correntes que representam, mas apenas acidental, alguém duvida que o aborto, o casamento homossexual e muitas outras leis contrárias ao cristianismo serão aprovadas com facilidade, seja no governo de Serra ou no de Dilma? Em vista destas e de outras coisas, entre Quemós e Dagon prefiro ficar com a minha consciência cristã. P.S. Veja-se no site do Provida a contagem (no alto da home): em 04/10/2010, faz 4.347 dias que o ex-ministro da Saúde José Serra aprovou a Norma Técnica do Aborto. Procure-se, no mesmo site, o texto intitulado "Ministério da Saúde ensina a matar".P.S.2. Os textos desta série sobre as coisas políticas continuam. Neles tentaremos mostrar que, sendo o mal político atual incomensurável — talvez só passível de ser resolvido por um grande milagre —, nem por isso devemos cair no desespero. * É óbvio que me refiro ao cristão católico. —— Sobre as coisas políticas (IV): “presumivelmente” estuprados Sidney Silveira No texto anterior se disse que, graças a José Serra, há exatos 12 anos mulheres presumivelmente estupradas podem abortar no SUS, ou seja, abortar com o patrocínio do Estado brasileiro. Lendo isto, alguém mandoume um email: “Pô, presumivelmente estupradas?". É assim mesmo, meu caro. Basta à mulher com interesse em fazer o aborto chegar a uma unidade do SUS e dizer que foi estuprada, para então realizar o que os textos oficiais chamam, com intenções eufemísticas, de “interrupção da gravidez”. Não é preciso, portanto, que a mulher apresente uma prova do estupro do qual diz ter sido vítima, antes de iniciar os procedimentos abortivos. Nem mesmo uma ocorrênciazinha policial... Isto porque alguns documentos são “recomendados” à postulante ao aborto no Sistema Único de Saúde, sim, mas
não são em absoluto obrigatórios. Em resumo: no Brasil de hoje, só não aborta com o dinheiro do contribuinte quem não quer. E graças a uma “Norma Técnica” assinada pelo então ministro José Serra. Sem dúvida, o chamado princípio da adesão ao mal menor político (defendido por São Pio X, embora num contexto histórico totalmente diferente do atual) continua válido. Até porque se trata de um princípio. Ocorre que mesmo um princípio precisa de mínimas precondições para aplicar-se, em dado momento. E o que tentamos mostrar é o seguinte: sequer do ponto de vista da lei natural há diferença entre os dois candidatos a presidente da República remanescentes do primeiro turno do pleito, assim como entre as correntes políticas que eles representam, todas caudatárias do ideário esquerdista. Daí recorrermos à comparação: para um cristão, eleger um deles é algo semelhante a escolher, entre dois deuses pagãos, o menos pior para acenderlhe um incenso. Li de alguém — provavelmente um jovem imberbe — que quem anula o voto não tem, ou não deveria ter, direito a opinião política... Para dizer uma coisa dessas é preciso estar totalmente chafurdado na mentalidade liberal que, depois de alguns séculos de predomínio no Ocidente, incutiu entre nós o fetiche do voto e, principalmente, a idéia de que as coisas políticas só o são se se inserem em alguma instância do poder, na ocupação de cargos legislativos ou executivos por alguma das facções em luta intestina. Isto é de uma estreiteza sem tamanho! Para perpetrar tal opinião é preciso não ter lido nada do que disseram Aristóteles, Platão, Santo Agostinho e Santo Tomás sobre a política, só para ficarmos com estes quatro gigantes, incomensuravelmente superiores a todos os teóricos da política a partir de Maquiavel. Esbocemos, pois, uma definição de “ação política”, para clarear um pouco as coisas:Uma ação é propriamente política se defende, no seio da Pólis, os princípios e valores que devem reger as coisas humanas em vista do bem comum. Em suma, este é o predicável “próprio” da política, a sua propriedade mais eminente: ser uma ação ordenada ao bem comum da comunidade humana. Por isso, sem o bem comum, não há política; pode até haver “políticos” profissionais, sobretudo nas demagógicas democracias atuais, mas não política, em sua real acepção. E a proposição contrária também é verdadeira: mesmo entre não-políticos profissionais, uma ação será integralmente política se for ordenada ao bem comum. O que acham, ora pelotas, que são o Contra Impugnantes, a editora Sétimo Selo e o Instituto Angelicum? Exercício de diletantismo? Ou a tentativa de — com grande sacrifício de tempo e de dinheiro — remeter quantas pessoas
pudermos à filosofia e à teologia deste gigante que foi Santo Tomás? Não duvidem: esta é uma ação fundamentalmente política, tanto intra como extra Ecclesiam. Aliás, superiormente política, se pensarmos que visa a nos levar ao conhecimento da teoria (referendada oficialmente pela Igreja) em vista da qual as práticas políticas devem orientar-se, como instrumentos adequados à consecução do fim último do homem: a perfeita bem-aventurança. Enfim, fomos feitos para a felicidade, e a política não deve ser um empecilho para esta finalidade querida por Deus para os homens. Outra coisa: em qualquer sociedade e em qualquer tempo histórico, o “bem comum” político será sempre um bem objetivo de usufruto de todos os cidadãos. Assim, por princípio, uma lei que protege a vida não se destina a proteger a deste ou a daquele cidadão, mas a vida de todos; uma via pública não deve servir apenas à passagem de automóveis de meia dúzia de apaniguados do Estado, mas de automóveis de quaisquer pessoas. Como se vê, o bem comum é o ente de razão que atua como causa final das coisas políticas. Por isso, só as comunidades de entes com potências intelectivas (ou seja, as humanas, pois aqui não me refiro aos anjos) podem lograr o bem comum político, pois este é sempre um ente de razão. Neste contexto, uma leoa que defende os filhotes nem por isso instaura uma Pólis, pois a primeira característica eminente de uma República digna deste nome, como ensinara Platão, é a Justiça — e esta é uma aquisição da inteligência, e não dos instintos. O leãozinho mais forte vai sempre mamar mais, vai sempre comer mais, sem com isso suscitar quaisquer dilemas éticos na leoa sua mãe. Como se pode observar, o bem comum é algo bastante claro, simples, e não uma quimera, uma metáfora inalcançável, como acreditam alguns teóricos atuais inspirados pelo liberalismo clássico, que, por sua vez, é caudatário do maquiavelismo e também da desconfiança nas “instâncias do poder” herdada de Locke e Montesquieu. Reitero, por fim, que não fazemos eu e o Nougué apologia do voto nulo. Apenas não vamos dar o nosso voto a nenhum dos candidatos à Presidência que sobraram, Dilma e Serra. Isto para não estuprar (não presumível, mas efetivamente) a nossa consciência católica. Quem pensa diferente sinta-se à vontade para apresentar as suas objeções, o sed contra. Só não venha dizer que a nossa postura não é válida para estes sombrios tempos; e a quem o fizer, peço que prove com razões suficientes. —— Sobre as coisas políticas (V): quando a escolha do suposto mal menor pode
perverter a alma Sidney Silveira Em teologia moral, a doutrina da restrição mental é de forte sabor agostiniano, pois nos livros Sobre a Mentira (“De Mendacio”) e Contra a Mentira (“Contra Mendacio”) Santo Agostinho deixara-nos claro que a inteligência, ao expandir-se, busca naturalmente a verdade. E a mentira, por sua vez, seria um dito contra mentis, ou seja, um movimento contrário à inclinação natural da mente. Em resumo: para o Santo de Hipona, quando alguém conta uma mentira restringe — no ato — essa expansão natural da inteligência rumo à verdade. Muitos séculos depois de Agostinho, alguns dos mais notáveis teólogos da Igreja adotarão a expressão restrição mental — classificando-a como estrita (ilícita) ou lata (lícita, nos casos em que uma pessoa restringe a mente para omitir algo da verdade que, em dada ocasião, não está obrigada a revelar). Após definir o mentiroso quanto ao caráter, Santo Agostinho enumera as mentiras com relação aos graus, chegando à conclusão de que a pior de todas é sem dúvida a mentira religiosa, por ser frontalmente lesiva ao fim último do homem. Ora, se, como pode-se deduzir, a classificação das mentiras tem como objeto especificante o bem que cada uma delas contraria, a mentira política será, com certeza, uma das mais nefandas de todas, na medida em que contraria o bem comum da Cidade, instrumento para a consecução da felicidade perfeita, no Céu. Advirta-se no entanto que a conquista do Céu não depende do bem-estar político, pois Deus pode, de potentia absoluta, salvar a quem quiser. Ocorre que, como sempre ensinaram os grandes Doutores da Igreja, Deus ordinariamente move o mundo por causas segundas, de acordo com os desígnios de Sua inescrutável Providência. E quis Ele mostrar aos homens que todo poder terreno provém do alto (Jo. XIX, 11)*. Pois muito bem: nas democracias liberais, legítimas herdeiras d’O Príncipe de Maquiavel, a mentira política é condição sine qua non da luta intestina pelo poder. Não há partido ou candidato que não a pratique sem o menor constrangimento, sobretudo às vésperas de eleições. E não poderia ser diferente, pois a democracia normalmente entroniza um tipo a que Platão chamava “Demou Eros”, o adulador serpentino cujo objetivo é seduzir a multidão para manter-se no poder a qualquer custo. Profética visão do grande filósofo grego! Se ele acordasse hoje veria, com assombro, quão acertada estava a sua tese de que a democracia engendra a pior das tiranias. Isto porque os amantes da sabedoria são inúteis para a multidão que a democracia alça ao poder. A propósito, pôr representantes da multidão no poder é algo análogo à atitude do capitão do navio que, detendo perfeitamente a ciência da navegação, rogasse a ineptos marinheiros que assumissem o leme (República, VI, 489c)**.
Qualquer pessoa com mínima formação intelectual e moral não consegue ver o horário político eleitoral, ou então um debate entre candidatos a qualquer cargo executivo, sem sentir certo nojo. Não há nessas horas como não ser tomado por uma desesperança profunda com relação ao nosso futuro político imediato. Neste contexto, na tentativa de usar do direito ao voto para escolher o mal menor político, não devemos fazê-lo em detrimento das potências superiores da alma, a inteligência e a vontade, para — sob o pretexto de realizar uma boa ação — não pervertermos o dom maior que recebemos de Deus: entender a verdade e querer o bem. Assim, se alguém pensa em votar em José Serra contra o presumível mal maior representado pelo PT de Dilma Roussef, pode fazê-lo perfeitamente. Mas fazê-lo com argumentos que, mesmo assintoticamente, se aproximem de alguma verdade; caso contrário cai-se na restrição mental estrita, acima citada: a omissão (ou torção) da parte mais importante do discurso de forma ilícita, mesmo que sem a perfeita consciência do ato. Um exemplo? Bem, como a questão do aborto virou um chavão deste segundo turno da campanha eleitoral para presidente da República, vale dizer algumas coisas. A primeira delas é que não se sustenta de maneira alguma dizer que José Serra, não sendo jurista, ao assinar a Norma Técnica do Aborto se deixou enganar pela idéia de que o aborto é “legal” quando a gravidez resulta de estupro. E isto por uma simples razão: a defesa da vida é um dos mais importantes tópicos da lei natural, e não é necessário ser jurista para captar os princípios da lei natural, pois estes são alcançáveis pela sindérese, que é, como demonstrou Tomás de Aquino de forma apodítica, a captação dos primeiros princípios da ordem moral inscrita em nossa forma entis (ver De Veritate, q. 16). Também não é defensável argüir que Serra não foi o autor da Norma Técnica do Aborto, mas apenas assinou-a. E assinou-a sem ter pleno conhecimento de suas reais implicações. Quer dizer então que, como ministro, ele era um simples fantoche a fazer a vontade dos técnicos? Ademais, se nem mesmo a Igreja julga de foro interno (pois só Deus vê os corações dos homens), só podemos julgar uma ação por sua extrínseca visibilidade e pelos efeitos diretos que acarreta, sejam próximos ou distantes. E, no caso de que se trata, os efeitos são os milhares de abortos praticados com a anuência do Estado brasileiro, nos últimos 12 anos — graças ao jamegão de Serra num documento ministerial. Não vou aduzir aqui a criação, no governo Serra, em São Paulo, da primeira escola gay para adolescentes da América Latina, pois este é outro assunto e mereceria um longo preâmbulo com a explicação das premissas... De toda forma, se alguém vai mesmo votar nele para evitar o mal maior, que o faça apesar de todas estas coisas, e não com argumentos que parecem justificá-las
sob algum aspecto. Seria como justificar o pecado perante Deus. * Sendo assim, a Cidade deve, por dever de Justiça, prestar o culto devido a Deus e lembrar-se de que as leis que a governam têm n’Ele o seu fundamento primevo. ** A certa altura do Livro VIII da República, Platão nos dá mais uma visão de caráter profético acerca do ambiente democrático: “Tais discursos [democráticos] são os que prevalecem no combate [de idéias]: ao pudor eles chamam 'idiotice', lançando-o fora e convertendo-o em desonroso fugitivo [da Pólis]; ao autocontrole [dos apetites sensitivos, ao qual os cristãos chamarão castidade] chamam ‘falta de virilidade’, injuriando-o e desterrando-o. (...). Reintroduzem a desmesura, a anarquia, a prodigalidade e o despudor (...); elogiam-nos e chamam, eufemisticamente, de ‘cultura’ a toda sorte de desmesuras; de ‘liberalidade’ à anarquia; de ‘grandeza de espírito’ à prodigalidade; e de ‘virilidade’ à impudicícia”. (República, VIII, 560, d-e). Em síntese, a palavra transformada em fetiche no ambiente democrático é liberdade; ela será a reitora das leis, e não a Idéia do Bem. Recorramos ainda a Platão: “Num Estado democrático ouvirás, seguramente, que a liberdade é tida como a mais bela das coisas, e que, para quem é livre por natureza, este é o único Estado digno sob o qual se deva viver. (...) No entanto, o desejo insaciável de liberdade e o descuido das coisas mais importantes [típicos das sociedades democráticas] altera esse regime político e o predispõe à tirania. (República, VIII, 561, c-d). P.S. Sei perfeitamente que eu e o Nougué, que anularemos o voto, estamos angariando a antipatia de muitos amigos católicos. Mas não podemos calar ao saber que vários padres ligados a movimentos tradicionais estão simplesmente fazendo panfletagem a favor de José Serra, omitindo não obstante os pontos fundamentais de sua atuação política recente e induzindo vários católicos ao milenarismo condenado desde sempre pela Igreja. —— Sobre as coisas políticas (VII): A Política segundo Tomás de Aquino [A seguir, transcrevo os tópicos de uma aula ministrada nesta semana sobre o tema da Política em Santo Tomás, na qual se tentou mostrar que o Estado não pode ser uma realidade contra naturam, ou seja: não pode contrariar a busca pela felicidade posta por Deus na região mais recôndita do coração humano. Trata-se apenas de ANOTAÇÕES feitas para ser comentadas em sala de aula; portanto, advirto que não têm a forma de texto final. A propósito, todos os tópicos abaixo foram extraídos da obra de Santo Tomás, com a exceção da definição de “felicidade” — que é deste modesto escriba. Mas, mesmo aqui, trata-se de um corolário da visão do grande mestre
medieval. A princípio se poderia estranhar o fato de começar-se uma aula sobre Política falando a respeito de felicidade, bens naturais e sobrenaturais, méritos, etc. Mas, ao fim, ver-se-á que a Política tem tudo a ver com estas coisas, que são profundamente humanas e possuem uma fonte divina.] Sidney Silveira 1- FELICIDADE Definição Ø Posse habitual dos bens queridos. Noutras palavras, diz-se que o homem é feliz quando possui habitualmente os bens que deseja. Portanto, a felicidade é um hábito, e não a simples adição de momentos esparsos, isolados ou estanques de júbilo. Por isso não devemos confundir a felicidade com o efeito psicológico conseguinte à posse de um bem: a alegria (lætitiæ), que tem reflexos tanto no corpo, como na alma. Não trato aqui dos desvios, como por exemplo dos casos em que um homem se apossa desordenadamente de um bem — sem orientá-lo aos que lhe são imediatamente superiores. Isto é assunto para a Teologia Moral. Os bens podem ser No plano natural No plano sobrenatural sensitivos — Relativos ao corpo (comida, sexo, etc.). intelectivos — Conhecimento da verdade e seu conseqüente uso prático (esses bens incluem a filosofia, a cultura, a ciência, a política e todas as criações do espírito humano). Espiritais — A graça; a via mística com os seus graus purgativo, iluminativo e unitivo; os méritos, de congruo e de condigno, etc. (Estes bens se ordenam à posse de Deus, no céu. Ou seja: à visão beatífica; à perfeita felicidade que ultrapassa os limites da Pólis). A noção de MÉRITO No plano natural No plano sobrenatural Em sentido lato: Direito a uma recompensa em reconhecimento a uma boa obra. Por ex.: O aluno mereceu tirar 10 na prova. Em sentido lato: Direito a uma recompensa graças a Deus. E, em sentido estrito, o que segue abaixo: Mérito de condignidade (de condigno) 1- De perfecte condigno: É o mérito perfeito de Cristo. Com o sacrifício na Cruz, ele mereceu para nós a redenção. 2- De condigno. É o mérito proveniente do esforço por seguir os mandamentos. Por ele, o homem faz jus a vários tipos de graça, em ordem à glória, e se torna amigo de Deus.
Mérito de conveniência (de congruo) 1- De congruo proprie. É o mérito proveniente dos direitos da amizade do justo para com Deus (in jure amicabili). Por ele um homem em estado de graça, rezando, consegue de Deus a salvação de um pecador; a conversão de um infiel; que um homem não morra em impenitência final, etc. O mérito de Nossa Senhora (mediadora das graças) para conosco é deste tipo. 2- De congruo improprie. É o mérito do pecador que, estado de pecado mortal, recebe graças atuais para rezar e voltar ao estado de graça. Em resumo> Há três tipos de mérito: o de Cristo para com o homem (de perfecte condigno); o do homem para consigo mesmo, por intermédio da graça que passa a merecer pelas boas obras, ou seja, por tornar-se amigo de Deus (de condigno); e o do homem para com outro homem (de congruo proprie), em razão dos direitos adquiridos pela amizade com Deus (iure amicabili). Já o mérito de congruo improprie só pode ser considerado mérito por analogia de atribuição extrínseca. Algumas premissas: Ø A felicidade é uma busca fundamental da alma humana, dadas as nossas potências distintivas: a vontade e a inteligência. Em suma, não há como viver sem buscá-la (Ver Suma Teológica, I-IIæ, q. 5, art. 1 a 5), pois a vontade é apetite intelectivo do bem. Ø nesta vida, essa busca jamais poderá ser satisfeita plenamente, pois estamos contingenciados por vários males: físicos, intelectivos e espirituais, sociais, etc. Ø O homem não pode conseguir a perfeita bem-aventurança por méritos próprios, naturais, mas apenas por méritos sobrenaturais. Aqueles se ordenam a estes. Ø Embora a Cidade não seja a propiciadora dos bens sobrenaturais, deve defender os bens naturais sem os quais a Graça não logra a sua ação, pois a Graça supõe a natureza. Ø A felicidade perfeita é o fim último do homem, no céu. Onde não pode estar a felicidade perfeita: a) Nas riquezas; b) Na fama; c) No poder; d) Em bens corporais; e) No prazer; f) No bens da alma (embora ela se dê na alma, baseia-se em algo fora dela); g) Em quaisquer outros bens criados. A felicidade perfeita é a posse intelectiva da essência divina. Um bem que repousará totalmente a vontade humnana e porá fim à sua busca. restará ao homem fruir a Deus, bem perfeitíssimo, eternamente. A felicidade perfeita só
pode estar num bem que não seja buscado em função de outro. E este é Deus. Aqui, surge a pergunta: O Estado tem alguma coisa a ver com essa tendência fundamental do homem de buscar a felicidade (que é a posse habitual dos bens queridos)? A resposta de Santo Tomás parte de princípios claros: sendo Deus o fim último do homem — e não apenas os indivíduos, mas também das sociedades —, a Cidade deverá ter o seu fundamento na autoridade divina. O Estado é, portanto, um instrumento para a consecução do fim último do homem. Sendo assim, o Estado não pode contrariar esta humana busca pela felicidade e nem tornar-se um obstáculo para a lei divina. Aqui, entra o tema da Política. 2- POLÍTICA Definição Ø É a ciência do governo da multidão, em vista do bem comum. A POLÍTICA COMO CIÊNCIA É ciência prática, pois é da ordem do obrar. É ciência cívica complementar à filosofia. É ciência necessária. Isto porque, estando as coisas da cidade (como tudo o que é humano) submetidas ao escrutínio da razão, é preciso haver um tipo de sabedoria prática que ordene todos os fins intermediários em relação ao bem comum. É ciência arquitetônica em seu âmbito. Isto porque todas as demais ciências práticas estão a ela ordenadas para a consecução do bem perfeito nos assuntos humanos. (ver de Santo Tomás o Comentário à Política de Aristóteles, Proêmio.) 3- O ESTADO (ou CIDADE) A arte imita a natureza. Ars imitatur naturam. Assim começa Santo Tomás o Comentário à Política de Aristóteles. Veremos depois por que razão, num livro sobre Política, o Aquinate começa falando de natureza. Definição de natureza em Tomás: “A natureza é a razão de certa arte divina, intrínseca aos entes, que os faz mover-se por si mesmos aos seus fins”. Lembremos, aqui, a propósito, que todo o conjunto de entes naturais tem o seu princípio no intelecto divino. Metafisicamente, os entes naturais dependem do Próprio Ser Subsistente, realidade sobrenatural. Onde entra o Estado em tudo isso? O que teria ele a ver com felicidade e natureza? Pois bem: assim como, no que tange às coisas naturais, os entes se movem aos seus fins, também no Estado esta premissa será válida, pois deve haver algo que mova ao modo de ordem o conjunto dos indivíduos humanos (que são entes naturais) aos seus fins próprios, para então lograr-se o fim da Cidade: o bem comum — que tem a paz social como sucedâneo imediato. Neste ponto entra, propriamente, o tema do governo. Em Santo Tomás, ao contrário do que acontece com Aristóteles, o conceito de
natureza, com todas as suas implicações metafísicas, dará suporte à concepção de Política. Em resumo: a Política não pode ser contra naturam. A propósito, leiam o livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Barrera. Origem natural do Estado. Santo Agostinho, que nos remetia ao fato bíblico de que a primeira cidade fora fundada por Caim, conclui que o Estado não seria propriamente natural na comunidade humana, mas uma conseqüência do pecado. Santo Tomás irá na via inversa. Dirá, com Aristóteles, que o Estado tem origem na natureza social e política do homem. Assim, mesmo que Adão não tivesse pecado, haveria prelazia (governo) de uns homens sobre outros. E isto a começar pelas primeiras sociedades, que dão a base do Estado: a família (onde os filhos são subordinados aos pais, etc.) e a associação de grupos humanos em vista de bens individuais e comunitários (na medida em que se necessita de leis que regulem a vida comum). Como se vê, ao contrário de todas as visões liberais, nesta perpectiva o Estado não é um superestrutura no seio da Pólis; não é um inimigo das consciências individuais; não é um monstro burocrático a ser temido. Ele é, fundamentalmente, o conjunto da multidão humana regido por leis — sendo a primeira delas, como veremos, a lei divina. Se esta for a reitora das leis humanas, a Pólis não cairá na desordem social, mesmo tendo que lidar com males de todo tipo (até porque somos todos herdeiros de ferida na natureza). Não custa remeter-nos ao que se afirma neste texto da série. Sociedades naturais, que geram o Estado No plano doméstico No plano civil A família A vida em grupo que reclama por uma medida racional que as regule: as leis Outro ponto: os homens que vivem em grupo precisam uns dos outros para sobreviver, e isto fortalece a amizade entre vários deles. E é justamente a amizade um dos pressupostos fundamentais do Estado — em sua origem, lembremos.. O ESTADO não é uma instância autônoma. Fim próximo do Estado> o bem comum. Fim último do Estado> A premissa fundamental: o Estado deve ordenar-se a Deus. Diz Tomás no “De Regno”: “Dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana [ou pólis], que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”. Em várias outras passagens de sua imensa obra, prova o Aquinate que o Estado está subordinado a Deus assim como um efeito está subordinado à sua causa primeira. A propósito, noutro dia,
relendo o verbete “Política” no Dizionario Enciclopedico del Piensero di San Tommaso d’Aquino, do padre italiano Battista Mondin, uma vez mais constatei como a mentalidade modernista atrapalha tremendamente a intelecção das coisas mais evidentes: tendo à disposição todos os princípios colhidos nas obras de Santo Tomás citadas no dicionário, Mondin conclui, no tocante às relações entre a Igreja e o Estado, que segundo o Angélico o Estado possui “perfeita autônomia”. Incrível! É algo parecido com o que acontece com o tomista Jean-Pierre Torrel, também imerso na mentalidade liberal que tomou a Igreja de roldão. Formas de governo> Santo Tomás não é um cratólogo, quer dizer, um estudioso das estruturas do poder, categoria hermenêntica da qual hoje se abusa deveras, na análise da Política. Interessa-lhe, antes de tudo, o fundamento metafísico da Política. Pois bem, com relação à forma ideal de governo, no De Regno é clara a sua preferência pela monarquia. Na Suma, por sua vez, ele opina em favor de um governo misto — espécie de mescla de monarquia, aristocracia e democracia, onde um só é depositário do poder governa a todos; mas muitos participam do poder; e todos podem ser eleitos. Virtudes que deve ter o SOBERANO, o governante> Justiça: comutativa (que contribui grandemente para a paz social); legal (regulação dos deveres das pessoas para com o Estado); e distributiva (deveres do Estado para com as pessoas). Prudência na aprovação das leis, as quais devem defender primeiramente o bem comum e não esquecer-se de que nesta vida de homo viator somos peregrinos em direção à Pátria Celeste. 4- As leis Conceito geral: A lei é regra da reta razão, que se ordena ao bem comum. Lei Divina> Os 10 mandamentos, todos eles sendo a base para as leis positivas e também uma expressão fiel da lei natural, ao contrário do que pensava Duns Scot, que afirmava serem apenas os dois primeiros mandamentos atinentes à lei natural. O corolário da opinião nada sutil do Doutor Sutil (que, Deus do céu!, está prestes a ser canonizado) é o seguinte, como lembra Guillermo Fraile em sua História da Filosofia: matar, roubar, mentir, cobiçar o que é alheio, desonrar os pais, etc., não são atos, em si, intrinsecamente maus, mas o são apenas na medida em que Deus os proibiu. Neste ponto, a lei já é vista como algo extrínseco a toda e qualquer natureza, e, a fortiori, à natureza do próprio homem. Não há, aqui, propriamente, lei natural. Mas deixemos Scot. Lei eterna> É o plano pelo qual Deus governa, com suma inteligência, todas as coisas criadas. Noutras palavras, é a Providência divina, da qual nada escapa. Lei natural> Participação da razão humana na lei divina. É captável pela sindérese, primeiro princípio habitual da razão prática, que nos conduz a
fugir dos males e buscar os bens. Essa lei natural captada primordialmente pela sindérese é depois conceituada pela razão, que gerará a lei positiva humana. Lei positiva humana. Deve ser a regra racional da lei natural. Uma lei que contrarie a lei natural é iníqua e, portanto, não é propriamente lei – razão pela qual não deve ser obedecida. Por ex.: Se o Estado obrigasse todos, na forma da lei, a abortar; se o Estado obrigasse todos, na forma da lei, ao casamento homossexual; se o Estado ou o governo obrigasse todos, na forma da lei, ao infanticídio (como Herodes o fizera); etc. Nestes casos os cidadãos não teriam a menor obrigação de obedecer à lei. No Estado, as leis positivas devem ser o reflexo da lei eterna (a qual se apóia a lei natural), e da obediência à lei divina (que também reflete a lei natural). Qual é o fim da lei? Diz o Aquinate, seguindo a Aristóteles: “O fim das leis é tornar os homens virtuosos”. Teses de Aristóteles que Santo Tomás não aceita: Ø A política como o âmbito supremo das realizações humanas; Ø Exclusividade étnica da Pólis, a dos gregos. Os asiáticos seriam inteligentes, mas não fortes; os povos do norte seriam fortes, mas não inteligentes; Os helênicos reuniriam ambas as qualidades; por isso deveriam escravizar os outros. Ø Limitação do número dos cidadãos a 5.000, o que justifica a eugenia e à exposição dos aleijados ou das crianças deficiências à morte, etc.. Ø Aporia nas relações entre a religião e a Pólis: o Estagirita diz na Ética a Nicômaco que o primeiro dever do cidadão é prestar culto aos deuses, ao passo que satiriza o que chama de mitólogos (os teólogos) e põe o Primeiro Motor Imóvel, o seu deus por excelência, fora do alcance dos homens, pois, segundo Aristóteles, se ele conhecesse qualquer coisa além de si, se degradaria.. 5- Relações Igreja-Estado Premissas: 1- Subordinação entre os bens sensitivos, intelectivos e espirituais aludidos acima, cuja posse traz a felicidade ao homem. Essa subordinação se dá tanto no homem como na sociedade. A proposito. No homem, conhecer a verdade e querer o bem são as operaçõess ótimas da alma. Todas as demais são instrumentais em relação a estas. 2- Subordinação essencial do Estado (custodiador do bem comum) à Igreja (custodiadora do bem eterno, fim último do homem, com relação à fé e aos costumes (portanto, com relação às leis).O Estado, como dizia Leão XIII, deve defender in primis os bens naturais da alma, pois a graça supõe a natureza. Esquecer disto é literalmente cair na concepção liberal de política, que põe a base de tudo na consciência dos indivíduos e na liberdade, embora
os termos “indivíduo” e “liberdade”, em sua concepção, sejam absolutamente equívocos. Conclusões: 1- Entre o Estado (a Cidade) e a natureza do homem há um vínculo metafísico que culmina em Deus. Quando se perde tal vínculo, a cidade se corrompe absolutamente. 2- Buscamos politicamente fins transpolíticos. Ou, noutras palavras: O GOVERNO DA CIDADE HUMANA DEVE ORDENAR-SE À PÁTRIA CELESTE, ONDE A FELICIDADE SERÁ PERFEITA, ETERNA. —— Sobre as coisas políticas (VIII): momento de ir aos princípios Sidney Silveira Alguém me faz a indagação: vamos falar agora sobre a Política em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino? Ou seja: em meio ao caos brasileiro e às vésperas de uma eleição importante? E o texto em que ela veio formulada fazia uma contraposição entre “as possibilidades mais altas do ser humano” e as “possibilidades terrenas”, dando claramente a entender que discutir a Política em suas mais elevadas concepções, quando a vaca está no brejo, é omitir-se das responsabilidades cívicas que o momento — eleitoral — exige. Nas palavras da pessoa que me enviou o email, seria mais ou menos como “ir à lua”, justo na hora do pega-pra-capar. Ora, não atina o nobre missivista (católico) que fazer política sem saber o que é a Política é uma das principais causas da tragédia contemporânea? Não atina também o nobre missivista que, para tocar um instrumento virtuosamente, é preciso, antes de tudo, conhecê-lo, e, ademais, ter o hábito da ciência musical impregnado na inteligência? Toda vez, portanto, que se discute acerca de qualquer posição política é necessário buscar o princípio reitor da discussão; sem isso, a coisa vira conversa de bêbado... E isto é superiormente válido para o nosso tempo, em que as pessoas perderam a idéia do que seja a Política, pois ou a identificam com o Estado (como famigerada estrutura de poder), ou com os partidos e facções, ou ainda com uma mera instância mediadora dos conflitos entre os indivíduos. Mas qual é a ratio da Cidade, quais são os seus fins e, por conseguinte, os meios adequados para alcançá-los, etc., tudo isso ficou relegado a último plano, ai de nós. A indagação veio acompanhada de outra idéia deste amigo de fé (pelo visto, um homem imbuído das melhores intenções): a de que a “moral católica”, enfim, deu a pauta da política eleitoral brasileira. Aqui residem várias confusões. Uma delas é a seguinte: o aborto e o casamento entre
homossexuais, temas a que ele se referia em seu texto, só têm a ver com “moral católica” acidentalmente, ou, como diriam os escolásticos, secundum quid, pois se trata antes de tudo de lei natural. No Irã, por exemplo, estas coisas são proibidas — e não o são por motivos católicos. Tal pensamento nos dá, a propósito, um fiel retrato do catolicismo pós-Vaticano II: a fé se discute nas paróquias e nos seminários (isto no melhor dos casos, é claro); extra muros, o máximo a que se chega é defender a lei natural em alguns dos seus pontos mais evidentes, mas despojando-a de sua fonte sobrenatural, já que se renunciou a pôr a Pólis sob a capa benemerente das verdades da fé. Clemente de Alexandria, em dado trecho de uma de suas mais conhecidas obras, a coletânea de pensamentos Stromata (I, 2, 19,1), dizia com ironia: “Para supor que a filosofia é inútil, seria útil estabelecer filosoficamente a prova de sua inutilidade". Ora, algo similar se pode dizer da Política*, e justo quando as coisas mais inúteis ou aberrantes têm pleno direito de cidadania (que o diga a recente eleição do Tiririca): em todos os momentos, inclusive na hora eleitoral presente, devemos deixar bastante clara não apenas a utilidade, mas também a absoluta necessidade de buscar apoio em princípios sólidos e irrenunciáveis para cada ação política em que estivermos envolvidos; caso contrário, ficamos sempre à mercê de circunstâncias obscuras e vivemos como reféns da opinião da maioria ou, então, de grupos para os quais todas estas coisas não fazem sentido. Da mesma forma como o mestre de obras não detém a ciência do fim da edificação, mas apenas executa, no plano material, o que lhe foi passado por engenheiros, e estes por sua vez fazem os cálculos para pôr de pé a idéia do arquiteto que projetou tudo, também na Política ocorre algo similar. Em síntese, somente com o conhecimento preciso de quais sejam os verdadeiros fins da Política se pode chegar a bom termo em qualquer discussão neste tema, e, muito mais que isso, justificar esta ou aquela posição sem cair em argumentos ora sofísticos, ora cegamente apaixonados, ora timidamente covardes. Quando Sócrates preferiu tomar a cicuta a escapar do cárcere, conforme lhe propuseram os amigos pouco antes de sua execução, disse “sim” ao bem da Cidade e, também, ao das almas — em virtude do nobre exemplo que dera com o seu ato. Num dos mais belos escritos da história da filosofia, o Críton, de Platão, diz Sócrates que fugir do cárcere faria dele um homem indigno. E não se tratava apenas de tornar-se indigno perante as leis, que são a razão de ser da Cidade (pois uma cidade sem leis ou com leis iníquas é a “antipólis” por excelência), mas perante a divindade de onde provêm as leis. Naquele momento, fugir representaria simplesmente matar a verdade, sem a qual não há civilização. Mas, na opinião de Críton, certamente a fuga seria o "mal menor" para Sócrates.
Pois bem: hoje muitos estão matando a verdade para justificar a escolha do mal menor, porque não têm a clara visão do imenso drama do nosso momento histórico. Há, a propósito, um quê de fuga nesta escolha: a fuga da visão de que a “divina” democracia em que vivemos, com o seu ódio à excelência, levou-nos a becos sem saída. O que advirá da atual situação, só Deus sabe. Ditas todas estas coisas, caro amigo, encerro com as seguintes palavras: se você vê como decisiva a escolha entre o capeta e o capetinha (refiro-me aqui não às pessoas, mas às correntes políticas que representam, em essência anticristãs), boa sorte. Eu, de minha parte, não tenho a mais ínfima esperança de melhora política, sequer a médio prazo. Pelo menos enquanto a Cidade estiver tão hermeticamente fechada à lei eterna — em grande parte por culpa da Igreja, que quis afastar-se decisivamente do Estado —, pois o efeito neste caso é o seguinte: constrangimento da lei natural e conseqüente criação de leis positivas humanas monstruosas. Esta foi a caixa de Pandora aberta pelo liberalismo forjado nas lojas maçônicas do século XVIII e pelos comunismos que se lhe seguiram (como efeitos às suas causas), a partir de meados do século XIX. Todos ainda muito vivos, neste admirável mundo novo. * A propósito, uso a maiúscula em Política”para identificar a ciência governo em vista do bem comum. E política com minúscula (ou no plural) ora para indicar tratar-se da simples aplicação de medidas de governo; ora para remeter-nos às ações de alguma facção ou grupo; ora para apontar uma total degeneração da Política que a desvie de seus fins específicos, como é o caso da política partidária em que jazemos — a qual entroniza a demagogia e induz à multiplicação dos conflitos sociais.